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DOI 10.33360/RGN.2318-2695.2020.i1.p.148-167
RESUMO
Este artigo apresenta uma análise da memória da produção territorial da cidade de Mossoró (RN) sob o ponto
de vista dos sujeitos sertanejos. A teoria geográfica é de fundamental importância para a compreensão da
tensão entre as dimensões de dominação e apropriação, em que o espaço urbano surge como território de
conflitos entre os sertanejos em suas ações de massa e as elites em seus processos de negociação. Em termos
de metodologia, após um levantamento histórico sobre os sujeitos subalternos na produção territorial da
cidade, fizemos uma análise de conteúdo das fontes jornalísticas para analisar o processo de migração e
favelização nos anos 1990.
Palavras-chave: Território. Cidade Informal. Memória.
ABSTRACT
This paper presents an analysis of the territorial production of the city of Mossoró (RN) from the point of
view of country persons. The geographical theory is fundamental to understanding the urban space as a
territory of conflicts between sertanejos in their mass actions and the elites in their negotiation processes.
This tension is relative the dimensions of domination and appropriation. In terms of methodology, after a
historical survey of subaltern subjects in the territorial production of the city, we elaborate a content analysis
of the journalistic sources to analyze the process of migration and slums in the 1990s.
Keywords: Territory. Informal City. Memory.
RESUMEN
En este trabajo se presenta un análisis de la memoria en la producción territorial de la ciudad de Mossoró
(RN) desde el punto de vista de los sujetos sertanejos. La teoría geográfica es de primordial importancia para
la comprensión de la tensión entre las medidas de la sujeción y apropiación, en que el espacio urbano apunta
como un territorio de conflictos entre sertanejos en sus acciones de masas y las élites en sus procesos de
negociación. En aspectos metodológicos, después de una encuesta histórica sobre los sujetos subalternos en
la producción territorial de la ciudad, hacemos un análisis de contenido de las fuentes periodísticas para
analizar el proceso de migración y surgimiento de barrios marginales en la década de 1990.
Palabras clave: Territorio. Ciudad Informal. Memoria.
1. INTRODUÇÃO
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1
Por abstração concreta, Damiani (2008) compreende que seria a redução da vida propiciada pelo fetichismo da
mercadoria. Como uma fantasmagoria do ter e parecer, ao invés do ser, o sujeito que produz a própria realidade social é
amputado da condição de sujeito e vira objeto da manipulação social.
2
Para Lefebvre (2013), as representações do espaço (ou espaço concebido), permeadas pelo poder de dominação,
ligadas a dimensão econômico-política, do Estado e do mercado, procuram dominar os espaços de representação (ou
espaço vivido), por sua vez ligado à memória coletiva e/ou individual de um conjunto de sujeitos em busca da
apropriação através da resistência social.
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instituições como a Igreja etc” (HAESBAERT, 2014, p. 59). Destarte, no tocante aos conflitos e
contradições entre a dominação e apropriação, “o território e a territorialização devem ser
trabalhados na multiplicidade de suas manifestações, que é também e, sobretudo, multiplicidade de
poderes, neles incorporados através dos múltiplos sujeitos envolvidos” (Ibidem, p. 59). Dessa
forma, o autor afirma que podemos distinguir lógicas de territorialização, no sentido político-
econômico de dominação ou no sentido mais político-cultural de apropriação.
Trata-se da busca pela superação da dicotomia entre o material e as representações, em
busca dos poderes invisíveis que fazem parte do território, “envolvendo, ao mesmo tempo, a
dimensão espacial material das relações sociais e o conjunto de representações sobre o espaço ou o
imaginário geográfico” (HAESBAERT, 2007, p. 42). Para o autor, como relação social, uma das
características mais importantes do território é sua historicidade, abrindo possibilidades para o
resgate da memória dos sujeitos subalternos na produção e apropriação do território. Nesse sentido,
buscando dar visibilidade a estes sujeitos vencidos, procuramos trazer à tona seu ponto de vista,
pois como alerta Martins (1992, p.19): “a memória é um meio de afirmação dos que foram
excluídos do fazer História. Por meio dela, declaram-se sujeitos”.
Nesse contexto, buscamos o entendimento do conceito de território em uma dimensão
relacional, como espaço de conflitos mediado por relações de poder, no intuito de uma melhor
compreensão das lutas sociais, bem como elemento profícuo para um aprofundamento do
entendimento da constituição de ativismos e movimentos sociais. Nas palavras de Haesbaert (2007,
p. 93), “O território, relacionalmente falando, ou seja, enquanto mediação espacial do poder, resulta
da interação diferenciada entre as múltiplas dimensões desse poder.” Em outra obra, Haesbaert
(2014, p.29) acrescenta: “[...] território discute a problemática do poder em sua relação
indissociável com a produção do espaço”.
