Tese - 11901 - Dissertação de Mestrado - Raiara K. C. R. 11.02

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES
CURSO DE MESTRADO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

RAIARA KELLEM CARDOSO ROCHA

O PRESENTE: ALGUMAS REFLEXÕES ACERCA DAS RELAÇÕES ENTRE


ESPELHO, FOTOGRAFIA E ESPECTADOR NOS QUADRI SPECCHIANTI DE
MICHELANGELO PISTOLETTO

VITÓRIA
2018
RAIARA KELLEM CARDOSO ROCHA

O PRESENTE: ALGUMAS REFLEXÕES ACERCA DAS RELAÇÕES ENTRE


ESPELHO, FOTOGRAFIA E ESPECTADOR NOS QUADRI SPECCHIANTI DE
MICHELANGELO PISTOLETTO

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Artes, do Centro de
Artes, da Universidade Federal do Espírito
Santo, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Artes, na
área de concentração Teoria e História da
Arte. Linha de pesquisa: Nexos entre arte,
espaço e pensamento.
Orientador: Prof. Dr. Aparecido José Cirillo

VITÓRIA
2018
RAIARA KELLEM CARDOSO ROCHA

O PRESENTE: ALGUMAS REFLEXÕES ACERCA DAS RELAÇÕES ENTRE


ESPELHO, FOTOGRAFIA E ESPECTADOR NOS QUADRI SPECCHIANTI DE
MICHELANGELO PISTOLETTO

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Artes, do Centro de
Artes, da Universidade Federal do Espírito
Santo, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Artes, na
área de concentração Teoria e História da
Arte. Linha de pesquisa: Nexos entre arte,
espaço e pensamento.

COMISSÃO EXAMINADORA

____________________________________________
Prof. Dr. Aparecido José Cirillo
Universidade Federal do Espírito Santo
Orientador

_____________________________________________
Profª. Drª. Angela Maria Grando Bezerra
Universidade Federal do Espírito Santo

_____________________________________________
Prof. Dr. David Ruiz Torres
Universidade Federal do Espírito Santo

______________________________________________
Profª. Drª. Tailze Melo Ferreira
PUC Minas
Dedico a ti Wellington, cada sílaba deste
texto e cada gesto de amor que a vida
me permitir conceder sem a sua
presença.
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente ao Wellington, por ter compartilhado comigo os melhores


momentos que pude viver. Agradeço ainda, o incentivo que sempre me forneceu para
ingressar no Mestrado, bem como o suporte concedido durante o processo de
pesquisa.

Agradeço aos meus pais, pelo amor incondicional e apoio fornecido ao longo de toda
minha trajetória.

Aos meus queridos irmãos: Rubia e Ruber; e ao meu cunhado Alessandro, pelo carinho
e companheirismo.

Aos amigos: Demetrius, Moisés, Luciana, Aline e Natália, por estarem ao meu lado nos
momentos difíceis.

Aos amigos do mestrado: Andreia, Sandro, Kamilla, Déborah, Mara, Diego, Rick e
Thaynã, pelo carinho e apoio.

A minha irmã de consideração, Maria Rosa, pela amizade e pelas tardes agradáveis
que passamos juntas nos últimos meses.

A minha sogra Marly, por me compreender e apoiar sempre.

Às minhas lindas sobrinhas, bailarinas e aos companheiros do Abrigo Lar Pouso da


Esperança, por me propiciarem momentos repletos de ludicidade.

Agradeço ao Airton e à Clarissa, pela atenção e palavras de conforto.


A todos os meus professores do Mestrado, pela disposição e empenho na transmissão
do conhecimento.

Às minhas terapeutas, Mayara Tulli e Daniella Reis, pela dedicação e carinho ao


conduzir o meu tratamento.

Aos membros da banca, Ângela Grando, Tailze Melo e David Ruiz, pelas pertinentes
sugestões e por toda a atenção dedicada a esta pesquisa desde a qualificação.

Agradeço ao meu orientador, professor José Cirillo, pela confiança, acolhimento e


compreensão.

À Karina e Natália, pela disposição e empenho em ajudar os mestrandos.

À Nice, por ter sido uma representante de turma sensacional.

Às instituições e espectadores que cederam muitas das imagens utilizadas neste


trabalho.

À Simone Marasco, por revisar as traduções do italiano.

À Adriana, por revisar as traduções do inglês.

E finalmente, agradeço à CAPES pelo apoio financeiro.


RESUMO

A década de 1960 foi marcada por grandes mudanças. Categorizações entremeadas ao


campo da arte foram flexibilizadas e práticas que permitiram reconfigurar o papel do
espectador nas obras e nas exibições artísticas foram instituídas. Nesse cenário de
grandes transformações, o artista italiano Michelangelo Pistoletto iniciou a produção
dos Quadri specchianti, trabalhos compostos de imagens pictóricas e/ou fotográficas
sobrepostas em superfícies espelhadas. O jogo de relações, proposto por Pistoletto, por
meio dos elementos escolhidos para compor as obras, indicam o intuito de efetivar um
processo interativo carregado de complexidade, que se tornou ponto de partida para o
alcance do objetivo desta pesquisa: investigar e discutir questões relativas à
participação do espectador. A fim de atingir o propósito apresentado, e igualmente
abordar, de modo mais preciso, outros aspectos enleados às obras, as reflexões
estenderam-se para incluir as relações institucionais do artista, a poética de criação dos
trabalhos e certas mudanças ocorridas no processo de interação do público após a
popularização da fotografia e das mídias sociais.

Palavras-chave: Pistoletto, Michelangelo. Mídia social. Fotografia. Criação (Literária,


artística, etc.)
ABSTRACT

The 1960s were marked by major changes. Categorizations interspersed with the field of
art were flexibilized and practices that allowed reconfiguring the role of the spectator in
the works and artistic exhibitions were instituted. In this scenario of major modifications,
the Italian artist Michelangelo Pistoletto began the production of the Quadri specchianti
(Mirror Paintings), a series of pictorial and/or photographic images superimposed on
mirrored surfaces. The set of relations, proposed by Pistoletto, through the elements
chosen to compose the works, indicate the intention to carry out an interactive process
loaded with complexity, which became the starting point for reaching the objective of this
research: to investigate and to discuss participation of the spectator. In order to achieve
the purpose presented, and also to approach, more accurately, aspects related to the
works, the reflections were extended to include the institutional relations of the artist, the
poetics of creation of works and certain changes occurred in the process of interaction
of the public after the popularization of photography and social media.

Keywords: Pistoletto, Michelangelo. Social media. Photography. Creation (Literary,


artistic, etc.)
LISTA DE IMAGENS

Imagem 01 – Attraverso la rete, lui e lei. Michelangelo Pistoletto ................................. 02

Imagem 02 – 32 mq di mare circa. Pino Pascali ........................................................... 21

Imagem 03 – Senza titolo (scultura che mangia). Giovanni Anselmo ........................... 23

Imagem 04 – Senza titolo. Jannis Kounellis .................................................................. 24

Imagem 05 – Senza titolo. Giovanni Anselmo ............................................................... 25

Imagem 06 – Grigi che si alleggeriscono verso oltremare. Giovanni Anselmo .............. 25

Imagem 07 – Combustione. Alberto Burri...................................................................... 28

Imagem 08 – Michelangelo Pistoletto sentado em frente a obra ................................... 32

Imagem 09 – Oggetti in meno. Michelangelo Pistoletto ................................................ 38

Imagem 10 – Venere degli stracci. Michelangelo Pistoletto .......................................... 39

Imagem 11 – Le stanze. Michelangelo Pistoletto .......................................................... 50

Imagem 12 – Anuncio de abertura do estúdio ............................................................... 53

Imagem 13 – L‟uomo ammaestrato. Michelangelo Pistoletto ........................................ 53

Imagem 14 – Autoritratto. Michelangelo Pistoletto ........................................................ 59

Imagem 15 – Esperimento. Michelangelo Pistoletto ...................................................... 60

Imagem 16 – Autoritratto linoleum. Michelangelo Pistoletto .......................................... 62

Imagem 17 – Autoritratto oro. Michelangelo Pistoletto .................................................. 62

Imagem 18 – Il presente - uomo di fronte. Michelangelo Pistoletto ............................... 65

Imagem 19 – Il presente - uomo di schiena. Michelangelo Pistoletto ............................ 65

Imagem 20 – Lui e lei alla balconata. Michelangelo Pistoletto ...................................... 68

Imagem 21 – Prost N.5. Michelangelo Pistoletto ........................................................... 71

Imagem 22 – Exposição individual de Pistoletto na Galería Elvira González ................ 76


Imagem 23 – Donna che indica. Michelangelo Pistoletto .............................................. 77

Imagem 24 – Video ripresa. Michelangelo Pistoletto ..................................................... 81

Imagem 25 – Senza titolo. Michelangelo Pistoletto ....................................................... 81

Imagem 26 – Lavori in corso. Michelangelo Pistoletto................................................... 82

Imagem 27 – Visão da obra Lavori in corso .................................................................. 82

Imagem 28 – Prost N.3. Michelangelo Pistoletto ........................................................... 84

Imagem 29 – Doppia direzione. Michelangelo Pistoletto ............................................... 85

Imagem 30 – Vietnam. Michelangelo Pistoletto ............................................................. 86

Imagem 31 – Questo spazio non existe. Michelangelo Pistoletto.................................. 90

Imagem 32 – Questo spazio non existe. Michelangelo Pistoletto .................................. 90

Imagem 33 – Mirror Cage - Double Square. Michelangelo Pistoletto ............................ 91

Imagem 34 – Fotografia feita por espectador ................................................................ 94

Imagem 35 – I voyeurs. Michelangelo Pistoletto ........................................................... 95

Imagem 36 – Vibração ondular. Luiz Sacilotto .............................................................. 97

Imagem 37 – Fotografia feita por espectador...............................................................101

Imagem 38 – Ragazza che fotografa. Michelangelo Pistoletto.....................................103

Imagem 39 – Fotografia feita por espectador...............................................................104

Imagem 40 – Louvre (Prigione). Michelangelo Pistoletto.............................................106

Imagem 41 – Prost N.1. Michelangelo Pistoletto..........................................................118

Imagem 42 – Fotografia feita por espectador...............................................................118

Imagem 43 – Fotografia feita por espectador...............................................................121

Imagem 44 – Fotografia feita por espectador...............................................................126

Imagem 45 – Eleven Less One. Michelangelo Pistoletto..............................................133

Imagem 46 – Eleven Less One. Michelangelo Pistoletto..............................................133


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................. 1

I. ORIGENS, SINTONIAS E PERCEPÇÕES ................................................... .6

I. 1. Reflexões iniciais ....................................................................................... .6

I. 2. Experiências da neovanguarda italiana: Arte Povera ................................ 13

I. 3. Michelangelo Pistoletto e a neovanguarda................................................ 31

II. PARA ALÉM DA TRANSITORIEDADE ........................................................ 47

II. 1. Do autorretrato à Cittadellarte: a relevância dos Quadri specchianti


na produção de Pistoletto................................................................................. 47

II. 2. Uma linguagem em construção ................................................................ 55

III. DO MUSEU À REDE: OS QUADRI SPECCHIANTI E A PARTICIPAÇÃO


DO ESPECTADOR .............................................................................................. 74

III. 1. Transposição ........................................................................................... 74

III. 2. A Fotografia como propagação da interatividade e desterritorialização


do espaço expositivo ............................................................................................ 100

III. 3. Dirigindo-se ao princípio: o ressurgimento do autorretrato no processo


de participação dos Quadri specchianti............................................................ 117

IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 135

V. REFERÊNCIAS .............................................................................................. 140


1

INTRODUÇÃO

A arte sempre me fascinou. Os rumos da minha vida foram e permanecem sendo


guiados pela necessidade de alimentar esse fascínio. Visitar uma exposição ou assistir
a um espetáculo de dança jamais foram capazes de cessar meu anseio por
envolvimento. Tornou-se necessário, entre outras atitudes, praticar dança e estudar
arte. Em meio a essa incessante busca, passei a observar e questionar quais eram os
tipos de relações que tanto eu quanto os indivíduos ao meu redor estabelecíamos com
a arte, bem como se muitas dessas vivências, de fato, poderiam ser consideradas uma
experiência com a arte. Não foi difícil perceber que, no que se refere à participação, a
palavra experiência pode ser estendida à diversos tipos de envolvimento, entre eles
estão, por exemplo, o ato de se surpreender ao observar o vídeo de uma performance
artística, de se envolver intensamente com uma pintura por meio do discurso de um
autor sobre ela, bem como a ação de contemplar, de modo genuíno, um trabalho
artístico por meio de reproduções fotográficas. Como sabemos, em tempos de
constantes inovações tecnológicas, essas possibilidades têm se tornado cada vez mais
extensas. Atualmente, parece ser possível experienciar lugares sem estar efetivamente
presente neles, uma sensação talvez muito semelhante à de se envolver com trabalhos
de arte que englobam a representação de algo. Em meio a esse contexto, identificar
onde habita de fato a “experiência” passou a ser uma questão recorrente em toda
minha trajetória de envolvimento com a arte. Desse modo, abordar e discutir questões
relativas à participação do espectador, considerando o contexto atual de popularização
da fotografia e das mídias sociais no qual pertencemos, tornou-se uma inquietação. Até
que em 2015, ao pesquisar sobre o uso de espelhos em trabalhos de arte, encontrei
uma série de obras que foram tomadas como objetos de estudo para realização desta
pesquisa. Trata-se dos Quadri specchianti (Quadros espelhados, em tradução livre)1, do
artista italiano Michelangelo Pistoletto, obras compostas de imagens de pessoas e/ou

1
Quadri specchianti é a denominação italiana utilizada para fazer referência às obras em questão de
Pistoletto, que possuem titulações independentes. Em inglês, o termo usado é Mirror Paintings. Em
espanhol, a expressão geralmente é traduzida para cuadros espejos. Tendo em vista a polivalência da
palavra “quadro” (que permite englobar as mais variadas técnicas utilizadas pelo artista na produção dos
trabalhos), bem como a ação expressa na palavra “espelhado”, consideramos prudente traduzir a
expressão para Quadros espelhados. O termo, apesar de não ter sido incorporado à língua portuguesa
como tal, foi adotado para fazer referência às obras no decorrer do texto, bem como, particularmente
nesse caso, nas traduções de citações tanto do inglês quanto do italiano.
2

objetos sobrepostos em superfícies espelhadas, que o artista tem produzido desde o


início da década de 1960.

Imagem 01: Michelangelo Pistoletto, Attraverso la rete, lui e lei, 2008. Impressão serigráfica sobre
espelho de aço inoxidável, 250 x 125 cm (98 3/8 x 49 1/4 inches).
© Michelangelo Pistoletto; Courtesy of the artist, Luhring Augustine, New York, Galleria Christian Stein,
Milan, and Simon Lee Gallery, London / Hong Kong.

A razão pela escolha dos Quadros espelhados não se concentra apenas no meu
encantamento pelos trabalhos, mas no fato deles serem pertinentes e interessantes
para discutir a questão da participação. O jogo de relações, propiciado pelos elementos
presentes nas obras, possibilita a configuração de contextos interativos, potencializados
pela presença do reflexo do espectador na superfície espelhada. A inserção imediata
3

da imagem do espectador no espelho faz com que as obras se relacionem de modo


peculiar com as mudanças que vêm ocorrendo no processo de participação do público,
em virtude da popularização da fotografia e das redes sociais, que inauguraram novos
modos de interação entre o espectador e a arte. Nesse sentido, a discussão engloba
questões que envolvem diferentes tipos de relação: a relação de quem possui a
oportunidade de contatar diretamente as obras em galerias ou museus, bem como de
registrar esse contato por meio da fotografia e divulgá-lo na web; e a relação
proveniente desses registros fotográficos. Os diferentes tipos de interação mencionados
dependem e partem das complexidades inerentes às relações entre espectador,
fotografia e espelho, daí o título do trabalho.

O trabalho é dividido em 3 capítulos: I) Origens, sintonias e percepções, II) Para além


da transitoriedade e III) Do museu à rede: os Quadri specchianti e a participação do
espectador. Na tentativa de situar o artista, bem como de evitar a menção de
tendências e obras sem abordagem prévia, optamos por constituir um texto mais
abrangente. O capítulo inicial apresenta uma breve reflexão acerca da arte
contemporânea, tendo como foco a década de 1960 (quando Pistoletto iniciou a
produção das obras) e algumas tendências estabelecidas no período, destacando a
Arte Povera, movimento no qual Pistoletto constituiu relações substanciais. Entre as
referências utilizadas estão o livro Arte contemporânea: uma história concisa, do teórico
Michael Archer, e os livros O abuso da beleza e A transfiguração do lugar comum,
ambos de autoria do filósofo Arthur Coleman Danto. Nas produções, os autores
reiteram questões e discutem sobre práticas recorrentes na arte contemporânea. Para
abordar assuntos relativos à tendência poverista, o livro Arte Povera, publicado pela
editora Nerea em 2003, da historiadora de arte Aurora Fernández Polanco, e o texto
(presente no livro Arte Povera) intitulado Arte Povera: appunti per una guerriglia, do
crítico de arte italiano Germano Celant, publicado pela primeira vez em 1967, tornaram-
se essenciais. Celant elucida sua objeção à produção artística refém de aspectos
ligados à cultura do consumo, em favor de uma abordagem destinada, em suas
palavras, à “identificação entre homem e mundo”. Polanco aborda aspectos gerais da
tendência poverista e aprofunda questões relativas às práticas dos artistas ligados ao
grupo. Essa abordagem inicial deve-se ao fato de a problemática das obras, bem como
4

a opção pelos elementos das composições, irem ao encontro de assuntos relevantes na


década, bem como ao nosso frequente retorno, no decorrer do texto, à questões que
envolvem a Arte Povera, à década de 1960 e algumas de suas tendências
proeminentes. As páginas subsequentes do capítulo I dedicam-se a refletir sobre as
relações institucionais de Pistoletto e algumas de suas obras, tendo como ponto de
partida os Quadros espelhados. Particularidades relativas às relações institucionais do
artista são citadas pela curadora de arte Claire Gilman, no texto Pistoletto’s Staged
Subjects, bem como são amplamente abordadas em uma longa entrevista concedida
por Pistoletto ao escritor Alain Elkann. A interlocução deu origem ao livro The Voice of
Pistoletto, publicado em inglês no ano de 2014.

O capítulo II investiga o processo de criação dos Quadros espelhados, enfatizando


mudanças e inquietações do artista. A entrevista concedida a Alain Elkann, no livro The
Voice of Pistoletto, e as entrevistas concedidas a Michael Auping (em 1979 e 2010),
presentes no livro intitulado Mirror Paintings, publicado em 2011, são muito utilizadas
nesse capítulo. Entre outras fontes consultadas, estão os textos disponibilizados no site
oficial de Pistoletto. Segundo informações fornecidas por Marco Farano2, responsável
pelo arquivo do artista, a página foi criada em 2007. Ainda segundo Farano, os textos
que não indicam autor, contidos no site, quando não indicado de outra forma, são de
sua autoria. Com base nessas informações e visando especificar da melhor maneira
esses escritos (a saber: Quadri specchianti, Oggetti in meno, Le prime opere, La
formazione, Il presente e Apertura dello studio), a referenciação é feita, especialmente
nesse caso, utilizando o esquema “nome do texto, data de criação do site”, indicando o
autor nas referências bibliográficas e eventualmente no corpo do texto. A abordagem do
capítulo II inclui ainda análises de algumas pinturas que precedem às obras, bem como
expõe reflexões suscitadas pela junção, nas obras, de elementos detentores de
características díspares: o espelho e a fotografia.

No capítulo III, estendemos a investigação sobre o processo de criação das obras, bem
como refletimos acerca de alguns aspectos do processo de participação do espectador,
discutindo temáticas e a disposição das obras no espaço expositivo. As entrevistas
2
Informações concedidas via email.
5

concedidas por Pistoletto voltam a ser utilizadas, a fim de tornar a abordagem


substancial. Ainda nesse item, aprofundamos potencialidades e aspectos fictício-
ilusórios possibilitados pelas obras. Para tal, utilizamos, entre outras produções, o texto
(presente no livro Mirror Paintings) intitulado Looking at Pistoletto/Looking at Myself, de
autoria do curador de arte Jeremy Lewison, em que o autor dedica-se à abordagem de
questões decorrentes da presença do espelho e da fotografia nas obras; o texto
intitulado Outros espaços, do filósofo Michel Foucault, publicado originalmente em
1984, bem como o livro Sobre os espelhos e outros ensaios, de Umberto Eco,
publicado no Brasil pela editora Nova Fronteira em 1989. No mesmo capítulo, utilizando
os Quadros espelhados como base, aprofundamos e discorremos sobre a
popularização da fotografia e das mídias sociais no envolvimento do público. Entre as
referências utilizadas nas subdivisões dedicadas a esse tema, estão o texto Double
Reflections: Art Museums and the Image of the Beholder, de Julia Kleinbeck, publicado
no livro Images of the Art Museum: Connecting Gaze and Discourse in the History of
Museology. No texto, Kleinbeck aprofunda questões suscitadas por retratos que
mostram espectadores em museus de arte, incluindo Pistoletto na abordagem. São
utilizados também o texto Camaradas do tempo, de Boris Groys, publicado em
português no ano de 2010; o livro Fotografia e narcisismo: o auto-retrato
contemporâneo, da filósofa Margarida Medeiros, publicado em 2000, bem como outros
escritos que abordam assuntos pertinentes à imersão das novas tecnologias na
produção artística e no processo de relação do público com a arte.
6

CAPÍTULO I. ORIGENS, SINTONIAS E PERCEPÇÕES

I. 1. Reflexões iniciais

Em O abuso da beleza, o filósofo Arthur Coleman Danto rememora que,

[...] durante muito tempo se pressupôs que as obras de arte constituíam


um conjunto restrito e um tanto elevado de objetos que todo o mundo
seria capaz de identificar, restando apenas perguntar o que justifica esse
prestígio (DANTO, 2015, p. 18)3.

É quase como se tendo como ponto de partida um conjunto de integrações de noções


já definidas, a arte não pudesse ser ou se tornar algo que abolisse a fronteira das
assimilações definidas para seu meio, tais como o cumprimento da verossimilhança e a
adequação às categorizações técnicas. Entretanto, a busca pelo novo4, que marcou a
arte na primeira metade do séc. XX, mostrou que muitas concepções não só poderiam,
mas deveriam ser abolidas e os experimentos subsequentes foram pautados na busca
por assimilações cada vez mais complexas. Práticas que desafiaram formas de arte
institucionalizadas e suas categorizações, dispensando a condição da arte como
representação e instituindo questionamentos permanentes acerca de seu significado e
modos de produção. Foi um momento de ruptura, da transgressão da arte de um
conjunto de técnicas e características convencionais que sustentavam sua simbologia.

As práticas que seguiram no contexto contemporâneo permaneceram extrapolando


categorizações e tradicionalismos entremeados ao campo da arte. Danto (2005, p. 61),

3
Danto dá seguimento à observação com o seguinte trecho: “Continua a ser verdade que as obras de
arte constituem um conjunto restrito de objetos. O que mudou é que esses objetos não podem mais ser
identificados facilmente, uma vez que qualquer coisa em que alguém possa pensar pode ser uma obra de
arte, e aquilo que justifica esse prestígio não pode ser uma questão de mero reconhecimento” (DANTO,
2015, p. 18).
4
Ver, por exemplo, A tradição do novo, de Harold Rosenberg.
7

indica que se os artistas transgridem certas convenções, como as molduras dos


quadros ou as vitrines de exposições, “[...] é porque desejam provocar ilusões ou criar
uma sensação de continuidade entre a arte e a vida”. A busca por superar as barreiras
entre arte e vida é mencionada por diversos autores, inclusive Danto (2015, p. XVII),
como uma particularidade prevalecente em correntes americanas e europeias que
tiveram seu apogeu na década de 1960. Um fato que como demonstra uma série de
escritos ligados ao tema 5, não parece se dever somente ao rompimento de convenções
(que de certa forma sempre esteve presente na arte), mas também à predominância
excessiva, mesmo em tendências distintas, de temáticas que abarcam, incorporam ou
miscigenam-se à vida, por meio de materiais, ações e questões puramente cotidianas.
De acordo com o crítico de arte brasileiro Fernando Cocchiarale:

Em todas as manifestações artísticas nós aprendemos que arte e vida


são coisas muito diferentes. No máximo, arte seria alguma coisa que
simboliza ou representa certas coisas da vida, mas elas são separadas.
A Arte Moderna, mas, sobretudo a Arte Contemporânea, foi
progressivamente abolindo as fronteiras, que separavam arte e vida
(COCCHIARALE, 2005).

São vastos os experimentos, composições, ações e peculiaridades presentes no


contexto contemporâneo que evidenciam a abolição das fronteiras entre arte e vida,
mencionada por Cocchiarale e Danto. Entre eles, os Quadri specchianti (Quadros
espelhados, em tradução livre), do artista italiano Michelangelo Pistoletto, obras
compostas de figuras pictóricas e/ou fotográficas sobrepostas em superfícies
espelhadas, que tiveram sua produção iniciada na vivaz década de 1960. A presença
do espelho permite a inclusão imagética do espaço circundante e do público nas obras
em tempo real, ocasionando processos distintos de interação, geralmente determinados
pelas figuras previamente aplicadas nas superfícies espelhadas. Ao referir-se aos
trabalhos em questão de Pistoletto, o teórico Michael Archer ressalta: “[...] era
impossível aos observadores olhar para essas obras [...] sem que ficassem associados
às figuras representadas” (ARCHER, 2012, p. 22-23). Tendo em vista o vasto repertório
de imagens escolhidas para compor as obras, a associação mencionada por Archer é
pautada por reações distintas. Percebamos: é laborioso não sentir empatia frente ao
5
Ver, por exemplo, Arte Contemporânea: uma história concisa, de Michael Archer; e Arte
contemporânea, de Renato De Fusco.
8

Quadro espelhado intitulado Attraverso la rete, lui e lei, de 2008, que representa a
imagem de um casal fisicamente separado por uma rede; é difícil não protagonizar
atitudes instintivas de interação com a imagem de uma jovem que aponta uma câmera
em sua direção, como ocorre em Ragazza che fotografa, de 2007; não estranhar sua
imagem refletida junto a figura de um homem preparado para lançar uma pedra em
Senza Titolo, de 2008, ou a figura de uma mulher que, de modo desajeitado, curva-se
frente à cruz de um suposto cemitério, como em Donna al cimitero, de 1974.

A inserção da imagem do espectador no espelho e outras possibilidades de interação


propiciadas pelas obras, favorecem a oclusão de uma convenção antiga, indicada, com
variações, por Cocchiarale e Danto: a determinação de uma realidade distante e
excêntrica para a habitação da arte. Obviamente, essa trata-se de uma prática que não
provém de experiências emancipadas, mas de habitualidades ainda latentes nos
processos de participação. Ao lidar com a realidade de diferentes modos, a grande
maioria (se não todas) das proposições artísticas na década de 1960, contribuíram para
obstacularização de convenções (como a descrita anteriormente), bem como
agregaram possibilidades extensivas à experienciação da arte. Artistas ligados ao
denominado Novo Realismo, por exemplo, revelaram em suas produções proposições
claramente correspondentes à definição do movimento: “Novo realismo = novas
aproximações perspectivas do real” (ARMAN, et al., 2006, p. 53), tal como demonstram
as meticulosas Assemblages de Arman, que englobam o cotidiano às composições por
meio da junção de objetos pré-concebidos e corriqueiros. Assim como ocorre nos
Quadros espelhados, em Arman (bem como em outros artistas ligados à tendência
europeia), a realidade é filiada às obras de modo peculiar, mostrando-se adversa a
certos paradigmas representacionais e formais. Verifica-se o uso da figuração para
provocação de questões carregadas de complexidade, contrapondo seu uso à simples
representação do real, bem como ao favorecimento de certas qualidades estéticas pré-
constituídas; ocorrência inequívoca nos Quadros espelhados e na Pop Art. Tendo em
vista a similaridade mencionada, bem como a abordagem de outras questões
posteriormente discutidas neste texto, permitimo-nos mencionar aspectos gerais acerca
da tendência pop.
9

A Pop Art surgiu na Inglaterra, na década de 1950, e teve seu ápice nos Estados
Unidos, na década de 1960, a tendência é marcada por incorporar imagens do universo
do consumo e da cultura de massa (BARBOSA, 2010). Nas palavras do historiador
italiano Renato De Fusco (1988, p. 219), “[...] Pop Art pode ser designada no âmbito
social como reportagem irônica da civilização urbana”:

De facto, não é „realista‟, não é „espelho‟ de uma situação social e dos


costumes, é uma interpretação dessa situação, dada numa perspectiva
irônica, de manipulação desinibida e de sentido do ridículo quanto à
própria temática que foca (DE FUSCO, 1988, p. 248)6.

Equivalente ao que aparentemente ocorre nos Quadros espelhados, artistas ligados ao


movimento pop, por meio do recurso da representação, problematizaram questões
relacionadas aos considerados “aspectos triviais” do cotidiano. Roy Lichtenstein, por
exemplo, isolou, ampliou e alterou figuras de histórias em quadrinhos, desmembrando
uma lógica sequencial própria dessa linguagem; as imagens e diálogos isolados
passaram a se dirigir unicamente ao espectador e não mais à figura seguinte, que
contextualizaria uma das muitas comunicações de uma história pré-estabelecida. Em
uma lógica semelhante, Andy Warhol, em sua série Death and Disaster, reconfigurou a
transitoriedade estrutural da comunicação midiática ao apropriar-se de notícias e
imagens recorrentes da mídia; no lugar de um amontoado de informações diversas,
geralmente assimiladas sem nenhum impacto, o artista propôs a junção de figuras
semelhantes correspondentes a um mesmo índice, fazendo com que as imagens
reincidentes, juntamente às titulações estabelecidas, parecessem indicar que as
questões suscitadas pela imagem não deveriam ser transitórias: Suicide, Big Electric
Chair, Ambulance Disaster.

É compreensível o fato de que os Quadros espelhados foram e permanecem sendo


associados ao movimento pop (e as relações institucionais do artista, que abordaremos
adiante, não são as únicas responsáveis por esse vínculo). As obras em questão de
Pistoletto, assim como muitas proposições enleadas à tendência, tanto fazem o uso de
fotografias serigrafadas, como por meio delas, interferem nos modos de interlocução e
compreensão habituais de determinadas situações. Os Quadros espelhados ainda

6
Grifo nosso.
10

compartilham, como veremos adiante, a presença embiocada de uma dose


considerável de aspectos identificados por De Fusco (1988) na pop: a ironia e a
manipulação7.

De fato, os trabalhos em questão de Pistoletto compartilham uma série de


problemáticas e práticas recorrentes na (e a partir da) década de 1960, que
protagonizam contraposições à percepção de uma obra de arte enclausurada em si
mesma e isolada na sua confortável definição de ser arte. As distintas proposições e
escritos de artistas do período demonstram claramente que se fez necessário suprimir a
distância do espectador e propiciar experiências que iriam além da simplória verificação
da beleza ou da mímesis, aproximando a arte de temáticas rotineiras da vida. Tais
atitudes, como explica a socióloga francesa Nathalie Heinich, afetaram a maneira de ver
e interpretar todo e qualquer trabalho artístico:

Na arte contemporânea, a transgressão mais importante dos critérios


comuns usados para definir a arte é que a obra de arte já não consiste
exclusivamente no objeto proposto pelo artista, mas em todo o conjunto
de operações, ações e interpretações etc. provocadas por sua
proposição (HEINICH, 2014, p. 377)8.

Como é possível notar nas proposições aqui comentadas, “o conjunto de operações,


ações e interpretações” referidas por Heinich (que atualmente reconhecemos como
importantes componentes da obra de arte), tornou-se amplamente significativo no
processo de criação artística. A historiadora de arte brasileira Almerinda da Silva Lopes,
observa que os artistas começaram a se eximir do “fazer artístico” por meio de técnicas
propriamente acadêmicas9 para atentar-se aos fatores decorrentes da proposição da
obra, entre eles, ela cita "o estabelecimento de elos com o público e com o espaço
expositivo” (informação verbal)10. Essa atitude é manifestada por Pistoletto mediante a
substituição de processos puramente pictóricos pelo uso da fotografia e do aço
inoxidável como fundo e suporte na constituição dos Quadros espelhados. Mudanças
que como demonstra o texto intitulado Quadri specchianti (2007), disponível no site
7
O curador de arte Jeremy Lewison é quem aponta e discute acerca da presença da manipulação nos
Quadros espelhados de Pistoletto. Esse assunto será discutido no capítulo III.
8
Grifo da autora.
9
Pintura, escultura, desenho.
10
Informação fornecida por Almerinda da Silva Lopes, na aula de Teoria e História da Arte Moderna
(PPGA/UFES), do dia 20 de junho de 2016.
11

oficial do artista, foram efetivadas após uma série de experimentos realizados ao longo
da década de 1960. No livro Arte contemporânea: uma história concisa, Archer
demonstra que os princípios duchampianos corroboraram de modo expressivo em
proposições artísticas oriundas das décadas de 1950 e 1960, o que explica a presença
intensiva da riqueza discursiva dos elementos e formas genuínos no período. Ao
abordar mudanças dessa natureza, Danto observa como elas contribuiram para a
reconfiguração de certas percepções e conceitos que circundavam o campo da arte:

[...] se trata de um período [aqui o autor se refere especificamente à


década de 1960] no qual muito daquilo que antes se percebia como
elemento do conceito de arte deixou inteiramente de ser levado em
consideração (DANTO, 2015, p. XV-XVI).

Para Danto (2015), a mudança dos critérios utilizados para definir arte e a ampla
abrangência do que poderia ser considerado arte na década de 1960 deve-se a uma
possibilidade histórica. Ele explica que “[...] o prestigio da Brillo Box [seu grande objeto
de estudo] como arte dependia de fatores externos que não tinham sido estabelecidos
muito antes de 1964” (DANTO, 2015, p. XII)11. Ainda segundo o autor, “o trabalho só se
tornou viável como arte quando o mundo da arte – o mundo das obras de arte – estava
pronto para recebê-lo entre seus pares” (DANTO, 2005, p. 17).

Nesse contexto de grandes transformações, a fotografia adquiriu um recinto significativo


no campo da arte12. Utilizando considerações do ensaísta alemão Walter Benjamin, a
filósofa Margarida Medeiros atenta-nos, de certa forma, para o que seria uma

11
Grifo do autor.
12
Ainda que os fotógrafos ligados aos movimentos de vanguarda tivessem conduzido novas maneiras de
pensar a fotografia, a fotografia não era vista como um meio artístico privilegiado. Permanecia ligada,
mas não imersa no campo da arte. De acordo com a artista brasileira Denise Gadelha (2007, p. 55), “um
dos primeiros indícios do papel que a fotografia viria a exercer na contaminação entre as categorias
artísticas teve lugar quando Rauschenberg e Warhol começaram a serigrafar imagens fotográficas em
suas telas”. Rosler (2001, p. 329) explica que os artistas pop, juntamente com os conceituais foram os
responsáveis por introduzir a fotografias nas galerias. A presença da fotografia nos espaços tradicionais
de exibição de arte, para o historiador norte-americano Douglas Crimp (2005, p. 68), representa a
declaração de sua autonomia. Uma vez pendurada na parede de um museu, a fotografia muda para
sempre (CRIMP, 2005, p. 69). A fotografia se desvincula de antigas funções para habitar o campo da arte
e não apenas estar a sua margem. Desse modo, a maneira de ver as imagens fotográficas pode ser
alterada e associada ao modo de “ver arte”, como indica o historiador: “Enquanto podemos ter olhado
outrora para as fotografias de Cartier-Bresson pela informação que traziam sobre a revolução chinesa ou
a Guerra Civil Espanhola, olhamos agora para elas por aquilo que dizem sobre o estilo de expressão do
artista” (CRIMP, 2005, p. 69).
12

consequência disso: a “[...] diminuição da componente sublimadora que caracterizava a


arte”.

Se a fotografia se relaciona, desde os seus inícios, com esta vertigem do


Duplo, é porque permite uma duplicação quase imediata, veloz,
respondendo adequadamente à aceleração dos valores de exposição de
que falava Benjamin, e que se tornam cada vez mais determinantes na
construção das imagens: «Na fotografia, o valor de exposição começa a
afastar, em todos os aspectos, o valor de culto.» O que comporta,
naturalmente, uma diminuição da componente sublimadora que
caracterizava a arte (MEDEIROS, 2000, p. 105)13.

A fotografia, que tecnicamente se distingue de métodos como pintura, escultura e


desenho, bem como se contrapõe a uma série de paradigmas questionados naquele
momento, começou a ser utilizada por Pistoletto e outros artistas como material artístico
para solucionar problemas artísticos, contribuindo para adentrar a fotografia nas
categorias artísticas e instituí-la definitivamente no campo da arte. No texto intitulado
Espectadores, compradores, marchantes, creadores: reflexiones sobre el público, a
artista Martha Rosler demonstra que a fotografia não conquistou apenas autonomia
como linguagem artística, mas também integrou o sistema de mercado e circulação da
arte. Rosler (2001, p. 329) observa que já no início de 1970, muitos fatores contribuíram
para isso, entre eles: “[...] a ausência de um novo estilo artístico estabelecido, os preços
exorbitantes das obras de arte tradicionais, o enfraquecimento do domínio dos críticos
modernos e a consequente incerteza das galerias comerciais [...]”14.

Em um nível mais básico da sociedade, talvez possamos procurar a


explicação na reestruturação cultural que ocorreu durante esse período
de avançado capitalismo [...], um processo acelerado pela importância
cada vez maior dos meios de comunicação eletrônicos (em que as artes
tradicionais são representadas, em vez de contempladas), devido à
consequente desvalorização das habilidades artesanais [...] (ROSLER,
2001, p. 329)15.

13
Grifo da autora.
14
Tradução livre, original em espanhol: “[...] la carencia de un nuevo estilo artístico establecido, los
precios exorbitantes de las obras de arte tradicionales, el debilitamiento del domínio de los críticos
modernos, y la consiguiente incertidumbre de las galerías comerciales [...]”.
15
Tradução livre, original em espanhol: “En un nivel más básico de la sociedad, tal vez podamos buscar
la explicación en la reestructuración cultural que tuvo lugar durante este período del capitalismo
avanzado [...], un proceso acelerado por la creciente importancia que fueron cobrando los medios de
comunicación electrónicos (en los que las artes tradicionales son representadas, en lugar de ser
contempladas), por la consiguiente devaluación de las habilidades artesanales [...]”. Grifos nossos.
13

A consequência do afrouxamento das categorias e do desmantelamento


das fronteiras interdisciplinares foi uma década, da metade dos anos 60
a meados dos anos 70, em que a arte assumiu muitas formas e nomes
diferentes: Conceitual, Arte Povera, Processo, Anti-Forma, Land,
Ambiental, Body, Performance e Política (ARCHER, 2012, p. 61)16.

