(Maurício Borges Lemos) Um Novo Projeto para o Brasil

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Maurfcio Borges Lemos

AS REFORMAS POLÍTICAS, ECONÜMICAS


ESOCIAIS DE QUE OPAÍS PRECISA
© 2019 - Maurício Borges Lemas
Direitos em língua portuguesa para o Brasil:
Matrix Editora
www.matrixeditora.com.br

Diretor editorial
Paulo Tadeu

Capa
Allnn Martini Colombo

Diagrama~fio
Dnniela Vasques

Revisao
Cicla Medeiros

CIP-BRASIL- CATALOGA<;:ÁO NA PUBLICA<;:ÁO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Lemes, Maurício Borges


Um novo projeto para o Brasil/ Maurlcio Borges Lemes. - l. ed. - Sao Paulo: Matrix, 2019.
120 p.; 16 x23 cm.

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-8230-576-8

l. Economia - Brasil. 2. Desenvolvimento económico - Brasil. 3. Brasil - Polltica e governo. l. Titulo.

19-59574 CDD:338.9
CDU: 330.3•1(81)

Leandra Felix da Cruz· Blbllotccdrln • CRD-7/6135


Dedico este trabalho a Romulo Borges da Fonseca,
amigo e colega dos tempos do colegial,
pela ajuda para a publica<;ao deste livro.
Agradecimentos

Agradero a colaborapfo inestimável de Samy Kopit,


parceiro de várias décadas, que leu o original e deu
pertinentes sugestoes de forma e conteúdo para a produrao
desta obra. Agradero também a Lucília Azevedo pela
revisao, normalizara.o e pré-edirao de todo o trabalho.
Sumário
lntroduc;ao .................................................................................................. 11

1. Estado, reforma, revoluc;ao e socialismo no pensamento clássico


da esquerda ............. ... ...... ... .... ...... ..... ..................................... ... .. .... ... .... .. 15
1.1. Reforma ou revoluc;:ao? .... .. .... ............................. .............. ..... .. .... . 16
1.2. Um suposto atalho: nem Rosa, nem Kautsky, nem Bernstein,
e sim Len in e Stalin ................ .............. ........................... ... ... .. .. ... .. .. .. .. 19
2. Do presidencialismo de coalizao ao parlamentarismo da exclusa.o
(ou o pesadelo dos 30o" picaretas no Congresso, segundo Lula nos
anos 1990, até o día da noite de horrores -17/4/2016) ....................... 21
2.1. o impeachment para além da questao conjuntural: a instabilidade:
estrutural .. . . . . . . . ... . .. .. . . . . . . .. . .. . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . 21
2.2. O voto proporcional e a rede de cabos eleitorais .......................... 22
2.3. Os avisos de que o cancer poderia tomar conta do organismo ...... 24
3. A reforma política .................................. ... .. .. .... ... .... .. ........................... 27
3.1. Voto proporcional versus voto distrital .... ... .. .. .... .. ................ ......... 27
3.2. Argumentos contrários ao voto distrital ........................................ 28
3.3. O círculo vicioso da pobreza do voto proporcional no Brasil ........ 30
3.4. Presidencialismo versus parlamentarismo .... ................................ 30
3.5. Pontos principais para a negociac;:ao de urna reforma política .......... 32
3.6. Viabilidade polít~ca do projeto .................................. ..................... 34
4. Ac;oes positivas e negativas. dos 13 anos e 4 meses de governos
petistas .. . ....... ............. ... . . . . . ... . . . . . . . ....................... .... . . . .. . . . . .... . . ........ 37
4.1. Ac;:oes carretas e bem realizadas ... ... .. ... .. .... .. .. .. .. .. .. .. .. .. ............... 37
4.2. Ac;:oes carretas a serem aperfeic;:oadas .. .. .... .... .......... .................. 39
4.3. Ac;:oes carretas, mas descontextualizadas .. ..... ... .... .. .. .. ..... .. .... .... . 42
4.4. Ac;:oes desastrosas .............................................................·.... ....... 46
5. Urna proposta de desenvolvimento economico e social em urna
perspectiva mais geral ... ... ... .... ... ..... .... .... ... .... ...... .................... .... ... .. ... ... 55
5.1. Rompendo com o modelo economico salazarista ............................ 55
5.2. Rompendo coma estrutura regressiva dos impostas........................ 59
5.3. Desenvolvendo a base economica do pafs e sua estrutura ............. 63

6. Garantindo um cambio para a indústria para (re)dinamizar a base


economica .................... .......... ........... ... .. ... ... ... .... ...... .... ........ ... .... ... .... ... .. 69
6.1. Por que urna desvalorizac;:ao cambial nao é sustentável em longo
prazo no Brasll? ..................................................................................... 69
6,2. As polftlcas l1eterodoxas recentes ................................................. 71
6.3. A necessidade de um cambio para a indústria ... .. ................... .... .. . 72
6.4. Urna proposta de cambio para a indústria ...................................... 74

7. Construindo a infraestrutura para sair do círculo vicioso do


subdesenvolvimento .......... ........... ....... .. ..................... .... ... .. ....... .......... 77
7.1. A infraestrutura vem na frente ......................................................... 77
7.2. Resolvendo o problema das garantias das PPPs a partir de bons
projetos de investirnentos .~.................................................................. 80
7.3. Identificando o tipo de escassez de capital existente no Brasil para
a execuc;:ao de urn projeto ern grande escala de PPPs ......................... 82

8. A previdencia complementar, de grande problema a solw;;ao para


as principais dificuldades económicas do Brasil .................................. 85
8.1. Esclarecendo urna questao preliminar ...... ... .. ... ............................ 85
8.2. Restabelecendo o conceito de seguro previdenciário .................. 87
8.3. Propondo urna soluc;:ao para o problerr@: a criac;:ao das Letras
Financeiras para o Desenvolvimento (LFDs) ....................................... 88
8.4. A nova previdencia complementar incrementando dois segmentos
vitais da base economica: a indústria e a Bolsa de Valores ...... ......... 92
8.5. Ajudando a resolver a contradir;:ao básica de Thomas Piketty .. .... . 94

9. A guisa de conclusao ............................................................................ 97


Apendice: Sobre "pedaladas fiscais" ...................................................... 99
Referencias ................................................................................................. 119
lntrodu~ao Um novo projeto para o Brasíl 1

Dado o desalento que se abateu nos últimos anos sobre o Partido dos
Trabalhadores (PT), o petismo ou, de modo mais amplo, sobre o conjunto
do que poderíamos chamar de campo de esquerda brasileiro, é que me
propus a escrever estas mal trar;adas. O objetivo é tentar dar maior clareza
a seguinte pergunta: o que viria a ser um projeto de esquerda hoje, já
transcorridos tantos anos do século XXI? Ou, mais particularmente, o
que seria um projeto de esquerda para o Brasil?
Como pano de fundo para essa nao breve meditas;ao, tomaria, como
exemplo, un1a notícia de alguns anos atrás: "O governo Temer vai devolver
Furnas para o PMDB de Minas". Isso porque, se nos anos do governo

1 Esse título, além de pretensioso, é urna espécie de hornenagern a urn escrito por Celso Furtado:
Um projeto para o Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Saga, 1968. 132 p. (Imagem do Brasil, 6) nos anos 1960.
Na verdade, o objetivo <leste conjunto de artigos é constituir nnicamente urna agenda de debates,
representando um anteprojeto de urn projeto. Quanto ao plágio, trata-se efetivamente de urna singela
homenagern a esse grande brasileiro, cujas propostas de reforma da sociedade em prol do desenvolvi-
mento económico e social rnostram-se, cerca de 60 anos após as suas primeiras proposic;:oes, cada vez
mais necessárias e, naquilo que é essencial, atuais.

11
Mauricio Oorgc!I Lema!>

do presidente Fernando I-Ienrique Cardoso (FHC) Furnas esteve com


o Partido da Social Democracia (PSDB) de Minas Gerais, nos anos
petistas esteve, por muito tempo, com o Partido do Movimento Demo-
crático Brasileiro (PMDB) do Rio de Janeiro (nas maos do deputado
Eduardo Cunha, especialmente) até que de lá fosse retirada pela pre-
sidenta Dilma Rousseff. Esse fato desencadeou, além de várias demis-
soes, como a de Paulo Roberto Costa, entao diretor da Petrobras, o início
de um longo conflito com o sistema político que veio a desembocar no
processo de impeachment.
· Várias questoes fundamentais para um projeto de esquerda para o
Brasil estao presentes nesta, aparentemente, prosaica notícia.
Primeiro, no fato de que entregar parte ou toda urna empresa estatal
para um esquema político faz parte das regras_ do jogo, que pode ser
sintetizado pelo termo presidencialismo de coalizao.
Segundo, atitudes voluntaristas, típicas da esquerda, nao sao efi-
cazes para debelar esse mal, a exemplo da "limpeza'' de Furnas, da
Petrobras e de outras empresas e órgaos públicos, o que acabou resul-
tando no impeachment.
Terceiro, ve-se agora, muitos anos depois, que o que salvou Furnas
da privatiza<;:ao nos anos do governo FHC nao foram as for<;:as do Bem
que venceram o Mal. Mas sim, em razao das denúncias cada vez mais
plausíveis contra o senador mineiro Aécio Neves e o PSDB, deu-se a
vitória da proposta de um aparelhamento permanente da estatal, em vez
de urna privataria once f or all, que é sempre a daqueles políticos gulosos,
com visao imediatista.
Quarto, ao contrário do discurso das próprias corpora<;:oes, endossado
tanto aesquerda quanto adireita (a exemplo de Aécio Neves, que faz esse
discurso tecnicista), os quadros corporativos nao constituem antídoto para
o aparelhamento permanente, mas sima sua solu<;:ao, cujo efeito colateral
mais grave é tornar a corrup<;:ao sistemica, como demoristrado pelo caso
da Petrobras; afinal, Paulo Roberto Costa, Pedro Barusco, Nestor Cerveró
etc. sao todos funcionários de carreira. Assim, ao contrário do que dizia
equivocadamente o entao juiz Sérgio Moro, a corrup<;:ao é sistemica (e nao
episódica) nao exatamente em fun<;:ao do aparelhamento de órgaos e em-

12
Uni novo projcto para o Brasil

presas estatais pelo sistema político, mas pela sua "endogenei~ac;:ao" nos
quadros corporativos.
Quinto, se o Estado for de fato um instrumento imprescindível para
csse projeto de esquerda, ficamos com urna equac;:ao de difícil soluc;:ao:
impossível sem o Estado, e terrível com ele, com risco permanente de
corrupc;:ao e ineficiencia sistemicas.
Sexto e mais importante, se um projeto de esquerda nao pode ser
caracterizado como de estatizac;:ao, em antítese aprivatizac;:ao, como ele
poderia ser caracterizado?
Para responder a indagac;:ao proposta ao longo <leste µ.vro, vamos
assumir tres postulados fundamentais. O primeiro é que qualquer projeto
de esquerda procura construir a igualdade entre as pessoas, em todos os
sentidos que este termo possa significar. Ou, em outras palavras, e para
utilizar um velho refrao, qualquer projeto de esquerda é socialista. 2 O
segundo, que constitui urna quase antítese do primeiro, é que a dinamica
de evoluc;:ao das pessoas, da sociedade e da humanidade de modo geral
é desigual, darwinista, implicando que a construc;:ao da igualdade (do
socialismo) é permanente, urna vez que qualquer construc;:ao igualitária
tende a ser acompanhada de mudanc;:as que reintroduzem a desigualdade
na sociedade. O terceiro é que essa dinamica darwinista, em que pode
prevalecer alei do mais forte, do mais esperto ou do mais inteligente, é base
da evoluc;:ao da sociedade humana, ou, em termos da era moderna, de seu
desenvolvimento económico e social, sendo, portanto, imprescindível.
Assim, o socialismo nao é o paraíso idílico e estático idealizado por Marx,
mas urna construc;:ao permanente, imposta pelas desigualdades trazidas
pelo próprio desenvolvimento. E o Estado, mesmo que conduzido com
as melhores intenc;:6es voluntaristas, acaba sendo vítima, também, dessa
dualidade contraditória, urna vez que constituí sempre o instrumento
básico para a construc;:ao da igualdade, bem como para a viabilizac;:ao do
desenvolvimento, que contém os germes da desigualdade.
A dificuldade de se construir urna agenda de esquerda pode ser
facilmente compreendida se admitirmos os tres postulados acima e
2 Discordamos inteiramente do discurso do "fim da história" e do fim do sentido político da dualidade
esquerda/ direita, como procuraremos sugerir ao longo <leste livro.

13
Mllulftlo Uu1ut1!11 P11111••

abandonannos alguns mitos simplificadores - solucionadores - como


o do ativismo estatal. Nao há um paraíso a ser alcarn;:ado, mesmo que
mitigado em etapas. Há, sim, urna constrrn;:ao permanente, baseada em
metas mutáveis ao longo do tempo.
Na sequencia, apresentamos reflex6es acerca de temas cujo objetivo
principal consiste em estabelecer os contornos de um projeto socialista
para o Brasil e que abordam os seguintes tópicos: no primeiro capítulo
é apresentada urna breve descric;:ao de como essas quest6es delineadas
acima apareceram na discussao da esquerda nos séculos XIX e XX. Atenc;:ao
especial é dada a questao do Estado, de como um problema decisivo e
complexo, sintetizado pela equac;:ao (impossível sem ele e terrível com ele)
foi decididamente negligenciado pelo pensamento de esquerda em todos
os seus matizes; no segundo e terceiro capítulos as discuss6es desembarcam
no Brasil e tentam alinhavar o que seria um projeto de reforma política
de esquerda defensável e negociável com as demais forc;:as políticas; nos
capítulos subsequentes sao tratadas as quest6es económicas básicas que
envolveriam um projeto socialista no Brasil.3
Adiantando já a principal conclusao, pa:r:a poupar alguns muito
a esquerda ou a direita, que poderiam assim evitar a perda de tempo
coma leitura destas mal tra<;adas que se sucederao, diría, parafrasean-
do um velho jargao, que Jora da social-democracia nao há salvat¡éío, isto
é, o projeto socialista é inevitavelmente social-democrata, no sentido
histórico do termo. A despeito de apropriac;:6es indevidas (no Brasil,
os casos mais notórios sao o antigo Partido Social Democrata (PSD),
extinto em 1964, e o atual PSDB), ele sintetiza e facilita a construc;:ao
de urna agenda, sem perda de tempo com mitos dos séculos XIX e XX.
E essa agenda nao é trivial, mesmo no padrao dos países desenvolvi-
dos, dificuldade que é ampliada para um país complexo e subdesen-
volvido como o Brasil.

3 Em síntese, um projeto socialista teria de contemplar, de forma consistente, dois tipos de


problemas: i) como implementar políticas sociais com redistribuic;:áo de renda; ii) como conju-
gar isso ao necessário desenvolvimento económico? Deve-se lembrar que, em pleno boom das
commodities, no primeiro governo Lula, acreditava-se que a política de redistribuic;:ao de renda
levaría por si s6 ao desenvolvimento económico, o que náo passa de urna rematada tolice.

14
Estado, reforma, revoluc;ao
e socialismo no pensamento
clássico da esquerda

A dinfunica da sociedade - qualquer sociedade - é darwinista, tendendo a


predom.illar a lei dos mais fortes (ou dos mais espertos, ou dos mais inteli-
gentes). Isso fez com que, ao longo dos tempos, surgisse o Estado como forma
de estabilizar as relac¡:6es entre as pessoas: consolidando interesses e privilégios
ou atenuando-os, ou mitigando-os, e evitando que urna guerra permanente
entre os indivíduos se tornasse inevitável. Assim, urna pergunta básica: nao era
de se esperar que a formulac¡:ao de urna agenda socialista deveria ter como
eixo central a concepc¡:ao de urn novo Estado? E que esse Estado, nas suas
ac¡:6es para conciliar a construc¡:ao da igualdade, com o necessário desenvol-
vimentismo da sociedade, teria urn grau de clificuldade a mais e nao a menos?
A resposta para essa indagac¡:ao, que deveria ser urn claro e inescapável
sim, historicamente tem sido um decepcionante nao. 4 Nao faltaram
estudos sobre a natureza do Estado, seu funcionamento e funcionalidade

4 Seja nos primórdios do pensamento socialista do século XIX (especialmente Marx), seja nos
debates da esquerda que antecederam a Revolw;:iio Russa, seja durante todo o período soviético,
seja após a derrocada da Uni5.o Soviética, no início dos anos 90 do século passado.
Maurfclo Borges Lemas

na sociedade capitalista, os conflitos de interesses entre o status quo e


segmentos burgueses emergentes, o surgimento da classe média e seu
papel na sociedade capitalista, e assim por <liante. Mesmo com o colapso
da Uniao Soviética, pouco se elaborou sobre a forma de organizac;:ao do
Estado e sua dinamica nesse tipo de sociedade. Urna vez que havia ali
um superestatismo, as análises sobre o-fim da URSS tem urna narrativa
simples e superficial a direita, com pouca elaborac;:ao proveniente da
esquerda. E, como sempre, quase nada foi elaborado sobre o Estado a
ser construído, de um ponto de vista socialista, no contexto do Estado
-hurgues que aí está.
As razoes para essa grave la cuna podem ser complexas, com explicac;:oes
inclusive antropológicas. Afinal de contas, pensar que o paraíso, urn
arquétipo presente na maioria das religioes, nao existe e que o Estado
nao passa de urn instrumento de construc;:ao de urna agenda, sempre em
mutac;:ao, acaba sendo frustrante, nao incentivando maiores elaborac;:oes.
No entanto, preferimos nos conter a urna explicac;:ao teórica, que estaría
na forc;:a filosófica da concepc;:ao socialista de Marx, indiscutivelmente a
matriz de referencia principal, ainda hoje, do-pensamento de esquerda,
Para entender isso, vamos recapitular um debate entre Rosa de
Luxemburgo, Karl Kautsk:y e Eduard Bernstein, no contexto do Partido
Social Democrata Alemao, no início do século passado. 5

1.1. Reforma ou revoluc;ao?

No final do século XIX e início do século XX, travou-se um importante


e emblemático debate no seio do Partido Social Democrata Alemao, até
entao o mais importante do Ocidente. A esquerda, Rosa de Luxemburgo
dizia que o capitalismo, em sua etapa imperialista, estava em fase
final, com crises económicas recorrentes, sendo a grande guerra que
se avizinhava o momento derradeiro da dissoluc;:ao do Estado hurgues
e da revoluc;:ao socialista. Lenin (2010; 2012), com análise ec~mómica
5 Urna análise crítica deste debate, bem como a publicac;:ao na íntegra dos ensaios desses tres ideó-
logos e líderes da Social-Democracia Alema, sintetizando suas posic;:oes, está em MILLS, C. Wright.
The marxists. S. l.: Pelican Book, s. d. 460 p.

16
Um novo projeto para o Brasil

ligeiramente diferente, chegava a conclusóes bastante semelhantes, com


apenas uma diferenc;:a: a revolrn;:ao socialista nao viria automaticamente,
seria necessário um partido que a viabilizasse, vale dizer, urna máquina
burocrática, centralizada, que pudesse tomar o Estado em suas maos.
No centro, Karl Kautsky dizia que, nao agora, mas no futuro, na
fase do superimperialismo, o capitalismo acabaria por ter a sua der-
rocada, e o socialismo viria naturalmente, sem traumas e, sobretudo,
sem a necessidade de urna revolrn;:ao. No bom portugues, a expressao
"parlapatao", ou, no modo coloquial brasileiro, um "rolando lero", se-
ria o adjetivo mais apropriado a ser dado a Kautsky, e nao renegado,
termo atribuído por Lenin.
A direita, Eduard Bernstein defendia urna posi<;:ao explicitamente
reformista, ponderando que o socialismo seria urna constru<;:ao
paulatina de conquistas para os trabalhadores, por dentro do Estado
burgues. Politicamente moderados, os argumentos de Bernstein em prol
da reforma nao sao nada triviais. Resumidamente, ele fez urna análise
aprofundada da evolu<;:ao económica alema na segunda metade do
século XIX, utilizando, inclusive, censos demográficos e económicos,
concluindo que os postulados de Marx sobre a evolu<;:ao da estrutura
social, sob o capitalismo, nao estavam se verificando, tendo acorrido,
na prática, urna evolu<;:ao em dire<;:ao distinta e, por vezes, contraditória
com aquilo proposto.
Basicamente, Marx acreditava inequivocamente na tendencia
aproletarizac;:ao crescente da sociedade capitalista. No futuro, as classes
intermediárias iriam vanescer, cristalizando-se cada vez mais urna
grande massa de proletários e alguns poucos grandes capitalistas. Nessa
previsao, as classes intermediárias iriam aos poucos e inevitavelmente
desaparecer, tanto os pequenos empresários e pequenos agricultores
como as diversas func;:oes qualificadas e especializadas.
Diferentemente disso, Bernstein constatou que, a despeito da su-
pressao de diversos oficios artesanais, substituídos pela primeira
(e segunda) revolu<;:ao industrial, e da crescente concentra<;:ao indus-
trial, a economía capitalista vinha criando novas qualifi.cac;:oes, ao lado
de novas ramos e cadeias produtivas, inclusive servi<;:os, fazendo com
Mauricio Borges Lemos

que o número líquido de novas qualifica<;:6es e empresas aumentas-


se significativamente. A pequena empresa, por exemplo, ao invés de
ser um fator em extin<;:ao, parecía ser um fenómeno em expansao,
nao apenas em ramos e sub-ramos de servi<;:os, mas mesmo por den-
tro das cadeias produtivas. Mais que isso, a evolu<;:ao económica e a
estrutura social correspondente estavam se tornando mais diversas e
complexas, nao corroborando a profecía de Marx de urna sociedade
crescentemente dual.
Acrescenta-se, ainda, a essa análise de Bernstein, que naquelas
sociedades, regioes ou países com baixo crescimento sistemico, ou
mesmo em toda a economía capitalista mundial em períodos de
crise mais prolongados, a tendencia a dualidade ficava a vista, nao
exatamente na dire<;:ao preconizada por Marx, de urna crescente
proletariza<;:ao, mas da forma<;:ao de urna crescente marginaliza<;:ao, por
vezes de populay6es inteiras.
Assim, o Estado no socialismo, que, na visao de Marx, seria
cada vez mais simples, com tendencia ao desaparecimento, tem, na
verdade, urna tarefa quase impossível, ou seja, regular e administrar
crescente número de especializa<;:6es e empresas, ao lado, por vezes,
da tarefa de dar dinamica e desenvolvimento a países ou regioes
marginalizadas. A solu<;:ao para tais dilemas e problemas, segundo
Bernstein, é a reforma, aos poucos e por etapas, da sociedade e do
Estado hurgues, com urna agenda sempre em muta<;:ao, ao invés da
solu<;:ao revolucionária.
O problema, no caso, nao é a revolu<;:ao em si, já que, por vezes,
resulta de traumas e convulsoes inevitáveis, mas responder a pergunta:
revolu<;:ao para que? Para urna estatiza<;:ao completa da sociedade? Como
administrar, ou mesmo regular, no contexto de um superestatismo, urna
sociedade cuja dinamica é essencialmente diversa e desigual?
Em resumo, caminhando em dire<;:fo oposta a de Marx, dir-se-ia
que a necessidade crescente do Estado, sobo capitalismo e o que possa
vir depois dele, impoe que urna agenda permanente para sua reforma
e aprimoramento seja a tarefa essencial de urna plataforma verdadei-
ramente socialista. Sua democratizas:ao, centrada na transparencia, na
Um novo projeto para o Brasil

eficácia e na eficiencia, deveria constituir o objetivo permanente de urna


plataforma de esquerda, em busca incessante da igualdade e do desenvol-
vimento do conjunto da sociedade. No fundo, essa é urna tarefa muito
complexa, que nunca <leve sucumbir aos mitos, simpli:ficac;:oes ou simples
fugas da realidade. Construir permanentemente a igualdade e o desenvol-
vimento, onde o "o que?" tem de ser precedido pelo "como?" via Estado?
Por suposto, mas com o máximo de transparencia, eficácia e eficiencia.
Há atalhos para essa longa, permanente e interminável tarefa?

1.2. Um suposto atalho: nem Rosa, nem Kautsky, nem Bernstein,


e sim Lenin e Stalin

Fazer a revoluc;:ao, como propunha Rosa, ou mesmo Trotsky em sua


fase menchevique6 , sem um mecanismo para tomar o Estado em suas
maos, é quimera quixoteséa, como apontara Lenin, em 1902, no famoso
congresso da Social Democracia Russa que deu origem ao termo
bolchevique (maioria), que apoiou Lenin e menchevique (minoria).
Era necessário um Partido da Revoluc;:ao, urna máquina burocrática
centralizada e disciplinada que viabilizasse nao apenas o golpe de estado,
mas que exercesse o poder na forma de urna ditadura (do proletariado, um
complemento nominal fantasioso, que nao mitigaría as consequencias
terríveis de urna ditadura).
No início dos anos 1920, feíta a revoluc;:ao e superada a fase da guerra
civil, Lenin e o Patiido Bolchevique encontravam-se num dilema atroz:
manter o pequeno e médio empreendimento privado (em especial, na
agricultura) trabalhando em sintonia com grandes empresas estatizadas,
avanc;:ando-se novamente em direc;:ao a urna sociedade plural e diversi-
fi.cada7, ou, seguindo a proposta de Trotsky, partir para urna coletiviza-
c;:ao - estatizac;:ao - completa das atividades económicas, buscando urna
industrializac;:ao rápida e forc;:ada? Coma morte precoce de Lenin, em
6 DEUSTSCI-IER, Isaac. Trotsky: o profeta desatmado, 1921-1929. Rio de Janeiro: Civiliza<yiio
13rnsileira, 2005. 570 p.
7 Em s!ntese, essa ern a carncterlsticn que vinhn sendo tomada pela Nova Política Economica (NEP),
ndotada cm substilu!<;:ño no "comunismo de guerrn''.
Maurfcio Borges Lemos

1924, como se sabe hoje, a proposta de Trotskyfoi adotada8, embora via-


bilizada (sem Trotsky e com Stalin) por urna nova fase da ditadura entao
instalada, alcarn;:ando-se um terror totalitário sem precedentes.
Tirando-se as ineficiencias do sistema stalinista, como a destruic;:ao
da entao portentosa agropecuária russa e ucraniana e o assassinato de
milh6es, por que, de certo modo, a industrializac;:ao forc;:ada funcionou?
Lembremos, por exempio, que foi essa indústria pesada soviética,
ao lado da economia americana, que venceram, economicamente, a
Segunda Guerra Mundial. E por que, mesmo após a segunda guerra
mundial, a ruína do sistema stalinista só veio a acontecer no final dos
anos 80 do século passado?
Indo direto ao ponto, com o risco de simplifi.cac;:ao indevida de urna
questao tao complexa, diríamos que as ineficiencias da superestatizac;:ao
stalinista eram resolvidas politicamente pela ac;:ao permanente do
Estado totalitário, e compensadas economicamente pela predominancia
do sistema de produc;:ao fordista na estrutura da economia mundial.
Assim, grandes empresas estatais fordistas tendiam a absorver as
ineficiencias provocadas pela ausencia das pequenas e médias empresas
nas cadeias produtivas e grandes aglomerac;:6es industriais. Entretanto,
com o início da era da informac;:a.o9, no início dos anos 1980, com a
tecnología flexível e a decadencia da grande empresa fordista, o sistema
stalinista ruiu, inviabilizando aquilo que foi um grande equívoco
histórico e que poderia ter sido evitado, mesmo depois, mas ainda nos
primórdios da revoluc;:ao russa.
Para a esquerda, as lic;:6es de todos esses eventos, contendas e debates
deveriam ser nao há soluyao simples, especialmente quando se sustenta em
mitos, já que o problema é complexo, e se resume no equacionamento do
dilema: a construyao permanente do socialismo é impossível sem o Estado
e terrível (quase impossível) com ele.

8 Ver mais sobre o tema em Deutscher, Isaac. "O profeta desarmado, 1921-1929. Rio de Janeiro: Civili-
zac;:ao Brasileira, 2005 e Deutscher, Isaac. "A Revoluc;:áo Inacabada: Rússia 1917-1967". Rio de Janeiro:
Civillzac;:iío Brasileira, 1968.
9 Quando as grandes corporac;:oes tendem a ser empresas de intangíveis, articuladas e inseridas em
aglomcra11oes diversificadas, formadas por micro, pequenas e médias empresas.
Do presidencialismo de coalizao
ao parlamentarismo da exclusa.o
(ou o pesadelo dos 300 pi caretas
no Congresso, segundo Lula nos
anos 1990, até odia da noite de
horrores -17/4/2016)

2.1. O impeachment para além da questao conjuntural:


a instabilidade estrutural

Comeyando por runa pergunta singela: por que a presidenta Dilma


Rousseff caiu? Urna resposta genérica diría que foi runa conjugayao
das foryas de direita no PIG 10, no sistema financeiro, no Judiciário e no
Congresso, que se aproveitou de runa conjuntura económica desfavorável,
para viabilizar mn golpe de Estado. Embora verdadeiros, esses pontos
nao comp6em urna explicayao mais geral que poderia conter estas e
outras questóes que forman1 a complexa e difícil conjuntura brasileira.
Assim, preferirían1os dizer que a presidenta Dilma caiu porque
capitaneava um governo de esquerda, baseado numa agenda pouco clara,
confusa, inconsistente política e economicamente. Claro que houve
uma contribuiyao direta dela, algumas paradoxahnente positivas, para
1OTermo cunhndo pnrn exprimir Pnrtido dn Imprcnsa Golpistn.
Mauricio Borges Lemas

o aprofundamento da crise, mas que constituem aspectos secundários


quando se observa o panorama mais amplo.
Alguém diría: o presidente Lula nao caiu com agenda identica.
Só que, nesse caso, ele foi muito beneficiado pela conjuntura internacional
(boom das commodities) e até por Sao Pedro, que fez chover e encher os re-
servatórios, evitando um choque tarifário relativo aenergía elétrica. Mes-
mo assim, ele quase ca_¡u, Ademais, em nome da governabilidade, muitas
pontas soltas foram deixadas, seja na agenda económica, seja na políti-
ca, que vieram cobrar sua fatura no governo Dilma. De um modo mais
geral ainda, diríamos que o sistema político brasileiro; seja o que existiu
de 1946 a 1964, seja o atual, bastante semelhante ao anterior, cuja melhor
denominas;ao é o termo presidencialismo de coalizao, é estruturalmente
instável, inviabilizando nao apenas governos aesquerda (Getúlio Vargas,
Joao Goulart e os petistas recentes), mas até mesmo governos populistas
de direita (Janio Quadros e Fernando Collor). Mesmo Juscelino Kubitschek
(JK), conduzindo um governo centrista e desenvolvimentista, quase nao
tomou posse e passou por risco de golpe em mais de um momento de
seu governo. E o período do governo FHC, aparentemente estável, passou
por turbulencias diversas, quebra de regras com características golpistas
(como o escandalo da aprovas;ao da reeleis;ao em proveito próprio), além
da má gestao fiscal e económica, e do aparelhamento de praticamente
todos os órgaos estatais, sob a égide do presidencialismo de coalizao.

