UNGER, Roberto-Mangabeira. Politica - Textos Centrais PDF
UNGER, Roberto-Mangabeira. Politica - Textos Centrais PDF
UNGER, Roberto-Mangabeira. Politica - Textos Centrais PDF
POLITICA
os textos centrais
Selec;:ao e introduc;:ao
Zhiyuan Cui
Traduc;:ao
Paulo Cesar Castanheira
6-~~--pQ-
EDITORIAL
Copyright© 1997 by Roberto Mangabeira Unger
U57p
Unger, Roberto Mangabeira.
Polftica: os textos centrais, a teoria contra o destino I
Roberto Mangabeira Unger. - Sao Paulo: Boitempo;
Santa Catarina: Editora Argos, 2001.
430 p.
ISBN 85.85934.79.4
1. Polftica. I. Titulo.
CDD-320
Nenhuma parte deste livro podera ser reproduzida, seja por meios mecanicos,
eletr6nicos ou por c6pia xerografica, sem a autorizas;ao previa dos editores.
PREFACIO .............................................................................................. 11
0 marxismo como uma teo ria social evolutiva das estruturas profundas .. 60
Os dais lados da relar;iio do marxismo com a analise de estrutura profunda ... 60
A teo ria marxista e as partidos de esquerda .. ............................................... 61
As dificuldades do conceito de capitalismo .................................................. 62
As fontes das dificuldades ............................................................................. 69
Enfase na politica: o malogro em resgatar a teoria ..................................... 73
0 significado pratico do erro te6rico ........................................................... 76
A economia como uma teo ria de estruturas profundas nao evolutiva .......... 79
APENDICE. CINCO TESES SOBRE A RELA<;:Ao DA RELIGIAO COM A POLITICA .•......... 423
Zhiyuan Cui
1 Richard Rorty capta bema posi9ao te6rica de Unger em sua discussao de Castoriadis e Unger:
"Castoriadis e Unger, adesconstru9ao, preferem trabalhar com as no96es que ja tem significado
para pessoas vivas no presente - nao deixando, entretanto, a ultima palavra para o mundo
hist6rico que habitam." Ver Richard Rorty, "Unger, Castoriadis and the romance of a national
future", in Robin W. Lovin and Michael J. Perry, editores, Critique and construction: a symposium
on Roberto Unger's politics (New York: Cambridge University Press, 1987).
2 Pen·y Anderson, "Roberto Unger and the politics of empowerment", em A zone of engagement
(Londres e Nova York: Verso, 1992), p. 135. Publicado no Brasil em Perry Anderson, Afinida-
des e antinomias. Sao Paulo, Boitempo, 2001.
"contexto formador", podemos torna-lo mais aberto a contestas;5es e revis5es. Unger
argumenta que esse grau de abertura e variavel. Par exemplo, castas hereditarias na
India antiga, as corporas;5es organizadas da Europa feudal, as classes sociais de hoje
e os "grupos de opiniao" do futuro marcam a presens;a de grupos caracteristicos de
contextos formadores crescentemente abertos ou "plasticos". Unger prop5e a nos;ao
de "capacidade negativa" para representar o grau relativo de abertura e desentrinchei-
ramento de urn contexto formador.
0 termo "capacidade negativa" tern origem numa carta de John Keats datada de
28 de dezembro de 1817. Unger generaliza e transforma o significado da expressao,
que passa a indicar a vontade humana ativa e a capacidade de transcender qualquer
contexto formadormediante sua negas;ao em pensamento ou ato. Aumentar a "capaci-
dade negativa" significa criar contextos institucionais mais susceptfveis de sua pro-
pria revisao- diminuindo assim a lacuna entre estrutura e rotina, revolus;ao e reforma
gradual, movimento social e institucionalizas;ao. Unger valoriza o refors;o da capaci-
dade negativa tanto como urn fim em si mesmo- uma dimensao da liberdade humana -,
quanta como urn meio para atingir outros objetivos. Pais ele afirma haver uma relas;ao
causal significativa entre o desentrincheiramento dos contextos formadores eo sucesso no
avans;o em dires;ao a possfvel superposis;ao das condis;oes de progresso material e das
condis;oes de emancipas;ao individual.
Portanto, o ponto de vista te6rico unico de Unger se caracteriza pela visao dos dais
!ados dos contextos fmmadores: apesar de reconhecer sua persistencia e poder, ele lhes
retira a aura de necessidade ou autmidade superior. Ele insiste em que "entender profun-
damente a sociedade exige de n6s ver o ajustado do ponto de vista do desajustado". Essa
perspectiva gera a crftica do fetichismo estrutural e do fetichismo institucional.
De acordo com Unger, o fetichismo estrutural nega a possibilidade de mudar a
qualidade dos contextos formadores. Aqui, a qualidade de urn contexto formador se
caracteriza pelo seu grau de abertura arevisao. 0 fetichism a estrutural continua com-
prometido com a tese falsa de que "uma estrutura e uma estrutura". Urn fetichista
estrutural pode ser urn relativista cetico p6s-moderno, que sacrifica padr5es univer-
sais de valor e discernimento. Ou urn niilista, cuja unica preocupas;ao e desconstruir
tudo. Entretanto, as duas posis;oes te6ricas sao pseudo-radicais, porque acabam por
aceitar a visao de que, uma vez que tudo e contextual, s6 nos resta escolher urn con-
texto social e jogar de acordo com suas regras, ao inves de mudar a qualidade de suas
defesas. A tese de Unger a respeito da suscetibilidade arevisao ou desentrincheiramento
de contextos fmmadores fornece uma solus;ao para esse dilema do p6s-modernismo
tornado conservadorismo. A safda e reconhecer que a perda da fe num padrao absolu-
to de valor nao tern de nos submeter a uma ordem institucional e imaginativa existen-
te. Podemos ainda lutar para transformar contextos institucionais e discursivos para
que melhor respeitem nossa natureza espiritual, ou seja, nossa natureza de agentes
capazes de transcender contextos.
Pode-se avaliar a medida desse "grau de abertura e suscetibilidade arevisao". E
equivalente a distancia entre as atividades rotineiras, reprodutoras de estruturas, e as
atividades transformadoras, contestadoras de estruturas. Quanta menor essa distiin-
Aqui tocamos num ponto crucial da teoria social de Unger. Ele nao participa da
obsessao da maioria dos outros te6ricos sociais e fil6sofos politicos liberais em iden-
tificar as nossas instituic;oes basicas como entidades neutras entre os ideais conflitantes
de associac;ao human a. Para ele, a miragem da neutralidade interfere com urn objetivo
mais importante, o de encontrar disposic;oes compatfveis com urn experimentalismo
pratico de iniciativas e com uma diversidade real de experiencias. Nao podemos dis-
tinguir os atributos permanentes e universais da natureza humana dos que variam de
acordo com a circunstancia social. E imitil apresentar uma ordem institucional como
expressao de urn sistema de direitos supostamente neutro entre choques de interesses
e vis6es conflitantes do bern. 3 0 importante e reduzir a distancia entre a reproduc;ao e
a revisao de nossas praticas e acordos. Des sa forma conseguiremos atender as exigen-
cias das formas de progresso material que coexistem com a libertac;ao do indivfduo
das divis6es e hierarquias sociais rfgidas.
Se a critica do "fetichism a estrutural" ataca por urn lado o destino que nossas
instituic;oes nos atribufram, a critic a do "fetichismo institucional" ataca esse destino
por outra direc;ao. Para Unger, fetichismo institucional e a identificac;ao imaginada
de dispositivos institucionais altamente detalhados e em grande parte acidentais a
conceitos institucionais abstratos tais como democracia representativa, economia
de mercado ou sociedade civil livre. 0 fetichista institucional pode ser o liberal
classico que identifica democracia representativa e a economia de mercado como
urn conjunto de dispositivos governamentais e economicos que, por acaso, triunfa-
ram durante o curso da hist6ria da Europa moderna. Ou pode ser o marxista inflexf-
vel que trata os mesmos dispositivos como urn estagio indispensavel na caminhada
em direc;ao a uma futura ordem regenerada, cujo conteudo ele considera
preestabelecido e resistente a descric;ao aceitavel. Pode tam bern ser o cientista soci-
al positivista, ou o administrador politico ou economico pragmatico, que aceita sem
discuss6es as pniticas correntes como uma estrutura destinada ao equilibria de inte-
resses ou soluc;ao de problemas 4 .
Urn importante exemplo de fetichismo institucional eo que Unger descreve como
a "hist6ria mitica da democracia". De acordo com esse ponto de vista rnitico, "os ensai-
os e erros da experiencia polftica moderna e o fracasso clara de muitas alternativas pro-
pastas confirmaram que as soluc;6es institucionais surgidas eram muito mais que obras do
acaso" 5 . Contrario a essa "hist6ria mitica", Unger insiste em que se reconhec;a como fa-
ram acidentais os dispositivos institucionais das democracias representativas contempo-
raneas e das econornias de mercado. Por exemplo, o constitucionalismo liberal do seculo
3 No seu estudo comparativo de Rawls, Habermas e Unger, Geoffrey Hawthorn demonstra que a
busca da neutralidade aparece com grande destaque tanto em Rawls quanta em Habermas. Ver
Geoffrey Hawthorn, "Practical reason and social democracy: reflections on Unger's passion and
politics", em Lovin e Perry, editores, Critique and construction.
4 Roberto Mangabeira Unger, Social theory: its situation and its task (Cambridge: Cambridge
60 livro mais recente de Unger, Democracia realizada: a alternativa progressista (Sao Paulo,
Boitempo, 1999) desenvolve em pormenor sua vi sao programatica, associando-a a problemas e
p6s-Guerra Fria, reabre os horizontes de futuros alternativos, e nos liberta da sensa-
yao depressiva de que a hist6ria terrninou.
Em segundo Iugar, essa sfntese promete uma reorientayao da estrategia de trans-
formayao social da esquerda tanto em paises ricos quanto nos pobres. 0 fato hist6rico
a
de a classe trabalhadora industrial jamais ter-se tornado maioria da populayao tornou-
se urn embarayo da esquerda de inspirayao marxista. As "classes medias" separaram-se
dos trabalhadores industriais e agrfcolas e migraram para a direita, levadas pelo medo
da esquerda e o ressentimento contra o trabalho organizado. A proposta de Unger pode
ser urn instrumento util de mobilizayao para uma alianya mais inclusiva a serviyo da
mudanya radical-democnitica.
Em terceiro Iugar, essa sfntese da urn significado novo a ideia da "sociedade
como artefato". A teoria social de Unger representa urn esforyo para teorizar a "expe-
riencia desordenada". Ele investiga e incentiva formas de relacionamento humano
pratico e apaixonado que recombinem atividades tradicionalmente associadas a dife-
rentes nay6es, classes, comunidades e papeis sociais. Por meio dessa recombinayao e
inovayao em escala mundial, ampliamos nosso sentido coletivo do possivel. Essa sen-
sibilidade aumentada, por sua vez, ajuda a dar apoio as disposiy6es institucionais do
programa de democracia com autonomia de Unger. Dessa maneira, o programa
institucional de Unger e sua visao da mudanya da forma como as pessoas se associam,
se reforyam mutuamente.
Este livro e uma seleyao de textos do livro Politics: a work in constructive
social theory*, em tres volumes. A primeira parte da seleyao vern do primeiro volume
de Politics, que descreve os pontos de partida da "teoria social radicalmente
antinaturalista" de Unger, e demonstra como a crftica das teorias sociais classicas e
das ciencias sociais contemporiineas gera material para uma pratica alternativa de
entendimento social. A segunda parte da seleyao vern do segundo e terceiro volumes
de Politics: a relayao entre abertura e flexibilidade dos contextos formadores e o de-
senvolvimento de nossa capacidade coletiva de produzir ou destruir. A terceira parte
da seleyao usa material do segundo volume de Politics, que apresenta as propostas
programaticas do au tor para a reconstruyao de nossas instituiy6es economicas e polfti-
cas. A ultima parte da seleyao vern do primeiro e segundo volumes: textos que mostram
como o programa institucional de Unger e urn programa "cultural-revolucionario"
personalista se reforyam mutuamente.
Varios estudiosos do trabalho de Unger, entre eles Richard Rorty, chamaram
atenyao para o fato de Unger ser cidadao brasileiro. Nas palavras de Rorty, "Lem-
brem-se de que Unger- apesar dos muitos anos de trabalho arduo aqui na America do
Norte, alterando os currfculos de muitas de nossas escolas de direito e a propria auto-
imagem de muitos de nossos advogados- e urn homem cuja mente nao esta aqui. Para
ele nenhuma das ricas democracias do AtHintico Norte e urn lar. Elas sao OS lugares
onde ele foi buscar liy6es, advertencias e incentivo". Lendo essa frase nao posso evi-
tar a lembranya de uma observayao de Max Weber, para quem a inspirayao de muitas
conquistas culturais vieram da periferia da civilizayao.
Na descrit;ao do Brasil de 1985, feita por Unger, ele diz: "A indefinit;ao era o
denominador comurn de todas essas caracterfsticas da vida do Estado ... Toda essa
indefinit;ao poderia ser vista tanto como a voz da oportunidade transformadora quan-
to como o sinal de uma confusao paralisante". Essas palavras tambem descrevem
muito bern a situac;ao geral do mundo atual. Vejo hoje a China da mesma forma que
Unger ve o Brasil. Teria razao Perry Anderson, quando ve em Unger uma "mente
filos6fica safda do Terceiro Mundo, que inverte posit;5es para se tornar o sintetizador
eo profeta do Primeiro"? A esperant;a de avant;o no sentido de urn experimentalismo
democnitico mais vibrante pode estm· hoje nos pafses grandes e marginalizados como
o Brasil, a China, a India e a Russia, paises que ainda se podem imaginar .como mun-
dos alternativos. Estamos vivendo uma epoca em que a grande possibilidade de trans-
format;ao democnitica de todos os aspectos da vida social coexiste com a confusao
em nossas ideias explicativas e programaticas. Foi nessas condic;5es de carencia, con-
fusao e esperant;a que li pela primeira vez, ha tres anos, o trabalho de Unger, eo achei
tao inspirador que senti como se ele tivesse sido escrito expressamente para mim.
Minha esperant;a, agora, e compartilhar esse sentimento com outros leitores deste
volume de selet;5es da Polftica de Unger.
Uma teoria social radicalmente antinaturalista
1
lNrR.ODU<;Ao: SOCIEDADE COMO ARTEFATO
'Ao Iongo deste livro e de sua sequencia construtiva, uso o termo "polftica" num sentido mais
estreito e num sentido mais amplo. A acep'<ao mais estreita e o conflito pelo domfnio e uso do
poder governamental. 0 senti do mais amplo eo conflito em torno dos termos de nossas rela'<oes
pniticas e de paixao de uns com os outros e em torno de todos os recursos e prernissas que
possam influenciar esses termos. Dentre essas premiss as sobressaem-se os acordos institucionais
e preconceitos imaginativos que comp5em a estrutura ou contexto social. A politica de governo
e apenas urn caso especial de polftica nesse sentido mais amplo. Dentro de uma teoria que leva
ao extremo a visao da sociedade como artefato, essa no'<ao mais ampla de polftica se funde no
conceito de feitura da sociedade. 0 slogan "tudo e politica" da mais uma caracterfstica mais
abrangente a essa ideia. A caracterfstica adicional e a no'<ao de que a atividade de feitura da
sociedade nao segue qualquer roteiro pre-estabelecido e principalmente a de que seus resultados
nao devem ser entendidos como resultados de restri'<5es de ordem econ6mica, organizacional e
psicol6gica ou de tendencias irresistlveis de desenvolvimento.
0 primeiro desses pontos de partida e a difusao, entre urn numero sempre cres-
cente de pessoas, da ideia de trabalho, antes restrita a urn numero fnfimo de lfderes,
artistas e pensadores e, mesmo nesse caso, nem sempre comum a todos eles. Nessa
ideia do trabalho, a verdadeira satisfa~ao esta apenas na atividade que capacita as
pessoas a lutar, individual ou coletivamente, contra os ambientes estabelecidos para
suas vidas -para resistir a esses ambientes e refaze-los. A estrutura institucional e
imaginativa dominante de uma sociedade representa a maior parte dessa circunstancia
biografica restritiva e, portanto, e tambem urn alva preferenci!;l\ da resistencia trans-
formadora. Os que se converteram aideia de uma voca~ao trans.formadora nao conse-
guem voltar facilmente a no~ao de trabalho como uma voca~ao honrada dentro de urn
esquema fixo de papeis sociais e hierarquias, nem se contentam com uma visao pura-
mente instrumental do trabalho como fonte de beneffcios materiais com que manter a
si pr6prios e a suas familias.
A atra~ao do ideal de uma voca~ao transformadora depende da satisfa~ao de ne-
cessidades materiais elementares. Mais, as diferentes tradi~5es de na~6es e classes es-
pecfficas influenciam a interpreta~ao desse ideal assim como sua for~a de persuasao.
Entretanto, alga nesse conceito de trabalho representa a combina~iio de uma ideia mais
profunda com urn alva mais defensavel da luta human a, mais profundae mais defensa-
vel do que as premiss as empfricas e normativas de que dependem outras vis5es de traba-
lho. A teoria social anunciada neste livro e, entre outras coisas, urn esfor~o de desenvol-
vimento de ideias que deem senti do avoca~ao transformadora e justifiquem sua exigen-
cia de lealdade.
Urn segundo ponto de partida de minha argumenta~ao eo esfor~o para desenvol-
ver ideias que esclare~am e ap6iem o que este livro chama de projeto radical ou projeto
do visionario moderno. Nao pe~o que os liberais de esquerda ou os radicais modernistas
entendam sua propria causa precisamente nos termos em que e descrita nestas paginas.
Pelo contrario, o conceito de projeto radicalja pressup6e a crftica, a revisao e a concili-
a~ao de tradi~5es separadas e ate mesmo antag6nicas: as propostas liberal e de esquerda
de reconstru~ao social e as atitudes modernistas em favor de papeis e conven~5es rfgi-
dos. A crftica dessas tradi~5es pouco relacionadas pode nos levar a repensar nossas
ideias acerca da sociedade. E possfvel que esse repensar convirja para a agenda intelec-
tual desenvolvida a partir das outras origens discutidas neste livro. Pais em todos os
casas as deficiencias das ideias herdadas de liberais e esquerdistas se relacionam inti-
mamente com os erros de nossa compreensao empirica da sociedade.
As ideias liberais e esquerdistas mais conhecidas sao viciadas pelo fetichismo
institucional. 0 liberal classico identifica erradamente urn grupo particular de com-
promissos convenientes na organiza~ao das democracias representativas e economias
de mercado com a propria natureza da ordem democratica livre e de mercado. 0
marxista ortodoxo agrupa esses mesmos acordos institucionais unicos sob urn tipo
geral de organiza~ao social que supostarnente representa urn estagio bern definido da
hist6ria do rnundo. Em seguida ele se exime da obriga~ao de descrever em detalhe o
novo estagio socialista de evolw;ao social.
0 crftico rnodernista dos papeis e conven~6es com freqiiencia incorre nurn erro
emnfrico diferente. em nfvel mais alto de abstraciio. A liberdade humana, acredita ele,
consiste no desafio repetido a todas as institui<;6es e conven<;6es. Talvez nao sejamos
capazes de purgar a vida social de toda a sua qualidade estruturada e repetitiva; mas so-
mente se continuarmos tentando poderemos ter a esperan<;a de afrrmar nossa transcendencia
sabre os mundos confinadores e amesquinhadores em que nos encontramos.
Essa versao do credo modernista espera muito e espera muito pouco. Espera
muito porque nao consegue perceber que nunca conseguiremos realizar o ato de con-
testa<;ao com a freqtiencia e a intensidade necessarias para evitar o ajustamento a uma
ordem social especffica. Mas tambem espera muito pouco. Apesar de todo o seu negati-
vismo, deixa de perceber que a rela<;ao entre nos sa liberdade de revisar contextos e os
contextos que habitamos esta ao nosso alcance. As estruturas institucionais e imagina-
tivas se diferenciam pela qualidade e pelo conteudo, ou seja, na propor<;ao em que sao
suscetfveis de revisao no meio da vida social comum. Os que, dentro do modernismo,
aceitam a heresia negativista, acreditam que estruturas sao estruturas. Mas essa cren<;a
imp6e uma restri<;ao injustificavel ao princfpio da variabilidade hist6rica que esse
mesmo modernista defende ardentemente.
0 esfor<;o para corrigir e unificar o projeto radical, livrando-o destes erros, tern
interesse mesmo para aqueles que tern pouca simpatia pelo conjunto do compromisso
radical. As vis6es gerais e as propostas concretas resultantes desse exercfcio contribu-
em para a solu<;ao de urn dilema que tern lan<;ado, cada vez mais, uma sombra sabre
nossos debates acerca dos ideais pessoais e sociais. Perdemos a fe na existencia de urn
lugar seguro e transcendente acima das tradic;oes coletivas particulares a partir do
qual se pode avaliar essas tradi<;6es. Ainda assim, tambem nos rebelamos contra a
ideia de que temos apenas de escolher uma estrutura, ou de aceitar a estrutura em que
estamos, aceitando seus pressupostos relativos as formas possiveis e desejaveis de
associa<;ao humana. Uma teoria social capaz de inspirar uma versao revisada e unificada
da causa radical indica que essa rebeliao se justifica e que ela pode ser vitoriosa sem
com isso promover o niilismo nem perpetuar a cren<;a numa funda<;ao indiscutivel e
definitiva para o pensamento normativo.
Aqui, como em outros pontos, Teo ria social: sua situar;iio e tarefa apenas suge-
re urn carninho que Polftica desimpede e segue. 0 inicio modesto serve como lembre-
te de que nao necessitamos de uma teoria social desenvolvida para come<;ar a crftica e
a corre<;ao das ideias liberais, esquerdistas e modernistas. Ao contrario, nossas tenta-
tivas de combinar, passo a passo, ideias revisadas e percep<;6es mudadas, podem, par
si s6s, ajudar a construir essa teoria.
Urn terceiro ponto de partida para a empreitada intelectual lan<;ada com
este livro eo esfor<;o de repensar as implica<;6es dos reveses e obstaculos que o
projeto radical tern encontrado ao longo da hist6ria recente. (Para nosso objeti-
vo atual, tenho mais em mente os lados liberal e esquerdista que o lado moder-
nista do radicalismo). Os desencantos com as revolu<;6es comunistas e com as
experiencias do terceiro mundo estao representados nas fabulas acauteladoras
mais dramaticas. Onde quer que tenha assumido o poder, a esquerda organizada
teve mais sucesso em realizar o crescimento econ6mico, redistribuir renda e
mesmo em excitar o fervor nacionalista, do que na concretiza<;ao do autogoverno
partici ativo, do ual seus lfderes tanto falam. Podemos arim ar outras li 6es
mais reveladoras e mais sutis da experiencia dos movimentos esquerdista e libe-
ral nas ricas democracias ocidentais.
Nesses pafses, as fon;:as esquerdistas e liberais progressistas estao divididas em
do is campos. Urn lado man tern a pureza de suas visoes radicais ao custo da dificulda-
de crescente em conquistar e manter maiorias eleitorais. Essa esquerda interpreta ra-
dicalismo do ponto de vista das icteias marxistas que a comprometem com urn conjun-
to rfgido de alianc;;as de classe e com urn conceito estreito de possibilidades de trans-
formac;;ao. Continua a se apresentar como porta-voz de uma classe openiria industrial
organizada, fechada nas industrias de produc;;ao em massa que representam urn setor
cada vez mais fraco e menor das economias avanc;;adas. Continua comprometido com
o contraste entre o presente capitalista, cujo Iugar na hist6ria da humanidade ele diz
entender, e urn futuro socialista a cujos contornos pouco conteudo consegue adicio-
nar, alem de redistribuic;;ao e nacionalizac;;ao.
0 outro lado tenta entrar na corrente principal e passar a ser, ou continuar sen-
do, aceito pelas maiorias. Mas geralmente isso e feito ao custo do abandono de seus
compromissos de transformac;;ao de estruturas. Contenta-se com urn programa social-
democn'itico. Esse programa social-democnitico aceita as formas institucionais atuais
das democracias representativas e mercados regulados. Favorece a redistribuic;;ao eco-
nomica e a participac;;ao popular nos governos locais e no local de trabalho. E argu-
menta que uma administrac;;ao mais tecnica dos problemas sociais superou grandes
conflitos ideol6gicos em torno da vida social.
