Paraiba, Mulher Macho. Tese. AAbrantes PDF
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PARAÍBA, MULHER-MACHO:
TESSITURAS DE GÊNERO, (DESA)FIOS DA HISTÓRIA
(PARAÍBA, SÉCULO XX)
Recife
2008
ALÔMIA ABRANTES DA SILVA
PARAÍBA, MULHER-MACHO:
TESSITURAS DE GÊNERO, (DESA)FIOS DA HISTÓRIA
Recife
2008
Silva, Alômia Abrantes da
Paraíba, mulher-macho : tessituras de gênero,(desa)fios da
história / Alômia Abrantes da Silva. – Recife: O Autor, 2008.
252 folhas : il., figuras.
Inclui bibliografia.
A Durval Muniz de Albuquerque Jr., orientador atento e generoso incentivador dos trajetos
deste trabalho.
A Regina Beatriz, pelas leituras instigantes, assim como pelas afetivas e agradáveis horas de
aula.
A Antonio Montenegro, pelas observações perspicazes e discussões que ajudaram a redimen-
sionar minha pesquisa.
A Adriano de León e Lígia Bellini, que aceitaram contribuir com seus olhares e impressões
sobre este trabalho.
A Dinarte Varela, que generosamente compartilhou comigo seus “achados” sobre 1930 e me
confiou idéias valiosas.
A Margarete Almeida, que na tessitura da vida diária me ajudou a ampliar o repertório sobre
os estudos e relações de gênero.
A Socorro Cipriano, pelas horas a fio de escuta e valiosa partilha da escrita cotidiana.
A Mariângela Nunes, pelo carinho e amizade.
A Alarcon Agra, por tornar as tardes em Recife mais alegres.
A Germana Lucena, companheira de viagem e curadora da coluna dos amigos “em tese”.
A Fábio Norat, por todo o cuidado e partilha do coração.
Aos amigos da alegria e de toda a vida: Graça Amaro, Ricardo Araújo, Rosilma Diniz, Steban
Büller, Josi Sousa, André Hofman, Valdisa Moura, Nemézio Jr....
As amigas queridas e companheiras de trabalho: Edna Araújo, Telma Dias, Joedna Reis, Elisa
Mariana...
A Alex Antonio, pelo aprendizado cotidiano e por me lembrar do que não devo esquecer.
A Alanne Cristina, que agora nos abençoará com uma nova luz.
A Antonio José e Izaurita, partes profundas do masculino e do feminino em mim, minha gra-
tidão por toda a vida.
A Dr. S’Hong, pelo cuidado e afeto, além das sábias lições sobre como não temer a morte.
A Dr.ª Susan Andrews, por criar um mundo de acolhimento e positividade.
A Dr. Pachon e sua equipe “do coração”, que me fez ver a medicina com outros olhos.
A todos, enfim, que zelaram pela minha vida e que fazem dela uma experiência pela qual de-
sejo acordar todos os dias.
Amanhã
não sei.
Não o soube
Ontem.
Mas hoje é certo
hoje é
para sempre.
(Miriam Portela)
RESUMO
This work aims to analyzing the discursive productions which historically enabled the
emergence of the “Paraíba, macho woman” image, during the twentieth century, as an identity
for the State and the women who live in it. Though, taking into account the music Paraíba, by
Luiz Gonzaga and Humberto Teixeira, lauched in 1950, as a summary of such nomination, it
is understood here that this music echoes meanings which were in movement, activating the
memory of the 1930 revolution and its political and gender references. So, sources related to
such contexts are mingled as well as their implications in more recent debates, especially the
ones which from the 1980s (re)shape such an image in association with other icons, mainly
with the teacher and writer Anayde Beiriz (1905-1930). In this research, the corporeities
construction is questioned pointing out the devices which make up and regulate places for the
male and female gender, also discussing the runaway guidelines outlined and experimented by
transgressive subjectivities registered in knowledge and power borderlines. Therefore, this
work is presented as a narrative discourse, in which constraints regarding history are part of
the scenery, once it is a constituted locus and it is constituent of places and images of gender.
INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 11
CONCLUSÃO......................................................................................................................227
ANEXOS..................... ..........................................................................................................245
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
INTRODUÇÃO
1
O Baião Paraíba, de autoria de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, composto em 1950, foi gravado pela pri-
meira vez por Emilinha Borba, sendo em 1952 gravado também na voz do “rei” Luiz Gonzaga.
12
fazer na Internet uma busca pelo nome “Paraíba”, surpreendo-me com a infinidade de links
que utilizavam a expressão “Paraíba, mulher-macho”, como uma espécie de slogan, tanto em
sites ligados aos “artistas da terra”, insistindo que a cultura paraibana iria além da “Paraíba
masculina, mulher macho sim senhor”, como em outros relacionados ao público GLS (hoje
GLBT: Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros), e ainda uma matéria de um jornal on-
line, informando a elaboração de um Projeto de Lei do deputado Maurílio Rabelo (PL-TO),
que proibiria o uso de expressões denotativas de preconceitos de origem, penalizando, por
exemplo, quem insistisse em chamar nordestino de ‘Paraíba’ e de ‘Paraíba, mulher-macho,
sim senhor’ “uma mulher corajosa ou supostamente homossexual”. 2
Também, fora do mundo virtual, à mesma época, em um jornal impresso de grande
circulação no Estado, o Professor Trindade fazia sua reclamação, culpando Luiz Gonzaga pela
“idéia idiota e absurda de que a paraibana é masculinizada’, lembrando, como professor de
Língua Portuguesa que é, que o topônimo ‘paraíba’ significa originalmente “porto mau”, o
que o fazia concluir que “a Paraíba é, portanto, macho, sim senhor”. 3
Foi assim, ao longo destas procuras, que os fios entrelaçados destas conexões parece-
ram enovelados ao meu olhar, compondo uma trama bem mais complexa do que eu julgara
por muito tempo. Os significados atribuídos à “mulher-macho” variavam, e estes não estavam
associados somente às mulheres nascidas na Paraíba, mas à própria região. Afinal, a “peque-
nina” citada na música de Gonzaga era simultaneamente uma mulher e um Estado. Há aí uma
espécie de “colagem” que produziu e continua produzindo muitos e diferentes afetos. A músi-
ca, mais do que simplesmente “brincar” com supostas qualidades de um lugar e de sua gente,
envolve questões morais, políticas, identitárias, que já se colocavam antes da sua emergência
— o que ocorreu, como um momento síntese desta associação, em 1950 — e que até a atuali-
dade não cessam de produzir sentidos.
As leituras teóricas que fui selecionando ao longo da minha formação acadêmica fo-
ram me fornecendo ferramentas para lidar com esta trama, que ao meu olhar, parecia cada vez
mais com uma “colcha de retalhos”, uma grande tessitura, unindo fragmentos de temporalida-
des diversas na confecção de um amplo espaço, que por sua vez abriga práticas e lugares de
gênero, de saber e de poder. Assim, a questão que move este trabalho — a de pensar como
historicamente a imagem da Paraíba e das mulheres nela nascidas e sua identificação
com a da “mulher-macho” tornou-se possível — foi sendo alinhavada com os pequenos
2
Respectivamente: Malagueta. Disponível em: <http:/www.malagueta.com.br>acesso em 28/08/2003; Correio
Brasiliense On-line: Brasília, 21/07/2003. Disponível em: <http:/www2.correioweb.com.br> acesso em 28 a-
gosto 2003.
3
Professor Trindade. Paraíba é macho, sim! Jornal Correio da Paraíba. Paraíba, 10 de agosto de 2003, G-3.
13
fragmentos que fui recolhendo devagar, em fontes diversas. Porém, muito mais que aquela
que coze — embora também não possa nem queira escapar a isto — estou me propondo aqui
a abrir e descosturar um pouco esta malha, olhar seus meandros, seus alinhavos, sentir seus
relevos, seus nós e solturas... Acompanhar e descrever seus pontilhados.
Encontrando na superfície o desenho desta cartografia, tal como uma pele, ela se torna
o mais profundo, sua espessura pode ser lida justamente nas intensidades com as quais as i-
magens engendradas nesta trama tornam-se marcas, inclusive nos corpos de muitas pessoas ao
longo do tempo. Na tentativa, pois, de desalinhar os estratos destas texturas, busco inspiração
nos trabalhos do filósofo Michel Foucault, em vários momentos de sua obra. 4 Em especial, ao
traçar um plano de “escavação” desta espessura, procuro, não uma origem ou seu sentido se-
creto, mas as condições de sua emergência, as regras de sua funcionalidade. Para tanto consi-
dero determinados espaços e temporalidades, pretendendo assim exercitar um olhar “arqueo-
lógico”, investigando e descrevendo os arquivos que possibilitaram a produção de um saber
referente à construção identitária da Paraíba e das mulheres nela nascidas como “mulher-
macho”.
Foucault nomeia, pois, de arqueologia, um exercício de descrição do arquivo. No ca-
so, arquivo compreendendo o conjunto de discursos efetivamente pronunciados, considerado
não somente como um conjunto de acontecimentos que teriam ocorrido uma vez por todas e
continuariam em suspenso, mas também como um conjunto que continua a funcionar, a se
transformar através da história, possibilitando assim outros discursos. 5
Embora tenha privilegiado em suas ricas análises os discursos que constituem o campo
do saber científico, Foucault deixou claro que a escolha deste domínio não passava de um
“privilégio de partida”, portanto, não havia delimitações metodológicas fixas, nem aplicabili-
dade a um domínio circunscrito. Isso veio ampliar as possibilidades de adaptação e inspiração
ao estudo de outras regras discursivas, percebendo como elas se misturam nas produções de
sentidos que regulam os modos de existência.
Trabalho, pois, com diferentes séries, com suas especificidades de linguagem, de sig-
nificantes, que se organizam em arquivos diversos, mas que se comunicam permanentemente,
com suas continuidades e rupturas. São produções que ganharam materialidade em diferentes
corpus, como na imprensa, no cinema, na música, na literatura e na historiografia. E aqui é
4
Sobre as fases ou eixos do trabalho de Foucault ver, por exemplo: DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução
Claudia Sant’Anna. Revisão Renato Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005. MUCHAIL, Salma T. Foucault,
Simplesmente. São Paulo: Loyola, 2004.
5
FOUCAULT, Michel. Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. 2ªed. Manoel Bar-
ros da Motta (Org.). Tradução Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, v. II (Coleção Ditos
& Escritos).
14
interessante esclarecer que, embora tenha tentado razoavelmente aproximar-me das regras de
funcionamento de cada um destes gêneros, que representam em si linguagens específicas,
enquanto exercício de sensibilização do meu olhar, procurei tratá-los naquilo que os aproxi-
mam, que penso ser justamente as suas potencialidades de comporem maquinarias de encar-
nação, engenharias complexas de invenção de sentidos e de produção de efeitos do “real”. 6
Meu desejo é, portanto, formulando uma questão que é do presente, mergulhar em sua
espessura, adentrar em seus meandros, reconhecendo e/ou estabelecendo as conexões em seus
momentos de maior evidência. Isto para, descrevendo os enunciados que compõem as forma-
ções discursivas, atentar para o jogo de regras que define suas condições de aparecimento,
transformações, desaparecimento, que como se sabe são variáveis num (per)curso histórico.
Gilles Deleuze, outro pensador que me instiga frente aos desafios que aqui proponho,
lembra que a arqueologia não trata necessariamente do passado: “Há uma arqueologia do pre-
sente e duma certa maneira ela está sempre no presente”, reforça ele, lembrando ainda que
para Foucault a arqueologia é o arquivo em duas partes: audiovisual, ou seja, a lição de gra-
mática e a lição das coisas, as dizibilidades e as visibilidades. Na sua compreensão:
Os regimes variáveis que definem a luz sobre os arquivos relacionam-se, pois, a dadas
épocas e espaços, que não estão suspensos e incomunicáveis. Assim a temporalidade aqui não
mostra-se compatível com uma percepção linear, evolutiva. Penso em discursos instintuintes
de práticas que cruzam tempos e espaços, apesar de modificadas, atualizadas ou ainda desau-
torizadas, negadas. Para tratar esta questão, busco aproximar a minha análise e escrita das
concepções deleuzianas sobre o tempo, problema sobre o qual ele muito se dedicou e que
penso ajustar-se bem ao exercício arqueológico.
No seu livro sobre Deleuze, Alberto Gualandi faz uma síntese da doutrina do tempo
construída por este pensador, mostrando que ele pensa o tempo avançando por saltos, acelera-
6
Encarnação aparece ao longo deste trabalho no sentido atribuído por Certeau, que a toma como uma ordem
pensada, que modela, (con)forma e coloca os corpos em movimento, utilizando para isso algumas “máquinas” de
engendramento. Ver CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: I. Artes de Fazer. Tradução Ephraim F.
Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. p. 221-258.
7
DELEUZE, Gilles. O Mistério de Ariana. Lisboa: Vega, 1996. p.72-73.
15
8
GUALANDI, Alberto. Deleuze. Tradução Danielle O. Blanchard.. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. (Cole-
ção Figuras do Saber).
9
A respeito ver: DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução Peter Pál Pelbart. 2ª reimpressão. Rio de Janeiro:
Editora 34, 1992. p. 194-202; PAIVA, Antonio Cristian S. Política da dobra e cuidado de si ou Foucault deleuzi-
ano. In: LINS, Daniel (Org.) Nietzsche e Deleuze: Pensamento Nômade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
p. 45-62.
10
DELEUZE, op. cit., p. 200.
16
que, não à toa, remete para as forças e conflitos de décadas anteriores, mais propriamente para
o acontecimento que se projetou como “Revolução de 1930” 11 . Este, por sua vez, sendo reite-
radamente nomeado e exaltado como o período de maior visibilidade política da Paraíba, co-
mo um arquivo sempre a funcionar. Isso remete-me à projeção dos signos, que colam, mais
intensamente na região e nas mulheres nela nascidas, as marcas da honra, da combatividade e
resistência. Marcas de guerra que, entretanto, a partir dos anos 1980 passam a ser inscritas
com mais vigor em outros corpos femininos, como o de Anayde Beiriz, (re)conhecida nacio-
nalmente com um filme sugestivamente intitulado de Parahyba Mulher Macho. Três momen-
tos que, como se vê, atravessam com seus fluxos todo o século XX, e que não são tratados de
forma isolada, mas em permanente diálogo, repercutindo ainda na atualidade.
Espero deste modo “cruzar as linhas”, seguir o seu movimento espiralado, helicoidal,
identificando pontos de inflexão, de convergência, mas também as solturas, os desalinhos,
nesta composição de uma imagem que carrega consigo todo um arquivo identitário e, junto,
toda uma discursividade acerca dos lugares de gênero, das práticas de lugar que definem es-
paços do masculino e do feminino, nestas temporalidades que compõem também o nosso pró-
prio tempo.
Ao pensar em construção identitária e, em seu novelo, em construções de gênero, es-
tou pensando em relações de força, em embates, estou pisando num território eivado de senti-
dos políticos. O que me leva a compreender que, embora esteja privilegiando a noção de ar-
queologia de inspiração foucaultiana, onde o saber é domínio privilegiado, não o deixo de
fazer numa perspectiva também genealógica. Esta, marcando a segunda fase da obra deste
autor, apresenta-se como “a tática que, a partir das discursividades descritas, ativa os saberes
libertos da sujeição que delas emergem, tratando, assim, do poder”. 12
Contudo, em especial, interessa-me o exercício genealógico do terceiro momento de
sua trajetória, que embora diferenciada da segunda, continuará assim nomeada pelo próprio
Foucault, e que se dedica às produções de subjetividades, o eixo do sujeito, para usar a topo-
logia deleuziana, vindo oferecer à história um manancial de possibilidades para pensar temas
até então pouco visíveis, como a história da sexualidade e, nas suas dobraduras e desdobra-
mentos, provocando deslocamentos e projeções para os estudos de gênero e as teorias femi-
11
Embora seja polêmico o uso da expressão “revolução” para os acontecimentos ligados a tal contexto, opto por
utilizá-la, uma vez que me reporto à maneira como estes são predominantemente referenciados na historiografia
da Paraíba.
12
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Organização e Tradução Roberto Machado. 19ª ed. Rio de Ja-
neiro: Graal, 2004. p. 172.
17
nistas. 13
A imagem de uma região como metáfora de um corpo de mulher, e vice-versa, mas
não um corpo normativo, posto que seja ambíguo, ao trazer inscrições de um feminino e de
um masculino, enuncia uma série de saberes sobre os lugares dos gêneros, bem como coloca
em cena estratégias de poder, de apropriação, disciplina, controle, mas também táticas de fu-
ga, saltos de resistência, que estão continuamente deslocando-se. Daí sua inserção nos estudos
de gênero, que vêm crescendo nas últimas décadas no Brasil, com pesquisas e elaborações
teóricas cada vez mais abrangentes e que, no caso da disciplina histórica, têm colaborado para
promover uma maior sensibilização do olhar dos historiadores quanto às questões da identi-
dade, da alteridade, da sexualidade, da política, intensificando uma ampliação do uso de mate-
riais de pesquisa, de maneiras possíveis de pensar o próprio lugar e a escrita da história.
Tratar de gênero é pensar em como histórico e culturalmente foram instituídos lugares
para o feminino e o masculino em dadas épocas e sociedades, considerando um sistema de
forças relacional, não polarizado. 14 Mas chega a ser mais: é pensar não só nos lugares, mas
nas subjetivações, nas sujeições que nos permitem ser identificados e identificarmo-nos como
homens ou mulheres. Bem mais que isso: ao provocar a desconstrução destas identidades,
possibilita pensar o interregno, a mediação que simultaneamente permite um duplo criando
um outro, ou outros, que a nossa época ainda tem dificuldades de nomear.
Teorias mais recentes que problematizam os estudos de gênero têm atentado para
questões cruciais que muitas vezes resultaram em armadilhas para os que se dedicam a tais
temáticas, como a tendência de diferenciar sexo e gênero, colocando respectivamente, aquele
na instância da natureza e este no da cultura, e assim justificando o cancelamento do natural
pelo social. Judith Butler, como uma dessas referências, alerta para o perigo desse desloca-
mento, que acaba reiterando a lógica que supõe o sexo como um “dado” anterior à cultura,
atribuindo-lhe assim um caráter imutável, a-histórico e que, ao invés de fragilizar, só consoli-
da o binarismo. Esta lógica leva o “dado” sexo a determinar o gênero, e este a induzir uma
única forma de desejo, reafirmando a linearidade sexo-gênero-sexualidade. 15
Butler (re)afirma que a categoria do “sexo” é normativa, é o que Foucault chamou de
“ideal regulatório”. Logo, mais que uma norma, o “sexo” é parte de uma prática regulatória
13
Para saber mais sobre as contribuições e polêmicas geradas pelos estudos de Foucault no âmbito dos estudos
de gênero e, por conseguinte, nas teorias feministas, ver, por exemplo, a parte dedicada aos “Feminismos”, no
livro O Legado de Foucault, que contém artigos de Michelle Perrot, Lucila Scavone, Margareth Rago e Tânia
Navarro Swain. SCAVONE, Lucila; ALVAREZ, Marcos César; MISKOLCI, Richard (Orgs.). O Legado de
Foucault. São Paulo: UNESP, 2006. p. 62 -137.
14
Ver Scott. Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Recife: SOS Corpo-Gênero, Cidadania, 1993.
15
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
18
que produz os corpos que governa; um ideal cuja materialização é imposta. Contudo, a autora
atenta que o fato desta regulação ocorrer através de uma reiteração forçada e necessária das
normas é um sinal de que a materialização nunca ocorre de forma plena e totalizante; os cor-
pos não se conformam completamente, e esta instabilidade abre brechas para que a força da
lei regulatória volte-se contra ela mesma, colocando em questão sua própria hegemonia. 16
Assim, tem-se a noção de performatividade de gênero, que não sendo um “ato” delibe-
rado, nem podendo ser compreendido como uma encenação, situa “a prática reiterativa e cita-
17
cional pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia”. Isso faz com que se pense
num sujeito que se forma em virtude de ter passado pelo processo de assumir um sexo, o que
se vincula com a identificação e funcionamento dos meios discursivos que cria e mantém um
imperativo heterossexual, que ao possibilitar determinadas identificações sexuadas, exclui
outras. Sobre a conceituação de gênero, Butler problematiza que:
16
Idem. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O Corpo
educado: pedagogias da sexualidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva. 2ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
p.151-172.
17
Ibidem, p. 154.
18
Idem. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003. p. 37.
19
isolada, penso neste outro espaço como um interregno, um lugar de trânsito, fluxo continuum,
de devir, um espaço liso necessário para a manutenção do jogo normativo do aparelho de Es-
tado com suas regulações e estriamentos. 19
Este espaço de intermédio, liso, uma abertura que ameaça a geografia do espaço estri-
ado, parece ser o habitat desta imagem que me lança também num território mítico, arquetípi-
co, como fluxos de linguagem que se atualizam permanentemente através dos tempos, no ri-
tornello. Esta imagem da duplicidade, do ambíguo, traz em relevo as marcas da androginia, às
vezes confundida com a do hermafrodita, mas que se mostra mais ampla, complexa e mutável.
Sabe-se que a literatura a respeito do tema é vasta, sobretudo no campo da psicanálise, mas
aqui apenas tocarei nela levemente, olhando certas imagens que, luminosas, oferecem mais
nuances para enxergar esta que coloco em questão.
O termo arquétipo, na compreensão psicanalítica mais usual, em especial relacionada
às análises de C. G. Jung, indica a presença de um tipo arcaico ou primordial, de uma imagem
coletiva e universal que existiria desde os tempos mais remotos. Por definição, conforme ex-
plica June Singer, no seu conhecido trabalho sobre androginia, os arquétipos são inconscien-
tes e “sua presença só pode ser intuída através de motivos e símbolos poderosos que conferem
uma forma definida aos conteúdos psíquicos”. 20
A androginia seria, pois, um arquétipo que carrega consigo um sentido de unicidade,
anterior a separação do Um em Dois. No Um estaria contido os contrários ainda não diferen-
ciados, até que ocorre a cisão. Ao se estabelecerem como entidades separadas, aquele impul-
so de uma unidade primordial, continuaria a impulsionar os Dois a se unirem de outras for-
mas, criando e disseminando a multiplicidade. Suas polaridades se expressam, pois, de manei-
ras diversas: claro e escuro, positivo e negativo, eterno e temporal, quente e frio, espírito e
matéria, arte e ciência, guerra e paz, mente e corpo e, respectivamente associados a estas du-
plicidades, masculino e feminino, que na explicação de Singer, é o par que serve como ex-
pressão simbólica do poder subjacente a todas as outras polaridades, um não sendo válido sem
o outro. A autora identifica muitas imagens do andrógino em diferentes sociedades e épocas,
na literatura, na mitologia, no esoterismo, na política, no cotidiano. Entre estas, destaca o Mo-
vimento Feminista como uma expressão e um passo rumo a androginia. 21
O arquétipo do ser andrógino alimenta um outro, cujos traços aparecem com freqüên-
19
Sobre a espacialidade lisa do nômade em contraposição ao espaço estriado do aparelho de Estado, ver o “trata-
do de nomadologia: a máquina de guerra”. DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e
Esquizofrenia. Tradução Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34, 1997, v. 05.
20
SINGER, June. Androginia: Rumo a uma Nova Teoria da Sexualidade. Tradução Carlos Afonso Malferrari.
São Paulo: Cultrix: 1990. p. 27.
21
Ibidem, p. 25-37 passim.
20
cia nas fontes que criam a imagem e a corporeidade da “mulher-macho”. No caso, o arquétipo
do guerreiro ou herói, que representado em muitas imagens femininas, expressa em equilíbrio
as polaridades e torna-se extremamente atraente na pele de muitas personagens literárias ou
ainda facilmente adaptáveis e/ou reconhecidas nas mulheres que se sacrificam por uma causa
maior, depois de passarem por provações e julgamentos de seu potencial de força e bravura.
Em várias tradições míticas ou mesmo em sociedades históricas elas são recorrentes: por e-
xemplo, restringindo-se ao Ocidente, as deusas e heroínas da mitologia greco-romana associ-
adas à guerra e a caça, como Atena/Minerva, Ártemis/Diana e as Amazonas — mítica nação
de mulheres guerreiras nos limites do mundo grego; ou ainda a heroína do baixo medievo,
Joana D’arc, que lutou na Guerra dos Cem Anos, que foi morta pela Inquisição e depois santi-
ficada pela Igreja Católica; ou Maria Quitéria, que muito hábil com os cavalos e as armas,
combateu junto ao “Exército Libertador”, o domínio português na Província da Bahia, no final
do século XIX... Todas marcadas pelos traços da androginia e apropriadas como referências à
imagem da “mulher-macho”.
Embora seja possível visualizar estes traços arquetípicos na imagem que trato aqui,
materializada nos corpos de muitas mulheres e de uma região, inclusive concordando com
Singer quando ela fala de um movimento crescente da visibilidade dos andróginos na atuali-
dade, minha pesquisa problematiza as diferentes formas de subjetivação destes traços, que se,
por um lado, recorrem à idéia de unidade, colocam em funcionamento múltiplas forças, nem
sempre, ou melhor, quase nunca conciliadoras.
Quando falo “a imagem” não quero, portanto, inferir que ela é una, pois embora sob o
mesmo nome em vários estratos, sua potência de multiplicidades é ampla, incontida. Ela tem
seus modos de existência diferenciados no tempo e no espaço, sendo, por exemplo, significa-
da de modo diverso para as mulheres do campo e da cidade. Sendo ainda, compreendida como
a bravia, a forte, guerreira, mas também como a sem lugar, a bizarra, estranha. No terreno da
sexualidade, pode ainda ser nomeada como uma força sexual que atrai e domina os homens,
ou ainda como a que os repele, atraindo e desejando outras mulheres.
Ao pensar nestas possibilidades inscritas no corpo da região, lido tanto com o acolhi-
mento, como com a repulsa, o orgulho e o ridículo. Mas esclareço que não procuro pensar
nestas produções isoladamente, ou seja, de um lado para a região, do outro para as mulheres.
Tento mostrar como estas são construções simultâneas, comunicáveis, interativas, embora às
vezes, por uma questão operacional tenha que me referir a uma e outra de forma mais especí-
fica.
Resta então dizer que trabalhar com estes arquivos, e da forma como proponho, lança-
21
me também num território outro da história, divergindo de uma visão que se tornou tradicio-
nal no tratamento das questões que, diretamente ou não, relacionam-se aos acontecimentos da
chamada revolução de 1930 na Paraíba. Este marco é um relevo na cartografia deste trabalho,
porque, do que se produziu dele e sobre ele, advém parte substancial dos signos e significados
que tanto possibilitaram a síntese “Paraíba, mulher-macho”, como a mantiveram sempre em
funcionamento, (re)atualizando-a, como desejo mostrar ao longo desta trajetória.
Tomando a identidade como um construto, um invento, neste caso, marcado pela per-
fomatividade de gênero, este trabalho se inscreve também como uma linha de fuga em relação
a uma historiografia que privilegia noções políticas verticalizadas e uma produção de conhe-
cimento calcada numa noção fechada de “verdade” e de “prova”, com a qual polemizo ao
longo de todo o percurso. Tanto pelo meu objeto e problemática, quanto pelas fontes e olhares
que adoto, experimento aqui outras possibilidades de pensar a história, certamente muito mais
como a produção de um saber “artista”, do que como um saber “cânone”. Este, meu maior
desafio, que escolhi e aceitei fazer “com um sorriso nos lábios”. 22
[]^\
22
Sobre o exercício da pesquisa e escrita histórica como uma prática do riso ver: ALBUQUERQUE JR., Durval
Muniz de. Michel Foucault e a Mona Lisa ou Como escrever a história com um sorriso nos lábios. In: RAGO,
Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo (Orgs.). Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 97-107.
22
Um híbrido. Um duplo. Um hiato. Um trans... Um? Ou Uma? Que faz de alguém uma
“mulher-macho”? Que faz de um espaço uma “mulher-macho”? Embora possa soar estranha
ao leitor desavisado, esta condição é uma possibilidade conhecida pelos habitantes do Nordes-
te brasileiro, em especial pelos que vivem no estado da Paraíba. Uma imagem com a qual
ainda são identificadas mulheres e região, em especial nas relações de alteridade com as de-
mais regiões do país, sobretudo o Sul e o Sudeste. Imagem, entretanto, polissêmica, constituí-
da de diversos elementos simbólicos, signos que no decorrer do tempo assumiram diferentes
formas, algumas se evidenciando de maneira mais marcante, outras mais diáfanas, colocando
em jogo sentidos marcados por relações de conflito, construtos de disputas de saber e de po-
der. Imagem que, sendo uma, é também muitas, engendrada por significantes plurais, seja
iconográfico, sonoro, escritos em papel, em película, inscritos nos corpos e paisagens.
Entre tais significantes, no desejo de traçar uma arqueogenealogia da Paraíba como
“mulher-macho”, não há dúvidas que um salta aos olhos, ou mais correto seria dizer aos ouvi-
dos: a música composta por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, que desde o seu lançamento
não parou de ser tocada, constituindo uma espécie de hino popular do Estado, para orgulho de
muitos e desagrado de outros tantos no decorrer do tempo. Muito da memória da canção se
perdeu, e é comum que hoje, ao ser cantada e dançada pelos mais jovens, poucos saibam que
esta foi uma música feita para animar a campanha política de 1950 na Paraíba, “brincando”
com elementos que recorriam à lembrança dos conflitos vivenciados na região em 1930, em
especial a Revolta de Princesa.
Além disso, enfatiza a situação mais urgente dos sertanejos contemporâneos à música,
questão cara aos discursos políticos de então: a seca, a debandada dos homens para outras
regiões à procura de melhores condições, a saudade provocada por este desterro, a situação
das mulheres que ao ficar tinham que assumir também, na luta para sobreviver, os lugares
considerados masculinos:
25
Vê-se que a canção é uma narrativa de retirante que, carregando sua dor, manda um
abraço saudoso para a sua pequenina, criando aí uma situação ambígua entre a imagem da
mulher amada e a da terra natal, a Paraíba, ambas, “mulheres-macho” — (re)afirmação de
uma condição que se pretende visível em toda sua positividade, “sim senhor!”
Importante é perceber que, embora os elementos constituidores desta ambigüidade já
estivessem funcionando no jogo das operações discursivas há algum tempo, como pretendo
mostrar ao longo deste trabalho, a canção Paraíba representa um momento de síntese destes
elementos, provocando pela primeira vez uma associação mais direta e explícita que, com o
impacto da recepção, com os usos das imagens suscitadas pela música, engendrará ao longo
do tempo outras tantas imagens, (re)alimentando e dando visibilidade a signos identitários,
por sua vez constituídos e constituintes de lugares de gênero e de poder.
É, pois, o funcionamento desta série discursiva, que colocará em movimento os signos
que, adiante, produzirão outra síntese, singular em sua apropriação e pela qual iniciarei, de
maneira mais detida, este percurso. Certamente foi a ressonância da música de Gonzaga e
Teixeira que inspirou o título e o tom do filme Parahyba Mulher Macho, dirigido pela cineas-
24
ta Tizuka Yamazaki , produzido pelo CPC (Centro de Produção e Comunicação) em parce-
ria com a Embrafilme, gravado em Recife(PE) e lançado nacionalmente em 1983.
Considerado para a época, que era ainda de Ditadura Militar no Brasil, uma superpro-
dução, representante da retomada do cinema brasileiro após longos anos de forte censura, o
23
GONZAGA, Luiz. Paraíba. Luiz Gonzaga; Humberto Teixeira [Compositores]. In: ______. Meus Sucessos
com Humberto Teixeira. Rio de Janeiro: RCA Camden, 1968. LP. Faixa 07.
24
Cineasta nascida em Porto Alegre (RS), de descendência japonesa, que se lançou com um filme sobre os imi-
grantes japoneses no Brasil, Gaijin – os caminhos da liberdade (1980), obtendo sucesso de público e crítica.
Também diretora de telenovelas e de outras produções cinematográficas, como Patriamada (1984) e mais recen-
temente a continuidade de Gaijin – Ame-me como sou (2005), conquistou vários prêmios com temáticas relacio-
nadas a minorias e crítica social. Também dirigiu produções consideradas mais comerciais, como filmes da apre-
sentadora Xuxa Meneguel, durante os anos 1990.
26
filme, assim como a música, traz à tona a memória dos acontecimentos de 1930 na Paraíba ,
mas o faz narrando a partir da vida de uma mulher considerada ousada para a sua época, a
professora e escritora Anayde Beiriz (ver anexo A). 25 Mais uma vez “brinca-se” com a ambi-
güidade dos lugares de gênero e sua correlação com uma identidade construída para as mulhe-
res da Paraíba, só que agora nomeando particularmente uma mulher, amalgamando a imagem
dela à da região.
Contudo, se a letra da música nos remete mais diretamente à paisagem do campo, o
filme Parahyba Mulher Macho ambienta-se principalmente na cidade — no caso, a capital
Parahyba do Norte — embora trate também da relação deste espaço litorâneo, que se urbani-
zava no início do século XX, com o sertão, predominantemente rural. A personagem principal
é uma mulher urbana que, de modo diverso da “pequenina” vislumbrada na música, também
ocupa lugares considerados culturalmente como próprios do masculino em sua época.
Este movimento, que projeta Anayde Beiriz para todo o país, tomando-a como uma fi-
gura polêmica e notável, tem um tom de positividade na narrativa de Tizuka Yamazaki, seme-
lhante àquele da canção, no sentido da (re)afirmação e apropriação de um lugar. Isto, apesar
desta mesma narrativa enfatizar os conflitos e sofrimentos causados por tal, ou seja, as censu-
ras e recriminações impingidas a quem ousasse viver nas fronteiras — a do feminino e do
masculino.
Fronteiras delimitadoras de poder, que, (re)criadas na narrativa fílmica, (re)alimentam
e evidenciam estereótipos e preconceitos que demonstram sua tenacidade nos cinqüenta anos
que separam o período em que Anayde viveu e este em que o filme, que a toma como prota-
gonista, foi exibido. A associação mais uma vez da identidade do Estado com a da “mulher-
macho”, e desta com uma mulher em particular, cujo comportamento sempre havia suscitado
opiniões contrárias, causou inquietações e angústias, intensificando um debate acirrado sobre
os acontecimentos de 1930. Porém, desta vez, conferindo-se maior visibilidade e dizibilidade
a outros signos políticos, em especial àqueles que, nas relações de poder cotidianas, instituem
e legitimam lugares fixos para homens e mulheres. Isto, como parte de uma rede discursiva
que também procura instituir o lugar da verdade, como o lócus da história, movendo uma
grande disputa pelo saber e pela construção de uma identidade regional.
25
Nascida em 1905, Anayde Beiriz aparece na imprensa dos anos 1920, como na revista Era Nova (Parahyba,
1921-26) referenciada como notável aluna da Escola Normal, onde se formou aos 17 anos. Citada também pelo
seu talento como escritora, freqüentando saraus poéticos, e pela sua aparência, chegou a ganhar um concurso de
beleza na Capital. Envolveu-se amorosamente com o advogado João Dantas, que veio a assassinar, em 1930, o
presidente de estado João Pessoa. Anayde, sofrendo com isso as implicações políticas e morais da tragédia, e
ainda o impacto da morte de Dantas alguns meses depois — em condições até hoje polêmicas — cometeu suicí-
dio em outubro daquele ano, em Recife-PE.
27
1.1 Avant-première
26
MOREIRA, Rogério Vidal. Parahyba Mulher Macho: A polêmica em torno de uma mulher. A União. João
Pessoa, 03 de setembro de 1983. p. 09.
28
“[...] se a história está correta ou não está correta. Este filme é uma versão
minha e dos autores do filme. E pode ser interpretada de diversas formas: pa-
ra uns Anayde é heróica, para outros é traidora”. A visão do filme é a visão
de uma pessoa que está querendo mostrar que a história oprime e que a soci-
edade mata. Eu não sou feminista radical, mas sei que uma mulher como
Anayde Beiriz que teve um potencial de trabalho, inteligência e principal-
mente, está com vontade de fazer alguma coisa, porque nunca teve oportuni-
dade de fazer (sic). A minha palavra então é para que se abra caminho para
que essa mulher se transforme numa parceira, trabalhando conjuntamente
com o homem. Anayde não conseguiu, mas por favor, não deixem que essas
28
mulheres modernas não consigam também.”
Na narrativa de Rogério Vidal não aparecem falas que se dirijam diretamente a Tizuka
Yamazaki e às questões por ela levantadas. Na sua cobertura do evento, o repórter conta ainda
que Wellington Aguiar procurou esclarecer que considerara “história de lobisomem” não o
fato do diário de Dantas existir e ter sido exposto na delegacia com a intimidade do casal, mas
o fato de que as pessoas que fizeram fila em frente a delegacia para vê-lo, não o conseguiram.
“Eu não neguei a existência do diário, e li o livro de Álvaro de Carvalho em que ele afirma
que teve a oportunidade de consultá-lo”, reforçou Aguiar.
Na seqüência, o ator Walmor Chagas, intérprete de João Pessoa, falou do seu receio de
fazer o papel e do quanto se preparara para tal, sentindo o peso de uma grande responsabilida-
de: “Antes de interpretar o personagem li alguns livros sobre a vida de João Pessoa e procurei
fazer um personagem que como ele, tinha medo e, que na minha opinião, cada governante tem
27
Ibidem.
28
Ibidem.
29
medo do povo. Na verdade, eu estava morto de medo de fazer este filme”, confessou. 29
Ao final, voltando à palavra a cineasta, esta teria justificado a não gravação do filme
em João Pessoa por conta da destruição do patrimônio histórico da cidade, bem como pela
falta de apoio do governo da época e, num tom irônico, concluiu acerca do debate: “pensei
que fôssemos chegar a uma coisa mais agressiva e o resultado final, na minha opinião, foi que
de repente todos os machistas paraibanos viraram feministas.”
Considerando, pois, tudo que se disse antes e após esta primeira exibição sobre o fil-
me, de fato o debate pareceu pálido, exceto pela questão que há tempos ecoa na produção
historiográfica da Paraíba sobre os acontecimentos relacionados à chamada revolução de
1930: Qual a verdade? Quem a detém? Quem está autorizado para falar dela? Questões tão
caras a políticos e intelectuais no Estado que até se compreende bem “o medo” sentido e con-
fessado por Walmor Chagas.
No cenário do debate, Joffily e Aguiar são os principais digladiadores da ocasião, de-
marcando lugares a partir de outros que foram constituídos como “comprovadores” dos deta-
lhes de trama tão complexa, como Ademar Vidal e Álvaro de Carvalho. As escritas destes,
mais que narrativas, adquirem o estatuto de testemunho e de prova, chamadas a fazer calar as
vozes dissonantes, ainda que estas também possam fazer uso das mesmas para defender seus
pontos de vista. Uma questão de interpretação? Mas, então, onde está a objetividade da prova?
Onde está a objetividade da história?
Na mesma página do jornal A União em que se lê a cobertura de Rogério Vidal Morei-
ra, encontra-se algumas colunas com comentários assinados acerca do filme, entre as quais a
do historiador José Octávio Arruda de Mello, que toca diretamente nos “valores históricos”
daquela produção. Ele argumenta que Parahyba Mulher Macho não pode ser considerado um
filme político, pois como explica “o fato de alguém abordar um tema político, não o torna um
filme político. O que o tornaria seria o tratamento, a sua objetividade.” Adiante, o historiador
então questiona: “Seria Anayde um personagem histórico? Um personagem político?” Ao que
ele mesmo responde: “Não. É uma figura muito lateral dentro da Revolução de 30. Eu posso
falar assim porque consultei toda a massa de jornais da Paraíba, de Pernambuco, do Rio Gran-
de do Sul, entre os períodos de 1928 e 1931.” 30
Embora para Arruda de Mello o distanciamento da verdade não torne o filme inválido,
haja visto que Tizuka Yamazaki, em sua opinião, “procura transcender a realidade”, mais uma
29
MOREIRA, Rogério Vidal. Parahyba Mulher Macho: A polêmica em torno de uma mulher. A União. João
Pessoa, 03 de setembro de 1983. p. 09.
30
MELLO, José Octávio de Arruda e. O filme e seus valores históricos. A União. Paraíba, 03/09/1983, p.09.
(grifo meu).
30
vez a questão da objetividade e da prova é colocada, como requisitos básicos para legitimar
lugares históricos e políticos. Ele conclui, a partir de suas pesquisas, que Anayde Beiriz, pou-
co ou raramente localizada naquela extensa massa documental, fora de significância menor
para a revolução de 1930 e, esta “lateralidade”, não permitia, portanto, que fosse assim consi-
derada uma personagem histórica. Mas, de que história fala Arruda de Mello? Certamente de
uma outra, diversa da qual se aproxima Tizuka Yamazaki e para quem Anayde Beiriz não
apenas é um personagem histórico, como também as narrativas sobre ela, incluindo o filme,
podem ser consideradas produções políticas.
O filme Parahyba Mulher Macho é, pois, não por acaso, realizado num momento de
evidência da organização de vários movimentos sociais no Brasil, em especial o movimento
feminista, e corresponde também a influência destes na historiografia, especialmente no que
concerne às mulheres enquanto objeto de estudo. Notavelmente, é justo na década de 1980
que se intensifica no Brasil o debate acerca dos estudos feministas e, em particular, as mudan-
ças profundas que estes sofrem com a introdução da categoria gênero para se pensar como
cultural e historicamente, foram constituídos os lugares para o masculino e o feminino em
nossa sociedade.
Em conjunto com a influência da terceira fase da Escola dos Analles na formação de
historiadores de boa parte do país, bem como com as rupturas provocadas adiante pela inspi-
ração dos trabalhos de pensadores pós-estruturalistas, como Michel Foucault e Derrida, todas
essas mudanças se fizeram sentir na produção historiográfica brasileira. Não apenas quanto à
legitimação de temas e abordagens consideradas antes menores pelos historiadores, como
provocando uma ampliação na concepção e uso de documentos e fontes, acompanhados de
intensas reflexões sobre as formas de produção da história, seus métodos e sua escrita. 31
As práticas discursivas e não-discursivas então em funcionamento engendraram outras
concepções para a história e para a política, que entre múltiplas formas de abordagem, vieram
a impulsionar a História das Mulheres e os Estudos de Gênero no Brasil desde aquele momen-
to. Pode-se dizer que, ainda que não pretenda ser um documentário, nem tenha ao que parece,
a pretensão de representar essas mudanças paradigmáticas, o filme dirigido por Tizuka Yama-
zaki, inspirado em fatos históricos e numa narrativa historiográfica em particular — ainda que
esta não participasse diretamente das produções referidas acima — como uma obra marcada
por questões do seu tempo, não ficou imune a tais mudanças, trazendo indícios dos debates
31
Ver, por exemplo, o desenvolvimento desta trajetória em SAMARA, Eni de Mesquita. SOIHET, Rachel.
MATOS, Maria Izilda S. Gênero em Debate: trajetória e perspectivas na historiografia contemporânea. São
Paulo: Educ, 1997.
31
1.2 “Carne da palavra, carne do silêncio”: tecendo um corpo para Anayde Beiriz
Ao meu olhar, o filme dirigido por Tizuka Yamazaki possibilita pensar Anayde Beiriz
enquanto corpo. Difícil seria outro modo, pois o que se anuncia logo no cartaz do filme, mais
especificamente no logotipo do título? O “M” da palavra “macho” é justamente desenhado
como sendo as pernas abertas de uma mulher, supostamente deitada. Aberta para o olhar que a
contempla, insinua um convite para uma intimidade ou, ainda, uma publicização da intimida-
de. Um convite ao corpo que “encarna” a transgressora, a “mulher-macho”, que é tatuada na
pele imortalizada da professora, então representada pela atriz Tânia Alves. 32
Também, acentuando a idéia de que vamos olhar por uma fresta, uma fissura, a abertu-
ra do filme é composta por uma tela escura com “rasgos” que permitem ver minimamente a
ação que está ocorrendo atrás, da qual temos melhor impressão pelo barulho, o que aguça a
curiosidade para assistir claramente o que está se passando. Até que o olhar avança por entre
as brechas e se pode testemunhar a invasão da casa de João Dantas, por onde a narrativa co-
meça. De novo, a sensação do penetrar na intimidade, no privado, de forma invasiva, pois
começa-se a ver por frestas e então assiste-se a um arrombamento, a um saque de pertences
íntimos — a casa é revirada, o diário onde escreviam João Dantas e Anayde Beiriz lido por
32
O filme contou, ao final, com cerca de três mil atores e figurantes. Uma superprodução para o cinema brasilei-
ro da época, chegando a ser selecionado para alguns festivais internacionais; recebeu vários prêmios no Festival
de Cartagena, na Colômbia.
33
cial, um corpus de linguagem, tecido em camadas discursivas, que o põem de pé, fazem-no
caminhar, gesticular, sentir prazer, dor, amar, odiar, morrer e ressuscitar muitas vezes. Se tan-
to se fala de Anayde Beiriz, fala-se de corpo. Escreve-se e inscreve-se um corpo, que apesar
da singularidade, não é único; Até porque, como coloca Silvana Goellner, ao adotar o pressu-
posto de que um corpo não é apenas um corpo, considera-se que ele é também o seu entorno:
33
GOEELNER, Silvana V. A Produção Cultura do Corpo. In: LOURO, Guacira L. NECKEL, Jane Felipe.
GOEELNER, Silvana V. (Orgs.). Corpo, Gênero e Sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Pe-
trópolis, RJ: Vozes, 2003. p. 29.
34
E’ ampla a obra de Foucault que possibilita pensar as questões de gênero, corpo e sexualidade, em especial os
três volumes de História da Sexualidade, e Vigiar e Punir. Sem dúvida, muito deste impulso para escrever sobre
tais temas, veio da influência de Nietzsche, para quem o corpo trazia questões filosóficas fundamentais e, entre-
tanto, pouco pensadas e debatidas. Os problemas referentes ao corpo levantados por Nietzsche também ocupa-
ram muito da obra de Gilles Deleuze. Estes autores encontram-se atualmente no cerne dos crescentes debates
sobre corpo no Brasil. Entre os trabalhos lançados é possível destacar a coletânea Nietzsche e Deleuze: Que pode
o corpo, organizada por Daniel Lins e Sylvio Gadelha, fruto dos trabalhos apresentados no III Encontro Interna-
cional de Filosofia, Fortaleza-CE, 2001.
35
sermão, da importância de contar as desobediências. A menina parece não escutar, olha o seu
corpo com admiração, vestido em tecido transparente, fazendo trejeitos de moça. Adolescente,
na sala de aula, enquanto a professora ensina a lição, ela escreve um poema de amor, contor-
ce-se na carteira, simula um beijo com a língua na própria mão, tendo por isso o corpo puni-
do, com uma régua com a qual a professora lhe bate.
Num outro momento, aparece lançando-se com um namorado a uma praia deserta, on-
de após pequena hesitação, tira a blusa e aceita que o rapaz vá além das carícias. A cena, em-
bora feche o ângulo nos rostos dos jovens amantes, insinua o ato sexual e enfatiza a expressão
orgástica da moça, que parece extasiada naquela descoberta de novas sensações.
Adulta, entra altiva numa barbearia e pede que lhe cortem os cabelos bem curtos, à la
garçonne, moda parisiense, que no Brasil muitas vezes se associava à estética das “mulheres-
damas”. Depois, indo até Cabedelo lecionar numa colônia de pescadores, sofre uma violência
sexual. Deste momento, marcado por gritos de recusa e sofrimento, procura se refazer, des-
pindo-se e tomando um banho de mar, seguindo depois para a escola, onde descobre que o
pescador que a molestara seria um dos seus alunos.
No sarau, a roupa que veste é mais transparente e decotada que a de qualquer outra
mulher presente; seus olhares, caras e bocas para seu amado, João Dantas, são insinuantes e
indiscretos. Na casa deste, a personagem anda nua pelos cômodos, e protagoniza uma cena de
sexo que tem o poder de emudecer a platéia, como voyeurs que olham, pelas telhas, o mais
íntimo do casal. Ela “o toma” por cima e seu corpo preenche a tela e os sentidos de quem vê
(ver anexo C). E, como já registrei, quando se narra a invasão à casa de João Dantas, o enfo-
que é sobre as fotos em que os amantes aparecem nus, sobretudo as dela, afixadas na delega-
cia.
Neste sentido é que acredito ser possível afirmar que Anayde Beiriz se torna na tela de
cinema um corpo-manifesto. Ela é construída como a protagonista de um jogo político em
que se reivindica para as mulheres o direito não só de amar quem escolhe, de fazer sexo e
sentir prazer, mas de expressar essas escolhas, de publicizá-las e, desse modo, de ocupar es-
paços, inclusive o do seu próprio corpo. Elementos que, entretanto, pouco foram problemati-
zados pela crítica em torno do lançamento do filme na Paraíba e mesmo depois, pelos que se
dedicam a restaurar e resgatar a memória de Anayde Beiriz.
O sentido de ocupação de espaço, no caso, não se refere apenas àqueles interditados à
presença feminina, fosse nos anos 1920/30, em que Anayde viveu, ou nos anos 1980, em que
o filme foi produzido e exibido; mas também àqueles em que costumeiramente as mulheres
haviam sido inscritas e retratadas, como o quarto, a alcova, só que cartografando-os com ou-
36
É, pois, nesta direção que o filme consegue captar a atmosfera das questões sociais que
se colocavam para a reflexão, sobretudo do movimento feminista, que desde os anos 1970,
como situa Lucila Scavone, partia da discussão política sobre o corpo e a sexualidade revol-
tando-se contra um corpo assujeitado, prisioneiro de uma sexualidade normativa e heterosse-
xual:
“Nosso corpo nos pertence”, proferiam as feministas: tratava-se de uma luta
pela reapropriação do corpo; pela vivência plena da sexualidade como esco-
lha, aliás, pauta infalível das agendas feministas da época. Mas partir dessa
sexualidade era, além de afirmar suas diferenças, reivindicar seus direitos.
Assim, a luta pela liberação do aborto, contra o estupro, pela opção ou não
da maternidade, pela escolha da sexualidade, por exemplo, trazia para o ce-
nário público não somente temas que, até então, nunca tinham sido conside-
rados como políticos, mas também a dimensão dos direitos universais que
eles comporta(va)m. Muitas estratégias foram utilizadas. 36
Embora, como mostrada em citação anterior, não se apresentasse como o que designa-
va ser uma “feminista radical” e mesmo tivesse declarado em algumas situações que aquele
não era um filme feminista, Tizuka Yamazaki comandou uma produção marcada por estraté-
gias que iam ao encontro destas reivindicações. 37 Sendo uma obra marcada pela sua tempora-
lidade, o filme reflete questões caras a determinados grupos de seu contexto, especialmente a
desigualdade das relações entre homens e mulheres, os limites profissionais impostos a estas,
a violência e, sobretudo, os impedimentos em torno da vivência amorosa e sexual, o que im-
35
PARAHYBA, Mulher Macho. Direção Tizuka Yamazaki. Produção: Embrafilme; CPC. Brasil: 1983. (83
min.).
36
SCAVONE, Lucila. O feminismo e Michel Foucault: afinidades eletivas? In: SCAVONE, Lucila; ALVAREZ,
Marcos César; MISKOLCI, Richard (Orgs.). O Legado de Foucault. São Paulo: UNESP, 2006. p. 93-94.
37
Numa entrevista, a diretora declara que vê o feminismo, na maior parte das vezes, como antônimo de machis-
mo, o extremo do machismo. Diz então que apesar do filme tratar da luta de uma mulher para ser reconhecida
como cidadã, não teria nada a ver com o feminismo na forma radical, que ela condenava. In: Tizuka Yamazaki:
Anayde incomoda porque eu incomodo também. A União. Paraíba, 17 de agosto de 1983. p.09.
37
38
BIRMAN. Joel. Cartografias do Feminino. São Paulo: Ed. 34, 1999. p. 94.
39
Ibidem, p. 93-94.
38
desse momento, um corpo que tende a “falar” todo o tempo, um corpo dito, bendito e maldito,
justamente porque diz demais. Um corpo erotizado, liquefeito, que assume formas similares e
diversas em outras máquinas de encarnação, como na imprensa e na literatura. Ora, diz tanto
que escapa, desliza para os “cantos escuros” do silenciamento. Não deixa, por isso, de ser
também um corpo inaudito, um território secreto. De certo modo, Anayde permanece um se-
gredo. Um enigma oferecido como um jogo, onde se digladiam historiadores, literatas, artis-
tas, feministas, familiares... onde se digladiam intenções e anseios pela “verdade”, ou ainda
pelo que, mesmo tomando como álibi o tom de ficção, soe mais verdadeiro.
Experimentam-se neste jogo as ações de uma prática que coloca o corpo sob a lei de
uma escritura, seja esse um corpo individual e/ou coletivo. Prática de que Michel de Certeau
nos fala, situando-a como o trabalho que a partir da modernidade assumiu lugar de domínio,
instaurando outro modo de usar a linguagem e de fazê-la funcionar, e com isso colocando o
corpo sob a sua lei, a lei de uma escritura. Considerando, pois, que a lei se escreve sobre os
corpos, Certeau diz que “ela se grava nos pergaminhos feitos com a pele de seus súditos. Ela
os articula em um corpo jurídico. Com eles, faz o seu livro”. As escrituras efetuariam assim
duas operações, uma em que os indivíduos são postos num texto, como significantes das re-
gras, sendo uma contextualização, outra em que a razão de uma sociedade “se faz carne”, uma
encarnação:
40
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: I. Artes de Fazer. Tradução Ephraim F. Alves. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2004. p. 231-2.
40
41
José Joffily, paraibano, foi político, tendo cumprido vários mandatos como Deputado Federal pela Paraíba, o
primeiro deles em 1946. Militou no PSD (Partido Social Democrático) e no PSB (Partido Socialista Brasileiro).
Em 1964, chegou a ter seus direitos políticos cassados por dez anos, passando a dedicar-se a uma atividade pri-
vada, em Londrina-PR. Escritor de livros como Revolta e Revolução — 50 anos depois e Anayde, ambos versan-
do sobre a Revolução de 30, tornou-se membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro, da Aca-
demia Paulistana de História, entre outros institutos. Faleceu em 1994. Seu filho, que tem o mesmo nome assina,
junto com Tizuka, o roteiro do filme Parahyba, Mulher Macho.
42
HOLLANDA, Célia M. Tentativa de reconhecimento. In: JOFFILY, José. Anayde: Paixão e Morte na Revo-
lução de 30. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 1983. p. 09-13 passim.