2.2. O voto proporcional e a rede de cabos eleitorais

O problema reside fundamentalmente na forma em que se estrutura o


sistema político brasileiro, seja no período de 1946 a 1964, seja no período
pós-democratizas;ao, a partir da Constituinte de 1988. A dificuldade central
está no sistema de escofüa dos representantes da mais importante casa do
Congresso Nacional: a Carnara dos Deputados. Caracterizado pelo voto
proporcional, no qual os candidatos mais votados dentro de cada estado sao
eleitos, o sistema presta-se a grandes distors;oes, entre elas o voto cacareco,
no qual um nome mais conhecido (o Enéas ou o Tiririca, por exemplo) puxa
Um novo projeto para o Brasil

a votac;:ao de inúmeros desconhecidos. Mas a principal delas reside no fato


de que, desprovido de características plebiscitárias e falta de transparencia, o
esquema dos cabos eleitorais é decisivo para a captura dos votos. Antes de
1970, esse sistema era dominado pelos coronéis, tal como descrito por Víctor
Nunes Leal em Coronelismo, enxada e voto. 11 Coma urbanizac;:ao, os antigos
cabos eleitorais foram substituídos por cabos eleitorais urbanos, com o
mandonismo sendo substituído por pequenos favores ou promessas, muitas
vezes, no caso do cabo eleitoral, travestidas de religiao, feitas "em nome de
Deus". Assim, o candidato que articula o esquema mais eficiente de cabos
eleitorais, com menos custos e mais votos, possuindo, assim, um intangível,
é eleito, ao lado, é claro, daqueles mais conhecidos do eleitorado, que podem,
parcial ou totalmente, prescindir desse tipo de estrutura. Cría-se, assim, urna
virtual assimetria entre o Executivo, eleito diretamente pelo voto popular, e a
Camara dos Deputados, eleita por um sistema difuso e obscuro.
A referida estrutura aparece de forma mais nítida, pela primeira vez,
na eleic;:ao de Getúlio Vargas, em 1950, quando um candidato a presidente
muito popular galvanizou os votos dos próprios cabos eleitorais, elegendo o
presidente com viés popular ao lado de um congresso obscuro e conservador.
Esse fenómeno, no Brasil urbano dos anos 2000, repetiu-se agora com Lula
e o PT galvanizando os votos populares, em completa contradic;:ao com a
Ounara dos Deputados, dominada pelos mais de 300 picaretas. A base desse
esquema, na sua versao urbana dos anos recentes, é a compra de votos, nao
diretamente do eleitor, mas via cabos eleitorais. Estima-se, por exemplo, que
a eleic;:ao de um deputado federal no Rio de Janeiro, em 2014, teria custado,
em média, R$ 10 milh6es. Assim, se o investimento custou esse montante, e
o retorno legal com salários e subsídios diversos, alguns viltualmente ilegais
ou no limite da legalidade, di:ficilmente passaria de R$ 3 milh6es em 4 anos,
haveria claramente um problema de realizac;:ao do investimento, nao apenas
para repor, mas para produzir um lucro compatível como capital empregado.
A forma de recuperac;:ao do investimento passa por vários expedientes, que
vao dos quase saudáveis, como o lobby simples, o lobby selvagem, com
achaque, no estilo do deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ), o esquema das
11 LEAL, Victor Nunes. Coroncllsmo, c11xada e voto. Sao Paulo: Revista Forense, 1948. 308 p.
Maurfcio Borges Lemas

emendas parla:rllentares, que vao de algumas razoavelmente saudáveis até a


corrup<;:ao desenfreada, e chegando ao controle de ministérios e empresas
estatais, o que se torna preocupante, porque tende a afetar, estruturalmente,
a própria eficiencia e eficácia do Estado.

2.3. Os avisos de que o cancer poderia tomar canta do organismo

Esse é um problema gravíssimo para qualquer presidente eleito, seja


José Sarney, na transi<;:ao, Collor, Itamar Franco, FHC, Lula e Dilma.
O governo de Michel Temer (PMDB) nao conta, porque sintetiza a
tomada do poder por esse sistema viciado, em que o cancer finalmente
toma conta do organismo. Especialmente nos anos petistas, o problema
nao foi enfrentado; ao contrário, foi agravado pela contribui<;:ao de muitos,
como o Supremo Tribunal Federal (STF), que legislou favoravelmente
a cria<;:ao de novos partidos, e a omissao e procrastina<;:ao de todos
eventualmente interessados na evolus:ao do sistema político brasileiro. 12
No entanto, os avisos de que esse sistema poderia inviabilizar ou mesmo
derrubar um governo de esquerda foram dados desde o início.
Para comes:ar, houve, desde logo, na formas:ao do governo do presi-
dente Lula, no final de 2002, urna clara contradi<;:ao entre os propósitos
e equipes definidas para os ministérios e estatais e a necessidade de
formas:ao de maioria parlamentar que assegurasse a governabilidade.
Para ficar apenas num exemplo emblemático, o Ministério de Minas e
Energía seria entregue ao PMDB, que entraría no governo, apesar de
ter composto a chapa do PSDB, derrotada nas elei<;:6es presidenciais.
O presidente Lula preferiu nomear Dilma Rousseff, o que foi crucial
para se evitar um novo apagao, isto é, racionamento de energia, nos
anos que se seguiram. Entretanto, essa, como outras decis6es, que
buscavam viabilizar o programa do governo eleito, levaram a urna crise
imediata de governabilidade. Nessas condic;:oes, o entao ministro-chefe
da Casa Civil, José Dirceu, teve de improvisar, montando urna maioria
12 Que fique claro que a proliferai¡:áo de partidos constitui um agravamento <leste sistema vicia-
do, e nao a sua causa.
Um novo projeto para o Brasil

parlamentar provisória, com partidos médios e pequenos, e possivel-


mente envolvendo, como contrapartida, o pagamento de dívidas de
campanha, ao lado da entrega de um número relativamente pequeno
de cargos no Executivo.
O segundo aviso ocorreu quando esse improviso apresentou proble-
mas diversos, findando na crise do mensalao. Embora esse nunca tenha
sido provado, 13 o fato determinou urn padrao de procedimentos que se
estenderia para todo o ciclo petista. Ao ter seu preposto flagrado rouban-
do, o deputado Roberto Jefferson (PTB/RJ) utilizou a manjada tática "pega
ladrad: com todos se voltando para o PT. O mesmo se verificou na opera<;:ao
Lava Jato, com Paulo Roberto Costa e, mais tarde, com Eduardo Cunha, no
episódio que culminou com o impeachment da presidenta Dilma. Ou seja,
mesmo que o ciclo petista tenha sido urn dos que tiveram menor grau de.
corrup<;:ao da história do Brasil, senda o período militar o seu auge, está se
vendendo e divulgando como o de mai?r grau.
O terceiro aviso consistiu no custo da concessao de fatias do poder para
a repactua<;:ao política que se sucedeu ao mensalao. Vários ministérios
e nacos de empresas importantes, como a Eletrobras e a Petrobras,
foram entregues aos novas aliados na repactua<;:ao política. O caso mais
conhecido, pelas suas consequencias, foi o da nomea<;:ao de Paulo Roberto
Costa, nome indicado pelo PP e pelo PMDB, como diretor da Petrobras.
Funcionário de carreira de empresa e diretor de Petróleo e Gás no governo
FHC, estava no limbo desde 2003, a espera de urna nova oportunidade,
que, afinal, surgiu. Neste caso, dada a sua amplitude, o custo nao apenas se
expressou no aumento da ineficiencia do Estado, mas também no alto risco
político e económico de que, pego roubando, o operador e seu padrinho
disparariam urna nova tática "pega ladrad' que poderia implodir o governo.
O quarto aviso veio na forma de julgamento do próprio mensalao,
a publicidade, o uso político sem disfarces, sem falar no casuísmo
jurídico e desfa<;:atez de escrúpulos, em que, para um mesmo peso,
foram criadas várias medidas. E o espetáculo foi montado sem
participa<;:ao relevante do Ministério Público (MP) e da Polícia
13 Também nño foi provada a utiliza9iio de recursos públicos do BB, havendo apenas indícios
Cortes de caixa dais.
Mauricio Borges Lemas

Federal (PF), institui<;:óes que adquiriram relevo a partir da Lava


Jato, apenas contando coma tabelinha PIG/STF. 14
O quinto aviso veio a partir da tentativa de forma<;:ao do governo
Dilma em 2011. Com alguns operadores sendo pegos coma boca na
botija, nao adiantou muito a presidenta afirmar que nao pactuava como
malfeito. E nem mesmo demitir personagens como Paulo Roberto Costa
ou prepostos de Eduardo Cunha em Fumas: o que era passado para a
popula<;:ao era a imagem de um governo de corruptos, ao mesmo tempo
em que a base parlamentar do governo ia se dissolvendo. As manifesta<;:óes
populares que se sucederam, a esquerda e a direita, em 2013, abriram
urna espécie de espa<;:o para a discussao da reforma política. A falta de
um projeto, que incorporasse os pontos mais relevantes que poderiam
levar a um relativo consenso das for<;:as políticas, inviabilizou e levou a
oportunidade perdida.
O sexto aviso veio com o início da Lava Jato, nos primeiros meses
de 2014. Seu objetivo (letal) seria inviabilizar a reelei<;:ao de Dilma,,
possivelmente sem propósitos maiores, tal como alardeado atualmen-
te. E o milagre aconteceu: a maioria do povo nao deixou que o golpe
do Judiciário, midiático e da direita se viabilizasse eleitoralmente, ree-
legendo a presidenta.
Com isso, veio o sétimo e último aviso: a transforma<;:ao da Lava
Jato e outras opera<;:óes similares num formato permanente para
inviabilizar estruturalmente, a qualquer custo, inclusive económico, o
governo agora deposto e futuros que abriguem motiva<;:óes populares.
Isso ocorreu logo depois das elei<;:6es, e a resposta, por parte do governo
reeleito, foi tacanha, já que estava desprovido de um projeto político
e económico mínimamente sólido e consistente, ao lado de erros
táticos elementares na formai;:ao e condu<;:ao dÓ ministério. E aí, sem
urna estratégia política e económica, ou sequer urna tática razoável, o
golpe :finalmente se materializou, deixando urna economía em ruínas,
as institui<;:6es democráticas seriamente abaladas e urna esquerda
desunida e desalentada, talvez aprocura de um projeto.
14 Com os "esfon;:os" feitos ainda no período Lula, mas, sobretudo no período Dilma, passaría-
mos a ter um tripé letal - STF, MP e PF - inviabilizando o Estado de Direito no Brasil.
A reforma política

3.1. Voto proporcional versus voto distrital

Urna pergunta singela: em quais países do mundo, de porte médio


ou grande, estáveis e democráticos, prevalece o sistema proporcional
na forma<;:ao da Camara Baixa (Camara dos Deputados)? Se conside-
rarmos que Itália e Espanha sao países democráticos, mas instáveis,
a resposta seria: nenhum. Nos grandes países .da Europa, Estados
Unidos, Canadá, Austrália e Japao predominam o sistema distri-
tal ou distrital misto, em que parte da Camara Baixa é formada
pelo critério proporcional. Nos países pequenos da Europa, como
a Suécia, funciona muito bem o sistema proporcional, embora com
importantes mitigadores,. como a cláusula de barreira duplamente
aplicada, em nível nacional e sub-regional.
Tratado no Brasil com indisfar<;:ável preconceito, o voto distrital, a des-
peito de seus inúmeros defeitos, tem urna qualidade essencial: é explícita-
mente plebiscitário, transparente, em qlte se opta por mn nome e partido
Maurfcio Borges Lemos

em oposi<;:ao a outros nomes e partidos. Há de forma clara urna escolha do


eleitor, boa ou ruim, nao importa, caracterizando o fato essencial da demo-
cracia. Mesmo Marx, em sua proposta radical de sistema eleitoral do par-
lamento (o Soviet), caracterizava-o como essencialmente distrital, já que o
controle político do deputado eleito deveria (na prática só poderia se-lo) ter
como referencia urna determinada base territorial. A qualquer momento,
a assembleia distrital poderia convocar, orientar, corrigir ou mesmo demi-
tir seu representante.

3.2. Argumentos contrários ao voto distrital

Na verdade, sao pelo menos tres os principais argumentos levantados


pelos dentistas políticos contra o sistema distrital.
O primeiro refere-se ao caráter arbitrário do corte territorial para a
formas:ao de cada distrito, o que poderia favorecer a sub-representas:ao
de algumas regi6es em relac;:ao a outras, adquirindo contorno
conservador, ao dar maior peso relativo a áreas atrasadas de populac;:ao
rarefeita em detrimento das grandes aglomerac;:6es urbanas. Ou seja, tal
como aplicado no Reino Unido, no século XIX, urna área típicamente
rural e com populac;:ao rarefeita tinha o mesmo peso, elegendo urn
deputado, do que urna área típicamente urbana, com populac;:ao, por
exemplo, duas ou tres vezes maior. Esse argumento, válido para o Reino
Unido no século XIX, nao faz mais sentido na divisao territorial da
maioria dos países com sistema distrital. E no Brasil, nao mexendo no
pacto federativo, que limita o número de deputados do maior estado
da Federac;:ao (Sao Paulo) e fixa um número mínimo para os menores,
a distribuic;:ao dos distritos entre e dentro dos estados deveria ser um
assunto do Instituto Brasileiro de Geografi.a e Estatística (IBGE), que
alteraría de tempos em tempos a base territorial dos distritos, seguindo
a dinamica populacional.
O segundo argumento refere-se ao caráter paroquial do sistema dis-
trital, o que induziria o deputado distrital a ficar prisioneiro dos as-
suntos da paróquia em detrimento daqueles de interesse geral do país.
Um novo projeto para o Brasil

Na realidade, nao existe nada de mais saudáv.el do que um deputado


defender os interesses paroquiais de seu distrito, diferentemente do
sistema atual em que um deputado proporcional até utiliza a referen-
cia aparóquia para justificar ernendas parlamentares esdrúxulas, com
objetivos inconfessáveis, já que nao possui formal e politicamente urna
base territorial de referencia aqual <leve prestar cantas. Além do mais,
no sistema distrital, podem muito bern conv.iver temas paroquiais com
outros nacionais, a exemplo da reforma da Prev.idencia, dos direitos
trabalhistas ou do sistema tributário. E a populac;:ao, ao contrário do
sistema atual, terá muito maior probabilidade de saber corno se posi-
ciona, nessas questoes, a priori e a posteriori, o seu deputado distrital.
A terceira objec;:ao a esse sistema é de fato muito relevante: o
sistema distrital, especialmente quando ternos por referencia os casos
típicos dos Estados Unidos e do Reino Unido, tende a convergir para
o afunilamento do leque partidário, inclinando-se ao bipartidarismo,
com o virtual engessamento das opc;:oes políticas para o eleitorado.
Entretanto, há saídas já testadas para esse problema, como ilustramos
casos alemao e frances: o prirneiro optando pelo sistema misto, com
metade dos deputados eleitos nos distritos e a outra metade escolhida
proporcionalmente (por lista) a partir da votac;:ao distrital; o segundo,
ao optar pelo distrital puro, embora com votac;:ao em dois turnos, na
hipótese de o candidato mais votado nao conseguir maioria absoluta
(50% + 1) dos votos.
Assim, todos os eventuais defeitos do sistema distrital sao
superáveis, o mesmo nao se podendo dizer do sistema proporcional,
cúja aptidao é de ser estruturalmente deficiente. Na medida em que
o tamanho e as disparidades regionais do país aumentam, torna-se
mais difícil mitigar essas falhas, ao passo que no sistema distrital suas
qualidades ficammais visíveis. É pouco dizerque o sistema proporcional,
com as mitigac;:oes apropriadas, funciona l)'em na Suécia ou Holanda,
ao passo que significa muito afirmar que um país muito pobre, imenso
e com grandes disparidades étnicas e regionais, como a Índia, possui
estabilidade política e funciona bem com seu sistema distrital.
Mauricio Borges Lemos

3.3. O círculo vicioso da pobreza do voto proporcional no Brasil

Aí vem outra pergunta singela: por que urna questao tao polemica
nem sequer foi discutida nas duas constituintes democraticamente
eleitas instaladas no Brasil no século passado, a de 1946 e a de 1988?
Urna resposta mais geral diría que a cultura brasileira tem urna
orienta<;:ao estrutural a preservar as coisas que nao funcionam, tal como
analisado por Sérgio Buarque de Holanda - o brasileiro cordial - em seu
Raízes do Brasil. 15 Mais precisamente, diríamos que o defeito congenito
dessas constituintes é que nao foram convocadas como exclusivas,
estabelecendo-se, por exemplo, para os parlamentares urna quarentena
de alguns anos para participar novamente da atividade política.
Produziu-se, assim, o círculo vicioso: os deputados, escolhidos pelo
sistema proporcional, trataram como um consenso cordial o sistema
que os elegeu, espelhado de forma inquestionável nas regras eleito-
rais definitivas. O deputado constituinte, possuidor de um intangível
responsável por sua elei<;:ao, o sistema de cabos eleitorais, reproduziu,
nao apenas referendando o seu próprio mandato, mas perpetuando
as regras eleitorais que o favoreciam, tanto em 1946 quanto em 1988.
Isso abriu espa<;:o para outro mito: o do consenso nacional a favor do
presidencialismo em oposi<;:ao ao parlamentarismo.

3.4. Presidencialismo versus parlamentarismo

Em i961, o Congresso Nacional, respaldado pelo PIG daquela época


e pelos militares, atropelou a Constitui<;:ao e criou um sistema par-
lamentarista, para que fosse absorvida a posse, como presidente da
República, do vice-presidente eleito Joao Goulart, em substitui<;:ao
ao renunciado Janio Quadros. Com isso, o plebiscito de 1962 entre
parlamentarismo e presidencialismo só poderia resultar na derrota
acachapante do primeiro, já que a popula<;:ao interpretou-o, correta-
mente, como sinónimo de golpe.
15 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ra{zes do Brasil. 26. ed. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1996. 220 p.
Um novo projeto para o Brasil

Em 1993, novamente, conforme definido pela Constituinte de 1988,


houve um novo plebiscito para a de:fi.nis;ao entre parlamentarismo e
presidencialismo, com a vitória esmagadora (2/3) <leste último. Daí a
conclusao de que essa é urna questao superada, dada a rejeis;ao do povo
brasileiro ao parlamentarismo já manifestada de forma contundente
em dois plebiscitos. E nao faltaram alguns, recentemente, como o
senador Renan Calheiros (PMDB/AL), que voltaram a lembrar do
parlamentarismo, amputando o mandato legítimo da presidenta
Dilma Rousseff (PT).
Entretanto, pode-se afirmar que a efetiva rejeic;:ao, seja em 1962,
seja em 1993, foi ao parlamento de carne e osso que ali existía nos
dois períodos. Dadas e estabeleddas as regras atuais de eleis;ao do
parlamento, a discussao parlamentarismo x presidencialismo está
irremediavelmente comprometida. Para ficar no período mais recente,
a Constituinte de 1988, ao se propor a ouvir a populac;:ao, o que
incluiu até mesmo a bizarra consulta sobre a volta da monarquia,
deveria faze-lo de forma completa, nao podendo fatiar a discussao
do parlamentarismo da discussao da forma de escolha do próprio
parlamento. Criou-se, assim, mais urna unanimidade cordial, o mito
da rejeic;:ao do povo brasileiro ao sistema parlamentarista, que vem
pagando o pato da verdadeira rejeic;:ao dos brasileiros: o parlamento,
seja aquele que existia até 1964, e docemente respaldou o golpe militar, seja
o atual e seus, no mínimo, 300 picaretas.
Na verdade, o parlamentarismo, que esteve sempre presente no
projeto socialista, seja aquele mais utópico e radical idealizado por
Marx, seja aquele cristalizado na social-democracia europeia, que
veio sendo construído ao longo dos séculas XIX e XX, é a forma
mais avanc;:ada de governo. O presidencialismo, ao contrário,
que possui implicitamente um caráter autoritário e majestático,
só é justificável por razóes históricas, como é o caso dos Estados
Unidos. Ali, a revoluc;:ao estava a derrubar um reí (da Inglaterra),
substituindo-o por um presidente. Para mitigar o caráter autoritário
clessa instituis;ao, o sistema americano criou vários contrapesos, no
judiciário e, principalmente, no legislativo, o que, por vezes, adquire
Maurício Borges Lemas

caráter disfuncional. Assim, o sistema americano é estruturalmente


ruim, embora, com os contrapesos, possa ser considerado um dos
"menos ruins" dos presidencialismos que já existiram ou existentes.
Tais contrapesos estao senda testados desde a eleic;:ao de Donald
Trump para a presidencia dos EUA. E, pelo visto, a despeito
de atitudes antidemocráticas de seu governo, as instituic;:6es
americanas estao resistindo razoavelmente a tais ataques, embora,
ainda com muitos riscos, como o aparelhamento da Suprema Corte
e a desestruturac;:ao da própria ordem internacional. Em última
instancia, o desempenho da economia americana até 2020 será
decisivo p'ara as eleic;:6es presidenciais e legislativas naquele ano,
as quais poderiam encerrar essa experiencia de extrema direita
presidencialista nos Estados Unidos. No mais, constituem um claro
exemplo de nao funcionalidade - e irreversibilidade dos danos - do
sistema presidencialista.

3.5. Pontos principais para a negocia9ao de urna reforma política

Desde a consolidac;:ao do golpe, coma aprovac;:ao do impeachmentpelo


Senado em agosto, ganhou forc;:a, no campo de esquerda, a ideia das
eleic;:6es diretas já para a Presidencia da República, além de surgirem
os nomes desse campo como candidatos a presidente, como o próprio
Lula (PT/SP), Ciro Gomes (PDT/CE), Roberto Requiao (PMDB/
PR), entre outros. Embora simpáticas, tais ideias e candidaturas sao
equivocadas na medida em que ignoram, ou abstraem, os problemas
estruturais do sistema político brasileiro, agora materializados
numa grave crise institucional. O Brasil nao precisa de salvadores
da pátria, mas de ideias e de projetos para urna reforma política
consistente e, subsequentemente, projetos para o desenvolvimento
económico e social do país.
Nesse sentido, a palavra de ordem imediata é a de urna Constituinte
exclusiva já, cuja agenda seria a reforma política, e o papel exato d~ cada
um dos poderes da República: o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e
os órgaos de controle: o Ministério Público (MP) e o Tribunal de Cantas
Um novo projeto para o Brasil

da Uniao (TCU). O Congresso Nacional, neste caso, continuaría fun-


cionando normal e paralelamente. Concluída a reforma, a Constituinte
seria dissolvida, e o deputado constituinte estaría inelegível, como
parlamentar, p_or dez anos.
O segundo ponto é que a Constituinte exclusiva nao deve ser
proposta vazia, mas com um projeto de reforma de consenso entre
as principais fors;as políticas democráticas da esquerda e da direi-
ta. A priori, isto é, no próprio processo eleitoral da Constituinte,
e a posteriori, no trabalho de definis;ao da própria reforma, as for-
s;as participantes do consenso democrático defenderiam os pon-
tos comuns do projeto.
O terceiro ponto, já no contexto do projeto, fixaria o sistema eleitoral
misto, a parcela proporcional definida em lista, a previsao de segundo
turno (na hipótese de o candidato mais votado nao obter 50% + 1), e
o financian1ento público da campanha como pontos básicos para urna
mudanc¡:a estrutural da Cama.ra dos Deputados.
O quarto ponto faria pequenos ajustes nas func;:oes da Camara
dos Deputados e do Senado Federal. De modo geral, este último nao
entraría na reforma, mas, em func;:ao do upgrade de qualidade pelo qual
a Camara passaria, seria necessário evitar superposis;ao de poderes e de
func;:6es, cabendo ao Senado exclusivamente quest6es institucionais, e
menos o papel de casa revisora, como é hoje. A Constituinte trataria
também da anomalía que perpassa a atual crise institucional, repondo
com regras claras o papel do Judiciário e de instituic;:oes atualmente
anómalas, como o MP.
O quinto e decisivo ponto, como elemento central do projeto de
consenso, a definic;:ao do parlamentarismo como sistema de governo,
a ser votado e decidido pela própria Constituinte. Isso significa que
qualquer eleitor ou fors;a política favorável ªº presidencialismo nao <leve
apoiar ou votar nas fors;as políticas partícipes do projeto de consenso,
optando por alternativas. 16
16 A ideia aqui é que se deve evitar fatiar questóes inseridas em estruturas mais amplas com saldas
demagógicas, como o plebiscito de 199•1. Assim, o eleitor deve optar, na Constituinte exclusiva, por
nquele deputado ou partido que estnrá defendendo determinado projeto de reforma política.
Maurício Borges Lemas

O sexto e último ponto: as fon;:as políticas que se somarem ao consenso


democrático deveriam pactuar, além do projeto da reforma, um período
de transic;:ao que se estenderia até a realizac;:ao das eleic;:oes dentro das
novas regras, que de:finiriam urn novo sistema e urn novo governo.

3.6. Viabilidade política do projeto

Para aqueles supostamente pragmáticos que descartam peremptoria-


mente um projeto com tais características, pela sua suposta inviabilida-
de política, diría que foi em func;:ao do pragmatismo que chegamos a
situac;:ao atual, ao seguirmos o lema "Vamos deixar como está para ver
como :fica!". E a situac;:ao atual, que comec;:ou por urna longa letargia pela
falta de urn projeto claro e consistente de desenvolvimento económico,
especialmente no pós-crise internacional de 2008, transmutou-se para
urna crise política (2013 e 2014), a qual transformou-se em grave crise
económica (2015 e 2016), o que, por sua vez, agudizou a crise política.
Todos esses efeitos combinados confluíram para urna crise institucional
nos dias atuais, com grave ameac;:a a democracia.
Para a esquerda, ao se propor o correto, do ponto de vista dos seus
valores clássicos, nao há nenhurna concessao, o que inclui o cerne da
reforma política proposta - forma de eleger o parlan1ento e o próprio
parlamentarismo. A concessao é, no fundo, o rompimento com usos e
costumes equivocados, arraigados na cultura do homem cordial. Realizadas
as eleic;:oes e eleito o parlamento, a governabilidade estará implícitamente
definida, havendo urna total correspondencia entre o resultado das eleic;:oes
e o governo a ser formado. Assim, a possibilidade de implementac;:ao
de um programa consistente de desenvolvimento económico e social a
esquerda torna-se mais plausível nesse novo contexto do que no instável, e
virtualmente inviável no presidencialismo de coalizao.
Para segmentos a direita que, por razoes diversas, acreditam no
caráter funcional e civilizatório da democracia, a concessao também é ao
rompimento com a cultura do homem cordial, além do risco de, com as
novas regras, a esquerda chegar novamente ao poder. Mas a superac;:ao do
Um novo projeto para o Brasil

presidencialismo e do seu implícito caráter majestático dá a ela a chance


de um embaralhamento das cartas: torna-se viável um projeto de poder
mais racional e menos carismático, evitando-se eventuais salvadores da
pátria, sejam os efetivamente temidos aesquerda, sejam aqueles adireita,
que tendem a ser inconsistentes e populistas.
Em suma, para sair do caráter conflagrado atual, o que inclui
recolocar os atores do aparelho de Estado em seu devido lugar funcional,
é necessário um projeto multipartidário, de todas as fon;:as políticas
democráticas, que promova urna correc;:ao estrutural do sistema político
brasileiro. A partir daí o STF deixará de legislar e alguns de seus membros
deixarao de fazer política, o mesmo valendo para os juízes, membros do
MP e da PF. E órgaos como o TCU, que atualmente exorbita como poder
Judiciário, com o bloqueio de cantas bancárias, além de formulador da
política fiscal do Executivo, voltará a ter o que é a sua func;:ao institucional:
a de um eficiente fiscalizador das cantas do Executivo a servic;:o do
poder Legislativo.
Ac;oes positivas e negativas
dos 13 anos e 4 meses de
governos petistas

Depois de 13 anos de um presidencialismo de coalizao, liderado pelo


PT, o que foi bem realizado e mereceria ser replicado? O que seria
um embriao a ser mais elaborado e aperfeic;:oado? O que seriam ac;:6es
isoladas, corretas, mas pífias, já que desprovidas de um contexto, inserido
numa concepc;:ao mais geral? E o que, enfim, seria algo equivocado e
que nao deveria ser repetido, do ponto de vista da implementac;:ao de
um projeto de desenvolvimento económico e social do Brasil?

