Livro Estudos Linguisticos Comunicacoes

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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) –

Biblioteca do ILC/ UFPA-Belém-PA

________________________________________________________________

Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários (4.: 2013: Belém, PA)

[Anais do] IV Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários


[recurso eletrônico] / Organização: Germana Sales, [et al.]. ---- Belém: Programa de
Pós-Graduação em Letras da UFPA, 2013.
727p. : il.

Modo de acesso: <http://www.ufpa.br/ciella/>


Congresso realizado na Cidade Universitária Professor José da Silveira Netto da
Universidade Federal do Pará, no período de 24 a 27 de abril de 2013.
ISBN: 978-85-67747-01-9
1. Lingüística – Discursos, ensaios e conferências. 2. Literatura – Discursos, ensaios
e conferências. I. Sales, Germana, org. II. Título.

CDD -22. ed. 410


___________________________________________________________________
COMISSÃO ORGANIZADORA
Dra. Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira
Presidente da comissão organizadora
Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras

Dra. Germana Maria Araújo Sales


Docente do Programa de Pós-Graduação em LetrasVice-Coordenadora doPrograma de Pós-Graduação
em Letras

Ma. Cinthia de Lima Neves


Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos)

Ma.Alinnie Oliveira Andrade Santos (UFPA)


Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras

Msc. Edvaldo Santos Pereira (UFPA)

Ma. Eliane Costa (UFPA)


Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos)

Ma.Izenete Nobre (UFPA/UNICAMP)

Jaqueline de Andrade Reis (UFPA)

Juliana Yeska (UFPA)


Discente da Faculdade de Letras

Márcia Pinheiro (UFPA)


Discente da Faculdade de Letras

Ma. Marília Freitas (UFPA)


Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos)

Sara Ferreira (UFPA)


Discente da Faculdade de Letras

Ma. Silvia Benchimol (UFPA/Campus de Bragança)

Ma. Simone Negrão


Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos)

Thais Fiel (UFPA)


Discente da Faculdade de Letras

Thiago Gonçalves (UFPA/UERJ)

Veridiana Valente Pinheiro (UFPA)


Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Literários)

Wanessa Regina Paiva da Silva (UFPA/UERJ)

COMISSÃO CIENTÍFICA

Prof. Dr. Abdelhak Razky (UFPA)


Prof. Dr. Alvaro Santos Simões Junior (UNESP)
Profa. Dra. Ana Cristina Marinho (UFPB)
Profa. Dra. Andréia Guerini (UFSC)
Profa. Dra. Antônia Alves Pereira (UFPA/Altamira)
Profa. Dra. Aurea Suely Zavam (UFC)
Prof. Dr. Benjamin Abdala Júnior (USP)
Profa. Dra. Carmem Lúcia Figueiredo (UERJ)
Prof. Dr. Daniel Serravalle de Sá (UFPA/Marabá)
Prof. Dr. Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti (UFBA)
Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho (UFRJ)
Profa. Dra. Fernanda Maria Abreu Coutinho (UFC)
Profa. Dra. Franceli Aparecida da Silva Mello (UFMT)
Profa. Dra. Gláucia Vieira Cândido (UFG)
Prof. Dr. Hélio Seixas Guimarães (USP)
Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN)
Prof. Dr. José Carlos Chaves da Cunha (UFPA)
Prof. Dr. José Horta Nunes (UNICAMP)
Prof. Dr. José Sueli Magalhães (UFU)
Profa. Dra. Josebel Akel Fares (UEPA)
Profa. Dra. Juliana Maia de Queiroz (UNESP)
Prof. Dr. Lucrécio Araújo de Sá Júnior (UFRN)
Prof. Dr. Marco Antonio Martins (UFRN)
Profa. Dra. Maria da Glória Corrêa Di Fanti ( PUC-RS)
Profa. Dra. Maria de Fátima do Nascimento (UFPA)
Profa. Dra. Maria Elvira Brito Campos (UFPI)
Profa. Dra. Mariângela Rios de Oliveira (UFF)
Profa. Dra. Marly Amarilha (UFRN)
Profa. Dra. Milena Ribeiro Martins (UFPR)
Profa. Dra. Odalice de Castro Silva ( UFC)
Prof. Dr. Otávio Rios Portela (UEA)
Prof. Dr. Rauer Rodrigues Ribeiro (UFMT)
Prof. Dr. Ricardo Pinto de Souza (UFRJ)
Profa. Dra. Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS)
Profa. Dra. Rosângela Hammes Rodrigues (UFSC)
Profa. Dra. Silvia Lucia Bijongal Braggio (UFG)
Profa. Dra. Simone Cristina Mendonça (UFPA/ Marabá)
Profa. Dra. Socorro Pacífico Barbosa (UFPB)
Profa. Dra. Soélis Teixeira do Prado Mendes (UFPA/ Marabá)
Profa. Dra. Solange Mittmann (UFRGS)
Profa. Dra. Stella Virginia telles de Araújo Pereira Lima (UFPE)
Profa. Dra. Sulemi Fabiano Campos (UFRN)
Profa. Dra.Tânia Regina Oliveira Ramos (UFSC)
Profa. Dra. Teresa Cristina Wachowicz (UFPR)
Profa. Dra. Walkyria Alydia Grahl Passos Magno e Silva (UFPA)
Profa. Dra. Vanderci de Andrade Aguilera (UEL)
Profa. Dra. Regina Celi Mendes Pereira da Silva (UFPB/CNPq
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

Prof. Dr. Carlos Edilson de Almeida Maneschy

Reitor

Prof. Dr. Horacio Schneider


Vice-Reitor

Profa. Dra. Marlene Rodrigues Medeiros Freitas

Pró-Reitoria de Ensino e Graduação

Prof. Dr.Emmanuel ZaguryTourinho

Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação

Prof. Dr. Fernando Arthur de FreitasNeves

Pró-Reitoria de Extensão

Prof. MSc. Edson Ortiz de Matos

Pró-Reitoria de Administração
João Cauby de Almeida Júnior
Pró-Reitoria de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal

Prof. Dr. Erick NeloPedreira

Pró-Reitoria de Planejamento
INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO

Dr. OtacílioAmaralFilhoDiretorGeral

Dra. Fátima Pessoa DiretoraAdjunta

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

Dra. Germana Maria Araújo Sales


Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras

Dra. Marília de N. de Oliveira Ferreira

Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras


Universidade Federal do Pará

Instituto de Letras e Comunicação

Programa de Pós-Graduação em Letras

Cidade Universitária Professor José da Silveira Neto


Rua Augusto Corrêa, 01, Guamá.

CEP 66075-900, Belém-PA

Fone-Fax: (91) 3201-7499


E-mail: [email protected] Site: www.ufpa.br/mletras
APRESENTAÇÃO IV CIELLA

É com imensa satisfação que publicamos os textos dos participantes do Congresso


Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) em sua quarta
edição. A primeira versão do evento ocorreu em 2006, no então Curso de Mestrado em Letras (CML).
O evento consolidou-se, em edição bianual, e hoje, iniciado pelo Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal do Pará, tem como objetivo principal reunir estudiosos das áreas de
Linguística e Literatura e de áreas afins para discutir e partilhar os resultados de suas pesquisas e dos
trabalhos desenvolvidos, no âmbito de seus programas de pós-graduação e faculdades de letras,
envolvendo estudantes de graduação e de pós-graduação. O caráter transversal e interdisciplinar do
CIELLA está circunscrito à apresentação de trabalhos e debates nas áreas de Linguagem, Línguas,
Literaturas, Culturas e Educação sob vários aspectos. Em 2013, o IV Congresso Internacional de
Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (IV CIELLA), ocorreu no período de 23 a 26 de
abril de 2013, sob o tema FRONTEIRAS LINGUÍSTICAS E LITERÁRIAS NA AMÉRICA
LATINA. Nessa edição, o evento coroa a criação recente do nosso Curso de Doutorado e superamos
todas as expectativas, quando a comissão organizadora do evento recebeu um público aproximado de
1200 pessoas, entre estudantes de graduação, de pós-graduação, professores e pesquisadores de
instituições locais, nacionais e internacionais, professores da Educação Básica (Ensino Médio e Ensino
Fundamental) e profissionais de áreas afins.
O Congresso contou com renomados convidados internacionais, considerados referência em
suas especialidades, e convidados nacionais e locais que contribuíram para que o evento fosse bem
sucedido. O sucesso do evento deveu-se, também, à programação científica que reuniu cerca de
oitocentos trabalhos da área de Letras e Linguística, em várias modalidades – Conferências, Mesas
Redondas, Minicursos, Simpósios, Sessões de Comunicação, Pôsteres, e Relatos de experiência.
A presente publicação, que reúne os trabalhos oriundos do IV CIELLA, conta com 268 textos
de docentes e de alunos de graduação e de pós-graduação brasileiros. São 109 textos de Estudos
Linguísticos e 159 textos de Estudos Literários, resultantes de pesquisas em desenvolvimento na área
de L&L.
A aquiescência do Congresso pela comunidade acadêmica levou-nos a organizar um evento de
grande envergadura para as áreas de Letras e de Linguística e, nesta quarta edição consolidamos a
internacionalização do evento, que contou com nomes de grande vulto, como Inocência Matta,
Inocência Mata (Portugal); Rosário Alvarez (Espanha); Rebecca Martinez (Estados Unidos); Enrique
Hamel (México); Christine Sims (Estados Unidos); Pilar Valenzuela (Estados Unidos); Rubem Chababo
(Argentina); Alicia Salomone (Chile) e Host Nitchack (Chile).
Para a concretização do evento, agradecemos o fomento recebido da CAPES e CNPq, além do
apoio irrestrito da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, na figura do Pró-Reitor, Prof. Dr.
Emmanuel Zagury Tourinho; do Instituto de Letras e Comunicação, na pessoa do Diretor Otacílio
Amaral Filho, a quem devemos infindos agradecimentos.
A concretização do evendo deveu-se, certamente, ao apoio financeiro, mas ressaltamos a efetiva
participação da secretaria, formada por alunos de graduação e de pós-graduação, que cuidaram com
esmero para a ocorrência do IV CIELLA. Nosso agradecimento especial aos alunos que conduziram
com eficiência a secretaria: Eliane Costa, Márcia Pinheiro, Alinnie Santos, Cinthia Neves, Thais Fiel,
Sara Vasconcelos, Wanessa Paiva, Veridiana Valente, Edvaldo Pereira e Jaqueline Reis.
Também aos professores do PPGL, alunos e monitores do evento nosso muito obrigada!
O CIELLA foi um momento de congregar forças, mas também se configurou como espaço de
apresentação não só da quantidade de trabalhos na área de Letras & Linguística, mas da qualidade
desses trabalhos, que aqui estão reunidos.
SUMÁRIO

A LINGUAGEM CIENTÍFICA E O RECORTE DA REALIDADE 13


Adan John Gomes da Silva
AÇÕES MEDIADORAS DE ALUNOS NO FÓRUM DE DISCUSSÃO DE UM 21
CURSO SEMIPRESENCIAL DE ESPECIALIZAÇÃO
Ana Lygia Almeida Cunha
A CONTRIBUIÇÃO DAS ANÁFORAS ENCAPSULADORAS NA CONSTRUÇÃO 33
DE SENTIDO E PROGRESSÃO ARGUMENTATIVA NO GÊNERO ARTIGO DE
OPINIÃO
Ana Maria da Silva Nunes
O DISCURSO L (OU: COR-DE-ROSA PARA AS MENINAS) 43
Ana Paula El-Jaick
A ANÁLISE DOS ELEMENTOS COMPOSICIONAIS DO TEXTO: A RELAÇÃO 51
ENTRE LINGUÍSTICA DESCRITIVA E ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS
André Anderson Cavalcante Felipe
Prof. Dr. João Gomes da Silva Neto
MÍDIA E POLÍTICA: PRÁTICAS DISCURSIVAS EM NOTÍCIAS ONLINE 60
André William Alves de Assis
UMA ANÁLISE DO FATOR INTIMIDADE COMO DETERMINANTE PARA O 70
USO OU NÃO DO ARTIGO DEFINIDO DIANTE DE ANTROPÔNIMO
Andréia Almeida Mendes
CONCORDÂNCIA DE PESSOA E NÚMERO NOS VERBOS IKPENG 89
Antônia Alves Pereira
EM BUSCA DAS CLASSES DE PALAVRAS DA LÍNGUA WAYORO 99
Antônia Fernanda de S. Nogueira
INTERAÇÃO ENTRE PALATALIZAÇÃO E SUBSTITUIÇÕES PARA AS 110
FRICATIVAS INTERDENTAIS DO INGLÊS
Antonio Sergio da Costa Pinto
Profa. Dra. Marilúcia Barros de Oliveira
TRAÇOS FORMAIS NA GRAMÁTICA MENTAL DE INDIVÍDUOS COM E SEM 119
DÉFICIT DE LINGUAGEM
Arabie Bezri Hermont
O FIM DO MUNDO DESCRITO NA TEORIA DOS ATOS DE FALA 129
Aucélia Vieira Ramos
Juscelino Francisco do Nascimento
LÍNGUAS CRUZADAS: ASPECTOS HISTÓRICOS E SOCIOLINGUÍSTICOS DA
LÍNGUA CHIQUITANO 139
Áurea Cavalcante Santana
DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E O ESPAÇO ENUNCIATIVO DO RECONTO 149
DE HISTÓRIAS
Camila Amaral Silva
Prof. Dr. Milton do Nascimento (Orientador)
Prof. Dr. Marco Antônio Oliveira (Coorientador)
xxxxxxxx 158
Carlene Nunes
ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: QUESTÕES DE GRAMÁTICA NO LIVRO 173
DIDÁTICO
Célia Maria Medeiros BARBOSA DA SILVA
OCORRÊNCIAS E RECORRÊNCIAS DE ALTERNÂNCIA DE CÓDIGO ENTRE 183
PARKATÊJÊ E PORTUGUÊS
Cinthia Neves
Marília Ferreira
SENTIDO, ARGUMENTAÇÃO E INTERDISCURSIVIDADE EM TEXTOS 191
SINCRÉTICOS SOBRE FUTEBOL
Clebson Luiz de Brito
METÁFORA CONCEPTUAL: CONDIÇÕES EM QUE REALMENTE 200
ACONTECEM AS COISAS (METÁFORAS) DO QUE ÀS COISAS MESMAS
Cristiane Fernandes Moreira
Orientadora: Professora Doutora Teresa Leal Gonçalves Pereira
MARCAÇÃO DE PESSOA NA LÍNGUA DOS GAVIÃO DE RONDÔNIA 216
Denny Moore
LIÇÕESDE PORTUGUÊS E A FORMAÇÃO DE FUTUROS PROFESSORES: A 224
PROPOSTA DE SOUZA DA SILVEIRA PARA O ENSINO DA LÍNGUA
MATERNA NA PERSPECTIVA DA HISTORIOGRAFIA LINGUÍSTICA
DieliVesaro Palma
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS: UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO NO 234
ENSINO E APRENDIZAGEM DA LÍNGUA MATERNA
Dione Márcia Alves de Moraes
Prof. Dr. Thomas Massao Fairchild (Orientador)
E QUANDO ME DEI CONTA, JÁ ESTAVA PROFESSORA INGLÊS 244
Edna Sousa Cruz
A SENTENÇA JUDICIAL SOBRE A MENORIDADE NA PERSPECTIVA DA 251
ANÁLISE DO DISCURSO CRÍTICA: UM EXEMPLO MANAUARA
Eduardo Cardoso Martins
ESTUDOS VARIACIONISTAS NO SUDESTE DO PARÁ 275
E.P. M
SIGNIFICADO E EMOÇÃO NA INTERPRETAÇÃO MUSICAL: UM PROCESSO 286
FENOMENOLÓGICO
Emanuela Francisca Ferreira Silva
Prof. Espec. Lúcio Otávio de Carvalho Gomes
Prof. Dr. Hugo Mari (Orientador)
OPERAÇÕES LINGÜÍSTICAS DURANTE A REESCRITA DE UM TEXTO 296
INFANTIL
Emerson Gonzaga dos Santos
AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM EM LÍNGUA INGLESA: DESAFIOS E 306
PROPOSTAS PARA ENSINO FUNDAMENTAL I NO CONTEXTO DA ESCOLA
PÚBLICA
Emília Gomes Barbosa
Orientadora: Myriam Crestian Cunha
A CRISE DA LEITURA E SUA REPERCUSSÃO NA FORMAÇÃO DE LEITORES- 318
MIRINS – ALGUNS PROBLEMAS ENFRENTADOS POR ESTUDANTES DE
PEDAGOGIA
Ernâni Getirana de Lima
NARRATIVAS EM TAPIRAPÉ E A ESCRITA NA ESCOLA 327
Eunice Dias de Paula
PROCESSOS DE REGULAÇÃO NA APRENDIZAGEM DO PORTUGUÊS 339
LÍNGUA ESTRANGEIRA
Fernanda Souza e Silva
Orientadora: Profª Drª Myriam Crestian Chaves da Cunha
ANÁLISE DISCURSIVA DAS PROPAGANDAS ELEITORAIS DO PLEBISCITO 349
PARA A DIVISÃO DO PARÁ: PRIMEIROS EXERCÍCIOS
Flávia Marinho Lisbôa
Hildete Pereira dos Anjos (Orientadora)
A AUTORIA DIDÁTICA NA FORMAÇÃO DOCENTE E NO EXERCÍCIO DO 360
MAGISTÉRIO
Francineide Paiva Moraes
Laura Viviani dos Santos Bormann
Thomas Massao Fairchild
A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA 371
Francivaldo Mata Quaresma
O GÊNERO TEXTUAL ARTIGO DE OPINIÃO E O ENSINO DE LÍNGUA 382
PORTUGUESA EM UMA TURMA DO 3º ANO DO ENSINO MÉDIO
Gabriel Domício Medeiros Moura Freitas
ENTRE DEUS E O DIABO: A VITALIDADE DAS “EXPRESSÕES POPULARES” 392
QUE ENVOLVEM O MÍTICO, O RELIGIOSO E O PROFANO EM BELÉM - PA.
Giselda da Rocha Fagundes
O DISCURSO EM FOCO: A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NO TEXTO 401
SEGUNDO A SEMIÓTICA DISCURSIVA
Gisele Braga Souza
INDÍCIOS DE AUTORIA POSSIBILITADOS PELA ESTABILIDADE INSTÁVEL 412
DOS GÊNEROS DISCURSIVOS
Hadson José Gomes de Sousa
Profa. Dra. Nilsa Brito Ribeiro
FORMAÇÃO DOCENTE EM SERVIÇO E PRÉ-SERVIÇO E O ENSINO DE 428
LÍNGUA PORTUGUESA NA EJA
Helenice Joviano Roque de Faria
APRENDENTESPLE: PLATAFORMA VIRTUAL NO ENSINOAPRENDIZAGEM 439
DA PRODUÇÃO ESCRITA EM PORTUGUÊS LÍNGUA ESTRANGEIRA – PLE.
H. M. P. S
W.C.B.S
JCCC
PRODUÇÃO ACADÊMICA NA UNIVERSIDADE: UM ESTUDO COMPARATIVO 450
DO GÊNERO RESUMO
Ioneli da Silva Bessa Ferreira
A DESCARACTERIZAÇÃO DO GÊNERO DO DISCURSO EM MATERIAIS 460
DIDÁTICOS
Irando Alves Martins Neto
Profª. Dr. Renata Junqueira de Souza
LINGUAGEM E TRABALHO EM CONTEXTOS SOCIAIS: O (IN)VISÍVEL NO 469
DISCURSO SOBRE A ATIVIDADE
Itatiane Chiaradia
Ernani Cesar de Freitas
O DESEJO DE NAVEGAR E AS ÂNCORAS NA TRADIÇÃO: MEMÓRIA E 479
IDENTIDADE EM DANIEL MUNDURUKU
Ivanilde de Lima Barros
Profa. Dra. Carla Monteiro de Souza
“FRONTEIRAS” NO ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA PORTUGUESA 490
Jacqueline Jorente
PRÁTICAS DE (MULTI)LETRAMENTOS DIGITAIS NA FORMAÇÃO 499
DOCENTE DO PROGRAMA DE FORMAÇÃO DO PROFESSOR DA EDUCAÇÃO
BÁSICA
Jailma Bulhões
GÊNEROS TEXTUAIS E A CONSTRUÇÃO DE UMA BASE DE ORIENTAÇÃO 509
Jalma Geise Maria Brabo do Prado
CLASSIFICAÇÃO NOMINAL NAS LÍNGUAS DO TRONCO TUPI 520
Jéssica Clementino da Costa
Profa. Dra. Luciana R. Storto
(DES)ENVOLVENDO A TRAMA COM O ESCRITOR: EXPERIÊNCIAS COM A 531
LITERATURA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Joana Rosa de Almeida
O IMPACTO DO QECRL NO ENSINO/APRENDIZAGEM DA PRODUÇÃO 540
ESCRITA EM FLE
HMPS
JCCC
O TRABALHO DE REVISÃO DE TEXTOS ACADÊMICOS: IMPLICAÇÕES NO 550
PROCESSO DE AUTORIA
Fátima Cristina da Costa Pessoa
José dos Anjos Oliveira
DISCURSO E PODER DO MORADOR DE RUA: ESTUDO DA 558
HETEROGENEIDADE DISCURSIVA E DA POLIFONIA NOS TEXTOS DO
JORNAL “AURORA DA RUA”
José Gomes Filho
Profa. Dra. Iraneide Santos Costa
ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: SABERES E FAZERES NA FORMAÇÃO 567
DOCENTE
Josilete Alves Moreira de AZEVEDO
A INTERFERÊNCIA DA LÍNGUA DE PARTIDA NA APRENDIZAGEM DA 573
ESCRITA EM PORTUGUÊS COMO L2 POR SURDOS E HISPÂNICOS
Ernando Pinheiro Chaves
Juliana Paiva Santiago
REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS DA FIGURA FEMININA (RIO GRANDE DO 587
NORTE – 1926/1929)
Karla Geane de Oliveira
O ENSINO DE LE NO BRASIL: UM OLHAR SOBRE AS PROPOSTAS DOS 598
DOCUMENTOS OFICIAIS PARA O TRABALHO COM A ESCRITA PELO VIÉS
DISCURSIVO
Karla Janaína Alexandre da Silva
Orientadora:Fabiele Stockmans De Nardi
A IMPLEMENTAÇÃO DO INOVADOR VOCÊ EM CARTAS PESSOAIS NORTE- 607
RIOGRANDENSES DO SÉCULO XX
Kássia Kamilla de Moura
Prof. Dr. Marco Antonio Martins
O SUBSISTEMA DE ATITUDE: UMA ANÁLISE DO POSICIONAMENTO 623
MORAL E ÉTICO NA HISTÓRIA EM QUADRINHOS DA TURMA DA MÔNICA
“UM SUPERMOTOCICLISTA”
Ladyana dos Santos Lobato
Rosângela do Socorro Nogueira
O MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O 635
DISCURSO JORNALÍSTICO: UM OLHAR A PARTIR DA OCUPAÇÃO DA
FAZENDA CABACEIRAS, EM MARABÁ/PA
Laécio Rocha de Sena
Nilsa Brito Ribeiro
„VARIAÇÃO DOS PRONOMES “TU”/“VOCÊ” NAS CAPITAIS DA REGIÃO 658
NORTE
Lairson da Costa
Marilúcia Oliveira
QUESTIONAMENTOS DOCENTES SOBRE A APRENDIZAGEM NA 670
ALFABETIZAÇÃO
Lorena Bischoff Trescastro
Cilene Maria Valente da Silva
ABORDAGENS TEÓRICAS ACERCA DA MOTIVAÇÃO NA APRENDIZAGEM 677
DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS
Marcus Alexandre Carvalho de Souza
Walkyria Magno e Silva
PRODUÇÃO DE TEXTOS E AVALIAÇÃO FORMATIVA: A PROPOSTA DA 685
SEQUÊNCIA DIDÁTICA EM ANÁLISE
Myriam Crestian Cunha
INTERTEXTUALIDADE COMO MESCLA: POR UMA NOVA POSSIBILIDADE 695
EPISTEMOLÓGICA
Sandra Cavalcante
Josiane Militão
POSSE NOMINAL EM APURINÃ (ARUÁK) 705
Sidney da Silva Facundes
Marília Fernanda Pereira de Freitas Corrêa
PRÁTICAS DISCURSIVAS QUE REVELAM RELAÇÕES DE TRABALHO E DE 716
GÊNERO ENTRE OS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS
Teresinha Rosa de Mescouto
Fátima Cristina da Costa Pesssoa
16
A LINGUAGEM CIENTÍFICA E O RECORTE DA REALIDADE

Adan John Gomes da Silva1

Resumo: O presente trabalho pretende explorar as contribuições que o filósofo da ciência Thomas
Kuhn deu no que diz respeito ao nosso entendimento da relação entre a linguagem, o pensamento e a
realidade. Nesse sentido, mostra como as investigações desse filósofo acerca da história da ciência
corroboram a ideia há muito conhecida por alguns linguistas de que a linguagem desempenha papel
fundamental na formação da visão de mundo dos falantes. Assim, na esteira do pensamento de
linguistas como Lee Whorf ou Mario Perini, este filósofo nos leva a crer que nosso conhecimento da
linguagem traz consigo um conhecimento acerca do próprio mundo, de tal forma que linguagens
diferentes descreveriam mundos diferentes, e que o acesso às ideias oferecidas por teorias científicas
passadas exigiria o aprendizado da linguagem na qual elas foram originalmente expostas, concluindo,
portanto, que qualquer análise que não leve em conta o caráter constitutivo da linguagem corre sério
risco de fazer uma imagem equivocada e parcial da natureza da ciência.

Palavras-chave: Filosofia; Ciência; Linguagem; Realidade.

Abstract: This work aims to explore the contributions that the philosopher of science Thomas Kuhn
gave with regard to our understandig of the relation between language, thought and reality. In this
sense, shows how the investigations of this philosopher on the science history support the idea long
known by some linguists that the language plays a key role in shaping the worldview of speakers. Thus,
in the wake of thougth of linguists as Lee Whorf or Mario Perini, this philosopher leads us to believe
that our knowledge of language brings a knowledge of the world itself, so that different languages
describe different worlds, and that access to ideas offered by past scientific theories require learning the
language in which they were originally exposed, concluding therefore that any analysis that does not
take into account the constitutive character of language venture of making a wrong and partial image of
the nature of science.

Keywords: Philosophy; Science; Language; Reality.

A relação entre a linguagem, o pensamento e a realidade tem sido há muito investigada tanto
por linguistas quanto por filósofos. E isso não é de surpreender, se lembrarmos que o empenho em
refletir sobre cada uma dessas coisas pode ser usado como critério para dividir a própria história da
filosofia. Com efeito, a investigação acerca dos constituintes últimos da realidade que ocupou os
metafísicos clássicos deu lugar, na modernidade, à investigação acerca da nossa própria possibilidade de
conhecer essa realidade. Numa segunda reviravolta, os questionamentos acerca da nossa capacidade de
conhecer tornaram-se questionamentos acerca da significatividade da linguagem, agregando assim a
investigação da realidade e do pensamento sob a mesma esfera de investigação linguística (OLIVEIRA,
2007).
No que diz respeito a essa relação, tem sido relativamente consensual a ideia segundo a qual o
pensamento, enquanto uma forma de apreender a realidade, seja algo anterior à linguagem, ideia

1 Mestrando em Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Email: [email protected]
17
consagrada sob o título de Visão Comunicativa da Linguagem (SILVEIRA, PERGHER, OLIVEIRA, 2005,
p. 73). Dentro dessa visão, a linguagem seria considerada um veículo para a transmissão do pensamento
da mente dos falantes à mente de seus interlocutores, transmissão que só seria considerada perfeita se
ao fim do processo comunicativo o ouvinte tivesse em mente o mesmo pensamento que seu
interlocutor no momento da fala. Essa visão ganharia força em face daquelas situações em que não
temos as palavras para expressar o que pensamos, ou ainda quando nosso interlocutor entende algo
diverso do que tínhamos em mente quando falamos. Se assumirmos que isso representa uma limitação
imposta pela linguagem à comunicação plena do pensamento, assumimos ao mesmo tempo que o
pensamento é uma faculdade maior e anterior a qual a linguagem é incapaz de refletir perfeitamente
(SILVEIRA, PERGHER, OLIVEIRA, 2005, p. 74).
Uma das alternativas a essa visão, exposta por esses mesmos autores, é atribuída ao linguista
americano Lee Whorf2, para quem

[...] tudo o que alguém é capaz de pensar, é determinado pela estrutura da linguagem
existente – o pensável seria somente uma função derivada do uso da linguagem usada
em uma cultura. Assim, a gramática e o vocabulário da língua que se fala estabelece
formalmente todas as possibilidades do que pode vir a ser pensado pelo falante.
(SILVEIRA, PERGHER, OLIVEIRA, 2005, p. 76)

Nesse sentido, a linguagem abandonaria sua função meramente comunicativa para ganhar uma
dimensão constitutiva. Toda nossa percepção passaria pelas caixas conceituais oferecidas pela
linguagem, determinando inclusive como perceberíamos o tempo e o espaço.3
Mesmo assumindo que o determinismo linguístico tal qual exposto por Whorf seja por demais
extremo, Mario Perini, linguista brasileiro, credita a essa ideia o mérito de ter atentado para o fato de
que a linguagem desempenha um papel no que diz respeito a visão de mundo dos seus falantes
(PERINI, 2004, p. 52). Com efeito, tanto em seu texto Quando um verbo é um adjetivo quanto em As três
almas do poeta, esse autor combate a ideia de que uma língua seja um simples sistema de nomenclatura,
descartando ao mesmo tempo que línguas diferentes difeririam somente quanto ao nome que dão às
mesmas coisas.
Em apoio a sua tese, Perini nos dá uma série de exemplos que mostram que os mesmos objetos
podem ser categorizados de forma diferente em línguas diferentes, indicando com isso que cada língua
tem sua própria forma de dividir e entender o mundo. Entre esses exemplos está a diferença entre a
ideia de perda expressa pelos italianos e expressa pelos portugueses (PERINI, 2000, p. 97-98. 2004).
Para estes últimos, a palavra perder dá conta de qualquer sentido da ideia de perda, enquanto que para os

2 A ideia creditada a Whorf pode ser dividida em duas variantes. O determinismo linguístico forte e fraco, equivalendo
respectivamente ao grau de influência que a linguagem teria sobre o pensamento.
3 Com efeito, ao analisar a língua Hopi, Whorf chegou à conclusão de que seus falantes eram condicionados a perceber o

tempo de forma diferente em função da ausência de palavras e estruturas gramaticais que permitissem expressar sua
passagem.
18
italianos são necessárias duas palavras para dar conta do mesmo significado, smarrire, que expressa a
ideia de algo que você perde e pode reencontrar, e perdere expressando a ideia de uma perda definitiva.
Em outro exemplo (PERINI, 2000, p. 98), o conjunto das coisas que os falantes da língua
portuguesa referem pela única palavra rio, em francês só podem ser referidos por duas palavras; fleuve
para se referir àqueles rios que desaguam no mar, e rivière para se referir àqueles que desaguam em outro
rio. Nesse sentido, enquanto para os falantes do português os rios São Francisco e Tietê pertencem à
mesma classe de objetos, para os falantes do francês eles são suficientemente diferentes para que a
classe de coisas da qual fazem parte ganhem nomes próprios, fleuve para o primeiro e rivière para o
segundo.
Perini apressa-se em explicar que esses exemplos não dizem respeito a uma diferença no que
pode ser visto, mas na classificação que se dá ao que é visto. A fim de deixar isso claro, esse autor nos
mostra em outro de seus exemplos como as línguas diferem quanto à divisão que fazem das cores.
Segundo ele (PERINI, 2000, 99-100), o latim usa uma mesma palavra para designar o que os falantes
do português designam com as palavras verde e azul. Para aqueles, ambas as cores são na verdade uma
só, chamada de caeruleus. Da mesma forma, enquanto para os falantes do português o azul é uma cor
suficientemente distinta e básica para receber um nome, para os russos ela se divide em duas: goluboy e
sinniy, que correspondem respectivamente ao azul-claro-céu e ao azul-escuro. Nesse sentido, seria tão
absurdo supor que o falante do latim não consegue ver diferença entre o verde e o azul quanto dizer
que nós, falantes do português, não conseguimos diferenciar essas duas tonalidades de azul. Trata-se
aqui não do que pode ou não ser visto, mas de como o que pode ser visto é classificado com fins de
nomeação.4
Essas diferenças não se limitam a diferenças entre pares de línguas. Em outro exemplo
apresentado pelo autor (PERINI, 2000, p. 98), as palavras portuguesas árvore, madeira e bosque classificam
um conjunto de objetos em três classes, o inglês classifica esse mesmo conjunto em apenas dois, já que
usa a palavra tree para se referir às árvores e wood para se referir tanto à madeira quanto a bosque. O
russo, por outro lado, apesar de usar também duas palavras para categorizar o conjunto que o
português categorizou com três, faz isso de forma diferente do inglês. Em russo, lyes refere-se aos
bosques e dyerevo às árvores ou à madeira. Vemos aqui, portanto, três categorizações diferentes feita pela
linguagem ao mesmo conjunto de coisas.
Todos esses exemplos demonstram a ideia de Perini de que as palavras não são simplesmente a
designação de uma coisa objetivamente preexistente, pois para que essa coisa fosse designada ela
precisou ser antes recortada e separada das tantas outras existentes. Prova disso é que outras línguas
podem recortar e separar essas mesmas coisas de formas diferentes. Em outras palavras, cada língua

4
Em nota de rodapé, Perini (2000, p. 98) explica que as palavras em russo escritas por ele são transcrições pessoais da
pronúncia aproximada das palavras russas em nosso alfabeto, já que escrevê-las em seu alfabeto original exigiria um
esforço desnecessário por parte dos seus leitores.
19
categoriza o mundo de acordo com seus próprios critérios, que não são nem universais nem
necessários, e uma vez que isso deixa espaço para categorizações diferentes, cada língua descreve um
mundo diferente, mundo que é imposto pela língua a cada novo falante daquela língua.

Os exemplos vistos devem deixar bem claro onde está a incorreção fundamental da
concepção de língua como um sistema de nomenclatura. Uma língua é muito mais do
que uma lista de nomes para as coisas – é, de certa forma, um sistema de organização
do mundo, um dos instrumentos que nos servem para compreender a imensa
complexidade da realidade que nos cerca. Estudar em profundidade a estrutura de
uma língua é estudar a mente humana; é observar uma das maneiras que a mente criou
de recortar e organizar a realidade, a fim de compreendê-la. (...) ao falar nós não
apenas adequamos as palavras às coisas, mas também, em grande medida, adequamos
as coisas às palavras. (PERINI, 2000, p. 101-102)

É exatamente nesse sentido que a filosofia da ciência de Thomas Kuhn ganha relevância no
estudo da relação entre linguagem, pensamento e realidade. Com efeito, Kuhn nos oferece uma série de
exemplos retirados da história da ciência que corroboram a ideia citada acima de que as línguas
desempenham um papel quanto à visão de mundo de seus falantes, o que explicaria alguns problemas
de comunicação que este autor constatou serem comuns ao longo do desenvolvimento científico.
Um desses problemas diz respeito às dificuldades encontradas pelos historiadores da ciência
quando da leitura de textos científicos antigos a partir da perspectiva da ciência atual, leitura que,
segundo Kuhn, resultaria quase invariavelmente na associação daqueles cientistas a erros por vezes
grosseiros de interpretação da natureza. Assim, a fim de proteger esses cientistas antigos de uma
acusação desproporcional à influência que tiveram em seu tempo, esse autor sugeriu que tais erros
deviam-se não ao cientista a quem estavam tentando traduzir, mas à própria tradução, que por sua vez
seria fruto da forma como a ciência desenvolve-se e do papel que a linguagem desempenharia em seu
interior.
Tendo isso como uma de suas motivações, Kuhn publica na década de 60 seu livro mais
influente, A Estrutura das revoluções científicas, onde descreve o desenvolvimento da ciência como uma
série de períodos chamados por ele de ciência normal, intercalados entre si por revoluções científicas.
Enquanto a principal característica da ciência normal seria o consenso de uma comunidade científica
acerca dos compromissos teóricos, metodológicos e dos valores que deveriam guiar a pesquisa
científica, os episódios revolucionários seriam marcados pela mudança drástica dos paradigmas da
ciência normal, da prática científica realizada em seu interior e da visão de mundo dos cientistas
envolvidos.
Em adição a isso, Kuhn também descreve em escritos posteriores o processo de aprendizagem
pelo qual o estudante deve passar para se tornar membro da comunidade unida pelo paradigma. A fim
de apontar os elementos centrais desse modelo de aprendizagem, ele pede que imaginemos um passeio
20
entre pai e filho pelo zoológico5. Em certo ponto do passeio, o pai apontaria para um cisne, usando
esse rótulo para instruir o filho. Depois, após o próprio filho tentar identificar cisnes, sendo
eventualmente corrigido pelo pai quando confunde essas aves com gansos ou patos, ele se torna
relativamente bem sucedido na identificação dessa ave. O mesmo processo se repete quando o filho é
apresentado às outras aves, aprendendo pelo mesmo processo a diferenciar patos de gansos, e os dois
de cisnes. Ao fim do dia, conclui Kuhn, é muito provável que a capacidade de identificação do filho
seja tão boa quanto à do pai.
Desse processo de aprendizagem Kuhn destaca duas características. Primeiro, o aprendizado se
dá por meio de exemplos, ostensão direta a casos em que eles se aplicam, e não através de definições
isoladas. Em segundo lugar, os exemplos de aplicações do termo precisam ser diversos, incluindo até
mesmo exemplos de situações onde o termo parece erroneamente se aplicar, ou seja, é necessário
também um grupo de contraste para que as características próprias de um grupo se destaquem o
suficiente para caracteriza-lo. Com efeito, Kuhn (1977, p.372) diz que, até que fossem colocados em
contraste com o pescoço do pato ou do ganso, o comprimento e a forma do pescoço do cisne não
eram características relevantes para sua identificação. Esse contraste serviu tanto para diferenciar esses
tipos de aves quanto para unir sobre o mesmo termo as aves que possuíam essas características em
comum.
Uma vez que essa é a forma pela qual o estudante de ciência adquire o léxico de sua
comunidade, Kuhn infere dessa forma de aprendizado duas consequências importantes. A primeira
delas diz respeito ao duplo sentido que o aprendizado de uma língua assume. Para ele

Quando a exibição de exemplos faz parte do processo de aprendizagem de termos


como ―movimento‖, ―célula‖ ou ―elemento de energia‖, o que é adquirido é um
conhecimento conjunto da linguagem e do mundo. Por um lado, o estudante aprende
o que esses termos significam, que características são relevantes para liga-los à
natureza, que coisas não se pode dizer deles sob pena de autocontradição, e assim por
diante. Por outro lado, o estudante aprende quais categorias de coisas povoam o
mundo, quais são suas características relevantes, e algo sobre o comportamento do
que lhes é e do que não lhes é permitido. Em boa parte do aprendizado da linguagem,
esses dois tipos de conhecimento – conhecimento das palavras e conhecimento da
natureza – são adquiridos em conjunto; na realidade, não são dois tipos de
conhecimento, mas as duas faces da moeda única que uma linguagem fornece.
(KUHN, 2006, p. 44)

Em segundo lugar, o aprendizado que se vale de grupos de contraste revela que a linguagem
aprendida assume um caráter necessariamente holístico, isto é, não é possível aprender o significado
dos termos isoladamente, mas apenas em grupo. O exemplo clássico dado por Kuhn diz respeito a
apreensão do conceito de peso, que na mecânica newtoniana vem sempre acompanhado do conceito de
massa e de força, formando assim um conceito geral que define todos os termos ao mesmo tempo

5
KUHN, 1977, p. 372
21
mediante seu uso conjunto (KUHN, 2006, p. 85-95). Assim, uma vez que o aprendizado de qualquer
desses termos exige o aprendizado dos demais, bem como de suas relações, esse aprendizado é também
sobre a estrutura da realidade que esses termos foram usados para descrever. Como consequência, um
léxico científico, bem como uma língua, impõe ao mundo certa estrutura de termos inter-relacionados,
cujas relações são condicionadas pelos critérios de semelhança e dissemelhança que o paradigma julga
relevantes.
Por essa razão, Kuhn passou a entender uma mudança de paradigma como uma modificação
nos critérios de classificação dos membros da categoria referida pelos termos do léxico, o que teria
como consequência tanto a redistribuição de membros entre categorias pré-existentes quanto a
introdução de novas categorias. Em outras palavras, uma mudança paradigmática seria equivalente a
uma mudança de mundo no ponto de vista dos cientistas cujo léxico fosse por ela atingida (KUHN,
2006, p. 42-43).
O exemplo clássico de uma revolução científica que se dá nesses termos é a transição da
astronomia ptolomaica para a copernicana. Com a mudança de critério para classificação dos planetas,
de corpos celestes que giram ao redor da Terra para corpos celestes que giram ao redor do Sol, há uma redistribuição
dos elementos que outrora pertenciam a essa categoria. A própria Terra passa a ser um planeta,
enquanto a Lua e o Sol deixam de sê-lo. Esses dois últimos, contudo, precisam ser realocados em
outras categorias, sendo uma delas inexistente antes da revolução. O Sol torna-se uma estrela e a Lua se
tornará o primeiro satélite.
Seriam, pois, essas duas características juntas – espelhamento do mundo nas categorias do
léxico e revoluções científicas – as responsáveis pelos problemas de tradução interparadigmática
empreendidas pelos historiadores da ciência. Prova disso é que, a exemplo do que fez Perini, Kuhn
descreve algumas situações em que o mesmo conjunto de coisas é categorizado de forma diferente por
línguas diferentes, de tal forma que mais de uma tradução é necessária para expor perfeitamente o
sentido original da palavra original. Em outra passagem, Kuhn fala sobre ―(...) a impossibilidade de
traduzir o enunciado inglês ―the cat is on the mat‖ em francês, dada a incomensurabilidade entre as
taxonomias francesa e inglesa para revestimentos de chão‖ (KUHN, 2006, p. 119). Segundo ele

Em cada caso particular para o qual o enunciado inglês é verdadeiro, pode-se


encontrar um enunciado francês correferente, alguns usando ―tapis‖, outros
―paillasson‖, outros ainda ―carpete‖, e assim por diante. Mas não há nenhum
enunciado francês isolado que se refira a todas e somente àquelas situações nas quais o
enunciado inglês é verdadeiro. Nesse sentido, o enunciado inglês não pode ser feito
em francês. De maneira similar, assinalei em outro lugar que o conteúdo do enunciado
―os planetas giram em torno do Sol‖ não pode ser expresso por um enunciado que
invoque a taxonomia celestial do enunciado ptolomaico ―os planetas giram em torno
da Terra‖. A diferença entre ambos não é uma simples diferença a respeito dos fatos.
O termo ―planeta‖ ocorre em ambos como um termo para espécie, e os conjuntos de
membros das duas espécies se superpõem sem que nenhuma contenha todos os
corpos celestes contidos na outra. Tudo isso equivale a dizer que há episódios no
22
desenvolvimento científico que envolvem uma mudança fundamental em algumas
categorias taxonômicas e que, portanto, confrontam observadores posteriores com
problemas semelhantes aos que o etnólogo encontra ao tentar penetrar em uma outra
cultura. (KUHN, 2006, p. 119-120)

Assim, para Kuhn, a constatação desse tipo de dificuldade ao longo da história da ciência é
sintomática do tipo especial de relação que o léxico de um paradigma estabelece com a forma pela qual
o cientista enxerga o mundo, corroborando a relação sugerida por Perini. Sendo assim, não é surpresa
Kuhn ter dito que ―onde há uma diferença de estrutura, o mundo é diferente, a linguagem é privada, e a
comunicação cessa até que uma das partes adquira a linguagem da outra‖ (KUHN, 2006, p. 70). Mais
importante que isso seja talvez sua conclusão de que qualquer interpretação do desenvolvimento
científico que ignore sua dimensão constitutiva corre o sério risco de oferecer uma visão pobre e parcial
da natureza da ciência.

REFERÊNCIAS

KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 9º edição. São Paulo: Perspectiva, 2005.

______________. O caminho desde a estrutura; ensaios filosóficos, 1970-1993. São Paulo: editora
Unesp, 2003.

______________. A tensão essencial. Lisboa: Edições 70, 1977.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Filosofia, lógica e metafísica. In: ALMEIDA, Guido Imaguire
Custódio Luís S. de; OLIVEIRA, Manfredo Araújo de (org.). Metafísica contemporânea. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2007, pág. 161-190.

SILVEIRA, Ronie Alexsandro Teles da; PERGHER, Giovani Kuckartz; OLIVEIRA, Rodrigo Grassi.
Linguagem e pensamento: visão (supra) comunicativa acerca da linguagem. In: Ciências & Cognição,
Ano 02, Vol.06, nov/2005, p. 73-83.

PERINI, Mario A. Quando um adjetivo é um verbo (qual é a relação entre palavras e coisas?) in
Sofrendo a gramática; ensaios sobre a linguagem. 3º edição. São Paulo: Editora Ática, 2000.
23
_______________ As três almas do poeta (As línguas e o recorte da realidade), in A língua do Brasil
amanhã e outros mistérios. São Paulo: Parábola editorial, 2004.
24

AÇÕES MEDIADORAS DE ALUNOS NO FÓRUM DE DISCUSSÃO DE UM


CURSO SEMIPRESENCIAL DE ESPECIALIZAÇÃO
Ana Lygia Almeida Cunha6

RESUMO
Este trabalho tem como objetivo identificar ações mediadoras desempenhadas por alunos por meio da
interpretação de mensagens postadas no fórum de discussão. A constatação de que alguns alunos
atuavam como mediadores, ao interagir com os colegas, levou à realização da presente pesquisa, que
consistiu na investigação das condições que podem fazer do aluno um mediador, contribuindo, assim,
para o estudo da mediação semiótico-pedagógica que se dá em contexto online. Partindo-se da noção de
mediação de Vygotsky (1967/2008), buscou-se, em trabalhos de autores interessados no estudo das
condições em que se realiza o ensino-aprendizagem online e na interação por meio do fórum, como
Garrison e Anderson (2003), subsídios teóricos para a interpretação das mensagens postadas por alunos
mediadores, com base na orientação da hermenêutica de Ricoeur (2002, 2006, 2009), para quem as
ações expressas em textos escritos podem tornar-se objeto da ciência. As considerações às quais levou a
pesquisa indicam a importância do fórum como um espaço privilegiado para a mediação feita por
alunos com relação a seus colegas.
Palavras-chave: Fórum de discussão; Educação a Distância; Mediação; Hermenêutica.

ABSTRACT
This research aims to identify mediating actions performed by students for through the interpretation
of messages posted in the discussion forum. The finding that some students when interacting with their
classmates acted as mediators led to the conception of this research whitch investigated the conditions
that can make the student a mediator, thus contributing to the study of semiotic-pedagogic mediation
that takes place in the online context. By starting from the Vygotsky‘s notion of mediation
(1967/2008), the theoretical foundation of this study was grounded in authors interested in researching
on the conditions under which interaction through forums are carried out in the online courses, such as
Garrison e Anderson (2003). The interpretation of messages posted by student mediators was based on
the hermeneutic orientation supported by Ricoeur (2002, 2006, 2009), for whom the actions expressed
in written texts can become an object of science. The research interpretation indicates the importance
of the discussion forum as a privileged space for mediations made by students toward their peers.
Key-words: Discussion Forum; Distance Education; Mediation; Hermeneutics.

6 Universidade Federal do Pará (UFPA), [email protected].


25

Introdução
Neste trabalho, com base na noção de mediação de Vygotsky (1967/2008), parte-se do
princípio de que construir conhecimento pressupõe uma ação compartilhada não somente com o
professor, mas também com colegas. A preocupação em estudar a atuação do aluno mediador se deve
ao fato de a abordagem do fenômeno por este prisma não ser comumente objeto de estudos até o
momento, o que pode sinalizar uma tendência a considerar somente o professor como responsável pela
mediação.
As ideias de Garrison e Anderson (2003) também auxiliaram a realização desta pesquisa,
especialmente no que diz respeito ao modelo que chamaram de comunidade de investigação (community
of inquiry), desenvolvido com o intuito de compreender os multifacetados componentes do ensino-
aprendizagem com base em textos, que comumente se desenvolve em ambientes educacionais online.
Segundo esses autores, a educação formal online propicia níveis de interação bastante elevados
entre os indivíduos envolvidos no processo educacional. Uma comunidade crítica de investigação
pressupõe uma relação entre professores e alunos que facilite a construção e a validação do
conhecimento e que desenvolva as capacidades que levarão à aprendizagem (GARRISON e
ANDERSON, 2003, p. 23).
A percepção de que alguns alunos da turma 2007 do Curso de Especialização Ensino-
Aprendizagem da Língua Portuguesa, ofertado pela Universidade Federal do Pará, eram capazes de
desempenhar na interação que se desenvolveu por meio do fórum de discussão, além de evidenciar que
a mediação não estava atrelada somente a papéis sociais, motivou a escolha do tema do presente
trabalho, que se propõe a investigar as condições que podem fazer do aluno um mediador,
contribuindo, assim, para a caracterização da mediação semiótico-pedagógica que se dá em contexto
online.
O objetivo desta pesquisa é investigar a mediação semiótico-pedagógica por meio da
identificação de ações mediadoras desempenhadas por alunos no fórum de discussão. Para alcançar tal
objetivo, buscaram-se respostas às seguintes questões de pesquisa:
- Quais as características da mediação semiótico-pedagógica quando assumida pelos alunos?
- Em que situação e contexto o aluno se torna mediador na interação com seus colegas?
A partir da análise da participação de alunos mediadores no fórum, pretendeu-se caracterizar a
mediação feita por alunos buscando refletir sobre o que é mediar, o que faz o aluno mediador, o que
mostra a mediação no contexto online e como o aluno pode atuar como mediador em relação a outro
aluno.
26
A mediação semiótico-pedagógica
Para melhor compreender a noção de mediação que se quer aqui adotar, é necessário levar em
consideração o que apresenta Vygotsky (1967/2008) sobre o assunto. Profundamente influenciado por
postulados marxistas, o autor afirmava que o pensamento do homem é culturalmente mediado e que
essa mediação se dá, principalmente, pela linguagem, já que esta carrega em si os conceitos elaborados
pela espécie humana. Para o psicólogo, notadamente interessado nos aspectos educacionais, o
desenvolvimento humano acontece mediante a apropriação, pelo homem, da experiência histórico-
cultural e na sua relação com o outro social. Seguindo a orientação de Vygotsky, a noção de mediação
aqui utilizada é a de intervenção no processo de aprendizagem de outrem com vistas a ajudá-lo a se
desenvolver, construindo seu conhecimento.
Vygotsky trata da mediação em caráter bastante amplo e volta-se em particular para a mediação
que se pode chamar de semiótica, já que é realizada pela linguagem. Como a pesquisa aqui proposta
pretendia tratar da mediação comumente chamada de pedagógica, que determinados alunos de um
curso de especialização demonstravam ser capazes de realizar na sua relação com os colegas, tornou-se
necessário buscar um tratamento para esse fenômeno que contemplasse o caráter propriamente
pedagógico da mediação. Para isso, era importante pensar em tipos de ações em que consiste a
mediação. A obra de Vygotsky chama a atenção para a característica dialética da mediação – já que esta
indica movimento e articulação de dois ou mais elementos – da qual decorrem as ações mediadoras.
A chamada mediação pedagógica é também semiótica na medida em que tem na linguagem o
elemento chave de sua realização (cf. HASAN, 2001). Por essa razão, o fenômeno que me propus
investigar neste trabalho será chamado daqui por diante de mediação semiótico-pedagógica, que se
reifica nas ações mediadoras de alunos.
Com base em Vygotsky, Hasan (2001) afirma que a construção de conhecimento, que não é um
processo passivo, envolve a participação ativa do aprendiz. Além disso, esclarece que
as disposições mentais dos alunos, a sua disponibilidade para se engajar na apropriação
de alguns conceitos em detrimento de outros, bem como o modo de negociação que
habitualmente eles trazem para a situação de aprendizagem, constituiriam o alicerce
sobre o qual o edifício da mediação semiótica de conceitos específicos, e de estruturas
de conhecimento especializado de um tipo ou de outro, pode ser erguido (p. 4).
Hasan (2001) fala, ainda, de duas formas diferentes de proceder à mediação semiótica: uma que
cria os hábitos da mente e outra que leva ao conhecimento especializado. A estas duas possibilidades de
manifestação da mediação semiótica Hasan (2001) denominou, respectivamente, de mediação visível e
mediação invisível, conforme explicação a seguir:
a mediação visível é deliberada e relativamente mais focada em um conceito ou
problema específico: os interactantes podem, de fato, ―ver‖ o que estão fazendo.
Falando com cautela, pelo menos um dos interactantes tem consciência de que está
ensinando ou explicando algo específico a alguém; e mais, requisitos essenciais para o
sucesso na aprendizagem são a atenção voluntária e a participação ativa do aprendiz.
Desta forma, ambos os interactantes sabem claramente qual é o objetivo a ser
27
alcançado. Isso contrasta com a mediação invisível, em que os interactantes não estão
cientes do ensino ou da aprendizagem de um conceito em particular, muito menos de
um objetivo específico a ser alcançado – ou, pelo menos, o principal objetivo não é
diretamente relevante para o que a linguagem esteja mediando. Os interactantes não
―veem‖ o que está sendo mediado... (p. 5, grifo da autora).
A mediação invisível é aquela praticada cotidianamente, por exemplo, pelas mães com relação a
seus filhos: mais experientes no que diz respeito às regras de sua comunidade, as mães procedem a uma
mediação que se pode considerar natural, espontânea, primária, e que se baseia em regras sociais
plenamente aceitas. Com isso, elas atuam na criação de uma cultura e promovem em seus filhos um
senso de pertencimento a essa cultura, garantindo a sua manutenção. Neste tipo de mediação podem
ocorrer dois tipos de ação: a material, que consiste em agir ao fazer, e a verbal, que consiste em agir ao
dizer. Tais tipos de ação podem, inclusive, co-ocorrer (HASAN, 2001, p. 8).
De outra forma, a mediação visível é típica de atividades especializadas, que, segundo Hasan
(2001, p. 25-26, 30), dependem fundamentalmente da ação verbal. A autora considera, ainda, que, por
ter sido a escola, durante décadas, o lugar oficial para a produção e a distribuição de conhecimento, as
atividades especializadas mais comuns são as que nela se desenvolvem regularmente e têm como
consequência o discurso especializado.

A construção do conhecimento em contexto online


Garrison e Anderson (2003) consideram imprescindível a busca da compreensão do processo
de aprendizagem de modo geral e, particularmente, o que se desenvolve em ambientes online. O
trabalho que os autores desenvolvem reflete uma perspectiva de ensino-aprendizagem que denominam
―construtivista colaborativa‖ (collaborative constructivist), a qual pressupõe o reconhecimento da relação
entre a construção individual do conhecimento e a influência social nesse processo.
Apesar de estes autores serem cognitivistas e se basearem em fundamentos piagetianos,
mantive-me sempre atenta à afinidade que suas ideias pudessem ter com as de Vygotsky. Era
importante, ao menos, que tais ideias não entrassem em conflito conceitual. Posso dizer, então, que
tentei proceder a uma leitura dos trabalhos de Garrison e Anderson numa perspectiva vygotskiana.
Ao proceder dessa forma, não foi difícil perceber afinidade entre eles. Como Vygotsky,
Garrison e Anderson (2003) acreditam que ―compreender a educação é compreender essa interação
entre os interesses pessoais e a experiência e os valores, as normas e o conhecimento sociais. Essa
interação é manifesta na relação entre professor e aluno‖ (p. 12). Tais palavras facilmente me
remeteram à preocupação de Vygotsky em estudar a relação do homem com o contexto social do qual
faz parte e, mais do que isso, em estudar as implicações dessa relação no processo de ensino-
aprendizagem.
Para Garrison e Anderson (2003), uma comunidade de aprendizes é o que resulta da fusão de dois
mundos: o individual – e, portanto, subjetivo – e o compartilhado – considerado objetivo pelos autores.
28
A comunidade de alunos pressupõe, então, um grupo de pessoas que se auxiliam reciprocamente em
sua aprendizagem individual e coletiva.
Em se tratando do ensino-aprendizagem em contexto online, Garrison e Anderson (2003, p. 23)
consideram um erro grave categorizar seus participantes em termos de posições hierarquicamente
opostas: de um lado o aluno e de outro o professor, como se ocupassem posições extremas. Segundo
os autores, ao contrário do que pensam muitos, o trabalho nessa modalidade não deve ser
particularmente centrado no aluno, assim como o ensino-aprendizagem presencial não deve ser
centrado no professor. Entendo que, na verdade, deve-se estar focado no processo em si, levando-se
em conta que todos os participantes têm a sua importância nesse (e para o sucesso desse) processo.
Para Garrison e Anderson (2003), a realização de um ensino-aprendizagem online exitoso, na
medida em que proponha atividades que promovam o aprendizado colaborativo e individual de forma
equilibrada, depende do professor, a quem denominam ―educador‖.
É inegável, na opinião dos autores, o potencial verdadeiramente colaborativo que tem a
comunicação mediada por computador em situações em que o ensino-aprendizagem se realiza com a
utilização da tecnologia digital de interação a distância do tipo da que ocorre nos fóruns de discussão,
principalmente porque esse tipo de interação independe do tempo e do espaço.
Nas últimas décadas, as conferências a distância têm concorrido com a tecnologia
historicamente dominante na educação superior, que é a leitura de material escrito. Com a inserção das
atividades online no ensino superior, os alunos não se limitam a ler material impresso em busca de
informações, fazendo isso também por meio de interações com outros participantes desse contexto.
Para Garrison e Anderson (2003), isso é uma consequência natural da necessidade de um modelo de
aprendizagem tecnologicamente mediada que seja consistente com os valores e ideais do ensino
superior.
A noção de comunidade de investigação, como pude perceber, está intimamente ligada à
concepção de construção do conhecimento como atividade social e, mais do que isso, colaborativa, o
que também corrobora a visão vygotskiana que se baseia na troca social entre os participantes do
contexto de ensino-aprendizagem.
Enfim, o que Garrison e Anderson (2003) chamam de comunidade de investigação é também
considerado por eles como ―fundamental para o desencadeamento e a manutenção da investigação
crítica pessoal e da construção do significado‖ (p. 27), pois a colaboração entre os participantes do
grupo leva o indivíduo a assumir responsabilidades e a experiência educacional faz sentido.
Outro aspecto que me parece particularmente interessante no trabalho de Garrison e Anderson
(2003) é o fato de eles considerarem que a interação realizada por meio de ferramentas como o fórum
se baseia em texto escrito. Em parte diferente do que acontece na interação face a face, que favorece a
mediação da ação, a interação pela escrita favorece o discurso crítico e, por conseguinte, a mediação da
29
reflexão, pressupondo uma elaboração mais cuidadosa. Com isso, o nível cognitivo das perguntas e
respostas postadas é mais elevado ou porque os alunos têm mais tempo para refletir ou porque os
professores conseguem formular questões com mais alto nível cognitivo.
No trabalho de Garrison e Anderson (2003), um aspecto que considero inovador com relação
aos princípios da teoria sócio-histórico-cultural de Vygotsky, apesar de não dissonante, é o tratamento
dos elementos chave de uma comunidade de investigação, segundo os autores – a presença cognitiva, a
presença de ensino e a presença social, que se inter-relacionam no contexto de ensino-aprendizagem
online. Segundo os autores,
... em um contexto a distância, o desafio para os participantes comunicarem suas
reflexões e insights não é menos formidável do que criar uma presença social. Contudo,
enquanto a presença social é um elemento essencial de uma comunidade de
investigação, o propósito dessa comunidade é mais do que a interação social. O
propósito de uma comunidade de investigação educacional está invariavelmente
associado aos resultados cognitivos pretendidos. Isto significa que os processos e
resultados cognitivos estão no cerne das transações (Garrison e Anderson, 2003, p.
55).
A presença cognitiva – que é a habilidade de projetar a si mesmo como alguém que pensa, que
reflete sobre aquilo que está sendo aprendido –, como se pode ver, é inerente ao processo de ensino-
aprendizagem e, para Garrison e Anderson (2003), está irremediavelmente associada às noções de
pensamento crítico e de investigação prática. Os autores acreditam que a discussão entre os
participantes de uma comunidade de investigação deve ser construída a partir do reconhecimento da
existência de um problema, que funciona como um fato gerador, e, por meio da exploração e da
integração, resultar na resolução: ―o desafio para os educadores é dirigir a discussão e o
desenvolvimento cognitivo individual passando por cada uma das fases da investigação prática‖
(GARRISON e ANDERSON, 2003, p. 62).
Na medida em que se tem uma mediação capaz de estimular e direcionar a expressão do
pensamento crítico, levando em consideração os resultados pretendidos no processo e as expectativas
dos participantes, tem-se a presença cognitiva: ―a avaliação da natureza do discurso pode fornecer
indícios da natureza da transação de ensino-aprendizagem e de quais intervenções podem ser
apropriadas‖ (GARRISON e ANDERSON, 2003, p. 63).
A presença de ensino – ou a habilidade de planejar, facilitar e dirigir a interação que visa à
educação – é vista pelos autores como própria do professor, já que envolve uma série de atribuições
historicamente colocadas sob sua responsabilidade, como identificar os conteúdos que se referem ao
conhecimento socialmente considerado relevante, propor atividades que favoreçam a reflexão e o
discurso críticos, diagnosticar e avaliar os resultados da aprendizagem. Os autores propõem a
organização de tais atribuições em três categorias: projeto e organização instrucional, facilitação do
discurso e instrução direta.
30
Apesar de reconhecer a importância e a necessidade de o professor desempenhar tais funções,
os autores afirmam que mesmo os participantes que não têm esse perfil podem contribuir com a
presença de ensino. Garrison e Anderson (2003) explicam que,
de fato, se o objetivo final é aprender a aprender, os alunos devem ser incentivados a
se autodirigir e a gerenciar e monitorar a própria aprendizagem de maneira adequada
às tarefas e às suas habilidades. Isso se torna ainda mais evidente quando sugerimos
designar alunos moderadores. (...) À medida que os participantes se desenvolverem
cognitiva e socialmente, a presença de ensino acontecerá (p. 71-72).
Mais uma vez encontrei entre as ideias de Garrison e Anderson (2003) um ponto de interseção
com o trabalho de Vygotsky: também eles reconhecem a importância da atuação de alunos que
medeiam o desenvolvimento de colegas.
Dos elementos essenciais de uma comunidade de investigação, segundo Garrison e Anderson
(2003), a presença social – que diz respeito à habilidade de projetar características pessoais – é a última
a ser comentada aqui por se considerar que ganha uma importância especial quando se propõe o estudo
da atuação de alunos mediadores. Isso porque, embora não obrigatoriamente, a relação de estudantes
em um ambiente de ensino-aprendizagem pode ter um caráter especialmente social. O ensino-
aprendizagem online, por sua vez, pode ganhar um potencial colaborativo quando estudantes atuam
como mediadores, como acontece no curso observado neste trabalho, como sugerem Garrison e
Anderson (2003), na citação a seguir:
precisamos compreender a natureza da interação social em um ambiente não verbal de
interação social e como ele pode ser utilizado para criar uma comunidade de
investigação. Uma comunidade coesa pode ser criada com base no estabelecimento de
amizades ou pode se basear em outros propósitos comuns, como metas educacionais
específicas. Uma comunidade se sustentará na medida em que os indivíduos e o grupo
satisfizerem suas necessidades e alcançarem suas metas (p. 48).
Ao tratar da presença social, os autores ressaltam o fato de a comunidade ser parte integrante da
vida: ―é a fusão do indivíduo com o grupo; do psicológico com o sociológico; do reflexivo com o
colaborativo‖ (GARRISON e ANDERSON, 2003, p. 48). Isso também reflete a opinião dos autores
de que o ensino-aprendizagem pressupõe a colaboração, já que inclui, por parte do indivíduo, um
sentimento de pertencimento ao grupo e a aceitação das pessoas que compõem esse grupo e com as
quais compartilha interesses. Por isso mesmo, é importante a reflexão sobre o significado que a
presença social tem em uma comunidade de ensino-aprendizagem online: ―é inconcebível pensar que
alguém poderia criar uma comunidade sem algum grau de presença social‖ (Garrison e Anderson, 2003,
p. 49).

Procedimentos metodológicos
Para o trabalho de interpretação dos textos produzidos no curso em foco, optou-se pela
utilização da noção de interpretação, proposta pelo hermeneuta Ricoeur (2002), para quem os textos
escritos representam a efetivação do discurso. Segundo Ricoeur (2009),
31
... na medida em que a hermenêutica é interpretação orientada para textos e na medida
em que os textos são, entre outras coisas, exemplos da linguagem escrita, nenhuma
teoria da interpretação é possível que não se prenda com o problema da escrita (p. 41).
O autor considera ainda que a interpretação é o reconhecimento da mensagem que o falante
produziu a partir da base polissêmica do léxico comum. Para ele, pela leitura é possível apropriar-se do
texto de outrem, fazendo seu o que é alheio por meio da interpretação, que se refere ao processo que
engloba a explicação (que diz respeito à unidade intencional do discurso) e a compreensão (que diz
respeito à estrutura do texto):
O sentido de um texto não está por detrás do texto, mas à sua frente. Não é algo de
oculto, mas algo de descoberto. O que importa compreender não é a situação inicial
do discurso, mas o que aponta para um mundo possível, graças à referência não
ostensiva do texto. A compreensão tem menos do que nunca a ver com o autor e a
sua situação. Procura apreender as posições de mundo descortinadas pela referência
do texto. Compreender um texto é seguir o seu movimento do sentido para a
referência: do que ele diz para aquilo de que fala. Neste processo, o papel mediador
desempenhado pela análise estrutural constitui a justificação da abordagem objetiva e a
retificação da abordagem subjetiva ao texto (2009, p. 122).
As mensagens postadas no fórum do curso em questão, que constituem o corpus da pesquisa,
são textos escritos compartilhados pelos participantes das discussões – tutoras e alunos. A interpretação
de tais mensagens consistiu no foco da presente investigação.
Na primeira etapa da pesquisa, tive como objetivo o reconhecimento da ocorrência de
mensagens em que alunos do curso expressassem intenção de desempenhar ações mediadoras para
identificar, em primeira instância, potenciais mediadores entre os alunos do curso.
Após proceder ao levantamento das ações mediadoras detectadas na primeira etapa em
mensagens postadas por alunos nas discussões do fórum do curso, selecionei, entre os estudantes que
postaram mensagens, aqueles que não só expressavam a intenção de desempenhar ações mediadoras,
mas concretizavam tal intenção. A essa altura da pesquisa, considerei estes estudantes – três, de fato –
como mediadores potenciais7.
Os critérios utilizados na seleção destes três alunos foram os seguintes:
- a regularidade com que postavam mensagens nas discussões, pois considerei ser inadequado dizer dos
alunos que registraram uma participação eventual que se tratava de pessoas comprometidas com a
mediação;
- as diferenças percebidas, já durante a investigação que visava à identificação dos mediadores
potenciais (primeira fase), na atuação dos três alunos selecionados – em outras palavras, eu já observava
tratar-se de mediadores de tipos diferentes, o que certamente tornaria mais interessante o trabalho a ser
feito após o momento da seleção.

7 Utilizo aqui a expressão mediador potencial para me referir aos alunos que, nesse momento da pesquisa, eu não estava certa
de que se tratavam de mediadores. Considerava que só poderia chamá-los de mediadores após proceder a todo o trabalho de
interpretação das mensagens dos alunos.
32
Selecionei também as quatro discussões da disciplina Pragmática Linguística (PL) como objeto
do trabalho nessa etapa. Fiz isso com o intuito de delimitar o meu corpus, o que acreditava favorecer a
qualidade da interpretação a ser feita8. Além disso, considerei que o fato de ter atuado, junto à turma de
2007, como conteudista, coordenadora da disciplina e tutora, me daria melhores condições para
proceder à interpretação das mensagens dos alunos da turma.
Passei, então, à observação das mensagens postadas pelos três mediadores potenciais com vistas
à detecção, neste recorte, das ações mediadoras que desempenharam junto a seus colegas. O objetivo
do trabalho na última etapa da pesquisa era, além de confirmar se os alunos selecionados eram
mediadores, identificar as características de sua atuação mediadora. Acreditava que, com isso, seria
possível traçar o perfil de tais alunos enquanto mediadores na turma de 2007.
Depois de ter identificado os alunos potencialmente mediadores e de ter observado sua
participação nas discussões do fórum de PL, passei a buscar, nas mensagens postadas pelos três alunos
selecionados, exemplos de ações mediadoras que pudessem ser consideradas características de uma
atuação mediadora de alunos do curso.
No quadro abaixo, apresento as ações mediadoras expressas entre as mensagens dos três alunos
selecionados e o número de mensagens postadas no fórum de PL por cada um deles:

NÚMERO DE NÚMERO DE NÚMERO DE


AÇÃO MEDIADORA MENSAGENS MENSAGENS MENSAGENS
POSTADAS PELO POSTADAS PELO POSTADAS PELA
ALUNO BENTO ALUNO DAVID ALUNA EDNA
Explicação de conteúdo 3 1 11
Apreciação de conteúdo (em pauta ou 7 6 10
―paralelo‖)
Apreciação de texto 1 - 2
Emissão de opinião 2 - 3
Estímulo 2 - 2
Indicação de textos, sites, etc. - - 2
Provocação - 1 1
Exemplificação - - 1
Apresentação de comentários sobre - - 1
textos lidos
Resumo de conteúdo - - 1
Contra-argumentação 1 1 2

8 Considerei que um número muito grande de mensagens poderia dificultar o trabalho de interpretação, já que me obrigaria
a lidar com dados quantitativamente elevados e com momentos diferentes do processo: diferentes disciplinas, diferentes
tutoras, diferentes materiais didáticos, etc.
33
Apreciação de análise de colega 1 1 3

O levantamento acima me encaminhou à conclusão de que os dois primeiros tipos de ações são
os que os alunos mediadores mais postaram nas discussões do fórum, o que talvez me permita dizer
que são estas as ações mais características da atuação de tais alunos na mediação de seus colegas, no
contexto em estudo.
O trabalho de interpretação das mensagens postadas no fórum de PL pelos três alunos
mediadores selecionados levou-me a algumas considerações sobre o tipo de mediação que eles
exerceram no contexto do curso de especialização, que passo a apresentar:
1) O fórum do curso é, sem dúvida, um canal privilegiado e eficaz de interação, não só pelo interesse
que desperta nos alunos, como indicam os altos números de postagens, mas também pela qualidade que
conferem à interação mensagens como as aqui transcritas.
2) Por meio da interação no fórum, os alunos mediadores atuam no desenvolvimento dos colegas, não
só motivando-os a superarem dificuldades, mas auxiliando-os no processo de ensino-aprendizagem.
3) A mediação feita por alunos é particularmente marcada pela afetividade, que pode ser considerada
um fator de motivação para os alunos mediados, como demonstram as mensagens em que estes
expressam o reconhecimento da atuação mediadora dos primeiros.
A mediação que os alunos fazem é do tipo visível, que, como vimos, Hasan (2001) considera
típica de atividades especializadas e dependente da ação verbal. Esta mediação, apesar de ser
desempenhada por indivíduos que não ocupam a posição de docentes no contexto de aprendizagem em
questão, pode ser considerada como semiótico-pedagógica, já que visa ao desenvolvimento de outrem
por meio da linguagem, intervém na construção do conhecimento e promove a reelaboração e a
apropriação de significados culturais socialmente transmitidos. A partir do momento em que estimula o
colega e incentiva a sua aprendizagem, o aluno mediador age pedagogicamente, interferindo no
processo de aprendizagem do mediado e provocando progressos que provavelmente não ocorreriam
sem essa interferência.
Em resposta à primeira pergunta de pesquisa, posso dizer que, de acordo com o que observei
nas mensagens postadas pelos alunos do curso, a mediação realizada por alunos é altamente marcada
pela afetividade que caracteriza os laços que naturalmente se estabelecem entre colegas que
compartilham interesses educacionais e que se relacionam de maneira colaborativa. Além disso, a
mediação feita pelos alunos do curso é efetiva, ou seja, ela intervém na construção do conhecimento
por parte do grupo e facilita a aprendizagem.
Considerando a visão vygotskiana segundo a qual as relações sociais são de suma importância
no processo de desenvolvimento intelectual, pode-se dizer que o aspecto especialmente social que tem
o tipo de mediação de que trato neste trabalho é altamente motivador, como pude ver pela frequência
às discussões do fórum.
34
Apesar de, pelo menos a princípio, guiarem-se pelo modelo de mediação desempenhado pelas
docentes do curso, os alunos mediadores desempenham uma mediação que tem características próprias,
na medida em que o tipo de relação que mantêm com os colegas é diferente da que estes mantêm com
as tutoras, marcada pela hierarquia e a assimetria que historicamente caracterizam este tipo de interação.
No caso dos alunos, estabelece-se uma relação mais afetiva e colaborativa.
Com relação à segunda questão a que me propus responder, a observação do comportamento
dos alunos mediadores levou-me a constatar que eles são capazes de proceder à mediação dos colegas
desde que estejam autorizados pelas tutoras, ou seja, sempre que estas permitam que o fórum de
discussão seja um espaço aberto para a participação de alunos que tenham a intenção de mediar. No
início da discussão no fórum era frequente a solicitação às tutoras de validação de contribuições dos
mediadores, o que deixou de acontecer a partir do momento em que estes se sentiram autorizados a
mediar. Por isso, vale ressaltar a importância do papel que as docentes tiveram na efetivação da
mediação realizada por alunos.
Como pude observar, não só da autorização dos docentes depende a atuação dos alunos
mediadores. A validação de suas contribuições por parte dos colegas mediados é, sem dúvida,
importante para que se sintam autorizados a desempenhar ações mediadoras. Nesse caso, não se
solicitava explicitamente autorização, mas pude constatar que na medida em que percebiam, na reação
dos colegas a suas mensagens, a aceitação de tais contribuições, sentiam-se motivados a continuar
atuando como mediadores.

Considerações finais
A investigação aqui descrita levou-me a importantes constatações referentes a maneiras de atuar
na mediação semiótico-pedagógica que me parecem específicas da modalidade online de ensino-
aprendizagem, e, particularmente, referentes à interação que acontece no fórum de discussão. Depois
de ter realizado todo o trabalho, é impossível, para mim, deixar de considerar o fórum como um espaço
privilegiado para a mediação feita por alunos com relação a seus colegas, pois um ambiente como este
pode oferecer aos alunos oportunidades de participar mais ativamente e de proceder a reflexões mais
profundas, motivadas pelo clima colaborativo e afetivo que nele se observa.
Além disso, a constatação da existência de alunos mediadores em cursos como o que é o
contexto desta pesquisa indica a possibilidade de o professor contar com a mediação promovida por
alunos, o que condiz com a proposta da EAD de incentivar a interação.
O incentivo à atuação de alunos mediadores por parte dos professores que atuam como tutores
em cursos que preveem atividades online pode trazer resultados bastante positivos ao desenvolvimento
dos alunos graças ao caráter colaborativo e afetivo que esse tipo de interação social costuma ter e à
função que assume na integração do grupo.
35
Resultados de pesquisas como esta podem também auxiliar no trabalho de elaboração de
projetos de cursos em que sejam previstas atividades online, assim como na formação de pessoas que,
em tais cursos, possam atuar como conteudistas – na apresentação dos assuntos a serem estudados e na
elaboração de atividades a serem propostas – e como tutores – na seleção de estratégias de interação e
de estímulo à atuação de alunos mediadores.
Se a mediação entre alunos é, mais do que viável, produtiva, e, como indica a participação de
alunos mediadores no fórum de discussão do curso aqui observado, pode ser de qualidade e pode afetar
positivamente o processo de desenvolvimento dos alunos de modo geral, as ideias apresentadas neste
trabalho podem auxiliar, enfim, na busca da legitimação e da viabilização da mediação feita por alunos
como objetivo educacional.

Referências bibliográficas
GARRISON, R. e ANDERSON, T. E-learning in the 21st Century. London: Routledge Falmar, 2003.
HASAN, R. Semiotic mediation and mental development in pluralistic societies: some implications for
tomorrow‘s schooling. 2001. Disponível em http://people.
Ucsc.edu/~gwells/Files/Courses_Folder/documents/Chap9Hasan.pdf. Acessado em 9 de março de
2012.
RICOEUR, P. Del texto a la acción: ensayos de hermenéutica. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 2002.
_____. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006.
_____. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa, Edições 70, 2009.
VYGOTSKY, L. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1967/2008.
36
A CONTRIBUIÇÃO DAS ANÁFORAS ENCAPSULADORAS NA
CONSTRUÇÃO DE SENTIDO E PROGRESSÃO ARGUMENTATIVA NO
GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO

Ana Maria da Silva Nunes9

Resumo: O ato de escrever é um processo que requer do autor a habilidade de saber dizer sua
proposta discursiva de forma coesa e coerente. No entanto, esse processo se torna mais difícil porque
não se tem uma interação face-a-face com seu interlocutor. Por isso, no texto escrito é necessário que o
escrevente recorra a mecanismos que possibilitem a emissão da mensagem que dê margens a possíveis
interpretações de um texto que seja dinâmico e centrado ao mesmo tempo. Para tanto, o campo
linguístico oferece recursos como os processos de referenciação, a saber: as introduções referenciais e
as anáforas, que estão divididas em três tipos: as anáforas diretas, indiretas e encapsuladoras. Este
trabalho tem como objetivo analisar a contribuição das anáforas encapsuladoras na construção de
sentido e progressão argumentativa em um corpus constituído por quatro artigos de opinião da revista
Veja. Para tanto, buscou-se aporte teórico em Cavalcante (2003, 2011, 2012); Koch (2004) e Costa Val
(1999) sem deixar de considerar relevante a visão de outros estudiosos na consecução desta pesquisa.
Depois de constituído o corpus, procedeu-se com as análises em que se constatou que as anáforas
encapsuladoras se constituem em um fundamental recurso na construção de sentido e na progressão
argumentativa na elaboração de artigos de opinião.

Palavras- chave: Texto; Referenciação; Anáforas encapsuladoras; Artigo de Opinião.

Abstract: The act of writing is a process that requires of the author the ability of know to say his
discursive proposal in a cohesive and coherent form. However, this process becomes more difficult
because it do not have a face-to-face interaction with its partner. Therefore, in the written text is
necessary that the writer resort to mechanisms that enable the issuance of the message that gives
margins to possible interpretations of a text that is dynamic and focused at the same time. Therefore,
the linguistic field offers means such as referencing processes, namely: referential introductions and
anaphoras, which are divided into three types: direct, indirect and encapsulating anaphoras. This study
aims at analyzing the contribution of encapsulating anaphoras on the construction of meaning and
argumentative progression in a corpus constituted of four opinion articles from Veja magazine.
Therefore, we searched theoretical in Cavalcante (2003, 2011, 2012), Koch (2004) and Costa Val (1999)
while considering relevant vision of other authors in pursuing this research. After constituted the
corpus, we proceeded with the analysis in it was found that the encapsulating anaphoras constitute a
fundamental resource in the construction of meaning and in the argumentative progression in the
development of opinion articles.

Keywords: Text. Referencing; Encapsulating Anaphoras; Opinion Article.

9
Mestranda em linguística na Universidade Federal do Piauí - UFPI.
[email protected]
37
1 Introdução

Os processos de referenciação são fundamentais recursos utilizados na elaboração de um texto.


Eles comportam uma característica dinâmica que reformula os referentes para se adequar ao discurso
do autor, que logo será reconstruído por possíveis interlocutores. Portanto, ―o ato de referir é sempre
uma ação conjunta‖ (CAVALCANTE, 2011, p. 15) que demanda conhecimentos específicos por parte
daqueles envolvidos no discurso.
As introduções referenciais, as anáforas e as dêixis constituem o conjunto desses recursos que
colaboram na construção de sentido de um texto. As anáforas, por sua vez, estão divididas em três
grupos: as anáforas diretas, que retomam pontualmente um elemento do cotexto, ou seja, são
correferenciais; as anáforas indiretas, não correferências, e anáforas encapsuladoras, que resumem
prospectivamente ou retrospectivamente porções difusas do cotexto. Estas últimas, por sua natureza
resumitiva, coesiva e porque, como afirma Cavalcante (2011, p. 82), ―exercem também um papel de
organizadores de tópicos discursivos, porque se mostram como um recurso valioso para a introdução
[...]‖, constituem o objeto de estudo desta pesquisa.
Este trabalho está dividido em três partes: na primeira está a introdução, que abriga sua
apresentação; na segunda, discorre-se sobre as anáforas encapsuladoras, base na qual foram feitas as
análises deste trabalho, em que se procurou evidenciar a importância dos encapsuladores na tessitura
textual, na construção de sentido e na progressão argumentativa no processo do texto; na terceira parte,
metodologia e análise, apresentou-se o material de trabalho e na sequência procedeu-se às análises.
Finalmente, encerrando este texto estão as considerações finais, ponto em que se reforçou a
importância das anáforas encapsuladoras enquanto recurso linguístico essencial tanto na elaboração de
um texto, quanto no ato colaborativo de interpretação ou ressignificação por parte dos interlocutores.

2 Anáforas Encapsuladoras

Ao lado dos casos de anáforas diretas e indiretas, tem-se as anáforas encapsuladoras, que ―têm
sido tratadas como um tipo peculiar de anáfora indireta‖ (CAVALCANTE, 2011, p. 71). Na concepção
dessa mesma autora, encapsular consiste em resumir proposições do discurso empacotando-as numa
expressão referencial.
Esse tipo de anáfora não retoma e nem remete pontualmente para um referente, mas encapsula
ideias, abstraídas do cotexto, ou o todo de um enunciado. ―Às vezes, o anafórico remete a longos
trechos que não podem ser identificados a uma ―entidade‖, a um referente que lhe sirva de âncora‖
(CAVALCANTE, 2003, p. 5). Neste caso, uma expressão referencial encapsuladora que se reveste de
novo referente pode vir representada por sintagma nominal ou um pronome, ou muito raramente por
38
um advérbio. A autora mencionada marca pontualmente a diferença entre as anáforas encapsuladoras e
as anáforas indiretas, assim se expressando:
A diferença crucial entre estes encapsuladores e os anafóricos indiretos propriamente
ditos, nesta perspectiva das menções, é que resumem, ―encapsulam‖, conteúdos
proposicionais inteiros, precedentes e/ou consequente. Além disso, os encapsuladores
não remeteriam a âncoras bem pontuais, bem específicas, do cotexto, mas a
informações ali dispersas. [...] toda anáfora encapsuladora é uma espécie de anáfora
indireta, por também introduzir e mencionar no cotexto uma expressão referencial
nova, apresentada como se fosse dada, por resumir conteúdos explicitados (mas
também implicitados) em porções cotextuais anteriores e/ou posteriores
(CAVALCANTE, 2011, p 73-74).

Comungando da ideia da autora supracitada, Custódio Filho (2011, p. 127) assim se posiciona
afirmando que ―o encapsulamento anafórico corresponde ao processo em que uma expressão
referencial, retrospectiva ou prospectiva, remete a uma porção cotextual de caráter proposicional, que
passa a ter o estatuto de referente a partir da utilização de tal expressão‖. Dessa forma, os
encapsuladores prospectivos, aqueles que remetem para frente do texto, dão indícios, para o leitor,
daquilo que virá no texto, enquanto que os retrospectivos têm a função de sumarizar ideias, enfatizando
aquilo que o autor deseja que fique bem marcado na memória de seu interlocutor. (Cf. CUSTÓDIO
FILHO, 2011).
É importante explicitar que o processo resumitivo dos encapsulamentos não trava o texto, no
sentido de não dar margem para progressão, assim como também não consiste em uma repetição, mas
contribui para a progressão temática, constituindo nova expressão que é crucial para a progressão
textual. Os processos referenciais, que se realizam por meio das anáforas encapsuladoras, também são
elementos linguísticos coesivos, pois na tessitura do texto ―resumem estágios de argumentos‖
(CAVALCANTE, 2011, p. 82).
Assim, fica evidenciada a faculdade das anáforas encapsuladoras de: resumir proposições do
cotexto, assim como ideias que delas possam ser inferidas, introduzir novos referentes que dão
progressão ao texto, assim como se constituírem como elementos coesivos e organizadores do tema no
corpo do texto por meio de tópicos e subtópicos, como se pode conferir no trecho seguinte,
Assim, podemos agora dizer que os encapsuladores exercem também um papel de
organizadores de tópicos discursivos, porque se mostram como um recurso valioso
para a introdução, mudança ou desvio de tópicos, assim como para a ligação entre
tópicos e subtópicos. Constituem, portanto, um dos mecanismos linguísticos de
estruturação tópica [...] as anáforas encapsuladoras sequenciam e organizam os
argumentos dentro de um texto (CAVALCANTE, 2011, p 82-83).

Nesse sentido, exercendo suas funções na construção de um texto, as anáforas encapsuladoras


desempenham suas funções recuperando informações difusas no cotexto. Para tanto, é fundamental a
colaboração do leitor, que para inferir tais informações precisa recorrer, além do conhecimento
linguístico que já fora acionado, a outros conhecimentos, dentre eles, o de mundo.
39
No ato desse processo, é exigido do leitor um alto nível de cognição, pois, para que ele possa
inferir informações terá que acionar e relacionar experiências sociais, culturais, cognitivas e
interacionais, uma vez que as anáforas encapsuladoras são uma espécie de anáfora indireta, mas que não se
apoiam em uma âncora pontual do cotexto. No entanto, no tocante a porção linguística, o
encapsulamento é fundamental na construção de sentido do texto e na sua progressão argumentativa,
pois por meio do conteúdo proposicional encapsulado os autores, contando com a cooperação e
conhecimentos de seus possíveis leitores, poderão progredir com seus argumentos, sem tornar o texto
repetitivo ou enfadonho, reforçando suas teses ao mesmo tempo em que dão andamento à progressão
argumentativa.

3 Metodologia e análise dos dados


3.1 Constituição do corpus
Para realização deste trabalho primeiro buscou-se aporte teórico. Em seguida, definiu-se o corpus
da pesquisa, o qual foi retirado das revistas Veja, de nº 20, 21, 22 e 23. As duas primeiras referentes ao
mês de maio, já as duas últimas ao mês de junho, todas do ano de 2012. Foram analisados quatro
artigos de opinião, a saber: Cabrais e Cavendishes, de Roberto Pompeu, na revista de nº 20. Fora de
controle, de J. R. Guzzo, na revista de nº 21. Sobre ternos, enigmas e erotismo, de Roberto Pompeu
de Toledo, na revista de nº 22. Nós e os outros, de J. R.Guzzo, na revista nº 23. Assim, uma vez
constituído o corpus, procedeu-se a sua análise que está exposta na seção seguinte.

3.2 Análise do corpus

Revista nº 20. Cabrais e Cavendishes, de Roberto Pompeu.

―Há Cabrais e Cabrais. Entre o primeiro Cabral (o Pedro Álvares, descobridor do Brasil) e o segundo (o Sérgio,
governador do Rio de Janeiro) medeiam cinco séculos, mas algo os une: ambos se tornaram célebres pelas
viagens. A bem da verdade, a viagem do primeiro Cabral tornou-o célebre já faz tempo, enquanto as do segundo
só recentemente se impuseram com evidência merecida. Isso não impede que o segundo, assim como o
primeiro, entre para história por força delas‖. (Veja, nº 20, maio de 2012).

No recorte acima, o pronome indefinido algo encapsula prospectivamente todo enunciado da


oração sublinhada. Ou seja, Algo condensa a informação de que eles se tornaram célebres pelas viagens
que fizeram. Nos processos encapsuladores pode-se ver claramente sua importância na tessitura e
construção de sentido do texto, assim como sua progressão argumentativa. Observe-se que o pronome
algo causa certa curiosidade ao leitor. Isso é uma estratégia que além de aguçar o interesse pela leitura
do enunciado seguinte, ―tem a função de ativar referentes‖. (C AVALCANTE, 2011, p. 82) que dá
progressão ao texto.
40
Já o demonstrativo isso encapsula, retrospectivamente, o enunciado que começa por ―A bem
da verdade‖, e vai até o ―adjetivo, merecida‖. Todo esse período está resumido pelo pronome
substantivo isso, que no período seguinte assume a função de sujeito. Neste caso, pode ser observado
o caráter de constância ou permanência que o texto deve contemplar, assim como também sua
progressão argumentativa e construção de sentido. Nesse contexto, o encapsulador desempenha esses
dois papéis, assim como o de compactar o texto evitando repetições que o tornariam muito longo e
cansativo.

Revista nº 21. Fora de controle, de J. R. Guzzo.

―O contribuinte não tem que preencher formulários ou enviar qualquer documento – nem comprovantes da
renda que recebeu, nem recibo das despesas que teve. A Receita não lhe manda protocolos ou certidões; fica
tudo registrado no computador. [...]. Por que num governo que funciona tão mal, há um serviço que funciona
tão bem? É comum ouvir-se que a tecnologia fez tudo. É um equívoco. O que realmente ganhou essa parada
foram as ideias inteligentes, e não a eletrônica. [...] se tivesse de se conformar com as suas regras, a Receita não
conseguiria, fisicamente, manter vivo o imposto de renda. Adotou então, um princípio brilhante: mandar para
o diabo as normas idiotas, caprichosas e inúteis. [...] a segunda atitude foi decidir que o contribuinte, em sua
declaração, não tem de provar nada [...]. Daria para se imaginar algo parecido no resto do governo? Os sinais não
são nada bons. A presidente Dilma não gosta dessa conversa; já chamou de ―cegos‖ os que propõem
simplificar o governo [...]. É um estouro de uma manada de mamutes. Mas Dilma, ao contrário da Receita,
acha que reduzir a quantidade de mamutes é uma ideia falida‖. (Veja, nº 21, maio de 2012).

No texto acima, a expressão referencial tudo é um tipo de encapsulador, pois resume em uma
só palavra o que foi dito anteriormente, desde ―O contribuinte‖, até ―certidões‖. Do mesmo modo,
encapsulador, o sintagma nominal um princípio brilhante condensa o período seguinte ―mandar para
o diabo as normas idiotas, caprichosas e inúteis‖. Aqui, respectivamente, têm-se exemplos de
encapsulamento retrospectivo e prospectivo. Ambas as expressões, apoiadas no cotexto, podem
introduzir novos referentes.
Na sequência, o artigo se desdobra em argumentos articulados por meio de outras expressões
referenciais, que não sejam as anáforas encapsuladoras, até chegar ao seguinte trecho: ―É pouco
comum que se aponte algum mérito num órgão do governo – especialmente nesse, a Receita Federal.
Daria para se imaginar algo parecido no resto do governo? Os sinais não são nada bons. A presidente
Dilma não gosta dessa conversa‖. O sintagma nominal, em negrito, retoma resumida e
retrospectivamente a frase interrogativa e tudo que ela evoca.
E dessa forma, encapsulando trechos do cotexto, o autor compõe um texto enxuto e inteligível,
como pode ser observado no último parágrafo do texto em que ele articula o predicado nominal ―um
estouro de uma manada de mamutes‖ para encapsular todas as partes do texto que descreve a
burocracia que emperra o País.
41
Revista nº 22. Sobre ternos, enigmas e erotismos, de Roberto Pompeu de Toledo.

―Imagine-se um salão de Brasília, de São Paulo ou do Rio, em que os presentes estivessem com o rosto coberto.
Só pelo impecável corte do terno, e ainda pelo colarinho, ou pelo rigoroso nó na gravata, seria fácil adivinhar: -
―Ah, esse só pode ser o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos!‖. O apuro no vestir tem sua correspondência nos
modos do ex-ministro: cordial, articulado, fleumático. Pois todo esse acervo de cuidado e elegância no
momento mobiliza-se em favor do bicheiro Carlos Cachoeira. Fica bem, para Márcio Thomaz Bastos, atender
tal cliente? Fica mal? Fica bem, para o país, ter um antigo ministro da Justiça sentado ao lado da figura central do
maior escândalo do ano, a zelar, na CPI, para que o pupilo se mantivesse calado? [...]. Já que os deputados e
senadores não se mostram dispostos a debruçar-se sobre as falcatruas atribuídas a Carlos Cachoeira, poderiam
inquiri-lo sobre sua infância, os sonhos de adolescente, os amores. A essas questões talvez ele respondesse, e
isso ajudaria na decifração do enorme crucial enigma que nos põe esse personagem [...]. As vantagens
econômicas daí decorrentes são evidentes. As portas se abrem para negócios em que o estado é o grande
comprador, como a indústria farmacêutica e a empreita. Mas isso não é tudo. Talvez até seja o de menos. As
gravações da Polícia Federal indicaram um gosto extremado por essa substância menos palpável, que é o poder.
[...] Mas Cachoeira ainda não estava satisfeito. Numa das gravações, trata com um assessor da compra de um
partido político. Há muitos à venda nesse país, e ele só não fechou negócio porque considerou o preço alto.
Sobra a questão: por que quereria um partido político? Essa questão se desdobra em outra: aonde pretendia
chegar? E esta em outra ainda: aonde chegaria, caso seu caminho não fosse cortado pelas investigações? Uma
resposta razoável é que acabaria imperador do Brasil. [...] Faltou chamar atenção par carga erótica da mensagem.
Não é senão num estado em que se adivinham a entrega e o desejo que alguém se joga ao outro dizendo-o
―nosso‖, e declarando-se ―teu‖. Presidencialismo dito de coalizão é isso‖. (Veja, nº 22, maio de 2012).

No trecho acima, a expressão todo esse acervo de cuidado e elegância resume a porção
textual que lhe antecede. Observe-se que para esse enunciado ter sentido, além das marcas linguísticas
postas pelo autor, é preciso que o leitor tenha conhecimento sobre esse assunto. Portanto, é por essa
razão que Koch afirma que:

[...] muito da cognição acontece fora das mentes e não somente dentro delas: a
cognição é um fenômeno situado. Ou seja, não é simples traçar o ponto exato em que
a cognição está dentro ou fora das mentes, pois o que existe aí é uma inter-relação
complexa. Voltar-se exclusivamente para dentro da mente à procura da explicação
para os comportamentos inteligentes e para as estratégias de construção do
conhecimento pode levar a sérios equívocos. Dessa forma, na base da atividade
linguística está a interação e o compartilhar de conhecimentos e de atenção: os
eventos linguísticos não são a reunião de vários atos individuais e independentes. São,
ao contrário, uma atividade que se faz com os outros, conjuntamente (KOCH, 2004,
p.31).

Por isso, tanto emissores, quanto receptores são sujeitos ativos e produtivos, porque é no ato da
interação que os sujeitos participantes dão progressão ao texto e constroem sentido, e nessa construção
linguística as anáforas encapsuladoras dão conta de sintetizar as ideias.
Continuando com a análise desse artigo de opinião pode-se observar que o rótulo encapsulador
maior escândalo do ano encapsula todas as tramoias do bicheiro que estão distribuídas ao longo do
texto como, por exemplo, as seguintes passagens: ―Duplicou os negócios ilegais com os legais.
Estabeleceu-se na indústria farmacêutica e, ao que tudo indica, na empreita de obras públicas. Ao longo
do caminho, embrenhou-se entre os políticos. O bicheiro tradicional também recruta políticos, mas não
42
mais do que para proteger suas atividades de contraventor. Cachoeira queria mais. A rede de políticos a
seu serviço sugere um aparato de infiltração nas estruturas do estado. As vantagens econômicas daí
decorrentes são evidentes. As portas se abrem para negócios em que o estado é o grande comprador,
como a indústria farmacêutica e a empreita. Mas isso ainda não é tudo.
Seguindo a sequência do artigo, logo adiante se pode conferir outro sintagma nominal e um
pronome encapsuladores, no seguinte trecho, destacados em negrito: ―Já que os deputados e senadores
não se mostram dispostos a debruçar-se sobre as falcatruas atribuídas a Carlos Cachoeira, poderiam
inquiri-lo sobre sua infância, os sonhos de adolescente, os amores. A essas questões talvez ele
respondesse, e isso ajudaria na decifração do enorme crucial enigma que nos põe esse personagem. O
sintagma nominal encapsula o conteúdo proposicional que vem antes dele, enquanto o demonstrativo
anafórico isso desempenha papel encapsulador ascendente e descendente, pois retoma para trás tudo
que diz respeito as ambições de Cachoeira, assim como resume seus projetos que ainda vão ser citados
logo a frente.
Da mesma forma, se comporta o pronome isso situado no último parágrafo do artigo, que
retoma desde ―o erotismo‖, que vem antes do pronome, e vai até a última palavra do texto:
―sensualidade‖.

Revista nº 23. Nós e os outros, de J. R.Guzzo.

"Só no Brasil" -eis aí três palavras que todo brasileiro costuma ouvir, 365 dias por ano, a respeito de coisas que
só acontecem por aqui, geralmente muito ruins, e que são desconhecidas no resto do mundo. Em geral começam
como uma discreta trapaça no uso do dinheiro público, depois se transformam num hábito nacional e, no fim,
acabam virando um maciço conto do vigário aplicado o tempo todo pelos governos- que, como viciados em
drogas, não conseguem mais viver sem ele. É o que acontece, entre tantos outros pecados exóticos, com a
"publicidade oficial". Qualquer cidadão sabe muito bem do que se trata - são esses anúncios que governantes de
todos os níveis, da alta administração federal a remotas prefeituras do interior, pagam (com dinheiro do
orçamento, é claro) para publicar em jornais e revistas, no rádio e na televisão. Dizem, ali, quanto são bondosos,
eficazes e trabalhadores - e mostram as obras de seus governos, reais ou imaginárias, como se estivessem fazendo
um imenso favor à população que pagou por elas.
A maioria dessa publicidade, para não dizer toda, trata o contribuinte como um perfeito bobo alegre, pronto a
acreditar em qualquer coisa que lhe dizem [...]. Não há inocente aqui; todos os políticos, sem nenhuma exceção,
fazem o mesmo quando estão no governo. Nesse assunto, ninguém critica ninguém, no conforto geral de saber
que delitos coletivos nunca são realmente condenados. É assim que permanece viva, cada vez mais, a publicidade
oficial - uma aberração só vista no Brasil. Dá para imaginar o governo da Itália, por exemplo, gastando fortunas
na mídia para dizer "Itália - um país para todos"? Ou algo assim: "Prefeitura de Londres - antes não tinha, agora
tem"? Não dá. O funcionário que sugerisse uma coisa dessas seria provavelmente encaminhado a uma
instituição psiquiátrica.
[...] Os políticos alegam que é pouco, diante do total de quase 90 bilhões aplicados no mercado publicitário
brasileiro em 2011. Pode ser, mas o dinheiro não é deles - é do cidadão, e está sendo jogado no lixo para pagar os
elogios que fazem a si próprios. Sua desculpa é que os governantes têm o dever de "informar a população" e
"prestar contas" de como estão aplicando o orçamento. É uma piada. Não informam coisa nenhuma, e, na hora
de prestar contas de verdade, fazem justamente o contrário: desligam a chave geral para deixar tudo o mais
escuro possível.
Os órgãos de comunicação, sem dúvida, se beneficiam da publicidade oficial; nenhum deles é uma santa casa de
misericórdia, e todos têm de pagar suas despesas. Mas a imprensa de verdade vive do apoio do seu público e dos
anúncios privados que ele atrai, e não de verbas publicitárias do governo. Seu único mandamento, nessa
43
história toda, é manter a própria independência. E os que não mantiverem? Problema deles. Veículos que, em
troca de anúncios, só publicam o que interessa ao governo, e escondem tudo o que não interessa, têm de resolver
isso com os seus leitores, ouvintes e espectadores; [...]. O certo, no fim de todas as contas, é que o governo não
deveria pagar um único tostão para a mídia publicar sua propaganda‖. (Veja, nº 23, junho de 2012).

Neste artigo as anáforas encapsuladoras desenvolvem, como sempre, os papéis de introduzir


novos objetos no discurso por meio de tópicos discursivos, manter a unidade de centração, assim como
a progressão textual. Em suma, as anáforas encapsuladoras são um mecanismo que favorece a coerência
na elaboração do texto. Veja-se, por exemplo, o caso dos sintagmas nominais (ou rótulos) das seguintes
expressões contidas em passagens do trecho acima: dessa publicidade, Nesse assunto, o contrário,
uma coisa dessas, Sua desculpa, É uma piada, Seu único mandamento, nessa história toda, que
retomam porções do texto já enunciadas ou ainda por serem enunciadas.
A expressão dessa publicidade retoma tudo que vem antes dela, especialmente o seguinte
trecho: ―são esses anúncios que governantes de todos os níveis, da alta administração federal a remotas
prefeituras do interior, pagam (com dinheiro do orçamento, é claro) para publicar em jornais e revistas,
no rádio e na televisão. Dizem, ali, quanto são bondosos, eficazes e trabalhadores - e mostram as obras
de seus governos, reais ou imaginárias, como se estivessem fazendo um imenso favor à população que
pagou por elas‖. Eis aí mais um exemplo de anáfora encapsuladora retrospectiva. Apenas pela
introdução de um sintagma todo conteúdo proposicional foi condensado.
Já no trecho que segue: ―Não há inocente aqui; todos os políticos, sem nenhuma exceção, fazem
o mesmo quando estão no governo. Nesse assunto, ninguém critica ninguém, no conforto geral de
saber que delitos coletivos nunca são realmente condenados‖, a expressão em negrito encapsula tanto o
que vem antes como o que vem depois dela. Esse tipo de sumarização engloba e compacta porções do
texto, deixando-o mais objetivo e enxuto.
Veja-se o trecho a seguir: ―Dá para imaginar o governo da Itália, por exemplo, gastando fortunas
na mídia para dizer "Itália - um país para todos"? Ou algo assim: "Prefeitura de Londres - antes não
tinha, agora tem"? Não dá. O funcionário que sugerisse uma coisa dessas seria provavelmente
encaminhado a uma instituição psiquiátrica‖. Nesse contexto, as expressões: assim e uma coisa
dessas remetem ao conteúdo anterior a elas respectivamente, enquanto o sintagma nominal ―Sua
desculpa é que os governantes têm o dever de "informar a população" e "prestar contas" de como
estão aplicando o orçamento‖, encapsula para frente ou prospectivamente.
A seguinte expressão É uma piada retoma tudo que foi dito anteriormente sobre a opinião do
autor em relação à publicidade pública. Esses respectivos encapsuladores englobam informações
dispersas em todo o artigo. Ou seja, maximizam potencialmente a condensação do texto.
Prosseguindo com a análise, pode-se constatar que no seguinte trecho: ―Não informam coisa
nenhuma, e, na hora de prestar contas de verdade, fazem justamente o contrário: desligam a chave
geral para deixar tudo o mais escuro possível‖. ―[...]
44
Os órgãos de comunicação, sem dúvida, se beneficiam da publicidade oficial; nenhum deles é uma
santa casa de misericórdia, e todos têm de pagar suas despesas. Mas a imprensa de verdade vive do
apoio do seu público e dos anúncios privados que ele atrai, e não de verbas publicitárias do governo‖,
o sintagma o contrário se constitui em uma sintética expressão referencial encapsuladora prospectiva.
Outros exemplos de encapsulamentos estão nos dois sintagmas nominais seguintes: Seu único
mandamento e nessa história toda é. O primeiro encapsula o texto seguinte, o segundo sintetiza
todas as informações apresentadas no texto até então. Nessa perspectiva, é importante enfatizar que as
anáforas encapsuladoras resumem em um sintagma ou em pronome anafórico partes do cotexto.
Porém essas partes não precisam, necessariamente, estar linearmente articuladas. Em muitos casos, elas
estão dispersas no corpo do texto, assim como, por vezes, o complemento delas está alojado em outros
conhecimentos do interlocutor.

Considerações finais

Para que um texto seja coerente ele precisa articular diversos aspectos linguísticos. No entanto,
sua coerência, de fato, está atrelada à ressignificação de sentido que o leitor lhe atribui. Para tanto, são
evolvidos aspectos linguísticos, cognitivos, sociais, culturais e interacionais.
Quanto aos aspectos linguísticos, o autor necessita fazer escolhas, dentre tantas, para conseguir
dizer aquilo a que se propõe. Nesse sentido, os processos de referenciação são essenciais na tessitura e
na progressão argumentativa de um texto bem elaborado, assim como na construção de sentido por
parte dos interlocutores. Por isso, as introduções referenciais (as dêiticas, por exemplo) e as anáforas
desempenham papel preponderante na feitura de um texto, seja ele oral ou escrito.
As anáforas encapsuladoras, uma espécie de anáfora indireta, por sua vez, têm a função de
resumir porções do texto, evitando, dessa forma, a repetição de um mesmo trecho. À medida que esse
processo de referenciação condensa um trecho em um sintagma ou em um pronome anafórico,
também introduz novo(s) referente (s), que, por sua vez, mantém a organização tópica e subtópica do
texto ao mesmo tempo em que se constituem em elementos de progressão textual.
Desempenhando tais papéis, as anáforas encapsuladoras são essenciais para organizar a unidade
de sentidos do texto, ou seja, sua coerência. Assim, elas se configuram como um recurso linguístico
potencialmente importante na elaboração de um texto, seja ele artigo de opinião, gênero escolhido para
objeto de estudo desta pesquisa, ou outro qualquer, dada sua característica peculiar de resumir
proposições discursivas e contextuais anteriores ou posteriores a elas, e de introduzir novos referentes
dos quais o autor poderá discorrer a respeito, transformando a nova informação em tópico ou
subtópico, escolha que está atrelada ao foco de informações que o autor pretende transmitir.
45

REFERÊNCIAS:

CUSTÓDIO FILHO, Valdinar. Múltiplo fatores, distintas interações: esmiuçando o caráter


heterogêneo da referenciação. 2011. 330f. Tese (Doutorado em linguística_ - Centro de
Humanidades. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2011.
CAVALCANTE. Mônica Magalhães. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2012.
______. Referenciação: sobre coisas ditas e não ditas. Fortaleza: Edições UFC, 2011.
______. A construção do referente no discurso. Fascículo. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha,
2003.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Introdução a linguística textual: trajetória e grandes temas.
São Paulo: Martins Fontes, 2004.
VAL, Maria da Graça Costa. Redação e textualidade. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
46
O DISCURSO L

(OU: COR-DE-ROSA PARA AS MENINAS)

Ana Paula El-Jaick10

O que um gay leva para o segundo encontro? Não há segundo encontro para um gay. O que a
lésbica leva para o segundo encontro? As malas, o gato, os livros, enfim, o caminhão de
mudança.

Resumo: Na fronteira entre literatura, panfletagem, biografia, a assim chamada literatura queer ganhou força
principalmente a partir dos anos 1960, embalada por uma leitura da filosofia desconstrucionista de Jacques
Derrida. Com o que ficou conhecido como estudos de gênero, a literatura gay, ao menos aparentemente, ganhou uma
identidade, o que se refletiu no próprio mercado editorial. No Brasil, esse nicho só veio a ser devidamente
explorado nos anos 1990-2000, com o surgimento das Edições GLS. Esse selo, do Grupo Summus, veio a suprir
a carência de um segmento da sociedade que vinha sendo sistematicamente silenciado, não discursivizado – era
como se não existisse. Afinal, o amor que não ousa dizer seu nome tampouco ousa ser lido. Entendendo que o
discurso reconhecido como literário é, também, um discurso em que sujeitos se posicionam discursivamente, este
trabalho pretende analisar a representação das lésbicas nos livros publicados pelas Edições GLS desde sua
fundação até os dias de hoje. Tendo esse objeto de pesquisa delimitado, meu objetivo neste artigo é debater
alguns efeitos de sentido possíveis para aquelas que se identificam no significante simbolizado pela letra L da
sigla (GLS), em nossa contemporaneidade.

Palavras-chave: Edições GLS; Literatura queer; Estudos de gênero.

Abstract: On the border between literature, pamphlets, biography, the so-called queer literature gained momentum
mainly from the 1960s, packed by a reading of deconstructionist philosophy of Jacques Derrida. In what became
known as gender studies, the gay literature, at least apparently, gained an identity, which is reflected in the editorial
market itself. In Brazil, this niche only came to be properly explored in the years 1990-2000, with the emergence
of GLS Editions. This segment of the Summus Group came to supply the lack of a segment of society that had
been systematically silenced. After all, the love that dare not speak its name cannot be read. Understanding that
the speech recognized as literature is also a discourse in which individuals position themselves discursively, this
study aims to examine the representation of lesbians in books published by Editions GLS from its foundation to
the present day. Having defined my object of research, my goal in this article is to discuss some possible effects
of meaning for those who identify themselves in the significant symbolized by the letter L (in the GLS that gives
name to the publishing books) in the present days.

10 Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: [email protected]


47
Keywords: Editions GLS; Queer Literature; Gender Studies.

Em 1998, a Editora Summus, de São Paulo, cria o selo GLS com o intuito de produzir e veicular obras de ficção
e não-ficção para gays, lésbicas e simpatizantes. Em seu site, as Edições GLS se apresentam como parte do
movimento que vem ganhando força no Brasil nas últimas décadas pela igualdade para as minorias sexuais
(<http://www.gruposummus.com.br/edgls/historia>). Trata-se de um movimento pela visibilidade, para que
essas minorias se mostrem, saiam do armário, digam sua existência. Um movimento para mostrar que, ainda que
minoria, outros gêneros existem. Assim, com o objetivo de publicar ―obras livres de preconceito contra as
minorias‖ (Idem), nascem as edições GLS.

Esses gêneros minoritários se unem na sigla LGBTT, igualando identidades sexuais que se reconhecerem
na diferença. Afinal, cada uma dessas letras representa uma orientação sexual diferente da mainstream, qual seja, a
heterossexual. Dessa forma, a identidade LGBTT é não apenas definida pela sexualidade, como pela diferença.

Pensada para atender a essa minoria, as Edições GLS dizem ter

Orgulho de publicar livros dirigidos a minorias sexuais incentivando a autoestima, a


liberdade interna, a expressão da identidade legítima e natural de cada um (Ibidem).

De início, já se pode ressaltar a escolha vocabular da editora: ela diz ter ―orgulho de publicar livros
dirigidos a minorias sexuais‖. Orgulho parece ter se transformado numa espécie de palavra de ordem do
movimento gay – o que, talvez, estabeleça já uma primeira peculiaridade das Edições GLS frente às demais: o
próprio selo GLS sai do armário ao se autoproclamar dirigido a esse público-alvo específico. Afinal de contas, é
claro que podemos recolher exemplos na literatura brasileira de obras com temática gay, ou personagens gays
antes da aparição da GLS no mercado editorial. No caso de uma literatura em que podemos reconhecer um
discurso especificamente lésbico, Cassandra Rios deve ser a figura mais conhecida entre nós, e seu livro Eu sou uma
lésbica, o exemplo mais notório. Contudo, até então não tínhamos um selo editorial que proclamasse, como as
Edições GLS proclamam, orgulho de, a despeito de nossa sociedade heterogênea, dirigir-se prioritariamente ao
homo, àquele que ama o semelhante, o igual – e é dessa forma que justifico sua eleição como objeto de análise.

De sua inauguração até o ano de 2006, a editora GLS foi dirigida por Laura Bacellar e pregava
publicamente em seu site que seu objetivo era construir uma imagem positiva dos homossexuais. Segundo
Bacellar, tratava-se de uma etapa necessária – ou seja, num primeiro momento era preciso mostrar que os homos são
iguais aos héteros; que os homos são ―gente como a gente‖. Assim, a editora reconhecia que o foco não estava na
qualidade literária. O objetivo era, então, que os livros tivessem uma linguagem direta, clara, que permitisse a
identificação imediata por um jovem que se descobrisse gay e se visse sozinho, desamparado, sem um modelo
positivo a se fiar.
48
Seguindo as premissas de Bacellar, as Edições GLS tinham uma missão: acalentar um discurso, necessário
naquele instante, que ajudasse a consolidar esse imaginário outro, positivo em relação aos homossexuais, até
então fora do mercado editorial. Sem constrangimento, Bacellar defendia a tese de que era preciso passar por
uma fase em que a pieguice era mais importante do que altas literaturas, pois o ponto a ser focado convergia não
para a qualidade da pena, mas para a afirmação positiva de uma identidade homossexual. É nesse espírito que ela
declara: ―Meu propósito nas Edições GLS não foi montar uma editora de literatura de vanguarda, porém de
literatura útil, prazerosa, positiva para homossexuais‖ (apud Facco, 2004, p.167).

Esse posicionamento em defesa de um discurso politicamente correto norteou publicações da GLS enquanto
Bacellar esteve à frente da editora. No então antigo site da GLS, sob a rubrica ―envio de originais‖, instruía-se
todo autor que almejasse ver seu livro publicado pela editora no sentido de que ele criasse personagens que
mantivessem relacionamentos saudáveis com outros personagens do mesmo sexo. Em resumo, suas personagens
tinham de ser felizes.

A esse respeito a escritora carioca Lúcia Facco, em seu livro As heroínas saem do armário: literatura lésbica
contemporânea (sobre o qual voltarei a falar mais adiante), colheu depoimentos de algumas autoras que não
negavam a importância de Bacellar naquele momento histórico de abertura de mercado para esse nicho, mas que
criticavam o posicionamento de valorização de uma espécie de didatismo em oposição a uma qualidade literária
esperada. Vange Leonel, por exemplo, escritora da casa, reconhecia a necessidade de se rever o moralismo que
assolava então a literatura brasileira de um modo geral, cujos personagens homossexuais eram sempre sem
caráter – ou melhor, a própria homossexualidade já era sinal de perversão. Ao mesmo tempo, ela criticava a
espécie de fôrma que configurou as primeiras obras publicadas pelo selo GLS. Ela, assim como Fátima Mesquita,
também escritora com títulos publicados pelas Edições GLS, reconhecem nesse discurso didático lésbico atualizado
por Bacellar no período em que esteve na direção da editora mais uma pobreza do que um enriquecimento para a
assim chamada literatura queer.

Todavia, Bacellar não se preocupava com o tédio que essa literatura, propositadamente composta de um
enredo simples e confeccionada em uma linguagem descomplicada, poderia provocar em leitores um pouco mais
exigentes. É assim que Bacellar, enquanto dirigiu o selo GLS, publicou títulos como Sexo entre mulheres: um guia
irreverente, da norte-americana Susie Bright, cuja capa, um desenho da boca de duas mulheres num quase-beijo, ou
pós-beijo, já dá uma ideia do que se pode encontrar em suas páginas.

Ao mesmo tempo, como disse, não está sendo questionada aqui a importância capital que Bacellar teve
na posição de desbravadora do mercado editorial LGBTT no Brasil. Ela fez com que esta voz fosse ouvida:
discursos da vontade de uma mulher por outra mulher.

Seguindo esse princípio, ela publicou títulos como A livraria da esquina e outros contos de mulheres, em que a
autora Naomi Conte, numa linguagem direta, segreda-nos histórias de alcova, por vezes na excitação do
momento narrado por suas personagens.
49
Aqui é interessante notarmos que a proposta norteadora de Bacellar como editora-chefe das Edições
GLS acabou encontrando, na discursivização realizada por Conte, uma transgressão do discurso esperado para
personagens lésbicos. Afinal, se a lésbica é aquela que leva o caminhão de mudança no segundo encontro, como
ironiza a conhecida piada que serve de epígrafe a este artigo, Conte discursiviza as lésbicas em outras posições
possíveis pelos dezoito contos que compõem seu livro. Suas personagens escapam ao estereótipo que se faz das
lésbicas de que, entre mulheres, o que vale é o sentimento, e estabelecem uma outra discursivização: nas páginas
de Conte, a lésbica faz sexo. Amor, ao contrário, não é o forte das mulheres de Conte. Elas usam vibradores
coloridos entre as coxas, fantasiam com ―a mulher tesão perfeito‖ (2007, p.60), com corpos musculosos, numa
suruba, no aconchego de um motel. O discurso L, aqui, ultrapassa o bom-comportamento, ao mesmo tempo em
que consolida uma preferência por uma literatura utilitária, uma escritura que dá mais atenção ao que é dito do
que ao como é dito.

Como resultado preliminar de minha pesquisa, avalio que esse discurso de Bacellar, que privilegiou uma
―função social‖ do texto literário gay, acabou por ratificar a ideia de que literatura queer é sinônimo de literatura de
má qualidade.

Outra questão defendida por Bacellar nas entrevistas a que deu a Facco, e a qual me oponho, diz
respeito à sua defesa de que seria necessário ser lésbica para apreciar um livro desse gênero – e, por vezes, até
mesmo para entendê-lo. Entendo que o discurso de Bacellar acaba por ser contraditório: se num momento ela
diz que sua intenção era mostrar que os homossexuais são iguais aos heterossexuais, em outro ela mesma admite
que editava livros somente apreciáveis, e compreensíveis, para os homos. Preliminarmente, defendo a tese de que
Bacellar fortaleceu, com sua postura, uma espécie de apartheid de gênero em sua gestão frente às Edições GLS.

Em minha pesquisa, ao examinar o catálogo das Edições GLS, fiz a primeira constatação de que esse
selo vem publicando, desde sua fundação, ficção (romances e contos) e não-ficção (títulos informativos)11 para
gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais de uma forma quase igualitária. Dos 56 títulos do atual catálogo
há 20 (vinte) obras dedicadas mais especificamente aos gays masculinos, 19 (dezenove) às lésbicas, 15 (quinze)
publicações gerais, em que não se pode identificar alguma destinação a algum subgênero específico (livros como
O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade e Astrologia para gays e lésbicas), e, finalmente, 2 (dois) livros
dedicados ao público trans (Olhares de Claudia Wonder e Transexuais).

É óbvio o desequilíbrio gritante com a defasagem de oferecimento de títulos aos trans. Entretanto, não
me ocuparei dessa questão aqui, posto que não é esse o meu objeto de pesquisa (o que, é claro, pode ser
considerado mais um apagamento desse gênero, operado, agora, por mim). Uma vez que minha investigação tem
como foco o discurso dirigido ao L da sigla, ou seja, às lésbicas, o que me chama a atenção no catálogo da GLS é
o surpreendente empate técnico no número de publicações dedicadas a gays e lésbicas.

Minha surpresa está no fato de que as lésbicas, historicamente, sofrem de um duplo silenciamento –
mesmo dentro da comunidade LGBTT. Recai sobre elas um preconceito em duas vias: por ser mulher, e por gostar

11Como explica a atual editora da casa, Soraia Cury, as obras de não-ficção são ―obras que discutem a homossexualidade da
ótica da educação, da sociologia, da antropologia e da psicologia‖ (em entrevista por e-mail).
50
de outras mulheres. Daí um duplo interesse meu em investigar as Edições GLS: como uma instituição que se
dispõe a discursivizar minorias sexuais e, além disso, como um selo editorial que coloca em circulação tantos
títulos dedicados a L quanto a G. Donde meu objetivo de examinar como vêm sendo atualizados discursos lésbicos
dirigidos a esse público (L) pelas Edições GLS.

Delineado nem corpus de análise, verifico, mais uma vez, um equilíbrio agora entre obras de ficção e de
não-ficção que têm em comum o fato de discursivizar relações entre mulheres. Em comum a todos eles está a
temática – o lesbianismo –, e o fato de que a escrita é feita por escritoras lésbicas. O raciocínio é que o olhar de
quem vê por dentro já é, por si só, um olhar de especialista: são escritoras lésbicas cuja competência se baseia nisto:
em seu próprio lesbianismo.

Foge um pouco a essa regra o já citado livro de Lúcia Facco, As heroínas saem do armário: literatura lésbica
contemporânea. Para além do lesbianismo da autora, a obra é uma adaptação de sua dissertação de Mestrado,
defendida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). De difícil classificação, seu livro é uma espécie de
ensaio epistolar, em que a autora troca cartas com professores e amigos sobre o tema de seu Mestrado: a literatura
lésbica contemporânea. Porém, para além de tentativas de classificação, Facco (que ainda é autora de outros dois
títulos publicados GLS) analisa em seu texto o status que os romances lésbicos ganham na contemporaneidade a
partir do exame de cinco romances escritos por lésbicas – e dirigidos a elas.

A autora parece visar àquilo que, em dado momento, ela fala ser o objetivo da Filosofia: ―É a Filosofia,
que não formula perguntas, pois estas demandam respostas, mas questões, que apenas nos levam ao prazer de
pensar‖ (2004, p.52). Seu livro, de fato, nos faz pensar.

Facco coloca e retoma questões, como a de Bertha Harris que, em Our right to love, contabiliza um
silêncio de 24 séculos entre a poeta Safo e o nascimento da escritora norte-americana Nathalie Clifford Barney –
aquela que, abertamente lésbica, endereçava poemas a suas amantes, e que inspirou Marguerite Radclyffe Hall a
compor a personagem principal de O poço da solidão, o clássico-lésbico publicado em 1928, na Inglaterra. Esse
silêncio, mostra Facco, produziu e produz o efeito de dar a entender que o lesbianismo não existe, nunca existiu.

Como afirmei anteriormente, o discurso lésbico sofre um duplo apagamento pelo fato de se tratar de um
discurso, antes de tudo, produzido por mulheres e, além disso, dirigido, sobretudo, a elas. Afinal, como sabemos,
a mulher sofreu historicamente um silenciamento que lhe negava, inclusive, o direito ao prazer, à escolha de
quem amar. À mulher sempre ficou reservado o lugar da maternidade – e, para isso, não é preciso sentir prazer.

Como bem coloca Facco, citando a História das mulheres no Ocidente, de Duby Perrot:

Hoje poderíamos até rir de conclusões científicas como a da ovologia, em pleno


desenvolvimento entre 1840 e 1860, que ‗estabelece que o prazer feminino não é
necessário à fecundação: esta descoberta confirma a vocação maternal da mulher,
justifica o egoísmo masculino e fundamenta a hostilidade contra o inútil clitóris‘‖
(Facco, 2004, p.67).
51

O prazer da mulher foi sistematicamente cerceado (sem nos esquecermos de que, em muitos casos, o
verbo continua no presente). Consequentemente, o prazer, o amor entre mulheres também o foi – ou ainda é.

Lendo o estudo de Facco, encontramos mais evidências de tal apagamento da posição da mulher em
nossa cultura ocidental. Em certa altura, a autora informa que a pederastia era considerada crime pelo Código
Civil inglês, e assim continuou, mesmo com uma reforma legislativa ocorrida no século XIX. Ao mesmo tempo,
o homossexualismo feminino não era considerado crime. Isso porque, ao questionarem a rainha Vitória sobre o
assunto, esta respondeu que tal coisa não existia (Facco, 2004, p.65). Assim sendo, entende-se que os
movimentos feministas dos anos 1970 contribuíram para dar voz não apenas às mulheres em geral, mas, também
(e a reboque), às mulheres lésbicas.

Essa obra de Facco foi um dos últimos títulos editados ainda sob a chancela de Bacellar frente às
Edições GLS. A partir de 2006, Soraia Cury assume seu posto como editora-chefe do Grupo Summus. De
acordo com ela, vislumbrando um público mais amplo do que apenas o minoritário que se identifica em alguma
das letras LBGTT, as Edições GLS sofreram uma reformulação editorial em seu aniversário de dez anos, ou seja,
em 2008. Um dos objetivos era conquistar gays e não-gays mais pela qualidade dos livros do que pela
identificação com o tema. Assim, explica Cury, houve um investimento em literatura de alta qualidade e, também,
no padrão gráfico dos livros. É dessa maneira que, ao contrário de Bacellar, ao ser questionada sobre o que é
preciso para que um livro seja publicado nessa editora, Cury responde:

Se for ficção, o livro precisa ser bem escrito e, acima de tudo, original. De nada adianta
mandar uma história de amor banal, que começa com homofobia interna e termina com
final feliz, porque disso os leitores já estão cansados. E, claro, o autor deve dominar a
língua portuguesa. Originalidade, sensibilidade, bom humor, trama bem construída,
personagens interessantes... Sem isso, fica difícil publicar algo com qualidade (entrevista
por e-mail).

Como se vê, Cury se posiciona do lado diametralmente oposto ao de sua predecessora quando dá mais
importância à qualidade do escrito do que ao happy end da história. Para ela, antes de tudo trata-se de literatura;
logo, é preciso que a obra tenha personagens bem construídos, trama verossímil – qualidades que, de acordo
com Cury, contribuem para que um livro possa ser considerado boa literatura.

Ao mesmo tempo, é claro que Cury não se abstém dos preceitos básicos seguidos pelo selo GLS. Para o
caso das obras não-ficcionais, continua a máxima de que elas devem, de alguma forma, melhorar a autoestima do
leitor. Além disso, Cury mantém as Edições GLS como janela para a minoria LGBTT – o que, acredita ela, acaba
por contribuir para a consolidação dos direitos dos homossexuais. Ao mesmo tempo, ela não quer esquecer o S
da sigla que dá nome à editora:
52

A GLS nunca teve pudor de dizer a que veio: tirar da marginalidade os


membros da comunidade LGBT. Porém, isso não significa que todo leitor da nossa
editora deva ser lésbica, gay, bissexual ou transgênero. O "S" de simpatizantes é muito
importante, uma vez que amigos e familiares do nosso público-alvo sempre se
beneficiam com a leitura desse tipo de livro. Por meio das histórias e dos debates, eles
passam a compreender melhor aqueles que amam. Cria-se uma cultura de respeito (em
entrevista por e-mail).

Em sua gestão, um dos títulos lançados na banda do discurso L, em 2009, foi a não-ficção As lésbicas, da
francesa Stéphanie Arc. Publicado na França como parte da coleção ―Ideias feitas‖ [Idées reçues], da editora Le
Cavalier Bleu, o livro começa com as muitas designações das lésbicas (sapatão, invertida, entendida, fanchona, safista) até
chegar às tais ideias feitas que são perpetuadas em relação a elas. Nesse percurso, Arc analisa vários discursos
materializados sobre a lésbica, dentre eles o discurso médico – como o que buscou, sem sucesso, encontrar na
testosterona a causa para o lesbianismo (2006, p.51) – e o discurso jurídico – como o que levou à criação do
termo lesbofobia, nos anos 1990, para designar a opressão dirigida especificamente às lésbicas (Idem, p.98).

É interessante notarmos que Arc acaba por desenhar, em linhas bem soltas, identidades das lésbicas
contemporâneas. Como ela adverte, se a única coisa que une diversas mulheres sob o mesmo rótulo lésbicas é a
sexualidade comum, então as lésbicas serão tão diferentes quanto diferentes posições assumirem nos incontáveis
discursos em que tomarem parte. É tomando posições discursivamente que Arc constrói o retrato de várias
identidades lésbicas, como, por exemplo, o das lésbicas que são mais facilmente reconhecíveis socialmente: as
masculinas, aquelas cujo imaginário em nossa formação discursiva as colocam como falando palavrões e
trocando ideias com o mecânico.

Arc, pelas páginas de seu livro, vai desconstruindo, uma a uma, essa e outras ideias feitas sobre as
lésbicas. Assim, se as lésbicas masculinas são aquelas que, segundo nosso imaginário sociocultural, têm alma de
homem num corpo de mulher, Arc desmistifica o discurso de que uma lésbica feminina seja, na verdade, uma
falsa lésbica, na medida em que seriam heterossexuais que se deixaram desviar do bom caminho (2006, p.17).

Outra ideia feita rebatida por Arc é a que diz serem as lésbicas puro sentimentalismo, o que se combina à
ideia disseminada de que não é exatamente sexo o que há entre mulheres. Ainda em outro capítulo de seu livro,
Arc destina sua contra argumentação à máxima popular de que as lésbicas são meninos frustrados – ou, ainda,
que só são lésbicas porque não encontraram o homem certo.

A ideia de que o lesbianismo não existe – presente também em Facco, que nos mostrou como a
ignorância da rainha Vitória poupou algumas inglesas de serem enquadradas como criminosas – também é
analisada por Arc quando trata da ideia preconcebida de que ―a homossexualidade feminina é melhor aceita do
que a homossexualidade masculina‖:
53
A sexualidade lésbica nunca foi reprimida simplesmente porque se considerava que ela
não existia. Aliás, como a sexualidade feminina. Assim, para que condenar um prazer
insignificante? (2006, p.99)

Contra todas essas e outras ideias feitas, como a de que só se é lésbica porque se foi agredida
sexualmente na infância, Arc lembra: ―Não se é homossexual porque se detesta os homens, mas porque se ama e
se deseja as mulheres‖ (Idem, p.79). E o fato de uma mulher amar e desejar outra mulher não deveria ter maiores
consequências do que estas: o amor, o desejo.

Arc, formada em Filosofia pela Sorbonne, mostra que, por detrás das ideias feitas analisadas por ela, há
uma perspectiva essencialista nesse discurso ocidental secular. Esse discurso toma como uma verdade natural,
essencial (como uma ideia feita) que, por exemplo, um homem seja viril por natureza – e que, por natureza, seja
desejante do sexo oposto. Da mesma forma, as ideias preconcebidas (e preconceituosas) em relação às lésbicas
nascem por se acreditar numa espécie de essência lésbica – que não passa de uma metafísica, posto que não existe
(Arc, 2006, p.119).

Por fim, Arc analisa a ideia feita de que ―Não se é feliz quando se é lésbica‖ (2006, p. 113ss). Como
mostra Arc, tal preconceito, como todos os demais, não nasceram do nada: com uma referência cinematográfica,
literária, dramatúrgica de personagens lésbicas deprimidas, suicidas, não é de se espantar que seja feita essa
ligação entre lesbianismo e infelicidade. Daí, também, entendermos melhor a recorrência, a insistência pela
expressão orgulho flagrada já no início deste texto: pois o discurso L, agora, quer se afirmar como um discurso que
também pode ver a vida em cor-de-rosa.

Referências bibliográficas:

ARC, Stéphanie. Les lesbiennes. Paris: Le Cavalier Bleu, 2006 (Idées Reçues).

BRIGHT, Susie. Sexo entre mulheres: um guia irreverente. Tradução: Sonia Simon. São Paulo: Summus, 1998.

CONTE, Naomi. A livraria da esquina: e outros contos de mulheres. São Paulo: GLS, 2007.

CURY, Soraia. Entrevista concedida a Ana Paula El-Jaick por e-mail. 19 març 2013.

FACCO, Lúcia. As heroínas saem do armário: literatura lésbica contemporânea. São Paulo: GLS, 2004.

GRUPO SUMMUS. Disponível em: <http://www.gruposummus.com.br/edgls/historia>. Acesso em: 20 març


2013.

RADCLYFFE-HALL, Marguerite. O poço da solidão. Tradução: José Geraldo Vieira. São Paulo: Abril
Cultural, 1974[1928]
54
RIOS, Cassandra. Eu sou uma lésbica. 2. ed. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2006

A ANÁLISE DOS ELEMENTOS COMPOSICIONAIS DO TEXTO: A


RELAÇÃO ENTRE LINGUÍSTICA DESCRITIVA E ANÁLISE TEXTUAL
DOS DISCURSOS

André Anderson Cavalcante Felipe12

Prof. Dr. João Gomes da Silva Neto (Orientador) 13

Resumo: O artigo apresenta questões teóricas sobre a análise de elementos composicionais do texto com base
na Análise Textual dos Discursos (ATD) e na Linguística Descritiva (LD), evidenciando uma relação entre essas
teorias de forma a possibilitar melhorias para a atividade do analista de texto. Como objetivo, pretendemos
elucidar algumas competências necessárias para que o analista de texto desenvolva suas atividades de forma
satisfatória, ao analisar os elementos que constituem o texto: as proposições-enunciados e os sintagmas. Como
referencial teórico, utilizamos os pressupostos de Adam (2011) e Perini (2006), para nortear os procedimentos de
análise das proposições-enunciados, e dos aspectos sintáticos e semânticos dos sintagmas nominais e verbais no
texto. O aporte metodológico tem como base a pesquisa bibliográfica e documental para fundamentar os
procedimentos teóricos e práticos necessários à prática dos analistas de texto. Os resultados apontam que as
atividades de análise textual devem ser iniciadas pela descrição linguística, ou seja, descrever, caracterizar,
segmentar e sistematizar o texto, para chegar ao discurso. Para isso, o analista de texto deve levar em
consideração: a) as marcas linguísticas do texto (peritexto), b) a existência de proposição-enunciado, c) a
integridade do texto (limitar-se ao que está escrito).

Palavras-chave: Análise de Texto. Analista de Texto. Análise Textual dos Discursos. Linguística Descritiva.

Abstract: The paper presents theoretical questions about the analysis of compositional elements of the text-
based in Textual Analysis of Discourse (TAD) and Descriptive Linguistics (DL), evidencing a relationship
between these theories in order to enable improvements to the activity of analyst. As a goal, we intend to
elucidate some skills to text analyst develops of the text‘s constitute elements analysis: the propositions-
statements and syntagmas. As theoretical reference, we use the assumptions of Adam (2011) and Perini (2006),
to guide the procedures for analysis of propositions, utterances, and the syntactic and semantic aspects of verbal
and nominal syntagmas in the text. The methodological approach is based on the research literature and
documents to support the necessary theoretical and practical procedures text analyses. The results indicate that
the activities of textual analysis should be initiated by the linguistic description, in other words, describe,
characterize, and systematize the target text, to get to the discurs. So, the analyst text should take into account: a)

12
Doutorando em Estudos da Linguagem na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail:
[email protected]
13 Professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da Linguagem na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN). E-mail: [email protected]


55
the language of the text tags (peritext), b) the existence of proposition-statement, c) the integrity of the text (to
keep to what is written).

Keywords: Text Analysis. Text Analyst. Textual Analysis of Discourse. Descriptive Linguistics.

1. Introdução

Na perspectiva de promover avanços para os estudos das derivações, funções e especificidades da língua,
a Linguística Textual (LT) busca compreender os elementos que compõem a língua, tanto no viés formal, quanto
no viés discursivo.

Dessa forma, a LT deve elaborar meios para definir e organizar as classes de análise que estão na seara
da língua e do discurso. Diante desse objetivo, Adam (2011, 43) sugere a LT como um subdomínio do
campo mais vasto da análise das práticas discursivas, propondo a Análise Textual dos Discursos (ATD),
que implica em ―uma articulação de uma LT desvencilhada da gramática de texto e uma análise de
discurso emancipada da análise de discurso francesa‖.

A ATD tem como base a análise das funções das categoriais da língua e do texto. Salienta-se que língua e
texto não se distinguem na função, apenas apresentam questões diferenciadas teórica e metodologicamente
(SILVA NETO, 2012). A ATD trabalha na perspectiva do texto para chegar ao discurso, ou seja, a análise do
discurso mediado pelo texto.

Para propor o quadro teórico da ATD, Adam (2011) postula a existência de quatro níveis possíveis de
atuação, presentes na LT, conforme estão estabelecidos na figura 1.

Figura 1 – Análise dos Discursos proposta por Adam (2011)

Fonte: (ADAM, 2011).


56
A figura apresenta duas divisões, dentre elas, uma reservada à LT, para a análise textual dos
elementos que podem ser marcados no texto. São eles:

a) as Palavras, que se combinam num nível lexical e morfossintático em proposições;


b) as Proposições, que se combinam e se organizam em períodos e sequências;
c) os Períodos e/ou Sequências, que se organizam em plano de texto;
d) o Plano de texto, que promove a estrutura do texto no todo.
A ATD não estipula uma ordem cronológica ou sequencial de estudos desses níveis, como também, não
estipulam a quantidade de níveis a serem estudados para repercutir em uma pesquisa legítima da LT.

Adam (2011) deixa clara a abrangência e o limite da ATD, além de apontar os elementos pertencentes à
área do discurso de forma a sistematizar e facilitar os procedimentos dos estudos em ATD onde se busca
entender o discurso pelo texto.

O entendimento dos elementos pertencentes à primeira segmentação da figura 1 é fundamental para


produzir qualidade e relevância nas análises de textos.

Eles transitam o caminho da análise de texto por estarem marcados nos textos, embora, teoricamente
não estão dentro deles e sim fora. São eles: peritexto, gêneros e línguas em interação, discurso e interdiscurso.

Para vias de estudo, a ATD faz uma separação teórica do que seria discurso e texto, porque na realidade,
na prática, não se pode separar texto de discurso e vice-versa, pois, quando falamos temos a língua no discurso
(SILVA NETO, 2012), ou seja, texto e discurso só funcionam integradamente, a separação deles é puramente
metodológica, para fins de análise.

A expressão ―análise dos discursos‖ é utilizada por Adam (2011) porque teoricamente, quando se analisa
um texto, ele está composto por vários discursos existentes simultaneamente, ao passo que, o analista opta em
escolher apenas um deles para estudar. Ao estabelecer a teoria da ATD, o autor estabelece cinco níveis ou planos
de análise do discurso para fins de estudo ou pesquisa.

Figura 2 – Planos da Análise de Discurso


57

Fonte: Adam (2011).

Os cinco níveis ou planos de análise do discurso possibilitam um critério mais refinado para os estudos
desenvolvidos na ATD, visto que, cada um dos níveis ou planos desencadeiam uma série de outras
especificidades e detalhes para serem estudados. Dessa forma, torna-se perfeitamente viável e legítimo estudar de
forma isolada ou conjunta os níveis ou planos da Análise Textual sugeridos por Adam (2011).

O artigo pretende elucidar algumas competências necessárias para que o analista de texto desenvolva suas
atividades de forma satisfatória, ao analisar os elementos que constituem o texto: as proposições-enunciados e os
sintagmas.

2. Análise textual dos discursos: proposição enunciado

A ATD recorre ao termo proposição-enunciado, como terminologia para se referir a mecanismos da


teoria linguística como: frase, sequência, período, entre outros. O termo proposição enunciado é visto também
numa perspectiva enunciativa e não só na perspectiva gramatical e lexical (ADAM, 2011).

A proposição-enunciado é um enunciado qualquer constituído de um conteúdo que aponta para o


referente e apresenta algo que se diz sobre ele. Ressaltamos aqui o fato de que um enunciado é tudo aquilo que é
dito; e uma proposição é um enunciado que apresenta dois componentes básicos, também entendidos como
argumentos:

a) aquilo que se fala, representado na ATD pela letra P;


b) aquilo que se diz a respeito representado na ATD pela letra Q.
Essa exigência para a composição de uma proposição é válida para qualquer enunciado. Vale lembrar,
também, que a proposição existe numa perspectiva também enunciativa e não somente numa perspectiva textual
58
gramatical, como no exemplo: Maria! Temos aqui, o estabelecimento de uma ação interlocutiva chamada
enunciado, mas que, em contra partida, não apresenta o conteúdo proposicionado P & Q. Na ATD, enunciado é
considerado proposição quando existe a forma mais simples de um argumento linguístico: P & Q, entendida aqui
como a representação linguística do enunciado.

Já no exemplo: Onde você estava Maria? Perceberemos a existência de uma proposição-enunciado, porque o
conteúdo proposicionado P & Q está presente no texto da seguinte forma: a) [Maria] = P (Aquilo que se fala); b)
[Onde você estava] = Q (Aquilo que se diz a respeito).

Para Silva Neto (2012), nós falamos sempre com um referencial, referente sempre a alguma coisa no
mundo, dizendo alguma coisa a respeito disso. Em outras palavras, nos situamos em relação ao mundo em 3
(três) posições: a) falante = eu; b) interlocutor = com quem falamos; c) referente = de que ou quem falamos.

Tudo que é dito tem que ter pelo menos: P & Q, contudo, na gramática tradicional, nem sempre o
sujeito fica claro porque está quase sempre relacionado à pessoa, por exemplo: Ouviram um tiro. Na linguística isso
não funciona porque existem sítios (lugares) que o P não é sujeito, como em: Aula de Música.

A frase gera um enunciado com conteúdo proporcional, ao tematizar algo e logo após atribuir o
conteúdo do que vai tematizar. Ressalta-se, também, que o conteúdo proposicional pode incidir sobre o
interlocutor e sobre o referente.

O início e o fim da proposição-enunciado são marcados por um segmento formal oral ou textual
(escrito) no formato textual, através da letra maiúscula no início da frase e do ponto final no fim da frase; e no
formato oral, através das entonações e pausas, onde o falante percebe as pausas pela experiência.

3. Linguística descritiva: a análise sintática e semântica dos sintagmas

Na Linguística Descritiva (LD) os elementos composicionais do texto são analisados mediante a


estrutura da língua, e não com base nas regras gramaticais difundidas na gramática normativa. Na LD, a análise
de um texto atenta-se em saber como ele se estrutura em relação à sequência, à significação, â explicação, ao
argumento e ao nível composicional. Consideramos aqui a análise sintática e semântica dos sintagmas.

Segundo Velasco (2012), existe uma hierarquia na estrutura da oração, onde:

a) a oração apresenta constituintes e estes contêm outros constituintes;


b) cada constituinte oracional apresenta uma estrutura interna própria;
c) os constituintes da oração têm comportamento sintático variado, apresentando relações de ordem, de
concordância e de regência;
d) a partir de estruturas sintáticas simples (núcleo + elementos adjacentes), é possível produzir estruturas
mais complexas, com base em processos de ampliação.
59
Os constituintes se definem como componentes na estrutura do texto, de forma que, toda palavra que
permite uma comutação é considerada um constituinte, que por sua vez, são construídos por sintagmas.

Os sintagmas são unidades constituídas por uma ou mais palavras, de modo a possibilitar a composição
matriz da língua, e a partir deles, vão sendo acrescentados outros elementos cada vez mais complexos. Eles se
classificam como sintagmas nominais (SN) e sintagmas verbais (SV).

Qualquer expressão ou componente linguístico que ocupar a segmentação: SN + SV é caracterizada


como uma proposição-enunciado. Conforme o pensamento de Silva Neto (2012), a matriz da proposição
enunciada é constituída da seguinte forma {SN [xxx] SV [xxx]}, e tende a se complementar de forma complexa.
O elemento [xxx] são os sintagmas que vão ocupar essas posições.

Os SN e SV podem representar diferentes funções numa proposição-enunciado. O SN pode se


caracterizar como:

a) um substantivo, quando ele ocupa a posição à esquerda e/ou à direita do verbo, contudo, sua
especificação se dará no contexto, pois sua propriedade muda conforme o ponto de vista da definição.
Ex: A cirurgia apresentou complicações;
b) um sujeito, quando ele vem antes do verbo e o flexiona. Aqui, devemos esquecer a noção de sujeito
difundida na gramática normativa, que o define como o elemento que faz ação ou do qual se diz algo.
Exs: João vende peixe. João e Maria vendem peixe.
c) um objeto, quando ele vem depois do verbo e não o flexiona. Sua função é reconhecer ou especificar o
Sujeito. A propriedade de comutação o permite exercer funções diferentes, dentre elas, ter autonomia e
poder se multiplicar, se colocar dentro do outro. Exs: Eles vivem cansados da vida. Cansados da vida eles vivem.
Conforme Vellasco (2012) o SV é caracterizado pela presença do verbo. Além do verbo, outros
sintagmas podem fazer parte do SV, e isso vai depender do verbo que funciona como núcleo. Exemplo: João
considera o irmão um chato.

a) [João] SN / [considera o irmão um chato] SV;


b) [O Irmão] Complemento do objeto direto;
c) [Um chato] termo predicativo;
Além dos sintagmas que servem como complementos dos verbos, há também inúmeros sintagmas que
expressam as circunstâncias da ação: onde?, quando?, por quê?, como?, com quem? Essas informações sobre as
circunstâncias da ação verbal são expressas por advérbios, por expressões adverbiais, ou por orações adverbiais
(VELLASCO, 2012).

As funções sintáticas são importantes na língua, determinando o significado,


estabelecendo uma ordem obrigatória para certos itens léxicos ou definindo a
concordância. Elas relacionam elementos presentes em uma estrutura. Assim, a função
de sujeito um SN com um verbo (ou um predicado) presente na mesma oração. Trata-
se de uma relação entre elementos presentes na sequência formal, é portanto uma
60
relação que só pode ser estabelecida dentro de um contexto (uma frase) (PERINI, 2006,
p.120).

Agora faremos referência à análise semântica da oração, trazendo o pensamento de Perini (2006, p.127),
por afirmar que ―cada sintagma que é constituinte de uma oração (exceto o próprio verbo) tem um papel
temático dentro da pequena peça teatral que a oração descreve‖. Em outras palavras, dentro de uma frase, os
sintagmas nominais exercem relações com os sintagmas verbais, e expressam papeis temáticos conforme a
estrutura da frase.

Segundo Perini (2006), existem muitos papeis temáticos além do Agente e do Paciente, e em suas
pesquisas, ele apresenta uma lista dos mais frequentes encontrados na literatura. São eles: agente e paciente,
local e localizando, fonte e meta, experienciador e causador de experiência, instrumento e tema.

O agente é o elemento que pratica a ação. Contudo, nem sempre a função do sujeito coincide com a do
agente, e a ação do agente pode vir implícita ou não; e o paciente é o elemento que sofre a ação, ou muda de
estado em consequência dela. (PERINI, 2006.) Ex: Ricardo feriu Bruno com uma pedra. [Ricardo] é o agente da ação
ao ferir [Pedro] com uma pedra. Assim [Pedro] torna-se o paciente.

O local é o elemento que exprime circunstância de lugar, ou seja, ele especifica o lugar em que se dá o
evento ou onde as coisas estão, e o Localizando é o elemento que indica as ações que incidem sobre algo, em
certa direção, ou seja, a coisa que se localiza em alguém ou algum lugar (PERINI, 2006). Ex: O homem montava na
moto. O [homem] é o sujeito e também localizando da frase, por estar na [moto], termo considerado local.

A fonte é o elemento que indica a ideia da direção de onde vai (onde inicia, onde parte, etc.); e a Meta é o
elemento que expressa a ideia da direção para onde vai (onde chega, o destino, o lugar final). (PERINI, 2006).
Ex: Mandei a carta para Maria. [Mandei a carta] é a fonte, a origem do movimento, e [para Maria] é a circunstância
de lugar e ao mesmo tempo a meta.

O experienciador é o elemento que vivencia uma experiência sensorial, sentimental, dentre outras; e o
causador da experiência é o elemento que promove ou desperta uma experiência de cunho sensorial, sentimental,
etc. (PERINI, 2006). Ambos os elementos são presenciados em frases onde não existe ação ou recepção. Ex:
Maria viu João. O termo [João] não sofre a ação de ser visto. O termo [Maria] é o experienciador do ato de ver. O
mesmo pode ser presenciado na frase: Maria ama João.

O instrumento é o elemento que ―relaciona o verbo com um objeto (concreto ou não) utilizado para
desempenhar a função‖ (PERINI, 2011, p.126). Ex: A mulher abriu a janela com um machado. O [machado] é o
instrumento com o qual a [mulher abriu a janela].

O tema é elemento que sofre a movimentação. Geralmente são entendidos como relações entre verbo,
ou melhor, o predicado (conceito expresso pelo verbo) e seus complementos, mas também, em relação de papel
temático (PERINI, 2006). Ex: Ela levou o embrulho para a mesa. O Tema aqui é [o embrulho] que também se
61
caracteriza como papel temático. Percebemos que o tema pode se movimentar na frase: Ela levou para a mesa o
embrulho. O embrulho ela levou para a mesa.

A construção semântica entre os textos é exata entre os papeis temáticos, o que significa dizer que eles
não são sinônimos no que compete à sintaxe. Quanto mais o texto for rico, mais funções ele terá acúmulos de
papéis temáticos, de modo que elas podem ocorrer em um único termo.

4. Considerações finais

Diante dos assuntos discutidos podemos dizer que os sintagmas são os elementos responsáveis para que
o analista possa traçar uma representação mental do texto, para assim, poder entendê-lo e analisá-lo.

A partir dos sintagmas começamos a fazer a representação mental dos signos, atribuindo uma figuração,
de modo a ter uma representação própria baseada na nossa experiência de como seria esses signos. Assim, Silva
Neto (2012) afirma que a pessoa que escreve um texto, não faz isso de forma aleatória, ou seja, sempre existe
uma intenção, um propósito.

Cada termo deve ser levado em conta numa análise porque ele pode ter uma autonomia e pode ser
recorrente no texto. Por exemplo: Pedro comprou peixe. Do ponto de vista sintático esse enunciado possui as
características de uma proposição-enunciado porque apresenta os elementos mínimos (SN e SV).

O enunciado [Peixe comprou Pedro], também apresenta esses elementos mínimos, contudo, ele se torna
diferente do exemplo anterior, visto que, este tipo de enunciado não é possível na língua, por mais que ele possua
SN e SV. Entretanto, sintaticamente ele possui a estrutura necessária de proposição-enunciado, podendo ser
recuperado pragmaticamente, onde, Peixe pode ser apelido e Pedro um bicho. Esse exemplo serve de alerta aos
linguistas que analisam texto, no sentido que, não se pode trabalhar com situações que não existam na língua.

Ao realizar uma análise textual, o analista precisa definir bem as condições teóricas, práticas e
metodológicas a serem utilizadas, a fim de evitar o surgimento de imparcialidades nas suas ações.

Dentre as sugestões para que se obtenha êxito nas atividades de análise, estão a tentativa de se
desvencilhar da gramática normativa nas ações de análise; bem como, evitar a utilização das teorias do discurso,
antes de ter retirado, no nível linguístico, todas as informações possíveis do texto analisado.

Na ATD, as atividades de análise textual são iniciadas pela descrição linguística, e o trabalho inicial é
descrever, caracterizar, segmentar e sistematizar o texto, para chegar ao discurso. Nesse momento, Silva Neto
(2012) sugere os seguintes passos:

a) levar em conta o peritexto (perceber as marcas linguísticas);


b) analisar a existência de proposição-enunciado;
62
c) ater-se estritamente ao que está escrito (não modificar nada no texto, como usar outro verbo, palavra ou
expressão porque já estaria interpretando).
Para que esses passos surtam efeito é essencial que o analista se afaste do texto num primeiro momento,
ou seja, não emita juízo de valor, devendo deter-se apenas a descrever o texto sem se confundir com outros tipos
de análises da língua.

Em alguns momentos o analista deverá se reportar ao texto para analisar a sua continuidade, de forma a
encontrar elementos significativos que darão respostas para o que ele quer saber (SILVA NETO, 2012).
Ressaltamos, por fim, que as competências para identificar e entender quais as proposições-enunciados e os
sintagmas mais importantes do texto serão essenciais para ajudar o analista a atingir os objetivos propostos em
sua pesquisa.

REFERÊNCIAS:

ADAM, Jean-Michel. Linguística Textual: introdução à análise textual dos discursos. São Paulo: Cortez, 2011. Cap.
1-2.

PERINI, Mário A. Princípios de Linguística Descritiva: introdução ao pensamento gramatical. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

SILVA NETO, João G. Tópicos de Linguística textual. Natal: UFRN / CCHLA, 2012. Notas de Aula.

VELLASCO, Ana. Sintagmas. Disponível em: <http//:www.inforum.insite.

com.br/.../trabalhado_sintagma_nominal.doc>. Acesso em 09 jul. 2012.


63
64
MÍDIA E POLÍTICA:
PRÁTICAS DISCURSIVAS EM NOTÍCIAS ONLINE

André William Alves de Assis14

Resumo: A agilidade constitutiva do jornalismo online exige que o profissional desse tipo de mídia esteja mais
inclinado a sintetizar, recortar e pôr em destaques alguns recortes, seja silenciando o que não interessa, seja
inserindo informações, o mais próximo possível do seu acontecimento na sociedade. Nesse contexto, propomos
um percurso em torno do conceito das ―petites phrases‖ proposta por Krieg-Planque (2011) Trata-se de uma
teoria relativamente nova que tem como objeto as pequenas frases que circulam em nossa sociedade há décadas.
O estudo das pequenas frases possibilita a apreensão das práticas dos atores políticos e sociais, especialmente por
revelarem uma ligação muito forte entre eles, uma reciprocidade que faz parte do funcionamento das duas
instâncias política e midiática e promove a circulação de ideias, saberes e a propagação de lugares discursivos. Em
circulação, essas frases tomam corpo, circulam em posicionamentos e universos diferentes e são, em maior ou
menor grau, modificadas para se adequar aos gêneros produzidos pela maquinaria midiática.

Palavras-chave: Mídia. Política. Práticas Discursivas. Pequenas Frases

Abstract: The urgency which information flows and need to be produced in order to circulate demands that the media professional is
more bound to synthesize, cut and highlight on some lines, silencing what does not matter, adding information. In this context, we
propose a way around the concept of "petites phrases" proposed by Krieg-Planque (2011), relatively new theory which has its object
about the little phrases that circulate in our society for decades. The study of short phrases allows the comprehension of the practices of
political and social actors, especially because they reveal a very strong connection, a reciprocity that is part of the functioning of them
and promotes the circulation of ideas, knowledge and spread discursive places. In circulation, these phrases grow and circulate in
positions and in different universes and are, to a greater or smaller extent, modified to suit both genders produced by the media
machine.

Keywords: Mídia; Politics; Discursive Pratice; Short phrases.

1. Considerações Iniciais

Em um recente artigo publicado para a revista Communication & Langage, Krieg-Planque e Olliver-Yaniv
(2011) reúnem estudos em torno da teoria das pequenas frases. Os textos concentram-se na emergência e
circulação desses enunciados em nossa sociedade, a partir de uma perspectiva discursiva. O capítulo Les "petites
phrases": un objet pour l'analyse des discours politiques et médiatiques, escrito por Krieg-Planque (2011), é o que nos

14Doutorando em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista FAPEMIG. E-mail:
[email protected]
65
interessa nesse ensaio, por caracterizar e problematizar as pequenas frases na política. Logo de início, a autora
define as pequenas frases como textos curtos, bem estruturados, que circulam em nossa sociedade em diferentes
gêneros e posicionamentos, possuem vida própria, uma vez que se manifestam nos gêneros, mas não estão
presos15 a eles, conceito próximo ao de aforização16.

É precisamente nesse ponto que se encontra o núcleo do efeito buscado: o


personagem produz algo memorável, isto é, um enunciado digno de ser consagrado,
antigo de direito, novo de fato. [...] Ele inaugura, em refluxo, uma série ilimitada de
retomadas, apresentando-se como eco de uma série ilimitada de retomadas prévias.
(MAINGUENEAU, 2008, p.78)

Para especificar como esses enunciados circulam e são retomados, Krieg-Planque (2011), sob o viés da
Análise do Discurso francesa, levanta alguns aspectos que devem ser considerados pelo analista que se propõe
refletir sobre esse conceito: a dimensão enunciativa; os determinantes midiáticos; as restrições por parte das
políticas e da comunicação17; as características que promovem a circulação e a avaliação dos atores sociais desse
fenômeno das pequenas frases; características que ―favorecem a retomada e a circulação dos enunciados;
apreciação pelos próprios atores sociais do fenômeno das ‗pequenas frases‘‖ (KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 23,
tradução nossa).18

Levantamos esse conceito neste trabalho por considerarmos que as pequenas frases fazem parte do
funcionamento da política e da mídia, uma vez que são enunciados carregados de sentidos e estão presentes com
certa regularidades na seleção/destacamento de enunciados em diferentes gêneros, como as notícias impressas e
as notícias online. O estudo da pequena frase possibilita a apreensão das práticas dos atores políticos e sociais,
especialmente por revelarem uma ligação muito forte, uma reciprocidade que faz parte do funcionamento das
duas instâncias e promove a circulação de ideias, saberes e a propagação de lugares discursivos. De acordo com
Krieg-Planque (2011, p. 24, tradução nossa.)19, estudar a pequena frase possibilita ―[...] captar as práticas dos
atores políticos e sociais por meio de diferentes formas de fixação que seus discursos modelam e fazem
circular.‖.

2. Uma pequena frase em criação

15 Esses enunciados não estão presos às coerções dos gêneros, mas são enunciados que sempre se manifestam em um
gênero, portanto são indissociáveis da enunciação.
16 Aforizações compreendidas como ―asserções generalizantes que enunciam um sentido completo; são curtas, bem
estruturadas de modo a impressionar, a serem facilmente memorizáveis e reutilizáveis.‖. (MAINGUENEAU, 2008, p.77)
17 Em uma perspectiva discursiva, compreendemos Comunicação como ―a antecipação das práticas de retomadas, de

transformação e de reformulação dos enunciados e de seus conteúdos‖ (KRIEG-PLANQUE, 2011b, p. 26).


18 ―[...] caractéristiques qui favorisent la reprisxe et la circlation des énoncés; appréciation par les acteurs sociaux eux-mêmes

du phénomène des ‗petites phrases‘‖


19 ―[...] saisir les pratiqeus des acteurs politiques et sociaux à travers les diferentes formes de figements que leurs discours

modèlent et font circuler.‖.


66
Mesmo sem a pretensão de elaborar um aprofundamento de análise nesse trajeto, selecionamos
uma pequena frase a fim de problematizar esse conceito em torno de um objeto palpável que, de forma
mais didática, explore as categorias apresentadas por Krieg-Planque (2011). Trata-se de um enunciado
proferido por Dilma Rousseff, no segundo turno das eleições de 2010 no Brasil, no debate da Rede
Bandeirantes em 10 de outubro de 2010.20

(1)
[...] tem uma campanha contra mim, essa campanha se caracteriza pelo fato de eu ter
sido acusada, de eu ter sido, de eu estar sendo acusada de coisas. Inclusive, eu acho
estranho você dizer certas coisas, porque você regulamentou o acesso ao aborto no
SUS; então, veja bem, eu sou acusada de coisas que eu inclusive não vou gostar de
mencionar, pela sua própria esposa, sendo que você, você regulamentou. Até eu
concordo com a regulamentação, porque eu sou contra tratar a questão das mulheres,
das duas mulheres que morrem por dia ou um dia sim um dia não, por aborto, como
uma questão de polícia. Entre prender e atender, eu fico com atender. (Dilma
Rousseff, Debate da BAND, grifo nosso).

Ao receber o direito à réplica sobre um questionamento, a respeito da descriminalização do aborto, a


candidata Dilma Rousseff afirmou, ao final de sua argumentação: ―entre prender e atender, eu fico com atender‖.
Como locutora do texto-fonte, a debatedora (sobreasseveradora Dilma Rousseff) marcou esse trecho como
destacável: por seu caráter generalizante, pela concisão, pela tomada de posição em relação à temática, e pela
posição final no texto. Ao cunhar essa ―pequena frase‖, um enunciado de fácil circulação, ela antecipou um
destacamento, e, assim, produziu uma sobreasseveração, marcado pela tomada de posição em relação ao tema do
aborto, pelo efeito de sentido de uma frase autêntica, inédita. A depender de sua circulação, essa
sobreasseveração poderia vir a passar de um enunciado destacável (que possui características que o formatam
para uma possível retomada) para destacado (efetivamente destacado pela maquinaria discursivo-midiática) e
transformar-se em uma aforização21, sendo retomado, citado, e se transformar de diversas formas, como uma
palavra de ordem, um dito, uma pensamento em forma de consciência.

Maingueneau (2008, p. 83) relaciona a sobreasseveração, ―muito presente nas mídias


contemporâneas‖, ao fenômeno das pequenas frases, que ele define como ―enunciados curtos que,
durante um curto período de tempo, vão ser intensamente retomados nos programas de informação‖.
Como acreditamos que o excerto (1) seja um bom exemplo de pequena frase, ele será retomado durante
todo nosso percurso.

20 O excerto foi por nós transcrito do debate político-televisivo em tela. Essa descrição foi necessária para que tivéssemos
acesso ao texto-fonte da pequena frase proferida pela candidata.
21 Por questões que limitam a amplitude desse trabalho, não nos aprofundaremos nas definições dos conceitos de

―sobreasseveração‖ e de ―aforização‖, ambos estudados por Dominique Maingueneau. Além das obras do autor, indicamos
a leitura das dissertações de Assis (2013) e de Mareco (2013) em que esses processos de sobreasseveração e aforização
recebem atenção especial e são problematizados em corpus político-midiático.
67
3. Características linguísticas e discursivas das pequenas frases

A pequena frase não implica, necessariamente, pequenos textos. Segundo Krieg-Planque (2011),
o adjetivo ―pequena‖, que compõe essa expressão, não é sinônimo de sucinta. Uma pequena frase pode
ter, por exemplo, três ou quatro palavras, ou ser um pouco mais longa. Necessariamente, precisa ser
uma frase de efeito, frases que são ditas e que ficam em circulação por um bom tempo, seja pelo
impacto, seja pela polêmica, seja ainda pela doutrina que evidencia, enfim, pela sustentação de sua
circulação em um determinado universo.

[...] a expressão ‗pequena frase pode ser definida da seguinte maneira: ‗pequena frase‘ é
um sintagma denominativo metalinguístico não-erudito (e, mais precisamente,
pertencente ao discurso apropriado do outro) que designa um enunciado que alguns
atores sociais tornam notável e que é apresentado como destinado à retomada e à
circulação. (KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 26, tradução nossa)22.

Essa estrutura, destinada à circulação, evidencia-se por meio do processo de citação. Trata-se da
apropriação do discurso do outro, um processo de retomada de enunciados que normalmente
representam a fala de algum ator político/social apresentada como destinada à circulação. Por fazer
parte de uma determinada cultura, essas frases normalmente não são transponíveis para outras línguas
nem para outros universos discursivos, pois existe, mesmo na dispersão dessa circulação, certa
estabilidade de significações possíveis dentro de uma comunidade, mesmo que a pequena frase
ultrapasse posicionamentos diversos.

A enunciação da pequena frase está relacionada com a sua posição discursiva. São frases
destinadas à circulação, proferidas em momentos enunciativos diversos, como o exemplo ―entre
prender e atender, eu fico com atender‖, proferido num debate político-televisivo de grande
visualização no Brasil em um momento sócio-histórico específico, durante o segundo turno das eleições
de 2010. Na mídia, esse enunciado curto que condensa uma mensagem forte, pode sofrer um processo
de seleção, ser pinçado/o para ser repetido/retomado inúmeras vezes. Por serem destacas por natureza,
evidentemente as pequenas frases se submetem aos processos de aforização e sobreasseveração, e
respondem a seu regime específico enunciativo23. Em circulação, essas frases tomam corpo, circulam
em posicionamentos e universos diferentes e podem vir a ser, em maior ou menor grau, modificadas
para se adequar a um ou outro gênero, um ou outro posicionamento.

22 ―[...], l ‗expression ‗petite phrase‘ peut être définie de la façon suivante: ‗petite phrase‘ est um syntagme dénominatif
métalinguistique non-savant (et plus précisément: relevant du discours autre approprié), qui designe um énoncé que certains
acteurs sociaux rendent remarquable et qui est présenté comme distiné à la reprise et à la circulation‖
23 Os regimes aforizante e textualizante se inscrevem além do horizonte dos gêneros discursivos. Para maior compreensão

ver Maingueneau (2010, p. 11).


68

(2)
Aqui, católicos e evangélicos estudam nas mesmas escolas, evangélicos e israelenses
sentam à mesma mesa", atacou Dilma, em referência à polêmica do aborto. "Entre
prender e atender as mulheres que fazem aborto, eu prefiro atender", emendou.

No exemplo (2), retirado do portal de notícias Senado24, podemos observar a retomada da


pequena frase de Dilma Rousseff com a inserção de ―as mulheres que fazer aborto‖ e a alteração de
―eu fico com‖ para ―eu prefiro‖. Interessante observar que ao veicular a pequena frase essas
modificações que envolvem alterações e inclusões passam despercebidas pelo leitor que vê no uso das
aspas um afastamento de responsabilidade do veículo e a ilusão de que o discurso teria sido exatamente
esse. Para o leitor, o original é o que se publica entre aspas, uma vez que o resgate do que fora proferido
no debate político é praticamente impossível. Em ambiente web, essa citação alterada pode vir a ser
retomada outras vezes, e sofrer mais e mais alterações, se distanciando, cada vez mais, do enunciado
fonte.

4. Os determinantes midiáticos

Em relação aos determinantes midiáticos, Krieg-Planque (2011) faz uma retomada de


informações históricas sobre o surgimento das pequenas frases. A autora afirma que o valor
denominacional das pequenas frases está ligado com o seu surgimento, ao momento sócio-histórico em
que a mídia francesa passava por grandes transformações (anos 70 e 80), o que resultou aumento
significativo do número de jornalistas profissionais, especificamente os jornalistas políticos. Esse
aumento teria favorecido a criação e circulação de pequenas frases na mídia francesa da época.

Em relação à produção das pequenas frases, ―as mídias impõem quadros de expressão por meio
de gêneros, rubricas, formatos, uma temporalidade, tipos de formas narrativas‖ (KRIEG-PLANQUE,
2011, p. 29, tradução nossa), que favorecem a pequena frase sobre os aspectos que envolvem: i.
desmembramento do espaço e abreviação das unidades de conteúdo; ii. acontecimento, categorização e
rubricas; iii. rotina de trabalho dos profissionais da impressa 25. Isso pode ser observado em jornais e
revistas que retomam as frases da semana, frases de impacto que retomam enunciados mais ou menos
polêmicos.

24

http://www.senado.gov.br/noticias/opiniaopublica/inc/senamidia/notSenamidia.asp?ud=20101011&datNoticia=2010101
1&codNoticia=482547&nomeParlamentar=Fernando+Collor&nomeJornal=Correio+Braziliense&codParlamentar=4525&
tipPagina=1
25 Essas três características não serão especificadas neste trabalho, pois consideramos os determinantes midiáticos como um

todo que representam as condições de produção dessa área.


69
Além da relação muito próxima com a política, as pequenas frases possuem características
determinadas pela mídia em relação ao tema, ao gênero e à forma. Em primeiro lugar, o espaço é
muito importante para o funcionamento da máquina midiática26. Dizer muito em um espaço pequeno,
com poucas palavras e de forma que o dizer se preste à repetição e à retomada, é de suma importância
se considerarmos as coerções midiáticas que promovem a fragmentação progressiva do espaço (papel,
formato, número de caracteres, etc.), e provocam uma tendência ao encurtamento de conteúdo. No
jornal impresso, por exemplo, Krieg-Planque (2011, p. 30, tradução nossa)27 afirma que a página que dá
suporte ao periódico impresso

[...] evoluiu ao longo da história para um espaço cada vez mais fragmentado,
rubricado, recortado, que impõe formatos de artigos mais curtos e dotados de
elementos paratextuais numerosos: títulos, subtítulos, intertítulos, slogans, palavras-
chave, destaques, legendas...

Da mesma maneira, acreditamos que as páginas principais de jornais e revistas online também
estão cada vez mais fragmentadas, e que a quebra, a fragmentação de conteúdo, pode facilitar a criação
de enunciados destacados, pois se opera uma tendência ao destacamento. Essa fragmentação está
relacionada com o segundo aspecto levantado por Krieg-Planque (2011), que se refere às exigências
narrativas do universo midiático. No entanto, não podemos atribuir somente à mídia a produção de
pequenas frases. Nosso exemplo (1) nos permite observar a produção de uma pequena frase pelo ator
político, participante do debate político-televisivo.

Segundo a autora, se consideramos que existem exigências narrativas no universo midiático, e


que essas exigências são produzidas pela mídia, é porque concebemos que os atores sociais produzem
essas frases, mais especificamente produzem pequenas frases, capazes de serem reconhecidas pelos
interlocutores como tal, sendo, inclusive, objeto de debate e de polêmica. A problemática em torno
dessa questão de determinação midiática está justamente na apropriação dos enunciados, produzidos ou
não como pequenas frases, e as alterações que esses enunciados são submetidos, por meio de manobras
diversas, para serem colocados em circulação.

Produz-se, assim, um desacordo essencial entre o locutor efetivo e esse mesmo


locutor considerado como sobreasseverador de um enunciado que foi destacado pela
áquina midiática: esse sobreasseverador e produzido pelo próprio trabalho da citação
(MAINGUENEAU, 2008, p. 84).

26 Compreendemos ―máquina midiática‖ o funcionamento desse organismo que envolve os proprietários, repórteres,
anunciantes e leitores.
27 ―[...] évolué tout au long de son histoire vers um espace de plus em plus fragmenté, rubrique, decoupé, imposant des

formats d‘articles plus courts et dotes d‘éléments paratextuels nombreux: titres, sous-titres, intertittres, accroches, mots clés,
exergues, legendes...‖.
70

Nesse sentido, a pretexto de concisão determinada pelo veículo, podemos observar no exemplo
(2) que a sobreasseveração de Dilma foi retomada pelo veículo e alterada. ―Tudo se passa como se
existisse uma zona de tolerância, como se fosse normal que os dois enunciados divirjam‖
(MAINGUENEAU, 2010, p. 12).

O exemplo (2) não é exceção, basta que se faça uma busca pela internet para que rapidamente se
observe como essas frases sofrem mais ou menos alterações/torções diversas; ―as coerções dessa
maquinaria determinam essas escolhas e evidenciam determinado posicionamento‖28 (ASSIS, 2013, p.
41).

5. A rotina dos profissionais da mídia

O terceiro aspecto levantado por Krieg-Planque (2011) sobre as pequenas frases está
relacionado à rotina dos profissionais pertencentes à maquinaria midiática. Segundo a autora, é
importante para esses profissionais que os políticos produzam pequenas frases, como a proferida por
Dilma Rousseff em (1). Quando uma frase circula com grande intensidade pela sociedade – seja por
seu caráter polêmico ou não, por seu maior ou menor grau de impacto ou pelo fato histórico do
acontecimento que engendra – a pequena frase garante, de certa forma, grande quantidade de produção
para o jornalista, que não precisa ir atrás de outras frases, outros temas, por certo período, e ainda pode
retomá-los quando necessário como um arquivo sempre pronto e acessível.

A agilidade com que as informações circulam e precisam ser produzidas para circular exigem
que o profissional da mídia esteja mais inclinado a sintetizar, recortar e pôr em destaque algumas falas
(silenciando o que não interessa ou inserindo informações). Por esse motivo, a criação de pequenas
frases está inclinada ao discurso midiático, porque é construída como acontecimento29,

[...] ela é construída como acontecimento porque ela está ligada a uma intenção, a uma
posição, a uma doutrina, a uma ideologia, a um traço de personalidade, a uma opinião,
a uma estratégia, a uma ambição, a interesses ou a um projeto, que a ―pequena frase‖
condensa ou dos quais ela é o sintoma. (KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 32, tradução
nossa)30.

28 Para nós, esse posicionamento não pode ser atribuído a um agente específico, uma vez que consideramos a produção da
notícia como uma atividade conjunta, que não pode ser atribuída a nenhum sujeito empírico. Trata-se de uma elaboração da
maquinaria discursivo-midiática, grande organismo que envolve diferentes atores e processos, peças constitutivas de uma
engrenagem, cada qual com uma finalidade específica na manutenção e propagação de práticas discursivas.
29 O valor de acontecimento no trabalho de Krieg-Planque (2011) é entendido pelo valor ilocutório das pequenas frases.
30 ―[...] ele est construite em événement parce qu‘elle est rattachée à une intention, à une position, à une doctrine, à une

idéologie, à um trait de personnalité, à une opinion, à une stratégie, à une ambition, à des intérêts ou à um projet, que la
‗petite phrase‘ est supposée condenser ou dont la ‗petite phrase‘ est supposée être le sumptôme.‖
71

De certa forma, os políticos podem integram suas práticas à elaboração de pequenas frases. Os
atores políticos sabem que seu discurso não será totalmente relatado em uma notícia, de certa forma a
produção do que será destacado passa pela competência31 desse ator; por isso sua prática deve
destacar/silenciar aspectos que deem maior visibilidade, promovam o acontecimento, o espetáculo,
incorporando a produção de pequenas frases em seu discurso.

A produção de ―pequenas frases‖ participa, na realidade, dessas ações de dissimulação


e de tentativa de visibilidade, quer se trate de uma visibilidade das falas que não eram
destinadas a isso ou de uma visibilidade de falas que eram destinadas a ser observadas.
Nesse quadro, os jornalistas, e mais amplamente as mídias, são, por parte dos políticos
e dos comunicadores, objeto de um jogo de instrumentalização complexo para fazer
circular as mensagens. Para cada um desses dois grupos de atores que são os
comunicadores e os políticos, a produção de ―pequenas frases‖ está inscrita num
campo de savoir-faire e de práticas identificáveis. (KRIEG-PLANQUE, 2011, p.33,
tradução nossa)32.

A autora afirma ainda que a produção de pequenas frases parte de ações de ocultação e
visibilidade refletindo a profissionalização da política em suas funções comunicativas e a atividade
profissional da comunicação, uma vez que a sua produção é constitutiva da competência desses
profissionais. Nitidamente, alguns políticos são mais produtivos do que outros em relação às pequenas
frases, o que o classifica, segundo Krieg-Planqeu (2011, p. 33, tradução nossa)33, como um ―‗bom
cliente‘, na perspectiva do jornalista‖.

6. Critérios semânticos e pragmáticos

Para que um enunciado seja classificado como pequena frase, deve ainda atender a critérios
semânticos/formais e pragmáticos/argumentativos, que estão relacionados diretamente com o conceito
de memória34. Os semânticos são os que se apoiam em fenômenos como metáforas, metonímias,
sinédoques, alegorias, inversão, e outras figuras de pensamento. Já os formais se apoiam em

31 Competência discursiva compreendida como um saber, um agir sobre a língua (MAINGUENEAU, 2008). Isso não quer
dizer que os sujeitos não escolham ―livremente‖ seus discursos, já que o conteúdo é historicamente determinado, mas que
podem dominar as propriedades estruturais de certos discursos, a partir da familiaridade com eles. Essa competência
discursiva é que lhes permite interferir sobre os textos.
32 ―La prod uction de ―petites phrases‖ participe, de fait, de ces actions de dissumation et de mise em visibilité, qu‘il s‘agisse

d‘une mise em visibilité de propôs qui n‘etaientpas destinés à l‘etre ou d‘une mise em visibilité de propos qui étaient destinés
à être remarques. Dans ce cadre, les journalistes et plus largemetn les médias font, de l apart des politiques et des
communicants, l‘objet d‘un jeu d‘instrumentation complexe pour faira passer des messages. Pour chacun de ces deux
groupes d‘acteurs que sont l es communcats et les politiques, la producion de ―petites phrases‘ s‘inscrit dans um champ de
savoir-faireet de pratiques identifiables‖
33 ―[...] ‗bon client‘ du pont de vue du journaliste‖.
34 Memória aqui entendida como característica de possibilidade de retomada e de memorização.
72
paralelismo, repetição, simetria, ritmo e rima. Uma pequena frase pode ou não apresentar essas
características, ou ter uma ou outra mais acentuada. Já vimos que a maquinaria midiática pode, ainda,
melhorar ou piorar uma pequena frase ao selecioná-la, tratá-la e colocá-la em circulação. ―Entre prender
e atender, eu fico com atender‖ pode ser analisada por seu ritmo, condicionada pela rima interna de
verbos na segunda conjugação (prender, atender), ou mesmo pelo uso de consoantes oclusivas ([p], [t],
[d], [n]) que concebem melodia, simetria e força expressiva à frase de Dilma. Essas características são
responsáveis por atribuir uma forma singular às pequenas frases, permitindo a retomada, a repetição e o
movimento.

Além das figuras retóricas repertoriáveis, uma certa concisão se impõe aos enunciados
suscetíveis de ser mobilizados na retomada, levando a questionar tanto o qualificativo
―pequena‖ (do ponto de vista da extensão) quanto a categoria da ―frase‖ (do ponto de
vista do tipo de unidade gramatical) (KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 36, tradução
nossa)35.

É importante ressaltar que a concisão ou o recorte necessário para que a pequena frase circule e
seja retomada não pode ser reduzida a propriedades formais, deve apreender também as relações
pragmáticas e argumentativas. Essas propriedades argumentativas/pragmáticas revelam o valor
ilocucionário das pequenas frases, ―[...] um valor ilocutório que confere ao enunciado uma notoriedade
como acontecimento ou, pelo menos, como acontecimento potencial, do qual os comentaristas
poderiam se apropriar‖ (KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 36, tradução nossa)36.

Esse valor ilocutório corresponde a um ato de fala, que pode ser de ―promessa, compromisso,
apoio, exigência, exortação, ameaça, condenação, renegação, ofensa, pedido de desculpas...‖ (idem, p.
37). ―Entre prender e atender, eu fico com atender‖ condensa diferentes valores ilocutórios, uma vez
que pode ser compreendido como promessa, como apoio, exigência, exortação e etc., a depender do
posicionamento do veículo de informação e do tom atribuído à fala de Dilma Rousseff. O enunciado
relatado é devidamente considerado em seu momento enunciativo, o seu contexto de fala, o lugar e o
ethos de quem as profere que, longe de seu contexto de origem, podem produzir sentidos diversos e
mesmo conflitantes. Essas características pragmáticas conferem à pequena frase certa remarcabilidade
como acontecimento, por isso seu caráter discursivo, ilocucional que nos parece estar muito próximo
do conceito de sobreasseveração.

35 ―Au-delà des figures rhétoriques répertoriables, une certaine concision s‘impose aus énoncés susceptibles d‘être mobilisés
pour la reprise, amenant à questionner aussi bien le qualificatif de ―petit‖ (du point de vue de la longueur) que la caégorie de
la ―phrase" (du point de vue du type d‘unité grammaticale).‖
36 ―[...] une valeur illocutoire qui confere à l‘enoncé une remarquabilité comme événement, ou du moins comme événement

potentiel, dont les commentateurs pourraient se saisir.‖


73
7. Considerações finais

Neste percurso, observamos que a teoria das pequenas frases a que Krieg-Planque (2011) expõe, tem
forte ligação com as instâncias política e midiática que se beneficiam mutuamente da circulação desses
enunciados. Na reflexão, observamos uma aproximação aos conceitos de aforização e sobreasseveração
estudados por Maingueneau (2008; 2010), o que nos permite futuramente propor uma confluência entre essas
teorias. O estudo das pequenas frases possibilitar a apreensão das práticas dos atores políticos e sociais,
especialmente por revelarem uma ligação muito forte, uma reciprocidade que faz parte do funcionamento das
duas instâncias e promove a circulação de ideias, saberes e a propagação de lugares discursivos. Colocadas em
circulação por meio de uma sofisticada maquinaria discursivo-midiática, essas frases tomam corpo, são mais
circulam em posicionamentos e universos diferentes e são, em maior ou menor grau, modificadas para se
adequar aos gêneros produzidos pela maquinaria midiática e ao posicionamento que representam.

Pelo exposto, acreditamos que futuros estudos podem nos permitir um aprofundamento teórico maior
em torno dessas pequenas frases que estão atreladas às coerções dessa maquinaria, constitutivas de toda uma
engrenagem que (re)produz a notícia por meio de retomadas de falas de atores políticos/sociais.

8. Referências

ASSIS, A. W. A. Citações e sobreasseverações: o funcionamento da retomada de falas em notícias


online. 2013. 99 f. Dissertação (Mestrado em Letras), Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2013.

KRIEG-PLANQUE, A.; OLLIVER-YANIV, C. Les ―Petites Phrases‖: un objet pour l‘analyse des discours
politiques et médiatiques. Communication & Langages, Paris, nº 168, juin 2011, p. 23-42.

KRIEG-PLANQUE, Alice. ―Fórmulas‖ e ―lugares discursivos‖: propostas para a análise do discurso político. In:
MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana Salazar. Fórmulas discursivas. São Paulo: Contexto, 2011b.
Entrevista concedida a Philippe Schepens.

MAINGUENEAU, D. Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola, 2008.

___________. Doze conceitos em análise do discurso. São Paulo: Parábola, 2010.

MARECO, R. T. M. Do debate televisivo ao jornal impresso: aforizações na mídia nacional. 2013. 122 f.
Dissertação (Mestrado em Letras), Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2013.
74
UMA ANÁLISE DO FATOR INTIMIDADE COMO DETERMINANTE
PARA O USO OU NÃO DO ARTIGO DEFINIDO DIANTE DE
ANTROPÔNIMO

Andréia Almeida Mendes37

Resumo: Pretende-se analisar se o grau de intimidade do informante em relação ao antropônimo a que se refere
é fator determinante para o uso ou não de artigo definido neste contexto; os gramáticos postulam que o uso do
artigo definido diante dos nomes próprios denota um tom de familiaridade ou afetividade, assim, antepõe-se o
artigo definido diante de antropônimos com o intuito de marcar intimidade. Porém, ao tratarem o fator
intimidade como regra para o emprego do artigo definido nesse contexto, os gramáticos esquecem-se de
determinar objetivamente em relação a quem essa intimidade deve estar relacionada, se ao falante, conforme
Bechara (1987) e Almeida (1973), ao ouvinte, conforme Souza da Silveira (1960) e Said Ali (1964) ou aos dois.
Levou-se em conta, nesta análise, o ponto de vista segundo o qual o fator intimidade está ligado à intimidade que
o falante tem com o referente. Para Amaral (2007), os falantes usam a variante não predominante, seja ela a
ausência ou a presença, para fazer referência a pessoas com as quais não têm nenhum grau de intimidade e a
variação predominante para fazer referência às pessoas com as quais possui contato. Assim, essa intimidade foi
analisada, inicialmente, de acordo com três divisões: pessoa mais próxima do falante, pessoa mais distante do
falante e pessoa pública. A pesquisa desenvolveu-se a partir da análise quantitativa e qualitativa realizada no corpus
constituído por 8 entrevistas: quatro realizadas no Pouso Alto (Abre Campo) e quatro realizadas no Córrego dos
Lourenços (Matipó). Os dados quantificados serviram para nos mostrar que o parâmetro intimidade ou
familiaridade do referente do antropônimo influi sim no emprego de artigo definido diante de antropônimos – o
que pode ser observado na fala dos moradores da zona rural de Matipó –, mas não deve ser visto uma regra
categórica.

Palavras-chave: Intimidade; Artigo Definido; Antropônimo.

Abstract: Seeks to analyze the degree of intimacy of the informer in relation to anthroponymy to which it relates
and determining factor for the use or not article defined in this context; the gramaticos postulate that the use of
the definite article before the names denotes a tone of familiarity or affectivity, thus, come before the definite
article before anthroponymy with the aim of mark intimacy. However, when dealing with the intimacy factor as a
rule for the employment of the definite article in this context, the gramaticos forget to determine objectively in
relation to whom such intimacy must be related to the speaker, as Bechara (1987) and Almeida (1973), the
listener, according to Souza da Silveira (1960) and Said Ali (1964) or the two. It took into account in this analysis,
the point of view that the intimacy factor is connected to the intimacy that the speaker has with the referent. For
Amaral (2007), the speakers use the variant is not predominant, is it the absence or presence, to refer to people
with whom you have no degree of intimacy and the predominant variation to make reference to the people with
whom you have contact. Thus, such intimacy was analyzed, initially, in accordance with three divisions: the
person closest to the speaker, person more distant from the speaker and public person. The research developed
from the quantitative and qualitative analysis performed in the corpus consisting of 8 interviews: four carried out
in Pouso Alto (Abre Campo) and four carried out in a Córrego dos Lourenços (Matipo). The quantified data

37
Doutoranda em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFGM), Mestre em Estudos
Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Graduada em Letras pela Universidade Estadual de Minas
Gerais (UEMG). Bolsista CNPQ. E-mail: [email protected]
75
served to show us that the parameter intimacy or familiarity of the referent of anthroponymy influences yes in
employment of definite article before anthroponymy - what can be observed in the speech of residents of the
rural area of Matipo -, but should not be seen as a categorical rule.

Keywords: Intimacy; Article Defined; Anthroponymy.

1. Introdução

O fator intimidade é considerado pelas gramáticas tradicionais como fator determinante para o uso ou
não de artigo definido diante dos antropônimos; os gramáticos postulam que o uso do artigo definido diante dos
nomes próprios denota um tom de familiaridade ou afetividade, assim, antepõe-se o artigo definido diante de
antropônimos com o intuito de marcar intimidade.

Porém, ao tratarem o fator intimidade como regra para o emprego do artigo definido nesse contexto, os
gramáticos esquecem-se de determinar objetivamente em relação a quem essa intimidade deve estar relacionada,
se ao falante, conforme Bechara (1987) e Almeida (1973), ao ouvinte, conforme Souza da Silveira (1960) e Said
Ali (1964) ou aos dois. Levou-se em conta, nesta análise, o ponto de vista segundo o qual o fator intimidade está
ligado à intimidade que o falante tem com o referente.

Este estudo pretende analisar se o grau de intimidade do informante em relação ao antropônimo a que
se refere é fator determinante para o uso ou não de artigo definido neste contexto; os gramáticos postulam que o
uso do artigo definido diante dos nomes próprios denota um tom de familiaridade ou afetividade, assim,
antepõe-se o artigo definido diante de antropônimos com o intuito de marcar intimidade.

2. O artigo definido diante de antropônimos

A gramática tradicional nos apregoa que, em muitas regiões do Brasil e de Portugal, ―o do artigo diante
do nome de pessoa confere um certo tom de familiaridade ou afetividade‖ (FARACO e MOURA, 1987, p. 187);
outros gramáticos nos dizem que ―a pertinência do artigo definido pode depender, portanto, de que ele ative no
conhecimento do interlocutor um dado previsível no contexto de comunicação‖ (AZEREDO, 2002, p. 125)

Outros gramáticos tradicionais nos dizem que,

Os nomes próprios de pessoa não levam artigo, porque aquele a quem falo em geral
não conhece, uma por uma, as pessoas que eu conheço (...) Na linguagem de
intimidade (...) antepõe-se com frequência o artigo a nomes de pessoas conhecidas
daqueles com quem conversamos. (SAID ALI, 1964, p.186).
76
É frequente no Brasil e em Portugal o uso do artigo definido antes de nomes de
batismo, o que lhes daria um tom de afetividade ou familiaridade (CUNHA e
CINTRA, 1975, p. 218).

Costumam levar artigo os nomes próprios de pessoas e animais conhecidos dos


ouvintes, ou de muita nomeada (neste caso, porém, o não emprego do artigo é
frequentemente e talvez mesmo preferido na língua literária) (SOUZA DA
SILVEIRA, 1960, p. 192).

(...) junto de nomes próprios denota nossa familiaridade (neste mesmo caso, pode o
artigo também ser omitido) (BECHARA, 2001, p. 247)

O artigo é usado antes de nomes próprios de pessoas íntimas por relações de


parentesco ou políticas (ALMEIDA, 1973, p. 117)

Como se percebe, para todos os gramáticos citados, o uso do artigo diante de nomes próprios de pessoa
funciona tendo por base a intimidade com relação à pessoa referida; o problema é que uns gramáticos entendem
que essa intimidade esteja ligada ao falante – observar Bechara e Almeida – ou ligada ao ouvinte – observar
Souza da Silveira e Said Ali – ou até mesmo, ligado aos dois (falante e ouvinte). Visto dessa forma, o fator
intimidade ou familiaridade torna-se insuficiente para postular as condições de uso do artigo diante dos
antropônimos.

Vasconcellos (1928), ao analisar a questão sintática dos antropônimos portugueses, considera também
que o uso de artigo diante de antropônimos é caso de familiaridade:

Familiarmente dizemos o Adriano, o Chico, a Micas, quando falamos de pessoas muito


conhecidas d‘aquela a quem nos dirigimos. Cf Epiphanio Dias, Synt. hist., § 120, b.
Igualmente como apelido: o Garret, o Teixeira Lopes.

Em italiano il Tasso: cf. M. –L., Gram. d. l. roman., III, § 150, onde cita outros exemplos
romanicos. Falando de estrangeiros, os Italianos fazem o mesmo: o falecido Prof.
D‘Ovidio, com quem tive relações, costumava, ao referir-se ao nosso comum amigo e
meu chorado mestre o S.or Epiphanio Dias, dizer sempre il Dias. Da França em
particular diz Dauzat, p. 3: ―Les parles de notre Midi disent le Pierre et la Marie; à Paris
même, lê peuple appelle la Durand la femme de Durand‖. (VASCONCELLOS, 1928,
p.559)

Quanto ao uso de artigo diante dos títulos honoríficos, Vasconcellos (1928) fala que o título também
deve vir precedido de artigo conforme o grau de intimidade e que as alcunhas também devem vir acompanhadas
de artigo, pois sem o artigo, ela se confunde com um apelido.
77
Mencionam corretamente os titulares, proferindo o titulo precedido do artigo: o
Margaride ( = o Conde de Margaride); o Montedôr ( = o Visconde de Montedôr); os
Braganças. E tratando com eles, diremos ó S.or Conde, ou ó Conde, conforma o grau de
intimidade. Do mesmo modo: S.or Cônego, S.or General. Em terceira pessoa: o Cardial
Neto, o Cônego Fulano. (VASCONCELLOS, 1928, p.445).

Posto que agregada ao nome, sob a fórma, como se viu, de aposto ou continuado, a
alcunha pode estar precedida do artigo definido: Exemplos colhidos nas Linhagens:
Dom Gonçallo de Sousa o Bom, p.355; D. Mendo o Sousão, p.152 (geográfico:
vid.supra) (....)A par d‘estes exemplos, expressos com artigo, há-os sem artigo:
Gonçalo Veegas Magro, p. 159; D. João Pires Redondo, p.159; Pero Velho, p. 155;
Lourenço Rodrigues Espadeiro, p.199; Alvaym Calvo, p.257. Se a alcunha vem assim,
sem artigo, quase se confunde com apelido, sobretudo se adicionada imediatamente
ao nome, como em Pero Velho. (VASCONCELLOS, 1928, p.179)

Outra questão que deve ser analisada diz respeito ao fato de que se o fator intimidade é o que determina
o uso do artigo diante de antropônimos, precisa-se descobrir o que bloquearia esse sentimento de intimidade em
textos medievais em que o artigo não ocorre e também, atualmente, na fala de alguns habitantes de determinadas
regiões do país.

O que não se pode pensar é que portugueses e brasileiros sejam desprovidos de


afetividade ou incapazes de intimidade, em qualquer época de sua história. Se a
intensificação do uso se verifica ao longo da história do português, seria necessário
descobrir os fatores condicionantes, fora do âmbito emocional, afetivo, tarefa que não
parece fácil. (CALLOU, 2000, p.13)

Neves (2000, p. 404) justifica que o artigo definido é utilizado antes de antropônimos de pessoas
conhecidas ou famosas, especialmente no registro coloquial. A autora reconhece, entretanto, que esse é um uso
ligado a costume regional, familiar e, por isso, também há ocorrências de antropônimos sem o artigo.

Em relaçâo às outras línguas românicas, o artigo também é empregue em certas circunstâncias:

para o francês de Paris, espanhol europeu e o cubano, o uso se aplicaria apenas à


mulher e se daria quando o falante se referisse, por exemplo, a uma pessoa célebre, ou
com intenção depreceativa. Quanto ao italiano, a prática é semelhante, embora seu
uso se estenda aos homens, mas com sobrenomes. Em Florença, é de uso geral,
sobretudo, em função de sujeito, e, em outras posições, é dependente da preposição.
Dauzat (1930, p. 405/406) considera o seu uso vulgar, tendo sido proscrito no século
XVI. Martinez, (1986, p. 119) considera que o uso foge à norma e não é
representativo, embora frequente em determinadas regiões da Península Ibérica. Na
fase moderna da língua portuguesa esse uso intensificou-se. (CALLOU, 2000, p. 14)
78
Mira Mateus et al (1983, p. 72-73), postula que ―Nomes próprios de individuais que não pertencem à
memória histórico-cultural colectiva (...) são, em geral, precedidos de artigo definido‖. Cita como exemplo as
seguintes frases: ―Galileu morreu na miséria‖, ―O João vive em Coimbra‖; assim, tem-se Galileu, personagem de
nossa memória histórico-cultural coletiva, vindo sem artigo; e João, que não faz parte dessa memória coletiva,
vindo acompanhado de artigo definido. Ainda afirma que os ―nomes próprios que designam individuais
pertencentes à memória histórico-cultural colectiva ocorrem sem especificador‖. Ainda coloca que ―um nome
próprio é sempre totalmente determinado‖, não necessitando devido a isso de complementos frásicos ou
adjetivais de valor restritivo: ― * Galileu que era físico nasceu em Pisa.‖ e― * O João inteligente vive em Coimbra‖. As
frases acima são consideradas por ela agramaticais. Para ela, quando precede os nomes próprios, ―o artigo não
funciona como operador de definitização e singularização‖, essa função passa a ser assegurada pelo nome
próprio.

3. Pressupostos teórico-metodológicos

Todas as línguas apresentam variação interna, mas a necessidade de comunicação faz com que essa variação
obedeça a certos limites. Lidar com a variação é, pois, lidar com heterogeneidade. Cabe lembrar que essa
heterogeneidade é ordenada – a língua é uma realidade inerentemente variável e ordenada. Foi a Dialetologia que
chamou a atenção inicial para a variação linguística.

Apesar do pioneirismo, a Dialetologia foi criticada por vários motivos, Trudgill (1983 apud CALLOU 2000)
aponta que lhe faltou basicamente duas coisas: 1) saber aliar as técnicas tradicionais de estudo do dialeto ao
estabelecimento e quantificação das variáveis linguísticas e 2) basear seus resultados em número maior de dados,
a fim de dar um quadro não só da variação diatópica ou regional, mas também da diastrática ou social
(TRUDGILL, 1983 apud CALLOU,

2000, p.5)

Ao se limitar apenas a descrever os dados e sua distribuição geográfica, a Dialetologia esqueceu-se de


analisar as razões que motivaram a sua distribuição: só assim serão capazes de chegar a uma compreensão do
mecanismo sociolinguístico subjacente à distribuição geográfica dos fenômenos linguísticos, da localização das
isoglossas, e da difusão das inovações. (CALLOU, 2000, p.6)

É nesse ponto que os pressupostos teóricos da Sociolinguística vêm somarseaos da Dialetologia. Ambas
possuem um objetivo maior que é ―o estudo da diversidade da língua dentro de uma perspectiva sincrônica e
concretizada nos atos de fala‖ (FERREIRA e CARDOSO, 1994, p.19). Baseado nisso, o trabalho propõe unir as
duas teorias, efetuando uma descrição linguística dos dados das localidades, tentando analisar as razões que
motivaram essa distribuição. Para tanto, a pesquisa adota alguns pressupostos teórico-metodológicos da
Sociolinguística e outros pressupostos da Dialetologia; aqueles tendo por base os estudos de Labov (1972) e
Milroy (1980) e (1992), vendo a língua como variável, considerada em seu contexto sócio-cultural, uma vez que é
79
uma prática social; e esses, baseados nos estudos de Nelson Rossi (1963) e (1980) e Antenor Nascentes (1922),
com o intuito de realizar uma descrição dos dados coletados nas duas localidades

O corpus desta pesquisa foi constituído por oito informantes: quatro da zona rural do Pouso Alto (Abre
Campo) e quatro do Córrego dos Lourenços (Matipó); quatro homens e quatro mulheres; quatro deles com
idade entre 18 e 30 anos e os outros 4 com mais de 70 anos. Todos eles analfabetos ou semi-analfabetos, tendo
cursado até, no máximo, a metade do Ensino

Fundamental; todos eles também são nascidos e de pais também nascidos na localidade. Os dados foram
coletados in loco, através de entrevista espontânea realizada pela própria pesquisadora e com consentimento
prévio do informante, com duração mínima de 30 minutos; foram transcritos com base nas Normas do Projeto
de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta de

São Paulo (Projeto NURC). Com relação ao tratamento dos dados, inicialmente, verificou-se o ambiente
sintático-oracional de figuração do artigo: catalogação de todos os SN‘s para analisar o uso ou não de artigo
definido e indefinido. Logo após, realizou-se a análise da atuação ou não do

artigo definido diante dos nomes próprios. A variável dependente foi composta de duas variantes: ausência ou
presença de artigo definido diante de antropônimos.

4. Análise dos dados

Para Amaral (2007), os falantes usam a variante não predominante, seja ela a ausência ou a presença,
para fazer referência a pessoas com as quais não têm nenhum grau de intimidade e a variação predominante para
fazer referência às pessoas com as quais possui contato.

A partir desse ponto de vista, essa intimidade foi analisada, inicialmente, de acordo com três divisões:
pessoa mais próxima do falante, pessoa mais distante do falante e pessoa pública. Como não houve nenhum caso
de figura pública em nenhuma das entrevistas, essa divisão foi desconsiderada. As tabelas (1) e (2) apresentam o
resultado desta análise:

TABELA 1

O grau de intimidade em relação ao referente em Abre Campo

Pessoa mais próxima % Pessoa mais distante %


80
Presença 68 47% 31 50%

Ausência 76 53% 31 50%

Total 144 100% 62 100%

TABELA 2

O grau de intimidade em relação ao referente em Matipó

Pessoa mais próxima % Pessoa mais distante %

Presença 227 89 112 71

Ausência 28 11 45 29

Total 255 100% 157 100%

Em Abre Campo, o fator intimidade não interfere na variação ausência/presença de artigo definido
diante de antropônimos com relação a pessoas mais distantes e interfere ligeiramente com relação a pessoas mais
próximas. Já em Matipó, percebe-se que o artigo é predominante tanto no emprego com relação a pessoas mais
próximas quanto no emprego com relação a pessoas mais distantes, sendo um pouco mais relevante no primeiro
caso; em contrapartida, ao se analisar apenas a ausência nessa mesma localidade, fica claro que quando se trata de
pessoa mais distante, os falantes empregam muito mais a ausência de artigo definido (29%), ao passo que, ao se
referirem a pessoas mais próximas, empregam muito menos essa ausência (11%).

Uma questão relaciona-se com o fato dos gramáticos colocarem o fator intimidade como regra para o
uso do artigo diante de antropônimos, torna-se necessário saber duas coisas: primeiro, o que bloquearia esse
sentimento de intimidade em algumas épocas ou em determinadas regiões, pois não se pode dizer que alguns
falantes em determinadas épocas ou em determinadas regiões sejam incapazes ou desprovidos de intimidade; nos
dados desta dissertação percebe-se que alguns falantes usam, mais de uma vez, um mesmo nome próprio ora
articulado ora não, ou vice-versa, conforme se observa nos exemplos abaixo:

(1) não... nasci na... na Pedra Branca que eu tô falano com cê é quando:: eu casei... que eu tive o... o primero
minino... já foi na virada de lá... eu... eu troquei com meu pai né?... eu já tava isperano Ø Eli... já tinha dois ano de
casada já... tava isperano o Eli... aí o Juaquim falô... não... agora faz assim... ê::... ê:: ... ele rematô um... o terreno
81
da virada de lá... ê falô assim.. cois assim... agora nóis troca... ocê vem pra cá e:: e... ele passa lá pra... pra casa de
lá... e eu... e eu... eu... eu... eu fico aqui... tomano conta aí... aí fiquei lá... tive o Eli lá... quando foi... quasi ganhano
Mariquita eu... eu vortei pra cá e ele foi pra lá... (I1F87AC linhas 43-50)

(2) e o Ricardo gritava que num morreu... Ø Ricardo batia até a mão no volante... ―num morreu não... Léia!‖...
falei... ―morreu!!‖... aí foi mia fia... e acarmô eu... eu pensei assim... (I6F30Mt linhas 659-661)

(3) pro seu avô num gostava de minino no sirviço... eu trabaiava pro Tunim... eu fui cumeçá a trabaiá pro Seu
Nhonhô mesmo eu tava cum quinze ano... aí num saí mais não... os zoto num sabe... mais Ø Seu Nhonhô gostava
do sirviço bem feito demais... minino era mei maçadô né?... ê num gostava não... (I8M70Mt linhas 506-507)

(4) eu cheguei e fiquei bem na frente do portão assim... bem na frente... sabia que era ela que ia abrir o portão...
ela chegô a abrir o portão e olhô bem na minha cara... tava a Madalena e essa menina... essa minina lá... eu isquici
até o nome do rai da muié já... nóis tão cunversano aqui... Amélia... tava Amélia e Ø Madalena... abrino o portão...
essa sonseira chegô perto de mim e falô assim... ―ocê aprendeu?‖... eu falei assim... ―ô... num tô mexeno com ocê
não... cê vai pra puta que pariu e me larga eu quieto‖... mandei a mulher pra puta que pariu... falei assim... ―ah...
arrumei otro pobrema‖... a sorte minha é que Ø Madalena falô assim... ―ô ... o minino já tá nervoso que ele perdeu
aula... perdeu tudo... perdeu matéria... perdeu um punhado de treim aí... e ocê ainda vai mexê com ele?... que que
ocê tá cassando?... eu num vô fazê na/... mais nada não‖... (I4M29AC linhas 292-302)

Nota-se pelos exemplos (1), (2), (3) e (4) que os falantes ora empregam os antropônimos articulados, ora
não. Ao analisarmos o grau de intimidade entre o falante e o referente, percebemos que em (1) a informante fala
do filho, em (2) de um vizinho íntimo, em (3) de um antigo patrão e, em (4), da diretora da escola. Percebe-se
que o grau de intimidade com relação aos diversos referentes difere, mas, ao mesmo tempo, ora esses
antropônimos são articulados ora não; se é uma regra, como postulam as gramáticas tradicionais, não poderia ser
variável. Os dados quantificados e os exemplos acima servem para nos mostrar que o parâmetro intimidade ou
familiaridade do referente do antropônimo influi sim no emprego de artigo definido diante de antropônimos – o
que pode ser observado na fala dos moradores da zona rural de Matipó –, mas não deve ser visto uma regra
categórica.

REFERÊNCIAS:
82

ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática metódica da língua portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1973.

AMARAL, Eduardo Tadeu Roque. A ausência/presença de artigo definido diante de antropônimos em três
localidades de Minas Gerais: Campanha, Minas Novas e Paracatu. Dissertação (Mestrado em Estudos
Lingüísticos) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003.

AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos da Gramática do Português. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2002.

BECHARA, Ivanildo. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001.

CALLOU, Dinah. A variação no Português do Brasil: O uso do artigo definido diante de antropônimo.
Faculdade de Letras da UFRJ, Série Conferência, vol. 9. Rio de Janeiro, 2000.

CUNHA, Celso F. da e CINTRA, Lindley F. L. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova
Fonteira, 1975.

FARACO, Carlos e MOURA, Francisco. Gramática. São Paulo: Ática, 1987.

FERREIRA, Carlota; CARDOSO, Suzana. A dialetologia no Brasil. São Paulo: Contexto, 1994.

LABOV, William. Sociolinguistc patterns. Philadelfhia: University of Pennsylvania Press, 1972.

MILROY, Lesley. Language and Social Networks. (1980). Massachussetts, Blackwell, 1980.

NASCENTES, Antenor. O linguajar carioca. Rio de Janeiro: Simões, 1922.

___. Bases para a elaboração do Atlas Lingüístico do Brasil. Rio de Janeiro: MEC, Casa de Rui Barbosa, Vol. I, 1958;
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___. Dialectologia. In: Houaiss, Antônio. Enciclopédia Mirador Internacional. São Paulo: Melhoramentos,
1980, pp. 3.298-3.304. v.7.

SAID ALI, M. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1964.

SOUZA DA SILVEIRA. Lições de Português. Rio de Janeiro: Livros de Portugal. 1960.

VASCONCELOS, José Leite de. Antroponímia portuguesa: tratado comparativo da origem, significação, e
vida do conjunto dos nomes próprios, e apelidos, usados por nós desde a Idade Média até hoje. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1928.
83
CONCORDÂNCIA DE PESSOA E NÚMERO
NOS VERBOS IKPENG
Angela F. A. Chagas38
Prof. Dr. Angel Corbera Mori (Orientador)39

Resumo: Neste trabalho, discutiremos a concordância de pessoa e número existente entre o verbo
Ikpeng e seus argumentos. Nessa língua, o verbo transitivo pode concordar com o sujeito ou com o
objeto, dependendo de alguns fatores. Observamos que os verbos transitivos Ikpeng estabelecem
concordância seguindo o que é conhecido na literatura linguística como alinhamento (direto-)inverso,
que consiste na concordância do verbos sempre com as não-terceiras pessoas. Os verbos intransitivos
possuem marcação cindida, podendo realizar seu argumento ora como Sa, ora como Sp. O que parece
motivar essa cisão são as noções de eventos interna e externamente causados. Os verbos Ikpeng que
são externamente causados carregam os prefixos pessoais da Série I; enquanto que os internamente
causados carregam os prefixos pessoais da Série II. Quanto à concordância de número, o verbo
(transitivo) concorda sempre com o elemento que está no plural, independente das pessoas envolvidas
e da função gramatical (sujeito ou objeto) dos argumentos.

Palavras-Chave: Língua Ikpeng; Concordância; Pessoa; Número.

Abstract: In this paper, we discuss the person and number agreement between the verb and its
arguments in Ikpeng language. In this language, the transitive verb can agree with its subject or object.
The transitive Ikpeng verbs establish agreement following what is known in the linguistic literature as
(direct-)inverse alignment, which consists in the agreement of verbs always with the non-third persons.
The intransitive verbs present the Split-S pattern, marking its argument sometimes as Sa, sometimes as
Sp. What seems to motivate this split system is the notions of internally and externally caused events.
The Ikpeng verbs that are externally caused carry the Personal Prefixes of Series I; while internally
caused verbs carry the Personal Prefixes of Series II. About the number agreement, (transitive) verbs
always agree with the element in plural number, regardless of grammatical function of the arguments
(subject or object), and independent of the persons involved in the verbal predication.

Keywords: Ikpeng Language; Agreement Person; Agreement Number.

I. Introdução: Alinhamento (Direto-)Inverso


Uma língua possui sistema (direto-)inverso quando a concordância no verbo transitivo se
estabelece de maneira hierárquica com a pessoa que possui maior proeminência, topicalidade ou
animacidade. Nessa hierarquia, os Speech Act Participants (SAP), primeira e segunda pessoa, são mais
proeminentes que a terceira. Nessas línguas, duas coisas são importantes de serem observadas no
verbo: (i) a marcação de concordância se refere a apenas um dos dois participantes da oração transitiva;

38 Professora do Curso de Letras da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) e aluna de Doutorado da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: [email protected]
39 Professor do Professor do Programa de Pós-Graduação em Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).


84
e (ii) se a pessoa que ocupa a maior posição na hierarquia é o sujeito ou o objeto do evento codificado
pelo verbo. Quatro configurações diferentes podem ser propostas para essas línguas:
SUJEITO OBJETO
1) Direta (SAP : 3)
2) Inversa (3 : SAP)
3) Local (SAP : SAP)
4) 3:3 (3 : 3)

II. Marcação de Pessoa nos Verbos Transitivos Ikpeng

II.1. Configuração Direta e Configuração Inversa


A primeira possibilidade ocorre quando o sujeito do verbo é um SAP e o objeto é uma terceira
pessoa. A morfologia associada a esse alinhamento é chamada de direta. A segunda possibilidade ocorre
quando o sujeito é uma terceira pessoa e o objeto é um SAP. A esse alinhamento morfológico dá-se o
nome de inverso (GILDEA, 1994, p. 188).
ALINHAMENTO SAP 3

Direto Sujeito Objeto

Inverso Objeto Sujeito

De acordo com Gildea (ibidem), o termo ―inverso‖ veio originalmente das análises das línguas
da família Algonquiana que apresentam esse tipo de sistema. Ainda segundo este autor, Thomas Payne
foi a primeira pessoa a propor que o sistema de concordância verbal nas línguas da família Karib fosse
tratado como um alinhamento (direto-)inverso (GILDEA, op. cit., p. 226). Essa é a análise adotada por
Gildea (idem.), para a língua Carib do Suriname; por Meira (2004), para a língua Tiriyó; e por Camargo
(2003) para a língua Wayana. Neste trabalho, propomos uma análise semelhante para a língua Ikpeng.
Em Ikpeng há várias subséries de afixos pessoais recorrentes nos verbos, que podem variar de
acordo com valência (transitividade e intransitividade) e com a forma da raiz verbal (iniciada por
consoante ou vogal), muito semelhante ao que ocorre no Bakairi e no Tiriyo, ambas línguas da família
Karib.
Tabela de Prefixos Pessoais Ikpeng40
VERBO TRANSITIVO VERBO INTRANSITIVO

Série I Série II Série I Série II

40Para ver detalhes sobre os critérios utilizados para o estabelecimento dos prefixos pessoais em Ikpeng, consultar Chagas
(2013).
85
PESSOA (Função A) (Função P) (Função Sa) (Função Sp)

C- Inicial V-Inicial C- Inicial V-Inicial V- C- Inicial V-

Inicial Inicial

1 ye- y- ï- g- k- ï- g-

2 me- m- o- w- m- o- w-

1+2 kut- kut- wï- ug(w)- kut- wï- ug(w)-

3 e- Ø- i- y- Ø- i- y-

Morfemas Portmanteaux ko- kw- wï- ug(w)-

(1Ax2P) (2Ax1P)

As séries transitivas I e II ocorrem de maneira mutuamente excludente nesses verbos, o que


significa que o verbo marca apenas uma das pessoas envolvidas na sua estrutura argumental; além disso,
a língua parece privilegiar as não-terceiras pessoas.
Dessa forma, pode-se dizer que a língua Ikpeng apresenta as propriedades correspondentes a
um sistema (direto-)inverso, pois os prefixos da Série I se realizam no verbo quando o sujeito configura
um SAP e o objeto, uma terceira pessoa, havendo assim marcação morfológica direta; enquanto que os
prefixos da Série II são realizados quando o sujeito é uma terceira pessoa e o objeto é um SAP,
havendo marcação morfológica indireta, como pode ser visto nos exemplos abaixo:
ALINHAMENTO DIRETO: SAP x 3
(01) RELAÇÃO: 1A x 3P
a) ye-woprapton-lï b) y-apige-lï
1-entristecer-PAS.IM41 1-arranhar-PAS.IM
‗Eu o entristeci‘ ‗Eu o arranhei‘

(02) RELAÇÃO: 2A x 3P
a) me-woprapton-lï b) m-apige-lï
2-entristecer-PAS.IM 2-arranhar-PAS.IM
‗Você o entristeceu‘ ‗Você o arranhou‘

(03) RELAÇÃO: 1+2A x 3P

41Lista de Glosas: 1 (primeira pessoa singular); 1+2 (primeira pessoa inclusiva); 2 (segunda pessoa); 3 (terceira pessoa); A
(sujeito transitivo); INTR (intransitivizador); P (objeto transitivo); PAS.IM (passado imediato); PL (plural); S (sujeito
intransitivo).
86
a) kut-woprapton-lï b) kut-apige-lï
1+2-entristecer-PAS.IM 1+2-arranhar-PAS.IM
‗Nós o entristecemos‘ ‗Nós o arranhamos‘

ALINHAMENTO INVERSO: 3 x SAP


(04) RELAÇÃO: 3A x 1P
a) ï-woprapton-lï b) g-apige-lï
1-entristecer-PAS.IM 1-arranhar-PAS.IM
‗Ele me entristeceu‘ ‗Ele me arranhou‘

(05) RELAÇÃO: 3A x 2P
a) o-woprapton-lï b) w-apige-lï
2-entristecer-PAS.IM 2-arranhar-PAS.IM
‗Ele entristeceu você‘ ‗Ele arranhou você‘

(06) RELAÇÃO: 3A x 1+2P


a) wï-woprapton-lï b) ugw-apige-lï
1+2-entristecer-PAS.IM 1+2-arranhar-PAS.IM
‗Ele nos entristeceu‘ ‗Ele nos arranhou‘

II.2. Configuração Local


O terceiro tipo de configuração ocorre quando tanto o sujeito, quanto o objeto são SAPs.
Nesse caso, as línguas podem fazer o alinhamento das relações 1Ax2P e 2Ax1P de duas formas
distintas: a) tratar a marcação dessas relações como um subsistema independente, que não é nem direto,
nem inverso; ou b) tratá-las como se fossem diretas ou inversas.
As línguas dos primeiro tipo podem ainda:
(a.1) apresentar uma morfologia individual para cada uma das relações; ou
(a.2) apresentar uma morfologia que evidencia que ambas as relações juntas formam um
subsistema, isto é, marcar ambas as relações de forma idêntica.

As línguas do segundo tipo apresentam as seguintes possibilidades:


(b.1) ambas as relações são tratadas como configurações diretas;
(b.2) ambas as relações são tratadas como configurações inversas;
(b.3) 1Ax2P é tratada como configuração direta e 2Ax1P, como inversa; e
(b.4) 1Ax2P é tratada como configuração inversa e 2Ax1P como direta.
87
A língua Ikpeng parece fazer parte do primeiro tipo (a), pois apresenta prefixos independentes
do sistema de afixos pessoais para marcar essas relações, da mesma forma que a língua Carib
(GILDEA, 1994, p. 193) – embora esta seja do subtipo (a.2), isto é, realiza o mesmo morfema {k(ï)-}
para marcar ambas as relações. Ikpeng é uma língua do subtipo (a.1), pois realiza morfemas distintos
para cada uma das relações: {ko-/kw-} para marcar a relação 1Ax2P; e {wï-/ug(w)-} para codificar a
relação 2Ax1P.
(07) 1A x 2P
a) ko-woprapton-lï b) kw-apige-lï
1/2-entristecer-PAS.IM 1/2-arranhar-PAS.IM
‗Eu entristeci você‘ ‗Eu arranhei você‘

(08) 2A x 1P
a) wï-woprapton-lï b) ug(w)-apige-lï
1/2-entristecer-PAS.IM 1/2-arranhar-PAS.IM
‗Você me entristeceu‘ ‗Você me arranhou‘

Observe que o morfema portmanteau que marca a relação 2Ax1P é homófono ao morfema
inverso correspondente à primeira pessoa inclusiva (1+2), de modo que os exemplos em 04a) e 04b)
também podem ser interpretados como ―Ele nos entristeceu‖ e ―Ele nos arranhou‖, respectivamente.
Fato semelhante ocorre no Carib, onde o morfema portmanteau {k(ï)-}, que marca ambas as relações
envolvendo duas SAP (1Ax2P; 2Ax1P), também é homófono ao prefixo inverso que marca a primeira
pessoa inclusiva, de tal forma que seu uso pode ter três interpretações possíveis:
kï-kuupi-ya k-aroo-ya
1/2-bathe-TNS 1/2-take-TNS
‗I bathe you‘ ‗I take you‘
‗You bathe me‘ ‗You take me‘
‗S/he bathes us‘ ‗S/he takes us‘ (GILDEA, 1994, p. 193)
Em Ikpeng, assim como no Carib, essa ambiguidade pode ser desfeita ou pelo contexto
discursivo ou pelo uso de pronomes pessoais. Repetimos abaixo os exemplos em (08) com o uso dos
pronomes pessoais para mostrar a possibilidade de desambiguação das orações por meio dos pronomes
pessoais em Ikpeng:
(09) DESAMBIGUAÇÃO DA SENTENÇA POR MEIO DE PRONOMES PESSOAIS
a) wï-woprapton-lï omro uro b) ug(w)-apige-lï omro uro
1/2-entristecer-PAS.IM você eu 1/2-arranhar-PAS.IM você eu
‗Você me entristeceu‘ ‗Você me arranhou‘
88
c) wï-woprapton-lï ugun ugro d) ug(w)-apige-lï ugun ugro
1/2-entristecer-PAS.IM ele nós 1/2-arranhar-PAS.IM ele nós
‗Ele nos entristeceu‘ ‗Ele nos arranhou‘

Como pode ser visto até então, a língua Ikpeng não trata de forma hierárquica a relação
envolvendo duas SAP, pois em ambas as possibilidades, usa prefixos portmanteaux que não evidenciam a
proeminência de uma pessoa sobre a outra. Desse modo, pode-se dizer que essa língua possui uma
hierarquia de pessoa, mas não nos moldes 1 > 2 > 3, onde a primeira pessoa é mais proeminente que a
segunda e ambas mais que a terceira. De acordo com o que foi apresentado, conclui-se que a oposição
realizada na língua diz respeito a quem é participante do discurso e quem não é, ou seja, SAPs x 3.
Assim, pode-se dizer que a melhor forma de esquematizar a relação entre as pessoas gramaticais em
Ikpeng é: 1 = 2 > 3.

II.3. Configuração 3Ax3P


Quando ambos os argumentos envolvidos são terceiras pessoas, o uso de morfologia direta ou
inversa não causa distinção na relação dos participantes, como pode ser visto abaixo:
(10) 3A x 3P
a) Ø-eneng-lï ugun oren b) y-eneng-lï ugun oren
3Sa-ver-PAS.IM ele ele 3Sp-ver-PAS.IM ele ele
‗Ele o viu‘ ‗Ele o viu‘

Nesse caso, o uso de morfologia direta ou inversa dependerá de fatores pragmáticos, como a
topicalidade (Givón, 1994). Usando mais uma vez a terminologia adotada para as línguas da família
Algonquiana, chama-se proximate à terceira pessoa que recebe morfologia direta, ou seja, aquela que é
marcada com afixos correspondentes ao sujeito transitivo; e obviative à terceira pessoa, quando esta
recebe morfologia inversa, ou seja, é marcada como objeto.
Arnold (1994, p. 28) diz que, nesses casos, as línguas usam morfologia inversa para introduzir
um participante novo no discurso. Assim, o uso de morfologia direta ou inversa nesses casos, serviria
para indicar a relação ―dado versus novo‖; ‗tema versus rema‖; ― tópico versus comentário‖; ―anáfora versus
catáfora‖. Isso pode ser verificado em textos, porém, é uma discussão que está além do escopo deste
trabalho.