41
roupagem fluida, etérea e até mesmo irreal”, esta enfatiza que as páginas em questão distanci-
am-se das consumidas pelas leitoras “ingênuas” do Jornal das Moças, uma vez que, se fala
em demasia de coisas como “lagos azuis”, “luzes violáceas” e “flores purpúreas”, Anayde
também compara as flores nos jardins a “amantes insaciáveis que se premem, frementes, em
amplexos longuíssimos”. 43
Marcas como estas fazem Célia Hollanda afirmar que Anayde Beiriz foi, para o seu
tempo, uma mulher ousada, atribuindo a isso o seu final dramático, tal como o das suas narra-
tivas. Aproxima então, como se tivesse um tom autobiográfico e até mesmo prenunciador, a
personagem Wanda de Na trama do destino à sua criadora, destacando o tom dado às lem-
branças amorosas e sensuais do encontro de Wanda com o amante e a decisão desta pelo sui-
cídio, ao ser abandonada por ele: “final infeliz, mas para Anayde não há outro caminho a per-
correr depois do amor senão a morte”, assinala.
Ainda como parte da “tentativa de reconhecimento”, a prefaciadora percebe na escrita
de Anayde influências do Grupo Modernista de São Paulo, além de inclinações simbolistas,
por ser comumente “autocontemplativa”. Acredita, pois, que a proposta de renovação cultural
da Semana de Arte Moderna de 1922 tenha sido captada pela poetisa especialmente em um
poema que a mesma declamou num sarau, que teria então causado impacto tanto pela forma
como pelo conteúdo. Escutemos Anayde:
Nasci
Nasceu
Cresceu
Namorou
Noivou
Casou
Noite nupcial
As telhas viram tudo
44
Se as moças fossem telhas não se casariam...
Finalizando sua análise, Célia Hollanda não esquece de frisar que em sua efêmera e-
xistência, Anayde teve “na companhia de João Dantas, o reduto mais fecundo para o amadu-
recimento de sua sensibilidade”. Afirma, pois, que juntos, eles se dedicavam às letras, passan-
do “horas a fio embevecidos em suas relações amorosas”, compondo o que chama de “um
vínculo de equilíbrio para seus temperamentos”, já que compreende que “o que faltava a João
Dantas, florescia em Anayde; o que faltava em Anayde transparecia em João Dantas. Ele,
43
Ibidem.
44
BEIRIZ apud JOFFILY, José. Anayde: Paixão e Morte na Revolução de 30. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record,
1983. p.12.
42
45
JOFFILY, José. Anayde: Paixão e Morte na Revolução de 30. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 1983. p.13, grifo
meu. (grifos meus).
46
Ibidem.
43
rios proibidos.
Assim, segue tentando mostrar como Anayde foi punida por invadir tais territórios, por
ter, por exemplo, assumido opiniões polêmicas para sua época, como ser favorável ao sufrá-
gio feminino; mas principalmente, por ter se envolvido com o advogado João Dantas, então
com 40 anos, para quem o autor considera o epíteto de boêmio um exagero, e que ganhava
notória visibilidade por sua acirrada oposição a João Pessoa.
Baseando-se em relatos prestados por amigos e familiares do casal, Joffily conta que a
notícia do namoro causou surpresa entre esses, e a forma como o conduziram provocou curio-
sidade e reprovação. Um contemporâneo de Anayde teria afirmado que “ela não gostava de
namorados, mas de admiradores” e um familiar de Dantas revelado a existência de um pacto
do casal para manter a condição de solteiro, “despojados de convenções para viver o amor
livre”. É o próprio autor então quem deduz: “aquele relacionamento, embora fiel, ardoroso e
dedicado, isolava Anayde Beiriz de outras moças, também cultas e brilhantes como Analice
Caldas, Olivina Carneiro da Cunha, Lila Guedes e Albertina Correia Lima — todas solteiras e
temerosas de comentários comprometedores”. 47
Num meio em que a imprensa debatia cotidianamente aspectos ligados à moda e aos
hábitos “importados” pelas mulheres brasileiras, comumente olhando-os com desconfiança
e/ou reprovação, o autor acredita ter sido Anayde uma das primeiras moças paraibanas a sair
desacompanhada, a usar cabelos curtos, à la garçonne, e deixar de usar saias que arrastavam
pelo chão. Com adjetivos como “esfuziante”, “talentosa”, “vaidosa”, ele procura acentuar os
tons que pudessem diferenciar Anayde da maioria das jovens conterrâneas de sua época e
assegurar-lhe um lugar de honradez possível, junto a uma rebeldia que considera sinônimo de
inteligência e perspicácia.
Mas esta não parece ser uma tarefa fácil, visto que muito se deduzia sobre Anayde a
partir do que se disse dela e daqueles com quem ela conviveu, dos elementos de seu contexto
social. Entretanto, pouco se tinha acesso a sua voz, aos seus escritos. E, neste pouco, Joffily
acaba não encontrando um conteúdo que a posicionasse num lugar de militante política e que,
por conseguinte, possibilite “rotular” suas convicções, lançar em sua mão uma bandeira, um
manifesto ou mesmo uma arma, semelhante a algumas de suas contemporâneas, que se torna-
ram posteriormente e, sobretudo na década em que o livro de Joffily aparece, ícones do femi-
nismo no Brasil:
47
JOFFILY, José. Anayde: Paixão e Morte na Revolução de 30. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1983. p. 23-24.
44
[...] Tudo faz crer que suas letras não se sentiam atraídas para problemas que
questionassem as estruturas do Poder. Tornou-se perrepista por mera solida-
riedade ao noivo, implacável adversário da Aliança Liberal e autor dos mais
agressivos artigos contra o Presidente João Pessoa. [...] Nem a polêmica do
voto secreto despertou pronunciamentos seus. Sua cruzada era outra. Suas
vertentes pessoais emanavam de uma sensibilidade singular, inconformista,
sua revolução era puramente cultural batalhando contra a escravização da
mulher, a burrice e a hipocrisia social. Foi uma luta solitária. Nem chegou a
fundar uma associação reivindicadora. Nessa perspectiva era bem diversa a
bandeira que sua contemporânea mais jovem, Patrícia Galvão, conduzia em
São Paulo e cujo eco chegava em toda parte. 48
Contudo, se tais marcas não eram possíveis de “colar” ao corpo de Anayde sem que
soasse extravagância, além da “sensibilidade singular”, outros elementos favoreceriam o real-
ce de seus tons de heroína na narrativa de Joffily. Afinal, os últimos acontecimentos relacio-
nados à vida de Anayde, incluindo sua morte, carregam consigo um significativo clima de
tragicidade, que se não em sua própria época, mas no contexto em que o autor escreve, servia
facilmente para alçá-la ao lugar de mártir. Diga-se claramente que, se não mártir da “Revolu-
ção de 30”, posto que é difícil concorrer com João Pessoa, mártir de uma outra revolução,
ainda pouco ruidosa na Paraíba dos anos 30, mas que Joffily procura não desprezar:
Ainda mais caprichoso foi o destino com Anayde Beiriz: a emancipação po-
lítica da mulher só se tornaria realidade exatamente depois da mesmíssima
revolução que liquidou sua própria vida e a do seu amado, João Dantas. Ao
cabo de tanto esforço pela independência intelectual e liberação feminina,
Anayde Beiriz teria a sorte tumular dos parias e dos mendigos. Isolada pela
maldição pública, desde a morte de João Pessoa, como se o tivesse assassi-
nado, a professora paraibana viu-se forçada, em Recife, a mudar de pouso
pelo menos seis vezes, de 26 de julho a 22 de outubro. Nem as bondosas
freiras Dorotéas quiseram aceitá-la no internato do Colégio, sob alegação de
que causaria estranheza às internas, e assim o esconderijo chegaria fatalmen-
te ao conhecimento da Polícia. Sentindo-se irremediavelmente repudiada, a
morte voluntária seria a solução definitiva. Afinal, naquele dia, numa quarta-
feira, às 11 horas da manhã, escolhia a mesma atitude derradeira do noivo. A
diferença estava apenas no “instrumento de libertação”: veneno ao invés do
pequeno bisturi alemão...” 49
Joffily prefere, pois, usar a metáfora da morte como libertação; sem dúvida, uma for-
ma eficaz de manter o ideário de liberdade associado a Anayde, e de tentar garantir para ela o
lugar de martírio. Ao passo que fala de “morte voluntária” está dizendo também que esta não
foi ‘voluntariosa’, pois é como se não restasse a Anayde, como o havia sido com João Dantas,
outra alternativa ou, pelo menos, outra escolha mais honrada. Na perspectiva colocada, ela é
48
Ibidem, p. 38.
49
Ibidem, p. 45.
45
vítima de uma situação possivelmente evitável se já tivesse ocorrido o que ele denomina de
“revolução feminina”. Para o autor, vítima do preconceito e do isolamento decorrente dele,
Anayde ao “sacrificar-se” apenas liberta-se dos seus algozes de forma “digna”, antecipa ou
mesmo intensifica aquilo que era a prática deles e, portanto, é também sacrificada.
José Joffily insiste, pois, em enfatizar que apesar do ocorrido, ela jamais havia de-
monstrado “vocação suicida”. Uma ênfase que parece se fazer necessária para justificar o uso
do “instrumento de libertação” como única saída, limpando possíveis máculas de fragilidade e
melancolia que viessem a distorcer a imagem corajosa e cheia de vigor que prefere para sua
heroína, inclusive para aproximá-la do ‘destino’ de conhecidos intelectuais:
Amava a vida na plenitude dos seus 25 anos. Livrou-se da vida não por amor
à morte e sim porque não havia outro jeito. Não seria pela primeira vez que
um intelectual preferisse a solução extrema. Quem não se lembra da Virginia
Woolf, Stefan Zweig, Raul Pompéia e Hermes Fontes? Afinal, segundo Ca-
mus, só existe um problema filosófico realmente sério — o suicídio...” 50
Este esforço de isentar Anayde da decisão sobre sua própria morte e de, principalmen-
te, alçá-la a um lugar de memória, de reconhecimento, acabou por soprar de novo, vida à pro-
fessora, no sentido de presentificá-la, atribuindo-lhe qualidades, marcas, que a “ancorariam”
num lugar que, se distante temporalmente do seu ‘real’ vivido, mais próximo, no que sugere o
autor, daquele sonhado por ela: um lugar/tempo em que eram muitas, inúmeras, as mulheres
que decidiam sobre suas vidas, sua educação e trabalho, sobre quem e quando amar; uma épo-
ca, como já dissemos, em que se pretendia declarar o desejo e reivindicar o direito de, publi-
camente, assumir seu corpo.
Tal deslocamento, sem dúvida, é sobremaneira intensificado pelo que Tizuka Yama-
zaki ‘escreve’ em cima do texto de Joffily. Pensemos assim, numa sobreposição de escrituras,
que avolumam o corpo presentificado de Anayde Beiriz, ainda mais sendo revestido pela pelí-
cula fílmica, oferecido em três dimensões num espaço heterotópico como o cinema, o que
produz um sensível efeito de realidade.
Num certo sentido, usando a terminologia criada por Foucault, este corpo já pode ser
tomado como um espaço heterotópico, na medida em que “brinca” com a possibilidade de
assumir simultaneamente temporalidades diferentes. Como explica o autor:
50
Ibidem, p. 46.
46
Ou seja, o cinema torna possível a inscrição dessa mulher que viveu intensamente sua
época, mas que foi projetada muito além dela, continuando a viver ali, nos anos 1980, como
representação dos anseios de tantas outras mulheres, possibilitada pela justaposição das narra-
tivas a seu respeito. No caso, Anayde Beiriz na narrativa cinematográfica faz parte do que
Foucault diz ser a forma como o mundo contemporâneo se experimenta, ou seja, “menos co-
mo uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que religa
pontos e que entrecruza sua trama”. 52
Se o olhar retrospectivo facilita o observar destas nuances, pode-se dizer que elas já
estavam bem visíveis no momento da produção e lançamento do filme. Veja-se, por exemplo,
o convite feito por Tizuka Yamazaki aos possíveis espectadores, publicado na imprensa junto
a uma matéria que anuncia o lançamento do filme na Paraíba:
Como se percebe, a cineasta ao falar do filme também o faz como uma escrita de si, no
sentido em que o justifica a partir de sua própria experiência enquanto uma mulher que con-
51
FOUCAULT, Michel. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. vol. 3. Manoel Barros da Motta
(Org.). Tradução Inês Autran D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. (Coleção Ditos & Escri-
tos), p. 418.
52
Ibidem.
53
Paraíba Mulher Macho: uma estória de amor se transforma em tragédia. A União. Paraíba, 31 de agosto de
1983. p. 09.
47
quistou um lugar de prestígio num mundo masculino, um “poder para opinar e se expres-
sar”. 54 Aí ela se põe no jogo de alteridade com o outro a quem atribui um rosto, simultanea-
mente, compondo também esse rosto para si. O seu lugar demarcado, não apenas como cine-
asta, mas como mulher em um dado tempo e sociedade, com certa sensibilidade, lhe autoriza
a fabular sobre este outro que é presentificado por sua escrita.
O filme torna-se, portanto, o corpo desta escrita, que alcança também uma dimensão
coletiva ao compor a imagem de uma mulher consciente, que defendeu posturas, as quais adi-
ante, possibilitaram um “amadurecimento”, um “saber ser” a maior parte do eleitorado do
país, um “saber ser” que a fala de TizukaYamazaki identifica como político, produtivo e cria-
tivo. Numa entrevista concedida alguns meses antes do lançamento do filme, ela já explicitava
esta relação de similitude:
54
Em 1990, o Almanaque Abril relaciona entre 87 nomes de cineastas brasileiros, apenas três mulheres: Suzana
Amaral, Ana Carolina e Tizuka Yamazaki.
55
Paraíba Mulher Macho: uma estória de amor se transforma em tragédia. A União. Paraíba, 31de agosto de
1983. p.09.
48
A luta de Anayde não era apenas por uma coisa isolada. Ela lutaria em qual-
quer época que vivesse e reivindicava o que as mulheres não tivessem direito
—– disse a atriz, para quem as “pessoas evoluídas estão acima de tudo”. Pa-
ra Tânia Alves, Anayde, no filme, é uma mistura de grandes mulheres, como
Leila Diniz, Pagu e outras tantas. Ela disse, inclusive, que para viver o papel
de Anayde pesquisou, junto com Tizuka, a vida de todas essas mulheres. 56
Neste sentido é que se pode ver a tessitura do corpo de Anayde Beiriz como um espa-
ço heterotópico. Não apenas enquanto lugar, o cinema, enquanto “máquina”, possibilita a ex-
periência deste hiato em que “Um é Outro” — a cineasta é a personagem, é também sua fabu-
lação, sua lenda sobre si e sobre tantas, inúmeras outras mulheres que (re)conhecem na perso-
57
nagem um espelho, e falam através dela, ganham vida nessa virtualidade — uma imagem
que, ainda que invertida, num outro espaço/tempo, (re)liga os pontos entre um e outro, entre
passado e presente, entre ficção e real. Não uma utopia, desejável, mas irrealizável, porém,
uma heterotopia, passível de ser experimentada, ainda que numa relação com o devir da per-
sonagem.
Entretanto, é preciso ressaltar que este reconhecimento não é experimentado unani-
memente. Nem todos sentem o filme à maneira sugerida pela diretora em seu convite. O des-
conforto vem de uma expectativa sobre a verdade, uma coerência entre o ver e o falar, sobre-
tudo entre o já dito e visto, que o filme (dis)torce, extrapola. O efeito do cinema como espaço
heterotópico, presentificador, atinge em cheio a sensibilidade dos conservadores da memória
de 1930, bem como dos familiares e de admiradores de Anayde Beiriz.
E o que tanto parece frustrar parte da recepção? Cada crítico, a partir de seus critérios,
trata de apontar as irregularidades, os deslizes, os supostos equívocos históricos da narrativa
de Parahyba Mulher Macho. Pouco ecoa a redundante defesa de que se trata de uma ficção,
num exemplo claro de que, na prática, ficção não se confunde com o irreal. Afinal, embora
fazendo parte de um contexto mais recente, o cinema já fora liberado de um ideal de verdade
para se tornar um produtor de verdade. Seu poder, não como re-apresentação, mas como fabu-
56
Atriz de “Mulher-Macho”: filme não é pornográfico. A União. Paraíba, 03 de setembro de 1983. p.05.
57
Deleuze, estudando a imagem-tempo no cinema, diz que a partir dos anos 1960 um novo modo de narrativa
vem afetar a ruptura entre ficção e real. A função fabuladora do outro, no caso dos pobres, dos esquecidos, pre-
sentes nos documentários, é que passa a ser opor à ficção, dando ao falso a potência que faz dele uma memória,
uma lenda, um monstro. Embora não se trate de um documentário, a narrativa de Parahyba, propondo-se a fic-
cionar sobre a história, também dá ao falso esta potência, produz esta “veneração”, que a apresenta como verda-
deira. DELEUZE, Gilles. A Imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005. p. 182-3.
49
lação do outro, como simulacro, permite experimentar uma intensidade, uma presentificação,
que produz efeitos de real e põe em funcionamento múltiplas “encarnações”. 58
Aqui, mais uma vez inspirando-me em Foucault, lembro do seu estudo sobre Magritte
em Isto não é um cachimbo, onde ele assinala uma dissociação contínua entre figura e discur-
so no quadro do pintor, este, dizendo o que não se pode mostrar e mostrando o que não se
pode dizer. Embora o filme, antes mesmo de ser lançado, já fosse mal visto por muitos cronis-
tas e articulistas, antecipando uma rejeição pública, há na recepção, uma espera que o filme
diga “esta é Anayde” e que assim, num átimo, ela se faça ver, apareça revelada.
Espera que se frustra, posto que a narrativa excede àquela do livro que a inspirou e não
se “encaixa”, no sentido mesmo de correspondência, às imagens predominantes sobre os a-
contecimentos e à época a que se reporta. Não há, pois, como conter, direcionar ou aprisionar
os significados, eles dizem mais do que mostram e mostram mais do que vêem, numa funcio-
nalidade que parece própria à arte, mais especificamente, à arte cinematográfica. O que se
torna extremamente desconfortável àqueles que pretendem sujeitar o filme às regras de pro-
dução características de um tipo de história.
Embora Foucault estivesse pensando acerca da pintura, creio não ser forçoso estender
tais efeitos ao cinema, que opera por fabulações, virtualidades e também por similitudes. Dis-
sociando a semelhança da similitude, Foucault, analisando o que faz Magritte, diz que ele joga
uma contra a outra e explica a diferença:
Esta dissociação é, pois, o que confunde e fomenta tantos discursos acerca do filme e
de seus personagens, em especial sobre Anayde Beiriz. Espera-se sua re(a)presentação e en-
contra-se um simulacro que possibilita uma espécie de reconhecimento que é muito mais o de
outras mulheres, o de outra época, do que da “retratada”, embora também ela esteja presente.
58
Ver GUIMARÃES, César. O Rosto do Outro: ficção e fabulação no cinema segundo Deleuze. In: LINS, Dani-
el (Org.). Pensamento Nômade. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria da Cultura e do
Desporto do Estado, 2001.
59
FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. Tradução Jorge Coli. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p.
60.
50
Ou seja, se não se diz “esta é Anayde” também não se pode dizer “esta não é”, e é nesta ten-
são que os silêncios e as palavras transbordam, tornando a experiência da corporeidade — o
corpo-manifesto — possível.
Afinal, como tentei mostrar, o que de mais relevante se experimenta através do filme,
se não essa concepção de uma Anayde corpórea, que ganha uma feminilidade explícita no
corpo de Tânia Alves, que se insinua no andar, no falar, no sorrir...? Uma mulher impulsiva e
sexuada, que se lança desejosa sobre o corpo do amado, que se abre e se entrega sem hesita-
ções, fazendo ecoar pela sala de cinema seus gemidos de prazer? E então, coloco-me a questi-
onar: como pôde essa mulher sair das páginas comedidas de Joffily? Como pôde ela ser pos-
sível se não configurada pelas práticas discursivas sobre sexo e gênero nos anos 1970 e 80?
A experiência dessa corporeidade — que me salta aos olhos como o que (re)inscreve
Anayde Beiriz nos jogos discursivos sobre a história e a identidade da Paraíba — se não é
uma invenção do filme isoladamente, tem nele um ponto forte de intensidade, a partir do qual
se pode pensar na sua construção como um ícone feminista, como “mulher-macho”, como
uma personagem com uma capacidade ampla de adaptar-se às marcas que “tatuam” sua pele.
A narrativa do filme, mais livre que a do livro que a inspirou, não se mostra pretensio-
sa ou mesmo muito interessada com o restabelecimento da verdade sobre a chamada Revolu-
ção de 1930, sobre atribuir as devidas razões a perrepistas, filiação de João Dantas, ou a libe-
rais, designação do presidente João Pessoa, embora esta trama seja também contada. Como já
foi colocado, a preocupação é maior com relação aos ideais de outro movimento, ao qual se
Anayde Beiriz não estava engajada diretamente, poderia facilmente representar, articulando
dois de seus momentos de maior visibilidade no Brasil: os anos 1920/30 e os anos 1970/80.
E daí, se Anayde não participou mais ativamente dos embates políticos de sua época,
mesmo daqueles aos quais acabou diretamente relacionada? Se isso soa com relativo descon-
forto para Joffily, na narrativa fílmica é secundário. Anayde, impressa na película é, sobretu-
do, indivíduo. Possui uma singularidade, uma diferença que a “marca a ferro”, que a faz esca-
par de amarras morais, que escapole dos dispositivos de normatização do corpo feminino vi-
gentes em sua época, e mesmo, haja visto o impacto causado pelo filme, ainda instalados nos
corpos de homens e mulheres cinqüenta anos depois.
A possibilidade do prazer aparece no filme como sendo aquilo em que Anayde acredi-
tava e pelo qual lutava, usando táticas perspicazes, como suas crônicas com personagens fe-
51
mininas que viviam a paixão e a sensualidade, ainda que em romances proibidos. Este anseio
por viver coerentemente com suas idéias de liberdade conferem-lhe um poder ameaçador, em
confronto com as práticas de domínio masculinas, o que acaba por ressoar como uma ameaça
às estruturas políticas locais. Se caminhando em favor do presidente João Pessoa estavam as
moças e senhoras que apoiavam a Aliança Liberal, Beiriz acaba configurando o lugar da opo-
sição, tanto política, quanto moral, se é que se pode distinguir estes lugares, como observarei
melhor adiante.
A inscrição de “mulher-macho” no corpo de Anayde vem qualificar, tal como faziam
os cronistas na imprensa dos anos 1920, as práticas que algumas mulheres “usurpavam” dos
homens, freqüentando lugares antes restritos a estes, como os saraus onde ela era a única mu-
lher a declamar poesias e, principalmente, no jogo da sedução e no exercício da sexualidade,
onde se constituiu a imagem de uma mulher que tomava a iniciativa, que se permitia a intimi-
dade sem estar casada e que assumia posturas ativas e de “controle” no ato sexual.
Ao mesmo tempo, com o filme dirigido por Tizuka Yamazaki, cola-se em Anayde
uma identidade que se pretendia para o Estado, de guerreira, resistente, que de sua aparente
fragilidade faz brotar uma enorme força; força viril, de macho, como se costuma relacionar.
Sendo este corpo escrito por signos de uma leitura do passado pelo presente, como
forma de dar uma “resposta” a este último, a Anayde Beiriz que assume o lugar da Parahyba
Mulher Macho soa, entretanto, ousada demais para a sensibilidade de muitos que assistem ou
apenas ficam sabendo do enredo do filme. Por isso escandaliza e ofende àqueles que defen-
dem um sentido de “verdade” para a história, como também aos que entendem a Anayde da
ficção como um “resgate” da personagem histórica, acreditando que o filme afronta e deturpa
sua memória.
A família da escritora move então um processo contra a cineasta, pois sem dúvidas
não “sente” o filme da maneira sugerida por ela. Há algo considerado excessivo naquela re-
presentada por Tânia Alves que, na opinião de muitos, registradas pela imprensa, “fere” a
história e, em particular, a memória de Anayde Beiriz:
Há, pois, sexo, sim, nesse filme, mas nunca um sexo escandaloso e sensacio-
nalista; sempre uma sexualidade vigorosa, sadia e saudável. Com a dignida-
de artística e a beleza plástica que lhe dão a sensibilidade e o bom gosto da
cinematografia de Tizuka são momentos da mais pura beleza e mais imagi-
nosa criatividade. 62
60
FARIAS, Wellington. Do sucesso no cinema às barras da justiça. A União. Paraíba, 23 de outubro de 1984.
Jornal de Domingo. p. 01.
61
OLIVEIRA, Eleonora. O Sentido Feminista. A União. Paraíba, 03 de setembro de 1983, p. 09.
62
FARIAS, Wellington. Do sucesso no cinema às barras da justiça. A União. Paraíba, 23 de outubro de 1984.
Jornal de Domingo, p. 01.
53
Assim é que, o corpo ousado, mas pouco insinuante de Anayde escrito por Joffily, tor-
na-se um corpo-manifesto na narrativa do filme. A impressão desta última escritura no corpo
de Anayde é tão intensa, que produzirá outros tantos corpos, atraídos ou avessos a este, num
movimento que não parou mais de se estender.
Inspirando-se também nos livros de José Joffily — além de Anayde, Paixão e Morte
na Revolução de 30, também o anterior Revolta e Revolução 50 anos depois, o teatrólogo
Paulo Vieira escreve uma peça intitulada Anayde e, antes de montá-la, submete-a a apreciação
de alguns nomes ligados à arte e ao jornalismo, o que já foi motivo para causar um burburi-
nho, especialmente sobre as chamadas “cenas de amor”:
A peça Anayde, de Paulo Vieira, antes mesmo da sua montagem, já vem re-
cebendo a condenação de pessoas apegadas a preconceitos, de mentalidade
retrógrada. Até amigos e admiradores do escritor José Joffily, que também
veneram a imagem de Anayde Beiriz, estão combatendo a obra de Paulo Vi-
eira por apresentar cenas de amor. Evidentemente, isto não é motivo que jus-
tifique a repulsa a um trabalho de arte. Primeiro porque amor não é coisa
condenável. É natural. Segundo porque a peça, insisto, é uma ficção. Além
de tudo as cenas de sexo da peça Anayde não são pornográficas, como as
que estão sendo exploradas nos filmes em moda, por exemplo Garganta
Profunda, que não apresentam arte nenhuma, mas só o lado da luxúria, para
explorar comercialmente o grande público. O trabalho de Paulo Vieira, ao
contrário, tem valor artístico, mensagem social e reaviva um episódio da
nossa História, um lado que a historiografia oficial omite. 63
Oduvaldo Batista, ao opinar sobre a peça de Vieira, dá-nos mais uma vez a impressão
de uma expectativa sempre vigilante sobre a moral e a sexualidade expostos com o corpo de
Anayde. Também, permite perceber que a recepção tende a relacionar as cenas de sexo à por-
nografia, uma preocupação recorrente que, inclusive, mobiliza setores contra a exibição nos
cinemas do que se considerava “pornochanchadas”. Ainda, sua fala, como a de Pompeu de
Souza, habilita o sexo com base numa noção de arte, que se opõe à pornografia e aos apelos
comerciais. Depois, percebe na peça teatral uma mensagem, uma utilidade social e histórica
— o que é bem interessante, pois apesar de enfatizar o sentido ficcional, ele não deixa de con-
siderar que aquele texto “reaviva” aspectos históricos e mesmo é capaz de mostrar/dizer coi-
sas da ordem do não-dito.
Sexualidade, arte, história são então questões que se colocam na ordem do dia, mobili-
zando olhares os mais diversos, que não se cansam de produzir novas imagens, em diferentes
formas estéticas, experimentando outras linguagens.
Aliás, Parahyba Mulher Macho não é a única produção fílmica que nos anos 1980 faz
63
BATISTA, Oduvaldo. Anayde. A União. Paraíba, 17 de agosto de 1983. p. 02.
54
64
Cf. LEAL, Wills. O Discurso Cinematográfico dos Paraibanos: a História do Cinema na/da Paraíba. João
Pessoa: do Autor, 1989.
55
política maior ou menor que a escravidão do amor?” E, mais ao final, quando se vê uma fo-
gueira de papéis queimando em plena praça, o que nos remete aos escritos de Anayde e Dan-
tas supostamente destruídos durante os confrontos, o problema se inverte: “seria a escravidão
do amor maior ou menor que a da política?” E ficamos nós, espectadores, a esperar uma res-
posta que, assim como João, é claro, não chega.
Curto, mas intenso, Esperando João também cria corpos para Anayde, e reinveste
numa tessitura poética para sua pele, para inscrevê-la num espaço de romantismo, solidão,
loucura, e também de afrontamento. Afrontamento àquela memória monumento que eterniza a
espera dela. Este tom é, sem dúvida, acentuado no filme Paraíba Masculina Feminina Neu-
tra. Este é lançado no mesmo período em que espera-se o filme de Tizuka Yamazaki e, cer-
tamente, já “brinca” com as discussões travadas acerca do título e das imagens por ele anunci-
adas.
Qual o gênero da Paraíba? Qual sua sexualidade? A idéia de Jomard Muniz extrapola
o hiato da ambivalência: masculino sim, feminino sim, mas também “neutro”, um espaço sem
definição, aberto a todas as possibilidades. Esta sensação talvez seja a buscada pelo filme, que
usa de vários signos relacionados à memória dos acontecimentos de 1930, como novamente
os monumentos erguidos para consagrar João Pessoa; mulheres à espera em janelas, calçadas;
um ator andrógino que se traveste de Anayde e declama poemas no cemitério, nas ruas; um
cangaceiro que remete à figura de Lampião e depois à de Maria Bonita; e mais um vez, um
elemento “lúdico”, que entrecorta as cenas, desta vez não mais um mágico com sua cartola,
mas um palhaço.
Aliás, a imagem circense percorre toda a narrativa, sendo a primeira cena a de um cir-
co com sua lona rasgada e, abaixo, sobre o que parece ser o que restou dela, no chão, duas
mulheres nuas, deitadas lado a lado, imagem para a qual se retorna ao final do filme. No meio
da narrativa vê-se o encontro dessas mulheres sob a lona, um encontro amoroso, em que elas
se despem e fazem sexo, ao som da música Bárbara, de Chico Buarque. A cena é entrecortada
por outra em que dois policiais aparecem na rua, e em seguida, temos um ator nos trajes tradi-
cionais de um magistrado, pregando para um grupo de populares que o rodeia: “precisamos
preservar a honra da nossa cidade — [...] vamos salvá-la! — [...] todo mundo vasculhando
todo mundo!”
O filme “brinca”, pode-se dizer, com as polaridades, sugere uma instabilidade de pa-
péis que se invertem, saltam, pregam peças... um Lampião que vira Maria Bonita, que por sua
vez seduz um carrasco; um palhaço que faz graça, que ironiza, e depois, silencioso, aparece
triste, também adiante fatigado, entediado; uma Anayde caricatural, que é feminina, masculi-
56
na, neutra... Um rapaz tocando seu violão em meio ao povo, cantando: “não é preciso criar,
basta xerocar”... Um espetáculo de possibilidades que, certamente, ousava ser bem mais elo-
qüente e transgressor que a superprodução de Parahyba Mulher Macho, mas que, decerto,
pela sua produção alternativa e modesta, seu circunscrito raio de alcance público, não desper-
tou tanta revolta, nem ocupou tanto espaço de jornal e o tempo da justiça quanto aquele.
Pedro Nunes, também cineasta e crítico de cinema, que participa da produção, escreve
à época acerca da proposta do filme de Jomard Muniz:
Esta fala de Nunes sintetiza algumas das imagens mais marcantes e reforça a idéia do
cinema como manifesto, estratégia de desmonte ao que chama de “verdades e mentiras parai-
banas”, fazendo referências aos mitos erguidos em torno dos acontecimentos de 1930, e que
participavam ativamente do que ele e os realizadores identificam como valores tradicionais
burgueses.
Ora, a tônica da corporeidade está também bastante presente nestas duas produções
dirigidas por Jomard Muniz de Brito. Embora em Esperando João tenhamos falas/textos ao
fundo, prevalece a linguagem corporal das atrizes e atores. Vemos “Anayde” ser ocupada pelo
corpo de diversas mulheres, com feições e traços diferentes, gestualidades próprias, em que a
sensualidade se faz marcante, ainda que a maior parte do tempo de forma mais sutil do que
em Paraíba Masculina Feminina Neutra. Neste, também prevalece a expressão, o gesto, mais
que a verbalização. Dá-se ênfase aos corpos nús ou semi-nús dos artistas; a sensualidade e as
questões relacionadas a uma vivência sexual mais livre, plural, ganham espessura. Anayde
perde sua aura romântica, daquela que pacientemente espera, e parece mais desesperada; mos-
tra-se insatisfeita com esta condição de espera, de ser alvo de reprimendas, “prisioneira” de
um lugar/situação em que teimam fixá-la.
65
NUNES, Pedro. Um desafio novo: Paraíba Masculina Feminina Neutra. A União. Paraíba, 14 de outubro de
1982. p.10.
57
Embora tratem do mesmo tema, Paraíba Masculina Feminina Neutra possui um tom
que eu sinto como mais agressivo, por isso mais impactante, criando uma tensão com tudo
que se dizia à época sobre a escritora, na tentativa de situá-la ou no lugar honrado de moçoila
inteligente e romântica, vítima indefesa, ou de mulher avançada e autônoma, heroína de ou-
tros tempos, que muitas vezes se procurava sintetizar na “cruel” e perniciosa dúvida a que
muitos dedicavam sua atenção, como se esta fosse uma chave para “capturar” Anayde: fora
noiva ou amante? Namorada ou prostituta? Qual a marca no corpo de Anayde, da pureza ou
da mácula?
Um dos momentos do filme que certamente sintetiza essa ruptura com as vozes mais
recorrentes sobre Beiriz é a da interpretação de um poema escrito por Eulajose Dias de Araú-
jo, cujas imagens reforçam a impressão de um corpo, vivo, desejante:
Esperando João
Ou um homem qualquer?
Ou estou esperando esperma?
Se não me conformo
Com um João só um só João
Faço um arquipélago, de João sós
E me meto corpo adentro, corpo dentro
Vaginamente espermamente
Nestas ilhas de João vários
E me apresento:
Me chamo, me chamam Anayde Beiriz. 66
Assim, esta já não é uma Anayde de um João só, mas de vários, uma mulher, neste
sentido, pública, que se nomeia ou é nomeada por este movimento de (in)corporação, do(s)
outro(s) e de si mesma. Visceral, sexual, pungente... aqui não se pode deixar de reconhecer as
ressonâncias com a personagem de Parahyba Mulher Macho. Mas a própria utilização de
atores para interpretar as “Anaydes”, de travestis, provoca saltos, dá golpes nas imagens até
então recorrentes. Uma sexualidade plural, livre, é colocada em cena em contraposição aos
dispositivos de uma sexualidade heteronormativa. De certa forma, não cabe à imagem de A-
nayde apenas um discurso libertário sobre o corpo e a sexualidade feminina, ela pode ser mais
líquida, mais expandida. Como “mulher-macho”, ela pode estar em qualquer polaridade, mas
está, sobretudo, no vácuo do hiato, no “neutro”, no trans... em trânsito. Em uma das cenas
protagonizada por uma Anayde travestida, trôpega, declamando poesias na calçada em meio a
um grupo de homens, ouvimos dela:
66
PARAÍBA Masculina Feminina Neutra. Direção de Jomard Muniz de Brito. Produção Cinevivendo, UFPB.
Paraíba, 1982. 8mm (30 min).
58
67
Ibidem.
59
Abel Raphael contra-atacou afirmando que o sexo não é para ser mostrado e
explorado, mas mantido em sua função precípua, que é de reprodução da es-
pécie. Chegou mesmo a elogiar o filme, revelando que possui 13 filhos. “—
E só copulou 13 vezes na vida?” — indagou Pompeu, provocando risos só
interrompidos quando Daniel Rocha, representante dos autores de teatro, dis-
se: — O que há de tão horrível no sexo, se todos nós o praticamos? Após de-
bater a formulação de Rocha e considerar o filme como “Pornô-histórico”,
por se inspirar em parte da vida de João Pessoa, Raphael elogiou o “equilí-
brio” de Cláudio Marzo numa cena erótica num cavalo em movimento. “Não
podemos permitir isso, se não vamos ter muito menino com a cabeça que-
brada por aí, porque caiu do cavalo tentando o sexo gratuito e quase impos-
sível, a galope.” 68
entrevista ao jornal A União, já colocava sua dúvida sobre como seria a recepção quanto às
cenas de sexo presentes no filme. O tema surge na entrevista, justamente quanto o repórter
pergunta se ela, como era comum a outros cineastas, se sentia patrulhada:
Olha, o filme como não foi visto ainda, não sei que reação poderá provocar,
mas sei lá. Eu acho que é muito diferente quando um homem coloca o sexo
na tela, por exemplo. Quem viu acha a relação sexual muito bem colocada
no filme, que é do ponto de vista da mulher. O ato sexual no filme é sob o
ponto de vista da mulher, o que causa um certo mal estar porque é colocado
pela mulher. O homem tem o direito de colocar o sexo como quiser, seja
pornográfico, sensual ou inocente. Com a mulher é diferente e eu estou mui-
to curiosa para saber qual será a reação. Não se está acostumado a encarar o
sexo quando é narrado, comentado sob o ponto de vista da mulher. 70
70
Tizuka Yamazaki: Anayde incomoda porque eu incomodo também. A União. Paraíba, 17 de agosto de 1983.
p. 09.
61
Curioso ver como nesta fala a imagem de Anayde é prontamente associada à de Mar-
garida Alves, então líder sindicalista de camponeses, que se destacava naquele contexto por
sua luta frente às disputas pela terra, o que adiante retomarei. Isa Arroxelas, posicionando-se
como uma representante do público feminino, identifica aquele incômodo com a figura da
professora e a imagem da “mulher-macho” como sendo dos homens; as mulheres estariam aí
confortáveis, pois o seu brio, inteligência e coragem só haviam sido “claramente” mostrados
pelo filme.
A maior recusa ao título viera, de fato, por parte do Conselho Estadual de Cultura,
embora não tenha levado adiante a tentativa de embargá-lo. Considerado ofensivo ao Estado e
às suas mulheres, tomado como pejorativo, o título foi, decerto, muitas vezes o pretexto para,
desde o início, alertar a “vigilância” sobre o uso que poderia ser feito de signos e imagens
identitárias associadas à história da Paraíba.
Era desconfortável pensar num outro produzindo uma obra acerca de eventos e perso-
nagens tão caras aos defensores do ideário da “Revolução de 1930”. Não demorou para que as
curiosidades e críticas em torno da produção do filme surgissem. A cada declaração de Tizuka
Yamazaki, antes mesmo do lançamento, uma reação se seguia. A impressão, ao ler as várias
71
ARROXELAS, Isa. O Porquê de Parahyba Mulher Macho. A União. Paraíba, 03 de setembro de 1983. p. 09.
62
colunas publicadas na imprensa a respeito, é de que a resistência não era ainda maior porque,
de qualquer modo, associava-se ao filme a obra de um paraibano que, a despeito de suas con-
vicções políticas consideradas mais progressistas, era tido como ilustre e respeitado intelectu-
al. Ainda assim, não tardou a se explicitar o incômodo por alguém de “fora” mexer naquilo
que, aparentemente, estava quieto:
Aliás, custa acreditar que uma alienígena, sem nenhum vínculo com a
Paraíba, sua história, sua terra e sua gente, totalmente ignorante, dos fatos
locais, numa deplorável preocupação de adulterar os fatos para com a pos-
sível ressonância escandalosa, auferir mais lucros financeiros para um discu-
tível e discutido filme, tenha a coragem de tal aventura. Poder-se-ia tolerar a
ousadia insultante se, numa prévia explicativa, fosse dado um caráter de me-
ra fantasia ao empreendimento. Afinal de contas, divagação utópica, sonhos
de uma imaginação, do espírito, delírio creador, são vagares inofensivos, de
qualquer devaneio. Mas, não é este o caso da cineasta oriental. Ela pretende
interferir e interpretar, com conclusões terríveis de falsidade, a nossa
história.Não é uma história antiga. É a história atual, com inúmeras teste-
munhas vivas e palpitantes. E, então, a fantasia cedeu lugar ao insulto. É o
tão praticado hábito de alcançar vantagens pessoais às custas da reputação
alheia. 72
72
BRITO, Higino. Realidade, ficção e insulto. A União. Paraíba, 25 de dezembro de 1982. Caderno especial, p.
08. (grifos meus).
63
que é também registrado pelos jornais, que há uma opinião popular que apóia a mudança do
nome de volta para ‘Paraíba’, como o era antes de homenagear João Pessoa. Ainda que os
números da rápida enquete não tenham sido amplos, nem indicado uma vitória da mudança,
mais uma vez, a reação não tardou, procurando desqualificar qualquer interferência neste sen-
tido:
A idéia não é nova, nem original. De vez em quando, um ou outro político
mergulhado no ostracismo, resolve aparecer e procurar a imprensa para
propor a substituição do nome. [...] No caso do escritor Horácio de Almeida,
porém, dá-se o seguinte: já macróbio, velhíssimo, quase um megatério, ele
vive no Rio de Janeiro inteiramente sem maiores perspectivas, desconhecido
do grande público, sem projeção e sem admiradores. [...] inteligente e incon-
formado com o esquecimento em que jazia, resolveu ser manchete dos matu-
tinos da província, sugerindo a troca da denominação da capital.[...] E o po-
vo não quer mudar. Enganam-se portanto os que julgam que o povo tem
memória curta. Ele não esquece os seus líderes e heróis. 73
73
AGUIAR, Wellington. Nome que honra. A União. Paraíba, 08 de maio de 1983. p. 02.
74
Joffily considera ingênua a atitude de Helena Beiriz. A União. Paraíba, 01 de setembro de 1983. p. 07.
64
Aqui, é a vez de Joffily colocar-se num “fora”: ele existe em oposição a “estes histori-
adores da Paraíba” e também apela à imagem do povo para referendar uma perspectiva de
história, que seria comprometida com a verdade dos fatos, aquela que se revelava nos docu-
mentos. Mais adiante, ele ressalta na mesma entrevista, que todas as vezes que seus argumen-
tos contrariavam os fatos conhecidos pela historiografia oficial, ele tinha um documento para
“salvaguardar” sua tese.
Neste clima de disputa, recorrente no campo da história, marcado pelas relações de al-
teridade, pelos deslocamentos táticos que jogam a favor da preservação de uma memória, ao
passo que possibilita a criação de outra, o “sopro de vida” à imagem de Anayde Beiriz vai
ganhando força. O esforço da “vigilância” sobre as versões predominantes é tão somente um
sintoma de que os signos identitários ali em jogo eram fortes e escorregadios às estratégias de
controle e fixidez.
Não à toa, a singularidade desse momento em que a imagem de Anayde Beiriz torna-
se evidenciada pelo livro de Joffily e pelo filme ainda ressoará por bastante tempo, assumindo
rumos às vezes previsíveis, às vezes surpreendentes. O corpo de Anayde, configurado enquan-
to um território de disputa da história, uma arena de combate, permanecerá sendo, volta e
meia, (re)“encarnado”. O incômodo provocado por esse corpo indócil, intenso, exposto, con-
tinuará gerando muitas afetações. Em diferentes momentos haverá quem queira cobri-lo, reto-
cá-lo ou mesmo envergonhá-lo com as cores do pudor, em nome de uma pretensa verdade.
1.4 Anayde e a “encarnação” da verdade (ou quantas vidas pode um corpo que não
morre?)
— Será que meu ser um dia se estenderá numa mesa de
mármore para um estudo anatômico?
(Anayde Beiriz)
Em 1995, João Dantas e Anayde Beiriz: Vidas diferentes, Destinos iguais, escrito por
Maria de Lourdes Luna, que havia sido secretária de José Américo de Almeida e, por isso,
pretendendo carregar consigo uma aura testemunhal, foi lançado, causando, como tudo mais
sobre a professora, muitos comentários.
O livro de Lourdinha Luna, como é mais conhecida a autora, foi tomado de pronto
como uma saída em defesa de Anayde Beiriz, na perspectiva em que se considerava que o
livro de Joffily não fosse lá “tão verdadeiro” e o que o filme de Tizuka Yamazaki tivesse “er-
rado na mão”. Nas palavras do jornalista Augusto Magalhães, então editor de cultura do jornal
Correio da Paraíba, “o filme mostra uma Anayde ‘assanhada’— digamos assim — e muito
65
75
MAGALHÃES, Augusto. Remexendo na História: O “Assanhamento” de Anayde. Correio da Paraíba. Para-
íba, 28 de janeiro de 1996. Caderno 2, p. 01.
76
A autora acrescenta ainda que a origem modesta de Anayde, filha de tipógrafo e dona de casa, sendo a mesma
de hábitos simples, não a impediram de freqüentar lugares onde predominavam moças de nível social mais ele-
vado; que, considerada buliçosa, no sentido de ser irrequieta e travessa, chegou a ganhar um concurso de Miss
Paraíba, em 1925, graças à “soma dos seus tributos físicos e morais”. LUNA, Maria de Lourdes. João Dantas e
Anayde Beiriz: vidas diferentes, destinos iguais. João Pessoa: A União, 1995. p.65-6. (grifos da autora).
66
‘santinha’” e, arremata, “tenho provas”, embora não indique quais seriam estas. 77
Como se pode observar, em meio a estratégias políticas, a discursos inflamados em de-
fesa da verdade e da justiça, prevalece sobre Anayde uma questão que não se cala: tinha ela
ou não uma vida íntima com João Dantas? Era ou não uma “libertina”, uma “doidivanas”?
Deflagra-se aqui o grande incômodo em torno do corpo de Anayde enquanto um corpo femi-
nino, sexualizado, que afronta normas e regulações. Isso parece importar mais que qualquer
outra coisa que lhe dissesse respeito, inclusive mais que a sua produção literária, mal conhe-
cida e pouco situada nas obras que tratavam sobre ela até então — no livro de Joffily, restrin-
ge-se, como referi antes, ao prefácio.
O livro de Lourdes Luna é, sob esta perspectiva, uma tentativa de regular o corpo in-
ventado de Anayde, de pinçá-lo para o enquadramento da “moral e dos bons costumes”, de
onde não deveria ter saído. Ela parte numa crítica contundente ao filme Parahyba Mulher
Macho, informando que “a grosseira e falsa exposição da privacidade dos protagonistas, no
maldito documentário”, mobilizou pessoas em defesa dos “ofendidos”, especialmente da jo-
vem professora. Várias declarações teriam sido feitas por pessoas consideradas de grande cre-
dibilidade e que “todas, a uma só voz, fizeram justiça à conduta correta de Anayde antes e
durante a aproximação de João Dantas”. 78
Como parte dos argumentos de que se vale para imacular o corpo “violentado” de A-
nayde, a autora informa que uma autopsia foi feita após o envenenamento, tendo sido solicita-
da pela própria jovem em um bilhete, e na qual se constatou sua virgindade, o que teria sido
divulgado em nota no Diário de Pernambuco. Esta, “a prova”, que ela usa contra aquelas su-
postas, com as quais Aguiar ameaça a honra de Anayde. Interessante artifício este de convo-
car o hímen, como uma inscrição no corpo, que resumiria e comprovaria quem, de fato, A-
nayde fora. Uma marca de arquivo (do corpo como arquivo) que assumiria o lugar da verdade.
Lourdes Luna não nega, porém, as transgressões cometidas pela escritora, por exem-
plo, nos seus textos que “abordavam temas renovadores em que a mulher não era só um ele-
mento passivo e assexuado, mas uma lutadora no mesmo plano do homem”. Contudo, fica
claro que esta luta poderia ser positiva, desde que não no campo da sexualidade.
Este desejo também de “limpar” as imagens do seu uso “excessivamente” ligado ao
corpo, à sexualidade, também atinge a figura de João Dantas. No filme, embora traçado com
posturas e idéias mais conservadoras, no terreno do privado, da intimidade, Dantas é constitu-
77
AGUIAR, Wellington. In MAGALHÃES, Augusto. Remexendo na História. O “Assanhamento” de Anayde.
Correio da Paraíba. Paraíba, 28 de janeiro de 1996.Caderno 2. Paraíba, 28 de janeiro de 1996, p. 01.
78
LUNA, op.cit.
67
ído como um personagem relaxado, sensual, que se deixa conduzir pela força sedutora da sua
amada. Como ela, ele também aparece nú em várias cenas, inclusive pelos cômodos da casa.
O desconforto com essa imagem é o que certamente faz Lourdes Luna destacar, entre as me-
mórias de José Américo, aquelas em que convivera com Dantas, seu colega de profissão, com
quem partilhara uma casa para pouso no interior do Estado. Conta aspectos pitorescos da con-
vivência dos colegas, incluindo a presença de João da Matta, descrito como “boêmio, extro-
vertido, irreverente”, que não ligava para convenções, em contraposição a Dantas:
Táticas discursivas como estas estão largamente presentes no livro citado e em muitas
outras tentativas, pela imprensa e na literatura, de demarcar para Anayde e Dantas um lugar
de oposição àquelas das imagens associadas ao filme. Simultaneamente, há também sempre
vozes como a de Wellington Aguiar para criticá-las e tentar esvaziá-las de autoridade, posto
que para preservação da moral da revolução, dos mitos que a sustentam, não é interessante
que se depurem ou relativizem as possíveis máculas e condutas desviantes dos “traidores”.
Todos esses embates, pelo que se pode ver, alimentam uma produção discursiva cons-
tante, que segundo Michel Foucault, prevalece no Ocidente pelo menos desde os séculos XVI
e XVII, com a moral cristã, sob a forma de uma obsessão pela sexualidade que, paradoxal-
mente, acompanha toda uma série de interdições. Um paradoxo apenas aparente, pois o que
Foucault sugere é a percepção do poder, não só, e principalmente, como uma forma de inter-
ditar e negar, mas como mecanismos que chegam a produzir algo, a ampliar e intensificar.
Isso, no caso da sexualidade, ao impor os limites e as negativas, os mecanismos de poder ins-
tauraram uma obsessão, caracterizada por uma produção muito intensa e ampla de discursos
— institucionais, científicos—– que tornou a sexualidade uma coisa essencial na vida do ho-
mem ocidental, tornando-se parte constituinte “da ligação que obriga as pessoas a se associar
com sua identidade na forma da subjetividade”. 80
Ora, tantas interdições, em particular à sexualidade feminina, como parte de uma cul-
79
LUNA, Maria de Lourdes. João Dantas e Anayde Beiriz: vidas diferentes, destinos iguais. João Pessoa: A
União, 1995. p. 30.
80
FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política. Manoel Barros da Motta (Org.) Tradução Elisa Monteiro
e Inês Autran D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, v.III (Coleção Ditos & Escritos). p. 75-6.
68
tura falocrática, instigou a produção dessa obsessão em torno da imagem de Anayde Beiriz,
que nada mais é que uma prática fomentada por esses mecanismos de poder de que nos fala
Foucault, e que diz respeito não à sexualidade dela, em particular, mas às dos que a inscre-
vem, desses tantos outros espaços temporais, que a usam como um referencial de sentidos,
negando-a ou positivando-a, para estabelecer e/ou reafirmar suas identidades. Portanto, quan-
to mais falas como a de Lourdes Luna defendem com tal veemência Anayde de interpelações
sobre sua sexualidade, mais a afirmam, tanto quanto aquelas que a acusam, fixando-a neste
território.
Impressionante, contudo, é a velocidade com que se desloca e se (re) configura o cor-
po de Anayde Beiriz. Corpo que se veste e que se desnuda, e no qual se reinveste sempre que
se quer retomar a polêmica sobre os acontecimentos de 1930 na Paraíba. Corpo que é um ter-
ritório de disputa da história, no sentido de ser este tomado como o lugar da verdade.
Mais recentemente, por exemplo, nas comemorações do centenário de nascimento de
Anayde Beiriz, o médico e jornalista Marcus Aranha lançou um livro reunindo a correspon-
dência íntima da professora com o estudante de medicina Heriberto Paiva, que ela namorou
antes de João Dantas. A publicação, conforme divulgado na imprensa da época, com a autori-
zação da família Beiriz que guardara como a um tesouro tal material, fez parte das iniciativas
de um grupo de pessoas que fundou uma organização não-governamental chamada Paraíba
Verdade, que como já anuncia em seu nome, procura “resgatar” e apresentar a verdade acerca
de fatos considerados importantes na História da Paraíba. Rico no material epistolar que torna
pública uma escrita da própria Anayde, muito assinalada, mas pouco conhecida, o livro tam-
bém vem se colocar como parte das estratégias de ataque às imagens do filme que, na opinião
de Aranha, a condenou mais uma vez:
Sem que tenha cometido quaisquer crimes, sem que sobre ela pesasse ne-
nhuma acusação, Anayde foi condenada a primeira vez como prostituta de
João Dantas pela Aliança Liberal em 1930, tendo seu nome execrado e ex-
purgado da consciência de quase toda uma geração. Em 1983, por obra e
graça de Tizuka Yamazaki, Anayde foi condenada mais uma vez, também
como libertina e prostituta debochada. 81
81
ARANHA, Marcus. Anayde Beiriz: Panthera dos Olhos Dormentes. João Pessoa: Manufatura, 2005. p. 36.
69
A rede discursiva em que estes signos são compostos se mostra tão imbricada, entrelaçada,
extensa nos seus nós e nos seus fios soltos, que mesmo Tizuka Yamazaki, que se defendeu
das acusações e do processo movido pela família de Anayde, reiterando que seu filme era uma
obra de ficção, também defendeu o teor mais verdadeiro do livro que a inspirou, escrevendo
que:
Durante meio século, o nome de Anayde Beiriz esteve oculto por uma pesa-
da cortina de silêncio,e quando alguém o pronunciava era sempre para cobrí-
lo de escândalo ou, pelo menos, de maliciosas reticências.
Inconformado diante da injusta condenação histórica, José Joffily, no Rio e
no Nordeste, realizou árdua e criteriosa pesquisa para apresentar, afinal, a
verdadeira dimensão humana de sua conterrânea, uma mulher que muito
amou, muito padeceu e que soube se libertar da vida com a dignidade que
faltou aos seus implacáveis destruidores. 82
82
Depoimento impresso na orelha do livro Anayde Beiriz: Paixão e Morte na Revolução de 1930, de José Jof-
fily. (grifo meu).