4.1. Ac;5es carretas e bem realizadas

Sob a égide da campanha eleitoral, o governo Lula comec;:ou com


destaque em programas como o Fome Zero, que seria centrado em ac;:6es
diretas do governo que viessem a garantir seguranc;:a alimentar para a
populac;:ao. Depois de altos e baixos, mais baixos do que altos, chegou-se
a conclusa.o de que ac;:oes diretas seriam um equívoco, dadas as suas
Maurício Borges Lemas

prováveis ineficiencias, optando-se pelo fechamento do entao apelidado


ministério da fome, e pela concentracrao de todas as a<;:óes de apoio social
no programa Bolsa Familia, com a unificacrao dos cadastros de todos
os programas. Assim, o esforcro de gestao administrativa concentrou-se
em um único ministério, e o aperfeicroamento do programa, inclusive
corrigindo e coibindo fraudes, concentrou-se na gestao desse cadastro.
O importante a ser enfatizado nao é o espetacular alcance do Bolsa
Família, já objeto de estudos e avalia<;:óes sistemáticas, mas o fato de
que, ao centralizar e evitar diversas acróes diretas do setor público,
inclusive a temerária compra e posterior distribuicrao de alimentos
para a populacrao, construiu-se urna acrao decisiva do Estado, com o
mínimo possível de intervencrao do próprio Estado e, implicitamente,
o máximo de eficiencia.
Ao lado dessa acrao, que poderia ser considerada complementar,
estabeleceu-se urna política de aumento real do salário mínimo, que se
acentuou e tornou-se regra a partir de 2006. Essa foi, de longe, a principal
medida social dos governos Lula e Dilma, com impactos diversos, em
especial na aposentadoria rural, mudando, inclusive, a estrutura espacial
e regional do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.17 E essa acrao
espetacular, do ponto de vista de resultados, nao teve nenhum custo
administrativo adicional, aproveitando e aperfei<;:oando urna estrutura já
existente, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Com características semelhantes, várias a<;:óes na área da educacrao
mereceriam mencrao, assim como na saúde, pelo programa Mais Médicos.
No cómputo geral, renda e servicros foram redistribuídos em larga
escala, com pequeno custo de transacrao em termos da própria máquina
pública. Dinamicamente, o único pré-requisito seria macroeconomico,
isto é, o crescimento sistemático e significativo do PIB e da Renda
Nacional, o que viria a depender de um conjunto de medidas nao triviais
a serem implementadas.
17 Isso porque a aposentadoria constitui, regionalmente, urna renda transferida, passando a integrar
a base economica regional, exercendo um poderoso efeito multiplicador sobre as atividades econo-
micas locais. Sobre o conceito de base económica, ver o capítulo S - Urna proposta de desenvolvi-
mcnto cconllmlco e social cm urna perspectiva mais geral. p. SS.
Um novo projeto paru o OtJ~ll

4.2. Ac;oes carretas a serem aperfeic;oadas

De modo geral, a saúde é urn dos setores mais críticos do ponto de vista de
se estabelecer urna política social massiva e relevante, já que, por sua própria
natureza, ela évirtualmente incompatível coma presta<;:ao privada de servi<;:os.
Inicialmente o Programa Saúde da Familia, criado ainda no governo FHC,
do qual o programa Mais Médicos é urn complemento, trabalha coma ideia
complexa e dificil de urna rede própria e pública da Saúde. Mas ela tende a
resolver apenas parte do problema, já que, para funcionar a contento, teria
de contar com urna retaguarda de especialidades médicas e urna rede de
hospitais públicos. Nesse sentido, nem mesmo os planos privados de saúde,
em parceria com a rede privada, funcionam satisfatoriamente, sugerindo
que a rela<;:ao dessa rede com o Sistema Único de Saúde (SUS) ou ocorre
com nefastas consequencias para o servi<;:o público, ou simplesmente nao
acorre. Assim, a solu<;:ao é a rede pública, que, vi.a de regra, é terrivelmente
administrada nos tres níveis de governo. Aqui ocorrem vários tipos de
problemas, desde o empoderamento corporativo dos médicos, cuja prática
é nao trabalhar ou trabalhar pouco, 18 até a corrup<;:ao desenfreada, em boa
parte da rede pública de hospitais. Longe de ser trivial, a solu<;:ao para o
problema <leve contemplar a<;:óes que abranjam os tres níveis de governo,
disciplinando as q:>rpora<;:óes e criando um sistema de governan<;:a que
mitigue ou expulse as "quadrilhas enquistadas" na rede pública de hospitais.
Um programa desse tipo, que apenas foi timidamente esbo<;:ado no período
petista, é urn desafio de longo prazo, requerendo tempo, paciencia e
sistematicidade ao longo de vários governos, estando longe de urna op<;:ao
simples e ideológica pela rede pública.
Poderíamos também enquadrar na categoría de a<;:óes que funcionaram
e que, devidamente aperfei<;:oadas, poderiam servir de inspira<;:ao para a
constr·u<;:ao mais geral da infraestrutura brasileira, o modelo do setor elétri-
co, especialmente nos segmentos de gera<;:ao e transmissao. 19 Grosso modo,
voltou-se a investir pesadamente em todos os tipos de gera<;:ao de energía,
18 A resistencia visceral ao Mais Médicos mostrou isso de forma cabal.
19 Nao confundir o modelo ele investimento adotado para o selor com questóes relacionadas aMedida
Provisória 579/2012, dlscullda~ acliante.
Maurfcio Borges Lemas

desde as grandes usinas hidrelétricas, as Pequenas Centrais Hidrelétricas


(PCHs), eólicas e as termelétricas como complemento técnico de toda a
matriz de geras;ao, resultando num crescimento de cerca de 120% em
12 anos, evitando-se um novo apaga.o. E a transmissao, com um pouco
menos de eficiencia, acompanhou essa enorme expansao da oferta.
Sao vários os fatores que contribuíram para o acerto do modelo
adotado para o setor e implementado pela entao ministra de Minas
e Energía Dilma Rousseff, nos idos de 2003 a 2005. O prin1eiro fator
foi a separas;ao da energia velha dos novas investin1entos necessários
para a geras;ao e transmissao da energia nova, de forma que o custo
marginal desta última impactasse menos na tarifa final para os
consumidores. No modelo que estava senda esbos;ado no período FHC,
ao contrário, o esfors;o era concentrado na privatizas;ao da energía
velha, acreditando-se que esse discurso e práticas privatistas trariam
os novas, complexos e multivariados, inclusive do ponto de vista de
taxas de retorno-investimentos em geras;ao e transmissao.
O segundo fator foi a (maior) participas;ao do Banco Nacional
de Desenvolvimento Económico e Social (ENDES), viabilizada
nao apenas no incremento da porcentagem de financiamento no
investimento total como também pela mudans;a do modus operandi,
seja: i) pela redus;ao dos juros, inclusive do próprio spread do ENDES;
ii) pelo aumento da parcela financiada com a Taxa de Juros de Longo
Prazo (TJLP) 2 º (mais barata) vis-a-vis juros de mercado no total do
empréstimo; íii) pela própria redus;ao da TJLP, que de 13,5% ao ano em
2002 chegou a 5% ao ano em 2012; iv) e, finalmente, pela flexibilizas;ao
do sistema de garantias. 21
O terceiro fator foi a grande contribuis;ao dos fundos fechados de pre-
videncia, sobretudo, em grandes empreendimentos, como a construs;ao
da hidrelétrica de Belo Monte, os quais, por necessitarem e conviverem
com taxas de retorno mais baixas (em torno de 6% ao ano), ajudaram
20 A TJLP representa o custo básico dos financiamentos concedidos pelo ENDES. Teria como finalidade
estimular investimentos nos setores de infraestrutura e bens de capital.
21 Até 2002, o ENDES trabalhava com um conceito tradicional de garantía real, incompatível com
um projeto green jield de concessáo. A partir de 2003, passou-se a trabalhar como conceito de fluxo
de recebíveis do regime de concessao.
Um novo projeto para o Brasil

na composic;:ao do alto volume de recursos próprios do investimento.


Finalmente, a Centrais Elétricas Brasileiras S. A. (Eletrobras) ficou com
uma participac;:ao relevante, mas minoritária, garantindo a montagem de
urna governanc;:a privada para os empreendimentos, diferentemente da
maioria dos projetos da Petrobras.
Sornados, estes quatro ingredientes viabilizaram a retomada macic;:a
dos investimentos no setor, depois de mais de 25 anos, a partir da
quebra da economia brasileira pelos governos militares ao longo das
décadas de 1970 e 1980. 22 De certo modo, eles contero os germes de
urna solrn;:ao para a questao da infraestrutura brasileira, na medida em
que conjugam o inevitável protagonismo do Estado com urna ta:x:a de
retorno ajustada aos vários tipos de capitais presentes no investimento
aliada a um padrao de governanc;:a privada que blindo u os investimentos.
A prova disso é a virtual conclusa.o, com sucesso, das obras das tres
grandes usinas, as maiores já construídas desde o período militar, sem
grandes problemas em termos de aditivos contratuais para os epecistas.
Assim, a despeito da melhor qualidade e governanc;:a da Petrobras em
relac;:ao a Eletrobras, esta última levou urna enorme vantagem nesse
tipo de modelo, conseguindo passar (quase) incólume até mesmo ao
ciclo destrutivo da Lava Jato.
De modo quase análogo, esse modelo foi replicado para o setor de
aeroportos. Houve algum sucesso na retomada dos investimentos, embora
abortados parcialmente pela Lava Jato, que, além de contribuir para
produzir a forte depressao económica ainda em curso, também jogou na
lona todas as grandes empreiteiras brasileiras, principais lideranc;:as dos
consórcios responsáveis pelas concessóes. 23
22 Ao contrário do que os incautos saudosistas parecem supor, o ciclo militar, que correspondeu ao
a
apogeu da participac;:áo do Estado na economia, levou quebra da economía brasileira na primeira me-
tade dos anos 1980, traduzida numa aguda crise cambia!. Esta tinha interac;:áo estreita coma crise fiscal
(especialmentevia empresas estatais) e como decorrente processo inflacionário, convergindo todos esses
aspectos para a hiperinflac¡:áo da segunda metade da década de 1980 e início dos anos 1990. O nível de
corrupc;:áo, nessa economía superestatizada, atingiu os píncaros, beneficiando empresas - com destaque,
é claro, para as da construc¡:5.o civil pesada, que teve ali também seu apogeu - e membros eminentes do
complexo burocrático estatal.
23 A ideia é que a operac;:ño Lava Jato tem sido o fator primordial da depressáo da economia neste bienio
2015/2016. Ver a respeito o interessante vídeo Destrui~áo a jato: desmascarando Globo. You Tube. 22:48 min.
Disponlvel em: <htlps://www.youtube.com/watcl1?v=o_c_-9uso4c>. Acesso em: 12 nov. 2016.
Mauricio Borges Lemas

No caso das rodovias, o programa de concess6es estava em anda-


mento, mas vinha encontrando alguns obstáculos. O mais importante é
que muitas licita<;:6es ou inten<;:6es de licita<;:áo estavam resultando em
conjunto vazio. Nao apareciam pretendentes com capacidade financeira
para executar os projetos. Existem vários motivos para isso acontecer,
desde a inexistencia de projetos executivos, necessários nao apenas para
a realiza<;:ao, mas para urna estimativa realista do valor do investimen-
to, até o fato puro e simples de que a taxa de retorno estava abaixo de
um nível mínimo de mercado. E nesse último caso, a solu<;:ao proposta,
as Parcerias Público-Privadas (PPPs), :ficaria na dependencia das garan-
tias de o setor público honrar o seu compromisso no investimento. Urna
vez que esse problema nao foi contornado de forma sistemática, e sim
apenas episódica, o programa de concessao das rodovias vinha cami-
nhando, embora em ritmo mais lento do que o dos setores de energia
elétrica e aeroportos.
Ocorreu de forma análoga, embora com o fator agravante de urna
taxa de retorno mais baixa ainda (ou até mesmo negativa), no caso
das ferrovias, cujo programa avan<;:ou muito pouco e em ritmo muito
inferior ao das rodovias. Nos dois casos, como tentaremos mostrar mais
adiante, havia di:ficuldades, mas avan<;:ava-se na dire<;:ao certa tal qual nos
setores elétrico e de aeroportos, isto é, investindo-se na infraestrutura
após mais de 25 anos, combinando-se grande protagonismo do Estado
com governan<;:a privada. Todos esses esfor<;:os, infelizmente, foram
decididamente abortados pela crise política e institucional dos últimos
dois anos, voltando-se, com o impeachment da presidenta Dilma, ao
círculo vicioso do conjunto vazio dos investimentos em infraestrutura.

4.3. Ac;oes carretas, mas descontextualizadas

De um ponto de vista mais geral, tais a<;:6es poderiam ser chamadas


de tentativas, acertos e erros na dire<;:ao certa, considerando-se que os
acertos davam consistencia e sustentabilidade a elas. O problema é que,
ao lado dessas a<;:6es, o governo recorreu a urna série de improvisos,
Um novo projeto para o Brasil

especialmente como rea<;:iio a crise internacional em fins de 2008.


Desencadeou-se entao o fim do boom das commodities, o que veio
tornar patente, sabe-se com certeza agora, que os governos petistas
nao tinham um projeto de desenvolvimento, embora tateassem,
muitas vezes igual baratas tontas, nessa dire<;:iio. Claro que isso é muito
melhor do que as propostas neoliberais dos governos anteriores ou dos
governos Temer ou Bolsonaro, as quais, sustentadas unicamente em
mitos, estilo irremediavelmente comprometidas coma estagna<;:iio. 24
O programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), um tanto improvisa-
do, acabou se revelando um excelente programa, faltando apenas a devida
consolida<;:iio de sua forma de financiamento na lei or<;:amentária. 25
A política de conteúdo local praticada pela Petrobras, como reergui-
mento da indústria naval brasileira, apesar de bem-sucedida de um pon-
to de vista imediato, anterior, inclusive, acrise de 2008, acabou sendo, na
sua forma específica de implementa<;:iio, um dos grandes equívocos dos
governos petistas. Ao invés de, utilizando um mecanismo mais geral de
prote<;:iio para a indústria como um todo, que tributasse a importa<;:iio e
isentasse de impostas, de forma análoga, a exporta<;:iio,26 deixando a Pe-
trobras a decisao de comprar no mercado interno ou importar, acabou
estabelecendo vários sistemas discricionários. Isentavam-se impostas de
importa<;:iio a partir de distintos regimes especiais, que a beneficiavam (e
outros), ao mesmo tempo em que a obrigava, em alguns casos, a fazer
encomendas no mercado interno. O equívoco está no fato de que a única
24 O mito baseia-se na crenc;:a de que um bom ambiente de negócios trará, em algum momento, se
Deus quiser, o aumento do investimento privado. E o bom ambiente de negócios seria sinónimo de
Estado mínin10, respeito aos contratos (da <lívida financeira) e desrespeito ao contrato social. Como o
investimento privado é garantido e induzido pela expectativa de rentabilidade dos empreendin1entos
em qualquer setor produtivo, e ela inexiste se náo for construída e induzida pelo Estado, especialmente
em regióes subdesenvolvidas como o Brasil, o mito do bom ambiente é apenas urna rota de fuga para
escan1otear a discussáo de urna agenda desenv'olvimentista. Em última análise, sem o protagonismo do
Estado, Deus, embora brasileiro, nunca irá fazer com que o investimento privado acontec;:a.
25 O programa MCMV vinha senda financiado pelo Fundo de Garantia por Tempo de Servic;:o (FGTS),
inclusive no tocante a sua parcela subsidiada. Embora náo tenha afetado patrimonialmente o próprio
FGTS, na medida em que este vinha apresentando superávits, isto é, o valor dos depósitos (passivo) vinha
senda inferior as aplicac;:óes (ativo). Essa diferenc;:a, que financiava o MCMv; deveria ter sido consubs-
tanciada em lei, passando a ser presenc;:a compulsória na lei orc;:amentária. Em vez disso, ela passou a ser
considerada urna pedalada fiscal, facilitando a sua reversáo e distorc;:áo in1ediata pelo governo Temer.
26 Vallaremos ao tema mnls ac.llanlc no ítem 6.4. Urna proposta de cambio para a indústria. p. 74.
M¡¡urfclo Borges Lemos

missao da Petrobras, como empresa como controle estatal, deveria ser


investir prioritária e prevalentemente no Brasil, ter sua sede no Brasil,
desenvolver novas tecnologías - como o pré-sal - no Brasil, ao menor
custo possível. O conteúdo nacional nao deveria ser urna missao da
Petrobras, 27 devendo ser endere<;:ado a uma efetiva política industrial.
A esse propósito, aliás, nesse rol de boas inten<;:oes a procura de
boas ideias, podemos listar tres lan<;:amentos de política industrial
desde 2004, tendo os tres esbarrado num mesmo e sistemático
problema. Apesar de supostamente estar centrada numa política de
inova<;:ao, qualquer tentativa de apoio vertical a setores específicos
significa estabelecer e garantir urna rentabilidade mínima para eles,
o que induzirá ao investimento, que é o pré-requisito mínimo e
básico para que ele seja inovador. 28
Nesse sentido, o Programa de Sustenta<;:ao de Investimentos (PSI),
lan<;:ado em 201 O, que consistía numa linha emergencia! de financiamen-
to (em especial, de máquinas e equipamentos credenciados no sistema
Finame do BNDES) com juros muito subsidiados, acabou sendo, num
primeiro momento, efetivo. Repetido incessantemente até 2015, pouco a
pouco foi perdendo eficácia. 29 E no fim, acabou gerando um significativo
custo fiscal, ao passo que um seu substituto ("um programa de renova-
27 Esse favor realizado pela Petrobras, náo induzida por uma eficaz política de prec;:os relativos (resul-
tados de urna política industrial) e sim por urna determinac;:áo voluntarista do governo, acabou sendo
desastroso, náo apenas tendo em vista os desdobramentos ulteriores da Lava Jato, mas, pela facilidade
institucional como que o governo Temer jogou fora a política de conteúdo nacional. Neste caso, náo foi
necessário nem mesmo o Congresso, bastando uma penada do sr. Pedro Parente.
28 A tentativa de construir urna política industrial do Bem, apenas calc;:ada no incentivo direto ainova-
c;:áo, de forma que o investimento ou seria inovador ou náo ocorreria, acabou gerando conjuntos vazios
em todas as tres tentativas de construir urna política industrial desde 2004. Voltaremos ao tema mais
adiante em Urna proposta de cambio para a indústria, p. 74.
29 No caso do PSI - caminh6es, por exemplo, depois da renovac;:áo incessante do programa, foi criada uma
bolha especulativa de caminh6es de aluguel, dado o pequeno custo/benefkio de se adquirir caminh6es. Para
continuar a incrementar a venda de novos, sem a fom1ac;:áo de uma bolha, seria necessário avanc;:ar na direc;:áo do
Programa de Renovac;:áo da Frota, sucateando-se os equipamentosvelhos -retirados de circulac;:áo - reduzindo-se
a idade média da frota, e aumentando-se, consequentemente, a sua eficiencia e produtividade. E o custo fiscal,
consistindo no crédito tributário a ser concedido para a indústria automotiva pelo sucateamento dos caminh6es
velhos, poderla ser mais do que compensado pelos impostos adicionais a serem gerados pela produc;:áo adicional
de novos. Tal proposta, articulada tanto por uma frente de sindicatos de trabalhadores, sindicatos e associac;:6es
empresariais e desenvolvida pelo ENDES e Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio (MDIC), náo
chegou sequer a ser analisada pelo Ministério da Fazenda/Receita Federal, senda liminarmente descartada.
Um novo projeto para o Brasil

c;:ao da frota e do parque de máquinas") que poderia nao ter custo fiscal
nern sequer foi analisado pela equipe económica do governo. 30
Pior improviso ainda acabou senda a reduc;:ao do Imposto sobre
Produtos Industrializados (IPI) para o consumo de bens duráveis, ern
especial autornóveis, o qual, depois da segunda e terceira rodadas, deixou
de gerar venda adicional de carros, ao lado de graves efeitos colaterais,
corno a própria perda de receita fiscal, ao lado de urna bolha do mercado
de financiarnento de autornóveis.
Por último, corno prava definitiva de boas intenc;:oes,31 veio a queda da
Selic (taxa básica de juros da econornia), já no governo Dilma, que che-
gou a 7,25% ao ano ern 2012, depois de rnais de urna década no nível de
rnais de 10%, e acirna de 20% ern todo o período FHC. Ernbora tenha tido
efeitos ex:trernarnente benéficos ern termos fiscais, essa queda significativa
nao alterou as perspectivas de investirnento na economía ern dois segmen-
tos decisivos: na infraestrutura, ern func;:ao de questoes estruturais de taxa
de retorno (rentabilidade) dos projetos acirna apontadas; e na indústria,
tarnbérn por questoes estruturais de rentabilidade, conforme tentaremos
mostrar rnais adiante. A experiencia corn urna Selle rnuito baixa, talvez a
rnais baixa ern termos norninais, nahistória do Brasil até entao, de urna taxa básica
de juros, acabou sendo desperdic;:ada por nao se ter avanc;:ado no problema
estrutural - rnais urna jabuticaba brasileira - da altíssirna rernunerac;:ao
financeira de curtíssirno prazo, ern alguns rnornentos, corno agora, quase
no rnesrno patarnar ou rnaior do que a rernunerac;:ao de longo prazo. Esse
cancer, rnais conhecido pela alcunha de operac;:oes cornprornissadas, que
se explica pela captura política e ideológica que a Banca32 orquestrou e irn-
plernentou no Brasil, garantindo-lhe urna das rnais altas rernunerac;:oes do
30 O problema central é que tais programas se basearam na concessáo de um crédito tributário, que
poderia ser mais que compensado pela prodm;áo adicional de máquinas, caminh6es e ónibus. Na canta
agregada, esse tipo de programa teria menor, ou mesmo nenhum custo fiscal. O problema é que, como
todo crédito tributário, ele daria mais trabalho para a Receita Federal.
31 Embora sempre aprocura de boas ideias.
32 Pelo termo "Banca" queremos representar todo o sistema financeiro privado brasileiro, que é estrutu-
rado em termos de poucos grandes bancos e urna numerosa constela<¡áo de pequenos e médios bancos,
corretoras de valores, agencias de rating, empresas de auditoria e de consultoria financeira. No caso bra-
sileiro, esse complexo está fortemenle ancorado na <lívida mobiliária federal, que deveria garantir duas
exigencins, que scrlnm cxcludcntes no resto do mundo: seguran<¡a (solvencia) e rentabilidade.
Maurício Borges Lemos

mundo para operac;:oes de curto prazo, tem graves consequencias sobre a


economía brasileira, e nao foi enfrentado, mesmo em momento favorável,
configurando mais urna oportunidade perdida.33

4.4. A¡;oes desastrosas

De modo geral foram poucas, prevalecendo a procrastinac;:ao de soluc;:oes


relativas as deficiencias estruturais da economia. Entretanto, quatro delas
merecem destaque: urna no comec;:o do governo Lula; outra durante
o governo Lula, que se desdobrou ao longo do governo Dilma; urna
terceira na metade do primeiro governo Dilma; e a quarta no primeiro
ano do segundo governo da presidenta Dilma.
A primeira ac;:ao, ocorrida logo no primeiro ano do governo Lula,
por seus maleficios estruturais para urna agenda que se propunha
social, acabou sendo urna espécie de pá de cal na sustentabilidade de
longo prazo de um projeto petista de poder. Foi ela a reforma tributária
de 2003, na qual foram gastas, ficou-se sabendo depois, todas as fichas
políticas de um novo governo na aprovac;:ao de algo definitivamente
escabroso, em nome da governabilidade. Essa reforma, silenciosa
e insidiosa, nunca é mencionada por quase ninguém, nem pelos
previsíveis economistas ligados a Banca, nem pelos representantes da
esquerda. Entre as poucas e honrosas excec;:oes, ternos Brami Celentano
e Carvalho (2007, p. 1):

"A reforma tributária proposta pelo governo Lula em 2003


manteve-se nos limites das propostas do PSDB e do governo FHC, ins-
piradas na ideologia neoliberal. Os pequenos avarn;:os para reduzir a
regressividade, como a desonerac;:ao da cesta básica de consumo, nao
reverteu o papel da estrutura tributária na concentrac;:ao de renda,
com o predomínio dos impostos indiretos e de seus efeitos regres-
sivos. A tributac;:iio tem merecido pouco destaque no amplo debate

33 Essa altíssima remunerac;:ao de aplicac;:oes de curto prazo é garantida pela prática sistemática e recor-
rente das operac;:oes compromissadas do BC, constituindo urna grave distorc;:ao da política monetária,
só existindo em outros países, inclusive subdesenvolvidos como o Brasil, ero momentos emergenciais.
Um novo projeto para o Brasil

sobre políticas sociais no Brasil, concentrado na repartic;:áo da despesa


pública e na eficácia dos gastos, sem a devida atenc;:áo ao papel da estru-
tura tributária na concentrac;:ao da renda e da riqueza no país:' 34

Aparentemente abstrato, o vaticínio dos dois autores pode ser


exemplificado a partir dos efeitos - aparentemente benignos - da
segunda ac;:ao desastrosa do governo Lula e que se estendeu de 2003 até
meados de 2012, já no governo Dilma: 35 a conivencia como processo de
sobrevalorizac;:ao cambial. 36
Na verdade, no período de 2003 até setembro de 2008, o cambio
valorizou-se de R$ 3,50/US$ para R$ 1,75, ou seja, cerca de 100%.
Exemplo mais acabado de como o boom das commodities bene:ficiou
a economia brasileira, era de se esperar que a taxa de inflac;:ao se
aproximasse de zero, em termos anuais, nos moldes de boa parte das
economias desenvolvidas ou em desenvolvimento, exceto aquelas
relativamente aquecidas, como a China. Entretanto, embora a inflac;:ao
brasileira tenha baixado da casa dos 10% ao ano no início de 2003 para
um mínimo de 3,12% ao ano (e nao algo próximo de zero), voltou
a subir a partir daí, mesmo com a continuac;:ao do movimento de
apreciac;:ao cambial. Em 2007 retornou ao patamar de 4,5% ao ano, e,
a partir de 2010, ao patamar de 6% ao ano, aí :ficando até meados de
34 BRAMI-CELENTANO, Alexandrini; CARVALHO, Carlos Eduardo. A reforma tributária do governo
Lula: continuísmo e injustic;:a fiscal. Rev. Katálysys. Florianópolis, v. 10, n. 1, jan./jun. 2007. Disponível
em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1414-49802007000100006>. Acesso em: 6 out. 2019.
35 Houve um rápido repique de desvalorizac;:ao cambia! logo na fase mais aguda da crise, no quarto
trimestre de 2008, recuando, infelizmente, a partir da! para os níveis pré-crise até junho de 2012.
36 Fazendo um comentário espirituoso a respeito da grita contra o processo em andamento de sobreva-
lorizac;:ao, o presidente Lula disse, em 2005, que "o problema do cambio flutuante é que ele flutua'; pondo
a
urna pedra em cima do assunto. Entretanto, ele voltou baila em 2007, quando tinha ficado claro o estra-
go do processo sobre a indústria brasileira. Aí, entao, a proposta na mesa, ao invés de urna intervenc;:ao
suja, isto é, com compra de dólares e acumular;:ao de reservas, que já vinha apresentando um enorme
custo fiscal, mas na utilizac;:ao do IOF, um imposto regulatório que poderia, com facilidade, regular o
nível de entrada (e nao o de saída) do movimento de capitais especulativos, nao precisando, inclusive, da
colaborac;:ao do BC. Embora essa alternativa apresentasse até mesmo aumento da arrecadac;:iio tributária
(ganho fiscal), ela foi liminarmente descartada, seja para nao desagradar a Banca, representada dentro
do governo pelo BC e seu presidente, Henrique Meirelles, seja, tao importante quanto ou mais, pelo fato
de que o populismo cambial é un1 mal atávico de todos os governos brasileiros de A a Z. Voltaremos ao
asstmto mais adiante nos itens 6.3. A necessidade de um cambio para a indústria, p. 72; e 6.4. Urna pro-
posta de cambio para n indústrln, p. 74.
Maurfcio Borges Lemas