Os social-democratas tern geralmente de enfrentar as restric;;oes que a estrutura
institucional existente imp5e as suas metas redistributivas e participativas. Se aceitam
os termos institucionais, descobrem que seus objetivos se frustram. Se, por outro lado,
advogam e comec;;am a implantar meios alternativos de institucionalizac;;ao das demo-
cracias representativas, economias de mercado, e controle social da acumulac;;ao eco-
nomica, alteram-se drasticamente a concepc;;ao de seus objetivos e suas relac;;5es com
ahados e adversarios habituais.
Apesar de todos os desapontamentos, a social-democracia se tornou, por exclu-
sao, a agenda politica mais atraente do mundo, a que atrai a adesao mais ampla e mais
fiel. Mesmo partidos cuja ret6rica de esquerda ou liberal classica os compromete com
a oposic;;ao ao programa social-democrata, uma vez no poder, contribufram normal-
mente para sua expansao. A grande questao polftica de nossos dias passou a ser: a
social-democracia seria o maximo que se pode almejar?
A crenc;;a de que a social-democracia e o melhor programa que se pode realizar
baseia-se em premissas relativas as formas possfveis de organizac;;ao governamental e
economica e em como elas mudam- as mesmas premissas criticadas em outra parte
deste texto introdut6rio. Quando see honesto com relac;;ao a avaliac;;ao das alegac;;oes
da social-democracia, e necessaria fazer a critica dessas premiss as. Ao faze-lo, desco-
brimos que elas nao resistem.
A teoria social explicativa e programatica proposta neste livro formula ideias
que podem ajudar a levar o projeto radical para alem do ponto ate onde a social-
democracia o trouxe. Essas ideias explicativas interpretam as derrotas do projeto ra-
dical de forma que nao fazem com que as disposic;;5es institucionais atuais parec;;am as
consequencias necessanas de restri<;5es incontroh'iveis de ordem econ6mica,
organizacional ou psicol6gica. Elas nos ajudam a encontrar a oportunidade de trans-
forma<;ao no meio de restri<;oes aparentemente insupen'iveis. Fornecem uma visao
plausfvel da mudan<;a social e da inven<;ao social, livrando-nos da tentac;ao de descre-
ver como realistas apenas as propostas que nao se afastam das praticas correntes. As
ideias programaticas formuladas a pmiir dessas conjeturas explicativas apresentam uma
alternativa detalhada a social-democracia e descrevem tanto as justificativas que ap6iarn
essa altemativa quanta o estilo da pnitica transfmmadora que pode concretiza-la. Social
theory: its situation and its task enfatiza os elementos do problema e nao os termos da
solu<;ao proposta. Mas a descri<;ao do problema antecipa os tetmos da solu<;ao.
Ha uma liga<;ao clara entre os tres pontos de partida que precedem a discussao
da situa<;ao interna do pensamento social: a ideia da voca<;ao transformadora, a
reinterpreta<;ao da causa radical e a insatisfa<;ao com a social-democracia. Pois a pri-
meira representa a repercussao do projeto radical sobre nossas expectativas relativas ao
trabalho, enquanto asegunda demonstra a influencia desse projeto na imagina<;ao de
futuros sociais possfveis.
Nao e surpreendente que uma teoria social mais digna de credito tenha valor
para os radicais modernistas, liberais e esquerdistas. E preciso ser realista para se
tornar visionario, e precisamos de uma compreensao da vida social (seja ela te6rica
ou nao) para poder criticar e amp liar nossa vi sao da realidade e da possibilidade so-
ciais. Mas o argumento contrario, de que a perspectiva radical tern urn valor cognitivo
unico, que ele contribui para o desenvolvimento de uma teoria social nao necessit:iria,
parece muito mais controverso. Por que razao o progresso de nossa visao da vida
social ha de ser contido pelos interesses e azares de urn programa particular de re-
constrw;:ao da sociedade? 0 texto principal de Polftica defende a ideia de que uma
teoria social explicativa tern uma liga<;ao muito mais proxima com nossos compro-
missos normativos do que explicam os preconceitos filos6ficos modernos acerca de
fatos e val ores. Uma teoria social plenamente desenvolvida interpreta nossos esfor<;os
de auto-afirma<;ao individual ou coletiva. Essa interpreta<;ao pode nos levar a revisar
nossas cren<;as anteriores sobre onde encontrm· a auto-afirma<;ao e como atingi-la e,
dadas algumas premissas adicionais, tanto factuais quanta normativas, pode nos con-
veneer a mudar nossas ideias e compromissos.
A defesa da convergencia das ideias explicativas e prescritivas e complicada e
controvertida. Essa discussao cm·ece de importancia neste trabalho introdut6rio. Mas
ha uma liga<;ao mais fraca e menos controvertida entre as ideias program:iticas e ex-
plicativas indicadas neste livro. Da fQtma como e reinterpretado aqui, urn projeto
radical busca mudar a rela<;ao entre as estruturas formadoras e as rotinas formadas.
Entende a ruptura dos mecanismos sociais de dependencia e domina<;ao como
inseparavel da realiza<;ao desses objetivos. 0 problema basico da explica<;ao social, o
grande obstaculo as generaliza<;5es sobre sociedade e hist6ria, a razao por que a com-
preensao social continua tao avessa ao tratamento pelo metoda cientffico e que nao
somas completamente regulados pelos contextos imaginativos e institucionais de nos-
sas sociedades e que esses contextos nao sao determinados por leis gerais ou restri-
<;5es inflexfveis. Urn radical e a pessoa que menos pode se dar o luxo de desconsiderar
essa vocac,:ao para a indisciplina. Ele precisa usa-la, amplia-la e ate mesmo- num
aparente paradoxa- incorpora-la ao conjunto de praticas e instituic,:6es. Portanto, ele
tern tambem de compreende-la. Assim, observar a sociedade e a hist6ria do ponto de
vista dele (mesmo que o observador seja urn conservador) e forc,:ar-se a enfrentar o
principal escandalo dos estudos sociais e hist6ricos na esperanc,:a de transformar esse
embarac,:o em fonte de entendimento.
A discussao nao se inicia imediatamente pelos pontos de partida relacionados
nas paginas precedentes. Ao contrario, ela comec,:a pela descric,:ao de uma visao da
atividade humana- urn retrato de nossa relac,:ao com nossos contextos- que inspira
todos os argumentos programaticos e explicativos de Polftica. As estruturas sociais
de que tratam esses argumentos sao apenas urn caso especial de contextos descritos
nessa concepc,:ao preliminar.
Nao quero dizer que essa visao inicial de nossa relac,:ao com contextos mentais
ou sociais que construfmos e habitamos seja tomada como artigo de fe. Ao contrario,
ela deve se justificar em retrospectiva pelo sucesso relativo das ideias explicativas e
programaticas que defina. Sua defesa e aquilo que se pode atingir sob sua egide. En-
tretanto, a tentativa de descric,:ao desse quadro de nossas relac,:6es com nossos contex-
tos, na arrancada do longo, exigente e implausivel projeto que este livro inicia, pode
ajudar a dissipar ambiguidades ao esclarecer intenc,:6es. Essa tentativa coloca essa
empres anum ambiente especulativo mais amplo que qualquer dos pontos discretos de
partida dessa discussao.
Esse conceito de nossas relac,:ao com nossos contextos da uma nova direc,:ao a
urn dos mais antigos e intrigantes temas de nossa civilizac,:ao: a ideia de que o homem
e o infinito preso no finito. Suas condic,:6es externas o diminuem. Seus ardores e devo-
c,:6es sao desperdic,:ados em objetivos sem valor. Quem adota esse ponto de vista de
nossa condic,:ao basica fica esperanc,:oso ao pensar que se pode reduzir essa despropor-
c,:ao entre a qualidade de seus sonhos e a natureza de nossos condicionantes. Fica
duplamente esperanc,:oso ao pensar que OS metodos de reduc,:ao dessa desproporc,:ao
sao identicos aos meios us ados para eliminar de nossas relac,:6es de uns com os outros
seus perigos caracterfsticos de subjugac,:ao e desrespeito pela originalidade de cada
urn de n6s.
A teoria social anunciada aqui fornece a esse conceito especulativo urn conteii-
do hist6rico e social detalhado e oferece raz6es para essa dupla esperanc,:a. Reconsi-
derado a partir da perspectiva dessa teoria, o projeto radical tern urn significado moral
que vai alem da meta liberal ou esquerdista de libertar a sociedade das estruturas de
dependencia e dominac,:ao e alem da meta modernista de resgatar dos papeis sociais
rfgidos e das convenc,:6es nao criticadas a subjetividade e a intersubjetividade. Essa
ambic,:ao maior e tornar nossas sociedades mais sensfveis ao que dentro de n6s rejeita
decididamente esses experimentos limitados em humanidade e afirma que eles nao
sao suficientes.
2
Q CONDICIONAL E 0 INCONDICIONAL
Cada urn dos pontos de partida discutidos no capitulo anterior nos leva ate o
infcio de uma teoria social que amplia o conceito de sociedade como artefato. Uma
crftica da situa<;ao atual do pensamento social e hist6rico pode chegar a resultados
semelhantes de forma mais direta. Pode chegar a eles, independentemente do esfor<;o
para tentar en tender a ideia de voca<;ao transformadora, ou reimaginar o ideal social,
ou refletir sobre as restri<;6es e oportunidades de a<;ao pratica.
Come<;o comparando a hist6ria das nossas ideias modernas acerca de mente e
sociedade com a hist6ria de certas vis6es modernas da natureza. Essa compara<;ao
lan<;a as bases para a discussao mais detalhada que se segue. Tambem liga a analise
dos problemas internos da teoria social como quadro da atividade humana apresenta-
do no infcio do livro.
Todo o corpo de ideias estabelecidas acerca da natureza ja foi tratado como urn
sistema de proposi<;6es deduzfveis de axiomas tanto verdadeiros quanto evidentes. A
evidencia desses axiomas implica impossibilidade de corre<;ao, verdades que nunca
necessitam de revisao. Juntas, auto-evidencia e impossibilidade de corre<;ao atestam a
verdade. Uma teoria particular do mundo fisico pode ter sido descoberta sob o impul-
so de raciocfnios tortuosos e de observa<;6es cuidadosamente analisadas. Entretanto,
uma vez formulada, ela pode ser vista como baseada em axiomas evidentes e nao
sujeitos a corre<;ao.
Essa visao euclidiana da ciencia nunca se recobrou do golpe sofrido quando a
medinica de Newton deixou de sera ultima palavra sobre a natureza. 0 entendimento
filos6fico da natureza buscou refugio recuando para varias posi<;6es mais seguras.
Descobriram que a auto-evidencia nao era uma pedra fundamental da verdade: nenhu-
ma representa<;ao do mundo ffsico estava garantida contra a rejei<;ao ou demoli<;ao a
r<~tPcrnria de urn caso especial. Entretanto, cientistas e fil6sofos continuaram a esperar
que certas caracterfsticas de uma forma de fazer ciencia, ou certas ideias contidas no
corpo mutante das teorias cientfficas, pudessem se manter fixas acima do fluxo. As
vezes esse artiffcio de imunidade era encontrado em algumas representac;:6es privile-
giadas, como os conceitos de espac;:o e tempo. Essas representac;:6es supostamente
descreviam uma experiencia pre-te6rica cujo nucleo continuava esHivel, enquanto se
alterava a substancia das teorias cientfficas. As vezes a garantia invariante de objetivi-
dade se transformava numa concepc;:ao do metodo cientffico, inclusive criterios de
validade, verificac;:ao e significancia. Enquanto afirmac;:6es pudessem ser justificadas
pelo apelo a urn canon preestabelecido e imutavel de explicac;:ao, estava tudo bern.
Des sa forma, abandonou-se a ideia de urn sistema te6rico que se tornava auto-eviden-
te por meio de seus axiomas. Deu lugar a urn programa de ciencia mais moderado,
cuja esperanc;:a de objetividade se baseava no uso continuado de alguns elementos
imutaveis: suas ideias ou metodos basicos.
Mas essas posic;:oes recuadas da ideia euclidiana de ciencia foram adiamentos
temporarios. Todos os candidatos ao papel de conceitos fundamentais, inclusive as
ideias geometricas que haviam originalmente fornecido o modelo de certeza absoluta
na ciencia, continuaram vulneraveis a mudanc;:as no conteudo das teorias cientfficas.
A medida que o conteudo das teorias cientfficas se alterava, da mesma forma, apesar
de mais lentamente, mudavam as ideias cientfficas fundamentais e os conceitos do
metodo cientffico.
Os criterios de objetividade e progresso na ciencia tinham de ser buscados em
outro lugar: nas qualidades de autocorrec;:ao da ciencia, ou na relac;:ao desse trabalho
constante de auto-revisao com a promoc;:ao de certos interesses praticos. Esses inte-
resses definiam uma relac;:ao como mundo mais basica que o conhecimento. As prin-
cipais polernicas acerca da ciencia passaram a ser as controversias entre as formas -
de realistas a ceticas- de compreensao da situac;:ao intelectual resultante do abandono
das ideias que tentavam resgatar parte do antigo ideal da incorrigibilidade.
Levar a rejeic;:ao daquele ideal ao limite, entretanto, e descobrir uma base alter-
nativa para a objetividade. Na sua capacidade de descobrir a verdade- de raciocinar
de formas novas ou ter percepc;:oes incongruentes - a mente nunca e inteiramente
tolhida pelas crenc;:as correntes. Pode ter visoes que nao consiga verificar, validar nem
entender no ambito dos criterios estabelecidos de verificac;:ao, validade e significancia.
Todos os modos pass ados e presentes de discurso reunidos nao exaurem nossas facul-
dades de compreensao. Se a objetividade nao consiste no apego a elementos auto-
comprovadores do pensamento e nao sujeitos a revisao, talvez esteja na capacidade
negativa de nao aprisionar a capacidade visionaria dentro de qualquer estrutura parti-
cular de pensamento. E mesmo possfvel que a ciencia progrida por meio do desenvol-
vimento de ideias e praticas que aceleram o processo de autocorrec;:ao. Assim, a roda
completaria urn cfrculo completo: objetividade por meio da maxima corrigibilidade.
0 malogro no resgate do ideal do conhecimento incondicional
Grande parte da discussao das proximas sec,;6es deste livro pretende mostrar
que a teoria social de logica profunda paga urn prec,;o muito alto por esse conceito
de diversidade estrutural. Parte do custo e a perda de plausibilidade descritiva e
explicativa; os fatos simplesmente nao se ajustam. Entretanto, outra parte do custo
se relaciona com a restric,;ao imposta pela analise de estrutura profunda sabre a
imaginac,;ao da propria diversidade estrutural. Ela se vale de uma lista fechada de
estruturas. Faz com que explicac,;6es generalizadoras dependam de urn roteiro que
se sobrep6e aos atos conscientes e trabalha atraves deles. Deixa de perceber que o
carater, bern como o conteudo dos contextos formadores esta, na historia, ao alcan-
ce das maos: ha variac,;6es importantes no grau em que as ordens social e imagina-
tiva da vida social nos reduzem a passividade ou, ao contrario, colocam-se a nossa
disposic,;ao para a contestac,;ao e a revisao. De todas essas formas, a tradic,;ao da
estrutura profunda se refugia no repudio a premissa naturalista e sacrifica ao seu
aparato cientfstico grande parte de sua visao de uma ordem social como coisa feita
~ 1m'.l.cr1n':lrl<::~ p n::.iA rl-::~rf'.l.
A meta principal da Polftica eo desenvolvimento e ilustras;ao de uma prati-
ca explicativa que preserve o primeiro movimento da teoria social de estrutura
profunda- a distins;ao entre estrutura e rotina- ao mesmo tempo em que substitui
os outros dois movimentos por urn estilo alternativo de generalizas;ao. Alem da
corres;ao te6rica, muito mais fica na dependencia de sermos ou nao capazes de
seguir essas orientas;oes. Desde o infcio, a teoria social de 16gica profunda tern
sido o principal instrumento te6rico do que poderia ser chamado projeto radical
ou a missao do visiomirio moderno: o esfors;o para buscar nossa autonomia indi-
vidual e coletiva por meio da dissolus;ao progressiva da divisao social rfgida e
dos papeis sociais rigidos e hierarquizados. Os fracassos das explicas;oes ofereci-
das pela teoria social de estrutura profunda colocam em risco o avans;o desse
projeto. Pois, como ja sugeriu a minha discussao da pratica transformadora, essas
falhas incentivam preconceitos e taticas que obstruem a realizas;ao do programa
esquerdista e modernista.
Os perigos mais serios para a missao do visionario moderno colocados pela
analise de estrutura profunda sao precisamente OS perigos que surgem do truncamento
do nossa compreensao da diversidade estrutural: o fechamento imposto ao sentido da
possibilidade hist6rica, a confians;a num documento explicativo e, mais importante, a
incapacidade de entender por que e como podem mudar a relas;ao entre o formador e
o formado, entre a estrutura social e a as;ao humana. A teoria social de estrutura pro-
funda desorienta a estrategia polftica e empobrece o pensamento programatico ao
coloca-los a reboque de uma lista ou sequencia pre-definida de ordens sociais. Esses
perigos ficam mais evidentes no fato de os movimentos esquerdistas, os maiores de-
fensores do projeto radical, dependerem do marxismo, a versao mais desenvolvida da
teoria social de estruturas profundas.
Por que siio Uio problematicas as tentativas de defini~ao de urn conceito de capi-
rtehdona diretamente CQffi 0 USQ de eXplica~QeS
•~l;~~~'l TTm~ fr.ntp rlP nrnhJP.m«~ .~IC
funcionais. A ideia de capitalismo deve desempenhar dois papeis na teoria de Marx.
Esses papeis nao podem se combinar porque a hist6ria nao acontece na forma exigida
pelo estilo de explicac;:ao funcional marxista.
0 termo capitalismo deve descrever a base institucional necessaria (as rela-
c;:oes de produc;:ao) para urn certo nivel de desenvolvimento das forc;:as produtivas: o
nivel em que maquinas combinadas com a reuniao de grandes massas trabalhadoras
multiplica a produtividade do trabalho e no qual o excedente passa a ser enorme
sem veneer a escassez. Para desempenhar esse papel adequadamente, o conceito de
capitalismo nunca ha de ser suficientemente abrangente. Quanta mais aprendemos
sabre a hist6ria, maior a variedade de contextos institucionais de quaisquer medidas
de desenvolvimento de capacidade produtiva. Mesmo na hist6ria ocidental moder-
na, descobrimos que os conjuntos mais familiares de disposic;:6es institucionais coe-
xistiram com alternativas divergentes ou reprirnidas. A repressao a essas alternati-
vas pode ser mais persuasivamente creditada a uma hist6ria particular de vit6rias e
derrotas politicas, vis6es e ilus6es, do que a suas limitac;:6es praticas pr6prias. A
realidade da experimentac;:ao institucional, em alguma era da hist6ria mundial, con-
firma e amplia as conclus6es do estudo hist6rico. Estados descobrem constante-
mente novas formas de combinar a capacidade produtiva ocidental moderna com
formas de organizac;:ao do trabalho sem qualquer correspondente ocidental, ou mo-
dos de organizac;:ao trabalhista com instituic;:6es economicas ou sociais mais ajusta-
das as experiencias, interesses e intenc;:6es da elite nativa. A gama de variac;:ao, em
continua expansao, que encontramos no passado e no presente sugere outras varia-
c;:oes que poderiam ter ocorrido ou que poderiam ser ainda introduzidas e que nao sao,
de forma alguma, dificultadas por restric;:6es estabelecidas de ordem economica,
organizacional ou psicol6gica. A busca das condic;:6es institucionais que tornam possi-
vel urn nivel particular de crescimento econornico comec;:a a parecer flitil.
No estilo marxista de explicac;:ao funcional, o conceito de capitalismo tambem
executa outro papel. Nesse papel ele nunca sera suficientemente exclusivo. Descreve
uma realidade hist6rica linica, cujas manifestac;:6es exteriores eram conhecidas dos
leitores de Marx: as realidades de certas instituic;:6es e modos de vida europeus moder-
nos. Da mesma forma que outras teorias sociais classicas, o marxismo percebeu uma
signifidincia global na hist6ria e transformac;:ao dessas instituic;:6es. Nesse segundo papel,
o conceito de capitalismo nao se aplica a disposic;:6es institucionais semelhantes de outras
sociedades ou de outras epocas, que nao atingiram esses resultados revolucionarios.
Uma segunda fonte de problemas com o conceito de capitalismo relaciona-se
com os aspectos de estrutura profundae nao com os funcionalistas da teoria de Marx.
Tambem aqui 0 carater da experiencia hist6rica torna OS dois papeis inconciliaveis.
De urn lado, o conceito tern de descrever urn tipo de organizac;:ao social indivisivel
e repetivel: indivisivel no sentido de que seus elementos nao podem ser desagregados e
recombinados com outros elementos; repetfvel no sentido de que ele nao designa em
retrospectiva apenas urn estado de coisas capaz de se realizar uma linica vez e num
linico lugar. Para desempenhar esse papel adequadamente, o conceito de capitalismo
nunca hade ser suficientemente abstrato. Tao logo se comece a defini-lo mais rica e
concretamente. oercebe-se aue seus elementos. na realidade. se dissociaram e se
recombinaram de muitas formas. Nao ha raz6es para excluir a possibilidade de urn
sem-numero de dissocia<;:6es e recombina<;:6es que, na realidade, nunca ocorreram.
Ao mesmo tempo, entretanto, e tambem papel do conceito de capitalismo desig-
nar uma estrutura definida com precisao suficiente para explicar o complexo conjunto
de processos econ6micos e sociais repetitivos e com a aparencia de leis. Mas uma vez
que se defina capitalismo com a concretitude necessaria parajustificar seu papel for-
mador, solapa-se a plausibilidade de sua representa<;:ao como urn tipo indivisivel e
repetfvel. Em vez disso, ele parece ser o nome de urn estado de coisas unico, ou de
uma serie unica de eventos, que de vern ser entendidos como o resultado unico de uma
constela<(ao de causas. 0 termo capitalismo entao perde, junto com sua generalidade,
a clareza e a for<(a. Torna-se uma forma taquigrafica de se referir a uma serie de
eventos frouxamente interligados que aconteceram em alguma epoca no AtHintico
Norte. Mas exatamente quais eventos?
Os do is conjuntos de dificuldades- as funcionalistas e as de estrutura profun-
da- se superp6em. Novamente, os problemas resultantes das premiss as de estrutura
profunda sao mais fundamentais que as dificuldades surgidas das premissas
funcionalistas. Pode-se ser tentado a resolver o dilema funcionalista afirmando a
existencia de contextos institucionais multiplos para qualquer nfvel de desenvolvi-
mento das for<;:as produtivas e, portanto, para varios caminhos de mudan<;:a
institucional. Mas onde urn unico tipo de organiza<;:ao e uma unica sequencia evolutiva
fracassam, parece que muitos tambem nao hao de ter sucesso. Pois cada tipo ou
sequencia tern de ser definido em detalhe suficiente para justificar sua influencia
formadora num mundo de rotinas praticas. Para definir urn conjunto de disposi<(6es
institucionais com detalhe suficiente para mostrar como podem exercer essa influencia
formadora e minar a plausibilidade da tentativa de representar essas disposi<(6es
como exemplos de urn tipo ou estagio de organiza<(ao social repetfvel e indivisfvel.
Pode haver restri<(6es a desagrega<;:ao e recombina<;:ao desses elementos que consti-
tuem essas ordens formadoras institucionais. Mas existe uma distancia grande entre
reconhecer essas restri<(6es e demonstrar que elas podem gerar uma lista fechada ou
uma sequencia obrigat6ria de sistemas institucionais.
Conceitos como capitalismo continuam sen do us ados na literatura historic a e de
ciencias sociais e em debates ideol6gicos por pessoas que afirmam nao ado tar premis-
sas funcionais ou de estrutura profunda, mas cujo uso desses conceitos trai essa nega-
tiva. Sem ter encontrado urn sucedaneo para a analise de estrutura profunda, elas
insistem em falar como se conceitos como capitalismo pudessem ser usados para indi-
car outra coisa que nao uma alusao a urn estado de coisas historicamente unico e
unicamente localizado. Falam como se esses conceitos pudessem designar tipos
repetiveis e indivisiveis de organiza<(ao social, ao mesmo tempo abstratos e definidos
com detalhe. Encenam na imagina<(aO e no discurso uma forma de pensar que nao que-
rem ou nao podem defender. Seu equivoco e urn sintoma da rela<(ao turbulenta entre as
ideias atuais de sociedade e hist6ria, e a tradi<;:ao de 16gica profunda. Quando buscamos
uma explica<(ao geral, com frequencia caimos nos movimentos de estrutura profunda.