70
83
Em 2005, na comemoração do centenário de Anayde, uma série de homenagens lhe foi feita, num teor de
aclamação e combate às suas “falsas imagens”, com anúncios de livros futuros sobre ela e da fundação de um
museu. Também, contrapondo-se às idéias correntes sobre Anayde, o médico e escritor Marcus Aranha, lançou o
seu Anayde Beiriz: Panthera dos Olhos Dormentes, divulgando escritos dela ainda inéditos: as cartas que trocou
com Heriberto Paiva, à época seu namorado, jovem estudante de Medicina, entre agosto de 1924 e agosto de
1926. Tratarei mais especificamente deste material no último capítulo.
84
Máquina de guerra aparece aqui como um conceito formulado por Deleuze e Guattari, como sendo uma inven-
ção dos nômades, em contraposição ao aparelho de Estado sedentarizado. Mesmo quando capturada pelas teias
do Estado, a máquina de guerra funciona fazendo fugir, extrapolar, passar fluxos, inventando táticas e metamor-
foseando-se... Ela se desloca num espaço liso, contrário ao espaço estriado do Estado. No sentido que aqui pen-
so, as tentativas de captura e rostificação de Anayde são eficientes sim, mas somente em parte, uma vez que os
afetos que a marcam fazem dela uma imagem nômade, capaz de ter um corpo plural e líquido, sempre a vazar às
tentativas de fixá-la em uma identidade. Ver DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e
Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2002.
71
85
Inversão de Valores. Jornal Correio da Paraíba, 25 de maio de 2005, C-8. (grifo meu).
86
AGUIAR, Wellinton. Notícia Absurda, intolerável. Correio da Paraíba. Paraíba, 02 de junho de 2005,C-6.
72
É claro que não mais existem os ossos da professora Anayde Beiriz. Mesmo
assim, um pequeno grupo anda por aí a afirmar que vai trazê-los do cemité-
rio público do Recife (o Santo Amaro). Sepultada como indigente, há muito
que seus restos mortais, nunca reclamados, se perderam na vala comum. Se-
tenta e quatro anos depois que se suicidou, nada mais resta do corpo da pa-
raibana. Até hoje é assim: os corpos dos indigentes desaparecem, no anoni-
mato que cobriu o seu aterramento. [...] Quanto a mim, ficarei de olho. Nin-
guém passará gato por lebre. Infelizmente nada mais existe da inteligente
professorinha. 87
87
Idem. Anayde sem corpo. Correio da Paraíba. Paraíba, 01 de março de 2005, C-3.
88
Neste livro, Derrida coloca em cena a ampliação da visão tradicional de arquivo. Aproximando a discussão da
Psicanálise, pensa o corpo, o inconsciente como arquivo, ao passo que percebe o arquivo como qualquer superfí-
cie que permita inscrição, registro. O corpo, portanto, seria uma dessas superfícies, aliás, privilegiada. O autor
enfatiza, entretanto, o mal de arquivo, como a marca da transitoriedade, da efemeridade, que ameaça a memória
e a capacidade do consciente de manter vivo o registro, uma pulsão de morte, que “nasce” com o desejo arquivi-
olístico. DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: Uma impressão Freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2001.
73
região. Se Anayde, em tempos mais recentes, é esta incorporação no espaço urbano, simulta-
neamente, e com suas singularidades dá-se uma apropriação dessas imagens também em asso-
ciação com o espaço interiorano do Estado, mais especificamente com a vida no campo.
Novamente, como procuro analisar nas próximas páginas, as práticas sociais e políti-
cas mobilizam os signos dessa identidade, e todo um leque de imagens produzidas pelo cine-
ma, pela literatura, pela imprensa e historiografia, continuará reforçando ou ampliando estere-
ótipos, tecendo e ampliando a corporeidade ambígua e desafiadora da “mulher-macho”.
74
No trajeto dessa tessitura para Anayde Beiriz como um corpo de “mulher-macho”, du-
as marcas chamaram-me especial atenção e guiaram meus passos por outros atalhos e trilhas,
possibilitando, inclusive, o encontro com outros corpos. Ambas, já assinaladas anteriormente,
merecem agora um olhar mais curioso, inquieto, posto que sejam pontes, links, que me permi-
tem cruzar paisagens, atravessar tempo e espaço, fazendo novas conexões.
Que marcas? Duas, que se interligam, mas que também se separam nas maquinarias
que engendram a imagem multifacetada da “mulher-macho”. Uma, o feminismo, que como se
sabe, ganhava maior visibilidade na segunda metade do século XX no Brasil, outra, a da li-
berdade, como desejo pulsante, força-motriz de vários movimentos sociais e de expressões e
conquistas individuais e coletivas que se intensificavam nos anos de luta contra a Ditadura
Militar e de reabertura política no país. Os signos relacionados a estas duas inscrições tornam-
se aqui minhas “linhas” de trajeto, os dispositivos que, dobrando espacialidades e tempos, me
permitem acompanhar os meandros que definem as fronteiras para a “mulher-macho” relacio-
nada à vida urbana e à vida campesina. O que decerto me possibilitará “descosturar” as evi-
dências que homogeneízam as imagens da “mulher-macho”, ao passo em que ensaio outra
confecção, com os fragmentos que vou selecionando.
E aqui é salutar lembrar que estou pensando estes dispositivos na perspectiva sugerida
por Foucault e (re)apresentada por Deleuze, ou seja:
Assim, permito-me aqui ir e vir, subir e descer, marcar, pontilhar, bifurcar, (re)unir
imagens que se separam sob a perspectiva de uma temporalidade linear, mas que ressoam
89
DELEUZE, Gilles. O Mistério de Ariana. Lisboa: Vega, 1996. p. 83.
75
umas nas outras, através dos enunciados, nos processos de subjetivação, conduzindo a uma
temporalidade heterogênea, heterocronia, para lembrar outro conceito (re)elaborado por Mi-
chel Foucault. 90
A cartografia que vou aqui ensaiando, guiada pelas marcas do feminismo e da liberda-
de, ou antes, pelos signos liberados de suas subjetivações, dentro do meu recorte de olhar, é
desenhada sobre os caminhos insinuantes e sinuosos das palavras impressas, gravadas, mas
também silenciadas no corpo do texto escrito e/ou audiovisual. Através deles, percorrendo “as
91
curvas de visibilidade e as curvas de enunciação” , “abro” os arquivos e procuro descrevê-
los, significá-los em sintonia com seus regimes de luz, ou seja, tocando os dispositivos que
em dado tempo e lugar possibilitaram sua emergência. E isso para “capturar”, ainda que fugi-
diamente, os elementos que tornaram possível, embora muitas vezes através da recusa, a
(re)afirmação de um gênero ambivalente, de um corpo duplo.
Embora não se denominasse feminista, nem visse ao filme que dirigiu enquanto tal,
Tizuka Yamazaki, como já tentei demonstrar, deu traços feministas e libertários à protagonis-
ta de Parahyba Mulher Macho e colaborou assim intensamente para relacionar a imagem de
Anayde Beiriz aos ideais e lutas de tal movimento. Inquieta-me, entretanto, a recusa insistente
da cineasta, naquele momento, de ser adjetivada e reconhecida como feminista, o que sugesti-
vamente, cinco décadas antes, também era uma denominação comumente recusada pelas mu-
lheres que tinham visibilidade na imprensa na Paraíba, inclusive pelas que tinham afinidades
com os ideais mais caros ao movimento na época, como a reivindicação pelo voto feminino,
pela educação superior e profissionalização das mulheres.
Sei que não há, no sentido de uma homogeneidade e mesmo de uma identidade unís-
sona, um feminismo, tampouco, ainda que o considerasse assim, poderia simplesmente ver o
mesmo feminismo presente no início e nas décadas finais do século passado. Mais coerente
seria falar de feminismos, diferentes em suas práticas discursivas e não-discursivas, nas peças
e artefatos que mosaicam suas práticas e subjetividades; contudo, considerarei aspectos pre-
dominantes nos períodos relacionados, que acabam por oferecer fragmentos — que se não
90
No caso, Foucault ao pensar as heterotopias associa-as à heterocronia, considerando que as pessoas rompem
com a linearidade espacial e temporal. Nos espaços heterotótipos, as temporalidades podem acumular, misturar,
em movimentos de ruptura e de continuidade. Ver FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In: ______. Estética:
Literatura e Pintura, Música e Cinema. Manoel Barros da Motta (Org.). Tradução Inês Autran D. Barbosa. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2001. V. III(Col. Ditos & Escritos), p. 410-422.
91
DELEUZE, op. cit.
76
Esta fala da cineasta me intriga, em particular, pelas ressonâncias que nela ecoam do
período em que a própria Anayde Beiriz viveu e, que, no descotinuum possibilitaram a esta
recusa tornar-se um senso comum, alicerçando estereótipos acerca do feminismo e jogando
cores fortes na tela que veio dando espessura e volume à imagem da “mulher-macho”.
Veja-se, por exemplo, o que dizia Eudésia Vieira, médica e escritora na Paraíba do
início do século XX, quando procurava sintetizar uma tipologia das mulheres do seu contexto,
preocupada inclusive com os (des)caminhos que muitas delas poderiam provocar à família e à
ordem social, divinamente criadas, mas alteradas pelas fraquezas humanas, especialmente
pelas dos homens, que na opinião dela seriam os maiores responsáveis pelo fato de as mulhe-
res estarem àquela altura, nos tempos modernos, distiguindo-se umas das outras de modo tão
ameaçador:
Mal remunerada nos seus esforços, mal comprehendida nas suas aspirações,
mal satisfeita nos seus affectos, [a mulher] foi perdendo aquella docilidade e
timidez de caracter — sua divisa em outros tempos, e cansada de sofrer foi
procurando se libertar do domínio do homem, a quem ambicionava não co-
mo senhor mas como amigo e companheiro, na posição primitiva que o bom
92
Como lembra a historiadora Tânia Swain: “A eclosão de saberes nos movimentos e nas teorias feministas não
se dá em um ponto específico do tempo apenas; é um movimento que acompanha a dinâmica da vida social e se
contrapõe às pretensas hegemonias ao reivindicar existência, voz, práticas instauradoras da diversidade”.
SWAIN, Tânia Navarro. A desconstrução das evidências: perspectivas feministas e foucaultianas. In:
SCAVONE, Lucila; ALVAREZ, Marcos César; MISKOLCI, Richard (Orgs.). O Legado de Foucault. São
Paulo, Editora da UNESP, 2006. p.124. Sobre o assunto ver também RAGO, Margareth. Os feminismos no Bra-
sil: dos ‘anos de chumbo’ à era global. Labrys, Brasília, nº 3, 2003. Disponível em: <http://
www.unb.br/ih/his/gefem/labry3> . Acesso em: 30 março 2007.
93
Anayde incomoda porque eu incomodo também. A União, 17 de agosto de 1983, p. 09.
77
94
A Mulher. Revista Era Nova. Parahyba do Norte, 15/04/1 de abril de 1922, p. 04.
95
Procurando inclusive conhecer o reverso dessas imagens, a historiadora Joana Maria Pedro entrevistando fe-
ministas de diferentes gerações procura trabalhar com os sentimentos que tais mulheres têm em relação ao mo-
vimento, tentando investigar até que ponto o ressentimento faz parte das razões para a identificação com o femi-
nismo. PEDRO, Joana Maria. Os Sentimentos do feminismo. In: ERTZOGUE, Marina H; PARENTE, Temis G.
(Orgs.). História e Sensibilidade. Brasília: Paralelo 15, 2006. p. 255-270.
78
ços fisionômicos, estéticos e comportamentais virilizados. Isso as situava num fora, por e-
xemplo, das possibilidades de uma vida amorosa, sexual e familiar consideradas normais.
Também, não se pode esquecer, que o discurso médico entre os séculos XIX e o início
do século XX, como lócus privilegiado na instituição dos parâmetros da normalidade social,
designava as origens biológicas de tais condutas desviantes, não apenas da normatização soci-
al, mas da ordem natural das coisas. Como ressalta Raquel Soihet, no seu estudo sobre o uso
de estratégias sutis como descrédito das lutas das mulheres pela emancipação, Cesare Lom-
broso, médico italiano, reconhecido pelos seus tratados de criminologia em fins do século
XIX, postulava que :
Assim, mais que uma imagem que pode ser adquirida em função das suas escolhas e
condutas, este discurso fundamenta uma sentença biológica, naturalizada, de inferioridade
para as mulheres e de anormalidade quando apresentavam características ou potencialidades
vistas como próprias do masculino, como no caso de possuir uma “forte inteligência”. Tal
concepção estendia-se, pois, a quaisquer outras qualidades e/ou posturas que não fossem con-
dizentes com o que seria então “natural” ao feminino, como o instinto materno e uma sexuali-
dade mais “fria”.
Nesta seara de imagens que se prestam à tessitura de corpos para a “mulher-macho”, o
estereótipo da feminista cintila, ocupando um lugar bem marcado na imaginação de homens e
mulheres. Analisando crônicas, desenhos e caricaturas em periódicos que circulavam no Rio
de Janeiro no início do século XX, notadamente na década de 1920, Soihet destaca o uso co-
mum de recursos lingüísticos e visuais para fazer circular uma imagem risível da feminista,
comumente associada a traços masculinizados. Nas caricaturas, por exemplo, tipos como a
“Miss Alma (Tipo Feminista)”, desenhada como uma mulher muito magra, desproporcional,
sapatos masculinos e chapeuzinho, livro à mão, relacionando a imagem estereotipada da sol-
96
SOIHET, Rachel. Sutileza, Ironia e Zombaria: instrumentos no descrédito das lutas das mulheres pela emanci-
pação. Labrys. Revista de Estudos Feministas. Brasília, nº 04, ago/dez de 2003. Disponível em < http:
www.unb.br/ih/his/gefem/labry4 > Acesso em 20 julho 2007.
79
Este medo da masculinização se fazia sentir, conforme mostra Hahner, nas tentativas
das feministas brasileiras de não serem associadas à imagem de “violentas e agressivas”, ao
estilo das sufragistas inglesas, que retalhavam quadros e quebravam vidraças. Também no
persistente discurso que recusava qualquer desejo de competir com os homens. Ela registra,
por exemplo, que o manifesto inaugural, em 1921, da Federação Feminina Internacional de
São Paulo, declara que não se “pensa absolutamente em conflitos com o sexo forte, pelo con-
trário, deseja ardentemente sua colaboração na obra da educação feminina e aspira a conces-
sões mútuas, a acordo e harmonia”. 99
Como se vê, marcas que também estão visíveis no texto escrito por Eudésia Vieira,
inclusive sugestivamente oferecido ao seu esposo José Jardim: a recusa à imagem da sufragis-
97
SOIHET, op. cit.
98
HAHNER, June E. Emancipação do Sexo Feminino: A luta pelos direitos da mulher no Brasil, 1850-1940.
Tradução Eliane Lisboa. Apresentação Joana Maria Pedro. Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul:
EDUNISC, 2003. p. 320.
99
Ibidem.
80
ta, por ser antagônica e querer competir com os homens, em detrimento da positivação de uma
imagem mais branda da “mulher independente”. Esta se faz pelas práticas públicas de praticar
a leitura, um esporte, discutir política, interessar-se pelas artes e as ciências, mas sem “olvidar
dos deveres inerentes ao seu sexo”, o que por sua vez implica na concepção de uma natureza,
uma essência do seu sexo, à qual se atrela a idéia de um instinto maternal e de uma dependên-
cia natural por conta da sua fragilidade frente ao masculino.
Logo, a idéia é a de progresso para o bello sexo, mas conquistado na negociação, no
acordo e, mesmo, com a concessão do outro. Apesar de considerar o homem o responsável
pela distinção da mulher em várias “classes”, Eudésia Vieira, como tantas outras vozes que
defendiam o progresso para o feminino em sua época, evita o embate aberto com os homens,
critica a idéia de competição com eles e traça como saudável um perfil do “bello”, que não
mais se identificando com a “mulher adorável”, com a mãe sacrificada e bondosa, equilibra-
se num ponto que escapa à feminilidade exagerada das melindrosas e aos traços de masculini-
zação atribuídos às sufragistas. 100
Mas este perfil, por assim dizer, mais dócil da “mulher independente” traçada na fala
de Eudésia, também não estava imune às críticas e ironias, ou como ela própria sugere às
“maledicências”, posto que, de qualquer modo, ainda reivindicava para si práticas e lugares
que até bem pouco lhes eram interditados. No trabalho acima indicado, Raquel Soihet situa
também a desqualificação bastante comum, sob a forma de ironia e zombaria, do discurso da
“igualdade entre homens e mulheres”, com o uso de táticas que pretendiam lembrar a “dife-
rença”, caricaturizando as mulheres que pleiteavam profissionalmente ocupar cargos públicos,
tidos como lugares de homens. Um caso exemplar por ela analisado é o da caricatura A mu-
lher polícia, onde, seguindo, sua descrição e comentário:
100
VIEIRA, Eudésia. A Mulher. Revista Era Nova. Parahyba do Norte, 15 de abril de 1922, p. 04.
101
SOIHET, Rachel. Sutileza, Ironia e Zombaria: instrumentos no descrédito das lutas das mulheres pela eman-
81
Mulher na Polícia
Maria Divani de Oliveira Pinto
De revólver em punho, mas com as unhas bem cuidadas
O texto inicia procurando descrever um perfil para a entrevistada, que dê conta ao lei-
tor dos seus muitos desafios em conciliar esferas aparentemente tão diversas de sua vida:
Correr atrás de marginais, nem que para isso tenha que pular muros; dirigir
um órgão policial, enfrentar o preconceito dos homens em função do posto
que exerce, não muito comum a uma mulher; e cuidar de si mesma — unhas,
cabelos e roupas; paralelamente a distrair-se com uma boa leitura, ou um
bom papo com os amigos entre um gole e outro de rum com coca e muito
gelo. 102
O texto, que já de início, sugere a dinâmica da vida da delegada e o seu esforço de, a-
pesar da profissão escolhida, não esquecer dos cuidados de si, costumeiramente atribuídos ao
cipação. Labrys. Revista de Estudos Feministas. Brasília, nº 04, ago/dez de 2003. Disponível em < http:
www.unb.br/ih/his/gefem/labry4 > Acesso em 20 julho 2007.
102
BARBOSA, Jacinto. Mulher na Polícia. A União. Paraíba, 09 de setembro de 1984, p. 24.
82
cuidado que seria típico da vaidade feminina, segue narrando algumas das dificuldades pontu-
adas por Maria Divani acerca de sua carreira, tendo sido apelidada de “Chica Bandeira”, em
referência a um personagem de conhecida série televisiva, caracterizada por traços másculos e
por uma postura rígida, e de ter sido tratada em dado momento pela imprensa como “delegada
arbitrária”. Maria Divani teria também servido de tema a chargistas da cidade, “pelo fato de
um dia ter feito as unhas no prédio ao lado da III Delegacia Distrital, onde divide apartamento
com mais duas delegadas, uma pernambucana e outra campinense” — interessante estratégia
que ainda mostra sua eficiência de, através do tornado risível, questionar e ironizar a compe-
tência das mulheres frente a situações em que culturalmente continuavam, cinqüenta anos
depois, a serem vistas como intrusas.
A entrevistada teria também relatado as dificuldades enfrentadas em casa, com os pais
e os irmãos, e com um ex-noivo, mas que com o tempo acabaram sendo superadas. Já quanto
aos colegas policiais, diz ter uma relação tranqüila, que o “sexo não atrapalha”, pois conforme
explica “o delegado existe para executar e, numa diligência, ele vai à frente para dizer como
deve ser feito. Os policiais estão para cumprir ordens e eles me tratam como se fosse um de-
legado.” Vê-se também aqui, na sutileza, num provável lapso, a contradição do que aparen-
temente seria tão tranqüilo. A expressão “como se fosse” lembra, num átimo, o que ela não é,
um delegado, um homem. Algo ainda ressoa fora do lugar. E esta sensação de um “fora” é
recorrente em outras partes do texto, tanto nas estratégias discursivas do jornalista, quanto em
falas aspeadas, creditadas à Maria Divani. O primeiro subtítulo da matéria é Sexo frágil, ao
que segue uma narrativa sobre o início da carreira, suas “aventuras” mais perigosas desde que
assumira o cargo. Neste recorte, entretanto, o foco acaba recaindo sobre o cotidiano e a vida
privada da delegada, sobre a insistente curiosidade acerca de sua maneira de conciliar a sua
profissão e a sua condição feminina:
"Didita", como também é conhecida em casa, disse que apesar da mulher ser mais
delicada que o homem, desconhece a existência de diferença entre os dois no tocante
à administração e execução das coisas."A inteligência é a mesma, e a mulher pode
ser frágil na hora de ser feminina." [...] E para fazer um bom trabalho, a sertaneja
Maria Divani tem a receita: "uso sempre a razão. Nunca o coração". Em casa, nin-
guém fala de Divani como delegada. "Aqui sou uma mulher como outra qualquer.
Na hora de ser feminina, sou. Na hora de resolver qualquer coisa, estou para resol-
ver." Divani acha que não é difícil conciliar as funções de mulher e de delegada."Se
estou no trabalho, estou a serviço e procuro desenvolver minha função.É diferente
de eu estar em casa com meus pais, meus irmãos, ou até mesmo com namorado.
Nesse caso não existe aquele 'esteja preso, bote no xadrex, bate a ficha', não tem na-
da disso. 103
103
BARBOSA, Jacinto. Mulher na Polícia. A União. Paraíba, 09 de setembro de 1984, p. 24.
83
104
Ibidem.
84
A prática assistencial se tornou no Brasil uma função que, regra geral, espera-se das
primeiras-damas, mas na Paraíba uma delas, em particular, vem neste contexto ocupar um
lugar de destaque, tornando-se um caso exemplar do uso destas estratégias que, embora base-
adas em valores convencionais, em concepções de gênero marcadas por permanências positi-
vistas, não deixou de produzir um deslocamento no que diz respeito à atuação das mulheres
na política de Estado. É o caso de Lúcia Braga, que assumiu a Fundação do Trabalho, órgão
criado na época para responsabilizar-se pelas chamadas "ações sociais", quando da eleição do
seu marido a governador do Estado, Wilson Braga, em 1982.
A exemplo de outros Estados brasileiros, Lúcia Braga fundara, um ano antes das elei-
ções, um grupo de mulheres ligado ao Partido Social Democrata (PSD), chamado Movimento
de Ação Feminina (MAF), que veio a ter decisiva participação na campanha eleitoral do perí-
odo e na conseqüente vitória de seu candidato a governo. Constituído de comitês coordenados
por mulheres da classe média e liderados nos bairros populares por uma moradora, em diver-
sas cidades, o MAF ajudou a projetar a imagem de Lúcia Braga como de uma líder política.
Suas práticas assistenciais junto às camadas mais pobres, numa conduta criticada por muitos
opositores, rotulada quase sempre de paliativa e circunstancial, serviu para inscrevê-la na po-
lítica associada à idéia de "mãe", "mãezinha", o que remete às imagens tradicionais de prote-
ção e generosidade. Em entrevista, logo após a vitoriosa campanha, a um caderno especial
intitulado Feminino, do qual ocupa a primeira página com uma grande foto, Lúcia também é
instada a falar do seu cotidiano e das conciliações que precisa fazer entre sua vida pública e
privada. Ao ser, por exemplo, questionada sobre a sua intensa participação na vida do marido,
ela avalia que:
Diferente do que tenho assinalado em outras falas, não pesa sobre Lúcia Braga, na
análise dos discursos que a constroem como uma mulher pública, o receio ou as marcas de
querer inscrevê-la com traços masculinizados, visto que sua imagem, além de colada à da
maternidade, faz-se primeiro como a de esposa de um político em projeção, como "compa-
105
“Nosso trabalho foi mesmo para valer”. O Norte. Paraíba, 25 de novembro de 1982. Caderno Feminino, p.
02.
85
nheira [dele] em toda a extensão do termo", para, só adiante, conseguir alcançar um território
mais pessoal, em que de certa forma os lugares de visibilidade foram alterados.
Esta citação ainda remete a outra questão que se colocava mais intensamente para as
mulheres, cada vez mais ativas no mercado de trabalho e no cenário público em geral: o de
disciplinar o tempo, para dar conta não só de dois, mas de mais expedientes, que se estendiam
à vida doméstica, ao cuidado com o lar e os filhos. Não esquecendo ainda a preocupação de se
reservar um tempo aos "deveres sociais", exigência que também se constitui como importante
na vida das mulheres consideradas normais e bem-sucedidas. Isso também flagra-se no perfil
jornalístico da delegada anteriormente citada: tempo para a família, para um "papo" e um
"drink" com os amigos... — o tempo para ser “uma mulher como outra qualquer”.
Há, entretanto, neste contexto em que se projeta uma Anayde Beiriz com traços liber-
tários, traços de “mulher-macho”, um movimento bastante curioso de ressignificação e apro-
priação de elementos culturalmente ligados ao masculino. E aqui, mais uma vez, encontramos
uma ressonância com a época em que ela viveu, notadamente a década de 1920. No caso, a
moda, funcionando como a maquinaria, a engrenagem que, juntamente com suas extensões
nodais — a mídia, a publicidade — operam estes fluxos de passagem, em que lugares, tempos
e significados se deslocam na reconfiguração de corpos para homens e mulheres.
A imprensa no início dos anos 1980, com seus editoriais de moda, e as revistas femi-
nistas, divulgavam a nova tendência da época: “o fascínio do guarda-roupa masculino sobe à
cabeça das mulheres”:
O artigo segue arrolando a diversidade de itens, entre calças, camisões folgados, com
ou sem golas, botões e gravatas coloridas, shorts, pijamas e até mesmo, com certa hesitação,
cuecas, que poderiam e estavam sendo amplamente adaptados e usados pela “mulher atual”.
Interessante aqui deter-se um pouco em certas marcas deste discurso. Busca-se prontamente
106
O fascínio do guarda-roupa masculino sobe à cabeça das mulheres. A União. Paraíba, 15de agosto de 1984,
p. 12. (grifos meus).
86
uma justificativa para este “fascínio” que, embora numa outra parte do texto, indique-se como
“antigo”, não deixa de soar como algo meio estranho, inusitado. Por que esse interesse? Três
elementos são então considerados: conforto, ao qual adiante se soma a praticidade; modismo,
o que também costumeiramente se relaciona ao feminino; e liberação feminina, sendo que,
neste caso, a explicação do desejo de liberdade não parece ser simples, clara, há que se recor-
rer aos estudos complexos da Psicanálise, o que se insinua em tons de ironia. Ora, vai se saber
por que as mulheres, desejando a liberação, crêem aproximar-se ou experimentar isso ao usar
camisões, shorts, cuecas... Só Freud explicando.
Bem, se não se sabe ao certo a razão, mas sabe-se que este território, o do “armário”
masculino, foi tomado de assalto pelas mulheres, ou seja, foi tomado à força, de chofre, pois
ali, naquele mundo do outro, havia algo bom para ser imitado. Contudo, importante notar que,
além de ganhar em liberdade e espontaneidade — todo um processo de subjetivação ao vestir
as roupas — a silhueta das mulheres, apesar de “perdidas nas enormes roupas dos homens” —
o que pressupõe silhuetas sempre menores para elas - ganhou em delicadeza e, portanto, em
atributos do feminino. Ou seja, desloca-se, mas volta-se para o lugar. Claro, não o mesmo
lugar, posto que estejam muito mais livres, confortáveis, práticas, mas ainda assim um lugar
conhecido, o do “mais feminino”. Importante, pois, perceber que o assalto foi feito, mas não
houve danos aos lugares dos envolvidos. De certo modo, aqui também ressoa o tom de conci-
liação com o outro masculino, a tentativa de continuar, apesar das apropriações feitas, man-
tendo os lugares bem definidos para o que se acreditava ser do masculino e do feminino.
Esta elaboração de um corpo feminino que anexa e “veste” traços masculinos não fica
circunscrito à moda do vestuário. Fora assim na década de 1920, com o uso dos cabelos curtos
pelas mulheres, bem como o afinamento da silhueta feminina e uma valorização, ao menos
em alguns centros mais urbanizados e entre as jovens de classes mais abastardas, de traços
andróginos. Após um período de (re)valorização das curvas e formas mais arredondadas nos
corpos femininos, os anos 1980 experimentam a intensificação de um padrão de beleza cen-
trado no corpo magro, esguio, trabalhado nas academias, que por sua vez passam a oferecer
cada vez mais novas possibilidades de “enxugar” o corpo, tornando-o mais afeito aos padrões
de uma vida mais ágil, dinâmica, que seria mais compatível com os modelos positivos de mu-
lheres que teriam que conciliar vida privada e pública:
87
107
As gordinhas na luta contra a balança. A União. Paraíba, 28 de agosto de 1983, p. 24. (grifos meus).
88
108
VEIGA, Gisa. GARCEZ, Naná. Feministas acusam: a Igreja e o papa são machistas. A União. Paraíba, 04 de
outubro de 1982, p. 03. (grifos meus).
89
Margot — Nós não temos acesso, nós não conhecemos nosso corpo. Quando
se fala de desinformação, esta permeia a sociedade como um todo. Antes se
faz necessário uma conscientização. O professor primário, o secundário e até
mesmo o universitário é condicionado a não usar palavras como vagina, cli-
tóris. Na educação os órgãos sexuais da mulher são aprendidos como coisas,
sujas, que fede a peixe. Não se sabe como se colocará o vínculo que existe
entre o sexo e o prazer, ou se o corpo será estudado como uma máquina. 109
A estratégia de poder é nomeada como parte de uma produção de saber que, desinfor-
ma, (dis)torce, para tornar o corpo, em particular o corpo feminino, uma coisa estranha, dis-
tante e, mesmo, desagradável. Margot nomeia dispositivos de controle sutis, mas eficientes,
presentes na educação escolar, na formação pedagógica dos indivíduos. E situa claramente
que esta ignorância atinge a todos, não apenas as mulheres. Aqui, como em outras passagens
da entrevista, observo que as mulheres não são designadas como “a vítima” solitária da ação
dos homens, estes também aparecem vitimados pelas práticas de um sistema que, conforme
explicam, condicionou a ambos, “pois assim como a mulher foi condicionada a ser uma pes-
soa passiva, o homem foi condicionado a ser uma pessoa machista, onde todas as iniciativas
seriam tomadas por ele”. Portanto, um deslocamento de compreensão, uma outra tática, que já
sugere a idéia do feminino e do masculino como lugares aprendidos, construtos culturais. Isso
adiante aparecerá mais evidente e melhor estudado com as perspectivas de gênero nos estudos
feministas. Também se pode perceber que este outro, o masculino, aparece mais explicitamen-
109
VEIGA, Gisa. GARCEZ, Naná. Feministas acusam: a Igreja e o papa são machistas. A União. Paraíba, 04 de
outubro de 1982, p. 03. (grifos meus).
90
te nas falas, não apenas como referência de oposição, mas cada vez mais como elemento para
o qual também se reivindica outros lugares, considerados mais justos, liberais e igualitários:
Ou seja, há que se reivindicar para os homens outras possibilidades, até como estraté-
gia política de assim, com a divisão dos espaços e responsabilidades, principalmente no que
diz respeito à família, tornar viável as reivindicações para o feminino. Uma espécie de conci-
liação tácita. Aliás, aqui há que se frisar que se a estratégia adotada é outra, condizente com
outras sínteses do feminino, uma preocupação continua sendo elementar no discurso que ela-
bora o projeto político feminista no início dos anos 1980: a família. E, em torno disto, uma
contradição se insinua com relação às perspectivas de poder, pois embora a maior parte do
tempo as falas sugiram a idéia de um poder verticalizado, exercido a partir de instâncias com
modelo de Estado, como o Governo e a Igreja, as táticas discursivas apontam para outros po-
deres, atuantes em “células” menores, que segundo essas falas, formam a base, e por isso são
capazes de, abaladas, modificadas, repercutir em todas as outras dimensões de poder.
110
Ibidem.
111
VEIGA, Gisa. GARCEZ, Naná. Feministas acusam: a Igreja e o papa são machistas. A União. Paraíba, 04 de
outubro de 1982, p. 03.
91
um contexto social ainda mais diverso, onde a pluralidade se torna uma marca e desafia a pró-
pria construção identitária do feminismo, a idéia de sua oposição ao masculino, de sua radica-
lização, ainda ressoa fortemente, como tenho tentado demonstrar, e aparece também na entre-
vista, quando questionadas sobre as críticas que recebem com freqüência e as tentativas de as
ridicularizarem. Ao que respondem, ressaltando, que é um engano pensar que o movimento
feminista é contra o homem; seria sim, um movimento pelas mulheres, mas não contra os
homens, uma vez que trabalha para mudar a sociedade como um todo, transformando condi-
cionamentos que recaem sobre ambos.
Tal defesa, claro, não parece produzir efeitos neste suposto “todo”. As imagens carica-
turais e risíveis das feministas, ainda como estratégias de desautorização de suas práticas,
permanecem ecoando. No mesmo jornal em que se publica a entrevista, quando ainda se a-
nuncia o encontro promovido pelo Centro de Mulheres de João Pessoa, um colunista social
publica a seguinte nota, marcada pelo tom da ironia: “Botaram no jornal: ‘Centro da Mulher
Promove Encontro’. Tá sempre promovendo, gentes boas...! Desde os tempos de Eva!” 112
Também não à toa, apesar das muitas questões tratadas na entrevista, a escolha do títu-
lo é a de uma frase de efeito, de impacto, como forma de acentuar o caráter combativo e po-
lêmico do feminismo. “A Igreja e o papa são machistas” é o título dado à entrevista, realizada
pelas repórteres Giza Veiga e Naná Garcez, que na sua apresentação sugestivamente lembram
a “ameaça” que já vimos funcionar noutros momentos: “os machistas que se cuidem: desde
ontem feministas de Salvador, Recife, Natal, João Pessoa e Fortaleza estão reunidas no Centro
da Mulher de João Pessoa para discutir desde a situação da empregada doméstica, passando
pela violência sexual, até a questão do aborto”. 113
O ridículo, a ameaça, a polêmica — situações em que costumeiramente as imagens das
feministas são inscritas. E costumeiramente ainda recusadas, tanto por homens como por mu-
lheres. A imagem do radicalismo, apesar dos tons conciliatórios e mesmo dos projetos que
envolvem outros movimentos das chamadas minorias, como negros, homossexuais, é persis-
tente. Este incômodo, decerto, é o que subjaz na recusa de Tizuka Yamazaki, talvez até como
estratégia para não criar, de antemão, uma resistência ao seu filme, o que, de certa forma, foi
inútil. Também, um ano depois, flagramos ainda a mesma recusa na fala de Rosilda Cartaxo,
quando da sua posse como a primeira mulher a ocupar a presidência do Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano (IHGP), fundado em 1905, fato também inédito considerando os insti-
tutos de outros estados brasileiros. Dizendo-se otimista quanto ao futuro da mulher, ao ser
112
Nota da coluna “1MOR”, de Anco Márcio. A União. Paraíba, 04 de outubro de 1982, p. 02.
113
VEIGA. GARCEZ, op. cit.
92
Não sou radical. Não gosto de movimentos radicais. Se existem barreiras pa-
ra a mulher, e se ela luta para vencê-las, não há sentido em radicalismos,
pois corre-se o risco de aumentar ainda mais essas barreiras. Não sou femi-
nista ao ponto de considerar o homem um empecilho. Homem nenhum me
esbarrou o caminho. Tenho uma convivência muito pacífica com eles. 114
Recorrências assim mantêm viva, como já disse, a resistência, a recusa. Contudo, estas
também aparecem de formas mais elaboradas, saindo do lugar comum, produzindo outros
movimentos. É o caso, por exemplo, das histórias de Maria, personagem de Henrique Maga-
lhães, que publica tiras de quadrinhos no jornal, utilizando um tom humorístico para tratar
questões da atualidade, pondo em cena Maria, quase sempre acompanhada de sua fiel compa-
nheira, Pombinha. As personagens são traçadas também com signos feministas, tem posturas
políticas definidas, parecem fortes e atuantes, além de criativas nas suas táticas de atingir seus
“opressores”:
A tática do riso é utilizada pela própria Pombinha frente a sua arrancada de bravura e
resistência junto com Maria. Se “rir é o melhor remédio”, aqui se torna a manobra para afetar
os outros, aos que querem vê-las por baixo... Ela ri de si mesma, da situação de gravidade que
sua fala ajudou a criar. Por um instante, desmobiliza a idéia de vitimização e resistência e,
criativamente, reelabora o significado do riso, como uma estratégia de atingir o outro.
114
Rosilda Cartaxo faz teste de cooper na cultura e torna-se a presidente do IHGP. A União.Paraíba, 30 de agos-
to de 1983, p. 04.
115
MAGALHÃES, Henrique Maria. A União. Paraíba, 28 de outubro de 1984. p. 10.
93
Numa outra tirinha, também na defesa pelo seu espaço como um espaço próprio das
mulheres, é a vez de Maria ser surpreendida por uma estratégia de linguagem do seu próprio
criador, que põe em cena uma questão que se ainda não era tão recorrente nos discursos femi-
nistas, logo se fará sentir mais fortemente:
116
MAGALHÃES, Henrique. Maria. A União. Paraíba,13 de novembro de 1984, p.10.
94
Nos tons lúdicos, jocosos ou irônicos, as imagens dúbias dos gêneros vão sendo apre-
sentadas, desafiando pois os enquadramentos convencionais, as imagens normativas, os luga-
res fixos. Ainda se opera por binarismos — homem/mulher; macho/fêmea; masculi-
no/feminino — mas eles cada vez mais se misturam, agregam-se e mesmo se confundem. As
contradições, continuidades e descontinuidades aqui iluminadas pelo meu olhar atestam os
fluxos destes movimentos que vão construindo outros espaços, outras paisagens corporais
para as pessoas, pluralizando as sexualidades, forçando a expansão de um repertório conceitu-
al e de linguagem, tanto no campo acadêmico, quanto político, para melhor nomear e compre-
ender esses outros desenhos que vão sendo inscritos nas peles, tecendo outras sensibilidades.
Para mim, melhor imagem não ocorre para ilustrar este momento do que a figura do
cantor Ney Matogrosso interpretando Homem com H, música de Antonio Barros, num show
de grande sucesso e repercussão pelo Brasil. A imprensa da Paraíba comenta com entusiasmo
e anuncia a realização em João Pessoa; 118 naquele mesmo instante em que as feministas de
várias partes do Nordeste se reuniam no Centro da Mulher, e ainda se fazia sentir a repercus-
são do filme Parahyba Mulher Macho.
Uma espécie de canção de afirmação, um “melô do macho”, a música brinca com sig-
nos caros à construção da identidade masculina no Brasil, especialmente no Nordeste brasilei-
ro. A referência ao cabra-macho, ao desejo da mãe de que mais que um homem, o filho fosse
117
GOMES, Pepeu. Masculino e Feminino. Pepeu Gomes, Baby Consuelo, Didi Gomes. [Compositores]. In:
______. Masculino e Feminino. São Paulo: CBS, 1983.
118
Ney Matogrosso. Dia 13: “Homem com H”. A União. Paraíba, 04 de outubro de 1983, p. 04.
119
MATOGROSSO, Ney. Homem com H. Antônio Barros. [Compositor]. In: ______. Ney Matogrosso. São
Paulo: Ariola, 1981. Faixa 05.
95
“macho pra danar”, poderia tão somente soar como reforço deste estereótipo se não fosse a
sua interpretação por Ney Matogrosso, com sua voz versátil e seu corpo “camaleônico”, ves-
tido em tangas minúsculas ou calças e colants justos, que evidenciam uma sexualidade fluida,
líquida, performática. Quem pode duvidar da virilidade daquele que requebra, que dança no
palco com tanta feminilidade? E vice-versa? O artista escorrega, afirma ao mesmo tempo que
recusa com sua performance aquilo que diz a letra da canção. Tudo é lúdico, sensual e trans-
gressivo. Tudo é possível naquele corpo-manifesto que encarna o “entre”, o “duplo”. Um es-
petáculo de ambigüidades. E por que não, senhoras e senhores?!!!
No mesmo estrato discursivo que possibilita emergir estas sínteses do feminino com
todas as suas brechas, desvios, encontro outras referências que me possibilitam cruzar territó-
rios à procura dos signos que presentificam a “mulher-macho”. Ainda em meados dos anos
1980, uma série de acontecimentos também noticiados pela imprensa, guia-me por outras ro-
tas e paisagens, deixando um pouco a área mais urbanizada para perceber os movimentos que,
agitando o campo e pequenas localidades do interior do Estado, colocam em evidência signos
associados à imagem da “mulher-macho” e, a partir de outros corpos, construtos da identidade
paraibana relacionados ao arquétipo da guerreira.
Com histórias marcantes de lutas no campo e registro de fortes lideranças nas décadas
anteriores, mais uma delas é assassinada em meio aos conflitos entre camponeses e latifundiá-
rios: a sindicalista Margarida Maria Alves. A morte de Margarida, que vinha há anos à frente
do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, em 12 de agosto de 1983, reacende
os debates sobre as lutas pela terra e melhores condições de trabalho no campo, sobre justiça
social, impunidade e democracia; isto, num período em que se fazia sentir o abrandamento
das forças da ditadura militar.
A narrativa sobre o encontro fatal de Margarida com os seus assassinos, sempre real-
çado como uma tocaia que a pegou desprevenida e indefesa, fazendo calar violentamente uma
das vozes mais atuantes do movimento de trabalhadores da terra e sem-terras, bem como as
crônicas, poemas, livros e filmes que se produziu a partir de então acerca de sua vida e morte,
projeta signos de vitimização e heroicidade, signos também das relações de gênero e da cor-
poreidade, que intensificam o fluxo das imagens que venho analisando, até porque a trágica
morte da líder sindical coincide com o momento em que se tem toda aquela expectativa em
torno do filme Parahyba Mulher Macho.
96
Como já assinalei no capítulo anterior, não tardará para que Margarida apareça citada
em falas que também lembram e enaltecem Anayde Beiriz, entre outras mulheres, considera-
das referências revolucionárias quanto aos padrões do comportamento feminino, cada uma a
seu tempo e modo, mas que acabam de alguma maneira coladas, associadas nas construções
discursivas que alimentam o arquétipo da guerreira, da mulher viril, que por sua vez se rela-
ciona à imagem da própria região.
Entretanto, os traços que inscrevem uma e outra neste território, têm muitas marcas
diferentes, que aqui procurarei olhar mais detidamente. Pois, se considero que a sexualidade é
a marca tatuada na pele de Anayde Beiriz, que funciona como o dispositivo que a inscreve tão
intensamente nos jogos de relatos, esta, decerto, não foi a que se sobressaiu no caso de Marga-
rida Alves e, certamente também por isso, não se polemize ou questione muito sobre suas
qualidades como mulher num espaço público e de evidência — onde a presença masculina se
fazia muito forte, estando inclusive na linha de combate com homens ricos e de poder, tam-
pouco se discuta sobre ser ela um personagem histórico ou não.
A imagem de guerreira associada à Margarida vem, pode-se dizer assim, de outra ma-
triz, de um outro estrato arqueológico que diferencia, se não totalmente, mas em aspectos im-
portantes, a “mulher-macho” relacionada à vida urbana daquela associada ao mundo campesi-
no, em particular à vida rural nordestina. O Nordeste, como esta espacialidade também consti-
tuída de gênero, inscrita nas produções discursivas como lugar de cabra-macho, de homens
fortes, rudes, resistentes, como as características atribuídas a seu ecossistema — por estar
nestas mesmas produções referenciado, principalmente, como e a partir de suas regiões interi-
oranas — também se tornou conhecido pela imagem de suas mulheres viris e bravias. Um rol
de personagens na literatura, no cinema e na televisão vem com o tempo alimentando e pondo
em funcionamento estes signos, que também se fazem presente nos discursos que tomam para
si o apelo da verdade, da realidade, como na historiografia e na imprensa.
Especial para esta análise é a resposta dada à pergunta :“Quem é Margarida?”, no livro
A Mão Armada do Latifúndio — Margarida: quantos ainda morrerão?, do jornalista Sebasti-
ão Barbosa, publicado em 1984, designado como “romance-reportagem”. Rapidamente, mas
em tom romanceado, apoiando-se na memória das informações dadas pela mãe de Margarida,
a narrativa seleciona e imprime imagens de uma vida que seria até certo ponto comum à de
outras mulheres pobres do agreste, mas que recebe diferenciais importantes, qualificativos que
fazem a história dela cintilar, ao mesmo tempo em que se aproxima da saga de outras líderes e
97
120
Severino Barbosa, autor do livro, é também sobrinho de Severino Cassimiro, marido de Margarida. Seu livro,
além da parte inicial, em que produz uma narrativa sobre a vida e morte de Margarida Alves, traz uma coletânea
de artigos, crônicas, depoimentos acerca da líder, publicados em sua maioria na imprensa da Paraíba, nos meses
subseqüentes ao assassinato dela, o que deu maior visibilidade às lutas que então eram travadas pelos trabalhado-
res rurais no interior do Estado. Servi-me aqui principalmente deste material catalogado por Barbosa que, entre-
tanto, poucas vezes situa com precisão onde e quando foi originariamente publicado.
121
BARBOSA, Severino. A Mão Armada do latifúndio. J. Pessoa: A União, 1984. p. 17-19.
98
Não consta que Margarida tivesse inimigos pessoais. A quem, então, poderia
interessar sua morte? Pessoa simples e religiosa, trabalhadora e honesta, es-
posa fiel, mãe carinhosa e boa dona de casa, foi uma mulher comum, igual a
milhares de outras paraibanas que enfrentam as lides de uma casa e as duras
tarefas da agricultura, emparelhando-se com os homens no trabalho e supe-
rando-os na dedicação porque devem dar conta dos serviços domésticos (ar-
rumar a casa, cozinhar, lavar e cuidar das crianças) e ajudar o marido no
trabalho do campo. 122
Como poderia, alguém tão bondosa, uma mulher comum, o que aqui significa clara-
mente a correspondência com o que se espera do modelo tradicional do feminino — mãe cari-
nhosa, esposa fiel, boa dona de casa — motivar em outrem o interesse de matá-la? Que justi-
ficaria tão cruel ato? Decerto, o início do texto escrito por Dom José Maria Pires, então arce-
122
PIRES, José Maria. A Quem Interessaria? In: BARBOSA, op. cit. (orelha do livro).
99
bispo da Paraíba, não esconde sua estratégia de fazer parecer ainda mais hediondo o crime
cometido contra Margarida Alves, assim como desautorizar as tentativas de fazer parecer que
as causas teriam sido motivadas por questões pessoais, por querelas cotidianas da vida de pes-
soas comuns. E, ao fazê-lo, também como estratégia de fortalecer a imagem de Margarida, ao
passo que lembra ser ela uma mulher igual a tantas outras paraibanas, constrói para estas uma
imagem de superação — elas vão além dos seus deveres tradicionais e “emparelham-se com
os homens”, ainda os superando porque se dedicam às labutas do lar e às em que “ajudam”
seus maridos.
Mas se neste terreno, o do pessoal, do particular, ela era comum a tantas, no espaço
público era diferente, e aí seria o território dos conflitos, onde a imagem da mulher comum se
ofusca para dar lugar à da líder singular em sua consciência e destemor sem, entretanto, como
já se pode ver, colocarem-se em contradição ou oposição:
Margarida não devia ter inimigos. Pelo menos até o momento em que sua
consciência foi despertada para os problemas das injustiças sociais contra os
camponeses. Pessoa consciente é ameaça constante para um sistema de ex-
ploração. Margarida cresceu na consciência crítica e se tornou “perigosa”.
Agia com destemor em defesa da classe e levava à justiça quem quer que vi-
olasse direitos dos trabalhadores rurais em sua área de atuação. A partir daí,
estava decretada sua morte. Era questão de se escolher a oportunidade. Ou-
tros tombaram antes dela; vários, depois. Muitos ainda tombarão. Não é de
hoje esse conflito entre o forte e o fraco, entre o lobo e o cordeiro. Pela lei
da natureza, é sempre o lobo que vence o cordeiro, é o forte que domina o
fraco. Pela lei de Deus, ocorre o inverso porque Deus mesmo se coloca do
lado do fraco e se torna seu defensor e vingador. Isso vem de longe. 123
“lei da natureza”, uma outra lei, mais soberana, vem ao socorro dos cordeiros, para defendê-
los e, mesmo, para vingá-los, numa trama maniqueísta que no plano terreno não parece tão
evidente, posto que os lobos escondem-se em peles de cordeiro e, sorrateiros, vão escapando...
Todavia, no plano terreno, a luta será continuada por outros que defenderão a mesma consci-
ência e farão valer o “sangue derramado” da líder, como faz questão de lembrar o arcebispo:
Não foi em vão o sacrifício de Margarida. Não foi perdido o sangue derramado. Ou-
tros estão aí para empunhar a bandeira da liberdade, para lutar em defesa dos
oprimidos, para prosseguir a caminhada até que todos possam ter casa para traba-
lhar, pão para comer e casa decente para morar. [...] “Virá o dia em que todos/ao le-
vantar a vista/Veremos nesta terra/Reinar a liberdade”. 124
A inscrição da liberdade salva Margarida da morte. Num certo sentido, recupera seu
corpo, enquanto signo de fertilidade para uma luta que se pretendia contínua e fortalecida na
dor. Isto se pode ver amplificado também numa das frases mais emblemáticas, escrita em fai-
xas empunhadas durante as manifestações que se seguiram ao assassinato, inclusive durante a
missa de sétimo dia: “Do sangue derramado de Margarida, outras margaridas nascerão”. Uma
releitura sugestiva de uma frase de um outro ícone da vida campesina no Nordeste, com práti-
cas diversas das de Margarida, mas que também, como ela, ganhou o epíteto de justiceiro, o
cangaceiro Corisco: “Se eu morrer, nasce outro”.
Margarida era uma justiceira com outras armas: a do argumento e da iniciativa de ape-
lar para as estratégias legais, denunciando e encaminhando processos na Justiça contra aque-
les que nomeava “potentados”, os usineiros e latifundiários que concentravam terra e poderio
econômico na sua região, já conhecida pelos conflitos agrários que há tempos fazia mortos e
muitas vítimas da luta pela terra no Brasil. A agilidade e eficiência, o “traquejo” com que
Margarida encaminhava e muitas vezes, ganhava esses processos, representando sua categoria
junto aos órgãos públicos responsáveis, sendo uma mulher, e ainda de origem humilde e pou-
ca escolaridade, é muitas vezes assinalado e enfatizado nas crônicas e artigos sobre ela, que se
avolumam pela imprensa, inclusive nacionalmente, principalmente após a sua morte.
Margarida era uma mulher que lutava pela sua classe, pelo trabalhador rural,
e com armas dignas, com a palavra, apelando para a justiça, levando casos à
Justiça. E qual foi a resposta? A resposta dos grandes senhores foi eliminá-la
sumariamente. Por que então não lutaram com ela com armas idênticas: pa-
lavras com palavras, argumentos com argumentos, mas não: sumariamente
eliminaram-na. 125
124
PIRES, José Maria. A Quem Interessaria? In: BARBOSA, op. cit. (orelha do livro).
125
Depoimento do bispo Dom Marcelo Cavalheira, da Diocese de Guarabira-PB, em 11 de dezembro de 1983. In
BARBOSA, op. cit., p. 126-127.
101
Este dom que te deu a natureza/ de coragem, de amor e heroísmo/ dão a for-
ma de seu grande idealismo/guardaremos para sempre na memória. Ficarás
registrada na história/das mulheres heroínas brasileiras/ És uma grande líder
que [...] És igual a Joana D’Arc combatente/ Maria Quitéria, jovem valen-
te[.../] Joana Angélica que enfrentou a própria morte./A princesa Isabel tão
decidida[...]/ ó Margarida/ Heroína, lutadora[...] 128
126
Joseph Campbell, em seu famoso livro “O Poder do Mito” fala sobre “a saga do herói” recorrente na mitolo-
gia de diversas culturas e lembra que “o herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo.
(...) A façanha convencional do herói começa com alguém a quem foi usurpada alguma coisa (...)Essa pessoa
então parte numa série de aventuras que ultrapassam o usual, quer para recuperar o que tinha perdido, quer para
descobrir algum elixir doador de vida.” Campbell ainda coloca que os heróis não são todos homens, sobretudo a
maternidade possibilita pensar a mãe como herói. Também, passando por provações ou através de revelações
iluminadas, é que o herói se dar conta do verdadeiro problema e aí vem a “consciência heróica”. Para completar,
muitos “doam sua vida. Mas então o mito afirma que da vida sacrificada nasce uma nova vida”. CAMPBELL,
Joseph. O Poder do Mito. Joseph Campbell, com Bill Moyers. Betty Sue Flowers (Org.). Tradução de Carlos
Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990. p.131-173.
127
Fala de Margarida Alves no dia 1º de Maio de 1983, em Sapé-PB. In: BARBOSA, op. cit., p. 43.
128
Poesia de Eugênio Ari de Luna, recitada durante abertura de evento no Sindicato Rural de Alagoa Grande
(PB). BARBOSA, Severino. A Mão Armada do latifúndio. J. Pessoa: A União, 1984. p. 61.
102
Assim, capturada pelos discursos heroicizantes, ainda como vítima sacrificada, a ima-
gem de Margarida Maria Alves também dialogará com as referências do movimento feminis-
ta, semelhante ao que acontecia à mesma época com a de Anayde Beiriz, embora certamente
com maior intensidade, haja visto a contemporaneidade do caso Margarida e da luta que ela
representava, além do que, diferente de Beiriz, ela estava claramente ligada a um movimento
social e, embora fosse escorregadia sempre que tentavam esclarecer sobre sua filiação partidá-
ria, tinha uma postura política bem demarcada pela sua condição de líder sindical.
Se suas práticas discursivas e não-discursivas não evidenciavam questões relativas aos
direitos da mulher, em particular, a bandeira pela liberdade no campo, acenando para aspectos
relativos aos direitos humanos, já se tornavam suficientes para aproximá-la dos ideais do mo-
vimento feminista que, estrategicamente se aliando e apoiando os demais movimentos das
chamadas minorias, ganhava visibilidade com a construção e projeção de ícones como Marga-
rida:
129
VIEIRA, Joselita Rodrigues. Falar de Margarida Maria Alves (Pra não dizer que não falei de flores). In:
BARBOSA, op.cit. p.148-9. (grifo meu).
103
liação que vimos ser cobrados de outras referências femininas que ganharam visibilidade na
época.