2012, quando o cambio saiu de valores mínimos e reiniciou o processo


de desvaloriza<;:ao, passando a ser um fator de alimenta<;:ao da infla<;:ao.
Qual arazao da relativa inelasticidade- resiliencia- da infla<;:ao aqueda,
mesmo depois de urna fortíssima defl.ac;:ao dos prec;:os internacionais,
quando convertitlos em reais? Em outras palavras, por que a economia
brasileira apresenta urna relativa inércia inflacionária, mesmo estando
soba influencia de um agudo choque cambial defl.acionário?
Um economista da Banca, dominado em 99% pela ideologia e 1% pela
ciencia, <liria que a redistribui<;:ao de renda promovida pelo governo é a
responsável fundamental. Ao argumento de que a redistribui<;:ao de renda
teve muito mais a ver com o gasto social do governo, aposentadorias
e Bolsa Familia, por exemplo, pouco interferindo nos processos de
forma<;:ao de pre<;:os, esse economista, agora utilizando um pouco mais
de ciencia (talvez uns 20%), <liria que nao apenas a redistribui<;:ao per se,
mas a política de pleno emprego do governo teria aquecido o mercado
de trabalho o suficiente para que o choque cambial deflacionário, ao
lado e sornado ao aumento médio da produtividade, fosse superado
pelo aumento dos salários reais. Embora o aquecimento do mercado de
trabalho tenha acorrido gradativamente, ele somente se tornou visível a
partir de 2010, nao explicando em nada o acorrido nos anos anteriores,
ou seja, a relativa resiliencia do processo inflacionário.
A nosso ver, a carga tributária altamente regressiva, ratificada pela
reforma de 2003, é a responsável número 1 por essa inércia da infla<¡:ao,
na medida em que participa em algo como 40% do valor adicionado
dos processos produtivos formadores de pre<;:os, tornando-se um custo
fixo relativamente alto e incomprimível, dado qualquer processo de
acomoda<;:ao para baixo dos prec;:os e dos lucros. 37 Por outro lado, quando
estamos <liante de um choque cambial inflacionário, a rigidez da carga
37 Deve-se considerar que os juros, em sua insen;:ao estrutural de longo prazo no custo das empresas,
também ajudariam a produzir tal inércia. Haveria urna dualidade da política monetária de juros altos,
podendo esta contribuir para urn aumento, e nao urna redrn;:ao, da inflac;:ao em longo prazo. Sobre isso,
ver o artigo do insuspeito André Lara Resende, "Juros e conservadorismo intelectual", publicado río
jornal Valor Economico, em 13 jan. 2017. Citando estudos rnais recentes sobre inflac;:ao, constata nao
haver urna justificativa teórica para os juros tao altos no Brasil, podendo a política rnonetária praticada
há rnais de 20 anos estar produzindo mais inflac;:ao, e nao menos.
Um novo projeto para o Brasil

tributária regressiva joga para cima dos ombros dos salários e das rendas
mais baixas todo o impacto do aumento dos pres;os, desfazendo aqui,
com sobras, o eventual ganho salarial do período deflacionário. 38 Ao
reverso, urna carga tributária progressiva, pouco incidente na formas;ao
dos pres;os, é a única capaz de realizar justis;a social no longo prazo, ao
contrário de misti:fi.cas;6es encobertas, num primeiro momento, por
movimentos favoráveis do ciclo económico, como o fara o período do
boom de commodities.
Mas a reforma tributária de 2003 ocasionou mais danos do que a
cristalizas;ao da carga tributária regressiva e seus efeitos perversos,
macroeconómicos, de longo prazo. No bojo do pacote tributário, a
bancada ruralista conseguiu emplacar urna emenda constitucional (a
EC 21), a famigerada Lei Kandir, que proibia a tributas;ao do Imposto
sobre Circulas;ao de Mercadorias (ICMS) estadual de matérias-primas
para a exportas;ao, incluindo também nessa emenda o Programa
de Integras;ao Social (PIS) e a Contribuis;ao para Financiamento
da Seguridade Social (Cofins) federal. Com isso, cristalizou-se
constitucionalmente urna lei anti-industrializas;ao, que fez com que
a indústria nacional continuasse a pagar indiretamente ICMS e
PIS-Cofins para exportar. 39
Entretanto, esse · descaso para com a indústria foi apenas um
aspecto de um comportamento mais geral de convivencia deliberada
como processo de desindustrializas;ao do Brasil, cuja eixo central foi
38 Esse impacto de aumento dos prec;:os, em func;:ao da desvalorizac;:ao cambial, comec;:ou a ser sen-
tido a partir do segundo semestre de 2012, com maior enfase nos segmentos de babea renda dos
grandes centros urbanos.
39 Só para exemplificar, suponha-se que o produtor de soja exporte R$ 100,00 de grii.os, ficando
isento do PIS-Cofins e ICMS. Entretanto, se ele vender os mesmos R$ 100,00 no mercado inter-
no para a indústria de óleo e rac;:ao, esta pagaria 10% de ICMS e 5% de PIS-Cofins, ficando com
custo final da matéria-prima de R$ 115,00. Se ele for exportar essa matéria-prima processada,
isto é, rac;:ao e óleo, o valor que ele adicionar nao pagará ICMS e PIS-Cofins, mas o crédito tri-
butário a ser compensado relativo a esses dois impostos pagos, ao comprar a matéria-prima, vai
se acumular indefinidamente. Assim, o industrial estrangeiro será mais competitivo que o similar
nacional, já que o primeiro pagará R$ 100,00 pela matéria-prima e o segundo R$ 115,00! A melhor
soluc;:ao para esse problema seria igualar as duas situac;:óes, por exemplo, cobrando-se urna alí-
quota menor dos dais impostas para exportac;:ño e venda no mercado interno da matéria-prima
ou isentando-se nmbos.
Mauricio Borges Lemas

a política de cambio. Em seu conjunto, a reforma tributária de 2003


e a política cambia! até 2012 sao os elementos centrais da crise que
come<;:ou a atingir pesadamente a economia brasileira a partir do :final
de 2012, puxada pela desvaloriza<;:ao cambia!, infla<;:ao alta (indexada
pela alta carga tributária regressiva) e, inevitável, aumento dos juros.
Tudo isso suportado por urna infraestrutura ainda em fase incipiente
de constru<;:ao e urna indústria virtualmente destruída, que sobrevivia
a base de improvisos e "puxadinhos". Resumidamente, pode-se
dizer que, na fase de baixa do ciclo de commodities, o projeto de
desenvolvimento social do governo petista, por nao conter, também,
um projeto de desenvolvimento económico sistemático e consistente,
ruiu, nao se conseguindo consertá-lo, nem com atitudes voluntaristas,
nem com atitudes conservadoras. 40
Urna dessas atitudes voluntaristas acabou se tornando a terceira
a<;:ao efetivamente desastrosa do ciclo petista: a edi<;:ao da MP 579
em dezembro de 2012, transformada na Lei 12.783 em janeiro de
2013. Com ela, se anteciparia o vencimento das concess6es de
várias usinas hidrelétricas, de posse da Eletrobras, Companhia
Energética de Sao Paulo (Cesp), Companhia Energética de Minas
Gerais S. A. (Cemig) e Companhia Paranaense de Energía (Copel),
entre as principais. Seu objetivo primordial seria urna redu<;:ao das
tarifas de energía em 20%, na medida em que a renova<;:ao proposta
remuneraria apenas o custo de manuten<;:ao e administra<;:ao dessas
usinas. No fundo, mais urna boa intenc;:ao a procura de urna boa
ideia. Quais foram os problemas?
Em primeiro lugar, contrariando o preceito básico de Garrincha,
de combinar com os russos, a exce<;:ao da Eletrobras, empresa de
controle do governo federal, Cesp, Cemig e Copel, as principais
concessionárias, estatais com controle de governos estaP.uais, nao
aceitaram as condi<;:6es de renova<;:ao, e ficaram até o final de sua
40 Num primeiro momento, as atitudes voluntaristas foram tomadas pela presidenta Dilma. O seu
conselheiro, o ex-presidente Lula, tinha urna opiniiio mais conservadora. Quando ficou claro que a
equipe económica comandada pelo ministro Guido Mantega nao tinha respostas para a crise que se
instalava, o conselheiro defendeu a traca do ministro, sendo o nome sugerido para o Ministério da
Fazenda o ex-presidente do BC Henrique Meirelles.
Um novo projeto para o Brasil

concessáo, entre 18 e 24 meses, com essas usinas descontratadas do


sistema elétrico, lucrando coma oferta no mercado livre. Estima-se
que tenham lucrado quase R$ 6 bilh6es. Em segundo lugar, por
outro lado, a consequencia disso foi que as empresas distribuidoras
de energia de todo o país (entre as quais as controladas das
mesmas Cemig e Copel) ficaram descontratadas dessa parte da
oferta de energia. Neste caso, caberia a Conta de Desenvolvimento
Energético (CDE) cobrir essa exposi<¡:ao involuntária. Em terceiro
lugar, entretanto, como a cota da CDE dentro da tarifa de energia
paga pelo consumidor foi reduzida em 75% pela mesma MP 579,
o Tesauro Nacional precisou cobrir um rombo, incluindo essa
parte da exposi<¡:ao involuntária das distribuidoras, que chegou a
R$ 20,2 bilh6es no bienio 2013-2014!
Em resumo, além de desorganizar bastante o setor de energia num
momento muito difícil, com falta de chuvas e a liga<¡:ao prolongada
das termelétricas, que onerava por si só o consumidor, essas medi-
das nao conseguiram, ao fim e ao cabo, reduzir a tarifa. Além do
mais, prejudicaram enormemente a Eletrobras e beneficiaram mo-
mentaneamente as concessionárias que nao renovaram a concessáo. 41
A conta, no final, acabou sobrando p~ra o Tesauro, piorando o já
problemático resultado fiscal.
O mais grave, porém, foi que a boa inten<¡:ao dessa medida provi-
sória teve como preocupa<¡:ao central reduzir a infla<¡:áo, que na época
insistia em estourar o teto da meta, pressionada que estava pela des-
valoriza<¡:ao cambial e seu indexador implacável: a carga tributária
regressiva. A enorme despropor<¡:ao dos dois fatores (a magnitude
do choque cambial e seu poderoso indexador) e os eventuais efeitos
(que nao vieram) da redu<¡:ao da tarifa de energia tornaram patente o
41 Numa leitura política, a medida provisória de certo modo deu aura para os bandidos, já que as
concessionárias que nao renovaram a concessao e passaram a ofertar essa energia velha no mercado
livre tiveram um superlucro. No caso da Copel e da Cemig, as suas subsidiárias de distribuic¡:ao de
energía ficaram com exposic¡:ao involuntária, ao passo que as geradoras reverteram esse superlucro
para as suas controladoras. No caso da Cemig, por exemplo, o recurso foi utilizado para pagar um
dividendo extra para os acionistas privados e o Estado de Minas Gerais, ajudando a cobrir desman-
das escabrosos do periodo lucano, como o do famigerado e inútil Centro Administrativo.
Mauríc!o Borges Lemos

grande desconhecimento da equipe económica e da presidenta sobre a


situa<;:ao económica brasileira, em especial dos efeitos muito fortes de
um choque cambia!, em furn;:iio do tamanho da carga tributária e sua
alta regressividade, na infla<;:iio. Mesmo no setor de energía elétrica, o
ICMS estadual sozinho eleva em mais de 40% a tarifa, sendo de longe
o principal responsável pelo pre<;:o ao consumidor. Isso ficou mais
claro com o desdobramento da crise ao longo de 2013, cuja estrela
principal foi a infla<;:ao.
Em fevereiro de 2013 foi o capítulo do reajuste dos ónibus muni-
cipais e metropolitanos. Preocupado com o seu impacto em patamar
ascendente na infla<;:iio, o governo federal acabou por descobrir, afinal,
dois poderosíssimos indexadores altamente regressivos (por incidirem
exatamente no transporte urbano de massas) embutidos nas tarifas:
o ISS (Imposto sobre Servi<;:os) municipal e o PIS-Cofins, que enca-
reciam em cerca de 10% a tarifa. Foram finalmente revogados (o ISS
apenas para algumas cidades), aparecendo como os vilo es do momento,
esquecendo-se todos, inclusive o governo federal, de que tais impostas
sempre estiveram ali, sendo que o PIS-Cofins fora embutido e apro-
vado pela reforma tributária de 2003.
Posteriormente, em mar<;:o, passou-se a discutir o impacto dos
impostos na cesta básica, quando a presidenta e parte da equipe
económica acabaram por descobrir a verdadeira dimensiio do problema,
tendo em vista o tamanho da arrecada<;:iio e o impacto de sua isern;:ao no
resultado primário. Naquela altura, constatou-se que a oportunidade de
se fazer justi<;:a tributária, controlando ao mesmo tempo a infla<;:iio, tinha
ficado para trás - na verdade, dez anos para trás, em 2003 - e o assunto
foi abandonado, em raziio de novas e mais graves problemas trazidos
pelas manifesta<;:6es de junho.
A falta de providencias para os problemas estruturais da economia,
que nao mais reagia aos "puxadinhos" e improvisos, fez com que se
chegasse com muita dificuldade ao final do primeiro mandato da
presidenta, afinal reeleita por um aparente "milagre", com a crise
económica já visível e o compló eleitoral da Lava Jato - na época era
esse o seu objetivo - em pleno andan1ento. E aí, a modera<;:ao, que já
Um novo projeto para o Brasil

era a t6nica da forma de agir em boa parte dos assuntos, inclusive em


relac;:ao a (nao) reac;:ao ao movimento nada republicano da Lava Jato,
passou a predominar totalmente na economía, quando a presidenta
escolheu Joaquim Levy para novo ministro da Fazenda, no contexto
da formac;:ao do novo ministério.
Ao lado da reconduc;:ao de José Eduardo Cardoso como ministro
da Justic;:a, em 2014, nao aproveitando o ensejo do novo mandato (que
deveria implicar novo ministério), essas duas nomeac;:oes foram urna
das ac;:oes mais desastrosas da presidenta ao longo dos seus cinco anos e
quatro meses de governo.
Em primeiro lugar, no que se refere ao ministro Cardoso, dada
a sua efetiva conivencia com os abusos e atentados a Constituic;:ao
que vinham sendo praticados pelo MP, PF (garantida por um
decreto que lhe confería autonomía operacional), Judiciário e o
próprio STF, evoluiu-se para urna situac;:ao letal que, nao tendo
conseguido inviabilizar a reeleic;:ao, passou rapidamente para um
movimento de inviabilizac;:ao política, na medida do possível,
ou económica, que viria a ser linha auxiliar da desconstruc;:ao
política, minando o cerne do proce~.so de investimento, isto é, a
construc;:ao civil pesada.
Em segundo lugar, no que se refere ao nilnistro Joaquim Levy, o
desastre nao foi apenas pelas ac;:oes de contenc;:ao efetiva que comec;:ou
a realizar, travando o processo de investimento estatal e o financia-
mento dos bancos estatais. Mais grave que isso, estava-se, mesmo aos
trancos e barrancos, caminhando no sentido de destravar, com gover-
nanc;:a privada; o investimento em infraestrutura, o que seria um dos
fatores decisivos para a redenc;:ao da economía brasileira, no sentido
de sair do status de economía subdesenvolvida. Joaquim Levy, com
sua agenda linear, monocórdia (mais grave do que ser conservadora
era o fato da falta total e absoluta de criatividade), representou a pá
de cal no processo em pleno andamento. E para finalizar, sua nomea-
c;:ao trouxe, com excec;:ao da Banca, um péssimo simbolismo, transpa-
recendo urna espécie de estelionato, a justificar o discurso golpista,
assim que foi concluído o processo eleitoral.
Maurício Borges Lemas

Coma sua saída, um ano depois, o estrago - mais um - já estava


feito, havendo ainda aqueles que defendiam Henrique Meirelles, a
sugestao inicial do ex-presidente Lula, alegando que a presidenta
Dilma teria errado no nome, mas nao na estratégia. Felizmente,
para a esquerda e para os desenvolvimentistas, o sr. Michel Temer
nomeou-o ministro da Fazenda, deixando a nu sua capacidade
limitadíssima, igualmente monocórdia e linear, insuficiente para
enfrentar mínimamente, mesmo com urna estratégia conservadora,
os atuais desafíos economicos. 42

42 Tudo indica que essa espécie de ilusáo do ex-presidente Lula como nome de Meirelles prende-se aos
anos dourados de seu governo, quando o boom das commodities garantiu o rnelhor dos dais mundos:
queda da inflac;áo e redistribuic;áo de renda, abstraindo-se que o fator efetivo para garantir essa proeza foi
a apreciac;áo cambia! (com consequencias nefastas, previa-se na época e sabe-se hoje) e nao a política mo-
netária de Meirelles em seu aspecto geral ou mesmo específico. Espera-se que, voltando a ser presidente,
ou até mesmo primeiro-ministro, se aprovado o parlamentarismo, como propomos, ele possa encarar
com mais afinco e prioridade a questáo do desenvolvimento, deixando de cair na tentac;áo de encurtar
caminhos, simplificar e procrastinar agendas improrrogáveis.
Urna proposta de
desenvolvirnento econ6rnico
e social ern urna perspectiva
rnais geral

5.1. Rompendo com o modelo econ6mico salazarista

Urna pergunta básica: se há um razoável consenso, pelo menos entre os


segmentos a esquerda, de que a Banca retomou inteiramente as rédeas
do Estado brasileiro, depois de urna coabitac;:ao de 13 anos com governos
petistas, 43 qual viria a ser entao a su8: motivac;:ao económica, e nao
puramente ideológica e visceral, tal como propagado por seus prepostos
do PIG e outros, para romper e patrocinar o golpe de maio de 2016?
A resposta para essa indagac;:ao pode ser encontrada no fato de que, se
tomarmos por referencia 1994, início do Plano Real, até os dias atuais, o
sistema financeiro brasileiro, especialmente no que se refere aos seus grandes
bancos, mas nao apenas, cresceu muito a frente dos demais segmentos da

43 Essa coabitar;:ao permitiu que se fizessem algumas concess6es sociais, garantidas, em última
instancia, pelo ciclo do boom de commodities e seu correspondente processo de apreciar;:ao. Com
o fim do boom, a Banca rompeu unilateralmente com a coabitar;:ao, contribuindo para a promo-
r;:ao do golpe de 2016.
Maurfclo Borges Lemos

economia, talvez algo como entre 15% e 20% ao ano, 44 ao passo que
outros segmentos estagnaram, como a constrw;:ao civil pesada, ou regredi-
ram, como a indústria de transformayao. Se os segmentos da econornia real
nao foram muito bem, em torno ou em interayao com quais segmentos o
sistema financeiro cresceu?
Em primeiro lugar, <leve-se afirmar que o sistema financeiro
é simplesmente urna indústria de serviyos, incluindo o pagamento e
recebimento de contas, saques, depósitos, transferencias e aplicay5es,
sendo que, no caso brasileiro, com um padrao de eficiencia próximo do
prirneiro mundo. Por outro lado, os empréstimos e financiamentos, que
constituem o negócio tradicional e economicamente imprescindível
para a economia, continuaram andando devagar, no mesmo ritmo
do PIB, mantendo-se a mesma postura conservadora do início dos
anos 1970, de nao realizar financiamentos de longo prazo. 45 Assim,
em segundo lugar, seja para dinamizar, em rentabilidade, a sua
indústria de serviyos, seja para compensar a sua ausencia histórica
dos financiamentos de longo prazo, o sistema financeiro conta com
um hedge fundamental: a <lívida pública.
É ela, por exemplo, que garante a alta margem das comissoes
cobradas junto a poupadores, nas aplicay5es de curto e médio prazo
em títulos públicos, que funcionam, disfaryadamente, indexadas a
Selle. Urna queda na remunerayao desses títulos significa un1a queda na
remunerayao desse tipo de serviyo. 46 E para complementar sua ausencia
44 Esses cálculos siio difíceis, já que o conceito de sistema financeiro envolve uma rede de aglomerai;:oes
(corretoras, consultorias, pequenos bancos, bolsas e os grandes bancos), de forma que essa estimativa
é apenas aproximada.
45 No final dos anos 1960 foi feíta, pela ditadura militar, a reforma do sistema financeiro brasileiro,
com a criai;:iio do complexo financeiro conglomerado, que constituiu a matriz do complexo tal qual o
conhecemos hoje. No inicio dos anos 1970, ao analisar os primeiros resultados dessa reforma, Tavares
(1975, p. 214 e 216) concluiu que "a despeito de ter resolvido de forma relativamente heterodoxa os
problemas fundamentais de liquidez ou de :financiamento corrente das empresas, do déficit governa-
mental e do financiamento do consumo, nao parece ter logrado um aumento substancial da ta.'l:a de
poupani;:a interna.[ ... ] Notadamente, o financiamento de longo prazo a setores e áreas prioritárias con-
tinuou dependendo, basicamente, de fundos especiais, estrangeiros ou públicos, ligados as agencias de
desenvolvimento, nacionais ou regionais''. Ou seja, mais de 30 anos depois dessa avaliai;:iio pioneira, o
sistema financeiro brasileiro continua com a mesma deficiencia estrutural.
46 Roberto Setúbal, presidente do Itaú, o maior banco brasileiro, em declarai;:iio recente disse que a remWle-
rai;:iio principal do Itaú, com alta rentabllidade, ternaria aconselhável melhorar os spreads dos empréstimos
Um novo projeto para o Brasil

dos financiamentos de longo prazo, utiliza a disponibilidade de recursos


em títulos da <lívida pública.
Olhando o problema a partir de um panorama mais amplo,
é bem possível que os títulos públicos representem cerca de 70% do
PIB e mais de 22% do patrimonio privado brasileiro.47 Esse valor,
relativamente alto, torna-se muito maior dentro do sistemafinanceiro,
provavelmente algo entre 40% e 50% do seu total de ativos líquidos.
Assim, o sistema financeiro, seja na forma da posse direta, seja na
indireta, é altamente dependente das vicissitudes da rentabilidade
e solvencia da <lívida pública, o que torna sempre recomendável
retomar diretamente o comando económico do Estado brasileiro,
sem coabita<¡:ao ou intermediários. 48
Esse predomínio e hegemonia da Banca no Brasil, que lhe garante
altas taxas de crescimento num país pobre e estagnado há mais de. 30
anos, nao tem precedentes no mundo. Em termos de taxas de juros, o
inusitado nao consiste apenas nos juros finais, para o tomador, e sim
o seu ponto de partida, os juros da <lívida pública, que, em sua longa
permanencia temporal, sao os mais altos do mundo. Mais grave ainda,
por meio das tristes e famosas opera<¡:6es .compromissadas, os juros de
curtíssimo, curto e médio prazo sao permanente e estruturalmente os
maiores do mundo, constituindo a principal "jabuticaba'' brasileira.
e financiamentos, para que possam se aproximar uffi pouco mais em rentabilidade dos servic;:os. É claro
que ele nao mencionou ou discriminou quais servii;:os de fato garantem essa sua maior rentabilidade.
47 Nao existe urna estimativa do patrimonio privado no Brasil. Entretanto, combase no estudo de Piketty
(2014), estima-se entre seis e sete vezes o PIB dos países ricos, combase em sua estimativa para alguns
países emergentes esta relai;:ao estaria em cerca de tres vezes o PIB.
48 No comec;:o do governo Lula, em 2003, a coabitac;:ao foi totalmente favorável aBanca, assumindo direta-
mente o BC, por intermédio de Meirelles, mas também o Ministério da Fazenda, por intermédio de Palocci.
Afortunadamente para Lula e para a esquerda, depois que o PIB cresceu modestos 2,9% em 2005, em pleno
boom das commoditi.es, o que recomendaria a imediata demissao de Palocci (o ideal é que fosse a do Mei-
relles também), os tucanes, viaMP de SP, um dos seus prepostos, investi.gararn-no em sua administrai;:ao de
Ribeirao Preto, culminando em sua demissáo, o que de fato deu origem ao governo Lula, em marc;:o de 2006,
no momento limite para que fosse viável a reeleic;:ao. Com Dilma, a coabita<;:áo tornou-se ainda mais desfa-
vorável aBanca, na medida em que Alexandre Tombini., entáo novo presidente do BC, era um funcionário
de carreira, nao orgfuúco do sistema financeiro, o que sugere condic;:oes de controle da política económica
mais favoráveis do que nos primórdios de 2003. Cabe registro ainda que os tucanes também ajudaram Dil-
ma, na medida em que, em 2011, a prefeitura de SP, na época comandada pelo conglomerado DEM/PSDB,
vazou os dados do ISS de Palocci, o que causou a sua demissao da poderosa Casa Civil. Infelizmente, esse
grau de liberdnde do prlmciro mandato completo de Dilma foi nmito mal utilizado.
Mauricio Borges Lemas

Assim, nao é possível construir um Estado Social no Brasil contando


apenas com sorte, mistificac;:oes e ciclo internacional favorável, passando
ao largo da hegemonía ideológica e política da Banca, que detém o
controle da mídia, do governo e de segmentos decisivos do aparelho de
Estado, como o MP e o Judiciário. Ela é a dona de fato e de direito - ao qual
se atribuí, em func;:ao de sua propriedade da <lívida pública - do Estado
brasileiro. Com isso, ela imp6e, com um descarado discurso privatista, um
processo de acumulac;:ao de capital baseado, quase unicamente, no Estado,
lembrando, em todos estes aspectos, o Portugal salazarista.49
Num panorama mais geral, um projeto de desenvolvimento econó-
mico e social do Brasil teria como agenda primeira o abandono de um
governo de coabitac;:ao, tirando a economia do círculo vicioso salazarista,
que leva a lugar nenhum, a nao ser aestagnac;:ao. E, em termos de política
económica, a missao número 1 seria resolver definitivamente a questao
dos juros, especialmente a sua duration, que imp6e altas remunerac;:6es
para aplicac;:oes de curtíssimo, curto e médio prazos, contaminando e
encarecendo toda a estrutura de juros da economía, além de inviabilizar,
em termos :fiscais, o Estado brasileiro.
49 O longo período salazarista em Portugal durou 47 anos (de 1928 a 1975) e, ao contrário de outras
ditaduras que se instalaram no continente no período, ela tinha 11p1a visao económica extremamente
conservadora, administrando o Estado para a Banca e apaniguados, com o discurso do controle fiscal
a
e da inflar;:ao - na prática, controle da inflai¡:ao custa do controle dos gastos sociais - devolvendo para
a Banca e apaniguados os ganhos desse assalto ao Estado. Em termos políticos, é plausível que, pela
atávica e estrutural influencia cultural que Portugal sempre teve no Brasil - algumas positivas e outras,
como esta, negativas - o modelo salazarista é, afinal de cantas, aquele em que o grupo Globo e outros
componentes do PIG, e principalmente a Banca profunda, acreditam. Nesse sentido, a própria ditadura
militar, que adquiriu autonomia própria, especialmente na economia, seria disfuncional, melhor
senda um Estado com urna ditadura suave. No Portugal salazarista, por exemplo, existía um parlan1ento,
embora manietado pelo judiciário e pelo executivo, com solur;:óes ad hoc em cada urna das situar¡:óes. Para
problemas e contestar¡:óes mais extremas, que escapassem ao controle legal, a polícia, ao arrepio das leis e
das regras da própria ditadura, era a solur¡:ao. Infelizmente, parafraseando a profecía de Chico Buarque,
corre-se o risco de o "Brasil tornar-se um imenso Portugal" (salazarista). Finalmente, isso vem ao en-
centro de um diagnóstico de Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, sobre a vocar¡:ao atávica do
brasileiro cordial (em especial as elites) para o patrimonialismo quase sem disfarces. Infelizmente, os
vaticínios nao muito otimistas de pai e filho estiio se tornando realidade no Brasil. A semelhanc;:a como
salazarismo, entretanto, tende a ser mais económica do que política, urna vez que falta ao Brasil, seja no
período militar, seja nos dias atuais, "um aparelho de inculcar¡:iio ideológica autoritária, estatista, mer-
gulhado no cotidiano das pessoas [... ] como propósito de criar esse particular 'homem novo' do sala-
zarismo" (ROSAS, 2001, p. 1031). Esse 'homem novo' do salazarismo ajudou a dar longevidade a um
regime autoritário de direita, e nao propriamente fascista, seguindo a interpretai;:ao de Pinto (1992).
Um novo projeto para o Brasil

5.2. Rompendo com a estrutura regressiva dos impostas

Thomas Piketty (2014), em sua monumental obra O capital no século


XXI, conclui que a contradü;:ao fundamental do capitalismo é a tendencia de
que a taxa de retorno do capital (r) supere o crescimento da renda nacional
(g), fazendo com que a renda se concentre indefinidamente, "espremendo''
a parcela da maior parte da populayao. Depois de avaliar que foram as duas
grandes guerras mundiais que impediram, pela destruiyao de patrimonios,
que tal desigualdad.e fosse aumentada, ele constata que, a partir dos anos
1980, a contradiyao r > g (r maior que g) voltou a se manifestar e se
materializar em um novo ciclo de concentrayao de renda. Ele afirma que

"[ ... ] a (re)ascensao da desigualdade depois dos anos 1970-1980 se


deveu, em parte, as mudanc;:as políticas acorridas nas últimas décadas,
principalmente no que tange a tributac;:ao e as :financ;:as. A história da
desigualdade é moldada pela forma como os atores políticos, sociais
e económicos enxergam o que é justo e o que nao é, assim como pela
influencia relativa de cada um desses atores e pelas escolhas coletivas que
disso decorrem. Ou seja, ela é fruto da combinac;:ao, do jogo de forc;:as, de
todos os atores envolvidos''. 5º

Entre as suas conclus6es para mitigar esse mal, depois de descartar


urna taxayao linear sobre o capital, ele se diredona ataxayao progressiva:
''A melhor soluyao é o imposto progressivo anual sobre o capital. Com
ele, é possível evitar a espiral desigualad.ora sem fim e ao mesmo tempo
preservar as foryas de concorrencia e os incentivos para que novas
acumulayóes primitivas se produzam sem cessar". 51
A ideia de urna taxayao progressiva sobre o capital é antiga e
apresenta vários caminhos. A mais geral e mais justa seria a taxa-
yao progressiva sobre o patrimonio, considerando todos os ativos
dos proprietários de capital, o que, como o próprio Piketty constata,
suporia urna situayao internacional consensual, pelo menos entre os
50 PIKETTY, Thomas. O capital do século XXI. Sao Paulo: Intrínseca, 2014. p. 27.
51 Id., p. 556.
Maurício Borges Lemos

principais países, sobre a necessidade desse imposto, o que constitui


urna impossibilidade, pelo menos em curto e médio prazo. Para a
situac;:ao do Brasil, urna economia periférica, onde boa parte do ca-
pital é estrangeiro e a parte nacional, com certa facilidade, migra e
transmuta-se em capital multinacional, as soluc;:oes tem de ser espe-
cíficas, em func;:ao de sua eficácia e funcionalidade.
Urna medida, de soluc;:ao simples, tecnicamente já contida na Jegis-
lac;:ao tributária, seria utilizar o Imposto sobre Operac;:oes Financeiras
(IOF) na tributac;:ao de títulos e valores mobiliários de curtíssimo, curto
e médio prazos. Com um ato do presidente, seria possível remodelar
o Decreto 4.994/2002, aumentando significativamente a alíquota do IOF
para aplicac;:oes com prazo inferior a cinco anos. No limite, operac;:oes
muito curtas (por exemplo, menos de seis meses) pagariam urna alíquo-
ta que deixaria, por exemplo, nao mais do que 2% ao ano de rendimento,
valor que iria gradativamente subindo, especialmente para prazos supe-
riores a dois até cinco anos, quando a alíquota seria zerada. Essa utiliza-
c;:ao do IOF cumpriria duas func;:oes: urna regulatória, ao desincentivar a
preferencia pela liquidez, e a outra de arrecadac;:ao, na prática progres-
siva.52 Assim, ao mesmo tempo em que torna possível o Banco Central
do Brasil (BC) continuar comas operac;:oes compromissadas, mantendo
a necessária liquidez dos títulos públicos, levam-se as taxas líquidas de
curto prazo para baixo - a ponta inferior da curva de juros - o que, em
alguma medida, reduz as aplicac;:oes com maior duration - a ponta supe-
rior da curva de juros. Essa medida, tecnicamente simples, nao necessita
de lei, mas apenas de um decreto. Políticamente, produziria apenas ruí-
do promovido pela Banca, pelos-seus economistas-ideólogos e pelos seus
apoiadores empoleirados no PIG.
Com um custo fiscal dos juros significativamente mais baixo, o nível
do esforc;:o pelo resultado primário deverá cair, podendo ser um bom
ponto de partida para afrouxar a pesada carga tributária regressiva.
Antes disso, seria importante avanc;:ar na busca de mais impostos com
características progressivas.
52 Pelo fato de que, no conjunto das camadas sociais, o poupador típico situa-se nos estratos da classe
média alta para cima.
Um novo projeto para o Brasil