Mas o fazemos esporadicamente e algo inconscientemente, porque nossas descober-
Dois fatores trouxeram a superffcie essas fraquezas no uso das categorias cen-
trais da teoria social descritiva e explicativa. Urn e a amplia~ao do conhecimento
disponfvel com rela~ao ao passado; o outro, uma mudan~a nas li~6es aparentes da
hist6ria contemporanea. Ignorancia protege contra o primeiro. Somente a obtusida-
de e a indiferen~a podem esconder o segundo.
Em meados e final do seculo XX, tornou-se possfvel estudar a hist6ria da maio-
ria das sociedades passadas com o brilho- por compara~ao com as condi~6es anteri-
ores de estudo- das fontes primarias e secundarias. Pode-se passar dias e noites sem
fim numa febre de descobrimentos exultantes, aprendendo as linguas, estudando re-
gistros e lendo os historiadores dessas terras e epocas remotas. Mas quanto mais se
avan~a, mais problemas se encontram para as seqiiencias da teoria marxista e mesmo
para a tentativa de analisar, nas suas categorias, a experiencias das sociedades que ela
considerou capitalistas. A hist6ria dos grandes imperios agrfcolas da antigiiidade ou
do mundo nao ocidental, ate recentemente as sociedades mais numerosas e produtivas
da hist6ria, nao podem ser entendidas nos seus aspectos mais espantosos e instrutivos
se fon,:ados na carnisa de for~ a de sua rela~ao com a hist6ria da ascensao do capitalis-
mo. Para manipular o material hist6rico tem-se de afrouxar a teoria ate que ela desa-
pare~a numa nuvem de palavras e inten~6es. Caso contrario, seguindo o exemplo do
proprio Marx em alguns de seus escritos mais hist6ricos, tem-se de abrir uma lacuna
cada vez maior entre as declara~6es te6ricas e as explica~6es reais.
A outra fonte de problemas e esclarecimento e o curso dos eventos contempo-
raneos. Na epoca em que Marx e outros grandes te6ricos do final do seculo XIX e
infcio do XX estavam desenvolvendo suas ideias, os intelectuais e pensadores dos
pafses pioneiros viveram seu romance da razao pratica. Grande parte da experiencia
da epoca sugeria que urn padrao unico de vida social estava se espalhando da Euro-
pa para o resto do mundo. 0 padrao poderia ser organizado em torno das disposi-
~6es de prodw;:ao e poder. Mas trazia tambem consigo todo urn sistema de hierar-
quia, habitos e cren~as. Outros pafses, em outras partes do mundo, tinham de pegar
ou largar. Se quisessem sobreviver na cornpeti~ao mundial, tinham de pegar.
Teorias sociais divergiam quanto a forma como essa convergencia pratica se
ligava ao conflito social e a ascensao das massas e se ela prefigurava mais urna
transforma~ao decisiva da sociedade. Qualquer que fosse a liga~ao, o choque entre
na~6es, entre visoes espirituais e entre for~as armadas - tudo o que havia de mais
indomavel na hist6ria - parece ter se revelado, de uma vez por todas, como o
subproduto de restri~6es mais prosaicas e fundamentais.
Muitos dentre os governantes do mundo atual e seus sicofantas apologeticos
ou suditos desanimados parecern ainda acreditar em algurna versao desse quadro.
Urna sociedade industrializada contemporanea, dizem, e muito cornplicada. Consiste
de grandes organiza~6es comerciais e rela~6es delicadas. Depois de fazer tudo o que
deve ser feito para manter essas institui~6es funcionando e para nao deixar que as
coisas se estraguem, so bra muito pouco espa~o de manobra- o que quer dizer, para
politica e filosofia. 0 resto e sonho.
Ja rnencionei os aspectos da hist6ria contemporanea que tornaram diffcil acre-
forma tardia, burra e covarde. Os pafses mais pobres nao ocidentais ha muito ja com-
binam caracterfsticas d~ tecnologia do Ocidente rico com formas nao ocidentais de
organiza~ao do trabalho, ou tipos ocidentais de organiza~ao do trabalho com formas
diferentes de organizar a sociedade. A pratica da inven~ao institucional nunca chegou
tao Ionge quanto o desejariam os democratas e os revolucion:irios; mas ja avan~ou o
bastante para tornar pouco claros os limites desse processo de dissociar capacidades
pr:iticas avan~adas de sua base institucional original. De fato, nem o fracasso em
dissociar mais, nem a surpresa de dissociar tanto, parecem ter qualquer rela~ao como
relato marxista da ascensao do capitalismo ou com qualquer outro relata que combine
princfpios funcionais e de estrutura profunda. Nenhuma delas pode ser facilmente
explicada por referencias vagas as exigencias da industrializa~ao.
Chegou o tempo em que democratas esperan~osos, por todo o mundo, seguem
de perto qualquer sinal de urn experimento social, em qualquer Iugar da Terra, espe-
rando que possa revelar algo acerca das oportunidades inexploradas para o avan~o
do projeto radical. Encarar essas experiencias e esses fracassos experimentais como
trapalhadas que vis am chegar a uma conclusao vagamente preestabelecida, ou como
o foco sobre uma verdade ja descoberta, € deixar de en tender a questao. E trocar a
cidadania do seu tempo pela participa~ao numa seita. ·
Consideremos agora alguns dos temas centrais de uma teoria que, em vez da inter-
preta~ao cetica defensiva, desenvolve a ambiciosa versao especulativa da afirma~ao de
que tudo e polftica. 0 valor da visao que elabora esses temas nao pode ser apreciado
enquanto nao se tiver desenvolvido a teoria em detalhe. Entretanto, e possfvel que o
contorno tematico mostre o que e necessaria para romper, por meio de urna teoria geral,
o dilerna contemporiineo do pens amento social. Pode tambem fortalecer nosso sentido de
possibilidade intelectual, ao sugerir uma alternativa que nao temos razao para rejeitar sem
a devida considera~ao.
lmplicar;C5es prdticas
A teoria social antinaturalista, cujos temas acabei de resumir, tern muitas impli-
ca~5es para a pratica transformadora. A evoca~ao dessas li~5es praticas pode ajudar a
elucidar o carater da teoria que as inspira.
Mesmo os que nao man tern fidelidade consciente as premissas da teoria social
de estrutura profundae a ciencia social positivista tratam habitualmente tipos abs-
tratos de governo e organiza~:ao economica, tais como a economia planejada, de
mercado ou democracias representativas, como se tivessem urn detalhado conteudo
institucional incorporado. Assim, fala-se como se houvesse a obriga~:ao de escolher
entre misturas diferentes de mercado e planejamento, mas nao entre formas radical-
mente diferentes de centralizar ou descentralizar, e de combinar centralismo e
descentraliza~:ao na economia. Admite-se que haja uma verdadeira identidade entre
a ideia abstrata de urn mercado- como uma ordem em que muitos agentes economi-
cos negociam por sua propria conta e iniciativa- e urn sistema particular de direitos
de propriedade e contrato. Identifica-se o controle social da atividade economica
com os metodos conhecidos de nacionaliza~:ao e regulamenta~:ao. Identifica-se a
ideia da democracia representativa com a conjun~:ao peculiar do constitucionalismo
liberal do seculo XVIII a politica partidaria do seculo XIX que a hist6ria legou.
Liberais e radicais tern em comum os mesmos preconceitos dos conservado-
res. Os ltberais nao enfrentam as restri~:oes que formas institucionais herdadas im-
p6em a realiza~:ao de seus ideais. Os radicais tomam os liberais pela palavra. Bus-
cam alternativas as economias de mercado atuais numa rejei~:ao desnecessaria do
principia do mercado. Com freqiiencia atacam a democracia burguesa numa busca
futil da democracia direta e do engajamento civico permanente.
A visao antinaturalista esbo~:ada anteriormente nos liberta desses preconcei-
tos. Chama nossa aten~:ao para o trabalho de imaginar formas alternativas de econo-
mias de mercado e de democracia representativas. Ela sugere que regimes economi-
cos diferem no sucesso com que resolvem a tensao entre o controle social e a
descentraliza~:ao da atividade economica; podemos obter mais de ambos. Regimes
democraticos diferem na seriedade dos obstaculos implicitos ou explfcitos que co-
locam no caminho dos experimentos ousados e dos ataques ao privilegio. Sistemas
legais de direito diferem na facilidade com que os instrumentos estabelecidos para
salvaguarda do indivfduo contra a opressao governamental ou privada se prestam
ao exercfcio da subjugac;:ao de outros povos e restringem a plasticidade da vida
social. Estamos interessados nos detalhes praticos dessas variac;:6es. 0 liberal e o
radical nao acordam de seu sono enquanto nao agarram as oportunidades que essas
variac;:6es criam e se lanc;:am ao trabalho de imaginar e estabelecer estruturas de vida
social menos entrincheiradas.
Uma teoria como a visao esboc;:ada nesta sec;:ao apresenta uma abordagem da pnitica
polftica transformadora que reconhece a forc;:a dos interesses de grupo estabelecidos e, ainda
assim, trata esses interesses como nao mais seguros do que as disposic;:6es institucionais e
preconceitos imaginativos que ajudam a mante-los. 0 movimento transforrnador que inicia
seu trabalho nurna situac;:ao social relati vamente est:avel (e nenhurna situac;:ao pode ser mais
que relativamente est:avel) sabe que as categorias e comunidades em que a sociedade se
divide tem interesses reconhecidos. 0 movimento precisa ter o cuidado de associar sua
causa a esses interesses. Mas tem de pensar e agir com a consciencia de que essas definic;:6es
de interesse nao sao etemas. Elas se baseiam em prernissas relativas as identidades coletivas
e possibilidades sociais. Essas prernissas, por sua vez, dependem da serenidade das disposi-
c;:6es institucionais estabelecidas e dos modelos estabelecidos de sociabilidade que diio for-
ma a um mundo de acordos e desacordos rotineiros.
A escalada do conflito em torno dessas disposic;:6es e modelos sacode as pre-
missas relativas a participac;:ao em grupos e a possibilidade transformadora e da
nova forma as concepc;:6es de interesse de grupo. A direc;:ao tomada pelas novas
vis6es de interesses de grupo depende das formas exatas de alterac;:ao dos contextos
formadores. Como nao existe uma lista fechada de estruturas possfveis, e nenhuma
sequencia preestabelecida de contextos formadores, tambem nao existe um limite
seguro das mudanc;:as por que pode passar um sistema corrente de interesses de gru-
po. Assim, o movimento transformador tem de tomar a serio as concepc;:6es
estabelecidas de interesse de grupo, enquanto antecipa a forma como vao se alterar
essas concepc;:6es a medida que os novos elementos institucionais e imaginativos
entram na estrutura dos conflitos e trocas rotineiros.
Essa abordagem tem um corolario importante. Num mundo social estabilizado,
algumas alianc;:as comunitarias ou de classe sao mais faceis ou mais diffceis de se
estabelecer do que outras. Algumas classes e comunidades tem maior probabilidade
de aceitar ou se opor a um programa transformador. Mas nao existe uma 16gica per-
manente de colaborac;:ao ou hostilidade de grupo, nem classe, nem comunidade ungi-
da para servir como o agente ou vanguarda indispensavel de uma mudanc;:a particular
da ordem social.
Os meios de estabiliza{:tio geram oportunidades de desestabiliza(:tio
Debates contemporaneos
0 complexo dos direitos privados consiste das disposic,:6es que definem o cani-
ter institucional do mercado. Essas disposic,:6es sao, em grande, parte conjuntos de
direitos legais. Uma de suas caracteristicas mais impressionantes e sua capacidade de
montara estrutura basica de transac,:6es nao econ6micas (que nao as da polftica parti-
daria e da administrac,:ao publica) no proprio processo de definic,:ao do mercado. Mas,
por que deve1iam as categorias legais que dao forma ao mercado fornecer o modelo
para todos os direitos? A resposta a essa questao esta Ionge de ser 6bvia; e urn dos fatos
a serem explicados por urn relata do surgimento do complexo dos direitos privados.
Lembremo-nos de que a caracteristica central desse complexo e urn sistema
de direitos de propriedade que assegure a descentralizac,:ao economic a por meio da
distribuic,:ao de reivindicac,:6es quase absolutas sabre porc,:6es divisiveis do capital
social- absolutas na amplitude do exercfcio e na continuidade da sucessao tempo-
ral. A contrapartida contratual desse sistema de propriedade e uma estrutura de
direitos de contrato que nega forc,:a legal aquelas relac,:6es de interdependencia pes-
soal e de confianc,:a mutua que nao possam ser caracterizadas como a execuc,:ao de
uma obrigac,:ao completamente deliberada por parte do detentor de urn direito, nem
como a imposic,:ao unilateral de uma obrigac,:ao por parte do Estado.
0 espfrito que anima esse complex a direitos-privados- deve ser lembrado- e a
busca de uma 16gica pura e pre-polftica de interac,:ao humana livre. 0 sistema de con-
trato e propriedade e quase universalmente apresentado- e mesmo quando nao for
apresentado des sa forma, deve ser implicitamente entendido como tal- como a estru-
tura legal inerente ao ordenamento privado. Aceita-se que a auto-regulac;:ao aut6noma
nao pode servir para tudo. Os pontos principais de urn sistema de direitos privados
podem ser alterados de muitas formas. E algumas pessoas podem estar em melhor
posic,:ao para exercer seus direitos do que outras. Mas essas limitac,:6es nao evitam a
identificac;:ao desses direitos privados com urn projeto geral de criac,:ao de urn sistema
de coordenac,:ao privada. Essa identificac,:ao nao e uma simples cautela te6rica. Nem
pode ser entendida como uma simples exigencia de legitimac;:ao. Ela orienta a com-
preensao e aplicac,:ao dos direitos privados. Evita que se volte a perguntar, a cada
situac,:ao crucial de uma controversia ideol6gica ou legal, que forma tern ou deveriam
ter o mercado em particular e o ordenamento privado em geral.
Existe uma hist6ria mftica do complexo direitos-privados que reproduz, em estilo
e efeito, a forma tradicional de explicar o desenvolvimento do complexo trabalho-orga-
nizac,:ao. Poucos aceitariam essa abordagem hist6rica em sua forma mais crua. Mas,
como os habitos mais comuns de pensamento social e hist6rico que exemplifica, ela
continua a informar grande parte do que realmente se pensa com relac,:ao aos direitos
legais e as disposic,:6es institucionais que eles definem. Urn testemunho da autoridade
desse conceito e sua influencia igual sabre liberais e marxistas. Os liberais veem ode-
senvolvimento gradual de uma estrutura de mercado que surge gradualmente das restri-
c6es feudais e neofeudais que tao arbitraria e dispendiosamente restringiam a liberdade
de troca baseada no interesse proprio. Assim como a ordem de mercado se expandia
gradualmente para areas mais amp las da vida social, tambem sua estrutura legal inerente
foi sendo descoberta pas so a passo. A maior parte des sa estrutura se constituiu do siste-
ma moderno de contrato e propriedade. Dessa forma, liberais e marxistas veem as dis-
posi<;:6es e ideias do dire ito privado do infcio da Europa moderna como pontos necessa-
ries no continuo que conduziu ate o atual direito contratual ou de propriedade. Urn
dire ito que, por sua vez, poderia ser visto como urn artefato indispensavel ao sistema de
mercado. Nessa concep<;:ao da rela<;:ao entre essa ordem de mercado e a liberdade poli-
tica, a ideia liberal dominante cobriu toda a gama entre a convic<;:ao confiante de que as
duas sao inseparaveis (pois cada uma e condi<;:ao e extensao da outra) e a cren<;:a mais
negativa e cetica de que qualquer tentativa de substituir completamente essa ordem de
mercado ha de produzir disposi<;:6es que ameacem a liberdade.
Os marxistas sempre discordaram, menos do que seria esperavel, desse ele-
mento adicional da hist6ria mftica. A economia de mercado faz tres apari<;:6es
muito controladas na teoria social de esquerda, de influencia marxista. Primeiro e
mais importante, ela e o instrumento institucional central do capitalismo - urn
estagio bern definido da evolu<;:ao hist6rica do mundo. Segundo, ela oferece a
estrutura institucional para a pequena empres a cooperativa, uma ordem social ins-
tavel, destinada a passar ao capitalismo ou a desempenhar dentro dele urn papel
secundario, caso nao venha a desaparecer completamente. Nas duas apari<;:6es,
admite-se que a estrutura basica de mercado se identifique com o sistema co-
nhecido de contrato e propriedade. Terceiro, o mercado pode reaparecer, sob o
comunismo, aliviado da carga de opressao e escassez que o tern oprimido ate
hoje. Mas, como o comunismo representa menos urn programa bern definido do
que urn convite ao fim de uma hist6ria marcada por classes, suas disposi<;:6es
institucionais continuam em sombras. Seus defensores nao conseguem dar deta-
lhes praticos a ideia de urn sistema de trocas que nao tenha como premissa 0
trafico de trabalho humano, nem uma divisao social tecnica e estavel do trabalho.
A ambivalencia marxista com rela<;:ao ao mercado evolui para uma ambivalencia
quanto aos direitos privados, que aparecem as vezes como urn incidente no mundo
mercantilizado do capitalismo e, outras vezes, como uma caracterfstica de qualquer
regime social toleravel. Portanto, os marxistas, assim como os liberais, aceitam os
princfpios fundamentais da hist6ria mftica dos direitos privados: a certeza de que o
desenvolvimento das institui<;:6es de contrato e propriedade na Europa moderna in-
corporou a emergencia da ordem de mercado como urn dos estagios necessaries ou
possibilidades permanentes da vida social. Liberais e marxistas discordam apenas
quanto a forma como pretendem corrigir os defeitos do sistema de mercado: combi-
nando-o com formas alternativas de aloca<;:ao (democracia social planejada) ou re-
duzindo-o a urn papel periferico.
A discus sao das paginas seguintes ataca essa hist6ria mftica nas suas premiss as
principais, as premissas adotadas por marxistas e liberais. Conduz esse ataque me-
diante a discus sao de tres caracterfsticas aparentemente paradoxais do complexo dos
direitos-privados e de sua forma<;:ao. Colocar esses paradoxes lado a lado e acentuar a
confirmar que o sistema dominante de direitos de propriedade e de contrato lutou
constantemente contra principios alternativos de organizac;:ao social e que alguns
desses principios sugerem elementos para a reformulac_;:ao institucional bern suce-
dida da pequena empresa cooperativa. Mas a implicac;:ao mais denunciadora da
ideia que pode vir a substituir a hist6ria mitica e a sugestao de que esse sistema de
contrato e propriedade somente poderia informar a vida social se fosse combina-
do com disposic_;:6es que negassem e ate mesmo revertessem o objetivo proclama-
do da ordem legal privada. Inversamente, o sucesso da tentativa de aproximar a
vida economica pnitica de uma concepc;:ao ideal de troca de hens e trabalho entre
agentes livres e dotados de vontade teria demandado uma base legal de
descentralizac_;:ao economica radicalmente diferente.
0 paradoxa da origem
0 paradoxa da superfluidade
Duas cronologias
0 conceito central
* Em Social Theory: Its Situation and Its Task, a ideia de uma conexao entre estabilidade e
desestabiliza'<ao foi apresentada nas discuss6es sabre a sobrevivencia, a identidade e os efeitos
da oligarquia. No momenta sao necess:irias categorias que possam apontar para uma analise
mlli< nPtlllh"ch f>sm"'i"lmente no oue concerne a mudanca de contexto.
duz regularmente oportunidades de desestabiliza<;ao.* Nao existe magica nas tres.
Podem-se incluir outras, e mesmo essas podem ser redivididas e recombinadas de
outras formas.
* Ver The Critical Legal Studies Movement, Harvard University Press, Cambridge, 1986.
Mas, assim como nos outros casos, essa fon;:a estabilizadora gera oportunidades
de desestabiliza~ao. Para mostrar como surgem essas oportunidades, tomemos urn
ordenamento da vida social, o mais claro e coerente, tal como se encontra nos discur-
sos da elite sobre doutrina legal ou controversia morale programatica. Imagens ideais
de associa~ao humana sempre podem ser interpretadas diferentemente de forma piau-
sfvel. Essas ambigtiidades ficam escondidas e contidas desde que cada uma dessas
imagens seja representada por praticas ou institui~5es diferentes em areas bern defini-
das da vida social. A combina~ao de interpreta~5es ideais, praticas representativas e
domfnios de aplica~ao sustenta o senso de certeza.
Mas ha sempre pelo menos uma incerteza residual acerca das formas praticas
que representam adequadamente urn modelo de associa~ao eo domfnio exato da pra-
tica social em que ele pode realisticamente ser aplicado. A! em dis so, classes, comuni-
dades e movimentos de opiniao diferentes creem ter interesse em ver essas incertezas
marginais resolvidas de algumas formas preferencialmente a outras. Assim, as pes-
soas brigam para resolver essas ambigtiidades. Brigam com os metodos cruse abertos
da rivalidade de facc;:ao ou declasse e com as formas refinadas e discretas da contro-
versia legal ou filos6fica.
Essas pequenas desavenc;:as podem se intensificar, seja porque se tornam
incontrolaveis, seja porque urn movimento transformador as explora e agrava
deliberadamente. 0 resultado e uma perturbac;:ao do ajustamento aparente entre ima-
gens autoritarias de coexistencia, suas representag5es praticas e areas de aplicac;:ao.
Essas perturbac;:5es forc;:am as pessoas a escolher entre interpretag5es diferentes dos
ideais antecedentes, grandemente implfcitos, de associagao humana. Algumas inter-
pretag5es se ajustam a ordem institucional corrente e reafirmam os modelos dominan-
tes de coexistencia humana; mas e possfvel que outras inspirem contestac;:5es a ordem
institucional e comecem a desembarac;:ar o esquema simb6lico. Pais os significados
que conferimos as concepc;:5es aceitas ou inculcadas de sociabilidade nao se exaurem
completamente nas praticas e instituic;:oes que as representam em compartimentos par-
ticulares da vida social. Crenc;:as acerca da forma como as pessoas deveriam tratar-se
umas as outras em areas particulares da sociedade sao mais do que dogmas de aplica-
c;:ao imediata. Servem tambem como portadores de aspirac;:oes mal-definidas de auto-
nomia e aceitac;:ao mutua. Sao, portanto, instrumentos de uma reserva mental por meio
da qual pessoas que parecem ter-se rendido incondicionalmente a uma estrutura
institucional e particular continuam a alimentar urn a medida de independencia secreta
e anseios irrealizados. Dais processos analiticamente distintos mas normalmente
superpostos representam essa ambivalencia potencial na relac;:ao entre urn esquema de
modelos autoritarios e urn contexto formador estabilizado.
Primeiro, ha os conflitos horizontais. Sempre ha incerteza e desacordo com
relac;:ao a amplitude exata da pratica social a que se deveriam aplicar modelos
diferentes de coexistencia humana. A grande quantidade de material pratico e
simb61ico resistente a assimila~ao pelo contexto formador aumenta a confusao.
As disputas de fronteira resultantes- conflitos para definir onde marcar a linha de
separac;:ao entre ideais diferentes e entre os domfnios da vida social aos quais se
conflitos entre fac~oes ou de experimentos sociais. Essas disputas de fronteira
produzem urn empurra-empurra de ideais familiares em territ6rios sociais pouco co-
nhecidos. A medida que essas proje~oes e deslocamentos se multiplicam, as pessoas
come~am a discordar com rela~ao as formas pniticas que uma imagem dada de asso-
cia~ao humana deveria assumir quando representada numa area da pratica social da
qual ela tinha ate entao sido exclufda. Esse desacordo expoe as ambigiiidades ocultas
dos modelos tradicionais e a multiplicidade de usos que se pode fazer delas para
preservar ou transformar estruturas.