As marcas da sexualidade não são evidenciadas nem mesmo pelo discurso que a recor-
ta como feminista. Vê-se pouco Margarida enquanto corpo. Sua corporeidade é de paisagem,
olha-se em ângulos abertos — grande angular — e em associação na maioria das vezes com a
espacialidade política que ela representava. Diz-se rapidamente ser ela destituída da vaidade
típica do feminino, noutra fala, menciona-se “seus bons quilos de gordura e esperança” e co-
mumente, confundindo-a com a paisagem natural que se associava ao objeto de sua luta e ao
signo de seu próprio nome, ela torna-se flor. Entretanto, Margarida é tornada rosto, capturada
pela sua própria fala, inscrição de si, e sobretudo pelos que darão continuidade a sua vida nas
maquinarias de “encarnação”. É seu rosto, principalmente, numa ampliação de foto 3X4, que
será exibido nos jornais que noticiam sua morte (ver anexo D). E foi seu rosto o atingido pela
bala certeira de calibre 12, numa violência desfigurante, que também liberava aí suas signifi-
cações:
Assim, na operação da violência que tira a líder da vida e na operação discursiva que
reinscreve sua existência, ela ganha uma rostificação, e não é a sua individualidade que apare-
ce em primeiro plano, o seu rosto torna-se o rosto do outro, o outro que sua luta representava.
Desfigura-se seu rosto como tentativa simbólica de descompor o movimento, os trabalhadores
que a ela se ligavam, o que incluía o seu mundo particular, a sua família. Sem vida, desfigura-
do, é o rosto dela que se torna um manifesto.
131
A corporeidade de Margarida é, como vejo, assumida, capturada pelo rosto. E en-
tão me parece mesmo que a intensidade que a inscreve é dupla, ela é feita referência da liber-
dade no campo sim, mas sua marca enquanto feminino é a da maternidade, sendo esta apre-
sentada como força de sustentação e equilíbrio do projeto familiar, ao que se anexa o casa-
mento e a organização doméstica. Aí sua imagem se torna mansa, dócil... um “cordeiro”. Mui-
130
FERNANDES, Luís (Dom). Outras Margaridas Nascerão. In: BARBOSA, op. cit., p.150.
131
Deleuze nos fala de Corpos sem Órgãos, como conexões de desejos, intensidades que, entretanto, passam por
uma rostificação, à medida em que o Rosto, como uma superfície nomeada, paisagificada, captura o corpo e o
assume. DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução Peter Pál Pelbart. 2ª reimp. Rio de Janeiro: Editora 34,
1992.
104
tas vezes ela fala de seu lugar de “companheira do homem que trabalha no campo”, outras
tantas, lembra os filhos dos trabalhadores, sem condições de estudar ou sem alimentos. Mas
sua recorrente ligação com a maternidade aparece, sobretudo, nas falas que a inscrevem neste
território, inclusive porque esta marca afeta, comove, mesmo aqueles que não se identificam
com sua luta política, mas que mais provavelmente se solidarizaram com a dor da família que
sofre, da mãe que luta pela melhoria da vida do filho, e que injustiçada, é separada brutalmen-
te do seu fruto pela morte encomendada.
Margarida teve um único filho, José de Arimatéa. Menino magro, de olhos tristes, sua
foto estampa páginas de jornal, muitas vezes ao lado do pai, Severino Cassimiro. No livro de
Barbosa, o texto sobre ele vem anunciado na parte “a principal vítima” com o título “Arima-
téa: o filho do infortúnio”, onde o autor constrói a cena do encontro da criança com o corpo já
sem vida de sua mãe:
Sabe-se que o arquétipo da mãe, presente em tantas tradições e nas mais diversas ex-
pressões culturais, não deixou de funcionar também na literatura considerada socialista, de
esquerda, na formação ideológica de muitos grupos que, direta ou indiretamente ligados a
partidos políticos, representavam interesses de oposição às ordens e sistemas vigentes. É o
caso exemplar do romance russo A Mãe, do socialista Máximo Gorki, publicado pela primeira
vez em 1907, lido e citado com entusiasmo pelas lideranças esquerdistas no Brasil ao longo
do século XX e ainda editado a baixo custo por editoras com propostas políticas e pedagógi-
cas bem definidas junto aos movimentos sociais.
Não se pode deixar de perceber que os traços conferidos a Margarida aproxima-se da
Mãe do romance de Gorki enquanto uma pessoa que vai, nas suas lides cotidianas, travando
contato com as idéias revolucionárias, com o que lhe permite ler o mundo sob a ótica do con-
flito entre patrões e trabalhadores, dominantes e dominados, opressores e oprimidos. E ganhar
a consciência de que lado está e de que aquela situação é uma invenção humana, não um de-
sígnio divino, uma força atávica. O filho e sua inserção no mundo da luta política é a inspira-
ção que move a Mãe para, nos bastidores, na surdina dos seus movimentos domésticos, cola-
132
BARBOSA, Severino. A Mão Armada do latifúndio. J. Pessoa: A União, 1984. P. 87.
105
borar com a luta, mover-se em defesa daquilo que se tornara a razão da vida do filho, Pavel
Vlassov. 133 E aí há o corte mais claro entre as duas imagens maternas, já que Margarida ocupa
lugar de visibilidade, cruza as fronteiras entre a casa e o público. É ela, a própria mãe, a de-
nunciadora das injustiças que pesam sobre sua família, fosse na sua juventude, no início da
sua carreira sindical, quando como filha devotada recorre à Justiça contra os patrões de seus
pais, seja adiante na defesa de uma condição de vida melhor para seu filho.
De qualquer modo, ressignificada, atualizada, essa imagem da maternidade, atuante,
sempre emblemática, vê-se mais uma vez em pleno funcionamento como lugar privilegiado
do feminino, ainda como marca que garante-lhe uma visibilidade e uma marca positiva quan-
do se trata dos signos que lapidam a imagem de força e bravura para a mulher, tão recorrentes
nas imagens das que personificam a “mulher-macho”, conforme tenho tentado demonstrar.
A marca da maternidade também vejo ser ressaltada na pele de outra mulher relacio-
nada à luta agrária, aos movimentos sociais no campo. Trata-se de Elisabeth Teixeira, esposa
de João Pedro Teixeira, referência das ligas camponesas na Paraíba e no Brasil, também as-
sassinado por mandantes ligados ao latifúndio, incomodados com sua liderança e persistência
em defender os trabalhadores rurais no agreste paraibano, numa outra zona conhecida de con-
flito, Sapé e suas áreas circunvizinhas.
Elizabeth Altino Teixeira, embora projetada como liderança após ficar viúva, com 11
filhos, já estava há muito envolvida na luta e tem sua vida marcada por conflitos; primeiro,
com sua família, que não aprovava seu casamento com João Pedro, por este ser negro e sem
recursos, e que se recusou a apoiá-la depois da morte dele, quando ela se viu desterrada pelas
ameaças sofridas e pelas dificuldades de sobrevivência. Com a família destroçada pela morte
violenta do marido, seguindo-se uma tentativa de assassinato de um dos filhos e o suicídio de
outra, Elizabeth teve ainda que enfrentar as perseguições da Ditadura Militar, tendo sido presa
por cerca de seis meses. Depois de liberada, refugiou-se com outra identidade no Rio Grande
do Norte.
Sua trajetória ficou conhecida nacionalmente com o filme Cabra Marcado para Mor-
rer, de Eduardo Coutinho, inicialmente produzido pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da
União Nacional dos Estudantes (UNE), depois pela Mapa Filmes e pelo próprio Coutinho,
133
GORKY, Máximo. A Mãe. 3ª ed. São Paulo: Ed. Expressão Popular, 2005.
106
Elizabeth narra a partir do seu lugar de “mulher”, de esposa de um líder, que ela, a
partir de então, pretende assumir o lugar na luta, embora não fosse aquele para ela o início de
sua atuação. A tocante imagem da terra, pela qual ele lutara e que fica nos olhos do seu com-
panheiro morto, sua conversa póstuma com a lembrança dele, garantindo-lhe seguir adiante na
sua luta, funciona como uma espécie de “ritual de passagem”, a partir do qual ela deixa de ser
apenas a esposa para, tornando-se viúva, herdeira de uma responsabilidade frente às ligas,
tornar-se uma líder.
Entretanto, também como mulher, sendo mãe de uma extensa família, os conflitos em
conciliar estas funções aumentam, se intensificam rapidamente. Ao narrar sobre os momentos
que se seguem à morte de João Pedro, ela demarca as dificuldades entre coordenar a luta e
cuidar da família, e neste enfrentamento cotidiano, a gravidade dos problemas familiares que
precisa enfrentar:
134
Depoimento de Elisabeth Teixeira. In: VAN HAM, Antônia M. et alli. Memórias do Povo: João Pedro Tei-
xeira e as Ligas Camponesas na Paraíba – deixemos o povo falar... João Pessoa: Idéia, 2006. p. 31-2.
107
nhora dentro do caixão, eu não vou ver!’ [...] Aí ela suicidou-se [...] no dia
30 de novembro, essa menina morreu, morreu aqui. [...] A minha vida foi
muito difícil, ver meu marido assassinado, a minha filha suicidou-se. Antes
dela, o tiro no menino...o Paulo, ele era um menino muito impossível, muito
inteligente...Aí, com a morte do pai, ele disse –ele não dizia na minha frente,
mas, quando eu saía pra Liga Camponesa — [...] ele dizia bem alto e os car-
ros passando [...] na estrada de barro [...]: ‘—Mataram painho, mataram pai-
nho! Mato quem matou painho!’...Era criança, com 10 anos. Acontece que,
quando era no dia 16 de junho – o João Pedro foi assassinado no dia 2 de a-
bril — no dia 16 de junho, aí eu tava com os camponeses, reunida na mesa,
aí a gente ouviu os disparos. Ouvi um disparo de tiro, que a gente foi chegar
lá, o cara ia correndo com a espingarda danada, e ele morto, caído como se
tivesse morto, mas aconteceu que eu tirei ele pra Sapé...Aí o médico disse
que ele não poderia mais estudar, ficou o menino... 135
Em vários momentos de sua narrativa, que se constituem também como uma escrita de
si, Elisabeth Teixeira pontua o conflito entre a maternidade, os cuidados com os filhos, e as
tarefas de sua luta junto aos trabalhadores do campo. Muitos relatos a seu respeito lembram
de que costumeiramente ela levava consigo os filhos para as jornadas de militante, onde al-
guns, sobretudo o mais velho, Abraão, também discursava e clamava por justiça. Até que com
sua prisão em 1964 e seu subseqüente refúgio no Rio Grande do Norte, com o codinome
“Marta”, sua família foi dispersa, com os filhos distribuídos entre padrinhos e parentes, le-
vando com ela apenas um deles, o filho Carlos.
Quando em 1982, Eduardo Coutinho retoma seu projeto de continuar as filmagens de
Cabra Marcado para Morrer, revisitando os espaços e os personagens da primeira parte de
sua gravação, interrompida em 1964 pelas forças repressoras do golpe militar, o seu reencon-
tro com Elizabeth, ainda clandestina em São Rafael (RN), possibilita a ela um reencontro com
suas memórias e com sua própria identidade, que passara todos aqueles anos ocultada. Mas
possibilita também uma (re)criação e projeção de sua imagem com uma intensidade singular,
uma vez que sua história, na narração cinematográfica, com ela interpretando seu próprio pa-
pel, na primeira parte, e na segunda, revisitando sua memória, reelaborando-a, constrói um
lugar de visibilidade que os anos de silêncio ameaçara com o esquecimento. 136
Também impactante, ganhador de vários prêmios em âmbito nacional e internacional,
pode-se dizer que Cabra Marcado para Morrer, diferente do que ocorrera com Parahyba
Mulher Macho, lançado um ano antes, não gera o mesmo tipo de polêmica com relação a sua
historicidade. Apresentado como documentário, embora a princípio o projeto fosse de uma
135
Ibidem. p. 34-5.
136
Sobre a discussão de memória e história suscitada pelo filme, ver MONTENEGRO, Antonio. Cabra Marcado
para Morrer: entre a memória e a história. In SOARES, Mariza Carvalho; FERREIRA, Jorge (Orgs.) A História
vai ao cinema. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 179-192.
108
ficção, toma para si o compromisso com uma (re)apresentação do real, de uma história e me-
mória que se pretendem “naturais”. Ao mesmo tempo, com o uso constante da metalingua-
gem, lembrando com artifícios de cena, como a voz in-off do entrevistador, o microfone, etc,
ou mesmo sua presença enquanto diretor — marcas de seu trabalho estético bastante reconhe-
cido no cinema brasileiro — Coutinho está sempre, entretanto, a nos lembrar que ali há uma
intervenção, uma seletividade, uma maquinaria, que não é do “dado”, do pretenso real/natural,
mas que é também, neste sentido, uma invenção, uma fabulação do outro.
Longe de estabelecer comparações entre as obras cinematográficas, o que de modo
algum vem ao caso, o que me move é a curiosidade sobre os elementos que inscrevem de mo-
do tão diferenciado estes ícones femininos que, todavia, se tocam, se cruzam, na discursivida-
de que alimenta um imaginário sobre a bravura da mulher paraibana, assim como do próprio
Estado, projetado como cenário de tantas lutas e conflitos, produzindo inclusive os signos
ambíguos da identidade da “mulher-macho”.
Ora, pode-se inclusive lembrar que, embora influenciado por outra perspectiva de his-
tória que critica e mesmo abala os “fundamentos” de uma historiografia oficial, o filme de
Coutinho não toca as questões referentes aos mitos de 1930, tão caros a uma tradição de histo-
riadores, intelectuais e políticos na Paraíba. Mas, o que para mim salta aos olhos à luz da dis-
cussão aqui colocada, é a tessitura de um outro ícone feminino, que também afetado pela
transgressão, projetado pelas práticas de ousadia e pelos traços revolucionários, produz efeitos
diferenciados daqueles que se ligam a Anayde Beiriz, tendo sua corporeidade marcada por
uma “falta”, uma “ausência”, que aparece determinada pela sua viuvez.
Mais aproximada da projeção feita de Margarida Alves, pelos elementos comuns à sua
luta e a uma identidade que se associa à sua condição de esposa e de mãe, Elisabeth Teixeira,
entretanto, não é configurada nos jogos de relatos como a líder nata, por excelência. Comu-
mente, sua liderança é demarcada, até pela sua própria fala, como vimos, pela sua viuvez. E
esta se faz a marca forte em sua identidade e na sua corporeidade: a da ausência, da perda, da
solidão. A sua história, sua individualidade é, de certo modo, tragada pela referência forte do
seu marido, João Pedro Teixeira, que seus próprios relatos reforçam, na tentativa de rememo-
rando, lutar contra a morte. Não só a de João Pedro, mas a sua própria. Afinal, o rememorar a
inscreve, confere-lhe uma visibilidade e singularidade. Daí, sua imagem tornar-se a de uma
incompletude, uma falta a que ela é remetida freqüentemente, mas que ao mesmo tempo via-
biliza sua existência.
Na sua primeira imagem no filme de Coutinho, Elizabeth Teixeira aparece ao longe,
vestida de negro, cercada pelos filhos pequenos, também enlutados. Depois, a câmera a recor-
109
ta e se pode contemplar melhor seu rosto ainda jovem, que olha hesitante para a frente e para
os lados, parecendo confusa e/ou insegura diante daquela abordagem da câmera. Há que ob-
servar que a marca da maternidade, envolta pelos filhos, não a “salva” desta falta que se toma-
rá a partir de então como sua referência. Até porque a imagem de “mãe” sofre fissuras naquilo
que se relaciona aos modelos normativos vigentes, uma vez que sua projeção pública ameaça
a (re)união familiar, sempre demarcada pela dispersão dos filhos. Nos depoimentos de alguns
destes para o filme, percebe-se a demarcação do lugar da falta, uma justificativa de afeto cal-
cada numa lembrança distante ou no referencial “natural” do que se deve sentir pela mãe, ou
ainda uma cobrança velada pela dor da perda e/ou do abandono. Também não se pode deixar
de referenciar que Elizabeth permaneceu viva, escapando à morte — elemento importante na
reificação dos mitos — que se soma aos relatos que buscam monumentalizar a memória de
ícones como Margarida Alves e Anayde Beiriz.
No reencontro com o diretor de Cabra Marcado para Morrer, Elizabeth, vivendo co-
mo Marta, recebe o passaporte para voltar ao seu passado, pode ser (re)conhecida e, ainda,
através das fotos e cenas gravadas, rever a si, em outro tempo, em outro corpo, em outra vida.
Todo o tempo é possível observar o que mais a emociona: o reconhecimento. Na cena em que
as mulheres da sua vizinhança em São Rafael se reúnem com ela numa sala para falar da
“surpresa” envolvendo a outra identidade de Marta — que ali chegara contando um pouco do
passado, falando vagamente da morte do marido e de onde provinha — as lágrimas nos olhos
de Elizabeth surgem ao ouvir sua história ser ressignificada na fala da suas amigas. Aquilo
que aparece demarcado como seu diferencial, sua marca de mulher-coragem, mulher-
resistência, pode ser, enfim, revelado, como uma luz que se projeta de uma câmara escura e
ilumina todo um ambiente.
Assim, o cinema (re)nomeia Elizabeth Teixeira. De certo modo, pode-se considerar
que não foi a anistia concedida pelo então presidente João Figueiredo aos presos e persegui-
dos políticos, que decerto estrategicamente ela tanto agradece em algumas passagens, que
possibilitou a recuperação do seu nome e, mesmo, do sentido da sua luta, mas principalmente
a narrativa cinematográfica com seu apelo e efeito realístico, com sua versatilidade capaz de
cruzar tempos, espaços e sensibilidades. Não à toa, numa passagem, o diretor pergunta a ela,
num tom também afirmativo, se depois do filme ela voltaria para o mundo, no que ela sorrin-
do diz: “vou voltar”.
O próprio cartaz do filme insinua essa (re)construção da imagem de líder, como exten-
são da imagem revolucionária e martirizada do marido. A imagem do rosto de Elizabeth, mar-
cado pelo tempo, pelo desgaste das condições difíceis de vida, é um detalhe abaixo, bem me-
110
nor que a sombra enorme, fantasmagórica e terrificante que aparece ao fundo, atrás dela. Ima-
gem de violência, uma sombra de morte, escura, enlutada, sobre um fundo vermelho, sanguí-
neo — alusões às cores da bandeira da Paraíba, também forjada num calor de ideais revolto-
sos, em referência a outro mártir, cuja imagem certamente se distancia destes ícones agora
representados (ver anexo E). Identidade de dor e sofrimento que Elizabeth não tem como,
nem parece pretender recusar. Tanto, que ao ser questionada por Eduardo Coutinho sobre a
escolha do codinome “Marta”, ela responde que era por achar um nome de pessoa “mais már-
tir, sofredor, que ia igualhar com a minha pessoa” (sic).
Reatualiza-se o discurso da Paraíba guerreira, da luta, do luto, da resistência — mas
também da violência, das marcas de impunidade e injustiça social. Depois ou a partir do fil-
me, uma vida de reconhecimento espera Elizabeth, para ouvi-la contar, como Penélope a fiar
o tecido que nunca acaba à espera do retorno do seu marido-herói, inúmeras vezes, para tantos
pretendentes de ideais e causas políticas, a sua cantiga de lamento. Um fiar para desfiar a cada
dia. Um (desa)fio de esperança que se mantém na possibilidade do reencontro contínuo com
as lembranças. Também uma “espera de João”, que outros aguardam junto e/ou através dela.
Sob o signo da terra, da paisagem do interior nordestino, estas mulheres a quem ins-
crevemos num território de corpo-paisagem, como construtos da espacialidade que represen-
tam, são marcadas por uma positividade diversa daquelas que se associam mais diretamente
ao espaço urbano, que analisei na primeira parte deste capítulo. Ao me deter nas imagens
singulares destas duas referências, Margarida Alves e Elisabeth Teixeira, compreendo que
suas intensidades fazem parte do fluxo que mobiliza, que faz circular em espirais, os signifi-
cados que tornam possível a ambigüidade da “mulher-macho” em outros ângulos, sob outras
luzes, compartilhando signos, mas também distanciando-se daqueles que a esquadrinham nos
espaços mais urbanizados.
Estas singularidades, acredito, devem-se, em boa parte, às matrizes literárias regiona-
listas, que geram e alimentam as imagens arquetípicas das “guerreiras sertanejas” — mulhe-
res-fruto de uma terra “naturalmente” marcada pelas dificuldades, cujos corpos, como exten-
sões das imagens de virilidade e resistência inscritas no masculino, no “macho”, são captura-
dos e inscritos numa área fronteiriça, num hiato, num aprendizado de tornar-se um duplo:
feminino e masculino.
111
Além da imprensa e do cinema, a literatura apresenta-se como uma série rica na pro-
dução de elementos, que permitem uma incursão pelos estratos que evidenciam a construção
identitária da “mulher-macho”, associada à identidade do sertanejo e do nordestino. E aqui,
brevemente, dedicar-me-ei a explorar um pouco destas possibilidades, visando entrecortar
aspectos, cores, nuances, do que veio a engendrar a imagem ambígua da “mulher-macho”, em
meio a referenciais de gênero e, por conseguinte, de poder.
Nesta exploração dos arquivos, antes da associação mais direta com a Paraíba e, em
grande medida, mesmo independente dela, percebo que a imagem da “mulher-macho” tem
uma recorrência marcante na literatura brasileira desde pelo menos o final do século XIX e
início do XX. Em especial, destaca-se nesta série o romance Luzia-Homem, de Domingos
Olympio, publicado em 1903, cuja protagonista é descrita com os traços da ambigüidade, reu-
nindo singularmente atributos então considerados típicos do feminino e do masculino, resul-
tando numa figura "extraordinária".
Não por acaso, Luzia é apresentada aos leitores pelo olhar da alteridade, ou seja, a
primeira descrição dela é feita através das impressões do francês Paul, personagem masculina,
vindo de uma terra distante. Visitando as obras da cadeia em que Luzia trabalhava no sertão
cearence, ele teria anotado em sua caderneta: “Passou por mim uma mulher extraordinária,
carregando uma parede na cabeça”. E acrescenta a narrativa de Olympio:
Era Luzia, conduzindo para a obra, arrumados sobre uma tábua, cinqüenta ti-
jolos.Viram-na outros levar, firme, sobre a cabeça, uma enorme jarra d’água,
que valia três potes, de peso calculado para a força normal de um homem ro-
busto.[...] Em plena florescência de mocidade e saúde, a extraordinária mu-
lher, que tanto impressionara o francês Paul, encobria os músculos de aço
sob as formas esbeltas e graciosas das morenas moças do sertão. [...] Pouco
expansiva, sempre em tímido recato, vivia só, afastada dos grupos de con-
sortes de infortúnio, e quase não conversava com as companheiras de traba-
lho, cumprindo, com inalterável calma, a sua tarefa diária, que excedia à
vulgar, para fazer jus à dobrada ração. 137
É preciso então lembrar que a obra Luzia-Homem surge num contexto em que outras
obras abordavam os sertões do norte do país como cenário, aproximando as características do
solo e do clima às dos corpos e temperamentos das pessoas que o habitavam — movimento
que não cessará de ganhar adeptos, contribuindo para o que então se constituía como uma
137
OLYMPIO, Domingos. Luzia-Homem. São Paulo: Martin Claret, 2003. p. 20-21.
112
Como se pode ver, este outro olhar, agora do feminino, qualifica o extraordinário co-
mo “monstruoso”. Os homens se encantam com a dubiedade de Luzia, enquanto as mulheres
repelem, recriminam, em um misto de medo e despeito — o que também aparece em algumas
passagens, como se outras mulheres lhe invejassem, muito secretamente, aquele corpo singu-
lar que, sem explicações cabíveis, fazia de Luzia “a diferente” e, portanto, dava a ela uma
marca especial no meio daquela vida monótona de trabalho árduo e pobreza.
Na passagem acima citada flagra-se ainda o aspecto ‘místico’ que envolve os “obscu-
ros” como Luzia, estando subjacente a idéia do castigo, da punição pelos desvios que supos-
tamente sua mãe tivera e que ficaram como que expostos na filha, que então penaria com tão
138
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira L. (Org.).
O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva. 2ª ed. Belo Horizonte: Autên-
tica , 2001. p. 154-155.
139
OLYMPIO, op. cit. p. 20.
113
pesado fardo — o de ser um duplo. A própria Luzia, ao sentir o pesar, atribui ao divino suas
dificuldades, questiona-se e subjetiva a idéia de não ser afeita às coisas que uma mulher con-
siderada normal conseguiria, como entregar-se ao amor. Ela sofre por resistir ao amor de Ale-
xandre, desconfia ser incapaz de viver ao lado dele, temendo também a triste sina de outras
tantas mulheres, abandonadas com os filhos pelos homens que um dia lhes fizeram juras de
amor, e conclui que “não; não fora feita para amar. Seu destino era penar no trabalho; por
isso, fora marcada com o estigma varonil; por isso, a voz do povo, que é o eco da de Deus, lhe
chamava Luzia-Homem”. 140
Contudo, a dificuldade de amar tem uma especificidade: ela não se julga capaz de a-
mar como mulher, porque acredita que estas amam de forma submissa, passiva. Em seu caso
isso não seria possível, pois “dera-lhe Deus músculos possantes para resistir, fechara-lhe o
coração para dominar, amando como os animais fortes”, ou seja, como “uma onça”, uma for-
ça selvagem, ou de uma forma que seria mais condizente a um ‘macho’. E se estas eram suas
sensações, a forma como se manifestavam seus desejos, ela deveria esquecer, sufocar, para
justamente não suplantar de vez, em seu corpo e caráter, as marcas da feminilidade. Afinal,
segundo os ditames de sua cultura, ser como um “macho” no trabalho, era algo aceitável, e na
situação de pobreza em que vivia, até necessário, mas no sexo, nos jogos amorosos, seria al-
go, de fato, antinatural e, portanto, anormal.
O corpo de Luzia é, assim, tecido como um corpo de conflito. Sim, é uma síntese de
atributos então considerados valorosos para o feminino e o masculino, num certo sentido
harmoniosa na sua materialidade selvagem, rústica e, ao mesmo tempo, com suas fragilidades
e delicadezas. Mas é penoso ter um corpo assim, que então se tortura de limites, de culpas, de
impossibilidades de, sendo duas coisas, não poder ser nenhuma; de viver no hiato, no trânsito.
Luzia não se sente confortável com o que parece ser e parece ter dúvidas sobre o que ela de
fato é, uma vez que os atributos considerados naturais para os sexos se impunham cotidiana-
mente, exigindo lugares claros de definição para cada um.
Interessante pensar neste conflito posto por uma personagem construída numa narrati-
va masculina, entre o final do século XIX e início do XX, quando os lugares socialmente de-
finidos para homens e mulheres se colocavam de maneira mais rígida e estanque pelos discur-
sos naturalistas e pelos que procuravam então fundar uma idéia de Estado pautada na família,
onde os papéis deveriam estar bem definidos. Entretanto, se a personagem Luzia ousa colocar
em cena questionamentos sobre a condição feminina naquele contexto, acaba por prevalecer,
140
OLYMPIO, Domingos. Luzia-Homem. São Paulo: Martin Claret, 2003. p. 77.
114
como sua qualidade mais superior, a de não ser uma mulher comum, mas uma “mulher-
macho”, em que suas características viris ditavam seus qualificativos de superioridade entre as
outras mulheres, ou seja, em meio àquelas que eram apenas “fêmeas”.
Com Luzia-Homem, Domingos Olympio participa, pois, da elaboração da figura da
“mulher-macho” sertaneja, que por sua vez será também agenciada na composição da imagem
da mulher nordestina, que aparece nomeada a partir da década de 1920. “Mulher-coragem”,
“mulher de fibra”, “mulher-macho”, são variantes muito próximas numa série de discursos
produzidos sobre a mulher que vive no Nordeste. Ou seja, uma imagem que não se distancia
daquela configurada para o homem sertanejo, que “é antes de tudo um forte”, trazendo em seu
corpo as marcas da “natureza” da região — “figura em que se cruzam uma identidade regional
e uma identidade de gênero”. 141
A rigor, o Nordeste ainda não existia quando o romance de Domingos Olympio foi
escrito, embora a idéia de sertão já fosse corrente, costumeiramente presente na percepção
daqueles que se referiam às regiões ao norte do Brasil. Uma intelectualidade, originária de
uma elite agrária, mas que atuava nos centros urbanos, buscava nas primeiras décadas do sé-
culo XX, novos paradigmas de interpretação da realidade local, diferentes daqueles exercidos
por seus pais. Desde o final do século XIX crescia, pois, entre estes grupos a influência do
discurso eugenista, notadamente na formação da Faculdade de Direito do Recife, onde preva-
lecia o pensamento social-darwinista de Haeckel e Spencer. Tal pensamento teria, pois, atri-
buído um sentido “científico” aos estudos jurídicos e às interpretações da vida social, o que
marcou também a produção literária regionalista do período, que então participava da elabo-
ração de identidades provinciais e da construção de tipos regionais, que serão incorporadas,
entre o final da década de 1910 e o início da seguinte, ao Nordeste e ao seu “tipo” humano, o
nordestino. 142
O cangaço será facilmente capturado por estas redes discursivas, alimentando estereó-
tipos físicos e perfis psicológicos, que não escaparão às narrativas literárias. Em especial, co-
laborará intensamente para dar volume e cores às imagens da “mulher-macho” como uma
tipificação das mulheres sertanejas. A Literatura de Cordel, em particular, para a qual Lampi-
ão e seu bando serão constantes inspirações, será um dos gêneros mais ricos na composição
desta tipificação que se torna clássica nesta modalidade literária. Maria Bonita, a companheira
de Lampião, principalmente, é traçada com os signos desta duplicidade, já que para ser mu-
141
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. Nordestino: Uma invenção do falo – Uma história do gênero mascu-
lino (Nordeste – 1920/1940). Maceió: Edições Catavento, 2003.
142
Ibidem.
115
143
CAVALCANTE, Rodolfo Coelho. Maria Bonita, Mulher Macho, Sim Senhor! [S. l.: s.n.], 1983. (Arquivo
de cordéis da Biblioteca Átila Almeida. Campina Grande, UEPB).
116
tual de passagem” para a nova vida dá-se pelo amor. E aí, como em histórias comuns no cor-
del, aparecem os elementos dos contos-de-fada clássicos, que fazem da cangaceira uma espé-
cie de princesa, fugindo na garupa do seu príncipe. Ao invés da coroa, ela receberá o chapéu
de couro típico do cangaço, que em outra passagem o autor situa como de dar inveja à rainha
Cleópatra — outro elemento comum, o de estabelecer relações com personagens da história
universal. E a beleza de Maria? Como a de Diana, referência de beleza e força na mitologia
clássica. 144 A “mulher-macho” aparece, sobretudo, na hora da luta, vivendo entre homens,
encarando inimigos diante dos quais transforma-se em “fera” — aqui, outro elemento recor-
rente, o de comparar as qualidades pessoais a animais típicos do sertão ou do universo da i-
maginação sertaneja, num recurso de aproximação com a idéia de “natureza e/ou instinto sel-
vagem”. Por fim, o destino trágico, que, lhe garante como heroína um tipo de imortalidade: a
da memória.
Muitos destes elementos, pode-se flagrar, também, nas narrativas em prosa que, inten-
sificando e mantendo alimentada tal produção, permitem que muitas décadas depois de Luzia-
Homem vir à luz, outra personagem marcante pela sua ambigüidade ocupe um lugar de relevo
na literatura brasileira e na produção midiática, popularizada por uma série televisiva de gran-
de sucesso veiculada nos anos 1990. No caso, Memorial de Maria Moura, de Rachel de Quei-
roz, lançado em 1992, traz outra heroína cujo corpo é inscrito nas fronteiras do masculino e
do feminino, vivendo também os conflitos de ser uma “mulher-macho”, com aproximações e
distanciamentos daqueles colocados por Olympio na trama de Luzia. Percebemos então o "ar-
quivo" — que configura a imagem da sertaneja/nordestina como “mulher-macho” — continu-
ar em funcionamento, possibilitando outras imagens, preservando e engendrando outros signi-
ficados, ainda que num momento histórico tão diverso, posterior inclusive à intensificação do
movimento e dos debates feministas no Brasil.
Maria Moura, também sertaneja, havia sido criada como uma 'sinhazinha', sendo filha
de proprietários de terras, embora estes não tivessem largos recursos. Conviveu pouco com o
pai, que morreu cedo. Sua aventura começa mesmo após a morte da mãe, supostamente por
suicídio, embora recaíssem suspeitas sobre o seu padrasto, interessado em tomar conta de suas
posses e de tomar a própria enteada como mulher. Diferente de Luzia, Moura permite-se a
impulsos e desejos sexuais, acabando por se deixar levar pelo sedutor Liberato, o padrasto,
144
Diana é a assimilação romana de Ártemis, do panteão grego. A princípio deusa-mãe, ela é caracterizada como
virgem belicosa, representada em geral armada de arco e flecha. Protetora dos animais selvagens e das árvores.
WOLF, Roberto G. Mitologia Greco-Romana. Col. Mini Paumape. São Paulo: Ed. Paumape, 1995. p. 26.
117
sem, contudo, iludir-se sobre as reais intenções dele. Quando estas lhe parecem mais claras, é
justo dos seus atributos femininos que Maria Moura se serve, para armar uma trama que cul-
mina na morte de Liberato, a seu mando, e depois na do executor, para livrá-la de qualquer
cúmplice ou testemunho comprometedor. Aí começa a sua saga de “mulher-macho”, numa
luta para sobreviver entre homens que querem dominá-la e tomar suas terras — o caso de seus
primos — e convivendo praticamente só com homens, seus "cabras", sempre armados para
defendê-la dos algozes, e a quem ela chefia com pulso forte.
A memória da própria Moura e a de alguns dos principais personagens da trama são as
narrativas que nos mostram como, pouco a pouco, ela vai transformando-se numa “mulher-
macho”. Diferente de Luzia, as marcas no corpo de Maria Moura são predominantemente
marcas externas, que ela incorpora como extensões da sua pele — acessórios, vestes, que to-
ma para si, decidida a manter sua liberdade, pois acredita que não sobreviveria de outro modo,
sendo apenas uma sinhazinha — e com estas ensaiando e intensificando um gestual, um modo
de ser, que a distanciava cada vez mais das moças das redondezas, inscrevendo-a assim num
“mundo de homens”.
Entretanto, sua memória também aciona desejos latentes, que motivados pelas condi-
ções do meio em que vivia e pelas lições que aprendera com o pai e com a mãe — uma mu-
lher descrita como altiva e resistente — desde a infância a diferenciara de outras meninas e,
adiante, das moças, gostando de andar a cavalo "escanchada", preferindo as histórias de bata-
lhas às religiosas, que achava tristes, e sentindo uma especial atração pelas armas. A primeira
visão da aparência de Moura é um homem, um padre, que nos dá: “E então apareceu a Dona.
Calçava botas de cano curto, trajava calças de homem, camisa xadrez de manga arregaçada. A
cara fina seria mais bonita não fosse o ar antipático, a boca sem sorriso”. 145
Adiante, é seu primo Irineu, interessado em tomar para si as terras e o corpo de Moura,
que pensa:
O diabo é que a Maria Moura, apesar de nova, não vai dar facilidade. Ela
tem um jeito de encarar a gente que parece um homem, olho duro e nariz
para cima, igual mesmo a um cabra macho. [...] Difícil mesmo vai ser passar
a mão nela. A cabrita é capaz de se defender até de faca. A maneira dela é de
mulher que carrega punhal no corpete; ou não seria tão atrevida. Com ela eu
preciso tomar chegada por trás, prender os braços dela com toda a força dos
meus, deixando a mão livre pra ir alisando os peitinhos, a barriguinha; falan-
do bem baixinho no ouvido, pra ela se acalmar. Mulher não resiste a carinho
bem feito. Se ela for bater com salto de sapato nas minhas canelas, aí o jeito
é derrubar. Cair-lhe por cima, e seja então o que Deus quiser. 146
145
QUEIROZ, Rachel. Memorial de Maria Moura. 15ªed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. p. 14.
146
Ibid. p. 55.
118
— vou prevenir a vocês: comigo é capaz de ser pior do que com cabo e sar-
gento. Têm que me obedecer de olhos fechados. Têm que se esquecer que eu
sou mulher — pra isso mesmo estou usando estas calças de homem. Bati no
peito: — Aqui não tem mulher nenhuma, tem só o chefe de vocês. Se eu dis-
ser que atire, vocês atiram; se eu disser que morra é pra morrer.
Em seguida a este comando, ela corta os longos cabelos à faca diante dos homens es-
pantados com sua performance, e anuncia:
147
QUEIROZ, Rachel. Memorial de Maria Moura. 15ªed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. p. 85-91 pas-
sim.
119
Como se pode ver, apesar do tempo que separa as protagonistas, e de ao final do sécu-
lo XX, ter-se a construção de uma “mulher-macho” que faz a si mesma, que não apenas se
protege dos homens, mas que os comanda, experimentando sobre eles um tipo de domínio, e
que não teme experimentar o sexo e o amor, Maria Moura, como Luzia, sendo um duplo, ten-
do um corpo marcado pela ambigüidade, não tem um lugar. Estão ambas num fora, que as
lança numa solidão e numa inviabilidade de ser. Ao mesmo tempo, por causa do seu sexo,
exceto quando está no comando travestida de homem, Moura é sempre fragilizada pelos olha-
res masculinos, muitos deles, inclusive, pretendendo-a como uma presa, um território por do-
minar e que, caso conseguissem, tomando-a como prêmio, isso faria com que se sentissem
ainda mais “macho”.
Imagens ricas de significados, elas são, pois, agenciadas e ao mesmo tempo agencia-
doras de sentidos para a construção de lugares de gênero, particularmente no que diz respeito
às imagens do masculino e do feminino relacionados ao Nordeste brasileiro. Embora tanto em
uma como em outra narrativa, as personagens, enquanto mulheres masculinizadas, sejam ex-
ceções — e ali também experimentem as vicissitudes de sua diferença, no jogo das produções
discursivas sobre a região, engendradas por outras criações literárias — bem como por outras
séries como a música, o cinema e a historiografia, acabam tornando-se uma marca generali-
zante, com a qual se tem marcado os corpos das mulheres e dos homens que vivem no Nor-
deste.
No caso da Paraíba, esta marca tornou-se ainda mais intensa, colando-se inclusive ao
“corpo” do próprio Estado, configurando uma identidade não apenas para suas moradoras,
mas para toda a região, como olharei mais detidamente a seguir. Marca ambígua, que provoca
orgulho, quando oferece a conotação de guerreira, resistente, forte, mas também de recusa,
especialmente por ameaçar os signos de virilidade que se pretendem dominantes, assim como
os atributos de feminilidade das moradoras; bem como por, mais recentemente, constituir uma
forma pejorativa de nomear mulheres homossexuais.
Heroínas de vida breve em suas histórias, Luzia, Maria Bonita e Maria Moura, como
ícones destas elaborações, adquirem vida longa, embora possam sempre escapar, assumindo
com o passar do tempo diversos corpos, experimentando a “insustentável leveza” de ocupar
dois lugares sendo, simultaneamente, um não-lugar. É como se fossem tragadas por essa bre-
cha do “entre dois”, que funciona também como um lugar que mistura os outros dois grandes
espaços, e ainda que ocorra numa superfície real, sua profundidade é virtual; são lançadas
num “lugar sem lugar”, invertidas, complexas... a utopia do espelho que é simultaneamente
120
heterotopia. 148
Então o espelho cria a ilusão e vemos um “real” que nos coloca lá onde não estamos.
Este “reflexo” mistura os mundos, os espaços, os tempos...como não ver na recusa do femi-
nismo nos anos oitenta, as idéias conciliatórias de Eudésia Vieira nos anos vinte? Como não
ver no corte de cabelo de Anayde Beiriz, o corte de cabelo de Maria Moura fazendo um “ritu-
al de passagem”? Como não ver Margarida pegando balaios, montando cavalo e não lembrar
da disposição de Luzia? Como não reconhecer na solidão de Elizabeth Teixeira, a de Maria
Moura comandando seus “cabras”? Como não sentir em todas elas a intensidade da paixão e
as incertezas da vida errante como quando imaginamos Maria Bonita? E, afinal, como não
sentir como marca expressa em todas essas existências, um desejo de liberdade?
148
Cf. FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In: ______. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema.
Manoel Barros da Motta (Org.). Tradução Inês Autran D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001,
v.III (Col. Ditos & Escritos). p. 410-422.
121
149
Segundo Xico Nóbrega, com base em pesquisa realizada junto ao Museu Luiz Gonzaga (Campina Grande-
PB), Paraíba é a terceira música de Gonzaga mais regravada — até 1998, cerca de 70 vezes — por diversos
compositores. NÓBREGA, Xico. Paraíba: o famoso baião foi composto como jingle de campanha política de
Pereira Lira, não de José Américo. In SANTOS, João Marcos L. et al. (Orgs.) 1930: A Revolução que mudou a
História do Brasil. Campina Grande: UEPB, 2007. p. 129-146.
150
ÂNGELO, Assis. Eu vou contar prá vocês. São Paulo: Ícone, 1990. p. 64. (grifos meus).
122
As marcas na fala do cantor acabam por entrecruzar vários signos da composição, que
possibilitam pensarmos a partir da sua música uma “materialidade” para a “Paraíba mulher-
macho”. A idéia da Paraíba como sendo um Estado que, apesar de pequeno, é valente, mostra-
se diretamente associada a uma força política e, mais especificamente, a um contexto de em-
bates políticos, o de 1930. Este teor é reabilitado e facilmente acionado pelos compositores
vinte anos depois porque o contexto enuncia as suas similitudes e permanências.
Ao dizer isto, esclareço que não estou pensando em termos de uma linearidade, mas de
um jogo que se faz no contínuo e no descontínuo, muitas vezes superpondo imagens, permi-
tindo-nos sentir as resistências, as máscaras e disfarces, o (re)investimento das táticas de so-
brevivência e de atualização do que se considera (ultra)passado, vivido, que ficou atrás(ado).
Rica em suas metáforas, de uma poesia que libera inteligência em linhas simples, a
composição convida a esta “viagem no tempo”, interligando os ícones do presente aos do pas-
sado, como forma de (re)animá-los — inclusive literalmente, num ritmo que então se fazia
novo e muito dançante. No embalo de Paraíba, o Estado ganha assim corporeidade, numa
estética feminina que aparenta fragilidade — “pequenina” — mas que surpreende na sua
grandiosidade “máscula”.
Terra-fêmea, cabras-macho. A música funde as imagens, elabora uma síntese que tem
ali o marco da sua nomeação. Mas como tenho colocado, não se trata de uma origem, pois não
me parecem acidentais as peripécias, astúcias, disfarces, que possibilitaram sua emergên-
cia. 151 Ela resulta de tessituras construídas no fazer-se do tempo. Muitas vezes significada
sem ser verbalizada, ali, sob aquelas condições de luz, emerge resplandecente, ainda sem adi-
vinhar a longevidade e versatilidade que a história irá lhe conferir.
Neste capítulo quero então fazer esta “viagem” que interliga tempos, centrando meu
olhar nas imagens remetidas pela canção que “planta” no corpo da terra-fêmea, um signo fáli-
co, de “macho”, ao mesmo tempo que deixa uma fenda aberta, do “entre-fronteiras”. Partirei
de uma breve incursão pelo momento de lançamento da canção para depois lançar um olhar
mais detido sobre aquilo que, penso, ela dará mais visibilidade: o projeto político e identitário
de uma Paraíba Masculina, inscrita nos relatos da memória histórica, convertida numa me-
mória de (res)sentimentos.
151
Sobre as diferenças entre a pesquisa genealógica e a de origem, ver FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a Gene-
alogia e a História. In: _______. Microfísica do Poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Graal, 1979.
123
152
Argemiro de Figueiredo (1901-1982), filho do cel. Salvino Gonçalves Figueiredo e Luíza Viana, cresceu em
meio a uma família de prestígio e participação política atuante no município de Campina Grande. Advogado, foi
eleito deputado estadual em 1929 e Secretário do Interior e Justiça da Paraíba até 1934. Eleito governador em
1935, permaneceu no cargo até 1940, mesmo durante a vigência do Estado Novo, do presidente Getúlio Vargas.
É apontada entre as suas principais realizações a duplicação da produção de algodão do estado e diversificação
da produção agrícola, com projetos de mecanização da lavoura e parcerias com pequenos agricultores. Foi ainda
deputado federal em 1946. Senador em 1954, pela UDN, e em 1962 pelo PTB. Para saber mais sobre alguns dos
seus momentos de atuação política ver: SANTANA, Martha Maria Falcão de C. e Morais. Poder e Intervenção
Estatal – Paraíba: 1930-1940. João Pessoa: Editora da UFPB, 1999; SYLVESTRE, Josué. Lutas de Vida e de
Morte: fatos e personagens da história de Campina grande (1945/1953). Brasília: Senado Federal, 1982.
5
José Américo de Almeida (1887-1980) formou-se em Direito pela Faculdade de Recife em 1908, tendo sido
Promotor Público, Procurador Geral do Estado, Secretário de governo durante a gestão de João Pessoa e, em
seguida, interventor do governo em 1930. Foi ainda Deputado Federal e Ministro da Viação e Obras Públicas
durante o Governo Vargas. Em 1950 ocupava cadeira no Senado quando se candidatou ao governo da Paraíba
pela Coligação Democrática, sendo vitorioso e ocupando o cargo até 1956. Simultaneamente à sua carreira polí-
tica, dedicava-se às letras, o que lhe valeu em 1966 um título de “imortal” na Academia Brasileira de Letras.
Entre suas obras de maior destaque estão A Bagaceira (1928) e O Ano do Nego (1968).
6
Cf. MELLO, José Octávio de Arruda e. História da Paraíba: Lutas e Resistência. 3ª ed. João Pessoa: Editora
da UFPB, 1995. p. 225-238.
124
Seu perfil de intelectual, de idéias consideradas progressistas e liberais, com vários livros pu-
blicados, conhecido em nível nacional tanto por seus escritos quanto por sua atuação política,
decerto contrastava bem com a de Argemiro de Figueiredo, que tinha projeto político mais
conservador, alicerçado numa base oligárquica, que se refortalecera durante o Estado Novo,
mas que em 1950 experimentava seu declínio.
Embora um dia tenham estado juntos na UDN, Argemiro de Figueiredo e José Améri-
co se diferenciavam em suas posturas e lugares de representação. Este, mais ligado aos inte-
resses de uma classe média urbana, aquele intensificando o poderio de base rural. Figueiredo
encarnando os papéis de seus antecessores perrepistas, Américo envolto numa bruma que o
mantinha vinculado aos ditos ideais da Aliança Liberal em 1930. 154
Diferentes sim, mas próximos em alguns aspectos, a história política de ambos se liga
aos eventos relacionados ao governo e morte de João Pessoa, colocando-se os dois como arau-
tos das mudanças e conquistas, anunciadas pelo projeto de Estado que ali se implantava. As
rivalidades e diferenças, entretanto, se acirraram na década de 1940, notadamente durante o
pleito eleitoral para prefeito de Campina Grande em 1947, demarcando a partir dali uma cisão
no interior da UDN, expressa numa ala “argemirista” e noutra “americista”. 155
Assim, a música, cruzando temporalidades, (re)afirma um jogo de forças que se man-
tinha no fluxo dos acontecimentos políticos no Estado e que permanecerá pondo em circula-
ção os signos identitários forjados por toda uma série de discursos sobre os eventos e persona-
lidades ligados aos movimentos que marcaram o fim da Primeira República no Brasil — tam-
bém chamada República Velha ou República dos Coronéis.
Isto inclusive se espetaculariza no próprio comício mencionado por Luiz Gonzaga, no
qual a música é tocada em público pela primeira vez, lançando a candidatura de Pereira Lira.
Aliás, a presença de Gonzaga e de outros artistas ligados a Rádio Nacional fora anunciada
como parte da festa de inauguração dos Correios de Campina Grande, não aparecendo na im-
prensa diretamente como parte do comício, mas dele participando efetivamente, animando o
palanque dos candidatos udenistas.
Ocorrido a 09 de julho de 1950, na Praça da Bandeira, organizado pela Aliança Repu-
blicana da Paraíba — este comício culminou com um tiroteio que deixou três mortos e vários
feridos. Segundo a versão oficial, o conflito se deu com a chegada à praça de membros da
7
Sobre a dissidência da UDN e detalhes da campanha ameriscista X argemirista em 1950 ver SYLVESTRE, op.
cit.; ARAÚJO, Martha Lúcia R. A Ciranda da Política Campinense: 1945/1964. In: GURJÃO, Eliete de Queiroz
(Org.). Imagens multifacetadas da História de Campina Grande. Campina Grande, PB: Secretaria de Educa-
ção do Município, 2000. p. 79-99.
125
Coligação Democrática Paraibana, formada pelo Partido Social Democrata (PSD) e pelo Par-
tido Libertador (PL), que após terem percorrido algumas ruas da cidade em passeata, teriam
tentado fazer outro comício, confrontando-se com as pessoas que ainda se encontravam ali
reunidas e com as autoridades policiais. Os disparos teriam então surgido de várias direções,
provocando grande tumulto e resultando em vítimas fatais, caso que muito foi discutido poste-
riormente nos jornais, nos palanques e nos pronunciamentos oficiais de várias autoridades,
principalmente das duas maiores lideranças políticas envolvidas — embora ausentes no mo-
mento da confusão — Argemiro de Figueiredo e José Américo de Almeida. 156
Ironicamente, ali, na data e no palco de lançamento do baião Paraíba, com todas suas
referências aos aguerridos ânimos de 1930 no Estado, os signos se renovavam no enfrenta-
mento político, no embate partidário e na luta corporal daqueles que procuravam representar
aquela memória.
Como que reconhecendo o apelo forte da música, Luiz Gonzaga admite, entretanto, ser
difícil naquele contexto derrotar Zé Américo, e acrescenta ser essa uma outra história. Decer-
to, outra no sentido de demandar uma incursão diferente, longa, para explicar esta tal invenci-
bilidade, mas não outra como “corte”, como separação. Basta olhar para ver: as narrativas
estão lá entrelaçadas, os fios se misturam e a história vai sendo tecida com seus relevos, suas
texturas diversas, mas também com seus muitos pontos de inflexão, (con)fundindo-se. Vemos
na repetição de marcas discursivas 157 , que inscrevem a produção destes acontecimentos num
suporte institucional, organizando-a, selecionando-a, e considerando-a mesmo como uma ex-
tensão da postura dos envolvidos nos eventos do passado, a tessitura de um outro estrato no
amplo memorial tornado ‘história da revolução de 1930’ na Paraíba.
Assim, a canção consegue elaborar esta síntese, jogando com as imagens de sua con-
temporaneidade como espelhos de um passado reiterado, constantemente atualizado. Certa-
mente reside aí grande parte de seu vigor, que a faz atravessar o tempo, cantada por tantas
gerações. Mas há ainda um outro elemento vigoroso e diferenciador, que também sintetiza
imagens há muito em movimento, uma imagem de gênero, que agrega o ambíguo, “brincan-
do” simultaneamente com elementos identitários de um espaço, e das mulheres que nele vi-
vem: justamente a da Paraíba como “mulher-macho”.
156
Há divergências quanto ao modo como se processou o conflito, obviamente produzindo acusações de ambos
os lados, sem ao final ficarem muito esclarecidas as responsabilidades. Assim como divergências quanto ao
número de feridos – 09 ou cerca de 20, os tipos de armas usadas, falando-se inclusive em “rajadas de metralha-
doras”. Aponta-se, no entanto, a ação policial como decisiva para o grau de violência, questionando-se, entretan-
to, se teria agido deliberadamente diante do alvoroço dos civis, ou manipulada por “forças ocultas”. Para maiores
detalhes, ver SYLVESTRE, op. cit.
157
Lembrando que não tomo repetição como “retorno ao mesmo”, enquanto semelhança, mas similitude; como
ondas que se formam perante as mesmas regras, mas colocadas sob novas condições de luz, fluxo, ritmo...
126
Gonzaga diz assim estar homenageando a valentia do estado e das suas moradoras, que
lutam, batalham — porque, como diz, “nesse sentido, tem mulher que é um verdadeiro ho-
mem”. Prevalece em sua fala os indicativos de uma cultura determinista, que atribui a fortale-
za ao masculino e, sendo o feminino forjado como seu contrário, frágil, faltante, seu “salto”
frente ao que lhe reservava a natureza o transforma, o faz másculo. Uma imagem já bastante
corrente como temos visto, presente em tratados médicos, jurídicos, sociológicos, divulgados
e (re)criados pela imprensa, pela literatura, mas que nessa composição musical opera um ou-
tro deslocamento ao amalgamar a imagem da região a uma imagem de gênero. 158
Ora, como se pode perceber, embora Gonzaga diga tratar-se de uma homenagem às
mulheres valentes do Estado, a qualificação que as diferencia, a de ser “macho”, termina por
ser uma ode às características culturalmente imputadas ao masculino que, enfatizadas, fazem
da “terra-fêmea”, Paraíba, um território de dominação masculina. “Muié macho, sim sinhô”,
vem na construção do refrão como reforço ao gênero que prevalece, reafirmando a “Paraíba
Masculina”. Justamente a Paraíba de uma masculinidade idealizada naquelas imagens que o
baião utiliza, que remetem a 1930 e que se (re)apresentam naquela disputa política que a can-
ção pretende animar.
Não se pode perder de vista que sendo uma imagem de gênero dúbia, que escapa da
determinação pelo seu hiato, facilmente se “abre” a várias interpretações e apropriações, ge-
rando polêmicas e afetos. E isto já se fará sentir ali, em torno do lançamento da canção.
Sendo aquela campanha eleitoral considerada uma das mais agressivas da história po-
lítica da Paraíba, aquele comício, desde o seu anúncio, já prenunciava tornar-se o ápice das
disputas. Atribui-se também boa parte do calor dos embates ao entusiasmo jovial de Félix
Araújo, nome vindo das bases do Partido Comunista (PC), que apoiando a Coligação Demo-
crática, organizava e animava passeatas e reuniões, compondo hinos e escrevendo boletins e
“foguetes” — folhetos com críticas mordazes à Aliança Republicana.
Segundo Josué Sylvestre, podia se reconhecer a “inteligente e dialética argumentação
de Félix Araújo” nas peças veiculadas às vésperas do comício, como forma de tentar ofuscar o
brilho que prometia fazer daquele, a grande “festa em amarelo” do “argemirismo”. Um dos
boletins, intitulado Luxo e Miséria, bradava:
158
No Brasil, já dispomos de um vasto acervo de trabalhos, nas mais diferentes áreas, que contemplam e anali-
sam tais temas, muitos dos quais referenciados ao longo deste. Também, a obra de Foucault sobre a produção
dos saberes e seus dispositivos de regulamentação dos corpos, da sexualidade, de constituição das subjetividades,
cujas principais idéias estão organizadas na Coleção Ditos & Escritos, são inspirações e desafios constantes para
a problematização dessas questões.