III. Marcação de Pessoa nos Verbos Intransitivos Ikpeng


89
De acordo com Payne (1997, p. 144), algumas línguas expressam o argumento dos verbos
intransitivos (S) de duas maneiras distintas, ora como A (Sa), ora como P (Sp). Tais línguas podem ser
de dois tipos: S-Cindido e S-Fluido42.
Os verbos intransitivos Ikpeng parecem ser do tipo S-Cindido, uma vez que cada tema verbal
só pode ocorrer exclusivamente com uma série de prefixos, ou seja, determinados verbos só ocorrem
com prefixos a da Série I, e outros apenas com prefixos da Série II; diferente do sistema S-Fluido,
quando uma mesma raiz verbal pode carregar ora um argumento Sa, ora Sp, dependendo da semântica
do verbo, numa determinada situação de uso, o que não se observa no caso do Ikpeng.
De acordo com Dixon (1994), a cisão tem sempre uma base semântica. No caso do Ikpeng, os
verbos inerentemente intransitivos parecem seguir a seguinte distribuição:
a) Os verbos externamente causados, ou seja, os que necessitam de uma causa externa que
desencadeia o evento descrito pelo verbo – que pode ser um agente, um instrumento, uma
força natural, ou uma circunstância – são marcados com a Série I (ex: inpome ‗apagar‘, engru
‗boiar‘, eputxikte ‗engrossar‘, egwam „afundar‘, etc); e

b) Os verbos internamente causados, aqueles que realizam o evento unicamente graças às


características intrínsecas de seus argumentos, sem necessitar de uma causa externa, são
marcados com a Série II43 (ex: eprum ‗sorrir‘, ekïrïpang ‗envelhecer‘, aginum ‗chorar‘, txikte
‗urinar‘, etc).

(11) VERBOS EXTERNAMENTE CAUSADOS: PREFIXOS DA SÉRIE I


a) Ø-engru-lï muy b) m-epiante-lï
3-boiar-PAS.IM canoa 2-esfriar-PAS.IM
‗A canoa boiou‘ ‗Você esfriou‘
(Trad. Livre: ―Aliviou a sua dor‖)

(12) VERBOS INTERNAMENTE CAUSADOS: PREFIXOS DA SÉRIE II


a) g-aginum-lï b) ï-txiktek-te-lï
1-chorar-PAS.IM 1-urinar-ITER-PAS.IM
‗Eu chorei‘ ‗Eu urinei‘‘

Os verbos intransitivizados, ou seja, derivados de transitivos a partir do morfema {ot-}, são


sempre marcados com os prefixos da Série I, fato recorrente na família Karib.
(13) VERBOS INTRANSITIVIZADOS: PREFIXOS DA SÉRIE I

42 Cf. Dixon (1994, p. 71).


43 Uma discussão detalhada da distinção entre verbos interna e externamente causados será feita no Capítulo IV desta tese.
90
a) k-ot-engkorore-lï b) Ø-ot-apkore-lï wayo
1-INTR-atravessar-PAS.IM 3-INTR-quebrar-PAS.IM cuia
‗Eu atravessei (o rio)‘ ‗A cuia quebrou‘

IV. Concordância de Número


Em relação à marcação de número, observamos que o verbo concorda sempre com o
argumento que estiver no plural, independente da pessoa (1ª, 2ª ou 3ª) ou da função gramatical (sujeito
ou objeto) do argumento. O morfema utilizado para marcar o plural nos verbos em orações
declarativas é o sufixo {-kom} (que pode também se realizar na forma {-ngmo}, por um processo de
metátese44). Vejamos abaixo alguns exemplos:
SUJEITO NO PLURAL
(14) Relação: 2A ‗vs‘ 1P
ugw-eneng-lï-ngmo omro-ngmo uro
1+2-ver-PAS.IM-PL você-PL eu
‗Vocês me viram‘

(15) Relação: 2A ‗vs‘ 3P


m-eneng-lï-ngmo omro-ngmo ugun
2A/3P-arranhar-PAS.IM-PL você-PL ele
‗Vocês o viram‘

(16) Relação: 3A ‗vs‘ 1P


g-eneng-lï-ngmo ugyam uro
3A/1P-ver-PAS.IM-PL eles eu
‗Eles me viram‘

(17) Relação: 3A ‗vs‘ 2P


o-eneng-lï-ngmo ugyam omro
3A/2P-ver-Pas.Im-PL eles você
‗Eles viram você‘

(18) Relação: 3A ‗vs‘ 3P


Ø-eneng-lï-ngmo ugyam oren

44Para mais informações sobre os processos fonológicos possíveis na língua Ikpeng, ver os trabalhos de Pachêco, 2001;
Campetela (1997).
91
3A/3P-ver-PAS.IM-PL eles ele
‗Eles o viram‘

OBJEITO NO PLURAL
(19) Relação: 1A ‗vs‘ 2P
ko-eneng-lï-ngmo uro omro-ngmo
1A+2P-ver-PAS.IM-PL eu voce-PL
‗Eu vi vocês‘

(20) Relação: 1A ‗vs‘ 3P


y-eneng-lï-ngmo uro ugyam
1A/3P-ver-PAS.IM-PL eu eles
‗Eu os vi‘

(21) Relação: 2A ‗vs‘ 3P


m-eneng-lï-ngmo omro ugyam
2A/3P-ver-PAS.IM-PL você eles
‗Você os viu‘

(22) Relação: 3A ‗vs‘ 2P


o-eneng-lï-ngmo ugun omro-ngmo
3A/2P-ver-PAS.IM-PL ele você-PL
‗Ele viu vocês‟
(23) Relação: 3A ‗vs‘ 3P
Ø-eneng-lï-ngmo ugun ugyam
3A/3P-ver-PAS.IM-PL ele eles
‗Ele os viu‘

Os exemplos acima mostram que o verbo estabelece a concordância de número com o


elemento gramatical que está no plural. Em 14, 15, 16, 17 e 18, o sujeito do verbo está no plural e o
objeto no singular e o verbo recebe a marcação de plural agregada a sua raiz, concordando assim com o
sujeito. Em 19, 20, 21, 22 e 23, o sujeito encontra-se no singular e o objeto no plural. O verbo
novamente recebe a marcação de plural, concordando desta vez com o objeto.
Com base nos dados dispostos é possível dizer que a concordância de número não é governada
pelas mesmas regras da concordância de pessoa, pois nesse caso, a concordância é determinada pela
92
hierarquia de pessoa, como discutido anteriormente. Esse fator parece não ser relevante para a
concordância de número.

REFERÊCIAS:
ARNOLD, Jennifer. Voice Marking in Mapudungum. Tweentieth Annual Meeting of Berkley
Linguistics Society, 1994 (pág. 28-41).

CAMARGO, Eliane. Classes verbais e semântica dos argumentos em um sistema sintático cindido: o
exemplo do Wayana (Caribe). In: QUEIXALÓS, F (ed.), Ergatividade na Amazônia II. Paris:
CNRS~CELIA, 2003 (pág. 83-100).

CAMPETELA, Cilene. Análise do sistema de marcação de caso nas orações independentes da língua
Ikpeng. Dissertação de mestrado. Campinas: UNICAMP, 1997.

DIXON, R. M. W. Ergativity. Cambridge University Press: Cambridge, 1994.

GILDEA, Spike. Semantic and pragmatic inverse: ‗inverse alignment‘ and ‗inverse voice‘ in Carib of
Suriname. In: GIVÓN, T (ed). Voice and Inversion. (Typological Studies in Language). Amsterdam:
John Benjamins Publishing Company, 1994 (pág. 187-230).

GIVÓN, Talmy. The pragmatics of de-transitive voice: functional and typological aspects os inversion.
In: GIVÓN, T (ed). Voice and Inversion. (Typological Studies in Language). Amsterdam: John
Benjamins Publishing Company, 1994 (pág. 3-45).

MEIRA, Sérgio. Morfologia vs. Semântica ou Intransitividade Cindida em Tiriyó (Karib). Anais do II
Encontro Nacional do GELCO: Integração Linguistica, Étnica e Social: Brasília, 2004.

PACHECO, F. Morfossintaxe do verbo Ikpeng (Karib). Tese de Doutorado Campinas: UNICAMP,


2001.

PAYNE, Thomas. Describing Morphosyntax: a guide for filding linguisrtics. Cambridge University
Press: Cambridge, 1997.
93
ASPECTOS DA CONCORDÂNCIA EM ASURINI DO XINGU

Antônia Alves Pereira45

Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar aspectos da concordância em Asurini do Xingu,
membro da família Tupi-Guarani, tronco Tupi. Nessa língua, existem Três classes de verbos:
transitivos, intransitivos ativos e intransitivos descritivos. Nas sentenças ativas, verbos transitivos e
verbos intransitivos ativos são codificados por prefixos da série I. Esses prefixos aparecem anexados ao
verbo e são correferentes com o sujeito da oração. Se os verbos são intransitivos descritivos, a
codificação de pessoa é feita com pronome pessoal e intermediada por um prefixo relacional. Se no
discurso entram em cena o número plural e a hierarquia de pessoa, novos parâmetros são selecionados
para a concordância. Quando estão envolvidas no jogo 1ª e 2ª pessoas do plural em que a aquela
desempenha o papel de agente e a 2ª o papel de paciente, a codificação pessoal é feita por prefixos
portmanteau. Quando o objeto é mais tópico que o sujeito da oração, isto é, se acontece de ele ser mais
alto que o sujeito na hierarquia de agentividade natural da língua, novos critérios são utilizados para a
concordância pessoal. Nesse caso, a concordância do verbo é feita com o objeto da oração.

Palavras-chave: Concordância; Sujeito; Verbo.

Abstract: Abstract: This paper presents aspects of agreement in Asurini of Xingu, a member of the
Tupi-Guarani family, Tupi stock. In this language there are three classes of verbs: transitive, active
intransitive, and descriptive intransitive. In active sentences, transitive verbs and active intransitive
verbs are coded by Series I prefixes. These prefixes appear attached to the verb and are co-referent with
the subject of the sentence. If the verbs are intransitive descriptive, the coding of person is done with a
personal pronoun and intermediated by a relational prefix. If in discourse the plural number and person
hierarchy come into play, new parameters are selected for agreement. When the 1st and 2nd person
plural are involved, where the former plays the role of agent and the latter the part of the patient, the
coding of person is done by portmanteau prefixes. When the object, rather than the subject, is the topic
of the sentence, that is, if the object happens to be higher than the subject in the hierarchy of agentivity
in the language, new criteria are used for personal agreement. In this case, verb agreement is with the
object of the sentence.

Keywords: agreement, subject, verb.

1. Introdução

Este trabalho tem como objetivo mostrar aspectos da concordância no Asurini do Xingu. Essa
língua, conforme classificação de Rodrigues (1986), faz parte da família Tupi-Guarani, tronco Tupi. O
povo asurini do Xingu vive no município de Altamira, estado do Pará, e sua população é composta por
aproximadamente 150 pessoas.
No decorrer desse trabalho, tratamos da relação entre o sujeito e o verbo e como se estabelece a
concordância de pessoa. Procuramos mostrar que há uma série de fatores que orienta essa relação.

45
Doutorado em Linguística. Professora da Universidade Federal do Pará.
94
Esse trabalho segue os pressupostos teóricos da linguística tipológico-funcional. Na sua
elaboração, utilizamo-nos de ideias de autores como: Dixon ( 1994), Zwicky (1977), Comrie (1978),
Hewson (1991) e Silverstein (1976).
Os dados do Asurini do Xingu aqui utilizados foram todos coletados por nós junto ao povo que
fala a língua Asurini do Xingu.

2. Concordância pessoal em Asurini do Xingu

No Asurini do Xingu, existe um marcador de pessoa distinto para cada pessoa do discurso. Esse
fenômeno é encontrado também em muitas línguas da família Tupi-Guarani. A morfologia e a sintaxe
são determinantes na seleção e codificação dos sujeitos. Através da natureza do verbo e pelo tipo de
construção em que se encontra envolvido é que se identificam os sujeitos. A língua agrupa os verbos
em transitivos, intransitivos ativos e intransitivos descritivos (c.f. Pereira 2009), quanto às construções
em que se encontram envolvidos podem ser dependentes ou independentes. A seguir, detalhamos
como são selecionados os marcadores de pessoa e como se dá a concordância pessoal em orações
independentes.

2.1 Construções independentes e ralações correferenciais: sujeitos de verbos transitivos e


intransitivos ativo

Nas construções independentes, os sujeitos de verbos transitivos e de intransitivos ativos são


codificados da mesma forma. Há relação de correferência entre o prefixo marcador de pessoa junto ao
verbo e o pronome pessoal ou nominal que exprime o sujeito da sentença. Existem na língua três
pessoas do discurso e número singular e plural. No paradigma dos pronomes pessoais distingue-se
primeira pessoa do singular, segunda pessoa do singular e terceira pessoa do singular feminina e terceira
pessoa do singular masculina. No plural distinguem-se primeira pessoa inclusiva de primeira pessoa
exclusiva. Não há distinção de gênero na terceira pessoa do plural como o há no singular. No
paradigma dos prefixos da série I, diferentemente do paradigma dos pronomes pessoais, não existe
prefixo que assinale a diferença entre as terceiras pessoas seja quanto ao gênero, seja quanto ao número,
ou seja, terceira pessoa do gênero feminino ou do gênero masculino, singular ou plural é assinada da
mesma forma: com o prefixo u-. A tabela abaixo exibe os pronomes pessoais e os respectivos prefixos
pessoais:
95

Tabela I- pronomes pessoais e prefixos da série I


Pessoas Pronomes pessoais Prefixos da série I

1ª SG dje a-
2ª SG ene ere-
1ª INCL. djane txa-
1ª EXCL. ure uru-
2ª PL. pene pe-
3ª SG/PL ga Mas, ẽ Fem / gy u-

Abaixo, exemplos que exibem a relação de correferência entre o sujeito expresso por pronome
pessoal ou nominal e o prefixo da série I anexado ao verbo.

(1) dje ipira a-muin


1sg peixe 1-cozinhar
A O a-VT
„eu cozinho peixe‟

(2) ene ere-pen


2sg 2sg-passar
SA sa-VI
„você passa‟

(3a) ga u-dja‟a
3sg.Mas 3-chorar
SA sa-VI
„ele chora‟

(3b) tajmira mani‟aka u-mu‟in


Npr mandioca 3-cozinhar
A O a- VT
„Tajmira cozinhou mandioca‟

(3c) gy u-dja‟a
96
3Pl 3-chorar
Sa sa-VI
„eles choram‟

(4a) ure padje uru-kwap


1Excl. pajé 1Excl-conhecer
A O a-VT
„nós conhecemos o pajé‟

(4b) djane djawara txa- etxak


1Pl.Incl onça 1Pl.Incl.a-ver
„nós vimos a onça‟

(5) pene arakuri pe-mu‟in


2PLIncl. galinha 2Pl–cozinhar
A a-VT
„vocês cozinham galinha‟

2.2 Sintaxe cindida

Conforme vimos, verbos transitivos e verbos intransitivos ativos são codificados pelos mesmos
elementos morfológicos , e a forma como o sujeito de verbo transitivo (A) se relaciona com o verbo é
a mesma que sujeito de verbo intransitivo ativo (Sa), isto é, há uma relação de correferência entre o
sujeito e o prefixo da série I que se encontra anexado ao verbo. Já em se tratando de verbos
intransitivos descritivos46, depara-se com um novo padrão de concordância. Deixa de existir, junto a
raiz verbal, um prefixo que é correferente com o sujeito da oração. Essa posição passa a ser ocupada
por um prefixo dito relacional cuja função, nesse caso, é assinalar que existe um elemento antecedente
que é o sujeito da oração.

46Vale destacar nesse ponto que o que consideramos verbos descritivos no Asurini do Xingu (Pereira 2009 e 2011) recebeu
outras classificações em outras línguas da família tupi-guarani. Rodrigues (1996), em análise para os descritivos do
Tupinambá, trata-os como nomes possuíveis e postula que tais termos podem desempenhar a função de núcleo de
predicado: ―Faz todo sentido considerar os nomes de qualidades e estados como nomes possuíveis, que podem funcionar
como núcleo de predicado tanto quanto os demais nomes possuíveis, e não como uma categoria á parte de verbos
descritivos ou de verbos intransitivos inativos‖ (Rodrigues, 1996, p. 94).
Em Rose (2003) é apresentada uma análise distinta para os descritivos no Emerillon. Trata-se de sua cisão em
duas classes de lexemas com comportamentos distintos: nominoïde e attributifs, o que, segundo a autora, parece ser único
na família Tupi-Guarani.
97
(06) ene r-urip
2sg. Rel-estar alegre
„você está alegre‟

(07) dje r-agy


1sg Rel-estar apressado
„eu estou apressado‟

De acordo com Dixon (1994), as línguas da família Tupi-Guarani tendem a apresentar a classe
dos verbos intransitivos subdividida em intransitivo ativo (Sa) e intransitivo estativo (So), inclinando-se
para um sistema de marcação de caso cindido, Split-S.
O sistema cindido, Split-S, conforme esse autor, está relacionado a uma divisão na semântica
dos verbos intransitivos que é refletida na sintaxe da língua. Universalmente, são conhecidos os papéis
sintático-semânticos A, S, O, respectivamente: sujeito de sentença transitiva, sujeito de sentença
intransitiva e objeto. A forma como esses papéis se relacionam nas diversas línguas formam três tipos
de marcação de caso:
- nominativo-acusativo: o sujeito de sentença transitiva se comporta morfologicamente igual ao
sujeito de sentença intransitiva e diferente do objeto.
- ergativo-absolutivo: o sujeito de sentença intransitiva se comporta morfologicamente igual ao
objeto e diferente do sujeito de sentença transitiva.
-sistema cindido, Split-S: apresenta a classe dos verbos intransitivos dividida em duas subclasses:
uma em que o sujeito de sentença intransitiva ativa tem a mesma forma do sujeito de sentença
transitiva, Sa, e outra em que o sujeito de sentença intransitiva estativa tem a mesma forma do objeto,
So. É essa relação que há entre esses papéis sintático-semânticos no Asurini. É importante ressaltar
que a marcação distinta entre Sa e A com relação a So ocorre apenas no sistema pronominal.

(08 ) e r- upi‘a
3Sg.fem Rel- estar.grávida
So Rel- Vi
‗ela está grávida‘

(09) ga a- etxak
3Sg 1Sg-ver
O A- Vt
‗eu o vi‘
98

(10) jawara u-etxak


onça 3-ver
O A-Vt
‗ele viu a onça

(11) u-vevuj
3Sg-nadar
Sa - V
‗ele nadou‘

Os exemplos (08 e (09) mostram o pronome pessoal ga funcionando como So e como O,


respectivamente. Enquanto que os exemplos (08) e (11) mostram que os sujeitos So e Sa são
codificados de forma distinta, com elementos de paradigmas diferentes: pronome pessoal e pronome da
série I, respectivamente, sendo também distinta a relação entre sujeito e verbo. Os exemplos (10) e
(11) mostram que Sa e A marcam sujeito da mesma forma.
O esquema seguinte resume o que mencionamos acima:
A S

Sa So

3. Hierarquia de pessoa

Nas línguas do mundo 1ª e 2ª pessoas são codificadas como mais tópicas que 3ª, ao que parece
as línguas, em geral, tendem a tomar essas duas primeiras pessoas como mais importantes que a
terceira, sendo isso levado a tal ponto de algumas línguas não apresentarem uma forma para a 3ª
pessoa. Zwicky (1977) propôs a hierarquia seguinte para demonstrar a importância das pessoas no
discurso: 1>2>3. Sendo que entre as terceiras pessoas pode haver ainda hierarquia, pois como se sabe a
3ª pessoa carrega traços [humano] e [animado], o que a coloca sob outras hierarquias como: 3H> 3
nH> 3 Ani > 3Inani.
Conforme Hewson (1991), esse tipo de hierarquia tem se mostrado altamente icônica, pois sua
existência não está baseada unicamente na agentividade natural da 1ª pessoa sobre a 2ª (1>2), como foi
99
afirmado por Silverstein (1976), Comrie (1978) e Dixon (1979), mas também no papel central ou ponto
de vista estabelecido pelo participante do ato de fala, o qual pode pôr um papel substancial em algum
discurso.
Em Asurini do Xingu, há hierarquia de pessoa: 1>2>3, sendo irrelevantes as distinções
humano x não-humano, animado x inanimado. A hierarquia operante age diretamente sobre a
agentividade e/ou topicalizaçao dos participantes.
Tendo em vista a importância das 1ª e 2ª pessoas sobre a 3ª e a hierarquia segundo a qual o
papel Agente é mais tópico que o papel Paciente quando há um processo de descontinuidade em que o
fluxo informacional não está mais sob 1ª e 2ª pessoas e nem sobre o Agente, mas sobre a 3ª e no
Paciente, as línguas apresentam recursos diversos para demonstrar esse processo. O Português, por
exemplo, privilegia a forma passiva. Em Asurini, se em uma sentença o argumento [+agente] é
hierarquicamente superior ao [ –agente], ele será marcado como argumento subjetivo (série I); no
entanto, se o argumento [+agente] é hierarquicamente inferior ao [–agente], será marcado apenas o
argumento [-agente] com pronomes pessoais, e os prefixos correferenciais, encontrados nos verbos
quando a sentença independente está na forma ativa, são substituídos pelo prefixo relacional {-R},
analogamente aos nomes possuídos. A seguir ilustrmos cada uma dessas situações:
a) Sentença independente ativa→ prefixos da série I codificam A, enquanto clíticos codificam O.

(12) ga kumetetedje a- py‘yk


3sg rápido 1sg- pegar
O Circuns A
‗eu o peguei rapidamente‘

b) A= 3ª O= 1ª ou 2ª pessoa→somente O é marcado

(13) je r-etxak
1sg R-ver
O V
‗Ele me viu‘

(14) je -py‘yk
1sg R-pegar
‗ele(a) me pegou‘

(15) djawara je r-etxak


100
onça 1sg R-ver
A O V
‗a onça me viu‘

(16) ene r-etik


2sg R-bater
O V
‗ele(a) derrubou você‘

Quando primeira e terceira pessoas envolvidas nesse jogo se encontram no plural, a hierarquia
de pessoa funciona da mesma forma.

(17) ure r-etik


1pl R-derrubar
‗ele nos derrubou‘

c) A=2ª O=1ª →apenas O é marcado, entretanto aparece a particula ape se 2ª e 1ª


pessoas são do singular e pejepe se 2ª e 1ª pessoas são do plural.

(18) je r-etik ape


1sg R-derrubar Part
‗voce me derrubou‘

(19) je r-etxak ape


1sg R-ver Part
‗ você me viu‘

(20) pene ure r-etik pedjepe


2pl 1pl R-derrubar part
‗vocês nos derrubaram‘

(21) pene ure -py‘yk pedjepe


2pl 1pl R- segurar part
‗vocês nos seguraram‘
101
Quando estão envolvidas no jogo 1ª e 2ª pessoas no plural em que a aquela desempenha o papel
de agente e a 2ª o papel de paciente, não há hierarquia de pessoa, as duas são marcadas por prefixo
portmanteau.

(22) ure uru- puru- mudik


1plEX 1pl I-2pl IV-puxar
‗nós puxamos vocês‘

Quando os dois participantes são 3ª pessoa também não há hierarquia, são codificados com
pronominais da série I se agente e pronomes pessoais se são objetos.

(23) ga ẽ u-etxak
3sgM 3sgF 3-ver
A O a
‗ele a viu‘

(24) ga gy u-txak
3sgM 3 3-ver
‗ele o(a)s viu‘

Os dados mostram que o Asurini do Xingu toma a primeira pessoa como a central no discurso,
em torno da qual giram as demais pessoas. Quando a 2ª ou a 3ª pessoas são focalizadas em detrimento
da primeira (19 e 20) ou ainda a 3ª em detrimento da 2ª invertendo a hierarquia inerente de
topicalidade (1>2>3), são usados pronomes pessoais em funcão clítica para marcar a crescente
topicalidade de O em prol da diminuição da topicalidade de A.

4. Considerações finais

Neste trabalho, mostramos aspectos da concordância pessoal. Mostramos que no Asurini do


Xingu a concordância pessoal depende do tipo de verbo e das pessoas envolvidas no discurso. Verbo
transitivo e verbo intransitivo ativo concordam em pessoa número com o sujeito da sentença, a relação
que se estabelece por meio de prefixo da série I expressa correferencialidade. Já os verbos intransitivos
descritivos apresentam em seu radical um prefixo relacional, cuja função é demonstrar que existe um
termo adjacente a ele que é o sujeito da relação.
102
O trabalho mostrou também aspectos da hierarquia de pessoa na língua. Ficou evidenciado que
essa hierarquia é baseada na agentividade natural da língua e que as distinções humano x não-humano e
animado x inanimado são irrelevantes nessa língua.
O trabalho aqui exposto é parte da descrição do Asurini do Xingu, agrupado no chamado
conjunto de línguas com poucos falantes, e pertencente à vasta família Tupi-Guarani. Ficaremos felizes,
se ele contribuir para futuros trabalhos que arrolem a temática aqui apresentada, seja para esse grupo de
línguas, seja para a Tipologia Linguística.

REFERÊNCIAS

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329-394, 1978.
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ZWICK, A.M. On clitics. Indian University Linguistic Club. Bloomington,1977.
103
EM BUSCA DAS CLASSES DE PALAVRAS DA LÍNGUA WAYORO

Antônia Fernanda de S. Nogueira47

Resumo: É consenso em linguística que os critérios mais confiáveis para a classificação das classes de
palavras de uma língua são os critérios morfológicos/morfossintáticos e distribucionais, e não os
semânticos. O objetivo deste trabalho é apresentar as diferenças de comportamento das categorias
gramaticais nomes, verbos e adjetivos da língua Wayoro (tronco Tupi) com respeito a propriedades
morfossintáticas, especialmente, à expressão de pessoa (pronomes e prefixos pessoais). Os resultados
preliminares mostram que verbos são diferentes de nomes e adjetivos por apresentarem morfemas
verbais específicos, como morfemas de tempo e de mudança de valência. Com os verbos, os prefixos
pessoais realizam os argumentos sujeito do verbo intransitivo (S) e objeto do verbo transitivo (O) e os
pronomes pessoais realizam o sujeito do verbo transitivo (A). Adjetivos e nomes podem receber
prefixos pessoais (argumento O), resultando em uma construção predicativa e em uma construção
possessiva, respectivamente. Adjetivos, no entanto, diferem de nomes por exigirem obrigatoriamente o
argumento O e por permitirem a coocorrência entre prefixos e pronomes livres.
Palavras-chave: Língua Wayoro; Classes de palavras; Prefixos e pronomes pessoais.
Abstract: It is consensus in linguistics that the most reliable criteria for the classification of word
classes of a language are the morphological / morphosyntactic and distributional ones, not the semantic
one. This paper aims to identify the behavioral differences of grammatical categories as nouns, verbs
and adjectives in Wayoro language (Tupi stock), based on morphosyntactic properties, especially the
personal markers (prefixes and pronouns). Preliminary results show that verbs are different from names
and adjectives for presenting specific verbal morphemes as tense and valency-changing morphemes.
With verbs, the personal prefixes are the arguments of the verb intransitive subject (S) and the object of
the transitive verb (O) and personal pronouns are the subject of the transitive verb (A). Adjectives and
nouns can receive personal prefixes (argument O), resulting on a predicative and possessive
construction respectively. However, adjectives differ from nouns for requiring mandatory argument O
and allowing the co-occurrence between personal prefixes and free pronouns.
Keywords: Wayoro language; Word classes; Personal prefixes and free pronouns.

1. INTRODUÇÃO

Em Wayoro, a construção que corresponde ao adjetivo bonito é a construção complexa toap ndia ‗(o
que) se quer ver‘, constituída do verbo toa ‗ver‘ nominalizado como complemento do verbo ndia
‗querer‘.

(1) Paokwap toa-p ndia


Abanador ver-NMLZ querer
‗Abanador bonito‘ (Lit. ‗Quer-se ver o abanador‘)

É comum que gramáticas definam as classes gramaticais a partir do valor semântico das palavras
que abrigam. Conforme Haspelmath (2001), nomes são normalmente definidos como palavras que

47 Professora da Universidade Federal do Pará - Campus do Marajó (Breves). E-mail: [email protected]


104
designam ‗coisas, lugares e pessoas‘, verbos são palavras que indicam ‗ações e processos‘ e adjetivos
estão relacionados a ‗propriedades‘. Haspelmath (2001) alerta que tais designações são úteis apenas se o
objetivo for definir nomes, verbos e adjetivos em termos gerais, não restritos a uma língua específica.
Há, por exemplo, línguas em que existem verbos que não denotam ações ou processos, como know
‗saber‘ em inglês (HASPELMATH, 2001), bem como há línguas em que propriedades podem ser
expressas por uma via diferente da categoria de adjetivos, tal como se observa na construção complexa
toap ndia de Wayoro.

Schachter e Shopen (2007, p. 1) orientam que o critério mais confiável para a classificação das
classes de palavras é o critério gramatical, e não o semântico. Dentre as propriedades gramaticais
relevantes está a distribuição da palavra (posição), suas funções sintáticas e as categorias sintáticas ou
gramaticais específicas a ela. Palavras que pertencem à mesma classe têm distribuição, função sintática e
categorização semelhantes. Há, contudo, casos de similaridade parcial de distribuição, função e
categorização, o que pode requerer dividir a classe de palavras em subclasses.

Na família Tupari (à qual a língua Wayoro pertence), há línguas em que as palavras que
exprimem propriedades são analisadas como categoria independente e há línguas em que tais palavras
são analisadas como uma subclasse dos nomes. Em Makurap e Akuntsu tais palavras são analisadas
como subclasse dos nomes (BRAGA, 2005; ARAGON, 2008); em Sakurabiat e Tupari são analisadas
como uma classe independente (GALUCIO, 2001; ALVES, 2004).

O objetivo deste trabalho é investigar as diferenças (ou não) de comportamento das categorias
gramaticais nomes, verbos e adjetivos da língua Wayoro com respeito à expressão de pessoa (pronomes
e prefixos pessoais), entre outras propriedades morfossintáticas.

2. WAYORO EMẼTO: INFORMAÇÕES BÁSICAS

O povo Wajuru (também denominado Wayoró, Ajuru, Ayuru) é composto por 240 pessoas48, a
grande maioria está localizada na Terra Indígena Rio Guaporé (município de Guajará-Mirim, Estado de
Rondônia, Brasil) e em Rolim de Moura do Guaporé (município de Alta Floresta d‘Oeste, também em
Rondônia) (NOGUEIRA, 2011a).

A língua Wayoro não mais é falada diariamente. Apenas 5 pessoas idosas dominam
completamente a língua (falantes nativos). Há 11 semifalantes e não há criança ou adolescente que
tenha aprendido a língua, recentemente. Na Terra Indígena Rio Guaporé, onde convivem 10 etnias

48
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Povos indígenas no Brasil: Wajuru. Disponível em:
<http://pib.socioambiental.org/pt/povo/wajuru>.Acesso em: 29/04/2013.
105
diferentes, observa-se o uso do português, quase que hegemonicamente, e o desuso das línguas
indígenas entre as etnias.

A língua Wayoro pertence à família linguística Tupari, Tronco Tupi, assim como as línguas
Akuntsú, Makurap, Sakurabiat (ou Mekens) e Tupari, também de Rondônia (RODRIGUES, 2002;
MOORE; GALUCIO, 1993).

O trabalho de documentação, descrição e análise da língua Wayoro foi iniciado em 2008 e


permanece até o presente momento. Como resultados, descrições e análises da língua foram publicadas
e uma proposta de sistema ortográfico foi elaborada (NOGUEIRA, 2011a, 2011b, 2012). Os dados
aqui apresentados fazem parte do banco de dados da língua Wayoro (em desenvolvimento). Utilizo o
sistema ortográfico da língua para a transcrição dos dados apresentados.

3. PREFIXOS PESSOAIS E PRONOMES

A distribuição dos morfemas pessoais nas sentenças principais da língua Wayoro estabelece um
padrão ergativo-absolutivo. A série de prefixos pessoais funciona como sujeito do verbo intransitivo
(argumento S) e objeto do verbo transitivo (argumento O) – caso absolutivo, enquanto pronomes
realizam o sujeito do verbo transitivo (argumento A) – caso ergativo. Este trabalho investigará as
diferentes formas de distribuição de prefixos e pronomes pessoais com nomes, verbos e adjetivos com
o propósito de evidenciar propriedades diferentes e complementares entre tais grupos de palavras. As
tabelas 1 e 2 apresentam os prefixos pessoais e pronomes pessoais, respectivamente.

Tabela 1: Prefixos pessoais (Absolutivo)

PREFIXOS PESSOAIS (ABSOLUTIVO)

Singular Plural
106
1ª pessoa m- ~ o- ~ mb- txi-~tx- (inclusiva)

ote-~ota- (exclusiva)

2ª pessoa e-~a-49 djat-

(sujeito de
verbo
3ª pessoa te- te- intransitivo)

y-~dj- ~ ndeke- y-~dj- ~ ndeat-50 (objeto)

Tabela 2: Pronomes pessoais

PRONOMES PESSOAIS (ERGATIVO)

Singular Plural

1ª pessoa on txire (inclusiva)

ote (exclusiva)

2ª pessoa en djat

3ª pessoa ndeke ndeat

A tabela 3, abaixo, faz uma comparação entre nomes, verbos (transitivos e intransitivos) e
adjetivos, com respeito aos prefixos pessoais. Note que a série de prefixos pessoais que ocorre com
verbos transitivos (objeto), com nomes e com adjetivos difere da série de prefixos pessoais que ocorre
com verbos intransitivos quanto à 3ª pessoa. Com os primeiros, utiliza-se para a 3ª singular {y-~dj-

49 Alomorfe /e-/ é usado com raízes que começam por /e/ e vogais não anteriores e o alomorfe /a-/ é usado com raízes
iniciadas por vogais anteriores. Aparentemente, trata-se de um processo de dissimilação (hipótese sob investigação).
50 Na 3ª pessoa singular e plural o alomorfe /-/ ocorre com raízes verbais iniciadas por vogais e /ndeke-/ e /ndeat-/ com

raízes que começam por consoante. O fonema // é realizado como [j] ~ [dʒ] ~ [dʒ] diante de vogais orais. Vale ressaltar
que, quando as raízes começam por consoante, é possível omitir os alomorfes de 3ª pessoa.
107
~ndeke-} e para a 3ª plural {y-~dj-~ndeat-}. Com os verbos intransitivos, utiliza-se o prefixo {te-}
para a 3ª singular e plural.

Tabela 3: Distribuição de prefixos pessoais com verbos, nomes e adjetivos

Verbo trans. Verbo intrans.


1S mb- ipitkwa (on) mb- era
2S a- ipitkwa (en) e- era
3S dj- ipitkwa (ndeke) te- era
1PINCL tx- ipitkwa (txire) tx- era
1PEXCL ota- ipitkwa (ote) ote- era
2P djar- ipitkwa (djat) djar- era
3P dj- ipitkwa (ndeat) te- era
O jogar S dormir

Nome Adjetivo
1S mb- ipoy (on) mb- akara
2S a- ipoy (en) e- akara
3S dj- ipoy (ndeke) dj- akara
1PINCL tx- ipoy (txire) tx- akara
1PEXCL ota- ipoy (ote) ote- akara
2P djar- ipoy (djat) djar- akara
3P dj- ipoy (ndeat) dj- akara
O tia O gordo

3. VERBOS

Os radicais verbais da língua Wayoro consistem de uma raiz, um sufixo verbalizador variável e
uma vogal temática invariável {-a} (indicados na glosa somente nos exemplos desta seção). Após a
vogal temática, podem ser afixados morfemas temporais, como {-t} ‗passado‘ (alomorfe /-n/ após
radical nasal). Os verbos transitivos (cf. dado 2) selecionam dois argumentos, o objeto pode ser
realizado por um sintagma nominal ou por prefixos pessoais e o sujeito pode ser realizado por sintagma
nominal ou por pronomes livres. Os verbos intransitivos (cf. dado 3) selecionam apenas um
argumento, o qual é realizado obrigatoriamente por prefixos pessoais. Adicionalmente, podem ocorrer
sintagmas nominais ou pronomes concordando com o prefixo pessoal sujeito, nos verbos intransitivos.

(2) Verbo transitivo


o-puru-g-a-t en
1S-furar-VERBLZR-VT-PASS 2S
‗Você me furou‘
(3) Verbo intransitivo
108
o-ter-ø-a-t (on)
1S-ir- VERBLZR -PASS 1S
‗Eu fui‘
Além das propriedades acima, observa-se que apenas verbos recebem os prefixos de mudança de
valência {mõ-~õ-} causativo transitivizador, {e-} intransitivizador e sociativo {ete-}, bem como o
sufixo nominalizador {-p}. Os dados abaixo são ilustrativos.

(4) Prefixo causativo transitivizador

Tx-ewato e txi-mõ-apokaya ẽe
1PINCL-avô esse 1PINCL-CAUS-chegar esse
‗Esse nosso avô estava fazendo a gente chegar‘
(5) Prefixo intransitivizador
Pororoka te-e-puruga-t
Pororoka 3-INTR-furar-PASS
‗Pororoka se furou (com flecha)‘
(6) Prefixo sociativo
Kawere txi-kutnin ete-ngwara-t ngwerep
quando 1PINCL-criança SOC-fugir-PASS não.índios
‗Quando os civilizados fugiram com as nossas crianças‘
(7) Sufixo nominalizador
Txi-mõ-apokaya-p toa-t on
1S-CAUS-chegar-NMLZ ver-PASS 1S
‗Eu vi quando fizeram a gente chegar‘
É interessante notar que, nos verbos intransitivos, na segunda pessoa do singular, a coocorrência ou
não do pronome e do prefixo pessoal está associada aos modos verbais imperativo e declarativo. Na 2ª
pessoa, no modo imperativo, ocorre apenas o prefixo pessoal {e-} (cf. dado 8), enquanto que no modo
declarativo ocorrem o prefixo pessoal {e-} e o pronome {en} (cf. dado 9). Adicionalmente, no plano
suprassegmental, a sentença imperativa apresenta entoação mais forte.

(8) Modo Imperativo: prefixo pessoal


(a) E-atoa
2S-banhar.se
‗Tome banho!‘

(b) E-amõyã
109
2S-dançar
‗Dançe!‘

(9) Modo Declarativo: prefixo pessoal e pronome pessoal


(a) En e-atoa
2S 2S-banhar.se
‗Você está tomando banho‘

(b) En e-amõyã
2S 2S-dançar
‗Você está dançando‘

4. NOMES E ADJETIVOS: CLASSES DIFERENTES OU SUBCLASSES?

Diferente dos verbos, nomes não apresentam vogal temática e morfemas de tempo, bem como
não recebem morfemas de mudança de valência e nominalização. Nomes coocorrem com prefixos
pessoais em construção de posse. Palavras que exprimem propriedades, geralmente classificadas como
adjetivos, ocorrem igualmente com prefixos pessoais como o argumento sujeito de uma construções
predicativa. Compare, como exemplo, os dados (10) e (11).

(10) Prefixos pessoais como possuidor


(a) Mb-apitep
1S-orelha
‗minha orelha‘
(b) o-mẽpit
1S-filho
‗meu filho/filha (fala feminina)‘

(11) Prefixos pessoais como sujeito de construção predicativa


(a) Mb-akara
1S-grosso
‗eu sou gorda‘
(b) o-yãngã
1S-trabalhador
‗eu sou trabalhador‘
Vale ressaltar que é necessário investigar ainda como as sentenças predicativas se manifestam
quanto a diferenças de tempo, modo e aspecto. Os dados apresentados neste trabalho foram traduzidos
pelos colaboradores com o tempo presente.

Apesar da semelhança de comportamento dos prefixos pessoais nos dados acima, observou-se
que nomes podem ocorrer naturalmente sem o prefixo pessoal (cf. 12). As palavras predicativas, no
110
entanto, exigem obrigatoriamente um prefixo pessoal (cf. 13). Ou seja, são palavras que não ocorrem
isoladamente, sem um prefixo pessoal. Isso pode ser verificado com palavras que começam por vogal,
pois, tal como ocorre com os verbos transitivos, as palavras que começam por consoante na língua
podem ter o complemento omitido e subentende-se que o mesmo refere-se à 3ª singular ou plural.

(12) Nomes não requerem obrigatoriamente um argumento


Construção posse (1S) Forma livre
mb-apitep apitep ‗orelha‘
m-ãpia ãpia ‗nariz‘
m-ãnoa anõa ‗coração‘
mb-atxit atxit ‗flecha‘
(13) Adjetivos requerem obrigatoriamente um argumento
Construção Predic. (3S ou 3P) Forma livre
Dj-akara *akara51 ‗Ele/ela é gordo/gorda‘
Dj-akop *akop ‗Ele/ela está quente‘
Dj-ati *ati ‗Ele/ela está doente‘
Outro indicativo da diferença entre nomes e adjetivos, em Wayoro, é que os adjetivos permitem
que pronomes coocorram na construção predicativa, enquanto que nomes não permitem que
pronomes coocorram na construção de posse.

(14) Adjetivos: coocorrem com pronomes


(a) Ndeke dj-akara
3S 3-grosso
‗Ele/ela é gordo/gorda.‘
(b) O-pooti on
1S-pesado 1s
‗eu sou pesado‘
(c) E-atiap en
2S-vivo 2s
‗você está vivo (alegre)‘

(15) Nomes: não coocorrem com pronomes


(a) E-apitep
2S-orelha
‗sua orelha‘

*E-apitew-en

51 O símbolo asterisco (*) é usado para formas não aceitas pelos colaboradores.
111
2S-orelha-2S

(b) M-ãpia
1S-nariz
‗meu nariz‘

*M-ãpia on
1S-nariz 1S

(c) M-anõa
1S-coração
‗meu coração‘

*M-anõa on
1S-coração 1s
Por fim, identificou-se como diferença entre as classes em comparação a distribuição
complementar entre os intensificadores de nomes e adjetivos. O intensificador pite ocorre apenas com
nomes, ao passo que o intensificador ndekwat ocorre apenas com adjetivos, tal como evidenciam os
dados abaixo.

(16) Intensificador que modifica nomes: pite


(a) tik pite
borrachudo INTENS

‗muitos borrachudos‘

(b) amẽko pite


Onça INTENS

‗muitas onças‘
(17) Intensificador que modifica adjetivos: ndekwat
(a) (on) o-yãngã ndekwat
1s 1s-trabalhador INTENS

‗Eu sou muito trabalhadora‘


*o-yãngã pite
1s-trabalhador INTENS

(b) mb-akara ndekwat


1s-grande INTENS

‗Eu estou muito gorda‘


112
*Mb-akara pite
1s-grande INTENS

Deve-se investigar se outros fatores estão condicionando a distribuição dos intensificadores pite e
ndekwat, por exemplo, se tal diferença está relacionada à distinção entre nomes contáveis e não
contáveis.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os critérios morfossintáticos aqui tratados apontam para uma distinção entre nomes, verbos e
adjetivos em Wayoro. Contudo, de maneira alguma, trata-se de uma conclusão definitiva. São
necessários outros critérios e testes para se confirmar esta hipótese. É preciso, por exemplo, investigar
as diferenças de comportamento nos níveis da fonologia e da sintaxe. Testes em construções relativas,
testes de causativização, testes de mudança de categoria são algumas das futuras aplicações e
investigações.

Agradecimentos: ao povo Wajuru pela colaboração e apoio; à FUNAI pela autorização Processo nº
1006/06; aos comentários e sugestões das professoras Dra. Christiane Oliveira e Dra. Heloísa Salles, na
ocasião de minha apresentação no IV CIELLA, UFPA, Belém.

BIBLIOGRAFIA

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SCHACHTER, P; SHOPEN, T. Parts-of-speech systems. In: Language Typology and Syntactic
Description: Clause Structure. Volume I. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

ABREVIATURAS: VT=VOGAL TEMÁTICA; NMLZ=NOMINALIZADOR; PASS=PASSADO; VERBLZR=

VERBALIZADOR; CAUS=CAUSATIVO; INTR=INTRANSITIVIZADOR; SOC=SOCIATIVO;

INTENS=INTENSIFICADOR
114
INTERAÇÃO ENTRE PALATALIZAÇÃO E SUBSTITUIÇÕES PARA AS
FRICATIVAS INTERDENTAIS DO INGLÊS

Antonio Sergio da Costa Pinto52

Profa. Dra. Marilúcia Barros de Oliveira 53

RESUMO: O presente trabalho trata da substituição de traços quando da articulação das fricativas
interdentais surda e sonora do inglês por estudantes do 3º e 7º níveis, falantes do Português Brasileiro
(PB), dos Cursos Livres de Línguas Estrangeiras (CLLE). O objetivo de nosso trabalho é apresentar as
substituições que falantes do PB realizam ao articularem as fricativas interdentais surda e sonora do
inglês. Daremos, entretanto, uma atenção especial à realização palato-alveolar que ocorreu em nossos
dados, enfatizando que essa substituição está diretamente ligada à ressilabificação. Descreveremos e
analisaremos as substituições tomando por base a Fonologia de Geometria de Traços proposta por
Clements e Hume (1995). A coleta de dados se deu com o auxílio da aplicação de uma lista de leitura
em que constavam os contextos de /Ө/ e /ð/ em diferentes posições (onset inicial, onset não inicial,
coda medial e coda final). Neste conjunto de enunciados, negritamos estrategicamente algumas palavras
que tinham importância secundária, exatamente para que o foco do leitor não se direcionasse aos
contextos de interesse da pesquisa.
Palavras-chave: Substituição; Interdental, Coda. PB (Português Brasileiro).

ABSTRACT: This paper addresses the issues of substitution of features in the articulation of voiced
and voiceless interdental fricatives of English by students of 3rd and 7th levels, speakers of Brazilian
Portuguese (BP) in CLLE. The aim of our research is to present the substitutions of those speakers
when they articulate the voiced Interdental Fricative and its voiceless counterpart. We will, however, be
giving special attention to the realization of a palatalized substitution that occurred in our data,
emphasizing that this substitution is directly linked to a syllable reorganization process. We will
describe and analyze these substitutions in accordance with a scheme proposed by Clements and Hume
(1995). Data collection was made with the help of a reading list application that contained the contexts
of / Ө / and / ð / in different positions (initial onset, non-initial onset, medial and final coda). In this
set of statements, we strategically highlighted some words that had secondary importance, so that the
reader did not focus attention in the contexts of this research interest.

52 Mestrando em Estudos Linguísticos na Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:


[email protected]

Professor do Programa de Pós Graduação em Letras/Linguística da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-


53

mail: [email protected]
115
Keywords: Substitution; Interdental; Coda; BP (Brazilian Portuguese)

INTRODUÇÃO
As fricativas interdentais não fazem parte do sistema fonológico da língua portuguesa, desta
forma, torna-se previsível que falantes do PB tenham dificuldades de pronunciar o ―th‖ (sequência
grafêmica que exige a articulação interdental), em suas diferentes posições, em palavras como think
/ӨIŋk/ (pensar), method /‛mɛɵəd/ (método) ou smooth /smuð/ (suave).
A dificuldade de falantes brasileiros na produção das interdentais foi estudada por Baptista
(2000) que aponta para a ocorrência de substituições produzidas por estudantes de Inglês como Língua
Estrangeira (English as a Foreign Language) (EFL). Além de Batista (2000), outros autores já estudaram
a produção das interdentais, dentre eles, Reis (2006) que investigou a percepção e a produção das
interdentais fricativas do inglês em posição de início de palavras e Ruhmke-Ramos (2009) que
investigou os efeitos do treinamento e instrução na percepção das interdentais fricativas do inglês. Há,
obviamente, outros autores que as estudaram, os quais, por questões de tempo e espaço, não iremos
mencionar.
As fricativas interdentais /Ө/ e /ð/, não encontram qualquer similar no português e é
exatamente por esta razão que daremos especial atenção em nosso estudo a estes dois segmentos, já
que este fato deve motivar substituições. A pronúncia desses segmentos só soará adequada se a língua
for posicionada entre os incisivos superiores e inferiores, o que deve se constituir dificuldade para os
falantes do português, já que nessa língua não há fonemas que exijam esse movimento da língua.
As fricativas interdentais, apesar de serem ausentes do inventário de sons da língua portuguesa,
são bastante produtivas no inglês. Essa ausência é que dificulta a sua pronúncia para falantes do PB.
Existe, entretanto, uma estratégia de compensação não somente de falantes aprendizes, mas também de
nativos na condição de aprendizes de inglês como língua materna. Como explicam Dale e Poms (1994,
p. 25) ―Muitas crianças que aprendem inglês como sua primeira língua frequentemente demonstram
erros de substituição, juice /dʒu:s/ se torna [du:s], shoe /ʃu/ se torna [tu:] , read /rid/ se torna [wid],
leg /lɛg/ se torna [wɛg] ‖.
Seguindo o mesmo padrão, aprendizes de inglês como segunda língua também têm a tendência
de substituir fonemas difíceis que pertencem à segunda língua por sons de sua língua materna num
processo de nativização (cf. TREVISOL, 2010). Há uma tendência de falantes do PB, quando articulam
o –th em inglês, de substituir a fricativa interdental surda /Ө/, como ocorre em thanks /Өæŋks/, pela
alveolar oclusiva surda [t] pelo fato de esta oclusiva fazer parte do inventário de sons do português e
por este segmento se ―aproximar‖ da interdental surda do inglês. Mas além de o falante do PB fazer a
substituição referida, tende a substituir as interdentais por formas palatalizadas, especialmente em
contextos em que um segmento alto anterior, como [i], sucede essas consoantes. Nesse contexto, as
116
oclusivas coronais tendem à palatalização no PB e, assim, seus falantes estendem essa tendência à
pronúncia das fricativas interdentais diante de contextos propícios à palatalização, como veremos
adiante.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Para obtermos os dados necessários para esta pesquisa, elaboramos um teste de leitura que
continha enunciados em que contavam os segmentos pretendidos em diferentes contextos fonológicos,
ou seja, as fricativas interdentais surdas e sonoras. Dada à necessidade de se obter dos leitores dados
específicos, isto é, a substituição na produção das fricativas interdentais /Ɵ/ e /ð/ sem que eles
percebessem o que queríamos avaliar, negritamos palavras coadjuvantes que se alteravam a cada leitura.
Isso favoreceu que eles tirassem a atenção do foco da pesquisa e voltassem sua atenção aos contextos
negritados.
Abaixo, reproduz-se, a título de ilustração, um dos itens do teste de leitura que contemplou a
ocorrência de ―th‖ na versão surda e sonora em onset silábico.
I think my teacher bought a ball. (cat) (pen)
That man is my teacher. (father) (brother)
É bom notar que nesse modelo de teste, os leitores tiveram três chances de pronunciar cada
palavra com ocorrência de th. A palavra think, por exemplo, (com /Ɵ/ em onset inicial) foi articulada
para as versões com ball, cat e pen respectivamente, o mesmo aconteceu com that (com /ð/ em onset
inicial) no segundo exemplo.
O teste foi aplicado a 22 alunos dos Cursos Livres de Línguas Estrangeiras da UFPA que se
encontravam nos 3º e 7º semestres, sendo 12 (doze) alunos do terceiro nível e 10 (dez) do sétimo nível.
É importante mencionar que as leituras foram gravadas em áudio e vídeo para dar mais rigidez e
confiabilidade aos resultados.

Apresentação e Análise dos dados


O quadro, abaixo, ilustra e sintetiza as substituições realizadas a partir da leitura de enunciados
da língua inglesa para o segmento interdental fricativo surdo /Ɵ/. Deste quadro, interessa-nos, muito
especialmente, as substituições que envolvem [t] e [tʃ], visto que estão diretamente ligadas à ocorrência
de palatalização.
117
Quadro 01: Substituições realizadas para a interdental fricativa surda /Ɵ/
Posição na Exemplos Realizações
estrutura
silábica
/Ɵ/ em onset think /Ɵɪŋk/ [tɪŋk] [t] [tʃɪŋk] [tʃ] [fɪŋk] [f]
inicial
[tri] [t] [fri] [f]
three/Ɵri/

thanks /Ɵæŋks/ [tɛŋks] [t] [fɛŋks] [f]


/Ɵ/ em coda birthday/`bɝӨdeɪ/ [‗bɝtʃɪdeɪ]- [tʃɪ] [‗bɝsdeɪ] [s] [‗bɝfdeɪ] [f]
medial

/Ɵ/em onset catholic/'kӕӨ∂lɪk/ [kə`fͻlɪk] [f] [kə`tͻlɪk] [t]


não inicial
method /‘mɛƟəd/ [‗mɛtəd] [t] [‗mɛfəd] [f]
/Ɵ/ em coda with /wɪƟ/ [wɪtʃɪ] [tʃɪ] [wɪf] /f/
final
both /boʊӨ/ [boʊf] [f] [boʊs] [s] [‗boʊfɪ] [fɪ]
[‗boʊtʃɪ] [tʃɪ]
math /mæƟ/ [‗mɛtʃɪ] [mɛf] [f]

O quadro 01 demonstra que a palato-alveolar [tʃ] foi formada principalmente nos contextos de
coda medial e final e em contexto de onset seguido de vogal alta anterior. Cabe notar também que a
palatalização não correu em todos os contextos de onset que apresentavam a vogal alta nem quando se
encontrava em posição de coda.
É importante notarmos que as possibilidades de substituições são bem mais abundantes na
posição de coda final, em que geralmente ocorre a inserção de um segmento vocálico que preenche o
núcleo silábico. Entretanto, em onset inicial e não inicial tambem é possível encontrar a palato-alveolar.
Mas sem o preenchimento do núcleo, visto que, nesse caso, já se apresenta preenchido.
Passemos, agora, à representação das substituições encontradas. Iniciaremos pela formação do
segmento [t], cuja explicação é valida para posteriormente explicação da formação da palato-alveolar.
(01)
118
/Ɵ/ → [t]

/Ө/ −sonorante [t] −sonorante


−aproximante −aproximante
−vocóide −vocóide
raiz raiz

laríngeo laríngeo

[-nasal] [-nasal]
[‒sonoro ] [cav.oral] [-sonoro] [cav.oral]

[+contínuo] [-contínuo]
Ponto de C Ponto de C

[coronal] [coronal]

[+ant.] [+ant.]

[+dist.] [-dist.]

Ex. Onset inicial como em (think) /Ɵɪŋk/ [tɪŋk] ou (three) /Ɵri/ [tri] e em (catholic) /„kӕӨ∂lɪk/

[kə´tͻlɪk].

Na representação em (01), foi desligado o nó cavidade oral. Inicialmente, seria possível pensar no
desligamento de apenas [+contínuo], que temos a formação de um segmento [-contínuo]. Entretanto, cabe
lembrar que um dos princípios da FGT é a aplicação de operações simples. Assim, o desligamento de apenas
contínuo demandaria a aplicação de outra regra e não daria conta da alteração corrida em [distribuído]. Se tivesse
sido desligado só o traço mencionado não teríamos como explicar a alteração que ocorre num traço que se
localiza abaixo de contínuo, mas que poderia sofrer alteração independente. Operando-se o desligamento de
cavidade oral, podemos explicar a alteração corrida tanto em [contínuo] como em relação ao traço [distribuído].
Assim, podemos dizer que o traço [+contínuo] na cavidade oral da fricativa interdental surda foi substituído por
[-contínuo]. Ligando-se [-contínuo] à cavidade oral. O traço [+distribuído], localizado sob o nó coronal, foi
igualmente desligado e substituído por [-distribuído].

O exemplo de onset não inicial (catholic) /‗kӕӨ∂lɪk/>[kə´tͻlɪk] serve como ilustração para outra
alteração ocorrida. Ela diz respeito à tonicidade. A sílaba tônica que em inglês é a primeira, nesse exemplo, passa
a ser a segunda, conforme padrão silábico do português, o grave, tendo-se [kə´tͻlɪk] em lugar de /‗kӕӨ∂lɪk/.
119
Neste caso específico, o fenômeno de substituição se caracterizou por posteriorização, já que a oclusiva
alveolar é mais recuada do que a fricativa interdental. Por outro lado, podemos falar também em fortição, já que,
embora oclusivas e fricativas sejam obstruintes e, assim, estejam no nível mais baixo da escala de soância, as
oclusivas apresentam-se em nível mais baixo dessa escala, sendo as fricativas mais soantes do que oclusivas.

Passaremos, agora, à ilustração do processo de substituição que culmina com a formação de uma palato-
alveolar. Mas a explicação ficaria incompleta se não recorremos à estrutura silábica para a explicação da
motivação, gatilho da palatalização e se não recorrêssemos aos estudos sobre palatalização no PB.

Há, no Brasil, vários estudos sobre a palatalização de segmentos coronais em posição prevocálica,
especialmente de /t/ e /d/. Alguns deles podem ser conferidos em Godinho (2012), Bisol e Hora (1993). Esse
tipo de palatalização ocorre em contexto de segmento alto anterior, como [j i]. Em alguns casos, a palatalização
chega a índices quase categóricos (cf. Oliveira, 2009). Sabe-se, por outro lado, que o padrão preferido do PB é o
CV e que segmentos como /t/ não funcionam em posição de coda nessa língua. Assim, é comum que falantes
brasileiros recorram à ressilabificação, a fim de construírem o padrão CV. É o que acontece quando /t/ ocorre

nessa posição, como em /boʊƟ/ ˃ [boʊti]. Assim, há um processo de nativização em que a posição de núcleo é
preenchida, insere-se [i] ao lado de /t/ que passa à posição prevocálica. Segue a nova estrutura após a
ressilabificação da sílaba em análise:

(02)

O R

Nu

x x

tʃ ɪ

Como /t/ se encontra diante de segmento alto anterior, sofre o processo de palatalização, tendo-se a
formação de um segmento palatalizado, como demonstrado em

(03)
120

A vogal acrescentada como núcleo, o vocóide frontal alto [ i ], engatilha a regra de palatalização,
formando uma palatalizada. Isso se dá por meio do espraiamento do nó vocálico de [i] para o nó
vocálico de [t]. O nó vocálico que se encontrava inativo nesse segmento, já que era consoante simples é
ativado. Forma-se um segmento de articulação secundária [tʲ]. Em seguida, o nó vocálico espraia para o
C-place da consoante e, por meio de um processo de promoção e da fissão da raiz, forma-se uma
palato-alveolar. De acordo com Clements e Hume (1995), a palatalização produz, primeiramente, um
segmento palatalizado e depois desse processo é que há formação de [tʃ]. A formação de uma palato-
alveolar passa pelos seguintes estágios: [t] > [tʲ]> [tʃ]. Segue representação do segmento formado:
121
(04)

Esse estágio produz um segmento de contorno. Decorre de um processo de promoção da


articulação secundária à primária em que a consoante passa a ter duas raízes, visto que sofre fissão,
apresentando-se como um segmento de contorno (Cf. clementes e Hume, 1995).

CONCLUSÃO

Este estudo teve como objetivo realizar uma análise descritiva fonético- fonológica de
substituições produzidas por falantes do PB na produção das fricativas interdentais surda e sonora /Ɵ/
e /ð/, dando-se ênfase especial à formação a palato-alveolar [tʃ]. As várias substituições ocorridas estão
claramente relacionadas à nativização. A realização de [tʃ] se constitui evidência disso. A palatalização
bem como a ressilabificação são regras que alimentam a formação desse segmento. Esses resultados
indicam que as substituições ocorridas, quando da aquisição de uma segunda língua, estão diretamente
relacionadas às preferências e variações que ocorrem na língua nativa.

REFERÊNCIAS

BAPTISTA, Barbara Oughton. The Acquisition of English Vowels by Brazilian-Portuguese Speakers. Florianópolis:
UFSC, 2000.
122
BISOL, L. e HORA, D. O. da. Palatalização da oclusiva dental e a Fonologia Lexical. In:

Letras 5. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 1993.

CLEMENTS, George N.; HUME, Elizabeth. The Internal Organization of Speech Sounds. In: GOLDSMITH,
John A. (Ed.). The Handbook of Phonological Theory. Cambridge: Blackwell, 1995. p. 245-306.

G. N. Clements (1985). The geometry of phonological features. Phonology, 2, pp 225-252.


doi:10.1017/S0952675700000440.

GODINHO, Cyntia de Souza. Variação das oclusivas alveolares no falar paraense. Dissertaçãode Mestrado
UFPA, 2012.

OLIVEIRA, M. B. RAZKY, Abdelhak; SOUSA, Costa Céliane de.; MELLO, W. Imagens preliminares
da realização variável de /l/ prevocálico no estado do Pará. Signum. Estudos de Linguagem, v. 12, p.
297-322, 2009.

REIS, Mara Silvia. The Perception and Production of English Interdental Fricatives by Brazilian EFL Learners. 2006. 167 f.
Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006.

RUHMKE-RAMOS, Nadia Karina. The Effects of Training and Instruction on the Perception of the English Interdental
Fricatives by Brazilian EFL Learners. Florianópolis: Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa
Catarina. 2009.

DALE, Paulette; POMS, Lillian. English Pronunciation for International Students. Hemel Hempstead, UK: Prentice
Hall, 1994.

TREVISOL, Juliane Regina. The Production of the English Interdental Fricatives by Brazilian Former and Future
EFLteachers. 2010. Dissertação (Mestrado em Letras/Inglês) – Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2010. Disponível em: <http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/94308>. Acesso em:
27/02/2012.
123
TRAÇOS FORMAIS NA GRAMÁTICA MENTAL DE INDIVÍDUOS
COM E SEM DÉFICIT DE LINGUAGEM54

Arabie Bezri Hermont55

Resumo: À luz da teoria gerativa, o objetivo da pesquisa é entender como as categorias tempo e aspecto estão
representadas nas gramáticas mentais de crianças em fase normal de aquisição da linguagem, de crianças com
Déficit Específico de Linguagem (DEL) e de afásicos de Broca. É ainda objetivo entender em que medida
aspecto semântico influencia o surgimento de aspecto gramatical. Foram analisadas gravações de uma menina em
fase normal de aquisição de linguagem. Consideraram-se resultados obtidos na eliciação de tempo e aspecto
verbais em Hermont (2005), ocasião em que se verificaram tais categorias na fala de dois meninos diagnosticados
como sendo DEL, com a finalidade de comparar tais dados ao resultado obtido após a aplicação dos mesmos
testes em uma pessoa com afasia de Broca. Após análise de produção de tais categorias pelos indivíduos
assinalados, sugere-se que a camada flexional tempo seja cindida em tempo e aspecto e que há influência de
aspecto semântico na produção de aspecto gramatical.

Palavras-chave: Teoria Gerativa; Sintaxe; Aquisição e Perda da Linguagem; Tempo e Aspecto verbais.

Abstract: Under the perspective of generative theory, the goal of the research is to understand how the
categories tense and aspect are represented in mental grammar of children in normal phase of language
acquisition, children with Specific Language Impairment (SLI), and Broca's aphasics. Besides, another objective
of this work is to show the extent to which semantic aspect influences the emergence of grammatical aspect. We
analyzed recordings of a girl under normal language acquisition. We considered results in the elicitation of tense
and verbal aspect in Hermont (2005) - at such time those categories were found in the speech of two boys
diagnosed as SLI - in order to compare these data to the results obtained after applying the same tests on a
person with Broca's aphasia. After analysing the production of such categories by individuals with and without
language impairments it is suggested that the tense phrase is split into tense phrase and aspect phrase, and that
there is influence of semantic aspect on the production of grammatical aspect.

Keywords: Generative Theory, Syntax, Acquisition and Loss of Language, Tense and Verbal Aspect.

1 Introdução
Este trabalho assenta-se nos pressupostos teóricos da Gramática Gerativa (Chomsky, 1995). Desta forma,
assume-se que a preocupação central dos estudos gerativistas é a descoberta das informações linguísticas
geneticamente codificadas. Nos últimos tempos, as pesquisas empreendidas dentro do arcabouço gerativista têm

54 Apoio: Fapemig.
55
Professora da Pós-Graduação em Letras (PUC Minas). E-mail: [email protected]
124
seu foco no entendimento das categorias funcionais, por elas serem consideradas responsáveis pelas
diferenciações entre as línguas naturais.

Dentro deste espírito, apresentamos o objetivo da pesquisa que será explicitada neste trabalho: entender
como as categorias tempo e aspecto estão representadas nas gramáticas mentais de crianças sem queixas de
problemas no processo de aquisição da linguagem, de crianças com queixas de problemas no processo de
aquisição de linguagem e de pessoas com lesão cerebral, denominadas afásicas agramáticas. Além disso, é ainda
objetivo deste trabalho apresentar em que medida aspecto semântico ou lexical influencia no surgimento de
aspecto gramatical.

Pretendemos, portanto, compreender melhor a constituição da camada flexional. Para tal, temos duas
hipóteses norteando o trabalho: a primeira é que há uma dissociação na representação gramatical da categoria
funcional tempo em tempo e aspecto. A segunda é que aspecto lexical télico influencia o surgimento de aspecto
gramatical perfectivo. Desta forma, além de contribuirmos para o entendimento da representação de tais
categorias na gramática mental dos indivíduos delineados anteriormente, contribuiremos também para a
discussão a respeito da representação de tais categorias na gramática de indivíduos adultos sem problemas de
linguagem.

2 Tempo e Aspecto
Segundo Comrie (1976, p. 5), tempo é uma ―categoria dêitica, isto é, localiza situações no tempo‖. Já
aspecto ―está relacionado ao tempo interno da situação‖. De acordo com o autor, pode-se diferenciar entre
tempo interno à situação como sendo relativo a aspecto e tempo externo à situação como sendo tempo verbal.

Travaglia (1981, p.32) nos traz que ―tempo situaria o momento de ocorrência da situação a que nos
referimos em relação ao momento da fala como anterior (passado), simultâneo (presente) e posterior (futuro) a
esse momento.‖. É uma categoria dêitica porque indica o momento da situação em relação à situação de
enunciação.

Para o mesmo autor, ―aspecto não é uma categoria dêitica, pois se refere à situação em si.‖. Em relação a
tal categoria, podemos afirmar que há duas formas diferentes de conceber-se aspecto: o aspecto lexical e o
aspecto gramatical. O primeiro tem a ver com a noção semântica inerente dos núcleos verbais e adjuntos. O
segundo relaciona-se aos indicadores linguísticos explícitos, tais como auxiliares e morfemas flexionais.

Alguns autores, como Travaglia (2006, p. 55), classificam o aspecto verbal usando as terminologias
―télico‖ e ―atélico‖. A primeira noção indicaria que uma situação necessariamente chegaria a um fim, como, por
exemplo: nascer, morrer, atirar. A segunda noção indicaria uma situação que não tende necessariamente a um
fim, como, por exemplo: nadar, caminhar, correr, amar.

Em relação a aspecto gramatical, podemos dizer que um verbo está na sua forma perfectiva quando um
evento é visto em toda sua expansão e tem marcado seu término. Um verbo está na sua forma imperfectiva
125
quando o evento expressa uma das fases internas da situação, sem que se enfatize o final. Dois exemplos podem
ser apontados: ―A menina deixou a sala‖ e ―A menina escrevia durante toda a aula‖. No primeiro caso, pode-se
verificar todo o evento, incluindo o final da ação de ―deixar a sala‖. Já no segundo exemplo, não se enfatizam
todas as fases da situação e, sim, uma delas, sem preocupação com o final.

Para completar e finalizar esta seção, relacionemos as categorias tempo e aspecto, em língua portuguesa.
Podemos fazer as diferenciações, na nossa língua, entre perfectivo e imperfectivo somente observando os
tempos no pretérito – pretérito perfeito e pretérito imperfeito. Assim, nas sentenças: ―Marina leu o livro‖ e
―Marina lia o livro‖, ambos os exemplos estão no pretérito, o que difere é o aspecto gramatical. No primeiro
caso, a forma verbal apresenta-se no perfectivo e, no segundo caso, no imperfectivo.

3 Aquisição de categorias funcionais por parte de crianças sem problemas de linguagem


As crianças, em processo de aquisição de linguagem, precisam adquirir um léxico e uma gramática. O
primeiro pode ser ampliado ao longo de uma vida. Já a gramática é adquirida nos primeiros anos de vida, sem
que as crianças tenham que fazer esforço. Basta que estejam expostas à língua em questão para que saibam que
sua língua permite sujeito nulo ou não, que os complementos verbais ficam à esquerda ou à direita, que um
elemento de pergunta (denominado elemento QU-) move-se para o início da sentença ou deve permanecer na
posição original.

O que determinaria esta rapidez na aquisição da gramática? Os estudiosos da área de aquisição de


linguagem, à luz dos pressupostos teóricos da Gerativa, assinalam que tal rapidez se deve às categorias
funcionais, tais como determinantes, complementizadores e as categorias flexionais, como, por exemplo, a
camada flexional de tempo. Normalmente, as categorias funcionais correspondem, na superfície, a elementos que
se repetem frequentemente, na mesma posição, são átonos e pequenos (de um modo geral, monossilábicos).
Assim, a criança, em fase de aquisição da língua portuguesa, não levaria muito tempo para perceber que o artigo
vem antes do nome, que os complementizadores ―que‖, ―se‖ e ―para‖ introduzem sentenças encaixadas. No caso
das desinências relacionadas a tempo, sabemos que elas se ligam ao verbo e acumulam, além de tal noção,
aquelas de modo e de aspecto. Por exemplo, em ―amávamos‖, a desinência -va- acumula noção de modo
indicativo, tempo pretérito e aspecto imperfectivo.

Muitos estudiosos apresentam explicações para a aquisição de tempo e de aspecto. No que diz respeito à
primeira categoria, apresentaremos aquela proposta por Wexler, por ser, de alguma forma, retomada na
explicação dos fenômenos pesquisados em nossos trabalhos.

Para Wexler (1996), as crianças conhecem a existência de categoria funcional de tempo desde muito
cedo. Para o autor, as crianças conhecem ainda a relação de itens flexionais com traços morfológicos e sintáticos,
a possibilidade de movimento de verbo quando o verbo é finito e a proibição disso quando o verbo não está na
forma [+finito]. Isso vai ao encontro do que preconiza a Teoria Gerativa, ao postular a GU. Em 1998, Wexler
refina sua proposta. Com base em observações de dados advindos de falas de crianças em idade de aquisição de
126
linguagem, em que se verificaram muitos dados, em língua inglesa, em que ora havia morfemas de concordância
e não havia morfemas de tempo, ora havia morfemas de tempo e não havia morfemas de concordância, Wexler
propõe que haja uma Restrição de Checagem Única de traços, na gramática mental das crianças em fase de
aquisição de linguagem. Ou seja, ora há somente a valoração dos traços no nódulo de concordância, ora há
somente a valoração dos traços no nódulo de tempo, desencadeando o quadro anteriormente apresentado.

Em relação à aquisição de aspecto, podemos assinalar algumas propostas. Bloom, Lifter e Hafitz (1980)
verificaram que a semântica dos verbos em inglês influencia o surgimento de flexões verbais. De acordo com os
autores, verbos durativos ocorreram mais com flexões do tipo –ing. Verbos não durativos ocorreram mais com a
flexão –ed e marcas de passado de verbos irregulares. Esse resultado sugere que a natureza do verbo, de télico, se
atélico, parece desencadear as formas perfectivo e imperfectivo, respectivamente.

Já Hodgson (2004) verifica se as crianças em fase de aquisição de língua espanhola têm aspecto verbal a
partir do aspecto lexical. Em um dos testes, a pesquisadora investigou se as crianças poderiam distinguir a
informação aspectual (perfectivo/imperfectivo) quando usados em situação télica. Foi verificado que as crianças
mais novas (de três e quatro anos) não conseguem fazer distinção entre evento completo e evento incompleto.
Essa constatação vai contra a hipótese que as crianças adquirem aspecto antes de tempo. Dessa forma, para
Hodgson, aspecto, no início da aquisição, não é uma categoria estável na fala das crianças.

4 Aquisição de categorias funcionais por parte de crianças com déficit específico de linguagem
ou crianças DEL
Há algumas crianças que, a despeito de não terem problemas neurológicos, de surdez e de inteligência,
têm um desenvolvimento linguístico distinto daquele que ocorre com crianças sem problemas de linguagem. O
distúrbio apresentado por tais crianças denomina-se ―déficit específico de linguagem‖ ou DEL.

Para Wexler, Schutze e Rice (1998), o problema linguístico dos indivíduos DEL está ligado a uma
extensão do período crítico, dentro do qual a criança deveria adquirir linguagem sem esforço, como ocorre com a
aquisição de língua materna por parte de crianças sem problemas de linguagem. A criança DEL, neste caso,
estenderia o processo por um tempo mais longo ou indefinidamente. Os autores acima citados estendem a
postulação de Restrição de Checagem Única para a gramática das crianças DEL: tal restrição atuaria de forma
mais prolongada do que na gramática da criança sem problemas de linguagem.

Em Hermont (2005), observa-se o seguinte cenário: quando a criança produz formas verbais
perifrásticas, ou seja, formas com um auxiliar e com um verbo principal (no caso, flexionado no gerúndio), às
vezes, as crianças DEL falam a forma perifrástica de forma correta, tanto no que diz respeito ao tempo eliciado,
quanto ao aspecto demandado; às vezes, as crianças DEL falam somente o verbo principal no gerúndio sem
auxiliar; e, em menor escala, falam somente o auxiliar, sem o verbo principal. Quando os testes provocavam o
surgimento de uma forma verbal única, de um modo geral, a criança DEL se saía bem.
127
No que diz respeito ao resultado advindo das falas das crianças DEL em situação de testes de eliciação,
Hermont (2005) verificou um paralelismo entre os dados obtidos nesta pesquisa e as propostas feitas por Wexler
(1998) e Wexler, Schutze e Rice (1998): deve haver uma propriedade de Restrição de Checagem Única que
atuaria na gramática da criança no período de aquisição de linguagem. Da mesma forma como Wexler analisou
seus dados percebendo que havia uma restrição no nível mental para a ocorrência simultânea de morfemas
relativos a tempo e concordância, Hermont (op. cit.) verificou que há uma restrição para que haja ocorrência
simultânea de morfemas de tempo e de aspecto na fala da criança DEL, por isso foi sugerido que a propriedade
de Restrição de Checagem Única se estenderia às categorias funcionais tempo verbal e aspecto verbal.

No que diz respeito ao bom desempenho nas tarefas de eliciação de formas verbais únicas, sugeriu-se
que a criança ainda está tendo um bom desempenho em tempo em detrimento de aspecto e vice-versa. O
raciocínio é o seguinte: se quando há duas palavras na forma verbal eliciada, uma marcando tempo e outra
marcando aspecto, a criança DEL demonstra, de um modo geral, ter em seu output linguístico uma só categoria,
provavelmente ocorre o mesmo nos casos de eliciação de uma forma verbal só. Ou seja, nas situações em que há
eliciação de uma só palavra, na qual haveria um morfema que acumula tanto a noção de tempo quanto a noção
de aspecto, ora o morfema apareceria porque os traços de tempo foram valorados, ora o morfema apareceria
porque os traços de aspecto foram valorados. Daí o aparente desempenho alto na produção das formas verbais
únicas.

5 A afasia de Broca e as categorias funcionais


A afasia é considerada um distúrbio linguístico originado por uma lesão cerebral. A afasia de Broca, por sua
vez, é caracterizada por uma dificuldade na produção linguística e relativa dificuldade na compreensão linguística.
Muitos estudos já foram empreendidos na tentativa de verificar como estão representadas as categorias
funcionais na gramática mental de um indivíduo afásico.

No que diz respeito a pesquisas em língua portuguesa, podemos citar o trabalho de Santos & Novaes
(2008), os quais evidenciaram a cisão do nódulo tempo em tempo e aspecto, a partir da análise de compreensão
verbal por parte de indivíduos afásicos agramáticos, além de encontrar dados indicando que afásicos de Broca
têm problemas com aspecto, sendo o perfectivo o mais afetado. Diante de resultados em que aspecto parecia
estar mais comprometido que tempo, os autores propuseram que, pensando na árvore sintática, o nódulo de
aspecto dominaria o nódulo de tempo.

6 Metodologia
Nesta seção, explicitaremos a amostra que usamos e a forma como observamos os dados linguísticos
produzidos por indivíduos de tal amostra.

A amostra para análise deste trabalho é assim constituída: falas de uma criança em fase normal de
aquisição de linguagem; dados de duas crianças (de 8 e 12 anos), com diagnóstico de DEL (de Hermont, 2005); e
128
dados advindos de aplicação de testes de eliciação de tempo e aspecto verbais por parte de uma moça de 31 anos
com diagnóstico de afasia de Broca.

Verificamos, nas falas da criança em fase normal de aquisição de linguagem, todas as expressões verbais
produzidas e nos concentramos naquelas que não eram repetidas da fala de sua mãe. Em seguida, observamos as
produções de tempo e de aspecto de cada forma verbal e relacionamos as ocorrências de aspecto lexical ao
aspecto gramatical da mesma forma verbal. Foram considerados os resultados obtidos na eliciação de tempo e
aspecto verbais em Hermont (2005), ocasião em que se verificaram tais categorias na fala de dois meninos
diagnosticados como sendo DEL, a fim de compará-los de forma direta ao resultado obtido após a aplicação dos
mesmos testes na moça afásica. Por fim, foi ainda verificada a relação do aspecto verbal lexical eliciado e o
aspecto gramatical produzido pela afásica de Broca.

7 Resultados
Analisamos, inicialmente, os verbos produzidos pela criança em fase normal de aquisição de linguagem,
observando a natureza das formas verbais na fala da criança no período analisado:

Quadro 1: Flexão verbal na aquisição de linguagem

1 ano e 6 dias 2 anos e 5 meses 3 anos e 4 meses 3 anos e 7 meses 5 anos e 6 meses

Presente 57% Presente 17% Presente 27% Presente 22% Presente 20%
Pretérito 33%
Pretérito 73% Pretérito 33% Aux. Presente +
Imperativo 17%
Pretérito 43% Imperativo 11% Gerúndio 10%
Infinitivo 33%
Infinitivo 11% Aux. Presente +

Futuro 11% Infinitivo 50%

Pretérito 10%

Fonte: quadro elaborado pela autora.

Da análise do tempo verbal das formas verbais faladas pela criança em um período de quatro anos meio,
verificamos que, desde um ano, ela consegue flexionar o tempo no pretérito, o que nos sugere que a categoria
tempo e as operações ligadas à flexão de tempo verbal estão disponíveis para as crianças desde muito cedo, o que
condiz com os pressupostos nos quais a proposta da GU se assenta e com o que Wexler (1996 e 1998) nos traz.
Além disso, verificamos que, se a criança até os 3 anos e sete meses produzia verbos na sua forma não finita, aos
cinco anos e meio, ela já produzia formas verbais sofisticadas, à medida que eram constituídas de perífrases e
estas foram usadas da mesma forma que um adulto o faz.

Destes dados, não podemos, com segurança, afirmar que há evidências a favor da proposta da cisão da
camada flexional tempo em tempo e aspecto, pois isso seria mais bem comprovado se a criança tivesse
129
produzido perífrases, em que poderíamos verificar o tempo no auxiliar e o aspecto no verbo principal. Porém
podemos fazer tal constatação nos dados de DEL e de afasia de Broca.

Os resultados obtidos em Hermont – para a produção verbal de duas crianças DEL - foram considerados
nesta pesquisa e relacionados aos dados obtidos após aplicação de testes na moça com afasia de Broca, sobre os
quais passamos a relatar e analisar.

Em um primeiro momento, no que diz respeito ao desempenho da afásica, verificamos que, quando foi
eliciado o tempo presente, seja na forma verbal única, seja na forma perifrástica, a moça apresentou pior
desempenho do que quando o teste eliciava o tempo passado, seja na forma verbal única, seja na forma
perifrástica.

Vejamos o resultado obtido após a aplicação dos testes na afásica de Broca, comparativamente ao
desempenho das crianças DEL, pesquisada por Hermont (2005):

Quadro 2: Dados obtidos após a aplicação de testes de eliciação de tempo presente e aspecto progressivo

Indivíduos Forma verbal eliciada: Presente Progressivo

Total de respostas esperadas para tempo Total de respostas esperadas para aspecto

DEL 1 86,6% 68,4%

DEL 2 75% 97,5%

Afasia de Broca 100% 96,7%

Fonte: quadro elaborado pela autora.

Ao analisarmos esse quadro, verificamos que a pessoa com afasia não teve dificuldade para falar as
formas perifrásticas no presente progressivo. Entretanto, as crianças DEL ora produziram formas verbais com
tempo esperado e ora produziram aspecto progressivo. Esse resultado, associado ao resultado verificado na
análise da fala da criança em fase normal de aquisição da linguagem, nos conduz ao seguinte raciocínio: as formas
verbais compostas são mais complexas para a gramática mental da criança – pois as crianças DEL têm
dificuldade em produzi-las e a criança em desenvolvimento típico de linguagem o faz mais tarde; as categorias
tempo e aspecto estão disponíveis na gramática mental das crianças DEL e da pessoa coma afasia.

A seguir, observemos a produção de tempo presente/aspecto habitual por parte dos indivíduos DEL e
da afásica:

Quadro 3: Dados obtidos após a aplicação de testes de eliciação de tempo presente e aspecto habitual

Indivíduos Forma verbal eliciada: Presente Habitual

Total de respostas esperadas para Total de respostas esperadas para aspecto


tempo

DEL 1 85% 75%


130
DEL 2 93,3% 76,6%

Afasia de Broca 36% 36,%

Fonte: quadro elaborado pela autora.

Observando este quadro, verificamos que as crianças DEL produziram o tempo verbal eliciado mais
vezes que a pessoa com afasia. No entanto, ao verificarmos os dados não esperados para a produção de aspecto,
constatamos que a pessoa afásica inseriu, em grande parte de sua fala, gerúndios (cerca de 53%), produzindo o
aspecto progressivo, sem produção de auxiliar ou outro verbo que apresentasse o tempo. Apesar de o aspecto
produzido pela pessoa afásica não ser o eliciado – aspecto habitual -, o resultado apresentado no quadro acima
nos sugere uma cisão das categorias tempo e aspecto.

A seguir, observemos os dois quadros:

Quadro 4: Dados obtidos após a aplicação de testes de eliciação de tempo pret. imperf. e aspecto progressivo

Indivíduos Forma verbal eliciada: Pretérito Imperfeito Progressivo

Total de respostas esperadas para Total de respostas esperadas para aspecto


tempo

DEL 1 67,5% 95%

DEL 2 53,3% 91,7%

Afasia de Broca 76% 79,5%

Fonte: quadro elaborado pela autora.

Quadro 5: Dados obtidos após a aplicação de testes de eliciação de tempo pret. Perfeito e aspecto perfectivo

Indivíduos Forma verbal eliciada: Pretérito Perfeito Perfectivo

Total de respostas esperadas para Total de respostas esperadas para aspecto


tempo

DEL 1 100% 100%

DEL 2 91,7% 91,7%

Afasia de Broca 83% 83%

Fonte: quadro elaborado pela autora.

Verificamos que, quando há eliciação de forma verbal perifrástica, as crianças DEL não produzem
tempo de acordo com o esperado, mas produzem o aspecto eliciado. Quando a demanda é por um verbo em sua
forma única, verificamos que a produção de tempo e de aspecto ocorre da forma esperada para os DEL. A
pessoa com afasia não apresenta o mesmo desempenho alternante na produção das categorias tempo e aspecto
que as crianças DEL demonstram, mas, da mesma forma que estas, a afásica apresenta um desempenho abaixo
(ou pouco abaixo) do esperado relativamente a tempo e a aspecto verbais.
131
A seguir, verificaremos a produção de aspecto lexical por parte da criança em fase normal de aquisição
de linguagem.

Quadro 6: Cruzamento de aspecto lexical por aspecto gramatical em aquisição de linguagem

Aspecto lexical 1 ano e 6 dias 2 anos e 5 meses 3 anos e 4 meses 3 anos e 7 meses 5 anos e 6 meses

Perfectivo 17%

Atélico Imperfectivo 14% Imperfectivo 27% Imperfectivo 18% Imperfectivo 10%

Sem marcação Sem marcação


morfológica 17% morfológica 23%

Perfectivo 43% Perfectivo 17% Perfectivo 64% Perfectivo 47 % Perfectivo 90%

Télico Imperfectivo 43% Imperfectivo 9%

Sem marcação Sem marcação


morfológica 49% morfológica 12%

Fonte: quadro elaborado pela autora.

Observamos que verbos de natureza télica foram mais comuns na fala da criança pesquisada. Além
disso, verificamos que há uma tendência a surgir mais formas no imperfectivo quando o verbo produzido tem
semântica atélica. De maneira mais acentuada, os verbos télicos surgem, em grande parte das vezes, na forma
perfectiva.

De modo interessante, ao observarmos as respostas não esperadas das crianças DEL e da afásica
agramática, verificamos que alguns poucos verbos produzidos pelos indivíduos DEL e muitos verbos produzidos
pela afásica agramática foram eliciados em sua forma imperfectiva, mas a semântica aspectual era télica.

8 Considerações Finais:
Diante dos resultados obtidos, podemos afirmar que temos algumas sugestões confirmando que há
dissociação na representação gramatical da categoria funcional tempo em tempo e aspecto. Além disso,
conforme nos apontam Wexler (1996 e 1998), as categorias funcionais parecem estar disponíveis desde cedo para
as crianças, já que verificamos tais categorias nos dados da criança com um ano de idade. Apesar de dados de
aquisição de linguagem, apresentados nesta pesquisa, não terem sido o bastante para confirmarmos a postulação
de uma Restrição de Checagem de Traços, tal como nos propõe Wexler (1998), temos dados em aquisição de
linguagem por parte de indivíduos DEL e mesmo dados de afasia nos apontando que há algum impedimento
para que todos os traços relativos às categorias funcionais sejam valorados na gramática mental de tais
indivíduos.

Em relação às produções verbais da afásica de Broca, verificamos que os dados podem sugerir a cisão da
camada flexional em tempo e aspecto, mas não podemos afirmar que aspecto é mais comprometido que tempo
132
na fala da pessoa pesquisada. No tocante a este último achado, nossos dados se afastam dos de Santos e Novaes
(2008).

A favor da proposta de Bloom, Lifter e Hafitz (1980) – e contra a proposta de Hodgson (2004) – os
resultados advindos de observações da natureza (a)télica dos verbos produzidos pela criança em fase normal de
aquisição de linguagem -, constatamos que a natureza verbal télica influencia o surgimento de aspecto gramatical
perfectivo.

REFERÊNCIAS:

BLOOM, Lois; LIFTER, Karin; HAFITZ, Jeremie. Semantics of verbs and the development of verb inflection
in child language. Language, v. 56, n.2, 1980.

CHOMSKY, Noam. The minimalist program. Cambridge: MIT Press, 1995.

CORÔA, Maria Luiza Monteiro Sales. O tempo nos verbos do português: uma introdução à sua
interpretação semântica. São Paulo: Parábola, 2005.

HERMONT, Arabie Bezri. Aquisição de tempo e aspecto no déficit especificamente linguístico. Tese de Doutorado. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2005.

HODGSON, Miren. Children‟s production and comprehension of Spanish grammatical aspect. University of Massachusetts,
Amherst. Ms. 2004.

SANTOS, Silvia Regina Costa dos & NOVES, Celso Vieira. Compreensão de Tempo e Aspecto em indivíduos
com afasia de Broca Juiz de Fora, MG: VEREDAS ON-LINE – 2/2008, P. 171-174.

WEXLER, Kenneth. The development of inflexion in a biologically based theory of language acquisition. In:
RICE, Mabel L. Toward a genetics of language. Mahwah, NJ: Lawrence. Erlbaum Assoc., 1996.

___________. Very early parameter setting and the unique checking constraint: a new explanation of the
optional infinitive stage. Lingua, v. 106, p. 23-79, 1998.

WEXLER, Kenneth; SCHÜTZE, Carson, T.; RICE, Mabel. Subject case in children with SLI and unaffect
controls: evidence for AGR/TNS omission model. Language Acquisition, v. 7, n.2-4, p. 317-344, 1998.
133
O FIM DO MUNDO DESCRITO NA TEORIA DOS ATOS DE FALA

Aucélia Vieira Ramos56


Juscelino Francisco do Nascimento57

Resumo: Neste trabalho, apresentamos que as questões relacionadas à comunicação entre as pessoas sempre
instigaram a curiosidade de leigos, assim como de cientistas da linguagem, pois o desejo de entender como se
processam os fenômenos de construção e compreensão de expressões, falas e de textos trazem para o cenário
científico muitos questionamentos e busca por respostas. Apesar disso, é necessário não se generalizar teorias e
não observá-las de maneira superficial, para que elas não percam sua real relevância na tentativa de achar
respostas. Neste artigo, pretendemos identificar e classificar os atos de fala presentes em comentários online sobre
o acontecimento do ―fim do mundo‖, ocorrido no mês de outubro, na cidade de Teresina-PI. A abordagem
teórica será os conceitos básicos da Teoria dos Atos de Fala, desenvolvida e debatida por Austin (1976), a teoria
de gênero como ação social defendida por Miller (1984) e Bazerman (2006) e a teoria de gêneros de Bakhtin
(1979). O corpus é constituído por quatro comentários retirados do portal 180 Graus sobre a temática em questão.

Palavras-chave: Atos de Fala; Comentário; Performatividade.

Abstract: We present the issues related to communication among people have always piqued the curiosity of
laymen as well as scientists of language, because the desire to understand how they process the phenomena of
building understanding and expression, speech and text bring to the stage many scientific questions and search
for answers. Nevertheless, one should not generalize theories and not look at them superficially, so they do not
lose their real importance in trying to find answers. In this article, we intend to identify and classify speech acts
present in online comments on the event of the "end of the world" held in October in the city of Teresina-PI.
The theoretical approach will be the basic concepts of the Theory of Speech Acts, developed and discussed by
Austin (1976), the theory of genre as social action advocated by Miller (1984) and Bazerman (2006) and the
theory of genres of Bakhtin (1979). The corpus consists of four comments removed from the 180 Graus portal on
the topic in question.

Keywords: Speech Acts. Comment. Performativity.

1 Introdução

As questões relacionadas à comunicação entre as pessoas sempre instigaram a curiosidade de leigos e


cientistas da linguagem. O desejo de entender como se processam os fenômenos de construção e compreensão
de expressões, falas e de textos trazem para o cenário científico muitos questionamentos e busca por respostas.

56 Aluna do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Piauí – UFPI. Bolsista CAPES.
E-mail: [email protected]
57 Aluno do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Piauí – UFPI. Bolsista CAPES.

E-mail: [email protected]
134
No entanto, é necessário não generalizar teorias e não observá-las de maneira superficial para que as mesmas não
percam sua real relevância na tentativa de achar respostas.

O sentido que atribuímos a nossa fala, as nossas interpretações e a tudo que nos cerca devem possuir
como pressuposto inicial, a tentativa de nos fazer entender pelo outro, e isso vai estar diretamente relacionado a
perguntas como: o que fazemos quando falamos? Que dizemos exatamente quando falamos? De que modo devo
expressar meu pensamento para determinadas situações? Podemos confiar no sentido exato58 das palavras? Ao
tentar responder algumas dessas questões nos deparamos como a seguinte observação: nós utilizamos a
linguagem como ação, como prática, ou seja, sempre com uma finalidade e em contextos diferentes?

A tentativa de responder as essas questões podem muitas vezes nos levar a pensar que a nossa linguagem
é um mero reflexo do nosso pensamento. No entanto, vale ressaltar que as respostas dadas por cada um de nós a
ações estabelecidas entre interlocutores, e realizadas pelo uso da linguagem, são construídas pela nossa
percepção(interpretação) do mundo e não apenas por mera representação. Cada texto, bem sucedido, que
criamos para suprir nossas necessidades comunicativas criam fatos sociais, e estes, são ações sociais significativas
expressos pelo o que é dito, pela materialização do nosso pensamento. Esses atos comunicativos são
denominados atos de fala.

Partindo desse entendimento de que a linguagem é ação social e que por meio dela revelamos nossos
pensamentos e praticamos ações o objetivo desse artigo é identificar e classificar os atos de fala sob a ótica da
teoria de Austin (1976) em comentários on-line retirados do portal 180 graus sobre o acontecimento social: o fim
do mundo ocorrido em outubro de 2012 na cidade de Teresina-Piauí.

Considerando que todo ato de fala são feitos somente pelas palavras faremos às análises de 04
comentários observando a relevância do fato social na construção do mesmo. Para isso faz-se necessário
considerar o comentário como gênero textual e compreender as relações estabelecidas ente os fatos sociais e os
gêneros textuais. Como suporte teórico de gêneros utilizaremos a teoria de gênero como ação social defendida
por Miller (1984) e Bazerman (2009).

2 ENTENDA O CASO: O FIM DO MUNDO EM TERESINA-PI

―O mundo vai acabar às 16h desta sexta-feira‖. Foi isso que cerca de 120 pessoas em Teresina
esperaram que ocorresse em pleno Dia das Crianças. Elas já se preparavam para o ―juízo final‖
confinadas na casa de um suposto profeta. Segundo o profeta ―a besta fera‖ acabaria com o mundo
nesta sexta-feira dia 12 de outubro e só iriam se ―salvar os seguidores dele‖.

58Sentido exato aqui retratado como sentido literal na concepção de Searle (1980), ou seja, aquele sentido que construído
independente do contexto.
135
Um homem identificado como Luís Pereira anunciou o fim do mundo em Teresina. Ele
afirmava que um anjo o avisou sobre o fim do mundo às 16h do dia 12 de outubro de 2012. O
"profeta" do fim do mundo como ficou conhecido Luis Pereira dos Santos, de 43 anos, ex-zelador e ex-
católico, afirmou que há quatro anos recebeu uma mensagem de um anjo avisando que o mundo iria
acabar no dia 12 de outubro. Segundo ele, de lá pra cá, se desfez do carro, moto, bens e acolheu em sua
residência moradores de rua, prostitutas, traficantes e criminosos. Ele orientou as pessoas a saírem do
emprego e tirar os filhos da escola.
Na sexta-feira, dia do suposto ―fim do mundo‖, as pessoas que estavam abrigadas na casa,
batizada de "arca", foram retiradas antes do anoitecer e levadas para residência de familiares. Cerca de
100 pessoas seguiam a seita de Santos. As crianças e adolescentes do grupo foram levados para abrigos
e casa de acolhimento.
Os seguidores do ―profeta‖ deviam não ter contato com o mundo fora da casa. Eles foram
induzidos a renunciar e doar os bens que têm, além de largar os empregos. A polícia interveio no caso e
disse que recebeu denúncias de que o suposto profeta também estava casando alguns menores de idade
que seguem seus ensinamentos.
Na tarde de quinta-feira dia 11 de outubro cerca de 100 homens da polícia Militar e Civil
participaram de uma operação para retirar 19 crianças e adolescentes que estavam morando na casa de
Luiz Pereira. Durante a operação, a polícia encontrou veneno escondido em um dos cômodos da casa,
o que levantou a suspeita de um suicídio coletivo, e o suposto profeta foi conduzido à delegacia para
prestar esclarecimentos.
Os portais de notícias locais, nacionais e internacionais trataram sobre o assunto o que gerou
muitos comentários dos leitores desses meios de informação. Os comentários revelam a opinião e a
revolta de algumas pessoas como o ocorrido e, portanto servem como corpus de análise para a
observação da Teoria dos Atos de Fala defendida por Austin (1976).

3 A TEORIA DOS ATOS DE FALA DE AUSTIN

A Teoria dos Atos de Fala nasceu na filosofia da linguagem e tem como base doze conferências de
Austin, publicadas sob o título How to do things with words em 1976. O autor trouxe uma grande contribuição à
linguística ao considerar a linguagem como forma de ação. Assim, a Teoria dos Atos de Fala mostra-se
significativa para a pragmática, a qual estuda as condições que governam a utilização da linguagem, os fatores
linguísticos e extralinguísticos que contribuem para a produção de sentido numa dada situação comunicativa.

Os estudos linguísticos têm revelado que em sequências específicas de enunciados, muitas vezes, apenas
os aspectos fônicos, sintáticos e semânticos do sistema de uma língua não conseguem explicar, por si só, como
são construídos, por exemplo, as relações de sentido que constroem a ironia, o subentendido e outros
136
fenômenos. Assim, percebemos que a nossa comunicação não se efetiva apenas com o que as palavras e frases
significam.

Partindo dessa ideia surge à pragmática, como um dos domínios da linguística, que contribui para a
análise e compreensão daquilo que ultrapassa os limites da sintaxe e da semântica. A pragmática, por sua vez, diz
respeito à linguagem em uso, em diferentes contextos, tal como é utilizada por seus usuários para estabelecer a
comunicação. Essa corrente de estudos linguísticos prima pela heterogeneidade, devido à diversidade de uso e à
multiplicidade de contextos. É por esse motivo que muitos estudiosos a consideram um domínio de linguagem
de difícil análise, uma vez que qualquer tentativa, como afirma Marcondes (2006) levaria a uma abstração da
diversidade e multiplicidade do uso, em busca de elementos comuns que possibilitassem um tratamento mais
teórico e sistemático.

Alguns autores não defendem a tese de que a linguagem tal como é utilizada concretamente, enquanto
comunicação, não pode ser objeto de estudo de uma análise teórica. Dentre os autores que comungam desta
teoria temos Carnap (1937) que defende a impossibilidade da linguagem ser objeto de análise. O autor aponta a
diversidade da linguagem em situações concretas de comunicação para justificar seu pensamento, pois para ele
teríamos uma grande variação nas análises devido aos sujeitos, aos casos particulares de comunicação. Nesse
sentido a linguagem só poderia ser analisada em um sentido filosófico e científico por meio de sucessivas
abstrações, ou seja, da pragmática para a semântica e da semântica para a sintaxe.

Austin (1976), ao contrário de Carnap (1937), viu a possibilidade de analisar a linguagem cientificamente.
A teoria dos atos de fala proposta pelo autor pode ser considerada como uma tentativa de observar e analisar
sistematicamente os fenômenos pragmáticos, ou seja, o uso da linguagem. Para o autor a análise da linguagem em
uso só é possível se forem adotadas categorias adequadas, ou seja, que a linguagem seja visa, ou melhor, tratada
como uma forma de ação e não apenas como uma representação do real ou mera descrição de fatos do mundo.

Austin (1976) em suas análises fez primeiramente a distinção entre e constativos e performativos. Para
ele, os constativos seriam uma espécie de declaração factual, descritiva, enquanto que os performativos são
realizações de ações pelo simples fato de dizer, isso em circunstâncias apropriadas e por falantes autorizados.
Alguém autorizado, institucionalmente, a dizer, por exemplo, ―eu nomeio este navio de Titanic‖, em
circunstância adequada, realiza uma ação por meio da palavra.

Posteriormente Austin (1976) não enfatiza mais a distinção entre constativos e perfomativos, como se os
dois atos fossem realizados separadamente para dizer que todos os atos de fala constituem-se de performativos,
implícitos ou explícitos. Dessa forma, dizer ―eu prometo que estarei lá‖ (AUSTIN, 1976, p. 69) constitui um
performativo explícito, uma vez que o verbo prometer aparece na primeira pessoa do singular do presente do
indicativo. Já o enunciado ―eu estarei lá‖ não apresenta, de forma explícita, o verbo preformativo, mas a noção
de promessa está subentendida.

Corroborando com Austin (1976), Ilari (2002, p. 28) diz que ―é possível realizar várias ações diferentes a
partir do mesmo conteúdo utilizando os modos do verbo e outros recursos linguísticos‖. Assim, o conteúdo o
137
―coelho + estar preso‖ poder ser objeto de: uma informação (―o coelho está preso‖); uma pergunta (―o coelho
está preso?‖); uma reação de surpresa (―minha nossa! O coelho está preso há três dias!‖); uma reação de dúvida
ou perplexidade (―o coelho está preso?! De onde você tirou essa ideia?); um desejo (― tomara que o coelho esteja
preso.‖); uma ordem (―prenda o coelho‖).

Entendendo o uso da linguagem como forma de agir Austin (1976) considera o ato de fala como
unidade básica de significação, entendendo assim a linguagem como forma de ação que só se realiza então, por
meio das palavras. A concepção básica do autor baseia-se nas condições de sucesso e felicidade em que são
realizados os atos de fala, ou seja, toda palavra em uso deve cumprir as suas condições pressupostas para a
realização do ato.

A abordagem dada por Austin (1976) propõe, portanto, uma concepção do uso da linguagem,
considerando o ato de fala como a unidade básica da significação e tomando-o, por sua vez, como constituído
por três dimensões integradas ou articuladas: respectivamente os atos locucionário, ilocucionário e
perlocucionário. O ato locucionário é caracterizado pelo o que é literalmente dito, ou seja, pela proposição
proferida pelo locutário. Já o ato ilocucionário caracteriza-se pelo o que pretendo dizer, ou seja, ―pelo o que
quero que meu ouvinte reconheça‖ Bazerman (2005, p.27). As reações provocadas pelo o que é dito caracterizam
os atos perlocucionários. Esses atos, segundo Bazerman (2005, p.27), ―são os modos como às pessoas recebem
os atos e determinam as consequências deste ato para futuras interações‖.

4 O COMENTÁRIO ONLINE COMO GÊNERO TEXTUAL

Entendendo gênero textual como ação social como propõe Miller (1984) e tipificação como defende
Bazerman (2005) o comentário pode ser considerado como um gênero por sua recorrência, tipificação. Essa
consideração tem suporte teórico no fato de Miller partir de critérios pragmáticos para compreender os gêneros
como ações sociais tipificadas, ou seja, ―compreender os gêneros socialmente pode nos ajudar a explicar como
encontramos, interpretamos, reagimos e criamos certos textos‖ (Miller,1984, p.151). Do mesmo modo Bazerman
(2005, p.27) afirma sua teoria ao evidenciar que ―os gêneros tipificam não só as formas textuais, mas também as
atividades sociais‖. O comentário é uma ação social, pois é utilizado pelas pessoas em ações de comunicação.
Esse gênero é comumente utilizado para designar o ato de ―dizer algo sobre‖, por exemplo, comentar sobre um
filme, uma conversa um jornal, e por muitas vezes, na nossa cultura oral ou escrita, esteve presente em jornais,
revistas e outros.

O presente trabalho está embasado, também, na abordagem de gênero defendida por Bakhtin (1992).
Para o autor sempre que falamos, utilizamos gêneros do discurso, ou seja, todos os enunciados que proferimos
são constituídos a partir de uma forma padrão de estruturação. Assim, os gêneros são definidos por Bakhtin
como ―tipos relativamente estáveis de enunciados‖, e que:
138

A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e


únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O
enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas,
não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção
operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais-, mas
também, e, sobretudo, por sua construção composicional (BAKHTIN, 1992, p. 279).

Correlacionando a teoria de gêneros de Bakhtin (1979) e a de atos de fala de Austin (1976) vemos que os
enunciados que a teoria de gêneros faz referência são de certo modo o que a teoria de Austin denomina de atos
performativos. Assim como os atos de fala os gêneros possuem ―formas‖, ou seja, padrões estabelecidos pelos
seus usuários para que de fato possam atender as nossas necessidades comunicativas. Nesse ínterim vemos que o
termo ―performativo‖ é similar à concepção de gênero como ação social, visto que, ambos defendem uma
concepção pragmática do uso da linguagem, ou seja, teorias que consideram o significado determinado pelo uso
e pelo contexto (em um sentido amplo) não sendo assim a linguagem uma mera descrição do real, mas sim como
um modo pelo qual agimos no mundo.

Vale ressaltar que os comentários utilizados como corpus de análise deste artigo podem ser considerados
como um gênero do jornalismo, visto que, os mesmos fazem referência a uma matéria do portal 180 graus. A
recorrência e a tipificação que dão genericidade aos comentários podem ser visualizadas na forma e no conteúdo,
ou seja, são postados pela data, são geralmente textos curtos, indicam o nome ou apelido do autor, e outras
características que competem ao ambiente no qual o mesmo foi criado.

Além das características acima elencadas, que podem ser pensadas como possíveis recorrências de forma,
conteúdo e ação retórica, os comentários trazem ações sociais que muitas vezes não fazem referência direta a
notícia que foi publicada no portal. Foi o que pude constatar observando alguns comentários.

5 ANÁLISE DO CORPUS

O corpus da pesquisa é constituído pela notícia veiculada no portal 180 graus no dia 12 de outubro de
2012 e pelos comentários retirados da rede social facebook sobre o fato: o fim do mundo em Teresina, noticiado
pelo portal. A notícia de base, referência para os comentários, foi a repercussão do fim do mundo em outro
município do Piauí, noticiada da seguinte forma:

Na cidade de Esperantina, as previsões do profeta Luiz Pereira, de Teresina, sobre que o fim do mundo
seria nesta sexta (12/10), também influenciaram os habitantes da cidade, a 174 Km da capital piauiense Os
139
esperantineses ficaram assustados, sobretudo, com uma série de acontecimentos que marcaram a cidade neste dia
12 de outubro (...).
O incêndio foi contido pelo povo da localidade, uma vez que lá não há bombeiro. Porém a polícia
chegou para averiguar o local e investigar as causas do incêndio. De acordo com o correspondente Clenilton
Gomes "com a noticia do fim do mundo na cidade de Esperantina, populares ficaram preocupados e muitos
desconfiados. Várias pessoas começaram a entrar em desespero com choro, preocupações com familiares
distantes e na tarde de hoje por volta das 15 horas iniciou um fogo em alguns pontos da cidade sem saber de
onde o que levou populares a acharem que era o fim do mundo. Graças a DEUS ninguém se feriu", afirmou o
correspondente.
Após momentos de tensão a cidade voltou à tranquilidade, à medida que tudo continuou como estava e
o mundo não terminou (PORTAL 180 GRAUS, 2012).
Podemos, conforme a Teoria dos atos de fala, caracterizar a notícia como um ato ilocucionário, ou seja,
o ato de fazer uma declaração, oferta, promessa, etc. Ao enunciar uma sentença, por exemplo, o título da notícia,
em virtude da força convencional associada a ela o locutor, no caso o jornalista, pretende dizer algo que pode
além de informar, provocar reações nos leitores da notícia.

Percebemos isso claramente pelo uso de palavras e expressões como: ―Após momentos de tensão‖; em
seguida a sequência narrativa feita pelo jornalista: ―Pela manhã, um cano estourou em frente à igreja e povo
pensou que na igreja estava vazando água e que esse seria um sinal do fim dos tempos. Já às 15h da tarde, ou
seja, faltando uma hora para o fim prometido pelo profeta, casas de palha pegaram fogo ao mesmo tempo, sem
explicação, próximo ao cais do rio que passa pela cidade. O incêndio foi contido pelo povo da localidade, uma
vez que lá não há bombeiro‖. Observamos que a intenção do jornalista além de divulgar e informar a população
é atrair os leitores por meio da riqueza de detalhes nas informações e de certo suspense na narrativa. ―As palavras
não apenas significam, mas fazem coisas‖ como afirma Austin (1976). Esses atos são feitos tão somente pelas
palavras em si, e a notícia por sua vez traz credibilidade o que provoca uma maior diversidade de reações em seus
leitores. Eventualmente como resultado de uma série de palavras ditas e pela pessoa apropriada, alguém será
obrigado a fazer alguma coisa diante do que foi dito [...] Bazerman (2005).

Observando os comentários feitos por internautas após a leitura da notícia, vemos imediatamente uma
resposta à notícia, uma reação dos comentadores. O modo como as pessoas recebem os atos e determinam as
consequências deste ato para o futuras interações é chamado por Austin (1976) de ato perlocucionário. Nos
comentários a seguir, observa-se a presença deste ato de fala.
140

Observa-se que, no primeiro comentário, há, inclusive, um juízo de valor do comentador ao mencionar a
palavra ―besteira‖ e ―affff‖ (expressão utilizada nas redes sociais para indicar desprezo), fazendo referência ao
assunto tratado na notícia. Nesse sentido o comentário do leitor não foi satisfatório e nem muito menos
cooperativo como o que o jornalista quis informar. Como resultado da ação realizada pelo comentador o ato de
fala do jornalista não obteve sucesso nesse caso. As intenções de realização deste ato são meramente
psicológicas, subjetivas. A crítica feita pelo comentário explicita o que defende Austin (1976) ―as intenções do
falante e as convenções sociais possuem diferentes graus de formalidade. A satisfação das condições de sucesso
do ato de fala são subjetivas, psicológicas e se originam de práticas sociais‖. Por consequência da expressão dos
sentimentos dos falantes temos a caracterização de um ato perlocucionário.

O comentário seguinte também é caracterizado como um ato de fala perlocucionário, visto que, ele
expressa os sentimentos e as reações do falante diante do fato abordado na notícia.

Vale observar que a força ilocucionária presente no recorte em análise traz aspectos comportamentais do
falante. Por meio de um ditado popular satiriza o ―profeta‖. O ato perlocucionário presente no comentário é
satisfatório, pois observamos o que defende Austin (1976, p. 14), para que um performativo seja feliz, ―é preciso
existir um procedimento convencionalmente aceito, que apresente um determinado efeito convencional e que
inclua o proferimento de certas palavras, por certas pessoas e em certas circunstâncias‖. No caso do comentário,
tudo isso está presente nas ―condições de felicidade‖ e, portanto, o performativo final se realize com sucesso, ou
seja, a crítica ao falso ―profeta‖.

Vemos no recorte que segue um comentário respondendo outro, ou seja, temos o ato de
comentar gerando outro comentário. Neste momento os dois tratam da mesma temática, porém
constituem atos de fala diferentes. O primeiro comentário feito pelo falante ―Jorge‖ é um ato
perlocucionário por originar-se da notícia, ou seja, é um a reação ao ato ilocucionário que é a notícia.
Logo após o segundo comentário que originar-se do primeiro, também pode ser considerado
perlocucionário ao demonstrar reação ao primeiro, como também transforma o comentário de Jorge
em um ato de fala ilocucionário por trazer informações para o falante.
141

Portanto, percebemos que a ilocução não remete a ação, consequência como os atos perlocucionários,
mas a um ―veículo‖ informacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

―A unidade mínima da comunicação humana é a realização dos atos de fala‖. Esta fala de Austin (1976)
deixa bem evidente o quanto proferimos atos para nos comunicar e o quanto as palavras possuem ―força‖.
Nossa observação do mundo não se dá somente por representação deste, mas sim pela ressignificação que se
efetua ao proferirmos nossos atos, pois é por meio deles que de fato utilizamos na língua. As análises realizadas
nos levaram a concluir que os atos de fala constituem nossa teia comunicativa e que cada um deles se renova a
cada evento comunicativo.

As palavras expressam sentimentos, emoções ou simplesmente transmitem informações, mas o que nos
cabe ressaltar é que a se investir de um ―papel‖ ela almeja, juntamente com seu falante, cumprir seu papel:
promover comunicação.

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143
LÍNGUAS CRUZADAS: ASPECTOS HISTÓRICOS E SOCIOLINGUÍSTICOS
DA LÍNGUA CHIQUITANO*

Áurea Cavalcante Santana**

Resumo: Neste artigo, apresento reflexões sobre aspectos históricos e sociolinguísticos vivenciados nas
comunidades Chiquitano de Acorizal, Central, Fazendinha e Vila Nova Barbecho, no município de Porto
Esperidião, MT. Estes indígenas, na atualidade, vivenciam contextos bilíngues e bidialetais nos quais convivem o
Chiquitano, o português, o espanhol e, possivelmente outras línguas indígenas de herança e/ou de contato.
Assim, sob a perspectiva de que a morte não é fim natural das línguas, demonstro como alguns anciãos
Chiquitano têm reavivado suas memórias, partilhando suas reminiscências linguísticas e exercitando os usos da
sua língua ancestral, a fim de transmiti-las aos mais jovens, possibilitando novos conhecimentos sobre a língua e
a cultura Chiquitano.

Palavras-chave: Língua Indígena; Língua Chiquitano; Contato entre Línguas.

Abstract: In this article, reflections are presented about the historical and sociolinguistic aspects experienced in
the Chiquitano de Acorizal, Central, Fazendinha and Vila Nova Barbecho communities, in Porto Esperidião
municipality, MT. These indigenous people nowadays, live with bilingual and bidialectal contexts in which the
Chiquitano, Portuguese, Spanish and possibly other inherited or by contact indigenous language coexist. Thus,
from the perspective that death is not the natural end of the languages, I demonstrate how some Chiquitano
elders, "language reminders" have revived their memories, sharing their linguistic reminiscences and practicing
their ancestral language uses in order to pass them on to the younger generation, enabling new knowledge about
the Chiquitano language and culture.

Keywords: Indigenous Language, Chiquitano Language; Contact between languages.

1. Introdução

Nos últimos 20 anos, os Chiquitano, segregados e silenciados pelos diversos processos de povoamento
das fronteiras geopolíticas, têm vivenciado o que Oliveira (2004) denomina ―viagem de volta‖, um processo de

* As discussões e as pesquisas apresentadas neste artigo fazem parte da Tese: ―Línguas Cruzadas, Histórias que se Mesclam:
ações de documentação, fortalecimento e revitalização da língua Chiquitano no Brasil‖ - (SANTANA, 2012).
** Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Goiás, UFG – Pesquisadora do Centro Cultural Ikuiapá – Funai –
MI RJ. E-mail: [email protected].
144
etnogênese. Processo este, segundo Rocha (2011, p. 63), caracterizado ―pela emergência social e política de
grupos tradicionalmente submetidos a relações de dominação‖. No caso dos Chiquitano, a etnogênese é
marcada, sobretudo, pela busca de caminhos favoráveis à ressignificação da coletividade étnica e à cidadania de
direito através do reconhecimento étnico e da demarcação de suas terras.

Atualmente, 04 comunidades Chiquitano Vila Nova Barbecho, Acorizal, Central e Fazendinha são
reconhecidas e atendidas pelas instituições públicas brasileiras. Tais comunidades estão localizadas próximas à
estrada de rodagem que liga a Rodovia BR 174 à cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade, no continnum
fronteiriço entre os Destacamentos Militares de Santa Rita e Fortuna, a cerca de 500 km de Cuiabá. Segundo a
Funasa (2009), 325 Chiquitano habitando essas comunidades. Nelas é que as situações linguísticas, aqui
comentadas, foram vivenciadas.

Em 2003, quando eu e Dunck-Cintra iniciamos as pesquisas linguísticas nas comunidades brasileiras de


Acorizal e Fazendinha, constatamos que somente 05 (cinco) pessoas, acima de 60 anos, ―se lembravam‖ da
língua materna ancestral, o Chiquitano. O fato de esses idosos morarem em aldeias diferentes, não nos permitiu
observar interações e interlocuções espontâneas nesta língua entre eles, situação esta que levou Dunck-Cintra
(2005) a declarar que há naquelas comunidades um tipo de bilinguismo, entre os anciãos, que ela denominou
―bilinguismo de memória‖.

Segundo Dunck-Cintra (2008), muitas foram as influências e interferências que contribuíram para o
silenciamento da voz e também dos usos da língua Chiquitano naquelas comunidades. Comportamentos como
estes podem, segundo Oliveira (2007), ser justificados pela soma das identificações e dos fragmentos de
identidade que os indivíduos tiveram de reprimir em si mesmos por serem indesejáveis ou pelas quais foram
forçados a se sentir diferentes. Neste sentido, o contexto histórico-social vivenciado pelos Chiquitano provocou
atitudes negativas em relação à sua cultura, numa condição em que procuraram esconder aquilo que os diferencia
dos ―não-indígenas‖, como o uso da língua étnica, por exemplo.

Muitos indígenas, a exemplo dos Chiquitano, viveram estes silêncios impostos e assumidos
quando tiveram de ―se esconder‖, silenciando sua voz e abandonando o uso de sua língua ancestral
para que pudessem ser aceitos no contexto social dominante. Segundo Couto (2009, p. 96-97), ―as
minorias que abrem mão da própria cultura por motivos econômicos o fazem forçosamente. Se lhes
tivesse sido dada a chance de escolher, provavelmente teriam optado por conservar a língua étnica‖.
Meliá (2010) menciona que as línguas se debilitam, entram em anemia e morrem através do silêncio,
seja do silêncio imposto, seja do silêncio assumido. Segundo ele, as causas e os motivos que levam ao
silêncio são diversos, mas que todos eles se encontram fora da língua. E Meliá (2010, p. 220) acrescenta:
―no hay ninguma lengua que por su estrutura está destinada a morir‖.
No caso dos Chiquitano brasileiros, esse silenciamento também demonstrou ser uma
capacidade de resistência. Neste sentido, as memórias subterrâneas prosseguiram seu trabalho de
persuasão da sobrevivência para, de maneira quase imperceptível, aflorar em momentos de crises,
145
voltando-se para o ―rompimento do silêncio‖. Muitos deles, especialmente os professores, têm se
esforçado para aprender e também ensinar a língua materna ancestral aos mais jovens, pois sabem da
importância deste aspecto cultural para o seu reconhecimento como grupo indígena. E os anciãos,
―lembradores da língua59‖, são os elementos cruciais nesse processo, ativando suas memórias
linguísticas e partilhando-as com seus descendentes.

2. Situação Sociolinguística

Sobre a língua Chiquitano, a bibliografia existente refere-se a ela como resultado do contato e/ou fusão
de outras várias línguas faladas pelos grupos que se incorporaram nas missões jesuíticas na Bolívia, no final do
século XVII. Alguns autores declaram que essa língua foi imposta pelos religiosos como língua franca, ou seja,
uma língua comum de comunicação, provavelmente, por pertencer a um grupo indígena mais numeroso dentre
os reunidos nos redutos missionários.

Com exceção dos pesquisadores Krüsi & Krüsi (1978), da Sociedade Internacional de Linguística, que
classificam a língua Chiquitano como pertencente ao Macro-Jê, outros estudiosos da língua Chiquitano na Bolívia
a classificam como isolada ou independente, ou seja, sem uma filiação definida. Mas estudos linguísticos
comparativos atuais têm levantado e corroborado novas hipóteses sobre a afiliação da língua Chiquitano ao
Tronco Macro-Jê (ADELAAR, 2008; RIBEIRO, 2011).

Os primeiros estudos linguísticos acadêmicos sobre a língua Chiquitano no Brasil foram iniciados em
2003, por mim e pela linguista Ema Marta Dunck-Cintra e resultaram em duas Dissertações de Mestrado e uma
Tese de Doutorado60. O que se conhece sobre a língua Chiquitano no Brasil, anterior a estas pesquisas
acadêmicas, são itens coletados por viajantes nos séculos XVIII e XIX, e uma pequena amostra de itens lexicais
comparados ao Chiquitano na Bolívia pela antropóloga Joana F. Silva (SILVA, 2001/2002).

Quanto à situação sociolinguística do Chiquitano no Brasil, as pesquisas realizadas revelaram que a


condição de vitalidade desta língua não é tão animadora, uma vez que ela, nas comunidades de Vila Nova
Barbecho, Acorizal, Central e Fazendinha, se encontra em acelerado processo de extinção. Se considerarmos que
apenas alguns idosos, cerca de 2% da população se lembram da língua Chiquitano, e que a maioria da população,
cerca de 80%, diz não sabê-la, conclui-se que há, pelo menos, quatro gerações que a língua Chiquitano, naquelas
comunidades, não é mais transmitida como língua materna entre pais e filhos. O português é a língua de uso
cotidiano nessas comunidades e, em alguns momentos de festividades e encontro com os parentes, o espanhol,

59 Denomino ―lembradores da língua‖ os anciãos Chiquitano que mantêm as lembranças da língua materna ancestral, o
Chiquitano, mas não a utilizam no seu cotidiano.
60 Dissertações: Vozes Silenciadas: Situação Sociolinguística dos Chiquitano do Brasil – Acorizal e Fazendinha – MT
(DUNCK-CINTRA, 2005) e Transnacionalidade Linguística: A Língua Chiquitano do Brasil (SANTANA, 2005); Tese:
Línguas Cruzadas, Histórias que se Mesclam: ações de documentação, fortalecimento e revitalização da língua Chiquitano no
Brasil (SANTANA, 2012), ambas do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás
(UFG).
146
ou ―castilha‖, como dizem, é a segunda língua utilizada. Uma língua nessa situação, segundo Geary (1997), é
considerada ―moribunda‖ e, para Couto (2009)61, ―agonizante‖, pois sobrevive apenas na memória de poucos
anciãos, ou seja, os últimos falantes já são idosos.

Apesar dessa existência tênue, Baker (2001) traz um alento, declarando que uma língua morre quando
morre seu último falante. Neste ponto de vista, considerando a existência daqueles poucos idosos Chiquitano
que mantêm suas lembranças linguísticas ancestrais, ainda se tem para aquela língua perspectivas de
sobrevivência. Couto (2009) afirma que uma língua ainda está viva quando existem pelo menos dois falantes.
Seguindo esta linha de raciocínio, Albó (2005) acrescenta que, uma língua, mesmo considerada perdida, pode ser,
em um nível simbólico, recuperada mediante a utilização de algumas palavras e frases, e que situações como estas
podem converter-se num importante instrumento reforçador da identidade de um povo.

3. Os Anciãos “lembr dores” e o contexto de viv mento d Língu

A interação e a convivência entre os anciãos ―lembradores da língua‖, professores e demais pessoas das
comunidades, têm se constituído não só de um grande aprendizado em momentos de estudo e contatos com
uma ―nova língua‖, mas de momentos sui generis na busca das memórias linguísticas e culturais do povo
Chiquitano. Para Le Goff (2003, p. 419), ―a memória, como propriedade de conservar certas informações,
remete-nos, em primeiro lugar, a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar
impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas‖. E Pimentel da Silva (2009, p. 111)
acrescenta: ―ensinar e aprender uma língua significa ativar a imensa gama de significados que já estão embutidos
nos sistemas culturais‖. Nesta perspectiva, os encontros com os anciãos Chiquitano são sempre permeados de
muita emoção para ambos e todos estão sempre dispostos, mesmo com algumas limitações, a colaborar e
ensinar.

O povo Chiquitano, exemplificando o que foi declarado por Couto (2009, p. 96-97), não deixou de falar
e de ensinar sua língua materna por livre e espontânea vontade. A língua étnica foi mantida no silêncio,
mascaradas em suas memórias ancestrais pelas influências de opressores diversos por mais de seis décadas. Para
Meliá (2010, p. 112), quando uma identidade se sente ameaçada é porque já se encontra ameaçada sua
possibilidade de reconhecer a si mesma, já há uma ruptura nesta relação.

Os silêncios, no caso dos Chiquitano, se fizeram na perspectiva de sobrevivência. Agora os anciãos


vivem o momento do retorno de sua voz e língua como estratégias de reconhecimento de sua identidade. Para
Pimentel da Silva (2010, p. 101): ―as línguas são sustentabilidade de uma memória histórica sem precedente‖. E
acrescenta (PIMENTEL DA SILVA, 2010, p. 95):

61 Para Couto (2009, p. 85), uma língua agonizante é a língua em situação em que não há mais crianças que a falam, e os
últimos falantes estão idosos.
147
As línguas estão a serviço das pessoas, de seus propósitos interativos reais, os mais
diversificados, conforme as realidades contextuais, conforme os eventos e os estados
em que os interlocutores se encontram. Daí que o que existe é a língua em uso,
concretizada em muitas formas de atividade, de ação, de atuação. É por isso que se
pode reconhecer a estreita relação entre língua e sociedade, entre língua e história,
entre língua e cultura, entre língua e saber. A sociedade, a história e a cultura se
constituem, entre outros fatores, pela ação da linguagem. A recíproca também é
verdadeira: a linguagem se constitui mediante a atuação das pessoas na sociedade.

E no contexto de avivamento da língua Chiquitano, algumas características peculiares62 da


língua como as diferenças entre a fala feminina e a fala masculina, os usos de itens lexicais ―adaptados‖
do português e do espanhol e outras variações observadas no processo de descrição dos aspectos
fonéticos e fonológicos da língua têm constituído em importantes instrumentos nas ações de
revitalização da língua Chiquitano, estimulando e elevando a autoestima dos novos aprendizes com a
percepção de que sua língua tem valor, tem elementos gramaticais importantes como qualquer outra
língua detentora de prestígio.

4. Línguas Cruzadas, o multilinguismo vivenciado pelos Chiquitano

Sabe-se que as línguas estão sujeitas não só à variação, mas também à mudança no modo como são
utilizadas pelos falantes (LABOV, 2008). Neste sentido, não permanecem as mesmas em seu domínio, pois estão
em constante movimento. Couto (2009) menciona que toda língua real, falada por populações reais, está sempre
em formação e transformação a fim de se adaptar às novas exigências comunicativas de ecologias linguísticas
diferentes. Assim, as línguas mudam para acompanhar as transformações sociais e culturais, os avanços
tecnológicos, os movimentos artísticos etc. Isso acontece o tempo todo e, antes de ser uma ameaça, é um sinal
de que estão vivas, e que se adaptam para continuar a existir.

Nesta perspectiva, compreende-se que a morte não é fim natural das línguas. O natural é que todas as
línguas ativas apresentem mudanças (DAY, 1985, citado por SOUZA, 2008), o que torna todos os contextos
linguísticos bilíngues, bidialetais e, sobretudo, múltiplos. Desta forma, retomar uma língua, aparentemente
adormecida como o Chiquitano, por exemplo, é trazê-la à tona a este movimento, é colocá-la em trajetória, em
seus diferentes estágios de uso.

E o espaço das lembranças da língua Chiquitano mantém essas particularidades múltiplas. Nele,
transitam o português, o espanhol, a língua Chiquitano e, possivelmente, outras línguas indígenas. ―As línguas
estão assim, meio cruzadas‖, como nos disse Micaela Surubi63, referindo-se ao multilinguismo vivenciado por

62 Denomino ―características peculiares‖ aquelas características da língua Chiquitano que não são encontradas na língua
portuguesa ou na língua espanhola, como as diferenças nas falas feminina e masculina, por exemplo.
63 Anciã Chiquitano, ―lembradora da língua‖.
148
eles. Essas línguas, ao conviverem nesse espaço específico, se modificam em virtude das relações particulares
entre si, em virtude da relação dos falantes uns com os outros e com suas próprias lembranças. São línguas que
se tocam, que se entrelaçam, que se cruzam nas lacunas das memórias.

Para Silva T. (2003, p. 229), ―os fatos descritos em uma análise podem não refletir o estágio atual de
desenvolvimento da variedade linguística estudada‖. No caso da língua Chiquitano, aqui mencionada, esta
premissa é coerente, considerando que lidamos com uma língua moribunda em que as lembranças dessa língua,
avivadas na memória dos anciãos, apresentam lacunas linguísticas, e até mesmo lapsos casuais, os quais refletem,
em uma perspectiva diacrônica, traços de uma língua possivelmente utilizada na infância e na juventude dessas
pessoas, já que, como mencionado anteriormente, há algumas gerações a língua Chiquitano não é mais utilizada
como interação naquelas comunidades.

Durante as entrevistas para a coleta de dados linguísticos, um número significativo de itens lexicais do
português e do espanhol, na sua maioria com adaptações (marcas linguísticas Chiquitano), era mencionado pelos
anciãos lembradores evidenciando o convívio multilíngue daquelas comunidades. Alguns exemplos desses itens
adaptados são demonstrados a seguir, no Quadro 01.

Quadro 01 – Demonstrativo de itens lexicais com adaptações para a língua Chiquitano

Português Castilha (espanhol)


Chiquitano64

 ángel

 arroz

 cama

 pueblo

 dois

 meu parente

 calle

Estes itens lexicais do Chiquitano, como se pode observar nos exemplos, são formas de outras línguas,
adaptadas fonologicamente para a língua Chiquitano pela inclusão das fricativas retroflexa desvozeada ,
alveolar desvozeada  e alveopalatal desvozeada  no final das palavras; pelo acréscimo do prefixo {-},

64 Versão fonológica.
149
indicando posse; pelo acréscimo da nasal alveolar vozeada  no início das palavras ‗arroz‘ e ‗ángel‘, a fim de
aproximá-las da estrutura silábica CV65, mais frequente da língua Chiquitano (SANTANA, 2012).

Em uma observação preliminar, essas situações de uso e de adaptação poderiam ser caracterizadas como
alternância de código (code switching), mistura de línguas (code mixing) ou, ainda, como empréstimo, considerando a
possibilidade de uma incorporação lexical mais ampla vinda do tempo em que esses anciãos utilizavam a língua
Chiquitano no cotidiano. No entanto, compreende-se que tais variações (alternância, mistura e empréstimo) são
fenômenos sociais e coletivos (CALVET, 2002; LABOV, 2008), assim, não seria conveniente adotá-las para
caracterizar os termos ―estrangeiros‖ e os ―adaptados‖ utilizados pelos anciãos Chiquitano, já que as
circunstâncias de uso da língua, na atualidade, estão efetivamente no espaço da memória, fugindo ao caráter
social e de interação coletiva.

Em uma circunstância de coleta de dados, por exemplo, o termo ‗maani‘ foi mencionado por uma anciã
para amendoim. Algum tempo depois, a mesma anciã, em um momento de elicitação, mencionou que o termo
‗maani‘ é castilha/espanhol, e que o ―nome certinho‖ para amendoim em Chiquitano é . O que se
percebe, pelo exemplo dado, é que, em situações de entrevistas para coleta ou elicitação de dados linguísticos,
nem tudo o que se solicita aos anciãos ―lembradores da língua‖ está em prontidão em suas memórias; quando
lhes falta a informação imediata, eles tendem a preencher essa lacuna com o que lhe é mais familiar e confortável
no seu repertório linguístico, seja em português, seja em espanhol ou em Chiquitano.

Fatos como estes demonstram que a substituição de uma língua por outra não caracteriza simplesmente
uma mudança, uma modificação no uso. Uma língua tradicional não desaparece de forma abrupta, acidental. Ao
contrário, antes de desaparecer tinge a nova língua, deixando nela manchas linguísticas (elementos fônicos,
morfológicos, sintáticos, léxicos etc.). Assim como fazem os lembradores Chiquitano quando falam em
português ou em espanhol, eles transportam de suas memórias linguísticas marcas peculiares de sua língua
tradicional, como a ênfase na fricativa retroflexa desvozeada , por exemplo.

Em um trabalho com as narrativas dos sobreviventes Xetá, Silva C. (2003) relata que um de
seus narradores contou-lhe que sonhava estar conversando e interagindo na sua língua materna
ancestral, a qual não era utilizada no seu cotidiano. Isto nos faz perceber, segundo a autora (SILVA C.,
2003, p. 153), que as ―memórias individuais não são inteiramente isoladas e fechadas, uma vez que elas
trazem coladas em si a memória coletiva‖. Contextualizando a relação com os lembradores Chiquitano,
entende-se que esses permanecem avivando suas lembranças, exercitando suas memórias linguísticas
individuais e coletivas a fim de transmiti-las aos mais jovens, estabelecendo novas funções para a língua
Chiquitano que vive nesse momento um novo contexto linguístico.

5. Considerações

65 Conferir detalhes sobre esta discussão em Santana (2012), Capítulos III e IV.
150

Pelas reflexões sobre os aspectos históricos e sociolinguísticos da língua Chiquitano, apresentadas aqui,
percebeu-se que apesar de a língua Chiquitano se encontrar em acelerado processo de extinção, os anciãos,
denominados ―lembradores da língua‖, têm avivado suas memórias linguísticas, motivando os indivíduos para
aprendê-la, impulsionando ações de valorização e revitalização linguísticas.

Evidentemente, muitos aspectos da língua Chiquitano já se perderam, sobretudo aqueles dos domínios
mais especializados, posto que, hoje, está restrita à memória de quatro ou cinco idosos. No entanto, o
envolvimento e o esforço da comunidade no avivamento da sua língua materna ancestral, indicam que e a língua
Chiquitano, mesmo moribunda, apresenta traços de resistência e mutação, sugerindo um sopro de vida, uma
perspectiva de sobrevivência.

E para os Chiquitano, neste momento, o retorno da voz e a presença da língua materna ancestral surgem
como estratégias de reconhecimento da identidade étnica. Eles acreditam que a retomada, o aprendizado da
língua Chiquitano lhes dará credibilidade, reforçando ―as provas‖ de que são indígenas, reforçando a luta pelo
reconhecimento étnico e pelo direito de permanecer em seu território tradicional.

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153

DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E O ESPAÇO ENUNCIATIVO DO


RECONTO DE HISTÓRIAS

Camila Amaral Silva66


Prof. Dr. Milton do Nascimento (Orientador) 67
Prof. Dr. Marco Antônio Oliveira (Coorientador)68

Resumo: A presente comunicação baseia-se no projeto de pesquisa de mestrado que objetiva analisar como indivíduos com
deficiência intelectual realizam a articulação e ordenação de eventos no tempo ao recontarem uma história. Tal análise será
guiada pela hipótese de que só somos capazes de dar sentido ao mundo no qual vivemos a partir do momento que nosso
sistema cognitivo reconhece e parciona um contínuo em sequências de experiências, isto é, em eventos. Além de reconhecer
e parcionar eventos, nossa mente os integra e os ordena no tempo. Podemos entender tal ordenação e integração de eventos
no tempo como uma narrativa. Desta forma, a significação não existe fora do contexto narrativo. Portanto, pressupõe-se
que, mesmo na deficiência intelectual - independente de seu grau de severidade - o indivíduo é capaz de articular eventos.
Isto porque a recursão é essencial ao funcionamento da mente humana e nem mesmo a mais severa deficiência intelectual é
capaz de afetá-la. Entretanto, podemos hipotetizar que, em decorrência da deficiência intelectual, algumas operações
centrífugas - tais como contraposição, inserção de personagem, espacialização de eventos - podem se atualizar
diferentemente no espaço enunciativo. A fim de testar tal hipótese, desenvolveremos atividades de contação de histórias e
exibição de filmes para crianças - entre 8 e 12 anos - diagnosticadas com deficiência intelectual leve e moderada. Tais
atividades visam elicitar o reconto oral das histórias apresentadas e, em outros momentos, a composição de narrativas orais
pelas crianças. A presente comunicação visa discutir a hipótese que guia tal pesquisa e a forma de testá-la. Assim,
apresentaremos as bases teóricas para formulação de tal hipótese, bem como os critérios para escolha dos informantes e
para a delimitação da variável deficiência intelectual. Por último, exporemos o processo para desenvolvimento das atividades
e sua metodologia de aplicação.
Palavras-chaves: narrativa; recursão; deficiência intelectual

Abstract: This notice is based on a research project that aims to analyze masters as individuals with intellectual disabilities to
perform articulation and ordering of events in time to recount a story. Such analysis will be guided by the hypothesis that
only we are able to make sense of the world in which we live from the moment that our cognitive system recognizes and
parciona in a continuous sequence of experiences, ie in events. In addition to recognizing and parcionar events, our mind
integrates and ranks them in time. We can understand such ordination and integration of events over time as a narrative.
Thus, there is no meaning outside the context narrative. Therefore, it is assumed that even in intellectual disabilities -
regardless of its severity - the individual is able to articulate events. This is because the recursion is essential to the
functioning of the human mind and not even the most severe intellectual disabilities can affect it. However, we can
hypothesize that, due to intellectual disabilities, some centrifuges operations - such as contrast, insertion of character,
spatialization event - can update itself differently in space enunciation. To test this hypothesis, we will develop activities of
storytelling and film for children - between 8 and 12 years old - diagnosed with mild and moderate intellectual disabilities.
These activities aim to elicit the oral retelling of the stories presented and, at other times, the composition of oral narratives
by children. This Communication aims to discuss the hypothesis that guides this research and how to test it. Thus, we
present the theoretical bases for the formulation of this hypothesis as well as the criteria for selection of informants and to
delimit the variable intellectual disability. Finally, expose the process for development of activities and their application
methodology.

66
Mestranda em Linguística e Língua Portuguesa no programa de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais – PUC-MG. Bolsista Capes – Tipo I. Lagoa Santa – MG – Brasil. E-mail: [email protected]
67 Professor do Programa de Pós Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

E-mail: [email protected]
68 Professor do Programa de Pós Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

E-mail: [email protected]
154
Keywords: narrative; recursion; intellectual disabilities

1 Introdução

A presente comunicação baseia-se no projeto de pesquisa de mestrado que objetiva analisar como
indivíduos com deficiência intelectual realizam a articulação e ordenação de eventos no tempo ao recontarem
uma história. Com esta análise, objetiva-se responder a seguinte pergunta: a operação de articulação e ordenação
de eventos no tempo realizada por indivíduos com deficiência intelectual leve e moderada, ao recontarem uma
história, é afetada por tal deficiência e se manifesta no espaço enunciativo?

A hipótese que guia esta pesquisa baseia-se na afirmativa que só somos capazes de dar sentido ao mundo
que vivemos a partir do momento que nosso sistema cognitivo reconhece e parciona um contínuo em sequências
de experiências, isto é, em eventos (unidades mínimas de sentido). Além de reconhecer e parcionar eventos,
nossa mente integra e ordena estes eventos no tempo. Podemos entender tal ordenação e integração de eventos
no tempo como uma narrativa. Portanto, a significação não existe fora de um contexto narrativo. Portanto,
pressupõe-se que, mesmo na deficiência intelectual (independentemente do nível de gravidade - se leve,
moderado, grave, profundo ou de gravidade não especificada) o indivíduo é capaz de realizar esta operação de
eventivar e articular estes eventos, ordenando-os no tempo, pois estes indivíduos são capazes de realizar a
operação centrípeta de recursão - comum a toda mente humana. Entretanto, podemos hipotetizar que operações
centrífugas - tais como contraposição, inserção de personagem, valoração, predição - que figuram no reconto de
uma história, podem se atualizar diferentemente no espaço enunciativo em decorrência da deficiência intelectual
do indivíduo.

2 Bases teóricas

"A capacidade de encaixar recursivamente estruturas dentro de estruturas dotou nossa espécie de uma
capacidade de criar sentenças para exprimir um conjunto ilimitado de possíveis significados.‖ (CORBALLIS,
2011:20). Esta capacidade sobre a qual Corballis fala e a qual torna o ser humano uma espécie diferenciada das
demais é a recursão. Segundo o autor, a recursão é um princípio organizador próprio da mente humana como
um todo e, portanto, não se aplica somente à linguagem. Pelo contrário, é a recursão que possibilita operações de
memorização, de entendimento e inferência do que está nas mentes das outras pessoas. Inferir o que o outro está
pensando, como também inferir que ele infere o que eu estou pensando é um processo recursivo. E é preciso
dizer que este processo depende de experiência compartilhada, de situações comuns e do entendimento de que
as outras mentes são semelhantes à nossa. (CORBALLIS, 2011: 129).

Dizer que a mente é recursiva equivale a dizer que a mente é narrativa. Falar de narratividade é
semelhante a falar de recursão. Assim como Corballis define a recursão como a capacidade de encaixar estruturas
155
- uma dentro da outra - para que um todo faça sentido, Turner nos mostra, em sua importante obra The Literary
mind (1995), que a história é a base principal da mente, pois ―a maioria de nossas experiências, nosso
conhecimento e nosso pensamento é organizado em histórias. O escopo mental da história é aumentado por
projeção - uma história ajuda a fazermos sentido da outra.‖ (TURNER, 1996: V).

Esta é a base teórica sobre a qual fundamentamos a nossa hipótese que a recursão é um princípio
centrípeto – comum a toda e qualquer mente humana – mesmo àquelas afetadas por um déficit intelectual.

A operação narrativa é essencial e indispensável para que o ser humano projete uma história sobre a
outra e faça a vida ter sentido. Entretanto, a maneira como esta capacidade de raciocínio narrativo se manifesta
na linguagem pode se atualizar no espaço enunciativo de diversas formas. A intenção da presente comunicação é
analisar a manifestação linguística desta capacidade de raciocínio narrativo na linguagem de uma criança
diagnosticada com deficiência intelectual. Tal análise busca nos levar a uma reflexão a respeito de nossa própria
concepção do que é essencial e indispensável para uma ―boa narrativa‖.

3 Objetivos e expectativas com a realização desta pesquisa

Espera-se, com o desenvolvimento desta pesquisa, evidenciar que todo indivíduo, independente de uma
deficiência intelectual, é capaz de eventivar. E isto só acontece quando palavras, coisas, objetos são integrados
em contextos narrativos. Isto é: palavras, sentenças só são identificadas como enunciados - unidades mínimas de
sentido - se o indivíduo se projetar em uma enunciação. Se, ao cabo desta pesquisa, conseguirmos demonstrar,
por intermédio das experienciações propostas, que as narrativas orais – que, em muitos contextos, são
consideradas desconexas, pobres, confusas, sem sentido - de crianças com deficiência intelectual de nível leve e
moderado são frutos de uma mesma operação realizada por indivíduos que possuem capacidade intelectual
plena, será possível verificar, por intermédio da análise destas emergências, o que é essencial e indispensável na
capacidade narrativa da mente humana. Para que esta expectativa inicial seja satisfeita, é essencial planejar as
experienciações pautadas nos seguintes objetivos:

 Identificar como indivíduos com deficiência intelectual leve e moderada realizam as operações de
reconhecimento, parcionamento e articulação de eventos no tempo, ao recontarem uma história.
 Descrever operações centrífugas - tais como contraposição, inserção de personagem, espacialização de
eventos - realizadas por indivíduos com deficiência intelectual leve e moderada, as quais figuram no reconto de
uma história.
 Explicar os affordances que indivíduos com deficiência intelectual leve e moderada realizam em tais
operações centrífugas - de contraposição, inserção de personagem, valoração, predição - ao recontarem uma
história.
156
4 Critérios para seleção dos informantes

Numa população de 120 indivíduos entre 8 e 50 anos que demandam de atendimento escolar
especializado, acompanhamento terapêutico e clínico, inseridos na APAE - Associação dos Pais e Amigos dos
Excepcionais - Lagoa Santa – MG a qual funciona como escola, clínica e assistência social, a pesquisadora
observou e interagiu com 60 destes sujeitos durante, aproximadamente, 30 dias. Este primeiro recorte de 60 em
120 foi realizado tendo como critério a questão operacional: isto é, seria necessário um período de tempo muito
extenso para convívio e observação de toda a população e, por este motivo, optou-se pela observação de apenas
a metade da população total.
É importante deixar claro que a pesquisadora, em um primeiro momento, não se ateve em conhecer a
anamnese realizada por equipe multidisciplinar sobre cada indivíduo, bem como seu prontuário médico. A
primeira preocupação da pesquisadora foi conviver com o indivíduo. Esta atitude foi tomada em virtude do
desejo de dar a esta pesquisa um enfoque fenomenológico.
Durante aproximadamente 30 dias, a pesquisadora participou de todas as atividades realizadas com os 60
indivíduos dentro da instituição: atividades pedagógicas de ensino em sala de aula, momentos de recreação
(brincadeiras em grupo e educação física) e intervenções terapêuticas (atendimento do terapeuta ocupacional, do
psicólogo e do fonoaudiólogo).
Em diversos momentos a pesquisadora contou histórias e exibiu vídeos para grupos e para indivíduos
isoladamente e permitiu ali um contexto de interação no qual os sujeitos se expressavam com relação às histórias
contadas, bem como em relação àquela experiência. Em todos os momentos de interação da pesquisadora com
os indivíduos foram observados aspectos comportamentais o que possibilitou um segundo recorte que resultou
na seguinte amostra:

Um grupo de 15 (quinze) crianças, na faixa etária de 8 a 15 anos, que fazem parte de duas turmas
escolares em período de alfabetização – cujos níveis de alfabetização variam entre pré-silábico, silábico não
alfabético e silábico alfabético. Tal grupo demanda de atendimento escolar especializado por apresentar atraso no
desenvolvimento global e na aprendizagem em relação à seriação da escola regular.
Do grupo selecionado, 80% das 15 crianças são consideradas portadoras de deficiência intelectual de
acordo com anamnese realizada por equipe multidisciplinar da instituição – a qual conta com neurologista,
psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, pedagogo e fonoaudiólogo – e testes e escalas
aplicadas por clínica especializada. Os níveis de deficiência intelectual leve e moderado são os mais recorrentes
neste grupo. Os outros 20% do grupo não são diagnosticados como portadores de deficiência intelectual.
Entretanto, apresentam atraso na aprendizagem em relação à seriação da escola regular e são diagnosticados, na
sua maioria, como portadores de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade). Nenhuma das
crianças apresenta deficiências múltiplas (cequeira, surdez, mudez parcial ou total) e apenas uma das 15 crianças
apresenta comprometimento locomotor (Tetraplegia).
157
Do grupo de 15 crianças, ainda faremos um quarto recorte que irá gerar nossa amostra final de,
provavelmente, três informantes. Tal recorte será realizado tendo como critérios principais:
 Presença de deficiência intelectual de leve a moderada;
 Ausência de traços constantes de agressividade;
 Relativa facilidade de expressão verbal - isto é, sem grande comprometimento do OFA‘s (Órgãos
Fonoarticulatórios), mesmo que apresentem algumas dificuldades de dicção;
 Relativa responsividade verbal;
 Semelhanças nos históricos de vida familiar, social, escolar, clínica e psicológica.
As observações das experienciações de contação de história realizadas com grupo de 4 a 8
crianças, com duplas e individualmente também serão de grande relevância para escolha da amostra
final.
As primeiras experienciações realizadas nos apontam para uma criança que apresenta potencial
para compor este grupo. No tópico a seguir mostraremos uma das experienciações realizadas com este
possível informante.

5 Experienciação

Na sala de atendimento da psicóloga estavam presentes pesquisadora e psicóloga. Recebemos o


informante, de 10 anos, sexo masculino, diagnosticado com deficiência intelectual leve provocada Hipóxia
neonatal. Numa conversa inicial com a criança, a pesquisadora falou de forma descontraída que aquele seria um
momento para fazer algo que ele gostava: assistir desenho. A criança sorriu aprovando a proposta. Na sequência,
em notebook tela 11‘6 polegas, a pesquisadora exibiu a imagem de um tubarão real (disponível em:
http://www.achetudoeregiao.com.br/animais/tubarao_branco.htm) e perguntou se a criança sabia que animal
era aquele e a criança respondeu que era um tubarão. Em seguida, a pesquisadora, utilizando o mesmo notebook
11‘6 polegadas, mostrou a imagem do Tubarão Leny, personagem da animação ―O espanta tubarões‖ para a
criança conversou sobre as diferenças e semelhanças entre o animal real e o personagem do filme. Deixamos que
a própria criança refletisse sobre estas questões. Durante o diálogo, a pesquisadora falou com a criança que iriam
assistir uma cena de um desenho que tem um tubarão e que a criança deveria, após assistir a cena, contar o que
aconteceu na cena, isto é: quem estava na cena; onde os personagens estavam; o que eles fizeram e como
terminou a história. No mesmo notebook tela 11‘6 polegadas, exibimos cena da animação ―O espanta tubarões‖,
totalmente sem áudio, disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=8B7ho_43EIg .

Atenção: ao acessar o link, é necessário desabilitar o áudio de seu computador para assistir à cena da mesma
maneira que foi apresentada na experienciação.

Transcrição do diálogo após exibição de cena TOTALMENTE SEM ÁUDIO - “O Esp nt tub rões”
158
Pe: me conta Inf.1, o que aconteceu no desenho?/Inf: (1º evento) o bicho caiu no chão./Pe: e antes?/Inf: (2º evento)
ele sarou./ Ps: sarou?/Inf: (2º evento) furou ele na água/Pe:ah, você está dizendo que ele tava furado, pendurado no
anzol, né?/Inf: um rum (sinaliza com a cabeça que ‗sim‘)/ Ps: e o que a gente põe no anzol pra pescar?/Inf: minhoca
pequena/Pe: hum, então esse bichinho que você tá falando que estava no anzol é uma minhoca né, Inf.1?/Inf: um rum
(sinaliza com a cabeça que ‗sim‘)/ Pe: e o que que essa minhoca do filme fez?/Inf: (1º evento)estatelou no chão/Pe: e
depois? /Inf: (3º evento) o pequeno e o grande/ Pe: como assim Inf.1, me explica?/Inf: (3º evento) fincou a cabeça
dele assim (faz um sinal cruzando os seus braços em posição de um cesto e colocou sua testa a mesa)/Pe: e como
acabou a história?/<silêncio> Ps: e como acaba a história, Inf.1? /Inf: (3º evento) o pequeno e o grande. Fincou a
cabeça assim (repete gesto anterior).

Siglas utilizadas: Pe: pesquisadora/Ps: psicóloga/Inf: informante

Após este diálogo, a pesquisadora disse para a criança que iriam assistir à mesma cena, porém agora
haveria uma moça contando a história. Assim pediu-se para que a criança prestasse atenção na imagem e na
moça falando a fim de perceber se a narradora estava falando a mesma coisa que a criança havia percebido. A
pesquisadora explicou para a criança que a moça poderia estar falando de forma diferente, a mesma coisa que a
criança percebeu anteriormente.

Transcrição do diálogo após exibição de cena COM AUDIODESCRIÇÃO – “O Esp nt tub rões”

Inf: (1º evento) minhoca!*/Pe: então Inf.1, o que aconteceu na cena?/ Inf: (2º evento) pôs a cabeça ali e ali (imitando o
movimento da minhoca com a cabeça)/Inf: (3º evento)o tubarão, o tubarão quase engoliu a minhoca/Pe:e o que
aconteceu depois que o tubarão quase engoliu a minhoca?/C: (4º evento) a minhoca caiu no chão/ Pe:e depois disso, o
que aconteceu?/Inf: (4º evento) a minhoca caiu/Pe:e qual foi a última coisa que aconteceu/Inf: (4º evento) a minhoca
caída no chão.

Obs.: *fala da criança durante a cena, no primeiro momento da cena, quando a narradora diz que aquele bichinho rosa é
uma minhoca.

Siglas utilizadas: Pe: pesquisadora/Ps: psicóloga/Inf: informante

6 Análise da experienciação d cen “O esp nt tub rões”

Por questão de limitação de espaço, na análise da experienciação apresentada, vamos nos ater a somente
o primeiro objetivo do projeto: identificar como indivíduos com deficiência intelectual leve e moderada realizam
as operações de reconhecimento, parcionamento e articulação de eventos no tempo, ao recontarem uma história.
Porém, é mister, neste momento, apresentar o conceito de evento o qual adotamos para este trabalho e, somente
depois expor a análise da experienciação.

Com base na leitura de Talmy (2005), entendemos que uma operação básica presente em toda mente
humana é a operação de eventivação. Em nossa concepção, eventivar é identificar e parcionar um todo
conceitual em unidades mínimas de sentido. O trabalho de perceber ou conceber um continuum pode ser realizado
159
ampliando o limite no entorno de uma porção. Isto é, projetamos porção sobre outra porção para que o
continuum faça sentido. Os limites de uma porção são ampliados de tal maneira que a porção torna-se uma
entidade unitária única (um continuum). Ambas as operações - parcionamento de um continuum em porções e
projeção de porção sobre porção para fazer um continuum - não são operações realizadas linearmente. Isto é, não
há prevalência de uma operação sobre a outra e ambas as operações resultam em uma entidade unitária que faça
sentido. Entre várias alternativas, uma categoria tal como uma entidade é percebida ou conceitualizada como um
evento.69

Ao assistir a cena totalmente sem áudio, a criança não relaciona os personagens da animação com os
animais representados - minhoca e tubarão. Essa não identificação dos animais é perfeitamente

previsível, uma vez que os personagens não apresentam semelhanças físicas fidedignas aos animais reais. Pelo
contrário, os personagens apresentam traços físicos e comportamentais humanizados, como por exemplo: os
olhos da minhoca, seu movimento de cabeça e olhar assustado, a postura ereta e verticalizada do tubarão, o
movimento de sua boca durante a fala.

A criança parciona a cena em três eventos e os relata na seguinte ordem: bicho cai, bicho está em seu
estado normal, bicho pequeno e bicho grande aparecem juntos. Ao começar relatar a cena pelo momento que o
bicho cai, a criança não define, em nenhum instante de sua fala, se aquele ato de cair ocorreu porque o bicho
morreu, desmaiou, dormiu ou qualquer outra situação que o fato de estar deitado possa denotar. A criança
identifica este evento de duas formas diferentes: ―o bicho caiu no chão‖ e ―estatelou no chão‖. Ao ser
perguntada sobre o que aconteceu antes do bicho cair, a criança responde: ―ele sarou‖. Com esta resposta,
podemos encontrar indícios da articulação do evento 1 com o evento 2. Nesta articulação, os dois eventos
identificados pela criança fazem sentido como um todo. Isto é: o bicho estava bem, são, como deve ser toda
minhoca naquela situação em que está pendurada em um anzol e algo de inesperado aconteceu e a fez cair. Mas
em que momento, na fala da criança, há indicação que o fato da minhoca ter caído decorreu de um incidente
inesperado? Digo que a própria resposta da criança - antes da minhoca cair ela sarou - indica que a minhoca
estava em condições plenas e o ato de cair indica que algo errado aconteceu. A expressão ―ele sarou‖ só tem
significado se articulada ao evento 1 – ―o bicho caiu‖/ ―estatelou no chão‖. Fora deste continuum formado pela
articulação dos eventos, a expressão ―ele sarou‖ não faria sentido.

69 Toda a formulação deste parágrafo baseia-se no texto original: ―Conceptualization of an Event – By the operation of very
general cognitive processes that can be termed conceptual partitioning and the ascription of entityhood, the human mind in
perception or conception can extend a boundary around a portion of what would otherwise be a continuum, whether of
space, time, or other qualitative domain, and ascribe to the excerpted contents within the boundary the property of being a
single unit entity. Among various alternative, one category of such an entity is perceived or conceptualized as an event.‖
(TALMY, 2005:215)
160
O terceiro e último evento parcionado pela criança diz respeito ao momento no qual a minhoca e o
tubarão aparecem juntos. Ao ser indagada de como a cena termina, a criança responde por duas vezes: ―o
pequeno e o grande‖ e ainda completa por duas vezes: ―fincou a cabeça dele assim‖, fala esta acompanhada da
expressão corporal de cruzar os braços em posição de um cesto e colocar sua testa sobre a mesa à sua frente, o
que parece a tentativa de relatar visualmente a cena na qual o tubarão carrega da minhoca nos braços. Para a
criança, a cena termina com este contraste entre o pequeno e o grande, a força e a fragilidade. Vale destacar que a
criança, em momento algum, relata a intenção de domínio do tubarão sobre a minhoca. No entanto, no
parcionamento e articulação dos eventos, podemos conotar esta interpretação.

No segundo momento da experienciação, apresentamos a mesma cena da animação ―O espanta


tubarões‖, porém desta vez com audiodescrição. Durante a exibição da cena, a primeira manifestação da criança
foi reconhecer aquele bichinho rosa como uma minhoca. Durante todo reconto, a criança identifica os
personagens como minhoca e tubarão, pois ele escutou a narradora da história os chamar desta forma. Desta vez,
a criança parciona a cena em quatro eventos e os relata na seguinte ordem: identificação do bichinho rosa como
uma minhoca, movimento da minhoca, tubarão tenta comer minhoca, minhoca cai. Neste segundo momento da
experienciação, percebo que a criança procura recontar a história de forma muito mais descritiva e com isto
perde um pouco da espontaneidade demonstrada no primeiro reconto da cena sem áudio. Por exemplo, em seu
primeiro reconto, a criança relata sua percepção sobre a contraposição de eventos: contrapõe o tamanho dos
personagens – ―o pequeno e o grande‖ e faz inferências do tipo ―antes do bicho cair, ele estava bem‖. Por outro
lado, ao recontar a cena com audiodescrição, a criança identifica ou parciona eventos não verbalizados no
primeiro reconto, como por exemplo: a identificação do bicho rosa como uma minhoca (1º evento); o
movimento da cabeça da minhoca olhando de um lado para o outro (2º evento); a tentativa do tubarão de engolir
a minhoca (3º evento). No entanto, neste reconto a criança não cita a última cena que contrasta o pequeno e o
grande e sim finaliza o reconto com o relato da minhoca caída no chão (4º evento). Em nenhum dos dois
recontos, a criança verbalizou que a minhoca caiu (desmaiou ou morreu) por ter se assustado com o tubarão.

Ao analisar esta experienciação, percebo que eventos podem ser parcionados e não verbalizados e
mesmo em tal situação, o reconto verbalizado faz um todo significativo. É possível perceber, por meio de outros
indícios linguísticos, que aquele evento não verbalizado foi percebido e por isto o reconto como um todo faz
sentido. Isto significa que até as nossas omissões no momento de verbalizar o reconhecimento e parcionamento
de um evento é uma estrutura que se encaixa em outra estrutura e cria um continuum. As omissões nos recontos
da criança também demonstram um processo recursivo. Este processo só acontece porque a criança infere o que
eu estou pensando, como também infere que eu inferi o que ele está pensando e que aquilo não precisa ser dito.

Ao analisar o reconto oral desta criança diagnosticada com uma falta intelectual vejo que aquilo que para
alguns pode parecer desajustado nestas falas, é combustível para minha hipótese de que a nossa noção de uma
―boa narrativa‖ precisa urgentemente ser repensada.
161
REFERÊNCIAS:

CORBALLIS, Michael C. The Recursive Mind - The origins of Human Language, Thought, and Civilization.
Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2011.

SAUDE, Organização Mundial da. CIF - Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde.
Direção-Geral da Saúde, 2003.

SAUDE, Organização Mundial da. CID-10 – Classificação Internacional das Doenças. Disponível em:
http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=040203. Acesso em 20/01/2013.

TALMY, Leonard. Toward a Cognitive Semantics. Vol. II: Typology and Process in Concept Structuring.
Cambridge, MA: MIT Press, Paperback edition, 2000b.

TURNER, Mark. The Literaty mind. New York: Oxford University Press, 1996

Sites consultados:

Acesso em 07/02/2013: http://www.youtube.com/watch?v=8B7ho_43EIg

Acesso em 07/02/2013: http://www.achetudoeregiao.com.br/animais/tubarao_branco.htm


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ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: QUESTÕES DE GRAMÁTICA NO


LIVRO DIDÁTICO
Célia Maria Medeiros BARBOSA DA SILVA70

Resumo: Este estudo visa, de uma maneira geral, analisar a abordagem dada às questões de gramática
no livro didático. Especificamente, verificaremos como são tratadas as questões de língua, como
concordância verbal e categorização gramatical do sujeito, e se o tratamento dado a essas questões
tende a se aproximar ou a se distanciar do que é proposto nos PCN para o ensino médio. Assim, para
um melhor entendimento desse estudo, iniciamos o artigo abordando um pouco sobre o ensino de
língua portuguesa. Em seguida, discorremos acerca do texto como unidade de ensino para, por fim,
analisarmos como são tratadas as questões de gramática no livro didático adotado em uma escola
pública de ensino médio da cidade de Natal/RN.

Palavras-chave: Ensino de português; PCNEM; Gramática; Livro didático.

Keywords: This study intends in an overall manner analyze the data approach about grammar in
textbooks. It will be specifically verified how language questions as verbal agreement and grammar

70 Professora e pesquisadora dos cursos de Letras e de Direito da Universidade Potiguar – UnP. E-mail:
[email protected]; [email protected].
184
categorization of the noun and if the treatment for its issues get closer or distant to what its proposed
in PCN at high schools. This way to improve this study initially the article shows some approach about
the Portuguese language teaching, followed by the study of the text as a teaching tool and in the end is
analyzed grammar questions inside the text book adopted by a public high school in Natal/RN.

Keywords: Teaching Portuguese; PCNEM; Grammar; Textbooks.

1 Introdução

O ensino de língua portuguesa, apesar de alguns avanços decorrentes de estudos na área e de


políticas públicas para o seu incremento, ainda tende a se fundamentar numa metodologia direcionada,
em grande parte, para os estudos gramaticais. Os atuais documentos nacionais balizadores para o
ensino de português – os PCN – enfatizam a ideia de que a prática docente procure trabalhar as
questões linguísticas, portanto a gramática, objetivando atender aos propósitos pragmáticos e
comunicativos de maior relevância para o aluno.
Tais documentos sugerem que a unidade de ensino seja o texto e que este seja o ponto de
partida e de chegada para o trabalho com a gramática. Um ponto importante nesse assunto é saber se
no livro didático esses encaminhamentos são considerados, uma vez que este se constitui hoje principal
referência em sala de aula. Assim, por reconhecer a pertinência do tema, este estudo visa, de uma
maneira geral, analisar a abordagem dada às questões de gramática no livro didático. Especificamente,
verificaremos como são tratadas as questões de língua, como concordância verbal e categorização
gramatical do sujeito, e se o tratamento dado a essas questões tende a se aproximar ou a se distanciar do
que é proposto nos PCN para esse nível de ensino.
Situado no âmbito da Linguística Aplicada, este estudo é conduzido numa perspectiva
qualitativa e interpretativista, seguindo-se aportes da Linguística Funcional, da Linguística de Texto, do
Sociointeracionismo e da Didática de Língua Materna. Assim, para um melhor entendimento do que
aqui será discutido, iniciamos o artigo abordando um pouco sobre o ensino de língua portuguesa, em
particular o que os documentos oficiais dizem sobre o ensino de português nesta última etapa da
educação básica: o ensino médio. Em seguida, discorremos acerca do texto como unidade de ensino
para, por fim, analisarmos como são tratadas as questões de gramática no livro didático adotado em
uma escola pública de ensino médio da cidade de Natal/RN. Faz-se importante registrar que o corpus,
para essa análise, é constituído pelos capítulos 4 e 6 do livro didático Português: ensino médio (NICOLA,
2009), que tratam de questões de gramática como concordância verbal e nominal e a categoria
gramatical sujeito.

2 Ensino de língua portuguesa: abordagem nos documentos oficiais


185

Ao abordar sobre o ensino de língua portuguesa, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o


Ensino Médio – PCNEM (BRASIL, 1999, p. 137) estabelecem uma síntese das teorias desenvolvidas,
nas últimas décadas, acerca do processo de ensino e aprendizagem da língua materna, bem como o
papel que esse processo exerce. O que há de novo é a forma em tornar o eixo interdisciplinar viável na
disciplina de Língua Portuguesa, pois ―[...] o estudo da língua materna na escola aponta para uma
reflexão sobre o uso da língua e a vida na sociedade‖ (Id. Ibid, p. 138).
Ao sugerir que o ensino de português esteja voltado para ―uma análise e reflexão sobre o uso da
língua‖, verificamos que os PCNEM (BRASIL, 1999) mantêm e reforçam a relevância de uma prática
docente que pode ser sintetizada em uma atividade de ―análise e reflexão sobre a língua‖, já estabelecida
nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental – PCNEF (BRASIL, 1998). No
entanto, o professor, em sua prática pedagógica, deverá ter o cuidado em perceber que no ensino
médio os conhecimentos de língua portuguesa devem ser aprofundados, a fim de que o aluno continue
aprendendo e cresça como pessoa e intelectualmente, levando em consideração questões como ética,
estética e política, as quais resultam na formação de valores sociais e culturais.
De acordo com a abordagem nos PCNEM (BRASIL, 1999), tudo isso deve levar em conta a
história de interações e de letramento71 que o aluno traz para o ensino médio, construída em diversos
contextos sociais de emprego da linguagem, que vai desde a sua experiência cotidiana à sistematização
do ensino e aprendizagem da escrita, isto é, a produção e a compreensão de textos. Isso implica,
portanto, estabelecer um perfil do que se espera do discente, no ensino de língua portuguesa, nessa
última etapa da educação básica. Sobre esse tema, uma nova orientação aos PCNEM (BRASIL, 2006, p.
32) prevê que, no decorrer da formação do ensino médio, o ―alunado‖ deva:

a) conviver, de forma não só crítica mas também lúdica, com situações de produção e
leitura de textos, atualizados em diferentes suportes e sistemas de linguagem – escrito,
oral, imagético, digital, etc. –, de modo que conheça – use e compreenda – a
multiplicidade de linguagens que ambientam as práticas de letramento multissemiótico
em emergência em nossa sociedade, geradas nas (e pelas) diferentes esferas das
atividades sociais – literária, científica, publicitária, religiosa, jurídica, burocrática,
cultural, política, econômica, midiática, esportiva, etc;
b) no contexto das práticas de aprendizagem de língua(gem), conviver com situações
de produção escrita, oral e imagética, de leitura e de escuta, que lhe propiciem uma
inserção em práticas de linguagem em que são colocados em funcionamento textos
que exigem da parte do aluno conhecimentos distintos daqueles usados em situações
de interação informais, sejam elas face a face ou não.
c) construir habilidades e conhecimentos que o capacitem a refletir sobre os usos da
língua(gem) nos textos e sobre fatores que concorrem para sua variação e
variabilidade, seja a linguística, seja a textual, seja a pragmática.

71 Letramento aqui entendido como as diversas práticas sociais que integram direta ou indiretamente a produção e a
intelecção de materiais escritos e que integram a dinâmica da vida cotidiana de uma dada comunidade.
186
Em outras palavras, isso significa dizer que o aluno do ensino médio, na disciplina de Língua
Portuguesa, deve apresentar um perfil no qual ele esteja preparado para ―conviver‖ com as diferentes
situações de interação que lhe são proporcionadas em sala de aula, de forma que ele possa desenvolver,
por meio dessa interação, conhecimentos e habilidades que o estimulem a refletir sobre o mundo, os
indivíduos e suas histórias, sua singularidade e identidade.
O ensino de língua portuguesa deve, portanto, levar em consideração as diversas manifestações
de interação da linguagem, especialmente ―o fenômeno social da interação verbal‖, que tem o texto
como unidade básica. Nesse caso, o aluno deve perceber que a língua materna, tanto na modalidade
oral como na escrita, tem um papel de viabilizar o entendimento e o encontro dos discursos
empregados nas mais diversas situações da vida social: ―A linguagem verbal, oral e escrita, representada
pela língua materna, ocupa na área o papel de viabilizar a compreensão e o encontro dos discursos
utilizados em diferentes esferas da vida social [...]‖ (BRASIL, 1999, p. 131).
Isso significa que o aluno perceba a oralidade e a escrita como modalidades de emprego da
língua complementares e interativas nas práticas sociais. Contudo, não se pode perder de vista,
considerando que o ensino médio é a etapa final da educação básica, que as práticas sociais do emprego
da língua escrita devem ser enfatizadas na orientação de atividades escolares, pelo fato do valor social e
histórico que apresentam em nossa sociedade. Sobre isso, Possenti (2002, p. 83) enfatiza que ―[...] o
mais importante é que o aluno possa vir a dominar o maior número possível de regras [...]‖, a fim de
que ele possa ser capaz de empregar a língua nas mais diversas situações em que ela se apresenta,
principalmente na variação padrão.
Em se tratando dos documentos oficiais, apesar de ainda existir uma visão tradicional para o
ensino de língua portuguesa, há o acréscimo a essa visão tradicional de uma perspectiva escalar, de um
continuum no tratamento às questões gramaticais: questões de gramática são abordadas a partir da
variação já empregada pelo aluno para, a partir daí, ser trabalhada a variação adequada à norma padrão.
Entendemos, pois, que existe um direcionamento nesses documentos para aprofundar a reflexão sobre
a língua no ensino médio, com atividades que se destinam a aspectos como atribuição de sentido,
marcas de intertextualidade, exploração da funcionalidade dos diversos recursos linguísticos à
disposição dos usuários, entre outros, de forma que tudo isso parta do saber linguístico do aluno.

3 O texto como unidade de ensino

Como vimos no item anterior, o ensino de língua portuguesa no nível médio é sintetizado, nos
documentos oficiais, a partir de uma prática que deve predominar a ―análise e refelexão sobre a língua‖.
Dessa forma, apesar de ser importante para o aluno conhecer aspectos gramaticais, principalmente
187
aqueles inerentes à norma padrão, o professor precisa trabalhar tais aspectos considerando os diversos
usos de funcionamento da língua. Essa diversidade fará com que o aluno possa analisar construções de
usos da língua que ele já domina para, a partir de então, refletir acerca de outros usos, dentre os quais
aqueles que atendem à norma padrão.
Ao nos referir à variedade de usos da língua, estamos, nesse caso, nos voltando para a questão
da utilização do texto como unidade de ensino, como sugeridos nos PCNEM (BRASIL, 1999), e não
para uma abordagem gramatical de usos isolados da língua. Sobre isso, Santos, Riche e Teixeira (2012,
p. 16) afirmam que

Textos artificiais ou em formato de frases soltas, que frequentemente víamos em


cartilhas, como ―Ivo viu a uva‖ ou ―Vovô viu a vovó‖ (destaque das autoras), não
colaboram para a percepção linguística dos alunos, nem para sua formação como
leitores. Exemplos assim representam, na verdade, pseudotextos, já que estão
descontextualizados, sem uma situação real na qual possam ser usados como
elementos de interação. São meras atividade de ―leitura‖, provavelmente para treinar a
escrita de sílabas ou palavras com determinado fonema, sem formar um todo
significativo.

Ao propor que ―A unidade básica da linguagem verbal é o texto [...]‖, os documentos oficiais
sinalizam para um direcionamento em que se procure priorizar os gêneros merecedores de um
tratamento mais intenso, como, por exemplo, aqueles que se referem aos usos públicos da linguagem, a
fim de que estes possam contribuir, ainda mais, para a inserção do aluno na sociedade. Ao se referir
sobre essa inserção, Dolz e Schneuwly (20010, p. 147) afirmam que ―[...] o papel da escola é levar os
alunos a ultrapassar as formas de produção oral cotidianas para os confrontar com outras formas mais
institucionais, mediadas, parcialmente reguladas por restrições exteriores‖.
Assim, o ensino de língua portuguesa no ensino médio, tendo como unidade o texto (cf.
PCNEM, 1999), deve privilegiar a natureza social e interativa da linguagem, em que o ensino de língua
não seja deslocado do uso social desta. Para isso, a articulação entre língua e uso deverá levar em conta:
a) o aluno como produtor de textos, refletindo assim a sua história social e cultural; b) o trabalho do
professor voltado para o desenvolvimento e sistematização da linguagem interiorizada pelo aluno, o que
estimulará a verbalização desta e a sua adequação a situações de uso; c) a nomenclatura gramatical e a
história da literatura direcionados para um segundo plano; d) a análise linguística trabalhada em função
da leitura e da produção de textos.
O resultado dessa articulação é a própria mediação por meio dos gêneros textuais, uma vez que
o texto passa a ser considerado o escopo de todo o processo de ensino e aprendizagem de língua
portuguesa nesta última etapa da educação básica. Dessa forma, o conteúdo a ser explorado na sala de
aula passa a ser a linguagem, por intermédio de três práticas interdependentes, a saber: leitura, produção
de texto e análise linguística. Isso implica dizer que questões de língua, isto é, de gramática devam ser
188
trabalhadas a partir da produção textual do aluno que, por sua vez, é motivada pela leitura cujo
conteúdo deve proporcionar discussões para o ensino de língua portuguesa. Com isso, o aluno é
instigado a ampliar outros domínios de usos da língua dos quais ele ainda não os tem e que deverá tê-
los para que possa ampliar a sua competência interativo-comunicativa.

4 Questões de gramática no livro didático

As questões de gramática, aqui analisadas, foram retiradas do corpus organizado por dois alunos
de inciação iniciação científica, bolsistas do projeto de pesquisa do curso de Letras da Universidade
Potiguar – UnP: O ensino de português na educação básica: o trabalho com a gramática nos textos didático-
pedagógicos. Esse corpus, cujas informações foram coletadas no período de agosto a dezembro de 2010,
é constituído pelo que denominamos textos didático-pedagógicos, por nós entendidos como textos
adotados pelo professor em sua prática, a saber: o livro didático, elaborado previamente objetivando o
ensinar e o aprender; e outros textos, cuja produção não objetiva, inicialmente, o ensino e
aprendizagem, contudo o seu conteúdo, em muitas situações da prática docente, atende a esse objetivo.
Para este estudo, escolhemos o livro didático, uma vez que este se constitui hoje principal
referência em sala de aula e é por nós considerado o protótipo do texto didático-pedagógico. As
questões de língua, como concordância verbal e categorização gramatical do sujeito, serão analisadas no
manual72 do aluno Português: ensino médio (NICOLA, 2005)73. Esse manual faz parte, desde 200674, do
catálogo do PNLEM (Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio) para ser utilizado
nos anos de 2009, 2010 e 2011 na escola campo de nossa pesquisa. A obra está dividida em três partes:
(1) Formando o leitor e o produtor de texto: as estruturas gramaticais dos textos, (2) Formando
o leitor e o produtor de texto: os textos do cotidiano, (3) Formando o leitor e o produtor de
texto: os textos artísticos (grifo nosso).
Na parte (1), em geral, o autor trabalha a gramática como um conjunto de normas que regulam
o funcionamento da língua. Nessa seção, são apresentados os conceitos de fonologia, morfologia e
sintaxe. Na parte (2), são trabalhados conceitos de linguagem, língua e gramática. A concepção de
linguagem é tida como expressão do pensamento como podemos constatar nesta passagem: ―[...] mas
linguagem, como já vimos, tem um conceito mais amplo: é todo sistema que permite a expressão ou a
representação de ideias e se concretiza em um texto‖ (LD, p. 125). A parte (3) é destinada aos estudos
literários, o que não é o foco do nosso trabalho.

72 Empregaremos também esse termo para nos referir ao livro didático.


73 A partir de agora empregaremos LD para nos referir à obra em análise.
74 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/EnsMed/port_1818.pdf. Acesso em 25 de fev/2013.
189
O conceito de língua é abordado pelo autor como um sistema de códigos organizados e
estruturados que servem de canal para a comunicação, visto que ―[...] o falante vale-se de um código já
convencionado e instituído antes de ele nascer, ou seja, a criatividade de seu uso individual está limitada
à estrutura da língua e às possibilidades que ela oferece‖ (LD, p.129).
A concepção de gramática, trabalhada pelo autor, está ligada à concepção de linguagem que ele
utiliza, isto é, linguagem como expressão do pensamento. Daí, percebermos uma valorização pela
gramática normativa, já que na primeira parte, como falamos, ele trabalha os termos gramaticais apenas
dentro da variedade padrão da língua.
Tal concepção pode também ser constatada nos capítulos que tratam sobre as questões de
gramática, como, por exemplo, os capítulos 4 e 6 (LD, p. 42 e 81, respectivamente). Isso porque, apesar
de os capítulos serem introduzidos por textos, estes não passam de ―pretextos‖, cf. Geraldi (2005), para
uma abordagem deslocada de questões de gramática.
No capítulo 4, como pode ser visto a seguir, as questões relacionadas a aspectos gramaticais,
como concordância verbal e nominal, são introduzidas por um anúncio referente à exportação de carne
bovina, a saber:

Exportadores de carne argentinos


Querem seguir exemplo do Brasil

Após a leitura da anúncio acima, responda; o que é de nacionalidade argentina, a carne ou os exportadores? Claro
que são os exportadores, e nada se dizem sobre a carne que exportam e sua nacionalidade, e por que sabemos
disso? O adjetivo gentílico argentino está no masculino plural, concordando com um nome também masculinos,
plural exportadores, se ao contrário, o adjetivo gentílico estivesse no feminino singular, ―exportares‖ de carne
argentina querem seguir exemplo do Brasil. Com certeza seria a carne e não os exportadores, ou seja a carne seria
de nacionalidade argentina.
(LD, p. 47)
Como podemos verificar, logo abaixo desse anúncio, são feitos alguns questionamentos que
devem ser respondidos com base na leitura do texto. Como se trata de solicitar ao aluno a leitura de um
anúncio, tem-se a ideia de que o leitor/ouvinte, no caso o aluno, possa entender o texto com base nas
leituras que ele já tem sobre o tema para, a partir desse entendimento, compreender por que os
argentinos querem tanto seguir o exemplo do Brasil, no que tange à exportação de carne, e por que esse
fato propiciou a produção de um gênero publicitário. O que se vê, no entanto, é uma leitura já
direcionada com um único propósito de justificar regras do uso padrão de aspecto gramatical da flexão
de pessoa e número – a concordância verbal – e da flexão de gênero e número – a concordância
nominal.
As questões de concordância, tanto a verbal como a nominal, vão sendo explicadas na seção
intitulada A gramática da frase (LD, p. 49) por meio de exemplos soltos descontextualizados do texto
inicial: o anúncio publicitário. Esses exemplos vão desde citações de obras da literatura brasileira, como
190
em (01) e (02), até aqueles que já se tornaram comuns na abordagem de aspectos gramaticais de
concordância, como em (03), (04) e (05):
(01)
a) Memórias de um sargento de milícias é a melhor crônica do Brasil de D. João VI.
b) As Memórias de um sargento de milícias são a melhor crônica do Brasil de D. João VI. (LD,
p.49)
(02)
a) Dom Casmurro é o livro machadiano mais conhecido.
b) Dom Casmurro e Memórias póstumas são os livros machadianos mais conhecidos. (LD, p. 51)
(03)
a) Consertam-se sapatos.
b) Aluga-se casa de praia. (LD, p. 52)

(04)
a) É proibido a passagem de pedestres.
b) São proibidos as passagens de pedestres. (LD, p. 53)

(05)
a) Já é meio-dia e meia [hora].
b) Particularmente, acho que os horários são meio autoritários. (LD, p. 53)

Considerando que se trata de um texto didático-pedagógico destinado ao ensino médio, em que


a literatura já é objeto de estudo ou deveria ser, o manual poderia aproveitar e abordar situações de
organização interna da língua (a sintaxe) por meio de abordagem voltada para discussão acerca de
algumas construções sintáticas de concordância em obras que fizeram parte de um estilo literário (o
Realismo), já que faz referência em (01) às crônicas de Manuel Antônio de Almeida e em (02) ao
famoso clássico machadiano – Dom Casmurro, com aquelas mais contemporâneas que, em muitas
situações, estão disponíveis nos meios de comunicação de massa, como jornal e revistas, e nas redes
sociais. Nesse caso, os alunos seriam motivados a, primeiramente, analisar a organização textual em
épocas diferentes, especificamente questões de organização interna do texto como a flexão de nome e
de verbo – tema do capítulo em estudo, para depois refletirem acerca do que permaneceu ou mudou
nas questões de língua como concordância verbal e nominal após um século.
Não muito diferente do que foi apresentado no capítulo 4, o capítulo 6, intitulado Os
constituintes básicos da oração (LD, p. 81), também vai introduzir o estudo desses constituintes (o
sujeito e o predicado) por meio de um texto. Aliás, nesse caso, trata-se da reprodução do título de uma
reportagem que saiu na Revista Galilleu, n.151, de fevereiro de 2004, sobre uma espécie de sagui que
habita a Colômbia: o sagui-cabeça-de-algodão. Vejamos:

Bê-á-bá
Saguis-cabeça-de-algodão só entendem gramática banal.

Na oração acima, podemos distinguir dois grandes sintagmas: [Saguis-cabeça-de-algodão] e [só entendem gramática banal].
O primeiro, um sintagma nominal, é representado por um substantivo composto exercendo a função substantiva: a de
sujeito; o segundo, um sintagma verbal, exercendo a função de predicado, é formado por um núcleo (entendem), um
circunstancial (só) e um complemento (gramática banal). Entre o núcleo de um e outro sintagma, podemos estabelecer uma
relação de concordância: Saguis-cabeça-de-algodão (eles= terceira pessoa do plural) = entendem (-em = terminação da
191
terceira pessoa do plural). Duas informações centrais compõem os termos essenciais da oração: o tema (Saguis-cabeça-de-
algodão) e o que se declara o tem (entendem). (LD, p. 81)

Mais uma vez, temos aqui questões de gramática sendo abordadas por meio de um texto, no
caso acima de um enunciado que introduz uma reportagem científica sobre uma espécie de sagui, que
poderia motivar os alunos leitores/ouvintes a discutir assuntos tão interessantes, como a ideia de que
alguns tipos de saguis, o sagui-cabeça-de-algodão, mesmo que ―banalmente‖ entendem um pouco de
gramática.
Essa leitura poderia também despertar nos alunos uma possível distinção entre linguagem
humana e linguagem animal, bem como fazê-los compreender a maneira pela qual a revista vai explicar
o que é gramática e trazer tal explicação para um contexto que se propõe ensinar a gramática da língua
portuguesa. No caso em questão, como se organizam na estrutura interna do texto as categorias
gramaticais sujeito e predicado e que motivações levam o falante da língua a realizar ou não a
concordância, por exemplo, de número entre sujeito e verbo. Nesse caso, a abordagem gramatical no
manual já poderia trabalhar a partir dos usos que se afastam da norma padrão até chegar àqueles que
atendem a essa norma, que é objeto de estudo das questões gramaticais propostas pelo manual.
No entanto, o que se vê é uma abordagem em que a exploração do enunciado destina-se única e
exclusivamente a conceituar o que se pode entender por sujeito e predicado, fazendo uso de uma
linguagem técnica (sintagma nominal e sintagma verbal) como se estivessem abordando questões de
gramática para alunos do curso de Letras e não para alunos do ensino médio, público para o qual o
manual fora produzido.

5 Algumas considerações finais, à guisa de conclusão

Ao abordarmos sobre o ensino de língua portuguesa, em particular questões de gramática no


livro didático, vimos que os documentos oficiais, PCNEM (BRASIL, 2006 e 1999), sinalizam para um
trabalho no ensino de português já centrado na ―análise e reflexão sobre o uso da língua‖. O que
percebemos resulta num perspectiva escalar, de um continuum no tratamento às questões gramaticais, uma vez
que estas devem ser abordadas a partir da variação já empregada pelo aluno para, a partir daí, ser trabalhada a
variação adequada à norma tida como padrão.
Verificamos que, nesses documentos, o texto passa a ser considerado o escopo de todo o
processo de ensino e aprendizagem de língua portuguesa nesta última etapa da educação básica: o
ensino médio. Dessa forma, o conteúdo a ser explorado passa a ser a linguagem, por intermédio de três
práticas interdependentes, a saber: leitura, produção de texto e análise linguística. Isso implica dizer que
questões de língua, isto é, de gramática devam ser trabalhadas a partir da produção textual do aluno
192
que, por sua vez, é motivada pela leitura cujo conteúdo deve proporcionar discussões para o ensino de
língua portuguesa, resultando, pois, em uma análise e reflexão sobre os usos da língua.
Assim, ao fazermos análise, neste estudo, de como são abordadas questões de gramática no livro
didático adotado em uma escola pública de ensino médio da cidade de Natal/RN, especificamente a
concordância verbal e nominal, no capítulo 4 (LD, p. 42), e a categoria gramatical sujeito, no capítulo 6 (LD, p.
81), verificamos nos dois capítulos um direcionamento para o tratamento dado às questões de língua com um
único propósito de justificar regras do uso padrão dos aspectos gramaticais. Até mesmo a introdução
nesses capítulos com um texto não passava de ―pretextos‖, cf. Geraldi (2005), para uma abordagem
deslocada de questões de gramática. Com isso, percebemos que o tratamento dados à grande parte das
questões de gramática trabalhadas nos dois capítulos ainda é exposto por meio de usos isolados, o que
resulta num afastamento aos encaminhamentos propostos nos documentos balizadores para o ensino
de português, que podem ser sintetizados como ―análise e reflexão sobre a língua‖.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria da Educação Básica. Orientações Curriculares para o Ensino
Médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2006.
______. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Media e Tecnológica. Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: MEC/SEMT, 1999.
______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:
terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.
DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução de Roxane Rojo e
Glaís Sales Cordeiro. 2. ed. Campinas (SP): Mercado das Letras, 2010.
GERALDI, João Wanderley. O texto na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
NICOLA, José de. Português: ensino médio. São Paulo: Scipione, 2005
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas (SP): Mercado das Letras, 2002
SANTOS, Leonor Werneck; RICHE, Rosa Cuba; TEIXEIRA, Claudia Souza. Análise e produção de
textos. São Paulo: Contexto, 2012.
193
OCORRÊNCIAS E RECORRÊNCIAS DE ALTERNÂNCIA DE CÓDIGO
ENTRE PARKATÊJÊ E PORTUGUÊS

Cinthia Neves75
Marília Ferreira76

Resumo: Um indivíduo bilíngue, ao se comunicar, apresenta características próprias, podendo optar


pelas variantes e línguas que domina, de acordo com seu interlocutor ou com a situação em que a
interação ocorre. Assim, o bilíngue não apenas pode escolher entre diferentes variedades de uma língua,
como pode escolher entre duas línguas. Enquanto um indivíduo monolíngue muda de uma variante de
uma língua para outra, um bilíngue pode trocar de variedades em uma língua, trocar de língua, ou fazer
as duas coisas alternando de um sistema para o outro (Grosjean, 1982, p. 128). Durante décadas,
entendeu-se esta alternância entre as línguas como uma mistura irregular, um defeito decorrente de
conhecimento insuficiente de um sistema ou de outro. Atualmente, no entanto, sabe-se que não
representa um desgaste de habilidade linguística; o code-switching é uma habilidade verbal que requer
elevado grau de competência em mais de uma língua; é ―efetivamente um indicador sensível da
capacidade bilíngue‖ (Poplack, 1980, p. 581). Este trabalho pretende apresentar os principais tipos de
alternância encontrados em narrativas orais tradicionais do povo indígena Parkatêjê, apontando sua
recorrência nas sentenças, sugerindo que é possível prever onde é mais provável que ocorra alternância
e também onde não ocorrerá.

Palavras-chave: Parkatêjê. Alternância de código. Ocorrências.

Abstract: A bilingual individual, when communicating, presents his own behavior, being able to choose
between the variants and languages that he dominates according to the caller or to the situation in
which the interaction occurs. Thus, the bilingual not only can choose between different varieties of a
language, but he can choose between two different languages. While a monolingual individual switches
from the variant of a language to another, a bilingual one may switch between varieties of a language,
switch the language itself, or do both things, alternating from one system to another (Grosjean, 1982, p.
128). For decades, this switching between languages was understood as an irregular mixing, a defect
arising from insufficient knowledge of one system or another. Currently, however, it is known that it
does not represent a deficit on language skills; code-switching is a verbal skill that requires a high degree
of competence in more than one language; it is "effectively a sensitive indicator of the bilingual
capacity" (Poplack, 1980, p. 581). This paper aims to present the main types of alternation found in
traditional oral narratives of the Parkatêjê indigenous people, pointing to the recurrence with which
they occur in sentences, suggesting that it is possible to predict where the alternation is more likely to
occur and also where it will not.

Keywords: Parkatêjê. Code-switching. Occurrences.

1. Considerações sobre o povo e a língua prkatêjê


A língua Parkatêjê pertence à maior família linguística do grupo Macro-Jê, a família Jê.
Juntamente com outras línguas (Krahô, Krinkati, Apaniekrá-Canela, Ramkokamekrá-Canela, Pykobjê-

75
Doutoranda em Estudos Linguísticos, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
do Pará. E-mail: [email protected]
76
Professor adjunto da Faculdade de Letras do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará. E-
mail: [email protected]
194
Gavião, Krenjê e Apinajé) forma um grupo de línguas inteligíveis entre si em diferentes graus
denominado ―Complexo Dialetal Timbira‖ (Rodrigues, 1986). Além de aspectos linguísticos, fonético-
fonológicos e sintáticos, esses povos compartilham características culturais: a disposição das casas em
forma circular na aldeia e o costume de realizar a corrida de toras, por exemplo.
Atualmente, o Parkatêjê é falado por aproximadamente 10% de uma população de 478
77
pessoas residentes na Terra Indígena Mãe Maria, localizada a 30 Km do sul de Marabá, às margens da
BR-222, sudeste do Pará.
O grupo hoje conhecido como Gavião Parkatêjê (ou Gavião do Pará) é composto por
remanescentes de três grupos que viveram na região do sudeste do Pará e do Maranhão: Rõhôkatêjê,
grupo do cocal; Akrãtikatêjê, povo da serra; e Kyikatêjê, turma do Maranhão78, por ter vivido às
proximidades da cidade de Imperatriz:
―E todo mundo era uma turma só – depois é que teve briga e espalhou: uma turma ficou no
Tucuruí, outra turma correu pro Maranhão. Mas primeiro era tudo junto, cada um na sua aldeia,
tudo por aqui – do Moju, até a serra, na cabeceira do Jacundá.‖
(Krôhôkrenhum Jõpaipaire, 2011, p. 75)

Segundo Araújo (1989, p.9), até 1980 o povo estava dividido em duas aldeias,
―uma sede, às margens da estrada, conhecida como ‗turma do 30‘, por estar a Sede localizada no
km 30 da Rodovia PA 70 (...); a outra aldeia, dos ‗maranhão‘ ou kyikatêjê, ficava a cerca de 4 km
da primeira.‖
(Araújo, 1989, p. 9)

A situação sociocultural dos dois povos era diferente devido ao tempo de contato e localização
de suas aldeias. Por influência e imposição dos funcionários do Posto Indígena, o grupo do trinta
adotou usos e costumes dos não-índios, deixando os costumes tradicionais, entre eles a língua indígena.
Muitas são as discussões acadêmicas e sociais quanto à língua desses povos: seriam Parkatêjê e
Kyikatêjê variantes de uma mesma língua ou línguas próximas? Considerando que se esses dois povos
viveram juntos, falando duas línguas distintas e inteligíveis entre si, deve-se ter em conta
―a percepção que os próprios falantes têm de sua língua e ressaltar o esforço contínuo que tem
havido entre esses povos quanto ao fortalecimento de uma unidade cultural, a qual passa, sem
dúvida, pela unidade linguística (...)‖.
(AMADO, 2006, p. 3)

Falantes de uma mesma língua ou não, esses povos detêm a tradição de narrativas orais que,
segundo Ferreira (2010), apresentam uma estrutura básica ―composta de um início, um meio e um fim‖;
são histórias míticas ou autobiográficas que ainda são repassadas de geração a geração. As histórias são
contadas de modo a combinar gestos, expressões, repetições, rimas, entonações e, nas narrativas
parkatêjê, alternância de código, uma troca rápida e significativa para o português.

77 Dados do Posto de Saúde da Comunidade apresentados em Krôhôkrenhum Jõpaipaire (2011, p. 97).

78 Outro povo Timbira é conhecido por Gavião do Maranhão (Gavião Pykobjê). No caso dos Kyikatêjê é uma
referência ao lugar em que este grupo se refugiou.
195
As trocas de uma língua para outra, encontradas nas narrativas parkatêjê contadas pelo chefe
Krôhôkrenhum, são o objeto de estudo desta dissertação, na qual as alternâncias são descritas e
analisadas com base em teorias que tratam da sistematicidade do fenômeno.
A próxima sessão reconta a trajetória dos parkatêjê a partir do contato com o mundo não-índio;
aproximação que deixou marcas como a que que este trabalho se propõe a apresentar.

2. O fenômeno de alternância de código: modelo de Poplack (1981)


Segundo Poplack (1981, p. 170), há divergências na literatura a respeito do que é code-switching
verdadeiramente. Assim como no estudo da autora na comunidade El Barrio, entede-seneste trabalho a
alternância de código de acordo com o grau de adaptação à outra língua. Na análise de Poplack (1981),
se um item da L1 está completamente adaptado à fonologia e morfologia da L2, a autora considera que
houve integração total.
Na Rua 102 de El Barrio, Poplack encontrou três tipos de alternância de código. O primeiro
está relacionado ao controle que o falante tem da L2, quanto menos ele conhece a outra língua, menos
as alternâncias que ele realiza estarão estruturalmente integradas em sua fala. Os tipos de code-switching
encontrados no El Barrio foram divididos por Poplack (1980) em três tipos, que vão do que exige
menos domínio da L2 pelo falante, ao que precisa de fluência nas duas línguas: tag-switching; code-switching
inter-sentencial; e code-switching intrassentencial.
Com base em análises quantitativas sobre as ocorrências intrassentenciais, Poplack (1981)
propôs duas restrições linguísticas gerais para a alternância de códigos, as quais se complementam:
Restrição de Morfema Livre e Restrição de Equivalência. As duas restrições juntas são suficientemente gerais
para dar conta de todas as instâncias de alternância nos dados examinados, porém não parecem tão
fortes para generalizar as instâncias de não-ocorrência do fenômeno, embora os resultados dos estudos
de Poplack sugiram que é possível prever onde é mais provável que ocorra alternância e também onde
não ocorrerá.
A Restrição de Morfema Livre estabelece que ―é possível alternar qualquer constituinte no
discurso, desde que este seja um morfema livre‖ (POPLACK, 1981, p. 183). A alternância pode ocorrer
também entre um morfema fixo e uma forma lexical fonologicamente integrada à língua desse
morfema. Isso explica o uso da palavra ―escanear‖ em português, que combina o verbo ―scan‖ do
inglês, adaptado fonologicamente à língua portuguesa, com o morfema /-ar/ que designa os verbos
primeira conjugação em português.
Em parkatêjê, uma combinação deste tipo foi encontrada com frequência:

(1) Nã ijõt pê amji jõlei to ho pà nã ikakru apte wyr ikakôk


Eu me lembro da minha lei, não era assim não, era respeitada.
196
Funcionando simultaneamente à primeira restrição, a Restrição de Equivalência prevê que a alternância
ocorre quando as línguas compartilham as mesmas categorias gramaticais e a mesma ordem de
constituintes, pois
―os códigos tendem a ser alternados em pontos onde a justaposição dos elementos (...) não viola
regras sintáticas de nenhuma das línguas, isto é, em pontos onde as estruturas de superfície das
línguas se mapeiam uma na outra‖.
(POPLACK, 1981, p. 175)

Entre português e inglês, por exemplo, são distintas as regras de colocação dos adjetivos. Em
inglês, esta classe precede os substantivos, ao passo que, em português, normalmente ela é posta após o
nome modificado – à exceção de casos como ―grande‖, ―bom‖, ―jovem‖, etc., que podem preceder os
substantivos causando modificações semânticas –, de modo que uma alternância envolvendo
substantivo e adjetivo entre português e inglês, segundo esta restrição, não seria gramatical para o
bilíngue.
De um modo geral, as ocorrências de alternância encontradas nas narrativas parkatêjê sustentam
os modelos de restrição propostos por Poplack (1981) como mostram as próximas subseções que
ilustram as alternâncias na língua.

3. Frequência de alternância nos constituintes


Para exemplificar as restrições propostas em seu estudo, Poplack (1981) listou os principais
tipos de alternância encontrados em seus dados: a) sentença completa (full sentence); b) sentença
conjugada (conjoined sentence); c) interjeição (interjection); d) entre sintagma nominal principal e sintagma
verbal; e) entre sintagma verbal e sintagma nominal objeto; f) entre sintagma verbal e sintagma
preposicional; g) entre verbo e advérbio; h) entre nome e adjetivo; i) entre determinante e nome; j)
entre auxiliar e verbo.
A tabela abaixo aponta o número de ocorrências das principais alternâncias nas fronteiras dos
constituintes e dentro deles:

Segmento alternado Nº de Ocorrências


Na fronteira de constituintes
Sentença completa 12
Sentença combinadas 9
Repetição 4

Dentro do constituinte
Tags 5
197
Nome 20
Verbo 10
Advérbio e palavras denotativas 8
Conjunção 14

Total = 82

Tabela 1: Número de ocorrências de alternância de código nos constituintes

Nota-se, com os ados expostos acima, que na categoria de alternância intra-sentencial, a classe
temporalmente estável, a de nomes, apresenta a maior proporção de alternância. Segundo Romaine
(1995, p. 125) uma das razões para a alta freqüência de ocorrência deste tipo de troca é o fato de esta
classe ser ―relativamente livre de restrições sintáticas‖.
Ferreira (2003, p. 47) aponta algumas características sintáticas que definem a classe de nomes na
língua parkatêjê, dentre as quais estão: a) a posição de núcleo de uma locução nominal, ocorrendo
como sujeito e objeto de verbos e posposições; b) a possibilidade de ocorrer como predicado de
orações não-verbais; e c) a possibilidade de serem modificados por descritivos, quantificadores,
demonstrativos e outros nomes.
Em português o nome substantivo funciona como núcleo do sintagma nominal, acompanhado
por determinantes e modificadores. As duas línguas, portanto, permitem troca nesta classe sem violação
de suas estruturas sintáticas:

(2) Mentia cinco mpy dez tõ mõ wa pê matwyre aika ame ane


Mulher [eram] cinco, homem [eram] dez, poucas pessoas. Então ficamos acampados
aqui mesmo.

Mentia cinco , mpy dez

Mulher cinco , homem dez

Os outros dados em que ocorre alternância de nomes seguem a mesma estrutura sintática, em
pontos nos quais a justaposição das línguas sem prejuízos sintáticos é possível:

(3) Mpo ita to dinheiro nã to mã apa pê


Trabalhei para ganhar dinheiro.
198

(4) Feriado ita ton kãmã amji pê kaka


Não quero respeitar o feriado [porque não tinha para os índios].

(5) Amty nã me ikyre governo chefe nã


Como faz o governo, prepara o chefe.

(6) Tamri kitare mejõ capitão nã inxu nã


Deus é Jê, nosso capitão, nosso pai.

Os segmentos em (3) e (4) trazem uma alternância com características de empréstimo, pois
nota-se na comunidade uma tendência a utilizar os termos ―capitão‖ e ―chefe‖ para fazer referência à
sua liderança, o Capitão Krôhôkrenhum. A frequência de uso de pares homônimos, que leva palavras
usadas com menos frequência à substituição é como uma das razões para que línguas emprestem
termos umas das outras. Considerando, no entanto, que a adaptação fonológica e morfológica é o
critério que diferencia as duas categorias, alternância e empréstimo, ―capitão‖ e ―chefe‖ são aqui
tratados como troca de língua, não como integração dos termos na L1.
Outro tipo de alternância na classe de nomes se apresenta na estrutura tópico/comentário:

(7) É… A dança kupe tekiê


É... A dança, coisa do não-índio.

(8) A bola kupe tekiê


A bola, coisa do não-índio.

(9) Escola kupe tekiê


A escola, coisa do não-índio.

Em (5) aparece um termo em português para o qual há correspondente em parkatêjê.


Entretanto, a ―dança‖ a que o falante se refere não é aquela de sua tradição, mas sim a que foi
introduzida por não-índios, um elemento que passou a fazer parte da cultura a partir do contato. (6) e
(7) são mais dois segmentos com termos característicos de empréstimos, palavras integradas à língua;
porém, apenas semanticamente, para designar novos objetos, novas noções, sem acomodar-se à
fonologia ou morfologia da língua. Uma evidência para que ―bola‖, principalmente, seja considerada
aqui como alternância é a ocorrência do artigo ―a‖, do mesmo modo que em ―a dança‖, seguindo regra
199
de composição do sintagma em português, em que o determinante indica o gênero e o número do
substantivo.
Há nas narrativas também ocorrências de alternância de nomes da L1 inseridos em sentenças da
L2:

(10) Se é tĩr mas tĩr mas chama wawy iwawy

Se é vivo mas... Vivo mas... [Nós] chamamos wawy, iwawy.

(30) Reza não é minha, não é itekjê.


Reza não é minha, não é coisa minha.

(31) Mas mpo nã que ele usa eu não quero


Mas coisa que ele usa eu não quero.

Nestes segmentos, o falante opta pela L2 como língua de base, inserindo termos de sua L1.

4. Considerações Finais
O modelo de Poplack (1981) prevê que o code-switching está fundado em duas restrições: a
―restrição de morfema livre‖, prevendo que a alternância pode ocorrer após qualquer constituinte desde
que não seja um morfema fixo; e a ―restrição de equivalência‖, que prevê a ocorrência em pontos onde
elementos de ambas as línguas são equivalentes, para não haver violação de regras sintáticas das línguas
envolvidas. Este modelo se propõe a ser de validade universal; e as ocorrências encontradas na fala
parkatêjê apontam tanto para a universalidade da teoria, quanto do fenômeno.
As ocorrências de trocas de código foram quantificadas, levando à conclusão de que, assim
como aponta Poplack (1981), os termos pertencentes à classe de nomes tendem a ser alternados com
maior frequência. Nesta classe foram detectadas vinte trocas para o português, ao passo que as outras
classes como tags, verbos, advérbios e conjunção apresentaram, respectivamente, cinco, dez, oito e
quartoze trocas.
Em linhas gerais, conclui-se com este trabalho que a alternância de código não só preenche uma
necessidade linguística do falante quando este não lembra em uma das línguas o termo que deseja
utilizar. A partir dos exemplos aqui apresentados, pôde-se também notar que a alternância entre
códigos é mais que um fenômeno randômico envolvendo enunciados ora em uma língua ora em outra;
é um mecanismo estruturado de seleção das línguas na construção do discurso.

REFERÊNCIAS
200
ARAÚJO, Leopoldina Maria Souza de. Semântica Gerativa da Língua Gavião-Jê. Dissertação de mestrado
inédita. Florianópoles: UFSC, 1977.
_______. Aspectos da Língua Gavião-Jê. Rio de Janeiro, 1989. Tese (doutorado)– Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Faculdade de Letras.
_______. Parkatêjê x Português: caminhos de resistência. IX Congresso Internacional da “Brazilian Studies
Association‖ (www.brasa.org). New Orleans, Louisiana, Estados Unidos, 2008.
DIXON, R. M. W. Ergativity. Cambridge:Cambridge University Press, 1994.
FERREIRA, M. Estudo morfossintático da língua Parkatêjê. Tese de Doutoramento inédita. Campinas, 2003,
UNICAMP.
__________. Descrição de aspectos da variante étnica usada pelos parkatêjê. DELTA 21(1): 1-21, 2005.

KRÔHÔKRENHUM JÕPAIPAIRE, Toprãmre. Me ikwy tekjê ri: Isto pertence ao meu povo. Marabá,
PA: GKNORONHA, 2011.
POPLACK, Shana. ―Sometimes I‘ll start a sentence in Spanish y termino en español‖: toward a typology of
code-switching. 1980. Linguistics 18, 7/8. 581-618.
POPLACK, Shana. Syntactic structure and social function of code-switching. In: Latino Language and
Communicative Behavior, ed. by Duran, R.. New Jersey: Ablex Publishing Corp., 1981, 169-184
RODRIGUES, Aryon Dall‘Igna. Línguas Brasileiras: Para o conhecimento das línguas indígenas. São
Paulo: Edições Loyola.
ROMAINE, S. Bilingualism (2nd ed.). Malden: Blackwell. 1995

SENTIDO, ARGUMENTAÇÃO E INTERDISCURSIVIDADE EM TEXTOS


SINCRÉTICOS SOBRE FUTEBOL

Clebson Luiz de Brito79

Resumo: Neste artigo analisamos, à luz da semiótica francesa, alguns textos sincréticos do jornalismo esportivo,
procurando explicitar elementos relacionados à busca da persuasão. Como nos textos sincréticos os sentidos são
expressos por mais de uma linguagem, nosso objetivo aqui é explicitar, por meio de um exame dos mecanismos
intradiscursivos de constituição do sentido, elementos tanto da linguagem verbal quanto visual que imprimem
nos textos selecionados uma orientação argumentativa. As categorias de análise empregadas são aquelas relativas
aos níveis fundamental e discursivo do percurso gerativo, bem como o conceito de semissimbolismo, que
permite apreender os sentidos gerados no texto por eventuais relações entre a expressão e o conteúdo. Os textos
analisados, como procuraremos demonstrar, apresentam em comum uma interdiscursividade que, sobretudo,
problematiza o esporte de um ponto de vista político e que, relacionado a isso, possibilita uma construção de
representações negativas de determinados atores sociais que exercem alguma forma de poder no esporte.

Palavras-chave: Semiótica; Argumentação; Interdiscursividade; Esporte.

79 Doutorando em Estudos Linguísticos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista Fapemig. E-mail:
[email protected].
201
Résumé: Dans cet article nous analysons, à l‘aide de la sémiotique française, quelques textes syncrétiques du
journalisme sportif, en cherchant à expliciter des éléments concernant une visée persuasive. Puisque les textes
syncrétiques sont ceux qui présentent plus d‘un langage en véhiculant leur sens, nous avons pour but ici
d‘expliciter, à travers un examen des mécanismes intradiscursifs de constitution du sens, des éléments du langage
verbal et visuel qui donnent aux textes contemplés une direction argumentative. Les catégories d‘analyse ici
utilisées sont celles relatives aux niveaux fondamental et discursif du parcours génératif, ainsi que le concept de
semi-symbolisme, concept qui permet de saisir les sens engendrés par des éventuelles relations entre l‘expression
et le contenu. Les textes analysés, comme nous essaierons de démontrer, présentent en commun une
interdiscursivité qui surtout problématise le sport d‘un point de vue politique et qui rend possible une
construction de représentations négatives de quelques acteurs sociaux investis d‘un certain pouvoir au domaine
du sport.

Mots-clé: Sémiotique; Argumentation; Interdiscursivité; Sport.

1. Introdução

No âmbito dos estudos textuais e discursivos, as fronteiras entre textos argumentativos e não
argumentativos já não têm mais lugar. Embora a argumentação tenda a se mascarar em determinados gêneros, é
possível observar na organização do texto uma forma de dar a ver, que direciona a uma determinada
interpretação da realidade. Da mesma forma, não há mais espaço para a ideia de texto como algo restrito à
produção com linguagem unicamente verbal. Os pesquisadores da linguagem têm se voltado cada vez mais para
os textos sincréticos, que, constituídos por mais de uma linguagem, circulam cotidianamente em nossa sociedade.

Nesse sentido, os gêneros informativos do chamado jornalismo esportivo configuram um interessante e


rico objeto de análise, na medida em que demonstram com bastante clareza a pertinência das duas afirmações
feitas acima. Sob uma visada informativa, tais gêneros não deixam de apresentar uma dimensão argumentativa, o
que, não raro, está relacionado às estruturas por meio das quais os sentidos são suscitados.

Nosso objetivo aqui, por isso, é explicitar, por meio de um exame dos mecanismos intradiscursivos de
constituição do sentido, elementos tanto da linguagem verbal quanto visual que imprimem nos textos
selecionados uma orientação argumentativa. Para isso, vamos nos valer aqui do suporte teórico-metodológico da
semiótica francesa, teoria que apresentamos sucintamente a seguir.

2. Elementos de análise da semiótica francesa

A semiótica francesa tem por projeto, sobretudo, explicitar as estruturas significantes do discurso,
entendido como a parte mais concreta e superficial do plano de conteúdo, que, ao unir-se a um plano de
expressão, constitui o texto. Nesse seu projeto a semiótica concebe um percurso gerativo de sentido composto de três
202
diferentes níveis, cada qual apresentando um componente sintático, relativo aos arranjos dos conteúdos, e um
componente semântico, relativo aos conteúdos investidos sobre os arranjos sintáticos. É por meio do percurso
gerativo que, em semiótica, se examina primordialmente o plano de conteúdo dos textos.

A prática analítica, no entanto, não requer que se observem todos os níveis do percurso gerativo, mas
apenas aqueles que forem mais apropriados a uma análise específica. No nosso caso, vamos nos ater ao nível
fundamental, patamar mais simples e abstrato, e ao nível discursivo, patamar mais superficial e concreto,
resultado das operações da instância da enunciação. Entre os dois níveis do plano de conteúdo, há o nível
narrativo, patamar no qual o sentido apresenta-se sob a forma de uma configuração narrativa abstrata em que os
sujeitos se relacionam com objetos e outros sujeitos em busca de valores. Esse nível não será contemplado nesta
apresentação da teoria. Vamos nos ater aqui, para garantir maior objetividade ao trabalho, apenas aos níveis
empregados nas análises, níveis esses que passamos a explicar agora.

O nível fundamental do plano de conteúdo é o patamar inicial do processo de geração do sentido, que se
apresenta, do ponto de vista semântico, sob uma forma extremamente simples e abstrata. Essa forma pode ser
apreendida como uma oposição semântica, por exemplo: /vida/ versus /morte/, /natureza/ versus /civilização/,
/liberdade/ versus /opressão (dominação, coerção)/ etc. Para examinar um texto por esse primeiro nível do
percurso gerativo, é preciso, portanto, realizar um processo de abstração que permita identificar uma forma
elementar do seu sentido geral.

Apreendida a oposição semântica de base do discurso em análise, é preciso observar, ainda, o sistema de
valores em que essa oposição se inscreve. Em todos os discursos, um dos termos da oposição é marcado, grosso
modo, com um traço de positividade e o outro, com um traço de negatividade. O traço de positividade recebe o
nome de euforia, e o termo por ele marcado é definido como eufórico, positivo, atraente; o traço de
negatividade, por sua vez, recebe o nome de disforia, e o termo por ele marcado é definido como disfórico,
negativo, repulsivo (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 505).

O componente sintático, por sua vez, analisa as operações lógicas e abstratas de asserção e negação
(FIORIN, 2006, p. 23). Trata-se de operações que permitem que, dada uma determinada categoria semântica,
possa haver uma transição de um termo a outro e, portanto, um percurso fundamental que dê conta do que se
mostra na sucessividade do texto.

Passamos agora a tratar do nível discursivo, patamar que abriga as estruturas mais próximas da superfície
textual. Falar do nível discursivo é falar da enunciação, isto é, do ato de produzir o discurso-enunciado, processo
que se dá pela seleção das categorias disponíveis nos níveis fundamental e narrativo e pela sua conversão no
discurso propriamente dito. A enunciação, por isso, é tomada como uma instância sempre pressuposta pela
existência do produto que ela gera: o discurso-enunciado, perspectiva que tem implicações importantes.

Em primeiro lugar, o discurso-enunciado carrega as marcas da enunciação e das operações que o


constituem, marcas essas que são geradoras de sentido. Em segundo, a enunciação está relacionada a um nível
enunciativo implícito: a do enunciador e enunciatário, tidos como atores da enunciação (GREIMAS; COURTÉS,
2008, p. 171). No estudo da sintaxe discursiva, desse modo, procura-se recuperar o ato da enunciação, a partir de
203
suas marcas no enunciado, além de examinar as relações entre enunciador e enunciatário, isto é, o componente
argumentativo do discurso.

Em semiótica, assim, enunciação e argumentação estão intimamente relacionadas. No âmbito dessa


teoria, como explica Fiorin (2006, p. 75), mais do que comunicar algo, todo ato de comunicação busca levar o
outro a aceitar o que é comunicado. A argumentação, desse modo, envolve todo e qualquer recurso empregado
para levar o enunciatário a aceitar como verdadeiro o discurso recebido.

Quanto ao componente semântico, nele ―examinam-se os temas, as figuras e as isotopias‖ (LARA;


MATTE, 2009, p. 69). Temas são investimentos semânticos que não remetem ao mundo natural, mas auxiliam,
em razão de sua natureza puramente conceitual, na interpretação da realidade (FIORIN, 2006, p. 91). As figuras
discursivas, por sua vez, são ―determinadas por traços ‗sensoriais‘, que concretizam e particularizam os discursos
abstratos‖ (BARROS, 2001, p. 117). Já isotopia, termo emprestado da Física, designa, em semiótica, a reiteração,
recorrência de traços semânticos que garantem a coerência de um texto (BARROS, 2001, p. 124).

Apresentados os níveis do percurso gerativo que serão contemplados nas análises, cumpre agora explicar
as possibilidades de apreensão de efeitos de sentido suscitados nas chamadas relações semissimbólicas. O
semissimbolismo ocorre quando o plano de expressão não se limita a veicular o sentido. Nesse caso suas
categorias podem contrair relações significativas com categorias do plano de conteúdo.

Trata-se de um conceito elaborado por Greimas & Courtés (2008) e amplamente desenvolvido por
Floch (1985). Nos textos com elementos visuais, segundo Floch (1985, p. 14), estabelece-se uma relação entre o
visível e o inteligível, ―em que os dois termos de uma categoria do significante podem ser homologados àqueles
de uma categoria do significado80‖. Desse modo, os conteúdos presentes no texto podem estabelecer correlações
com os elementos de seu plano de expressão, como a espacialidade, as formas e/ou as cores, como veremos nas
análises a seguir.

3. Análise dos textos

Os textos sincréticos selecionados para análise neste trabalho (vide anexos) são capas do caderno de
esportes do jornal Folha de S. Paulo. Neles, como explicaremos a seguir, há uma problematização do esporte de
um ponto de vista político e uma construção de representações negativas de determinados atores sociais que
exercem alguma forma de poder nesse domínio. A organização interna do texto, em outros termos, nos permite
observar traços de uma interdiscursividade que concorre para um viés argumentativo.

O texto 1 deixa claro o que dissemos no parágrafo anterior. Nele percebemos elementos tanto de um
discurso do esporte quanto de um discurso político e burocrático. O texto aborda a gestão do então Ministro do
Esporte Orlando Silva, do Partido Comunista do Brasil, o PC do B. Nessa abordagem o discurso político de

80 Tradução nossa de: ―où les deux termes d‘une catégorie du signifiant peuvent être homologues à ceux d‘une catégorie du
signifié‖.
204
esquerda é retomado para ser subvertido em um discurso de denúncia de mau uso do dinheiro e do cargo
público para favorecimento a amigos e aliados.

O discurso de esquerda se faz presente nesse texto sincrético graças a elementos das duas linguagens que
formam o seu plano de expressão. Note-se que a imagem que serve de fundo para a parte verbal é a de uma obra
e que nela há ainda, mais no alto, um trabalhador, elementos visuais que remetem ao discurso de esquerda. No
que diz respeito à linguagem verbal, é possível observar de forma destacada ―distribuição de renda‖, expressão
que aponta para um das bandeiras da esquerda.

O texto em análise recupera o discurso de esquerda, no entanto, com uma finalidade argumentativa de
criar incompatibilidades, técnica que Perelman & Olbrechts-Tyteca (2005), no Tratado da argumentação, incluem
entre aquelas relativas aos chamados argumentos quase lógicos. O discurso de esquerda é, por isso, confrontado
com as práticas, segundo o texto, adotadas pelo ministro comunista. O uso da expressão ―distribuição de renda‖
está aqui relacionado, portanto, à ironia, que ocorre quando se afirma no enunciado e se nega na enunciação
(FIORIN, 2006, p. 79). A distribuição de renda do enunciado revela-se, na enunciação, mau uso do dinheiro e do
cargo público, já que o então Ministro ―banca obras de aliados, amigo e parente‖, figura que remete ao tema da
corrupção.

Esse tema não é concretizado apenas pela figura apontada anteriormente, mas é também evocado por
elementos do plano de expressão visual, os quais ajudam a compor a ironia na retomada do discurso de esquerda.
A imagem que integra o texto, por exemplo, é a de uma obra em mal estado custeada pela pasta do esporte. Mas,
sobretudo, nessa imagem é possível observar ainda uma grande quantidade de lama, que metaforicamente remete
ao tema da corrupção e desconstrói o discurso de esquerda do ministro denunciado.

O texto 1, desse modo, aborda o esporte a partir sobretudo de uma perspectiva político-burocrática.
Nele há uma interdiscursividade em que se pode observar a referência ao discurso de esquerda para desconstruir
a imagem do então ministro Orlando Silva.

Passamos agora à analise do texto 2, um texto anterior à Copa do Mundo de futebol na África do Sul,
em 2010, ocasião em que o técnico da seleção brasileira era o ex-jogador Dunga. Vamos nos ater agora tanto a
elementos do nível discursivo, como fizemos na análise anterior, quanto do nível fundamental do percurso
gerativo de sentido. Vamos nos valer ainda do conceito de semissimbolismo, que explicamos anteriormente.

Há pelo menos dois elementos verbais que chamam nossa atenção no texto: 1) o uso do pronome
possessivo em ―Ricardo Teixeira e seu técnico, Dunga‖ (no alto à direita), o que indica que não se trata do técnico
da seleção brasileira, mas o técnico de Teixeira; e 2) o verbo e seu modificador em ―controla de perto‖, os quais
dão a ideia de que Teixeira exerce um controle rigoroso sobre o trabalho do treinador, repetindo, segundo o
enunciador-jornalista, o que se deu na Copa de 2002.

Esses dados revelam o exercício do poder pelo então dirigente da Confederação Brasileira de Futebol
sobre o seu técnico e, metonimicamente, sobre o futebol brasileiro, o que concretiza uma forma mais simples e
abstrata de sentido no texto em análise: /liberdade/vs/dominação/. Basicamente o discurso apresenta uma
205
afirmação do termo /dominação/, tido como disfórico, ou seja, negativo, haja vista os elementos apontados. A
afirmação desse termo, por sua vez, pressupõe o seu contrário, a /liberdade/, pois um termo, como já foi dito,
não faz sentido sem o outro.

A linguagem visual coloca em cena os dois atores discursivos de que a matéria trata: o então dirigente da
CBF, Ricardo Teixeira, e o então técnico da Seleção Brasileira de Futebol, Dunga. Este se encontra de cabeça
baixa, encurvado, enquanto aquele se mantém ereto. Essas formas explicitam a condição de sujeição,
subserviência do primeiro em relação ao segundo e a dominação do dirigente sobre o treinador. As formas dos
atores, por isso, configuram a categoria eidética (relativa às formas) /ALONGADO/vs/CONTRAÍDO/,
categoria essa que se relaciona semissimbolicamente à categoria semântica do plano de conteúdo
/liberdade/vs/dominação/ por denotar, respectivamente, agente e paciente da /dominação/.