Consideremos, por exemplo, as implica~oes de ten tar estender o ideal democra-
tico a organiza~ao industrial. Independentemente do seu significado nessa situa~ao,
democracia nao pode significar a continua~ao das formas tradicionais do Estado
tripartite ou dos mecanismos correntes de representac;ao e responsabilidade democra-
tica. Se democracia industrial for interpretada como urn nfvel limitado de participa-
c;ao dos trabalhadores nas decisoes empresariais, ela pode se acomodar, sem maiores
perturbac;oes, a estrutura institucional e simb6lica estabelecida. Suponhamos, entre-
tanto, que ela seja entendida como uma alterac;ao da forma basica de aloca~ao de
capital e de controle das decisoes de investimento. Nesse caso ela hade abalar a vi sao
simb6lica que separa uma area reservada para os princfpios democraticos e o domfnio
governado por contrato voluntario e hierarquia tecnica. Essa perturba~ao simb6lica pode
se irradiar para fora, desafiando todos os componentes da vi sao dominante das proprie-
dades e possibilidades sociais.
Como os horizontais, tam bern ha conflitos verticais. Mesmo dentro da area cen-
tral da pnltica social tradicionalmente atribufda a urn modelo particular de associa~ao
humana, surgirao descrepancias e duvidas com rela~ao a sua forma pratica adequada.
Os conflitos marginais que dominam essas desarmonias podem ser mais agravados pela
ideia de que todas as realiza~oes praticas estabelecidas desse ideal nao lhe fazemjusti-
c;a e traem sua promessa. Existe sempre uma penumbra indefinida de aspira~ao que
sugere mais - mais em termos de autonomia e solidariedade- do que se encontra no
dogma publico e na prcitica estabelecida. Essas variac;oes e tensoes alimentam o confli-
to. Eo conflito, mais uma vez revela as ambigiiidades dos modelos aceitos de sociabi-
lidade e demonstra sua relac;ao ambivalente com as disposic;oes institucionais que aju-
dam ajustificar.
Des sa fonna, nas democracias industriais contemporaneas a combinac;ao de hierar-
quia tecnica com contrato voluntario assume fmmas diferentes em setores da economia
que ou acentuam ou suavizam o contraste entre as atividades de definic;ao e de execuc;ao
de tarefas. Premissas marais amplamente reconhecidas identificam subjuga~ao pessoal
como o mal-social exemplar. Nem o contrato individual ou coletivo, nem a ale gada neces-
sidade tecnica sao suficientes para levan tar a carga de subjugac;ao sentida quando se traba-
lha nas areas da economia que separam mais nitidamente os definidores dos executores de
tarefas. Os trabalhadores continuam a sofrer fortemente as experiencias sentidas de impo-
tencia e humilha~ao. Os setores de vanguarda da economia oferecem urn exemplo visfvel,
apesar de limitado, de urn estilo alternativo de organizac;ao do trabalho. Criticos radicais ja
afirmaram que essa alternativa pode ser estendia para grande prute da economia. Mas
P.Xtf': ~-
organizac,:ao do poder e da produc,:ao. E, uma vez concretizadas, nao serao conciliaveis
com as crenc,:as dominantes relativas ao contraste apropriado entre o domfnio da democra-
cia representativa e o domfnio do contrato e da hierarquia tecnica.
0 tema principal da discussao precedente foi a fore,: ada ligac,:ao entre estabiliza-
c,:ao e desestabilizac,:ao, as oportunidades de transforrnac,:ao geradas pelas mesmas for-
c,:as que conferem uma necessidade retrospectiva e de segunda ordem a urn contexto
estabilizado. Uma serie infinda de pequenas desavenc,:as, urn movimento browniano
permanente, mantem ate mesmo o mundo social mais pacificado numa agitac,:ao con-
tida mas irreprimfvel. 0 te6rico social de estrutura profunda desconsidera essas per-
turbac,:oes de baixa intensidade como triviais, identificando nelas, ou uma disputa alea-
t6ria e improdutiva ou a confirmac,:ao das rotinas com a aparencia de leis de uma
ordem social estabelecida. Ve uma descontinuidade basica entre essas controversias e
os conflitos que acompanham a substituic,:ao de uma ordem por outra. 0 cientista
social positivista, ao contrario, exalta essa briga constante como a verdadeira materia
da vida social: o exercfcio de soluc,:ao de problemas e de acomodac,:ao de interesses
que tern urn papel tao importante na compreensao da sociedade. Mas como despreza
ou evita sistematicamente a distinc,:ao entre rotinas e estruturas e a influencia das es-
truturas e de sua revisao nos problemas que mais o interessam, ele deixa de perceber
o movimento browniano como ele realmente e. Nao reconhece a natureza e extensao
de sua promessa transformadora nem tern uma visao abrangente e unificada de suas
muitas formas.
A !uta contida, de baixa intensidade engendrada por cada forma de necessidade
de segunda ordem pode se intensificar a qualquer momenta. 0 sinal subjetivo dessa
escalada e a intensidade crescente da !uta. 0 sinal mais vi sfvel e tangfvel eo aumento
da amplitude do conflito: tanto pelo envolvimento de mais grupos na !uta, quanto pelo
interesse numa gama cada vez mais ampla de quest6es. 0 significado especial da
escalada, entretanto, e a passagem passo a passo de conflitos preservadores de con-
texto para conflitos transformadores de contexto. As desavenc,:as em torno dos ajustes
praticos, identidades coletivas e ideais morais que implicam a aceitac,:ao irrestrita da
estrutura, transformam-se em lutas que colocam a propria estrutura em questao.
Essa escalada pode ser o resultado de urn movimento que perceba uma oportu-
nidade na ampliac,:ao da discussao sem importiincia. Ou a conseqiiencia involuntaria
de conflitos que se descontrolam. Nesse caso, a !uta ampliada s6 retrospectivamente
mostra sua significiincia transformadora. Com muito mais freqiiencia, previdencia e
acaso se combinam para causar a escalada.
Urn crftico hade objetar que nossa explicac,:ao sera muito pobre enquanto nao
tivermos estabelecido as condic,:oes necessarias e suficientes da escalada. Mas ha
urn corolario de uma tese importante deste livro, o da impossibilidade de fazer essa
lista de condic,:oes necessarias e suficientes. 0 problema nao resulta simplesmente
de urn defeito limitado e remediavel do nos so conhecimento, como se, pensando ou
realidade e da mudanc,;a sociais condenam essa busca ao fracasso. Para acreditar na
existencia de uma lista como essa, ou na possibilidade de ela se revelar gradualmente,
teremos de acreditar em algo que pelo menos se parec,;a com a teoria social de estrutu-
ra profunda. Teremos de acreditar que a mudanc,;a de contexto e, portanto, tambem a
selec,;ao do contexto, sao governadas por restric,;oes com a aparencia de leis e tenden-
cias de desenvolvimento. (A polemica contra o estilo de explicac,;ao por meio de con-
dic,;oes necessarias e suficientes continua, de forma diferente, mais adiante, neste rela-
to da construc,;ao da sociedade).
Em vez de condic,;5es necessarias e suficientes, a visao apresentada aqui reco-
nhece que algumas circunstancias nonnalmente incentivam a intensificac,;ao do confli-
to enquanto outras a desencorajam. Entre as circunstancias mais importantes de in-
centivo a escalada estao as crises de media intensidade, como as provocadas pela
necessidade de reformar as disposic,;5es institucionais basicas em resposta a rivalidade
militar e econ6mica do exterior ou a mudanc,;as no tamanho ou riqueza relativos de
diferentes setores da populac,;ao. Entretanto, uma pratica transfonnadora feliz e habi-
lidosa pode causar a intensificac,;ao do contlito mesmo na ausencia dessas condic,;5es
favoraveis. Ou, ao contrario, desperdic,;ar a oportunidade mais favoravel. Mais impor-
tante, as instituic,;5es e conceitos antecedentes, bern como os sistemas de divisao e
hierarquia social apoiados por eles, nunca predeterminam o resultado da escalada do
contlito, assim como nao preveem sua ocorrencia ou alcance. A escolha subdetenninada
de trajet6rias por grupos e governos diferentes, e a visao ou ilusao, competencia ou
inepcia relativos com que pessoas seguem essas trajet6rias escolhidas ajudam a dar
forma ao resultado final. (A proposta programatica dos capftulos 10 a 14 considera as
circunstancias favoraveis ou desfavoraveis a escalada. Essa considerac,;ao estabelece
uma das muitas ligac,;5es entre as ideias programaticas e explicativas do livro False
necessity).
Deterministas convictos talvez resistam a esta defesa da recusa de descrever as
condic,;5es necessarias e suficientes para escalada do contlito e para o uso transforma-
dor do movimento browniano. Hao de argumentar que, quando se examina com mais
atenc,;ao, acaba-se por descobrir causas que expliquem a ocorrencia, amplitude ere-
sultado da escalada, causas que variam de uma situac,;ao momentanea da sociedade ate
os detalhes da biografia individual. Podem mesmo insistir em que todas essas causas
se interligam, pelo menos do ponto de vista ideal de uma mente laplaciana. Nada do
que se disse aqui, ou em qualquer parte da argumentac,;ao explicativa de False necessity
depende da refutac,;ao dessa argumentac,;ao detenninista. E desnecessario adotar uma
posic,;ao com relac,;ao a ela. 0 objetivo mais estreito da abordagem da mudanc,;a de
contexto adotada aqui e libertar a explicac,;ao social de premissas tanto da analise de
estrutura profunda quanto da ciencia social convencional: respeitar a distinc,;ao entre
estrutura e rotina, negando que a identidade, realizac,;ao ou sucessao de contextos for-
madores seja governada por leis de ordem superior ou por restric,;5es econ6micas,
psicol6gicas ou organizacionais arraigadas.
Evidentemente, essa visao de mudanc,;a de contexto perderia muito de sua au to-
ri dade se nossa experiencia subjetiva da liberdade de reconstruc,;ao fosse ilus6ria (mas
rna que apenas em ultima analise distinc;oes entre fen6menos sao ilus6rias). Mas nao
se prop6e aqui a discussao de enigmas metaffsicos de livre arbitrio e determinismo,
nem a demonstrac;ao precisa do sentido em que a experiencia da liberdade se harmo-
niza com a pratica da explicac;ao causal. Ja fazemos algo para defender o nosso poder
de reconstruc;ao ao aliviar a ligac;ao entre nossos interesses na generalidade de nossas
explicac;6es eo habito de nos representarmos como objetos passivos de mundos sociais.
Fazemos ainda mais quando mostramos que esses mundos diferem radicalmente nas
restric;oes que imp6em a sua propria reconstruc;ao.
0 movimento browniano da vida social - o surgimento da oportunidade
desestabilizadora a partir de metodos de estabilizac;ao- oferece a ocasiao para influen-
cias que deem forma a mudanc;a de contexto a Iongo prazo. Essas influencias, traba-
lhando em conjunto ou em oposic;ao, respondem por uma possibilidade notavel. Con-
textos podem mudar, tanto em qualidade quanto em conteudo. Variam quanto a forc;a
com que aprisionam as pessoas que se movem dentro deles. A discussao agora passa as
fontes de possfveis mudanc;as direcionais de Iongo prazo.
8
CAPACIDADE NEGATIVA E PLASTICIDADE COMO PODER
A ideia central
' Membro de uma classe polftica poderosa, formada inicialmente por escravos turcos libertados,
que dominou o Egito a partir do seculo XUI ate serem dizimados pelos turcos em 1811.
exigencia sobre o arnbiente institucional e social arnpliado. Esses poderes poderiarn ate
rnesrno exigir rigidez e hierarquia ern Iugar de flexibilidade e igualdade. A tese da capa-
cidade negativa no dornfnio pn1tico exige a pressuposi<;:ao de urna cren<;:a na possibilida-
de do desentrincheirarnento curnulativo como condi<;:ao social que permita o desenvol-
virnento de aptidoes pniticas. Urna versao defensavel da tese da capacidade negativa
tern de reconhecer que a extra<;:ao coercitiva de recursos e rnao-de-obra, sustentada por
contextos rnais entrincheirados e papeis e hierarquias rnais rfgidos, pode oferecer urna
base alternativa para o desenvolvirnento de for<;:as produtivas ou destrutivas. A questao
e saber se essa alternativa baseada no entrincheirarnento pode ter seu peso devidamente
reconhecido nurna teoria que, apesar dis so, continua aver no desentrincheiramento cu-
mulativo pelo menos urn eixo possfvel de progresso pratico.
Disposi<;:6es institucionais que ajudam a reproduzir papeis e hierarquias rfgidos po-
dem com certeza servir como base de uma extra<;:ao coercitiva de excedentes. Deveres
hierarquicos, impastos e santificados por institui<;:6es e disposi<;:6es resistentes a contesta-
<;:ao, incentivarn uma transferencia quase automatica de recursos materiais e de mao-de-
obra para elites limitadas. Esse instrumento tern a enorme vantagem pratica de fazer o
confisco de recursos parecer urn a implica<;:ao inevitavel de urn a ordem moral ou natural, e
nao o resultado de vontade e conflito. Afinal, o sentido humano do entrincheiramento
institucional e dar a ordern da vida social a aparencia de urn fato natural em Iugar de urn
artefato polftico. Na ordem relativamente mais entrincheirada a probabilidade de a con-
centra<;:ao de demandas sobre capital e trabalho ser ace ita sem restri<;:6es e maior, en quanta
e men or a probabilidade de ela ser perturbada por arnea<;:as, acordos e contestaqoes. Mas
o custo e a redu<;:ao da capacidade de experirnenta<;:ao corn combina<;:6es de recursos,
rnaquinas e rnao-de-obra e corn formas alternativas de interdirnbio e produqao.
Certamente ern determinadas situa<;:6es hist6ricas as vantagens praticas do
desentrincheirarnento ficam abaixo dos beneffcios praticos da extra<;:ao coercitiva de
excedentes. Mas, quais sao essas situa<;:6es? Parecern ser aquelas ern que a cria<;:ao de
urn excedente de trabalho e capital alem do consurno corrente continua sendo o prin-
cipal problema pratico da sociedade, muito maior que problemas de inovaqao
tecnol6gica e flexibilidade organizacional.
Pode-se ser tentado a afirmar que essa e exatamente a condi<;:ao de todas as
sociedades, pelo menos ate que atinjam uma riqueza prodigiosa e se aproximem da
elirninaqao da escassez econ6mica. Mas na verdade, essa parece ser a circunsHincia
apenas de pafses rnuito pobres- de pafses mais pobres que os irnperios agrario-buro-
cniticos da hist6ria mundial ou as na<;:6es europeias antes do infcio da revolu<;:ao in-
dustrial. Economistas e historiadores rnostraram repetidamente como e diffcil expli-
car surtos repentinos de produ<;:ao e produtividade- tais como a serie de acontecimentos
a que cham amos revolu<;:ao industrial- com referencia a diferen<;:as nas tax as de pou-
pan<;:a social. Geralrnente, tanto a taxa geral de poupan<;:a quanta a quantidade de
excedentes de que se apropriaram coercitivamente as elites governantes e econ6rnicas
parece ter sido rnaior ern sociedades estagnadas do que ern pafses que deram urn salta
quantitativa de capacidade produtiva. A questao principal acerca da Inglaterra do
seculo XIX, relativamente aChina da dinastia Ch'ing, nao eo fato de a Inglaterra ter
ou nao pou ado ou se a ro riado de mais recursos do ue os chineses, mas o fato de
eles terem usado recursos, realizado atividades, gerenciado organiza<;6es e recombinado
fatores de produ<;ao de formas diferentes. A necessidade de extra<;ao de excedentes nao
desaparece, mas torna-se subsidiaria em rela<;ao a forma de uso.
Temos mais uma razao para pensar que as vantagens praticas do entrinchei-
ramento sao mais limitadas do que poderia parecer a primeira vista. Nem toda a extra-
<;iio coercitiva de excedentes depende de papeis e hierarquias rfgidos, nem a rota para
a emancipa<;ao da False necessity e sempre nao coercitiva. A abertura da vida social a
experimenta<;ao pratica pode se dar por metodos consensuais, descentralizados e
participativos, ou por meio de comando ou coer<;ao centralizado. As institui<;6es que
tornam possfvel essa abertura podem avan<;ar na dire<;ao de uma democracia radical
que destrua o controle privilegiado dos recursos para a constru<;ao da sociedade. Mas
essas institui<;5es podem tam bern se mover na dire<;ao de uma ditadura mobilizadora
que submeta impiedosamente a vida social a pianos impostos por uma autoridade
central, desejosa e capaz de recombinar pessoas e recursos. Do ponto de vista exclu-
sivo do incentivo ao desenvolvimento da aptidao pratica, o risco do caminho consensual
e 0 de que as demandas descentralizadas e participativas degenerem num sistema de
direitos adquiridos que reduza a area da vida social aberta a inova<;ao pratica. Da
mesma perspectiva limitada, o risco da rota ditatorial e o de que a disposi<;ao de
explorar oportunidades produtivas praticas seja sacrificada aos interesses das autori-
dades centrais no poder.
Nao se deve confundir urn despotismo mobilizador com uma ordem entrin-
cheirada de divisao e hierarquia, em bora cada urn dos dois sirva de base para o desen-
volvimento de aptid5es praticas, e muitas sociedades, na idade da polftica de massas,
tenham regularmente combinado aspectos dos dois. Uma ditadura mobilizadora bus-
ca a capacidade negativa por meios coercitivos. Portanto, ela tenta destruir todas as
corpora<;5es intermediarias, todas as classes sociais, comunidades e governos locais
organizados de forma independente. Sua ambi<;ao economica caracterfstica nao e ape-
nas extrair urn excedente, mas recombinar e reorganizar e continuar recombinando e
reorganizando. Ha muito tempo, te6ricos sociais como Tocqueville entenderam que
os elementos comuns a uma inova<;ao democratica e a uma desp6tica eram, tanto a
hostilidade as ordens estaveis de divisao e hierarquia, quanto a disposi<;ao de tratar as
rela<;5es sociais como sujeitos de experiencias praticas. As ditaduras planejadoras
modernas se dedicam a busca de maior capacidade negativa. Seu projeto e a recom-
bina<;ao for<;ada e nao o entrincheiramento naturalfstico. Uma vez que se entenda esta
caracterfstica, o papel hist6rico da busca de progresso pratico por meio do
entrincheiramento come<;a a parecer muito mais limitado.
Comparemos a tese da capacidade negativa com a tese marxista relativa a socie-
dade de classes e desenvolvimento das for<;as produtivas. A sequencia de modos de
produ<;ao descrita pelo marxismo mostra que todas as sociedades hist6ricas sao leva-
das a avan<;ar pela 16gica da extra<;ao coercitiva de excedentes baseada em hierarquias
de classes e em rela<;5es de produ<;ao definidas institucionalmente, impostas por essas
hierarquias. 0 comunismo primitivo e igualitario. Mas sob o comunismo primitivo as
pessoas continuam escravizadas tanto a escassez material quanto a tradi<;ao irrefleti-
da. A humanidade tern de passar pelo desvio imenso e doloroso da s0ciedade e dos
conflitos de classes antes de chegar, por meio do comunismo, a uma nova forma de
igualdade superior a do comunismo primitivo por ser mais livre.
Ainda assim o esquema evolutivo do materialism a hist6rico inc lui urn tema sig-
nificativo que podemos reinterpretar com urn caso especial da tese da capacidade
negativa. A sequencia de modos de produc;:ao e tambem uma serie de passos em dire-
c;ao da afirmac;ao da qualidade livre, unitaria e universal do trabalho. As divis5es e
hierarquias da sociedade de classes mascaram e restringem essa qualidade. Assim,
embora possa agravar muitos aspectos da opressao de classes e da miseria do opera-
riado, o capitalismo tambem revela, com mais clareza do que os modos de produc;ao
anteriores, a caracterfstica de intercambialidade de todo o poder do trabalho humano.
0 despotismo do capital pode se encarregar da fabrica moderna. Mas esse despotismo
derruba barreiras a recombinac;ao livre de homens e maquinas. Ao mesmo tempo o
primado dos valores de troca sobre os valores de uso na esfera de circulac;ao, combi-
nado com o tratamento impiedoso do trabalho como mercadoria, enfatiza a conver-
tibilidade de todas as formas de atividade produtiva em todas as outras formas.
Nos escritos de Marx, essas ideias tao pr6ximas da tese da capacidade negativa
continuam presas numa variante evolutiva da teoria social de estrutura profunda. Alem
disso, Marx nao distingue entre a extrac;ao coercitiva de excedentes baseada em hierar-
quias entrincheiradas e a recombinac;ao institucional, uma premissa do desentrincheira-
mento institucional. Para usar a linguagem de seus seguidores, a ausencia de qualquer
correspondente des sa diferenc;a nao e urn acidente. Pois o materialismo hist6rico sacri-
fica a ideia da capacidade negativa a crenc;a de que a emergencia do comunismo repre-
senta a unica passagem decisiva e definitiva da necessidade para a liberdade.
1 Como todos os que escrevem sabre hist6ria militar, devo muito a Geschichte der Kriegskunt, im
Rahmen der politischen Geschichte, Berlin, G. Stilke, 1900-1936, especial mente a parte 3, "Neuzeit".
Outra fonte importante de inspira9ao e William H. McNeill, The pursuit of power: technology,
armed force and society since a. D. 1000, Chicago, 1982, especialmente os capftulos 3 e 4.
Essa unidade de com bate lutava com urn mfnimo de flexibilidade e coordenac;:ao
tatica. Seu estilo de !uta oscilava tipicamente entre dois modos: uma carga compacta de
cavalaria, seguida normalmente de combate manual. Desde o infcio, as duas variantes
desse estilo padeceram de uma falta de adaptabilidade operacional. A medida que pas-
sava a enfrentar armas cada vez mais aperfeic;:oadas - lanc;:as com ponta de ferro, as
primeiras armas de fogo usadas por soldados ape- o cavaleiro respondia com armadu-
ras mais pesadas. 0 resultado foi ele ficar cada vez mais im6vel. Tornou-se urn exemplo
da busca futil da invulnerabilidade isolada ao custo da maneabilidade e do trabalho em
equipe. Dessa forma, o efeito geral da tentativa de protec;:ao contra novas armas foi a
degenerac;:ao adicional de urn modo de comb ate ja em si muito problematico.
Essa era uma abordagem da guerra claramente inseparavel de urn estoque restrito
de armas e de uma forma muito limitada de mobilizac;:ao de homens e recursos para a
batalha. Dava pouco espac;:o para profundidade organizacional e sutileza tatica. Nao se
poderia esperar que sobrevivesse alem da circunstfmcia de governos em desintegrac;:ao e
mercados desorganizados que tinha incentivado o seu desenvolvimento original.
Entretanto, nao havia outra forma de !uta que pudesse substituir a coorte de
cavaleiros armados. Desde o infcio, houve Iinhas emergentes de desenvolvimento al-
ternativo, mesmo na preferencia por tipos diferentes de armas. Pelo menos dois cami-
nhos diferentes foram adotados durante o mesmo perfodo da hist6ria da Europa na !uta
contra o estilo medieval de gueJTa. Cada caminho explorou oportunidades tecnol6gicas
e de mobilizac;:ao que nao estavam ao alcance de urn exercito de cavaleiros unidos por
lac;:os feudais. Cada urn foi, portanto, suficiente para dar urn golpe mortal no cavaleiro
encourac;:ado da Alta Idade Media. Ainda assim, nenhum dos dois caminhos se mos-
trou capaz de atender ao ciclo seguinte de oportunidades tecnol6gicas e de mobilizac;:ao
sem sofrer, ele proprio, uma transformac;:ao radical.
A primeira linha de desenvolvimento militar antifeudal poderia ser chamada de
abordagem do exercito permanente, apesar de eu usar o termo de forma mais ampla e
menos precis a do que seu significado convencional. Caracterizava-se por urn exercito
regular de soldados a pe recrutados entre os camponeses de urn Estado territorial
emergente, colocado sob o comando supremo de urn monarca ou nobre e dotado de
armamento aperfeic;:oado. No apogeu de sua forc;:a, esse exercito era composto de sol-
dados profissionais recrutados dentre os yeomen e capazes de se combinar para a
batalha, de manobrar no campo fonnando concentrac;:5es densas de forc;:a e fazer com
que armas diferentes se reforc;:assem mutuamente. Em particular, as armas lanc;:adoras
mais poderosas- o arco ou o mosquete- poderiam ser combinadas com o choque de
infantaria. Essa combinac;:ao, por sua vez, permitiu o desenvolvimento de taticas ofen-
sivas e defensivas para substituir o ataque selvagem que urn exercito feudal tinha de
executar para se engajar em com bate.