127
Vem aí o Professor Pereira Lira, à nossa terra, num tempo que é, realmente,
de Luxo e Miséria. Luxo para meia-dúzia. Miséria para milhares. O povo es-
tá passando FOME na cidade e no interior, enquanto o governo dorme pro-
fundamente. [...] Os trabalhadores da Paraíba estão saindo, como aves de ar-
ribação, em debandada para o Rio de Janeiro e para outras terras, porque não
pode mais viver sem trabalho na terra onde nasceram. [...]... Milhares de dis-
cos são distribuídos com hinos em seu louvor. [...] Artistas de rádio, de uma
estação de rádio que pertence ao País, vêm com o Professor, cantar diante do
povo faminto e humilhado. [...] O povo não quer DISCOS, com embola-
das indecorosas. [...] O POVO NÃO QUER CIRCO — QUER PÃO. [...] O
povo quer é José Américo. Sem DISCOS, sem ARTISTAS DE RÁDIO, sem
ALTOS FALANTES... 159
O teor do panfleto decerto não sublinha o elogio ao caráter masculino que a música faz
ressoar na Paraíba, mas taticamente “pega” aquela “brecha” deixada pelos compositores ao
agenciarem a imagem ambígua da “mulher-macho”. Tocando aos assuntos da sexualidade e
159
Do boletim reproduzido em SYLVESTRE, Josué. Lutas de Vida e de Morte: fatos e personagens da história
de Campina grande (1945/1953). Brasília: Senado Federal, 1982. p. 196.
160
Ibidem, p.195.
128
do “decoro”, logo se torna uma questão de “sentimentos e pudor” que atinge as mulheres.
Então começa por recordar uma crítica conservadora às músicas “pesadas” de Gonzaga para
afirmar que aquela não fugia à regra, o que ganha uma imagem corpórea ao aludir a uma ima-
gem do feminino que encarnaria ali o “desvio”, a “escandalosa sambista Emilinha Borba”.
Assim, a reboque, cola a imagem do despudor e da transgressão a Pereira Lira que chegara
“desafiando tudo”, até os representantes da Igreja!
A repercussão desta crítica vemos também na produção cordelista que toma por tema a
“vitória americista”, como nestes versos de Manoel Tomaz de Assis:
A política da Paraíba/ teve que feder a cão/ foi um arrocho danado/ nos tri-
bunais da nação/ foi arrochado o pacote/que o diabo dançou um chote/ da
praia ao alto sertão. Com cantiguinha sebosa/ cantiguinha sem futuro/ o dia-
bo na Paraíba/ inda dançou no escuro/ cantaram até mulher macho/ nunca vi
tanto relacho/ o povo está num munturo. Pegado com mulher macho/ viajava
o cachimbão/ o diabo nessa política/ arrumou o matulão/ com um saco e um
pacote/ quando rasgou o malote/ vinha assim fedendo a cão. 161
O impacto dessas interpretações pode ser sentindo naquela declaração de Luiz Gonza-
ga tantos anos depois, ainda se justificando e lamentando os significados atribuídos à música.
Num recente artigo em que apresenta o contexto de lançamento da canção Paraíba, o jornalis-
ta Xico Nóbrega destaca que “em seu finalzinho, Luiz Gonzaga entoa um muié macho e en-
cerra-o com um desprezível sai prá lá peste! Sim sinhô!!!...”, o que o faz questionar se com
esta expressão o próprio cantador não teria concorrido para a “inversão” do sentido original
da música. 162
Decerto que o recurso utilizado pelo cantor reforça tal impressão. A interjeição final
de Gonzaga é mais um signo que conota o estranhamento, a surpresa e a rejeição do corpo
ambíguo. Entretanto, acredito que ainda sem ela os sentidos continuariam lá, moldáveis àque-
las “inversões”, posto que o corpo duplo da “mulher-macho” torna-se, na sua historicidade,
um corpo invertido, e o desejo de ver “invertida” a moralidade dos adversários ajuda a ilumi-
ná-lo, produzindo intensidades.
A imagem da ambigüidade sexual, que (con)funde os gêneros, tem enfatizada sua di-
mensão micropolítica. Michel Foucault nos faz pensar muitas vezes como, ainda na contem-
poraneidade, a idéia de que se deve ter um verdadeiro sexo está longe de ser completamente
161
ASSIS, Manoel Tomáz. A Vitória Americista. Paraíba: [S.n: 195-?]. p. 05. Folheto de Cordel (Acervo de
Córdeis Átila Almeida- UEPB).
162
NÓBREGA, Xico. Paraíba: o famoso baião foi composto como jingle de campanha política de Pereira Lira,
não de José Américo. In SANTOS, João Marcos L. et al. (Orgs.) 1930: A Revolução que mudou a História do
Brasil. Campina Grande: UEPB, 2007. p. 144.
129
dissipada. Vemo-la então com mais força ainda naquele momento de enfrentamento de mode-
los políticos pensados como modelos exclusivos de masculinidade, que deveria ser enunciada
pelos “verdadeiros homens”. O autor salienta que não somente na psiquiatria, na psicanálise e
na psicologia, mas também na opinião corrente, encontramos a idéia de que entre sexo e ver-
dade existem relações complexas, obscuras e essenciais. Pensa-se nelas como insultos “a ver-
dade”, como no caso de um “homem passivo”, uma “mulher viril”, amor entre pessoas do
mesmo sexo. Assim, tendemos a acreditar que há nelas algo como um ‘erro’, no sentido tradi-
cionalmente filosófico, de “uma maneira de fazer não adequada à realidade”. 163
A tática utilizada em 1950 pelos opositores de Argemiro obteve, portanto, seu efeito,
inclusive para além daquele contexto histórico, denunciando o “erro”, a “inadequação” daque-
le projeto político que se associava a uma imagem ambígua. Ainda que apresentada como um
hino de louvor ao caráter masculino que se pretendia dominante no Estado, o que respingava
nas mulheres, “abria-se” também a outras possibilidades, pautadas nos sentidos atribuídos aos
lugares e identidades de gênero, que desestabilizam os lugares de verdade da política.
Desde ser uma ofensa à feminilidade das mulheres da terra a, numa outra astúcia, vol-
tar-se contra si, tornando-se uma ameaça aos tais atributos masculinos da Paraíba e, por con-
seguinte, dos seus homens, a música vai mostrando a sua versatilidade, tanto quanto a plurali-
dade de sentidos que cabe à imagem da “mulher-macho”. Parte desta versatilidade venho a-
pontando, quer na (re)apropriação do filme nomeado com a frase que “salta” do baião nos
anos 1980, quer nas várias elaborações para a “mulher-macho” como referência de identidade
de gênero do Nordeste.
Contudo, analisando as condições que marcaram o aparecimento desta “canção-
síntese”, vejo ser necessário explorar um pouco mais as reentrâncias que permitem-na ser uma
ode à masculinidade da região, servindo-se dos signos inscritos na pele daqueles que encarna-
vam em 1950 a identidade viril e aguerrida da Paraíba para, astuciosamente, fazer com que
percorramos as tessituras de uma produção discursiva que tem insistido numa corporeidade
masculina para o Estado, participando de uma construção identitária baseada na honra, na
virilidade e no ideário de uma “revolução”.
163
FOUCAULT, Michel. O Verdadeiro Sexo. In: ______. Ética, Sexualidade, Política.. Manoel Barros da Silva
(Org.). Tradução Inês Autran D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2004. v. V (Coleção Ditos &
Escritos). p. 82-91.
130
3.2 “Êita Pau, Pereira” ou “com quantos paus se faz uma guerra”
Como venho enfatizando, o baião Paraíba “brinca” superpondo signos de épocas dis-
tintas, mas que conservam suas aproximações — 1930/1950, aproveitando inclusive as coin-
cidências dos homônimos “Pereira” e suas representações políticas. Encontram-se aí também
imbricadas as questões de gênero.
José Pereira Lira, o candidato a senador, chefe da casa civil, conhecido pelos seus re-
quintes de homem de sociedade, tem por ironia um apelido que remete a um sentido fálico —
“cachimbão”. Sendo convenientemente combatido por seus adversários políticos pela lem-
brança de sua atuação como Chefe de Polícia no Rio de Janeiro em 1946, quando fora acusa-
do de mandar metralhar operários que reivindicavam melhoria salarial, 164 e apoiado por Ar-
gemiro de Figueiredo, não torna difícil o “joguete” de signos que o fazem esvaecer para dar
lugar ao outro Pereira na polêmica canção.
José Pereira Lima, o coronel da Revolta de Princesa, também tem seu retrato de me-
mória traçado por signos fálicos, que o fazem cintilar em seu contexto como nome de honra e
valentia para alguns grupos, assim como facilmente se relaciona a ele uma série de mandos e
desmandos que resultaram em conflitos armados, marcando um dos momentos de maior vio-
lência no Estado. 165 Ora, a própria configuração do lugar da autoridade de coronel, uma vari-
ante ainda muito viva do poder patriarcal, contribui para a idéia de poder, assim como para a
concepção de Estado, como esferas de atuação próprias do masculino e das qualificações que
culturalmente o constituem.
Ao masculino caberia o zelo pela honra, que por sua vez atrela-se constantemente à
exibição e preservação de seu caráter viril, uma qualidade que facilmente se imputa inclusive
à terra que este poder nomeia como seu domínio, assim como ao corpo das mulheres. Honra,
como se sabe, era um valor moral em grande evidência naquele contexto, e, em nome dela,
muito se justificava, tanto a vida quanto a morte, a sua e a dos outros. Ela será freqüentemente
evocada pelos líderes envolvidos nos conflitos de 1930, recebendo nuances diferenciadas
164
Críticas também exploradas nos “foguetes” espalhados pela Coligação Paraibana, um deles fechando com a
frase: “ Paraibanos, deve-se chamar com esse homem, o Carniceiro Humano. Deus nos defenda dessa fera”. In
SYLVESTRE, op.cit., p. 195.
165
A Revolta de Princesa veio representar o auge de uma dissidência no interior do Partido Republicano (PR),
dividido numa área conservadora e numa outra liberal, que então se afinava com o projeto político reformador do
presidente de Estado, João Pessoa. Este, empreendendo uma campanha contra aqueles que “protegiam cangacei-
ros”, e medidas como a de uma reforma tributária, que pretendia evitar o escoamento e entrada de mercadorias
pelos estados vizinhos, angariou a antipatia de coronéis como José Pereira. Por sua vez, o coronel, sentindo seu
poderio afrontado, declarou a autonomia do município sob seu comando, Princesa, do restante da Paraíba, o que
repercutiu em violenta guerra civil, em março de 1930. Ver RODRIGUES, Inês Caminha L. A Revolta de Prin-
cesa: uma contribuição ao estudo do mandonismo local. Paraíba (1930). João Pessoa: A União, 1978.
131
166
CAULFIELD, Sueann. Em Defesa da Honra: Moralidade, Modernidade e Nação no Rio de Janeiro. (1918-
1940). Tradução Elizabeth de Avelar S. Martins. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000. p. 86.
132
167
INOJOSA, Joaquim. República de Princesa (José Pereira X João Pessoa - 1930). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira; Brasília: INL, 1980. p. 115-118.
168
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. Nordestino: Uma invenção do falo – Uma história do gênero mas-
culino (Nordeste – 1920/1940). Maceió: Edições Catavento, 2003. p. 208. (grifo meu)
133
A marcha-canção, assim como o baião, também enaltece e evoca esses predicados que
vão traçando a imagem de José Pereira, porém esta não se cola totalmente a dos tipos popula-
res, pois não é um inculto, é um coronel que teve acesso aos estudos, que experimentou ven-
tos cosmopolitas e que assumiu na sua rota de comando um papel de intermediador entre os
interesses do seu sertão, Princesa e adjacências, e dos núcleos mais urbanizados de Pernam-
buco e da Paraíba. Notadamente de Pernambuco, com quem mantinha relações econômicas
mais estreitas e que estarão no centro das discórdias que serviram de justificativa para a sedi-
ção que ele liderou. 169 Logo, outros elementos entram nesta composição, sem, entretanto dis-
tanciar-se destes traços.
Um dos retratos mais pungentes e também mais generosos do coronel está no livro de
Joaquim Inojosa, República de Princesa (José Pereira X João Pessoa- 1930), que vem de-
marcar um lócus de resistência à memória heróica de João Pessoa, sintetizando os olhares
daqueles favoráveis aos interesses do Partido Republicano Conservador (PRC) em 1930 e de
seus herdeiros ao longo das décadas. 170
Joaquim Inojosa situa as origens patriarcais do poderio de Zé Pereira, lembrando que
sua família dominava aquele território desde fins do século XIX e que este recebera o legado
— “os bens e o cetro do comando” — do seu pai, Marcolino Pereira, quando da sua morte em
1905.
Poder que o coronel consolidaria em 1915, garantindo a vitória de Epitácio Pessoa no
município e regiões próximas, com este, selando uma união marcada por interesses políticos e
afinidades pessoais, que o fariam “porta-voz do epitacismo dominante, o amigo número um
de Epitácio Pessoa na Paraíba por 15 anos seguidos”. Relação que o autor compreende ter
entrado em colapso no momento em que Epitácio nomeou o sobrinho, João Pessoa Cavalcanti
de Albuquerque, para presidente de Estado, uma vez que este “apressou-se em hostilizar José
169
Uma das principais ofensivas fiscais de João Pessoa foi enfrentar a questão da dependência econômica do
Estado em relação a Pernambuco. Para tanto, adotou uma nova tabela para os impostos de exportação, numa
política de proteção tarifária aos produtos da Paraíba, e adiante, das importações. Os grupos comerciais de Per-
nambuco, espalhados sertão adentro, logo se ressentiram, entre os quais o grupo dos primos do governador, os
Pessoa de Queiroz, com quem João Pessoa já tinha muitas desavenças, e que então passaou a criticá-lo e articular
maneiras de desautorizar aquelas medidas. Pereira, que negociava diretamente com Pernambuco e com os Pessoa
de Queiroz, sentiu de imediato o impacto dessas medidas sobre a economia do seu município, que refletia, claro,
a sua própria. Sobre a guerra tributária ver LEWIN, Linda. Política e Parentela na Paraíba: um estudo de caso
da oligarquia de base familiar. Tradução André Villalobos. Rio de Janeiro: Record,1993. p. 326-348.
170
Nascido em Pernambuco, Joaquim Inojosa, além de advogado, fez uma notável carreira como jornalista entre
o Recife e o Rio de Janeiro, destacando-se pela publicação, em 1923, da revista Mauricéia, de propaganda mo-
dernista. Escreveu diversos livros, entre os quais Tentames, Diário de um turista apressado, volumes sobre O
Movimento Modernista em Pernambuco. Inojosa era então genro de João Pessoa de Queiroz, que era primo de
José Pereira. Queiroz, por sua vez, era proprietário do Jornal do Commercio em Pernambuco, e embora primo de
João Pessoa, afigurava-se então como um dos seus mais ferrenhos adversários. Para alguns, fora ele o financia-
dor da Revolta de Princesa. Inojosa dedica República de Princesa à sua memória.
134
Pereira, sem muito pensar nas conseqüências morais ou políticas dos seus atos”. 171
Na passagem abaixo Inojosa traça um perfil para José Pereira, onde se lê algumas das
marcas que se repetem ao longo do livro, como forma de defender o coronel das críticas fer-
renhas dos adversários, para quem Pereira representava o atraso, o banditismo, a ignorância,
isto, em contraponto à imagem de João Pessoa (ver anexos F e G):
171
De acordo com Linda Lewin, Epitácio Pessoa que estivera, desde 1923, um tanto afastado da direção pessoal
da oligarquia da Paraíba, em função das suas viagens ao exterior no posto do Tribunal Internacional Permanente
de Justiça, “deve ter concluído que, com João Pessoa no governo do estado, poderia reter um controle mais segu-
ro sobre o escalão de liderança da oligarquia, controle que, ao mesmo tempo, seria administrado diretamente em
favor de seu grupo de base familiar.” Mas a indicação de João Pessoa abriu de vez um racha no interior da famí-
lia, acirrando a rivalidade entre os sobrinhos de Epitácio, em especial os do grupo Pessoa de Queiroz, que havi-
am se firmado em Recife como prósperos comerciantes. LEWIN, Linda. op.cit., p. 324-25.
172
INOJOSA, op. cit., p. 12.
173
Inojosa, sendo então genro de João Pessoa de Queiroz, foi decerto uma peça estratégica colocada por este
para apoiar e dar visibilidade aos interesses da Revolta de Princesa, que repercutiam nos seus próprios interesses
econômicos e políticos. Tanto que o livro para contar a “outra versão” daqueles acontecimentos, contrária a
oficial, fora um incentivo de Pessoa de Queiroz, que Inojosa toma como “dever de memória” e espécie de home-
nagem.
135
Um perfil de coronel assim comungava com as necessidades que então sentiam as oli-
garquias rurais sertanejas, pressionadas pelas mudanças advindas com a República e os ventos
de modernização que afetavam as relações produtivas (ver anexo G). Um mundo em declínio
era o que Zé Pereira representava, mas pelos discursos que o perfilam, nele, resistiam quali-
dades que deveriam permanecer vigorosas, associadas a uma adaptação aos novos tempos,
que serviam para manter a legitimação do seu poder, centralizado e personificado.
Como enfatizado no capítulo anterior, os anos 1920 e 1930 foram marcados por toda
uma série de práticas discursivas e não-discursivas que constituíram a idéia de Nordeste e
tipificaram o nordestino. Para este concorreu principalmente a imagem atribuída ao sertanejo,
de resistente “por natureza” — um ser que “brota” como extensão das próprias características
de clima, vegetação e do solo da região. 175 As lideranças nordestinas deveriam, pois, se apro-
priar dessas características para resistir às exigências da modernidade — em verdade, adaptar-
se a elas, mas sem vergar, sem amolecer.
Assim, um projeto se configura junto às elites, materializando-se através de uma pro-
dução intelectual que defende para os sertanejos incultos e pobres os benefícios da civilização
— a urbanização, a higiene, educação e novos códigos de sociabilidade . Ao passo que devem
intensificar nas suas lideranças os caracteres sertanejos que faziam destes “acima de tudo,
uma reserva de virilidade, macheza, bravura, capacidade de luta e enfrentamento, de energia
para as batalhas que o espaço regional parecia carecer”; afinal “o sertanejo era um valente, um
brigão, em defesa da honra e do bem...” 176
Na Paraíba, a obra do próprio José Américo de Almeida participa deste projeto. Em A
Paraíba e seus problemas, por exemplo, editado pela primeira vez em 1923, ele traça e confe-
re uma visibilidade ao tipo sertanejo, entre aqueles que acredita formar o homem paraibano,
bem como procura, contrapondo-se à idéia até então corrente de que “o individuo é produto
do meio”, defender que “a natureza não pode ser mudada em linhas gerais, mas pode ser mo-
174
ALMEIDA, José Américo de. O Ano do Nego: memórias. João Pessoa: A União Cia. Editora, 1978. p. 34.
175
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN, Massanga-
na; São Paulo: Cortez, 1999.
176
Idem. Nordestino: Uma invenção do falo – Uma história do gênero masculino (Nordeste – 1920/1940). Ma-
ceió: Edições Catavento, 2003. p. 210.
136
dificada”, e aí residiria o “nosso problema”. A seca, figurando no centro dessas questões, seria
um fenômeno passível, senão de conjurar, mas “neutralizar”, com técnicas e obras que possi-
bilitariam os ventos do progresso alcançar o sertão. 177
Um projeto que opera num trânsito entre a tradição e a modernidade, e que se configu-
ra num tabuleiro de peças políticas, que naquele momento pareciam se movimentar com
grande agilidade. A ascensão política do grupo Pessoa na Paraíba — tendo à frente Epitácio
Pessoa que chegara à presidência do país (1919-1922), parece, pois, materializar este projeto,
e num primeiro momento passa a consolidá-lo, como lembrou Inojosa, com o apoio indispen-
sável de um coronel, o que, decerto, em algum momento, em detrimento da crescente oposi-
ção ao mundo que este representava, teria a fragilidade desse pacto, exposta.
Na continuidade da passagem acima referida do livro O Ano do Nego, os indícios des-
se rompimento aparecem na narrativa de Américo sobre José Pereira:
Assim, mesmo não sendo um tipo popular, as qualidades tipificadoras do sertanejo re-
cebem cores francas nos traços que perfilam o coronel de Princesa. Voltando inclusive A Pa-
raíba e seus problemas, observam-se as ressonâncias com o que ali escrevera José Américo
sobre o sertanejo, alguns anos antes do acontecimento acima vivenciado:
177
ALMEIDA, José Américo de. A Paraíba e seus problemas. 3ª ed. revista. João Pessoa: A União Cia. Edito-
ra, 1980. p.53.
178
Idem. O Ano do Nego: memórias. João Pessoa: A União – Cia Editora, 1978. p. 34.
137
Ora, não fica difícil no entrecruzamento destes textos imaginar o “simpático” Zé Pe-
reira, tendo sua honra de chefe ofendida, bem como seu poder de proprietário ameaçado, em-
palidecer de raiva dentro de um “círculo de fogo”. Como também vemos os demais qualifica-
tivos enaltecidos por José Américo aparecerem adiante nas produções discursivas que cons-
troem para o coronel uma identidade do típico sertanejo. Qualificativos que, entretanto, tam-
bém estarão presentes nas imagens que se opõem ao “caudilho”, como a de João Pessoa e,
claro, a do próprio escritor de A Paraíba e seus problemas.
É, portanto, neste fluxo de agenciamentos da imagem do sertanejo colada a Zé Pereira,
que ele será inscrito na seara dos “cabras-macho”. Pode-se perceber claramente isso, por e-
xemplo, no texto para gravar um “disco dialogado”, A “estralada” de Princesa — que Joa-
quim Inojosa também recebe de Austro-Costa. Uma “xaropada” como eles qualificam, em
que dois sertanejos conversam sobre os acontecimentos em Princesa — uma peça de propa-
ganda dos ideais revoltosos, convertida numa ode aos brios, valentia e virilidade de José Pe-
reira, que merece especial atenção:
179
ALMEIDA, José Américo de. A Paraíba e seus problemas. 3ª ed. revista. João Pessoa: A União Cia. Edito-
ra, 1980. p. 547-50.
138
As guerras cumprem, como rito, a função de dar acesso a muitos afetos exis-
tentes na identidade dos homens e que só podem se expressar sob a estética
da violência. Como nos lembra Ariés, não foi o individualismo que triunfou,
foi a família, que gera, incita e produz uma mentira que os homens ouvem
desde cedo, transformando-se assim em verdade: “vocês são os melhores.”
Conseqüentemente, nas guerras essa crença será testada e só resta aos ho-
mens uma possibilidade: ganhar. 181
para definir a função paterna e materna, sendo o pai o lócus detentor do poder, o representante
da lei — possuidor do cajado de força, o ‘órgão erétil’, que simboliza o lugar do gozo.
Teorização que muitas críticas recebe das feministas, por estabelecer o masculino co-
mo unidade definidora das diferenças de sexo e libido, mas que ainda assim tornou-se valiosa
nas discussões dos estudos de gênero nas últimas décadas. Posto que, enquanto tomado como
significação, operando no terreno da linguagem, a apropriação do falo permite aos sujeitos se
inscreverem em lugares opostos àqueles demarcados por suas anatomias. O que, portanto,
instaura e difunde a possibilidade de não haver correspondência entre gênero e sexo. Questão
importante, inclusive, para compreender então a convivência com imagens identitárias híbri-
das, que, denunciando a ausência de conceitos mais apropriados e/ou abrangentes, são nome-
adas freqüentemente como “homem masculino” ou “homem feminino”, bem como “mulher
183
feminina” ou “mulher masculina”, conforme inscritos em muitas das fontes que subsidiam
este trabalho. 184
Tais pressupostos teóricos ressoam na construção do conceito de patriarcalismo, como
apresentado nos estudos de Gilberto Freyre, que emerge em oposição a uma ameaça de femi-
nização social, percebida intensamente no Norte do Brasil na transição entre os séculos XIX e
XX. Analisando-o, Durval Muniz atenta que, a despeito do que uma vasta historiografia que
lida com relações de gênero tende a perceber, o patriarcalismo da obra freyriana, fértil para
compreender o período aqui demarcado, presente também na fala de muitos tradicionalistas
do início do século passado, mais que um conceito rigoroso, é uma metáfora que ajuda a des-
crever um período. Imagem que se relaciona com o universo masculino — com o comando, o
domínio, as relações de proteção, que são então considerados como o papel dos homens, defi-
nidos em relações de base familiar, em especial dos homens da elite, que deveriam reagir ante
as ameaças de desordenamento social, enfraquecimento político e declínio econômico. Con-
ceito que teria emergido não apenas como ferramenta de descrição do passado, “mas para agir
de forma reativa em relação às várias mutações do presente”. 185
José Pereira simboliza bem a incorporação desta metáfora. Assim, para angariar sua
183
Ver MACHADO, op. cit. e NOLASCO, op.cit.
184
Elizabeth Badinter atenta que a teoria do patriarcado eterno, na base do pensamento lacaniano, para justificar
o poder do falo está atualmente caduca: “o poder dos homens sobre as mulheres, definidas como objetos de tro-
ca, parece-nos pertencer a outro mundo”. Embora sem discordar completamente da autora, como uma teoria que
tem suas demarcações históricas, penso que as referências lacanianas demonstram uma funcionalidade pertinente
para o período que aqui me reporto e para os sujeitos que nele se constituem. Ver BADINTER, Elisabeth. XY:
Sobre a Identidade Masculina. Tradução Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1993. p.
140.
185
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. Nordestino: Uma invenção do falo – Uma história do gênero mas-
culino (Nordeste – 1920/1940). Maceió: Edições Catavento, 2003. p.146.
140
Princesa não acolhe cangaceiros. Os que aqui vivem são homens laborio-
sos, amigos dedicados que nesta hora de perigo comum comigo se solidari-
zam para a defesa de nossas vidas e dos nossos haveres. Princesa resistirá
defendendo os seus direitos e a sua autonomia. Poderá ser vencida, mas o-
ferecerá ao país o espetáculo de uma população que se defende contra o
próprio massacre, de uma população que enfrentará resoluta os fuzis
assassinos do governo, mas não se há de render às investidas de um ta-
rado. [...] Resistindo a tamanha ofensa à consciência republicana, é que
Princesa só, desarmada, em face do aparelhamento bélico do governo, dis-
tanciada dos centros populosos da nação, protesta e não se rende, nem se
deixará massacrar, senão quando esgotada a resistência que os meios materi-
ais lhe permitirem, dentro de sua coragem, que é a coragem lendária dos
homens do sertão. [...] A Paraíba neste momento está retrocedendo cinqüenta
anos de sua vida constitucional. Mas, para que as crônicas de amanhã não a
descrevam como flagelada pela covardia e submissão oprobriosas de seus fi-
lhos, Princesa quer dar-se em holocausto à honra e à dignidade do seu
passado e o seu sangue derramado imprimirá na fronte desse tiranete de
fancaria a marca impagável de sua atrocidade, da mentira de um libera-
lismo de última hora, proclamado para os néscios que lhe desconhecem
os negros antecedentes. Perante os homens do meu país declaro que eu,
como a população do meu município, que me assiste resignada a todos os
sacrifícios, nada queremos, a não ser o direito de viver, de exercitar a nossa
atividade social, econômica e política, como partícula da unidade nacional.
Registre-se, portanto, esta afirmação: Princesa poderá ser massacrada, mas
não há de se render. 186
Diante de tantas marcas não há como não ver em Princesa os signos de um feminino
que, em nome dos “seus filhos”, resiste às investidas daquele que age como um “tarado”(!),
ameaçando sua honra, a sua autonomia. Mas é um feminino que possui a “coragem lendária
186
PEREIRA apud INOJOSA, Joaquim. República de Princesa (José Pereira X João Pessoa - 1930). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1980. p. 133. (grifos meus).
142
dos homens do sertão”, que mesmo sob massacre irá às últimas conseqüências, dando-se “ho-
locausto” em nome da honra e do passado — ou seja, da tradição — que representa. Uma i-
magem contundente, que carrega o apelo mítico do amor materno e ainda da virgem sacrifici-
al. O discurso funcionando como a operação ritualística que possibilita acessar e entrecruzar
todos esses signos.
O defensor de Princesa, que aí também se coloca como o de toda a Paraíba, fala para
os homens da nação e com eles procura estabelecer uma identidade, um reconhecimento. Joa-
quim Inojosa diz, entretanto, ter este movimento que o manifesto procura justificar, um tom
de despedida; com ele criava “José Pereira a imagem do novo caudilho, talvez o último da
república brasileira, pois a Revolução de 30, a que o seu movimento, em grande parte dera
causa, erradicaria as raízes de sobrevivência da instituição nacional”. 187
Inojosa pensa o confronto como sendo o embate entre dois caudilhos: José Pereira (44
anos) versus João Pessoa (52 anos). Dois caudilhos, decerto, e também ícones de um modelo
de masculinidade que se cruzam em vários pontos, ora convergindo, ora tencionando, inclusi-
ve nos afetos que provocam junto àqueles que com eles se identificam.
Imagens de homens detentores de poder, que prezam a centralização e o domínio. A
princípio, partes de um mesmo projeto político, peças acionadas pela estratégia de um mesmo
jogador — Epitácio Pessoa, mas que surpreendem, dão saltos e mudam as configurações do
jogo, fazendo esvaecer a autoridade deste sobre o tabuleiro. Um, decerto, por ocupar um lugar
de tradição que não o permitia, mesmo anunciada a crise, ser todo o tempo apenas uma peça,
uma vez que se acostumara a ser o jogador por excelência; outro, representando a outra face
daquele projeto, aquela mais modernizadora, liberal, não encontraria, contudo, um caminho
aberto para suas pretensões e logo ocuparia na mesa seu lugar de estrategista, favorecido pelo
cargo político que ocupava. Um tendo sua imagem construída em contraponto a do outro.
Entre as coisas consideradas mais vis que disseram em sua guerra verbal, um chamou ao outro
de “cangaceiro”, no que depois ouviu em revanche o epíteto de “tarado” — estratégias discur-
sivas de atingir a honra, de ferir aquilo que de perto se confundia com ela, sobremodo, suas
imagens de homem. Acusando-se reciprocamente de doença orgânica ou moral, e cada vez
mais estas se apresentavam todas no campo da moralidade, os predicados conjugavam-se pe-
las regras e valores em evidência naquele momento, como os discursos e práticas eugenistas e
higienistas que então vigoravam, embasando a concepção de uma raça mais pura, legítima e
saudável. Projetos de sanidade e disciplina que pesavam sobre os corpos dos indivíduos e que
187
Ibidem, p.131.
143
188
Ver a respeito COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
144
bravia, ao mesmo tempo máscula e feminina, que o baião de Gonzaga e Teixeira veio atuali-
zar.
Estes elementos saltam da construção de uma memória tornada história, passando ela
mesma a ocupar o lugar dos jogadores/lutadores, como é perceptível nas vozes aqui chamadas
a narrar tais episódios. 189 Mas é também uma memória que se configura num fluxo de afetos
intensos, em especial daqueles que podem ser nomeados como ressentimentos. 190 Vejo então
esta produção como escrituras que ruminam e dão lugar aos sentimentos de melancolia, ódio,
saudosismo, de desejos de vingança que aparecem sempre nomeados, seja de um lado ou ou-
tro, como desejos de justiça. A história, o grande tribunal, cuja sentença já tem um a priore, a
verdade, da qual a memória será não apenas o testemunho, mas também, em muitos momen-
tos, a “prova”.
Assim, ao passo que tem-se nesta produção declarado o “dever de memória”, concer-
nente, como nomeia Pierre Ansart, à memória dos fatos, das provas e sofrimentos suportados,
que são exortados a não serem esquecidos, tem-se também as inscrições afetivas de uma me-
mória de ressentimentos, que opera por esquecimento, rememorações, revisões e intensifica-
191
ções. Isso, como bem se pode analisar até hoje na produção constante de discursos que em
livros, monumentos, mídia, eventos, evidenciam uma profusão de sensibilidades, 192 finas, à
flor da pele, prestes a (re)acenderem fogueiras, a intensificar a dor no corpo de quem, de um
fora, ousa “bulir em caixa de maribondos”. 193 Passado que se espera, através da permanente
atualização da memória, ser (re)apresentado no presente, mas ser também condutor de refe-
rências da história deste presente. Memória que também se constitui como um lugar de gêne-
189
Pierre Nora afirma que na contemporaneidade tornou-se impossível distinguir claramente memória coletiva e
memória histórica, a primeira não podendo escapar dos procedimentos históricos: “Fala-se tanto de memória
precisamente porque ela não existe mais”, diz o autor, organizando uma classificação que dicotomiza memória e
história, sendo a primeira a “vida, a tradição vivida” e, a segunda, uma operação profana, uma representação
sistematizada do passado. NORA apud SEIXAS, Jacy A. Percursos de memórias em terras de história: proble-
máticas atuais. In: BRESCIANI, Stella. NAXARA, Márcia (Orgs.). Memória e (res)Sentimento. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2004. p. 37-58 passim.
190
Para Pierre Ansart, a memória dos ressentimentos comporta as mesmas incertezas que a sua história, afinal,
diz ele, a questão dos ressentimentos nos defronta com uma dificuldade permanente: a de restituir e explicar o
devir dos sentimentos individuais e coletivos. Pois, no caso dos ódios, por exemplo, não basta analisá-los, mas
também compreender o que não é proclamado. Daí salientar a importância de uma hipótese do papel do incons-
ciente na política. Tema neste momento trabalhado pelo pesquisador Dinarte Varela, em sua tese de doutorado
em Ciências Sociais, sobre a produção discursiva e o inconsciente político ligado aos eventos de 1930 na Paraí-
ba.
191
Ver ANSART, Pierre. História e Memória dos Ressentimentos. In: BRESCIANI, Stella. NAXARA, Márcia
(Orgs.). Memória e (res)Sentimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004. p. 15-36.
192
Para Dinarte Varela, a literatura apresenta-se como um dos campos mais abertos às dizibilidades dos afetos
não-ditos, excluídos das produções de memória histórica, oferecendo soluções criativas ao que se constituiu
como questão insolúvel para a historiografia. Ver BEZERRA, Dinarte Varela. O Romance Paraibano e Revo-
lução de 30: o discurso contra a ordem. Dissertação (Mestrado em Letras). João Pessoa, UFPB, 2002.
193
Expressão que, na imprensa da Paraíba, tornou-se representativa das tensões e desconfortos gerados sempre
que alguém, “um não autorizado para falar”, toca nestas questões.
145
ro, lugar de privilégios de uma memória que superlativa os valores significados como mascu-
linos, inscrevendo-os vigorosamente num projeto que passa a identificar o Estado, os homens
e as mulheres que nele vivem.
Entre os artífices da construção da memória de João Pessoa está Ademar Vidal, com
seu livro João Pessoa e a Revolução de 30, lançado em 1978, como uma síntese do Incrível
João Pessoa (1930), Do Grande Presidente (1931) e 1930: História de João Pessoa e da Re-
volução na Paraíba (1933). Tendo sido secretário no governo deste, Vidal confere a sua obra
uma aura testemunhal, perpetuada pelos que até hoje são devotos da imagem do ex-presidente
de Estado. 194 Procura então fazer uma biografia do governante, do nascimento e infância po-
bre à ascensão social e política, recorrendo às suas lembranças, depoimentos de contemporâ-
neos, imprensa e documentos oficiais.
Logo no início do livro é com o corpo de João Pessoa que nos deparamos, num “retra-
to” narrado que remete a uma das últimas imagens registradas do presidente, quando este po-
sou para uma fotografia no Recife, momentos antes do seu assassinato.
Fisicamente era João Pessoa de média estatura — porte marcial num metro e
sessenta e cinco, o busto bem plantado. Andando ou de pé, conservava de
ordinário as mãos para trás. Atraía a atenção pela simplicidade e pela energia
ríspida: expressão de força e finura ao mesmo tempo. Olhos escuros e fisca-
lizadores, viam tudo de uma vez. Boca bem rasgada. Moreno e sanguíneo.
Bigodes aparados. Fronte alta. Cabelos grisalhos, repartidos à esquerda e
com uma trunfa petulante. Qualquer coisa indicando rebeldia. 195
Vidal não apenas descreve a fisionomia de João Pessoa, mas vai agregando a esta va-
lores, significando os traços, fazendo o corpo “falar” (ver anexo F). Dizer, por exemplo, de
uma postura militarizada, “marcial” e fiscalizadora. Uma imagem austera, que parece alinha-
da, retilínea, mas que não deixa de possuir seu lado fugidio, rebelde. E segue dando conota-
ções ao comportamento do governante, jogando com nuances psicológicas, que muito ressoa-
ram na imagem que dele se cristalizou.
194
Ademar Vidal (1900-1986), advogado, assumiu as pastas de Justiça e Segurança no mandato de João Pessoa,
num desdobramento da secretaria a cargo de José Américo- este ficando a cargo do interior do estado. Também
homem de letras, fundou a revista A Novela, considerada uma precursora do movimento modernista no Nordeste,
além de inúmeras participações na imprensa nacional e internacional. Publicou muitos livros, entre ficção e me-
mórias, destacando-se os relacionados às personalidades envolvidas com os acontecimentos de 1930.
195
VIDAL, Ademar. João Pessoa e a Revolução de 30. Rio de Janeiro: Graal, 1978. (Coleção Depoimentos).
p. 11.
146
Adiante, por exemplo, como que, querendo desassociar o militar do belicoso, esvaecer
nele os traços da rigidez e acender certa aura que nomeia de “romântica”, narra o seu compor-
tamento quando caçava em Umbuzeiro, junto com um velho amigo. Embora demonstrasse
muito interesse pela caça, nunca acertava um só animal, sempre usando artimanhas para es-
pantá-los frente ao alvo do amigo — fazendo barulho, esvaziando os rifles ou ainda tomando
a frente e disparando na direção errada. O companheiro, contrariado, reclamava: — “Qual,
doutor, assim é impossível se caçar. Desde que caçamos juntos não matamos sequer uma la-
gartixa”. 196
Esse tom do homem manso, “romântico”, aparece nomeado em outras passagens, na
medida em que Vidal narra os primeiros feitos de João Pessoa, querendo ainda dar a noção de
como este foi se imbuindo do “espírito” de homem público, de administrador sagaz, fazendo
“uma revolução branca e azul nos fundamentos sociais e políticos do Estado”. Assim, con-
quistando sabiamente a confiança de “inimigos das primeiras horas”, que depois teriam se
tornado os “amigos mais exaltados”, desagradando “só os negociantes de Pernambuco, que
viram seus supostos direitos frustrados por decisão judiciária unânime do Supremo Tribunal
Federal”. 197
E continua destacando o quanto de dedicação ele fora capaz, trazendo as marcas de um
sofrimento que o acompanhava desde a infância, vindo “do berço marcado para a dor que ele
sabia disfarçar com um pouco de alegria no coração”. Ressaltar esta vida marcada pela dor
torna-se uma importante estratégia discursiva que liga o destino de João Pessoa ao da Paraíba,
dando ao governante o poder de despertar numa nova época a “rebeldia adormecida” que seria
uma marca histórica da região:
196
Ibidem, p. 23.
197
Ibidem, p. 41.
147
Então a dor, o combate freqüente, teria tecido a fibra de resistência da Paraíba. E, nos
momentos em que estes elementos se intensificavam, sendo postos à prova, um elemento mís-
tico, contudo “coerente”, ou seja, justificável ante tantos desafios e agruras, emergia.
Também por causa desse sofrimento experimentado com as cruentas batalhas, o “espí-
rito combativo” da Paraíba se reconhecia facilmente na resistência e nas experiências doloro-
sas de João Pessoa. Mais até, este vem “acordar” tal espírito, renovar as forças da “ancestrali-
dade”, para que o destino histórico se cumpra. Tão forte soa esta convergência, que de novo o
“traço místico” se estabelece, aparecendo para explicar o fervor, a devoção que, paradoxal-
mente, Vidal vê transformar-se num “resultado lógico”: o fazer-se do ídolo.
Contudo, abrindo as linhas que delineiam este “traço místico”, deparo-me com outras
questões que possibilitam pensar esta espécie de “carisma” descrita pelos memorialistas, que
se traduziam na força impressa na imagem do chefe político, mais ainda após sua morte, perfi-
lando-o no arquétipo do herói, másculo e potente. Ora, na aproximação construída entre a
terra e seu líder, as raízes sertanejas também são evocadas. Logo nos deparamos com muitos
dos elementos que funcionavam também na corporeidade de José Pereira, porém alcançando
outro efeito.
Pela dissociação com o cangaço e mesmo por se estabelecer como seu algoz, pela sua
postura “marcial”, emitindo signos másculos, mas que se flexibilizavam ante as cores humani-
tárias, românticas até, João Pessoa aparece, como que, representando o protótipo de uma nova
masculinidade, frente a uma crise experimentada não apenas na Paraíba. Mas qual protótipo?
O estudo de Elizabeth Badinter sobre a construção da identidade masculina no Ociden-
te contemporâneo localiza que entre o final do século XIX e as três primeiras décadas do sé-
culo XX, a figura emblemática do cowboy nos Estados Unidos, como “homem viril por exce-
lência”, emerge como reação a uma crise no modelo de masculinidade. Este, mais identificado
com um mundo predominantemente rural, com a consolidação dos ideais burgueses teria fica-
do ameaçado ante uma “feminização” da sociedade, sobretudo identificada como uma “euro-
peização da mulher americana”, que passara a ser sinônimo de efeminação da cultura e, por-
tanto, dos homens americanos. Uma espécie de reação contra-moderna reelabora tal modelo,
198
Ibidem, p. 42.
148
Mas aqui também se dá um corte que não permite a identificação total da imagem de
João Pessoa com esta reação. Que ele corresponde a ela, creio não haver dúvidas, mas há algo
mais em movimento, que produz algumas fissuras importantes, fazendo a diferença entre os
signos emitidos por ele e pelo coronel José Pereira, também representante deste modelo. É
como aquele “topete” em sua fronte, de que nos fala Ademar Vidal — o seu desalinho, embo-
ra seja contraditoriamente por onde ele mais se alinhe com os signos de um “novo tempo”.
Há que se lembrar que, embora favorecido pelas relações familiares, João Pessoa viera
de uma origem economicamente inferior, e isto o favoreceria na associação com o sertanejo
que supera as agruras e que, como já lembramos em José Américo, adapta-se rápido às novas
situações, também aprendendo rápido. Estudara por pouco tempo na Escola Militar da Praia
Vermelha, no Rio de Janeiro, ainda muito jovem. Em Recife, na Faculdade de Direito. Parte
numa rede familiar, e de sociabilidade de notável influência política no país, ele iniciou uma
ascendente carreira na justiça militar, que culminou com o exercício do cargo de Ministro do
Supremo Tribunal Militar, de 1920 a 1928, ano em que foi eleito presidente da Paraíba, aten-
dendo à indicação e convite de seu tio e benemérito, Epitácio Pessoa.
No seu discurso de posse como presidente de Estado, coloca em cena um embate entre
o Nordeste e o resto do país, criticando as soluções que lhe pareciam pouco apropriadas a re-
199
BADINTER, Elisabeth. XY: Sobre a Identidade Masculina. Tradução Maria Ignez Duque Estrada. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira,1993. p. 11-22 passim.
200
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Nordestino: Uma invenção do falo – Uma história do gênero mas-
culino (Nordeste – 1920/1940). Maceió: Edições Catavento, 2003. p. 232.
149
solver os problemas dos nordestinos, sobretudo no que dizia respeito a seca. É uma fala mar-
cada pelo contraponto entre o Nordeste e as demais regiões, defendendo, por exemplo, “que o
Nordeste possui a maior área aproveitável do mundo para a cultura de algodão; esquecem-se
de que nele se colhe o algodão que alimenta os milhões de fusos das fábricas brasileiras” e,
concordando com o discurso anteriormente proferido por José Américo, deduz que o Brasil
não conhece o Nordeste, “irmãos criados separados nunca se querem fraternalmente”. 201
Atrelado a esta idéia que conjuga um embate e um ressentimento, ele segue nomeando
o que considera os principais problemas da Paraíba, mas destaca o que chama de “a ordem
pública” e aí tece suas intenções de não “dar tréguas” ao cangaço, independente de onde este-
ja e de quem seja o seu “homiziador”. Esta ordem, entretanto, deveria também atingir a má-
quina de Estado, freando a vitaliciedade nas funções públicas, procurando conter o que chama
de “profissionalismo político”. Fala ainda da reforma da legislação eleitoral, colocando-se a
favor do voto secreto, mas lembrando que por si só ele não seria o “elixir infalível, capaz de
curar todas as moléstias do nosso organismo político”, o que o faz acreditar que a ele deve
anteceder o voto consciente e obrigatório, o que só seria possível com a instrução e o discer-
nimento dos eleitores, sabendo todos “realmente ler e escrever”.
Após falar do valor da democracia e da consciência política, João Pessoa lamenta que
tenha desaparecido o único jornal de oposição que ali existia, pois defende que um órgão as-
sim bem orientado tem a função de ser um “útil fiscal”, um colaborador. Por fim, declara que
“o palácio do governo é a casa do povo” e pede ajuda a este para governar: “colaborai comi-
go, meus conterrâneos. Se acertar, encorajai-me; se errar, criticai-me, mas não insulteis, para
que a crítica não perca seu valor corretivo. Criticai-me e ajudai-me para eu não errar de novo.
É assim que vos desejo, é assim que vos quero, povo da minha terra”. 202
Um discurso que produz impacto, sem dúvidas. A imagem do defensor da terra, das
raízes, está lá, na defesa do Nordeste. Mas ele não se coloca disposto a preservar certos ele-
mentos da tradição, como a ação dos “homiziadores”, ou a vitaliciedade de cargos políticos. E
há ainda todos aqueles signos que o perfilam num território do demos — para o povo, com o
povo. Um tom de humildade, de despretensão e, ao mesmo tempo, anunciando tantas “novas”
intenções, sem demonstrar receio das críticas. Um discurso pela centralização, ordem e disci-
plina que soa, entretanto, rebelde. Isto, em vista de um momento marcado por poderes parti-
cularistas dispersos, indisciplinados perante os ordenamentos legais do Estado, mas também,
201
Discurso de posse de João Pessoa reproduzido em VIDAL, Ademar. João Pessoa e a Revolução de 30. Rio
de Janeiro: Graal, 1978. (Coleção Depoimentos). p. 26-30; e em AGUIAR, Wellington. João Pessoa, o refor-
mador. João Pessoa, Idéia, 2005. p. 38-43.
202
PESSOA apud AGUIAR, op. cit., p. 43.
150
não esqueçamos, ameaçados por valores considerados “modernos”, que não podiam ser des-
prezados, mas que deveriam ser rigorosamente controlados. 203
O escritor Humberto de Campos, à época deputado federal pelo Maranhão, tendo apor-
tado em Cabedelo um dia após a posse de João Pessoa, narra suas impressões sobre o impacto
daquele discurso em seu livro Um sonho de pobre, a partir do que ouvira dos comerciantes da
capital e autoridades que vinham a bordo do navio em que ele se encontrava:
203
No seu extenso trabalho sobre política e parentela na Paraíba, Linda Lewin diz que “se fizermos vista grossa a
identidade política de João Pessoa como um oligarca familiar [...] é possível avaliar os seus 21 meses no cargo
como correspondendo a uma fase “proto-populista” na periodização histórica da Paraíba”, tendo introduzido aí
uma retórica nova e uma estratégia de mobilização política importante na definição de outros rumos para a polí-
tica local. LEWIN, Linda. Política e Parentela na Paraíba: um estudo de caso da oligarquia de base familiar.
Tradução André Villalobos. Rio de Janeiro: Record,1993. p. 329.
204
CAMPOS apud AGUIAR, op. cit., p. 45.
151
para a Paraíba. Pontes, praças, estradas, porto... o Estado, mais particularmente a Capital, ex-
perimentam a intensificação desta modelagem urbanizadora.
Lembrando que o sentido de honra, inclusive, passava então a ser agenciado também
pelas práticas eugenistas, higienizadoras, que evidenciaram nas três primeiras décadas do sé-
culo XX um esforço pela disciplina, ordenamento e embelezamento das grandes cidades bra-
sileiras, como forma também de definir os espaços sociais, assim garantindo mais proteção às
famílias de elite — o que se perceberá nas preocupações de João Pessoa, certamente influen-
ciado pelas viagens à Europa e pelos tantos anos vividos no Rio de Janeiro, cidade onde esses
traços se sobressaíam. 205
Pensemos também em como é rico para ilustrar esta imagem de um “novo estadista”
aquela passagem da caçada com que nos brinda Ademar Vidal: um homem que gosta de ca-
çar, que sabe carregar um rifle, mas que faz desta um outro jogo de estratégia, que não culmi-
na com a morte da caça, mas com a observação do alvo, com o drible. É um militar em sua
corporeidade, mas um militar-burocrata, que tem na escrita, nas operações contábeis e articu-
lações, seu “poder de fogo”. Executivo, não executor. Imagem que mistura austeridade a uma
aura romântica, que por sua vez produz uma empatia com o povo e, de modo particular e cu-
rioso, com as mulheres.
Aliás, faz-se necessário demarcar que é em torno da imagem dele, inclusive como par-
te da sua construção, que se legitima uma presença feminina em passeatas e homenagens, o
que muito concorrerá para esta simbiose lembrada pelo baião de uma “Paraíba masculina,
mulher-macho, sim senhor!”.
Joaquim Inojosa, por exemplo, ao tocar também no “traço místico” que envolveria
aqueles acontecimentos, recorre aos versos de um trovador da época, o cearence Lobo Manso,
que teria assim representado a “febre” que tomava conta da população no confronto entre os
seus ídolos, em especial manifestada pelas mulheres:
O povo da Paraíba
E do Rio Grande do Norte
Até muitos cearences
Nasceram com esta sorte:
De crerem no fanatismo
Inda lhe custando a morte.
205
Sobre como a família e a honra cartografam o cenário da belle époque, em especial “a construção da Cidade
Maravilhosa”, ver CAULFIELD , Sueann. Em Defesa da Honra: Moralidade, Modernidade e Nação no Rio de
Janeiro. (1918-1940). Tradução Elizabeth de Avelar S. Martins. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000.
p. 109-146.
152
É possível argumentar que a inspiração para tal imagem facilmente se recolhia nas
ruas da capital, nos momentos mais tensos dos embates contra os adversários e, principalmen-
te, a partir do confronto mais direto estabelecido com a Presidência da República, quando da
recusa em apoiar o candidato à sucessão de Washington Luís, Júlio Prestes. O emblemático
“Nego”, expressão que se consagra a partir do “veto” telegrafado ao Catete, veio firmá-lo
ainda mais no campo de oposição às lideranças perrepistas do Estado, bem como no alvo das
estratégias políticas da Aliança Liberal, que logo o convocou para a candidatura a vice-
presidência. 207
Acentuado seu traço de rebeldia, mas em nome da honra da “pequenina e boa Paraí-
ba”, 208 que estaria sendo desprezada no jogo político nacional, havia agora que lidar com o
embate mais aberto com a oposição, principalmente os sediciosos de Princesa, sofrendo ainda
as retaliações do Governo Federal. Este é um momento em que se evidenciam os elementos
contraditórios da experiência política e dos valores pessoais de João Pessoa, mas que conver-
gem para situá-lo cada vez mais no território da heroicidade.
Não demora e logo se registram as muitas manifestações de apoio, entre as quais uma
organizada pelas alunas da Escola Normal, a quem Ademar Vidal chama de “galantes meni-
nas”, que teriam ouvido do presidente as seguintes “palavras de fé”: “— Minhas gentis criatu-
rinhas: muito obrigado. Guardai o vosso entusiasmo, as vossas alegrias, o vosso fervor patrió-
tico para cantar com eles, no fim, o hino da nossa vitória”. 209
206
LOBO apud INOJOSA, op. cit., p.134-135.
207
Este episódio é considerado decisivo no rompimento entre o governo do estado e o governo federal, colocan-
do a Paraíba em evidência na correlação de forças nacionais no momento em que se agravava a crise da “política
do café-com-leite”. João Pessoa recusa o apoio seguindo as recomendações do tio Epitácio, passando a apoiar a
candidatura de Getúlio Vargas, com quem irá compor a chapa da Aliança Liberal. A expressão “nego” não figura
no telegrama, mas resulta de uma interpretação à atitude “rebelde” de João Pessoa, que José Américo acha ter
sido forjada em analogia ao “fico” de Dom Pedro I. ALMEIDA, José Américo de. O Ano do Nego: memórias.
João Pessoa: A União Cia. Editora, 1978. p. 16.
208
Ibidem. José Américo explica que a frase “A Paraíba pequenina e boa”, usada como uma expressão carinhosa
por Epitácio Pessoa em certa passagem, tornara-se muito em voga em jornais, discursos e conversas. Parafrase-
ando-a, quando saiu do gabinete de João Pessoa para telegrafar ao Catete às decisões do “nego", ao ser abordado
pelos curiosos, respondeu: “— Agora não se diz mais pequenina e boa: é Paraíba pequenina e doida”, no que
houve um regozijo geral.
209
Cf. VIDAL, Ademar. João Pessoa e a Revolução de 30. Rio de Janeiro: Graal, 1978. (Coleção Depoimen-
tos). p. 63.
153
Esta breve manifestação que soa como uma simples gentileza feminina, entretanto,
não será única, nem as demais tão pacíficas assim. Ante a intervenção do governo federal so-
bre o Estado e o impedimento de que o governo estadual se armasse o suficiente contra os
insurretos, um manifesto com cerca de quinze mil assinaturas dirige-se aos presidentes da
Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal, subscrevendo-se como a posição revolta-
da da “família paraibana”. 210 O apelo à idéia da ordem no estado refletia-se na ordem familiar
e, por este apelo, as mulheres tinham suas participações legitimadas. Porém, a maior visibili-
dade virá a posteriori, com a morte daquele que se converterá no símbolo deste ‘ordenamen-
to’.
Antes, memorialistas como José Américo e Ademar Vidal, referem-se às contribuições
dadas por populares, destacando-se mulheres e crianças, na que ficou conhecida como “Se-
mana da Bala” — proposta pelo jornal Correio da Manhã. Diz Vidal:
E ainda não deixa de registrar outros tipos de presentes e gentilezas femininas recebi-
das pelo presidente:
210
Esse documento recebeu 18.068 assinaturas; ver sua reprodução em: MARTINS, Eduardo. João Pessoa:
Através de suas mensagens presidenciais. João Pessoa: A União, 1978. p. 99-100
211
Ibidem, p. 201.
212
Ibidem, p. 283.