Nas palavras de Haesbaert (2014, p. 90): “Território, neste debate, não é apenas uma
questão de Estado. Na América latina, hoje, podemos afirmar, (re)territorializa-se é uma estratégia
política de transformação social de grupos subalternos”. Para este autor, as relações de poder e os
conflitos sociais associados às lutas de grupos subalternos na América Latina, “[...] dizem respeito,
sobretudo, a uma partilha mais igualitária da terra, na recomposição dos direitos de grupos como os
sem-terra, os sem-teto e ‘minorias culturais’ (indígenas [e quilombolas], por exemplo)” (Ibidem, p.
90). Essas lutas, aludem a constituição de sujeitos sociais protagonistas na produção territorial.
Ademais, para Harvey (2012), um filósofo que apresenta grande contribuição ao debate
sobre a dimensão relacional do espaço é Walter Benjamin, pois articula a dimensão do
entendimento da memória como um resgate do ponto de vista dos vencidos. Em sua argumentação,
o autor afirma que o conceito de memória de Benjamin tem uma potencialidade de revelar novas
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possibilidades em momentos de crise, pois: “A memória coletiva [...] pode desempenhar um papel
significativo na animação dos movimentos políticos e sociais” (HARVEY, 2012, p. 26). No âmbito
da relação entre espaço relacional e movimentos sociais como sujeito político, Harvey (2012, p. 26)
destaca que: “A criação de um ‘espaço de esperança’ [...] requer que a memória seja internalizada,
ao mesmo tempo em que caminhos são deixados abertos para a expressão do desejo.”
A proposta de leitura da produção do território pelo ponto de vista dos vencidos abre
caminho para pensar a imaginação geográfica na teoria do território relacional, negando os
conceitualismos apriorísticos desconectados da realidade, no caminho de uma geografia crítica
conectada com a experiência dos sujeitos políticos subalternos. Assim, trazemos à tona as
possibilidades de resgate da memória da classe oprimida através da visibilidade de sua
espacialidade vivida, apresentando os elementos de criatividade e reinvenção política na construção
do território nas fissuras da modernidade.
Nesse sentido, a narrativa benjaminiana faz uma leitura crítica da modernidade, buscando
reapresentar os sujeitos invisibilizados no processo histórico de dominação, aqueles que ele
denomina como vencidos. Benjamin exclama contra a homogeneização da sociedade pela
modernidade, propondo um resgate da memória: “Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de
vozes que emudeceram? [...] O passado dirige um apelo” (BENJAMIN, 1994, p. 223).
Com isso, de acordo com Benjamin (1994), fica claro que a tradição dos oprimidos não
tem registro, se abrindo o campo de estudos no intuito de trazer à tona o ponto de vista dos
vencidos, ou seja, aqueles invisibilizados pela história oficial. Para Lowy (2005, p. 74), a expressão
de Benjamin “escovar a História a contrapelo” significa “ir contra a corrente da versão oficial da
história, opondo-lhe a tradição dos oprimidos”.3 Sendo assim, para Lowy (2005), o resgate da
memória do ponto de vista dos vencidos diz respeito a história das classes oprimidas no geral4, não
apenas os operários, mas as mulheres, os camponeses sem terra, os desempregados e sem-teto, os
indígenas, os curdos, os negros, as minorias sexuais e etc.
Na esteira dessa leitura, Lowy (2005) propõe a aplicação do método de Walter Benjamin
para pensar os movimentos sociais na América Latina, surgindo uma possibilidade muito rica de
pensar a resistência das classes oprimidas através do resgate da memória de construção do território
do ponto de vista dos sujeitos subalternos. Em uma perspectiva dialética, não apenas as forças
econômicas promovem a produção do território, mas também os movimentos sociais,
consubstanciando uma leitura da luta de classes na produção do território no sentido da resistência
3
Para Matos (2009), a proposta de Benjamin de “escovar a história a contrapelo” faz parte de sua crítica da história dos
vencedores, na busca de escapar da perspectiva abstrata de entendimento da história como veredicto do vencedor.
4
“As noções de burguesia e proletariado, praticamente ausentes de suas reflexões, Benjamin prefere os excluídos”
(MATOS, 2009, p. 19).