O período assistiu, na Itália, ao fortalecimento de um considerável grupo de artistas


sintonizados com as atitudes prevalecentes da década de 1960. Em meio a uma
atmosfera crítica, a chamada Arte Povera italiana revelou uma afluência de obras
instigantes, demonstrando, sobretudo, a necessidade de envolver o público em novas
experiências. Na Arte Povera, os elementos reducionistas são evidências de um
percurso, que para Germano Celant (2003), crítico de arte italiano “à frente” do
movimento, segue na contramão de alusões à cultura do consumo, protagonizados
principalmente pela corrente pop. Michelangelo Pistoletto, que já havia alcançado um
patamar considerável em sua carreira nos anos 1960, tendo participado de exibições
com artistas ligados à Pop Art, constitui fortes laços com o movimento poverista, cujo
contexto e estímulos merecem ser explicitados antes de discutir, de modo mais
cuidadoso, a relação do artista com ambas as tendências.

I. 2. Experiências da neovanguarda italiana: Arte Povera

Após a Segunda Guerra Mundial, a Itália protagonizou um notável desenvolvimento


econômico, tornando-se uma grande potência industrial. Segundo Almerinda Lopes,
essa repentina mudança (conhecida como milagre econômico italiano) repercutiu na
sociedade e na cultura italiana, “o consumismo passou a ser fortemente difundido e
assim como ocorria em outros países da Europa, a Itália, sobretudo o norte do país,
assimilava cada vez mais o modo de vida norte-americano” (informação verbal)17. De
acordo com o historiador de arte Claudio Maffioletti (2011, p. 1), “essa era de
prosperidade degenerou-se em crises sociais e políticas durante a segunda metade dos

16
Grifos do autor.
17
Informação fornecida por Almerinda Lopes, na aula de Teoria e História da Arte Moderna
(PPGA/UFES), do dia 04 de julho de 2016.
14

anos 60 [...]”18. No que se refere à arte, as produções tanto diversificadas quanto


pioneiras dos artistas Afro Basaldella, Piero Manzoni, Alberto Burri e Lucio Fontana se
destacavam. Alguns desses artistas, como indica Celant (apud POLANCO, 2003, p. 19),
viriam nutrir a produção de membros do movimento italiano, denominado Arte Povera,
cujo surgimento remete a 196719. Na concepção de Almerinda Lopes:

A Itália presenciava o surgimento de um novo rumo, que seguia na


contramão da arte pictórica tradicional italiana: um legado que por muito
tempo sustentou a vivência do país nas lembranças do passado
(informação verbal)20.

Em meio a esse contexto do Pós-guerra, no que se refere à arte, a Itália e os Estados


Unidos teciam relações consideráveis, sendo comum que artistas italianos
participassem de exibições nos Estados Unidos. Vide Giuseppe Capogrossi, que
chegou a realizar uma exibição individual na galeria de Leo Castelli, em Nova York, em
195821; e Michelangelo Pistoletto, que entre 1964 e 196722, participou de uma série de
exibições individuais23 e coletivas24 nos EUA. O mesmo ocorria na Itália. Contudo, cabe

18
Tradução livre, original em inglês: “This age of prosperity degenerated into social and political crisis
during the second half of the ‟60s [...]”.
19
A data leva em consideração que esse é o ano da publicação do manifesto Arte Povera: appunti per
una guerriglia, de Germano Celant e, como informa o galerista Fabio Sargentini (2012), o ano da primeira
exposição que levou o título de arte pobre: Arte povera e Im Spazio; organizada por Germano Celant na
Galeria La Bertesca, em Gênova. Sargentini (2012) explica que o título serve para distinguir os artistas
participantes. Ainda segundo o autor, a mostra foi dividida em duas seções: Arte Povera e Im Spazio, na
primeira estavam obras de Umberto Bignardi, Mario Ceroli, Paolo Icaro, Renato Mambor, Eliseo Mattiacci
e Cesare Tacchi; e na segunda Alighiero Boetti, Luciano Fabro, Jannis Kounellis, Giulio Paolini, Pino
Pascali e Emilio Prini.
20
Fala de Almerinda Lopes, na aula de Teoria e História da Arte Moderna (PPGA/UFES), do dia 04 de
julho de 2016.
21
A lista completa de exibições do artista encontra-se disponível no site de sua fundação:
<http://www.fondazionearchiviocapogrossi.it/mostre-capogrossi.asp>. Acesso: 21 Jul. 2018.
22
As obras do artista seguiram participando de exposições pelo país estadunidense nas décadas
posteriores. A intenção desse trecho é enfatizar as exibições realizadas antes e no ano que remete ao
surgimento da tendência poverista, uma vez que nos anos subsequentes é possível notar uma redução
considerável na periodicidade das mostras individuais de Pistoletto realizadas no país.
23
Exibições individuais realizadas no período mencionado: Michelangelo Pistoletto: A Reflected World,
Walker Art Center, Mineápolis, 1966; Kornblee Gallery, Nova York, 1967; Michelangelo Pistoletto, Hudson
Gallery, Detroid, 1967. A lista completa de exibições está disponível no livro Mirror Paintings, de 2011,
bem como no site oficial do artista. Dispon[ível em: <http://www.pistoletto.it/it/mostre.htm>. Acesso: 21
Jul. 2018. Convém mencionar que a última exibição citada, intitulada Michelangelo Pistoletto, realizada
na Hudson Gallery, está inclusa na lista do site, mas não no livro.
24
Exibições coletivas realizadas no período mencionado: International Exhibition of Contemporary
Painting, Carnegie Institute Museum of Art, Pittsburgo, 1964-1965; International ’65, Part I, Hudson
Gallery, Detroit, 1965; Beyond Realism, Pace Gallery, Nova York, 1965; Recent Acquisitions, The
Museum of Modern Art, 1966; The Object Transformed, The Museum of Modern Art, 1966; Color, Image,
15

rememorar que a presença da arte norte-americana, não só na Itália, como na Europa,


vem acompanhada, precisamente, da tentativa de afirmar seu caráter de imponência
perante a arte europeia, como um reflexo de sua formação econômica e política. Algo
que, como demonstra a filósofa brasileira Rosa Gabriella de Castro Gonçalves, em seu
artigo intitulado Clement Greenberg, o Expressionismo Abstrato e a crítica de arte
durante a Guerra Fria, já pode ser observado desde o advento do Expressionismo
Abstrato25, habitualmente identificado como o primeiro movimento artístico norte-
americano reconhecido internacionalmente. Grande parcela do sucesso desse
movimento pode ser atribuído ao suporte significativo fornecido por alguns críticos de
arte norte-americanos, como Clement Greenberg26. De acordo com Gonçalves:

Com o passar do tempo, o Expressionismo Abstrato foi mundialmente


imitado, tornou-se popular nos meios de comunicação, fez sucesso entre
colecionadores e passou a ser exportado como um produto capaz de
expressar o estilo de vida norte-americano. O Museu de Arte Moderna
de Nova York desempenhou um papel fundamental neste processo e,
entre 1958 e 1959, a exposição intitulada “New American Painting”,
concebida justamente para cumprir a missão de difundir a complexidade
da cena artística norte-americana, circulou por oito capitais européias
(GONÇALVES, 2013, p. 108).

Essa missão norte-americana vai ser fundamental para o deslocamento do centro de


atenção das artes, que vai transpor o Atlântico Norte. De acordo com Michael Archer
(2012, p. 24), “As turnês de exposições de pintura dos Estados Unidos [...] muito
haviam contribuído para estabelecer Nova York como centro preeminente da arte
moderna, uma dignidade mantida até então, ao longo do período moderno, por Paris”.

Tal como demonstrou Gonçalves, o Expressionismo Abstrato se tornou uma espécie de


pioneiro na trajetória de autoafirmação da arte norte-americana que marcou o período

and Form, The Detroit Institute of Arts, 1967; Paintings from the Albright-Knox Art Gallery, National
Gallery of Art, Washington, D.C., 1967; Highlights of the 1966-67 Art Season, The Larry Aldrich Museum
of Contemporary Art, Ridgefield, CT, 1967. A lista completa de exibições está disponível no livro Mirror
Paintings, de 2011, bem como no site oficial do artista.
25
O Expressionismo Abstrato se caracteriza por apresentar pinturas que dispensam técnicas e processos
acadêmicos usuais, geralmente as composições são constituídas em grande escala, o emprego de cores
é realizado de modo contingente e o uso do cavalete é eximido.
26
O artigo de Rosa Gabriella de Castro Gonçalves lida diretamente com essa questão. Contudo, para
compreender, de modo mais abrangente, a dimensão do suporte fornecido por Greenberg à arte abstrata,
recomendamos a o livro intitulado Clement Greenberg e o Debate Crítico, organizado por Glória Ferreira
e Cecília Cotrim, que reúne uma série de textos do crítico.
16

Pós-guerra, um propósito que como confirma Archer, estendeu para se servir de outras
tendências, como a Pop Art. Ao refletir sobre o que seria, nas palavras do autor, um
“jogo de poder”, Archer relaciona o anúncio de página inteira colocado na revista suíça
Art International, no verão de 1964, pelo negociante de arte Leo Castelli. Segundo o
autor (2012, p. 24-25), o anúncio mostrava a participação dos artistas de Castelli,
incluindo Robert Rauschenberg e Jasper Johns, na Bienal de Veneza e em outras
exibições “[...] como o mapa de um avanço militar, com os artistas abrindo caminho a
partir desses quatro centros rumo ao resto da Europa”.

Rauschenberg ganhou o primeiro prêmio em Veneza naquele ano [que


também incluía obras de outros artistas ligados à Pop Art], um sucesso
que foi saudado por muitos como uma evidência conclusiva, se não da
superioridade geral da arte nos EUA sobre a europeia, pelo menos do
desafio que ela estava lançando (ARCHER, 2012, p. 25).

É nesse contexto de expansão do domínio norte-americano que a arte italiana vai


ganhar certa visibilidade internacional, refletindo o momento nacional. A Arte Povera se
constitui na segunda metade da década de 1960, em meio a essa atmosfera de
grandes mudanças na economia, sociedade e cultura Italiana. Muitos artistas
envolvidos com a tendência vivia em Turim ou eram naturais da cidade, que se tornou
um grande centro de produção. A famosa empresa automobilística Fiat, nascida em
Turim, desempenhou um importante papel no desenvolvimento econômico do país. Nas
palavras do historiador de arte norte-americano Nicholas Cullinan (2008, p. 28), a
empresa “[...] tornou-se o dínamo econômico por trás do miracolo italiano [...]”27. Ainda
segundo o autor (2008, p. 28), Turim foi “[...] o epicentro da Arte Povera”. Além de
acondicionar impactos significativos de uma repentina industrialização, a cidade
recebeu um número considerável de exibições de arte internacionais na década de
195028, o que de acordo com Almerinda Lopes (informação verbal)29 contribuiu, junto à
nova produção dos artistas italianos (sobretudo Piero Manzoni, Alberto Burri e Lucio
27
Tradução livre, original em inglês: “[...] became the economic dynamo behind the miracolo italiano [...]”.
Grifo do autor.
28
Entre elas está a exibição do artista irlandês Francis Bacon, realizada em 1958, na Galleria Galatea.
Tal como veremos adiante, essa mostra foi fundamental para que Pistoletto agregasse novos
procedimentos na produção dos autorretratos, o que contribuiu para o desenvolvimento dos Quadros
espelhados, objeto de estudo desta pesquisa.
29
Informação fornecida por Almerinda Lopes, na aula de Teoria e História da Arte Moderna
(PPGA/UFES), do dia 04 de julho de 2016.
17

Fontana)30, para o desenvolvimento do movimento poverista, que marca uma potente


reconfiguração da produção artística na Itália.

Celant foi o responsável por nomear a tendência, apropriando-se do termo teatro pobre
do diretor polaco Jerzy Grotowski (POLANCO, 2003, p. 37)31. Em 1967, o crítico publica
um artigo na revista italiana Flash Art, intitulado Arte Povera: appunti per una guerriglia
(Arte Pobre: notas para uma guerrilha, em tradução livre), em que exprime objeção às
produções artísticas reféns do sistema e às expectativas convencionais da sociedade.
Para a historiadora de arte espanhola Aurora Fernández Polanco:

Existe a impressão de que o grupo que Celant organiza é de certo modo


uma estratégia, como se a Itália se visse obrigada a tomar uma postura
depois do êxito de Rauschenberg na Bienal de Veneza e da introdução
do Pop no mercado italiano (POLANCO, 2003, p. 23)32.

De fato, a grande maioria das propostas artísticas do grupo é aparentemente oposta a


muitos aspectos da Pop Art, o que Celant não hesita em ressaltar:

[...] em um contexto dominado por invenções e imitações tecnológicas,


as possibilidades de escolha são duas: a apropriação (cleptomania) do
sistema, de linguagens codificadas e artificiais, em diálogo com as
estruturas existentes - tanto sociais como privadas -, a aceitação e a
pseudoanálise ideológica, a osmose com qualquer “revolução”, -
aparente e integrada ao momento -, a sistematização da própria
produção no microcosmo abstrato (op) ou no macrocosmo sociocultural
(pop) e formal (estruturas primárias) ou, pelo contrário, a livre projeção
do ser humano (CELANT, 2003, p. 99)33.

30
Germano Celant é quem aborda à influência de Piero Manzoni, Alberto Burri e Lucio Fontana no
desenvolvimento da Arte Povera. Abordaremos alguns aspectos acerca da produção desses artistas
adiante.
31
De acordo com Polanco (2003, p.37), “[...] Celant disse ter inventado o termo povera como
antidefinição, quase como uma condição nômade da criação [...]”. (Tradução livre, original em espanhol:
“[...] Celant dice haber inventado el término povera como antidefinición, casi como condición nómada de
la creación [...]”). Grifo da autora.
32
Tradução livre, original em espanhol: “Da la impresión de que el grupo que Celant organiza es en cierto
modo una estrategia, como si Italia se viera obligada a tomar una postura tras el éxito de Rauschenberg
en la Bienal de Venecia de 1964 y de la paulatina introducción del pop en el mercado italiano”.
33
Tradução livre, original em espanhol: “[...] en un contexto dominado por las invenciones y las
imitaciones tecnológicas, las posibilidades de elección son dos: la apropiación (la cleptomanía) del
sistema, de los lenguajes codificados y artificiales, en el diálogo con las estructuras existentes –tanto
sociales como privadas-, la aceptación y el pseudoanálisis ideológico, la ósmosis con cualquier
„revolución‟ – aparente, e integrada al momento-, la sistematización de la propia producción en el
18

Na primeira possibilidade vemos uma arte complexa; na segunda, uma


arte pobre, comprometida com a contingência, com o acontecimento,
com o a-histórico, com o presente (“nunca somos totalmente
contemporâneos do nosso presente”; Debray), com a concepção
antropológica, com o homem “real” (Marx): esperança, convertida em
segurança, se livrar de qualquer discurso visualmente unívoco e
coerente (a coerência é um dogma que há de se quebrar!). A
univocidade pertence ao indivíduo e não à “sua” imagem e seus
produtos. Trata-se de uma nova atitude para recuperar um domínio
“real” de nosso ser, que leva o artista a deslocamentos contínuos do
lugar que lhe é atribuído, do clichê que a sociedade tem carimbado em
seu pulso. O artista deixa de ser explorado para converter-se em
guerrilheiro; quer escolher o lugar de combate, possuir as vantagens da
mobilidade, surpreender e golpear; não o contrario (CELANT, 2003, p.
99-100)34.

Cullinan ressalta que a “Arte Povera [...] possuía duas agendas políticas inter-
relacionadas: uma verdadeira batalha artística mundial contra a hegemonia americana
e uma revolução romantizada que legitimou esta insurgência” (CULLINAN, 2008, p.
11)35. A “Arte Povera foi [...] a legítima defesa de uma cultura histórica que naufragava -
como foi a cultura europeia” (CELANT, apud CULLINAN, 2008, p. 18)36. Ao seguir, de
certo modo, na contramão da assimilação de aspectos relativos ao consumismo que
inundava a Itália, tais como a cultura de massa e a iconografia ligada à produção
tecnológica, certas produções artísticas ligadas à tendência, de fato, correspondem às
considerações de Celant. Nas palavras de Polanco:

Temos um pequeno grupo de italianos tentando escapar da frieza que a


sociedade do espetáculo submete a todo sujeito que cai em suas redes.
Se tratava de romper essas redes que falam da mesma divisão que

microcosmos abstracto (op) o en el macrocosmos sociocultural (pop) y formal (estructuras primarias); o


bien, por el contrario, la libre proyección del ser humano”. Grifo do autor.
34
Tradução livre, original em espanhol: “En la primera posibilidad vemos un arte complejo; en la segunda,
un arte pobre, comprometido con la contingencia, con el acontecimiento, con lo ahistórico, con el
presente („nunca somos totalmente contemporáneos de nuestro presente‟; Debray), con la concepción
antropológica, con el hombre „real‟ (Marx): la esperanza, convertida en seguridad, de desembarazarse de
cualquier discurso visualmente unívoco y coherente (ila coherencia es un dogma que hay que
quebrantar!); la univocidad pertenece al individuo y no a „su‟ imagen y a sus productos. Se trata de una
nueva actitud para recuperar un dominio „real‟ de nuestro ser, que lleva al artista a desplazarse
continuamente del lugar que se le ha asignado, del cliché que la sociedad le ha estampado en la muñeca.
El artista deja de ser explotado para convertirse en guerrillero; quiere escoger el lugar de combate,
disponer de las ventajas de la movilidad, sorprender o golpear; y no lo contrario”. Grifos nossos.
35
Tradução livre, original em inglês: “Arte Povera […] had two interrelated political agendas: a real art-
world battle against American hegemony and a romanticized revolution that legitimized this insurgency”.
36
Tradução livre, original em inglês: “Arte Povera was […] a legitimate defence of a historic culture run on
the rocks - as European culture was”.
19

sentiram os românticos na pré-história do mundo tecnológico


(POLANCO, 2003, p. 25)37.

Para tal, propunham uma “arte pobre”, geralmente concebida por meio do uso de
materiais e elementos estranhos ao espaço especializado da arte. De acordo com
Almerinda Lopes:

As obras se revelam como um estatuto físico, transparecendo a


existência de paradoxos e enigmas, propostos pelos artistas mediante a
percepção da dessemelhança e da resistência entre os materiais
(informação verbal)38.

Expressamente, o adjetivo que nomeia a tendência não se refere apenas a um termo


pressuposto devido ao uso de materiais que seguem na contramão da “insigne e
magnificente” arte acadêmica. Tal como demonstra Polanco e Celant, o termo abarca
aspectos extensivos: “O processo como pobreza. Pobreza enquanto caráter efêmero da
experiência, pelo fato de desconfiar da obra acabada ligada ao jogo pós-positivista
produtor/produto” (POLANCO, 2003, p. 61)39; “Antiforma como pobreza [...]”
(POLANCO, 2003, p. 62)40; “Conceituais/pobres, pobreza enquanto precariedade, falta
de segurança, dúvida diante da ordem dos signos do discurso plástico visual”
(POLANCO, 2003, p. 62-63)41; “[...] uma busca „pobre‟, dedicada à identificação entre
ação e homem, entre comportamento e homem [...], entre homem e mundo” (CELANT,
2003, p. 100)42. Trata-se, nessa perspectiva, da pobreza como uma atitude de renúncia,
como extinção do sobressalente, como exaltação da verdade, pobreza como percepção

37
Tradução livre, original em espanhol: “Tenemos un pequeño grupo de italianos intentando huir de la
frialdad a la que la sociedad del espectáculo somete a todo sujeto que caiga en sus redes. Se trataba de
romper esas redes que hablan de la misma escisión que sintieron los románticos en la prehistoria del
mundo tecnificado”. Grifo da autora.
38
Fala de Almerinda Lopes, na aula de Teoria e História da Arte Moderna (PPGA/UFES), do dia 04 de
julho de 2016.
39
Tradução livre, original em espanhol: “El proceso como pobreza. Pobreza en cuanto al carácter efímero
de la experiencia, por el hecho de desconfiar de la obra acabada ligada al juego post-positivista
productor/producto”. Grifo da autora.
40
Tradução livre, original em espanhol: “Antiforma como pobreza [...]”.
41
Tradução livre, original em espanhol: “Conceptuales/pobres, pobreza en tanto precariedad, falta de
seguridad, duda ante el orden de los signos del discurso plástico visual”.
42
Tradução livre, original em espanhol: “[...] una búsqueda „pobre‟, entregada a la identificacíon entre
acción y hombre, entre comportamiento y hombre [...], entre hombre y mundo”.
20

de si mesmo, pobreza não como sinônimo de “falta” ou autoafirmação categórica, mas


de essência, de existência.

Obras poveristas denotam a existência de uma particularidade típica nas proposições


artísticas da década de 1960, indicada, com variações, por Almerinda Lopes (ver
página 10): a relevância da experiência e do processo em detrimento da forma
sofisticada, dirigida à contemplação. Prevalência que contribui para problematização de
funções limitadas atribuídas tanto ao público quanto à obra de arte. Pino Pascali, por
exemplo, constituiu composições que eximem a presença do espectador e do espaço
circundante como acessórios dispensáveis para o funcionamento da obra, como
demonstra Coda di delfino, de 1966, em que o artista representou a cauda de um
animal fixada à parede, como se o elemento houvesse penetrado o espaço ou
despontado dele. Em uma lógica semelhante, a obra intitulada Vedova blu, de 1965,
apresenta a estrutura vasta de um aracnídeo; a verossimilhança com um animal, bem
como a representação em grande dimensão, parece conceder à obra o pertencimento
do espaço. Uma impressão equivalente pode ser obtida a partir de 32 Mq di mare circa,
de 1967, que propicia a projeção fracionada do público e do espaço expositivo na
composição ao apresentar uma combinação de 30 estruturas quadrangulares
preenchidas com água e anilina de cor azul. Muito semelhante ao que ocorre nos
Quadros espelhados de Pistoletto, a transparência e a reflexão inerentes à combinação
dos materiais permite a confluência entre o espaço circundante e a obra, que se
estende ao chão do espaço expositivo.
21

Imagem 02: Pino Pascali, 32 mq di mare Circa, 1967. Chapa de aço galvanizado, água colorida com azul
de metileno, 30 reservatórios quadrados, 110 x 110 x 6,5 cm cada.
Roma, Galleria Nazionale d'Arte Moderna e Contemporanea, su concessione del Ministero per i Beni
Culturali.
Exposição: Dialoghi, Pino Pascali e Luigi Ghirri, Fondazione Pino Pascali, 2014.
Polignano a Mare.
Ph. Cosmo Laera.

Proposições artísticas enleadas à Arte Povera são capazes de proporcionar


experiências inusuais, isso se deve ao fato desse ser um objetivo manifesto entre os
poveristas, aspecto explícito de modo diferenciado nas obras ligadas à tendência.
Polanco (2003, p. 61) comenta que “[...] basta folhear um catálogo que reúna os artistas
sob a denominação arte povera para perceber que enfrentamos uma série de obras nas
quais o único denominador comum parece ser a diversidade implacável [...]”43. Isso
pode ser atribuído aos diversos pontos de partida adotados pelos artistas. Vejamos
Mario Merz. Como notabiliza De Fusco (1988, p. 326), o artista parte da lei do
matemático medieval Fibonacci, “[...] para quem a evolução da natureza derivaria não

43
Tradução livre, original em espanhol: “[…] basta con hojear un catálogo que reúna a los artistas bajo la
denominación arte povera para darnos cuenta de que no hacemos sino enfrentarnos a una serie de obras
cuyo único denominador común parece ser la diversidad más despiadada [...]”. Grifo nosso.
22

da simples sucessão de números, mas de uma progressão em que cada número é


dado pela soma dos dois anteriores”.

Essa progressão é aplicada por Merz a todo tipo de realidade (objectual,


espacial, vegetal, biológica). O iglu, cuja configuração se repete em
muitas obras do artista, possui uma estrutura cujos nós podem ser
afastados com base na série de Fibonacci (DE FUSCO, 1988, p. 326).

Com frequência, os iglus de Merz abarcam caracteres constituídos de néon, agregados


a uma estrutura similar adicional e/ou acomodando outra de modo visível em seu
interior. As obras suscitam conectividade, são simultaneamente excêntricas,
rudimentares e proeminentes. Os elementos das obras parecem atuar com o intuito de
provocar uma experiência atípica ao espectador.

A resistência à produção de obras de arte para fins exclusivamente comerciais não


aparenta ser o grande motivo pelo qual os artistas ligados a Arte Povera se dirigiam ao
uso de materiais efêmeros. Unir materiais de diferente natureza, de modo a preservar
sua essência, configura o elemento-chave para realização de contraposições típicas do
movimento poverista. Quando Giovanni Anselmo uniu matéria orgânica e inorgânica em
Senza titolo, de 1968, ele deu origem a uma dissonância de grande impacto visual. A
obra é composta de dois blocos de granito de dimensões distintas: o bloco maior é
sobreposto ao chão; o bloco menor permanece atado na parte superior frontal do bloco
maior por meio de um fio de cobre; um vegetal é inserido entre os blocos,
escancarando a ausência de conexão física entre eles. Ocasionalmente, Anselmo
incluía um pequeno aglomerado de serragem na parte frontal do bloco. Segundo
informações fornecidas por Rocco Mussat Sartor (Archivio Anselmo)44, a serragem era
utilizada para proteger o chão da possível queda do bloco menor, bem como da água
que pingava do vegetal, não configurando, portanto, um elemento consolidado da obra.

44
Informações concedidas via email.
23

Imagem 03: Giovanni Anselmo, Senza Titolo, 1968. Pedra, alface e fio de cobre.
Foto: © Giorgio Mussa.
Cortesia: Archivio Anselmo, Turim, Itália.

A dissonância entre os materiais revela simultaneamente força e fragilidade, pois, ao


contrário do granito resistente, o vegetal está sujeito às oscilações e parece aguardar
sua disjunção. Por determinação do artista, o vegetal deve ser substituído
frequentemente para manter a estrutura. Nesse sentido, e referindo-se às produções de
Anselmo, Celant observa: “Sua existência depende da nossa intervenção e nosso
comportamento. Eles não são produtos autônomos, mas instáveis; vivendo em relação
ao nosso viver” (CELANT, 2003, p. 103)45. Portanto, a subtração da intervenção
humana ou de qualquer elemento compositivo, destinaria a obra à estagnação. A

45
Tradução livre, original em espanhol: “Su existencia depende de nuestra intervención y de nuestro
comportamiento. No son productos autónomos, sino inestables; vivos en relación con nuestro vivir”.
24

estrutura é submetida à condição humana de dependência. O similar ocorre em Senza


Titolo, de 1967, de Jannis Kounellis, composta de uma placa de metal cortada em
formato semelhante a uma estrela (ou uma flor) fixada à parede, cujo centro expele uma
chama de fogo. A obra necessita de reposições constantes para afigurar sua existência.
Kounellis incorporou a forma frágil de um elemento orgânico ao metal e ao fogo,
tornando a figura pontiaguda, rígida, perigosa, intocável. A obra parece reafirmar a
desintegração entre o significado e as qualidades atribuídas à forma.

Imagem 04: Jannis Kounellis, Senza Titolo, 1967. Estrela de ferro com maçarico, 150 cm.
Cortesia: Tornabuoni Art.
25

Imagem 05: À esquerda: Giovanni Anselmo, Senza Titolo, 1984. Pedra, tela, cabo de aço e nó corredio.
Foto: © Antxon Hernandez.
Cortesia: Archivio Anselmo, Turim, Itália.

Imagem 06: À Direita: Giovanni Anselmo, Grigi che si alleggeriscono verso oltremare, 1982. Pedra, cabo
de aço, nó corredio, ultramarino (acrylic ultramarine).
Foto: © François Lagarde.
Cortesia: Archivio Anselmo, Turim, Itália.

“Os artistas [...] estão envolvidos em uma série de práticas que reivindicam o ser mais
que o fazer [...]” (POLANCO, 2003, p. 11)46. Nessa perspectiva, as produções
demonstram a necessidade de envolver o público em situações que evocam a presença
por meio da exaltação da obra enquanto entidade. Tanto a adoção de grandes
dimensões quanto a propensão ao reducionismo parecem se apresentar como aliados
desse intento. A produção de Anselmo constitui um exemplo significativo de redução
em favor do engrandecimento do caráter existencial das composições. A título de
exemplo, podemos destacar os trabalhos que apresentam rochas suspensas no espaço
expositivo. Ao dependurar as rochas, o artista transfaz o local costumeiro do elemento,
46
Tradução livre, original em espanhol: “Los artistas [...] están implicados en una serie de prácticas que
reivindican el ser más que el hacer [...]”.
26

extingue sua indiferença e instaura a inquietude por meio da tensão provocada pela
viabilidade de queda da rocha. A tensão conduz à elevação da presença e do vigor,
uma sensação recorrente em obras ligadas a Arte Povera. Ao provocar essa percepção,
as composições parecem ir ao encontro da negação do pertencimento da obra de arte
às outras realidades e contextos. A existência é proclamada no aqui e no agora. Em
algumas propostas poveristas, esse aspecto atinge o extremo, como quando Kounellis
acomodou 12 cavalos na Galleria L’Attico, em 1969. A obra intitulada Cavalli exprime a
privação e a condescendência de seres dominados. A inarmônica relação dos animais
com o espaço expositivo, bem como suas inóspitas posições, presos frente às paredes
da galeria, como espectadores de uma fronteira intransponível, são inquietantes. A obra
não fornece apenas uma tentativa de ruptura com o deleite contemplativo na arte, mas
parece instigar questionamentos acerca da ideia de liberdade e autonomia existencial, o
que é tanto salientado na condição dos animais na galeria quanto na superposição da
determinação de Kounellis. A atitude que origina a obra não revela apenas a instituição,
propriamente duchampiana, de um elemento a um novo contexto, mas a subordinação
de organismos à condição momentânea de ser arte. Nesse sentido, a ação de Kounellis
se relaciona com a atuação dos “pincéis vivos”, que sob o comando de Yves Klein,
expoente do Novo Realismo, promoviam vestígios pictóricos em uma superfície
previamente preparada. Em ambos os trabalhos, a privação da autonomia se faz
presente ainda que a aparente condescendência das mulheres e dos animais utilizados
nas ações seja emitida.

A aproximação entre o Novo Realismo e a Arte Povera não é passível de ser


identificada apenas em pequenas ações ou semelhanças compositivas isoladas. A
definição (pode-se dizer princípio) do Novo Realismo (ver página 8), bem como o
incisivo modo de apropriação da realidade para constituição das obras, encontra
equivalência nas proposições dos poveristas. Outra confluência reside nos artistas que,
de acordo com Celant (apud POLANCO, 2003, p. 19), compõem o “solo fértil” para
geração da Arte Povera. “Não se trata de precursores, mas de determinadas propostas
que geraram o húmus sobre o qual se alicerçaram os mais jovens” (POLANCO, 2003,
27

p. 19)47. São eles, o italiano Piero Manzoni, o ítalo-argentino Lucio Fontana e Alberto
Burri, artista italiano ligado ao informalismo.

A aproximação entre a produção de Burri, Fontana e Manzoni com aspectos


predominantes da Arte Povera torna-se cognoscível, a princípio, frente à utilização de
materiais e práticas não convencionais. Alberto Burri, que iniciou sua produção quando
ainda era prisioneiro de guerra, constituiu composições unindo fragmentos assimétricos
de sacos de serapilheira; algumas obras da série, intitulada Sacchi, parecem
exteriorizar indícios de uma junção indesejada ao evidenciar a costura e a distensão
dos fragmentos de tecido realizados pelo artista. A superfície modificada dos materiais
nas composições parece ter sido inserida de modo a evidenciar que foi ocasionada pela
atitude do artista. A evidência torna-se ocorrência em obras como Bianco B, de 1965,
Legno e bianco 1, de 1956, Rosso plastica M1, de 1961 e Combustione, de 1964,
produzidas por meio da combustão de produtos como plástico, madeira e acrílico.
Nessas obras, a redução torna-se elemento de construção. Semelhante ao que viria a
ocorrer na Arte Povera, em que a contenção de artifícios no ato de compor as obras se
tornou princípio. Outra influência, mais evidente, da obra de Burri na Arte Povera,
consiste no uso de materiais pobres e o elemento fogo (que em obras poveristas, quase
sempre se apresenta fisicamente). Ao comentar sobre o trabalho de Burri, a
responsável pela Arte Moderna e Contemporânea na Christie‟s48 (Itália), Mariolina
Bassetti, utiliza o termo “destruição criativa”: “Ele usou o fogo para penetrar o material,
para atravessá-lo e transformá-lo. Foi um ato violento comparável ao nascimento
(CHRISTIE‟S)”49. Contudo, a destruição não ocorre integralmente, e por mais estranho
que aparente ser, o ato de costurar e esticar fragmentos de tecido ou de queimar a
superfície meticulosamente de modo a não destruí-la revela uma sutileza desmedida,
que por sua vez, parece ser incompatível com o choque provocado pelas obras do
artista italiano. Essa contradição é geralmente identificada em trabalhos pictóricos e
figurativos, nos quais o assunto da obra conduz a reação do público. Talvez, o maior
47
Tradução livre, original em espanhol: “No se trata de precursores, sino de determinadas propuestas
que generarán el humus sobre el que se asentarán los más jóvenes”.
48
Uma das casas de leilão de arte mais famosas do mundo.
49
Tradução livre, original em inglês: “He used fire to penetrate material, to go through it and transform it.
It was a violent act comparable to birth”. Disponível em: <https://www.christies.com/features/Alberto-Burri-
6584-1.aspx>. Acesso: 03 Mai. 2017.
28

diferencial da obra de Burri esteja no fato de o artista conseguir atingir emocionalmente


o espectador sem constituir uma temática melancólica evidente, qualidade que os
poveristas parecem ter assimilado extensivamente.

Imagem 07: Alberto Burri, Combustione, 1964. Plástico, acrílico e combustão s/ cardboard, 50 x 35 cm.
Cortesia: Tornabuoni Art.

O modo com o qual Burri lida com o espaço pictórico associa-se aos trabalhos de Lucio
Fontana intitulados Concetto spaziale, nos quais o artista realizou perfurações ou cortes
simétricos e calculados na tela. Para a historiadora de arte Barbara Hess (2014), “talvez
a mutilação da tela possa ser interpretada como uma fuga simbólica da premissa
29

estética de estar aprisionado num estilo sobrecarregado”, já que como relembra a


autora, Fontana trabalhou como escultor, tendo produzido obras prevalentemente
figurativas no período pré-guerra. A mesma impressão pode ser obtida ao observar
algumas obras da série Le ambientazioni, intervenções diversas que se destacam pela
liberdade com a qual os materiais atuam no espaço, como se as demarcações fossem
inexistentes. O uso do néon em alguns trabalhos da série atua no fortalecimento dessa
sensação ao protagonizar, por meio da radiante presença do néon, a atuação da luz e
das formas no espaço. Como demonstra Polanco, a nova compreensão espacial
demonstrada por Fontana pode ser facilmente identificada em obras poveristas: “Alguns
artistas - Pascali, Fabro, Paolini - têm aproveitado e radicalizado a experiência de
Fontana nas possibilidades tridimensionais da tela e do bastidor” (POLANCO, 2003, p.
21)50. A título de exemplo, podemos considerar algumas instalações de Pino Pascali,
que retomam de Fontana a despojada e expandida atuação dos elementos no espaço,
bem como grande parte das obras de Mario Merz, que recuperam o uso do néon.

De Manzoni, a Arte Povera herda visivelmente a ironia das ações performáticas e o


forte contraponto às práticas acadêmicas, que tanto suas obras quanto seus textos
exprimem. No catálogo da exposição de Manzoni, realizada em 2015, no Museu de Arte
Moderna de São Paulo, o crítico de arte brasileiro Paulo Venâncio Filho, então curador
da exibição, enfatiza o que pode ser considerado uma das maiores contribuições do
artista para a Arte Povera, ao afirmar que, “em Manzoni, a própria matéria é elevada à
condição de imagem” (FILHO, 2015, p. 45). “Os trabalhos de Manzoni são claros,
simples, afirmativos, inequívocos” (FILHO, 2015, p. 47). Não há truques, como
demonstra a série intitulada Achrome, em que o artista explora elementos variados
desprovidos de qualquer artifício de composição, que expressam nas palavras do
curador: “A verdade dos materiais” (2015, p. 47).

Além de constituir aproximações significativas com a produção dos artistas


anteriormente comentados, é possível constatar que a Arte Povera sintoniza-se, mesmo
diante de todas as “negações” e ainda que minimamente, com outras tendências

50
Tradução livre, original em espanhol: “Algunos artistas – Pascali, Fabro, Paolini – han aprovechado y
radicalizado la experiencia de Fontana sobre las posibilidades tridimensionales de la tela y el bastidor”.
30

proeminentes na década de 1960. Vale ainda ressaltar, a relação do movimento com o


trabalho do diretor polaco Jerzy Grotowski, cujo estilo de encenação, denominado
Teatro Pobre, não demonstra ter sido significativo apenas para nomeação do
movimento italiano. O termo “pobre” é repleto de subjetividades que consistem aspectos
análogos entre a Arte Povera e o Teatro Pobre de Grotowski. Nessa perspectiva, a
proveniência do termo Arte Povera não constitui um citacionismo puramente nominal,
mas uma espécie de autoafirmação referencial, um reconhecimento da expressiva
conformidade existente entre as proposições artísticas que detém o termo como
designação. Vejamos, portanto, alguns aspectos convergentes. O primeiro e mais
significativo reside na atenuação. Semelhante ao que viria a ocorrer nas obras ligadas à
Arte Povera, o Teatro Pobre elimina das encenações recursos considerados
prescindíveis, tais como: cenários, maquiagem e figurinos requintados. Para Grotowski
(1987, p. 18), muitos desses recursos podem ser transformados na presença do
público, “[...] contrastando com as funções do ator [...]”. O diretor ressalta que,

A eliminação dos elementos plásticos que possuem vida própria (isto é,


que representam algo independente da ação do ator) conduziu à criação
pelo ator dos objetos mais elementares e óbvios. Pelo emprego
controlado do gesto, o ator transforma o chão em mar, uma mesa em
confissionário, um objeto de ferro em ser animado, etc. (GROTOWSKI,
1987, p. 18-19).