Urn dos primeiros exemplos desse desafio ao estilo medieval de guerra aconteceu
em Crecy em 1346, on de a superioridade tatica e organizacional do exercito de Eduardo
III parece ter sido pelo menos tao importante quanta o arco gales 2 . Outro exemplo aeon-
2Ver Herbert James Hewitt, The organization of war under Edward III, 1338-1362, Manchester
Univ., Manchester, 1962, p 28-49.
teceu urn seculo depois, em Formigny, onde os franceses foram vitoriosos e a colubrina,
uma arma de campo medieval, substituiu os arcos como o lan<,:ador que amansou o
inimigo para o ataque aniquilador. 0 exercito de Carlos VII estava entre os primeiros
exemplos de urn exercito permanente. Mobilizava recursos e homens numa escala mui-
to maior e unia massas de armas lan<,:adoras com cargas concentradas de infantaria e
caval aria.
Apesar do sucesso inicial, entretanto, esse estilo de Iuta nao poderia absorver
facilmente o impacto do aumento da amplitude da guerra. A reuniao de homens e
recursos para o esfor<,:o de guena continuou exposta a duas amea<,:as. As oligarquias,
entrincheiradas na propriedade da tena, no comercio e no governo, poderiam negar
fundos e recrutas aos governos centrais emergentes, ou fixar os termos em que os
recursos materiais e humanos seriam oferecidos. Essa tendencia se reafirmou repeti-
damente ao longo da hist6ria europeia. S6 foi superada quando a politica se tornou
politica de massas e as guenas passaram a ser guenas populares- a partir das campa-
nhas da Fran<,:a revoluciomiria ate as guenas mundiais do seculo XX. Quando ataca-
vam seus adversarios oligarquicos, os monarcas centrais, que foram os criadores e
comandantes dos exercitos permanentes, aniscavam-se a ser esmagados pela reac;:ao
aristocratica ou vencidos pela agita<,:ao popular incitada por eles pr6prios. 0 perigo de
uma rebeliao popular descontrolada foi quase sempre mais remoto que o da domina-
<,:ao oligarquica, dada a acomoda<,:ao tfpica entre soberanos e oligarquias nos Estados
absolutistas. Entre tanto, ela poderia se materializar onde quer que as massas urbanas
e rurais tivessem mantido uma vibrante independencia comunitaria eo rei estivesse
determinado a fazer causa comum com ela contra os magnatas do reino. As lutas de
Erik XIV da Suecia sao urn exemplo 3. Apesar deter conseguido escapar extraordina-
riamente ao colapso governamental e econ6mico, descrito como reversao aeconomia
natural em outra parte deste livro, a Europa nao se tinha livrado completamente dos
antigos dilemas do estadismo em imperios agrfcolas.
A oportunidade tecnol6gica gerada pelo desenvolvimento contfnuo de armas de
fogo nao poderia ser facilmente absorvida pelos primeiros exemplos de exercitos per-
manentes. 0 manuseio e a evasao eficazes das armas de fogo e a coordena<,:ao com as
taticas de choque exigi am habilidade e sutileza. Urn exercito peri to ness as praticas nao
poderia se organizar como urn microcosmo da sociedade em geral, com suas hierar-
quias e divisoes estabelecidas, nem poderia operar com eficiencia usando a mesma
justaposi<,:ao crua de iniciativas pessoais ou de famflia e obediencia for<,:ada que ca-
racterizava a maior parte da atividade produtiva da sociedade. Nao bastava ter acesso
direto a soldados e recursos nem prescindir dos bons offcios dos oligarcas indepen-
dentes. Talvez fosse tambem necessaria inaugurar uma forma de organiza<,:ao que fun-
cionasse como urn contramodelo perturbador das formas mais comuns de coordena-
c;:ao e subordina<,:ao da sociedade em geral. As primeiras versoes bern sucedidas de
exercitos permanentes surgiram em circunsHincias nas quais o nfvel de desenvolvi-
mento tecnico das armas de fogo ainda nao tinha tornado agudas as exigencias
5 Ver J.V.Polsensky, War and society in Europe, 1618-1648, Cambridge, Cambridge, 1978, p. 64.
cria~ao e aproveitamento de oportunidades tecnologicas e mobilizacionais de aumen-
to de sua capacidade destrutiva. Mas houve uma diferen~a de tempo entre as dificul-
dades mais importantes enfrentadas par cada uma dessas formas e os beneffcios pniti-
cos gerados par elas. A Iongo prazo a solu~ao da resistencia comunitaria poderia se
mostrar mais adaptada a uma guerra total que mobilizasse recursos e homens numa
esc ala tao grande que estendesse o estilo vanguardista de opera~6es a segmentos cada
vez mais amplos das for~as em luta. Mas a curta prazo, a abordagem da resistencia
comunitaria exigiria a inven~ao de institui~oes e cren~as que tornassem possfvel que
Estados fortes e estaveis fossem direta e voluntariamente apoiados par pequenos pro-
prietaries mais ou menos organizados. 0 desenvolvimento da solu~ao do exercito
permanente na Europa absolutista e aristocratica, poderia nao conseguir reduzir as
restri~oes pastas pelo privilegio oligarquico e coer~ao das massas, restri~oes que, a
Iongo prazo, poderiam ser fatais para nfveis ainda mais altos de intensidade
mobilizacional e tecnologica na guerra. Mas a curta prazo urn exercito permanente
exigiria menos redefini~ao e priva~ao para poderes ja entrincheirados, do que uma
milfcia popular, em todos aqueles casas em que o rei, as aristocracias proprietarias
e os gran des comerciantes ja detivessem o controle. Qualquer tentativa de compen-
sar as desvantagens de curta prazo da resistencia comunitaria como uma solu~ao
global para a Europa teria exigi dodos seus defensores a tradu~ao, tao rap ida quanta
possfvel, de suas vantagens a Iongo prazo em ganhos de capacidade tecnologica e
mobilizacional a curta prazo. A qualidade inovadora das for~as hussitas sugere que
essa tradu~ao seria possfvel.
Em qualquer compara~ao entre bases organizacionais e sociais, para urn nfvel
semelhante de capacidade pratica de produ~ao ou destrui~ao, a vitoria hade depender
parcialmente da capacidade de se apropriar de aspectos da solu~ao rival e torna-los
partes subordinadas da propria solu~ao, mudando ou ate invertendo todo o seu senti-
do polftico. Para ter sucesso, pequenas republicas e coletividades camponesas ou
urbanas comprometidas com o caminho da resistencia comunitaria teriam de desen-
volver grandes confedera~6es, quadros tecnicos e gerenciais, e for~as especialistas
permanentes. Os monarcas criadores dos exercitos permanentes fizeram o contrario.
Diante da dificuldade de recrutamento e financiamento desses exercitos sem uma
guerra total contra as aristocracias nacionais, eles tentaram usar em beneffcio proprio
a for~a dos exercitos comunitarios. Tentaram essa inversao pela transforma~ao dos
exercitos populares em unidades mercenarias a seu servi~o.
Os corpos mercenarios recrutados por empresarios militares serviram como uma
forma de incorporar a urn exercito nacional as novas forma~6es populares, com todas
as suas for~as de estilo operacional e armamento combinado. Embora fossem, em
todos os sentidos, urn corpo estranho transplantado para o corpo social, essas unida-
des representavam uma amea~a pequena como contramodelo de associa~ao. E urn
estratagema empregado ao Iongo de toda a historia, geralmente em areas do Estado
muito distantes da reforma militar. Par exemplo, durante o perfodo da reforma Kopriilii,
no Imperio Otomano no final do seculo XVII, os albaneses tiveram urn papel impor-
tante como tecnicos da administra~ao do Estado. Dada a santidade atribufda ao voto
de amizade, ou besa, eles foram considerados confiaveis numa epoca em que a maior
parte das rela~oes clientelistas nos altos cfrculos administrativos tinham se dissolvido
sem dar lugar a uma estrutura organizacional alternativa6 .
No infcio da Guerra dos Trinta Anos, a forma dominante de guerra na Europa
Ocidental e Central era uma versao restrita do exercito pennanente criado por lfderes
como Carlos VII da Fran~a ou Eduardo III da Inglaterra. Exatamente por causa da
dificuldade de manter as condi~oes precarias que permitiriam o acesso a uma ampla
base popular de homens e capital, a maioria dos grandes Estados territoriais teve de
fazer uso de exercitos mercenarios combinadas com o recrutamento impasto de cam-
poneses. Essas seriam apenas unidades temporarias contratadas ou recrutadas por pe-
rfodos limitados de tempo. A extraordinaria carga financeira, imposta de uma s6 vez,
limitava drasticamente as possibilidades de mobilizac;:ao de homens e recursos para a
guerra e deixava OS comandantes miJitares amerce de banqueiros astutos.
Alem disso, a natureza desses exercitos tinha uma influencia restritiva na sua
capacidade de explorar os avan~os tecnicos das armas e coordenar o poder de fogo
com o choque. Essa questao se torna clara pela compulsao de utilizar formac;:oes rfgi-
das de forma a garantir a disciplina de camponeses coagidos ou mercenarios tempora-
rios. 0 resultado foi o solapamento da mobilidade ofensiva e defensiva no campo de
batalha enquanto se evitavam as ondas de ataques concentrados e de surpresa com o
uso de taticas de lan~amento e choque 7 .
Consideremos a popularidade generalizada de duas manobras ineficazes com
armas de fogo. Uma era o uso da carga de cavalaria com uma pistola de pederneira. 0
disparo do tiro no meio de urn a mass a compacta de lanceiros inimigos e mosqueteiros
normalmente se transforrnava no fim, e nao no come~o da carga, cujo valor como
instrumento de choque ficava inteiramente perdido. Nos batalhoes de infantaria ocor-
reu urn desenvolvimento paralelo: o mosquete era usado menos como preliminar de urn
onda de ataque do que como o principal instrumento de batalha. 0 com bate de infanta-
ria se degenerava em encontros inconclusivos entre mosqueteiros opostos. A guerra
de sftio se tornou o melhor campo de provas para as novas armas.
Ha uma tendencia, recorrente na hist6ria da guerra, de ver num avanc;:o tecnico
uma alternativa a mobilidade e engajamento em vez de uma oportunidade para eles.
Assim, os otomanos no seculo XVIII procuravam a seguranc;:a em enormes pec;:as de
artilharia cuja imprecisao tornava seus efeitos taticos paralisantes ainda mais
injustificaveis. Durante a Guena do Vietna de 1960-1973, os americanos normalmen-
te usavam o helic6ptero como uma arma com que desembarcar urn grande numero de
soldados diretamente dentro de urn teatro de combate 8 • Desprezavam o que os ingle-
ses haviam descoberto em suas operac;:oes de contra-insurgencia em Borneu 9 : que urn
6 Ver William H. McNeill, Europe's Steppe Frontier, 1500-1800, Chicago, Chicago, 1964, p.
134-135.
7 Ver Gustav Droysen, Beifl·age zur Geschichte des Militarwesens im Deutschland Waherend
der Epoche des Dreissigjarigen Krieges, Shli.iter, Hanover, 1875, especialmente p. 10-11.
8 Ver Robert B. Asprey, War in the shadows: the guerrilla in history, Doubleday Garden City,
10 Ver Michael Roberts, "The military revolution, 1560-1660", em Essays in swedish history,
Uni v. of Minnesota, Minneapolis, 1967, p. 195, 225; Geoffrey Parker, "The military revolution
1560-1660- A Myth?" Journal of Modern History, vol48 (1976), p. 195-214.
Se fosse criado por recrutamento, as oligarquias proprietarias recebiam responsabili-
dades especiais de recrutamento em suas regi5es (por exemplo, o sistema cantonal
prussiano) e direitos especiais de monop6lio do corpo de oficiais. 0 metoda sueco de
recrutamento direto de uma classe de pequenos proprietarios, cujas fazendas foram
protegidas pelo Estado, continuou sen do uma soluc;ao excepcional: foi a maior apro-
ximac;ao da parceria revolucionaria entre o soberano eo povo.
Independentemente da forma de alistamento, o financiamento da guerra ficou mais
garantido. 0 ambiente institucional mais com urn desse desenvolvimento foi urn a barga-
nha que inclufa pelo menos tres termos: a representac;ao coletiva dos proprietarios con-
tribuintes; o compromisso ativo do poder estatal, de defender o acesso preferencial dos
primeiros ao governo, ao controle de terras e vantagens comerciais; e urn acordo dos
proprietarios para ajudar a fornecer o dinheiro e homens para a guerra. Urn acordo
semelhante uniu o governo central e as oligarquias no financiamento da produc;ao de
arm as.
Dentro deste contexto de apoio, o estilo operacional dos exercitos poderia ter
sido reformado com mais facilidade. Urn comando central flexfvel, combinado com
maior poder de decisao e flexibilidade. Por outro !ado, o treinamento militar, a mar-
cha coordenada e o uso de uniformes criaram urn ambiente comum de disciplina.
Entretanto, o soldado comum se transformou num tecnico e tatico. Formac;5es de in-
fantaria se dividiram progressivamente em grupos menores, capazes de se dispersar e
reconvergir rapidamente no campo de batalha, e de se aproveitar dos efeitos mutua-
mente reforc;adores de tipos diferentes de arrnas. Assim, no novo exercito de Gustavo
Adolfo, a unidade operacional era o batalhao, urn grupo m6vel de combate formado
por lanceiros e mosqueteiros que levavam sua propria artilharia I eve. 0 poder de fogo
poderia ser usado antes da carga da cavalaria ligeira e dos lanceiros, e recuperar a
forc;a original de concentrac;ao e surpresa das manobras 11 •
Esses avanc;os nao foram atingidos de uma s6 vez. 0 tercio espanhol continuou
sendo uma fonnac;ao pesada e relativamente inflexfvel, enquanto as unidades de com ba-
te muito men ores inauguradas por Mauricio de Nassau e seus mercenarios norrnalmente
preferiam a esquiva abatalha 12 • Houve muitas ocasi5es e caminhos para chegar a resulta-
dos taticos semelhantes. A tatica usada por Cortes com vantagem tao grande contra os
astecas, foi essencialmente uma variac;ao dos procedimentos do tercio, que assumiram a
forma de comandos. Ainda assim eles progrediram na mesma direc;ao geral que as ino-
vac;5es operacionais suecas, testadas quase urn seculo depois, em Breitenfeld.
Estes desenvolvimentos no apoio e na conduc;ao da guena tornaram possfveis
tanto o fomento da produc;ao de novas armas quanta o desenvolvimento de suas impli-
cac;5es taticas. Os mosquetes mais !eves e de carga rap ida e a artilharia m6vel de campo,
introduzidos durante a Guerra dos Trinta Anos, foram produtos de parceria contfnua
entre governos e fabricantes. Foram tambem os primeiros resultados de urn processo de
11 Ver Michael Roberts, "Gustav Adolf and the art of war", em Essays in Swedish History, p. 56-81.
12 Ver Werner Hahlweg, Die Heeresrefonn der Oranier und die Antike, Nunker, Berlin, 1941,
p. 33-38.
inova~ao tecnica acelerada em que curiosos e cientistas pniticos aprenderam a en tender
as maquinas: a estabelecer urn catalogo limitado de pe~as e princfpios de constru~ao. As
pe~as poderiam ser montadas de forma diferente e os princfpios serem usados em uma
ampla gama de contextos, de estaleiros e sinos de igreja ate armas manuais ou artilharia
de campo 13 • Mas esses saltos tecnol6gicos teriam se perdido para fins militares num
exercito incapaz de manobras rapidas, de integrar especializa~oes e de desenvolver si-
multaneamente a disciplina ao comando e a capacidade de decisao em a~ao. 0 mesmo
conjunto de melhoramentos no recrutamento, estrutura e estilo de luta do exercito per-
mitiu aos seus lfderes usar mais in tens a e eficazmente os recursos e homens dos gran des
Estados territoriais num perfodo de luta brutal entre Estados.
A base social essencial dessas conquistas militares foi o tipo de acerto com as
elites domesticas descrito anteriormente. Sua forma mais desenvolvida apareceu nos
exercitos de Brandenburgo-Pn1ssia, dado o carater mais excepcional do Estado sueco
no apogeu de seu poder militar. 0 exemplo da organiza~ao militar prussiana e impres-
sionante como fonte de ideias sabre as restri~oes que o respeito aos interesses da
oligarquia impuseram a capacidade militar, pois a Prussia foi a potencia militar mais
bern sucedida na Europa pre-revolucionaria.
Sem concessoes semelhantes as feitas em Brandenburgo-PrUssia- ou ainda exem-
plos ainda mais radicais, como os testados na Suecia e na Boemia - a base
organizacional da guerra, com as correspondentes implica~oes operacionais, nao teria
se transformado, como o fez na Europa do seculo XVII. Os exercitos europe us teriam
continuado a ser conjuntos temporarios de camponeses ressentidos e mercenarios flu-
tuantes, a quem nao se poderia atribuir maior iniciativa Hitica nem responsabilidade
tecnica. 0 financiamento e recrutamento para a guerra teriam continuado refens de
oligarcas inconciliados. A produ~ao de armamentos nao teria apoio e orienta~ao per-
manentes. Ainda assim, esses acordos tiveram efeitos limitadores na manuten~ao e
desenvolvimento da capacidade militar.
Alguns desses efeitos foram exercidos diretamente na abertura e explora~ao de
oportunidades tecnol6gicas e mobilizacionais. 0 patrocfnio governamental da pesquisa
e da industria de arrnamentos foi quase sempre pouco mais que epis6dica. Apesar de
exemplos precoces, como o Arsenal Veneziano e fabrica de corda, e da administra~ao
da dfvida fundada de Veneza, esses Estados reformados europeus nao tinham meios
institucionais com que manter urn nfvel constante de investimentos na fabrica~ao de
armas. Qualquer tentativa de forjar esses meios poderia levar esses Estados a decisoes
de investimentos com implica~oes em toda a economia e atritos com as oligarquias
comerciais. Assim, em seus esfor~os de constru~ao naval, urn reformador como Colbert
poderia se encontrar numa posi~ao intermediaria entre a responsabilidade isolada do
governo pela produ~ao e a parceria do governo com investidores.
0 perigo de estrangulamento que amea~ava a industria de armamentos era mais
serio no que se referia ao financiamento da guerra. 0 financiamento da dfvida e a repre-
senta~ao organizada dos proprietarios nas assembleias locais e nacionais certamente
13 Ver Carlo M. Cipolla, Clocks and culture, 1300-1700, Norton, New York, 1977, p. 39-40, 50-51.
ajudaram a transformar o financiamento publico em aliado e nao inimigo dos ban-
cos e empresas privados, mas em perfodos de guerra intensificada, a solicita~ao
desses mecanismos logo excedia o sua capacidade. Qualquer fragilidade do sistema
financeiro poderia transformar uma tensao marginal numa crise de grandes propor-
~6es. Assim, o envolvimento relativamente modesto da Fran~a na Guerra de Inde-
pendencia dos Estados Unidos tornou-se parte de uma sequencia de eventos que
deixaram o ancien regime aberto a destrui~ao violenta. Novamente, o esfor~o de
amplia~ao de fontes e metodos de financiamento poderia ter exigido uma mudan~a
de grande alcance da estrutura do Estado e do caniter de suas rela~6es com classes
sociais especfficas.
Concessoes semelhantes exerceram urn a influencia restritiva sobre a mobiliza~ao
de homens. Aqui os efeitos foram ainda mais complexos e sutis do que nos casos de
financiamento da guerra e de fabrica~ao de arrnamentos. 0 simples esfor~o de garan-
tir urn fluxo constante de recrutas propunha dilemas diffceis ao Estado. Tomemos a
experiencia da propria Brandenburgo-Prussia. Nas suas fases iniciais, o sistema cantonal
multiplicou as raz6es de conflitos e de corrup~ao generalizados. Para satisfazer suas
obriga~6es de recrutamento, comandantes militares e proprietarios de terras tentavam
recrutar camponeses isentos por lei dessa obriga~ao que, por sua vez, se defendiam
por meio da resistencia, suborno ou deser~ao.
Por outro lado, se o governo central interviesse para definir daramente os
direitos e responsabilidades de cada Estado, como o fez sob Frederico o Grande,
o resultado era o congelamento total da ordem social, de uma forma que lembrava
o regime de Diocleciano, no final do Imperio Romano. Essa solu~ao tinha suas
pr6prias desvantagens. 0 endurecimento das rela~6es de cada classe social com o
Estado e, atraves do Estado, com todas as outras classes, diminufa o espa~o de
conflito e inova~ao em todas as areas da vida social. Tambem mantinha o
campesinato numa condi~ao de subordina~ao institucionalizada que o tornava urn
inimigo interno permanente do governo e urn participante intratavel e rancoroso
dos esfor~os militares do Estado.
Essa ultima questao torna evidente o aspecto mais intangfvel da restri~ao a
mobiliza~ao de homens implfcita nas estrategias de acomoda~ao dos seculos XVII
e XVIII. Os governantes mal podiam contar com a popula~ao, que nao se sentia
comprometida com a sorte militar do Estado. 0 comprometimento popular teria
exigi do a confian~a popular, e esta confian~a nao haveria de crescer a menos que as
oligarquias presun~osas se impusessem urn papel mais limitado e, acima de tudo,
mais discreto. Uma mudan~a tao fundamental s6 poderia ser imaginada e concreti-
zada numa circunstancia de adiamento da !uta pelo poder governamental e pelo
privilegio privado.
Durante a parte final do seculo XVII e maior parte do XVIII, os avan~os da
estrutura e metodos militares que tinham sido atingidos durante a Guerra dos Trinta
Anos sofreram uma involu~ao caracterfstica em varias areas. Cada aspecto desse
declfnio foi incentivado decisivamente pelas acomoda~6es subjacentes a maioria
das inova~oes. Urn sinal desse retrocesso foi o triunfo de taticas de batalha rfgidas
e lineares. Esse desenvolvimento e particularmente revelador porque mostra o
desperdfcio e corrupc,:ao de conquistas posteriores as reformas operacionais do
infcio e meados do seculo XVII. A invenc,:ao da baioneta tornou possfvel abando-
nar a lanc,:a protetora, tornando as unidades combatentes menos compactas e mais
flexfveis. A produc,:ao de pec,:as de artilharia de campo mais !eves e mais m6veis
permitiu o avanc,:o mais nipido do fogo de apoio acompanhando a linha da infan-
taria e a combinac,:ao de lanc,:amento e choque. 0 desenvolvimento do mosquete de
pederneira de carregamento nipido deu maior autonomia e tornou-o menos depen-
dente do fogo de protec,:ao durante o recarregamento. Essas mudanc;as restabele-
ceram as vantagens da linha rasa. Apesar dis so, essas vantagens eram quase total-
mente perdidas pelas formac,:oes rfgidas e meciinicas do final do seculo XVII e
infcio do XVIII 14 •
Entretanto, nao se podia transformar o soldado num tecnico e tatico autonomo
se ele continuava a ser urn mercenario ou urn recruta sem nenhum compromisso com
o Estado, quando ele ainda aproveitava todas as oportunidades para abandonar a forma-
c,:ao, esconder-se ou desertar, quando suas relac,:oes com seus pr6prios oficiais ainda
eram modeladas nas do servo e do lacaio com o senhor, quando ainda lhe faltava a
exposic,:ao a responsabilidade organizacional e a destreza meciinica15 .
Outro aspecto do retrocesso foi o estrangulamento da tatica em favor da logfstica.
Os exercitos logo se viram presos a centros de suprimento fixos e vulneniveis a captura
dessas bases. Essa dependencia nao se prendia apenas a limitac,:oes da tecnologia de trans-
porte. Havia a dificuldade de estabelecer uma base de apoio financeiro suficientemente
ampla para financiar multiplos pontos de suprimento durante guerras intensas e duradou-
ras, e faze-lo sem entrar em conflito destrutivo ou impasse com as oligarquias que autori-
zavam impastos. A questao do suprimento tinha ainda mais urn lado. Urn exercito popular,
como a forc,:a revolucionatia francesa, podia transformar sua fraqueza logfstica em vanta-
gem tatica, requisitando recursos no local. Mas os exercitos das monarquias europeias do
seculo XVIII nao podiam executar esse movimento sem ver seus soldados transform ados
em saqueadores, transfonnando a populac,:ao civil num adversario indignado.
As restric,:oes diretas e indiretas impostas ao desenvolvimento da capacidade mili-
tar por estrategias de acomodac,:ao tiveram muito menos influencia sobre o poder naval.