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aos projetos de modernização. Assim, o resgate do ponto de vista dos vencidos como uma dimensão
subversiva de recuperação da memória dos mártires, “[...] só tem sentido quando se torna uma fonte
de energia moral e espiritual para aqueles que lutam hoje” (LOWY, 2005, p. 111).
Em nossa proposta, através do método dialético, priorizamos uma investigação da
experiência sertaneja no Nordeste brasileiro, não como uma totalidade externa ao contexto, cheia de
determinações a priori, mas buscando o entendimento da realidade vivida por aqueles sujeitos5.
Procuramos compreender a produção do território em um sentido amplo, a partir das relações de
poder no interior de uma geografia de conflitos. De todo modo, o fenômeno das secas assolando os
pobres sem-terra do sertão não diz respeito apenas ao fenômeno físico-climático, mas também a
história de produção do latifúndio no Brasil, que em todo processo de colonização desenraizou
esses sujeitos e consolidou as desigualdades sociais e territoriais.
O racionalismo moderno como uma resposta no interior da forma da mercadoria, provoca
um esquecimento proposital da história de suor e sangue na produção do território pelos sujeitos
subalternos, abstraindo das particularidades, valorizando apenas o quantificável. Por outro lado,
acreditamos que se faz necessária uma reconstrução da memória social da produção do território e
de seus sujeitos. No caso de Mossoró, a consolidação do latifúndio no espaço rural do sertão
semiárido em conjunto com as estiagens periódicas provocam os deslocamentos de sertanejos, que
somadas à indústria da seca6 tornam o processo eminentemente social, evidenciando o “[...] drama
humano e social que a geografia, refletindo sobre a população, aspira alcançar.” (DAMIANI, 2002,
p. 8).
Nosso recorte histórico contempla o crescimento da cidade informal7 com o deslocamento
de sertanejos durante os anos de 1960-1998, contudo, nos reportamos a grande seca de 1877, bem
como as ações de massa que foram constituindo o crescimento populacional da cidade, quando
acreditamos apresentar elementos para o entendimento de um ponto de vista sertanejo da produção
territorial da cidade. Pela impossibilidade de quantificação das experiências vividas, transformadas
em memórias, busca-se uma compreensão dialética e relacional das representações vividas pelos
sujeitos na produção da cidade informal através das fontes de recortes jornalísticos.
5
“Ir além da empiria só pode significar, ao contrário, que os objetos da própria empiria são apreendidos e
compreendidos como aspectos da totalidade, isto é, como aspectos de toda a sociedade em transformação histórica”
(LUKACS, 2012, p. 330).
6
Do ponto de vista da abordagem política: Espaço dos coronéis, da oligarquia latifundiária, das eleições fraudulentas e
das violentas disputas pelo poder político. Ver: Castro (1992).
7
Cidade informal diz respeito as formas de moradia predominantemente precárias (PEQUENO, 2010).
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A seca sacode para a cidade uma multidão das províncias vizinhas da Paraíba e
Ceará. A câmara oficial ao Presidente da Província a 16 de agosto de 1877
anunciando a presença de febres intermitentes e biliosas gastroenterites, angina de
diversos grãos e enterites ulcerosas [...] a 4 de março de 1878 [...] são tristes e
lamentáveis as circunstâncias em que se acha a população indigente desta cidade,
superior a quarenta mil (40.000) emigrantes de diversas províncias, aqui chegados,
quase que por um milagre – nus, famintos e afetados de inchação das extremidades
inferiores. [...]. A maior parte dessa gente não encontrando um teto que lhe sirva de
abrigo passa os dias e as noites expostas às intempéries do tempo ao sol e ao
relento, donde resulta principalmente a espantosa mortalidade que atinge 40
pessoas ao dia (CASCUDO, 2010, p. 136).
Trata-se da ação desesperada de uma população marcada pela desigualdade no acesso à terra
desde o processo de colonização, que encontrava subsistência apenas no trabalho com a terra como
agregados, mas que com as secas viu inviabilizado seu próprio sustento e de suas famílias tendo de
migrar para as cidades. No ano de 1879 as agruras do sertanejo e de suas famílias continuavam a
caracterizar o cenário local, ampliando o número de “flagelados” na cidade: “Mossoró foi à cidade
acolhedora dos indigentes de 1877-80. Não apenas 40.000, mas 70.000 abrigaram-se na proteção de
outubro de 1879.” (CASCUDO, 2010, p. 140).