Em suma, o autor indica que a atuação torna-se o elemento crucial e a ausência


concede ao ator a possibilidade de transmutar o espaço e originar elementos
materialmente inexistentes na cena: “[...] consideramos a técnica cênica e pessoal do
ator como a essência da arte teatral” (GROTOWSKI, 1987, p. 14)51.

É possível perceber, tanto no Teatro Pobre quanto na Arte Povera, um retorno à


essência por meio de ações que dispensam uma série de práticas que caracterizariam
linguagens específicas do campo da arte, o que revela o interesse em exprimir o que há
de mais próprio na representação teatral (no caso do Teatro Pobre) e nos materiais
utilizados para constituição da obra de arte (no caso da Arte Povera). Em suas
produções teóricas, tanto Grotowski quanto Celant se posicionam criticamente em

51
Grifo do autor.
31

relação à “cleptomania artística”52 e a integração de mecanismos técnicos


aperfeiçoados. A atitude reducionista de eliminação, em ambas as tendências, age em
prol da exaltação do que é considerado indispensável: o envolvimento do público. De
acordo com Grotowski (1987, p. 16-17), o teatro “só não pode existir sem o
relacionamento ator-espctador [sic] [...]”. O semelhante ocorre com o movimento
italiano, em que a interação entre a obra e o público configura intencionalmente o
elemento fundamental.

Como vimos, os artistas dessa geração italiana, entre outras fundamentações,


trouxeram novas percepções de lugar, incorporaram à arte linguagens distintas,
buscaram instituir novas possibilidades ao público, recuperaram de certa forma, a crítica
institucional duchampiana e fortaleceram a contraposição à hierarquização da arte. A
disparidade da produção poverista denota o desenvolvimento independente da poética
de cada artista, como demonstra a produção de Michelangelo Pistoletto.

I. 3. Michelangelo Pistoletto e a neovanguarda

Michelangelo Pistoletto nasceu na cidade de Biella, Itália, em 1933. O artista é


geralmente reconhecido como um dos principais membros da Arte Povera italiana.
Contudo, basta uma breve análise da lista de exposições realizadas por ele para
identificar uma série de titulações que envolvem outras tendências artísticas: Pop Art,
Conceitual e Novo Realismo, o que serve de exemplo para demonstrar a variabilidade
de sua produção.

52
Grotowski utilizou o termo “cleptomania artística” para criticar o hibridismo e a apropriação do Teatro
Rico, no artigo intitulado Em busca de um teatro pobre (presente no livro que possui o mesmo título e
reúne textos do diretor), publicado pela primeira vez em 1965.
32

Imagem 08: Michelangelo Pistoletto. Uomo Seduto, 1962. Papel de tecido pintado sobre espelho de aço
inoxidável polido, 125 x 125 cm. Coleção Privada, Bruxelas.
Foto: P. Bressano (na foto: Michelangelo Pistoletto sentado em frente à obra, Turim, 1962).
Site oficial do artista.

A trajetória de Pistoletto como artista teve início na década de 1950, quando ele
produziu e expôs uma série de autorretratos por meio da pintura (LE PRIME OPERE,
2007). Como demonstra a lista de exposições do artista, a primeira participação de
Pistoletto em uma mostra de arte deu-se em 1955, na exibição intitulada 95ª
Esposizione annuale della società d’incoraggiamento alle Belle Arti, realizada na cidade
de Turim. Poucos anos depois, Pistoletto estaria participando de exposições nos
Estados Unidos. Os acontecimentos que contribuíram para conduzir Pistoletto a esse
estágio tiveram início em 1963, quando o artista exibiu os singulares Quadros
espelhados, na Galleria Galatea, em Turim. Acerca dessa exibição, Pistoletto
(entrevista a Alain Elkann, 2014, p. 79) explica que o então proprietário da galeria, o
banqueiro Mario Tazzoli, não apreciava as obras e sentia-se envergonhado por elas,
chegando a declarar tal sentimento ao empresário italiano Gianni Agnelli. Todavia, a
relação entre os galeristas e os Quadros espelhados viria a sofrer alterações
significativas, precisamente, após uma viagem de Pistoletto à Paris, descrita a Alain
Elkann (2014, p. 84-85), onde em uma visita à mundialmente conhecida galeria de
33

Ileana Sonnabend (que representava artistas norte-americanos em Paris), o artista


mostrou o catálogo da exposição em andamento na Galatea.

Michael53 e Ileana Sonnabend ficaram maravilhados e disseram que


viriam ver minha exibição. Alguns dias depois eles apareceram em
Turim, viram meu trabalho, adquiriram todas as obras, e então se
ofereceram para comprar o meu contrato com Tazzoli (PISTOLETTO,
entrevista a Alain Elkann, 2014, p. 85)54.

Ainda segundo Pistoletto (entrevista a Alain Elkann, 2014, p. 85), pouco tempo após a
proposta de Ileana Sonnabend, em 1964, ele estaria participando de exibições junto
com artistas pop estadunidenses na Europa. Diante disso, Pistoletto constituiu uma
relação peculiar com a tendência que é geralmente compreendida, por exemplo, pelo
teórico Michael Archer (2012, p. 17), como um “fenômeno norte-americano”.
Analisando a lista de exibições de Pistoletto, é possível apontar uma série de mostras
coletivas cujos títulos constituem referências nítidas à tendência pop. Em meio às
exibições realizadas na década de 1960, estão: Dessin Pop, Galerie Ileana Sonnabend,
Paris, 1963; POP, etc. Museum des XX Jahrhunderts, Viena, 1964; Neuer Realismus
und Pop Art, Akademie der Kunste, Berlim, 1964; Pop Art, Nouveau Réalisme etc.,
Palais des Beaux-Arts, Bruxelas, 1965; Pop, Galleria Gian Enzo Sperone, Turim, 1965.
De acordo com Claire Gilman (2008, p. 1), “[...] Lucy Lippard solidificou a conexão [do
artista com a tendência] quando incluiu o artista em seu livro de 1966 sobre a Pop
Art”55.

Gilman (2008, p. 54) chama a atenção para a importância de Ileana Sonnabend na


inserção do artista no cenário artístico nova-iorquino no início da década de 1960,
mencionando as diversas viagens que Pistoletto fez ao estado com a galerista, bem
como o fato de Ileana Sonnabend o ter apresentado ao ex-marido Leo Castelli.

53
Michael Sonnabend foi o segundo marido de Ileana Sonnabend. Antes, a galerista foi casada com Leo
Castelli.
54
Tradução livre, original em inglês: “Michael and Ileana Sonnabend were amazed and said they would
come to see my exhibit. A few days later they turned up in Turin, saw my work, and bought all of it, and
then they offered to buy me out of my contract with Tazzoli”.
55
Tradução livre, original em inglês: “[...] Lucy Lippard solidified the connection when she included the
artist in her 1966 book on Pop art”.
34

Por algum motivo, os planos para uma exposição individual na Galeria


Leo Castelli nunca se materializaram. Em vez disso, Sonnabend
organizou shows individuais na Kornblee Gallery em 1967 e 1969. A
revelação precoce de Pistoletto, tanto na Europa como em Nova York,
culminou em um feito quase sem precedentes para um artista europeu:
duas exposições individuais nos principais museus americanos menos
de seis e nove anos após sua estreia artística (GILMAN, 2008, p. 54)56.

Como demonstrado, o vínculo de Pistoletto com galeristas e marchands atuantes nos


EUA estendeu-se de modo gradativo na primeira metade da década de 1960. Contudo,
a relação entre o artista italiano, os Estados Unidos e as expectativas do mercado em
relação ao seu trabalho viria a ser, digamos, abalada. Em entrevista a Germano Celant,
Pistoletto (apud OGGETTI IN MENO, 2007) explica que no final de 1964, Castelli
demonstrou interesse na realização de uma exibição imediata em sua galeria em Nova
York, tendo solicitado ao artista a produção novas pinturas, sob a justificativa que as
demais foram vendidas ou estavam em museus. Contudo, a mostra, como informado
por Gilman (2008, p. 54), não aconteceu. Ocorreram ainda, situações peculiares
envolvendo Pistoletto e Castelli. Nas entrevistas consultadas, Pistoletto não explica com
exatidão a razão pela qual a mostra não ocorreu. Por outro lado, o artista relata
determinados acontecimentos envolvendo sua relação com o galerista, uma delas,
descrita a Alain Elkann (2014, p. 93), foi a danificação dos trabalhos que estavam
acomodados na galeria de Castelli: uma pessoa não identificada haveria deteriorado
propositalmente as superfícies espelhadas das obras, o que assustou Pistoletto, bem
como causou seu distanciamento dos Estados Unidos57. Outra situação que se afigurou
peculiar foi um convite, feito por Castelli, em 196558 (ano seguinte à proposta para uma
exibição imediata). De acordo com Pistoletto (entrevista a Alain Elkann, 2014, p. 92),
nesse convite, o galerista enfatiza que o artista havia se tornado um grande sucesso

56
Tradução livre, original em inglês: “For some reason, plans for a solo exhibition at the Leo Castelli
Gallery never materialized. Instead, Sonnabend arranged for solo shows at Kornblee Gallery in 1967 and
1969. Pistoletto‟s early exposure both in Europe and New York culminated in an almost unprecedented
feat for a European artist: two solo exhibitions in major American museums less than six and nine years
after his artistic debut”.
57
O relato de Pistoletto não explica com exatidão o ano em que isso ocorreu, mas menciona que o
episódio precedeu a realização de sua exibição na Kornblee Gallery. Duas mostras individuais ocorreram
nessa galeria. A primeira foi realizada em 1967, no ano seguinte não existem registros de exposições
solo nos EUA. Após a segunda mostra, de 1969, ocorreu algo semelhante: houve uma pausa nas
exibições individuais do artista nos Estados Unidos entre 1970 e 1973.
58
Segundo Pistoletto (entrevista a Alain Elkann, 2014, p. 92), o convite foi realizado um ano após a
abertura da Bienal de Veneza e de sua exibição na Galleria Del Leone, ambas em 1964.
35

nos Estados Unidos, entretanto, se ele quisesse continuar a ser, deveria ir para o país,
juntar-se à família e “esquecer-se de ser europeu”, caso contrário, não teria chance.
Acerca do relato, Alain Elkann questiona:

Alain Elkann: Em resumo, Castelli disse que naquele momento tudo na


América era sobre os americanos, então você deveria se tornar
americano ou estaria acabado. Isso pareceu uma ameaça para você?

Michelangelo Pistoletto: Sim, mas não dele. Ele estava simplesmente


tentando me dizer que a situação estava mudando naquele momento. O
que eles queriam na América com um italiano? Talvez, até o dia antes
do prêmio ter sido dado à Rauschenberg, ter um artista italiano como
marca de um espectro internacional de visualizações foi útil. Mas, assim
que obtiveram o prêmio, eu não era mais necessário para mostrar que a
Pop Art era internacional (PISTOLETTO, entrevista a Alain Elkann,
2014, p. 93)59.

Para Pistoletto (entrevista a Alain Elkann, 2014, p. 94), até certo momento, sua
presença talvez tenha sido oportuna, mas as premências haviam mudado.

Leo pensou muito no meu trabalho, mas ele queria que a minha arte
fosse considerada americana, porque isso atendia os requisitos
nacionalistas que ele próprio ajudara a moldar (PISTOLETTO, entrevista
a Alain Elkann, 2014, p. 94)60.

O convite de Castelli, mais do que uma situação controversa, precede um período no


qual Pistoletto iniciou uma veemente reflexão sobre a relação de seu trabalho com o
sistema de mercado da arte, bem como uma reconfiguração de sua produção artística
por meio da composição de obras que seguiam na contramão do que era esperado por
certos galeristas e negociantes de arte61. Esse novo ciclo de produções teve início com

59
Tradução livre, original em inglês: Alain Elkann: “In short, Castelli told you that it was all about the
Americans in America at that time, so you should become American or you were finished. Did that seem
like a threat to you?”
Michelangelo Pistoletto: “Yes, but not from him. He was simply trying to tell me that at that moment the
situation was changing. What did they want in America with an Italian? Perhaps, up until the day before
the prize was given to Rauschenberg, having an Italian artist as a mark of an international spectrum of
views was useful. But as soon as they got the prize, I was no longer needed to show that Pop Art was
international”.
60
Tradução livre, original em inglês: “Leo thought highly of my work, but he wanted my art to be regarded
as American, because that complied with the nationalistic requirements that he himself had helped
shape”.
61
Cabe frisar que a produção dos Quadros espelhados não cessou nesse período, o que ocorreu foi a
produção paralela de obras que naquele momento, como explica Pistoletto (ver citação nesta página),
36

os Oggetti in meno (Objetos de menos, em tradução livre), nos quais Pistoletto


empregou dessemelhanças propositais em relação aos Quadros espelhados. Os
Oggetti in meno configuram elementos diversos, tais como uma fotografia de grande
dimensão do artista norte-americano Jasper Johns e uma vitrine com a roupa de
trabalho de Pistoletto. Os trabalhos, acomodados no estúdio do artista, denotavam um
espaço domiciliar, em que o espectador poderia percorrer o recinto e manipular as
obras, assimilando elos triviais. Muitos objetos poderiam ser convidativos para o
espectador, como a mesa de jardim, o que demonstra uma espécie de essencialidade
do envolvimento do público. Por meio do título, Oggetti in meno, Pistoletto submete os
elementos à condição ínfima, produz cada objeto para dar-lhes esse destino,
demonstrando de fato a intenção de seguir um caminho oposto à magnificência tão
rapidamente agregada aos Quadros espelhados62. A seguir, o artista fala sobre
motivações que impulsionaram a produção das obras:

Eu pensei que havia chegado a hora de por fim à subordinação da arte


ao poder do sistema capitalista prevalecente. Meu trabalho não
representava esse poder, mas no fim eu, também, estava me tornando
um produto de consumo. O que eu poderia fazer para quebrar a corrente
que me arrastou para o mercado, obrigando-me a escolher entre
recompensa e exclusão? [aqui, o artista parece referir-se à proposta de
Castelli]. Situações extremas requerem medidas extremas. Decidi
produzir uma série onde o criador seria irreconhecível, e fiz os Minus
Objects, cada um diferente do outro, de modo que seria impossível
comercializar meu nome por meio dessas obras (Pistoletto, entrevista a
Alain Elkann, 2014, p. 95)63.

Em entrevista a Michael Auping (2011, p. 67-68), Pistoletto explica que os Quadros


espelhados tornaram-se uma “imagem de assinatura” e que os negociantes queriam

não detinham características que permitissem correlações substanciais à já consagrada produção do


artista.
62
Em 2010, Pistoletto utilizou fotografias dos elementos da instalação para produzir uma série de
Quadros espelhados. As obras, entre elas: Rosa bruciata – in (Rosa queimada – in), Casa a misura
d’uomo – in (Casa em escala humana – in) e Vetrina – in (Mostruário - in), participaram da exibição My
Art in My Art (Minha arte em minha arte), realizada na Galleria Christian Stein, em Milão.
63
Tradução livre, original em inglês: “I thought the time had come to put a stop to the subjugation of art to
the power of the prevailing capitalist system. My work did not represent that power, but in the end I, too,
was becoming a consumer product. What could I do to break the chain that dragged me into the market,
obliging me to choose between reward and exclusion? Desperate diseases require desperate remedies. I
decided to produce a series where the creator would be unrecognizable, and I made the Minus Objects,
each different from one another, so that it was impossible to market my name through those works”. Grifo
do autor.
37

mais dessas obras para comercializar, enquanto ele queria “explorar as implicações”
das obras. “Em certo sentido, eu estava reagindo à ideia de fazer mais objetos para
vender. Os Minus Objects deram conta disso [risos]. Eles não eram muito populares”
(PISTOLETTO, entrevista a Michael Auping, 2011, p. 68)64. Pistoletto revela que Leo
Castelli assimilou as obras de modo negativo e a reação dos Sonnabends foi ainda pior:

Eles simplesmente não conseguiam compreender porque eu queria me


arruinar daquela maneira, após ter estabelecido uma boa reputação com
os Quadros Espelhados. Para eles, era impossível que um artista não
fosse reconhecível, algo que eles não encontraram nos Minus Objects.
Quanto mais eu tentava explicar-lhes que eu pretendia que as obras
diferissem umas das outras por um motivo específico, pior ficava
(PISTOLETTO, entrevista a Alain Elkann, 2014, p. 133-135)65.

Por outro lado, os Oggetti in meno conquistaram Celant. Vejamos o que diz Pistoletto:
“Germano Celant, em sua declaração de 1967, tomou os Minus Objects que criei de
1965 a 1966 como o ponto de referência inicial para a Arte Povera” (PISTOLETTO,
entrevista a Alain Elkann, 2014, p. 133)66. É possível que a atração do crítico em
relação às obras, estivesse menos concentrada nos trabalhos e mais concentrada à
“reação” de Pistoletto ao poder do mercado, uma vez que a renúncia realizada pelo
artista viria a corresponder fielmente ao discurso de Celant (2003, p. 99) contra a
produção artística refém do sistema da arte. No trecho seguinte, o crítico descreve a
atitude de Pistoletto em relação aos Oggetti in meno, de modo a favorecer aspectos
análogos às suas considerações acerca da tendência poverista:

Pistoletto (como Warhol, Mari e Grotowsky) tem levantado desde 1964,


o problema da liberdade de linguagem, não vinculado ao sistema, à
coerência visual, mas à coerência "interior" e em 1966, realizou obras
sumamente “pobres” [...]. Trata-se de um trabalho que visa registrar "a
irrepetibilidade de cada instante" (Pistoletto), que pressupõe a rejeição
de qualquer sistema e expectativa codificada. Uma ação livre [...] e
imprevisível [...], uma frustração de expectativas que permite a Pistoletto

64
Tradução livre, original em inglês: “In one sense, I was reacting to the idea of making more objects to
sell. The Minus Objects took care of that [laughter]. They were not very popular”. Grifo nosso.
65
Tradução livre, original em inglês: “They just could not understand why I wanted to ruin myself that way,
after having established a reputation with the Mirror Paintings. For them it was impossible for an artist not
to be recognizable, something they didn't find in the Minus Objects. The more I tried to explain to them
that I had intended for the works to differ from one another for a specific reason, the worse it got”. Grifo do
autor.
66
Tradução livre, original em inglês: “Germano Celant, in his 1967 statement, took the Minus Objects I
created from 1965 to 1966 as the initial reference point for Arte Povera”. Grifo do autor.
38

situar-se sempre na fronteira entre arte e vida. (CELANT, 2003, p.


101)67.

Embora Pistoletto não tenha participado da primeira exposição do grupo poverista, o


artista constituiu uma conexão intensa com o movimento teorizado por Celant. Os
Oggetti in meno e a atitude de “renúncia” de Pistoletto em meio a produção das obras,
certamente, contribuíram para a consolidação do artista à tendência.

Imagem 09: Michelangelo Pistoletto, Oggetti in meno, 1965/1966. Estúdio do artista, Turim, 1966.
Foto: P. Bressano.
Site oficial do artista.

Tais como os Oggetti in meno, muitos trabalhos de Pistoletto asseveram a crítica a um


sistema hierárquico intrínseco à arte, tanto ao que se refere ao papel do espectador

67
Tradução livre, original em espanhol: “Pistoletto (al igual que Warhol, Mari y Grotowsky) se ha
planteado desde 1964 el problema de la libertad del lenguaje, no vinculado ya al sistema, a la coherencia
visual, sino a la coherencia „interior‟, y ha realizado en 1966 obras sumamente „pobres‟ […]. Se trata de
un trabajo que pretende registrar „la irrepetibilidad de cada instante‟ (Pistoletto), que presupone el
rechazo de cualquier sistema y expectativa codificada. Una actuación libre […] e imprevisible […], una
frustración de expectativas que permite a Pistoletto situarse siempre en la frontera entre arte y vida”. Grifo
nosso.
39

quanto aos estilos artísticos dignificados. Em 1967, Pistoletto defrontou uma escultura
de Vênus em tamanho real frente a um amontoado equivalente de tecidos: “trapos”.
Desse modo, apenas a parte detrás do corpo foi submetida ao olhar do espectador.
Tem-se a impressão de que a Vênus absorve a exclusiva função de evitar o despencar
dos trapos, que ao contrário da escultura, exteriorizam desordem e excesso.

Imagem 10: Michelangelo Pistoletto, Venere degli stracci (Vênus de trapos), 1967. Vênus clássica, trapos,
mica, 150 x 280 x 100 cm. Castello de Rivoli – Museo d‟Arte Contemporanea, Rivoli.
Foto: P. Pellion.
Site oficial do artista.

Assim como a maioria das obras do artista (se não todas), a Venere degli stracci possui
uma relação intensa com os Quadros espelhados. Em entrevista a Michael Auping,
Pistoletto (2011, p. 60) explica que utilizava trapos para limpeza dos espelhos e desse
modo, começou a acumulá-los, descobrindo como eles eram belos e diversificados.
Ainda segundo o artista:
40

Os trapos são a superfície da sociedade. Eles são uma atomização da


nossa imagem tribal. São como nos permanecemos aquecidos e
também como nos ornamentamos. Se você cobrir uma parede com
trapos, você está criando um reflexo da sociedade. Se você cobrir uma
parede com um espelho, você faz a mesma coisa (PISTOLETTO,
entrevista a Michael Auping, 2011, p. 61-62)68.

A Venere degli stracci é atualmente considerada um ícone da tendência poverista. O


semelhante ocorre com Colonne di stracci e Monumentino, ambas de 1968, trabalhos
nos quais Pistoletto utilizou novamente os “trapos”. A aplicação dos “trapos” nas obras
apresenta diferenças. Na Venere degli stracci, os tecidos são responsáveis por
constituir volume junto à escultura; em Monumentino, os trapos encontram-se envoltos
em tijolos; já na obra intitulada Colonne di stracci, os trapos se apresentam envolvidos
em formas geométricas compostas de madeira. O ligamento dos trapos, nos dois
últimos trabalhos mencionados, rememora alguns trabalhos de Alberto Burri, tais como
a obra Combustione e a série intitulada Sacchi (que o artista produziu utilizando
fragmentos de sacos de serapilheira). Ainda nos anos finais da década de 1960,
Pistoletto chegou a compor obras utilizando elementos efêmeros, muito frequentes na
Arte Povera: água e fogo, como demonstram os trabalhos intitulados Candele, de 1967,
e Slitta di acqua e sapone, de 1968. Apesar da forte solidificação do artista com a
tendência, sua produção, bem como a produção de outros expoentes do grupo, não se
limitou em favorecer seus digamos, respectivos elementos e aspectos, como demonstra
uma gama de proposições de Pistoletto, entre elas Il barocco e le maschere, de 1969. A
obra retoma a atitude irônica presente na Venere degli stracci ao apresentar uma série
fotográfica de expressões faciais distintas em um jogo de luz que assim como o título,
favorece referências à pintura barroca. Para o curador de arte Jeremy Lewison (2011, p.
33)69, por meio da obra, Pistoletto encoraja uma perspectiva de questionamento:

Uma vez que sabemos disso [o autor se refere à manipulação das


imagens presentes nas obras], nossos pressupostos sobre a

68
Tradução livre, original em inglês: “The rags are the surface of society. They are an atomization of our
tribal image. They are how we stay warm and also how we decorate ourselves. If you cover a wall with
rags, you are making a reflection of society. If you cover a wall with a mirror, you do the same thing”.
69
Importante especificar que no trecho citado, o autor refere-se simultaneamente à obra O barroco e as
máscaras e aos Quadros espelhados, nos quais as imagens fotográficas são submetidas à manipulação,
assunto que abordaremos adiante.
41

autenticidade da fotografia são postos em questão, bem como a


autenticidade das reações ao que vemos (LEWISON, 2011, p. 33)70.

Trata-se de desviar-se do conteúdo emotivo acentuado do barroco em favor de um


realismo falaz e uma teatralidade sarcástica. O realismo da obra não ambiciona
convencer, mas como indica Lewison, instigar a revelação de inverdades na reprodução
fotográfica, bem como, em certo sentido, nas atitudes humanas.

A produção de Pistoletto, no fim da década de 1960 e início da década de 1970, foi


envolvida em um agregar de novas possibilidades e linguagens, o que permitiu instituir,
ainda mais, suas produções, em um contexto característico de ambiguidade
interpretativa. Esse caráter díspar, evidente quando se observa a produção de
Pistoletto como um todo, se corporiza nos Quadros espelhados. O resultado envolve
aspectos que, como demonstra o texto Quadri specchianti (2007), são reconhecidos
como essenciais por Pistoletto, entre eles: “[...] a conjunção de pares de polaridade
oposta (estático/dinâmico, superfície/profundidade, absoluto/relativo, etc) [...]71”. Trata-
se de unificar características que suscitam antagonismos e dessemelhanças. É como
se nas obras o artista agrupasse toda a ambiguidade de sua produção, utilizando-a
como elemento constitutivo, um aspecto que se reflete em grande parte das produções
bibliográficas teóricas e/ou historicistas que envolvem os trabalhos.

Tal como explanamos anteriormente, as obras de Pistoletto estabeleceram (e ainda


parecem continuar estabelecendo) relações com a Pop Art e a Arte Povera, tendências
que agregam princípios que se diferenciam. Do ponto de vista de Pistoletto (entrevista a
Alain Elkann, 2014, p. 89) e Gilman (2008, p. 53), os movimentos podem ser
considerados, inclusive, opostos. Uma parcela considerável da variabilidade dos
Quadros espelhados, deve-se às relações institucionais do artista. Contudo, existe uma
curiosa multiplicidade interpretativa no jogo de relações que cercam os Quadros
espelhados produzidos por Pistoletto, o que contribui ativamente para as vastas
possibilidades de leitura e a transição dos trabalhos entre perspectivas distintas. Outro

70
Tradução livre, original em inglês: “Once we know that, our assumptions about the authenticity of
photography are called into question as well as the authenticity of our reactions to what we view”.
71
Tradução livre, original em italiano: “[...] la congiunzione di coppie di opposte polarità (statico/dinamico,
superficie/profondità, assoluto/relativo, ecc) [...]”.
42

fator que parece contribuir para a polissemia das obras, é a série de mudanças que
envolvem sua poética de criação. Entre elas, está a instituição do espelho como plano
de fundo e a substituição do processo pictórico pela fotografia serigrafada que, como
informa Gilman (2008, p. 58), ocorreu em 1971. De acordo com a autora:

Ao rejeitar o subjetivismo elevado da pintura Informal, em outras


palavras, Pistoletto parece ter capitulado à extrema alternativa - um
mundo em que a vida „real‟ foi totalmente incorporada pela aparência
(GILMAN, 2008, p. 58)72.

O abandono da pintura pelo artista atinge o funcionamento das obras por meio da
fotografia, e sobretudo do espelho, uma vez que os elementos são capazes de não
apenas originar a concepção de aparência própria, mas de ficcionar sua projeção.
Apesar de Gilman (2008, p. 55), declarar na parte introdutória de seu texto que ao
examinar os quadros espelhados, assume uma posição de contraponto às
interpretações da Arte Povera e da Pop Art, a “extrema alternativa”, citada pela autora,
pode configurar uma das razões pelas quais as obras permaneçam habitando o
universo da Arte Pop.

Para Pistoletto (entrevista a Alain Elkann, 2014, p. 85), havia um aspecto em comum
com a Pop Art: a objetividade.

Nós [o artista refere-se ao seu trabalho e a Pop Art] tínhamos algo em


comum – o conceito da arte objetiva. Algo é dito ser objetivo se todos
podem apreender, se é uma representação geralmente compreensível.
A nossa era uma arte que veio após o Expressionismo Abstrato,
totalmente focado na subjetividade. Nesse sentido, havia uma afinidade
muito clara [...] (PISTOLETTO, entrevista a Alain Elkann, 2014, p. 85)73.

Contudo, a objetividade é um aspecto um tanto quanto genérico, passível de ser


identificado em uma gama de períodos, obras e tendências, não configurando uma
afinidade realmente potente. Talvez, o ato de eleger esse aspecto, seja uma estratégia
para favorecer seu desvencilhamento em relação à tendência pop, uma preocupação

72
Tradução livre, original em inglês: “In rejecting the heightened subjectivism of Informel painting, in other
words, Pistoletto appears to have capitulated to the alternative extreme - a world in which „real‟ life has
been entirely subsumed by appearance”.
73
Tradução livre, original em inglês: “We had something common – the concept of objective art.
Something is said to be objective if everyone can understand it, if it is a generally comprehensible
representation. Ours was an art that came after Abstract Expressionism, totally focused on subjectivity. In
this sense, there was a very clear affinity [...]”.
43

que, como observa Gilman, é frequente: “[...] apesar de uma admiração declarada pelo
trabalho dos artistas americanos, Pistoletto sempre se preocupou em afirmar sua
independência da estética Pop” (GILMAN, 2008, p. 54)74. De fato, Pistoletto empenha-
se muito mais em apontar as dessemelhanças do que as parecenças entre a Pop Art e
a concepção dos Quadros espelhados. Vide as divergências enfáticas apontadas pelo
artista a seguir:

[...] no meu trabalho, não havia nada que enfatizasse o fenômeno do


consumo, do glamour midiático que era um tema comum entre os
artistas americanos. O tema iconográfico que subjazia meu trabalho era
o ser humano e tudo ao seu redor. Uma ideia do universo diferente da
ideia consumista que os americanos estavam tentando fazer parecer
universal (PISTOLETTO, entrevista a Alain Elkann, 2014, p. 85)75.

A clara negação de uma relação vultosa com a tendência é notável em diversas


declarações de Pistoletto, nas quais o artista volta a fazer afirmações como: “[...] eu não
estava interessado em descobrir uma estética da publicidade” (PISTOLETTO, entrevista
a Michael Auping, 2011, p. 66)76; “Eu não me sinto um artista Pop” (PISTOLETTO,
entrevista a Michael Auping, 2011, p. 61)77 ou “[...] meus quadros espelhados não se
enquadram no conceito de consumo levado aos extremos, não refletem o sistema de
necessidade artificial da Pop Art americana” (PISTOLETTO, entrevista a Alain Elkann,
2014, p. 89)78. Em grande parte dessas declarações, a distância estabelecida entre seu
trabalho e a pop é seguida por frases enfáticas, que demonstram seu interesse em lidar
com peculiaridades da existência humana. Um aspecto que direciona-se ao
favorecimento do existencialismo, latente na defesa de uma atitude entregue à
“identificação entre homem e mundo”, realizada por Celant em seu entusiástico texto
intitulado Arte Povera: appunti per una guerriglia. Certos dizeres são mais enfáticos:

74
Tradução livre, original em inglês: “[...] despite an avowed admiration for the work of the American
artists, Pistoletto has always taken care to assert his independence from the Pop aesthetic”.
75
Tradução livre, original em inglês: “[...] in my work there was none of the emphasizing of the
phenomenon of consumption, of the media-based glamour that was a common theme among the
American artists. The underlying iconographic theme in my work was the human being and everything
around it. An idea of the universe different from the consumerist one that the Americans were trying to
pass off as universal”. Grifo nosso.
76
Tradução livre, original em inglês: “[...] I was not as interested in discovering an aesthetic of
advertising”.
77
Tradução livre, original em inglês: “I don't feel like a Pop artist”.
78
Tradução livre, original em inglês: “[…] my mirror paintings don't fit into the concept of consumption
taken to extremes, do not reflected the system of artificial need of American Pop Art do”.
44

“Arte Povera, assim como os Quadros Espelhados, é baseada, sobretudo, na


fenomenologia do existir” (PISTOLETTO, entrevista a Alain Elkann, 2014, p. 142)79.

Ainda que a produção dos trabalhos envolva o uso da fotografia, a assimilação entre as
obras e a Arte Povera é possível em razão da problematização das noções existentes
de participação e da presença de um jogo de relações propiciado pela junção de
elementos detentores de características díspares: a superfície espelhada e a imagem
fotográfica e/ou pictórica. Por outro lado, a assimilação entre os Quadros espelhados e
a Pop Art é perfeitamente possível em razão dos elementos constitutivos e das
questões que podem ser abordadas tendo-os como ponto de partida. A exterioridade
dos Quadros espelhados, composicionalmente figurativa, pode ser coerente à Pop Art
em vários sentidos. Vejamos, de acordo com o sociólogo Pascal Gielen, “desde o
momento em que Pistoletto começou a usar o espelho, a sociedade entrou em seu
trabalho e se tornou seu tema principal” (2011, p. 101)80. Pistoletto (entrevista a Michael
Auping, 2011, p. 61-62), demonstra uma concepção semelhante ao afirmar que a ação
de sobrepor um espelho em uma parede cria “um reflexo da sociedade”. Desse modo,
as obras agregam, por meio do espelho, algo que sobrexcede o espaço circundante e
vai ao encontro da Pop Art: a projeção do espaço circundante no espelho, que reflete,
entre outras coisas, uma sociedade italiana em transformação devido à ascendência do
consumismo, consequência do repentino desenvolvimento econômico do país.

Ironicamente, em certo sentido, a relação estabelecida entre os Quadros espelhados e


a Pop Art é constituída em meio a história da inserção das obras no mercado
internacional da arte. Não obstante, a relação de Pistoletto com a Arte Povera é
constituída em meio a manifestação de certa autonomia do artista perante o sistema de
capitalização de suas obras.

De fato, como ocorre com Pistoletto, certas proposições de artistas ligados ao grupo
poverista podem corresponder a aspectos desfavorecidos por Celant. Diante da
disparidade da produção, tanto de Pistoletto como de outros artistas ligados à Arte
79
Tradução livre, original em inglês: “Arte Povera, like the Mirror Paintings, is based above all on the
phenomenology of the existing”. Grifo do autor.
80
Tradução livre, original em inglês: “From the moment Pistoletto started to use the mirror, society
entered in his work and became his main subject”.
45

Povera, Celant, como informa Polanco (2003, p. 11), renuncia à etiqueta poverista no
ano de 1972. A autora comenta que o crítico declarou considerar a classificação “[...]
um clichê repetitivo e restritivo para o desenvolvimento das poéticas individuais [dos
artistas]”81 (POLANCO, 2003, p. 11). Entretanto,

[...] em 1985, em Nova York, no Institute for Art and Urban Ressources,
Celant recria o grupo na exposição The Knot Arte Povera at P.S.I [...],
com doze nomes inseparáveis a partir desse momento: Giovanni
Anselmo [...], Alighiero & Boetti [...], Pier Paolo Calzolari [...], Luciano
Fabro [...], Jannis Kounellis [...], Mario Merz [...], Marisa Merz [...], Giulio
Paolini [...], Pino Pascali [...], Giuseppe Penone [...], Michelangelo
Pistoletto [...] e Gilberto Zorio [...]. Todos eles têm desenvolvido sua
trajetória individualmente, o que não os impede de se encontrar de
tempos em tempos sob esse rótulo (POLANCO, 2003, p. 11)82.

Apesar do desfecho, a reconsideração de Celant chama a atenção para questões


relevantes, tais como a problemática originada da determinação de um “denominador
comum” para a diversidade da produção dos artistas ligados ao grupo, que como ele
indica por meio da renúncia, extrapola muitas de suas próprias considerações. Gilman
busca enfatizar essa questão ao introduzir sua análise acerca dos Quadros espelhados
de Pistoletto. A autora (2008, p. 53) destaca que as obras não se abstêm da tecnologia
e da representação mimética, bem como lidam com artifício, simulação e teatralidade83.
Desse modo, segundo Gilman, elas seguiriam na contramão da definição de Celant,
segundo o qual,

[...] Arte Povera foi enfaticamente antirrepresentacional, respondendo ao


novo panorama do consumidor, eliminando o artifício e recuperando os
fatos elementares da existência material e do comportamento humano.
Objetos pobres, formas naturais e forças energéticas: esses eram o

81
Tradução livre, original em espanhol: “[...] un cliché repetitivo y restrictivo para el desarrollo de las
poéticas individuales”.
82
Tradução livre, original em espanhol: “[...] en 1985, en Nueva York, en el Institute for Art and Urban
Ressources Celant recrea el grupo en la exposición The Knot Arte Povera at P.S.I (El nudo arte Povera
en P.S.I), con doce nombres inseparables a partir de este momento: Giovanni Anselmo [...], Alighiero &
Boetti [...], Pier Paolo Calzolari [...], Luciano Fabro [...], Jannis Kounellis [...], Mario Merz [...], Marisa Merz
[...], Giulio Paolini [...], Pino Pascali [...], Giuseppe Penone [...], Michelangelo Pistoletto [...] e Gilberto
Zorio [...]. Todos ellos vienen desarrollando individualmente su trayectoria, lo que no les impide en
absoluto reunirse de vez en cuando bajo esta etiqueta”. Grifos da autora.
83
Citação literal: “Longe de evitar a tecnologia e a representação mimética, esses trabalhos imiscuem o
artifício, a simulação e a teatralidade” (GILMAN, 2008, p. 53). (Tradução livre, original em inglês: “Far
from eschewing technology and mimetic representation, these works deal in artifice, simulation, and
theatricality”).
46

domínio da Arte Povera, como Celant definiu e como tem sido entendido
desde então (GILMAN, 2008, p. 53)84.

De fato, como exemplifica Gilman (2008, p. 53) (por meio de uma sutil menção ao
catálogo recente de uma exposição organizada pela Tate Modern e pelo Walker Art
Center), muitas análises têm mais a intenção de “[...] levantar questões sobre a
legitimidade de Celant como porta-voz do que sugerir alternativas”85. Desse modo, a
autora denota uma crítica substancial às abordagens que unicamente direcionam a
produção dos artistas às análises de Celant. Afinal, as obras podem se associar, mas
não se constituir unicamente em análises do crítico. Uma abordagem jamais será
eficiente para abarcar a produção de um artista, uma obra de arte ou uma tendência; o
equivalente ocorre com nomeações dos movimentos, desse ponto deriva a
multiplicidade interpretativa dos Quadros espelhados e, como já indicado, o incômodo
de Celant.

A arte, sendo prontamente polissêmica, sempre irá exorbitar categorizações e termos.


Sempre irão existir particularidades inusuais entre as obras relacionadas a uma mesma
tendência passíveis de serem destacadas, evitando uma abordagem unilateral,
puramente formalista ou que favorece interpretações subordinadas ao favorecimento de
determinados aspectos. No caso dos Quadros espelhados, as características díspares
destacam-se de modo ostensivo, impossibilitando a designação de um aspecto
dominante e favorecendo a assimilação das obras a tendências, contextos e aspectos
distintos.