O mais importante deles é, sem dúvida, o Imposto de Renda,


cujas possibilidades, enquanto imposto progressivo, sao enormes,
a despeito de deficiencias provocadas pela mobilidade locacional
do capital e das pessoas, restringindo-o enquanto tributo sobre as
grandes fortunas. Mesmo assim, parte dessas deficiencias pode
ser mitigada, senda inaceitável que a alíquota marginal máxima
(27,5%) esteja muito abaixo daquela dos principais países da Europa,
ou mesmo dos Estados Unidos, em sua longa fase de predomínio
republicano na Camara dos Deputados, a partir do governo Reagan. 53
De fato, nao há nenhuma razao para que nao se trabalhe com urna
taxa marginal para as rendas mais altas, com algo como 50%, para
aquelas acima de 60 salários mínimos, descendo-se gradativamente
a escada até os 27,5%, que poderiam corresponder, por exemplo, a
rendas até 25 salários mínimos.
O difícil, neste caso, seria como fazer justi<;:a tributária, já que as
camadas mais abastadas vivem de rendas cuja origem já tem urna
tributa<;:ao com alíquota fixa - o lucro das empresas - ou exclusiva,
que é a tributa<;:ao da renda :fixa, 54 senda que os dividendos (renda
variável) sao isentos. 55 Urna proposta qµe poderia ter alguma e:ficácia
seria incluir o dividendo recebido pela pessoa física em sua renda
tributável, compens.ando-se o imposto já pago como IR pessoa jurídica,
exclusive a Contribui<;:ao sobre o Lucro Líquido (CSLL). Os dividendos
recebidos por pessoas jurídicas, por exemplo, urna holding, deveriam
estar sujeitos amesma tributa<;:ao progressiva, exceto nas situa<;:6es em
que fossem formalmente incorporados como capital. 56
53 Depois de um longo período em que a alíquota marginal para as rendas mais elevadas girava em torno
de 80%, a partir dos anos 1980 babcaram até urna mínima de 28%, no governo Reagan, situando-se em
período mais recente em 40%.
54 A renda fixa teria, além dos valores fucos.do Imposto de Renda (IR), os valores variáveis do IOF
segundo a duration, que poderia diminuir significativamente a sua remunera<¡:ao líquida, reduzindo a
sua importancia nas chamadas rendas de capital.
55 A ideia é que os danos dos dividendos já pagaram o IR, ao serem indiretamente tributados dentro da
empresa. Por outro lado, os dividendos recebidos na forma de juros do capital próprio, que reduzem a
base de lucros oferecidos atributa<¡:ao, vem tendo urna tributa<¡:ao fixa de 15%.
56 Isso evitaría a elisao fiscal, a partir do uso de outras pessoas jurídicas. As remessas de lucro, nessa
situa<¡:ao, pagariam, inevitavelmente, essa tarifa progressiva, já que a holding, mesmo que viesse a capi-
talizar o dividendo remetido, estaria fora do país.
Mauricio Borges Lemas

Urna terceira possibilidade estaria na reativa<;:ao da Contribui<;:ao


Provisória sobre Movirnenta<;:ao Financeira (CPMF), a ser transferida
para estados (75%) e rnunicípios (25%), seguindo o peso proporcional
da popula<;:ao de cada urn desses entes federativos no país. Para
mitigar alguns aspectos que a tornam regressiva, seria necessário
aumentar o teto de isen<¡:ao para pessoas físicas e jurídicas, 57 bem
como proceder a um descanto de até 50% da alíquota para algumas
atividades da Classifica<¡:ao Nacional de Atividades Económicas
(CNAE), previamente selecionados do comércio e da indústria. Como
contrapartida, os estados deveriam zerar o ICMS sobre os itens da cesta
básica, bem como o do consumo de energía residencial até um teto baseado
numa média de consumo de 12 meses. 58 Para os municípios, seria
exigido zerar o Imposto Sobre Servi<;:os (ISS), em alguns itens de
servi<;:os que oneram o custo de vida, notadamente sobre o transporte
urbano, que já é isento em algumas capitais. No conjunto dessa troca
CPMF versus ICMS e ISS, seria possível esperar urna redu<;:ao líquida
da regressividade da carga tributária geral, que se samaria a redu<¡:ao
dos impostas indiretos federais.
Em contrapartida para os estados e municípios, poderia ser
criado mais um imposto progressivo sobre imóveis urbanos e rurais.
Na verdade, com base no cadastro do Imposto Territorial Rural
(ITR), e do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), seriam
sornadas todas as propriedades dentro do país, estabelecendo-se
um patamar mínimo de isen<¡:ao e compensando-se os valores pagos
como IPTU e ITR. 59 A cobran<;:a ficaría a cargo da Receita Federal,
57 Por exemplo, R$10.000,00/mes.
58 Um nível de consumo médio ero 12 meses de 250 kWh seria um valor que abrangeria com faci-
lidade mais de 90% das residencias brasileiras, o que impactaría de forma muito positiva os índi-
ces de custo de vida.
59 Por exemplo, R$ 4 milh6es poderia ser o teto para isenc;:ao. A partir desse valor de patrimonio,
seriam estabelecidas alíquotas na margem, comei¡:ando, por exemplo, com 0,5% e terminando em ní-
veis muito altos como mais de R$ 50 milhoes, que pagariam alíquotas de 2%. O imposto valeria para
as pessoas físicas, verificando-se sempre o Cadastro de Pessoa Física (CPF) dos proprietários para
cada imóvel. Quando o imóvel for de propriedade de urna pessoa jurídica, vai se verificar o CPF dos
proprietários da pessoa jurídica, cuja cota no imóvel se sornará a outras cotas ou propriedades diretas
de imóveis, para efeito do cálculo da progressividade. Quando a propriedade dos imóveis for de urna
Sociedade Anónima (S/A), com ai¡:6es em Bolsa, ou empresas estrangeiras, o imposto será cobrado da
Um novo projeto para o Bré151l

que a distribuiria em 100% a estados (75%) e municípios (25%),


segundo a sua populas;ao. 60
Alternativas poderiam ser criadas, mas essas mencionadas seriam
suficientes para atenuar bastante o caráter regressivo da carga tributária,
reduzindo a sua cancerosa incidencia sobre a inércia inflacionária.
Além do mais, poderíamos sair definitivamente do círculo vicioso
salazarista, criando as bases para o Estado brasileiro agir de forma
sustentável61 em prol do desenvolvimento económico e social.

5.3. Desenvolvendo a base econ6mica do país e sua infraestrutura

Existem dois pré-requisitos fundamentais para o desenvolvimento


económico de um país: o desenvolvimento sistemático da sua base
económica, cujo pressuposto fundamental é a existencia de atividades
nao-básicas, as quais sao necessárias, por vezes imprescindíveis, para a
dinamizas;ao da primeira, a básica.
Utilizando urna terminologia mais atual, já que as definis;oes
acima vieram de antigos conceitos de economia regional dos anos
1950 e 1960, seria possível dizer que a base económica é constituída
por todas aquelas atividades comercializáveis (tradables) num
espas;o externo ao ·da própria regiao ou país. Nesse sentido, elas
podem ser tanto bens transportáveis, como as commodities e
manufaturas, assim como servis;os financeiros, administrativos, de
tecnología da informas;ao e viagens (turismo), configurando um
conjunto de negócios estratégicos para o país. Essas atividades nao se
confundem exatamente com as exportas;oes, podendo, por exemplo,
ser urna atividade comercializável pouco exportada, mas importante
concorrente de eventuais importas;oes. Por outro lado, as atividades
pessoa jurídica. Por outro lado, a residencia da pessoa física ou jurídica (no caso das S/A ou empresas
estrangeiras) nunca será o fato gerador do imposto e sim o imóvel e sua localizac;:iio em determinado
a
municipio e estado. A inadimplencia geraria urna divida do imóvel, correspondente sua participac;:iio
no patrimonio imobiliário dentro do país de residencia da pessoa física ou jurídica.
60 Por urna série de razéíes, é imprescindível que tal imposto venha a ser cobrado pela Receita Federal,
incluindo, por exemplo, umn comissao para ressarcir seus custos.
61 Esse termo infcllzmcnlc tcm sido mu! utilizado no ambiente político, mas pareceu-me, aqui, necessário.
Maurício Borges Lemos

nao básicas seriam aquelas nao comercializáveis (non-tradables) num


espac;:o externo de urna regiao ou país, as quais seriam compostas
por urna ampla rede de servic;:os e bens pouco transportáveis. Muitos
deles sao formados por aglomerac;:óes de micro, pequenas, médias
e grandes empresas, as quais podem transmutar-se em atividades
eventualmente comercializáveis.
O importante a assinalar é que essas duas dimensóes do desen-
volvimento sao intrínsecamente interligadas, sendo que urna é
pré-requisito para a outra: sem as atividades nao básicas, até mesmo
urna prosaica produc;:ao de commodities pode se tornar inviável em
termos locacionais, caracterizando um custo-país, ao mesmo tempo
em que um crescimento desproporciona! (maior) das nao básicas em
relac;:ao as básicas (menor), a longo prazo, pode gerar urna crise, em
geral com o estouro de bolhas financeiras, como tem acorrido ao
longo da história do capitalismo. 62
Embora intrinsecamente interligadas, as características econó-
micas desses dois tipos de atividades sao muito distintas entre si
e, internamente, em cada subconjunto. Para comec;:ar, as atividades
básicas dependem diretamente de sua competitividade internacio-
nal. Esta, por sua vez, pode depender, por exemplo, da dotac;:ao de
recursos naturais, da qualidade locacional e da capacidade finan-
ceira e tecnológica de suas empresas manufatureiras, da qualidade
aglomerativa (produtiva) e da qualidade de seus centros urbanos
para constituírem sede de grandes empresas, e, claro, de sua inser-
c;:ao macroecon6mica, que definirá se o custo-país será baixo (ou
pelo menos abrandado) ou se, ao contrário, será exposto e realc;:ado
na competic;:ao com os outros países. 63
Por outro lado, as atividades nao básicas, embora dependam
estruturalmente do crescimento das básicas, apresentam dinamicas
62 As atividades imobiliárias sao típicas nesse aspecto, já que configuram urna atividade nao básica
extrapolando, em sua dinamica de crescimento, até o momento de ficar visível a sobreoferta que levará
ao estouro da bolha e acrise financeira, afetando o conjunto da economía.
63 Por insen;:ao macroeconómica estou me referindo aos juros internos, a carga de impostas indire-
tos, a tributa-;ao das importa-;oes, as isen-;oes (de impostas) para as exporta-;5es e ªº nível do cambio e
apolítica cambia!.
Um novo projeto para o Brasil

muito diferenciadas, desde prosaicas atividades de comércio e


servis;os desenvolvidas normalmente pelas empresas privadas de
diversos tamanhos até áreas socialmente decisivas, como a saúde, ou
estratégicas, como a educas;ao, cuja dinamica depende fortemente
do Estado. Estas últimas, aliás, constituem um desafio permanente
de alocas;ao de recursos fiscais e de gestao e governans;a. No meio
do caminho ternos a infraestrutura, que, por quest6es da eficiencia
propiciada pela governans;a, deveria ser privada. Entretanto, por
exigirem grandes investimentos em capital fixo, apresentam taxas de
retorno diversas, algumas poucas acima das praticadas pelo mercado
brasileiro (sempre mais de 10% ao ano) e grande parte muito abaixo
desse nível, chegando algumas ao nível zero ou negativo. Nesse
sentido, a pergunta que se imp6e ein relas;ao a infraestrutura é
como se poderiam acelerar os investimentos, rompendo o seu nível
historicamente muito baixo e contando com a governans;a privada
para executá-los, em vez da as;ao direta do Estado? Em outras
palavras, como realizar um salto no nível de investimentos com um
custo fiscal relativamente baixo?
Quanto a base económica, a pergunta que se imp6e é a seguin-
te: além das vantagens comparativas propiciadas por sua dotas;ao
de recursos naturais, que permite ao Brasil ser grande produ-
tor e exportador de commodities, qual deveria ser a política para
dinamizá-la, diversificando-a?
Urna das possibilidades de sua diversificas;ao seria o turismo,
cujo desenvolvimento depende fundamentalmente da melhora da
infraestrutura urbana brasileira, ªº lado da garantía de um cambio
competitivo e estável. A outra possibilidade no setor de servis;os
seria transformar as duas metrópoles nacionais brasileiras (princi-
palmente Sao Paulo e Río de Janeiro) em centros administrativos e
financeiros, com circulas;ao internacional. Nesse caso, além da me-
lhora da infraestrutura urbana, essas metrópoles passariam a sediar
um grande número de grandes empresas brasileiras, as quais seriam
a base de sustenta<;:ao de urna grande Bolsa de Valores, que daría um
verdadeiro salto em rela<;:ao a seu nível incipiente e acanhado dos
Mauríclo Borges Le!Tlos

días atuais. Por último, urna terceira possibilidade seria relarn;:ar a


indústria brasileira, urna tarefa tao complexa quanto as duas alter-
nativas apontadas anteriormente.
O economista Eugenio Gudin, notório adversário da indústria
brasileira, no passado, 64 assim como vários modernos salazaristas,
representando a Banca, em pleno século XXI, diriam que o Brasil
deveria seguir a sua vocar;:ao, nao se abrigando a realizar nenhuma
ar;:ao protecionista que viesse a tornar a economía ineficiente, perdendo
os beneficios do comércio internacional. Essa posic;:ao, que fez muitos
adeptos na fase de alta do boom de commodities recente, foi, na prática,
a política predominante em todo o período petista, com ac;:oes isoladas,
algumas sistemáticas, outras inócuas, em favor do adensamento da
pauta de exportac;:oes ou da substituic;:ao de importar;:oes. 65 Com isso, a
indústria regrediu, com perda de competividade, reduzindo a densidade
das cadeias produtivas e o empobrecimento (de urna outrora mais
diversificada) pauta de exportac;:oes.
Como retomar, nos novas tempos, urna política de industrializac;:ao
que nao contenha os velhos problemas da política de substituic;:ao
de importac;:oes dos anos 1950, 1960 e 1970? Como evitar ou mitigar
o problema da escolha de vencedores na montagem de urna política
industrial? Como enfrentar a questao cambial, que tem sido letal para
a indústria? Como enfrentar a descapitalizar;:ao e virtual falencia dos
empresários da indústria? 66

64 Eugenio Gudin, patriarca dos economistas neoliberais do Brasil, foi o grande adversário ideológico,
nos anos 1930 a 1950, do processo de industrializac¡:ao, senda o principal contender de Roberto Simon-
sen, o líder e inspirador da indúshia nascente brasileira.
65 Entre as ac¡:éies isoladas está a política de conteúdo nacional, aplicada pela Petrobras, destruída
agora, em poucos meses, pelo governo Temer. Entre as ac¡:óes sistemáticas, algumas foran1 resulta-
do do trabalho dos ministérios e agencias regulatórias com o BNDES, especialmente o MDIC e o
Ministério de Minas e Energía (MME). Entre elas, está a política de apoio as exportac¡:éies de ser-
vic¡:os de engenharia e bens de capital, com destaque para as aeronaves da Embraer. Além do mais,
a persistencia do Finame (linha de financiamento de bens de capital do BNDES) tem permitido
que "o país das commodities agrícolas" desenvolva aqui a produi;:ao de máquinas e equipamentos
utilizados na agropecuária, urna vez que, infelizmente, boa parte dos insumos utilizados no setor
(fertilizantes e defensivos) é importada.
66 Tentaremos sugerir algumas respostas para essas perguntas no ítem 6.2. As políticas hetero-
doxas recentes. p. 71.
Um novo projeto para o Brasil

Em resumo, as as;6es sao muito diferenciadas e complexas,


pressupondo: i) a realizas;ao de um salto da infraestrutura; ii) a crias;ao
de grandes empresas nacionais e o desenvolvimento da Bolsa de Valores;
iii) garantir condis;6es macro económicas competitivas (o cambio,
sobretudo) para o turismo e para a própria indústria manufatureira;
e iv) promover um verdadeiro relans;amento desta última. Parece
impossível, mas vem sendo tentado, com relativo sucesso por vários
países emergentes, como a Coreia e, agora, a China.
Garantindo um cambio para a
indústria para (re)dinamizar
a base econ6mica

6.1. Por que urna desvalorizac;ao cambial nao é sustentável em


longo prazo no Brasil?

É consenso entre a grande maioria dos analistas da cena econó-


mica que o cambio financeiro sobrevalorizado é um dos grandes
males que fustigam a indústria de transforma<;:ao brasileira des-
de o advento do Plano Real, há 22 anos. Sua situa<;:ao, que nun-
ca fora brilhante desde seu nascimento nas primeiras décadas do
século passado, passou a ser de um lento, gradual e progressivo
definhamento. Na atual conj.untura, como já ocorrera em vários
momentos desses 20 anos (por exemplo, em 1999, 2003 e 2009),
renova-se a esperan<;:a de que, a luz de um antigo e recorrente pro-
blema brasileiro - o déficit estrutural de transa<;:6es correntes e
a pressao cambial dele decorrente -, o cambio financeiro devolva
um patamar minimamente competitivo para a indústria. Isso é o
que esperam todos os desenvolvimentistas, liderados há muitos
Mauríclo Borges Lemas

anos pelos decanos dessa linhagem económica Luiz Bresser Pereira


e Yoshiaki Nakano. 67
Embora me considere desse agrupamento, <leve-se ponderar que a
solrn;:ao da competitividade da indústria vía cambio financeiro é urna
esperarn;:a va, em furn;:ao de pelo menos duas razóes principais. Urna
primeira diz respeito a urna antiga herarn;:a cultural brasileira, que
nos acompanha desde dom Joao VI, criador do cambio brasileiro:
as autoridades económicas de nenhum governo, seja no Império, na
República Velha, no Estado Novo, no período democrático até 1964, na
ditadura e todos os governos da Nova República, nunca estao dispostas
a bancar urna desvalorizayao cambial por livre arbítrio (nao aquela
determinada e sancionada pelo mercado), podendo, sim, ao contrário,
bancar urna valorizayao cambia! na primeira oportunidade em que o
mercado financeiro internacional assim o permitir. A razao, política e
cultural, é que um cambio financeiro desvalorizado significa sacrificio
de todos ou de muitos e que, urna vez nao assimilada, transforma-se
em inflayao inercial, com ares de conflito distributivo. 68 É como se
as autoridades económicas de todos os governos fossem, no fundo,
urna versa.o soft do governo do presidente Dutra, talvez um pouco
injustamente conhecido como o Marechal Ioió, por esbanjar divisas e
jogar fora 15 anos de esforyo de industrializayao, dos anos 1930 até o fim
da Segunda Guerra Mundial.
Urna segunda razao é que urna desvalorizayao cambial permanente
(ou pelo menos por um período suficientemente longo para permitir o
relanyamento sistemático do investimento industrial) nao é tecnicamente
sustentável. Imagine-se, por exemplo, a conjuntura do final de 2014,
em que a estratégia da entao futura equipe económica funcionasse,
assimilando-se a atual (e futura) desvalorizayao cambial, aumentando-se
67 Pereira (2010) e Nakano apud Assis (2014) defendem a necessidade estrutural de um cambio com-
petitivo para a indústria brasileira desde os anos 90 do século passado, representando urna in1portante
lideranr;:a intelectual do campo desenvolvimentista.
68 Além do conflito distributivo, no qual as rendas mais baixas tendem a levar a pior, os proprietá-
rios de ativos financeiros nacionais, com destaque para o complexo financeiro ao qua! aqui ternos
nos referido como nome fantasia de Banca, estao automatican1ente desvalorizados, com urna even-
tual desvalorizar;:áo cambia!, o que faz com que tais grupos estejam sempre alinhados com a maior
apreciar;:áo cambia] possível.
Um novo projeto para o Brasil

o desemprego e reduzindo-se os salários reais. Com a queda desse prec;:o


relativo, a inflac;:ao estará assin1ilada, e a economia, impulsionada também
pela indústria de transformac;:ao, voltaria a crescer. Ao final, os salários
reais voltarao a subir, em func;:ao da volta do crescimento e do emprego,
e, possivelmente, o cambio iniciará um movimento de valorizac;:ao do
real, puxado por urna melhora em transac;:oes correntes. De duas, urna,
ou ambas: ou as autoridades económicas deixam o cambio deslizar e
se valorizar, ou tentam segurar a inflac;:ao, com as políticas monetária
e fiscal. E assim haverá urna parada no crescimento, estancando o
incipiente processo de recuperac;:ao industrial. Acrescente-se, no caso
do Brasil, o alto custo fiscal de formac;:ao de reservas para a sustentac;:ao do
cambio, o que poderia ser apenas parcialmente mitigado com urna
pretendida reduc;:ao dos juros da <lívida pública. 69
Assim, denominando-se a primeira razao de política e a segunda
de técnica, pode-se afirmar com certa seguranc;:a 'que o processo de
desvalorizac;:ao cambia!, como o de 2014 e 2015, terá, mais urna vez,
vida efemera, nao sendo sustentável mesmo em médio prazo. Aliás,
isso ocorreu nos cerca de dois anos e meio do governo Temer e vem se
repetindo nos primeiros meses de governo Bolsonaro.

6.2. As políticas heterodoxas recentes

Como foi observado no capítulo 6, com o m1c10 do ciclo da crise


internacional, no final de 2008, executou-se, no Brasil, um conjunto
de medidas anticíclicas: a intensificac;:ao do Programa de Acelerac;:ao
do Crescimento (PAC) e do Minha Casa, Minha Vida, programas
que já vinham desde 2006 e que coincidiram com a substituic;:ao de
Palocci por Guido Mantega no Ministério da Fazenda; isenc;:ao de IPI
para bens duráveis, especialmente automóveis; e o PSI, urna linha
de financiamento para aquisic;:ao de bens de capital e inovac;:ao, com
juros supersubsidiados.
69 Os cerca de US$ 370 bilhoes das reservas brasi!eiras atuais tem um custo anual fiscal em torno de
R$ 100 bilhoes, o que significa que urna política de longo prazo, de sustentac;:iio de um cambio finan-
ceiro desvalorizado, trabalharia com um nível de reservas (e um custo fiscal) muito maior, mesmo
na hipótese de urna redui;ao eslruturnl dos juros da <lívida pública.
Mauricio Borges Lemas

Até 2010, o "pacote" anticíclico funcionou amparado pelos investi-


mentos, que voltaram a crescer, pela desvalorizas;ao do cambio e pelo
"trancamento" das linhas de crédito do comércio internacional. Mas,
já no final de 2010, com a volta do crédito internacional e do pro-
cesso de valoriza<;:ao do real, a indústria reiniciou a sua trajetória de
definhamento. Depois de várias tentativas de reanimas;ao, comidas e
vindas das isens;6es de IPI, ajustes, com aumento e redu<;:ao de juros
do PSI, e a gradual, mas sempre insuficiente retomada do processo
de desvalorizas;ao cambia!, desde meados de 2012, chegou-se a situa-
s;ao atual, em que, a despeito do enorme esfor<;:o fiscal despendido, a
indústria prosseguiu em sua trajetória de definhamento. Qual é de
fato o seu problema?
Na verdade, a indústria precisa fundamentalmente (mas claro
que nao unicamente) de pres;os e, consequentemente, de margens e
lucratividade, por um período suficientemente prolongado, fatores
que nenhum dos programas acima, além de desvalorizas;6es cambiais
episódicas (e a meia bomba) sao capazes de fornecer. A indústria nao
precisa de "meias medidas" improvisadas, mas de medidas completas,
significativas e definitivas que lhe restaurem, a médio e longo prazo,
a competividade básica, nao apenas no mercado interno, como
tainbém no externo. É daí que nasce a ideia de um cambio, único e
exclusivo, para a indústria.

6.3. A necessidade de um cambio para a indústria

Como a política de "múltiplos cambios" formal tem recorrentes


problemas técnicos e operacionais, no Brasil ela foi definitivamente
substituída nos anos 60 do século passado. A maioria dos países pratica
cambios setoriais para os vários segmentos tradables, seja por meio
de impostas de importas;ao, seja de incentivos fiscais as exportas;6es.
O critério para julgá-los é a sua eficácia/ineficácia relativa, que depende
do seu impacto nos pres;os relativos, eventualmente na inflas;ao, no
adensamento (ou nao) das cadeias produtivas e, em última instancia,
na capacidade de gerar competitividade básica de segmentos ou
Um novo projeto para o Br,y,11

setores, seja no sentido da protec;:ao em relac;:ao a competic;:ao externa,


seja no sentido de produzir exportac;:6es e intercambio com o resto do
mundo. Adicione-se a tais parfunetros o impacto e a sustentabilidade
fiscal. Por tais critérios, pode-se afirmar que, muito embora haja urna
diversidade de medidas de protec;:ao e de incentivo as exportac;:6es
no Brasil, o resultado prático tem sido ruim, protegendo poucos e de
forma desequilibrada, como (des)adensam.ento sistemático das cadeias
produtivas e a incapacidade crescente de competir (no próprio mercado
interno) e exportar para o resto do mundo. 70
Assim, por exemplo, o setor automotivo, que é excessivamente
protegido no segmento das montadoras - impostos para a importac;:ao
de 65% -, nao estende tal protec;:ao ao setor de autopec;:as. Além do mais,
ambos (montadoras e cadeia produtiva do setor automotivo) nao tem
praticamente incentivo relevante para exportar. De forma diversa, o
setor de bens de capital é pouco protegido (impostes de importac;:ao
abaixo de 15% e, mesmo assim, ainda submetidos ao ex-tarifário),
além de poucos incentivos para as exportac;:6es. Por isso, a procura de
um cambio para a indústria deveria, em primeiro lugar, ser abrangente,
alcanc;:ando todos os setores tradables da indústria de transformac;:ao
em que o Brasil tenha déficit comercial. Em segundo lugar, o setor
protegido tem de ter um incentivo do mesmo calibre para exportar,
uma vez que o obj'etivo final do cambio nao é a transformac;:ao do
Brasil numa autarquía, e voltar aos anos 50 do século passado, mas,
ao contrário, dar-lhe condic;:oes competitivas para uma integrac;:ao
mais favorável com o resto do mundo, importando e exportando em
intensidades semelhantes.