De todo modo, de acordo com Felipe (1982, p. 55), a seca de 1877 já encontrou Mossoró
como uma centralidade regional, “portanto, como o lugar da concentração das alternativas de
sobrevivência. Ela trouxe um contingente enorme de flagelados, que vinham buscar sua subsistência
na cidade mais rica da região.” De acordo com Maciel (2013), durante a seca dos anos 1877-78 a
cidade conseguiu, contraditoriamente, através do trabalho do retirante, impulsionar seu comércio,
bem como a construção e melhoramento de equipamentos públicos.
Contudo, nem toda força de trabalho sobreviveu para ser explorada nas obras dos socorros
públicos, configurando uma geografia do drama humano. Falcão (2009, p. 168) apresenta
documento do presidente da província do Rio Grande do Norte em 1879 sobre o sepultamento de 31
mil pessoas no cemitério público, em suas palavras, “sem perigo de erro”, bem como mais 5 mil que
foram enterradas fora do cemitério.
O processo de luta e apropriação do espaço pelos subalternos em Mossoró continua no ano
de 1881, quando casas feitas de barro e palha foram destruídas ao redor da igreja de Santa Luzia,
bem como as casas de lata que ficavam ao lado do rio. Nas palavras de Raimundo Nonato da Silva
“a partir de 1881, a Câmara Municipal de Mossoró mandou desapropriar e destruir os casebres que
afeiavam a cidade.” (SILVA, 1975, p. 26). Trata-se de um conflito entre dominação e apropriação
na produção do território urbano. Por um lado, a apropriação do espaço por meio de ocupações,
chamadas por eles mesmos de invasões, bem como ações espontâneas de saque ao comércio em
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momentos de fome extrema, por outro, a dominação da articulação coronelista com o governo
central, ao reverter as pressões dos “flagelados” em obras de melhorias do espaço urbano.
De todo modo, com a seca de 1877 formam-se os primeiros bairros subalternos da cidade,
com a formação dos Paredões e Alto do Pão Doce (atual Bom Jardim) ao norte, bem como Alto dos
Macacos (atual Alto da Conceição) ao sul. No alto do Pão-Doce, por exemplo, durante as secas de
1877-1879 foi construído um abrigo “para recolhimento dos variolosos, enquanto esperavam a hora
final” (SILVA, 1975, p. 34). No âmbito dos códigos de postura de 1881 e 1888, observa-se que os
mesmos traziam certo receio com o “crime” por parte dos “flagelados” da seca que perambulavam
pela cidade.
Por outro lado, a seca de 1903 foi um barril de pólvora na cidade, devido à crise da indústria
salineira relacionada às negociações acerca do pagamento de impostos por parte da companhia de
sal e navegação, sediada no Rio de Janeiro, ao governo local. Naquele ano, foi registrada a
ocorrência de tensões no espaço urbano da cidade por meio de manifestações públicas, que
reuniram mais de 1000 operários das salinas dentre outros migrantes desempregados, pressionando
contra a fome e a situação de miséria propiciada pela seca e falta de emprego na cidade. Ademais,
os salineiros conseguiram reverter à pressão pública exercida pelos desempregados e operários em
benefício próprio, obtendo melhores contratos para as indústrias salineiras, com a contrapartida de
absorver os desempregados em suas empresas.10
De todo modo, retomando o contexto dos anos 1970, faz-se salutar observar a relação de
(re)produção do espaço urbano com suas normas e tramas de dominação em contextos de seca, bem
como dos processos de resistência e apropriação realizados pela população retirante em seu drama
social. Não seria diferente na segunda metade do século XX na cidade de Mossoró, com a expansão
nunca vista da população urbana da cidade. O Jornal Gazeta do Oeste (1998) relembra as inúmeras
contradições e conflitos no espaço urbano de Mossoró nos anos 1970, afirmando que em 1979
ocorreram saques no centro da cidade realizados por agricultores pobres: “os agricultores exigiam
comida e um plano de emergência. Não sendo atendidos pelo governo, resolveram saquear o
Mercado Público Central de Mossoró, bem como a central de abastecimento de alimentos -
COBAL.” (GAZETA DO OESTE, 19 de abril de 1998).
Em nossa visão, as ações espontâneas de saque e pressão contra a propriedade privada
impõe a necessidade de análise destes sertanejos como sujeito político, surgindo uma crítica para
aqueles que os analisam sob o ponto de vista das elites apenas como uma mão de obra barata. De
acordo com Neves (2000), as ações desde o final do século XIX até a seca de 1958 consolidaram a
10
Ver: Maciel (2013) em sua argumentação sobre a (re) produção do espaço social de Mossoró nas secas de 1877, 1903,
1915.