154
este cartão: “Mademoiselle. Bom dia. Não sei se teria prazer em conhecer o
assunto deste livro. Se, porém, ele não lhe interessa, pode devolvê-lo sem ce-
rimônia. Queira receber e apresentar os meus cumprimentos aos seus dignos
pais. João Pessoa. — Paraíba, 23-7-930.” 213
Aos modos cavalheirescos, vai se somando assim a João Pessoa o perfil de galante e
sedutor, sem, contudo, deixar de reiterar seu apreço e fidelidade para com a família que se
encontrava distante. Aí, o requinte de uma estética ao gosto da belle époque. Não bastassem
as insígnias de virilidade marcadas na postura militar, ainda o era magnânimo e, contudo, se-
não delicado, afeito a delicadezas. Um romântico, nas palavras de Vidal. Com traços assim,
uma figura irresistível vai se modelando aos códigos da época. 214 Para o herói, ao qual se im-
puta uma aura de beleza, um ideal maior e um lugar de luta reiterada ante uma tarefa hercúlea,
oferece-se o momento sacrificial. No caso de João Pessoa, todas as etapas da feitura heroici-
zante vão se cumprindo, tecidas passo a passo nas devotas narrativas dos seus correligionários
e admiradores.
Em boa parte das circunstâncias descritas em que se registra a presença de mulheres
nesses acontecimentos, esta é tratada em termos de lisonja, gentileza, sedução ou mesmo no
nível do risível. Por exemplo, numa referência à atitude que ficou conhecida como o “Nego”,
a Aliança Liberal, comemorando a vitória mineira, organizou no Rio de Janeiro, em outubro
de 1930, a passeata de um “Batalhão Feminino”, composto por “belas mulheres que traziam à
frente uma larga faixa com a palavra Nego, segura atrás por uma presilha”. A respeito, co-
menta Inojosa: “Parece pilhéria, mas o episódio realmente se verificou. (...)“Porém rapida-
mente dissolveu-se o arrogante batalhão, diante da gargalhada do carioca: “Nego na frente,
consinto atrás” (com o cinto atrás...)”. 215 Maneirismos jocosos e estratégias eficientes de
manter a imagem feminina presa ao referente sexual e, assim, desautorizá-la no terreno das
questões públicas, como vimos acontecer noutras situações.
Mas ora, há muito mais atrelado a este contexto que as possíveis virtudes sedutoras e
românticas atribuídas ao presidente, que interessavam ou, no mínimo, criavam empatia com
as mulheres. Não se deve esquecer que o discurso de tons liberais que delineiam o perfil de
João Pessoa e as causas por ele defendidas, mais se aproximavam daquelas causas que vinham
213
O livro em questão, segundo Vidal, encontrava-se à mesa de trabalho, na casa do presidente: L’assassinat dês
Grands-Duos, de Serge Smirnoff. Cf. VIDAL, op. cit., p. 291-92.
214
À figura que Vidal e outros ao longo da historiografia na Paraíba imputam tais características, que prevalece-
rão na feitura da imagem heróica, seus críticos pintam com outras qualidades. Inojosa, por exemplo, o descreve
como “homem violentíssimo e intratável, apaixonado e injusto”. Em seu livro, a historiadora americana Linda
Lewin também faz menção ao temperamento difícil do presidente, peculiar à sua família, que teria inspirado o
cônsul britânico em Recife a caracterizá-la como “um bando bem conhecido de cabeças quentes”. Cf. INOJO-
SA, op. cit. p. 80; LEWIN, op.cit., p. 327-28.
215
INOJOSA, op.cit., p. 245.
155
A mulher paraibana (bis)/ E com ela toda gente/ Idolatra João Pessoa(bis)/
Adora seu presidente. [...] Quem amar a Paraíba (bis)/ Estará com João Pes-
soa/ Para ver mais tarde a glória/ Da terra Pequenina e Boa. 217
216
Sobre esta participação ver, por exemplo a obra de Ademar Vidal aqui analisada. E ainda: CARVALHO,
Álvaro de. Nas Vésperas da Revolução e Memórias. 2ª ed. João Pessoa: Acauã, 1978; MACHADO, Charliton
José dos S. NUNES, Maria Lúcia da Silva. O Feminismo paraibano: Associação Paraibana pelo Progresso do
Feminino (APPF)- 1933. In: ______ (Orgs.). Gênero & Sexualidades: perspectivas em debate. João Pessoa:
Editora Universitária, UFPB, 2007. p. 193-208.
217
Extraído de CIPRIANO, Maria do Socorro. A Adúltera no território da infidelidade: Paraíba nas décadas
de 20 e 30 do século XX. Dissertação (Mestrado em História). Campinas, SP: Unicamp, 2001. p. 33.
218
VIDAL, Ademar. João Pessoa e a Revolução de 30. Rio de Janeiro: Graal, 1978. (Coleção Depoimentos).
p. 222-271.
156
Veja-se ainda que no seu livro Vidal narra os dois acontecimentos, um seguido ao ou-
tro, como forma de contrastar bem as imagens dos dois chefes. As marcas da justiça, da gene-
rosidade e autoridade vão sendo aprofundadas na pele do governante. Táticas que se reprodu-
zirão muitas vezes numa produção historiográfica que tomará para si o objetivo com a verda-
de de 1930, colocando-se como aquela que melhor representaria a identidade da Paraíba,
guerreira e heróica. Mas os signos até aqui arrolados não estavam completos, melhor dizendo,
a eles ainda iriam ser somadas todas as intensidades em torno do assassinato de João Pessoa,
em 26 de julho de 1930. Imagens contundentes que brilham nas operações escriturísticas que
vêm possibilitar, tantas vezes, a “ressurreição” do presidente.
De forma singular, é justamente com a comoção e revolta pela morte de João Pessoa
que se dará às mulheres maior visibilidade e dizibilidade naqueles acontecimentos, inspirando
versos como o do trovador Lobo Manso, antes citado. Como uma das primeiras reações, José
Américo de Almeida, narra em O Ano do Nego uma “guerra aos retratos”:
219
Ibidem, p. 221-223.
157
O espanto de Zé Américo diante da cena parece bem próprio para um cenário pouco
acostumado com este tipo de excitação feminina, ainda mais em se tratando de “meninas de
família”. Em nome desta imagem ele apela para que elas recuem, entretanto, o argumento ali
não produz efeito, a idéia da “seriedade” e “recato” feminino se mostra colado então a outros
ideais, que se querem explícitos, combativos. Ele segue narrando o encontro que media entre
a freira superiora da instituição e um grupo de representantes das jovens, das táticas que a
diretora procura usar para demovê-las do objetivo, sem, no entanto, obter sucesso. O retrato
acabou sendo entregue e “levado em passeata, em pleno dia”. 221
Uma guerra clara de imagens, que se converte numa “guerra de memória” em pelo
menos dois níveis. Aquele em que se procura materializar o contraste entre os sentidos atribu-
ídos às imagens de João Pessoa e seus adversários, intensificadas pela representação simbóli-
ca de uma vingança, que se não poderia literalmente atingir o corpo do inimigo, poderia se
satisfazer rasgando, queimando, sumindo com seus retratos. Outra, a do feminino recatado,
discreto e tímido, de quem não se esperava deixar afoguear-se pela paixão publicamente, ex-
pondo-se e oferecendo aquele tipo de resistência.
Aí também o conflito com o corpo fora do lugar. O que fazer se o infrator tratava-se de
jovens moçoilas e “de família”? —“o que eu não poderia fazer era mandar varrê-las do local.
Arrastadas pelos cabelos, como iria acontecer. Não tocaria nelas. Um gesto impensado pode-
ria provocar escândalos”, ponderava o então secretário de Segurança Pública. 222 Pior ainda se
a causa deste infrator lhe parecesse justa.
Mas José Américo também fez suas anotações sobre “os nervos esgotados” das que se
encontravam em campo oposto, estando, obviamente, bem menos protegidas. Relata, por
exemplo, que andava um grupo pela cidade gritando contra os “perrés”, no que “um tiro de
pistola partiu de uma janela. A mocinha, criatura frágil e educada, fez fogo, enfrentando a
turba que lhe insultava a família. Foi arrastada pelos cabelos até o meio da rua e machuca-
da”. 223 Neste caso, aqueles valores morais e evidentemente políticos que o impediram de “ar-
220
ALMEIDA, José Américo de. O Ano do Nego: memórias. João Pessoa: A União Cia. Editora, 1978. p. 191.
221
Ibidem.
222
Ibidem.
223
Ibid., p. 185.
158
rastar pelos cabelos” as normalistas exaltadas, sugerindo que era o que aconteceria se o pu-
desse fazer, facilmente se desenrolou neste outro episódio, num embate que mostra claramen-
te que o sentido de ser uma “menina de família” poderia ali, no meio dos ânimos acirrados,
desfazer-se, a depender da “família” à qual ela pertencesse.
José Américo de Almeida, contudo, não foi o único a registrar seu espanto e hesitação
diante das incontidas manifestações lideradas por mulheres em favor da imagem de João Pes-
soa. Creio ser Álvaro de Carvalho, o então vice-presidente que assume o governo após a tra-
gédia, quem melhor nos oferece a expressão de espanto diante de que ele mesmo adjetivou de
“um fenômeno curioso”. Depois mesmo de toda a movimentação em torno da mudança do
nome da capital, veio a “questão da bandeira”. 224
A ambos os projetos demonstrava Carvalho resistência, por, como ele diz, repugnar ao
seu “espírito conservador, ao amor com que sempre olhei as nossas coisas”, mudar símbolos
seculares, ainda que fazendo questão de creditar os méritos ao homenageado. Sem saída, aca-
tou à mudança do nome, mas logo viu acenar uma outra “bandeira”. Diz então que “pela boca
de uma senhorita falara o espírito de facção, pedindo meu apoio moral para um projeto de
bandeira que se preparava na Assembléia”, ao que tentou esvaziar de sentindo, respondendo
que, naquele momento, evocava as palavras que ouvira do presidente João Pessoa, alguns dias
antes da viagem a Recife, de restaurar a antiga bandeira, com algumas alterações, e apela
lembrando que “nela fora envolto o esquife do grande presidente”. Contudo, logo percebe que
o seu argumento produz um efeito diferente do esperado, diante de uma “Paraíba trepidante”:
Eis o “fenômeno curioso” que vai definindo cores e nuances diferenciadas àqueles
dias. Voltando às memórias de José Américo, a idéia de se estar presenciando algo extraordi-
224
CARVALHO, Álvaro de. Nas Vésperas da Revolução e Memórias. 2ª ed. João Pessoa: Acauã, 1978. p. 63-
71.
225
Ibidem, p.65. (grifo meu).
159
nário é reforçada:
226
ALMEIDA, José Américo de. O Ano do Nego: memórias. João Pessoa: A União Cia. Editora, 1978. p.182.
227
No Brasil, a primeira presença organizada de mulheres nas ruas em defesa de seus direitos pelo voto e educa-
ção é registrada em 1917, pelo centro da cidade do Rio de Janeiro, contando com cerca de 90 participantes. A
estratégia, pensada pelas fundadoras do Partido Republicano Feminino, Leolinda Daltro e Gilka Machado, era a
de dar publicidade às suas causas, justamente oferecendo um “espetáculo” para uma sociedade que tinha ainda as
ruas interditadas às mulheres. Ver PINTO, Céli Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003. p. 13-39.
228
MACHADO, Charliton José dos S. NUNES, Maria Lúcia da Silva. O Feminismo paraibano: Associação
Paraibana pelo Progresso do Feminino (APPF)- 1933. In: ______ (Orgs.) Gênero & Sexualidades: perspectivas
em debate. João Pessoa: Editora Universitária (UFPB), 2007. p. 193-208 passim.
160
Por isso, ser “mulher macho” e até efetivar ações no campo da política não
significaria efetivamente uma apropriação da virilidade, nem muito menos
sua transformação no gênero masculino, pois isso possibilitaria sua igualda-
de com o homem e a transposição de todas as fronteiras morais. Não era essa
a idéia que se tinha em mente. Dessa forma, a imagem da “mulher macho”
não poderia ser confundida com uma mulher sexualmente ativa, pois isso
causaria um desequilíbrio nas relações de gênero. 229
Portanto, é dentro mesmo do que parece um desordenamento à primeira vista, que ob-
serva-se as estratégias disciplinares estriarem os lugares praticados pelas mulheres. Através de
suas práticas, enaltecem-se os valores considerados como próprios do masculino, erigem-se
símbolos reificadores do modelo de gênero que se tornara o modelo de Estado. Deste movi-
mento, erguer-se-á a nova bandeira da Paraíba, desenhada em partes negra e vermelha, com a
expressão “Nego” ao centro.
O vermelho que se tornara então comum nas sacadas das casas, nos papéis e fitas que
229
CIPRIANO, op. cit., p. 35.
161
enrolavam as balas enviadas ao presidente, nos lenços com que tanto acenaram na passagem
do cortejo, nos pescoços dos soldados, então se “perpetuaria” como signo identitário de uma
“Paraíba trepidante”, que tinha na linha de combate, numa guerra contra os signos que passa-
ram a representar uma tradição que se queria vencida e punida, “senhoras, moças e meninas”.
Isso, associado ao luto do herói, o negro que salientava e alimentava no vermelho as nuances
da guerra, do sangue derramado. Sangue sacrificial, que deveria ser honrado com a memória,
dignificado nas vestes da guerreira Paraíba, assim impregnando-a de cores revolucionárias,
inclusive no corpo de suas mulheres.
“— João Pessoa morreu! Viva a Paraíba!” — registra Ademar Vidal como um dos
brados ouvidos durante o cortejo do corpo presidencial, atribuído a um mendigo que chora-
va. 230 Um grito que soa como um lugar comum às manifestações de luto e revolta, mas que
nomeia de forma simples e clara a representatividade que aquele momento vem alcançar na
tessitura de uma identidade guerreira para a Paraíba, que se expressa ainda na dor dos “exclu-
ídos”. 231
O cortejo do herói, tanto no sentido de fazê-lo a corte, quando pensamos em sua ima-
gem cavalheiresca, galante, quanto no de velar, vigiar seu corpo, é todo ele, em seus momen-
tos mais intensos, marcado por signos que remetem a uma saga de combate: discursos infla-
mados em nome da honra e do amor à terra, culto a um passado de combates e glórias, que
também se manifestam em armas, flores, vestes escuras, lenços vermelhos... Às cores da “re-
volução em branco e azul” referenciada por Vidal e que encontrava ilustração nas “gentis”
fardas das normalistas, sobrepõem-se essas outras, rubras, negras, como forma de assinalar
uma diferença, que os discursos apaixonados da memória vêem se traduzir num destino herói-
co.
Marcante neste sentido, agenciando várias imagens para formular a síntese deste pre-
tenso destino, é um discurso feito por Assis Chateaubriand, destacado por Vidal quando este
narrava os apoios recebidos ainda em vida por João Pessoa, dos populares, quando das ações
do Governo Federal de intervir no resultado das eleições de 1930:
230
VIDAL, Ademar. João Pessoa e a Revolução de 30. Rio de Janeiro: Graal, 1978. (Coleção Depoimentos).
p. 311
231
É uma produção de memória que investe nas dores de um ressentimento, pretendendo identificar, sob o mes-
mo luto, pessoas dos diversos grupos e classes sociais.
162
Num jogo de linguagem que aproxima espaços e temporalidades, semelhante até aos
recursos metafóricos que vemos no baião Paraíba, o jornalista cruza e costura eventos e per-
sonagens, tecendo uma “malha” resistente e de beleza heróica para o Estado e seus habitantes.
Presente que atualiza o passado, que o reinventa para dar sentido a uma história linear, suces-
siva. Haverá sempre os “Washington Luíses”, como figuras que encarnam a vilania, a obstru-
ção a um caminho de prosperidade e paz. Mas eles se mostram também necessários para a-
cender esta chama bravia, enérgica, que não se abate ante o “machado” inimigo. De novo, a
referência à vegetação resistente, de grande porte e de madeira dura, dando acabamento à cos-
tura das vestes guerreira: uma “aroeira do Nordeste”.
Esta aroeira encontrará ressonância na imagem da “queda do robusto carvalho, abatido
por um sicário armado pela malvadez do desumano Governo Federal”, 233 minuciosamente
narrada na voz melancólica de Ademar Vidal. Anotando como num diário os dias referentes à
morte e cortejo do corpo de João Pessoa, tendo deles participado, seu discurso se tornará um
indício testemunhal — junto ao de José Américo, sempre chamado a falar na produção histo-
riográfica sobre os eventos de 1930, muitas vezes apenas transcrito como “a prova”.
Seu relato soa-me semelhante a um roteiro cinematográfico, tão forte os apelos visu-
ais, que constrói, ali inscrevendo sua participação na tessitura dos signos que consubstancia-
rão o corpo do herói nas vestimentas guerreiras da Paraíba. Do momento em que a notícia
chega ao Palácio, na noite de 26 de julho de 1930, à manhã invernosa de 1º de agosto em que
o corpo é levado de navio para ser sepultado no Rio de Janeiro, um diário é escrito com cores
232
CHATEAUBRIAND apud VIDAL, op. cit., p. 215.
233
VIDAL, op. cit., p. 312.
163
pungentes. 234
Acompanhando cada dia, vêem-se os focos de incêndio pela cidade, os tiros, as dina-
mites embaladas em cordões e papéis encarnados — chamadas de liberais — estourando e/ou
sendo apreendidas, o pranto que ecoa nos quatro cantos da Paraíba, misturando-se aos “brados
de energia guerreira”.
Os presos soltos pela cidade clamam pela vingança: “—mataram nosso pai!”, os jo-
vens exaltados aclamando a revolução, populares e soldados invadindo casas e estabelecimen-
tos pertencentes aos rivais, agora tidos como criminosos; as janelas com suas bandeiras pretas
e retratos de João Pessoa cobertos de fitas. Diante de tantos estragos, quebradeiras, ruínas,
Ademar parece muitas vezes atônito, e nos registros do primeiro dia, chega a questionar: “Por
que tudo isso? João Pessoa tinha o “espírito de jardinagem”, isto é, o amor da medida e da
disciplina, aplicado à vida para fiscalizar a vida e amansar a natureza, compondo-a e embele-
zando-a.” 235
Mas a continuidade daquele espetáculo vai lhe sugerindo outras medidas de amor e de
beleza, que ele vai nomeando e descrevendo nas homenagens feitas pelo povo diante do ataú-
de do “ídolo inanimado”. Mulheres que “caem pesadamente, soltando rugidos lancinantes”,
“população elegante, população descalça” velando o “ídolo que tombou em plena luta”, mani-
festações envoltas em misticismo com romeiros que pegam as flores secas como relíquias —
“João Pessoa santificado pelo seu povo” —, corpos que enlaçam, choram, beijam e fazem
“ternurinhas” sobre o ataúde em demonstração de intimidade e carinho, vão como que alimen-
tando também a justificativa do desejo de vingança, que tanto se bradava, e do qual não se
refutará o próprio narrador, empalidecendo em suas palavras aquelas cores de “mansidão”:
234
VIDAL, op. cit., p. 306-318.
235
VIDAL, Ademar. João Pessoa e a Revolução de 30. Rio de Janeiro: Graal, 1978. (Coleção Depoimentos).
p. 307.
236
Ibidem, p. 314.
164
Morto nenhum, jamais, foi chorado tanto nesta parte do país. Pois ele, quem
afirmou a personalidade do paraibano com a virilidade e uma saúde que
a nacionalidade supunha estioladas desde as guerras de conquistas vio-
lentas. [...] Se o sofrimento purifica, o paraibano, depois desta refrega de
martírios, terá certamente a glória de ser o dono da mais perfeita e da mais
ressonante organização moral. [...] Quando se chora sempre se olha para o
chão. Mas noto que a multidão chora de cabeça erguida. Confusões, atrope-
los; nem hospício; discursos que não são ouvidos; berros histéricos; gargan-
tas engasgadas e, no espaço úmido, entra um grito rouco, comprido, trágico,
dando sinal para largar. “—Adeus, João Pessoa!” Aquele grito de máquina.
[...] O navio entra no canal lentamente. Faz a volta. Toma rumo. E o povo
segue o seu movimento ao longo das praias, sacudindo lenços e bandeiras
vermelhas. [...] O crime está consumado. O seu julgamento a história fa-
rá. Há de fazer, com implacável severidade para condenação irrecorrí-
vel dos seus Átilas. — Velaremos a obra de João Pessoa. Saberemos defen-
de-la. Seremos dignos dela. [...] O povo imortaliza o sacrifício de seu he-
rói. A morte de João Pessoa foi o alto preço dado pela honra da Paraí-
ba. 237
A honra que justifica o sangue derramado, que faz a morte cintilar, garantindo a perpetu-
idade da obra dos heróis. O sofrimento que purifica e fortalece os brios, a moralidade. O traço
de misticismo que confere ao ato humano, uma aura de extraordinário, fantástico. Elementos
estes, comuns na composição dos grandes épicos e que então, de forma pragmática, garantirá
à Aliança Liberal o mártir para suas causas. Ainda se discutirá bastante se, afinal, fora ou não
João Pessoa um revolucionário. E, claro, a questão que permanecerá em movimento garantirá
freqüentemente a atualização da memória relacionada a estes eventos e, em seu curso, os va-
lores aí imbricados.
Mas o que aqui interessa destacar é justo este apelo pela honra que se entrelaça com os
signos da virilidade, indispensáveis na composição do guerreiro. Tragados, entretanto, pela
imagem da terra que, ganhando uma identidade de gênero — em muitos discursos como a
mãe, a fêmea — pinta-se de vermelho e negro para o combate, ainda que seja uma vítima sa-
crificada diante das forças políticas no cenário nacional.
Já não se viu estes elementos antes? Os discursos dos “inimigos de João Pessoa” que
neste cortejo são convertidos em “inimigos da Paraíba” também os agenciaram inúmeras ve-
237
Ibidem, p. 314-318. (grifos meus).
165
zes. Eles se repetem, não são novos nem exclusivos. São moldáveis, relativos — mesmos re-
ferentes, mas sentidos múltiplos, variáveis — que não se preenchem ou se “encaixam” plena-
mente, apesar dos esforços de muitas narrativas.
E por causa desta multiplicidade é possível creditar outros sentidos à imagem de João
Pessoa, notadamente à da sua morte, observando em torno dela a intensificação de outras fa-
cetas da honra e do que em nome dela se espera que os homens façam. Conquanto, uma faceta
que conduz a um objetivo maior: garantir a masculinidade ou, melhor dizendo, a preservação
de um tipo de masculinidade que não se adquire apenas pelos atributos naturais que o desig-
nam “homem”, mas de fazer jus a tal desígnio, ir além, provar que é um “cabra macho”.
A morte de João Pessoa vem alterar de novo o “tabuleiro”, e outra peça se movimenta
para oferecer o contraste que garantirá as cores da heroicidade ao governante assassinado e,
no seu curso, a sua sagração como modelo de virilidade e honradez. Justamente, João Duarte
Dantas. Advogado, nascido em Mamanguape (PB), pertencente a uma família de proprietários
rurais que gozava de prestígio desde os tempos monárquicos, tinha 32 anos quando disparou à
queima-roupa contra o presidente da Paraíba, que se encontrava com amigos e partidários na
Confeitaria Glória, em Recife-PE.
Este episódio interessa aqui mais de perto não tanto pela sua repercussão política, sendo
considerado o “estopim para a revolução de 1930”, mas pelos sentidos que nele e dele reper-
cutem, que muito instigam, o olhar sobre a moralidade e os costumes de uma época, mais es-
pecificamente no que diz respeito às relações de gênero.
O assassinato de João Pessoa coloca em evidência toda uma discussão sobre honra e vi-
rilidade que aparece “colada” às estratégias de se designar as culpas e responsabilidades da
tragédia, o que dá ainda mais visibilidade aos modelos de masculinidade e feminilidade que
estarão vinculados ao projeto político que então tomava corpo no país.
Ora, além de “bandido”, “assassino”, “cesaricida”, “sicário”, que remontam mais dire-
tamente ao ato cometido naquela tarde que entrou para a história, João Dantas terá sua ima-
gem atrelada à de “tarado”, “pornográfico”, “degenerado” — toda uma série de adjetivos que
o desqualificam diante dos esforços que procuravam codificar uma sociedade sã, higiênica,
disciplinada sexual e moralmente.
Que práticas teriam possibilitado imprimir estas marcas, sulcá-las de modo tão intenso,
na pele do advogado que se dizia sem vícios, “um homem que não fuma, não bebe, não jo-
166
238
ga...”? Estas, ao que parecem, ganharam evidência a partir do momento em que ele adqui-
riu notoriedade como crítico do governo João Pessoa. Participando da guerra verbal que se
intensificava entre o presidente e José Pereira, chega a ficar no front, escrevendo uma série de
artigos intitulados Às voltas com um doido, onde questionava ações do governo de forma
combativa, pungente, ao tempo em que atacava João Pessoa chamando-o diretamente de
“doido”, “palhaço”, “ladrão”, defendendo-se assim de acusações semelhantes publicadas con-
tra ele no Jornal A União.
O estilo irônico da escrita de João Dantas já era conhecido, ainda que em tons mais
brandos e zombeteiros, dos leitores da coluna Risos e Frisos, de O Jornal, em que tornava
risíveis as atitudes e características de alguns homens públicos da época, decerto, ganhando
com isso a antipatia de alguns. Mas nunca parecera tão inconveniente e, diante do fato de es-
tar tratando da maior autoridade do Estado, tão ousado.
João Dantas sentia sua família prejudicada e desrespeitada pelas medidas do governo,
por aquilo que considerava abuso de poder e incompetência. Família que, sendo parte impor-
tante na base do Partido Republicano no interior do Estado, estava ao lado de José Pereira na
liderança de oposição ao governo, apoiando-o com homens, armas, munições e, claro, uma
intensa guerra verbal, contando para isso com o apoio de João Pessoa de Queiroz, primo e
inimigo ferrenho de João Pessoa, que colocava nas mãos deles uma poderosa arma: o Jornal
do Commercio, de Pernambuco. Foi aí que João Dantas publicou um mês antes do fatídico
encontro com seu opositor:
Nos sustos e tremeliques que te atormentam nas pungentes crises do teu me-
do, do teu terror de Princesa — dessa Princesa da tua insônia, que será o e-
terno pesadelo das tuas noites, dessa Princesa, reduto invicto da bravura ser-
taneja, da qual não ousam aproximar-se as tuas tropas e onde, entretanto, to-
do mundo passeia livremente — nessas maleitas de pânico que te afligem,
repito, tu supões que toda a gente tem os nervos relaxados como os teus e
queres que todos os teus inimigos sejam covardes. [...] Mais quais serão, Jo-
ca, os valentes que há mais de cem dias desbaratam em todos os recontros as
tímidas vanguardas do teu exército de três mil homens e desafiam a tua raiva
impotente? [...] Que gente sem valia é essa que, para a atacar, precisas pren-
der senhoras, como reféns, preparares carros blindados que não vingam ram-
pas e adquires aviões que não voam e logo no primeiro ensaio dão cabo do
piloto? [...] É tempo de ires pondo de lado esses arroubos de valentia de que
nunca deste mostras antes de te encarapitares nas imunidades de presidente.
Deixa-te disso, mesmo porque, para esses desabafos literários pela tua gaze-
ta, arvorada em pelourinho da reputação alheia, tu não tens fôlego. [...] Pes-
soas tidas no melhor conceito, altos funcionários federais, famílias das mais
ilustres e tradicionais do estado, todos, enfim, que incorrem no teu rancor,
238
João Dantas referindo-se a sua imagem em carta para Anayde Beiriz. Reproduzida em MELO, Fernando.
João Dantas: uma biografia. 2ª ed. João Pessoa: Idéia, 2002. p. 149.
167
são ali cobertos dos mais soezes baldões. No mais frívolo comentário do ór-
gão oficial do estado, posto a serviço dos teus desaforos, este é um infame,
aquele um biltre, aqueloutro um patife. Mas tu, que menosprezas a tal extre-
mo a dignidade alheia; tu, que atiras diariamente injúrias coletivas, visando
famílias inteiras; tu, que em linguagem de arrieiro, no calão mais reles, pas-
sas descomposturas mesmo a pessoas que não conheces, serás outra coisa
senão um biltre, um patife? De mim, dizes que sou um ‘aventureiro”, um
“celerado”, um ‘miserável”, um “bandido”... Não necessito defender-me de
injúrias tão vis, num meio onde sou conhecido e onde tenho conceito firma-
do que desafia a tua virulência. [...] Ladrão és tu, ostra de ministério, aristim
de repartições federais, no exercício infrene da tua desbragada advocacia
administrativa. [...] De onde te veio a tua grande fortuna? 239
Pode-se sentir claramente o nível de tensão e afetação das pessoas envolvidas no confli-
to naquele momento. As críticas que fazia a João Pessoa eram, pois, arranhões graves na ima-
gem limpa e austera que posteriormente livros como o de Ademar Vidal procuram perpetuar.
Falam-nos do desenrolar de um conflito que expressa as tênues fronteiras entre a honra da
vida pública e a da vida privada, que dentro de pouco tempo vêm se confundir ainda mais
com o episódio da invasão à casa de João Dantas, que figurará como “a gota d’água” para o
desenlace trágico daquela rivalidade.
Tal invasão, como tudo o mais que envolve os fatos relacionados aquele momento,
tem sido ao longo dos anos motivo de muitas controvérsias. Quem tomou a iniciativa? João
Pessoa sabia? Autorizou? E José Américo, teve participação? Mas a questão que mais reper-
cute em toda essa produção é: poderia João Dantas aceitar tal acinte sem revidar? E o que
dizer diante do fato de ter documentos pessoais apreendidos e publicados, além de correspon-
dência e anotações de fórum íntimo apropriadas por alheios? Sua honra, como insígnia da sua
virilidade, suportaria isso? Então, fora o crime cometido por ele uma vingança “para lavar a
honra com sangue”? E, sendo assim, há para ele um atenuante?
Encontrando-se em Olinda, sabe-se que João Dantas se preparava para ir ao Rio Grande
do Norte, articulando-se junto ao governo do estado vizinho, para garantir apoio a possível
intervenção que o Governo Federal estaria planejando para a Paraíba, quando ocorreu a inva-
são do seu domicílio na capital paraibana. A versão que se tornou oficial conta que a sua mo-
rada, que ficava no mesmo prédio de uma associação desportiva, teria sido arrombada por
elementos desconhecidos. Fato que ao chegar ao conhecimento da polícia, suscitou uma dili-
gência que entrou na casa para apurar o acontecido e, encontrando lá rifles e munições, além
de “documentos espalhados”, resolveu confiscá-los, assim como ao conteúdo de um cofre, por
considerá-los comprometedores.
239
Artigo reproduzido em INOJOSA, Joaquim. República de Princesa (José Pereira X João Pessoa - 1930). Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1980. p. 275.
168
240
VIDAL, Ademar. João Pessoa e a Revolução de 30. Rio de Janeiro: Graal, 1978. (Coleção Depoimentos).
p. 248.
241
VIDAL apud MELO, op.cit., p. 97. (grifo meu).
242
VIDAL, op. cit., p. 252.
243
INOJOSA, op.cit., p. 214.
169
Inojosa demarca na análise das declarações a “idéia fixa de vingança, que acredita ser
“muito dos temperamentos dos Dantas, conhecidos pelas reações intempestivas”. Inventaria,
além deste depoimento, outras declarações de João Dantas que o reforçam, assim como algu-
mas anteriores como o teor do artigo aqui citado e um telegrama enviado a João Pessoa alguns
meses antes, em que o acusava do seqüestro do irmão Joaquim Dantas e de ordenar incêndio
na fazenda do seu pai; no qual dizia ser “forçado a lembrar, sem estardalhaço tão do agrado
do vosso temperamento teatral, que felizmente tendes filhos e juntamente com eles responde-
reis pelo que sofre minha família, respondendo também o Estado pelos prejuízos materiais
causados”. 245
Para Inojosa, este “ódio latente”, que ele vê declarado em todas essas peças de inquérito,
vinha revelar que a questão saíra do terreno político para o meramente pessoal, não se tratan-
do mais de briga entre parentes, apenas de palavras: “assumia aspecto grave de encontro e
vingança, em que iria predominar o ódio do sertanejo, aquele de João Dantas que o juiz da
sentença considerou ‘visceral’, ‘rancoroso’ e ‘indisfarçável’”. 246
Então, ao passo que considera eloqüente as motivações em torno da honra e da dignida-
de que teriam motivado o ato extremado de João Dantas, Inojosa também vai, estrategicamen-
te, pontuando a culpa pessoal do seu crime, como forma de dirimir as possíveis responsabili-
dades que respingaram sobre seus adversários de maior peso político, como José Pereira e
João Pessoa de Queiroz, muitas vezes acusados de serem os mentores de uma conspiração, de
terem insuflado e armado João Dantas.
O que se pode com isso perceber é que, embora com objetivos e interesses distintos, tan-
244
Depoimento de João Dantas reproduzido em INOJOSA, op.cit., p. 21. (grifos meus).
245
INOJOSA, Joaquim. República de Princesa (José Pereira X João Pessoa - 1930). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira; Brasília: INL, 1980. p. 218.
246
Ibidem. (grifo meu).
170
to as estratégias discursivas utilizadas por Vidal quanto as de Inojosa, vêm construir um lugar
de destaque para João Dantas no meio de toda essa trama, demarcado pelas questões da hon-
radez. Sua imagem é como que ‘isolada’ para responder/representar, fosse de maneira positiva
ou negativa, à expressão mais exacerbada a que se poderia chegar um homem e sua
(des)honra.
Para Vidal o ato extremado de Dantas confirma os indícios de uma vida “imoral”, como
aqueles que foram encontrados em sua casa. Afinal, é para não afrontar a honra das famílias,
que se considera impublicável o conteúdo do tal caderninho. E aí, com base naquilo que suge-
re ter visto, afirma que Anayde Beiriz não era noiva, mas amante de João Dantas. Ou seja,
sugere a “desonra” de Anayde, já que a insinuação de uma vida amorosa e sexual fora do ca-
samento tirava dela este qualificativo, o que costumeiramente, no caso das mulheres, se repre-
sentava pela idéia da virgindade. 247
A sexualidade, pois, emerge como um trunfo determinante na desqualificação do outro.
Qual segredo teria João Dantas naquele cofre, o que guardaria com mais zelo? O discurso de
Vidal e de todos que o reproduzem, repetem sem falar: ora, segredos de alcova. Eis o que ti-
nha de mais íntimo. Estratégia que serve para expor e ridicularizar João Dantas, sugerindo que
ali se revelava o que ele de fato era: “devasso”, “imoral”, “indecente”. Recurso eficiente que
logo se colou à imagem de outros “perrés” e, principalmente, à de Anayde Beiriz.248
A imagem de “amante” aí não condiz com a idéia corrente de um caso clandestino, que
envolve alguém casado. Não, ambos eram solteiros. Trata-se justamente da idéia de uma
transgressão às práticas e vínculos sexuais normativos, que exigiam a aquiescência da Igreja
e, cada vez mais, do Estado. Inscritos nesse lugar, os “amantes” passam à imagem de devassi-
dão perante a “lei de Deus” e a “lei dos homens”. Se isto já o era suficientemente forte para
inspirar recriminações na sociedade brasileira da Primeira República, imagine se os “trans-
gressores” estivessem envolvidos num clima político de tensões acirradas, em que os sentidos
247
A importância conferida ao hímen como testemunho da pureza e como signo demarcador da honra sexual
feminina motiva uma série de estudos médico-legistas no Brasil da Primeira República, demonstrando a grande
preocupação das autoridades jurídicas com a virgindade feminina durante os 50 anos de vigência do código pe-
nal de 1890, inspirando uma verdadeira “himenolatria”. Sobre “honra e himenolatria na Primeira República” ver
CAULFIELD, op.cit., p.51-56. Inclusive, Lourdes Luna, assim como mais recentemente Joacil de Britto Pereira,
no seu Mulheres-Símbolos, referem-se ao resultado de uma autopsia feita no corpo de Anayde, que teria atestado
sua virgindade.
248
Até hoje é grande a polêmica sobre a publicação ou não dos escritos amorosos, incluindo a hipótese de que
nunca existiram – como sustenta Lourdes Luna. Na edição ordinária do Jornal A União, na véspera do assassina-
to, anexadas em fac-símiles nos livros de José Octávio Arruda de Mello e Wellington Aguiar, as cartas publica-
das são aquelas que tratam das querelas políticas. Enquanto para alguns como Joffily, que diz que elas existiram
e que teriam ficado expostas à curiosidade pública na delegacia, há outras suposições, como a de terem sido
publicadas numa edição extraordinária, depois destruída(!), pelo jeito não sobrando nenhuma para nos esclarecer
a questão.
171
Foi em plena campanha política, em fins de 1929. Achava-se ela num coreto
da praça Venâncio Neiva, à curta distância de sua casa, à Rua da República,
quando em banco próximo, uma atrevida dondoca murmurou: — Eu não te-
ria filhas para ser aluna de certas professorinhas... Poderia Anayde afastar-se
ou ignorar a perfídia, mas a contundente reação foi bem diversa: —Não tem
filha. E se tivesse, seria com certeza de pai desconhecido. 250
249
Como constatei em minha dissertação de Mestrado sobre as imagens femininas na imprensa da Parahyba
(1920).
250
JOFFILY, José. Anayde: Paixão e Morte na Revolução de 30. Rio de Janeiro: Record, 1983. p. 31.
251
Segundo Joffily este incidente repercutiu “nos quatro cantos da cidade” e na versão corrente “Anayde viu-se
transformada em agressora de ‘distinta correligionária da Aliança Liberal’”, o que a fizeram ser “censurada
pelas colegas, detestada pelas esposas e depois execrada por toda a gente... ”. Ibidem, p. 32. (grifos do autor).
172
do seu corpo. Seu segredo, mas também sua inscrição num mundo “de fora”, ou “de dentro”
das normas, ainda como sua verdade definidora. Como nos diz Foucault:
Tão sedutora e eficiente é este tipo de regulação, que também foi utilizado um recurso
semelhante contra João Pessoa, afirmando-se que sua fatídica viagem para o Recife teve uma
motivação amorosa: o encontro com uma jovem atriz que estaria aportando na capital per-
253
nambucana, que seria sua amante, e para quem ele teria ali comprado uma bela jóia. Con-
trariando aquela imagem do homem bem casado, que sofre com as saudades dos seus — a
mulher e os filhos, acostumados a vida na capital brasileira, não teriam permanecido na Paraí-
ba — este será um argumento volta e meia utilizado como forma de comprometer a suposta
retidão do presidente, arvorada ante a imagem promíscua que se instituía para seu assassino.
Ao que responderão seus admiradores com a negativa absoluta, sempre reiterando que a
trousse comprada na requintada Joalheria Krauser era um presente de pai para a filha, que
terminava curso. 254
Em todos os casos, o efeito independe da veracidade, ele opera na intensidade em que
provoca a afetação, ameaçando os traços de honradez do outro. Este jogo discursivo que es-
quadrinha a intimidade, a sexualidade e seus efeitos sobre a honra, tem um vasto repertório de
imagens, que em menor ou maior intensidade, refletem, como num espelho, aquelas tessituras
para o tipo sertanejo, como estamos vendo.
Inojosa, apoiado na própria fala de Dantas, lembra justamente que é o apelo ao desa-
gravo da família e da intimidade violada que fazem ferver os ânimos do “sertanejo”, sendo
uma atitude de se esperar dentro daquele clima de ofensas e agressões à dignidade, portanto, à
honra, como “um sentimento que a tudo se sobrepunha”, como justificara o próprio João Dan-
tas. Fala assim de uma prática ainda costumeira no Brasil, cuja intensidade poderia variar de
252
FOUCAULT, Michel. O Verdadeiro Sexo. In: ______. Ética, Sexualidade, Política. Manoel Barros da Silva
(Org.). Tradução Inês Autran D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2004. v.V. (Col. Ditos & Escri-
tos). p. 85.
253
Sobre tal versão ver INOJOSA, Joaquim. República de Princesa (José Pereira X João Pessoa - 1930). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1980. p. 131.
254
Versão defendida por VIDAL, op. cit., p. 297.
173
acordo com a ofensa, mas que ao adentrar no território do considerado íntimo, particular, exi-
gia a desautorização máxima daquele que a maculara, ou seja, o seu silenciamento para sem-
pre. 255
Os sentidos que prevalecem em suas narrativas, decerto organizadas ao longo de anos,
mas que vem à luz mais de quatro décadas depois daqueles acontecimentos, ancoram-se, além
das suas experiências pessoais, em declarações e produções outras que no decorrer deste tem-
po foram criando imagens e sentidos para este episódio.
Por exemplo, num premiado romance de 1970, Virgínius da Gama e Melo, ambienta sua
história naqueles acontecimentos de 1930, perfilando personagens cujas características se as-
semelham aos envolvidos, misturando ali as narrativas da história e da literatura. Numa das
passagens de maior tensão, narra como o coronel Eduardo teria recebido a notícia do assassi-
nato de João Pessoa:
255
Certamente, pensando como advogado, Dantas esperasse que no seu julgamento os atenuantes de um “crime
contra a honra”, que decerto conhecia, lhe fossem concedidos. Mas o julgamento que o levou à morte não foi o
da Justiça, mas aquele dos costumes, tragicamente, baseado nos mesmos valores de vingança que o motivaram a
cometer o crime.
256
GAMA e MELO, Virgínius da. Tempo de Vingança. João Pessoa: Editora Universitária (UFPB), 1980.
p. 91-92. (grifo meu).
174
Com esta fala, Ademar Vidal reafirma a prática comum dos crimes para lavar a honra,
mas pontuando qual seria a “ética” destes, passo a passo, como forma de demonstrar que o
que João Dantas fizera não poderia aí ser contemplado. Antes, diz que ele mais caberia no
código dos “criminosos profissionais”, sugerindo as possíveis vantagens com as quais estaria
contando, ao participar do que insinua ter sido um complot. Portanto, diante da ética da tradi-
ção ele não teria agido de forma honrada, sendo também perante ela julgado e culpado.
Por sua vez, as idéias de conspiração e covardia serão também agenciadas por aqueles
que não admitirão a versão oficial de suicídio de João Dantas e Augusto Caldas, na cela em
que se encontravam presos na Penitenciária do Recife, a 06 de outubro de 1930.
Decerto é uma versão muito controversa, com lacunas e contradições — em que se
confrontam supostos bilhetes suicidas, relatos divergentes e fotografias dos corpos antes e
depois de serem “arrumados” para a divulgação na imprensa. Mas ainda assim, uma versão
que também se presta como imagem para destituir qualquer resquício de coragem em Dantas
e do seu suposto cúmplice ou, invertida, para consagrar a “honra do matador”.
Três anos após estas mortes, com a ajuda de Joaquim Inojosa para conseguir a impres-
são, Joaquim Moreira Caldas, irmão de Augusto Caldas, lança o livro Por que João Dantas
assassinou João Pessoa — O delito do “Glória” e a tragédia na Penitenciária do Recife, em
1930. Aí constam as fotos tiradas pelo fotógrafo Louis Piereck que expõem ferimentos e esco-
riações no corpo de João Dantas que não condiziam com as descrições oficiais. Além de um
relato testemunhal atribuído ao cangaceiro Antonio Silvino, que ali se encontrava detido, acu-
sando a chegada de uma “visita trágica”, que teria sido responsável pelo assassinato dos dois.
Certamente que o testemunho de um cangaceiro, ainda que “arrependido”, não seria difícil de
ser desautorizado pelos opositores e ferrenhos críticos daquela outra versão.
257
VIDAL, op. cit., p. 251. (grifo meu).
175
Fernando Melo, autor de uma recente biografia de João Dantas, ressalta que dois anos
antes do livro de Moreira Caldas, uma reportagem do Diário da Noite, jornal do Rio de Janei-
ro, “órgão insuspeito por estar filiado à Revolução”, já publicara sobre o “sangramento” ocor-
rido na Penitenciária do Recife, oferecendo-nos a seguinte imagem:
Imagem forte do homem resistente, que não “verga”, nem mesmo trespassado por uma
“faca sertaneja”, ou seja, feita da mesma “matéria” que ele. Do objeto assim qualificado libe-
ram-se os signos da vingança típica da tradição da honra sertaneja. Mas ainda assim o texto
enuncia que a “honra do matador” mantivera-se altiva até o último momento, reafirmando-o
mais uma vez como um homem corajoso, de sangue frio, mas temperamento quente.
Embora menos enaltecedora desta coragem e temperamento do sertanejo, a versão do
suicídio não deixa também de fazê-lo. Vamos encontrá-la, por exemplo, na narrativa de José
Américo. Este admite que teve dúvidas sobre as condições da morte de João Dantas, mas che-
ga a conclusão que “foi voluntária”. Conta que no dia em que Recife se rendeu às forças revo-
lucionárias, uma multidão postou-se na frente da Penitenciária ameaçando-os de linchamento.
Soldados paraibanos teriam entrado e os ameaçado de levá-los para a Paraíba, para serem
queimados em praça pública ou ainda jurando: “Vão morrer a cacete por mulheres!”.
João Dantas estava de pé, ouvindo tudo, impassível. Era um homem fortís-
simo e tinha o pudonor de sua gente. Só havia uma saída para fugir da a-
fronta. Tomou a resolução de matar-se, num ato de preservação ou de fim
dantesco. Redigiu um bilhete e o pôs debaixo do travesseiro. É a confissão:
“Mato-me de consciência serena e ânimo firme, porque estou entregue a
bandidos e meu brio não suporta humilhação”. Secionou a veia jugular com
um bisturi. [...] Onde encontrou ele o instrumento? Foi comprado por sua
namorada, Anayde Beiriz, na casa Manuel & Cia., do Recife. E como pôde
conservá-lo, sendo sempre revistado? Num orifício atrás da gola do paletó.
[...] No local, havia ausência de qualquer sinal de luta. O cadáver não apre-
sentava contusões, nem equimoses, nem escoriações. E um homem de seu
temperamento não se deixaria sacrificar sem resistir. 259
258
Artigo reproduzido por MELO, Fernando. João Dantas: Uma biografia. João Pessoa: Idéia, 2002. p. 165.
259
ALMEIDA, José Américo de. O Ano do Nego: memórias. João Pessoa: A União Cia. Editora, 1978. p. 226-
27. (grifos meus).
176
Fechava-se ali, simbolicamente, fosse pela “faca sertaneja” ou pelo “bisturi” o duelo
entre os dois cavaleiros sertanejos, embora cada um representasse uma multidão de outros
mais. Qual vencedor? As peças caídas sobre o tabuleiro logo seriam retiradas para dar início a
novos lances, com estratégias nem tão diversas, porém com outros jogadores comandando os
golpes. Jogadores que, entretanto, necessitarão direta ou indiretamente alimentar-se da memó-
ria daqueles dias de “luta, dor e glória”, que inscreveram a Paraíba nos livros de História do
Brasil, renovando o duelo em vários momentos.
Guerra de retratos, de imagens, de memórias. Lutas marcadas nos corpos e papéis.
Práticas de exclusão que atingem o discurso, conforme os três grandes sistemas apresentados
260
por Michel Foucault: a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade.
Vemos todos em funcionamento na produção da memória histórica da revolução de 1930. A
interdição da palavra, que aparece nas tantas falas ligadas ao ideário de João Pessoa e da Ali-
ança Liberal, ao outro — todos os opositores, sobretudo ligados a José Pereira e João Dantas,
somam-se a desqualificação e segregação destes como dezarrazoados, doentes morais, desalo-
jados que estavam no lugar confortante da verdade, esta, que a memória, representada nos
símbolos cívicos da cidade e do Estado, tratam de lembrar.
O mais evidente e familiar na nossa sociedade dos poderes de exclusão é, segundo o
autor d’ A Ordem do Discurso, a interdição. Sabemos que não se pode dizer tudo, nem a qual-
quer tempo e circunstância, nem sobre qualquer coisa: “tabu do objeto, ritual da circunstância,
direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala.” Mas Foucault ressalta que, em nossos
dias, as regiões onde “a grade é mais cerrada”, onde se multiplicam os buracos negros, são as
da sexualidade e da política, e acrescenta:
Vimos essa luta rememorada naquele cenário de 1950, com a disputa política acirrada
entre José Américo e Argemiro de Figueiredo pelo governo do estado, vindo reforçar os sig-
nos de uma cultura falocêntrica, que encontrara modelos de idealização em 1930, propiciando
260
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 13ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006. p. 17. (grifo meu).
261
Ibidem, p.10-11. (grifo meu).
177
as condições para a síntese da “Paraíba” e, em seu fluxo, das paraibanas, como “mulher-
macho”. Sexualidade e política em pleno funcionamento discursivo, que se pretendem interdi-
tar de cada lado, como forma de preservação de um poder atualizado em constante intensifi-
cação dos signos do passado e delimitares das fronteiras de gênero.
Interessante que os signos liberados pela canção se juntarão a todos esses elementos,
mantendo acesa ao longo dos anos a fogueira das vaidades e mesmo o fogo das paixões que
aquecem até o presente, os debates em torno da questão: Qual a verdade? O que também tem
se convertido numa questão de honra, como já se pode perceber pelos livros aqui citados, e
que ressoará fortemente em toda uma produção mais recente, notadamente na passagem para
o século XXI.
Preocupação com a verdade como forma não apenas de “iluminar” os episódios que
marcaram a história política e a constituição de uma identidade para o Estado, mas inclusive
sobre qual o gênero verdadeiro da Paraíba, qual a verdade sobre a sexualidade e os atributos
de suas mulheres e, por conseguinte, de seus homens. Peripécias, astúcias das relações de po-
der e saber, presentes na tessitura de lugares definidores para os gêneros que se (con)fundem
com a dos lugares políticos.
Afinal, diante de tanto esforço para garantir a cintilância dos valores da honra e da
virilidade, dificilmente poderia agradar aos defensores do caráter varonil do Estado e dos lu-
gares de cristalização da “verdade”, uma imagem de gênero ambígua, a provocar continua-
mente “sustos”, estando aberta a tantas apropriações que remetem aos territórios mais íntimos,
em que a sexualidade nomeia e afronta a honra.
Tudo isso, líquido, deslizante, moldável, constituirá a “lama” que os defensores de
uma verdade para 1930 desejarão transformar em “pedra”. Ao longo destes traçados, vê-se a
“arma-palavra”, como projétil da memória, em franco desenvolvimento. Apresentando-se
como lócus testemunhal, de descrição, de comprovação, enuncia todo o tempo, um desejo de
verdade, recusando a potência criativa.
A Palavra da memória, como metáfora que pesa, “petrifica”, selando a “última pala-
vra” que tende a querer dar solução aos impasses, lacunas, dúvidas, construindo engenharias
monumentais que obsessivamente insistem no que não se pode esquecer; opõe-se aqui à
“memória da palavra”, uma memória-outra, no sentido dado por Nietzsche e (re)apropriado
por Deleuze e Guatarri, que se manifesta como possibilidade de fazer agir as forças reativas e
instaurar o “recordar o futuro”. Tratando-se de fazer uma outra memória que seja coletiva,
uma memória das palavras e não mais das coisas, dos signos e não mais dos efeitos. Afinal, a
“arma-palavra” agrega em si também todo um devir-nômade, capaz de estilhaçar as grades da
178
memória-prisão, uma vez que, pode seguir fluxos descontínuos, que embaralham os alvos,
que confundem os atiradores. Sendo assim, capaz de surpreender no seu trajeto, de sobrepor
uma cartografia do desejo ao trabalho da memória contra o desejo, que só acopla mais ressen-
timentos. 262
Mas é ainda nestes estratos de ressentimentos, que uma outra “pedra” surpreende por
seus efeitos na “guerra de memórias”: “pedra de toque”, liberadora de desejos, também “pedra
no caminho” de muitos arcontes da memória de 1930: O (re)investimento numa imagem de
Anayde Beiriz em oposição à de João Pessoa. Ela, como signo de uma nova identidade que se
pretende para o Estado e, mais particularmente, para a capital. Ela, como lócus de memória
daqueles apontados como vencidos, vilões, marginais à história que se tornou oficial. Tam-
bém, mais uma vez, como uma tessitura corporal, na qual se inscrevem dilemas e impasses
atuais das discussões de gênero e sexualidades. Ressonâncias do século XX, que sente-se ti-
lintar nas fronteiras para um novo século, das quais será possível escutar algumas notas a se-
guir, como a canção que não pára de ser tocada...
262
A respeito da memória-palavra ver LINS, Daniel. Esquecer não é crime. In: LINS, Daniel. COSTA, Sylvio de
Sousa G. VERAS, Alexandre (Orgs.). Nietzsche e Deleuze: Intensidade e paixão. Rio de Janeiro: Relume Du-
mará; Fortaleza, CE: Secretaria de Cultura e Desporto do Estado, 2000. p. 45-60.
179
Ao ver como, entrelaçados, os lugares de gênero vão sendo instituídos pelas estraté-
gias discursivas que dão espessura à memória dos acontecimentos de 1930, na medida em que
estreita-se o contato com a feitura de um modelo positivo de masculinidade — e seus contra-
pontos — é possível também perscrutar os meandros da tessitura que conferem relevo e visi-
bilidade ao feminino, seja então numa correspondência a tal ideal másculo ou ainda em um
lugar de confrontação com este.
Se a imagem de João Pessoa encarna em sua potencialidade este modelo, é em relação
a ela que emerge a imagem da “mulher varonil”, um corpo-manifesto do tipo feminino assim
nomeado por Eudésia Vieira na década de 1920, como vimos no segundo capítulo. Esta, que
assume uma materialidade com as “senhoras, moças e meninas” que tomam as ruas da Capi-
tal, que organizam movimentos em favor do presidente de Estado e da Aliança Liberal. De-
pois participam ativamente da feitura de símbolos representativos de um clima aguerrido e de
mudanças, num “fenômeno curioso” incorporam a intensidade que se fazia sentir naquele
momento da reconfiguração dos espaços públicos e privados, colocados em cena pela moder-
nidade.
Décadas depois daqueles eventos, suas imagens serão freqüentemente agenciadas para
referendar as qualidades heróicas de João Pessoa e o clima revolucionário que fez a “pequeni-
na e boa Paraíba” agigantar-se num espírito guerreiro. São marcas em falas que ao enfatizar a
presença das mulheres no “front”, o fazem como forma de confirmar o carisma do presidente,
mas também o alcance dos seus ideais que se faziam sentir na família, na moral e na honra
desta, tão bem representadas pelas “mães, esposas e filhas”. Ideais capazes de penetrar no
recôndito mundo feminino e excitar com a paixão, os corpos que se tinham como lugares do
recato e da passividade, movendo-os para a visibilidade das ruas sem temor. A “justa causa”
da luta concedendo-lhes este direito, transformando o que noutras circunstâncias seria desvio
em expressões de autêntico civismo e lealdade — manifestações de “brios”.