70 Como já observado, a Leí Complementar n .. 87, de 13 de setembro de 1996, a "famigerada"


Leí Kandir, que dispoe sobre a isen-rao do ICMS para exporta-rao de matérias-primas, repli-
cada no nivel federal para o PIS-Cofins, privilegia as mineradoras e a agropecuária em detri-
mento da inclústrln.
Maurfcio Borges Lemas

6.4. Urna proposta de cambio para a indústria

De certo modo, os impostos de importa<;:ao, quanto menos


abrangentes forem, mais podem produzir distor<;:ües, sendo urna das
principais a maquiagem (viabilizada pelo subfaturamento), um mal
que vem assolando a indústria brasileira. Por essa razao, o melhor
tipo de aplica<;:ao de um imposto de prote<;:ao seria aquele abrangente,
abarcando horizontalmente muitos setores e, verticalmente, a
totalidade, ou quase a totalidade, das cadeias produtivas. Além do mais,
para se evitar quase completamente a possibilidade de maquiagem,
o imposto deveria ser nao cumulativo, cobrado nao apenas dos
importadores de determinado ramo industrial, mas das empresas
aqui instaladas. Por sua vez, estas zerariam o imposto pago a partir de
um crédito tributário gerado, tendo como base urna parametriza<;:ao
da folha de pagamentos da empresa. Assim, quem vier a ter uma folha
normal nada pagaria, quem maquia (montadores) paga parcialmente,
e o importador puro paga totalmente o imposto. Urna vez que ele
nao constituí, formal e típicamente, um imposto de importa<;:ao,
seria preferível denominá-lo como um PIS-Cofins adicional, nao
cumulativo, com a utiliza<;:ao imediata de crédito tributário, definido
a partir de urna parametriza<;:ao da folha de pagamentos. 71
Por outro lado, diferentemente do puro e simples protecionismo,
a proposta <leve contemplar um incentivo fiscal da mesma intensida-
de <leste PIS-Cofins adicional para as exportai¡:oes. Seu formato seria
o de um crédito tributário também imediato, autorizado a compensar
quaisquer impostos ou tributos federais devidos. A base legal teria
como referencia a Leí 12.844/2013 do Reintegra, 72 só que com alí-
quotas robustas. Por exemplo, se a alíquota adicional do PIS-Cofins
adicional for de 20%, o Reintegra será de 20% do valor exportado,
aproximando-se neste caso do Reintegra chines, que chega a 18%,
71 A parametrizai;ao seria espeáfica para cada setor da indústria. O crédito tributário imediato significa
que será feito sem a necessidade de urna consulta prévia a Receita Federal, que fiscalizará a sua con-
formidade a posteriori.
72 Regime especial de Reintegrai;ao de Valores Tributários para empresas exportadoras.
Um novo projeto para o Brasil

mesmo com o cambio financeiro por eles praticado (excessiva-


mente desvalorizado).
No conjunto, todos os setores industriais contemplados teriam
um cambio desvalorizado em 20% em rela<;:ao ªº cambio financei-
ro. Se, por acaso, este último se desvalorizar de forma significativa,
o governo reduzirá a alíquota. Apreciando-se o cambio financeiro,
<leve-se aumentá-la, de forma que, no longo prazo, mantenha-se o
nível de competitividade cambial previamente pactuado. Com isso, a
indústria terá um cambio permanente, protegido da volatilidade e de
incertezas do cambio financeiro, abrindo o caminho para a retomada
dos investimentos e o seu relan<;:amento enquanto setor significativo
da base económica brasileira. Os beneficios de um programa des-
se tipo seriam inequívocos, além de, adicionalmente, trazerem um
ganho tributário líquido que poderia chegar a US$ 30 bilhóes. 73 Os
efeitos colaterais seriam mínimos: urna infla<;:ao adicional, num pri
meiro momento, de 2% e o encarecimento dos bens de capital, sendo
que ambos podem ser mitigados. 74
Com a retomada dos investimentos na indústria, a agenda do próprio
governo e, em especial, dos bancos públicos em rela<;:ao a indústria
mudaria substancialmente, evitando-se programas genéricos, com alto
custo fiscal, como o PSI, em favor de programas com foco, cujo epicentro
seria urna espécie de reengenharia de toda a indústria, inclusive com
a sua (re)capitaliza<;:ao, depois de tantas décadas de definhamento. Nao
haveria um programa de inova<;:ao genérico, em que tudo é válido, até
mesmo investimentos normais de atualiza<;:ao tecnológica das empresas.
73 Ou seja, 20% do déficit comercial de cerca de US$ 150 bilhoes no trienio 2012-2014, que representada
1,5% do PIB. A ideia é que o custo do Reintegra para as exportar;:oes seria mais que compensado pelas
importar;:6es, o que seria quantificado pelo déficit comercial da indústria.
74 Seria possível reduzir significativamente a·carga do PIS-Cofins tradicional sobre os principais itens
que impactam a inflar;:ao, financiado pelo ganho de arrecadar;:ao do programa. Urna simular;:ao com o
IPCA mostrou que, gastando-se os cerca de US$ 30 bilh6es com isenr;:oes do PIS-Cofins tradicional, o
impacto inflacionário inicial <leve ficar abaixo de 0,5%, havendo a possibilidade de ser zerado. Por outro
lado, quanto aos bens de capital, considerando que este encarecimento reflete o que seria um cambio
justo, qualquer tipo de isenr;:ño deveria sair de outros impostas, a comer;:ar pelo próprio imposto de irn-
portar;:ao. Este argumento do cambio justo é o que deveria ser utilizado junto a inevitável interpelar;:ao
da Organiznr;:ño Mundial do Comércio (OMC), senda que as alíquotas, do PIS-Cofins e do Reintegra,
poderao ser até mesmo zcrodus, no caso de um cambio financeiro muito depreciado.
Mauricio Borges Lemos

Ao inverso, urna inovac;:ao com foco teria como referencia o mercado


internacional, caminhando-se nas rotas tecnológicas factíveis para urna
futura especializac;:ao industrial brasileira.
Por outro lado, novos mecanismos de financiamento tem de ser
procurados, nao apenas para atender as necessidades de (re)capitalizac;:ao,
mas para expandir e dinamizar as empresas de micro, pequeno e médio
portes (MPMEs), que constituem a célula básica e fator de eficiencia
das grandes aglomerac;:oes económicas: mecanismos republicanos
- padronizados - de capitalizac;:ao de renda variável,75 Fundos de
Investimentos em Direitos Creditórios (FDIC) e outros mecanismos nao
bancários de financiamento das cadeias produtivas. 76 Por último, um
cambio para o turismo, por suas especificidades, poderia ser garantido
pela combinac;:ao da tributac;:ao, vía IOF, de determinadas operac;:oes
de compra de divisas, que financiariam a sua venda diretamente aos
turistas estrangeiros no Brasil, no valor que viesse a tornar o turismo
nacional competitivo. 77

75 Voltaremos ao tema no capítulo 8. A previdencia complementar, de grande problema a solm;áo para


as principais dificuldades económicas do Brasil. p. 85.
76 Isso nao excluí os produtos já em funcionamento e que devem inclusive ser expandidos, como, no caso
do BNDES, o cartao BNDES, e do velho Finame.
77 A ideia seria tributar as remessas unilaterais de divisas em 6,5%, mesma alíquota dos saques e
gastos com cartao de crédito. As remessas unilaterais seriam aquelas que nao corresponderam a urna
entrada prévia de divisas, nem resultam da remunerac;:ao de renda fixa ou variável. Com esse recurso,
o BC definiria um valor competitivo para o cambio (subsidiando a diferenrra em relarrao ao prec;:o
de mercado) e o vendería, via sistema bancário brasileiro, apenas diretamente ao turista estrangeiro
em viagem ao Brasil.
Construindo a infraestrutura
para sair do círculo vicioso
do subdesenvolvimento

7.1. A infraestrutura vem na frente

De modo geral, sem infraestrutura nao é possível desenvolver nem


mesmo prosaicas atividades básicas da agropecuária e/ ou minerayao. Na
outra ponta do espectro económico, sem infraestrutura urbana nao se
montam polos turísticos, administrativos e financeiros, ou, no limite
da diversificayao económica, polos de tecnologia. Um relanyamento da
indústria, por exemplo, seria obstado ou muito dificultado pelos
problemas da deficiente infraestrutura brasileira, especialmente
logística. Sem infra nao há base económica, e sem esta nao é possível
viabilizar - pagar - a taxa de retorno e os custos dos empreendimentos.
O rompimento desse círculo vicioso se dá pela infraestrutura, cujo
investimento terá de adivinhar que tipo de base económica poderia
vir a se desenvolver no futuro e dar utilizayao minimamente razoável
aoque foi investido.
Mauricio Borges Lemas

Em reg10es com grande densidade económica, de renda,


de pessoas e de empresas, forrnam-se nichos de oportunidades de
investimento, onde o estrangulamento provocado pela base eco-
nómica corrente torna fácil a estimativa da taxa de retorno e de
avalia<;:iio da rentabilidade do investimento. Quando esse inves-
timento é privado, há urna verdadeira disputa pela concessao,
pagando-se um ágio por ela.
Entretanto, o problema se inicia quando a base económica cor-
rente é insuficiente para garantir o retorno dos investimentos,
devendo-se proceder a urna ((adivinha<;:iio". Em muitas situa<;:óes,
urna avalia<;:iio bem-feita e realista resolve o problema e a decisao
de investir é tomada. Há situa<;:óes nebulosas, envolvendo elevado
risco, que pode inviabilizar a taxa desejável de retorno, e outras
em que, estruturalmente, o retorno do investimento está totalmente
fora do seu limite temporal, necessitando-se mais tempo para que
o investimento se pague, tornando totalmente inviável qualquer ex-
pectativa de alcan<;:ar a taxa desejável de retorno.
Até os anos 1980, no período da ditadura militar, podia-se dizer
que quase todos os investimentos, até mesmo os que envolviarn
nichos, erarn realizados pelo Estado, o que levou a quebra do Brasil.
No período tucano, urna boa parte dos nichos foi privatizada, ficando
as demais situa<;:óes cinzentas sem urna defini<;:iio, com pouquíssimo
investimento diretamente estatal e nenhum investimento privado.
Essa é a origem, por exemplo, do apaga.o tucano do racionarnento da
energía elétrica em 2001.
No período petista, essas situa<;:óes cinzentas come<;:ararn a ser
enfrentadas, como já analisarnos anteriormente, 78 e os investimentos
estavarn em pleno andamento. até o final de 2014, quando do
agravarnento da crise política, com a reelei<;:ao da presidenta Dilma, a
Lava Jato e todos os desdobramentos posteriores. Entre os principais
avans:os, sublinha-se:

78 Ver item 4.2. A~5es carretas a serem aperfei~oadas. p. 39.


Um novo projeto para o Brasil

l. Financiamento pelo BNDES dos novos investimentos,


deixando de lado sua política na década anterior até 2002, de
financiador da riqueza velha; 79
2. A parceria com os fundos de pensao paraestatais, para o aporte
de capital nos investimentos relevantes, especialmente em
grandes empreendimentos, como Belo Monte, em oposi<;:ao
ao seu papel no período anterior, de parceiro nos negócios de
privatizac;:ao da riqueza velha;
3. A criac;:ao das Parcerias Público-Privadas (PPPs), que foram e
sao fundamentais para a viabilizac;:ao da governanc;:a privada nos
empreendimentos cuja baixa truca de retorno tornaría inviável a
participac;:ao do setor privado.

Estes dois últimos pontos, entretanto, tiveram soluc;:6es apenas


episódicas, carecendo de urna sistematizac;:ao tanto para a utilizac;:ao
macic;:a das PPPs quanto para a extensao e padronizac;:ao das parcerias
comos fundos de previdencia complementar (nao apenas para os fundos
fechados ligados as empresas estatais).
79 Deve-se sempre lembrar que a TJLP (o custo financeiro dos financiamentos a juros subsidiados do
BNDES, ao qual se somam os spreads que remuneram o banco) estava em 13% ao ano no final de
2002. A partir de 2010 até2014, seunívelficmi em tomo de 6% ou umpouco ababco. Acrescente-se que os
spreads, no mesmo período, caíram de cerca de 4% ao ano para algo em torno de 2,5% anuais, no período
mais recente, de forma que os juros nominais médios, cobrados pelo banco, saíram de cerca de 17% ao ano
em 2002 para cerca de 8,5% ao ano entre2010 e 2014. Em termos reais, isto é, descontada ainflac;ao,saiu-se
de algo em tomo de 6% ao ano para cerca de 2,5% ao ano no período mais recente, de forma que o subsídio
do banco come<;ou a fazer diferenc;a, enquanto fator de induc;ao, na taxa de retorno do empreendedor pri-
vado, nos investimentos. Por outro lado, qual seria o custo fiscal desse subsídio em TJLP? Em um cálculo
de "padaria; que os representantes da Banca náo se furtaram em realizar, para urna Selic que estivesse, por
exemplo, no patamar de 10% e a TJLP em 6%, o custo fiscal anual seria de 4% anuais sobre o saldo médio
devedor dos financiamentos. Entretanto, se tais empreendimentos, em alguma propor<;áo relevante (vide o
conjunto vazio dos investimentos no período tucano) nao tivessem se realizado sem o financiamento em
TJLP, seu efeito multiplicador sobre a renda, gerando impostas, ao lado do seu efeito acelerador na etapa em
opera<;iio dos empreendimentos (novamente gerando renda e impostas), o efeito fiscal tenderia a ser posi-
tivo, configurando urna ac;ao típica e eficaz de urna postura desenvolvimentista! Para aprofundamento
do tema, ver os seguintes textos produzidos por técnicos do BNDES: "Custo líquido dos empréstimos
do Tesauro ao BNDES" e "Relatório de efetividade 2007-2014: a contribui<;ño do BNDES para o desenvol-
vimento nacional': e trunbém o texto para discussiio "Ipea 1665 - Mensurando o resultado fiscal das opc-
rac;óes de empréstlmo do Tesauro no BNDES: custo ou ganho líquido esperado para a Uniño?'; de Tilingo
Rabelo Pereirn, Adrlnno Slmfics e Anclré Carvalhal, 2011. (ver Referéncias, p. 119.)
Mauricio Borges Lemos

7.2. Resolvendo o problema das garantías das PPPs a partir de


bons projetos de investimentos

Dado o seu alto potencial, enquanto solrn;:ao geral da questao da


governans;a nos empreendimentos de infraestrutura, pode-se dizer que
o número de contratos de concessao baseados em PPPs formalizados
nos tres níveis de governo foi muito bai:x:o, refl.etindo dois tipos de
problemas principais.
o primeiro diz respeito a bai:x:a qualidade dos projetos de investi-
mento dos empreendimentos, caracterizados, vía de regra, pela inexis-
tencia de projetos executivos. Assim, quando urna obra é diretamente
estatal, sua paralisas;ao, embora tenha um custo p.scal e social implí-
cito, nao é visível. Entretanto, quando se está numa concessao para o
setor privado, notadamente numa PPP, em que nao pode haver erros
significativos de cronograma ou do valor total do empreendimento, o
risco de urna provável redus;ao da taxa de retorno esperada, pela falta
de um projeto executivo, inviabiliza o interesse do setor privado. De
certo modo, urna PPP, nessa situas;ao, assemelha-se ao princípio do
turn key, quando aplicado a um investimento diretamente estatal: seu
relativo insucesso no setor público brasileiro prende-se a falta de bons
projetos executivos. 80 Por isso, o primeiro pré-requisito para os progra-
mas de PPPs deslancharem seria a execus;ao prévia de bons e detalha-
dos projetos, que certamente irao custar muito dinheiro para o setor
público a curto prazo, mas grande economía fiscal no final, trazida pela
qualidade dos projetos e da governans;a das PPPs.
O segundo problema, tao importante quanto o primeiro, mas muito
mais fácil de resolver, refere-se as garantías. Se for necessário o aporte
80 O princípio do turn key pressupóe a licitac;:ao de urna obra em que a medic;:ao das etapas intermediá-
rias nao tem (quase) nenhum papel, ao contrário do método usual de realizac;:áo de obras, via de regra,
repleto de aditivos nao previstos no contrato inicial. Assim, o compromisso da empreiteira seria o de
entregar a obra pronta, para viabilizar o pagamento final. O contrário do turn key seria o contrato por
administrac;:ao, no qua! aquilo que for medido periodicamente é pago, nao importando o seu valor.
Esse foi o tipo de procedimento típico na ditadura militar, para dar urna informa¡;:áo para os incautos
que estao com saudade dos tempos da ditadura. A usina nuclear de Angra II, por exemplo, que custou
cerca de US$ 2,5 bilhóes em meados dos anos 1970 (cerca de R$ 25 bilhóes hoje), foi construida por
administrac;:ao. Nome da construtora: Norberto Odebrecht.

80
lllll llCIVll projt•lu Jl•llol IJ lli.1'.oll

público de recursos, um aspecto central e óbvio de uma PPP, como ele


deveria ser feíto? Concomitantemente a realizar;:ao da obra ou ao final
dela? E se o setor público nao honrar os seus compromissos e a obra
parar, trazendo prejuízo para o empreendedor privado e para o próprio
setor público? Surge, assim, a questao das garantias.
A primeira solur;:ao seria fazer aportes num fundo de garantías reais,
ac;:oes e outros ativos financeiros do setor público. Entretanto, essa acaba
sendo uma soluc;:ao limitada, dada a insuficiencia ou mesmo inexistencia
desse tipo de ativo. Para o funbito federal, a solur;:ao é óbvia: a emissao
de títulos públicos e seu depósito em um fundo de PPPs, disponível
para saques a qualquer momento, respeitando o cronograma acertado
com o concessionário, no caso de inadimplencia do poder público.
Urna soluc;:ao tao simples foi peremptoriamente descartada pela área
económica dos governos petistas. A objer;:ao era de que a emissao desses
títulos impactaría no superávit primário, no momento da sua emissao,
independentemente de virem a ser sacados, no caso de inadimplencia,
no futuro. 81 Na verdade, se os compromissos resultantes da concessao
esta.o programados na Lei de Diretrizes Orr;:amentárias (LDO) e no
próprio orr;:amento, fossem eles urna realizar;:ao direta de obra, e nao urna
PPP, o primário, no regime de caixa atual, só aconteceria quando a obra
fosse paga, ou, pelo regime de competencia, como deveria ser, quando
a obra fosse medida, independentemente de seu pagamento e eventual
inadimplencia do setor público.
A solur;:ao, em funr;:ao da falta de rigor da contabilidade fiscal
do governo federal, que mistura caixa com competencia, seria urna
reorganizar;:ao das contas do governo federal que, tal como os demais
entes federativos, deveria trabalhar unicamente com o critério de
competencia, abandonando um improviso que vem desde os anos 90
81 Ao se indagar a diferenc;a entre assurnir urna divida, ao assinar urn contrato de obra, e assurnir urna
<lívida, nurna PPP, com garantia de títulos, do ponto de vista da gerac;:ao de despesa primária, foi respon-
dido, inexplicavelmente, que a emissáo de títulos equivale a urn pagamento de caixa no presente, ao passo
que o contrato de obra é urna promessa de pagamento no futuro. Mais relevante ainda, a gerac;:áo de urna
despesa primária nurna obra do setor público dá-se no momento de sua medic;:áo, como ocorreria numa
PPP, e nao do seu pagamento, como prega a regra de caixa atual. Na verdade, a utilizac;:áo dos critérios
caixa e competencia na execuc;:áo orc;:amentária é mais uma jabuticaba brasileira que tem de acabar (ver
item 5.1. Rompendo como modelo económico salazarista. p. 55 ).
Maurício Borges Lemos

do século passado. 82 Com as garantías estabelecidas com a emissao


de títulos públicos, o sistema de PPPs teria condic;:ao de deslanchar de
forma quase ilimitada, para as concess6es federais. Para as estaduais e
municipais, entretanto, há de se perseguir arranjos específicos, em que
a melhor soluc;:ao, ou sempre preferível, seria aquela que estabelec;:a urna
garantía de recebíveis de tributos dos entes federativos. Em algumas
situac;:6es particulares, em que a concessao é municipal ou estadual, como
a do esgotamento sanitário, mas que pode exigir urna contrapartida
de recursos federal, a emissao de títulos públicos estaría disponível
para viabilizar as PPPs.

7.3. Identificando o tipo de escassez de capital· existente no Brasil


para a execw;:ao de um projeto em grande escala de PPPs

De modo geral, existe escassez de capital no Brasil de forma a


inviabilizar um projeto de desenvolvimento? De forma mais específica,
existe escassez de capital no Brasil para executar um projeto em grande
escala de investimentos em infraestrutura?

82 A esse respeito, ver no Apendice o artigo "Sobre 'pedaladas fiscais"; de minha autoria, publicado
no blog do Luís Nassif, em 2015. Na verdade, a área económica <lestes 13 anos e 4 meses de governo
petista, em especial aquela que fi.cou mais tempo com urna certa predominancia dentro do regime de
coabita<¡:ao, que pega o período de 2006 a 2014, deixou as coisas como estavam, transferidas pelo go-
verno lucano, nao tendo feito nada de ilegal ou inadequado. O problema é que o legado tucano é muito
ruim, a ponto da LRF de 2001 apontar a necessidade de o Senado (re)definir os conceitos de resultado
primário e nominal, assunto com o qual a área económica nunca se preocupou. Ao contrário, utilizou
as debilidades do sistema contábil a favor de urna execu<¡:ao on;:amentária e financeira mais adequada
aos desígnios sociais, e de desenvolvimento económico, de um governo democraticamente eleito pela
popula<¡:ii.o. Como se sabe, nao deu certo, dada a hegemonía ideológica da Banca e seu domínio abso-
luto sobre os meios de comunica<¡:iio, construindo a versii.o absurda das pedaladas fiscais. Ocorreu aqui
um fenómeno similar ao verificado na área polltica ao tentar seguir as regras do presidencialismo de
coalizii.o existentes e vigorosamente praticadas no governo anterior. A efetiva sobrevivencia a médio
e longo prazo de um governo a esquerda depende de sua consistencia, que se materializa no aperfei-
<¡:oarnento permanente dos sistemas de gestii.o do próprio Estado. Para a direita vale tuda, inclusive
atropelar "a lei, a ética e os bons costumes''. Para a esquerda, pune-se coma lei, ou, coma insuficiencia
dela, atropelando-a. Para utilizar um jargii.o da esquerda, o "tarefismo'; que favorece o esquecimento
do projeto em constru<¡:iio, alinhado a um pragmatismo procrastinador, do tipo "vamos deixar como
está para ver como é que fica'; sao os conselheiros para o desastre.

82
Urn novo projtlo per11 o Br111ll

Respondendo a primeira pergunta, pode-se dizer que o Brasil, por


se situar muito abaixo da fronteira tecnológica internacional, apresenta
urna escassez imensa de capital intelectual, isto é, capital humano
mais intangíveis diversos, em geral monopolizados pelas empresas e
:incorporados ao seu equity. 83 Nesse sentido, como tentaremos mostrar
na última parte <leste trabalho, a necessidade do Brasil pelo capital
estrangeiro nao é exatamente pelo equity, mas pelo capital intelectual
nele involucrado, o que faz com que seja bem-vindo na criayao de
renda e trabalho, de razoável qualidade, e de tecnologías e produtos da
fronteira tecnológica nao existentes no país.
Quanto a infraestrutura, podíamos dizer que havia, até a eclosao da
Lava Jato, urna escassez relativa de equity, contudo, dentro das regras do
jogo entao existentes, que, na prática, favoreciam as grandes empreiteiras
brasileiras. Isso porque, embora o Brasil possua há mais de 60 anos um
capital intelectual na construyao civil leve e na pesada, materializado
num grande complexo de micro, pequenas, médias e grandes empresas,
"as regras do jogo" das concess6es, por exigirem elevados volumes de
equity, vinham privilegiando as grandes empreiteiras. E esse monopólio
relativo, que criava urna escassez artificial, clava-se a despeito dos
volumosos financiamentos do BNDES. 84 O problema, que já se mostrara
mais ou menos óbvio desde o relanyamento dos projetos de concess6es
de hidrelétricas e algumas rodovias, chegou ao seu auge por ocasiao da
concessao de Belo Monte, que o explicitou, ao mesmo tempo em que
materializou urna soluyao, a qual, na sistematizayao que procuraremos
fazer a seguir, no capítulo 9, pode significar, sim, o salto virtuoso para o
pleno desenvolvimento da infraestrutura brasileira.
Antes disso, com a eclosao da Lava Jato, a escassez relativa de crédito
transformou-se em absoluta, jogando para o chao o nível de investimentos
no Brasil. Há quem diga que a soluyao é o capital estrangeiro, como se
83 O conceito de capital intelectual aquí utilizado é o de Stewart (1988). Esse intangível passa a ter valor
e irnplicitamente passa a ser incorporado ao equity das empresas.
84 Isso porque qualquer financiamento deve possuir, necessariamente, a contrapartida do investidor.
Por exemplo, para cada R$ 100,00 investidos, R$ 60,00 seriam emprestados pelo ENDES ou outros
bancos, e R$ 40,00 seriam o equity do empreendedor, o que acaba por habilitar apenas as grandes
empresas, no caso de empreendirnentos razoavelrnente grandes.

83
Maurfclo Borges Lemas

o problema do investimento na infraestrutura fosse de equity, e nao


das "regras do jogo". Além do mais, o capital estrangeiro é muito
caro, nao está disponível e provocada um desequilíbrio estrutural
macroeconómico no país. 85 Além do mais, há equity disponível no Brasil,
abundante e fortemente subutilizado, que está há anos, desde a década
de 30 do século passado, a espera de urna decisao sensata e corajosa dos
governos de planta.o.

85 O capital estrangeiro trabalharia com exigencias de trucas de retorno comparáveis as dos grandes
grupos económicos que operam nas concess6es brasileiras, sempre acima de 10% ao ano, aos quais
adicionariam o "risco Brasil", no mínimo de 2% ao ano na média de longo prazo. Quanto ao dese-
quilíbrio macroeconómico que ocorreria na entrada, seria ocasionado pela magnitude do aporte de
recursos (cerca de US$ 100 bilhoes/ano) que pressionaria imensamente o balanc;:o de pagamento,
deixando a política macroeconómica entre o crucial problema de permitir urna forte apreciai;:áo do
real ou de emissáo macii;:a de títulos da divida pública, piorando significativamente o déficit fiscal.
Na saída, prisioneiros que ficaríamos das remessas de lucros de um setor non tradables,' haveria urna
ampliai;:áo violenta do histórico desequilibrio da canta de transai;:oes correntes brasileira. Por isso, a
soluc;:áo via capital estrangeiro nao passa de proselitismo ideológico de membros da Banca ou mera
tolice dos incautos.

84
A previdencia complementar,
de grande problema a soluc;ao
para as principais dificuldades
económicas do Brasil

8.1. Esclarecendo urna questao preliminar

A questao da previdencia complementar é estrutural e nao diz respeito a


tentativa, frustrada no governo Temer e retomada novamente no governo
Bolsonaro, de destruir o sistema básico de seguridade brasileiro, rasgando de
forma muito grave o contrato social pactuado pela Constituinte de 1988.
Nao podemos raciocinar que tal reforma está dada, procurando agm'.a
"olhar para a frente': mas, ao contrário, considerar que a primeira missao
de um novo governo eleito democraticamente será restaurar inteiramente
os direitos previdenciários, tal como ainda existem nos dias atuais.
A necessidade de urna previdencia complementar é cada vez maior,
nao apenas para largas parcelas da populac;:ao que constituem a clientela
do INSS, mas para o próprio funcionário público estatutário, que já nao
canta mais com garantía da aposentadoria integral. Poupar para garantir
um complemento de renda que proporcione seguranc;:a na velhice é
urna necessidade e um direito de milhóes, representando um seguro

85
Mauricio Borges Lemas

para a velhice, que deveria estar disponível a todos os interessados.


Entao, a pergunta fundamental é: existe no mercado da previdencia
complementar um seguro que garanta, a partir de urna pouparn;:a
(contribuic;:ao) definida, urna renda real no futuro? Infelizmente, a
resposta é um definitivo nao, a despeito de todo um proselitismo
ideológico, em especial dos representantes da Banca, sobre as excelencias
da previdéncia complementar, como se ela existisse de fato.
Qualquer cidadao com capacidade de poupar, de forma sistemática,
algum recurso para o futuro, que procurar o mercado de previdencia
complementar encontrará várias alternativas de aplicac;:ao, que variam
conforme o risco. O peso maior da renda variável nas aplicac;:oes
implicaría em rentabilidades maiores, e aquelas ancoradas em títulos públicos
produziriam rentabilidade mais baixa, embora mais segura. Chamados
de contribuic;:ao definida, todos esses planos, mesmo os mais seguros e de
rentabilidade mais baixa, nao garantem urna renda real definida, pelo
menos em algum valor mínimo, por prazo indefinido, até a morte do
segurado, no futuro. Na verdade, eles nao sao planos previdenciários,
mas apenas planos de aplicac;:ao de poupanc;:a, travestidos com o nome
fantasía de previdencia complementar.
Surgido aparentemente como urna reac;:ao ideológica aos planos
fechados de previdencia complementar, a maioria ligada a empresas
e entidades estatais, o mercado de previdencia complementar nao
passa de um plano de aplica<;:ao, valendo-se do nome fantasia para
ampliar as vendas desse servic;:o. Por outro lado, é bom que se diga
que os planos fechados, a maioria tomada pelas corporac;:oes ao longo
dos anos, desmoralizaram o termo beneficio definido, que caracte-
rizada tao bem a essencia de um seguro previdenciário. Neste caso,
as situac;:oes piores seriam aquelas em que o beneficio definido se-
ria indefinido, já que poderia irÍvariavelmente aumentar. 86 Ao invés
de se corrigirem tais distorc;:oes, partiu-se para urna soluc;:ao radical,
86 Por exemplo, aposentando com um salário de final de carreira, para o qua! nao houve urna contribui<¡:iio
atuarialmente consistente com o beneficio. Outra concessao, também muito grave, seria o beneficio de
pensáo para o dependente, sem a adequada contribui<¡:ao, que, em alguns casos, seria quase impagável, dada
urna eventualmente grande diferern¡:a de idade entre dependente e segurado.

86
Um novo projeto para o Brasil

estabelecendo-se urna hipótese típica do main stream dos economistas


de direita: "vamos imaginar que a forma mais rápida e eficiente para
resolver as diston¡:oes do seguro previdenciário é acabar com este con-
ceito". E assim, a agenda relativa a urna verdadeira previdencia comple-
mentar saiu do radar da sociedade e dos governos, inclusive os do PT.

8.2. Restabelecendo o conceito de seguro previdenciário

Por que o sistema de previdencia complementar nao oferece esse ser-


vi<¡:o, tao procurado no mercado? Um economista da Banca diría que o
risco, de longo prazo, é tao elevado que nao pode ser previsto e assumi-
do, sendo mais eficiente que se proceda passo a passo, olhando-se día a
dia as op~oes de investimento microeconómicas, nos moldes das regras
atualmente existentes. Um contador diría que as normas dos fundos de
pensao impedem que os agentes financeiros do sistema complementar
assumam um compromisso de beneficio definido.
Diríamos, ao reverso, que um seguro previdenciário que garanta
urna renda vitalícia futura, pressupondo metas atuariais de 5% a 6%
ao ano, é tecnicamente possível, embora, pelo risco elevado, exijam
muito capital dos operadores para garantir tal beneficio. E claro, nao
se pode abrigar os grandes grupos financeiros a oferecerem produtos
que consideram relativamente pouco rentáveis. 87 Quanto as normas,
elas existem para o cumprimento de objetivos económicos e sociais;
mudando-se os objetivos, mudam-se as normas.
Na verdade, do ponto de vista do risco, um título da <lívida
mobiliária pública federal parecería adequado para urna garantía
de longo prazo, tal qual o seguro previdenciário está a exigir,
casando-se, inclusive do ponto de vista prudencial do BC, urna
cesta de títulos públicos de duration elevada com o compromisso de
87 Para os grandes bancos brasileiros seria tecnicamente possível oferecer tal produto, já que eles
próprios auferem tendo urna taica de retorno de mais 15% ao ano. O problema é que oferecer tal
garantia exigiria capital, pelas próprias normas regulatórias do BC, reduzindo em alguma medida
a sua laxa de crescimento. Assim, o trade off seria entre um produto menos rentável, mas muito
procurado, e outro (que temo nome fantasia de previdencia complementar) muito rentável, já que
exige pouquíssimo capital, embora procurado e aceito por parcela muito menor de consumidores.

87
Mauricio Borges Lemas

urna renda vitalícia no futuro. O problema aqui é a rentabilidade,


especialmente se o propósito da política económica for de superar o
modelo salazarista, trazendo as taxas de juros da <lívida pública para
níveis próximos do mundo civilizado. 88 Volta-se, entao, para os ativos
reais, especialmente o mercado de a<;:óes, que é, evidentemente, urna
op<;:ao de altíssimo risco, embora tecnicamente viável para os grandes
grupos financeiros.
Esse impasse entre seguran<;a e baixa rentabilidade e grande risco
com maior rentabilidade existe em todo o mundo capitalista desen-
volvido, nao apenas para os fundos de pensao, mas para os poupa-
dores rentistas de um modo geral, sendo equacionado de forma mais
ou menos adequada no contexto dos ativos de maior risco. 89 Deve-se,
entao, procurar urna sÓlu<;ao brasileira, no contexto da renda variável,
que é um ativo de maior risco estruturalmente necessário para o de-
senvolvimento,90 para o restabelecimento do seguro previdenciário.