Em suma, tanto elementos verbais como visuais concorrem no texto, em termos argumentativos, para a
construção de uma imagem negativa de Ricardo Teixeira e de sua gestão na CBF. A sua atuação à frente da
entidade concretiza no discurso analisado uma/dominação/ marcada por um aspecto /durativo/, o que aponta
para uma verdadeira ditadura sobre o futebol brasileiro, representado pelo técnico da seleção nacional.

A abordagem esportiva a partir de um viés político parece ser uma das marcas da Folha de S. Paulo. Isso
pode ser visto também no texto 3, outra capa do caderno de esportes do mesmo jornal. Esse texto foi produzido
um pouco depois do que acabamos de analisar e às vésperas da estreia brasileira na Copa do Mundo de Futebol
de 2010.

No texto as conquistas do treinador Dunga ganham destaque por um caráter ambíguo: elas são tomadas
tanto do ponto de vista esportivo, quanto político-administrativo. O primeiro viés, o mais nítido, pode ser visto,
sobretudo por elementos verbais como ganhar títulos, impor, conquistar, tornar-se absoluto, que, na semântica
discursiva, estabelecem a oposição temática vitória vs derrota. Os elementos destacados são figuras que configuram,
assim, um percurso temático-figurativo da conquista, que denota a trajetória vitoriosa do treinador à frente da
seleção nacional.

As conquistas do treinador, no entanto, como dissemos, têm no texto um caráter ambíguo. Se, por um
lado, elas têm um valor positivo do ponto de vista esportivo, por outro se mostraram meios pelos quais Dunga
obtém outra conquista: a de poder. O trabalho do treinador à frente da seleção nacional de futebol é, desse
modo, problematizado de um ponto de vista político-administrativo, o que passamos a destacar e a explicar
agora.

No alto à direita, aparece a palavra herói, que designa uma personagem central do ponto de vista das
ações, um protagonista, o que parece, pela posição em que está o termo, ser mais a expressão de um desejo do
treinador que um elogio do enunciador. Para essa ideia de centralidade, convergem algumas palavras destacadas
embaixo à esquerda: ganhar, impor, conquistar, absoluto, que apresentam uma espécie de gradação em que a trajetória
de vitórias do treinador se confunde com uma escalada rumo a uma concentração de poder (lembramos que no
texto 2, que é anterior a este que agora analisamos, Dunga aparecia numa posição de sujeição, condição bem
206
diferente da que o texto 3 lhe atribui). Não por acaso, a reportagem na página seguinte, a continuação da matéria
apresentada na capa em questão, tem o sugestivo título: A seleção sou eu.

No nível fundamental do plano de conteúdo, por isso, encontramos a categoria semântica de base
/individualidade/vs/coletividade/. No texto, Dunga concretiza a /individualidade/, que se sobrepõe à
/coletividade/, formada pelos jogadores da seleção brasileira, que são apenas mencionados. O primeiro termo,
por isso, é o disfórico, pois é concretizado como uma centralização de poder pelo técnico, que aparece como
uma espécie de déspota do futebol um pouco antes da estreia do Brasil na Copa de 2010.

Nesse sentido as conquistas do treinador concretizam, sobretudo, tendo em vista o viés crítico do texto,
um percurso fundamental de passagem do eufórico termo /coletividade/ ao disfórico termo /individualidade/.
Legitimado pelas seguidas vitórias e conquistas, o treinador foi se impondo, passando a exercer um
protagonismo negativo, associado a um exercício despótico do poder. Aos poucos a /coletividade/,
anteriormente afirmada, foi sendo negada, pois os jogadores foram se apagando frente à figura do técnico. Desse
modo, o texto afirma, ao final, o termo disfórico /individualidade/, concretizado pelo protagonismo do
treinador, que, por isso, apesar das vitórias, não agrada.

No que diz respeito às relações semissimbólicas, estas são estabelecidas no texto a partir da categoria
semântica /individualidade/vs/coletividade/. Observando o plano de expressão visual, notamos que Dunga é o
único ator aparente e que este ocupa o centro e a frente da imagem, enquanto o fundo e as extremidades são
ocupados por uma arquibancada desfocada e aparentemente vazia, que praticamente emoldura o treinador.
Dessa maneira, a categoria do plano de conteúdo /individualidade/vs/coletividade/ se relaciona com as
categorias topológicas do plano de expressão /CENTRALIDADE/vs/EXTREMIDADE/ e
/ENGLOBADO/vs/ENGLOBANTE/. Esses elementos do plano de expressão, por isso, ajudam a dar forma
à crítica contida no texto, crítica segundo a qual o treinador Dunga exerce um protagonismo negativo e um
poder centralizador, à semelhança de um déspota.

4. Conclusão

Nos textos selecionados, como procuramos demonstrar, pode-se perceber uma abordagem do futebol
apoiada em uma interdiscursividade que relaciona o discurso esportivo ao discurso político. Essa abordagem, ao
mesmo tempo, permite que se veja um componente argumentativo em que o enunciador-jornalista, valendo-se
de uma imagem prévia do enunciatário, organiza elementos da linguagem verbal e visual de modo a gerar efeito
de sentido de crítica em relação a determinados atores sociais.

Isso demonstra, de um lado, que os textos sincréticos devem ser tomados como um todo de sentido
expresso pelas diferentes linguagens mobilizadas. Nos textos com plano de expressão verbal e visual, como os
analisados, as formas, o cromatismo e os dados topológicos da expressão podem ser significativos, não se
207
resumindo a elementos decorativos. De outro lado, a análise que fizemos demonstra que a argumentação não se
resume a certos gêneros, mas está ligada, numa concepção mais ampla, à própria realização do ato de linguagem.

REFERÊNCIAS:

BARROS, Diana L. P. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. 3. ed. São Paulo: Humanitas; FFLCH/USP,
2001.

FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2006.

FLOCH, Jean-Marie. Petites Mythologies de l‟oeil et de l‟esprit: pour une sémiotique plastique. Paris/Amsterdã: Hadès-
Benjamins, 1985.

FOLHA DE SÃO PAULO. O cartola das copas. Capa do Caderno de Esportes. 30 mai. 2010.

_____. U herói. Capa do Caderno de Esportes. 15 jun. 2010.

_____. Distribuição de renda. Capa do Caderno de Esportes. 13 mar. 2011.

GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2008.

LARA, Glaucia M. P.; MATTE, Ana Cristina F. Ensaios de semiótica: aprendendo com o texto. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira; Lucerna, 2009.

PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação. A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes,
2005.

Anexos
208
Texto 1

Texto 2

Texto 3
209
210
METÁFORA CONCEPTUAL: CONDIÇÕES EM QUE REALMENTE
ACONTECEM AS COISAS (METÁFORAS) DO QUE ÀS COISAS MESMAS
CONCEPTUAL METAPHOR: CONDITIONS IN WHICH THINGS
ACTUALLY HAPPEN (METAPHORS) THAN THE SAME THINGS
Cristiane Fernandes Moreira81

Orientadora: Professora Doutora Teresa Leal Gonçalves Pereira 82

RESUMO: Quando tratamos sobre a metáfora, é comum pensarmos imediatamente como recurso estilístico
essencialmente da linguagem poética. Essa noção mais antiga de metáfora no Ocidente vem de Aristóteles.
Entretanto, há teorias atuais que vêm propor uma ruptura com essa visão corrente da metáfora. Ao apresentar as
principais características da Linguística de base cognitiva, Lakoff e Johnson, por exemplo, contrapõem essa base
filosófica: a do chamado realismo objetivista. Propõem tais estudiosos uma base experiencialista da linguagem
que, embora tenha em comum com o objetivismo a crença na possibilidade de um conhecimento estável sobre o
mundo, parte do princípio de que os conceitos não só se desenvolvem a partir do organismo humano, mas
também a partir da experiência humana, individual e coletiva. A organização do sistema conceitual de base
experiencialista, proposta por Lakoff e Johnson, assenta-se em duas questões fundamentais: a estrutura desses
conceitos e a significatividade. Por serem esses conceitos estruturados tanto internamente, quanto entre si, à
organização do sistema conceitual decorre, também, de um funcionamento cognitivo cuja organização pode ser
identificada e analisada. A hipótese central é a de que na base das formas linguísticas está a função pautada nas
experiências e interações do homem com o meio. As atividades linguísticas são processos de constante
elaboração do mundo indispensáveis na construção do conhecimento. Assim, as metáforas conceptuais formam
modelos cognitivos com estruturas da organização do conhecimento. Nesse sentido, a proposta de estudo aqui
apresentada é pautada no diálogo sobre a metáfora com a intenção de apresentar uma trajetória que perpassa de
Aristóteles à Lakoff, a fim de compreender como o significado não reflete a realidade baseada no mundo
objetivista, dissociada do que as pessoas observam e vivenciam, pelo contrário, a linguagem reflete estruturas
conceptuais baseadas na experiência das pessoas e no conhecimento. Para tanto, far-se-á uso do procedimento
metodológico pautado na análise de protótipos e do PIM-Processamento de Identificação de Metáforas, um
princípio adotado pelo Grupo Pragglejaz, que identifica a metáfora a partir da diferença entre o significado
contextual do termo veículo (domínio fonte) e o mais básico (muitas vezes o significado concreto do termo), e a
transferência potencial do significado ou interação entre os dois significados. O interesse também é identificar
metáforas conceptuais a partir das análises sistemáticas de expressões metafóricas e ou linguísticas tomando
como objeto dados empíricos provenientes da língua de especialidade da pesca artesanal da comunidade de
Baiacu-Vera-Cruz-Bahia. Nesse sentido, esse trabalho tem um caráter indicativo, mas sugere, como interesse da
autora, que se dirija mais às condições em que realmente acontecem as coisas (metáforas) do que às coisas
mesmas.

Palavras-chave: Metáforas; Metáfora conceptual; Cognição; Língua de especialidade.

ABSTRACT: When dealing on the metaphor, it is common to think of immediately as essentially stylistic
feature of poetic language. This older notion of metaphor in the West comes from Aristotle. However, there are
current theories that come to propose a break with this view of the current metaphor. At present the main
features of the basic cognitive linguistics, Lakoff and Johnson, for example, opposed this philosophical basis: the
so-called objectivist realism. Propose such a base experientialist scholars of language, although in common with
Objectivism belief in the possibility of a stable knowledge about the world, assumes that concepts not only

81
MOREIRA, Cristiane Fernandes. Estudante de Pós-graduação em Língua e Cultura pela UFBA-Universidade Federal
da Bahia. Bolsista de produtividade científica pela CAPES- Bolsa Sanduíche– Processo nº12491128, a partir de
setembro de 2013. Emails: [email protected], [email protected]. Endereço: Rua Emídio dos Santos, 285,
Edifício Ana Maria, apt. 303-Barbalho, CEP 40301015, Salvador-Bahia. Telefone: (71) 9163-7918.
82
Instituição de ensino UFBA-Universidade Federal da Bahia. E-mail [email protected].
211
develop from the human body, but also from of human experience, individual and collective. The organization
of the conceptual system based experientialist proposed by Lakoff and Johnson, based on two fundamental
issues: the structure of these concepts and significance. Why are these concepts structured both internally and
with each other, the organization of the conceptual system derives also from a cognitive operation whose
organization can be identified and analyzed. The central hypothesis is that the basis of linguistic forms is the
function guided the experiences and interactions of man with the environment. Activities linguistic processes are
constantly developing the world's indispensable in the construction of knowledge. Thus, the conceptual
metaphors form structures with cognitive models of knowledge organization. In this sense, the proposed study
presented here is guided dialogue on the metaphor with the intention of presenting a trajectory that passes from
Aristotle to Lakoff, in order to understand how the meaning does not reflect the reality based world objectivist
dissociated than People look and experience, however, reflects the language frameworks based on experience
and knowledge of the people. To do so, far it will use the methodological approach guided the analysis of
prototypes and PIM-Processing Identifying Metaphors, a principle adopted by the Group Pragglejaz, which
identifies the metaphor from the difference between the contextual meaning of the term vehicle ( source
domain) and the most basic (often the concrete meaning of the term), and the potential transfer of meaning or
interaction between the two meanings. The interest is also identify conceptual metaphors from the systematic
analysis of metaphorical expressions and taking as object or linguistic empirical data from the specialized
language of the fishing community Baiacu-Vera-Cruz, Bahia. In this sense, this work has an indicative character,
but suggests as interest the author, who is head over the conditions under which things actually happen
(metaphors) than to the things themselves.

Keywords: Metaphors; Conceptual metaphor; Cognition; Specialized language.

APRESENTAÇÃO

O tema a ser tratado no presente artigo permite tecer um diálogo sobre a metáfora, a partir do pensamento de
diversos autores. É preciso ressaltar, porém, que problemas remanescentes são de minha total responsabilidade.
Fruto dos questionamentos de alguns pesquisadores83, Metáfora conceptual: condições em que realmente acontecem as
coisas (metáforas) do que às coisas mesmas constitui-se como uma diretriz para um dos capítulos de minha tese.
Pode-se dizer, portanto, que se busca construir uma amostra observável quanto à natureza do objeto de estudo.

A METÁFORA: de Aristóteles à Lakoff

O que é metáfora? Qual é o lugar da metáfora no aspecto da constituição do significado? Será que alguns
conceitos na língua de especialidade da pesca não seriam apenas uma predicação? Como inferir a metáfora a
partir dessa predicação? Como assegura a professora Pelosi84 (2012), devo estar preparada para responder estas
perguntas. Consciente dessa difícil tarefa, revisto-me dos embasamentos teóricos de alguns pesquisadores, a fim
de sustentar meus argumentos.

Assim, ao tecer considerações acerca da trajetória dos estudos sobre a metáfora, ouso apresentar
formulações teóricas de diversos investigadores, partindo das ideias de Aristóteles até as mais contemporâneas.
Mas, reconhece-se que os escritos apresentados pela autora são limitados.

Prontamente, trabalhando nessa confluência, sabe-se que um dos princípios, uma das primeiras
declarações sobre a metáfora se destina aos gregos, e deve-se a Aristóteles a parcela dessa contribuição. Nesse
sentido, os questionamentos acima levantados fomentam o entendimento de que o estudo da metáfora, em sua

83 Um agradecimento especial a Professora Doutora Ana Cristina Pelosi, a minha orientadora, Professora Doutora Teresa
Leal Gonçalves Pereira, e ao Grupo de pessoas, em geral, que trabalham com a temática da metáfora, da cognição e da
linguagem que, desde os meus primeiros passos em compreender sobre esse assunto tão denso, em muito contribuíram/em
para esclarecer a minha ignorância sobre o assunto. Obrigada pela paciência e pelo percurso que vai desde 2008 até os dias
atuais e futuros, seja na qualidade de ouvinte na ANPOLL, seja na de participante em outros congressos, seminários e
outros eventos de cunho científico.
84 Via trocas de e-mail e conversas em corredores durante congressos.
212
origem, não integrava os estudos da língua, pertencia ao campo da Retórica e do discurso poético. A metáfora
passa a ser entendida como um estudo de figuras de linguagem. Uma concepção artística de uso da língua, uma
figura verbal, uma função decorativa. Essas primeiras referências sobre a metáfora estão em Aristóteles (unidade
metafísica), que a define como ―a transferência para uma coisa do nome de outra, ou do gênero para a espécie,
ou da espécie para o gênero, ou da espécie de uma para o gênero de outra, ou por analogia.

Ainda que se saiba que a noção mais antiga de metáfora no Ocidente deriva de Aristóteles, para quem
uma metáfora é o uso do nome de uma coisa para designar outra, é possível assegurar que o desenvolvimento da
reflexão sobre a temática pode ser pesquisado em várias perspectivas, desde a clássica tradição aristotélica até as
mais recentes teorias da metáfora, a exemplo da TMC-Teoria da Metáfora Conceptual. Consoante a essa ideia,
apresenta-se, então, uma investigação experiencialista para este trabalho o qual se revela enquanto metáfora no
pensamento como sistema (metáforas conceptuais, instâncias culturais), experienciado pela língua de
especialidade da pesca.
Desde Aristóteles, ou antes, mesmo, com os pré-socráticos, a metáfora tem sido colocada no contexto
de uma teoria mimética da linguagem e da arte, é o mito do objetivismo85, conforme ressaltam Lakoff e Johnson
(2002 [1980]). O conceito que se tinha para a metáfora era : [...] A metáfora é a transposição do nome de uma
coisa para outra, transposição do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para
outra, por via de analogia [...] (ARISTÓTELES, 2007, p.75). Proceder este pensamento para a metáfora, certifica-
se de que esta é uma forma de ―transportar para uma coisa em nome de outra‖. Essa concepção é considerada
como um engenho de transporte e de englobamento, conforme assinala Silva, Cândido da (2008), porque se define como
um fenômeno exclusivo da linguagem, um ornamento linguístico característico apenas do texto literário.
Nas versões mais contemporâneas, a metáfora passa a ser objeto de interesse central das ciências
humanas, e especificamente das ciências da linguagem e da psicologia cognitiva: [...] é principalmente um modo
de conceber uma coisa em termos de outra, e sua função primordial é a compreensão (LAKOFF; JOHNSON,
1980; [2002], p.92). Ou ainda,
[...] alternativa experiencialista, dar-se um novo sentido aos velhos mitos, as propriedades que
caracterizam o conceito de objeto são interacionais [...] as propriedades não formam simplesmente um
conjunto, mas uma gestalt86 estruturada com dimensões que emergem naturalmente da nossa
experiência (LAKOFF; JOHNSON, 2002 [1980], p. 213).

A metáfora passa a ser considerada como resultante da seguinte operação mental: um termo contém um
conceito que não está ―visível‖ e este conceito invisível tem uma ligação com outro termo que revela a
invisibilidade do primeiro conceito. Assim é que se pode dizer que uma vasta produção de estudos e pesquisas
sobre a metáfora – com o surgimento de muitas teorias – se deu nos últimos 30 anos, conforme assinala Silva87
(2012). 2
Se quando se tratava sobre a metáfora, era comum se pensar imediatamente no texto literário, em
especial, no seu sentido poético, já que ela foi considerada, por muito tempo, como recurso estilístico
essencialmente da linguagem poética, quer dizer, sua função era de ornamento retórico, a metáfora não passava
de um desvio de um sentido anterior ou, em outro aspecto, como sentido conotado, transformado, além de ser
indesejável no discurso científico. Entretanto, há teorias atuais que vêm propor uma ruptura com essa visão
corrente da metáfora, como a que propõem Lakoff e Johnson, que discute a base conceitual da metáfora e sua
influência na estruturação do pensamento.
Para Lakoff e Johnson (2002. p. 45), o ―conceito metafórico‖ estrutura o pensamento e a ação humana:

[...] a maioria das pessoas acha que pode viver perfeitamente bem sem a metáfora. Nós
descobrimos, ao contrário, que a metáfora está infiltrada na vida cotidiana, não somente na
linguagem, mas também no pensamento e na ação. Nosso sistema conceptual ordinário, em
termos do qual não só pensamos, mas também agimos, é fundamentalmente metafórico por
natureza (LAKOFF; JOHNSON, 2002 [1980], p. 45).

85
Para Lakoff e Johnson (2002 [1980]), p.11), o objetivismo é um termo genérico que engloba o Racionalismo
cartesiano, o Empirismo, A Filosofia kantiana, o Positivismo lógico.
86
Para Ogden e Richards (1972, p.71) a gestalt equivale à ‘configuração’ e serve para explicar as ocorrências
anteriores causadas pelo estímulo original. A partir de uma lógica positivista, estes estudiosos afirmam que as pessoas
organizam várias espécies de significado no uso da linguagem.
87
Em Conferência no 60º GEL.
213
A metáfora é definida como um processo cognitivo próprio do sistema conceitual humano. Nesse
sentido, a formação dos conceitos é orgânica, já que se constitui enquanto princípio estruturante de natureza
psicofisiológica. Esses conceitos dirigem nossos pensamentos, mas não só isso, regem nossas atividades
cotidianas até nas questões mais banais, exercendo ―um papel central na definição de nossa realidade cotidiana‖ ,
de nossas experiências: ―Eles [conceitos] estruturam o que percebemos, a maneira como nos comportamos no
mundo e o modo como nos relacionamos com outras pessoas‖ (LAKOFF; JOHNSON, 2002 [1980], p. 45, 46).
Para exemplificar o conceito metafórico, os autores partem do conceito de ―discussão‖ por meio da metáfora
conceptual DISCUSSÃO É GUERRA.
Esses investigadores têm indicado um lugar importante para se pensar a relação entre a cognição e a
linguagem. Nessa abordagem, a metáfora é compreendida como um intermediário entre pensamento e mundo,
como mediação do real. E assim que, com a publicação do livro Metaphors we live by88, final da década de 70,
Lakoff e Johnson (2002 [1980]) passam a desenvolver pesquisas sobre a metáfora do ponto de vista da cognição.
Essa obra rompe com a tradição retórica e propõe uma mudança paradigmática reformulando a maneira de
conceber a objetividade, a compreensão, a verdade, o sentido e a metáfora. A hipótese que subjaz a esse ponto
de vista é a de que a metáfora está presente na linguagem cotidiana. Nas palavras de Lakoff (2008) ―[…]
Conceptual metaphors are meaningful […]. They are grounded, first, by source domain embodiment, and second
by the embodiment of the source and target domains of the primary metaphors […] 89‖ (LAKOFF, 2008, p. 36).
Alguns resultados têm resistido ao teste do tempo, a exemplo de: as metáforas são mapeamentos
conceptuais, elas fazem parte do sistema conceptual e não meras expressões linguísticas; muitas diferentes
expressões linguísticas podem expressar algum aspecto da mesma metáfora; a metáfora conceptual pode ser
utilizada na compreensão de uma palavra, mesmo que a palavra não esteja realizada no domínio fonte da
metáfora (ver detalhes em LAKOFF, 2008).
Para Lima, Macedo e Farias (2010), desde o início dos anos 90, o fenômeno da metáfora em termos de
seu papel cognitivo tem chamado à atenção de um número cada vez maior de estudiosos brasileiros e
estrangeiros que apresentam trabalhos tanto em base teórica como experimental que se relacionam com a TMC.
Mas, apenas no ano de 2002 a temática é tratada em Congresso (1º foi na PUC-SP) cujo foco é refletir sobre o
papel que a metáfora desempenha na estruturação do pensamento e na motivação da linguagem cotidiana. Para
essas autoras, o trabalho de Lakoff e Johnson (1980) foi o primeiro a apresentar um relato sistemático sobre a
linguagem metafórica a partir da perspectiva de que as chamadas metáforas eram expressões linguísticas
licenciadas por metáforas conceptuais, ou mapeamentos conceptuais. A ideia dessa teoria é a de que tanto a
linguagem verbal quanto a não-verbal usada para expressar percepções e sentimentos, assim como a linguagem
corriqueira do dia-a-dia, são significativamente ligadas a nossa capacidade de conceber uma coisa em termos de
outra (eventos, entidades, conceitos). Esta perspectiva cognitiva deriva de diferentes princípios: o da
especialização , o da generalização90 e o cognitivo. Foi revisitada por meio de uma série de estudos do que veio
chamar-se ‗metáfora primária‟, a exemplo de o trabalho de Joseph Grady com a hipótese da metáfora primária que
busca dar conta de um tipo mais básico ou primitivo de metáfora, que emerge por meio de um processo de
aprendizagem neural, resultante de experiências fortemente correlacionadas de naturezas distintas (uma
perceptual: o domínio-fonte; e uma conceitual:, ou de resposta cognitiva ao input perceptual: o domínio alvo). A
co-ativação de domínios neurais de naturezas diferentes (perceptual/ conceitual) origina as metáforas
conceptuais primárias.
Em resumo, pode-se afirmar que a proposta desses teóricos, para quem a metáfora conceptual consiste
em um mapeamento sistemático (=mapeamentos metafóricos=domínios cognitivos) entre dois domínios: fonte
(source) e o alvo (target) está centrada nas seguintes questões: a) diversas expressões metafóricas podem ser geradas
a partir de metáforas conceptuais? b) a língua pode ser caracterizada através de modelos simbólicos, nos quais se
dá uma relação entre informação linguística e modelos cognitivos; c) os modelos cognitivos podem ser
proposicionais, de esquema em imagem, metafóricos e metonímicos; d) a experiência é categorizada em termos
prototípicos, e é desta categorização que resultam as estruturas radiais.
Nessa linha, a percepção dos sentidos, a experiência de vida, todo o conhecimento prévio de mundo são fatores
determinantes no momento em que são utilizados. Equivale ao que Lakoff e Johnson (2002 [1980]) afirmam

88 Zanotto et alii (2002) traduz como Metáforas da vida cotidiana.


89Metáforas conceptuais são significativas [...]. Elas se baseiam, em primeiro lugar, pela incorporação de domínio de
origem, e segundo pela incorporação da fonte e o domínio alvo das metáforas primárias (Tradução da autora desse
trabalho).

90Processo de especialização explica o sentido; e o de generalização permite derivar os sentidos. Há um movimento de


recriação do sentido, e não um esvaziamento.
214
―nosso sistema linguístico é ideologicamente estruturado e concebemos o mundo com base em nossas
experiências corpóreas‖. Em conformidade com isto, perceber uma experiência de modo significativo quer dizer
estabelecer correspondências entre uma área de experiência já deduzida conceitualmente e outra ainda não
estruturada. Destarte, a experiência torna-se coerente. Em regra geral, a maioria dos conceitos metafóricos
criados baseia-se em experiências físicas conhecidas (detalhes ver LAKOFF, 2002 [1980]; PELOSI, 2008, 2011;
SCHRӦDER, 2004).
A fim de manter essa ponderação, em estudos de Schrӧder (2004), por exemplo, são notórias às ideias
filosóficas em que se mostram algumas teses da metáfora conceptual, dentre as quais se destacam: a tese da
ubiquidade- a metáfora não é uma exceção da criatividade poética ou da retórica-; a tese do domínio-metáforas
não podem ser vistas isoladas, mas conceitualmente. Tais conceitos interligam dois domínios (origem e destino)-;
a tese do modelo- metáforas conceptuais formam modelos cognitivos com estruturas da organização do
conhecimento-; a tese da diacronia- estudos sobre o desenvolvimento histórico de metáforas conceptuais
revelam mudanças de pensamento-; a tese da unidirecionalidade- a relação entre o domínio de origem e o de
destino não é reversível-; a tese da necessidade- a metáfora tem três funções básicas: ela serve para a explicação,
para compreensão e para exploração do mundo social. A base da metáfora encontra-se nas experiências
sensoriais e motoras-; a tese da criatividade- a metáfora é aberta para inúmeros novos caminhos de pensamento-;
a tese da focalização- a descrição da metáfora é parcial. A metáfora destaca certos aspectos do domínio
destinatário e esconde outros (SCHRӦDER, 2004).
A noção de Lakoff e Johnson ((2002 [1980]; 2003; 2008) sobre a metáfora indica particular interesse às
relações entre a cognição, as capacidades cognitivas e as construções categoriais e conceptuais, temas recorrentes
na Linguística Cognitiva. Do ponto de vista de Costa Lima; Feltes; Pelosi (2008), as metáforas conceptuais são
fenômenos relativos aos processos cognitivos experiencialmente orientados os quais são responsáveis pela
geração de estruturas conceptuais de vários tipos. Às vezes, aparecem sutilmente; outras, são mais evidentes:

O que tem sido chamado ‗metáforas conceptuais‘ é um fenômeno pervasivo nos processos
cognitivos experiencialmente orientados, os quais são responsáveis pela geração de estruturas
conceptuais de vários tipos [...]. Uma metáfora conceptual é, portanto, uma construção cognitiva,
baseada nas experiências socioculturais vividas (LIMA COSTA; FELTES; PELOSI, 2008, p. 128-
9).

Em nota, as autoras ressaltam que:


A Teoria da Metáfora Conceptual volta-se, também, para os processos metonímicos dentro da
mesma perspectiva (corpórea) de que trata as metáforas conceptuais. Os mapeamentos são,
entretanto, diferentes, e há diferentes versões, entre autores (por exemplo, Lakoff e Johnson,
Barcelona, Fauconnier e Turner, entre outros), sobre como se dão esses mapeamentos. [...] Lakoff
sustenta que: ‗são representados estruturalmente pelo esquema CONTAINER, e o mapeamento é
representado pelo esquema ORIGEM-PERCURSO-META [...] há uma estrutura conceptual
contendo tanto A como outro conceito B [...] sendo assim, um modelo metonímico é um modelo
de como A e B estão relacionados na estrutura conceptual, sendo a relação especificada por uma
função de B para A (LIMA COSTA; FELTES; PELOSI, 2008, p.141).

Para Lakoff e Johnson (2002 [1980]) , a representação mental precede a realização linguística. As
metáforas conceptuais são, geralmente, corporificadas, isto é, possuem uma base no corpo humano. a mente
corpórea é a premissa da Corporificação (Embodiment91). Nela, as experiências por meio das ações do corpo são
responsáveis por parte do embasamento da linguagem e do pensamento. Dessa forma, entende-se que a
cognição é o resultado das interações entre o corpo e o ambiente físico e cultural, por isso, ele deve ser estudado
em termos de interações dinâmicas entre as pessoas e o ambiente. As metáforas conceptuais podem interagir,
gerando sistemas metafóricos complexos. Lakoff (1985) descreve um tipo particular de sistema metafórico, que
denomina ―metáfora de estrutura de evento‖. Trata-se de uma série de metáforas que interagem para que se
chegue à interpretação de outra, mais geral. Por exemplo, a metáfora VIDA É VIAGEM pode ser composta
pelos seguintes sistemas metafóricos (ESTADOS SÃO LOCAIS; MUDANÇA É MOVIMENTO, METAS
SÃO DESTINOS etc). Várias construções diferentes podem expressar a mesma metáfora. As metáforas
conceptuais dão lugar a uma série de generalizações polissêmicas. Os exemplos são projeções metafóricas,
herdam a estrutura dessas metáforas específicas no âmbito do complexo metafórico de estrutura de evento. A
estrutura conceptual e a linguagem do domínio-fonte são usadas para retratar uma situação no domínio- alvo. A

91O termo embodiment ou corporalidade é referente à capacidade de um organismo valer-se de seu corpo físico na interação,
percepção e apreensão cognitiva do ambiente em que está inserido.
215
hipótese central é a de que na base das formas linguísticas está a função pautada nas experiências e interações do
homem com o meio. Eis abaixo uma possível representação:

CORPORIFICAÇÃO CULTURA

Propriedades prototípicas Valores para as propriedades e suas distribuições

Figura 1. Motivações conceptuais sobre a metáfora

Em outras palavras, existe uma mudança de propriedades prototípicas e valores fundamentados na base
cultural ou, de acordo com a terminologia de Kövecses (2005), um foco experimental diferente. Diferentes
aspectos funcionam diferentemente na metáfora conceptual dos domínios particulares F e A. Essa motivação
descrita em função de propriedades prototípicas é fundamentada na própria conceitualização e experiência de
mundo.

De acordo com Ferrari (2011) LC, isso envolve a inter-relação de forma e significado, a dinamicidade da
gramática, a codificação da perspectiva do falante na forma linguística, a não autonomia entre os sistemas
cognitivos (não modularidade, a cognição não modular) e a base experiencial (corporal e sensório-motora) da
linguagem. Sob essa perspectiva, as palavras não contêm significados, mas orientam a construção do sentido. A
concepção da linguagem humana como instrumento de organização, processamento e transmissão de
informação semântico-pragmática. Assim, a autora afirmar que, embora reconhecendo a existência da realidade
externa, o realismo experiencialista estabelece que dada a forma e configuração de nossos corpos e cérebros,
estabelecemos necessariamente uma perspectiva particular entre várias perspectivas possíveis e igualmente viáveis
em relação ao mundo (melhores detalhes ver FERRARI, 2011).
Para Cameron (2009), na visão da linguística cognitiva, acredita-se que a metáfora é constituída por uma
variedade de componentes que interagem uns com os outros. Entre esses componentes são: base experiencial
(escolha de determinados DF e DA); domínio-fonte; domínio-alvo (a relação entre ambos um domínio-fonte
pode ser aplicado a vários outros e vice-versa); relação entre a fonte e o alvo; expressões linguísticas metafóricas
(os pares específicos de DF e DA originam expressões linguísticas metafóricas); mapeamentos (correspondências
conceptuais entre os domínios); desdobramentos (são desdobramentos ou inferências do domínio-fonte);
mesclagem (integração conceitual= a relação entre DF e DA resulta em domínios conceptuais novos);
atualizações não linguísticas (as metáforas conceptuais se atualizam também não somente da linguagem e do
pensamento, mas da realidade social); modelos culturais (configurações conceptuais estruturadas). Nesse sentido,
o discurso é tido como resultante da interação de múltiplos sistemas complexos (são sistemas de elementos
conectados e interagentes e incluem mente/cérebro, linguagem e recursos conceptuais) dinâmicos que operam
em vários níveis e escalas cronológicas. São não lineares. Linguagem metafórica e pensamento metafórico são
interdependentes, como um processo dialógico do falar-e-pensar.
A partir do final da década de 90, linhas de pesquisas como a de Cameron propõe um novo foco para a
linguagem metafórica, a partir das abordagens do discurso (falado/ e escrito) e da análise de corpus (Cameron,
Deignan, Semino, etc). De acordo com Cameron (2009):

[...] Esse deslocamento de foco para o discurso leva em consideração ideias da teoria cognitiva da
metáfora no pensamento e a natureza convencionalizada de muitas metáforas; entretanto, ele
também estabelece uma relação entre o conceptual e o linguístico, tanto na teoria quanto em
estudos empíricos (CAMERON, 2009, p.145).

Ela defende a ideia de que a metáfora não é mais vista como uma rede sistemática de conexões mentais
realizadas através da linguagem, por meio de uma relação unidirecional. ―[...] Defendemos a visão de que a
relação entre a linguagem e o pensamento é uma via de mão dupla em um sistema complexo e único. Nessa
perspectiva, a metáfora emerge da dinâmica da linguagem e do pensamento, sendo, ao mesmo tempo, conceptual
e linguística‖ (CAMERON, 2009, p.147).
216
Para Kövecses (2009), os linguistas cognitivistas deram grande atenção, até agora, para a notável
universalidade de várias metáforas conceptuais:

Essa situação lança um desafio aos cientistas cognitivos e aos linguistas que trabalham com
metáfora: pode a visão da linguística cognitiva sobre metáfora explicar, ao mesmo tempo,
universalidade e diversidade no pensamento metafórico? (KÖVECSES, 2009, p.258).

Com isso, o autor pretende desenvolver uma teoria atualizada e relativamente abrangente sobre a
metáfora demonstrando tanto a universalidade (diversas línguas não relacionadas compartilham inúmeras
metáforas conceptuais) quanto à especificidade (variação= diversidade entre culturas, quanto dentro de uma
mesma cultura) da conceptualização metafórica. Para ele, a metáfora é linguística, conceitual, neural, corpórea e
social ao mesmo tempo. Isso porque, a base corpórea universal, sobre a qual as metáforas universais poderiam
ser construídas, não é utilizada da mesma forma ou na mesma proporção em línguas e variações diferentes.A
noção que o autor esclarece sobre esse assunto é a de ―foco experiencial diferenciado. Isso quer dizer que povos
diferentes podem estar direcionados a aspectos diferentes do funcionamento do seu corpo em relação a um
domínio-alvo, ou que elas podem ignorar ou subestimar certos aspectos do funcionamento do seu corpo no que
diz respeito à conceptualização metafórica de um domínio-alvo. Isto é, a base experiencial universal, em vários
casos, não leva necessariamente a uma conceptualização universalmente equivalente. E que a questão da variação
é tão importante quanto à corporificação universal. Para ele, a construção do significado deveria ser a questão
central no estudo da cultura e da linguagem, uma vez que há conexões evidentes entre elas em vários conceitos
metafóricos. Argumenta ainda o autor que as culturas podem diferir no uso de alguns dispositivos de construção
do significado, tais como orientação espacial de objetos circundantes, categorizações baseadas em frames e
similaridade, representação do conhecimento na mente.
Conforme Vandaele (2009), com essas suposições, é possível se aproximar de duas teses fundamentais
da teoria cognitiva da metáfora, tal como formuladas por Olaf Jäkel (2003), e mencionada anteriormente por
Schrӧder (2004): a ‗tese do modelo‘, que sugere que as metáforas conceptuais formam modelos cognitivos com
estruturas da organização do conhecimento e a ‗tese da necessidade‘, segundo a qual a metáfora tem três funções
básicas: ela serve para a explicação, a compreensão e a exploração do mundo social e baseia-se em nossas
experiências sensoriais e motoras. O foco de Lakoff e Johnson reside no entendimento dessa ligação como uma
interação através de um mapeamento unidirecional.
Como assegura Morato (2002), esforços teóricos importantes têm sido feitos na tentativa de verificar o
que há de linguístico na cognição humana e qual é, basicamente, o seu estatuto. Não pretendendo ser um sistema
fechado, cabal.
As explicações de ordem cognitiva aventadas por Lakoff e Johnson ([1980]; 2002), e demais outros
autores preocupados com a temática, procuram esclarecer, como consequência do dualismo ontológico, o
fenômeno mental (cognitivo) ter sido primariamente vinculado ao biológico, e concebido praticamente à
linguagem.
Na perspectiva de Casasanto (2011), as práticas culturais podem representar metáforas mentais não de
forma como prever a linguagem. É a relatividade experimental da metáfora mental, i.e., a hipótese da
especificidade do corpo (ex. sinistro e destro para direita e esquerda) = a influência motora no domínio da
mudança). Temos uma experiência do corpo na metáfora mental (conceptual), a experiência corpórea pode
formar uma ou algumas metáforas mentais, pois pensamento depende de cultura.
É assim que, de acordo com Vereza (2010), um dos maiores desafios dos estudos mais recentes da
metáfora é articular, sistematicamente, a dimensão linguístico-discursiva à dimensão cognitiva da figuratividade.
Vereza propõe a pesquisa a partir da metáfora ―niche92‖, isto é, a articulação entre o discurso e a dimensão
cognitiva da metáfora em textos. Assinala ainda que uma das críticas a TMC é que esta compreende que a
metáfora é altamente convencional de estruturas conceptuais estáticas. A versão standard opera com exemplos
linguísticos minimamente contextualizados de hipóteses de metáforas conceptuais. Estas são constituídas por um
conjunto de mapeamento entre domínio fonte e o alvo que são assumidos por estruturas conceptuais estáticas.

92
Os “niches” são networks (=rede esquemática) ou figurative chains presentes em alguns textos argumentativos, i.e.,
um grupo de expressões metafóricas. A proposta de Vereza é a de que a linguagem metafórica contribui para a
linguística, cognitiva e pragmaticamente, e para o poder argumentativo do discurso, para o entailments coesivo do
texto.
217

MÉTODOS E TÉCNICAS

Antes de argumentar sobre a metodologia utilizada é preciso registrar o que compreende Gibbs (2010)
acerca desse assunto. Para ele, existem vários problemas metodológicos associados com a especificação de
significados metafóricos e quanto ao modo de como as pessoas chegam a entender tais significados. O
significado metafórico, e o modo pelo qual esses processos são compreendidos, é sempre relativo para um
número de fatores, e nem todas as pessoas interpretam significados metafóricos de maneira similar. O
entendimento de metáfora requer que as pessoas conheçam certas coisas sobre o domínio fonte, e as pessoas
necessitam ter tempo suficiente para acessar essa informação e aplicar em variadas interpretações possíveis. O
entendimento e a interpretação da metáfora diferem a depender do contexto. Assim percebido, a complexidade
do significado metafórico e de seu entendimento, faz com que o pesquisador recorra a uma metodologia
empírica, pautada na investigação da linguística de corpus. Mas, considerando sempre o que Gibbs salienta.

Sendo assim, o corpus desta pesquisa constitui-se a partir dos dados obtidos das entrevistas realizadas por
Moreira (2010) para a sua dissertação de Mestrado acerca de as denominações para os pescadores e os apetrechos
de pesca da comunidade de Baiacu - Vera Cruz - Bahia, com informantes da área da pesca daquela localidade, e
de leitura e levantamento bibliográfico referentes às informações acerca do tema proposto. Como
procedimentos, utilizam-se de coleta e análise dos dados, por prototípia e do PIM. O método é empírico e segue-
se o modelo de pesquisa descritiva e qualitativa. Ressalta-se que a descrição utilizada na análise dos resultados é
grafemática, conforme proferida pelos informantes, a fim de manter a integridade e fidedignidade dos dados.

A fonte: constituição do corpus93 e técnicas de pesquisa

O corpus é relativamente recente e representativo, com dados linguísticos provenientes da variedade da


língua oral. A esse respeito, cabe citar Siqueira et al. (2007):

[...] não é a recorrência do item lexical metafórico de uma atualização linguística que vai
representar a produtividade da sua metáfora conceitual, mas sim as atualizações
linguísticas metafóricas em si [...] a produtividade metafórica indica o grau de
metaforicidade da sua atualização linguística [...] pode servir como um fator
representativo da recorrência de uma metáfora conceitual dentro dos diversos
contextos que compõem o corpus (SIQUEIRA et al., 2007, p.186).

Inicialmente, a análise das ocorrências metafóricas tomou como base o PIM-Procedimento de


Identificação de Metáforas. Esse procedimento sistematiza um conjunto de métodos que refletem o processo de
identificação de metáforas linguísticas, e envolve, entre outros critérios: leitura das unidades /conceitos,
definições e observações do dicionário; identificação dos itens lexicais potencialmente metafóricos; determinação
do seu significado no contexto; busca por um significado mais básico do item lexical; comparação dos
significados contextual e mais básico desses itens, e no caso de oposição, marcação do item lexical como
metafórico (cf. PRAGGLEJAZ, 2009; SIQUEIRA et al., 2007).

O PIM é assim detalhado:

1. Ler todo o texto/ discurso para estabelecer um entendimento geral do seu significado.
93
O conceito de corpus aqui corresponde ao explorado por Deignan (2008) para quem corpus pode ser qualquer
coleção de textos falado ou escrito. Estes podem consistir no trabalho de um único autor, de certo número de
questões de um ou mais jornais, de coleções de dados transcritos da fala ou mais amplamente baseado em coleções
de uma série de tipos de texto. Os temas linguísticos que podem ser investigados com um corpus variam (cf.
DEIGNAN, 2008, p.282).
218
2. Definir as unidades lexicais do texto/discurso
3. (a) Para cada unidade do texto, determinar o seu significado no contexto, isto é, como ele se refere a
uma entidade, relação ou atributo na situação evocada pelo texto (significado contextual). Levar em
conta o que antecede e o que precede a unidade lexical.
(b) Para cada unidade lexical, determinar se há um significado atual mais básico em outros contextos
do que no contexto que estão. [...] significados básicos tendem a ser:

- mais concretos (o que evocam é mais fácil de imaginar, ver, ouvir, sentir, cheirar e sentir o gosto);

- relacionados ao funcionamento do corpo;

- mais precisos (em oposição a vagos);

- historicamente mais antigos;

Significados básicos não são necessariamente os mais frequentes da unidade lexical. Se a unidade lexical tem
um significado atual/ contemporâneo mais básico em outros contextos do que no contexto em questão,
decidir se o significado contextual se opõe ao significado básico, mais pode ser entendido em comparação a
ele.

4. Se sim, marcar a unidade lexical como metafórica (cf. detalhes em Grupo PRAGGLEJAZ, 2009,
p.79).
O Grupo assegura que:

[...] Uma das aplicações mais importantes do PIM é que o conjunto de etapas permite
aos pesquisadores saberem em que pontos não concordam, e também permite apontar
a razão pela qual se presume que uma palavra tenha significado metafórico no contexto
(PRAGGLEJAZ, 2009, p.90).

O procedimento que o Grupo adota é macro estrutural, de modo que se e possível considerar um
maior número de palavras que possua um significado metafórico a partir do seu uso no contexto, para se
determinar se certas palavras no contexto possuem significado metafórico. Alguns destes procedimentos
foram utilizados nesta pesquisa, devido ser avaliados pelos especialistas em metáforas como um método
confiável na identificação de metáforas.

As ocorrências metafóricas foram divididas a partir de casos prototípicos. E tal como averiguou alguns
autores que já se debruçaram em torno da protipicidade, observou-se que existe um continuum de sentido, sendo
que um ou mais sentidos concretos podem ser considerados mais centrais ou prototípicos de uma família de
sentidos relacionados. As extensões metafóricas estão entre os principais motivos da polissemia das
unidades/conceitos. Foram considerados casos prototipicamente metafóricos aqueles em que foi possível
determinar satisfatoriamente uma diferença entre um uso metafórico (mais abstrato) do item lexical no contexto
apresentado pela língua de especialidade da pesca e um uso literal (mais concreto ou mais básico).

Ao que se segue, a metodologia consiste em pesquisa bibliográfica e pesquisa de campo na justificativa


de analisar teórica e empiricamente o processamento da metáfora. A base para a pesquisa é experiencialista,
conforme desenvolvida em estudos de Lakoff ; Johnson (2002 [1980]; 2003; 2008), e de outros pesquisadores94.

Para o procedimento de análise dos dados, apenas metáforas que são usadas para expressar conceitos
foram codificadas em conjunto com suas expressões, pois contribuíram para a descrição do corpus em um
processo construído sobre a base do significado. Para cada categoria, o componente de significado com a maior
frequência na base de dados foi selecionado como ponto de partida de investigação. O recurso ao corpus
justificou-se na medida em que aquilo que se encontra em observação é o uso dos termos, e não a estrutura

94
Tais estudiosos recorrem aos métodos que relacionam linguagem, introspecção, uso, discurso aplicado à realidade.
219
interna. Em seguida, os dados foram organizados de acordo com a categoria das metáforas conceptuais, de modo
a obter uma imagem mais clara dos mecanismos metafóricos mais produtivos na língua de especialidade da
pesca.

O corpus

O corpus desta pesquisa constituiu-se a partir da análise de um corpus sincrônico, com base nas aplicações
de inquéritos linguísticos com pessoas que trabalham na pesca da comunidade do Baiacu/Vera Cruz/Bahia,
sendo trinta 34 (trinta e quatro) homens e uma 01 (uma) mulher, todos eles com idade compreendida entre 21 e
86 anos. A maioria estudou até a primeira série do primeiro grau, conhecido atualmente como segundo ciclo do
Ensino Fundamental. As entrevistas duraram cerca de 40 minutos, no mínimo, ou 2 horas de duração. No que
tange à transcrição dos inquéritos, alguns critérios foram obedecidos:

 1. Sinais adotados nas transcrições:


 uma pausa menor é indicada por meio de reticências [...], uma maior, por meio de reticências entre
parênteses [(...)];
 Incompreensões, dúvidas e suposições de algumas unidades conceituais foram indicadas pelo ponto
de interrogação [?];
 as explicações do inquiridor figuram entre parênteses duplos [(( ))];
 cortes de trechos de fala são indicados por colchetes [[...]];
 Os nomes dos informantes são indicados apenas pelas iniciais maiúsculas;
 2. Sobre o contexto das unidades conceituais:
• a transcrição é grafemática;
• todas as formas foram transcritas da mesma maneira que realizadas pelo falante, compreendendo os
termos e ou unidades/conceitos que são objetos da questão e o contexto em que estão inseridos;
• as metáforas conceptuais aparecem escritas em letras maiúsculas, devido à convencionalidade;

• o contexto em que se encontram as unidades/conceitos está registrado em itálico, tal como foi
realizado pelo informante, e em negrito.

A comunidade: BAIACU: de onde são os informantes?

Os informantes da pesquisa são pesquisadores artesanais e habitam na comunidade denominada Baiacu.


A Vila de pescadores de Baiacu é pertencente ao município de Vera Cruz, situado na Ilha de Itaparica. Distante
de Salvador 43 (quarenta e três) quilômetros, está localizada na contra costa da Ilha, possui variação vegetal
pertencente à província atlântica: manguezal, restinga e mata secundária. A localidade é remanescente da primeira
ocupação da Ilha, em 1560, sendo a mais antiga colônia de pescador que tem a Ilha. No início, século XVI
[1560], Baiacu era a mais importante e tradicional das 27 (vinte e sete) comunidades existentes na Ilha de
Itaparica, devido a ter sido o único vilarejo onde o jesuíta Luís da Grã e seus companheiros de catequese
aportaram e edificaram a segunda igreja católica matriz no Brasil, sob a invocação do Nosso Senhor da Vera
Cruz. O termo Baiacu tem sua origem no termo Mayacu. Com base em dicionários tupi, o termo [maya‘ku] é um
termo tupi, que desapareceu na época pós-clássica, devido a motivos fonéticos. A diferenciação pode se dever a
causas histórico-linguísticas. O termo Baiacu deve ter surgido por influência do substrato no campo da fonética.
Na conjuntura atual, o que se tem percebido na comunidade é que o topônimo Baiacu está em processo de
mudança em curso, ou variação, entre os termos [Ba‘јaku] e [Baјa‘ku], fato que pode revelar um retrocesso no
termo [Baј‘aku], pois o som da vogal oral [o] do tupinambá passou a posterior [u]. O pequeno povoado de
Baiacu é composto por marisqueiras e pescadores artesanais que buscam na pesca de peixes e mariscos sua
subsistência e única fonte de renda. No que se refere ao manuseio da pesca, os pescadores ainda expressam os
hábitos e costumes indígenas, seja no uso de material da pesca, nos hábitos alimentares (farinha de mandioca,
bebidas alcoólicas), seja para ―perguntar‖ à natureza se a maré e o tempo estão bons para a pescaria.
220
BREVE ANÁLISE: descrição dos resultados
Os exemplos aqui selecionados devem ser compreendidos como esquemas imagéticos, uma vez que o
objeto descrito, as metáforas conceptuais na língua de especialidade da pesca, não é uma função da descrição
dada, do sentido, mas da relação com o meio que gera o significado. Entretanto, cabe assinalar que, para este
artigo, apenas servirá como base de análise uma das dezesseis categorias que foram construídas a partir do corpus,
a categoria das metáforas conceptuais de Pescador, metáforas provenientes da avaliação (valor) funcional de
pescador , devido respeitar-se o número de páginas para a publicação. Os termos específicos da pesca, são
exemplos das expressões linguísticas que materializam as metáforas conceptuais na comunidade do Baiacu-Vera
Cruz-Bahia. A organização é baseada na teoria do protótipo, e no PIM, e propõe-se uma categoria específica de
expressões metafóricas a partir da TMC, de Lakoff e Johnson (2002 [1980]). A seguir, a discussão e descrição dos
dados:

Metáforas conceptuais de Pescador

 Metáforas provenientes da avaliação (valor) funcional de pescador :

PROEIRO É MESTRE

TERMO SIGNIFICADO MAIS SIGNIFICADO NO EXPRESSÕES


BÁSICO CONTEXTO
METAFÓRICAS

1-[...] O proeru é em primero


lugá que é o cabesa de ( ? ). Ele
fica na proa, ele que cerca os lãsu , ele
que, se fô vê xãgó, ele que vê o xãgó, aí,
‗Marinheiro dos que vigiam à ‗Mestre e ou principal ele que vai na proa, é, é dano
proa‘. Palavra original proeiro responsável pela organização instrusãw ao popero[...] (INF. 08,
(MORAES SILVA, 1813). e atividade da pesca‘. A.G.N., 25 anos).

2- [...] O mestri é a profissãw,


lansa a redi no má, não só ele como
Proeiro qualqué pessoa pode lãsá, mas
compete ao mestri. (INF.06,
J.S.P., 86 anos).

3- É o proeru é o mestri da redi.


Ele é responsável por tudo porque
se, digamos, de madrugada quem chama,
quem vai chamá é ele[...]quem é o
cabesa é ele, pra chegá ali. (INF.
02, C.P.N., 66 anos).

Quadro 1: Metáfora conceptual PESCADOR É STATUS SOCIAL; PESCADOR É PARA CIMA

Em alguns dicionários gerais e etimológicos não se encontram registros do termo proeiro, com exceção de
Moraes Silva (1813). Ao comparar os significados contextual e mais básico (sentido literal) dessa unidade
conceptual, e no caso de oposição, marcou-se proeiro como metafórico. Esta metáfora permite compreender o
221
domínio alvo PROEIRO em termos do domínio fonte MESTRE, que exprime a ideia daquele que instrui,
ensina, e é responsável por transmitir os conhecimentos da labora da pesca, atributos característicos de
MESTRE. Esse sentido pode servir de base para a seguinte afirmação de Ribeiro (1984) ― [...] sem um mestre a
guiá-los, os três moços queriam apenas uma desculpa para a perda da rede que não souberam manejar direito‖
(Ribeiro, 1984, p.257). Mestre é o típico conhecedor da cultura da pesca, um guia responsável, pescador mais
respeitado entre os demais pescadores e de maior experiência na arte de pescar.

Conforme salienta Pelosi (2012), PROEIRO É MESTRE não é necessariamente e, ou que se


acredite que seja, pura e simplesmente, uma predicação do tipo ―a é b‖. Se se perceber que é uma
metáfora estrutural, e que o conceito não é tão emergente e, sim, mais implícito, compreende-se que em
PROEIRO É MESTRE existe também uma mudança do nome de uma coisa pelo nome de um de seus
atributos, uma transferência e correspondência entre domínio (a parte primeira e mais saliente da embarcação é
cooptada àquele que desempenha a função principal na pesca, que é o mestre), e não similaridade. Assim, a
imagem que se tem é de um projeção metafórica. Não implica que A É B, mas que A contém uma característica
de B, um modelo A que é transferido para um modelo B. A pertence ao modelo cognitivo de B.

A base cultural desse conceito está relacionada com a posição de mestre, que pode ser representada
através das expressões proeiro, cabeça, instrutor, profissional, responsável.

Em um documentário intitulado ―Pesca de mestre‖, produzido pela doutora Correia Meirelles, ganhador
do Prêmio Arruanda, como melhor documentário do ano 2008, exibido pela TV UFBA o termo mestre de rede, ou
simplesmente mestre, ganha uma extensão simbólica, pela forma de comportamento e de como ele [ o mestre]
agencia a coesão da equipe. É metáfora e metonímia. Por exemplo, a expressão ―cabeça‖ parte superior não de um
corpo, mas de um conjunto (extensão metonímica); tal como a cabeça é a parte mais importante do corpo, o
chefe é o elemento mais importante do grupo (projeção metafórica), e pode corresponder à metáfora subjacente
MESTRE É UM CORPO. No contexto em apreço, a expressão ―cabeça‖ contém a qualificação do domínio da
metáfora PARA CIMA e evoca a metáfora subjacente CONHECIMENTO É RAZÃO para traduzir
‗competência‘, ‗entendimento‘, ‗sabedoria‘, ‗responsabilidade‘.

Para o conceito PROEIRO, a derivação por metonímia se aplica ao suporte material que se faz para a
embarcação e serve para o pescador sentar-se ou ficar de pé. Pode-se presumir que MESTRE e PROEIRO são
dois domínios cognitivos diferentes, confirmando a máxima de que a metáfora x pode pertencer a y.

A extensão semântica é polissêmica, através da qual se explica MESTRE, domínio fonte, para
PROEIRO, domínio alvo:
222

1. Rede radial de PROEIRO

Nesse caso, PROEIRO vai designar: ‗ aquele que é mestre dos outros‘, ‗aquele que pode
transmitir conhecimentos a outros‘. Há uma hierarquia em que se estabelece o primeiro de todos, com
quem se deve aprender e com quem se inicia a pesca, como comprova a expressão descrita no exemplo
1, no quadro acima ―[...] O proeru é em primero lugá que é o cabesa de ( ? )[...]‖. Os modelos
cognitivos imagéticos correspondem aos domínios do poder e o do saber. Dois domínios paralelos.
Logo, uma rede existente pode dividir-se em duas categorias, ou duas redes podem fundir-se em uma
única. No tipo ontológico, a entidade do DA é proa, que se relaciona com a entidade do DF cabeça.
Segundo Grady (1997), poderia se ter, nesse caso, uma metáfora de imagem. A proa serve de domínio
fonte a ser pinçado para o domínio alvo (one-shot metaphor).
No tipo epistêmico, a correspondência entre o conhecimento do DA e DF ocorre entre o domínio do
saber e o do espacial, demarcando poder, o que possibilita um acarretamento metonímico. O mapeamento é com
saber: ‗emissor de informações‘ e com a parte superior do corpo humano com relação ao principal componente
da embarcação. Essa relação configura-se no valor positivo atribuído ao mestre, pois ele serve de modelo
cognitivo, sendo totalmente responsável pela base imagética dos conceitos culturais, morais e sociais.

A experiência de maior abstraticização é a expressão ―cabeça‖, que implica relações metonímicas baseadas
na corporeidade, na força não física, no todo pela parte, no fundo pela figura, na profissão pelo sujeito. Pode-se
ter a metáfora CABEÇA É UM PONTO DE REFERÊNCIA, tal qual assinalam Farias; Lima (2010), em que
esta é uma metáfora orientacional, pois, basicamente contém a noção espacial de cima/baixo, e determina
ordem/desordem. As autoras apresentam também os seguintes significados de cabeça: ‗líder‘, ‗ponto vital‘,
‗posição‘, ‗unidade‘ (grupo), ‗ponto de referência‘. Assinalam ainda que os conceitos metafóricos correspondem
com os significantes culturais. É exatamente o que se percebe na linguagem da pesca, cujos significantes culturais
são mestre e proeiro.

Trata-se de uma metáfora baseada por correlação de similaridade experiencial, porque se o


pescador sabe instruir, ensinar, a consequência dessa ação é ser mestre, e também se fundamenta ao
conceito que se tem a uma das partes da embarcação denominada pelos pescadores de ―proa‖, lugar
223
reservado ao mestre da rede, conforme comprova o exemplo a seguir: ―[...] ele fica na proa, ele é que vai na
proa‖ ( v. exemplo 1, do quadro). No dicionário de Corominas (1981), 1 proa é proveniente de uma
antiga forma romance proda, hoje conservada na Itália, resultante de uma dissimilação do latim
PRO¯RA.
A sistematicidade dessa metáfora encontra-se nas seguintes estruturas: instrução, profissão,
competência, responsável. Através de tais expressões, percebe-se que todo o vocabulário usado para falar
sobre PROEIRO, DA, origina-se em MESTRE , DF. Observe-se que:
[...] magister (mâitre- mestre, dono); magisterium ( magistère-magistério) deriva de
‗Maistrie‘, do latim ‗magis‘, que significa ‗mais‘. Do domínio de origem, que é o da
quantidade ( aquele que possui mais), passou-se ao do poder ( aquele que é mestre dos outros).
Domínio do poder, houver depois um deslocamento para o domínio do saber ( aquele
que pode instruir os outros). Finalmente, este deu lugar a uma especialização: ‗maîtrise‘
(mestrado), que indica o grau académico de mestre (Magister Artium)
(DELBECQUE, 2006, p.286-7).

A autora apresenta esquematicamente o seguinte quadro em que demonstra a passagem do vocábulo


magister de uma rede a outra: 1.‗aquele que possui mais‘ 2. ‗mestre‘ 3. ‗sábio‘ 4. ‗acadêmico‘ (DELBECQUE,
2006, p.287). É interessante notar a inversão na ordem dos sentidos atribuídos a MESTRE. Em latim, do
domínio de origem QUANTIDADE passou para o do PODER, e depois para o do SABER. É o caso de se
considerar uma mudança no interior de uma rede radial. O sentido ‗mais‟ era central, tornou-se marginal e o
sentido ‗instrução‘, tornou-se central.

Em se tratando da língua de especialidade da pesca, ocorre uma nova mudança da categoria, mas, ainda
ligada ao domínio do saber, opera-se um novo deslocamento por extensão metonímica. O conceito PROEIRO
acaba por vir a qualificar o saber em geral.

A rede radial corresponde aos diversos usos para o sentido metafórico de ‗profissão‘, ‗grupo social‘,
‗função cultural‘ (ser membro ou fazer parte de um grupo específico), ‗espacial‘ (dentro-fora) e ‗controle‘ (sai-
entra), confirmando o que Lakoff e Johnson (2002 [1980]) assinalam, isto é, o DA é DF ou DA como DF.

CONCLUSÕES INCONCLUSAS

Como registraram os autores citados no presente trabalho, esforços têm sido realizados para
compreender melhor as interligações entre metáfora, cognição e linguagem. Essas interligações constituem os
modelos cognitivos metafóricos. Se, tradicionalmente, a metáfora era do domínio da retórica e da linguagem, a
metáfora como um ornamento, um fenômeno linguístico apenas (da fala ou da escrita), um recurso retórico
podendo ser empregado para atingir determinados fins, uma vez que a finalidade da visão tradicional era mostrar
como a metáfora embeleza a fala e a escrita; agora, a partir de 80 do século, passa a ser vista como um processo
ligado ao conhecimento. Assim, ao desenvolver este trabalho, ampliou-se a capacidade para perceber melhor
que o ser humano pode acessar diversas dimensões da realidade e que a metáfora favorece essa transposição,
quando cria uma imagem clara da situação e favorece a delimitação de um conceito, dando-lhe mais visibilidade,
novas possibilidades. A metáfora, sendo uma espécie de juízo sintético, ao ser elucidado, revela a imaginação,
simbolização e conceituação. Mesmo porque, como assegura Fauconnier (1985), a linguagem visível é vista
apenas como a ―ponta do iceberg‖ da construção invisível do significado. E, diante o exemplo aqui explorado, é
provável, embora não ainda comprovado que os pescadores da comunidade de Baiacu-Vera Cruz-Bahia
demonstrem a máxima de Lakoff e Johnson ([1980]; 2002; 1999; 2008), a de que é possível ver além das
―verdades‖ de nossa cultura. Os diferentes significados dos termos formam a categoria, e cada significado é
equivalente ao membro dessa categoria. Há significados mais centrais ( a exemplo de cabeça, proeiro, moço, calão de
dentro e de fora) e outros mais periféricos. A polissemia de tais itens/elementos, conforme Lakoff e Johnson, é
uma categoria de significados radiais, com um membro central e outros membros na estrutura (que é radial).
Cada significado pode apresentar processo metafórico e ou metonímico, ou os dois. O vocabulário é ligado e
subordinado à ação. Nas metáforas conceptuais, os pescadores não descrevem o que fazem, mas indicam o que
224
estão a fazer. Esse processo não é realizado por explicações, mas para produzir uma ação, pôr em execução a
coisa ou o seu protótipo por manipulação da experiência corpórea, da realidade cultural e dos costumes desse
povo e que não pode ser explicada sem uma constante referência a esses contextos mais amplos.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Categorias. Trad. Jaime Bruna 12 ed. São Paulo: Cultrix, 2007.

CAMERON, L.; DEIGNAN, Alice. A emergência da metáfora no discurso. Trad. Solange Faraco; Solange
Vereza. Cadernos de Tradução. Linguística Cognitiva. Maity Siqueira (Org.). n 25, jul/dez-2009 Revista do Instituto de
Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 reimpressão, n 25, 2009. p.143-167, ISSN 1807-9873.

CASASANTO, Daniel. ______. Asymmetric representation of space and time in brain and mind. (Plenária e
Mesa-redonda). In: IV Congresso Internacional sobre Metáfora na linguagem e no pensamento, 2011. p.14. Programação.
Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Out. 2011.

COROMINAS, J. Dicionário crítico-etimológico de la lengua castellana. Madrid: Gredos. 1954; 1974/1981. v1-4.

DEIGNAN, Alice. Corpus linguistics and metaphor. In: GIBBS JR., Raymond W. The cambridge handbook of
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226
MARCAÇÃO DE PESSOA NA LÍNGUA DOS GAVIÃO DE RONDÔNIA
Denny Moore95

Resumo: Na língua dos Gavião de Rondônia, com a exceção dos radicais de verbos intransitivos, todas
as classes de radicais (nomes, verbos, adjetivos, auxiliares) podem ser marcadas para pessoa por meio de
ou clíticos pessoais ou pronomes pessoais livres. O uso de um pronome livre destaca mais a pessoa.
Existem quatro classes de clíticos pessoais, que podem ser designadas pela sua forma da segunda pessoa
singular (e-, é, eé-, éè-). Cada radical simples pertence a uma destas quatro classes. No caso de palavras
sintáticas (construções de mais de uma palavra simples), é o primeiro radical que determina a classe de
clítico pessoal. O clítico pronominal de um radical de nome é o possuidor, com certas exceções. O
clítico pronominal de um radical de verbo transitivo é seu objeto. O clítico pronominal de um auxiliar
é o sujeito da cláusula. O clítico pronominal de um radical de adjetivo é o núcleo do sintagma nominal,
que é modificado pelo adjetivo. No caso excepcional dos radicais de verbos intransitivos, o clítico
pronominal não é um argumento--marca concordância em pessoa e número com o sujeito da cláusula.
Correferência pode ser indicada através dos clíticos pessoais somente na terceira pessoa. Correferência
existe geralmente com o sujeito da cláusula matriz, mas há variação no caso de radicais de nomes,
verbos e adjetivos.

Palavras-chave: marcação de pessoa; Gavião de Rondônia; família linguística Mondé

Abstract: In the language of the Gavião Indians of Rondônia, with the exception of intransitive verb
stems, all the classes of stems (noun, verb, adjective, auxiliary) can be marked for person by means of
either pronominal clitics or free personal pronouns. The use of a free pronoun emphasizes the person.
There are four classes of person clitics, which can be conveniently indicated by their second person
singular form (e-, é-, eé-, éè-). Each simple stem belongs to one of these four classes. In the case of
syntactic words (constructions of more than one simple word), it is the first stem which determines the
class of the person clitic. The pronominal clitic of a noun stem is its possessor, with certain exceptions.
The pronominal clitic of a transitive verb stem is its object. The pronominal clitic of an auxiliary is the
subject of the clause. The pronominal clitic of an adjective stem is the head of its noun phrase. In the
exceptional case of intransitive co-referencing intransitive verb stems, the pronominal clitic is not an
argument. Rather it marks agreement in person and number with the subject of the clause. Co-
reference can be indicated only on third person clitics. Co-reference is generally with the subject of the
matrix sentence, but there is variation in the case of noun, verb, and adjective stems.

Keywords: person marking; Gavião of Rondônia; Mondé linguistic family

1. Introdução:

A lingua dos Gavião de Rondônia tem aproximadamente 550 falantes. Ela faz parte da família
linguística Mondé, do tronco Tupi (MOORE, 2005). Existe variação na marcação de pessoa entre as
línguas da família. Por exemplo, a língua dos Paiteer (Surui de Rondônia) marca coreferência em todas
as pessoas, não somente na terceira pessoa como em Gavião. Serão apresentados os paradigmas dos
clíticos pronominais e em seguida o comportamento destes marcadores de pessoa com as diferentes
classes de radicais de palavras. Deve-se observar que não há pós-posições como classe de palavra em

95
Pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, MPEG - MCTI
227
Gavião. Estas são uma sub-classe dos verbos transitivos, na base da sua distribuição. Os assuntos
tratados neste trabalho são explicados em mais detalhe por Moore (1984)

2. Paradigmas de clíticos pronominais.


Há quatro classes de clíticos pronominais, que podem ser designadas convenientemente pela
forma de segunda pessoa singular, e-, é-, eé-, éè-. Os paradigmas são ilustrados abaixo, com nomes. A
forma pós-nominal é uma forma (radical) livre que ocorre após um sintagma nominal. A terceira
pessoa correferencial/cross-referencing é diferente das outras por sempre marcar concordância e não
ter pronome livre correspondente.

(1) Quatro classes de clíticos pronominais


Classe e- é- eé- éè-
Glossário Mão Cheiro Esteira Irmã (de homem)
Forma básica pábe ka ákápe paàt
Pós-nominal pábe ka ákápe paàt
1s bâbe ó-ga oó-kápe óò-baàt
2s e-bábe é-ga eé-kápe éè-baàt
3s ci-pabe ci-ka saa-kápe cii-paàt
3c a-pabe a-ka aa-kápe aa-paàt
1pi pa-bábe pa-ga paá-kápe paa-paàt
1pe to-pábe to-ka tóó-kápe tóò-paàt
2p me-pábe me-ka meé-kápe mee-paàt
3p tá-pábe tá-ka táá-kápe táa-paàt

Os radicais monossilábicos que se iniciam em vogal têm uma oclusiva glotal e uma juntura
aberta entre o radical e o clítico pronominal, por exemplo, e-„-ót ‗comedor de você‘. Radicais que
iniciam-se em vogal e têm mais de uma sílaba têm clíticos prolongados, das classes eé- ou éè-,
provavelmente por causa de um processo diacrônico de fusão vocálica, com reinterpretação da vogal
prolongada como parte do clítico. Contudo, existem também radicais que iniciam-se em consoante que
ocorrem com clíticos prolongados, por exemplo, cii-saá ‗fígado dele‘.
O tom da primeira sílaba da forma básica do radical condiciona parcialmente a classe do clítico
pronominal, sugerindo que, diacronicamente, o tom inicial do radical foi o oposto do tom do clítico.
Os radicais que usam clíticos das classes é- e éè- sempre têm sílabas iniciais com tom baixo. O tom da
primeira sílaba da forma básica dos radicais que usam clíticos das classes e- e eé- é geralmente alto, com
228
várias exceções, por exemplo, be ‗caminho‘, e-bé ‗seu caminho‘. A forma pós-nominal destes radicais
sempre têm tom alto na sílaba inicial, por exemplo, do pé ‗caminho da serra‘.
O alomorfe ci- da terceira pessoa singular e o clítico a- ‗correferencial/ cross-referencing‟
geralmente abaixam o tom da primeira sílaba de radicais nominais que seguem, mas não têm este efeito
nos radicais de outras classes de palavras. O clítico da terceira pessoa singular tem três alomorfes nos
radicais nominais, cuja ocorrência é parcialmente condicionada fonologicamente: ci-, saa/taa-, e Ø-. A
forma ci- ocorre na maioria de radicais nominais que usam clíticos pronominais curtos (e-, é-). Porém,
alguns radicais destas classes usam o alomorfe zero, por exemplo, sérék ‗pele dele‘. Esse alomorfe zero
é normal para radicais de verbos, adjetivos e auxiliares. A forma taa- ocorre em radicais das classes eé-
e éè- que têm como primeira consoante uma dental. Se a consoante não for dental, a forma saa-
ocorre.
Quando um pronome livre ocorre, ao invés de um clítico pronominal, a pessoa está enfatizada,
como ‗nós (em contraste aos outros)‘ no exemplo abaixo.
(2) óo panóóy sá eé-na s-aga kí-nap
negative nós Aux+sujetivo aquele-maneira 3s-matar evidência-indefinite
‗Nós não matamos assim.‘

3. Clíticos pronominais em nomes, verbos, adjetivos e auxiliares


As quatro classes de clíticos pronominais, ilustrados acima com radicais nominais, ocorrem com
outras classes de palavra: verbos, adjetivos e auxiliares. As formas dos radicais intransitivos em
parênteses abaixo ocorrem somente em radicais de adjetivos complexos derivados com a partícula déè
‗particípio‘.

(3) Classe e-
Classe de Radical Radical de Radical de verbo Radical de Radical de
palavra nominal verbo transitivo intransitivo adjetivo auxiliar
Glossário Caminho Roubar Secar-se Aceso Assertativo
2s e-bé e-básanà e-gágaà e-gáày e-mága
3s ci-pe pásanà (kágaà) káày mága
3c a-pe a-pásanà a-kágaà a-káày ---
Pós-nominal pé pásanà (kágaà) káày mága
Palavra livre be basanà --- --- ---

(4) Classe é-
229
Classe de Radical Radical de Radical de verbo Radical de Radical de
palavra nominal verbo transitivo intransitivo adjetivo auxiliar
Glossário Wife Cobrir Dormir Velho Passado+ir
2s é-zay é-bogò e-gerè é-gâày é-makáá
3s ci-say pogò (kerè) kâày makáá
3c a-say a-pogò a-kerè a-kâày ---
Pós-nominal say pogò (kerè) kâày makáá
Palavra livre --- --- gerè --- ---

(5) Classe eé-


Classe de Radical Radical de Radical de verbo Radical de Radical de
palavra nominal verbo transitivo intransitivo adjetivo auxiliar
Glossário Pilão Seguir+ação pl Gritar Em pé Passado+def-
nominal
2s eé-kabîì eé-bemáá eé-peè eé-dóò eé-néè
3s saa-kabîì saa- bemáá (saa-peè) taa-dóò ánéè
3c aa-kabîì aa-bemáá aa-peè aa-dóò aá-néè
Pós-nominal ákabîì ábemáá (ápeè) ádóò ánéè
Palavra livre akabîì --- --- --- ---

(6) Classe éè-


Classe de Radical Radical de Radical de verbo Radical de Radical de
palavra nominal verbo transitivo intransitivo adjetivo auxiliar
Glossário Fígado Passar por Ir Alto (não há desta
classe)
2s éè-zaá éè-gáá ee-gaà éè-tóò
3s cii-saá saa-gáá (kaà) taa-tóò
3c aa-saá aa-gáá aa-kaà aa-tóò
Pós-nominal saá agáá (kaà) atóò
Palavra livre --- --- --- ---

Radicais nominais podem ser possuídos por sintagmas nominais, demonstrativos, pronomes
livres ou clíticos pronominais; por exemplo, ‗fígado‘ na tabela (6) acima. Outros radicais nominais,
230
dependendo da sua subcategorização, tomam o SN, pronome, ou clítico pronominal que precede como
argumento, não possuidor.
(7) é-bogò-p ‗algo que cobre você (8) é-gakɨy „desire for you‟
O exemplo (7) é uma nominalização, na qual a pessoa marcada é o objeto do radical de verbo que
foi nominalizado. No exemplo (8) o radical kakɨy parece ser monomorfêmico, mas tem a pessoa
marcada como argumento de objeto, não possuidor.
Em Gavião, radicais de adjetivos são somente atributivos e nunca são formas livres. Eles
seguem o núcleo do sintagma nominal no que eles ocorrem. O núcleo pode ser um nominal, um
pronome livre ou um clítico pronominal. Um radical de adjetivo precedido por um clítico pronominal
se distribui como qualquer sintagma nominal. As formas da terceira pessoa são genéricas e traduzem
com ‗algo‘ ao invés de ‗ele‘ ou ‗eles‘. No seguinte exemplo, o radical de adjetivo sot ‗ruim‘ marcado
com a terceira pessoa plural é um nominal predicativo.
(9) tá-sot pa-máà aaná ‗Somos ruins agora.‘
3p-ruim 1pi-COP agora
Radicais de adjetivos podem também ser marcados com a primeira pessoa plural para indicar humanos
genéricos. No exemplo que segue o clítico pronominal, primeira pessoa plural inclusive, é o núcleo de
um nominal predicativo, seguido por uma série de radicais adjetivais que o modificam.
(10) pa- pátáà pê-a kólolóòk vîri tá- máà tá-kalà-p koy-á
bocôòy sop
1pi-magro peito achat- fino andando 3p- COP 3p-querer- em-
ado pai nmlz marcador
‗Os pais deles estavam andando magros com peitos caídos, com saudades deles.‘
Uma cláusula Gavião pode conter múltiplos sintagmas verbais, com tempo, aspecto e tipo
funcional da cláusula marcados no auxiliar, que imediatamente segue o sujeito da cláusula. Por isto uma
cláusula pode conter vários radicais de verbos. O exemplo seguinte tem como sujeito uma primeira
pessoa plural inclusiva com quatro sintagmas verbais, dos quais três são transitivos (sublinhados). Dois
objetos são zeros que indicam terceira pessoa.
(11) palírí pâ-a má-„-éèy kay máà eé-na
(3s)-compartilhar 1pi-Aux outro-pl envolver (3s)-colocar aquele-maneira
‗Nós a compartilhamos, colocando-a para os outros.‘ (chicha)
A marcação de pessoa nos radicais de verbos pode ser considerada ergativa, uma vez que o
objeto é marcado no radical transitivo e o sujeito é marcado no radical intransitivo. Todavia, há uma
diferença importante: a pessoa marcada no transitivo é o argumento do radical de verbo e pode ser
substituída por um pronome livre, enquanto que a pessoa marcada no intransitivo somente marca
concordância com o sujeito da cláusula imediatamente dominante e não pode ser substituída por um
231
pronome livre ou um sintagma nominal. No exemplo abaixo o sujeito é um clítico pronominal da
primeira pessoa plural, pa-, e a pessoa está copiada no radical de verbo intransitivo, ‗ficar‘.
(12) pâ-àt pa-dá kára-ále-á
1pi-Aux+deixar 1pi-ficar ainda-futuro-marcador
‗Vamos ficar ainda.‘
No exemplo abaixo o sujeito é um sintagma nominal livre, ‗ponto de pau‘, e concordância de terceira
pessoa está marcada no verbo ‗sair‘.
(13) îìp cipó mé-ena a-bíya kíì iì pí-á
pau ponto Aux+past-assim 3c-sair intensivo rio de-marcador
‗O ponto de pau estava saindo do rio.‘
A forma canônica dos radicais de verbos intransitivos é um pouco diferente que a forma das
outras classes de radicais. Os radicais intransitivos das classes é- e éè- têm tom baixo e seus clíticos
pronominais também têm tom baixo. Porém, quando estes radicais são nominalizados, o tom da
nominalização tem o tom normal de um nome da classe. Por isto os clíticos pronominais baixos são
considerados alomorfes e não uma classe diferente. Exemplo de radical de verbo da classe éè-:
(14) ee-gaà ‗você vai‘ éè-gaà-p ‗sua viagem‘
2s-ir 2s-ir-nmlz
Um fenômeno interessante é a ausência de marcação de pessoa em uma categoria que chamamos
verbos sem flexão (Moore 2002). Esta classe de palavra pode compor sozinha um sintagma verbal que
tem as mesmas características que os outros sintagmas verbais em termos de movimento, negação,
nominalização, etc. A classe inclui conceitos adverbiais; por exemplo, aaná ‗hoje‘ em (9) ou eé-na
‗daquela maneira‘ em (11) acima, bem como noções de atividades como gákoráá ‗caçar‘ ou ibalà
‗dançar‘.
Os auxiliares de Gavião são imediatamente precedidos pelo argumento sujeito que pode ser um
sintagma nominal, um pronome livre, ou um clítico pronominal. Há uma exeção: clítico pronominal
que indica correferência do sujeito de uma cláusula encaixada com o sujeito da cláusula na qual está
encaixada. Ele marca concordância e não pode ser substituído por pronome. A correferência é
marcada somente na terceira pessoa. No seguinte exemplo, o sujeito de uma encaixada nominalizada,
aá- ‗terceira correferencial‘, é o mesmo que o sujeito da cláusula matriz, tá- ‗terceira plural‘. As
fronteiras da cláusula encaixada estão marcadas com colchetes.
(15) “eé-na tá-máà a-ma-ágáá [a-kapáp ma-„-íí
aquela-maneira 3p-Aux+passado 3c-trans-amanhecer 3c-escuridão trans-entrar
aá-néè] méne ká-á” ki-ìp
3c+Aux+passado-nominal nmlz+abstrata em-marcador evidência-lembrada
‗Assim eles fizeram ficar de dia, quando eles colocaram escuridão (na vasílha).
232

4 Correferência entre cláusulas


Nos exemplos disponíveis, um sujeito de terceira pessoa de uma cláusula encaixada que é
correferencial com o sujeito da cláusula na qual está encaixada está sempre marcada com o clítico
pronominal de terceira pessoa no auxiliar, como aá- no exemplo (15) acima. Porém no caso de
correferência marcada nos radicais de verbos transitivos, nomes ou adjetivos em uma cláusula
encaixada, há uma abiguidade formal. Pode haver correferência com o sujeito da cláusula subordinada
ou com o da cláusula superior. No exemplo que segue, o clítico pronominal aa- marca um objeto
correferencial com o sujeito da encaixada, tá- ‗eles‘, e não o sujeito da cláusula matriz ‗ele‘, que está
marcado com um zero no auxiliar.
(16) aá sáno píra má-ày abiì mága
este irmão com nmlz+concreta-pl (=4) matar+obj.pl (3s-)Aux
[aa-tíní tá-sá-néè] méne ká
3c-cuidar 3p-Aux-nom nmlz+abstrata em
‗Ele mata quatro porque eles estão se cuidando.‘ (Os macacos não fogem; eles tentam ajudar o macaco
ferido.)
Já no próximo exemplo, por contraste, o marcador de correferência no radical de verbo
transitivo kay ‗envolver‘ indica correferência com o sujeito do matriz, tá- ‗eles‘, não com o sujeito da
encaixada, alóp ‗ele‘.
(17) eé bó tá-máà alóp ka va aá-nɨt
aí foco 3p-Aux+passado ele cheiro ingerir esta-quantidade+dimin
alóp ka-néè a-kay mát ká
ele (Aux)-ir-nom 3c-envolver nmlz+concreta em
‗Aí eles sentiram o cheiro dele quando ele foi até eles.‘

5. Marcação de pessoa em palavras complexas


A sintaxe Gavião contém um sistema elaborado de palavras sintáticas—construções compostas
de mais de uma palavra simples que se distribuem dentro do sintagma como uma palavra simples.
Interessantemente, os radicais de palavras sintáticas mostram a mesma marcação de pessoa que os
radicais simples. No exemplo que segue, o radical vít ‗comida‘ está incorporado em um radical de
verbo intransitivo sintático (em colchetes). O clítico pronominal, pa- ‗1pi‘ copia a pessoa do sujeito da
cláusula, pa- ‗1pi‘.
(18) pa-[vít viì] té pa-zá eé pí kay
1pi-comida cozinhar+se não+asserção 1pi-Aux+não+asserção aquele de (3s)-envolver
‗Daí cozinhamos nossa comida com ela?‘ (cerâmica)
233
Nesses casos, a classe do clítico pronominal é a classe do primeiro radical do radical complexo,
neste caso vít ‗comida‘. A classe do prefixo é uma propriedade do radical, não do primeiro morfema,
como ilustrado no exemplo abaixo.
(19) é-jiìt ‗seu sangue‘ e-jír-alà ‗Você está sangrando‘
2s-sangue 2s-sangue-cair

SÍMBOLOS USADOS:
Transcrição: Os símbolos c e j indicam africadas palatais, y o glide palatal, e s e z africadas dentais. A
fricativa bilabial sonora é representada por v, e a oclusiva glotal por um apóstrofo. Vogais prolongadas
são indicadas por sequências de duas vogais. O tom baixo não é marcado. O tom alto é marcado por
um acento agudo, o tom ascendente por um circumflexo, e o tom alternante por um acento grave.
Marcas de citação indicam citações ou pensamentos em Gavião. A nasalização de vogais é marcada por
um ogonek.
Abreviações: 1pi= primeira pessoa inclusiva, 1pe=primeira pessoa exclusiva, 2s=segunda pessoa
singular, 2p=segunda pessoa plural, 3s=terceira pessoa singular, 3c=terceira pessoa correferêncial/cross-
referencing, 3p=terceira pessoa plural, pl=plural, sg=singular, Aux=auxiliar, COP=cópula,
nmlz=nominalização, trans=transitivização, obj=objeto, dimin=diminutivo, nom=tipo funcional
nominal

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234
LIÇÕESDE PORTUGUÊS E A FORMAÇÃO DE FUTUROS PROFESSORES:
A PROPOSTA DE SOUZA DA SILVEIRA PARA O ENSINO DA LÍNGUA
MATERNA NA PERSPECTIVA DA HISTORIOGRAFIA LINGUÍSTICA

DieliVesaro Palma96

Resumo: Este trabalho trata das Lições de Português de Sousa da Silveira, obra publicada em 1923 para o
ensino da língua maternano 3º ano da Escola Normal, analisada na perspectiva da Historiografia
Linguística. Seu objetivo é apresentar a concepção de ensino de língua que fundamenta o trabalho desse
professor, bem como destacar a formação linguística proposta aos futuros docentes pela Escola
Normal. Seguindo-se os princípios metodológicos propostos por Koerner (1996) e o pontos
investigativos do GPeHLP /PUCSP, o trabalho é analisado no contexto da Primeira República
brasileira. Os resultados da análise mostram que a norma padrão predomina no ensino da língua
materna, tal como ocorria no período imperial, e que ela deverá ser o instrumento de ensino dos
futuros professores, caracterizando, assim, um ensino elitista para a elite e comprovando a inter-relação
entre o momento histórico e a produção da obra, bem como os reflexos dela no contexto em que é
produzida.
Palavras-chave: Historiografia Linguística; Ensino de Língua Portuguesa; Formação de professores;
Observador de práticas.
Abstract: This paper discusses the book Lições de Português by Sousa da Silveira, published in 1923,
for teaching the mother tongue in 3rd grade of the Escola Normal, analyzed from the perspective of
Linguistic Historiography. It aims to present the conception of language teaching which underlies the
work of this professor , as well as highlighting language training proposed for the future teachers from
the Escola Normal . Following the methodological principles proposed by Koerner (1996) and the
investigative points from the GPeHLP/ PUCSP, the work is analyzed in the context of the First
Brazilian Republic. The results from the analysis show that the educated language variety prevails in
the teaching of the mother tongue, such as occurred in the imperial period, and that it should be the
teaching instruments of the future teachers, characterizing an elitist teaching for the elite, and proving
the inter-relation between the historic context and the production of the work, as well as its impacts on
the context in which it is produced.
Key-words: Linguistic historiography; Teaching of Portuguese Language; Teacher training; Observer
practices.
1. Palavras Iniciais

O tema deste trabalho é a obra Lições de Português de Souza da Silveira, publicada em 1923 e
destinada ao ensino da língua materna para uma turma do 3º ano da Escola Normal. Ela é analisada na
perspectiva da Historiografia Linguística, aspecto que pressupõe a observação dos princípios
metodológicos de Koerner (1996), assim como os passos investigativos propostos pelo Grupo de
Pesquisa em Historiografia da Língua Portuguesa (GPeHLP da PUCSP). O trabalho objetiva mostrar a
concepção de ensino do Português que fundamenta o trabalho de Sousa da Silveira bem como destacar

96
Doutora em Línguística Aplicada pela Pontifícia Universidade de São Paulo. Professora Associada do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pesquisadora do I.P.
- PUCSP.
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a formação linguística proposta aos futuros docentes na Escola Normal, lócus responsável pela
formação inicial dos professores que ministravam as aulas de Português no chamado ensino primário,
no período da Primeira República no Brasil.

O texto está estruturado em quatro partes. Na primeira, discutem-se questões metodológicas e


na segunda e terceiras explicitam-se os princípios koerneanos: a contextualização ou delineamento do
espírito de época, a análise da obra ou aplicação do princípio da imanência, além das Palavras Iniciais e
Finais.

2. Aspectos Metodológicos

A Historiografia Linguística caracteriza-se como uma disciplina que se debruça sobre o


conhecimento lingüístico já produzido, reflete sobre ele e o reconstrói, mostrando suas contribuições
no passado e sua repercussão no presente e sua projeção no futuro, com vistas a descrevê-lo e a
explicá-lo. Sobre seu objeto de estudo, Altman (2012:22) assim se manifesta:

Dessa perspectiva, a historiografia lingüística tem como objeto a história dos


processos de produção e de recepção das idéias lingüísticas e das práticas delas
decorrentes que, por sua vez, geraram novas idéias e novas práticas em um processo
de continuidade e descontinuidade, de avanços e de retomadas, inerentes à busca de
conhecimento. As maneiras pelas quais o conhecimento lingüístico se produziu,
desenvolveu, foi divulgado e percebido também fazem parte, em suma, da sua história.

A realização de um estudo historiográfico, dependendo da linha teórica escolhida, será


direcionado por princípios e percursos metodológicos distintos. O GPeHLP da PUCSP tem
desenvolvido suas investigações com base nas idéias de Koerner (1996) sobre o fazer historiográfico,
observando, portanto, os três princípios metodológicos propostos por esse autor: a contextualização, a
imanência e a adequação teórica. Neste trabalho, focalizamos dois deles, por não existirem dificuldades
teórico-lexicais que necessitem de aproximação com as teorias atuais.

A contextualização pressupõe a caracterização do contexto político, econômico, social, artístico,


científico, filosófico e educacional em que a obra sob estudo foi produzida. Ele prevê, portanto, a
reconstrução do clima de opinião do momento em que o documento foi elaborado, devendo explicitar
as diversas correntes de pensamento em circulação na sociedade que tenham influenciado o conteúdo
do documento pesquisado. A imanência diz respeito ao modo de o pesquisador olhar o documento na
fase da análise, procurando considerá-lo no seu contexto de produção e buscando entendê-lo ―de
forma completa, histórica e criticamente, e filologicamente se possível‖ (BASTOS e PALMA, 2004:11),
respeitando, portanto, as teorias e a terminologia da época e da obra em estudo.
236
Além desses princípios básicos orientadores do fazer historiográfico (primeiro ponto),
objetivando garantir a credibilidade da investigação, o GPeHLP buscou estabelecer outros quatro
pontos que integram os procedimentos metodológicos da pesquisa historiográfica. O segundo deles são
os passos investigativos, que pressupõem quatro momentos, a saber: seleção ou escolha dos
documentos a serem analisados; ordenação ou organização definida no caso de haver mais de um
documento em estudo; reconstrução do conhecimento linguístico explicitado no documento
selecionado e interpretação dos fatos observados ou leitura crítica do material a ser analisado com base
no clima de opinião.

O terceiro ponto relaciona-se à escolha das fontes primárias sobre as quais serão aplicados os
passos investigativos, seguida da seleção das fontes secundárias que oferecem informações sobre os
documentos sob observação.

O quarto ponto trata das dimensões cognitiva e social da investigação. A primeira, de caráter
interno, busca levantar as vertentes teóricas e metodológicas que orientaram a produção do documento,
apontando para a continuidade de paradigmas vigentes ou para a ruptura deles. A segunda, de caráter
externo, busca relacionar aspectos sociais ao autor do trabalho sob análise.

O quinto e último passo focaliza os critérios de análise, o que pressupõe a determinação de


categorias que devem emergir do material em observação, as quais surgem durante o processo de
análise.

Sendo nosso objeto de estudo metalinguístico (manual didático), estabelecemos as categorias de


análise a partir do próprio documento (princípio da imanência) que foram analisadase discutidas
considerando-se o conhecimento linguístico da época e o clima de opinião vigente.

Antes de encerrarmos estas questões metodológicas, é importante caracterizarmos o papel do


pesquisador neste tipo de investigação. De acordo com Swiggers (1990)97, o historiógrafo do ensino de
línguas, seja a materna, seja a estrangeira, é um ―observador de práticas‖, que se confronta com um
―conjunto de ―comportamentos‖ que necessita compreender, explicitar e articular o contexto teórico
subjacente‖ (SWIGGERS, 1990:27). Assumindo essa posição, segundo esse autor, o historiógrafo tem
um triplo objeto de estudo: o constituído pelas atitudes reflexivas a respeito do ensino de uma língua, o
constituído pelas formas descritivas do ensino e a contextualização do ensino de uma língua.

O primeiro define-se por reflexões teóricas relativas à língua e ao seu ensino. O segundo
caracteriza-se pelas formas descritivas utilizadas no ensino de uma língua e o historiógrafo deve

97
O autor discute o fazer historiográfico em relação ao ensino de língua estrangeira, mas sua proposta é aplicável ao
ensino da língua materna e, por essa razão, ela serve de referência neste trabalho.
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debruçar-se na práxis histórica da didática das línguas ou naquilo que possibilita a reconstrução
adequada dessa práxis. São muitas as fontes de que pode dispor o pesquisador para esse tipo de
investigação, como manuais de linguagem, gramáticas, livros de exercícios, nos quais deve analisar a
evolução metodológica em relação a um domínio particular, levando sempre em conta certos
parâmetros, como: o nível de ensino objetivado pelos textos didáticos examinados;o formato global do
documento descritivo: tipo de texto/direcionalidade da descrição/marcação das divisões ou unidades;
criteriologia descritiva utilizada no documento: critérios morfológicos, sintáticos ou semânticos
empregados na descrição das classes de palavras, análise formal ou semântico-lógica das construções
sintáticas; exemplificação: tipos de exemplos, nível dos exemplos, integração dos exemplos e
argumentação ou elaboração teórica.

O terceiro aspecto, que incorpora os anteriores, é o da contextualização e que deve expressar os


motivos do ensino de uma língua, a atitude da comunidade receptora em relação a essa língua. Esses
aspectos têm estreita relação com as reflexões teóricas e com as formas descritivas utilizadas no ensino
da língua. Lembra o autor que, em relação aos estudos de épocas modernas, um quarto objeto torna-se
fundamental: os documentos meta-discursivos.

Em nossa investigação priorizamos o segundo e o quarto objetos o que não significa que os
outros dois não possam ser considerados na análise do documento.

3. A Primeira República ou delineamento do espírito de época

Vários foram os fatores que levaram à proclamação da República no Brasil, como o fato de o
país ser a única monarquia da América e de o ideal federativo estar associado ao pensamento
republicano; a questão militar, a questão religiosa e a abolição da escravatura. Proclamada a República,
fortemente influenciada pelo Positivismo, instalou-se o governo provisório (1889 – 1891) comandado
pelo Marechal Deodoro da Fonseca. É importante destacar-se que o positivismo tem um duplo caráter:
o ortodoxo e o heterodoxo. Para esta última vertente, segundo Bellintani (2009), a ordem é o estado de
polícia, e o progresso é representado pela sociedade tecnicamente desenvolvida, ideal a ser alcançado
por um país essencialmente agrícola como era o Brasil, no período da primeira República.

Esse governo realizou os seguintes atos: a convocação da Assembleia Constituinte, a criação da


bandeira nacional da República, a separação da Igreja e do Estado, a instituição do casamento civil, a
administração dos cemitérios, a instituição do Registro Civil, a promulgação do Código Penal e a
―grande naturalização‖, processo pelo qual foi concedida a cidadania brasileira aos estrangeiros que
quisessem adotá-la. Por entrar em conflito com o Congresso, o presidente dissolveu-o, fato que
provocou fortes reações e que acabou determinando a renúncia de Deodoro. Assumiu o governo o
vice-presidente Floriano Peixoto, conhecido como o ―Consolidador da República‖. Seguiram-se dez
238
governos que compuseram a chamada Primeira República ou República Velha, que durou de 1891 a
1930.

A proclamação da República trouxe não somente a instalação de uma nova forma de governo
do país, mas também desencadeou inúmeras mudanças e reformas cujo objetivo era modernizar o país
com vistas a caracterizá-lo como uma nação moderna. Nesse sentido, Caio Prado Junior (1998:218)
assim se pronuncia:

Os primeiros anos que se seguem à proclamação da República serão dos mais graves
da história das finanças brasileiras. A implantação do novo regime não encontrou
oposição nem resistência aberta séria. Mas a grande transformação política e
administrativa que operou não se estabilizará e normalizará senão depois de muitos
anos de lutas e agitações. Do império unitário o Brasil passou bruscamente com a
república para uma federação largamente descentralizada que entregou às antigas
Províncias, agora Estados, uma considerável autonomia administrativa, financeira e até
política.

Um dos fatores que contribuiu para a modernização do país foi a imigração que favoreceu a
industrialização do país, beneficiada pelo protecionismo alfandegário. Esses imigrantes trouxeram
conhecimentos de fabricação de muitos produtos e, como não havia concorrência, os negócios
prosperaram. Esse crescimento industrial abrangeu várias regiões, sobretudo o Rio de Janeiro e São
Paulo. Embora tenha havido a expansão da indústria, a agricultura continuou sendo a base da
economia, sendo o café o seu sustentáculo. Além dele, houve também a produção de outros produtos
agrícolas, como o cacau, a borracha, o fumo, a cana de açúcare a erva mate. A pecuária desenvolveu-se,
sobretudo, no Rio Grande do Sul. Houve, nesse período, um considerável aumento demográfico, pois
o país passou de 15 milhões de habitantes para 35 milhões em 1930.A questão social pouco evoluiu
nessa época e as reivindicações dos trabalhadores só começaram a ser ouvidas e atendidas na Segunda
República, mas é importante destacar que, segundo Fausto (2006), houve preocupação por parte do
Estado com as questões sociais, expressas pela lei que concedia férias de 15 dias aos trabalhadores do
comércio e da indústria (1925) e a que limitava o trabalho de menores.

Foi no campo da Educação que muitas reformas ocorreram, influenciadas pelo Positivismo.
Benjamin Constant, um dos maiores defensores do Positivismo, assumiu, em 1890, o Ministério da
Instrução Pública, Correios e Telégrafos e aprovou o regulamento da instrução primária e secundária
do Distrito Federal, que possibilitou o crescimento do ensino público e o desenvolvimento das
instituições culturais. A Reforma Benjamin Constant, por um lado, propunha a descentralização e, por
outro funcionava como referência e modelo para quaisquer outras iniciativas no campo educacional.
Ela tinha por objetivo estabelecer o fundamento da educação na ciência, abandonando, portanto, as
orientações da educação tradicional, em que predominavam os aspectos literários. Assim, pela Reforma,
a educação deveria ter uma base científica. Restrita ao Distrito Federal, visava também a consolidar a
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educação popular no país e estabelecia que as escolas particulares tinham a liberdade de ministrar o
ensino primário e secundário, desobrigando, assim, o Estado da exclusividade dessa responsabilidade.
Na Capital de República, o ensino primário seria realizado em escolas públicas, sendo livre, gratuito e
laico, conforme previsto nos anexos relacionados aos programas das escolas primárias do 1º grau. Esses
documentos também traziam orientações sobre a formação de professores, estabelecendo que ela
deveria ser realizada nas escolas normais.

Tendo como pano de fundo esse cenário da época, passamos à análise das Lições de Português,
fonte primária deste estudo.

4. Análise da obra

Antes de iniciarmos a análise, apresentamos um breve histórico da obra98, traçamos um breve


perfil do autor e destacamos as categorias dessa análise.

Na Advertência da publicação das Lições de Português, Souza da Silveira informa que, por
considerar o programa do 3º ano da Escola Normal ―disciplina importante‖ e por ter a prática de ditar
suas aulas aos alunos, que eram por eles copiadas, julgou ser proveitoso para esses alunos e para outros
estudantes disporem de uma publicação da ―doutrina‖ feita de forma elementar e clara. Comunicou sua
ideia de publicar as lições ao diretor da Revista de Língua Portuguêsa que acatou sua proposta e, assim,
no dia 10 de abril, iniciou-se a publicação das Lições, alertando o autor que, por discordar da sequência
dos pontos no Programa e do enunciado de alguns deles, propunha outra ordem. Foi esse o embrião
das Lições de Português, publicadas como livro em 1923. A obra teve, até 1964, sete edições, com
intervalos de tempo irregular: entre a 1ª e a 2ª edições foram 10 anos, entre a 2ª e a 5ª foram 17 anos,
destacando o autor, na 5ª edição, que ―depois de um eclipse de dez anos, reaparecem as minhas Lições de
Português, agora em 5ª edição‖. A 6ª edição veio à luz em 1959 e o autor inicia o prefácio com uma
informação relevante: ―Passei o texto para a ortografia que se está usando entre nós, e que é a de 1943.
Assim não procedi por considerar a de 1945 inferior, pois, ao contrário, julgo-a melhor.‖ O que se
verifica nesse percurso temporal por meio dos vários prefácios é que, ao longo do tempo, a obra foi
sendo reformulada e aperfeiçoada, fato que possibilita a Maximiano de Carvalho e Silva, revisor crítico
da obra com consulta ao autor, afirmar ― Esta sétima edição de Lições de Português não é uma simples
reprodução da edição anterior‖. Diz terem sido feitos vários acréscimos, terem sido atualizados os
índices que estão no final da obra (Glossário e Índice Alfabético e Índice Onomástico e Bibliográfico) e
terem sido corrigidas algumas falhas tipográficas da 6ª edição. Com longa história e aceitação
comprovada, a obra foi adotada nas escolas brasileiras.

98
Neste trabalho, analisamos a 7ª edição melhorada, publicada em 1964. Dela constam esclarecimentos sobre a atual
edição, os prefácios da 1ª, 2ª,5ª e 6ª edições, além das palavras dirigidas Ao Leitor em 1921 quando da publicação das
Lições na Revista de Língua Portuguêsa.
240
Álvaro Ferdinando de Sousa da Silveira, nasceu no Rio de Janeiro em 1º de maio de 1883 e
faleceu também no Rio de Janeiro, em 5 de setembro de 1967. Foi filólogo, lingüista, foneticista e
lexicógrafo. Estudou no Colégio Pedro II e, posteriormente, iniciou estudos para engenheiro geógrafo
e para engenheiro civil, este último só concluído em 1918. Como engenheiro geógrafo trabalhou na
Estrada Central de Ferro e, ao bacharelar-se em Engenharia Civil, já havia escolhido o magistério e as
Letras, em 1917, quando começou a reger a disciplina de Português na Escola Normal, tendo sido
professor até 1934 no ensino secundário oficial. Lecionou também no ensino superior na Universidade
do Distrito Federal, e depois de sua extinção na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do
Brasil, onde atuou até 1953, quando de sua aposentadoria. Pertenceu a uma geração de filólogos que se
formaram fora das faculdades de Letras. Sobre sua atuação como filólogo, assim se manifesta Cavalieri
(2001:52), ao discutir a questão da periodização dos estudos filológicos e lingüísticos no Brasil:

Quanto a Souza da Silveira, a vertente de sua obra dedicada à descrição gramatical é


claramente fundada nos estudos histórico-comparativistas. Percebeu-o, por sinal, o
olhar lúcido do próprio Mário Barreto, que não escondia o prazer de encontrar entre
nós um filólogo que, como ele próprio, seguia as trilhas abertas pela filologia lusitana...

Entre suas obras, além das Lições de Português, podemos destacar: Máximas, Pensamentos e
Reflexões do Marquês de Maricá, Trechos Seletos: complemento prático as "lições de português",
Fonética Sintática e Textos Quinhentistas.

Na análise da obra, selecionamos as seguintes categorias: o prefácio da 5ª edição, a estrutura


da obra, o conceito de gramática e a classe do adjetivo como é tratada na Etimologia e na Sintaxe.

Destacamos o prefácio da 5ª edição, porque somente nele é que o autor cita as bases teóricas de
seu trabalho. Faz referência a Gladstone Chaves de Melo, Sílvio Edmundo Elia, Serafim da Silva Neto,
Celso Ferreira da Cunha, Jesus Belo Galvão e Carlos Henrique da Rocha Lima. Afirma ainda que
gostaria de citar outros nomes importantes que futuramente construirão a Filologia no Brasil.

Por essas palavras, fica evidente sua posição em relação à Filologia como fundamento dos
estudos linguísticos, servindo de base para o ensino da Língua Portuguesa na Escola Normal. É
importante destacar-se que esses e outros autores são citados em nota de rodapé ao longo da obra.

As Lições de Português estão organizadas em quatro partes: A Etimologia que trata da história
da Língua Portuguesa e da etimologia das diversas espécies de palavras; a Sintaxe que focaliza a sintaxe
especial das diversas espécies de palavras, a construção da frase quanto à colocação dos pronomes
pessoais, a sintaxe especial do verbo haver e do pronome se e o infinito pessoal; a Estilística que aborda a
diferença ente Gramática e Estilística, as figuras de sintaxe e os vícios de linguagem e, finalmente, a
Dialetologia que foca a Lingua Portuguesa e, em apêndice, discute a denominção do idioma nacional do
241
Brasil. Fazem parte tambéma da obra um glossário e índice alfabético e o índice onomástico e
bibliográfico.

Estrutralmente, a obra de Souza da Silveira aproxima-se da Gramática Filosófica de, Jerônimo


Soares Barbosa, sobretudo pela manunteção de uma parte dedicada à Etimologia e pelo tratamento
dado à Sintaxe. Assim, ele parece ter ainda um laço com a Gramática Filosófica. Porém, quando se
analisa o tratamento dado à etimologia, focando a origem das palavras, percebe-se o distanciamento
com o gramático do século XIX, que considerava que a etimologia tinha ―por objeto verificar a
verdadeira naureza de cada palavra por ordem e representação analytica do pensamento, os seus diferentes
misteres e usos na enunciação de nossas idéias, e descobrir na analogia ou diversidade de suas funções
comuns; o fundamento e caracteres de cada classe primitiva ou subalterna a que todos os elementos do discurso
se devem reduzir‖ (1866:65, apud MATTOS e SILVA, 1989:41) A abordagem dada à etimologia por
Souza da Silveira é fundamentada na Gramática Histórica, confirmando, assim, sua posição
historicista.Também o fato de iniciar os estudos etimológicos pela História da Língua Portuguesa e por
abordar questões como arcaísmos léxicos e etimologia dos prefixos e sufixos deixa evidente a linha
teórica do autor.

A definição de gramática é apresentada no capítulo dedicado à Estilística. Ela está assim


conceituada: ―Os fatos sintáticos expostos na gramática compendiam o que ocorre, em geral na língua,
aquilo que se aceita comumente como correto.‖ (SOUZA DA SILVEIRA, 1964:272)

Acrescenta ainda que ―A gramática apresenta sêcamente as regras, assinala as tendências fortes,
a direção geral dos fenômenos; a estilística mostra como o instrumento da língua funciona: quase
sempre em consonância com os preceitos expostos pela gramática, mas não raro afastando-se dêles
para alcançar melhor o seu fim supremo – a expressão.‖(SOUZA DA SILVEIRA, 1964:275)

Logo, inserido no espírito de sua época, o autor concebe a gramática como expressão da norma
culta, valorizando o bem falar e o bem escrever. Essa era a visão de língua trabalhada em seu curso e
essa era a orientação linguística que os estudantes recebiam em sua formação inicial. É importante
lembrar que, nesse período, frequentavam a Escola Normal alunos socialmente privilegiados e que,
portanto, já dominavam a norma trabalhada na escola. No caso das mulheres, pode-se constatar que o
magistério foi a porta de entrada para elas no mercado de trabalho. Essa via de acesso foi-lhes aberta
pelos homens por ser uma maneira de melhorar a educação dos filhos, tornando-os,
conseqüentemente, melhores cidadãos, segundo os cânones vigentes, além de ser também uma
atividade compatível com os princípios morais e com as nobres funções de esposa e mãe - o conceito
de rainha do lar aí está presente - destinada às mulheres ao longo dos tempos. Assim, pode-se dizer que,
242
na escola normal, ministrava-se um ensino de língua que era típico das classes privilegiadas destinado a
estudantes dessa mesma elite.

O autor trata dos adjetivos qualificativos, apresentando como regra geral a sua proveniência
latina. Após a definição, focaliza o plural dos nomes (substantivos e adjetivos) terminados em -l,
alegando ser necessário retomar-se o processo histórico de sua formação, e é por meio das
transformações ao longo do tempo que ele mostra aos estudantes a forma atual do plural dessas
palavras, fazendo referência a uma lei fonética, a da queda do l intervocálico. Não são apresentados
exemplos, mas há um quadro com a evolução desses adjetivos. Esse é o único aspecto abordado sobre
essa classe gramtical.

Na sintaxe, são, inicialmente, focalizadas as funções sintáticas dos adjetivos, como adjunto
atributivo, predicativo e aposto. Trata da substantivação do ajetivo pelo uso do artigo definido e
indefinido, do seu emprego no masculino como advérbio, mostra a sua participação na formação de
locuções adverbiais. Destaca ainda casos em que o adjetivo separa-se do substantivo pelo uso da
preposição de, como em ― a boa da velha‖; da concordância por atração do adjetivo empregado como
advérbio com o adjetivo que modifica ou com o substantivo ou pronome a que se refere; da gradação
focando as formas sintéticas tanto comparativas quanto superlativas e de construções analíticas que
expressam qualidades, típicas do ―estilo familiar ou do falar do povo‖, como escuro como breu, podre
de rico, entre outras. Na sequência, trata da concordância do adjetivo como o substantivo tanto como
adjetivo atributivo, como adjetivo predicativo do sujeito, adjetivo predicativo do objeto direto ou
aposto.

Diferentemente, da Etimologia, os casos discutidos na Sintaxe vêm sempre acompanhados de


muitos exemplos, todos extraídos de obras literárias, o que aponta para o modelo de língua e de
gramática defendido pelo autor. Verifica-se também no tratamento deste item referências ao latim e a
presença de notas de rodapé remetendo a estudos desenvolvidos por filólogos tal como proposto no
Prefácio da 5ª edição.

5. Palavras Finais

No século XIX, houve, no Brasil, a necessidade de tornar o ensino elementar universal, o que
levou ao surgimento de sistemas nacionais de ensino. Tais sistemas eram conjuntos formados por um
grande número de escolas, com o mesmo padrão de organização. Dessa expansão, nasceu o desafio da
formação de professores para atuar nas escolas recém-criadas, sendo a primeira delas a Escola Normal
de Niterói, criada em 1835, que abrigava o Curso Normal destinado à formação de professores. Era
uma escola destinada à elite e que formava professores para essa classe social, seguindo modelos
europeus. O padrão de funcionamento e de organização dessas escolas foi estabelecido pela reforma da
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instrução pública de São Paulo, em 1890, cujo grande objetivo era formar professores bem preparados
de acordo com modelos pedagógicos modernos e com domínio do conhecimento científico adequado à
realidade social brasileira daquele momento. O modelo de formação proposto foi o pedagógico-
didático, que concebia o processo formativo englobando a cultura geral, a formação específica na área
de conhecimento escolhida e o preparo pedagógico-didático. Esse modelo vigorou até 1939. Foi nesse
contexto que, em 1921, Souza da Silveira ministrou seu curso de Língua Portuguesa para o 3º ano da
Escola Normal.

Como observador de práticas, destacamos que a análise de sua obra, texto teórico e sem
nenhuma aplicação prática, mostra-nos a preocupação com o ensino da norma culta, repetindo o
modelo do Império de base humanística e com uma grande preocupação com o conhecimento
histórico e acultura geral. Dessa forma, as Lições de Português inseriam-se no espírito enciclopédico, com
forte conteúdo cultural, presente na Escola Normal. Apesar dessa característica, a obra, que sofreu
influências das ideias em vigor no momento de sua produção, foi reeditada inúmeras vezes, tendo,
portanto, influenciado também o contexto em que circulou por sua adoção no ensino da Escola
Normal e na formação de professores.

Referências
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Revista de Língua e Literatura. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie. V. 14. N. 1, 2012.

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Língua Portuguesa do Sáculo XVI ao XIX. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.

BASTOS, Neusa Barbosa e PALMA, Dieli Vesaro. História Entrelaçada 2 - A Construção de Gramática
de Língua Portuguesa na primeira metade do Século XX. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.

BELLINTANI, Adriana Iop. O Positivismo e o Exército Brasileiro. ANPUH – XXV SIMPÓSIO


NACIONAL DE HISTÓRIA. Fortaleza, 2009. Acessado em http://anpuh.org/anais/wp -
content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S25.0315.pdf, em 12 de abril de 2013, às11:30h.

CAVALLIERI, Ricardo. Uma Proposta de Periodização dos Estudos Linguísticos no Brasil. In ALFA.
São Paulo: UNESP, nº 45, 2001, p. 49-69.

FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. 2ª ed. São Paulo: EDUSP, 2006.

KOERNER, Konrad, Questões que persistem em historiografia lingüística. In Revista ANPOLL, nº 2,


1996, p.47-70.

MATTOS e SILVA, Rosa. Tradição Gramatical e Gramática Tradicional. São Paulo: Contexto, 1989.

PRADO JUNIOR, Caio. História econômica do Brasil. 43ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1998.

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de Portugal, 1964 (Coleção Brasileira de Filologia Portuguesa).
244
SOUZA, Rosa Fátima de. Templos de Civilização: a Implantação da Escola Primária Graduada no Estado de São
Paulo (1890-1910). São Paulo: UNESP, 1998.

SWIGGERS, Pierre. Histoire et Historiographie de l‘ Enseignement du Français: modèles, objets et


analyses. In Études de Linguistique Apliquée. Klincksieck:Paris, nº 78, 1990, p.27-44.
245
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS: UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO
NO ENSINO E APRENDIZAGEM DA LÍNGUA MATERNA

Dione Márcia Alves de Moraes99

Prof. Dr. Thomas Massao Fairchild (Orientador)100

Resumo: Este trabalho delineia como o gênero Histórias em Quadrinhos (HQ) pode ser utilizado, em
sala de aula, no ensino e aprendizagem da língua materna (LM). Apresenta uma pesquisa qualitativo-
interpretativa, de natureza aplicada, fundamentada em Bakhtin (2003), Bakhtin/Volochinov (2010),
Dolz, Noverraz e Schneuwly (2007), Dolz e Schneuwly (2007), Franco (2004), Mendonça (2007),
Ramos (2012), entre outros, e almeja contribuir para a formação (inicial e continuada) do educador.
Apresenta como objetivo geral refletir sobre o ensino e aprendizagem da LM a partir do trabalho com
as HQs e como objetivos específicos: a) trabalhar o gênero de forma contextualizada, com a utilização
de gibis; b) auxiliar o docente na prática pedagógica e; c) refletir sobre as virtudes e os vícios da
metodologia utilizada durante a aplicação do projeto. Destarte, espera auxiliar na prática docente,
incentivando o papel de um professor reflexivo por meio do trabalho com o gênero em tela e
responder à questão de como promover o ensino e aprendizagem da LM com a ajuda das HQs.

Palavras-chave: Ensino e Aprendizagem; Gênero HQ; Prática Docente.

Abstract: This work discusses how comics can be used in classroom in mother language (ML) classes. It
presents a qualitative-interpretative research, of applied nature, based in Bakhtin (2003), Bakhtin/Volochinov
(2010), Dolz, Noverraz e Schneuwly (2007), Dolz and Schneuwly (2007), Franco (2004), Mendonça (2007),
Ramos (2012), among others, and this research aims to contribute to the teaching training (initial and ongoing).
As a general objective, it aims to discuss possible results of such work. Its specific objectives are: a) to study the
genre in a contextualized manner, using comics; b) to aid the teachers in their practices and; c) to reflect on the
virtues and the shortcomings of the methodology used during the application of the project. Therefore, we hope
to motivate a reflexive teacher's role through the discussion of our experience with this genre to answer the
subject of how to promote the teaching and learning of ML with the help of comics.

Keywords: Teaching and Learning; Comics; Educational practice.

1. Considerações Iniciais

99Mestranda em Estudos Linguísticos na Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected]


100
Professor do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:
[email protected]
246
Este artigo101 apresenta uma pesquisa qualitativo-interpretativa, de cunho etnográfico e de
natureza aplicada, que procura responder a questão: como promover o ensino e aprendizagem da LM
no Ensino Fundamental por meio de textos heterogêneos, como a HQ? De acordo com os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN‘s) terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental: Língua Portuguesa, o
ensino da LM deve capacitar o aluno a ler, produzir gêneros orais e escritos em situações sociais
diversificadas: ―Considerando os diferentes níveis de conhecimento prévio, cabe à escola promover sua
ampliação de forma que, progressivamente, durante os oitos anos do ensino fundamental102, cada aluno
se torne capaz de interpretar diferentes textos [...]‖ (BRASIL, 1998, p.19).

Portanto, entendendo que o ensino por meio de gêneros é bastante divulgado atualmente,
destacamos que o trabalho com textos heterogêneos, constituídos de elementos verbais e não verbais,
em especial as HQs, ajudam na construção do sujeito-cidadão. Isto ocorre por estarmos diariamente
expostos a essa forma de enunciado em diversos domínios sociais, citando Mendonça (2007, p.194),

É fato incontestável que jovens leitores (e nem tão jovens assim) deleitam-se com as
tramas narrativas de personagens diversos, heróis ou anti-heróis, montadas através do
recurso de quadrinização. Entrevistas realizadas com alunos do Ensino Fundamental
de escolas públicas e privadas demonstram que sua preferência em termos de materiais
de leitura recai sobre as histórias em quadrinhos (HQs)

Entretanto, segundo Ohuschi (2010) as observações das práticas pedagógicas evidenciam as


dificuldades dos docentes em trabalhar a LM a partir de uma perspectiva discursivo-enunciativa. Essa
carência, nas práticas da abordagem de uma língua viva (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010),
prejudica a formação do estudante e o papel ativo do professor em sala de aula.
A partir das explanações apresentadas surgiu o interesse em realizarmos o projeto para aplicação
dos quadrinhos no ensino e aprendizagem da LM no Ensino Fundamental, efetuar esta intervenção,
fazermos a coleta de dados103, interpretando-os para tentarmos responder a questão levantada nesta
pesquisa (VASCONCELOS, 2002). Assim sendo, temos como objetivo geral refletir sobre o ensino e
aprendizagem da LM a partir do trabalho com as HQs e como objetivos específicos: a) trabalhar o
gênero de forma contextualizada com a utilização de gibis; b) auxiliar o docente na prática pedagógica e;
c) refletir sobre as virtudes e os vícios da metodologia utilizada durante a aplicação do projeto.
O trabalho fundamenta-se em teóricos como Bakhtin/Volochinov (2010), Bakhtin (2003), Dolz,
Noverraz e Schneuwly (2007), Dolz e Schneuwly (2007), Romualdo (2000), Mendonça (2007), Ramos (2012),
entre outros. À luz desses autores, realizamos a análise prévia de uma narrativa da Turma da Mônica, postado
em site oficial na internet após, explanamos sucintamente sobre: a proposta de intervenção por meio de uma

101
Recorte, adaptado, do projeto de pesquisa, apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Letras (PLE) da Universidade
Federal do Pará como requisito para a seleção 2012-1013 do Mestrado em Letras. Portanto, os conceitos, os teóricos e a HQ
utilizados neste artigo, posteriormente, podem ser modificados de acordo com os encaminhamentos do orientador.
102
A duração do Ensino Fundamental foi ampliada de oito anos para nove anos em 2006.
103 O sentido de dados que mencionamos neste trabalho são as anotações e registros produzidos durante o projeto.
247
Sequência Didática104 (SD) (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2007); a aplicação do projeto; a reflexão
sobre a metodologia, a coleta e interpretação, de dados para podermos encontrar as possíveis resoluções da
pergunta proposta. Pretendemos, assim, assistir a formação (inicial e continuada) do docente.
O artigo é composto por duas seções, além destas considerações iniciais e das considerações finais. Na
primeira seção, dividida em duas subseções, discorremos a respeito dos teóricos e das teorias que embasam o
trabalho. Na segunda seção, dividida em duas subseções, realizamos a análise da HQ, enfocando seus elementos
constitutivos, aliados ao contexto de produção e faremos um esboço do projeto de mestrado elaborado.

2. Revisão Bibliográfica

Nesta seção discorremos sobre os principais conceitos teóricos que norteiam este artigo,
finalizando com uma breve referência sobre a SD.

2.1 Gêneros Discursivos e Concisa Apresentação da SD

Este projeto emprega a teoria do Gênero do Discurso, pois é o que se adéqua melhor a nossa proposta,
citando Bakhtin (2003, p.262, grifo do autor): ―[...] cada campo de utilização da língua elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.”. Faraco (2009) explana que os
gêneros são ―Relativamente estáveis‖ por que estão sempre se modificando ao mesmo tempo em que mantém
certa estabilidade para que reconheçamos: ―auxiliam-nos a tornar o novo familiar pelo reconhecimento de
similaridades [...]‖ (p.130)
Os gêneros discursivos (Bakhtin, 2003) são formados por elementos que são indissociáveis dentro do
enunciado: conteúdo temático, aquilo que poder ser abordado pelo gênero; organizacional, como a sua estrutura
está organizada e o estilo, quais recursos linguísticos típicos do gênero e do enunciador são utilizados para atingir
a finalidade pretendida. Bakhtin (2003) propõe que os gêneros encontram - se e são produzidos em esferas
comunicativas e esferas de atividades - a que chamamos de contexto de produção/circulação do gênero - sendo
hoje uma forma mais eficaz de classificação, assim, temos as esferas sociais de comunicação: cotidiana, literário-
artística, escolar, imprensa, publicitária, política, jurídica, produção e consumo e midiática.
Enquanto Dolz e Schneuwly (2007, p.59) propuseram dividi-los em agrupamentos, esclarecendo, porém
que: ―[...] não é possível classificar cada gênero de maneira absoluta‖, ou seja, não é uma divisão rígida e
estagnada. Dessa forma, segundo esses autores - que esclarecem que essa divisão não consegue abranger toda a
diversidade - os cinco agrupamentos em que se podem classificar os gêneros são: narrar, relatar, argumentar,
expor e descrever ações.

104Ratificamos de que apesar de no projeto planejarmos a elaboração de uma SD (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY,
2007), não a apresentaremos pormenorizada neste artigo, pois essa não é a proposta deste trabalho.
248
Para a sugestão de trabalho com o texto em sala de aula, elegemos o método sociológico105
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010), ou seja, primeiro deve ser trabalhado o contexto sócio-histórico e as
esferas sociais nos quais circulam o enunciado, após as suas características e por fim a análise linguística. Desta
maneira, para que esta finalidade seja alcançada propomos, com o projeto, a metodologia da SD (DOLZ;
NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2007) que propõe o trabalho com o gênero de forma sistematizada, a saber:
produção inicial, módulos, produção final, análise linguística e circulação.

2.2 O Gênero HQ

Os quadrinhos surgiram no século XX, segundo Mendonça (2007, p.200): ―As HQ‘s surgiram
na periodicidade dos jornais. Com o tempo foram ganhando autonomia, dado o sucesso de público
alcançado, e passaram a figurar em publicações especializadas, os gibis‖. Atualmente, encontram-se
além dos gibis, em revistas especializadas para os mais diversos públicos, em panfletos educativos, na
internet, entre diversos, são narrativas com vários quadros, que compõe uma história fechada (começo,
meio e fim na mesma edição). O gênero em quadro pode ser definido como: ―união entre texto,
imagem e narrativa visual, formando um conjunto único e uma linguagem sofisticada com
possibilidades narrativas ilimitadas‖ (FRANCO, 2004, p.25).
As HQs são ecléticas, abordando desde histórias de terror à adaptação de clássicos literários, citando
Ramos (2012, p.123): ―[...] o gênero da história influencia o modelo expressivo do personagem, sendo mais ou
menos realista‖. Assim, elementos como o destinatário, o tema, o estilo, a finalidade, entre outros, direcionam os
autores na produção dos traços pictóricos, do texto verbal e do enredo. Destarte, histórias voltadas para o
público infantil, como as da Turma da Mônica (lidas por faixas etárias diversas (MENDONÇA, 2007)), por
exemplo, corriqueiramente, tem um arquétipo menos realista dos personagens (RAMOS, 2012), normalmente,
representados por crianças, além dos diálogos serem mais leves e o enredo, geralmente, ter um tema educativo.
O gênero estudado pertence à ordem do narrar e inclui-se na esfera midiática impressa e na esfera
virtual, compõe-se, geralmente, de: título, texto não verbal, diálogos, nos quais predominam o balão e narração.
Romualdo (2000) e Ramos (2012) destacam que os balões, além de introduzirem as falas dos personagens, fazem
parte do elemento visual do quadro, a forma do balão ajuda a revelar a característica da fala: balão-fala, expressa
o tom normal da fala sendo o mais comum; balão-berro, os arcos são voltados para fora e expressa o tom alto da
voz; balão-cochicho; o contorno é pontilhado e expressa o tom baixo da voz; entre diversos.

As letras podem ajudar na composição da narrativa e na expressão das emoções dos personagens
(RAMOS, 2012), assim, podem variar de: tamanho, sendo grandes ou pequenas; formato, compridas, curtas,
elétricas, grossas, por exemplo; e cor, vermelhas, em negrito, entre diversos. Além das letras, a quadrinização é

105Salientamosque Bakhtin/Volochinov (2010) propuseram esse percurso metodológico para orientar o estudo da língua,
uma vez que não abordaram questões de ensino. Porém, essa noção foi transposta para o ensino de línguas por diversos
pesquisadores da língua.
249
um importante recurso das HQs que, além de servir para delimitar o tempo e o espaço em que ocorre a narrativa,
pode ajudar na composição da história e variar de acordo com o que o produtor quer exprimir, podendo ser,
entre outros: denteados, ação ou emoção explosivas; em formato de nuvens, sonhos ou pensamento; estarem
ausentes, representando espaço expandido; compridos, infere altura; recortados; quedas, instabilidades ou fotos
e; mostrar a visão de um determinado lugar, como por um buraco podendo ser circular (RAMOS, 2012).

O conteúdo temático (BAKHTIN, 2003) do gênero em quadro é variado, podendo tratar de temas
educativos, propagandas, releituras de textos literários, porém normalmente são textos lúdicos. A construção
composicional é constituída da parte não verbal e comumente possui componente verbal como: título, diálogos,
legenda e a palavra FIM, ao término da história. O estilo utiliza uma linguagem informal, próxima da oralidade,
com a presença diálogos, onomatopéias, sinais de pontuação, entre diversos. As onomatopéias apresentam-se
como recursos muito utilizados no gênero analisado, elas servem para representar os sons e ruídos nos
quadrinhos (RAMOS, 2012), existindo um número extenso e variado dessas representações: au au (latido); bam
bam (tiro); smuac (beijo); haha, ih ih (risada); ic ic (soluço); triiiiiiim (campainha de telefone); dim dom
(campainha de porta); fiu fiu (assoviu); rrghh (ranger os dentes de raiva); para citarmos apenas algumas.

O espaço entre os quadros possibilitam ao leitor completar as partes subtendidas: ―O que


ocorre, na prática, é um processo de inferência de informações, obtidas dentro do contexto [...]‖
(RAMOS, 2012, p.145). Desta forma o leitor pode preencher o espaço de várias maneiras como, por
exemplo: com mudança de tempo, dia e noite, passado e futuro; de um espaço para outro; de ações
diferentes; entre diversos, possibilitando, assim, por meio da leitura do texto verbal em consenso com o
texto não verbal e o preenchimento dos espaços, um ato de leitura complexo.
Procuramos apresentar de maneira sintética o estilo, tema e organização dos quadrinhos, alguns
elementos são mais usuais e outros caracterizam a marca pessoal do produtor. Entretanto, não temos a
pretensão de abordar todos os recursos usados na sua linguagem e entendemos que muitos recursos
linguageiros ficaram excluídos desta explanação.

3. Análise do Gênero e Síntese do Projeto

Apresentaremos nesta seção a análise da história e seus componentes constitutivos -


complementares e indissociáveis (BAKHTIN, 2003) - a seguir, explanaremos resumidamente sobre os
passos planejados do projeto.

3.1. HQ da Turma da Mônica


250

Fonte: http://www.monica.com.br/comics/welcome.htm

As HQs da Turma da Mônica servem de entretenimento, além de comumente apresentarem


temas sociais e educativos. O contexto de produção/circulação (BAKHTIN, 2003) desta história
apresenta-se na esfera virtual, por ter sido divulgada na internet não podemos precisar a data exata de
sua produção, foi publicada no Portal da Turma da Mônica e circula na mídia virtual, na internet, que
251
disponibiliza vários textos do gênero. O produtor106 (autor/enunciador) é o desenhista Maurício de
Souza. Os destinatários são os navegadores da internet, na maioria crianças e jovens, e a temática do
texto é a crítica a derrubada de árvores.

O estilo (BAKHTIN, 2003) apresenta uma linguagem que procura representar a oralidade - porém,
identificamos diálogos mais voltados para o formal nas histórias da Turma da Mônica, sobre essa singularidade
Ramos (2012, p.61) declara: ―[...] Mônica e os colegas desenhados como crianças, mas a representação da fala,
bem como a utilização do léxico, era própria de um adulto, por causa do nível de fala mais formal‖-; o uso de
pontuações para expressar sentimentos e entonação, como as interrogações e as exclamações (que podem tem
várias significações percebidas no contexto da narrativa). A construção composicional é constituída de sete
quadros de tamanhos diferentes que devem ser lidos da esquerda para direita, e de cima para baixo, apresenta
assinatura, título, diálogos, FIM e texto não verbal.

O contexto sócio-cultural e histórico apresenta-se no enfoque dado atualmente aos enunciados sobre a
importância da preservação do meio ambiente, uma temática amplamente debatida por diversos gêneros em
vários meios de circulação: enfoca os benefícios que uma árvore pode proporcionar e os problemas que o seu
corte acarreta, entre eles, os mais imediatos identificados na história. A finalidade consiste em fazer uma
propaganda social contra a derrubada de árvores e assim, o produtor constrói uma imagem positiva de suas
publicações, já que nesta narrativa, apresenta-se de acordo com as ideias ambientalistas, criando uma empatia
com os leitores/destinatários, e com as organizações, superdestinatários (BAKTHIN, 2003), que compartilhem
desta ―bandeira‖. Percebemos a intertextualidade (ROMUALDO, 2012) com propagandas, panfletos,
artigos, entre outros, que tratam do mesmo tema, desta forma a narrativa esta repetindo e reforçando o
argumento ambientalista.

No primeiro quadro, aparece a assinatura do autor/enunciador e o título ―Turma da Mônica‖,


denunciando que personagens variados participarão da história. A cena narrativa (RAMOS, 2012)
icônica, deste quadro, apresenta um ―resumo‖ de toda a história (o homem fazendo o papel de uma
árvore): o adulto - de físico robusto, barba, camisa xadrez, macacão e botas – se encontra com os
braços abertos, com galhos de árvore postos na parte superior do corpo, enquanto o Cebolinha,
personagem conhecido da Turma da Mônica, molha os pés dele com um regador. O segundo, terceiro,
quarto e quinto quadros apresentam texto não verbal em que o homem aparece com personagens
diversos em espaços e ações diferentes, um recurso utilizado pelas HQs para demonstrarem mudança
de espaço e passagem de tempo (RAMOS, 2012).

Nesses quadros destaca-se a expressão sisuda do homem, evidenciado pelo arco da boca voltada
para baixo, contrastando com a expressão de alegria, evidenciado com o arqueamento dos lábios para
cima, dos personagens conhecidos e fixo das histórias que são Cebolinha, Cascão, Mônica e Magali,

106
Os estúdios Maurício de Souza Produções comportam um grande número de desenhistas, porém a marca registrada é
assinada pelo criador Maurício de Souza e assim ele será identificado neste artigo como o produtor.
252
além do entendimento proporcionado pelo contexto do texto não verbal da narrativa. Observamos que
no quarto quadro aparece no balão – fala uma metáfora visual (ACEVEDO apud RAMOS, 2012) que
expressa o desejo do adulto por meio de imagens.

O sexto quadro apresenta texto verbal em balões-fala (ROMUALDO, 2000): ―posso ir agora?‖
em que a entonação típica de uma pergunta é representada pelo sinal de pontuação ―?‖. O advérbio de
tempo ―agora‖ permite a interpretação de que após toda a sequência narrativa (RAMOS, 2012), ele
poderia ―ir‖, percebido, pelo contexto, como sinônimo de ―sair daquele local‖. A personagem Mônica
responde ―agora, pode!‖ o advérbio de tempo, deslocado para o início da frase, dá destaque e ênfase à
inferência de que: ―agora‖, depois de todas as ações anteriormente feitas, ele poderia ir embora, o sinal
de exclamação ―!‖ destaca a ênfase da resposta, notado no contexto do quadro. O texto não verbal,
demonstra o personagem adulto com as sobrancelhas e lábios arqueados para baixo e gotículas de suor
saindo do seu rosto, corpo arqueado para baixo, demonstrando humildade coerente com o texto verbal,
enquanto a criança demonstra-se satisfeita, novamente coerente com a sua enunciação.

No sétimo e último quadro há o fechamento da história em que é confirmado quem é o homem


e o porquê de suas ações: o texto verbal aparece em um balão fala (ROMUALDO, 2000) ―Foi a última
vez que cortei uma árvore!‖, desta forma a ―inferência de informações, obtidas dentro do contexto‖
(RAMOS, 2012, p.145) permite-nos saber os motivos das ações do personagem: ele havia cortado uma
árvore e representou o ―papel‖ dela nos quadros anteriores. O verbo no pretérito perfeito explicita que
foi uma ação concluída, o sinal ―!‖ infere o sentimento de perplexidade ante tantos problemas
ocasionados com o ato, percebido dentro do contexto da narrativa. No canto direito e abaixo aparece a
palavra ―FIM‖, utilizada para encerrar uma HQ.

O texto não verbal – em consenso com o texto verbal (ROMUALDO, 2000) - mostra o
homem com um machado, as costas curvadas demonstrando arrependimento, por sua ação ―cortar
uma árvore‖ e as consequências desse ato, pela primeira vez aparece um toco de árvore provavelmente
a que foi cortada pelo adulto, e a Mônica, Cebolinha e Cascão expressando repreensão, evidenciado
pela composição das mãos na cintura de dois personagens, as sobrancelhas franzidas e os lábios
arqueados para baixo de todas as três crianças.

3.1 A Proposta do Projeto

O projeto prevê a produção de uma SD (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2007); integrada com
uma temática de interesse da escola e voltada para uma turma que tenhamos tido um conhecimento prévio por
um determinado período (observando, assim, suas necessidades, singularidades e heterogeneidades); que de
253
forma resumida: a) após uma dinâmica com os gibis, para um ―primeiro‖ contato, analisar uma história com a
turma, adaptando a primeira produção para um trabalho de leitura, em que o contexto sócio-histórico-cultural, os
elementos verbais e os não verbais serão destacados como os da HQ analisada anteriormente; b) os módulos
trabalharão os pontos que precisam ser melhorados pelos alunos e; c) na produção final, os discentes produzirão
histórias em quadrinhos, com práticas de análise linguísticas e reescrita no decorrer do processo. O material
produzido pode ser escaneado, impresso, montado a HQ com a produção feita pela turma e distribuído aos
próprios alunos.

Após a apresentação da intervenção à escola previamente selecionada, será feita a aplicação do


projeto com anotações em cadernos de campo e usando o gravador quando necessário
(VASCONCELOS, 2002); comparando materiais produzidos pelos alunos antes do início da
intervenção com os produzidos ao término. Assim sendo, a partir da proposta de intervenção, da
reflexão sobre o processo metodológico e da interpretação dos dados (feitos à luz dos teóricos
utilizados no projeto) para encontrarmos respostas para a questão levantada, esperamos auxiliar no
desenvolvimento do ensino e aprendizagem da LM e na formação (inicial e continuada) do professor.

Considerações Finais

Neste artigo, recorte adaptado do projeto de Mestrado, objetivamos apresentar o gênero HQ como uma
proposta metodológica para o ensino e aprendizagem da LM no Ensino Fundamental, mostrando através de
teóricos, conceitos e análise, que o gênero em tela pode ser utilizado como meio que auxilie o docente na prática
pedagógica.

A importância da utilização dos quadrinhos em sala de aula justifica-se por fazermos (professores e
alunos) parte de uma sociedade na qual o texto verbal e não verbal constroem os sentidos nos enunciados em
vários domínios sociais. Assim sendo, fundamentados em teóricos como Bakhtin/Volochinov (2010), Bakhtin
(2003), Romualdo (2000), Mendonça (2007); Ramos (2012), entre outros, analisamos uma história da Turma da
Mônica, indicando os elementos visuais e verbais, os sentidos produzidos através dos elementos constitutivos e
os aspectos linguístico-discursivos nela presente seguidos da síntese da programação do projeto para ser aplicado
durante o curso de Mestrado, a saber: produção e aplicação de uma SD, coleta e interpretação de dados, reflexão
sobre a metodologia e construção de respostas para a questão que propomos.

Apesar de não termos a pretensão de encontrarmos a resposta última e definitiva para a pergunta que
expusemos, esperamos com este trabalho ajudar na prática pedagógica, estimulando o uso da HQ nas aulas de
LM no Ensino Fundamental. Pois entendemos que na sociedade moderna torna-se cada vez mais necessário que
o docente renove seus conceitos e suas práticas de ensino para poder assumir o papel de mediador do
conhecimento em sala de aula e auxiliar o aluno na aquisição do saber.
254

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M.; VOLOCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília:
Secretaria de Educação Fundamental, 1998.

DIONÍSIO, Angela Paiva; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora. Gêneros Textuais &
Ensino. 5 ed. Rio de Janeiro: Lucerna.

DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle; SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, São
Paulo: Mercado das Letras, 2007. Tradução de Roxane Rojo e Gláis Sales Cordeiro (Coleção a Faces da
Linguística Aplicada)

FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola
Editorial, 2009.

FRANCO, Edgar Silveira. Hqtrônicas: suporte papel à rede internet. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2004.

OHUSCHI, Márcia Cristina Greco. Projeto de Pesquisa: Diagnóstico do trabalho com os gêneros discursivos na
escola. Universidade Federal do Pará: 2010.

RAMOS, Paulo. A Leitura dos Quadrinhos. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2012.

ROMUALDO, Edson Carlos. Charge Jornalística: intertextualidade e polifonia: um estudo de charges da Folha de São
Paulo. Maringá: Eduem, 2000.

SOUZA, Maurício de. Páginas Semanais. São Paulo. Disponível em: <
http://www.monica.com.br/comics/welcome.htm>. Acesso em: 10 de Dez. 2012.
255

VASCONCELOS, S.I.C.C. Pesquisas Qualitativas e Formação de Professores de Portugues. In: BASTOS, Neusa Maria
Barbosa (org.). Língua Portuguesa: uma visão em mosaico. São Paulo: EDUC, 2002, p.277-297.

E QUANDO ME DEI CONTA, JÁ ESTAVA PROFESSORA INGLÊS

Edna Sousa Cruz107

Resumo: Esta pesquisa analisa a significação que as docentes conferem à sua formação tendo como
objeto de estudo a identidade e formação em narrativas de vida de dez professoras negras de inglês que
atuam nos Ensinos Fundamental e Médio da cidade de Imperatriz -MA, Brasil. Além de problematizar
aspectos constitutivos da formação da professora de inglês, a pesquisa também discute a questão do
preconceito e da discriminação ―racial‖ vivenciada pelas professoras e suas estratégias para combatê-los
nos espaços sociais em que transitam. Este estudo adotou como metodologia a História Oral em que
relatos, orais e escritos, são tomados como discurso, e onde o posicionamento social se define. Partindo
de um percurso de pesquisa interdisciplinar, tomou-se como referencial teórico, os Estudos Culturais e
a Análise do Discurso da linha francesa de orientação pecheuxtiana, os quais estabeleceram as bases
para o diálogo com as teorias de identidade, gênero e étnico-racial. Finalmente, a pesquisa investigou
como as falas das professoras de inglês negras se articulam discursivamente para demonstrar como
ocorreu o rompimento de barreiras no ambiente escolar e fora dele.

Palavras chave: Professoras negras; Língua inglesa; Formação; Identidade; Ensino.

Abstract: The objective of the research is to analyze the signification of teaching the teachers ascribe to
formation. The corpus of this study is the speech of afro-Brazilian professionals who teach English in
the primary and high school levels in the city of Imperatriz-MA, Brazil. Besides discussing the
constitutive and troublesome aspects concerning the formation of English teacher such as to succeed in
entering the university and keep herself/himself in the course, this work also approaches the
emblematic question of prejudice and racial discrimination experienced by the teachers and their
stratagems to face them in the social spaces they share. Departing of an interdisciplinary course this
investigation took as theoretical reference the Cultural Studies and Discourse Analysis (DA) by French
theorists under Pechêux´s orientation, which established the bases to articulate a dialogue with theories
of identity gender, and ethnic-racial. Guided by the qualitative approach assumptions, this research used
as methodology the Oral History in which the oral reports of the teachers were taken as discourse, as
space where language and ideology meet and social positioning is defined. Finally, the dissertation
investigated how the speech of Black women teachers of English articulate discursively to reveal their
success in breaking barriers both in the school environment and the social group they belong to.

Keywords: Afro-Brazilian Teachers; English; Formation; Identity; Teaching.

107
Professora de inglês da Universidade Estadual do Maranhão-UEMA . Doutoranda do Programa de Pós Graduação
em Ensino de Língua e Literatura da Universidade Federal do Tocantins, campus de Araguaína..
256
1 Introdução

Conhecer alguém, na acepção da palavra, implica oportunizar-lhe, sair do anonimato e


apresentar-se com voz própria, trazendo a público sua história de vida a qual carrega as marcas das
dores e alegrias de ser o que se é. Assim é que, ao tomar a palavra as mulheres negras que aqui contam
suas histórias, dão voz a tantas vozes silenciadas e revelam em suas experiências pessoais e
profissionais, as duras lutas pela autofirmação e conquista por ‗um lugar ao sol‘. Ao resgatar através de
suas memórias retalhos de suas histórias, elas trazem à baila lembranças aparentemente esquecidas e em
alguns casos feridas nunca cicatrizadas.
Estudar as memórias, vivências e experiências torna-se indispensável para se conhecer a
trajetória de docentes negras que conseguiram romper barreiras tais como a do racismo, da
discriminação e da exclusão, para ingressarem em um curso superior e tornarem-se professoras de
Língua Inglesa. Este ingresso, como observa Munanga108 (2006, p. 08), ―[...] numa profissão que as
torna membros da classe social média, resulta de uma longa trajetória durante a qual muitas delas
passaram por experiências frustrantes, às vezes, humilhantes e traumatizantes, todas preconceituosas e
discriminatórias‖. As vicissitudes descritas nessa assertiva bem se enquadram na história de vida da
grande maioria das docentes que integraram a pesquisa, cujos resultados ora apresentamos, para as
quais o caminho até a obtenção de um diploma de curso superior foi longo e espinhoso.
Esta pesquisa ancorou-se nos pressupostos metodológicos da História Oral, cujo estudo da
memória através da oralidade, como afirma Thompson (2000), favorece ao indivíduo dialogar consigo
mesmo ao trazer à baila lembranças aparentemente esquecidas e experiências vivenciadas. Sendo a
memória um elemento constitutivo da identidade (JOUTARD, 2000), ela não deve ser considerada
depósito no qual o já acontecido é passivamente arquivado ou descartado, e sim como um processo
dinâmico que cria e recria significados ao presentificar o passado através das rememorações
fortemente vinculadas tanto ao lugar que o sujeito ocupa, como às atividades que ele desempenha no
espaço social por onde transita.
Sendo a memória ―[...] um elemento constitutivo da identidade‖ (JOUTARD, 2000, p.43), ela
não deve ser considerada depósito no qual o já acontecido é passivamente arquivado ou descartado, e
sim como um processo dinâmico que cria e recria significados ao presentificar o passado através das
rememorações e estas, em se tratando da memória feminina, estão fortemente vinculadas tanto ao lugar
que a mulher ocupa, como às atividades que ela desempenha no espaço social por onde transita, isto
porque:

108
Ao prefaciar o livro Mulher negra professora universitária - trajetória, conflitos e identidade. OLIVEIRA, Eliana de.
Brasília:Líber Livro Editora,2006.
257
As mulheres tem uma memória familiar porque sua esfera social é a da reprodução
familiar; não apenas porque são mulheres, mas porque são mães de família,
responsáveis socialmente pela reprodução dos adultos e pela produção das crianças. É
somente na medida em que esta obrigação as conduz a exercer práticas sociais
diferentes daquelas dos homens que elas têm uma memória e uma relação com a vida
diferente. (BERTAUX—WIAME Apud CATAN1, 2002, p.43).

Ao narrarem suas histórias de vida as professoras, relatam como conseguiram romper as


barreiras do racismo, discriminação, e em muitos casos de exclusão, para adentrar e permanecer no
curso superior até a conclusão do mesmo. O trajeto da educação básica até a faculdade foi para quase
todas as professoras perpassado por dificuldades de ordem econômica e familiar. Para muitas delas o
acesso a educação trouxe como imposição a obrigatoriedade de se separar da família, mudar para
cidades maiores, e, em alguns casos, trabalhar como babás ou ajudantes de afazeres domésticos, em
troca de moradia em casa de parentes.
Não obstante a pouca escolaridade de algumas das mães das docentes e a total falta de acesso à
educação formal de outras, essas mulheres através do projeto de escolarização por elas desenvolvido,
projetam em suas filhas um desejo por uma vida diferente da delas, e neste projeto a educação
configura-se instrumento que possibilitaria romper através de suas filhas, com o círculo, provavelmente
iniciado nas gerações anteriores, da falta de acesso aos bens culturais e econômicos.
Já para as filhas, estudar representa não apenas a possibilidade de concretizar o sonho de suas
mães, mas também a aspiração por um futuro melhor (Clebyana), ser bem sucedida profissionalmente
(Claudiane), ser professora e se casar com um bancário (Maria). Estas representações vão se
construindo nas práticas discursivas a que elas estão expostas, nas quais a docência aparece no mais das
vezes, como se infere pelos dizeres de algumas docentes, como fruto de imposição circunstancial, em
que o Curso de Letras é tomado como a representação da ausência do curso idealizado, como meio
para suprir as necessidades financeiras (Midian), ou simplesmente ter um curso superior que lhes
garantisse o exercício de uma profissão, mesmo que esta fosse o magistério:

Quando eu entrei para a faculdade, o meu objetivo maior não era Letras. Era mais na
área de Geografia ou de História, tanto que eu tentei as primeiras vezes para estes
cursos. Eu fiz foi cinco vezes, eu não tenho vergonha de dizer isso, entendeu?
Quando foi um dia, eu cheguei lá e decidi me inscrever de novo, olhei e Letras era o
curso que tinha menos inscritos. Aí, me inscrevi. (Rosa - Entrevista oral, 29/08/2011)

Ainda que movida por razões aparentemente distintas o Curso de Letras apresenta-se para as
docentes filhas de trabalhadores rurais, e moradoras de regiões onde a população apresenta baixa
escolaridade; como a possibilidade de romper com os mecanismos de exclusão, como a educação
258
precária, uma vez que o ingresso na universidade representaria uma forma de quebrar o círculo do
(semi) analfabetismo familiar e distinguirem-se socialmente na comunidade de origem, e conquistar um
diploma universitário, que não obstante o valor simbólico lhes permitira transitar em outros espaços
sociais e intelectuais.
Apesar da propagação de discursos que apregoam que banalizam a docência e outros mais que
rotulam o magistério, ―como carreira de segunda categoria‖ (RIBEIRO 2004, p.54), as professoras ante
a impossibilidade de ingressarem em uma carreira que gozasse de maior prestígio, veem a docência
como espaço para uma mobilidade social ascendente. Midian e Rosa ao ingressarem na universidade,
trocam a lida no campo como quebradeiras de coco, pelo trabalho na cidade como professoras o que
lhes permite contribuir mais substancialmente com as despesas de casa e almejar uma vida mais
cômoda.

2. O percurso da trajetória que me direcionou para a área de língua inglesa

Segundo Fonseca (2002, p.126) ―a escolha da profissão de professor está associada a uma
diversidade de relações que marca cada percurso existencial de forma particular‖. Em si tratando das
professoras em pauta, observa-se que seus relatos sobre as motivações que as levaram a escolherem o
curso de Letras desenham a opção pelo magistério como uma alternativa resultante da frustração pelo
não ingresso em uma carreira que gozasse de maior prestígio.

Eu estudei na escola de inglês, só mesmo para ter o conhecimento de outra língua,


para valorizar o meu currículo, mas não era com a intenção de ser professora não. Era
só por questão de currículo [...] foi o percurso da trajetória que fez com que eu fosse
para a área de inglês. (Paixão - Entrevista oral, 09/04/2012)

O curso que eu queria não era Letras, era Geografia ou História, tanto que eu tentei
as primeiras vezes o vestibular para estes cursos. Eu fiz foi cinco vezes, eu não tenho
vergonha de dizer isso, entendeu? Quando foi um dia, eu cheguei lá e decidi me
inscrever de novo, olhei e Letras era o curso que tinha menos inscritos. Aí, me
inscrevi. (Rosa - Entrevista oral, 29/08/2011)

Um fator preponderante perpassa a fala de quase todas as docentes quanto a escolha pela
licenciatura em Letras: o anseio e a necessidade de ter um curso superior que lhes garantissem o
exercício de uma profissão, mesmo que esta fosse o magistério; e neste caso, dada a baixa concorrência,
o curso de Letras.
Se, por um lado, para estas duas professoras as desmotivações a respeito do magistério
apontariam para concepção da carreira docente como desvalorizada e por conseguinte descaracterizada,
por outro observa-se que para algumas tornar-se professora foi uma escolha condicionada à disciplina.
Ser professora sim, desde que professora de inglês. É o que relatam as professoras, a seguir.
259
O que me levou para a sala de aula, foi exatamente a vontade de não parar de ver inglês,
entendeu? [...]. Era uma paixão pelo inglês que terminou o curso e eu estava sempre fazendo
cursinhos extras, para não esquecer. Para não deixar o inglês de mão eu entrei no curso de
Letras, entrei pela necessidade de não querer me separar do inglês. (Márcia - Entrevista
oral em 25/04/2012; grifos nossos)

Eu acho que a disciplina de inglês dá um certo status porque por exemplo, quando a gente
chega em uma sala de aula e é apresentada como professora de inglês algumas pessoas dizem;
WOW! [...] A distinção não estar em ser professor, mas na disciplina. (Clebyana - Entrevista
oral, 29/04/2012)

Percebe-se nas narrativas de Márcia e Clebyana que, ao falarem de suas percepções sobre a
língua inglesa, ancoram-se em ‗vozes coletivas‘ seja das instituições de ensino, ideologias, e até mesmo
da propagação midiática do inglês como sinônimo de diferenciação. A exposição aos discursos que
associam saber inglês com sucesso profissional ter-lhes-ia influenciado na construção imaginária de que
lecionar qualquer outra disciplina não seria tão glamoroso, quanto lecionar inglês. Nestes termos, a
construção da identidade profissional, é geradora de uma diferença que se ―sustenta pela exclusão‖
(WOODWARD, 2000, p.9), vez que ela negaria aos professores das demais disciplinas a mesma
visibilidade dos docentes de inglês.
Das narrativas das docentes emerge um deslumbramento com o inglês que espelha o poder de
sedução da língua inglesa e a introjeção (ideologia) da americanização que denotam uma percepção do
inglês como língua superior e que por isso conferiria certo status ao falante. Segundo Grigolleto (2003),
a ideologia que faculta ao inglês desfrutar posição privilegiada no imaginário dos professores da área, é
sustentada pelo ―discurso do fascínio e da paixão pela língua‖ (p. 46). Assim é que ao conciliarem
objetividade com subjetividade, a paixão, a busca pela distinção social via ensino de inglês funcionariam
como ―moeda de troca‖ no que se refere a opção pelo curso de Letras.

3 Quando me dei conta já estava professora


Minha primeira experiência em sala de aula não foi muito boa. Eu senti que eu estava
muito nervosa. Eu só tinha o curso de inglês na época, então eu não tinha base sobre
as metodologias, o que eu precisava saber para ensinar. Para mim, eu cheguei na sala
de aula do zero, aí eu tive que passar por vários treinamentos. [...] Isto também pode
ser colocado como uma barreira. O fato de eu ter começado a trabalhar com a língua
inglesa antes de ter passado pela faculdade. (Clebyana - Entrevista oral, 29/04/2012)

Quando eu comecei a dar aula de inglês eu estava quase concluindo o curso de


graduação. Então a gente tinha uma forma de trabalhar mais voltada pelo que estava
sendo orientado na universidade. Quando a gente chega numa sala e ainda é
estudante, o trabalho é diferente, no inicio são muitas teorias e a gente tenta colocar
tudo de uma só vez em prática na sala de aula. Foi mais ou menos isso que eu buscava
fazer. Tudo que eu via na universidade eu acreditava que rapidinho eu teria resposta
imediata. (Claudiane - Entrevista oral, 05/05/2012)

As experiências relatadas acima situam-se no ciclo da vida profissional cunhado por


Hubberman (1992, p. 37) como exploração o qual, ―consiste em fazer uma opção provisória, em
260
proceder a uma investigação dos contornos da profissão experimentando um ou mais papéis‖. Este
período exploratório é crucial para se ponderar os sucessos e insucessos obtidos, para avaliar qual dos
dois pesará mais. O balanço feito deste período poderá concorrer para que o candidato à docência
desista ou permaneça; a opção pela segunda alternativa, advinda das vivências positivas em sala de aula,
possibilitaria dar o passo seguinte rumo à estabilidade: o compromisso decisivo com a profissão.
Apesar de Claudiane começar a lecionar quando ainda era aluna do curso de Letras, sua fala
revela uma angústia advinda da percepção sobre sua formação na faculdade: distanciamento entre o
ensino da academia, no qual ela depositava todo a sua confiança, e a práxis escolar. Clebyana, que ainda
não cursara Letras, relata que iniciou a carreira docente zerada de uma formação pedagógica, em relação
aos métodos e abordagens utilizados no ensino de língua estrangeira. Isto implicou se submeter a vários
treinamentos, para assumir uma sala de aula.
As falas de Clebyana e Claudiane evidenciam os conflitos e a insegurança de quem teve de
aprender a aprender e aprender a ensinar, simultaneamente, dividindo-se entre os papéis de aluno-
professor e professor-aluno que, por vezes, geram conflitos de identidade. A dupla tarefa do professor
iniciante, de aprender a ensinar e ensinar, é um processo com muitos elementos a serem considerados,
como sua personalidade, formação familiar e acadêmica (se houver), além da socialização com a
comunidade escolar, as quais refletem sua identidade profissional e o modo como este professor se
posiciona diante da profissão.
Diante do exposto, inferimos que, a partir das experiências vividas em sala de aula como
professoras ―leigas‖, as docentes entrevistadas vão cristalizando, por vezes, inconscientemente, a
professoralidade, iniciando, assim, o processo de vivenciar possibilidades de construção de novas
versões de identidade nos percursos que as levaram a tornarem-se professoras de inglês.

4. Breves considerações
A construção da identidade de professora de inglês para a maioria dos sujeitos desta pesquisa se
fez mediante sua identificação com o idioma, o qual funcionaria como compensação por ter de optar
pelo magistério, na impossibilidade de poder fazer outras escolhas, para outros, a possibilidade de
realização de um desejo, uma paixão: trabalhar com inglês. O que se percebe, implicitamente, na
narrativa de umas professoras e, explicitamente na de outras, é que, em meio às imprevisibilidades e
atribuições inerentes à tarefa de ensinar, as docentes foram desenvolvendo mecanismos de adaptação à
profissão, e este processo poderia ser apontado como um dos norteadores no que tange à permanência
no curso de Letras.
Ancorados nesta assertiva, inferimos que a partir das experiências vividas em sala de aula como
professoras ‗leigas‘, as docentes entrevistadas vão cristalizando, por vezes inconscientemente, a
professoralidade, iniciando, assim, o processo de vivenciar possibilidades de novas versões de
identidade nos percursos que as teriam levado a tornarem-se professoras de inglês.
261

REFERÊNCIAS
BAGHIN-SPINELLI, D. C. (2002). Ser Professor (brasileiro) de Língua Inglesa: um estudo dos processos
identitários nas práticas de ensino. Tese de Doutorado. UNICAMP.
FONSECA, Selva Guimarães. O Prazer de Viver e Ensinar História. In: Como me fiz professora. Geni
Amélia Nader Vasconcelos (Org.) Rio de Janeiro. DP & A,2000.
GRIGOLETTO, Marisa. Um Dizer entre Fronteiras: O discurso de professores e futuros professores
sobre a língua inglesa. Trab. Ling. Aplicada (41): 39-50. Jan.Jun.2003.
HUBERMAN, Michael. O Ciclo de Vida Profissional dos Professores. In: Vidas de professores. Porto.
Porto Editora. 1992.
JESUS, Regina Fátima de. Sobre alguns caminhos trilhados... ou mares navegados...Hoje sou
professora. In: Como me fiz professora. Geni Amélia Nader Vasconcelos (Org.) Rio de Janeiro. DP&A,
2000.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. In. Identidade e
diferença – A perspectiva dos estudos culturais. Tomaz Tadeu da Silva (Org.) Petrópolis. Editora Vozes.
2000.
262
A SENTENÇA JUDICIAL SOBRE A MENORIDADE NA PERSPECTIVA DA
ANÁLISE DO DISCURSO CRÍTICA: UM EXEMPLO MANAUARA109

Eduardo Cardoso Martins110

Resumo: O foco deste artigo é a análise discursiva sobre o adolescente em conflito com a Lei
institucionalizada no gênero sentença judicial do Juizado da Infância e Juventude da cidade de Manaus.
Para tanto, analisamos os documentos prolatados pela Vara Infracional no ano de 2009, com as devidas
descaracterizações, a fim de evidenciar a construção e a disputa de sentidos quando julgam um menor.
Adotamos para a investigação do gênero tanto as pistas gramaticais, como o a escolha lexical e o estilo,
assim como nos aspectos discursivo-pragmáticos, como a estrutura composicional, a marcação
ideológica do registro vocabular, os interlocutores, o propósito comunicativo e o desfecho dos casos.
Mostramos como a palavra repassa, de forma velada ou ostensiva, todas as minúcias que caracterizam
uma formação social que, por sua vez, é o verdadeiro espelho das condições e das relações que marcam
a vida em sociedade. A representação construída na ação do gênero nesta prática social revela a maneira
de pensar e agir do judiciário no tratamento do menor envolvido em um ato infracional.

Palavras-chave: Adolescente; Gênero; Sentença judicial; ECA.

Abstract: The focus of this article is a discursive analysis about adolescents in conflict with the law
institutionalized in gender judicial sentenses of Juvenile Court in the city of Manaus. Therefore, we analyzed the
documents written by infraction area of the District Court in 2009, with appropriate mischaracterize in order to
demonstrate the construction and dispute senses when judging a minor. Adopted for the investigation of both
lanes grammatical gender, as the the lexical choice and style, as discourse-pragmatic aspects, such as the
compositional structure, the ideological vocabulary, the interlocutors, the communicative purpose and outcome
of the cases. We show how the word passes so veiled or overt, all the minutiae that characterize a social
formation which, in turn, is the true mirror of conditions and relationships that make life in society. The
representation constructed in the action genre in this social practice reveals a way of thinking and acting in the
judicial treatment of minor engaged in an offense.

Keywords: Adolescents; Gender; Judicial sentenses; ECA.

1 Introdução

No senso comum, raramente temos consciência da ligação intima entre escrever, pensar, saber e
ser. Tendemos a acreditar que ler e escrever se diferenciam apenas no transmitir dados e informações,

109 O presente artigo é um recorte da dissertação intitulada ―A CRIANÇA DO ESTATUTO E O ESTATUTO DE


CRIANÇA: um estudo discursivo sobre a representação infanto-juvenil na justiça manaurara‖, defendida agosto de 2012.
110 Professor Assistente da Universidade Federal do Amazonas – UFAM. Mestre em Linguística pela Universidade de

Brasília - UnB. Bolsista FAPEAM. E-mail: [email protected]


263
sem nenhuma influência ideológica. Tendemos a acreditar que ler e escrever se diferenciam apenas no
transmitir dados e informações, sem nenhuma influência ideológica. Iludimo-nos que as ideias são
independentes da forma e dos processos com que se elaboram. Ignoramos a influência dos processos
de escrita em nossa apreensão dos processos linguísticos como um todo. Em suma, no dia a dia,
subestimamos o extraordinário poder das palavras e seu contínuo trabalhar para construir sentidos e
representações de mundo e de vida.
Desde os primórdios da história, a humanidade vem desenvolvendo diversas espécies de
atividades sociais, nas quais se produziram os correspondentes ―textos‖ adequados a estas práticas. A
partir dos estudos de Mikhail Bakhtin (1992), originalmente em 1929, estas realizações discursivas são
classificadas como gêneros do discurso, vistos como tipos relativamente estáveis de enunciados e
sempre marcados socio-historicamente, por estarem relacionados às situações da vida cotidiana. Cada
prática social produz e utiliza gêneros discursivos particulares, que articulam estilos e discursos (orais ou
escritos) de maneira relativamente estável num determinado contexto sócio-histórico e cultural. Por sua
vez, os gêneros discursivos organizam e sistematizam estas práticas. Cada gênero apresentado tem uma
forma composicional específica e um propósito comunicativo, isto é, tem forma e função interligados,
bem como estilo, conteúdo e ação. Nesse sentido, pode-se dizer que o gênero é composto de uma
organização retórica com características sociais e funcionais.
Para a Análise do Discurso Crítica (ADC), gêneros não são ―tipos textuais fixos‖, mas, sim, um
dos momentos de ordens do discurso, daí serem definidos como gêneros discursivos, e não gêneros
textuais111. O conceito de gênero está ligado ao significado acional/relacional do discurso. Nessa
concepção, a rede de opções de gêneros existe no nível das práticas sociais, nas redes sociodiscursivas,
que permitem e constrangem processos de significação. Os gêneros são formas culturais e cognitivas de
ação social, corporificada na linguagem em uso. Assim, percebemos que gêneros são entidades
discursivas dinâmicas, abstratas e sociais de agir através da linguagem. Desse modo, essa visão
discursiva concebe a linguagem como algo incrustado na realidade social e constitutivo dela. É
mediante o uso recorrente de formas convencionadas de linguagem que os indivíduos desenvolvem
suas relações, estabelecem suas comunidades e realizam as coisas no mundo.
Tal ponto de partida nos ajuda a compreender gêneros não apenas segundo a organização
estrutural da mensagem, ligada à função textual de Halliday (1973, p. 57), mas, sobretudo, segundo as
maneiras pelas quais a mensagem contribui para a negociação de relações sociais entre os/as
participantes do discurso, ligada a macrofunção relacional. Logo, gêneros discursivos pressupõem
relações com outras pessoas, assim como ação sobre outras pessoas, o que, em circunstâncias
específicas, pode estar relacionado à distribuição assimétrica de poder (FAIRCLOUGH, 2003, p. 75).

111Não vamos aprofundar aqui se é mais pertinente a expressão ―gênero discursivo‖, ―gênero do discurso‖ ou ainda ―gênero
textual‖, preferindo adotar a mesma nomenclatura que Fairclough (2003).
264
Sabendo que a interação verbal somente pode ser efetivada através de um gênero discursivo, a análise
desse instrumento revelará como se realizam linguisticamente objetivos específicos em situações sociais
particulares. Para a ADC, gêneros constituem ―o aspecto especificamente discursivo de maneiras de
ação e interação no decorrer de eventos sociais‖ (FAIRCLOUGH, 2003, p. 48). Quando se analisa um
gênero, o objetivo é examinar como esse texto figura na (inter)ação social e como contribui para ela em
eventos sociais concretos, ou seja, como o gênero mostra o funcionamento prático da sociedade.

2 O Gênero Sentença Judicial

Todo esse processo torna-se evidente em um gênero realizado em práticas sociais específicas,
como a sentença judicial, uma vez que esta possui características peculiares de estrutura e ação, que a
distingue de outros textos também relativamente estáveis do domínio discursivo jurídico. Dos muitos
gêneros utilizados no judiciário (leis, regimentos, estatutos, acórdãos, processos, contratos, certificados,
atestados, relatórios, pareceres, alvarás, execuções, cobranças, etc.), a sentença judicial representa o
ápice do processo decisório de uma causa. Ela é obrigatoriamente um ato escrito, público, embora
possa ser proferida oralmente em audiência; é indispensável, nos autos do processo, como documento
da ―perene memória da decisão que contém‖, diz Silva (1997, p. 91), na obra Vocabulário Jurídico. O
suporte do gênero, decisivo para sua validação, é o documento oficial, em papel timbrado, produzido
nos fóruns e nos tribunais. Além disso, está previsto no Código de Processo Penal, Art. 380 e 388, que
o juiz rubricará a sentença em todas as folhas conforme anexos.
Por questão de delimitação, nosso corpus é composto de três (3) sentenças prolatadas pela Vara
Infracional do Juizado da Infância e Juventude da Comarca de Manaus, entre março e agosto de 2009,
por dois juízes e uma juíza, sobre os atos infracionais de três (3) adolescentes, em casos distintos. Para
efeito de inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, conforme
Artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), alteramos os nomes dos menores e das
vítimas, assim como o número dos processos. Utilizamos nomes dos jogadores de futebol da copa de
1970 e 1974, e de jogadoras atuais, aleatoriamente, sem nenhuma semelhança com os casos.
Na sentença judicial, a decisão emana diretamente da autoridade do(a) magistrado(a). Porém,
cabe destacar que este documento é a culminação de um longo processo que envolve vários gêneros
como relatórios, petições, requerimentos, provas, juízos orais, interrogatórios, etc. Apesar de ser a
principal ―voz‖ do processo decisório, a decisão do(a) juiz(a) é baseada em fundamentações de órgãos
legitimados, como Polícia, Ministério Público e a Defensoria; bem como em outros aspectos
sociocognitivos contextuais, como a opinião dos técnicos judiciais, repercussão na mídia ou a
representação mental construída sobre o adolescente. Assim, não podemos negar o dialogismo presente
em sentenças judiciais sobre qualquer questão, conforme a própria indicação do ECA no Art. 186.
265
Do outro lado dessa interação estão as partes (ou interessados) do processo. Percebemos que
ocasionalmente sentenças de várias áreas do direito (cível, criminal, trabalhista e outras), apesar de se
dirigirem a pessoas não pertencentes ao mundo jurídico, fazem uso de um registro vocabular rebuscado
e técnico, obrigando os interessados a buscarem auxílio de alguém que “traduza o juridiquês”. Na verdade,
o emprego de léxico especializado é de se esperar, pois todas as áreas do conhecimento possuem certo
léxico que lhe é próprio, mas isto não implica a adesão ao saber jurídico apenas pelo uso de expressões
arcaicas e de difícil compreensão. O mundo jurídico costuma prestigiar tal vocabulário para que o
excesso de palavras plurissignificativas não dificulte a representação simbólica da linguagem. No
entanto, em nosso corpus, notamos a presença de poucas expressões desconhecidas como “EX
POSITIS”, o que não chega a comprometer o entendimento dos textos legais por leigos na área.
Quanto à organização da frase, percebemos que o nosso corpus de pesquisa utiliza uma sintaxe
simplificada, exceto algumas inversões, sem maiores dificuldades para a leitura. Diferentemente de um
escritor de livros, o sucesso profissional dos juízes não depende da sofisticação de seus textos.
Contudo, usualmente, nota-se que os magistrados fazem citações de jurisprudências e referências ao
ECA com o intuito de bem fundamentar suas decisões. Essa intertextualidade amplia a atuação do
gênero, pois uma decisão do Sul do Brasil cria um modelo para outras no Norte em casos semelhantes.
Quanto ao conteúdo, frequentemente, as sentenças iniciam-se com certas expressões. A
primeira é ―Vistos, etc.” que informa que o(a) Juiz(a) analisou todo o processo para proferir a
sentença, ou seja, sua decisão não se fez de modo aleatório ou arbitrário, mas sim, conforme os
relatórios, provas, e documentos dos autos. Outra expressão é “O Ministério Público do Est do do
Amazonas ofereceu representação [...]”, que demonstra como o Judiciário não atua sozinho ou
autonomamente, pois somente responde às questões que são levadas a ele. Essa provocação é feita
através de uma denúncia que conduz a uma apuração dos fatos, com depoimentos, perícias, provas e
outras informações, para finalmente chegar a uma decisão concretizada pela sentença judicial. No
campo jurídico, esse diálogo é extremamente ritualizado. O momento de manifestação de cada uma das
partes está previsto em lei, tanto em termos de prazos, quanto de gêneros (petição, requerimento, etc.).
Dessa forma, os Códigos de Processo Civil ou Penal impõem restrições tão relevantes ao estilo ou à
estrutura que condicionam o próprio gênero discursivo.
A forma composicional das sentenças está definida no Código de Processo Penal, Art. 381.
Deve compor-se, basicamente, de quatro partes: primeiramente, a caracterização é onde encontramos o
número do processo, o nome do(s) representado(s), da(s) vítima(s) e a tipificação da infração cometida.
Usa-se o tipo textual descritivo. Em seguida, o relatório é o momento destinado a mostrar o que
aconteceu; quando aconteceu; em que circunstâncias; quem são os envolvidos, quais as provas obtidas e
os procedimentos adotados. Usa-se o tipo textual narrativo. Em terceiro, a fundamentação é a
explicação dos motivos que levaram o juiz a escolher certa medida. Aqui aparecem as jurisprudências e
266
interpretações quanto à materialidade e autoria da infração atribuída ao adolescente. Usa-se, então, o
tipo textual expositivo. Para encerrar, geralmente após a expressão EX POSITIS, utilizada como
articulador textual, o magistrado impõe a medida cabível no dispositivo, construído como tipo
injuntivo. É uma ordenação expressa, um imperativo, marcado pelos verbos ―Encaminhem-se,
Publique-se, Registre-se, Intimem-se, Expeça-se, Cientifique-se, Arquivem-se, Comunique-se,
Providencie-se e Inicie-se. Assim, um mesmo gênero, a sentença judicial, pode ser perpassado por
vários tipos textuais, pois cada parte possui uma função pragmática específica no processo discursivo,
ora descrever algo, ora narrar os fatos, ora fundamentar uma decisão, ora impor uma medida.
Os dados extraídos do nosso corpus de pesquisa assim se revelam:

Participante Tipificação do ato infracional cometido Medida sócio-educativa


aplicada
01 representado Art. 157 – Código Penal Brasileiro e outros Internação (medida extrema)
(sexo masculino) incisos. Análogo ao roubo (assalto na rua)
01 representados Art. 157 - Código Penal Brasileiro e 121 de Internação (medida extrema)
(sexo masculino) CP.Análogo ao assalto (com roubo de veículo)

01 representado Art. 157 – Código Penal Brasileiro e outros Semi-liberdade e inclusão em


(sexo masculino) incisos. Análogo ao roubo (com agravante de programa para tratamento a
lesão corporal) toxicômanos e alcoólatras.
Tabela 01 – Medidas sócio-educativas impostas aos menores em conflito com a Lei.

Segundo Fairclough (2003, p. 67), a identificação de um discurso em um texto cumpre duas


etapas: a identificação de quais partes do mundo são representadas e a identificação da perspectiva
particular pela qual elas são representadas. As maneiras particulares de representação de aspectos do
mundo podem ser especificadas por meio de traços linguísticos, que podem ser vistos como
"realizando" um discurso. O mais evidente desses traços distintivos é a escolha do vocabulário, pois
diferentes discursos "lexicalizam" o mundo de maneiras diferentes. Verificamos que, por mais grave
que seja o delito cometido, conforme determinação da Constituição Federal de 1988 e do ECA, nunca
é atribuída a nomenclatura de crime ao contexto de um adolescente, mas somente ato infracional. A
sentença do magistrado Sabino da Silva Marques, por exemplo, traz a justificativa no corpo do texto:

[...] A Lei Federal n° 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da
Criança e do Adolescente, no seu Art. 104, segue o mesmo em relação à relação à
redação do Art. 228 da Constituição da República Federativa do Brasil em vigor, revela
dizer: “são pen lmente inimputáveis os menores de 18 anos, sujeitos às normas
d legisl ção especi l”. Assim, como se observa, os fatos versando sobre ações
cometidas por menores na referida faixa etária, e que se equiparam aos crimes e as
contravenções, devem ser tratados sem juízo de censura (culpabilidade), não
podem ser considerados crimes, mas sim ATOS INFRACIONAIS, sujeito às
medidas sócio-educativas elencadas na citada Lei Federal [...]. (fl. 30 do anexo).
267
Dessa forma, com a substituição do termo ―crime‖ por ―ato infracional‖, constrói-se um
sentido atenuador do fato, ou seja, um adolescente infrator é reconhecidamente agente de uma ação,
porém, este é diferenciado do tratamento de um adulto. A ação pode ser ―explicada‖ pela pouca
maturidade e discernimento, ou pela sua desfavorável condição socioeconômica do menor. No gênero
Sentença Judicial, há uma constante tensão pela dominância do sentido. Assim, a imagem de causador
(autor/agente) do fato delituoso tende a ser alterada para consequência de uma situação – imaturidade
biopsicológica ou efeito de um meio social. Isto não significa aceitar o mito da completa irrestrita
inimputabilidade, pois, note que vários menores representados por atos infracionais receberam uma
consequência pelos seus atos, mas ressalte-se que estas medidas têm o caráter educativo e não punitivo.
Na prática judiciária em Manaus, por meio da análise do gênero discursivo, vemos com clareza
os critérios biopsicológico e social como atenuadores da conduta infracional, justificando que o
adolescente cometeu tal infração porque não possui desenvolvimento intelectual, emocional e social
completo. Porém, pesa contra o adolescente o critério comportamental, evidenciado pela consciência
do erro, pelo uso de violência e grave ameaça, e ainda, a reincidência da ação. Confira-se a batalha entre
os caracteres amenizador e agravante expressa por meio da sentença judicial em três Ações Sócio-
Educativas (ASE), que apuraram a prática de atos infracionais de adolescentes:
Na primeira, a ASE 008 – UnB, um adolescente e outra pessoa conhecida como caveirinha
(signo que no imaginário popular remete à ideia de perigo e morte) roubam uma mochila e dois
celulares com o uso de uma arma de fogo que, posteriormente, é encontrada em poder do menor. Em
sua análise da decisão, o magistrado revela:

Assim em que pese o talento, dedicação profissional e esforço demandado pela ilustre
defensora do representado, objetivando a aplicação da medida [sócio-educativa] prevista
no inciso V [semiliberdade], do Art. 112 da Lei Federal 8.069/90 como adequada à
espécie, invocando inclusive o fato de o representado não ter tido a oportunidade
de seguir uma vida digna, visto que teve a infância conturbada em razão do
falecimento do seu pai, e sua mãe ter constituído nova família (critério social), tais
argumentos e fundamentos, não há como ser acolhido por este juízo.
As razões apresentadas, mormente as de fundo emocional e psicológico, devem
ser levada em consideração, mas não ilide o ato infracional praticado pelo
representado (critério comportamental).
De igual sorte a sua afirmação de que foi a pessoa maior [caveirinha] quem
intimidou as vítimas com a arma de fogo (critério biopsicológico), não lhe beneficia,
permitindo que seja aplicada a medida prevista no inciso V, do Art. 112 da Lei Federal
8.069/90, porque o entendimento sedimentado em delitos envolvendo o concurso de
pessoas, não há maior ou menor participação, pois o que se considera é o sucesso da
ação dos agentes.
Em relação a este fator, é o próprio representado que admite ter aceito livremente
o convite para a participação do assalto, e que no seu entendimento, duas
pessoas intimidam mais (critério comportamental).
De outro giro, não há como beneficiar o representado com a medida pleiteada devido o
histórico que ostenta, com outras [quatro] ações sócio-educativas em tramitação
(critério comportamental). (fl. 31/32 do anexo, grifos nossos).
268
Observe-se que o critério biopsicológico, influência do maior de idade, juntamente com o
critério social, desestrutura familiar, não conseguiram, neste caso, atenuar os elementos
comportamentais, como o uso de violência – arma de fogo – e o complicado histórico infracional do
adolescente. O resultado desta ASE é a aplicação da medida extrema de internação, pois, conforme a
representação discursivamente construída, o menor assemelha-se a um adulto, visto que tem ação para
praticar um ato infracional, tem julgamento para saber que duas pessoas intimidam mais, e ainda, tem o
histórico infracional de quatro ações sócio-educativas em tramitação.
Na segunda sentença, a ASE 009-UnB, um menor pratica um ato infracional análogo a um
assalto a um mototaxista com o uso de uma arma de fogo, seguido do roubo de sua motocicleta e o
suposto homicídio de uma jovem com um tiro na cabeça (sendo esse último o único delito não
devidamente provado). Apesar da gravidade do caso e do menor já ter se envolvido em outra infração,
observe a força da construção discursiva atenuadora do sentido construído pelo ECA:

Ainda que o representado não apresentasse maus antecedentes (critério comportamental),


não se pode descuidar de que o caráter das medidas sócio-educativas do Estatuto da
Criança e do Adolescente é primordialmente de recuperação do menor. Não se pode
ignorar que o ato infracional, analisado e julgado na presente ação não se trata
de crime, mas sim, mera infração penal (relexicalização atenuante) regulamentada
através de legislação especial. Segundo os especialistas de estudo menorista, o
escopo do ECA não está ligado ao caráter punitivo da reprimenda. Ao contrário de
visar punição do menor infrator, pretende assegurar-lhe proteção e educação
(critério biopsicológico), através de medidas sócio-educativas, sem critérios rígidos de
duração. (fl. 36 do anexo, grifos nossos).

Vale destacar neste caso a peculiar relação do adolescente com um participante adulto. Apesar
de o adolescente infrator ter sido reconhecido pela vítima como o [único] autor do assalto (cf. fl. 35 do
anexo) e sozinho ter praticado o roubo de sua motocicleta, tal influência perniciosa recai sobre o
indivíduo maior de idade ausente na ação delituosa. Segundo a ASE, o adulto reuniu-se ao menor
posteriormente, na ocasião do suposto assassinato de uma jovem (não provado na apuração da ASE).
Percebemos ainda que o menor, sentado na garupa da moto, teria sido o suposto responsável pelos
disparos enquanto o maior de idade pilotava o veículo roubado (cf. fl. 34). Contudo, mesmo diante dos
fatos narrados na ocorrência policial, verifique o destaque do magistrado quanto a essa relação:

Assim é que, considero que a manutenção do representado na situação de


convivência nociva que o mesmo apresenta é demasiadamente prejudicial,
apresentando risco de grave comprometimento de sua personalidade (critério
biopsicológico), razão pela qual se apresenta adequada a aplicação excepcional da medida
sócio-educativa de internação, [...] com o fim de proteção do menor e de sua inserção
na sociedade.
É que, a internação contribuirá sobremaneira para a recuperação do menor,
notadamente porque irá afastá-lo de influencias perniciosas que podem desviá-lo
da conduta escorreita [sem falha], prevenindo a prática de nova infração, além de
retirá-lo da situação de risco em que se encontra. (critério social) Não é demais
269
lembrar que, como noticiam os autos, além do ato infracional análogo ao crime de
roubo do CPB, objeto desta ação, o menor representado anteriormente de envolveu
em infrações correspondentes à ameaça e lesão corporal (histórico). (fl. 37 do
anexo, grifos nossos).

O resultado desta ASE é a aplicação da medida de internação, porém não como consequência
dos atos do adolescente, mas, sobretudo, como proteção para o menor. A organização discursiva da
sentença constrói a implicação semântica de que o adolescente tem uma conduta irrepreensível
(escorreita), mas que ―as influências perniciosas o corrompem‖. Acredita-se que essa convivência esteja
comprometendo a (boa) personalidade do menor e, afastando-o desses indivíduos, a medida sócio-
educativa ajudará a prevenir outros delitos. Contudo, os fatos descritos no próprio documento negam
tal implicação, visto que foi o menor que cometeu o assalto sozinho e seu histórico denuncia uma
crescente progressão: ameaça, lesão corporal, assalto e, talvez, um homicídio. Essa troca entre causa e
efeito demonstra a coerção exercida pela legislação que impulsiona a uma visão de adolescente sempre
sujeito à influência alheia devido à sua imaturidade e condição social.
Por fim, na terceira sentença, a ASE 018 – UnB, um adolescente, em parceria com outra pessoa
não identificada, supostamente teria disparado contra uma vítima, deixando-a paraplégica, a fim de
roubar sua carteira e motocicleta. O menor nega a autoria do disparo, mas reconhece haver tirado os
objetos da vítima. Observe-se a disputa discursiva entre a defesa e a promotoria ressaltando os critérios
atenuadores e agravantes analisados nesta pesquisa:

A fls. 32 e 33, defesa prévia no sentido do representado ter sido influenciado pelo
maior que o acompanhava no delito (critério biopsicológico). (fl. 64 do anexo).
Consta nos autos [da promotoria] o reconhecimento em juízo por parte do
representado de haver subtraído a carteira e a moto que era pilotada pela vítima,
negando somente a autoria do disparo que ocasionou a gravíssima lesão, o que
não lhe exime de responsabilidade (comportamental), uma vez que no desenrolar da
ação delituosa, ainda que vendo que a vítima estava gravemente ferida
(comportamental) continuou com o acordado com seu cúmplice (comportamental) e
tentou subtrair (comportamental) a carteira e a motocicleta, somente não obtendo sucesso
devido a fatores alheios, a ação policial, impondo-se a necessidade de aplicação de
medida protetiva suficiente para produzir efeito educativo no menor (biopsicológico).
Nesse sentido, entendo [voz do magistrado] que a medida protetiva recomendada no
relatório avaliativo emitido pelo Serviço Social [...], semiliberdade, é a mais adequada
a auxiliar o adolescente na sua luta contra as drogas (biopsicológico), no momento que o
afasta do meio que o influencia negativamente (biopsicológico) ao tempo que será
conscientizado de seu problema, da consequência de seu ato (biopsicológico) e da
possibilidade de melhoria em sua vida (social). (fl. 64 e 65 do anexo, grifos nossos).

Esta decisão ilustra cabalmente o que temos defendido. O resultado desta ASE, a medida de
semiliberdade, é fruto da articulação do duplo sistema de significação. Enquanto a defesa busca atrair o
sentido para a inocência, invocando a influência negativa do maior de idade e das drogas (critério
biopsicológico), a promotoria destaca outro sentido (critério comportamental), isto é, a capacidade de
270
julgamento do menor, a ação por ele desenvolvida e a gravidade do ato infracional. Como resultado,
note como o magistrado acata a ideia de influência externa das drogas e do meio social, e ainda na
imaturidade e inconsequência das ações do adolescente, provando, assim, a força do sentido construído
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente na representação do adolescente.

3 Considerações finais

Podemos, assim, apontar duas forças antagônicas para a construção de sentidos no gênero Sentença
Judicial na prática judiciária menorista em Manaus. A primeira força é o sentido construído pela legislação, o
Estatuto da Criança e do Adolescente. Este sentido pressiona para o caráter amenizador das medidas
socioeducativas, pois destaca a imaturidade e a condição social do infrator. A segunda força está relacionada à
gravidade, ao histórico e às consequências da ação do jovem. Essa modifica a representação mental
transformando o menor em agente responsável pelas suas ações, merecedor de punição, e assim,
discursivamente, semelhante a um adulto.

Em resumo, o texto construído nas Sentenças Judiciais manauaras é somente uma ponta do iceberg de
significados mais globais e profundos, os quais moldam nossas opiniões sobre pessoas, instituições e processos.
As disputas de sentido construídas nesse gênero são, na verdade, processo e também produto das relações diárias
nas práticas discursivas e sociais. Portanto, qualquer gênero discursivo é indicativo de uma atividade social mais
ampla, ou seja, ele nos permite analisar tanto os aspectos gramaticais (estilo, sintaxe, léxico) como os discursivos
(estrutura, registro) ou pragmáticos (interlocutores, propósito, contexto), ou ainda os socioculturais (história,
organização social, poder), como apontamos neste trabalho. Assim, aprender a manusear e interpretar um gênero
discursivo é também aprender a desenvolver e compreender a prática social correspondente.

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ESTUDOS VARIACIONISTAS NO SUDESTE DO PARÁ

E.P. M. S112

Resumo: O Sudeste do Pará configura-se como uma das regiões de maior complexidade social do
Estado. A história da região tem sido marcada por eventos de forte impacto na vida sociocultural, o que
a torna bastante dinâmica e heterogênea. Por conta disso há, no senso comum, a ideia de que essa
―região não tem cultura‖. Do ponto de vista linguístico, a opinião comum divide-se entre afirmar que
na região ―não há um sotaque ou que é a fala da região é um ―caos‖, devido sua heterogeneidade. Tais
questões são muito interessantes do ponto de vista linguístico, especialmente para os estudos
variacionistas, aos quais se dedicam as pesquisas realizadas no âmbito do OLISSPA (Observatório de
Linguagem do Sul e Sudeste do Pará) e sobre as quais traçaremos a trajetória neste trabalho. Em 2003,
no Campus Universitário de Marabá, no âmbito da Faculdade de Estudos da Linguagem, foi criado o
programa de pesquisa Observatório de Linguagem do Sul e Sueste do Pará (OLISSPA, registrado no
diretório do CNPQ), que tem se ocupado de desenvolver pesquisas variacionistas, sociolinguísticas,
socioterminológicas e dialetológicas, nessas regiões.

Palavras-chave: Falares. Pesquisa linguística. Variação linguística.

ABSTRACT: The Language Observatory from the Southeast of Pará (Observatório de Linguagem do Sul e
Sudeste do Pará - OLISSPA) was created in 2003 as a research program of the Language Studies Faculty
(Faculdade de Estudos da linguagem - FAEL), campus of Marabá, and it has been registered as a research
group in the CNPQ directory since 2010. It aims to provide linguistic research related to linguistic
variations and the vocabulary of particular social groups. The activities developed have been guided by
variationist theoretical support under different approaches, such as sociolinguistic, socioterminological
and dialectological.
Key-words: Linguistic variation. Dialects. Linguistic research.

Introdução

O curso de Letras encontra-se dentre os cursos mais antigos da Universidade Federal do Pará na região
Sudeste do Pará desde 1987, por meio do Campus Universitário de Marabá, cuja instalação se deu a
partir do projeto de interiorização da UFPA. Desde então vem arduamente buscando se estruturar
para atender às demandas de ensino, pesquisa e extensão próprias do fazer acadêmico e, em específico,
aquelas de interesse do curso.

112 Professora de Linguística no Campus Universitário de Marabá -UFPA. Coordenadora do OLISSPA. Email
[email protected].
287
Entretanto, um dos grandes entraves a tais propósitos têm sido as limitações próprias de uma
universidade pública do norte do país em expansão rumo ao interior: falta de recursos humanos e
materiais. Os primeiros têm sido contemplados pela busca árdua de capacitação de seus docentes em
níveis de pós-graduação e os segundos pela concorrência a editais que possibilitem o desenvolvimento
da pesquisa em termos materiais, o que de fato tem sido um grande entrave, a despeito da imensa
demanda de pesquisa que requer nossa realidade local.
É nesta perspectiva que este projeto se insere. Seu principal interesse é de fomentar um campo
de pesquisa voltada para as situações de usos da língua portuguesa e de outras línguas faladas nas
regiões sul e sudeste do Pará, como também aspectos linguísticos e sociolinguísticos da língua
portuguesa em geral. Portanto, a despeito das condições adversas à produção científica na atual
conjuntura das universidades públicas, em especial à que esse projeto se vincula, há trabalhos realizados
e em andamento que podem contribuir para a compreensão da realidade linguística e sociolinguística
nessas regiões e, mais modestamente, para a compreensão dos usos do Português Brasileiro.

As Regiões Sul e Sudeste do Pará


As mesorregiões paraenses Sudeste e o Sudoeste (essa última mais conhecida como Sul do Pará)
têm sido pouco contempladas em termos de pesquisa, especialmente, do ponto de vista linguístico e
mais ainda do sociolinguístico. O que pode ser um grande prejuízo à compreensão da formação sócio-
histórica de todo o Estado, sobretudo se levarmos em conta a complexidade da formação humana e
sociocultural dessas regiões, que inclui o caboclo, o indígena, o afrodescendente e os provenientes de
migrações de diferentes regiões do Brasil em consequência de interesses políticos diversos (como a
ocupação da Amazônia no período da ditadura militar) e de ciclos econômicos vários, que tornaram a
região uma das mais peculiares do mundo, tanto do ponto de vista ambiental quanto sociocultural.

Trata-se de fatos históricos de grande impacto, tais como a abertura de estradas como a
Transamazônica, a partir dos anos 1970; a extração do caucho; a coleta de castanha-do-pará; a
garimpagem (com a descoberta de garimpos como Serra Pelada nos anos 1980); a pecuária; a extração
de madeira; os grandes projetos como a construção de hidrelétrica de Tucuruí; a instalação da
mineradora Vale do Rio Doce e mais recentemente a explosão do agronegócio e a previsão de
instalação da companhia ALPA (Aços Laminados do Pará) que intensificaram as migrações de forma
vertiginosa. Consequentemente, de fato, para cá convergem variedades linguísticas de todas as regiões
do país, que coexistem com línguas de grupos indígenas de várias etnias.

É essa complexidade que caracteriza o Sul e Sudeste do Pará como regiões de fronteira, e que as
aproximam do ponto de vista de suas especificidades em vários aspectos e as diferenciam em relação às
demais regiões do Estado do Pará cuja imensidão territorial, por si mesma, o torna uma fonte
inesgotável de observação científica sob diversos prismas teóricos. Sem dúvida, os aspectos linguísticos
e culturais que nelas se somam e se interpenetram fazem com que a configuração e os conflitos
resultantes dificilmente possam percebidos em sua totalidade.

De fato, as diferenças entre essas regiões face às demais são bastante perceptíveis em diversos
aspectos: socioeconômicos, culturais e linguísticos. É na perspectiva da pesquisa linguística associados
aos aspectos socioeconômicos e culturais que propusemos o grupo de pesquisa Observatório de Linguagem
288
do Sul e Sudeste do Pará113 (OLISSPA). Apesar de seu registro no CNPQ só ter se efetivado em 2010, sua
criação reporta a 2003 (como programa de pesquisa, aprovado no âmbito da faculdade a que nos
integramos - FAEL), a partir da defesa da dissertação de mestrado Realizações da nasal e lateral palatais no
falar de Marabá 114e firmado em tese de doutorado As palatais lateral e nasal no falar paraense: uma análise
variacionista e fonológica115. Desde então, os trabalhos de pesquisa e extensão tem se realizado no sentido
de implementar os objetivos que fundamentam sua existência.

Metas, objetivos e metodologia do OLISSPA


Os objetivos para o OLISSPA foram traçados em consonância com a realidade e as
necessidades da pesquisa voltadas para a diversidade e variação linguísticas. Assim definimos como
objetivo central e geral: constituir, documentar, descrever e analisar corpora orais e escritos das regiões Sul e Sudeste
do Pará. Dentre os objetivos específicos destacamos: fomentar a pesquisa linguística nas regiões Sul e
Sudeste do Pará na correlação da diversidade e variação linguísticas e ensino-aprendizagem de língua,
com o propósito de construir alternativas para a superação de problemas relacionados (por exemplo,
variantes escritas em decorrência das interferências da fala);

Percebe-se pelos objetivos que as metas a serem alcançadas devem ampliar as condições de
produção científica, do ponto de vista humano e material, bem como a própria produção científica.
Dessa forma, para a de consolidação do OLISSPA vislumbramos dentre as diversas metas: adquirir sala
própria, fomentos, equipamentos e materiais permanentes que viabilizem a pesquisa; formar um banco
de dados de fala em diferentes contextos de produção oral; formar um banco de dados com textos
escritos por autores considerados ―regionais‖;
Como discutiremos mais adiante, muitos desses objetivos e metas sofrem as duras restrições das
condições materiais impostas pelas circunstâncias que envolvem a educação no Brasil.

Quanto à linha teórico-metodológica, é necessário dizer que o ponto de partida teórico que
fundamenta esta proposta é o dos estudos variacionistas, segundo os quais o estudo de uma língua em
uso é uma das formas de se conhecer a comunidade que a utiliza. Isso é possível por que as
manifestações linguísticas de um grupo (marcadas por particularidades fonético-fonológicas,
morfossintáticas, semântico-lexicais) são pistas importantes para o conhecimento tanto da história
quanto do momento atual da vivência de uma comunidade, devido ao fato de serem as línguas
portadoras de cultura e veículo para sua transmissão, de forma que conferem tanto uma identidade
individual quanto social, bem como autoestima e autoafirmação, por ser parte inerente da constituição
das sociedades.

Tendo em vista os objetivos traçados para esse projeto em particular, especialmente a formação de
banco de dados linguísticos (Corpus de Português Falado e Escrito nas Regiões Sul e Sudeste do Pará - CORPSS)
obedece a diferentes parâmetros de coleta de dados linguísticos que se apoiam nos aportes oferecidos
pela Sociolinguística Variacionista, pela Geo-Sociolinguística, e pela Etnografia da Comunicação,
conforme objetivos e etapas próprias de cada coleta. Para tanto, é imprescindível a seleção de
113
Registrado como grupo de pesquisa no CNPQ no ano de 2010 com o mesmo nome.
114 Variações dos fonemas palatais lateral e nasal no falar de Marabá-PA. Universidade Federal do Pará. Belém, 2002.
115 As palatais lateral e nasal no falar paraense: uma análise variacionista e fonológica. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, 2008.
289
falantes/informantes adequados a esses objetivos, o registro da fala em situações diversas em diferentes
normas, gêneros de interações verbais e modalidade da língua de acordo com uma metodologia
adequada para cada fim.

Entretanto, dada à abrangência do OLISSPA, em linhas gerais, a coleta de dados obedece aos
seguintes critérios: a seleção de informantes se faz de acordo com os objetivos imediatos de cada
pesquisa, mas a composição da amostra em área urbana com finalidades sociolinguísticas segue a
proposta do Atlas Linguístico do Pará, com adequações. Assim, a seleção se faz informantes nascidos na
área urbana da cidade cuja estratificação social levará em conta os seguintes critérios: a) ser nascido ou
ter vindo para essa cidade com até cinco anos de idade; b) deve ter pais marabaenses ou aqui residentes
desde a infância; c) não ter se ausentado da cidade por um período superior a 02 anos; d) residir na
cidade e) enquadrar-se em uma das células quanto ao sexo, faixa etária (A= 15- 25anos; B= 26-46 anos;
C= +46 anos;) e escolaridade (1= até 4 anos; 2= até 9 anos; 3= acima de 9 anos).

O registro de dados orais deve ser feito por meio de gravação de áudio (e vídeo, conforme
objetivos) em condições as mais naturais possíveis, por meio de instrumentos de coleta adequados aos
objetivos estabelecidos. Cada registro em áudio por informante, no caso de narrativas, deve no mínimo
conter 45 (quarenta e cinco) minutos e, no máximo, de 60 sessenta minutos, e nos demais casos
adéqua-se às necessidades e condições imediatas. O tratamento dos dados obtidos se faz primeiro pela
digitalização, a fim de serem arquivados, para posterior transcrição - grafemática, conforme orientações
da Análise da Conversação e do Projeto NURC; e transcrição fonética, conforme as normas do
Alfabeto Fonético Internacional (IPA) ou ainda ortográfica conforme os objetivos estabelecidos para a
descrição e análise. Em função disso, os dados podem ser submetidos, por exemplo, à utilização de
programas computacionais para arquivamento e ou tratamento estatístico conforme a natureza e o
objeto da pesquisa (programas como Goldvarb, Toobox dentre outros disponíveis).

Os dados linguísticos orais abrangem textos de diferentes tipos: narrativas de experiência


pessoal, recontada; de descrição de local; relato de procedimento, de opinião; textos conversacionais;
em função disso, os instrumentos de pesquisa para obtenção de dados abrangem questionários
semântico-lexicais e entrevistas, dentre outros instrumentos de coleta de dados linguísticos necessários
aos objetivos de pesquisa imediata.

A observação e a inserção dos pesquisadores no lócus de pesquisa são desejáveis e esperadas,


bem como a gravação de áudio e imagem, conforme as circunstâncias de pesquisa. De igual modo, a
seleção de informantes se adéqua aos propósitos pretendidos e à orientação metodológica mais
imediatamente relacionada ao objeto especifico de cada pesquisa (nível linguístico de descrição; falar
urbano, rural; gênero de texto; fala espontânea, conversação; texto oral, escrito; texto escrito em
ambiente escolar, de autores regionais; língua portuguesa, língua indígena; língua comum, de grupos
profissionais, étnicos), a ser realizada no âmbito da orientação do OLISSPA e aos objetivos
pretendidos.

Assim, no caso de nosso projeto, o rigor metodológico se atém aos aspectos teórico-
metodológicos, apropriados a cada pesquisa, mas se circunscreve no âmbito de um dos campos
anteriormente citados de modo a dar conta das manifestações linguísticas das regiões Sul e Sudeste do
Pará. Por questões de restrição de recursos materiais e humanos, nosso enfoque é sobre a região
sudeste, com ênfase em Marabá e circunvizinhança, mas esperamos poder realizar trabalhos em cidades
mais distantes (para isso depende-se dos fomentos), bem como colaborar com pesquisas na outra
região em parceria com iniciativas de pesquisadores do Campus de Altamira e demais campi da UFPA.
290

Pesquisas realizadas e em andamento


Desde sua criação vem-se implementando pesquisas sobre língua, quer pela formação de grupos
de estudos com os alunos de graduação quer pela orientação de Trabalhos de Conclusão de Curso
voltados para a variação linguística além de fenômenos relacionados aos usos da língua portuguesa
falada e escrita, sobretudo coletada nessas regiões. Consoantes esses objetivos, além de uma dissertação
de mestrado e uma tese de doutorado, já mencionadas, foram desenvolvidos mais de 30 de Trabalhos
de Conclusão de Curso; 6 Projetos de Pesquisa, 02 Projetos de Extensão; 01 Bolsa de iniciação
científica, 04 bolsas PROINT e 02 bolsas de extensão. A produção resultante tem sido divulgada por
meio de artigos e em congressos nacionais e internacionais, realizados no Brasil e no exterior116. Mais
recentemente, desenvolvemos uma pesquisa sociolinguística associado a projeto de extensão em uma
aldeia indígena da região, com vistas a contribuir para a educação escolar indígena desenvolvida na
comunidade117.

Considerando os trabalhos concluídos e em andamento, pode-se dizer que a questão da


diversidade e da variação linguística é tratada sob diferentes abordagens: pesquisa socioterminológica;
pesquisa variacionista do português paraense; pesquisa da socio-história do português paraense falado
no Sul e Sudeste do Pará; pesquisa de linguística indígena integrada à educação indígena no Sudeste do
Pará118. Com isso, procura-se dar conta da complexidade dos usos linguísticos nessas regiões, marcadas
pela grande extensão territorial e sobretudo pela diferenciação de origem geográfica, social e cultural de
seus falantes.

Das dificuldades envolvidas


A despeito dos trabalhos produzidos ao longo desses anos, muitas das propostas do OLISSPA
não se realizaram efetivamente e esbarraram em sérias dificuldades materiais, podemos facilmente
elencar alguma delas:

Infraestrutura: o OLISSPA não ocupa nenhum espaço físico no Campus Universitário de


Marabá. Um espaço inicial foi solicitado a então coordenação do campus,em 2002; de fato, o
espaço foi cedido ao OLISSPA informalmente, entretanto, havia uma questão legal, pois espaço
era ocupado na época por uma livraria particular que entrou em litígio com a universidade por
questões outras e o espaço, quando finalmente liberado, atendeu a outro projeto. Em 2009,
encaminhamos solicitação formal de espaço à coordenação de então, mas não obtivemos
resposta. Essa falta de espaço tem comprometido largamente nosso projeto, devido o trabalho
com dados linguísticos demandar equipamentos e audição e transcrição de dados. Assim, os
trabalhos se desenvolvem na residência da coordenadora e dos bolsistas e colaboradores do
projeto. Vale lembrar que o curso de Letras dispõe de uma única sala à pesquisa e extensão que

116 Informações detalhadas podem ser encontradas em meu currículo na Plataforma Lattes e no Diretório de grupos de
pesquisas do CNPQ.
117 Projeto de pesquisa: Situação Sociolinguística da aldeia indígena Kyikatêjê Amtátí (inicado e 2009 e ainda em andamento).
118 Projeto de Extensão: Assessoria Linguística à Educação escolar Indígena na aldeia indígena Kyikatêjê Amtátí (2010)
291
agrega todos os grupos de pesquisa da faculdade (NUCLEART), inclusive faz atendimento
externo, portanto há sempre um certo número de pessoas no ambiente, o que não convém ao
nosso tipo de trabalho, pois, embora exija espaço próprio, o que é demais requerer na
conjuntura atual, requer minimamente um ambiente mais adequado.

Material Bibliográfico: todo material bibliográfico que dá suporte ao OLISSPA provém da


biblioteca, que infelizmente conta com poucas obras atualizadas no tema, e da coordenadora do
grupo de pesquisa, bem como obras disponíveis para download na internet.

Equipamentos: o OLISSPA não conta com nenhum equipamento provindo de fomentos ou


da instituição. Tudo tem sido registrado (e arquivado) com equipamentos comprados pela
coordenadora e emprestados aos alunos e colaboradores (cerca de mais de 10 gravadores já
foram comprados com recursos próprios).

Fomento: ao longo desses anos, a despeito da nossa candidatura e editais de fomento, até o
momento não tivemos nenhum projeto aprovado com recurso para compra de equipamentos.
Fora a questão do mérito, em parte atribuímos isso às especificidades dos editais e da imensa
concorrência que se faz entre pesquisadores, como também à política de indigência
implementada no país para certos setores da pesquisa, consideradas não produtivas.

A despeito das dificuldades e do muito ainda conquistar, o OLISSPA tem se feito presente no
fazer acadêmico e na construção do conhecimento de nossa região, como se pode constatar pelos
muitos trabalhos realizados e em andamento.

Considerações finais

Como pudemos discutir, nossa pretensão com este programa nestes 10 anos de existência tem
sido a de contribuir para a formação de profissionais, seres humanos capazes de compreender o espaço
em que vivem e contribuírem com sua atividade profissional e social para a melhoria desse espaço,
levando em conta o humano, o social e o meio ambiente.

Entretanto, faltam-nos condições novas para que os estudos possam a vir a se desenvolver de
forma mais sistemática e com as condições materiais mais adequadas, diferentemente das que temos
enfrentado durante todos esses anos de sua existência. Parece-nos que isso é um importante passo para
a consolidação da pesquisa linguística nessas regiões e certamente poderemos contribuir para que se
conheça mais o português brasileiro em uso, bem como as línguas étnicas dessas regiões.

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297
SIGNIFICADO E EMOÇÃO NA INTERPRETAÇÃO MUSICAL: UM
PROCESSO FENOMENOLÓGICO
Emanuela Francisca Ferreira Silva119

Prof. Espec. Lúcio Otávio de Carvalho Gomes 120

Prof. Dr. Hugo Mari (Orientador) 121

Resumo: Esse trabalho é resultado parcial de uma pesquisa desenvolvida em parceria com o Conservatório
Estadual de Música Maestro Marciliano Braga de Varginha (CEMVA) e a PUC Minas, tendo a FIP como
mantenedora do projeto que busca compreender as intersecções entre a interpretação musical e o processo de
significação. Interpretação musical parece ser uma ação intencional e reflexiva que requer um domínio do
movimento orgânico (corpo e mente). Nota-se, porém que, na interpretação há uma tendência para movimentos
não intencionais, que serão traduzidos por emoção e significação na interpretação. O intérprete musical melhora
seu trabalho com a experiência, em que ensaios, dedicação e tempo de execução fazem com que a interpretação
se torne orgânica (mente e corpo). Ele conhece a obra, estudando-a e executando-a. Porém, na interpretação em
si, parece não haver monitoramento perceptual se há experiências passadas. O objetivo desse trabalho é tentar
apresentar resultados parciais que levem a ampliar essa pesquisa para as relações entre a interpretação musical e a
interpretação textual de metáforas por músicos e não músicos.

Palavras-chave: Intérprete; Linguagem; Significado.

Abstract: This work is a partial result of an inquiry that is developed in partnership with the Conservatório
Estadual de Música Maestro Marciliano Braga de Varginha (CEMVA) e a PUC Minas PUC, you mine, having the
FIP like bread-winner of the project for that it looks to understand the intersections between the musical
interpretation and the process of signification. It seems to musical interpretation be an intentional and reflexive
action that applies for a power of the organic movement (body and it lies). It is noticed, however what, in the
interpretation exists a tendency for movements you do not intend, what will be translated by emotion and
signification in the interpretation. The musical interpreter improves his performance with the experience, in
which tests, dedication and time of execution they do so that the interpretation becomes organic (mind and
body). He knows the work, study it and it executes it. However, in the performance in you, seem not to have
perceptual monitoring there are past experiences. The objective of this work is to try to present partial results
that get a beating enlarging this inquiry for the relations between the musical interpretation and the textual
interpretation of metaphors for musicians and not musicians.

Keywords: Interpreter; Language; Meaning.

1 Introdução: A Interpretação como um processo fenomenológico

119 Doutoranda em Linguística e Língua Portuguesa pela PUC Minas. Bolsista FIP. E-mail:
[email protected]
120Professor do CEMVA, Especialista em Música Brasileira: Práticas interpretativas e Ciências Sociais: Teoria e método.

Email: [email protected]
121 Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas (PUC Minas).

E-mail: [email protected]
298
É a música que produz o significado ou é o intérprete que produz o significado? Do ponto de vista
fenomenológico o que é uma interpretação musical? Esses questionamentos fazem parte de uma pesquisa
desenvolvida em parceria com o Conservatório Estadual de Música de Varginha (doravante CEMVA) e a PUC
Minas, tendo a FIV como mantenedora do projeto, que busca compreender as intersecções entre a interpretação
musical e o processo de significação. Na tentativa de encontrar algumas possíveis respostas ousamos
complementar o Brasão do Grupo Complex Cognitio com algumas inferências, conforme figura 1.

O caminho que corpo/cérebro faz da percepção, passando pelo conhecimento, pela consciência até chegar à
linguagem em que o processo de significação atinge seu auge pode servir de analogia para o trabalho de
interpretação. A linguagem engloba a consciência que, engloba o conhecimento que, engloba a percepção que,
por sua vez, engloba corpo/cérebro no processo de significação.

Ações corpóreas  talentos derradeiros – 2 – INTERPRETAÇÃO

Dizer, fala, afirmar, Linguagem Verificar, fingir argumentar,


supor... ATENÇÃO mentir, discriminar, dirimir,
inferir, imaginar...
Consciência Interpretação no auge
Represent/categ. SIMULACRO, CÓPIA
ATENÇÃO

Saber, conhecer,
Conhecimento reconhecer...
Represent/Categ. INÍCIO DO SENTIDO DE
ATENÇÃO INTERPRETAÇÃO

Percepção
Represent/Categ. Perceber, observar,
ATENÇÃO notar,
INTÉRPRETE

Corpo/cérebro

poder  querer

Figura 1: Brasão Grupo Complex Cognitio (Hugo Mari) com inferências musicais.

Em nossa pesquisa percebemos que música é linguagem, portanto, é um sistema adaptativo complexo
(SAC). O intérprete é corpo/cérebro e é pela percepção que ele começa a significar-se. É pela consciência que ele
tem o sentido da interpretação, mas somente pelo conhecimento (que engloba toda a circularidade
corpo/cérebro) que ele chega ao auge da interpretação.

Na tentativa de defender essa afirmação trazemos para esse trabalho algumas conceituações e conclusões que
pudemos perceber através dessa pesquisa de campo que foi realizada parcialmente no segundo semestre do ano
de 2012 e se estende durante todo o ano de 2013 e primeiro semestre de 2014.

2. Do Significado
299
Desde Platão, sobretudo em sua obra Crátilo (presumivelmente escrito em 388 a.C.), há uma tentativa de
teorização sobre a produção do significado e por conseguinte, um estudo sobre a linguagem. Nessa obra há a
presença de um diálogo em que se tem como tema duas teses. A primeira afirma que a relação entre o nome e a
coisa nomeada se manifesta por algo intrínseco ao ser, faz parte dele. Por outro lado Hermogénes defende que a
conversão dos nomes se faz por convenção ―συνθήκη καμολογία‖(384d). (SOUZA, 2010).

Em grego não há nenhum termo correspondente ao termo ―palavra‖ em português. Segundo Souza (2010,
p. 11) ―o termo νομα agrupa desde nomes próprios, substantivos e até mesmo verbos.‖ Portanto, o que o
filósofo chama de nomes refere-se ao termo palavra para nós. Em sentido amplo, o objetivo do diálogo é, pois
saber a verdade sobre os nomes, independente da categoria gramatical.

Sócrates parece ter como objetivo principal o ato de filosofar sobre a linguagem, nos deixando como
legado inquietações: o objeto e seu significado possuem relação natural ou convencional? As palavras se associam
naturalmente ou convencionalmente às coisas que se referem?

Tendo o texto de Crátilo como o primeiro – que se conhece – a discutir a questão do significado
verificamos que, essa discussão se ramificou por diversos campos do saber como a filosofia, a psicologia, a
sociologia, a semântica – apesar de seus estudos serem bastante oblíquos e tortuosos, bem como por diferentes
teorias do significado como a mentalista, a behaviorista, reducionista (neural), construtivista (social),
funcionalista, formalista, computacionalista, deflacionista,... (ZLATEV, 2003).

A Linguística, que somente no século XX, investiu na pesquisa do estudo do texto, ultrapassando o
campo das unidades menores (morfologia, fonologia, fonética, etc.) permeou por um caminho que faz interesse
para essa pesquisa: a Linguística Cognitiva122.

Todo o conhecimento advém da unicidade mente/corpo. Antes de caminharmos mais nessa proposição
é preciso que se exponha o conceito que adotamos de linguagem, isto é, linguagem como um sistema de
adaptações complexas (SAC). Na próxima seção discutiremos esse conceito e suas influências para nossa
afirmação que o significado é bio-cultural.

Pensar o significado como biocultural é conceituá-lo tendo como parâmetro a fórmula S=V(O,A), isto é,
―Significado (S) é a relação entre um organismo (O) e seu ambiente físico e cultural (A) determinado pelo valor
(V) de O para A.‖ (ZLATEV, 2003, p. 3). Para Zlatev há dois princípios básicos: Todo sistema vivo e apenas os
sistemas vivos são capazes de significar e que existe uma hierarquia de sistema de significados.

A vida implica um valor intrínseco que é a condição necessária e suficiente para o significado. É nesse
sentido que afirmamos que todo o significado é bio-cultural. Posto que todo o organismo significa a partir do

122 Línguística Cognitiva pode ser definida como uma miríade de abordagens teóricas e metodológicas que, apesar de
diferirem uma das outras em vários aspectos, são unidas pela ideia central que a língua não se caracteriza como uma
faculdade modular e geneticamente determinada mas sim, como parte integrante do sistema cognitivo geral dos seres
humanos.(CAVALCANTE & SOUZA, 2010, p. 63, In: HERMONT, ESPIRITO SANTO & CAVALCANTI, 2010).
300
nicho que vive, em que valora aspectos físicos e culturais desse ambiente. Essa valoração é altamente adaptativa e
ocorrem por meio de affordances.

Para haver significação é preciso que os elementos - indivíduos vivos, interação, atividade cognitiva, sistema
de signos e cultura estejam imbricados em um evento adapativo e complexo. O significado é bio-cultural porque
é constituído de operações cognitivas impregnadas de valores físicos e culturais, se manifestando em discursos
multimodais como uma imagem, um gesto, uma palavra, uma música.

O significado para os seres humanos pode ter como ambiente tanto o físico como o cultural. Para os
organismos que vivem em sistemas culturais complexos, há o envolvimento de uma produção material cultural,
de práticas e de rituais sociais. O músico intérprete significa por esse movimento de adaptação em um ambiente
físico e cultural. Considera-se que interpretar é um ritual social e que, no momento que o músico ―pisa no palco‖
ele agrega valores de ordem cultural e bio como a emoção.

3. Da Emoção
O intérprete musical busca significação através de um trabalho contínuo de estudo e repetição. O ritual
social de interpretar tem como suporte o palco, e o público a quem se quer significar. O intérprete é o
intermediário entre o compositor e o público, entre a partitura e a música. Essa é sua função: transformar os
significantes musicais em significados, hibridizar a emoção a valores bioculturais de quem ouve e, principalmente
dele próprio.
É preciso, pois trazer para esse trabalho o conceito de emoção. Para tanto se fará uma pequena panorâmica
sobre o estudo da emoção a partir do século XVII até início do século XXI, demonstrando como autores
diferenciam humor, sentimento, emoção, tentando encontrar um conceito que nos auxilie neste estudo.
No final do século XIX e início no XX iniciou-se o desenvolvimento dos primeiros conceitos e os
diferenciais dos diversos componentes da vida afetiva. Percebemos que há significantes que possuem diferentes
significados de acordo com o teórico. Por exemplo, enquanto Bleuler123 (1971) agrupou dentro do conceito de
afetividade os sentimentos e estados de ânimo, os afetos, humores, emoções e a vida instintivo-pulsional,
colocando a afetividade como o grupo de todas as vivências e afeto como um termo geral para todos os
elementos. Ele afirma ainda que nosso pensamento reflete nossas sensações sendo marcado por nossos
sentimentos, assim o humor corresponde do ponto de vista biológico, à primazia de uma função vital, o qual
envolve todas as atividades intelectuais, emocionais e vegetativas.

Ribot (1906), no entanto, não diferencia humor e afeto. Ele define emoções e sentimentos como uma
vivência transitória, mais ou menos intensa e relacionada a um objeto reconhecível. Humor e afeto são vistos
como estados de duração mais prolongada, capazes de fornecer a tonalidade afetiva basal ao indivíduo, não
havendo necessariamente um objeto reconhecível.

123 Para Bleuler (1971) a afetividade é vivida subjetivamente, manifestando ao mesmo tempo na ação e no pensamento,
assim como através dos processos vitais corporais. É a ação que orienta a busca pelo prazer e afasta o desagradável.
301
Paim (1993) conceitua afeto como a qualidade e o tônus emocional que acompanham uma ideia ou
representação mental. Os afetos seriam os componentes emocionais de uma ideia. Em uma acepção mais ampla,
também se pode fazer uso do termo afeto para designar, de modo específico, qualquer estado de humor,
sentimento ou emoção. Para Paim (1993) emoção são reações afetivas agudas, momentâneas, desencadeadas por
estímulos significativos. É um estado afetivo intenso, de curta duração, originado geralmente como uma reação
do indivíduo a certas excitações internas ou externas, conscientes ou inconscientes.

A emoção é acompanhada de reações somáticas mais ou menos especificas. Os sentimentos seriam


estados e configurações estáveis; em relação às emoções, por isso seriam mais atenuados em sua intensidade e
menos reativos a estímulos passageiros. Os sentimentos estão geralmente associados a conteúdos intelectuais,
valores, representações e, no mais das vezes, sendo um fenômeno muito mais mental do que somático. (PAIM,
1993).

É importante ressaltar dois autores que conseguiram condensar os conceitos anteriores: Dalgalarrondo e
Cheniaux Jr. Para Dalgalarrondo (2000) o humor, ou estado de ânimo, é definido como o tônus afetivo do
indivíduo, o estado emocional basal e difuso no qual ele se encontra em determinado momento. É a disposição
afetiva de fundo que penetra toda a experiência psíquica. Ele conceitua o afeto como qualidade e tônus
emocional que acompanha uma ideia ou representação mental. Dalgalarrondo (2000) afirma que o termo afeto,
em uma concepção mais ampla pode designar qualquer estado de humor, sentimento ou emoção.

Cheniaux Jr (2002) afirma que os elementos sobre afetos, assim como as sensações, consistem em
estados psíquicos subjetivos, mas que, diferentemente destas, os afetos se caracterizam pela propriedade de
serem agradáveis ou desagradáveis. Os afetos podem ser vistos como uma consequência das ações do indivíduo
que visam à satisfação de suas necessidades (corporais ou psíquicas). Para Cheniaux (2002) afeto pode designar
genericamente elementos da afetividade, outras vezes é empregado como sinônimo de emoção.

Cheniaux jr (2002) conceitua emoção como um estado afetivo súbito, de curta duração e grande
intensidade, que se acompanha de alterações corporais, relacionadas a uma hiperatividade autonômica.
Sentimento é para ele um estado afetivo menos intenso e mais prolongado, sem as alterações fisiológicas das
emoções e que talvez resultem de um processamento cognitivo maior do que haveria as emoções.

O humor representaria uma síntese dos afetos presentes na consciência em um dado momento. Ele é
estado afetivo basal e fundamental, que se caracteriza por ser difuso, isto é, não relacionado a um objeto
específico, e por ser geralmente persistente e não-reativo.

A cognição inclui percepção, atenção, avaliação, memória, planejamento, reflexão e tomada de decisão.
Todos esses elementos são aspectos daquilo que os teóricos da emoção chamam de appraisal (apreciação), a
avaliação da significância de uma situação. Significar em música é trabalhar tendo a emoção como princípio
norteador. Adotamos o princípio que a emoção é um estado curto de duração, mas de grande intensidade,
portanto, no ato da interpretação, o músico é tomado pela emoção e, provavelmente, é ela que o impulsiona em
seu processo de significação.
302
4.A Interpretação como um processo fenomenológico

Segundo Gallagher & Zahavi (2007, p. 156) ― para que um movimento seja uma ação, ele deve ser
orientado para um objetivo e ser intencional.‖ .A interpretação musical é uma ação, pois é um movimento
intencional que é orientado para um objetivo. Porém, nota-se na interpretação uma tendência para movimentos
não intencionais, que traduzimos por emoção e significação na interpretação. A emoção é conceituada a partir de
Cheniaux Jr. (2002) como de curta duração e de grande intensidade. Para significação a fórmula S=V(O, A)
(ZLATEV, 2003) é o melhor conceito estudado até neste momento, para o trabalho do intérprete.