Mas esta imagem produtora e positivadora dos poderes que (in)vestem na Paraíba a
180
imagem da guerreira e, por conseqüência, nas suas mulheres, também se faz numa relação de
alteridade, que nomeia o lugar do desvio, da traição e da desonra. As projeções dos aconteci-
mentos de 1930 fizeram Anayde Beiriz ocupar por bastante tempo este lugar do “outro”, da-
quele que serve como referência para a confirmação — e conformação — do estabelecido, do
estável, do aceito. Isso em relação ao feminino “varonil”, cuja visibilidade salta aos olhos dos
que se tornam as testemunhas por excelência e as fontes “inquestionáveis” daqueles eventos,
como assinalei no capítulo anterior.
Mas, também como discutido no primeiro capítulo, é a corporeidade construída para
Anayde, que vem mobilizar mais uma vez, sobretudo a partir da década de 1980, os embates
em torno da verdade e da identidade da Paraíba, ao passo em que evidencia questões relativas
à sexualidade e às relações de gênero, tão presentes e intensas em toda essa construção histó-
rica, e que retroalimentam a imagem da Paraíba como “mulher-macho”, como analisado no
segundo capítulo. Novos elementos, incluindo fontes até então desconhecidas, vêm na passa-
gem entre os séculos XX e XXI intensificar esses debates, oferecendo outra via de compreen-
são, que participa ativamente da (re)construção dos signos identitários da região, dos homens
e mulheres que nela vivem..
Neste capítulo, sigo as trilhas bordadas no percurso desta outra ou “mais nova” via,
interessando-me por perscrutar nela as encruzilhadas que colocam em cena, mais uma vez, os
conflitos pela memória, as tensões de poder que esquadrinham e instituem identidades para os
gêneros. As fissuras provocadas por estas tensões e o que por aí escapa modelando corporei-
dades outras, que ampliam o repertório de significações para a “Paraíba mulher-macho” nos
anos de passagem entre os séculos XX e o XXI.
Em 1980, quando das homenagens aos cinqüenta anos da “revolução que abalou o Es-
tado”, uma série de artigos, crônicas e entrevistas é divulgada em cadernos especiais do Jornal
A União, constando entre estas a republicação de uma carta dirigida ao Jornal do Brasil, em
1978, por Henriette Amstein, que se diz uma das normalistas que estivera presente ao último
discurso de João Pessoa na Paraíba. Aos 62 anos, ela escreve ao jornal carioca agradecendo
um artigo ali publicado sobre João Pessoa, mas pretendendo esclarecer alguns pontos que
julgava deturpados; oferece para isso o seu testemunho. Aponta-os então, seguido da versão
que acredita correta, acrescentando detalhes a episódios como o do momento da morte do
181
presidente e do arrombamento da casa de João Dantas. No curso da sua narrativa, uma men-
ção rápida, porém contundente a Anayde Beiriz chama atenção:
Foi então que a polícia interferiu e ocupou a casa e tendo encontrado lá do-
cumentos que provaram a inverdade de acusações feitas publicamente pela
família Dantas a João Pessoa, divulgou esses documentos. Quanto à corres-
pondência íntima. Foi lida pela polícia, sim, mas não foi publicada. Aliás,
João Dantas não tinha noiva. Tinha uma amante, que, quando o visitou
na prisão, em Recife, apelidaram de noiva. 263
263
AMSTEIN, Henriette. As normalistas paraibanas e a Revolução de 30. A União. Paraíba. Caderno Especial
de Comemoração do Cinquentenário da Revolução. p. 03. (grifo meu).
264
JOFFILY, José. Anayde: Paixão e morte na Revolução de 30. Rio de Janeiro: Record, 1983. p. 15.
182
entre estes e o fórum privado, um corpus íntimo. O tabuleiro cada vez mais revestido de pa-
pel, de tinta, de letras, de palavras e enunciações de silêncios, querendo fazer vitoriosa aquela
que seria revelada como a verdade mais nua. Verdade esta, definidora de lugares de memória
e, simultaneamente, de lugares de gênero.
Prevaleceu para muitos a idéia de que ao inserir Anayde num corpo delirante e “debo-
chadamente” sensual, ao invés de conseguir o efeito procurado por Joffily em seu livro, o fil-
me que ele inspirou conseguiu intensificar os significados liberados por aquele juízo moral de
Henriette Amstein e Ademar Vidal, contemporâneos da professora. Então também era preciso
esclarecer, retificar, lembrar e revelar, para assim, afinal, se restaurar a face da verdadeira
Anayde, como forma de restabelecer aqueles acontecimentos.
Assim como acontecera com José Pereira e João Dantas, chegara a hora de acionar
uma peça até então aparentemente destituída de importância histórica, mas que ao ser inserida
no jogo, surpreendeu pela sua potencialidade de significados, trazendo em sua corporeidade, a
memória de um ressentimento que não dizia respeito somente às narrativas oficialmente dadas
por vencidas nos duelos de 1930, mas a de muitos outros ali submersos, apagados pela fabri-
cação de uma memória que não cessou de produzir silêncios e esquecimentos.
Se José Joffily inaugura esta fase, sua estratégia ganha força com a narrativa fílmica
por todas as questões aqui já discutidas, mas ao mesmo tempo de onde emergirá sua força,
virá também sua vulnerabilidade, por conta justamente do apelo a uma Anayde “excessiva-
mente” corpórea. Então, percebo que uma “terceira via” se faz, a que virá pretendendo “resga-
tá-la”, “revelá-la” e, posso mesmo dizer, “salvá-la” da marca de ser uma “mulher-macho”.
Creio que esta via começa a evidenciar-se ali mesmo, nos anos 1980, em artigos e ar-
tefatos literários relacionados a Anayde, ganhando espessura com o livro de Lourdes Luna,
em 1995, porém adquirindo maior vigor e visibilidade com o lançamento do livro do médico e
escritor Marcus Aranha, Anayde Beiriz: Panthera dos Olhos Dormentes, em 2005. Um livro
que trouxe a público, um diário inédito da professora, ou melhor, um conjunto de cartas trans-
critas por ela da sua correspondência amorosa com Heriberto Paiva, estudante de medicina
que namorara antes de João Dantas.
O lançamento do livro em meio às comemorações do centenário do nascimento dela, a
instituição de um troféu “Anayde Beiriz” para homenagear mulheres de destaque na socieda-
de paraibana, fomentando uma série de outras produções — vídeos, crônicas, poesias — vêm
dar ainda mais espessura a um desejado corpus de memória, que se pretende inicialmente al-
ternativo, mas nem por isso menos verdadeiro ou importante — pelo contrário — que todo
aquele corpus monumental da memória de João Pessoa e de seus aliados em 1930, também
183
Oxalá todos nós, que com Anayde Beiriz aprendemos a sonhar e a construir
este mundo novo, possamos, de alguma forma, dar continuidade aos desafios
e aos projetos libertários que denunciam a existência de qualquer forma de
discriminação. Portanto, as sementes de liberdade, lançadas pela poetisa do
começo do século XX, continuarão germinando, de geração em geração, a-
través dos movimentos feministas, negros, ecologistas, de homossexuais, de
idosos, de portadores de necessidades especiais e de minorias, todos articu-
lados pela mesma busca da superação das desigualdades sociais. 265
Aqui podemos sentir a força que adquire a representação da memória de Anayde Bei-
riz. Cada vez mais, para além da sua individuação, ela agrega todas essas vozes, que a pesqui-
sadora entende se identificarem no sonho da liberdade. Sua corporeidade passa a ser tecida
com a “carne” de todos esses outros, que na operação discursiva tornam-se um. 266
Vemos então a tessitura complexa de uma via que vai sendo composta e compondo
outras formas de presentificar a professora e escritora. Mas, quero dar ênfase a esta operação
que (con)funde a memória de Anayde com daqueles considerados “num fora”, num território
de exclusão. Esta potência, que sua corporeidade fronteiriça alcança, permite mesmo que,
265
SALES, Ana Maria Coutinho de. Tecendo fios de liberdade: Escritoras e professoras da Paraíba do começo
do século XX. 2005. Tese (Doutorado em Teoria Literária). Programa de Pós Graduação em Letras, Universida-
de Federal de Pernambuco, Recife. p. 222
266
Ana Coutinho nos informa ainda como este movimento de identificação veio ganhando vigor, com “um im-
pressionante ressurgimento” de Anayde no começo do século XXI, através de exposições envoltas ao seu cente-
nário de nascimento, de uma homenagem na Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba, em 2004, quando
se conferiu à escritora o título de Patrona da Cadeira nº 16, entre outros eventos importantes para destacar e
debater aspectos da sua vida. Ibidem, p. 222.
184
mais uma vez configurada em oposição aos valores predominantes em sua época, ela se torne
o referente principal das relações de alteridade entre uma memória designada como oficial,
que fez prevalecer a imagem heróica de João Pessoa, e uma memória outra, de outros, que
então procura estabelecer-se, dando maior visibilidade ao confronto.
Esta recusa a uma memória que se tornou “a oficial”, constantemente mobilizada nos
embates políticos e intelectuais, mais uma vez busca então fortalecer-se à sombra da imagem
de Anayde Beiriz, ao mesmo tempo em que colaboram para a expansão desta “sombra”, cri-
ando novos formatos, colocando em cena outras estratégias, capturando-a também para outros
cenários.
Neste fluxo ela vem representar a dignidade, a sinceridade, a resistência e tenacidade
que cada vez se evidenciam menos na imagem daquele que passa mesmo a ser projetado co-
mo o seu algoz, mentor de uma conspiração caluniante ou, como preferem ainda, maior repre-
sentante de uma sociedade de valores hipócritas. Não, claro que não estou falando de João
Dantas, que por tantas vezes foi assim qualificado, mas justamente e ironicamente do outro
João, de João Pessoa: subversões da história.
Entendo que se não há força suficiente na imagem de João Dantas para confrontar nos
discursos do presente à de João Pessoa — sendo ele também considerado conservador e pe-
sando ainda a acusação de assassinato — esta força vem da imagem de Anayde, ou talvez
mais apropriado dizer de uma Anayde que pode sim, personificar a Paraíba, mas não a “mu-
lher-macho”. Uma Anayde que, ainda que tornada mais visível com o filme que lhe atribuiu
tal corpo, passa a ser alimentada na reação negativa a ele, como uma reação aos valores mas-
culinistas colocados em movimento pelos discursos que projetaram a idéia de revolução e que
fabricaram os símbolos de uma Paraíba guerreira que “nega”, que se veste de sangue e luto, e
que sela uma memória dando a sua capital o nome de João Pessoa.
O fazer-se de uma outra memória, passa a recusar todos esses símbolos e captura a
imagem de Anayde para a (re)invenção de uma outra tradição, aquela que se procura restau-
rar, como forma de se “resgatar a verdade”, de se restabelecer o que seria uma verdadeira i-
dentidade da Paraíba. O ápice desta recusa ocorre com a retomada da discussão sobre a mu-
dança do nome da Capital e da bandeira do Estado, mobilizando mais uma vez energias de
parte a parte.
Contudo, operando com outras estratégias, desta vez o desejo atualizado reinveste-se
como projeto político, através da atuação do vereador Flávio Eduardo Fuba (PSB- Partido
Socialista Brasileiro), também músico, carnavalesco, que agrega uma série de colaboradores,
pleiteando na Câmara dos Vereadores a aprovação de um plebiscito que viesse a consultar a
185
Pense nisso! Durante anos, a História da Paraíba foi maquiada por historia-
dores tendenciosos que negaram o conteúdo da verdade, induzindo o nosso
povo a acreditar numa grande farsa provocada pelo fanatismo de uma como-
ção. Os fatos que antecederam o ano de 1930 e os que posteriormente foram
relatados, envolvem personagens tidos como mitos ou heróis e que hoje são
desmistificados à medida que a verdade aparece.Você acha que foi bom mu-
dar o nome da capital e a bandeira do nosso estado por um fato político a-
contecido em 1930? Fatos políticos passam, a nossa História não! Talvez por
medo ou acomodação, muitos dizem não ter importância essa discussão, mas
trata-se da nossa identidade, da nossa auto-estima e do nosso orgulho. Como
se pode amar o desconhecido? Você conhece a história de João Pessoa?
Você gosta de uma bandeira que representa o sangue e o luto de uma morte?
Você sabe por que existe o NEGO em nossa bandeira? Não? E então? Não
acha isso importante? Em 1930, numa medida de força e sem consultar a po-
pulação, particularizaram o nome da nossa cidade e ensangüentaram a nossa
bandeira. São 77 anos de luto! Você já parou para pensar nisso? Ao contrá-
rio do que ocorreu em 1930, estamos democraticamente propondo que seja
feita, em 2009, uma revisão histórica através de um plebiscito. Uma História
de sangue e luto jamais poderá ser motivo de orgulho! Você vai decidir! Di-
ga sim à Parahyba! 267
Assim, o que poderia converter-se mais amplamente numa fértil oportunidade para
debater a produção da história e mesmo questionar os parâmetros que elegeram uma versão
como a “mais verdadeira”, “mais identitária”; encena-se um jogo com regras semelhantes,
inclusive cometendo equívocos como o de separar a produção de fatos políticos da construção
da história, sugerindo ser esta algo sempre dado “a priori”, uma fonte original, que remeteria
a um passado mais distante e envolto numa aura de sacralização. Parte do pressuposto que há
uma identidade mais apropriada, pronta, que se revelaria ao tirar-se a maquiagem. Questiona-
se o conhecimento da população sobre os símbolos vigentes, mas sem considerar que isso
denuncia também o suposto esquecimento ou desconhecimento da historicidade dos símbolos
anteriores a 1930.
Investindo nestas regras, tal produção discursiva agencia os signos da “versão venci-
da”, ocultada, agregando a sua campanha a força constituída em torno da imagem de Anayde
Beiriz. Ora, esta é uma dobra que, como desenhada no percurso deste trabalho, veio se consti-
tuindo aos poucos, mas sempre com singularidades. Daí parecer conveniente, e mesmo con-
vincente, que ao surgir uma organização não-governamental que leva o nome da professora, já
no seu momento inaugural esta surja atrelada à projeção dos ideais do Movimento Paraíba
Capital Parahyba.
Anayde Beiriz é assim convertida no símbolo maior desta luta por uma projeção iden-
267
Este panfleto foi lançado em dezembro de 2007, juntamente com o livro Sonho de Feliz Cidade: pensando
carinhosamente a capital da Paraíba. Uma coletânea de textos ilustrada com fotos da cidade, com diversos auto-
res, promovido pelo Sebo Cultural, que traz várias referências à Anayde, bem como outros argumentos pela
mudança do nome da Capital. Ver Sonho de Feliz Cidade: concurso literário. João Pessoa: Imprell, 2007.
187
titária da cidade, por conseguinte, do Estado. Interessante que embora os discursos aí implica-
dos se afirmem em oposição aos eventos de 1930 como referenciais históricos para uma iden-
tidade paraibana, não deixa de alimentar-se da força imagética constituída para eles, agregan-
do e mesmo procurando confundir-se com os discursos pela memória de uma personagem
ligada àquele contexto, o que serve para manter atualizada a representatividade de 1930.
As tessituras em cores diferentes superpõem as linhas sobre o mesmo traçado. Tecer
um mito para combater outro, num cenário onde o triunfo da memória legitima a história, on-
de esta continua sendo enunciada como um jogo maniqueísta. Na festa de inauguração do
Coletivo Cultural Anayde Beiriz, seu corpo é travestido num manifesto para um novo rosto da
cidade, um novo “velho nome”. O discurso é o de resgatar a memória dela ao passo em que se
restaure também a identidade da Capital. Na ocasião, lança-se o folheto de cordel, Anayde: a
história de uma mulher que na vida foi ultrajada, de autoria de Piedade Farias, que então sin-
tetiza a versão que se constrói na disputa com a “oficial”,268 inscrevendo a imagem vitimizada
de Anayde ante a insensatez de João Pessoa, justificando os objetivos da organização que pre-
tende lhe fazer justiça:
Pois veja bem, meu leitor,/ O que João Pessoa fez: A Dantas desacatou/ Por
muito mais de uma vez/ Até que um dia chegou/ E as ditas cartas roubou/
Num gesto de insensatez./[...]Pior foi quando a notícia/ Bem depressa se es-
palhou/ E naquele ano de trinta/ A intriga se agravou./ Dantas ouviu, al-
guém disse:/ “Sabe quem está em Recife,/ O Pessoa, malfeitor!?”.../ Dan-
tas, então, se armou/ Muito do contrariado/ E quando ele encontrou/ O sujei-
to malfadado/ Mirou o seu lado esquerdo/ Deu-lhe três tiros no peito/ Con-
sumando o assassinato/ Por ordem dos Liberais/ Dantas foi assassinado/ Sem
direito de defesa/ Junto com o seu cunhado?Estava acabada a paz,/ Rolou
cabeças demais/ Sem se punir o culpado. Que destino malogrado/ Pra Anay-
de sobrou/ Com o peito apunhalado/ Pelo gume afiado/ Da perda de seu a-
mor!? Que futuro desgraçado/ De perseguição e dor. [...] Ela já não sonha
mais/ E o que resta se consome/ Em cova rasa sem nome,/ Sem palavras co-
lossais./ Mas hoje nesta homenagem/ Eis que Anayde renasce/ Na justiça
que se faz./ [...] Para este COLETIVO/ Que já nasce CULTURAL/ é
ANAYDE BEIRIZ/ o símbolo fundamental: Seu nome é nossa marca/Seus
versos, a bela estátua/ Sua história, o pedestal. Pra ressaltar Anayde/ E sua
memória imortal/ É necessário, acredite/ Uma correção formal: Mudar o
nome de João Pessoa/ Resgatando PARAHYBA/ Para a nossa Capital. Por
PARAHYBA a cidade/ viveu seus tempos de glória/ Hoje, nosso movimen-
to/ Resgata essa memória.../ Por quase trezentos anos/ Desse nome nos orgu-
lhamos/ PARAHYBA – nossa história! 269
268
Tática semelhante também se investiu com a imagem de João Dantas. Anterior à campanha formalizada pelo
vereador Fuba, o cordelista homônimo João Duarte Dantas, lançou um folheto em defesa do seu chará, conside-
rado vítima dos “heróis das espadas virgens”, defendendo, nos versos finais, a restauração do antigo nome da
capital. DANTAS, João Duarte. A Verdade de 1930. Campina Grande: Martins, [200-?].
269
FARIAS, Piedade. Anayde: a história de uma mulher que na vida foi ultrajada. Coletivo Cultural Anayde
Beiriz. Paraíba: [s.n], 2008. p. 6-11 passim. (grifos da autora).
188
Há muito tempo que esta cidade vive sob o espectro de Anayde Beiriz. De-
veria se chamar Anayde a antiga rua Direita. Tenho sempre a impressão de
vê-la caminhando, jovem, de mini-saia, com livros debaixo do braço, pas-
sando distraída e bela sob os olhares desocupados dos mesmos pipoqueiros
da década de 30. Agora não mais a importunam olhares maldosos lançados
aos seus cabelos cortados à la garçonne. Altiva, impõe-se frente à história e
aos homens, frente às misérias mais absolutas desta cidade.
Certamente Anayde não necessita mais tornar-se nome de rua. Há dois anos,
quando cheguei do sul, percebi logo que a cidade estava impregnada do chei-
ro, da sensibilidade, da sensualidade, do carisma de Anayde... [...] Posso sen-
ti-la em cada palmo desta Cidade das Acácias, esta cidade de Anayde Beiriz
que um dia se chamou Filipéia e que chamam hoje de João Pessoa PB CEP
58000. Ironia do Destino... nunca vi João Pessoa caminhando pelas ruas de
João Pessoa! 271
270
ARANHA, Marcus. Lau Siqueira na janela. Correio da Paraíba. Paraíba, 28 de outubro de 2007. p. A9.
271
SIQUEIRA, Lau. Anayde Beiriz Vive. In ARANHA, Marcus. Anayde Beiriz: Panthera dos olhos dormentes.
João Pessoa: Manufatura, 2005. p. 39.
189
O corpo na/da cidade é o corpo de Anayde. Através de sua imagem, o espaço femini-
za-se. Femini(ci)dade da Paraíba que suplanta, ao mesmo tempo em que seduz os signos mas-
culinos.
Em cena, nem João Pessoa nem as guerreiras de 1930 com suas vestes vermelhas e
negras. Ao que pareceria acinte às mobilizadoras da campanha pela mudança do nome e da
bandeira em 1930, Anayde vai sendo agenciada como a principal bandeira na campanha de
restauração dos antigos símbolos, também aparecendo como ponta de lança contra uma me-
mória que monumentalizou a imagem de João Pessoa. Isto, apesar de percebermos as “ga-
gues”, os “lapsos”, que nos soa como algo fora de lugar quando pensamos que, apesar de in-
ventada como um ícone de ousadia e transgressão, a imagem dela passa a ser capturada tão
facilmente por discursos que falam de restauração, justificando um retorno que acena para o
mito da origem, a uma identidade fundante e, portanto, fixa.
A potencialidade de sentidos inscritas no corpo-manifesto de Anayde seguem fabri-
cando-a, na medida em que as fronteiras que vão traçando o corpo de femini(ci)dade para
Paraíba se mostram movediças. No transcurso de toda essa discussão, os referenciais identitá-
rios de gênero evidenciam a disputa que vai tecendo os lugares de saber e suas estratégias de
poder. Observando suas representações neste jogo, vemos seus deslocamentos em constante
operação: A Paraíba masculina, capital João Pessoa pode se tornar Paraíba feminina, capital
Parahyba? Bem, não podemos esquecer que alguém já lembrou que não adianta, pois Parahy-
ba é topônimo masculino! Mas será feminina, se for Capital Anayde, como sonhou Marcus
Aranha? Ainda assim continuará sendo “mulher-macho”? E se for Filipéia? Frederica? OK,
mas são nomes femininos em homenagens a homens? — imagens da terra-fêmea em homena-
gem aos seus “reis-machos”... Então, seria mais apropriado pensar como Jomard Muniz de
Britto : Paraíba Masculina Feminina Neutra?
Enquanto a discussão amplia os estratos discursivos deste espesso arquivo, a imagem
de Anayde Beiriz permanece sendo atualizada e, colada nela, apesar de todas as recusas, a da
“mulher-macho”. No desenrolar mesmo de toda essa (re)invenção dos signos espaciais, ela se
torna a “Anayde de todos os tempos”, vive em 1930 e na atualidade, torna-se o referencial de
memória dos vencidos no passado e dos que se consideram oprimidos no presente. Torna-se
um modelo, um espelho em que se olha a Anayde de “hoje e as que estão por vir”:
190
Para Anayde de ontem, as de hoje e as que estão por vir, não desistam, não
importa o destino que terão, seja trágico ou glorioso, o importante mesmo é
manter-se íntegra nas suas crenças e valores, é não mutilar-se emocional-
mente, não deixar que te façam prisões invisíveis calando tua voz, pois estas
te roubam a vida e a alma. Saibam que um preço certamente será pago, as-
sim mesmo, vale a pena e muito ser Anayde, vale a pena ser uma mulher
de verdade. 272
Como se pode ver, o apelo à memória de Anayde não transporta somente a idéia de
uma identidade espacial e cultural revelada pelo cair das máscaras da história, aparece todo o
tempo conjugada a um desejo de verdade que diz respeito aos lugares de gênero. Em vários
momentos, quer com as guerreiras de 1930, quer com Anayde, guerreira de todos os tempos,
somos mobilizados a pensar em lugares verdadeiros, papéis, identidades, que pretendem no-
mear de forma mais diretiva o que é legitimamente de um e outro, do masculino e do femini-
no.
“Mulher de verdade” no texto acima se torna inclusive uma condição contínua, perene,
que atravessa tempos sem modificações. Anayde, que pode ser tantas, múltiplas no espaço e
no tempo, volta e meia acaba presa na armadilha que a captura para um rosto único, rosto da
permanência. Afinal, que é uma “mulher de verdade”? Pensar nisso, por sua vez, remete-nos a
todos aqueles embates em torno dos “homens de/da verdade” relacionados aos eventos de
1930, analisados no capítulo anterior. A maquinaria que engendra os verdadeiros representan-
tes de seus sexos surpreende, pois, na sua forma de golpear, produz assujeitamentos quando se
pensa estar realizando um corte, uma ruptura, uma digressão.
Ao invés de um devir-mulher, um corpo-em-mulher. Lembrando que a idéia de devir
está ligada à possibilidade ou não de um processo se singularizar, e que esta seria a forma das
minorias romperem com as estratificações dominantes, Félix Guattari já opunha a idéia de
reconhecimento de identidades à de processos transversais, de devires subjetivos que se ins-
tauram através dos indivíduos e dos grupos sociais. Ele chega a alertar que “toda vez que uma
problemática de identidade ou de reconhecimento aparece em determinado lugar, no mínimo
estamos diante de uma ameaça de bloqueio e de paralisação do processo”. 273
Atravessando esta questão, a pergunta feita por Foucault produz seu eco: “Precisamos
verdadeiramente de um verdadeiro sexo?” Não basta a designação verdadeira do sexo que
passa a assumir o lugar do corpo, mas todo o fazer-se que corresponda a esta designação, e
272
DAVID, Paula. Para Anayde de todos os tempos. In: FARIAS, Piedade. Anayde: a história de uma mulher
que na vida foi ultrajada. Apresentação. Coletivo Cultural Anayde Beiriz. Paraíba, 2008. (grifo meu).
273
GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 1996.
p.74.
191
mais, que o enalteça e que o valorize em detrimento do outro. No caso da verdadeira mulher,
trata-se daquilo que a presume acima de outro modelo não verdadeiro de mulher, o que con-
seqüentemente faz ressoar a imagem daquela que será menos mulher, uma não-mulher, um ser
amorfo ou ambíguo, que também não alcança nunca a verdade porque não pode então ser um
autêntico outro, ou seja, um homem. A mesma lógica podendo ser acionada no caso do “ver-
dadeiro homem”.
Justo com base nestas determinações sobre o verdadeiro sexo que revela o verdadeiro
ser e que, por conseguinte, quebra as máscaras, destrói as ilusões, fissura os mitos em detri-
mento da história como um lugar da justiça e da verdade, agencia-se a imagem da “mulher-
macho”. Esta, em composição com a figura normatizada de Anayde, prevalece como um cor-
po que, ambivalente, fugidio, não oferece a nitidez de um verdadeiro sexo.
Perceba-se, mais uma vez, que esta não é uma apropriação uníssona, pois no caso de
ícones das lutas sociais, no caso das personagens da literatura regionalista, é justo a prevalên-
cia de um caráter viril sobre o sexo feminino que projeta e move “a mulher de verdade”. E
ainda, inclusive em ressonâncias mais recentes, há apropriações que conjugam a imagem de
“mulher-macho” como intensificadora dos atributos de uma feminilidade intensa, como sendo
típica das mulheres da terra, “fortes e femininas”. É o que vemos neste elogio à mulher-
macho, postado em espaço virtual, pela autora do blog entre prosa e poesia, que se apresenta
com o nome de Pan:
Na minha terra, toda moça tem os olhos carregados. São cheios de sol quan-
do abrem sorrisos e despejam chuvas nos fracassos. Fala manso, com um so-
taque arrastado, proseia nos terraços abençoados pelo Senhor. Palavras va-
gando pelos ares entre redes e conversas demonstram todo seu valor. Aqui a
gente roda a saia para dançar coco e nas mãos dos outros seguramos uma ci-
randa. Batemos palmas, fazemos coro, versos, rima — imagina!— uma mis-
tura que encanta. Oramos para a mãe de Jesus e para a mãe d’água, Iemanjá.
Comemos fruta só tirada do pé: jambo, pitomba, araçá. No finalzinho da tar-
de, fazemos café, tapioca, torrada. Comemos, damos risada, descansamos de
nosso dia. Quem conhece a mulher-macho, cabocla forte e feminina, entende
a expressão cunhada pelo poeta: as moças de minha terra têm um orgulho
danado dela. Eu moro num canto do mundo onde chamam Paraíba. Quem
chega por aqui, não quer saber de despedidas. 274
Tal elogio, embora trace uma linha de fuga à dicotomia dos caracteres de gênero, o faz
agenciando elementos que positivam a imagem da “mulher-macho” num cenário que remete à
paisagem do campo e/ou daquela mais próxima da paisagem naturalista, ainda reforçando os
274
PAN. Elogio à mulher-macho. Disponível em: <http://entreprosaepoesia.blogspot.com/2008/02/elogio-
mulher-macho.htm> acesso em 30 março 2008.
192
signos de uma tradição que remetem a uma imagem de preservação do passado. Concomitan-
temente, localiza a Paraíba como este espaço do natural, do bucólico, do místico, de um femi-
nino orgulhoso e apaziguado em sua ambigüidade.
Este apaziguamento, contudo, parece continuar sendo difícil quando se trata de locali-
zar a “mulher-macho” em espaços outros. A Anayde Beiriz, ligada à cultura urbana, engen-
drada como modelo de “nova mulher”, o que em sua época já a ameaçava de ser incluída no
território das viragos, recusa-se freqüentemente este lugar dúbio. Sobretudo à medida em que
ele é compreendido potencialmente como o lugar de uma sexualidade transgressora, excessi-
va, que ameaça o seu ser “essencialmente feminino”, o que conseqüentemente atinge e amea-
ça as masculinidades forjadas em sua oposição — João Pessoa — ou como seu complemento
— João Dantas e, mais recentemente, também Heriberto Paiva. Neste fluxo, ameaça a própria
coerência de uma imagem unívoca para o Estado.
Esta recusa, que soa como a afirmação da sua memória, veio reforçar e mesmo facili-
tar a apropriação da sua imagem pelo movimento que nega João Pessoa, como nome, como
mito, como reconhecimento identitário. Mas, embora se anuncie, apregoe-se, não se afirma
como mudança dos signos que seguem forjando os lugares binários e estanques de gênero.
Este deslocamento, decerto, requer algo mais, como uma abertura que dialogue diretamente
com os modos de produção da história e que não se firme na idéia — pode-se dizer obsessiva-
de uma identidade original, de uma história revelada.
O lançamento do diário de cartas de Anayde Beiriz decerto veio oferecer um desses
momentos de abertura. Em parte possibilitou constituir uma materialidade para ela e sua me-
mória, em parte também intensificou esta identificação entre a imagem dela e a de uma “ou-
tra” cidade. Femini(ci)dade. Mas a sua apropriação desde então me faz questionar seu efeito
enquanto construção de uma outra história, não apenas uma versão diferente, mas outros refe-
rentes, sentidos e usos que, por seu turno, remete todo o tempo ao enfrentamento daquilo que
diz respeito aos corpos, às sexualidades e subjetividades de gênero.
Embora, como aqui demarcado, o filme dirigido por Tizuka Yamazaki, tanto pelas
imagens que elabora, quanto por aquelas colocadas em movimento pela recepção, tenha se
constituído num marco da (re)invenção de uma corporeidade, que veio presentificar Anayde
Beiriz, a publicação recente da correspondência dela com Heriberto Paiva, um namorado an-
193
terior a João Dantas, vem conferir ainda maior visibilidade aos signos corporais, sensuais e
afetivos que marcam sua imagem, abrindo mais o campo de sua dizibilidade.
Contudo, delineia-se então outra tensão entre as narrativas sobre ela que, no meu en-
tender, se não seria mais a de censurá-la por sua inscrição no território da sexualidade, con-
corre para fixar sentidos para o que seria neste campo mais apropriado às mulheres, ou seja,
mais condizente com as expectativas de um comportamento que, embora reiteradamente ins-
crito como ousado, transgressor, observa também seus limites para escapar da pena de tornar-
se um ser de/na fronteira, o que então comumente se associa à imagem da “mulher-macho”.
Marcus Aranha apresenta o livro Anayde Beiriz: Panthera dos Olhos Dormentes como
uma iniciativa de “tentar desfazer a detratação mítica”, em oposição àquela do filme de vinte
anos atrás que “terminou em aviltamento, coisa não merecida”. Então ele segue apresentando
alguns daqueles argumentos, já analisados no primeiro capítulo, que elegem o filme, desde o
seu título, como ofensivo e deturpador.
Parece reconhecer, entretanto, que no esteio daquela que seria uma obra com preten-
sões mercadológicas, gerando uma receita considerável para os padrões da época, Anayde
“propositada e deliberadamente esquecida até na terra onde nasceu por força da Aliança Libe-
ral” passava a ser lembrada no Brasil inteiro. Mas o faz lamentando, já que para ele o filme
apresenta a protagonista, do começo ao fim, como “uma prostituta apaixonada por um reacio-
nário”, condenando-a novamente. 275
Aranha sabe que sua opinião não está isolada, ela se apóia em outras tantas publicadas
ao longo dos anos e vale-se de algumas delas para legitimar seu olhar. Conta, por exemplo,
com a opinião expressa na época de lançamento do filme pela jornalista Letícia Lins para o
Jornal do Brasil:
De mulher- macho, Anayde Beiriz não tem nada. Sensual, meiga e apaixo-
nada, não pretendia ser revolucionária. Defendia o direito de acesso ao voto,
de participar da vida política do país. Amou livremente a ponto de se envol-
ver com um homem conservador, de cujas idéias discordava. Enfrentou pres-
sões e preconceitos, mas não se entregou... Os dezoito livros de história con-
temporânea da Paraíba não falam no seu nome. É relegada na escola, desco-
nhecida por historiadores e tida como prostituta pela sociedade paraibana.
Segundo o escritor José Joffily, “não existe uma só mulher, naquele Estado,
com o nome de Anayde”. 276
Contudo, podemos ver que em que pese a recusa à imagem da “mulher-macho”, o ar-
275
ARANHA, Marcus. Anayde Beiriz: Panthera dos olhos dormentes. João Pessoa: Manufatura, 2005. p. 27-36
passim.
276
LINS, Letícia apud ARANHA, Marcus. op. cit., p. 34.
194
gumento da jornalista não se desassocia por completo daquele do filme ou do livro de Joffily.
Afinal, de que outra forma ela tivera acesso à imagem de Anayde? De onde vem a dedução de
que a professora discordava do seu homem conservador, se não de uma cena de Parahyba
Mulher Macho em que ela interpela João Dantas, criticando suas posturas e colocando “no
mesmo saco” perrepistas e liberais? Mas isso não parece importar muito ante a necessidade de
demarcar a oposição à corporeidade de Anayde como “mulher-macho”, a sua retratação ante
uma sexualidade considerada excessiva e desviante. Contra isso, Aranha apresenta algo mais,
um “trunfo” no jogo pela verdade, a correspondência “registrada de próprio punho” por A-
nayde, quando tinha entre 20 e 21 anos de idade, que foi transcrita e, enfim tornada pública,
oitenta anos depois:
277
ARANHA, op.cit., p. 41.
195
É certo que comumente somos tentados a pensar na escrita pessoal como uma mani-
festação do “eu” mais verdadeiro, contudo, se a tomamos para uma análise histórica, não po-
demos nos deixar tragar pelo confortável desejo de que temos ali uma pessoa revelada, entre-
gue numa prática que, por ser íntima, amorosa, é destituída de artimanhas, táticas, das tramas
de uma micropolítica, que tecem sua historicidade. E procurar marcar nossa leitura com estas
percepções tampouco é colocar em xeque a sinceridade do outro, daquele que escreve, fazer
juízos de valoração.
Tomar a escrita de Anayde como uma fonte para a análise da construção da sua subje-
tividade, uma “escrita de si”, que nos permite problematizar questões que dizem respeito à
época dela e ao que a liga ao nosso tempo, penso ser uma perspectiva muito mais rica do que
indicá-la como a possibilidade de restaurar seu rosto ante a captura do seu corpo “excessiva-
mente” exposto em outras produções. E, certamente, um exercício mais complexo do que re-
duzi-la à interpretação de um “ser feminino” modelado pelos discursos da normatividade.
Assim, acredito que a análise da escrita pessoal de Anayde Beiriz, conquanto se ofere-
ça rica em possibilidades, marcada pela idéia da intimidade e da sinceridade — pactos co-
muns às escritas pessoais — não deve ser referendada como uma fonte que “revela” a verda-
de, que determina e define sua identidade. Este é certamente um dos problemas mais comuns
nas lidas com este tipo de fonte, em que muitas vezes tende-se a ver ali o “ser” do autor, sua
comprovação.
Lembrando inclusive que as cartas têm seu destino e é em relação a este que o reme-
tente se mostra, portanto, se faz; esta escrita é uma produção de si, passa por uma seletividade
de palavras, de imagens, que não ocupam um lugar aleatório na composição da face e do cor-
po de quem escreve. É também uma tessitura feita numa rede de linguagens, que põe em fun-
cionamento signos interessados, artífices de um jogo de saber e poder sempre dinâmicos.
Como nos diz Michel Foucault:
Escrever é, portanto, “se mostrar”, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto
perto do outro. E isso significa que a carta é ao mesmo tempo um olhar que
se lança sobre um destinatário (pela missiva que ele recebe, se sente olhado)
e uma maneira de se oferecer ao seu olhar através do que lhe é dito sobre si
mesmo. A carta prepara de certa forma um face a face. [...] o trabalho que a
carta opera no destinatário, mas que também é efetuado naquele que escreve
pela própria carta que ele envia, implica uma “introspecção”; mas é preciso
compreendê-la menos como deciframento de si por si do que uma abertura
que se dá ao outro sobre si mesmo. 278
278
FOUCAULT, M. A Escrita de si. In: ______. Ética, Sexualidade, Política. Manoel Barros da Silva (Org.).
Tradução Inês Autran D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2004, v. V (Coleção Ditos & Escritos).
p. 156.
196
Apesar de há muito tempo utilizadas como fontes em estudos de diversas áreas, escri-
tas pessoais, como as dos diários e das cartas, registrando a cotidianidade, as impressões, sen-
sações e sentimentos da “vida ordinária”, adquiriu principalmente nas três ultimas décadas do
século XX um outro status, inclusive com um crescimento de instituições especializadas em
arquivos privados, e abarcando uma reflexão teórica e metodológica mais ampla de sua análi-
se e apropriação. Contudo, no desenvolvimento de pesquisas históricas, a quantidade de traba-
lhos que se voltam principalmente para este tipo de escrita ainda é pequena, até como reflexo
do pouco tempo, nesta área, em que ela passou a ser considerada como fonte privilegiada e,
até mesmo, como objeto de estudo. 279
Ângela de Castro Gomes, no prólogo da coletânea Escrita de si, Escrita da História,
pontua este tipo de escrita, também chamada auto-referencial, como integrante de “um con-
junto de modalidades do que se convencionou chamar de produção de si, no mundo ociden-
tal”, que por sua vez engloba uma variedade de práticas, desde as mais diretamente ligadas à
escrita de si, como as autobiografias e diários, até o recolhimento de objetos materiais, como
fotos, cartões, objetos do cotidiano, que passam a constituir uma memória de si. Tais práticas
culturais ganharam sentidos específicos com a emergência do individualismo ‘moderno’ em
sobreposição a uma lógica coletiva, regida pela tradição; momento em que o indivíduo postu-
la uma identidade singular para si no interior do todo social, afirmando-se como valor distinto
e constitutivo desse mesmo modo. 280
Ainda de acordo com esta historiadora, no caso da escrita de cartas pessoais, sua ex-
pansão corresponde ao processo de privatização da sociedade ocidental, com a construção de
novos códigos que permitiram o estabelecimento de uma “intimização” da sociedade. Os usos
destes códigos que vieram possibilitar uma espontaneidade na expressão de sentimentos como
a amizade e o amor têm na escrita de cartas sua forma mais emblemática, com a particularida-
de de serem dirigidas a outrem, a um destinatário:
Assim, tal como outras práticas de escrita de si, a correspondência constitui, simul-
taneamente, o sujeito e seu texto. Mas, diferentemente das demais, a correspondên-
cia tem um destinatário específico com quem vai se estabelecer relações. Ela implica
uma interlocução, uma troca, sendo um jogo interativo entre quem escreve e quem lê
— sujeitos que se revezam, ocupando os mesmos papéis através do tempo. Escrever
cartas é assim “dar-se a ver”, é mostrar-se ao destinatário, que está ao mesmo tempo
“sendo visto” pelo remetente, o que permite um tête-a-tête, uma forma de presença
(física, inclusive) muito especial. 281
279
GOMES, Ângela de Castro. In: _______(Org.) Escrita de si, Escrita da História. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2004.
280
Ibidem, p.11-12.
281
Ibid., p.19. Aqui a autora dialoga com Michel Foucault e suas contribuições para “a escrita de si”.
197
Portanto, sem perder de vista essa relação de alteridade, que no caso de Anayde Beiriz
reporta principalmente para uma alteridade de gênero, as cartas que ela escreve e que depois
transcreve para um diário junto com as que recebe do namorado Heriberto Paiva, constitui
como que um exercício duplo desta prática, onde a produção de si é intensificada pela escrita,
mas também pela produção de um memorial daquela relação, presentificada pelos manuscri-
tos e fotografias. Prática esta que se constituiu como o modo privilegiado e possível que o
casal encontrou para manter seu envolvimento, dificultado pela distância — ele no Rio de
Janeiro, ela na Parahyba — e pelas barreiras morais e sociais que se impunham entre eles, já
que a família dele reprovava o seu namoro com Anayde, razão pela qual acordaram logo no
início da correspondência manter em sigilo aqueles contatos — o que tornava as cartas ainda
mais íntimas, envoltas na aura do secreto.
Não é meu objetivo aqui fazer uma análise mais ampla desta escrita de si, dado os
meus recortes, minhas escolhas. Mas a farei de forma mais circunscrita àquelas passagens
que, a meu ver, acrescentam novas nuances aos significados e à historicidade da imagem da
“mulher-macho”, colada e tão recusada à imagem de Anayde. Interessa-me justamente pers-
crutar nos signos liberados por sua escrita, os sentidos que possibilitam inscrevê-la num terri-
tório outro, de oposição àquele corporificado pelas “guerreiras” de 1930.
Marcadas por táticas de sedução, de captura do outro, de parte a parte, as escritas dos
apaixonados são ricas nas imagens que um (re)elabora do outro, ao passo que produzem a si
mesmos. Para o exercício aqui proposto, por adensarem os signos que possibilitam pensar a
tessitura do corpo de Anayde como um corpo insurgente, corpo-manifesto, insistirei, em par-
ticular, nas marcas que fazem cintilar os traços dessa corporeidade. Esta mesma que constrói
para ela um lugar de memória, encontrando ressonância anos depois de sua existência em ou-
tras escrituras e, mesmo, apesar da recusa constante, na própria narrativa de Parahyba Mulher
Macho.
Como não admirar a escrita de uma jovem que se declara intensamente apaixonada,
mesmo depois de mais de um ano sem notícias do seu amado, mas que ao receber sua primei-
ra carta enuncia um sentimento vibrante e renovado? Porém, a questão mais intrigante é pen-
sar como — vivendo na segunda década do século XX, quando os dispositivos disciplinares
sobre o corpo e a conduta das mulheres imprimiam-se ainda intensamente nas falas, nos ges-
tuais, nas vestimentas, nas interdições sexuais — ela se permite inscrever-se num território
outro, de desvio, de expressão dos seus desejos?
Após as últimas cartas recebidas de “Hery”, como costuma referir-se ao namorado de
forma mais carinhosa, que comumente reportavam à saudade, às memórias de um encontro
198
passado e às questões práticas da vida dele de estudante — o tanto a estudar, a greve da facul-
dade, as tarefas diárias — Anayde o escreve:
[...] Quando as tuas mãos premiam as minhas mãos, numa carícia apaixona-
da e unida, sentia vibrar em mim, forte o desejo de enlaçar-se nos braços, u-
nindo a minha bocca à tua bocca. E muitas vezes ouvi dos teus lábios um le-
ve queixume, porque não me mostrava meiga e ardente como tu; parecia-te
naquele tempo, uma creatura sem nervos, fria, insensível, não é verdade,
meu amor? Fiz o possível pra não trahir-me, para que não conhecesses tal
qual eu era: ardente, apaixonada, vibrante...Temi muitas vezes que os meus
olhos te revelassem o que eu queria que tu desconhecesses e só agora, (e isto
porque estás longe e não me podes ver tão cedo), eu tenho animo de revelar-
me aos teus olhos, tal qual sou. Não me creias uma mulher romântica, pi-
edosa, dessas que amam pacifica e sinceramente, mas sem intensidade e
sem ardor, essas mulheres que sabem ser mães, mas que não sabem ser
amantes. Talvez preferisses que eu fosse desse numero e se eu não o qui-
zesse poderia parecer-te sempre assim, mas eu não desejo enganar-te. Se
chegar algum dia a ser tua, encontrarás em mim, a esposa, a mãe, a a-
miga, a irmã e, mais que tudo isso, encontrarás a amante, a mulher. Sei
que não é bonito isso que te estou a dizer, mas a confiança que tenho em ti
leva-me a falar-te deste modo. 282
282
BEIRIZ, Anayde. In: ARANHA, op.cit., p. 218-19.
199
para ela uma pele viva, “vibrante”... Ela demarca assim sua necessidade de mostrar-se, de
entregar sua intimidade, ainda que da forma imagética constituída pela sua escrita, àquele para
o qual, com esta prática, ela acredita estar dando provas do seu amor e confiança. Um pacto
de intimidade, que procura intensificar vínculos, vencer a distância física, dando uma presen-
ça sensorial ao outro.
O texto vai tomando o lugar dos corpos dos enamorados. Com a motivação da intimi-
dade que o percurso da correspondência foi tornando possível, Heriberto também vai soltando
sua imaginação, descreve sonhos e pensamentos em que a toma para si, ambienta-a no interior
da casa que pretende ter com ela e permite-se lançar luz na penumbra do quarto deles na noite
de núpcias:
Marcada por um clima erótico, o escrevente reconhece sua audácia tanto nas imagens
que cria, quanto na prática de registrá-las e compartilhá-las com a namorada. Reconhece que
pode ferir o pudor da amada, aquele mesmo que ele deseja ver na postura dela durante o en-
contro sexual — ela o acompanha, mas as iniciativas são dele. O pudor e o recato que se so-
brepõem ao desejo dela parecem produzir sobre ele um efeito maior de sedução e excitação.
Uma imagem decerto diferente daquela criada pela narrativa fílmica, em que temos um corpo
feminino mais explícito e empoderado dos seus desejos.
E, num tom semelhante, Anayde corresponde com sua escrita. Demarca o seu pudor e
receio, mas não deixa de também liberar as suas sensações físicas, de manifestar o ardor que
tantas vezes declarava esperar da vida a dois. Descrevendo a noite fria em que estava, contras-
ta-a com a sua alma que sente calor, motivada pelas sensações intensas emanadas da escrita
do seu “Hery”.
283
PAIVA, Heriberto. In: ARANHA, op.cit., p.151.
200
O sangue corre nas minhas veias com ardências satânicas; o desejo se enros-
ca no meu corpo como uma serpente de fogo... E tudo isso porque li a tua
carta! E que carta louca, meu Amor! Foi-me impossível lel-a sem corar; um
rubor de pejo subiu-me às faces e instinctivamente levei a mão ao decote do
meu vestido como para defendel-o de ser aberto por ti. Affigurou-me, não
estar lendo uma carta tua e sim ter-te junto a mim. Crê, meu Hery, que expe-
rimentei a sensação de ter os seus cinco dedos a apertar-me a carne numa ca-
rícia violentamente sensual. O leve contacto da roupa irritou-me a pelle, deu-
me a impressão de ser o contacto da sua mão nervosa e febril que me percor-
resse o collo num afago voluptuoso. [...] Se nas minhas cartas eu tenho usado
de uma linguagem demasiadamente franca, (não quero dizer livre), é porque,
quando te escrevo, deixo o pensamento seguir os impulsos da minha nature-
za sensual e vibrátil; é porque sei que o amor sincero é confiante e perdoa
essas loucuras do coração e dos sentidos. 284
284
BEIRIZ, Anayde. In: ARANHA, op.cit., p.153.
201
Sem a prática sexual aprendida com a prostituição não adquire o homem suf-
ficiente conhecimento da psychologia feminina, o que será um perigo quan-
do se casar...O appetite sexual é em geral mais intenso no homem e por isso
cabe ao homem a parte activa do coito...o papel da mulher é em geral, me-
ramente passivo, a mulher é na regra commum menos sensual, nella o instin-
to de geração está mais conservado que no homem...na mulher domina, so-
bre o instincto sexual, o instincto maternal...Dahi Egas Moniz affirmar que
“o homem é essencialmente sexual e a mulher essencialmente mãe”. 285
Pode-se perceber a ressonância desta visão no fluxo que move as escritas dos namora-
dos. O ambiente do encontro sexual é o da noite de núpcias, propiciada pelo matrimônio. Ele
manifesta o desejo de forma mais explícita, intensa nos gestos que podem levar ao “bestial” e
“ousado”. Ela, iluminada pelo desejo dele, é todo acolhimento e sentimento, comovendo-se
com o ato sexual que consubstancia-se num ato de amor. Já na sua própria escrita, Anayde,
embora em várias passagens enalteça seu lugar como amante, compreende-o também como
uma condição da vida de casados, e ao ler a carta “louca” de Hery, lembra que esta ainda não
é a situação deles, e procura defender-se da nudez e da exposição diante do outro, mas nem
por isso repelindo-o, tampouco negando o seu próprio desejo — a estratégia é justamente a do
controle, do outro e de si.
Avanços e recuos, continuidades e descontinuidades. Ao longo da correspondência,
podemos verificar também a modelação do seu lugar de esposa e mãe devotada. Há descrições
da fantasia sobre o cotidiano deles quando casados, em que ela o espera chegar cansado do
trabalho ou o ver sair para um chamado de emergência, o alimenta, cuida dos filhos — estes
são inscritos várias vezes nas cartas de ambos, ganhando nomes e faces. Ela aparece sempre
disponível para ele, como esposa, mãe e amante, o que a própria escrita dela vem referendar,
ressaltando a importância deste último lugar:
285
LEME apud MATOS, Maria Izilda S. de. Delineando Corpos: as representações do feminino e do masculino
no discurso médico (São Paulo 1890-1930). In: MATOS, Maria Izilda S.; SOIHET, Rachel (Orgs.). O Corpo
Feminino em debate. São Paulo: Editora da Unesp, 2003. p.117.
202
Eu almejo fazer da nossa vida de casados, um sonho sem despertar, uma pe-
rene lua de mel. [...] eu quero realizar o milagre com que sempre sonhei: ter
uma creatura para quem eu seja, só eu, a imagem adorada, a mulher deseja-
da, a própria Felicidade... Uma creatura, que atravez dos annos, encontre nos
meus beijos, nas minhas caricias, o sabor do primeiro beijo, a sensação da
primeira caricia nupcial... E creio que unicamente de mim depende trans-
formar o sonho em realidade, pois penso sinceramente que, neste caso,
cumpre à mulher conduzir o homem consoante à sua vontade. Que a es
posa saiba ser para o esposo uma artística e deliciosa amante, uma ami-
ga desinteressada e indispensável, uma conselheira risonha e serena,
com o mesmo rigoroso asseio, os mesmos attractivos de quando noiva e
não acredito que esse homem possa desprezar ou aborrecer essa mulher,
salvo se nunca a tiver amado, ou se for um tarado, um doente moral. 286
Assim, no fluxo das cartas, podemos ter acesso às marcas que designam os lugares e
as funções de gênero daquele contexto, sem, entretanto, senti-los como algo “fora do lugar” se
pensarmos no que, ainda hoje, atua na produção dos corpos e lugares do feminino e do mascu-
lino. Se conseguimos ver facilmente as linhas de fuga que ela traça para si ao privilegiar o
lugar da amante, da mulher sexuada e vibrátil, isso se configura até um limite dado pela rela-
ção de alteridade, pelas táticas de sedução de um outro que está sempre também a lembrar das
suas outras funções. Não à toa, quando também permite-se a fantasiar o cotidiano do casal,
depois de recebê-lo fatigado do trabalho, Anayde imagina coduzindo o marido até o quarto
“onde num pequenino berço, um bebê louro e rosado, de olhos azues como os teus, nos esten-
derá os bracinhos, sorrindo...” 287
Ela acaba por inscrever-se como uma mulher do seu próprio tempo, atravessada por
ele e pelos códigos da sua historicidade. Veja-se a imagem criada por Anayde para a respon-
sabilidade feminina na manutenção do sonho de casamento ideal, sendo este perfilado pelos
signos do amor romântico e como “contrato” indispensável na organização de uma sociedade
que preza a monogamia, a higiene, o controle sobre as práticas sexuais. A fidelidade é usada
como marca também de uma sanidade física e moral. Percebe-se, pois, todo um investimento
nos preceitos que valorizam a função social feminina, porém privilegiadas no campo do pri-
vado, no território da ordem familiar e, sobretudo, amorosa. À mulher cabendo o poder de
conduzir e garantir a manutenção da conduta correta e sã do marido, o que por sua vez, passa
a regrar a própria existência dela.
O investimento maior da “captura” do outro se dá no terreno da sexualidade, onde ela
pretende fazer-se sempre sedutora e merecedora das atenções do amado, e através deste terre-
286
BEIRIZ, Anayde. In: ARANHA, op.cit., p. 26. (grifo meu).
287
Ibidem, p. 64.
203
no e para além dele corre a dinâmica do dispositivo amoroso. A interferência deste no da se-
xualidade constrói as mulheres como “diferentes”. Para a historiadora Tânia Navarro, ao se-
guir a genealogia do dispositivo amoroso nos diferentes discursos que instituem a imagem da
“verdadeira mulher”, vê-se incansavelmente repetidas suas qualidades e deveres: (“doce, a-
mável, devotada, incapaz, fútil, irracional, todas iguais!) e sobretudo, amorosa. Amorosa de
seu marido, de seus filhos, de sua família, além de todo o limite, de toda expressão de si”. 288
Há que se enfatizar, entretanto, que Anayde não parece ver a sexualidade apenas de
forma acessória ao amor, é seu constitutivo, sua expressão mais intensa e freqüente; mas é o
que ela designa de amor o que se coloca como o centro da sua vida, o que a cria enquanto
mulher, o que aparece moldando sua subjetividade.
Há ainda que se destacar que, embora por vezes, sobretudo ao início da correspondên-
cia, ela procure compartilhar com Heriberto seus talentos e afazeres literários, relatando seu
trabalho com os contos, sua atuação junto aos Novos — grupo de jovens intelectuais que or-
ganizavam serões lítero-dançantes, sendo ela a única moça a participar — a Anayde professo-
ra e escritora, entretanto, não ganha imagens e espaços significativos nas cartas e nas fantasias
de Heriberto. Embora ele de início peça para ler seus contos e por vezes elogie suas cartas
bem escritas, de “uma linguagem extraordinariamente bella e amorosa”, não demonstra muito
interesse e incentivo ao talento e atividades profissionais da namorada. Antes, até, mostra-se
hesitante com a presença dela nos serões, diz ter medo de que estes, por aproximá-la do meio
social, acabem fazendo com que o esqueça.