8.3. Propondo urna solui;ao para o problema: a criai;ao das


Letras Financeiras para o Desenvolvimento (LFDs)

Na verdade, as exigencias de taxa de retorno dos fundos previden-


ciários que poderiam viabilizar urna renda vitalícia garantida seriam
bastante aceitáveis para a maior parte dos projetos de infraestrutura
a serem realizados no país. Com algo em torno de 6% ao ano, muito
88 Mesmo nos atuais níveis de taxas de juros, o rendimento líquido de um título com duration elevada
difícilmente ultrapassaria os 5% ao ano, já descontada a taxa de administra.;ao do agente financeiro.
Caindo para algo como 2,5% anuais, esse nível implicaria um esfor<;o relativamente grande do poupa-
dor, para urna nao tao grande renda vitalícia no futuro, tornando mais transparente o relativamente alto
custo-benefício. Muito mais aconselhável ficar com o atual sistema e seu nome fantasía.
89 Isso está comprovado por evidencias empíricas. Piketty (2014) estima a riqueza privada dos prin-
cipais países desenvolvidos em cerca de seis a sete vezes a renda nacional anual. A dívida pública,
por seu turno, é, em geral, inferior a 100% da renda nacional, o que sugere que, entre os ativos da
riqueza privada, a <lívida pública nao deve ultrapassar 15%, restando mais de 85% como imóveis,
a<;óes e títulos de <lívida junto ao setor privado da economia.
90 Como o demonstrou de forma insofismável Marx (1996), o crédito é a primeira e principal modali-
dade imprescindível para o desenvolvimento do capitalismo. A renda variável é um desdobramento do
princípio do crédito, mais sofisticada e mais flexíve!, permitindo que poupadores tornem-se, de certa
forma, diretamente proprietários de capital, refor.;ando, por outro lado, o equity das empresas.

88
Um novo projeto para o Brasil

inferior aos 10% anuais (ou mais) pedidos pelos concessionários pri-
vados, seria possível a um só tempo reduzir o aporte imediato de con-
trapartida com recursos públicos, prevista na PPP, reduzir a própria
participa<¡:ao do BNDES no total do investimento, resultando numa
diminui<¡:iio do custo fiscal do empreendimento, ao mesmo tempo em
que passaria a constituir um ativo real, com adequada rentabilidade,
para a previdencia complementar.
Como fazer com que a pouparn¡:a da previdencia complementar
chegue até os investimentos em concessiio? Como garantir que a gover-
nan<¡:a desses investimentos continue a ser privada, premiando o mérito
e a eficiencia? Como garantir que esse investimento seja absolutamente
seguro, evitando o risco para o poupador, como acorre na previdencia
complementar fantasía?
A resposta para tais indaga<¡:6es poderia ser dada pela cria-
<¡:iio de um instrumento financeiro, as LFDs, que teriam as se-
guintes características:

a. Seriam emitidas pelo BNDES, primariamente, e pelos bancos


de investimentos que queiram desenvolver o produto "seguro
previdenciário". As LFDs emitidas pelo BNDES teriam como
suporte exclusivo participa<¡:iio acionária em concess6es do
setor público brasileiro, independente ou concomitantemente
ªºfato de terem ou nao financiamento do banco.
b. Essas concess6es teriam sócios privados, entre os quais se-
ria definido o gestor do empreendimento. Este, ao mesmo
tempo em que terá a remunera<¡:iio normal, enquanto só-
cio, receberá urna remunera<¡:iio "extra'' pelo cumprimento de
metas de desempenho. 91

91 O conceito de sócio gestor é importante e distinto do que seria um gerente profissional, que even-
tualmente poderia até ser contratado pelo sócio gestor. O relevante é que, dentro do seu patrimonio
pessoal ou de sua empresa, ele seja efetivamente penalizado, perdendo dinheiro, por urna má gestiio.
Por outro lado, a pessoa física ou jurídica que entregar boas performances de conclusao dos empreen-
dimentos, além dos premios pela boa administra-;iio, acumularia um intangível (um currículum) que
passaria a ser valorizado no mercado.
Mauricio Borges Lemas

c. As LFDs seriam adquiridas pelos bancos de investimentos que


voluntariamente optassem por ofertar e captar recursos de poupan-
<;:a para esse produto específico da previdencia complementar.

d. Cumpridas as metas de desempenho e garantida por um


tempo suficientemente longo a taxa de retorno da carteira de
investimentos definidos pelo BNDES, o segurado estará sendo
capitalizado normalmente, e sua expectativa de renda mensal
vitalícia futura continuará a mesma. Se, por qualquer raza.o,
a taxa média de retorno cair (por exemplo, de 6% para 5% ao
ano) por um período suficientemente longo, esse primeiro
impacto afetaria a renda vitalícia futura do segurado. Caindo
mais ainda a taxa de retorno, por exemplo, para 4,5% anuais,
a redu<;:ao de 0,5% seria bancada pelo banco emissor, no caso,
o BNDES; caindo abaixo de 4,5% ao ano, essa diferen<;:a seria
arcada pelo Tesouro Nacional. 92

e. Os bancos de investimentos titulares desses planos poderiam


também emitir LFDs, mas a base de empresas investidas teria
de ser a mesma do BNDES, mudando o mix, dentro de urna
margem de varia<;:ao previamente pactuada. Em contrapartida,
0,5% de risco assumido pelo BNDES passaria a ser de
rcsponsabilidade do banco de investimentos emissor.

f. Todos os fundos fechados ou abertos poderao criar subfundos


segregados, de beneficio definido segundo as regras aqui
sugeridas,desdequeestescomponhamseusativosexclusivamente
com LFDs, emitidas pelo BNDES ou demais bancos emissores.
92 A rentabilidade das LFDs seria dada pela rela<¡:iio entre o valor contábil das a<¡:éies adquiridas mais
a incorpora<¡:iio de lucros no futuro e o seu lucro anual, o qua! seria contabilizado, em qualquer situa-
<¡:iio de participa<¡:iio acionária, por equivalencia patrimonial. Talvez, a forma mais segura de evitar
a volatilidade de curto e médio prazo da economía seja trabalhar com médias móveis quinquenais
da rentabilidade anual da carteira. Com isso, dificilmente haverá urna situa<¡:iio extrema, a ponto
de o Tesouro Nacional ter de contribuir. Por outro lado, como niio vai haver marca<¡:iio a mercado,
o impairment será um procedimento eventual, no momento da falencia da empresa. Antes disso,
seus maus resultados estaráo refletidos, negativamente, na rentabilidade corrente do conjunto das
empresas investidas.

90
Um novo projeto para o Brasil

g. Deveria ser criada urna legislac;:áo específica, simples e objetiva, cen-


trada neste instrumento financeiro, a LFD, que náo viesse a depen-
der de mudanc;:as em toda a legislac;:áo de previdéncia complementar.

h. A mudarn¡:a radical dos procedimentos contábeis seria um dos


fatores centrais para essa nova previdéncia, que teria por eixo a
LFD. Entre eles, a náo utilizac;:áo em nenhum momento da marca-
c;:áo a mercado, que constituí um equívoco estrutural da forma de
contabilizac;:áo do atual sistema de previdéncia complementar. 91

i. Para resolver o problema da liquidez, o BNDES e os bancos emis-


sores normatizados pelo BC organizaráo um sistema de compen-
sac;:áo garantindo liquidez diária dos fundos, comprando LFDs
dos necessitados de liquidez e vendendo-as para os demandantes
de novos ativos, de forma que praticamente a única moeda do sis-
tema será a própria LFD. Por outro lado, havendo algum indício
de desequilíbrio entre entradas e saídas, deverá haver um plano de
aplicac;:oes (sempre no mercado de ac;:6es) ou de monetizac;:áo.

j. Embora signifique urna revoluc;:áo estrutural da própria


economia e náo apenas da previdéncia complementar, seus
custos de implantac;:áo seriam relativamente baixos. Todas
as entidades-chave já estáo criadas e em funcionamento. O
BNDES, que será muito exigido nesse arranjo, precisará apenas
de ajustes internos para dar suporte a essa nova missáo, assim
como os bancos de investimento, que, eventualmente, atuariam como
emissores de LFDs e como ofertadores do novo servic;:o de
seguro previdenciário. Os fundos de pensáo fechados, ao
invés de um problema, teráo disponível urna opc;:áo confiável
e adequada, fugindo da opc;:áo do paraíso cordial (o sistema
do benefício indefinido sempre crescente) e o inferno (a
93 Normas como a instituída pela Resoluc¡:áo CGPC n• 04, de 30 de janeiro de 2002, sobre critérios
e registros e avaliac¡:áo contábil de títulos e valores, que diferencia "títulos em negocia<;áó' de títulos
"mantidos até o vencimento': tem consequencias muito graves sobre a gestáo de ativos de longo prazo,
como os existentes para os fundos previdenciários. Nesse sentido, a preocupac¡:áo coma liquidez, o que
obriga a marcar a mercado, contamina todo o sistema.
Mauricio Borges Lemas

contribuiyao definida). O BC terá pouco trabalho, já que o


serviyo de fiscalizayao essencial ficará a cargo da Secretaria de
Previdencia Complementar (SPC), que terá, sim, muito mais
trabalho, já que ficará responsável por fiscalizar a similitude da
carteira LFD-BNDES e a dos demais bancos emissores, assim
como a mensurayao de rentabilidade e seu impacto nos novos
fundos de beneficio definido, com ativos exclusivos em LFDs.

k. A SPC caberá presidir, também, um conselho curador, formado


por representac;oes nacionais dos trabalhadores, patronais
(e a parte, específicamente, a Federac;ao Brasileira de Bancos
(Febraban), dos ministérios envolvidos, em especial Previdencia
e Fazenda, e do BNDES. Seu papel será realizar urna avaliac;ao
periódica, talvez trimestral, do funcionamento do sistema em seu
conjunto, bem como a situac;ao específica de cada carteira e suas
empresas que lastreiam as LFDs.

Os resultados esperados dessa mudanc;a estrutural do sistema de


previdencia complementar serao inúmeros, nao apenas no salto previs-
to na infraestrutura, na competitividade e no crescimento potencial da
economia brasileira. De forma especial, dois segmentos vao ser especí-
ficamente dinamizados.

8.4. A nova previdencia complementar incrementando dais segmen-


tos vitais da base economica: a indústria e a Bolsa de Valores

Nao é fácil prever o aporte de poupanc;a nesse novo sistema, já que terá origem
em outros mecanismos de poupanc;a já existentes, seja no sistema financeiro,
seja na economía real, em especial no mercado de imóveis. Espera-se, contudo,
para comec;ar, um fluxo mínimo de R$ 100 bilh6es ao ano, sendo mais do que
suficiente para um grande salto nos investimentos em infraestrutura. É bem
provável, allás, que haja escassez de projetos no curto e médio prazo, sendo
aconselhável, desde logo, o estabelecimento de programas para o investimento
em renda variável em outros setores de economía.
Um novo projeto para o Br111l

A indústria de transformac;:ao brasileira, que estaria em pleno processo


de relanc;:amento, em func;:ao das novas condic;:oes de competitividade ga-
rantidas pelo seu cambio específico, precisará enormemente de equity, o que
envolverá empresas ressuscitadas de ramos inteiros, que estavam a caminho
do desaparecimento, até novas empresas e setores da fronteira tecnológica.
Assim, dentro das novas prioridades da política industrial, o BNDES deverá
realizar urna sintonia fina entre a adequac;:ao do risco e das possibilidades e
fragilidades dessas empresas e a sua entrada na carteira da LFD. Combinan-
do adequadamente risco e retorno, no qual o "modelo de negócio" de cada
empresa, empresário ou grupo empresarial que propóe o investimento será
essencial para urna decisao final, podendo atingir um resultado em que o
funding da previdencia complementar, forte e prevalentemente ancorado na
infraestrutura, ajudará enormemente também a indústria, amplificando o
seu processo de relanc;:amento.
Além disso, como o único lastro das LFDs será a renda variável, é
provável que ocorra maior fluxo de entradas do que de saídas, mesmo
com a destinac;:ao de recursos para a indústria. Assim, haverá urna sobra
de recursos, nao apenas de curto prazo, que servirá para dar mais liquidez
e, num primeiro momento, demanda ao mercado doméstico de ac;:oes,
reduzindo a sua volatilidade e a excessiva influencia do movimento de
capitais internacionais de curto prazo.
Juntando-se esses tres eventos, isto é, a criac;:ao em ritmo muito forte do
novo património em construc;:ao, que se transmutará em ac;:oes, das quais
parte passará a circular na Bolsa de Valores brasileira, ao lado das ac;:óes
aplicadas no relarn;:amento da indústria, ao que se sornará a demanda e
liquidez adicional que será dada as velhas ac;:oes já existentes no mercado, a
Bolsa de Valores também será relanc;:ada. Poderia levar a um salto das duas
metrópoles nacionais, Sao Paulo a frente, e Rio de Janeiro, como centros
financeiros de circulac;:ao internacional.
Com a entrada espetacular do novo mercado de ac;:oes na riqueza
financeira, haverá urna mudanc;:a de escala e de qualidade do sistema
financeiro, saindo do círculo vicioso do rentismo salazarista para atividades
muito mais complexas. Tais atividades envolverao, além dos grandes
grupos financeiros e urna pleiade de corretoras, também pequenos bancos

93
Maurício Borges Lemas

especializados, consultorias e agencias de rating, voltados para a nova


riqueza financeira em expansiio: as ac;:oes. Assim, com essa nova expertise,
nosso mercado financeiro passará a ser valorizado internacionalmente,
permitindo-lhe fazer parte da base económica brasileira, passando a ter
urna característica dual, de atividade nao básica essencial a atividade
básica de exportac;:iio de servi<¡:os. 94

8.5. Ajudando a resolver a contradii;ao básica de Thomas Piketty

Por último, <leve-se observar que, auxiliados pela nova política tributária,
mais progressiva (ou relativamente menos regressiva) e pelo avan<¡:o das
políticas sociais, especialmente na saúde e na educa<¡:iio, as condi<¡:óes para
urna melhora na distribui<¡:iio de renda já estarao dadas. Mas nao se pode
olvidar que o primeiro e elementar mecanismo de mitigar a contradi<¡:ao
fundamental do capitalismo, segundo Piketty (2014), a tendencia a
desigualdade acentuada entre a taxa média de retomo do capital (r) e
a taxa de crescimento económico (g) é fazer com que esta última seja a
mais elevada possível, já que a primeira (r) tende a ser relativamente
incomprimível, proporcionando urna tendencia a um aumento dessa
desigualdade nos períodos de baixo crescimento.
Acrescente-se a isso um fator fundamental: a soluc;:iio via previden-
cia complementar para a escassez de equity diminui a desigualdade
preconizada por Piketty (2014) de duas formas. A primeira pelo fato
de reduzir a taxa interna de retorno do capital no negócio da infraes-
trutura, seja esse capital nacional ou estrangeiro. 95 A segunda, tao ou
mais relevante, é o fato estrutural de que o capital previdenciário, ao
contrário do capital em geral, nao tem urna dinamica de acumulac;:ao
ilimitada, 96 possuindo claramente um objetivo social, que é o de ga-
rantir urna renda vitalícia na velhice. De certa forma, o patrimonio
94 As novas expertíses financeiras iráo valorizar os analistas de projetos, para fins de valuation, nos quais en-
genheiros, administradores, contadores e economistas reciclados trabalhariío no amplo mercado de valores
(a<¡:Oes) em expansiío.
95 Esse efeito seria mais relevante em rela<¡:iío ao capital estrangeiro, já que este, ao remeter lucros, subtrai
esse montante da renda nacional disponível, reduzindo a base sobre a qual se redistribuiría a renda.
96 Tendendo a urna dinamica de "acumula<¡:iío pela acumulai¡;iío''. conforme observara Marx
(1996), em O capital.

94
llm novo pr!ljfltn J11t111 n ll11111ll

(previdenciário) do indivíduo é zerado a partir de sua mortc, nao


havendo heranc;a ou herdeiros. 97
Podemos, entao, afumar que o capital previdenciário contribuí de tres
formas para reduzir a desigualdade r > g: prirneiro, por incrementar o
crescirnento económico, segundo, por reduzir a taxa de retorno, e terceiro, por
diferenciar a taxa de acumulac;ao potencial da taxa de retorno, sendo estes trés
fato res essenciais a um processo de redistribuic;ao de renda na economía. 98

97 Em termos macroeconómicos, o efeito do capital previdenciário, que no curto prazo aumentaría


a propensa.o a poupar (e a investir) da economia, a longo prazo mitigaria tais efeitos ao baixar a laxa
média de retorno (r) e também voltaria a aumentar a propensiio média da economia a consumir (ou
reduzir a propensiio a poupar, em func;:iio dos aposentados, que sairiio do lado da poupanc;:a para o do
consumo). lsso fará com que a taxa de acumula<;iio se torne significativamente menor do que a taxa 'k
retorno, atenuando os problemas para a distribui<;iio de renda da desigualdade r > g.
98 Existem outras formas que estii.o fora de urna ª'>ªº díreta do Estado, que contribuem para a dcscon
centra\iiO da renda, além da prevídencia complementar. Urna delas, por exemplo, é o sistema coopera
tivista, um assunto importante e complexo que nao foí possível desenvolver neste espac;:o.
A guisa de conclusao

O conjunto de propostas apresentadas tem como eixo um aspecto


central: como o Estado é vital para um projeto de desenvolvimen-
to económico e social, torná-lo mais eficiente, mais transparente e
democrático é decisivo para viabilizar um projeto com tais caracte-
rísticas em longo prazo. A reforma política, por exemplo, mais do
que urna saída tática num contexto institucional muito grave, tem
claramente essa intern;:ao estrutural de melhorar o Estado em todos
os aspectos, come~ando pela forma de elei~ao do parlamento e de
elei~ao e forma~ao do governo.
Por que urna agenda que tenha como centro o aperfei~oamento do
Estado é pouco sistemática, sujeita a altos e baixos, na história da esquer-
da em ambito internacional? Por que, em muitas conjunturas, como a
atual, por exemplo, em todo o mundo, a come¡;:ar pelos países desenvol-
vidos, é a direita que tem a agenda de melhorar o Estado, a qual, claro,
na maioria das vezes, ao invés de melhorá-lo pelo menos no aspecto
da eficiencia, concentra-se em suprimir direitos de largas parcelas

l)/
Mauricio Borges Lemas

da popula<;:áo? Por que, mesmo sabendo nao existir espa<;:o vazio na


política, a esquerda nao avarn;:a de forma consistente e sistemática nessa
dire<;:ao? Por que deixar um território decisivo para o inimigo?
Respostas completas para estas perguntas sao muito difíceis, mas
nos arriscamos a sugerir dois tipos de explica<;:óes. Urna, mais geral,
<leve-se ao fato de que conceder direitos, que é a própria razao de ser
da esquerda, significa, de alguma forma, direta ou indireta, aumentar
o Estado, o que transmite urna impressao de contradi<;:ao com o slogan
de melhorá-lo. De fato, nao é fácil unificar numa mesma agenda esses
dois discursos, problema que a direita nao enfrenta, já que melhorar
o Estado significa reduzir o seu tamanho, implicitamente, subtraindo
direitos. E o problema real nao é o de urna unifica<;:ao de plataforma
condensada num discurso, mas de achar propostas e solu<;:óes para
urna agenda sempre difícil e complexa.
Urna segunda explica<;:áo é que a esquerda, assim como a direita,
é formada por diversas classes, subclasses, estratos e camadas sociais,
as quais podem representar corpora<;:óes com inser<;:ao específica no
Estado. Nesse sentido, o discurso de melhorar o Estado, que poderia
muito bem se traduzir na supressao de privilégios de determinadas
corpora<;:óes, seria um fator de desagrega<;:áo de um agrupamento de
esquerda, o que dificultaria a sua inclusáo como plataforma e política
de a<;:ao na gestao estatal. Sornadas, a razáo geral e a razao corporativa,
com peso maior para esta segunda, talvez ajudem a explicar essa
histórica inaptidao da esquerda em colocar a gestáo do Estado e seu
aperfei<;:oamento no centro de seu discurso e de sua a<;:áo política.
Por outro lado, em momentos de crises agudas, como a que estamos
vivendo no Brasil, criam-se as oportunidades para que se ven<;:am as
resistencias corporativas e se caminhe para a unifica<;:ao <lestes dois
polos do desenvolvimento económico e social: conceder direitos e
melhorar o Estado.
Sobre "pedaladas fiscais"

Apéndice· Maurício Borges Lemas*


Publicado originalmente no Jornal GGN. Luís Nassif onlinc
em 22 de julho de 2016.

1. Conceito de "pedalada fiscal"

O que significa mesmo o termo "pedaladas fiscais"? Um antigo


professor (Fernando Novais, de história económica': da Unicamp)
costumava dizer que o uso das aspas era um truque de quem nao sabia
escrever. Na verdade, houve urna alterac;:ao do termo - até entao vinha
seudo utilizado "contabilidade criativa'' pela mídia, com o intuito de
criticar a política fiscal do governo federal. De "contabilidade criativa"
evoluiu-se para "pedaladas fiscais': configurando um rótulo mais
contundente para designar urna manipulac;:ao da contabilidade fiscal.
O próprio termo manipulac;:ao é subjetivo, já que pode sim-
plesmente indicar urna tentativa de induzir ou modificar a apa-
rencia de dados e informac;:oes até o extremo de sugerir fraude ou
falsificac;:ao dos dados.

•Economista, professor titular aposentado da FACE/UFMG.


Mauricio Borges Lemos

Ainda nos tempos da "contabilidade criativa", a mídia e a patrulha


ideológica do mercado financeiro criticaram, por exemplo, a venda,
pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN), das a<;:óes da Petrobras do
Fundo Soberano para o BNDES, que aumentou o superávit primário
do governo federal. Claro, nao houve grito quando, dois anos antes, a
STN comprou as mesmas a<;:6es para o Fundo Soberano, reduzindo o
superávit primário.
Da mesma forma, houve gritaría quando, quatro anos antes, o
Tesauro Nacional capitalizou a Petrobras com reservas de petróleo do
pré-sal: o problema é que parte das reservas foi vendida, aumentando
assim o resultado primário. Todas essas manipula<;:6es foram catalogadas
no reino da "contabilidade criativa': que se insería num conjunto de
críticas sistemáticas a política fiscal. Entretanto, do segundo semestre
de 2014 para os tempos de agora, esse termo foi substituído pelo rótulo
"pedaladas fiscais': procurando indicar nao apenas manipula<;:ao, mas
ilegalidade da execu<;:ao fiscal.
Haveria dois tipos de ilegalidades. Um primeiro <liria respeito ao
atraso de pagamentos de alguns beneficios, subsídios e subven<;:6es con-
cedidos pelo governo, cujos agentes repassadores seriam o Banco do
Brasil, a Caixa Económica Federal e o BNDES. Paralelamente, urna se-
gunda ilegalidade seria o adiantamento, por parte dessas institui<;:óes
financeiras, dos referidos beneficios, subsídios e subven<;:6es, configu-
rando um financiamento ao TN, o que contrariaría a Lei de Responsabi-
lidade Fiscal. Na verdade, para evitar urna eventual ilegalidade, o atraso
de pagamentos, ter-se-ia recorrido a um financiamento, configurando
por este último aspecto o caráter ilegal e indevido das opera<;:6es.

2. Urna eventual ilegalidade de restos a pagar

Quando lan<;:ada, no final dos anos 90 do século passado, a Lei de


Responsabilidade Fiscal tentou estabelecer limites para a magnitude
dos "restos a pagar" deixados de um mandatário para seu sucessor, em
qualquer um dos níveis de governo. Sua inten<;:ao original era de zerar

100
Um novo projeto para o Brasil

os restos a pagar deixados de um governante para o outro, o que se


tornou, desde logo, impraticável. Atualmente, com base em pareceres
de juristas, aceitam-se restos a pagar, desde que em valor menor do
que aquele que o governante encontrou. Mas há coisas mais graves,
como despesas realizadas sem on;:amento empenhado ou previsao
or\:amentária, o que contraria regra básica e anterior aprópria LRF (Lei
nº 4320, de 1964, sendo a LRF de 2000). Assim, atraso de pagamentos,
ainda mais dentro das regras e reportando-se a um mesmo governante, é
fato corriqueiro, com o qual o TCU nunca se preocupou anteriormente
- pelo menos nos últimos 30 anos - manifestando-se como um discurso
ideológico, com claros objetivos políticos, no sentido de rejeitar as
contas do governo Dilma. Os responsáveis pelo factoide, sentindo que
a versao do atraso de pagamentos era muito fraca, desprovida de urna
verdadeira base real, evoluíram para a segunda versao, das pedaladas, a
dos bancos financiarem o TN.

3. Sobre o financiamento do TN pelos bancos federais

Para come\:ar: qual é mesmo a motiva\:ªº original da LRF ao proibir


que bancos estatais, de qualquer nível de governo, financiem seu ente
federativo? Seguramente, a origem está na crise fiscal dos anos 1980,
que transbordou do nível federal para estados e municípios. Em alguns
casos, os bancos estaduais foram utilizados para o financiamento de
seus respectivos Tesouros. O caso mais grave foi o do estado de Sao
Paulo, justamente o ente mais rico da Federa\:ªº' que utilizou (e acabou
quebrando) o Banespa para financiar o Tesouro paulista. No nosso caso,
o TN, como autoridade fiscal que é, detém a capacidade de emitir moeda
- <lívida - a qualquer momento, sem intermediários. Nao é por acaso
que o juro soberano, pago pelo TN ao mercado, é sempre menor que
o custo de capta\:ªº de seus bancos controlados (BB, Caixa e BNDES,
entre outros). E o principal: o TN é credor líquido, em geral em volumes
robustos, dos seus bancos, o que dirime definitivamente qualquer dúvida
de "quem financia quem': O BNDES, por exemplo, <leve líquidamente
Mauricio Borges Lemas

mais de R$ 500 bilh6es para o TN, no longo prazo, o que mostra de


forma inequívoca que nao houve (e nao há), na forma legal e no seu
espírito, contrariedade a LRF.
Qual é, entao, exatamente o problema? Existe de fato um problema
ou ele é tao e somente urna questiúncula - embora tornada séria com
o objetivo de acuar ou mesmo inviabilizar o governo? O que vamos
sugerir, a seguir, é que de fato existe urna questiúncula, a qual tem, sim,
por trás, um problema importante da nossa metodologia fiscal, que vem
sendo solenemente ignorado no debate atual. Nesse sentido, o problema
metodológico independe da a<;ao <leste ou daquele governo, constituindo
urna questao per se, cuja solu<;ao envolve urna mercadoria escassa nos
dias atuais: consenso político.

4. Pagamento dos juros da dívida dos bancos federais para o


TN versus pagamento da equalizac;ao de juros do TN para os
bancos federais

Para situar o problema, vamos tomar como exemplo um empréstimo


do Programa de Sustenta<;ao do Investimento (PSI), operado pelo
BNDES, com juros fixos subsidiados pelo TN para a produ<;ao e
comercializa<;ao de máquinas e equipamentos nacionais. Iniciado
em 2009, ele vem oscilando desde entao no nível de juros por tipo
de equipamento (caminh6es, outros equipamentos de transporte,
máquinas, máquinas e implementos agrícolas etc.) e pelo nível
dos juros no tempo. Tomemos, para exemplificar, urna taxa muito
utilizada ao longo <lestes anos, de 4% ao ano. Nesse caso, na hipótese de
repasse para os agentes financeiros do BNDES e sendo o destinatário
micro, pequena ou média empresa, o custo desse empréstimo seria
TJLP (atualmente, 6,5/% ao ano)+ 1% (spread do BNDES, para pagar
seus custos e o eventual risco do agente financeiro) + 3% (spread do
agente financeiro, que assume o risco do empréstimo). No presente
momento, no nível atual da TJLP, o custo financeiro desse empréstimo
seria de 6,5% + 1% + 3% = 10,5%. Como o mutuário final pagaria

102
apenas 4%, o custo de equaliza<;:ao para o TN seria de 6,5%. Essc
valor, urna vez concedido o empréstimo, come<;:a a produzir custo
fiscal imediatamente, embora nao exatamente pela metodología
contábil do TN/BC desde sempre. Esse vai depender da especifica<;:ao
e da forma como se arbitram - inclusive a contabiliza<;:ao - os fluxos
financeiros. E como ficariam os fluxos financeiros?
Em primeiro lugar, há a carencia do empréstimo para o mutuário (no
mínimo de seis meses), contando depois com alguns anos para pagar.
Iniciados os pagamentos, o agente financeiro apropria-se do seu spread
(3%) e envia ao BNDES o que seria seu spread (1 %) e amortiza<;:ao. Para
zerar o custo de equaliza<;:ao, fica faltando o correspondente a TJLP, que
ficaria aguardando o pagamento do TN.
Em segundo lugar, o TN costuma fixar em dois anos a carencia (ou
até mais, em fun<;:ao das carencias e dos longos períodos de amortiza<;:ao
dos empréstimos). Mas, entelo, até isso acontecer, como ficaria o
BNDES? Ele teria de adiantar recursos próprios para sustentar o custo
(no exemplo, correspondente aTJLP) e, nesse sentido, financiar o TN? A
resposta é nao, já que o BNDES <leve esse valor correspondente aTJLP
exatamente para o TN!
Em terceiro lugar, há, no momento, urna discussao bizarra a
respeito dos prazos (e o seu virtual nao cumprimento) que o TN teria
para pagar ao BNDES os custos da equaliza<;:ao, esquecendo-se de que
é o próprio TN que fixa por portaria tais prazos, podendo alterá-los -
reduzi-los ou ampliá-los - segundo as conveniencias de julgamento do
próprio TN, como autoridade fiscal que é. Aliás, é também julgamento
do próprio TN fixar prazos e carencias (nesse caso autorizado por ato
legislativo normativo) para o recebimento de juros (em geral, TJLP) e
amortiza<;:ao dos seus empréstimos realizados para o BNDES.
Um partidário da questiúncula <liria que o nao pagamento, ou o seu
atraso em rela<;:ao a regra que ele próprio (TN) criou, constituiria urna
manipula<;:ao, já que ao nao pagar ou atrasar tais pagamentos está se
alterando - em geral reduzindo - o superávit primário. Está errado, porque
o vício é de origem, é estrutural e refere-se a um problema metodológico.
Antes de aprofundarmos esse assunto, desde logo fica claro que há urna

111 \
Mauricio Borges Lemas

grande incongruencia entre o fato de os juros relativos aos empréstimos


do TN ao BNDES (cerca de R$ 32 bilhóes em 2015, relativos a R$ 500
bilh6es de <lívida) sao contabilizados no resultado nominal, mesmo
que nao desembolsados pelo BNDES, independentemente dos prazos e
carencias preestabelecidos. E, ao contrário, algo como R$ 6 bilhóes no ano
seriam o custo de equaliza<;:ao, somente computáveis se desembolsados
pelo TN para o BNDES. Assim, no primeiro caso ternos o critério de
competencia e, no segundo, o critério caixa. O primeiro é lan<;:ado no
resultado nominal e o segundo no resultado primário, o que significa
que, no exemplo acima, a <lívida do BNDES junto ao TN (TJLP) nao
pode ser compensada com um valor correspondente de TJLP, referente
a equaliza<;:ao. E enquanto o pagamento da equaliza<;:ao nao for feito -
estando ou nao no prazo preestabelecido por portaria do TN -, nao apenas
o resultado primário será menor, mas, também e principalmente, será
subestimado -indevidamente melhorado - o resultado fiscal nominal,
que é o que interessa, em última instancia. Se manipula<;:ao há, ela está
embutida na própria metodologia, cuja origem encontra-se nos poróes
ainda nebulosos da contabilidade pública brasileira, metodologicamente
estagnada há pelo menos 30 anos.