A marinha continuou sendo o que o exercito ja tinha sido: urn corpo estranho, separado
da vida da sociedade, que podia servir como urn campo de experimentac,:ao organizacional
sem colocar em risco as instituic,:oes centrais de poder e produc,:ao. Suas necessidades de
homens eram relativamente limitadas, e sua vantagem para o comercio era 6bvia (apesar
de nao tao 6bvia para as elites comerciais holandesas e francesas). A tatica naval, que
nao podia cair facilmente na rigidez da guerra terrestre, ofereceu urn modelo inicial
14 Com relas;ao as implicas;oes taticas e operacionais mencionadas aqui, ver David G. Chandler, The m1
ofwmfare in the age of Marlborough, Hippocrene, New York, 1976, especialmente p. 28, 75-78.
15 Comparar a descris;ao da situas;ao do campones-soldado em Otto Busch, Militar-system und
Sozialleben im alten Preussen, Ullstein, Frankfurt, 1981, p. 21-50, com os ideais taticos e opera-
cionais propostos por urn reformador como Scharnhorst no seu "Three essays on light troops
and infantry tactics" (1811 ), cuja traduc;:ao esta pub1icada como apendice de Yorck and the era of
prussian reform, 1807-1815, Princeton, Piinceton, 1966, p. 242-262.
daquela relac;ao mais sutil entre comando e autonomia que seria desenvolvida de forma
tao espetacular no com bate de blindados do seculo XX. Todos estes fatores encorajararn
o desenvolvimento de uma tecnologia naval. E a vantagem naval ocidental foi crucial na
determinac;il,o dos termos precisos dos primeiros encontros com as potencias nao-oci-
dentais do Oriente. Todo o desenrolar dos acontecimentos no Japao, por exemplo, po-
deria ter sido diferente se faltasse aos invasores ocidentais a vantagem naval ou se os
japoneses tivessem se mostrado capazes de uma invasao inicial e decisiva por terra.
Os epis6dios seguintes da hist6ria militar da Europa confirmam os pontos ja
discutidos. Os exercitos da Franc;:a revolucionaria forc;aram as potencias da Europa a
entrar na onda seguinte de inovac;ao militar. 0 apelo ao povo permitiu urn grau de
flexibilidade operacional que tornou possfvel o uso dos desenvolvimentos mais recentes
de armamentos e ampliar os recursos e homens envolvidos ativarnente na guerra.
Mais uma vez, houve uma onda de acomodac;oes relativamente bern sucedi-
das. Nao existem diferenc;as entre os Estados pioneiros e os retardatarios relutantes.
Por exemplo, o recrutamento na Franc;a revolucionaria e napoleonica era limitado
pela possibilidade de o recrutado pagar seu desligamento, uma concessao as classes
proprietarias que a Prussia nao poderia permitir. Mais uma vez, essas acomodac;oes
cobraram seu prec;o em termos de capacidade militar em todos os nfveis. Mais uma
vez, as series particulares de transigencias e avanc;os ajudaram a dar forma aos con-
textos formadores de poder e produc;ao nas sociedades ocidentais. No Oeste, o pa-
drao de acomodac;:ao foi urn elemento da fixac;ao dos termos sociais da industriali-
zac;ao e dos limites externos da polftica de massas. Fora do Ocidente, lanc;ou as
bases de uma fatal vantagem ocidental em forc;a destrutiva e do tipo de Estado e
economia a que as elites e povos de outras partes do mundo tiveram de reagir. Essas
outras nac;oes, ja afirmei repetidamente, teriam de enfrentar o imperativo da
dissociac;:ao: a necessidade de separar aptidoes praticas dos fundamentos institu-
cionais originais dessas aptidoes nos pafses ocidentais centrais. Mas o ponto de
partida - a realidade oferecida a dissociac;ao - foi o resultado de lutas particulares
em varios domfnios. A busca de poder militar foi apenas urn desses domfnios. Essas
lutas, disputadas em situac;oes diferentes, em torno de questoes diferentes, nao eram
a mesma luta em roupagens diferentes, nem podem ser entendidas como epis6dios
de uma sequencia transformadora que se desenvolve inexoravelmente. Entretanto,
tiveram caracterfsticas semelhantes que revelam uma caracterfstica geral da cons-
truc;ao da sociedade: o que aprendemos delas liga a analise das aptidoes praticas e
das circunstancias capacitadoras a uma compreensao polftica geral da sociedade.
Entretanto, antes de trabalharmos essas lic;oes, temos de levar mais adiante a analise
dos exemplos europeus.
N as guerras totais do seculo XX, a intensidade tecno16gica e mobilizacional da
guerra ameac;ou repetidamente desmanchar a ordem social. Para os derrotados isso se
fez por meio da destruic;ao do Estado e da desmoralizac;ao de seus lfderes mais visf-
veis. Para todos os beligerantes, a ameac;a se concretizou por meio de uma serie com-
plicada de pressoes de guerra: a necessidade de cada vez mais aumentar o controle
sobre polfticas de investimentos e de mao-de-obra, de manter o pleno emprego, com
os riscos associados para a disciplina no local de trabalho, de introduzir novas formas
de responsabilidade conjunta de decisao de trabalhadores, gerentes e autoridades e,
especialmente, do sensa universal de que urn horror tao incalcuhivel quanta uma guer-
ra total teria de ser compensado pela criac;ao de uma sociedade que, em todos os
aspectos, pertenc;a de forma mais completa a seus trabalhadores comuns e soldados.
As exigencias tecnol6gicas e mobilizacionais da guerra intensificada tambem
impuseram restric;oes a organizac;ao pratica dos exercitos. Onde quer que inovac;oes
na estrutura de decisao e estilo operacional ten ham chegado mais Ionge, elas oferece-
ram urn contramodelo do estilo organizacional prevalente na maior parte do sistema
de produc;ao. 0 afastamento mais evidente dessa ortodoxia organizacional ocorreu no
desenvolvimento da guerra de tanques.
Quando o tanque foi us ado pela primeira vez durante a Primeira Guerra Mun-
dial, a maior parte do pensamento oficial militar o limitou a urn papel subordinado.
Alguns pensavam no tanque como apenas urn vefculo para cruzar trincheiras, uma
arma adicional de sftio. Outros foram mais adiante. 0 tanque deveria oferecer fogo
de apoio aos avanc;os da infantaria contra barragens inimigas de armas automaticas;
era mais uma vez urn lanc;ador apoiando uma carga de ataque. Tanques mais !eves e
mais n'ipidos serviriam como correspondentes medinicos da cavalaria: protegeriam
os flancos expostos da infantaria e executariam missoes de reconhecimento. Essas
concepc;oes da guerra de tanques exigiam poucas mudanc;as radicais das relac;oes
entre os corpos do exercito, de sua estrutura de comando ou de seu estilo operacio-
nal. 0 desenvolvimento tecnol6gico foi, ao contnirio, usado para preservar disposi-
c;oes e procedimentos (como a carga de infantaria) que tin ham sido ameac;adas par
outras invenc;oes tecnicas (como a metralhadora) 16 •
Os mais perceptivos entenderam que o tanque poderia significar muito mais.
Poderia se tornar uma arma de urn ramo completamente diferente. Entretanto, o
estabelecimento de unidades de tanques foi apenas o comec;o. As aptidoes da divi-
sao de tanques s6 poderiam ser completamente aproveitadas par uma nova estrutura
de comunicac;ao e controle. Nem mesmo os mais famosos comandantes de tanques
da Segunda Guerra Mundial conseguiram perceber essa necessidade. 0 oficial no
comando da tripulac;ao de urn tanque tinha de ser capaz de explorar oportunidades
repentinas de penetrac;ao r:ipida e profunda ou envolvimento. Nao podia ficar preso
a urn plano fixo preconcebido e reduzido ao papel de intermediario entre os hom ens
que davam ordens e os que as executavam. Entretanto, se a orientac;ao central nao
contrabalanc;asse esse poder de decisao, a forc;a de tanques se desintegraria e perde-
ria seu poder de concentrac;ao. Tinha de existir uma voz para dizer onde se concen-
trar e como coordenar o ataque blindado com o apoio aereo. (Os avioes poderiam
fazer pelos tanques o que uma mente militar mais retr6grada tinha desejado que os
tanques fizessem pela infantaria). Mas o comandante tinha de se mover em meio a
16 Ver Marechal de Campo Lord Carver, The apostles of mobility: the theory and practice of
armoured warfare, Weidenfeld, Londres, 1979; Edward N. Lutwak, "The strategy of the tank",
em Strategy and politics, ed. Edward N. Lutwak, Transaction, New Brunswick, New Jersey,
1980, p. 295-304.
batalha e seu plano tinha de ser revisado constantemente a luz das oportunidades
aproveitadas e dos obstaculos encontrados pela tripulac;ao de cada tanque.
Essa abordagem da guerra de tanques ilustra o estilo vanguardista de produc;ao
e guerra. E uma forma de fazer a guerra que dilui a diferenc;a entre tarefa e execuc;ao,
e entre definidores e executores de tarefas. 0 plano auto-revisavel durante a batalha
prolongada tornou-se o centro das operac;oes. Se todos os ramos do exercitos tives-
sem adotado procedimentos semelhantes, toda a maquina de guerra teria se transfor-
mado num contramodelo da abordagem organizacional e operacional que continuou a
prevalecer na industria. Dada a avassaladora convergencia de interesses preconceitos
e habitos ameac;ados por essa extensao, esse contramodelo provavelmente se firmaria
apenas onde suas vantagens praticas fossem imediatas, inegaveis e indispensaveis. As
disposic;oes economicas e governamentais das democracias ricas do Ocidente na se-
gunda metade do seculo XX teriam sido fundamentalmente diferentes se essas formas
vanguardistas de esforc;o coletivo tivessem tido oportunidade de penetrar a corrente
principal da organizac;ao industrial e militar.
CONCLUSOES PROVISORIAS
Os temas discutidos ate esse ponto no contexto dos conflitos europeus podem,
agora, ser reexaminados na situac;:ao mais ampla da hist6ria do mundo. Esse novo
estagio de analise se concentra no problema posto pela confrontac;:ao de urn Ocidente
ja industrializado e militarmente poderoso com povos nao ocidentais. Os exemplos
que vou usar para explorar essa questao sao as respostas diferentes da China e do
Japao do seculo XIX a ameac;:a militar ocidental.
Os epis6dios europeus ofereceram uma ocasiao de entender como foi possfvel,
para comec;:ar, reunir urn conjunto passfvel de desagregac;:ao. A combinac;:ao de apti-
does produtivas, formas de organizac;:ao do trabalho e aspectos gerais do Estado e da
sociedade, que pareciam ter-se ligado tao naturalmente no infcio do industrialismo
ocidental, poderiam se desagregar. 0 relata de sua combinac;:ao inicial tern de ser
compatfvel com a descoberta posterior de sua separabilidade. 0 modo de analise a ser
aplicado deve mostrar como se combinaram limitac;:oes com variabilidade para criar
as versoes iniciais de industrialismo ocidental; as conotac;:oes necessitarias serao ex-
tirpadas.
Para tanto, e util que se analisem OS desenvolvimentos numa area urn pouco
diferente da zona central do sistema de produc;:ao. Podemos, entao, en tender o perfil
do industrialismo ocidental como urn resultado de conflitos que nao apenas chegaram
a resultados incertos, mas que aconteceram em areas da vida social urn pouco diferen-
tes, em torno de questoes urn pouco diferentes e que, portanto, tiveram urn curso urn
pouco diferente. As hist6rias das aptidoes produtivas e destrutivas sao, uma para a
outra, as regioes vizinhas mais importantes.
A serie de exemplos que vou discutir colocam os mesmos problemas ao contra-
rio. Na situac;:ao tfpica, urn pafs nao ocidental enfrenta a capacidade destrutiva de urn a
potencia ocidental ja combinada, de certas formas, com urn poder de produc;:ao e con-
dic;:oes organizacionais e sociais de produc;:ao e de destruic;:ao. A questao para o pafs
ameac;:ado e para o estudante da sociedade agora e: como vamos entender a recons-
trutibilidade desse sistema, agora que ele ja esta construfdo? Se a reconstruc;:ao for
possfvel ela tern de comec;:ar por algum Iugar. Urn dos locais mais provaveis e a orga-
nizac;:ao militar e de produc;:ao de guerra. A razao para essa probabilidade e simples.
Nao se pode desprezar facilmente a ameac;:a militar: e urgente e e brutal. Mas OS
governantes e elites confrontados por essa ameac;:a nao querem redefinir toda a sua
sociedade a imagem dos invasores estrangeiros. Nao tern capacidade, tempo, nem
vontade para essa emulac;:ao fiel. Pode-se ter certeza de que vao dissociar, se soube-
rem como faze-lo.
Urn dos objetivos da discussao anterior da Europa foi sugerir uma compreensao
mais geral das relac;:oes entre aptidoes praticas e suas condic;:oes habilitadoras. A tare-
fa foi facilitada e o esquema conceitual simplificado pel a escolha de exemplos de urn
perfodo em que a capacidade militar tinha uma ligac;:ao mais tenue com o poder militar
do que a que se verificou depois da emergencia das economias industrializadas. Ago-
ra, na proxima serie de exemplos, quando a ameac;:a militar eimposta por maquinas de
guerra industriais, as bases organizacionais e sociais dos poderes produtivo e destrutivo
comec;;am a se fundir. 0 resultado e que a vi sao das condigoes favoniveis para o desen-
volvimento de aptidoes produtivas e destrutivas comec;;a a ficar indistinta das ideias
usadas anteriormente para explicar a fuga europeia dos cfrculos fechados de uma so-
ciedade agniria. Essa convergencia prepara o caminho para uma descric;;ao mais geral
das condigoes institucionais de sucesso mundial coletivo.
Meu primeiro objetivo ao comparar as respostas chinesa e japonesa a ameac;;a
militar do Ocidente nao e examinar por que, a curta prazo, o Japao foi mais bem-
sucedido do que a China. Os criterios de sucesso sao, de qualquer forma, diffceis de
definir quando sao confinados ao domfnio da riqueza e poder no mundo. Quando se
compara a China com a india durante o seculo XIX, ve-se que, a despeito da humilha-
c;;ao militar e diplomatica, a China se manteve relativamente imune a invasao governa-
mental e comercial estrangeira. Os portos abertos da China nao se tornararn, como
aconteceu em grande parte da India e o Sudeste da Asia, bases de dominac;;ao comple-
ta de todo o pafs e de sua desorganizac;;ao economica. Quando se estende a compara-
gao com o Japao de meio seculo a frente, as inferencias do sucesso japones ja nao
parecem impressionantes. Apesar de o padrao de vida material no Japao ter continua-
do muito mais alto, a incapacidade chinesa de apresentar, num perfodo anterior, uma
acomodac;;ao as tecnicas militares e produtivas ocidentais preparou o palco para uma
transformac;;ao chinesa drastica dos modelos industriais ocidentais. Nao e o sucesso
no mundo, e sim a circunstancia habilitadora do valor militar que esta no primeiro
plano da minha comparac;;ao. Mas como os confrontos armadas ja acontecem contra o
pano de fundo de economias industrializadas, as condigoes de poder militar nao po-
dem mais continuar separadas das da competencia economica, nem mesmo de forma
provis6ria ou relativa. Assim, os exemplos chineses e japoneses ampliam nos sa vi sao
e aprofundam a compreensao de duas ligac;;oes que se colocam no centro desse estagio
da minha discussao: a conexao entre capacidade pratica de produc;;ao ou destruic;;ao e
o domfnio dos instrumentos tecnicos e organizacionais, e a ligac;;ao entre esses instru-
mentos e a reforrna mais ampla do Estado e da sociedade.
Consideremos primeiramente a situac;;ao da capacidade militar chinesa na epoca
darevoluc;;ao de 1910, ou da batalha desastrosa contra o Japao no teatro da Coreia, em
1895. Houve restric;;oes formidaveis sabre todos os aspectos significativos da forc;;a
militar chinesa: a produgao de armas de fogo e navios de guerra, a mobilizac;;ao de
recursos e hom ens para a guerra e produgao de armas e a capacidade operacional real
e forc;;a organizacional das forc;;as armadas.
A China tinha sido pioneira no desenvolvimento de armas de fogo. A p6lvora,
inventada no seculo X, ja era usada no seculo XIII para lanc;;ar projeteis explosivos.
Mas con troles monopolfsticos sabre a produc;;ao de armas estabelecidos pelos chine-
ses desde a dinastia Han, o interesse de autoridades confucionalizadas num imperio
agrario fechado e a existencia de longos perfodos de paz relativa, operaram todos
contra o desenvolvimento rapido de arrnas de fogo. Da mesma forma operou, com
conseqiiencias de mais Iongo alcance, a ausencia de uma economia industrializada e
de uma interac;;ao contfnua entre a ciencia experimental e a tecnologia mecanica. Du~
rante a dinastia Ming (1368-1644 ), ficou evidente a inferioridade das armas de fogo
chinesas em relac;ao ao material belico europeu, e os pr6prios chineses o reconhece-
ram tao logo viram as primeiras armas portuguesas, em 1520. Compraram as armas e,
com ajuda estrangeira, tentaram produzi-las sozinhos. Usaram-nas para tentar afastar
os manchus. Os manchus no poder usaram-nas com sucesso contra os russos, em 1685
e em 1686. Mas na epoca da Guerra do Opio ( 1839-1842), as arrnas e artilharia chine-
sas eram fatalmente inferiores as correspondentes inglesas, e o poder naval chines
continuava sem substancia.
As condic;oes imediatas do estabelecimento de arsenais e o desenvolvimento
nipido de arrnas no perfodo posterior a Guerra do Opio tiveram duas vertentes: a
supressao das perigosas rebeli5es populares dos Taiping e dos Nien e a ameac;a de
invasao militar estrangeira, seja da Europa e Estados Unidos, seja do Japao. A respos-
ta as ameac;as ocidentais interferiu com a reac;ao contra os japoneses. 0 grau de de-
pendencia da ajuda financeira e tecnica estrangeira, aceita para esmagar a rebeliao
popular, resultou na perda da independencia militar em qualquer confronto com as
potencias ocidentais.
Os estadistas reforrnadores, autoridades subalternas e burguesia compradora* que
tiveram a iniciativa de construc;ao de urn arsenal e da reforma militar foram realistas.
Entenderam que o desenvolvimento n"ipido das arrnas de fogo e da marinha eram vitais
para a seguranc;a do estado; que o maquimirio a vapor, as tecnicas e as organizac;oes
empregadas nos arsenais teriam implicac;oes em toda a economia chinesa; que as inicia-
tivas de produc;ao e polfticas militares exigiriam amplas reforrnas administrativas, fis-
cais e sociais; e que era impossfvel prever os limites externos do impacto. Entretanto,
muitos desses reformadores parecem ter esperado que as reforrnas "auto-reforc;adoras"
deixassem inalterada a ordem hienirquica basica do Estado e da sociedade 17 . Por volta
de 1875 os principais arsenais em Xangai, Tientsin e Nankin estavam produzindo a
plena capacidade e ja tinha comec;ado a surgir uma polftica de defesa maritima nacional.
Administradores e industriais logo transportaram para outras areas da industria as for-
mas de patrocfnio governamental e de administrac;ao comercial introduzidas na produ-
c;ao de arrnamentos 18 . Os arsenais e as industrias perifericas associadas representaram o
verdadeiro infcio do poder militar apoiado pela industrializac;ao. Mas sofreram com as
restric;oes impostas pelo contexto social e governamental geral. A responsabilidade prin-
cipal por essas restric;oes coube a incapacidade de urn governo fraco de interromper as
disputas entre diferentes categorias de gerentes, comerciantes e autoridades; de reunir
os empregados e fundos necessarios; de suprimir privilegios de alguns e de tomar o
dinheiro de outros; de identificar os elementos dissidentes, ambiciosos e empreendedo-
res da elite que poderiam servir como instrumentos e beneficiarios de uma polftica como
last stand of chinese conservatism: the T'ung-Chih restoration, 1862-1874, Stanford, Stanford,
1957, p. 196-221.
IHVer Thomas L. Kennedy, The arms of Kiangnam: modernizaeion in the chinese ordnance
industry, 1860-1895, Westview, Boulder, Colo., 1978, especialmente p. I 52-I 54.
essa; e de afastar as aventuras estrangeiras ate que o Estado chines estivesse pronto para
enfrenta-las. 0 conflito como Japao imp6s aos arsenais tens5es que seus adrninistrado-
res nao estavam preparados para adrninistrar.
Os pr6prios arsenais foram urn infcio prornissor, mas abortado. Mas a base maior,
financeira e humana, da forc;:a rnilitar e da experimentac;:i'io industrial continuou intei-
ramente inadequada. Urn sinal dessa inadequac;:i'io foi a fraqueza do controle central
sobre o poder rnilitar local. Durante a luta desesperada contra as rebeli5es populares
de meados do seculo XIX, as elites locais, ja bern encasteladas no aparelho estatal,
tinham passado a liderar e comandar milfcias que eram a principal fonte de poder
militar do pafs. Esse controle forte sobre homens, que poderia ter sido usado pelos
reformadores centrais para fins rnilitares e produtivos foi urn grande aliado da caren-
cia fiscal do governo. Apesar de a carga total de impostos sobre a terra ser relativa-
mente alta, uma parte significativa ficava retida nos dedos de funcionarios e oligarcas
locais, e era utilizada para fins relativamente ni'io produtivos. A carga fiscal cafa prin-
cipalmente sobre os ombros dos pequenos arrendatarios e proprietarios, que tinham
se tornado o esteio da econornia agraria. Ainda assim, ni'io havia fundos disponfveis
para investimentos em industrias militares ou civis, nem para o recrutamento e aprovi-
sionamento de exercitos submetidos ao controle central.
Faltava ao imperio chines, em seus anos finais, urn quadro numeroso e autocon-
fiante de empresarios, oportunidades institucionalizadas de inovac;:i'io industrial e mi-
litar, e dirigentes comprometidos com a obtenc;:i'io de apoio de mass a para os esforc;:os
reformadores. Nessa circunstancia, nem as forc;:as rnilitares nem as empresas indus-
triais poderiam ter-se tornado areas em que soldados e operarios se traiassem uns aos
outros de formas ni'io testadas. 0 desenvolvimento caracterfstico ni'io foi o surgimento,
na vida interna da organizac;:i'io militar ou industrial, de urn contramodelo para a socie-
dade em geral. Ao contrario, foi uma rnistura desorientada de formas residuais de
solidariedade e deferencia camponesas com uma disciplina improvisada para tentar
realizar, de uma forma ou de outra, urn trabalho novo. Muito mais tarde, os comunis-
tas iriam explorar a organizac;:i'io auto defensiva do campesinato como base de uma
organizac;:i'io rnilitar, ao mesmo tempo em que gradualmente atrafam os camponeses
para uma estrutura diferente de hierarquia e crenc;:a. 0 fracasso na produc;:i'io de urn
experimento organizacional semelhante nos primeiros momentos da reforma militar e
industrial custou urn prec;:o muito alto. Resultou em exercitos despreparados para a
luta em pequenas unidades com grande medida de decisi'io operacional, coordenac;:i'io
e flexibilidade, e num operariado industrial que trabalhava com maior eficiencia como
urn conjunto artesiios autodidatas e engenhosos operando maquinas desconhecidas
sob urn mesmo teto.
As restric;:oes e as oportunidades dispostas ao longo do carninho do desenvolvi-
mento militar chines nas decadas finais do imperio foram parte de uma luta maior em
torno do controle e usos do poder governamental. 0 Estado Ch'ing dos ultimos anos
emergiu com poucas vantagens de suas lutas contra insurreic;:oes de mass a e contra as
invas5es estrangeiras de meados do seculo XIX. As relac;:oes de quadros proprieta-
rios, comerciantes e funcionarios, entre si e com o governo, foi urn elemento irnpor-
tante da hist6ria. No final da era Ch'ing, a elite de proprietarios, comerciantes e oficiais
estava suficientemente unida em torno de seus interesses percebidos e crenc;as ativas
para monopolizar a seu favor os poderes do Estado e para se unir agressivamente
contra qualquer forc;a que pudesse ameac;ar seu acesso privilegiado aos governos cen-
tral e locais. Mas era tam bern suficientemente diversificada para negar uma base am-
pia de apoio a qualquer grupo reformador que propusesse realinhamentos ousados
visando a continuidade essencial e salvac;ao nacional. A pressao para deiTotar os re-
beldes populares tinha levado altos funciom1rios a entregar a autoridade efetiva sobre
as forc;as militares locais aos lfderes da pequena nobreza local. As formas corporativas
decadentes de vida nas aldeias tinham sido substitufdas em grande parte por essas
novas formas de organizac;ao local militarizada, controladas pela pequena nobreza E
os movimentos refmmistas que buscavam o autogoverno tinham se transformado num
disfarce para a manipulac;ao da administrac;ao local por proprietarios e comerciantes e
para o apagamento das linhas entre governos e oligarquias locais. 0 Estado foi
canibalizado em suas fundac;oes.