O intérprete musical melhora sua interpretação com a experiência. Quanto mais dedicação ao
instrumento e tempo de execução e ensaio, melhor a interpretação pois ,o agente toma consciência de sua
interpretação, no sentido que ela se torna orgânica para ele (mente e corpo). Afirmamos que a significação é bio-
cultural e, com isso começamos a perceber que a interpretação também o é.

Ações intencionais possuem um sentido experencial de agenciamento em que há o nível pré-reflexivo –


consciência de que estou me movendo e há também o nível de agenciamento – reflexivo - em que podemos
perguntar sobre nossas ações. (GALLAGHER & ZAHAVI, 2007). A interpretação musical é uma ação
intencional, ela requer um domínio do movimento orgânico (corpo e mente). Sendo assim, interpretar é uma
ação reflexiva.

Assim como nossas intenções estão explícitas em nossas ações, compreendemos que as intenções dos
outros estão explícitas em suas ações. As intenções não estão escondidas na mente, mas expressas no
comportamento e isso tem implicações para a compreensão intersubjetiva.

O intérprete utiliza de imagens e relações passadas para sua interpretação, isto é, adapta seu
comportamento de acordo com experiências de interações anteriores – affordances - (por este motivo conceitua-se
linguagem como um sistema ‗adaptativo‘). Se conceituamos música como linguagem e se a linguagem não é um
instrumento de transmissão de comunicação, mas, uma emergência da necessidade comunicativa, a música e sua
interpretação é uma necessidade comunicativa do intérprete para seu ouvinte. Porém, não acreditamos que tudo
que ele tenta significar na interpretação é passível de entendimento pelos ouvintes.

Durante a pesquisa pudemos perceber que nem todos os intérpretes conseguem justificar suas ações
durante a interpretação. Quanto mais estudo e tempo o intérprete tem, mais ele consegue criar cenas no ato da
interpretação. Porém, não é possível saber se todos os intérpretes possuem ―domínio pleno‖ do que fazem no
ato da interpretação.

Na interpretação musical parece haver, por parte do músico, uma tentativa de representação - de pintura
da música pelo texto – esta se dá na intersecção mente-corpo. O lugar das ações para teóricos enativos não é o
cérebro, mas a unicidade cérebro\corpo. A visão não é uma representação que emerge de uma rede de
neurônios. Ou melhor, ela é a ação do organismo como um todo, explorando o ambiente. (GALLAGHER &
ZAHAVI, 2007). Visão, tato, atenção, audição, tudo está interligado no ato da interpretação. Observando o
303
Sistema de Percepção do ponto de vista fenomenológico podemos afirmar que o intérprete utiliza do sistema
auditivo, do visual, do háptico (nessa ordem).

4. Da música:
Com isso podemos delimitar nessa etapa da pesquisa que a música comunica significados que de alguma
forma se referem ao mundo extramusical de conceitos, ações, estados emocionais e de caráter. A música precisa
de intérprete para existir – seja ela instrumental ou vocal.

Como ela é um SAC, ela surge da necessidade comunicativa do intérprete. Só existe música se existe o
canal, o instrumento ―intérprete‖ como mediador entre a composição e o ouvinte. O intérprete não separa
corpo/mente criando cenas na tentativa de representar, de produzir significados.

Como resultado parcial dessa pesquisa podemos conceituar a interpretação como conhecimento afetivo
com o som. Intérprete é aquele que domina uma língua que o outro desconhece. Na interpretação, ele contempla
duas ações: ou ele pergunta ou ele responde. Pode-se afirmar, por exemplo, que o primeiro processador humano
é o choro do bebê - sonoro - mas isso não é música. A existência da música depende do homem e não da
natureza. Não há nela – na natureza- o som. O que existe é o timbre (impressão digital). O ruído não é som.
Quando ele aparece no ―mapa‖ ( na partitura) ele se torna parte do evento musical.

A operação mental básica de integração conceitual, também conhecida como blending, está presente e evolui
em várias espécies, desde organismos mais simples. Entretanto, o que diferencia os seres humanos das demais
espécies é a operação de integração conceitual de duplo-escopo. Graças a tal operação, os seres humanos
cognitivamente modernos tem capacidade de produzir arte, ciência e religião. (TURNER, 2006:93-94). Portanto,
musicalidade é uma capacidade processual própria de seres humanos, que emerge da relação do organismo com
o ambiente, sendo constituída por operações cognitivas que comportam em si, valores físicos e culturais.
Musicalidade também pode ser percebida como um processo adaptativo complexo que envolve operações de
duplo-escopo. (AMARAL SILVA ET TAL, 2012).

Com essas proposições percebemos que a música é recursiva. Como ela faz parte da arte humana, a música
decorre de uma capacidade cognitiva avançada, que possibilita aos seres humanos realizar integrações de duplo escopo.

4.1 Música, emoção, significado: a interpretação

O propósito no comportamento de interpretar é uma tentativa de simular uma experiência afetiva, de


transmitir por affordances e recursão um significado, conscientizando o outro por uma série de sinais não-verbais
de comportamento.

Cognição inclui percepção, atenção, avaliação, memória, planejamento, reflexão e tomada de decisão, todos
os quais são aspectos daquilo que os teóricos da emoção chamam de appraisal (apreciação), a avaliação da
significância de uma situação. Emoção inclui ansiedade, tendência à ação, expressão corporal, orientação
atencional e sentimentos afetivos. (AMARAL SILVA ET TAL, 2012).
304
―O fato é que nossa experiência cognitiva é compartilhada pelo cérebro incorporado.‖ (GALLAGHER &
ZAHAVI, 2007, p. 135) A investigação da fenomenologia não é uma análise de um objeto entre outros. O corpo
é considerado um princípio constitutivo ou transcendental, precisamente por que ele está envolvido nas muitas
possibilidades da experiência. Está profundamente implicado na nossa relação com o mundo, em nossa relação
com os outros e em nossa auto-relação, para nosso entendimento da relação do self com o outro e do nosso
entendimento da relação mente/corpo.

Considerando que corpo/ambiente estão interligados, affordances estão na performance do intérprete. Na


interpretação a expectativa gera uma tendência a responder. Uma reação padronizada que consiste em uma série
de respostas corpo/mente, que são traduzidas como um jogo na resposta ao estímulo. Essa tendência é
consciente ou inconsciente. (HEYER,1956).

Fazendo analogia ao conceito de discursivização de Nascimento (2009) afirmamos que interpretação é


discursivização, isto é, criação, numa, e única, instância enunciativa, de um espaço de referenciação X, que
integre, recursivamente, numa rede, todos os espaços de referenciação instituídos no processo discursivo. O
intérprete tem consciência da ―tendência à resposta‖. Ele como ―eu‖ a realiza em relação locutário, ao mesmo
tempo que o intérprete é tu em relação ao autor.

Segundo Heyer (1956) ―quanto maior o suspense, a tensão, maior a liberação emocional sobre a resolução
na interpretação.‖ A emoção sentida é despertada quando uma expectativa, uma tendência a responder é ativada
pela situação de estímulo musical produzida pelo intérprete no momento da performance.

O intérprete tem consciência e feedback sensorial sobre o corpo no ato de performance. Os sentidos estão
implicados com os objetivos. É nesse sentido que se traz para o contexto o conceito de mente incorporada. No
ato da interpretação, o intérprete traz sua experiência passada – estudo, leituras, audições, percepções- para a
cena enunciativa. Corpo e mente se unem no processo de significação.

O intérprete conhece a obra, estuda a obra e executa a obra. Porém, na última fase que é a execução não
há discussão, há interpretação. Se há monitoramento perceptual no ato interpretativo, isso ocorre devido a
experiências passadas, porém a emoção entra em cena na incorporação mente/corpo/ambiente. Para cada
execução, para cada ambiente, para cada público há uma nova emoção levando a interpretação a ter tendência
para movimentos não intencionais.

O intérprete musical melhora seu trabalho com a experiência, em que ensaios, dedicação e tempo de
execução fazem com que a interpretação se torne orgânica (mente e corpo). Ele conhece a obra, a estuda e a
executa. Porém, na interpretação em si, a significação sofre influências de fatores de ordem orgânica e cultural,
interligados à emoção.

6 Algumas Conclusões de ordem linguística e premissas para novas pesquisas

Considerando música como linguagem, como discurso e, acreditando ser seu significado bio-cultural
porque é constituído de operações cognitivas impregnadas de valores físicos e culturais, começamos a nos
305
questionar sobre a interpretação textual e a diferença entre os músicos e os não músicos no ato interpretativo. Se
pela interpretação o intérprete uni significado e emoção e, se é possível perceber isso do ponto de vista
fenomenológico, qual seria a importância dessa construção na alfabetização e na leitura de textos? Seria possível
afirmar que músicos compreendem metáforas de maneira mais eficaz que não músicos? Crianças que possuem
educação musical são capazes de perceber metáforas com mais facilidades que crianças não musicalizadas? Qual
a importância da música no processo de letramento?

Esses questionamentos estão surgindo nessa etapa da pesquisa e sugerem que a mesma ultrapasse os
muros do Conservatório e alcance as escolas regulares. É um projeto que está permeando nossas reflexões e nos
levando a tomar consciência que interpretar musicalmente falando é ser capaz de identificar a metáfora textual
que é a vida.

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307
OPERAÇÕES LINGÜÍSTICAS DURANTE A REESCRITA DE UM
TEXTO INFANTIL

Emerson Gonzaga dos Santos124

Resumo: O objetivo central deste estudo é investigar o(s) processo(s) de revisão e reescrita de uma criança da
terceira série de escola pública a partir da produção de um texto narrativo do gênero conto de fadas. Além disso,
almeja-se levantar reflexões sobre a importância da revisão e reescrita como fases essenciais no processo de
ensino / aprendizagem da habilidade escrita focando não somente na forma, mas também no conteúdo do texto.
Pretende-se analisar assim as retificações realizadas do texto final (reescrito) em contraste com o texto inicial
com base em quatro categorias de análise sistematizadas por Fabre (1986): acréscimo, supressão, substituição e
deslocamento. Esta pesquisa trata-se de um estudo de caso sem pretensões de generalizar dados por ter levado
em consideração apenas a produção de uma participante, portanto uma pesquisa de cunho qualitativo-descritiva.
Os dados mostraram que as operações lingüísticas levadas em consideração neste estudo ocorreram na seguinte
ordem de frequência: substituição-acréscimo-supressão-deslocamento. Das retificações realizadas, 83 %
tornaram o texto reescrito mais adequado do ponto de vista da forma e conteúdo.

Palavras-chave: Revisão; Reescrita; Operação linguística.

Abstract: The main target of this article is to investigate the process(es) of revision and rewriting of a child in
the third grade of a public school producing a narrative text from a fairy tale genre. We also aim at raising some
reflection about the importance of revision and rewriting as essential steps in the teaching/learning process
concerning the written ability focusing not only on the form, but also the content itself. We intend to analyze the
rewritings done in the second version of the text in contrast to the first one taking into account four categories
of analysis stated by Fabre (1986): addition, suppression, substitution and displacement. This article is a study
case without pretensions of data generalization, once we just analyzed the written production of one child, then
this research can be classified as qualitative-descriptive one. The data showed us the linguistic operations taken
under consideration in this study happened in the following order of frequency: substitution-addition-
suppression-displacement. 83% of the rewritings done turned the rewritten text more adequate under the
perspective of form and content.

Keywords: Revision; Rewriting; Linguistic operation.

1. Introdução

124
Mestrando em Estudos Linguísticos na Universidade Federal do Ceará (UFCE). Bolsista CAPES. E-mail:
[email protected] / [email protected]
308
O conhecimento atualmente disponível que temos a partir de pesquisas na área de ensino/aprendizagem
de língua materna nos fornece recursos para uma revisão da atual metodologia de ensino adotada nas escolas,
nos levando assim a necessidade de repensar sobre teorias e práticas tão difundidas e estabelecidas que, para a
maioria dos professores, tendem a parecer as únicas possíveis. Como é o caso do trabalho realizado com a
produção escrita.

Ainda hoje é comum ver professores que passam um tema para seu aluno escrever e depois apenas
corrige sua produção na forma (ortografia e gramática), ignorando aspectos do conteúdo do texto em si,
deixando de apontar o que o aluno fez bem em detrimento do que ―errou‖, não se trabalhando a adequação do
texto do aluno a uma certa finalidade, a um certo tipo de leitor, a um certo gênero. Parece que a única
preocupação é se o aluno usa as normas da língua, isto é, que o importante é aplicar as regras da gramática e as
convenções ortográficas.

É de senso comum que para alguém escrever bem precisa ser um bom leitor para que assim consiga ser
crítico mediante sua própria produção escrita, que perceba seus problemas, que possa melhorá-los a partir de
uma revisão e gerando, em muitos casos, um novo texto, um texto reescrito. Neste artigo propomos discutir
sobre as etapas envolvidas no momento de escrita (a revisão e a reescrita), deixando assim, o processo de leitura
para estudos futuros, uma vez que não é nosso objetivo, para este momento, estabelecer relações entre os
processos de escrita e leitura.

2. ESCRITA: DOS PROCESSOS DE REVISÃO À REESCRITA

No ambiente escolar, muitas vezes, o processo de escrever se restringe somente a não cometer erros de
grafia e de sintaxe. Há quem pense que escrever é simplesmente traduzir a linguagem oral em linguagem escrita,
não levando em consideração assim, a árdua tarefa e consequentemente, o grande esforço cognitivo, que se faz
necessário para que um texto funcione como instrumento de comunicação social.

Escrever um texto coerente e coeso que se adéqüe dentro de um gênero textual proposto para atingir a
finalidade de se expressar, de argumentar sobre algum tema, ainda parece ser um grande mistério para muitos
aprendizes da língua. Na verdade, uma das principais funções que a linguagem escrita continua assumindo na
escola é a de função avaliativa. Para Dubois (2004, p.1-2), essa situação pode ser explicada da seguinte forma:

"Escrever é tradicionalmente utilizado como um meio de avaliação e, portanto,


envolve uma comunicação aluno-professor, na qual o desafio para os alunos é o de
309
proporcionar ao professor provas suficientes do conhecimento satisfatório dos
conceitos ensinados." (Tradução nossa)125.

Isto é, o aluno escreve, quase que exclusivamente, para atingir um objetivo de receber uma nota, de
mostrar para o professor que ele entendeu as regras gramaticais e ortográficas ensinadas. Além disso, não se é
trabalhado a escrita como processo, mas apenas como o produto final.

Quando tratamos da escrita como processo, não podemos deixar de tratar da revisão por ser ela uma
etapa essencial, um dos elementos que fazem parte desse processo complexo que é escrever. Para Ramos (2006,
p.25),

―[...] a revisão consiste na análise e avaliação do texto já produzido, verificando-se a


adequação do mesmo aos objectivos estabelecidos aquando da planificação
(planejamento) e procedendo-se à eventual melhoria da qualidade do mesmo. A
revisão subdivide-se em dois sub-processos: o primeiro, a leitura, permite detectar
irregularidades em relação às normas da língua escrita e avaliar a adequação do texto
aos objectivos definidos aquando da planificação; o segundo, a correcção, permite a
rectificação de lacunas linguísticas detectadas ao nível da ortografia e da sintaxe.‖

A revisão é o momento que o escritor também assume a função de revisor (leitor) e começa a dialogar
com ele mesmo a respeito de seu próprio texto através de um importante processo de pensamento e reflexão.
Contudo, Gaffuri e Menagassi (2010, p. 2) chamam atenção para o fato de

―[...]nem sempre é o próprio escritor o revisor do seu texto, assim, o revisor também
participa dessa atividade reflexiva, uma vez que, além de procurar identificar os
problemas do texto, o revisor lê o texto, antes de tudo, com o objetivo de
compreender a mensagem que o escritor quis passar com o seu texto.‖

Quando falamos do ambiente escolar, o revisor do texto é o próprio professor. O problema é que ele
muitas vezes apenas lê o texto com o objetivo de corrigi-lo, de trabalhar sua forma, isto é, aspectos gramaticais e
ortográficos que estejam ―errados‖, portanto, formas desviantes da linguagem padrão ensinada em sala de aula.
Muitas vezes o professor nem ao menos pede para que seus alunos refaçam seus textos. Simplesmente apontam
seus defeitos, atribuem uma nota ao produto e entrega os textos corrigidos aos alunos.

Precisamos ter em mente que a correção é só uma das etapas que fazem parte da revisão. Revisar é ir
além de corrigir, uma vez que pode significar adequar o texto a um certo gênero, a um certo propósito, resumi-lo

125―l‘écrit est traditionnellement utilisé comme mode d‘évaluation et met donc en jeu une communication élève-enseignant,
dont l‘enjeu pour l‘élève est de fournir à l‘enseignant les indices suffisants d‘une connaissance satisfaisantes des notions
enseignées‖.
310
ou expandi-lo, isto é, alterar o texto não apenas com o foco na forma (aspectos gramaticais e ortográficos), mas
também no conteúdo.

Para Menegassi (1998), a revisão é um diálogo entre o que de fato está escrito no texto e o que o escritor
gostaria de escrever, mas que na verdade, não se encontra traduzido no texto em si, mas sim, somente na mente
do escritor. A conseqüência desse processo pode vir a ser a reescrita. Para que tal aconteça, o revisor precisa não
somente ser capaz de detectar as lacunas da sua versão, mas também de modificá-la, isto é, reescrevê-la, caso
ache necessário. De acordo com Fuza e Menegassi (2012, p.3), ―[...] é possível constatar que a revisão e a
reescrita são processos complementares, pois, juntas, auxiliam na construção do texto.‖

Reescrevemos um texto para melhorá-lo na sua forma e/ou no seu conteúdo, para torná-lo mais
adequado a uma certa finalidade. Como professores, precisamos ter em mente essa concepção da escrita como
processo para evitarmos cair nas mesmas armadilhas de sempre, isto é, reduzir nossas observações enquanto
revisores somente a aspectos gramaticais.

O professor possui um papel importantíssimo como revisor nesse processo de escrita, possibilitando
assim ao aluno o aprimoramento do seu texto através de suas sugestões, de seus apontamentos enquanto
profissional do ensino de língua. Para Serafini (1988), o professor pode revisar o texto do aluno de três formas:
primeira, apenas apontando onde o problema se encontra, segunda, além de apontá-lo, ele também o corrige
automaticamente, terceira forma, o professor pode fazer uso de códigos pré-estabelecidos com seus alunos
apontando o problema, categorizando-o para que o aluno tenha pistas de como alterá-lo e consequentemente,
dando a ele a possibilidade de refletir acerca dos problemas de seu texto e consertá-lo em seguida.

Das três possibilidades indicadas por Serafini, a primeira pode vir a ser confusa, imprecisa, não
fornecendo ao aluno pistas para que possa reescrever seu texto, a segunda, tira a oportunidade dele de refletir
sobre suas falhas textuais, uma vez que a resposta já é dada antes mesmo dele tentar refletir sobre o que seria
mais apropriado e o porquê naquela determinada situação. Ele simplesmente recebe a correção feita por outra
pessoa, tendo a chance negada de tentar descobrir por si só, pelo menos de pensar a respeito do(s) seu(s)
problema(s) textuais e consertá-lo(s) ou mesmo melhorá-los(s). Do ponto de vista educacional, a terceira
possibilidade é sem dúvida a melhor opção de revisão que o professor pode realizar para tentar tornar seu aluno
sujeito da sua aprendizagem. Neste caso, tornando-o mais consciente dos seus problemas, dando a ele chance de
estudar suas falhas para poder ―corrigi-las‖ e consequentemente, torná-lo mais independente no processo de
escrita de outros textos.

Quando falamos sobre processos de revisão e reescrita de textos se faz importante investigar as quatro
operações lingüísticas que orientam o escritor por serem recorrentes nesses processos: acréscimo, substituição,
supressão e deslocamento. Abaixo analisaremos a produção de uma aluna de escola pública com base nas
semelhanças e diferenças da primeira versão e da segunda versão do seu texto, isto é, do texto reescrito, a partir
das quatro categorias previamente mencionadas.
311
3. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Esta pesquisa foi realizada apenas com uma participante, portanto, trata-se de um estudo de caso com
nenhuma pretensão de generalizar resultados, mas apenas de realizar uma análise de cunho descritiva. A
participante em questão é uma criança de nove anos que concluiu a terceira série em uma escola pública.

A coleta dos dados obtidos seguiu os seguintes procedimentos. Inicialmente perguntamos a criança se
ela conhecia a estória da Bela Adormecida. Ela parecia saber muito pouco a respeito do enredo, disse que ―[...]é
de uma princesa que desmaia e aí o príncipe chega, e aí o príncipe beija ela e ela acorda. Aí eles ficam felizes para
sempre‖. Em momento algum ela menciona o que levou a princesa a desmaiar, quem era o príncipe, isto é, se ele
já conhecia a princesa e porque ele a beijou, entre outras informações que poderiam dar, pelo menos, uma certa
coerência a estória contada.

A necessidade de ativar o conhecimento prévio da criança se deu ao fato de que se simplesmente fosse
pedido para que ela escrevesse sobre a estória da Bela Adormecida, poderia escrever muito pouco não pelo fato
de não saber escrever, mas sim, por não saber informações suficientes sobre o tema requisitado.

Partimos do pressuposto que muitas vezes o fracasso do aluno no processo de escrita é devido ao fato
dele não saber o suficiente a respeito do tema sobre o qual ele precisa escrever, isto é, não há familiaridade entre
o escritor e o assunto. Consequentemente, isso levou o pesquisador ao segundo procedimento: fornecer o
estímulo do filme para a criança assistir.

Antes mesmo do início do filme explicamos para ela que sua tarefa seria assistir ao filme e em seguida
deveria escrever um texto contando a estória do mesmo. Ela pôde escrever livremente, ou seja, não houve um
limite de linhas, nem de tempo. A participante ficou sozinha numa sala com o material que ela precisava - lápis e
papel. Optamos por não interferir no processo de escrita ficando ao lado dela ou dando qualquer tipo de
sugestão. Também requisitamos para que sempre que ela cometesse qualquer ―erro‖ não o apagasse ou o riscasse
muito, mas que apenas passasse um traço no meio do que ela não queria que estivesse no texto. Acreditamos que
isso poderia vir a dar indícios das suas próprias estratégias de revisão durante a execução de escrita do texto, por
exemplo, em que freqüência e onde no texto elas aconteciam e como a criança poderia explicá-las para o
pesquisador depois.

Uma vez com o texto escrito, o lemos atentamente e apontamos com círculos todos os problemas que
encontramos na forma e com uma seta, problemas no conteúdo. No dia seguinte, antes da participante
reescrever seu texto, fornecemos a ela como estímulo sua produção do dia anterior e mostramos para ela tais
apontamentos perguntando se aqueles elementos do texto estavam certos ou errados. Na forma, alguns itens ela
identificou como errados e os corrigiu, outros, ela disse categoricamente que estavam certos. Já com relação ao
conteúdo, foram feitas algumas perguntas tentando mostrar para participante que a maneira como os fatos
aconteciam eram um pouco incoerentes e ao mesmo tempo, procurou estimular a participante a pensar em como
ela poderia incrementar a sequência dos fatos para tornar seu texto mais coerente.
312
Finalmente, a criança reescreveu apenas com base nos problemas que ela conseguia reconhecer,
ignorando os demais.

Em seguida, fornecemos a criança seu texto original sem nenhuma marcação, sem nenhum apontamento
e foi pedido que ela o reescrevesse com base nas reflexões previamente discutidas, para assim, tornar o texto
mais rico em detalhes e mais preciso na forma, isto é, seguindo as normas da gramática da língua portuguesa.

Fabre (1986, p.69 apud Menegassi, 2001, p.51) observou em suas pesquisas com reescrita que pareciam
sempre haver as mesmas operações lingüísticas, então ele decidiu sistematizar essas operações da seguinte forma:

a) Adição, ou acréscimo: pode tratar-se do acréscimo de um elemento gráfico, acento, sinal de pontuação,
grafema, etc, mas também do acréscimo de uma palavra, de um sintagma, de uma ou de várias frases.

b) Supressão: supressão sem substituição do segmento suprimido. Ela pode ser aplicada sobre unidades diversas,
acento, grafemas, sílabas, palavras sintagmáticas, uma ou diversas frases.

c) Substituição: supressão, seguida de substituição por um termo novo. Ela se aplica sobre um grafema, uma
palavra, um sintagma, ou sobre conjuntos generalizados.

d) Deslocamento: permutação de elementos, que acaba por modificar sua ordem no processo de encadeamento.

Com base na análise dos dois textos coletados, analisamos todas as retificações realizadas no texto
reescrito e as classificamos de acordo com as operações lingüísticas realizadas. Depois mostramos a ocorrência
de vezes que aconteciam essas operações no texto reescrito, como também quando as retificações causavam um
impacto positivo, isto é, ajudava a melhorar o texto no conteúdo e/ou na forma, e quando causavam um impacto
negativo, em outras palavras, quando a retificação, na verdade, levava o texto ao empobrecimento no conteúdo
e/ou na forma. Abaixo segue apenas um exemplo de cada operação.

Operação lingüística de acréscimo

Texto original: ―[...]ela chorou e teve uma filha[...]‖.

Texto reescrito: ―[...] ela chorou e o Sapo disse: não chore que você vai ter uma filha quando passou um
dias ela teve uma filha[...]‖.

Operação lingüística de supressão


313
Texto original: ―[...] comvidero os 7 everton e não convidou a Buçula que era a Bruxa e a Bruxa chegou e
disse assim. porque não mim convidaro ai pegou i disse eu[...]‖.

Texto reescrito: ―[...]convidou os 7 Elfos ia e a bruxa disse: porque não me convidaro? ai a bruxa disse:[...]‖.

Operação lingüística de substituição

Texto original: ―[...]a Bruxa não queria que o príncipe aucansase o castelo ai ele aucanso o castelo e foi no
Quarto dela e Beijou ela[...]‖.

Texto reescrito: ―A bruxa não queria que o príncipe verdadeiro alcançaçe o castelo e o príncipe alcançou o
castelo foi la no quarto dela e [Beijol] ela[...]‖.

Operação lingüística de deslocamento

Texto original: ―[...]Nunca mais ia sacorda[...]‖.

Texto reescrito: ―[...]não e a seacorda nunca mais[...]‖.

A participante acrescentou novas informações no texto, procurando deixá-lo mais rico em detalhes, isto
é, focando em melhorar o sentido do texto final, assim como, sinais de pontuação, focando tanto no sentido,
como na forma. Ao todo houve sete acréscimos de impacto positivo, nenhum de impacto negativo.

No que concerne a operação lingüística de supressão, houve a supressão de frases que continha nomes
mais complicados para a criança, ou seja, nomes não freqüentes e irregulares em língua portuguesa, como o
nome da bruxa má da história-Úrsula. Também ela suprimiu alguns elementos lingüísticos típicos da linguagem
oral, como ―[...] chegou e disse assim[...], ―[...]pegou‖ , sendo este com sentido figurado, não significando
realmente ―segurar‖ e por último, o pronome relativo repetido ―que‖. Apesar dos elementos que foram
suprimidos não terem interferido diretamente para a compreensão do texto, consequentemente, para o sentido
em si, essas supressões ajudaram a melhorá-lo na sua forma. Houve seis supressões de impacto positivo,
nenhuma de impacto negativo.

Com relação à operação lingüística de substituição, a maioria dos elementos lingüísticos substituídos
ajudaram a tornar o texto mais adequado ao nosso sistema de escrita convencional impactando diretamente na
sua forma, como a substituição de palavras que começavam com letras maiúsculas quando deveriam ser
314
minúsculas, por exemplo. Por outro lado, houve casos de elementos substituídos indevidamente, como
―encanto‖ por ―incanto‖. Uma possível explicação para tais substituições é que provavelmente a participante
estabeleceu a escrita de palavras como em ―alcançasse‖, ―encanto‖ seguindo o padrão fonológico, isto é,
escreveu palavras como essas tomando por base como as pronuncia, produzindo então, ―alcançaçe‖, ―incanto‖.

Além disso, apesar de pronunciamos em língua portuguesa o grafema ―l‖ no final de sílabas com o som
de /u/, portanto, fazendo mais sentido ela ter escrito ―beijou‖ ao invés de ―beijol‖, ela substituiu o grafema ―u‖
no final de sílabas por ―l‖, como em ―beijou‖ na primeira versão para ―beijol‖ na versão reescrita. Acreditamos
que por ela ver frequentemente palavras cujas sílabas terminam com o grafema ―l‖, mas são pronunciadas como
―u‖, no caso de ―calma‖, por exemplo, ela generalizou essa regra e a levou para o sistema escrito.

No geral, as substituições realizadas na primeira versão do texto contribuíram positivamente para o


sentido e forma, salvo algumas exceções que o elemento modificado na versão final não é o adequado, como
―beijol‖ na versão final sobre ―beijou‖ na primeira versão, como exemplificado acima. Houve vinte substituições
com impacto positivo e sete, negativo.

Dentre as quatro operações lingüísticas tidas como categorias de análise para esse artigo, a de
deslocamento foi a operação menos freqüente, houve apenas dois casos. Nenhuma delas teve um impacto
negativo.

Logo, com base nos dados obtidos das quatro operações linguísticas, podemos perceber que a operação
que ocorreu com mais freqüência foi a de substituição, seguida de acréscimo, supressão e deslocamento.

Por fim, podemos dizer com base nos dados que houve 42 retificações na reescrita do texto: 7 de
acréscimo, 6 de supressão, 27 de substituição e 2 de deslocamento. Também como conseguimos ver tanto no
primeiro texto, como no reescrito, que no momento da escrita há também revisão e retificação realizadas pela
criança, como: unha por uma; pricipe por príncipe, etc. Revisar e reescrever são processos essenciais que fazem
parte do processo de aprendizagem da escrita e é importante que façam parte das atividades escolares.

Isto é, apenas apontar um ―erro‖ do aluno é um feedback muito impreciso para que ele retifique suas
falhas, apontar e auto-corrigir tira do aluno a oportunidade de refletir sobre seus problemas textuais, no entanto,
apontar problemas e negociar sentidos, isto é, refletir sobre os problemas e porque eles são de fato problemas,
quer seja na forma, quer no conteúdo, pode vir, mais provavelmente, a levar a aprendizagem efetiva da escrita.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo central do artigo foi investigar o(s) processo(s) de revisão e reescrita de uma criança a partir
da produção de um texto narrativo do gênero conto de fadas, analisando dessa forma as alterações realizadas do
315
texto final (reescrito) em contraste com o texto original com base em quatro categorias de análise: acréscimo,
supressão, substituição e deslocamento.

O texto narrativo produzido pela participante nas duas versões (original e reescrita) apresentou os
elementos típicos da narrativa: começo, meio e fim. Ela seguiu a estrutura do filme ―A bela Adormecida‖ que
serviu de insumo para a construção do seu texto, isto é, construiu sua produção baseada na estrutura narrativa e
temática do modelo pré-apresentado.

No geral, a maioria das alterações do segundo texto teve um efeito positivo levando, consequentemente,
a sua melhora tanto no conteúdo, como na forma.

É muito importante que o professor tenha em mente que trabalhar só no conteúdo ignorando a forma
ou só forma e ignorando o conteúdo do texto é no mínimo ineficaz. Esses dois elementos em conjunto são
essenciais para uma produção escrita eficiente e que obtenha o sucesso de se comunicar efetivamente dentro da
proposta estabelecida.

Esperamos que os dados obtidos com esse artigo nos ajude a entender um pouco mais sobre processos
de revisão e reescrita de crianças ainda no começo da sua vida escolar, isto é, o ensino fundamental.

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317
AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM EM LÍNGUA INGLESA: DESAFIOS E
PROPOSTAS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL I NO CONTEXTO DA
ESCOLA PÚBLICA

Emília Gomes Barbosa126

Myriam Crestian Cunha (Orientadora)127

Resumo: Este artigo apresenta uma análise de dois documentos oficiais que orientam a avaliação em
língua inglesa na 1ª série do ensino fundamental. Na primeira parte, são apresentadas algumas
concepções de avaliação que norteiam nossa pesquisa, tais como a avaliação formativa alternativa
(FERNANDES, 2006) e a avaliação de acompanhamento (LUCKESI, 2011), ambas voltadas para a
regulação tanto do ensino como da aprendizagem. Também são feitas considerações a respeito das
características distintivas entre crianças e adultos, tais como: o crescimento (cognitivo, social e cultural),
a vulnerabilidade (fatores emocionais e afetivos) e o letramento que são essenciais para o
desenvolvimento de um processo avaliativo efetivo (CAMERON, 2001; MCKAY, 2006). Na segunda
parte, é proposta uma análise do Planejamento de Ensino e dos Eixos Norteadores para a avaliação
nesta série. Nosso objetivo é identificar qual a função da avaliação proposta nestes documentos, qual a
relação existente entre eles e se as características das crianças são levadas em consideração. Os
resultados mostram que as propostas de ensino e de avaliação não se alinham as concepções aqui
apresentadas, nem levam em consideração todas as características das crianças aprendentes de língua.
Defendemos que se o planejamento de ensino e a avaliação caminharem juntos, partilhando as mesmas
concepções teóricas, o aluno terá mais chances de ter sucesso na aprendizagem.

Palavras-chave: Avaliação; Ensino/aprendizagem; Língua inglesa.

Abstract: This article proposes to make an analysis of official documents that guide the assessment in
English in 1st grade of primary school. In the first part, we present some concepts that guide our
review of research, such as alternative formative assessment (FERNANDES, 2006) and follow-up
assessment (LUCKESI, 2011), both directed toward the regulation of the teaching and learning. Also
considerations are made about the distinguishing characteristics between children and adults, such as
growth (cognitive, social and cultural), vulnerability (emotional and affective factors) and literacy that
are essential for the development of an effective evaluation process (CAMERON, 2001; MCKAY,
2006). In the second part, we propose an analysis of Teaching Planning and The Guidelines for
Assessment in this series. Our goal is to identify what is the function of the assessment in these
documents, what is the relationship between them and if the characteristics of children are taken into
consideration. The results show that the teaching and assessment proposals do not align to the
assessment approaches presented here, nor do they take into account all the characteristics of children

126
Mestranda em Estudos Linguísticos na Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista SEDUC.
e-mail: [email protected]
127
Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA).
e-mail: [email protected]
318
language learners. We argue that if the Teaching Planning and Assessment walk together, sharing the
same theoretical concepts; students will have more chances to succeed in learning.

Keywords: Assessment; Teaching and learning; English language.

1. Introdução

Desde 2008 a Secretaria Municipal de Educação e Desporto (SEMED) de Castanhal (PA)


estendeu à 1ª série do Ensino Fundamental de nove anos o ensino da língua inglesa. Este ensino pauta-
se, principalmente, nas diretrizes estabelecidas no Planejamento de Ensino e nos Eixos Norteadores
para Elaboração do Relatório de Desenvolvimento do Aluno de 1ª série/9anos, visto que ainda não há
diretrizes nacionais para o mesmo. Estes documentos, produzidos pela SEMED, trazem orientações
também a respeito da avaliação da aprendizagem, tópico que pretendemos analisar aqui, apoiando-nos
nas concepções teóricas da avaliação formativa alternativa (FERNANDES, 2006) e da avaliação de
acompanhamento (LUCKESI, 2011), bem como numa análise das características distintivas entre
aprendentes crianças e adultos (CAMERON, 2001; MCKAY, 2006).

Assim, depois de apresentarmos os fundamentos teóricos de nossa pesquisa, passaremos para a


análise dos documentos mencionados acima. Nosso objetivo é identificar qual a relação existente entre
eles, qual a função da avaliação nesse contexto e se as características das crianças aprendentes de inglês
nesta série são levadas em consideração. Defendemos que se o planejamento de ensino e a avaliação
caminharem juntos, a serviço da regulação tanto do ensino quanto da aprendizagem, respeitando as
particularidades das crianças, elas terão mais chance de conseguir sucesso na aprendizagem desta língua.

2. A avaliação da aprendizagem e o ensino de inglês para crianças

O campo da avaliação da aprendizagem tem despertado cada vez mais interesse de


pesquisadores de diversas disciplinas e isso tem proporcionado avanços significativos nas últimas
décadas. É um tema crucial para a educação, principalmente porque vivemos na época das avaliações
dos sistemas educacionais, dos alunos, dos professores, das escolas, dos municípios, dos países, enfim
nunca se avaliou tanto como atualmente. Mas afinal o que é avaliar?
319
O ato pelo qual se formula um julgamento de ―valor‖ a respeito de determinado
objeto (indivíduo, situação, ação, projeto etc.) por meio do cotejo entre duas séries de
dados relacionados entre si:

- dados que pertencem à ordem do fato e que dizem respeito ao objeto real a ser
avaliado;

- dados que pertencem à ordem do ideal e que dizem respeito a expectativas, intenções
ou projetos aplicando-se a esse mesmo objeto.

Pode-se chamar de referente para o conjunto de normas ou critérios que vão servir de
grade de leitura do objeto a ser avaliado; e de referido para aquilo que será selecionado
desse objeto, por meio dessa leitura (HADJI, 1992, p. 25 - Tradução de Myriam
Crestian Cunha).

De acordo com Luckesi (2011, p. 277) avaliar é ―o processo de qualificar a realidade por meio de
sua descrição, com base em seus dados relevantes, e, a seguir, pela qualificação que é obtida pela
comparação da realidade descrita com um critério, assumido como qualidade desejada‖.

As definições acima abordam o processo avaliativo em seu sentido global, podendo descrever
todas as avaliações (macro e micro) que citamos no início deste artigo. No entanto, interessa-nos de
modo particular a avaliação da aprendizagem na sala de aula de língua inglesa, na qual o objeto a ser
avaliado seriam os resultados da aprendizagem dos alunos, no que diz respeito às competências
linguageiras em construção.

Há na literatura uma variedade muito grande de classificações para as modalidades de avaliação.


Fernandes (2006) afirma que apesar de existirem várias denominações diferentes, é possível distinguir
dois grandes tipos de avaliação: um – dito somativo – que se caracteriza por dar mais ênfase à
classificação, seleção e certificação, com base nos resultados obtidos pelos alunos por meio dos testes e
outro – dito formativo –, que por sua vez está mais integrado ao ensino e as aprendizagens, mais
contextualizado e no qual os alunos têm um papel relevante a desempenhar.

Luckesi (2011, p. 227) expressa essa distinção entre dois tipos de avaliação de outra forma: a
avaliação de produto que ―se encerra com o testemunho a respeito da qualidade do que foi avaliado;
portanto, em termos de investigação, exige somente o diagnóstico‖ e a ―avaliação como
acompanhamento de uma ação em processo que exige, em primeiro lugar, o diagnóstico e, a seguir, se
necessário, a intervenção para a correção dos rumos da ação‖. Para o autor, estes tipos se
complementam, ―a de acompanhamento, monitorando a construção do resultado almejado, e a de
produto, a fim de testemunhar a qualidade final do que foi produzido‖.
320
Essa avaliação como acompanhamento da ação, aproxima-se da avaliação formativa alternativa
proposta por Fernandes (2006, p. 32) que é definida como ―um processo sistemático e deliberado de
recolha de informação relativa ao que os alunos sabem e são capazes de fazer e essencialmente
destinado a regular e a melhorar o ensino e a aprendizagem‖. Regular, monitorar, acompanhar e intervir
no processo de ensino/aprendizagem são algumas das funções primordiais de uma avaliação
interessada em favorecer a aprendizagem.

Muitas outras denominações, segundo Fernandes (2006), são utilizadas para fazer referência à
avaliação cujo principal propósito seja o de melhorar o ensino e as aprendizagens tais como: avaliação
autêntica, avaliação contextualizada, avaliação formadora, avaliação reguladora, regulação controlada
dos processos de aprendizagem e avaliação educativa.

Consideramos que o objetivo central da avaliação deve ser melhorar efetivamente a


aprendizagem e, por conseguinte, o ensino. Para tal é preciso conhecer inicialmente quem será avaliado.
No nosso estudo, como se trata de crianças com idade de seis a sete anos, devem-se levar em
consideração algumas características distintivas entre crianças e adultos, tais como: o crescimento, o
letramento e a vulnerabilidade (MCKAY, 2006). O entendimento dessas particularidades é, segundo a
autora, essencial para o desenvolvimento de um processo avaliativo apropriado.

Para McKay (2006) as crianças estão em fase de crescimento e desenvolvimento cognitivo,


social, físico e emocional. Assim, o professor precisa saber, por exemplo, que o tempo de atenção das
crianças nos primeiros anos da escola é pouco, cerca de 10 a 15 minutos, que elas estão desenvolvendo
a habilidade de trabalhar em grupo aumentando a compreensão delas mesmas na relação com os
outros, que as tarefas que envolvem atividades físicas são mais interessantes para elas, entre outros.
Esse conhecimento é necessário para que o professor seja capaz de selecionar e construir as atividades
de avaliação e dar o feedback apropriado para as crianças.

O letramento é outra característica importante. Segundo Mckay (2006) as crianças na faixa etária
de cinco a sete anos são capazes de expressar as habilidades orais e estão desenvolvendo as habilidades
de leitura e escrita em língua materna. Porém, em língua estrangeira, elas ainda não possuem o domínio
da oralidade, o que torna mais difícil o processo de letramento nesta língua. Cameron (2001) defende
que as crianças precisam desenvolver primeiro, as habilidades orais. Segundo ela, ―para as crianças, a
linguagem oral é o meio através do qual uma nova língua é encontrada, entendida, praticada e aprendida
(CAMERON, 2001, p. 18)‖. Sendo assim, a oralidade deixa de ser apenas um aspecto do ensino da
língua inglesa, passando a desempenhar um papel primário no desenvolvimento da aprendizagem dessa
nova língua.
321
Se os adultos são vulneráveis as críticas ou fracassos, as crianças são ainda mais. Elas têm uma
grande sensibilidade para aprovação ou críticas e a autoestima é fortemente influenciada pelas
experiências na escola. De acordo com Mckay (2006) quando as crianças são avaliadas é importante que
elas experimentem sucesso e um sentimento de progressão, pois estas experiências ajudam a manter o
entusiasmo e a criatividade.

Considerando as características das crianças que serão avaliadas e tendo como referência uma
avaliação a serviço da aprendizagem passaremos agora à análise dos dados.

3. Análise dos dados

Este trabalho é parte de uma pesquisa em andamento para dissertação de mestrado da autora,
de caráter etnográfico, utilizando-se principalmente da análise documental que, segundo André e Lüdke
(1986, p. 38), constitui-se numa ―técnica valiosa de abordagem de dados qualitativos que pode ao
mesmo tempo, complementar informações obtidas ou desvelar novos aspectos da questão investigada‖.

Faremos uma análise do Planejamento de Ensino e dos Eixos Norteadores para elaboração do
Relatório do Desenvolvimento do Aluno de 1ª série/9 anos, elaborados pela SEMED. Nosso objetivo
é identificar qual a função da avaliação proposta nestes documentos, qual a relação existente entre eles e
se as características das crianças aprendentes de inglês nesta série são levadas em consideração.

O ensino de língua inglesa no ensino fundamental público está em expansão no Brasil


(ANTONINI, 2009; ORNELLAS, 2010; COSTA, 2009; ROCHA, 2010) apesar de não existirem ainda
diretrizes nacionais oficiais e de sua inclusão no currículo não ser compulsória, ficando a implantação
sob responsabilidade dos municípios que ao seu modo elaboram suas próprias diretrizes.

O município de Castanhal realizou a implementação deste ensino em 2008 nas turmas de 1ª a 5ª


série do Ensino Fundamental de 9 anos. Os professores participaram de um curso de capacitação com
carga horária de 120 horas para em seguida, lecionarem nas turmas. As aulas são realizadas durante o
horário regular e têm duração de 45 minutos semanais.

A SEMED em conjunto com um grupo de professores elaborou o Planejamento de Ensino


comum a todas as escolas. O quadro abaixo apresenta os conteúdos apenas do 1º bimestre, porém os
objetivos, a metodologia e a avaliação foram transcritos integralmente.
322
PLANEJAMENTO DE INGLÊS 1ª SÉRIE – ENSINO FUNDAMENTAL DE
9 ANOS - ANO: 2012
Objetivos Conteúdos Metodologia Avaliação

Objetivo Geral: Unidade I - 1º Bimestre Será através de: A avaliação


 Apresentar a língua  Greetings (hi,  música; acontecerá num
inglesa como item hello)  recorte; processo contínuo e
importante no  Saying Good bye  colagem; abrangente,
processo de (Good bye) considerando todos
 pinturas;
construção da  Human Body os aspectos da
 histórias; criança, sendo uma
cidadania e seu valor (head, arm, hand,
como instrumento  jogos; preocupação
leg, foot)
de comunicação  álbum seriado; constante observar e
 Colors (red,
universal.  fichas ilustradas; estabelecer o avanço e
yellow, blue,
mímica; o grau de
green, black,
Objetivos específicos:  cartazes; conhecimento da
white)
 Desenvolver atitudes  dramatizações; turma e do aluno
 Classroom individualmente, bem
favoráveis ao (teacher, student)  brinquedos.
conhecimento de como suas
palavras e expressões dificuldades.
básicas da língua
inglesa relacionados
ao cotidiano;

 Demonstrar interesse
pela aquisição do uso
da língua inglesa.

Quadro 1: Planejamento de inglês 1ª série


Fonte: Castanhal (2012, p. 13-14)

Para que o aluno obtenha sucesso na aprendizagem, o planejamento de ensino e a avaliação


devem caminhar juntos. Segundo Luckesi (2011, p. 340) ―o planejamento de ensino orienta tanto a
execução do ensino quanto a avaliação da aprendizagem, o que, necessariamente, significa que o
instrumento de coleta de dados para avaliação deve ater-se ao que está definido no planejamento de
ensino, nem mais nem menos‖.
Entretanto, conforme observamos acima há uma disparidade em relação aos objetivos do curso,
os conteúdos e a avaliação. Os objetivos do curso fazem referência ao aspecto social e ao uso da língua
no cotidiano, no entanto, os conteúdos ensinados são itens de vocabulário, descontextualizados, que
não estão integrados em atividades de cunho comunicativo e social. Segundo Cameron (2003) as
habilidades ligadas ao vocabulário devem representar mais que o entendimento e a produção de
palavras isoladas. Para a autora, o ensino de vocabulário ―envolve a compreensão e o uso produtivo
não apenas de palavras isoladas, mas de frases e blocos de enunciado‖ (CAMERON, 2003, p. 109), os
quais devem ser instituídos de sentido ao serem contextualizados.
Outra observação que podemos fazer diz respeito à imagem da criança que é delineada nessa
proposta de ensino: ela parece ser considerada incapaz de interagir efetivamente na língua ou de usá-la
323
para agir em determinadas situações. Para Cameron (2001, p. xii- xiii) ―é ilusório achar que as crianças
só aprendem as coisas simples da língua como cores, números e canções‖. Na verdade, elas são bem
mais curiosas e apresentam ―um imenso potencial de aprendizagem‖, podendo interessar-se também
por tópicos abstratos.
O planejamento aponta para alguns recursos metodológicos que poderão ser utilizados pelo
professor em sala de aula. Contudo, a escolha de uma metodologia vai muito além, ela vem
acompanhada, segundo Nunan (2011), por: uma teoria da aprendizagem, uma teoria da língua,
definição do papel do professor, papel do aluno e papel dos materiais didáticos, entre outros. De
acordo com Luckesi (2011, p. 271) a teoria é uma condição prévia para a avaliação, pois ―nenhum ato
humano se dá num vazio teórico. Cada ato nosso realiza-se segundo determinado ponto de vista,
consciente ou inconsciente. O ideal é que o corpo teórico que sustenta nossos atos seja consciente,
porém nem sempre o é.‖
Sendo assim, saber qual teoria subjaz à ação orienta o professor para que ele não aja de forma
alienada e descomprometida. Para um professor de língua estrangeira, é essencial conhecer tanto a
teoria da aprendizagem adotada na proposta de ensino, se é de orientação comportamentalista,
sociointeracionista etc. quanto a teoria linguística, se é estruturalista, funcionalista entre outras. Cabe
lembrar que a mesma teoria que fundamenta a metodologia do professor deve orientar também o
processo avaliativo, pois, se o professor não tem consciência da teoria que fundamenta suas ações em
sala de aula, corre o risco de propor atividades de avaliação incoerentes com o que foi ensinado
(LUCKESI, 2011). Além disso, ―sem a teoria, tanto a coleta dos dados para a avaliação quanto a
interpretação destes serão assumidas como absolutas, algo que, de fato, elas não são (LUCKESI, 2011,
p. 275)‖.

Por entendermos que a avaliação deve ser parte integrante do processo de


ensino/aprendizagem passaremos a análise dos ―Eixos Norteadores para Elaboração do Relatório do
Desenvolvimento do Aluno de 1ª série/9 anos‖, o único documento oficial que orienta o processo de
avaliação nessa série. Por meio dele os professores são orientados a redigir um relatório de
desenvolvimento para cada aluno, de acordo com as diretrizes desse documento. O relatório funciona
como um instrumento formal de avaliação que é anexado à ficha individual do aluno na secretaria da
escola e disponibilizado aos pais no final do ano letivo, para que eles tenham conhecimento do
desempenho de seus filhos. Conforme orienta o documento, transcrito no quadro abaixo, a avaliação
nessa série não tem caráter de retenção, não há atribuição de notas e independentemente do resultado
que o aluno obtenha, a aprovação é automática em todas as disciplinas.

EIXOS NORTEADORES PARA ELABORAÇÃO DO CONHECIMENTO LINGUÍSTICO


324
RELATÓRIO DO – INGLÊS:
DESENVOLVIMENTO DO ALUNO DE 1ª SÉRIE/9 ANOS
De acordo com o Regimento Escolar Unificado da Rede  Pronuncia as palavras;
Municipal de Ensino de Castanhal, a 1ª série do Ensino
Fundamental de 9 anos não tem caráter de retenção. Dessa forma,  Apresenta domínio e
cabe ao professor, no âmbito de suas atribuições, fazer do processo compreensão das palavras;
avaliativo acompanhamento e socialização do desenvolvimento dos
educandos.
 Identifica e reconhece palavras.
―A avaliação educacional aqui deverá manifestar-se como
um mecanismo de diagnóstico da situação, tendo em vista o avanço
 Responde às questões propostas
e o crescimento e não a estagnação disciplinadora (LUCKESI,
1984)‖. pelo(a) professor(a).
Sendo assim, o relatório tem a finalidade de observar e
detectar tanto os avanços, como as dificuldades de cada indivíduo  Realiza com pertinência tarefas
que esteja inserido no processo de ensino aprendizagem. cujo desenvolvimento depende
da escuta atenta e compreensão
(não se aplica ao aluno surdo).

Quadro 2: Eixos norteadores para elaboração do relatório do desenvolvimento do aluno de 1ª série/9 anos
Fonte: Castanhal (SEMED)

A orientação para a avaliação, proposta neste documento, volta-se principalmente para a


avaliação de palavras isoladas. Segundo Nunan (2011) essa prática é muito comum: implementa-se um
curso de língua estrangeira com o objetivo de ensinar o aluno a se comunicar, mas na avaliação, só
avalia-se gramática e vocabulário. O objetivo geral para o ensino da língua inglesa na 1ª série conforme
observamos no quadro1, possui cunho comunicativo e social. No entanto, nem os conteúdos (itens
isolados de vocabulário), nem os critérios de avaliação propostos nos Eixos Norteadores, estão em
sintonia com o objetivo. Esses critérios apesar de enfatizarem o papel primordial do ensino da
oralidade, o que leva em consideração a questão do letramento descrita por McKay (2006), confundem
oralidade com o ensino de palavras descontextualizadas e não consideram características como o
crescimento físico e cognitivo das crianças. Uma das razões para essa disparidade, segundo Nunan
(2011) é que é mais fácil avaliar itens isolados do que avaliar habilidades e competências de
comunicação.

O último critério de avaliação proposto no documento acima é perfeitamente compatível com


uma abordagem acional do ensino do inglês, em que a língua aprendida é investida em ações: a criança
canta, brinca, desenvolve atividade criativa usando a língua e, ao usá-la, aprende-a. No entanto, se
observamos os conteúdos propostos no Planejamento de Ensino apresentado acima, é possível afirmar
que esse critério de avaliação é não é coerente com a metodologia e os conteúdos ensinados em sala de
aula. Se durante as aulas os alunos aprendem vocabulário de forma descontextualizada, como é possível
avaliá-los se são capazes de realizar tarefas cujo desenvolvimento depende da escuta atenta e
compreensão? Nesse caso o critério está em sintonia com o objetivo geral do ensino, voltado para a
325
comunicação, mas está distante do que foi ensinado efetivamente em sala de aula (conteúdos), e muito
além do que os alunos aprenderam.
Sendo assim, se os conteúdos, a metodologia e a avaliação não estiverem em harmonia com os
objetivos, estes nunca se concretizarão. Não dá para esperar que os alunos aprendam a se comunicar na
língua, quando só lhes são ensinados itens isolados de vocabulário e gramática e que a avaliação incide
apenas sobre esses conteúdos.
A proposta dos Eixos Norteadores afirma ainda que a função da avaliação é ―observar e
detectar tanto os avanços, como as dificuldades de cada indivíduo que esteja inserido no processo de
ensino aprendizagem‖. Esse tipo de avaliação é o que Luckesi (2011) chama de ―avaliação de produto‖,
pois não faz nada além de detectar os avanços e as dificuldades dos alunos. Para Cameron e McKay
(2010), além de identificar o que as crianças fizeram certo ou errado, é preciso identificar também de
que tipo de ajuda elas precisam e o que é possível fazer para ajudá-las.

Nunam (2011) lista algumas razões que podem ser usadas para justificar a avaliação das crianças,
dentre as quais estão: fornecer um diagnóstico das dificuldades e dos avanços dos alunos, fornecer
informação para as autoridades escolares e para os pais dos alunos, encorajar os aprendentes a se
tornarem responsáveis pela própria aprendizagem e fornecer feedback para os alunos visando melhorar
a aprendizagem.

No caso do relatório, prevalecem as duas primeiras razões. Assim podemos afirmar que o
mesmo, da forma como é orientado no documento aqui analisado, não é um instrumento de avaliação
formativa alternativa. O que ocorre, na verdade, é o que Hadji (1992 apud Fernandes, 2006, p. 26)
denomina de ―avaliação de intenção ou de vontade formativa que representa práticas de avaliação, mais ou
menos indiferenciadas, que as pessoas designam como formativas sem que, muitas vezes,
verdadeiramente o sejam‖. Portanto, apesar da intenção formativa, o relatório assemelha-se às provas
tradicionais que apenas informam o que o aluno aprendeu ou não aprendeu. A diferença é que as
provas dão essa informação através de notas e o relatório informa por meio de um texto descritivo.
Além disso, os resultados das provas são utilizados para tomar decisões como a retenção ou a
progressão na série subsequente, o que não ocorre com o relatório. Ao se abolir as notas e a retenção
da 1ª série, mudou-se apenas o instrumento de avaliação, mas a função continua a mesma. Não há
regulação nem do ensino, nem aprendizagem e o aluno que obteve um mau desempenho é promovido
para a série seguinte sem ter tido a oportunidade de melhorar sua aprendizagem.

4. Considerações finais
326
Sendo assim, concluímos que as propostas de ensino e de avaliação analisadas acima não estão
de acordo com as concepções da avaliação formativa alternativa proposta por Fernandes (2006), nem
da avaliação de acompanhamento (LUCKESI, 2011). Portanto, não é o instrumento de coleta de dados
para avaliação, o relatório, que precisa mudar, mas a concepção da avaliação presente nos documentos.
Mudar apenas os instrumentos, sem um referencial teórico que sustente uma nova prática de avaliação
não trará nenhuma solução efetiva. É preciso pensar uma avaliação, desde as orientações oficiais até a
sala de aula, que esteja a serviço da regulação tanto do ensino, quanto da aprendizagem. De acordo com
Luckesi (2011, p. 294) ―[...] o ato de avaliar não soluciona nada, mas somente retrata a qualidade de uma
situação‖. A solução vem da decisão tomada e do investimento dos envolvidos no processo de ensino
(aluno, professor, gestor) que reconhecem a situação problemática e decidem superá-la. Também para
Fernandes (2006, p. 32), a mudança só ocorre, de fato, se a informação obtida na avaliação for utilizada
de forma a que ―os alunos compreendam o estado em que se encontram relativamente a um dado
referencial de aprendizagem e desenvolvam acções que os ajudem a aprender ou a vencer as suas
eventuais dificuldades‖.

Este estudo limitou-se apenas à investigação dos documentos oficiais que orientam o ensino
aqui abordado, sem que fossem analisadas, ainda, as práticas docentes efetivas. Mas podemos concluir
que a avaliação orientada por esses documentos não está a serviço da regulação do ensino e da
aprendizagem. É uma avaliação disfarçada de formativa.

Na etapa seguinte será necessária uma investigação das práticas avaliativas dos professores e
dos relatórios produzidos por eles, para poder afirmar se de fato ocorre ou não à avaliação formativa
alternativa na 1ª série do ensino fundamental no município. Precisamos investigar como os professores
recolhem, e selecionam os dados que serão registrados no relatório de desenvolvimento dos alunos e se
na prática eles utilizam esses dados para regular o ensino e a aprendizagem.

Referências

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327
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CASTANHAL. Secretaria Municipal de Educação e Desporto. Eixos norteadores para elaboração do relatório do
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CASTANHAL. Secretaria Municipal de Educação e Desporto. Planejamento de inglês 1ª série – ensino


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COSTA, Leny Pereira. Uso de um exame internacional de proficiência em língua inglesa para crianças no ensino
fundamental brasileiro. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da
Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.

FERNANDES, Domingos. Para uma teoria da avaliação formativa. Revista Portuguesa de Educação,
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HADJI, Charles. L´évaluation, règles du jeu: des intentions aux outils. Paris: ESF, 1992.

LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da aprendizagem: componente do ato pedagógico. São Paulo:
Cortez, 2011.

MCKAY, Penny. Assessing young language learners. New York: Cambridge University Press, 2006.

NUNAN, David. Teaching English to Young Learners. Anahein: Anahein University Press, 2011.

ORNELLAS, Luciana L. Honorato de. Representações de professores de Inglês do Ensino Fundamental I. 2010.
170 p. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.
328

ROCHA, Cláudia Hilsdorf. Propostas para o Inglês no Ensino Fundamental I Público: Plurilinguísmo,
Transculturalidade e Multiletramentos. Tese de Doutorado. Departamento de Linguística Aplicada.
Instituto de Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, São Paulo, 2010.
329
A CRISE DA LEITURA E SUA REPERCUSSÃO NA FORMAÇÃO DE
LEITORES-MIRINS – ALGUNS PROBLEMAS ENFRENTADOS POR
ESTUDANTES DE PEDAGOGIA

Ernâni Getirana de Lima128

Resumo: A experiência de sala de aula em faculdades de Pedagogia tem revelado um comportamento (a nosso
ver preocupante) por parte de uma parcela considerável de aluno/a/s de graduação e que repercute
negativamente na formação de leitor/e/a/s-mirins (potenciais aluno/a/s desse/a/s profissionais): a falta de
intimidade com a leitura. Se levarmos em conta que serão esse/a/s profissionais que lidarão diretamente com
crianças, em sua maioria oriundas de classes menos favorecidas, para as quais a leitura não faz parte das
preocupações (habitus) familiares, estamos diante de um problema de graves proporções não apenas pedagógicas,
mas vivenciais. A partir do conceito de letramento, o artigo esboça tal situação procurando compreender
algumas de suas causas, ao mesmo tempo em que aponta para a necessidade de um ensino pautado, dentre
outras coisas, na ludicidade que, aliada ao ensino da literatura infantil (juvenil), por profissionais competentes,
bons/boas leitore/a/s, possamos, efetivamente, vislumbrar possíveis vias de encaminhamento a contendo da
‗crise da leitura‘.

Palavras-chave: Literatura Infantil; Leitura; Formação de Professores; Ludicidade.

Abstract: The experience from college Pedagogy classroom has revealed a behavior (see our concern) by a
considerable number of graduate students and that adversely affects the formation of junior-readers (potential
students of these professionals): lack of intimacy with reading. If one takes into account that these are
professionals who will deal directly with children, mostly coming from the lower classes, for whom reading is not
part of the concerns (habitus) family, are facing a huge problem and serious proportions not only educational, but
experiential one. Based on the concept of literacy, the article outlines such a situation trying to understand some
of its causes, while pointing to the need for teaching based, among other things, the playfulness that, coupled
with the teaching of children's and juvenile´s literature by competent professionals (teachers), they
themselvesgood readers, we can effectively envision the possible routes for containing the ‗crisis of reading‘ as a
possible rout of solving the issue.

128
Mestre em Políticas Públicas pela UFPI; Especialista em Linguística pela FSA e Professor Assistente da Faculdade Santo
Agostinho, onde leciona as disciplinas Alfabetização e letramento, Estudos teóricos e metodológicos de língua portuguesa;
Literatura e Educação e Literatura Infantil . Professror de Ensino fundamental e médio. Pesquisador na linha ―Cultura e
Identidade (Projeto Tenda da Cruviana). E-mail: [email protected]
330

Keywords: Children's Literature; Reading; Teacher Education; Playfulness.

1 Introdução

A baixa quantidade/qualidadede de leitura vivenciada por aluno/a/s dos Cursos de Pedagogia, embora
não seja uma questão recente, nos últimos anos vem sendo alvo de um número crescente de artigos e livros que
procuram compreender essa problemática por vários ângulos. A questão, pois, por si só, já seria preocupante. O
grau de complexidade e de preocupação, contudo, aumenta se pensarmos que tais aluno/a/s serão em sua
maioria futuros professore/a/s encarregado/a/s pela formação de leitore/a/s-mirins. Diversos autores
reconhecem tal problema como sendo parte de um todo maior: a ‗crise da leitura‘, uma vez que se trata de ―uma
situação linguístico-pedagógica que inspira cuidados‖ (SUASSUNA, 1995, apud MAIA, 2007, p15).

Evidentemente que a chamada ‗crise da leitura‘ por ser multifacetada, isto é, vivenciada por vários atores
sociais, requer também múltiplas abordagens enfocando ora um, ora outro desses atores. No presente artigo,
entretanto, vamos circunscrever nossa abordagem a estudantes do curso de Pedagogia. A escolha deste autor
deve-se a dois fatores: o primeiro, de ordem prática, pelo fato de, como professor das disciplinas Alfabetização e
Letramento e de Literatura Infanto-Juvenil, vivenciarmos situações de leitura (e de suas mazelas) cotidianamente
em sala de aula, e também pelo fato de havermos criado um projeto cultural, Tenda da Cruviana129, que leva em
conta, dentre outras atividades, a leitura para/por crianças e adolescentes. O segundo fator, de ordem teórica:
por procurar compreender alguns aspectos dessa ‗crise‘, protagonizada por esses estudantes, diretamente
relacionados aos possíveis efeitos negativos na formação de leitor/e/a/s-mirins. Especulativamente nos
questionamos se haveria estratégias mediatizadas pela inserção de uma ‗pedagogia da ludicidade‘ que aliada ao
ensino de literatura infanto-juvenil a minimizasse.

Para tanto, a partir dos conceitos de letramento (SOARES, 1989),e ludicidade (VYGOTISKY, 1999),
dentre outros,trazidos aqui com vistas a enfocar o papel social desempenhado pelos estudantes de
Pedagogia(futuro/a professor/a formador/a de leitor/e/a/s-mirins),procuraremos lançar alguma luz sobre a
assim chamada ‗crise da leitura‘ no âmbito restrito ao curso de pedagogia. Acreditamos que é a partir de
mudanças operadas nesse e por esse sujeito estudante que certamente boa parte da ‗crise de leitura‘, ao menos no
espaço da escola, se resolverá em certa medida.

129
Trata-se de um projeto criado em 2011 quando da realização da oitava edição do Festival de Inverno de Pedro II-PI. Ver:
<https://www.facebook.com/groups/tendadacruviana/>
331

2. O curso de pedagogia: algumas questões

O termo ‗pedagogia‘, como sabido, teve origem na Grécia antiga: paidós (criança) e agogé (condução).
Pedagogo era, pois, aquele que conduzia em segurança as crianças pela polis. No âmbito da educação ocidental, o
termo ganhou o sentido de ‗ciência do ensino‘(WIKIPEDIA ON LINE). Assim, antes de tocarmos na questão
da leitura propriamente dita, e ainda que de forma sucinta, esboçamos o perfil do curso de Pedagogia e de seus
estudantes, sujeito de nosso estudo.

2.1Perfil do curso

Criado com o objetivo de estudar os processos educativos em escolas principalmente na educação de


crianças nos anos iniciais de escolarização e gestão educacional, o curso de Pedagogia no Brasil foi
regulamentado nos termos do Decreto-Lei nº 1.190/1939, que o definia como lugar de formação de ‗técnicos em
educação‘. Incialmente o curso oferecia o título de licenciado a quem cursasse três anos em conteúdos
específicos da área e o de bacharel a quem, além dos três, cursasse mais uma ano (esquema 3 +1). Tal esquema
foi mantido pela homologação da lei nº 4024/61 assim como pelo Parecer do Conselho Federal de Educação -
CFE nº 251/62.

A possibilidade de obtenção do título de especialista só veio como Parecer CFE nº 252/69. Esse Parecer
também fixou a duração do curso em quatro anos. A década de 1980 caracterizou-se por mudanças operadas nos
currículos do curso, dentre elas a formação de professores para atuarem na educação pré-escolar e nas séries
iniciais do Ensino Fundamental. O número de faculdades de Pedagogia cresceu exponencialmente, o que
redunda na inserção de contingente de profissionais com grandes limitações de leitura, em consequência da
precariedade do ensino fundamental e médio de que eles advém, em oposição à situação anterior, quando
tínhamos uma formação mais sólida dos profissionais formados, com experiência de sala de aula.

As finalidades do curso de Pedagogia, segundo as Novas Diretrizes Curriculares Nacionais, com base na
Resolução do Conselho Nacional de Educação, 13/12/2005, em seu subitem 1.3.4, ao tratar das linguagens de
forma interdisciplinar, ressaltam que o ensino destas deve ser diversificado, dialogal e estimular o trabalho em
equipe. E ainda, que ele deverá observar a diversidade social étnico-racial e regional do país (Arts. 12-13 da LDB
332
9.394/96 e Plano Nacional de Educação, Lei nº 10.172/2001).(NOVAS DIRETRIZES CURRICULARES
NACIONAI, 2002).

2.2 Perfil do estudante de Pedagogia

Do ponto de vista legal, no Brasil, o/a/ pedagogo/a/ é o/a/ profissional formado em Pedagogia, uma
graduação (com duração de quatro anos) autorizada pelo MEC – Ministério da Educação e Cultura, e cuja grade
curricular permite ao/à aluno/a/, de uma só vez, possuir as habilitações em Educação Infantil, Ensino
Fundamental, Educação de Jovens e Adultos, Coordenação educacional, Gestão escolar, Orientação pedagógica,
Pedagogia social e Supervisão educacional. Por extensão, na falta de professores, o pedagogo pode vir a lecionar
disciplinas que fazem parte do Ensino Fundamental e Médio; podendo, ainda,dedicar-se à área técnica e
científica da educação.

Uma série de pesquisas realizadas por professores da UFPA – Universidade Federal do Pará - entre 1999
e 2009 detalha melhor esse perfil do/a/aluno/a/ de Pedagogia.É, sobretudo, nesses estudos que nos fiamos para
esboçar o perfil dele/a/s/, a saber: i) quase 70% (setenta por cento) são do sexo feminino e, em sua maioria,
procedentes de uma faixa sócio-econômico posicionada entre classe baixa e classe média baixa; ii) Grande parte
do[/a/s/] aluno[/a/s/] também trabalha, mas nem sempre as atividades de trabalho estão ligadas à atividade do
magistério; iii) A maioria do[/a/s/]alun[/o/a/s/] é oriunda da escola pública (BERTOLO, 2005, p7, em PDF).
As características do perfil desse/a/aluno/a/relacionadas à leitura serão expostas no item a seguir, cerne das
questões aqui tratadas.

3 A leitura: produção e distribuição social do material escrito, letramento e ludicidade

3.1. Brevíssimo histórico da leitura

A leitura (e sua irmã siamesa, a escrita) remonta há cerca de cinco mil anos quando, na Suméria,pastores
tiveram que anotar os dados das vendas que aumentavam significantemente e, assim, não poderiam ser
guardados na memória. Por volta de 3 mil anos a. C. os egípcios desenvolveram o sistema de escrita hieróglifo,
333
considerado uma arte por imitar formas da natureza. Champollion ao decifrar tal sistema130 revelou que os
hieróglifos representavam sons.

Desde então escrita (e leitura) tem se tornado uma ferramenta possante na construção do mundo
humano, a ponto de Paulo Freire ao chamar atenção para essa questão, alertar-nos para o fato de que ―o ato de
ler não se esgota na decodificação pura da palavra escrita, mas se antecipa e se alonga na inteligência do mundo‖
(FREIRE, 1984, p 11), e prossegue dizendo que o ato da leitura tem um viés individual e um social.

Na prática, porém, a sociedade brasileira, constituída de classes com interesses antagônicos, a leitura
torna-se uma questão de privilégio e não de direito de toda a população (FREIRE, 1984).O que, reiteramos,
apenas reforça nosso ponto de vista segundo o qual, na realidade brasileira, o/aaluno/a/ de Pedagogia é um dos
atores sociais da maior importância na busca por soluções plausíveis e exequíveis diretamente ligadas à questão
da leitura (e da escrita).

3.2. Distribuição social do material escrito

Segundo De Pietri (2009, p 17) o ensino da leitura na escola pode ser compreendido e analisado ―em
função de suas relações com a produção de distribuição social do material escrito e com os níveis de letramento e
os conhecimentos que o leitor tem ou precisa ter para lidar adequadamente com esse material‖.

Ora, o/a/ professor/a/ formador/a/ de leitore/a/s-mirins, tem papel central na condução de ambas os
componentes no que diz respeito a seus/suas aluno/a/s, pois é ele/ela/, efetivamente, o agente que pode fazer
chegar material escrito diverso (embalagens, cartazes, gibis, histórias das mais variadas) à criança ao lado do
material escrito convencionado pela escola (livros, etc.); por outro lado, ao respeitar os diversos níveis de
letramento de seus/suas aluno/a/s/e, a partir desses níveis, construir com eles/elas, a base para atos de leituras
como aprendizagem significativa, no sentido de Ausubel131, pois terão mais probabilidade de acontecer.

3.3 Alfabetização, letramento e ludicidade

As abordagens de Freire (1984) e de Silva (1986) na verdade são complementares.Isso porque o processo
de aprendizagem da leitura (e da escrita) engloba codificação/decodificação dos signos, mas é realizado num

130
Hoje se sabe que os sistemas de escrita podem ser: logográfico (signos representam palavras e não o som); ideográfico
(signos representam diretamente uma ideia); silábico (cada sinal representa uma sílaba) e alfabético (cada letra corresponde a
um som individual). Há, ainda, os sistemas artificiais:Braile, por exemplo (FERNANADES, 2010).
131
Que é um processo através do qual uma nova informação relaciona-se, de maneira substantiva (não-literal) e não-
arbitrária, a um aspecto relevante da estrutura cognitiva do indivíduo(MOREIRA, 1999).
334
contexto concreto, real, histórico, social, isto é, no mundo humano. O ser humano sendo um animal político
(Aristóteles), é gregário, relacional. Tudo o que faz, o faz em meio a um caldo de cultura. A leitura, como as
demais atividades humanas, acontece nesse espaço. Dessa forma, é que

Um adulto realiza cotidianamente uma série de atos de leitura diante de umacriança.


Sem transmitir-lhe explicitamentesua significação. Assim, por exemplo, um adulto
busca informações no escrito, não-somente quando lê o jornal ou quando lê um livro,
mas também quando lê placas indicadoras da cidade para se orientar, uma bula de
remédio para saber a maneira de cumprir as indicações, ou o cardápio de um
restaurante antes de decidir sobre o que vai comer, lê revistas informativas antes de
escolher um programa de TV, etc. [...]. Entre esses atos, totalmente cotidianos e
habituais, devemos também incluir a leitura dirigida especialmente à
criança.(FERREIRO, 1999, p 165).

Desde os anos 1980, os termos ‗alfabetização‘ e ‗letramento‘ tem aparecidos juntos constituindo-se em
um binômio bastante discutido nos meios acadêmicos e, ultimamente, nos cursos de Pedagogia. Segundo Magda
Soares,

Letramento é palavra e conceito recentes, introduzidos na linguagem da educação e


das ciências linguísticas há pouco mais de duas décadas, seu surgimento pode ser
interpretado como decorrência da necessidade de configurar e nomear
comportamentos e práticas sociais na área da leitura e da escrita que ultrapassam o
domínio do sistema alfabético e ortográfico, nível da aprendizagem da língua escrita
perseguido, tradicionalmente, pelo processo de alfabetização‖ (SOARES, s/d [em
pdf]).

De Pietri (2009, p 11) afirma ,e percebemos isso, que o papel do/a/ professor/a/ formador/a/ de
leitore/a/s-mirins é de inquestionável importância, uma vez que ―em comunidades não letradas (aquela sem que
as relações sociais se fundamentam em usos orais de linguagem), a relação com a escrita pode ser garantida,
muitas vezes [...] apenas através da escola‖. Se, de modo geral, a escola é a principal agência de letramento numa
sociedade complexa como a nossa, muitas vezes, em nossa sociedade, ela representa a única agência formal de
letramento, a única possibilidade para determinadas comunidades de terem acesso aos bens sociais e culturais, a
que De Petri (2009) chama de distribuição social do material escrito.

Este pesquisador, porém, compreende a leitura para além do espaço escolar, ao contrário do
pensamento mediano para o qual ―a leitura é uma prática social escolarizada, isto é, numa sociedade como a
nossa, as pessoas consideram que uma das funções da instituição escolar é ensinar a ler‖ (DE PIETRI, 2009, p
335
11). Para ele, leitura não é uma prática (apenas) escolar: uma pessoa pode aprender a ler sem ter ido à escola, ou,
mesmo quem tenha aprendido a ler na escola, pode desenvolver habilidades de leitura diferentes daquelas que a
escola lhe apresentou, e ler textos pertencentes a gêneros com os quais não teve contato em contexto escolar,
conclui o autor citado. No entanto, compreender a importância desse espaço formal de leitura que é a sala de
aula torna-se, pois, necessário.

Acreditamos que sendo a sala de aula um espaço artificializado, formal, uma maneira de nos contrapor a
essa realidade seria a inserção da ludicidade como ferramenta pedagógica, catalizadora dos conteúdos a serem
ministrados. Desde Vygotsky, sabemos que a aprendizagem torna-se menos problemática e menos traumática
quando se dá em um ambiente lúdico (ludus, em latim, jogo/brincadeira). Para ele o desenvolvimento cognitivo
resulta na interação entre a criança e as pessoas com as quais mantém contatos regulares. Nesse sentido,

Todos conhecemos o grande papel que nos jogos da criança desempenha a imitação.
Com muita frequência estes jogos são apenas um eco do que as crianças viram e
escutaram dos adultos, não obstante estes elementos da sua experiência anterior nunca
se reproduzem no jogo de forma absolutamente igual e como acontecem na realidade.
O jogo da criança não é uma recordação simples do vivido, mas sim a transformação
criadora das impressões para a formação de uma nova realidade que responda às
exigências e inclinações da própria criança‖ (VYGOTSKY , 1999, p.12).

Portanto, acolhendo a necessidade de apreensão da escrita para a leitura de mundo e as reais condições
dos/as alunos/as nas séries fundamentais para tornar-se um leitor/a crítico/a e consciência dessa ferramenta
para a promoção de sua inserção na cultura, no quotidiano e no mercado de trabalho que virá, o processo de
alfabetização e letramento que inegavelmente se processa em sala de aula, requer do pedagogo uma cuidada e
competente formação sobretudo como leitor para que o trabalho em sala de aula seja eficiente e eficaz.

4 O professor (de)formador de leitores-mirins

Ao/à estudante de Pedagogia está destinado um papel ou responsabilidade que a família do leitor-mirim
não pode preencher por não possuir o habitus132 digamos, da prática da leitura com/para seus filhos. Nesse

132
O conceito de habitus, desenvolvido por Pierre Bourdieu objetiva pôr fim ao desconforto trazido pela dicotomia
sociedade/indivíduo, própria da sociologia estruturalista e relaciona-se à ação de poder que uma determinada estrutura social
possui de ser incorporada pelos agente por meio de disposições para sentir, pensar e agir. (BOURDIEU, 2003).
Também, segundo Bourdieu, o ―habitus‖ é a mediação universalizante que proporciona às práticas sem razões explícitas e
sem intenção significante, de um agente singular, seu sentido, sua razão e sua organicidade. (MINAYO, 1995)
336
sentido, compreendemos que a introdução lúdica da literatura infantil133 (e, posteriormente, da juvenil) fará toda
a diferença na construção de um leitor-mirim denso e crítico.

A leitura para crianças/leitores-mirins no âmbito escolar, em boa medida tem grande probabilidade de
ser exitosa com a inserção da ludicidade em atividades de leitura. Para isso é imprescindível que o/a professor/a
formador/a seja um/a leitor/a contumaz não só de leitura do quotidiano, mas sobretudo de literatura universal,
brasileira e de literatura infanto-juvenil. É preciso que na sala de aula o formador seja também facilitador de
leitura e isso só se pode fazer estando familiarizado com os mais variados gêneros e diversidades de texto que
fazem parte das literaturas e das culturas existentes a fim de estimular o aluno/a leitor/a aos várias formas de
compreensão de mundo.

É importante que a primeira ‗camada‘ de leitura seja feita com prazer. Maria Helena Martins, citada por
Faria (2004) categoriza a leitura em três níveis: o sensorial (ligado aos aspectos exteriores);o emocional (incita à
fantasia e liberta emoções) e oracional (o leitor se prende a normas criadas pela elite intelectual). Com base em
Poslanice&Houye, a autora diz que ―o trabalho do professor na escola seria propor aos alunos leituras que sejam
úteis para ampliar o conhecimento espontâneo que a criança já faz de sua pequena experiência de vida‖ (FARIA,
2004, p 21).

5 Breves considerações finais

A ‗crise da leitura‘ é uma questão há muito discutida por especialistas, professore/a/s e estudantes dos cursos de
Pedagogia. Inúmeras explicações têm surgido, grande parte delas sobre falsas premissas de inspiração burguesa.
No bojo da questão, aquele que se forma em Pedagogia, com capacidade para formação de leitores-mirins é um
dos atores sobre o qual pesa o grande desafio rumo a possíveis soluções do problema da ‗crise da leitura‘. Ele por
lidar com o cerne do problema é quem deve ter também as possibilidades e condições objetivas para ultrapassar
as barreiras que lhes são impostas. E umas das possíveis soluções começam em si mesmo: a prerrogativa de ser
leitor para estimular e formar leitores.

Porém, como vimos, esses/as futuros professor/e/a/s, ainda como estudantes de Pedagogia têm
grandes deficiências e limites, deficiências essas – pouca leitura, dificuldade de interpretação e análises textuais,
dificuldade de compreensão e de expor um visão crítica sobre os textos - que influenciarão nas suas práticas
junto às crianças/alun/o/a/s que terão em sala de aula. Somente com reais modificações no ensino de
Pedagogia, tomando a leitura em suas múltiplas manifestações e como prática cotidiana de letramento é que,
possivelmente, teremos algum resultado positivo no bojo da tão propalada ‗crise da leitura‘ no país.

133
Para a compreensão aprofundada sobre o assunto ver Faria (2004).
337

REFERÊNCIAS

BERTOLO, Sônia de J. Pesquisa sobre o curso de pedagogia e seus alunos. Belém, 2006. (Disponível em
www.faed-ufpa.com.br, acessado em 16/03/2013.

BOURDIER, Pierre. A dominacao masculina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003, p 64

COELHO, Beth. Contar história uma arte sem idade. São Paulo, Ática, 2002;

DE PIETRI, Émerson. Práticas de leitura e elementos para a atuação docente. Rio de Janeiro, Ediouro, 2009;

FERNANDES, Maria. Os segredos da alfabetização. São Paulo, Cortez, 2010.

FERREIRO, Emilia. Psicogênese da língua escrita/Emilia Ferreiro, Ana Teberosky; tradução Diana Myriam
Lichtebstein, Liana Di Marco, Mário Corso. Porto Alegre, Armed, 1999.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler; em três artigos que se completam. 7. Ed. São Paulo, Cotez/Campina
Autores Associados, 1984;

MAIA, Joseane. Literatura na formação de leitores e professores. São Paulo, Paulinas, 2007.

MINAYO, M.C.S. O conceito de representações sociais dentro da sociologia clássica. In: GUARESHI, P.A.,
JOUCHELOVITCH, S. (Orgs.). Textos em representações sociais. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1995. Pp. 89-111.

MOREIRA, Marco Antonio. A aprendizagem significativa. Brasília. Editora Universidade de Brasília, 1999;

NOVAS DIRETRIZES NACIONAIS, MEC (Disponível em:


http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12991).

VYGOTSKY, Lev Semenovitch S. Imaginacion y creaciónen la edad infantile.La Habana, Editora Pueblo y educación,
1999.

SILVA, Ezequiel.Teodoro. da. Leitura em curso. Autores Associados. Campinas, SP. 1986.

SOARES, Magda. Linguagem e escola, uma perspectiva social. São Paulo. Ática, 1989.

SITES: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedagogia.
338
NARRATIVAS EM TAPIRAPÉ E A ESCRITA NA ESCOLA

Eunice Dias de Paula134

RESUMO

Os Tapirapé, MT, cuja autodenominação é Apyãwa, possuem um amplo repertório de narrativas míticas,
denominadas xaneypyagy paragetã ‗histórias de nossos ancestrais‘. Este trabalho focaliza estas narrativas,
abordando-as enquanto um evento de fala (HYMES,1986) inserido na vida cotidiana. Às pessoas mais idosas
cabe o papel social de contá-las para o seu grupo familiar e, durante o decorrer deste ato de fala, alguns dados
singulares (GINZBURG, 1991) afloram: a inserção de discursos diretos; a presença de ideofones e uma intensa
co-ocorrência das palavras ro‟õ e raka‟ẽ nos textos narrados. Enquanto as primeiras podem ser consideradas
como recursos que conferem vivacidade à narrativa, as duas últimas constituem indícios reveladores de traços
socioculturais próprios dos Apyãwa. Considerando a assertiva proposta pela Etnossintaxe (ENFIELD, 2002;
WIERZBICKA, 1997), de que a semântica da gramática codifica valores culturais, ideias e princípios
organizativos de diferentes sociedades, observamos que, embora o ato narrativo atualize os eventos narrados, o
narrador não pode se assumir como autor do texto narrado, constituindo-se como um porta-voz de seus
ancestrais. Todavia, constatamos que nas narrativas escritas, sobretudo em Português, há uma tendência ao
apagamento destas importantes marcas culturais inscritas na língua, o que indicia conflitos entre a língua tapirapé
e a língua portuguesa, decorrentes da instauração da escrita em sociedades indígenas (BRAGGIO, 2000;
GNERRE, 1998).

Palavras chave: Narrativas mitológicas; Valores culturais; Escrita na sociedade Apyãwa.

ABSTRACT

The indigenous people Tapirapé MT, whose self-nomination is Apyãwa, have a wide repertoire of mythical
narratives, called xaneypyagy paragetã 'stories of our ancestors'. This work focuses on these narratives, addressing
them while a speech event (HYMES, 1986), presented in everyday life. The older peoples assumes the social role
of count them for your family group and, during the course of this speech act, some unique data (Ginzburg,
1991) appears: inserting direct speeches; the presence of ideofones and an intense degree co-occurrence of words
ro'õ and raka' ẽ narrated in the texts. While the first can be regarded as resources which give vivacity to the
narrative, the latter two are clues revealing traces of own sociocultural Apyãwa. Considering the assertive
proposal by Etnossintaxe (ENFIELD, 2002; WIERZBICKA, 1997), that the semantics of grammar encodes
cultural values, ideas and organisational principles of different societies, we note that, although the narrative Act
update the events narrated, the Narrator cannot be assumed as the author of the narrated text, constituting itself
as a spokesman of his ancestors. However, we note that in the narratives written primarily in Portuguese, there is
a tendency to erase these important cultural marks entered in the language, which gives rise to conflicts between

Doutora pelo Programa de Pós Graduação da Faculdade de Letras da UFG – Universidade Federal de Goiás. Membro
134

do Grupo de Pesquisas em Línguas Indígenas da UFG, participante do Projeto LIBA -Línguas Indígenas Brasileiras
Ameaçadas, sob a coordenação da Profa. Dra. Silvia Lucia Bigonjal Braggio, interinstitucional com a UnB e com a UFT.
E.mail: [email protected]
339
the Tapirapé language and Portuguese language, deriving from the introduction of writing in indigenous societies
(BRAGGIO, 2000; GNERRE, 1998).

Keywords: Apyãwa indigenous people (Tapirapé); Mythological narratives; Cultural values; Written in indigenous
societies.

Introdução

O povo indígena Apyãwa (Tapirapé), cujas aldeias se localizam no Nordeste do Mato Grosso, soma
hoje, aproximadamente, 800 pessoas vivendo em duas áreas: Terra Indígena Urubu Branco, município de
Confresa, MT e Área Indígena Tapirapé-Karajá, no município de Santa Terezinha, MT135. Vitimados por doenças
introduzidas após o contato, os Apyãwa chegaram à beira da extinção na metade do séc. XX. Entretanto,
conseguiram se recuperar física e socioculturamente e, de um modo notável, conseguiram manter a língua
originária como primeira língua, classificada por Rodrigues (1986) no sub-grupo IV da família Tupi-Guarani, do
Tronco Tupi. Contam com uma escola desde 1973, sendo que a docência e a gestão da mesma são assumidas por
professores indígenas Apyãwa.

Os Apyãwa possuem um amplo repertório de narrativas míticas, denominadas xaneypyagy paragetã


‗histórias de nossos ancestrais‘. Neste trabalho abordamos estas narrativas enquanto um evento de fala
(HYMES,1986) inserido na vida cotidiana. Há uma aspiração expressa pelos Apyãwa no sentido de registrarem
por escrito as narrativas com a finalidade de evitar um possível desaparecimento das mesmas. Todavia,
constatamos que nas narrativas escritas, sobretudo em Português, há uma tendência ao apagamento de
importantes marcas culturais inscritas na língua, o que indicia conflitos entre a língua tapirapé e a língua
portuguesa, decorrentes da instauração da escrita em sociedades indígenas (BRAGGIO, 2000; GNERRE, 1998).

1. As narrativas na sociedade Apyãwa (Tapirapé)


As narrativas mitológicas constituem um evento de fala conforme postulado por Hymes (1986), uma vez
que o ato narrativo se constitui como uma atividade governada por regras de uso da fala. Entre os Apyãwa, nem
todas as pessoas são autorizadas a dar voz aos mitos. Os idosos (mais de 60 anos) são reconhecidos socialmente
com autoridade para narrar os mitos para seu círculo familiar, preferencialmente ao anoitecer. As pessoas que
participam do ato narrativo interagem com o narrador, emitindo de tempo em tempos interjeições assertivas ou
mesmo fazendo perguntas, configurando, portanto, normas interacionais próprias e um compartilhamento do
mesmo sistema de crenças (HYMES, 1986). Na taxionomia dos Apyãwa, as narrativas são nomeadas como

135Estamos utilizando neste trabalho o termo auto-designativo Apyãwa, embora eles sejam conhecidos na literatura
como Tapirapé. Quando se trata da língua, utilizamos o termo Tapirapé.
340
maragetã e mais especificamente, xaneypyagỹ paragetã ‗histórias de nossos ancestrais‘, o que demonstra o seu status
nessa sociedade. As narrativas mitológicas não são apenas relatos de fatos fantásticos acontecidos no passado,
uma vez que cumprem, ainda hoje, o papel de explicar as origens, os padrões ideais de comportamento, o porquê
de se organizar a sociedade de determinada maneira, as regras para se viver bem. Portanto, como sublinha
Schaden (1989, p.18) para que ―se queira compreender o mito como elemento ou componente cultural, desde
que se lhe queiram desvendar os significados e as funções (...) é preciso estudar a mitologia em sua dinâmica, isto
é, em sua relação com a atualidade social‖. Os mitos estão muito presentes na vida diária dos Apyãwa. São
atualizados nos rituais e em acontecimentos cotidianos, como o resguardo pós parto, prescrito para o pai e a
mãe de um bebê. Haverá sempre uma mãe ou avó que explicará para o jovem casal porque é necessário guardar
o resguardo, relembrando a história mítica que deu origem a esse comportamento.

Hymes (1986) nos lembra que a análise da fala por meio dos atos de fala é sempre uma análise da fala em
instâncias dos gêneros. Todavia, Hymes afirma que não são somente as falas formalmente marcadas que
constituem gêneros: ―todas as falas tem características formais de algum tipo como as manifestadas pelos
gêneros‖ (HYMES, 1986, p. 65). Os atos narrativos dos Apyãwa possuem como característica formal a intensa
co-ocorrência dos itens lexicais ro‟õ e raka‟ẽ que analisamos na próxima seção.

2. O dado singular: ro‟õ e r k ‟ẽ


Em nosso trabalho adotamos o Paradigma Indiciário (GINZBURG, 1991) como referencial
metodológico oposto aos modelos inspirados na tradição galileana, para os quais é importante a quantificação e a
repetibilidade dos resultados obtidos através de situações controladas pelo pesquisador. O Paradigma Indiciário,
ao contrário, vai se preocupar em observar detalhes, sinais, pistas que fornecerão indícios para a análise do que se
está procurando elucidar. É uma ―proposta de um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os
dados marginais, considerados reveladores‖ (GINZBURG, 1991, p. 149). Consideramos como singular a
ocorrência em grande número das partículas ro‟õ e raka‟ẽ nas narrativas míticas, como se constata no excerto da
narrativa Xapakanio Paragetã ‗A História do Gavião Real‘, transcrita pelo professor e cacique Kamajrao
(TAPIRAPÉ, X. C., 2006 : 23136):

(01) Wyke‘yra raty ro‟õ r k ‟ẽ a‘o irekawo tywyra, wyke‘yraty. A‘erã ro‟õ r k ‟ẽ iwaki tyke‘yra ee iarowo takope.

(02) _ Nerywyra ‘ã a‘o irekawo neraty, e‘i ro‟õ r k ‟ẽ. _Axe axawo. A‘erã ro‟õ r k ‟ẽ iwaki, ‘ã ro‟õ r k ‟ẽ iexaka
wywyra.

(03) - Ah, axewara pãpa, axawo. A‘era ro‟õ r k ‟ẽ ixa‘o akopa wyke‘yraty ne.

136Os Apyãwa trocam os nomes várias vezes durante a vida. Assim, o nome atual de Kamajrao não corresponde ao nome
da certidão de nascimento: Xario‘i Carlos Tapirapé.
341
(04) A‘era ro‟õ r k ‟ẽ ia ataaramõ, iexaka Xapakanio. A‘e ro‟õ r k ‟ẽ a‘ymi. A‘e ro‟õ r k ‟ẽ akome‘o irota
wywyra we

Praça (2007), que efetuou uma análise funcionalista da língua, considera que:

ro‘õ é uma partícula de confiabilidade de informação muito produtiva nas interações


diárias, bem como nos textos míticos. Expressa que o conteúdo da informação não é
assumido pelo falante e o exonera de qualquer responsabilidade sobre o que foi dito
(PRAÇA, 2007, p. 166).

raka‘e é uma partícula de fonte de informação que expressa a não-atestação do


evento/estado pelo falante e indica ‗passado remoto‘. É muito recorrente nos textos
míticos e co-ocorre, geralmente, com a partícula ro‘õ que a antecede (PRAÇA, 2007,
p. 161).

Partindo de outro foco de análise, observamos que, o fato de estas partículas remeterem ao enunciador,
demonstra também uma função dêitica, uma vez que são enunciadas pelo sujeito e se referem a ele mesmo, ao
eu que narra fatos acontecidos há muito tempo, fatos aos quais o sujeito narrador não estava fisicamente
presente e, por isso mesmo, não pode assumir as informações como atestadas por ele mesmo. Esta
particularidade é operacionalizada gramaticalmente pela partícula ro‟õ. Entretanto, como o narrador é uma pessoa
idosa, autorizada socialmente a dar ―testemunho‖ da verdade, sua palavra está revestida de confiabilidade e os
fatos narrados são considerados como verdadeiros, embora não atestados fisicamente. Há, ainda, um aspecto que
acentua a confiabilidade na pessoa do narrador. Ele faz parte de uma longa sequência de narradores que se
sucedem ao longo do tempo. Ao narrar, rememoram-se conhecimentos dos antepassados que chegaram aos
atuais Apyãwa. Dessa forma, uso intensivo de ro‟õ é uma forma de mostrar respeito aos antepassados e ao que
eles contaram..

3. O olhar da Etnossintaxe

A Etnossintaxe ou Semântica da Gramática contribui para a compreensão do papel sociocultural do uso


recorrente das duas partículas no caso das narrativas mitológicas, uma vez que busca entender as relações entre
língua, cultura e sociedade partindo do princípio que:

A gramática é expandida com os significados culturais. Codificados na semântica da


gramática nós encontramos valores culturais e ideias, encontramos indícios sobre as
estruturas sociais que os falantes mantêm, encontramos evidências historicamente
relevantes, de um lado e, por outro, reveladoras da organização social das
comunidades de fala (ENFIELD, 2002, p. 3).
342

A afirmação de Enfield (2002) mostra com clareza como o Paradigma Indiciário se


entrelaça aos princípios da Etnossintaxe ou semântica da gramática, pois o desvelamento da
realidade é possível através de pistas, indícios, ou detalhes reveladores que, muitas vezes, passam
desapercebidos. A Etnossintaxe propõe, justamente, que os indícios codificados na língua podem
nos levar à compreensão da história e da organização social das comunidades de fala.
Em consonância com estes princípios, analisamos que a grande co-ocorrência das duas
palavras não se dá ao acaso. Afinal, para informar aos ouvintes que o narrador não estava presente
aos fatos que se deram num passado longínquo, bastaria que elas aparecessem somente uma vez. Ou
poderia mesmo ser utilizado somente o marcador de tempo remoto não presenciado raka‟ẽ, que já
contém a informação de que o narrador não é testemunha ocular dos fatos narrados. A nosso ver,
as palavras ro‟õ e raka‟ẽ se configuram como importantes índices culturais, uma vez que sinalizam
para o fato de que o enunciador pode atualizar a narrativa ao recontá-la no momento presente, mas
não pode assumi-la como se fosse de sua autoria. São marcas linguísticas que mostram que essa
pessoa não é o enunciador original do texto. embora se constitua como porta voz de uma tradição
oral que vem de um tempo distante que o antecede, e embora esteja revestido de autoridade para
enunciar o mito, a sua função é marcada frente aos interlocutores como uma forma de mostrar que
o seu conhecimento vem das gerações que o precederam, semelhante ao que acontece entre os
Shuar do Equador:

Na narrativa de conteúdo mitológico ou tradicional todos os parágrafos eram


fechados por formas do verbo ti-/ta-/tu- ―dizer‖, de tal forma que toda a narrativa
vinha (e ainda vem na língua falada) a ser transformada num discurso indireto. A
explicação mais plausível para esta característica, que encontramos também em muitas
outras línguas de tradição oral, é da atenção do falante principal para uma redução
relativa de seu papel frente ao interlocutor. Seria como se o falante principal, o
narrador, quisesse deixar claro o tempo todo que o seu discurso vem do saber de
outros, é compartilhado por outros, e recusasse qualquer discurso de forma mais
peremptória ou individualista (GNERRE, 1998, p. 110).

Do mesmo modo, o enunciador Apyãwa mostra humildade e reverência para com os que o
precederam. Mostra também respeito pelo saber coletivo, isto é, reconhece que a narrativa mitológica
não é elaboração de uma só pessoa, é um saber que vem sendo compartilhado há muito tempo pelas
várias gerações. O narrador está inserido numa comunidade de fala que não compreende só o
momento presente, mas que é herdeira de um conhecimento ancestral comum. Isso se evidencia na
sentença final do mito quando o narrador diz xanekwera Xapakanio ‗o nosso ancestral Gavião Real‘, ou
seja, a forma pronominal inclusiva xane- abrange a todos os Apyãwa, antigos e atuais.
A articulação com a organização social também pode ser vislumbrada através destes marcadores, uma
vez que eles não possuem autoridades centralizadoras, impositivas como já observara Baldus (1970). As decisões
343
são tomadas em reuniões, através de longas conversas que ocorrem no pátio da Takãra, a casa cerimonial, até que
se chegue a um consenso por via da persuasão, o que pode levar alguns dias. Ao assumir um papel reduzido
frente aos interlocutores, por meio do uso intensivo de ro‟õ e raka‟ẽ, o narrador atualiza este valor que destaca a
coletividade ao invés de estruturas hierarquizantes que favorecem posturas autoritárias. Por ele passa o relato dos
fatos, passam os enunciados proferidos pelos ancestrais, passam os ensinamentos contidos nos mitos. Todavia, o
narrador não se auto-projeta, ao contrário, o relevo é sempre dado ao aspecto coletivo. Há uma passagem na
narrativa que ilustra essa posição do narrador, igualando-se à audiência que o ouve:

(62ª. sentença):

_Ma‘e raka‘ẽ ke tyke‘yra rera, tywyra rera naxikwaãwi.

ma‘e raka‘ẽ ke t + yke‘yt + a r + era t + ywyt + a


Int. pass.rem. dub. 3ªs. irmão (+velho) nom. rel. nome 3ªs. irmão (+novo) nom.

r + era na + xi + kwaãp + i
rel. nome neg. 1ª.p.incl. saber neg.

‗como é que nós não sabemos, desde os tempos antigos, os nomes dos irmãos (o + velho e o +
novo)?‘

Esse comentário, proferido em meio à narrativa, mostra que o narrador se incluiu na mesma
condição de não sabedor dos nomes dos dois irmãos, condição esta comum a todos os Apyãwa. O
prefixo de 1ª. pessoa do plural inclusivo xi- opera gramaticalmente essa inclusão, pois se refere a
todos137. Na verdade, ao narrador é conferido o poder de narrar, mas ele não se apodera da narrativa,
que é de todos os Apyãwa. Assim, os dados apresentados nos levam a considerar que o uso
recorrente dos marcadores ro‟õ e raka‟ẽ apresenta motivações de ordem cultural e social que vão
além da função de eximir o falante de responsabilidade pelo que foi dito ou de marcar a
temporalidade dos fatos narrados. Ao contrário, desvelam a posição do narrador inserido numa
comunidade de fala contemporânea, que mantém ligações com os seus antepassados, relações essas
marcadas por um profundo respeito a ponto de ele não assumir a autoria do texto narrado, deixando
claro que a narrativa vem desde tempos imemoriais. Por outro lado, mostra que ele também marca
sua posição em relação à comunidade atual. No caso da narrativa focalizada neste trabalho, o
narrador, sr. Koraripewi é o chefe de cerimoniais do povo Apyãwa, pai do atual cacique de
Tapi‘itãwa, uma pessoa de grande prestígio. Ao se colocar numa posição igualitária junto aos seus

137
Caso o narrador tivesse usado o prefixo de 1ª. pp exclusivo –ara- , ele estaria se referindo somente a si mesmo e a
seus ouvintes naquele momento, excluindo os outros Apyãwa.
344
interlocutores, ele deixa entrever um traço essencial do povo Apyãwa: uma sociedade organizada em
relações não hierarquizadas, onde nem o prestígio conferido pela sabedoria faz com que ele se
coloque numa posição de superioridade frente às outras pessoas. Nesse sentido, podemos afirmar
que a palavra ro‟õ nas narrativas pode ser considerada uma ―palavra chave‖ (WIERZBICKA, 1997)
da cultura Apyãwa, que nos deixa entrever um traço essencial das relações sociais desse povo, ou
seja, o apreço pelas relações igualitárias, pois, mesmo um chefe de cerimonial de grande prestígio,
autorizado a contar as narrativas, faz questão de marcar discursivamente uma posição de não
superioridade frente aos outros participantes do evento de fala constituído pelo ato narrativo.

4. As narrativas mitológicas na Escola

Como afirmamos, há uma vontade explícita, por parte dos Apyãwa, de que a Escola trabalhe com as
narrativas mitológicas, no sentido de transformá-las em livros para que ―não se percam‖, como vemos expresso
no texto de uma aluna do Ensino Médio:

Tem uma criança nascida que não sabia a história do Awara'i, por isso tem que fazer
essa história como um livro para relembrar como o nosso antepassado trazia essa
festa. Então, eu escolhi esse tema porque para mim é muito importante conhecer
melhor a história do Awara'i e lembrar sempre a sua origem (TAPIRAPÉ, Arapa‘i,
2009, p. 6).

Temos constatado que os motivos que contribuem para essa preocupação são o número reduzido de
pessoas idosas no conjunto da população e, por outro lado, a presença invasiva da televisão que hoje ocupa
várias horas do cotidiano de jovens e crianças. Por sua vez, o registro na modalidade escrita é percebido como
algo que pode favorecer a manutenção das narrativas míticas, uma vez que facilita o acesso a elas por parte de
todos os que dominam a leitura e a escrita. A escrita confere também o caráter de perenidade como expressou o
professor Ware‘i : ―os brancos não se esquecem de sua língua e de sua cultura porque têm muitos livros. É por
isso que nós precisamos escrever os nossos próprios livros e não ficar usando os livros dos brancos‖
(TAPIRAPÉ, K. E., 2004, p. 24). Os alunos e alunas do Ensino Médio escolhem majoritariamente os mitos
como temas de suas pesquisas de conclusão de curso, justificando como motivo dessa escolha o
desconhecimento a respeito das tradições ou das origens dos rituais. Quando um ancião foi à sala de aula para
narrar o mito de origem do povo, muitos jovens se emocionaram dizendo que nunca tinham ouvido aquele
relato, confirmando nossa observação de que, atualmente, as condições para a audiência dos mitos encontram-se
fragilizadas.

Entretanto, o registro escrito de um mito levanta várias questões, entre elas, as diferenças entre a escrita
e a fala. Sabemos que os sistemas de escrita não conseguem reproduzir fielmente todas as características de um
345
enunciado proferido, como a entonação, o ritmo, a velocidade da fala. Há uma linguagem corporal própria do
narrador de mitos, que, por vezes, o leva a dramatizar cenas da história. Além dos ideofones, há a imitação de
diversos barulhos presentes na natureza como o de folhas caindo ou quatis escorregando por um tronco de
árvore, o que torna a narração algo extremamente vívido. As narrativas, quando transcritas para o papel, ficam
inevitavelmente empobrecidas, pois a escrita não possibilita o registro destes recursos presentes na oralidade.
Preocupa-nos, sobretudo, como ficará a situação das partículas ro‟õ e raka‟ẽ na mudança das narrativas orais para
a escrita. Os dados coletados apresentam duas situações:

a) Na narrativa transcrita por um aluno do ensino médio que conta a história do xawaxi ‗jabuti‘ e miãra
‗veado‘, é possível perceber a inserção das partículas ro‟õ e raka‟ẽ bem como a inserção de discursos diretos. Um
outro dado relevante é que ele inicia o seu texto com uma introdução em língua tapirapé, explicando como fez o
seu trabalho a partir da narrativa contada por sua avó. Isso indicia que há aceitação da escrita em Tapirapé como
língua escolar, isto é, uma língua que serve para produzir textos próprios do gênero acadêmico. Por outro lado,
ele intitula seu trabalho com a palavra portuguesa Mito, quando há a palavra tapirapé para designar as narrativas
como maragetã. Isso pode ter ocorrido por causa do modo como estava explicitado o pedido da atividade a ser
realizada ou porque o aluno queria utilizar uma palavra recém aprendida do Português. Em todo o caso, a
inserção desta palavra mostra um deslocamento de uma palavra da língua tapirapé, que traz consigo toda uma
gama de significados socioculturais.
b) A escrita do mito em Português pode acelerar o desaparecimento das partículas ro‟õ e raka‟ẽ. Ao observar
o mito de origem do povo Apyãwa, transcrito por outro aluno do Ensino Médio, constatamos que, na versão em
Tapirapé há a presença abundante destas partículas, tal como verificado no mito Xapakanio Paragetã. Na versão
em Português, embora o aluno as tenha traduzido por ―diz que, dizem que‖, já há uma ocorrência bem menor.
Em outro mito que narra a história do Ka‘o, um ritual muito importante para os Apyãwa e que marca todo o
ciclo cerimonial das chuvas, o professor, na época, aluno do 3º Grau Indígena da UNEMAT, transcreveu
somente a versão portuguesa e há somente uma ocorrência de ―dizem que‖ na introdução ao mito propriamente
dito. No corpo da narrativa elas estão ausentes por completo, se aproximando bastante de um estilo narrativo
próprio do Português.
Estes indícios revelam a situação de assimetria do Tapirapé frente ao Português e podemos visualizar,
com base nestes dados, uma perspectiva de desaparecimento das marcas enunciativas do discurso, fortemente
influenciada pela escrita. As relações estão se dando num continuum que compreende desde as situações em que
os idosos enunciam as narrativas em língua tapirapé (LT) até a escrita das narrativas em língua portuguesa (LP).
No ponto inicial do continuum, observamos que as narrativas míticas quando enunciadas pelas pessoas mais idosas
(+ de 60 anos), apresentam, de maneira intensa, as marcas ro‟õ e raka‟ẽ. A seguir, temos a situação das narrativas
quando transcritas em língua tapirapé pelos alunos do Ensino Médio e por professores acadêmicos. Nessa
situação, as marcas continuam presentes de forma significativa, especialmente se a transcrição é feita com o
auxílio de um gravador, o que permite o registro das marcas da oralidade. Na terceira situação, temos as
narrativas transcritas por alunos do Ensino Médio em Português (traduzidas por diz que, dizem que) e as marcas
aparecem de forma reduzida. No extremo do continuum temos a situação das narrativas transcritas em Português
346
por professores acadêmicos e a presença das marcas é praticamente nula. Destacamos que há uma
simultaneidade de ocorrências destas situações encontradas no período compreendido pela pesquisa (2008-2011).

Gnerre (1998), ao analisar o processo de instauração da escrita entre os Shuar, observou que na medida
em que algumas narrativas tradicionais começaram a ser escritas, a tendência foi de estas formas desaparecerem
na versão escrita: ―o modelo externo da narrativa de línguas européias e sobretudo a mudança de papéis de quem
produz o texto foram fatores que tiveram um reflexo direto sobre a produção escrita‖ (GNERRE,1998, p. 110).
De modo semelhante, os dados que estamos analisando em relação à escrita das narrativas dos Apyãwa estão
apontando esta tendência: quanto maior o nível de escolarização e maior domínio da língua portuguesa oral e
escrita, torna-se menor o uso das marcas enunciativas ro‟õ e raka‟ẽ na escrita, sobretudo quando ele é traduzido
para o Português. Constatamos, entretanto, que a escrita em Tapirapé está mantendo as marcas enunciativas
enquanto determinadas condições forem mantidas, isto é, a presença de contadores das narrativas autorizados
socialmente e o trabalho de escrita consistir de transcrições das gravações feitas com estes contadores. Dessa
maneira, a hierarquia social também é mantida, pois o papel dos idosos e idosas como conhecedores dos mitos
continua sendo respeitado.

A escrita dos mitos em Português, por outro lado, exige domínio da segunda língua em sua modalidade
escrita, o que, praticamente, restringe de modo absoluto a participação dos mais velhos. Assim, a possibilidade de
escrever as narrativas em português está circunscrita aos mais jovens escolarizados que dominam a segunda
língua em suas modalidades oral e escrita. E a tendência é que o estilo das narrativas se aproxime do Português,
com apagamento das partículas discursivas próprias das narrativas enunciadas em Tapirapé e suas possibilidades
de tradução (diz que, disseram que), que se mantêm presentes de maneira razoável nas escritas produzidas pelos
alunos do Ensino Médio e praticamente ausentes nas escritas dos professores acadêmicos.

Nossa hipótese é que isso se deve ao fato de os alunos do Ensino Médio estarem estudando na aldeia,
inseridos no convívio sociocultural, vivenciando as regras próprias da sociedade à qual pertencem. As interações
em língua materna acontecem cotidianamente. E isso transparece em seus textos escritos, isto é, as regras
socioculturais continuam operantes mesmo quando escrevem em língua portuguesa. Entretanto, os estudantes
das licenciaturas em nível superior se deslocam para cidades distantes de suas aldeias para participarem das etapas
modulares dos cursos. A imersão em um ambiente onde acontecem interações quase que só em língua
portuguesa; o estudo intensivo de textos científicos escritos nessa língua; o distanciamento de suas comunidades,
de seus pais e avós; o prestígio conferido à língua da sociedade majoritária podem ser contabilizados como
fatores que estão contribuindo para o apagamento das marcas enunciativas. E são esses jovens que concluem o
curso superior que estão sendo os professores e professoras da Escola.

A presença dos mitos escritos na Escola acarreta ainda outras implicações, pois a função de contar os
mitos socialmente autorizada às pessoas idosas, começa a ser preenchida pelos professores. A narração de um
mito que é um evento social, com hora, lugar e audiência apropriados, passa a acontecer em outro lugar, em
outra hora e se apoiando, sobretudo, na modalidade escrita o que altera substancialmente aspectos da língua
falada como os traços prosódicos. Nas narrativas enunciadas pelos contadores tradicionais, observamos o uso de
347
recursos estilísticos, como mudanças de entoação da voz para falsete quando é um homem que está contando e
precisa pronunciar a fala de uma mulher, imitações onomatopaicas de diversos barulhos referentes aos fatos
narrados, além da presença dos ideofones de uso convencional na língua, alongamentos de vogais para significar
grandes distâncias percorridas ou passagem do tempo. Todos estes recursos que conferem vivacidade ao ato da
narração e que os mais velhos dominam, ficam empalidecidos quando se passa ao ato da leitura de um mito
escrito, como analisa Gnerre:

é claro que estas formas permitem um tipo de expressividade na língua falada que
dificilmente pode ser substituída por outras formas, por inovações lexicais e sintáticas
na língua escrita. Agora, os que escrevem a língua Shuar hoje tentam de toda forma
evitar tais formas, que, com toda probabilidade, soam aos ouvidos deles como algo de
arcaico, de inculto e de associado com as formas tradicionais de comunicação
(GNERRE, 1998, p. 112-113).

Assim, as ricas e variadas formas que aparecem na modalidade oral não conseguem ser expressas
adequadamente na escrita. Lembramos, também, que a leitura pode ser feita individualmente enquanto que a
narração de um mito é sempre um ato coletivo. É claro que não se pode considerar esse fato isoladamente, mas
ele pode contribuir para o rompimento de um dos traços mais característicos do modus vivendi dos Apyãwa, ou
seja, as relações baseadas em fortes laços comunitários, que se mantêm através de eventos de fala coletivos,
como o constituído pelo ato de narração dos mitos.

Considerações Finais

No início deste artigo afirmamos que as pessoas mais idosas e mesmo os jovens temem o desaparecimento das
histórias mitológicas, as xaneypy agỹ paragetã. Esta apreensão em relação à permanência das narrativas é, como os
dados nos mostram, bastante justificada. Caso se firme cada vez mais o caminho das narrativas escritas e lidas, a
arte de narrar oralmente os mitos poderá desaparecer. Um evento que dependia essencialmente da oralidade
poderá se transformar em um livro escrito, no qual, ao que tudo indica, as marcas sintáticas e discursivas,
carregadas de significados históricos e culturais não estarão mais presentes. , Na escrita também se refletem os
conflitos presentes entre as línguas e, caso se privilegie a escrita das narrativas, sobretudo em Português, as
narrativas correm o risco de perder as marcas que articulam passado, presente e futuro e, mais ainda, corre-se o
risco do desaparecimento de um evento de fala coletivo, uma vez que a leitura pode se constituir num ato
individual a ser praticado pelos futuros Apyãwa.

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348
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WIERZBICKA, Anna. Understanding cultures through their key words: English, Russian, Polish, German and
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350
PROCESSOS DE REGULAÇÃO NA APRENDIZAGEM DO PORTUGUÊS
LÍNGUA ESTRANGEIRA
Fernanda Souza e Silva138
Profª Drª Myriam Crestian Chaves da Cunha (Orientadora)139

Resumo: Este trabalho visa a contribuir para a reflexão acerca dos processos formativos, entre os quais
se encontram os processos de regulação da aprendizagem, no campo do Português Língua Estrangeira.
Para pleitear uma vaga no Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G) os candidatos,
oriundos de países com os quais o Brasil mantém acordos, devem obter o Certificado de Proficiência
da Língua Portuguesa (Celpe-Bras). Com objetivo de capacitar estes candidatos são oferecidos, na
Universidade Federal do Pará como em todo o país, cursos de Português Língua Estrangeira (PLE),
voltados exclusivamente para a preparação ao exame. Neste contexto ganham relevância não apenas
intervenções voltadas para o desenvolvimento das competências linguageiras dos estudantes, mas
também aquelas voltadas para o desenvolvimento de competências que permitirão aos alunos refletir
sobre o seu próprio processo de aprendizagem de modo a melhor gerenciá-lo e a desenvolver sua
autonomia nesse estudo intensivo da língua que devem dominar em alguns meses. Sendo assim, o
presente trabalho objetiva apresentar um projeto de pesquisa em andamento, no âmbito do curso de
mestrado, que tem por objetivo contribuir para ampliar, teórica e metodologicamente, os
conhecimentos acerca da avaliação formativa e da autorregulação da aprendizagem no âmbito do
ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras, em particular do PLE.

Palavras-chave: Avaliação formativa; Autorregulação; Ensino/aprendizagem do Português Língua


Estrangeira.

Résumé : Ce travail a pour objectif de contribuer à la réflexion sur les processus formatifs, parmi
lesquels figurent les processus de régulation de l'apprentissage dans le domaine du Portugais Langue
Étrangère. Pour concourir à une place dans le Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-
G) les candidats, venus des pays avec lesquels le Brésil a établi des accords, doivent obtenir le Certificat
de Compétence en Langue Portugaise (Celpe-Bras). Dans le but de préparer ces candidats on offre, à
l'Université Fédérale du Pará comme dans tout le pays, des cours de Portugais Langue Étrangère (PLE),
consacrés exclusivement à la préparation à l'examen. Dans ce contexte, sont pertinentes non seulement
les interventions visant à développer les compétences langagières des élèves, mais aussi celles liées au
développement de compétences qui permettront aux élèves de réfléchir à leur propre processus
d'apprentissage afin de mieux le gérer et de développer leur autonomie dans cette étude intensive de la
langue qu‘ils doivent dominer au bout de quelques mois. Ce travail a donc pour objectif de présenter un
projet de recherche en cours, dans le cadre du master, qui contribue à l'élargissement théorique et
méthodologiquedes connaissances sur l'évaluation formative et l'autorégulation de l'apprentissage dans
l'enseignement/apprentissage des langues étrangères, en particulier du PLE.

Mots-clés : Évaluation formative; Autorégulation; Enseignement/apprentissage du Portugias Langue


Etrangère.

138 Mestranda em Estudos Linguísticos na Universidade Federal do Pará. E-mail: [email protected]


139 Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará. E-mail: [email protected]
351
1. INTRODUÇÃO

Assistimos, durante as últimas décadas, ao aumento exponencial da importância do Brasil


enquanto país líder do cone-sul e membro dos BRICS140. Entre outros, este desenvolvimento despertou
interesse pelos mais diversos motivos como negócios, turismo, trabalho etc. que contribuiu para um
aumento significativo do número de estrangeiros que vivem no Brasil. No âmbito acadêmico, esta
migração é promovida tanto pela internacionalização das Instituições de Ensino Superior (IES)
Brasileiras quanto por programas de políticas públicas como o Programa de Estudantes-Convênio de
Graduação (PEC-G).
Oficializado em 1964, o PEC-G é uma atividade de cooperação bilateral oferecida pelo
Governo brasileiro a países com os quais mantém acordos educacionais, que objetiva

[...] a formação de recursos humanos, possibilitando a cidadãos de países em


desenvolvimento [...] realizarem estudos universitários no Brasil, em nível de
graduação, nas instituições de Ensino Superior brasileiras [...] participantes do PEC-G.
(BRASIL, 2000, p. 11).

A seleção realizada pelo Ministério da Educação e Cultura e pelo Ministério das Relações
Exteriores obedece, entre outros, a duas prioridades: a escolha de estudantes com idade entre 18 e 25 e
a apresentação do Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros (CELPE-Bras)
(RODRIGUES, 2009).
De acordo com o protocolo PEC-G em vigor, os alunos não lusófonos podem realizar o
referido exame após a conclusão de um dos cursos de Português para Estrangeiros (doravante PLE)
oferecidos pelas IES participantes do programa. Entre esses cursos encontra-se o da Universidade
Federal do Pará, que será aqui denominado de Curso PEC-G, no seio do qual será desenvolvido o
nosso estudo.
Atualmente o Projeto PLE proporciona aos estudantes estrangeiros, em sua maioria oriundos
de países africanos, um curso presencial intensivo de Língua Portuguesa. Com aulas de segunda à sexta,
de 14:50 às 18:10, durante os oito meses compreendidos entre a chegada destes estudantes e o
momento em que eles prestam o Exame CELPE-Bras, pretende-se levá-los a atingir, no mínimo, o
nível intermediário do referido exame para que sejam então autorizados a se matricular em um curso de
graduação. Considerando-se que o tempo do qual estes alunos dispõem para alcançarem este nível de

140―BRICS - Agrupamento Brasil-Rússia-Índia-China-África do Sul. A idéia dos BRICS foi formulada pelo economista-
chefe da Goldman Sachs, Jim O´Neil, em estudo de 2001, intitulado ―Building Better Global Economic BRICs‖. [...] o
conceito deu origem a um agrupamento, propriamente dito, incorporado à política externa de Brasil, Rússia, Índia, China [e
África do Sul a partir de 2010]‖. Extraído do site do Itamaraty: http://www.itamaraty.gov.br/temas/mecanismos-inter-
regionais/agrupamento-brics.
352
competência é relativamente curto, ganham relevância intervenções que os ajudem a serem mais
eficientes, participativos e autônomos na aprendizagem da língua.
À luz da abordagem comunicativa de ensino de línguas estrangeiras, que prima pela implicação
ativa do aprendente no processo de aprendizagem, compreendemos que paralelamente à formação de
um falante competente, a formação de um aprendente reflexivo é decisiva para o sucesso das
aprendizagens. Ao propor situações de aprendizagem que permitam construir critérios, estabelecer
objetivos, planificar e avaliar sua aprendizagem, o professor promove momentos de lucidez
metacognitiva decisivos para o desenvolvimento de competências autoavaliativas do aluno. Este, por
sua parte, ao distanciar-se deste processo, objetiva-o podendo agir sobre ele e efetuar modificações caso
necessário, em outras palavras, autorregulando-se.
A respeito da formação de aprendentes reflexivos Holec (1992, p. 46) é categórico ao afirmar
que ―nenhum aprendente pode levar a bom termo a aquisição de língua sem competência de
aprendizagem‖, desta maneira ―a formação do aprendente deve ser parte integrante de um sistema
heteroguiado‖. Sendo assim, e considerando o contexto desta pesquisa, nos fazemos as seguintes
perguntas: como isso pode ser feito/é feito no âmbito do Curso PEC-G? Quais procedimentos
favorecem/podem favorecer esses processos de autoavaliação e autorregulação junto ao público do
Curso PEC-G?
As questões acima justificam que sejam ampliadas as investigações referentes aos processos
formativos no âmbito do ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras, com ênfase nos processos de
regulação da aprendizagem visto que os mesmos envolvem conhecimentos de domínios teóricos
diversos ainda escassos neste domínio.
Pretende-se, neste artigo, apresentar o projeto de mestrado em andamento intitulado
―Processos formativos em práticas de ensino na formação de falantes de PLE‖. Inicialmente serão
expostos, em linhas gerais, os pressupostos teóricos que embasam este estudo os quais sejam: a
avaliação formativa alternativa e os processos de regulação com base nos trabalhos de autores como
Allal (1993), Perrenoud (1998) e Fernandes (2006, 2008). Por fim apresentaremos a metodologia
adotada bem como o estado da arte da nossa pesquisa.

2. AVALIAÇÃO FORMATIVA ALTERNATIVA

A discussão acerca da avaliação formativa não é recente. Desde seu surgimento na década de 60
ela tem sido alvo de inúmeras reformulações que não foram acompanhadas necessariamente de uma
definição clara de seus métodos e instrumentos, e dos papéis a serem desempenhados pelos seus
participantes. Embora suas implicações e benefícios para a melhoria das aprendizagens sejam
353
constantemente discutidos e rediscutidos, o terreno da Avaliação Formativa ainda permanece instável e,
de certa forma, inexplorado, o que dificulta a sua implementação efetiva.
Quando foi proposta na década de 60, opondo-se à modalidade somativa, a avaliação formativa
sofria forte influência do behaviorismo e ainda atribuía ao professor o papel central no processo de
ensino/aprendizagem. Embora todas as decisões fossem tomadas em prol do aluno, todos os
procedimentos desde a coleta de informações até as medidas regulatórias eram tarefas do docente. Com
o advento da psicologia cognitiva que prega, entre outros, a centração no aprendente, este modelo de
avaliação formativa começou a ser questionado.
A partir de então assistimos ao surgimento de uma multiplicidade de variáveis da avaliação
formativa141, todas elas em oposição à avaliação formativa de inspiração behaviorista. No entanto, esta
diversidade de reformulações não foi acompanhada de um referencial, tanto teórico quanto prático,
sólido suficiente para que uma avaliação realmente formativa fosse implementada.
A constatação da necessidade de um quadro teórico que oriente a ação dos professores, e a
conclusão de que as múltiplas variáveis ditas ―formativas‖ da avaliação compartilhavam dos mesmos
propósitos e se inspiravam em concepções cognitivistas da aprendizagem, estão na origem da expressão
―Avalição Formativa Alternativa‖ (AFA) proposta por Fernandes (2006). O autor justifica a uso das
designações ―formativa‖ e ―alternativa‖ pelo fato das mesmas evidenciarem duas características
fundamentais da AFA:

a-) o facto de estarmos a lidar com uma avaliação cuja principal função é a de
melhorar e regular as aprendizagens e o ensino e que, por isso, é necessária para o
desenvolvimento dos sistemas educativos (avaliação formativa); e b-) o facto de
estarmos perante uma avaliação formativa que é alternativa à avaliação formativa de
inspiração behaviourista e a todo o espectro de avaliações mais ou menos
indiferenciadas ditas de intenção ou de vontade formativa (avaliação alternativa)
(FERNANDES, 2006, p. 25-26).

A AFA tem como base os contributos de duas correntes teóricas muito fortes no âmbito dos
estudos acerca da avaliação formativa: a corrente anglo-saxônica e a corrente francófona. Abordando a
avaliação formativa de maneira mais pragmática a tradição anglo-saxônica considera o feedback como
princípio norteador, decisivo para a melhoria das aprendizagens. Nesta perspectiva teórica são
enfatizados os mecanismos de regulação da interação pedagógica, através das quais o professor, a partir
do feedback, poderá orientar os alunos de modo a melhorarem a sua aprendizagem. Na verdade, o que se
observa é que, embora o sujeito aprendente esteja no centro das decisões, o professor ainda é o

141FERNANDES (2008, p. 355) cita algumas dessas propostas de reformulação da avaliação formativa: ―avaliação autêntica
(TELLEZ, 1996; WIGGINS, 1989); avaliação contextualizada (BERLAK, 1992); avaliação formadora (ABRECHT, 1991;
NUNZIATI, 1990); avaliação reguladora (ALLAL, 1986; PERRENOUD, 1998); regulação controlada dos processos de aprendizagem
(PERRENOUD, 1998); e avaliação educativa (GIPPS, 1994; GIPPS; STOBART, 2003)‖ (grifos do autor).
354
protagonista principal deste processo, já que as orientações e medidas de remediação dependem
exclusivamente de suas conclusões e impressões (FERNANDES, 2008).
A tradição francófona, por sua vez, utiliza um campo conceitual teoricamente mais rico e
complexo, mais voltado para o estudo dos processos cognitivos e metacognitivos dos aprendentes e
para a produção de "modelos teóricos de aprendizagem, de suas regulações e de suas implementações
que constituem verdadeiros sistemas de pensamento e ação dos quais os feedbacks são apenas um
elemento" (PERRENOUD, 1998, p.86).
De acordo com esta corrente teórica a avaliação formativa é considerada uma fonte de
regulação tanto de processos de ensino como de aprendizagem, o que faz dos processos regulatórios a
chave da aprendizagem. O cerne da avaliação está na observação metódica e constante do
funcionamento interno dos aprendentes para que a partir da análise das informações coletadas o
professor possa intervir lançando mão de ―uma avaliação formativa que os ajude a regular
autonomamente a aprendizagem‖ (FERNANDES, 2008, p. 352). Essa regulação tem por objetivo, in
fine, a autorregulação.
Ao articular os conhecimentos advindos destas duas correntes, o feedback e a regulação (e em
última instância a autorregulação), com o duplo objetivo de contribuir para a melhoria da aprendizagem
em curso e promover a participação mais ativa do aprendente em todos os estágios que a compõem, a
AFA pressupõe a partilha de reponsabilidade e mudança de papéis entre professores e aprendentes,
como observa Fernandes (2008, p. 357)

[...] a AFA pressupõe uma partilha de responsabilidades em matéria de ensino,


avaliação e aprendizagens e, consequentemente, uma redefinição dos papéis dos
alunos e professores. [...] Obviamente os professores poderão ter um papel que deve
ser preponderante em aspetos tais como seleção de tarefas ou a organização e
distribuição do processo de feedback, enquanto os alunos poderão ter um papel mais
activo no desenvolvimento dos processos que se referem à auto-avaliação e à auto-
regulação do que têm que aprender.

No nosso trabalho vamos enfocar, especificamente, o papel do professor enquanto mediador


entre o aprendente e o objeto a aprender, mais especificamente como as atividades e regulações
implementadas em sala de aula pelo docente influenciam no desenvolvimento das capacidades
metacognitivas de autoavaliação e autorregulação dos aprendentes.
Vale a pena ressaltar que ao lado das informações relativas aos alunos, que são necessárias à
realização deste processo de ―autonomização‖, as crenças docentes referentes a este processo
desempenham um papel fundamental. Elas agem como um filtro que condiciona o modo como o
professor interpreta os progressos e as dificuldades dos aprendentes, influenciando desta maneira
diretamente suas ações em sala de aula (PAIVA; DEL PRETTE, 2009).
355
Espera-se, que através da mediação, o professor assegure, progressivamente, por meio de
atividades de cunho formativo, ―a passagem do aluno da dependência à prática guiada, da prática guiada
à independência na aprendizagem‖ (TARDIF, 1992). Cunha (2008) fala em ―atividades de objetivação‖
para se referir às atividades de cunho formativo que visam ensinar aos alunos a se autoavaliarem,
através de momentos de reflexão e de discussão. Esta autora defende a pertinência da integração deste
tipo de atividades em contexto de aprendizagem de língua estrangeira, visto que a mesma integra no
dispositivo de ensino/aprendizagem atividades metalinguageiras e atividades de meta-aprendizagem.
Observamos que, ao propor uma teoria da avaliação formativa baseada em preceitos
cognitivistas e aglutinando perspectivas teóricas oriundas de tradições teóricas diferentes a AFA, além
de se apresentar como uma avaliação alternativa à avaliação formativa de contornos behavioristas e às
variáveis avaliativas de intenção formativa acaba por ser uma alternativa ao próprio conceito de
avaliação que transcende a ideia de medida, de atribuição de notas e classificação inerentes à avaliação
somativa, mais praticada, tradicionalmente, no sistema educacional brasileiro.

3. PROCESSOS DE REGULAÇÃO

A formação de aprendentes críticos e reflexivos, capazes de atuar na sociedade de maneira a


transformá-la, é um dos, senão o principal, objetivos educacionais da atualidade. Considerando a
perspectiva teórica da avaliação formativa enquanto dispositivo didático voltado para o progresso da
aprendizagem, o professor, embora não ocupe mais a posição de destaque no processo de ensino-
aprendizagem, tem um papel fundamental a desempenhar. De acordo com Perrenoud (1998, p. 114-115),
neste contexto:

[...] o professor é um ator como outro [...] que dispõe de uma competência que os
alunos não têm [...]. Como todo treinador esportivo, o professor pode ‗jogar com‘ os
seus alunos, servindo como destinatário em potencial, de parceiro competente, que se
distingue dos outros porque seu objetivo maior é favorecer a aprendizagem ao invés
de ganhar uma partida ou de exibir sua habilidade. Neste sentido o professor é um
parceiro específico, cuja lógica é otimizar a aprendizagem do outro [...].

É o professor, enquanto ―parceiro competente‖, é responsável por fazer a ponte entre o


complexo mundo dos alunos e o que Allal (1993) chama de fontes potenciais de regulação. Para esta
autora são os processos de regulação que impulsionam o sistema didático, que o fazem funcionar, desta
maneira e com objetivo de ―situar a avaliação formativa numa teoria mais geral das regulações
356
implementadas em situação escolar‖ (ALLAL, 1993, p.82), ela faz uma distinção destes processos e os
classifica em regulações orquestradas142 pelo professor e regulações gerenciadas pelos alunos.
Tendo em vista os objetivos do nosso projeto, nos limitaremos a fazer uma breve exposição
dos processos regulatórios orquestrados pelo professor e de suas implicações para a autorregulação da
aprendizagem dos alunos. Enquanto agente regulador, o professor pode intervir de duas maneiras:
indiretamente, através das características da situação didática em si que contribuem para que o aluno
ajuste a suas ações e representações. Por exemplo, no momento da construção de um diálogo baseado
em um canevas, a discussão entre os participantes a respeito das diversas maneiras pelas quais podem
realizar determinada atividade linguageira resulta em regulações, sem a intervenção direta do professor.
O professor também pode intervir diretamente junto aos seus alunos. Esta regulação direta tem
uma dupla dimensão nas quais o professor pode intervir: a dimensão das atividades e a dimensão da
aprendizagem. De acordo com Perrenoud (1998, p. 87), as primeiras são mais simples e seus efeitos
mais fáceis de serem verificados e nela o trabalho do professor resume-se, grosso modo, a ―organizar,
controlar e orientar a atividade dos alunos‖.
Este tipo de regulação, por incidir sobre a execução de uma tarefa dada, não exige do professor
um acompanhamento individualizado, e as suas orientações, são, em grande maioria, baseadas mais em
princípios pedagógicos gerais. No entanto, este tipo de intervenção é positivo no que diz respeito ao
estabelecimento de rotinas de regulação global. A integração deste tipo de regulação permite que, pouco
a pouco, o aprendente internalize as "regras da vida de classe" diminuindo e a necessidade da
intervenção/orientação do professor, contribuindo assim indiretamente para a autonomia do
aprendente (ALLAL, 1993).
Por outro lado, quando a intervenção incide sobre os processos de aprendizagem enfocando
mais os processos internos dos alunos do que as ações dos professores, estamos diante de uma
regulação mais complexa e individualizada, visto que a mesma envolve o desenvolvimento de
competências de domínio cognitivo e metacognitivo. As informações fornecidas pelo professor não
visam unicamente reorientar uma atividade pontual, mas induzi-lo a refletir a respeito de seus
procedimentos, através de perguntas, sugestões etc., e a objetivar os obstáculos encontrados de modo a
procurar estratégias eficazes para superá-los.
Considerando-se que a concepção de aprendizagem subjacente a esta proposta de intervenção
concebe a aprendizagem como uma construção individual do sujeito, Perrenoud (1998. p. 90) defende
que os propósitos das ações implementadas pelo professor sejam explicitados aos alunos, mas alerta
que somente a comunicação não é suficiente:

142Allal (1993, p. 82) justifica o uso do termo ―orquestrar‖ pelo fato do mesmo evidenciar ―o fato que o professor age sobre
as condições de aprendizagem em sala: ele guia, orienta o trabalho dos alunos, mas ele não pode jamais garantir que sua ação
educativa produza os efeitos de regulação previstos nos processos de aprendizagem dos alunos‖.
357
Dizer, explicar, mostrar não é suficiente, deve-se levar em conta as representações
adquiridas e o funcionamento cognitivo do sujeito e acompanhá-lo num trabalho
cognitivo, ao longo de um diálogo que, motivado por uma atividade, se distancia da
mesma para se concentrar no conhecimento e na aprendizagem.

Uma dos grandes obstáculos para os professores é fazer a distinção entre essas duas dimensões
regulativas e como, e em que grau, uma influencia a outra. Vale a pena ressaltar que todos esses
processos partilham de um fim comum: integrar os mecanismos de regulação às regulações internas do
sujeito, em outras palavras, favorecer a autorregulação da aprendizagem.
Para fins deste trabalho, partilhamos dos mesmos propósitos de Allal (1993, p. 86):

O que nos interessa [...] não é verificar se o aluno regula sua atividade (ele o faz de
qualquer maneira, de um jeito ou de outro), mas determinar como promover situações
didáticas, intervenções do professor, interações entre pares, que favoreçam uma
autorregulação geradora de aprendizagem em cada aluno, e de preferencia de
aprendizagens produtivas e valorizadas pela sociedade.

Após exposição sucinta do nosso referencial teórico passaremos à descrição do nosso projeto
de pesquisa, bem como a descrição da metodologia adotada e os próximos passos da nossa pesquisa.

4. O PROJETO

O projeto de mestrado em andamento intitulado ―Processos formativos em práticas de ensino


na formação de falantes de PLE‖ surgiu a partir da constatação de que o referencial teórico referente ao
PLE, notadamente no que diz respeito à avaliação formativa, ainda é escasso ou pouco divulgado e da
necessidade do preenchimento de lacunas referentes à prática pedagógica no ensino desta língua.
Alicerçado no referencial teórico acima apresentado, o presente projeto tem como objetivo geral de
ampliar, teórica e metodologicamente, os conhecimentos acerca dos processos formativos, entre os
quais se encontram os processos de regulação da aprendizagem, no âmbito do ensino/aprendizagem de
línguas estrangeiras.
Para tal foram estabelecidos os seguintes objetivos específicos: a) apresentar os diferentes
enfoques teóricos desenvolvidos sobre a avaliação formativa e a autorregulação da aprendizagem,
enfatizando a sua relevância ao ensino/aprendizagem de LE; b) conhecer as concepções dos
professores de língua no que diz respeito às situações de sala de aula que favorizam o desenvolvimento
de capacidades autoavaliativas e autorregulativas dos aprendentes; c) verificar a existência de fatores que
constrangem ou condicionam as práticas pedagógicas que influenciam a autorregulação; d) verificar se
os professores de língua criam condições favoráveis ao desenvolvimento das capacidades
358
autorregulativas; e) propor modos de intervenção que favoreçam o desenvolvimento da capacidades
autorregulativas dos aprendentes.
A metodologia de pesquisa adotada compreendeu, inicialmente, uma pesquisa bibliográfica,
compreendendo leituras na área de avaliação em Ensino/Aprendizagem de Línguas Estrangeiras, na
área do Português Língua Estrangeira, no que diz respeito, em particular, à avaliação formativa, numa
perspectiva interacional, e aos processos de autorregulação e autonomização dos aprendentes.
No presente momento está sendo realizada a pesquisa de campo, através de um estudo de casos
junto aos docentes143 do Projeto Português Língua Estrangeira. Levando-se em conta que, para
apreender as situações relevantes à pesquisa em suas múltiplas dimensões, o estudo de caso deve valer-
se de uma variedade de fontes de informação recolhidos em vários momentos da pesquisa
(MAFFEZZOLLI; BOEHLS, 2008), estamos recorrendo aos seguintes procedimentos de coleta de
dados: observações de classe, entrevistas semiestruturadas e questionários juntos aos docentes e alunos
de PLE, narrativas dos professores e diários de aprendizagem dos alunos.
A análise dos dados coletados até o presente momento, mediante observações de aula referentes
às regulações promovidas pelo professor em aula de PLE, indicam que as regulações incidem
exclusivamente sobre as atividades linguageiras e que os momentos dedicados à reflexão, a atividades de
objetivação da aprendizagem, são escassos. Os próximos passos da pesquisa compreenderão a
realização de entrevistas junto tanto aos professores quanto aos alunos do Projeto PLE, visando
verificar e compreender os fatores que incitam o desenvolvimento dos processos de avaliação formativa
ou, ao contrário, o dificultam, para finalmente propor intervenções suscetíveis de desenvolver as
capacidades metacognitivas de autoavaliação e autorregulação dos alunos de PLE.
Para os fins desta pesquisa entendemos como fundamental o estímulo de práticas de avaliação
formativa e de efetiva regulação da aprendizagem, enquanto processo de observação e recolha de
informações objetivando a aquisição de conhecimento contínuo, ativo, construtivo e estratégico que
possibilita ao aprendente participar da construção de seu conhecimento, no sentido de orientar a sua
aprendizagem, controlar a sua motivação e gerenciar suas emoções.

REFERENCIAS

ALLAL, Linda. Régulations métacognitives : Quelle place pour l‘élève dans l‘évaluation formative ? In :
ALLAL, Linda; BAIN, Daniel; PERRENOUD, Philippe (org.). Évaluation formative et didactique du
français. Paris: Delachaux & Niestlé, 1993. p. 81-98.
BRASIL. Ministério da Educação. Manual do Programa de Estudantes-Convênio de Graduação. Brasília, 2000.
Disponível em:< http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/CelpeBras/manualpec-g.pdf > Acesso
em: 14/04/2013.

143O atual quadro de docentes do Projeto PLE conta com nove professores estudantes da graduação de Letras (cursando
habilitação em português, inglês e francês), sendo oito voluntários e um bolsista, que se revezam em duplas durante a
semana.
359
CUNHA, Myriam Crestian. Avaliação formativa, atividades de objetivação e aprendizagem de línguas.
In: MAGALHÃES, José Sueli de; TRAVAGLIA, Luiz Carlos (org.). Múltiplas perspectivas em
Lingüística. Uberlândia: EDUFU, 2008. p. 2336-2341. Disponível em :
<http://www.filologia.org.br/ileel/artigos/artigo_047.pdf>. Acesso em: 03/06/2012.
FERNANDES, Domingos. Para uma teoria da avaliação formativa. Revista Portuguesa de Educação, nº19,
p. 21-50, 2006.
________. Para uma teoria da avaliação no domínio das aprendizagens. Estudos em avaliação educacional.
São Paulo, nº 41, vol. 19, p.347-372, set/dez 2008.
MAFFEZZOLLI, Biane Cristine; BOEHLS, Carlos Gabriel Eggerts. Uma reflexão sobre o estudo de
caso como método de pesquisa. Revista da FAE, vol.11, nº1, p.95-110, Jan/Jul 2008.
PAIVA, Mirella Lopez Martini Fernandes; DEL PRETTE, Zilda Aparecida Pereira. Crenças docentes e
implicações para o processo de ensino-aprendizagem. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia
Escolar e Educacional – ABRAPEE, nº 1, vol. 13, p. 75-85, Jan/Jun 2009.
PERRENOUD, Philippe. De l‟évaluation formative à la régulation maîtrise des processus d‟apprentissage : vers un
élargissement du champ conceptuel. Assessment in Education, nº 1, Vol. 5, p. 85-102, 1998. Disponível
em: < http://www.unige.ch/fapse/SSE/teachers/perrenoud/ php_main/php_1997/1997_11.html >.
Acesso em: 29/03/2013.
RODRIGUES, Veridiana Sefrin Novaes. Valores pessoais do estudante estrangeiro no Brasil: um estudo com
alunos do PEC-G. Dissertação (Mestrado em Administração). Faculdade de Gestão e Negócios,
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2009.
TARDIF, Jacques. Pour un enseignement stratégique. Québec: Logiques, 1992.
360
ANÁLISE DISCURSIVA DAS PROPAGANDAS ELEITORAIS DO
PLEBISCITO PARA A DIVISÃO DO PARÁ: PRIMEIROS EXERCÍCIOS
Flávia Marinho Lisbôa144

Hildete Pereira dos Anjos (Orientadora)145

Resumo: À luz da análise do discurso da linha francesa, este artigo reflete sobre as estratégias de
legitimação presente nas propagandas eleitorais (veiculadas através do rádio) do plebiscito para consulta
sobre divisão do Estado do Pará para a criação do Estado do Carajás e/ou do Estado do Tapajós, em
dezembro de 2011. A análise discursiva foca as marcas ideológicas presentes nas peças publicitárias
radiofônicas, de que cada frente política, pró e contra Carajás e Tapajós, lança mão para alcançar seus
objetivos. Para fazer esta discussão, recorre principalmente ao conceito de campo, em Bourdieu, e de
ideologia, em Eagleton, utilizando deste último as elaborações acerca das estratégias de legitimação de
um discurso. Do ponto de vista metodológico, o trabalho utiliza a construção do dispositivo analítico
proposto por Orlandi, amparada em Pêcheux, o qual propõe a noção de esquecimento discursivo e, a
partir daí, busca evidenciar o dito, o não dito e o dito de outro modo. Esse trabalho de evidenciar o
modo de funcionamento de um discurso permite apontar estratégias de legitimação. Tais estratégias
naturalizam e universalizam a noção de território e o pertencimento a ele, obscurecem as disputas
políticas e econômicas e homogeneizam a noção de cultura.

Palavras-chave: Análise do Discurso, Propaganda Eleitoral, Ideologia, Dinâmicas Territoriais,


Amazônia.

Abstract: From the point of view of the analysis of the French Discourse Analysis line (DA) , this
article reflects on the strategies of legitimation from advertisements (broadcast via radio) used in the
election consultation on the referendum to divide the state of Pará resulting on to the creation of the
State of Carajás and / or State Tapajós, in December 2011. The analysis focuses on the discursive
ideological brands present in radio advertising, that each political front, pro and con Carajás and
Tapajós, uses to achieve its goals. To make this discussion refers primarily to the concept of field,
Bourdieu, and ideology, in Eagleton, using the latter elaborations on the strategies of legitimation
discourse. From the methodological point of view, the paper uses the construction of the analytical
device proposed by Orlandi, supported by Pecheux, which proposes the notion of forgetting discursive
and, from there, seeking evidence said, the unsaid and the said otherwise. This work demonstrate the
mode of operation of a discourse of legitimation strategies enables point. Such strategies naturalize and
universalize the notion of territory and belonging to it, obscuring the political and economic disputes
and homogenize the notion of culture.

Keywords:. Discourse Analysis, Electoral Propaganda, Ideology, Territorial Dynamics, Amazônia.

1. Introdução

Este trabalho tem como intuito analisar as marcas que apontam o empenho de legitimação
deixadas nos discursos das propagandas146 eleitorais (veiculadas através do rádio) do plebiscito para

144 Mestranda no Programa de Pós-graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia (PDTSA), do Campus de
Marabá, Universidade Federal do Pará (UFPA), inserida na linha ―Produção discursiva e dinâmicas sócio-territoriais na
Amazônia‖. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].
145 Professora do Programa de Pós-graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia (PDTSA) Email:

[email protected].
361
consulta sobre divisão do Estado do Pará para a criação do Estado do Carajás e/ou do Estado do
Tapajós, em dezembro de 2011. Para tal reflexão, adotamos o conceito de campo de Bourdieu (2011),
definido por ele como um ―sistema de relações constitutivo da classe de fatos (reais ou possíveis) de
que [o objeto] faz parte sócio-logicamente‖ (p. 183). Pensamos que o uso deste conceito permite
visualizar com mais clareza o embate ideológico, tendo o discurso como arena de disputa, pois é nele
que se materializam os enfrentamentos simbólicos do contexto social, entre os agentes, grupos e classes
envolvidos na campanha do plebiscito, campos esses identificados neste estudo como o campo político
e o campo da comunicação.
Eagleton (1997), o outro autor de base para este trabalho, contribui com o estudo que realiza
acerca das estratégias de legitimação de uma ideologia, as quais buscamos identificar nas propagandas147.
Com esses autores, entre outros, analisamos as peças publicitárias tendo como dispositivo de análise as
relações entre o dito, não dito e o que pode ser dito de outra forma, conforme proposto por Orlandi
(2012).
Assim, na análise das propagandas delimitamos nossa busca sobre as estratégias de legitimação,
vendo-as como discursos onde operam sentidos, sentidos esses que podem ser identificados por
marcas, indícios que se mostram no texto e que são considerados práticas porque são construídos para
intervir no real. Dito de outro modo, pensamos que os sentidos das propagandas são produtos das
práticas discursivas dos comitês para alcançar seus objetivos em torno do domínio sobre o território
paraense.
Nesse processo de construção dos sentidos, o interdiscurso148 tem papel fundamental, pois é ele
que concede às propagandas o poder de mobilizar a memória discursiva dos eleitores para alcançar o
sentido para o qual elas foram construídas. Nessa análise discursiva buscamos não só a identificação das
estratégias linguísticas, mas também o contexto social que envolve esses discursos, já que o meio sócio-
histórico e cultural é usado para compor a argumentação das peças no embate entre as duas frentes
políticas envolvidas no plebiscito, os comitês Pró e Contra Carajás e Tapajós149.

146
Tratamos aqui da propaganda plebiscitária veiculada no horário gratuito do rádio. A normatização das veiculações
foi feita pelo Tribunal Superior Eleitoral, por meio da Resolução nº 23.354, que definiu a exibição da propaganda
gratuita nos meios de comunicação, entre 11.11.2011 a 07.12.2011. No rádio a exibição das propagandas
plebiscitárias foi feita em blocos das 7h às 7h10 e das 12h às 12h10, e foram veiculadas somente às segundas, terças,
quartas e sextas-feiras e aos sábados. O plebiscito para consulta sobre divisão do Estado do Pará para a criação do
Estado do Carajás e/ou do Estado do Tapajós, realizado em dezembro de 2011, foi convocado por meio dos Decretos
Legislativos nº 136/2011 e nº 137/2011.
147
. Daqui por diante, as favoráveis à divisão são denominadas ―propagandas do SIM‖ e as contrárias, ―Propaganda do
Não‖.
148
“O interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos. Para que
minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido” (ORLANDI, 2012, p. 33)
149
Daqui por diante podemos usar simplesmente “Sim”, para o comitê Pró Carajás e Tapajós, ou “Não”, para o comitê
Contra Carajás e Tapajós.
362
2. Campos envolvidos na disputa territorial

Antes de entrar na discussão acerca dos campos envolvidos na disputa territorial, cumpre
estabelecer o que estamos definindo por território. Para tanto, trazemos Haesbart (2009, p. 40), que nos
apresenta três concepções de território, conforme abaixo:

- Política (referida às relações espaço-poder em geral) ou jurídico-política (relativa


também à todas as relações espaço-poder institucionalizadas): a mais difundida, onde
o território é visto como um espaço delimitado e controlado, através do qual se exerce
um determinado poder, na maioria das vezes – mas não exclusivamente – relacionado
ao poder político do Estado;
- Cultural (muitas vezes culturalista) ou simbólico-cultural: prioriza a dimensão
simbólica e mais subjetiva em que o território é visto, sobretudo, como produto da
apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido;
- Econômica (muitas vezes economicista): menos difundida, enfatiza a dimensão
espacial das relações econômicas, o território como fonte de recursos e/ou
incorporado no embate entre classes sociais e na relação capital-trabalho, como
produto da divisão ‗territorial‘ do trabalho, por exemplo.

Neste trabalho, território significa principalmente esse espaço delimitado e controlado, espaço
de relações econômicas e de disputa nesse campo; mas, ao recorrer à subjetividade do eleitor, mobiliza
sentidos referentes ao espaço de apropriação cultural. Utilizamos aqui a noção de território como a
propõem Santos et al (2000) entendendo-o como território usado, que ―é tanto o resultado do processo
histórico quanto a base material e social das novas ações humanas. Tal ponto de vista permite uma
consideração abrangente da totalidade das causas e dos efeitos do processo socioterritoral.‖ (apud
Girardi, 2012). Entender assim o território permite que nos debrucemos sobre uma das dinâmicas de
seu processo de constituição: a dinâmica discursiva, cujas estratégias evidenciam disputas de poder. ―É
consensual que o território é indissociável da noção de poder e que é limitante concebê-lo unicamente
como os limites político-administrativos dos países‖ (GIRARDI, 2012).
Estabelecida a noção de território, cabe caracterizar os dois campos envolvidos, a nosso ver, no
embate simbólico por sua disputa na região. Tais campos, o político e o da comunicação, se imbricam
como sistemas de relações para estabelecer a classe de fatos da qual nosso objeto de estudo, as
propagandas eleitorais do plebiscito de 2011, fazem parte.
No campo de forças políticas, enfrentam-se os empresários, entidades como sindicatos e
associações rurais e de comércio e o corpo de agentes especializados (as figuras políticas que
representam o Sim e o Não). As posições que esses grupos ocupam configuram um campo de batalha
ideológica, expressão do processo prevalecente de dominação, tendo sempre como quadro de
referência o campo de forças ideológicas no interior da qual se defrontam esses representantes dos
grupos dominantes, dentro do campo político.
363
Nessa arena de disputa, o eleitor é o foco do poder político regional (engajado na campanha
pela divisão do estado) do poder político dominante no estado do Pará (contrário a essa divisão), que
configuram as duas frentes políticas que pleiteiam o território. O voto é o objeto de desejo dos dois
grupos políticos, configurando-se como um capital simbólico pelo qual o eleitor se torna capaz de
definir, o plebiscito.
Vemos a constituição do campo da comunicação a partir da necessidade que tem o campo
político de convencer o eleitor. O capital da comunicação é a expertise para a produção das propagandas,
mobilizando uma força ideológica que os políticos não possuem per se; para apropriar-se dela, será
necessário utilizar o capital econômico. Para tanto, as peças eleitorais foram encomendadas a agências
de publicidade para serem veiculadas nos meios de comunicação. Com isto, elencamos como agentes
do campo da comunicação os próprios políticos que encomendam as peças e as agências de
publicidade, com a tarefa de uma produção discursiva que seduza os eleitores.
Os políticos têm um papel de agente no campo da comunicação porque afirmamos ter os
comitês a função (no sentido foucaultiano) de autores das propagandas eleitorais, considerando que são
eles, os comitês, que controlaram, normatizaram as significações e as distribuições das peças
publicitárias construídas pelas agências de publicidade. ―O autor é então considerado como princípio de
agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como fulcro de sua coerência‖
(ORLANDI, 2012, p. 75).

3. Estratégias de legitimação e produção discursiva

Desta forma, para a análise discursiva propriamente dita, temos como ponto de partida que as
propagandas eleitorais são produtos feitos pela mídia para atender aos objetivos políticos e que o
trabalho de construção do sentido no discurso das propagandas foram guiadas pelos interesses das
hegemonias, com o intuito de naturalizar a ideologia do campo político, reforçando o fato de que, neste
contexto, não há sentido que não esteja determinado por um sistema de dominação. Assim
apresentamos a imbricação entre os campos da comunicação e da política no sentido de buscar um
objetivo pontual: a divisão do estado do Pará para a criação do Estado de Carajás. Por meio dessa fusão
entre os dois campos, a mídia funciona como ferramenta para que as hegemonias políticas e
empresariais alcancem o eleitor, para aderir (no caso do Sim) ou negar (no caso do Não) a ideia de
criação do Carajás e Tapajós. As estratégias ideológicas se organizam nesse sentido. Na visão de
Eagleton (1997, p.19), ―o processo de legitimação pareceria envolver pelo menos seis estratégias
diferentes‖:

Um poder dominante pode legitimar-se promovendo crenças e valores compatíveis com ele;
naturalizando e universalizando tais crenças de modo a torná-las óbvias e aparentemente
364
inevitáveis; denegrindo idéias que possam desafiá-lo; excluindo formas rivais de pensamento,
mediante talvez alguma lógica não declarada mas sistemática; e obscurecendo a realidade social
de modo a favorecê-lo. Tal ―mistificação‖, como é comumente conhecida, com freqüência
assume forma de camuflagem ou repressão dos conflitos sociais, da qual se origina o conceito
de ideologia como uma resolução imaginária de contradições reais. Em qualquer formação
ideológica genuína, todas as seis estratégias podem estabelecer entre si interações complexas.

A partir da descrição dessas seis estratégias de legitimação é que norteamos a análise discursiva
das propagandas, no sentido de encontrar as marcas que contribuam para legitimar a ideologia, do Sim
e do Não, examinando as ideologias que dirigem as formações discursivas das peças publicitárias.
Alinhando a discussão às bases da análise do discurso francesa150, tomamos Orlandi (2012) para
pensar no discurso, na perspectiva ideológica como uma produção que parte de um lugar sócio-
histórico e cultural, logo, ideológico. A AD tem uma definição discursiva de ideologia: ―não a tratamos
como visão de mundo, nem como ocultamento da realidade, mas como mecanismo estruturante do
processo de significação (...) a ideologia se liga inextricavelmente à interpretação enquanto fato
fundamental que atesta a relação da história com a língua, na medida em que esta significa‖
(ORLANDI, 2012, p. 96).
Com isso, podemos afirmar que o efeito ideológico, elementar na constituição do sujeito, é o
que vai dar sentidos diferentes para quem fala e tantos outros para quem ouve, não tendo controle, o
locutor, sobre esses efeitos em seus interlocutores. Assim, como não há sentido sem interpretação
(reconhecimento), de quem produz o discurso e também do interlocutor, haja vista que mesmo o
trabalho de produzir um discurso exige interpretação, esta é condicionada à ideologia. E a ideologia vai
deixar suas marcas no discurso produzido, evidenciando o sujeito enquanto posição/relação com suas
condições materiais de existência. E é o funcionamento dessas marcas no discurso que nos interessa.
Em outras palavras, podemos pensar que a ideologia discursiva parte de um sujeito inserido em uma
formação discursiva151 (ideológica) e a encarna nos discursos que circulam na sociedade. E digo
―encarna‖ porque o discurso é a forma material das condições ideológicas do sujeito. Se Marx defendia
que as condições concretas é que determinam a consciência do homem, o discurso é uma das
produções que materializam essas condições.
Com esta perspectiva materialista do discurso, a AD vai dizer que a memória discursiva é que
nos permite dizer de determinada forma, remetendo a uma história de sentidos sobre a qual não temos
controle. E essa memória discursiva é o que vai dar sentido ao discurso, remetendo ao que Orlandi
(2012, p. 35) chama, com Pechêux, de esquecimento número dois, que é da ordem do ideológico, sendo
o que dá ao sujeito a ilusão de ser a origem do que diz. Orlandi (p. 36) destaca que esta ilusão é
necessária para que a linguagem funcione. A autora utiliza o dito, não dito e dito de outra forma para

150
A partir de agora chamada apenas de AD.
151
Entendemos por formação discursiva a conjuntura sócio-histórica (ideológica) que determina o que pode e deve
ser dito (ORLANDI, p. 43, 2012)
365
mostrar que esse esquecimento, ou interdiscurso, é o que permite o funcionamento do discurso,
construindo o sentido em formações discursivas que são norteadas pela ideologia.
Da mesma forma, construímos nosso dispositivo de análise com o dito, não-dito e o que
poderia ser dito de outra forma para analisar as propagandas, tentando alcançar as formações
discursivas que dão sentido ao discurso e que nos permite alcançar as formações ideológicas, onde
podemos traçar a relação do discurso (sujeito) com o contexto sócio-histórico e cultural.

3. Análise das propagandas: dois casos considerados

Para exemplificar o que foi discutido até aqui, trazemos dois excertos das propagandas
radiofônicas152 transcritas abaixo, uma do Não e outra do Sim, envolvendo a noção de perdas e ganhos
com a divisão territorial. Para compreendê-las, estabelecemos como dispositivo de análise observar a
propaganda no nível do texto (o dito); depois passar à identificação das formações discursivas (não-
dito), identificando os processos discursivos responsáveis pelos efeitos de sentidos; e, por fim,
relacionar as formações discursivas com as formações ideológicas, ou seja, os autores (comitês) com sua
exterioridade, já que à AD não interessa a formatação linguística do texto, ―mas como o texto organiza
a relação da linguagem com a história no trabalho significante do sujeito em sua relação com o mundo‖
(ORLANDI, 2012, p. 69).

Análise de um excerto da propaganda do Não:

―Ninguém quer ser diminuído. Ninguém quer ficar mais pobre. Ninguém quer abrir mão do que é seu.
Ninguém quer se separar de quem gosta. Ninguém quer perder o que conquistou‖

O que é dito no texto é que diminuição, pobreza, perdas e separação são questões a que
ninguém quer se vincular. Não dito, mas fica pressuposto, que existe a ameaça de isso tudo acontecer.
O texto pressupõe um endereçamento, presumindo a presença de um alguém que quer deixar o
―ninguém‖ (a população paraense) mais pobre. No dito de outro modo (subtendido), a propaganda
mobiliza no eleitor crenças com fortes significações, como diminuição, pobreza e perdas econômicas e
emotivas. Quando é dito que vai ser perdido ―o que é seu‖ e ―o que conquistou‖, o discurso tenta
mobilizar um sentimento de pertencimento sobre o território e tudo o que ele significa cultural e
economicamente. Mais que isso, que a divisão significa perder tudo isso. Na frase ―ninguém quer

152
Material fornecido pelo Sistema Norte de Comunicação, empresa detentora das rádios Clube e FM 91, com sede
em Marabá.
366
perder o que conquistou‖, como o termo ―conquista‖ pressupõe luta/disputa, o uso de ―conquistou‖
mobiliza o sentimento de que, com a divisão territorial, o sacrifício dos conquistadores (e isso remete à
memória das conquistas territoriais, à chegada do branco colonizador) foi em vão. O uso do pronome
―ninguém‖, ao mesmo tempo em que remete à totalidade, individualiza as consequências da separação,
passando ao eleitor que essas consequências atingirão a cada um, de forma direta. Além disso, deixa o
texto menos impessoal e torna o discurso mais próximo dos usos do cotidiano, mais intimista, numa
tentativa de ser simpatizada (ser aceita) pelo leitor.
Ainda explorando o campo do ―não dito‖, na frase ―ninguém quer ser diminuído‖, não é dito
que o Pará é grande para não fortalecer o discurso do outro. O não dito fortalece o discurso de que
todos querem crescer (discurso do Sim: separar para crescer). Na frase ―ninguém quer abrir mão do que
é seu‖, não é dito que os eleitores da região separatista também têm direito a essa propriedade. Está
presente aí o discurso do colonizador, pois não considera a propriedade dos separatistas. Na frase,
―ninguém quer se separar de quem gosta‖, não é dito que essa separação territorial não influencia no
contato entre as pessoas.
Na tentativa de dar uma reviravolta no sentido (dizendo de outro modo), caso ―Ninguém quer
ser mais pobre‖ fosse substituído por ―Todos querem ser mais ricos‖, o efeito seria o contrário do
desejado; e se as afirmativas fossem estruturadas em interrogativas, o discurso abriria a possibilidade de
o eleitor pensar e chegar a considerar o contrário do que a propaganda deseja alcançar. Por isso, o
discurso na afirmativa, reforçada pelo pronome ―Ninguém‖, impõe ao interlocutor uma ideia e não
aceita, no modo mesmo de fazer o discurso, que o interlocutor dê uma resposta contrária ao que está se
afirmando.
Resumidamente, o excerto analisado desperta, no ouvinte, o sentimento de perda, caso o Pará
fosse divido, tanto no patamar econômico como no cultural. Os fatores econômicos são por onde o
poder estabelece maiores deformações em defesa do progresso (para poucos) e o papel da cultura nesse
contexto, como sistema simbólico e instrumento de comunicação e conhecimento, é o de formar a
opinião do povo (MICELI, 2011, p. VIII).

Análise de um excerto da propaganda do Sim:

―Uma das principais discussões desse plebiscito é a seguinte: o que é mais importante? O tamanho do
Pará ou o tamanho do sofrimento do povo do Pará? Para o Não o mais importante é o tamanho do
Pará, para o Sim o mais importante é o tamanho do sofrimento do povo do Pará E pra você? O que é
mais importante? Quem ama cuida, protege, ajuda‖
367
Está dito neste texto que há duas questões a serem assimiladas pelo eleitor, uma relacionada ao
tamanho territorial do Pará e a outra ao sofrimento do povo do Pará. O texto diz que o Não se importa
mais com o tamanho e o Sim com o sofrimento. O não dito neste texto e que fortalece o sentido feito
pelo dito é que existe um povo sofredor em qualquer parte do Pará. O pressuposto evidencia que o Sim
tem uma causa mais nobre que a do Não: diminuir o sofrimento do povo (da parte do povo que lhe
interessa atingir com a propaganda). O texto transfere a responsabilidade para o eleitor de mudar a
realidade social das pessoas. O uso da frase ―Quem ama cuida, protege, ajuda‖ no fim da propaganda
endereça o discurso para dois tipos de eleitores, os que não querem a separação e os que querem.
―Cuida‖ e ―protege‖ está para quem mora na região que quer se separar e por isso deve votar no Sim
para cuidar e proteger o seu território, enquanto que ―ajuda‖ pode ser uma tentativa de mobilizar o
eleitor do Não que pode ajudar com a diminuição do sofrimento do povo votando no Sim.
Na propaganda do ―Sim‖, o sentido que tenta mobilizar é o de resumir a questão do plebiscito
entre se importar com o tamanho do Pará ou do sofrimento do paraense e nessa questão bipolar a
propaganda tenta incomodar o ouvinte para não se filiar a proposta do Não, que na construção da
propaganda mostra não estar preocupada com o sofrimento do povo, por isso não é tão nobre quanto
à preocupação do Sim..
Pensando no dito de outra forma, partimos das duas palavras em torno das quais o discurso da
propaganda é construído: ―tamanho‖ e ―sofrimento‖. O discurso sempre presente nas propagandas do
Não é o de que o Pará ficaria pequeno com a divisão. Mas o excerto em análise não utiliza a palavra
―pequeno‖ e fala em tamanho pois trazer ―pequeno‖ para o discurso mobilizaria/fortaleceria o
sentimento de perda no eleitor residente na região que corresponde ao Pará no projeto de divisão.
Outra forma de dizer na propaganda é que o Sim está preocupado com a ―felicidade‖ do povo, porém
o termo não mobilizaria a piedade e compaixão que ―sofrimento‖ causa. É com essa problemática
emocional que o discurso da propaganda do Sim se fundamenta, aproximando-se das expectativas e
sentimentos do povo sem educação, saúde e infraestrutura, entre outras mazelas, aproximação esta que
facilita a adesão da proposta defendida.

4 Formações Ideológicas na propaganda

Tanto no caso do ―Não‖ quanto no do ―Sim‖, os sujeitos envolvidas nesse jogo discursivo das
campanhas, os argumentos usados para convencimento e a forma como foram apresentados e a
realidade socioeconômica vivenciadas pelos eleitores são os alicerces que estruturam as propagandas,
consideradas estruturantes, por almejarem a construção de uma nova realidade ou manutenção de uma
já existente.
368
A partir disso, conseguimos identificar na propaganda plebiscitária as estratégias elencadas por
Eagleton para a legitimação de uma ideologia dominante. Os excertos analisados argumentaram,
basicamente, no caso do Sim, que a população cansada da falta de políticas públicas ao longo de sua
história queria a separação da atual organização geopolítica, tendo a criação dos Estados de Carajás e
Tapajós como uma solução lógica e automática para que as políticas públicas se tornassem mais
aplicáveis em benefício da população das duas regiões. A propaganda do Não, por outro lado, é
elaborada para contrapor a ideia de divisão, mostrando os malefícios econômicos que essa divisão
implicaria, apregoando também uma cultura/identidade paraense homogênea e que a divisão
comprometeria essa construção.
Esse quadro vai de encontro com uma das estratégias levantadas por Eagleton, que é o de
promover crenças e valores e naturalizando-os. Com a deficiência de assistência pública às regiões que
correspondem à Carajás e à Tapajós, os grupos hegemônicos começaram a inculcar a separação do
Estado do Pará na população; isso também exemplifica o que diz Elster (apud EAGLETON, 1997),
quando ressalta que as ideologias dominantes se tornam atraentes aos dominados porque elas são
formadas a partir da captação de esperanças e carências genuínas, necessidades e desejos que as pessoas
já têm, que são moldadas e trazidas novamente aos seus sujeitos com uma nova roupagem, bem mais
atraentes e a serviço da manutenção da dominação.
Para isso, lembrando as estratégias de Eagleton, as hegemonias naturalizam e universalizam a
ideologia dominante (que é a criação do Carajás, no caso do Sim, e não aceitação da divisão, no caso no
Não), mistificando e obscurecendo a realidade social de modo a favorecê-la, já que não seria tão eficaz
e até mesmo aceita caso fosse apresentada sem a roupagem que a vela, para viabilizar a aceitação pelos
dominados.

Em resumo, para terem êxito as ideologias devem ser mais do que ilusões impostas e,
a despeito de todas as suas inconsistências, devem comunicar o bastante para não ser
peremptoriamente rejeitada. Podem ser, por exemplo, muito verdadeiras no que
declaram mas falsas naquilo que negam (EAGLETON, 1997, pág. 27).

É pensando desta forma que acontece o uso das mazelas sociais para compor a elaboração
ideológica do projeto separatista e é também o que dá a credibilidade necessária para ser aceito pelos
eleitores como a solução para todos os problemas sociais. Por outro lado, a campanha do Não tratou a
divisão como mais que a perda de território: a perda da parte rica do Estado. Essa perda é apresentada
como uma perda coletiva, como se a riqueza fosse partilhada de forma igualitária. É invocada uma
identidade que implica na aceitação de que ―somos grandes, somos ricos‖ e uma outra força que quer
―nos diminuir e nos empobrecer‖. Além do aspecto econômico, o lado emocional do eleitor também é
acionado inculcando que a divisão do território significaria perdas culturais e de identidade, que,
inclusive, implicaria na separação entre as pessoas.
369
Enquanto o Sim coloca a divisão como a solução automática para os problemas da região, o
Não coloca como solução a manutenção do território como está. E a universalização dessa ideia
poderia ser combatida mediante a lógica simples de que os problemas atingem aos membros
desprivilegiados da sociedade, de um e de outro lado, logo os malefícios da divisão e da manutenção da
união (dependendo se do ponto de vista do Sim ou do Não) da divisão também alcançam
principalmente a esses. É desta forma, por meio da naturalização e da universalização, que a ideologia
dominante se propõe a ser absorvida pela população, não como algo que parte de interesse político,
mas como uma situação que pode ser resolvida por todos, por meio da participação popular, por meio
do voto. Neste processo de mistificação, naturalização e universalização de suas ideologias, o Sim e o
Não trabalham continuamente a desvalorização do pensamento um do outro, na tentativa de anular as
idéias que podem comprometer a adesão do eleitor.
Apesar de, no plebiscito, o Não ter obtido maioria de votos153, ficou expresso nas urnas a vitória
das duas hegemonias, já que quase a totalidade dos eleitores da região de Carajás e Tapajós votou Sim
enquanto que os eleitores dos municípios mais ao norte do Estado, especificamente a da região
metropolitana de Belém154, escolheram o Não. O que fez a diferença foi o fato de o eleitorado
belenense ser maior que o da região de Carajás e Tapajós, e não ter cedido à argumentação do Sim.
Retomando os conceitos apontados inicialmente, essa breve análise de dois excertos de
propaganda nos permite perceber como, na disputa de um território, são mobilizados pelos campos
político e comunicacional, imbricados, valores articulados à identificação do eleitor com o território
como lugar de uso, de produção da sobrevivência, espaço de construção e de defesa de uma cultura tida
como homogênea. Território como espaço de disputa entre grupos econômicos e políticos é uma
noção que desaparece na produção discursiva, porque seria uma forma rival de pensamento, a ser
obscurecida e excluída na visão de Eagleton. Naturalizando e universalizando uma ideia
emancipacionista ou unionista, conforme o caso, as duas propagandas analisadas exemplificam a
observação de Eagleton (1997), quando aponta as duas faces (emotiva ou racional) que a ideologia pode
assumir155 e que independente da face assumida a ideologia sempre está ligada ao poder. Para tanto,
mobiliza-se a construção de um ―nós‖ imaginário que, unido, defende ou a manutenção de ―nosso

153
Dos 4.848.495 de eleitores aptos, 3.601.849 compareceram às urnas, dos quais 66,60% (2.363.561) votaram contra
a criação de Carajás e 66,08% (2.344.654) disseram Não à criação do Tapajós.
154
No município de Belém, 93,35% dos eleitores (59.158), do total de 63.375 votos válidos, votaram no Não. Em
Marabá, centro da campanha para criação do Carajás, o Sim recebeu 42.286, 93,82% dos 45.073 votos válidos. Em
Santarém, centro da campanha para criação do Tapajós, 37.573 votos foram validados e desse total 36.847 (98,07%)
foram para o Sim.
155
“Por um lado, as ideologias são apaixonadas, retóricas, impelidas por alguma obscura fé pseudoreligiosa que o
sóbrio mundo tecnocrático do capitalismo moderno felizmente superou; por outro, são áridos sistemas conceituais
que buscam reconstruir a sociedade de cima para abaixo, de acordo com algum projeto inexorável (...) Do ponto de
vista de uma engenharia social empírica, as ideologias têm, simultaneamente, muito e pouco coração, podendo
portanto ser condenadas, ao mesmo tempo, como vivida fantasia e como dogma inflexível (...) O termo ideologia, em
outras palavras, parece fazer referência não somente a sistemas de crença, mas a questões de poder.” (EAGLETON,
1997, p. 18)
370
território‖, ―nossa cultura ameaçada‖ ou o reconhecimento de um território produzido à margem dos
investimentos estatais, sofrido e abandonado. Naturalizando-se o pertencimento ao território, num e
noutro caso, obscurecem-se os enfrentamentos de classe e a distribuição desigual dos bens socialmente
produzidos.

REFERÊNCIAS:

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva: 2011.
______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil: 2006.
EAGLETON, Terry. Ideologia: Uma introdução. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista:
Editora Boitempo: 1997.
______. Ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: 1993.
GIRARDI, Eduardo Paulon. Atlas da questão agrária brasileira, Disponivel em <
http://www2.fct.unesp.br/nera/atlas/espaco_territorio.htm> Acesso em 11.03.2012
HAESBART, Rogério. O mito da desterritorialização: do "fim dos terrirórios" à multiterritorialidade. 4ª ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil: 2009.
MICELI, Sérgio. Introdução: a força do sentido. In: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas (p.
VII a LXI). São Paulo: Perspectiva: 2011.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 10ª ed. Campinas, SP: Pontes:
2012.
371
A AUTORIA DIDÁTICA NA FORMAÇÃO DOCENTE E NO EXERCÍCIO
DO MAGISTÉRIO
Francineide Paiva Moraes156
Laura Viviani dos Santos Bormann157
Thomas Massao Fairchild158

Resumo: Nos últimos anos, são relativamente poucas as circunstâncias em que o professor é
convocado a elaborar por conta própria o material de suas aulas – o que pode ser explicado pelo
sucesso das políticas que visam a garantir acesso fácil a livros didáticos comerciais. Não obstante, esse
declínio da autoria do professor parece vir ocorrendo a despeito da grande oferta de obras prontas para
esse fim, uma vez que pode ser detectado mesmo entre professores que não adotam livros comerciais.
Diante desse quadro, o presente trabalho tem como objetivo investigar como se constitui a autoria
didática na graduação em Letras e no exercício do magistério em Belém-Pa. A pesquisa divide-se em
duas seções. Primeiramente, procuramos situar os momentos nos quais a elaboração de material
didático é prevista durante a formação do licenciado em Letras, tomando como base pesquisas
documentais que levantaram projetos pedagógicos, grades curriculares e ementas de disciplinas em 3
cursos diferentes. A seguir, cotejamos os resultados da pesquisa documental com dados gerados por
meio da observação de práticas de ensino. Na segunda seção, procuramos situar os momentos nos
quais a elaboração de material didático é demandada do professor já no exercício do magistério, tanto
em escolas da rede privada quanto da rede pública. Os dados gerados foram analisados à luz da Análise
do Discurso (AD) de linha francesa, adotando reflexões de vários autores, como Possenti (2009),
Foucault (2008/1969), Maingueneau (1997), entre outros.

Palavras-chave: Autoria; Material Didático; Formação Docente.

DIDACTIC AUTHORSHIP IN TEACHER EDUCATION AND CLASSROOM


TEACHING
Abstract: In recent years, circumstances in which teachers are prompted to elaborate their own
teaching materials have grown rare. This might be explained by successful policies that aim to grant
easy access to textbooks. However, such decrease in teacher authorship seems to be happening despite
the availability of textbooks, since it can be found even amongst those who do not adopt
commercialized books in their classes. Considering this scenario, this paper aims to investigate the
constitution of ―didactic authorship‖ among Language Arts students and graduated teachers in the city
of Belém. The research is divided into two sections. First, we point out the moments in which
documents such as course plans and syllabi from three different universities predict the creating of
teaching materials by Language Arts students. Afterwars, we compare the results of documental
research with data from the observation of teaching practices in such universities. In the second
section, we point out the moments in which the creation of teaching materials is demanded from
teachers working in both private and public schools. The results have been discussed under the theory
of French Discourse Analysis, based in authors such as Possenti (2009), Foucault (2008/1969),
Maingueneau (1997), among others.

156Mestranda em Linguística na Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
157Mestranda em Linguística na Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
158 Professor do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:

[email protected]
372

Keywords: Authorship; Teaching Materials; Teacher Education.

1 INTRODUÇÃO
Neste trabalho, refletimos sobre o seguinte questionamento: quando e como é demandado do professor
em formação a tarefa de produzir sua própria aula, incluindo-se aí o material didático que a norteará? E como, por sua
vez, essa demanda se institui no exercício do magistério? A fim de responder a essas questões, apresentamos
neste trabalho resultados parciais de uma pesquisa que envolveu três cursos de Letras de diferentes
Instituições de Ensino Superior (IES) e três escolas, duas da rede privada e uma da rede pública. Os
dados serão analisados a partir das reflexões a respeito da noção de autoria e discurso de autores como
Possenti (2009), Foucault (2008/1969) e Maingueneau (1997), na perspectiva da Análise do Discurso de
linha francesa (AD).

2 METODOLOGIA
A pesquisa encontra-se dividida em duas seções. Primeiramente, procuramos situar os
momentos nos quais a elaboração de material didático é prevista durante a formação do licenciado em
Letras, tomando como base o levantamento dos projetos pedagógicos, grades curriculares e ementas de
disciplinas em 3 cursos de Letras diferentes. A seguir, cotejamos os resultados da pesquisa documental
com dados produzidos por meio da observação de práticas de ensino. Na segunda seção, procuramos
situar os momentos nos quais a elaboração de material didático é demandada do professor já no
exercício do magistério. Para isso, investigamos duas situações distintas: a elaboração de materiais
didáticos (cadernões) adotados em duas escolas da rede privada, onde foram coletados materiais
didáticos do Ensino Médio; e uma situação em que uma aluna de Letras observou e registrou, por meio
de um relatório de estágio, as aulas da 5ª e 6ª séries de um professor que atua em uma escola pública,
durante o ano de 2010.
A análise dos dados será realizada à luz da Análise do Discurso (AD) de linha francesa. Com
efeito, tomar o discurso como objeto de análise, segundo Foucault (2008/1969, p. 31), consiste em
―compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de
sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros
enunciados a que pode estar ligado‖. Nesse sentido, não examinaremos um corpus como se tivesse sido
produzido por um determinado indivíduo, mas consideraremos sua enunciação como o correlato de
uma certa posição sócio-histórica na qual os enunciadores se revelam substituíveis (MAINGUENEAU,
1997, p. 14). Assim, a análise dos materiais didáticos selecionados se realizará no nível do enunciado, a
partir do postulado de Foucault (2008/1969, p. 31-32), para quem o ―enunciado é sempre um
acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente‖.
373

3 A AUTORIA EM MATERIAIS DIDÁTICOS


Refletindo sobre a autoria nos materiais didáticos, por considerarmos operacional para o
presente trabalho, adotamos o conceito proposto por Possenti, segundo o qual a autoria está
relacionada à função-autor, que ―é, em primeiro lugar, histórica tanto no sentido de que não se caracteriza
a partir de uma personalidade quanto no sentido de que ela se modifica em decorrência das alterações e
diversificações das modalidades enunciativas‖ (POSSENTI, 2009, p. 94). Assim, o autor se distingue do
escritor. Possenti afirma, ainda, que é impossível pensar na noção de autor sem considerar de alguma
forma a noção de singularidade, que, por sua vez, não poderia escapar de uma aproximação com a
questão do estilo. Para ele, trata-se de tornar objetiva essa noção – ―quem sabe descritível em traços,
em indícios, com os riscos de isso ser equivocadamente entendido como uma proposta que se limite a
enumerar traços necessários e suficientes‖ (POSSENTI, 2009, p, 106).

3.1 A AUTORIA NAS LICENCIATURAS EM LETRAS


O primeiro recorte realizado sobre os dados da pesquisa documental consistiu na localização
das disciplinas de caráter ―pedagógico‖159 presentes no currículo das três IES pesquisadas. O resultado
desse primeiro recorte já se mostra bastante heterogêneo, visto que, de um modo geral, as disciplinas se
distinguem no que tange ao nome, à posição que ocupam na grade curricular, aos conteúdos
programáticos, à bibliografia, entre outros.
A partir da análise dos projetos pedagógicos das IES e, em alguns casos, das observações em
campo, verificamos que, das 26 disciplinas selecionadas, além das de estágio, várias delas determinam
que o professor em formação produza projetos educativos e planos de aula; todavia, na maior parte dos
casos, não preveem a produção de material didático que norteará a prática docente, como constatamos
nas ementas.
A fim de ilustrar tal situação, apresentamos alguns dados do currículo de Letras da IES 1, cujas
disciplinas de caráter ―pedagógico‖ estão presentes desde o início do curso e se agrupam basicamente
em três conjuntos: Atividades Práticas de Docência (APD), Estágio Supervisionado (ES) e Produção e
Recepção de Textos. As disciplinas APD I, II e III, embora prevejam práticas de ensino, conforme
observações de campo, não contemplam especificamente a produção de material didático, até mesmo a
III, que apresenta como um dos pontos da ementa: ―Orientação e construção de recursos didáticos‖.
Logo, na IES 1, a produção de material didático fica restrita às disciplinas de ES I e II, cuja ementa
determina: ―Aplicação de conhecimentos teóricos e situações concretas que configuram a realidade
escolar‖.

159Definimos, de maneira geral, disciplinas ―pedagógicas‖ como aquelas que se propõem a fazer uma articulação entre
elementos provenientes dos Estudos da Linguagem e dos Estudos da Educação.
374
As observações de campo mostraram, ainda, que, em ES I e II, o estágio se desenvolveu,
sobretudo, em escolas públicas, onde os professores em formação ministraram cursos que funcionaram
paralelamente ao desenvolvimento das aulas. No semestre em que as observações foram realizadas, o
ES I (voltado para o Ensino Fundamental) foi desenvolvido com alunos do Ensino Médio; e o ES II
(voltado para o Ensino Médio), por sua vez, com alunos do Ensino Fundamental ou Médio. Essa nova
configuração fez com que os estágios privilegiassem aulas de ―Redação‖ para o Ensino Médio. Dessa
forma, o material didático produzido em ES I e II foi muito semelhante, pois a maior parte consistiu na
compilação de propostas de vestibulares passados (UEPA, UFPA, ENEM, entre outros). Para fins de
análise, selecionamos o material produzido por um professor em formação na disciplina ES I.

Assunto: Tipos de discurso


De um modo Geral, podemos definir discurso como um ato da fala que exprime pensamentos, ideias
ou fatos. É a prática de construir textos, sejam eles escritos ou orais. [...]
Leia e observe no texto abaixo:
O padeiro
Rubem Braga
Levanto cedo, faço minhas abluções [...]
Texto extraído do livro “200 Crônicas escolhidas – As melhores de Rubem Braga”, Record, 1984 e disponível em:
http://www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/cronicas/rubembraga.htm
Com base no texto, podemos identificar:
a) Discurso direto: discurso caracterizado pela fala expressa dos personagens através da reprodução fiel da fala
de suas falas pelo narrador.
Características:
Marcado pela presença dos verbos: dizer, afirmar, ponderar, sugerir, perguntar, indagar, responder e
sinônimos, os quais introduzem ou anunciam a fala.
Utilização de recurso como dois pontos, travessão, aspas e mudança de linha, indicar as falas dos
personagens.
EX.: "[...] mas para não incomodar os moradores, avisava gritando:
– Não é ninguém, é o padeiro!"
b) Discurso indireto: discurso caracterizado pela fala dos personagens por intermédio do narrador, ou seja, o
narrador usa suas palavras para reproduzir a fala do personagem.
Características:
Percebe-se, também, a presença de verbos declarativos, mas geralmente no pretérito: disse, afirmou,
ponderou, sugeriu, perguntou, indagou, respondeu, etc.
Geralmente os verbos vêm acompanhados por uma conjunção subordinativa integrante (que, se).
EX.: "Explicou que aprendera aquilo de ouvido".
c) Discurso indireto livre: Reprodução fiel da fala do personagem sem o anúncio do narrador. É a conciliação
dos dois tipos de discursos descritos anteriormente:
Características:
Diferentemente do discurso indireto, conservas as palavras, exclamações e/ou interrogações do personagem.
O narrador tem liberdade sintática para proferir o discurso do personagem.
EX.: "Interroguei-o uma vez. Como tivera a idéia de gritar aquilo?"
CUNHA, Celso, CINTRA, Luis F. Lindley. Nova gramática do Português contemporâneo 3ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.
Analisando....
1 – Ainda com base no texto ―O padeiro‖ de Rubem Braga é correto afirmar:
(2) No trecho “– Então você não é ninguém?‖ o autor faz uso do discurso direto introduzido anteriormente.
[...]
Soma ( )
375

2 – Podemos perceber que na narrativa os tipos de discursos são bem recorrentes, em sua opinião, por que isso
acontece?
Como podemos perceber, esse material didático constitui-se pela combinação de alguns
enunciados transcritos de fontes citadas (a crônica de Rubem Braga, a gramática de Cunha e Cintra
(2001) e de alguns trechos sem fonte explícita. Em relação à abordagem teórica, verificamos que a
conceitualização dos tipos de discurso (direto, indireto e indireto livre) apresentada na produção
didática não corresponde à encontrada na referida gramática. Assim, naquele material não há como
saber se os conceitos foram transcritos de algum lugar ou elaborados pelo próprio professor em
formação, à exceção do item ―Características‖, cujos enunciados encontram-se, de fato, em Cunha e
Cintra (2001); todavia, com alterações que, em algumas passagens, mudaram seu sentido, como, por
exemplo: ―Percebe-se, também, a presença de verbos declarativos, mas geralmente no pretérito‖; esta
restrição quanto ao tempo verbal não foi constatada na gramática citada. Destacamos aqui três pontos
sobre a função-autor: 1) a necessidade de elaborar as aulas de regência mostra uma função-autor que se
inscreve, principalmente, como instância que seleciona e reúne materiais já existentes em outras fontes;
2) a articulação entre enunciados de diferentes lugares sem a devida referenciação compromete a
distinção entre o posicionamento assumido pelos enunciadores; 3) a apropriação de enunciados alheios
é assimétrica – atribui-se uma autoria à crônica e à definição gramatical, mas não ao exercício.

3.2 A AUTORIA NO EXERCÍCIO DO MAGISTÉRIO


A afirmação de que o professor não é capaz de produzir material para suas aulas, por falta de
tempo ou de formação, tem um forte lastro na cultura escolar brasileira, como observa Antunes (2003,
p. 108) ao dizer: ―Como a tradição era seguir à risca, lição por lição, os livros didáticos, o professor
‗aprendeu‘ a não ‗criar‘, a não ‗inventar‘ seus programas de aula. O conhecimento que ele ‗passava‘ e
‗repassava‘ era sempre produzido por outra pessoa, não por ele próprio‖.
A fim de estabelecer um contraponto às situações em que o professor se exime de assumir a
função-autor de sua prática docente, procuramos gerar dados que representem a situação inversa, isto é,
casos que exemplifiquem o fato de que professores produzem material didático a despeito da grande
oferta de obras prontas para esse fim. Para tanto, apresentamos produções didáticas de dois professores
de escolas privadas e de um professor de escola pública.

3.2.1 Constituição da autoria no exercício do magistério em duas escolas privadas


A fim de investigarmos a constituição da autoria em materiais didáticos produzidos em escolas
da rede privada de ensino, coletamos os módulos das disciplinas Português e Redação do 1º, 2º e 3º
anos do Ensino Médio de duas instituições de Belém-PA, as quais denominamos de ―escola A‖ e
―escola B‖. A primeira apresenta três módulos durante o ano letivo; a segunda, dois (chamados de
376
―volumes‖). A fim de facilitar a descrição dos dados da análise, chamaremos ambos os materiais de
―módulos‖ e ―cadernões‖ (termo adotado pela maioria dos alunos).
Nessas instituições delega-se ao professor ou à equipe de professores responsável por cada
disciplina a função de formular o conteúdo que será usado em suas aulas por um determinado período
– três, quatro ou seis meses. Esse material é reunido em cada módulo (denominado de ―cadernão‖ pela
maioria dos alunos) e produzido gradualmente durante o ano letivo. Apresenta uma diversidade de
ilustrações, além de gabarito referente à maior parte das atividades propostas. As páginas são
enumeradas e apresentam cabeçalho e rodapé com informações sobre a escola, a disciplina etc. O
conteúdo encontra-se divido entre as abordagens teóricas e as atividades.
Verificamos que todos os módulos analisados adotam como objeto de ensino apenas a
modalidade escrita da língua, em detrimento da modalidade oral. Em relação aos conteúdos que
norteiam as aulas de Português e Redação, verificamos que, nesta última, a maior parte deles são
bastante semelhantes, visto que privilegiam, sobretudo, o gênero ―redação de vestibular‖: narração e
textos argumentativos (carta e dissertação – sendo esta última a mais contemplada). Os módulos de
Redação contemplam, ainda, certa diversidade de gêneros (conto, crônica, fábula, editorial, entre
outros), mas, em muitos casos, não os elegem como objeto de ensino. Já em relação à disciplina
Português, a abordagem teórica é bastante diversificada e as atividades dividem-se, principalmente, em
interpretação de texto e atividades epilinguísticas.
Quanto à responsabilidade pela escritura dos conteúdos dessas disciplinas, verificamos poucas
passagens em que são referenciados autores que embasam a abordagem teórica. No que diz respeito às
atividades, nos módulos de Português, na maioria dos casos, estas não são referenciadas; ao passo que,
na maior parte das atividades de Redação, são citados como fonte exames de vestibulares de âmbito
local e nacional (UNAMA, UEPA, UFPA, UNICAMP, ENEM etc.), principalmente no que tange às
propostas de redação; todavia, vale ressaltar que alguns desses materiais apresentam no final do módulo
uma bibliografia. Assim, esses resultados indicam que a função-autor nos cadernões articula os
trabalhos de elaboração e de compilação, embora não se tenha certeza de que as atividades sem fonte
sejam de fato redigidas pelos professores.
Em relação aos cadernões de Redação da escola A, verificamos a existência de atividades
repetidas em módulos distintos – por exemplo: todo o conteúdo do módulo II do 3º ano está contido
no módulo II do 1º ano, havendo neste alguns acréscimos na parte teórica; nos módulos do 2º ano,
quase metade das propostas de redação também se encontram no material de outros anos e a maioria
dos tópicos e explicações teóricas são repetidos, embora os exercícios sejam diferentes. Já nos
cadernões de redação da escola B, constatamos que, apesar de a maioria dos tópicos ser recorrente em
todas as séries do Ensino Médio, não há repetições de atividades, embora haja a repetição de alguns
poucos textos que receberam tratamento diferenciado em cada módulo. Por exemplo, a crônica ―Caso
377
Isabella: a dor da falta de sentido‖, de Arnaldo Jabor, foi usada tanto em um módulo do 1º ano, para
exemplificar a argumentação por citação, quanto em um módulo do 2º ano, como exemplo de crônica e
como texto a ser interpretado para identificar características desse gênero.
Além disso, verificamos, em alguns materiais, certos traços que destoam desse padrão. Os
cadernões I e II do 3º ano de Redação (escola B) distinguem-se dos demais por duas características: as
atividades aí presentes são assinadas por um professor e algumas delas incluem discussões teóricas
oriundas da esfera universitária que não são encontradas nos demais módulos.
Em relação ao primeiro ponto, o professor responsável pela produção dos cadernões do 3º ano
da escola B inclui a seguinte observação ao fim do módulo: ―Material elaborado, compilado e
organizado pelo prof. [...]. Todas as fontes são citadas ao término dos textos.‖ Diferentemente de todos
os outros materiais analisados, este professor assume a responsabilidade tanto pela escritura de certos
textos como pela seleção e organização de outros. Verificamos, portanto, que o professor não assume
apenas a função de escritor do material, mas também uma certa função-autor, vinculando seu nome à
palavra veiculada por ele. Além disso, ele manifesta um discurso a favor de que os textos apresentados
em materiais didáticos sejam referenciados, o qual é cruzado, parafrasticamente, por um discurso de
reprovação ao modo como os produtores desse tipo de material, supostamente, fazem uso de fontes
variadas sem as devidas referências.
Em relação ao segundo ponto, destacamos um exemplo extraído do II módulo do 3º ano da
escola B:

Existem vários tipos de texto, classificados de acordo com sua finalidade básica: há textos didáticos,
publicitários, informativos, poéticos, literários, humorísticos, entre outros. Chamar a descrição, a narração e a
argumentação de tipos de texto é incorreto. Na realidade, elas são modos de organização textual. É preciso
que não se confunda tipo de texto com o modo como ele é organizado. É claro que tipo de texto e modo de
organização de um texto são tópicos que se interligam e, por isso, merecerão a devida atenção neste trabalho.
Falaremos, a princípio, de certos tipos de textos comuns em provas de exames e concursos públicos;
posteriormente, discutiremos suas organizações textuais.

Este trecho destaca-se pelo fato de apresentar uma conceitualização de ―tipo‖ e ―modo de
organização textual‖ que não apenas se diferencia dos conceitos presentes em outros módulos, como
também consiste numa crítica a eles. A crítica em si não é original, já que remete a uma discussão
presente, por exemplo, na obra de Adam (2008), mas demarca uma posição que, ao mesmo tempo,
diferencia-se e explicita sua diferença em relação ao tratamento mais comum do assunto nos cadernões.

3.2.2 Constituição da autoria no exercício do magistério em uma escola pública


Apresentamos neste item uma discussão sobre materiais didáticos elaborados e utilizados por
um professor que atua numa escola pública. Os dados foram gerados em 2010 por uma estagiária do
curso de Letras. Os materiais utilizados por este professor consistem em folhas de atividades, sempre
formatadas de forma a ocuparem uma página (anverso de uma folha fotocopiada), dividida em duas
378
colunas, contendo um cabeçalho com o nome e endereço da escola, a série a que o material se destina e
uma numeração (―material nº 1, 2‖ etc.). Do rodapé da página consta, em todos os materiais, a seguinte
identificação: ―LÍNGUA PORTUGUESA – Prof. Fulano de Tal – e-mail: [email protected], fones: 0000-
0000‖. Além disso, chama atenção, em todos os materiais reproduzidos pela estagiária, a presença de
créditos a uma ―entidade patrocinadora‖: no canto inferior direito da página, vê-se uma logomarca
acompanhada do seguinte texto: “Apoio cultural: ...‖.
Estas marcas permitem inferir algumas características da função-autor na qual o professor se
inscreve ao produzir suas folhas de atividade: a) uma inscrição institucional (identificação da escola no
cabeçalho); b) uma individualização da responsabilidade sobre o material (identificação do professor e
de seus contatos, no rodapé); c) uma responsabilização pela coerência do conjunto formado por todos
os seus enunciados (a numeração dos materiais); d) uma responsabilização ―jurídica‖ pela produção do
material (identificação do ―apoio cultural‖, possivelmente na forma do fornecimento das fotocópias
utilizadas pelo professor).
O material em si consiste em atividades de gramática, exercícios epilinguísticos, interpretação de
texto e propostas de escrita. Em algumas das atividades, o professor identifica a fonte do material de
base: ―enviado por e-mail‖; ―este texto foi distribuído na missa de 7º dia do avô de um amigo meu‖, de
forma semelhante ao professor que assina suas atividades nos cadernões da escola B.
Tomemos como exemplo a primeira atividade que a estagiária observou, a qual o professor
chamou de ―treino ortográfico‖. O exercício consistia em um texto, aparentemente redigido por ele, no
qual havia 40 palavras sublinhadas. Os alunos deviam consultar o dicionário para determinar se as
palavras destacadas estavam escritas corretamente ou não. Eis o trecho inicial do texto:

A GRANDE FESTA
A expectativa era grande. A barraca da pechincha já estava armada. Havia perspectiva de muito
movimento. A paçoca ainda estava insossa e a canjica certamente docíssima.

Na sequência, a folha apresenta um espaço para os alunos preencherem sua quantidade de


acertos e uma ―tabela de classificação‖.
Como foi meu desempenho em um total de 40 palavras?
Errei quantas? Resposta: ________________
Acertei quantas? Resposta: _______________
TABELA DE CLASSIFICAÇÃO
A) De 00 a 05 acertos
Estou zerado(a)!!!
B) De 06 a 10 acertos
Levei o farelo!!!
C) De 11 a 15 acertos
Tô mal pra caramba, mas tenho chance!
D) De 16 a 20 acertos
Preciso estudar mais!!!
E) De 21 a 25 acertos
Escapei por pouco!!!
379
F) De 26 a 30 acertos
Fui aprovado, mas vou me esforçar mais!
G) De 31 a 35 acertos
Uma vaga é minha, eu me classifiquei!!!
H) De 36 a 40 acertos
Ninguém me segura, eu sou o máximo!!!
Esse modelo de avaliação tem perfil semelhante ao de enquetes da internet ou de revistas de
variedades, além de remeter, de certa forma, ao material didático voltado para o vestibular (―uma vaga é
minha‖). Assim, esse material, embora seja usado com alunos do Ensino Fundamental de uma escola
pública, leva-nos a identificar resquícios de estilo peculiar a materiais que, geralmente, circulam no
Ensino Médio de escolas privadas e em cursos pré-vestibulares. Contudo, se por um lado esse material
possui um perfil que ocupa um lugar comum em escolas privadas, por outro, a inserção da ―tabela de
classificação‖ como forma de estimular os alunos a completarem a tarefa e compararem seu
desempenho evita a ―mesmice‖ das atividades de correção ortográfica. Outro aspecto singular na
atividade é o uso de gírias e contrações típicas da fala na ―tabela de classificação‖, mesmo em se
tratando de um exercício de ortografia, o que demonstra um trabalho bem-sucedido de gerenciar duas
funções-autor distintas: a da tarefa didática em si, regida pela ―norma culta‖, e a do comentário sobre o
desempenho dos alunos, inscrita num registro mais próximo da oralidade. É de se notar, em todo caso,
que a norma menos ―padrão‖ é utilizada para designar os piores desempenhos: o professor escreve ―tô
mau pra caramba‖, mas não ―eu sô o máximo‖, por exemplo.
A condução da atividade em sala mostra outro aspecto relacionado à autoria exercida pelo
professor. Considere-se o trecho abaixo, extraído do relatório da estagiária que observou as aulas deste
professor em 2010:
Em certo momento da correção o professor pergunta: - ‗O que é mexerico?‘, em seguida, uma aluna
responde: - ‗Se incomodar com a vida dos outros‘. Depois ele faz outra pergunta: - ‗O que é gnomo?‘. De
imediato, um aluno responde: - ´É um duende‘. Nesse instante o professor bate na mesa e pergunta: - ‗É um ser
mitológico?‘. Os alunos confirmam que sim, e depois disso, ele começa a balançar os braços, bate palma e diz: -
‗Na macumba se chama gererê‘. Todos começam a rir.

Como se vê, um pouco do ―estilo‖ presente no material didático parece ressoar o próprio estilo
de condução da aula do professor, que utiliza o humor e a gíria em sala para chamar a atenção dos
alunos, para surpreendê-los, para manter seu turno e garantir a progressão da aula (a correção da
atividade, apesar das brincadeiras, é levada até o fim). O relato da estagiária mostra, portanto, que uma
das razões de a atividade ser bem-sucedida é o fato de ela condizer com o estilo do próprio professor
que a propõe, criando a sensação geral de que a tarefa proposta, o material didático e a atuação do
professor coadunam-se em um mesmo discurso e convergem para uma mesma posição.

4 CONCLUSÃO
380
Nesta pesquisa, verificamos que a autoria de materiais didáticos na formação aparece de forma
difusa. Há poucas menções explícitas, na documentação dos cursos, que garantam o trabalho de
elaboração de materiais didáticos como elemento inequívoco de sua formação. Na maior parte das
vezes, as expressões que poderiam remeter a esse tipo de trabalho parecem ser entendidas, no cotidiano
das instituições, como referentes às seguintes atividades: produção de projetos de pesquisa e a
realização de pesquisas em escolas, sem envolver a elaboração, aplicação e análise de produção didática.
Inversamente, onde há a necessidade de criar aulas – principalmente, nos estágios supervisionados –
esta tarefa é, na prática, deixada a cargo dos alunos e conta com poucos momentos em que possa ser
planejada ou avaliada em conjunto com a turma e o professor.
Nas ocasiões em que se torna necessário providenciar material para aulas, no estágio ou no
exercício do magistério, encontramos uma situação semelhante: a função-autor parece constituir-se
mais pela compilação e adaptação do que pela elaboração propriamente dita. Vimos, finalmente, que,
no exercício dessa função-autor, o modo como se apropriam das fontes varia conforme a natureza
destas: apropriam-se e identificam enunciados provenientes da literatura, de manuais de gramática e de
exames de vestibulares, ao passo que se apropriam das atividades didáticas em si (consignas, exercícios
de múltipla escolha etc., com a notável exceção das propostas de redação de vestibulares),
provavelmente, sem considerar necessário indicar sua origem.
Por outro lado, constatamos a existência de professores que realizam um movimento de
―apropriação autoral‖, como verificamos em dois módulos do 3º ano da escola B e no exemplo do
professor de escola pública discutido no item 3.2.2. Esta apropriação se dá por meio de diversos
movimentos, que incluem a inscrição do próprio nome na atividade, a explicitação de divergências em
relação a posições apresentadas como ―não-autorais‖, a inscrição de traços singulares de estilo etc.
Finalmente, no que diz respeito ao professor assumir a autoria não só da produção do material
didático, mas, sobretudo, de sua aula, a partir do caso investigado em uma escola pública de Belém-PA,
verificamos que a autoria diz respeito à maneira como a singularidade do professor se expressa,
duplamente, na posição assumida nas interações com os alunos e na posição assumida enquanto ―voz
didática‖ que fala no material dado aos alunos.
Assim, se é verdade que os professores não elaboram material didático, isto ocorre,
provavelmente, por dois motivos: não se ensina o futuro professor a fazer isso na universidade; e a
função-autor predominante no universo escolar, em relação aos materiais didáticos, está mais ligada aos
atos de selecionar, organizar e adaptar materiais já disponíveis do que à criação de materiais originais.

REFERÊNCIAS
ADAM, Jean-Michel. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. São Paulo: Cortez, 2008.

ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. 7. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
381

CUNHA, Celso, CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 3. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. L. F. Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 2008/1969.

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3. ed. Campinas (SP): Pontes,
1997.

POSSENTI, Sírio. Questões para analistas do discurso. São Paulo: Parábola, 2009.
382
A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA
Francivaldo Mata Quaresma¹

RESUMO

O texto aqui apresentado procura empreender uma discussão teórica a respeito do tema ―Variação
linguística e o ensino de língua portuguesa‖. Partindo de pressupostos da Sociolinguística, apresentados
por autores renomados como Marcos Bagno, Sírio Possenti, Rosa Virgínia Matos e outros, refletimos a
respeito da importância de mudança do paradigma educacional estabelecido no que se refere,
sobretudo, à variação linguística no ensino e aprendizagem de língua portuguesa e da necessidade de
implementação de uma educação autenticamente linguística nesse contexto. Tendo em vista essa
constatação apresentam-se ao final deste artigo algumas propostas teórico-metodológicas que podem
contribuir para a concretização deste novo paradigma educacional.

Palavras-chave: Variação linguística; Ensino; Língua portuguesa.

ABSTRACT

The text here presented it tries to undertake a theoretical discussion regarding the theme ―Linguistic
Variation and the Teaching of Portuguese Language‖. Leaving of presupposed of the sociolinguistic
presented by renowned authors like Marcos Bagno, Sirio Possenti, Rosa Virginia Matos and other. We
contemplated regarding the importance of change of the established educational paradigm in what it
refers, above all to the linguistic variation in the teaching and learning of Portuguese language and of
the need of introducing of an education genuinely linguistics in that context. With base in that
verification comes at the end of this paper some theoretical-methodological proposals that can
contribute to the materialization of this new educational paradigm.

Key word: Linguistic variation; Teaching; Portuguese language.

PALAVRAS INTRODUTÓRIAS
A Linguística moderna vem empreendendo nos últimos anos avanços significativos no que se
refere ao estudo das línguas humanas. A sociolinguística, ciência Linguística que se ocupa, sobretudo,
do estudo das relações entre língua e sociedade, tem realizado, por meio de seus estudiosos, pesquisas
que procuram revelar a heterogeneidade como um aspecto inerente às línguas humanas. Com isso, essa
teoria linguística defende a ideia de que as línguas estão sujeitas à variação. Ou seja, uma mesma língua
permite que um mesmo conteúdo significativo seja expresso por meio de diversas formas linguísticas e
com um mesmo valor de autenticidade.
No que se refere à língua portuguesa, estudiosos como Marcos Bagno, Sírio Possenti, Rosa
Virgínia Mattos e outros procuram mostrar que esta realidade não é diferente. Assim como outras
línguas humanas, o português apresenta uma rica diversidade variacional. Nosso país tem como língua
oficial um idioma que é múltiplo em suas realizações. Entretanto, como veremos a seguir, do ponto de
________________________
¹ Mestrando em Estudos Linguísticos na Universidade Federal do Pará (UFPA).
383

vista pedagógico, a variação linguística tem sido vista de maneira equivocada.


Neste texto, primeiramente, vamos fazer uma reflexão a respeito da natureza do fenômeno
variacional. Em seguida, falaremos sobre como tem se delineado o ensino de língua portuguesa no que
se refere, principalmente, à variação linguística, no contexto da pluralidade linguística e diversidade
cultural de nosso país. Finalizando nossa discussão, vamos discutir sobre a importância de se constituir
na pedagogia de ensino e aprendizagem de língua materna uma educação autenticamente linguística.

VARIAÇÃO LINGUÍSTICA: UM FATO INERENTE À LÍNGUA


A variação linguística é um tema que tem sido tratado com muito destaque dentro dos estudos
linguísticos. A sociolinguística é a corrente teórica que tem se destacado na abordagem desse tema.
Partindo do pressuposto de que as línguas se caracterizam pela heterogeneidade, os estudiosos
das línguas, em especial os sociolinguistas demonstram que a variação é um aspecto inerente às línguas.
Para Possenti ―[...] todas as línguas variam, isto é, não existe nenhuma sociedade ou comunidade na
qual, todos falem da mesma forma.‖ (POSSENTI, 1996, p. 33). Apesar de uma determinada língua,
como por exemplo, a língua portuguesa, ser constituída por uma única estrutura, isto é, uma única
gramática, a qual dá identidade a ela e a diferencia das demais, o uso que se faz dela é explicitamente
dinâmico e diversificado.
A variação é um fato inerente à língua, faz parte de sua essência, portanto, é inevitável. Segundo
Bagno, a variação constitui a língua em seu estado permanente de transformação, de fluidez, de
instabilidade (BAGNO, 2007, p. 38). A partir deste ponto de vista vemos que a variação é um processo
dinâmico que ocorre devido aos diversos usos que se faz da língua em todos os seus níveis: fonético-
fonológico, morfossintático, lexical e etc...
Se pensarmos nos falantes, isto é, no ser humano usuário da língua, visualizamos um ser
complexo, dinâmico em sua interação social. Como consequência disso, o uso da língua adquire
características semelhantes, ou seja, torna-se diversificado e multiforme.
As próprias relações que se evidenciam na sociedade revelam e evidenciam a variação
linguística. Possenti afirma que ―[...] a variedade linguística é o reflexo da variedade social e como em
todas as sociedades existe alguma diferença de status ou de papel entre indivíduos ou grupos, estas
diferenças se refletem na língua‖ (POSSENTI, 1996, p. 34). Assim como a sociedade é constituída por
uma variedade, isto é, apresenta diferentes formas de organização grupal ou individual, a língua também
possui, pois se realiza nela e, portanto, sofre influências dela.
Além disso, outra verdade que vem reforçar o que estamos discutindo neste capítulo é que não
existem línguas uniformes. Em outras palavras, as línguas variam, pois constituem uma faculdade
humana. Sendo assim, os indivíduos, enquanto seres pensantes e dinâmicos, fazem usos diferenciados
384
das línguas. O fato de termos uma única língua oficial em nosso país, o português, não significa que
todos os falantes brasileiros desta língua a usem da mesma maneira.
Em um país tão grande quanto o nosso, rico em diversidade geográfica, social, étnica e cultural,
pensar numa uniformidade de uso da língua seria, no mínimo, uma incoerência, pois, como já
afirmamos anteriormente a diversidade social se reflete numa diversidade linguística.
Partindo do ponto de vista de que uma marca característica de toda e qualquer sociedade é a
diversidade, pois são constituídas por seres humanos, que por sua própria natureza são diversos e
dinâmicos, entendemos que as línguas, em seus usos, sofrem variação. Por isso, não são uniformes.
Diríamos que são multiformes.
Apesar de ser cientificamente comprovada, o não reconhecimento da variação
linguística como um fato intrínseco às línguas humanas gera em nossa sociedade um tipo de
preconceito que vinha sendo mascarado por uma ideia errônea de língua: o preconceito linguístico.
Crendo numa concepção de língua pura, imutável e homogênea, muitos detentores de um falar dito
―melhor‖ desvalorizam, menosprezam e discriminam determinadas realizações linguísticas
considerando-as ―erradas‖. De um lado temos os falantes da língua ―padrão‖, a variante que goza de
prestígio social. De outro, temos os de usos linguísticos que não gozam de nenhum prestígio social e
por isso são discriminados dentro de nossa sociedade.
Para Bagno (1999, p.47) ―[...] não existe nenhuma variedade nacional, regional ou local que seja
intrinsecamente ―melhor‖, ―mais pura‖, ―mais bonita‖, ―mais correta‖, que outra. Toda variedade
linguística atende às necessidades da comunidade de seres humanos que a empregam‖. Vemos nessas
palavras de Bagno que nenhuma das variedades existentes na língua deve receber maior valor em
relação à outra, pois todas desempenham eficientemente a função para qual existem que é a de suprir as
necessidades linguísticas dos falantes que as utilizam.
Como vimos, infelizmente, o fenômeno variacional vem sendo mal interpretado em nossa
sociedade, tem sido encarado de maneira preconceituosa. Diante disso, um dos objetivos deste texto é
contribuir para a construção de um novo olhar a respeito da variação linguística. Olhar este desprovido
de qualquer preconceito.

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA:


PLURALIDADE LINGUÍSTICA E DIVERSIDADE CULTURAL.
A homogeneidade linguística sempre foi propagada nas gramáticas normativas tradicionais. A
abordagem presente nesses manuais sempre defendeu a ideia de uma língua portuguesa única, pura e
intocável e que precisa ser preservada e defendida de qualquer influência linguística que fuja aos
padrões estabelecidos por ela. Porém, sabemos que essa ideologia não corresponde à realidade
linguística vivenciada no Brasil.
385
A Linguística Moderna, especialmente a Sociolinguística, vêm mostrando, como já dissemos
neste trabalho, que a heterogeneidade é uma característica inerente à língua. Isto é, a língua varia tão
naturalmente quanto variam as relações socioculturais entre indivíduos dentro de uma comunidade.
Portanto, no que diz respeito à língua portuguesa, a realidade não é diferente.
Como já sabemos, nosso país é constituído de uma diversidade cultural. Desde o início de sua
formação, elementos, principalmente, da cultura europeia (portuguesa), indígena e africana
influenciaram-se mutuamente formando o que nós chamamos hoje de cultura brasileira. Obviamente,
com o passar do tempo culturas de outros povos também, embora em menor proporção, forneceram
elementos que se fazem presentes em nossa cultura.
Assim como a cultura, a língua falada em nosso país também é plural. Num país com dimensões
continentais como o nosso, com características socioculturais próprias em cada região, a pluralidade de
falares é evidente.
Com o objetivo de documentar, descrever e analisar toda essa riqueza variacional da língua
portuguesa falada no Brasil, já temos, em nosso país, um projeto, cujo nome é ALIB (Atlas Linguístico
do Brasil). A intenção deste projeto é construir um Atlas Linguístico, no qual esteja documentado como
se dão as variações linguísticas em cada região do país.
No âmbito do estado do Pará temos um projeto chamado ALIPA (Atlas Linguístico do Pará)
que já possui publicado, um Atlas Linguístico Sonoro do Estado do Pará (ALISPA). Nesse Atlas
encontram-se documentadas variações presentes no falar paraense. Estados como a Bahia, Minas
Gerais, Paraíba, Sergipe e outros também já possuem seus Atlas Linguísticos publicados.
A partir dos projetos de pesquisa citados acima, podemos constatar que a pluralidade linguística
no Brasil não é fruto da imaginação de linguistas paranoicos, mas é uma realidade constatável. Nosso
país é rico em cultura, diverso desde sua origem. Com a língua falada nesse país acontece o mesmo. A
riqueza linguística do Brasil é algo que também faz parte da sua identidade. Infelizmente, o modelo de
sociedade imposto pelo capitalismo vigente em nosso país, não atribui de forma democrática um justo
valor a cada cultura e a cada variante linguística presente no território nacional. Formada por uma
divisão de classes, a sociedade brasileira ainda está longe de gozar, do ponto de vista prático, de uma
democracia completa e efetiva.
Quando avaliamos o nível das desigualdades presente em nosso país, constatamos que a
modalidade de cultura que goza de privilégios, benefícios e é tida como autêntica e original pertence à
classe dominante. Ou seja, àquele grupo social que possui poder econômico dentro da sociedade. Essa
manifestação cultural é imposta, muitas vezes, como uma espécie de referencial exclusivo a que outras
formas de existência cultural devem se submeter.
Um grande problema surge quando a escola reproduz essa ideologia, pois
[...] Tal cultura é arbitrariamente imposta, já que, na relação pedagógica em si mesma,
abstratamente considerada, nada há que leve a instituir a matriz de valores da classe
386
dominante como cultura referencial exclusiva a transmitir. Objetivamente, a ação
pedagógica reveste-se, assim, de violência simbólica, pois decorre da imposição por
um poder arbitrário, de uma cultura também arbitrariamente selecionada e que de
forma alguma pode ser deduzida de princípios universais. Na realidade, essa seleção é
arbitrária por que se baseia nas relações de força entre os grupos sociais.
(BOURDIEU & PASSERON. In: MUSSALIN e BENTES. (orgs.), 2007, p. 70).

De fato, não há nada na matriz de valores da classe dominante que justifique a transmissão de
sua cultura como um referencial de exclusividade. A escola deve ser um espaço aberto para todas as
culturas. Se não for assim constituída, a escola torna sua ação pedagógica um ato de violência simbólica,
impondo de maneira arbitrária uma cultura que não encontra justificativa em nenhum princípio
universal, pois é fruto de um estrato social, o qual possui maior poder na luta de classes típicas das
sociedades capitalistas e somente, por isso, impõe-se como modelo a ser seguido.
Dessa maneira a ação pedagógica instituída pela escola fere a identidade cultural dos demais
grupos sociais relegando-os à condição de inferioridade. Toda cultura possui o seu devido valor e deve
ser respeitada em sua peculiaridade.
Atitudes de intolerância seja no aspecto cultural, social, étnico e etc., já foram responsáveis por
verdadeiros genocídios no decorrer da história. Podemos citar como exemplo as nações indígenas que
foram dizimadas durante o período da colonização do Brasil.
Refletindo a imposição cultural, uma imposição linguística se delineia na ação pedagógica
desenvolvida pela escola conforme já vimos neste trabalho. Tal atitude não é menos destrutiva, pois a
língua que falamos também é parte constitutiva de nós mesmos. Nossa forma de usar a língua é parte
de nossa identidade. Quando somos coagidos a, simplesmente, abandonar nossa forma de expressão
para adquirir e usar outra imposta pela escola, uma parte de nossa identidade é exterminada.
Para Bagno
[...] a linguagem, de todos os instrumentos de controle e coerção social, talvez seja o
mais complexo e sutil, sobretudo depois que, ao menos no mundo ocidental, a religião
perdeu sua força de repressão e de controle oficial das atitudes sociais e da vida
psicológica mais íntima dos cidadãos. E tudo isso é ainda mais pernicioso porque a
língua é parte constitutiva da identidade individual e social de cada ser humano – em
boa medida, nós somos a língua que falamos [...] (BAGNO, 2003, p. 16 e 17).

Bagno, nessas palavras, admite o uso da linguagem como instrumento de controle e coerção
social, o qual, dentre outros, é o mais complexo e sutil. A língua, enquanto uma das manifestações da
linguagem, pode ser caracterizada como um instrumento de manipulação e de controle social quando,
por exemplo, uma classe se considera dona dessa língua, impondo sua forma de usá-la como a única
digna de aceitação.
Por muito tempo no mundo ocidental, especialmente durante a Idade Média, a religião tornou-
se um instrumento de repressão e de controle da vida política, social e psicológica dos indivíduos. A
igreja por meio do clero exercia domínio sobre a sociedade, usando como estratégia a religião. E é só a
387
partir do advento do renascimento anunciando a Era Moderna que a religião começa a perder sua força
junto com a igreja enquanto um mecanismo ideológico de manipulação.
Concordando com Bagno, acreditamos que nos dias atuais a língua tem ocupado, até certo
ponto, uma função que antes foi exercida pela religião. De maneira bem mais sutil, as classes
dominantes exercem seu poder proclamando-se dona e usuária da língua pura e original, a qual deve ser
difundida pela escola impondo-se a qualquer outra forma de manifestação linguística, pois, segundo a
ideologia desse grupo social, tais manifestações ocupam uma posição de inferioridade.
Tal concepção a respeito da língua nega e agride a identidade dos indivíduos usuários de
variantes não prestigiadas pelos grupos dominantes, pois, parafraseando Bagno, ―somos a língua que
falamos‖. Portanto, menosprezar e julgar inferior a manifestação linguística de um indivíduo é
menosprezar e julgar inferior o próprio indivíduo.
Uma postura de respeito e valorização da pluralidade linguística e da diversidade cultural precisa
ser construída dia após dia em nosso país. Atitudes de intolerância não são justificáveis, seja no aspecto
político, racial, étnico ou em qualquer outro. Vivemos num país onde há liberdade de expressão,
portanto, devemos lutar para garantir esse direito.

POR UMA EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA!