84
Tradução livre, original em inglês: “[...] Arte Povera was emphatically anti-representational, responding
to the new consumer landscape by eliminating artifice and reclaiming the elemental facts of material
existence and human behavior. Poor objects, natural forms, and energetic forces: these were the domain
of Arte Povera as Celant defined it and as it has been understood ever since”.
85
Tradução livre, citação literal em inglês: “For instance, even the very worthy exhibition catalog for the
recent Arte Povera exhibition jointly organized by the Tate Modern and the Walker Art Center is more
intent on raising questions about the legitimacy of Celant as spokesperson than about suggesting
alternatives. Moreover, in emphasizing the Arte Povera artists‟ obsession with material experimentation
and process, it essentially adopts”.
47

CAPÍTULO II. PARA ALÉM DA TRASITORIEDADE

II. 1. Do autorretrato à Cittadellarte: a relevância dos Quadri specchianti na


produção de Michelangelo Pistoletto

Pistoletto é de fato um artista versátil. Desde o início de sua carreira, tem transitado
entre uma variedade de práticas artísticas que envolvem pintura, fotografia, instalação,
performance, teatro... entre outras. A profusão de linguagens e processos praticados
pelo artista italiano parece possuir raízes na versatilidade de sua formação artística,
que envolve a tradição da pintura figurativa italiana e experiências no universo da
publicidade86.

Para lidar com sua principal problemática, a existência humana, tema recorrente na arte
italiana, inicialmente, Pistoletto recorreu à pintura. Na explicação do artista:

No início, usei a tinta como um meio de libertação do conteúdo


descritivo, coagulando-a em grandes massas que, no entanto,
adquiriram o caráter de um autorretrato. Por meio do autorretrato,
busquei minha identidade (PISTOLETTO, entrevista a Alain Elkann,
2014, p. 55)87.

Como demonstram os artigos intitulados Quadri specchianti (2007) e Le prime opere


(2007), de autoria de Marco Farano, disponíveis no site oficial do artista, a presença de
inquietações existencialistas e de problemáticas suscitadas pela constituição das
pinturas, entre outras questões, contribuíram para condução do artista ao

86
Em entrevista a Alain Elkann, Pistoletto (2014, p. 12-23) relata ter começado a trabalhar ainda jovem
na restauração de pinturas antigas com seu pai, Ettore Olivero Pistoletto (pintor e restaurador), de quem
recebeu uma educação que envolvia técnicas acadêmicas (desenho, anatomia, uso da cor e claro-
escuro). Em seguida, o artista relata ter frequentado a prestigiada escola do artista gráfico turinense
Armando Testa, chegando a atuar no âmbito publicitário.
87
Tradução livre, original em inglês: “In the beginning I used paint as a means of liberation from
descriptive content, clotting it in large lumps that, however, took on the character of a self-portrait.
Through the self-portrait I sought my identity”. Grifo nosso.
48

desenvolvimento dos Quadri specchianti (Quadros espelhados, em tradução livre). Após


utilizar uma série de materiais, Pistoletto definiu o espelho de aço inoxidável como
material invariável das obras (QUADRI SPECCHIANTI, 2007). Ao fazer referência aos
seus interesses, esquivando-se de relações com a Pop Art, o artista explica: “Eu estava
explorando a relação entre figura e fundo, a relação entre figura e o espaço no qual ela
existia” (PISTOLETTO, entrevista a Michael Auping, 2011, p. 66)88. De fato, como
explica o artista: “Tudo o que surgiu após os Quadros Espelhados estava relacionado
às diferentes maneiras de explorar o espaço” (PISTOLETTO, entrevista a Michael
Auping, 2011, p. 67)89. A título de exemplo, podemos citar a série de trabalhos
constituídos de folhas de acrílico transparente, nos quais Pistoletto utiliza o espaço de
modo a incitar questões acerca da natureza da arte:

Em 1964 fiz uma série usando folhas de Plexiglas transparentes.


Naquele ano, os trabalhos foram exibidos na Galeria Sperone, em
Turim, acompanhados por um ensaio que foi precursor da arte
conceitual [aqui o artista se refere ao texto intitulado I Plexiglass]. Nele
escrevi: “Uma coisa não é arte, mas a ideia expressa por essa mesma
coisa pode ser”90. Uma dessas obras foi intitulada The Wall. Tratava-se
de uma folha de Plexiglas, medindo 180 por 120 centímetros, na qual
você poderia ver a parede através dela devido à transparência. A parte
da parede vista através do Plexiglas era arte, enquanto o resto da
parede obviamente não era (PISTOLETTO, entrevista a Alain Elkann,
2014, p. 118)91.

88
Tradução livre, original em inglês: “I was exploring the relationship between the figure and the ground,
between the figure and the space in which it exist”. A presente declaração é feita após o artista negar
possuir interesses relativos a assuntos intrínsecos à Pop Art.
89
Tradução livre, original em inglês: “Everything that came after the Mirror Paintings had to do with
different ways of exploring space”.
90
Quando Alain Elkann pergunta a Pistoletto se alguém mais continuou nesse caminho, o artista
responde: “No ano seguinte, em 1965, o artista americano Joseph Kosuth criou Uma e três cadeiras: uma
fotografia de uma cadeira, a cadeira física e a definição do dicionário de uma cadeira. Em seguida, ele
publicou o ensaio „Arte Depois da Filosofia‟, considerado o manifesto da arte conceitual. Em 1964, Kosuth
tinha visto a exposição dos trabalhos de Plexiglas na Galeria Sperone” (PISTOLETTO, entrevista a Alain
Elkann, 2014, p.122). (Tradução livre, original em inglês: “The following year, in 1965, the American artist
Joseph Kosuth created One and Three chairs: a photograph of a chair, the physical chair, and the
dictionary definition of a chair. Then he published the essay „Art After Philosophy‟, considered the
manifesto of conceptual art. In 1964, Kosuth had seen the exhibition of the Plexiglas work at Sperone‟s
gallery”). Grifos do autor.
91
Tradução livre, original em inglês: “In 1964 I made a series using sheets of transparent Plexiglas. That
year they were shown at Sperone's gallery in Turin, accompanied by an essay that was a precursor of
conceptual art. In it, I wrote, „A thing is not art; but the idea expressed by that same thing may be‟. One of
these works was titled The Wall. It was a sheet of Plexiglas measuring 180 by 120 centimeters, and
because it was transparent you saw the wall through it. The part of the wall seen throught the Plexiglas
was art, while the rest of the wall obviously was not”. Grifo do autor.
49

Na perspectiva de Pistoletto, a obra discute a delimitação da existência da arte (da


ideia) no espaço expositivo. A lógica da maioria das composições da série é
semelhante à dos Quadros espelhados, trazendo figuras sobrepostas em placas de
acrílico, tais como: Scala doppia appoggiata al muro e Filo elettrico appeso al muro,
ambas de 1964. Contudo, nos trabalhos de Pexiglas, uma parcela da superfície do
espaço expositivo foi agregada à obra, ao “âmbito da arte”. Já nos Quadros
espelhados, os elementos estendem-se ao espectador e ao espaço circundante. São
dois modos distintos de assimilar e lidar com a problemática da inserção do espaço,
entretanto, peculiarmente, eles não eximem a natureza bidimensional das obras. O
oposto ocorre em ações que partem, não da integração do espaço ao espelho, mas do
espelho ao espaço, como na primeira de doze exibições92 realizadas na Galleria Stein,
em Turim, entre 1975 e 1976, onde Pistoletto inseriu no espaço expositivo, uma placa
de espelho de dimensão equivalente à dos Quadros espelhados.

No texto Le stanze, que possui o mesmo título das exibições, o artista disserta acerca
das ideias e problemáticas de cada uma das mostras. Sobre a primeira exibição,
Pistoletto relata:

Na primavera passada expressei o desejo de realizar essa exposição,


após ter visto as três novas salas da Galleria Stein, em Turim, recém
terminadas. As portas [aberturas] sucessivas nos três espaços são
centrais numa mesma direção, criando uma sequencia em perspectiva.
Vi em uma dessas aberturas o tamanho típico dos meus quadros
espelhados (125 x 230 cm) e assim imaginei uma superfície de espelho
colocada na parede da sala dos fundos, de tal modo a continuar,
virtualmente, a série de portas e salas [Pistoletto efetivou essa ideia na
primeira das doze exibições, realizada no mês de outubro, de 1975 – ver
imagem 12]. Antes disso, nunca havia encontrado um motivo para expor
uma superfície de espelho sozinha, sem outra intervenção
(PISTOLETTO, 1975/1976)93.

92
A historiadora de arte Cristina Terzoni reflete sobre as doze exibições no artigo intitulado Michelangelo
Pistoletto: quartos de tempo. O texto pode ser acessado na íntegra por meio do link:
<http://wrongwrong.net/artigo/michelangelo-pistoletto-quartos-de-tempo>. Acesso: 27 Fev. 2018.
93
Tradução livre, original em italiano: “La primavera scorsa ho espresso il desiderio di fare questa mostra
vedendo i tre nuovi ambienti della Galleria Stein di Torino appena ultimati. Le aperture che immettono
successivamente nei tre locali sono centrate sulla stessa dirittura, creando una sequenza prospettica. Ho
visto in una di queste aperture la tipica dimensione dei miei quadri specchianti, cioè 125 x 230 cm, e ho
immaginato una superficie specchiante posta sulla parete della stanza di fondo, in modo tale da
continuare, virtualmente, la sfilata di aperture e di stanze. Prima di ora non avevo mai trovato il motivo per
esporre una lamiera specchiante sola e senza altro intervento”.
50

Imagem 11: Michelangelo Pistoletto. Le stanze. Outubro de 1975. Instalação. Galleria Christian Stein,
Turim.
Foto: P. Mussat Sartor.
Site oficial do artista.

O jogo de perspectiva inerente à instalação tem como ponto de partida a configuração


física da galeria. Em outros trabalhos, a inserção do espelho ocorre fora do espaço
museológico, incitando questões complexas, como quando Pistoletto substituiu uma
pintura barroca por um espelho no altar da igreja San Sicario, em 1977. O espelho, no
altar, subverte o espaço sagrado para refletir a própria instituição. A presença do
espelho na igreja, cujos adeptos creem propiciar a mediação do contato com uma
entidade celestial, institui aspectos que permitem figurar a existência da prática de um
constante retorno da instituição a si mesma.

A trajetória da produção artística de Pistoletto parte de uma investigação profunda de si


mesmo e transcorre para o espaço circundante da figura, da tela e da galeria, buscando
posteriormente, um grau superior de envolvimento. Em 1967, uma esfera de jornais
51

comprimidos foi submetida por ele à manipulação do público nas ruas de Turim, dando
origem à ação94 intitulada Scultura da Passeggio (O‟ ROURKE, 2013, p. 20). A artista
Karen O‟ Rourke (2013, p. 20), observa que a obra “[...] foi um modo de se envolver
com o mundo fora de museus e galerias”95, um ponto de vista compartilhado e
defendido por Pistoletto, como demonstra o seguinte trecho de uma entrevista
concedida ao historiador de arte Ara H. Merjian:

Nesse momento, acho muito importante que os artistas não façam


apenas trabalhos individuais, mas que comecem a ativar - ativar a
criatividade na sociedade, na vida social. Desta forma, penso que Sfera,
ao sair do espaço do estúdio96 e entrar na rua, era uma forma de
estabelecer esse tipo de conexão. Penso que hoje precisamos fazer os
jovens artistas entenderem que precisam sair das instituições e fazer o
trabalho no domínio da sociedade (PISTOLETTO, entrevista a Ara H.
Merjian, 2017, p. 5)97.

No mesmo ano, em 1967 (pouco mais de cinco anos após a produção do primeiro
Quadro espelhado), Pistoletto anunciou um manifesto liberando seu estúdio para
apresentação livre de trabalhos artísticos (APPERTURA DELLO STUDIO, 2007). “Eu
queria envolver pessoas” (entrevista a Michael Auping, 2011, p. 69)98, explica o artista.
O ato de extrapolar as barreiras do recinto expositivo tem estado presente em muitas
obras e ações de Pistoletto. Esse processo de abertura e expansão gradativa parte de
questões suscitadas pelos Quadros espelhados. Na explicação do artista:

Abrir o estúdio era uma questão técnica. Afinal, eu tinha um


relacionamento quase constante com os jovens artistas em Turim. Para
mim, era um modo de proceder. Uma vez que eu havia “aberto” a
imagem para a presença e a participação de todos, por que não “abrir”,

94
A ação já foi realizada novamente algumas vezes. Recentemente, inclusive, abriu a primeira exposição
individual do artista no Museo Nacional de Bellas Artes, em Havana, Cuba (25/11/2016 à 13/03/2017).
95
Tradução livre, original em inglês: “[...] was a way of engaging with the world outside museums and
galleries”.
96
A passagem da obra para o estúdio ocorre porque, como informa O‟ Rourke (2013, p. 20), “a bola de
jornal foi um dos oggetti in meno de Pistoletto [...]”. (Tradução livre, original em inglês: “The newspaper
ball was one of Pistoletto's oggetti in meno [...]”). Grifo da autora.
97
Tradução livre, original em inglês: “Now, I think it‟s very important that artists not only go on making
individual works but start to activate – to activate creativity in society, in social life. In this way I think the
Sfera, in leaving the studio space and going into the street, was a way of establishing this kind of
connection. I think that today we need to make young artists understand that they need to break out of
institutions and make work in the realm of society”. Grifo do autor.
98
Tradução livre, original em inglês: “I wanted to involve people”.
52

então, um espaço físico? (PISTOLETTO, 1973 apud APERTURA


DELLO STUDIO, 2007)99.

Ainda segundo Pistoletto,

Muitas pessoas que leram o manifesto vieram ao estúdio e este espaço


realmente se tornou um lugar maravilhoso. Relações diárias com
pessoas que tinham coisas para mostrar, para fazer. Eles começaram a
exibir seus filmes, a recitar poemas, e o público vinha para escutar,
depois, havia essas reuniões contínuas (PISTOLETTO, entrevista a
Germano Celant apud APERTURA DELLO STUDIO, 2007)100.

Os encontros agregam imprevisibilidade ao espaço da galeria. Não se trata de


pressupor a ação do espectador mediante uma proposta artística, mas de propor ao
público uma livre-iniciativa, cujos desdobramentos não podem ser pressagiados. Nesse
sentido, a liberdade exercida pela figura do artista não se converte em elemento para
exibição no espaço expositivo, como usualmente, mas em egresso para o
acontecimento.

A abertura do estúdio, como indica Pistoletto (entrevista a Michael Auping, 2011, p. 69),
culminou na constituição do Lo Zoo. De acordo com o artista (entrevista a Michael
Auping, 2011, p. 69), tratava-se de um grupo que reuniu indivíduos provenientes de
linguagens artísticas diversas, mantendo-se ativo, como informa Pistoletto (entrevista a
Alain Elkann, 2014, p. 152) entre 1967 e 1971.

Nós realizamos performances em toda parte [...]. Não tínhamos


hierarquias. Incluíamos pessoas do bairro. Era o Quadro Espelhado
totalmente expandido e estendido através da sociedade (PISTOLETTO,
entrevista a Michael Auping, 2011, p. 69)101.

99
Tradução livre, original em italiano: “Aprire lo studio era un fatto tecnico. Del resto io ho avuto un
rapporto quasi costante con i giovani artisti di Torino. Per me era un modo di procedere. Dato che ho
„aperto‟ il quadro alla presenza e partecipazione di tutti, perché non „aprire‟ invece uno spazio fisico?”.
100
Tradução livre, original em italiano: “Molte persone che avevano letto il manifesto sono venute nello
studio e questo spazio è diventato veramente uno spazio meraviglioso. Rapporti quotidiani con gente che
aveva delle cose da mostrare, da fare. Hanno cominciato a proiettare i loro film, a recitare poesie, e
veniva il pubblico ad ascoltare, quindi c'erano questi incontri continui”.
101
Tradução livre, original em inglês: “We performed everywhere […]. We had no hierarchies. We
included people from the neighbourhood. It was a Mirror Painting totally expanded and extended through
society”.
53

A denominação do grupo deriva de uma percepção da diversidade e do


desprendimento dos participantes: “Nós denominamos The Zoo, porque todos nós
éramos animais diferentes e estávamos fora da gaiola” (PISTOLETTO, entrevista a
Michael Auping, 2011, p. 69)102. Com suas ações, o grupo Lo Zoo promoveu a redução
de barreiras entre arte e público por meio da ampliação ao acesso.

Imagem 12: À esquerda: Annuncio apertura dello studio, 1967. Manifesto, Turim, 22 de dezembro de
1967. Descrição no anúncio: “Com esta exposição eu libero meu estúdio, que se abre para acolher os
jovens que querem apresentar seus trabalhos, fazer coisas, encontrar-se” (tradução livre).
Site oficial do artista.

Imagem 13: À direita: L’uomo ammaestrato, 1968. Mostra do grupo Lo zoo na praça, Vernazza, 17 de
agosto de 1968. Na imagem: Michelangelo Pistoletto, Gianni Milano e a primeira versão da obra
Monumentino (1968).
Foto: B. Scagliola.
Site oficial do artista.

Outros exemplos da atividade engajada do artista em ações que promovem a


desierarquização da arte são a criação de uma fundação na cidade italiana de Biella,
inaugurada no ano de 1988, denominada Cittadellarte, e o projeto intitulado Creative
Collaboration, que incluiu a realização de ações artísticas (em diversas cidades)
102
Tradução livre, original em inglês: “We called it The Zoo because we were all different animals and we
were out of the cage”. Grifo nosso.
54

iniciadas no ano de 1979. Na cidade de Atlanta, nos Estados Unidos, por exemplo,
Pistoletto (entrevista a Alain Elkann, 2014, p. 180) relata ter atuado por dois meses e
meio, junto aos artistas convidados por ele: o músico Enrico Rava, o compositor Morton
Feldman e o diretor de teatro Lionello Gennero, de modo a envolver toda a cidade. O
Creative Collaboration e o grupo Lo Zoo possuem perfis semelhantes, sobretudo em
virtude da configuração (por meio da participação de diferentes tipos de artistas) e do
potencial de alcance de algumas proposições artísticas (por meio da realização de
ações em locais públicos). Propósitos nesse seguimento podem ser identificados em
larga escala na atuação da Cittadellarte.

De acordo com o site dedicado à instituição (acesso: 26 Jul. 2016), a Cittadellarte foi
criada “[...] como realização concreta do Manifesto Projetto Arte, com o qual o artista
Michelangelo Pistoletto propõe um novo papel para o artista: de colocar a arte em
interação direta com todas as áreas da atividade humana que formam a sociedade”103.

Assim como a abertura do estúdio, a criação do Cittadellarte possui raízes no processo


de abertura das pinturas por meio do uso do espelho. Pistoletto explica a origem ao
fazer uma analogia entre essas ações e os Quadros espelhados, descrevendo-as à
Michael Auping, como um processo integrado de expansão:

Tudo é um só trabalho. O espelho tem se expandido. Já não sou um


jovem artista interessado apenas em seu autorretrato. Estou, entretanto,
ainda interessado em explorar minha relação com a sociedade. [...]
Pensamos em como a arte pode reunir as pessoas e ser um catalisador
para transformações positivas na sociedade. Cittadellarte é um
instrumento - como os Quadros Espelhados foram um instrumento - para
expandir o espaço da arte (PISTOLETTO, entrevista a Michael Auping,
2011, p. 70)104.

Sobre o Cittadellarte, Pascal Gielen ressalta que “[...] Pistoletto levou a sério a
consequência de seu olhar no espelho e o reestruturou em um gigantesco projeto social
103
Tradução livre, original em italiano: “[...] come attuazione concreta del Manifesto Progetto Arte, con il
quale l‟artista Michelangelo Pistoletto propone un nuovo ruolo per l‟artista: quello di porre l'arte in diretta
interazione con tutti gli ambiti dell'attività umana che formano la società”. Grifo nosso.
104
Tradução livre, original em inglês: “It is all one work. The mirror has expanded. I am no longer a young
artist only interested in his self-portrait. I am, however, still interested in exploring my relationship to
society. [...] We think about how art can bring people together and be a catalyst for positive
transformations in society. Cittadellarte is an instrument - the way the Mirror Paintings were an instrument
- for expanding the space of art”.
55

[...]” (GIELEN, 2011, p. 109)105. Ainda segundo o autor, o experimento da Cittadellarte,


“[...] de forma modesta, escapa ao mundo da ficção e da teoria para se realizar em uma
práxis concreta” (GIELEN, 2011, p. 109)106.

Os quadros espelhados constituem o fundamento da obra de Pistoletto,


seja da sua sucessiva produção e atividade artística, seja da reflexão
teórica, para a qual ele constantemente retorna para aprofundar seu
significado e desenvolver suas implicações (QUADRI SPECCHIANTI,
2007)107.

Talvez por essa razão, as obras permanecem em constante desenvolvimento desde o


início da década de 1960. As questões e experimentos que circundam o processo de
constituição dos Quadros espelhados tornaram-se fundamentais para compreender as
principais inquietações do artista, bem como servem de ponto de partida para
aprofundar questões relativas ao processo de participação do espectador nas obras.

II. 2. Uma linguagem em construção

Como sabemos, o campo da arte assimilou uma infinidade de processos e tendências


artísticas na década de 1960. A pluralidade de materiais e a interdisciplinaridade
tornaram-se cada vez mais intrínsecas à produção artística, favorecendo a atenuação
de linguagens consideradas acadêmicas e o advento de meios como a fotografia e o
vídeo. Nesse contexto de grandes transformações, muitos artistas romperam suas
relações com a pintura, agregando novas formas de produzir trabalhos artísticos, entre
eles, o italiano Michelangelo Pistoletto. O processo de criação dos Quadros
espelhados108 marca o distanciamento do artista em relação à linguagem pictórica, bem
como revela aspectos que se tornaram presentes em toda a sua produção.

105
Tradução livre, original em inglês: “[...] Pistoletto has taken the consequence of his gaze into the mirror
very seriously and has restructured it into a gigantic social project - the completion of which is yet to be
known”.
106
Tradução livre, original em inglês: “[...] in a modest way escapes the world of fiction and theory to
realise itself in a concrete praxis”. Grifo nosso.
107
Tradução livre, original em italiano: “I quadri specchianti costituiscono il fondamento dell‟opera di
Pistoletto, sia della sua successiva produzione e attività artistica, sia della riflessione teorica nella quale
egli costantemente ad essi ritorna per approfondirne il significato e svilupparne le implicazioni”.
108
Mais que uma referência lógica aos elementos presentes nas composições, o termo Quadro
espelhado soa como a instituição de uma nova categoria técnica que engloba, simultaneamente,
56

Influenciado por seu pai, também artista e restaurador, Pistoletto iniciou suas práticas
artísticas utilizando a pintura (LA FORMAZIONE, 2007). Entre as opções referenciais e
processuais passíveis, a representação humana, precisamente o autorretrato, foi o
recurso adotado nos trabalhos iniciais (LE PRIME OPERE, 2007). Em entrevista ao
historiador de arte italiano Giovanni Lista, Pistoletto (1999, apud LE PRIME OPERE,
2007) explica que o conflito entre abstração e figuração “era a grande discussão, o
grande debate do momento”109. Ao refletir acerca dessas questões, o artista comenta
sobre a revelação que obteve frente à Flagellazione, do pintor italiano Piero della
Francesca: “[...] entendi que Piero della Francesca era tanto abstrato quanto
figurativo. Entendi, também, que o problema era outro, ou ao menos que não havia sido
expresso de maneira clara” (PISTOLETTO, 1999 apud LE PRIME OPERE, 2007)110.

Quando vi o trabalho o trabalho de Piero della Francesca pela primeira


vez eu era jovem, comecei a compreender o problema do espaço, como
você poderia vê-lo como real ou abstrato. Piero apresenta figuras
realistas em um espaço abstrato. O espaço tinha a sua própria
presença, não como um lugar específico, mas como um vazio indefinível
(PISTOLETTO, entrevista a Michael Auping, 2011, p. 66-67)111.

Uma impressão similar é relatada pelo artista acerca do filme L’avventura (A aventura),
de 1960, do também italiano Michelangelo Antonioni. Para Pistoletto (apud LE PRIME
OPERE, 2007), ainda que o filme apresente personagens, ele é abstrato: “[...] o filme
mostra o ponto de convergência entre abstração e figuração, aquele ponto que já
estava presente em Piero della Francesca” (PISTOLETTO, 1999 apud LE PRIME
OPERE, 2007)112. Em meio a essas considerações, torna-se praticável deduzir que a

experimentos relativos à pintura e a fotografia. Nessa perspectiva, o crítico de arte norte-americano


Stephen Westfall (2011, p. 71) notabiliza que as obras “[...] são uma elegante síntese da fotografia e
pintura, e uma profunda meditação da relação entre os dois meios”. [Tradução livre, original em inglês:
“[...] are an elegant synthesis of photography and painting, and a profound meditation on the relationship
between the two mediums”].
109
Tradução livre, original em italiano: “Era la grande discussione, il grande dibattito del momento”.
110
Tradução livre, original em italiano: “[...] compresi che Piero della Francesca era sia astratto che
figurativo. Compresi che il problema era tutt'altro, o perlomeno che non era posto chiaramente”.
111
Tradução livre, original em inglês: “When I first saw the work of Piero della Francesca as a teenager, I
began to understand the problem of space, how you could see it as real or abstract. Piero put realistic
figures in an abstract space. The space had its own presence, not as specific place, but as an indefinable
void”.
112
Tradução livre, original em italiano: “[...] un film che mostra il punto di convergenza tra astrazione e
figurazione, quel punto che era già presente in Piero della Francesca” (PISTOLETTO, 1999 apud LE
PRIME OPERE, acesso: 25 Jul. 2016).
57

distância incisivamente categórica instituída entre figuração e abstração não seria um


conceito pleno para Pistoletto. É possível considerar que a situação da arte abstrata na
época, provocava certo desconforto no artista, como de certo modo, demonstra seu
ensaio intitulado Astrattismo, que tal como informa o texto Le Prime Opere (2007),
estava contido na revista Presenze, publicada em 1957, por um grupo de jovens artistas
e intelectuais que incluía Pistoletto. O ensaio de Pistoletto “[...] estava focado na
situação da arte abstrata da época, sobre o perigo de uma redução a um formalismo
estéril e sobre a importância de recuperar a essencial função social e espiritual da arte”
(LE PRIME OPERE, 2007)113.

Nesse sentido, torna-se possível compreender porque a produção do artista não


alicerçou questões estritamente formais. Segundo Pistoletto (1959, apud LE PRIME
OPERE), sua escolha pela representação provém do “[...] desejo de exprimir
sentimentos particulares e situações da condição humana [...]”, o que é considerado por
114
ele “[...] o argumento mais vivo e urgente de todos os tempos” .

A abstração pictórica levou à criação de signos pessoais, mas senti a


necessidade de me identificar com a imagem humana, começando com
a minha. Em todo caso, embora minha formação fosse moderna, ela
veio da escola italiana de representação. Não há abstração na tradição
italiana. Para mim, Piero della Francesca era esclarecedor (Pistoletto,
entrevista a Alain Elkann, 2014, p. 56)115.

Nos autorretratos, as questões suscitadas pela imagem do espelho se revelam


essencialmente presentes. De acordo com Pistoletto (1964, p. 1), “[...] a primeira
experiência figurativa verdadeira do homem é o reconhecimento de sua própria imagem
113
Tradução livre, original em italiano: “[...] incentrato sulla situazione dell'arte astratta dell'epoca, sul
pericolo di una sua riduzione a sterile formalismo e sull'importanza di recuperare l'essenziale funzione
sociale e spirituale dell'arte”.
114
Citação literal: “Na bifurcação entre a estrada do informal e aquela da figuração, na qual creio que
todo jovem pintor tenha passado ou se encontra, escolhi a representação do homem, porque acho mais
adequado para realizar o meu desejo de exprimir sentimentos particulares e situações da condição
humana, esse, pra mim, é o argumento mais vivo e urgente de todos os tempos”. (Tradução livre, original
em italiano: “Al bivio tra la strada dell'informale e quella della figurazione, in cui credo che ogni giovane
pittore oggi sia passato o si trovi, ho scelto la rappresentazione dell'uomo, perché la ritengo più adatta a
realizzare il mio bisogno di esprimere particolari sentimenti e situazioni della condizione umana, ciò che
per me è l'argomento più vivo e scottante di ogni tempo”).
115
Tradução livre, original em inglês: “Pictorial abstraction led to the creation of personal signs, but I felt
the need to identify with the human image, starting with my own. In any case, though my training was
modern, it came from the Italian school of representation. There is no abstraction in the Italian tradition.
For me, Piero della Francesca was illuminating”.
58

no espelho [...]”116. Ainda segundo o artista (1964, p. 1), o reflexo do espelho projeta
“[...] incógnitas e questões que o homem é levado a representar sob a forma de
imagens”117. Desse modo, Pistoletto (1964, p. 1) declara que fez da reprodução de sua
própria imagem sua primeira “questão” e que por algum tempo seu trabalho seguiu na
tentativa de aproximar a imagem oferecida pelo espelho daquela na qual ele havia
proposto.

Na verdade, o espelho estava lá o tempo todo. Estava ao lado da tela


enquanto eu pintava meus autorretratos. Embora eu estivesse pintando
de um jeito muito solto e subjetivo, usei um espelho para me ver. Então
o espelho sempre esteve lá, mas era uma realidade diferente. Eu não
levava essa imagem tão a sério quanto à figura pintada, porque meu
interesse estava, como jovem pintor, em projetar uma imagem subjetiva
no espaço pictórico (PISTOLETTO, entrevista a Michael Auping, 2011,
p. 64)118.

Assim, torna-se possível ressaltar que a aproximação entre a imagem e o reflexo do


espelho não parece se submeter à aproximação física ou às questões relativas à
verossimilhança, vai além, ao aproximar as imagens propostas de potencialidades que
provém das superfícies reflexivas e contribuem para constituição de sua subjetividade,
tais como a persuasão e o dinamismo. De certo modo, esse aspecto pode ser
observado nos autorretratos iniciais, produzidos em 1956. Nessas obras, a fisionomia
cede espaço a uma vasta discrepância de tons e ausência de traços. As figuras nas
composições em questão seguem na contramão da passividade ao extrapolar as
proporções fisionômicas tangíveis. A feição da figura parece querer exorbitar o espaço
do quadro, tal como a imagem persuasiva do espelho mediante à excessiva
aproximação de quem o utiliza.

116
Tradução livre, original em italiano: “[...] la prima vera esperienza figurativa dell‟uomo sia il riconoscere
la propria immagine nello specchio [...]”.
117
Tradução livre, original em italiano: “[...] incognite e questioni che l‟uomo è spinto a riproporre sui
quadri”.
118
Tradução livre, original em inglês: “Actually, the mirror was there all along. It was beside the canvas as
I was painting my self-portraits. Even though I was painting in a very loose, subjective way, I used a mirror
to see myself. So the mirror was always there, but it was a different reality. I didn‟t take it as seriously as
the painted image because I was interested as a young painter in projecting a subjective image into the
pictorial space”. Grifo nosso.
59

Imagem 14: Michelangelo Pistoletto, Autoritratto, 1956. Óleo e acrílico sobre tela, 140 x 90 cm. Coleção
do artista, Biella.
Foto: P. Pellion.
Site oficial do artista.

As pinturas seguintes, produzidas entre 1957 e 1959, revelam dessemelhanças


compositivas tão expressivas a ponto de nos levar a crer que as obras não são de
autoria única. Em uma composição geometrizada e simétrica em relação à figura, a
obra intitulada Sacerdote, de 1957, revela um espaço tempestuoso junto a uma figura
ampla, rígida e inatingível em razão de sua imponência. O oposto ocorre em Uomo sul
sofá, de 1958, em que o fundo resplandecente e exuberante é combinado à
representação de um homem retraído, composto por cores densas; a configuração
física do homem na obra suscita constrangimento e angústia. Em Sacerdote, vê-se a
demarcação intensiva das linhas, quase o oposto do que ocorre em Uomo sul sofá, em
que os notáveis volumes de cor definem a figuração. Ainda que a dimensão das
pinturas seja idêntica (200 x 120 cm), a constituição da composição, das figuras e da
atmosfera emocional das obras apresentam tratamentos extremamente diferenciados,
60

como também ocorre na obra intitulada Esperimento, de 1959. A composição de 74 x


60 cm, pequena se comparada às outras pinturas de Pistoletto, revela uma figura
pictórica semelhante à uma sombra, desprovida de traços faciais, construída
pictoricamente em uma estrutura de madeira envolvida por finos fragmentos de corda.
Curiosamente, as sombras das cordas podem ser projetadas no plano de fundo do
trabalho, convergindo os diferentes planos da composição por meio da duplicidade
provocada pela ação da luz. Esse efeito sugere que a imagem presente na obra
reproduz a projeção da sombra de quem a observa, impressão favorecida pela
dimensão da figura, proporcional à face do espectador. Nessa perspectiva, Esperimento
pode representar a primeira tentativa realizada por Pistoletto de projetar o espectador
imageticamente na obra.

Imagem 15: Michelangelo Pistoletto, Esperimento, 1959. Acrílico, prata, corda, madeira e tela, 74 x 60
cm. Fundação Pistoletto, Biella.
Site oficial do artista.

Ao referir-se aos autorretratos de 1958, Marco Farano, no texto Le prime opere (2007),
ressalta que “a relação entre o sujeito e o espaço circundante leva o artista a
61

confrontar-se com a realização do fundo”119, o que pode ser observado na diversidade


do processo constitutivo da maioria das composições pictóricas produzidas por
Pistoletto na segunda metade da década de 1950 e no ano de 1960. Nessas
composições, o tratamento das figuras e do fundo apresenta mudanças significativas.
Existem obras em que a figura contribui para constituição de um espaço comovente,
como ocorre em Uomo sul sofá. Existem figuras dissonantes em relação aos planos de
fundo (autorretratos de 1956) ou que se apresentam congruentes a ele (Sacerdote). Em
algumas obras, existem elementos que contribuem para agregar a figura e o fundo,
como é caso das cordas na obra Esperimento. Ocasionalmente, o fundo parece tentar
se apoderar da figura, o que pode ser identificado tanto na obra intitulada Autoritratto
linoleum, de 1959, quanto nas obras Autoritratto argento e Autoritratto oro, ambas de
1960, nas quais Pistoletto utilizou materiais reluzentes para o tratamento da superfície.

Em Autoritratto linoleum, a autorrepresentação do artista é carregada de pinceladas


verticais, o fundo apresenta uma divisão horizontal, sua parte inferior é uniformemente
constituída enquanto a parte superior miscigena tons neutros e pinceladas instintivas,
sobressalentes em relação à figura, representada de modo realista e imparcialmente
posicionada na tela. O similar ocorre na obra intitulada Autoritratto argento, em que
duas vívidas placas prateadas constituem o universo da figura. Ambos os autorretratos
apresentam uma vasta imparcialidade combinada a um silêncio vertiginoso. Esses
aspectos atingem o extremo em Autoritratto oro, no qual os extensos planos de cor da
figura, destacando a face, apresentam-se esvaecidos em meio à extensão persuasiva
da superfície dourada e reluzente.

119
Tradução livre, original em italiano: “Il rapporto del soggetto con lo spazio circostante porta l'artista a
confrontarsi con la realizzazione del fondo”.
62

Imagem 16: Michelangelo Pistoletto, Autoritratto


linoleum, 1959. Óleo e acrílico sobre tela, 200 x
150 cm. Coleção Goetz. Munique.
Foto: P. Pellion.
Site oficial do artista.

Imagem 17: Michelangelo Pistoletto, Autoritratto oro,


1960. Óleo, acrílico e ouro sobre tela, 200 x 150 cm.
Fundação Pistoletto, Biella.
Foto: P. Pellion.
Site oficial do artista.
63

Em entrevista a Germano Celant, o artista sugere, entre outras questões, que tanto a
“redução das figuras para o tamanho natural” quanto a “remoção da expressividade”
foram impulsionadas pela exibição do artista irlandês Francis Bacon, realizada em
1958, na Galleria Galatea, localizada em Turim.

Entre 1956 e 1958, eu fazia aqueles retratos que com o tempo se


tornaram sempre maiores, com uma cabeça cada vez maior. [...] Mais
tarde, as cabeças ficaram menores, cedendo lugar ao corpo e ao espaço
circundante. Nesse tipo de redução da figura para o tamanho real, fui
muito auxiliado pela exposição de Bacon na Galatea. Ao ver Bacon
percebi que meu problema e meu drama já estavam lá, declarados, um
homem em busca da própria dimensão e do próprio espaço, uma gaiola
de vidro impenetrável, na qual o homem vivia em um estado tão
dramático que o sufocava, que o privava de sua voz e espaço a ponto
de ser sufocado, de não ter voz ou espaço. Era um homem bloqueado,
caçado, doente, destruído, angustiado, maravilhosamente pintado, no
entanto, nesse estado, terrivelmente isolado [...] Continuei minha busca,
condensando meu trabalho sobre o homem, mas procurando fazer
exatamente o oposto de Bacon: remover toda expressão e movimento
das figuras a fim de arrefecer seu drama. [...] Continuei a jogar com a
relação entre a massa dessa pessoa e seu fundo, assim cheguei ao
fundo de ouro. Fiz fundos que queriam ser luz [...], ou fundos
absolutamente automáticos e inexpressivos Eram milhares de linhas
finas ou eram superfícies do tipo linóleo, isto é, fundos decorativos
anônimos, e desse anonimato do fundo, esperava ver alguma coisa
acontecer (PISTOLETTO, 1984, p. 23 apud LE PRIME OPERE,
2007)120.

120
Tradução livre, original em italiano: “Tra il 1956 e il 1958 facevo quei ritratti, che col tempo diventarono
sempre più grandi, con un testone sempre più grande. (…) Successivamente, le teste si sono ristrette per
lasciar posto al corpo e allo spazio intorno. In questo tipo di riduzione della figura a dimensione reale sono
stato molto coadiuvato dalla mostra di Bacon alla Galatea. Vedendo Bacon ho percepito che il mio
problema, il mio dramma erano già lì, dichiarati, di un uomo alla ricerca della propria dimensione e del
proprio spazio, una gabbia di vetro impenetrabile, in cui l‟uomo viveva in uno stato talmente drammatico
da essere soffocato, da non aver voce e spazio. Era un uomo bloccato, braccato, malato, distrutto,
angosciato, splendidamente dipinto ma, in questo stato, terribilmente isolato (…) Ho continuato la mia
ricerca, condensando proprio il mio lavoro sull‟uomo, ma cercando di fare il contrario di Bacon: togliere
tutta l‟espressione e tutto il movimento dalle figure, così da raffreddare la drammaticità. (...) Ho continuato
a giocare la mia partita sul rapporto tra la massa di questa persona e il suo fondo così sono arrivato ai
fondi d‟oro, ai fondi neri. Facevo fondi che volevano essere luce, da cui la vetrata, o fondi assolutamente
automatici ed inespressivi. Erano migliaia di righette oppure erano superfici tipo lineolum, cioè fondi
64

Por meio das declarações e experimentos realizados pelo artista, torna-se possível
inferir que a superação de certas impraticabilidades implícitas da pintura, estava
presente no decorrer do processo de produção pictórica, o que pode ter contribuído
para a realização de novos experimentos.