Outros aspectos da situac;ao vern a luz quando se muda 0 foco para OS acordos
dessa oligarquia com as massas rurais- pequenos proprietarios, pequenos atTendata-
rios e trabalhadores agrfcolas- e com as elites dissidentes intelectualizadas que cres-
ciam nas grandes cidades. Nos dois casos, os primeiros anos da Republica esclarece-
ram os fatos e suas implicac;oes.
Quando se considera a extensao em que a base da administrac;ao tinha sido captu-
rada por urn a classe proprietaria relativamente unida com rafzes locais profundas, pare-
ce surpreendente que os Ch'ing tenham visto tao pouco do que eu descrevi ha pouco
como a reversao a economia natural. De fato, pequenos arrendamentos e propriedades
continuaram a representar a parte mais significativa e crescente da produc;ao agraria.
Todos os setores da populac;ao participavam muito das atividades de mercado 19 .
A explicac;ao esta nas conseqiiencias da interac;ao anterior entre reformas de
estruturas governamentais e o aprofundamento da comercializac;ao da economia. 0
Estado, sob o impacto de encontros sucessivos com povos das estepes, tinha adquiri-
do os meios institucionais com os quais garantir uma presenc;a local minima e salvar-
se da inanic;ao fiscal e da impotencia administrativa. Ao mesmo tempo, as elites ti-
nham sido progressivamente redefinidas de formas que exigiam sua participac;ao ativa
tanto nos mercados quanto na administrac;ao. Suas formas caracterfsticas de domfnio
das mass as rurais operavam por meio das instituic;oes governamentais e de mercado, e
nao em torno de las ou contra elas. Esse fato ilumina a importancia de varias formas de
"proprietarismo parasitario" e de manipulac;ao da carga tributaria.
Embora essa nao tenha sido a formula do colapso economico e governamental
total, significou que as massas de cidade e campo foram roubadas de facilidades le-
19 Para uma anaJise do estado final da economia agniria baseada no dinheiro na China antes do
estabelecimento do comunismo, ver Ramon H. Myers, The chinese peasant economy: agricultural
development in Hopei and Shantung, 1890-1949, Harvard, Cambridge, 1970, especia1mente p.
288-291. Estudos como ode Myer confirmam a vi tali dade de uma ampla gama de propriedades
de grandee pequeno partes. Mas tambem mostram a estagnac;:ao tecnol6gica que normalmente
acompanha a fuga gradual e nao conflituosa dos cic1os de reversao.
gais e de oportunidades economicas para auto-organizar,;ao recorrente. N ada indica
melhor esse fato do que a substituir,;ao funcional das forrnas corporativas de organiza-
r,;ao da vida nas aldeias por milicias locais controladas pela pequena nobreza20 . A
estrutura comunitaria da vida popular local sobreviveu, se chegou a tanto, porque o
lider da pequena nobreza era tambem chefe de linhagem ou porque em momentos de
crise economica ou militar a aldeia continuou a se unir para. a autodefesa. Nessas
circunstancias, a organizar,;ao popular coletiva, quando conseguia emergir, assumia
imediatamente forrnas disfarr,;adas ou adversarias. Essa militancia de oposir,;ao subter-
ranea incentivou sociedades secretas e inspirou contramodelos de comunidade e hie-
rarquia durante seus perfodos de resistencia bern sucedida. 0 espar,;o para respirar em
que os trabalhadores poderiam se organizar coletivamente tinha sido sempre a distin-
r,;ao parcial entre administrar,;ao do Estado e as elites locais. Sempre que essa distinr,;ao
desaparecia, os operarios e pequenos proprietaries e arrendatarios tinham problemas.
Dirninufam suas oportunidades de militancia nao violenta organizada.
Outro aspecto da situar,;ao foi a relar,;ao entre a oligarquia economica e go verna-
mental dominante de base local e as elites mais ocidentalizadas e desligadas que sur-
giram nas grandes cidades. Nao tendo ligar,;6es com as bases do poder no campo e nas
cidades men ores, essas elites dissidentes tinham pouco compromisso com a preserva-
r,;ao da ordem social estabelecida. Seu nacionalismo e esquerdismo vagos transforma-
ram-se no cadinho de agitar,;ao republicana e resistencia nacional. Esse ativismo teve
papel importante no avanr,;o comunista numa epoca em que o campesinato nao estava
respondendo, quando o golpismo esquerdista tinha sido eliminado pela vacilar,;ao so-
vietica, e quando a politica de unidade nacional contra o in vas or ofereceu urn escudo
valioso para a construr,;ao de exercitos revolucionarios e apoio popular.
Desta forma a China testemunhou uma paralisia de longo alcance do poder do
Estado e a negar,;ao de oportunidades de mobilizar,;ao popular recorrente. Todos os
aspectos particulares da restrir,;ao ao desenvolvimento de aptid6es militares podem
ser buscados nesta circunstancia mais fundamental. Como toda situar,;ao real, entre-
tanto, essa estava cheia de oportunidades despercebidas e perdidas. Houve muitos
momentos em que uma alianr,;a de estadistas reforrnadores com a pequena nobreza,
funciomirios e intelectuais descontentes poderia ter dominado o Estado e tirado seus
poderes do controle das oligarquias locais. Dentre essas ocasi6es, a mais impres-
sionante foi a reforma dos cern dias, durante o perfodo final da dinastia Ch'ing, em
1898. Quis o destino que o jovem imperador Kuang Hsu e sua corte reformista
fossem derrotados e destrufdos pela rear,;ao organizada em torno da Imperatriz Viu-
va. Golpes de Estado reformistas poderiam, por sua vez, ter-se combinado com
mais ou menos apelos a organizar,;ao de massas. 0 movimento para atrair as massas
poderia nao iniciar urn plano de reforma radical, mas poderia facilmente ter-se trans-
formado num incidente no esforr,;o de reforrnadores sitiados para manter o poder por
quaisquer meios.
20 Ver Philip A. Kuhn, Rebellion and its enemies in late imperial China: militarization and
21 Ver W.G. Beasley, The Meiji restoration, Stanford, Stanford, 1972, p. 123-124.
22 Ver Kajinshi Mitsuhaya, "The birth of heavy industry in Japan: with reference to a re-
examination of the Meiji restoration", resumido em An outline of japanese economic history,
1603-1940, eds. Mikio Sumiya e Koji Taira, Univ. de Tokio, 1979, p. 201-203.
23 Ver E. Herbert Norman, Soldier and peasant in Japan: the origins of conscription, Univ. of
24 Ver StephenS. Large, Organized workers and socialist politics in interwar Japan, Cambridge,
Cambridge, 1981, p. 40-50; Andrew Gordon, The evolution of labor relations in Japan: heavy
industry, 1835-1955, Harvard Univ. Press, Cambridge, 1985, p. 116-121,211-235.
financeira ao alcance do governo. 0 resultado, que visto em retrospectiva parece tl'io
natural, foi na verdade constantemente ameac;:ado por dissenc;:oes internas nos cfrculos
dirigentes da sociedade japonesa e por tentativas desesperadas de trabalhadores e
agitadores de achar urn futuro alternativo.
A capacidade militar cujos elementos acabei de descrever resultou de duas li-
nhas de desenvolvimento entrelac;:adas. Uma delas foi a associac;:ao estabelecida entre
o Estado restaurado, as elites realinhadas e a populac;:ao trabalhadora. A outra envol-
veu as relac;:oes do imperio com as potencias estrangeiras.
Para entender a primeira dessas duas seqiiencias, tem-se de distinguir as ambi-
c;:oes e alianc;:as que produziram a Restaurac;:ao Meiji a partir do conteudo da polftica
governamental no perfodo que se seguiu a ela. Nao existe inferencia direta das primei-
ras para a segunda. Muitos dos grupos mais importantes na derrubada do regime
Tokugawa sofreram derrotas e desapontamentos nas lutas facciomirias que ocorreram
desde o momento exato da queda do bakufu. Ninguem poderia prever com seguranc;:a
as identidades de vencedores e vencidos nessa disputa gerada pelos acontecimentos
que tinham levado arestaurac;:ao ou por quaisquer caracterfsticas enraizadas da socie-
dade japonesa.
No final do regime Tokugawa, pelo menos dois grupos sociais importantes con-
tinuaram imperfeitamente integrados aestrutura do Estado: o samurai de aldeia ou de
nfvel medio e os proprietarios e empresarios mais empreendedores da economia agra-
ria comercializada e da artesanal, que foram em grande parte exclufdos dos beneffcios
imediatos da participac;:ao no poder do Estado. Os empreendedores foram hostilizados
pela regulamentac;:ao governamental, que nao conseguiu quebra-los ou amansa-los.
Os samurais foram cortados da estrutura bakufu sem perderem sistematicamente os
meios de agir violentamente. Os dois grupos ofereceram apoio vital para o movimen-
to de restaurac;:ao. Nenhum dos dois tinha correspondente na China, onde a entente
relativamente fechada entre funcionarios, proprietarios e comerciantes tinha se ani-
nhado profunda e uniformemente na estrutura das administrac;:oes locais e da forc;:a
militar. Alem dis so, os governos locais tinham maior autonomia do que as autoridades
regionais chinesas. De modo geral, as elites japonesas tinham uma consciencia mais
clara da caracterfstica e da vulnerabilidade nacionais do que as chinesas.
Mas o conteudo das reformas cruciais na primeira decada do novo regime foi
outro assunto. Que a reforma e a administrac;:ao do imposto sobre a terra seria mais
favoravel aos grandes proprietarios do que aos pequenos arrendatarios ja era esperavel,
considerando-se as forc;:as em ac;:ao antes e durante a restaurac;:ao. Mas a destruic;:ao ou
redefinic;:ao dos privilegios dos samurais foi o trabalho de homens ansiosos por evitar
a imobilizac;:ao dos recursos financeiros e militares pel a casta estipendiaria. Com suas
vit6rias durante as lutas do infcio da era Meiji (1868-1912), esses homens desejavam
e obtiveram uma margem maior de manobra para rever a situac;:ao organizacional da
produc;:ao, administrac;:ao e guerra, de formas que combinaram os interesses nacionais
e oligarquicos.
A tomada do Estado, o uso de excedentes agrfcolas para financiar a industria de
orientac;:ao militar e o cuidado de evitar aventuras militares prematuras permitiram
uma medida crescente de independencia do controle estrangeiro. Cada avanc;:o da au-
tonomia nacional, por sua vez, ampliava as opc,:6es do Estado para redefinir a relac,:ao
do pafs com alianc;as e com a economia mundiais.
Por todos esses meios, o poder governamental se desligou de uma ordem de
privilegios tao restritiva que teria bloqueado qualquer sequencia de tentativas e erros
na busca das condic,:6es habilitadoras do poder econ6mico e militar. Ainda assim os
ricos e poderosos retiveram uma identidade continua; os derrotados na lutas sangren-
tas do novo regime ganharam uma oportunidade de sobreviver e prosperar com uma
nova identidade. 0 realinhamento das elites, a redefinic,:ao do controle da terra e das
disposic,:6es relativas ao imposto sobre a terra, e a criac;ao precaria de urn regime
semiconstitucional de govemo e relac,:6es industriais, todos criaram uma estrutura dentro
da qual os grupos poderiam se redefinir e se reorganizar. Entretanto, nao se perrnitiu
que essa oportunidade limitada de militancia coletiva recorrente pudesse evoluir ate
urn estilo de mobilizac,:ao de massas e de invenc,:ao institucional que pudesse ter produ-
zido urn sucesso industrial mais inovador. Poder centralizado, resoluto, relativamente
disponfvel para uso transformador e capaz de suportar uma atmosfera de oportunida-
des limitadas e diferenciais, mas reais, de redefinic,:ao e auto-organizac,:ao coletiva-
foi essa a conquista essencial do Estado Meiji, a fonte de sua superioridade sobre a
China Ch'ing e sua contribuic,:ao para o sucesso militar e industrial do Japao.
0 estudo comparativo das experiencias chines a e japonesa sugere duas conclu-
s6es associadas. Uma delas tern a ver com a natureza de liberdade e restric,:ao na
relac;ao entre circunstancias habilitadoras e capacidade pnltica. A outra conclusao
trata da ligac,:ao entre as bases da capacidade militar e da produtiva e entre a linha de
discussao desenvolvida nesse capitulo e a visao do desenvolvimento do Atlantico
Norte sugerido em capftulos anteriores.
Nao se deve ler esta discussao comparativa como uma analise das raz6es por
que a China do final do seculo XIX estava fadada ao fracasso e o Japao do final do
seculo XIX, a garantia de sucesso em seus esfon;os respectivos para enfrentar a amea-
c;a ocidental. Deve ser lembrada a relatividade do sucesso e fracasso, que se torna
evidente quando se adota uma visao de mais Iongo prazo. Consideremos a enorrne
importancia do efeito que cada urn desses pafses teve sobre o outro ao Iongo de suas
respostas contrastantes as potencias ocidentais. Tenhamos em mente as oportunidades
que se perderam por pouco em cada situac;ao crucial dos acontecimentos.
E verdade que toda medida de sucesso serviu como uma plataforma da qual se
lanc;aram novos avanc;os. Na experiencia japonesa, o reforc,:o recfproco da reforma
domestica e autonomia extema tiveram enorme importancia. De forma mais geral,
todo passo em direc,:ao ao desengajamento do poder governamental de uma estrutura
de privilegio e alianc,:as coletivas, de urn esquema fixo de hierarguias e divis6es so-
ciais, multiplica as opc,:6es para o passo seguinte. Afrouxa a ligac,:ao entre atividades
militares, produtivas ou administrativas e suas bases organizacionais e entre essas
bases eo ordenamento geral do Estado e sociedade. Permite alideranc;a reformista ou
revolucionaria buscar a redefinic,:ao dessas hgac,:6es que seja tanto eficaz quanta (a
seus olhos) justificavel.
Mas pode-se exagerar a compreensao do sucesso como conseqiiencia do suces-
so e do fracasso como conseqiiencia do fracasso. Pais urn dos fatos impressionantes
acerca de qualquer situas;ao hist6rica real e a inversao freqiiente de hierarquias de
vit6rias aparentes. 0 poder se paralisa pelo privilegio e a organizas;ao coletiva pelos
acordos e hierarquias cristalizados que surgem quando as pessoas imaginam ter ven-
cido essas ameas;as ao sucesso no mundo. As oportunidades de polfticas transforma-
doras- reformistas ou revoluciomirias- aparecem de repente, no momenta em que o
govern a parece indefeso e qualquer reestruturas;ao das alians;as coletivas parece abso-
lutamente fora de questao.
Mais uma vez, pode-se razoavelmente inferir da discussao comparativa que,
por varios criterios, o Japao, em 1860, estava em melhor posis;ao do que a China para
atingir uma acomodas;ao limitada e reformista ao poder militar e industrial do Ociden-
te. A grande vantagem do Japao pode ter sido a existencia de elites locais significati-
vas que estavam imperfeitamente incorporadas aestrutura do govern a centrale a cujos
olhos a sociedade- a sociedade que contava- ja estava em gue!Ta com o Estado. Se
pretendesse ter sucesso, a China, ao que parece, teria sido fors;ada desde o infcio a
uma ruptura muito mais radical com a ordem social e governamental estabelecida.
Entretanto, esse julgamento da vantagem relativa de uma polftica de reforma
protetora e muito mais experimental do que possa parecer, a primeira vista. Quanta
mais detalhadamente se estuda a sequencia de acontecimentos na China, mais se fica
impressionado com o numero de oportunidades em que algum pequeno grupo refor-
mista chegou proximo da tomada do Estado. 0 maximo que se pode afirmar plausi-
velmente e que, na China, esse grupo teria sido fors;ado a apelar para urn maior apoio
de massas do que foi necessaria para os fundadores do Estado Meiji. Os reformadores
chineses teriam de enfrentar uma elite mais profunda e uniformemente aninhada nos
privilegios do governo local, uma ameas;a externa mais imediata e uma tarefa muito
maior de comunicas;ao e controle. Sob esse ponto de vista, os reformadores chineses
teriam sido levados a expedientes mais radicais ou teriam perdido a oportunidade de
sobrevivencia. A analise comparativa caminha sabre teiTeno mais firme quando suge-
re que, em qualquer nfvel de radicalizas;ao e acomoda<;ao, as solu<;oes de chineses e
japoneses teriam de ser diferentes no conteudo particular de suas alians;as de apoio e
seus programas de transformas;ao.
Ainda assim, a historiografia vulgar e a ciencia social, teorias sociais de 16gica
profundae o preconceito com urn unem-se todos para dar uma aparencia de necessida-
de retrospectiva a resultados diferentes. Ridicularizamos os historiadores da corte de
antigas monarquias agrarias por sua subserviencia. Pelo menos eles professavam a
procura de urn ensinamento moral no fato realizado. Alguns ate mesmo usavam as
li<;oes da hist6ria para insistir na sobriedade dos poderosos. Os necessitarios de hoje
nao tern essa desculpa.
A compreensao e o aproveitamento do imperati vo
da plasticidade social
0 interesse que orienta a teoria explicativa pode ser descrito de varias formas
equivalentes. A maioria das teorias sociais mais abrangentes e influentes apresentadas
nos dois ultimos seculos sofre de uma tensao interna. A tensao e especialmente nota-
vel nas doutrinas- entre elas, principalmente o marxismo- que ofereceram a esquer-
da seus instrumentos intelectuais. Todas essas teorias, sejam ou nao radicais as suas
inten<;:6es, veem a sociedade como urn artefato. Tratam qualquer organiza<;:iio da vida
social como se tivesse sido criada e imaginada e nao dada a partir de urn padrao eterno
da natureza humana ou da harmonia social. Portanto, elas tambem enfatizam as
descontinuidades nftidas entre formas de vida social, reconhecendo cada uma dessas
formas como a expressao de uma forma diferente de se ser humano.
Ainda assirn, essas teorias trafram repetidamente o entendimento da sociedade
como artefato por meio da forma como transformaram essa compreensao numa pn'iti-
ca concreta de explica<;:iio social. Suas ambi<;:6es te6ricas se prenderam ao desenvolvi-
mento de uma suposta ciencia da hist6ria e da sociedade. Essa ciencia apresenta o
hom em como o produto de uma 16gica evolutiva, ou de restri<;:6es profundas de ordem
econ6mica, organizacional ou psicol6gica que ele nao tern meios de alterar. 0 enfra-
quecimento da inten<;:iio de execu<;:ao pode se justificar pelo sentido de que sem essa
prote<;:iio cairfamos no agnosticismo te6rico, e a polftica transformadora perderia a
orienta<;:iio intelectual. 0 resultado e tornarmo-nos cada vez mais sujeitos a influencia
dos mundos sociais que habitamos.
Mas a teoria explicativa da False necessity prop6e mostrar que podemos resol-
ver esse dilema aparente. Podemos estender ao limite a ideia da sociedade como arte-
fato. Alem disso, podemos faze-lo sem nos abandonarmos ao niilismo te6rico e sem
diminuir a capacidade de resistencia a ordem social estabelecida. Dessa forma, urna
maneira de descrever a teoria explicativa da sociedade proposta neste livro e dizer
que ela leva ao extremo a ideia da sociedade como a! go feito e imaginado. Argumenta
que quando chegamos a esses extremos, la encontramos teoria e nao a sua ausencia.
Uma segunda interpreta<;:iio nos diz que este livro representa uma tentativa de
tomar partido num debate dominante, apesar de em grande parte implfcito, que se
desenvolve no pensamento social moderno, e de mudar os termos dessa controversia.
De urn lado estao pessoas - conservadores, esquerdistas ou centristas - que afirmam
que as formas atualmente disponfveis de organiza<;:iio social refletem restri<;:6es pro-
fundamente arraigadas ou uma 16gica de desenvolvimento social. Alternativamente,
essas pessoas explicam as institui<;:6es de cada sociedade como os resultados acumu-
lados de muitos epis6dios de acomoda<;:iio de interesses e de solu<;:iio de problemas.
Segundo eles, esses resultados sao fonnados por fatos objetivos relativos aos interes-
ses reais e acomoda<;:6es possfveis, problemas reais e solu<;:6es possfveis.
0 que querem dizer OS adversarios dessas pessoas ao afinnar que tudo e polfti-
ca? No mfnimo, eles pretendem negar que as formas estabelecidas de organiza<;:ao
social refletem essas for<;:as irresistfveis e impessoais. Ao contrario, esses crfticos di-
rigem nossa aten<;:iio para a seqUencia particular de conflitos praticos e simb6Iicos,
dos quais surgiram as disposi<;:6es estabelecidas. Estao interessados nos conflitos que
envolvem, primeiro e mais importante, as lutas em torno do uso e domfnio do poder
governamental (polftica no sentido estreito). Mas esses conflitos incluem tambem as
disputas de todos os recursos materiais ou intangfveis com que criamos o futuro social
a partir do presente social. Ao negar que as disposic;:oes sociais correntes refletem
uma necessidade pn'itica ou racional mais alta, os crfticos pretendem argumentar que
essas disposic;:oes podem ser refeitas e reimaginadas.
0 slogan de que tudo e polftica nao e mais que urn deflacionador das alegac;:oes
da teoria social: o esti.lo recebido de generalizac;:ao no pensamento social e na escrita
hist6rica explica o conflito relativo a estruturas institucionais e simb6licas, a luta que
se da em todas as sociedades relativa aestrutura dentro da qual ela acontece. Assim,
OS adversaries das pessoas que dizem que tudo e polftica podem plausiveimente afir-
mar que o esforc;:o daqueles a quem criticam e improdutivo. Pois nao podemos agir
para mudar a sociedade de forma radical, a menos que tenhamos ideias que tornem
claros os padr6es de restric;:ao e oportunidade na nossa situac;:ao hist6rica e que escla-
rec;:am os efeitos provaveis de nossas ac;:oes.
A teoria explicativa da False necessity toma decisivamente o partido daqueles
que dizem que tudo e polftica. Mas ao tamar partido, a argumentac;:ao do livro afirma que
podemos desenvolver a ideia de que tudo e polftica num conjunto abrangente de
conjecturas e praticas explicativas. A teoria resultante continua fiel a tudo o que os
crfticos pretendem, com a possfvel excec;:ao da sua hostilidade caracterfstica a teorias
abrangentes. Mas essa hostilidade, na minha opiniao, esta mal-colocada. A teoria so-
cial pode ser depurada das qualidades que esses antite6ricos acham tao condenaveis,
desde que nos disponhamos a aceitar uma alterac;:ao fundamental do nosso sentido do
que significa explicar urn estado de coisas. De fato, se quiser evitar a trivializac;:ao e o
paradoxa, o ataque a identificac;:ao das disposic;:oes sociais prevalecentes com necessi-
dades praticas deve se armar teoricamente.
Existe ainda uma terceira forma de definir o ponto principal da teoria da False
necessity. Pode sera mais reveladora dentre todas essas afirmac;:oes porque ~e refere a
enigmas e problemas permanentes e nao ao desenvolvimento de uma tradic;:ao te6rica
especffica nem da soluc;:ao de uma controversia contemporanea particular. A visao
explicativa da False necessity tenta fazer justic;:a a dois aspectos de nos sa experiencia
da vida social que parecem diffceis de conciliar.
Em toda circunstancia social, grande parte do que acontece pode ser explicado como
o produto do contexto institucional e simb6lico (ordem ou estrutura) dentro do qual ocor-
rem os conflitos e as atividades rotineiras. Onde quer que olhemos na hist6ria, identifica-
mos urn pequeno m1mero de disposic;:oes e preconceitos basicos que se rnisturam para
exercer uma influencia enorme sabre a vida social. Com freqilencia temos a impressao de
ser meros fantoches dessas estruturas ou das forc;:as que as geram e mantem.