Acreditamos na necessidade de mudança do paradigma de educação de língua materna
implementado pela escola, atualmente. E, pelos motivos já apresentados neste trabalho até aqui,
julgamos necessário trazer neste momento propostas teórico-metodológicas que constituem um novo
olhar a respeito do processo de ensino e aprendizagem de língua portuguesa. São propostas veiculadas
no campo dos estudos linguísticos e que, sem dúvida, são dignas de apreciação.
Para iniciarmos nossa sucinta discussão, vamos falar um pouco sobre Letramento. Essa é uma
proposta muito difundida hoje no que se refere ao processo de ensino e aprendizagem de língua
materna em nosso país. Como ponto de partida de nossa discussão, vamos refletir um pouco no quê
consiste essa proposta.
Letramento pode ser definido como um ―[...] estado ou condição de quem não só saber ler e
escrever, mas exerce as práticas sociais de leitura e de escrita que circulam na sociedade em que vive
conjugando-as com as práticas sociais de interação oral.‖ (SOARES apud BAGNO, 2002, p. 52).
Para Magda Soares, como vimos acima, Letramento consiste num estado, numa condição de
quem não somente sabe ler e escrever, mas exerce, isto é, responde às demandas sociais de leitura e
escrita, interage com os mais diversos gêneros e tipos textuais, reconhecendo suas funções e utilizando-
os de maneira competente na sociedade onde está inserido. Além disso, procura também inter-
relacionar essas práticas de leitura e escrita com práticas sociais que se estabelecem na oralidade.
388
Já mostramos neste trabalho que o cerne do ensino de língua portuguesa em nossas escolas tem
sido a gramática normativa. Há uma preocupação, por parte desta pedagogia, de ensinar um padrão de
língua idealizado a partir da análise de uma nomenclatura gramatical obsoleta. Como consequência
disso, os resultados de ensino e aprendizagem têm se mostrado insatisfatórios. O texto como unidade
de sentido é substituído pelo vocábulo ou mesmo pela frase. Com isso, o desenvolvimento de
competências linguísticas indispensáveis para o indivíduo e que são exigidas pela sociedade não é
concretizado.
Práticas de leitura e escrita de textos devem ser instituídas de maneira intensificada em sala de
aula. Muita leitura e muita escrita atrelada à pratica de escuta e produção de textos orais são
indispensáveis para a formação de usuários competentes da língua. A escola precisa priorizá-las,
dedicando boa parte do tempo disponível para ser gasto com elas.
A proposta do Letramento é tornar a escola um espaço de leitura e escrita de textos, bem como
de inter-relação dessas atividades com a oralidade. O objetivo é tornar o aluno um usuário da língua
apto a responder às exigências sociais referentes à língua. Ou seja, alguém que cultiva, que se envolve
em práticas de leitura e escrita dos mais diversos tipos e gêneros textuais de maneira proficiente.
Entretanto, sabemos que implementar essa proposta na escola constitui um grande desafio.
Além da resistência apresentada por muitos profissionais da educação em repensar a metodologia
normativa tradicional presente em sua prática pedagógica e dar espaço para novas metodologias, temos
alguns fatores de ordem didático-pedagógica e político-administrativa que precisam ser contemplados.
Entre os fatores de ordem didático-pedagógica temos a ampliação do número de ambientes de
leitura (bibliotecas, salas de leituras etc.), promoção de eventos que visem à propagação da importância
e prazer da leitura e escrita, com estímulo ao uso da oralidade, (palestras, fóruns, feiras de livros, etc.) e,
sobretudo, a criação de condições para que todos os alunos tenham acesso aos livros. Concernente aos
fatores de ordem político-administrativa temos a necessidade de maiores investimentos do poder
público em educação, melhorias infra-estruturais da escola, etc.
Seguindo uma linha de pensamento semelhante a essa proposta, buscando melhorias na
qualidade do processo de ensino e aprendizagem de língua portuguesa, os PCNs (Parâmetros
Curriculares Nacionais) apresentam uma reflexão crítica e propostas concernentes ao tratamento desta
disciplina na educação básica. No documento referente à 5ª e 8ª séries do ensino fundamental faz-se
uma reflexão, a qual julgamos importante destacar aqui. Assim diz o texto:
Tomando-se a língua como atividade discursiva, o texto como unidade de ensino e a
noção de gramática como relativa ao conhecimento que o falante tem de sua
linguagem, as atividades curriculares em Língua Portuguesa correspondem,
principalmente, a atividades discursivas: uma prática constante de escuta de textos
orais e leitura de textos escritos e de produção de textos orais e escritos, que devem
permitir, por meio da análise e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a
expansão e construção de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente,
389
ampliar sua competência discursiva. (PARÂMETROS CURRICULARES
NACIONAIS - 5ª à 8ª séries, 1998, p. 27).

De acordo com o trecho destacado acima, atividades discursivas como: escuta de textos orais,
leitura de textos escritos e produção de textos orais e escritos devem constituir a essência do trabalho
com a língua portuguesa, pois a análise e reflexão sobre os aspectos envolvidos nessas atividades
podem propiciar uma ampliação progressiva da competência discursiva do aluno.
A presença do texto, tanto oral quanto escrito, em sala de aula é imprescindível para que o
aluno desenvolva suas habilidades linguísticas. O limite instituído pelo vocábulo e pela frase precisa ser
superado para que o universo textual seja estabelecido. Adentrar esse universo e desvendar a maneira
pela qual se constitui a partir de análises linguísticas críticas tornam-se atitudes fundamentais para a
construção de uma competência linguística verdadeira e eficiente.
Certamente a proposta apresentada pelos PCNs é importante e precisa ser implementada não
somente em aulas de língua portuguesa, mas em todo e qualquer trabalho que vise uma formação
proficiente de leitores e produtores de textos.
Defendendo a ideia de se instituir no processo de ensino e aprendizagem de língua materna uma
prática de reflexão e análise linguística, proposta esta defendida também pelos PCNs, Marcos Bagno
apresenta a pesquisa linguística como uma alternativa para se empreender um trabalho com a língua a
partir de uma abordagem diferente daquela efetivada tradicionalmente pela gramática normativa.
Em Bagno (2002) podemos acompanhar passo a passo a proposta do autor. Ali são
apresentados cinco passos, os quais constituem o caminho a ser percorrido para se chegar à
concretização do processo.
Como primeiro passo, o autor coloca a necessidade de verificar a maneira pela qual é tratado
determinado fenômeno linguístico pela abordagem tradicional presente na gramática normativa, livro
didático, manual de redação e etc. O segundo passo é a investigação do fenômeno numa perspectiva
histórica. Essa investigação servirá para mostrar que muitos usos presentes em variedades linguísticas
não prestigiadas têm uma explicação na própria evolução histórica da língua e, portanto, não são
invenções de pessoas ignorantes que o tempo todo ―rasgam o dicionário e a gramática‖, segundo
afirmam alguns gramáticos paranoicos.
O terceiro passo é a investigação da língua viva, falada e escrita. A ideia é a de selecionar um
corpus de língua culta falada e um corpus de língua escrita culta em uso na atualidade em textos de
revistas, jornais, entrevistas e etc., para que a partir dessas realizações o estudante verifique e adquira
um domínio culto real da língua e não aquele idealizado pela abordagem tradicional. Obviamente, que
um estudo de outras variantes da língua não está descartado.
O quarto passo é a apresentação de explicações alternativas para determinado fato linguístico
que recebe uma análise incoerente efetuada pela tradição gramatical. A partir da investigação da língua
390
viva, o estudante certamente chegará a resultados diferentes daqueles expostos pela abordagem
tradicional. Chegando a este ponto, então, o professor, que deve estar de posse de um arcabouço
teórico que dê conta de explicar os fenômenos em evidência na língua, vai junto com os alunos elaborar
hipóteses que esclareçam tais ocorrências.
O quinto e último passo é constituído pelas conclusões. A partir dos resultados obtidos na
pesquisa o estudante, juntamente com seu professor, estará apto a submeter a doutrina gramatical
tradicional a críticas pautadas em pressupostos linguísticos e chegar até mesmo a propor a revisão das
bases teóricas que sustentam essa doutrina problemática e insuficiente para explicar a língua em sua
dinamicidade.
No ponto de vista do autor, a pesquisa linguística tem muito a contribuir com a pedagogia de
ensino e aprendizagem de língua materna. Para o professor é uma oportunidade de construção de uma
postura muito mais autônoma referente ao seu trabalho, pois mesmo sendo pressionado a utilizar a
gramática e o livro didático de abordagem tradicional poderá posicionar-se de maneira crítica diante
dessa ideologia. Para o aluno é uma chance de desenvolver sua capacidade de análise e de reflexão
crítica, não apenas no que se refere à língua, mas a outros campos do conhecimento com os quais
venha a interagir.
Acreditamos na necessidade de instituir-se no âmbito do processo de ensino e aprendizagem de
língua materna uma verdadeira e efetiva educação linguística. Para Bagno,
o objetivo da escola, no que diz respeito à língua é formar cidadãos capazes de se
exprimir de modo adequado e competente, oralmente e por escrito, para que possam se
inserir de pleno direito na sociedade e ajudar na construção e na transformação dessa
sociedade – é oferecer a eles uma verdadeira educação lingüística. (BAGNO, 2002, p. 80).

Nessas palavras do autor podemos ver implicitamente que uma educação linguística é algo que
vai além da abordagem gramatical e tradicional, a qual está voltada para o ensino de um padrão
idealizado de língua, resumido numa incoerente nomenclatura gramatical, pois tal proposta tem falhado
em sua função de formar usuários da língua efetivamente competentes no sentido de se exprimir de
maneira habilidosa, por meio da oralidade e da escrita.
Vimos aqui algumas propostas inovadoras que certamente, constituem um novo olhar sobre o
processo de ensino e aprendizagem de língua portuguesa. Pensamos que tais propostas fazem parte de
um projeto que efetivamente é de construção de uma educação linguística. Acreditamos que a
implementação desse projeto tem muito a contribuir para a formação de usuários proficientes da língua
e para uma concepção muito mais democrática a respeito dela, onde haja espaço para uma convivência
harmoniosa entre as diversas variantes linguísticas que se manifestam em língua portuguesa e para o
reconhecimento do valor linguístico que cada uma possui.
Para finalizar, queremos ressaltar que além das propostas sucintamente apresentadas referentes
ao ensino e aprendizagem de língua portuguesa no sentido mais global, encontramos em Bagno (2007)
391
sugestões de atividades que podem auxiliar no tratamento pedagógico do tema ―variação linguística‖,
em sala de aula. Essas propostas constituem alternativas para um trabalho que proponha fazer uma
abordagem muito mais científica e menos preconceituosa do tema.

ÚLTIMAS PALAVRAS
Chegando ao final deste texto concluímos que se faz urgente a mudança do paradigma
educacional que está instituído nas instituições de ensino de língua portuguesa. Constatamos neste
artigo, que tal modelo, baseando-se na abordagem tradicional (gramática normativa), prioriza um ensino
pautado num padrão idealizado de língua, o qual inferioriza e discrimina todo e qualquer uso que se
afaste deste referencial. A escola, neste contexto, ignora o fenômeno da variação linguística e, desta
forma, ignora os próprios usuários das variantes que não gozam de prestígio social. Infelizmente,
muitos professores também comungam desta ideologia.
Assim, pensamos que se almejamos uma pedagogia de ensino e aprendizagem de língua
portuguesa que de fato forme usuários competentes da língua, tanto em sua modalidade oral quanto
escrita, capazes de reconhecer sem preconceitos as diferenças linguísticas expressas em cada uma de
suas variantes e de utilizá-las, adequando-as às diversas situações de comunicação, devemos reconhecer
e difundir a implementação progressiva de uma educação autenticamente linguística em nossas escolas.
Acreditamos que uma educação dentro desses parâmetros contribuirá de forma extremamente
significativa para a formação de cidadãos críticos e conscientes, capazes de usar a língua como um
instrumento que pode contribuir para a transformação social e para a construção de uma sociedade
mais justa e igualitária.

REFERÊNCIAS

BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico – o que é, como se faz. 22ª ed. São Paulo: Loyola, 1999.
______. A norma culta: língua e poder na sociedade brasileira. São Paulo: Parábola, 2003.
______. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. 2ª ed. São Paulo: Parábola, 2007.
______; GAGNÉ, Gilles; STUBBS, Michel. Língua materna: letramento, variação e ensino. São Paulo:
Parábola, 2002.
BECHARA, Evanildo. Ensino da Gramática: opressão? Liberdade? 8ª ed. São Paulo: Ática, 1995.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do
ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25ª ed. São Paulo: Paz e
Terra, 1996.
MUSSALIM, Fernanda & BENTES, Ana Christina.(orgs.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. vol.
1. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2007.
392
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. São Paulo: Mercado de Letras: Associação de
Leitura do Brasil, 1996.
SILVA, Rosa Virgínia Mattos. O português são dois: novas fronteiras, velhos problemas. São Paulo: Parábola,
2004.
TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolingüística. 7ª ed. São Paulo: Ática, 2005.
393
O GÊNERO TEXTUAL ARTIGO DE OPINIÃO E O ENSINO DE LÍNGUA
PORTUGUESA EM UMA TURMA DO 3º ANO DO ENSINO MÉDIO
Gabriel Domício Medeiros Moura Freitas160

Resumo: Essa pesquisa resulta de atividades desenvolvidas durante o período em que cursamos uma
das disciplinas de Estágio Supervisionado existentes no currículo do curso de licenciatura em Letras
Português da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Naquela ocasião, realizamos observações de
algumas aulas de Língua Portuguesa em uma sala de aula do 3º ano do Ensino Médio de uma escola
pública, para, pouco tempo depois, ministrarmos um pequeno curso relativo à leitura, análise linguística
e produção textual de dois artigos de opinião. Assim, tendo a finalidade de tornar possível o trabalho
com este gênero discursivo na turma escolhida, elaboramos uma sequência didática tomando como
base as contribuições teórico-metodológicas que consideram a (língua)gem de forma contextualizada,
segundo as múltiplas interações promovidas pelos sujeitos em suas relações sociais mais ou menos
formais. Nesse sentido, dentre os objetivos relativos à realização desta nossa proposta, destacamos:
verificar as condições de ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa vivenciadas por nosso público-
alvo no respectivo contexto escolar; abordar o gênero textual escolhido destacando suas características,
diferenciando-o também de outros gêneros textuais encontrados socialmente; oferecer alguma
contribuição ao desenvolvimento das habilidades de leitura, análise linguística e produção de texto
daqueles alunos. A fundamentação teórica destinada a embasar os momentos de observação e
participação nas aulas de Língua Portuguesa encontra-se em Antunes (2003, 2007), Bakhtin (1992,
1997), Bunzen (2006), Geraldi (1993), Schneuwly e Dolz (2004), dentre outros.
Palavras-chave: Ensino; Língua Portuguesa; Gênero textual; Artigo de opinião; Ensino Médio.

Abstract: This study is result of some activities developed throughout the period we had attended one
of the supervised practices offered by Portuguese Language bachelor´s degree from Universidade
Federal da Paraíba (UFPB). During that time, we had observed some Portuguese Language classes
which took place in a classroom related to High School´s last grade. Few days later, we had offered to
these students an intensive course about reading, linguistic analysis and textual production involving
articles written and to be written in Portuguese. To achieve this purpose, we had prepared a didactical
sequence based on theoretical-methodological contributions which consider language emerging from a
context, according to the multiple interactions promoted by subjects in social relations either more
formal or more informal. So our purpose has the following aims: verify teaching and learning
conditions related to Portuguese Language experienced by our public in its school context; work with
articles among the students emphasizing first´s characteristics and also establishing the differences
between other textual genre and this one; offer some contribution to the development of that students´
reading, linguistic analysis and textual production skills. Otherwise, our work´s theoretical basis can be
found in Antunes (2003, 2007), Bakhtin (1992, 1997), Bunzen (2006), Geraldi (1993), Schneuwly e Dolz
(2004) and others.
Keywords: Teaching; Portuguese Language; Textual genre; Article; High School.

160 Mestre em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: [email protected] .
394
INTRODUÇÃO

Nesse trabalho, discutiremos nossa experiência relacionada à disciplina Estágio Supervisionado


VI, uma das disciplinas previstas no currículo da graduação do curso de Letras Português da
Universidade Federal da Paraíba. Desse modo, nossa discussão abrangerá as etapas de planejamento e
realização de atividades relativas ao ensino de Língua Portuguesa, destinadas a uma turma do 3º ano do
Ensino Médio de determinada escola pública.

As discussões relativas ao planejamento serão abordadas inicialmente, o que inclui a


apresentação de questões sobre a elaboração tanto do plano de aula quanto da sequência didática, etapa
mais específica em relação à primeira. Por fim, discutiremos a respeito da aplicação desses
procedimentos didáticos planejados naquela turma do 3º ano do Ensino Médio inicialmente observada.

Esses momentos de observação de algumas aulas ali ocorridas, entretanto, não constarão nesse
artigo em virtude de limitações de espaço, embora eles tenham sido originalmente concebidos para
constar no texto aqui publicado, juntamente com o diagnóstico da escola onde aquela turma se
encontrava. Se for o caso, publicaremos, em outra ocasião, nova versão dessa análise, na qual esteja
disponibilizada a discussão sobre ambos os tópicos ora suprimidos por força da necessidade.

1. O PLANEJAMENTO E ELABORAÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO

Para desenvolvermos uma atividade na turma do 3º ano do Ensino Médio cujas aulas de Língua
Portuguesa inicialmente observamos, preparamos um plano de aula e uma sequência didática com a
finalidade de fundamentar, tanto teórica quanto metodologicamente, as práticas de ensino
posteriormente realizadas com aqueles alunos. Nesse sentido, começaremos discutindo questões mais
gerais relacionadas ao primeiro, passando, em seguida, a discutir as especificidades próprias da segunda.

Iniciamos nosso plano de aula estabelecendo o artigo de opinião como gênero textual a ser
trabalhado naquele contexto. Desse modo, uma vez escolhido o objeto de ensino, pesquisamos alguma
definição a seu respeito e concluímos que ele se caracteriza como um gênero discursivo no qual o/a
autor/a desenvolve seus argumentos sobre determinado tema, sendo, portanto, um dos gêneros mais
importantes do domínio jornalístico. Assim, tal escolha se destinou à realização, em momentos
distintos, de atividades de leitura, análise linguística e produção textual, as quais não devem ser
consideradas dissociadamente em qualquer planejamento escolar relacionado ao trabalho com a Língua
Portuguesa.
395
Após escolhermos o objeto de ensino, estabelecemos os objetivos a serem alcançados com a
realização de nosso plano de aula, os quais compreendem o desenvolvimento de algumas habilidades
relacionadas à Língua Portuguesa por parte dos respectivos estudantes, permitindo-lhes, portanto:
compreender o que caracteriza um gênero textual; perceber as especificidades de um artigo de opinião
como gênero textual; desenvolver a competência de leitura a partir deste; estabelecer a relação entre o
uso de determinado recurso linguístico e sua finalidade argumentativa no gênero textual escolhido;
produzir um artigo de opinião, o qual inclui o processo de re-escritura.

Os cinco objetivos acima mencionados, por sua vez, estão relacionados ao conteúdo que
embasa o trabalho com artigo de opinião proposto nesse plano de aula e, consequentemente, na
sequência didática comentada pouco mais adiante nessa seção. Assim, os seguintes pontos foram
estabelecidos como fundamento para as finalidades descritas no parágrafo anterior: desenvolvimento da
competência em leitura a partir da abordagem do objeto de ensino escolhido; definição de gênero
textual e apresentação de suas características; o gênero artigo de opinião e seus constituintes; o uso de
determinado recurso linguístico (dêixis) e sua finalidade argumentativa (coesão textual e
posicionamento do locutor no texto); desenvolvimento da competência escrita mediante a produção de
um artigo de opinião, incluindo-se aí o processo de re-escritura.

Uma vez delineados o objeto de ensino, os objetivos e o conteúdo referentes ao plano de aula,
discorremos sobre as questões metodológicas destinadas a favorecer um processo de
ensino/aprendizagem relacionado à nossa proposta de trabalho mais eficaz. Desse modo, a
metodologia aí desenvolvida compreende os seguintes procedimentos: o recurso a aulas expositivo-
dialogadas, as quais permitem também a participação dos alunos durante a realização das atividades
planejadas, evitando, com isso, a centralização do discurso em torno de quem encaminha a respectiva
prática de ensino; uso de slides apresentados em datashow (o que foi possível quando o planejamento e
a sequência didática, discutida a partir do próximo parágrafo, foram aplicados na respectiva turma,
como comentaremos no subtópico seguinte); uso da lousa ou do quadro negro disponível em sala de
aula; distribuição do(s) artigo(s) de opinião escolhido(s) aos estudantes; discussão das relações entre
forma e conteúdo do gênero textual escolhido.

Concluído o plano de aula, passamos a elaboração da sequência didática, que representa, como
já comentamos anteriormente, uma especificação das questões abordadas naquele planejamento, pois
aqui há a descrição das atividades a serem trabalhadas com a turma e o encadeamento sequencial
envolvido em sua realização. Assim, antes de desenvolvermos as atividades mais propriamente
relacionadas ao gênero textual escolhido, procuramos saber dos alunos qual a relação deles frente à
leitura de modo geral, seu entendimento a respeito da noção de gênero textual e, consequentemente,
quais gêneros textuais eles conheceriam. Nesse primeiro momento, nossa finalidade é estabelecer uma
396
interação mais pessoal em relação aos estudantes daquela turma por meio de suas respostas às três
questões apresentadas, buscando favorecer aí também o surgimento e a posterior manutenção do
interesse dos mesmos pelos momentos seguintes do trabalho envolvendo o artigo de opinião.

A seguir, discutimos, com base em Geraldi (1993), as características próprias de um gênero


textual, que estão relacionadas à própria definição deste, tanto de modo geral quanto especificamente,
no caso do artigo de opinião então discutido em sala de aula. Logo, qualquer gênero discursivo deve
apresentar os seguintes aspectos para ser assim considerado: quem enuncia; para quem se enuncia; uma
finalidade argumentativa; um suporte, ou seja, o meio pelo qual o texto ganha divulgação perante o
público; determinado momento de produção (ocasião de surgimento de determinada construção textual
dessa natureza); linguagem mais próxima da formalidade ou da informalidade, dependendo do
respectivo contexto de enunciação; circulação social, incluindo-se aí, a depender do caso, contextos
enunciativos mais específicos ou mais diversificados.

Após essas considerações mais gerais sobre o artigo de opinião, apresentamos as características
tradicionalmente associadas a esse gênero textual, sendo elas a argumentatividade (nesse sentido, a
informatividade também está presente em sua composição, mas com o objetivo de fundamentar os
argumentos ali desenvolvidos), o uso da dêixis (elementos linguísticos que, dispondo de sentido fixo,
dependem da especificação de determinado contexto para terem seu sentido completo. Isso ocorre
tanto entre pronomes pessoais do caso reto e do caso oblíquo quanto no caso dos advérbios de lugar e
de tempo, por exemplo), a predominância do presente do indicativo como tempo verbal predominante,
além da primeira pessoa do plural e da terceira pessoa do singular e/ou do plural como pessoas verbais
predominantes.

Apresentadas as características gerais e específicas relativas à definição de gênero textual,


solicitamos aos alunos a leitura silenciosa do artigo de opinião ―Fala, garota!‖, de Ivan Martins,
publicado em 09 de fevereiro de 2011 e recolhido do site da Revista Época em 10 de maio de 2012. Esse
primeiro momento tem duração de, aproximadamente, quinze minutos. Logo depois, um dos
ministrantes lê o mesmo texto para a turma, permitindo, assim, ao público ter contato com algum
modelo de leitura que lhe possa ajudar nas mais diversas experiências como leitor/a de textos escritos.
Ao final, quem fica encarregado de ler o referido artigo aos estudantes promove uma discussão sobre
este com os últimos, destacando aí, portanto, questões de forma e conteúdo encontradas nessa
construção textual.

Outro artigo de opinião foi escolhido para ser trabalhado em sala de aula, intitulado ―As
‗garotas tipo‘ vão mudar o mundo‖, também de Ivan Martins e publicado em 21 de março de 2012,
tendo sido capturado no site da Revista Época em 10 de maio de 2012. Inicialmente, uma leitura
397
silenciosa é solicitada aos alunos, os quais devem realizá-la durante, aproximadamente, quinze minutos.
Encerrado esse primeiro momento, outro ministrante lê o texto para a classe, de modo a permitir o
contato dos estudantes com um novo modelo de leitura que lhes auxilie nas variadas experiências como
leitores de textos na modalidade escrita. Por fim, há uma discussão sobre esse segundo artigo, quando
aspectos de forma e conteúdo aí encontrados são discutidos pelo novo expositor entre o público
presente.

Concluídas todas as etapas relativas aos dois artigos de opinião mencionados, cabe-nos solicitar
que os alunos produzam um artigo de opinião com base em todas as questões discutidas até então.
Nesse sentido, a produção textual solicitada deverá estar relacionada ao seguinte tema: Desafios e
conquistas da mulher no século XXI. No tópico a seguir, discutiremos a aplicação do plano de aula e, mais
especificamente, da sequência didática em uma turma de 3º ano do Ensino Médio da escola pública por
nós visitada.

2. A PRÁTICA EM SALA DE AULA


No dia 18 de maio de 2012, estivemos em uma turma do 3º ano do Ensino Médio de
determinada escola pública para desenvolvermos as atividades previstas na sequência didática discutida
no subtópico anterior. Assim, iniciamos nossa participação entre os alunos daquela sala às 13:30 h.
aproximadamente, concluindo a mesma em torno das 16:40 h.. Nessa ocasião, somente estiveram
presentes dez estudantes, embora constassem apenas nove signatários na lista de presença entregue ao
término da aula.

Os alunos ali presentes se mostraram interessados e atentos aos conteúdos ministrados na


ocasião, tendo alguns deles demonstrado mais claramente esse interesse, pois discutiram as questões
apresentadas durante o desenvolvimento daquelas atividades relativas ao gênero artigo de opinião.
Assim, não tivemos que lidar com quaisquer problemas de indisciplina ou mau comportamento entre
os estudantes daquela turma. Nesse contexto, seguimos as etapas da sequência didática descrita
anteriormente, iniciando nosso trabalho, portanto, questionando aquele público a respeito de sua
relação frente à leitura e de seu conhecimento sobre a noção de gênero textual.

Ao responderem a esses questionamentos, a quase totalidade dos alunos demonstrou ter algum
hábito de leitura por meio do contato com textos encontrados na internet, em jornais e/ou em revistas
de temáticas variadas. Por outro lado, enquanto uma aluna afirmou ‗não gostar de ler nada‘,
demonstrando ter interesse apenas pelas telenovelas, outro aluno fez questão de enfatizar seu gosto
pelos temas relacionados à Língua Portuguesa e Literatura, inclusive a ponto de manifestar sua intenção
em prestar vestibular para o curso de Letras. Frente ao depoimento daquela estudante, tentamos
398
mostrar que ela, mesmo sem o perceber, não somente possui hábito de leitura, mas também adota
frequentes práticas de pesquisa em situações aparentemente insuspeitas.

As características do gênero textual em geral e, mais especificamente, do artigo de opinião


foram apresentadas para serem discutidas a partir da análise dos dois textos escolhidos para serem
trabalhados naquela turma. Verificamos, por exemplo, que a 1ª pessoa do plural e a 3ª pessoa do
singular e/ou do plural não são as pessoas verbais predominantes nos respectivos artigos, o que
evidencia, portanto, formas diversas de composição desses exemplares frente ao modelo
tradicionalmente consagrado nessa modalidade de gênero discursivo. Desse modo, o uso da primeira
pessoa do singular em ambos os casos, principalmente no caso de ―Fala, garota!‖, evidencia uma
estratégia argumentativa por parte do locutor configurado nessas composições textuais, o qual busca
fundamentar seus argumentos a partir de algumas das suas experiências.

Nesse contexto, enfatizamos a necessidade de os alunos observarem que os vestibulares e


outros concursos públicos exigem, pelo menos ainda, de seus candidatos a adequação da produção
textual aos traços considerados próprios do gênero textual requerido na respectiva avaliação. Tal
advertência, todavia, em nada compromete a definição deste como um enunciado dotado de uma forma
relativamente estável e, consequentemente, passível de transformações ao longo do tempo, conforme
destaca Bakhtin (1997, p. 279) nas suas considerações sobre o que define ou caracteriza os gêneros
textuais/discursivos.

Por outro lado, as demais características relativas ao artigo de opinião (argumentatividade, uso
de dêixis e presença do presente do indicativo como tempo verbal predominante) podem ser
encontradas nos dois textos trabalhados em sala de aula. Nesse sentido, a prevalência do caráter
argumentativo, como já comentamos anteriormente de forma breve, não significa ausência de
informatividade, uma das características consideradas próprias, por exemplo, da notícia e da
reportagem, pois um conjunto de informações deve estar reunido com a finalidade de fundamentar os
argumentos apresentados pelo locutor em cada um dos respectivos artigos. Devemos salientar ainda
que o recurso à dêixis, além de representar uma estratégia argumentativa adotada pelo enunciador, atua
no sentido de conferir coesão às composições textuais, pertencentes ao gênero textual aqui discutido ou
não, evitando-se, assim, a ocorrência de repetições desnecessárias na elaboração de determinado texto.

Ao discutirmos os artigos de opinião, destacamos também a questão de determinadas


classificações apresentadas pelos manuais relacionados à Gramática Normativa não encontrarem
adequação em relação a exemplos encontrados em cada uma das composições textuais discutidas em
sala de aula. Desse modo, a conjunção ‗e‘, além de conferir uma ideia de adição perante determinada
399
oração anterior, pode desempenhar a função de introduzir determinada posição do locutor no
respectivo contexto argumentativo.

Essa mesma partícula, contudo, apresenta natureza adversativa (de contraposição ou oposição
de ideias) em diferentes passagens de ambos os textos opinativos, evidenciando, desse modo, a
limitação ainda encontrada entre alguns compêndios de gramática e livros didáticos no sentido de
considerar apenas o caráter aditivo desse elemento linguístico. Por outro lado, enfatizamos outras
estratégias argumentativas utilizadas pelo enunciador na elaboração de sua argumentação, ressaltando aí
as diferentes funcionalidades de cada caso. Exemplos disso são o uso dos parênteses e do hífen (o
primeiro para se referir a um pensamento paralelo àquele que está sendo enunciado e o segundo com a
finalidade de apresentar um argumento decisivo) e os advérbios dotados de valor discursivo (‗claro‘,
‗infelizmente‘, ‗conscientemente ou não‘), evidenciando os últimos o posicionamento do locutor em
determinado contexto argumentativo.

Após terminarmos a discussão sobre todas as questões envolvendo o gênero discursivo


escolhido, solicitamos aos alunos presentes naquela ocasião a produção textual de um artigo de opinião,
com base em todos os pontos de forma e conteúdo a ele relativos discutidos até ali, a partir do tema
Desafios e conquistas da mulher no século XXI. De um total de dez estudantes, apenas seis entregaram a
atividade solicitada. Durante nossa correção dos artigos produzidos, registramos as passagens que
merecem atenção de seu/sua autor/a para a realização de ajustes em momentos posteriores de revisão e
re-escritura, respectivamente.

Dentre os problemas mais recorrentes encontrados nesses textos corrigidos, podemos


mencionar: confusão entre título e tema; omissão de acentos gráficos em determinadas palavras;
repetições desnecessárias; recurso a afirmações generalizantes ou baseadas no senso comum; ausência
de conectores responsáveis pela articulação entre os argumentos; falta de especificação necessária à
contextualização de determinada argumentação; vírgulas e pontos ausentes ou colocados em momentos
indevidos; uso de termos inadequados como ‗nos tempos de hoje‘, ‗nos dias de hoje‘ e ‗atualmente‘.
Nesse contexto, devemos destacar que um dos alunos não escreveu seu texto obedecendo ao
alinhamento justificado dos parágrafos, válido para composições textuais produzidas em qualquer tipo
de suporte, seja ele uma folha de papel ou um documento vinculado a determinado programa para
computador.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
400
A preparação teórico-metodológica de nossa participação em uma turma do 3º ano do Ensino
Médio de uma escola pública, requerendo a quase totalidade da carga horária disponível para a
disciplina de Estágio Supervisionado VI, destinou-se ao desenvolvimento das atividades planejadas em
apenas uma tarde, abrangendo o horário entre 13:30 h. e 16:40 h., aproximadamente, do dia 18 de maio
de 2012.

Essa discrepância entre o tempo para o planejamento das atividades e aquele disponível à sua
realização é resultado da estruturação das quatro disciplinas de Estágio Supervisionado no curso de
Letras Português da Universidade Federal da Paraíba, as quais evidenciam uma ênfase demasiada e
desnecessária em exigências burocráticas dos alunos ali matriculados que acabam comprometendo o
propósito a ser perseguido nos referidos módulos: contribuir para a formação da prática docente dos
estudantes vinculados àquela licenciatura.

Devemos salientar que nossa experiência prática nas disciplinas de Estágio Supervisionado IV e
V foi ainda mais restrita, pois dispusemos apenas de duas aulas geminadas (um total de 90 minutos)
para desenvolvermos as atividades planejadas, cujo tempo reservado ao planejamento teve de ser
tumultuosa e indevidamente compartilhado com preocupações de ordem burocrática relativas à
quantidade de documentação a ser entregue em diferentes lugares (escola, coordenação de curso,
coordenação de estágio, Pró-Reitoria de Graduação) e de assinaturas necessárias em cada documento.
Como se isso não bastasse, tivemos de lidar com seguidas informações desencontradas sobre os
modelos de documento a serem entregues, os encarregados de assinar as respectivas documentações e
os locais aonde os documentos deveriam ser encaminhados.

No caso da disciplina Estágio Supervisionado VI, tivemos maior tempo de prática de ensino em
relação às duas disciplinas anteriores de mesma natureza graças à decisão da professora responsável por
essa última de relevar as preocupações burocráticas e buscar conferir, mesmo diante das limitações
estruturais de organização curricular, mais oportunidade para participação em sala de aula. Por outro
lado, como ela mesma deverá salientar no seu relatório sobre as atividades ali desenvolvidas ao longo
do semestre, espera-se que estas contribuam no sentido da construção de uma ‗cultura de estágio‘
destinada não somente a constituir um conjunto de procedimentos comuns aos quatro módulos
práticos de Estágio Supervisionado previstos curricularmente, mas também a permitir uma formação
docente mais qualificada nesse contexto.

REFERÊNCIAS:
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401
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403
ENTRE DEUS E O DIABO: A VITALIDADE DAS “EXPRESSÕES
POPULARES” QUE ENVOLVEM O MÍTICO, O RELIGIOSO E O
PROFANO EM BELÉM - PA.
Giselda da Rocha Fagundes161

Resumo: A partir de uma coletânea de expressões populares, mais popularmente chamadas de


provérbios ou ditados populares, surgiram os seguintes questionamentos: Será que os jovens conhecem
essas expressões? Será que elas são correntes em Belém do Pará? Quem usa essas expressões? Diante
de tantos questionamentos nasceu um estudo que se propôs a verificar a vitalidade dessas expressões
populares, contudo nesse primeiro momento, estudamos apenas as expressões que envolvem o mítico,
o religioso e o profano na capital do Pará, Belém. Neste trabalho faço uso do termo ―Expressões
populares‖, para nomear as frases que fizeram parte da pesquisa, pois, para a coleta de dados, foram
selecionadas, de uma coletânea com mais de 2.000 expressões populares, 130 expressões envolvendo
passagens bíblicas, ou em que constasse o vocábulo Deus ou Diabo, cujos significados variam entre
moralizantes e cômicos.Esta pesquisa traz, ainda: uma explanação sobre as or igens e classificações
atribuída as expressões populares (provérbio, ditados, máximas, chufas, dentre outros).

Palavras-chave: Sociolinguística; Expressões Populares; Vitalidade

Abstract: From a collection of popular expressions, more popularly called proverbs or sayings,
emerged the following questions: Do young people know these expressions? Are they current in
Belem? Who uses these expressions? Faced with so many questions born a study that sought to
establish the vitality of popular expressions, but that first time, we studied only expressions involving
the mythical, the religious and the secular in the capital of Pará, Belém In this paper I use the term
"popular expressions, "to name phrases that were part of the research, therefore, for data collection
were selected from a collection of more than 2,000 popular expressions, expressions involving 130
Bible passages, or that were stated in the word God or Devil whose meanings vary between moralizing
and cômicos.Esta research also brings: an explanation of the ratings assigned or igens and popular
expressions (proverbs, sayings, maxims, tiger nuts, among others).

Keywords: Sociolinguistics; Popular Expressions; Vitality

1. Introdução

A partir de uma coletânea de expressões populares, mais popularmente chamadas de provérbios


ou ditados populares, surgiram os seguinte questionamento: Será que os jovens conhecem essas
expressões? Será que elas são correntes em Belém do Pará? Quem usa essas expressões?
Diante de tantos questionamentos nasceu um estudo que se propôs a verificar a vitalidade
dessas expressões populares, contudo nesse primeiro momento, estudamos apenas as expressões que
envolvem o mítico, o religioso e o profano na capital do Pará, Belém.
Os resultados desta pesquisa serão apresentados neste artigo, que trará ainda: uma explanação
sobre a origem e classificações atribuídas as expressões populares (provérbio, ditados, máximas, chufas,

161
Mestranda em Linguística na Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected]
404
dentre outros); a metodologia utilizada na pesquisa; os resultados; algumas considerações; e as
referências que embasaram este estudo.

2. Provérbios ou ditados populares? Conheces?


Comumente ouvimos alguém dizer que expressões como: ―Gato escaldado tem medo de água
fria‖ ou ―Depois da tempestade, vem a bonança‖, são ditados populares ou provérbios,
respectivamente, mas também é comum que não saibamos a diferença entre uma ou outra forma de
nomear frase de cunho moralizante, de vivência, ou mesmo gracejos.
Sobre a origem dos chamados provérbios Vellasco (2010) descreve que:

A origem dos provérbios está, indubitavelmente, na sabedoria popular. Eles são parte
do folclore dos povos, assim como as lendas, os mitos, as superstições e as canções, vez
que traduzem conhecimentos e crenças. São uma manifestação do passado cristalizada
no presente. Sendo folclóricos, os provérbios são enunciados anônimos - à exceção dos
provérbios bíblicos, que se encontram no Livro dos Provérbios, no Antigo Testamento,
assim chamados apesar de serem atribuídos ao Rei Salomão. São cultura eminentemente
oral, transmitida boca-a-boca, de geração a geração, mesmo hoje em dia, quando a mídia
tem papel preponderante na nossa sociedade. São fruto da experiência cotidiana
individual ou grupal, de quem vivenciou determinadas verdades.

Os estudos fraseológicos afirmam que as primeiras ocorrências encontradas remontam aos


egípcios, onde elucida Maria Helena Trench de Albuquerque (aput Bragança Júnior 2010, p.22):

os ‗sebayts‘ (ensinamentos), equivalentes aos provérbios atuais são citados desde


o terceiro milênio A.C. Entre os hebreus e os aramaicos o provérbio
representava a palavra de um sábio. No século VI A.C. aparecem as Palavras
de Ahiqar e no século IV A.C. os Provérbios de Salomão. Entre os gregos,
‗gnômê‘ (pensamento) e ‗paroemia‘ (instrução) cobrem as noções de provérbio,
sentença, máxima, adágio, preceito etc., aparecendo em obras de Platão,
Aristóteles e Ésquilo...

Já no título deste artigo ―Entre Deus e o diabo: A vitalidade das expressões populares que
envolvem o mítico, o religioso e o profano em Belém – PA‖ faço uso do termo ―Expressões
populares‖, para nomear as frases que fizeram parte da pesquisa, pois, para a pesquisa, foram
selecionadas, de uma coletânea com mais de 2.000 expressões populares, 130 expressões envolvendo
passagens bíblicas, ou em que constasse o vocábulo Deus ou Diabo, cujos significados variam entre
moralizantes e cômicos.
Segundo Vellasco (2010) no Brasil:

o provérbio tem por sinônimos adágio, rifão ou refrão, anexim, dito, ditado e parêmia,
que se diferenciam uns dos outros, apenas por matizes. Entendo o rifão e o anexim
como francamente vulgares. O rifão em estilo baixo e muitas vezes em baixos termos:
405
Da cintura pra baixo, tanto faz a galinha como a sardinha; Amor de rameira e convite de
hoteleiro, sempre custam dinheiro; e o anexim geralmente encerrando o mesmo estilo,
com ironia ou chiste: Mais vale um cachorro amigo do que um amigo cachorro. Refrão
é vocábulo praticamente desusado nesta acepção, absorvido por rifão. Ditado é a
designação geral do provérbio ou adágio, do rifão e do anexim. Parêmia é a voz grega
(Paroimia) equivalente à latina provérbio, sinônimo perfeito, mas pouco usado no
Brasil.

A busca pela diferenciação entre Provérbio e Ditado Popular fez com que, para este trabalho,
adotasse unicamente ―Expressões populares‖, todavia, para melhores esclarecimentos, em Aurélio
Buarque de Holanda (1995) encontramos as seguintes definições para cada termo relacionado aos
provérbios e outras expressões populares:

- adágio. [Do lat. adagiu] S.m. V. provérbio ...; (p. 43)


- aforismo [Do grego aphorismós, pelo lat. aphorismu.] s.m. sentença moral breve e conceituosa;
máxima ...; (p. 58)
- anexim (x=ch). [Do ar. an-naxid.] s.m. 1. v. provérbio... 2. Dito sentencioso.; (p. 119)
- apotegma. [Do grego apophtegma.] s.m. 1. Dito curto e sentencioso, aforismo, máxima...; (p. 147)
- axioma (cs ou ss). [Do gr. axioma, pelo latim axioma.] s.m. 1. Filos. Premissa imediatamente evidente
que se admite como universalmente verdadeira sem exigência de demonstração. 2. P. ext. Máxima,
sentença ...; (p. 209)
- brocardo. [Do lat. medieval brocardu] s.m. 1. Axioma jurídico. 2. Axioma, aforismo, máxima,
sentença, provérbio...; (p. 287)
- chufa. [Voc. onom., calcado no lat. vulg. sufilare, sibilare, ‗assobiar‘.] s.f. Dito trocista; caçoada, troça,
remoque, mofa...; (p. 399)
- dictério. [Do gr. deiktérion, pelo lat. dicteriu] s.m. Troça, zombaria, motejo, escárnio, chufa, dichote...;
(p. 587)
- ditado [Do lat. dictatu.] s.m. ... . 3. v. provérbio (1)...; (p.601)
- ditame. [Do lat. dictamen.] s.m. ... 2. O que a consciência e a razão dizem que deve ser... 3. Regra,
aviso, ordem, doutrina...; (p. 601)
- ditério. s.m. 1. Var. de dictério. 2. Bras. S. Pop. V. dito (5); (p. 601)
- dito. [Do lat. dictu.] Adj. 1. Que se disse; mencionado, referido. S.m. 2. Palavra, expressão. 3.
Sentença, frase. 4. Provérbio, ditado. 5. Mexerico, enredo, ditinho...; (p.601)
- dizer1. [Do lat. dicere.] s.m. ... Expressão, dito ...; (p. 603)
- gnoma. [Do gr. gnóme, pelo lat. gnome. s.f. sentença moral | V. máxima (2) |; (p. 855)
- máxima (ss). [Fem. substantivado de máximo.] s. f. 1. Princípio básico e indiscutível de ciência ou arte;
axioma. 2. Sentença ou doutrina moral... 3. Conceito, aforismo, pensamento, apotegma... 4. Anexim...;
(p. 1106)
406
- motejo (ê). Do it. moteggio. S.M. 1. V. zombaria... 2. Dito picante; gracejo.; (p. 1164)
- parêmia. [Do gr. paroimía, pelo lat. paroimia.] s.f. 1. Breve alegoria. 2. Provérbio, prolóquio.; (P. 1270)
- prolóquio. {Do lat. [proloquiu.] S.m. Máxima, ditado, adágio, provérbio, anexim. ... (p. 1400-1401)
- provérbio. [Do lat. proverbiu.] s.m. 1. Máxima ou sentença de caráter prático e popular, comum a
todo um grupo social, expressa em forma sucinta e geralmente rica em imagens; adágio, ditado, anexim,
refrão, rifão... 2. Pequena comédia que tem por tema o desenvolvimento de um provérbio...; (p. 1409)
- refrão. [Do provenç. ant. refrahn, ‗canto dos pássaros‘.] s.m. 2. Adágio, provérbio, anexim, rifão,
refrém ...; (p. 1472)
- rifão. [F. dissimilada de refrão.] s.m. V. provérbio (1)...; (p. 1509)
- sentença. [Do lat. sententia.] s.f. 1. Expressão que encerra um sentido geral ou princípio ou verdade
moral máxima. 2. Rifão, provérbio, anexim... (p. 1570).

E em Silveira Bueno (1968) temos:

- adágio - s.m. Dito, provérbio, rifão, etc. Lat. adagium. ... (p. 76)
- aforismo - s.m. Sentença, ditado, provérbio, definição. Gr. aphorismòs, definição, sentença, conceito. (p.
111)
- anexim - (chim) s.m. Rifão, adágio, ditado, provérbio. Ár. an-naxid, elevação da voz, canto, etc. ... (p.
239)
- apoftegma - s.m. Dito sentencioso, provérbio, expressão rara de grandes homens. Gr. apophthegma,
de apophthéngomai, digo de modo conciso. ... (p. 290)
- axioma - s.m. Princípio evidente que não precisa de demonstração. Proposição clara por si mesma.
Gr. axioma, atos, dignidade. (p. 455)
- brocardo -s.m. Ditado, provérbio, rifão, anexim. Derivado do nome do bispo de Worms, Burkard,
alatinado em Brocardus, do séc. XI, autor de um livro de direito canônico. ... (p. 550)
- chufa -s.f. Motejo, vaia. Langobardo zupfa ... (p. 703)
- dictério -s.m. Zombaria, motejo. Gr. deikterion; lat. dicterium, sarcasmo. (p. 1037)
- ditame - s.m. Aviso, regra, lema. Lat. dictamen. (p. 1037)
- dito - adj. subst. Frase, expressão, provérbio. Lat. dictus ... (p. 1038)
- gnoma - s.f. Máxima, sentença moral. ... (p. 1597)
- máxima - s.f. Dito, provérbio, sentença, doutrina, regra, aforismo que contém um conceito moral. Do
latim medieval maxima (sententiarum), a maior de todas as sentenças. (p. 1353)
- mofa - s.f. Escárnio, troça, pândega, caçoada, zombaria. Deverbal de mofar. (p. 2493)
- motejo -s.m. Mofa, escárneo, caçoada, crítica, burla, gracejo. Deverbal de motejar. (p. 2542)
- parêmia - s.f. Maneira de dizer que se afasta da comum, maneira de dizer figurada, donde provérbio,
407
ditado, rifão, que quase sempre encerra uma sentença moral. Lat. tardio paroemia, gr. paroimía, de para,
ao lado de e oimè, caminho, estrada. ... (p. 2888)
- prolóquio - s.m. Provérbio, adágio, anexim, sentença, máxima. Lat. proloquium, de proloqui, falar,
manifestar-se por palavras. (p. 3213)
- provérbio - s.m. Rifão, anexim, aforismo, máxima, sentença, ditado, adágio. Lat. proverbium. (p. 3237)
- refrão - s.m. Estribilho, adágio, provérbio, rifão, ditado. ... (p. 3429)
- rifão - s.m. Ditado, provérbio, prolóquio, adágio, refrão, sentença. Dissimilação de refrão. ... (p. 3537)
- sentença - s.f. Máxima, pensamento, provérbio, dito moralístico, julgamento proferido por juiz ou
autoridade competente... . Lat. sententia. (p. 3704)

Todos estes termos servem para classificar as estruturas fraseológicas que tendemos a chamar
de Provérbios ou Ditados. Contudo, nossa intenção nesta pesquisa é exclusivamente observar a
vitalidade das expressões selecionadas conforme o critério descrito anteriormente, pois segundo
Bragança Júnior (2010, p. 22 - 23):

Do ponto de vista social, a origem e o papel das expressões fraseológicas através de


gerações prendem-se à transmissão de um legado cultural de conselhos práticos de vida
baseados na experiência e na sabedoria dos antigos. Através de observações feitas a
partir da realidade circunjacente ao mundo de sua época, o homem procurava, por meio
de expressões fraseológicas, ter em mãos subsídios práticos para sua própria orientação
e das próximas gerações no que diz respeito às condutas a serem seguidas ou refutadas.
Uma extensa terminologia ligada a essas expressões reflete, ou pelo menos tenta refletir,
nuances distintas de forma e conteúdo, que, de certa maneira, tentam delimitar suas
raízes populares ou eruditas...

Neste sentido, propusemos estudar a vitalidade destas expressões por perceber que os jovens de
Belém/ Pará, na faixa etária entre 15 e 40 anos, desconhecem ou não utilizam as mesmas expressões
que pessoas com idade acima dos 60 anos.
Para tanto, a metodologia utilizada para a coleta de dados foi uma entrevista por meio de um
questionário que busca saber se os informantes conhecem as expressões selecionadas, se as utilizam e
com que freqüência (muito, pouco, raramente ou nunca) e se conhecem outras expressões semelhantes
que podem ser pela forma sintática ou pelo conteúdo semântico.
Para cada expressão popular foram utilizadas as mesmas perguntas do questionário.
Para verificar a vitalidade das expressões selecionadas foram escolhidas as variantes sociais Sexo
e Idade.
Com relação ao Sexo busquei observar se as expressões populares são mais utilizadas por
homens ou mulheres e qual dos sexos (masculino ou feminino) conhece o maior número de
expressões, ou conhecem, e/ ou utilizam outras expressões populares semelhantes às apresentadas,
tanto pelo conteúdo sintático quanto pelo semântico.
408
Para esta pesquisa entrevistei 04 informantes do sexo masculino (sexo A) e 04 informantes do
sexo feminino (sexo B).
Com relação à Idade foram observadas as mesmas relações existentes com relação ao sexo, tais:
que faixa etária conhece e/ou utiliza o maior número de expressões, ou conhecem, ou utilizam outras
expressões populares semelhantes às apresentadas, sintática e/ou semanticamente.
Segundo Naro (aput FARIAS, 2008, p.54):

(...) a mudança lingüística não é absolutamente mecânica e regular a curto prazo, onde
costumam coexistir formas de diversos estágios de evolução. Isto apesar do fato de que
a longo prazo - normalmente no espaço de várias gerações - a mudança quase sempre
acaba afetando todos os itens lexicais e todas as estruturas. (Naro, 1992: p.81).

Consoante ao que diz Naro, Farias (2008, idem) diz que:

Respeitante à IDADE, a fala do jovem, por seu caráter inovador, tende a implementar
variações e mudanças na língua com mais freqüência que a dos mais velhos. Há de se
supor, por conseguinte, que os falantes mais velhos costumam preservar as formas
antigas, enquanto os jovens estão mais abertos a novas mudanças lingüísticas.‖

Assim, entrevistei indivíduos entre 15 a 40 anos (faixa etária 1) e a partir de 60 anos de idade
(faixa etária 2), todos da cidade de Belém – Pará, sendo 02 homens e 02 mulheres da faixa etária 1 e 02
homens e 02 mulheres da faixa etária 2, e com o estudo destes dados obtivemos os resultados que
apresento a seguir.

3. “Depois d tempest de vem bon nç ”: os result dos

A análise dos dados mostrou que os informantes do sexo feminino (B), pertencentes a faixa
etária 2 conhecem mais expressões populares do que os demais informantes pesquisados, cerca de
59,3% do total de expressões selecionadas, assim como os informantes do sexo masculino (A), da faixa
etária 1 conhecem menos expressões, cerca de 33%, como mostra o gráfico do quadro 1.

Quadro 1

80
60
Expressões
40
conhecidas
20
0
A-1 B-1 A-2 B-2

Podemos dizer então, com base nesta análise de dados, que as mulheres da cidade de Belém do
Pará com idade a partir de 60 anos conhecem mais expressões populares do que as mulheres com idade
409
entre 15 e 40 anos, e do que os homens com ambas as faixas etárias. Da mesma forma podemos dizer
que, em dados gerais, as mulheres, 49%, conhecem mais expressões que os homens, 41,6%, e que
pessoas com idade a partir de 60 anos, 55%, conhecem mais do que as entre 15 e 40 anos, 35,7%, como
evidenciado nos quadros 2 e 3.

Quadro 3
Quadro 2

Expressões Expressões
Sexo B
conhecidas conhecidas
Sexo A Faixa etária 1

35 40 45 50 0 20 40 60

O quadro seguinte (quadro 4) mostra, a frequência com que os sexos e as faixas etárias utilizam
as expressões selecionadas: muito, pouco, raramente ou nunca.

Quadro 4

B-2 Muito
A -2 Pouco
B-1 Raramente

A -1 Nunca

0 50 100

Por este quadro podemos observar que, a faixa etária 1, não utiliza mais de 50% das expressões
que conhecem, e que as mulheres da faixa etária 2 são as que mais utilizam. Os quadros 5, 6, 7 e 8
apresentam, mais detalhadamente, a frequência com que cada faixa etária e sexo utiliza as expressões
que relataram conhecem.

Quadro 6 ( B - 1 ) Quadro 5 ( A - 1 )

Muito Muito
Pouco Pouco
Raramente Raramente
Nunca Nunca

Quadro 7 ( A - 2 ) Quadro 8 ( B - 2 )

Muito Muito
Pouco Pouco
Raramente Raramente
Nunca Nunca
410
Ainda com relação à frequência de uso das expressões populares apontadas como conhecidas,
podemos verificar, por meio do quadros 9 e 10 a seguir, que as mulheres e as pessoas com faixa etária a
partir de 60 anos são os que mais utilizam as expressões populares que assinalaram conhecer.

Quadro 10
Quadro 9
70
58 60
50
56 40 Frequência
54 30 de uso
Frequência 20
52 10
50 de uso 0
48

2
46

ia

ia
ár

ár
Sexo Sexo

et

et
ixa

ixa
A B

Fa

Fa
Na entrevista surgiram também outras expressões populares conhecidas pelos informantes que
as destacaram como sendo semelhantes sintática e/ou semanticamente a algumas das expressões
selecionadas para a entrevista, como evidencia o quadro 11.

Quadro 11

B-2

A-2
Outras
B-1 expressões
A-1

0 10 20

Por essa análise podemos afirmar que os homens, especialmente os da faixa etária 1 com 20%
do total, conhecem mais expressões semelhantes (expressões estas com conteúdo geralmente vulgar) as
relacionadas na entrevista, do que as mulheres, com destaque para as da faixa etária 2, com menos de
5% do total.
Algumas destas expressões destacadas pelos informantes como semelhante às apresentadas, não
estavam relacionadas para a entrevista, mas foram consideradas na análise por serem consideradas
variantes das expressões escolhidas para a coleta de dados.

4. Considerações finais

O estudo da vitalidade das expressões populares que envolvem o mítico, o religioso e o profano
em sua composição, apontou quem usa este tipo de expressões populares em Belém do Pará.
A interação entre sexo e idade, evidenciou a forte tendência feminina à conservação e rapasse
dos usos e costumes adquiridos ao longo de tempo, embora os homens com idade a partir de 60 anos
411
também conheçam muitas das expressões apresentadas, eles não a utilizam com frequência maior ou
próxima da usada pelas mulheres, em especial as de mesma faixa etária.
Mostrou também que as pessoas acima de 60 anos de idade conhecem e utilizam, no seu
cotidiano, mais expressões populares do que os da faixa etária entre 15 e 40 anos, confirmando, assim, a
hipótese apresentada neste trabalho.

REFERÊNCIAS

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idade média. In http://www.abrem.org.br/Considerafraseolog.pdf acessado em 07 de janeiro de 2010.
___________________; Ricardo da Costa & PASTOR, Jordi Pardo. O Livro dos Mil Provérbios (1302) de
Ramon Llull: texto e contexto. In RAMON LLULL. O Livro dos Mil Provérbios. São Paulo: Editora Escala,
2007. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal. Volume 68.
CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola, 2002. Série Na Ponta
da Língua. Volume 04.
FARIAS, Maria Adelina Rodrigues de. Distribuição geo-sociolingüística do ditongo <ej> no português falado no
Estado do Pará. Dissertação (Mestrado em Linguística). UFPA: Belém, 2008.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1995.
LABOV, William. Padrões sociolingüísticos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. (Série Língua[gem]). v. 26.
MONTEIRO, José Lemos. Para compreender Labov. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
SILVEIRA BUENO, Francisco da. Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa. São Paulo:
Edição Saraiva, 1968. 8v.
TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolingüística. 2ª Ed. São Paulo: Editora Ática, 1986. Série Princípios.
Volume 9.
VELLASCO, Ana Maria de Moraes Sarmento. Coletânea de Provérbios e outras expressões populares brasileiras.
In http://www.deproverbio.com/DPbooks/VELLASCO/COLETANEA.html acessado em 07 de
janeiro de 2010.
412
O DISCURSO EM FOCO: A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NO TEXTO
SEGUNDO A SEMIÓTICA DISCURSIVA
Gisele Braga Souza162

Resumo: O presente trabalho tem por intuito apresentar uma revisão teórica acerca do processo de
construção de sentido no texto, tendo como base os pressupostos teóricos e metodológicos da
Semiótica Discursiva, fundada por Algirdas Julien Greimas. Para tal, em um primeiro momento, expõe-
se um breve panorama da referida teoria, de modo a apresentar seus princípios, objetivos e métodos.
Nesse momento, são utilizadas as ideias de Barros (2008a, 2008b), Fiorin (2008, 2010) e Cortina &
Marchezan (2009). Em seguida, o foco situa-se no Percurso Gerativo de Sentido, o modelo de
produção de sentido no qual a Semiótica greimasiana se baseia, que se divide em três níveis (nível
fundamental, nível narrativo e nível discursivo), os quais, embora possuam uma gramática autônoma, só
funcionam quando relacionados. Por fim, é feita uma pequena reflexão acerca da enunciação nos
estudos semióticos. Desse modo, pretende-se contribuir para os estudos sobre a prática da leitura, na
medida em que a Semiótica Discursiva tem suas atenções voltadas à atribuição de sentido ao texto.

Palavras-chave: Semiótica Discursiva; Leitura; Enunciação.

Abstract: The aim of this paper is to present a theoretical review of the process of construction of
meaning in the text, based on the theoretical and methodological discourse of semiotics founded by
Algirdas Julien Greimas. For this, at first, exposes a brief overview of this theory, in order to present its
principles, goals and methods. Right now, we use the ideas of Barros (2008a, 2008b), Fiorin (2008,
2010) and Cortina & Marchezan (2009). Then, the focus lies on Route Generative Sense, the
production model of the sense in which Greimas Semiotics is based, which is divided into three levels
(elementary level, level narrative and discursive level), which, although they have a grammar
autonomous, work only when connected. Finally, there is a small reflection on the enunciation in
semiotic studies. Thus, we intend to contribute to the studies on reading practice, insofar as Semiotics
discourse has turned their attention to the attribution of meaning to the text.

Keywords: Semiotic discourse; Reading; Enunciation.

1. Introdução

A prática da leitura ainda é vista, por muitos, como uma tarefa árdua e complicada. Isso decorre
da ideia de que, para se apreender o conteúdo de um texto, é necessário ter um dom especial ou ser
dotado de extrema sensibilidade. Na realidade, o que não se sabe, ou não se leva em conta, é que, assim
como um período constrói-se por determinados processos de estruturação (coordenação e
subordinação), o texto também possui mecanismos que o estruturam, formando uma gramática
discursiva.
Nesse sentido, o presente trabalho visa fornecer um apanhado teórico que permite analisar
como o sentido é construído no texto. Para isso, serão apresentados os pressupostos da Semiótica
Discursiva, fundada por Algirdas Julien Greimas. Tal escolha parte do entendimento que a referida

162 Mestranda em Estudos Linguísticos na Universidade Federal do Pará. Bolsista CAPES. E-mail:
[email protected]
413
teoria tem o texto como seu objeto de estudo e procura explicar os sentidos do mesmo, ou seja, o que o
texto diz e, também, ou principalmente, os mecanismos e procedimentos que constroem os sentidos.
(BARROS, 2008a). Acredita-se, assim, que explicitá-los contribui para que uma boa quantidade de
leitores possa, de modo rápido e eficaz, tornar-se bons leitores.
Sendo assim, primeiramente, é feito um rápido panorama da Semiótica Discursiva, de modo a
evidenciar o contexto de surgimento e seus princípios de análise. Em seguida, as atenções estão
voltadas para o Percurso Gerativo de Sentido, que é o modelo de produção de sentido basilar da teoria,
com seus respectivos níveis. Em um último momento, é feita uma breve explanação acerca da relação
entre Semiótica e Enunciação, abordando o início da relação e uma mudança de perspectiva dos
estudos enunciativos do discurso.

2. Um breve panorama da Semiótica Discursiva

A Semiótica Discursiva, teoria focada neste artigo, foi desenvolvida pelo lexicólogo lituano
Algirdas Julien Greimas e pelo Grupo de Investigações Sêmio-linguísticas da Escola de Altos Estudos
em Ciências Sociais. Há outras teorias semióticas, também muito consagradas, como a fundada por
Charles Sanders Peirce, por exemplo. Por consideração ao espaço e ao objetivo do trabalho, não serão
feitas comparações, tampouco observações referentes às inegáveis contribuições de cada uma. A
escolha da teoria aqui explanada deve-se a diversos motivos, entre eles está o caráter de teoria do texto
atribuído à mesma.
A indagação de Greimas acerca do sentido construído âmbito do texto – e não mais da palavra
ou da frase –, resultou em um novo projeto de ciência, que, em um primeiro momento foi denominada
―semântica estrutural‖ e, em seguida, ―semiótica‖. Segundo Tatit (2006), tomando como inspiração a
proposta de Lucien Testinière que, com objetivo didático, comparou a estrutura de um enunciado
simples à estrutura de um espetáculo, o lexicólogo muniu-se do modelo de análise do conto
maravilhoso, de Vladimir Propp, e, após sucessivas mudanças, construiu a sua própria teoria narrativa.
Os conceitos construídos nessa perspectiva possibilitavam a abordagem sintáxica163 do texto integral.
Desse modo, a Semiótica Discursiva pode ser entendida como uma teoria da significação, que
objetiva descrever o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz. Para tal, a referida teoria procede à
análise dos mecanismos organizacionais do texto, de modo a ―explicitar, sob forma de construção
conceitual, as condições da apreensão e da produção do sentido‖ (GREIMAS & COURTÉS, 2011, p.
455).
Para examinar o plano de conteúdo do texto, a Semiótica baseia-se em um Percurso Gerativo
de Sentido, que é composto por três etapas. A descrição dos patamares mostra ―como se produz e se
interpreta o sentido, num processo que vai do mais simples ao mais complexo‖ (FIORIN, 2008, p. 20).

163 A Semiótica adota o termo ―sintáxico‖ para definir relações entre categorias referentes ao texto global.
414
Diante disso, a Semiótica caracteriza-se como uma ciência da linguagem, que se preocupa em
descrever e compreender o processo de construção de sentido e recepção do texto. Greimas, por meio
de sua proposta teórica, possibilita ao leitor adentrar no texto de forma mais eficiente, facilitando a
leitura e apreensão do discurso.

3. O Percurso Gerativo de Sentido (PSG)

Como já dito anteriormente, o Percurso Gerativo de Sentido (doravante PSG), é o modelo de


produção de sentido no qual a Semiótica Discursiva se baseia. Este trajeto de análise é formado por três
patamares distintos: nível fundamental, nível narrativo e nível discursivo. Cada um dos níveis possui um
componente semântico e um sintático, os quais podem ser descritos separadamente em cada etapa,
apesar de serem devidamente trabalhados apenas quando são relacionados.
Nessa perspectiva, a construção do sentido é resultado do funcionamento do conjunto formado
pela semântica e sintaxe de cada nível e se estabelece por uma ordem gerativa. A seguir, serão tratados,
mais especificamente, os níveis do PSG.

3.1. Nível Fundamental

O nível fundamental, ou das estruturas fundamentais, abriga as categorias semânticas que estão
na base da construção do texto. Nessa etapa, a significação se configura em uma oposição semântica
mínima, que é a categoria fundamental. Vale ressaltar que, para que dois elementos possam ser
caracterizados como opostos, é preciso haver algo em comum entre os dois. Sendo assim, a oposição
entre liberdade vs dominação, por exemplo, é perfeitamente aceitável, enquanto que riqueza vs
sensibilidade não pode ser considerada uma oposição.
Cada elemento da categoria semântica fundamental recebe a qualificação semântica euforia vs
disforia. Um elemento é tido como eufórico quando é considerado um valor positivo; já o disfórico é
visto como valor negativo. Euforia e disforia não são determinadas pelo sistema axiológico do leitor,
mas, sim, por meio os elementos dispostos no próprio texto. O poema Pardalzinho, de Manuel Bandeira,
auxiliará na compreensão dos conceitos:

O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos!
415
A partir de uma leitura atenta do poema, é possível encontrar a oposição fundamental liberdade
vs dominação. De acordo com a disposição dos elementos no texto, liberdade recebe um valor eufórico
(positivo), já que o pardalzinho, por natureza, é livre, e dominação representa valor disfórico (negativo),
na medida em que Sacha, ao prendê-lo, quebra a sua asa e o leva à morte.
Na sintaxe fundamental, são realizadas as operações de negação e asserção, que ocorrem de
maneira sucessiva no texto. Desse modo, com a categoria x vs y, ocorre o processo que inicia com a
afirmação de x, passando pela negação de x até a afirmação de y ou vice-versa. No poema Pardalzinho,
tais operações ocorrem do seguinte modo:
- Afirmação da liberdade: O Pardalzinho, desde o nascimento, tem o direito de ser livre. (―O
pardalzinho nasceu./Livre‖).
- Negação da liberdade: Ao capturá-lo, Sacha o impede de voar. (―Quebraram-lhe a asa‖).
- Afirmação da dominação: Sacha o prende em uma gaiola e, por mais que lhe encha de
cuidados, o passarinho acaba morrendo. (―A casa era uma prisão./O pardalzinho morreu‖).

3.2. Nível Narrativo

No nível narrativo, ou das estruturas narrativas, a narrativa é organizada pelo ponto de vista de
um sujeito. Nesse momento, os elementos da oposição fundamental são considerados valores por um
sujeito e transitam entre sujeitos, por meio das ações dos mesmos. Nesse sentido, na sintaxe da
narrativa há dois tipos de enunciado elementares: os de estado e os de fazer. Segundo Fiorin (2008), os
enunciados de estado são os que estabelecem relação de junção entre um sujeito e um objeto e os
enunciados de fazer são os que mostram as transformações de um enunciado de estado a outro. A
música Prova de Carinho, de Adoniran Barbosa, servirá de exemplo:

Com a corda mi
Do meu cavaquinho
Fiz uma aliança pra ela
Prova de carinho
Quanta serenata
Eu tive que perder
O meu cavaquinho
já não pode mais gemer
Quanto sacrifício
eu tive que fazer
Para dar a prova pra ela
Do meu bem querer

Em um primeiro momento, entende-se o sujeito músico está em conjunção com o objeto corda mi
(―Com a corda mi/Do meu cavaquinho‖). Em seguida, o sujeito músico entra em disjunção com o
mesmo objeto, quando decide transformar a corda mi do cavaquinho em um anel (―Fiz uma aliança pra
ela‖, ―O meu cavaquinho/já não pode mais gemer‖).
416
A passagem de um estado de conjunção a outro de disjunção e vice-versa é função do
enunciado de fazer. Nesse caso, o sujeito ela transforma a relação de conjunção entre o sujeito músico e
o objeto corda em disjunção quando requer dele uma prova de carinho. (―Prova de carinho‖, ―Quanto
sacrifício/eu tive que fazer/Para dar a prova pra ela/Do meu bem querer‖).
Os textos não são narrativas simples. A sua complexidade se dá na medida em que enunciados
de estado e de fazer estão organizados hierarquicamente. De acordo com Fiorin (2008), uma narrativa
complexa é estruturada numa ordem canônica, que é formada por quatro estágios: a manipulação, a
competência, a performance e a sansão.
Na primeira fase, a da manipulação ―um sujeito age sobre o outro para levá-lo a quer e/ou
dever fazer alguma coisa‖ (FIORIN, 2008, p. 29). Por exemplo, na música ―Prova de Carinho‖, é
possível entender que a amada manipulou o músico, levando este a dever transformar a corda em uma
aliança. Na crônica de Luís Fernando Veríssimo, as quatro fases podem ser destacadas:

Era uma vez... numa terra muito distante...uma princesa linda, independente e cheia de auto-estima.
Ela se deparou com uma rã enquanto contemplava a natureza e pensava em como o maravilhoso lago do seu castelo era
relaxante e ecológico...
Então, a rã pulou para o seu colo e disse: linda princesa, eu já fui um príncipe muito bonito.
Uma bruxa má lançou-me um encanto e transformei-me nesta rã asquerosa.
Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num belo príncipe e poderemos casar e constituir lar feliz no teu
lindo castelo.
A tua mãe poderia vir morar conosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavar as minhas roupas, criar os nossos filhos e
seríamos felizes para sempre...
Naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã sautée, acompanhadas de um cremoso molho acebolado e de um finíssimo
vinho branco, a princesa sorria, pensando consigo mesma:
- Eu, hein?... nem morta!

Na manipulação, o destinador propõe um contrato e tenta persuadir o destinatário a aceitá-lo.


Segundo Barros (2008b), há uma tipologia bastante simples que prevê quatro classes de manipulação: a
provocação, a sedução, a tentação e a intimidação. Na crônica acima, a rã age por meio da manipulação
por tentação, na medida em que oferece uma vida ―feliz‖ ao lado da princesa em troca de um beijo
(―Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num belo príncipe e poderemos casar e
constituir um lar feliz no teu lindo castelo‖). Todavia, para que a manipulação seja bem sucedida,
manipulador e manipulado devem compartilhar de um mesmo sistema de valores. Na crônica, a
Princesa escapa da manipulação na medida em que seu entendimento de uma vida feliz não é o mesmo
que o da rã.
Na segunda etapa, a da competência, um sujeito, que realiza a transformação central da
narrativa, é dotado de um saber e/ou poder fazer. Vale frisar que tais elementos podem aparecer no
texto de diversas formas. Na música de Adoniran Barbosa, o poder é dado à amada em virtude do amor
que o músico sente pela mesma. Em relação à crônica de Veríssimo, a competência é atribuída à
Princesa, ―linda, independente e cheia de auto-estima‖, já que ela tem o poder de recusar o contrato
proposto pela rã e, ainda, de fazer da mesma o prato principal do jantar.
417
Na terceira fase, a da performance, ocorre a transformação (passagem de um estado a outro)
central da narrativa. A Princesa, ao recusar a proposta da rã, faz o anfíbio passar a um estado de
disjunção com a possibilidade de se transformar em príncipe e, até mesmo, com a vida, para um estado
de conjunção com a impossibilidade de quebrar o encanto e com a morte.
A última fase é a da sanção. Nesse momento, ocorre a constatação de que a performance se
realizou e, por conseguinte, o reconhecimento do sujeito que operou a transformação. Desse modo, a
ação deste sujeito é avaliada pelo destinador-julgador. Eventualmente, o sujeito recebe uma recompensa
ou punição como resposta. No caso da crônica, pode-se entender que o julgador seja a própria
princesa, que, a partir de seus valores de ―mulher moderna‖, encara seus atos como positivos e recebe,
como recompensa, um ―delicioso jantar‖.
É importante frisar que as fases nem sempre obedecem a uma sequência, já que o narrador é
livre para organizar as etapas de diversas maneiras. Sendo assim, manipulação, competência, performance
e sansão não precisam obedecer uma ordem lógica. Em relação ao entendimento de quem lê, não há
com o que se preocupar, pois, ―como elas se encadeiam em função de relações de pressuposição, o
leitor vai apreendê-las corretamente‖ (FIORIN, 2008, p. 34).
No que diz respeito à semântica narrativa, há a preocupação com os valores atribuídos aos
objetos, que podem ser modais ou de valor. Os objetos modais são o querer, o dever, o saber e o poder
fazer, os quais são necessários para que a performance principal seja realizada. Na crônica de Veríssimo há
o seguinte:
- Rã: Quer o beijo da princesa.
- Princesa: Tem o poder fazer, ou seja, o poder de recusar a proposta da rã.
Já os objetos de valor são aqueles com o que se entra em conjunção ou disjunção na performance
principal. Na crônica eles aparecem assim:
- O beijo (possibilidade de virar príncipe): Objeto de valor que representa a liberdade da rã e a
dominação para a princesa.
- A vida: Objeto de valor que, ao ser retirado da rã, representa o fim para o anfíbio e a liberdade
para a princesa.

3.3. Nível Discursivo

No nível discursivo, ou das estruturas discursivas, a narrativa é assumida pelo sujeito da


enunciação. Quando isso ocorre, as estruturas narrativas transformam-se em estruturas discursivas. O
exame, então, deve partir ―das relações que se instauram entre a instância da enunciação, responsável
pela produção e pela comunicação do discurso, e o texto-enunciado‖ (BARROS, 2008b, p. 11).
As ―escolhas‖ do sujeito da enunciação (pessoa, espaço, tempo, actantes, situações) enriquecem
a narrativa e a convertem em discurso. Esse enriquecimento da narrativa, feito por meio das opções do
418
sujeito da enunciação, demonstram as diversas maneiras pelas quais a enunciação se relaciona com o
discurso que enuncia. Desse modo, ―analisar o discurso é, portanto, determinar, ao menos em parte, as
condições de produção do texto‖. (BARROS, 2008b, p. 54)
A sintaxe discursiva ocupa-se de explicitar as relações mantidas entre o sujeito da enunciação e
o discurso-enunciado e, também, as relações estabelecidas entre o enunciador e o enunciatário. Cabe
ressaltar que, considerando o enunciado como o produto da enunciação, esta é entendida como ―a
instância de mediação, que assegura a colocação em enunciado-discurso das virtualidades da língua‖
(GREIMAS & COURTÉS, 2011, p. 166). Nesse sentido, a enunciação se projeta no discurso por meio
dos elementos dêiticos. Analisá-los auxilia na compreensão de como o discurso foi construído e os
efeitos de sentido resultantes dos mecanismos utilizados para tal.
Antes de passar à análise discursiva propriamente dita, é preciso esclarecer no que se constituem
as categorias de pessoa, espaço e tempo. Em toda a enunciação há um eu pressuposto, que sempre se
dirige a um tu pressuposto. Esse par é composto pelo enunciador e pelo enunciatário, respectivamente.
Há também um eu e um tu projetados no interior do discurso, sendo o primeiro o narrador e o segundo
o narratário. Desse modo, eu e tu são os actantes da enunciação, a qual ocorre em determinado espaço e
num dado tempo. Aqui é o espaço do eu, por meio do qual todos os espaços são ordenados (ali, lá, etc);
agora é o momento em que o eu fala e, a partir dele, todas as coordenadas temporais são realizadas.
O enunciador, ao comunicar-se com o enunciatário, realiza um fazer persuasivo, pois pretende
que o enunciatário aceite o que ele diz, enquanto que o enunciatário realiza um fazer interpretativo.
Para realizar o fazer persuasivo, o enunciador faz uso de diversos procedimentos argumentativos, os
quais pertencem às relações mantidas entre ele e o enunciatário. O componente sintático, dessa forma,
abrange dois aspectos ―a) as projeções da instância da enunciação no enunciado; b) as relações entre
enunciador e enunciatário, ou seja, a argumentação‖ (FIORIN, 2008, p. 57).
O processo no qual a enunciação se projeta no enunciado envolve o mecanismo da
debreagem164. Para explicitar esse mecanismo e outros elementos da sintaxe discursiva, seguem um
poema de Fernando Pessoa e um trecho de um conto de Clarice Lispector:

A água chia no púcaro que elevo à boca.


―É um som fresco‖ diz-me quem me dá a bebê-la.
Sorrio. O som é só um som de chiar.
Bebo a água sem ouvir nada com a minha garganta.
.
(A água chia no púcaro que elevo à boca – Fernando Pessoa)

Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava.
Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e
paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão.

164
A debreagem é o mecanismo que projeta as categorias de pessoa, espaço e tempo tanto da enunciação, como no primeiro
caso, e do enunciado, que ocorre no segundo.
419
(Tentação – Clarice Lispector)

No primeiro enunciado, estão projetados uma pessoa (eu), um espaço (aqui) e um tempo
(agora). No segundo, uma pessoa (ela), um tempo (não agora = então) e um lugar (não aqui = alhures).
A debreagem caracteriza-se como enunciva, no primeiro caso (projeção do eu-aqui-agora) e
enunciativa, no segundo (projeção do ele(a) – alhures – então). Assim, na dembreagem enunciva, a
enunciação é instalada no interior do enunciado, pela projeção dos actantes, espaços e tempos
enunciativos, e na debreagem enunciva tais categorias são ocultadas (FIORIN, 2008).
As debreagens enunciva e enunciativa produzem dois tipos elementares de discurso: o de
primeira pessoa e o de terceira pessoa. Cada um produz um efeito de sentido: a debreagem enunciva
cria o de subjetividade e a enuciativa o da objetividade. Isso pode ser percebido nos exemplos, já que
no primeiro caso há um alto grau de subjetividade e, no segundo, há a objetividade na descrição.
Além dos tipos de debreagem expostos, há também a debreagem interna, que acontece quando
o narrador cede a palavra a uma das pessoas do enunciado ou da enunciação já instaurada no
enunciado. Isso ocorre no poema de Fernando Pessoa, quando o discurso direto é utilizado (― ‗É um
som fresco‘ diz-me quem me dá a bebê-la‖) e serve para causar o efeito de verdade, isto é, ―alguém
disse isso com estas palavras‖. É importante frisar que todos os tipos de debreagens podem aparecer
em um mesmo texto e que a disposição de cada uma propicia diversos efeitos de sentido.
No que diz respeito às relações entre enunciador e enunciatário, cabe abordar as estratégias
argumentativas utilizadas pelo fazer persuasivo do primeiro, que geram ações subsequentes de acordo
com fazer interpretativo o segundo. Para que conceber seu fazer persuasivo, o enunciador faz uso de
todo um dispositivo verdictório no discurso, espalhando marcas que devem ser encontradas e
interpretadas pelo enunciatário. Com esse intuito, são consideradas as condições sociais e culturais que
favorecem a ―verdade‖, o quanto ela varia, dependendo do discurso, e as convicções do enunciatário. O
enunciatário, por sua vez, tem a função de procurar as pistas, interpretá-las de acordo com seus
conhecimentos e crenças, e, por fim, acreditar ou não no que está sendo dito. No texto de Clarice, os
elementos como ―rua‖, ―casa‖, ―ponto de ônibus‖, ―soluço‖, fazem parte do cotidiano e, por isso,
caracterizam o dispositivo veridictório, embora façam parte de um gênero de ficção. Diante disso,
entende-se que ―o discurso constrói a sua verdade. Em outras palavras, o enunciador não produz
discursos verdadeiros ou falsos, mas fabrica discursos que criam efeitos de verdade ou de falsidade, que
parecem verdadeiros ou falsos e como tais são interpretados‖ (BARROS, 2008b, p. 64).
A semântica discursiva estuda dois procedimentos utilizados pelo enunciador para assegurar a
coerência do discurso, que, por seu turno, cria efeitos de sentido: a tematização e a fugurativização. Os
valores que o sujeito assumiu na narrativa são, nas estruturas discursivas, propagados sob a forma de
percursos temáticos e são enriquecidos por investimentos figurativos. Dessa forma, tematizar é
conceber valores de maneira abstrata e organizá-los em percursos, que se constroem pela recorrência de
420
traços semânticos ou semas, e figurativizar é revestir os temas de figuras de conteúdo, atribuindo-lhes
traços sensoriais. No poema ―Retrato‖, de Cecília Meireles, os dois procedimentos ficam claros:

Eu não tinha este rosto de hoje,


assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,


tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,


tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?

O poema apresenta temas como velhice, nostalgia, efemeridade, que são reiterados ao longo do
texto, e recebem procedimentos figurativos presentes nos termos como ―calmo‖, ―triste‖, ―magro‖,
―frias‖, ―mortas‖, ―mudança‖, ―simples‖, entre outros. Verifica-se, assim, que as figuras associam-se aos
temas, assegurando a ―verdade‖ do discurso. Esse processo de reiteração dos temas e recorrência de
figuras no discurso é denominado isotopia, que garante a coerência textual.

4. Enunciação e Semiótica

A Semiótica165, inserida nos padrões do estruturalismo de década de 1960, deixou a questão da


enunciação para um segundo plano. Dessa forma, a referida teoria ―entendia a linguagem como um
processo de relação entre formas, constituídas por uma semântica, por uma sintaxe e por uma
morfologia, completamente independente do sujeito da enunciação‖ (CORTINA & MARCHEZAN,
2009, p. 410). Nesse sentido, a Semiótica estava completamente imersa nos estudos estruturalistas e
tinha como objetivos observar e descrever a língua.
A década de 1970 representa uma mudança de perspectiva nos estudos linguísticos. Nesse
momento, trabalhos que envolviam a enunciação foram desenvolvidos. Dentre esses trabalhos, os que
mais vão influenciar e contribuir para as discussões da Semiótica são os de Émile Benveniste.
Segundo Benveniste, o sujeito se constitui como tal por meio do uso que ele faz da linguagem.
Antes da enunciação, a língua nada mais é do que possibilidade de língua. A linguagem só é possível
porque o falante atua sobre ela, enunciando e inserindo-se no enunciado por meio do eu. Nesse sentido,
―o eu só existe em oposição ao tu e é a condição do diálogo que é constitutiva da pessoa porque ela se
constrói na reversibilidade dos papéis eu/tu‖ (FIORIN, 2010, p.41).

165 Opta-se por retirar o termo Discursiva, pois, neste momento, a Semiótica ainda não era Greimasiana.
421
À medida que os estudos semióticos vão se atualizado, percebe-se que há inovações no estudo
da enunciação. Trabalhos recentes procuram levar em consideração não apenas o plano da expressão,
mas o plano do conteúdo também. Dessa forma, a enunciação no discurso pode ser estudada tanto de
dentro para fora, como se propôs aqui, analisando internamente as marcas enunciativas no texto, como
de fora para dentro, examinando as relações contextuais/intertextuais do texto.
De acordo com Barros (2008b), ainda é muito difícil delimitar o contexto a ser considerado,
mas há a possibilidade de solucionar a dificuldade pela análise da intertextualidade, da enunciação e o
texto produzido pela mesma. A Semiótica Discursiva pode não oferecer o suporte para todas as análises
contextuais possíveis, mas já soma e contribui, em muito, para tal.

5. Considerações finais

O texto é uma unidade complexa e, para desvelá-lo, é necessário proceder a uma análise eficaz.
Desse modo, existem várias teorias que propõem diversos tratamentos ao sentido e sua construção no
texto. O objetivo deste trabalho foi apresentar uma delas, que é a Semiótica Discursiva, de Greimas.
Nesta teoria, o sentido é construído por meio de mecanismos enunciativos e, ao conhecê-los, é possível
interpretar o texto pelas marcas que ele mesmo oferece.
Pelo tamanho do espaço e caráter introdutório do trabalho, alguns elementos da Semiótica
Discursiva não foram contemplados, mas procurou-se manter a essência e apresentar seus principais
recursos. Por isso, estima-se que este trabalho sirva para o desenvolvimento de investigações futuras, de
modo a enriquecer, ainda mais, os estudos semióticos e, por conseguinte, os estudos sobre o texto e a
prática da leitura.

6. Referências

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Estudos do discurso. In: FIORIN, José Luiz. (Org.). Introdução à
Linguística: Princípios de análise. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2008a.
_________. Teoria Semiótica do Texto. 4 ed. São Paulo: Ática, 2008b.
CORTINA, Arnaldo; MARCHEZAN, Renata Coelho. In: BENTES, Anna Christina; MUSSALIN,
Fernanda. (Org.). Introdução à Lingüística: fundamentos epistemológicos. v. 3. São Paulo: Cortez, 2009.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2008.
_________. As Astúcias da Enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 2010.
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto, 2011.
TATIT, Luiz. A abordagem do texto. In: FIORIN, José Luiz. (Org.). Introdução à Linguística: objetos
teóricos. 5 ed. São Paulo: Contexto, 2006.

7. Textos utilizados como exemplos


422

LISPECTOR, Clarice. Tentação. In: ______. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
PESSOA, Fernando. Poesia Completa de Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
<http://www.jornaldepoesia.jor.br/ >, acessado em 20/03/2013, às 11h37min.
423
INDÍCIOS DE AUTORIA POSSIBILITADOS PELA ESTABILIDADE
INSTÁVEL DOS GÊNEROS DISCURSIVOS

Hadson José Gomes de Sousa166

Profa. Dra. Nilsa Brito Ribeiro (Orientadora)167

RESUMO

A teoria sobre gênero discursivo do filósofo russo Mikhail Bakhtin (1997) corroborou/corrobora em demasia
para diferentes pesquisas sobre o uso social e individual da língua. Neste texto, essa teoria serve de base para
sondarmos os indícios de autoria possibilitados pela forma relativamente estável dos gêneros, pela faceta subjetiva
desses constructos sociais. Daí, tomaremos o gênero discursivo como espaço da dialogicidade extrema que se dá
na interdiscursividade, interrelação com os discursos que precedem e sucedem o discurso em formação
(MAINGUENEAU, 1997), constitutiva da intradiscursividade, marcas de subjetividade deixadas por escolhas
operadas pelos sujeitos nesse processo (POSSENTI, 2002). Com essa discussão explicitaremos o processo de
incorporação, quiçá (in)consciente, da palavra do Outro (memória discursiva) e demarcaremos a forma relativamente
estável dos gêneros, a abertura para renovação; a possibilidade/liberdade que os sujeitos têm de, numa situação de
interlocução, compor e imprimir marcas individuais, singulares na produção de novos discursos/sentidos.
Dentro desse emaranhado dialógico entre os discursos, buscamos negritar os indícios de autoria possibilitados
pela estabilidade instável. Analisaremos esses indícios no gênero discursivo aula (de português), que
consideramos como um processo tradutório. Pois na construção do Discurso Pedagógico Escolar (DPE),
produto de tradução, o professor, além de evidenciar a interdiscursividade com as teorias do campo da ciência, a
faceta objetiva do gênero – o que há de repetível, faz uso de vários recursos e deixa marcas de subjetividade
mostrada ou não nesse processo – intradiscursividade; devido à instabilidade relativa, a maleabilidade inerente do
gênero em que seu discurso é tecido. Dentre os recursos acionados pelo professor os recortes que utilizaremos,
para efeito de análise, nos ajudam a evidenciar/discutir sobre autoria no DPE.

Palavras-chave: Gênero discursivo; Tradução interdiscursiva; Indícios de autoria.

ABSTRACT

The theory of discourse genre of the Russian philosopher Mikhail Bakhtin (1997) corroborated/corroborates too
much for different research on the social and individual use of language. In this text, this theory underpins the
search for indications of authorship enabled by the relatively stable form of genres, by the subjective aspect of
these social constructs. Hence, we will take the discursive genre as space of the extreme dialog that occurs in the

166 Mestrando do Programa de Pós-graduação Linguagens e Saberes da Amazônia – UFPA-Bragança/CAPES; Esp. em


Ensino-aprendizagem de Língua e Literaturas – UFPA-Capanema; Graduado em Letras (Língua Portuguesa) – UFPA-
Capanema; [email protected].
167 Doutora em Linguística; Professora de Linguística da Faculdade de Estudos da Linguagem da UFPA- Marabá e do

Programa de Pós-graduação em Linguagens e Saberes da Amazônia – UFPA-Bragança; E-mail: [email protected].


424
interdiscursivity, interrelation with discourses that precede and succeed the training speech (MAINGUENEAU,
1997), constitutive of the interdiscursivity, subjectivity marks left by the choices made by individuals in this
process (POSSENTI, 2002). With this discussion, we will explain the incorporation process, perhaps (un)
conscious, of the word of the Other (discursive memory) and determine the relatively stable form of the genres,
the opening for renewal, the possibility / freedom that individuals have, in a situation of dialogue, to compose
and print individual brands, unique in the production of new discourses / senses. Within this dialogical
entanglement between the speeches, we boldface the evidence of authorship enabled by the unstable stability.
We will review this evidence in classroom discourse genre (in Portuguese), which we consider as a translation
process. For in the construction of School Pedagogic Discourse (SPD), translation product, the teacher, besides
highlighting the interdiscursivity with theories from the field of science, the objective aspect of the genre -what's
repeatable, makes use of various resources and leaves marks of shown subjectivity or not in this process –
interdiscursivity; due to the relative instability, the inherent malleability of the genre in which its speech is woven.
Among the resources triggered by the teacher, we will use the clippings for purposes of analysis, help us show /
discuss the authorship in SPD.

Keywords: Discursive gender; Interdiscursive translation; Authorship Evidence.

1. O gênero discursivo aula: ancoragem teórica

Neste trabalho abordaremos, especificamente, o gênero aula, na sua constitutividade, pois essa
discussão corrobora muito para refletirmos os processos de tradução de sentidos do discurso científico e/ou do
discurso do livro didático para o discurso pedagógico escolar – DPE. É por esse motivo que evidenciamos nossa
adesão aos postulados de Bakhtin (1997) em relação aos gêneros do discurso.

Pois, assim como Ribeiro (2005, p. 75), concordamos que

Adotar a perspectiva de gêneros proposta por Bakhtin requer assim a compreensão de que são
as condições de produção do discurso que orientam o que dizer, como dizer e em que condições dizer.
Nesse sentido, se o processo histórico de consolidação de cada gênero específico permite-lhe
certas regularidades, é preciso ter em conta que as suas configurações estão sempre abertas a
mudanças, a entrecruzamentos, justamente porque a inscrição do gênero na história obriga-lhe
esse movimento de consolidação e renovação (Grifos da autora).

Para esta noção, o gênero se configura como lugar social em que sujeitos e linguagem se constituem na
e pelas ações discursivas. O gênero se configura, portanto, como a forma, o espaço, relativamente estável, que
torna evidente a ação discursiva dos sujeitos sobre e com a linguagem por meio de enunciados completos e
variados. Os enunciados, de acordo com Bakhtin, evidenciam/refletem as especificidades e finalidades das
esferas de comunicação em que são engendrados. Ele esclarece que isso não se dá apenas

[...] por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos
recursos da língua — recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais —, mas também, e
sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo
e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles
425
são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação (BAKHTIN, 1997, p. 280)
(Grifo do autor).

Com esses apontamentos, Bakhtin dá mostra da configuração do enunciado. O enunciado, unidade


básica da comunicação verbal, é o que ele denomina de gênero do discurso. Ademais, cada esfera de
comunicação, com suas formas de interação, com suas especificidades, imprime a estabilidade relativa dos
gêneros, juntamente com os três elementos mencionados pelo autor: conteúdo temático, estilo e construção
composicional. Dentre eles, Bakhtin (1997) destaca a construção composicional, que, devido à falta de
estabilidade definitiva, altera-se em infindas formas, como é infinda a variedade virtual da atividade humana. A
despeito disso, segundo o autor, ―[...] cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso
que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa.‖
(BAKHTIN, 1997, p. 280).

Fica sublinhada nessa concepção, portanto, a possibilidade que os sujeitos têm de, numa situação de
interlocução, compor e imprimir marcas individuais, singulares em seus atos de fala, embora o gênero não seja
no seu todo resultado de um ato de vontade individual, pois estão distribuídos nas diferentes esferas da
sociedade e como tal sofrem constrições históricas e ideológicas.

Ribeiro (2005), também ancorada na concepção bakhtiniana de gênero, destaca o teor sócio-histórico
renovável desses constructos discursivos, a partir de uma reflexão acerca da instabilidade relativa – estabilidade
instável dos gêneros:

Os gêneros, enquanto formas relativamente estáveis, funcionam como modos específicos de


interação que se atualizam em situação de interlocução, garantindo, desse modo, a sua
consolidação histórica e a possibilidade de renovação. A noção de gêneros entendida como
formas relativamente estáveis, como postula Bakhtin, refuta qualquer compreensão de gêneros
discursivos como dados fixos a priori, mas como resultado de um processo de historicização da
linguagem numa relação intrínseca com a historicização das práticas sociais, razão pela qual os
gêneros estão sempre sujeitos a alterações impostas pela própria dinâmica histórica. Pode-se
falar, portanto, em uma ‗estabilidade instável‘, pois, ao mesmo tempo que os gêneros são
limitados pelas convenções da prática social, esta mesma lhes oferece a garantia da
potencialidade à criatividade, à mudança (RIBEIRO, 2005, p. 59) (Grifos da autora).

Devido à diversidade de gêneros, consequência da diversidade de esferas da atividade humana, Bakhtin


faz uma distinção, considerada indispensável por ele, entre gêneros primários e secundários, pois, para o autor,
essa distinção tem importância capital, em especial por esclarecer a natureza do enunciado, indissociável dos
aspectos sócio-históricos.

Os gêneros do discurso primário ou simples comportam todos os enunciados constituídos em


circunstância de uma comunicação verbal espontânea. O autor menciona, para exemplificar, a breve réplica
monoleximática (um simples ―não‖, dentro de uma situação real de comunicação). Os gêneros simples, todavia,
podem se desenvolver, ser transformados/incorporados pelos gêneros secundários; isso dependerá, sobretudo,
da complexidade da esfera de comunicação.

Os gêneros simples no processo de transmutação em secundários sofrem transformações ―[...] perdem


sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios [...].‖ (BAKHTIN, 1997,
p. 282). Desconectados da realidade existente, fazem parte da realidade de determinado gênero secundário. Daí
que os gêneros secundários, complexos, para o autor, ―[...] aparecem em circunstâncias de uma comunicação
426
cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica.‖
(BAKHTIN, 1997, p. 282).

Bakhtin, com essa distinção, além de reforçar o liame entre língua e vida, enfatiza a importância de se
ter ―Uma concepção clara da natureza do enunciado em geral e dos tipos de enunciados em particular (primários
e secundários), ou seja dos diferentes gêneros do discurso [...].‖ (BAKHTIN, 1997, p. 283). Dessa perspectiva,
alija-se a possibilidade do estudo cair no formalismo e na abstração, de se fechar num plano teórico, porque a
historicidade entra em cena, perpassa o trabalho.

Nesse ponto da discussão, diante da heterogeneidade dos gêneros do discurso, orais e escritos,
apontada por Bakhtin, que se estende desde as réplicas do diálogo cotidiano até às obras literárias, nos
dedicaremos à reflexão específica sobre a aula enquanto gênero do discurso. A aula como gênero, espaço de
constituição do DPE, atende às especificidades da sala de aula, microesfera (da atividade humana) – inserida na
instituição escolar: macroesfera.

Embora a aula se caracterize como um gênero complexo, no processo de interlocução de sala de aula,
os discursos se singularizam, de modo que cada professor pode apresentar um estilo de aula como parte de um
contexto histórico mais amplo do sistema de ensino que regra os processos de realização da aula. Neste espaço
de criatividade e diretividade, imprimem-se as marcas táticas168, que podemos considerar com Certeau (1994),
quase invisíveis de transformação do discurso científico em discurso de sala de aula. Podemos remeter esta ação
à contrapalavras do professor em relação ao conhecimento sistematizado.

Em especial, no caso da escola básica, este processo de transformação de um conhecimento primeiro


em conhecimento segundo é fortemente evidenciado com diferentes procedimentos discursivos, dentre eles a
recorrência a sentidos do senso comum, com o objetivo de explicitar o conteúdo, assim como as paráfrases
didáticas que cumprem a função de tornar o conhecimento científico acessível ao aluno. É claro que quando o
professor opera estes procedimentos linguísticos e discursivos um jogo de imagens orienta tal trabalho.

Ribeiro (2005, p. 187) caracteriza o processo de recorrência à voz do senso comum enquanto um
recurso que se dá no interior do gênero aula, como construção que leva adiante o projeto-de-dizer do professor.
Neste projeto incluem-se imagens das instâncias que compõem o jogo interlocutivo da aula (professor, aluno e o
objeto de conhecimento textualizado). Essas instâncias em interação, mobilizadas por diferentes representações,
determinam as configurações do gênero aula e/ou do discurso que aí se instaura por um processo tradutório.

2. Tradução interdiscursiva: a constituição de sentidos no intervalo entre posições enunciativas

Como nosso texto tem por foco o discurso do professor, constitutivo do gênero discursivo aula e
intuímos demarcar os processos de interdiscursividade na produção de novos sentidos (que abrirá espaço para
discutirmos quanto à intradiscursividade (POSSENTI, 2002), a posteriori), que aqui consideramos como
processos tradutórios, por isso recorremos a Maingueneau (1997), particularmente sobre o que ele trata acerca
da relação entre discursos, na constituição de novos discursos.

Esse autor, ao discorrer sobre a identidade discursiva, destaca que é na relação com o Outro, com os
Outros discursos, que tal identidade se constitui. É a partir dessa perspectiva que Maingueneau (op. cit.) afirma
que na constituição/formação dos discursos não há possibilidade de elidi-los de uma relação interdiscursiva. Daí
a ideia de heterogeneidade inerente a todo e qualquer discurso.

168Certeau (1994) nomeia de trabalho inventivo ou táticas cotidianas, as ações silenciosas e quase invisíveis que emergem como
resistências de um grupo social no interior da estrutura de poder, da maquinaria.
427
Essa relação com outros discursos, em algumas situações, pode ser bastante evidente, pois o discurso
Outro, às vezes, é negritado, destacado, aspado – heterogeneidade mostrada. Em outras situações de interação, nem
sempre se explicita, anuncia, a presença do Outro discurso. Sobre isso Maingueneau (1997) declara que

[...] a identidade discursiva está construída na relação com o Outro. Não se distinguirá, pois,
duas partes em um ―espaço discursivo‖, a saber, as formações discursivas por um lado, e suas
relações por outro, mas entender-se-á que todos os elementos são retirados da
interdiscursividade. Mesmo na ausência de qualquer marca de heterogeneidade mostrada, toda
unidade de sentido, qualquer que seja seu tipo, pode estar inscrita em uma relação essencial
com uma outra, aquela do ou dos discursos em relação aos quais o discurso de que ela deriva
define sua identidade (p. 20) (Grifo do autor).

Porquanto, ao tomar um espaço discursivo169 como campo de investigação, essa noção de


interdiscursividade torna-se quesito sine qua non, porque a relação/interação entre os discursos é responsável pela
constituição da identidade material do discurso em foco. Por conseguinte, não se pode analisar um discurso
apartado das possíveis relações com outros que o constituem por dentro e por fora. Por essa via, para
Maingueneau (op. cit.), declarar que a interdiscursividade é constitutiva é ratificar, outrossim, que um discurso
decorre de um trabalho sobre outros discursos, ad infinitum.

Evidencia-se, portanto, que há, nesse processo de constituição, um jogo entre discursos. Os discursos
entram numa relação de interdependência, mesmo que esse jogo seja de refutação – de recusa, como declara o
autor nos casos em que, para constituir-se, um discurso se relaciona com outro(s), com o objetivo de negá-lo(s)
e, ao negar, reafirma a dependência do(s) discurso(s) refutado(s) para constituir-se, ou seja, para delimitar sua
identidade. Nesse caso a interdiscursividade não é apenas formadora do novo discurso, mas pode, também, ser
mostrada num todo discursivo heterogênio que visa produzir sentido(s) outro(s) nessa relação. Isso ocorre até
mesmo nos discursos que ocultam as marcas dessa interrelação.

Com esse jogo, Maingueneau (op. cit.) cogita a possibilidade de um processo de tradução – com todas
as aspas necessárias, pois o termo é totalmente redimensionado, conquanto tome por base o discurso do campo
da tradução no sentido estrito. As aspas demarcam e sinalizam que a tradução opera-se de uma formação
discursiva à outra, dentro do espaço discursivo, diferenciando-se da relação interlingual. Pode dá-se dentro da
própria língua, portanto. Também, por ser marcada por um diferencial: está atrelada à ideia de interincompreensão.

Com a ideia de interincompreensão discursiva, Maingueneau (1997) maximiza e negrita a discussão


sobre a instabilidade do sentido. Sentido que se constrói, somente, na interação entre discursos. O sentido não
está, ele constitui-se no intervalo entre posições enunciativas. Dessa forma, tanto os discursos quanto os
sentidos e os lugares – em que eles se relacionam – são provenientes do processo de interdiscursividade.

De acordo com o autor, estes discursos são ocasionados por um processo de incompreensão que, por
sua vez, resulta de mal-entendidos, diferenciando-se, assim, do exercício de compreensão em que há um sentido
absoluto e que deve ser reconstruído, reforçado, retomado.

O autor esclarece que

169Tomamos como referência a definição de Maingueneau (1997): é um recorte, subconjunto, do campo discursivo. Nesse
espaço, dois ou mais discursos estão em relação e, isso serve de base para a compreensão do(s) discurso(s) adotado(s) como
―objeto‖ de investigação.
428
A ―incompreensão‖, resultante do mal-entendido e do malogro ocasionais, se transforma em
―interincompreensão‖ porque obedece a regras e estas regras são as mesmas que definem a identidade
das formações discursivas consideradas. Dito de outra forma, o sentido aqui é um mal-entendido
sistemático e constitutivo do espaço discursivo (p. 120) (Grifos do autor).

Destarte, a identidade das formações discursivas, que compõe um espaço discursivo, além da
dependência de outro discurso para se definir, por dentro e por fora, é constituída a partir de um processo de
incompreensão, que em contato com outra identidade discursiva, também constituída da mesma maneira,
desemboca, consequentemente, numa relação entre incompreensões. Daí Maingueneau (1997) considerar como
interincompreensão.

Essa interação, entre incompreensões, dá margem para que o ato de traduzir um discurso por outro,
não se limite ao afã de compreender um discurso primeiro e, posteriormente, transmitir um sentido contido
nele. Contrariamente à esta compreensão, a perspectiva aberta por Maingueneau abre espaço para se falar de um
discurso Outro que engendra um sentido novo. Dessa forma, no trabalho de um discurso sobre outro(s), não há
a veiculação de um sentido único, absoluto entre os sujeitos. Ao invés disso, os sujeitos podem apenas
discutir/falar/compartilhar de um mesmo discurso.

Para efeito de análise, queremos evidenciar, nesse momento do texto, a discussão tecida até aqui com
uma aula170em que a relação interdiscursiva na constituição da identidade discursiva do gênero aula se faz sem
que essa relação, inerente ao processo, deixe marcas de heterogeneidade171 mostrada, no sentido de evidenciar
o(s) discurso(s) científico que compõe(m) o discurso pedagógico escolar – DPE. Ademais, o jogo interlocutivo
instaura-se e os interlocutores (alunos), antes e/ou no decorrer do processo, não são afiançados do campo
teórico ou discursivo que serve de texto de partida para que o novo discurso constitua-se. Ou seja, a relação
constitutiva com o discurso Outro não é necessariamente demarcada.

Dessa maneira, numa aula sobre signo linguístico, sem nenhuma preocupação em declarar ou negritar
o campo de referencialidade do DPE, o professor (P) para introduzir a temática, antes mesmo de anunciar do
que trataria, relembra um episódio que ocorreu na escola no dia anterior. Os alunos envolvem-se
completamente, pois o aparecimento de uma preguiça, utilizado como exemplificação, funciona como tema que
enreda os alunos ao conteúdo da aula.

O acionamento de um procedimento dessa natureza, no caso, a busca de exemplificação num


acontecimento familiar aos alunos, na tentativa de instaurar o discurso e conseguir a adesão, o professor nos dá
mostra de uma característica marcante do DPE: a transformação do objeto científico em objeto de ensino.
Vamos ao excerto:

170 Os excertos incorporados ao texto para fins de análise foram recortados de aulas de Língua Portuguesa gravadas em
turmas do ensino da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Prof. Oliveira Brito – Capanema-PA . Para
transcrição tomamos como base as seguintes normas: ( ) (incompreensão de palavras ou segmentos); / (truncamento);
MAIÚSCULA (entoação enfática); ::: (prolongamento de vogal); ... (pausa de qualquer extensão); (( )) (comentários do
transcritor ou do analista); - - - - (Comentários que quebram a sequência temática da exposição; desvio temático); ― ‖
(Citações literais durante a gravação); (PRETI, 1997 (Org.)). A numeração acima de cada excerto corresponde à ordem em
que eles foram inseridos em cada seção. Ao final de cada excerto há um código entre colchetes. Este código diz respeito ao
controle de armazenamento, adotado por nós. Pois, caso haja necessidade de revisitar aula transcrita na totalidade, facilitará
a localização.

171Apesar de reconhecermos que há uma heterogeneidade inerente à interlocução de sala de aula, como bem demonstra
Batista (1997) em seus estudos, em que o professor utiliza recursos que controlam a dispersão, para instaurar, então, os
pólos da interlocução, os turnos organizados, nesse momento nos referimos a uma heterogeneidade mostrada na relação
entre os discursos pedagógico e científico. Quanto à heterogeneidade de que trata Batista (op. cit.) nos recortes dispostos
neste item há a contenção da heterogeneidade (representada pelos turnos de fala e pelos inúmeros ((comentários))) pelo
controle dos corpos (PSIU, alô alô pessoal etc.).
429

[01]

P: ontem tinha uma preguiça aqui na::/na::...

Al4: eu vi::...

Als: ((Comentários. Cada aluno constrói uma narrativa sobre o episódio))

P: olha eu tirei uma foto da preguiça... vocês querem ver?::... ((a professora vai passando o celular, com a imagem, de carteira em carteira))

Als: ((comentários))

Al7: olha professora a preguiça::...

Als: ((comentários))

P: PSIU::::... aí olha só meus amores::... (...) quando eu falei pra vocês que tinha uma preguiça aqui ontem::... é::... vocês::... logo::... é:::... supuseram qual era
a preguiça que eu tava falando?::...

Al6: sim:::...

Al3: não::...

P: não?::...

Al8: eu sei qual era a preguiça::...

P: sim ou não?::...

Als: sim::...

P: ahn?::...

Al8: ( )

P: sim ou não?::... vocês imaginaram logo qual era a preguiça::... né?::... agora::... deixa eu fazer outra pergunta pra vocês::... existe somente um significado
pra essa palavra preguiça?::...

Als: não:::...

P: não::... existe a preguiça... o animal::... né?::... e existe a preguiça o quê?::...

Als: ((comentários))

P: ahn?::...

Als: ((comentários))

P: falta de ânimo... né?::... falta de::...

Al1: ( )

P: falta de disposição::... né?::... então existe::... é::... um tipo de preguiça e outro tipo de preguiça::... então a nossa aula de hoje::... nós vamos estudar::...

Als: ((comentários))

P: signo linguístico::... ((escreve no quadro enquanto diz a palavra)) o que são?::... psiu::... alô alô pessoal::...

Als: ((risos))

P: o que que é::... o signo linguístico?::... (...) ( ) o que que é o signo linguístico?::...

[P5 A6]
430
Com base no contexto da exemplificação, o P começa o processo investigativo sobre a imagem
fônica, a representação psíquica, construída pelos alunos a partir da construção meramente física (sonora) do
signo ―preguiça‖ (quando eu falei pra vocês que tinha uma preguiça aqui ontem::... é::... vocês::... logo::... é:::... supuseram qual
era a preguiça que eu tava falando?::...). Alguns alunos sem titubear respondem ao questionamento da professora
dizendo que a imagem construída foi a do animal preguiça.

Enquanto o P instiga os alunos com perguntas, utiliza outro recurso para reforçar a discussão que
pretende instaurar: fotografias da preguiça capturadas pelo celular. Com isso o professor gradativamente vai
descortinando os componentes sígnicos, até chegar a uma definição; ou como dissemos anteriormente, a
tradução interdiscursiva. Mesmo com o uso da fotografia do animal, a discussão é direcionada para dimensão
psíquica suscitada pelo continuum sonoro ―preguiça‖.

Nesse processo, com o uso dessas táticas, os alunos entram no jogo interlocutivo e a identidade do
DPE, quanto ao novo sentido atribuído ao campo discursivo que versa sobre signo linguístico, vai se definindo
numa interdiscursividade com os discursos precedentes, sem marcas evidentes de uma hierarquização, que lhes
atribuísse autoridade (embora quase sempre seja evidente que a constituição do DPE numa relação hierárquica:
conhecimento científico, professor e aluno). Em nenhum momento aparecem indícios que transpareçam uma
possível conexão com a teoria do signo de Ferdinand de Saussure ou com outras vozes que perpassam o DPE.

Nesse excerto fica evidente que o professor, na relação com o conhecimento, apropria-se do cientista
e se confunde com ele sem marcar sua presença (do cientista) no conhecimento que pretende ensinar172. Dessa
forma, podemos sublinhar o trabalho do professor no processo de transformação do conhecimento científico
em conhecimento de ensino. Se é verdade que o professor não é o produtor do conhecimento, não se pode
desconhecer que ainda lhe cabe o trabalho de transformação desse conhecimento em objeto de ensino.

Logo em seguida, o P ressalta os efeitos de significação acionados pelo signo ―preguiça‖, com base no
contexto transverbal173 em que foi empregado; no caso, o aparecimento do animal na área da escola (vocês
imaginaram logo qual era a preguiça::... né?::... agora::... deixa eu fazer outra pergunta pra vocês::... existe somente um significado
pra essa palavra preguiça?::...).

Depois, tece uma longa discussão em torno do outro componente do signo linguístico, o significante,
que reforça, talvez, a tentativa de desconexão da coisa em si, do animal apresentado com a imagem no celular.

[02]

P: o signo linguístico::... meus amores::... são as palavras:::... né?::... todas as palavras são signos linguísticos::... né?::... ( ) e são palavras/a palavra::... ela é:: a
associação do quê?::... o signo linguístico ele é a associação do quê?::... ainda há pouco eu falei pra vocês assim::... ontem::... tinha uma preguiça aqui na::...
aqui na escola::... aí vocês logo/logicamente começaram a imaginar o que que era a preguiça que eu tava falando::... e todos vocês aqui::... quando eu
falei::... todos vocês aqui conseguiram imaginar::...

Al10: ((tece um comentário sobre o celular da professora))

Als: ((comentários))

P: tá?::... é::... quando eu falei::... mais uma vez::... ((chama a atenção de alguns alunos que não param de conversar enquanto veem as fotos)) mais uma
vez::... quando eu falei a palavra preguiça::... tem outra foto... aqui oh::... ((muda para outra imagem da preguiça no celular))

Als: ((comentários))

P: psiu:::... quando eu falei a palavra preguiça::... ( ) o que que veio à mente de vocês?::... no primeiro instante::... o que que veio à mente de vocês?::...

172 Para Santos (2005) ―Essa operação leva em conta que o conceito, quando é descontextualizado, é também dissociado do
seu autor fundador e do seu domínio científico de referência.‖ (p. 60). O que ele considera como despersonalização.
173 Traduzimos essa expressão-chave bakhtiniana como a realidade que transcende a finitude dos sentidos linguísticos.
431
Als: ((comentários))

P: veio o animal?::...

Al: é::...

P: então tá::... então o signo/os signos linguísticos::... eles são compostos tá?::... a gente pode dizer que a gente tem duas partes::... o significante::... e o::... o
significante e o significado::... ((escreve as duas palavras-chave no quadro)) muito bem::... onde o significante ele é o quê?::... ele é a parte::... material::... ele é
o quê?::... os sons ou as letras::... ((escreve no quadro))

Als: ((comentários))

P: PSIU:::... e o significado que é o quê?::... olha::... se o significante ele é o som e as letras::... o que que pode ser o significado?::...

Al: ( )

P: falaste aí::... o sentido da palavra::... pode ser o que também?::...

Als: ((comentários))

P: psiu:::... ele é o conceito né?::... é o conceito::... ou o significado que eu tenho::... da palavra o quê?::... de todas as palavras... né?::... como aqui::... o
exemplo que eu::... que eu utilizei né?::... aproveitando que nós tivemos ontem a visita de uma simpática preguiça::... né?::... tão simpática que ela furou o
professor::... o professor R.::...

Als: ((comentários e risos))

P: ( ) ele foi tentar tirar ela da árvore::... e ela::... deu uma::... furada nele::...

Als: ahn?:::... ((Risos e comentários))

P: psiu::... então olha só::... o que é o meu conceito aqui da palavra preguiça::... psiu:::... qual é o conceito da palavra preguiça que vocês têm?::... ((os alunos
ficam em silêncio)) Cri cri cri cri::...

Als: ((risos))

Al10: o conceito é a ideia né?::...

P: a ideia né?::... pode ser também::... muito bem::...

Al: ( )

P: e que ideia é essa que você tem da palavra preguiça?::... vocês falaram no início da aula::...

Al10: de animal::...

P: de animal::... muito bem::... pode ser um animal::... pode ser também o quê?::... uma pessoa né?::... que tem muita::... preguiça né?::... falta de coragem::...
falta de ânimo::...

Als: ((comentários))

P: já?::... então olha só::... é::... a palavra::... psiu::... sozinha::... ela só pode ter::... um único significado... quando ela está sozinha né?::... que vem com nada::
assim::... quando eu digo assim preguiça::... aí ela só pode ter um único significado::... certo?::... aí o signifi-ca-do::... da/dessa palavrinha/isso depende muito
de vocês::... um vai imaginar que é::... se eu disser pre-gui-ça::... um vai imaginar que é o animal::... outro pode imaginar que é uma pessoa ( ) né?::... que
tem essa falta de ânimo::... deixa eu ver::... é::... cada um de vocês vai imaginar uma coisa::... por quê?::... porque a palavra sozinha::... ela só pode ter um
único significado::... mas pra que ela tenha vários significados ela precisa::... de quê?::... ela precisa estar associada::... a outros signos linguísticos::... certo?::...
à outras palavras::... por exemplo numa frase::... numa oração::... num texto::... então o meu significado::... ele depende do quê?::... ele depende dessa?::... ele
depende do contexto::... ou seja::... dessa associação::... com as outras::... palavras::... vocês entenderam isso aqui?::...

Als: sim::...

[P5 A6]

Nesse último excerto, após todo um percurso, sem apresentar de antemão um conceito pronto de
signo linguístico, depois de ter convocado os alunos para um jogo interlocutivo em que eles tornaram-se,
também, responsáveis pelo DPE, que está em processo de constituição, finalmente o conceito de signo
432
linguístico é construído/apresentado. O P chega ao ápice desse processo tradutório e monta o quebra-cabeças
do signo (então tá::... então o signo/os signos linguísticos::... eles são compostos tá?::... a gente pode dizer que a gente tem duas
partes::... o significante::... e o::... o significante e o significado::... ((escreve as duas palavras-chave no quadro)) muito bem::...).

E retoma a cena enunciativa, a discussão que levou à objetivação de cada peça do quebra-cabeças,
sempre exigindo a contrapalavra dos alunos: o significante (ele é a parte::... material::... ele é o quê?::... os sons ou as
letras::... ((escreve no quadro))) e o significado (ele é o conceito né?::... é o conceito::... ou o significado que eu tenho::... da palavra
o quê?::... de todas as palavras... né?::...).

Nesse jogo o conceito é tecido, interdiscursivamente, sem, necessariamente, descortinar as outras


vozes acionadas pelo professor, a adesão ao conceito de signo linguístico tal como proposto por Saussure (isso
se observa pela introdução dos componentes do signo linguístico saussureano: significado e significante); daí o
trabalho de um discurso, em constituição, sobre outro(s) discurso(s). Atendendo à contrapalavra dos alunos, o
professor opta por um percurso que avalia ser mais acessível a eles. Assim, num gesto de didatização/tradução
do conhecimento recorre ao acontecimento vivido pelos alunos e elege a palavra preguiça como exemplificação
do conteúdo a ser ensinado.

Nesse caso em particular, nessa aula, não há uma autoridade explícita, que poderia ser a voz do
manual didático ou do próprio discurso teórico do campo científico, pois a professora não faz uso de um
manual didático nem leva para sala de aula o ―Curso de lingüística Geral‖. Todavia há um investimento por
parte do professor, a partir do jogo interlocutivo, para traduzir ao aluno a teoria do signo linguístico.

E é nesse intervalo entre posições enunciativas que o novo sentido é tecido (MAINGUENEAU,
1997). Pois a tradução, nesse sentido, não é a tradução de um sentido pré-construído, mas, sobretudo, a
tradução de discursos concernentes ao signo linguístico. Por essa razão, Maingueneau diz que isso é possível
num movimento entre incompreensões. Justamente por não se situar no plano de um único sentido que deve
ser reformulado. Longe disso, um novo sentido é formulado.

Diante desses posicionamentos poderíamos dizer que traduzir, nesses moldes, é um ato de
incompreender, proveniente de mal-entendidos. Pois, pelo contrário, se entendermos a tradução como um
exercício de compreensão, de retomada de um sentido dado, não haveria espaço para o criado, para as marcas
de autoria. Por conseguinte, teríamos somente reformulação e os sujeitos envolvidos não partilhariam de um
mesmo discurso, mas de um mesmo sentido.

3. O enunciado tem um autor: indícios de autoria (subjetividade mostrada) do professor no gênero


discursivo aula

Bakhtin (1997), no texto ―O enunciado, unidade da comunicação verbal‖, esclarece que a razão de ser
do enunciado é o fato de estar direcionado a outrem desde sua constituição – a dialogicidade radical, de modo
que a relação com a alteridade é o índice substancial (constitutivo) do enunciado. Daí, esse autor traça uma distinção
entre o enunciado e as unidades significantes da língua – palavras e orações – e o que ele assinala como diferencial é a
questão da autoria: O enunciado tem um autor, que impregna de expressividade aquelas unidades neutras,
impessoais, da língua.

Segundo Bakhtin (op. cit.), as obras de construção complexa, os gêneros secundários (para efeito de
exemplificação, podemos citar os gêneros discursivos do universo científico e o gênero discursivo aula,
independente da esfera em que se constitui), comportam uma marca autoral mais forte/evidente: a assinatura de
um sujeito autorizado, que imprime nuances de valoração, de verdade à obra, não se distinguem, pois, das
unidades da comunicação verbal, dos enunciados mais banais. Logo,
433

[...] são identicamente delimitadas pela alternância dos sujeitos falantes e as fronteiras, mesmo
guardando sua nitidez externa, adquirem uma característica interna particular pelo fato de que
o sujeito falante – o autor da obra – manifesta sua individualidade, sua visão do mundo, em
cada um dos elementos estilísticos do desígnio que presidia à sua obra (BAKHTIN, 1997, p.
299).

Essa individualidade, além de engendrar uma característica interna particular, demarca as impressões
do sujeito autor da obra, mesmo nos casos em que há uma formatação pré-determinada. Esse processo, como
esclarece Bakhtin (1997), é inerente ao papel da linguagem: ―A essência da língua, de uma forma ou de outra,
resume-se à criatividade espiritual do indivíduo.‖ (p. 290). Tudo isso é indispensável para que a obra tenha um
diferencial na relação com outras obras, nos limites de uma esfera cultural, numa dada área da comunicação
verbal. Para Bakhtin (op. cit.), é o que cria as fronteiras internas específicas.

Bakhtin (1997) relativo à composição autoral, aos sentidos novos que sempre são inaugurados, cada
vez que a língua entra em processo de interação social, discute sobre o dado e o criado no enunciado verbal e
ilustra:

O enunciado nunca é simples reflexo ou expressão de algo que lhe preexistisse, fora dele, dado
e pronto. O enunciado sempre cria algo que, antes dele, nunca existira, algo novo e
irreproduzível, algo que está sempre relacionado com um valor (a verdade, o bem, a beleza,
etc.). Entretanto, qualquer coisa criada se cria sempre a partir de uma coisa que é dada (a
língua, o fenômeno observado na realidade, o sentimento vivido, o próprio sujeito falante, o
que é já concluído em sua visão do mundo, etc.). O dado se transfigura no criado (p. 349)
(Grifos do autor).

Ao discutir sobre a imagem do autor, nos gêneros complexos, Bakhtin (1997) esclarece que ela não se
dá como imagem representada, mas como princípio ativo da representação (sujeito representador). Logo, a imagem do
autor constitui-se e opõe-se em ser imagem representada, na própria obra.

Ele explicita: ―Estritamente falando, a imagem do autor é contradictio in adjeto. A imagem do autor é, na
verdade, de um tipo especial, distinta das outras imagens da obra, mas apesar disso é uma imagem, com um autor:
o autor que a criou.‖ (BAKHTIN, op. cit., p. 337) (Grifos do autor). Mesmo se o autor for objeto da
representação, imagem representada, enfim, ainda assim terá um autor que a criou, que se distingue dessa
imagem, pois detém o princípio representativo. Então, ―Só é possível falar de um autor puro com a condição de
distingui-lo do autor parcialmente representado, mostrado na obra de que é parte integrante.‖ (BAKHTIN, op.
cit., p. 337).

Bakhtin afirma que essa imagem é independente do locutor/autor de qualquer enunciado, assim como
o objeto tematizado e o discurso. Daí que não é difícil construir essa imagem-objeto. Todavia, ele reforça que a
construção dela está totalmente desvinculada da intenção e do projeto do autor. Porque resulta de processos
ideológicos, de como o autor se posiciona no mundo. Estas posições sociais que os sujeitos ocupam no mundo
fornecem as bases para as representações construídas e materializadas em seus discursos.

Para Bakhtin, essa situação constitui o ―Problema do autor do enunciado mais padronizado, comum,
banal.‖ (1997, p. 337). A discussão sobre a imagem do autor é um tanto quanto paradoxal. Por essa razão, o
434
autor, mesmo não se integrando à obra/enunciado, no âmbito da imagem-objeto, está na totalidade da
obra/enunciado no mais alto grau (BAKHTIN, op. cit., p. 338).

Com base nessa discussão sobre a imagem-objeto, sobre a questão da autoria, Bakhtin (op. cit.) discorre,
também, acerca da consciência do outro, distinta da consciência daquele que a criou, do próprio autor, a partir do
processo de compreensão – tanto nos gêneros primários quanto nos secundários –, observando que a
consciência se desvincula do sujeito que assina a obra/enunciado. A consciência, deste modo, será de um sujeito
exclusivo, de um tu, possível no ato de compreender. De acordo com Bakhtin (1997), compreender exigirá, de
certo modo, o diálogo entre dois sujeitos, entre duas consciências; um jogo Eu-Tu: leitor (eu) e outro sujeito (tu).
Diferentemente da relação autor e leitor.

A discussão de Bakhtin sobre a imagem do sujeito autor nos ajuda a pensar, com mais consistência, a
autoria no gênero discursivo aula. Ao pensarmos a relação entre as vozes que compõem o discurso de sala de
aula, que se constituem como contrapalavras – previamente calculadas pelo locutor/autor. Outrossim, ao
analisarmos as marcas de re-formulação, de repetição e de singularidade, que constituem o locutor/professor
enquanto autor desse discurso, e não enquadrá-la/analisá-la como mera repetição.

Na construção do DPE, produto de tradução, o professor, além de evidenciar a interdiscursividade, faz


uso de vários recursos e deixa marcas de subjetividade mostrada ou não nesse processo – intradiscursividade; devido
à instabilidade relativa, a maleabilidade inerente do gênero em que tece o seu discurso. Dentre os recursos
acionados pelo professor os recortes que utilizaremos, para efeito de análise nesta seção, nos ajudam a
evidenciar/discutir sobre autoria no DPE.

Os excertos que seguem foram retirados de uma aula de ―Português I‖ (Gramática) – nomenclatura
adotada pela escola – que tratava, com base no livro didático, sobre ―regência verbal e nominal‖.

[03]

P: olha... a regência... à semelhança da concordância... verbal-nominal::... ela se relaciona com:::... a estrutura::... da frase... e como um TERmo:: se
relaciona::... a outro termo... então::... na regência existe um termo que ele é::... é principal:: e que nunca é dependente::... esse termo::... é importante...
principal::... se chama sempre termo regente::... aquele que::... REge::... que manda::... [...]

[P1, A1]

Note que antes de traduzir com o uso do senso comum (aquele ( ) que manda::...) o professor faz um
percurso, apresenta o assunto comparando-o à ideia de concordância, já na tentativa de tangenciar o processo
tradutório por meio de uma analogia. Daí ele apresenta o termo regente (na regência existe um termo que ele é::... é
principal:: e que nunca é dependente::...); até aqui o professor está atrelado à estrutura, ao estilo específico do gênero
discursivo aula: apresentação do tema, sequenciação, diálogo com a teoria. Logo em seguida o professor investe
na tradução da nova informação que foi introduzida (esse termo::... é importante... principal::... se chama sempre termo
regente::...).

Dessa forma, durante todo o percurso, mantendo certo distanciamento com o uso da terceira pessoa
do singular, o professor aciona referencialidades que evidenciam a interdiscursividade com o discurso da
gramática; isso talvez seja proveniente das imposições da estrutura específica do gênero discursivo aula; de que
falamos na seção inaugural. Contudo ao traduzir a expressão termo regente ele deixa marcas de subjetividade mostrada,
de singularidade no esforço de traduzir ao aluno, decorrente da tomada de posição enquanto autor do discurso
(termo regente::... aquele que::... REge::... que manda::...). A subjetividade neste excerto é externada com o uso do senso
comum, é um desdobramento utilizado para tornar claro ao aluno o que supostamente é desconhecido.
435
Nessa mesma aula, concomitante às explicações sobre regência verbal e nominal, o professor analisa
outros aspectos gramaticais. Nessas investidas afloram, também, rastros dessa subjetividade.

[04]

P: [...] tem uma terceira questão aqui... ((professor está olhando para o livro)) ahn::::... ler pra nós por favor... vai:: tá aqui em:: riba...

AL 11: "na frase do primeiro quadrinho... indica o trecho exigido pelo adjetivo (impressionado/impressionados)...

P: é::... olha::... quando ele fala de::... no-mi-nal... de... ele está se referindo... é::... a três termos... substantivos... substantivo... adjetivos... ou... advérbios... a
regência nominal ela é mais comum com substantivo e adjetivos... e::... mais claramente acontece... com::... uma palavra... que é advérbio... né Luz?...
((refere-se à aluna que está conversando)) então qualé o termo... né?... que::... SUpri... é::... alguma coisa aqui do adjetivo?... o quê::?... ((comentários)) tá no
primeiro quadrinho... o que é que diz lá?... ele diz assim olha... dá licença... "estou impressionada::... com o seu QUARto... filho"... qualé/qualé a expressão
aqui?... aqui quando ele fala termo... pode ser mais de um... né?... pode ser duas... com uma palavra... duas palavras... três palavras... tá::?... então... "estou
impressionada com seu quarto filho"... então quais são::... as palavras que::... são exigidas... pra justificar impressio-na-da?... quais são::?... já sabe aí::?...
((dirige-se a um grupo de alunos)) ((eles dizem não, sinalizando com a cabeça)) não sabem::?... olha de novo do teu lado aí... é bem aqui o primeiro
quadrinho... ((aponta para o primeiro quadrinho da tira no livro)) "estou impressio-na-da::... estou impressionada filho‖... ( ) o que é que completa o
sentido do/das palavras?...

AL 12: com seu quarto...

P: com seu quarto... né?... o termo que é exigido pelo "impressionada" é... "com o seu quarto"... tá vendo a palavra filho aí no final::?... antes da vírgula::...
na segunda vírgula... depois da vírgula... é:::... qualé a função sintática... do filho?... aposto... vocativo... sujeito?...

Al 1: vocativo...

P: predicado?...

Al 1: eu acho que é vocativo...

P: por que... que é vocativo?... é um termo de chamamento né?... "vem cá filho da mãe... ((voz risonha)) estou impressionada com o seu quarto... filho"... o
vocativo ele po-de::... perambular na frase... pode ficar no início... ele pode ser encaixado no meio... ou no final... mas sempre ele vem... né?... ou entre
vírgulas... se for no meio... né?... ou depois::... de vír-gu-la... se for no início... tem a vírgula... aliás... no final depois de vírgula... e::/e:::... antes de vírgula se
for no início... "FI-lho"... vírgula... "estou impressionada com seu quarto"... "estou impressionada"... vírgula... "filho"... vírgula... "com seu quarto"... mais é
um termo de chamamento... "fi-lho"... tá chamando... HEI... você aí::... "fi-lho"... tá?... é um vocativo... [...]

[P1, A1]

Apesar do longo diálogo com o discurso do livro didático, única fonte em muitas realidades escolares,
não diria que esse discurso exerce autoridade total sobre o discurso do professor, pois em certo momento o
professor apaga-o como texto-fonte.

Para explicar a mobilidade do vocativo numa construção textual, o professor parte de uma frase do
texto do livro didático ("estou impressionada::... com o seu QUARto... filho"...) e faz outra construção para traduzir esse
aspecto gramatical (que é vocativo?... é um termo de chamamento né?... "vem cá filho da mãe... ((voz risonha)) estou
impressionada com o seu quarto... filho"... o vocativo ele po-de::... perambular na frase... pode ficar no início... ele pode ser encaixado
no meio... ou no final... mas sempre ele vem... né?... ou entre vírgulas...).

A expressão perambular na frase materializa o rastro, a subjetividade no discurso do professor,


reforçando ademais, o tom autoral, o indício de autoria (POSSENTI, 2002), que se dá num processo de
distanciamento de um discurso pronto e acabado em que ele apenas repetiria uma explicação também pronta,
oferecida via manual didático. Ao invés disso ele faz escolhas e imprime nuances de singularidade ao novo
discurso/sentido que se instaura. Outra mostra de singularidade se dá na construção ("vem cá filho da mãe... ((voz
risonha)). Com base no exemplo retirado do texto o professor formula, produz, um novo exemplo com uma
expressão bastante familiar aos alunos.
436
Para reforçar esse trabalho do sujeito-professor, o investimento, as escolhas, a reflexão sobre o próprio
discurso, que de alguma maneira está intrínseca e extrinsecamente conectado ao espaço discursivo em que é
produzido, no recorte seguinte, ele declara a tática utilizada ao traduzir, ao verter para sala de aula um conceito
extremamente abstrato, sem se limitar ao discurso do livro didático.

[05]

P: certo... verbo a gente sabe o que é::... né?... é aquela palavra... que nós podemos... é/flexionar... e:::... ela se relaciona... sempre::... a um aspecto de
tempo::... melhor forma da gente... é/descobrir o que é um VERbo... é::... relacionar (som incompreensível) a esse::... é::... aspecto temporal::... presente
passado e futuro... eu canto... presente... cantarei... futuro... cantei... né?... é/passado... e:::... eu tenho uma luta muito grande com/com/com os alunos da
sétima sé::rie::... sexta... PRA:: tentar inculcar... neles... o que... é verbo... e é uma graça::... porque pra eles tudo é verbo... é:: MEsa... é:: quadro... aí a gente
brinca... eu quadro... tu quadra... ele quadra... ((risos)) aí pra vê:: se cai a fi-CHA::... vê se eles entendem::... que::... verbo a gente pode... né?... coloca::...
é/colocar pronomes::... na frente e::... é::... conjugar... flexionar::... em::... MOdo... pessoa... tempo... então aqui diz aqui... "compare as frases a seguIR::..."
olha a primeira frase... ele dá um par de frases... os autores... qualé a::... primeira frase?...

[...]

[P1, A1]

Impelido a traduzir, como exigência do próprio espaço discursivo que se constitui enquanto contexto
transverbal do gênero, o professor cria uma tática para fazer com que os alunos entendam a função morfológica
do verbo. Daí ele negrita a possibilidade do verbo flexionar no âmbito da temporalidade (é aquela palavra... que nós
podemos... é/flexionar... e:::... ela se relaciona... sempre::... a um aspecto de tempo::... melhor forma da gente... é/descobrir o que é
um VERbo... é::... relacionar (som incompreensível) a esse::... é::... aspecto temporal::... presente passado e futuro...).

Nesse jogo tradutório, o discurso do professor torna perceptível o peso das plumas de concreto que
ornam o abstrato discurso científico (AUTHIER-REVUZ, 1998) na tomada de posição, ou seja, no processo de
mediação do discurso científico, com seu efeito de real e animação provenientes das vozes autorais que
inconscientemente perpassam o conceito de verbo apresentado pelo livro didático (eu tenho uma luta muito grande
com/com/com os alunos da sétima sé::rie::... sexta... PRA:: tentar inculcar... neles... o que... é verbo... e é uma graça::... porque pra
eles tudo é verbo...).

Trazemos mais dois recortes dessa aula que reforçam o uso de táticas. Para simplificar ao aluno a
transitividade do verbo e especificar se o complemento é um objeto direto ou indireto, o professor adota um
jogo de perguntas que o aluno deve fazer para descobrir ou para detectar o tipo de complementação exigida pelo
verbo.

[06]

P: ( ) os autores eles explicam... que... o verbo encontrar... ele quanto a transitividade... ele é transitivo direto... vocês sabem como é que a gente acha...
dentro do contexto o verbo transitivo direto?... dentro da FRAse::?... é fazendo a pergunta "o quê::?"... depois do verbo... ou "quem::?"... "quê?"... né?... "o
quê?".... ou "quem?"... "o quê?" ou "quem?"... você diz assim mesmo... "você não deve encontrar::... nessa bagunça..." a pessoa vai perguntar... "o quê?"...
"quem?"...

[07]
437
P: faltar O quê::?... né?... quando aparecer esse "O quê::?"... é porque o verbo... o verbo exige complemento... a ação do verbo ele se estende::... ele vai
além... dele... se você parar (numa vírgula)... você perde o sentido... e verbos tran/intransitivos é::... eles são completos::... neles próprios... eles são
completos... [...]

[P1, A1]

No recorte [06] apesar de apresentar a voz dos autores do livro didático174, o que eles dizem em
relação à regência do verbo encontrar, o professor logo em seguida abandona o discurso estritamente teórico e,
taticamente, investe no uso de perguntas, ―o quê?‖ ou ―quem?‖, para facilitar o entendimento sobre o assunto
(vocês sabem como é que a gente acha... dentro do contexto o verbo transitivo direto?... dentro da FRAse::?... é fazendo a pergunta "o
quê::?"... depois do verbo... ou "quem::?"... "quê?"... né?... "o quê?".... ou "quem?"... "o quê?" ou "quem?"...). O que
caracteriza um estilo discursivo individual.

No recorte [07] o verbo em questão é transitivo direto. Com a tática da pergunta incorporada no
DPE, o professor para explicar a passagem do sentido do verbo para o complemento, que nesse caso é um
objeto direto, utiliza, sem mais explicações, a pergunta ―o quê?‖ (faltar O quê::?... né?... quando aparecer esse "O
quê::?"... é porque o verbo... o verbo exige complemento...). Nesse caso há a retomada do próprio discurso.

Quanto à ideia de transitividade, de passagem do sentido para o complemento, ele traduz da seguinte
maneira: (a ação do verbo ele se estende::... ele vai além... dele... se você parar (numa vírgula)... você perde o sentido...).

Então, o espaço da docência proporciona a construção de um saber específico, fruto da atuação do


professor. Nesse espaço ele assume a posição de tradutor, investe no trabalho de traduzir o conhecimento
científico em conhecimento científico escolar/conhecimento didático. E é nesse trabalho que reside os indícios
de autoria do professor, resultado dos posicionamentos diante da memória discursiva, do dado, e do jogo
interlocutivo de sala de aula. Logo, não é um trabalho sem produto.

4. Referências

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: As não-coincidências do dizer. Tradução Claudia R.


Castellanos Pfeiffer et. al. Revisão Técnica da Tradução Eni Puccinelli Orlandi. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 1998.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão g. Pereira. São Paulo: Martins
Fontes, 1997a.

BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Aula de português: discurso e saberes escolares. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.

CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: linguagens. Volume 1, 2 e 3: Ensino
Médio. 5ª ed. São Paulo: Atual, 2005.

174 CEREJA & MAGALHÃES (2005).


438

CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: 1, Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Tradução Freda Indursky;


revisão dos originais da tradução Solange Maria Ledda

Gallo, Maria da Glória de Deus Vieira de Moraes. Campinas, SP: Pontes: Editora da Universidade Estadual de
Campinas, 3ª edição, 1997.

POSSENTI, Sírio. Indícios de autoria. PERSPECTIVA, Florianópolis, v.20, n.01, p.105-124, jan./jun. 2002.

PRETI, Dino (org.). (1997). Análise de textos orais. 3 ed. São Paulo: Humanitas Publicações FFLCH/USP.

RIBEIRO, Nilsa Brito. Entrecruzamentos de gêneros discursivos na universidade: esferas do político, do


científico e do ensino / Nilsa Brito Ribeiro. --Campinas, São Paulo: [s.n.], 2005.
439
FORMAÇÃO DOCENTE EM SERVIÇO E PRÉ-SERVIÇO E O ENSINO DE LÍNGUA
PORTUGUESA NA EJA

Helenice Joviano Roque de Faria

Mestranda em Linguística
UNEMAT(Cáceres/MT)

Pensar a formação requer compreender as questões e desafios que permeiam a educação dos dias
atuais, bem como concentrar esforços, no sentido de subsidiar as questões teóricas e/ou práticas
desenvolvidas em sala de aula. Acredito que o grande esforço recai em correlacionar os princípios
que subjazem as políticas públicas do Estado (documentos orientativos como os Parâmetros
curriculares nacionais, Orientações Curriculares etc) com a prática cotidiana em sala de aula.

Sendo assim, apresento reflexões iniciais sobre a formação inicial e continuada desenvolvida com
um grupo de bolsistas do PIBID (Língua portuguesa) e professores egressos da Universidade do
Estado de Mato Grosso/MT, que desenvolvem suas atividades em um Centro de Educação de
Jovens e Adultos, localizado na cidade de Sinop/MT.

Meu olhar se lança a partir de minhas práticas, pois desde 2001 trabalho com a formação docente na
graduação em Letras, desenvolvo projetos em escolas públicas de Ensino Fundamental e Médio e
formação específica para professores de língua portuguesa, estendendo meu diálogo, nestes últimos
três anos, aos alunos do Curso de Letras, bolsistas do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à
Docência- PIBID de Língua Portuguesa (UNEMAT/ CAPES), no sentido de (re) pensar os sentidos da
formação e corresponder as exigências que a profissão docente tem exigido, cada vez mais.

Todos vivemos, na contemporaneidade, submetidos ao mundo das linguagens em que as práticas


escolares exigem que o ensino seja pautado pela criticidade e reflexividade. Desde a emergência
dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1990) e outros documentos oficiais como as Orientações
Curriculares (OCs - 2008), que norteiam o ensino de língua portuguesa em Mato Grosso, exigiu-se
pensar a língua em sua funcionalidade e uso, enfatizando o ensino numa perspectiva em que a
interação e a dialogia são conceitos que intermedeiam o processo de leitura e de produção
(oral/escrita).

Assim, nosso intento é compreender qual(s) relação(s) esses participantes estabelece(m), a partir
dos conhecimentos adquiridos na formação inicial e continuada e como são ressignificados nas reais
440
práticas pedagógicas de ensino da língua portuguesa. Nossa base teórica é a Linguística Aplicada e
dialogaremos com autores com Libâneo (2002), Antunes (2003), Moita-Lopes(2006) , Ímbernon
(2010), Soares (2010), dentre outros, esperando contribuir com os estudos da educação linguística.

Palavras- chave: Formação Inicial e Continuada, Ensino, Língua Portuguesa.

INTRODUÇÃO

É fato que todos os sujeitos que lidam com o ensino da língua portuguesa “conhecem” as propostas
governamentais de um ensino pautado pela criticidade, e que visa a formação de cidadãos
reflexivos. É como se, num “passe de mágica”, essas questões fossem solucionadas através das
diretrizes institucionais, de manuais didáticos e da boa vontade do profissional letrado para o
ensino da língua.

Mas, como sabemos, são intensos os debates teóricos que abordam esse assunto e discutem,
principalmente, do papel dos cursos de formação docente aos objetos que se tomam como prática de
ensino, em contexto de sala de aula.

São linguistas aplicados que entendem a sala de aula como lugar significativo em que as práticas de
linguagem servem de ponto inicial para estabelecer o diálogo, espaço propício para o trabalho
dialógico, interacional em que o teórico e o prático devem se fundir, perspectivando um trabalho
significativo com o aluno.

Este lugar conflituoso, heterogêneo é também lócus em que os encontros e os desencontros


acontecem e desafiam o educador à reflexão do saber, pois de um lado, tem-se um sujeito que
possui o saber adquirido ao longo de sua qualificação profissional e por outro, a necessidade da
continuidade e construção de conhecimentos atualizados, para o dia a dia profissional.

Por isso, refletir sobre a Formação Inicial e Continuada é compreender, a priori, um processo
contínuo, indissociável, necessário para aqueles que atuam na educação. E nossa compreensão de
formação abrange desde a escolha de um curso de graduação aos cursos de extensão das
Universidades, das Secretarias de Educação, dos fóruns, aos pequenos encontros provocados no
espaço escolar.

Para Imbernón (2010, p.130), essa é uma prática antiga que surgiu “desde o momento em que
alguém decidiu que outros educariam os seus filhos e esses outros tiveram preocupação em fazê-
441
lo”. Nesse sentido a preocupação da forma com o fazer, quais os conhecimentos a transmitir, quais
parâmetros seguir, sempre foi inquietante para o sujeito imbuído dessa função.

Ao traçar a genealogia da formação educacional espanhola, Imbernón (2010), aponta quatro etapas
desse processo, que não se distancia da realidade brasileira. A primeira é marcada por estudos que
tinham como princípio determinar as atitudes dos professores em relação aos programas de
formação continuada. Para o autor

A década de 1970 foi um tempo em que a formação continuada viveu o


predomínio de um modelo individual de formação: cada um buscava para si a
vida formativa, ou seja, primava-se pela formação inicial, que era melhor ou
pior segundo a época e o território, e se aplicava à formação continuada a
ideia “forme-se onde puder e como puder”.

Vê-se nesse período a efervescência de professores e outros estudiosos que liam velhos e novos
autores sobre a formação.

A segunda etapa inicia-se nos anos de 1980 com a criação de programas de formação continuada
de professores através de treinamentos. Esta é uma época predominantemente técnica e de rápido
avanço do autoritarismo, período de busca pelo bom professor pautado no modelo hegemônico de
educação e de formação, que ainda se pode sentir nos dias atuais.

O terceiro período, apontado como a institucionalização da formação, teve a intenção de adaptar os


professores ao tempos atuais, e prepará-los para as necessidades presentes e futuras. Esse
treinamento era promovido de maneira individual ou grupal com cursos padronizados.

O quarto período Imbernón (2010, p.23), aponta que “tem-se a percepção de que os sistemas
anteriores não funcionam para educar a população deste novo século, de que as instalações não
eram adequadas a uma nova forma de ver a educação.” Nesse contexto, os questionamentos, a
perspectiva de novos horizontes ganham espaço e busca-se novas perspectivas educacionais. Um
dos sentidos de formação, aqui, visa potencializar os espaços de reflexão e análise das reais
situações de ensino e seus contextos.

No Brasil, o debate sobre a formação de professores não é recente. Desde a década de 1980 esse
assunto tornou-se primordial na agenda pública educacional. Há uma vasta literatura sob variados
ângulos e diversas tendências teóricas, situada nos diversos campos e saberes da educação
brasileira.
442
E embora tanto avanço teórico-metodológico, já se sabe que a capacitação do profissional não
termina por um modelo de educação, sequer por ações que estabelecem o fazer pedagógico.
Qualquer formação, seja inicial ou continuada, deve incidir sobre as reais situações escolares. Por
isso, torna-se extremamente relevante levar em conta o pensamento e as concepções dos
participantes no desenvolvimento de sua função.

1.A formação e a Linguística Aplicada

Como afirmamos, o saber docente pressupõe uma construção coletiva e contínua na qual o
profissional desenvolve ao longo dos anos de formação e prática, a partir da observação, da
análise e reflexão do fazer pedagógico.

Durante todo esse processo, teoria e prática devem caminhar juntas na solidificação do
conhecimento, pois no processo de ensinar e aprender o sujeito tanto em pré-serviço como em-
serviço torna-se observador da prática, a partir da análise e interpretação de sua própria atividade,
assumindo assim a posição de pesquisador em sala de aula.

No caso dos acadêmicos, bolsistas do PIBID (UNEMAT/CAPES), esses são participantes


privilegiados pois têm a oportunidade de conhecer in lócus o funcionamento escolar.
Diferentemente de outros que saem da graduação e têm apenas o contato com a escola no período
designado como Estágio Supervisionado de Língua Portuguesa.

Noutros termos, estes sujeitos participantes, em pré-serviço, em contato, semanalmente, com a sala
de aula, na função de auxiliares dos professores regentes, não deixam de atuar como sujeitos que
aprendem e constroem conhecimentos. É no confronto com a realidade que esse aluno estabelece o
verdadeiro diálogo entre teoria e prática, ampliando a noção de educação linguística.

O movimento de “ir a campo”, “conhecer a realidade” não só possibilita estreitar o olhar sobre a
educação atual, mas amplia a noção de que esse movimento é contínuo, que articulam o ensino e a
pesquisa de forma indissociável permitindo intervir na realidade (re) visitada.

Para Athayde Junior (2011, p.80) a prática dessas ações, depreendem

O grau de importância na formação de professores: o forte vínculo que


propõe com a prática e a reflexão do que ocorre em uma sala de aula real, nas
condições concretas com que se faz a educação pública de hoje, certamente
443
propicia uma formação diferenciada ao aluno de qualquer que seja a
literatura.

Mas é preciso considerar que esta não é a prática totalmente vivenciada na atualidade. Nem todos
acadêmicos têm a oportunidade de serem subsidiados por fomentos para aprender a docência. De
outro lado, nem todos os professores estão abertos a esse diálogo com os futuros profissionais.
Ainda se sente resquícios dos modelos tradicional, tecnicista, em que a posição dos professores é
extremamente reticente, alheia à qualquer proposta de formação, num desprezo pela oportunidade
de repensar e atualizar os conhecimentos.

Vale ressaltar que muitos são os fatores que contribuem para essa situação: o medo de abrir o
espaço para o outro e desvelar o fazer pedagógico revelando assim as concepções de ensino; os
debates teóricos cansativos e distantes da realidade dos participantes; a posição “confortável”
daqueles que acreditam que basta somente os conhecimentos adquiridos na Academia; e uma
grande parcela de sujeitos que consideram que a formação não contribui para a práxis em contexto
de sala de aula.

Neste cenário, é importante salientar que quando pensamos em formação, há uma grande
complexidade nesse processo que não se dá conta em descrevê-lo. E uma coisa é visível: o convite
para re (pensar) determinadas práticas didáticas coloca em “xeque” determinadas concepções sobre
ensinar a linguagem, o que bloqueia e dificulta a reflexão sobre a verdadeira realidade educacional.

De acordo com Libâneo (2002, p.71), os professores precisam “dominar estratégias de pensar e de
pensar sobre o próprio pensar”. Consideramos ser este o grande nó da questão: as estratégias de
pensar sobre o próprio pensar. Isso, certamente interfere diretamente nas concepções sobre o ensino
da língua e no fazer pedagógico.

Para a Linguística Aplicada este é um campo fecundo e de grande interesse de muitos


pesquisadores brasileiros. Se se considera que as pesquisas em LA atende a diversos contextos
sociais da vida contemporânea com uma metodologia dinâmica e problematizadora, essa é uma área
de pesquisa em que a formação docente é ponto central e o estudo das práticas sociais de
participantes que estejam tanto em pré-serviço (Formação Inicial) como em-serviço (Formação
Continuada), sem desconsiderar outros participantes envolvidos nas diversas práticas sociais de
linguagem, conforme Gil(2005), permite entender.
444
Para Pennycook (2006, p.67), a LA é transgressiva e problematizadora em contextos múltiplos, é
uma abordagem em movimento, antidisciplina, novas formas de fazer estudos em linguagem
olhando os instrumentos políticos e epistemológicos no sentido de romper os limites do pensamento
e da política tradicional, tendo como principal foco novos modos de pensar, em busca de irromper
as barreiras com o tradicional num posicionamento reflexivo sobre o que e por que, tomando a
noção foucaultiana de interrogar sempre os modos próprios de pensar.

Moita Lopes (2006) diz que os caminhos da Linguística Aplicada se alargam, assim como os
limites da humanidade e das ciências sociais em geral, exigindo mudança para a compreensão das
complexas questões, que estamos submetidos na contemporaneidade. Para o autor, lidar com as
questões da vida contemporânea, requer inaugurar “um novo paradigma social e político” e
“epistemológico”.

Reinventar novos conhecimentos para a compreensão da vida contemporânea e colaborar para que
se abram possibilidades de ouvir as vozes dos marginalizados, em busca de uma sociedade mais
humana, mais sensível com a natureza e com as pessoas constitui o desafio dos linguistas aplicados
para situar seu trabalho no mundo: renarrar ou redescrever a vida social sem dissociar a teoria da
prática, considerando ética e poder como questões intrínsecas para as escolhas e mudanças que se
pretende traçar para reinventar a vida social num ensaio de esperança.

Kumaravadivelu (2006, p.146), observa o deslizamento do conceito de globalização bem como sua
implicação para as pesquisas da atualidade e afirma que “ nenhuma disciplina acadêmica nas
ciências sociais e nas humanidades deixa de ser afetada pelos processos e discursos da
globalização” e frente a tudo isso a “LA deve se submeter a uma transformação disciplinar”, o que
exige mudanças fundamentais.

Rajagopalan repensa a Linguística Aplicada como um campo livre e desimpedido em busca de


soluções ousadas e inovadoras. O rompimento com o tradicional poderá situar, cada vez mais, o
papel da LA, que deve estar centrada nas questões práticas da linguagem. Há, certamente, a voz do
conservadorismo que insiste em que a LA seja vista apenas como lingüística explicativa,
etnográfica, etc. Alerta o teórico que não será fácil romper com a ideia de que “a teoria é
precondição para qualquer tipo de prática” (2006, p.165).

Em busca da ética e com um compromisso político, Cavalcanti(2006) volta seu olhar


metateórico e metametodológico em uma pesquisa aplicada em contexto sociolinguístico. A
pesquisadora questiona sobre a ética e o compromisso político no que se refere às minorias e propõe
“desvelar olhares refratários” para ouvir a “voz do subalterno e desvelar a multiplicidade de
445
narrativas que estão escondidas por trás das grandes narrativas” (2006, p.236). Autores como
Gumperz (1972); Hall (1996); Babba (2001); Spivak (1994); Souza Santos (2004); de Certeau
(1995,1996) dentre outros, pesquisadores ancoram sua pesquisa.

E por que afirmar que a formação é uma questão da Linguística Aplicada? Porque diante da
complexidade que é promover novas competências profissionais, habilidades letramento de alunos,
provocar reflexão sobre currículo, conhecer a realidade linguística e a prática de ensino e tudo isso,
visando o avanço das práticas sociais,esta disciplina de cunho científico, cultural e social, aberta a
diálogos com outros domínios científicos pôde produzir, desde a década dos anos 90, uma
metodologia de base interpretativista, qualitativa, etnográfica no sentido de traçar e perceber as
práticas de linguagem em diversos contextos.

Kleiman (2001, p.17) entende que a pesquisa sobre a formação do professor no Brasil examina:

(a) contextos naturais em que essa formação é realizada (tais como os


diversos cursos de formação “pré” e “em serviço, na terminologia às vezes
usada na área); (b) contextos onde essa formação é evidenciada (as aulas de
leitura, redação, gramática em diversos níveis e cursos); (c) as diversas
modalidades de construção de conhecimentos (aulas nos cursos de
licenciatura, diários introspectivos, pesquisas colaborativas etc.), a fim de
determinar como essa identidade profissional é construída e contribuir para o
ensino de língua materna.

Analisar o ensino de língua materna nesta perspectiva teórica pensa-se em colaborar com os
avanços sobre os estudos da linguagem e interferir nos espaços dessas práticas, propondo assim,
mudanças. Sobretudo, no dizer de Magalhães (2004,p.52) “promover um espaço para a
constituição de profissionais críticos, em Educação, implica que os formadores repensem a
organização das ações de linguagem nos discursos de formação, para que a uma complexa e
multifacetada relação entre teoria e prática tenha lugar.” E como percebemos, o abismo das
relações entre teoria e realidade da prática ainda continua com grandes estranhamentos e
distanciamento nas práticas rotineiras escolares.

2. A prática de ensino da Língua Portuguesa


446
Embora já se tenha percebido muitas ações institucionais no sentido de motivar e reavaliar a prática
de ensino da língua portuguesa, essas experiências ainda parecem insuficientes na atualidade.

É usual ouvir, seja de um ponto de vista comum ou até nas pesquisas de grandes linguistas, que os
alunos brasileiros apresentam grandes dificuldades, no que se refere ao letramento. Ou seja, eles
não adquiriram a competência da leitura e da escrita no percurso educacional.

Isso parece distanciar a postura tão desejada, do que fora apresentado como proposta e descrita nos
documentos oficiais como os Parâmetros Curriculares Nacionais, as Orientações Curriculares e
outros desdobramentos, que subsidiam o ensino e trazem como diretriz uma escola que forme aluno
competente, leitor crítico-reflexivo de suas atitudes linguísticas.

Essas ações governamentais empreendem uma escola mais eficiente e subjaz a concepção do ensino
de língua proposta de maneira interacional, dialógica, discursiva, condições que visam a plena
participação de um indivíduo inserido no meio social.

Antunes (2003, p.22) salienta que “os conteúdos de língua portuguesa devem se articular em dois
grandes eixos: o uso da língua oral e escrita e o da reflexão acerca desses usos.” Nesta direção, o
ensino contempla que deve-se valorizar o que o aluno produz (linguagem) e a materialidade posta
em funcionamento. Ou seja, é preciso considerar “como” e “para quê” utiliza-se da língua.

Se se considera os dispositivos diretivos de ensino ( Parâmetros e OCs) e as formações que são


oferecidas pelas instâncias superiores, inicial ou continuada, diríamos que não falta aos professores
respaldo para um ensino de qualidade, permitindo assim, emergir novas concepções e novas
práticas de ensino.

Observemos que um dos objetivos gerais para a língua portuguesa descritos nos PCNs (1998, p.42)
é “Usar os conhecimentos adquiridos por meio da prática de reflexão sobre a língua para
expandirem as possibilidades de uso da linguagem e a capacidade de análise crítica.”

Já as Orientações Curriculares da Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso, afirmam que


“O desenvolvimento das práticas linguísticas, artísticas e corporais é fundamental, pois o aluno
precisa aprender ter a voz e fazer uso dela no exercício da cidadania, em uma sociedade
democrática e repleta de conflitos (in) visíveis.”

Sendo assim, as diretrizes são claras: o aluno deve estar competente para as situações reais de
linguagem. Mas, que sujeito é esse que forma? Qual(s) condição(s) recebem esses formadores para
o ensino da linguagem?
447
3. O espaço (in) visível EJA

Situar o espaço dialógico Educação de Jovens e Adultos é entrar numa questão complexa. É preciso
continuar as indagações: (a) Quem são os participantes no processo de formação da EJA? (b)
Como esse educador tem sido formado para atuar nesse campo marcado pelas relações capitalistas
de produção - desigualdade, exclusão e injustiça? (c) Qual o perfil desse (s) educador(s)? (d) Existe
um programa de formação específica para esses profissionais ou mesmo diante dos desafios da
contemporaneidade esses sujeitos continuam sendo assistidos pela formação pautada pelas velhas
bases e tendências ultrapassadas, o que contribui significativamente para a grande lacuna entre
teoria e prática?

Machado (2000) ao investigar sobre a produção científica sobre a EJA no período de 1986 a 1998
constatou que ao docente não lhe é possibilitado o aperfeiçoamento digno e condizente com sua
realidade. Afirma a autora que

As pesquisas relacionadas à formação de professores ressaltam em suas


conclusões a necessidade de um processo de formação continuada, primando
pela articulação entre teoria e prática, que inclua a superação da
desarticulação entre as propostas pedagógicas de formação e os objetivos
específicos da Educação de Jovens e adultos, quer seja oferecido pelas
secretarias de estado e municípios ou por universidades. (Machado, 2000,
p.24)

Esta fragilidade apontada reforça a concepção negativa de que não há preocupação específica para a
EJA e a sensação é de que não há muito o que fazer nessa modalidade de ensino. A precariedade e o
descaso fica mais evidente quando se observa a falta de literatura nos cursos de
formação/aperfeiçoamento pensados exclusivamente, para essa modalidade de ensino.

Há nos dias atuais, apenas o curso de Graduação em Pedagogia que contempla os estudos sobre a
EJA. Também tem se notícias de algumas especializações, lato sensu, que timidamente são
oferecidas pela Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso.

Isso mostra a necessidade de ampliar as discussões sobre a formação do educador da EJA em


sentido amplo e específico. Também a carência de debates que possam construir e traçar o perfil
desses sujeitos inscritos no fazer pedagógico e que buscam permanentemente serem ouvidos para a
formação e educação de qualidade.
448
Fios conclusivos

Conhecer as propostas governamentais para o ensino de Língua Portuguesa constitui, na perspectiva


até então apresentada, um fator essencial para aqueles que decidiram “abraçar” a causa da educação.
E educação, quando se pensa em qualidade, perpassa pelos caminhos de questionar o que é
imposto/exigido, mesmo que o sentido do oficial, institucional apresenta-se como “inquestionável”.

Se a escola brasileira propõe a formação de alunos reflexivos é preciso demarcar o espaço da


reflexividade, da criticidade e isso é um processo coletivo, contínuo, onde as relações interpessoais
são construídas nos contatos diários e muitas vezes conflituoso, envidando esforços pelo respeito à
alteridade e ciente do “por que fazer” e “para quê fazer”.

A formação inicial e continuada deve ser entendida como indissociável na/para a construção do
conhecimento, conhecimento que deve ser (re) atualizado, renovado, e se possível, confrontado,
provocando assim, brechas para os debates, ampliando a compreensão das realidades sobre a
educação brasileira, a educação local, alargando a visão de participantes, seja em pré-serviço como
em-serviço, a ponto de transcender o “já dito” “ o estabilizado” para além dos bancos escolares.

Finalmente, no que tange ao ensino de língua portuguesa, esta deve ser focalizada em sua
funcionalidade e uso, prática entendida como dinâmica, plural e que no processo de ensino seja
visualizada ao aluno como aquela que media nossas construções linguísticas diárias e que nos faz
proficientes e sobretudo, competentes e habilitados no mundo das linguagens.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Irandé. Aula de Português. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.

ATHAYDE JÚNIOR, Mário Cândido de. A Prática da Extensão e a Formação de Docente em


Língua Materna: algumas (óbvias?) reflexões. In: Estudos da Linguagem e Formação Docente:
desafios contemporâneos. Rosana Apolônia Harmuch, Pascolaina Ballon de Oliveira Saleh (Orgs)
Campinas, São Paulo: Mercado das Letras, 2011.

MAGALHÃES, Maria Cecília C. (Org). A linguagem na formação de professores como


profissionais reflexivos e críticos. In: A formação do professor como um profissional crítico:
linguagem e Reflexão. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2004.
449
CAVALCANTI, Marilda C. Um olhar metateórico e metametodológico em pesquisa em linguística
aplicada . Implicações Éticas e Políticas. In: Por uma linguística aplicada Indisciplinar. Luis
Paulo da Moita Lopes (Org). São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

GIL, Glória. Mapeando os estudos de formação de professores de línguas no Brasil. In: Linguística
Aplicada e contemporaneidade. Maria Helena Vieira Abrahão, Ana Maria Ferreira Barcelos
(Orgs). São Paulo, SP: ALAB, Campinas, SP: Pontes Editores,2005.

IMBERNÓN, Francisco. Formação continuada de professores. Tradução Juliana Padilha. Porto


Alegre: Artmed, 2010.

KLEIMAN, Angela B. (Org). A formação do professor: perspectivas da Linguística Aplicada. .


Campinas, SP: Mercado das Letras, 2001.

LIBÂNEO, J.C. Reflexividade e formação de Professores: outra oscilação do pensamento


pedagógico brasileiro? In: Pimenta, S.G e Gheidin, E. (Orgs.) Professor reflexivo no Brasil:
gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002.
450
APRENDENTESPLE:
PLATAFORMA VIRTUAL NO ENSINO-APRENDIZAGEM DA PRODUÇÃO
ESCRITA EM PORTUGUÊS LÍNGUA ESTRANGEIRA – PLE.

H. M. P. S175
W.C.B.S176
JCCC177

RESUMO: Partindo do pressuposto de que a internet pode ser um elemento facilitador/mediador no


ensino/aprendizagem de línguas, decidimos criar a plataforma virtual aprendentesple. Ela é utilizada
nas aulas de Produção Escrita (PE) de Português Língua Estrangeira (PLE) de aprendentes do
Programa (do MEC) de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G178), na Universidade Federal do
Pará - UFPA. O objetivo é desenvolver a Competência de PE dos alunos que se submeterão ao exame
CELPE-BRAS179. Na plataforma eles postam e discutem textos, e têm acesso às produções escritas dos
colegas. Isso facilita não só a interação professor/aprendente, como também aprendente/aprendente,
quando todos os envolvidos passam a ter responsabilidades pelo processo de ensino/aprendizagem.
Para a realização deste trabalho buscamos orientações metodológicas assentadas na Perspectiva Acional
do Conselho da Europa – que considera o aprendente como ator social que cumpre tarefas em
situações específicas. Aspectos relacionados às interações na Web 2.0 também são tratados neste
estudo. Analisando os textos postados pelos alunos do PEC-G, observamos que a produção escrita
deles melhorou muito mais rapidamente através da web. Os expressivos resultados obtidos deveram-se,
sobretudo, ao fato de a plataforma virtual permitir que as tarefas fossem realizadas com mais frequência
pelos aprendentes e corrigidas mais rapidamente pelo professor.
Palavras-Chave: Produção escrita; Plataforma didática; Português língua estrangeira.

RESUMÉ : En partant de l‘idée que l'internet peut être un facilitateur/médiateur dans l'enseignement/
apprentissage des langues, nous avons décidé de créer la plate-forme virtuelle aprendentesple. Elle est
utilisée dans les cours de Production écrite (PE) de Portugais Langue étrangère (PLE) d'apprenants du
Programme (du MEC) de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G) à Universidade Federal do
Pará – UFPA. L'objectif est de développer des compétences de PE des étudiants qui subiront l'examen
CELPE-BRAS. Sur la plate-forme ils affichent et discuteent les textes et d'avoir accès à des productions
écrites des collègues. Cela facilite non seulement l'interaction entre l'enseignant et l‘apprenant, mais
aussi entre les apprenants, lorsque tous les participants deviennent responsables du processus
d‘enseignement/apprentissage. Pour ce travail, nous nous sommes appuyés sur les orientations
méthodologiques établis de la Perspective Actionnelle du Conseil de l'Europe – qui considère
l'apprenant comme un acteur social qui accomplit des tâches dans des situations spécifiques. Les
aspects liés aux interactions dans le web 2.0 sont également traités dans ce travail. L'analyse des textes
publiés par les élèves de PEC-G nous a permis de constater que leur PE s‘est amélioré beaucoup plus
rapidement à travers le web. Les résultats significatifs sont surtout au fait que la plate-forme virtuelle

175 Hellen M. Pompeu de Sales –Mestranda / UFPA


176 Washington C. Braga de Sousa – Doutorando / UFPA
177 Prof. Dr. José Carlos Chaves da Cunha – Orientador (UFPA)
178 O Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G) oferece oportunidades de formação superior a cidadãos de

países em desenvolvimento com os quais o Brasil mantém acordos educacionais e culturais. Ele é desenvolvido pelos
ministérios das Relações Exteriores e da Educação, em parceria com universidades públicas - federais e estaduais (fonte:
http://portal.mec.gov.br).
179 Celpe-Bras: Exame que possibilita a Certificação de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros.
451
permet aux apprenants d'effectuer les tâches plus fréquemment et aux enseignants de les corriger plus
rapidement.
Mots-clés: Production écrite ; Plate-forme d'apprentissage ; Portugais Langue Étrangère.

INTRODUÇÃO

Não há dúvidas de que o ensino de línguas ganhou muito com a expansão das tecnologias de
informação e comunicação. Quem nessa era digital nunca viajou até o mundo da internet para fazer
uma pesquisa, ler um livro, assistir a um filme e até mesmo fazer um intercâmbio virtual? Diante de
tanta tecnologia, a sala de aula tradicional se tornou um espaço muito pequeno – eu diria até sufocante
– para quem deseja se lançar no aprendizado de uma língua estrangeira, pois, sem dúvida, os alunos de
hoje são alunos digitais que desejam ir além do que já foi oferecido pelo ensino tradicional.

Sobre essa questão Cruz (2008, p. 17), diz que “Novos espaços de construção do conhecimento
emergiram com as novas tecnologias da informação e comunicação (TIC). Deixou a escola de ter o
papel de único transmissor de conhecimentos. Agora, as exigências pessoais de conhecimento,
extravasam os muros da escola, da cidade, do país”.

Parece evidente hoje que o professor precisa adaptar sua metodologia, abordagem ou
perspectiva de ensino às novas tecnologias, se quiser tornar seu ensino mais motivante e eficaz.

Muitas são as vantagens de um ensino através de um ambiente virtual, entre elas destacam-se: 1)
a liberdade em gerenciar o tempo para a realização e correção de tarefas; 2) a flexibilidade do trabalho
colaborativo; 3) o desprendimento ao manual didático.

Diferentemente de um ensino em sala de aula, no ambiente virtual, os alunos podem realizar


tarefas com mais freqüência e, em qualquer lugar. Para isso, basta ter um computador com internet.
Eles podem criar grupos virtuais para resolverem problemas de aprendizagem sem precisar estar em
sala de aula. Eles também não dependem mais do manual didático que, durante muitos anos, os
aprisionou a livros que, na maioria das vezes, não atendiam aos seus objetivos de ensino. A internet
pode ainda, entre outras coisas, proporcionar uma gama de materiais pedagógicos para que o aluno
tenha a oportunidade de melhorar seus conhecimentos.

As três vantagens acima são algumas das que serviram de motivação para a criação do ambiente
virtual APRENDENTESPLE, que é uma plataforma que auxilia os alunos PEC-G (que se submetem
ao exame CELPE-BRAS), a desenvolverem colaborativamente a competência de produção escrita em
PLE.
452
Neste estudo pretende-se estabelecer e discutir a relação entre a Perspectiva Acional e a web 2.0
no contexto de ensino/aprendizagem de línguas; e analisar as implicações da Plataforma aprendentesple
no ensino/aprendizagem da PE em uma turma de aprendentes de PLE.

1. UMA PERSPECTIVA QUE COLOCA EM CENA A AÇÃO E A WEB 2.0

Durante a história das metodologias de ensino de língua estrangeira – LE – nunca havíamos


vivenciado com tantos recursos tecnológicos que pudessem ajudar alunos e professores a alcançarem
seus objetivos de ensino/aprendizagem.

Mesmo no século XX, quando estavam em voga as metodologias áudio-visuais - MAV180, pode-se
dizer que as ferramentas tecnológicas utilizadas nas aulas tinham suas limitações e acabaram perdendo
sua importância. Na metodologia conhecida como SGAV181, por exemplo, os alunos só tinham acesso
aos equipamentos audiovisuais na sala de aula ou nos laboratórios de língua. Fora desses ambientes era
difícil encontrar ferramentas que pudessem ajudá-los a continuar a aprendizagem.

Hoje em dia, com a Perspectiva Acional – PA (proposta pelo Conselho da Europa, através do
Quadro Europeu Comum de Referência para Línguas - QECRL182, em 2001), que parece ser a
orientação metodológica que cada vez mais se firma no ensino/aprendizagem de língua estrangeira; e,
com o desenvolvimento da internet, sobretudo da web 2.0, que proporciona aos usuários diversas
possibilidades de interagir virtualmente; parece haver um momento propício para a criação de
ambientes virtuais de aprendizagem que possam levar o aprendente a cumprir seus objetivos de ensino.
Sendo assim, vale compreender a noção de Perspectiva Acional e de Web 2.0, observando suas
possíveis relações.

1.1. A Perspectiva Acional

De acordo com o QECRL (2001), a Perspectiva Acional considera os aprendentes de uma língua
como atores sociais que cumprem tarefas em determinados contextos.

Rosen (2007), considerando a orientação metodológica do documento, afirma que não nos
contentamos mais em formar ―estrangeiros de passagem‖, mas ajudamos o aprendente a ser tornar um
utilizador de uma língua, um ator social.

180 A metodologia audiovisual, dominante na França durante os anos de 1960 e 1970, que utilizava conjuntamente imagem e
som.
181 Structural Global Audio-Visuel
182 O QECRL (2001) é um documento descritivo, reflexivo e adaptativo, elaborado pelo Conselho da Europa que tem, entre

outros objetivos, o de fornecer uma base comum para elaboração de materiais pedagógicos.
453
Os professores que adotaram a PA sentem a necessidade de levar os alunos a ultrapassarem o
patamar dos atos de fala, característicos da abordagem comunicativa (AC), a partir do momento que
compreendem que o aprendente é um ator social/usuário da língua, que age no mundo e que realiza
tarefas. A noção de tarefas é definida pelo Conselho da Europa (2001, p. 30) como,

qualquer ação com uma finalidade considerada necessária pelo indivíduo para atingir
um dado resultado no contexto da resolução de um problema, do cumprimento de
uma obrigação ou da realização de um objetivo. Esta definição pode abranger um
vasto leque de ações tais como deslocar um armário, escrever um livro, obter certas
condições ao negociar um contrato, jogar às cartas, pedir uma refeição num
restaurante, traduzir um texto escrito em língua estrangeira ou preparar a realização de
um jornal de turma em grupo.

Para ilustrar essa discussão, propomos a fig.1183.

Usuário=
Usuário=
Aluno Ator social=
Ator social
Aprendente

Tarefas/ações Tarefas/ações
Domínios Exercícios/ Domínio Domínio
(Linguageiras/ (Linguageiras/
diversos Atividades Escolar Escolar e outros
não linguageiras) não linguageiras)

(a) (b) (c)


Figura1. Usuário de uma língua em contexto: a) real; b) escolar tradicional; c) escolar acional.

Na letra (a) o usuário de uma língua está em um contexto real de uso, ele é apresentado como um
ator social, isto é, uma pessoa que realiza tarefas e que age no mundo em diversas situações. Mas
quando ele chega à sala de aula (b), o mundo real fica do lado de fora da escola e ele se encontra como
um aluno que realiza atividades puramente escolares. No ensino/aprendizagem da produção escrita,
esta situação aparece quando os alunos realizam atividades do tipo perguntas/respostas ou exercícios
de gramática descontextualizados. No ensino acional (c), há um diálogo entre o contexto escolar e o
real. Compreende-se que o indivíduo, mesmo na sala de aula, é um aprendente/usuário/ator social que
age no mundo, que executa tarefas que não podem ser apenas escolares.

Entendendo que as tarefas em um ensino Acional devem ter um caráter social, entende-se
também que elas podem e devem ser colaborativas, pois, na maioria das vezes, é isso que ocorre na vida
real. Porém, muitos docentes ainda apresentam dificuldades em trabalhar em sala de aula as tarefas, tais
como elas são propostas pela PA. Alguns alegam a falta de tempo, a indisponibilidade do aluno etc.
Para ajudar a sanar esses problemas a internet pode ser uma aliada, já que, com a web 2.0, é possível

183 Elaborada por Hellen Pompeu.


454
realizar tarefas que independem de tempo e espaço o que faz dela uma ótima ferramenta para se
trabalhar em grupos.

Vamos agora procurar compreender a noção de Web 2.0 e a sua possível relação com um
ensino/aprendizagem Acional.

1.2 O mundo da Web 2.0

Qual o estudante de línguas que nunca interagiu virtualmente com um estrangeiro ou não fez um
passeio por um museu virtual, como o Louvre, por exemplo? Certamente aqueles que estudaram
somente até os meados dos anos 90 e que, por isso, não tiraram proveito da Web 2.0.

Pollock (2010, p. 27) explica que a primeira geração da Web (entre 1990 até o início de 2000),
apresentava aos usuários de internet páginas consideradas estáticas e com atualização rudimentar. Já
com a Web 2.0, a partir de 2000 (considerada a segunda geração da Web), essas páginas são mais
dinâmicas e interativas, ―Hoje em dia as pessoas esperam obter mais de suas interações com a Web. As
pessoas querem interagir com os pensamentos e ideias de outras pessoas. A Web tece um rico tapete de
diversas opiniões e novas conexões‖.

Sobre a Web 2.0, Cardoso (2011) diz que se trata de interfaces nas quais pessoas podem
comunicar umas com as outras. Ela não é unidirecional como uma televisão, ela é interativa,
participativa, e colaborativa.

As diversas possibilidades oferecidas pela Web 2.0 têm chamado a atenção de pesquisadores do
campo do ensino. Segundo Cruz (2008, p.37),

Com as ferramentas da Web 2.0, ferramentas gratuitas e de fácil publicação, como o


blogue, o YouTube (...), o professor tem em mãos inúmeras novas oportunidades para
promover, junto dos seus alunos, uma aprendizagem autêntica. Usar estas ferramentas
(...) nas aulas visa o desenvolvimento de competências inerentes à disciplina e na
preparação de cidadãos conscientes de uma sociedade plural e em permanente
expansão.

Uma das inúmeras possibilidades apresentadas pela Web 2.0 é a aprendizagem colaborativa que,
para Carvalho (2008, p. 12), constitui mais um benefício para o estudante contemporâneo, pois
―Durante gerações os alunos trabalharam, sobretudo, independentemente. Atualmente, com a Web é
fácil produzir trabalho colaborativamente, uma vez que a maior parte das ferramentas da Web 2.0
permite mais do que um autor o que favorece a criação colaborativa‖.
455
Compartilhando da opinião de que a web favorece o ensino colaborativo, Mattar (2011, p.19), diz
que,

O potencial pedagógico das redes sociais, outra das marcas da web 2.0, é imenso. Elas
possibilitam o estudo em grupo, oferecendo mecanismos para comunicação com
outros usuários, como fóruns, chats, e-mails, recados ou mensagens instantâneas.
Permitem também identificar pessoas com interesses similares e, assim, criar uma rede
de aprendizado.

Hoje em dia, há inúmeros ambientes virtuais de aprendizagem que utilizam a Web 2.0 para
atender os objetivos de ensino dos alunos, como por exemplo, o projeto Babelweb184, Skype na sala de
aula185, Moodle186, além da plataforma APRENDENTSPLE, que faz parte desta pesquisa.

2. PLATAFORMA APRENDENTESPLE.

A plataforma APRENDENTESPLE (www.aprendentesple.com.br) é um ambiente virtual de


aprendizagem criado em 2012 com o objetivo de desenvolver a Competência de PE em PLE de
aprendentes do PEC-G que se submeteram ao exame CELPE-BRAS. Nela alunos têm a oportunidade
de realizar tarefas contextualizadas que fazem sentido para suas vidas. Por exemplo: enviar um e-mail a
um amigo dando um conselho, escrever uma carta de opinião sobre um assunto lido em uma revista
etc. O trabalho ocorre em etapas e de forma colaborativa, quando todos se responsabilizam pela
aprendizagem.

 Etapa 1: Escolha e discussão de texto autêntico que servirá de base para a realização da tarefa,
 Etapa 2: Realização e postagem da tarefa na plataforma,
 Etapa 3: Comentários dos aprendentes sobre todas as tarefas,
 Etapa 4: Correção e alteração da tarefa pelo aprendente/autor,
 Etapa 5: Observação e correção da tarefa pelo professor (solicitada pelo aprendente),
 Etapa 6: Alteração final do texto (pelo aprendente).

Antes da criação da plataforma aprendentesple os alunos só produziam tarefas uma vez por semana
nas aulas de PE de PLE e só recebiam os resultados dos trabalhos na semana seguinte (após a correção
do professor). O trabalho era lento, o que deixava alunos e professores inquietos.

184 http//www.babel-web.eu/
185 https://education.skype.com/
186 Modular Object-Oriented Dynamic Learning Environment. É um software livre, de apoio à aprendizagem, executado

num ambiente virtual.


456
Com o ambiente virtual de aprendizagem colaborativa o espaço e o tempo deixaram de ser um
problema. O aprendente passou a produzir, comentar, corrigir, alterar e refazer seus textos a qualquer
momento e lugar, antes de entregar a tarefa final para o professor.

Durante as aulas de PE em ambiente virtual os acessos dos alunos à plataforma foram


constantes, como pode ser observado na fig.2.

Figura2. Controle de acessos de uma tarefa. Fonte http://www.aprendentesple.com.br/

A plataforma aprendentesple entrou no ar no dia 26 de setembro de 2012, após quatro dias um dos
textos foi consultado 60 vezes187 (fig.2), o que confirma a motivação, participação e colaboração dos
alunos no ambiente virtual.

Os constantes acessos dos alunos à plataforma ocasionaram frequentes interferências nos textos
postados pelos aprendentes, como pode ser observado na fig.3.

187Ressalta-se que na turma havia sete aprendentes e que somente eles, o professor e o orientador do projeto tinham acesso
à plataforma.
457

Figura3. Comentários dos alunos sobre as tarefas. Fonte http://www.aprendentesple.com.br/

É possível observar na fig.3 que o aluno se empenhou em ajudar o colega a produzir um bom
texto. Ele deu dicas de ortografia, de construção de frases e o alertou para a interferência da língua
francesa (língua segunda do aluno) no texto.

Verifica-se também que o próprio aluno (que está interferindo no texto do colega) cometeu
alguns desvios gramaticais. Porém, compreendendo que em um ensino Acional o estudo da estrutura da
língua não é a finalidade, mas um meio para se cumprir as tarefas e, também, para não desmotivar o
aluno/mediador, os desvios cometidos por ele não foram corrigidos na plataforma, mas em aula
presencial sem chamar atenção diretamente para o aprendente.

As constantes interferências nos textos, pelos aprendentes, ocasionaram em melhorias na PE dos


alunos, como pode ser observado na fig.4.
458

(a)

(b)
Figura4. Trecho de um texto realizado por um aprendente em sala de aula e reformulado coletivamente
na plataforma.

A tarefa da fig. 4 tinha o seguinte comando: Imagine que você é um leitor da revista „IstoÉ‟. Após ler o
texto Educação financeira para crianças e adolescentes, você resolveu escrever para a revista dando a sua
opinião sobre o assunto.

Após ler e discutir o texto base para realização da tarefa o aluno resolveu se posicionar
contrariamente ao texto da autora. Porém, ao iniciar sua carta de opinião, o aprendente tecia elogios ao
texto (a), se contradizendo naquilo que queria expor. Depois das interferências dos colegas o aluno
reescreveu sua carta de opinião deixando o texto mais coerente (b).

Esse trabalho colaborativo, em ambiente virtual de aprendizagem, dificilmente ocorre em


ambiente de sala de aula, pois, normalmente, nesse contexto: os aprendentes não têm acesso aos textos
459
escritos pelos colegas; o tempo é curto; os alunos ficam mais tímidos em interferir no texto alheio etc.
Já na plataforma essas restrições podem desaparecer.

O resultado desse trabalho colaborativo na plataforma aprendentesple repercutiu no exame CELPE-


BRAS, realizado pelos aprendentes no ano de 2012. Todos foram aprovados com excelente
desempenho.

3. CONCLUSÃO

Este estudo nos permitiu observar que o ensino/aprendizagem Acional da PE em turmas de


PLE, via Web pode:

• ter uma progressão mais rápida, visto que as tarefas são realizadas com mais frequência pelos
aprendentes e corrigidas mais rapidamente pelo professor;
• ser bastante colaborativo, pois os sujeitos participantes são responsáveis pelo processo de
ensino/aprendizagem;
• levar o aprendente a assumir novas atitudes diante da aprendizagem, refletindo sobre sua prática
de PE e seu papel social enquanto estudante;
• permitir não somente uma boa interação entre professor/aprendente, como também
aprendente/aprendente.

Este trabalho também nos fez perceber que, embora as mídias convivam com as orientações
metodológicas de ensino, estas não são partes indissociáveis daquelas. O professor não é obrigado a
trabalhar com a tecnologia em suas aulas, porém, se o fizer, deve ter consciência de que não pode
prescindir de uma reflexão metodológica.

A Perspectiva Acional do QECRL parece constituir uma importante orientação metodológica


para a realização de tarefas em ambientes virtuais, visto que ela orienta para uma ação social. Sendo
assim, conversar com estrangeiros, conhecer e discutir sobre a cultura de um país, enviar e-mail
solicitando informações de bolsas de estudos para organizações estrangeiras etc. podem e devem ser
tarefas realizadas em ambientes virtuais.

Entendemos também que é preciso ter cautela ao usar toda essa tecnologia disponível na internet.
Cabe aos professores ficar atentos para não repetirem no ambiente virtual o que muitas vezes já fizeram
em ambiente de sala de aula, ou seja, exercícios e atividades descontextualizadas que não favoreciam a
aprendizagem. Cabe-lhes também perceber que seu papel não pode ser de forma alguma ocupado pela
460
tecnologia. Ao contrário, agora, mais do que nunca, o docente tem, entre outras, a importante missão
de incentivar os alunos a colaborarem com o processo de ensino/aprendizagem.

Vale enfim ressaltar que, diante da complexidade que é ensinar e aprender, todas as tecnologias
disponíveis no mundo podem não ser suficientes para garantir o sucesso no ensino/aprendizagem de
uma língua estrangeira. No entanto, é importante refletir sobre as implicações que um ensino acional
via web pode trazer para professores e alunos. O que não vale à pena é ignorar as possibilidades
disponíveis em nosso tempo!

4. REFERÊNCIAS

CARDOSO, A. Web 2.0 e cibercultura: perspectivas comunicacionais para a educação ONLINE. Rio de Janeiro,
2011. Dissertação de Mestrado. Consultado em 20/04/13. Disponível em:
http://www.estacio.br/mestradoedoutorado/docs/dissertacao-mestrado/ANA-ROSA-COSTA-
CARDOSO-completa.pdf

CARVALHO, A. Org. Manual de Ferramentas da Web 2.0 para Professores. 2008. Consultado em 20/04/13.
Disponível em: http://www.crie.min-edu.pt/publico/web20/manual_web20-professores.pdf

CONSEIL DE L‘EUROPE. Cadre Européen Commun de Référence pour les Langues - Apprendre, Enseigner,
Évaluer. Paris: Didier, 2001.

CRUZ. S. Blogue, YouTube, Flickr e Delicious: Software Social. Manual de Ferramentas da Web 2.0 para
Professores. Ministério da educação. 2008. Consultado em 20/04/12. Disponível em:
http://www.crie.min-edu.pt/publico/web20/manual_web20-professores.pdf

MATTAR, J. Guia de educação a distância. São Paulo: Cengage Learning, 2011.

POLLOCK, J. Web semântica para Leigos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2010.

PRIMO, A. O aspecto relacional das interações na Web 2.0. XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação, 2006, Brasília. Anais, 2006. Consultado em: 20/03/13. Disponível em:
http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/1264/000548498.pdf?sequence=1

ROSEN, E. Le point sur le Cadre européen commun de référence pour les langues. Paris: CLE international, 2007.
461
PRODUÇÃO ACADÊMICA NA UNIVERSIDADE: UM ESTUDO
COMPARATIVO DO GÊNERO RESUMO

Ioneli da Silva Bessa Ferreira188

Resumo: O objetivo deste trabalho é provocar a discussão sobre a produção acadêmica do gênero resumo nos
cursos de formação de (futuros) professores. Buscamos aporte teórico no interacionismo sócio-discursivo de
Bronckart (1999); no conceito de resumo de Lakatos e Marconi (2010); nas propostas de retextualização de
Marcuschi (2007) e Matêncio (2002), na proposta do trabalho com os gêneros textuais de Scheneuwly e Dolz
(1999) e Bakhtin (1992).Os textos, objetos desta pesquisa, foram gerados por alunos egressos do Curso de
Formação de Professores do município de Belém (2006) e alunos ingressos no Curso de Pedagogia – via
PARFOR (2011), no município de Marabá – noroeste do Pará. Para tanto foi selecionado o artigo ―Os quatro
mitos da educação‖, de Gustavo Iorchep, publicado no dia 7/3/2007, na revista VEJA. Por meio de um estudo
comparativo foi possível verificar que os alunos do município de Marabá (a maioria professores com entre 7 a 20
anos de atividades em sala de aula) possuem mais autonomia e segurança durante a retextualização do texto-base,
diferentemente dos alunos de Belém, cujo grau de dependência é maior, sem contar a elevada digressão do tema
proposto. Isto nos faz indagar que professor a universidade está formando?

Palavras-Chave: Gênero Textual; Resumo; Formação de Professores.

Resumé: Le but de ce travail est de provoquer la discussion sur la production académique du genre resumé dans
les cours de formation de courte durée pour (futurs) enseignants. Nous cherchons les contribution théorique
dans interactionnisme socio-discursif de Bronckart (1999), le concept de résumé par Lakatos et Marconi (2010),
le projet de retextualization Marcuschi (2007) et Matencio (2002), le travail proposé avec les genres textuels par
Scheneuwly et Dolz (1999) et Bakhtine (1992). Les textes, objets de cette recherche, ont été générés par des
anciens élèves du cours de Formation des Enseignants, à Belém (2006), et par les élèves de cours de Pédagogie
dans le PARFOR (2011,) dans la ville de Maraba - au nord-ouest du Pará. Par conséquent, nous avons choisi
l'article «les quatre mythes de l'éducation», par Gustavo Iorchep, publié le 07/03/2007, dans le magazine Veja.
Grâce à une étude comparative a eté possible vérifier que les étudiants à la ville de Maraba (la plupart des
enseignants qui ont entre 7 et 20 ans d'activités dans la salle de classe) ont plus d'autonomie et de sécurité
pendant retextualization basé sur du texte, contrairement aux étudiants de Belém, dont le degré de dépendance
est plus grande, sans parler de la tournée de haut du sujet proposé. Cela fait de nous demander : Qui est le
professeur que se forme dans l‘université ?

Mots-clés: Genre Textuel; Résumé; Formation des Enseignants.

PRODUÇÃO ACADÊMICA NA UNIVERSIDADE: UM ESTUDO COMPARATIVO DO


GÊNERO RESUMO

188
Docente da Cátedra de Línguística da Universidade do Estado do Pará – UEPA. Mestre em Educação pela Universidade
do Estado do Pará – UEPA. Graduada em Letras – Língua Portuguesa pela UFPA.
462
A motivação para a realização deste artigo partiu da constatação das crescentes dificuldades que os
alunos dos cursos de graduação encontram, quando se defrontam com a necessidade de produzir textos
concernentes a gêneros da esfera tipicamente acadêmica e/ou científica. Este é o caso, por exemplo, da produção
do gênero resumo.

Ao ministrar a disciplina Leitura e Produção de Textos, em Belém-PA, pela Universidade do Estado do


Pará – UEPA, para alunos que haviam terminado o Curso de Formação de Professores para o Pré-Escolar e 1ª a
4ª série do Ensino Fundamental, mas que precisavam fazer complementação de disciplinas, para obterem o título
de pedagogos, pude verificar a grande dificuldade de produção textual por parte deles, quando solicitei que
produzissem um resumo acerca do artigo ―os 4 mitos da escola brasileira‖, de autoria de Gustavo Iorchep,
publicado na revista VEJA, de 7 de março de 2007.

Convém esclarecer que estes alunos haviam feito a disciplina Estágio Supervisionado comigo no ano de
2006, mas naquela ocasião não foi possível perceber as dificuldades de produção textual, em virtude desta
disciplina solicitar apenas dos discentes relatório, plano de aula e regência de turma.

A partir da escrita dos resumos apresentados, fiquei extremamente preocupada em colocar no mercado
de trabalho, profissionais que seriam responsáveis pela formação de leitores no ensino fundamental, mas que
apresentavam grandes dificuldades em suas próprias produções. A partir daquele momento redirecionei a
metodologia adotada na disciplina visando minimizar as lacunas encontradas nas produções dos
alunos/professores.

Diante dos resumos apresentados, fiz com que os alunos olhassem suas produções como leitores e não
como autores, pois este é um dos problemas que grande parte dos discentes encontram, dificilmente eles
conseguem identificar os principais elementos que caracterizam o gênero ao qual o texto pertence; não
identificam o meio de circulação; o autor; a data de publicação; o tema e apresentam dificuldades ao fazerem
referências.

Ter apenas um título em mãos é insuficiente para uma prática que demanda uma série de ações, que vão
desde a escolha do gênero do discurso mais adequado para concretizar o propósito discursivo, passando pelo
planejamento e elaboração até a reelaboração do texto. Em Portos e Passagens Geraldi189 apresenta um quadro que
mostra que a produção textual se dá dentro de determinadas circunstâncias, que o produtor de texto precisa
assumir-se como locutor: precisa ter o que dizer, precisa ter razões para dizer, ter a quem dizer e escolher
estratégias para dizer o que tem a dizer.

Grande parte das dificuldades apresentadas pelos alunos na universidade advem da pouca familiaridade
com produções textuais durante sua vida escolar (ensino fundamental e médio), geralmente este trabalho se
restringe a copiar do quadro ou transcrever textos de outras fontes, o que não os levam a refletir sobre suas
leituras e nem sobre suas produções textuais.

189 João Wanderley Geraldi, Portos de Passagens, 3. Ed., São Paulo, Martins Fontes, 1995, p.61
463
Tal obstáculo pode ser atribuído a um ensino tradicional e a uma metodologia que não privilegiavam a
produção textual, embora os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs, em diferentes trechos enfatizem como
devem ser as práticas de escrita no contexto escolar.

Parece que isto pouco se reflete em sala de aula, uma vez que os alunos continuam chegando às
universidades com sérios problemas em suas produções e, é de se esperar, que esses problemas sejam resolvidos
durante a vida acadêmica, todavia não foi isso que observei ao me deparar com alunos concluintes que não
sabiam produzir o gênero acadêmico resumo, embora tivessem cursado a disciplina Metodologia Científica e
outras mais que exigem dos alunos produções do gênero em questão.

Deste forma, este artigo visa provocar uma reflexão acerca da formação promovida pela Universidade
do Estado do Pará – UEPA, dos profissionais da área da educação, no que concerne a produção de textos
produzidos por eles. Será que esses alunos (alguns já professores atuantes) estão devidamente instrumentalizados
para ensinar seus alunos a produzirem textos? Será que quem não domina a produção textual é capaz de ensinar
seus alunos a produzirem textos adequados as diferentes situações comunicativas, a diferentes interlocutores?
Essas e outras indagações venho me fazendo ao longo de minha profissão de professora universitária e faço a
você que está lendo este texto.

Diante das questões aqui expostas e, em virtude de ministrar a mesma disciplina – Produção e Recepção
de Textos - em uma turma do PARFOR, no município de Marabá, em janeiro de 2010 com professores, atuantes
há muitos anos no magistério, tive o interesse em investigar se estes professores apresentavam o mesmo grau de
dificuldades na produção do gênero resumo que os alunos concluintes do Curso de Pedagogia de Belém. Para
isso utilizei a mesma reportagem que apliquei àquela turma, reportagem esta que ainda se encontra atual, em
virtude das dificuldades pelas quais passa o ensino no Brasil. Assim sendo, parti da seguinte situação-problema:
Será que os professores atuantes há muitos anos no magistério do município de Marabá possuem as mesmas
dificuldades que os alunos concluintes do Curso de Pedagogia no município de Belém, com relação à produção
de um resumo do artigo ―Os quatro mitos da educação‖?

Visando responder a esta indagação objetivei verificar se os professores atuantes há muitos anos no
magistério do município de Marabá possuem as mesmas dificuldades que os alunos concluintes do Curso de
Pedagogia no município de Belém com relação à produção de um resumo do artigo ―Os quatro mitos da
educação‖

Parti de um estudo comparativo entre as 63 produções (36 textos dos alunos da turma de concluintes do
ano de 2007, do município de Belém, que fizeram complementação na disciplina Leitura e Produção de Textos,
no 1º semestre de 2007 e 27 produções dos alunos ingressantes na Universidade pelo Plano de Formação
Docente - PARFOR do ano de 2010, do município de Marabá, localizado no sudoeste do Pará), buscando
verificar se o gênero acadêmico resumo produzido pelos alunos dos dois municípios possuem as características
próprias do gênero de uma produção acadêmica. Primeiramente o artigo foi lido e discutido, objetivando tirar
qualquer dúvida que, por ventura, os alunos pudessem ter, em seguida foi solicitada a produção textual, visando
464
atingir os objetivos propostos e, por fim, destaquei e analisei os aspectos que se aproximam e os que se
distanciam dos objetivos pretendidos.

O artigo que serviu de base para solicitar o resumo foi ―Os quatro mitos da educação brasileira, escrito
por Gustavo Ioschpe, publicado no dia 07/03/2007, na Revista VEJA. O artigo vem em forma de entrevista e
ocupa quatro páginas da revista, estas contem não somente texto escrito, mas imagens e outras informações ao
leitor.

Procurei dialogar dentro da perspectiva sócio-interacionista com Bronckart (1999), Scheneuwly e Dolz
(1999), com autores que tratam: da leitura (KLEIMAN, 2004), do gênero acadêmico resumo (LAKATOS e
MARCONI, 2010), além de trazer para a discussão autores que abordam a formação do professor.

Lakatos e Marconi (2004 p.50-51) conceituam o resumo como ―é a apresentação concisa e


frequentemente seletiva do texto, destacando-se os elementos de maior interesse e importância, isto é, as
principais idéias do autor da obra.‖; já Teixeira (2009, p.38) diz que ―o resumo traz somente as idéias do autor e
também pode fazer transcrições, ou seja, trazer para o resumo trechos com as palavras do autor exatamente
como estão no texto lido, que sempre estarão com destaque gráfico (aspas)‖.

Pesquisando na internet encontrei um conceito mais completo que diz que

resumo acadêmico é um texto que explicita de forma clara uma compreensão global do texto
lido, produzido por um aluno-leitor que tem a função demonstrar ao professor-avaliador que
leu e compreendeu o texto pedido, apropriando-se globalmente do saber institucionalmente
valorizado nele contido e das normas as quais o gênero está sujeito. Nessa esfera de circulação,
a função do resumo acadêmico é ser um texto autônomo, que recupera de forma concisa o
conteúdo do texto lido numa espécie de equivalência informativa que conserva ou não a
organização do texto original.190 (RIBEIRO, 2010)

Quanto à função, o resumo no contexto acadêmico serve tanto ao aluno, como eficiente instrumento de
estudo dos inúmeros textos teóricos e científicos que tem que ler, quanto ao professor, como instrumento de
avaliação que permite verificar a compreensão global do texto lido. Além disso, o resumo acadêmico pode ser
considerado um gênero que proporciona ao aluno a inserção nas práticas acadêmicas.

Trouxe estes conceitos para iniciar a discussão acerca do que se entende realmente por resumo
acadêmico, pois parece que na academia o gênero resumo é utilizado de diferentes maneiras pelos docentes em
várias disciplinas.

190
RIBEIRO, Andrea Lourdes. Resumo Acadêmico: uma tentativa de definição (UFMG/FAMINAS – BH)
http://recantodasletras.uol.com.br/artigos/1503147, acessado em 22/11/2010.
465
Como existe uma confusão epistemológica acerca do que é, efetivamente, este gênero, pois para o
campo da metodologia há um entendimento e para o campo da lingüística há outro, acho por bem definir que o
gênero resumo aqui será tratado sob a perspectiva de Scheneuwly e Dolz (1999), que acreditam que o resumo
constitui-se um ―eixo de ensino/aprendizagem essencial para o trabalho de análise e interpretação de textos e,
portanto, um instrumento interessante de aprendizagem‖ (p.15).

Há que se considerar também o meio de circulação do gênero resumo, o contexto acadêmico, os papéis
dos autores e as funções e objetivos desse evento comunicativo.

A perspectiva teórica sócio-interacionista postula que a comunicação humana é realizada através de uma
forma textual concreta, produto de uma atividade de linguagem em funcionamento numa dada formação social.
De acordo com Bronckart (1999: 137), as formações sociais elaboram os diferentes gêneros em função de seus
objetivos, interesses e questões específicas. Para o autor, as formações sócio-discursivas designam ―as diferentes
formas que toma o trabalho de semiotização em funcionamento nas formações sociais‖ (p. 141).

Bronckart (op. cit., p. 103), tal como Marcuschi (2005), baseando-se também em Bakhtin, postula ainda
que, se os gêneros são meios sócio-historicamente construídos para realizar objetivos comunicativos
determinados, ―a apropriação dos gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas
atividades comunicativas humanas‖. Por isso, para a realização de uma comunicação eficiente, é fundamental o
conhecimento do gênero envolvido numa determinada prática social.

Diante desse quadro teórico, podemos considerar o resumo como um gênero na medida em que ele é
uma realização lingüística em funcionamento em diferentes instâncias da sociedade atual, entre elas o ensino
superior.

Como lugar de práticas discursivas, o contexto acadêmico também estrutura um saber-fazer. Nas ciências
humanas, o saber no meio acadêmico é um saber de teorias, de modelos de outros. A origem desses diferentes
saberes e a forma de apropriar-se dos mesmos podem ou não manifestar-se lingüisticamente nos textos teóricos.
No entanto, tal como aponta Bakhtin (1929/2002) ao referir-se ao discurso retórico, o discurso científico não é
tão livre na sua maneira de tratar o enunciado pelo outro. ―Ele tem, de forma inerente, um sentimento agudo dos
direitos de propriedade da palavra e uma preocupação exagerada com a autenticidade‖ (p. 153). Em virtude disso
há, no meio acadêmico, determinações específicas sobre como representar o discurso do outro, as regras de
citação. Esse fazer obedece a convenções normatizadas, no caso do Brasil, pela ABNT – Associação Brasileira de
Normas Técnicas (cf. FRANÇA, 2003).

As regras estabelecidas pela ABNT para a citação nos resumos colocam à disposição do textualizador ou
resumista duas maneiras de expressar as vozes secundárias em seus resumos: a citação direta e a indireta. Tal
como apontou Bakhtin (1929/2002: 147), embora essas formas sejam convencionadas socialmente, elas
traduzem de maneira ativa e imediata uma apreensão ativa e apreciativa do discurso do outro.
466
De acordo com BAKHTIN (1979) ―os gêneros são padrões comunicativos socialmente
utilizados, que funcionam como uma espécie de modelo comunicativo global que representa um
conhecimento social localizado em situações concretas‖
Embora os gêneros sejam definidos como ―formas mais ou menos estáveis de enunciados‖ (cf.
BAKHTIN, 1992, p.279), os textos pertencentes a eles podem apresentar-se bastante heterogêneos
com relação aos tipos textuais191 que comportam. Assim para definir um gênero é preciso considerar os
papéis de seus enunciadores e receptores, as funções e objetivos do evento comunicativo e o modelo
estrutural através do qual o gênero se realiza lingüisticamente.
Por serem os gêneros meios sócio-historicamente construídos para realizar objetivos comunicativos, a
apropriação dos gêneros torna-se um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades
comunicativas humanas (cf. BRONCKART, 1999, p.103).

Segundo Matêncio (1997) os resumos podem ser divididos em três categorias: o primeiro, encontrado no
interior de artigos, dissertações e teses; o segundo integrados a textos acadêmicos, descreve o modo de realização
de um trabalho acadêmico e não sua estrutura (résumés ou abstracts) e o terceiro, cuja função é mapear um campo
de estudo ainda a ser desvendado pelo retextualizador. Este é o que me interessa nesse estudo, resumos que são
solicitados pelos professores universitários com o propósito de oferecer aos alunos a apropriação dos conceitos
necessários à sua formação e de integrá-los às práticas discursivas do meio acadêmico. É nesse contexto que se
insere o resumo como atividade didática, neste trabalho denominado resumo acadêmico. Esse tipo é no continuum
proposto pela autora, o que mantém um maior grau de fidelidade com relação à configuração do texto.

Bortoni-Ricardo (2010) chama a atenção para ―a formação de professores em nosso país vem
negligenciando dimensões de natureza mais prática, metodológicas, em benefício de uma suposta superioridade
de conteúdos teóricos provenientes das ciências humanas‖. Não somente ela, mas a educadora Eunice Durham,
em entrevista à revista VEJA (23/11/2008) quando diz: ―as faculdades de pedagogia formam professores
incapazes de fazer o básico, entrar em sala de aula e ensinar a matéria (...) os alunos saem de lá sem saber
ensinar‖. E este ensinar envolve competências e habilidades exigidas no local de trabalho – a sala de aula. Como
se vê, várias estudiosas apontam a fragilidade dos cursos de formação de professores.

Dentre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação dos Professores da Educação Básica,
aprovada em maio de 2001, destaco:

a) sólida formação teórica nos conteúdos específicos a serem ensinados na


Educação Básica, bem como nos conteúdos especificamente pedagógicos;
b) ampla formação cultural;
c) atividade docente como foco formativo;
d) contato com a realidade escolar desde o início até o final do curso, integrando a
teoria à prática pedagógica;

191
Essa pesquisa entende tipos textuais como constructos teóricos históricos e lingüisticamente definidos
467
e) pesquisa como princípio formativo;
f) domínio de novas tecnologias de comunicação e de informação e capacidade
para integrá-las à prática do magistério;
g) análise dos temas atuais da sociedade, da cultura e da economia;
h) inclusão das questões relativas à educação dos alunos com necessidades especiais
e das questões de gênero e de etnia nos programas de formação;
i) trabalho coletivo interdisciplinar;
j) vivência, durante o curso, de formas de gestão democrática do ensino;
desenvolvimento do compromisso social e político do magistério.

Percebe-se que não é tratado neste documento acerca da competência leitora do


professor, bem como sua capacidade de produzir textos, pois presume-se que o mesmo já
tenha desenvolvido esta no decorrer da graduação, no entanto não foi essa a conclusão que
cheguei nesta pesquisa, pois os alunos de Belém, capital do estado apresentaram bem mais
dificuldades que os alunos de Marabá, município localizado no noroeste do Pará no que diz
respeito a produção do gênero resumo.

Bortoni-Ricardo (op.cit.) apresenta duas matrizes192 que considera relevante para a formação do professor
como agente de letramento193. Partilho com ela da necessidade do professor utilizá-las visando a melhoria do
processo ensino/aprendizagem. Assim como Bortoni-Ricardo, também defendo a proposta de leitura tutoral194,
como estratégia de mediação do professor, pois a leitura é uma atividade interdisciplinar, por meio dela se tem
acesso aos conhecimentos de todas as áreas do saber. Por isso, para obter sucesso na aprendizagem de quaisquer
conteúdos, necessário é desenvolver habilidade para ler os textos específicos a eles relacionados.

O professor, segundo a autora acima deve servir como um guia do aluno na leitura dos diversos textos,
atuar como seu tutor (por isso leitura tutorial), visto que a leitura é compartilhada: envolve tento o professor
(mediador) como o aluno (agente em todo o processo).

Dentre as estratégias de leitura apresentada por Bortoni-Ricardo, destaco ―a capacidade de realizar um


resumo da leitura‖ (2010, p.55). A autora salienta que as tarefas de leitura não são finalizadas com a sua
realização, pelo contrário, depois da leitura são aplicadas estratégias para verificar se realmente ocorreu a
compreensão do texto. Segundo a autora, o resumo possibilita ao leitor apresentar as principais idéias do texto, o
que só será possível se tiver sido compreendido o que foi lido, ou seja, o leitor, ao fazer um resumo, além de ter
de demonstrar sua compreensão acerca do que leu, precisa colocar em prática sua capacidade de síntese. O leitor

192
Matrizes de Referência para a Formação e o Trabalho do Professor como agente de Letramento e Matriz de Habilidade
de Leitura (Foco: ler para aprender) – Ensino Fundamental do 5º ao 9º ano e Ensino Médio.
193 Kleiman (2006) discorre sobre o conceito do professor enquanto agente de letramento
194 Aquela em que o professor exerce papel de mediador durante o processo de leitura e compreensão; nesta proposta, o

professor deve atuar fazendo intervenções didáticas, por meio das quais interage com os alunos, a fim de conduzi-los à
compreensão do texto. (BORTONI-RICARDO, 2010, p.51)
468
precisa também tomar notas e identificar as idéias principais e secundárias; diferenciar conceitos relevantes de
detalhes e redundâncias; expressar as idéias do texto com as próprias palavras.

CONCLUSÃO:

Esperei que, ao final da leitura e produção do gênero solicitado, aos alunos/resumistas do artigo da
Revista VEJA, os mesmos fossem capazes de identificar no texto, pelo menos os elementos apontados por
Machado et. al. (2004, p. 33) do resumo escolar/acadêmico:

- o gênero de texto: artigo de opinião;

- o meio de circulação: revista semanal;

- o autor Gustavo Ioschpe;

- a data da publicação: 7/03/2007 e

- o tema: os 4 mitos da escola brasileira.

No entanto, não foi isso que verifiquei ao comparar as produções dos alunos de Marabá e de Belém do
Curso de Pedagogia, conforme mostram os quadros abaixo

Elementos analisados Belém 36 textos Marabá 27 textos

Gênero de texto 44,4% 29,6%

Meio de circulação 11,1% 25,9%

Autor 61,1% 62,9%

Data da publicação 5,5% 3,7%

Tema 22,2% 29,7%

Referência 36,1% 25,9%

Diante destes resultados percebi que os alunos de Belém apresentam mais dificuldades em quase todos
os elementos considerados importantes na confecção do gênero resumo escolar/acadêmico, que os alunos de
Marabá. Alunos estes já com grande experiência de sala de aula (na média, 7 a 15 anos de atuação no magistério)
que não passaram por um processo seletivo tão rigoroso como o vestibular e que ainda são incipientes nos
conteúdos ministrados nas disciplinas do Curso de Pedagogia (a minha foi a 3ª a ser ministrada), diferentemente
469
dos alunos de Belém que já haviam concluído o Curso e só estavam fazendo complementação de disciplinas para
receberem o diploma de pedagogos.

Estes resultados são preocupantes, pois me faz indagar que profissionais (aí me incluo) estamos
colocando no mercado de trabalho para ensinar alunos da base da pirâmide educacional – educação básica?

Será que esses futuros, ou professores atuantes foram devidamente instrumentalizados para ensinar a
produção textual levando em consideração os diferentes gêneros textuais? Como isso foi possível se eles mesmos
não conseguem identificar elementos básicos do gênero resumo? Será que são capazes de ensinar outros gêneros
se não conseguiram dominar um dos gêneros mais comuns na Universidade? Será que os professores
universitários sabem que o gênero resumo possui especificidades que precisam ser consideradas na hora da
avaliação?

Essas e outras indagações me faço e convido o leitor deste texto, principalmente se for professor
universitário a fazê-lo. Independentemente da área de atuação é preciso que todos os professores saibam as
características dos gêneros exigidos na universidade para que procurem levá-los em consideração na hora de
solicitar e avaliar um resumo acadêmico.

É preciso que nós, professores, reflitamos a nossa prática e nosso arcabouço teórico para que possamos
melhorar a produção textual dos alunos na universidade, sob pena de eles, futuramente não conseguirem ensinar
produção textual dentro da perspectiva dos gêneros, aumentando assim os índices de dificuldades que os alunos
brasileiros apresentam em relação à leitura e a escrita, dificuldades estas visibilizadas nos exames propostos pelo
MEC como Prova Brasil e Provinha Brasil.

Esta pesquisa me faz refletir a formação inicial que vem se dando no Curso de Pedagogia da UEPA,
cabe a nós, professores universitários, fazermos a mea culpa no que diz respeito aos conteúdos ministrados e
cobrados em avaliações. Faz-se necessário a apropriação efetiva, por parte do professor universitário, dos
gêneros acadêmicos solicitados aos alunos no Curso de Pedagogia em questão.

REFERÊNCIAS:

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________. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec-Annablume: 2002.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris, MACHADO, Veruska Ribeiro e CASTANHEIRA, Salete Flôres. Formação
de professores como agente letrador. São Paulo: Contexto: 2010.

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470
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Campinas: Mercado de Letras: 2006.

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471
A DESCARACTERIZAÇÃO DO GÊNERO DO DISCURSO EM MATERIAIS
DIDÁTICOS
Irando Alves Martins Neto¹

Profª. Dr. Renata Junqueira de Souza²

Resumo: Ainda que as novas teorias do texto e da linguagem defendam o processo dialógico da leitura
e da escrita, os materiais didáticos, em geral, tendem a ignorar tal característica. Isso porque utilizam
textos como pretextos para ensino gramatical e/ou para ensino do próprio gênero do discurso,
desconsiderando, todavia, a intencionalidade da mensagem e fazendo, assim, com que o sentido da
interação se perca. Dessa forma, o objetivo de uma aprendizagem significativa não é alcançado, de
forma que as leituras feitas pelos alunos na escola, local onde é predominante o contato com materiais
didáticos, não proporcionam uma relação da língua com o mundo. Por essa razão, bem como por
compreender a dependência do professorado por materiais didáticos, o intuito deste trabalho é analisar
segmentos do livro Linguagens, códigos e suas tecnologias: língua portuguesa (2009), elaborado pela Secretaria da
Educação do Estado de São Paulo e distribuído em toda sua rede escolar. Pretendemos, ainda, refletir
sobre a seguinte indagação: de que forma as atividades voltadas ao ensino sobre gêneros do discurso
contribuem para a formação de sujeitos letrados? Para tanto, investigaremos questões de suporte,
enunciador, composição estrutural, conteúdo temático, estilo, propósito comunicacional e, sobretudo,
atitude responsiva que se espera do aluno-leitor em ―textos‖ especialmente elaborados para o material.

Palavras-chave: Gêneros do discurso; Texto; Sujeitos letrados; Materiais didáticos.

Abstract: Although the current theories on text and language defend the reading and the writing as a
dialogic process, the textbooks, in general, tend to ignore such peculiarity. This is true because the texts
in them are used as pretext for teaching grammar and/or for teaching speech genres, disregarding,
however, the intentionality of the message and making, thereby, that the interaction does not exist.
Thus, the objective of a meaningful learning is not achieved, since the texts read by students in school,
where the contact with textbooks preponderant, do not provide relation between language and real
world. For this reason, as well as because of teachers‘ dependence on textbooks, the aim of this paper is
to analyze extracts of the textbook Linguagens, Códigos e suas tecnologias (2009), elaborate by Secretaria da
Educação do Estado de São Paulo and distributed in all the public schools of the state. Also, we intend
to reflect on the following question: how do activities focused on teaching about speech genres
contribute to the education of literate people? For this purpose, we mean to investigate issues like:
media, enunciator, compositional structure, thematic content, style, communicative purpose and, above
all, the responsive attitude that is expected from the student-reader regarding "texts" specially elaborate
for the material.

Keywords: Speech genres; Text; Literate people; Textbooks.

1. Introdução

A partir das novas teorias do texto e da linguagem, entendemos que toda e qualquer

¹ Mestrando em Educação na FCT/Unesp. E-mail: [email protected]


² Professora do Programa de Pós Graduação em Educação da FCT/Unesp. E-mail: [email protected]
472
comunicação humana é um processo dialógico que ocorre por meio de gêneros. Essa interação tende a
ser mais complexa quando é produzida mediante o uso da língua escrita, uma vez que a construção de
sentido pode ser dificultada pela distância temporal, espacial e cultural existente entre escritor e leitor.
Desse modo, compreendemos perfeitamente o desafio de ensinar e aprender a ler e escrever, sobretudo
quando se tratam de escolas em situações precárias como as brasileiras.
As práticas de letramento escolar no Brasil, a propósito, estão intimamente ligadas à
estruturação dos livros didáticos, porque, como o professorado está quase sempre atarefado na
tentativa de garantir seu sustento, a formação continuada e a prática reflexiva (quando existem) ficam
para segundo plano, de modo que a chance de o docente ficar dependente desses materiais didáticos e
de seus manuais é muito grande.
Muito embora alguns autores desses materiais elaborem atividades de leitura com diferentes
situações comunicativas, utilizam textos como pretextos para ensino gramatical e/ou para ensino do
próprio gênero do discurso, desconsiderando, todavia, a intencionalidade da mensagem e fazendo,
assim, com que o sentido da interação se perca.
Por isso, o intuito deste trabalho é analisar segmentos do livro Linguagens, códigos e suas tecnologias:
língua portuguesa (2009), elaborado pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo e distribuído em
toda sua rede escolar, a fim de refletir sobre a seguinte indagação: de que forma o ensino sobre gêneros
do discurso contribuem para a formação de sujeitos letrados? Para tanto, investigaremos questões de
suporte, enunciador, composição estrutural, conteúdo temático, estilo, propósito comunicacional e,
sobretudo, atitude responsiva que se espera do aluno-leitor em ―textos‖ especialmente elaborados para
o material.
O trabalho foi realizado a partir dos métodos de pesquisa documental e bibliográfica. A pesquisa
documental diz respeito à análise de documentos, nesse caso fragmentos do livro Linguagens, códigos e
suas tecnologias: língua portuguesa (2009). Já a pesquisa bibliográfica concerne ao levantamento de literatura
que, neste trabalho, serve para embasar as ideias defendidas bem como para fundamentar a análise do
corpus. Assim, partimos dos preceitos de autores como Bakhtin (2011), Bazerman (2007) e Soares (2002)
e outros que defendem a linguagem como processo de interação.
Além desta introdução, o artigo consta de três outras partes. Considerando o objetivo principal
do trabalho, nada mais apropriado do que começar, em A relação entre gênero do discurso e letramento, com
uma breve definição de gênero do discurso, apontando a vertente teórica aqui adotada, a fim de refletir
sobre a interdependência entre gêneros textuais e ensino de língua quando o que se espera é formar
sujeitos letrados. Em seguida, e em respeito ao título do trabalho, em Leitura escolar: a descaracterização do
gênero do discurso, apresentamos, de maneira sintética, algumas informações relevantes sobre Linguagens,
códigos e suas tecnologias: língua portuguesa (2009) para, então, analisar algumas de suas partes, concretizando
473
a ideia defendida acerca da descaracterização do gênero discursivo. Por fim, nas considerações finais,
respondemos à pergunta que norteia este estudo.
2. A relação entre gênero do discurso e letramento

Entendemos que a aquisição da leitura e da escrita torna-se cada vez mais essencial na sociedade
dos dias atuais. Não somente o mercado de trabalho competitivo e informatizado e os estudos, mas
também as relações sociais nas mais diversas áreas da atividade humana exigem competências e
habilidades cada vez maiores no que concerne à modalidade escrita da língua. Nesse sentido, a fim de
atingir às demandas do mundo contemporâneo, os currículos brasileiros apontam para a necessidade de
aprender a linguagem durante todo o ensino regular. Com isso, pretende-se que o educando saia da
escola como cidadão capaz de utilizar a língua materna nas diferentes situações que a sociedade possa
impor.
É esse processo de aprender a ler e escrever diferentes textos que chamamos de letramento.
Nas palavras de Soares (2002, p. 18), letramento é ―[...] o resultado da ação de ensinar ou de aprender a
ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como
consequência de ter-se apropriado da escrita‖. No entanto, o conceito difere-se de alfabetização, uma
vez que letramento diz respeito ao uso da leitura e da escrita em práticas sociais, ou seja, vai além de
puramente (de)codificar signos linguísticos, mas tem a ver com o uso que o sujeito faz da língua escrita
em suas atividades.
Ainda que autores como Street (1993) e Lankshear (1987) defendam o letramento a partir de
uma perspectiva política e ideológica radical, advertindo que as práticas de letramento são também
aspectos das estruturas de poder em uma sociedade, o modelo que determina as práticas escolares é o
que ―[...] considera a aquisição da escrita como um processo neutro que, independentemente de
considerações contextuais e sociais, deve promover aquelas atividades necessárias para desenvolver no
aluno, em última instância, como objetivo final do processo, a capacidade de interpretar e escrever
textos abstratos‖ (KLEIMAN, 1995, p. 44). Em outras palavras, o sistema educacional preocupa-se em
formar cidadãos que saibam utilizar a leitura e a escrita apenas para responder às exigências das práticas
sociais e não para transformar a sociedade em que se vive.
Ser capaz de interpretar e produzir textos para interagir com o ―outro‖, isto é, ser letrado, é
poder compreender inúmeras situações comunicativas, pertencentes a diversos domínios discursivos
que fazem parte da vida social do sujeito. Cabe lembrar as palavras de Soares (2002, p. 44), ao dizer que
o letramento é ―[...] o estado ou a condição com diferentes portadores de leitura e de escrita, com
diferentes gêneros e tipos de leitura e de escrita, com as diferentes funções que a leitura e a escrita
desempenham na nossa vida‖.
474
Nesse sentido, quando o intuito é formar cidadãos letrados, o ensino de habilidades e de
competências leitoras e escritoras deve ocorrer mediante gêneros textuais, uma vez que toda e qualquer
comunicação ocorre por meio deles. Sobre o tema, Bakhtin (2011, p. 261-262) postula:

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e


únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana.
Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido
campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela
seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo,
por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático,
o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do
enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado
campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas
cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados,
os quais denominamos gêneros do discurso (grifos do autor).

Ensinar e aprender a ler e a escrever a partir do conceito de letramento é, então, ensinar e


aprender a compreender e produzir diferentes situações sócio-comunicativas. Assim, saber ler é, além
de decodificar, saber interpretar a função social do texto, a intencionalidade e o estilo do escritor, a
maneira como o suporte, o meio de comunicação e/ou as escolhas lexicais deixam transparecer as
características ideológicas do enunciador. De modo igual, saber escrever é, além de codificar, conseguir
fazer escolhas efetivas de palavras e estilos, a partir dos objetivos que se pretende alcançar e dos
interlocutores que se tem. É, ainda, se questionar sobre a consequência social que o texto terá, quer
dizer, sobre a atitude responsiva do leitor previsto.

3. Leitura escolar: a descaracterização do gênero do discurso

Tal como proposto na introdução, defendemos que os materiais didáticos, em geral, tendem a
ignorar o caráter dialógico do texto, uma vez que os utilizam apenas como pretexto para ensinos outros
que não o seu próprio entendimento, que não a própria maneira como o leitor pode (e deve) dialogar
com o escritor. E por notarmos que ensinar, hoje, é quase sinônimo de seguir o passo-a-passo
elaborado por livros ou, nas palavras de Almeida Filho (2010, p. 40), ―na ausência da massa crítica entre
o professorado de línguas, a dependência do livro didático e suas receitas se torna maior‖,
consideramos importante um estudo que leve em conta como o ensino da leitura ocorre nesses
materiais, como os conceitos de gênero e de texto são apresentados aos alunos e, mais importante,
como tais textos, gêneros e atividades de ―análise de texto‖, como os livros as chamam, contribuem
para a formação de sujeitos letrados.
Parece óbvio afirmar que gêneros do discurso e texto sejam interdependentes, mesmo que para
compreender suas características peculiares precisem ser estudados separadamente. Talvez pareça
475
ingênuo, ainda, retomar que não existe interação verbal sem um nem o outro e que esse tipo de
interação resulta na existência de ambos, gênero e texto. No entanto, (e não queremos ser repetitivos,
mas enfáticos), ao separá-los, os materiais didáticos muitas vezes desconsideram um deles,
descaracterizando-os. A título de exemplo, analisaremos textos e atividades de leitura retirados do livro
Linguagens, códigos e suas tecnologias: língua portuguesa (2009). Antes disso, no entanto, apresentamos algumas
informações sobre os objetivos do material supracitado.