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tradição de saques e ações de massa como forma de pressão contra a propriedade privada. Como
ressalta o autor, esta tradição se tornou contemporânea de outros movimentos sociais no campo em
gestação, como as ligas camponesas, o que causava certo pavor às elites em transição de um
capitalismo baseado na propriedade rural para um capitalismo ancorado em investimentos urbanos
em comércio, serviços e industrialização.
O discurso oficial apresenta sua versão de que as desigualdades no sertão se dão devido ao
quadro natural, negando as dimensões de dominação política. Como se sabe, traçando a geografia
das relações políticas no sertão, é possível elencar os elementos históricos de dominação política e
econômica desde o processo de colonização. O sertão semiárido tem como característica territorial a
formação do latifúndio desde o processo de colonização, com a doação de terras pelas capitanias
hereditárias para “grão senhores” colonizadores através das sesmarias. Contraditoriamente, a análise
crítica ressalta o caráter de subalternidade dos sujeitos políticos sertanejos, que em uma perspectiva
hereditária de longa duração11 foram desenraizados da terra para a formação do latifúndio. Esses
sujeitos chegam na cidade de Mossoró na década de 1970 e encontram desemprego em massa.
Sobre a década de 1970, Brito (1987, p. 66) alerta para um expressivo crescimento do setor
informal da economia, aqueles abaixo da subsistência: “um expressivo contingente de biscateiros,
ambulantes e inúmeras outras ocupações mal definidas, originadas como formas de escapar do
desemprego absoluto.” Deste modo, com a crise econômica, a cidade havia se tornado uma área de
tensões sociais com as ocupações de terrenos periféricos para moradia pelo grande contingente de
desempregados e retirantes da seca que se encontravam na cidade. Tal situação deixou claro o
processo de “formação de favelas pelo exército de desempregados das agroindústrias e das salinas,
como também da população rural assolada pelas secas.” (PINHEIRO, 2006, p. 104).
Nesse contexto, as autoridades governamentais acionaram políticas públicas visando
controlar os conflitos, utilizando de velhas formas de dominação, mediante criação de empregos
gerados pelos serviços públicos (FELIPE, 1982). No ano de 1979, grande parte dos retirantes e
desempregados em geral que ameaçavam a realização de saques na cidade (Figura 1) foram
empregados com o crescimento do setor de construção civil12, tanto na construção dos prédios
públicos como na construção dos conjuntos habitacionais (Figura 2).
11
“[...]. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes.” (BENJAMIN,
1994, p. 225).
12
Ver: Felipe (1988); Rocha (2005); Pinheiro (2006).
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Desse modo, vislumbramos que a década de 1970 é marcada pela consolidação de Mossoró
como centro regional, na medida em que passou a ser alvo de programas nacionais de
desenvolvimento urbano, sendo incluída no Programa Nacional de Desenvolvimento Urbano para
Cidades de Porte Médio. Nas palavras de Felipe (1982, p. 122): o “boom de investimentos urbanos
para obras de infraestrutura começa com o programa de cidades de porte médio que de 1975 em
diante começa a dar um banho de asfalto na cidade”. Com isso, a Prefeitura Municipal formulou o
Plano de Organização do Espaço Urbano de Mossoró (POEUM) em 1974, tendo em vista a abertura
de portas para os recursos federais que estavam destinados às cidades de porte médio. Nesse
período, amparado nas diretrizes do Plano Diretor, as políticas públicas ligadas à habitação social
ocuparam o norte da cidade, com três conjuntos habitacionais construídos pela COHAB-RN, o
Abolição 1, 2 e 3, com 2.076 casas.
De todo modo, com a extinção do BNH em 1986, chama atenção a precariedade dos
programas habitacionais realizados durante a década de 1990. No plano nacional, observa-se a
municipalização da política urbana a partir da constituição de 1988 somado ao desmonte do Estado
nacional interventor na década de 1990 (ARAÚJO, 2000). Sobre as políticas neoliberais dos anos
1990, Araújo (2000, p. 355) afirma: “Portanto, a crise do Estado está tendo um poder fantástico de
corrosão dos aparatos de funcionamento das políticas sociais.” Nessa mesma linha de raciocínio,
debatendo sobre a política econômica da década de 1990, Santos (2007) argumenta sobre a
emergência do neoliberalismo e a persistência de uma cidadania atrofiada no Brasil, em que os
pobres não têm acesso aos bens e serviços mínimos para uma existência digna.