Em 1961, Pistoletto produziu a série intitulada Il presente (O presente, em tradução


livre): autorretratos de grande dimensão sobrepostos em telas pintadas de preto com
uma camada de verniz sobreposta; nos quais o artista volta a instituir uma superfície
persuasiva no fundo e a representar-se de modo “calmo e inexpressivo”, com as mãos
no bolso ou o antebraço repousado sobre os joelhos. Contudo, as obras da série não
revelam corpos que desvanecem em detrimento do fundo, ocorre o oposto, as figuras
extrapassam a superfície, que por ser envernizada, reflete a ação do espaço. Da série Il
presente, eclode, segundo Pistoletto (1966, p. 1), os primeiros quadros espelhados. Em
entrevista a Michael Auping, o artista relata a experiência vivida no processo de
constituição das obras, que teve papel fundamental no norteamento das composições
subsequentes:

Antes de me engajar na imagem pura do espelho como plano do quadro,


eu pintei uma grande e brilhante superfície preta como fundo para um de
meus autorretratos. Envernizei a superfície, por isso era muito brilhante.
Quando olhei para ela, era possível ver meu reflexo. Foi uma revelação.
Percebi que não precisava de outro espelho. A tela tornou-se o espelho.
Então pintei a mim mesmo na minha reflexão. Senti que estava
completamente projetado na pintura e, ao mesmo tempo, saindo da
pintura. Minha imagem não estava apenas sobre a superfície. Estava se
deslocando para fora da pintura (PISTOLETTO, entrevista a Michael
Auping, 2011, p. 64)121.

decorativi anonimi e da questa anonimità del fondo mi aspettavo di veder accadere qualcosa”. Grifo
nosso.
121
Tradução livre, original em inglês: “Before I engaged a pure mirror image as a picture plane, I painted a
big, shiny black surface as a background for one of my self-portraits. I varnished it so it was very shiny.
When I looked into it, I could see my reflection. It was a revelation. I realised I didn‟t need another mirror.
The canvas had become the mirror. Then, I painted myself into my reflection. I felt that I was completely
projected into the painting and coming out of the painting at the same time. My image wasn‟t just on the
surface any more. It was coming out of the picture”. Grifos nossos.
65

Imagem 18: À esquerda: Michelangelo Pistoletto, Il presente - uomo di fronte, 1961. Acrílico e verniz
sobre tela, 200 x 150 cm. Coleção Romilda Bollati, Milão.
Foto: P. Pellion.
Site oficial do artista.

Imagem 19: À direita: Michelangelo Pistoletto, Il presente - uomo di schiena, 1961. Acrílico e verniz sobre
tela, 200 x 150 cm. Fundação Pistoletto, Biella.
Foto: P. Pellion.
Site oficial do artista.

Em seguida, Pistoletto relata a Michael Auping que a intensa experiência de pintar a si


mesmo na sua própria reflexão exprimiu a impossibilidade de representar seu próprio
olhar: “Desejava enxergar os olhos, mas não poderia pintá-los” (PISTOLETTO,
entrevista a Michael Auping, 2011, p. 64)122. Tal impossibilidade revelou ao artista que o
espelho era um olhar, direcionado a ele mediante sua própria observação
(PISTOLETTO, entrevista a Michael Auping, 2011, p. 64).

No quadro seguinte, virei a figura de costas, porque os olhos pintados


ainda eram artificiais, enquanto aqueles do reflexo pareciam reais como
aqueles da figura que agora estava sobre a superfície da imagem,
olhando para a pintura. Na verdade, sendo, agora, girada na mesma

122
Tradução livre, original em inglês: “I wanted to see the eyes, but I couldn‟t paint them”.
66

direção em que eu estava, possuía meus olhos” (PISTOLETTO, 1979


apud IL PRESENTE, 2007)123.

De acordo com Pistoletto (1966, p. 1), o fundo reflexivo da série Il presente permitiu
ainda protagonizar “[...] a relação de instantaneidade que se criava entre o espectador,
o seu reflexo e a figura pintada, [...] era a dimensão do tempo” 124, declara o artista. A
presença da reflexão no espaço pictórico possibilitou a reconfiguração do olhar de
Pistoletto sobre sua própria obra, tendo em vista que a projeção do espaço sobre a
imagem revelou a ele a ação do tempo nos trabalhos:

Percebi que eu estava lidando, em um sentido mais amplo, com o


tempo. Não se tratava apenas de explorar minha própria imagem, mas a
relação entre mim mesmo e o mundo no tempo. Tornou-se menos sobre
tentar criar uma imagem universal e atemporal e mais sobre projetar
uma série de momentos (PISTOLETTO, entrevista a Michael Auping,
2011, p. 65)125.

Como sugere o texto intitulado Quadri specchianti (2007), os desdobramentos


decorrentes da exibição e do processo de criação da série Il presente culminaram em
uma série de experimentos nas composições seguintes, envolvendo mudanças no
suporte e na constituição das figuras. Ainda segundo o texto, as práticas subsequentes
envolveram a utilização da fotografia e de suportes que permitiriam uma reflexão mais
precisa, como o espelho, o aço e o alumínio. Em entrevista a Michael Auping, Pistoletto
(2011, p. 65) relata que inicialmente optou por realizar a colagem direta de fotografias
na superfície do espelho, mas a junção não foi bem sucedida. A espessura do vidro
também apresentou problemas, o que conduziu o artista a descartar o uso do espelho
feito desse material (QUADRI SPECHIANTTI, 2007). O aço inoxidável com acabamento
espelhado foi o material que obteve o melhor resultado como suporte (QUADRI

123
Tradução livre, original em italiano: “Nel quadro successivo girai la figura di spalle, perché ancora gli
occhi dipinti erano artificiali, mentre quelli del riflesso apparivano veri come quelli della figura che ora
stava sulla superficie del quadro guardando nel quadro. nfatti essa, essendo adesso girata nella mia
stessa direzione, possedeva i miei stessi occhi”.
124
Tradução livre, original em italiano: “Il rapporto di istantaneità che si creava tra lo spettatore, il suo
riflesso e la figura dipinta, in un movimento sempre „presente‟ che concentrava in sé il passato e il futuro,
tanto da far dubitare della loro esistenza: era la dimensione del tempo”.
125
Tradução livre, original em inglês: “I realised that what I was working with, in a large sense, was time. It
wasn‟t just about exploring my own image but the relationship between myself and the world in time. It
became less about trying to create a universal and timeless image and more about projecting a series of
moments”.
67

SPECHIANTTI, 2007). No que se refere à materialidade e ao efeito propiciado pelo aço,


Pistoletto faz algumas observações:

Era uma superfície firme, física e reflexiva. Não era apenas uma ilusão
do espaço, era uma projeção. Isso abriu tudo. Não refletiu somente a
mim, mas o lugar em que eu estava. O espaço pictórico se tornou muito
mais complicado e interessante (PISTOLETTO, entrevista a Michael
Auping, 2011, p. 64)126.

Em outras palavras, o aço inoxidável permitiu a resolução de problemas referentes à


materialidade e à presença de uma reflexão potencialmente precisa. Quase o oposto
ocorreu na série Il presente, em que a obscura superfície envernizada permitiu refletir o
espaço de modo ofuscado e distorcido, impedindo, de certo modo, a percepção integral
da projeção e da abertura referidas pelo artista. A escolha por um suporte mais reflexivo
vai ao encontro da busca de Pistoletto pela “libertação das figuras”, objetivo suscitado
após o contato com a obra de Francis Bacon e de certa forma, como excelentemente
observa Gilman, conquistado por meio do uso do aço inoxidável de acabamento
espelhado:

Ao abrir ainda mais a imagem por meio do uso do aço refletivo,


Pistoletto libertou o seu trabalho da claustrofobia patológica dos homens
existenciais de Bacon, bem como do despejo descontextualizado da
angústia Informal (GILMAN, 2008, p. 57)127.

A alteração da superfície pictórica tradicional para o suporte de aço reflexivo revela uma
mudança extrema no processo de criação dos Quadros espelhados. Pistoletto já havia
utilizado cordas e madeira para constituição da superfície na obra Esperimento, no
entanto, o emprego dos materiais não levou a uma mudança permanente na
composição das pinturas subsequentes e nem foi suficiente para descartar o processo
da pintura na constituição do fundo. Ao definir o aço inoxidável como material invariável
dos Quadros espelhados, a constituição pictórica do fundo foi suspensa: o aço inox
tornou-se fundo e suporte das figuras.

126
Tradução livre, original em inglês: “It was hard, physical, reflective surface. It wasn‟t just an illusion of
space. It was a projection. That opened everything up. Not only did it reflect me but the room I was
standing in. The pictorial space had become much more interesting and complicated”.
127
Tradução livre, original em inglês: “By further opening up the image through the use of reflective steel,
Pistoletto freed his work from the pathological claustrophobia of Bacon‟s existential men as well as from
the decontextualized dumping ground of Informel angst”.
68

Imagem 20: Michelangelo Pistoletto, Lui e lei alla balconata, 1962-1966. Papel de tecido pintado sobre
espelho de aço inoxidável polido, 230 x 120 cm. Museo Civico d'Arte Moderna, Turim.
Cortesia: Museo Civico d'Arte Moderna, Turim.

O modo de inserção das figuras nas obras também sofreu mudanças (QUADRI
SPECCHIANTI, 2007). Um dos processos utilizados é descrito por Gilman (2008, p. 58)
como um “método de transferência complexo”. A curadora (2008, p. 58) explica que o
procedimento consistia em separar a figura e o fundo da fotografia, recortando seu
contorno para em seguida, cobrir as silhuetas com papel semitransparente e traçar a
imagem da foto no papel com tinta a óleo e lápis de cera. Esse processo teve início em
1962 e por meio dele os quadros espelhados foram produzidos por quase dez anos
(QUADRI SPECCHIANTI, 2007). Segundo Gilman (2008, p.57), “Pistoletto tem
69

explicado que começou a usar a fotografia nos quadros espelhados em um esforço


para introduzir uma maior objetividade em seu trabalho [...]”128.

Quando perguntei a Pistoletto por que ele abandonou seu procedimento


inicial, ele explicou que estava puramente motivado por razões práticas,
sendo a principal delas o período de tempo necessário para produzir os
trabalhos baseados em fotografias (GILMAN, 2008, p. 58)129.

Pistoletto (1964, p. 1) explica que a tentativa intuitiva de aproximar a imagem por ele
proposta da imagem do espelho culminou na sobreposição direta da figura na superfície
reflexiva. Assim, em 1971, Pistoletto começou a serigrafar as imagens diretamente na
superfície do espelho (GILMAN, 2008, p. 58). Afinal, como afirma o filósofo alemão
Walter Benjamin (1975, p. 12): “[...] o olho capta mais rapidamente do que a mão ao
desenhar [...]”. Por meio da mudança, o processo de constituição, envolvendo a pintura,
cedeu lugar à imediaticidade e praticidade das imagens fotográficas serigrafadas. Vale
ressaltar que a transferência de fotografias por meio da serigrafia, foi também um
método frequentemente utilizado por artistas ligados à Pop Art, como Warhol e
Rauschenberg. Desse modo, em termos de correlação técnica, as obras agregam ainda
mais equivalência à Pop Art, e é por meio da serigrafia que Pistoletto segue produzindo
os Quadros espelhados até os dias atuais. Gilman chama atenção para outros aspectos
responsáveis pela conformidade entre os quadros espelhados e a Pop Art:

Tanto na aparência quanto no procedimento, a semelhança entre essas


figuras abandonadas, estáticas e os ícones de mídia extirpados de
Warhol é impressionante. De forma mais geral, enquanto os quadros
espelhados evitam a iconografia do consumidor, a tradução de
fotografias para a suavidade do aço sugere um mundo que a Pop art
também evocou, em que o espectador passivo de imagens de segunda
mão substituiu a participação ativa na construção da realidade vivida [...]
(GILMAN, 2008, p. 54)130.

128
Tradução livre, original em inglês: “Pistoletto has explained that he began using photography in the
mirror paintings in an effort to introduce even greater objectivity into his work [...]”.
129
Tradução livre, original em inglês: “When I asked Pistoletto why he abandoned his early procedure, he
explained that he was motivated purely by practical reasons, primary among them being the length of time
it took to produce the photo-based works”.
130
Tradução livre, original em inglês: ”In both appearance and procedure, the resemblance between these
stranded, static figures and Warhol‟s uprooted media icons is striking. More generally, while the mirror
paintings avoid consumer iconography, the rote translation of photographs onto the smooth vacuity of
steel suggests a world that Pop art also evoked, one in which the passive spectatorship of secondhand
images has replaced active participation in the construction of lived reality […]”.
70

Para Pistoletto (entrevista a Alain Elkann, 2014, p. 111), a variação para a imagem
fotográfica propiciou uma combinação com as imagens projetadas nos espelhos.
Pistoletto (entrevista a Alain Elkann, 2014, p. 111) explica que ao contrário da pintura, a
fotografia “denota um momento preciso”, combinando assim com as imagens no
espelho, que em suas palavras, “reproduzem automaticamente uma realidade
variável”131. Outro aspecto favorável à mudança, citado pelo artista, é o fato de a
serigrafia criar uma imagem “[...] que parecia estar saindo do espaço do espelho, ao
invés de estar sobreposta a ele” (Pistoletto, entrevista a Michael Auping, 2011, p. 65)132.

A figura serigráfica criou um plano de transição ambíguo entre o espaço


da sala onde o espectador estava de pé e o fundo quadro, que era o
reflexo da sala (PISTOLETTO, entrevista a Michael Auping, 2011, p.
65)133.

De certo modo, isso ocorria nas obras da série Il Presente, entretanto, sem a mesma
exatidão reflexiva. Além dos benefícios relativos à praticidade no processo, o
desprendimento de Pistoletto em relação à pintura associa-se com atitudes
predominantes no campo da arte no início da década de 1970, tais como os observados
pela artista norte-americana Martha Rosler (2001, p. 329): a “[...] importância cada vez
maior dos meios de comunicação eletrônicos (em que as artes tradicionais são
representadas, em vez de contempladas)”134 e a “[...] consequente desvalorização das
habilidades artesanais [...]”135. De acordo com o teórico francês André Rouillé (2009, p.
21): “A fotografia superou seu antigo papel subalterno para tornar-se componente
central das obras: seu material”.

131
Citação literal em inglês: “A painting can be signed and dated, but it can‟t represent time directly. A
photograph, on the other hand, denotes a precise moment: inserted in my work, it combines with the
images reflected in the mirror, which automatically reproduce mutable reality”.
132
Tradução livre, original em inglês: “[…] that seemed to be coming out the mirror space, rather than
sitting on top of it”.
133
Tradução livre, original em inglês: “The serigraphic figure created an ambiguous transitional plane
between the space of the room where the viewer was standing and the background of the painting which
was a reflection of the room”.
134
Tradução livre, original em espanhol: “[...] la creciente importancia que fueron cambiando los medios
de comunicación electrónicos (en los que las artes tradicionales son representadas, en lugar de ser
contempladas)”.
135
Tradução livre, original em espanhol: “[...] consiguiente devaluación de las habilidades artesanales”.
71

Imagem 21: Michelangelo Pistoletto, Prost N.5, 2008. Impressão serigráfica sobre espelho de aço
inoxidável polido, 250 x 125 cm (98 3/8 x 49 1/4 inches).
© Michelangelo Pistoletto; Courtesy of the artist, Luhring Augustine, New York, Galleria Christian Stein,
Milan, and Simon Lee Gallery, London / Hong Kong.

Isoladamente, fotografia e espelho possuem características funcionais, temporais e


espaciais divergentes. A relação da imagem fotográfica com o tempo é normalmente
atribuída ao passado. Em entrevista a Angelo Schwarz, o escritor Roland Barthes
(2004, p. 498) pondera que para falar “[...] da fotografia num nível sério, é preciso
relacioná-la com a morte”.
72

Na fotografia, a presença da coisa (em um certo momento passado)


jamais é metafórica; quanto aos seres animados, o mesmo ocorre com
sua vida, salvo quando se fotografam cadáveres; e ainda: se a fotografia
se torna então horrível, é porque ela certifica, se assim podemos dizer,
que o cadáver está vivo, enquanto cadáver: é a imagem viva de uma
coisa morta. Pois a imobilidade da foto é como o resultado de uma
confusão perversa entre dois conceitos: o Real e o Vivo: ao atestar que
o objeto foi real, ela induz sub-repticiamente a acreditar que ele está
vivo, por causa desse logro que nos faz atribuir ao Real um valor
absolutamente superior; como que eterno; mas ao deportar esse real ao
passado (“isso foi”), ela sugere que ele já está morto [...]. (BARTHES,
2012, p. 74)136.

O pesquisador Philippe Dubois (2012, p. 248) explica que “na fotografia o encontro
(com o real) sempre parece iminente, mas a distância sempre se revela exorbitante.
Jamais se incorpora”. Quase o oposto ocorre com o espelho. Pistoletto ressalta que o
reflexo do material permite uma relação ligada ao dinamismo e à mutabilidade. Nas
palavras do artista:

O espelho diz a verdade sobre o nascimento e a morte. Cada imagem


que aparece, desaparece imediatamente. O faz, tomando o lugar da
anterior e, em seguida, submetendo-se à próxima. Assim, cada imagem
que nasce, morre simultaneamente (PISTOLETTO, 2016, p. 4)137.

Desse modo, os materiais em questão (imagem fotográfica e espelho), juntos,


complementam suas “incapacidades”, como indica Pistoletto:

No Quadro Espelhado encontramos a relação entre dois extremos: um é


o personagem estático da imagem fixa, apresentando um único instante
de tempo, e o outro é a variação causada pela sucessão contínua de
instantes. A figura estática é o produto de uma fotografia presa no
espelho, ao passo que as figuras em movimento são refletidas no
próprio espelho. Assim, o Quadro Espelhado é o local de ligação dessas
polaridades: imobilidade e movimento [...] (PISTOLETTO, 2012, p.16)138.

136
Grifos do autor.
137
Tradução livre, original em inglês: “The mirror tells the truth about birth and death. Every image that
appears immediately disappears. It takes the place of the previous image and then gives it up to the next.
Thus every image that is born simultaneously dies”.
138
Tradução livre, original em inglês: “In the Mirror Painting we find the relationship between two
extremes: one is the static character of the fixed image, presenting a single instant of time, and the other
is the variation caused by the continual succession of instants. The static figure is the product of a
photograph stuck on the mirror, while the figures in movement are the ones reflected in the mirror itself.
Thus the Mirror Painting is the place of connection of these polarities, immobility and movement [...]”.
Grifos do autor.
73

Por meio do contato do espectador com as obras, parece ser possível desestabilizar a
capacidade da fotografia de ordenar o visual, sua ligação com o passado e a ideia de
ser uma reprodução exata do referente. A fotografia se desvincula de determinadas
funções para habitar outras realidades por meio do espelho e da inserção do público.

Além de provocar a relação do público com os elementos presentes na composição, as


obras da série de Pistoletto problematizam a apropriação de significantes exteriores:
tempo, espaço, espectador. Os elementos da obra, uma vez imbricados no processo de
participação do público, adquirem dimensões que ultrapassam os limites materiais da
própria obra e de certo modo, parecem embaralhar-se à vivência dos sujeitos que as
experienciam. Pistoletto parece atingir, no fundo da vaidade humana, o desejo de ver-
se projetado, espelhado e incorporado à obra. O discurso poético dos trabalhos parece
ser constituído em meio a esse jogo de magnetismo, que se estende para além da
materialidade. Aspecto evidenciado nas imagens das obras tomadas pelo público por
meio da fotografia, uma ação que permite a circulação dos trabalhos em campos
semióticos particulares, principalmente nas redes sociais.
74

CAPÍTULO III: DO MUSEU À REDE: OS QUADRI SPECCHIANTI E A


PARTICIPAÇÃO DO ESPECTADOR

III. 1. Transposição

O projeto poético de uma obra revela tendências e intencionalidades da mente criadora


do artista, o que nem sempre ocorre de modo claro e intencional (SALLES, 1998).
Intuitivamente, Pistoletto elege para a produção dos Quadri specchianti (Quadros
espelhados, em tradução livre) uma combinação de materiais que constituem uma
relação íntima com o espectador. A fotografia e o espelho estão presentes no cotidiano
das pessoas, desempenham funções que suscitam a relação do individuo com o tempo,
com sua própria imagem, intimidade, memória. Como elementos na composição, a
reflexividade do aço inoxidável e a fotografia serigrafada configuram recursos potentes
para conduzir o espectador à autorreflexão, induzindo-o a repensar suas relações
culturais, sociais e afetivas. Singularmente, são essas relações que regem toda a
poética de criação dos Quadros espelhados, o que pode ser constatado tanto na
escolha dos materiais quanto na existência de um impulso fundamental que precedeu a
constituição das obras: o ícone bizantino, considerado por Pistoletto (2014, p. 123), “[...]
o primeiro elemento usado para desenvolver a pesquisa que o conduziu aos Quadros
Espelhados”139. Nas palavras do artista:

Nos ícones a pessoa era Deus, Cristo, a Virgem Maria. Eram imagens
de pessoas colocadas no centro de um espaço que representava a
transcendência total, a do brilhante e reluzente fundo de ouro. O ícone
tinha dois elementos, o ser humano e a transcendência. Esse ícone
continha toda a cultura que me formou, me moldou, e me fez, e como
consequência, criou todas as questões que eu me encontrei precisando
resolver. Eram perguntas para as quais eu precisava encontrar minhas

139
Tradução livre, original em inglês: “[...] the first element I used to develop the research that led me to
the Mirror Paintings”. Grifo do autor.
75

próprias respostas, pois nada do que me fora proposto levou a soluções


reais (PISTOLETTO, entrevista a Alain Elkann, 2014, p. 99-100)140.

Ao considerar que o ícone bizantino engloba a cultura responsável por sua constituição,
bem como ao elegê-lo o primeiro elemento de uma extensa pesquisa artística, Pistoletto
indica que sua declarada “[...] necessidade de expressar sentimentos e situações
particulares da condição humana [...]” (1959, apud LE PRIME OPERE, 2007), tem como
ponto de partida sua própria condição existencial. Não obstante, o início das práticas
artísticas dar-se por meio da produção de autorretratos. Como vimos, a primeira série
de Quadros espelhados, intitulada Il presente, foi originada em meio a produção dos
autorretratos. Após realizar experimentos utilizando ouro, prata e outros materiais para
compor o fundo, o artista utilizou uma película de pigmento preto envernizado, obtendo
reflexividade (IL PRESENTE, 2007). De acordo com Pistoletto (entrevista a Alain
Elkann, 2014, p. 100-105), “[...] a película de pigmento preto brilhante e reflexiva levou
ao desvelamento de todas as incógnitas mantidas em cheque nos fundos de ouro dos
ícones”141. Na sequência,

Pistoletto conduz uma série de experimentos tensos para alcançar o


mais alto grau daquela objetividade, manifestada nos primeiros quadros
espelhados. [...] Identifica, enfim, no aço polido do espelho o material
mais idôneo (QUADRI SPECCHIANTI, 2007)142.

Segundo Pistoletto (2014, p. 100), “o espelho revela o que o ouro nos sugeria, mas ao
mesmo tempo ocultava: o universo de coisas que realmente existem”143.

No espelho, o universo que estava suspenso no fundo dourado


mergulhou para a terra e ficou lá. A imagem em si tem seus pés no chão
e o chão prolonga-se na imagem. Pode-se realmente dizer que o quadro

140
Tradução livre, original em inglês: “In the icons the person was God, Christ, the Virgin Mary. They were
images of people placed at the center of a space that represented total transcendence, that of the bright
and shiny gold background. The icon had two elements, the human being and the transcendence. That
icon contained all the culture that had formed, molded, made me, and as a consequence created all the
issues that I found myself needing to resolve. They were questions to which I had to find my own answers,
as none of what was proposed to me led to real solutions”. Grifos nossos.
141
Tradução livre, original em inglês: “[...] the coat of shiny and reflexive black pigment led to the unveiling
of all the unknowns held in check in the gold backgrounds of icons”.
142
Tradução livre, original em italiano: “Pistoletto conduce una serie di esperimenti tesi a raggiungere il
massimo grado di quell'oggettività manifestatasi nei primi dipinti specchianti. [...] Individua infine
nell'acciaio lucidato a specchio il materiale più idoneo”.
143
Tradução livre, original em inglês: “The mirror reveals what the gold suggested but at the same time
concealed: the universe of things that really exist”. Grifo nosso.
76

espelhado descende da transcendência (PISTOLETTO, entrevista a


Alain Elkann, 2014, p. 110)144.

Desse modo, os elementos que exprimem o mistério relativo ao sublime e ao


transcendental nos ícones bizantinos são convertidos em propriedades do real nos
Quadros espelhados. A assimilação da realidade nos trabalhos, por meio da projeção
do público e do espaço que o circunda no espelho, permite intensificar a relação
imagética entre espectador e obra, favorecendo a objetividade pretendida pelo
artista145.

Imagem 22: Exposição individual de Michelangelo Pistoletto na Galería Elvira González, Madri
(11/04/2012 - 17/05/2012). Obra fotografada: Uomo che lancia un sasso, 2010. Impressão serigráfica
sobre espelho de aço inoxidável polido, 250 x 150 cm (98,4 x 59 inches).
Cortesia: Galería Elvira González.

144
Tradução livre, original em inglês: “In the mirror, the universe that was suspended in the gold
background plunged to the earth and stayed there. The picture itself has its feet on the ground and the
floor continues in the picture. It could truly be said that the mirror painting descends from transcendence”.
145
Vale relembrar que o conceito da arte objetiva é considerado por Pistoletto a única semelhança entre
seu trabalho e a Pop Art (ver página 42).
77

Imagem 23: Michelangelo Pistoletto. Donna che indica, 1962/1982. Impressão serigráfica sobre espelho
de aço inoxidável polido, 250 x 250 cm (98 3/8 x 98 3/8 inches).
© Michelangelo Pistoletto; Courtesy of the artist, Luhring Augustine, New York, Galleria Christian Stein,
Milan, and Simon Lee Gallery, London / Hong Kong.

Acerca das fotografias utilizadas para compor os Quadros espelhados, Pistoletto


explica:

Eu usava amigos, pessoas que eu conhecia. Por um lado, eles eram


convenientes. Então, eu comecei a pensar nos Quadros Espelhados
78

como um diário visual. Eu ainda penso neles dessa maneira, embora eu


tenha incluído uma gama maior de pessoas (PISTOLETTO, entrevista a
Michael Auping, 2011, p. 65)146.

Assim, as relações sociais e afetivas de Pistoletto funcionam como núcleo gerador de


temáticas, o que de certo modo, como explica Pistoletto, impede rompimentos
relacionais entre os trabalhos:

Em certo ponto, eu não os via como retratos individuais, mas como um


retrato de interações. Havia minha relação com as figuras impressas nos
espelhos, e a interação entre suas imagens e as pessoas que vieram ver
as pinturas, que também estavam refletidas nos espelhos
(PISTOLETTO, entrevista a Michael Auping, 2011, p. 65-66)147.

Inicialmente, as imagens apresentavam-se despretensiosas em relação ao espectador,


vide a série Il presente. É possível notar que a partir da adoção do aço inoxidável
reflexivo como plano de fundo definitivo na produção, as imagens sobrepostas aos
espelhos começaram a ser inseridas de modo a antecipar a presença imagética do
público na obra. Desse modo, “[...] as figuras dos espelhos de Pistoletto tornam-se
participantes ativos - ou atores - em um cenário predeterminado” (GILMAN, 2008, p.
63)148. Esse aspecto pode ser facilmente identificado em grande parte dos Quadros
espelhados. Em Due persone, de 1964, por exemplo, as figuras sugerem estabelecer
um diálogo com o espectador refletido no espelho. O semelhante ocorre em Donna che
indica, de 1982, em que a fotografia serigrafada, inserida sobre uma das placas de
espelho que compõem a obra, representa a imagem de uma mulher que executa um
sinal de indicação ou, em outro ponto de vista, de julgamento. O espectador pode
posicionar-se como alvo do gesto da mulher ou como aquele que presencia a indicação
de algo e/ou alguém. Essas viabilidades ocorrem devido à variação da imagem do
espelho, descrita a seguir pelo filósofo italiano Umberto Eco:

146
Tradução livre, original em inglês: “I used friends, people I knew. For one thing, they were convenient.
Then I began to think of the Mirror Paintings as a visual diary. I still think of them in that way, although I
have included a wider range of people”.
147
Tradução livre, original em inglês: “At a certain point, I didn‟t see them as individual portraits, but as a
portrait of interactions. There was my relationship with the figures printed on the mirrors, and then the
interaction between their imagery and the people who came to see the paintings, who were also reflected
in the mirrors”.
148
Tradução livre, original em inglês: “[...] Pistoletto‟s mirror figures become active participants - or actors
- in a predetermined scenario”.
79

No espelho [...] sou eu que escolho o enquadramento, mesmo quando


espio os outros: basta que eu me desloque. Além disso, no espelho, se
me vejo da cintura para cima, sem as pernas, basta que me aproxime e
olhe dentro, para baixo, e o quanto possível verei as pernas que a
imagem não me mostrava antes. O objeto está ali, causando a imagem,
até mesmo onde eu, inicialmente, não a via (ECO, 1989, p. 34)149.

Nesse sentido, o espelho permite que a cena constituída em Donna che indica, bem
como em outros Quadros espelhados, torne-se transmutável mediante o deslocamento
do público, como também indica Pascal Gielen:

Tudo o que aparece no espelho [...] também co-constrói o significado do


objeto mostrado [...], o conteúdo dessa reflexão, no entanto, é
contingente. Assim, o objeto em exibição pode ser continuamente
recontextualizado. Sempre que isso acontecer, o significado do objeto
fixo também muda (GIELEN, 2011, p. 99)150.

Em outros trabalhos, as imagens representadas minimizam a capacidade de


transmutação de sentido na cena. Isso ocorre no Quadro espelhado intitulado La giuria
(O Júri), de 2005, que representa oito pessoas com seus corpos e olhares direcionados
ao reflexo do espelho, e um único indivíduo que volta sua atenção para a direção
oposta, correspondente ao espaço “real” de permanência do público. Gielen (2011, p.
108) observa que “[...] quando um espectador fica na frente dessa obra de arte, ele
parece estar frontalmente de pé [na obra] com o rosto de frente para os membros do
júri”151. A situação descrita por Gielen configura uma circunstância ao espectador: não
importa onde sua imagem será projetada, ela sempre irá se encontrar diante de uma
das figuras, de um dos “membros do júri”, como descreve o autor e nos leva a crer o
título da obra. O aspecto teatral, identificado e discutido por Gilman (2008), é
fortemente expressado nessa obra, indo ao encontro da seguinte concepção de Claudio
Maffioletti:

Envolver-se com as obras de Pistoletto é como cair no país das


maravilhas de um ventríloquo enlouquecido, que lhe convida a participar
149
Grifo do autor.
150
Tradução livre, original em inglês: “Whatever appears in the mirror […] also con-constructs the
meaning of the object shown. [...], the content of such reflection, however, is contingent. Thus the object
on display can constantly be recontextualised. Whenever this takes place, the meaning of the fixed object
also shifts”.
151
Tradução livre, original em inglês: “[...] when a viewer stands in front of this work of art, he seems to be
standing frontal with his face to the members of the jury”.
80

de seu teatro ao vivo e hipnotiza seu espectador tanto fisicamente


quanto metafisicamente (MAFFIOLETTI, 2011, p. 3)152.

Para o historiador de arte italiano Giulio Carlo Argan:

O fato de que [nos Quadros espelhados] o principal instrumento cênico


seja o espelho demonstra a vontade de envolver diretamente o público
(um público ocasional, não predisposto, bem entendido) em situações
enigmáticas e desconcertantes, nas quais o próprio artista, presente em
efígie no espelho, é espectador-ator (ARGAN, 1992, p. 587)153.

Em outras palavras, Argan manifesta que tanto as imagens refletidas nos espelhos
quanto as figuras representadas sobrepostas a ele possuem um papel primordial na
condução do envolvimento do público. Julia Kleinbeck indica que a miscigenação de
imagens nas obras cria uma sensação de existência dúbia, por meio da seguinte
questão: “São os objetos dos espelhos que nós estamos olhando, ou são sujeitos
também, olhando de volta para nós?” (KLEINBECK, 2017, p. 158)154. Partindo dessa
percepção, torna-se possível inferir que as imagens podem agir como sujeitos que
“agem”, “observam” e “impulsionam” as atitudes do público.

Geralmente, os Quadros espelhados não são expostos de modo a isolar-se entre si.
Existe claramente, em muitos casos, a intenção de enfatizar a ligação entre os
trabalhos que se encontram em uma mesma exibição. A disposição das obras
potencializa as situações “enigmáticas e desconcertantes”, identificadas por Argan
(1992, p. 587). A exposição intitulada Trans Border Trans Limit Trans Gression,
realizada em 2008, na Galeria Luhring Augustine, em Nova York155, pode ser utilizada
como exemplo para elucidar esse aspecto. Em um dos repartimentos da exibição era
possível encontrar o Quadro espelhado intitulado Video ripresa, de 2008, que

152
Tradução livre, original em inglês: “Engaging with Pistoletto‟s works is like falling into the wonderland of
a crazed ventriloquist who invites you to partake in his live theatre that mesmerizes his viewer both
physically and metaphysically”.
153
Grifo do autor.
154
Tradução livre, original em inglês: “Are the mirrors objects we are looking at, or are they subjects as
well, looking back at us?”.
155
De acordo com o site da Luhring Augustine, o evento “[...] marca a primeira exibição individual do
artista em Nova York em 10 anos e é sua primeira com a galeria” (LUHRING AUGUSTINE, acesso: 13
Jul. 2018). (Tradução livre, original em inglês: “[...] marks the artist's first major solo exhibition in 10 years
in New York and is his first with the gallery”).
81

representa a imagem de um cinegrafista direcionando sua câmera para parede ao lado,


onde estava a obra Senza titolo, de 2008, que traz a imagem de um jovem com o rosto
coberto por sua camisa prestes a atirar uma pedra em direção equivalente à imagem do
cinegrafista. Era possível ao espectador, estar refletido, simultaneamente, em ambos os
trabalhos.

Imagem 24: À esquerda: Michelangelo Pistoletto, Video ripresa, 2008. Impressão serigráfica sobre
espelho de aço inoxidável polido, 250 x 125 cm (98 3/8 x 49 1/4 inches).
© Michelangelo Pistoletto; Courtesy of the artist, Luhring Augustine, New York, Galleria Christian Stein,
Milan, and Simon Lee Gallery, London / Hong Kong.

Imagem 25: À Direita: Michelangelo Pistoletto, Senza titolo, 2008. Impressão serigráfica sobre espelho de
aço inoxidável polido, 250 x 125 cm (98 3/8 x 49 1/4 inches).
© Michelangelo Pistoletto; Courtesy of the artist, Luhring Augustine, New York, Galleria Christian Stein,
Milan, and Simon Lee Gallery, London / Hong Kong.
82

Imagem 26: Michelangelo Pistoletto, Lavori in corso, 2008. Impressão serigráfica sobre espelho de aço
inoxidável polido (cinco painéis), 250 x 625 cm (98 3/8 x 246 1/8 inches).
© Michelangelo Pistoletto; Courtesy of the artist, Luhring Augustine, New York, Galleria Christian Stein,
Milan, and Simon Lee Gallery, London / Hong Kong.

Imagem 27: Visão da obra Lavori in Corso na exposição Trans Border - Trans Limit - Trans Gression,
realizada na Luhring Augustine, Nova York, 2008.
Cortesia: Andrew Russeth.
83

Outro repartimento, da mesma exposição, exibiu Lavori in corso, de 2008, obra


composta pela imagem fotográfica de uma barreira formada por um material
aparentemente plástico, sustentado por hastes afixadas ao solo. O trabalho, medindo
250 x 625 cm, ocupou toda a extensão de uma das paredes do compartimento.
Dispostas nas laterais e na parede oposta à obra encontravam-se os quadros
espelhados intitulados Prost N.1, Prost N.2, Prost N.3, Prost N.4, Prost N.5, que
caracterizam prostitutas em suas roupas de trabalho, e Doppia direzione, que
representa um objeto que sinaliza para direções opostas. As fotografias das prostitutas
eram automaticamente projetadas no reflexo da obra Lavori in corso. Apesar de a obra
Doppia direzione provocar a existência de uma suposta opção, qualquer outra obra
para a qual o espectador direcionasse seu olhar, o esquema provocado pelo
posicionamento das obras iria situá-lo no lado da barreira correspondente às
prostitutas. Em outras palavras, a disposição das obras atuou para delimitar o “lugar” do
público na cena. Ao obstruir a desvinculação do espectador ao contexto apresentado
por meio da projeção de sua imagem/corpo nos trabalhos, Pistoletto, como demonstra
Gielen, reconfigura as interações do público com a cena de modo a confrontar o
espectador com paradoxos sociais existentes:

A prostituta é controversa porque ela/ele abriga uma série de tabus


sociais. Embora a prostituta constitua uma profissão antiga, não é,
apesar disso, social ou moralmente aceita, porque na figura da
prostituta, dois códigos éticos difíceis de conciliar se fundem: amor e
dinheiro. Simultaneamente tolerar e moralmente, mesmo legalmente,
rejeitar ou condenar a prostituição, sugere uma dessas contradições
peculiares em que toda sociedade se equilibra. A arte de Pistoletto
constantemente nos lembra desse fato (GIELEN, 2011, p. 100)156.

Trata-se, ainda, como indica Jeremy Lewison, de um convite para repensar questões
sociais complexas:

Pistoletto nos apresenta horizontes que estão continuamente lá no


fundo, mas não necessariamente aqueles que escolhemos habitar. Ele

156
Tradução livre, original em inglês: “The prostitute is controversial because s/he harbors a number of
social taboos. While the prostitute constitutes an age-old profession, it is nevertheless not one that is
socially or morally accepted, because in the figure of the prostitute two ethical codes that are difficult to
reconcile melt together: love and money. Simultaneously tolerating and morally, even legally, rejecting or
condemning prostitution, suggests one of those peculiar contradictions on which every society balances.
Pistoletto's art constantly reminds us of this fact”.
84

nos convida a encontrar nossos elos com eles e ligações entre eles, a
questionar nós mesmos e nossa posição política, social e espacial, em
relação ao que percebemos (LEWISON, 2011, p. 32)157.