3.1 Um pouco sobre o material didático

Em 2007, o governo do Estado de São Paulo criou o programa São Paulo faz escola, cujo foco é a
implementação de um único currículo pedagógico a todas as escolas da rede estadual. Com isso, todos
os alunos e professores, a partir do segundo ciclo do ensino fundamental, passaram a receber o mesmo
material didático, seguindo um plano de aula comum.
Como esses materiais são bimestrais, são distribuídos quatro volumes, intitulados Caderno do
Aluno, para cada aluno de cada série escolar. Na mesma lógica, cada professor recebe quatro volumes,
intitulados Caderno do Professor, por série que leciona. Os livros são divididos em quadro grandes áreas
(Ciências da Natureza, Ciências Humanas, Linguagem e Códigos e Matemática) cada qual engloba as
disciplinas específicas do campo, todos em consonância com os conteúdos e objetivos propostos pelo
Currículo.
Cada volume é dividido em unidades, chamadas de Situação de Aprendizagem. No caso do material
elaborado para o ensino de língua materna (Linguagens, códigos e suas tecnologias: língua portuguesa), cada
volume consta de, em média, cinco Situações, das quais a última geralmente objetiva a produção de
determinado gênero, que foi trabalhado nas primeiras.
O material faz agrupamentos tipológicos, ou seja, a cada série seleciona uma gama de gêneros
textuais que têm como predominante determinado tipo de texto. Assim, no sexto ano (quinta série),
por exemplo, como a tipologia a ser trabalhada é a narração, os Cadernos trazem gêneros como o conto,
a fábula, a crônica, a história em quadrinhos etc.

3.2 Especificidades do estudo de gêneros: um olhar sobre a proposta didática de uma


Situação de Aprendizagem

A fim de contextualizar o volume analisado, exporemos algumas informações relevantes. O


Caderno foi desenvolvido para o terceiro bimestre do sétimo ano (sexta série) do ensino fundamental. É
dividido em cinco Situações de Aprendizagem e dentre os conteúdos gerais estão o ―estudo e
desenvolvimento de projeto simulado de revitalização de biblioteca escolar‖. A Situação de Aprendizagem
476
1 tem como título ―Como organizar um miniprojeto‖ e inicia pedindo que os alunos façam a leitura do
texto a seguir:

Leitura e Análise de Texto

Mariana, adolescente de 12, ao explorar seu espaço escolar, descobre que a biblioteca não está funcionando
adequadamente. Intrigada com o fato, ela conversa com a diretora da escola, que lhe propõe que escreva um
pequeno projeto de revitalização desse lugar. Diante do problema (ela nunca fez um projeto), a jovem pede
ajuda a professores e a colegas de classe e, juntos, eles não só desenvolvem o projeto como passam a se
envolver em ações em prol dessa tarefa coletiva. Para isso, o grupo utiliza todos os seus conhecimentos de
língua portuguesa, lendo e compondo muitos textos orais e escritos.

Elaborado especialmente para o São Paulo faz escola.

Em seguida, devem responder às seguintes questões: ―Qual foi a primeira ação de Mariana?‖,
―O que você faria se estivesse no lugar dela?‖, ―Por que você acha que ela se interessou pela
revitalização da biblioteca de sua escola? Por quê?‖, ―Como os conteúdos que Mariana aprendeu nas
aulas de língua portuguesa ajudaram a menina e seus colegas a desenvolver esse projeto?‖.
Levando em conta as definições de texto e gênero, notamos algumas ausências. Em primeiro
lugar trata-se de uma história inegavelmente pobre no que diz respeito ao estilo. Mesmo que a questão
de estilo esteja bastante relacionada ao individual, ―em cada campo existem e são empregados gêneros
que correspondem às condições específicas de dado campo; é a esses gêneros que correspondem
determinados estilos‖ (BAKHTIN, 2011, p. 266). Ou seja: ainda que se trate de uma narrativa ficcional,
como definida pelo livro, o texto não apresenta características estilísticas desse gênero. O escritor vai
direto ao ponto, sem figuras de linguagem nem adjetivações, resumindo ao máximo o ocorrido com
Mariana, sem ao menos intitular a história, o que ainda nos mostra que a estrutura composicional
diferencia-se do gênero a que o material diz que o texto pertence. Por essas razões, trata-se de um texto
fechado, sem grandes possibilidades de imaginação ou diferentes interpretações por parte do leitor,
características da ficção.
No que se refere ao enunciador, observamos que ele é omitido e que o texto foi elaborado
especialmente para um programa do Estado. Com as perguntas que os alunos devem responder, fica
claro que o objetivo do texto está relacionado a como organizar um projeto e isso o próprio Caderno do
Professor confessa: ―nesta sequência de atividades inicial, é preciso que você apresente aos estudantes a
primeira parte da narrativa ficcional criada para estimulá-los a simular um projeto de revitalização‖.
Logo, trata-se de uma narrativa de ficção cujo propósito comunicacional difere-se da função de um
gênero ficcional. Sendo assim, há um grande risco de que haja falhas na comunicação dos
interlocutores, uma vez que em textos escritos não recebemos muitas dicas para orientarmos na sua
interpretação e os ―gêneros podem ajudar nessa confusão ao assinalar para nós a situação e a ação,
477
projetando o contexto invisível. O leitor e o escritor precisam do gênero para criar um lugar de
encontro comunicativo legível da própria forma e conteúdo do texto‖ (BAZERMAN, 2007, 23).
Embora o Caderno do Professor apresente o texto analisado como a primeira parte da narrativa
sobre Mariana, trata-se, na verdade, de um resumo da história. A íntegra é apresentada aos poucos entre
as Situações de Aprendizagem 1 e 4, em quatro etapas (História de Mariana: Parte 1, História de Mariana: Parte
2, História de Mariana: Parte 3 e História de Mariana: Parte 4). Apesar de essas quatro partes constarem de
título e de autores (Débora de Angelo e Elaine Aguiar), o material declara que o texto foi ―elaborado
especialmente para o São Paulo faz escola‖. Além disso, as perguntas preparadas sobre o texto deixam
claro que o objetivo não é que os alunos participem de um processo dialógico com o escritor, mas que
compreendam a importância de se posicionar como protagonista de ações que transformem a realidade
de determinado contexto social, o que pode ocorrer por meio do gênero projeto. Por exemplo: ―Se o
―probleminha‖ de Mariana fosse de vocês, como poderiam contribuir para resolvê-los?‖, ―Como
planejariam a revitalização da biblioteca?‖, ―Conhecer a História de Mariana ajuda-os a pensar nos
projetos que vocês e seus colegas poderiam fazer em sua escola?‖, ―Se o projeto fosse de vocês, quais
ações realizadas por Mariana e seus colegas funcionariam em sua realidade escolar?‖.
Para a realização do projeto, Mariana e seus colegas produzem três gêneros textuais: notícia,
carta e entrevista. Da mesma forma, os alunos do sétimo ano também produzirão esses textos para a
sistematização de seus projetos, atividade apresentada na Situação de Aprendizagem 4, intitulada ―Oficinas
de escrita‖. Por isso, nas Situações anteriores, estudaram, de modo intercalado com as partes da História
de Mariana, os três gêneros. Não obstante, os textos apresentados também desconsideram o caráter
dialógico da linguagem. É o caso da notícia, por exemplo, que, intitulada ―Estudantes da 6ª série
passeiam pela própria escola‖, também foi elaborada especialmente para o programa, servindo apenas
para estudar a estrutura e a função do gênero, uma vez que se trata de um texto falso, de uma notícia
sobre algo que não aconteceu. O texto é seguido de perguntas como, por exemplo: ―A que gênero esse
texto pertence?‖, ―Do que trata o texto?‖, ―Explique qual a intenção das autoras ao colocar título e
subtítulo.‖, ―Qual a finalidade do primeiro parágrafo desse texto? Que informações ele apresenta ao
leitor?‖
Em suma, as leituras propiciadas no terceiro bimestre aos alunos do sétimo ano da rede estadual
de São Paulo não condizem com o conceito de letramento, pois os ―textos‖ perdem a característica
principal: interação, diálogo. De modo igual, os gêneros são descaracterizados: além de estarem fora de
seus suportes, os estilos não combinam, os enunciadores escrevem com objetivos que não condizem
com o conteúdo temático, a estrutura composicional é inadequada. Assim, é possível que os alunos se
apropriem de um conceito errôneo de texto e gênero e, consequentemente, de leitura e de escrita. É
notório salientar que essa descaracterização do gênero do discurso no material analisado é recorrente,
478
sobretudo pelo desrespeito à responsividade do leitor ao apresentar ―textos‖ especialmente elaborados
para o São Paulo faz escola.
Muito embora em algumas Situações de Aprendizagem o material proponha um trabalho sobre
gêneros sem desconsiderar suas características nem o caráter interlocutório do texto, trata-se de leituras
pobres, que não levam os alunos à compreensão de aspectos inferenciais e ideológicos. É o caso da
Situação de Aprendizagem 1, do volume 1, do Caderno destinado ao nono ano: ela consta de três gêneros: um
verbete, uma entrevista e um artigo de divulgação científica, todos reais, isto é, nenhum foi elaborado
especialmente para o material, mas retirados de veículos de comunicação verdadeiros. Ainda que o
objetivo principal pareça ser o estudo da tipologia exposição (a primeira pergunta depois da leitura do
texto é ―o que há em comum entre os textos?‖ e o título da Situação é ―Traços característicos da
tipologia expor‖), o manual do professor orienta que os alunos ―deverão emitir suas opiniões ou falar
suas impressões‖. Além de os alunos identificarem a situação comunicativa, o tipo de escritor, o
veículo, o tipo de leitor que o escritor espera, a linguagem apresentada (estilo), a função do gênero e o
tema, também precisam elencar as informações obtidas sobre o tema com a leitura do texto, ou seja, os
alunos interagem com os três gêneros. Por outro lado, não há um trabalho que considere o que fica
implícito no texto, de modo que para realização de grande parte das atividades o que se exige é que os
alunos saibam apenas decodificar. Na verdade, a seleção dos textos de todo o material não prioriza
textos abertos, que exijam que o leitor dê sentido a eles, mas textos que sirvam de pretexto para outros
fins que não o diálogo entre escritor e leitor.

Considerações finais

Lembremos que este trabalho levantou a seguinte indagação: de que forma as atividades
voltadas ao ensino sobre os gêneros do discurso contribuem para a formação de sujeitos letrados? Para
respondê-la, retomemos, então, alguns conceitos.
Compreendemos que letramento diz respeito à utilização da leitura e da escrita nas diversas
práticas sociais. Dessa maneira, ser letrado é saber ler e escrever em diferentes situações comunicativas,
ou seja, compreender e produzir gêneros textuais. Vimos que a interação por meio de textos escritos é
complexa, sobretudo pelas distâncias espaciais, temporais e culturais estabelecidas entre escritor e leitor
e, por isso, os interlocutores precisam do gênero para assinalar os propósitos comunicacionais, as
funções comunicativas dos textos, as ações, os atos.
Tais considerações nos levam a concluir que o ensino sobre gêneros são importantes para que
nossos alunos se tornem sujeitos letrados. No entanto, seria ingênuo crer que se trata de uma eficiência
unilateral. Levando em conta o sujeito enquanto aquele que realiza ações, que atua em seu meio, ser
sujeito letrado é saber ler e escrever agindo; e não se trata de uma ação mecânica, das habilidades físicas
479
necessárias no ato da leitura e da escrita, mas de ações sociais. Ler é se apropriar do discurso de quem
escreve, transformando seu próprio discurso. É escrever para desacomodar o discurso do outro,
transformando-o. Ou seja, o sujeito letrado utiliza a língua para ―inter-agir‖.
Nesse sentido, o letramento está intimamente ligado com os enunciados concretos que os sujeitos
produzem em suas atividades, ou seja, com gêneros não somente enquanto estruturais e funcionais, mas
enquanto textos, processos de interação. Por essa razão, a leitura e a escrita também precisam ser
ensinadas com gêneros, vale dizer, com textos de determinadas espécies, com determinadas semelhanças
estáveis. O que queremos dizer é que não se pode ignorar o caráter dialógico da língua quando o que
se espera é formar sujeitos letrados. Desse modo, entendemos que o material analisado, ao
descaracterizar os gêneros do discurso, não condiz com o conceito de letramento e que, portanto, não
contribui, em geral, para a formação de sujeitos letrados.
Para finalizar, afirmamos que, para que o processo complexo de letramento ocorra, é preciso
ensinar com e sobre os gêneros textuais, mas que tais textos não podem ser falsos, uma vez que só haverá
diálogo quando a escola deixar de ―criar mundos‖ e inserir seus alunos na realidade que os rodeia.

REFERÊNCIAS:

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Pontes Editores, 2010.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2011.

BAZERMAN, C. Escrita, gênero e interação social. São Paulo: Cortez Editora, 2007.

KLEIMAN, A. B. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: KLEIMAN, A.


B. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas,
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LANKSHEAR, C. Literacy, schooling and revolution. New York: The Falmer Press: 1987.

SÃO PAULO (Estado) Caderno do aluno: língua portuguesa, ensino fundamental – 6ª série, volume
3/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini; equipe, Débora Mallet Pezarim de
Angêlo, Eliane Aparecida de Aguiar, João Henrique Nogueira Mateos, José Luis Marques Landeira.-
São Paulo: SEE, 2009.

SÃO PAULO (Estado) Caderno do aluno: língua portuguesa, ensino fundamental – 8ª série, volume
1/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini; equipe, Débora Mallet Pezarim de
Angêlo, Eliane Aparecida de Aguiar, João Henrique Nogueira Mateos, José Luis Marques Landeira.-
São Paulo: SEE, 2009.

SÃO PAULO (Estado) Caderno do professor: língua portuguesa, ensino fundamental – 6ª série,
volume 3/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini; equipe, Débora Mallet Pezarim
de Angêlo, Eliane Aparecida de Aguiar, João Henrique Nogueira Mateos, José Luis Marques Landeira.-
São Paulo: SEE, 2009.
480

SÃO PAULO (Estado) Caderno do professor: língua portuguesa, ensino fundamental – 8ª série,
volume 1/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini; equipe, Débora Mallet Pezarim
de Angêlo, Eliane Aparecida de Aguiar, João Henrique Nogueira Mateos, José Luis Marques Landeira.-
São Paulo: SEE, 2009.

SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

STREET, B. V. Cross-cultural approaches to literacy. Cambridge: Cambridge University Press,


1993.
481
LINGUAGEM E TRABALHO EM CONTEXTOS SOCIAIS: O (IN)VISÍVEL
NO DISCURSO SOBRE A ATIVIDADE

Itatiane Chiaradia195
Ernani Cesar de Freitas196

Resumo: Este estudo enfoca as práticas discursivas de uma associação de catadores de materiais
recicláveis na atividade de trabalho e tem como objetivo descrever e analisar como se constituem a
cenografia e o ethos discursivo, por meio do registro de entrevistas realizadas com alguns dos
integrantes do grupo pesquisado. A abordagem teórica norteadora é de base enunciativo-discursiva da
linguagem, com ênfase à cenografia e ao ethos, tendo como fonte de pesquisa Maingueneau (1997,
2002, 2005) e Schwartz (2010a, 2010b, 2011a), na perspectiva ergológica. O trabalho foi desenvolvido
numa associação de recicladores, em Passo Fundo/RS. Utilizou-se a entrevista semiestruturada e a
observação direta intensiva para a realização da pesquisa descritivo-bibliográfica e documental,
mediante o procedimento de estudo de caso com abordagem qualitativa. O roteiro do trabalho
englobou: observações do trabalho escrito/real, trabalho como atividade, normas/renormalizações,
dramáticas do uso de si e a análise das práticas linguageiras dos participantes da pesquisa.

Palavras-chave: Linguagem no Trabalho; Ergologia; Cenografia; Ethos discursivo; Catadores de


materiais recicláveis.

Abstract: This interdisciplinary study focuses on the discursive practices of an association of collectors
of recyclable materials on the activity work, and aims to describe and analyze how scenography and the
discursive ethos are constituted, through the recording of interviews performed with some of the
members of the researched group. The guiding theoretical approach is enunciative-discursive of the
language of the associative group, emphasizing scenography and the ethos; with research sources
Maingueneau (1997, 2002, 2005) and Schwartz (2010a, 2010b, 2011a), in the ergological perspective.
The work was developed at a recycle association, in Passo Fundo/RS. A semi-structured interview and
intensive direct observation were used to the execution of the descriptive-bibliographical and
documental research, upon the procedure of case study with qualitative approach. The script involved:
observations of written/real work, work as activity, rules/renormalizations, dramatics of the self use,
and analysis of language practices of the participants of the research.

Keywords: Language at Work; Ergology; Scenography; Discursive Ethos; Collectors of recyclable


materials.

1. Introdução
Este estudo se insere na temática ―Linguagem e Trabalho‖ e, dentro desse contexto, abordamos
a concepção de trabalho do ponto de vista da ergologia com Schwartz (2010a, 2010b, 2011a), numa
interface com a semântica global ao envolver cenografia e ethos discursivo, conforme preceitos de
Maingueneau (1997, 2002, 2005), para posterior análise discursiva dos enunciados dos trabalhadores de

195Mestre em Letras pela Universidade de Passo Fundo (UPF); e-mail: [email protected]


196Doutor em Letras, área de concentração Linguística Aplicada (PUCRS) com pós-doutorado em Linguística Aplicada e
Estudos da Linguagem (PUC-SP/LAEL); professor permanente do PPGL/Mestrado em Letras da Universidade de Passo
Fundo (RS); professor pesquisador do Mestrado em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale, Novo
Hamburgo (RS); e-mail: [email protected]
482
uma associação de materiais recicláveis mantida e acompanhada pela Igreja Católica, em seus diversos
segmentos, que trabalha e organiza associações de reciclagem em Passo Fundo/RS e que visa à
autonomia desses empreendimentos e, sobretudo, dos seus trabalhadores.
O problema de pesquisa desse estudo está assim estabelecido: como se constroem
discursivamente a cenografia e o ethos manifestados mediante práticas discursivas em uma associação
de material reciclável e de seus catadores? Em busca de uma resposta, partimos da hipótese que os
depoimentos das entrevistadas/associadas manifestam ―falas/discursos‖ específicos relativos à
atividade, ao trabalho, que possibilitam construir cenografias com base nas práticas linguageiras, das
quais resulta o ethos discursivo correspondente.
Dessa forma, abordamos a ergonomia e a ergologia para aprofundar conceitos sobre o trabalho,
referimos conceitos da semântica global. Em seguida, descrevemos a metodologia empregada e
procedemos à análise das entrevistas realizadas com duas associadas e com o coordenador da
Associação, visando à compreensão dessa entidade, sua constituição, seu funcionamento. Finalmente,
expomos algumas considerações finais, contemplando resultados do estudo.

2. Da ergonomia à ergologia: um enfoque sobre o trabalho

No sentido de abarcar a temática deste estudo, é imprescindível valer-se de diferentes enfoques,


ou seja, de diferentes áreas do saber científico para que tal tarefa obtenha algum êxito. Conforme
Souza-e-Silva (2002, p. 63), ―há múltiplas ciências do trabalho e não se pode pretender abordar uma
realidade tão complexa a partir do ponto de vista de uma só área do saber‖. Neste estudo, abordaremos
conceitos da ergonomia e da ergologia em singular interface com a semântica global.
Dessa forma, a ergonomia pode ser conceituada como um conjunto de conhecimentos sobre o
homem no trabalho e uma prática de ação que relaciona, de maneira muito próxima, a transformação
laboral. Com os ergonomistas, foi constatada uma distância entre o que está prescrito e o modo como
ele é realizado, com base em estudos e na observação situada do trabalho. Essa distância caracteriza-se
por um ―debate de valores‖ entre trabalho prescrito e trabalho real.
Com relação às prescrições, Sant‘Anna e Souza-e-Silva (2007, p. 84), constatam que observar o
déficit dessas ―é importante para a realização de tarefas‖, pois, se não houver prescrições, a atividade
terá de se desenvolver segundo intervenção pessoal do trabalhador e isso poderá gerar insegurança e
insatisfação na realização das atividades laborais.
Na sequência dos estudos, Schwartz (2010a), ao referir a ergologia, afirma que essa não pensa o
trabalho como uma tarefa remunerada em conformidade às leis do mercado, submetida a contratos, leis
e prescrições, mas busca apreendê-lo como atividade humana, atribuindo uma distância entre trabalho
prescrito e o real e sua constante reorganização que cria e resulta algo parcialmente único. Para o autor,
483
a entidade que racionaliza sobre o fazer da atividade, o corpo-si, é considerada uma presença do sujeito
nem sempre consciente de como gerir tal distância.
Nesse sentido, inferimos que a subjetividade, denominada corpo-si é recortada pela história.
Conforme Schwartz (2010b, p. 197) ―trabalhamos nosso corpo, nós o trabalhamos permanentemente
pela nossa história de vida – e, portanto, por nossas paixões, por nossos desejos, por nossas
experiências‖, não sendo possível, assim, separar corpo e história.
Como propõe Freitas (2011, p. 109, grifo do autor), ―o trabalho é uso de si por si, uma vez que no
processo de atividade o sujeito mobiliza seu saber-fazer, seus valores, seus afetos e, enfim, sua
singularidade‖. Além disso, o trabalho é uso de si pelos outros, ou seja, embora realize suas atividades a
partir de ordens e procedimentos dos quais não é autor, o sujeito as ressingulariza, pois faz escolhas e
essas implicam debates de normas ou dramáticas do uso de si que perpassam todos os aspectos da vida das
pessoas (SCHWARTZ, 2011b). Borges e Zambroni-de-Souza (2010, p. 155) destacam que o
trabalhador é um ser de conhecimentos e referem-se a Trinquet, para quem ―existe um saber
constituído que é o saber acadêmico‖, ou seja, tudo o que é conhecido, formalizado nos ensinos, nos
livros, nos programas de computador, nas normas técnicas, organizacionais, econômicas, etc.
No entanto, o saber investido na atividade, também referido por Trinquet (2010, p. 104, grifo do
autor), é a ―experiência prática e, permanentemente, recriadora de saberes através dos debates de
normas que, no instante em que são conhecidos, jamais podem ser apreciados e controlados pelos
saberes constituídos‖. Segundo Faïta (2002, p. 50), esses saberes e a competência ―dos sujeitos nos parecem
incorporados às maneiras de dizer e às maneiras de agir orientadas a um objetivo comum‖. Esse autor
evidencia que o saber é construído pelo sujeito, cujo ethos vai se revelar a partir de uma cenografia,
qualquer que seja sua história de vida.
Desse modo, o sujeito da ergologia sempre reconfigura o trabalho, as normas de acordo com as
necessidades impressas no momento. Souza-e-Silva (2002, p. 72) afirma que ―o retrabalho permanente
das normas supõe também um retrabalho dos discursos‖, o que remete ao entrelaçamento da ergologia
e da linguagem.
Na sequência, destacamos aspectos da semântica global enfocando, principalmente, a conceitos
da cenografia e do ethos discursivo.

3. Semântica global: na ordem do enunciado e na ordem da enunciação a revelação da


cenografia e do ethos de uma associação

Na medida em que oferece uma visão geral dos pressupostos teóricos de cunho enunciativo-
discursivo, esta seção é fundamental para desenvolver este estudo. Assim, com base em Maingueneau
(1997, 2002, 2005), além de outros estudiosos, o leitor poderá ter uma melhor compreensão de como se
constituem a cenografia e o ethos discursivo da associação analisada.
484
Ressaltamos que a semântica global permite uma visão ampla das dimensões discursivas a partir
de seu entrelaçamento e também valoriza o discurso, em vez de apenas enunciados soltos. Nesse
sentido, Maingueneau (1997), aprofundando os estudos dos modos de enunciação, estatuto do
enunciador e do coenunciador, introduz conceitos de cenografia, e ethos. Esse autor ressalta que a
cenografia ―não é imposta pelo gênero, ela é construída pelo próprio texto: um sermão pode ser
enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética, etc.‖ (MAINGUENEAU, 2005, p. 75).
Por conseguinte, a cenografia é construída pelo enunciador e coenunciador em determinado tempo e
lugar e não se realiza sem um sentido, ela se constitui por objetivos predeterminados e legitimados pela
enunciação.
Em vista disso, temos como pressuposto que não há cenografia com ausência da língua, pois
esta a investe de sentidos. Logo, seria contraditório afirmar que a língua é um instrumento de
comunicação neutro; ela é investida de sentidos que serão evidenciados conforme seu uso, que poderá
ser social, um dialeto etc.
Segundo Maingueneau (2005, p. 70) é necessário abordar a noção de ethos em vista de ―sua
reflexidade enunciativa e a relação entre corpo e discurso que ela implica‖. Inferimos, segundo o autor,
que o ethos possui uma vocalidade que pode ser expressa por um ―tom‖, tanto no oral quanto no
escrito, e um ―fiador, cuja figura o leitor deve construir com base em indícios textuais de diversas
ordens e, assim, é investido de um caráter e uma corporalidade‖ (MAINGUENEAU, 2005, p. 70).
Desse modo, na expressão de Souza-e-Silva e Rocha (2009, p. 14, grifo dos autores), ―o sentido
propiciado pelo discurso impõe-se tanto pelo ethos como pelas ‗ideias‘ que transmite; essas ideias se
apresentam por uma maneira de dizer que remete a uma maneira de ser‖. Essa maneira de dizer compreende
o tom que permite ao enunciador se revelar ao coenunciador. Assim, caráter corresponde aos traços
psicológicos e a corporeidade, a uma constituição física, bem como à maneira de vestir-se, de
locomover-se etc.
Maingueneau (2002, p. 98, grifo do autor) ao se referir à noção de fiador afirma que o texto
escrito também possui um tom que dá autoridade ao que é dito e assim permite que o leitor construa a
representação do corpo do enunciador e essa leitura permite ―emergir uma instância subjetiva que
desempenha o papel de fiador do que é dito‖, o que revela a importância atribuída ao enunciador, pois
esse se mostra imbuído de crédito pelo coenunciador. Desse modo, o coenunciador não adere a um
discurso apenas porque são apresentadas ideias ligadas aos seus possíveis interesses, mas porque esse
enunciador é alguém que tem acesso ao dito, por meio de uma maneira de dizer, a qual tem suas raízes
numa maneira de ser, o imaginário de um vivido.
Na sequência, os procedimentos metodológicos utilizados neste estudo são descritos e através
dos quais analisamos o corpus de pesquisa.

4. Procedimentos metodológicos e análise


485
4.1 Objeto de estudo
Este estudo tem como objeto o discurso sobre e no trabalho e os enunciados dos trabalhadores
de uma associação de catadores de materiais recicláveis, constituída por trabalhadores e um
representante da Igreja Católica, o coordenador.
A Associação está legalmente constituída e, na sua maioria, as associadas são analfabetas e
dependem da renda percebida pelos seus trabalhos para o sustento de suas famílias. Na sequência,
descrevemos o percurso metodológico empregado para a execução desta pesquisa.

4.2 Percurso metodológico


Esta pesquisa é de natureza básica e em relação a seus objetivos o estudo ora apresentado é
considerado como pesquisa exploratória. Em relação aos procedimentos técnicos, este trabalho foi
realizado por meio de pesquisa bibliográfica, documental e de um estudo de caso. Houve, ainda, a
necessidade de pesquisa bibliográfica para aprofundamento das teorias.
Dessa forma, o estudo de caso visa a explicar as práticas de linguagem discursivas, em situação
de trabalho, entre os trabalhadores da Associação, a partir da cenografia e do ethos discursivo
decorrentes dos relatos manifestados pelos entrevistados e envolve análise e interpretação dos dados
obtidos, apresentados num encadeamento lógico que proporcionará ao leitor sua melhor compreensão.
No que diz respeito à abordagem do problema, a pesquisa é qualitativa, e nesta o ambiente se
revelará a fonte direta para a coleta dos dados, a interpretação dos fenômenos e, sobretudo, a atribuição
de significados. Optamos pela amostra intencional ou de seleção racional e, assim, foram entrevistados
o coordenador e duas das associadas, de um total de 13 sócias. A seleção dessas pessoas para a
entrevista ocorreu por conta do grau de importância hierárquica de cada uma na Associação.
Como técnicas de pesquisa e de coleta de dados, selecionamos a observação direta intensiva e a
observação sistemática, que pressupõe planejamento para a organização e o registro dos dados
coletados, e selecionamos entrevistas semiestruturadas ou não padronizadas.
Os dados utilizados na análise são constituídos por entrevistas, visitas, conversas, depoimentos
e observações do grupo. Na análise, buscamos articular alguns pressupostos teóricos discutidos nas
contribuições de Schwartz (2010a, 2010b, 2011a), Maingueneau (1997, 2002, 2005), entre outros
teóricos e, desse modo, abordamos pressupostos da ergologia e da semântica global, com especial
atenção aos conceitos de cenografia e ethos.
Na sequência deste trabalho, registramos os resultados e as análises obtidas na Associação.
486

4.3 Resultados e análise


4.3.1 Trabalho, prescrições e renormalizações: o corpo si na perspectiva ergológica
A atividade de trabalho é uma resposta às prescrições determinadas no seu exterior e, dessa
forma, pode ser reformulada conforme as necessidades que se apresentam. Por conseguinte, o trabalho
prescrito é aquele que vem da hierarquia, ou o que está dito e deve ser realizado (SCHWARTZ, 2010b).
Já o trabalho real, segundo o autor, implica a execução do ato laboral e como é desenvolvida a
atividade: do modo que foi prescrita ou se passa por renormalizações compreendidas como ―gestões de
variabilidades‖.
Dessa forma, o trabalhador faz uso de si para a realização de uma determinada tarefa. Em vista
disso, Freitas (2010, p. 191, grifo do autor) ressalta que ―a expressão uso de si remete ao fato de que não
há somente execução nessa dramática, mas um uso. É a pessoa sendo convocada em toda a sua
subjetividade, com toda a mobilização que qualquer abordagem taylorista jamais pode alcançar‖, porém,
verificamos que, na realização das atividades, também acontece o uso de si por outros.
Na sequência, destacamos segmentos da entrevista do coordenador da Associação, com ênfase
ao modo como esse sujeito percebe a entidade, em vista seus próprios enunciados. Salientamos, desse
modo, que o coordenador, ao trabalhar diretamente com o grupo, faz uso de si por si, bem como de si
pelos outros, representando a Igreja para as trabalhadoras e a sociedade, dedicando tempo para atuar
junto à Associação. Dessa forma, o coordenador se posiciona de um lugar que não é o mesmo das
associadas: ―As pessoas sabem que eu não faço parte daquela comunidade [...]‖; ele faz faculdade, elas
quase todas analfabetas. O coordenador, em suas falas, enuncia elas, porém, ao representar a
Associação, ele dá voz à entidade (FREITAS, 2010).
Nesse sentido, a relação entre coordenador e associadas não é exatamente uma relação de
empregador/funcionário, mas esse personagem representa a ―figura paterna‖, aquele que, com sua
subjetividade, conduz e guia a entidade no seu todo, o que justifica a necessidade das associadas de que
ele se imponha mais frente ao grupo, constituindo uma cenografia de família, na qual o ―pai‖ toma
conta, cuida e a direciona, evidenciando, desse modo, um ethos paternal para com as associadas que
assim desejam. Essa situação evidencia, segundo Maingueneau (2005), que o ―ethos se mostra, não é
dito‖. A seguir é importante referir enunciados das associadas dessa Associação para que possamos
compreender a cenografia e o ethos constituídos. Nesse sentido, apresentamos a fala de uma das
entrevistadas.
Assim, no enunciado ―Quando eu comecei não sabia nada [...] aí a gente teve formação com o Sr.
Paulo da empresa X, a entrevistada não reconhece os conhecimentos que possuía e que desenvolveu
durante a sua vida. Ela atribui o saber a uma pessoa de fora da Associação e às associadas mais antigas.
No entanto, no instante em que enuncia ―agora eu ensino‖, percebemos que se apropriou dos saberes e
487
está numa posição hierárquica mais elevada: ela sabe, as novas não. Segundo Borges e Zambroni-de-
Souza (2010, p. 152), para a ergologia, ―colocamos em marcha um saber pessoal, que é o resultado de
nossa história individual, sempre singular, temos dito, adquirida em nossa própria experiência
profissional e em outras e que reenvia a nossos valores, nossa educação, ou seja, à nossa
personalidade‖.
Em acordo com a fala da associada: ―O coordenador é o nosso voluntário [...]. Ele é bom, mas
já tivemos monitores de pulso mais firme, que diziam se a gente estava certa ou errada, eles diziam ‗Oh,
se vocês forem por aqui, podem ir, mas vai dar tudo errado, vocês é que sabem‘. Daí a gente sabia que
tinha de ir pela ideia dele pra não se dar mal. O coordenador joga tudo pra nós decidir‖. Nesse
enunciado percebemos a necessidade de prescrições, bem como o déficit de prescrições, que ―é a não
explicitação ao trabalhador das regras para desenvolver a atividade [...]‖ (SANT‘ANNA; SOUZA-E-
SILVA, 2007, p. 84).

4.3.2 Semântica global: cenografia e ethos


Destacamos, nesse momento, como a cenografia e o ethos discursivo constituem planos de
análise que permitem identificar traços da semântica global da associação que é objeto deste estudo e
realizamos a análise por interface entre pressupostos da ergologia e da semântica global, ao comprovar
a cenografia e o ethos depreendidos do discurso e validados pela enunciação dessa Associação.
Assim, realizamos a análise dos corpora mediante a transcrição de segmentos discursivos
extraídos das entrevistas realizadas na Associação. Recorremos a reflexões pautadas em Maingueneau
(1997, 2002, 2005) para expor considerações referentes a segmentos dos discursos anexados a este
estudo. Por conseguinte, procedemos, inicialmente, a referências às marcas de pessoa, pela qual
percebemos como o enunciador e coenunciador se apresentam nesse empreendimento. Também,
analisamos a cronografia e a topografia. Maingueneau (1997) destaca que um enunciado estabelece seus
sentidos concretizados em cenografias discursivas: um EU que se dirige a um TU – locução discursiva,
marcas de tempo e de lugar.
Desse modo, quando a entrevistada afirmou ―Agora sou eu que ensino‖, percebemos a
subjetividade, a mobilização da iniciativa e da responsabilidade da trabalhadora. Nesse caso, o ―eu‖
aparece como a pessoa que sabe e determina situações, sendo-lhe, portanto, reservado um lugar de
saber e certo poder dentro da associação. Salientamos que o ―eu‖ é o que prescreve, porém as
prescrições por ele determinadas implicam um debate de normas, ou ―debate de valores‖.
De acordo com Maingueneau (1997), a construção de uma cenografia é apreendida, pelo
enunciador e coenunciador, a partir de um lugar (topografia) e de um tempo (cronografia), constituídos
por objetivos pré-determinados e legitimados pela enunciação. Nesse sentido, a topografia corresponde
ao AQUI – a Associação e a cronologia, ao AGORA – período laboral em que as trabalhadoras
realizam as atividades na e pela Associação.
488
Denotamos que a cenografia empresarial se constitui pela associação de catadores de materiais
recicláveis, por meio dos enunciados de suas trabalhadoras e do coordenador nas relações linguageiras
de trabalho. Dessa forma, num primeiro momento, percebemos o ethos de uma entidade
assistencialista, porém o que se constata é que seus propósitos almejam autonomia intelectual e
financeira.
A associada assume posições diversas na Associação, ela é trabalhador braçal, porém, ao mesmo
tempo, é exigido seu esforço em questões administrativas. Com relação ao coordenador, verificamos
que ele desempenha a função organizadora do empreendimento. Segundo Maingueneau (1997, p. 30,
grifo do autor), ―um sujeito, ao enunciar, presume uma espécie de ‗ritual social da linguagem‘ implícito,
partilhado pelos interlocutores‖. Da mesma forma que o enunciador coordena alguns problemas na
Associação, ele invoca os associados a construírem respostas, tendo em vista a autonomia desses
sujeitos.
Por conseguinte, na fala do coordenador ―elas querem que eu resolva tudo por elas‖ e ―colaborei‖,
verificamos, respectivamente, o uso de si pelas catadoras que querem ser geridas e o uso de si por si com
seus saberes implícitos, pois, se colaborou, é porque soube como fazer. Esse trabalhador se coloca
numa posição de parceria com os trabalhadores, entretanto ocupa o lugar daquele que ―sabe‖,
compondo uma cenografia professoral. Constatamos que o coordenador apresenta-se, ainda, como
fiador, pois se considera responsável pelo grupo e, muitas vezes, responde por ele. Maingueneau (2005,
p. 72) destaca que ―o fiador [...] vê-se, assim, investido de um caráter e uma corporalidade‖.
Em vista disso, compreendemos, a partir desse estudo, que as trabalhadoras não se sentem
capazes de solucionar os seus problemas sem a ajuda do enunciador; parecem não fazer uso de si para as
resoluções de ordem administrativa. O contrário, contudo, acontece na realização e na renormalização
de tarefas braçais. Nesse sentido, o ethos discursivo, decorrente dos enunciados das associadas,
caracteriza a imagem de uma associação frágil. Conforme Maingueneau (2005), o ethos é uma noção
discursiva, ele se constrói através do discurso, não é uma imagem do locutor exterior a sua fala.

5. Considerações finais
Este estudo, de cunho interdisciplinar entre a linguística do discurso e a ergologia, teve como
principais autores Schwartz (2010a, 2010b, 2011a) ao ressaltar conceitos de ergonomia e ergologia, em
relação ao trabalho, e Maingueneau (1997, 2002, 2005) no que refere às questões linguístico-discursivas
com a semântica global, ethos e cenografia.
O tema do estudo, que compreendeu as práticas discursivas em comunidades em situação de
vulnerabilidade social, teve como delimitação a análise dos discursos de membros de uma associação de
material reciclável de Passo Fundo/RS.
489
O problema de pesquisa foi assim formulado: como se constroem discursivamente a cenografia
e o ethos manifestados através de práticas de linguagem em uma associação de material reciclável e de
seus catadores? Por meio de análises de documentos e das entrevistas realizadas com o coordenador e
as trabalhadoras da Associação, ficou mostrado que essa instituição compreende uma cenografia
administrativa, o ethos de uma entidade séria e de confiabilidade, em vista de ter sido criada por
pessoas representantes de diversos segmentos da Igreja Católica.
Vislumbramos que na Associação existe hierarquia constituída, em cujo topo está o
coordenador, com seus saberes. Constatamos, nesse sentido, que as prescrições vêm da hierarquia,
porém as trabalhadoras não são passivas, na medida em que fazem intervenções junto ao ―superior‖,
participam das decisões e, a passos lentos, apropriam-se de novos saberes, confrontando-se com
dramáticas de uso de si, ao realizar as atividades de trabalho.
Ao abordar a ergologia e a semântica global, depreendemos, por meio de marcas discursivas,
como se constroem a cenografia e o ethos discursivo da Associação, objetivo geral desta pesquisa, o
que possibilitou, também, a compreensão da relação das trabalhadoras com o coordenador que
acompanha o grupo.
O registro dos enunciados aqui registrados em vista da observação – quem fala, de que lugar
fala(m) e para quem fala(m) –, permitiram comparar possíveis aproximações e distanciamentos entre os
interlocutores da Associação. Consideramos, por conseguinte, que nosso objetivo foi alcançado no
desenvolvimento deste estudo e, sobretudo, vislumbramos a possibilidade de colaborarmos com a
Associação nas questões referentes à linguagem e ao trabalho, bem como percebemos a aproximação
ocorrida entre a Academia e a empiria (senso comum) ao tencionar para que esses vínculos aqui criados
não se extingam.

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491
O DESEJO DE NAVEGAR E AS ÂNCORAS NA TRADIÇÃO: MEMÓRIA E
IDENTIDADE EM DANIEL MUNDURUKU

Ivanilde de Lima Barros197

Professora Doutora Carla Monteiro de Souza (Orientadora)198

Resumo: A tradição e a ancestralidade constituem a mola propulsora da escrita indígena em esfera


literária, tendo como representantes escritores que, pelo desejo de dizer-se, conduzem nas narrativas,
seus leitores a uma viagem cujo lançar de âncoras em determinados pontos (ou portos) posiciona e
detém a memória na abordagem de aspectos que referendam a razão de ser não só da sua própria
escrita, como também da identidade indígena. A metáfora da âncora é apresentada neste estudo,
portanto, para fins de reflexão sobre os processos de ressignificação da memória, buscando
compreender em que medida intervêm nas representações das identidades que buscam se referendar na
tradição e na ancestralidade. Essas questões serão abordadas neste breve estudo a partir de duas obras
de Daniel Munduruku, um expoente no mercado literário da atualidade. O trabalho é de caráter
bibliográfico e orienta-se nos eixos identidade-memória-representação, tendo como base os constructos
teóricos de Tomás Tadeu Silva (2000), Maurice Halbwachs (apud BOSI, 1994), Michael Pollack (1989),
Peter Burke (2000) e Serge Moscovici (apud MINAYO, 1998). A rememoração trazida nas obras não
constitui mero anacronismo, mas um movimento de construção, desconstrução, reconstrução do
passado sob as condições do presente, e ainda um direcionamento ao futuro que, em perspectiva de
continuidade, rompe horizontes nesta complexa e rica viagem.

Palavras-chave: Memória; Identidade; Representação; Literatura; Indígena.

Abstract: The tradition and ancestry are the mainspring of writing in indigenous literary sphere, having
as representatives writers who, by the desire to say, lead the narratives, his readers on a travel whose
launch anchors at certain points (or ports) and positions holds the memory in addressing issues that
endorse the reason being not only of his own writing, but also of indigenous identity. The metaphor of
the anchor is presented in this study, therefore, for purposes of reflection on the processes of memory
reframing, seeking to understand to what extent involved in representations of identities that seek to
endorse in tradition and ancestry. These issues will be addressed in this brief study from two works by
Daniel Munduruku, an exponent of the literary market today. The work is bibliographical and guided
axes identity-memory-representation, based on the theoretical constructs of Tomás Tadeu Silva (2000),
Maurice Halbwachs (apud BOSI, 1994), Michael Pollack (1989), Peter Burke (2000) and Serge
Moscovici (apud MINAYO, 1998). The recollection brought the works is not mere anachronism, but a

Mestranda em Letras da Universidade Federal de Roraima-UFRR. [email protected]


197
198Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora do Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal de Roraima-UFRR. [email protected]
492
movement of construction, deconstruction, reconstruction of the past under the conditions of the
present, and also a direction for the future, in view of continuity, breaks this complex and rich horizons
travel.

Keywords: Memory; Identity; Representation; Literature; Indigenous.

1. Introdução

A literatura escrita por indígenas, embora em estágios diferentes, vem conquistando espaço e
sendo cada vez mais publicada no Brasil, abrindo um novo leque para culturas pouco representadas nas
obras de ficção sob o ponto de vista do próprio indígena. A voz dantes silenciada pelo colonizador
constitui-se, em âmbito literário, na expressão do ser indígena. Esse dizer-se busca na tradição e na
ancestralidade traços que representem identidades tendo a diferença como marca contrastante e
constituinte. Esse processo de representação identitária traz a particularidade de apontar para a tradição
e a ancestralidade na medida em que, para diferenciar-se, os escritores indígenas necessitam olhar o
passado para explicar o presente.

Ao se pensar nas âncoras, infere-se, antes de qualquer outra coisa, a necessidade de parar,
deixando uma navegação em estado de relativo equilíbrio, evitando que fique à deriva. O lançar das
âncoras, na função do objeto, pode significar ainda, em sentido figurado, proteção, abrigo, firmeza,
tranquilidade. Por estes mesmos motivos, dependendo dos pontos de vista, também pode remeter a
atraso, barreira. Estes significados fazem com que o termo âncora nomeie muitas características,
funções, objetos sempre os ligando à segurança que proporcionam.

Este trabalho, a partir dessas imagens metafóricas, pretende analisar a obra do escritor Daniel
Munduruku que traz nos seus livros elementos da tradição ao navegar nas águas da memória, os quais
toma não só como ponto de partida e/ou chegada, mas também de paradas durante o percurso.

Daniel Munduruku é o autor indígena de maior notoriedade no cenário literário em termos de


repercussão das obras, isto não só em nível de crítica literária, como também no âmbito mercadológico:
são 43 obras publicadas. É indígena da etnia Munduruku, povo habitante da região do Vale do Tapajós,
no Pará. Graduado em Filosofia, tem licenciatura em História e Psicologia pela Universidade Salesiana
de São Paulo, mestrado em Antropologia Social e doutorado em Educação, ambos pela Universidade
Federal de São Paulo-USP.
493
Foram escolhidas para essa análise duas de suas obras com maior ênfase nos aspectos da
lembrança: Meu avô Apolinário – Um mergulho no rio da (minha) memória e Você lembra, pai?. Como se pode
inferir já a partir dos títulos, há um destaque às questões da memória, tradição e ancestralidade nesses
livros.

2. Quem são os comandantes? – Identidade e representação social

A questão da identidade deve ser pensada em âmbito literário porque a literatura é o espaço
subjetivo por excelência. A composição da obra de arte literária é um trabalho constante de construção
e reconstrução de representações através da linguagem. Por ser a arte literária um discurso que ocorre
na e pela sociedade, não pode ser encarada de maneira isolada da cultura na qual se insere.

No âmbito das ciências, o fenômeno das representações começou a ser pensado por Émile
Durkheim, na Sociologia. Este autor, ao estudar o campo do misticismo, da religião, na tentativa de
constituir uma teoria que contribuísse para o esclarecimento da produção de crenças por um grupo que
as partilhava, pensou para além da individualidade, uma vez que não seria possível, segundo ele, que um
único indivíduo criasse uma religião, uma língua, que fosse, ao mesmo tempo, partilhada por toda uma
coletividade.

O conceito então proposto por Durkheim foi o de representação coletiva, por acreditar que todo
pensamento organizado tem origem na sociedade e que somente nas vivências sociais se construiria o
conhecimento. Assim, as representações sociais constituiriam esse conjunto de conhecimentos, crenças,
ideais através dos quais determinado grupo constrói e comunica sua realidade. Para Durkheim, então,
―é a sociedade que pensa. Portanto, as representações não são necessariamente conscientes do ponto de
vista individual‖ (MINAYO, 1998, p. 90).

A teoria durkheimiana teve um caráter absoluto, em que o social determinaria os


comportamentos individuais. Na perspectiva de uma visão menos determinista, Serge Moscovici vai, a
partir da teoria de Durkheim, propor o conceito de representação social, dentro do então novo campo de
estudo, a Psicologia Social, que considerava os aspectos coletivos na explicação de fenômenos
individuais reciprocamente, de uma forma interdependente. O novo enfoque abarcava as dimensões
culturais, cognitivas, objetivas e subjetivas.

O campo da Psicologia Social é vastamente estudado e apresenta tantas controvérsias quanto


sua própria terminologia. No entanto, a contribuição da Teoria das Representações Sociais, tal como a
494
concebeu Serge Moscovici, é útil para a análise da obra de Daniel Munduruku pelo viés dos estudos
culturais exatamente no seu aspecto comutativo entre indivíduo e sociedade, uma vez que,

as representações sociais no marco da psicologia social, preocupam-se sempre com a


interseção e a interação entre subjetivo/objetivo, geral/particular, público/privado,
razão/emoção. (...) A sua adoção como instrumento de abordagem dos fenômenos
sociais e das realidades históricas, permite que as ideias e as práticas sociais sejam
tomadas não só como produtos do engenho coletivo, mas, e antes de tudo, como algo
fortemente perpassado pelo individual e pelo subjetivo, enfim como algo
complexamente humano (SOUZA, 2003, p.112).

As representações sociais abordam a construção partilhada de conceitos que interferem na


identidade dos sujeitos. Não são, portanto, opiniões ou imagens, mas um processo que se interpõe
entre o conceito e a percepção sobre o real, sem ser tampouco uma instância intermediária, antes uma
estrutura com influência constituinte nos valores e nas ideias partilhadas pelos grupos, uma vez que,
como afirma Moscovici, quando pessoas estão reunidas, formando um grupo, passam a sentir e pensar
de forma diferente de quando estão sozinhas.

As obras de Daniel Munduruku comunicam representações sociais que, seja nas memórias que
conduzem a relação entre os personagens, seja na descrição de um modo de vida, buscam contrapor,
diferenciar a cultura dos povos indígenas de outras culturas, evidenciando-a. Essas identidades
representadas, mesmo quando procuram romper com os símbolos partilhados no imaginário brasileiro,
como se vê nas duas obras selecionadas, originam novas representações que, no movimento de
identificação e contra-identificação, são construídas, reconstruídas e desconstruídas.

Neste sentido, as representações sociais

perpassam a sociedade ou grupo social, contendo elementos de conformismo,


conservadorismo, resistência, conflito, contradição, mudança e libertação, implicando
a sua análise no desvelamento de preponderâncias, dominações, submissões e
negociações entre os segmentos que compõem um grupo social e entre grupos sociais
diversos‖ (SOUZA, 1998, p. 108).

As representações sociais funcionam, assim, como um sistema de interpretação da realidade que


atua nas relações entre os sujeitos a partir do meio em que estão inseridos, influenciando, desta forma,
nos seus comportamentos e práticas.
495

3. Navegar é preciso? – A literatura escrita por indígenas

No passado, nem tão remoto, não se poderia pensar numa produção literária de grande
valoração ocidental que não estivesse ligada à cultura metropolitana que ditava (ou ainda dita) os
valores sob os quais se decidia quais obras deveriam ser consideradas cultas e dignas de nota e, sob essa
mesma avaliação, as fazia circular entre a minoria que podia apreciá-las. No entanto, os povos dantes
silenciados ou falados somente pelo discurso do colonizador, têm conquistado espaço no cenário da
literatura e suas publicações atraem os olhares de críticos literários e demais profissionais das artes. No
caso do Brasil, essa investida foi mais efetivamente iniciada a partir da Constituição Federal de 1988,
que, em razão da organização e da luta dos povos indígenas, garantiu-lhes direitos mínimos de
cidadania, abrindo espaço para que este grupo excluído tivesse vez e voz.

A partir dessa conquista, os escritores indígenas buscam rememorar seus costumes e tradições
dantes condenados e silenciados pela subjugação do ocidente. São memórias que, por razões diversas,
estão em disputa, e são representadas numa escrita literária até certo ponto independente, na qual os
indígenas traduzem, de formas diferentes, suas experiências de marginalização pelo regime colonial. A
necessidade de navegar pelas águas da memória se faz imperativa justamente porque, diante da
opressão que viveram (ou vivem), sentem que é indispensável dizer-se, rompendo o silêncio e
reconfigurando a forma de ser e estar no mundo. Desta reconfiguração procedem representações
sociais que podem se opor, reafirmar ou ainda ressignificar as tradicionais formas de olhar os povos
indígenas.

A necessidade de que os escritores indígenas ancorem sua escrita na tradição advém, em parte,
da cobrança pela qual passam as minorias étnicas no ocidente. As representações sociais partilhadas
fazem com que o outro requisite elementos de garantia da autenticidade cultural daqueles que lhes são
diferentes (SILVA, 2000). Assim, as roupas (ou ausência delas), a comida, a religião, a música, as artes
devem obedecer às representações que, no caso dos indígenas brasileiros, começaram a ser construídas
e partilhadas ainda nos primeiros contatos com os europeus (CARVALHO, 2005). Como afirma
Michael Pollak (1989, p.10), ―o que está em jogo na memória é também o sentido da identidade
individual e do grupo‖.

4. Lançar âncoras! – Questões sobre memória


496
Os conflitos culturais, linguísticos, identitários são a mola propulsora para a escrita indígena em
esfera literária, e, nesse mesmo viés, lançam às águas, nem sempre serenas da memória, seus
comandantes: escritores que, pela necessidade do presente, constroem narrativas nas quais o público
leitor é conduzido ao que poderia ser uma viagem desprendida. Contudo, o lançar de âncoras em
determinados pontos (ou portos) descontinua o processo, posiciona e detém a memória na abordagem
de aspectos que referendam a razão de ser não só da própria literatura, como também da identidade
indígena.

Essas memórias e os contextos sociais nos quais se processam, são melhor compreendidas a
partir dos estudos de Maurice Halbwachs (2006) que contribuíram para a compreensão da articulação
entre memória individual e o meio social. Para o teórico, é na interação que se constroem as
lembranças, tanto nos processos de produção da memória como na rememoração. Desta forma, como
afirma Ecléa Bosi a partir dos estudos de Halbwachs, o outro e as condições do presente têm um papel
fundamental na constituição da memória: ―A memória do indivíduo depende do seu relacionamento
com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com a profissão (...). Se lembramos, é
porque os outros, a situação presente, nos fazem lembrar‖ (BOSI, 1994, p. 54).

A memória individual está, portanto, ligada à memória coletiva, esta reforça o sentimento de
pertencimento a um grupo que partilha memórias comuns não só no campo histórico, mas
principalmente no campo simbólico. Deste modo, para a representação identitária dos indígenas se
torna vital a recorrência à voz da ancestralidade, das tradições que marcam a oposição em relação ao
outro não-indígena; que retratam sofrimentos do passado de sujeição; que tentam marcar uma
identidade étnica; ou ainda que buscam referendar práticas culturais e linguísticas do presente, uma vez
que:

A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que
compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade,
mas também as oposições irredutíveis. (POLLAK, 1989, p. 9)

As lembranças da infância, na família e com os amigos, as vivências na escola ou no trabalho,


demonstram que as recordações são primordialmente memórias coletivas e que a memória individual
somente se constitui porque o indivíduo faz parte de um grupo.
Toda pessoa, ao lembrar, escolhe elementos (ou pontos) nos quais ancora a partir de um roteiro
de viagem traçado para comunicar mais que um estilo próprio, também para convencer a si e aos outros
da autenticidade do que é narrado, como afirma Peter Burke: ―As memórias são maleáveis, e é
497
necessário compreender como são concretizadas, e por quem, assim como os limites dessa
maleabilidade‖ (BURKE, 2000, p. 73).

5. Duas rotas de viagem– Meu avô Apolinário e Você lembra, pai?

Dando continuidade à metáfora aqui proposta, as duas obras nas quais se baseia este estudo se
estabelecem como rotas de viagens feitas nas águas da memória, tendo a literatura como embarcação.
Como em toda metáfora, há pontos que se distinguem mais e pontos que mais se aproximam da
realidade analogicamente referida. A opção por rotas e não por viagem em si, aludindo-se às obras, dá-se
por entender a viagem como algo mais relacionado à recepção do leitor. As rotas, que devem ser
pensadas e propostas antes, têm como responsáveis diretos seus comandantes. Como são diferentes as
rotas e as viagens entre si, optou-se pela análise das rotas, sem desconsiderar aspectos da viagem.

Em Meu avô Apolinário – Um mergulho no rio da (minha) memória há uma busca pela resolução de
conflito identitário nas e pelas lembranças das tradições indígenas contadas pelo avô. Já em Você lembra,
pai? há uma evocação que traz a narrativa da vida do personagem e a convivência com o pai desde a
infância até a fase adulta. A forma como o narrador conta suas histórias remete a questões identitárias
que costuram a memória individual e a coletiva, dando às obras um caráter muito particular de ancorar
em pontos específicos, construindo a escrita de um eu que parece tentar ressignificar as experiências
vividas entre diferentes culturas.

Assim, já a partir da introdução do livro, o narrador- personagem de Meu avô Apolinário desvela
sua proposta:

Na verdade não sei muita coisa sobre meu avô porque o via muito pouco. No entanto,
esse pouco de convivência marcou profundamente minha vida, formou minha
memória, meu coração e meu corpo de índio. Acho até que falar dele me faz resgatar a
história de meu povo e me dá mais entusiasmo e aceitação da condição que não pedi a
Deus, mas que recebi Dele por algum motivo. (MUNDURUKU, 2001, p. 7)

Em tom melancólico, diz que as experiências pessoais de contato, embora não tão frequente,
com o avô fizeram-no ―resgatar a história‖ do seu povo e que, desta forma, conseguiu finalmente
aceitar-se índio, corroborando com a ideia de que memória individual e memória coletiva são tecidas
mutuamente. Isto fica ainda mais notório no próprio título do livro quando, colocada entre parênteses,
a palavra minha refere-se à memória na qual o narrador vai mergulhar.
498
A opção por um narrador-personagem sem nome, o que ocorre nas duas obras, deixa o leitor
livre para associar a narrativa à história de vida do próprio escritor, dando a obra um caráter
autobiográfico que em tempos atuais muito proporciona de legitimidade à narração, a obra configura
quase que um testemunho. Há ainda a possibilidade de que este narrador sem nome remeta a uma
figura indígena genérica, na qual se encaixe qualquer indígena, sem tradições específicas, uma vez que
não é trazido às obras nenhum exemplo de práticas culturais características do povo Munduruku ou de
qualquer outra etnia, configurando uma identidade totalizante, uma representação universal.

Nessa narrativa há situações de preconceito pelas quais o personagem passou na escola, o que
reforçou o apego à aldeia. É justamente a partir desse ponto do enredo que entra em cena o avô
Apolinário, que apesar de muito ocupado em seus atendimentos de conselheiro do seu povo, percebe
um menino triste e aborrecido:

Você chegou à aldeia muito nervoso estes dias, não foi? Veio assim da cidade, lugar de
muito barulho e maldade. Lá as pessoas o maltrataram e você se sentiu aliviado
quando soube que viria para cá, não foi? Sei que está assim porque as pessoas o julgam
inferior a elas e seus pais não o ajudam muito a compreender tudo isso. Pois bem. Já é
hora de saber algumas verdades sobre quem você é. (MUNDURUKU, 2001, p. 30)

É exatamente com o propósito de educar o neto no saber-se índio que o avô, através da
natureza, dos valores ancestrais, das tradições enfim, marca a diferença identitária entre o lugar e as
pessoas de dentro e de fora da aldeia.

O caminho do personagem para resolver seus conflitos identitários foi-lhe ensinado pelo avô
através das tradições indígenas. As lembranças que são colocadas no texto dão conta do processo difícil
que foi o de transitar entre culturas. Entretanto, foi recorrendo ao passado, às origens, que o menino
pode sentir-se melhor. Ao fechar a narrativa, o personagem conta da morte do avô e lembra de como
aquele sábio homem havia o ajudado a encarar a vida de outra forma:

O melhor desta história é que, aos poucos, fui me aceitando índio. Já não me
importava se as pessoas me chamavam de índio, pois agora isso era motivo de orgulho
para mim. Eu sempre lembrava meu avô, orgulhoso de sua origem, um povo, uma
raiz, uma ancestralidade. (MUNDURUKU, 2001, p. 35)

Âncoras lançadas: lembranças selecionadas para marcar a diferença e também a forma como é
possível conviver na diferença: ―Minha idéia é fazer com que as pessoas que lerão este livro olhem para
499
dentro de si – e também para fora – e vejam como é possível conviver com o diferente sem perder a
própria identidade.‖ (MUNDURUKU, 2001, p. 38).

Em Você lembra, pai?, a história é iniciada de maneira direta pela evocação da figura paterna a
partir das lembranças da mais tenra infância: ―Você lembra quando eu era bem pequeno, nem
conseguia andar, e você me carregava no colo para todos os lugares apenas para me mostrar o pôr-do-
sol?‖ (MUNDURUKU, 2003)199. A princípio poder-se-ia encontrar a figura paterna de qualquer
ocidental nesta narrativa, no entanto, descontinuando o processo, o narrador, também em primeira
pessoa, remeterá às tradições indígenas, ao dizer: ―Você lembra, pai, quando você voltava da caçada
sem nada nas mãos, por não ter tido sorte? Mas vinha com um sorriso no rosto, dizendo que tinha
encontrado os seres da floresta...‖. Ou ainda duas páginas adiante: ―Você lembra, pai, quando me
ensinou pela primeira vez a utilizar o arco e a flecha?‖.

O que se pode perceber é que a marcação da diferença identitária nessa obra se faz de forma
bem distinta de Meu avô Apolinário. Nesta, o avô, fortemente carregado dos costumes de quem nunca
havia saído da aldeia, reforça o valor de ser indígena em oposição à visão do não-indígena, e naquela,
apesar de o processo de rememoração apoiar-se também na ancestralidade ensinada pelos mais velhos,
é o pai que mostra de forma positiva o contato entre os diferentes: ―Você lembra quando me ensinou
sobre a cor das pessoas? Foi demais! Você disse: ‗se o mundo é colorido, e é bonito por ser colorido,
por que as pessoas têm de ter uma cor só?‖

O que diferencia essas duas obras é o modo como o desejo de lembrar se estabelece, quer seja
para resolver conflitos identitários de forma ―pacífica‖, quer seja para manter vivas as lembranças para
fins de estreitamento de laços. Estas opções apresentam duas formas bem diferentes de escrita: em Meu
avô Apolinário, há uma narrativa de tempo cronológico, recheada de diálogos, cujo tempo verbal é
predominantemente o pretérito perfeito; já Você lembra, pai?, é uma narrativa em flashback, sem
paginação do livro; sem diálogos, apenas algumas falas do pai lembradas e transcritas como que para
legitimar os fatos narrados, ditas num passado que denota distância temporal também evidenciada pela
predominância do pretérito imperfeito; e a construção e evocação de uma figura paterna sobre a qual é
possível inferir que designe qualquer pai, uma vez que é também como se dissesse: você, pai, lembra? A
representação social é a de pai, bem próxima a da cultura ocidental, dado a construção da afetividade, a
presença da figura masculina como chefe do lar, como provedor, dentre outras características.

Na primeira obra, o avô conta suas memórias e traz ao neto o sentimento de pertença. Já na
segunda, o filho, para reafirmar ao pai um pertencimento e para não deixar que as memórias se percam,

199 Como dito anteriormente, Daniel Munduruku não numera as páginas desse livro. Também por este motivo, optou-se
em não repetir, nesta seção do trabalho, as referências bibliográficas dessa obra a cada nova citação.
500
relembra a trajetória de vida também referendada nas práticas indígenas. São escritas-convite, ambas.
Sejam dos mais velhos ou dos mais novos, essa lembranças necessitam não só (re)viver, mas serem
comunicadas numa construção, desconstrução e reconstrução de identidades, memórias e
representações.

6. Considerações Finais

A pós-modernidade caracteriza-se por transformações expressivas no que diz respeito ao


desenvolvimento de novas identidades a partir de contextos sócio-culturais de globalização. Essas
identidades surgem da relação de pertencimento (ou desejo dele) a grupos, sejam menores, como
algumas etnias, sejam maiores, como a própria ideia de nação. Esses grupos menores, – como índios,
mulheres, homossexuais, etc. – têm conquistado voz nesse novo cenário e, por meio da proeminência
de seus discursos, o espaço das artes também se abre à sua expressão.

Neste panorama, a literatura escrita por indígenas vive um período de reflexão crítica sobre sua
razão de ser, o que é refletido na maneira como seus textos se realizam, se constroem. Daniel
Munduruku é um escritor que, a propósito de uma viagem desejada, conduz o leitor pelas águas da
memória, não só da sua própria, mas também da memória do seu povo. Memórias que corroboram
elementos da tradição indígena, aspectos que configuram representações, um porto seguro no qual é
preciso estar.

É preciso entender, no entanto, que a escolha que Daniel Munduruku faz do que lembrar e o
modo como o faz, são resultados da confluência cultural em que viveu desde seu nascimento fora do
ambiente da aldeia. Um indígena pesquisador, um escritor experiente, e, sobretudo um ser humano
híbrido com conflitos e tensões complexos, que tenta ordenar e tecer de diversas formas suas narrativas
na esfera cultural que o configura e com a qual convive.

O desejo de navegar traz uma rememoração não constitui mero anacronismo, mas um
movimento de construção, desconstrução, reconstrução do passado sob as condições do presente, e
ainda um direcionamento ao futuro que, em perspectiva de continuidade, rompe horizontes nesta
complexa e rica viagem.

7. Referências
501
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças de velhos. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF,


Senado, 1998.

BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Tradução Alda Porto. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000.

CARVALHO, João Carlos de. Amazônia Revisitada: de Carvajal a Márcio de Souza. Rio Branco:
EDUFAC, 2005. (Série Dissertações e Teses – 3).

MINAYO, Maria Cecília. O conceito de representações sociais dentro da sociologia clássica. In:
GUARESCHI, Pedrinho.; JOVCHELOVITCH, Sandra. (Orgs). Textos em representações sociais.
4 ed. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 89-111.

MUNDURUKU, Daniel. Meu avô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória. São Paulo:
Studio Nobel, 2001.

______. Você lembra, pai? São Paulo: Global, 2003.

______. Entrevista: Daniel Munduruku. Disponível em: <http://www.consciencia. net/entrevista-


daniel-munduruku/>. Acesso em: 19 de abril de 2012. Entrevista concedida a Bruno Ribeiro.

______. Mundurukando. Disponível em: <http://danielmunduruku.blogspot.com.br> Acesso em: 27


de dezembro de 2012.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2,
nº 3, p. 3-15, 1989.

______. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, nº 10, p. 200-212,
1992;

SILVA, Tomás Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.
e trad.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
502

SOUZA, Carla Monteiro de. História e representações sociais: uma contribuição ao debate. In:
Histórica, Porto Alegre: APGH-PUCRS, nº 7, p. 101-114, 2003.

“FRONTEIRAS” NO ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA


PORTUGUESA

Jacqueline Jorente200

Resumo: A observação de exercícios tradicionais voltados à questão lexical permite nos depararmos com
atividades descontextualizadamente construídas, que trabalham com frequência com um preestabelecimento de
significações. Ao mesmo tempo, na análise de redações de alunos é possível verificar algumas dificuldades,
especialmente ligadas à precisão lexical. Em uma pesquisa que desenvolvemos, intitulada ―Enunciação linguística
e ensino: o léxico na produção de textos‖ e apoiada pela Fapesp, defendemos, no entanto, que ao invés de serem
considerados como ―erros‖, casos de ―imprecisão lexical‖ devem receber uma atenção especial no ensino e
aprendizagem de Língua Portuguesa. Ainda que comprometam a qualidade da produção textual dos estudantes,
revelam processos de linguagem interessantes. A partir da sustentação teórica oferecida por uma aproximação
entre a ―Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas‖, do linguista francês Antoine Culioli, e o contexto
educacional, proposta por Rezende (2000), enfatizamos a importância de trabalhar com este tipo de exemplo em
sala de aula. A reflexão sobre essas ocorrências mostrar-se-ia como alternativa a abordagens meramente
descritivas ou normativas muitas vezes presentes no ensino de Língua Portuguesa.

Palavras-chave: Enunciação; Léxico; Ensino.

Abstract: While the observation of conventional exercises that focus on lexicon shows that they lack
contextualization and frequently deal with predetermined meanings, the analysis of students‘ essays shows their
difficulty in conveying lexicon precision. As a result, the funded research by FAPESP named ―Linguistic
Enunciation and Teaching: the Lexicon in Students‘ Essays‖ was developed. Through studies, it was
acknowledged that ―lexical inaccuracies‖ should not be considered as ―mistakes‖ and they deserve special
attention when teaching Portuguese. Although lexical inaccuracies may negatively impact on the quality of
students‘ writings, they reveal interesting language processes. We emphasize how important it is to deal with
those inaccuracies in the classroom based on a proposal stated by Rezende (2000), which approximates the
educational context to the ―Theory of Predicative and Enunciative Operations‖, by French linguist Antoine
Culioli. The reflection about lexical inaccuracies would be an alternative to mere normative and descriptive
approaches that are frequently adopted to teach Portuguese.

Keywords: Enunciation; Lexicon; Teaching.

200
Pós-doutoranda do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Bolsista FAPESP. E-mail:
[email protected]
503

2 Introdução

Este artigo é composto por esta introdução, uma conclusão e mais quatro itens que visam, em seu
conjunto, discutir o ensino de Língua Portuguesa por meio de uma perspectiva enunciativa. Muitos são os
desafios que são apresentados quando se pensa o domínio educacional. Propomos apresentar uma reflexão
especificamente voltada à questão lexical que visa a contribuir com discussões ligadas ao ensino e aprendizagem
de línguas.

Primeiramente (item ―2. O ensino de Língua Portuguesa: desafios‖) fazemos uma breve apresentação
acerca dos objetivos do ensino de Língua Portuguesa e as dificuldades que se costuma ter para alcançá-los. Uma
dessas dificuldades pode ser evidenciada na produção textual de estudantes, por meio de casos de ―imprecisão
lexical‖, que destacamos no terceiro item do artigo (―3. ―Imprecisões lexicais‖‖), através de um exemplo. A partir
da sustentação teórica oferecida pela ―Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas‖, do linguista francês
Antoine Culioli, esses casos foram analisados em uma pesquisa que desenvolvemos201. Ao invés de serem
considerados ―erros‖, no entanto, defendemos que eles deveriam receber uma atenção especial. Será essa a
discussão que traremos no item ―4. Fronteira‖, quando destacaremos ainda que o tipo de exemplo focado
encontra-se naquilo que, a partir da perspectiva teórica que adotamos, chamamos de ―fronteira‖ entre uma noção
e outra. Defenderemos então que esses casos fronteiriços poderiam ser explorados em sala de aula. Em ―5.
―Fronteiras‖ no ensino e aprendizagem de línguas‖, discutimos que eles poderiam permitir reflexões acuradas em
um trabalho comprometido com a busca de uma ampliação da competência discursiva dos alunos, tal como os
PCNs sugerem para o ensino de Língua Portuguesa.

3 O ensino de Língua Portuguesa: desafios

Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNs) enfatizam a importância de


trabalhos de análise e reflexão com textos.

De acordo com a publicação em questão:

Tomando-se a linguagem como atividade discursiva, o texto como unidade de ensino e


a noção de gramática como relativa ao conhecimento que o falante tem de sua
linguagem, as atividades curriculares em Língua Portuguesa correspondem,
principalmente, a atividades discursivas: uma prática constante de escuta de textos orais
e leitura de textos escritos e de produção de textos orais escritos, que devem permitir,

201
JORENTE, Jacqueline. Enunciação linguística e ensino: o léxico na produção de textos. Iniciação científica. Apoio: Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). São Carlos-SP, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Centro
de Educação e Ciências Humanas, Curso de Graduação em Letras: 2007.
504
por meio da análise e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e a
construção de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente, ampliar sua
competência discursiva. (BRASIL, 1997, p.27)

Assim, temos que o ensino de Língua Portuguesa deve visar a:

[...] desenvolver no aluno seu potencial crítico, sua percepção das múltiplas
possibilidades de expressão linguística, sua capacitação como leitor efetivo dos mais
diversos textos representativos de nossa cultura. Para além da memorização mecânica
de regras gramaticais ou das características de determinado movimento literário, o aluno
deve ter meios para ampliar e articular conhecimentos e competências que possam ser
mobilizadas nas inúmeras situações de uso da língua com que se depara, na família,
entre amigos, na escola, no mundo do trabalho. (BRASIL, 1999, p.55)

Há um destaque ao uso da língua em um trabalho que deveria levar o aluno a ampliar sua competência
discursiva por meio da produção e interpretação de textos variados.

Alguns exercícios tradicionais com os quais tivemos rapidamente contato mostram, no entanto, que nem
sempre o texto é focado em sala de aula. Atividades como a que analisamos em um artigo que compõe os Anais
do Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia realizado em 2009 (II CIELLA)202
mostram que muitas vezes trabalha-se de forma descontextualizada, focando a estrutura da língua em detrimento
de uma exploração da significação a cada enunciação.

E o resultado desse trabalho parece refletir em produções textuais dos alunos quando nos deparamos
com redações com desempenho aquém ao esperado.

Um contato com redações de vestibulandos mostrou-nos que estes, mesmo depois de terem passado
diversos anos em salas de aula de língua materna, ainda apresentavam dificuldades na produção de textos,
estando estas muitas vezes relacionadas a questões lexicais.

4 “Imprecisões Lexic is”

Em 2007, desenvolvemos uma pesquisa intitulada ―Enunciação linguística e ensino: o léxico na produção
de textos‖, que foi apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Nesse

202
JORENTE, Jacqueline. O exercício com léxico em sala de aula: uma reflexão enunciativa. In: II CIELLA Congresso Internacional
de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia, 2010, Belém-Pará. Anais [do] II Congresso Internacional de Estudos
Linguísticos e Literários na Amazônia. V.2. p.645-653.
505
estudo, verificamos que muitas dificuldades apresentadas pelos alunos nas redações a que tivemos acesso
aparecem ligadas a casos que chamamos de ―imprecisões lexicais‖. São ocorrências em que se nota o emprego de
um determinado termo ao invés de outro, o qual seria mais preciso para o contexto em questão. Não atendendo
a uma precisão esperada, o uso equivocado acaba levando prejuízos ao texto do aluno, que tem a qualidade final
de sua redação comprometida em função desse tipo de ocorrência.

O que nos levou a uma especial atenção a casos como esse foi constatar que, ainda que prejudiquem o
desempenho de candidatos, apontam nitidamente para a significação desejada. É evidente que tais ocorrências
demonstram uma falta de refinamento vocabular dos alunos, o que acarreta um comprometimento do texto
produzido em uma situação tão particular como o vestibular, mas, por outro lado, não se pode negar também
que uma recuperação do sentido objetivado é conseguida com facilidade.

Trazemos, a seguir, um exemplo desses casos que foram analisados em nosso estudo. Vejamos:

Em 1991, no primeiro dia de aula daquele ano Juscelino leva seu único filho
Marino de 6 anos para a primeira série. Aquele parecia ser um lindo dia de verão para os
dois mas acabou sendo o dia mais fatídico de muitas famílias daquele pequeno
município de Getulio Vargas. Por seu veículo ser obsoleto, e as estradas precárias, esse
acidente poderia ser previsto, mas Juscelino estava preocupado em correr para as
crianças não perderem a aula, o resultado foi de 10 crianças com ferimentos graves e 2
fatais. (2) 203

Neste excerto, o termo que destacamos é ―obsoleto‖. Chamamos a atenção para uma reflexão sobre essa
ocorrência.

5 “Fronteir ”

Na análise de exemplos como este com o qual finalizamos o item anterior deste artigo, utilizamos como
fundamentação teórica a ―Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas‖, do linguista francês Antoine
Culioli, e uma aproximação dessa teoria com o contexto educacional proposta por Rezende (2000).

A especificidade do projeto de pesquisa culioliano consiste em definir a linguística como uma ciência
cuja finalidade deve ser apreender a linguagem através da diversidade das línguas naturais. Em linhas gerais, para
Culioli, a linguagem trata-se de uma atividade de produção de significação realizada por interlocutores em

203
Este excerto compõe o corpus de pesquisa do trabalho: JORENTE, Jacqueline. Enunciação linguística e ensino: o léxico na
produção de textos. Iniciação científica. Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). São Carlos-
SP, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Centro de Educação e Ciências Humanas, Curso de Graduação em
Letras: 2007. O número entre parênteses indica a redação da qual o exemplo foi retirado e os grifos são nossos.
506
interação e veiculada pela língua. Podemos dizer, então, que a língua é concebida como um sistema de
representação da atividade de linguagem, sendo esta última uma forma de interação.

A partir de tais definições, delineia-se uma linguística interessada em operações, que leva sempre em
conta os processos envolvidos na produção de enunciados. Estudos linguísticos realizados por meio de tal
perspectiva são desenvolvidos, então, articulando língua e linguagem, produto e processo.

Diante dessa concepção dinâmica de língua e linguagem, o que Rezende (2000) sugere é também uma
articulação entre língua e linguagem na escola. Tal articulação significaria conceber gramática e produção e
interpretação de textos de maneira não fragmentada.

Considerando as articulações propostas, quando se pensa especificamente na questão lexical, um


conceito central à teoria culioliana deve ser discutido. Trata-se da chamada ―noção‖. Ela é definida por Culioli da
seguinte maneira:

A notion can be defined as a complex bundle of structured physico-cultural properties


and should not be equated with lexical labels or actual items. Notions are
representations and should be treated as such; they epitomize properties (the term is
used here in a very extensive and loose way) derived from interaction between persons
and persons, persons and objects, biological constraints, technical activity, etc.
(CULIOLI, 1990, p.69)

A partir da noção, ter-se-ia o que o autor chama de ―domínio nocional‖, que seria composto por três
lugares: ―interior‖, ―exterior‖ e ―fronteira‖. Comentando brevemente esses elementos, podemos apresentar que,
dada uma propriedade ―p‖, o ―interior‖, com um ―centro organizador‖ (―tipo‖, ―atrator‖), seria o que é
considerado ―verdadeiramente p‖. O ―exterior‖, por sua vez, corresponderia a ―verdadeiramente não-p‖. Já a
―fronteira‖, como um espaço intermediário, envolveria tanto características do interior quanto do exterior de um
domínio nocional.

Levando em consideração esses conceitos, é possível refletir sobre a construção das representações, ao
invés de tomar o léxico como pronto.

O exemplo de redação de aluno que trouxemos neste artigo ilustra um caso de fronteira entre noções.

Como sugerimos no final do item anterior, reflitamos sobre a ocorrência ―obsoleto‖.

A partir do enunciado produzido pelo aluno temos:

Enunciado produzido pelo aluno:


507
Por seu veículo ser obsoleto, e as estradas precárias, esse acidente poderia ser previsto, mas Juscelino estava
preocupado em correr para as crianças não perderem a aula, o resultado foi de 10 crianças com ferimentos graves
e 2 fatais.

O acidente poderia ser previsto, porque as estradas eram precárias e o veículo era obsoleto.

O veículo ser obsoleto e a estrada ser precária contribuíram para que o acidente ocorresse (mais o fato de
Juscelino correr).

Caso Juscelino corresse, mas em uma estrada em boas condições e o veículo não fosse obsoleto – talvez o
acidente pudesse ter sido evitado.

Questionamo-nos então:

Será que veículo obsoleto – obsoletismo do veículo – pode ser considerado motivo desencadeador de
acidente?

O que é ser obsoleto?

Será que ser obsoleto implica estar em más condições?

Parece que há algo em comum entre ―ser obsoleto‖ e ―estar em más condições‖.

Nos dois casos podemos pensar em uma ação do tempo. Embora nem tudo que está em más condições
adquire essa condição devido ao tempo, muitas vezes o tempo pode levar objetos a se degradarem. Assim, é
possível que algo esteja em más condições devido à ação do tempo. E, então, neste caso, esse tempo faz que as
más condições tenha algo em comum com obsoletismo.

Observando usos, vemos que aquilo que é obsoleto tem por característica principal estar ultrapassado,
tendo sido produzido em um momento anterior a algum outro produto, que é considerado mais moderno.
Sendo a ação do tempo a característica em comum entre o obsoletismo e algumas situações de má condição,
pode haver elementos obsoletos que estejam em condições ruins.

Ainda que obsoletismo e más condições possam caminhar juntos algumas vezes, é possível, no entanto,
haver algo obsoleto, mas em boas condições. Nada impediria que existisse algo antigo, já ultrapassado em termos
de algumas características, mas conservado, funcionando bem. Neste caso, o tempo não teria agido em termos de
levar à degradação.

É levando em consideração essas reflexões que apontamos que a ocorrência produzida pelo aluno estaria
imprecisa. Parece-nos que quando emprega ―obsoleto‖, o aluno quer dar ênfase não ao fato do veículo não ser
508
moderno, mas estar em condições ruins. O transporte utilizado deveria ser antigo, mas não nos parece que esse
elemento por si só possa justificar sua contribuição para o acidente. É o fato dele estar em más condições
estando obsoleto que poderia ter influenciado a tragédia. Caso ele fosse obsoleto, mas se encontrasse em boas
condições, não nos parece que sua condição pudesse influenciar um desfecho de problemas ou não.

A redação permite então que reflitamos sobre ―ser obsoleto‖ e ―estar em más condições‖, apontando, ao
mesmo tempo, proximidades e diferenças entre as noções. Ao invés de ser vista como ―erro‖, defendemos que a
ocorrência deva receber maior atenção no ensino.

6 “Fronteir s” no ensino e prendiz gem de língu s

O exemplo trazido no item anterior trata-se de um caso fronteiriço.

Defendemos que pensar em casos fronteiriços como esse pode incitar a acuidade dos alunos para
questões linguísticas. Isso porque envolvem nuances de significação que podem ser exploradas pelo professor
visando a um refinamento lexical dos estudantes.

O que há de comum, o que há de diferente entre as noções focadas? Quando empregamos um ou outro
termo? Quais as especificidades de significação que os envolvem a cada enunciação?

Esses são questionamentos que poderiam ser feitos em sala de aula.

No início de nosso artigo, discutimos que muitos são os desafios que se colocam para o ensino.
Acreditamos que promover uma reflexão sobre ocorrências como a por nós focada possa ser um caminho para
um trabalho com textos capaz de ajudar a promover ampliação da competência discursiva que se almeja no
ensino.

7 Conclusão

Este artigo visou a discutir o ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa, abordando especificamente a
questão lexical. O trabalho compôs um simpósio do IV CIELLA (Congresso Internacional de Estudos
Linguísticos e Literários na Amazônia) especificamente voltado à temática do ensino de línguas, que objetivava
fazer um contraponto entre a abordagem dos PCNs e práticas pedagógicas. Intitulado ―Ensino de línguas:
encaminhamentos didático-pedagógicos e formação docente‖, o simpósio em questão visava a discutir pesquisas
voltadas a um trabalho com o texto como unidade de ensino.

Partindo do objetivo dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa de busca por uma
ampliação da competência discursiva dos alunos, buscamos pensar em alguns desafios que são colocados para
que possa atingir o fim proposto. Discutimos que um trabalho não interessante, como o sugerido por algumas
509
atividades tradicionais voltadas à questão lexical, pode levar a resultados diferentes do que se espera nas
produções textuais de estudantes.

Focamos, então, alguns casos encontrados em redações, chamados por nós de ―imprecisões lexicais‖,
que, ao invés de serem considerados ―erros‖, podem apontar uma reflexão a ser realizada em sala de aula.
Encontrando-se em uma ―fronteira‖ entre uma noção e outra, esses exemplos revelam processos de linguagem
que podem ser explorados pelo professor.

O IV Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia tem como tema geral
―Fronteiras linguísticas e literárias na América Latina‖. Aproveitando o destaque dado ao termo ―fronteira‖ por
este congresso, decidimos preparar uma apresentação que o focasse.

Na teoria com a qual trabalhamos, o termo em questão, no entanto, ganha um aspecto particular. Trata-
se mesmo de um conceito com o qual trabalhamos na perspectiva culioliana. Buscamos apresentar esse conceito
por meio de um exemplo de análise de redação de aluno. Destacamos, ainda, como acreditamos que casos
fronteiriços como o apresentado em nosso estudo deveriam receber uma atenção especial no ensino, como
caminho para uma ampliação da competência discursiva dos alunos objetivada pelos PCNs.

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. v.2. Brasília:
MEC/SEF: 1997.

BRASIL. Secretaria da Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio. Brasília:
Ministério da Educação: 1999.

CULIOLI, Antoine. Pour une linguistique de l‟énonciation: opérations et représentations. v.1. Paris: Ophrys: 1990.

CULIOLI, Antoine. Pour une linguistique de l‟énonciation: formalisation et opérations de repérage. v.2. Paris: Ophrys:
1999a.

CULIOLI, Antoine. Pour une linguistique de l‟énonciation: domaine notionnel. v.3. Paris: Ophrys: 1999b.
510
JORENTE, Jacqueline. Enunciação linguística e ensino: o léxico na produção de textos. Iniciação científica. Apoio:
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). São Carlos-SP, Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar), Centro de Educação e Ciências Humanas, Curso de Graduação em Letras: 2007.

JORENTE, Jacqueline. O exercício com léxico em sala de aula: uma reflexão enunciativa. In: II CIELLA Congresso
Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia, 2010, Belém-Pará. Anais [do] II Congresso
Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia. V.2. p.645-653.

ONOFRE, Marilia Blundi. Do nome à noção: do enfoque estático ao dinâmico. Versão Beta: sob o signo da palavra, ano
II, nº. 22, p. 57- 67: 2003a.

ONOFRE, Marilia Blundi. Operações de linguagem e implicações enunciativas da marca “se”. Tese (Doutorado).
Araraquara-SP, UNESP, Faculdade de Ciências e Letras: 2003b.

REZENDE, Letícia Marcondes. Léxico e gramática: aproximação de problemas linguísticos com educacionais. v.1. Tese
(Livre Docência). Araraquara-SP, UNESP, Faculdade de Ciências e Letras: 2000.

REZENDE, Letícia Marcondes. Atividade Epilinguística e o Ensino de Língua Portuguesa. In: Revista do GEL, São José
do Rio Preto, v.5, n.1, 2008. p.95-108.
511
PRÁTICAS DE (MULTI)LETRAMENTOS DIGITAIS NA FORMAÇÃO
DOCENTE DO PROGRAMA DE FORMAÇÃO DO PROFESSOR DA
EDUCAÇÃO BÁSICA

Jailma Bulhões204

Resumo: Dada a inserção das tecnologias digitais na escola e a necessidade de se refletir acerca da
utilização pedagógica de tais recursos nos cursos de formação inicial de professores da escola básica,
este trabalho se propõe a apresentar uma discussão sobre a compreensão de graduandos do Curso de
Letras Língua Portuguesa do Programa de Formação de Professores da Educação Básica da
Universidade Federal do Pará - PARFOR/ UFPA acerca de práticas acadêmico-escolares de (multi)
letramentos digitais. Para tanto, a pesquisa toma como suporte para a discussão as reflexões acerca dos
multiletramentos e mais precisamente dos letramentos digitais (ROJO, 2012; COPE & KALANTZIZ,
2000; GEE, 2004; SELBER, 2004; dentre outros), objetivando demonstrar, por meio da análise de
memórias de aprendizagem, o impacto das práticas hipermidiáticas que se efetuam por meio das
tecnologias digitais na formação dos alunos-professores do PARFOR. Em linhas gerais, os resultados
revelam que, a partir do uso de recursos tecnológicos numa perspectiva produtivo-reflexiva, houve
ampliação da compreensão dos alunos-professores quanto ao conceito de (multi)letramentos digitais,
bem como demonstram as desigualdades entre os que se envolvem em práticas de (multi)letramentos
digitais e aqueles docentes trabalhadores de escolas rurais que permanecem sem acesso produtivo às
tecnologias.

Palavras-chave: Práticas pedagógicas hipermidiáticas; (Multi)Letramentos digitais; Formação docente


no PARFOR; Tecnologias digitais.

Abstract: Given the integration of digital technologies in schools and the need to reflect on the pedagogical use
of such means in the initial training courses for elementary school teachers, this paper proposes to present a
discussion about the understanding of undergraduate students of Portuguese and Literature Course of Programa
de Formação de Professores da Educação Básica, Universidade Federal do Pará (PARFOR/UFPA) about
academic-school practices of digital (multi) literacies. To do it, this research takes as support some reflections
about multiliteracies and more precisely digital literacies (ROJO, 2012; KALANTZIZ & COPE, 2000; GEE,
2004; SELBER, 2004, among others), in order to demonstrate, through analysis of memories of learning, the
impact of hypermedia practices carried out by digital technologies in the training of student-teachers of
PARFOR. In general, the results show that the use of technological means in a productive and reflective
perspective has expanded the understanding of student-teachers about the concept of (multi) digital literacies, as
well it demonstrated inequalities between those who engage in practices of digital (multi)literacies and the
teachers from rural schools that remain without a productive access to the technologies.

Keywords: Pedagogical practices hypermedia; Digital (multi) literacies; Teacher training in PARFOR; Digital
Technologies.

204
Professora do Curso de Letras, Instituto de Letras e Comunicação, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Email:
[email protected]
512

INTRODUÇÃO

A utilização das tecnologias digitais na formação inicial no Programa de Formação de Professores da


Educação Básica da Universidade Federal do Pará - PARFOR configura-se em oportunidade para demonstrar
aos alunos-professores205 as exigências de letramentos (técnicos, críticos e reflexivos) para se trabalhar com os
diversos textos multimodais que circulam na rede Internet. Sabe-se que no processo de ensino-aprendizagem de
língua materna se faz necessário que os professores do referido programa aprendam formas específicas de uso
da/s linguagem/s que confluem para a realização de atividades hipertextuais comuns a essas tecnologias digitais.

Nesse sentido, este trabalho apresenta uma vivência mediada por tecnologias digitais em sala de aula do
PARFOR, sem euforia e sem desprezar o que os alunos-professores já fazem em suas salas de aula. Sua
importância justifica-se por demonstrar como o uso de recursos digitais em sala de aula amplia a perspectiva dos
alunos-professores quanto ao processo de (multi) letramentos digitais, diante da necessidade de se constituírem
como docentes que atendam às exigências de interação virtual em uma sociedade globalizada.

Assim, apresentar-se-á uma discussão sobre a compreensão dos alunos-professores acerca de práticas de
(multi) letramentos digitais. Para registro, foi utilizado o gênero memórias de aprendizagem, por meio do qual
puderam escrever suas percepções acerca das práticas de leitura e escrita hipermodais em meio digital realizadas
durante uma oficina206 de tecnologias.

A partir de uma concepção de que os usos acadêmico-escolares das tecnologias digitais de informação e
comunicação (TDIC) se configuram como práticas de (multi) letramentos digitais, neste trabalho propõe-se
averiguar como o uso de ferramentas digitais em sala de aula, particularmente as que se constituem na
hipermodalidade do ciberespaço, podem contribuir para a formação de professores e alunos questionadores dos
sentidos constituídos no uso desses recursos hipermidiáticos.

Na primeira seção, intitulada Tecnologias e (Multi) letramentos digitais nas práticas pedagógicas apresentar-se-á
um breve apanhado teórico sobre as práticas sociais de (multi)letramentos e sua relevância para a formação dos
sujeitos. A segunda seção exporá, de forma concisa, os procedimentos metodológicos utilizados para a realização
desta pesquisa. Por fim, a última seção discorrerá sobre os resultados mais gerais alcançados durante a análise das
memórias de aprendizagem produzidas pelos alunos-professores, destacando duas categorias principais, a saber:
205
No PARFOR, intitulamos o discente de ‗aluno-professor‘, visto que são selecionados para o programa professores da
escola básica não graduados em licenciatura específica na área em que atuam.
206 As memórias foram produzidas por alunos após a realização de uma disciplina-oficina na cidade de Tailândia/PA, nos

mês de Janeiro/2013.
513
(i) Compreensão das tecnologias digitais em seu aspecto técnico, em que se trata da compreensão do aspecto
técnico dos (multi)letramentos digitais; e (ii) Compreensão das tecnologias digitais como artefatos de
(multi)letramentos, parte em que se discorre sobre a ampliação da concepção técnica para um entendimento
crítico e questionador do uso das tecnologias digitais em sala de aula.

1. Tecnologias e (Multi) letramentos digitais nas práticas pedagógicas

O surgimento das tecnologias digitais e, particularmente, o desenvolvimento da web 2.0, desdobraram


novas possibilidades de interação entres os sujeitos e desencadearam a ressignificação dos gêneros discursivos
que circulam socialmente, promovendo, assim, novas formas de letramento, i. e., novas formas de leitura e
escrita. Esses novos letramentos, intitulados de (multi) letramentos digitais, envolvem transformações constantes
devido à dinâmica das atualizações das tecnologias digitais envolvidas nesse processo. Dessa feita, engloba uma
série de práticas ligadas direta ou indiretamente às novas tecnologias (BUZATO, 2007).

As práticas possíveis na rede Internet e a possibilidade dos usuários participarem ativamente de redes
sociais em ambientes digitais exigem (multi)letramentos, destacando-se particularmente, um letramento crítico,
dado que os avanços tecnológicos permitem ao usuário da rede assumir uma nova categoria de leitor-autor, ou
seja, um sujeito que lê, produz e compartilha ideias/informações. A esse respeito, Rojo (2012) postula que as
características inerentes aos textos produzidos no ciberespaço - como multiplicidade de linguagens – requerem
(multi)letramentos, visto que ―exigem capacidades e práticas de compreensão e produção de cada uma delas
(multiletramentos) para fazer significar‖ (p. 19). Cope & Kalantziz (2001) e Gee (2004) também relacionam a
linguagem das tecnologias digitais como influência importante nos (multi) letramentos ao postularem que os
modos variados do texto no ciberespaço, que envolvem escrita, imagem em movimento e estática, áudio e vídeo,
requerem um conceito de letramento multimodal.

A rede de conexões sem limites da qual esses sujeitos participam, e na qual se estabelecem relações
imediatas entre interlocutores, acaba por desenvolver novas práticas de (multi)letramentos mediadas por um
novo conjunto de gêneros virtuais, constituídos por uma multimídia que oferecem aos usuários experiências
multissensoriais. O contato com a multiplicidade de texto e a multimodalidade características desses gêneros do
ciberespaço possibilitam o desenvolvimento de novas capacidades cognitivas ajustáveis à dinâmica de interação
no espaço virtual da Internet.

Essa mudança no perfil do usuário da rede exige muito mais que conhecimento técnico para lidar com
os programas e dispositivos digitais que emergem com as novas tecnologias, pois, de acordo com Selber (2004),
apenas o conhecimento técnico não é o bastante para a compreensão das tecnologias, particularmente, as digitais,
como ferramentas que possibilitam interação entre os sujeitos nos mais diversos e complexos contextos
multiculturais sociais em que se inserem, bem como para a percepção dos recursos tecnológicos como artefatos
que veiculam diversas produções multimodais.
514
Faz-se necessário, então, que a escola contribua para o desenvolvimento da capacidade do sujeito de
empregar múltiplas linguagens hipermidiáticas para representar suas ideias e pensamentos, bem como para a
leitura e compreensão de textos e hipertextos produzidos por si mesmo e outrem. Dessa forma, a escola se
revelará em um espaço de formação de sujeitos multiletrados digitalmente, que reconhecem, compreendem e
produzem textos multimodais, valendo-se da hipermídias e formando-se para a sociedade do conhecimento.

2. Procedimentos metodológicos

Tomando como suporte a discussão acerca dos (multi) letramentos digitais, este trabalho tem como
principal objetivo discorrer sobre a compreensão e ampliação da perspectiva acerca do uso das novas tecnologias
como prática de letramento digital revelada por alunos-professores, do Curso de Letras Língua Portuguesa do
PARFOR/UFPA, após experimentação de possibilidades de práticas acadêmico-escolares em meios digitais. Para
alcançar esse objetivo, foi constituído um corpus de memoriais de aprendizagem, resultante de atividades didático-
pedagógicas ligadas à compreensão e produção de práticas hipermodais implementadas em sala de aula durante
uma oficina de tecnologias. Os documentos, num total de 30 memoriais, foram produzidos no final da oficina,
de modo que os alunos-professores pudessem expressar, de forma escrita, suas reflexões anteriores ao uso de
ferramentas tecnológicas no processo de ensino-aprendizagem, bem como os saberes construídos após essas
experimentações.
Para o estudo, foi realizada uma análise de cunho interpretativo baseada nos estudos sobre
(multi)letramentos digitais, que envolvem o uso de recursos hipermidiáticos e novas tecnologias em sala de aula.
A análise foi desenvolvida com base no método de questionamento permanente e da comparação sistemática,
com o objetivo de se trabalhar toda a informação textual (STRAUSS & CORBIN, 1998). Nesse sentido, a partir
dos memoriais foram criados dois blocos temáticos que orientarão a apresentação e discussão dos dados nas
próximas seções.

3. Resultados

O estudo da compreensão dos alunos-professores acerca das práticas de (multi)letramentos digitais


revelou-se essencial, dada à necessidade de se conhecer suas perspectivas em relação ao ensino-aprendizagem do
Português em e para contextos digitais. Compreender de que forma esses sujeitos percebem os novos paradigmas
atinentes às relações sociais e às relações com a linguagem, que suscitam novas possibilidades, em particular, no
âmbito da hipertextualidade, mostra-nos como esses alunos-professores se relacionam com o uso das tecnologias
digitais de comunicação e informação em sala de aula. Assim, a partir da leitura e análise das memórias
produzidas, destaca-se como o aluno-professor do PARFOR percebe as práticas de (multi) letramentos digitais e
as relaciona a sua prática em salas de aula de Língua Portuguesa.
515
Para tanto, esta discussão esboçar-se-á em duas perspectivas, a saber: (i) Compreensão das tecnologias
digitais em seu aspecto técnico; e (ii) Compreensão das tecnologias digitais como artefatos de (multi)letramentos.
Observe-se:

(i) Compreensão das tecnologias digitais em seu aspecto técnico:

Para iniciar essa discussão, é necessário informar que todos os alunos-professores investigados assumem
uma posição favorável ao uso de novas tecnologias na escola, ou seja, demonstram atitude positiva em face da
implantação de computadores e demais tecnologias digitais na educação. Sobre essa atitude favorável, destacam-
se:

A10

Os computadores e a Internet são muito importantes pra escola, pois possibilitam que façamos um ensino diferente e atraente para
nossos alunos [...]

A12

Se você não usa computador na escola, nem facebook, nem blog, nem Google, nem jogos, o aluno começa a achar que tua aula é chata.
Por isso, eu acho que é muito importante que o professor sabia usar e trabalhar com essas tecnologias digitais.

A26

A educação escolar precisa compreender e incorporar mais as novas linguagens, desvendar os seus códigos, dominar as possibilidades
de expressão e as possíveis manipulações. É importante educar para usos democráticos, mais progressistas e participativos das
NTICs, que facilitem a evolução dos indivíduos, inclusive de nós professores.

Nos excertos acima, os alunos-professores demonstram um posicionamento explicativo em que se


colocam como favoráveis a utilização de novas tecnologias no processo de ensino-aprendizagem escolar. Pode-se
observar em termos, como ‗façamos‘ (A10), ‗eu acho‘ (A12) e ‗nós professores‘, que representam a atitude de
inclusão, aceitação e concordância com o uso dessas tecnologias em sala de aula.

Em outros trechos, observa-se, na fala dos informantes, expressões especializadas como ‗data show‘
(A1), ‗computador‘ (A30), ‗ diário de classe virtual‘ (A25), que remetem a um letramento digital instrumental, que
implica o uso do computador como ferramenta de trabalho para dar suporte à prática pedagógica, o que pode ser
entendido como o reconhecimento desses recursos tecnológicos como facilitadores de atividades docentes
(NETO, 2006). Observe-se:

A1

Apesar de conhecer um pouco as tecnologias educacionais e a escola na qual trabalho obter equipamentos como computador, data
show, no entanto, percebi que não havia intimidade e que só tinha conhecimento de como usar a tecnologia.
516
A30

Eu pensava que já sabia o bastante para trabalhar com as novas tecnologias, como o computador, porque eu já sabia ligar, digitar e
acessar os sites na Internet. Para mim, a educação digital era isso.

A25

Eu vou fazer até um curso de informática para aprender a mexer direito no computador, digitar documentos, usar o diário de classe
virtual, fazer pesquisa na internet [...] também quero ser letrado digitalmente.

Assim, de acordo com as memórias relatadas pelos alunos-professores, pode-se dizer que suas crenças
acerca das práticas de letramento ligadas ao computador limitavam-se apenas ao aspecto técnico do uso dos
recursos tecnológicos e não propriamente à utilização produtiva dessas tecnologias em sala de aula. Enfatizar o
aspecto técnico dos computadores e demais artefatos digitais aparenta ser uma prática difundida na comunidade
escolar (SELBER, 2004)207, dado o que se verificou nas memórias analisadas. Vê-se que a concepção dos sujeitos
investigados se aproxima de um dos primeiros conceitos registrados sobre letramentos relacionados ao uso do
computador, na década de 70, que se referia a ―um conhecimento funcional de como os sistemas computacionais
operam e dos modos gerais em que os computadores podem ser usados‖. (OFFICE OF TECHNOLOGY
ASSESSMENT, 1984 apud SAITO & SOUZA, 2011, p. 118). Ou seja, deixavam-se de lado os diferentes níveis
de conhecimento e diferentes práticas ligadas à tecnologia computacional.

Além disso, observa-se que os alunos-professores não percebem a inclusão tecnológica como um
processo que antecede o letramento digital, o que provavelmente ocorre devido à forma de acesso de grande
parte dos alunos das escolas interioranas e rurais aos recursos digitais. A esse respeito, Almeida (2005, p. 174),
referindo-se a uma utilização funcional das novas tecnologias digitais, postula que ―a fluência tecnológica se
aproxima do conceito de letramento como prática social, e não como simplesmente aprendizagem de
um código ou tecnologia [...]‖. Ou seja, é preciso ainda que seja desenvolvido um conceito de (multi)
letramentos digitais, com o entendimento de que se deve ensinar com ajuda das hipermídias e seus variados
discursos, garantindo assim um trabalho crítico e produtivo em sala de aula.

A partir da constatação de atitudes favoráveis ao uso das tecnologias digitais na sala de aula, verifica-se que
os sujeitos investigados reconhecem a importância de organizar e gerenciar dados/informações no mundo
online, resolver questões tecnológicas de forma confiante, entender os recursos tecnológicos e, finalmente,
atingir objetivos educacionais por meio dessas tecnologias. Assim, os alunos-professores demonstram perceber
os letramentos digitais na perspectiva instrumental, enquanto eles, como usuários, devem também se posicionar
de forma eficiente frente à utilização desses recursos.

Com a reflexão em sala de aula sobre a redução do uso de práticas digitais no âmbito escolar a um aspecto
técnico, os alunos-professores, após contato com práticas hipermidiáticas em contexto acadêmico, parecem ter

207Selber (2004) construiu um modelo teórico baseado em três categorias, dentre as quais, destaca-se o letramento digital
funcional, que subtende um conhecimento técnico das tecnologias digitais.
517
assumido um discurso que amplia o entendimento instrumental dos recursos tecnológicos para uma dimensão
crítica e reflexiva. Neste nível de entendimento, percebe-se o reposicionamento dos sujeitos investigados como
questionadores e reconhecedores da amplitude do conceito de (multi) letramentos digitais como práticas
discursivas contemporâneas, tal como será exposto na subseção a seguir.

(ii) Compreensão das tecnologias digitais como artefatos de (multi)letramentos:

Após a experimentação de práticas multimodais, como compreensão e produção de sequências didáticas


virtuais hipermidáticas em wikis, de textos multimodais produzidos com auxílio do software moviemaker e de
produção de textos no Google docs, em que enfatizaram a produção dos mais diversos textos que circulam
socialmente e que fazem parte do contexto social de sua comunidade, os alunos-professores investigados
demonstraram ter compreendido que se faz necessário dominar as estratégias de compreensão e produção de
textos multimodais que circulam no ciberespaço, questionar as estruturas subjacentes a essas tecnologias, bem
como destinar o uso desses recursos para a formação de sujeitos questionadores, críticos e participativos. Sobre a
reflexão dos alunos-professores após experimentação de recursos tecnológicos digitais em sala de aula, destacam-
se os seguintes excertos:

A4

Compreender e incorporar mais as novas linguagens, desvendar os seus códigos, dominar as possibilidades de expressão e as possíveis
manipulações é necessário. O uso das mídias sociais na internet (facebook, blogs, etc) e de páginas como a wiki tornam-se como
condutor das discussões e compartilhamentos de conhecimentos.

A17

O impacto que as práticas com recursos da mídia digital me causou, me moveu a tomar uma decisão já pensada, porém não
decidida,quando percebi que “eu” precisava me qualificar em termos tecnológicos, pois estava pondo em risco o meu futuro profissional
e o aprendizado dos meus alunos quanto a utilizar as novas tecnologias para leitura e escrita na sala de aula

A2

Percebi que não devemos usar as NTICs para tampar buracos, horas vagas na escola [...] que a formação deve ir além da mera
instrumentalização do professor para o uso das novas tecnologias [...] que se deve fazer uso dos recursos wiki, comunidade virtual,
moviemaker e outros no próprio processo de ensino-aprendizagem [...]

Compreende-se nas falas dos alunos-professores um posicionamento de utilização das novas tecnologias
de forma responsável no ambiente escolar. Pode-se dizer que há uma reflexão positiva que contribui para a
constituição do seu conhecimento acerca dos (multi)letramentos digitais e não apenas para o desenvolvimento de
habilidades individualizadas de aprender a lidar com a máquina. Dessa maneira, as memórias desses sujeitos já
apontam o início de um processo em que o ensino-aprendizagem em e para contextos digitais deve envolver a
518
utilização produtiva e criativa de textos hipermidiáticos, de modo que tanto eles quanto seus próprios alunos
aprendam de forma efetiva e desenvolvam uma visão crítica e participativa nos contextos reais de utilização da
língua.

Verificou-se também que os alunos-professores apontaram as desigualdades profundas entre os


que se envolvem efetivamente em práticas de (multi)letramentos digitais, por terem acesso cotidiano
aos recursos tecnológicos, e aqueles docentes e alunos de escolas rurais que permanecem sem acesso
produtivo às tecnologias digitais. Destacam-se alguns trechos ilustrativos:
A5
Tenho algumas dificuldades para usar esses recursos multimodais porque só posso acessar a internet quando venho pro
curso na cidade. A gente tem computador, mas não tem Internet na escola rural onde dou aula.
A10
Acho interessante esse trabalho com as tecnologias digitais, mas onde dou aula sou a única funcionária. Não temos rede
elétrica lá e eu nunca tinha entrado na Internet até ter vindo fazer o curso de Letras.
A17
[...] acho as minhas dificuldades preocupantes por não saber utilizar o computador, nem ter acesso a ele onde moro, mas
isso não significa que não aprendi a desenvolver alguns recursos tecnológicos, como usar o movie maker para fazer um
trabalho multimodal [...]

Compreende-se que um primeiro passo que a escola precisa dar é tornar de fato as tecnologias digitais
acessíveis a professores e alunos, propiciando o acesso de todos os membros da comunidade escolar, sejam eles
moradores de áreas urbanas ou rurais. É sabido que muitas escolas já tem recebido informatização, mas
insuficientes para as necessidades educativas, já que possibilita apenas o acesso físico e coletivo de professores e
alunos. Para uma fluência tecnológica (ALMEIDA, 2003), que se aproxima do conceito de (multi) letramentos
digitais, é preciso um avanço para o patamar da interatividade, que desdobrará o potencial discursivo do aluno
(ARAÚJO, 2008)

Desta feita, considera-se importante pontuar a necessidade de um trabalho que prime pelo avanço da
inclusão digital para os (multi) letramentos digitais como práticas sociais, isto é, como processo que toma lugar a
partir da inserção tecnológica dos sujeitos, a fim de favorecer aos alunos-professores muito mais do que o
conhecimento de teclas e telas, mas, principalmente, o desenvolvimento de habilidades e competências para
atribuir significados às novas formas de leitura e escrita que despontam na era digital.

CONCLUSÃO

Conforme foi apontado neste trabalho, diante do contexto atual, que exige usuários competentes das
mídias digitais, é preciso que nossos professores em formação inicial compreendam as novas exigências de
letramento e as diferentes práticas de leitura e escrita no ciberespaço. O entendimento não apenas instrumental,
mas também crítico e reflexivo, desses (multi)letramentos digitais é essencial, visto que em tempos de
519
virtualização, as formas de interação digital interferem e modificam os processos de produção, recepção e leitura
de textos.

Diante disso, entender de que forma o professor em formação inicial do PARFOR compreendem o
alcance dos usos das tecnologias digitais no contexto escolar contribui eficazmente para se concluir o que a
academia deve oferecer durante o curso a esses alunos-professores, a fim de garantir uma formação de sujeitos
em e para contextos digitais.

Dentro dos limites da investigação deste trabalho, verificou-se que o uso de recursos digitais para o
ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa mostrou-se bastante fértil para a ampliação dos conhecimentos dos
alunos-professores, visto que foi exatamente a partir das experimentações que os esses sujeitos perceberam a
máquina além da técnica. Cabe registrar que o uso dos recursos os ajudou a perceber também que todos, alunos
e professores, podem desenvolver discussões acerca de temas diversos a partir de ações (multi)letramentos
digitais.

Sem dúvida, é perceptível que as oficinas de tecnologia educacional promovem uma mudança no perfil
dos alunos-professores, levando-os muito mais do que apenas ao conhecimento instrumental dos artefatos
digitais, mas, principalmente, ao entendimento de seu papel como mediadores reflexivos nas práticas letradas
viabilizadas pelos artefatos digitais. E isso não significa que se entenda que conhecimentos técnicos devam ser
relegados; pelo contrário, sabe-se que esses saberes são necessários para que esses sujeitos, em seus papeis de
professores, sejam capazes de lidar com os problemas de manuseio gerados no uso de computadores e outros
recursos digitais, bem como mediar a relação de seus alunos com as práticas advindas na era virtual.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Maria Elizabeth B. Educação, ambientes virtuais e interatividade. In: SILVA,


Marcos (Org.). Educação online. São Paulo: Loyola, 2003.
ARAÚJO, Rosana Sarita de. Letramento digital: conceitos e pré-conceitos. IN: Anais Eletrônicos
do 2º Simpósio Hipertexto e Tecnologias na Educação. 1ª Ed., Recife: UFPE, 2008.
BUZATO, M. E. K. O letramento eletrônico e o uso do computador no ensino de língua
estrangeira: contribuições para a formação de professores. 2001. 189 f. Dissertação (Mestrado) -
Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP. Disponível
em: http://ead1.unicamp.br/e-lang/publicacoes/down/00/01.pdf>. Acesso em: 25 de janeiro de 2013.
COPE, B.; KALANTZIS. M (eds). 2001. Multiliteracies: literacy learning and the design of social
futures. New York: Routledge, 2000.
NETO, Humberto Torres Marques. A tecnologia de informação na escola. In: COSCARELLI,
Carla Viana (org.). Novas tecnologias, novos textos, novas formas de pensar. 3ª Ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006.
OFFICE OF TECHNOLOGY ASSESSMENT, OTA. Computerized Manufacturing Automation:
Employment, Education, and the Workplace. Washington, D. C.: U.S. Congress, Office of Technology
520
Assessment, OTA-CIT-235, April 1984. Disponível em: <www.fas.org/ota/reports/84e08.pdf>.
Acesso em: 14 de março de 2013.
ROJO, Roxane. Pedagogia dos multiletramentos: diversidade cultural e de linguagens na escola. In:
ROJO, Roxane; MOURA, Eduardo (orgs.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola editorial,
2012.
SAITO, Fabiano Santos; SOUZA, Patrícia Nora de. (Multi) letramento (s) digital (is): por uma
revisão da literatura crítica. Linguagens e Diálogos, v. 2, n. 1, p. 109-143, 2011. Disponível em:
http://linguagensedialogos.com.br/2011.1/textos/19-art-fabiano-patricia.pdf. Acesso em 14.03.2013.
SELBER, S. A. Multiliteracies for a Digital Age. Carbondale: Southern Illinois University Press,
2004.
STRAUSS, A. & CORBIN, J. Basics of qualitative research: procedures andtechniques for develo
ping groundtheory (2nd ed.). California: Sage Publications, 1998.
521
GÊNEROS TEXTUAIS E A CONSTRUÇÃO DE UMA BASE DE
ORIENTAÇÃO
Jalma Geise Maria Brabo do Prado208

Resumo: Há algum tempo vem sendo discutido não só nos inúmeros materiais escritos voltados ao
ensino da língua materna, mas também nos encontros destinados à formação de professores de língua
e da educação básica o quão importante é o trabalho com os gêneros textuais. Todavia, observa-se que,
apesar de se compreender a importância desse tipo de trabalho, na prática ele não é tão facilmente
compreendido. Assim, durante as aulas da disciplina A produção de textos na escola, no curso de
doutorado em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, surgiu a inquietação de verificar de
que maneira as atividades com gêneros textuais auxiliam na construção de uma base de orientação para
a efetiva elaboração de um texto em dado gênero. Schneuwly (1988) acredita que é a partir da
construção de uma base de orientação para a escrita dos textos que se determinam diferentes modos de
construção textual, ou seja, as condições dadas para a escrita de um texto é que guiam a atividade.
Portanto, pensar em se trabalhar com gêneros textuais implica considerar as características próprias de
um gênero, como o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional (BAKHTIN, 2000).
Neste sentido, assim como Bakhtin (2000), assumimos a posição de que ninguém escreve por escrever,
pois nossos enunciados são gerados a partir de contextos situacionais que exigem o uso de determinado
gênero. Para tanto, o presente trabalho aborda a prática pedagógica a partir de gêneros textuais de uma
professora do 2º ano da Rede Municipal de Ensino do Recife/ PE. No decorrer das aulas, a partir do
gênero textual carta, ficou claro que a professora tem consciência do trabalho que desenvolve e o que
pode ser alcançado a partir dele. A sequência didática, pautada em Dolz e Schneuwly (2005), é o fio
condutor de seu trabalho.

Palavras-chave: Base de orientação; Gêneros textuais; Sequência didática.

Abstract: For some time it has been discussed not only in the numerous written materials aimed at
teaching the mother tongue, but also in meetings aimed at training teachers of language and basic
education how important working with textual genres. However, it is observed that despite the
importance of understanding this type of work, in practice it is not so easily understood. Thus, during
school discipline production of texts in school, graduate school in Education, Federal University of
Pernambuco, the unrest appeared to check how the activities with text genres help in building a
foundation for effective guidance elaboration of a text given genre. Schneuwly (1988) believes that it is
through the construction of a base guideline for writing texts that determine different modes of textual
construction, ie, the conditions given for the writing of a text is guiding activity. So, think about
working with text genres implies that the characteristics of a genre such as the thematic content, style
and compositional construction (Bakhtin, 2000). In this sense, as Bakhtin (2000), we take the position
that no one writes to write, because our statements are generated from situational contexts that require
the use of a particular genre. To this end, this paper discusses the pedagogical practice from textual
genres of a teacher of the and year of the Municipal Recife / PE. During the classes, the letter from the
genre, it was clear that the teacher is aware of the work you do and what can be achieved from it. The
didactic sequence, based on Dolz and Schneuwly (2005), is the thread of his work.

Keywords: Base orientation; Genres textual; Didactic sequence.

208Aluna do curso de Doutorado em Educação, na linha de pesquisa Educação e Linguagem, da Universidade Federal de
Pernambuco – UFPE. E-mail: [email protected].
522

1. Introdução
Não há dúvidas de que a produção de texto na escola está, timidamente, mudando de status, à
medida que as práticas de ensino de língua materna também se modificam. Isto talvez se deva, em
parte, às orientações expressas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN – de Língua Portuguesa
(BRASIL, 1997) que trazem à tona, dentre outros aspectos, a reflexão acerca da linguagem, de suas
concepções. Assim, a linguagem deixou de ser compreendida, por alguns docentes, como a mera
expressão do pensamento ou como instrumento de comunicação, passando a ser concebida como
forma de interação (GERALDI, 2002).
Outra questão que se faz necessário mencionar e que pode estar contribuindo para a referida
mudança diz respeito aos estudos sobre gêneros discursivos, encampados por Bakhtin (2000, p. 279),
para o qual os gêneros são ―tipos relativamente estáveis de enunciados‖ elaborados em cada esfera
social de utilização da língua, pois o ser humano, em quaisquer de suas atividades, serve-se da língua
por meio da elaboração de enunciados que ganharão contornos diferenciados, serão realizados de
maneiras diversas, a partir do seu interesse, da intencionalidade e da finalidade específica de cada
atividade. Deste modo, o gênero do discurso é parte de um repertório de formas disponíveis no
movimento da linguagem e da comunicação de uma sociedade.
Não obstante, a noção de Sequência Didática também tem entrado nas discussões sobre o
ensino da língua, sendo considerada como uma possibilidade viável para se trabalhar a língua materna,
já que é uma estratégia que pode favorecer a construção de uma escrita voltada aos interesses dos
aprendizes. A sequência didática, conforme propõem Dolz e Schneuwly (2005, p.97), ―é um conjunto de
atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito,
que tem a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim,
escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação de comunicação‖.
É na perspectiva do trabalho com gêneros textuais, a partir de sequências didáticas, que
apresentamos este trabalho, fruto das reflexões das aulas da disciplina Produção de Textos na Escola,
do curso de Doutorado em Educação da UFPE e das observações das aulas de uma professora do 2º
ano do ensino fundamental da Rede Municipal de Ensino do Recife/PE que trabalha, com seus alunos,
por meio de sequências didáticas. Segundo a professora, ao se trabalhar com as sequências didáticas, ela
propicia que os alunos construam uma base de orientação e, com isso, possam se tornar escritores
proficientes.

2. Um pouco de teoria
523
Por muitos anos, a prática de produção de textos esteve relacionada à elaboração de redação,
que pode ser considerada, como afirma Marcuschi (1997, apud MATENCIO, 2001), ―um gênero
construído pela escola e para a escola‖. A primazia dessa prática reforçava a ideia de que os professores
davam pouca importância à prática de produção de textos, o que justificava o fato de a maior parte das
aulas de língua portuguesa ser destinada ao ―ensino‖ da língua padrão, que é notoriamente confundida
com o ensino das regras gramaticais.
Esse tipo de prática adotada ainda por inúmeras escolas é preocupante, uma vez que sendo um
usuário da língua, o aluno deveria produzir mais, quer dizer, pôr em prática todos os seus
conhecimentos sobre a língua. Esse conhecimento deveria ser ativado constantemente e não apenas de
forma esporádica, ou melhor, tão somente quando o professor acreditar que determinada aula seja
propícia a esse tipo de atividade. Todavia, paulatinamente, este quadro vem mudando. Os estudos de
Bakhtin (2000) acerca dos gêneros discursivos têm contribuído para isso e têm gerado algumas
reflexões por parte dos professores, inclusive sobre a forma de conceber a linguagem.
Segundo Geraldi (2002, p. 40),

Antes de qualquer consideração específica sobre a atividade de sala de aula, é preciso


que se tenha presente que toda e qualquer metodologia de ensino articula uma opção
política – que envolve uma teoria de compreensão e interpretação da realidade – com
os mecanismos utilizados em sala de aula.

De fato, a afirmação de Geraldi (2002) deve ser levada em conta, já que, ao nos depararmos
com as práticas de produção de texto vigentes, verificamos que elas estão intimamente relacionadas à
concepção de linguagem adotada pelo professor, assim como à sua concepção de ensino e de
aprendizagem da língua. De acordo com o mesmo autor, três concepções fundamentais de linguagem
devem ser consideradas: a linguagem como expressão do pensamento, a linguagem como instrumento
de comunicação e a linguagem como forma de interação. Ainda assim, essas três concepções
corresponderiam às três grandes correntes dos estudos linguísticos: a linguagem como expressão do
pensamento corresponderia à gramática tradicional; a linguagem como instrumento de comunicação
corresponderia ao estruturalismo e ao transformacionismo e a linguagem como forma de interação
corresponderia à linguística da enunciação. Essas concepções de linguagem circulam nas escolas
brasileiras, só que em medidas diferentes.
A produção textual que vislumbramos neste trabalho está situada no interior da concepção de
linguagem como forma de interação, pois, assim como Geraldi (2002, p.41), acreditamos ―que ela
implicará uma postura educacional diferenciada, uma vez que situa a linguagem como o lugar de
constituição de relações sociais, onde os falantes se tornam sujeitos‖. Nessa perspectiva, como afirma
Koch (1998, p. 22),
524
A produção textual é uma atividade verbal, a serviço de fins sociais e, portanto,
inserida em contextos mais complexos de atividades; trata-se de uma atividade
consciente, criativa, que compreende o desenvolvimento de estratégias concretas de
ação e a escolha de meios adequados à realização dos objetivos; isto é, trata-se de uma
atividade intencional que o falante, de conformidade com as condições sob as quais o
texto é produzido, empreende, tentando dar a entender seus propósitos ao
destinatário através da manifestação verbal; é uma atividade interacional, visto que os
interactantes, de maneiras diversas, se acham envolvidos na atividade de produção
textual.

Muito embora essa concepção de linguagem esteja ganhando espaço nos meios educacionais, a
prática de produção de textos ainda está longe do que essa abordagem considera como ideal, posto que
a produção exigida pela escola foge totalmente ao sentido de uso da língua, uma vez que os gêneros
textuais que circulam na sociedade ao serem trazidos para o interior da escola tornam-se gêneros
escolarizados, com isso, a produção torna-se, forçosamente, uma situação de emprego artificial da
língua, e o texto que foi elaborado, geralmente, terá o professor como único leitor, via de regra, com
um único objetivo: corrigir, controlar a escrita, verificar os erros. Entretanto, como já mencionamos, a
prática de produção de textos na escola vem ganhando novo fôlego e mudanças vêm ocorrendo, como
verificaremos na seção 3.
A partir dessa nova perspectiva, não só de ensino da língua materna, mas, sobretudo, da produção
de texto, em sala de aula, quando o professor trabalha com os gêneros textuais, amplia o horizonte dos
educandos que terão a opção de escolher o gênero que mais se adequa ao fim desejado à situação
comunicativa que vivenciarem. Além disso, o professor pode colocar os alunos em um embate
discursivo em que suas opiniões, sobre os mais diversos temas, poderão ser expressas. Os conflitos que
surgirão são salutares para a compreensão da dinâmica da amplitude do discurso que dá poder, causa
injustiça, dá vida, mas também mata ao calar aquele que não consegue desenvolver o seu discurso.

Dentro de uma dada situação lingüística o falante/ouvinte produz uma estrutura


comunicativa que se configurará em formas-padrão relativamente estáveis de um
enunciado, pois são formas marcadas a partir de contextos sociais e históricos. Em
outras palavras, tais formas estão sujeitas a alterações em sua estrutura, dependendo
do contexto de produção e dos falantes/ouvintes que produzem, os quais atribuem
sentidos a determinado discurso (BAKHTIN, 1953 apud CARVALHO, 2002).

Isto porque, ao se produzir um texto, alguns conhecimentos são necessários e devem ser mobilizados,
independentemente se o texto é oral ou escrito. Assim, na produção de textos, é preciso que se leve em
conta o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional (BAKHTIN, 2000), além da
finalidade, do que enunciar, do enunciador, do destinatário e do suporte.
Dentro da discussão sobre gêneros discursivos, não podemos esquecer, ainda, que o
interlocutor quando recebe e compreende a significação de um discurso adota, simultaneamente, para
com este discurso, uma atitude responsiva. Tal atitude do ouvinte está em elaboração constante,
525
durante todo o processo de audição e de compreensão desde o início do discurso, às vezes, já nas
primeiras palavras emitidas pelo locutor. Diante disso, afirmamos que toda compreensão de um
enunciado é prenhe de resposta. Logo, cedo ou tarde, o que foi ouvido ou compreendido terá eco em
discursos outros (BAKHTIN, 2000). Daí a necessidade de a produção de texto realizada na escola não
se encerrar nela mesma.
Para tanto, o professor há de encontrar maneiras para que o texto do aluno não tenha seu
sentido esvaziado, por não circular socialmente, podendo, então, trabalhar a partir de sequências
didáticas. Embora a atividade propiciada pela sequência didática possa não ser real, justamente por ser
ensinada na escola, a situação didática favorece a mobilização de elementos e de operações da
linguagem necessários ao desenvolvimento das capacidades de linguagem, a partir da qual os
aprendentes poderiam ampliar sua capacidade de se expressar nas duas modalidades da língua, desde os
anos iniciais de escolarização.
Conforme Dolz e Schneuwly (2005, p.80),

toda introdução de um gênero na escola é o resultado de uma decisão didática que visa
a objetivos precisos de aprendizagem, que são sempre de dois tipos: trata-se de
aprender a dominar o gênero, primeiramente para melhor conhecê-lo ou apreciá-lo,
para melhor compreendê-lo, para melhor produzi-lo na escola ou fora dela; e, em
segundo lugar, de desenvolver capacidades que ultrapassam o gênero e que são
transferíveis para outros gêneros próximos ou distantes.

Assim, cabe ao docente favorecer esse aprendizado ao aluno, considerando, no planejamento de


suas aulas, que a escolha dos gêneros deve ser feita de acordo com a situação de comunicação, com as
capacidades de linguagem apresentadas pelos alunos (DOLZ e SCHNEUWLY, 2005). Os autores,
partindo do pressuposto de que o gênero é um instrumento para agir em situações de linguagem,
explicitam, ainda, que

o trabalho escolar [...] faz-se sobre os gêneros, quer se queira ou não. Eles constituem
o instrumento de mediação de toda estratégia de ensino e o material de trabalho,
necessário e inesgotável, para o ensino da textualidade. A análise de suas características
fornece uma primeira base de modelização instrumental para organizar as atividades
de ensino que estes objetos de aprendizagem requerem (DOLZ e SCHNEUWLY,
2005, p. 51).

Nesse sentido, o trabalho com gêneros textuais por meio de sequências didáticas é de suma
importância para que o educando crie uma base de orientação, a qual, segundo Schneuwly (1988), é o
guia para as escolhas textuais e que tal base de orientação, ou seja, as representações sobre a situação de
interação (o lugar social – modo de interação que o texto é produzido; a posição social do emissor – o papel
social que o emissor desempenha na interação em curso; a posição social do receptor – o papel social
atribuído ao receptor do texto; e o objetivo da interação) é construída durante todos os momentos de
escrita. Portanto, à medida que esta base de orientação vai sendo modificada, o texto vai sofrendo
526
alterações. Logo, a base de orientação encaminha o escritor para a tomada de uma série de decisões, tais
como a escolha do gênero e dos recursos linguísticos que serão utilizados na interação.
É nesse sentido que, ao se ter criada uma base de orientação, Leal (2003b, p. 2) destaca que ―(...)
o agente representa a situação em que o texto emerge, procurando delimitar o objetivo a que se propõe,
antecipar as reações dos leitores que pretende atingir e atender às restrições impostas pelas condições
concretas de produção (tempo, suporte textual, práticas culturais)‖. Portanto, se quisermos um ensino
de produção de textos por meio de uma sequência didática, ao planejá-la, além de centrarmos sua
elaboração em gêneros que o aluno não domina ou não domina suficientemente e com os quais ele tem
pouca familiaridade (DOLZ e SCHNEUWLY, 2005), temos que pensar na sua efetividade,
perguntando-nos, conforme explicitam Morais e Ferreira (2007), se ela propicia ao aprendiz ter clareza
sobre: qual é a finalidade do texto a ser escrito; o que se deseja comunicar e qual o gênero textual
adequado para fazê-lo; quem é o leitor-destinatário e quais são as características dele que precisamos
levar em conta como escritores; que ―tom‖ vai-se poder usar na hora de escrever; em que espaço de
circulação o texto produzido será lido; qual suporte será adequado para divulgarmos o texto naquele
espaço.
Além disso, por ser a produção de texto uma atividade complexa, ao se planejar a sequência
didática para o trabalho com algum gênero textual, devemos nos perguntar ainda se os passos
considerados na sequência auxiliarão o discente a:
• conhecer o gênero em questão, lendo bons textos que servem como modelo para
refletir sobre suas características;
• viver uma elaboração do tema a ser escrito, antes de começar a escrever, refletir
sobre as idéias/ informações que vai querer expressar;
• antecipar como vai organizar as idéias/ informações no texto, de modo a dar conta
das propriedades do gênero;
• revisar a versão inicial do que conseguiu produzir, buscando melhorá-la do ponto de
vista da textualidade e da convencionalidade da escrita (obediência à ortografia), a
emprego da norma prestigiada, de modo a alcançar, de modo mais eficaz, o objetivo
junto ao destinatário-leitor (MORAIS e FERREIRA, 2007, p.74).

Diante do que vimos, é interessante percebermos que o trabalho com gêneros textuais a partir
de sequências didáticas projeta uma possibilidade de o aluno tornar-se um escritor proficiente, ainda
que frente a simulações de situações comunicativas reais, já que a atividade de produção de texto é uma
atividade escolar, mas seria muito válido que essas produções, verdadeiramente, projetassem situações
de comunicação significativas para o aluno, ou como afirmam Melo e Silva (2007, p. 96) ―É importante
que as atividades de produção de textos solicitem ainda o atendimento a situações de interação
comunicativas não apenas escolares, mas também daquelas que ultrapassam esse domínio e se
estendem às práticas de linguagem reais‖. Assim, ao se deparar, na vida cotidiana, com situações
semelhantes às que experienciou na projeção escolar, o aluno saberá de qual melhor gênero textual se
valer, considerando todos os elementos que lhe são peculiares.
527

3. Absorção da teoria pela prática

Durante três semanas de trabalho entre os meses de novembro e dezembro, Priscila Santos 209,
professora do 2ºano de uma escola da Rede Municipal de Ensino de Recife/PE, trabalhou com seus
alunos o gênero textual carta. Para isso, ela elaborou uma sequência didática com os seguintes passos:

• mobilização de conhecimentos prévios sobre o gênero carta;


• diferenciação de gêneros semelhantes ou próximos;
• análise das principais características do gênero no que diz respeito ao conteúdo temático, forma
composicional e estilo;
• consideração das condições de produção específicas do texto a ser produzido no gênero carta;
• alimentação temática e orientações para os alunos buscarem informações novas em diferentes
materiais e suportes;
• planejamento global do texto;
• reflexão sobre as estratégias e recursos linguísticos relevantes para a escritura do gênero carta;
• atividades de avaliação, revisão e reformulação.

Evidentemente, a professora intermediou todo o processo de aprendizagem dos alunos, sempre


os motivando a participarem das atividades propostas.
A primeira carta foi escrita coletivamente e surgiu da necessidade dos alunos comunicarem,
após a leitura de uma história em quadrinhos na qual o Cascão estava sendo procurado pela morte, ao
escritor Maurício de Sousa que ele avisasse ao Cascão que o mesmo estava sendo procurado pela morte.
Como eles não aceitavam o fim que a personagem teria, resolveram, então, pedir que o autor criasse um
novo desfecho para a história. Com a ajuda da professora, as crianças escreveram a carta e revisaram-
na. Ao observar o resultado da produção coletiva e a ânsia dos alunos em dar um outro final para a
história em quadrinhos que leram, a docente percebeu que a carta não poderia se encerrar ali e resolveu
enviá-la, de fato, ao Maurício de Sousa, com total apoio das crianças que assinaram, uma a uma, a carta.
Tal atitude foi tomada porque a professora queria mostrar qual a finalidade de uma carta, tentou dar um
destino a ela, fazê-la circular socialmente, ainda que não obtivesse uma resposta. Dias após o envio,
chega um envelope à escola contendo uma carta endereçada a cada um dos alunos da turma, uma carta-
padrão enviada pela assessoria do escritor, mas que deixou a turma em polvorosa e ainda mais motivada
para a atividade de escrita.
Dando prosseguimento à sequência didática, as crianças continuaram escrevendo cartas, mas
individualmente. Elas tiveram a missão de escrever uma carta para o Papai Noel. A ideia da professora

209
A professora está acostumada a participar de pesquisas na área educacional e autorizou que seu nome fosse revelado.
528
também era fazer circular a carta, de modo que os alunos tivessem uma resposta do ―bom velhinho‖.
Para isso, ela orientou os alunos não só quanto ao conteúdo temático e à estrutura composicional da
carta, mas, sobretudo, quanto à finalidade, ao locutor e ao interlocutor da carta, elementos essenciais
para efetivação da comunicação. Também orientou os alunos quanto ao processo de revisão de texto.
Mesmo os alunos sendo crianças na faixa etária dos 6 aos 8 anos, eles tentaram, na medida do possível,
levar a cabo as orientações da professora para garantir a comunicação, como se observa no exemplo a
seguir, o qual ilustra uma situação de comunicação: carta do aluno enviada ao Papai Noel e Papai Noel
respondendo à carta do aluno.

Recife, 6 de dezembro de 2012 Finlândia, 18 de dezembro de 2012


Querido Vini,
PaPai noel Pofavor o Senhor
Estou muito feliz por ter recebido a tua cartinha e
PoDe me dar um PreSente muito bom por saber que acreditas na magia do Natal.
Este ano recebemos muitos pedidos e não estamos
PaPai noel o PreSente que eu PeDi dando conta da demanda, pois sempre nos baseamos no
Natal do ano que passou para nos programarmos para o
e um Play Dois e os CD Para
próximo Natal, mas acho que erramos na estimativa e o
eu jogar Pofavor o Senhor PoDe número de pedidos foi superior ao esperado.
Minha criança, não fique triste, pois sempre damos
fazer iSSo Pormim Porque iSSo um jeito de atendermos a todos, mesmo que não ganhes o
que pediu, meus ajudantes escolherão um presente bem
e o que mais que eu Peferi muito
bacana para eu e mandar. Não desanime, quem sabe no
muito eu Prefiro mais Do que outro Natal do ano que vem, tu não ganhas o que queres.
Tenha juntamente com toda tua família um FELIZ E
PreSente ILUMINADO NATAL!
HOU, HOU, HOU!!!
Vini
Papai Noel.

Texto 1 – Carta do Aluno Texto 2 – Resposta à carta do aluno

Na sequência didática elaborada pela professora, houve o planejamento da circulação da carta


escrita pelas crianças. Para que o texto escrito cumprisse com sua finalidade, a professora distribuiu as
cartas de seus alunos entre alguns amigos. Estes tiveram a incumbência de responder à cartinha que
receberam. Assim, além de presentinhos, cada aluno recebeu uma carta ―enviada‖ por Papai Noel. A
entrega da carta do ―bom velhinho‖ a cada um dos alunos fechou a sequência didática planejada pela
professora e os alunos ficaram encantados por terem recebido uma carta de Papai Noel, e uma carta
individualizada, considerando o que cada uma escreveu.
Ao fim da sequência, percebemos que os aprendizes conseguiram captar qual a finalidade de
uma carta, levando em consideração seu destinatário e a temática nela abordada. Também constatamos
529
que os elementos de sua construção composicional como: Local e data; cumprimento; assunto;
assinatura e distribuição do texto no papel foi apreendido pelas crianças. Todas explicitaram esses
elementos nas cartas que escreveram. Isso foi possível, em parte, pela exposição e contato que tiveram
com alguns modelos de carta e também pela mediação da professora que, na sequência didática, teve o
cuidado de planejar situações em que as crianças tivessem que refletir sobre as condições de produção
do gênero carta.

4. Algumas considerações

Como mencionamos, este artigo surgiu da necessidade de verificarmos de que maneira as


atividades com gêneros textuais auxiliam na construção de uma base de orientação para a efetiva
elaboração de um texto em dado gênero. Para tanto, buscamos fundamentar nosso estudo nas questões
do gênero, da sequência de didática e da construção de uma base de orientação, defendendo, portanto,
um trabalho com gêneros a partir de sequências didáticas que propiciem um contato com situações
contextualizadas e que possam representar diferentes esferas de interação social.
Assim, na trajetória aqui mostrada, tentamos explicitar, ainda, que se quisermos formar alunos-
escritores, devemos trabalhar com diferentes gêneros textuais, planejando e organizando o ensino na
perspectiva de assegurar, de fato, a diversificação de tipos textuais e de práticas de uso da linguagem,
pois acreditamos que o aluno é capaz, em qualquer idade, de produzir bons textos, desde que lhe seja
propiciado o contato com modelos distintos de textos. Aqui, a máxima de que aprendemos a escrever
escrevendo e lendo textos variados se faz verdadeira, já que partilhamos da ideia de que por meio da
leitura de textos diversos podemos construir uma bagagem não só de conhecimentos temáticos, mas
também de relativos às características dos vários gêneros textuais.
Ao que aqui fazemos alusão, tornou-se claro na prática da professora Priscila Santos. A mesma
pauta o ensino de textos em sequências didáticas, fio condutor de seu trabalho. A professora acredita
que ao trabalhar com sequências didáticas favorece o aprendizado do gênero, pois, à medida que a cada
sequência trabalha com um gênero diferente, o aluno vai, paulatinamente, construindo uma base de
orientação, ou seja, a cada nova sequência, a criança vai tomando consciência de que, para produzir um
texto, é preciso considerar o que escreve, quem escreve, para quem escreve e para que escreve, assim
como em que suporte o enunciado circulará e como circulará.
Todavia, admitimos que o trabalho com gêneros por meio de sequências didáticas não é algo
simples, mas também não é impossível. Portanto, o professor que queira enveredar o ensino de textos a
partir de sequências didáticas, a fim de proporcionar ao educando a construção de uma base de
orientação e, consequentemente, a possibilidade de se tornar um escritor proficiente, enfrentará,
conforme enfatizam Brandão e Leal (2007, p. 62), pelo menos, dois grandes desafios: o de
―proporcionar, a cada ano escolar, situações de escrita de gêneros pertencentes aos cinco agrupamentos
530
de textos‖ propostos por Dolz e Schneuwly (2005), a saber: textos da ordem do narrar, do relatar, do
argumentar, do expor e do descrever, ―levando-se em conta os objetivos didáticos e expectativas em
relação à produção de textos para um dado grupo de alunos‖; e o de ―indicar que aspectos relativos a
um mesmo gênero textual poderiam ser priorizados em diferentes níveis de ensino e como tais aspectos
poderiam ir sendo aprofundados ao longo dos anos escolares‖.
Enfim, o desafio está lançado, as possibilidades existem e são desafiadoras, porém promissoras.
Basta nos permitirmos mudar, encorajando-nos e encorajando os alunos também a entrarem no mundo
dos textos, de forma que todos serão beneficiados. Nós, professores, com o vislumbre de um ensino
melhor e os aprendizes com a perspectiva de uma aprendizagem de qualidade e efetiva para a escola e,
principalmente, para além dela.

REFERÊNCIAS

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Martins Fontes, 2000.
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curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997.
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ao ensino. Rio de Janeiro : UERJ, 2002.

DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras,
2005.
GERALDI, Wanderley (org.). O texto na sala de aula. 3ª ed. São Paulo: Ática, 2002 (Coleção Na sala de
aula).
KOCH, Ingedore. O texto e a construção dos sentidos. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 1998.

LEAL, Telma Ferraz; BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi. É possível ensinar a produzir textos! Os
objetivos didáticos e a questão da progressão escolar no ensino da escrita. In: LEAL, Telma Ferraz;
BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi (Orgs.). Produção de textos na escola: reflexões e práticas no Ensino
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LEAL, Telma Ferraz. Condições de produção de textos no ensino de jovens e adultos. Anais da 26ª
Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, 2003b.
MATENCIO, Maria de Lourdes Meirelles. Os Estudos sobre o ensino de português. In: Estudo da língua
falada e aula de língua materna: uma abordagem processual da interação professor/alunos. Campinas: Mercado de
Letras, 2001, p. 23-42.

MELO, Kátia Leal Reis de; SILVA, Alexsandro da. Planejando o ensino de produção de textos
escritos na escola. In: LEAL, Telma Ferraz; BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi (Orgs.). Produção de
textos na escola: reflexões e práticas no Ensino Fundamental. 1ªed., 1ªreimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p.
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531
MORAIS, Artur Gomes de; FERREIRA, Andréa Tereza Brito. Avaliação do texto escrito: uma
questão de concepção de ensino e aprendizagem. In: LEAL, Telma Ferraz; BRANDÃO, Ana Carolina
Perrusi (Orgs.). Produção de textos na escola: reflexões e práticas no Ensino Fundamental. 1ªed., 1ª reimp. Belo
Horizonte: Autêntica, 2007, p. 65-80.
SCHNEUWLY, B. Le Language Ecrit chez l`Enfant: La producion dês textest informatifis et argumentatifs.
Neucâtel: Delachax & Niestlé, 1988.
532
CLASSIFICAÇÃO NOMINAL NAS LÍNGUAS DO TRONCO TUPI

Jéssica Clementino da Costa210

Profa. Dra. Luciana R. Storto (Orientadora)211

Resumo: No presente trabalho, abordamos a classificação nominal em cinco línguas do Tronco Tupi: Mekéns
(Tupari); Karitiana (Arikém); Gavião (Mondé); Karo (Ramarama) e Munduruku (Munduruku). Karo apresenta
um sistema de classificadores, porém pouco desenvolvido (onze classificadores). Munduruku apresenta um
sistema complexo de nomes inalienáveis classificadores de outros nomes, os quais se combinam com adjetivos,
verbos, numerais, entre outras categorias. Tendo em vista a complexidade desse sistema, analisamos esses nomes
como classificadores, à semelhança do que ocorre com Karo. Mekéns, Gavião e Karitiana não possuem
classificadores e sim nomes (alienáveis e inalienáveis) que possuem uma semântica ligada aos classificadores. Eles
estão presentes em contexto de possessão e funcionam como modificadores de outros nomes. Utilizando-nos do
método comparativo, identificamos cognatos entre os classificadores do Karo e do Munduruku e os nomes do
Mekéns, Gavião e Karitiana. Esses cognatos nos ajudaram a reconstruir as formas nominais correspondentes em
Proto-Tupi. Quatro dessas formas foram coletadas de Rodrigues (2005, 2007, 2012). Concluímos que essas
formas, na língua mãe, eram nomes. Assim, os resultados da reconstrução das formas nominais em Proto-Tupi
nos fizeram concluir que Karo e Munduruku inovaram ao criarem um sistema de classificadores, não presente na
protolíngua.

Palavras-chave: Tronco Tupi; Classificação Nominal; Classificadores.

Abstract: In this paper, we discuss the nominal classification in five languages of the Tupi stock: Mekéns
(Tupari); Karitiana (Arikém); Gavião (Mondé); Karo (Ramarama) and Munduruku (Munduruku). Karo presents
an undeveloped system of classifiers, consisting of eleven items. Munduruku presents a complex system of
inalienable nouns that classify other nouns and concord them with adjectives, verbs, numerals, among other
categories. Considering the complexity of this system, we analyzed these names as classifiers, similarly to what
occurs with Karo. Mekéns, Gavião and Karitiana do not have classifiers; instead they present alienable and
inalienable names with a kind of semantic connection to the classifiers. They are present in the context of
possession and they function as modifiers of other names. Using the comparative method, we identified
cognates among Karo and Munduruku classifiers, on one side, and Mekéns, Gavião and Karitiana names, on the
other side. These cognates left us to reconstruct the corresponding nominal forms in Proto-Tupi. Six of these
forms were collected from Rodrigues (2005, 2007, 2012). We conclude that these forms were names in the
mother language. Therefore Karo and Munduruku innovated by creating a system of classifiers, which is not
present in the proto language.

Keywords: Tupi stock; Nominal Classification; Classifiers.

210
Mestranda em Linguística Geral pelo Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo – DL-USP. Bolsista
FAPESP. E-mail: [email protected]
211 Professora do Programa de Pós Graduação em Semiótica e Linguística Geral da Universidade de São Paulo.

E-mail: [email protected]
533

1 Introdução
O Tronco Tupi localiza-se quase que majoritariamente na área amazônica brasileira e é composto por
dez famílias linguísticas: família Tupi-Guarani, Puruborá, Awetí, Juruna, Mawé, Munduruku, Mondé, Ramarama,
Arikém e Tupari.

Após analisar o sistema de classificação nominal em cinco línguas, de cinco famílias diferentes do Tronco
Tupi - Mekéns (Tupari); Karitiana (Arikém); Gavião (Mondé); Karo (Ramarama) e Munduruku (Munduruku) –,
Costa (2011) constatou semelhanças e diferenças nos padrões relacionados à classificação nominal nessas línguas.

Segundo Gabas (1999), Karo é uma língua Tupi que possui um sistema de classificadores, porém pouco
desenvolvido (com onze classificadores). Caso um adjetivo ocorra com um nome que possui um classificador,
este último, por concordância, aparece depois do adjetivo também. Munduruku, por sua vez, também
possui classificadores nominais segundo Crofts (1973, 1985) e Aikenvald (2012). Para Aikenvald (2012), em
Munduruku há mais de cento e vinte classificadores que caracterizam o nome referente quanto à forma. Para
Crofts (1973, 1985), esta língua possui em torno de cinquenta classificadores, que também são nomes
inalienáveis. Gomes (2006, 2009), por outro lado, afirma que em Munduruku não há classificadores, mas um
grupo, menos extenso daquele proposto por Crofts (1973, 1985), de nomes inalienáveis que desempenham
função classificadora. Esses nomes são chamados de Nomes com Função Classificadora (doravante NFC). O
autor afirma que os NFC não formam um sistema de classificadores, nem uma classe específica. Eles são nomes
inalienáveis que podem classificar outros NPs. Nessa função, eles podem aparecer compostos com outros
predicados, como verbos, adjetivos, numerais e outros nomes inalienáveis. No seu sentido primitivo, eles
designam o nome de partes - animal (cabeça, dedo) ou vegetal (folha, semente) -, e estabelecem uma relação de
parte-todo com outro núcleo nominal.

Na presente pesquisa, analisamos os NFC do Munduruku como classificadores, uma vez que estes
nomes: i) se compõem com outros predicados; ii) classificam o nome quanto à forma; iii) e, apesar de possuírem
uma origem lexical clara, quando classificam um nome, são obrigatórios (não possuem autonomia lexical). Assim,
Munduruku e Karo (conforme será mostrado mais adiante), gramaticalizaram alguns nomes, tornando-os
classificadores, sendo que muitos desses nomes continuam sendo sintagmas nominais e pronomes nas línguas.

Karitiana, Mekéns e Gavião, por sua vez, possuem um sistema de classificação nominal simples, no qual
nomes livres e/ou presos, em contexto de possessão, funcionam como modificadores de outros nomes. Nessa
função, eles classificam objetos de acordo com as características físicas, ou funcionais destes.

Segundo Aikenvald (2012), em muitas línguas Tupi há um tipo classificação nominal como o discutido
nas quatro línguas acima citadas. De acordo com a autora, na família Tupi-Guarani, existiria um grupo de
morfemas classificadores que categorizam, com semântica genérica, o nome possuído de construções
possessivas. Em Urubu-Kaaapor (Tupi-Guarani), por exemplo, haveria alguns nomes de animais, como o nome
534
cachorro (jawar), que não podem receber prefixos de posse diretamente. Nesses casos, o classificador de
semântica genérica deve aparecer junto ao prefixo de posse, antes do nome possuído. Tal fato também é
encontrado em Mekéns, conforme veremos adiante.

Observado que apenas duas línguas Tupi possuem um sistema de classificadores, levantamos duas
hipóteses quanto à classificação nominal no Tronco Tupi: i) ou Karo e Munduruku são línguas inovadoras e
adquiriram um sistema de classificadores próprio; ii) ou estas duas línguas são conservadoras e preservaram um
sistema de classificadores já existente na protolíngua e perdido pelas outras línguas Tupi estudadas.

Para identificar a hipótese correta, buscamos possíveis cognatos entre os classificadores do Karo e do
Munduruku com nomes (alienáveis e inalienáveis) das outras quatro línguas estudadas. Baseando-nos em
Rodrigues (2005, 2007 e 2012), reconstruímos essas formas no Proto-Tupi. Utilizando o método comparativo
(uma metodologia da linguística histórica que reconstrói itens lexicais de línguas extintas), pudemos identificar
que as formas reconstruídas em Proto-Tupi eram nomes. Desse modo, Karo e Munduruku são línguas
inovadoras por desenvolverem um sistema de classificadores próprio. Demonstraremos, ao longo do artigo,
como esta hipótese foi comprovada por esta pesquisa.

2. O sistema de classificação nominal na Amazônia

De acordo com Grinevald (2000), os classificadores constituem um sistema aberto de categorização


nominal, de clara origem lexical, usados em construções morfossintáticas específicas. Segundo a autora, os
classificadores não são categorias completamente gramaticalizadas, como são as classes nominais das línguas
Bantu. Eles possuem uma natureza lexical evidente e são usados em construções sintáticas específicas. Ademais,
os classificadores se distinguem de sistemas puramente lexicais (isto é, nomes que modificam outros nomes),
pois eles são morfemas independentes, ou afixais, que se prendem a elementos de uma oração.

Segundo Payne & Seifart (2007), os sistemas de classificação nominal do Noroeste da Amazônia foram
descritos na literatura como ―sistemas mistos‖, por possuírem características tanto do sistema de classificadores
quanto do sistema de classes nominais. Para os autores, as línguas Amazônicas possuem um sistema próprio de
organização da sua gramática. Em Yagua (Peba-Yagua), por exemplo, os classificadores podem ter funções
derivacionais, isto é, podem formar novos lexemas, assim como podem aparecer em funções flexionais, ou seja,
podem concordar sintaticamente com os componentes de uma sentença, o que é característico do sistema de
classes nominais da língua Bantu. No entanto, os mesmos classificadores são necessários com demonstrativos e
numerais, como ocorre com o sistema de classificadores do Chinês.

Nas línguas Karo e Munduruku, também podemos encontrar padrões mistos entre classificadores e
classes nominais. Em ambas as línguas, há concordância do classificador com outros predicados do sintagma,
como verbo e adjetivos (padrão classes nominais). Mas também há concordância com numerais (Munduruku
somente) e classificação do nome quanto à sua forma (padrão classificadores).
535
Para a presente pesquisa, consideramos que uma língua Tupi possui classificadores quando: i) há um
grupo de partículas/nomes que, mesmo possuindo origem lexical clara, classificam um nome quanto à forma,
função, classe; ii) enquanto classificadores, perdem sua autonomia lexical; iii) estabelecem algum tipo de
concordância com outros predicados (verbo, adjetivo, etc.).

3. Análise diacrônica dos dados


Objetivando reconstruir a protoforma que originou os classificadores do Karo e do Munduruku e os
nomes nas outras quatro línguas Tupi, levantamos os dados acerca da classificação nominal em Karo, Mekéns,
Munduruku, Gavião e Karitiana. Buscamos correspondências regulares que pudessem evidenciar uma origem em
comum entre classificadores e nomes estudados.

Observamos semelhanças fonológicas entre os classificadores do Karo e do Munduruku e outros nomes


(alienáveis e inalienáveis) do Karitiana, Mekéns e Gavião. Quatro formas reconstruídas dos cognatos no Proto-
Tupi foi identificada em Rodrigues (2005, 2007 e 2012). A última forma (*pap) é uma proposta de reconstrução
deste trabalho. Abaixo, segue tabela com os possíveis cognatos achados.

Proto-Tupi Karo Gavião Karitiana Munduruku Mekéns

*epw peʔ sep sap -sup/-tup -ep

Folha Achatado Objeto como Folha Objeto como Folha


folha folha
(RODRIGUES, 2007)

*kʔɨp ʔɨp ʔiip ʔep -ʔip kɨp

Árvore Cilíndrico e Árvore; Em forma de Árvore


Objeto longo e
médio pau/bastão;
(RODRIGUES, 2007) fino Osso
Árvore

*ʔa ʔaʔ káp/aá -ʔo -ʔa ʔa

Fruta/cabeça Redondo Objeto Fruta Objeto redondo Fruta


redondo; fruta
(RODRIGUES, 2007)

*ʔɨ icɨ ci -se -di/-ti ɨkɨ

Água Água Líquido Líquido Qualquer Água


líquido
(RODRIGUES, 2007)

*pap212 pap áp ɲõgõ -ba/-pa

Braço Cilíndrico e Objeto longo e Braço Cilíndrico e

212
Segundo Rodrigues (2007), a forma *pap, em Proto-Tupi, é a reconstrução do verbo ‗morrer‘.
536
grande fino flexível; Braço

Tabela 1: Cognatos e formas reconstruídas no Tronco Tupi

De acordo com Rodrigues (2005, 2007 e 2012), as formas reconstruídas são nomes simples. O cognato
do Karo para a forma reconstruída *ʔɨ ‗água‘ não é um classificador no sistema, mas um nome simples, icɨ ‗água‘.

A mudança vocálica é uma correspondência regular muito frequente nos cognatos achados. Este
processo consiste em uma mudança regular das vogais do Proto-Tupi (PT) para o Proto-Arikém (PA). Essa
mudança foi descrita por Storto & Baldi (1994), que afirmam que as mudanças vocálicas do PT para o PA
obedeceram à seguinte ordem:

Diagrama 1: Mudança vocálica do Proto-Arikem proposta por Storto & Baldi (1994)

Conforme vemos pelo diagrama acima, a sequência de mudança de mudança vocálica é: PT e>PA> a,
PT a > PA o, PT o >PA ɨ, e PT ɨ > PA e.

Abaixo, comentaremos detalhadamente cada cognato e os termos reconstruídos.

1) *epw „folh ‟: em final de palavra, a oclusiva bilabial surda labializada/*pw/ realiza-se como oclusiva
bilabial surda /p/ na maioria dos cognatos. Exceto o cognato de Karo, no qual observamos a realização
da oclusiva glotal /ʔ/. Identificamos a mudança da vogal intermediária conforme visto em Storto &
Baldi (1994): a vogal /e/ permanece nas línguas Gavião, Mekéns e Karo; realiza-se como /a/ em
Karitiana e como /u/ em Munduruku. Nos cognatos do Karo, Gavião, Karitiana e Munduruku há o
acréscimo de fonema em início da palavra: fricativa alveolar surda /s/ em Gavião, Karitiana e
Munduruku; oclusiva bilabial surda /p/ em Karo.
2) kʔɨp „árvore‟: o protofonema oclusivo velar glotalizado /*kʔ/ passa por um processo de anteriorização
em Karo, Karitiana e Munduruku, realizando-se como uma oclusiva glotal /ʔ/, processo comum
encontrado na passagem do Proto-Tupi para as outras famílias (Rodrigues 2005, 2007, 2012). Em
Mekéns, o protofonema oclusivo velar glotalizado /*kʔ/ realiza-se como oclusiva velar simples /k/.
Percebe-se a ocorrência da mudança em cadeia das vogais orais: Karo e Mekéns /ɨ/> Gavião,
Munduruku /i/ > Karitiana /e/. Em final de coda, a oclusiva bilabial surda /p/ permanece em todos os
cognatos.
3) *ʔ „frut ‟, „c beç ‟: a vogal /*a/ conservou-se quase que majoritariamente em todas as línguas
analisadas do Tronco Tupi, com exceção da língua Karitiana, que realiza a vogal /o/. A oclusão glotal
inicial permaneceu em todos os cognatos, com exceção do Gavião, que elidiu esse fonema.
537
4) *ʔɨ „águ ‟: a oclusão glotal inicial /ʔ/ passa por um processo de posteriorização passando a realizar-se
como oclusiva velar surda /k/ em Mekéns, oclusiva palatal /c/ em Karo e Gavião, e oclusiva alveolar
/t~d/em Munduruku. Tal mudança pode ser sido originada devido à presença da vogal alta /i/ em
Karo e da vogal central alta /ɨ/ em Mekéns. Houve fricativização em Karitiana, no qual encontramos a
realização da consoante fricativa alveolar surda /s/. Além disso, a vogal alta central /*ɨ/ mudou de
qualidade para alta anterior /i/ nas línguas Munduruku e Gavião. Em Karitiana, a mudança gerou a
vogal média-alta anterior /e/ (mudança vocálica prevista na literatura de /*ɨ/>/i/>/e/).
5) *pap: a vogal /a/ possui correspondentes em todos os cognatos selecionados. Há elisão da oclusiva
bilabial surda /p/ ora na posição de ataque silábico (Gavião), ora na posição de coda (Munduruku). Em
Karo, a clusiva bilabial surda é preservada em ambas as posições. A forma para braço em Karitiana
(ɲõgõ) não parece ser um cognato.
As formas reconstruídas dos cognatos das cinco línguas estudadas são nomes simples, logo, não temos
evidências de que em Proto-Tupi havia classificadores, o que corrobora a hipótese de que o sistema de
classificadores do Karo e do Munduruku sejam inovadores.

A hipótese apresentada nesse trabalho vai ao encontro do trabalho mais recente de Rodrigues (2012), no
qual o autor afirma que não é possível reconstruir em Proto-Tupi um sistema de classificação nominal baseado
em propriedades semânticas de um nome. Todavia, de acordo com o autor, isso não implica que a protolíngua
não tivesse condições morfossintáticas para desenvolver tal sistema semântico de classificação, uma vez que a
composição de nomes é um processo produtivo nas famílias Tupi e é uma forma de expressar uma função
adjetiva.

4. Apontamentos sobre a classificação nominal das línguas Tupi


Nessa seção, apresentamos dados que mostram o sistema de classificação nominal nas línguas Karo,
Munduruku, Mekéns, Karitiana e Gavião.

4.1. Karo

Os dados de Karo foram extraídos de Gabas (1999). Os classificadores do Karo são:

Classificador Significado Classificador Significado

pap Cilíndrico, grande ʔaʔ Redondo

ʔɨp Cilíndrico, médio kaʔ Côncavo ou convexo

pɨʔ Cilíndrico, pequeno kap Grupo de mesma


origem

peʔ Achatado maʔ Grupo de origem


diferente
538
cɨʔ Fino ŋa Feminino

Tabela 2: Classificadores do Karo

Os onze classificadores são partículas funcionais livres, não são afixados ao nome e nem são
obrigatórios. Eles podem ocorrer com o núcleo nominal do sintagma nominal (contexto prototípico de
ocorrências); em construções genitivas (o classificador ocorre depois do sintagma nominal, porém ele segue o
núcleo do sintagma, isto é, o nome possuído); em compostos (o classificador não segue o núcleo, mas o primeiro
nome do NP, isto é, o modificador do nome composto). Quando um adjetivo ocorre em um desses três tipos de
construção, o classificador, por concordância, também aparece depois do adjetivo. Exemplos213:

(1) ɨu pap ci kãp pap


açaí CL água delicioso CL
(2) karo nãk ʔaʔ pik ʔaʔ
‗Delicioso vinho de açaí‘
arara boca CL preto CL

‗Boca preta da arara‘


Em Karo, os classificadores classificam o seu objeto quanto à forma, à função, ao gênero e ao arranjo.
Além disso, é possível identificar uma origem claramente lexical em dois desses classificadores, como é o caso do
classificador ʔaʔ, que também é nome e significa 'fruta'; e ŋa, que é um pronome de terceira pessoa do plural
feminino.

Devido ao baixo número de classificadores existentes, podemos considerá-lo um sistema atípico, uma
vez que línguas que possuem um sistema prototípico de classificadores (Chinês, por exemplo) apresentam mais
de cem classificadores em seu sistema (Dixon 1986 e Grinevald 2000).

4.2. Munduruku

Os dados de Munduruku foram extraídos de Gomes (2006, 2009) e Crofts (1973, 1985). Gomes (2006,
2009) afirma que em Munduruku não há um sistema de classificadores, mas NFC, classe de nomes inalienáveis
que desempenham uma função classificadora. Esses nomes não formam um grupo específico e não
desempenham exclusivamente uma função classificadora. Abaixo, encontramos uma lista representativa desses
nomes.

NFC Significado

-bu Cilíndrico e flexível

- ´a Arredondado

213
Neste trabalho, usaremos as seguintes abreviaturas (a ordem está de acordo com o aparecimento nos exemplos): CL:
classificador. R1: indicador de determinante contíguo. NFC: nome com função classificadora. 3S: terceira pessoa do
singular. R2: indicador de determinante não-contíguo. PRF: aspecto perfectivo. 1s: primeira pessoa singular. O.peq.red:
objeto pequeno e redondo.
539
- ´uk Oco

-dup Foliforme

-da/-ta Graniforme

-´ip Em forma de pau/bastão

Tabela 3: NFC segundo Gomes (2006)

De acordo com Gomes (2006, 2009), a semântica dos NFC está relacionada à forma do objeto
classificado. Eles possuem uma origem lexical bem clara e, quando desempenham a função classificadora (uso
derivado do nome), não possuem autonomia lexical. Assim como observamos no Karo (ʔaʔ 'fruta'; ŋa ‗elas‘)
muitos desses nomes continuam sendo sintagmas nominais na língua, todavia, em contextos específicos,
desempenham função gramatical de classificador.

Nesse trabalho, assumimos a hipótese de que esses nomes, na função classificadora, são partículas
gramaticalizadas. O fato de eles poderem se compor com outros predicados (à semelhança do Karo), isto é, com
verbos, com adjetivos, com outros sintagmas (numerais, demonstrativos, nomes inalienáveis e verbos
nominalizados); e de perderem a autonomia lexical (são obrigatórios nas construções de classificação), evidencia-
nos um comportamento de partículas gramaticais.

(3) Bekicat puy Ø-bu [o‟=su-bu-aoka] (4) Warepupu dup o‟=tup-„ t


Menino cobra R1-NFC 3S=R2-NFC-matar.PRF
Borboleta R1.NFC 3S=R2.NFC-cair.PRF
‗O menino matou a cobra‘
‗A borboleta caiu‘

Desse modo, uma vez que consideramos tais partículas gramaticais, a presença do classificador no objeto
e nos verbos, nas construções acima, demonstra concordância na língua. O fato de a ausência da concordância
do classificador no predicado verbal gerar agramaticalidade214 à sentença corrobora a hipótese desse fenômeno
ser concordância e não apenas incorporação por repetição, como discute Gomes (2006, 2009).

4.3. Mekéns

Os dados de Mekéns foram extraídos de Galucio (2001). Em Mekéns, todos os cognatos achados são
nomes simples que podem aparecer livremente na sentença. Todavia, em Mekéns, alguns nomes alienáveis, em

214 Sentença (3) sem concordância com objeto gera agramaticalidade.

*bekic t pu [o‟=su-bu-aoka]

Menino cobra 3S=R2-NFC-matar.PRF


(6) o-iko apara
‗O menino matou a cobra‘ (Gomes 2006) 1s-comida banana

‗Minha [comida] banana‘


540
construções genitivas, podem ser classificados por outros nomes com semântica genérica. Esses nomes são
chamados por Galucio (2001) de Classifier Stem. Eles também podem aparecer como nomes livres. Exemplos:

(5) o-ŋo ameko


1s-animal cachorro

‗Meu [animal] cachorro‘

Esses nomes classificadores, isto é, ŋo ‗animal‘ e iko ‗comida‘, perdem sua autonomia lexical e categorizam
o nome possuído da construção genitiva. Assim, os nomes ameko 'cachorro' e apara 'banana' pertencem,
respectivamente, à categoria dos animais e das comidas.

4.4. Karitiana

Os dados de Karitiana foram extraídos de Storto (1999) e Landin (1983). Storto (comunicação pessoal)
afirma que em Karitiana, nomes inalienáveis, em posição de modificadores em construções compostas, perdem
parcialmente sua autonomia lexical e classificam outro nome presente em construções compostas. O nome –se
‗liquido‘, por exemplo, é um nome inalienável. Quando composto com outros nomes, classifica-os quanto à
forma, isto é, forma líquida. Exemplos:

(7) a) -se: ‗líquido‘

b) e-se: ‗chuva‘.

c) ‟eetese: ‗mel de abelha‘

d) goharara-se: ‗leite de borracha, seringa‘

e) nõm-se: ‗leite materno‘.

4.5. Gavião

Os dados de Gavião foram extraídos de Moore (1984). Segundo o autor, na língua Gavião, nomes
podem ser classificados por outros nomes. Esses nomes classificadores formam um composto de palavras
complexas com a expressão nominal precedente.

Todos os cognatos do Gavião coletados nesta pesquisa são desse tipo. À semelhança do Munduruku,
esses nomes podem ter dois sentidos: um primitivo e um derivado, que origina a leitura classificadora. Assim, káp
significa ‗ovo‘ (sentido primitivo), mas pode ter um sentido derivado e significar ‗objeto pequeno e redondo‘.
Exemplo:
541
(8) zoc káp
chuva o.peq.red

‗Granizo‘

5. Considerações finais
Por meio da análise dos cognatos e das formas reconstruídas do nosso corpus, pudemos perceber que em
Proto-Tupi, os nomes reconstruídos são provavelmente nomes simples. Desse fato, mostramos que não há
evidências claras de que em Proto-Tupi havia classificadores. Assim, acreditamos que Karo e Munduruku
tenham inovado na direção de criar um sistema de classificação nominal, pois não foi possível reconstruir
classificadores na protolíngua.

A análise dos dados das línguas Mekéns, Karitiana e Gavião mostra que há, nessas línguas, um processo
de classificação relacionado às construções compostas ou genitivas com nomes inalienáveis. A perda da
autonomia lexical desses nomes nesses tipos de construções é um processo emergente que parece dialogar com o
sistema de classificadores de modo geral.

REFERÊNCIAS:

AIKHENVALD, A.Y. The languages of the Amazon. New York: Oxford University Press. 2012

CROFTS, M. Gramática Munduruku. Brasília: Summer Institute of Linguistics (SIL). 1973

____________. Aspectos da língua Mundurukú. Brasília: Publicações do Summer Institute of Linguistics. 1985

COSTA, J.C. Classificação Nominal nas línguas do Tronco Tupi. Relatório Final de Inicial Científica. Universidade de
São Paulo. São Paulo: 2011.

GABAS JÚNIOR, N. A Grammar of Karo (Tupi, Brazil). Tese de doutorado, Universidade da Califórnia, Santa
Barbara. 1999.

GALUCIO, A.V. The morphosyntax of Mekens (Tupi). Tese de doutorado, University of Chicago. Chicago. 2001

GOMES, D. M. Estudo Morfológico e Sintático da Língua Munduruku (Tupi). Tese de doutorado. Universidade de
Brasília. Brasília. 2006.

_____________. Classificação Nominal em Mundurukú: forma, função e tipologia. In: LIAMES 9.pp. 7-25. 2009.

GRINEVALD, Colette. ―A morphosyntactic of classifiers‖. In: Systems of nominal classification. Cambridge


University Press. 2000.
LANDIN, D. Dicionário e Léxico Karitiana/Português. Sociedade Internacional de Lingüística (SIL). Cuiabá. 1983.

MOORE, D. Syntax of the Language of the Gavião Indians of Rondônia, Brazil. Ph.D. dissertation, City University of
New York, C.U.NY. New York. 1984.
542
RODRIGUES, A. As vogais orais do Proto-Tupi. In: Novos estudos sobre línguas indígenas. Brasília. Ed. Universidade
de Brasília. 2005

______________. & CABRAL, A.S.A.C. Línguas e Culturas Tupí. Brasília: Curt Nimuendajú. 2007.

_________________________________. Tupían. In: Campbell, Lyle; Grondona, Verónica. (Org.). The


Indigenous Languages of South America: a comprehensive guide. Berlin: Mouton de Gruyter, 2012, p.
495-573.

STORTO, L. Aspects of a Karitiana Grammar. Ph.D. dissertation, Massachusetts Institute of Technology.


Massachusetts. 1999.

STORTO, L. & P. BALDI. The Proto-Arikem Vowel Shift. Artigo apresentado na Conferência Anual da
Linguistic Society of America. 1994.
543
(DES)ENVOLVENDO A TRAMA COM O ESCRITOR: EXPERIÊNCIAS
COM A LITERATURA NA EDUCAÇÃO BÁSICA

Joana Rosa de Almeida215

Resumo: Este estudo tem por objetivo descrever, analisar e discutir a prática de letramento escolar em
que as atividades propostas pelos professores sejam mediadas pela literatura infantil. Para tanto, parte-
se do pressuposto de que a compreensão da leitura e escrita decorre de um processo ativo, complexo e
transformador estabelecido entre o leitor e o autor Nas questões metodológicas, o estudo focaliza o
contexto e as atividades didáticas criadas para o ensino de leitura de obras literárias e de produção de
texto. Por fim, procura-se, através de algumas reflexões relativa ao processo de letramento, contribuir
para a realização de uma prática pedagógica em que o professor possa refletir criticamente e
implementar inovações, buscando proporcionar aos seus alunos atividades capazes de proporcionar
autonomia e transformação. Trata-se, pois, de um convite aos educadores para que eles façam reflexões
acerca da associação do letramento/literatura infantil. Enfim, este estudo constitui uma oportunidade
para se estabelecer a discussão referente à relação entre o processo escolar de letramento e os usos
sociais efetivos da leitura e da escrita na vida dos educandos, sem perder de vista a consecução dos
objetivos individuais e coletivos, bem como o uso da literatura como instrumento didático e a
escolarização da literatura. As conclusões indicam que um trabalho didático com ênfase na literatura
infantil proporciona o desenvolvimento do pensamento crítico, as decisões entre
ensinamento/mediação da literatura, além de outras questões que provavelmente venham aflorar no
processo educacional.

Palavras-chave: literatura; letramento; leitor.


Abstract: This study aims at describing, analusing and discussing the school literacy practice, in which
the activities suggested by the teachers are mediated by infant literature. Thus, one should start from
the pressupossition that the learning of reading and writing comprehension results from an active,
complex and transforming process between reader and author. Concerning the methodological issues,
the study focuses the context and the activities designed to the teaching of reading of literary books and
the production of texts. Finally, through some reflections about the literacy process, we also tried to
contribute to the accomplishement of a pedagogical practice in which the teacher could critically design
and implement innovations so as to provide creative activities which would lead to autonomy and
transformation. Thus, it is an invitation to educators to reflect about the association of literacy process
and children literature. This study constitutes an opportunity to establish a discussion concerning the
relation between the school process of literacy and the social effective uses of reading and writing in the
life of students, having in mind the achievement of their own individual and collective goals as well as
the use of literature as a pedagogical tool and the literature in school environments. The conclusion
points to a pedagogical work with emphasis on infant literature, which provides the development of
critical thoughts, and decisions with the mediation of literacy/literature. Besides, other issues can be
emerged from this conclusion.

Keywords: literature; literacy practice; reader.

215
Professora do Centro de Ensino e Pesquisa aplicada a Educação - CEPAE/UFG.
544
O presente estudo objetiva refletir, descrever, analisar e discutir a prática de letramento escolar216 em que
as atividades de leitura e escrita sejam mediadas por textos literários 217. Para tanto, apresentaremos a
contribuição da entrevista como gênero capaz de levar o leitor a expressar sua experiência de leitura, tornando-o
sujeito no processo de produção oral e escrita, uma vez que as palavras servem de trama para tecer as relações
sociais. Sendo assim, trata-se de uma proposta de trabalho com a literatura infanto-juvenil, que visa ir além da
tarefa escolar, na medida em que possibilita a construção de sentidos pelo leitor. Apresentaremos o Diário de
Leitura218 como recurso didático capaz de:

 auxiliar e ampliar o conhecimento sistematizado;


 contribuir no processo de produção oral e escrita;
 possibilitar a revisão e na socialização das leituras feitas pelos alunos na dinâmica das interações:
leitor/texto;
 favorecer ao aluno a possibilidade de análise crítica da realidade.
Os educadores do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação – CEPAE/UFG
procuram exercer uma prática educativa capaz de promover o conhecimento de forma significativa,
contribuindo para a formação do educando. Assim sendo, exploram e ampliam as experiências vividas
pelos alunos, possibilitando-lhes desenvolver os aspectos cognitivo, emocional e cultural. Acreditam
que o ensino deve propiciar aos alunos instrumentos de descoberta do mundo, para que possam
conhecê-lo, estabelecer e dirimir dúvidas, valorizar o ambiente que os cerca, sem perder a totalidade
sociocultural. Em síntese, os professores concebem a literatura infantil como suporte para a ampliação
do conhecimento sistematizado.
A função da Escola não é só transmitir ‗conteúdos‘, mas também facilitar a construção
da subjetividade para as crianças e adolescentes que se socorrem nela, de maneira que tenham
estratégias e recursos para interpretar o mundo no qual vivem e chegar a escrever sua própria
história. Hernandes (1998, p. 12)

Os estudos teóricos têm demonstrado que à aquisição do conhecimento não se restringe à


escola, mas cabe a esta explorar e ampliar as experiências vividas pelo aluno 219, possibilitando-lhe um
crescimento cognitivo, emocional e cultural, tornando a aprendizagem mais eficiente, mais significativa
e eficaz para o aprendiz. Para isso, é necessário realizar um trabalho que vise à aprendizagem como um
processo ativo de (re)elaboração do conhecimento. As atividades podem ser desenvolvidas de maneira

216 ―O que o letramento depende essencialmente de como a leitura e a escrita são concebidas e praticadas em determinados
contexto social; letramento é um conjunto de práticas de leitura e escrita que resultam de uma concepção de o quê, como,
quando e por quê ler e escrever”, ver SOARES
217 Para Vygotsky a apropriação do conhecimento se dá a partir do que está disponível na cultura, sendo para isto, necessário

disponibilizar o maior número de interações adequadas capazes de promover novas e melhores possibilidades de
aprendizagem.
218 O Diário de Leitura é feito em um caderno exclusivo, espaço em que os alunos fazem atividades, solicitadas pelos

professores de Língua Portuguesa, relacionadas com os livros escolhidos pelos alunos na biblioteca de sala ou na biblioteca
do CEPAE.
.
545
que os alunos vivenciem a construção do conhecimento, reelaborando-o, sistematizando-o e chegando
a conclusões.
Nesta perspectiva, os professores buscam recuperar a função da interdisciplinaridade nas séries
iniciais de escolarização, utilizando vários tipos de textos, procurando não cair na fragmentação do
conhecimento, evitando atividades e conteúdos pouco significativos. Os eduadores procuram estimular
a autoconfiança do aluno mediante o reconhecimento de suas capacidades para que ele perceba suas
possibilidades e possa tracar caminhos para o aprender. Para isso, eles trabalham com diferentes
recursos didáticos, metodologias de ensino e linguagens variadas (verbal, plástica, corporal); elaboram
atividades que estimule o processo de leitura e escrita, o raciocínio, formação de conceitos, a
concentração, organização, para possibilitar ao aluno o desenvolvimento da autonomia, contribuindo
assim com processo de produção oral e escrita; auxiliando-o no processo de aquisição do
conhecimento sistematizado; favorecendo ao mesmo, a possibilidade de análise crítica da realidade
Os professores procuram, ainda, apreender a potencialidade que cada aluno possui, proporcionando
oportunidades para que o mesmo possa elaborar o conhecimento, intervindo na realidade com base em questões
que emergem no dia-a-dia. Por acreditar que o trabalho do educador não seja algo que possa ser dissociado da
formação para a vida social; os educadores visam à formação de um sujeito que pensa, decide e age em diferentes
contextos sociais. Desse modo, é importante que os mesmos atuem de maneira significativa sempre buscando
compreender melhor a dinâmica do processo de aquisição do conhecimento, identificando os aspectos relevantes
capazes de mediarem essa aquisição.

Os alunos do CEPAE trabalham com vários tipos de textos: literários, jornalísticos e científicos, diários
e outros. O diário no primeiro e segundo anos é utilizado como pretexto para o aluno expor suas experiências,
seus sentimentos e pensamentos de maneira espontânea. Nas séries seguintes, terceiro, quarto e quinto anos, o
Diário é proposto de maneira que o aluno expõe seus pontos de vistas, suas críticas das leituras220 dos textos
escolhidos de acordo com o interesse do aluno/leitor.

O texto escrito221 é apresentado ao leitor/iniciante de modo espontâneo, incorporado à rotina do aluno


de forma natural, gerando uma fonte de conhecimento do real, ligando a fantasia, como parte de sua experiência
cotidiana. Os alunos tem acesso diariamente à biblioteca de sala e do CEPAE uma vez por semana, para fazerem
sua escolha exercerem seu papel de leitores e também de críticos, isto é, verem a história por dentro, serem
capazes de adentrar um caminho pelo qual só o leitor/ sujeito é capaz de ir.

O aluno/leitor encontra nas atividades com o Diário de Leitura uma forma de socializar as experiências
do texto literário, pois a leitura estimula o diálogo, por meio do qual se trocam experiências e opiniões. E na

220 O termo leitura é concebida na visão de Paulo Freire:‖ em que o homem, ser histórico, se manifesta diante da vida e dos
fatos realizando suas leituras e se posicionando diante delas.‖
221 Kleiman (2002. p. 62) ―Texto (do latim textus, tecido) é toda construção cultural que adquire um significado devido a um

sistema de códigos e convenções: um romance, uma carta, uma palestra, um quadro, uma foto, uma tabela são atualizações
desses sistemas de significados, podendo ser interpretados como textos.‖
546
interlocução entre os leitores, autor e contexto, vai sendo gerado o fio condutor, as questões que são capazes de
costurar no tempo as histórias construídas socialmente (re)construídas pelos alunos.

Os textos literários funcionam como elemento facilitador da estruturação e exteriorização do


pensamento da criança possibilitando, ainda, a expressão de seus sentimentos e anseios, através de
diversos meios: ilustrações, jogos dramáticos, produção escrita e outros, sem perder o caráter estético
das obras. As atividades baseadas nas obras literárias auxiliam a criança a expressar sua criação, o
imaginário e também ajudam na construção de sua representação do mundo. Entendendo a escola
como um espaço privilegiado para a ocorrência da leitura e da escrita, possibilitando a formação do
leitor crítico que relaciona e sabe distinguir a realidade e a fantasia, o usuário eficiente da linguagem
escrita não surgirá de forma espontânea. Ele surge após muito trabalho e de forma gradativa. Nesse
sentido, faz-se necessário também um interlocutor crítico e eficiente engajado frente ao processo de
ensino, dialogando e mediando a relação dos mesmos (aluno e professor) com os textos literários ou
qualquer outro tipo de texto.
Embora a ficção não seja uma realidade concreta, palpável, os acontecimentos são tirados dessa
realidade e colocados em outra dimensão: a fantasia. E, ao lerem uma obra literária, os leitores são capazes
de desfazer o laço imaginário que une a fantasia e a realidade e apropriarem-se da primeira como se a
mesma nunca tivesse deixado de ser realidade. Uma obra literária apresenta, sem dúvida, um leque de
possibilidades de leituras e criações e, nesse sentido, favorece a relação entre a ficção e a realidade. É uma
relação dinâmica, em que o leitor é também produtor de textos; ler é sempre um ato de interpretar, recriar
que não se esgota num simples decifrar; é um processo de construção.

A prática de leitura pode ser apreendida como forma de compreensão de significados formando um
percurso social e crítico dos seus usuários. Segundo Soares (1999, p. 26), “o texto não preexiste à sua
leitura, e leitura não é aceitação passiva, mas é construção ativa; é no processo de interação desencadeado
pela leitura que o texto se constitui.”

O leitor é um indivíduo particular que vive num determinado tempo e espaço. De um mesmo texto
surgem leituras diferentes, porque a leitura é construção ativa no processo de interação. É no processo de
interação desencadeado pela leitura que surge um novo texto, pois, ao ler, o sujeito também cria, produz,
uma vez que o texto não tem inscrito em si todos os sentidos objetivamente, portanto, o leitor deve ser
ativo, produtivo e criativo em sua ação individual de ler. Conforme afirma Silva (1991, p. 27).

A leitura é compreendida como sendo um processo interativo, pois o leitor utiliza-se de diversos
conhecimentos anteriores para chegar a uma determinada compreensão. Existe uma relação do vivido, que
também é um texto maior trazido para outro texto a ser compreendido, ou seja, o texto escrito. Nesse processo
estão presentes o autor e leitor na produção e criação de sentidos que são gerados no contexto social. É, pois, na
interação entre os sujeitos que se produzem os sentidos tanto na forma escrita quanto na forma de leitura.

A escrita exige certas habilidades: planejamento, seleção, inferências, revisão, para que seja
executada com eficácia. A mediação do(s) colega(s) e da professora, durante a produção de textos orais
547
e escritos, e as atividades significativas possivelmente contribuirão para que educandos saiam com
maior capacidade para questionar em vários aspectos de suas vidas, dentro e fora da escola.
A produção de textos pela criança é feita individualmente ou coletiva, após a leitura e discussão
dos textos em pequenos ou grandes grupos. Tal produção tem o papel de reestruturação do significado
da experiência, da ação, do observado, do discutido, ou seja, das ações vivenciadas, sendo as mesmas
muito importantes para a aquisição do conhecimento.
Quando o aluno se envolve com a tarefa e é capaz de compartilhá-la com alguém, sem dúvida, será
capaz de elucidar seus problemas na composição do texto e interagir com o colega, a fim de contribuir também
com a produção do outro. Na produção dos textos, o professor, coordenador das atividades, orienta para a
identificação dos aspectos mais importantes nos parágrafos: as informações, as ideias principais. No decorrer da
leitura e interpretação, são feitos debates no sentido de tornar claras as ideias e informações do texto. Para isso, o
significado das palavras desconhecidas é localizado no dicionário, discute o entendimento de conceitos novos e
algumas formas sintáticas na apresentação do texto. Nesse momento, são evidenciadas associações relevantes aos
conhecimentos já adquiridos e aos novos. Quando a professora dá explicações, faz esclarecimentos, acredita que
o aluno usará o que aprendeu no sentido de assimilar os novos conceitos.

O escritor, nesse caso o aluno, tem como tarefa expor suas ideias de forma clara sem os recursos usuais
da oralidade. No processo de escrita, ele procura se colocar no lugar do leitor, a fim de verificar a aceitabilidade
do seu texto. À medida que o aluno/escritor ainda não domina a ortografia, ele solicita a ajuda da professora para
orientá-lo na produção escrita, fazendo-o pensar sobre ela, ajudando-o a produzir textos adequados às mais
variadas propostas.
A língua carrega em si múltiplos recursos expressivos que são retirados do universo social e
coletivo. Ela dispõe de múltiplas interpretações, isto é, faz com que os enunciados não sejam
unívocos, pois dependem do contexto, da cumplicidade dos interlocutores e das situações em que os
mesmos são produzidos.
A obra literária é um campo aberto de possibilidades de leituras sempre dispostas a serem
vividas e revividas. Desta forma, ainda que insubstituível e autônoma, a leitura da obra só se realiza e
ganha sentido na voz de um leitor. Não há, portanto, como negar que a experiência da leitura traz em si
uma margem de subjetividade.
A compreensão ativa de um texto conta com os conhecimentos prévios textuais e com os
contextos socioculturais que estão ao alcance do leitor, exigindo dele o raciocínio lógico e capacidade
de fazer inferências para que possa, ao ler, desatar o laço e (re)fazer o nó que une
leitor/obra/ficção/realidade. Produzimos e reproduzimos sentidos quando lemos através das nossas
inferências e dos fios que unem as informações, as estruturas lexicais e a gramática textual tecendo uma
rede de relações entre o dito e o compreendido. O texto se apresenta como uma rede constituída por
vários fios, tais como a organização gramatical, a estrutura lexical, as informações objetivas, as
pressuposições, as intenções.
548
No decorrer da realização das atividades, os alunos participavam das discussões espontaneamente,
a fim de expor suas ideias a respeito da história que foi lida pela professora ou pelo colega. Tudo isso
acontece de forma envolvente, os alunos não conseguem ficar calados, sem participar. Nesse momento
ninguém foge da interação. A discussão oral é desenvolvida de forma participativa, mantendo sempre
interlocutores capazes de dizer suas opiniões e interpretações e também pedir esclarecimentos diante de
qualquer dúvida suscitada durante as discussões. Quando os alunos expõem suas ideias,
apreendem novos conhecimentos, pois nesse momento, a interação fornece elementos para a
construção do conhecimento e, ao mesmo tempo, atende às expectativas do interlocutor que se
colocava no lugar do outro para compreender o discurso oral ou escrito:
O leitor tende a socializar a experiência, cotejar as conclusões com as de outros
leitores, discutir preferências. A leitura estimula o diálogo, por meio do qual se trocam
experiências e confrontam-se gostos. Portanto, não se trata de uma atividade egocêntrica,
se bem que, no começo, exercida solitariamente; depois, aproxima as pessoas e coloca-as
em situação de igualdade, pois todos estão capacitados a ela (ZILBERMAN, 1990:19).

Nos exemplos222 a seguir, tem como objetivo relatar 14 (catorze) eventos realizados ao longo do
ano letivo (2010) em que os alunos expõem suas opiniões a respeito do ato de ler os livros selecionados
e enviados pelo escritor: Newton Murce: ―Diferente, igual a todo mundo‖ e ―Viagens‖, enfim, os alunos
expoem suas opiniões, analisam e avaliam diferentes atividades realizadas em diversos momentos e
contextos. Nas atividades realizadas priorizamos: a produção oral/leitura/ escrita.
1ª atividade: Chegada dos livros literários enviado pelo escritor: Newton Murce.
2ª atividade: Momento da entrega dos livros (no pátio).
3ª atividade: Apreciação e leitura das obras.
4ª atividade: Entrevista com os colegas do 2º ano―A‖ e ―B‖, (atividade em dupla):
Os alunos dos 4ºs entrevistaram os colegas do 2ºs. anos para saber o tipo de livro que eles tinham em
casa, qual o tipo de livro preferido, qual o membro da família que costuma ler para eles e qual o lugar que gosta
de ouvir as leituras dos livros literários

5ª atividade: Carta de agradecimento aos colegas do 2º ano―A‖ e ―B‖, (atividade em dupla):


“Goiânia, 4 de novembro de 2010.
Querido Leonardo,
Gostamos muito de você ter dedicado o seu tempo a nós; saiba que estamos gratos a você e esperamos que você tenha gostado como e o
Pedro gostamos.
Sempre será bem vindo em nossa sala do 4º estaremos aqui sempre que você precisar, portanto pode contar conosco.
Depois vamos combinar de irmos contar historias, sei que você é um bom contador de livros e é muito inteligente.
Espero fazer mais atividades com você.
Um beijo,”

6ª atividade: Diário de Leitura (informações sobre o livro lido):


Diário de Leitura,
“A parte que eu mais gostei foi quando ele tocou o piano, que ele sabia o que queria da vida”
Eu aprendi que não precisa copiar dos colegas para se r legal”
“A parte que eu mais gostei foi a que o Guto mudou.
Eu aprendi que para ter amigos não precisa ser igual a eles.”
Eu indico a leitura desse livro para quem se acha diferente.”

222Foi mantida, nas transcrições, a linguagem dos alunos, o mais próxima possível de como foram enunciadas: as
concordâncias gramaticais e alguns aspectos típicos da linguagem oral foram transcritos da maneira que foram ditas.
549
A parte que eu mais gostei foi quando ele se interessou pela música, porque música é uma coisa cultural e porque eu gosto muito.”
Eu aprendi que não devemos ser igual a todo mundo, cada um tem o seu jeito de ser.”

Os alunos, através do Diário de Leitura, sugerem a leitura do livro a outros colegas/leitores,


expõe seus sentimentos e mostra que o livro foi apreciado e que merece ser registrado em seu Diário
de Leitura:
Leitora: “ O livro: “Diferente, igual a todo mundo” é muito bom. As pinturas são bonitas e o Guto, o nome do garoto
diferente era muito inquieto.
A parte que eu mais gostei foi o final porque termina tudo bem com o Guto.
Eu li o livro duas vezes e gostei muito, espero que você também goste, porque a professora vai trocar os livros. Se você não ler vai perder
muitas coisas de tanto que esse livro fala das pessoas diferentes.”
Leitor: “Eu li o livro “Vi gens”, de Newton Murce, da Canone editora, da ilustradora Rossana Jardim.
Este é um livro de pai pra filho e de filho para pai.Com Beto, o leitor conhece diferentes maneiras de viajar, tanto no espaço quanto
no pensamento, admirando a beleza das coisas e das pessoas.
Não gostei deste livro, mas te indico porque você pode gostar.”

7ª atividade: Bilhete: Socialização da leitura dos livros entre os colegas da mesma turma.
8ª atividade: Resumo sobre os livros lidos (atividade em grupo).
9ª atividade: Socialização (através de bilhetes) entre os colegas das turmas ―A‖  ―B‖.
10ª atividade: Elaboração, em pequenos grupos, das perguntas para o autor: Os alunos do 4º
ano ―B‖ elaboraram questões para entrevistarem o escritor: Newton Murce após ter lido os livros:
―Diferente, igual a todo mundo‖ e ―Viagens‖.
11ª atividade: Seleção e correção das perguntas para o autor: Newton Murce.

1- Como surgiu a ideia de escrever o livro ―Diferente igual a todo mundo‖?


2- Newton Murce o seu livro ―Viagens‖ tem alguma coisa haver com sua historia de vida?
3- Em que você se inspirou para fazer o livro ―Diferente igual a todo mundo?‖
4- Newton Murce, como você criou os personagens do livro ―Viagens‖?
5- Foi difícil fazer o livro ―Diferente igual a todo mundo‖?
6- Newton Murce, de onde surgiu a vontade de escrever?
7- Porque você escolheu o piano e não outro instrumento mais clássico como o violino?
8- Newton, você teve outras ideias para o livro: ―Viagens‖?
9- Newton Murce, porque você escolheu esse titulo ―Diferente igual a todo mundo‖?
10- A inspiração de seu livro surgiu através de seu pai ou de algum membro de sua família?
11- Quantos livros você já escreveu?
12- Os seus livros são apenas para crianças ou você já escreveu livros para adultos?

12ª atividade: Escolha, pelos alunos, dos entrevistadores. Após a elaboração e escolha das
perguntas, os alunos seleciona 12 colegas para fazerem o papel de entrevistadores.
13ª atividade: Entrevista (no auditório: 60 alunos – 3ºs. ―A‖ e ―B‖, professores, diretora e o autor).
14ª atividade: Relatório sobre a atividade (entrevista) no auditório.

Os alunos se interessaram pela realização das atividades privilegiando questionamentos críticos,


o pensar sobre o assunto em discussão. O trabalho em equipe é visto como uma forma de aprimorar a
participação conjunta da evolução individual e da produtividade dos trabalhos, bem como somar a
capacidade de contribuição. O momento de trabalho em conjunto é muito rico para a colaboração de
todos no sentido de se atingirem objetivos comuns: “Nós aprendemos que trabalhar em grupo é muito bom,
cada um ajudou um pouco. Aprendemos com a leitura do livro ―Diferente, igual a todo mundo‖ que cada um
tem seu próprio talento e temos que aceitar as diferenças. Se todos fossem iguais , não teria graça. Ser diferente é ótimo.”
As atividades com o gênero entrevista auxiliou aos alunos o reconhecimento dos
procedimentos necessários para efetuar tal gênero; os papés do entrevistado e entrevistador,
550
oportunisou a aproximação de leitor/obra/ escritor literário: Newton Murce e permitiu a análise de
obras literárias, além de rever outros gêneros: bilhete, carta, Diário de Leitura, etc.
É importante destacar que, durante as aulas, os alunos mostram-se descontraídos, à vontade, formulando
grande número de comentários entre si e fazendo perguntas à professora. Tais comentários espontâneos, os
questionamentos que fazem, o nível dos exercícios realizados e dos textos produzidos permitem avaliar a
qualidade da aprendizagem. Com o intuito de atender as dificuldades apresentadas pelos alunos, tais como,
selecionar e organizar suas ideias, tornando-as claras para o interlocutor, alguns textos são reestruturados
coletivamente, momento em que são discutidos os aspectos formais da língua: uso de parágrafos, pontuação,
elementos coesivos, concordância nominal/verbal e ortografia. A mediação do colega e da professora, durante a
produção dos textos orais e escritos, contribui para a superação do medo de errar. Os alunos sentem muito
entusiasmados pelas atividades, pois acreditam estar auxiliando a si mesmos e ao outro no desenvolvimento da
leitura e escrita; acontece a solidariedade e colaboração, quando se ajudam mutuamente na leitura e escrita dos
textos; aprende lidar com as dificuldades uns dos outros:

No decorrer dos trabalhos, os alunos passam a se preocupar com os aspectos formais da língua,
reconhecendo e admitindo as próprias dificuldades. Os objetivos voltados para a formação do leitor e
produtor de textos com autonomia estão implícitos no decorrer da execução das atividades, que são
orientadas, no sentido de promover o desenvolvimento tanto da leitura quanto da escrita. Para tanto é
dado ao aluno oportunidade de refazer ou complementar o seu texto em sala de aula. A professora e os
alunos atuam com interesses comuns: melhorar a produção escrita e ampliar o conhecimento.

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__________. Literatura e pedagogia: Ponto e Contraponto. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990.
552
O IMPACTO DO QECRL NO ENSINO/APRENDIZAGEM DA
PRODUÇÃO ESCRITA EM FLE
HMPS223
JCCC224
RESUMO: Ensinar a produzir textos escritos em Francês Língua Estrangeira (FLE) é uma tarefa
complexa que inquieta professores e alunos há muito tempo. Partindo desse fato, propõe-se neste
estudo verificar o real impacto do Quadro Europeu Comum de Referência de Línguas (QECRL) no
ensino/aprendizagem da produção escrita (PE) em FLE em Belém-PA. O corpus é constituído de
entrevistas respondidas por docentes de FLE e de tarefas de produção escrita apresentadas em manuais
didáticos utilizados pelos professores entrevistados. A hipótese aqui levantada é a de que embora o
QECRL tenha causado um impacto considerável no ensino/aprendizagem de FLE, notadamente se
levarmos em conta que atualmente a maioria dos manuais didáticos seguem as orientações
metodológicas do documento, sua influência nas salas de aula de FLE em Belém ainda parece ser
relativamente reduzida, sobretudo no que concerne à competência de PE.
Palavras-chaves: QECRL; Produção escrita em FLE; Ensino/aprendizagem de línguas.

RÉSUMÉ : L'enseignement/apprentissage de la production écrite en français langue étrangère est une


tâche complexe qui inquiète les enseignants et les élèves depuis longtemps. Basés sur ce fait, nous
proposons dans cette étude de vérifier le réel impact du Cadre Européen Commun de Référence pour
les Langues (QECRL) sur l'enseignement/apprentissage de la production écrite (PE) en FLE, à Belém-
PA. Le corpus du travail est constitué d'interviews d‘enseignants de FLE et de tâches de production
écrite présentées dans les manuels utilisés par les enseignants interviewés. L'hypothèse posée ici est que
même si le QECRL a eu un impact considérable sur l'enseignement/apprentissage du FLE – surtout si
l'on tient compte du fait que la plupart des manuels de l'actualité suivent les orientations
méthodologiques du document –, son influence dans les salles de classes de FLE à Belém semble
encore relativement réduite, notamment en ce qui concerne la compétence de PE.
Mots-Clés: QECRL ; Production écrite en FLE ; Enseignement/apprentissage.

INTRODUCÃO
Produzir textos escritos sempre provocou certo mal estar em professores e alunos. Este mal estar
é justificado se se considera que se trata de uma prática complexa que necessita de muitos
conhecimentos. Segundo Vigner (2012, p. 16), o ato de escrever, « plus que d‘autres certainement,
mobilise en effet des savoirs et des savoir-faire particulièrement nombreux et diversifiés, selon une mise
en relation particulièremente complexe ». Há muitos alunos que, mesmo no fim do curso de uma língua
estrangeira (LE), têm dificuldade em realizar tarefas de PE. Não se sentem em condições de produzir
uma carta de motivação e, menos ainda, um texto mais complexo como uma monografia.
Há muitas variáveis que interferem no processo de desenvolvimento da escrita. Escrever é um
ato que mobiliza diferentes competências – gramaticais, textuais, discursivas... – que se referem à
capacidade de elaborar um texto escrito baseado na seleção e na organização coerente das informações
/dos conhecimentos no âmbito de uma determinada situação de interlocução. Não podemos deixar de
mencionar também a prioridade que é dada, durante as aulas de francês, às competências de
compreensão e de produção oral, que atribuem frequentemente à escrita um papel de coadjuvante nesse
223Mestranda Hellen M. Pompeu de Sales (UFPA) [email protected]
224 Prof. Dr. José Carlos Chaves da Cunha (UFPA) [email protected]
553
cenário. Finalmente, não podemos tampouco negligenciar os manuais didáticos adotados nas aulas de
produção escrita de FLE, nem as práticas do professor no momento de utilizá-las.
Dessas observações surgiu a ideia de estudar o impacto do QECRL no ensino/aprendizagem da
PE do FLE em Belém. De fato, desde sua criação, em 2001, vários autores de manuais de FLE afirmam
seguir as orientações do documento. Para guiar este trabalho, privilegiamos duas questões de pesquisa:
1 – Qual é (foi) o impacto do QECRL nos manuais didáticos de FLE no que concerne às tarefas de
PE ? 2 - Qual é (foi) o impacto do QECRL no ensino-aprendizagem da PE em FLE no que concerne
às noções de Perspectiva acional e de Tarefa? A hipótese aqui levantada é a de que, embora o QECRL
tenha causado um impacto considerável no ensino/aprendizagem de FLE, notadamente se levarmos
em conta que atualmente muito manuais didáticos seguem as orientações metodológicas do
documento, sua influência nas salas de aula de FLE em Belém ainda parece ser relativamente reduzida,
sobretudo no que concerne à competência de PE.
Este trabalho está dividido em três partes. Na primeira, tratamos da produção escrita, do
QECRL e focalizamos a Perspectiva acional (PA) e a noção de Tarefa; na segunda, a da metodologia,
apresentamos os sujeitos, os loci e o corpus da pesquisa; na terceira, realizamos a análise das entrevistas
efetuadas com os professores de FLE de Belém, assim como a do material pedagógico que utilizaram
na sala de aula.

1. A PRODUÇÃO ESCRITA NO CONTEXTO DO ENSINO-APRENDIZAGEM DE LE


Se refletirmos sobre a história das metodologias de ensino/aprendizagem das LE, podemos
observar que, frequentemente, foi atribuído um papel relativamente secundário à competência de
produção escrita. Até mesmo na metodologia tradicional (Gramática/Tradução), que foi hegemônica
do fim do século XVIII ao início do século XX, a focalização era nas regras gramaticais e na tradução
de textos literários e não na produção de textos escritos. Segundo Puren (1988), as atividades de ensino
nessa metodologia eram as seguintes: memorizar listas de palavras, aprender regras de gramática,
traduzir.

No fim dos anos 70, a prática de escrita ocupa um espaço maior no ensino/aprendizagem, pois
as abordagens funcionais do francês introduzem a noção de discurso. Segundo Vigner (2009, p. 17),
« l‘écrit (en lecture comme en production) y retrouvait une place que les approches de type SGAV lui
avaient longtemps contestée ».

Porém, nos anos 80, « la mise à l'écart progressive de ces approches, corrélative de l'émergence
des approches communicatives a eu pour effet de marginaliser tout ce qui relevait de l'analyse du
discours et de l'écrit » (Vigner, idem). Nesse contexto, os atos de fala foram privilegiados.

Atualmente, a PE começa a redescobrir seu espaço. Desde a publicação do QECRL (2001), esta
competência tem aparecido com mais frequência nos manuais de FLE. Tudo indica que agora, com o
554
QECRL, começa-se verdadeiramente a compreender que a competência de PE também faz parte das
ações sociais a serem desenvolvidas pelos aprendentes/utilizadores de línguas e que deve estar
igualmente presente na sala de aula.

1.1 Uma perspectiva que coloca em cena a ação


A expressão Perspectiva acional nasceu com o QECRL225. Há ainda hoje em torno dela muitas
discussões. Um exemplo: trata-se ou não de uma nova abordagem de ensino? Robert ; Rosen ;
Reinhardt (2011, p.93) caracterizam-na como uma nova abordagem. Já para Béacco (2010) o Conselho
da Europa não propõe uma nova abordagem, mas considera todas aquelas que são eficazes para
alcançar os objetivos educativos dos aprendentes.
Os professores que adotaram a PA sentem a necessidade de levar os alunos a ultrapassar o
patamar dos atos de fala, característicos da abordagem comunicativa (AC), a partir do momento que
compreendem que o aprendente é um ator social/usuário da língua, que ele age no mundo e que realiza
tarefas que não podem se limitar às linguageiras. As tarefas não devem tampouco ser limitadas aos
domínios escolares uma vez que, fora da sala de aula, o aprendente é confrontado a um mundo real
que o espera para realizar ações em outros domínios. A vida real, portanto, não pode desaparecer
quando o aprendente entra na sala de aula. Para ilustrar essa discussão, propomos a figura abaixo226.
Fig.1.1. a) Usuário de uma língua em contexto real; b) escolar tradicional, c) escolar acional.

(a) (b) (c)


Em (a), o usuário de uma língua em um contexto real é um ator social, isto é, uma pessoa que
realiza tarefas e que age no mundo em diversas situações. Mas quando ele chega na sala de aula (b), o
mundo real fica fora e ele se encontra como um estudante que realiza apenas atividades escolares. No
ensino/aprendizagem da produção escrita, esta situação aparece quando se vê os alunos realizando
atividades do tipo perguntas/respostas ou exercícios de gramática fora do contexto. No ensino acional
(c), há um diálogo entre a escola e o contexto real. Compreende-se que o indivíduo, mesmo na sala de
aula, é um aprendente/usuário/ator social que age no mundo, que executa tarefas que não são apenas
escolares.

225
O QECRL é um documento descritivo, reflexivo e adaptativo elaborado pelo Conselho da Europa em 2001. Ele tem
tem, entre outros objetivos, os que seguem : « 1- Encourager les praticiens dans le domaine des langues vivantes ; 2 -
Faciliter les échanges d‘informations entre les praticiens et les apprenants afin que les premiers puissent dire aux seconds ce
qu‘ils attendent d‘eux en termes d‘apprentissage et comment ils essaieront de les y aider » (Conselho da Europa, 2001, p. 11).
226 Elaborada por Hellen Pompeu.
555

1.2 As tarefas
A noção de tarefa já existia na AC, mas no QECRL ela aparece como uma ação necessária no
ensino/aprendizagem de língua : « l‘acteur se représente comme devant parvenir à un résultat donné en
fonction d‘un problème à résoudre, d‘une obligation à remplir, d‘un but qu‘on s‘est fixé »
(CONSELHO DA EUROPA, 2001, p.30). Contrariamente à tarefa, os exercícios e atividades227 estão
ligados diretamente ao saber linguístico.
Comparamos a ação na execução de uma tarefa com a realização de uma peça de teatro : os
atores leem textos, memorizam, repetem etc. ; o diretor prepara os atores etc; os técnicos testam a luz,
os cenários etc. Todo mundo tem muitas atividades até a representação da peça. Mas a ação só se
realiza verdadeiramente quando a peça é interpretada. Acontece o mesmo na sala de aula : faz-se muitos
exercícios e atividades, mas a finalidade é a realização da tarefa.
Contrariamente ao que creem muitos professores, uma tarefa pode ou não ser realizada na escola.
Ela está diretamente ligada a uma ação que pode ou ser real ou simulada. A simulação é uma
preparação para a vida e simular tarefas em sala de aula facilita a aprendizagem porque o aprendente é
colocado em uma situação próxima da vida real. A respeito disso, Bérard (2009, p. 38), diz que « les
tâches proposées dans la classe ne sont pas toutes identiques à celles de la vie car elles n‘ont pas d‘enjeu
réel, la plupart du temps elles sont simulées, mais leur réalisation peut donner lieu à des interactions et
des échanges comparables aux échanges réels ».

2. O CONTEXTO DA PESQUISA E O CORPUS


Para este trabalho, realizamos entrevistas com seis professores de duas instituições de Belém-PA
(uma pública e outra privada). A instituição pública (IP) oferece cursos de Licenciatura de Letras/
Francês em Belém e, também, assim como a instituição privada (IPR), cursos ao público em geral, isto
é, àqueles que desejam aprender a língua para viagem, passeio etc.
Interrogamos quatro professores de francês da IP e dois da IPR. Eles serão nomeados aqui D1,
D2, D3, D4, D5 et D6. Os da IP (D1 à D4). Atuam na Licenciatura de Letras/Francês e/ou nos
Cursos livres oferecidos pela instituição. Os da IPR (D5 e D6) concluiram sua Licenciatura de
Letras/Francês na IP. Eles já ensinaram nos Cursos livres dessa instituição.
Analisamos também manuais didáticos utilizados pelos professores para verificar se seguiam as
diretivas do QECRL no que diz respeito às tarefas de PE. Na IP, os manuais adotados foram : Alors! et
Latitudes. Na IPR, os manuais Écho.

227
Segundo Cuq (2003, p.94), o termo exercício remete « à un travail méthodique, formel, systématique, homogène, ciblé
vers un objectif spécifique » ; et activité est un terme polysémique qui peut être lié, soit à l‘idée de «répéter, comparer,
mémoriser etc.», soit à celle de « répondre à des questions, résumer, participer à un jeu de rôle etc.
556
Os conjuntos pedagógicos Latitudes, Alors ! et Echo são constituídos de: manuais (para os
aprendentes), CD, cadernos de exercícios, guias pedagógicos (para os professores) e DVD. Eles foram
concebidos para aprendentes adultos e adolescentes e podem ajudá-los a atingir os seguintes níveis:
Latitudes-1 (A1 et A2), Latitudes-2 (A2 et B1), Latitudes-3 (B1); Alors!-1 (A1), Alors!-2 (A2), Alors!-3 (B1);
et Écho 1 (A1), Écho 2 (A2), Écho 3 (B1 - vol. 1), Écho 4 (B1-vol.2), et Écho 5 (B2). Aqui, interessamo-nos
mais particularmente aos níveis A1, A2 et B1 comuns às duas instituições.
O corpus deste estudo é constituído pelas respostas obtidas através de entrevistas realizadas com
os professores de FLE mencionados acima e pelas tarefas de PE apresentadas nos manuais utilizados
por esses professores. As entrevistas, feitas com o auxílio de um script com cinco questões, foram
gravadas no período de 27/02/2013 a 03/04/2013.
Para guiar o processo de análise, utilizamos duas questões de pesquisa: 1 - Qual é (foi) o impacto do
QECRL nos manuais didáticos de FLE no que concerne às tarefas de PE ? 2 - Qual é (foi) o impacto do QECRL no
ensino /aprendizagem da PE em FLE no que concerne à noção de Perspectiva Acional e das Tarefas?

3 A ANÁLISE
Nesta parte deste estudo analisaremos o impacto do QECRL nos manuais didáticos de FLE e no
ensino/aprendizagem de PE em FLE.

3.1 O impacto do QECRL nos manuais didáticos de FLE


Para analisar o impacto do QECRL nos manuais didáticos de FLE, examinamos as tarefas de PE
presentes nos manuais Latitudes, Alors! et Écho.
3.1.1 Latitudes.
Os manuais Latitudes 1 et 2 têm cada um 12 unidades distribuídas em quatro módulos. Já o
manual Latitudes 3 é composto de nove unidades e não há divisão por módulos.
Os autores desse conjunto pedagógico afirmam que « les objectifs et les contenus de Latitudes ont
été définis en prenant en compte les principes du Cadre européen commun de référence pour les
langues » (Latitudes 3, 2010, p. 2). Adotando os princípios do QECRL, eles adotam também os
princípios metodológicos do documento. De fato, no guia pedagógico do Latitudes-3 (2011, p. 3), eles
afirmam seguir uma abordagem acional e, parafraseando o QECRL, dizem que essa abordagem
« considère avant tout l‘apprenant comme un acteur social ayant à accomplir des tâches (qui ne sont pas
seulement langagières) dans les circonstances et un environnement donnés ».
A noção de tarefa utilizada no conjunto pedagógico Latitudes está igualmente de acordo com o
QECRL. Na introdução do volume 2 (2010), é dito que « ces tâches impliquent l‘apprenant dans des
actions de communication qui s‘inscrivent dans un contexte social clair et aboutissent à une production
et à un résultat mesurable ».
557
3.1.2 Alors!
O manual Alors! não assume explicitamente a PA, mas seus autores (Guia pedagógico Alors !-1,
2011. p. 7) afirmam que « la méthodologie adoptée est fonction du choix de placer les discours au
centre de l‘apprentissage, ce qui est une formulation du QECRL ». Ele não emprega o termo tarefa,
muito utilizado no QECRL, mas projeto. Cada manual comporta cinco módulos. Ao fim de cada módulo
há um projeto para ser realizado. Selecionamos para este trabalho dez projetos e também algumas
tarefas, que não aparecem no manual com esse nome.
3.1.3 Echo
Os autores do conjunto padagógico Écho 1 (2010, p. 11), afirmam adotar uma abordagem acional.
Para eles, « dès la première heure de cours, l‘étudiant est acteur : La classe devient alors un espace social
où s‘échangent des informations, des expériences, des opinions et où vont se construire des projets ».
Assim como Alors!, Écho não adota o termo tarefa, mas projeto. Na tabela abaixo é possível verificar a
situação dos três conjuntos pedagógicos.
Manuais Tarefas e/ou Projetos Total
Oral Escrita Oral/Escrita
Latitudes 24 33 30 87
Alors ! 08 37 14 59
Écho 07 26 11 44
Total 39 96 55 190
Constatamos que das 87 tarefas enumeradas no conjunto pedagógico Latitudes, 33 visam à PE e
30 propõem ações que trabalham as competências de PO/E juntas. No conjunto pedagógico Alors!, das
59 tarefas arroladas, há 37 de PE e 14 de PO/E. No Echo, das 44 identificadas, 26 são de PE e 11 de
PO/E. Fica evidente portanto que, nos três conjuntos pedagógicos, as tarefas de PE et/ou PO/E são
privilegiadas. Esse é um ponto que distingue os manuais acionais dos manuais comunicativos, pois estes
últimos privilegiam tarefas de PO.
Nesta seção observamos que, nos três conjuntos pedagógicos analisados, o impacto do QECRL nos
manuais didáticos de FLE (no que diz respeito as tarefas de PE) é relevante. Passamos agora à analise do
eventual impacto do QECRL no ensino/aprendizagem de FLE.

3.2 O impacto do QECRL no ensino/aprendizagem da PE em FLE


Para analisar o impacto do QECRL no ensino/aprendizagem da PE, examinamos as respostas
das cinco perguntas realizadas durante a entrevista.
3.2.1 O impacto da Perspectiva Acional no ensino/aprendizagem de FLE.
Nos trechos das respostas dos professores à primeira pergunta (abaixo) podemos observar que os
docentes reconhecem que a PA é a orientação metodológica adotada nos manuais didáticos de FLE
que eles utilizam na sala de aula.
1ª Pergunta: De modo geral, qual a orientação metodológica indicada no manual que você utiliza em aulas de FLE?
Trechos das respostas dos docentes:
558
D1: (...) eles se filiam sim (...) à nova abordagem proposta pelo Quadro Comum Europeu.
D2: (...) eles trazem a novidade...é... abordagem acional.
D3: Sim segue as orientações do Quadro...e toda a concepção do método (...) eles mencionam a approche actionnelle.
D4: É o que eles dizem... né...é que eles estão de acordo com o Quadro Comum Europeu, (...) estão seria a questão do
acional, estaria passando da fase da abordagem comunicativa.
D5: (...) aqui nós trabalhamos com a abordagem acional (...) também a Comunicativa, ela tá sempre presente, mas a
actionnelle é nosso foco.
D6: (...) segue o princípio da abordagem acional.

Nas respostas dos docentes D4 e D5, parece haver uma dicotomia entre entre a PA e a AC : para
D4, a AC parece ter sido substituída pela PA; e para D5, a PA não comporta traços da AC. Essas
afirmações talvez não estejam de acordo com o QECRL. De fato, segundo Béacco (2010, p. 98), não há
« rien de vraiment novateur par rapport à AC des enseignements de langues, dont le QECRL recueille
directement l‘héritage et dont il ne constitue, de ce point de vue, qu‘une reformulation».
Observando os trechos das respostas dos docentes à segunda pergunta (abaixo) é possível
verificar que a maioria deles acredita ser dificil seguir as orientações metodológicas do manual adotado,
a PA. Somente D1 e D6 divergem dos colegas. Este último, porém, mesmo afirmando que é possível
segui-la, declara que ainda não começou a fazer. O D4 fala da resistência dos alunos em seguir a
proposta do manual e D5 parece opor a PA à AC.
2ª Pergunta: Você acha que é possível segui-las? Justifique.
Trechos das respostas dos docentes:
D1: Sim...sim. Está sendo possível seguir o manual (Latitudes) com as propostas. (...) ele não é denso, como o antigo (...)
D2: Falo de uma introdução doce...devagar...porque o aluno sai da sala de aula e toda a vida é em língua portuguesa...(...) Está
sendo lento...(...) mas eu vejo bons ventos soprando...
D3: Sim...acho que sim. Aliás, acho que quanto mais no início nós seguirmos as orientações previstas no manual mais chances
teremos futuramente de criarmos, de introduzirmos, de acrescentarmos atividades pertinentes (...).
D4: Eu acho meio difícil devido ao público que a gente tem (...) com aluno que tá começando a língua...como é que tu vais fazer?
(...) e mesmo o manual Latitudes tem coisas assim...é parece que é...e não...que guarda coisas do comunicativo. (...) Os alunos
têm muita relutância em interagir em français.
D5: Eles dizem que são (...) uma metodologia, uma abordagem, mas nem sempre. É. Acho que elas estão sempre misturadas. Por
exemplo, o ÉCHO...eles dizem que é actionnelle, só que a única coisa de actionnelle que ele tem é no final que ele tem um
projeto. E é um projeto que nem é superactionnel (...).
D6: Sim, sim, é possível. Esse é um ano que agente vai colocar em prática.

Nos trechos das respostas dos docentes à terceira pergunta (abaixo) observa-se que, embora os
professores compreendam que a PA visa levar o aluno a agir, eles ainda não estão convencidos da
importância do procedimento.
3ª Pergunta: O que você compreende por abordagem direcionada para a ação, apresentada no QECR?
Trechos das respostas dos docentes:
D1: Isso não tem se mostrado claro (...) a gente não tem conseguido realizar essas ações como os autores planejaram...
D2: (...) a ação comunicativa é fazer o aluno se movimentar...A perspectiva acional traz a novidade dos projetos...Ela deixa
muito a desejar...
D3: Bom...entende o aluno como alguém que tem papéis sociais. E essas ações elas dizem respeito não só como ações linguageiras
como outras (...).
D4: pois é, mas que ação? Antigamente era agir sobre o outro. Tu tens que fazer de conta...que estás numa farmácia. Pra mim,
tudo que tu fizeres...eu acho que o aluno tá agindo...
D5: Essa ação seria essa abordagem actionnelle, né? Essa ação seria aquilo que você faz. ...Todos os manuais trabalham a
abordagem comunicativa...é quando ele propõe o jeux de rôle... Imagine que você tá na boate. Imagine o diálogo. Ele é
comunicativo. A partir do momento que você larga o aluno lá na boate...ele vai conhecer alguém e depois vai me contar...aí é
559
actionnelle. Porque ele ta agindo. Essa inovação é muito boa, infelizmente muitos professores não conhecem. Ex: levei os
alunos no museu...tiveram que escolher uma obra e fazer um poema e depois teve a exposição. Mas não foi actionnelle porque
ele fez a exposição mas ficou só ali. Porque não teve nenhum resultado de fato. Às vezes ele falava, às vezes não...
D6: É você permitir que ele seja, que ele viva. A gente tem realmente a intenção de fazer o aluno agir no meio dele. Ele precisa
interagir...conseguir um emprego...é voltado para o teu dia a dia mesmo...

Observando as respostas (acima) é possível verificar que os docentes D3 e D6 relacionam o


termo ação à ação social, principalmente D3. Essas respostas seguem a direção do que é afirmado no
QECRL (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 15), principalmente no que diz respeito às atividades
linguageiras « celles-ci s‘inscrivent elles-mêmes à l‘intérieur d‘actions en contexte social qui seules leur
donnent leur pleine signification». Os outros docentes, principalmente D4 e D5, acreditam que há
questões a respeito da PA que precisam ser esclarecidas.
Nesta seção, constatamos que, de maneira geral, os docentes conhecem a orientação
metodológica do QECRL e tentam segui-la. As dúvidas sobre a PA, entre os que tentam compreendê-
la, são frequentes «Mas, uma coisa deve ficar clara desde já. Não se trata DE MODO ALGUM228 de
dizer aos que trabalham nesta área o que devem fazer e como devem fazê-lo‖ (CONSELHO DA
EUROPA, 2001, p.11). Finalmente, podemos afirmar que o impacto da Perspectiva Acional no
ensino/aprendizagem de FLE é pouco significativo: trata-se de uma introdução doce, como afirma D2 em
resposta à segunda pergunta da entrevista.
3.2.2 O impacto das tarefas no ensino/aprendizagem da Produção escrita em FLE.
Observando os trechos das respostas dos docentes à quarta pergunta (abaixo) verificamos que
não é fácil explicar a noção de tarefas.
4º Pergunta: O que é para você um ensino realizado por meio de tarefas apresentado no QECRL?
Trechos das respostas dos docentes:
D1: Falha na gravação.
D2: Ainda estou amadurecendo. Ainda não posso dizer que eu já uso, já faço com toda a segurança. Dentro da minha prática
ainda está um pouco na subjetividade. Sua pesquisa é muito importante porque faz a gente refletir. Quando eu penso nas
tâches, na tarefa eu penso na vida do aluno lá fora da sala de aula para ele praticar o francês. Ele sai da sala de aula e vai
viver na língua portuguesa... confesso que ainda estou a caminho...um dia chego lá...eu queria ver isso lá fora...mas ainda não
consigo ver.
D3: A tarefa está num patamar acima...saímos de um patamar de exército de conjugar...completar...envolve outras questões que
não são só linguísticas. No Alors! estão presentes nos projetos
D4: Pois é... é o que o Béacco prefere...Eu também não avancei muito no Alors! Mas eu tenho a impressão que ele propõe uma
tarefa, até antes que o Latitudes.(...) é esse levar o aluno a agir socialmente.
D5: (...) imagine que você vai organizar uma festa...e vocês vão imaginar um diálogo com a diretora, isso é atividade. Qual é a
tarefa? ir até a direção e falar com a diretora. A tarefa é algo real. A atividade vai treinar, ele usa o comunicativo. A tâche
...é o que você vai colocar em prática. Saber-fazer. Antes a gente não fazia, mas a partir desse semestre todos os professores
vão fazer.
D6: Seria muito mais do que uma atividade, em sala de aula. Alguns métodos dizem missão...tem esse direcionamento...que eles
vivam a língua deles.