Nesse sentido, no plano local, durante a década de 1990, sobressaiu a precariedade das
condições de moradia, ampliando significativamente o contingente de favelização, implicando em
tensões territoriais em torno dos direitos ao acesso à moradia em contradição com a propriedade
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A década de 1990 do ponto de vista dos programas habitacionais não sinalizava soluções,
como já alertava o documento preparado pela assembleia final do I Encontro de Lideranças
comunitárias da Federação Estadual dos Conselhos Comunitários - FECEB - RN na data de 08 de
setembro de 1991. No relatório da FECEB - RN (1991) era alertado sobre a alarmante situação da
favelização da cidade de Mossoró, afirmando: “a migração em massa, da população pobre da zona
rural, os expulsos da terra, sob a condição não desejada de ‘errantes da terra’ para as áreas urbanas,
tem sido criada a cada instante, um imenso barril de pólvora.” E ainda diz mais: “A falta do
incentivo ao homem humilde do campo, vem causando os desalentos e os profundos efeitos
negativos, no seio da população mais carente e, que, num desespero desenganador, como um
desgarrado, o homem-família, chega à zona urbana.” (FECEB – RN, 1991).
Fica claro que a situação de aumento do déficit habitacional e de inadequação domiciliar
vinha sendo alertada, indicando os problemas relativos ao deslocamento em massa de uma
população rural pobre para a cidade de Mossoró. No caso, estes problemas encontram-se vinculados
às condições de monopolização da estrutura agrária nos municípios do entorno os quais já vinham
experimentando a dinâmica do agronegócio da fruticultura irrigada. O mesmo documento aponta
que: “os trabalhadores continuam sendo expulsos do campo e jogados nas periferias das cidades em
condições de vida extremamente precárias e sem poderem adquirir um teto, já que os programas
habitacionais do governo são inacessíveis.” (FECEB – RN, 1991).
Naquele momento, foi apresentado um levantamento do próprio movimento de bairro que
indicava a existência de vinte favelas na cidade14, um número em crescimento, pensando na década
de 1980, como argumentava o próprio movimento. De todo modo, as expectativas aludidas se
concretizaram pensando as inúmeras interfaces do problema habitacional naquele período, tendo em
13
De acordo com informações da secretária de Desenvolvimento Territorial do município, em 1997 havia 32 favelas
reconhecidas pela prefeitura local. Fonte: Revista da Prefeitura de Mossoró, 2004.
14
Relação de favelas município - FECEB - RN, 1991: 1 - Ouro Negro; 2 - Iraque; 3 - Flores do Alto de São Manuel; 4 -
Batalhão;5 - Santo Antônio; 6 - Malvinas;7 - 30 de Setembro; 8 - Macarrão; 9 -Abolição III; 10 - Estrada da Raiz; 11 -
Independência; 12 - Redenção I; 13 - Redenção II; 14 - Carnaubal; 15 - Carnaubal; 16 - Teimosos; 17 - Abolição IV; 18
- Belo Horizonte; 19 - Forno Velho; 20 - Barrocas. Fonte: Arquivo Manuel de Souza, memorialista do movimento de
bairro de Mossoró.
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vista a diminuta intervenção da esfera federal em comparação com os investimentos nas décadas
anteriores, somado ao aumento do fluxo migratório do campo para a cidade. Tal situação foi levada
ao extremo durante a ocupação das casas do “Conjunto 30 de Setembro” (Conjunto Vingt Rosado)
em fevereiro de 1992, antes mesmo que as unidades habitacionais fossem entregues às famílias
beneficiárias.
Em 14 de fevereiro de 1992, o Jornal Gazeta do Oeste afirmava: “Favelados das Malvinas,
Teimosos e Pintos ocuparam o conjunto 30 de setembro. [...] um aparato policial foi lá. [...]
Barracos derrubados, favelados agredidos, prisões, ameaças, tensão permanente.” Um clima de
tensão tomou conta do espaço urbano de Mossoró, pois os conflitos e lutas pela apropriação do
espaço por parte daqueles sujeitos subalternos ficaram evidentes, em algum sentido, assustando as
elites e grandes proprietários. Estes ficaram alarmados pela força de pressão e negociação gerada
pela ação dos “favelados”, como já havia ocorrido em outros momentos de seca. A partir desta
ação, foi organizada uma mesa de negociação da qual tomaram parte os acampados e a prefeita na
época, Rosalba Ciarline, com a presença de representantes da universidade e dos movimentos de
bairro. Esta terminou com uma proposta de realização de um cadastro habitacional na cidade.