Essa extensão de possibilidades no que se refere à participação do espectador incita


uma nova forma de experienciar instalações artísticas em geral. É como se os Quadros
espelhados trouxessem consigo uma mensagem clara e objetiva: sinta e observe sua
presença ao invés de apenas olhar, distante e indiferente.

Imagem 28: Michelangelo Pistoletto, Prost N.3, 2008. Impressão serigráfica sobre espelho de aço
inoxidável polido, 250 x 125 cm (98 3/8 x 49 1/4 inches).
© Michelangelo Pistoletto; Courtesy of the artist, Luhring Augustine, New York, Galleria Christian Stein,
Milan, and Simon Lee Gallery, London / Hong Kong.

157
Tradução livre, original em inglês: “Pistoletto presents us with horizons that are continuously there in
the background but not necessarily those we choose to inhabit. He invites us to find our links with them
and connections between them, to question ourselves and our position, political, social and spatial, in
relation to what we perceive”.
85

Imagem 29: Michelangelo Pistoletto, Doppia direzione, 2008. Impressão serigráfica sobre espelho de aço
inoxidável polido, 250 x 125 cm (98 3/8 x 49 1/4 inches).
© Michelangelo Pistoletto; Courtesy of the artist, Luhring Augustine, New York, Galleria Christian Stein,
Milan, and Simon Lee Gallery, London / Hong Kong.

As imagens representadas nos Quadros espelhados seguem na contramão da inserção


trivial do figurativo, não só por apresentar relações peculiares com a experiência
participativa do público, mas por adotar temáticas cada vez mais abrangentes e
discursivas. Em Vietnam, de 1965, por meio das figuras representadas e do título,
Pistoletto fez uma alusão direta às manifestações ocorridas durante a Guerra do Vietnã,
ao apresentar a imagem de dois manifestantes segurando uma faixa que exibe as letras
finais do nome do país. Uma das maiores complexidades da obra, que vai ao encontro
da situação enigmática citada por Argan, foi observada pela historiadora de arte Mary
Acton. Trata-se do fato de “[...] não estar claro se eles se posicionam contra ou a favor
86

da guerra” (ACTON, 2004, p. 192)158. Considerando as experiências traumáticas


vivenciadas por Pistoletto durante a Segunda Guerra Mundial159, é possível intuir que
as intencionalidades do artista relacionam-se ao desfavorecimento da guerra. Contudo,
como demonstra Acton, a obra permite que a ambiguidade prevaleça.

Imagem 30: Michelangelo Pistoletto, Vietnam, 1965. Grafite e óleo sobre papel em aço inoxidável, 220 x
120 x 2.2 cm (86 5/8 × 47 1/4 × 7/8 in.).
Foto: George Hixson.
Cortesia: The Menil Collection. Houston.

158
Tradução livre, original em inglês: “[...] it is not clear whether they are for or against the war”.
159
Em entrevista a Alain Elkann, Pistoletto (2013, p.13) relata que eventos diários ocorridos durante a
guerra causavam nele um sentimento de “medo contínuo”: “[...] Perto de nossa casa, aconteciam ações
partidárias absurdas e insanas represálias nazistas” (Tradução livre, original em inglês: “[...] around our
house there were absurd partisan actions and insane Nazi reprisals”). Em 1943, uma bomba atingiu o
estúdio do pai do artista, em Turim, o que fez com a família mudasse para Susa e permanecesse na
cidade até o fim da guerra (LA FORMAZIONE, 2007).
87

É interessante o modo com o qual a questão da imparcialidade pode atuar no processo


de participação do público. Suponhamos que a neutralidade da obra seja despercebida,
isso relacionaria precipitadamente a cena representada aos princípios do espectador.
Desse modo, uma das muitas incógnitas que se faz presente na obra poderia ser
supostamente desvelada em sentidos divergentes. O cartaz da obra Vietnam, que
forma uma parcela significativa do que é responsável por constituir a “situação
enigmática” (observada por Acton) no trabalho, torna-se, nessa perspectiva, um aliado
da objetividade. Essa disparidade problematiza a existência e o lugar da objetividade no
processo de “compreensão” dos Quadros espelhados. É possível que nas obras, a
objetividade, reconhecida por Pistoletto como característica dos trabalhos, concentre-se
em seu caráter verossímil. Contudo, a verossimilhança com a realidade é responsável
pela existência de muitos dos enigmas presentes nos Quadros espelhados. A cena em
Vietnam, por exemplo, nos leva a crer que se trata de uma imagem correspondente ao
que se refere, quando na verdade, a imagem foi reconfigurada de acordo com a
pretensão do artista. Lewison (2011, p. 31), explica que a fotografia foi derivada de uma
procissão de San Giovanni e que Pistoletto acrescentou a palavra Vietnam para tornar
o trabalho, nas palavras do autor, “politicamente atual”. O similar ocorre na série de
obras que representam prostitutas, como explica Lewison:

Ainda, cada fragmento é mais ou menos ficção. Enquanto as fotografias


são baseadas na vida, as imagens são recriadas no estúdio, usando
amigos e conhecidos como modelos. Assim, por exemplo, as prostitutas
são colegas da Cittadellarte [...]. As figuras em Solidarity, que incluem,
entre outros, a esposa de Pistoletto, são também colegas. Elas são
inautênticas como o cartaz do Vietnã. Uma vez que sabemos disso,
nossas premissas sobre a autenticidade da fotografia são colocadas em
questão, bem como a autenticidade das reações ao que vemos [...]. Se
Pistoletto está manipulando as fotografias [...] então ele também está
manipulando o espectador (LEWISON, 2011, p. 32-33)160.

160
Tradução livre, original em inglês: “Yet each piece is more or less fiction. While the photographs are
based on life, the images are recreated in the studio, using friends and acquaintances as models. Thus,
for example, the prostitutes are colleagues from the Cittadellarte […]. The figures in Solidarity, which
include, among others, Pistoletto‟s wife, are also colleagues. They are as inauthentic as the Vietnam
banner. Once we know that, our assumptions about the authenticity of photography are called into
question as well as the authenticity of our reactions to what we view [...]. If Pistoletto is manipulating the
photographs [...] then he is also manipulating the viewer”. Grifo do autor.
88

O aspecto caricato das fotografias serigrafadas sobrepostas aos espelhos, é


escancarado em obras como Autoritratto con occhiali gialli, no qual Pistoletto se
autorrepresentou de modo carnavalesco. A possibilidade de reconhecimento da
autorrepresentação caricata como aspecto de personalidade, a analogia às prostitutas
por meio de caracterizações, a similaridade adquirida com as manifestações ocorridas
durante a guerra do Vietnã por meio de montagens, bem como a existência, muitas
vezes velada, de possibilidades dúbias de adequação à opinião do público sobre o fato
representado, ocorre em razão da verossimilhança constituída com o contexto
pretendido. Da simulação faz-se a objetividade. A imagem retratada, o espelho, o
posicionamento das obras ao chão e a presença do público criam uma miscigenação de
imagens que, apesar de verossímeis, podem configurar conjunturas ficcionais. Lewison
elucida novamente essa perspectiva, tendo como base a obra Due persone, de 1962:

Às vezes podemos nos sentir excluídos da cena mesmo se estamos


refletidos nela; por exemplo, em Two People (1962)161, parecemos
testemunhar o encontro entre um casal que ignora continuamente a
nossa presença. Nossa reflexão pode ser inserida entre eles, mas nunca
podemos vê-los de frente e invadir sua conversa. Estar do outro lado é
uma ilusão162. Nós sempre permaneceremos isolados e alienados.
Pistoletto aponta a natureza existencial do ser, onde o homem é
alienado de si mesmo e do mundo (LEWISON, 2011, p. 31)163.

Mediante as palavras de Lewison, podemos constatar que os Quadros espelhados


permitem a existência de uma objetividade multifacetada, que se deve não só à
pluralidade interpretativa existente nas figuras, mas ao caráter ilusório das cenas que
se constituem a partir da “ilusão de estar do outro lado”.

Semelhante ao que ocorre em um sonho, nos Quadros espelhados, a interação é tão


vigorosa que nos leva a crer na vivência de um acontecimento real. Essa sensação, tão
frequente e ao mesmo tempo, diversas vezes, desprestigiada por nós, é

161
Grifo do autor.
162
Grifo nosso.
163
Tradução livre, original em inglês: “At times we can feel excluded from the scene even if we are
reflected in it; for example, in Two People (1962), we appear to witness an encounter between a couple
who continuously ignore our presence. Our reflection may be inserted between them, but we can never
see them from the front and never break into their conversation. To be on the other side is an illusion. We
shall always remain isolated and alienated. Pistoletto points up the existential nature of being, where man
is alienated from himself and the world”. Grifo do autor.
89

engenhosamente ilustrada em um diálogo do filme Room (O quarto de Jack)164, de


2015, no qual Jack (personagem de Jacob Tremblay), nascido em cativeiro, sem
contato com o mundo exterior, pergunta a sua mãe Joy (personagem de Brie Larson):
“Where do we go when we’re asleep?” (Para onde vamos quando dormimos?). Ela
responde: “Right here in room” (Ficamos no quarto). Jack, novamente questiona: “But
dreams? Do we go into TV for dreaming?” (E quanto aos sonhos? Entramos na TV para
sonhar?). Seguindo novamente na contramão de uma série de criações fantasiosas
típicas de linguagens cinematográficas hollidianas, a mãe diz: “We’re never anywhere
but here” (Nunca estamos em qualquer lugar, mas aqui). Essa e outras cenas dão
vazão a certos olhares de Joy sob a realidade, olhares esses, decorrentes de uma
situação que a personagem, diversas vezes, demonstra enxergar como sendo
irreversível. Isso explica de certa forma, o conceito de realidade ambíguo e inacabado
que transmite a Jack, cuja inocência e ludicidade ainda o permite prestigiar, extático e
crente, as sensações provocadas pelos sonhos. A percepção de que as cenas são
concretamente ausentes, em Jack, é integralmente inexistente. A compreensão
inocente do personagem pode nos invadir em curtos espaços de tempo, quando nos
encontramos, por exemplo, imersos em um sonho ou, com variações, nos espelhos de
Pistoletto. A consciência de que essa vivência é fisicamente inexistente, retorna à
nossa percepção a partir da consciência da imaginação, que ocorre em outro espaço de
tempo, quando despertamos para a realidade concreta. Ambas as experiências
permitem certa transgressão do tempo presente, mesmo após a consciência de que as
cenas são materialmente ausentes, o que ocorre, por exemplo, quando o indivíduo
relaciona a experiência com o que foi ou possa vir a ser real ao interpretar o significado
dos sonhos ou, quando tomado por uma percepção errônea da imagem de si gerada
pelo espelho, estranha sua imagem impressa em uma fotografia. Pistoletto, ao abusar
do caráter fictício do espelho, escancara esse aspecto utilizando artifícios diversos, seja
por meio dos Quadros espelhados, capazes de imergir o espectador em cenas
ficcionais, seja por meio de obras como Mirror Cage - Double Square, que simula a

164
Room é baseado no best-seller de mesmo título da escritora irlandesa Emma Donnoghue. O filme gira
em torno de Joy, sequestrada ainda na adolescência, e do filho Jack, nascido e criado por ela em
cativeiro. A narrativa é dividida em duas partes, a primeira refere-se à determinado período de ambos em
cativeiro, já a segunda, à adaptação de Joy e Jack ao mundo real após escaparem do sequestro.
90

expansão de um espaço reduzido; ou, principalmente, por meio de obras como Questo
spazio non existe, cujos dizeres favorecem o despertar para a realidade concreta,
mostrando-se, desse modo, análogos à refutação de Joy na cena descrita
anteriormente: “Nunca estamos em qualquer lugar, mas aqui”.

Imagem 31: À esquerda. Michelangelo Pistoletto. Questo spazio non existe, 1976. Espelho e letras
adesivas de vinil. Site specific dimensions. Obra n°70 from the yellow book “Cento mostre nel mese di
ottobre”, Turim, 1976.
Foto: Ela Bialkowska.
Cortesia: Galleria Continua, San Gimignano / Beijing / Les Moulins / Habana.

Imagem 32: À direita. Michelangelo Pistoletto. Questo spazio non existe, 1976. Espelho e letras adesivas
de vinil. Site specific dimensions. Obra n°70 from the yellow book “Cento mostre nel mese di ottobre”,
Turim, 1976.
Foto: Artnine.
Cortesia: Galleria Continua, San Gimignano / Beijing / Les Moulins / Habana.
91

Imagem 33: Michelangelo Pistoletto. Mirror Cage - Double Square, 1975-2007. Espelho, ferro.
5 elementos: 100 x 100 x 20,5 cm cada.
Foto: Oak Taylor-Smith.
Cortesia: Galleria Continua, San Gimignano / Beijing / Les Moulins / Habana.

Tanto no sonho quanto na interação com os Quadros espelhados, as experiências


continuamente perpassam o real, a ilusão e a ficção. O real é vivente no ambiente e na
presença factual do espectador no espaço expositivo. A ilusão provém do ato de
fantasiar, ainda que por instantes, o pertencimento a um contexto fabulado (como
demonstra Lewison). Já o lugar da ficção nas obras torna-se perceptível na definição
elaborada pelo filósofo francês Jacques Rancière:

Ficção não é criação de um mundo imaginário oposto do mundo real. É


o trabalho que realiza dissensos165, que muda os modos de

165
Para Rancière, o “[...] dissenso não é o conflito de ideias ou sentimentos. É o conflito de vários
regimes de sensorialidade” (2012, p.59). Consideramos relevante mencionar que o filósofo utiliza a ideia
92

apresentação do sensível e as formas de enunciação, mudando


quadros, escalas ou ritmos, construindo relações novas entre a
aparência e a realidade, o singular e o comum, o visível e sua
significação (RANCIÈRE, 2012, p. 64).

O embaralhamento da ficção, da ilusão e da realidade nas obras permite evidenciar a


presença de uma possível dualidade no processo de participação: a possibilidade de
propiciar, de modo simultâneo, experiências completamente distintas, a interação plena,
que acontece mediante a projeção (ou inserção) imagética do espectador na obra e a
situação excludente (descrita por Lewison), que ocorre por meio da consciência de que
a presença do espectador na obra é materialmente inexistente. A situação
potencialmente ilusória de estar na obra, mencionada por Lewison, ocorre mediante a
conversão do reflexo do espelho para o espaço habitado pelo espectador. No trecho
seguinte, o filósofo francês Michel Foucault166 escreve sobre a problemática ligada à
capacidade de transposição de lugar implícita no espelho e consequentemente, nas
obras em questão de Pistoletto.

O espelho, afinal, é uma utopia, pois é um lugar sem lugar. No espelho,


eu me vejo lá onde não estou, em um espaço irreal que se abre
virtualmente atrás da superfície, eu estou lá longe, lá onde não estou,
uma espécie de sombra que me dá a mim mesmo minha própria
visibilidade, que me permite me olhar lá onde estou ausente: utopia do
espelho. Mas é igualmente uma heterotopia, na medida em que o
espelho existe realmente, e que tem, no lugar que ocupo, uma espécie
de efeito retroativo; é a partir do espelho que me descubro ausente no
lugar em que estou porque eu me vejo lá longe. A partir desse olhar que
de qualquer forma se dirige para mim, do fundo desse espaço virtual que
está do outro lado do espelho, eu retorno a mim e começo a dirigir meus
olhos para mim mesmo e a me constituir ali onde estou: o espelho
funciona como uma heterotopia no sentido em que ele torna esse lugar
que ocupo, no momento em que me olho no espelho, ao mesmo tempo

de dissenso para estreitar relações entre arte e política. Para o autor, “[...] o dissenso está no cerne da
política” (2012, p. 59): “A política é a atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem
objetos comuns. Ela rompe a evidência sensível da ordem „natural‟ que destina os indivíduos e os grupos
ao comando ou à obediência, à vida pública ou privada, voltando-os sobretudo a certo tipo de espaço ou
tempo, a certa maneira de ser, ver e dizer” (RANCIÈRE, 2012, p. 59-60). E conclui: “Arte e política têm a
ver uma com a outra como formas de dissenso, operações de reconfiguração da experiência comum do
sensível” (RANCIÈRE, 2012, p. 63). O grifo é do autor.
166
Foucault teoriza sobre a questão do espaço/lugar por meio da assimilação de suas diferenças com
categorias que apresentam dessemelhanças entre si. São elas: utopias: “[...] lugares que mantêm com o
espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa” (FOUCAULT, 2009, p. 414); e
heterotopias: “[...] lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente
localizáveis” (FOUCAULT, 2009, p. 415). Para o filósofo, a “experiência mista” entre esses dois lugares
seria o espelho.
93

absolutamente real, em relação com todo o espaço que o envolve, e


absolutamente irreal, já que ela é obrigada, para ser percebida, a passar
por aquele ponto virtual que está lá longe (FOUCAULT, 2009, p. 415).

De certo modo, Umberto Eco nos fornece uma resposta acerca de como essa variação
de lugar é possível ao discutir sobre o sentimento de confiança existente na nossa
relação com o espelho. Dentre exemplos pertinentes, Eco (1989, p. 17) comenta que
“Confiamos nos espelhos assim como confiamos, em condições normais, nos próprios
órgãos perceptivos”. Portanto, o reconhecimento de nossa imagem no espelho, a
relação de envolvimento e a possibilidade ilusória de deslocamento permitida pelo
reflexo tornam-se possíveis em razão da confiança que constituímos na imagem
reflexiva. Para Pistoletto, a existência do espelho depende do reconhecimento de quem
olha ou, em outras palavras, de quem confia na imagem refletida.

Qual é a função do espelho?


Refletir o que está na frente dele.
Se ninguém está olhando para o espelho, o espelho existe?
A resposta é não, porque o espelho só existe no olhar e no pensamento
de quem olha. A função do espelho não pode ser separada do processo
mental que comunica o conceito do real. O espelho te reflete e existe
porque você olha para o seu reflexo nele. Somente o exercício do
pensamento faz com que o espelho funcione. O espelho só existe se
você se reconhecer nele. O espelho é um auxílio óptico que o cérebro
usa para investigar e conhecer a si mesmo (PISTOLETTO, 2016, p.3)167.

A indicação de que o funcionamento e a existência do espelho dependem do


reconhecimento daquele que vê, bem como a premeditação do reflexo do público nas
obras pelo artista, fortalecem a concepção de Claudio Maffioletti (2011, p. 2), para o
qual o trabalho de Pistoletto “[...] sempre captura e apropria o espaço real dentro do
representacional”168. Nessa perspectiva, pode-se considerar que existe uma espécie de
apropriação, por parte do artista, da imagem do espectador. Nesse ato de apropriar-se
de uma imagem móvel e, inicialmente, externa à obra, outra intencionalidade de
167
Tradução livre, original em inglês: “What is the function of the mirror? To reflect what is in front of it. If
no one looks at the mirror, does the mirror exist? The answer is no, because the mirror only exists in the
eyes and thoughts of the person who looks into it. The function of the mirror cannot be separated from the
mental process that communicates the concept of the real. The mirror reflects you and exists because you
look at your reflection in it. Only the exercise of thought makes the mirror work. The mirror exists solely if
you recognize yourself in it. The mirror is an optical aid that the brain uses to investigate and know itself”.
Grifo nosso.
168
Tradução livre, original em inglês: “[...] forever captures and appropriates real space within the
representational one”. Grifo nosso.
94

Pistoletto é ainda mais demonstrada: incorporar o público como matéria construtiva da


obra. Contudo, trata-se de uma matéria volátil, que se evapora. O público, apropriado
como imagem na composição, reopera o projeto poético e redesenha a obra. Em
prática, essa questão extrapola o imagético, por se tratar de uma apropriação da
relação desse espectador com o espelho. O insucesso disso é pouco provável, uma vez
que ser indiferente ao que seria sua própria imagem é uma atitude, no mínimo, árdua.
De porte desse fato e por meio de uma diversidade imensa de temas e mecanismos,
Pistoletto submete o público a contextos e papéis distintos, sugerindo, de modo cada
vez mais explícito, a existência do público como obra, como é o caso do Quadro
espelhado intitulado I visitatori, de 1968.

Imagem 34: Fotografia feita por espectador, 2016. Obra fotografada: Michelangelo Pistoletto, I visitatori,
1962-1968. Papel de tecido pintado sobre espelho de aço inoxidável polido. 230 x 120 cm cada espelho.
Galleria Nazionale d'Arte Moderna, Roma.
Cortesia: Maria Cristina Gasche.
95

O título e a posição das figuras simulam a cena de uma exibição de arte, digamos,
correspondente aos moldes “tradicionais”: espectadores elegantemente vestidos, um
deles direciona seu olhar ao que poderia ser um dos trabalhos expostos, enquanto o
outro parece ler de modo despretensioso, informações adicionais num papel. A
presença do reflexo do público no espelho designa a intenção de converter o público
“real” em conteúdo a ser observado pelas figuras. O mesmo ocorre em Tre ragazze alla
balconata, de 1964; Cameraman, de 2004; Uomo in piedi, de 1982; Lui e lei alla
balconata, de 1966; I voyeurs, de 1972, e outros trabalhos. Neles, as figuras são
representadas como espectadores e a imagem do espectador “real” se faz presente
como obra e/ou alvo de olhares no espaço virtual do espelho. O funcionamento desse
jogo de variabilidade necessita do envolvimento do público na cena simulada.

Imagem 35: Michelangelo Pistoletto, I voyeurs, 1962-1972. Papel de tecido pintado sobre espelho de aço
inoxidável polido, 230 x 120 cm. Toyota Municipal Museum of Art. Toyota.
Site oficial do artista.

As obras dependem do espectador para colocar em prática o projeto interativo para as


quais foram concebidas. Semelhante ao que ocorre em trabalhos criados para permitir a
96

interação física, tais como os Bichos169, da artista brasileira Lygia Clark, ou os


Parangolés170, do artista brasileiro Helio Oiticica: do envolvimento faz-se a obra. É
possível ressaltar que o objetivo dessas práticas não se concentra apenas em extinguir
a distância física por vezes imposta ao espectador ou designar a participação como
sendo imprescindível para o funcionamento da obra; mas em dissipar a persuasão de
discursos que conduzem a arte a um sincrônico conjunto delimitado de significados
capazes de imergir e conduzir o processo de participação (de certa forma, alguns textos
de Lygia Clark, demonstram esse intento171). Esses discursos referem-se, entre muitas
outras questões, à práticas de ensino retrógradas172 e à relevância exacerbada
concedida à concepção do (a) artista/ crítico (a)/curador (a). Sabemos que, dependendo
do modo com o qual essas concepções são transmitidas, elas podem interferir na
possibilidade de uma experienciação, digamos, “mais independente”.

Ao visitar uma galeria ou um museu, por exemplo, é comum que as especulações do


artista e/ou curador sobre o que a obra é ou deixa de ser, ocupem a primeira sala da
exposição, ou ainda, que se estendam a exaustivos discursos de mediadores, o que
pode ocasionar em uma interpretação manipulada pela busca de assimilações173. Algo
que Andrea Fraser notadamente ironizou em sua ação intitulada Little Frank and his
Carp, de 2001, em que caminha por um museu escutando e reagindo comicamente às
informações de um audioguia previamente solicitado. A destinação a priori de
informações substanciais ao público geralmente funciona como a montagem de um
quebra cabeças: conhecemos o motivo da sua concepção, o que irá conceber e o modo
com o qual as peças devem ser associadas para um resultado perfeito. Em outras
palavras, a experiência é ditada por uma associação de imagens e conceitos. Em meio

169
Os Bichos de Lygia Clark são esculturas de alumínio destinadas à manipulação do espectador: “O
„Bicho‟ tem um circuito próprio de movimentos que reage aos estímulos do sujeito. Ele não se compõe de
formas independentes e estáticas que possam ser manipuladas à vontade e indefinidamente, como num
jogo. Ao contrário: suas partes se relacionam fundamentalmente, como as de um verdadeiro organismo,
e o movimento dessas partes é interdependente” (CLARK, 1960, p. 2).
170
Os Parangolés de Hélio Oiticica são estandartes, tendas, bandeiras e capas, constituídas de tecidos
em cores vivas que, por meio da dança, se revelam instrumentos de participação sensorial.
171
Ver, por exemplo, os textos Nós somos os propositores, de 1968, e Nós recusamos, de 1966,
disponíveis no site oficial da artista: <http://www.lygiaclark.org.br/>. Acesso: 13 Out. 2017.
172
Luis Camnitzer aborda muitas dessas práticas de modo claro e sucinto, no texto intitulado Thinking
About Art Thinking, de 2008.
173
Ao atuar como monitora (mediadora, como era prudente denominar) em um museu de arte por quase
um ano, pude notar como a monitoria influencia o processo de interação do público.
97

a essa problemática, é possível que, na busca pela compreensão, o espectador deixe


de lado a experiência.

As obras de Lygia Clark, Hélio Oiticica e ainda que de outro modo, os Quadros
espelhados de Pistoletto, contribuem para o protagonismo da experiência com a obra
de arte. Nessa contribuição, habita a principal semelhança entre as proposições. No
que se refere às distinções, elas obviamente não se atrelam tanto ao propósito, mas ao
funcionamento. Nos trabalhos de Pistoletto, não é a interação tátil que propicia a
transfiguração do espectador ou suas ações em elemento da obra, mas sim a imagem
refletida. O esquema de participação proposto por Pistoletto nas obras em questão,
bem como o de posterior interação do público, pode ser equiparado às ilusões óticas
propostas por obras ligadas à Op Art. As proposições, assim como os Quadros
espelhados, utilizam recursos visuais complexos, que permitem efeitos ilusórios de
movimento, potencializados por meio do deslocamento do espectador e de seu olhar
diante das obras.

Imagem 36: Luiz Sacilotto. Vibração ondular, 1953. Esmalte sobre madeira, 42,5 x 50,5 cm. Pinacoteca
do Estado de São Paulo.
98

Outro tipo de associação, menos explícita, com as obras em questão de Pistoletto,


pode ser verificada no trabalho da artista russa Olia Lialina, intitulado My Boyfriend
came Back from the War174, de 1996. A obra, como é característica dos trabalhos
inseridos no contexto da arte digital, é estrategicamente projetada para funcionar sem o
respaldo de uma instituição museológica. O trabalho é realizado por meio de uma
página na web, o contexto é previamente ditado pelo título. Ao acessar a obra, o público
se depara com a imagem de uma janela que pulsa repetidamente duas figuras
masculinas, uma delas direciona seu olhar para o lado direito da tela, onde se encontra
a reprodução de uma figura feminina ampla, desanexada das outras por meio de um
traçado. Existe um link sob toda a extensão da figura, no qual o espectador é conduzido
a clicar. A ação, uma vez concretizada, permite o surgimento de uma terceira
subdivisão na parte central da tela com os dizeres sob forma de link: “Where are you?”
(Onde você está?) “I can’t see you” (Eu não posso te ver). O espectador é incitado a
acessar os links nas subdivisões que surgem e estendem-se repetidamente na tela do
aparelho utilizado para executar a ação. As frases, na maioria das vezes, formulam
questões que se dirigem ao espectador175. As imagens, que assim como as frases,
surgem repetidamente em forma de link, trabalham para que a situação criada pela
obra torne-se ainda mais envolvente. Os espectadores, tanto dos Quadros espelhados
quanto da obra My Boyfriend came Back from the War, são inseridos em um contexto
persuasivo, no qual estar imerso pode ser inevitável. Não se trata de uma interação que
possui o tátil como ponto de partida, como ocorre, por exemplo, no funcionamento dos
Parangolés de Oiticica. Gilman (2008, p. 64) escreve que “[...] as figuras do espelho [de
Pistoletto] são formas desabrigadas que ocupam uma realidade que cruza, mas não
coincide fundamentalmente com a do espectador”176. No entanto, o que essas obras
propõem, antes de tudo, é uma interação psíquica, uma reflexão pessoal e
intransferível acerca de nós mesmos. Nessa perspectiva, como já demonstrado, a

174
Disponível em: <http://www.teleportacia.org/war/wara.htm>. Acesso: 19 Set. 2017.
175
A título de exemplo: “you want me?” (Você me quer?), “CAN anybody Kill you?” (Alguém pode matar
você?), “Who asks you?” (Quem pergunta a você?). Ás vezes, as sentenças redigem afirmações
complexas: “nobody here can love” (ninguém aqui pode amar), “or understand me” (ou me entender); ou
palavras confortantes - “All guys change, don’t worry, I’ll help you” (Todos os caras mudam, não se
preocupe, eu vou ajudar você), “We’ll start a new life” (Vamos começar uma vida nova).
176
Tradução livre, original em inglês: “[...] the mirror figures are homeless forms that occupy a reality that
intersects with but does not fundamentally coincide with that of the viewer”.
99

“realidade” do trabalho pode ser relacionada à do espectador que se permite envolver,


reconfigurando a “distância” entre o público e a obra, de modo a evidenciar outros
mecanismos no processo de participação. Podemos considerar que a notabilização
desses mecanismos nas obras permitem vigorar a problematização das noções que
conduzem a formulação da ideia de “espectador passivo”, realizada por Jacques
Rancière.

Ao discutir, entre outras questões, sobre o espectador, contrapondo-se à associação de


sua condição à passividade, o filósofo indica que essas oposições
(atividade/passividade), bem como outras “[...] são coisas bem diferentes das oposições
lógicas entre termos bem definidos” (RANCIÈRE, 2012, p. 16). Na explicação do autor:

Elas definem propriamente uma divisão do sensível, uma distribuição


apriorística das posições e das capacidades e incapacidades vinculadas
a essas posições. Elas são alegorias encarnadas da desigualdade
(RANCIÈRE, 2012, p. 17).

Ao constituir críticas à posição de passividade enleada ao significado e à aplicação do


termo espectador, Rancière (2012, p. 23) elabora o que seria o significado da
emancipação: a miscigenação das fronteiras entre o observar e o agir.

A emancipação [...] começa quando se questiona a oposição entre olhar


e agir, quando se compreende que as evidências que assim estruturam
as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem à estrutura da
dominação e da sujeição. Começa quando se compreende que olhar é
também uma ação que confirma ou transforma essa distribuição de
posições. O espectador também age. [...] Ele observa, seleciona,
compara, interpreta. Relaciona o que vê com muitas outras coisas que
viu em outras cenas, em outros tipos de lugares. Compõe seu próprio
poema com elementos do poema que tem diante de si. Participa da
performance refazendo-a à sua maneira, furtando-se, por exemplo, à
energia vital que esta supostamente deve transmitir para transformá-la,
em pura imagem e associar essa pura imagem a uma história que leu ou
sonhou, viveu ou inventou. Assim, são ao mesmo tempo espectadores
distantes e intérpretes ativos do espetáculo que lhes é proposto
(RANCIÈRE, 2012, p. 17)177.

Na concepção de Rancière (2012, p. 21), é no “[...] poder de associar e dissociar que


reside a emancipação do espectador [...]”. As considerações do autor, bem como os

177
Grifo nosso.
100

Quadros espelhados e outras obras anteriormente citadas, nos conduzem a questionar


as conhecidas categorias de experiência com a obra de arte, que nomeiam diferentes
“graus” de participação, tendo como principal ferramenta de identificação o
“envolvimento assistido” e a “abertura convidativa”. A razão para a evidência dessas
incoerências na categorização da participação, nos trabalhos de Pistoletto, reside na
existência da particularidade apontada por Rancière (2012, p. 17), que é explícita nas
obras: muitos abismos podem ser cessados sem que haja de fato a suspensão do
caráter retínico das obras. Os trabalhos em questão deixam isso bem claro,
notabilizando a concepção do autor de que “Não há forma privilegiada [...] não há ponto
de partida privilegiado” (RANCIÈRE, 2012, p. 21). As constantes mudanças que vêm
ocorrendo nos processos de interação do público com a arte por meio das mídias
sociais e da imersão da fotografia nos espaços museológicos contribuem para
evidenciar ainda mais essa perspectiva.

III. 2 A fotografia como propagação da interatividade e desterritorialização do


espaço expositivo

Ir ao encontro do universo das imagens e adentrá-lo por meio da inventividade


configuram ações quase sempre instintivas. Não se envolver com certas fotografias,
não se deixar levar por narrativas cinematográficas ou evitar imergir-se no jogo
imagético das obras de Pistoletto, é usualmente laborioso. Certas linguagens e
narrativas parecem possuir os artifícios necessários para viabilizar um contato,
digamos, mais direto com o público. No caso dos Quadros espelhados, essa interação
pode ser tanto potente e explícita quanto ilusória e imaginária. Tal como explanamos
anteriormente, a sensação provocada pelas obras pode nos desviar da situação “real”
em que nos encontramos (a de estar presente em um museu ou galeria, por exemplo)
para a habitação de um contexto ditado pelas imagens dispostas por Pistoletto. Trata-
se de uma interação que perpassa a sensação de pertencimento, de presença e de
posse.

Ao fornecer a possibilidade de registrar trabalhos artísticos em exposições, inaugurando


novos meios de interlocução com esses espaços, a fotografia forneceu novas
101

possibilidades ao processo participação do espectador. Contudo, as permissividades


desse “novo estágio” aparentam curvar-se aos mesmos impedimentos e jogos ficcionais
do sistema de participação à exceção do ato de fotografar.

Imagem 37: Fotografia feita por espectador, 2017. Obra fotografada: Michelangelo Pistoletto, Due ragazzi
alla fonte, 1962-1975. Impressão serigráfica sobre espelho de aço inoxidável polido, 230 x 125 cm.
Museu Coleção Berardo.
Cortesia: José Cirillo.

Ao discutir problemáticas inerentes ao mercado e circuito da arte, Martha Rosler chama


atenção para o fato de a galeria ser um espaço “[...] onde o público pode „visitar‟ a obra
e onde só alguns poucos podem apropriar-se fisicamente dela” (2001, p. 324)178. Rosler
afirma a existência de uma incompatibilidade entre o que a arte profere e as práticas de
seu circuito:

Em nossa sociedade, as contradições entre aquilo que a arte proclama e


as realidades de sua produção e distribuição são amplamente claras.
Enquanto, por um lado, o mito cultural afirma enfaticamente que a arte é
um fenômeno humano universal, que transcende seu momento histórico,
suas condições de produção e sobretudo, a classe na qual pertence os
que a fazem e patrocinam, e que é além disso, a expressão mais alta da
verdade espiritual e metafísica; por outro lado, a arte se mostra
178
Tradução livre, original em espanhol: “[...] donde la audiencia puede „visitar‟ la obra y donde sólo unos
pocos pueden apropiarse fisicamente de ella”.
102

enormemente exclusiva em sua recepção, culturalmente relativa a seus


interesses e indissoluvelmente unida aos grandes capitais e à classe
media-alta em geral (ROSLER, 2001, p. 312)179.

Ao problematizar aspectos como exclusividade, aura, unicidade e autoria, meios como a


fotografia e o vídeo, de certa forma, prenunciaram uma intervenção nesse sistema
antidemocrático. Contudo, como indica Rosler (2001), a reprodutibilidade da fotografia
não foi suficiente para efetivar uma forma de arte puramente inclusiva e desvinculada
da situação econômica e social. A fotografia, tal como demonstrou a autora (2001),
absorveu o valor social da arte e passou a servir como ferramenta estratégica para a
ascensão do discurso que sustenta, entre outras coisas, o mercado da arte. Pode-se
notar que existe um empenho considerável em diferenciar a documentação da arte
proveniente do público da documentação institucional. Cópias ou registros fotográficos
numerados são frequentemente comercializados por instituições que fazem uso do
senso comum de ser o recinto da arte para atingir ou preservar sua ascensão
financeira. Para Machiko Kusahara (2009, p. 368), atitudes como a numeração de obras
e a priorização das originais (o autor utiliza a gravura como exemplo), contraditam e
desconsideram as probabilidades suscitadas pelas tecnologias. Enquanto isso, como já
sabemos, as fotografias realizadas pelo público e outras práticas distantes do caráter
superior frequentemente autoafirmado pelo sistema, permanecem distantes da
supremacia atrelada às obras e da documentação proveniente das instituições.
Contudo, seu potencial discursivo é inegável. Muitas vezes, esses registros interferem
de modo significativo no discurso da obra. Os Quadros espelhados de Pistoletto,
tomados por seus “coautores”, particularmente, inserem-se nesse caminho. Apesar de
certas barreiras permanecerem intactas diante dessas produções, outras, como ressalta
Diana Domingues, demonstram estar sendo cruzadas rapidamente: “No circuito
estabelecido da arte verificam-se modificações nas temáticas e nos modos de criação,

179
Tradução livre, original em espanhol: “En nuestra sociedad, las contradicciones entre aquello que el
arte proclama y las realidades de su producción y distribución son sobradamente claras. Mientras, por un
lado, el mito cultural afirma enfáticamente que el arte es un fenómeno humano universal que trasciende
tanto su momento histórico como sus condiciones de su producción y, sobre todo, la clase a la que
pertenecen quienes lo hacen y quienes lo patrocinan y que es, además, la expresión más alta de la
verdad espiritual e metafísica; por otro lado, el arte se muestra enormemente exclusivo en su recepción,
culturalmente relativo en sus intereses e indisolublemente unido a los grandes capitales y la clase media-
alta en general”. Grifo nosso.
103

exibição, fruição, distribuição, conservação e colecionismo, pela presença das novas


tecnologias (DOMINGUES, 2009, p. 32)”180. Nessa perspectiva, o sistema de
participação que circunda os Quadros espelhados e envolve a “presença das novas
tecnologias”, aparenta no mínimo, perverter o sistema excludente mencionado por
Rosler, uma vez que (de certa forma) permite ao público transgredir o sistema por meio
da realização e disseminação de fotografias, que passam a circular em outros sistemas
semióticos, em especial nas redes sociais.

Imagem 38: Michelangelo Pistoletto. Ragazza che fotografa, 1962-2007. Fotografia serigrafada sobre
espelho de aço inoxidável polido, 250 x 125 cm. Coleção Cittadellarte – Fundação Pistoletto, Biella.
Foto: Pierluigi Di Pietro.
Site oficial do artista.

180
Grifo nosso.
104

Imagem 39: Fotografia feita por espectador, 2017. Obra fotografada: Michelangelo Pistoletto, Due ragazzi
alla fonte, 1962-1975. Impressão serigráfica sobre espelho de aço inoxidável polido, 230 x 125 cm.
Museu Coleção Berardo.
Foto: Angela Grando.
Cortesia: José Cirillo.