Observando o que dizem os docentes é possível constatar que, na tentativa de diferenciar tarefas
de atividades e/ou exercícios, D5 e D2 relacionam a noção de tarefa somente a uma prática real. Não se
dão conta de que a simulação em meio escolar pode ser uma tarefa suscetível de preparar o aluno a

228 Destaque dos autores.


560
realizar tarefas análogas às que encontramos na vida real. Podemos observar também que D3 usa o
termo exercícios de completar, conjugar etc. para diferenciar de tarefas. Seu ponto de vista é o mesmo
apresentado por Cuq (2003), para quem o termo exercício está ligado a trabalhos gramaticais.
Nos trechos das respostas dos docentes à quinta pergunta, percebemos claramente que não é fácil
trabalhar com a noção de tarefas de PE.
5ª Pergunta: Você trabalha as tarefas de produção escrita sugeridas no manual de FLE? Justifique.
Trechos das respostas dos docentes:
D1: Não só as que são propostas pelo manual, como outras...(..) o Latitudes equilibra as tarefas de produção oral e escrita.
D2: Tenho trabalhado com uma certa dificuldade. (...) O aluno tem caderno de exercício...mas exercício de lacuna...mas aqui e ali
tem exercício de pequenas composições. Eu prefiro dar mais atenção às pequenas produções...Vejo que poucos alunos têm a
disciplina de fazer ...trabalhos escritos
D3: Na verdade só uma vez nos tentamos fazer e te confesso que tivemos dificuldades.
D4: Sim, mas, na verdade, o que é que tem no Latitudes, assim,do acional?O que a gente tem é muito exercício...eu não vejo
nenhum exercício escrito assim dessa forma como eles pregam....mas eu não vejo nenhum exercício escrito no Cahier...eu acho
que são mais exercícios simples....não tem assim nesse sentido de projeto...esse agir social.
D5: Sim. As produções escritas, dependendo do nível têm um grau de dificuldade maior. No primeiro momento ele não vai escrever
ele vai só colar, (...) a partir do quarto nível ele ainda cola um pouco. Aí ele coloca coisas da vida dele, mas é mais cola.
D6: Sim, sim...grande parte eu uso do manual. Algumas coisas eu adapto, outras eu uso o método.

Observando as respostas acima, constatamos que somente D1 e D6 dizem trabalhar com tarefas
de PE em sala de aula. A resposta de D1, aliás, corresponde ao que verificamos na primeira parte desta
análise: que no conjunto pedagógico Latitudes há um equilíbrio entre tarefas de PE e de PO. Analisando
a resposta do D4 (sobre tarefas de PE no livro Latitudes), observamos que há discordância entre o que
ele disse e o que verificamos na parte sobre os conjuntos pedagógicos. De fato, contrariamente ao que
diz D4, há no conjunto pedagógico Latitudes 33 tarefas de PE e 30 de PO/E (ver tabela, p. 8). Pode ser
que D4, em vez de trabalhar regularmente as tarefas na sala de aula de FLE, ele trabalhe, sobretudo
exercícios de gramática e atividades pré-comunicativas. Se for esse o caso, o trabalho do docente não
corresponde à PA.
Constatamos que o impacto das tarefas no ensino/aprendizagem da produção escrita en FLE é
relativamente fraco. No entanto, está claro que os professores trabalham essa competência complexa
apoiando-se nos seus conhecimentos, nas suas experiências e nos manuais que seguem os
procedimentos metodológicos do QECRL.

CONCLUSÃO
Com esse trabalho procuramos verificar o impacto do QECRL no ensino/aprendizagem da PE
em FLE. Em relação à primeira pergunta de pesquisa (Qual é (foi) o impacto do QECRL nos manuais
didáticos de FLE ?), observamos que esse impacto se traduz pelas numerosas tarefas e projetos que
surgiram nos manuais após a publicação do QECRL. Em relação à segunda pergunta (Qual é (foi) o
impacto do QECRL no ensino/aprendizagem da PE en FLE ?), percebemos que é relativamente fraco.
A noção de PA não parece clara para os docentes que, em sua maioria, procura saber mais sobre o
assunto. Embora o QECRL já tenha completado 12 anos de existência, parece que muitos dos seus
561
utilizadores ainda têm dúvidas sobre os procedimentos do documento. Em relação, enfim, à hipótese
aqui levantada, o resultado da pesquisa nos mostra que, mesmo que o QECRL tenha tido um impacto
considerável no ensino/aprendizagem de FLE – sobretudo se levarmos em conta o fato que a maioria
dos manuais didáticos mais recentes procuram seguir as orientações metodológicas do documento –,
sua influência nas salas de aula de FLE em Belém parece ainda relativamente reduzida, notadamente em
relação à competência de PE.
Evidentemente, não buscamos aqui fazer apologia do QECRL. Estamos conscientes de que o
campo do ensino-aprendizagem de línguas é complexo. Pensamos, no entanto, que é importante
conhecer novos princípios e procedimentos metodológicos veiculados por esse documento e refletir
sobre suas implicações, mesmo sabendo que corremos o risco de nos enganar. « La connaissance est
[...] une aventure incertaine qui comporte en elle-même, et en permanence, le risque d‘illusion et
d‘erreurs » (Morin 2000, p. 94). Esse é o preço a pagar para avançar.

REFERÊNCIAS
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n°spécial 1 - 2010 pp. 97-105. Consultado em 18/02/13. Disponível em: http://ressources-cla.univ-
fcomte.fr/gerflint/BresilSPECIAL1/beacco.pdf
BEACCO, J. C. & GIURA, M. Alors ! 1. Méthode de français fondée sur l‟approche par compétences. Paris :
Didier, 2010.
______. Alors ! 1. Méthode de français fondée sur l‟approche par compétences. Paris : Didier, 2010.
______. Guide pédagogique Alors ! 1. Méthode de français ondée sur l‟approche par compétences. Paris: Didier,
2010.
BÉRARD, E. Les tâches dans l‘enseignement du FLE. Le Français dans le monde. La perspective
actionnelle et l‘appoche par les tâches en classe de Langue. Paris : 2009, (p. 36 a 44).
CONSELHO DA EUROPA. Quadro comum europeu de referência para as línguas - Aprendizagem, Ensino,
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CUQ, J.P. Dictionnaire de didactique du français langue étrangère et seconde. Paris : Cle International, 2003.
GIRARDET, J. ; PÊCHEUR, J. Écho A1 –Méthode de français. Paris : CLE International, 2010.
______. Écho A2 – Méthode de français. Paris : CLE International, 2010.
______. Écho B1 – Méthode de français. Paris : CLE International, 2010.
LAINÉ, E. ; POUCHIN, N. Guide Pédagogique - Latitudes 3. Paris: Didier, 2011.
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MÉRIEUX, R. ; LOISEAU, Y. Latitudes 1, Méthode de français. Paris: Didier, 2010.
MORIN. E. Les sept savoirs nécessaires à l‟education du Futur. Paris: Seuil, 2000.
PUREN, C. Histoire des méthodologies de l‟enseignement des langues. Paris: Clé International, 1998.
ROBERT, J.-P.; ROSEN, E.; REINHARD, C. Faire classe en FLE – Une approche actionnelle et pragmatique.
Paris: Hachette, 2011.
562
VIGNER, G. Ecrire en FLE – Quel enseignement pour quel apprentissage ? Le Français dans le monde.
Didactiques de l‘écrit et nouvelles pratiques d‘écriture. FIPF. Paris, 2012. (p. 14 a 33).
563

O TRABALHO DE REVISÃO DE TEXTOS ACADÊMICOS: IMPLICAÇÕES


NO PROCESSO DE AUTORIA

Fátima Cristina da Costa Pessoa229


José dos Anjos Oliveira230

Resumo: Este trabalho consiste em um recorte inicial de uma pesquisa sobre as implicações do
trabalho de revisão de textos no processo de autoria de textos acadêmicos, com a qual se pretende
refletir sobre as atividades do profissional chamado revisor de textos, na tessitura do texto autoral.
Pretende-se compreender a forma como se processa esse jogo de lugares e papéis sociais que o revisor
de textos e o pesquisador assumem e as relações que sustentam o conjunto de práticas reiteradas que
são percebidas nessa etapa do processo de produção textual. Uma vez que se parte do princípio de que
a autoria se manifesta como um conjunto de vozes, procura-se comprovar a hipótese de que o revisor
também se constitui em uma dessas vozes presentes nesse processo. O trabalho do revisor interfere na
autoria textual por estar envolvido nos conflitos acerca dos problemas linguístico-discursivos
implicados na constituição dos textos, razão pela qual entende-se que se pode considerar o trabalho de
revisão de textos como uma autoria compartilhada. A perspectiva discursiva aqui assumida terá por
base as discussões travadas por Foucault (1969; 2012) acerca de autoria e os trabalhos de Orlandi
(2001a e b; 2008), que, com seus estudos sobre discurso e leitura, contribui sobremaneira para a
abordagem do tema em questão.
Palavras-chave: Linguagem e trabalho; Autoria; Revisão de textos.

Résumé: Cet article se compose d'une coupe initiale d'une recherche sur les implications des travaux
de révision de textes dans le processus de création de textes scientifiques, qui vise à réfléchir sur les
activités de l'évaluateur professionnel appelé reviseur de textes, sur la tessiture du texte. L'objectif est de
comprendre comment se déroule ce jeu de places et de rôles sociaux que le reviseur de texte et le
chercheur jouent et les relations qui soutiennent l‘ensemble de pratiques qui sont perçues à ce stade du
processus de production textuelle. Comme il est supposé que le texte s'exprime comme un ensemble de
voix, on cherche à prouver l'hypothèse que le reviseur constitue également une de ces voix dans le
processus. Le travail du reviseur interfère avec le travail de l'auteur du texte une fois ce travail est
impliqué dans les conflits au sujet des problèmes liés à linguistique discursive que constituent les textes,
cela est pourquoi nous comprenons que le travail du reviseur peut être considéré comme un travail de
relecture partagée avec l‘auteur. L'approche discursive adoptée ici sera basé sur les discussions menées
par Foucault (1969; 2012) sur le travail de l'auteur et Orlandi (2001a e b; 2008), qui, avec ses études sur
la parole et la lecture, a contribué grandement à aborder le sujet etudié.
Mots-clés: Langue et travail; Auteur; Relecture.

1 Introdução

Dada a complexidade do conceito e pelo fato de já ter sido objeto de análise de outras
disciplinas, muitos analistas do discurso mostram-se reticentes em relação ao fenômeno da autoria. No

229 Professora Adjunta da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Pará e docente do Programa de Pós-Graduação
em Letras.
230 Revisor de Textos da Universidade Federal do Pará.
564
Brasil, no entanto, analistas como Orlandi e Possenti têm se debruçado sobre o tema, dando valiosas
contribuições para os debates acerca dessa questão. A importância dessa pesquisa está justamente no
fato de tentar explorar um pouco mais o assunto com base, principalmente, nos trabalhos de Orlandi
(2001a e b; 2008), e de Foucault (1969; 2012), estudioso que muito explorou essa área, e em cujas
teorias aquela autora se apoia, estendendo suas análises para o campo do discurso e da leitura.
Para Foucault (1969), a função-autor não é definida pela atribuição espontânea de um discurso
ao seu produtor, mas por uma série de operações específicas e complexas. Essa função remete pura e
simplesmente a um indivíduo real, uma vez que pode dar lugar simultaneamente a vários egos, a várias
posições-sujeito que classes diferentes de indivíduos podem vir a ocupar. Com base nesse postulado,
entende-se que o processo de leitura e escrita realizado pelo revisor de textos contribui para também
revelar as identidades que definem os lugares de autor e de leitor, constituídas sempre por distintas
memórias discursivas e variadas práticas discursivas, o que faz ver o trabalho daquele profissional não
como aplicação ou replicação dessas memórias, mas como difícil negociação entre elas, a partir do que
cada projeto editorial demanda dos envolvidos (SALGADO; MUNIZ JR., 2011).
Dessa forma, o propósito dessa pesquisa é mostrar como a função-autor dá voz ao revisor de
textos e como este se manifesta no texto acadêmico, o que será possível por meio da análise de, a
princípio, três processos de trabalhos acadêmicos que serão acompanhados em todas as suas etapas,
desde a chegada dos originais nas mãos do revisor de texto até a versão final do trabalho.

2 O conceito de autoria em uma abordagem discursiva

Em um célebre debate com M. de Gandillac, L. Goldmann, J. Lacan, J. d´Ormesson, J. Ullmo e


J. Wahl, Foucault (1969) responde à polêmica pergunta ―o que é um autor?‖, relacionando a figura do
autor à noção de obra, procurando destacar a posição do autor em um determinado campo discursivo.
Foucault (1969), ao se referir à necessidade de descobrir os locais onde a função de autor é
exercida, afirma que o autor não é exatamente nem o proprietário nem o responsável por seus textos;
não é nem o produtor nem o inventor deles. É o que ele chama de relação de apropriação.
O autor é, sem dúvida, aquele a quem se pode atribuir o que foi dito ou escrito. Mas a
atribuição – mesmo quando se trata de um autor conhecido – é o resultado de operações críticas
complexas e raramente justificadas. São, segundo ele, as incertezas do opus. A isso ele chama de relação
de atribuição (FOUCAULT, 1969).
Segundo Foucault, a noção de autor constitui o momento crucial da individualização na história
das ideias, dos conhecimentos, das literaturas e também na história da filosofia e das ciências. Ele
565
examina unicamente a relação do texto com o autor, a maneira com que o texto aponta para essa figura
que lhe é exterior e anterior, pelo menos aparentemente.
As ideias desse teórico parecem corresponder às de Orlandi (2008), segundo a qual, para que o
sujeito se coloque como autor, ele tem de estabelecer uma relação com a exterioridade, ao mesmo
tempo em que se remete à sua própria interioridade: ele constrói, assim, sua identidade como autor.
Isto é, o sujeito aprende a assumir o papel de autor e aquilo que este papel implica.
O autor é, então, o sujeito que, tendo o domínio de certos mecanismos discursivos, representa,
pela linguagem, esse papel, na ordem social em que está inserido, o que implica a inserção do sujeito na
cultura e sua posição no contexto histórico-social.
Com base em Ducrot, que considera como funções enunciativas do sujeito a de locutor (que é
aquela pela qual ele se representa como eu no discurso) e a de enunciador (perspectiva que esse eu
constrói), Orlandi (2001b) acrescenta, de acordo com o princípio da autoria de Foucault, uma outra
função: a de autor. A autora propõe colocar a função discursiva autor junto às outras e na ordem
(hierarquia) estabelecida: locutor, enunciador e autor. Haveria, então, uma variedade de funções que vão
em direção ao social. Segundo ela, esta última é aquela em que o sujeito falante está mais afetado pelo
contato com o social e suas coerções.
O autor é a função social que o ―eu‖ assume enquanto produtor da linguagem. Das dimensões
enunciativas do sujeito, é a que está mais determinada pela relação com a exterioridade (contexto sócio-
histórico) e mais afetada pelas exigências de coerência, não contradição, responsabilidade etc.
(ORLANDI, 2008).
O ―princípio de autoria‖ de Foucault estabelece que ―o autor é o princípio de agrupamento do
discurso, unidade e origem de suas significações‖ (FOUCAULT, 2012, p. 25). De acordo com esse
princípio, o autor está na base da coerência do discurso. No entanto, para ele, tal princípio não vale
para qualquer discurso nem de forma constante. Orlandi o utiliza de modo diferente e afirma que o
princípio é geral, uma vez que o texto pode não ter um autor específico, mas sempre se lhe imputa uma
autoria.
Acerca da noção de apagamento do sujeito, Foucault (1969) considera que, na escrita, não se
trata de manifestação ou da exaltação do gesto de escrever; não se trata da amarração de um sujeito em
uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer.
Orlandi amplia essa noção de apagamento do sujeito apresentada por Foucault, afirmando que

O autor é a instância em que haveria maior ―apagamento‖ do sujeito. Isto porque é


nessa instância – mais determinada pela representação social – que mais se exerce a
injunção a um modo de dizer padronizado e institucionalizado no qual se inscreve a
responsabilidade do sujeito por aquilo que diz. É da representação do sujeito como
autor que mais se cobra sua ilusão de ser origem e fonte de seu discurso. É nessa
função que sua relação com a linguagem está mais sujeita ao controle social.
(ORLANDI, 2008, p.78).
566

Assim, do autor se exige: coerência; respeito aos padrões estabelecidos, tanto quanto à forma do
discurso como às formas gramaticais; explicitação; clareza; conhecimento das regras textuais;
originalidade; relevância, bem como ―unidade‖, ―não-contradição‖, ―progressão‖ e ―duração‖ do seu
discurso (ORLANDI, 2008).
Para dar conta dessas exigências, o autor pode recorrer à figura do revisor de textos,
profissional muitas vezes imprescindível na versão final dos trabalhos e uma das muitas vozes que se
fazem presentes no processo de autoria, o qual estaria incumbido de gerenciar os conflitos acerca dos
problemas linguístico-discursivos detectados no texto.

3 Função-autor versus sujeito e outros conceitos-chave para se compreender o conceito de


autoria

Todo discurso apresenta uma função-autor, elemento coercitivo responsável pela organização e
construção do texto. A função-autor joga com campos ideológicos inserindo lugares de subjetividades,
de modo a veicular aquilo que pode e deve ser dito, a partir de uma posição e uma conjuntura dadas,
em determinadas condições sócio-históricas. Esse trabalho coercitivo da função-autor delimita o que
deve ser posto em ação na construção do texto, escolhendo para quem deve dar-se voz, ou seja, essa
função é responsável pelas escolhas dos lugares discursivos (LIMA, 2006).
O sujeito, por sua vez, ocupa posições diferentes no mesmo texto. Isso faz com que se
considere a heterogeneidade como forte característica do universo discursivo ao mesmo tempo em que
remete às condições de produção da leitura e da escrita (ORLANDI, 2008, p. 76).
As várias posições do sujeito podem representar diferentes formações discursivas no mesmo
texto e a relação entre as diferentes formações discursivas no texto podem ser de muitas e diferentes
naturezas. Por isso, pretende-se abordar a função discursiva assumida pela função-sujeito revisor de
textos, na qual o revisor se coloca na perspectiva de autor, ocupando um lugar legitimado em relação ao
que diz.
Desse modo, pode-se considerar o trabalho de revisão de textos como uma autoria
compartilhada, uma vez que o revisor interfere das mais diversas formas no texto. Sendo assim,

Pensados no campo discursivo em que se produzem os textos autorais, os processos


de preparo das publicações permitem ver relações entre as manobras internas e seu
exterior; dos autores e aquelas com que os encarregados de tratar editorialmente os
textos autorais intervêm na autoria, visto que trabalhar sobre um texto destinado a
publicação é de muitas maneiras participar de sua constituição (SALGADO; MUNIZ
JR., 2011, p. 95).
567
A autoria é uma das funções exercidas pelo sujeito no interior das práticas discursivas e
apresenta uma relação direta com os fatores externos de condição de produção e aparição do discurso.
Por isso mesmo, é alvo direto de um poder coercitivo que age sobre a sua forma sujeito.
Orlandi (2001a, p. 76), quando trata da categoria de sujeito como autor, afirma que o sujeito
―[...] ao mesmo tempo em que reconhece uma exterioridade à qual ele deve se referir, ele também se
remete a sua interioridade, construindo desse modo sua identidade como autor‖.
Ao falar sobre a assinatura legitimadora da ―função-autor‖, Foucault (1992, p. 61) ressalta que a
autoria ―[...] foi um processo que veio se desenvolvendo desde a época medieval, como um dos
dispositivos que visaram a controlar a circulação dos textos ou dar-lhes autoria por meio de uma
assinatura legitimadora". Por isso, a função-autor se caracteriza pela dispersão ou rarefação que assume
o sujeito em um espaço de coerções. Tal função, portanto, não se reporta a um só sujeito, mas a todos
que possam exercer com soberania o ―lugar‖ de autor.
Na reescritura do sujeito, Foucault (1996) chega à proposição de que a figura de autor é uma
função discursiva; portanto, a delimitação do espaço da categoria de autor deve estar voltada à análise
da materialidade do discurso, uma vez que o propósito de investigar o autor é o de investigar a função e
as formas de dispersão do sujeito no discurso.
O sujeito, por sua vez, não é origem dos sentidos, mas está mergulhado, imerso na trama
histórica. Porém, vale lembrar que não se está falando de um sujeito como categoria empírica, nem de
um sujeito enquanto indivíduo. Este é um ―sujeito do/no discurso‖, o qual está inscrito na
materialidade do discurso, na maneira como ele aponta para seu autor, para o princípio da autoria.
Para Foucault (1992), o princípio da autoria é, antes, um princípio de coerção do que recursos
infinitos para a criação do discurso. Para ele, a função-autor em nossa sociedade se caracteriza por não
se exercer uniformemente da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas
as formas de civilizações. A função-autor pode dar lugar a várias posições-sujeito e há coerções que
determinam a condição de autor e a produção de sentidos, assim como há, ainda, um modo de
existência, de circulação e de funcionamento dos discursos no interior de uma sociedade.
A função-autor é responsável por selecionar as vozes, os lugares discursivos e o
encaminhamento que será dado ao texto. Assim, uma vez que se partiu do princípio de que a autoria se
manifesta como um conjunto de vozes, pode-se dizer que uma delas corresponde à do revisor de
textos, que não aparece, mas que tem sua voz incorporada à (ou diluída na) do pesquisador.
As representações estabelecidas pelo sujeito são uma herança com base naquilo que já foi dito e
ouvido no interior de seu espaço discursivo, sendo marcadas pela memória histórica e, em
consequência, pelo apagamento natural, porém sempre presente. Estas representações são ilusórias,
haja vista que o sujeito é constituído pela estrutura da ideologia e do poder que o atravessam e o
determinam.
568
Orlandi, ao tratar da relação do sujeito com a ideologia, afirma que ―a ideologia é condição para
a constituição do sujeito e dos discursos em uma teoria materialista do discurso‖ e ―não há discurso
sem sujeito. E não há sujeito sem ideologia‖ (ORLANDI, 2001a, p. 20). Desta forma, sujeito, discurso
e ideologia estão materialmente ligados.
Todo discurso se realiza em determinadas condições de produção que, por sua vez, estão ligadas
à memória histórica que atravessa o sujeito em relação ao seu espaço social, com suas instituições e suas
formas de controle sobre o sujeito no curso de sua história. Esta história ou memória possui uma
relação na maneira como os objetos simbólicos estão relacionados com o momento particular da
história de sua aparição, ou com a memória do já-dito, em um arrolamento com o imaginário que afeta
os sujeitos em suas reais condições de existência.
Desse modo, os interlocutores, a situação, o contexto histórico-social, ideológico, ou seja, as
condições de produção (PÊCHEUX, 1997), constituem o sentido da sequência verbal produzida. Não
são meros complementos.
Especificamente no que diz respeito ao diálogo travado entre revisor e autor, é preciso
considerar ainda as memórias discursivas que se manifestam durante esse processo, que ora são
explícitas, ora implícitas, ligadas a valores complexos e/ou contraditórios sobre os recursos da língua,
os recursos da edição e os efeitos de sentido que tais recursos podem gerar no processo de constituição
dos sentidos.
Salgado e Muniz Jr. afirmam que

No conflito solidário entre heterogeneidades (AUTHIER-REVUZ, 2004), funda-se a


percepção de que as emendas propostas pelo coenunciador editorial são sempre
dialógicas, porque lhes são constitutivas a relação eu-outro(s ) e a retomada de vozes
sociais diversas. Uma vantagem dessa perspectiva é trazer à luz vozes conflitantes que
não aparecem de imediato. Isso põe em cena conflitos que subjazem à atividade desses
profissionais ao convocar memórias discursivas nem sempre conciliáveis
(SALGADO; MUNIZ JR., 2011, p. 90).

Orlandi (2001a), ao refletir sobre o conceito de memória em relação ao discurso, destaca que a
memória discursiva é ―[...] aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente‖ (ORLANDI,
2001a, p. 31). A memória discursiva torna possível todo dizer e retoma, sob a forma do pré-construído,
o já-dito que está na base de todo o dizível, sustentando cada tomada de posição pelo sujeito, pois os
sentidos só se estabelecem pela retomada da memória discursiva. O sujeito, por sua vez, ao significar,
também se significa e se constitui como ser interpelado pela discursividade que o atravessa. Assim, o
sujeito se constitui pela retomada do já-dito ou do interdiscurso e pelos seus respectivos eixos na
relação entre constituição e formulação.
569
Pensar o sujeito discursivamente é vê-lo enquanto uma posição ou ―lugar‖ discursivo, no qual a
historicidade e a ideologia da língua se materializam; portanto, o sujeito não é centralidade em relação à
língua, mas é sim atravessado por ela no interior de uma formação discursiva.
Para a Análise do Discurso, não se pode pensar a categoria de sujeito enquanto ser empírico ou
destituído de uma formação discursiva. O sujeito não fala por si só independentemente, mas se coloca
em uma posição sujeito para que sua fala seja legitimada.
Os discursos são determinados pelas formações discursivas, uma vez que, para a teoria do
discurso, não existe um sentido a priori. A linguagem não estabelece sentidos em uma relação intrínseca,
mas se coloca na relação com o ideológico e o histórico. Ou seja, a língua estabelece uma relação com
sua exterioridade ou com suas reais condições de produção. Nesta relação do discurso com a
exterioridade, todavia, os sentidos migram, pois não são estáticos, e adquirem tantos sentidos quantos
forem possíveis.
Em relação ao trabalho de revisão de textos, pergunta-se que deslocamentos de sentido são
possíveis na construção conjunta dos textos acadêmicos e quais deslocamentos são perceptíveis para os
sujeitos que ocupam os lugares de pesquisador e de revisor. Interessa também reconhecer que
representações sobre a realização desse trabalho com a linguagem são construídas e transformadas
durante o processo de revisão.

4 Conclusão

Neste artigo, procurou-se mostrar a relevância dos conceitos de autoria, sujeito, além de outras
categorias propostas por Orlandi (2001a e b) e Foucault (1969; 2012), recorrentes na Análise do
Discurso, a fim de apresentar um recorte de uma pesquisa mais ampla que vem sendo desenvolvida
acerca do trabalho de revisão de textos acadêmicos e suas implicações no processo de autoria.
Como se pôde observar, a mobilização das noções propostas por esses dois estudiosos permitiu
abordar o assunto apresentado de forma a evidenciar que as condições de produções e as posições-
sujeito são postas em prática pela função-autor. Essa função é controladora do discurso e mobiliza o
que será veiculado. Por conseguinte, elege quem terá voz e como essa voz se incorpora ao texto em
processo de produção.
Dessa forma, tentou-se explicitar como a função-autor dá voz ao revisor, por meio do
levantamento da posição-sujeito revisor posta em ação pela função-autor, partindo do pressuposto de
que esta função organizadora do texto manipula os discursos convocados na e pela organização textual.

REFERÊNCIAS
570

FOUCAULT, Michel. O que é um autor. Bulletin de la Societé Française de Philosophic, 63º ano, n. 3,
julho-setembro de 1969. Disponível em: <http://www.http://fido.rockymedia.net/anthro/foucault>.
Acesso em 12 ago. 2012.
_____. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de
1970; tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. 22 ed. São Paulo: Loyola, 2012. (Leituras filosóficas).

LIMA, Éderson José de. As astúcias da função-autor no discurso jornalístico: uma análise da posição de um
jornal paranaense sobre as cotas. 2006. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual de Maringá,
Paraná.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura, 8. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
_____. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001a.
_____. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001b.
PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso. In: GADET, François & HAK, Tony (orgs). Por
uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Vários trad. Revisão técnica:
Eni Orlandi. 3. ed. Campinas: Unicamp, 1997.
SALGADO, Luciana Salazar; MUNIZ Jr., José de Souza. Da interlocução editorial: a presença do outro
na atividade dos profissionais do texto. Bakhtiniana, São Paulo, v. 1, n. 5, p. 87-102, 1º semestre 2011.
571
DISCURSO E PODER DO MORADOR DE RUA: ESTUDO DA
HETEROGENEIDADE DISCURSIVA E DA POLIFONIA NOS TEXTOS DO JORNAL
“AURORA DA RUA” 231
José Gomes
Filho 232
Profa. Drª. Iraneide Santos
Costa 233

Resumo: Este trabalho busca analisar, no discurso dos homens em situação de rua na cidade de Salvador, a
construção de sua subjetividade, de sua identidade. Para tanto, valer-nos-emos como precípuo embasamento
teórico da Análise do Discurso pecheutiana, tendo em vista que nas análises será central o conceito de formação
discursiva, tal qual Pêcheux (1975) a concebe. Além disso, far-se-á também uso do conceito de heterogeneidade
discursiva (AUTHIER-REVUZ,1990) e de polifonia (BAKHTIN,1997). Elegemos como corpus os textos do
jornal ―Aurora da Rua‖, cuja produção e veiculação são feitas pelos próprios moradores de rua. A pesquisa é
qualitativa, considerando apenas duas edições, em especial, os textos de produção coletiva, identificando, por
comparação, os traços recorrentes. Analisando os textos, observou-se que os moradores de rua, quando fazem
uma imagem positiva de si mesmos, constroem um discurso singular em que, na descrição do funcionamento
discursivo do seu dizer, identificam, na memória discursiva (interdiscurso), os valores que legitimam esta
formação imaginária e, no nível da formulação discursiva (intradiscurso), descrevem uma identidade que se opõe
a outras formações imaginárias construídas pela sociedade. Assim sendo, eles constroem um dizer discursivo que
pode devolver-lhes a autoestima e ganhar visibilidade social, um sonho de muitos moradores de rua, espalhados
por varias cidades brasileiras, em especial, a cidade Salvador.

Palavras-chaves: Heterogeneidade discursiva; Formação discursiva; Morador de rua; Exclusão social.

Résumé : Ce travail se propose d‘analyser, dans les propos des hommes en situation de rue dans la ville de
Salvador, la construction de leur subjectivité, de leur identité. Pour cela, nous appliquerons comme principal
appareil théorique l‘Analyse du Discours de Pêcheux (1975), étant donné que dans les analyses le concept de
formation discursive tel qu‘il l‘a élaboré est central. En outre, nous ferons aussi usage du concept d‘hétérogénéité
discursive (AUTHIER-REVUZ,1990) et de celui de polyphonie (BAKHTIN,1997). Nous avons élu comme
corpus les textes du journal « Aurora da Rua », dont la production et la distribution sont faites par les sans-abris.
L‘étude est qualitative, prend en considération seulement deux éditions, notamment les textes de production
collective, et identifie, par comparaison, les traits récurrents. Lors de l‘analyse des textes, nous avons observé que
les sans-abris, quand ils présentent une image positive d‘eux-mêmes, construisent un discours singulier dans
lequel, dans la description du fonctionnement discursif de leur dire, ils identifient, dans la mémoire discursive
(interdiscours), les valeurs qui légitiment cette formation imaginaire et au niveau de la formulation discursive
(intradiscours), ils décrivent une identité qui s‘oppose à d‘autres formations imaginaires construites par la société.
Il s‘ensuit qu‘ils construisent un dire discursif qui peut leur rendre l‘estime de soi et leur apporter une visibilité
sociale, un rêve de beaucoup des sans-abris dispersés dans plusieurs villes brésiliennes, notamment à Salvador

Mots-clés: Hétérogénéité discursive; Formation discursive; Sans-abri; Exclusion sociale.

1. Introdução

231 Trabalho apresentado no IV Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia, realizado entre
os dias 23 a 26 de abril de 2013 na cidade de Belém (PA).
232 Professor do Instituto Federal da Bahia (IFBA) e doutorando em Língua e Cultura pela Universidade Federal da Bahia-

[email protected]

233Professora do Programa de Pós-graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia –

[email protected]
572
Há uma representação social institucional de que os moradores de rua são maltrapilhos,
alcoolizados, sujos, de que residem sob marquises, pontes, viadutos, sujeitos ao abuso de drogas, à
exploração da sexualidade. Imagina-se também que sobrevivam da mão de obra barata associada à cata
de materiais de reciclagem (papelão, latas, garrafas pet, etc.) e estejam atrelados à violência urbana.
Segundo depoimentos, a hora mais terrível para eles é a noite, porque não dormem, apenas cochilam
com medo de perversidades como uso do fogo, de tiros, de atropelos para delírios de alguns psicopatas
que não suportam a diferença no convívio social. Para reconhecer as representações identitárias deste
grupo social excluído (―Homens invisíveis‖), que aparentemente não detêm um discurso, esta pesquisa
buscou concentrar-se numa comunidade de moradores de rua (―Comunidade da Trindade‖), situada na
cidade baixa, mais precisamente na Av. Jequitaia, perto da Feira São Joaquim na cidade de Salvador
(BA), porque eles produzem e publicam um jornal de rua (―street paper‖), intitulado ―AURORA DA
RUA‖, bimensal, com oito páginas.
À semelhança do ―Boca de Rua‖ de Porto Alegre, do jornal ―O Trincheiro‖ e da revista
―Ocas‖ de São Paulo, o jornal ―Aurora da Rua‖ nasceu na Bahia em 2007 por iniciativa do Ir.
Henrique, um monge peregrino francês, também morador de rua, que trouxe a experiência da Europa,
no intuito de dar voz a todos aqueles que se encontravam em situação de rua. Enquanto os outros
veículos têm uma estrutura gerencial em forma de Ongs, o jornal baiano é produzido, veiculado e
vendido pelos próprios moradores ou ex-moradores de rua sob a orientação de uma jornalista
profissional.
Nestes seis anos, foram publicados 37 números cujos temas foram variados como a moda, o
amor, a habitação, a poesia, direitos humanos, o saber da rua, a amizade, evidenciando como a
construção da subjetividade, da identidade do homem de rua não se faz num constructo essencialista de
que todos têm a mesma origem ou o mesmo ideal, mas num processo discursivo em que o sujeito se
posiciona, de forma estratégica e relacional, não com o ―mesmo‖ sendo aquilo que é comum a todos,
mas com a diferença como ―aquilo que é deixado de fora- o exterior que a constitui‖ (HALL, 2012,
p.106).
2. Fundamentação teórica

Para descrever e compreender esta erupção identitária do homem em situação de rua, usa-se
Análise do Discurso pecheutiana, como disciplina de interpretação, abordando a categoria de
heterogeneidade enunciativa, correspondente à fase da AD3 em que ―o primado teórico do outro sobre o
mesmo se acentua‖ (PECHEUX, 1997, p.315), destruindo aquela noção de máquina discursiva estrutural.
Segundo Maldidier (2011, p.57), surge uma nova formulação, opondo os universos discursivos
logicamente estabilizados, típicos da matemática, das tecnologias, dos dispositivos de gestão ―aos
universos discursivos não estabilizados logicamente do espaço sócio-histórico‖ como o discurso das
ideologias dominadas, a ruminação dos discursos cotidianos, o conversacional e o carnavalesco.
Trabalhar com uma mídia alternativa, que retrata a problemática dos moradores de rua, significa seguir
esta proposta pecheutiana.

Nesta época, havia a preocupação com o interdiscurso, trabalhando a relação


inter/intradiscurso, e, assim, surgiu Jacqueline Authier-Revuz (1990, p.26) que, com o conceito de
heterogeneidade constitutiva do sujeito e do discurso, baseada na concepção de interdiscurso
(PÊCHEUX, 1997), no dialogismo de Bakhtin (2002), na abordagem do sujeito e de sua relação com a
linguagem sob a influência de Freud e sua releitura por Lacan, trouxe grande contribuições para a
Análise do Discurso. Este suporte teórico juntamente com os conceitos de polifonia de Bakhtin se
573
tornam, então, indispensáveis ferramentas para o exercício da descrição e da interpretação do corpus da
presente pesquisa.

Como todo discurso se mostra constitutivamente atravessado pelos ―outros discursos e pelo
discurso do Outro‖, o outro não é um objeto exterior (exterior: do qual se fala), mas uma condição
constitutiva do discurso de um sujeito falante que não é a fonte primeira do discurso (AUTHIER–
REVUE, Apud MACHADO (2003, p.25). Existem, portanto, duas heterogeneidades: a
heterogeneidade constitutiva, que não se evidencia claramente na superfície linguística e a
heterogeneidade mostrada, que, ao contrário, deixa marcas explícitas no discurso como aspas, itálico,
estilo direto, estilo indireto (heterogeneidade marcada) ou marcas implícitas como a ironia, a alusão,
estilo indireto livre (heterogeneidade não marcada).

A realidade linguístico-social é heterogênea, nenhum sujeito absorve uma voz social, mas
sempre muitas vozes. ―É nesta atmosfera que o sujeito nas suas múltiplas relações e dimensões da
interação socioideológica, vai- se constituindo discursivamente, assimilando vozes sociais e, ao mesmo
tempo, suas inter-relações dialógicas‖ (FARACO 2009, p.84). O conceito de polifonia de Bakhtin não
significa pressuposição (DUCROT, 1987), mas uma arena povoada de vozes sociais em suas múltiplas
relações de consonâncias ou dissonâncias em permanente movimento, uma vez que a interação
socioideológica é um contínuo devir.

Esta multiplicidade de vozes materializa, na manifestação do intradiscurso, a presença do


interdiscurso como aquilo que está inscrito na memória ou a presença do inconsciente, produzindo os
efeitos de sentido, seja do discurso, seja do sujeito. Não seria uma heresia teórica, mas uma
aproximação de fronteiras que podem ter repercussões na prática discursiva da ciência.

3. Mídia alternativa: a função social

Segundo Celestino (2004), a imprensa de rua tem como objetivo a interação entre os
vendedores e compradores através da qual pessoas excluídas possam (re) estabelecer vínculos sociais,
garantir autonomia financeira remunerada e inserir-se na sociedade e exercer sua cidadania plena. São
os chamados ―street papers‖, jornais ou revistas impressos sobre a realidade de moradores de rua ou de
pessoas sem domicílio fixo como os imigrantes, elaborados algumas vezes com a participação de
moradores de rua e/ou comercialização feita por eles.
Estes jornais de rua seguem um processo, pois selecionam quem vai exercer a função de
jornaleiro nas comunidades de rua e oferecem-lhes treinamento, uniforme, crachá de identificação e
uma cota de exemplares para o trabalho de circulação dos jornais. Em contrapartida, os moradores de
rua comprometem-se em obedecer a uma espécie de um código de conduta como estar sóbrio, não
podendo em hipótese alguma estar sob o efeito de álcool ou droga; cuidar de si mesmo, respeitar os
demais e manifestar nas atitudes este respeito; evitar a comercialização dos jornais, acompanhado por
crianças. Com o dinheiro arrecadado, eles podem custear a remessa seguinte e o restante, mais de 50%,
fica com cada jornaleiro como forma de resgatar a sua dignidade.
Os jornais de rua utilizam, como estratégia de sedução do leitor, a criação de jornais ou revistas
com projetos gráficos atraentes, coloridos e confeccionados em papel de boa qualidade. O veículo de
maior referência internacional é a revista The Big Issue, criada em 1991, no Reino Unido, com a intenção
de ser pensada, produzida e comercializada com a participação de sem-tetos londrinos. O projeto se
tornou viável, bem-sucedido como empreendimento empresarial a ponto de transformar-se em
exemplo para novas iniciativas no mundo e ter estimulado a fundação da International Network of Street
Papers (INSP), ―cuja sede está situada em Glasgow (Escócia). Concebida em 1991 e concretizada a partir
574
de 1994, aproxima veículos para trocas de experiências periódicas para debater a temática, mantém a
agência de notícias Street News Service que dissemina informações sobre a população de rua‖
(CELESTINO, 2004, p. 5). São 80 publicações do gênero em 37 países dos cinco continentes, inclusive
o Brasil, que possui quatro periódicos que integram o INSP: o jornal Boca de Rua, de Porto Alegre (RS),
que circula desde 2001, assumindo o papel de pioneiro no Brasil; a revista Ocas, da Organização Civil de
Ação Social (Ocas), instituição criada em 2002 em São Paulo (SP) e no Rio de Janeiro (RJ), e o tabloide
Aurora da Rua, criado em março de 2007, em Salvador (BA).
O jornal Aurora da Rua é bimestral, elaborado pela comunidade de sem-tetos, de moradores e
ex-moradores de rua da Trindade, instalada na Igreja homônima, região de Água de Meninos (Cidade
Baixa) em Salvador. O diferencial para outros jornais ou revistas é o fato de haver envolvimento da
população de rua em todas as fases da produção e da comercialização. As pessoas atuam na escolha da
pauta, na elaboração do conteúdo através de oficinas de textos e de arte promovidas em espaços
públicos como praças, largos ou viadutos da cidade (Praça de Roma, Estação Aquidabã, Viadutos da
Arena Fonte Nova, via Expressa, etc.) com ajuda de voluntários como jornalistas, designers.
O propósito é enfocar fatos, ideias e ações que retratem o universo do homem de rua como a
educação, a saúde, preconceito, produção cultural, moda, moradia, direitos humanos, de forma a
abordar tanto a rotina árida em praças, pontes, viadutos, edificações abandonadas e calçadas quanto à
beleza e à criatividade dos sem-tetos de maneira humanizada. O periódico busca tornar visível e
audível a face e a voz daqueles que muitas vezes são pouco vistos e pouco ouvidos na sociedade, mas
sem tratá-los como vítimas de uma situação social determinante e que os impede de reverter o quadro e
sem torná-los alvo de pena (CELESTINO, 2004, p.6). A jornalista Ingrid Campos assina a matéria da
capa da edição nº 1 em que está escrito: ―Nas ruas, mas sem amargura: jornal é alternativa para a
ressoci liz ção de pesso s n s ru s.” E, assim, especifica os objetivos do jornal:
Diminuir preconceitos e ter uma nova fonte de renda foram
argumentos mais que suficientes para que todos aceitassem a proposta...A ideia
é simples e poderosa: moradores de rua que, ao venderem o jornal, passam a
ter uma fonte de renda e deixam de ser uma mão que pede esmola,
transformando-se numa mão que oferece o jornal em troca ganha a dignidade
e autoestima..(Aurora da Rua, mar./abr. 2007, Ano I, nº 1, p.4)

A maior parte da tiragem de 10 mil exemplares é comercializada por pessoas em situação de


rua, por R$1,00 cada, em Salvador e na Região Metropolitana, não se aceita assinatura individual, a não
ser de pessoas residentes fora do Estado ou do país. O mais comum é aceitar a assinatura corporativa
de empresas, hospitais, escolas que distribuem os jornais entre os seus clientes, pacientes e alunos
respectivamente. Não existe qualquer tipo de publicidade nem da igreja, nem de empresa, porque a
Comunidade da Trindade não é uma pessoa jurídica. Não há caráter assistencialista ao morador de rua,
porque a sobrevivência da comunidade se encontra em três fontes: o artesanato, a venda de material
reciclável e a venda dos jornais. Ela ocupa um terreno onde há a Igreja da Trindade abandonada do séc.
XVIII a qual pertence à Arquidiocese de Salvador. A ocupação ocorreu por permissão do então
Cardeal Dom Magela desde que os moradores de rua a conservassem, evitando a deterioração do
patrimônio.

4. Realidade histórico-social

Segundo Orlandi (2003, p. 33), todo dizer, na realidade, se encontra na confluência de dois
eixos: o da memória (constituição) e o da atualidade (formulação). Considerando os efeitos da memória,
575
não se podem esquecer a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela
Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 em que rezam alguns artigos como
―Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e
devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade (art. I).‖ Em 1988, a Constituição
Federal Art. 5, item III) determina e explicita os direitos e deveres individuais e coletivos: ―ninguém
será submetido a tortura nem tratamento desumano ou degradante.‖, conjugado com o parágrafo 41: ―
a lei punirá qualquer forma de discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais‖. Logo,
qualquer atitude de discriminação contra morador de rua é condenada pela Carta Magna.

Em 2009, o Decreto Nº 7.053 de 23 de dezembro instituiu a Política Nacional para a População


em situação de Rua, entendendo como população em situação de rua o grupo populacional
heterogêneo que possui a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a
inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas
degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as
unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória. No art. 5, define os
princípios norteadores, além da igualdade e equidade: I – respeito à dignidade da pessoa humana; II-
direito à convivência familiar e comunitária; III- Valorização e respeito à vida e à cidadania; IV-
atendimento humanizado e universalizado, etc.

Em 2010, na cidade de Salvador, foi fundado o Movimento de População de Rua, sob a


liderança de Maria Lúcia, ex- vendedora do jornal Aurora da Rua e ex-moradora da Comunidade da
Trindade. Este movimento já existia em cidades como São Paulo, Belo Horizonte, Distrito Federal e
Rio de Janeiro, porque ele nasceu quando aconteceu o massacre da Sé em São Paulo quando
assassinaram 14 moradores de rua. Não possui jornal como veículo de informação e de resgate da
cidadania, mas faz reuniões quinzenais com as pessoas em situação de rua, conscientizando-as dos seus
direitos, orientando-as para os programas sociais, pois o objetivo é exigir do governo federal, estadual
ou municipal políticas públicas para este setor da população de excluídos urbanos. Faz parcerias com
instituições públicas como o Ministério Público, Universidade Federal, Secretarias de Estado, Secretarias
do Município com a intenção de discutir saídas políticas e jurídicas que possam beneficiar o morador de
rua.

Em janeiro de 2012, ocorreu o Congresso Nacional do Movimento de População de Rua


também em Salvador em que se discutiram novas alternativas de atendimento à população que está em
situação de risco nas ruas. O governo da Bahia, nesta ocasião, lançou o programa ―Bahia acolhe‖ 234

5. Análise linguístico-discursiva dos textos

234
É um programa do governo baiano pioneiro, pois criou os CentroPops de atendimento às pessoas que moram nas
ruas, como criou duas repúblicas masculinas ( São Caetano e Uruguai) para acolher estas pessoas.
576

A última edição do jornal (abril/maio 2013, ano 7, nº 37) tinha como manchete:
TRANSFORMAÇÃO, DIGNIDADE E RESPEITO: Vendedores partilham as experiências
adquiridas no 6º aniversário do jornal Aurora da Rua. Nesta edição especial, em seu editorial, há um
reconhecimento desta experiência: “Mas para cada obstáculo dessa estrada havia sempre torcedores
para lhes soprar palavras de ânimo e de fé, isto é, os fiéis leitores...Tudo isso são formas de flagrar a
potência da rua em expansão!‖ E assim conclui: ― Se há tantas conquistas para celebrar, esse mérito é
partilhado com vocês que acreditam na força dessa Aurora‖ . A matéria da capa se acha visível nas
páginas 4 e 5 com vários depoimentos de moradores de rua, acompanhados de fotos coloridas numa
representação performática oposta àquela que a sociedade tem sobre eles. Como é um texto coletivo, os
moradores são os protagonistas de suas histórias como aquela de Elmário:
É manhã de um domingo ensolarado. Elmário já está na porta da igreja.
Colete e boné azuis, sacola do lado com um monte de jornais. Ele chegou cedinho, às
7 horas, e a expectativa é grande. Elmário é vendedor do Aurora da Rua desde 2007,
0 05 ano em que o jornal foi lançado, e até 2010 a venda do periódico era sua principal
fonte de renda. Atualmente, ele trabalha em um projeto social com carteira assinada,
um sonho alimentado desde que estava em situação de rua, mas ainda vende o jornal
nos fins de semana. ―Nem gosto de lembrar o tempo em que morei na rua. A
sensação de ser discriminado é muito ruim. Gosto de lembrar a reviravolta que
1 aconteceu em minha vida no momento em que comecei a vender o jornal‖, conta.
Elmário revela que, no princípio não foi fácil, mas que sempre foi perseverante. ―No
10 começo eu vendia em todos os locais: praças, ruas, ônibus e até em lojas. Aí fui
conhecendo pessoas. Escolhi igrejas como ponto fixo. Comecei a ver que me olhavam
de um jeito novo‖, relata. Comecei a me sentir novamente parte da sociedade, uma
pessoa útil e capaz. A mensagem do Aurora da Rua é esta. (Aurora da Rua,
1
abr/maio 2013, Ano 7, nº 37, p.4)
15
Observa-se uma profusão de vozes no texto em que um narrador em terceira pessoa descreve e
narra as ações referentes ao vendedor Elmário. Começa com estilo indireto (―Elmário já está na porta
da igreja‖) e indireto livre ( ―...a expectativa é grande..‖). No discurso do narrador, o interdiscurso se
presentifica na formulação discursiva, na materialidade do texto sob diferentes marcas linguísticas: os
tempos verbais e a marcação das datas. Antes de 2007 (―Nem gosto de lembrar o tempo em que
morei na rua. A sensação de ser discriminado é muito ruim‖), o vendedor era vítima de uma
prática social cuja formação discursiva por parte da sociedade era feita de exclusão. De 2007 a 2010 (― a
venda do periódico era sua principal renda‖), o personagem Elmário, por ser vendedor do jornal e
viver na comunidade da Trindade, passa a construir valores de autoestima, advindos da prática social e
discursiva do jornal ―Aurora da Rua‖ , mas, a partir de 2010 a 2013, ele alcançou a sua independência,
porque trabalhava com carteira assinada, logo a sua subordinação ideológica se opera numa
identificação com uma formação discursiva política de inserção social. Nestes discursos não
estabilizados como o feminismo, o movimento negro e movimentos sociais como os moradores de rua,
577
a heterogeneidade não é somente enunciativa, mas constitutiva do discurso. Segundo Authier –Revuz
(1990), o texto apresenta uma heterogeneidade mostrada marcada devido às pistas linguísticas.
A edição ―Somos iguais, somos humanos: povo de rua luta por dignidade e pelo exercício da cidadania‖
(jun./jul. 2012, Ano 5, nº 32) apresenta uma reflexão na matéria da capa em que se evidencia a
importância da consciência para a transformação.

Há uma década seria considerado sonho, uma utopia, pensar em reivindicação


de direitos pelos moradores de rua. Entretanto, nos últimos anos, esse cenário
mudou. Eles conseguiram romper as barreiras da invisibilidade social e, com a
P crescente organização política, fortalecer o Movimento Nacional da População de Rua,
05 promovendo discussões em todo o país. Juntos elaboraram a Política Nacional para a
inclusão social de pessoas em situação de rua, instituída, em 2009, pelo então
presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Porém, mesmo com as conquistas, ainda há inúmeros desafios a serem
1 10 vencidos. Em oficinas de texto para a reflexão destes temas, pessoas em situações de
rua reconheceram os avanços conseguidos, porém são unânimes em falar sobre as
necessidades e as lacunas nas políticas sociais. ―É preciso possibilitar o acesso do
morador de rua a serviços de qualidade. Temos déficit em todas as áreas. Além disso, a
maioria não sabe que existe um movimento nacional que luta pelos direitos, ou os que
1 15 sabem e não se unem. É preciso buscar conhecimento para poder cobrar. Eu sempre
procurei exercer o meu poder de voz‖, afirma Eduardo, que, como outras pessoas de
rua, tem alguma história de violação de direitos para contar ( Aurora da Rua,
junho/julho 2012, Ano 5, nº 32, p. 4)

No primeiro parágrafo, o enunciador fala na 3ª pessoa, referindo-se a dois momentos distintos


em que a performatividade do homem de rua é diferente. No passado (―Há uma década seria considerado
sonho, uma utopia pensar em reivindicação de direitos pelos moradores de rua..‖l.1-2), predominava uma realidade
de total exclusão que impedia a visibilidade do homem em situação de rua. Segundo Pêcheux (1997,
p.316), o discurso-outro colocado em cena pelo sujeito do discurso se presentifica como um fio
intradiscursivo. No presente (―Entretanto, nos últimos anos, esse cenário mudou..‖ – l.2), o sujeito do discurso
faz referência ao Movimento Nacional de População de rua que promove discussões em todo o país,
portanto tem uma postura performática diversa do jornal, porque apresenta um caráter político-jurídico
que se materializa na alusão ao decreto-lei 7.053 que criou a Política Nacional de inclusão dos homens
em situação de rua. Não se pode esquecer que, nestes enunciados concretos, está presente a interação
com o leitor, que pode ser um morador de rua ou não. Assim, ―... o dialogismo diz respeito às relações
que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos instaurados historicamente pelos
sujeitos que, por sua vez se instauram e são instaurados por esses discursos‖ (BRAIT, 2005, p.95).
Bakhtin (2002) vai falar do eu que se realiza no nós, insistindo não na síntese, mas no caráter polifônico
dessa relação exibida pela linguagem
No segundo parágrafo, a heterogeneidade discursiva mostrada é evidente quando o sujeito usa
as aspas para trazer a fala do Eduardo, como morador de rua, para o seu discurso, porque acredita que
578
este argumento pragmático seja capaz de sensibilizar o leitor e de persuadi-lo de que o que o narrador
comenta é verdadeiro. Na fala do morador, quando se refere à necessidade de saber e de poder, este
discurso não é dele (Foucault, [1979], 2012), mas este outro aparece de forma constitutiva no seu
discurso. E o caráter polifônico e dialógico se torna claro no momento em que Eduardo traz para a sua
fala a voz daqueles que sabem que existe um movimento que luta pelos direitos, daqueles que, mesmo
sabendo, o ignoram, não se unem. Além destas duas vozes, há a de Eduardo (―Eu sempre procurei
exercer o meu poder de voz‖) que, como interação entre ele, o enunciador e o eventual leitor, revelam
diferentes tipos de interpelação porque se subordinam, por identificação, a diferentes formações
discursivas.

6. Considerações finais

Na heterogeneidade discursiva dos textos e das imagens do jornal, evidencia-se que a identidade
do morador de rua é fragmentada, fraturada, descentrada, construída ao longo de discursos, práticas e
posições que podem se cruzar ou ser antagônicas, sempre num processo de mudança e transformação,
o que não ocorre com a representação homogênea, uma identidade sem costuras, inteiriça, sem
diferenciação interna que a sociedade constrói sobre os homens que (sobre)vivem nas ruas. O conceito
de identidade, portanto, se encontra, enquanto discursos e práticas, em duas formas diferentes de
interpelação, construídas no interior do jogo do poder e da exclusão.
A posição do jornal ―Aurora da Rua‖ não é de naturalizar a miséria, nem divinizar o sofrimento
humano, mas, ao contrário, construir uma imagem positiva do homem de rua como um fio discursivo
de resistência, de ―sutura‖ em que ele se constitui como sujeito. Este discurso se materializa na
performance dos seus textos, mostrando as formas de exclusão do homem de rua, exaltando as suas
práticas sociais positivas, ao tempo em que se vincula a determinada formação discursiva que legitima
aquilo que é dito em todas as secções do jornal.
A AD, como disciplina de interpretação, ao trabalhar o conceito de heterogeneidade discursiva
em seu processo de reformulações, valoriza os discursos não estabilizados como aqueles da estética, da
etnia e dos movimentos sociais, inclusive o do movimento da população de rua como discurso de
resistência e de revolta a uma interpelação ideológica e política de luta de classes, comandada por uma
ideologia dominante. Hoje, ao par desta concepção, existem formações ideológicas outras como o
feminismo, o MST (Movimento dos sem-terra), o movimento negro, que lutam por uma nova
identidade da mulher, do morador de rua, do negro ou do homossexual cujas especificidades não se
relacionam necessariamente à luta de classes.
As políticas públicas de inclusão se equivocam quando pensam que, dando casa própria ou um
emprego, estarão solucionando o problema da miséria como ―higienização‖ social, pois tanto o jornal
Aurora da Rua, como o Movimento Nacional de População de rua não sonham com este tipo de
inclusão, mas sonham com um ―entre-lugar‖ em que haja a liberdade de ser o que se é, a proteção de
todos os direitos sociais, sem perder a identidade em suas múltiplas diversidades.

Observando-se os textos e as imagens do jornal ―Aurora da Rua‖, verifica-se, por efeito de


dissimulação, a correção linguística das falas populares, os corpos coloridos sem as marcas da dor como
se veem nas ruas, isto não significa engodo, mas uma ―tática‖ (CERTEAU, 2005, p.25), uma prática
579
discursiva que, aparentemente inofensiva porque é feita de solidariedade e de respeito ao outro, esconde
uma luta, uma resistência contra o poder hegemônico, capaz de trazer grandes mudanças para a
sociedade como um todo.

REFERÊNCIAS

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AURORA DA RUA. Nº 37, Ano 7. Salvador: Aurora da Rua, junho/julho 2013
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BAKHTIN, M. Estética da criação verbal Trad. Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes,
1997.
BAKHTIN, M.(1929) Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. M. Lahud e Y.F. Vieira. São Paulo: Hucitec,
2002.
BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2ª ed. Ver. Campinas (SP): Editora da
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CELESTINO, Mônica. Imprensa de rua alvorece em Salvador (BA): breve relato da expansão do jornal Aurora
da Rua. Salvador (Ba: Ufba, 2004.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Arte de fazer. 17.ed. Trad. Ephraim Ferreira Alves-
Petrópolis (RJ): Vozes, 2011
DUCROT, Osvald. O dizer e o dito. Campinas (SP): Pontes, 1987
FARACO, Carlos Alberto. Linguagens &Diálogos: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo:
Parábola Editorial, 2009.
FOUCAULT, Michel {1969}. A Arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Neves. 7.ed.- Rio de Janeiro:
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_________, Michel [1979]. Microfísica do poder. 25. Ed – São Paulo: Graal, 2012.
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In SILVA, Tomaz Tadeu (Org.) Identidade e diferença: a
perspectiva dos estudos culturais. 12ª ed. - Petrópolis (RJ): Vozes, 2012.
MACHADO, Rosa Helena Blanco. Vozes e silêncios de meninos de rua: o que os meninos de rua pensam
sobre as nossas instituições. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso. Campinas (SP): Pontes, 2003.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas (SP): Pontes, 5ªed.-
2003
PÊCHEUX, Michel. A análise automática do discurso In GADET, Françoise; HAK, Tony (Orgs). Por
uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas (SP: Editora da
Unicamp, 1997.
________, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio4ª ed. – Campinas (SP): Editora
da Unicamp, 2009.
580

ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA:


SABERES E FAZERES NA FORMAÇÃO DOCENTE

Josilete Alves Moreira de AZEVEDO235

Resumo: Pesquisas na área de linguagem revelam que há uma grande preocupação dos investigadores
em relação ao ensino de Língua Materna, pois apesar de significativos avanços das teorias linguísticas,
os professores têm se pautado em práticas pedagógicas que insistem no repasse de conteúdos
gramaticais de forma fragmentada e descontextualizada. A proposta oficial vigente da educação
brasileira traz orientações relevantes para a viabilização dos objetivos de ensino de Língua Portuguesa
canalizados para o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos e, para compreender
como se realiza um ensino dessa natureza, é preciso que se reflita sobre a formação de profissionais
competentes que tenham o domínio dos saberes e fazeres, que conheçam as políticas públicas
educacionais, a escola, o sistema de ensino, a dinâmica da sala de aula e a natureza diversificada dos
alunos. Investigamos uma licenciatura de Língua Portuguesa, buscando compreender como ocorria a
formação desses futuros professores para atender às expectativas para o ensino de Língua Materna. O
estudo situa-se no âmbito da Linguística Aplicada e caracteriza-se como uma investigação
qualitativa/interpretativista, a partir de uma abordagem de inspiração etnográfica do ambiente do
estágio supervisionado, no qual observamos a atuação dos alunos-mestres no contexto escolar. Nos
resultados, verificamos o caráter conteudístico do curso e a desarticulação entre teoria / prática. Estas
questões podem ser consideradas como responsáveis pelas dificuldades desses alunos-mestres na
regência de classe no ensino fundamental e médio, constatando-se a necessidade de uma reestruturação
do projeto do curso, haja vista as fragilidades que precisam ser revistas para a melhoria da qualidade do
ensino de graduação.
Palavras-chave: Ensino, Língua Portuguesa. Formação de professores.

Resumen: La investigación en el área del lenguaje revelan que existe una gran preocupación de los
investigadores en relación con la enseñanza de la lengua materna, porque a pesar de los importantes
avances en las teorías lingüísticas, los maestros se han basado en las prácticas pedagógicas que insisten
en la transferencia de contenidos gramaticales poco a poco y descontextualizado. La propuesta oficial
actual de la educación brasileña trae directrices pertinentes para la viabilidad de los objetivos de la
enseñanza del portugués canalizados hacia el desarrollo de la competencia comunicativa de los alumnos
y para entender cómo una escuela de esta naturaleza, es necesario reflexionar sobre la formación de
profesionales competentes que tengan el conocimiento y las prácticas del campo, conocen las políticas
públicas educativas, la escuela, el sistema educativo, la dinámica del aula y de la naturaleza diversa de los
estudiantes. Se investigó un idioma portugués grado, tratando de entender la formación de estos
ocurrieron como futuros docentes para satisfacer las expectativas de la enseñanza de la lengua materna.
El estudio se encuentra dentro de la Lingüística Aplicada y se caracteriza por un enfoque de
investigación cualitativa / interpretativa, desde un entorno supervisado etnográfico de inspiración en la
que se observan las acciones de los estudiantes-docentes en el contexto escolar. En los resultados,
vemos que el carácter del curso y desconexión conteudístico entre teoría / práctica. Estos problemas
pueden ser considerados responsables de las dificultades de estos estudiantes-profesores en la
realización de clases en la escuela primaria y secundaria, lo que confirma la necesidad de una
reestructuración del proyecto de curso, teniendo en cuenta las debilidades que deben revisarse para
mejorar la calidad educación de pregrado.

235 Doutora em Estudos da Linguagem. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) / Natal/RN. Docente
lotada no Departamento de Ciências Sociais e Humanas / CERES / Campus de Currais Novos/RN. E-mail:
[email protected]
581

Palabras clave: Enseñanza, Lengua Portuguesa. Formación del profesorado.

1 Introdução
Em função das demandas históricas e sociais do país, com seus reiterados índices de baixo
rendimento escolar, o processo educativo brasileiro tem suscitado, sobretudo nas duas últimas décadas,
intensas investigações que buscam uma compreensão mais acurada dos fenômenos que lhe são
inerentes e mais sensíveis. Com base na reflexão crítica sobre a escola e os fazeres docentes, têm sido
possíveis a produção e a sistematização de novos saberes alicerçados em fundamentos científicos,
notadamente sobre as práticas pedagógicas, visto que, para o enfrentamento da problemática, as
pesquisas buscam, sobretudo, compreender o que e como se ensina e se aprende nos diversos níveis de
escolarização e nas diversas áreas de conhecimento. Dessa forma, tais estudos estabelecem-se com
estreitos vínculos epistemológicos e metodológicos interdisciplinares, como é o caso desta investigação,
na qual realizamos uma pesquisa sobre a formação do professor de Língua Portuguesa, com suas
decorrentes implicações nas práticas escolares. Vale salientar que a escolarização da Língua Materna,
aliás, tem constituído, dentro e fora da academia, um dos principais focos de atenção na problemática
do baixo rendimento escolar dos alunos brasileiros.
Devemos reconhecer que investigar a escola em seus múltiplos componentes e, em especial, a
sala de aula, tem trazido grandes contribuições para a melhoria da qualidade do ensino, mas é preciso
avançar muito na busca de soluções para os problemas que, ainda, afetam o cotidiano da instituição
escolar. Com o ensino de Língua Portuguesa não tem sido diferente, porque, mesmo sendo objeto de
inúmeras pesquisas que atentam para a sua precariedade, não se tem observado uma substancial
mudança qualitativa no dia a dia da escola, pois os egressos do sistema educacional, após 12 anos de
escolarização, apresentam, ao final do ensino médio, dificuldades elementares nas atividades de leitura e
compreensão, no manejo da escrita, bem como um precário domínio da oralidade em situações formais
de comunicação.
Para compreender como se realiza um ensino dessa natureza, é preciso que se reflita sobre a
formação de profissionais competentes que tenham, dentre outras qualidades, o domínio do
conhecimento específico (saber disciplinar) e que compreendam as políticas públicas educacionais, a
escola, o próprio sistema de ensino, a dinâmica da sala de aula e a natureza complexa e diversificada dos
alunos. Além disso, eles devem conhecer fundamentos teóricos que embasem uma pedagogia firmada
em uma concepção de linguagem adequada ao propósito de preparar sujeitos históricos que se
envolvam com a participação e a transformação sociais. Torna-se imprescindível, também, que esses
profissionais conheçam as atuais tendências pedagógicas, cujas metodologias de ensino devem
promover um aprendizado significativo da Língua Materna, aliando, conforme propõem Chevallard
(1985) e Bronckart e Giger (1998), o ―saber‖ (conhecimentos científicos específicos) ao ―saber fazer‖
582
(tratamento didático dos saberes específicos), em prol de um ensino comprometido com a formação
cidadã.
A partir desse entendimento, compreendemos que a eficácia do processo de ensino e
aprendizagem na graduação só ocorrerá na medida em que a formação dos profissionais aconteça de
forma bem fundamentada nos conhecimentos linguísticos e didáticos, como também estruturada a
partir de um Projeto Político-Pedagógico do curso, no qual sejam articulados os saberes linguísticos
específicos com o saber fazer, uma vez que esses conhecimentos devem formar o lastro teórico sobre o
qual serão construídos os ensinamentos de Língua Materna. Além disso, a construção das práticas
pedagógicas precisa alicerçar-se no domínio desses saberes, de modo que favoreçam a adoção de uma
concepção interacional da linguagem e na utilização de metodologias de ensino ajustadas a uma
proposta de ensino que prima por um aprendizado significativo da língua. Portanto, o futuro professor
precisa conscientizar-se de que deve dominar o aparato teórico para poder tomar decisões sobre sua
prática, no que diz respeito ao planejamento das aulas, à seleção de atividades, ao gerenciamento da sala
de aula e ao processo de avaliação, ou seja, terá a obrigação de saber o que é ensinar, o que é método de
ensino, o que é língua, o que significa saber Português e por que ensiná-lo a alunos brasileiros falantes
dessa língua.
Assim, realizamos esta pesquisa na qual procuramos investigar a atuação dos alunos estagiários
no contexto escolar, especificamente em sala de aula de Língua Portuguesa, haja vista que pretendíamos
analisar o processo de formação de professores e suas implicações para o ensino de língua, apontando
os conflitos e as sugestões suscitados nas vivências das atividades de Estágio Supervisionado.
Construímos como elemento norteador a definição do perfil do egresso do curso de Letras, para tanto,
estabelecemos como objetivo geral compreender como essa licenciatura viabiliza a formação de futuros
professores para atender às expectativas das políticas públicas para o ensino de Língua Portuguesa,
observando como os alunos-mestres incorporam a atitude profissional do ―saber‖ (linguísticos e
didáticos pedagógicos) e do ―saber fazer‖, bem como a concepção de linguagem e a abordagem de
ensino adotada pelos estagiários na fase de regência dos estágios de Língua Materna no ensino
fundamental.
Esta é uma investigação que se insere no âmbito da Linguística Aplicada, assentando-se numa
perspectiva descritivo-analítica de uma abordagem de inspiração etnográfica do processo de formação
de professores de Língua Portuguesa, uma vez que utiliza alguns procedimentos característicos dessa
forma de investigação, em que os fatos são observados in loco, registrados, classificados e interpretados.

2 Saberes e fazeres do professor de Português


A proposta de formação de professores contida nos discursos oficiais requer um profissional
competente que domine não somente os conhecimentos teóricos advindos da ciência, mas também o
583
saber fazer. Com isso, podemos perceber que a ênfase recai na articulação das teorias com as práticas,
como também na preparação de professores/pesquisadores que saibam investigar suas salas de aulas e
refletir sobre suas próprias práticas, buscando soluções para dinamizar o processo de ensino e
aprendizagem de modo significativo e eficaz. Compreendendo que a qualidade do ensino perpassa
questões referentes aos programas, aos fundamentos teóricos e às práticas pedagógicas, apresentamos a
seguir um panorama sobre o ensino de Língua Portuguesa tal como encontramos idealizado na
proposta oficial vigente do processo educacional brasileiro.
Nessa perspectiva, têm despontado investigações que procuram compreender a cultura escolar e
buscar ações didáticas e pedagógicas que impulsionem a formação de alunos que saibam articular
saberes e competências em inúmeras situações de uso da língua nas diversas práticas sociais das quais
participam, na família, na escola, no trabalho e entre amigos.
Além disso, alguns pesquisadores têm se interessado pela articulação dos saberes específicos
(disciplinares) com os saberes didático-pedagógicos (saber fazer), veiculados no contexto escolar e pela
transposição dos conhecimentos linguísticos advindos da ciência da linguagem para o cotidiano da sala
de aula. Na área de ensino de língua, o alvo tem sido o ―saber fazer‖ do professor, pois suas
concepções de linguagem, abordagens de ensino e prática pedagógica podem revelar até que ponto as
ações docentes promovem um ensino que possa contribuir efetivamente para que os alunos ampliem
sua competência no uso oral e escrito da língua.
De acordo com Silva et al. (1986, p. 51), o modo como vemos a linguagem define os ―caminhos
de ser aluno e professor‖, tal como considera Kato (1986), pois entendem que o professor e suas ações
didáticas e concepções são decisivas para o processo ensino e aprendizagem porque configuram o tipo
de intervenção a ser operacionalizada no ambiente da sala de aula. Contudo, trilhar caminhos que levem
a um ensino produtivo da atividade linguística requer mudanças na forma de conceber a linguagem,
aqui entendida como uma atividade constitutivamente dialógica (BAKHTIN, 1992) e funcional, assim
como na adoção de uma metodologia que viabilize atividades em favor dos objetivos de ensino de
língua, priorizando o desenvolvimento da competência comunicativa dos sujeitos usuários.
Vislumbramos aqui a necessidade de uma modificação significativa no processo de ensino e
aprendizagem, tendo em vista que as mudanças sociais do mundo contemporâneo geraram no contexto
da sala de aula novas concepções de linguagem e novos objetivos de ensino, os quais exigem
adaptações e reflexões sobre as práticas pedagógicas que possam promover a formação do novo perfil
de aluno, o qual, na contemporaneidade, é visto como ―alguém de carne e osso, com dificuldades
únicas e concretas‖ (RIOLFI et al. 2008, p. 214). Com isso, a autora nos orienta que o ensino de língua
deve deixar de ―almejar um aluno ideal, moldável aos propósitos de assimilação de uma língua que não
lhe é familiar‖, e buscar um trabalho pedagógico que considere as opções linguísticas dos alunos,
oferecendo-lhes a oportunidade de conhecer novos acervos de expressão da linguagem.
584
Nessa perspectiva, a atividade de ensino deverá empreender muitas e sérias reformulações que
apontam para novos direcionamentos e propostas metodológicas a serem realizadas na escola. Geraldi
(1985a, p. 46) afirma que essas mudanças envolvem questões sobre o método e o conhecimento, assim
como sobre o discurso pedagógico, pois

[...] a alteração da situação atual do ensino de língua portuguesa não passe apenas por uma
mudança nas técnicas e métodos empregados na sala de aula. Uma diferente concepção de
linguagem constrói não só uma nova metodologia, mas, principalmente, um novo conteúdo de
ensino.

Desse modo, é preciso reconhecer que ocorreram novas concepções relacionadas ao perfil do
aluno, à linguagem, à metodologia de ensino que trazem novas formas de conceber o objeto de ensino
(o texto) e os objetivos da aprendizagem. Assim, é preciso que se busque uma relação entre teorias
linguísticas e pedagógicas que caminhem na seguinte direção: programas oficiais  às teorias  às
práticas. Nessa perspectiva, foram tomados como referenciais os PCN e autores da área de ensino de
Língua Portuguesa e de Educação, dentre eles: Geraldi (1996), Travaglia (1996, 2003), Antunes (2003,
2007, 2009, 2010), Lomas (2003), Figueiredo (2005), Marcuschi (2001, 2008), Riolfi et al. (2008),
Possenti (2003), Alarcão (1996, 2001), Imbernón (2011), Pimenta e Lima (2010) e Schön (1993).
Assumindo a concepção interacional de linguagem , procuramos analisar as práticas pedagógicas
dos alunos-mestres nas atividades que envolvem leitura, escrita, oralidade, análise textual e gramática,
por ocasião da regência de classe, que constitui a terceira e a quarta etapas do Estágio Supervisionado
de Língua Portuguesa. Todavia, sabemos que adotar esta concepção de língua sugere que todas as
atividades linguísticas realizadas na sala de aula, no âmbito da escrita, da leitura ou da oralidade,
pressupõem uma relação cooperativa entre os sujeitos, pois somente assim os trabalhos pedagógicos
com a linguagem passam a ter significado como prática social. Logo, o ensino de língua deve atender às
finalidades de desenvolvimento da competência para os usos da fala, da escrita, da leitura, considerando
os contextos interacionais e a atuação dos sujeitos usuários nas práticas sociais.
Dessa forma, é possível vislumbrarmos que o futuro professor precisará desenvolver ações
pedagógicas que possam alcançar os objetivos do ensino de língua, necessitando, inclusive, ressignificar
algumas concepções, dentre elas, a de linguagem (atividade discursiva interacional e funcional), a de
texto (unidade de ensino) e a de gramática (noção relativa ao conhecimento linguístico), uma vez que
elas fundamentam todos e quaisquer programas, planejamento e ação didática que priorizem a
dimensão interacional da linguagem, em virtude de as atividades curriculares em Língua Portuguesa
corresponderem, principalmente, à prática linguística, configurada como uma rica e diversificada
interação dialogal que envolve uma prática constante de leitura e produção de textos.
Para tanto, o professor precisará utilizar subsídios advindos da Linguística, os quais lhe
permitam trabalhar a nova concepção de língua (interacional e funcional), contemplando a diversidade
585
de gêneros textuais, da modalidade oral ou escrita da língua. Portanto, constatamos que será necessário
articular os saberes teóricos obtidos como resultados das investigações com a prática pedagógica dos
professores que estão na sala de aula, com a finalidade de melhorar a ação docente e,
consequentemente, o ensino.

3 Resultado das análises


Os resultados obtidos mostram que os alunos-mestres, mesmo após a aquisição de
conhecimentos teóricos e práticos ao longo de sua formação acadêmica, contando com a orientação e o
acompanhamento dos professores formadores da instituição, apresentam alguns equívocos teóricos e
metodológicos em relação à transposição dos saberes linguísticos e dos didático-pedagógicos que
fundamentam suas práticas de ensino nas salas de aula de Língua Portuguesa. Isso pôde ser percebido a
partir do momento em que os alunos-mestres selecionaram as bases teóricas de suas ações didáticas,
construindo um discurso transbordante de ideias e pressupostos teóricos que alicerçam um ensino
pautado nas funções e nos usos reais da língua (abordagem funcionalista), enquanto na prática
desenvolveram ações didáticas voltadas para um ensino metalinguístico. Com essa atitude, os alunos-
mestres mostraram-se equivocados e confusos em relação aos aspectos teórico-metodológicos entre
duas perspectivas de ensino de língua que trilham caminhos bem divergentes. Portanto, a ideia que
temos é a de que os alunos-mestres enfrentam um sério dilema porque não sabem ao certo o que fazer
com os saberes veiculados na academia, haja vista que não tiveram autonomia para utilizar os
conhecimentos linguísticos e enfrentar a execução de uma proposta de ensino que vê a língua em uso,
por isso preferiram o ensino prescritivo, o qual enfatiza os elementos estruturais e normativos da
língua, acompanhando o professor regente da sala em que realizaram o exercício da regência.
Nesse sentido, os alunos-mestres demonstraram uma tendência de empregar o conhecimento
tácito, no qual determinadas ações são realizadas por hábito, costume ou rotina, quando optaram por
um ensino prescritivo da língua firmado em regras da gramática normativa, seguindo as práticas
utilizadas pelos professores regentes. Essa descoberta foi surpreendente e preocupante pelo fato de
revelar que os alunos-mestres não souberam construir o edifício pedagógico do ensino de Língua
Portuguesa, no qual precisariam articular as orientações da proposta educacional com os programas de
ensino e, consequentemente, com a prática pedagógica. Isto é, não atentaram para a elaboração e
execução de um planejamento das atividades de Língua Materna que partisse do perfil do aluno, dos
objetivos de ensino língua, da concepção de língua/linguagem e da adoção de uma abordagem
metodológica sugeridos na proposta oficial vigente e que se ajustasse aos propósitos de formar um
aluno competente nos usos da linguagem.
Constatamos, portanto, que os alunos-mestres realizaram o processo de didatização dos saberes
linguísticos na contramão da abordagem funcionalista, desviando-se do ensino pautado nos usos da
586
língua para assumir uma ação didática centrada na prescrição, na noção de língua culta, permanecendo
numa pedagogia conservadora que reflete o discurso da gramática normativa (formalismo), em
detrimento dos dizeres e usos linguísticos que os indivíduos empregam em situações reais de interação
verbal (funcionalismo).
Além disso, verificamos que os alunos-mestres não fizeram a articulação dos saberes advindos
das teorias linguísticas para direcionar suas práticas firmados na dimensão interacionista da linguagem e
nos objetivos de desenvolver a competência linguística dos alunos, nem resgataram os conhecimentos
do componente pedagógico, ou seja, das disciplinas profissionalizantes, para organizar e realizar o
processo de ensino e aprendizagem condizente com a formação de alunos, conforme propõem os
Parâmetros Curriculares Nacionais.
Os alunos-mestres apontaram, nesse aspecto, a desarticulação da teoria/prática como uma das
maiores dificuldades em relação ao processo de formação, pois sentem que há um distanciamento
enorme entre os saberes adquiridos na universidade e a efetiva atuação no contexto da instituição
escolar, reivindicando, inclusive, a inserção de uma disciplina de caráter pedagógico que os auxiliasse
nesse processo de transposição de conhecimentos teóricos e práticos. Desse modo, consideramos
como pertinente a atitude dos alunos-mestres de requerer a inclusão de um componente pedagógico,
pois afinal estamos em um curso de licenciatura, cujo foco é a formação de professores de Língua
Portuguesa. Assim sendo, não devemos enfatizar apenas os saberes (teorias da linguagem), mas também
os fazeres (transposição de saberes), entendendo que no processo de ensino e aprendizagem são
necessárias constantes idas e vindas da teoria à pratica e da prática à teoria.
Constatamos ainda que, na transposição didática dos saberes linguísticos, os alunos-mestres
apresentaram falta de clareza acerca da ―noção de texto‖ e seu uso no ensino de Língua Materna, em
virtude de muitos desses estagiários terem utilizado o texto como pretexto para o estudo das
nomenclaturas gramaticais, perdendo assim toda sua essência no processo de ensino e aprendizagem de
língua, uma vez que sendo o texto considerado como manifestação da linguagem, os referidos alunos
podiam tê-lo explorado de modo mais significativo nas atividades de leitura, compreensão e produção
textual. Dessa forma, percebemos que os alunos-mestres distanciaram-se consideravelmente da
proposta interacionista da linguagem, esquecendo-se de que nas aulas de Língua Portuguesa é preciso
ensinar a pensar, refletir e construir o sentido dos textos. Mas... como conseguir isso se nas aulas
trilham os caminhos da metalinguagem?

4 Considerações finais
Refletindo sobre a desarticulação dos saberes apontada pelos alunos-mestres, podemos
vislumbrar que no curso de formação de professores investigado precisa ser recuperada a unidade entre
teorias e práticas, porque urge que seja resgatada a coerência entre o discurso oficial contido no PPP e
587
as práticas realmente desenvolvidas nessa licenciatura em Letras, haja vista que não devem existir
divergências entre as concepções propostas para a formação dos futuros professores de Língua
Materna, os objetivos, as habilidades, as competências e a organização do trabalho pedagógico em
função de um perfil de aluno delineado no projeto.
Certamente, o saber fazer torna-se relevante para a organização do processo de ensino e
aprendizagem, contudo, o cerne da ação didática deve ter como base a fundamentação teórica,
especialmente, nos conhecimentos específicos da área de Linguística, de Língua Portuguesa e de
Didática, pois, como já salientamos, a teoria sem a prática é morta e a prática sem a teoria é vazia.
No que diz respeito à visão dos alunos-mestres a respeito do curso, foram elencadas algumas
questões relevantes, dentre elas, a desarticulação entre teoria/prática, que foi considerada como
responsável por muitas das dificuldades encontradas pelos referidos alunos. Essa dissociação provocou
o grande impacto sentido pelos alunos-mestres quando adentraram o contexto institucional escolar,
pois perceberam que as teorias veiculadas no curso de formação estão em grande distanciamento das
práticas efetivas desenvolvidas nas salas de aula de Língua Portuguesa. Em decorrência desse fosso
existente entre teoria e prática, o estágio passa a ter uma concepção instrumental, na qual ocorre a
aplicação dos conhecimentos teóricos adquiridos no curso.
Vale salientar que, na análise dos significados atribuídos pelos alunos-mestres, podemos
depreender que o curso de formação de professores ora investigado tem um caráter conteudístico, em
virtude da grande ênfase dada às teorias linguísticas, literárias e da educação, dissociadas das práticas
pedagógicas, a ponto de os referidos alunos solicitarem a inclusão de uma disciplina de metodologia de
ensino que auxilie na transposição didática dos saberes para os diversos níveis de escolarização. Essa
perspectiva faz-nos vislumbrar que o componente pedagógico do curso precisa dialogar melhor com as
teorias, afinal estamos em um curso de graduação, cujo propósito é a formação de professores.
Nessa perspectiva, queremos apontar que é importante a manutenção de um diálogo entre os
professores formadores das licenciaturas em Letras e Pedagogia, considerando que a formação do
professor de Língua Portuguesa deve ser vista a partir de um continuum, em que os saberes linguísticos e
didático-pedagógicos precisam estar atrelados à prática pedagógica dos alunos-mestres, tanto nas
atividades de estágio como na vida profissional. Contudo, temos observado que no curso de Pedagogia
são enfatizados os conteúdos pedagógicos formais, mas não há avanços nem articulação dos
fundamentos dos estudos da linguagem, ou seja, não se tomam por base as teorias linguísticas,
enquanto que no curso de Letras ocorre uma ênfase nas teorias linguísticas e literárias em detrimento
das disciplinas pedagógicas. Portanto, um tem carência das teorias da linguagem, enquanto o outro se
ressente pela falta de um componente de ensino, isto é, de uma parte teórico-metodológica que facilite
a transposição didática dos saberes linguísticos. Dessa forma, acreditamos que essa dissociação entre as
teorias linguísticas e pedagógicas tem provocado sérios transtornos para os alunos-mestres no
588
momento da transposição dos saberes para o contexto das salas de aula, acarretando dificuldades no
desempenho dos alunos do ensino fundamental e médio, que têm apresentado um baixo de nível de
rendimento escolar, especialmente nas aulas de Língua Materna.
Ao concluirmos o estudo, sentimo-nos na obrigação de sugerir alguns encaminhamentos que,
certamente, contribuirão para a melhoria da qualidade do ensino de graduação dessa licenciatura de
Letras, dentre eles, a revisão do Projeto Político-Pedagógico, por entender que as fragilidades na
execução do referido projeto podem ter provocado as dificuldades apontadas pelos alunos-mestres na
regência de classe. Contudo, sabemos que para viabilizar os encaminhamentos sugeridos será
imprescindível o engajamento de todos os docentes e o apoio da direção do centro, do departamento e
da coordenação do curso. Desse modo, passaremos a conceber o processo de formação de professores
em equipe e como um projeto próprio e autêntico, cuja garantia é o comprometimento de todos os
docentes que atuam no curso de licenciatura. Isso só poderá ser conseguido se os estágios forem uma
preocupação de todos dos professores e funcionarem como eixo articulador de todas as disciplinas e
não apenas daquelas denominadas de práticas.
Enfim, procurar entender como ocorria o processo de formação de professores na licenciatura
de Letras possibilitou-nos indagar até que ponto os alunos-mestres estão preparados para atuar no
mundo do trabalho docente e como o projeto do curso poderia ser melhorado, pois acreditamos que é
possível construir um ensino de qualidade nos diversos níveis de escolarização, a partir de uma
formação de qualidade dos profissionais da área de Língua Portuguesa.

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590

A INTERFERÊNCIA DA LÍNGUA DE PARTIDA NA APRENDIZAGEM DA


ESCRITA EM PORTUGUÊS COMO L2 POR SURDOS E HISPÂNICOS
Ernando Pinheiro Chaves236

Juliana Paiva Santiago237

RESUMO

Este trabalho tenciona examinar a interferência da língua de partida (Espanhol e Libras) do aprendiz em estágio
avançado na produção escrita de português como segunda língua. Para tanto, revisitaremos os conceitos de
interlíngua (STERN, 1970; SELINKER, 1972; KRASHEN, 1974; BROCHADO, 2003), da Teoria da
Aprendizagem Significativa (AUSUBEL, 1968), e de aspectos da aprendizagem da produção escrita em L2 por
surdos e hispânicos (ALMEIDA FILHO, 2001; QUADROS e SCHMIEDT, 2006), a fim de fazer uma análise
qualitativa e de características motivadas pelas interferências de L1 presentes no texto de L2. O processo de
interlíngua, embora caracterizado como estágio natural de aprendizagem de segunda língua, culmina na geração
de erros peculiares advindos da mescla, ora das estruturas sistemáticas dos idiomas, ora do entrelaçamento das
duas culturas (provindas da L1 e L2) durante o processo de reconhecimento e de separação dos sistemas
linguísticos. Com o estágio interlingual inicial superado, percebe-se, no entanto, aspectos linguísticos que
permanecem fossilizados em interlíngua, mesmo quando o aprendiz já se encontra de posse do novo sistema,
comunicando-se parcialmente e/ou eficazmente em L2. Para tanto, apresentamos uma análise de quatro
produções escritas em português como L2, cujos autores são dois sujeitos hispânicos e dois sujeitos surdos, com
idades entre 23-26 anos. O estudo trata de averiguar a natureza desses erros interlinguais com mais profundidade,
bem como as causas que levam os aprendizes de L2 a estarem suscetíveis a não encontrar estabilidade no novo
sistema linguístico e, finalmente, as atitudes discentes diante do erro para levá-lo a aspectos como tolerância e
fossilização.

PALAVRAS-CHAVE: Escrita em L2; Interlíngua; Aprendizagem.

RESUMEN

Este trabajo busca examinar la interferencia de la lengua de partida (Español y Libras) del aprendiz en nivel
avanzado en la producción escrita del portugués como segunda lengua. Para eso, revisitaremos los conceptos de

236 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGL) da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-
mail: [email protected].
237 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGL) da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-
mail: [email protected].
591
interlengua (STERN, 1970; SELINKER, 1972; KRASHEN, 1974; BROCHADO, 2003), la Teoría del
Aprendizaje Significativo (AUSUBEL, 1968), y aspectos del aprendizaje de la producción escrita en L2 por
sordos e hispánicos (ALMEIDA FILHO, 2001; QUADROS e SCHMIEDT, 2006), para un análisis cualitativo y
de características motivadas por las interferencias de L1 presentes en el texto de L2. El proceso de interlengua,
aunque caracterizado como estagio natural de aprendizaje de segunda lengua, culmina en la generación de errores
peculiares provenientes de la mezcla de las estructuras sistemáticas de los idiomas,y, en otro momento, del
entrelazamiento de las dos culturas (procedentes de las L1 y L2) durante el proceso de reconocimiento y de
separación de dos sistemas linguísticos. Con el estagio interlengual inicial superado, se nota, sin embargo,
aspectos linguísticos que permanecen fosilizados en interlengua, aunque el aprendiz ya posea el nuevo sistema,
comunicándose parcial y/o eficazmente en L2. Para eso, presentamos un análisis de cuatro producciones escritas
en portugués como L2, cuyos autores son dos sujetos hispánicos y dos sujetos sordos, con edades entre 23-26
años. El estudio busca averiguar la naturaleza de esos errores interlenguales con más profundidad, así como las
causas que llevan a los aprendices de L2 a tener susceptibilidad a no encontrar estabilidad en el nuevo sistema
linguístico y, finalmente, las actitudes discentes frente al error para llevarlo a rasgos como la tolerancia y la
fosilización.

PALABRAS-CLAVE: Escritura en L2; Interlengua; Aprendizaje

INTRODUÇÃO

Os seres humanos, em particular, adquirem inúmeras habilidades a partir de um conjunto de estratégias


que favorecem a resolução de problemas. Nesta aquisição, a instrução é um fator que permite aos aprendizes o
conhecimento do objeto de estudo. Similarmente, para aquisição de uma segunda língua (L2), é de se esperar que
fatores como interesse, objetivo, tempo, ambiente propício de aprendizagem proporcionem ao aprendiz uma
convergência para obter um alto grau de proficiência, do contrário, podem apresentar dificuldades na
aprendizagem. Neste processo, compreende-se que a língua materna exerce um papel estratégico no
desenvolvimento da aprendizagem de L2, inclusive com sua interferência, podendo causar dificuldades e erros na
produção dos aprendizes.

Entre línguas semelhantes como o Português e o Espanhol, a interferência é vista como um processo
particular. Sobre aprendizes de Português cuja língua materna é o Espanhol, Almeida Filho (2001) afirma ocorrer
o apagamento da categoria de principiantes verdadeiros por compartilharem a base de seu idioma de partida com
a do idioma da língua-alvo, além de parte do léxico, permitindo-lhes iniciar a aprendizagem a partir de um nível
pós-elementar. O aprendiz de Português como L2, ao dispor dos conhecimentos de uma língua com a mesma
origem e com vários pontos de semelhança, poderá tornar o próprio processo de aquisição-aprendizagem mais
acessível.

No entanto, o estágio de interlíngua na aprendizagem de Português por sujeitos hispano-falantes está


propenso a prejudicar o processo pelo mesmo fator, o da proximidade linguística, que aparentemente impulsiona
seu desenvolvimento. Dessa forma, o aprendiz poderá não distinguir o que pertence a cada sistema, prolongando
assim o período interlingual (ALMEIDA FILHO, 2001)
592
No que se refere aos sujeitos surdos, o processo de aquisição de uma língua oral-auditiva, remete a
questões de conhecimento linguístico, cultural, social e afetivo. A aprendizagem desta modalidade de língua
numa perspectiva de L2 aponta em direção à sua representação gráfica (escrita), dado ao seu impedimento
sensorial auditivo. Inserida neste contexto de aprendizagem, a criança surda constrói seus caminhos e dialoga
com suas descobertas de aquisição de L2, a partir do acesso e uso frequente da língua de sinais, uma das
condições que efetiva o papel de primeira língua.

Este trabalho tem o objetivo de realizar um estudo relativo à interferência das línguas, Espanhol e
Libras, respectivamente, da comunidade colombiana e da comunidade surda brasileira, ambas como L1, na
produção escrita de português como segunda língua do aprendiz em estágio avançado (dois ouvintes espanhóis e
dois surdos brasileiros). Para tanto, foram selecionados quatro textos escritos em L2, com base neles, foram
identificadas as características de interlíngua, estratégias de aprendizagem da produção escrita em L2 e
características motivadas pela L1 presentes no texto de L2. Ressaltamos que foi feita uma seleção do material
para análise, oriundo do arquivo dos pesquisadores que foram professores destes sujeitos. As reflexões
construídas nesse trabalho fundamentam-se em Stern (1970), Selinker (1972), Krashen et al. (1974), Brochado
(2003), Ausubel (1968) e Quadros e Schimiedt (2006).

1.REFLEXÕES SOBRE OS ASPECTOS QUE INTERFEREM NA L2

O termo interlíngua fora utilizado pela primeira vez por Selinker (1972) com o intuito de nomear o
sistema intermediário configurado entre a língua de partida e a língua-alvo, ou seja, um processo de aquisição que
se apresenta como um sistema que não representa a língua de partida, porém ainda não representa a língua-alvo.
No entanto, essa percepção já se encontrava no discurso dos estudiosos como sendo um fator que não deve ser
ignorado. Para Stern (1970), os hábitos da língua de partida refletidos na aprendizagem de L2 culminam no erro,
haja vista as tentativas de transferência na formação de sentenças em L2, considerando os aspectos estruturais já
conhecidos pelo aprendiz.

Krashen et al. (1974) afirmam a existência do erro por interferência da língua de partida, contudo,
acrescentam que a maior parte dos erros são advindos da intralíngua ao invés da interlíngua. Sendo assim, a
maioria dos aprendizes adultos adotaria estratégias que se aproximam às adotadas pelas crianças no processo de
aquisição de L1, utilizando-se, por exemplo, de generalizações de regras (como ocorre na tentativa de conjugar
certos tempos verbais irregulares aplicando-lhes regras de regularidade) e analogias (percepção da formação
sintática e elaboração de novos elementos por comparação).

Oller e Ziahosseiny (1970) defendem a ideia de que a interferência da língua de partida pode ser maior
quando os itens a serem aprendidos são similares aos itens do sistema já conhecido pelo aprendiz. Tal
pensamento dialoga com a Teoria da Aprendizagem Significativa de David Ausubel (1968), na qual se afirma que
conceitos aprendidos pelo sujeito interagem com conceitos similares já existentes na estrutura cognitiva do
aprendiz, que, por sua vez, terá de dispor destes conceitos para que a apreensão do novo sistema seja natural e
integral. Esta teoria corrobora, então, com o postulado que rege o processo de interlíngua, ou seja, a
interferência de sistemas. Nesse sentido, podemos afirmar que a interlíngua também se faz resultante de uma
593
interação eficaz entre o sistema linguístico da língua de partida do aprendiz em negociação com o novo sistema
recebido através da L2.

Ferreira (2001) discutirá a fossilização dos erros provocados pela interlíngua que, ao chegarem em
determinado estágio de aprendizagem estarão suscetíveis a fixar-se na L2 como parte do novo sistema. A
propósito dos aprendizes que chegam em estágio avançado na L2 sujeitos a tal fossilização, a autora os classifica
em dois tipos: aqueles que estacionam no processo de interlíngua, não buscando aperfeiçoamento através de
monitoramento na produção em língua-alvo e aqueles mais exigentes que, não satisfeitos com o nível obtido,
buscam aperfeiçoar a língua-alvo e depurá-la dos erros.

O discurso de proximidade entre o Português e o Espanhol costuma ser argumentado como ponto de
extrema facilidade pelo falante de uma na aprendizagem da outra. Contudo, envoltos pela velocidade de
aprendizagem que essa facilidade enganosa supõe, os aprendizes acabam por ignorar a existência dos limites
entre os sistemas, bem como uma série de detalhes particulares que os permeiam, por exemplo: palavras cuja
escrita é similar (novio – noivo; gaivota – gaviota); os falsos cognatos (rato, embarazada); uso preposicional (vou
de taxi – voy en taxi); dentre outros.

Em relação às línguas sinalizadas, estas se assemelham às línguas orais, pelas características próprias das
línguas, papel sociocultural e, ainda a outras necessidades psicossociais. É considerada a língua ideal na aquisição
de primeira língua pelo sujeito surdo. Estas considerações remetem que as características e estágios da aquisição
da língua de sinais como L1, particularmente a Língua Brasileira de Sinais (Libras), por surdos brasileiros, são
comparadas à aquisição da língua oral, no caso o português, por ouvintes brasileiros, o que aponta para
resultados semelhantes na representação mental do conhecimento linguístico e habilidades cognitivas.
(QUADROS e SCHMIEDT, 2006)

As dificuldades de acesso dos sujeitos surdos à língua de sinais são influenciadas pela família, escola e
falta de contato com outros pares sinalizadores, fatores que fazem parte da sua realidade. Mesmo com a primeira
língua adquirida tardiamente, os surdos desenvolvem habilidades linguísticas na língua oral, havendo muitos que
atingem um conhecimento bastante aproximado ao de aprendizes ouvintes de L2 (QUADROS e SCHMIEDT,
2006, p.78). O estudo da interlíngua, no caso dos surdos, pode vir a contribuir, tornando mais evidente os
estágios de desenvolvimento, a constatação de erros, dificuldades, fossilização, interferências de uma língua sobre
a outra (BROCHADO, 2003). Estes aspectos ocorrem similarmente nos textos em português por estrangeiros e
por surdos, porém, espera-se que os surdos, brasileiros, tenham uma maior competência na produção de textos
em português. No entanto, há outros fatores relacionados, tais como, tempo, canal perceptual, contato,
estratégias, motivação, diferenças estruturais que podem acarretar sucesso ou não na aquisição de L2 por surdos.

Brochado (2003), a partir da análise de produções escritas em L2 por surdos, caracteriza os estágios de
interlíngua, afirmando que o texto desses sujeitos não é caótico ou desorganizado, mas apresenta hipóteses e
regras e, aponta estratégias no processo de aprendizagem segundo os estágios de representação para a língua-
alvo.
594
Com relação ao processo de aprendizagem da escrita em L2, este vem sendo marcado por falhas que vão
desde a sua aplicação como atividade à sua avaliação enquanto produto acabado com um fim em si mesmo. Há,
ainda, nas escolas, uma série de resistências, fruto do tradicionalismo ortodoxo que se utiliza dessa atividade
visando apenas à correção gramatical e despreza aspectos e estratégias ali empreendidas que denotam reflexão a
partir do novo conteúdo por parte do aprendiz. Com isso, cabe refletir sob que viés as práticas de ensino-
aprendizagem vêm sendo orientadas e comoo erro do aluno pode vir a ser um fator positivo na (re)construção
do texto.

Lefrançois (2001, p. 228), no que se refere ao planejamento e produção de textos em L2, constatou que
aprendizes de L2, delegam menos tempo ao planejamento, porém conseguem ajustar sua produção quanto às
estratégias de progressão. Ressalta ainda que estudantes de L2 revisam mais os textos em L2 que em L1.

No ato de revisão entre escritores mais e menos experientes, Lefrançois (2001) observa que os primeiros
dedicam atenção a objetivos mais globais tais como reescrever parágrafos no intuito de prezar pela qualidade e
organização textual, delegando aspectos da língua a segundo plano. Já os escritores menos experientes priorizam
erros de ordem superficial em detrimento de averiguar a coerência entre orações. As concepções do que seja um
bom texto são diferentes entre escritores mais experientes, cujos valores estão ligados ao conteúdo, clareza, e
coerência na organização, enquanto para os menos experientes, a gramática e o vocabulário são descriminados
como os pontos mais relevantes.

Vemos, a partir das constatações supracitadas, as crenças regentes da produção textual e revisão que os
aprendizes de L2 em estágios avançados aplicam ao lançar um olhar crítico sobre o desenvolvimento da
habilidade da escrita. Trata-se de uma visão madura que propicia progressos textuais rápidos e que pode ser
enfatizada durante as atividades e avaliações textuais desde os mais tenros estágios de aprendizagem de línguas.

Ademais, faz-se necessário por parte do docente, perceber o texto como um construto que abriga
vivências, reflexos identitários, valorizando este conjunto de práticas sociais a fim de proporcionar um momento
de reflexão cultural aos envolvidos.

2.UM OLHAR SOBRE OS TEXTOS ESCRITOS EM L2 POR SURDOS E HISPÂNICOS

Os TEXTOS 1 e 2 foram produzidos por dois sujeitos que estão há dois anos em processo de
aprendizagem de Português como L2. Ambos os informantes são do sexo masculino, 26 anos de idade, de
nacionalidades colombiana, residentes da cidade de Barranquilla, com ensino superior completo. Os sujeitos
possuem conhecimento de outra língua estrangeira (Inglês) e já tiveram contato com falantes autóctones de
língua portuguesa, mas apenas o autor do TEXTO 1 esteve no Brasil na condição de residente e de estudante da
referida língua por seis meses. O sujeito do TEXTO 2 nunca esteve no Brasil, tendo feito seus estudos de
Português em um curso livre de idiomas na cidade de Barranquilla.

Para a produção dos referidos textos, foi solicitado aos sujeitos que redigissem, em língua portuguesa,
aspectos sobre sua cidade, sem consultar dicionários ou outros materiais, fazendo uso apenas do conhecimento
adquirido na língua-alvo até então. Orientamos que elegessem o meio através do qual o texto seria escrito e
595
ambos escolheram o computador. Os dois sujeitos levaram pouco tempo para a execução total da tarefa e
relataram que se sentiram desafiados a escreverem sem consultar nenhum suporte.

Os TEXTOS 3 e 4 foram produzidos pelos alunos a partir de duas atividades obrigatórias no Curso
Semipresencial de Letras-Libras (turma 2006-2010) e postados no Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem
(AVEA), espaço reservado para cada disciplina. Os referidos textos foram selecionados aleatoriamente e
copiados em formato de arquivo Word, observando-se os critérios de produção por alunos surdos, escritos em
português e ausência de gravuras. Especificamente, o TEXTO 3 foi produzido por um surdo, 23 anos de idade,
cearense, não-oralizado, fluente em Libras, filho de pais ouvintes. O referido texto é resultado de uma atividade
de resumo sobre um trecho do texto-base da Disciplina de Linguística Aplicada (2007). Já o TEXTO 4 foi
produzido por uma surda, 25 anos de idade, pernambucana, oralizada, fluente em Libras, filha de pais ouvintes.
O texto é um resumo de um trecho do texto-base da Disciplina de Aquisição da Linguagem (2006).

Salientamos que os trechos em negrito238 dos quatro textos foram selecionados pelos autores, que
serviram de base para análise e discussão, segundo o objetivo deste trabalho.

TEXTO 1

Barranquilla e uma ciudad que fica em colombia, no norte do pais, na costa caribe, ela e uma das maiores ciudades do pais,
a ciudad fica do lado de o rio magdalena, o maior rio do pais, e muito perto do mar caribe, no oceano atlantico, a
barranquilla tem um porto que e muito importante pelo carater industrial e portuario da ciudade.

Barranquilla alem de isso tem uma configuracao cultural muito importante, pelas diferentes corrientes migratorias que
chegaram la, em diferentes tempos, isso faz que a ciudade tenha caracteristicas cosmopolitas e uma diversidade e riqueza
cultural maior que outras no pais, tambem não tem muita discriminacao e a gente e muito aberta as diferencias e a diferentes
tipos de pessoas, a os extranjeros etc.

A ciudade tem um team de football que e o junior do barranquilla, muito conocido e bom e tem carnavales muito
importantes na Colombia e no mundo, o carnaval de barranquilla que e um das mostras culturales mais importantes e
emblematicas da ciudade, a ciudade tem muitos nomes como: porta de ora da colombia, pelo fato que muitas coisas
chegaram ao pais pelo porto pela primera ves como os autos e avioes tambem a arenosa pelo fato de que a areia do mar
chega a tuda a ciudade pelos ventos fortes, Barranquilla e uma ciudade muito bonita e boa pra vivir, a gente e muito amavel
e aberta, eu gosto da minha ciudade e tenho muita saudade dela.

TEXTO 2

Minha cidade barranquilla tambem conhecida como a ―qurramba‖ tambem a porta de ouro da colombia!, uma cidade que
crece tempo todo, patrimonio da cultura colombiana com o seu carnaval cuatro días cheios de música, danca, cores y
muita alegría, a gastronomía marca pessoal da regiao na colombia, com o seu prato típico de pescado frito, arroz de coco
e patacoes, tambem a típica ―butifarra‖ gostosa mesma com limao bastante, nao pode terminar o recorido pela culinaria sem
mais um doce de coco apetecido pela comunidade em geral a ―cocada‖

Pessoal tem nehum problema em vir à colombia, o único problema è que voce nao vai querer ir mais daqui nao, minha
cidade barranquilla gente calida, alegre, amavel cidade que ve com vontade o futuro sem jogar suas raízes afora, sempre
tendo presente sua cultura, cantores, jogadores de futebol reconhecidos no mundo sao parte da mina cidade: shakira, teofilo
Gutiérrez e outros.

238 Todos os grifos na amostra são nossos.


596

TEXTO 3

Li o TEXTO de Gesser 2006, explica o que sobre a língua materna, a aquisição de L2 da criança não tem interferência de
erros da L1, muitas crianças já podem aprender L1 com a Libras e L2 o português, por isso depende do momento, da
família surda ou ouvinte fluente na Libras. Sobre a relação de entre português e Libras, eles ouvintes aprender Libras L2,
quem profissional professor ensinar é surdo, minha impressão como ouvinte aprendeu já a Libras, eles ouvintes
pensavam o que? Libras também português mesma coisa nada comparar, mas perceber tem 2 línguas distintas
(diferente), descobrir impressionar como professor surdo tem habilidade de explicar ensinar Libras e conhece o português,
para ouvinte é já aprende sua L1 português e tentar Libras como L2, isso é Bilinguismo, 2 língua dentro um só individuo.
Um ouvinte falou que da tendência usar sinalizar o português, não concordo, não dar certo português sinalizado não tem
sentido porque a estrutura é diferente de Libras. Por isso confunde aprendendo Libras utilizando a escrita de português
mas é na base de L1.

TEXTO 4
A minha realização da pesquisa com a teoria entre Vygotsky e Bakhtin. Esse objetivo com a base oral e escrita que foram
produzidos pelos autores com o texto fácil para acordar os interesses ao leitor. As idéias de Vygotsky e Bakhtin que
aprenderam as pesquisas da educação. A proposta de Vygotsky é uma visão de linguagem da formação da consciência do
indivíduo; A outra proposta de Bakhtin é o que trata pelos professores da língua portuguesa e por alfabetizados.
Tudo isso para mostrar o desenvolvimento acadêmico que começou a estudar bastante e criar os profissionais do ensino. A
educação pode mudar psicologamente como social e cultural que vive pela educação observadora que se muda.
As possibilidades de conhecimentos como a lingüística que questiona os estudos da teoria sócio-histórica atual para os
países. O objetivo da pesquisa com a base de texto entre Vygotsky e Bakhtin foram possuído para fazer o trabalho em
relação dialógica entre psicologia e na educação que ajuda a entender o conhecimento.
O processo dos autores que resultaram a própria compreensão das teorias para espalhar o conhecimento que ela se aponta
pela divulgação através do ensino e valorizar os profissionais da educação.
Tomando por base os pressupostos teóricos sobre interlíngua e produção escrita em L2 aos quais nos
referimos neste artigo, elaboramos três categorias que contemplaram os grifos que acreditamos serem
provenientes da interferência da língua de partida na língua-alvo presentes nos textos, quais sejam: a) com Parcial
Interferência; b) em Negociação; c) com Total Interferência.

Ressaltamos que nos TEXTOS 1 e 2, as análises foram realizadas a partir de parâmetros morfológicos,
enquanto que os TEXTOS 3 e 4 partiram de análise no tocante ao parâmetro sintático e semântico. Estas
diferenças são decorrentes de que nos primeiros, os textos estão escritos na mesma modalidade de língua, ao
passo que nas últimas análises a língua de partida é uma língua de modalidade visuoespacial e que os textos estão
escritos numa modalidade oral-auditiva e de escrita alfabética.

Denominamos de Parcial Interferência, aquela categoria cuja grafia e sentença estão adequadas
graficamente ao sistema da língua-alvo, porém a estrutura permanece com traços da língua de partida ou vice-
versa. No TEXTO 1, encontramos exemplos desta categoria, quanto à construção preposição–artigo a+os; de+o e
a construção preposição–pronome demonstrativo, de+isso. Observamos nestes exemplos, estruturas similares que
ocorrem com a língua de partida, ou seja, construções de preposição-artigo e preposição-pronome possessivo
são falados e escritos isoladamente (de la; a los; de eso) e não há predominância de casos de contração como em
Português (do; aos; disso)239. Entretanto, percebe-se que o sujeito reconhece a grafia tanto da preposição como
do artigo e do pronome em língua portuguesa, não havendo, nesse ponto, interferência da escrita em Espanhol.

239 Em Espanhol encontramos apenas dois casos de contração entre preposição e artigo definido que são: del e al.
597
A interferência então, se limitou à forma como está estruturado. No TEXTO 3, a sentença ―quem profissional
professor ensinar é surdo‖, a presença indireta de uma interrogação através do uso do pronome interrogativo
quem, cuja resposta é professor surdo. Na língua de partida, esta interrogação seguida de uma resposta apresenta
ideia de ênfase. No TEXTO 4, a sentença que vive pela educação observadora que se muda, o termo vive traz o sentido
de presença, pois é o mesmo sinal para viver, vida, estar presente. Sintaticamente, esta frase é inadequada na
estrutura da língua-alvo, porém a língua de partida explicita uma construção tipo tópico-comentário.

A segunda categoria, Em Negociação, é caracterizada por haver, no mesmo texto, duas ou mais formas
de escrita da mesma palavra ou, ainda, acréscimo de palavras a fim de tornar a sentença mais compreensível.
Dessa forma, encontramos a palavra cidade, por exemplo, é encontrada no TEXTO 1 escrita de três maneiras
distintas: ciudad, ciudade e no plural ciudades; Vemos também a presença da combinação preposição–artigo definido
caracterizado em língua portuguesa por sua contração (de + o: do), que, ora aparece, no TEXTO 1, grafado sob
Parcial Interferência (de o), e em outros momentos aparece totalmente de acordo com a grafia do sistema da
língua-alvo (do). Com relação ao TEXTO 2, encontramos a conjunção aditiva y do Espanhol, usada no texto
intercaladamente à conjunção e do Português. A ocorrência dessa multiplicidade de grafias para o mesmo termo
revela uma tentativa de negociação entre os sistemas. Percebeu-se ainda a grande presença de palavras que, assim
como ciudad, apresentam diferenças mínimas na grafia entre o Português e o Espanhol, tais como: diferencia,
corrientes, conocido, extranjero, vivir, encontradas no TEXTO 1 e, no TEXTO 2, palavras como crece, cuatro, patrimonio,
gastronomía, alegría e días. Como podemos constatar, tais palavras possuem a grafia similar, diferindo em
acentuação ou alguma letra, mas são palavras existentes em ambos os sistemas com o mesmo significado. Estes
termos poderão acarretar um menor índice de fossilização, por tenderem à transição, ora com a grafia da língua-
alvo, ora com a grafia da língua de partida, ora como um híbrido entre os sistemas. No TEXTO 3, a frase Libras
também português mesma coisa nada comparar, mas perceber tem 2 línguas distintas (diferente) e não tem sentido porque a estrutura
é diferente de Libras, ocorre, inicialmente a presença, ora da conjunção também em substituição a e, ora da conjunção
e que não há um sinal na Libras, portanto em negociação. Percebe-se uma predominância de termos sinônimos
como em distintas e diferente ou mesma coisa e nada comparar, que a autora está em processo de negociação nos dois
sistemas e decide por registrar os dois termos sem uma preocupação com a estrutura sintática e de síntese na
língua-alvo, e às vezes opta por um só termo, como no caso da segunda frase para o termo diferente. No TEXTO
4, a frase o texto fácil para acordar os interesses ao leitor também se apresentam sentidos semelhantes na língua de
partida, em acordar e interesse, pois o sinal para ambos são realizados na região da face, mais especificamente à
frente aos olhos do sinalizador.

As observações acerca da grafia podem ser estendidas também para o contexto do significado e da
construção sintática da sentença, pois os termos se repetem e se negociam na transferência da Libras para a
língua portuguesa e em todas as consequentes interferências de uma sobre a outra.

A terceira classificação, Total Interferência, caracteriza-se pela presença de palavras e expressões que não
pertencem ao sistema da língua-alvo e que, no entanto, são totalmente incorporadas a ele. Esses itens podem
guardar menos semelhanças com os itens correspondentes (fonética ou graficamente) na língua de partida – no
caso, o Espanhol – sendo usados de forma absoluta nos textos como se integrassem o novo sistema (da língua
598
portuguesa). Dessa forma, classificamos as ocorrências no TEXTO 1 em autos (por carros), e a expressão com
interferência de outra L2 (Inglês) team de football. No TEXTO 2 aparecem incorporados os itens pescado, apetecido e
calida. Percebeu-se que estes itens não traziam aspas ou qualquer indicativo que demarcasse os estrangeirismos ali
utilizados, característica que revelaria consciência do aprendiz estar se utilizando de um item pertencente a outro
sistema que não o da língua-alvo. Não obstante, para afirmar que esses itens estão realmente fossilizados no
sistema da língua-alvo do aprendiz seria necessária uma amostra mais relevante numericamente.

Por outro lado, a reflexão acima não se aplica neste estágio de conhecimento de língua portuguesa pelos
surdos, visto que as palavras são representadas através da soletração manual, utilizando-se do alfabeto manual
que é uma correspondência das letras através das configurações de mão do sinalizador. A análise, aqui
apresentada, refere-se à Interferência da estrutura predominantemente sintático-semântica da Libras sobre a
produção em língua portuguesa.

Ao analisar os TEXTOS 3 e 4, percebe-se uma maior interferência da estrutura da língua de partida


daquele texto em detrimento a este. Há vários fatores que concorre para esta manifestação, uma delas é o nível e
grau de contato e de abordagens diferentes que os autores apresentam no seu processo de escolarização com a
língua-alvo. O que se observa é que há uma maior proximidade com as regras gramaticais e estruturais no
TEXTO 4 em relação ao TEXTO 3. Para o leitor de língua portuguesa, percebem-se algumas características
diferentes e inadequadas, de estágios de interlíngua, tais como, pontuação inadequada ou ausente, uso de artigos
e de preposições, às vezes ausentes, outras vezes inadequados, pouco uso de conjunção e de outros conectivos,
de termos de ligação entre os parágrafos, dentre outros (BROCHADO, 2003). Dessa forma, queremos destacar,
por exemplo, a frase do TEXTO 3, eles ouvintes aprender Libras L2, e do TEXTO 4, fazer o trabalho em relação
dialógica entre psicologia e na educação que ajuda a entender o conhecimento. Estas sentenças, portanto, revelam a estrutura
da língua de partida sobre a escrita e que deve ser analisado com uma maior profundidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consideramos que os textos, aqui analisados, são de sujeitos com um bom domínio da língua-alvo.
Apesar de serem brasileiros, os surdos mantêm uma relação de L2 com a língua portuguesa na mesma proporção
que os sujeitos ouvintes colombianos.

Em relação aos autores deste trabalho, um pesquisador apresenta fluência na Libras enquanto que o
outro no Espanhol. Acreditamos que isto colaborou, como um dos fatores, a fim de que as análises fossem vistas
com um olhar mais criterioso, sobretudo quando estiveram envolvidos dois pares de sistemas linguísticos, quais
sejam, Espanhol-Português e Libras-Português.

A discussão sobre a modalidade de língua, no caso, da visuoespacial para oral-auditiva foi outro aspecto
que influenciou nas análises. Dessa forma, conseguimos ampliá-las à luz dos parâmetros sintáticos e semânticos,
e, assim, identificar as interferências desta língua de partida para a língua-alvo nos textos escritos. Ao
compararmos os quatro textos, os TEXTOS 1 e 2 escritos por colombianos se aproximam mais da estrutura da
língua-alvo do que os TEXTOS 3 e 4 escritos por surdos brasileiros, trazendo marcas mais próximas da língua
599
portuguesa. Parece-nos uma contradição, mas o estudo revelou que não é o fator da região geográfica, mas as
especificidades da língua, por exemplo, a sua modalidade que se tornou significativa nestes casos, mesmo
considerando que os quatro sujeitos tenham clareza da presença e das particularidades da língua-alvo.

Além disso, acreditamos que as categorias usadas nesta análise podem auxiliar o docente de língua-alvo a
detectar a natureza e o grau de interferência que a língua de partida exerce sobre ela e, a partir daí, elaborar
estratégias e atividades cujo foco esteja voltado ao tratamento proveitoso das ocorrências entre sistemas.

REFERÊNCIAS

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BROCHADO, S. M. D. A apropriação da escrita por crianças surdas usuárias da língua de sinais brasileira. 2003. 431f.
Tese (doutorado em linguística) - Faculdade de Ciências e Letras de Assis - Universidade Estadual Paulista, São
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FERREIRA,I.A. A interlíngua do falante de espanhol e o papel do professor: aceitação tácita ou ajuda para superá-la. In:
ALMEIDA FILHO, J.C. (org.). Português para estrangeiros interface com o espanhol. Campinas, SP: Pontes,
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SELINKER, L. Interlanguage. IRAL, x.3,1972.

STERN, H.H. Perspectives on second language teaching. Toronto: Ontario Institute for Studies in Education, 1970.
600
REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS DA FIGURA FEMININA (RIO
GRANDE DO NORTE – 1926/1929)
Karla Geane de Oliveira240

Resumo: Neste trabalho, temos por objetivo analisar como se constrói a representação discursiva da
figura feminina no jornal O PORVIR, periódico quinzenal que circulou na cidade de Currais Novos no
estado do Rio Grande do Norte, de 02 de maio de 1926 até 20 de janeiro de 1929. Pautamo-nos no
nível semântico do texto, fazendo uso de uma das principais noções utilizadas pela Análise Textual dos
Discursos para esse tipo de procedimento analítico que é a Representação Discursiva, a qual constitui-
se das representações do enunciador, do ouvinte ou leitor e dos temas tratados no texto, considerando,
desse modo, que todo texto constrói várias representações discursivas. Para tanto, utilizaremos cinco
categorias semânticas de análise, a saber: referenciação, predicação, modificação, localização espacial e
temporal, conexão e analogia, cada uma contribuindo para a construção da representação discursiva da
figura feminina.

Palavras-chave: Análise Textual; Representação Discursiva; Semântica.

Abstract:

The objective of this paper is to analyze how the female figure was portrayed in discursive narratives in
the bi-weekly newspaper ―O PORVIR‖, which circulated in the city of Currais Novos, in the state of
Rio Grande do Norte, Brazil, between May 2, 1926 and January 20, 1929.We based our analysis on text
semantics by applying one of the primary frameworks used in textual analysis of speeches, Discourse
Representation. Discourse Representation consists of representations from the speaker, the auditor or
reader, and the themes approached in the text, thereby acknowledging that all texts consist of various
discursive representations. In our study we use five semantic categories for analysis. These include:
referencing, preaching, modification, spatial and temporal localization, connection, and analogy, each
contributing toward the construction of the discursive representation of the female figure.

Keywords: Textual analysis, Discursive representation, Semantics

1. Introdução

O presente texto trata do processo de construção da representação discursiva da figura


feminina em um jornal norte-rio-grandense,compreendendo o período de 1926 a 1929.
A discussão posta encontra-se amparada pelo aporte teórico metodológico da Linguística
Textual, está inscrita na Análise Textual dos Discursos, e focaliza o nível semântico do texto,
especificamente a noção de representação discursiva, retomando os trabalhos de Grize(1996) e Adam
(2012), a partir dos quais pressupomos que todo texto constrói, com maior ou menor abrangência,
representações (imagens) do seu locutor/enunciador, bem como do seu destinatário, dos temas
tratados e da situação de enunciação.

240
Mestre em Estudos da Linguagem no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem/UFRN.
E-mail: [email protected]
601
No âmbito da Representação Discursiva, Adam (2012, p.113-114) postula que:

Toda proposição enunciada possui um valor descritivo. A atividade discursiva de


referência constrói, semanticamente, uma representação, um objeto de discurso
comunicável. Esse microuniverso semântico apresenta-se, minimamente, como um
tema ou objeto de discurso posto e o desenvolvimento de uma predicação a seu
respeito. A forma mais simples é a estrutura que associa um sintagma nominal a um
sintagma verbal, mas, de um ponto de vista semântico, uma proposição pode muito
bem se reduzir a um nome e um adjetivo.

Refletindo sobre essas questões teóricas, observamos que toda proposição, entendida como
―microuniverso semântico‖, constitui uma representação mínima. A dimensão referencial da
proposição apresenta certa ―imagem‖ dos referentes discursivos, tendo em vista que cada expressão
utilizada categoriza ou perspectiva o referente de certa maneira e, ao se tratar do funcionamento textual
mínimo, uma representação discursiva se constitui por uma rede de proposições e uma rede lexical,
(RODIRGUES; PASSEGGI; SILVA NETO, 2010).
Para podermos situar teoricamente a noção de representação discursiva, retomamos Passeggi
(2001),que apresenta categorias lógico-discursivas de descrição dos enunciados.Quanto aos postulados
da comunicação discursiva, Passeggi (2001, p.248) considera que:

O postulado das representações remete às ―representações mentais‖ dos


interlocutores. Embora a lógica natural não pretenda examinar a realidade psicológica
das representações mentais – pois, enquanto lógica, foge das interpretações
psicologizantes – ela assume que os interlocutores têm representações e que estas são
fundamentais na comunicação discursiva.

Esse autor também defende que:

Toda esquematização contém imagens que, na terminologia de Grize, são os


elementos visíveis no texto para um observador, ressalvadas as interpretações
possíveis. As imagens, enquanto objetos textuais, diferem das representações, que são
relativas a A e a B que tem uma existência mental. Uma parte do trabalho de análise
consistirá em inferir, a partir das imagens, as representações dos interlocutores.
(GRIZE,1996, p. 70, apud PASSEGGI, 2001,p.249)

Considerando o ponto de vista posto na citação anterior, observamos que a esquematização


coloca três tipos de imagens, a saber: do locutor, do destinatário e do tema tratado. E neste sentido,
Passeggi (2001) explicita que as imagens do locutor são, habitualmente, menos aparentes, visto que nem
sempre pode descrever-se no discurso; quanto às imagens dos temas tratados, dizem respeito ao
conteúdo posto na esquematização.
Consoante Adam (2011); Rodrigues; Passeggi; Silva Neto (2010) e Passeggi et al (2010),
entendemos que as representações são perspectivadas a partir da proposição-enunciado, sendo a
602
representação discursiva uma dimensão constante no desenvolvimento do texto, que pode apresentar-
se em diferentes partes, não obedecendo às sequências lineares no plano textual, visto que todo texto,
para Adam (2011), traz pressupostos conhecidos e também novos, e que estes são responsáveis pela
coesão e pela expansão da informação.
Nesse contexto, os objetivos deste trabalho distribuem-se em duas direções: (1) analisar como
se constrói a representação discursiva da figura feminina no jornal O PORVIR (Currais Novos/Rio
Grande do Norte – 1926/1929), (2) contribuir para os estudos da representação discursiva na
perspectiva da análise textual dos discursos.
Quanto ao corpus, optamos por utilizar o jornal o PORVIR,pelo grande número de textos
relacionados à figura feminina que apresentava, de forma mais ou menos intensa, em suas edições.
Esse jornal eclodiu visando difundir as letras curraisnovenses. Um grupo de intelectuais,
imbuído de um espírito de mudança e renovação, produziu um periódico quinzenal abordando
conteúdos como humor, literatura, notícias e atualidades, incluindo notas sobre as figuras ilustres que
visitavam a cidade, notas sobre festas religiosas, embates intelectuais, como o do uso da crase
antecedendo determinadas palavras, sobre a grafia de vocábulos da Língua Portuguesa, notas de
aniversários, casamentos, falecimentos e propagandas.
É mister salientar que esta investigação pretende contribuir para a análise dos procedimentos
linguísticos de construção do texto, especialmente os semânticos. Também para as pesquisas no âmbito
do grupo da Análise Textual dos Discursos, coordenado pela professoraMaria das Graças Soares (UFRN),
e no grupo Semântica do Português Brasileiro, coordenado pelo professor Luiz Passeggi (UFRN).
Pode contribuir ainda para o estudo diacrônico do português brasileiro, bem como para o
Projeto História do Português Brasileiro (PHPB), coordenado pelo professor Ataliba de Castilho. Pode
também se constituir como uma contribuição para o projeto Documentos Históricos do Rio Grande do Norte,
coordenado pela professora Maria das Graças Soares (UFRN/PUCSP/UNICAMP), bem como para os
estudos linguísticos do texto, quanto às análises semânticas e para a análise do discurso, e áreas
conectas, que tratarem do tema.

2. Categorias semânticas de construção da representação discursiva

Ao analisarmos a representação discursiva da figura feminina no jornal O PORVIR, levamos


em consideração as seguintes categorias: referenciação, predicação, modificação, localização espacial e
temporal, conforme definidas no quadro síntese a seguir:
Quadro 1: categorias de análise
Categoria de Análise Síntese
Referenciação Designação dos participantes, aquilo que designamos,
representamos, sugerimos quando usamos um termo ou
criamos uma situação discursiva referencial.
603
Classes, palavras e expressões equivalentes Substantivos e termos equivalentes.
Predicação (verbal) Compete a designação dos processos e ao
estabelecimento da relação predicativa no enunciado.
Classes, palavras e expressões equivalentes Verbos e expressões equivalentes.
Modificação Diz respeito a uma categoria que se refere às
características ou propriedades. Estas podem ser tanto
dos referentes quanto das predicações.
Classes, palavras e expressões equivalentes Adjetivos e expressões equivalentes; advérbios e expressões
equivalentes.
Localização Indica as circunstâncias espaço temporais nas quais os
processos e os participantes se desenvolvem.
Classes, palavras e expressões equivalentes Advérbios e/ou expressões adverbiais de tempo e/ou lugar.
Conexão Permitirá identificar as ligações semânticas entre os
enunciados do texto.
Classes, palavras e expressões equivalentes Conjunções e expressões equivalentes.
Analogia Utilização, no texto, das comparações e/oumetáforas.
Classes, palavras e expressões equivalentes Comparações, metáforas e expressões equivalentes.

3. A representação discursiva da figura feminina no jornal O PORVIR

3.1 Referenciação Modificadores do referente Número de ocorrências


01 Senhorinha (s) Certa / inteligente / prendada /gentil 96
/distinta /
gentilíssima /dileta
02 Filha (s) / filhinha Distintas / dileta / mimosa / 89
interessante /querida /digna /
Gentil / amantíssima
03 Mulher Coitadinhas / melindrosa / sempre 51
virgem / potiguar / brasileira /
norte-rio-grandense / bonita /
sonhadora /sempre sedutora / de
letras / mãe verdadeira /que usa
trança / com seu estilo delicioso e
macio / com seus maneios ternos e
afetivos
04 Senhora(s) Excelentíssima / virtuosa / 47
respeitosa / alma generosa / tão
cheia de virtudes / de qualidades
modelares /digníssima / dotada de
exemplos e qualidades /
galvanopolitanas /desditosa / de 40
anos
05 Esposa Digna / distintíssima / digníssima 39
Virtuosa / excelentíssima/
inesquecível / gentilíssima
06 Mãe Sublime / fortes / verdadeira / boa 32
/santa / ente dileto / vocábulo que
exprime tudo que é bom para um
filho / querida /salvadora / mestra /
guia /redentora /de família / quem
primeiro vos acariciou e nutriu /ente
querido que lhe deu a vida /sacrário
da firmeza /sempre idolatrada
07 Consorte Digníssima/ excelentíssima /digna 27
08 Mademoiselle Modesta / encantadora / elegante / 22
altiva / bela / sedutora / gentil /
delicada / flor 09magnificante /
09 Senhorita Gentil/ distinta / prendada / 18
inteligente
10 Irmã(s) Prezada / dedicada 14
dileta /querida
11 Moça(s) / mocinha Muito /certa / toda gentil / toda 11
604
graciosa / linda
12 Professora Competente / digna / inteligente 9
/distinta
13 Aniversariante Distinta / ilustre / gentil / digna 9
14 Amiga / Amiguinha Doce / risonha / gentil / bondosa 8
/pobre
15 Fino elemento de (a) nossa 5
sociedade
16 Alunas Inteligentes 4
17 Noiva Querida 4
18 Progenitora Digna / distinta 3
19 Sobrinha Gentil / cara / digna 3
20 Genitora Digna 2
21 Nataliciante Distinta 2
22 Sexo imberbe 2
23 Um fino elemento de nossa elite 2
24 Administradora Fina 1
25 Alma tão pura 1
25 Alma generosa e tão cheia de 1
virtudes
27 Alvíssima saudade 1
28 Anjo de primor 1
29 Conceituado elemento de nosso 1
escol social
30 Cunhada 1
31 Damas 1
32 Educadora Emérita 1
33 Elemento de escol naquele meio 1
34 Elemento essencial do lar 1
35 Enteada 1
36 Escritora Inteligente 1
37 Espírito livre, sutil, delicadíssimo 1
38 Essência cristalina 1
39 Fino elemento social em nosso meio 1
40 Flor do meu ser Pura e santa 1
41 Flor peregrina de raras virtudes 1
41 Graciosa margarida 1
43 Indispensável à formação futura da 1
família
44 Irmã gêmea do amor 1
45 Joia de alto valor estimativo 1
46 Linda sempre-viva 1
47 Lindo botão de rosa 1
48 Menina 1
49 Mimosa violeta 1
50 Minha banda que castra 1
51 Minha flor 1
52 Ninfas Encantadoras 1
53 Nora 1
54 Normalista Inteligente 1
55 Nossas patrícias 1
56 Obra mais perfeita da criação 1
57 Ornamento da elite curraisnovense 1
58 Patrícia Norte-rio-grandense 1
59 Sacrário da firmeza 1
60 Saudosa extinta 1
61 Senhora do meu verso 1
62 Sexo feminino Belo / fino 1
63 Sexo que ironicamente se intitula de 1
frágil
64 Tão poeticamente decantado tipo 1
feminino
605
65 Tia 1
66 Um bichinho que fala como 1
periquito
67 Um distinto elemento de nossa elite 1
social
68 Um elemento de escol em nosso 1
meio
69 Um encanto pleno de atrações 1
70 Um real elemento de nosso escol 1
social
71 Uma chuva de consolações e de bem 1
72 Uma descendente da esposa de Adão 1
73 Uma mimosa violeta 1
74 Uma senhora dotada de exemplares 1
qualidades
75 Verdadeira grinalda de flores 1
intelectuais
76 Virgem da minha alma 1
77 Vitalina 1

3.2 Predicação Nº de Modificadores


ocorrências
É 9 justamente
Estava 7 parecendo
És 6
Está 5 não
Desfrutam 4
Goza 4
Chorando 2
Receberá 2 certamente
Trazia 2
Acaba de alcançar 1
Adoras 1
Bebe 1 logo
Começar a mexer 1
Comentava 1
Conduzia 1
Consagras 1
Conservava 1
Conservava-se 1
Contemplava 1
Dardejava 1
Dedicava-se 1 com ardor
Defender 1
Desfolhava 1
Deixava transparecer 1
Demonstrar 1
Destilava 1
Deve 1 não / só
Deve aproveitar-se 1
Deveria receber 1 primeiramente
Distribuía 1
Distribuía 1
Educa 1 bem
Educam 1 bem
Educar 1
Eis-te 1
Era 1 aparentemente
Estavam 1
Faço 1 nada
Fala 1 mais
606
Fará 1
Faz jús 1
Inocula-lhes 1
Irão 1 não
Irão 1 também
Irão votar 1
Libertar-se-á 1
Ocultava-se 1
Ocupa 1
Oferecia 1
Parecendo estar 1 muito
Perderá 1 não
Poderia sondar-lhe 1 só
Povoavam 1
Praticar 1
Precisa evitar 1
Prende 1
Prepara 1
Prestam 1
Prima-se 1
Primavam 1
Proclamava 1
Procura fazer 1
Procura instruir 1
Repartias 1
São 1 possuidoras
Se mostra 1
Seduzia 1
Sofrerá 1 não
Sou 1
Tinha 1 efetivamente
Usufrui 1
Vem demonstrando 1
Vem pleiteando 1
Vem pleiteando 1
Vi entrar 1
Consorciou-se 1

3.3 Localização Espacial Nº de ocorrências


Nesta cidade 13
Desta cidade 12
Desta cidade 12
Natal 12
Em nosso meio 10
Nossa sociedade 8
Cidade/município de Santana do Matos 5
Neste / deste município 5
Santana do Matos 5
Capital do estado 4
N‘esta praça 4
Norteriograndense 4
Colégio Imaculada Conceição 3
Esta cidade 3
Nosso escol social 3
Em nossa sociedade 2
Fazenda tostado 2
Grupo escolar Capitão Mor Galvão 2
Lá 2
Nosso meio social 2
O povo de Galvanópolis 2
Residente em Cerro Corá 2
607
Aqui 1
Aqui na cidade 1
Aqui no alto sertão 1
Capital baiana 1
Capital Federal 1
Capital Paraense 1
Capital pernambucana 1
Cidade de Mossoró 1
Cine união 1
Conceituado educandário 1
Continente sul americano 1
Currais Novos 1
Da cidade de Parelhas deste estado 1
Daqui da serra 1
De todos os países 1
Desta praça 1
Desta terra 1
Em casa de suas dignas famílias 1
Em casa do ilustre médico 1
Em casa do mesmo 1
Em casa do nosso prezado amigo Cel. João Alves 1
Em nosso estado 1
Entre nós 1
Fazenda floresta no município de Papary 1
Fazenda Marcação 1
Grupo Escolar Amaro Cavalcante 1
Lar doméstico 1
Moradores da rua do Rosário 1
Município de santa cruz 1
Na cidade de Acary 1
Na luta do ‗pega-pega‘ 1
No antigo salão da intendência municipal 1
Nossa terra 1
Nosso continente 1
O lar 1
Países estrangeiros 1
Países estrangeiros 1
Porto Alegre 1
Povoado Melão município de Santa Cruz 1
Praia de Touros 1
Região Nordeste 1
Região nordeste 1
Residente em Recife 1
Residia em Canes (França) 1
Sítio malhada Limpa deste município 1
Sociedade galvanopolitana 1
Vila de são Tomé 1

3.4 Localização temporal Nº de Ocorrências


No dia 29, No dia 4, No dia 29, No dia 28, No dia 25, 66
Dia 17, No dia 23, No dia 16, No dia 24, No dia 26, No
dia 8, No dia 10, No dia 13, No dia 23, No dia 6, No dia
28, No dia 28, No dia 16, No dia 19, No dia 23, No dia
24, No dia 2, No dia 4, No dia 8, No dia 13, No dia 15,
No dia 22, No dia 8, No dia 10, No dia 11, No dia 18,
No dia 23, No dia 25, No dia 26, No dia 28, No dia 31,
No dia 01, No dia 13, No dia 15, No dia 13, No dia 14,
No dia 15, No dia 23, No dia 30, No dia 5, No dia 7,
No dia 11, No dia 29, No dia 23, No dia 26, No dia 2,
No dia 10, No dia 13, No dia 26, No dia 23, No dia 26,
No dia 13, No dia 20, No dia 30, No dia 03, No dia 6,
608
No dia 14, No dia 20, No dia 28, No dia 2, No dia 6,
No dia 11, No dia 12, No dia 19, No dia 23, No dia 27,
No dia 30, No dia 15, No dia 29, No dia 28, No dia 20,
Quando 14
A 6, A 16, A 22, A 31, A 30, A 24, A 13, A 15, A 19 9
Hoje 9
Dia 14 docorrente, Dia 13 do corrente, Dia 14 do 8
corrente, Dia 02 do corrente, Dia 12 do corrente, Dia 9
do corrente, Dia 14 do corrente, Dia 19 do corrente,
Há dias 6
Na mesma data 6
Na mesma data 6
No mesmo dia 6
Agora 5
Amanhã 5
Em 21 do fluente, Dia 3 do fluente,Dia 11 do fluente, 5
Dia 13 do fluente, No dia 7 do fluente
Sempre 3
À noite, 2
Anteontem 6 do corrente 2
Data natalícia 2
Dia 28 do mês p. findo, Dia 26 do mês p. findo/ 2
Em dias da última semana 2
Em igual data 2
Em igual data 2
12 de outubro de 1809 1
15 do andante 1
A 17 deste mês 1
Ainda nesta data 1
Anos depois 1
Ao mesmo tempo 1
Até pouco tempo 1
Brevemente 1
De há muito 1
De hora em diante 1
De hora em diante 1
De repente 1
Depois 1
Desde amanhã transacta 1
Desde já 1
Desde os mais verdes anos 1
Dia 10 de maio p. findo 1
Dia 16 do andante 1
Dia 6 do mês corrente 1
Dia 6 do mês p. passado 1
Durante vários meses 1
Em dia 1
Em dias da semana finda 1
Em dias desta semana 1
Em dias do corrente mês 1
Em dias do mês próximo passado 1
Em pleno vigor de sua existência 1
Enquanto 1
Faz alguns anos já 1
Há alguns dias 1
Há alguns meses 1
Há dois anos 1
Há mais tempo 1
Há mais tempo 1
Há uma vintena de séculos 1
Já 1
Logo em terna idade 1
Longo tempo 1
609
Na quinta-feira última 1
Na quinta-feira última 1
Nesse dia 1
Neste mesmo dia 1
No dia 10 de maio de p. findo 1
No dia 10 do corrente 1
No dia 10 do corrente 1
No dia 12 de abril próximo findo 1
No dia 15 de março 1
No dia 20 de dezembro p. findo 1
No dia 31 do mês próximo passado 1
No dia 4 do corrente 1
No dia em que 1
No limiar dos anos 1
No meu tempo 1
No próximo dia 23 1
O mês próximo findo 1
Ontem à noite 1
Passagem do seu natalício 1
Próximo dia 11 1
Próximo dia 24 1
Rapidamente 1
Sábado passando 1
Sábado último 1
Semana p. passada 1
Semana atrasada 1
Sete anos depois 1
Sexta feira última 1
Tempos paganizados 1
Transcurso do aniversário natalício 1
Transcurso do tempo 1
Ultimamente 1
Ultimamente 1
Um dia 1
Vários meses 1

3.5Conexão Nº de Ocorrências
E 49
Como 32
Porque 12
Mas 11
Pois 9
Assim 7
Porém 5
Portanto 5
Conforme 2

3.6Analogia Nº de Ocorrências
Fala como perequito 1
Os seus olhos, quais pirilampo em noite escura 1
Tão formosa como a aurora no mar do gelo 1
Vivia qual espuma andando sobre um lago 1
Total de ocorrências 4

4. Considerações Finais
610
A categoria semântica de referenciação designa a figura feminina de diferentes maneiras. Essa
categoria é nomeada por substantivos e expressões equivalentes. Os modificadores do referente
constituem-se por meio dos adjetivos e expressões equivalentes.
A predicação, como categoria de análise, se refere aos verbos e expressões equivalentes, ações,
estado e mudança de estado do referente, cujos modificadores são circunstâncias adverbiais que
modificam o verbo.
As localizações, divididas em espaciais e temporais, constituem-se de palavras e expressões que
indicam as circunstâncias de lugar e de tempo em que se desenvolvem os processos verbais.
As conexões ligam os enunciados, estabelecendo relações semânticas e articulando-os, na
construção do seu sentido. Já as analogias, acontecem por meio da comparação entre palavras ou
termos, estabelecendo relações semânticas.

REFERÊNCIAS:

ADAM, Jean-Michel. A linguística textual: Introdução à análise textual dos discursos. Tradução de
Maria das Graças Soares e outros. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
PASSEGGI, et al. A análise textual dos discursos: para uma teoria da produção co(n)textual de sentido.
In BENTES, Anna Christina; LEITE, Marli Quadros (Orgs.). Linguística de texto e análise da
conversação: panorama das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.

______, Luis. A estruturação sintático-semântica dos conteúdos discursivos categorias descritivas da


lógica natural para a linguística. In: OLIVEIRA, Maria do Socorro (orgs.). Linguística e educação:
gramática discurso e ensino. São Paulo: Terceira Margem, 2001.

RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis; SILVA NETO, João Gomes. ―Voltarei. O
povo me absolverá...‖: a construção de um discurso político de renúncia. In: ADAM, Jean-Michel et al.
Análises textuais e discursivas: metodologia e aplicações. São Paulo: Cortez, 2010.
611
O ENSINO DE LE NO BRASIL: UM OLHAR SOBRE AS PROPOSTAS DOS DOCUMENTOS
OFICIAIS PARA O TRABALHO COM A ESCRITA PELO VIÉS DISCURSIVO

Karla Janaína Alexandre da Silva (UFPE/ IFAL) 241

Orientador: Fabiele Stockmans De Nardi (UFPE) 242

Resumo: O presente trabalho corresponde à parte das análises que compõem pesquisa, em desenvolvimento,
sobre dificuldades de escrita em língua espanhola (LE) apresentadas por alunos de instituições públicas. Nesse
estudo, partimos da hipótese de que no ensino de E/LE243, a forma como a escola vem postulando a relação
entre língua, sujeito e cultura, contribui para que o aluno não dê sentido a sua produção escrita, acabando por se
manifestar na dificuldade de escrever e inscrever o seu dizer na/pela língua do outro.

Como base teórica, tomamos a Análise do Discurso Francesa (AD), teoria para a qual o sujeito do
discurso carrega em seu dizer as marcas da história e da ideologia que o constituem (ORLANDI: 2012). Por esse
viés, pensamos a cultura como um conjunto de práticas discursivas que nos reportam ao que constitui esse
sujeito e o seu modo particular de se relacionar com a língua, sendo esses elementos indispensáveis à construção
de sentidos.

Apresentamos aqui, um recorte dos primeiros resultados da análise que estamos realizando das
propostas de documentos oficiais brasileiros (PCNEM, OCEM, PNLD), para o ensino da LE. A escolha dos
textos se justifica por esses funcionarem como norteadores da prática docente nas escolas públicas brasileiras, o
que nos possibilita uma visão geral do ensino dessa língua em nosso país. Nosso objetivo é observar
como são postuladas nesses documentos as noções de língua, sujeito, cultura e a partir daí verificar como é
sugerida a prática da escrita em LE, sempre procurando estabelecer um contraponto com as mesmas noções,
desde a perspectiva discursiva. Esperamos com esse trabalho contribuir à reflexão docente sobre o ensino de LE
e sua prática através da escrita.

Palavras-chave: Ensino; Língua; Cultura; Escrita; Espanhol.

Resumen: El presente trabajo corresponde a parte de una investigación que desarrollamos sobre dificultades de
escritura en lengua española (LE) presentadas por alumnos brasileños de la red de enseñanza pública. En el
estudio, partimos de la hipótesis de que en la enseñanza de E/LE, la manera como la escuela propone la relación

241 Mestranda em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). Professora de língua espanhola no Instituto Federal de Alagoas (IFAL). E-mail: [email protected]
242 Professora Titular no Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail:

[email protected].
243 A sigla E/LE equivale a Espanhol como língua estrangeira.
612
entre lengua, sujeto y cultura contribuye para que el alumno no consiga dar sentido a su producción escritural,
acabando por manifestarse en la dificultad de escribir e inscribir su decir en la lengua del otro.

A la luz del Análisis del Discurso Francesa (AD), teoría en que el sujeto del discurso trae en su decir
marcas de la historia y de la ideología que lo constituyen (ORLANDI: 2012), desarrollamos nuestra pesquisa y
desde esa perspectiva teórica, pensamos la cultura como un conjunto de prácticas discursivas que nos remiten a
lo que constituye ese sujeto y su manera particular de relacionarse con la lengua, siendo esos elementos
fundamentales a la construcción de sentidos.

Aquí serán presentados fragmentos de los primeros resultados del análisis de documentos oficiales
brasileños (PCNEM, OCEM, PNLD), que se vuelven a la enseñanza de E/LE. La opción por esos textos se
justifica por el hecho de que funcionan como directrices de la práctica docente en las escuelas públicas brasileñas,
lo que nos posibilita una visión general de cómo se da la enseñanza de esa lengua en nuestro país.

El objetivo del análisis es observar cómo se construyen las nociones de lengua, sujeto y cultura y cómo
se sugiere la producción escritural en LE, contraponiendo esas mismas nociones a la perspectiva discursiva.
Esperamos con ese trabajo contribuir a la reflexión docente sobre la enseñanza de E/LE y su práctica a través de
la escritura.

Palabras clave: Enseñanza; Lengua; Cultura; Escritura; Español.

1. Introdução

Essa pesquisa tem origem na observação de dificuldades de escrita em língua espanhola (LE)
apresentadas por alunos da rede pública estadual de Pernambuco. Nas vezes em que é sugerida a produção
escritural em LE, os aprendizes demonstram certa resistência ao escrever, remetendo-nos a um cenário bem
comum em aulas de língua materna. Tal comportamento nos leva a acreditar que essas dificuldades, na verdade,
não estão apenas relacionadas ao fato de se tratar de uma prática que demanda do aluno uma produção em outra
língua, mas, sobretudo, ao modo como a escrita vem sendo proposta pela escola.

Por essa razão, supomos que, nas aulas de LE, a ausência de um trabalho mais consistente com os
elementos culturais tem comprometido significativamente o aprendizado dos alunos, ao ponto de não contribuir
para que os estudantes encontrem nessa língua, um espaço que lhes permita por ela se (re) dizer, em práticas
discursivas como a escrita.

Em nossa pesquisa, não procuramos discutir as dificuldades do aluno relacionadas ao seu


desconhecimento de léxico, gramática ou de produção em determinados gêneros textuais (o que também pode
comprometer a sua produção escrita em LE), mas nos deteremos, especificamente, ao processo de inserção do
sujeito-aluno em outro espaço discursivo, a partir do aprendizado de uma nova língua, processo pelo qual lhe é
possível dar sentido às suas produções escritas e ser sujeito nessa outra discursividade.

Para tanto, nos apoiaremos teoricamente nas reflexões da Análise do Discurso Francesa (AD), teoria
para a qual o sujeito do discurso carrega em seu dizer as marcas da história e da ideologia que o constituem. Essa
613
perspectiva teórica nos permite pensar a cultura como sendo um conjunto de práticas discursivas que nos
reportam ao que constitui esse sujeito e ao seu modo particular de se relacionar com a língua, sendo esses
elementos indispensáveis à construção dos sentidos que emergem da materialidade linguística.

Nosso objetivo é promover uma reflexão teórica sobre essas questões, a partir da análise do discurso que
fomenta as propostas teórico-metodológicas voltadas ao ensino de línguas estrangeiras (presente nos
documentos oficiais) e de como esse discurso se materializa nas propostas de ensino da escrita presentes nos
livros didáticos (LDS) de LE, utilizados em escolas públicas pernambucanas.

Inicialmente, trataremos da análise de documentos oficiais brasileiros, voltados ao processo de ensino-


aprendizagem da LE. Dentre os documentos selecionados para a análise estão os Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio, os PCNEM (2000), as Orientações Curriculares para o Ensino Médio, as
OCEM (2006), e o Programa Nacional do Livro Didático, o PNLD (2012) 244. A escolha desses textos se dá pelo
fato de que funcionam como um norte teórico-metodológico para o ensino de idiomas no Brasil, o que nos
possibilita um panorama geral de como vem sendo pensado o ensino de E/LE em nossas escolas.

Pela análise dos textos, tentaremos observar como são pensadas as noções de língua, sujeito, cultura e o
modo como os documentos as mobilizam para sugerir o trabalho com a escrita, tramando nossas observações
sobre o exposto no documento, sempre pelo viés discursivo. Pensamos que essa análise nos auxiliará na tarefa,
de comprovarmos (ou não), a nossa hipótese de que a forma como estão sendo tratados os aspectos culturais, de
certa forma, contribui para a dificuldade de inserção do sujeito-aluno nesse outro espaço discursivo,
representado pela LE, e esperamos através dos resultados alcançados, contribuir para a discussão docente sobre
como favorecer um melhor desempenho dos estudantes na escrita em língua estrangeira e também em língua
materna, pois acreditamos ser possível uma maior compreensão do quê, como e para quê escrevemos em língua
portuguesa, a partir de práticas em LE que levem a essa reflexão. Passemos a análise parcial de alguns dos
fragmentos que compõem os textos dos documentos.

2. A trama das noções de língua, sujeito e cultura na proposta dos documentos oficiais e suas
implicações para o ensino de E/LE através da escrita

De acordo com Laseca (2008:56), em O ensino do espanhol no sistema educativo brasileiro, com a chegada dos
anos 80, após duas décadas de apagamento no cenário educacional brasileiro245, as línguas estrangeiras
novamente voltam à cena, conquistando um pequeno espaço em nosso âmbito escolar. Entretanto, é somente
com a promulgação da terceira LDB, de 1996, que passam a ter caráter oficial no currículo escolar brasileiro, a
partir do 6º ano do Ensino Fundamental. Esse ensino ganhará força com a publicação dos ―Parâmetros
Curriculares Nacionais‖, os PCNs, que apresentam orientações e normativas específicas para o ensino de
idiomas, tanto nas séries dos anos do Fundamental, quanto nas séries do Ensino Médio.

244 A opção por analisar a edição do PNLD 2012 se explica pelo fato desta ser a primeira, dentre as publicações do PNLD,
que inclui as línguas estrangeiras entre os seus componentes curriculares.
245 Ver Laseca (2008).
614
Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, os PCNEM (2000) são diretrizes voltadas às
séries do Ensino Médio que têm por finalidade nortear o caminho que cada área do conhecimento e suas
disciplinas devem seguir para atender às expectativas de formação escolar dos alunos do mundo contemporâneo,
incluindo-se aí o respeito à diversidade246, o resgate do valor da cidadania, do trabalho e da continuidade dos
estudos. No caderno Linguagens e Códigos e suas Tecnologias247, apresenta uma visão geral do que considera estar
relacionado à área e as suas disciplinas, bem como instruções sobre as competências a serem desenvolvidas nesse
ciclo, através do estudo da linguagem.

A concepção de língua presente no documento se constrói desde uma perspectiva sócio-interacionista,


cujo ensino não visa o estudo de formas linguísticas isoladas ou regras gramaticais, mas destaca o seu caráter
sócio-histórico cultural, remetendo a sujeitos que interatuam, como produtores de linguagem, em diferentes
contextos de prática linguística.

Essa perspectiva teórica nos parece bastante significativa para o ensino de idiomas, pois acreditamos que
é a partir da valorização dos elementos da ordem do sociocultural e das experiências vivenciadas pelos sujeitos,
que os alunos poderão, efetivamente, dar sentido àquilo que estão aprendendo e construir um lugar que lhes
permita tomar a palavra em outra língua. Pêcheux (2011:68), em seu artigo intitulado língua, linguagens, discurso,
trata um pouco dessa questão, enfatizando que ―a relação que associa as significações de um texto às condições
sócio-históricas desse texto não é absolutamente secundária, mas constitutiva das próprias significações‖.

Pelas considerações do autor, torna-se evidente para nós, a impossibilidade de olharmos para a língua
isolada dos elementos da exterioridade248 e dos sujeitos, uma vez que esses elementos são próprios de sua
constituição e dos sentidos que emergem de sua materialidade linguística. Entretanto, em alguns momentos, o
texto dos PCNEM apresenta certa contradição em relação ao posicionamento teórico assumido, como na
passagem em que diz ser fundamental no ensino de línguas estrangeiras:

―que, além de capacitar o aluno a compreender e produzir enunciados corretos no


novo idioma propicie ao aprendiz a possibilidade de atingir um nível de competência linguística capaz de
permitir-lhe acesso a informações de vários tipos, ou seja, que contribua a sua formação geral enquanto cidadão‖
(PCNEM, 2000:26).

Ao afirmar que pelo ensino de uma língua estrangeira se pode capacitar o aluno a compreender e produzir
enunciados corretos nos parece que o documento acaba por voltar a uma concepção de língua enquanto sistema, em
que o ensino de normas relacionadas ao funcionamento desse sistema se sobrepõe a todos os outros aspectos
que são constitutivos da língua, no qual vigoram as noções de correto/incorreto para sinalizar a experiência do
sujeito-aprendiz no outro idioma. E pensamos que tais afirmações não são adequadas a uma proposta de ensino
que se diz fundamentada no sociocultural e no respeito à diversidade, pois compreendemos que a valorização

246 O documento (PCNEM, 2000:04) afirma ter como principal eixo norteador de sua proposta o respeito à diversidade, o
que tomamos como indício de que visa promover um trabalho com a língua estrangeira em que se respeite as diferenças
entre sujeitos e discursos.
247 Ver http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/14_24.pdf. Acesso em 17/03/2013.
248 Referimo-nos aos elementos da ordem do sócio-histórico ideológico.
615
desses elementos (da exterioridade, a diferença entre sujeitos e discursos) acaba por relativizar a noção de erro e
nos permite pensar a falha como inevitável e constitutiva do processo de ensino-aprendizagem de uma língua
estrangeira.

Gadet & Pêcheux249 (2004), ao definirem língua, nos oferecem uma importante contribuição para
ampliarmos essa discussão. Por ela, afirmam que ―a língua é um sistema que não pode ser fechado, que existe
fora de todo sujeito, o que não implica que ela escape ao representável‖ (GADET & PÊCHEUX, 2004:63).
Colocando a língua como um sistema que não pode ser fechado, os autores não negam a existência de uma
materialidade linguística, pela qual se estabelecem regras, leis inerentes ao próprio sistema, mas nos alertam para
o fato de que a língua vai além da dimensão material e sinalizam a existência de um real constitutivo250, da ordem
do inapreensível, do não representável, que por vezes emerge na estrutura linguística, rompendo com a
linearidade do sistema, através da falha, da falta que possibilita que nem tudo na língua seja dito da mesma forma
ou com o mesmo sentido.

E compreendendo a língua como um corpo que se constitui pela falha, pela falta, nos parece pouco
provável que, no processo de ensino-aprendizagem do espanhol, possamos escapar daquilo que foge a
regularização do sistema linguístico e precisar o que é correto ou incorreto na língua, como afirma o texto dos
PCNEM (2000:26), que sem se dar conta, acaba por pregar um ensino de línguas estrangeiras que propõe limites
ao movimento do aprendiz nesse outro espaço discursivo e deixa de lado aquilo que é essencial para tornar a sua
aprendizagem mais significativa, isto é, os elementos que lhe possibilitam a compreensão da diferença entre os
sujeitos e os discursos e o modo como esta diferença se materializa pela/na língua.

Outro ponto que nos chama atenção na passagem do texto dos PCNEM, é a noção de competência
linguística251, que também está presente na proposta das Orientações Curriculares para o Ensino Médio, as OCEM
(2006), quando sugere o trabalho com a escrita em LE.

As Orientações Curriculares para o Ensino Médio, as OCEM (2006), constituem um documento


também direcionado às séries do Ensino Médio, que visa contribuir para o diálogo entre professor e a escola
sobre a prática docente (OCEM, 2006:05), perante o desafio de promover uma educação básica de qualidade,
que favoreça a inclusão dos jovens na sociedade atual e à democratização das oportunidades no Brasil. Embora
mencione o fato de ser uma continuidade dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, os
PCNEM (OCEM, 2006:87) é preciso considerar que há no documento, uma ampliação e um aprofundamento da
proposta anterior, especialmente no que se refere à discussão docente sobre as especificidades do ensino de
línguas estrangeiras no Ensino Médio.

249 Em A língua inatingível (GADET & PEUCHEUX: 2004).


250 A noção de Real da língua é desenvolvida por Pêcheux, a partir das reflexões de Jean-Claude Milner sobre a linguagem.
Ver O amor da língua (MILNER: 1987).
251 A noção de competência linguística nos remete aos estudos linguísticos iniciados por Chomsky. Nessa perspectiva

teórica, todo falante é capaz de chegar a um total domínio de língua, desde que receba estímulos para desenvolver tal
capacidade. Ver Da ambiguidade ao equívoco: a resistência da língua nos limites da sintaxe e do discurso (LEANDRO FERREIRA:
2000).
616
No caderno Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, os capítulos três e quatro são dedicados ao ensino de
línguas252. Intitulado Conhecimentos de Espanhol, o quarto capítulo dedica-se ao ensino da língua espanhola, que por
ocasião da lei 11.161/2005253 tornou-se obrigatório nas séries do Ensino Médio e de caráter facultativo no
Ensino Fundamental. Com relação à escrita, no capítulo não há uma ampla exposição sobre a mesma. De uma
maneira geral, ela é vista como uma das habilidades a ser desenvolvida para se alcançar a competência linguística, para
que o estudante ―possa expressar suas ideias e sua identidade no idioma do outro‖ (OCEM, 2006:152), a partir
do conhecimento de sua realidade e do lugar social que ocupa.

Dessa passagem do texto, gostaríamos de pontuar o efeito de sentido que o termo competência utilizado
no documento pode provocar: dentre as possibilidades de sentidos que significam o termo, parece que o que
mais se aproxima do seu emprego no texto das OCEM (e também no texto do PCNEM) é o de se ser capaz de
dominar. Em outras palavras, o emprego do termo competência nesses documentos induz a uma compreensão de
que é possível ao sujeito-aluno um total domínio sobre a língua estrangeira. A questão é reforçada, em outro
momento, no texto das OCEM (2006:151), ao se afirmar que os conteúdos curriculares (e aqui entendemos
estarem inseridos os elementos culturais relacionados à LE) servem para que o estudante ―seja capaz de apropriar-se
também das peculiaridades linguísticas e socioculturais do outro‖ (Idem: 151), o que pode levar o professor a
acreditar que o aluno pode vir a ter um total domínio sobre aquilo que constitui a discursividade do outro,
vinculado a sua língua e a sua cultura.

Mas, ao pensarmos no processo de inscrição do sujeito na LE pela perspectiva discursiva, entendemos


não lhe ser possível um total controle sobre esse processo, isto é, não há como esse sujeito se apropriar da outra
língua e dos elementos culturais do outro, devido a sua própria condição de sujeito. Do mesmo modo que a
noção de língua se constrói pela falta, pela falha que rompe com a linearidade do sistema, se constrói para a AD,
a noção de sujeito do discurso, rompendo com a definição de sujeito centrado no seu próprio eixo, senhor de seus
atos e livre de determinações254.

Pelo viés discursivo, o sujeito se configura por uma relação de entremeio, pela qual se entrecruzam,
simultaneamente, elementos da ordem da história, da ideologia e do inconsciente. Sob o efeito dessa relação, o
sujeito se torna ―clivado, assujeitado, submetido tanto ao seu próprio inconsciente, quanto às circunstâncias
histórico-sociais que o moldam‖ (LEANDRO FERREIRA, 2005: 71), constituindo-se como um ser-em-falta. E
partindo dessa noção de sujeito construída pela teoria discursiva é que afirmamos não ser possível ao aluno um
total domínio sobre aquilo que aprende, ou seja, apropriar-se da discursividade do outro, como sugere o texto das
OCEM (2006:151).

252 O terceiro capítulo, às línguas estrangeiras de uma maneira geral e o quarto à língua espanhola. A este último
correspondem às considerações apresentadas aqui.
253 Ver lei 11.161/2005. Popularmente conhecida como a Lei do Espanhol.
254 A noção de sujeito do discurso corresponde ao modo como os indivíduos, uma vez interpelados pela ideologia, se

convertem em sujeitos e se fazem representar, enquanto efeito-discursivo, na linguagem. Ver A propósito da Análise
Automática do Discurso: atualizações e perspectivas. (PÊCHEUX & FUCHS: 1975). Ver Leandro Ferreira (2005).
617
Com relação ao Plano Nacional do Livro Didático e o seu ―Guia do Livro Didático: Língua Estrangeira
Moderna‖ 255 (PNLD: 2012), pensamos que a discussão teórico-metodológica que este apresenta sobre o
processo de ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira, merecia uma ampliação, sobretudo quando
estabelece critérios de seleção/avaliação dos livros didáticos, a partir do que os materiais propõem para o
trabalho com a escrita. O Programa Nacional do Livro Didático256, o PNLD, tem como objetivo contribuir para
o melhoramento do ensino básico brasileiro através da aquisição e distribuição de coleções de livros didáticos,
aos alunos das escolas públicas brasileiras. Os manuais funcionam como um suporte didático-pedagógico para o
trabalho a ser desenvolvido pelos docentes em sala de aula e nas atividades escolares a serem realizadas pelos
alunos. Através do seu ―Guia de Livros Didáticos: língua estrangeira moderna‖ (PNLD: 2012), sugere aos
professores do Ensino Médio, coleções didáticas de inglês e espanhol257.

A publicação também obedece às normativas estabelecidas pela LDB 9394/96, que define o perfil de
formação dos estudantes do Ensino Médio. Além de conter resenhas correspondentes às coleções didáticas,
também apresenta os critérios teórico-metodológicos utilizados pelo Programa durante a avaliação e seleção das
mesmas. A concepção de linguagem que embasa a discussão teórica presente no Guia (PNLD, 2012:10) é a
mesma que está presente nos PCNEM (2000) e nas OCEM (2006), em que a língua é vista enquanto atividade
social, fruto das ações de sujeitos socialmente organizados e historicamente situados, em constante interação,
inseridos em diferentes culturas, com interesses, opiniões e posicionamentos diversos.

Mas, embora o documento, tal como fazem os PCNEM (2000) e as OCEM (2006), ressalte a
importância de um trabalho com as línguas estrangeiras que valore o contexto sócio-histórico cultural e os
sujeitos que nele interatuam, no momento em que estabelece os critérios de avaliação da proposta de atividades
de produção escrita dos LDS (PNLD, 2012:13), acaba por silenciar questões vinculadas a essa discussão, que
remetem tanto ao sujeito-aprendiz, enquanto autor, quanto à escrita, enquanto produção discursiva.

Na verdade, o documento se preocupa apenas em avaliar se as propostas de ensino de escrita dos LDS
pressupõem o processo de interação, de modo a considerar os interlocutores, os objetivos e o suporte em que se
escreve, se procuram relacionar a escrita aos contextos e gêneros textuais diversos e se promovem um constante
processo de reelaboração dos textos dos alunos (PNLD, 2012:13). Ora, mesmo considerando importantes todos
esses critérios apresentados pelo PNLD 2012, eles não nos parecem ser suficientes para fazer com que o
aprendiz consiga, efetivamente, construir um espaço na LE que lhe permita passar da condição de um mero
reprodutor de textos. A ausência de um critério que exija dos manuais de LE, propostas de atividades de escrita
que possibilitem ao aluno posicionar-se em seu texto, a partir daquilo que lhe constitui enquanto sujeito258, faz

255 Ver: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13658&Itemid=984 acesso em


13/03/2013.
256Ver:

http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12391:pnld&catid=318:pnld&Itemid=668
acesso em 13/03/2013.
257 Ambas as línguas são oferecidas obrigatoriamente em nossas escolas, daí a inclusão de coleções didáticas nesses idiomas,
no Guia de Livros Didáticos do PNLD (2012).
258 Referimo-nos aos elementos da ordem do sócio-histórico ideológico responsáveis pelo modo particular como cada

sujeito se constitui discursivamente.


618
com que fique de fora da discussão do PNLD (2012), o aspecto que consideramos ser o mais importante no
trabalho com a escrita na LE, pelo qual é possível pensá-la como uma prática que, verdadeiramente, favorece ao
sujeito-aluno a construção de um lugar para se (re) dizer em outro idioma.

A relação entre o sujeito e a língua estrangeira se constrói pelo seu desejo de conquistar um lugar nessa
outra discursividade, lugar que lhe permita significar o seu dizer e a partir daí produzir nessa língua. Nesse sentido,
os elementos da ordem do sócio-histórico cultural, que remetem ao modo particular de constituição desse
sujeito, favorecem diretamente à construção dos sentidos que lhe possibilitam identificar-se com a nova língua e,
consequentemente, se inserir nesse outro espaço discursivo.

Mas, apesar dos documentos analisados ressaltarem a importância da valorização desses elementos, para
pensarmos o processo de ensino-aprendizagem de idiomas, no momento em que lançam as suas propostas,
acabam por impossibilitar a reflexão docente sobre como estes se entrecruzam na própria constituição da língua
e dos sujeitos e como são significativos para que o aprendiz de LE possa por ela tomar a palavra, em práticas
discursivas como a escrita.

Por esse motivo, pensamos que uma discussão mais ampla sobre essas questões e sobre as que dizem
respeito ao movimento do sujeito-aluno na língua estrangeira é relevante à prática docente e merecia um espaço
maior nos documentos oficiais. Não pretendemos aqui, deixar de reconhecer as contribuições desses textos para
a valorização do ensino de línguas estrangeiras em nossas escolas, todas as propostas nos dão uma dimensão
concreta dos esforços para se pontuar a importância desse ensino, enquanto componente indispensável à
formação educacional do aluno259. Entretanto, acreditamos que ainda precisamos crescer nessa discussão,
tratando com um pouco mais de atenção as questões que dizem respeito à relação subjetiva entre sujeito, língua e
cultura. E nesse sentido, pensamos que a AD pode oferecer significativas contribuições.

3. Considerações Finais

Com base no exposto, percebemos que a discussão sobre o processo de ensino-aprendizagem de línguas
estrangeiras presente nos documentos oficiais (PCNEM, OCEM, PNLD) demonstra o desejo de romper com
práticas docentes fundamentadas em uma visão de língua, cujo ensino do sistema linguístico se sobrepõe a todos
os outros aspectos que remetem ao seu modo de constituição, isto é, aos elementos da ordem do sócio-histórico
cultural e aos sujeitos que por ela atuam. E pensando no ensino da escrita em LE, a perspectiva teórico-
metodológica adotada pelos documentos nos parece bem significativa, pois acreditamos que é pela valorização
desses elementos, que o aprendiz conseguirá dar sentido ao que lhe ensinam e a partir daí, construir para si um
lugar nessa língua, lugar que lhe permita ser sujeito e tomar a palavra através dela, em práticas discursivas como a
escrita.

Entretanto, pensamos que o modo como estão imbricadas no texto dos documentos, as noções de
língua, sujeito e cultura, ainda que não seja a intenção, favorece a continuidade das práticas com as quais os

259O fato de nas OCEM (2006), conter um caderno que se volta especificamente para o ensino da LE no Brasil, e do PNLD
(2012) incluir em seu Guia de Livros Didáticos, coleções de inglês e espanhol, são bons exemplos dos avanços nas reflexões
sobre esse ensino no âmbito educacional brasileiro.
619
documentos tentam romper, o que, efetivamente, não contribui à inserção do sujeito-aluno nessa outra
discursividade (a da língua estrangeira).

Por essa razão, acreditamos que é preciso uma ampliação dessa discussão no texto dos documentos,
sobretudo no que diz respeito ao caráter subjetivo da relação entre língua e sujeito e ao modo como os
elementos culturais se entrecruzam na constituição de ambos. Nesse sentido, pensamos que a AD pode trazer
significativas contribuições para esta reflexão, pelo modo como vai propor o entrelaçamento destas noções.

REFERÊNCIAS:

GADET. F. & PÊCHEUX, M. A língua inatingível. São Paulo: Editora Pontes, 2004.

LASECA, M. C. A. O ensino do espanhol no sistema educativo brasileiro. Brasilia: Orellana, Embajada de España en
Brasil: Consejería de Educación, 2008. pp. 53-61.

ORLANDI, E. Análise de Discurso: Princípios e Procedimentos. 10ª ed. São Paulo: Editora Pontes, 2012.

PNLD, Programa Nacional do Livro Didático: Língua Estrangeira Moderna. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria
de Educação Básica, FNDE. 2012.

PÊCHEUX, M. Língua, linguagens, discurso In: Legados de Michel Pêcheux. São Paulo: Editora Contexto, 2011. pp.
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PCNEM, Parâmetros Curriculares Nacionais. Ensino Médio. Linguagem, Códigos e suas Tecnologias. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2000.

LEANDRO FERREIRA, M. C. Linguagem, Ideologia e Psicanálise In: Estudos da Língua(gem). Michel Pêcheux e a
Análise do Discurso, Vitória da Conquista: [...] junho, 2005. pp. 69-75, v. 1.

OCEM, Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Linguagem, Códigos e suas Tecnologias. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006, v.1.
620
A IMPLEMENTAÇÃO DO INOVADOR VOCÊ EM CARTAS PESSOAIS
NORTE-RIOGRANDENSES DO SÉCULO XX
Kássia Kamilla de Moura260
Prof. Dr. Marco Antonio Martins (Orientador)261

RESUMO

Tendo em vista os pressupostos teóricos metodológicos da Sociolinguística Variacionista (cf.


WEINREICH; LABOV; HERZOG, (doravante, WLH), 2006; LABOV, [1972] 2008), neste texto,
descrevemos e analisamos o processo de variação/mudança envolvendo os pronomes pessoais tu e você,
e sua extensão no paradigma pronominal no Português Brasileiro (PB), em três conjuntos de cartas
pessoais escritas por norte-riograndenses no curso do século XX. O universo discursivo dessas cartas é
basicamente notícias da cidade em que viviam os informantes e assuntos do cotidiano (comércio,
trabalho, viagens, família e política). Parte das cartas analisadas integram o córpus mínimo manuscrito
do Projeto de História do Português Brasileiro no Rio Grande do Norte (PHPB-RN). Tomamos por
base estudos anteriores sobre o sistema pronominal no PB – Lopes e Machado (2005), Rumeu (2008),
Lopes, Rumeu e Marcotulio (2011) –, os quais registram que a forma você suplanta o tu a partir do fim
da primeira metade do século XX e atestam o seguinte quadro: enquanto (a) as formas verbais
imperativas, (b) os sujeitos plenos e (c) os pronomes complementos preposicionados são contextos
favorecedores do você, as (d) formas verbais não imperativas (com sujeito nulo), (e) os pronomes
complementos não preposicionados e (f) os pronomes possessivos são contextos de resistência do tu.
Os resultados obtidos nesta dissertação confirmam, em parte, as asserções defendidas pelos estudos
anteriores sobre os contextos favoráveis à implementação do você no PB: (i) há nas cartas das duas
primeiras décadas do século XX (1916 a 1925) alta frequência de uso de formas do você (98%); (ii) nas
cartas pessoais do RN, especialmente nas cartas de amor em que há maior recorrência de assuntos
íntimos, o universo discursivo mostrou-se bastante relevante no condicionamento das formas de tu; (iii)
a única informante do sexo feminino da nossa amostra faz uso, quase categórico, das formas de tu, em
cartas do período que corresponde aos anos de 1946 a 1972; (iv) as cartas correspondentes ao período
de 1992 a 1994 apresentam um uso significativo das formas associadas ao inovador você, deixando
transparecer que a mudança já está implementada no sistema do PB e há, nesse conjunto de cartas,
fortes evidências que nos possibilitam afirmar que as formas pronominais de complemento não
preposicionadas (acusativo/dativo) associadas ao tu estão implementadas em um sistema com uso quase
categórico de você.

Palavras-chaves: Português Brasileiro; Pronomes Pessoais; Século XX; Você.

ABSTRACT

Considering the theoretical and methodological presuppositions of Variationist Sociolinguistics (cf.


WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006; LABOV, [1972] 2008), in this texte, we describe and analyze
the process of variation/change involving the personal pronouns tu and você, and its extension in the
pronominal paradigm in Brazilian Portuguese (BP), in three sets of personal letters written by people
260
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem(PPgEL), Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN). E-mail: [email protected]
261
Professor Adjunto, lotado no Departamento de Letras (DLET), da UFRN.
621
from Rio Grande do Norte (RN) along the 20th century. The discursive universe of those letters is
news from the cities in which the informers lived and the themes from their everyday life (trade, jobs,
trips, family and politics). Part of the analyzed letters integrate the written by hand minimum corpus of
the Projeto de História do Português Brasileiro no Rio Grande do Norte (PHPB-RN). We are based on
previous studies about the pronominal system in BP – Lopes e Machado (2005), Rumeu (2008), Lopes,
Rumeu e Marcotulio (2011) –, which register the form você replaces tu from the end of the first half of
20th century and attest the following situation: while (a) the imperative verbal forms, (b) the explicit
subjects and (c) prepositional complement pronouns are favorable contexts for você, the (d) non
imperative verbal forms (with null subject), (e) the non prepositional complement pronoun and (f) the
possessive pronoun are contexts of resistance of tu. The results got in this dissertation confirm,
partially, the statements defended by the previous studies regarding the favorable contexts for the
implementation of você in BP: (i) there is, in the letters from the first two decades of 20th century (1916
to 1925), high frequency of the usage of the form você (98%); (ii) in the personal letters of RN –
especially in the love letters, in which there are higher recurrence of intimate subjects – the discursive
universe proved to be itself very relevant in the determination/conditions of the forms of tu; (iii) the
unique feminine informer of our sample uses, almost categorically, the forms of tu in letters of the
period from 1946 to 1972; (iv) the letters corresponding to the period from 1992 to 1994 present a
significant usage of the forms associated to the innovating você, letting appear the change is already
implemented in the system of BP and there are, in that set of letters, strong evidences that make us
state the pronominal forms of non prepositional complement (accusative/ dative) related to tu are
implemented in a system with an almost categorical usage of você.

Keywords: Brazilian Portuguese; Personal Pronouns; 20th century; Você.

1. Introdução

Apresentamos, neste trabalho, o estudo que desenvolvemos, durante o mestrado, acerca da


implementação do você na escrita norte-riograndense, tendo em vista três conjuntos de cartas pessoais262
escritas no curso do século XX, cujos remetentes são brasileiros nascidos no estado do RN. Os
conjuntos de cartas analisados são: 1) 65 cartas trocadas entre dois irmãos da família Paiva (1916-1925)
– João de Paiva e Theodósio Paiva; 2) 51 Cartas trocadas entre o casal Lourival Rocha e Ruzinete
Dantas (1946-1972) e 3) 30 Cartas escritas por Walter Oliveira (1992-1994).
Neste estudo, utilizamos o referencial teórico-metodológico da sociolinguística variacionista
(cf. WLH, [1968] 2006) para a análise do processo de variação e mudança envolvendo a expressão da
segunda pessoa do singular na diacronia do PB. Nesta pesquisa temos como objetivo geral descrever o
processo de implementação envolvendo o pronome você e sua expansão no PB do RN, notadamente
nos três conjuntos de cartas analisadas, escritas no curso do século XX.
Este texto está organizado da seguinte maneira: no primeiro momento, apresentamos a fundamentação
teórico-metodológica para o desenvolvimento da pesquisa; em seguida, expomos uma breve revisão de alguns

262
Estamos considerando cartas pessoais, seguindo Pereira da Silva (1988, p. 24 apud CHAVES 2006),
“correspondências entre pessoas que mantém entre si um relacionamento estreito – parentes próximos, amigos
íntimos. Trata-se de uma forma de comunicação eminentemente pessoal, destinguindo-se das cartas comerciais, das
cartas de propaganda, de correspondência dirigida a seções de jornais ou revistas, etc.”
622
estudos já realizados sobre o tu/você na diacronia do PB; por fim, apresentamos nosso córpus, os informantes e o
―envelope de variação‖; bem como discorremos sobre a análise dos resultados nas cartas do RN, as
considerações finais e as referências.

1.1. Fundamentação teórico-metodológica


O objeto de estudo da Teoria da Variação e Mudança (TVM) é o vernáculo. E quando nos reportamos
ao vernáculo, o entendemos como ―veículo linguístico de comunicação usado em situações naturais de interação
social, do tipo comunicação face a face.‖ (TARALLO, 2007, p. 19). Desse modo, a TVM se interessa em
descrever e explicar como falavam as pessoas, no caso dos estudos diacrônicos, pertencentes aos diversos grupos
sociais, em um local e tempo determinados. Para análise apresentada neste trabalho, como não há registros orais
do início do século passado, sobretudo no estado do RN, optamos pela análise de documentos históricos,
considerando que as cartas pessoais tendem, em sua maioria, a apresentar um registro do cotidiano e são,
portanto, de grande importância para o estudo histórico da língua, uma vez que dispõem de algumas
características relevantes que possibilitam o resgate da história da língua de uma determinada época, quais sejam:
o fato de serem textos assinados ou com registro de autoria; possuírem data ou época de produção; e, o mais
importante, legitimidade e autenticidade, uma vez que são textos sem reescritura, correção ou atualização. Com
esses critérios, as cartas pessoais constituem um importante material que nos permite obter dados de tempos
diferentes, bem como formar córpus representativos de diversos segmentos da sociedade de sincronias passadas
da língua a fim de identificar o vernáculo e suas variações.

Na perspectiva da TMV, processos de variação e de mudança linguística devem ser estudados por
meio de dados reais considerando, além dos princípios internos à língua, o contexto sociocultural em que estes
dados estão inseridos, uma vez que, para a Sociolinguística, ―o objeto de estudo da linguística deixa de ser um
sistema autônomo e sem história, para se tornar um produto do processo histórico de constituição da língua
[...]‖. (cf. LUCCHESI, 2004, p.170). Ainda segundo a TVM, toda língua sofre variação e essa variação procede de
forma sistemática. Tarallo (2007) afirma que as línguas não constituem realidades estáticas, o que nos permite
desvendar o aparente ‗caos‘ linguístico em que as línguas estão imersas, uma vez que as línguas mudam com o
passar do tempo, alterando a sua configuração estrutural.

Nessa direção, WLH (2006[1968]) sugerem um modelo de língua que acomoda os usos variáveis e
seus determinantes sociais e estilísticos, desse modo, a variação é entendida como inerente ao sistema linguístico,
não incidindo diretamente sobre a língua, mas sobre a gramática da comunidade de fala, que é, por natureza,
heterogênea (TARALLO, 1990, p. 61; LABOV, 2008, p. 219). Ainda de acordo com os apontamentos de WLH
(2006[1968], p. 126), Tarallo (1990, p. 61), afirma que ―nem toda variabilidade e heterogeneidade na estrutura
linguística implica mudança, mas toda mudança implica variabilidade e heterogeneidade.‖ WLH advogam, ainda,
que há uma ―sistematicidade da variação‖, ou seja, há uma necessidade de se considerar para além dos fatores
internos, ou dito de outra maneira, era preciso considerar ―os fatores externos na analise linguística‖
(LUCCHESI, 2004, p. 166).
623
Nessa perspectiva, é importante ressaltar que o processo de mudança linguística não é feito por meio
de uma simples substituição de um elemento por outro na língua. WLH (2006 [1968], p. 122) postulam que um
processo de mudança linguística implica sempre um quadro de variação, no qual há fases em que as variantes
coexistem, fases em que elas se comportam como concorrentes e fases em que uma variante termina por vencer
a outra. Tarallo (2007) retoma os postulados de WLH ao afirmar que as variáveis são divididas em variáveis
linguísticas dependentes e independentes. A variável dependente é o objeto de estudo do linguista e as variáveis
independentes são as formas linguísticas que estão em competição. Com relação ao desenvolvimento da
mudança linguística, WLH (2006[1968], p.126) postulam que os fatores linguísticos e sociais estão fortemente
correlacionados no desenvolvimento da mudança, pois o uso de uma ou outra variante é condicionado por
fatores linguísticos (estruturais) ou sociais/ estilísticas (extralinguísticos).

1.1.2 Tu/você na diacronia do PB

No Brasil, estudos mostram que coexistem, de modo geral, as formas pronominais de


referência ao interlocutor, o senhor, você e tu, que variam entre si pelo imenso território do país. Nessa
perspectiva, retomaremos os trabalhos de Lopes e Machado (2005), Rumeu (2008) e Lopes, Marcotulio
e Rumeu (2011).
Lopes e Machado (2005) ao analisarem 41 cartas particulares, escritas no último quartel do
século XIX, entre 1872 e 1879, pelo casal carioca Christiano Benedicto Ottoni e Barbara Balbina de
Araújo Maia Ottoni a seus netos, residentes em Paris, Mizael e Christiano, expõem um panorama da
língua portuguesa padrão e não padrão, no Rio de Janeiro no século XIX. As autoras observaram o
fenômeno de pronominalização de vossa mercê > você, que marcou o início do processo de variação entre
a concordância de você com outras formas pronominais de 2ª pessoa e de 3ª pessoa, a fim de identificar
a produtividade de cada uma das duas estratégias, no final do século XIX. Esse trabalho buscou,
também, mostrar algumas evidências que confirmassem a conjectura de Labov (1990 apud LOPES e
MACHADO, 2005) acerca do comportamento inovador das mulheres frente às mudanças linguísticas,
uma vez que a hipótese era a de que essas usassem mais a forma inovadora você.
Em relação aos usos de tu e você nas cartas dos avos Ottoni, Lopes e Machado (2005) chegam aos
seguintes resultados: (1) há preferência pelo pronome tu na maior parte do córpus analisado, principalmente
nas cartas do avô; (2) O missivista Christiano prefere o tu combinando com formas de P2 (te/teu/tua) e o vocês
na função de sujeito; (3) Já a avó Bárbara deixa evidenciar um maior nível de desprendimento em relação aos
preceitos gramaticais ao apresentar maior variação na combinação entre tu e você com formas de P2 e P3.

As autoras defendem que a presença do você nas cartas de Barbara não estaria só relacionada a uma
assimetria de tratamento de superior para inferior. Mas, se trataria de ―um uso mais generalizado do que um
pronome de poder ou de solidariedade‖ (2005, p.53), visto que a forma inovadora você, cada vez mais, coocorre
nos espaços funcionais típicos de tu. Em relação às cartas de Christiano, as pesquisadoras supõem que os
624
baixos índices de frequência da forma você nas cartas de Christiano possam ser uma evidência de que o uso de
você fosse uma estratégia que estivesse emergindo em contextos restritos, discursivamente motivados. O
contrário é detectado nas cartas da avó Barbara, pois não se percebe uma motivação discursiva aparente, mas a
generalização de você como forma de 2ª pessoa. Ainda nas palavras das autoras, o comportamento diferenciado
com relação ao gênero (masculino/feminino) parece referendar a hipótese laboviana sobre o inovadorismo
feminino na maioria dos fenômenos de mudança com o uso de formas ―não-padrão‖.

Para as autoras, o comportamento diferenciado quanto ao gênero, provavelmente, deve estar ligado ao
papel social da mulher na sociedade da época, à escolarização e à transposição de aspectos da fala na escrita.
Nas cartas analisadas, é possível encontrar reflexos de maior ou menor domínio da norma padrão. Nas cartas
do avô Christiano, há uma preocupação consciente e explicitada com o domínio da língua portuguesa, em
diversos campos (seja em relação à grafia, seja no estilo ou na sintaxe). Nas cartas de sua esposa Barbara,
aparentemente menos letrada que o marido, não se identifica essa apreensão com as normas do bem falar e
escrever, deixando transparecer traços da oralidade em seu texto.

Uma das importantes conclusões a que Lopes e Machado chegam é a de que é possível encontrar na
escrita de brasileiros cultos, no final do século XIX, ―mistura de tratamento‖ entre usos das formas de tu e usos
das formas de você.

As autoras atestaram a hipótese de que as mulheres lideram no processo de mudança na


implementação do inovador você na história do PB. Essa mesma hipótese confirma-se também com o trabalho de
pesquisa desenvolvido por Rumeu (2008). Em seu trabalho de doutoramento, a autora edita e analisa cartas
íntimas da família Pedreira Ferraz-Magalhães, trocadas por informantes ilustres nascidos no Rio de Janeiro.
Rumeu divide o córpus em três períodos de tempo, com um intervalo de 20-25 anos cada um – de 1877 a 1897;
de 1898 a 1923; e de 1924 a 1948 –, e investiga a variação entre as formas de referência à segunda pessoa do
discurso tu e você nessas cartas.

A espelho do que foi defendido por Lopes e Machado (2005), Rumeu considera que a inserção do você
no quadro pronominal do PB não se deu da mesma forma em todos os contextos morfossintáticos: o pronomes
sujeitos; o pronomes complementos preposicionados e as formas verbais imperativas representam contextos
implementadores de formas relacionadas a você, enquanto pronomes possessivos, pronomes complementos não
preposicionados (te) e as formas verbais não imperativas se mostram como contextos de resistência ao tu.

Rumeu conclui o levantamento e a codificação das formas de P2(tu) e de P3 (você) nas cartas pessoais
da família Pedreira Ferraz-Magalhães com a identificação de 496 dados, sendo 67% de tu (331 ocorrências de 496
dados) e 33% de você (165 ocorrências de 496 dados).

Os resultados encontrados na pesquisa de Rumeu corroboram o que já fora discutido por Lopes e
Machado (2005) a respeito da preferência pelo tu em relações mais íntimas na escrita de brasileiros do século
XIX. No tocante à tímida frequência de uso do você, nas cartas da Família Pedreira Ferraz-Magalhães, a autora
acredita que seja um traço indicativo de um processo de implementação, pois, segundo estudos sociolinguísticos
625
do PB, as frequências de uso do você no século XVIII são pouco desenvolvidas e tendem a acelerar em fins do
século XIX.

A exemplo de estudos anteriores, a autora considera que o fato de o você ter advindo de uma forma
nominal (Vossa Mercê), mas fazer referência à segunda pessoa do discurso impulsionou novos arranjos no sistema
pronominal. Novas possibilidades combinatórias de você com te~lhe, você com teu~seu, tua~sua tornaram-se mais
produtivas evidenciando, nesse sentido, um sinal de pronominalização de você no PB. Rumeu observa, ainda, no
pronome você um caráter híbrido concernente à especificação semântico–discursivo, visto que faz referência à
segunda pessoa do discurso (traços de propriedade pronominal) e, no entanto, estabelece concordância com P3
(manutenção do traço original) (cf. LOPES; RUMEU, 2007 apud RUMEU 2008). Em consonância com o que
outros autores já haviam evidenciados, a pesquisadora constata, também, que outro arranjo no quadro
pronominal ocasionado pela inserção do você foi a passagem do pronome possessivo seu que era de terceira
pessoa para o paradigma de segunda pessoa. Essa migração levou a forma dele (de + ele) a se constituir como um
possessivo de terceira pessoa a fim de evitar a ambiguidade do possessivo, pois o pronome seu pode identificar
tanto a segunda como a terceira pessoa do discurso, desta forma, concorrendo com os pronomes teu/tua.

Rumeu verifica, com a análise das correspondências, que a famigerada ―mistura de tratamento‖,
resistida pelas Gramáticas Tradicionais, já é evidente nas cartas pessoais da família Pedreira Ferraz- Magalhães do
final do século XIX e início do XX.263 As formas de tu se mostram preferencialmente combinadas com as formas
de P2, com índices de 90% nos dados, entretanto, tais formas aparecem, mesmo que timidamente, combinadas
com as formas de P3, em 20%.

Concernente à produtividade das formas tu/você em relação aos subtipos de pronomes/ formas verbais
nas cartas em análise, os resultados obtidos por Rumeu evidenciam que os ambientes em que o tu oferece
resistência são: as formas verbais não imperativas (sujeito não-preenchido), os pronomes oblíquos sem
preposição (te) e os pronomes possessivos (teu/tua), corroborando os estudos anteriores (LOPES; MACHADO,
2005). Quanto à inserção do você, a autora constata que os pessoais do caso reto (sujeito preenchido) e os
pronomes oblíquos com preposição (por você, de você...) mostraram-se contextos favorecedores do uso dessa forma
inovadora.

Quanto à produtividade dos pronomes tu/ você na posição de sujeito (lexicalmente realizados ou não),
Rumeu percebeu que o tu se comportou preferencialmente como sujeito pronominal nulo, com 99% da
frequência de uso. Das cartas analisadas por Rumeu, ela identificou, apenas, uma única ocorrência do tu pleno, na

263Rumeu (2008) resgata a produção escrita dos informantes da família Pedreira Ferraz - Magalhães ao longo do curso de
suas vidas, a fim de delinear o comportamento linguístico dos brasileiros em determinados lapsos de tempo de sincronias
passadas. Os informantes controlados pela pesquisadora são (Dr. Pedreira nointervalo de 20 anos da sua velhice (1876-1896)),
Fernando no intervalo de 14 anos (1919-1933), Pe. Jeronimo no intervalo de 26 anos (1905-1931), Maria Elisa no intervalo de
23 anos (1915-1938), Maria Joana no intervalo de 35 anos (1912-1947), Maria Barbara no intervalo de 17 anos (1911-1928),
Maria Rosa no intervalo de 40 anos (1908-1948), Maria Leonor no intervalo de 20 anos (1913-1933)).(cf. RUMEU, 2008, p.
103-104).
626
qual, por hipótese, o missivista faz uso do pronome a fim de evidenciar a intimidade da interlocutora. Já o
pronome você, em 53% (24 ocorrências de 45 dados) dos casos, se mostrou como sujeito pronominal pleno e, em
47% (21 ocorrências de 45 dados), como sujeito pronominal nulo. (cf. Rumeu, 2008, p. 144-145) Essas
frequências de uso parecem confirmar a hipótese de que o português do Brasil no século XIX era uma língua de
sujeito nulo, iniciando o seu processo de mudança paramétrica a partir do século XX (DUARTE, 1993, 1995,
2012).

Em análise a 13 bilhetes amorosos produzidos no Rio de Janeiro no início do século XX – em 1908,


Lopes, Marcotulio e Rumeu (2011), baseados no referencial teórico da sociolinguística e da pragmática, os
pesquisadores apresentam um quadro bastante semelhante ao que foi apresentado pelos outros estudos
sistematizados até aqui. Os bilhetes foram escritos por Robertina de Souza (apelidada de Chininha) e estavam
anexados a um processo judicial que investigava o assassinato do amante da referida senhora, senhor Álvaro da
Silva Mattos.

A missivista Robertina escrevera ao seu amante e ao seu companheiro Arthur, no entanto as formas de
referência ao interlocutor são bastante reveladoras: quando escrevia ao amante Robertina fazia mais uso do tu e
quando escrevia ao seu companheiro Arthur ela preferia as formas pronominais associadas ao inovador você. Tal
distribuição mostra uma postura mais intimista e de maior proximidade comunicativa da informante ao escrever
para o seu amante, senhor Álvaro, o que reforça o caráter mais íntimo do tu, como estudos têm atestado: quanto
maior o grau de informalidade maiores as chances de ocorrência do tu.

Após analisarem os bilhetes cuja tônica central é o discurso amoroso, Lopes, Marcotulio e Rumeu
concluem que o você se estabelece no quadro pronominal, principalmente, nos contextos morfossintáticos:
pronome sujeito lexicalmente realizado (ou pleno), complemento preposicionado e formas verbais imperativas
(por ex. escreva) ao passo que as formas relacionadas ao tu parecem não ter perdido a sua identidade com a
manutenção do pronome complemento te (acusativo- eu te vi e dativo- eu te dei o livro). Nos bilhetes escritos na
primeira década do século XX, os autores perceberam expressivas ocorrências de mescla de tratamento, tais
como: a) paradigma do pronome tu (-s, imperativo indicativo ou imperativo P2, teu, te, contigo, para ti) e b) formas
relacionadas ao você (Ø, imperativo subjuntivo ou imperativo P3, seu, lhe, o, você, a/para/com você). Lopes, Marcotulio e
Rumeu coletaram 113 dados, 87 (77%) ocorrências relacionadas ao tu e 26 ocorrências (23%) foram formas
verbo-pronominais do paradigma pronominal do você. O pronome tu, dado o seu caráter intimista, se mostrou
predominante nos bilhetes, fato que reforça o grau de informalidade, peculiar ao gênero bilhete.

Na análise dos contextos morfossintáticos favoráveis ao tu, os pesquisadores obtiveram os seguintes


pesos relativos: pronomes-complemento não preposicionado (te, PR.68), verbo imperativo-indicativo (PR.59) e
formas verbais não imperativas, ou seja, sujeito nulo com marca desinencial de P2 (PR.56). Na amostra dos
bilhetes, os autores encontraram, também, 31 dados correspondentes aos pronomes possessivos, porém 100%
das ocorrências foram de P2 (teu/tua). Concernente à forma te como acusativa e dativa, que é o maior contexto
de resistência ao você, Lopes, Marcotulio e Rumeu encontram 12 ocorrências, 6 casos como dativo e 6 casos
como acusativo. Em relação ao te como dativo (objeto indireto), os autores identificam que a maioria era
627
constituída por verbos benefactivos (verbos que implicam a transferência de algo para alguém, transferência
material). Esses verbos seriam considerados como estrutura dativa por excelência, por exemplo: dar, mandar,
pedir264.

Com relação à forma pronominal você, os autores afirmam que essa ocorre mais raramente tanto na
função dativa (3 casos) como na acusativa (2 casos). Quanto aos três casos de dativo com preposição (dois casos
com a e um com para) + você, são realizados com os verbos dizer (transferência verbal/perceptual) e mandar
(transferência material). Conforme já referido, trata-se de contextos dativos por excelência, dada a presença dos
verbos benefativos. Lopes, Marcotulio e Rumeu (2011) postulam que no córpus dos bilhetes amorosos do século
XX o pronome oblíquo te é mais recorrente seja como acusativo e, também, como dativo, com especial atenção
aos casos canônicos em que há os verbos benefactivos. Com relação ao você, os autores chamam a atenção para a
ocorrência da estrutura dativa (prep. + você) realizada com a preposição para. Eles acreditam que essa ocorrência
sinaliza uma construção dativa alternativa que será mais produtiva posteriormente, ou seja, o uso da preposição
para (você) no lugar de a (você).

De um modo geral, os autores atestam nos bilhetes amorosos do início do século XX o mesmo quadro
descrito em estudos anteriores em relação à implementação do você no PB: (1) há expressivas ocorrências de
mescla de tratamento; (2) pronomes complementos não preposicionados (te), formas verbais não imperativas são
contextos de resistência do inovador você; (3) a forma inovadora você está associada a um sistema com sujeito
preferencialmente preenchido e a formas pronominais complementos preposicionadas.

2. O córpus, os informantes

Considerando a discussão teórico-metodológica exposta até aqui, apresentaremos a caracterização das


amostras e dos informantes; a variável dependente e as variáveis independentes.

Como mencionado antes, nosso córpus é constituído por três conjuntos de cartas pessoais escritas por
norte-riograndenses, no curso das primeira e segunda metades do século XX. O primeiro conjunto é composto
por 65 cartas pessoais datadas de 1916 a 1925 e, pertence ao córpus mínimo manuscrito do PHPB-RN, essas
cartas foram trocadas entre os irmãos Theodósio Paiva e João de Paiva, ambos norte-riograndenses. O segundo
conjunto possui 51 cartas escritas pelos informantes Lourival Rocha e Ruzinete Dantas, no período de 1946 a
1972; e o terceiro conjunto é composto por 30 cartas redigidas por Walter Oliveira, no período de 1992 a 1994.
Assim temos um total de 146 missivas.

2.2. A variável dependente e as variáveis independentes

264No caso deste verbo, no contexto (para ate a hora da morte te pedir perdão- bilhete dois, destinado a Arthur, companheiro de
Robertina), não há uma transferência material, já que o perdão não é algo concreto. (LOPES, MARCOTULIO e RUMEU,
2011, p. 328).
628
A variável dependente desta pesquisa é a expressão da segunda pessoa do singular, ou seja, as formas
de tu e as formas de você em cartas pessoais norte-riograndenses.

As variáveis independentes

Linguísticas:

A. Subtipo de pronome/ desinência verbal (contexto morfossintático) – Nesta variável, estão incluídos os sujeitos
nulos e plenos nas formas verbais imperativas e não-imperativas, os pronomes complementos dativos, acusativos
e oblíquos preposicionados (quais sejam: relacionadas ao tu: te, contigo, para ti, de ti, em ti, a ti, com tu, para tu, de tu;
associadas ao você(s): lhe, com você(s), de você(s), para você(s), em você (s), a você (s) e Ø).
B. Formas verbo-pronominais antecedentes ao dado coletado – No controle desta variável grupo buscamos evidenciar
a combinação de formas verbo-pronominais com formas antecedentes, ao dado coletado, de segunda e terceira
pessoas gramaticais em uma mesma carta, bem como a primeira ocorrência do item.
C. Tipo de oração – Controlar o tipo de oração nas quais os dados estão inseridos, a fim de observar se há
alguma correlação entre os tipos de oração e a produtividade das formas pronominais de tu e de você.
Aliados aos fatores linguísticos apõem-se as variáveis socioestilísticas, quais sejam:

E. Período de escrita da carta – Considerando os três conjuntos de cartas, optamos por dividir o período de
escrita das 148 cartas em três períodos, desta maneira temos: 1916 a1925; 1946 a 1972 e de 1992 a 1994. Ao
controlar este grupo de fatores buscamos identificar em que época há maior produtividade das formas de tu e das
formas de você.

F. Universo discursivo das cartas - O controle dessa variável possibilitará investigar a produtividade dos pronomes tu
e você quanto ao universo discursivo das cartas, no que se refere ao maior ou menor grau de recorrência de
assuntos íntimos, portanto mais sentimental, mais intimista.

3. Analise dos resultados: a implementação do você em cartas pessoais norte-riograndenses do século


XX

Os dados foram quantificados e submetidos aos programas do pacote estatístico computacional


GOLDVARB 2001 (cf. ROBISON; LAWRENCE, TAGLIAMONTE, 2001) para obtermos as frequências de
uso e os pesos relativos. Dentre as variáveis controladas, quatro variáveis foram selecionadas pelo GOLDVARB
2001 como mais significativas no condicionamento do você nas cartas norte-riograndenses, a saber, nesta ordem
de relevância: i) o período de escrita da carta; ii) os contextos morfossintáticos; iii) as formas verbo-pronominais
antecedentes ao dado coletado; iv) o universo discursivo da carta. Houve, também, uma variável não selecionada
como fator relevante ao condicionamento do você é o caso da variável independente que controla os tipos de
orações, essa variável foi julgada como não significativa pelo programa estatístico.

No total das cartas, encontramos 1412 ocorrências de formas relacionadas aos pronomes tu/você, das
quais 976 (69%) são formas associadas ao pronome você e 436 (31%) estão associadas ao tu. É importante referir
629
que na seleção dos fatores, no primeiro momento, fizemos um controle do preenchimento dos sujeitos nas
formas verbais imperativas e não imperativas. No entanto houve knockouts associado a esses fatores; ou seja,
existiu apenas o uso categórico das formas de você no preenchimento do sujeito com formas verbais imperativas,
assim tivemos que amalgamar as formas verbais imperativas e não imperativas. Os resultados referentes à essa
variável, contexto morfossintático, estão expressos na tabela 1 abaixo.

Contextos morfossintáticos Você - % P.R.

Sujeito Pleno (imperativo e não 283/286 - 98% 0,95


imperativo)

Sujeito nulo (imperativo) 69/75 - 92% 0,93

Oblíquo preposicionado 195/206 - 94% 0,81

Pronomes possessivos 200/319 - 62% 0,28

Sujeito nulo (não imperativo) 54/136 - 39% 0,28

Dativo 106/169 - 62% 0,16

Acusativo 69/221 - 31% 0,06

Total 976/1412 - 69%

Log likelihood = - 403,530; Significance = 0,000

Tabela 1: Frequências de uso das formas de você, nas cartas norte-riograndenses, por contextos morfossintáticos

É perceptível, conforme se pode observar na tabela 1, acima, que há uma distribuição entre as variantes
no condicionamento na implementação do você, no sentido de que o sujeito pleno (com formas verbais
imperativas e não imperativas) com pesos relativos de 0,95, confirma a probabilidade de que ao ocorrer o você na
posição/função de sujeito, esse será lexicalizado. Percebemos, ainda, uma maior produtividade das formas
relacionadas ao você nas construções com formas verbais imperativas com sujeito nulo com pesos relativos de
0,93; identificamos, também, frequências e pesos relativos bastantes significativos (94% e P.R. de 0,81) nos
pronomes complementos preposicionados (oblíquos preposicionados). No entanto, apesar desse inegável
favorecimento ao uso das formas de você, os resultados da análise, nas cartas do RN, exibem, também, a presença
das formas associadas ao pronome tu com 31% das ocorrências. Desse modo, as formas verbo-pronominais
relacionadas ao tu mostraram-se mais produtivas nos seguintes ambientes morfossintáticos: o pronome-complemento
não preposicionado (69/221- 31% e P.R. de 0,06; 106/169-62 e P.R. de 0,16), pronome possessivo (200/319 - 62% e
P.R. de 0,28) e as formas verbais não – imperativas com sujeito nulo(54/136 - 39% e P.R. de 0,28). Nessa perspectiva, os
nossos resultados confirmam os estudos anteriores (RUMEU, 2008; LOPES, 2009; LOPES, RUMEU e
MARCOTULIO, 2011; LOPES e MARCOTULIO, 2011) que defendem haver alguns contextos
morfossintáticos como ambientes condicionantes ao uso da forma inovadora você, são eles: pronome-sujeito, o
630
pronome complemento preposicionado e as formas verbais imperativas. Ao passo que, de acordo os estudos elencado
anteriormente, os contextos morfossintáticos de resistência ao tu são: o pronome possessivo, o pronome-complemento não
preposicionado (te) e as formas verbais não – imperativas.

Os exemplos de (1) a (10), a seguir, foram retirados do córpus e ilustram a frequência das formas de tu e
de você nos contextos morfossintáticos analisados.

 sujeitos plenos e nulos


(1) Pelo nosso amigo Apolonio estou remetendo a| importância de Cr$ 250,00
(Duzentos e cinquenta cruzeiros),| VOCÊ mande entregar a menina desta carta a importância de Cr$ 30,00
conforme acusa na mesma,[...]. (Carta 32 – de Lourival para Ruzinete, 16/5/1972).

(2) Theodosio [...] Desde 5ª feira que entrei na limpesa | do muro, ainda esta semana terminarei [fol. 1r] |
com a limpeza <↑2ª x> dos lados e fundo, para en- | tão passar para a frente, so depois que aca- | bar com a
calsada é que saberei se o | tijollo que sobra dará para fazer o muro | que me FALLA em sua carta de hontem.
|| Tive o diario que juntou a sua carta | de hontem, vi o preço de algodão dado nelle, 40 [inint.]. || (Carta 27 –
de Theodósio para João de Paiva, 24/2/1919).

 Pronomes possessivos
(3) Recebi SUA cartinha com a qual| fiquei bastante satisfeita pois há dias| que havias saído e ainda não tinhas|
dado noticias de formas que não sabia| se ias até Patú contudo peço-te que fa| cãs por vir o mais breve possível
pois| estou anciosa que chegues apezar de que| talvez ainda não estejas com saudades| de casa.|| (Carta 16 –
de Ruzinete para Lourival, 14/4/1951).

(4) Foi em uma dessas horas de | saudades, que a poesia do amôrbri- | lhava sobre meu ser, que fui surpre- |
endida pela TUA delicada e bem aten- | ciosa cartinha,[...](Carta 1 – de Ruzinete para Lourival, 26/2/1946).

 Dativos
(5) Escrevo-lhe esta só para TE dizer | o quanto estou com saudade de você amôr. (Carta 2- de Walter Oliveira
para Lucinha, 18|2|92)

(6) Lucinha, achei lindo o | cartão de aniversario que você | me mandou, você é uma pes- | soa de muito bom
gosto não | sei com quais palavras poço² | LHE agradecer, so sei dizer que | adorei muito obrigado por tudo.
[fol. 1 r] (Carta 1- de Walter Oliveira para Lucinha, 18|10|91)

 Acusativos
(7) As coisas | para me não tem sentido sem você, você vê- | io para são paulo só pra mexer com minha |
cabeça eu não vejo mais ninguem comigo só | vejo você, parece que estou TE vendo a to- | da hora do meu
lado nunca mulher nenhuma | mexeu tanto comigo o quanto você tem me- | xido. ||(Carta 3- de Walter
Oliveira para Lucinha, 16|3|92)
631
(1) Aqui estar | tudo bem comigo graças a Deus, e | desejo que esta chegue em suas | maos e LHE
encontre com muita sau- | de e que você alcance todos os se- | us objetivos. (Carta 1- de Walter Oliveira para
Lucinha, 18|10|92)

 Obliquo preposicionado
(9) Netinha; quero apenas que sêja | sincera para com minha [fol. 1 r] | pessôa, quanto ao que falei que | havia
dito, não deve dar a | menor atenção, no entanto; | apelo para VOCÊ, foi milhor | até, via a realidade e depois
| senti-me bastante, quanto a | isto so com nossa vista puderei | contar. (Carta 2 – de Lourival para Ruzinete,
19/5/1946)

(10) Lucinha, eu gosto muito | de você, mas tambem não pos | so cobrar nada de VOCÊ. (Carta 1- de Walter
Oliveira para Lucinha, 18|10|92)

Controlamos, ainda, o período de escrita das missivas e dividimos os conjuntos de cartas por
remetente, desta maneira temos três períodos, a saber: 1916 a 1925 (irmãos Paiva); 1946 a 1972 (Lourival e
Ruzinete); de 1992 a 1994 (Walter). Vejamos os resultados na tabela 2, a seguir.

Período de escrita da carta Você - % P.R.

1916 a 1925 201/204 - 98% 0,95

1946 a 1972 66/317 - 20% 0,07

1992 a 1994 709/891 - 79% 0,55

Total 976/1412 – 69%

Log likelihood = - 628,878; Significance = 0,000

Tabela 2: Frequências de uso do você, nas cartas norte-riograndenses, por período de escrita da carta

Lopes e Machado (2005); Rumeu, 2008; Lopes, Rumeu e Marcotulio, 2011, advogam que o pronome você
suplanta o tu, tornando-se mais produtivo a partir do ano de 1930. No entanto, a análise das cartas norte-
riograndenses do século XX parece, de um modo geral, evidenciar um quadro em que, no Rio Grande do Norte,
já na primeira metade do século XX, a partir da década de 10 (considerando as cartas dos irmãos Paiva – 1916 -
1925). No período de 1946 a 1972 percebemos um decréscimo significativo nas ocorrências das formas
associadas ao você, mas salientamos que se faz necessário analisar cada conjunto de cartas separadamente, pois o
período de 1946 a 1951, em que se registra maior produtividade das formas de tu, essa produtividade
corresponde, em sua maior parte, às cartas escritas pela missivista Ruzinete Dantas para o seu
namorado/noivo/esposo Lourival Rocha, informantes com maior recorrência de uso das formas de tu,
sobretudo missivista Ruzinete, por isso faz-se necessário observar que essas cartas recobrem um período de
632
namoro/noivado e início do casamento dos informantes, fato esse que possibilita uma maior recorrência de
assuntos mais íntimos, consequentemente, influenciando numa maior preferência pelas formas de tu.

A exemplo do estudo de Rumeu (2008), monitoramos nas cartas norte-riograndenses as realizações das
formas verbo-pronominais antecedentes às ocorrências de segunda e terceira pessoas gramaticais numa mesma
carta, bem como a primeira ocorrência dessas formas. Com o intuito de observar se há uniformidade no
tratamento, ou seja, observar se há um uso exclusivo de formas relacionadas a tu ou de formas relacionadas a você.
Os resultados expressos na tabela 3, a seguir, apresentam os resultados referentes ao controle dessa variável.

Formas verbo-pronominais Você - % P.R.


antecedentes

Precedidas por formas de você 546/642 - 85% 0,65

1ª ocorrência na carta 387 /553 - 69% 0,50

Precedidas por formas de tu 43/217 - 19% 0,14

Total 976/1412-69%

Log likelihood = - 371,660; Significance = 0,000

Tabela 3: Frequências de uso do você , nas cartas norte-riograndenses, por formas verbo-pronominais antecedentes

A tabela 3 aponta algo já relatado por estudos anteriores: o fato de a forma inovadora você ser mais
produtiva quando antecedida por formas relacionadas a ela ou nas primeiras ocorrências.

Concernente ao universo discursivo das cartas, muitos estudos têm mostrado que este se constitui
como motivações pragmáticas que podem (des)favorecer a escolha de uma ou outra forma pronominal de
referência ao interlocutor. Nesse sentido, é importante referir que no córpus analisado, existem dois conjuntos
de cartas que são cartas de amor e um deles dispõe de correspondências trocadas entre o casal (Lourival e
Ruzinete) no período de namoro/noivado e casamento. Dessa maneira, nas cartas norte-riograndenses analisadas
exibem-se pesos relativos bastante relevantes, com peso relativo de 0,92 (256/301 - 85% dos dados) para cartas
com menor recorrência de assuntos amorosos e de 0,33 (720/1111- 64% dos dados) em cartas com ambientes
discursivos mais íntimos, conforme ilustram a tabela 4.

Universo discursivo das cartas Você - % P.R.

Menos íntimo (com menor 256/301 - 85% 0,92


recorrência de assuntos amorosos)

Mais íntimo (com maior 720 /1111 - 64% 0,33


recorrência de assuntos amorosos)
633

Total 976/1412 – 69%

Log likelihood = - 345,767; Significance = 0,000

Tabela 4: Frequências de uso do você , nas cartas norte-riograndenses, por universo discursivo da carta

Podemos perceber que o P.R. 0,92 indica que, nas cartas norte-riograndenses, há um menor
condicionamento das formas associadas ao você, sobretudo nas cartas com maior recorrência de assuntos
amorosos. Outros estudos já tinham mostrado esse quadro, como, por exemplo, o estudo desenvolvido Lopes,
Marcotulio e Rumeu (2011) atestando que quanto maior o grau de informalidade maior as chances de ocorrência
do tu.

Controlamos, também, os tipos de orações, a fim de observar se há alguma correlação entre os tipos de
oração e a produtividade das formas pronominais de tu e de você. Nessa perspectiva, percebemos que a forma
inovadora você é significativamente produtiva tanto nas orações principais/coordenadas (564/812 - 69%; P. R.
0,33) como nas orações subordinadas (412/600 - 68%; P. R. 0,92), conforme ilustra a tabela 5, a seguir.

Tipo de Oração Você - % P.R.

Orações subordinadas 412/600 - 68% 0,92

Orações principais/ coordenadas 564 /812 - 69% 0,33

Total 976/1412 – 69%

Log likelihood = - 344,307; Significance = 0,091

Tabela 5: Frequências de uso do você, nas cartas norte-riograndenses, por tipo de oração

3. Considerações finais

A análise diacrônica dos três conjuntos de cartas, de um modo geral, parece ratificar os postulados
advogados pelos estudos sociolinguísticos de cunho diacrônico evidenciando que existem ambientes
morfossintáticos que favorecem a implementação da forma inovadora você. Assim, os ambientes com maior
probabilidade de ocorrência das formas associadas ao você, considerando os três conjuntos de cartas são:
pronome sujeito (P.R. 0,98), formas verbais imperativas (P.R. 0,93) e pronomes complementos preposicionados
(P.R. 0,82); por outro lado, os contextos com maior resistência do tu são: acusativos (P.R. 0,06), dativos (62%;
P.R. 0,16), formas verbais não imperativas (P.R.0,19) e, por fim, pronomes possessivos (P.R.0,28). Com relação
ao preenchimento do sujeito com as formas de você, nas cartas pessoais norte-riograndenses, o sujeito pleno
apresentava frequência acima de 90% e, em contrapartida, o sujeito nulo não imperativo apresenta índice inferior
a 40%. Acreditamos que a forma você teria seguido a tendência de aumento do preenchimento e o tu permanecido
634
associado a um sistema com maior recorrência d o sujeito nulo. Tais resultados corroboram a hipótese de Duarte
(2012, p. 31) de que o PB, na segunda metade do século XX, apresenta maior tendência ao preenchimento do
sujeito.

A variável o período de escrita das cartas, também, se mostrou relevante para a implementação do você, em
que as cartas do RN, escritas nas primeiras décadas do século XX apresentam maior recorrência de uso das
formas associadas ao você (P.R.0,95). Nesse sentido, percebemos uma peculiaridade nas cartas do RN,
notadamente nas cartas escritas no período de 1916 a 1925, diferenciando dos resultados encontrados em
estudos anteriores sobre o mesmo tema.

Concernente às formas verbo-pronominais antecedente, nas cartas analisadas, percebemos que as formas
associadas ao você são mais produtivas quando precedidas por formas de você (P.R. 0,65) ou nas primeiras
ocorrências (P.R.0,50). No tocante ao universo discursivo das cartas, podemos observar que as formas ligadas ao você
são mais produtivas (P.R.0,92) em cartas com menor recorrência de assuntos íntimos, alinhando-se aos
resultados de Lopes e Marcotulio (2011) que atestam uma maior produtividade do você nas relações com maior
grau de formalidade.

Por fim, os resultados encontrados, tendo em vista a análise das cartas pessoais norte-riograndenses do
século XX, parecem ratificar, em sua maioria, as constatações feitas por Lopes e Machado (2005), Rumeu (2008),
Lopes (2009), Lopes, Rumeu e Marcotúlio (2011), Lopes e Marcotúlio (2011). Nesse panorama, as cartas pessoais
norte-riograndenses confirmam que a implementação do pronome você no PB não ocorre da maneira em todos
os ambientes morfossintáticos, uma vez que é possível verificar ambientes morfossintáticos favorecedores e
inibidores do uso da forma inovadora, sendo os pronomes sujeitos (P.R. 0,95), as formas verbais imperativas (P.R. 0,93)
e os pronomes complementos preposicionados (P.R. 0,81) os contextos favorecedores ao uso do inovador você e os
ambientes inibidores do você, ou de resistência do tu são: acusativo (P.R. 0,06); dativo (P.R. 0,16); ou seja, pronomes
complementos não preposicionados e formas verbais não imperativas (P.R. 0,28). Sendo assim, o próximo passo
desta pesquisa está relacionado à observação dos contextos em que ocorre resistência à implementação do você,
em especial os pronomes complementos não preposicionados, e buscar responder o porquê dessa resistência
nesses ambientes morfossintáticos.

REFERÊNCIAS

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635
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Vernáculas: FAPERJ, 2005.
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formas de tratamento em português e em espanhol variação, mudança e funções conversacionais. Niterói: Editora da
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LUCCHESI, D. Sistema, mudança e linguagem: um percurso na história da linguística moderna. São Paulo: Parábola
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RUMEU, M. C. de B. A Implementação do „Você‟ no Português Brasileiro Oitocentista e Novecentista: Um Estudo de


Painel. Tese (Doutorado Em Letras Vernáculas - Língua Portuguesa) - Programa de Pós-graduação em Letras
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WEINREICH, U.; LABOV, W.; HERZOG, M. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística. Trad.
Marcos Bagno. São Paulo. Parábola: 2006.
636
O SUBSISTEMA DE ATITUDE:
UMA ANÁLISE DO POSICIONAMENTO MORAL E ÉTICO NA HISTÓRIA
EM QUADRINHOS DA TURMA DA MÔNICA “UM
SUPERMOTOCICLISTA”

Ladyana dos Santos Lobato265

Rosângela do Socorro Nogueira (Orientadora)266

Resumo: Analisamos, no presente artigo, a semântica do discurso de educação para o trânsito presente
no episódio ―Um Supermotociclista‖, da história em quadrinhos da Turma da Mônica, com o objetivo
de analisar as construções linguísticas de aprovação ou condenação do comportamento humano no
trânsito e suas implicações em um sistema específico de normas sociais e valores éticos. Para isso,
utilizamos a Teoria da Valoração (Appraisal System) desenvolvida por Martin e White (2005),
especialmente, sua categoria de Atitude, na qual ressaltamos os eventos comunicativos de Julgamento.
Após referenciar os principais pressupostos teóricos da Teoria da Valoração, realizamos um
levantamento das ocorrências de Julgamento, nos discursos de educação para o trânsito, considerando
as valorações positivas e negativas e seus efeitos na representação social dos personagens. Desta análise,
compreenderemos como os eventos comunicativos de Julgamento desenvolvem-se, no episódio da
História em Quadrinhos selecionada, permeados por atitudes de sanção social (normas de trânsito) e
por atitudes de estima social (ética no trânsito) reproduzindo, na ficção, representações morais do
contexto cultural em que vivemos.

Palavras-Chave: Avaliatividade; Atitude; Julgamento; Sansão Social; Estima Social; Educação no


Trânsito.

Abstract: We analyze in this article, the semantics of the discourse on the traffic education in the
episode "A Super motorcyclist" from the comic magazine ―Turma da Monica‖. The main aim of this
work is to analyze the linguistic constructions of approval or disapproval of the human behavior in
traffic and its implications on a specific system of social norms and ethical values. For this, we based
our study on the Appraisal System theory developed by Martin and White (2005), especially their
attitude category, which emphasizes communicative events of Judgment. After that, we conducted a
survey about the occurrences of Judgment in the speeches of traffic education, analyzing the positive
and negative valuations and their effects on the social representation of the characters. From this
analysis, we understand how the communicative events of Judgment develop themselves in the episode
of the comic story selected, it was permeated by the attitudes of social sanction (traffic rules) and
attitudes of social esteem (ethics in traffic) reproducing, in fiction, moral representations of the cultural
context where we live.

Keywords: Appraisal; Attitude; Judgement; Social esteem; Social Sanction; Education in the transit.

265 Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected]

266 Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected]


637

1. Introdução

Muitas campanhas educativas são desenvolvidas, no Brasil, com o objetivo de contribuir com um
trânsito mais harmônico. Essas campanhas são realizadas por órgãos do Sistema Nacional de Trânsito, entidades
não governamentais, escolas, empresas, etc, que utilizam as mais diversas formas de conscientização: palestras,
outdoor, músicas, comerciais televisivos, revistas, panfletos, entre outros. Independente da forma utilizada, as
ações de educação para o trânsito contribuem com a construção de uma consciência ética, pois utilizam a
linguagem, seja esta verbal ou não verbal, para influenciar o comportamento.