5. Caixa versus competencia

Se observarmos a norma contábil das empresas públicas e privadas,


seria considerada absurda a indaga<;:fo se o regime de contabiliza<yao
deveria ser por critério caixa ou competencia. Ela é essencialmente por
competencia, sendo que, por exemplo, o nível das contas nao pagas,
lan<yadas no passivo circulante, é imediatamente contemplado com as
receitas a receber, além do caixa (ativo circulante). Nessa dire<;:ao, a
norma or<;:amentária brasileira segue esse padrao, de forma que o balan<yo
anual de qualquer ente federativo - municípios, estados ou Uniao -
trabalha com o conceito de competencia, o que inclui, por exemplo, nas
despesas, todas aquelas realizadas e nao pagas. Dito isso, a pergunta que
nao quer calar é: por que, contrariando a lógica do processo da execu<yao

104
on¡:amentária e da contabilidade pública, a gestao fiscal da Uniao, o
que envolve também o acompanhamento dos demais entes federativos,
trabalha com o conceito caixa?
A explica<¡:ao para urna pergunta tao singela é complexa e envolveria
um passeio ao longo da história do Brasil, pelo menos desde os anos
30 do século passado. Para encurtar o assunto, pode-se dizer que a
tendencia brasileira de produzir urna bolha fiscal permanente ensejou,
ao longo dos anos, a convic<¡:ao - proveniente teoricamente da matriz
de pensamento económico ortodoxa - de que o controle das cantas
públicas passaria pelo controle do crédito líquido para o setor público.
Independentemente do fato de isso ser, pelo menos em parte, um
pressuposto verdadeiro, a questao central é que urna visao consolidada
das cantas do setor público, observada a partir da execu<¡:ao or<¡:amentária,
nunca foi realizada por completo. Em contraposi<¡:ao, o BC veio aos poucos
desenvolvendo e consolidando a estatística referente ao Crédito Líquido
para o Setor Público (CLSP) para o conjunto dos entes federativos,
podendo incluir aí até mesmo as empresas estatais pertencentes aos
tres níveis de governo.
Entao, foi o bastante que, no final de 1998 e início de 1999, ao, mais
urna vez, o Brasil quebrar - neste caso, premido por quatro anos seguidos
de populismo fiscal e cambia! -, se recorresse a urna metodologia
consolidada de cantas fiscais, nas penosas e constrangedoras negocia<¡:6es
como FMI. E aí, na falta de urna metodologia pronta, recorreu-se a urna
''proxy", o CLSP do BC.
Na verdade, o CLSP, embora tenha urna rela<¡:ao e conexao com a
execu<¡:ao or<¡:amentária, é diferente dela em forma e conteúdo.
A diferen<¡:a na forma é que o resultado fiscal apurado pelo BC baseia-se
numa compara<¡:ao temporal de estoques de dívida, deduzindo-se daí um
resultado (um fluxo ), que será o déficit nominal ou, subtraindo-se os
juros pagos da <lívida pública, o resultado primário. O cálculo a partir
do processo or<¡:amentário, ao contrário, tem como referencia o fluxo
da execu<¡:ao on¡:amentária, o que é, evidentemente, muito mais rico,
completo e passível de desagrega<¡:ao, para fins analíticos e, nao menos
importante, de fiscaliza<¡:ao.

lll',
Mauricio Borges Lemas

Por outro lado, a diferern;:a no conteúdo está no fato de que a meto-


dologia implícita no CLSP trabalha somente com tres variáveis básicas:
<lívidas financeiras (estoque), juros (fluxo) e caixa (estoque). Quando
aplicada para o cálculo do resultado fiscal, as outras despesas públicas
que nao juros (fluxo) sao computadas por diferern;:a, o que significa que
as únicas despesas consideradas - exceto os juros - sao aquelas pagas,
excluindo as nao pagas tanto do cálculo do resultado fiscal quanto do
estoque da <lívida líquida do setor público. Os juros, pagos ou nao, sao
computados por competencia, o que implica que a metodología do CLSP,
quando aplicada exclusivamente ao seu propósito original (acompanhar
o endividamento financeiro do setor público), é um regime por compe-
tencia, já que sua única variável de fluxo - os juros - assim é computada.
Entretanto, quando adaptada para o cálculo fiscal, caminha-se para a
jabuticaba brasileira, que combina competencia - juros - com caixa -
todas as demais despesas.
O problema, entao, da utiliza<;:ao da metodologia do CLSP no cálculo
fiscal nao é apenas de sua limita<;:ao em termos de informa<;:ao e aderen-
cia a fiscalizac;:ao, mas, sobretudo, pela sua inconsistencia metodológi-
ca estrutural, correndo-se o risco de se produzir mais confusiio e desa-
certos do que acertos.

6. Inconsistencias e incoerencias

É emblemático que a LRF, quando editada em 2000, previsse no seu


artigo nº 30, parágrafo § 1º, inciso IV, que caberia ao Senado Federal
definir a metodología do resultado primário e nominal, reconhecendo,
implícitamente, o caráter provisório da metodología improvisada
baseada no CLSP. E é sintomático que, 15 anos depois, essa metodologia
ainda nao tenha sido criada! Estabeleceu-se assim um fosso legal, já
a meta fiscal vem constando da LDO, sem prever a sua metodologia,
aceitando-se tacitamente - informalmente, na verdade - o cálculo
baseado no CLSP do BC. Curiosamente, entao, o cumprimento de urna
diretriz on;:amentária, que deveria ter, como metodologia de verificac;:iio,

106
Um novo pro¡eto para o Brasil

algo baseado na execw;:ao oryamentária, é feito informalmente por


metodologia diversa, que se conecta tangencialmente - apenas isso -
com o processo oryamentário.
E que se diga a verdade: a tarefa técnica e política atribuída pela LRF
ao Senado Federal é dificílima, urna vez que a <lívida financeira pública
e seu custo - os juros - foram retirados do processo de elaborayao do
oryamento! De imediato, portanto, haveria urna contenda com a patrulha
do mercado financeiro, já que se alegaría a inconveniencia de um eventual
engessamento da política monetária. Mas as dificuldades nao parariam
somente nesse ponto. Haveria, por exemplo, a necessidade de se definir:
i) o conceito de despesa efetivamente realizada (mesmo que nao paga);
ü) critérios mais elaborados para o cancelamento de restos a pagar; iii)
o conceito de despesas e receitas primárias versus receitas e despesas
financeiras; e iv) redefinir a forma de inclusao no oryamento, na execuyao
oryamentária e no próprio resultado fiscal das empresas estatais financeiras
e nao financeiras etc.
Mas enquanto isso nao acontece, teremos de continuar com as
mazelas de sempre das atuais regras (ou a falta delas) de execuyao fiscal.
A consequencia mais grave desse fato é que a meta fiscal, seja o
resultado nominal, seja o resultado primário, previsto na LDO, é
unicamente um instrumento de gestao do governo, por basear-se em
fonte de dados distinta dos referentes a execuyao oryamentária. Nesse
sentido, ela nao é fiscalizável, urna vez que elementos centrais que a
compoem nao fazem parte do processo oryamentário, tendo sido sua
execuyao delegada do Legislativo para o Executivo e, internamente a
este último, para o BC.
O TCU, portanto, como órgao de fiscalizayao do Legislativo e
que tem se aprimorado tecnicamente nos últimos anos, monitoran-
do todas as etapas da execuyao oryamentária (em especial as licita-
y6es) nao tem alyada legal para fiscalizar contas cuja base tem, como
eixo, os dados da CLSP.
Mais especificamente, retomando a questao das operayoes do BNDES
com o TN, analisadas mais acima, nao estao na alyada atual do TCU
nao apenas os pagamentos dos juros da <lívida do BNDES em rela<;ao
Mauricio Borges Lemos

ao TN (em geral, em TJLP e classificadas como despesas no resultado


nominal), como também despesas de equalízai;ao de juros devidas pelo
TN ao ENDES. As primeiras desde sempre sao consideradas abaixo da
linha, estando fora da execui;ao on;:amentária, e as segundas, embora
consideradas primárias - acima da linha - tém delegai;ao por leis
específicas, que atribuem ao TN decidir por portaría, flexível e alterável
conforme suas conveniencias, quando entrarao no ori;amento e, portanto,
na execrn;:ao on;:amentária. 1
Por isso, ao tentar julgar as contas do governo, fica claro que o TCU nao
tem os meios técnicos para faze-lo, seja porque o objetivo do pretenso crime -
a manipulai;ao do resultado fiscal - nao tem meta verificável contabilmente,
seja porque as cantas específicas que estao mais em foco, como objeto de
manipulac;:ao, estao fora de sua alc;:ada de fiscalizac;:ao atribuída pela atual
normatizac;:ao legislativa. O resultado final mais palpável sao as duas teses
bizarras já mencionadas mais acima: a de que o governo, com o objetivo
de manipulac;:ao do resultado fiscal: i) atrasou o pagamento de despesas (os
técnicos viram-se fon¡:ados a reconhecer que atrasos sempre houve mas nao
podem ser exagerados); e ii) fez com que os bancos públicos - contumazes
devedores líquidos do TN - financiassem o governo. Assim, a única
condusao possível é que, para sustentar a falta de consistencia e a notória
incoeréncia (com os fatos) dos argumentos, é inevitável que se condua que
a alegada análise e rejeic;:ao das contas do governo de 2014 nao passaria de
urna opiniao subjetiva de alguns técnicos do TCU, que se prestariam ao
papel de coonestar o pré-julgamento do sr. Augusto Nardes.

1 As func¡:iies legais do TCU, como órgao de fiscalizac¡:ao, incluem a contábil, financeira, orc¡:amentária,
operacional e patrimonial, constituindo um leque amplo de atividades da Uniao e órgaos vinculados.
Exclui, porém, os passivos e ativos financeiros, incluindo os fluxos de receitas e despesas deles deri-
vados, seja em termos da elaborac¡:áo do orc¡:amento e da consequente execuc¡:ao orc¡:amentária, seja em
termos de fiscalizac¡:áo, considerados alyada do Executivo (ministérios da Fazenda e do Planejamento e,
em especial, do BC).

108
Um novo projeto para o Brasil

7. Absurdos lógicos e práticos da metodologia baseada no CLSP

Independentemente da inconsistencia legal e técnica da metodologia


de cálculo do resultado fiscal, e de sua inconsistencia estrutural, ao
misturar caixa com competencia, poderíamos perguntar: atinal de
contas, no mérito, ela é urna boa metodología?
Em urna resposta que está implícita em todas as pondera<¡:oes rea-
lizadas acima, dir-se-ia que, como solu<¡:ao de curto prazo, improvi-
sada em momento de crise no final dos anos 90 do século passado,
ela pode ser considerada urna boa solu<¡:ao, dentro das circunstancias.
Mais ainda, dada a sua fácil operacionalidade e disponibilidade per-
manente, já que faz parte intrínseca da missao do BC de monitorar
todos os agregados monetários e financeiros, ela pode ser um bom
instrumento de acompanhamento conjuntural, em suma, urna boa
proxy da situa<¡:ao fiscal. Mas, como instrumento para fixar a meta
fiscal, ela apresenta sérias deficiencias enquanto instrumento indu-
tor da gestao pública.
O primeiro problema é mais geral e se refere ao processo de
indu<¡:ao, para efeito do cumprimento da meta, que traz implícito o
pressuposto de que a despesa boa é a nao paga, a nao ser que sejam
juros. Por decorrencia, nao há problema com <lívida, sendo sempre
preferível manter dinheiro em caixa, em detrimento do aumento da
<lívida, desde que nao seja <lívida financeira. Na contabilidade privada,
ao contrário e corretamente, prevalece o regime de competencia, senda
que qualquer tipo de despesa nao paga em sua data de vencimento é
coisa muito séria. Descobrir esqueletos, aliás, é o meio de vida principal
das auditorias contábeis.
O segundo problema é que, quando aplicada a aspectos específicos
da execu<¡:ao fiscal, a metodología mostra-se, em alguns casos, absurda,
resultando em índu<¡:6es pouco adequadas para a gestao pública.
É o caso, por exemplo, da metodología adotada para a incorpora<¡:ao
das empresas estatais, subsidiárias integrais ou controladas, no
cálculo do resultado fiscal. Na contabilidade privada, a subsidiária
integral ou controlada da holding, é contabilizada pelo conceito de

10')
Mauricio Borges Lemos

equivalencia patrimonial, vale dizer, o lucro (ou prejuízo) é considerado


integralmente, se a empresa for subsidiária integral - com 100% de
controle -, ou proporcionalmente, em termos de sua participa(j'.ao
acionária, se for apenas controlada.
Na metodología baseada no CLSP, considera-se para o segmento
estatal nao financeiro o estoque de <lívida financeira, da qual se subtrai
o caixa da empresa: considerando-se no tempo a varia<;:ao desse
estoque da <lívida financeira (menos caixa), obtém-se o resultado fiscal
nominal, do qual subtraímos os juros pagos, para se chegar ao resultado
primário. Os dividendos pagos pelas empresas (e nao os lucros) sao
também considerados, embora contabilizados a parte, como receita
corrente do Tesauro (nacional, estadual ou municipal). Os bancos
estatais estilo fora desse conceito, dada a sua natureza financeira, o que
significa que sua única contribui<;:ao para o resultado fiscal será via
pagamento de dividendos.
Na verdade, os resultados dessa metodología, enquanto mecanismo
indutor do processo de gestao, sao desastrosos: no caso das estatais nao
financeiras, urna simples e universal concep<;:ao - ou seja, a empresa
com lucro é um fato positivo e <leve ser sornado no resultado do grupo
económico (no caso, no resultado fiscal do governo) ou a empresa com
prejuízo é um fato negativo e assim <leve ser subtraído do resultado
fiscal - é substituída por urna miscelanea de conceitos que induzem
a urna má gestao. De fato, a empresa estatal boa seria aquela que nao
investe, seja porque nao <leve se endividar, seja porque deve poupar
seu caixa, já que nos dois casos (mais <lívida ou menos caixa) há urna
piara do primário. Mas a empresa estatal boa nao <leve também pagar
dividendos, já que, tendo ela acionistas privados, ao reduzir o caixa
para pagá-los e ao seu acionista controlador (o Tesauro), seu efeito no
resultado fiscal será negativo, já que a diminui<;:ao do caixa para pagar
os dividendos (com impacto nesta exata magnitude sobre o fiscal da
empresa) será superior ao resultado do aumento da receita corrente
do Tesouro por conta dos mesmos dividendos, só que subtraídos da
parte referente aos acionistas privados! Fruto em parte disso, antes
de 201 O, quando foram retiradas do primário, a Petrobras, ao pagar

110
Um novo projeto para o Brasil

dividendos produzia déficit primário, e a Eletrobras ficou mais de


12 anos sem pagar dividendos.
Os bancos estatais tem vida um pouco melhor, dada a sua natureza
financeira: estao forado mecanismo da <lívida líquida, embora sua única
forma de contribuir para o fiscal seja com dividendos, e nao com seus
lucros no conceito de equivalencia patrimonial. Entao, pode-se dizer
que, enquanto a metodología aplicada as estatais nao financeiras tem
um viés anti-investimento, aplicada aos bancos federais tem um viés
anticapitalizac;:ao, resultando ambas na destruic;:ao das empresas em
longo prazo. Assim, em última instancia, a estatal boa é aquela que corta
os pulsos e vai embora, ou é privatizada. Com a saída da Petrobras e da
Eletrobras do primário, essa metodologia do CLSP aplicada as empresas
perdeu importancia, embora seja ainda a que prevalece, a espera do
velho e bom conceito de equivalencia patrimonial.
Mas os problemas práticos conceitualmente mais sérios referem-se
ao fato de que a meta fiscal, que de fato nao existía antes de 1999,
quando o Brasil quebrou, passou a ser o resultado primário, já que, na
época, os juros estratosféricos tornavam virtualmente inalcanc;:ável urna
meta nominal. E, com métrica baseada em metodología improvisada,
adotou-se para o resultado fiscal igualmente urna meta improvisada,
ancorada no primário, tornando-se ambos mais urna jabuticaba
brasileira, em que o provisório torna-se definitivo.

8. O primário como submeta e nao como meta fiscal

Muitos se referem ao resultado primário como urna jabuticaba brasileira,


já que a prática internacional mais utilizada é a meta nominal, que inclui
os juros da <lívida pública. No caso do Brasil, a substituic;:ao do primário
como meta principal criaria um problema político, sustentado na
patrulha do mercado financeiro, que, claro, considera que a despesa dos
outros é ruim e a despesa que ancora receitas nossas é boa. Entretanto,
<leve ser mencionado que, independentemente de urna eventual
controvérsia sobre sua utilizac;:ao, a métrica do primário é um importante
Mauricio Borges Lemas

instrumento de gestao fiscal, especialmente quando considerado como


submeta para se alcanc;ar a meta que de fato interessa, que é a baseada
no resultado nominal.
Afinal de cantas, é o resultado nominal que define a sustentabilidade
fiscal e a consequente capacidade de financiamento dos Estados
nacionais ou de suas instancias subnacionais. Nao bastasse isso, há
um problema razoavelmente grave que desaconselha a utilizac;:ao do
primário como meta fiscal principal: os critérios de lanc;:amento das
despesas e receitas no primário ou no nominal sao relativamente
arbitrários, o que transforma um importante e imprescindível
instrumento de gesta.o em algo que sofre o risco de manipulac;:ao. Nesse
sentido, os critérios, em alguns casos, necessariamente arbitrários,
devem servir a apenas urna senhora, a boa gesta.o fiscal, descartando-se
critérios com objetivos de manipulac;:ao. E para se evitar isso, o melhor
caminho comec;:a por trabalhar com a meta nominal, deixando
o primário como submeta, ou melhor, como um instrumento de gestao
para se alcanc;:ar o resultado nominal almejado.
Dois exemplos poderiam ilustrar o problema da subjetivi-
dade das escolhas arbitrárias, e que estao presentes no caso bra-
sileiro, colocando-se a dúvida se estao assim por descuido, por
critérios teóricos e/ou ideológicos, ou simplesmente por obje-
tivos de manipulac;:ao.
O primeiro diz respeito ao exemplo acima das relac;:6es do BNDES
e o TN. Ao emprestar dinheiro ao BNDES com custo em TJLP,
portanto, subsidiado, já que abaixo da Selic, acarreta-se, para o TN,
um passivo com custo em Selic (devido ao mercado) e um ativo com
custo em TJLP (devido pelo BNDES ao TN). A operac;:ao passa a
gerar um custo fiscal imediato, que é lanc;:ado automaticamente no
resultado fiscal nominal, já que ambos os juros (a Selic no passivo e a
TJLP no ativo) sao considerados despesas e receitas abaixo da linha,
vale dizer, estao fora do orc;:amento e da execuc;:ao orc;:amentária.
Paralelamente, ao autorizar o BNDES, vía PSI (ou outros programas
com equalizac;:ao) a realizar empréstimos a taxas fixas a serem
equalizadas (no exemplo mais acima seria de 4% ao ano), o TN fica

112
devendo urna diferern;:a (no exemplo seria correspondente a própria
TJLP), a ser paga segundo suas conveniencias (atern;:ao TCU, as várias
leis, referentes a programas equalizáveis dos últimos 20 anos, deram
esse poder discricionário para o TN). Ao fim e ao cabo, quando forem
pagas, tais despesas entrarao na execuc;:ao orc;:amentária, sendo lanc;:adas
no resultado primário. Por que dois tipos de créditos direcionados e
subsidiados pelo TN tiveram tratamentos diferentes, lanc;:ando-se um no
resultado nominal e o outro, quando pago, no primário?
Pragmatismo sobre as conveniencias da execuc;:ao fiscal talvez
possa explicar essas escolhas. No fundo, os dois tipos de crédito sao
financeiros, embora direcionados, como vários outros (do Sistema
Financeiro da Habitac;:ao - SFH, por exemplo ), apenas com a diferenc;:a
de que tem custo fiscal. Mas a emissao de títulos públicos e a compra de
ativos em dólar pelo BC podem ter custo fiscal, e estao contabilizados
no nominal. O que de fato diferencia o crédito direcionado com
equalizac;:ao é que tende a ter um subsídio relativamente maior,
para clientela específica, induzindo a urna tentativa de parcimónia e
burocratizac;:ao, com o objetivo de contenc;:ao fiscal. E para encorpar o
discurso da contenc;:ao, optou-se por lanc;:á-lo - quando formalmente
pago - na execuc;:ao orc;:amentária e, portanto, no primário.
Em suma, foi urna opc;:ao aparentemente aceitável, ma¿ discutível,
já que se trata de urna despesa típicamente financeira da Uniao,
devendo e podendo ser classificada abaixo da linha. Quando nao mais
porque, além de ter a mesma natureza - financeira - do empréstimo
subsidiado em TJLP, evita-se a tendencia a urna subestimac;:ao -
permanente, já que sistematicamente repetida - do resultado fiscal
nominal. E essa será tanto maior quanto mais elástico for o prazo
decorrente entre o momento do fato gerador da despesa, no caso, a
efetivac;:ao do empréstimo ao mutuário, e o pagamento da equalizac;:ao.
Sabe-se que o TCU, em sua agenda em torno de questiúnculas, tem
questionado sobre o prazo, em geral de dois anos, concedido para o
pagamento dessas equalizac;:óes. Embora haja urna importante questao
de ordem legal nesse questionamento, já que o Congresso concedeu
alc;:ada para o TN decidir quando pagar (implícitamente, tirou a

111
Mauricio Borges Lemos

alc¡:ada legal do TCU para fazer tal pergunta), interessa também o fato
de que o problema do prazo é estrutural, já que nasce da assimetria
entre o fato gerador da despesa e o tempo - qualquer tempo - da data
do pagamento efetivo. E, nesse caso, a soluc¡:ao para o problema seria
simples: lanc¡:ar as despesas de equalizac¡:ao abaixo da linha, no nominal,
resolvendo-se nao apenas a questao grave de subestima<;:ao fiscal como
também pouparia trabalho ao TCU, já que tal tipo de despesa está fora
de sua al<;:ada de fiscalizac¡:ao.
O segundo exemplo do caráter arbitrário do conceito de primário
refere-se a carga tributária embutida no servic¡:o da <lívida pública.
Em geral, ela oscila de 15% a 22,5% de Imposto de Renda para
pessoas físicas e chega a 40% (IR e CSLL) para os bancos. Imagine-se
a seguinte situac¡:ao: o TN toma emprestado determinada quantia,
pagando R$ 100,00 de juros ao ano. No momento de receber os
R$ 100,00 no TN, o emprestador é avisado de que tem de passar no
guiche ao lado da RF, deixando R$ 15,00. Os R$ 100,00 sao lanc¡:ados
como despesa de juros no resultado nominal e os R$ 15,00 sao
considerados receita de impostos, engordando o resultado primário.
Do ponto de vista do nominal, esse duplo lan<;:amento é neutro, o que
tornaría o assunto pouco relevante se essa métrica fosse considerada
a meta fiscal. Entretanto, se a métrica mais relevante, inclusive por
constar na LDO, for a do primário, a distor<;:ao passa a ser grave,
subvertendo o conceito de urna poupanc¡:a para pagar juros, já que os
próprios juros tem embutida parte da poupanc¡:a. E mais, quanto pior
a situac¡:ao fiscal e maior o endividamento e os juros, maior será essa
falsa receita primária, que nunca contribuirá para melhorar, em um
único centavo, o resultado nominal.
Isso nao significa, porém, que a tributa<;:ao sobre os juros nao seja
importante do ponto de vista fiscal, e sim que é indevido que ela
seja lan<;:ada no primário, podendo, alternativamente, contribuir de
forma relevante para mitigar o custo fiscal da política monetária,
em especial, quando considerada dentro - como fator redutor - do
déficit nominal. Em suma, o conceito de resultado primário, embora
seja urna ferramenta de importancia indiscutível para a gestao fiscal,

114
perde esse potencial quando se torna a própria meta fiscal, dado o scu
caráter parcial, incompleto e intrinsecamente arbitrário, envolvcndo
escolhas sobre aquilo que se computa acima ou abaixo da linha.

9. Conclusao

Numa síntese do que foi discutido até aqui, seria possível concluir:

a. Por basear-se desde sempre numa metodología improvisada,


tomada de empréstimo do BC, fundamentada no conceito
do Crédito Líquido do Setor Público (CLSP), as estatísticas
fiscais do Brasil sao incompletas, nao tendo como referen-
cia a execuc;:ao orc;:amentária da Uniao, estados, municípios
e empresas estatais;
b. O viés financeiro e as insuficiencias dessa metodologia
nao sao culpa do BC, já que foi construída com o objetivo
de acompanhamento e controle dos agregados monetários e de
<lívida financeira nao apenas do setor público, mas de toda a
economia, o que constituí urna missao precípua do BC;
c. Essa metodologia é, para a gestao fiscal, um instrumento
importante e insubstituível de acompanhamento conjuntural,
dada a sua disponibilidade temporal (mensa!), propiciado pelo
fato de basear-se em acompanhamento de estoques monetários
e de <lívida financeira;
d. Entendida, entretanto, como a estatística das contas fiscais, e
nao apenas e tao somente urna proxy de acompanhamento
conjuntural, somos abrigados a reconhecer que a metodologia
baseada no CLSP apresenta graves deficiencias;
e. A primeira é que, ao ser adaptada para utilizac;:ao como estatís-
tica fiscal, passa a misturar competencia com caixa, ficando a
primeira para as receitas e despesas financeiras (consideradas
abaixo da linha e lanc;:adas no resultado nominal), e a segunda

11'>
Mauricio Borges Lemas

para as demais receitas e des pesas pagas (consideradas acima


da linha e lan<;:adas no resultado primário); essa incongruen-
cia pode gerar até mesmo situa<;:óes paradoxais e bizarras, como
aquelas que envolvem as rela<;:óes do TN com os bancos federais;
f. A segunda deficiencia é que, ao calcular por diferen<;:as o gasto
primário, ela deixa de lado as despesas nao pagas, como se elas
fossem irrelevantes para a análise do resultado fiscal;
g. A terceira deficiencia é que, como mecanismo de indu<;:ao a
boa gestao fiscal, ela cria, por exemplo, o viés de que a despe-
sa boa é despesa nao paga; e quando aplicada as empresas
estatais, apresenta um grave viés anti-investimento (para as
nao financeiras) e anticapitaliza<¡:ao (para os bancos estatais),
induzindo a sua desintegra<;:ao no longo prazo;
h. A quarta deficiencia é que se optou por considerar, no contexto
da metodologia, o resultado primário como a meta fiscal,
deturpando esse conceito enquanto importante submeta
e instrumento de gestao fiscal; mais particularmente, a
possibilidade de arbitrar, subjetivamente, o larn¡:amento de
despesas e receitas acima ou abaixo da linha ajuda a deturpar
o conceito, o que recomendaria sua substitui<;:ao pelo resultado
nominal, seguindo o padrao internacional predominante;
i. A quinta e talvez mais importante deficiencia é que a esta-
tística com base nessa metodologia nao é fiscalizável, já que
nao se baseia na execu<;:ao or<;:amentária, apenas a tangencia.
No caso da Uniao, sao consideradas somente as despesas
(pagas) e receitas (recebidas); todo o fluxo financeiro con-
siderado abaixo da linha está fora do on;:amento e, portanto,
da execu<¡:ao on;:amentária;
j. Como corolário, a sexta deficiencia é que as metas fiscais,
propostas em todas as LDOs, nao sao fiscalizáveis, estando
na dependencia, para terem validade e valerem em
execu<¡:óes or<;:amentárias futuras, da regulamenta<;:ao pelo

116
Senado Federal da metodología do resultado fiscal, prevista
no artigo 30 da LFR.
k. Por fim, <leve-se concluir que o TCU nao tem al<;:ada para
julgar urna eventual manipula<;:ao do resultado fiscal por parte
do Executivo; para realizar tal tarefa, ele deveria: a) reconhe-
cer tal impossibilidade junto ao órgao ao qual é subordinado,
o Congresso Nacional; b) solicitar que as chamadas receitas
e despesas abaixo da linha passem a integrar o or<;:amento e
a execu<;:ao or<;:amentária; e) solicitar ao Senado que regula-
mente a metodología do resultado fiscal primário e nominal,
conforme previsto na LRF2; e e) por último, abandonar defini-
tivamente o critério de caixa para a mensura<;:ao de qualquer
indicador relevante da gesta.o fiscal.

2 Diferentemente dessa direc;:iio, o TCU, por conta própria, produziu, ainda em 2014, um extenso
relatório sobre a gestiio da <lívida pública, com "a identificac;:ao dos riscos mais relevantes e de ques-
tóes que ensejam a atuac;:iio do TCU". O objetivo do relatório realizado na STN e no Bacen foi o de
estruturar o conhecimento dos processos de gestiio de <lívida pública e conhecer os seus gargalos,
riscos associados e elaborar uma matriz de auditoria com ac;:óes de controle a serem realizados a
curto e médio prazo". (TCU 028.192/2014-l, p. 1). Em suma, legislar por sua conta e risco e, a partir
daí fiscalizar, atribuindo-se o papel de autoridade monetária e fiscal.
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