Nesse contexto, a Prefeitura Municipal e o Governo Estadual entram em consonância na
produção da habitação de interesse social buscando atacar a problemática da ocupação irregular de
terrenos e a produção da favelização. Foi relatado no Jornal Gazeta do Oeste em 29 de setembro de
1992 que tal proposta de erradicar as favelas do município não surtiu efeito desejado, pois: “novas
favelas estão surgindo, montadas por dezenas de famílias que não têm para onde ir. São na maioria
da zona rural do município, vítimas da seca. Estão chegando a cidade com o sonho de construir uma
vida melhor.” As figuras 3 e 4 revelam a forma como a expansão do processo de favelização nos
primeiros anos da década de 1990 foi apresentada pela imprensa junto à sociedade local.
Figura 3: Gazeta do Oeste, 12/11/1992 Figura 4: Gazeta do Oeste, 22/04/1994
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Novamente, velhas soluções foram encontradas pelas elites locais, como a incorporação da
força de trabalho excedente nas obras públicas, num contexto em que se falava da existência de
trinta a quarenta mil trabalhadores desempregados na cidade15. Destaca-se que essa medida se
associa à mudança no grupo político da Prefeitura Municipal, que passou a apresentar esse novo
velho discurso, em contraposição ao grupo antigo16. De todo modo, a problemática das
desigualdades socioespaciais na cidade se apresentava de forma alarmante, permanecendo visível na
paisagem urbana de Mossoró por toda a década de 1990. Na época, inúmeras famílias chegavam da
zona rural e ocupavam as inúmeras praças do centro da cidade, aproveitando a sombra de árvores
para se resguardar do sol intenso17.
No que diz respeito às ações empreendidas pela “multidão” de migrantes, o Jornal Gazeta do
Oeste, em 27 de março de 1993, informava sobre o acampamento que inúmeras famílias de
“flagelados” faziam na sede da Prefeitura Municipal em busca de comida. Os retirantes reclamavam
que já não comiam nada há dias e pediam uma solução para esse grave problema. Posteriormente,
em 06 de abril de 1993, o mesmo jornal alertou para o clima de tumulto e a realização de saques
ocorridos durante a distribuição de alimentos realizada pela prefeitura nas favelas da cidade18.
Ações empreendidas espontaneamente como tática de sobrevivência pelos retirantes como a
mendicância e a presença dos mesmos nos espaços públicos, bem como as ações de saque,
tencionaram a opinião pública. Moldada pelas elites locais, a sociedade passou a apresentar críticas
ao poder público que não conseguia enfrentar tal problemática. Fato marcante foi a população do
Conjunto Habitacional Santa Delmira (produzido pela COHAB) abandonar suas residências, devido
a construção do Conjunto Residencial Popular Parque das Rosas pela Prefeitura Municipal para
atender aos favelados instalados nas bordas do Conjunto Habitacional Abolição III19.
O posicionamento da universidade como agente importante no entendimento do contexto
vivenciado na cidade, se deu com a apresentação de um estudo sobre o processo de favelização para
15
“Quantos desempregados há em Mossoró? Fala-se em 30 mil, outros dizem que são 40 mil. São muitos. Milhares
deles que, diante dessa recessão brutal, são as vítimas maiores dessa injustiça social sem precedentes na história do
Brasil.” (O MOSSOROENSE, 05 de fevereiro de 1993).
16
“A oposição à família dos Rosado é feita pelos próprios Rosados” (CONGRESSO EM FOCO, 05/04/2011). Ver:
Felipe (2001).
17
Na Gazeta do Oeste, 02 de junho de 1993, afirmava: “A mendicância no centro da cidade é um problema antigo [...].
A situação de miséria que atinge a população mais carente é a causadora direta do “surto” de indigência que vem
assustando o mossoroense.” Em outra data, o Jornal Gazeta do Oeste, 08 de abril de 1994, afirmava: “Debaixo de chuva
e sol. Assim vive – a exemplo de inúmeras outras famílias carentes – o desemprego do Francisco Ribeiro da Silva,
natural de Patos – PB, 39. Com a esposa e mais 8 filhos menores, a família de Seu Francisco está instalada na Rua
Felipe Camarão, próximo do terminal rodoviário.”
18
“[...] batalhões de famintos tentavam fazer arrastões nos armazéns ambulantes” (GAZETA DO OESTE, 6 de abril de
1993).