No texto intitulado Double Reflections: art museums and the image of the beholder,
Julia Kleinbeck aprofunda questões suscitadas por retratos que mostram espectadores
em museus de arte. As reflexões da autora nos conduzem a crer que essas fotografias
representam uma ação ressignificativa e podem ser tratadas como desdobramento das
obras em si. A presença do quadro espelhado intitulado Ragazza che fotografa, na
exibição Année I. Le Paradis sur Terre, de Pistoletto, realizada no Louvre, em 2013, faz
parte das discursões da autora. A obra, como explica Kleinbeck, representa a figura de
uma espectadora levantando seus braços sobre a cabeça enquanto tira uma fotografia.
Nas palavras da autora:
105

O trabalho, desenvolvido na década de 1960, duplica o icônico visitante


do Louvre, aquele que conscientemente procura o caminho mais curto
para a Mona Lisa de Leonardo e, ao chegar, permanece exclusivamente
interessado em produzir sua própria reprodução da pintura
(KLEINBECK, 2017, p. 157)181.

O “icônico visitante do Louvre”, na perspectiva da autora, vangloria a necessidade de


reproduzir, possuir, bem como de propalar a arte de um novo modo em detrimento do
processo de participação, fundamentado na recepção da obra de arte em si. Essas
ações são frequentemente tratadas como renúncia a uma experiência genuína com a
arte. Talvez isso ocorra por existir uma valorização ainda excessiva do ato de
contemplar (embora “o interesse em reproduzir sua própria reprodução da pintura”,
possa ser considerado uma ação contemplativa). Uma vez que o funcionamento do
jogo de relações das obras depende da presença imagética do espectador no espelho,
podemos considerar que a estatização dessa presença por meio de registros
fotográficos, bem como a divulgação desses registros na rede, um aspecto atualmente
expressivo do funcionamento das obras.

A produção de Ragazza che fotografa, demonstra a intenção clara de problematizar o


uso da fotografia no processo de participação. Um objetivo semelhante pode ser
identificado, por exemplo, na obra Louvre (Prigione), de 2013, cuja imagem serigrafada
no espelho representa um rapaz fotografando a escultura de mármore intitulada
Schiavo morente, uma de seis estátuas da série Prigione, do artista italiano
Michelangelo Buonarroti, atualmente localizada no Louvre. O contraste proposto é
manifesto. Uma escultura do século XVI, sob as lentes de um jovem típico do século
XXI, vestido de modo despojado: jeans, camiseta e uma mochila que estampa
ostensivamente a popular marca de artigos esportivos Lonsdale.

181
Tradução livre, original em inglês: “The work, developed in the 1960s, duplicates the iconic Louvre
visitor, the one who single mindedly seeks the shortest way to Leonardo's Mona Lisa and, upon arriving, is
exclusively interesting in producing their own reproduction of the painting”. Grifos da autora.
106

Imagem 40: Michelangelo Pistoletto. Louvre (Prigione), 2013. Fotografia serigrafada sobre espelho de
aço inoxidável polido, 250 x 150 cm.
Foto: Ela Bialkowska.
Cortesia: Galleria Continua, San Gimignano / Beijing / Les Moulins / Habana.

Atualmente, tornou-se comum visitar exposições de arte portando equipamentos


fotográficos digitais, que diferentemente dos analógicos, fazem fotos sem o danoso
efeito de seus flashes sobre as imagens. Uma preparação para a execução de uma
atitude que parte do público para a obra. Na obra Ragazza che fotografa, de Pistoletto,
o espectador se depara com uma cena inusual: a figura de alguém que fotografa
atrelada ao reflexo dos visitantes no espelho. A obra indica que o ponto de partida do
ato de fotografar é da composição. Mais do que exteriorizar mudanças que vem
ocorrendo nos processos de interação do público com a arte, o trabalho parece assumir
107

a existência das fotografias nos espaços expositivos como parte da obra. Ao efetivar a
presença dessas ações (ou, pelo menos, algo que represente essa presença) no
campo da arte, o extrapolar de barreiras institucionais impostas entre as fotografias
realizadas pelo público e a obra de arte em si, é de certo modo, favorecida. Trata-se de
expor um fato já aprofundado pelo teórico de arte espanhol Juan Martín Prada (2010, p.
42-43): “[...] um novo regime visual está sendo imposto”182. Nele, “ver não é apenas
uma ação ou uma experiência, mas agora também um registro técnico simultâneo,
fixado em uma memória externa” (PRADA, 2010, p. 42-43)183.

No texto intitulado Camaradas do tempo, o crítico de arte alemão Boris Groys formula
um conceito de contemporaneidade tendo como base questões relativas ao tempo. Não
por acaso, a série de Pistoletto e a documentação de seu trabalho pelo público podem
se relacionar às considerações do crítico. Groys (2010, p. 120) equipara o ato de “[...]
postergar [...] decisões e ações para ter mais tempo para análise, reflexão e
consideração” à definição de contemporâneo, que para ele seria “[...] um período
prolongado, potencialmente até infinito, de adiamento” (GROYS, p. 120). Desse modo,
“[...] fazer arte contemporânea significa produzir tempo contemporâneo” (GROYS,
entrevista a Luiza Proença, 2010, p. 104). Na concepção de Groys, a arte com base no
tempo184, uma condição na qual os Quadros espelhados podem ser facilmente
inseridos, parece refletir essa conjuntura contemporânea. Na justificativa do autor:

Ela o faz porque tematiza o tempo não produtivo, desperdiçado, não


histórico, excedente [...]. Ela captura e demonstra atividades que
transcorrem no tempo, mas que não levam à criação de nenhum produto
definido. Mesmo se essas atividades levarem a tal produto, elas são
apresentadas como partes isoladas do seu resultado, não

182
Tradução livre, original em inglês: “[...] a new visual regime is being imposed”.
183
Tradução livre, original em inglês: “Seeing is not only an action or an experience, but now also a
simultaneous technical record, fixed in an external memory”.
184
Para exemplificar a arte com base no tempo, Groys utiliza a animação de Francis Alÿs Song for Lupita,
de 1998, entre outras ações. Vejamos: “Pode-se recordar aqui do Sísifo de Camus, um artista
protocontemporâneo cuja tarefa sem sentido nem objetivo de rolar repetidamente uma pedra enorme
para o alto de uma montanha pode ser vista como um protótipo para a arte contemporânea com base no
tempo. Essa prática não produtiva, esse excesso de tempo aprisionado em um padrão não histórico de
repetição eterna, constitui para Camus a verdadeira imagem do que chamamos „vida‟ – um período
irredutível a qualquer „sentido da vida‟, qualquer „realização da vida‟, qualquer relevância histórica”
(GROYS, 2010, p. 122).
108

completamente investidas no produto, nem absorvidas por ele (GROYS,


2010, p. 122)185.

Aplicando as considerações do crítico ao funcionamento dos Quadros espelhados, o


espelho poderia representar a tematização do tempo não histórico e a demonstração do
que transcorre no tempo. As obras e as fotografias feitas pelos espectadores seriam
equivalentes ao produto, apresentados isoladamente e não absorvidos pelo desenrolar-
se do tempo no espelho. Para o autor (2010, p. 123-124), a impossibilidade de
absorção e acumulação do tempo por seu produto, resultaria na sua repetição infinita;
daí o jogo de multiplicidade criado pelo reflexo do espelho e pelas fotografias realizadas
pelo público. Processos que pelo fato de reiniciarem constantemente e indefinidamente,
tornam-se ainda mais equivalentes à condição de produtos do tempo, proposta pelo
crítico.

Ao analisar a produção fotográfica do público realizada em exposições que incluem os


Quadros espelhados de Pistoletto, pode-se notar a riqueza discursiva dessas imagens,
que muitas vezes, mostram-se mais intrigantes do que a obra física em si. Nos Quadros
espelhados, a fotografia pode ser muito mais que o registro da obra. Trata-se de
promover a inserção estática da autoimagem do espectador no trabalho (o que apenas
a ação de observar a imagem refletida do espelho não permitiria); e de registrar, como
indica Kleinbeck, o contato estabelecido com o mesmo: “Não é o espaço do museu que
é reproduzido, mas um tipo específico de interação” (KLEINBECK, 2017, p.163) 186.
Desse modo, o público promove a assimilação de aspectos que envolvem seu próprio
processo de participação. Essa nova imagem torna-se um misto entre a proposição do
artista e a intervenção de um sujeito externo: o público em seu estar na obra. Logo, o
público faz circular outras dimensões possíveis do objeto, inúmeras possibilidades da
obra (ou, em outra perspectiva, a criação de novas obras). Situações que,
inevitavelmente, voltam a problematizar a ideia de autoria, bem como a suscitar
possíveis interferências do processo de participação atual na identificação do “objeto

185
Grifo nosso.
186
Tradução livre, original em inglês: “It is not museum space that is reproduced, but a specific kind of
interacting”.
109

artístico”. Ryszard W. Kluszczynski lida diretamente com esse universo ao examinar


diferentes vertentes de análise que tangem a relevância do artista e sua proposição no
processo interativo. O autor demonstra, entre outras questões, alterações propiciadas
pelas novas mídias no papel do “receptor” da obra de arte:

As novas mídias (multimídias), que funcionam segundo o princípio da


interatividade, realizaram, portanto, uma interiorização da lógica
desconstrutivista. Como resultado disso, ocorreram mudanças
consideráveis com relação aos papéis e ao alcance de suas respectivas
competências. O artista-autor deixa de ser o único criador não somente
do significado do trabalho, mas também de sua estrutura e formato; o
trabalho está assim sendo co-criado pelo receptor num processo de
interação com o artefato. A tarefa do artista é agora a criação desse
artefato: um sistema/contexto no qual o receptor/interator constrói o
objeto de sua experiência, bem como seu significado. O receptor não é
mais um simples intérprete do significado pronto que espera pela
compreensão, ou um sujeito que percebe uma obra de arte material
finalizada; é de sua atividade e criatividade que depende a estrutura da
experiência estética renovada. Portanto, reafirmemos que tanto a
estrutura do trabalho como os significados evocados são co-criados pelo
receptor, que se torna assim um co-criador (KLUSZCZYNSKI, 2009,
p.233)187.

Desse modo, os Quadros espelhados, em estado de conciliação com as fotografias


realizadas pelo público-coautor, tornam-se ponto de partida para a geração de novas
imagens, novos significados e novas experiências, favorecendo, “[...] a não finalidade,
não essencialidade, inscritas na natureza da arte interativa” (KLUSZCZYNSKI, 2009,
p.235).

Fotografar os trabalhos pode representar tanto a necessidade de envolver-se de um


novo modo com as obras, quanto a tentativa de expor uma linguagem visual por meio
desse ato fotográfico. Tal processo, é fortalecido pela circulação dessas fotografias na
web, o que permite incluí-las no acelerado contexto de produção e exibição das mídias
sociais, originando, como indica Kleinbeck, novos públicos:

187
Grifos nossos.
110

Desde o início do século XXI, a web social disponibilizou plataformas


disponíveis pelas quais o público e as imagens da exposição são
primeiro descontextualizados apenas para que um novo público seja
então recontextualizado. Assim, o espaço que se aproxima é
intensamente denominado por Nina Gerlach, como "espaços de
exposição híbridos da era pós-mídia” (KLEINBECK, 2017, p. 160)188.

Os novos “espaços de exposição” propiciados, por exemplo, pelas mídias sociais,


inauguram ainda, como indica o teórico brasileiro Eduardo de Jesus, novos modos de
interação que, inevitavelmente, atingem o contexto de participação do espectador.

O circuito comunicacional contemporâneo recolocou o receptor do


circuito de massa diante de ferramentas interativas e dialógicas
reposicionando suas formas de ação e atividade para uma interação
direta e formas de publicação de conteúdo (imagem, som e texto)
gratuitas e muito fáceis de usar. Isso torna o campo de tensão ainda
mais complexo e abrangente já que todo esse conteúdo alimenta e
realimenta o contexto massivo gerando novas interações e vice-versa, já
que as redes sociais se alimentam avidamente dos estilhaços dos
contextos massivos. Novas formas de recepção se desenham
aproximando esses contextos (JESUS, 2013, p. 111).

Uma vez que, “atualmente, a documentação de uma visita a uma exposição não
permanece no computador privado de um único visitante, mas é também compartilhada
com outros usuários” (KLEINBECK, 2017, p. 161)189, o potencial de alcance dessas
imagens torna-se infindável. De acordo com Groys:

[...] na virada do século 21, a arte entrou em uma nova era – uma de
produção artística em massa, e não só de consumo em massa de arte.
Fazer um vídeo e colocá-lo em exibição na internet tornou-se uma
operação simples, acessível a quase todos. A autodocumentação
tornou-se hoje uma prática em massa e mesmo uma obsessão em
massa. Os meios de comunicação contemporâneos e redes como
Facebook, MySpace, Youtube, Second Life e Twiter dão a populações

188
Tradução livre, original em inglês: “Since the beginning of the twenty-first century, the social web has
made platforms available by which the public and the pictures of an exhibition are at first de-
contextualised only to gain a new public having then been re-contextualised. Thus, the space coming to
pass are keenly denominated by Nina Gerlach as „hybrid exhibition spaces of the post-medial era‟”. Grifo
da autora.
189
Tradução livre, original em inglês: “These days, the documentation of a visit to an exhibition no longer
remains on the single visitor‟s private computer, but is also shared with other users”.
111

globais a possibilidade de apresentar suas fotos, vídeos e textos de uma


maneira que não pode ser distinguida de qualquer trabalho de arte pós-
conceitual, incluindo obras de arte com base no tempo. E isso significa
que a arte contemporânea tornou-se hoje uma prática cultural em massa
(GROYS, 2010, p. 126).

Em outras palavras, a produção de tempo contemporâneo (o que para Groys,


significaria fazer arte contemporânea) se tornou uma prática massificada. É possível
considerar que, com base no conceito de contemporaneidade inferido por Groys, ele
propõe uma aproximação substancial entre o funcionamento de determinados trabalhos
de arte e conteúdos divulgados na rede. Apesar de destacar que “[...] a documentação
da arte, per definitionem, não é arte” (GROYS, 2010, p. 125)190, no parágrafo conclusivo
de seu texto, o crítico situa a documentação da arte com base no tempo (que como
inferimos anteriormente, pode referir-se às fotografias dos Quadros espelhados
realizadas pelo público), em uma posição proeminente. Nas paravras do autor:

[...] a documentação da arte com base no tempo apaga a diferença entre


vita activa e vita contemplativa. Aqui outra vez a arte com base no tempo
transforma uma escassez de tempo num excesso de tempo – e se
demonstra uma colaboradora, uma camarada do tempo, sua verdadeira
con-temporânea (GROYS, 2010, p. 127)191.

Nessa perspectiva, a produção fotográfica dos espectadores enquanto fenômeno da


contemporaneidade é exaltada. Além de se encaixarem nas considerações do autor,
atuando de modo colaborativo, as fotografias do público nos conduzem a um
envolvimento peculiar: “Na maioria dos casos, essas fotografias192 nos atraem por meio
de sua estética de „observar alguém observando‟” (KLEINBECK, 2017, p. 155)193. A
experiência de “observar alguém observando”, mencionada pela autora e viabilizada
pelas mídias sociais transcende a relação entre espectador e obra para estender-se de

190
Na explicação do autor: “Exatamente por apenas se referir à arte, a documentação da arte deixa bem
claro que a arte em si não está mais disponível, mas sim ausente e escondida” (GROYS, 2010, p.125).
191
Grifo do autor.
192
A autora refere-se, de modo geral, às fotografias de exibições de arte que incluem os espectadores.
193
Tradução livre, original em inglês: “In most cases, these photographs attract us by means of their
aesthetics of „seeing-someone-seeing‟”.
112

espectador para espectador: “[...] vemos imagens de espectadores e nos tornamos


espectadores, ou melhor: observadores” (KLEINBECK, 2017, p. 164)194.

Além de aspectos da teoria perceptiva, participação simbólica ou


fenomenologia, há algo mais a ser dito sobre o trabalho [aqui a autora se
refere aos trabalhos em questão de Pistoletto]: o chamado “installation
shot” tirado por um visitante e carregado no Flickr deixa claro novamente
que o observador tem, no momento da recepção da arte, sempre criado
novas imagens. A fotografia que mostra a imagem que está sendo vista
e também os espectadores são em si o tema da imagem. Situações
indetermináveis de mise en abyme195 são o resultado. Espaços de
percepção, eixos visuais e condições sociais da recepção estética
parecem se cruzar e se interceptar continuamente. É a mise-em-
scène196 da disputa sobre o “verdadeiro lugar das imagens” [...]
(KLEINBECK, 2017, p. 158)197.

Tais aspectos favorecem o rompimento de barreiras relativas ao acesso do público. Ao


discutir acerca da artemídia, Diana Domingues (2009, p. 32) aponta características que
tangem as “propriedades da cultura imaterial”: “[...] arquivos digitais, modos de acesso,
[...] alterações no espaço físico com tecnologias instaladas nele, distribuição de obras,
arquivos e coleções alteradas pela rede [...]” (DOMINGUES, 2009, p. 32). Essas
características, de acordo com a autora (2009, p. 32), “[...] desafiam o conceito
tradicional de museu como espaço sagrado”198. O equivalente ocorre com as fotografias

194
Tradução livre, original em inglês: “[...] We see images of beholders and become beholders ourselves,
or better: observers”. Grifo nosso.
195
A escritora brasileira Vanessa Lubisco Silla informa que o termo Mise en abyme é usualmente
traduzido como narrativa em abismo. Ainda segundo a autora, ele foi “[...] usado pela primeira vez por
André Gide ao falar sobre as narrativas que contêm outras narrativas dentro de si. André Gide usou-o
para referir essa visão em profundidade e com reduplicação reduzida sugerida pelas caixas chinesas ou
pelas matrioskas (bonecas russas), promovendo o deslizamento do conceito para o campo dos estudos
literários e das artes plásticas em geral” (SILLA, 2015, p.13).
196
O linguista Ivo Di Camargo Júnior (2017) explica que Mise-en-scène é uma expressão passível de ser
traduzida como encenação ou posição de uma cena num filme. Ainda segundo o autor, “O Mise-en-
scène também pode ser relacionado com a realização fílmica do diretor ou a produção deste”, bem como
“[...] ser associado a tudo aquilo que está presente no enquadramento de uma cena, seja fílmica ou
teatral, como, por exemplo, decoração, figurino, adereços, atores etc”.
197
Tradução livre, original em inglês: “Yet, apart from aspects of perceptual theory, symbolic participation,
or phenomenology, there is something else to be said about the work: the so-called „installation shot‟
taken by a visitor and uploaded on Flickr makes it evident again that the beholder has, in the very moment
of art reception, always created new images. The photography that shows the image that is being
received yet also the beholders themselves becomes the pictorial theme. Indeterminable situations of
mise en abyme are the result. Spaces of perception, visual axes, and social conditions of aesthetic
reception seem to be endlessly crossing and intersecting. This is a mise-en-scène of the quarrel about the
„true place of images‟ [...]”. Grifos da autora.
198
Grifo nosso.
113

dos espectadores, que ao extrapolarem o “recinto” expositivo, “o lugar da arte por


excelência”, tornam a rede um novo campo de interação, de modo a problematizar (ou,
até mesmo, contestar), a primazia do processo de participação pautado na recepção da
obra em si. Segundo a ensaísta brasileira Ivana Bentes,

Se falarmos em desterritorialização das imagens, também


acompanhamos processos de reterritorialização. Os lugares em que as
imagens eram vistas se transformaram, se diversificaram e, ao mesmo
tempo, as imagens se tornaram marcadores de territórios e do
ciberespaço (BENTES, 2010, p. 191).

Diante dessas situações, questionamentos acerca do que de fato corresponde à uma


experiência com a obra, são exaltados. O crítico de arte brasileiro Ronaldo Brito (2005,
p. 145), defende que a arte só pode ser conhecida ao ser experienciada. Uma vez que
os métodos utilizados para contatar o universo da arte são imprecisos, delimitar o que
seria essa experiência tornou-se algo complexo. A título de exemplo, as reflexões
contidas nesta dissertação de mestrado, não partiram de uma experiência “direta”199.
Não se trata de dois tipos diferentes de público, uma vez que o espectador que visita
trabalhos de arte em um museu é também aquele que se depara com uma enxurrada
de registros das obras nas redes sociais. Trata-se, portanto, de dois tipos de
envolvimento. A rede é para muitos, a maneira mais frequente de contato com a arte, o
que pode indicar certa emergência da legitimação dos novos métodos de contato
originados após o advento da internet e da popularização da fotografia. A exibição
intitulada Queermuseu - cartografias da diferença na arte da brasileira e a performance
do bailarino brasileiro Wagner Schwartz, intitulada La Bête200 - realizada no Museu de
Arte Moderna de São Paulo (MAM) – que permanecem impulsionando discussões
acerca do limite da arte nas redes sociais, são convenientes para elucidar essas
questões. Muitos usuários de mídias sociais, ávidos pela tomada de providências
favoráveis às suas indignações acerca da performance e de algumas obras presentes

199
O contato que estabeleci até então com os Quadros espelhados deriva de fotografias das obras,
provenientes de catálogos de exposições e, principalmente, de fotografias feitas pelo público divulgadas
em mídias sociais. Isso explica o recorte desta pesquisa.
200
Na performance, o bailarino manuseia a reprodução de uma das esculturas da série Bichos, de Lygia
Clark, e permite que o público toque seu corpo.
114

na exibição Queermuseu201, fazem das redes sociais um espaço de exibição para as


obras ao divulgar uma combinação de anexos de vídeos e notícias (geralmente com
imagens persuasivas das produções supostamente responsáveis pela polêmica),
acerca de um ou mais trabalhos de arte junto a, por exemplo, mensagens de apoio ao
fechamento das exibições. Enquanto isso, alguns estudiosos e outros personagens do
campo da arte exprimem críticas severas à manifestação de opinião contrária desse
público. Enquanto de um lado, indivíduos pertencentes à parcela do público contrária às
proposições em questão inauguram novos espaços de exibição para as obras (por meio
de posts que incluem imagens delas). De outro lado, sujeitos ligados ao campo da arte,
que protagonizam críticas à manifestação contrária de opinião alheia, sustentam, ainda
que involuntariamente, a ideia de que o ponto de vista do público em geral possui valor
desigual em relação à concepção de um crítico ou historiador da arte, o que fortalece a
crença, contestada por Ronaldo Brito202, de que existem pessoas “autorizadas a falar
sobre arte”, bem como inserem o museu/galeria em um patamar superior quando, em
suas observações, associam a capacidade crítica ao privilégio do acesso (noções
demasiado benéficas para a constante revigoração do sistema de exclusividade da arte,
investigado e criticado por Rosler). De modos distintos, ambos os “lados” dessa
situação envolvendo a exposição Queermuseu e a ação de Schwartz, subestimam o
potencial da web como espaço expositivo.

Tal como demonstrado, a rede atua no desvelamento do potencial discursivo da


exposição Queermuseu e da performance de Schwartz. Por meio das mídias sociais, as
proposições mostram como a ideia de museu, enquanto lugar da arte, ainda reina (uma
vez que enquanto as imagens das obras são divulgadas na web, a discussão
permanece centrada no fechamento das exibições físicas); elas apontam falhas no
sistema de ensino da arte; escandalizam tabus sociais; desvelam o verdadeiro interesse

201
Entre as obras que causam incômodo estão: Travesti da Lambada e Deusa das Águas, da artista
brasileira Bia Leite; Cenas do Interior II, da artista brasileira Adriana Varejão e Cruzando Jesus Cristo
com Deusa Shiva, do artista brasileiro Fernando Bari.
202
Nas palavras do autor: “O público em geral tem uma idéia inocente, altamente insuficiente, acerca da
experiência da arte. Acredita, entre outras coisas, que exista o connaisseur, o crítico de arte, alguém
autorizado a falar sobre os objetos de arte porque os conhece e os domina. Não existe nada disso, é
óbvio. Ninguém é connaisseur por princípio ou méritos pretéritos: só se conhece arte quando se a está
experimentando” (BRITO, 2005, p. 145). Grifos do autor.
115

de muitas instituições privadas no patrocínio da arte (referimo-nos exclusivamente à


exposição Queermuseu, cujo patrocinador – o banco Santander - optou por fechar,
após manifestações contrárias e ameaças de desligamento de muitos correntistas); e
escandalizam propósitos fabulados (incentivados pelo MBL - Movimento Brasil Livre203 -
e reproduzidos por uma parcela da população) de contraposição à pedofilia e controle
do acesso de crianças a certas imagens e conteúdos (a falácia desses discursos é
evidenciada por meio do amplo percentual de adolescentes e crianças que possuem
acesso a internet, e consequentemente aos posts indignados que promovem ainda
mais a exibição Queermuseu e a performance La Bête). A extensão do processo de
participação do público por meio da rede intensifica o discurso das obras. O equivalente
ocorre com a presença das fotografias dos Quadros espelhados realizadas pelo público
na web. Por meio delas, a integração do espectador na cena proposta funciona como
linguagem e as redes sociais cumprem seu principal papel, o de ser, efetivamente, um
espaço de exibição.

Tal como observam autores como Julia Kleinbeck e Boris Groys, os novos meios de
produção e circulação inauguraram não apenas um novo modo de ver arte, mas um
novo modo de se relacionar com a arte. Com variações, Diana Domingues (2009, p.
35)204, Machiko Kusahara (2009, p. 368)205 e Arlindo Machado defendem a necessidade
de novos tratamentos para a arte e seu “sistema” na era dos recursos tecnológicos.
Machado (2009, p. 182) empregou o pensamento que Benjamin deu à fotografia, à arte
constituída por meio de tecnologias. Permitimo-nos aplicar as considerações de

203
Em sua página no Facebook, o MBL se define como “[...] uma entidade sem fins lucrativos que visa
mobilizar cidadãos em favor de uma sociedade mais livre, justa e próspera”, bem como se diz defender “a
Democracia, a República, a Liberdade de Expressão [...], o Livre Mercado [e] a Redução do Estado [...]”
(MBL, acesso: 06 Mar. 2018).
204
De acordo com a autora, “com a proliferação do uso da rede, entram para a problematização da arte
na internet as variáveis de trocas e fluxus de informações de natureza colaborativa de wikis, ambientes
multiusuários, jogos multiplayers e a validação de produtores anônimos. Noções estratificadas de original,
cópia, reprodutibilidade, aura, artista, público, curador, crítico, jornalista, marchand, galeria, cliente e
colecionador, sob a lógica mmm – museu, mercado, mídia -, devem ser revistas” (DOMINGUES, 2009,
p.35). Grifos da autora.
205
Kusahara menciona que “precisamos de uma nova abordagem para o paradigma da arte na era das
tecnologias de reprodução idêntica e generalizada. Nos setenta anos desde a análise de Walter
Benjamin, as tecnologias de reprodução – tanto digitais como industriais – ainda não encontraram seu
lugar adequado no mercado da arte” (KUSAHARA, 2009, p. 368).
116

Machado à reprodução da arte e às fotografias dos Quadros espelhados feitas pelos


espectadores, disponibilizadas constantemente na rede:

[...] o problema não é saber se ainda podemos considerar “artísticos”


objetos e eventos tais como um holograma, um espetáculo de
telecomunicações, um gráfico de computador ou um software de
composição musical. O que importa é perceber que a própria existência
dessas obras, a sua proliferação, a sua implantação na vida social
colocam em crise os conceitos tradicionais e anteriores sobre o
fenômeno artístico, exigindo formulações mais adequadas à nova
sensibilidade que agora emerge. As novas tecnologias introduzem
diferentes problemas de representação, abalam antigas certezas no
plano epistemológico e exigem a reformulação de conceitos estéticos
(MACHADO, 2009, p. 182).

Ainda que o surgimento da fotografia e sua imersão na vida cotidiana não possibilitaram
reverter muitos aspectos inerentes a certos discursos, os usos e funções da fotografia
permanecem polemizados e como afirma o historiador norte-americano Douglas Crimp:

[...] a fotografia é múltipla demais e útil demais aos outros discursos para
que as tradicionais definições da arte possam vir a contê-la em sua
totalidade. A fotografia sempre ultrapassará as instituições de arte,
sempre participará de práticas não-artísticas, será sempre uma ameaça
à insularidade do discurso de arte (CRIMP, 2005, p. 122).

A declaração de Crimp parece enunciar que os modos de relação do público com a arte
ainda não foram extintos, bem como a interferência do uso da fotografia (e,
consequentemente, das mídias sociais) no sistema de acesso e no processo de
participação do espectador. Afinal, como profere Machado:

Com as formas tradicionais de arte entrando em fase de esgotamento, a


confluência da arte com a tecnologia representa um campo de
possibilidades e de energia criativa que poderá resultar proximamente
numa revolução no conceito e na prática da arte, se houver, é claro,
inteligências e sensibilidades suficientes para extrair frutos dessa nova
situação (MACHADO, 2009, p. 182).
117

III. 3 Dirigindo-se ao princípio: o ressurgimento do autorretrato no processo de


participação dos Quadri specchianti

Desde a realização dos autorretratos pictóricos, na segunda metade da década de


1950, Pistoletto passou a agregar em seus trabalhos uma série de elementos que os
direcionaram a uma inserção gradual do espaço circundante e consequentemente, do
público. A superfície espelhada, como vimos, configura o elemento chave para
efetivação dessa abertura.

Pascal Gielen discorre, entre outras questões, acerca da passagem do autorretrato


para a inserção do espelho nas obras.

O impacto de sua inovação artística vai muito além daquilo que se


espera de um modelo artístico alternativo, porque o indivíduo no
espelho, como Pistoletto o concebe, também gera uma imagem
diferente da humanidade. A concepção liberal do indivíduo é deixada
para trás sem perder a individualidade como tal. Porque o sujeito
olhando para o espelho [...] entende que ele próprio faz parte de um todo
maior, um comum que é constitutivo do indivíduo. O “eu” é muito. O
assunto também está sempre fora de si mesmo. Ou, o outro e os outros
são sempre parte do indivíduo (GIELEN, 2011, p. 107)206.

As considerações do autor fortalecem a concepção de que, nos Quadros espelhados,


todos (e tudo) estão conectados. O rumo que o processo de participação das obras
vem seguindo com a popularização dos aparatos tecnológicos fotográficos e das mídias
sociais contribuem ainda mais para evidenciar essa concepção.

206
Tradução livre, original em inglês: “The impact of his artistic innovation reaches far beyond that of an
alternative artist model, for the individual in the mirror as Pistoletto conceives it, also generates a different
image of humanity. The liberal conception of the individual is left behind without losing individuality as
such. Because the person looking into the mirror […] understands that he himself is part of a larger whole,
a common which is constitutive for the individual. The „I‟ is many. The subject is also always outside
himself. Or, the other and the others are always part of the individual”.
118

Imagem 41: À esquerda. Michelangelo Pistoletto. Prost N.1, 2008. Fotografia serigrafada sobre espelho
de aço inoxidável polido, 250 x 125 cm (96 1/8 x 48 inches).
© Michelangelo Pistoletto; Courtesy of the artist, Luhring Augustine, New York, Galleria Christian Stein,
Milan, and Simon Lee Gallery, London / Hong Kong.

Imagem 42: À direita. Imagem feita por espectador, 2008.


Cortesia: Andrew Russeth.

Tal como ocorre com qualquer trabalho de arte cuja localização permita a realização de
fotografias, os Quadros espelhados de Pistoletto são frequentemente registrados pelo
público por meio de aparatos tecnológicos. Afinal, como afirma Kleinbeck (2017, p.
158), as obras “[...] inevitavelmente forçam o receptor a ser um produtor de imagens
[...]”207. A presença da superfície espelhada como elemento componente das obras
contribui para que as selfies208 representem uma parcela significativa dessas

207
Tradução livre, original em inglês: “[…] Pistoletto‟s Mirror Paintings inevitably force the recipient to be a
producer of images [...]”. Grifo da autora.
208
A palavra selfie foi definida pelo dicionário Oxford como “Uma fotografia que a pessoa tira dela
mesma, normalmente feita com smartphone ou webcam e compartilhada por meio de mídias sociais”
(OXFORD, acesso: 11 Mar. 2018). (Tradução livre, original em inglês: “A photograph that one has taken
119

fotografias. Um fato que vai ao encontro da percepção do artista norte-americano


Jonathan VanDyke (acesso: 27 Fev. 2018), de que os Quadros espelhados são “[...]
uma premonição da cultura do selfie, na qual o espectador confronta sua própria
imagem no plano do quadro”209. O fenômeno e sua recepção indicam ainda a evidência
da cultura do consumo desenfreado de imagens e da autoexibição, anunciado, com
variações, pela Pop Art. Com a selfie, a representação de si pode ser protagonizada no
processo de participação, o que permite tornar visível uma parcela das questões do
sujeito com sua própria imagem, bem como conduzí-lo a refletir, assim como tem feito o
artista, sobre questões relativas às suas próprias condições existenciais. Afinal, como
nos lembra Lewison, as “reflexões do espelho convidam o espectador a examinar-se a
si próprio e ao seu lugar no mundo [...]” (LEWISON, 2011, p. 24)210. De acordo com a
filósofa Margarida Medeiros, o retrato (e consequentemente, o autorretrato) fotográfico
acentua “[...] a vertigem do espelho, não sendo mais do que o reflexo da vertigem da
introspecção e da auto-observação do indivíduo” (2000, p. 55)211. Nessa perspectiva, as
selfies feitas pelos espectadores tecem relações profundas com aspectos priorizados
por Pistoletto na constituição dos autorretratos.

A selfie reporta-se, claramente, à prática do autorretrato, instrumento que conduziu


Pistoletto ao desenvolvimento das obras. Ao imbricar-se no processo de participação, o
registro da imagem do espectador na obra, propiciado pelo processo de abertura
progressiva, inclina-se às problemáticas dos autorretratos iniciais, que partem, entre
outras questões, do intuito de “[...] projetar uma imagem subjetiva no espaço pictórico”
(PISTOLETTO, entrevista a Michel Auping, 2011, p. 64)212 e da relação do artista
consigo mesmo e com sua imagem refletida no espelho. Vejamos a seguinte reflexão
do artista acerca de sua escolha pelo autorretrato:

of oneself, typically one taken with a smartphone or webcam and shared via social media”). O dicionário
Oxford elegeu a palavra como sendo a mais popular do ano de 2013.
209
Tradução livre, original em inglês: “[...] a premonition of selfie culture, where the viewer confronts her
own image in the picture plane”. Grifo nosso.
210
Tradução livre, original em inglês: “Mirror reflections invite the viewer to examine themselves and their
place in the world [...]”.
211
A autora constitui essa sentença no intuito de utilizá-la para apontar uma diferença entre o retrato
pintado e o retrato fotográfico. Contudo, o trecho relaciona-se intimamente com aos propósitos, relatados
por Pistoletto, que circundam a produção dos autorretratos pictóricos.
212
Tradução livre, original em inglês: “[...] projecting a subjective image into the pictorial space”.
120

Eu vim para o espelho em busca da minha identidade. Quem sou eu? O


que eu sou? Como posso estabelecer minha identidade através da arte?
Já que eu vim de uma cultura artística totalmente figurativa, conduzi
minha aparência pessoal como imagem a ser identificada. Para fazer
isso, usei o método do autorretrato, que requer o uso do espelho. A
minha imagem, retratada em tamanho real, permaneceu fixa na pintura,
enquanto o fundo contra o qual ela estava posta tornou-se reflexivo. O
adentrar o espelho se tornou adentrar o trabalho de arte adentrando o
mundo, e portanto meu autorretrato tornou-se um autorretrato do mundo.
Através dele mesmo ou dela mesma o artista descobre outro que é o si
mesmo. A identidade da minha imagem fixa coincide com a identidade
de qualquer outra pessoa que, olhando no espelho, realize o mesmo
processo de estabelecimento identitário que eu realizei (PISTOLETTO,
2016, p. 2)213.

A produção das selfies pelos espectadores correspondem às reflexões do artista, bem


como elucidam a ideia de que o reflexo do espelho projeta “[...] incógnitas e questões
que o homem é levado a repropor sob a forma de imagens” (PISTOLETTO, 1964,
p.1)214. Trata-se de um retorno constante ao princípio. Tanto por parte de Pistoletto, que
volta produzir os Quadros espelhados utilizando a imagem de si, quanto por parte do
público, que se fotografa nas obras. Um retorno que corresponde a uma lei que, de
acordo com a historiadora de arte Cristina Terzoni, demonstra ser quase constante na
arte:

[...] a de que uma vez atingido um extremo, este desencadeia um


movimento de compensação numa direcção oposta. Portanto, um «pico
explosivo» dá à luz um outro igual e contrário de «implosão», uma
corrida «atrás» na busca de recuperação das próprias origens e da
própria história. O caminho não se desenvolve sempre em frente: a certa
altura entra num ritmo circular, em espiral, que é de retorno (TERZONI,
2016).

Para Terzoni (2016), essa lei forneceria “[...] a possibilidade de deslocação do tempo e
de existência de universos paralelos proposta pela física quântica”, uma possibilidade

213
Tradução livre, original em inglês: “I came to the mirror in search of my identity. Who am I? What am I?
How can I establish my identity through art? Since I come from a totally figurative artistic culture, I took my
personal appearance as the image to identify. To do this I utilize the method of the self portrait, which
requires use of the mirror. The image of myself, portrayed life-size, remained fixed in the picture, while the
ground against which it was set became reflective. Into the mirror turned into work of art entered the world,
and so my self-portrait became a self-portrait of the world. Through him or herself the artist discovers the
other than self. The identity of my fixed image tallies with the identity of any other person who, looking in
the mirror, carries out the same process of establishment of an identity as I did”. Grifos nossos.
214
Tradução livre, original em italiano: “[...] incognite e questioni che l‟uomo è spinto a riproporre sui
quadri”.
121

que segundo a autora, “[...] Pistoletto parece ter interiorizado e cruzado com outro tipo
de viagem, a interior [...]”. A produção de selfies pelo público pode servir de suplemento
para a hipótese da historiadora.

Imagem 43: Fotografia feita por espectador. 2018. Obra fotografada: Autoritratto con occhiali gialli, 1972-
1973. Impressão serigráfica sobre espelho de aço inoxidável polido, 100 x 70 cm (39.4 x 27.6 inches).
Esta fotografia, de Cristiana Lazzari, venceu o concurso I Love Arte Fiera 2018, organizado pela Bologna
Fiera. A página do concurso na web cita a justificativa do diretor artístico para escolha da foto: “A imagem
foi escolhida porque interpreta o espírito da obra de Michelangelo Pistoletto, autor e sujeito do
autorretrato sobre o aço espelhado: a obra não vive sem o olhar daqueles que a tornam presente e ativa”
(ARTE FIERA, acesso: 28 Fev. 2018).215.
Cortesia: Cristiana Lazzari.