A linguagem utilizada nos discursos de educação para o trânsito expressa determinadas opiniões, faz
julgamentos e avaliações e reproduz acordos socialmente estabelecidos, por isso, não pode ser vista desarticulada
de seus falantes, de suas práticas, do contexto social, histórico e ideológico em que está inserida. Nestes termos,
encontramos a linguagem diretamente relacionada à metafunção interpessoal, sob o ponto de vista da Gramática
Sistêmico-Funcional de HALLIDAY (1994), por isso, traremos para este artigo, as contribuições da Teoria da
Valoração (Appraisal System), desenvolvida por Martin e White (2005), que discorrem sobre a forma que nos
inscrevemos na língua, por meio do modo como valoramos estética, ética e afetivamente as coisas.

A Teoria da Valoração será aplicada no discurso de educação para o trânsito presente em uma História em
Quadrinhos (doravante HQ‘s) da Editora Maurício de Souza Produções publicada no ano de 2010,
especialmente, para o Projeto ―Harmonia no Trânsito‖ de uma Empresa de Concessionária de Motocicletas. A
HQ‘s é intitulada ―O Supermotociclista: Harmonia no Trânsito‖ e apresenta três episódios sobre pilotagem
segura de motocicleta, a saber: ―Um Supermotociclista‖, ―Técnicas de Pilotagem‖ e ―Proteção nunca é demais‖.

Nosso objeto de estudo será o primeiro episódio da HQ‘s, isto é, o episódio intitulado ―Um
Supermotociclista‖. Pretendemos analisar as construções linguísticas de aprovação ou condenação do
comportamento humano no trânsito, a partir dos recursos desenvolvidos pela Teoria da Valoração; e as
implicações dessas estruturas linguísticas na construção da representação social dos personagens da história. Esta
análise abordará, especificamente, o subsistema de Atitude, pois este é o subsistema que trata sobre a valoração
do comportamento; e os eventos comunicativos de Julgamento, por meio dos quais será possível compreender
os comportamentos permeados por atitudes de sanção social e que constituem crime do ponto de vista jurídico; e
os comportamentos permeados por atitudes de estima social e que constituem prestígio do ponto de vista ético.

2. Teoria da Valoração

Segundo Cabral (2011), a Teoria da Valoração (Appraisal System), também conhecida no Brasil por
―teoria da avaliatividade‖ ou ―teoria da avaliação‖, foi desenvolvida nos anos 90 pelo professor da Universidade
de Sydney, Jim Martin; e pelo especialista em discurso midiático, Peter White. A publicação da obra The Language
638
of Evaluation: Appraisal in English, em 2005, foi um marco importante para o desenvolvimento da teoria, a qual
teve suas bases teóricas no interior da Gramática Sistêmico-Funcional (GSF).

A obra de Martin e White (2005) foi estrutura levando em consideração a tentativa de responder algumas
indagações sobre a valoração da linguagem, entre elas:

de que maneira escritores e falantes instauram-se nos textos que produzem? Como são
realizadas, linguisticamente, instâncias de envolvimento, atitudes, afeto, julgamento,
apreciação, aprovação, desaprovação, entusiasmo e decepção em relação aos
significados que se transmitem? De que modo, ainda, escritores e falantes constroem
suas identidades nos textos? (LOPES; VIAN JR, 2007, pág. 1)

Com base nesses questionamentos, Martin e White (2005) construíram uma definição para o Sistema de
Valoração. Para eles, a teoria ―compreende atitudes positivas ou negativas que o escritor/falante possui em
relação a algo.‖ (LOPES; VIAN JR, 2007, pág. 1). No entanto, essas atitudes, pela forma que acontecem, pela
influência que exercem nas relações entre os indivíduos e destes com o mundo que os cerca; situam-se no campo
dos significados Interpessoais, mais especificamente, na metafunção interpessoal que a linguagem exerce em
qualquer construção comunicativa.

Martin e White (2005) perceberam, de acordo com Cabral (2001), que os itens léxico-gramaticais, quando
analisados isoladamente, não conseguem expressar todo o significado de um texto em determinados contextos
sociais, o que é possível somente quando consideramos a relação que eles mantêm entre si ou os aspectos do
evento comunicativo que estão além da oração.

Dessa forma, ao desenvolverem a Teoria da Valoração, Martin e White (2005) recorreram à Semântica do
Discurso, pois, nos estudos sobre definição de linguagem, apontaram uma exterioridade social na materialidade
textual. Para eles, ―é possível encontrar, no texto, elementos que comprovem sentimentos e valores ‗postos‘ de
uma comunidade, de modo a demonstrar emoções, gostos e avaliações normativas‖ (CABRAL, 2011, pág. 2).
Isto significa que através do envolvimento dos participantes de determinado evento comunicativo são
estabelecidas relações de troca, através das quais circulam, linguisticamente, manifestações e posicionamentos
pessoais intrinsecamente relacionados ao modo de ver e avaliar o mundo.

A Teoria da Valoração é um sistema que se dividiu, inicialmente, em três subsistemas: Atitude,


Comprometimento e Gradação. De acordo com Martin e White (2005) apud Cabral (2011), a Atitude refere-se às
possibilidades linguísticas de se fazer avaliações positivas ou negativas dos sentimentos, do comportamento, das
opiniões sobre o mundo que nos cerca; o Comprometimento refere-se à aceitação ou não do posicionamento,
opinião ou dizer do outro; e a Gradação refere-se à intensificação dos significados expressos pelas duas primeiras
categorias, utilizando escalas de avaliação em termos de tamanho, força, vigor.

O subsistema de Atitude, em especial, é constituído por três subcategorias: Afeto, Julgamento e


Apreciação. De acordo com Martin e White (2005) apud Cabral (2011), o Afeto é o campo de significado que está
639
relacionado às questões emocionais, isto é, sentimentos positivos ou negativos expressados através da linguagem.
Surge nos eventos comunicativos através de atributos (Exemplo: ―Mãe carinhosa‖), de processos mentais
(Exemplo: ―Ele ficou chateado‖) ou comportamentais (Exemplo: ―A criança está chorando‖) ou circunstanciadores,
isto é, elementos adverbiais (Exemplo: ―Fez tudo caprichosamente‖).

O Julgamento, de acordo com Martin e White (2005) apud Farencena (2011), refere-se às posições de
aprovação ou condenação do comportamento humano. Seu campo de significado abrange o aspecto da avaliação
moral da atitude das pessoas, isto é, as concepções ideológicas do que é ―correto‖ e do que é ―errado‖ ou
―aceito‖ e ―não aceito‖ em determinado grupo social.

A subcategoria de Julgamento apresenta-se a partir de duas perspectivas: Julgamento de Sanção Social e


Julgamento de Estima Social. O Julgamento de Sanção Social, segundo Martin e White (2005) apud Farencena
(2011), refere-se às normas estabelecidas socialmente, em geral, são normas previstas por meio de legislação,
preceitos e valores morais ou religiosos que podem constituir crime ou pecado, se infringidas. Julgamento de
Estima Social, segundo Martin e White (2005) apud Farencena (2011), diz respeito às relações cotidianas entre as
pessoas, por isso não se caracteriza como norma institucionalizada, isto significa que deslizes atitudinais não
implicam em crime ou pecado, mas estabelecem relações de prestígio (ou não), de admiração (decepção) ou
status social.

De acordo com Martin e White (2005) apud Farencena (2011), a Sanção Social se realiza no
comportamento de veracidade (quão verdadeiro ou confiável alguém é) e no comportamento de propriedade
(quão ético ou correto alguém é). Por outro lado, a Estima Social se realiza nos comportamentos de normalidade
(quão normal, usual ou frequente um comportamento é), de capacidade (quão capaz uma pessoa é) e de
tenacidade (quão decidido, confiável, persistente alguém é).

Apesar desses eventos apresentarem campos de significados diferentes, ambos perpassam sentidos de
valoração positiva ou negativa, ou seja, constituem comportamentos que podem ser julgados por meio de
aprovação ou negação, além disso, contribuem para constituir redes sociais, pois para Martin e White (2005) apud
Lopes e Vian Jr (2007), a Sanção Social volta-se, geralmente, para a área da linguagem escrita, uma vez que os
julgamentos que a constituem são comuns nos textos escritos, tais como, leis, decretos, editais, etc; enquanto que
a Estima Social volta-se para a área da linguagem oral, pois os julgamentos que a constituem são frequentes nas
conversas informais, narrativas do dia-a-dia, piadas, etc.

A Apreciação, sinteticamente, é apontada por Martin e White (2005) apud Farencena (2011) como o
campo de significado que avalia positivamente ou negativamente as opiniões sobre as pessoas, animais, objetos e
produtos considerando, no entanto, a perspectiva da estética, da composição e do valor (Exemplo: ―Hoje o dia
está belo‖).

As três subcategorias semânticas do Subsistema de Atitude podem surgir nos eventos linguísticos de
forma explícita ou implícita, apresentando intensidade alta ou baixa. Vale ressaltar que,
640
ao contrário do afeto, a apreciação e o julgamento não envolvem avaliações subjetivas.
Pelo julgamento, os elementos e os participantes são avaliados em relação às regras
sociais; por meio da apreciação, são atribuídos valores ao fenômeno avaliado, mas
esses valores residem no objeto, não no subjetivo humano. (RODRIGUES;
CABRAL, 2010, pág. 6)

A Teoria da Valoração corresponde, portanto, a um complexo diagrama. Neste artigo, desenvolvemos


apenas um breve estudo sobre a Teoria, enfatizando o Subsistema de Atitude e a subcategoria de Julgamento.
Por sua recente emergência, a Teoria da Valoração caracteriza-se pela ausência de estudos mais criteriosos, mas
que apontam para novos horizontes, no que diz respeito à forma de conceber a linguagem, haja vista as várias
possibilidades de pesquisa no campo da gramática sistêmico funcional. Na análise que nos propomos a
desenvolver, a partir de agora, oferecemos aos produtores e analistas de textos uma reflexão sobre a
aplicabilidade da Teoria da Valoração em nosso idioma, a qual poderá ser atrelada aos estudos futuros sobre o
falar/escrever brasileiro e suas recorrências no gênero História em Quadrinhos.

3. Análise Linguística de Atitudes de Julg mento n HQ's “Um Supermotociclist ”.

O episódio ―Um Supermotociclista‖ da HQ's ―O Super Motociclista: Harmonia no Trânsito‖ (2010) inicia
com um conflito causado por um comportamento do personagem Cebolinha: estar usando um capacete. Esse
comportamento causa medo no personagem Cascão que, desesperado, suplica pela própria vida pensando que se
trata de um ―etê‖. Cebolinha levanta a viseira do capacete, identifica-se e afirma que sua atitude de usar um
capacete não se trata de um plano contra a Mônica. Neste contexto, podemos apontar um evento linguístico de
reprovação do comportamento de Cebolinha, na fala de Cascão:

(1) Não?! Então, pra que esse capacete de astronauta?


Por meio do uso do termo ―não‖, acrescido dos sinais de interrogação e exclamação, percebemos que
Cascão está julgando negativamente o comportamento de Cebolinha, pois este recurso linguístico instaura uma
crítica à atitude de Cebolinha de estar usando um capacete, se não para tramar contra a personagem Mônica. Para
Cascão não existe outro motivo que justifique a atitude do amigo, por isso, mostra-se surpreso com tal situação e
questiona o motivo pelo qual Cebolinha está usando o equipamento. Estamos diante de um julgamento de
Estima Social, o qual se realiza em termos de comportamento de Normalidade, mas sob o status negativo, pois
Cascão reprova o comportamento de Cebolinha porque nas relações cotidianas não é normal que tal
comportamento aconteça.

Cebolinha responde a reprovação de Cascão afirmando:

(2) Este capacete é pra andar de moto!


Percebemos, em (2), a reprodução de uma norma social adequada à vida no trânsito de que todos devem
usar capacete para dirigir um veículo automotor. Cebolinha respeita esta condição, pois justifica seu
comportamento com a expressão ―pra andar de moto!‖. Quando extraímos esse discurso da fala do personagem,
percebemos que este faz um julgamento positivo de sua própria atitude, baseado em Sanção Social de
641
Propriedade, uma vez que seu comportamento reflete atitude de respeito às leis de trânsito, ou seja, às normas
socialmente fixadas e para as quais ele estará respondendo por meio de um comportamento ético.

Cascão continua reprovando o comportamento de Cebolinha:

(3) Ah, ta! Vai me dizer que agora você é motociclista?


O uso da expressão ―Ah, ta!‖, pelo personagem Cascão, confere uma ideia de concordância, aceitação,
crença no fato de Cebolinha andar de moto. No entanto, o uso dessa expressão, somado ao uso do termo ―Vai
me dizer‖, o qual estabelece uma noção de algo que será posto em dúvida; além do uso do advérbio de tempo
―agora‖, que insinua que Cebolinha não andava de moto, mas de repente começa a utilizar esse veículo; confere
um sentido de ironia à fala de Cascão que duvida da habilidade de Cebolinha de ser motociclista. O julgamento
negativo realiza-se, portanto, em (3), do ponto de vista da Estima Social e em termos de comportamento de
Capacidade: quão capaz Cebolinha é de dirigir uma moto?

Em contrapartida, Cebolinha contesta a reprovação do amigo e faz um julgamento positivo de si mesmo


levando em consideração a Estima Social, a qual se realiza em termos de Tenacidade, ou seja, apontando o quão
decido e disposto estar para se comportar como um motociclista. O que determina esta condição, no evento
linguístico, é o uso do termo ―mesmo‖, o qual confere certeza à condição de Cebolinha ser um motociclista:

(4) E sou mesmo!


Prosseguindo a narrativa, Ulisses, primo de Cebolinha, chega em uma moto e estaciona perto dos dois
garotos. Esta passagem marca um momento importante na narrativa, o qual é desenrolado em torno da
concepção do que é ser ―radical‖. O termo é construído a partir de dois significados: 1) Ser radical implica um
comportamento condizente com os acordos sociais estabelecidos no trânsito, onde é necessário ser cauteloso,
observador e respeitador das leis; e 2) Ser radical está relacionado à acepção mais cotidiana, isto é, aquela que é
estabelecida pelo senso comum e que corresponde a ser aventureiro, ousado e veloz no trânsito.

Para Ulisses, ser radical ajusta-se ao primeiro significado do termo: ser coerente com as normas de
trânsito. Para Cascão e Cebolinha, ser radical, pelo menos durante o início da narrativa, ajusta-se ao segundo
significado do termo: dirigir em alta velocidade. Tendo em vista o duplo sentido adquirido pelo termo,
percebemos, na narrativa, vários julgamentos que são construídos em torno do comportamento de Ulisses no
trânsito. O primeiro julgamento é positivo e surge na fala de Cebolinha, assim que apresenta seu primo ao
Cascão:

(5) O Ulisses é um motociclista ladical!


Neste evento linguístico, percebemos que a fala de Cebolinha evidencia uma atitude de aprovação do
comportamento de Ulisses, por meio do uso do termo ―ladical‖ (radical), enquanto adjetivação do substantivo
―motociclista‖. O termo ―ladical‖ é um elogio a Ulisses e refere-se a um comportamento que merece admiração e
prestígio, pois ser um motociclista ―ladical‖ significa, nesse primeiro momento, um julgamento de Estima Social,
no qual é evidenciado o comportamento de Capacidade: Ulisses possui habilidades no trânsito. Levando em
consideração a acepção de ―radical‖ para Cebolinha, no qual andar de moto é pilotar em alta velocidade, o
642
julgamento do personagem é positivo, pois considera que Ulisses é aventureiro e responderá às suas expectativas
no trânsito.

Cascão julga, negativamente, outro comportamento de Ulisses: estar usando capacete, óculos de proteção,
luvas, botas, jaqueta. Utiliza, para isso, o mesmo recurso de julgamento:

(7) Tem que andar assim todo equipado?

Nesta expressão linguística, o uso do verbo ―ter‖ confere uma obrigatoriedade ao comportamento de
andar de moto utilizando os equipamentos de segurança. O termo ―assim‖, que pode significar ―desse jeito‖,
expressa um tom de estranhamento e reprovação. Em ―todo equipado‖, temos o uso do intensificador ―todo‖
que sugere que existem equipamentos, para Cascão, que são desnecessários. Por isso, percebemos um julgamento
de reprovação do comportamento de Ulisses, baseado em Estima Social, o qual se realiza em termos de
comportamento de Normalidade. Para Cascão, utilizar equipamentos de segurança para dirigir uma moto não é
um comportamento frequente, por isso, considera como uma atitude estranha, haja vista, este personagem não
considerar a questão da obrigatoriedade ou da segurança da motociclista.

Ulisses responde ao questionamento afirmando:

(8) Pois é! É mais seguro!

Neste evento linguístico, Ulisses faz um julgamento de aprovação de seu próprio comportamento,
baseados em Sanção Social de Propriedade. Este julgamento está baseado na concepção do que é aceito
positivamente, enquanto norma, em determinado grupo social, isto é, estabelecido de forma institucionalizada.
As leis de trânsito e os valores éticos apontam para a concepção de que dirigir utilizando os equipamentos é mais
seguro e isso é reproduzido por meio da fala do personagem ao utilizar o próprio termo ―seguro‖ para responder
à indagação de Cascão. Importante notar é que, apesar disso, o discurso de Ulisses não circunda a questão da
obrigatoriedade, mas da necessidade e da segurança.

Na sequência da narrativa, Ulisses e Cebolinha despedem-se de Cascão e saem na moto. Ulisses é o


motociclista e Cebolinha é o passageiro. A partir de então, percebemos três eventos comunicativos em que
Cebolinha reprova a atitude de Ulisses de dirigir em baixa velocidade. A reprovação da atitude de Ulisses
acontece porque, para Cebolinha, ser ―radical‖ corresponde a dirigir em alta velocidade. Todos os eventos
comunicativos que apresentam essa característica são construídos por meio de indagações, o que referenda, pela
forma que são ditos, crítica ao comportamento julgado. Os julgamentos aparecem nos seguintes eventos
linguísticos:

(10) E aí, plimo? Andando tlanquilo, né?

(11) você conhece bem este lugar plimo? (…)E por que não vai um pouco mais lápido?

Percebemos, portanto, julgamentos de reprovação do comportamento humano. Em (10) devido ao uso do


adjetivo ―tlanquilo‖ (tranquilo), antônimo do que é ―radical‖ para Cebolinha. Em (11), devido à incoerência
643
provocada pelas duas indagações de Cebolinha, para as quais devemos considerar todo o enunciado linguístico:
tendo em vista que o primo Ulisses conhece o lugar, para Cebolinha é contraditório que este pilote com pouca
velocidade.

Todas essas expressões linguísticas relacionam-se à categoria de Estima Social, a qual diz respeito às
relações cotidianas no trânsito. Cebolinha compreende o trânsito, enquanto um sistema dinâmico, movido pela
rapidez e que não é coerente com tranquilidade, por isso, julga negativamente o comportamento de seu primo,
através da ironia, em termos de comportamento de Capacidade, pois põe em dúvida a capacidade de Ulisses de
dirigir com rapidez.

Acontece que, para Cebolinha, o comportamento positivo é aquele coerente com o sentido de radical
adotado pelo senso comum. Para Ulisses, no entanto, o comportamento positivo é aquele coerente com as
normas de trânsito. Por isso, enquanto Cebolinha avalia negativamente o comportamento de Ulisses, este avalia
positivamente seu próprio comportamento. Podemos perceber essa relação nas respostas de Ulisses aos
julgamentos de Cebolinha. Em resposta ao questionamento (10), afirma:

(12) Temos que respeitar os limites de velocidade, Cebolinha!

Em (12), Ulisses julga seu próprio comportamento como coerente com as normas sociais, para as quais
ser radical não é ser veloz, mas ser cauteloso. Vemos que ―respeitar‖ aponta para o fato de que é necessário
considerar os limites de velocidade. Além disso, o uso do vocativo no final do evento linguístico ―Cebolinha!‖ é
um chamado de atenção para com o personagem que denota para o fato de que este precisa compreender noções
importantes à vida no trânsito. Assim, temos um Julgamento de Sanção Social que é expresso por
comportamento de Propriedade, pois Ulisses julga de forma ética a atitude de pessoas que respeitam os limites de
velocidade.

Em resposta ao questionamento (11), Ulisses afirma:

(13) É que estou utilizando o PIPDE!

Neste evento linguístico, percebemos que a expressão ―É que estou‖ justifica o comportamento de Ulisses
no trânsito. Baseado em uma técnica de pilotagem que chama de ―PIPDE‖, Ulisses julga seu próprio
comportamento (de pilotar moto com pouca velocidade) com aprovação, pois a técnica é o que o personagem
está ―utilizando‖ para valer-se de uma boa conduta no trânsito. Segundo Ulisses,

(14) PIPDE quer dizer procurar, identificar, prever, decidir e executar!

Sendo assim, a atitude ―tranquila‖ de Ulisses no trânsito pode ser julgada positivamente, de acordo com a
noção de radical ligada às normas de trânsito. O uso dos verbos ―procurar‖, ―identificar‖, ―prever‖, ―decidir‖ e
―executar‖ perpassam por formações ideológicas socialmente aceitas que estabelecem como devemos nos
comportar no trânsito. O discurso de Ulisses está inserido no grupo de Julgamento de Sanção Social e diz
respeito à Propriedade, isto é, o quão ético é praticar essa técnica durante a pilotagem.
644
O personagem Ulisses, ao longo da história, julga positivamente suas atitudes; substitui o discurso de
obrigatoriedade pelo discurso do que é fundamental; e baseia-se em Sansão Social, em termos de comportamento
de Propriedade. Encontramos, no entanto, um evento linguístico, no qual o personagem julga o comportamento
de quem pilota com segurança, a partir da perspectiva de Estima Social:

(16) Sabe, Cebolinha... quando se pilota com segurança, além de desfrutar da paisagem...você passa a fazer
parte dela!

Nesse evento linguístico, Ulisses aponta para um discurso que vai além do que é entendido como respeito
às leis de trânsito, pois reproduz o discurso de que fazemos parte da paisagem quando pilotamos ―com
segurança‖. Assim, reflete um Julgamento de Estima Social desvinculado de imposições legais, mas
intrinsecamente relacionado à concepção de prestígio, admiração, construção de um status social, visto por meio
do comportamento de Normalidade, por meio do qual se estabelecem atitudes de cumplicidade, entre os
veículos, as pessoas e a paisagem.

Após o passeio de moto, Cebolinha julga, novamente, o comportamento de Ulisses no trânsito:

(17) O plimo pilota demais!

Trata-se, dessa vez, de um julgamento positivo e que pode ser percebido por meio da intensificação do
verbo ―pilotar‖ pelo uso de ―demais‖, entendido como ―muito bem‖. Cebolinha demonstra que construiu sobre
o primo uma concepção de admiração, por meio de comportamentos de Capacidade ou de Tenacidade. O primo
provou o quanto é capaz de dirigir com segurança e, por isso, aponta, também, o quanto é uma pessoa confiável
no trânsito. Cebolinha passa, portanto, a compreender o que é aceito ou não no trânsito e muda sua concepção
sobre pilotagem de motocicleta. Durante toda a HQ's, percebemos que o personagem reprovou o
comportamento de Ulisses quando pilotava com pouca velocidade. No final do episódio, no entanto, Cebolinha
faz um julgamento positivo, quando diz para Cascão:

(18) Sabia que andar de moto é tlanquilo? O plimo Ulisses não cole e pilota semple com segulança!

O uso dos adjetivos ―tlanquilo‖ (tranquilo) e ―segulança‖ (segurança), pelo personagem Cebolinha,
confere um julgamento positivo do que é ser radical, dessa vez, devido o personagem ter construído sua
concepção sobre o termo, ao longo da narrativa, atrelado às questões de segurança no trânsito. Cascão, em
contrapartida, ainda reprova o comportamento de andar de moto com pouca velocidade, pois, para este
personagem, positiva é a concepção que relaciona radical ao aspecto da velocidade:

(19) Mas, então, o que tem de tão emocionante e radical em andar de moto?

O julgamento de Cascão fundamenta-se em termos de Estima Social, pois apresenta uma crítica ligada à
Normalidade, visto que não compreende a ação de andar de moto como algo emocionante se não houver
velocidade. Percebemos essa noção por meio do uso da conjunção ―mas‖ que concede à frase o aspecto
adversativo. Cebolinha, então, responde para Cascão:
645
(20) Ah, muitas coisas! Nem te conto!

As ―muitas coisas‖ a que Cebolinha se refere, dizem respeito à admiração e ao prestígio que foi possível
construir na relação com as meninas da narrativa. Mônica, Dorinha, Denise e Magali, outras personagens que
aparecem na história, de forma secundária, mostraram-se impressionadas pelos rapazes, Ulisses e Cebolinha,
devido estarem passeando de moto e respeitando às leis de trânsito. Percebemos, portanto, que Cebolinha
compreendeu que ser um motociclista ―ladical‖ não significa correr muito no trânsito, mas comportar-se com
atitudes que implicam na segurança do motociclista. Isto está explicito na expressão linguística em que o
personagem julga, positivamente, o que é agir como bom motociclista no trânsito:

(21) Pla você ser um bom motociclista, tem que ser atencioso, cuidadoso e um bom obselvador!

O conceito de ―radical‖ foi, assim, ressignificado, pois foi construído em torno de comportamentos no
trânsito que apresentam aceitabilidade social. Identificamos essa questão através da enumeração, em (24), dos
adjetivos: ―atencioso‖, ―cuidadoso‖ e ―obselvador‖ (observador), os quais caracterizam ―um bom motociclista‖.

Temos, portanto, na HQ's analisada, a representação de um ser alegórico, na figura do personagem


Ulisses, que é caracterizado por um conjunto de comportamentos avaliados de forma positiva e/ou negativa.
Todos os comportamentos de Ulisses no trânsito refletem atitudes éticas que são responsáveis por transmitir aos
leitores o perfil de um personagem ―modelo‖, ―exemplo‖ de comportamento adequado à vida no trânsito. Este
personagem pauta suas atitudes em diversos valores, através dos quais é possível perceber que mais importante
que respeito às leis de trânsito, é a consciência sobre as nossas atitudes. Dessa forma, Ulisses é moldado através
de um discurso, positivo, de educação para o trânsito, o qual se idealiza na representação social que nomeia o
próprio episódio desse quadrinho: ―Um Supermotociclista‖.

Considerações Finais

A Valoração, mais especificamente o campo de significado da Atitude de Julgamento, oferece àquele que
escreve, fala ou analisa a língua, os pressupostos teóricos fundamentais para se compreender como instâncias de
julgamento, aprovação, desaprovação, elogio, admiração, crítica ou condenação, são realizadas linguisticamente,
através dos significados que transmitem. Nesta análise, percebemos, ainda, que a valoração do comportamento é
responsável pela construção do perfil social dos personagens do quadrinho.

Cascão, por exemplo, na maioria de seus enunciados, faz julgamentos negativos de Estima Social. O
personagem não consegue julgar o comportamento, em questão, pelo ponto de vista da Sanção Social, mas por
suas concepções cotidianas sobre atitudes no trânsito. Não compreende que as atitudes no trânsito estão
relacionadas às normas sociais, as quais, desrespeitadas, acarretam infrações do ponto de vista jurídico.

Cebolinha é o personagem que passar por um processo de mudança de atitude, a qual está relacionada à
valores de Estima Social que se realizam em termos de Propriedade, isto é, o personagem será aquele que,
sofrendo influência do discurso de educação para o trânsito, tomará atitudes eticamente corretas e será
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beneficiado por conta disso, pois, na narrativa, consegue fazer com que outros personagens da história (as
meninas) julguem seu comportamento com admiração, respeito e prestígio.

Ulisses é o personagem da história construído socialmente a partir da perspectiva de pessoa com


comportamento eticamente correto no trânsito. O personagem mantém essa postura do início ao fim do texto.
Durante a narrativa, Ulisses faz julgamentos positivos de seu próprio comportamento, o qual reflete, na prática,
posturas fixadas em leis de trânsito, técnicas de pilotagem, valores morais e sociais. Ulisses determina quais são as
atitudes consideradas corretas e quais são as atitudes consideradas erradas para assegurar a segurança do
motociclista e contribuir com um trânsito mais harmônico. O personagem é, portanto, construído do ponto de
vista de ―modelo‖, é por meio das suas atitudes que ocorrerá uma orientação de educação para o trânsito na
história analisada.

Os outros personagens da história, tais como, Mônica, Dorinha, Denise e Magali são personagens
secundários, surgem para representar a postura da sociedade frente à comportamentos éticos no trânsito. Todas
as personagens constroem um julgamento positivo do comportamento de Cebolinha, no trânsito, no final da
narrativa e, dessa forma, ratificam o quanto a postura desse personagem, enquanto motociclista, é aceita e
admirada socialmente.

Assim, verificamos, através desta análise, o quanto a avaliação do julgamento é fundamental para
estabelecer determinadas relações nos eventos comunicativos e como a subcategoria de Julgamento se articula ao
contexto social, para além da materialidade do texto. A aplicabilidade da Teoria da Valoração, na história em
quadrinho ―Um Supermotociclista‖, apontou para a eficácia da escolha linguística do escritor quanto à proposta
de criar um quadrinho como parte de um projeto maior de educação para o trânsito. Sendo assim, podemos
afirmar que a história analisada atinge grande parte de seu público específico, não somente pelas ―escolhas‖
linguísticas do escritor, mas também pelo uso do gênero história em quadrinhos, através do qual, de forma bem
humorada, o discurso de educação para o trânsito chega ao público jovem que adquire um veículo na
Concessionária patrocinadora do projeto.

REFERÊNCIAS:

CABRAL, Sara Regina Scotta. Teoria da Avaliatividade: Estudos Introdutórios. Disponível em:
<www.sieduca.com.br/admin/upload/83.doc>. Acesso em: 01 abr. 2011

FARENCENA, Gessélda Somavilla. As representações nas Fábulas O Lobo e o Cordeiro a partir dos
recursos de avaliatividade. Disponível em: <www.sieduca.com.br/admin/upload/48.doc>. Acesso em: 04
abr. 2011
647
LOPES, Rodrigo Esteves de Lima; VIAN JR, Orlando. Delta: Documentação de Estudos em Linguística Teórica
e Aplicada. Delta, v.23, n.2, São Paulo, 2007.

RODRIGUES, Daniela Leite; CABRAL, Sara Regina Scotta. Eu deixo o mundo mais Pink – uma análise das
instâncias avaliativas. Letrônica, v.3, n.2, p. 17-28, dez./2010

SOUZA, Maurício de. Um Supermotociclista. In: Revista Mônica. São Paulo: Maurício de Sousa Editora, ed.
esp para o Projeto Harmonia no Trânsito, p. 3-16.
648
O MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O
DISCURSO JORNALÍSTICO: UM OLHAR A PARTIR DA OCUPAÇÃO DA
FAZENDA CABACEIRAS, EM MARABÁ/PA267.

Laécio rocha de Sena268

Nilsa Brito Ribeiro269

RESUMO: O presente artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa mais ampla que tem como objetivo analisar
discursos produzidos pela imprensa escrita paraense acerca do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra/MST, no
sentido de identificar nos processos discursivos efeitos de identificação ideológica da imprensa e suas principais estratégias
de produção de sentido acerca do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra/MST e suas ações frente ao latifúndio.
Neste trabalho analisamos uma reportagem de um jornal impresso de Marabá/PA - o jornal Opinião -, publicada em 1999.
Nesta reportagem veiculam informações sobre um processo conflituoso gerado a partir da ocupação da fazenda Cabaceiras -
localizada em Marabá, no Sudeste do estado do Pará - pelo MST, no mesmo de publicação da reportagem. Nossas análises
apreendem efeitos de sentidos de um jogo discursivo que coloca em movimento um processo de correlações de forças.
Apreender também como a mídia, sob a égide da informação, constrói imagens desse movimento social, ao mesmo tempo
em que desenha em seu discurso, o quadro identitário e ideológico da própria imprensa.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Ideologia; Imprensa; MST.

ABSTRACT: This paper presents partial results of a larger study that aims to analyze discourses produced by the press
about the Para Movement of Landless / MST, to identify discursive processes in the identification of the press and its
ideological main strategies of meaning production on the Movement of Landless Rural Workers / MST and its actions
against the latifundia. We examined a report of a newspaper printed in Maraba / PA - The Journal Review - published in
1999. In this report convey information about a conflictual process generated from the occupation of the farm Cabaceiras -
located in Maraba, Southeast of Pará - by MST, in the same publication of the report. Our analyzes seize effects of
discursive meanings of a game that sets in motion a process of correlation of forces. Also grasp how the media, under the
aegis of the information, constructs images of this social movement, while drawing in his speech the framework of identity
and ideology of the press itself.
KEYWORDS: Discourse; Ideology; Press; MST.

1. Situando as ações políticas do MST no Pará e na região Sul/Sudeste do Pará: seu lugar
na mídia
O processo histórico-social de formação do espaço agrário paraense é marcado por várias contradições
sociais, econômicas e políticas, deixando um legado na região sudeste paraense, que pode ser constatado, por
exemplo, na forte concentração fundiária; na situação territorial e sociolinguística dos povos indígenas – com

267 Esse trabalho faz parte de uma pesquisa de mestrado, que inclui outro jornal de Marabá, O Correio do Tocantins. Por
questão de espaço, aqui analisaremos apenas uma reportagem extraída do jornal Opinião.
268 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia (UFPA)
269 Doutora em Linguística; docente o Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia

(UFPA-Campus de Marabá)
649
perda da língua e de seus territórios tradicionais – na violência e assassinatos de trabalhadores rurais, militantes e
lideranças de sindicatos de trabalhadores rurais etc. Essa dinâmica social, econômica e territorial no espaço
agrário paraense, de certa forma, ajuda-nos a entender a chegada e as ações de um ator social e político no Pará
que traz implicações para a dinâmica agrária no país e na região: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra-MST.
É mister destacar, segundo Caldart (2001, p. 01), que o MST ―é fruto de uma questão agrária que é
estrutural e histórica no Brasil‖. Neste sentido, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra chega ao Pará
no final da década de 1980, e suas ações somam-se a um processo de luta pela terra já encampado anteriormente
a esta década por posseiros e lideranças de alguns Sindicatos de Trabalhadores Rurais. Todavia, de acordo com
alguns estudiosos, as ações do MST se singularizam no modo de enfretamentos da política agrária no país, uma
vez que um dos traços mais significativos deste movimento é a concepção de que a demanda por terra não se
esgota no acesso ao lote: vai mais além, exigindo políticas públicas que facilitem a vida do agricultor no lote
(MEDEIROS, 2002).
Ainda segundo Caldart (2000, p.208) ―o MST reafirmou a ocupação do latifúndio como a principal
forma de luta pela terra, e a mobilização em massa dos sem-terras como o jeito de fazê-la‖. De acordo com
Hébette (2004), o fato de o MST ir além da luta pela propriedade de terra, o torna o único movimento social
brasileiro que soube mostrar que a questão da terra não é apenas uma luta entre o latifúndio, mas uma luta em
prol de uma nova sociedade (HÉBETTE, 2004).
Paralelamente à territorialização270 do campesinato no sudeste do Pará, as disputas e os conflitos agrários
ocupam outras esferas sociais (BAKHTIN, 2006) e discursivas para além do político e do econômico: a esfera
jornalística. Nesse campo de produção discursiva, propõe-se então analisar o jogo de representações do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra/MST produzido pela imprensa escrita no sudeste paraense, a
partir de um caso específico: a ocupação da fazenda Cabaceiras, ocorrida em março de 1999.
Nossas análises centram a ênfase em procedimentos discursivos veiculadores de representações em uma
reportagem, publicada no jornal Opinião, em 1999, a fim de depreender sentidos que se produzem na relação
entre a materialidade do texto que a mídia veicula sobre o MST, construindo assim uma imagem desse
movimento social.

2. Do Polígono dos Castanhais à construção dos grandes latifúndios agropecuários no


Sudeste Paraense

Uma das principais características da estrutura agrária paraense é a extrema concentração fundiária. Na
região sudeste do Pará, tomando como exemplo o município de Marabá, esse processo remonta à primeira
metade do século XX, quando algumas famílias começam a se apropriar de grandes áreas de castanhais, tendo
como importante ponto de apoio a conivência do poder público estadual. Emmi (1987) faz uma importante
análise do processo de constituição das oligarquias e da formação dos latifúndios na região de Marabá,

270Processo onde os camponeses, através de sua organização e reorganização social, visam a reorganização do território de
forma a garantir seus direitos e liberdade.
650
destacando em suas análises um período em que o extrativismo (inicialmente o caucho, e posteriormente a
castanha) se despontou como principal atividade econômica na região. Desse modo, a autora identifica a
formação de uma estrutura oligárquica em Marabá, assim caracterizada:

[...] nos anos 1920 até mais ou menos o fim da década de 1940, esta dominação foi exercida
pelo comerciante de castanha e secretário do governo, Deodoro de Mendonça e sua parentela.
Já da década de 1950 em diante, por um grupo de comerciantes, fazendeiros e exportadores de
castanha, entre os quais se evidencia o tronco familiar Mutran (EMMI, 1987, p.81).

Esse dois grupos familiares exerceram um forte poder político e econômico na região sudeste paraense,
sobretudo em Marabá, tendo na economia extrativista – baseada na comercialização da castanha – a sua principal
base de sustentação econômica. Além do aspecto econômico, outros fatores são apresentados por Emmi (1987)
que nos ajudam a entender como essas famílias se articulavam de forma a produzirem e reproduzirem os seus
interesses ao nível do poder locar. Assim, essas famílias se valiam das especificidades regionais para perpetuarem
os seus interesses, como por exemplo, ―o isolamento das cidades e povoados acessíveis somente aos rios, que
proporcionava a alguns o monopólio das comunicações, dos transportes e portanto do comércio‖ (EMMI, 1987,
p.38)
No final da década de 1970 e início 1980, após sucessivas quedas na produção da castanha, a cidade de
Marabá, bem como toda a região sudeste do Estado do Pará, passa por grandes transformações em sua
conjuntura agrária, no que diz respeito às atividades produtivas. O extrativismo aos poucos vai dando lugar à
produção agropecuária, e, assim, no início da década de 1970, as famílias que outrora controlavam a produção de
castanha intensificam o desmatamento de castanhais com o objetivo de plantar pasto para a criação de gado.
As políticas econômicas do governo federal foram fundamentais no sentido de consolidação dos
projetos agropecuárias no sudeste do Pará, cabendo à Sudam271 um importante papel nesse sentido. Foram
pensados e executados vários planos de desenvolvimento e integração para a região, tendo como principal
argumento a necessidade de integrar econômica e socialmente a Amazônia ao sudeste brasileiro para corrigir um
suposto atraso histórico em que se encontrava a região.
É em meio a essa complexidade caracterizadora da dinâmica territorial da região sudeste paraense que se
insere o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terras, cujas ações em território paraense têm início no final
da década de 1980, exatamente no sul do Estado.
No item que se segue tomaremos uma ação específica do MST no cenário paraense, particularmente na
região sul e sudeste do Pará, que é o caso de ocupação da Fazenda Cabaceira, hoje um assentamento da Reforma
Agrária, coordenado pelo MST, nomeadamente Assentamento 26 de Março para, então, analisarmos a
repercussão deste evento na mídia impressa marabaense e imagens construídas por ela desse movimento.

2.1 De Fazenda Cabaceiras a Projeto de Assentamento: ocupação-resistência-conquista

A história da luta que culminou com a criação do Assentamento 26 de Março inicia-se no ano de 1999,
com um ato realizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, na cidade de Marabá, cuja

271Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia. Criada em 1966, no governo do presidente militar Castelo Branco,
com o objetivo de promover o desenvolvimento da Amazônia gerando incentivos fiscais e financeiros especiais para atrair
investidores privados, nacionais e internacionais.
651
finalidade foi promover a ocupação da Fazenda Cabaceiras. Este ato não se tratava de simplesmente mais uma
ocupação, mas sim, da simbolização de um processo político cuja reverberação ecoaria dentro do próprio
movimento camponês, como também no cenário político municipal e estadual. Tratava-se de uma ação contra a
política de concentração fundiária no Sul e Sudeste do Pará, além de uma pressão frente ao poder público, no
sentido de exigir do Estado brasileiro a implementação de uma política de Reforma Agrária no país.
A força e o impacto dessa ocupação tornaram-se maior por se tratar de uma fazenda cujos proprietários
pertenciam a uma família tradicional do município de Marabá – família Mutran-, que, por muito tempo, exerceu
bastante influência na economia e na política municipal, chegando alcançar hegemonia no poder legislativo e
judiciário de Marabá. Vale lembrar que o poder político e econômico da família Mutran, na cidade de Marabá,
assim como na região, tem sua origem na década de 1930 (EMMI, 1987).
Posicionando- se contrário a essa concentração latifundiária da família Mutran, formada ainda na
primeira metade do século passado, o MST do Estado do Pará articulou um ato público de ocupação da fazenda
Cabaceiras, no dia 26 de março de 1999. A luta entre MST e o proprietário da Fazenda Cabaceiras se estendeu
por aproximadamente 10 anos, até a conquista do acampamento (GOMES, 2009).
Considerando que nosso objeto de investigação é o discurso da mídia no qual veiculam representações
do MST, no que concerne à ocupação da fazenda Cabaceiras, passaremos a situar as bases teóricas e
metodológicas que nortearão nossas análises de discursos.

3. Bases teóricas de análise do discurso da mídia


A análise do discurso jornalístico acerca do MST, neste trabalho, busca depreender efeitos de sentido
acerca desse movimento social. O discurso da mídia, como nos lembra Charaudeau (2006), busca legitimar-se
enquanto um discurso de informação, que num contexto de democracia política, cumpre a função de garantir o
direito de informação aos cidadãos, ancorado na prerrogativa de imparcialidade. No entanto, ao garantir a todos
o direito à informação, a imprensa não está isenta de interesse de classe, e de uma dada posição ideológica,
portanto. Assim, buscaremos aqui tratar a informação numa perspectiva discursiva, isto é, focando não o
conteúdo da enunciação, mas a sua forma.
Embora estejamos certos da distinção de abordagens teóricas e metodológicas entre os estudos
bakhtinianos e os estudos de Análise de Discurso (doravante AD), para nossas análises, consideramos produtiva
a recorrência a conceitos destas duas vertentes de estudos discursivos, procurando, entretanto, não trair as bases
epistemológicas de uma ou outra abordagem.
Conforme nos afirma Orlandi (2012) ao analisar o discurso, o analista busca compreender como um
objeto simbólico produz sentidos, isto é, como ele está investido de significância para e por sujeitos. Nessa
perspectiva, convém ressaltar que o sentido não é estático, ou seja, ele não é dado à priori, mas é construído
sempre numa relação de forças porque quando os sujeitos falam, falam de uma dada posição no mundo para
outro que também ocupa uma posição social e política; é esta posição que orienta o que dizer e como dizer. Por
isso, um discurso não produz significado em si mesmo, mas é sempre construído numa relação com o outro
(nesse caso, outros discursos), ou seja, aponta sempre para outros que o sustentam, assim como para dizeres
futuros, isto é, todo discurso dialoga com outro discurso existente. Essa é uma condição necessária para que esse
discurso faça sentido (ORLANDI, 2012).
652
Além disso, todo discurso está inserido numa determinada formação discursiva272 (doravante FD), de
forma que na constituição dos sentidos no discurso, as posições socio-históricas e ideológicas cumprem um
papel fundamental nesse processo. Portanto, o discurso só produz sentido se estiver inserido dentro de uma FD.
Segundo afirma Orlandi (2012), as FD‘s podem ser vistas como regionalizações do interdiscurso, são elas que
dão sentido às palavras. Assim, conforme muda a formação discursiva, o sentido também muda. Ora, somente
quando o discurso se inscreve na história, portanto, marcado ideologicamente, é que ele produz significado, ou
seja, os sentidos são sempre constituídos ideologicamente, pois se inscrevem na história. Do contrário não
fariam sentido.
Na perspectiva dos estudos de discurso, a ideologia não é entendida como um falseamento da verdade,
ou seja, como algo que está atrás do texto, de modo que o sujeito atravessa a língua para chegar a uma verdade
escondida. Para a AD não existe uma verdade atrás do texto: o que há são gestos de interpretação, efeitos de
sentidos marcados de posições imaginárias e ideológicas dos sujeitos do discurso, posições que produzem
ideologicamente a ilusão da transparência do dizer, o efeito de verdade e de uma correspondência linear entre o
que se diz e o mundo natural e social, de tal forma que as palavras tenham no mundo natural ou social o seu
equivalente material. Dito de outro modo, como se as palavras equivalessem às coisas (FOUCAULT, 1999).
Assim, no que diz respeito ao trabalho da ideologia na produção do sentido, afirma Orlandi (2012, p. 46,47):
O individuo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza um dizer [...]
A ideologia, por sua vez, nesse modo de a conceber, não é vista como um conjunto de
representações, como visão de mundo ou como ocultação da realidade. Não há, aliás,
realidade sem ideologia. Enquanto prática significando, a ideologia aparece como
efeito da relação necessária do sujeito com a língua e com a história para que haja
sentido.

A ideologia, tal como refere a autora na citação acima, opera no sentido de fornecer as bases materiais
para a interpretação da realidade, de modo que esta interpretação, resultante da relação entre o sujeito e a língua,
produz o efeito de naturalização dos sentidos, daí a ilusão da transparência da linguagem, ou seja, é como se o
que é dito já estivesse lá a priori, ocupando um lugar visível no mundo. Para a análise do discurso de vertente
francesa, a ideologia interpela o sujeito a partir de dois tipos de esquecimento, produzindo efeitos de evidências:
esquecimento enunciativo (esquecimento número dois) e o esquecimento ideológico (esquecimento número um).
O esquecimento enunciativo é aquele que opera no sentido de produzir uma relação entre as palavras e
as coisas, ou seja, o sujeito, ao enunciar, acredita que só poderia fazê-lo da forma como o faz, empregando
exatamente aquela linguagem porque somente ela daria conta de enunciar o real. Dessa forma, busca-se uma
relação entre pensamento, linguagem e o mundo.
O segundo esquecimento está diretamente ligado ao modo como o sujeito é afetado (ou melhor,
construído) pela ideologia. Nesse caso, o sujeito acredita que ele é a origem de seu próprio discurso,
esquecendo-se que os sentidos se produzem na relação entre língua e sujeito inscritos na historicidade. O sujeito

272Esse conceito foi discutido por Foucault em As palavras e as coisas (1999), mas é sobretudo em Arqueologia do saber (1986)
que ele se debruça com mais afinco acerca dessa noção. Segundo ele, todos os discursos constituem em uma dispersão, não
havendo nenhum principio dado à priori, portanto cabe ao analista de discurso buscar, a partir da constituição das regras de
formações dos discursos, a sua regularidade. Para Foucault (1986) todo Formação discursiva é definida a partir das relações
entre objetos, os tipos de enunciados, os conceitos e as estratégias.
653
entra numa relação com discursos já existentes como se fossem seus e é justamente aí que a ideologia age
enquanto mecanismo de interpretação do mundo. Nesse processo que o sujeito é constituído. Como bem lembra
Orlandi (2005 p.22), é pela interpretação que o sujeito se submete á ideologia, ao efeito da literalidade, à ilusão do
conteúdo, à construção da evidência do sentido, à impressão do sentido já lá.
Assim, lançando mão dessas noções de esquecimentos e de interdiscurso, caras à AD, buscaremos
analisar uma reportagem da imprensa marabaense acerca do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra/MST, destacando o trabalho da ideologia e os procedimentos discursivos da mídia produtores de sentidos
sobre esse movimento.

4. Imagens do MST no Jornal Opinião

A edição do dia 20 de abril de 1999 do jornal Opinião traz uma reportagem acerca da ocupação na
fazenda Cabaceiras localizada a cerca de vinte e oito (28) quilômetros de Marabá:
654

Entendendo que o discurso resulta da relação entre língua e ideologia e que não existe discurso sem
ideologia, mais que uma simples cobertura jornalística de um fato – a ocupação da fazenda pelo Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra –, o discurso jornalístico traz em seu conteúdo representações acerca do seu
objeto. No caso do texto em análise, é possível dizer que ao caracterizar o MST, o jornal produz discursivamente
uma identidade social deste movimento para seus leitores. Atentando ao percurso discursivo do texto, é possível
dizer que a caracterização vai da construção de uma imagem negativa à constituição da criminalização do MST,
como veremos no decorrer das análises.
655
Adentrando a materialidade do texto, o fato de o título da matéria estar numa formatação em negrito e
com uma fonte maior que o restante do texto, observa-se que este procedimento da mídia já pode ser traduzido
como o primeiro passo de captação do leitor sobre o que se vai dizer. Desta forma, o título da matéria funciona
como uma espécie de porta de entrada no processo de identificação entre o mundo do leitor e o mundo do
texto.

Após direcionar a performatividade do leitor em relação ao modo como ele deve ler a matéria – o que
não quer dizer que necessariamente ele assim o fará – a partir do que enuncia o título da reportagem, o jornal
prossegue, informando o leitor sobre ocorrido na fazenda, mas muito mais do que informação, há uma trabalho
discursivo de formação do leitor, na medida em que a informar esta informação se faz carregada de valores
sociais de vínculos ideológicos com uma dada realidade.

Assim, no próprio conjunto lexical selecionado pelo jornal para descrever as ações do MST no que diz
respeito à ocupação da Fazenda Cabaceira já se configura uma tomada de posição sobre o MST.

No entanto, antes de nos atermos ao conjunto lexical, não podemos perder de vista o torneio
argumentativo e discursivo que sustenta a introdução da reportagem: Talvez motivados pela fome, integrantes do Sem
Terra (MST), usando de todo o seu now how e treinamento de atividades de guerrilha, fizeram uma operação audaciosa na sede da
fazenda Cabaceira... Este enunciado produz um efeito de sentido ambíguo e polifônico, beirando à ironia. O
modalizador talvez pode não sugerir efetivamente uma dúvida do enunciador em relação aos motivos que levaram
o MST a ocupar a fazenda, mas uma estratégia do jornal para adentrar a crítica contundente ao MST,
construindo uma identidade negativa do movimento social para o público leitor do jornal.

Ora, se continuarmos atentos à sequência deste mesmo enunciado, logo veremos que expressões como:
seu now how e treinamento de atividades de guerrilha; operação audaciosa traduzem, neste contexto de enunciação, uma
expressividade que ultrapassam também a mera informação de um evento. Ao caracterizar a ação do MST como
uma operação de guerrilha, inevitavelmente este discurso aciona uma memória discursiva do movimento de guerrilha
ocorrido na região do Araguaia em fins da década de 1960 e primeira metade da década de 1970, como uma ação
de resistência ao governo militar. Considerando que esta memória guarda adesões aos dois lados, seja por
identificação com o movimento guerrilheiro, seja pelo trabalho ideológico dos militares na região contra o
movimento de guerrilha, as expressões acima parecem travar um diálogo com esta segunda formação discursiva.
Neste caso, a imagem do MST é alinhada com a imagem da guerrilha, enquanto uma operação audaciosa.

Na sequência do texto podemos ainda identificar o conjunto os verbos de ação e expressões lexicais:
radicalizou, toma de assalto, invadiram, mataram, operação de guerrilha, reféns contribuindo para a construção de uma
imagem negativa do MST. Na progressão do texto, estas palavras vão da radicalidade atribuída ao MST,
passando pela ―invasão‖ da fazenda até a imputação de ações que colocam o movimento social no âmbito da
criminalização: mataram, operação de guerrilha, reféns.

Desta forma, o jornal não só comunica, mas, sobretudo, marca seu posicionamento ideológico face aos
fatos e a palavra se manifesta carregada desta expressividade, nos termos de Bakhtin (1988) . Segundo o autor, a
656
palavra não é um signo neutro, e enquanto tal tem a gênese de seu significado na realidade social que lhe é
exterior. O jornal Opinião, ao afirmar que O fato ocorreu ontem (19), quando cerca de 100 trabalhadores invadiram,
mataram 8 cabeças de gado e ainda fizeram reféns por algumas horas funcionários da fazenda e ainda alguns funcionários do grupo
Rede-Celpa”, vai construindo na linguagem uma gradação argumentativa e, ao mesmo tempo vai também
interpelando o leitor a valorizar certos argumentos como mais importantes do que outros. Os operadores ainda
(e ainda fizeram reféns por algumas horas funcionários da fazenda e ainda alguns funcionários do grupo Rede-Celpa ) se
encarregam de imprimir maior força aos dois últimos argumentos, em direção à criminalização da ação, uma vez
que ao interpretar as supostas ações do MST como o ato de tornar alguém refém é um jogo discursivo que não
traduz estas ações mais como ações políticas, mas ações ligadas ao mundo da criminalidades.

Dando prosseguimento à reportagem atentamos para a seguinte passagem: Demonstrando bastante


nervosismo como acontecimento Claudio Vieira da Silva informou para Opinião [grifo do jornal] que os integrantes do movimento
estavam portando armas como espingardas, rifles, revólveres, facões, machados e outras cortantes. Destacou ainda que os bois foram
mortos com muita violência, inclusive chegaram a atirar nas pernas dos animais. “Da maneira como estão agindo não querem terra e
sim bagunçar”, desabafa Claudio da Silva. Situando-nos na teoria dialógica bakhtiniana, não podemos deixar de
atentar para as diferentes vozes em circulação, produzindo uma dispersão de discursos e, ao mesmo tempo, uma
unidade, uma discursividade que interpela do outro para um único sentido. Este é um discurso relatado através
do qual o jornal traz a fala de uma das pessoas envolvidas nos acontecimentos noticiados. Este procedimento tão
comum às reportagens jornalística de trazer a fala do outro atestando os fatos produz um efeito de verdade ao
que é dito, ou seja, trata-se de um trabalho discursivo de tomar o que é dito pelo entrevistado como cópia da
realidade anunciada. Este é o trabalho da ideologia em tomar as palavras como as coisas em si, conforme
discutimos no item 02 deste trabalho. Ao trazer o discurso do outro, o jornal produz não somente a imagem do
MST, mas também procura constrói, por este procedimento a imagem de um jornal que lida com a verdade e
somente com a verdade.

REFERÊNCIAS:

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 7ªed. São Paulo: Hucitec, 2006.

CALDART, Roseli Salete. O MST e a formação dos sem terra: o movimento social como princípio
educativo. In: Revista Estudos Avançados. 2001

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. São Paulo. Contexto: 2006.

EMMI, M. F. (1999) A Oligarquia do Tocantins e o Domínio dos Castanhais. Belém: UFPA/NAEA

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1986.
657

_____. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. 8 ed. Martins
Fontes: São Paulo, 1999.

GOMES, Maria Suely Ferreira. A construção da Organicidade no MST: o caso do assentamento 26 de março.
Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Campina Grande. Programa de Pós Graduação em Ciências
Sociais. 2009, 167 f.

HÉBETTE, Jean. Cruzando a Fronteira: 30 anos de estudo do campesinato na Amazônia. Belém. EDUFPA, 2004. Vol 2.

MEDEIROS, Leonilde Sérvolo. Os trabalhadores do campo e desencontros na luta por direitos. In: CHEVITARESE,
André Leonardo (org). O Campesinato na História. Relumé Dumará: Faperj. Rio se Janeiro, 2002.

ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso. 10ª ed. Campinas: Pontes Editora, 2012.

_____. Discurso e Texto: formação e circulação dos sentidos. 2 ed. Campinas, SP: Pontes, 2005.

RADICALIZOU: MST toma de assalto sede da Fazenda Cabaceiras. Jornal Opinião. 20 a 21 de abril, 1999. p.
16.
658
„VARIAÇÃO DOS PRONOMES “TU”/“VOCÊ” NAS CAPITAIS
DA REGIÃO NORTE

Lairson Costa273
Profa. Dra. Marilucia Oliveira (Orientadora)274
RESUMO

Este trabalho investiga a variação dos pronomes ―tu‖ e ―você‖ no português falado em Belém (PA), Boa Vista
(RR), Macapá (AP), Manaus (AM), Porto Velho (RO) e Rio Branco (AC), Região Norte do Brasil. Baseado nos
estudos da Sociolinguística Variacionista de Labov (2008), analisa fatores linguísticos e extralinguísticos que
influem a escolha de um ou outro pronome e a relação destes com as formas verbais de segunda e terceira
pessoas. Foram utilizados como corpus dados produzidos por 8 moradores de Belém; 8 de Boa Vista; 8 de
Manaus; 8 de Macapá; 8 de Porto Velho; e 8 de Rio Branco, sendo 4 homens e 4 mulheres de cada capital, por
meio de entrevistas de fala espontânea, com base nos Questionários do Projeto Atlas Linguístico do Brasil
(ALIB). Os resultados apontam o favorecimento do pronome ―tu‖ em Belém, Manaus e Rio Branco. Boa Vista,
Macapá e Porto Velho desfavorecem o pronome ―tu‖.

Palavras-chave: Sociolinguística; Variação; Pronomes de Segunda Pessoa.

ABSTRACT

This paper investigates the co-occurrence of the pronouns "you" and "you" in portuguese spoken in Belém (PA),
Boa Vista (RR), Macapá (AP), Manaus (AM), Porto Velho (RO) and Rio Branco (AC), northern Brazil. Based on
the theory Labov (2008), extralinguistic and linguistic analyzes factors that influence the choice of either pronoun
and their relationship with the verb forms of the second and third persons. Were used as corpus data produced
by 8 residents of Belém; 8 Boa Vista; 8 Manaus; 8 Macapa; 8 Porto Velho and 8 Rio Branco, 4 men and 4
women of each capital through interviews of spontaneous speech, based on questionnaires Linguistic Atlas

1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor do


Instituto Federal do Pará (IFPA), Av. Almirante Barroso, 1155, Marco, CEP 66093-020, Belém – Pará. E-mail:
[email protected]

2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA), Rua Augusto Corrêa, n.º
1, Guamá, CEP 66075-110, Belém – Pará. E-mail: [email protected]
659
Project in Brazil (ALIB). The results show the favoring of the pronoun "you" in Belém, Manaus and Rio Branco.
Boa Vista, Macapá and Porto Velho disfavor the pronoun "you".

Keywords: Sociolinguistics; Variation; Second person pronouns.

1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa teve como objetivo geral investigar que pronome é mais utilizado pelos
falantes de seis capitais da Região Norte. Como objetivos específicos, verificamos a percentagem de
ocorrência dos pronomes ―tu‖/―você‖ e o peso relativo (P.R.) dos fatores que condicionam o
favorecimento ou não desses pronomes. Para tanto, levamos em consideração fatores estruturais e
sociais, que estão explicitados na Metodologia.
O trabalho tem como base os estudos da variação linguística de William Labov ou
Sociolinguística Variacionista, que analisa a fala em contextos sociais diferenciados e estuda as
características da sociedade que passam a interferir nessa fala. Dentre outros, esse autor publicou
trabalhos sobre frequência e distribuição das variantes fonéticas de /ay/ e /aw/ na fala dos habitantes
da ilha de Martha‘s Vineyard, em Massachusetts, e sobre a estratificação social do (r) nas lojas de
departamentos na cidade de Nova Iorque. Alguns autores, a exemplo de Gonçalves (2008, p. 36),
consideram Labov ―o primeiro linguista que reúne evidências da variação linguística e que demonstra
ser ela ordenada, padronizada e sistemática‖.
Seguindo a metodologia proposta por Labov (1972), pretendemos verificar os efeitos dos
fatores linguísticos e extralinguísticos que favorecem ou inibem o uso dos pronomes ―tu‖/―você‖ nas
capitais nortistas.

2 APRESENTANDO O “TU” E O “VOCÊ”


O pronome ―você‖ teve origem na expressão de tratamento ―Vossa Mercê‖, surgida no séc. XIV e usada
para referir-se ao rei. Após ser substituída por outras expressões para o trato com o rei, essa foi se vulgarizando
e, depois de passar por várias reduções fonéticas, deu origem a ―você‖ (PERES, 2006).

Ainda segundo Peres (2006), as classes mais baixas de Portugal já estavam deixando de usar os pronomes
―Vossa Mercê‖ e ―vós‖ desde a época da colonização, mais precisamente a partir do séc. XVI, enquanto a
simplificação fonética do primeiro pronome se mostrava adiantada. Já nessa época, coocorriam variantes desse
pronome com ―tu‖.

Essa simplificação fonética de ―Vossa Mercê‖ também é registrada por Nascentes (1956), que enumera
algumas variantes originadas dessa forma nominal: você, cê, mecê, mincê, ocê, oncê, sucê, suncê, vacê, vainicê,
660
vancê, vansmincê, vassuncê, voncê, vosmecê, vossemecê, vosmincê, vossuncê, ucê. A primeira forma, porém, foi a
que se estabeleceu na língua portuguesa e, segundo Ramos e Oliveira (2002), sua primeira aparição se deu no texto
do padre Francisco Manoel de Melo, de 1644.

Cunha e Cintra (2007), ao apresentarem as formas de tratamento de segunda pessoa, fazem referência aos
pronomes ―tu‖, ―você‖, ―senhor/senhora‖. Os primeiros, afirmam esses autores, são utilizados no Sul do Brasil
e em alguns pontos da Região Norte. As demais regiões do Brasil preferem o pronome ―você‖ quando no trato
mais íntimo, mas é também usado no tratamento entre iguais e de superior para inferior. Já os pronomes
―senhor/senhora‖, que se opõem a você no português brasileiro, expressam respeito ou cortesia.

Para Perini (2004, p. 181 apud OLIVEIRA, 2009), ―os itens lexicais de segunda pessoa (‗tu‘ e ‗vós‘)
raramente se usam no português padrão brasileiro de hoje‖. Oliveira (2009) diz ser esta afirmação verdadeira em
parte, ―pois a forma singular (‗tu‘) é bastante recorrente em determinadas regiões do Brasil, ao contrário do que
afirma o autor‖.

Menon (1995) apresenta o ―tu‖ como traço regional, mas também como uma tendência do português
brasileiro (PB) em marcar o sujeito em função da perda dos traços de segunda pessoa do verbo. Dessa
maneira, o PB se caracteriza pelas variações regionais e pela modificação no sistema pronominal, ou seja, a
língua brasileira passou a simplificar as flexões, por isso o emprego da terceira pessoa.

3 METODOLOGIA

Para a construção deste artigo, utilizamos como corpus os dados de fala de 8 moradores de
Belém; 8 de Boa Vista; 8 de Macapá; 8 de Manaus; 8 de Porto Velho; e 8 de Rio Branco, totalizando 48
informantes, sendo 4 homens e 4 mulheres de cada capital, por meio de entrevistas de fala espontânea,
com base nos Questionários do Projeto Atlas Linguístico do Brasil (ALIB). O total de ocorrências
desse corpus é de 727, sendo 431 de pronome ―tu‖ e 296 de ―você‖.
Os dados de nosso corpus foram coletados entre os anos de 2004 e 2005, sendo que todos os
entrevistados nasceram nas capitais estudadas e nelas habitaram a maior parte de suas vidas. A duração de cada
entrevista foi em média duas horas e meia, uma vez que os inquiridores faziam todas as perguntas do
questionário ALIB – num total de 420 – mais as sugestões de temas para o registro de discursos semidirigidos e
texto para leitura. As entrevistas pertencem ao banco de dados do projeto ALIB – Pará, da Universidade Federal
do Pará, e foram feitas por professores e bolsistas envolvidos no projeto, que também fizeram as transcrições
destas – na íntegra e com a devida fidelidade ao texto do falante. De posse dos dados, selecionamos os trechos
das falas dos entrevistados em que havia ocorrência dos pronomes por nós estudados e que nos propiciaram o
estabelecimento da variável dependente binária estudada: a referência de segunda pessoa do singular e suas
variantes ―tu‖ e ―você‖. Procedemos à codificação para, então, passarmos ao tratamento estatístico – por meio
do programa Goldvarb 2001 – dos grupos de fatores das variáveis dependentes e independentes, a fim de
obtermos a frequência e o peso relativo, seguindo nessa etapa as orientações de Sankoff (1988) e Pintzuk (1988)
661
sobre como proceder às rodadas. Finalmente fizemos a análise linguística e quantitativa desses dados – levando
em consideração as hipóteses levantadas –, que nos permitiram chegar às conclusões deste trabalho.

Para a análise quantitativa dos dados, utilizamos o pacote Goldvarb 2001. Realizamos a primeira rodada
obedecendo às normas prescritas por Wolfram (1991) e com todos os grupos de fatores, com o objetivo de identificar
qual(is) deles interfere(m) na utilização dos pronomes ―tu‖/‖você‖.

Os grupos de fatores trabalhados foram: a) variável dependente: Pronome sujeito de segunda pessoa
do singular: ―tu‖/―você‖. b) variáveis independentes: localidade (Belém, Boa Vista, Macapá, Manaus, Porto
Velho e Roraima); gênero (masculino e feminino); escolaridade (ensino fundamental, ensino superior); faixa
etária (15 a 30 anos e 45 a 65 anos); concordância verbal com o pronome ―tu‖ (segunda e terceira pessoas);
explicitação do pronome (explícito e não explícito); tempo verbal (presente e pretérito); modo verbal
(imperativo e indicativo).

Trabalhamos nesta pesquisa com as seguintes hipóteses: 1) O pronome ―tu‖ coocorre com o
―você‖ nas seis capitais nortistas, sendo o primeiro mais utilizado do que o segundo; 2) A localidade
tem influência na escolha do ―tu‖ ou do ―você‖ por parte do falante; 3) A não explicitação do pronome
favorece o ―tu‖ e a concordância com a segunda pessoa do singular; 4) O tempo verbal
(presente/pretérito) favorece o pronome ―tu‖ e a concordância deste com a flexão canônica de segunda
pessoa; 5) O modo verbal não tem influência na escolha dos pronomes em questão, mas favorece a
utilização do pronome ―tu‖ com a flexão canônica de segunda pessoa; 6) A escolaridade é determinante
na escolha dos pronomes ―tu‖/―você‖ e na concordância daquele na flexão canônica ou na terceira
pessoa; 7) Os falantes do gênero feminino utilizam mais o pronome ―tu‖; os falantes masculinos, mais
o ―você‖; 8) A faixa etária de 15 a 30 anos favorece o pronome ―tu‖ e a concordância deste com flexão
canônica de segunda pessoa; enquanto a faixa de 45 a 65 favorece o pronome ―você‖.

4 RESULTADOS

Apresentamos as tabelas com os resultados obtidos de acordo com a sequência de fatores


selecionados ou não pelo programa Goldvarb 2001, à exceção do grupo de fatores Localidade, que optamos por
apresentá-lo primeiro, por acharmos que situa melhor o leitor sobre a distribuição desses pronomes.

Como Loregian-Penkal, utilizamos nas rodadas para testar a alternância ―tu‖/‖você o pronome ―tu‖
como aplicação da regra e isso deve ser levado em consideração, quando da leitura dos resultados apresentados
nas tabelas seguintes.

Apresentamos na tabela 1 a alternância dos pronomes ―tu‖/―você‖ nas seis capitais da Região Norte
estudadas.
662

Tabela 1 – Alternância ―tu‖/―você‖ com todas as localidades na mesma rodada

Aplic./Total % P.R.

TU TU Imput 0,597

Belém 95/137 69,3 0,61


Boa Vista 56/116 48,3 0,39
Macapá 28/59 47,5 0,38
124/181 68,5 0,60
Manaus 33/89 37,1 0,29
Porto Velho

Rio Branco 95/145 65,5 0,56


431/727 46,9
Total

Podemos observar na tabela 1, em relação à alternância dos pronomes ―tu‖/‖você‖, que as frequências e os
pesos relativos apontam o favorecimento do pronome ―tu‖ em três das seis capitais pesquisadas: Belém, que apresenta
o maior favorecimento para a aplicação de ―tu‖ (69,3%, 0,61), seguida de Manaus (68,5%, 0,60) e Rio Branco (65,5%,
0,56). As capitais Boa Vista (48,3%, 0,39), Macapá (47,5%, 0,38) e Porto Velho (37,1%, 0,29) desfavorecem o uso
desse pronome, sendo o pronome ―você‖ o mais utilizado pelos falantes dessas cidades. Assim, nossa hipótese inicial
de que nas capitais do Norte do Brasil o pronome ―tu‖ coocorre com o pronome ―você‖ se confirma.

Ressaltamos que, mesmo nas capitais onde o pronome ―você‖ é favorecido: Boa Vista, Macapá e Porto
Velho, a frequência e peso relativo do pronome ―tu‖ podem ser considerados altos.

4.3.1.2 Explicitação do pronome

A variável explicitação do pronome foi a primeira a ser selecionada pelo Goldvarb 2001.

Tabela 2 – Atuação da variável explicitação do pronome sobre o uso de ―tu‖/―você‖


663
Aplic./Total % P.R.

Imput 0,62

Pronome não explícito 256/313 81,8 0,73

Pronome explícito 175/414 42,3 0,31

Total 341/727 46,9

A tabela 2 nos mostra que o pronome não explícito, com 81,8% de frequência e 0,73 de peso
relativo, favorece a utilização do ―tu‖. Com relação ao pronome explícito, observa-se o contrário, ou seja, o
pronome ―tu‖ apresenta baixa frequência (42,3%) e baixo peso relativo (0,31), o que nos leva a afirmar que
o pronome explícito desfavorece o pronome ―tu‖, favorecendo, portanto, o pronome ―você‖.

4.3.1.3 Concordância verbal

Apresentamos, a seguir, o segundo grupo de fatores selecionado pelo Goldvarb 2001: Concordância
verbal. Por razões que já explicamos, só expomos aqui a concordância com o pronome ―tu‖.

Tabela 3 – Concordância verbal com o pronome ―tu‖

Fatores Aplic./Total % P.R.

Imput 0,47

Verbo na 2.ª pessoa singular 45/48 93,8 0,943


151/389 38,8 0,414
Verbo na 3.ª pessoa singular 196/437
Total

Pela tabela 3, observamos 48 ocorrências do pronome ―tu‖ com verbo na segunda pessoa do singular, o
que corresponde à frequência de 93,8% e ao peso relativo de 0,943. O uso desse pronome concordando com
verbo na terceira pessoa aparece na fala de 151dos 389 entrevistados, o que corresponde à fequência de 38,8% e
ao peso relativo de 0,414. A frequência e o peso relativo alcançados por esse fator indicam que o uso do ―tu‖
concordando com a terceira pessoa do singular parece ganhar cada vez mais terreno entre os falantes dessas
regiões, em especial entre os paraenses.

Não observamos em nosso corpus a utilização do pronome ―tu‖ concordando com verbos com as
desinências -sse, -sses, -stes, que já foram registradas por autores como Loregian-Penkal (2004).

4.3.1.4 Escolaridade
664
A quarta variável independente selecionada foi a escolaridade, que tem o objetivo de verificar a
influência da língua padrão sobre a fala dos entrevistados desta pesquisa.

Tabela 4 – Atuação da variável escolaridade sobre o uso de ―tu‖/―você‖

Aplic./Total % P.R.

Imput 0,59

Ensino Fundamental 227/367 61,9 0,52


204/360 56,7 0,50
Ensino Superior 431/727 59,3
Total

Com relação à variável escolaridade, observamos na tabela 4 que 227 das 367 ocorrências de pronomes
nas falas dos entrevistados com o ensino fundamental são de ―tu‖ – o que equivale à frequência de 61,9% e ao
peso relativo de 0,52. Nas falas de entrevistados com ensino superior, das 360 ocorrências de pronomes, 204 são
de ―tu‖ – o que corresponde a 56,7% de frequência e ao peso relativo de 0,50. Portanto, o fator ensino
fundamental aparece favorecendo a utilização do pronome ―tu‖, embora a diferença probabilística dos pesos
relativos não seja tão acentuada.

4.3.1.5 Tempo verbal

Tempo verbal (presente/pretérito) foi o quinto e último grupo de fatores selecionado pelo
Goldvarb 2001.

Tabela 5 – Atuação da variável tempo verbal sobre o uso de ―tu‖/―você‖

Aplic./Total % P.R.

Imput 0,59
665
Presente 400/652 61,3 0,52
31/75 41,3 0,32
Pretérito 431/727 59,3
Total

Pelo que apresenta a tabela 5, observamos que, das 652 ocorrências de pronomes, 400 são de ―tu‖ com verbo
no presente – o que equivale à frequência de 61,3% e ao peso relativo de 0,52. Já o pronome ―tu‖ com o verbo no
pretérito aparece em 31 das 75 ocorrências de pronomes – o que corresponde à frequência de 41,3% e ao peso relativo
de 0,32. Portanto, pelo exposto, o presente favoreceu o uso do pronome ―tu‖, enquanto o pretérito não se mostrou
favorável ao uso desse pronome.

O fato de o pretérito ser o tempo que menos favorece a utilização do pronome ―tu‖ pelos falantes
de nosso corpus talvez seja porque esse pronome, quando usado no pretérito, solicita uma conjugação mais
complexa, como falaste, viste etc.

4.3.2 Grupos de fatores não selecionados

4.3.2.1 Gênero

O gênero foi o primeiro grupo de fatores não selecionado.

Tabela 6 – Atuação da variável gênero sobre o uso de ―tu‖/―você‖

Aplic./Total % P.R.

TU Imput 0,59

Masculino 220/370 59,5 0,52


211/357 59,1 0,51
Feminino 431/582 74,0
Total

A tabela 6 mostra que, nas cidades por nós pesquisadas, os homens apresentam 220 ocorrências do
pronome ―tu‖ das 370 ocorrências estudadas – o que corresponde a 59,5% de frequência e a 0,52 de peso
relativo; as mulheres também apresentam maior ocorrência no uso do pronome ―tu‖: 211 das 357 ocorrências
dos pronomes estudados – o que corresponde à frequência de 59,1% e ao peso relativo de 0,51. Embora ambos
os fatores favoreçam o pronome ―tu‖, o primeiro fator apresenta uma pequena diferença para mais tanto em
666
frequência como em peso relativo. O favorecimento de ambos os gêneros para o pronome ―tu‖ mostra não ser
esse fator significante, daí ter sido excluído pelo programa Goldvarb 2001.

4.3.2.3 Modo verbal

O segundo grupo não selecionado foi o modo verbal.

Tabela 7 – Atuação da variável modo verbal sobre o uso de ―tu‖/―você‖

Fatores Aplic./Total % P.R.

Imput 0,61

Indicativo 192/432 44,4 0,34


239/295 81,0 0,73
Imperativo 431/727 59,3
Total

A tabela 7 mostra que, nas capitais estudadas, o modo indicativo desfavorece o pronome ―tu‖, com a
aplicação de 192 de um total de 432 ocorrências – o que corresponde à frequência de 44,4% e ao peso relativo de
0,34. O modo imperativo, com 239 das 295 ocorrências – o que equivale a 81,0%de frequência e a 0,73 de peso
relativo –, favorece a utilização desse pronome.

4.3.2.2 Faixa etária

O terceiro e último grupo não selecionado foi a faixa etária. A tabela 15 apresenta os resultados desta
rodada.

Tabela 8 – Atuação da variável faixa etária sobre o uso de ―tu‖/―você‖

Aplic./Total % P.R.

Imput 0,59

15-30 anos 223/377 59,2 0,50


208/350 59,4 0,50
40 a 65 anos 431/727 59,3
Total
667

Na tabela 8, observamos que, das 377 ocorrências na faixa etária de 15 a 30 anos, 223 são do pronome
―tu‖, o que corresponde a 59,2% de frequência e a 0,50 de peso relativo. Na faixa etária de 40 a 65 anos, das 350
ocorrências, 208 são do pronome ―tu‖, correspondendo a 59,4% de frequência e a 0,50 de peso relativo.
Portanto, em ambas as faixas etárias o primeiro pronome é favorecido. Comparando os dois fatores, percebemos
que também em ambos o número de ocorrências do pronome ―tu‖ é superior ao de ―você‖.

5 CONCLUSÕES

Apresentamos nossas principais conclusões, baseadas nos resultados obtidos a respeito da alternância dos
pronomes ―tu‖/―você‖ nas seis capitais da Região Norte estudadas. Para melhor entendimento, procuramos
expor as conclusões sobre cada um dos grupos de fatores analisado.

Com relação à hipótese inicial de que o pronome ―tu‖ coocorre com ―você‖, concluímos que nas seis
capitais por nós estudadas essa alternância entre os dois pronomes é uma realidade. Contudo, ao contrário do
que pensávamos, não há o predomínio do pronome ―tu‖ em todas as localidades: três delas favorecem esse
pronome – Belém, Manaus e Rio Branco – e três, o pronome ―você‖ – Boa Vista, Macapá e Porto Velho.

A hipótese de que o grupo de fatores Localidade influencia a variação dos pronomes ―tu‖/―você‖ também
foi confirmada. Como não analisamos o fator etnia, não podemos afirmar que esta favorece ou não o uso de um ou
outro pronome, mas podemos sugerir que a presença principalmente de portugueses na formação inicial dessas
capitais nortistas e de brasileiros que migraram do Nordeste – em especial cearenses e maranhenses – pode ser um
fator importante nessa escolha.

Com relação ao grupo de fatores Explicitação do pronome, nossa hipótese de que o sujeito não explícito
favorece a utilização do ―tu‖ se confirmou. O fato de nas sentenças proferidas pelos falantes haver um
interlocutor para o qual aqueles hipoteticamente davam ordem ou solicitavam alguma coisa foi determinante para
o favorecimento desse pronome.

A respeito da Concordância verbal com o pronome ―tu‖, nossos resultados apontam que a utilização
desse pronome nas capitais da Região Norte é feita preferencialmente com a segunda pessoa do singular,
coocorrendo com a concordância com o verbo na terceira pessoa do singular.

Quanto ao grupo de fatores Escolaridade, nossa conclusão é de que, embora com pequena diferença de
pesos relativos, o ensino fundamental favorece o uso do pronome ―tu‖.

No que diz respeito ao grupo de fatores Tempo verbal, concluímos que o presente é o tempo que mais
contribui para o favorecimento do pronome ―tu‖, enquanto o pretérito favorece o pronome ―você‖.

Em relação ao grupo de fatores Gênero, chegamos à conclusão de que este não é determinante na escolha
dos pronomes ―tu‖/―você‖, o que contraria nossa hipótese inicial de que as mulheres favorecem o pronome ―tu‖
e os homens, o pronome ―você‖.
668
No que diz respeito ao grupo de fatores Faixa etária, chegamos à conclusão de que este não é
determinante na escolha dos pronomes em questão por parte dos falantes das capitais do Norte, o que contraria
nossa hipótese inicial.

Com relação ao Modo verbal, concluímos que este grupo de fatores também não influencia a escolha dos
pronomes ―tu‖/―você‖ por parte dos falantes nortistas.

REFERÊNCIAS

CUNHA, C.; CINTRA, L. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 3 ed., Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.

GONÇALVES, Clezio Roberto. Uma abordagem sociolinguística do uso das formas você, ocê e cê no
português. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008.

ILARI, Rodolfo et al. Os pronomes pessoais do português falado: roteiro para análise. In: LOREGIAN-
PENKAL, Loremi. (Re)análise da referência de segunda pessoa na fala da região Sul. Universidade
Federal do Paraná. Tese de Doutorado, 2004.

LABOV, William. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008.

MENON, Odete Pereira da Silva. Pronome de segunda pessoa no Sul do Brasil: tu/você/o senhor em Vinhas da
Ira. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 35, n. l, 2000. p. 121-163.

OLIVEIRA, Leandra Cristina de. A Evolução e o Uso dos Pronomes de Tratamento de Segunda Pessoa Singular
no Português e no Espanhol. www. Letra Magna.com. Revista Eletrônica de Divulgação Científica em Língua
Portuguesa, Linguística e Literatura, ano 4, n. 7 – 2.º semestre de 2007.

PAIVA, Maria da Conceição. Sexo. In: MOLLICA, Maria Cecília. Introdução à sociolinguística variacionista.
Rio de Janeiro: Cadernos Didáticos/UFRJ, 2010. p. 69-73.

PERES, Edenize Ponzo. O Uso de Você, Ocê e Cê em Belo Horizonte: um estudo em tempo aparente e
em tempo real. 2006. 247 f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais. Belo Horizonte, 2006.

PINTZUK, Suzan. Varbrul programs. Michigan: Univesity of Michigan, 1988.

SANKOFF, D. Sociolinguistics and syntatic variation. Language: the sociocultural context. v. IV. 1988. P. 140-
161.

WOLFRAM, W.A. A sociolinguistic description of Detroit Negro speech. Washington, D.C.: Center for
Applied Linguistics, 1991.
670

QUESTIONAMENTOS DOCENTES SOBRE A APRENDIZAGEM NA


ALFABETIZAÇÃO
Lorena Bischoff Trescastro275
Cilene Maria Valente da Silva276

Resumo: O presente artigo apresenta a análise de questões formuladas por professores ingressantes na
carreira do magistério em um curso de formação continuada sobre alfabetização e letramento. O corpus
da análise foi composto de 72 perguntas, destas 29 faziam referência à heterogeneidade da turma e 19
sobre didática. A maioria dos docentes se interrogou sobre as práticas de intervenção docente no
tratamento da heterogeneidade da linguagem da criança em processo de alfabetização.
Palavras-chave: Alfabetização; Formação de Professores; Heterogeneidade.

Abstract: This article presents the analysis of issues raised by teachers entering the teaching career in a
continuing education course on literacy and literacy. The corpus of analysis consisted of 72 questions,
29 of these referred to the heterogeneity of the class and 19 on didactic. Most teachers wondered about
the practices of teacher intervention in the treatment of heterogeneity in children's language literacy
process.

Keywords: Literacy; Teacher Education; Heterogeneity.

1. Introdução

Este estudo resulta da análise de questionamentos elaborados por professores em um curso de


formação continuada, cujo tema foi: alfabetização e letramento. Sabe-se que o conceito de alfabetização
agrega as práticas de letramento nos termos do que propõe Soares (2011):

Tradicional e consensualmente, considera-se que o acesso ao mundo da escrita é


incumbência e responsabilidade da escola e do processo que nela e por ela se dá — a
escolarização. Em outras palavras, considera-se que é à escola e à escolarização que
cabem tanto a aprendizagem das habilidades básicas de leitura e de escrita, ou seja, a
alfabetização, quanto o desenvolvimento, para além dessa aprendizagem básica, das
habilidades, dos conhecimentos e das atitudes necessários ao uso efetivo e competente
da leitura e da escrita nas práticas sociais que envolvem a língua escrita, isto é, o
letramento.

No que se refere à metodologia, entende-se que a formação de professores não deve se pautar
apenas em palestras e eventos meramente expositivos, mas devem incluir em sua programação,
abordagem teórica e prática, mediante a realização de estudo de textos, pesquisa, formulação de

275
Mestre e Doutoranda em Letras – UFPA. E-mail: [email protected]
276
Mestre em Sociologia – UFPA. E-mail: [email protected]
671

questionamentos, elaboração de texto, planejamento, produção de material didático próprio e avaliação


(DEMO, 2005).

De acordo com Demo (1997), ―o questionamento sempre foi a alavanca crucial do


conhecimento, em particular de sua marca inovadora‖. No cerne da pergunta está uma busca que
advém da necessidade de mudar. Formular perguntas, no contexto da formação docente, é uma forma
de explicitar essa busca, manifestar incompletudes, conhecimentos provisórios e em processo de
elaboração.

O interesse pela discussão emergiu da análise do discurso dos docentes manifesto em suas
formulações escritas, para: a) conhecer as representações docentes sobre a interlocução com o texto
que discute a aprendizagem na alfabetização; b) subsidiar as ações da formação continuada de
professores, à medida que os resultados da análise aproximam o contexto da formação à realidade das
concepções docentes.

Discurso é utilizado, neste estudo, a partir da compreensão de que objetos e ações não se
constituem naturalmente com seus nomes, mas são utilizadas classificações e categorias da linguagem
que as nomeamos. Conforme FOUCAULT (1995), o discurso constitui-se de conjuntos de enunciados
sustentados em formações discursivas que pertencem a um mesmo conjunto de regras e leis.

Neste sentido, o universo de perguntas elaboradas pelos professores se constitui em como


compreendem o que é alfabetização e como pensam em operacionalizar os processos de ensino e
aprendizagem aos alunos dos três primeiros anos do Ensino Fundamental que têm como enfoque
principal a apropriação da leitura e da escrita e a compreensão de seus usos sociais. Para Cagliari (1998,
p. 66):

Um método de alfabetização que leve em conta o processo de aprendizagem deve


deixar um espaço para que o aluno exponha suas ideias a respeito do que aprende.
Isso pode ser feito não de maneira dissertativa (como faz o professor, quando ensina),
mas através da realização de trabalhos, onde se pode ver o que o aluno fez e descobrir
o que o levou a fazer o que fez, do jeito que fez. Quando o aluno toma a iniciativa e
diz algo, ou escreve, ou lê, ele coloca, nessas atividades, seus conhecimentos.

O que ocorre com alunos em processo de aprendizagem também ocorre com professores em
processo de formação. Ao produzirem questões por escrito manifestam o que sabem e concebem no
que escrevem. Na análise dos dados, a investigação revela que a concepção de aprendizagem dos
professores aponta o discurso da constituição de uma turma homogênea como componente dominante
nesta concepção. Isso revela a necessidade da compreensão, por parte do professor, da heterogeneidade
linguística e da intervenção didática em sala de aula.

Numa abordagem qualitativa, ―as palavras estudadas devem ser sempre referenciadas ao
contexto onde aparecem‖ (LÜDKE e ANDRÉ, 1986, p. 12). Como se vê, neste estudo, para além de
672

servirem como objeto de pesquisa, as palavras analisadas, no caso os questionamentos docentes,


retornarão ao seu locus para orientar formadores, aprofundar estudos pelos professores e promover
novas questões, em uma interlocução sobre a aprendizagem da criança na alfabetização, que se faz
permanente na formação continuada de professores.

Pretende-se com este estudo apresentar a análise dos questionamentos dos professores sobre a
aprendizagem na alfabetização, com vistas a contribuir com a elaboração de pautas de formação
continuada de alfabetizadores.

2. Metodologia
A coleta de dados foi feita no contexto de um curso de formação continuada de professores,
com duração de 20 horas, sobre alfabetização e letramento. Dentre outras estratégias de formação, no
primeiro dia do curso foi proposto o estudo de um texto sobre aprendizagem na alfabetização a partir
do qual os professores deveriam formular uma questão que expressasse suas necessidades pedagógicas
para o exercício da docência. Tais questões foram publicadas em painel coletivo para estudo na
formação e, parte delas, compõe o corpus desta pesquisa.
O público da pesquisa foi composto por 213 professores, ingressantes na carreira do magistério
na rede municipal, que tinham iniciado o exercício da docência, acerca de um mês, nos três primeiros
anos do Ensino Fundamental, cujo processo de ensino e aprendizagem deve dar conta da alfabetização
e letramento de crianças de 6 a 8 anos. Os dados da pesquisa foram submetidos à análise quantitativa.
A análise das questões formuladas pelos professores, num total de 72, foi feita a partir de três
questões problematizadoras: (1) O tema da questão se relaciona com o que o texto focaliza? (2)
Quando o tema da questão tem relação com o texto de estudo, qual foi o foco da questão? (3) Se a
questão não faz relação temática com o texto estudado, o que abordou?
O objetivo da análise foi identificar aspectos relevantes sobre as necessidades pedagógicas dos
professores para subsidiar a programação de pautas de formação a serem desenvolvidas no Programa
de Formação Continuada.

3. Resultados e discussão
Das 72 questões formuladas por professores alfabetizadores com base na leitura de um artigo
sobre aprendizagem na alfabetização, no contexto da formação em serviço, a análise evidenciou que 58
estão relacionadas à temática do texto estudado e 14 referem-se a outros aspectos externos ao texto
que, certamente, inquietam os professores.
Das 58 questões que fizeram referência ao tema tratado no texto, houve 29 ocorrências sobre
heterogeneidade, 19 sobre didática, 6 sobre aprendizagem propriamente e 4 sobre avaliação, conforme
Quadro 1.
673

Quadro 1: Questões que fizeram referência ao tema do texto estudado.

Temas Ocorrências Exemplos


Heterogeneidade 29 (1) As diferentes necessidades de aprendizagem exigem
diferentes formas de ensinar, mas as atividades devem ser
as mesmas para todos os alunos?

(2) Como ensinar crianças que se encontram em níveis


diferentes de aprendizagem numa turma de CI 1º ano?

(3) Como um professor pode atuar na sala de aula, garantindo


um bom aprendizado aos alunos, se as crianças se
encontram em níveis de leitura e escrita diferentes?
Didática 19 (4) Quais são os desafios e estratégias para ensinar a leitura e a
escrita?

(5) De que forma devo fazer com que os alunos, que têm
aprendizagens diferentes, possam ter aprendizagens
significativas durante o processo de leitura e escrita?

(6) De que maneira a sequência didática pode contribuir para a


eficácia do ensino em nossas escolas?
Aprendizagem 6 (7) Qual tipo de abordagem que o professor tem que aplicar
em sala de aula, para que de fato os seus alunos consigam
ter uma aprendizagem significativa?

(8) De que forma o professor pode mediar as situações de


aprendizagem, tendo em vista a heterogeneidade de uma
turma, quanto ao desenvolvimento da escrita?
Avaliação 4 (9) A avaliação do aluno deve seguir os procedimentos
utilizados no diagnóstico e na metodologia?

De um modo geral, observou-se que a heterogeneidade em que os alunos se encontram na


turma quanto à aprendizagem da leitura e da escrita, associado a como ensinar alunos em diferentes
níveis de conhecimento linguístico é o que predominou como tema na maioria das elaborações de
questões pelos professores. Inclusive, uma mesma questão (5) e (8) abordou os três temas.
As perguntas, apresentadas no Quadro 1, podem ser classificadas no conjunto de discursos
pedagógicos sobre o binômio ensino e aprendizagem e retratam como os professores se relacionam
com o conceito de aprendizagem. Observa-se a preocupação evidente no discurso dos professores
sobre a presença de diversos níveis de aprendizagem da leitura escrita na sala de aula, o que
normalmente os professores identificam como ―turma heterogênea‖.
674

Das 14 questões que não fizeram referência ao tema tratado no texto, houve 5 ocorrências
sobre família, 5 sobre autoestima, 2 sobre experiência docente e 2 sobre afetividade, conforme se vê no
Quadro 2.

Quadro 2: Questões que não fizeram referência ao tema do texto estudado.

Temas Ocorrências Exemplos


Família 5 (10) Até que ponto a escola consegue alfabetizar o aluno do 1º
ano sem a participação da família?
(11) Qual o papel da família neste processo de alfabetização?
Autoestima 5 (12) Como trabalhar o resgate da autoestima dos alunos?

Afetividade 2 (13) Não seria a afetividade, um fator indispensável para o


desenvolvimento de competências, habilidades e atitudes na
criança?

Experiência 2 (14) Os professores mais experientes apresentam dificuldades


docente em aceitar o lúdico e formas diferenciadas de aprender?

Embora também abordem outros temas em suas questões, é evidente que a maioria dos
professores se interroga sobre as práticas de intervenção docente no tratamento da heterogeneidade da
linguagem da criança em processo de alfabetização. Considerando que o texto não trata explicitamente
desta questão, mas sobre aprendizagem na alfabetização, observa-se que a palavra heterogeneidade é
recorrente em 58 perguntas elaboradas pelos professores.

Isto reflete uma preocupação porque a homogeneização das turmas coloca-se como uma
variável condicionante à aprendizagem dos alunos, embora se saiba que a heterogeneidade linguística
seja uma abstração. No entanto, o estudo revela que a presença de vários níveis de aprendizagem na
turma se coloca como um fator de dificuldade que o professor precisa transpor para alcançar a
aprendizagem dos alunos. Para tanto, urge que seja abordado tal tema na formação dos professores.

Diante do exposto, a questão que se apresenta é: será que o conceito de aprendizagem ainda
está relacionado à ideia de que todos os alunos aprendem da mesma forma? Então, a compreensão de
que a aprendizagem é um fenômeno social e de que a língua não é a mesma para todos os falantes são
conceitos que ainda não alcançam, plenamente, a transposição didática.

Na proposição didática, de acordo com Dolz e Schneuwly (2004, p. 53) a ―definição dos
objetivos de uma sequência didática devia adaptar-se às capacidades e às dificuldades dos alunos nela
envolvidos‖. Assim sendo, o tratamento da heterogeneidade requer que se tomem os resultados de uma
675

avaliação diagnóstica, da escrita ou da leitura do aluno, por exemplo, como ponto de partida para
definição dos objetivos de ensino na alfabetização.

Ao se realizar uma avaliação diagnóstica, fica evidente que uma turma de alunos é sempre
heterogênea, pois cada aluno de uma turma ―difere dos demais em condições intelectuais, ritmo de
trabalho e de aprendizagem, condições prévias a sua entrada na escola, interesses, etc.‖ (SACRISTÁN,
1998, p. 258).

A tendência escolar para homogeneizar alunos é uma construção histórica que parte do
pressuposto de que assim o professor conseguirá ajustar mais facilmente o ensino às necessidades
individuais dos estudantes. No entanto, para Sacristán (1998), não se pode homogeneizar grupos
humanos porque se em uma característica os alunos se parecem em outras diferem, além do mais esse
modo de organização escolar empobrece o repertório de recursos pedagógicos dos professores para
tratar a diversidade e tem efeitos pedagógicos e psicológicos negativos para o aluno porque condiciona
o autoconceito do aluno na medida em que provoca uma segregação.

Uma das soluções apontadas por Sacristán (1998) para o tratamento do problema seria a
mudança de métodos dentro de agrupamentos heterogêneos apoiados na flexibilidade dos
procedimentos de ensino, na cooperação entre iguais e na individualização dentro da diversidade.

De todo modo, sabe-se que isso não é tarefa fácil para os docentes que, para o enfrentamento
do problema, precisam se inserir no contexto de uma formação continuada baseada ―na aprendizagem
da prática, para a prática e a partir da prática‖ (GOMEZ, 1998, p.363), enfatizando a prática reflexiva
numa perspectiva crítica que desnaturalize o discurso e impulsione ―a intervenção criativa e adaptada às
circunstâncias singulares e mutantes da aula‖ a fim de atribuir novo significado às características já
conhecidas (GOMEZ, 1998, p.363).

4. Considerações finais

Analisar questionamentos elaborados por professores é, sobretudo, um encontro que desvela


os contornos da concepção de aprendizagem que estes professores possuem, indicando também como
operacionalizaram as ações em sala de aula. Concebendo que o discurso consiste em uma prática ou
conjunto de práticas que definem e formam os objetos de que falam, ou seja, são as palavras que
fornecem significados às coisas. Portanto, é por meio de nomeações, descrições e concepções que
construímos conhecimentos e podemos agir sobre nós mesmos e sobre os outros.

A partir destes, outros questionamentos se fazem necessários sobre a aprendizagem na


alfabetização. Que seja o contexto da formação continuada o espaço de estudo, problematização e
676

pesquisa em que questões como as que os professores se colocam sejam provocadoras de novas
aprendizagens.

Referências

CAGLIARI, Luiz Carlos. A respeito de alguns fatos do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita
pelas crianças na alfabetização. In: ROJO, Roxane (org.). Alfabetização e letramento: perspectivas linguísticas.
Campinas: Mercado das Letras, 1998, p. 61-86.
DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B.. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado das Letras, 2004.
DEMO, Pedro. Conhecimento moderno: sobre ética e intervenção do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1997.
___________ . Professor do futuro e reconstrução do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2005.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
GÓMEZ, A.I.P.. A função e formação do professor/a no ensino para a compreensão: diferentes
perspectivas. In: SACRISTÁN, J. G.; PÉREZ, A. I. Compreender e transformar o ensino. 4 ed. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1998, p.353-379
LÜDKE, Menga e ANDRÉ, Marli. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.
SACRISTÁN, J. G.; PÉREZ, A. I. Compreender e transformar o ensino. 4 ed. Porto Alegre: Artes Médicas,
1998.
SOARES, Magda. Letramento e escolarização. Disponível em:
http://www.construirnoticias.com.br/asp/materia.asp?id=1247. Acesso em: 21 dez. 2011.
677

ABORDAGENS TEÓRICAS ACERCA DA MOTIVAÇÃO NA


APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS
Marcus Alexandre Carvalho de Souza277

Profa. Dra. Walkyria Magno e Silva (Orientadora) 278

Resumo: Este artigo tem o objetivo de contribuir com a reflexão acerca do processo de aprendizagem de uma
língua estrangeira, apresentando um estudo teórico sobre o construto da motivação. Este construto advém da
psicologia, mas aqui assume uma abordagem diferenciada, pois a motivação para a aprendizagem de línguas
estrangeiras é diferente da motivação para a aprendizagem de outras disciplinas escolares e até mesmo para
outras ações humanas (DÖRNYEI, 2005). Os estudos sobre a motivação são divididos em três fases: a fase
socio-psicológica, a fase cognitiva e a fase orientada para o processo (DÖRNYEI, 2001; DÖRNYEI, 2005).
Apresentamos as três fases, inserindo-as nos seus respectivos contextos de pesquisa, a fim de entendermos a
sucessão de estudos e reflexões que nos levam à fase orientada para o processo, na qual estamos inseridos
atualmente. Este trabalho está inserido no projeto que está sendo desenvolvido em âmbito de mestrado, no qual
se pretende investigar a flutuação da motivação para a aprendizagem de línguas estrangeiras em duas turmas de
graduação em Letras Língua Inglesa, uma com funcionamento em regime extensivo e outra em regime intensivo.

Palavras-chave: Motivação; Aprendizagem; Língua Estrangeira.

Abstract: This paper aims at contributing with the reflection about the process of learning a foreign language,
presenting a theoretical study on the construct of motivation. The study of this construct firstly happens in the
psychology area, however taking on here a different approach, because the motivation for learning foreign
languages is different from the motivation for other kinds of learning or even for other human actions
(DÖRNYEI, 2005). The studies about motivation are divided in three phases: the social psychological period,
the cognitive period, and the process-oriented period (DÖRNYEI, 2001; DÖRNYEI, 20005). We present the
three phases, inserting them in their respective research contexts, in order to understand the succession of
studies and reflections that leads us towards the process-oriented period, in which we are inserted nowadays.
This work is inserted in the project that is being developed during the mastering course, in which we intend to
investigate the fluctuation of the motivation for foreign language learning inn two undergraduate classes of
Teaching English as a Foreign Language, one operating during the extensive period and the other in the
intensive period.

Keywords: Motivation; Learning; Foreign Language.

277Mestrando em Estudos Linguísticos na Universidade Federal do Pará (UFPA). Docente da Universidade Federal do Pará
(UFPA). E-mail: [email protected]
278 Professora do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:

[email protected]
678

1. Introdução

Quando pensamos no processo de aprendizagem de uma língua estrangeira, podemos perceber que tal
processo acontece de forma diferente para indivíduos diferentes. Ao pesquisar a aprendizagem de línguas,
devemos ter em mente que as diferenças individuais devem ser levadas em consideração.

Entre essas diferenças individuais, a motivação do aprendente é um fator que, há anos, tem chamado a
atenção de pesquisadores da área. Podemos considerar a motivação um ponto chave para se compreender o
sucesso ou o fracasso dos aprendentes na aprendizagem de uma língua estrangeira. Pesquisadores afirmam que
aprendentes motivados têm mais chances de sucesso na aprendizagem (USHIODA, 1998; DÖRNYEI, 2001;
DÖRNYEI, 2005).

Este trabalho está inserido no projeto de pesquisa de mestrado, provisoriamente intitulado ―A


(des)motivação em alunos de graduação em Língua Inglesa e suas implicações na aprendizagem: um estudo
comparativo entre os regimes extensivo e intensivo‖ e tem por objetivo apresentar parte da fundamentação
teórica que está sendo desenvolvida, no que concerne a conceituação do construto motivação e apresentação da
trajetória que os estudos motivacionais na aprendizagem de línguas estrangeiras tem feito desde seu início até os
tempos atuais.

O trabalho está constituído em três partes: a primeira, na qual apresento de forma sucinta o projeto de
pesquisa no qual este trabalho se insere; a segunda, na qual são apresentados conceitos para o construto e; a
terceira, na qual apresento as três fases dos estudos motivacionais.

2. O projeto de pesquisa

O projeto de pesquisa intitulado ―A (des)motivação em alunos de graduação em Língua Inglesa e suas


implicações na aprendizagem: um estudo comparativo entre os regimes extensivo e intensivo‖, está em fase de
desenvolvimento em âmbito de mestrado pelo autor deste trabalho, sob orientação da Profa. Dra. Walkyria
Magno e Silva, da Universidade Federal do Pará.

O principal objetivo do projeto é observar como ocorre o processo motivacional em alunos de


graduação em Letras Língua Inglesa oriundos de turmas intensivas e extensivas e as implicações deste na
aprendizagem da língua alvo. Para se atingir esse objetivo, procuramos perceber como ocorre a flutuação da
motivação para a aprendizagem da língua alvo nos sujeitos pesquisados no decorrer dos anos do curso, vendo
esse processo sob a ótica dos próprios sujeitos, já que serão eles próprios a narrar os fatores geradores de
motivação e de desmotivação. A partir daí, procuramos saber se os níveis motivacionais apontados pelos
aprendentes, bem como as influências motivacionais condizem com a premissa de que aprendentes motivados
possuem mais chance de sucesso. Ao final, os resultados em cada uma das turmas será comparado, a fim de
observarmos se há alguma diferença entre uma turma e outra no que concerne aos níveis motivacionais e seus
fatores.
679

Tomando como abordagem principal a pesquisa qualitativa, utilizaremos questionários, entrevistas e


outros instrumentos que forem pertinentes, a fim de coletar dados que levem a uma reflexão acerca dos seguintes
questionamentos:

• Como ocorre, nos sujeitos pesquisados, a flutuação da motivação para a aprendizagem de LE?

• Quais os fatores geradores de motivação e suas influências na aprendizagem da língua alvo?

• Quais os fatores geradores de desmotivação e suas influências na aprendizagem da língua alvo?

• Qual a diferença no padrão motivacional dos alunos do curso intensivo em relação aos alunos do curso
extensivo?

Os sujeitos de pesquisa são alunos de graduação em Letras Língua Inglesa da Universidade Federal do
Pará, Campus Universitário de Bragança. Os alunos são matriculados em duas turmas: uma funcionando em
regime extensivo noturno e a outra funcionando em regime intensivo integral279.

3. A motivação na aprendizagem de línguas estrangeiras

Existem várias definições aplicáveis ao termo motivação. A palavra é originada do verbo latino movere,
que significa mover. Pode-se dizer basicamente que a motivação ―relaciona-se àquilo que move uma pessoa a
fazer certas escolhas, a se engajar numa ação e a persistir numa ação‖ (USHIODA, 2008, p. 21)280. Podemos
dizer ainda que a motivação é ―o processo por meio do qual a atividade direcionada por um objetivo é instigada e
mantida‖ (PINTRICH; SCHUNK apud DÖRNYEI, 2000, p. 202).

A motivação é um construto teórico estudado a princípio na área de psicologia. Na área de


aprendizagem de línguas estrangeiras ela toma um rumo de estudos diferente, pois tal motivação é diferente da
motivação para outros tipos de aprendizagem e mesmo para outros tipos de ações, pois a aprendizagem de uma
língua estrangeira ―envolve mais que meras habilidades de aprendizagem, sistemas de regras ou gramática; ela
envolve uma alteração na autoimagem, adoção de novos comportamentos sociais e culturais e modos de ser‖
(WILLIAMS, 1994 apud DÖRNYEI, 2005, p. 68). Além disso, devido ao fato do domínio de uma língua
estrangeira ser uma atividade de longo prazo, a ―motivação não permanece constante durante o curso de meses
ou anos‖ (DÖRNYEI, 2001, p. 16).

É consenso entre pesquisadores que a motivação, no processo de aprendizagem de uma língua


estrangeira, gera aprendentes com maiores chances de sucesso na aprendizagem (DÖRNYEI, 2001; DÖRNYEI,
2005; USHIODA, 1998). Ela, porém, não é garantia do sucesso, pois a motivação é influenciada por uma série
de fatores. Tais fatores podem atuar de forma diferente em indivíduos diferentes, ou até no mesmo indivíduo em
momentos diferentes. Por esse motivo, a motivação é considerada ―uma das variáveis mais atraentes, embora
complexa, usadas para explicar as diferenças individuais na aprendizagem de línguas‖ (MCINTYRE;
MACMASTER; BAKER, 2001, p. 462).

279 Na referida instituição, o regime extensivo é aquele cujas turmas têm funcionamento no decorrer do ano letivo em
apenas um turno. Já o regime intensivo é aquele cujas turmas têm funcionamento nos períodos de férias escolares (janeiro-
fevereiro e julho-agosto) em período integral (dois turnos, ou seja, 8 horas de aula por dia).
280 A tradução desta e das demais citações em inglês são de responsabilidade do autor.
680

Os estudos motivacionais na área da aprendizagem de línguas estrangeiras são divididos em três fases: a
fase socio-psicológica, a fase cognitiva e a fase orientada para o processo. Na próxima seção discorreremos sobre
cada uma delas.

Os estudos em motivação na aprendizagem de línguas estrangeiras são relativamente recentes, tendo seu
início datado de meados de 1950. Segundo Dörnyei (2005), os estudos motivacionais são divididos em três
períodos: o primeiro, que inicia no final da década de 1950, quando Gardner e seus colegas apresentaram a
motivação por meio de uma abordagem socio-psicológica, se estendendo até a década de 1990; o segundo, que se
estende durante a década de 1990, no qual a motivação é caracterizada por meio das teorias cognitivas da
psicologia educacional; e o terceiro período, que inicia nos anos 2000 e perdura até hoje, no qual Dörnyei,
Ushioda e outros pesquisadores estudam as mudanças motivacionais, o que caracteriza a motivação como um
processo.

3.1. A abordagem socio-psicológica

Gardner e Lambert foram pioneiros em afirmar que existia uma diferença entre a motivação para a
aprendizagem de línguas e a motivação para aprender outras disciplinas escolares (DÖRNYEI, 2005). Para eles,
porém, o desejo de aprender a língua vinha principalmente desejo de integração com a cultura do falante da
língua alvo, o que eles chamavam de orientação integrativa, ou ainda do desejo de receber ganhos instrumentais,
como um bom emprego, um aumento de salário, o que eles chamavam de orientação instrumental (DÖRNYEI,
2001; DÖRNYEI, 2005). Foram realizadas várias pesquisas, especialmente no Canadá, com aprendentes falantes
de inglês que aprendiam francês, observando-se os dois tipos de orientações motivacionais e as influências que
cada uma exercia na aprendizagem dos aprendentes pesquisados.

3.2. A abordagem cognitiva

No período cognitivo, observamos novas teorias em motivação, que abrangem uma gama maior de
situações de aprendizagem, haja vista que as teorias de Gardner e Lambert eram mais voltadas para a integração
social do aprendente, que aprendia a língua principalmente por sua inclinação pela cultura da língua alvo, ou pela
utilização instrumental da língua. Duas das principais teorias surgidas nesse período são as teorias da
autodeterminação e da atribuição.

Na teoria da autodeterminação, estudada por Ryan e Deci, a motivação pode ser intrínseca – que vem de
dentro do aprendente, na qual ele realiza atividades de aprendizagem pelo prazer em aprender a língua – ou
extrínseca – na qual o motivo é externo ao aprendente; ele aprende para alcançar um resultado separável do
prazer em aprender a língua (passar em um exame ou conseguir um melhor emprego, por exemplo) (RYAN;
DECI, 2000). Até hoje, em trabalhos que tratam da motivação na aprendizagem de língua estrangeira, a teoria da
autodeterminação é uma das mais mencionadas e os estudos de Ryan e Deci são citados por muitos teóricos da
área de ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras.
681

A teoria da atribuição, por sua vez, apresenta o processamento de experiências passadas de sucesso ou
fracasso na aprendizagem como fator determinante para o sucesso ou fracasso no futuro (DÖRNYEI, 2001;
DÖRNYEI, 2005). Neste caso, são mais bem sucedidos os aprendentes que atribuírem seus fracassos a causas
instáveis (e.g. doença) e/ou externas (e.g. sorte) e seus sucessos a causas estáveis (e.g. esforço) e/ou internas (e.g.
boa habilidade). Vários estudiosos realizaram pesquisas motivacionais com base na teoria da atribuição.

Estudos mais recentes em motivação começaram a levar em consideração o caráter mutante e a


dimensão temporal da motivação. A partir das reflexões sobre essas duas variáveis, começou-se a fase orientada
para o processo.

3.3. A motivação como processo

A motivação não é algo estático; ela muda no decorrer do tempo. A essa mudança, chamamos de caráter
mutante. Ao fato dessa mudança geralmente ocorrer num espaço de tempo, chamamos de dimensão temporal.

Ushioda, falando sobre o caráter mutante da motivação, diz que, ―dentro do contexto institucional de
aprendizagem, a experiência comum parece ser mais um fluxo motivacional do que estabilidade‖ (USHIODA
apud DÖRNYEI, 2001, p. 83). Nesse sentido, a motivação pode ser comparada com uma ―maré diária enchente
e vazante‖ (MAGNO E SILVA, 2010, p. 287), pois os níveis motivacionais não são os mesmos a todo instante: a
pessoa que agora está motivada pode, por algum motivo, estar desmotivada em outro momento e, mais adiante,
estar motivada novamente. É importante ressaltar que, por se tratar de um fluxo, a motivação não será a mesma
ao longo do tempo, nem o aprendente será motivado sempre pelos mesmos motivos. Williams e Burden, falando
sobre a dimensão temporal da motivação, afirmam que ―motivação é mais do que simplesmente despertar
interesse. Também envolve sustentar o interesse e investir o tempo e a energia em aplicar o esforço necessário
para atingir certas metas‖ (WILLIAMS; BURDEN apud DÖRNYEI, 2001, p. 83).

Dörnyei, pensando o construto como um processo, apresenta um novo conceito para o termo. Para ele,
a motivação é

um estado alerta cumulativo dinamicamente mutante em um indivíduo que começa,


direciona, coordena, amplifica, termina e avalia os processos cognitivos e motores por
meio dos quais vontades e desejos iniciais são selecionados, priorizados,
operacionalizados e desempenhados (com ou sem sucesso) (DÖRNYEI, 2000/2011,
p. 209).

Foi com base nessas e em outras reflexões sobre o caráter mutante e a dimensão temporal da motivação que
Dörnyei e Ottó (1998) elaboraram um modelo motivacional orientado pelo processo, conforme figura abaixo:
682

Figura 1: (DÖRNYEI, 2000/2011, p. 210)


683

No esquema, podemos observar que Dörnyei e Ottó (1998) dividem o processo motivacional em três
fases. Cada fase é caracterizada por uma série de influências motivacionais e uma sequência de ações a serem
realizadas pelo aprendente. A fase pré-acional é caracterizada pelo estabelecimento das metas, formação e
desenvolvimento da intenção em realizar determinada ação. A fase acional trata do momento de realização da
ação planejada. Por fim, temos a fase pós-acional, na qual é feita a avaliação da ação depois de realizada,
estabelecendo-se estratégias e tomando decisões para ações posteriores, com base nos resultados obtidos.

4. Considerações finais

A motivação, construto teórico com muitos conceitos aplicáveis, tem sua origem nos estudos de
psicologia, mas que assume abordagem e formas de estudo diferentes em se tratando da aprendizagem de línguas
estrangeiras, sendo considerada uma variável muito importante nos estudos e pesquisas desta área.

Os estudos motivacionais datam da década de 1950, e desde esse período vem chamando a atenção de
pesquisadores, apresentando várias pesquisas que são categorizadas em três fases de estudos. A fase atual, na qual
a motivação é vista como um processo, nos apresenta um esquema baseado em estudos das fases anteriores
arranjados de forma a abranger uma quantidade maior de situações de aprendizagem. Com base nos estudos de
motivação como processo, podemos ter implicações didático-pedagógicas, como o estabelecimento de estratégias
motivacionais, por exemplo, por meio das quais o professor atua como um agente motivacional nesse processo.

O projeto de mestrado, ao qual esta parte da fundamentação teórica está inserida, está em fase de
pesquisa (coleta de dados), motivo pelo qual não é apresentado tipo algum de resultados da pesquisa em
andamento.

REFERÊNCIAS

DÖRNYEI, Z. Motivação em ação: buscando uma conceituação processual da motivação de alunos. In:
BARCELOS, A. M. F. (org.) Linguística aplicada: reflexões sobre ensino e aprendizagem de língua materna e língua
estrangeira. Campinas: Pontes, 2000/2011. p. 199-236.

__________. Teaching and researching motivation. Harlow: Longman, 2001.

__________. The psychology of the language learner: individual differences in second language acquisition. London:
Lawrence Erlbaum, 2005.

MACINTYRE, P. D.; MACMASTER, K.; BAKER, S. C. The convergence of multiple models of


motivation for second language learning: Gardner, Pintrich, Kuhl, and McCroskey. In Z. DORNYEI;
R. SCHMIDT (org.) Motivation and second language acquisition. Honolulu: University of Hawaii Press, 2001.
p. 461-492. (p. 462)
684

MAGNO E SILVA, W. Motivação como força propulsora da aprendizagem de línguas estrangeiras. In:
ROMERO, T. R. S. (org.) Autobiografias na (re)constituição de identidades de professores de línguas: o olhar crítico-
reflexivo. Campinas, SP: Pontes Editores, 2010. p. 283-299.

RYAN, R. M.; DECI, E. L. Intrinsic and extrinsic motivations: classic definitions and new directions.
Contemporary Educational Psychology, Rochester, n. 25, p. 54-67, 2000.

USHIODA, E. Motivation and good language learners. In: GRIFFITHS, C. (org.) Lessons from good language
learners. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. 19-34.
685

PRODUÇÃO DE TEXTOS E AVALIAÇÃO FORMATIVA: A PROPOSTA DA


SEQUÊNCIA DIDÁTICA EM ANÁLISE

Myriam Crestian Cunha281

Resumo: Neste trabalho apresenta-se a análise da proposta de avaliação formativa veiculada pelo
Ministério da Educação em documentos recentemente produzidos para preparar e instrumentalizar a
ampliação do Ensino Fundamental brasileiro para nove anos de duração. Mostra-se que tais
documentos carecem de uma maior articulação com as especificidades de cada área do conhecimento,
como a da Língua Portuguesa. Em resposta a essa lacuna, articulam-se os princípios da avaliação
formativa veiculados nesses documentos com as concepções que embasam o procedimento didático-
metodológico para a produção textual – a sequência didática – tal como divulgado pelos pesquisadores
em Didática das Línguas da Universidade de Genebra. Mostra-se que a forte coesão do modelo,
articulando concepções teóricas e opções didáticas e pedagógicas, se estende à dimensão avaliativa. A
análise destaca sucessivamente os princípios da sequência didática relacionados com as finalidades da
avaliação, os sujeitos que participam dela e o modo como integra os objetos didáticos, evidenciando a
dimensão formativa deste procedimento que favorece o desenvolvimento de capacidades de
(auto)avaliação e articula de modo significativo princípios de avaliação formativa e de
ensino/aprendizagem de língua. Demonstra-se a relevância da proposta, em determinadas condições,
para a aprendizagem da produção/avaliação de textos.

Palavras-chave: Avaliação formativa; Sequência Didática; Produção textual.

Abstract: This paper presents the analysis of the proposal for formative assessment conveyed by the
Ministry of Education in recently produced documents to prepare and equip the expansion of Brazilian
elementary school to a nine year duration. It is shown that such documents require greater coordination
with each area of knowledge, like Portuguese Language. In response to this gap, the principles of
formative assessment in these documents are articulated with the conceptions that underlie the
educational-methodological procedure for text production - the Didactic Sequence - as disclosed by
researchers in Didactic of Languages at the University of Geneva. It is shown that the strong cohesion
of the model, linking theoretical concepts and didactic and pedagogical options, extend to the
evaluative dimension. The analysis emphasize successively the principles of the Didactic Sequence
related to the purposes of the assessment, the subjects involved in assessment and how it integrates didactic
objects, highlighting the formative dimension of this procedure that favors the development of
(self)evaluation capacities and articulates significant principles of formative assessment with principles
of teaching/learning language. It is demonstrated the relevance of the proposal, under certain
conditions, for learning/evaluating text production.

Keywords: Formative Assessment; Didactic Sequence; Textual Production.

1. Introdução

281 Professora associada da UFPA, Instituto de Letras e Comunicação, Faculdade de Letras Estrangeiras Modernas e
Programa de Pós-graduação em Letras. O presente trabalho é fruto de estudos realizados no âmbito do grupo de pesquisa
"Avaliação da/na Aprendizagem de Línguas" (AVAL) coordenado pela autora. As investigações do grupo AVAL têm como
objetivo principal entender de que forma práticas de avaliação e práticas de ensino/aprendizagem se inter-relacionam na
área de línguas.
686

Neste trabalho282, analisa-se a proposta de avaliação formativa divulgada pelo Ministério da


Educação (MEC) em documentos produzidos para preparar a ampliação do Ensino Fundamental
brasileiro para nove anos de duração, com o objetivo de ―construir políticas indutoras de
transformações significativas […] nas formas de ensinar, de aprender, de avaliar‖ (BRASIL, 2004, p. 11 –
grifo nosso). Confronta-se esta proposta com o procedimento didático-metodológico da sequência
didática, tal como é defendida pelos pesquisadores da universidade de Genebra para o
ensino/aprendizagem da produção escrita em português.
Nesses documentos, a avaliação escolar é vista, como ―condição para a mudança de prática e
para o redimensionamento do processo de ensino/aprendizagem‖ (FERNANDES; FREITAS, 2007, p.
23) e o processo de ampliação do Ensino Fundamental é entendido como ―uma oportunidade de rever
concepções e práticas de avaliação do ensino-aprendizagem, partindo do princípio de que precisamos,
na educação brasileira, de uma avaliação inclusiva‖ (BEAUCHAMP; PAGEL; NASCIMENTO, 2007,
p. 11). Neles, sublinha-se ainda a profunda inter-relação existente entre, por um lado, a escolha dos
objetos de ensino e dos objetos de aprendizagem, e, por outro, os processos avaliativos adotados: ―O
que se avalia e como se avalia está condicionado pelas competências, habilidades, conhecimentos que o
currículo privilegia ou secundariza [...]‖ (FERNANDES; FREITAS, 2007, p. 13), considerando que,
como parte integrante das questões curriculares, os processos avaliativos também ―terminam por influir
nos conteúdos e nos procedimentos selecionados nos diferentes graus da escolarização‖ (BRASIL,
2004, p. 14). Os documentos em pauta adotam concepções formativas da avaliação escolar, entendida
como uma avaliação ―processual, participativa, formativa, cumulativa e diagnóstica e, portanto,
redimensionadora da ação pedagógica‖ (BRASIL, 2009, p. 16).
Entretanto, professores de Português Língua Materna que queiram buscar nesses textos
subsídios específicos para articular práticas avaliativas deste teor com atividades de
ensino/aprendizagem de sua área podem encontrar recomendações do que não fazer, porém certamente
sentirão falta de orientações claras sobre o que fazer em substituição às atividades tradicionais de
avaliação. De fato, embora diversos instrumentos sejam discutidos nesses textos, os princípios
defendidos carecem de uma maior articulação com as práticas específicas de diversas áreas do
conhecimento e as recomendações são insuficientes para promover as mudanças pretendidas. Como os
problemas que o cotidiano da docência levanta são relacionados a objetivos específicos283, acreditamos
que somente seja possível construir respostas adequadas articulando o modelo avaliativo proposto com
modelos do funcionamento da linguagem e do ensino/aprendizagem de uma língua.

282 O texto baseia-se em um estudo mais abrangente apresentado na obra organizada por LEAL e SUASSUNA. Ensino da
Língua Portuguesa na Educação Básica: reflexões sobre o currículo. Recife: CEEL/UFPE (no prelo).
283 Em Língua Portuguesa, pode-se pensar em problemas como os seguintes: ―Como fazer para que meus alunos de 1ª (4ª, 7ª

ou outra) série aprendam a escrever histórias (resumos, relatórios de ciências etc.)?‖ ou ―Como ajudar meus alunos do 2º (3º,
8º ou outro) ano a se apropriarem dos recursos linguísticos para resolver problemas de retomada de ideias (distanciamento
em relação às informações veiculadas / hierarquização de argumentos / criação de suspense etc.)?‖.
687

Propomo-nos aqui a relacionar as recomendações dos textos oficiais com os princípios que
caracterizam o ensino/aprendizagem do português compreendido na perspectiva interacional, a qual
fundamenta o procedimento didático-pedagógico da sequência didática, tal como definido por Dolz,
Noverraz e Schneuwly (2004). Após uma rápida apresentação desse procedimento, passaremos a
destacar as características essenciais de uma avaliação ―inclusiva‖ (BEAUCHAMP; PAGEL;
NASCIMENTO, 2007, p. 11), também referida nos documentos do MEC como ―formativa
reguladora‖ (SILVA, 2003 apud LEAL; ALBUQUERQUE; MORAIS, 2007, p. 101). Para isso,
realizamos um levantamento das concepções acerca dessa modalidade que podem ser identificadas em
documentos disponíveis no portal do MEC, na página de publicações dedicadas ao ―Ensino
fundamental de nove anos‖. Dedicamos especial atenção às concepções relativas às finalidades, aos
sujeitos e aos objetos da avaliação, confrontando-as com os princípios que embasam a sequência
didática.

2. Um modelo de “sequênci didátic ” p r produção textu l

Embora qualquer conjunto de atividades organizado, em termos de tempo e de estratégias, para


alcançar determinado objetivo de aprendizagem constitua uma sequência didática, ao mencionarmos
aqui ―a sequência didática‖ (com artigo definido), estaremos focando especificamente o modelo
sistematizado por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). Este procedimento didático-pedagógico envolve
objetivos de aprendizagem definidos em termos de capacidades de expressão oral e escrita e leva à
delimitação de objetos didáticos (objetos de aprendizagem, ensino e avaliação), que tomem a língua em
uso e os gêneros textuais como eixo central. Do ponto de vista pedagógico, a perspectiva de uso, na
qual o dispositivo se estrutura, motiva atividades de produção e reflexão desenvolvidas com uma ampla
participação dos aprendentes (sujeitos da aprendizagem, mas também sujeitos de linguagem).
Esse procedimento tem se fortalecido com os Parâmetros Curriculares Nacionais de língua
portuguesa (BRASIL, 1998), que elegeram como objetivo prioritário para o ensino do português a
apropriação das diversas práticas textuais. A nosso ver, a força desse modelo de sequência didática
deve-se à forte coesão que ele proporciona entre concepções teóricas e opções didáticas e pedagógicas,
ao articular atividades linguageiras e atividades de aprendizagem. Veremos aqui como essa coesão se
estende à dimensão avaliativa.
Em síntese, a sequência tem o seguinte funcionamento: o contexto de produção e os diferentes
parâmetros da situação de comunicação são discutidos no momento inicial em que o professor negocia
a tarefa a ser realizada com sua turma (por exemplo, a preparação de um seminário para a semana do
meio ambiente da escola). Pretende-se que: os aprendentes tenham clareza em relação ao projeto de
produção e à situação de comunicação visados; sejam, eventualmente, confrontados a textos
688

pertencentes ao gênero textual a ser trabalhado; disponham de conteúdos temáticos suficientes para
produzir uma primeira versão do texto esperado.
Para o professor, a análise dessa primeira produção, que vai permitir (re)planejar as atividades
de ensino a serem realizadas nos módulos, pressupõe que o docente já disponha de uma descrição
mínima das características do gênero para escolher os critérios de apreciação que serão privilegiados ao
longo da sequência. Para os aprendentes, a análise é o momento para um primeiro distanciamento
crítico em relação à sua produção e para uma sensibilização coletiva no tocante às características do
texto esperado. Nos módulos ou oficinas, as principais dificuldades diagnosticadas tornam-se objeto de
atenção sistemática: cada módulo dedica-se à descoberta e apropriação de novas técnicas,
conhecimentos ou habilidades para solucionar os problemas detectados, motivando sucessivas
reescritas do texto até a produção final, ou preparando a refacção final, no caso da oral. Finalmente, os
aprendentes produzem a última versão do texto, reinvestindo as habilidades desenvolvidas ao longo dos
módulos. Nesse momento, o projeto visado é executado (por exemplo, o seminário é realizado). A
finalização da sequência, obviamente, não marca o término do processo de aprendizagem da produção
textual, mas encerra um período de trabalho em torno de determinados objetivos de aprendizagem,
cujo alcance pode ser submetido a uma avaliação somativa.
A sequência didática favorece, portanto, um trabalho de produção, reflexão e regulação que não
se limitam aos aspectos gramaticais. Segundo o modelo do ―saber-escrever‖ de Mas (1991), para dar
conta das diversas operações de produção de um texto em uma situação de interação, é preciso:
gerenciar a interação do ponto de vista pragmático e enunciativo (contextualizar o projeto de escrita,
escolher uma estratégia discursiva...); gerenciar o objeto do discurso do ponto de vista semântico (criar
o referente, construir o esquema textual, estruturar o texto...); gerenciar o objeto texto do ponto de
vista morfossintático e material (garantir progressão e continuidade, redigir frases, modalizar...). Nessas
condições, percebe-se todo o potencial da sequência didática. Nela, a produção é situada na perspectiva
da ação finalizada, mas esse plano da interação (plano do uso) articula-se de modo muito produtivo
com o da aprendizagem formal (plano da reflexão). Em outras palavras, a sequência não promove
apenas boas oportunidades de ler, escrever, falar, mas faz dessas oportunidades momentos para
aprender, ao reservar amplo espaço à objetivação das atividades de linguagem e à análise das
características linguístico-textuais. Veremos, a seguir, que esse procedimento não é apenas produtivo
como dispositivo de ensino da produção textual, mas que ele favorece o desenvolvimento das
capacidades de aprendizagem, em língua materna, justamente por ser um procedimento formativo.

3. A avaliação formativa na sequência didática


689

Nos documentos do MEC supracitados, realizamos um levantamento de trechos relativos à


avaliação formativa, com especial interesse para aqueles relacionados com as finalidades da avaliação, os
sujeitos que participam dela e o modo como integra os objetos didáticos. Iremos agora apresentar essas
características e analisar como se atualizam no modelo da sequência didática.

3.1 As finalidades da avaliação formativa

Os documentos do MEC contrastam as práticas tradicionais de avaliação limitadas à aferição


dos rendimentos escolares com as práticas que visam a ―subsidiar a permanente inclusão do educando
no processo educativo‖ (LUCKESI, 2001, s. p.), de modo a ―assegura[r] aprendizagem de qualidade a
todos‖ (BEAUCHAMP; PAGEL; NASCIMENTO, 2007, p. 11). Mostram que, para que essa função
da avaliação se cumpra, é preciso identificar os obstáculos presentes no processo, analisá-los e removê-
los: assim, a avaliação formativa ajuda os alunos ―a localizar suas dificuldades e suas potencialidades,
redirecionando-os em seus percursos‖ (FERNANDES; FREITAS, 2007, p. 22).
Para a maioria dos professores, a dificuldade maior não consiste em aceitar a necessidade desse
tipo de práticas, e sim em concretizá-las no seu cotidiano. Ora, para nós, o procedimento da sequência
didática permite, sem dúvida, tal concretização. De fato, a avaliação, enquanto tomada de informações a
serem usadas em prol da regulação do ensino e da aprendizagem, é praticada em toda a extensão da
sequência. Excetuando-se a produção final, que também pode ser objeto de avaliação somativa, não se
atribuem notas ou conceitos em nenhum momento da sequência, embora processos avaliativos sejam
constantemente desenvolvidos. A avaliação inicia logo na análise da primeira produção que, como
momento do diagnóstico das necessidades, servirá ―para ajustar o ensino e planejar as atividades‖
(LEAL; ALBUQUERQUE; MORAIS, 2007, p. 102), uma vez que

[...] permite circunscrever as capacidades de que os alunos já dispõem e,


consequentemente, suas potencialidades. É assim que se definem o ponto preciso em
que o professor pode intervir melhor e o caminho que o aluno tem ainda a percorrer:
para nós, essa é a essência da avaliação formativa (DOLZ; NOVERRAZ;
SCHNEUWLY, 2004, p. 101).

A avaliação diagnóstica também é, para os aprendentes, um momento de valorização de suas


capacidades efetivas e de tomada de consciência de suas necessidades.
As oficinas, por sua vez, quando encaminhadas de modo coerente com os pressupostos que
embasam o modelo, têm feições totalmente formativas. Longe de serem a mera exposição de um
conhecimento considerado como pré-requisito para a instalação da competência, a ser posteriormente
―aplicado‖ no fazer textual, as oficinas favorecem a descoberta e a análise, pelos próprios aprendentes,
dos mecanismos e recursos que a linguagem oferece para resolver os diversos problemas da escrita ou
do oral encontrados. Para isso, atividades de exploração de textos bem ou mal sucedidos na resolução
690

dessas dificuldades permitem aos alunos identificarem as qualidades esperadas – que nada mais são do
que critérios pelos quais se pode avaliar a produção textual – e relacioná-los com os descritores, isto é,
no caso, com os recursos linguísticos que materializam o critério em questão no texto
produzido/avaliado. A depreensão de critérios e descritores e sua progressiva apropriação são o
objetivo central do trabalho empreendido em cada módulo, na medida em que permitem a regulação da
produção pelo próprio aprendente, tornado mais apto a identificar o que é passível de ajustes, correções
ou reformulações. Desse modo, a forma de ensinar e aprender coaduna-se com a forma de avaliar,
integrando-se a avaliação nos processos de ensino e de aprendizagem de modo eficaz284. Apropriar-se
dos critérios, afinal, é, ao mesmo tempo, imprescindível para desenvolver capacidades procedimentais
em relação à produção textual e para avaliar essa produção, posto que as capacidades de autoavaliação e
autorregulação da produção integram plenamente as capacidades de escrita.
A reflexão, exercitação e conceituação realizadas nessas oficinas geralmente levam à construção
de instrumentos de síntese (fichas de trabalho como grades de critérios e descritores, check-list das
características esperadas para a produção) nos quais o aprendente deve se apoiar para elaborar a versão
final de sua produção. A produção final, portanto, também oportuniza atividades avaliativas de cunho
formativo, na medida em que a refacção da produção se vale de todo o trabalho desenvolvido ao longo
dos módulos. Percebe-se, portanto, que as finalidades apontadas nas recomendações oficiais podem se
atualizar de modo mais proveitoso em um procedimento didático-pedagógico como o que acabamos de
examinar. Todavia, essa análise evidencia, além das finalidades, elementos indissociáveis, sem os quais o
dispositivo perderia seu potencial formativo regulador, como veremos agora.

3.2 Avaliação formativa e sujeitos

Em seu texto, Leal, Albuquerque e Morais (2007, p. 100) oferecem uma longa lista de motivos
pelos quais se pode avaliar diferentemente na escola. Analisando-os, notamos que nela o sujeito
responsável por ―conhecer‖, ―identificar‖, ―verificar‖ ou ―saber‖ é sempre o docente, que tem um
papel importante a desempenhar na mediação do processo, mas não pode se substituir ao aprendente,
sujeito dessa aprendizagem. Fernandes e Freitas (2007) também insistem no papel ativo do aluno,
pressuposto na construção da autonomia, recomendando que ―os estudantes realizem autoavaliação,
refletindo, dessa forma, sobre os próprios conhecimentos e sobre suas estratégias de aprendizagem, de
modo que possam redefinir os modos de estudar e de se apropriar dos saberes‖ (2007, p. 102); mas, a
poucas páginas de distância, reafirmam a centralidade do ensino no processo formativo, pondo a ênfase
nas regulações executadas pelo docente.

284 Diversos documentos acadêmicos têm relatado experiências bem sucedidas em que, nesse paciente trabalho de
observação, análise e explicitação dos critérios e de seus descritores, os aprendentes surpreendem seus professores ao se
tornarem capazes de se orientar de modo seguro em suas produções (ver CUNHA, 2012).
691

Na literatura educacional, não é raro observar certa tensão entre um discurso que defende
fervorosamente uma avaliação ―inclusiva‖, ―integradora‖, ―participativa‖ ou ―dialógica‖, em que o
aluno toma as rédeas de sua aprendizagem, e propostas de intervenção que tendem a esvaziar, de fato,
essa dimensão formativa quando ignoram a corresponsabilidade do aprendente pela avaliação. Nessas
condições, é grande o risco de se reproduzir indefinidamente a concepção de avaliação formativa dos
anos sessenta, em que todo o controle do processo era deixado a cargo do professor.
Na base dessa tensão, encontra-se, a nosso ver, um grande equívoco pelo qual as capacidades
avaliativas são encaradas como pré-requisito para a prática da avaliação. Nesse caso, defender práticas
co ou autoavaliativas parece insustentável junto a um público que nem sequer dá conta de produzir
textos aceitáveis, quanto menos avaliá-los. Porém, na perspectiva francófona de avaliação formativa, o
desenvolvimento das capacidades de avaliação constitui um objetivo de aprendizagem indissociável dos
outros objetivos de desenvolvimento das capacidades discursivas e linguístico-textuais: aprender a
escrever/falar também é aprender a construir progressivamente o referente que norteia a produção e
permite adequá-la às intenções, aos interlocutores, à situação de comunicação e às exigências do gênero
em uso.
Ao inserir as atividades de aprendizagem em uma situação de produção autêntica, na qual algo
está verdadeiramente em jogo, com interlocutores socialmente situados, em um tempo e com um
suporte definidos, a sequência coloca a avaliação do texto em construção como algo imprescindível.
Gera-se, deste modo, uma dupla motivação nos alunos: a de acertar na interação e a de acertar na
aprendizagem, a primeira sendo relacionada à segunda. A sequência didática proporciona, ao mesmo
tempo, a oportunidade de operar em um plano distanciado, no qual os processos e elementos
envolvidos podem ser objetivados e discutidos, e no qual, finalmente, operações de ordem
metacognitiva vão sendo estimuladas.
A efetiva participação dos aprendentes na descoberta dos elementos que vão guiar a avaliação e
a regulação da produção começa com a avaliação diagnóstica da primeira produção. Ela prossegue nos
módulos quando estes são elaborados de forma que o conhecimento provenha de uma ―construção
coletiva de metas e regras‖ (FERNANDES; FREITAS, 2007, p. 36), na qual a explicitação dos critérios
―favorece uma atitude reflexiva e um controle do próprio comportamento‖, como ressaltam Dolz,
Noverraz e Schneuwly (2004, p. 106). Os alunos também são valorizados enquanto sujeitos da
aprendizagem quando elaboram instrumentos diversos nos quais sistematizam descobertas, regras,
técnicas que irão ajudá-los a analisar/avaliar suas sucessivas reescritas. Entretanto, para que a sequência
didática funcione como dispositivo por meio do qual as capacidades de produção/avaliação vão sendo
construídas, ainda é preciso que finalidades e sujeitos se harmonizem em torno dos objetos de avaliação
apropriados: é preciso definir o que (auto)avaliar na aprendizagem da língua materna.

3.3 A avaliação formativa e os objetos avaliados


692

Em se tratando dos objetos de avaliação, a crítica às práticas tradicionais costuma tomar como
alvo os conteúdos a serem retidos pelos alunos. Os documentos do MEC assumem esse mesmo
posicionamento, ressaltando que ―A escola não deve se ater apenas aos aspectos cognitivos do
desenvolvimento‖ (BRASIL, 2009, p. 16). Os autores do documento ainda relembram a importância de
se considerar os aspectos qualitativos. Para os autores desses textos, maneiras diferentes de avaliar são
obviamente associadas a objetos de ensino e de aprendizagem diferentes, e reciprocamente, e a
discussão do que deve (pode) ser avaliado atrela-se sistematicamente à discussão dos objetos de ensino
e de aprendizagem:

[...] precisamos garantir a coerência entre as metas que planejamos, o que ensinamos e
o que avaliamos. A clareza sobre o que vamos ensinar permitirá, em cada etapa ou
nível de ensino, delimitar as expectativas de aprendizagem, das quais dependem tanto
nossos critérios de avaliação quanto o nível de exigência (LEAL; ALBUQUERQUE;
MORAIS, 2007, p. 102).

Em última instância, a pertinência dos objetos didáticos mobilizados pela escola é definida
socialmente, como enfatizam Leal, Albuquerque e Morais (2007, p. 97): ―precisamos refletir sobre quais
saberes poderão ser mais relevantes para o convívio diário dos meninos e meninas que frequentam
nossas escolas e para a sua inserção cada vez mais plena nessa sociedade letrada‖. Dessa forma, rejeita-
se a aprendizagem de ―conceitos ou teorias científicas desarticuladas das funções sociais‖ (LEAL;
ALBUQUERQUE; MORAIS, 2007, p. 98). Em outras palavras, rejeitam-se conteúdos de ensino – e de
avaliação – que estejam desprovidos de significação para os aprendentes.
Nas atividades do cotidiano, não são os conhecimentos isolados (os chamados conteúdos
conceituais dos PCN) que importam, mas aqueles que são mobilizados de forma pertinente no âmbito
de ações complexas. No âmbito da linguagem, o que é socialmente pertinente e deve ser objeto de
aprendizagem – e, portanto, de avaliação – pode ser chamado de competências linguageiras. Ora, tais
competências não são tão imediatamente ensináveis – justamente em razão de sua natureza complexa
que mescla, em uma misteriosa alquimia, conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais.
Voltando para a sequência didática em língua materna, observa-se que todo o trabalho
empreendido por meio desse dispositivo visa ao desenvolvimento de capacidades textual-discursivas
estruturadas em torno do eixo dos gêneros. O papel da avaliação diagnóstica praticada no início da
sequência é, entre outros, o de permitir escolher aquilo que será objeto de aprendizagem nos diversos
módulos. Segundo Leal, Albuquerque e Morais (2007, p. 107), ―[...] para que tenhamos clareza sobre o
que ensinar e avaliar, necessitamos ‗traduzir‘ em objetivos observáveis os conteúdos formulados
geralmente de modo muito ‗amplo‘ nos documentos curriculares ou planos de curso‖. Se entendermos
que objetivos como ―adequar seu texto ao interlocutor‖ ou ―complexificar a intriga‖ são formulações
mais específicas de objetivos como ―expor um assunto oralmente‖ ou ―redigir uma narrativa de
693

aventura‖, ainda assim precisamos refletir sobre o tipo de conteúdos a serem mobilizados. Objetivos
como aqueles exigem do aprendente muito mais do que a aquisição de conhecimentos estáticos sobre
os pronomes de tratamento, a conjugação verbal ou a estrutura de uma narrativa. Embora tais
conteúdos possam constituir objetos de ensino, as capacidades necessárias para adequar uma produção
a seu destinatário ou para complexificar uma intriga é que são objetos de aprendizagem. Trata-se de
objetos muito mais difíceis de serem circunscritos na medida em que exigem do produtor do texto que
saiba intervir em diversas dimensões concomitantes do seu texto, realizando, ao mesmo tempo, uma
gestão discursiva da interação, uma gestão semântica do objeto do discurso e uma gestão
morfossintática do texto (ver o modelo didático ―do saber-escrever‖ de Mas, 1991).
No término da sequência, é possível lançar mão dos mesmos instrumentos e dos mesmos
descritores construídos no decorrer dos módulos para apreciar avanços e lacunas. Essa avaliação, com
características somativas, desta vez, se dá no texto reescrito, no qual os diversos conhecimentos e
técnicas trabalhados são integrados, sempre na perspectiva da interação autêntica: a complexidade
textual-discursiva continua sendo levada em conta e a avaliação da aprendizagem se torna bem mais
significativa. Dessa forma, a preocupação com a dimensão qualitativa da aprendizagem também está
presente, não só pela natureza das atividades de comunicação e de aprendizagem que solicitam o
aprendente em suas experiências de vida, atitudes e emoções, mas também pela natureza dos objetos de
aprendizagem. O qualitativo está nas competências complexas designadas como objeto de
aprendizagem, como no uso de instrumentos construídos e utilizados pelos próprios aprendentes ao
longo de uma sequência didática, pois sintetizam a reflexão sobre as diversas dimensões textuais
analisadas e refletem a evolução das capacidades de regulação dos aprendentes.
Percebe-se, portanto, que, para praticar uma avaliação formativa, não é preciso fugir da
necessária avaliação da aprendizagem e instaurar no seu lugar (e não ao lado dela e de forma articulada)
uma avaliação do ensino, do currículo, da escola etc.

4. Considerações finais
A análise da articulação entre um modelo didático e a proposta de avaliação formativa realizada
até agora nos parece trazer elementos suficientes para mostrar que o modelo de avaliação formativa
(processual, contínua, inclusiva...) divulgado nos documentos sobre os quais nos debruçamos não opera
isoladamente. Procuramos entender como, no ensino/aprendizagem da língua materna, se pode fazer
da avaliação ―um momento necessário à construção de conhecimentos pelas crianças [...]‖ (BRASIL
2009, p. 16). Aliás, mais do que apenas ―um momento‖ específico do processo, procuramos apontar
para uma avaliação indissociável do processo de aprendizagem, tentando mostrar que essa articulação é
a condição para se ―[...] transformar a prática avaliativa em prática de aprendizagem‖ (FERNANDES;
FREITAS, 2007, p. 23) e que, sem uma coerência entre o modelo didático mobilizado e as concepções
694

relativas aos sujeitos e aos objetos, nas práticas linguageiras como nas de avaliação, a avaliação
formativa acaba por não acontecer de fato.
Finalmente, a análise proposta permitiu caracterizar a sequência didática como um dispositivo
marcadamente formativo, que coloca a regulação e, em particular, a autorregulação das produções no
centro da sua dinâmica, fazendo das capacidades avaliativas um objetivo de aprendizagem. Nesse
sentido, a sequência didática constitui uma proposta para a produção/avaliação de textos amplamente
relevante para os nove anos do ensino fundamental.

REFERÊNCIAS

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fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade. 2ª ed. Brasília:
MEC/SEB, 2007.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de concepções e
orientações curriculares para educação básica. Coordenação Geral do Ensino Fundamental. Ensino
Fundamental de nove anos: passo a passo do processo de implantação. 2ª ed. Brasília: MEC/SEB, 2009.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Ensino Fundamental de nove anos:
orientações gerais. Brasília: MEC/SEB, 2004.
BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do
ensino fundamental – língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.
CUNHA, Myriam Crestian. A sequência didática: renovação e mesmice em práticas de
ensino/aprendizagem do português. In: MENDES, Edleise; CUNHA, José Carlos C. Práticas em sala de
aula de línguas: diálogos necessários entre teoria(s) e ações situadas. Campinas, SP: Pontes, 2012. p. 119-
148.
DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle; SCHNEUWLY, Bernard. Seqüências didáticas para o oral e a
escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim e
colaboradores. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e org. de Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro.
Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. p. 95-128.
FERNANDES, Cláudia de Oliveira; FREITAS, Luiz Carlos de. Currículo e avaliação. In:
BEAUCHAMP, Jeanete; PAGEL, Sandra Denise; NASCIMENTO, Aricélia Ribeiro do (Org.).
Indagações sobre Currículo. Brasília: MEC/SEB, 2007. Caderno nº 5.
LEAL, Telma Ferraz; ALBUQUERQUE, Eliana Borges Correia de; MORAIS, Artur Gomes de.
Avaliação e aprendizagem na escola: a prática pedagógica como eixo da reflexão. In: BEAUCHAMP,
Jeanete; PAGEL, Sandra Denise; NASCIMENTO, Aricélia Ribeiro do (Org.). Ensino fundamental de nove
anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade. 2ª ed. Brasília: MEC/SEB, 2007. p.
97-107.
LUCKESI, Cipriano Carlos. Entrevista à revista Nova Escola sobre avaliação da aprendizagem. Publicada em
nov. 2001. Disponível em <http://www.luckesi.com.br/artigosavaliacao.htm>. Acesso em
22/05/2008.
MAS, Maurice. Savoir écrire: c'est tout un système! Essai d'analyse didactique du "savoir écrire" pour
l'école élémentaire. Repères, Paris, n° 4 (nouvelle série), 1991. p. 23-34.
695

INTERTEXTUALIDADE COMO MESCLA: POR UMA NOVA


POSSIBILIDADE EPISTEMOLÓGICA
Sandra Cavalcante

Josiane Militão285

Resumo

Desde a proposição do termo, o fenômeno da intertextualidade vem sendo tema de investigação em perspectivas
teóricas distintas. Entre essas, destacam-se a Crítica Literária, a Linguística Textual e a Antropológica. O termo,
proposto por Julia Kristeva (1979) a partir de uma franca influência dos trabalhos de Mikhail Bakhtin (1895-
1975), vem sendo utilizado para descrever a relação entre textos de uma mesma natureza ou representativos de
diferentes semioses. Poucos são os estudos que buscam compreender e descrever a intertextualidade a partir de
princípios e operações cognitivas implicados em sua concreta manifestação semiótica. Nesse contexto,
justificamos a necessidade e apontamos para a possibilidade de que um novo ponto de vista sobre o tema seja
criado. Por sua natureza discursiva, a intertextualidade é um fenômeno recursivo, implicado na capacidade
humana de comunicar-se simbolicamente e, portanto, de produzir sentido. Este trabalho parte do pressuposto de
que a intertextualidade é uma manifestação, na materialidade .discursiva, do processo de produção e
compreensão de um texto alvo, em que os seres humanos vivenciam uma reformulação de experiências
(Maturana, 2001). Nesse fenômeno, uma rede de integração conceptual já fora previamente compartilhada, em
outro contexto, a partir do processo de interação com um texto fonte. Assim, a intertextualidade pode e deve ser
investigada em uma perspectiva cognitiva (Cavalcante, 2012, 2009, 2008, 2007a, 2007b). Para isso, o fenômeno
passa a ser problematizado de acordo com fundamentos teóricos e metodológicos do campo da Linguística
Cognitiva, como uma manifestação da dimensão dialógica da cognição humana (Tomasello, 2003) e da operação
cognitiva básica de conceptual blending (Faucconier& Turner, 2002; Brandt, 2004), em português ―mesclagem
conceitual‖ (Militão, 2007, 2009).

Palavras-chave: Cognição; Dialogismo; Integração conceptual; Intertextualidade.


Abstract
Since the proposition of the term, the phenomenon of intertextuality has been the subject of investigation in
different theoretical perspectives. Among these, we highlight the Literary Criticism, Textual and Antropological
Linguistics. The term, proposed by Julia Kristeva (1979) from an influence of Mikhail Bakhtin (1895-1975), has
been used to describe the relationship between similar nature texts or representing different semiosis. There are
few studies that seek to understand and describe intertextuality by cognitive operations principles concerned in
its concrete semiotic manifestation. In this context, we justify the need and point to the possibility of creating a
new perspective. This paper assumes that intertextuality is a discursive manifestation of the process of
production and understanding of a target text, in which we experience a reformulation of experiences (Maturana,
2001). In this sense, a network of conceptual integration had been previously shared, in other context, from the
process of interaction with a text source. Thus, intertextuality can and should be investigated in a cognitive
perspective (Cavalcante, 2012, 2009, 2008, 2007a, 2007b). For this reason, the phenomenon is analyzed and
described according to theoretical and methodological foundations of Cognitive Linguistics, as a manifestation of
the dialogical dimension of human cognition (Tomasello, 2003) and of the basic cognitive operation called

Professoras do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pesquisadoras do Grupo de
285

Pesquisa interdisciplinar e interinstitucional Complex Cognitio - uma visão integrada da cognição humana: corpo, cérebro,
mente, linguagem, significação. http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=1178801V2CNX4E
696

conceptual blending (Faucconier & Turner, 2002, Brandt, 2004), in Portuguese "mesclagem conceitual" (Militão,
2007, 2009).

Key-words: Cognition; Dialogism; Conceptual Integration; Intertextuality.

1. Introdução

Uma primeira formulação do problema descrito neste trabalho poderia ser apresentada na forma de uma
pergunta: como compreender e descrever o fenômeno da Intertextualidade em uma perspectiva cognitiva? Esse questionamento
nos coloca diante da necessidade de compreender o que é a intertextualidade, como e onde esse fenômeno se
manifesta e por que propor um estudo sobre o fenômeno na perspectiva cognitiva.

O termo intertextualidade fora proposto por Julia Kristeva (1979) a partir de uma franca influência dos
trabalhos realizados por Mikhail Bakhtin (1895-1975). A noção de Intertextualidade, introduzida por Kristeva
para o estudo da literatura, chamava atenção para o fato de que a produtividade da escritura literária redistribui,
dissemina textos anteriores em um texto atual. Uma vez que todo texto literário apresenta como característica
uma relação, implícita ou explicitamente marcada, com textos que lhe são anteriores, essa concepção permite
tomar o texto literário como o lugar do intertexto por excelência.

Identificada no âmbito da literatura e, da mesma forma, fora dos seus limites, historicamente, a
intertextualidade é compreendida como uma propriedade constitutiva do texto, como o conjunto das relações
explícitas ou implícitas que um texto ou um grupo de textos determinado mantém com outros textos. Nas
últimas décadas do século XX, o conceito intertextualidade passa a ser, amplamente, adotado como forma de
definir as relações estabelecidas entre textos de um mesmo campo semiótico e textos produzidos em campos
semióticos distintos.

Desde a proposição do termo, no campo dos estudos literários, a intertextualidade vem sendo tema de
investigação em disciplinas e perspectivas teóricas distintas. Entre essas disciplinas, destacam-se a Crítica
Literária, a Linguística Textual e a Linguística Antropológica. Poucas são, no entanto, as pesquisas realizadas na
perspectiva cognitiva. Poucos são os estudos que buscam compreender e descrever a intertextualidade a partir de
princípios e operações cognitivas implicados em sua concreta manifestação semiótica. Nesse contexto,
justificamos a necessidade de que um novo ponto de vista sobre o fenômeno seja criado.

Neste artigo, a Intertextualidade é problematizada como um fenômeno, fundamentalmente implicado na


experiência humana de construção de sentido. Assim sendo, é um fenômeno que — implícita ou explicitamente,
indiciado na materialidade discursiva de diferentes espécies e gêneros textuais, constitutivos de diferentes
domínios do conhecimento — permite revelar o caráter eminentemente intersubjetivo, portanto dialógico, da
linguagem e da cognição humana.

Nosso objetivo é propor uma abordagem teórica que permita descrever princípios e operações
cognitivas pelas quais o fenômeno em estudo se manifesta, à luz da concepção de linguagem e dos pressupostos
697

teóricos em que se baseia a área do conhecimento a que denominamos Linguística Cognitiva. Assim sendo,
defendemos a tese de que, além de uma concreta manifestação da dimensão intersubjetiva da existência humana
e do princípio dialógico da linguagem, a intertextualidade deve ser compreendida como uma concreta
manifestação, na materialidade discursiva, da operação cognitiva básica de integração conceptual.

2. A intertextualidade

A intertextualidade não é, definitivamente, uma noção teórica consensual e precisa nos estudos da
linguagem. Apesar de estarmos discutindo um conceito aparentemente familiar, não existe, nos estudos
linguísticos e literários, uma única e bem definida caracterização para esse fenômeno. Quando afirmamos que um
texto estabelece com outro texto uma implícita ou explícita relação, uma estreita ou difusa forma de interação,
podemos estar tratando de manifestações muito diferentes do fenômeno.

No decorrer do século XX, diferentes teorias que se voltam para a compreensão do fenômeno da
intertextualidade, nos campos literário e discursivo, se valem de estudos que privilegiam uma tipologia das
relações que os textos estabelecem entre si. Segundo Genette (2006 [1982]), relações transtextuais podem ser
tipologizadas em termos de intertextualidade, que supõe a presença de um texto em outro (por citação, alusão,
plágio); de paratextualidade, que diz respeito ao entorno do texto propriamente dito, sua periferia (títulos,
prefácios, ilustrações, encarte); arquitextualidade, que põe um texto em relação com as diversas classes às quais ele
pertence (um poema de Vinícius de Morais estaria em relação de arquitextualidade com a classe das obras líricas,
dos poemas, das obras da literatura moderna brasileita) e, por fim, de hipertextualidade, que recobre fenômenos
como a paródia e o pastiche, por exemplo. O trabalho realizado por Genette (2006) nos permite constatar que
uma definição mais precisa do que tradicionalmente se define como intertextualidade (presença de um texto em
outro) parece implicar o reconhecimento de diferentes e específicas ocorrências desse fenômeno. No que se
refere à dimensão textual do fenômeno, de sua manifestação e identificação formal na materialidade do texto,
podemos compreender a intertextualidade em termos de ―uma relação de co-presença entre dois ou vários
textos‖, ou ainda, como ―a presença efetiva de um texto em outro‖ (GENETTE, 2006: p. 7-8). Consideramos
importante reconhecer, no entanto, que a identificação de diferentes formas de manifestação do fenômeno,
apesar de contribuir para caracterizar a intertextualidade em uma perspectiva tipológica, não permite revelar
aspectos fundamentalmente implicados em sua realização, entre os quais aqueles relativos à natureza cognitiva do
fenômeno.

Neste artigo, por permear os usos das línguas naturais — dos mais correntes aos mais sofisticados — a
intertextualidade passa a ser compreendida como um fenômeno que, manifestado na materialidade do texto de
formas diversas (alusão, citação, paráfrase, paródia), decorre da natureza da linguagem e, portanto, da natureza da
cognição humana. Por essa razão, é um fenômeno que permite revelar a maneira como interagimos com o
mundo biocultural no qual vivemos imersos.

Conceber a intertextualidade nessa perspectiva, ou seja, partindo de sua manifestação concreta


no texto para chegarmos à explicitação de princípios, habilidades e operações cognitivas constitutivas
do fenômeno, coloca-nos diante do desafio de migrar de uma abordagem essencialmente textual para
698

uma abordagem cognitivo-discursiva do fenômeno (CAVALCANTE, 2007, 2008, 2009, 2012). A


natureza dialógica, social, característica constitutiva do discurso e da cognição, tem sido amplamente
estudada tanto pelas teorias linguísticas que tratam da dimensão discursiva (BAKTHIN, 2003 [1929]),
da dimensão biológica (MATURANA, 2001), da dimensão enunciativa (BENVENISTE, 1989 [1974]) e
da dimensão cognitiva (TOMASELLO, 2003).
Em uma perspectiva que pretende entender como os processos cognitivos surgem de nossa
operação enquanto existência e interação como sistemas biológicos complexos, Humberto Maturana
propõe, em uma epistemologia de base biológica, um quadro teórico o qual denomina ―Biologia do
conhecer‖. Para Maturana, a ação de conhecer, de produzir sentido, dá-se na linguagem. Somos
humanos na linguagem, nela existimos como tal (MATURANA, 2001, p.130). Nossa visão de realidade,
formulada por nossas experiências linguageiras, é função de nossa conformação biológica e da história
de interações recorrentes e recursivas na comunidade do viver na linguagem. A linguagem é
essencialmente um fenômeno social e biológico, de interação do indivíduo com o meio, que nasceu e
sobrevive no princípio da cooperação. A linguagem é o domínio da coordenação de ações. É por meio
dela que coordenamos nossas ações para uma convivência cooperativa.
Para Maturana, a linguagem está relacionada a uma coordenação de ação específica, que é
aquela consensual. Isso está estritamente ligado ao caráter dialógico da linguagem. Coordenamos nossas
ações com o outro, e também coordenamos essas ações coordenadas. A linguagem é um operar em
ações consensuais de coordenações consensuais de ações. Para o pesquisador, isso é que o nos
identifica como seres humanos. Somos seres linguageiros. A linguagem acontece ―quando duas ou mais
pessoas em interações recorrentes operam através de suas interações numa rede de coordenações
cruzadas, recursivas, consensuais de coordenações consensuais de ações‖(MATURANA, 2001, p. 130).
Operamos na linguagem não por via de operação de símbolos abstratos na comunicação. Esses
símbolos não preexistem, mas surgem na linguagem, nas coordenações consensuais de coordenações de
ações. Assim, aquilo que vemos como o conteúdo do processo, na verdade é uma distinção, feita pelo
organismo, de relações em uma rede complexa de relações. Ao adotarmos essa perspectiva, a
manifestação concreta da intertextualidade, na materialidade discursiva, não é o que a caracteriza como
tal, mas sim o fato de podermos distinguir - na rede de relações, nas coordenações consensuais de
coordenações de ações que caracterizam o linguajar - as experiências já vividas.
Advogamos, portanto, a tese de que a manifestação concreta da intertextualidade pressupõe
uma reformulação de experiências que se entrecruzam. Essas coordenações estão diretamente ligadas à
natureza social, compartilhada, da cognição e, consequentemente, à sua natureza dialógica manifestada
no discurso.
Dito de outra forma, o fenômeno pressupõe a (re)contextualização de um cenário discursivo-enunciativo
já construído, que passará a ser ―recordado‖, ―recontado‖ e, portanto, ―reformulado‖, ―reconstruído‖. Isso
ocorrendo sempre com outra perspectiva, em um novo cenário discursivo, que podemos caracterizar como
699

intertextual. Se assim compreendermos a intertextualidade, para além de um fenômeno de caráter textual,


discursivo, enunciativo, ela passa a ser entendida como um fenômeno implicado na dimensão cognitiva
linguagem.

Por enunciação, compreendemos, em consonância com Benveniste, o colocar em


funcionamento a língua por um ato individual286 de utilização. Segundo Benveniste (1989 [1974], p. 82-
84), a enunciação supõe a conversão individual da língua em discurso. Além disso, pressupõe o próprio
ato, as situações em que ele se realiza, os instrumentos (fonológicos, lexicais, gramaticais, semânticos)
de sua realização. O processo de enunciação, o ato em que uma pessoa expressa para outra pessoa, em
um contorno entonacional único, uma intenção comunicativa relativamente coerente em um dado
contexto comunicativo (TOMASELLO, 2003, p. 440), ocorre com vistas à comunicação cooperativa
entre os interlocutores, ou seja, com vistas à co-construção da referência e do sentido pelos sujeitos da
interação. Nessa perspectiva, o ato individual de se apropriar da língua (de suas convenções simbólicas)
e de mobilizá-la criativamente, ou seja, o ato de colocar a língua em atividade é desencadeado por
locutores empíricos que, em um dado contexto comunicativo, necessitam referir e co-referir pelo
discurso. Segundo Tomasello (2009), nesse processo de co-referenciação, construímos nossa
aprendizagem cultural por via de imitação, instrução e colaboração, que se devem à nossa capacidade de
compreender os co-específicos como iguais, como seres intencionais. Essa co-operação, em que
estamos sensíveis à nossa interdependência em atividades de colaboração, se caracteriza como ―uma
racionalidade social endêmica à intencionalidade compartilhada‖. (2009, p. 45-46)
Considerando que o fenômeno da intertextualidade pode ser caracterizado, em estudos linguísticos e
literários contemporâneos, por uma rica tipologia (citação, alusão, paródia, paráfrase, carnavalização, pastiche),
em busca de compreender o fenômeno em uma perspectiva cognitiva, adotamos, como ponto de partida, as
seguintes premissas: i) o fenômeno não se restringe à materialidade textual, apesar de manifestado e identificado
na materialidade de textos de diferentes gêneros e funções e em situações comunicativas diversas; ii) o fenômeno
está implicado no processo de enunciação, sendo assim, no ato mesmo de os seres humanos inter-agirem, de
(co)referirem e de produzirem sentido através do discurso; iii) a manifestação do fenômeno pressupõe a
(re)contextualização de um cenário discursivo constituído e identificado em outro contexto sociocomunicativo;
de maneira que esse cenário, ―conhecido‖, passa a ser ―recordado‖, ―recontado‖, tomado em outra perspectiva,
em um cenário discursivo novo, atual; e, por fim, que o processo de encenação discursiva intertextual se institui
como forma de manifestação concreta, material, da dimensão intersubjetiva da linguagem e, portanto, do
princípio dialógico da linguagem humana.

Diante de premissas que permitem delinear, em linhas gerais, a natureza do fenômeno em estudo,
podemos nos perguntar que operação cognitiva básica está implicada, constitutivamente, no processo de
encenação discursiva intertextual?

286Neste artigo, desconsideramos a controvérsia criada em torno da tese de que o trabalho de Benveniste se estruture com
base em uma abordagem epistemológica solipsista da língua.
700

3. A mesclagem conceptual

A teoria da Integração Conceptual formulada por Fauconnier e Turner, na obra The Way We Think:
Conceptual Blending and the Mind‟s Hidden Complexities (2002), constitui um amplo estudo sobre processos cognitivos
que subentendem a habilidade humana de produzir significados.

O modelo teórico proposto por Fauconnier e Turner (2002) pressupõe que, na linguagem natural
humana, o discurso materializa e, ao mesmo tempo, esconde estratégias e estruturas cognitivas responsáveis pela
produção de sentido. Nessa perspectiva, os pesquisadores afirmam que, à medida que o discurso acontece, muito
mais acontece por trás das cenas que o constituem: antigos e novos domínios conceptuais se estabelecem,
conexões entre esses domínios são forjadas, operam-se projeções abstratas, estruturas cognitivas emergem e
espalham-se, diferentes pontos de vista e focos de atenção são acionados. Essas diferentes operações de caráter
cognitivo são possíveis pela operação básica de instauração e integração de espaços mentais em uma mescla,
denominada integração conceitual.

O conceito de Espaços Mentais baseia-se na premissa de que as expressões linguísticas per si não portam
o sentido, mas servem de guia para a produção do mesmo. Na busca de identificar e de mapear os
―acontecimentos‖ que subjazem o processo de produção de sentido/referência, Fauconnier (1994 [1985]) propõe
o conceito de Espaços Mentais como configurações mentais necessariamente construídas à medida que os seres
humanos pensam e (inter)agem através da linguagem verbal e não verbal. O ser humano, no trabalho com a
linguagem, comprime o que é difuso para compreender, e o faz por meio uma série de mesclagens entre espaços
mentais que constrói no processamento da linguagem (MILITÃO, 2007). Esses construtos são muito parciais e
contêm elementos que são tipicamente estruturados por frames. ―Eles são interconectados e podem ser
modificados à medida que o pensamento e o discurso vão acontecendo.‖ (Fauconnier e Turner, 2002: 40). O
sentido construído nesse processo não é algo que reside no espaço mescla, mas que é construído na
compreensão das relações internas e externas dos elementos desses espaços.

O modelo de Teoria da Integração Conceptual proposto por Fauconnier e Turner tem fundamentado e
inspirado trabalhos realizados em diferentes áreas. Nos últimos anos, o Centro de Semiótica da Universidade de
Aarhus, na Dinamarca, vem realizando trabalhos de investigação científica a partir da proposição de um modelo
que, baseado nos conceitos de espaços mentais e de mesclas conceptuais, possibilita uma descrição do processo
de produção de significado/referência de forma a considerar a dimensão enunciativa da linguagem e a relevância
do contexto da situação interacional no processo de integração conceptual. Por considerarmos a configuração do
contexto situacional uma dimensão fundamentalmente implicada na produção de cenários discursivos
intertextuais, o modelo de integração conceptual proposto por pesquisadores da escola de Aarhus, em particular
por Per Aage Brandt, é o quadro teórico adotado para problematização, análise e descrição de uma nova
abordagem do fenômeno (CAVALCANTE, 2009).
701

Nessa perspectiva epistemológica, a construção de sentido pressupõe que os seres humanos


compartilhem domínios de experiência287 e que esses estão, necessariamente, implicados na construção de
Espaços Mentais. Se a produção de sentido pelos seres humanos é essencialmente teatral, os Espaços Mentais
são ―mini-dramas dinâmicos‖ que contam com recursos esquemáticos de interatividade. Os Espaços Mentais,
esses pequenos dramas implicados no processo de significação, são estruturados pelos domínios semânticos nas
diferentes situações e pelas diferentes formas de interação humana.

Sendo assim, em seu modelo teórico, Brandt (2004) considera que o processo de significação
desencadeado por todo e qualquer tipo de ―texto‖ se institui com base na ativação de estruturas esquemáticas
implicadas em uma situação enunciativa específica. Nesse contexto, caracterizado pelo aqui-e-agora do discurso,
os interlocutores, sujeitos empíricos implicados na situação enunciativa, compartilham padrões subjetivos e
intersubjetivos de atenção em relação a um determinado ―elemento referencial‖.

4. A intertextualidade como mescla conceptual

O modelo de integração conceptual proposto por Brandt pressupõe que o processo de integração
conceptual se institui sempre a partir de uma situação interacional concreta. Nessa situação e dessa situação
concreta, institui-se um espaço semiótico base a partir do qual o ato de referenciação e de significação se
instituem. O Espaço Semiótico Base deve ser compreendido como o espaço em que os intelorcutores
compartilham, em uma concreta situação interacional, padrões intersubjetivos de atenção para fins da co-
construção da referência e dos sentidos. Esse é o espaço que corresponde ao aqui-e-agora do discurso, espaço a
partir do qual o processo de enunciação se institui e é, portanto, o espaço em que os interlocutores, em busca da
co-construção da referência, se colocam em relação com sua própria enunciação. No espaço semiótico base, ao
atentarem intersubjetivamente para elementos contextualmente relevantes, os interlocutores evocam e
compartilham diferentes Frames de Relevância.

No caso de uma interação em que o fenômeno da intertextualidade esteja em jogo, esse fenômeno
evoca, pelo menos, três frames de relevância. Um frame de relevância situacional se institui com base em
conhecimentos esquemáticos, compartilhados pelos interlocutores, quanto às características discursivo-enunciativas
próprias do jogo enunciativo em questão: narrar um fato episódico, defender um ponto de vista, criar uma situação
fictícia ou imaginária, ironizar alguém ou algo em particular, vender um produto, declarar um sentimento. Ao
evocar um frame situacional, por um processo de elaboração, os interlocutores instauram e compartilham,
simultaneamente, os Espaços Mentais de Referência e de Apresentação. A evocação de um frame situacional é
um elemento determinante na construção da Rede de Integração Conceptual. Essa evocação influencia,
fundamentalmente, a seleção dos elementos que passarão a ser considerados proeminentes no Espaço de
Referência. Além disso, influenciarão as relações que esses elementos proeminentes estabelecem com a sua
representação predicativa, ou seja, o frame situacional influencia tanto ―o quê‖ os interlocutores selecionam

287 Sobre o assunto, conferir Brandt (2004, p. 22-23). Para o pesquisador, em um nível fundamental, os seres humanos
parecem processar a sua experiência de ESPAÇO, TEMPO E IDENTIDADE diferentemente. Essas experiências se
estruturam em diferentes domínios do conhecimento e esses devem ser compreendidos como domínios de natureza
semântica e ontológica.
702

como elemento referencial do/ para o seu ―dizer‖ quanto ―o como‖ esses interlocutores ―dizem‖, ou selecionam
esses elementos referenciais.

Além do frame situacional, um frame de relevância argumentativa também é evocado no processo de


Integração Conceptual. Esse frame se configura com base em conhecimentos esquemáticos relativos ao fato de
que cenários discursivos já compartilhados podem gerar cenários discursivos novos. Os interlocutores compartilham
conhecimentos esquemáticos relativos ao fato de que um jogo de encenação discursiva que seja ―vivenciado‖ em
uma situação interacional diferente da atual pode ser retomado, reconstruído, no aqui-e-agora e que essa
retomada pressupõe a criação de uma outra perspectiva. Na rede, os conhecimentos esquemáticos constitutivos
do frame de relevância argumentativa se projetam no Espaço Mescla. Nesse espaço, dois ou mais cenários
discursivos são, virtualmente, integrados — mesclados — em um cenário discursivo novo.

Por fim, um frame de relevância ilocucionária também é evocado. Como podemos constatar, no
trabalho de análise realizado por Brandt e Brandt (2005), esse frame é evocado, na esfera dos atos expressivos dos
interlocutores, na esfera da semiose, pela força enunciativa que o jogo interacional coloca em cena. Esse frame,
que será definido no e pelo jogo interacional em questão, influencia, de maneira essencial, a construção dos
efeitos de sentido que emergem do espaço virtual. Esses efeitos de sentido geram implicações (semântico-
pragmáticas) que (re)configuram o espaço semiótico base e, a partir do qual, novos espaços de referência e de
apresentação serão instituídos e integrados.

Neste momento, consideramos que um processo de encenação discursiva de natureza intertextual se


institui, cognitivamente, a partir de um espaço semiótico base em que se instauram e integram dois espaços
mentais: um espaço de referência e um espaço de apresentação. O Espaço de Referência é, na perspectiva
cognitiva aqui adotada, o espaço em que se identificam elementos referenciais que, para aquele cenário
discursivo, são considerados proeminentes. Esse é o espaço em que se identifica aquilo que (ou O QUÊ) é o
objeto de atenção dos interlocutores. Por outro lado, o Espaço de Apresentação deve ser compreendido como
o espaço em que os interlocutores compartilham atenção intencional na maneira como o conteúdo referencial se
apresenta, se constrói discursivamente. Esse é o espaço da predicação, da figuratividade. Nesse espaço,
processamos conhecimentos relativos ao COMO o processo de referenciação está se instituindo. Nessa
perspectiva, o espaço de apresentação é o espaço mental em que figuram elementos que, acessados de cenários
discursivos já conhecidos dos interlocutores, funcionam como contraparte de elementos considerados
proeminentes no Espaço de Referência. Assim sendo, a construção e utilização pelos falantes das línguas naturais
de cenários discursivos intertextuais pode ser compreendida como uma espécie de estratégia, como um modo de
apresentação de um determinado conteúdo referencial.

O processo de construção de sentido que subjaz um cenário discursivo marcadamente intertextual


pressupõe um mapeamento entre elementos identificados nos espaços de referência e de apresentação. A
integração conceptual, operação cognitiva implicada nesse mapeamento, permite aos seres humanos, criar
espaços virtuais, mescla, sempre novos e profundamente dinâmicos.Os Espaços Virtuais são, portanto, os
espaços em que a integração conceptual, efetivamente, ocorre. Desses espaços, emergem facetas de significado
sempre novas, diferentes daquelas identificadas nos espaços de referência e de apresentação. Como afirmam
703

Brandt e Brandt (2005, p. 227), os Espaços Virtuais devem ser considerados ―espaços de ficções momentâneas
que geram inferências duradouras‖. Essas inferências, por sua vez, são ativadas, de maneira sempre nova e
desencadeiam implicações, de caráter semantico-pragmático no Espaço Semiótico Base, do qual novas redes de
integração conceptual serão instauradas.

Os seres humanos modernos, recursivamente, utilizam cenários discursivos já conhecidos para fins
comunicativos diversos. A finalidade desse uso é um dado que assume papel relevante na/para a situação
interacional em curso. Cenários discursivos intertextuais, por sua vez, são configurados pelo acesso do
falante/ouvinte a ―vestígios‖ de cenários discursivos que desencadeiam uma experiência de construção de
sentidos já vivenciada em outra situação interacional. Em termos argumentativos, um dado a ser considerado
relevante na experiência de construção de sentidos que esses cenários desencadeiam diz respeito ao que
denominaremos ‖fenomenologia do intertexto‖ (CAVALCANTE, 2009). O ser humano, ao se reconhecer um
sujeito intencional e aos seus coespecíficos como sujeitos intencionais iguais a si mesmo, aprende que as suas
ações, as suas palavras, as suas obras, os artefatos culturais que constrói, podem refletir uma estreita relação com
outras ações, palavras, obras, artefatos culturais já existentes. Dessa forma, os seres humanos ‖sabem‖ que
cenários discursivos já conhecidos podem gerar, ad infinitum, cenários discursivos novos.

Mesclas conceptuais intertextuais se instituem pela identificação — por parte do falante/ouvinte — de


elementos que, proeminentes no cenário enunciativo em foco, encontram uma contraparte em cenários
enunciativos já conhecidos ou experienciados pelo(s) sujeito(s) participante(s) daquela situação em particular.
Elementos que se caracterizam como proeminentes em cenários discursivos já conhecidos podem ser de
natureza diversa: gestual, prosódica, lexical, gramatical, semântica, pragmática ou de outra natureza.

Como afirmamos neste trabalho, a intertextualidade é um fenômeno que está, intrinsecamente,


implicado na experiência humana de construção de referência/sentido. O objetivo deste breve artigo é
problematizar uma nova possibilidade epistemológica para abordagem do fenômeno. A instauração de Redes de
Integração Conceptual é uma operação cognitiva básica do processo construção de sentido e está, portanto,
fundamentalmente implicada na manifestação do fenômeno em estudo. A análise de dados baseada no modelo
teórico aqui descrito deve ser verificada em outros trabalhos realizados pelas autoras.

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705

POSSE NOMINAL EM APURINÃ (ARUÁK)


Sidney da Silva Facundes288
Marília Fernanda Pereira de Freitas Corrêa289

Resumo: Neste artigo, revisitaremos a análise das classes de nomes construídas a partir do
comportamento observado em construções possessivas nominais, descritas em Facundes (1995 e 2000)
para Apurinã (Aruák). Analisaremos os dados e resumiremos a análise anterior para então propormos
uma nova classificação que mais adequadamente reflete os fatos da língua. Finalmente, faremos algumas
sugestões preliminares sobre possíveis motivações semântico-pragmáticas que merecem mais
investigação.

Palavras-chave: Posse nominal; Nomes simples; Propriedades lexicais; Apurinã.

Abstract: In this paper we review the description of nouns classes that emerge from morphological
marking patterns in nominal possession constructions described in Facundes (1995 e 2000) for Apurinã
(Aruák). We review the data, summarize the analysis and propose a new classification that better
represents the facts of the language and, finally, mention some possible semantic-pragmatic motivating
factors that deserve further investigation.

Keywords: Nominal possession; Simple nouns; Lexical properties; Apurinã.

1. Considerações Iniciais

A língua Apurinã pertence à família Aruák e é falada por algumas centenas de indivíduos ao
longo de vários tributários do rio Purus, no sudeste do Estado do Amazonas. Baseados em artigo
preliminar de Facundes (1995), além de uma descrição detalhada da língua oferecida pelo mesmo autor
(FACUNDES, 2000), apresentamos a análise de nomes e seus comportamentos em construções
possessivas nominais. Discutiremos a classificação dos nomes com base nas características
morfossintáticas expressas em construções nominais e, ao final, proporemos uma revisão na
classificação atual, juntamente como algumas sugestões preliminares sobre possíveis motivações, sejam
elas diacrônicas ou sincrônicas, para o sistema de marcação atual na língua observado em construções
possessivas.

2. Nomes em Apurinã

Enquanto unidade sintática, os nomes em Apurinã diferenciam-se de outras classes de palavras


da língua em diversos aspectos. Em termos de sua expressão formal, nenhuma outra classe de palavras,
apenas a dos nomes, pode admitir marcas morfológicas de posse ou não posse, assim como apenas os
nomes podem formar construções possessivas por justaposição de elementos, conforme ilustraremos

288Professor de Língua Portuguesa e Linguística da Faculdade de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da


Universidade Federal do Pará.
289 Professora de Língua Portuguesa e Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Pará.
706

mais adiante. Os aparentes casos de exceções são aqueles em que um dos sufixos de posse nominal se
atrela a uma base verbal, nominalizando-a (por exemplo290291, ―ʃika-re1‖ [cantar-POSD] ‗canção‘). O
mesmo ocorre quando o marcador de nomes não possuídos ―-tʃi‖ é agregado a bases verbais (como em
―ɲipuku-ta-tʃi‖ [comer-VBLZ-N.POSD] ‗lugar para comer‘). Mesmo que agregadas a verbos, as marcas
―-re1‖ e ―-tʃi‖ apresentarão outra função (no caso, a formação de nomes), e não a de marcar (não)
posse, como ocorre na classe dos nomes.
À medida que a marcação de posse/não posse corresponde a um fenômeno sintático na língua
(além de ser morfológico), esta constitui uma propriedade sintática distintiva de nomes em Apurinã.
Uma outra propriedade exclusiva de nomes que decorre da possibilidade de admitir marcas de
posse/não posse é sua propriedade distribucional de ser o elemento nuclear possuído em uma
construção de posse. Nenhuma outra classe de palavras pode ocupar o papel de um nome possuído em
uma construção possessiva.
Nomes podem ser lexicalmente ou morfologicamente marcados com o gênero feminino ou
masculino e essa propriedade gramatical dos nomes pode não apenas se refletir na forma do nome
(quando o nome admite uma marcação morfológica de gênero), mas também nos padrões de marcação
de correferencialidade encontrados em outras palavras da língua e controlados pelo nome com o qual
tais palavras concordam. Exemplos disso podem ser vistos em: hare-ru hãtaku-ru [ser.bonito-F jovem-
F] 'moça bonita' vs. hare-rɨ hãtaku-rɨ [ser.bonito-F jovem-F] 'moço bonito'. A única outra palavra que
também codifica gênero como parte de seu significado é a forma pronominal independente para a
terceira pessoa do singular (ɨwa '3Sg.M' vs. uwa '3Sg.F'). Então, exceto por essa forma pronominal
específica, apenas nomes apresentam a categoria de gênero. Outras propriedades que podem diferenciar
nomes de outras classes incluem as maneiras com que os nomes podem se combinar com outras
palavras na formação de sintagmas e a maneira como sozinhos podem formar sintagmas.
Com base em critérios morfossintáticos e semânticos, os nomes, na língua Apurinã, foram
divididos em classes por Facundes (1995 e 2000), seguindo o esquema na Figura 1. Nesse esquema,
NC1 corresponde a nomes que ocorrem produtivamente como núcleos de compostos nominais, sendo
que NC2 apresenta extensões metafóricas e possibilidade de incorporação no verbo, de maneira
semelhante a certos nomes classificatórios em outras línguas.
Figura 1: Classes de nomes segundo Facundes (2000) (Tradução nossa)292

290 POSD= possuído; VBLZ= verbalizador; N.POSD= não possuído; PFTV= perfectivo; SG= singular; F= feminino;
M= masculino; DEM= demonstrativo; O= objeto.
291 A transcrição utilizada aqui é fonológica, utilizando os símbolos do IPA. Facundes (2000) fez uso da transcrição
ortográfica, em forma anterior à ortografia atualmente em vigor na língua.
292 O uso de números subscritos com -rɨ e -re serve apenas para distinguir estes de suas formas homônimas.
707

Como mencionado anteriormente, daremos ênfase, neste trabalho, aos nomes simples que, em
linhas gerais, correspondem àqueles nomes não derivados (ou seja, que não provêm de qualquer outra
classe de palavras), os quais se apresentam sob a forma de uma raiz isolada exclusivamente nominal (i.e.
recebem morfologia exclusivamente nominal). Alguns nomes simples são lexicalmente marcados293
como sendo obrigatoriamente possuídos, outros não. Nomes simples obrigatoriamente possuídos são
classificados por Facundes (2000) como inalienáveis, enquanto que nomes simples não
obrigatoriamente possuídos são alienáveis. Essa distinção entre nomes inalienáveis e alienáveis se reflete
nos padrões de marcação morfológica de cada uma dessas categorias. A seguir, serão apresentadas as
principais características das diferentes categorias de nomes simples (nomes inalienáveis, nomes
alienáveis e nomes mistos).

2.1. Nomes simples inalienáveis

Sob o aspecto semântico, a classe dos nomes simples inalienáveis inclui partes do corpo,
pertences individuais, termos de parentesco, entre outros; embora constitua uma subclasse fechada de
nomes, engloba, pelo menos, algumas centenas de palavras.
Como dito anteriormente, nomes inalienáveis são obrigatoriamente possuídos, prescindindo de
marcação morfológica em construções possessivas; no entanto, em casos em que a
semântica/pragmática permitir a ocorrência desse tipo de nome em sua forma não possuída, este irá
requerer uma marca morfológica (isto é, -tʃi). Por exemplo, a palavra ―kɨwɨ‖ significa ―cabeça de‖, e não
simplesmente ―cabeça‖; então, para expressar o conceito ―cabeça‖, sem especificar de quem pertence
essa cabeça, é necessário dizer ―kɨwĩ-tʃi294‖. Observem-se os exemplos abaixo (FACUNDES295, 2000):

293 Propriedades de um nome “lexicalmente marcado” são aquelas que correspondem à parte do significado de uma
entrada lexical. Sendo assim, o fato de um nome simples ser obrigatoriamente possuído ou não possuído o torna
lexicalmente marcado, pois cada entrada lexical para nomes simples ou é obrigatoriamente possuída ou não.
294 Aqui ocorre a nasalização da vogal final da raiz, quando precede o sufixo -tʃi, propriedade de morfemas Rz INAL (raiz
inalienável), cujo conceito será posteriormente esclarecido.
708

(1) [kema kɨwɨ] mipa atama-ta


anta cabeça.de Mipa ver-VBLZ
‗Mipa viu a cabeça da anta‘

(2) [kɨwĩ-tʃi] sɨ-pe


cabeça.de-N.POSD ir-PFTV
‗A cabeça saiu‘ (Nesse caso, ―cabeça‖ refere-se a um personagem mitológico, uma cabeça sem
corpo).

Na análise aqui proposta, a posse obrigatória corresponde à parte integrante da entrada lexical
de nomes inalienáveis; ou seja, ela é armazenada com as entradas lexicais de nomes inalienáveis, ao
invés de ser adicionada por regras morfológicas. No exemplo (1), nenhuma marca morfológica é
adicionada quando um nome inalienável ocorre possuído e, como consequência, o contexto sintático
em que nomes inalienáveis ocorrem possuídos apresenta dois nomes justapostos, ―kema kɨwɨ‖. Por
outro lado, quando nomes inalienáveis ocorrem não possuídos (exemplo (2)), estes requerem a presença
do sufixo ―-tʃi‖.
O padrão geral de marcação morfológica para inalienáveis possuídos e não possuídos é dado na
Tabela 1. O termo RzINAL se refere ao conjunto de raízes que são lexicalmente marcadas como
possuídas e que, portanto, não requerem marcação morfológica para ocorrer em sua forma possuída,
mas necessitam do sufixo -tʃi para ocorrerem sob a forma não possuída (quando
semanticamente/pragmaticamente possível). Na última coluna da tabela, ―NA‖ corresponde a ―não
aplicável‖, marcando os casos em que a semântica ou a pragmática não permitem que uma Rz INAL
ocorra em sua forma não possuída.

Tabela 1: Padrões de marcação para nomes inalienáveis

Classe da raiz Marcação de possuído Marcação de não


possuído
RzINAL Ø -tʃi/NA

Há casos de alternâncias alomórficas da base lexical (como no caso de kɨwɨ / kɨwĩ-tʃi), quando
acrescida do sufixo ―-tʃi‖, as quais são lexicalmente condicionadas; mais especificamente, quando ―-tʃi‖
ocorre com um subconjunto de nomes inalienáveis296 se referindo a partes do corpo (exemplo (3)), um

295 A grande maioria dos exemplos utilizados neste artigo foi retirada da tese de doutorado de Facundes (2000).
Quando necessário, dados atuais coletados em pesquisa de campo realizada pelo primeiro autor foram acrescentados.
296 Analogicamente, poder-se-ia considerar, em Apurinã, “miʃĩ-tʃi” „gravidez‟ como sendo uma “parte do corpo”; e
caso se assuma que “nakaɲĩ-tʃi” „tapioca‟ tem a vogal que precede -tʃi nasalizada por analogia a palavras como “pitʃĩ-
tʃi” „pênis‟, miʃĩ-tʃi ou “okĩ-tʃi” „olho‟, por exemplo, então a presença da nasalização precedendo -tʃi poderia ser
descrita como restrita ao conjunto das partes do corpo, com exceções geradas pelo desenvolvimento de analogias. Para
que esse tipo de análise se tornasse satisfatória, seria necessário encontrar evidências, em um estudo diacrônico, por
meio de uma reconstrução interna desse sufixo.
709

subconjunto de nomes se referindo a conceitos abstratos (exemplo (4)) ou um subconjunto se referindo


a alguns outros conceitos (exemplo (5)), a vogal que precede ―-tʃi‖ é nasalizada:
(3) p-okɨ
2SG-olho.de
‗seu olho‘

okɨ-tʃi
olho.de-N.POSD
‗olho‘

(4) u-miʃi
3F-gravidez
‗gravidez dela‘

miʃĩ-tʃi
gravidez-N.POSD
‗gravidez‘

(5) u-nakaɲi
3M-tapioca
‗tapioca dele‘

nakaɲĩ-tʃi
tapioca-N.POSD
‗tapioca‘

Em suma, a marca ―-tʃi‖ ocorre apenas com: a) partes do corpo ou significados relacionados ao
corpo; b) pertences individuais e conceitos abstratos (não ―palpáveis‖); c) outros tipos de conceito (por
analogia). Digno de nota é o fato de que os termos de parentesco são totalmente excluídos do
subconjunto de nomes inalienáveis que podem levar o sufixo ―-tʃi‖. Tais termos podem ser descritos
como sendo um subconjunto de nomes inalienáveis não classificatórios. De fato, termos de parentesco
nunca são usados em contextos não possuídos, sendo sempre possuídos nas situações de fala natural. A
palavra para ―avó‖, nos exemplos (6) e (7), poderá ser usada em construções possessivas tanto com
terceira pessoa pronominal masculina quanto com feminina:
(6) Ø-akɨru apu-pe
3M-avó.de chegar-PFTV
‗A avó dele chegou‘

(7) u-akɨru apu-pe


3F-avó.de chegar-PFTV
‗A avó dela chegou‘

Casos em que termos de parentesco são usados sem um possuidor formalmente expresso são
aqueles em que tais termos ocorrem como vocativo; nesse caso, o vocativo é interpretado em termos de
sua relação com o falante (o falante é o possuidor):
710

(8) tutɨ apu-pe


vovô chegar-PFTV
‗Vovô chegou‘

(9) kɨru apu-pe


vovó chegar-PFTV
‗Vovó chegou‘

2.2. Nomes simples alienáveis

Nomes alienáveis são aqueles que requerem os sufixos ―-te‖, ―-ne‖ e ―-re1‖ quando possuídos,
seguindo os padrões de marcação dados na tabela abaixo. Na Tabela 2, a seguir, Rz ALIEN.te é o
subconjunto de raízes alienáveis que admitem o sufixo ―-te‖ na forma possuída, não tendo marca
morfológica na forma não possuída. Os outros dois subconjuntos de raízes alienáveis são também
apresentados na tabela:

Tabela 3: Padrões de marcação para nomes alienáveis

Classe da raiz Marcação de possuído Marcação de não


possuído
RzALIEN.te -te -Ø
RzALIEN.ne -ne -Ø
RzALIEN.re1 -re1 -Ø

Em outros termos, nomes alienáveis são aqueles notoriamente marcados em construções


possessivas e não marcados em construções não possessivas. A análise mais plausível do status
morfológico de -te, -ne e -re1 é a de que a escolha da marca de alienabilidade a ser empregada em cada
raiz nominal é lexicalmente determinada. Uma discussão acerca de se -te, -ne e -re1 são, cada um,
morfemas independentes ou alomorfes de um mesmo morfema pode ser vista em Facundes (2000,
pp.228-236). O exemplo (10) abaixo ilustra a ocorrência de ―-te‖, em que se vê em (11) a construção
correspondente na forma não possuída:

(10) [pice aiku-te] iri-pe


2SG casa-POSD cair-PFTV
‗Sua casa caiu‘

(11) [aiku] iri-pe


casa cair-PFTV
‗A casa caiu‘

A seguir, os dados exemplificam o emprego de ―-ne‖:


711

(12) nuta nɨta-ru n-ããta-ne


1SG procurar-3F.O 1SG-canoa-POSD
‗Eu procuro minha canoa (tradicional)‘

(13) nuta nɨta-ru ããta


1SG procurar-3F.O canoa
‗Eu procuro a canoa (tradicional)‘

Em (14) há o emprego de ―-re1‖, seguido de uma construção não possuída correspondente:

(14) [nuta kɨkɨ-re1] apu-pe


1SG homem-POSD chegar-PFTV
‗Meu marido chegou‘

(15) kɨkɨ apu-pe


homem chegar-PFTV
‗O homem chegou‘

Não há qualquer grupo semântico óbvio que possa ser usado para distinguir os vários
subconjuntos de raízes alienáveis marcadas por -te, -ne e -re1. A tabela abaixo busca sistematizar as
diferentes classes semânticas que podem ocorrer com esses três sufixos:
Tabela 4: A semântica dos nomes alienáveis
Classes semânticas RzALIEN.te RzALIEN.ne RzALIEN.re1
elementos da floresta + +
plantas + +
elementos celestiais + +
lugares + + +
Elementos manufaturados + + +
humanos + +
elementos industrializados +
Meios de transporte + +
Partes do corpo/elementos + +
relacionados
comestíveis +
outros + + +

Como a semântica de nomes alienáveis marcados, mostrados na tabela acima, sugere, nomes
alienáveis simples constituem uma subclasse de nomes que, a princípio, parece ser potencialmente
aberta; no entanto, a existência de nomes compostos produtivos limita a quantidade desse tipo de
ocorrência, já que essas marcas morfológicas ocorrem principalmente em nomes possuídos simples.

2.2. Nomes simples mistos (duplamente marcados)


712

Nomes mistos (ou duplamente marcados) são nomes simples marcados tanto na sua forma
possuída quanto na sua forma não possuída. Quando possuídos, nomes mistos admitem a marca de
posse ―-re2‖ e quando não possuídos recebem a marca ―-rɨ2‖, conforme os exemplos a seguir (como
indicado mais acima, números subscritos são usados com esses sufixos para distingui-los de suas
formas homônimas):

(16) mipa atama-ta-rɨ1 u-kuta-re2


Mipa ver-VBLZ-3M.O 3SG.F-cesta-POSD
‗Mipa olha sua cesta‘

(17) mipa atama-ta-rɨ1 kuta-rɨ2


Mipa ver-VBLZ-3M.O cesta-N.POSD
‗Mipa olha a cesta‘

Em (16) e (17), observa-se um nome misto que se comporta de maneira diferente daqueles
nomes alienáveis apresentados na seção anterior, já que o nome ―kuta‖ ‗cesta‘ não apenas requer o
sufixo marcador de posse ―-re2‖, em uma construção como a apresentada em (16), mas também o
sufixo ―-rɨ2‖, que marca a forma não possuída para o mesmo nome (em (17)). A Tabela 5 mostra os
padrões de marcação para nomes mistos:

Tabela 5: Padrões de marcação de nomes mistos

Classe da raiz Marcação de possuído Marcação de não


possuído
RzMIX.re2 -re2 -rɨ2

Nomes mistos, portanto, se diferenciam tanto de nomes alienáveis quanto de nomes


inalienáveis em seus padrões de marcação morfológica em construções possessivas e não possessivas:
enquanto que nomes alienáveis são morfologicamente marcados quando possuídos e morfologicamente
não marcados quando não possuídos, e enquanto que nomes inalienáveis são morfologicamente não
marcados quando possuídos e morfologicamente marcados quando não possuídos, nomes mistos são
morfologicamente marcados (por formativos mutuamente excludentes) tanto na forma possuída quanto
na não possuída.
Assim como ocorre com nomes alienáveis, os padrões de marcação para nomes mistos,
possuídos e não possuídos, não podem ser previstos com base em classificações semânticas. A Tabela 6
ilustra a semântica de nomes mistos em comparação com os nomes alienáveis:
713

Tabela 6: A semântica de nomes alienáveis x nomes mistos

Classes semânticas RzALIEN.te RzALIEN.ne RzALIEN.re1 RzMIX.re2


elementos da floresta + +
plantas + +
elementos celestiais + +
lugares + + + +
elementos manufaturados + + + +
humanos + +
elementos industrializados +
meios de transporte + +
partes do corpo/ relacionados + +

comestíveis + +
outros + + + +

3. Considerações finais

Com base no resumo das informações apresentadas em Facundes (1995 e 2000), podemos
agora propor um re-exame da classificação de nomes na forma apresentada na Tabela 7, a qual sintetiza
os padrões possíveis para a posse nominal em Apurinã. Nomes, na língua Apurinã, inicialmente podem
ser classificados como possuíveis ou não. Se possuíveis, a posse deles pode ser opcional (a., d. e e.) ou
obrigatória (b.), marcada (d. e e.) ou não marcada (a. e b.). Finalmente, se não possuível, o nome não é
marcado (c.).

Tabela 7: Padrões de marcação para posse nominal em Apurinã (revisados)

Padrão Possuído Não Possuído

a. Possuível com posse não -Ø -tʃi


marcada na forma possuída kema kɨwɨ-Ø i-ie kɨwĩ-tʃi
anta cabeça-POSD M-DEM cabeça-N.POSD
‗Cabeça da anta‘ ‗Esta cabeça‘

b. Obrigatoriamente possuído -Ø
com forma possuída não marcada hãtaku-ru ɨnɨ-ru
jovem-F mãe-F ----------------
‗Mãe da menina‘

c. Obrigatoriamente não possuído -Ø


com forma possuída não marcada i-ie kema
----------------- F-DEM anta
‗Esta anta‘
714

Padrão Possuído Não Possuído

d. Possuível com forma não -te, -ne, -re -Ø


possuída não marcada a-kɨpatʃi-te i-ie kɨpatʃi-Ø
1PL-terra-POSD F-DEM terra-N.POSD
‗Nossa terra‘ ‗Esta terra‘

ɨ-katsutat ɨ-ne i-ie katsutatɨ-Ø


3M-grama-POSD F-DEM grama-N.POSD
‗Grama dele‘ ‗Esta grama‘

u-kɨkɨ-re i-ie kɨkɨ-Ø


3F-homem-POSD M-DEM man-N.POSD
‗Marido dela‘ ‗this man‘

e. Possuível com forma possuída -re -rɨ


marcada e não marcada Kɨkɨ hãpukɨ-re i-ie hãpukɨ-rɨ
homem flauta-POSD F-DEM flauta-N.POSD
‗Flauta do homem‘ ‗Esta flauta‘

Portanto, é possível identificar cinco subclasses nominais motivadas pelos seus padrões de
marcação morfológica envolvidas em construções possessivas nominais. Como já sugerido em
Facundes (1995 e 2000), espera-se que esses diferentes padrões de marcação em construções
possessivas encontrem alguma motivação, ao menos historicamente, no tipo de relação entre o
elemento possuído e o elemento possuidor. Sendo assim, espera-se que a ausência de marcação
morfológica indique (iconicamente) alguma proximidade maior ou relação mais íntima entre o possuído
e o possuidor. Isso é confirmado pelo fato de nomes para partes do corpo não serem marcados quando
possuídos, mas sim quando não possuídos, pois o normal é conceber parte do corpo agregada ao
corpo. Além disso, o fato de termos de parentesco ocorrerem apenas na forma possuída pode sugerir
uma relação tão íntima entre o possuído e o possuidor, de modo que a língua sequer oferece recursos
para que um termo de parentesco possa ser expresso sem o seu elemento correspondente nessa relação.
Ou seja, não há como falar do filho ou da filha, sem dizer de quem filho ou filha ele ou ela é; ou da mãe
sem especificar o seu filho ou a sua filha etc. A ideia de que o tipo de marcação morfossintática pode
estar associado a informações semântico-pragmáticas já foi sugerida de formas distintas por diferentes
linguistas como Seiler (1983), Nichols (1988), Chappell e McGregor (1989, 1996), seja na forma de
graus de predicatividade, noções de inalienabilidade, ou de iconicidade que expressam a distância
conceitual entre possuído e possuidor. Essas são possíveis implicações semântico-pragmáticas da
classificação de nomes aqui revista, e que precisam de uma análise mais aprofundada no âmbito dessas
discussões.

REFERÊNCIAS
715

CHAPPELL, Hillary; MCGREGOR, William. Alienability, Inalienability and Nominal Classification.


Berkeley Linguistic Society 15, 1989.

_____. (eds). The Grammar of inalienability: a typological perspective on body part terms and the part-whole relation.
Berlin: Mouton de Gruyter, 1996.

FACUNDES, Sidney da Silva. Possession and Unpossession in Apurina (Maipuran). In: LSA
Parassession: Languages South of Rio Bravo. Nova Orleans. Conference Proceedings of LSA Parassession:
Languages South of Rio Bravo, 1995.

_____. The Language Of The Apurinã People Of Brazil (Maipure/Arawak). Nova York, Búfalo: Faculty of
the Graduate School of State University of New York at Buffalo (Tese de Doutorado), 2000.

NICHOLS, Johana. On Alienable and Inalienable Possession. In: SHIPPLEY, ed., In Honor of Mary Haas,
from The Haas Festival Conference on American Linguistics. Berlin: Mounton de Gruiter, 1988,
pp.557-609.

SEILER, H. Possession: an Operational Dimension of Language. Tubingen: Gunter Narr Verlag Tubingen,
1983.
716

PRÁTICAS DISCURSIVAS QUE REVELAM RELAÇÕES DE TRABALHO E DE GÊNERO


ENTRE OS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS

Teresinha Rosa de Mescouto 297

Fátima Cristina da Costa Pesssoa (Orientadora)298

RESUMO: O presente trabalho pretende mostrar como a prática discursiva do Movimento Nacional dos
Catadores de Materiais Recicláveis pode revelar concepções de relações de trabalho e de gênero. Tomando como
base o conceito de prática discursiva de Dominique Maingueneau (1997), as relações sociais de trabalho
abordadas em Pinto (2010) e as relações de gênero e trabalho abordadas em Sousa-Lobo (2011), entende-se que
linguagem e trabalho se relacionam e que, portanto, as noções de gênero e trabalho materializam-se nos
discursos e práticas sociais, em que homens e mulheres agem como sujeitos. Os catadores de materiais
recicláveis, organizados em um Movimento Nacional, têm construído a compreensão de catador como sujeito
que vem, por meio do processo de organização, intervindo na cadeia produtiva da reciclagem e quebrando o
ciclo de dependência e exploração que historicamente os marcam como trabalhadores (MNCR, 2005). O site do
movimento tem constituído uma prática discursiva fundamental para a instituição do movimento dos catadores,
pois materializa a constituição da identidade do sujeito catador ao relacionar linguagem e trabalho. Como método
faz-se uso da pesquisa documental realizada com os documentos disponibilizados no site do movimento. O
corpus constitui-se de três materiais em formato PDF, caracterizados como documentos de cunho formativo,
orientativo e de sensibilização, estruturados em panfleto, declaração e cartilha. A análise permitirá caracterizar a
prática discursiva do movimento dos catadores construída no site do movimento e identificar o que elas podem
revelar sobre as relações de trabalho e de gênero.

Palavras-chave: Linguagem e trabalho; Práticas discursivas; Relações de trabalho; Relações de gênero.

Abstract: This work intends to show how the discursive practice in the National Movement of Recycled
Materials Pickers can reveal conceptions of work and gender relations. Based on the concept of discursive
practice by Dominique Maingueneau (1997), the social relation of work approached by Pinto (2010) and the
gender and work relation approached by Sousa-Lobo (2011), we understand that language and work are related
to each other and, therefore, the notion of gender and work are materialized in discourses and social practices in
which men and women act as subjects. The recycled material pickers, organized in a national movement and
through this organization process, have been constructing the comprehension of a picker as a subject who
intervenes in the recycling productive chain and breaks up the dependence and exploration cycle which
historically identifies him/her as workers (MNCR, 2005). The movement‘s website has been constituted as a
fundamental discursive practice to the institution of the pickers‘ movement, because it materializes the
constitution of the picker‘s identity by relating language and work. We use the documental research with the
documents provided in the movement‘s website as the method of research. The corpus is constituted by three
materials in PDF format, characterized as documents with formative, orientating and sensitizing features,
structured as a pamphlet, a declaration and a booklet. The analysis will allows us to characterize the discursive
practice of the pickers‘ movement constructed in the movement‘s website and will give us conditions to identify
what they can reveal about the work and gender relation.

297Mestranda em Estudos Linguísticos na Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected]


298Professora do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:
[email protected]
717

Key-words: Language and work; Discursive practice; Work relation; Gender relation.

1. Introdução

Nos últimos dez anos surgiram muitos trabalhos voltados para a investigação do discurso no espaço de
trabalho, aprofundando a relação entre linguagem e trabalho, especificamente as relações entre discurso, trabalho
e gênero nos diversos contextos. O estudo em questão busca analisar a construção discursiva de relações de
trabalho e de gênero no site do movimento dos catadores de materiais recicláveis, se debruçando sobre duas
perguntas centrais: Que comunidade discursiva se constitui nessa prática? Que formação discursiva sobre
relações de trabalho e gênero são assumidas por essa comunidade?

O segundo espraiamento da AD coloca as práticas discursivas no centro da análise dos estudos do


discurso. E toma tal relevância ao se propor analisar ―as comunidades que a enunciação de uma formação
discursiva pressupõe‖ (MAINGUENEAU, 1997 p. 54).

Ao afirmar que a instituição discursiva possui de alguma forma duas faces, uma que diz respeito ao social
e a outra à linguagem, Maingueneau (1997) nos revela que há uma relação interdependente entre grupos e
formações discursivas que é marcada para além da relação de classe, e se caracteriza como prática discursiva que
se propõe a evidenciar ―a reversibilidade essencial entre as duas faces, social e textual do discurso‖, ou seja, ela
integra tanto a formação discursiva como a comunidade discursiva. E devemos entender aqui que a comunidade
discursiva ―não remete unicamente aos grupos (instituições e relações entre agentes), mas também a tudo que
estes grupos implicam no plano da organização material e modos de vida‖ (MAINGUENEAU, 1997 p. 56).

Por mais que reconheçamos a presença dessas duas ordens, não é tão fácil revelar a relação que as duas
estabelecem entre si, pois apesar de terem regularidades, cada prática é única, se constitui historicamente e se
manifesta diferenciadamente. Seja em qual for a materialidade da prática discursiva, Maingueneau (1997) diz que
―é impossível escapar à mistura radical dos conteúdos e da instituição‖, que ―a comunidade discursiva e a
formação discursiva conduzem uma a outra indefinidamente‖ (MAINGUENEAU, 1997 p. 64).

2. As relações de trabalho e de gênero: uma construção social


A construção das relações de trabalho e de gênero mostra-se como resultante de um processo histórico
vivenciado pela humanidade sobre o trabalho e sobre a linguagem.

Acompanhando a ação do homem sobre o trabalho, abordada em Pinto (2010), percebemos que esta
passou de um estágio individual, bruto e inconsciente, para uma ação coletiva, intencional, planejada e central na
vida social, perpassando pelo espaço político, mítico, artístico, público, privado que, no decorrer do processo,
incorporou princípios fundantes em sua práxis, como a coletividade e a democracia, princípios estes
fundamentais para a construção humana, que se não vivenciados, o trabalho pode ter um efeito inverso e assumir
o caráter antidemocrático, individualista, desigual e precário, distanciando-se das bases que o criaram. Isso nos
718

remete tanto aos desafios postos a partir da reestruturação produtiva e dos processos de flexibilização do
trabalho, quanto aos papéis exercidos por homens e mulheres e as relações entre eles construídas.

Nesse sentido, Souza-Lobo (2011) afirma que o gênero é uma das dimensões que marca as relações de
trabalho, pois é realizado por homens e mulheres. Tanto o patriarcado quanto o capitalismo foram e são
determinantes na organização e divisão social e sexual do trabalho, estabelecendo paradigmas quanto ao papel
que homens e mulheres exercem na sociedade, no trabalho, e no espaço da reprodução. A questão de gênero é
um recorte que Souza-Lobo (2011) faz dentro da divisão sexual do trabalho para revelar a importância, as raízes
e as contradições dessa relação, fator ainda não superado apesar de muito avanço tecnológico, conquista quanto
aos direitos trabalhistas e conquista das mulheres aos espaços de trabalho e de poder.

A autora ainda afirma que os discursos de flexibilização e de homogeneização da classe trabalhadora


escamoteiam a relação de exploração, pois além de ocultar a força de trabalho feminina, estabelece uma
desigualdade de gênero e a precarização do trabalho da mulher. As mulheres ainda estão no setor secundário da
economia, de forma precarizada, ocupando funções secundárias, ganhando menos que os homens e ainda
assumindo o trabalho reprodutivo do cuidado com os filhos e das atividades domésticas. Desafios estes
colocados na ordem do dia para o conjunto da sociedade. Para Stearns (2012), essa relação de desigualdade entre
homens e mulheres varia de sociedade para sociedade, dependendo da forma como as várias culturas
incorporaram o patriarcalismo e o capitalismo nos processos de organização social.

Tendo em vista que gênero e trabalho são conceitos históricos e construídos nas relações sociais, pode-
se dizer que estão sujeitos às mudanças, assim como todo signo ideológico e linguístico, os quais incorporam as
marcas do ―horizonte social” de uma época e de um grupo social determinado (BAKHTIN, 2006).

3. O site dos catadores de matérias recicláveis

O site do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (www.mncr.org.br), pelo que se


tem de primeiros registros, foi construído por volta do ano de 2005, quatro anos após o surgimento do
movimento, com objetivo de instituir politicamente o movimento dos catadores, legitimar para a sociedade a sua
ação; fazer articulação política com as lutas e demais movimentos, poder público e organizações sociais.

No aspecto do desenho organizativo do site, a página inicial mostra, em sua abrangência, informações
sobre o movimento como: o que é o movimento, suas lutas, seus princípios e objetivos, sua organização interna,
notas e declarações, notícias nacionais e das regiões Sul, Sudeste, Centro-oeste, Nordeste e Norte, além de um
conjunto de documentos sobre a legislação que marcam a história de luta dos catadores e dos meios interativos
da TV mncr e da rádio catador.

Esse conjunto de ação de construção e alimentação do site não é aleatório, revela a intencionalidade do
movimento, como forma de instituir-se politicamente no campo dos movimentos e organizações sociais. Todos
os recursos mobilizados no site legitimam de alguma forma sua prática, apresentando o catador como o sujeito
719

do processo. Nesse contexto, tenta dialogar com os catadores e com a sociedade, divulgando seus princípios, o
seu trabalho, a luta e as conquistas alcançadas.

4. Os dados
Tomaremos os documentos orientativos e de sensibilização do MNCR expostos no site do movimento.
Materiais estes pertencentes ao acervo da pesquisa documental da dissertação de mestrado em fase de
desenvolvimento, denominada preliminarmente de ―O discurso de gênero nas relações de trabalho das
organizações de catadores de materiais recicláveis da cidade de Belém‖. Do conjunto de materiais foram
selecionados três documentos:

1. A declaração de princípios do movimento dos catadores – material em formato PDF de duas


páginas, disponível no site do movimento, na qual apresentam-se os princípios do movimento em
quatro artigos de orientação às bases orgânicas:

Fonte: http://www.mncr.org.br
720

2. A cartilha de formação denominada ―Os direitos humanos e os catadores de materiais recicláveis‖ –


material em formato PDF de 28 páginas, produzido pelo MNCR e pelo PANGEA - Centro de
Estudos Socioambientais, em 2008, com objetivo de subsidiar a formação dos catadores e catadoras:

Fonte: http://www.mncr.org.br

3. Panfleto de sensibilização da coleta seletiva porta-a-porta – material em PDF, frente e verso,


produzido pelo movimento e direcionado para a população com objetivo de sensibilizá-la para a
colaboração com o trabalho do catador e da catadora:
721

Fonte: http://www.mncr.org.br

5. Construção da Análise
Dois objetivos norteiam a análise deste trabalho. O primeiro no sentido de identificar e caracterizar a
prática discursiva construída no site do movimento, identificando que comunidade discursiva se constitui nessa
prática, quais os sujeitos que se mostram no site e que outros são revelados. O segundo em analisar as relações
de trabalho e de gênero, identificando que formações discursivas sobre relações de trabalho e de gênero são
assumidas por essa comunidade.

A prática discursiva do movimento dos catadores de materiais recicláveis caracteriza-se como uma
construção recente, em processo de consolidação, seja pela história do movimento dos catadores, seja pela
pluralidade de discursos entrelaçados. É marcada ideologicamente pelo processo de resistência que o movimento
faz frente a um cenário predominantemente influenciado pela ideologia do capital, do lucro, da competitividade,
da desigualdade social, da exploração dos trabalhadores e da gestão empresarial.

A comunidade é composta por diversos sujeitos que se revelam pela voz do catador, confirmando a
heterogeneidade da prática discursiva. Entre os sujeitos, podemos destacar o catador organizado, sujeito este que
tenta instituir um novo paradigma na realidade dos trabalhadores. A partir da concepção de organização, abre-se
a possibilidade de transformar a matéria prima ―lixo‖ em ―material reciclado‖, o trabalho invisibilizado do
catador em trabalho visível e importante para toda a sociedade, o trabalho de caráter individual em trabalho
coletivo, a relação de hierarquia e exploração entre patrão e empregado em relação democrática, coletiva,
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participativa e auto-gestionada. Entre essa categoria, percebe-se a voz da direção do movimento e do catador
militante associado, cuja voz se direciona tanto para o catador organizado, quanto para o catador não cooperado
e para a sociedade em geral. Outro sujeito é o catador que não está organizado (autônomo), interpelado na
maioria dos materiais para fazer parte do movimento e auto-organizar-se e libertar-se, então, do jugo da
exploração.

Na busca de auto-afirmação, o discurso do catador é marcado pelo menos por seis interdiscursos:
discurso sindicalista, discurso popular, discurso cooperativista, discurso ambientalista, discurso de ONGs;
discurso do controle social. Seria a revelação do sujeito cindido e marcado pelos discursos outros que o
atravessam, pois ora mostra-se como o trabalhador catador com todas as marcas da exploração, ora como o
militante do movimento conhecedor de seus direitos e motivador de sua categoria, ora como o gestor de um
empreendimento coletivo, ora como o agente ambiental.

Dos materiais analisados, percebe-se que dois (a declaração de princípios e objetivos do movimento e a
cartilha de formação sobre os direitos humanos do catador) são bem direcionados para os catadores de forma
geral, seja o que está organizado e militante do movimento, quanto para o que ainda trabalha individualmente ou
coletivamente, mas que ainda não se associou. Nos dois materiais é recorrente a referência da primeira pessoa do
plural ―nós catadores‖, como síntese do sujeito. A voz da direção se destaca na declaração de princípios ao
apresentar o movimento:

O movimento nacional dos catadores de materiais recicláveis trabalha pela auto-gestão e organização dos catadores através
da constituição de bases orgânicas, em que a participação de todos os (as) catadores (as) que a querem ajudar a construir a luta de
seus direitos. (Artigo1º, Declaração de princípios e objetivos do MNCR).

O panfleto de sensibilização para a coleta porta-a-porta já é mais direcionado para a sociedade em geral,
e através deles percebemos que a intenção é de mostrar que o trabalho do catador é digno e muito importante
para a sociedade e que a contribuição de todas as pessoas é um passo fundamental para que o catador possa
desempenhar o dele com mais eficiência. Como podemos observar nos seguintes excertos:

1. ―você pode ajudar o nosso trabalho separando os materiais recicláveis dos resíduos orgânicos‖

2. ―Contribua com a coleta porta-a-porta!‖

3. ―nossa coleta é muito fácil, todos podem ajudar‖

4. ―apoiar esse trabalho é contribuir com uma categoria que desenvolve suas atividades dentro dos
princípios de solidariedade e apoio mútuo, pessoas que lutam por uma sociedade mais justa para todos‖

5. ―venha conhecer nossas organizações solidárias‖.


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Quanto às relações de trabalho, temos uma formação discursiva construída no seio das contradições que
acompanham historicamente essas relações, as quais apontam para uma relação de trabalho emancipadora,
baseada nos princípios do cooperativismo, que se contrapõe à relação patrão-empregado predominante no
sistema capitalista de produção. O trabalho é colocado como uma atividade extremamente importante, pois
através dele, o catador, fruto de um processo de desenvolvimento excludente e competitivo, passa a se inserir no
mercado de trabalho, mesmo que ainda informal e precarizado. Como no discurso sindical, trabalho e luta são
indissociáveis, o resgate histórico da profissão, feita na cartilha de formação, reforça que, ao dar o passo da
organização, o acesso aos direitos passa a ser concretizado, o trabalho valorizado e o catador reconhecido como
cidadão.

Há passagens em que o trabalho do catador mostra-se extremamente penoso, mas útil à sociedade, como
podemos observar no trecho ―somos centenas de milhares de pessoas que trabalham duramente coletando
materiais recicláveis‖ (Cartilha direitos humanos e os catadores de materiais recicláveis, p. 04). Por isso a
reivindicação pelos direitos consagrados na constituição: a liberdade de ir e vir, a igualdade diante da lei,
liberdade de opinião, reunião e associação e os direitos sociais, econômicos e culturais (direito à habitação, direito
ao trabalho, direito à cultura e a ciência, direito à educação e à alimentação).

A produção da cartilha sobre os direitos humanos e os catadores de materiais recicláveis evidencia que
mesmo o catador já sendo uma categoria de trabalho reconhecida, sua cidadania não vem automaticamente, que
sofre muitas violações, que é muito sujeito ao preconceito e à discriminação, por isso a necessidade de
sensibilizar o próprio catador dos seus direitos para poder reivindicá-los como cidadão e como categoria de
trabalhador.

A cartilha sobre os direitos humanos do catador revela também que muitos dos que são catadores não
optaram por essa profissão, foram levados como única alternativa de sobrevivência ou como único ―ganha pão‖.
Revela também que o sujeito catador geralmente é migrante, negro, homem, chefe de família, pertencente à
classe pobre, que precisa constantemente reafirmar sua identidade, uma identidade ainda difusa, pois a identidade
de catador é atravessada pelo discurso ambientalista, o colocando como ―defensor da vida humana saudável‖,
como podemos observar no trecho abaixo:

Nós, catadores, nos orgulhamos por sermos verdadeiros defensores da vida humana saudável, por ajudarmos a preservar os
recursos naturais do meio ambiente e por sermos trabalhadores e sujeitos na busca por melhores condições de trabalho dignas.
(Cartilha de formação - os direitos humanos e os catadores de materiais recicláveis, p. 05)

Quanto às relações de gênero, estas são uma peculiaridade importantíssima dentro da divisão sexual do
trabalho dos catadores. Apesar do movimento em vários momentos citar que é constituído por homens e
mulheres (catadores e catadoras), que um dos princípios é o ―apoio mútuo‖ e a ―unidade de classe‖, vários
mecanismos discursivos, observados nos documentos, revelam uma prática predominantemente masculina,
fundada nas contradições históricas do lugar do homem e da mulher nos espaços da produção e da reprodução,
no espaço público e do privado, e no espaço da política. Na maioria das atividades, o trabalho do catador é
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visibilizado e o da catadora invisibilizado, principalmente nas atividades relacionadas à organização política e à


produção. Entre as diversas situações, destacam-se as seguintes imagens:

Fonte: Cartilha de formação, p. 04

As duas imagens são emblemáticas, a primeira ao fazer referência à história de migração do catador do
sertão ou campo para o centro urbano, o homem vem na frente e a mulher negra grávida, segurando na mão de
uma criança atrás. A outra imagem mostra já a família trabalhando como catador na cidade: o homem puxando a
carrocinha com vários sacos de materiais recicláveis e a mulher atrás grávida, puxando um saco de material. As
imagens revelam basicamente duas coisas: a mulher ocupando os dois papéis, o da produção e o da reprodução,
isto pode revelar a dupla jornada de seu trabalho; a mulher em posição secundária ao homem ao vir sempre atrás
dele como a mãe, a esposa e frágil pela sua condição de grávida, e o trabalho da mulher como complementar.

6. Considerações finais
Antes de tudo, é importante ressaltar o desafio que é fazer uma investigação na área dos estudos da
Análise do Discurso, o que nos aponta que está longe das conclusões deste trabalho caracterizar a análise como
fechada ou encerrada, é mais possível e coerente vê-la em uma ação contínua, que pretendeu mais sugerir,
dialogar, relacionar, que amarrar conceitos e apontar resultados.
Sobre a análise realizada, pode-se afirmar que se buscou construir uma linha de raciocínio, na qual
caracterizamos a prática discursiva do site dos catadores como uma prática política, que revela as contradições
históricas das relações de trabalho e de gênero, próprias do seu processo de construção e da conjuntura política,
social e ideológica que nos situamos. O que nos permite dizer que o movimento tem muito a avançar no
processo de construção, reafirmação, elaboração e consolidação de uma práxis, onde o que se diz e o que se é
tenham fronteiras cada vez menores, onde as relações de trabalho e de gênero sejam a expressão mais viva da
igualdade, da solidariedade e da criação humana.
REFERÊNCIAS:

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 12ª ed. São Paulo: Oscite: 2006.

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3ª ed. Campinas, SP: Pontes: 1997.
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MOVIMENTO NACIONAL DOS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS. Cartilha de formação. São


Paulo: 2005.

PINTO, Geraldo Augusto. A organização do trabalho no século 20: Taylorismo, Fordismo e Toyotismo. 2ª ed. São Paulo:
Expressão Popular: 2010.

SOUSA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e resistência. 2ª ed. São Paulo: Perceu
Abramo: 2011.

STEARNS, Peter N. História das Relações de Gênero. 2ª ed. São Paulo: Contexto: 2012.

http://www.mncr.org.br/box_4/publicacoes-on-line acessado em 06 de janeiro de 2013.


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