19
“A população se sente ameaçada com a presença dos favelados que, segundo alguns reclamantes, estão construindo
um cinturão de miséria em torno do Santa Delmira.” (GAZETA DO OESTE, 23 de abril de 1993).
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a formação do Comitê contra a Miséria e a Fome. Naquele momento foi diagnosticada a existência
de 42 favelas, um número mais expressivo que aquele apresentado três anos antes pelo movimento
de bairro20.
Como se pode perceber, o início dos anos 1990 apresentou alguns desafios relativos ao
problema habitacional da cidade, como os escassos recursos investidos pelo poder público e a
própria seca entre os anos de 1993-94. Por outro lado, evidencia-se intensa contradição no espaço
urbano de Mossoró, um território de conflitos entre os poderes constituídos, em sua busca pela
defesa da propriedade privada, e os migrantes subalternos, que procuravam se apropriar do espaço
urbano como tática desesperada, tendo que enfrentar ao mesmo tempo o drama da fome e da falta
de habitação.
Em outro momento, na sequência dos anos 1990, uma nova seca (1997-98) acirrou ainda
mais as contradições do espaço urbano21, alertando as autoridades locais para a ocupação de
terrenos públicos por parte da grande leva de migrantes que procuravam a cidade naqueles anos 22,
expondo as trajetórias coletivas do trabalhador camponês que convivia com a seca nas áreas rurais.
Entretanto, não faltavam recursos hídricos para a economia em expansão no âmbito da região
produtiva do agronegócio sediada em Mossoró e nos demais municípios do entorno23.
No ano de 1998 as desigualdades socioespaciais se tornaram estopim de conflitos entre a
dominação e a apropriação, com a realização de ação direta por parte dos retirantes contra os
problemas de habitação e a fome, como a ocupação dos terrenos públicos ampliando o processo de
favelização, bem como manifestações na Prefeitura Municipal e até mesmo a realização de saques
contra o comércio local. Vale destacar as manifestações realizadas pelos sujeitos subalternos na
Prefeitura Municipal em diversas ocasiões nesse ano. No dia 9 de maio de 1998, foram realizados
saques ao comércio em dois pontos da cidade. Todavia, estas foram contidas pela polícia, sob o
argumento de ataque à propriedade privada24 (Figura 5).
Tais ações foram destacadas pelo governo do Estado, analisando não apenas os fatos
ocorridos na cidade de Mossoró, mas justamente a onda de saques que vinha ocorrendo nos
20
“A reitora da URRN, Maria das Neves Gurgel, informou que até o momento foram castradas 42 favelas. O trabalho
serve para o comitê contra miséria e a fome.” (GAZETA DO OESTE, 29 de setembro de 1994).
21
“O êxodo rural, agindo em conjunto com o índice exorbitante de desemprego, favorecem o surgimento de casebres de
taipa em todas as áreas de Mossoró.” (O MOSSOROENSE, 6 de junho de 1997).
22
“As invasões desses terrenos são uma constante.” (GAZETA DO OESTE, 25 de julho de 1997).
23
Ver: Elias e Pequeno (2010).
24
“Mossoró viveu ontem um dia de muita agitação, principalmente no setor comercial, e que, favelados de diversos
pontos se reuniram com o intuito de saquear o comércio, imitando a atitude de vários agricultores que estão passando
fome no sertão nordestino e que estão efetuando saques nos depósitos de alimentos. Tentativa II: cerca de duzentos
favelados se concentraram na Av. Presidente Dutra. Outra tentativa de saque foi organizada na zona leste de Mossoró,
mais precisamente na Av. Presidente Dutra.” (GAZETA DO OESTE, 9 de maio de 1998).
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municípios castigados pela seca25. Naquele período o governo estadual insinuou a existência de
grupos políticos partidários infiltrados nos movimentos de trabalhadores rurais contra a fome,
demonstrando preocupação com o poder de pressão dos migrantes rurais em luta pela apropriação
do espaço urbano da cidade (Figura 6).
Figura 5: Gazeta do Oeste, 09/05/1998. Figura 6: Gazeta do Oeste, 10/05/1998.
Fonte:
Arquivo do Movimento de Bairro.
25
“O governador Garibaldi Filho, vê motivação política na onda de saques que atinge municípios castigados pela seca
no Rio Grande do Norte. O governador reconhece o estado de fome que assola as comunidades vítimas da estiagem,
mas identifica a infiltração de adversários políticos nos saques.” (GAZETA DO OESTE, 10 de maio de 1998).
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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