Margarida Medeiros atenta para outra questão na imagem fotográfica de si, ao propor a
seguinte reflexão: “O retrato fotográfico «pseudo-real», pseudo-especular, mas ainda
sim real e especular, vai permitir ao sujeitos jogar um novo jogo: o da inclusão mágica,

215
Tradução livre, original em italiano: “L‟immagine è stata scelta perché interpreta lo spirito dell‟opera di
Michelangelo Pistoletto, autore e soggetto dell'autoritratto su acciaio specchiante: l‟opera non vive senza
lo sguardo di chi la rende presente è attiva”.
122

de si mesmo, no olhar do Outro” (MEDEIROS, 2000, p. 55). Essa permissividade está


diretamente relacionada às constantes interferências, vivenciadas atualmente, nos
modos de interação com a nossa própria imagem. Uma parcela significativa dessas
mudanças parece dever-se ao acolhimento da fotografia e das redes sociais no
cotidiano, bem como ao uso desses recursos como ferramenta alternativa (elementar,
em alguns casos) para “integração” e “convívio” social.

A fotógrafa Raquel Fonseca aponta o que pode ser considerado um impulso na


popularização do uso dessas ferramentas para a finalidade descrita anteriormente:

Os retratos virtuais das redes alimentam a certeza de uma co-presença;


no compartilhamento imediato tem-se a impressao de viver
verdadeiramente com o outro (FONSECA, 2014, p. 4).

E completa: “[...] ver e ser visto é como existir” (FONSECA, 2014, p. 4)216. Em meio a
esse contexto, era natural que a selfie assumisse um protagonismo suntuoso. O
historiador Francisco Custódio Júnior, explica que “[...] a exposição que a internet
possibilitou através das redes sociais foi um ponto determinante para popularizar as
selfies” (JÚNIOR, 2015, p. 8-9)217. A prática, segundo o autor, se tornou “[...] uma
maneira de expressão interpessoal individual” (JÚNIOR, 2015, p. 8). Podendo ser
também relacionada a “[...] uma necessidade premente e constante de autoafirmação
[...]” (ARAGÃO, 2015). As considerações dos autores indicam que atualmente
vivenciamos outra dimensão dada pelas selfies compartilhadas nas redes sociais pelo
público.

Groys relaciona a exposição de conteúdos na rede e consequentemente das selfies, a


outras questões:

É claro que se pode perguntar por que centenas de milhões de usuários


produzem todos esses textos e imagens, colocam-nos na internet e
permitem que outras pessoas explorem os produtos dos seus trabalhos.
Essa prática parece ser voluntária, parece ser resultado de uma
expressão pessoal espontânea desses milhões de usuários. Mas, na
verdade [...], essa prática não é espontânea, mas compulsiva. Ao longo
de todo o século 20, as pessoas lutaram pelo direito de

216
Grifo nosso.
217
Grifo do autor.
123

autorrepresentação estética, pelo acesso à tal autorrepresentação.


Conhecemos esses slogans: ninguém deve ser excluído, todos devem
ser incluídos etc. Hoje, estamos no final dessa luta. Ou seja: não só
todos têm direito à autorrepresentação estética, mas todos têm a
obrigação da autorrepresentação estética. O auto-design tornou-se uma
obrigação. Exige-se social e economicamente do sujeito contemporâneo
que mostre a si mesmo esteticamente. Todo mundo está hoje sob uma
pressão de se mostrar no espaço público (GROYS, 2010, p. 105)218.

A autorrepresentação, enquanto exigência, submete o sujeito a um processo constante


de reconstituição imagética e reestabelecimento social por meio das mídias sociais. Um
processo que como sabemos, pode ir da obrigatoriedade ao vício. A razão para isso
pode estar concentrada em diversos aspectos, entre eles, na sensação de prazer
propiciada pela ilusão da extensão da vivência concreta para a virtual. Quando essa
extensão é acionada por meio da selfie, ela abrange outras questões, tais como as
demonstradas por Francisco Coelho dos Santos:

[...] na sua produção na qualidade de imagens-mensagens, que


configuram formas singulares de objetivação de subjetividades, as
selfies caracterizam-se por conter a paisagem, o monumento ou a
situação no enquadramento de um instantâneo no interior do qual,
entretanto, é forçoso que seus autores se instalem. Desse modo, seus
realizadores estão frequentemente inseridos em algum cartão-postal e,
além do mais, invariavelmente colocados em primeiro plano, na posição
de um personagem central. Um curioso protagonismo que se evidencia
da mesma forma na distribuição da imagem nas redes sociais, de vez
que, visando a uma destinação – na realidade de uma destinação
incerta -, elas interpelam uma recepção em grande medida
desconhecida na expectativa de uma possível repercussão (SANTOS,
2016, p. 9)219.

Navegando pela web à procura de escritos que abordassem relações entre o fenômeno
selfie e os quadros espelhados, nos deparamos com o relato de experiência de uma
espectadora no Milwaukee Art Museum, no qual, logo de início, deixa claro que quem
escreve não possui o costume de produzir muitas imagens de si. Contudo, aquela visita
ao museu tinha como um dos objetivos a produção de fotografias, propósito que ela
descreve como “expedição selfie”. A experiência permitiu a realização de críticas e
reflexões acerca da produção desenfreada de selfies imbricada na experienciação com

218
Grifos do autor.
219
Grifo do autor.
124

a arte, uma delas vai ao encontro de um aspecto descrito por Santos: a necessidade
forçosa de instalação dos realizadores das selfies em um determinado contexto ou
lugar. Vejamos o que escreve a espectadora: “[...] eu não acredito que eles [os
produtores das selfies] estão de fato interagindo com a peça o tanto quanto estão a
utilizando como suporte” (YOUNG ERIE)220. Nessa perspectiva, as selfies tornar-se-iam
equivalentes à “paisagem, monumento ou situação”, descritas por Santos. Miscigenam-
se, desse modo, o discurso da obra com a “expressão interpessoal individual” (referida
por Francisco C. Júnior), com a “necessidade de autoafirmação” (mencionada por
Soraya R. Aragão) e a “obrigação da autorrepresentação estética” (insinuada por
Groys) provenientes do público gerador das selfies. As fotografias permitem ainda, a
possibilidade de transfigurar um aspecto característico da selfie, descrito por Santos: o
espectador como primeiro plano. Em uma grande parte das autoimagens produzidas
por meio dos Quadros espelhados, as fotografias serigrafadas presentes nos trabalhos
passam a ser o primeiro plano da imagem. De todo modo, o processo cria um jogo
pautado na exibição de si a partir da obra, algo que como demonstrado anteriormente,
corresponde ao discurso e a poética de criação dos trabalhos. A conexão, contudo, tal
como demonstra a espectadora ao concluir seu relato de experiência no Milwaukee Art
Museum, não exime a possibilidade da manifestação de um sentimento de distância em
relação à arte:

Durante minha expedição selfie me encontrei pensando mais em mim do


que na arte. Qual peça seria a melhor para tirar uma foto? Como vou me
parecer? Como posso me posicionar com a arte? E a pergunta final que
tenho que fazer é: Eu realmente estava apreciando a arte? (YOUNG
ERIE)221.

Eu me diverti muito encontrando maneiras interessantes de interagir


com as obras, mas não acho que eu realmente estava focando na arte,
no artista ou no significado. Fiquei entusiasmada quando fiz minhas
pesquisas e descobri que Pistoletto desejava uma interação entre as
obras e o público, mas quando olhava de volta para minha selfie, me

220
Tradução livre, original em inglês: “[...] I don‟t believe that they are actually interacting with the piece as
much as using it as a prop”. Disponível em: <https://younganderie.wordpress.com/114-2/>. Acesso: 25
Fev. 2018.
221
Tradução livre, original em inglês: “While on my own selfie expedition I found myself thinking more
about myself than the art. Which piece would be the best to take a picture with? What will I look like? How
do I position myself with the art? And the final question I have to ask myself is: Was I really appreciating
the art?”. Disponível em: <https://younganderie.wordpress.com/114-2/>. Acesso: 25 Fev. 2018.
125

perguntei se eu realmente estava absorvendo a arte. Eu vejo mais eu


mesma do que arte. Mesmo na foto em si, eu me torno o foco junto a um
pequeno vislumbre da arte (YOUNG ERIE)222.

Apesar de reconhecer que as selfies legitimam o contexto interativo proposto pelos


Quadros espelhados, por meio da emergência da “instalação” do público nas obras, o
relato questiona até onde a potência do protagonismo do produtor da selfie pode
obstaculizar a experiência com a arte. O julgamento é pertinente, tendo em vista o
contexto atual de produção e compartilhamento desenfreado de imagens, que como
critica Martín Prada (2009), “[...] levou a um processo de „amadorização‟ intenso e
imparável das práticas criativas que compõem estatisticamente uma parte significativa
dos conteúdos disponíveis on-line”223. Contudo, podemos considerar que o relato
conserva e retoma um hábito repetitório: o de subestimar experiências que não se
adequam à prezada contemplação, bem como não encorajam a permanência da obra
de arte em um patamar superior. É possível que a impressão da espectadora de estar
se distanciando do trabalho deva-se à recorrente crença de que o artista ou a obra
necessitem ser os protagonistas por excelência. Contudo, nos Quadros espelhados,
focalizar o espectador é frequentemente um propósito evidente. Vide obras como
Donna che indica, I visitatori e Lavori in corso. Na concepção de Pascal Gielen (2014, p.
104), “Uma vez que a intervenção artística é concluída, o „autor‟ fica de lado [...]”, de
modo a ser completado pela “[...] atualidade sempre em mudança na frente do
espelho”224. Ainda segundo o autor: “Pistoletto constrói, por assim dizer, obras de arte
abertas com base na consciência da alteridade” (GIELEN, 2014, p. 104)225.

222
Tradução livre, original em inglês: “I had a lot of fun finding interesting ways to interact with the pieces,
but I don‟t think I was really focusing on the art or the artist or the meaning. I was excited when I did my
research and found that Pistoletto wanted an interaction between the pieces and the audience, but when
looking back at my selfie I wonder if I was really taking the art in? I see more of myself than the art. Even
in the photo itself I become the focus with just a glimpse of the art”. Disponível em:
<https://younganderie.wordpress.com/114-2/>. Acesso: 25 Fev. 2018.
223
Tradução livre, original em inglês: “The fact that anyone can be a producer and distributor of visual and
audiovisual materials of all kinds has led to an unstoppable, intense „amateurization‟ process of the
creative practices that statistically comprise a significant part of the contents available on-line”. Grifo
nosso.
224
Tradução livre, original em ingles: “For once the artistic intervention has been completed, the 'author'
stands aside, to have it filled by others: the ever-changing actuality in front of the mirror.
225
Tradução livre, original em inglês: “Pistoletto construes, as it were, open works of art based on a
consciousness of alterity”.
126

As considerações do autor contribuem para evidenciar a prática da selfie como


decorrência análoga ao estímulo para concepção das obras e seus propósitos
prevalecentes. Afinal, como explica Pistoletto (1989, p. 1), “[...] um quadro espelhado
está pronto para receber as imagens do amanhã”226.

Imagem 44: Fotografia feita por espectador, 2018.


Cortesia: Roberto Francesco.

Os registros fotográficos dos Quadros espelhados provenientes do público evocam uma


questão já discutida por Douglas Crimp227: a ação de apropriar-se de uma apropriação,
mais especificamente, para usar as palavras do autor, “a fotografia enquanto
ferramenta de apropriação”. Crimp aprofunda questões acerca de proposições artísticas

226
Tradução livre, original em italiano: “[...] un quadro specchiante è pronto a ricevere le immagini di
domani”. Grifo nosso.
227
A discursão faz parte do subcapítulo intitulado Apropriando-se da apropriação, do livro Sobre as
Ruínas do Museu, de Douglas Crimp.
127

(como por exemplo, da artista Sherrie Levine) que se apropriam de trabalhos que de
algum modo, já haviam utilizado o recurso da apropriação. O processo discutido por
Crimp vai ao encontro não apenas do processo de produção das obras em questão de
Pistoletto (que como vimos, utilizam reiteradamente, em diversas escalas, o recurso da
apropriação), mas também do processo de participação, uma vez que, como observa
Martín Prada: “A prática radical do apropriacionismo [...] caracteriza grande parte da
estética digital atual [...]” (PRADA, 2010, p. 47-48)228. Apesar de o autor utilizar a
afirmação para analisar a questão da apropriação em outros termos 229, a passagem
não deixa de chamar a atenção para a presença da apropriação no cenário atual de
popularização da fotografia e uso desenfreado das mídias sociais, que como vimos,
entremeia-se no processo de participação do espectador. Essa extensão possibilita, no
caso dos Quadros espelhados, uma peculiar inversão de papéis. Observemos, se
Pistoletto se apodera e se apropria, como já abordamos com base nas considerações
de Maffioletti, da imagem do espectador mediante a inclusão da superfície espelhada
como elemento dos trabalhos, o espectador, por sua vez, se apropria do objeto de
Pistoletto por intermédio dos registros fotográficos. É possível inferir que o projeto
poético de Pistoletto se completa no momento que cada visitante se apropria da
apropriação que a obra fez dele; essa reapropriação e ressignificação por parte do
agora coautor permite de certo modo, completar e materializar as possibilidades
sensíveis do objeto proposto pelo artista. Por consequência, o processo de participação
do espectador e a proposição das obras são simultaneamente englobados em um
constante e ininterrupto jogo de apropriações. Um aspecto em comum precede cada
ação apropriativa. Anteriormente, explicamos sobre como as fotografias sobrepostas às
obras são inseridas de modo preceder a presença do público. O semelhante ocorre
com as selfies produzidas a partir das obras. Afinal, uma vez que as selfies são “[...]

228
Tradução livre, original em inglês: “The the radical practice of appropriationism [...] characterises much
of current digital aesthetics [...]”.
229
O autor se refere ao que denomina “remixagem digital”. Em sua concepção, “‟Remixagem‟ digital é um
tipo de fusão, integração, sedimentação, um modo de navegar ou explorar inquisitivamente um mar de
imagens. A criação é assim identificada com diferentes formas criativas de absorção, assimilação, por
meio de ações intermináveis baseadas no reprocessamento de material visual preexistente [...]” (PRADA,
2010, p. 48). (Tradução livre, original em inglês: “Digital „remixing‟ is a type of merging, integration,
sedimentation, a way of navigating or inquisitively exploring a sea of images. Creation is thus identified
with different creative ways of absorption, assimilation, through endless actions based on the
reprocessing of pre-existing visual material [...]”).
128

objetos produzidos expressamente para a divulgação em redes sociais [...]” (SANTOS,


2016, p. 10), elas também precedem a presença de um “público”. Margarida Medeiros
descreve e discute esse processo, agregando novas questões.

«Para nos reconhecermos num retrato (ou num espelho), imitamos a


imagem que imaginamos que o outro vê» (Phelan 1993:37). Nesse
sentido, a performatividade da fotografia implicaria, indirectamente, uma
ideia de presença virtual do espectador, em função do qual a imagem é
produzida. Podemos interpretar esta inevitável passagem pelo
espectador como um sintoma de ameaça narcísica, na medida em que
esse jogo ou antecipação alucinatória perante o Outro remete para o
sentimento de perda precisamente desse outro [...] (MEDEIROS, 2000,
p. 115).

O narcisismo referido pela autora, implícito na fotografia de si e consequentemente, nos


autorretratos realizados pelo público por meio dos Quadros espelhados, encontra-se
amontoado no estímulo que resulta na ação de apropriar-se da obra, bem como, de
certa forma, no ato de Pistoletto de representar a si mesmo nos Quadros espelhados
(como faz, por exemplo, em Autoritratto con occhiali gialli) e nos autorretratos que
culminaram na constituição das obras (tais como Autoritratto linoleum e Autoritratto oro).
Outras similaridades referem-se à propagação de aspectos relativos à autoimagem,
bem como a especificidade e periodicidade na constituição delas. Em entrevistas
concedidas a Michael Auping e a Alain Elkann230, Pistoletto declara pensar nos
Quadros espelhados como uma espécie de diário. A escritora Jenna Wortham utiliza o
mesmo termo para referir-se ao fenômeno selfie. Ainda segundo a autora:

Os autorretratos são mundos - e décadas - separados. Mas eles são


incorporados por um eterno prazer em nossa capacidade de documentar
nossas vidas e deixar um traço para os outros descobrirem (WORTHAM,
2013)231.

230
A título de exemplo, vejamos a seguinte declaração: “Os Quadros Espelhados seguem os eventos à
medida que ocorrem, e os mesmos eventos são constantes no espelho, que é um registro contínuo da
existência. De certa forma, os Quadros Espelhados são meu diário” (PISTOLETTO, entrevista a Alain
Elkann, 2014, p. 245). (Tradução livre, original em inglês: “The Mirror Paintings follow the events as they
occur, and the same events are fixed in the mirror, which is an ongoing record of existence. In a way the
Mirror Paintings are my diary”). Grifo do autor.
231
Tradução livre, original em inglês: “The self-portraits are worlds - and decades - apart. But they are
threaded together by a timeless delight in our ability to document our lives and leave behind a trace for
others to discover”.
129

O caráter constante, pessoal e perpétuo imbricado na produção das selfies,


demonstrado pela autora, encontra-se inserido, com variações, na produção das obras
em questão de Pistoletto, tal como evidenciam as concepções de Pascal Gielen e
Jeremy Lewison acerca das obras:

Eles [o autor refere-se aos Quadros espelhados] formam uma espécie


de diário de meio século, às vezes apresentando fatos políticos, fatos
íntimos ou objetos cotidianos. Do mesmo modo, os desenvolvimentos
tecnológicos recebem um lugar no espelho. [...] A História literalmente
invade os Quadros Espelhados. [...] Pequenas e ótimas histórias são
apropriadas de forma singular (GIELEN, 2011, p. 106-107)232.

Um Quadro Espelhado é um meio de orientação no mundo, de encorajar


a experiência consciente de fenômenos experienciados do ponto de
vista da primeira pessoa, invocando percepção, pensamento, memória,
consciência corporal e atividade social. É uma obra de arte no mundo e
o mundo em uma obra de arte (LEWISON, 2011, p. 33)233.

De modo geral, as considerações dos autores denotam que Pistoletto destina seu
“diário visual”, representado pelas imagens fotográficas, à interação com o mundo por
meio do espelho. O público protagoniza uma atitude equivalente ao direcionar, para
usar um termo de Raquel Fonseca, ao “centro da visibilidade global”, por meio da
disponibilização na rede, as fotografias por eles produzidas, de modo a exteriorizar,
problematizar, intensificar e perpetuar a interatividade.

Ao discutir acerca da performatividade da fotografia, Margarida Medeiros demonstra a


complexidade do fenômeno selfie ao atentar para a coexistência da realidade e da
ficção na proposição da autoimagem.

A miscigenação entre realidade e ficção (um dos traços do delírio


psicótico), que é um elemento integrante do Eu na modernidade, está
hoje [...] muito presente em qualquer representação de si. As
modulações da imagem do sujeito parecem significar uma tendência
para tornar confuso o sentimento de identidade, para questionar

232
Tradução livre, original em inglês: “They form a kind of diary of half a century, sometimes featuring
political facts, or intimate facts or everyday objects. Likewise, technological developments are given a
place in the mirror. [...] History literally invades Mirror Paintings. [...] Small and great histories are
appropriated in a singular way”.
233
Tradução livre, original em inglês: “A Mirror Painting is a means to orientation in the world, of
encouraging conscious experience of phenomena as experienced from the first person point of view,
invoking perception, thought, memory, bodily awareness and social activity. It is a work of art in the world
and the world in a work of art”. Grifo nosso.
130

permanentemente: «Quem sou eu? Estarei vivo ou morto?» - sintomas


de uma relação alucinada com a realidade (MEDEIROS, 2000, p.
118)234.

Nessa perspectiva, a realidade, a ficção e a ilusão também se fazem presentes na


constituição dos autorretratos pictóricos de Pistoletto (que culminaram na produção dos
Quadros espelhados); na relação do público com as cenas propostas e nas diversas
questões, temáticas e seriamentos dos trabalhos (Abordamos a coexistência da
realidade, da ficção e da ilusão no processo de funcionamento dos Quadros espelhados
anteriormente, com base em reflexões de Jeremy Lewison, Michel Foucault e Umberto
Eco); nas selfies realizadas pelos espectadores por meio das obras; bem como na
relação do público com as redes sociais, uma vez que “No espaço web, o real e a ficção
são inconstantes, a semelhança se confunde com a identidade, a ficção se mistura com
o real” (NICOLINI, et al, 2016, p. 35)235.

Quando alguém se senta em frente à tela do computador desdobra a


sua realidade em duas: aquela na qual está inserido e a que irá criar
para além da tela. Elas podem depender uma da outra, mas também
podem estar totalmente separadas. É o momento em que o indivíduo se
desdobra, que pode estar em dois locais ao mesmo tempo.
(SCHITTINE, 2004, p. 34-35 apud NICOLINI, et al, 2016, p. 38)236.

Nessa perspectiva, é possível considerar que a existência do espectador nas redes


sociais é demasiadamente semelhante a sua existência nas cenas propostas por
Pistoletto nos Quadros espelhados. Trata-se de um retorno aos aspectos permitidos
pelo espelho: a ilusão de estar do outro lado, anunciada por Lewison, e a possibilidade
de estar visivelmente presente em um lugar onde se está ausente, abordada por
Foucault. Em entrevista a Michael Auping, Pistoletto reconhece esse efeito, bem como
aponta similaridades entre o reflexo do espelho e uma das funções imbricadas no uso
do computador:

O computador é o novo espelho, uma ferramenta para conectar-se com


o todo. Assim como o espelho foi uma ferramente simples para mim nos
anos 1950, o computador é uma ferramenta para a reflexão no mundo
de hoje [...]. Ambas as ferramentas são para ver a nós mesmos, bem

234
Grifos nossos.
235
Grifo dos autores.
236
Grifo nosso.
131

como além de nós mesmos (PISTOLETTO, entrevista a Michael Auping,


2011, p. 63)237.

A historiadora de arte Cristina Terzoni (2016) manifesta que “[...] a imagem reflectida
vive num outro mundo, um mundo paralelo”. A rede social permite avultar esse aspecto.
Nessa perspectiva, realidades paralelas são constituídas continuamente. O
existencialismo atua como singularidade regente nesse processo, que envolve a
poética de criação, a participação do público e a ação de proliferar imagens das obras
por meio da redes sociais. Tudo permanece em órbita da representação de si da
relação do sujeito com o mundo.

No documentário intitulado Janela da alma, o escritor português José Saramago propõe


reflexões que nos permitem questionar o que essas relações podem representar e de
que modo elas interferem no real e conectam-se à nossa existência.

O que eu acho é que nós nunca vivemos tanto na caverna de Platão


como hoje. Hoje é que nós estamos a viver de facto na caverna de
Platão, porque as próprias imagens que nos mostram a realidade [...],
substituem a realidade. Nós estamos [...] no mundo [...] audiovisual. [...]
Estamos efetivamente a repetir a situação das pessoas aprisionadas [...]
na caverna de Platão. Olhando em frente, vendo sombras, e acreditando
que essas sombras são a realidade. Foi preciso passar em todos esses
séculos para que a caverna de Platão aparecesse finalmente num
momento da história da humanidade, que é hoje, e vai ser [...], cada vez
mais (SARAMAGO, 2001).

O mito da caverna de Platão, como parábola do mundo audiovisual, proposto por


Saramago, expõe involuntariamente o caráter ilusório e ficcional entremeado nos
Quadros espelhados e proliferado pelo processo de participação das obras. Tal como
demonstramos, os aspectos relativos à ilusão já surgem nos autorretratos pictóricos de
Pistoletto e nas selfies realizadas pelo público por meio dos trabalhos. Algumas das
questões que essas representações de si norteiam foram equiparadas, por Margarida
Medeiros (2000, p. 118), aos “[...] sintomas de uma relação alucinada com a realidade”.
A produção da autoimagem enquanto sintoma de alucinação corresponde às ilusões
237
Tradução livre, original em inglês: “The computer is the new mirror, a tool for connecting the one with
the whole. As the mirror was a simple tool for me in the nineteen-fifties, the computer is a tool for reflection
in today's world [...]. They are both tools for seeing ourselves, as well as beyond ourselves”. Grifos
nossos.
132

provocadas pelas sombras da caverna. A sensação de ser ou tornar-se o que a imagem


objetiva demonstrar incorpora o produtor da selfie a um contexto semelhante ao da
caverna. A sensação de imergir nas cenas propostas por Pistoletto por meio do espelho
relaciona o espectador a uma situação equivalente a da caverna. A postagem de uma
selfie na web e toda a sensação interativa e dúbia que a ação carrega, submete o
adepto das redes sociais a um contexto semelhante ao da caverna.

A reflexão de Saramago explicita o efeito encoberto dos avanços tecnológicos na


sociedade e, consequentemente, nos modos de interação do sujeito com o mundo e
com a arte. Os Quadros espelhados e o processo de participação das obras podem
funcionar perfeitamente como metáfora desse efeito.

Nos últimos anos, Pistoletto protagonizou performances inusitadas que envolvem a


quebra de superfícies de espelho. A título de exemplo, podemos citar Eleven Less
One238, realizada na Kunsten - Museum of Modern Art de Aalborg, em 2016, em que
Pistoletto quebra dez de onze espelhos dispostos em uma das salas do museu. A
dissuasão dos fragmentos permite revelar as superfícies monocromáticas vívidas
localizadas atrás dos espelhos, igualmente emoldurados. Ao referir-se à obra em um
vídeo, Pistoletto fala da existência mútua da fisicalidade e da virtualidade: “A
fisicalidade da cor e a virtualidade do espelho. Todos juntos [...] fazem o infinito e a
finidade”239. As intervenções nos espelhos são realizadas de modo meticuloso, quase
como se o artista desenhasse na superfície. Inevitável não se lembrar de Burri, cuja
ação de queimar superfícies originou composições como Rosso plástica M1, ou da série
Concetto spaziale, de Lucio Fontana, constituída por meio de perfurações ou cortes
simétricos nas superfícies das telas.

238
O vídeo da performance está disponível em: <https://vimeo.com/183991760>. Acesso: 26 Fev. 2018.
239
Tradução livre, original em inglês: “The physicality of the color and the virtuality of the mirror. All
together [...] made infinity and the finity”. A frase foi dita por Pistoletto em um vídeo no qual o artista fala
sobre a obra Eleven Less One. Disponível em: <https://vimeo.com/183992025>. Acesso: 26 Fev. 2018.
133

Imagem 45: Michelangelo Pistoletto. Eleven Less One, 2016.


Foto: Niels Fabæk.
Cortesia: Kunsten - Museum of Modern Art. Aalborg, Dinamarca.

Imagem 46: Michelangelo Pistoletto. Eleven Less One, 2016.


Foto: Niels Fabæk.
Cortesia: Kunsten - Museum of Modern Art. Aalborg, Dinamarca.
134

A documentação em vídeo da performance Eleven Less One, revela aspectos


interessantes. Dezenas de visitantes, vendo seus reflexos serem golpeados e
fraturados enquanto fotografam e/ou filmam a performance. O som das câmeras
fotográficas intercala-se com o som das pancadas e dos pedaços de espelho
despencando ao chão, que se fragmentam ainda mais. De modo geral, a ação pode
representar uma intervenção que de certo modo, permite estagnar o espaço virtual do
espelho e o caráter ilusório das imagens relativas ao contexto audiovisual,
desguarnecendo a ilusão provocada pelas “sombras da caverna”. Contudo, Pistoletto
nos permite enxergar a intervenção nos espelhos para além de uma ruptura,
favorecendo, involuntariamente, a prosperidade de nosso envolvimento ilusório com as
imagens referidas por Saramago:

Quando eu quebro o espelho, os fragmentos tornam-se elementos


físicos, e os pedaços quebrados são deixados ao chão. No entanto, não
destruo o espelho; em vez disso, eu o multiplico (PISTOLETTO apud
NEW CARLSBERG FOUNDATION, 2016)240.

Considerando os trabalhos como metáfora do processo de interação do público com a


arte e dos processos ilusórios alimentados pelo mundo audiovisual, Eleven Less One
volta a reforçar a ideia de que os Quadros espelhados, bem como a ilusão propiciada
pela nossa relação com as imagens são e permaneceram imunes à ação do tempo.

240
Tradução livre, original em inglês: “When I smash the mirror, the shards become physical elements,
and the broken pieces are left on the floor. However, I do not destroy the mirror; rather, I multiply it”. Grifo
nosso.
135

IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos ao longo dessa dissertação, a década de 1960 assistiu ao extrapolar de


categorizações e tradicionalismos entremeados ao campo da arte e a instituição de
práticas que permitiram reconfigurar o papel do espectador nas obras e exibições
artísticas. Diversas tendências e consequentemente, uma série de procedimentos e
linguagens surgiram e/ou foram retomados no contexto contemporâneo. Tornou-se
possível identificar esses propósitos, bem como a produção de uma afluência de
práticas singulares, nos movimentos Pop Art e Arte Povera. Tal como inferimos, as
tendências apresentam divergências vigorosas (Pistoletto e Gilman declaram, inclusive,
considerar os movimentos opostos), sobretudo nos métodos de produção e nas
referências utilizadas para instituir questões que objetivam problematizar.
Peculiarmente, como demonstrado, Michelangelo Pistoletto e seus Quadros espelhados
(aqui trabalhados em suas tendências e intencionalidades, que nos levaram a perceber
o papel do espectador em sua obra e nas suas possibilidades de circulação para além
dos sistemas da arte), tecem relações substanciais com os movimentos pop e
poverista. Após a análise de diversas entrevistas e outros textos, tornou-se possível
considerar que o caráter multifacetado das composições, bem como, principalmente, as
relações institucionais do artista, facilitam a associação das obras com ambas as
tendências.

Os primeiros Quadros espelhados foram produzidos por meio de pinturas sobrepostas


em superfícies envernizadas, no ano de 1961 (PISTOLETTO, 1966). Tal como
informamos (por meio de textos provenientes do site oficial de Pistoletto, entrevistas do
artista e outros escritos), ao longo da década de 1960 a poética de criação das obras
envolveu uma longa trajetória entre processos, materiais e experiências distintas. Até
que a partir de 1971, as obras passaram a ser produzidas por meio de uma junção
entre o espelho de aço inoxidável e serigrafias de imagens fotográficas (GILMAN, 2008,
p.58). A transição da pintura para a fotografia, como consideramos, vai ao encontro de
aspectos proeminentes da segunda metade do século XX, tais como a instituição de
novos modos de participação para o público, observada por Archer (2012), a “[...]
importância cada vez maior dos meios eletrônicos [...] e a consequente desvalorização
136

das técnicas artesanais [...]”, verificada por Rosler (2001, p. 329). Além disso, o
conjunto de temáticas das obras sofreu um processo de expansão após a adoção da
fotografia. Como observamos, o propósito de envolver o espectador nas cenas
propostas pelas obras e a intenção de estabelecer uma ligação entre os trabalhos no
espaço expositivo tornaram-se cada vez mais explícitos nas declarações, textos e obras
do artista. Contudo, essa relação agrega pontos peculiares, tendo em vista a presença
da simulação e de aspectos ilusórios/ficcionais, elucidados por autores citados nesta
pesquisa. Gilman (2008) destaca a presença da simulação nos Quadros espelhados.
Lewison (2011) elucida o mesmo aspecto ao manifestar que as imagens fotográficas
nas obras frequentemente envolvem a simulação de personagens. Foucault (2009) e
Eco (1989) suscitam aspectos que nos levam a crer que a imagem do espelho pode
propiciar uma relação ficcional e/ou ilusória. Diante dessas questões, tornou-se possível
concluir que o caráter objetivo das obras, aspecto favorecido por Pistoletto (entrevista a
Alain Elkann, 2014, p. 85), é constituído em meio ao uso de conjunturas ilusórias e/ou
ficcionais. Tal como inferimos, esse aspecto permite acrescer o caráter dúbio implícito
no processo de participação das obras: a possibilidade de propiciar simultaneamente a
interação plena por meio do espelho, e a situação excludente, suscitada por Lewison,
que ocorre por meio da consciência de que a presença do espectador no espelho que
compõe a obra é, fisicamente, inconcebível. Ao viabilizar a possibilidade de uma
interação vultosa sem o envolvimento tátil, as obras favorecem a miscigenação das
fronteiras entre o observar e o agir, o que configura, na concepção de Rancière (2012,
p. 23), o significado da emancipação do espectador. Um aspecto, de certo modo,
favorecido pela popularização do uso da fotografia nos espaços expositivos.

Além de favorecer novas possibilidades em relação à participação do espectador, as


obras estabelecem um envolvimento peculiar com as transformações que vem
ocorrendo no comportamento do público nos espaços expositivos. A instituição da
fotografia na vida cotidiana fornece a possibilidade de registrar trabalhos artísticos em
exposições e a web inaugura cada vez mais novos meios de interlocução com esses e
outros espaços. Tal como foi demonstrado por meio das reflexões de autores como
Domingues e Kleinbeck, essas fotografias permitem, de certo modo, democratizar o
acesso e romper com os códigos restritos do sistema das artes (ou talvez simplesmente
137

ignorá-los), afetando a primazia do processo de participação baseado na recepção da


obra física em si. Além disso, elas tecem relações profundas com a poética de criação
dos Quadros espelhados. Permitimo-nos retomar os motivos aqui. A inserção do
espelho como elemento da obra faz com que os autorretratos, selfies, representem uma
parcela considerável dessas fotografias, referindo-se, desse modo, ao instrumento que
conduziu Pistoletto ao desenvolvimento das obras. Outras relações referem-se ao
protagonismo, compartilhado entre as selfies e os Quadros espelhados, de questões
existencialistas e à periodicidade na produção.

Tendo como base essas similaridades, bem como as considerações e reflexões de


Maffioletti, Crimp e Prada, tornou-se possível estender algumas analogias para o
processo de funcionamento das obras: se o espelho permite que Pistoletto se aproprie
da imagem do espectador, a fotografia, por sua vez, permite que o espectador se
aproprie da imagem da obra e consequentemente, do produto do artista,
potencializando-o. Trata-se de uma justaposição de papéis criativos em meio a um jogo
ininterrupto de apropriações consensuais. Diante desses desdobramentos, torna-se
impossível não evocar novamente a seguinte reflexão de Danto:

[...] durante muito tempo se pressupôs que as obras de arte


constituíam um conjunto restrito e um tanto elevado de objetos que
todo o mundo seria capaz de identificar, restando apenas perguntar o
que justifica esse prestígio (DANTO, 2015, p. 18).

Os Quadros espelhados parecem abrir espaço para pensar que a arte contemporânea
aparenta estar, definitivamente, se esquivando de ser um território de especialistas. A
razão está na sua capacidade de provocar interações peculiares, bem como de permitir
a apropriação por parte do público, que deixa de ser mero espectador e assume um
lugar de coautoria na efetivação da proposta como obra. Os Quadros espelhados de
Pistoletto assumem-se completos quando tomados pelo voyeurismo e pelo narcisismo
de cada um que se coloca a ela, ou que a toma para si, em suas redes sociais. Desse
modo, torna-se possível considerar que as obras atingem a plenitude no contexto atual
do ciberespaço, evocando, de outro modo, o presente, referido pelo artista na
nomeação dos primeiros Quadros espelhados. O desejo inicial de Pistoletto “[...] de
exprimir sentimentos particulares e situações da condição humana [...]” (PISTOLETTO,
138

1959, apud LE PRIME OPERE, acesso: 25 Jul. 2016), bem como de projetar “[...] uma
imagem subjetiva no espaço pictórico” (PISTOLETTO, entrevista a Michael Auping,
2011, p. 64), encontram na vaidade que paira no campo das relações sociais em
tempos de uso desenfreado das redes sociais, o elemento que pode complementar
definitivamente a subjetividade como paisagem pictórica. Pistoletto não poderia, em
suas primeiras experiências com autorretratos reflexivos, imaginar que o desenrolar das
tecnologias levaria a cabo o seu projeto poético nessa dimensão.

Além disso, a ação do espectador de se fotografar na obra, como demonstramos por


meio das reflexões de Medeiros e outros autores, denota a existência de outra
similaridade: as selfies, assim como os Quadros espelhados, promovem a existência de
situações que remetem à ficção e/ou à ilusão. Saramago, de certo modo, depreende a
ficcionalidade implícita nas nossas relações com a imagem, e consequentemente com a
arte, ao propor o mito da caverna de Platão como parábola do mundo audiovisual.
Considerando a potência da presença de imagens audiovisuais no processo de
participação das obras em questão de Pistoletto, tornou-se possível considerar que as
analogias do autor suscitam involuntariamente o caráter ilusório e ficcional existente
nos trabalhos. As considerações de Saramago, os Quadros espelhados de Pistoletto,
bem como o processo de participação das obras (que inclui a produção e a
disseminação de selfies) corroboram para observação do fato de que nós estamos cada
vez mais criando e nos relacionando com lugares, imagens e cenas que são, como
percebe Saramago (2001), ao mesmo tempo, imagens “que nos mostram a realidade” e
que “substituem a realidade”.

Por meio de uma abordagem que inicia com o propósito de situar o artista no campo da
arte, passa pela poética de criação, pelos elementos constituintes das obras, pela
capacidade de suscitar diferentes modos e tipos de relação, e finaliza no contexto das
novas tecnologias; buscamos explicitar, por meio dos Quadros espelhados de
Pistoletto, a complexidade de nossas relações com a nossa própria imagem e com a
arte no contexto de popularização da fotografia e das mídias sociais. A razão está no
fato de considerarmos as obras uma metáfora da interação do público com a arte, uma
interação que assim como nos Quadros espelhados, pode envolver: a evidência das
139

mudanças nos modos de acesso com a arte, a constância e a infinidade na produção


de imagens e na constituição de relações, a alternância entre realidade/ficção/ilusão, a
captura e a interferência do autorretrato na constituição de sentido e de
questionamentos, bem como a prenunciação de interferências do uso da tecnologia
como constituição e autoafirmação do eu.

Tendo em vista a complexidade da inserção das novas tecnologias e das mídias sociais
no processo de participação do espectador, compreendemos que as reflexões aqui
iniciadas necessitam ser desdobradas em pesquisas futuras. Desse modo,
pretendemos estender estudos exclusivamente para esse campo, abordando o assunto
de modo mais cuidadoso e substancial. As redes sociais, como espaço de
subjetividades compartilhadas, parecem estabelecer novos modos de apreensão e
circulação do objeto artístico. Esse é o horizonte de reflexões que agora assolam essa
pesquisa.
140

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