A insegurança com relação ao comportamento dela é uma constante nas cartas de He-
riberto, mesmo que quase sempre termine reiterando sua confiança na namorada. Insegurança
insuflada pelas freqüentes insinuações da madrasta dele que se opunha declaradamente ao
namoro dos dois, criando para Anayde uma imagem desviante, que colocava em dúvidas a sua
moral como “moça de família”. Entre as acusações que Heriberto ou a própria Anayde ouvem
dizer, constam a de ser Anayde dada ao uso da cartomancia, ou ainda de não estar à altura da
família de Heriberto, por “pertencer à raça dos cativos”, entre outras coisas que ele prefere
não nomear para não ferir a namorada, mas que, sem dúvidas, plantavam nele a semente da
dúvida.
Ela deixa os Novos para agradá-lo, cada vez menos destacando nas cartas seu trabalho
como escritora. Talvez também por isso zelasse para que sua escrita não parecesse demasia-
288
SWAIN, Tânia N. Entre a vida e a morte, o sexo. In: Labrys. Revista de Estudos Feministas. Brasília, UNB,
n.10, jun. 2006. Disponível em < http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys10/livre/anahita.htm> Acesso em 14
fevereiro 2008.
204
damente “livre”. Porém, as inscrições da sua singularidade não passam despercebidas pelo
namorado; ele é seduzido, mas certamente teme a inteligência e a autonomia dela, estando
sempre a pedir provas do seu amor e fidelidade, enredando-a no seu projeto de vida.
Decerto, ela não o contraria, mas o incômodo não desaparece ante as juras de amor e
as imagens apaixonadas que tecem em suas cartas, nem mesmo diante de tantas marcas que a
inscrevem no território da normatização feminina. O que vem culminar com a declaração de
um amigo dele de que haveria dançado com ela num certo baile de fevereiro na casa do Dr.
Maciel. Heriberto cruza com as datas de escrita e postagem de uma carta em que ela se dizia
doente, impossibilitada de andar, e na qual lembrava o aniversário de morte do pai dele. Sente
“os dentes rangerem de ódio e de desespero” e escreve para ela acusando-a de mentirosa, de
profanar a memória do pai, tendo roubado a mocidade dele, feito assim a sua infelicidade.
Anayde lhe escreve pela “derradeira vez”, procurando mostrar-lhe o quanto fora injus-
to: “accaso você se lembrou de perguntar ao seu amigo em que anno elle dansou comigo em
casa de Maciel?” Ao que esclarece ter sido em ano anterior, tendo ela inclusive a mencionado
quando reataram a correspondência. Para ela a quebra de confiança dá a medida do amor de
Heriberto. Os sonhos de um lar feliz, dos lindos filhinhos se desfazem. Com intensidade ela
procura expressar a sua dor, que ironicamente prenuncia experiências que ela virá a ter num
futuro próximo, enredada numa outra história amorosa:
289
BEIRIZ, Anayde. In: ARANHA, op.cit. p.167.
205
Caríssimo/a leitor/a, nada disso é ficção. Aranha nos entrega uma histórica
narrativa epistolar de uma grande paixão, a ser reencontrada nos documentos
transcritos. Havia, sim, uma sociedade metida a besta; que, se não fosse tão
pedante e autoritária, Anayde seria esposa de Heriberto, e João Pessoa até
poderia ter sido eleito vice-presidente da República. Mas, Anayde, mulher
livre para amar, encontrou em João Dantas aquilo que a estupidez do ciúme
de Heriberto lhe negou: a possibilidade de amar e de ser amada em perfeita,
completa e integral cumplicidade. Depois disso, só lhe restava a Morte. Com
certeza, Marcus Aranha, atribuir a Anayde Beiriz o epíteto de “mulher-
macho” é grosseiro e não traduz a personalidade dessa minha “avó” tão fe-
minina. Contudo, revela que, para algumas pessoas, inclusive Tizuka Yama-
saki, mulher com o perfil de Anayde Beiriz não passa de vadia... ou de mas-
culinizada (como se coragem para amar e ser inteligente fossem atributos
exclusivos do macho). Lamento o quanto essa mentalidade passa longe da
compreensão da trágica vida de uma de minhas “antepassadas”. Anayde Bei-
riz foi mulher fêmea, sim, senhor — e com coragem bastante para se suicidar
quando perdeu João Dantas, o último amor de sua tão curta vida. Parabéns!
Marcus Aranha, por devolver à Paraíba e às mulheres brasileiras Anayde
Beiriz, apaixonada, inteligente, sonhadora, romântica, amada, pudica e feri-
da. 290
É interessante perceber que o lançamento do livro em meio a uma série de práticas que
buscam elaborar uma “nova” memória para Anayde, inclusive tentando descolá-la dos even-
tos de 1930, serve-se às vezes da intensidade das cartas para nomear Heriberto Paiva como “o
verdadeiro amor de Anayde” ou ainda “o maior amor”, isso como tática de distanciá-la dos
laços com a imagem de João Dantas. Sonia van Dijck pensa diferente, percebe os entraves e
dificuldades de um homem como Heriberto compreender uma mulher “livre para amar” como
Anayde. E reafirma a idéia do casal “perfeito”, que se completa, o que em cruzamento com
outras opiniões, nos faz pensar em João Dantas como um conservador na seara política, mas
um liberal com relação aos costumes e conduta da vida pessoal.
De um modo ou outro, elegendo Heriberto Paiva ou João Dantas como o “cúmplice”
ideal, são os dispositivos amoroso e sexual que cercam e definem o enredo da trajetória escri-
ta para Anayde Beiriz. Depois da realização do amor “só lhe resta a Morte”. Ou, conforme
outros, uma vez impedido e maculado o seu amor e sua honra só lhe restava a dignidade da
morte. Sim, estas marcas não surgem ao acaso, elas estão enunciadas na escrita da própria
Anayde, seja em seus contos com heroínas atormentadas pelo amor, que chegam ao suicídio,
seja em suas cartas para Heriberto. Mas não deixa de ser intrigante como quase um século
depois isso continua sendo agenciado como um elemento comum à subjetividade feminina,
quase um destino, uma bandeira legítima para a “revolução” vivida por Anayde em sua vida
290
DJICK, Sônia van. Panthera ferida de morte. Correio da Paraíba. Paraíba, 06 de março de 2005. p. A-7.
206
pessoal e que, decerto, aparece ainda como elemento norteador e definidor de vida e morte
para as mulheres.
Mais uma vez o “epíteto de mulher-macho” é recusado, reiterando-se que este contra-
ria a Anayde que se revela tão feminina, uma “mulher fêmea, sim senhor!”, o que logo signi-
fica: “apaixonada, inteligente, sonhadora, romântica, amada, pudica e ferida”. E é esta a ima-
gem que se “resgata” no enfrentamento contra a de “mulher “vadia”, que Sonia van Dijck,
concordando com Aranha, acredita que o filme de Tizuka Yamazaki veio referendar.
Então o que vejo? Um caminhar em círculos. Se a marca da “mulher-macho” prende a
imagem de Anayde a códigos falocêntricos, que representam seus signos de ousadia e liber-
dade a partir de referências masculinistas, a de “mulher-fêmea” ou essencialmente feminina
não faz menos. Coloca-se em jogo a mesma concepção binária, que pensa numa relação dua-
lista e de oposição o que é próprio a cada gênero, fixando-os. Mais, muitas vezes, ainda que se
apoiando na idéia de construtos sociais, envereda-se pelo que é “naturalmente” do território
de um e outro.
Vejo que se faz necessário perguntar a toda essa produção: Por que se lê com tanta
facilidade na pele de uma personagem erotizada, como a Anayde do filme, a imagem de um
corpo de “mulher vadia” ou de “prostituta”? A inteligência é contrária à explicitação da sexu-
alidade? Existem, e separadas, a “mulher-sexo” e a “mulher-amor”? Amar livre se opõe ao
amor livre?
Enquanto as questões ecoam, fico pensando nos pequenos enredos desta espessa ma-
lha: nos anos 1980 os esforços eram de dirimir a importância histórica de Anayde para os e-
ventos de 1930, uma vez que se pretendia a história como o lugar da macropolítica. A Anayde
perfilada pelos códigos de fins do século XX foi tão mal compreendida e recusada como a-
quela pelos seus contemporâneos de 1930, ou ao menos pelos que tomaram como legado a
preservação da memória de João Pessoa. A recepção do filme ao longo dos anos ateve-se,
sobretudo, às marcas da sexualidade, tomando-as de pronto como uma afronta à memória de
Anayde, mas também à de João Dantas e João Pessoa. Mais recentemente, a crítica se refaz
com um “novo” trunfo, a escrita epistolar de Anayde e um outro namorado, em que ironica-
mente, como no filme, somos convidados a olhar pelas “frestas” o mais íntimo do casal, vo-
yers de uma história de paixão; mas, pelas falas que os apresentam, conduzidos a ver ali uma
Anayde de um “feminino normal”, sem esquecer, entretanto, de registrar sua “ousadia”, aqui-
lo que vem a inscrevê-la como “uma precursora do feminismo na Paraíba”, como compreende
Marcus Aranha.
A sexualidade, também fortemente presente nas cartas escritas por Anayde Beiriz,
207
decerto não produz o mesmo efeito daquela escrita na película. Embora seja marcante, ousada
em sua expressão considerando-se os códigos então vigentes, ela é lida em oposição àquela
representada no filme. Sem dúvidas, ganha legitimidade por ser expressa pela própria Anayde,
é tomada como sua verdade, mas principalmente por ser uma sexualidade regulada pelo dis-
positivo amoroso, passando assim a ser considerada “normal”, passível de ser publicizada,
própria e compatível ao que se espera das mulheres-fêmeas — não na Parahyba da época de
Anayde, que certamente veria ali algo escandaloso e desviante (mais próprio às mulheres vi-
ragos), mas ainda na do início do século XXI . É esta, a sexualidade, ou como se prefere, a
sensualidade sã, romantizada, que regula a vida e a morte da professora, que se pretende como
o fio condutor da construção de sua memória, e que, no seu curso, emerge como aquela que se
coloca digna e própria da experiência feminina.
Como parte de um conjunto de práticas que seguem na interação, na recusa, nos ajus-
tes, criando subjetividades, estes discursos enunciam e reforçam regras aplicáveis aos gêne-
ros. Apoiando-se em Michel Foucault para pensar o dispositivo da sexualidade e como isto
vai ao encontro da fórmula de Judith Butler de que “não há gênero fora de práticas de gêne-
ro”, Tânia Navarro Swain me ajuda a pensar esta produção como constitutiva das tecnologias
de gênero que dão espessura aos “processos de subjetivação”. Diz a historiadora:
291
SWAIN, Tânia N. Entre a vida e a morte, o sexo. In: Labrys. Revista de Estudos Feministas. Brasília, UNB,
n.10, jun. 2006. Disponível em < http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys10/livre/anahita.htm> Acesso em 14
fevereiro 2008.
208
códigos binários, dicotômicos, ainda quando anunciam o desejo de fazer o oposto. Fixam a
imagem dela no terreno da normatividade, justo quando a pretendem ousada, transgressora.
Questão insolúvel; à medida que insistem em capturar seu corpo, fazendo-a assumir um rosto
específico. As implicações da linguagem denunciando os condicionamentos de uma cultura
em que ainda o sexo aparece como determinante identitário. Em que a sexualidade e o amor,
como dispositivos reguladores e definidores de caráter, servem para nos dar a dimensão de
quão profunda é a pele que encouraça os corpos, que provoca o assujeitamento.
Isso me leva a perceber a pertinência do que diz Tânia Swain, inclusive bem arremata-
da no título do seu artigo: “entre a vida e a morte, o sexo”. O sexo, a ampla zona de fronteira
que (des) mobiliza os sujeitos, sendo constituída e constituinte deles, regulando seus estágios
entre a vida e a morte, o mais das vezes definindo-os. “O que, afinal, determina a importância
do sexo e da sexualidade como raízes da identidade, do ser-no-mundo, da socialização, do
processo de subjetivação?” A questão (re)colocada pela autora, que atravessa os estudos fe-
ministas, que angustia aos que estudam as relações de gênero, ressoa nessa produção discursi-
va que constrói imagens, que tenta insistentemente colapsar a “essência feminina” de Anayde
Beiriz, a exemplo do que muitas vezes se busca no estudo de outras tantas mulheres que ad-
quiriram, em seus contextos, alguma visibilidade.
Então a pergunta ecoa: há um sexo e uma sexualidade próprias para cada gênero? As
experiências e as sensibilidades constituídas no mundo contemporâneo cada vez enfraquecem
mais um desejo ainda pulsante de responder afirmativamente a tal problema. Mas não se pode
subestimar a eficiência das armadilhas que continuam sistematicamente armadas, prontas para
a captura, em vista dos múltiplos e eficientes dispositivos que subjetivamos ao longo de tem-
pos. Mecanismos que retroalimentam os projetos identitários, fixando papéis, estriando espa-
ços, instituindo “corpos-em-mulher” e “corpos-em-homem”, criados em oposição e no jogo
de uma relação hierarquizada, onde o homem, como referente masculino, torna-se o princípio,
o elemento a partir do qual se institui o seu outro, diferente, faltante, menor, imperfeito...
Então o que dizer deste corpo estranho que habita a fronteira, que se instaura num
trânsito, no hiato, na lacuna? A polissemia da corporeidade traçada em tantas tessituras para
Anayde, mesmo quando há recusa, reafirma sua potencialidade em exceder os espaços fixos e
dicotômicos que tentam encaixar o “ser feminino” no “corpo-em-mulher”. Sua imagem, em
tantas dobras, flexibiliza-se, expande-se na medida em que, muito mais interioriza-se, bordan-
do labirintos de subjetividades que nos permitem ler, decodificar caracteres de nossa própria
contemporaneidade.
209
Assim, o texto demarca que há um lugar específico do feminino para o qual se voltaria
a “nova mulher”. A idéia que prevalece é a de uma nova figura, transformada, que não se o-
punha aos atributos da feminilidade e que, portanto, não destituiria assim a “mulher de seu
lugar de importância”. É possível identificar as ressonâncias com as análises de Joel Birman
quanto à emergência de uma “nova Carmen”. Mas aqui este “novo lugar” visualiza-se em
inteira oposição ao da “Paraíba, mulher-macho”, mais diretamente relacionada às imagens
mais recentes das feministas.
Então, estando agora muitas portas abertas, destitui-se de razão aquelas que não vi-
venciem a recuperação dos “traços femininos na mulher”. De certo modo, compreende-se que
um dia esta postura tenha sido necessária, mas como uma veste, uma máscara — sobremodo
utilizada pelas feministas consideradas radicais — poderia agora ser abandonada para dar
lugar a um sentido original de feminilidade; sua essência, portanto, poderia de novo sobressa-
ir-se, inscrita no corpo dessa “nova mulher”.
Nesta instigante operação, a autora usa a expressão “Paraíba, mulher-macho” como
um qualificativo claro às mulheres sem os atributos considerados naturais da feminilidade,
que então correspondem ao poder de sedução e sensualidade. E isto para não mais usá-los
como aprisionamento dos homens, como armas na “guerra dos sexos”. Afinal, o foco não é
combater os homens, torná-los rivais, mas “companheiros”. A figura da “nova mulher” do
milênio não se faz em relação de oposição com o masculino no homem, mas com o masculino
na mulher, com esta imagem desarrazoada, esvaziada de signos de feminilidade, que é a da
292
CEZAR, Luciana C. A feminilidade e a mulher do novo século. In: Flickr: Discussing. Bem-querer mulher.
Disponível em <http:www.flickr.com/groups/bemquerermulher/discuss/170204/> publicado em 30 setembro
2004. Acesso em: 23 junho 2007. (grifo meu).
211
293
Aqui tem Paraíba Mulher-Macho, Sim Senhor! Blogueia. Postado em 25 setembro 2005. Disponível em:
<WWW.blogueia.com/2007/09/25.html.> Acesso em 12 dezembro 2007.
212
Como se pode ver muitas das imagens visitadas ao longo deste trabalho são agencia-
das na construção desse corpo caricato: as mulheres do cangaço, do sertão, as que militam na
luta pela terra...todas se tornam “Paraíba, mulher-macho”. Especialmente “ao sair do armá-
rio”, revelam-se no desejo por outras mulheres. No jogo da sedução podem se tornar “nova,
bonita e carinhosa”, parodiando o refrão de uma famosa música interpretada por Amelinha,
cantora nascida no Nordeste, que originalmente remete a uma imagem heterossexual: “mulher
nova, bonita e carinhosa, faz o homem gemer sem sentir dor”, e que na sua letra também se
apropria de signos ligados ao cangaço e da estereotipia de um masculino e feminino nordesti-
nizados. 295
Desenho e texto reforçam-se mutuamente. Os signos da virilidade travestem o corpo
da “mulher-macho”, que se vale das armas para capturar e aniquilar homens — neles sim, elas
provocam dor — e o cenário com o cacto, a carcaça de boi e a terra seca fazem referência à
espacialidade, ao sertão, que aparece capturado pela nomeação da Paraíba. O estereótipo se
apresenta, portanto, com toda sua intensidade, amalgamando um preconceito que pesa sobre
uma identidade espacial ao que pesa sobre a homossexualidade feminina.
Estas apropriações que lançam a imagem “Paraíba, mulher-macho” em terrenos ou-
tros, configurando-a como uma estilística que avança as fronteiras, que pratica outros lugares,
possibilitam pensá-la como uma imagem que apresenta sua face migrante — fazendo um iti-
294
BARALDI, Márcio. Paraíba Mulher-Macho. Disponível em: <http: //www.gruposummus.com.br>. Acesso
em 24 outubro 2007.
295
A canção foi tema de abertura da série televisiva Lampião e Maria Bonita, da Rede Globo, em 1982. AMELI-
NHA. Mulher Nova Bonita e Carinhosa. Otacílio Batista; Zé Ramalho [Compositores]. In: Mulher Nova Boni-
ta e Carinhosa. CBS, 1982. LP.
214
nerário de deslocamento entre sua terra natal e o lugar que a recebe — mas que, simultânea e
surpreendentemente, desafia-nos com seu potencial nômade, transitando entre passagens, sem
destinos pré-determinados. Lembramos então com Deleuze que “os nômades estão sempre no
meio”. 296
Esta imagem não pertence a um tempo, a uma época específica, e ainda que carregue
consigo um topônimo geográfico, tendo-o atrelado ao seu corpo, desenha outras cartografias.
Pode estar na Paraíba, em Votuporanga, como em qualquer outro lugar; pode ser o avesso das
sensibilidades da “nova mulher” do milênio, ao passo que é chamada para dar corporalidade
àquelas que explicitam sensibilidades outras, com desejos diversos daqueles subsumidos pela
rostidade da “nova mulher”. Compõe-se como expressão pejorativa que estereotipa espaço e
gente, mas mobiliza conjuntamente signos de resistência, que falam de afirmação e sugerem
criatividade — espacial, sexual, cultural. Uma imagem de fronteira, que como percebe Guaci-
ra Lopes Louro:
Não há como minimizar o conteúdo sexual e de gênero que opera nesta zona fronteiri-
ça em que se instala a “mulher-macho”. É principalmente aí que a vejo demonstrar seu poten-
cial nômade, pois é chamada a falar de lugares de sujeito que “freqüentemente, recusam a
definição das fronteiras, e assumem a inconstância, a transição e a posição “entre” identidades
como intensificadoras do desejo”. No “entre” experimenta o movimento, o percurso que pode
se constituir como a “autenticidade” maior ou mais próxima do lugar de sujeito. A qualquer
instante, inclusive, podemos ser surpreendidos pela inversão que a fronteira instiga, sem que
isso signifique uma determinação — são as surpresas do trânsito.
As várias fontes e os diversos usos de linguagens também funcionam num trânsito
296
DELEUZE apud LOURO, Guacira L. Um Corpo Estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo
Horizonte: Autêntica, 2004. p. 21.
297
Ibidem. p. 20.
215
para enunciar os rizomáticos trajetos dos nômades. Se flagramos as imagens acima agenciadas
no campo virtual, foi no território das chamadas “novas tecnologias”, não podemos deixar de
frisar o quanto elas são recorrentes e criativamente ressignificadas nas chamadas fontes tradi-
cionais. Por exemplo, como até já apontada no segundo capítulo, na Literatura de Cordel. E aí
é interessante destacar a representação que esta possui enquanto manifestação popular, para
dimensionarmos o amplo alcance destas imagens fronteiriças dos gêneros, do “entre” sexos,
das ambigüidades.
Num “diálogo” com aqueles elementos agenciados pelo texto que materializa a “Para-
íba, mulher-macho” em Votuporanga, encontramos uma apropriação semelhante que, coloca
em cena signos de violência simbólica, teatralizando as diferenças sexuais e as táticas de re-
sistência das mulheres, num território que seria cada vez menos de dominação masculina.
Vemos isso de perto no folheto A Mulher que vendeu o marido por R$ 1,99 - de Jan-
duhi Dantas. O autor inicia fazendo uma contextualização dos “novos tempos”, em que a
“mulher de Atenas” e a “Amélia” deixaram de ser modelos do feminino, em que “a mulher
hoje já faz/tudo que faz o machão”, embora não tenha desaparecido totalmente “o cabra safa-
do/ que não muda o pensamento/que não respeita a mulher”, sendo este o caso do personagem
Damião, casado com Côca. O casal é então apresentado num desencantado cotidiano:
Era assim que Damião/ (o ex-marido de Côca)/ queria viver: na cana/sem ti-
rar copo da boca/ enquanto sua mulher/ em casa feito uma louca...cuidando
de três meninos/ lavando roupa e varrendo/ feito uma negra-de-ferro/ de fo-
me o corpo tremendo/ e o marido cachaceiro/ pelos botequins bebendo. 298
De manhã Côca acordou/ com a braguilha pra trás/ deu cinco murros na me-
sa/ e gritou: “Ô Satanás/ eu vou te vender na feira/ vou já fazer um cartaz!”
Pegou uma cartolina/ que ela havia escondido/ escreveu nervosamente/ com
a raiva do bandido:/ ”Por um e noventa e nove/ estou vendendo o marido”.
Assim mostrou ter no sangue/ sangue de Leila Diniz/ Pagu, Maria Boni-
ta/ de Anayde Beiriz/ (de brasileiras de fibra)/ de Margarida e Elis! 299
298
DANTAS, Janduhi. A mulher que vendeu o marido por R$1,99. Patos : [S.n] ,08 de março de 2005. p. 03.
299
Ibidem. p. 05.
216
enigma, que começa com o nascimento da criança, que “ninguém sabe por que/ foi o sexo
escondido/ pelos pais desse inocente/ logo depois de nascido/ Que sendo menina foi/ como
menino vestido”. 300
Como menino a criança foi batizada como José João e cresceu como tal, tornando-se
homem, quando “farrou, jogou e bebeu”. Nada parecia errado ou estranho, até que o seu ami-
go mais próximo, José Augusto, também vaqueiro, aquele mistério percebeu e mais que uma
amizade fez o segredo de José João vir à tona: “Era que José Augusto/ por um motivo qual-
quer/ tinha descoberto que/ José João era mulher/ E na panela de Joana/ meteu a sua co-
lher...” 301
José João, menino por toda a vida, torna-se Joana na descoberta sexual com o amigo.
Mas o texto faz-nos entender que ele/ela só tem compreensão da sua “nova” condição ao dar à
luz um menino, depois de meses em que ele/ela e todos ao seu redor acharam que sua barriga
crescera por estar comendo muito ou por alguma enfermidade. Eis seu ritual de passagem para
o mundo feminino:
José João abriu os olhos/ foi avistando um menino/ compreendeu que muda-
va/ nessa hora o seu destino/ de homem para mulher/t eve o seu maior desa-
tino... [...] José Augusto também/ disse que não se casava/ o menino era seu
filho/ porém ela não prestava/ já era de todo mundo/ a ninguém não respeita-
va. Ela retrucou dizendo:/ — Que é isso “Neuto”, meu bem,/ eu nunca saí do
trilho,/ para onde é que você vem?/ só gostei do seu amor,/ no mundo e de
mais ninguém. Estou muito satisfeita/ por descobrir a verdade/ do meu esta-
do de vida/ na sexualidade,/cumprindo o dever de mãe/ na lei da maternida-
de. 302
Então, por uma decisão externa, de seus pais, que encobriram o seu sexo, a criança a-
prendeu um modo de ser e constituiu para si uma identidade só abalada pelo “instinto mater-
nal”. O sexo revela ao outro seu corpo feminino, mas em si, na sua prática, não é suficiente
para desvelar para ele, José João, sua face mulher. Nem mesmo a gravidez, mas somente o
parto e o contato com o filho é que o/a faz “descobrir sua verdade”.
Embora aqui também possamos ver as linhas se refazendo, com o agenciamento do
mito do amor materno e dos dispositivos sexuais que operam sobre o corpo feminino, temos
na maior parte da história a experiência do “entre” sendo destacada, denunciando que o fazer-
se homem de José João fora possível apesar do seu sexo, dos seus atributos naturais de meni-
na, sendo assim compreendido como um aprendizado contínuo ao qual fora motivado desde o
300
D”ALMEIDA FILHO, Manoel. O vaqueiro que virou mulher e deu à luz. São Paulo: Prelúdio [ 198-?].
p.05
301
Ibidem.
302
Ibidem. p. 12.
218
nascimento.
Também se mostra interessante o fato desta confusão de identidades sexuais e de gê-
nero reportarem a um meio comumente tido como conservador e moralista, o campo, o modo
de ser “vaqueiro”, agenciando toda a força das tipologias para o sertanejo, que como já discu-
tido, tem a força e a virilidade como marcas triunfantes. Ainda curioso que a recusa de José
Augusto em desposar José João não apareça justificada pelo fato deste ter até então vivido
como homem, mas porque uma vez mulher passa a pesar sobre ele/ela a suspeita da devassi-
dão, sua honestidade ficando comprometida e, com isso, sua possibilidade de tornar-se ou não
a esposa do seu amigo-amante.
Entrevemos no percurso desta narrativa literária muitas outras histórias, inclusive não-
ficcionais, passagens que nos remetem a práticas e conflitos cotidianos de (con)formação do
sexo em identidade de gênero. Percebemos, por exemplo, a ressonância com os casos das fe-
male husband, designação utilizada para uma “pessoa do sexo feminino que se disfarça de
homem e mantém uma relação estável com outra mulher”, conforme a explicação de Susan
Clayton, ao analisar o caso de James Allen (1787-1829) no artigo O Hábito faz o marido? 303
James Allen morava em Londres, atuando profissionalmente como serrador de vigas,
“sóbrio e trabalhador”, tendo se casado com uma mulher com quem vivera por 21 anos e sen-
do apenas descoberto de que se tratava de “um do ser feminino” após sua morte acidental no
trabalho, quando então, pelas circunstâncias, seu corpo foi submetido a uma autópsia. Aí o
grande espanto: por baixo das roupas masculinas, “eles [os médicos] tiveram sob os olhos
uma mulher com as formas físicas mais belas que já haviam contemplado”, como noticiou um
dos muitos jornais da época interessados em cobrir o caso. 304
Para Susan Clayton, toda a produção discursiva sobre o caso Allen, ressoando em ou-
tros testemunhos existentes há séculos sobre as female husband, oferece vários desafios, de
linguagem e de relações sociais. Os conflitos estão em cena: Como se referir a Allen? No
masculino ou no feminino? O que vai designá-lo/a? Sua anatomia contém sua verdade ou a-
quilo que foi sua performance por toda a vida? A sociedade teria o direito de nomear o seu
gênero em oposição àquilo que parecia ter sido a sua escolha e o seu exercício em vida? O seu
sexo captura e nomeia o seu gênero?
A autora lembra ainda das possíveis razões desta escolha, à qual pesa todo o esforço
de ter passado a vida sob o travestimento, provavelmente possibilitara a James Allen atingir
303
CLAYTON, Susan. O Hábito faz o marido? O exemplo de uma female husband, James Allen (1787-1829).
In: SCHPUN, Mônica R. (Org.) Masculinidades. São Paulo: Boitempo Editorial; Santa Cruz do Sul: Edunisc,
2004. p.151-174.
304
Ibidem, passim.
219
“uma realização pessoal que não teria conhecido se não tivesse travestido” na sociedade in-
glesa do século XIX. Tivera acesso a profissões interditadas em sua época às mulheres e, con-
siderando os depoimentos de sua esposa Abigail, o marido — assim ela via Allen — manifes-
tara sempre afeto e desejo por ela, o que sugere a possibilidade de viver conjugalmente com
alguém do mesmo sexo sem comprometer sua aceitação social.
Embora no caso do nosso cordel, José João acabe se reconhecendo como mulher na
maternidade e preferindo o amor de um homem, até então passara a vida travestido e, ao que
parece, não se percebendo como diferente frente aos homens com quem se relacionava no
trabalho e no seu círculo social de vaqueiros. Só a intimidade sexual o revela, mas muito mais
para o outro do que para si. A narrativa o coloca em trânsito sem grandes conflitos pessoais,
tornar-se homem passa pelo travestimento — prática que enuncia signos culturais do “ser
masculino”, enquanto tornar-se mulher enuncia-se pelo assumir-se perante uma “força mai-
or”, a da natureza, imposta pela maternidade.
Apesar das diferenças de trajeto, num e noutro caso, da literatura e da história, perce-
be-se a força do binarismo sexual, que opera na tentativa de firmar os indivíduos num ou nou-
tro território, prevalecendo a “ordem natural” como requisito demarcador de identidade origi-
nal e determinante, quer na discussão judicial que o inquérito sobre Allen coloca, quer em
como a opção pela feminidade, diante da maternidade, reflete os dispositivos que mantém a
dicotomia cultura/natureza.
Contudo, mais que isso, tem-se acesso através das narrativas às vulnerabilidades des-
tes lugares, colocados em xeque pelas práticas que lembram todo o tempo a existência de um
trânsito: as diversidades subjetivas, que em diferentes épocas escapam aos dispositivos disci-
plinares vigentes, forçando as instituições a se defrontarem com seus limites e contradições.
Como no caso designativo da female husband para o século XIX, assim como o caso
da nomeação de “mulher-macho” que se encontra tão visível ao longo do século XX no Bra-
sil, faz-se uma reunião híbrida de dois termos, que permanecem em paralelo, o que enuncia a
continuidade do binarismo, falando de mulheres que adotam papéis ou caracteres reservados
aos homens, não podendo ter suas práticas institucionalizadas e por isso propensas a serem
consideradas como anomalias.
Porém, observo que nas apropriações da “mulher-macho”, as zonas de atuação e cria-
ção subjetiva são mais amplas que aquelas imputadas às female husband, que já presumem
um papel institucional masculino específico vivenciado pela travestida. O mesmo não ocor-
rendo, portanto, nas imagens da “mulher-macho”, que podem aparecer descritas como soltei-
ras, casadas, heterossexuais, homossexuais, bissexuais, transexuais, masculinizadas nas con-
220
dutas e/ou nos atributos corporais — estes podendo ser “caracteres naturais” ou acessórios
para o travestimento, e não necessariamente assumindo de forma clara e coesa uma só dessas
identidades, o que nos remete às nomeações da teoria queer, de um heterogênero ou de um
transgênero.
Queer pode ser traduzido como “bizarro”, “estranho”, mas se constituiu como forma
pejorativa de designar homens e mulheres homossexuais, sendo depois assumido por uma
vertente dos movimentos organizados por estes, justamente para caracterizar sua perspectiva
de contestação, passando a significar uma oposição à normalização. Como alvo mais direto, a
matriz heteronormativa compulsória, assim como a própria política identitária do movimento
homossexual dominante. Nos anos 1990, estas práticas políticas articularam-se à produção de
um grupo de intelectuais, que passaram a utilizar o termo para nomear sua perspectiva teóri-
ca. 305
Tal perspectiva tem apontado para os limites e contradições dos usos da categoria gê-
nero, desafiando e alcançando a produção do pensamento feminista. Denunciando que os es-
tudos de gênero por muito tempo viram a heterossexualidade como uma realidade dada, natu-
ralizada, confinada ao sexo biológico, em detrimento da noção de gênero apresentada como
construto social e cultural, a teoria queer vem apontar as contradições de um sistema em que a
prática sexual, ligada a uma determinação biológica, remete aos construtos dos papéis sociais
do masculino e do feminino, mantendo privilegiada a divisão binária do humano.
Uma das críticas mais contundentes a tal uso veio da historiadora e feminista Teresa
de Lauretis, na sua elaboração sobre a tecnologia do gênero:
Para poder começar a especificar este outro tipo de sujeito (múltiplo em vez
de único, e contraditório em vez de simplesmente dividido) e articular suas
relações com um campo social heterogêneo, necessitamos de um conceito de
gênero que não esteja tão preso à diferença sexual a ponto de confundir-se
com ela, fazendo com que, por um lado, o gênero seja considerado uma de-
rivação direta da diferença sexual e, por outro, o gênero possa ser incluído na
diferença sexual como um efeito de linguagem, ou como puro imaginário —
não relacionado ao real. Tal dificuldade, ou seja, a imbricação de gênero e
diferença(s) sexual(ais), precisar ser desfeita e desconstruída. 306
305
LOURO, Guacira L. Um Corpo Estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autên-
tica, 2004. p. 23.
306
LAURETIS, Teresa de. A Tecnologia do Gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.) Tendências e
Impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 208.
221
ca estaria indo além de Foucault, já que na suas formulações sobre a tecnologia sexual ele não
levara em consideração os apelos diferenciados de sujeitos masculinos e femininos, o que
teria excluído, embora não inviabilizado, a consideração sobre o gênero.
Mais adiante, Judith Butler avança nestas questões, oferecendo mais problemas de
gênero, dedicando-se aí também à análise dos atos corporais subversivos, como os relaciona-
dos às práticas queers. Por sua vez, propõe a compreensão de gênero enquanto um ato que,
como outros dramas sociais rituais, requer uma performance repetida. Tal performance, não
transcenderia à estrutura binária de gênero, mas a colocaria em cena não como “causa”, e sim
como “efeito”. Apesar dos corpos individuais encenando as significações de gênero, esse ato
seria uma “ação” pública. Diz Butler:
O gênero não deve ser construído como uma identidade estável ou um lócus
da ação do qual decorrem vários atos; em vez disso, o gênero é uma identi-
dade tenuamente constituída no tempo, instituído num espaço externo por
meio de uma repetição estilizada de atos. O efeito do gênero se produz pela
estilização do corpo e deve ser entendido, consequentemente, como a
forma corriqueira pela qual os gestos, movimentos e estilos corporais de
vários tipos constituem a ilusão de um eu permanente marcado pelo gê-
nero. [...] O gênero também é uma norma que nunca pode ser completamen-
te internalizada: o “interno” é uma significação da superfície, e as normas de
gênero são afinal fantasísticas, imposíveis de incorporar. [...] Os gêneros não
podem ser verdadeiros nem falsos, reais nem aparentes, originais nem deri-
vados. Como portadores críveis desses atributos, contudo, eles podem se tor-
nar completa e radicalmente incríveis. 307
307
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad.: Renato Aguiar. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 200-01.(grifo meu).
308
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizon-
te: Autêntica, 1999. p. 107.
222
[...] Minha mulher apesar de ter saúde/ foi pra Hollywood, fez uma opera-
ção/ agora veio com uma bossa nova/ uma voz grossa que nem um trovão/
quando eu pergunto: o que é isso, Joana?/ Ela responde: você se engana/ Eu
era Joana antes da operação/ mas de hoje em diante meu nome é João/ não se
confunda nem troque meu nome/ fale comigo de homem pra homem/ fique
sabendo mais de uma vez/ que você me paga tudo que me fez/ Agora eu an-
do todo encabulado/ e essa mágoa é que me consome/ por onde eu passo to-
do mundo diz/Aquele é o marido da mulher que virou homem. 309
309
O PENSADOR, Gabriel. A Mulher que virou homem. Jackson do Pandeiro. Elias Soares. [Compositores] In:
Jackson do Pandeiro Revisto e Sampleado. BMG Brasil, 1998.
223
[...] Ele era José Maria/ E ela Maria José/ Ele era Macho e Fêmea/ Nem sei
dizer como é/ E ela era Fêmea e Macho/ Que botava tudo abaixo/ E vivia no
cabaré. Era uma moça solteira/ E com toda mulher transava/ Se era homem
ou mulher/ Devido ao que se passava/ Só ela mesmo sabia/ Ou alguma com-
panhia/ Que com ela namorava. [...] E Maria José deu/ Um beijo em José
Maria/ E naquele agarra, agarra/ Um queria, outro queria/A coisa foi de um
jeito/ Que ninguém olhou direito/ Como era que fazia. Só sei que assim/ José
Maria engravidou/ Então Maria José/ Com o marido ficou/ Foram se casar
então/ Aquela triste união/Até o padre estranhou.
José Maria estava grávido/ E assim Maria José/ Era o pai da criança/ E José
Maria/ Vivia bem satisfeito/ Crescendo a pança e o peito/ E ninguém sabe
ele o que é. Foram morar em Bayeux/ E aonde o casal passava/ O homem de
bucho empinado/ O povo todo zombava/ E a mulher era marido/ Tinha um
negócio escondido/ Mas a ninguém não mostrava. Arribaram de Bayeux/ Fo-
ram pra Juazeirinho/ No sertão da Paraíba/ E ali o casalzinho/ Ou seja: José
Maria/ Como Maria José vivia/ Todos dois no mesmo ninho. Mas o povo
achava estranho/ Um homem com um buchão/ Ele de barba no queixo/ E ela
não tinha não/ A barba era noutro canto/ Que servia de espanto/ E sempre
havia confusão. José Maria dizia:/ — Maria é o meu marido/ O povo dia: —
Oxente/ Um casal invertido?Um é barbudo, é mulher/ Outro é fêmea, mas
quer/ Ser pai do recém-nascido? [...] O macho era a mulher/ E a fêmea era o
marido/ Na brincadeira dois filhos/ O macho tinha parido/ E a mulher era o
macho/ Que botava tudo abaixo/ Se visse ele envolvido. Então o povo dizia:/
— O barbudo é a mulher/ O homem tem a cara lisa/ E não tem barba e sem
sequer/ Nem ela nem ele é sério/Ali existe um mistério/ Dê o caso no que
der. [...] Hoje o mundo está assim/ O povo faz o que quer/ Quem é mulher
vira homem/ E o homem vira mulher/ O mundo vai desmantelado/ O povo
está revirado/ E faz tudo o que quiser.[...] 310
310
LEITE, José Costa. O Casamento D’uma moça “macho-fêmea” com um rapaz “fêmea-macho”. Folheto
de Cordel. Paraíba : [s.n., 200-?].
224
De novo, e ao encontro destas idéias, lembro com Guacira Lopes Louro que persona-
gens que transgridem gênero e sexualidade podem ser emblemáticas da pós-modernidade,
entretanto, não se colocam como um novo ideal de sujeito, não se pretende como um novo
projeto a ser perseguido. Antes, a visibilidade e a materialidade deles tornam-se muito signifi-
cativas por evidenciarem, “mais do que outros, o caráter inventado, cultural e instável de to-
das essas identidades. São significativas, ainda, por sugerirem concreta e simbolicamente pos-
sibilidades de proliferação e multiplicação das formas de gênero e de sexualidade”. 312
Dobraduras. Assim também vejo as corporeidades híbridas operando dobras sobre a
espacialidade. Paraíba — topônimo masculino, artigo feminino, imagem de gênero duplo —
evoca o trânsito, enuncia experiências de fronteira que provoca risos, estranhamentos, incô-
modos, afetos de todos os tipos. Corpo aberto para estereotipias, mas também provocativo
para a arte, inspirando cantadores, literatas, cineastas, estudiosos, poetas de todas as lingua-
gens... Alguns nômades, outros sedentários, ou no fluxo de suas criações, experimentando as
fronteiras. Uma história que permanece em fluxo no entrecruzamento das linhas, que circu-
lam, alinhavam, fixam pontos, deixam meadas, fazem travessias e, claro, travessuras...
A Paraíba como “mulher-macho”, tão permanentemente atualizada, rica nas tramas da
sua historicidade, aparece no percurso que minha pesquisa pôde fazer, com uma corporeidade
múltipla que abriga e subjetiva corpos-manifestos, como o de Anayde Beiriz, corpos-
paisagens, como o de Margarida Alves, dobrando-se na incorporação de signos que a preten-
dem com um rosto ou outro, mas que não conseguem fazer ancorar na sua corporeidade uma
identidade estanque — o seu devir corpo, o seu devir mulher, o seu devir ambivalente, sempre
escapando às estratégias de encaixe e controle.
Ana, João, Mulher, Macho... Todos e tudo em jogo, na prática de lugares que desafiam
311
ALMEIDA, Margarete. “O Casamento d’uma moça ‘macho-fêmea’ com um rapaz ‘fêmea-macho’”: o hibri-
dismo das identidades de gênero na Literatura de Cordel. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO
GÊNERO 7, 2006, Florianópolis (SC). Anais: Gênero e preconceitos. CD-ROM.
312
LOURO, Guacira L. Um Corpo Estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autên-
tica, 2004. p. 23.
225
a história a construir não representações, como imagens que presumem identidades, mas in-
tensidades. Isso, para darmos ouvidos às sensibilidades de Gilles Deleuze: “não troque a in-
tensidade por representações”. Então, por que ao pretender resistir criativamente a uma me-
mória monumento e/ou a uma estereotipia espacial e sexual devemos nos servir da mesma
“fria escrita de uma razão representativa” muito mais afeita aos valores da maquinaria de Es-
tado? Por que isso, se podemos, com a “escrita das intensidades”, conhecer um pouco mais do
“ar puro”, do lugar “de-fora” (no dizer de Foucault), que respira e experimenta o nômade? 313
Resistir, acredito, é potencialmente movimento criativo de/do poder, manifestação e
efeito de poderes. Ora, o “Nego” na bandeira do Estado nos acena com tal idéia de recusa que,
nos jogos discursivos, tornou-se representação de uma oposição, mas que não se constitui
num lugar “de-fora” do espaço estriado do Estado. Buscou-se em vários momentos destituí-lo
deste lugar de representação, e, se hoje a questão ainda reverbera, demonstrando sua capaci-
dade de atualizar-se, é um sinal das fissuras e quebras provocadas por todas as resistências
anteriores.
Mas as perguntas que aqui quero fazer reverberar são: por que precisamos depor uma
identidade estabelecida para compor outra, utilizando estratégias tão aproximadas em suas
práticas discursivas, que pensam a história como representação de uma verdade fundadora?
Mais: por que “resgatar”, por que (re)inventar outra tradição? Sendo esta, lembro, uma “nova”
tradição que ao definir uma paisagem “outra” para o espaço, agencia simultaneamente os sig-
nos definidores de lugares para os gêneros, continuando a mobilizar, nos entremeios de uma
tessitura que se pretende inovadora, representações de modelos de homens e mulheres de/da
verdade.
Corpos negados, outros (re)afirmados, como aqueles tecidos para Anayde Beiriz e pa-
ra João Pessoa, agora postos em confronto direto, reafirmam uma luta incessante de referenci-
ais dicotômicos, que pensam a diferença como oposição a igualdade e não como uma referên-
cia em si mesma, como condição existencial, que nos lança aos processos de singularidade e
multiplicidade.
“Somos seres únicos”, insistia Foucault, utilizando uma frase que faz parte de um sen-
so comum, mas que em se considerando a trajetória dele e suas influências sobre os estudos
feministas e os estudos queer, pontua com vigor a questão que permeia e atravessa todos esses
embates: a diferença. Eis o fenômeno que nos instaura sem, contudo, dar conta de dizer-nos,
no sentido de nos (re)apresentar ao/no mundo.
313
DELEUZE apud SCHÖPKE, Regina. Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade.
Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Edusp, 2004. p. 176.
226
A diferença, esta mesma que Deleuze acredita fazer-se na repetição, que vai inclusive
além da generalidade com que repetimos todos os dias as mesmas ações — como no fazer-se
cotidiano dos traços, gestos, atitudes, que (con)figuram as performances de gênero — instaura
a transgressão continuamente, movendo a existência criativa dos saberes e dos sujeitos nôma-
des. Saberes e sujeitos que desafiam a história ao pensamento, à criação, ao devir artista e
314
poeta, à compreensão de que “a escrita [da história] é um ato inacabado” . Assim como
inacabados são os atos que instauram nos corpos e para além deles, a diferença...
314
Parafraseando Deleuze. In: DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. p. 11.
227
CONCLUSÃO
ção, lançada em 1950, animando os conflitos políticos entre “herdeiros” dos lugares de me-
mória da chamada revolução de 1930, Argemiro de Figueiredo e José Américo de Almeida,
lançou-me num intercruzamento de discursos, remetendo-me para contextos diversos, porém,
aproximados por suas estratégias de elaboração de uma representatividade, de uma história
eivada de signos identitários, desejosos pela verdade que “salva” do esquecimento, que tenta
resistir e ultrapassar a morte, ao passo que arregimenta, mobiliza e “(re)encarna” corpos.
Corporeidades múltiplas. Manifestos. Paisagens. Móbiles. As palavras não dando con-
ta de contê-las, fixá-las. Para prontamente oferecer ao leitor o contato com a tenacidade dessa
imagem, iniciei a narrativa pelo momento que operou outra associação identitária, evidenci-
ando ainda mais seus construtos políticos e de gênero. Em 1980, através da tessitura de uma
Anayde Beiriz corpórea, sensual, libertária e “libertina” — como preferiu ver a recepção do
filme Parahyba Mulher Macho — foi possível ler os códigos de uma época marcada por im-
portantes conquistas e reivindicações de inspiração feminista, somada a um clima de tensão
entre as forças cerceadoras da liberdade de expressão, da sexualidade, e as que se impunham
em favor da redemocratização, da apropriação dos corpos, da livre-escolha do amor e do pra-
zer. Emergência da visibilidade dos corpos ambíguos, duplos, desafiadores das normas esta-
belecidas. Tessituras de uma “engenharia” discursiva operando sobre os corpos de homens e
mulheres, dizendo dos seus lugares na história e na memória. O conflito entre versões desafi-
adoras da institucionalização de um lugar da verdade para a história.
Compreendo então ter feito uma defesa do filme Parahyba Mulher Macho, não en-
quanto peça de inquérito para a historiografia do Estado, menos ainda como referência biográ-
fica de Anayde Beiriz, tampouco crítica do seu valor artístico e cinematográfico. Mas como
fonte importante, crucial até, para (re)colocar a discussão sobre a memória de 1930 na ordem
do dia, fazendo emergir com mais intensidade leituras divergentes, concepções conflitantes de
história e, neste ínterim, (re)construir a imagem de Anayde. Motivar — ainda que pela recusa
ao filme — outras práticas, discursivas e não-discursivas, sobre ela, os eventos que a ela se
relacionam, e principalmente acerca de compreensões sobre os lugares identitários de gênero,
tanto com relação ao contexto vivido pela professora e escritora, quanto pelo contemporâneo
que passa a experimentá-la como representação.
O filme possibilitou-me uma análise de imagens do feminino, do feminismo e das re-
lações de gênero nos anos 1980, no que pude perceber e construir diálogos entre ele, a produ-
ção relativa à sua recepção na Paraíba, e outros movimentos que naquele momento iam ao
encontro das discussões sobre o feminismo, as lutas sociais das mulheres e minorias, na cida-
de e no campo, a evidência de nomes de mulheres na seara político-partidária, a visibilidade
229
quisa histórica em diversos campos. Aqui me interessei em lê-las sob o viés dos estudos de
gênero, por acreditar na potencial sensibilização que estes vêm oferecendo aos historiadores
das últimas gerações para pensar muitas e importantes questões antes negligenciadas, expan-
dindo o repertório para o tratamento das alteridades. Inclusive, a própria feitura da escrita da
história, cada vez mais chamada a inscrever-se como intensidade, como marcas de pensamen-
to, instaurando outras maneiras de ler as fontes, de instaurar diálogos e confrontos, de tratar e
cruzar tempos e espaços.
Cruzei tais temporalidades ancorada em questões que são do meu presente, mas que
não me pareceram fixas, produzindo sentidos também nas perguntas feitas por aqueles que
viveram o passado e que creio ter conseguido fazer falar através da minha operação discursi-
va. Assim, este não se pretende um trabalho que identificou o que é a Paraíba, a “mulher-
macho”, e a “Paraíba mulher-macho”. Mas que procurou tratar dos debates e das diferentes
produções de sentido para a construção de tais referentes, como corpus espacial e de gênero,
em vários momentos, considerando suas ressonâncias. Um exercício de pensar a mobilidade
das imagens nômades, dos corpos híbridos, das existências fronteiriças.
Projetada como corpo-paisagem e corpo-manifesto, a imagem da Paraíba como “mu-
lher-macho” desloca simultaneamente uma série de arquivos, que instaura lugares, institui
personas, possibilitando experimentar o efeito sensível da performatividade de gênero. Embo-
ra nomeada numa lógica relacional dicotômica, binária, que adjetiva um gênero com o que se
considera seu oposto, ela salta, dá cambalhotas, transformando-se num substantivo, que iden-
tifica sujeitos, que confere para eles uma corporeidade sem, entretanto, conseguir dar conta de
dizê-los, decifrá-los, localizá-los prontamente quanto a um sentido ou mesmo uma materiali-
dade.
A diferença instituída na lacuna que separa o sujeito e seu qualificativo é suprimida
por um trânsito, um hiato, que ainda separando, põe em comunicação constante os lados da
fronteira, extravasando-as e misturando-as — espessas zonas borradas — o que possibilita em
certos agenciamentos, um fluxo intenso de significados. Isso, penso eu, coloca em cena a
construção de uma transvia, alternativa ao jogo do binário, que pula para fora do encaixe ele
ou ela, homem ou mulher, macho ou fêmea, masculino ou feminino, e mesmo do binarismo
hetero ou homossexual.
Personifica sim, um estereótipo, oferecendo a dimensão da dificuldade de uma cultura
centrada numa lógica dual de lidar com a imagem arquetípica da ambivalência — não dois
diferentes, nem dois iguais, mais dois equivalentes. Equivalência, contudo, não funcionando
como garantia de uma estabilidade, de um perene equilíbrio de forças que tenderiam para lu-
232
gares opostos. Aliás, se há uma estabilidade, ela só pode ser compreendida na convergência
das diferenças, na experiência do trânsito, do exercício cotidiano da performance de gêneros,
o que opera por deslocamentos constantes, escolhas, trocas, recusas, interferências e impreci-
sões. O estável torna-se, pois, por ironia, o móbile.
Corpo-móbile. Este ameaça constantemente as práticas e discursos constituintes de
uma imagem-modelo do Estado e daqueles que constroem nele espacialidades. Mobiliza ao
enfrentamento histórico do problema identitário, denunciando suas fragilidades, tornando vi-
síveis as linhas de fuga. Estado, espaço estriado, esforça-se na captura de sua imagem mode-
lar, mas ela o atravessa estilhaçando-se em um sem fim de possibilidades, de devires, que não
se conforma a um corpo, a um gênero, a uma classe, a uma etnia, a uma estilística, a uma nar-
rativa de história.
“Paraíba, mulher-macho” é uma das materialidades deste corpo-móbile, talvez a que
se tornou a mais material ao produzir tantos efeitos de realidade e verdade. Representa, na
historicidade do seu agenciamento, um desses fractais, por sua vez, composto de várias nuan-
ces, que muda de cor e forma de acordo com as variantes de luz.
Aqui procurei identificar algumas dessas formas tornadas visíveis e dizíveis e sei, sen-
tindo sua potencialidade de gerar significantes e significados, o quanto mais poderia ser bor-
dado na superfície dessa tessitura, mas também percebo que os fragmentos não cessam de ser
fabricados, ou ainda remodelados. Novas costuras abrem-se, dobram-se, agregam-se a esta
espessa superfície que continua em expansão.
O baião, como se sabe, continua a tocar — outro dia, um grupo de tocadores com za-
bumba, pandeiro, triângulo e pífano, atravessava as ruas do bairro onde moro, circulando en-
tre os altos prédios e suas armaduras urbanas, tocando Paraíba em “alto e bom som”, para
oferecer o CD gravado aos ouvintes encastelados — deixando no ar os desenhos sonoros da
memória. Nostalgia, (res)sentimento, (re)conhecimento de pertença, de vínculo — reação
criativa de sobrevivência. Nas ondas sonoras, visuais, virtuais, a “Paraíba, mulher-macho”
continua transmudando-se. É saudade sempre atualizada, a acenar de territórios outros, a en-
cenar abraços entre o passado e o presente.
Do meu lugar de tear, com os olhos cansados, saturados dos finos nós da costura, de
tantos relevos, tantas entrelinhas, nos quais me vi tantas vezes enovelada, aconchegada ou
incomodada, experimento agora o prazer de contemplar o trajeto, para quem sabe dormir en-
volvida por esta colcha e sonhar com a partilha das dobraduras, com o céu infindo de possibi-
lidades destes outros desenhos...
233
FONTES E REFERÊNCIAS:
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2 PERIÓDICOS CONSULTADOS:
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CABRA marcado para morrer. Direção: Eduardo Coutinho. Com Elizabeth Teixeira, João
Virgínio Silva, Moradores do Engenho Galiléia (PE). 16/35mm. CPC/UNE: Brasil, 1964.
MAPA FILMES: Eduardo Coutinho Produções, 1984. (119 minutos).
PARAHYBA Mulher Macho. Direção: Tizuka Yamazaki. Intérpretes: Tânia Alves, Cláudio
Marzo, Walmor Chagas, Grande Otelo e grande elenco. Embrafilme: Brasil, 1983. (83 minu-
tos).
PARAÍBA Masculina Feminina Neutra. Direção: Jomard Muniz de Britto. 8mm. Cineviven-
do. Brasil, Paraíba, UFPB, 1982 (30 minutos).
245
ANEXOS
246
Anexo H – página da Revista da Semana (Rio de Janeiro, out-nov de 1930, nº extraordinário) com
imagens da “Parahyba revolucionária”. No alto, à direita, foto de passeata das alunas da Escola Nor-
mal, conduzindo a nova bandeira do Estado.
252
Anexo I – página da Revista da Semana (Rio de Janeiro, out-nov de 1930, nº extraordinário), com
fotos do “Batalhão Feminino João Pessoa”, de Minas Gerais. Acima, no palácio da presidência no Rio
de Janeiro, recebido pela “senhora Getúlio Vargas”. No centro, o batalhão ajoelhado em torno do tú-
mulo de João Pessoa e, abaixo, em frente ao cemitério.