Mas nossa experiencia tam bern mostra outra face. As vezes afastamos essas estru-
turas. Pensamos e agimos de forma incongruente e surpreendente, como se elas nao
fossem reais, como se estivessemos apenas fingindo obedecer a elas enquanto espera-
mos uma oportunidade de desafia-las. Nao vivemos sem urn conjunto de disposic;:oes
institucionais formadoras e os ideais realizados de associac;:ao humana, nem consegui-
mos superar completamente o contraste entre as coisas a que podemos aspirar nos
nossos conflitos e atividades diarios e aquelas a que nao podemos. Mas rompemos as
estruturas estabelecidas. E possfvel substituf-las passo a passo, quando for impossfvel
faze-lo totalmente e de uma s6 vez. Reduzimos a forc,:a com que elas nos restringem e
nos aprisionam. Mais importante, essa atividade de perturbac,:ao e invenc,:ao de estrutu-
ras nao e govern ada par qualquer sistema de restric,:oes e tendencias com a aparencia de
leis, e certamente nao 0 e pela 16gica evolutiva de imperativos praticos inexoraveis
invocados tradicionalmente pelas teorias sociais modernas mais ambiciosas.
A pratica explicativa desenvolvida em False necessity sugere uma forma de nos
imaginarmos na sociedade e na hist6ria que fac,:a justic,:a a esses dois aspectos contrastantes
de nossa experiencia. Essa tarefa nao pode ser executada pela simples justaposic,:ao dos
dois conjuntos de observac,:oes- as restric,:oes da estrutura e nossos poderes de perturba-
c,:ao da estrutura- pais nao sabemos qual o credito a ser atribufdo a cada uma del as em
qualquer situac,:ao particular. Precisamos de uma visao desenvolvida e comprovada. Urn
sinal do poder de urn a vi sao como essa e o fato de ela criticar e ajudar a mudar os !ados
obedientes e os desafiadores das estruturas de sociedades particulares.
A teoria social explicativa desenvolvida neste livro nao toma partido nas con-
troversias fundamentais relativas ao livre arbftrio e ao determinismo. Enquanto tratar-
mos todas as quest6es de teoria social como se fossem redutfveis aos problemas mais
gerais relativos a conhecimento, realidade e valor, ou a discuss6es concretas ou
nonnativas estreitas, nao podemos esperar que nossas abordagens de sociedade e his-
t6ria se reorientem de outra forma que nao a mais aleat6ria e inconsciente. Pois nao
conseguiremos resolver os enigmas metafisicos. Ao contrario, temos de extrair da
agenda metaffsica tradicional os problemas mais trataveis e urgentes. Em nenhum
outro assunto essa maxima e mais imperativa do que na discussao do livre arbftrio e
determinismo.
A liberdade de revisar estruturas, que ocupa lugar Hio central na teoria social da
False necessity, pode ate, de certos pontos de vista fisicalistas e teol6gicos, ser ilus6-
ria. Mas uma coisa e negar essa liberdade em nome de forc,:as internas de nossas des-
cric,:oes ou explicac,:oes sociais, e outra coisa e aceitar que essas descric,:oes e explica-
c,:oes possam nos iludir ou enganar com uma visao distante de nossa experiencia dia-
ria. Nossa liberdade continuara ameac,:ada enquanto nao tivermos urn discurso que
respeite e esclarec,:a seu sentido.
False necessity desenvolve uma abordagem antinecessitaria da explicac,:ao so-
cial e hist6rica par meio de uma tentativa de resolver urn problema explicativo parti-
cular. Esse problema e a origem e a base dos ciclos de reforma e entrincheiramento
caracteristicos tanto das democracias industriais ocidentais quanta dos pafses comu-
nistas da atualidade. Vezes sem conta, descobrimos que conflitos e atitudes partida-
rios em torno do uso do poder governamental na definic,:ao de quest6es importantes,
tais como a orientac,:ao da politica economica, movem-se entre urn pequeno numero
de opc,:oes conhecidas. Dessa forma, governos nacionais no Ocidente industrializado
oscilam entre surtos de redistribuic,:ao desanimada e tentativas de aquecer o cresci-
mento economico por meio de concess6es a gran des em pres as e ao trabalho organiza-
do. Da mesma forma, regimes comunistas oscilam regularmente entre perfodos de
centralismo e de descentralizac,:ao economicos, e cada oscilac,:ao do pendulo se apre-
senta completa com seu conjunto detalhado de tecnicas bern treinadas e dificuldades
recorrentes. Todos os grandes contendores aceitam que cada op<;ao tradicional nao
passa da segunda melhor solu<;ao. S6 raramente inclui-se ou se retira algurna op<;ao da
lista. Por que a polftica sernpre volta a propostas que oferecern tao poucas esperan-
<;as? Alguns atribuern esses ciclos cornpulsivos de polftica governarnental a resisten-
cia mutua dos interesses organizados ern sociedades altamente fragrnentadas, as quais
falta qualquer plano de divisao e hierarquia sociais. Outros enfatizarn os inevitaveis
irnperativos psicol6gicos, organizacionais e econornicos que condenarn todas as alter-
nativas irnaginarias a inviabilidade. Mas essas explica<;6es confortadoras nao funcio-
narn, e seu fracasso restaur a e aprofunda o dilema inicial. Ciclos rnisteriosos e reniten-
tes representarn urn insulto permanente a sociedades cuja cultura oficial declara que
suas disposi<;6es institucionais fundarnentais se baseiarn na vontade de cidadaos li-
vres e quase iguais e de titulares de direitos, nao na deriva<;ao cega nern na autoridade
repressora.
0 problema apresentado por esses ciclos conternporiineos de reforrna e
entrincheirarnento nas sociedades conternporaneas e apenas urn caso especial de uma
caracterfstica muito mais difusa de nossa experiencia social e hist6rica. Onde quer
que olhernos na hist6ria, vernos que o conflito ern torno do uso de recursos que deter-
rninarn a forma futura da sociedade sernpre se rnoveu dentro de urna faixa estreita.
Importante entre os sujeitos desse conflito e a controversia atual acerca da rela<;ao do
poder governarnental corn o privilegio social e acerca da natureza das refonnas neces-
sarias para proteger a ordern social estabelecida contra inirnigos internos e externos.
Mas essas rotinas de reprodu<;ao social tarnbern incluern todas as outras atividades
coletivas pelas quais os recursos econornicos e cognitivos da sociedade se rnobilizam
para perpetuar ou transformar as disposi<,:6es sociais correntes: a garna de formas
existentes de organiza<;ao do trabalho ou interciirnbio econornico e de movimentos
aceitaveis no interior da argumenta<;ao moral, polftica ou legal. Por exemplo, quando
considerarnos o alcance das op<;6es vivas de reforma institucional na alta polftica
governarnental, descobrirnos que mesmo os governantes rnais poderosos, clarividen-
tes e detenninados voltarn insistentemente a urn conjunto pequeno de estrategias sem
futuro, sernpre incapazes de atingir o que eles pr6prios consideram ser necessaria.
Agem como escravos de cornpuls6es ocultas e irresistfveis. (Urn exernplo discutido
ern detalhe ern outra parte deste livro sao as tentativas repetidas mas futeis de Hderes
dos irnperios agrario-burocraticos de preservar uma classe independente de pequenos
proprietarios capaz de oferecer ao governo central urna fonte de impastos e soldados
e, portanto, de reduzir a sua dependencia financeira e rnilitar de grandes proprietarios
e comandantes militares).
Por que se haveria de estreitar tanto o alcance da defini<;ao da possibilidade
ativa e reconhecida em todos esses teatros de conflito e escolha? As explica<;6es que
ape! am para restri<;6es de necessidade pratica ou o equilibria de interesses e opini6es
provam demais e provam muito pouco. Provam muito pouco porque as disposi<;6es
sociais que poderiam satisfazer as necessidades praticas basicas sempre parecem ser
rnuito mais numerosas do que as solu<;6es institucionais ativamente consideradas; urna
teoria social convincente deve mostrar como e porque se adota urn dado subconjunto
de op<;6es ativas. E provam demais porque a gama de op<;6es as vezes se amplia
abruptamente, e esse aumento aprofunda retrospectivamente a qualidade desorientadora
da estreiteza anterior. A tentativa de entender as for<;as que sustentam os ciclos de
reforma e refor<;o do entrincheiramento pode ser urn vefculo da empresa te6rica des-
crita no infcio deste capitulo. Pois esses ciclos apenas exemplificam a experiencia
mais geral da possibilidade restrita e reduzida: o carater fabulosamente sonambulo e
compulsivo da hist6ria, os ataques narcolepticos 9e rotina e repeti<;ao pontuados por
interludios de surpreendente inven<;ao social.
A medida que a argumenta<;ao da False necessity avan<;a, a explica<;ao dessas
op<;6es estreitamente definidas se resolve num estudo da influencia e do caniter do
que vou chamar de contextos ou estruturas formadoras da vida social; as disposi<;6es
institucionais basicas e preconceitos simb6licos que circunscrevem nossas atividades
e conflitos praticos ou discursivos rotineiros e resistem a seus efeitos desestabilizadores.
Uma teo ria social bern sucedida tern de reconhecer a influencia desses contextos. ·
Apesar disso, ela deve tambem explicar nossa capacidade de nao s6 nos rebelarmos
contra eles, mas tambem de reduzir ou intensificar a for<;a com que eles nos restrin-
gem. Ela deve reconhecer o refor<;o mutuo das institui<;6es e das cren<;as que as com-
poem. Ainda assim ela deve tam bern confirmar a frouxidao das suas rela<;6es internas.
Ela tern de nos oferecer uma forma de en tender como se constr6em esses contextos, e
ainda assim reconhecer nossa incapacidade de descobrir leis, restri<;6es ou tendencias
nao triviais que possam explicar seu conteudo e hist6ria reais.
A estrategia explicativa deste livro e essencialmente simples. Para explicar os
ciclos de reforma e refor<;o do entrincheiramento- e, de forma mais geral, a qualidade
repetitiva do conflito social- precisamos de uma teoria de contextos formadores de
como sao compostos e construfdos. Uma teoria adequada de contextos formadores,
uma teoria capaz de explicar, entre outras, a nossa experiencia de ciclos de reformas,
essa e a empresa te6rica que descrevi anteriormente de tres formas equivalentes.
Dado o seu alcance, a argumenta<;ao explicativa deste livro e, em grande parte,
especulativa. Seu principal objetivo e sugerir uma forma de entender a sociedade, e
nao descobrir fatos particulares ou testar conjecturas isoladas. Inevitavelmente, a dis-
cussao se baseia em trabalho empfric0 influenciado pelas pr6prias tradi<;5es de pensa-
mento que ela se propoe a reexaminar. 0 principal teste de uma argumenta<;iio
explicativa como esta e a sua capacidade de inspirar uma explica<;ao mais bem-suce-
dida do que as oferecidas pelas formas correntes de analise social.
Os padroes do que constitui uma explica<;ao bem-sucedida nao sao imutaveis
nem facilmente maleaveis. Nao sao urn ponto de vista de Arquimedes, pairando acima
de teorias particulares, nem o objeto de aceita<;ao arbitraria por alguma teoria. Nossas
ideias acerca do que constitui uma explica<;ao bem-sucedida mudam de forma Jenta
mas significativa, a medida que se altera a substancia de nossas ideias explicativas. A
argumenta<;ao explicativa deste livro propoe uma mudan<;a de nossas crenps aceitas
relativas a forma das explica<;5es sociais e hist6ricas adequadas.
Entretanto, e enganadora a sugestao de que somente urn distanciamento crftico
permitiria a abertura das descri<;5es e explica<;5es a verifica<;ao ou falsifica<;ao. Esta
argumenta<;ao percorre muitos problemas e disciplinas. Apresenta coniecturas relati-
vas a situa~6es, processes e acontecimentos particulares. Invoca fatos, relaciona co-
nhecimentos familiares ou menos familiares e prop6e mudan~as de enfase e de abor-
dagem na compreensao de muitos assuntos detalhados. Ao Iongo desse contorno am-
pliado de implica~6es empfricas, ela se man tern aberta a uma avalia~ao empfrica mais
direta. A avalia((ao cumulativa dessas hip6teses numerosas e relacionadas lan~a luz
sabre a promessa explicativa do m1cleo te6rico do projeto. Ao Iongo de todo esse
processo, eu rejeito todo contraste nftido entre a formula~ao de uma visao e sua con-
firma~ao, ou entre considera~6es de coerencia te6rica e apelos a pesquisa erudita ou a
experiencia comum.
Os que se acautelam contra teorias ambiciosas no estudo hist6rico e social po-
dem sentir a confirma((ao de seus receios nessa admissao do carater especulativo da
discussao. Mas nao existem alternativas incontroversas. A teo ria social: sua situar;fio
e tarefa- o volume crftico que introduz este trabalho construtivo- argumenta que a
pratica aparentemente modesta da acumula~ao indutiva pre gada por grande parte da
ciencia social contemporanea nao faz justi~a a distin~ao central entre os contextos
formadores institucionais e imaginativos e as rotinas formadas da vida social. Nao nos
ajuda a en tender como esses contextos se constituem internamente, como sao refeitos
e como dao forma a uma vida dotada de rica textura de rotinas praticas e argumentativas.
Essa falha explicativa tern conseqiiencias praticas. Ela nos desarma diante dos con-
textos sociais ao nos tornar cegos para sua influencia, sua especificidade e sua
revisabilidade. Ela engana ate mesmo o cetico, o erudito e o desiludido, levando-os a
nao reconhecer o carater provis6rio, uma colagem sujeita a altera~6es, dos mundos
sociais em que vi vern.
A unica alternativa real ao tipo de visao abrangente desenvolvida aqui seria a
que o volume introdut6rio denominou de ultrateoria: urn conjunto de praticas constru-
tivas e crfticas cuidadosamente manipuladas e brandidas militantemente para preser-
var seu poder antinecessitario. Esse estilo intelectual alternative nao e inerentemente
melhor nem pi or do que a estrategia teoricamente agressiva adotada por False necessity.
Ele simplesmente apresenta uma mistura diferente de dificuldades, perigos e oportu-
nidades. Alem disso, essa pratica ultrate6rica deve continuar a ser verdadeiramente
distinta das vers6es prostradas e falsamente modestas da ciencia social, e se tern de
abordar a distin~ao central entre contextos formadores e rotinas formadas, ela tern de
ser tao ousada e controvertida quanta as teoriza~6es corajosas adotadas neste livro.
Temas programaticos
0 volume introdut6rio (Teo ria social: sua situa<;iio e tarefa) apresentou o diag-
n6stico crftico que constitui o ponto de partida para a teoria explicativa e programatica
introduzida em Politica. Em False necessity, a primeira parte do trabalho, esse am-
biente polemico continua quase inteiramente implfcito; oferego aqui uma visao afir-
mativa. Entretanto, para fixar com maior clareza o alcance e intengoes desta discussao
construtiva, e interessante explicitar alguns aspectos desse ambiente oculto e contro-
vertido, enfatizando as ideias que nao foram desenvolvidas no primeiro livro.
Em Teoria social: sua situa<;iio e tarefa distinguiram-se dois tipos de analise
social que definem em conjunto a dificuldade cm-rente dos estudos sociais e hist6ri-
cos: a teoria de estrutura profundae a ciencia social positivista (ou empirista). Vamos
lembrar rapidamente as caracterfsticas de cada uma.
A analise de estrutura profunda representa urn elemento importante, mas de
forma alguma exclusivo, de muitas das teorias sociais abrangentes que nos chegaram
desde o seculo XIX e infcio do XX - as teorias de que zorn bam os cien tistas sociais
contempon1neos como nome de "a grande teoria". 0 marxismo e a afirma~ao mais
coerente e influente do estilo de 16gica profunda, em bora se possa facilmente encon-
trar em trabalhos de Marx e de seus seguidores muitas ideias que nao apenas resistem
a assimilagao pelo pensamento de estrutura profunda, mas contribuem para sua re-
constru<;ao. Tres praticas explicativas recorrentes destinguem essa tradigao do pensa-
mento social.
A primeira operaqao caracterfstica da analise de estrutura profundae o esforqo
para, em toda situaqao hist6rica, estabelecer a distinqao entre as rotinas de conflito
pratico e imaginativo da estrutura ou contexto basico que da forma a esses desenten-
dimentos comuns, ao mesmo tempo em que resiste aos seus efeitos subversivos. As
teorias de 16gica profunda definem essas estruturas para incluir disposiq6es
institucionais, preconceitos imaginativos ou alguma combinaqao dos do is. A segunda
operaqao definidora e a identificaqao dessa estrutura como urn exemplo de urn tipo
indivisfvel e repetfvel de organizaqao social: indivisfvel porque seus elementos se
mantem ou caem como uma peqa unica, e repetfvel porque pode surgir em epocas
diferentes em sociedades diferentes (mesmo que sempre ocona no mesmo ponto da
seqUencia de estagios de organizaqao ). 0 terceiro movimento tfpico da analise de
estrutura profunda e o esforqo para explicar a identidade e realizaqao desses tipos
indivisfveis e repetfveis com base em tendencias com a aparencia de leis ou em restri-
q6es anaigadas de ordem econ6mica, organizacional ou psicol6gica. Essas restriq6es
ou tendencias oferecem uma lista de mundos sociais possfveis ou uma seqUencia com-
pulsiva de estagios de organizaqao social. Observemos que essa descriqao tripla da
analise de estrutura profunda inclui os estilos evolutivo e nao evolutivo de teorizas;ao.
0 marxismo e o exemplo mais importante do primeiro. 0 segundo nunca teve uma
teoria elaborada, apesar de a economia (que se tornou, a partir daf, o modelo das
principais variantes da ciencia social positivista) ter prometido oferecer uma.
A hist6ria posterior das teorias de estrutura profunda e uma das tentativas de
enfrentar as dificuldades de realizar essas tres principais operaq6es mentais diante de
fatos inconvenientes e da experiencia resistente. Destacam-se duas dificuldades asso-
ciadas. Elas se referem ao segundo e ao terceiro movimentos de estrutura profunda.
Por urn lado, parece nao haver uma lista finita de tipos possfveis de organizaqao, ou
urn numero pequeno de trajet6rias possfveis de evoluqao social. Por outro lado, as
tendencias ou restriq6es esperadas, com a aparencia de leis, nao explicam a identida-
de real nero a seqUencia de estruturas da vida social. Somente quando sao tao vagas
que explicam retrospectivamente qualquer coisa, e possfvel ocultar o fracasso
explicativo destas supostas leis explicativas.
Os proponentes da analise social de estrutura profunda enfrentam estas dificul-
dades pela diluiqao de suas propostas originais. Por exemplo; substituem uma evolu-
qao unilinear pela ideia de urn numero pequeno de trajet6rias alternativas de mudanqa
social. Mas cada urn dessas diluiq6es se mostra excessiva e insuficiente. E excessiva
para proteger a teoria anterior mais forte contra uma queda no vazio de sentido. E nao
e suficiente para enfrentar as objeq6es iniciais de seus pr6prios espfritos. 0 te6rico se
ve induzido a concess6es cada vez maiores. Mas insiste, com medo de que se nao o
fizer, venha a cair no niilismo te6rico e perder a base intelectual de uma perspectiva
crftica sobre a sociedade. Os esquerdistas tern uma razao adicional de relutancia: o
status can6nico a que os movimentos socialistas levaram o marxismo transforma a
rejeiqao das premissas marxistas num ato de traiqao da causa.
0 outro componente importante da situaqao contemporanea do pensamento so-
cial e a ciencia social positivista, empirista ou convencional. Essa fmma de analise
encara a vida social como uma serie interminavel de epis6dios de acomodas;ao de
interesses e de solu~ao de problemas. Nega o primado do contraste entre o contexto
formador e as rotinas formadas e, portanto, tambem desconsidera as descontinuidades
entre contextos. A conseqtiencia pnl.tica dessa nega~ao eo enfraquecimento de nossa
capacidade de ver o ordenamento institucional e imaginativo completo da vida social
como algo interligado, identificavel e substitufvel.
Mas o problema das estruturas sociais e de sua influencia sobre os conflitos
rotineiros que acontecem no seu interior dificilmente pode ser evitado. Mesmo as
atividades mais prosaicas de solu~ao coletiva de problemas ou de acomoda~ao de
interesses admitem a existencia de limita~5es as solu~5es ou compromissos aceitaveis
e aos procedimentos de identifica~ao e classifica~ao de problemas ou interesses. Em
resumo, admitem, com outros nomes, a existencia de uma estrutura. As variantes prin-
cipais da ciencia social positivista distinguem-se pelas praticas explicativas que lhes
permitem tanto reconhecer o problema da estrutura quanta confinar as implica~5es
desse reconhecimento.
A estrategia do agnosticismo (que se evidencia, por exemplo, nos ramos mais
austeros da microeconomia) e a de oferecer urn instrumental analftico, vazio de con-
teudo causal independente e imaginado para servir a disciplinas que deveriam ter suas
pr6prias conjecturas explicativas, independentemente justificadas. Mas nao desapare-
ce a responsabilidade de apresentar uma vi sao de contextos, de sua genese e constitui-
~ao interna; ela simplesmente se desloca para outra disciplina.
A estrategia de idealiza~ao trata a escolha de uma estrutura de forma analoga a
escolha de solu~5es ou acomoda~5es 6timas dentro de uma estrutura. Assim, as for-
mas de economia de direita mais propagandfsticas e abertamente ideol6gicas identifi-
cam certas institui~5es econ6micas com o mercado livre e tratam essa versao particu-
lar do mercado como a que faz a melhor aloca~ao possfvel de recursos. Mas a 16gica
pura da escolha otimizada se aplica a todas as ordens, sejam elas de mercado ou nao,
e os sistemas de mercado assumem varias formas institucionais concretas e, dentre
elas, algumas estao muito distantes das disposi~5es sonhadas pelos economistas con-
servadores. Pode-se generalizar essa questao: nao se pode explicar a cria~ao e trans-
forma~ao de contextos com os mesmos recursos diretos e incontroversos com que
explicamos decis6es e resultados dentro desses contextos.
Em principia, a estrategia da concessao vazia reconhece esse ultimo problema,
mas nao extrai as conseqiiencias desse reconhecimento para o exercfcio da sua pratica
explicativa. Des sa forma, a macroeconomia neokeynesiana concorda em que as rela-
~5es entre fen6menos econ6micos agregados, como a infla~ao e o desemprego, de-
pendem de determinadas disposi~5es institucionais: a forma e profundidade do sindi-
calismo ou a rela~ao de governos nacionais com o trabalhismo organizado e com os
bancos centrais. Ainda assim o conteudo de sua disciplina continua a ser uma analise
dos movimentos econ6micos num ambiente institucional que se considera dado, e nao
uma pesquisa das intera~5es entre fatos econ6micos e restri~5es institucionais. A es-
tagna~ao continuada da reforma institucional as vezes perpetua algumas rela~6es en-
tre fen6menos econ6micos. Portanto, induz a conclusao enganadora de que essas rela-
~5es sao supostas leis restritivas, inerentes a tipos de organiza~ao econ6mica muito
gerais e vagamente definidos, tais como a economia de mercado regulado. Na verda-
de, essas leis aparentes dependem de configura<;oes institucionais muito detalhadas e
relativamente ad hoc. Tao logo a! gum elemento des sa estrutura institucional comece
a mudar, as supostas leis come<;am a se desmanchar.
A teoria explicativa da False necessity representa a sequencia construtiva da
polemica contra a analise social de estrutura profunda e a ciencia social positivista.
Mas os metodos e ideias aplicados a execu<;ao desta tarefa tern origem na autocrftica
e na autocorre<;ao dessas duas tradi<;6es do pensamento social. Os materiais e os prin-
cfpios de uma visao mais defensavel estao ao alcance da mao.
Nero a analise social de estrutura profunda nero a ciencia social positivista con-
seguem resolver o problema que oferece o ponto de partida para a discussao explicativa
deste livro: o problema da explica<;ao do conteudo e persistencia dos ciclos de refor-
ma e de refor<;o do entrincheiramento nas sociedades contemporaneas. A ciencia so-
cial positivista nao consegue faze-lo porque a for<;a das restri<;6es praticas e a tensao
entre os interesses organizados nao conseguem explicar a tenacidade e substancia
desses ciclos ate que se passe a levar em conta a influencia restritiva da estrutura de
institui<;oes e ideias dentro da qual operam esses interesses e restri<;6es. Mas a ciencia
social positivista nos recusa urn meio de entender essas estruturas: sua composi<;ao
interna, sua genese e sua influencia sabre as rotinas a que dao forma.
A analise social de estrutura profundae igualmente impotente para elucidar OS
ciclos de reforma e refor<;o do entrincheiramento. Tao logo definimos os contextos
formadores institucionais e imaginativos, com o detalhe suficiente para explicar as
rotinas de conflito e polftica que ocon·em dentro deles, descobrimos que esses contex-
tos sao muito detalhados - muito presos a particulares hist6ricos -para exemplificar
de forma plausfvel urn tipo indivisfvel e repetfvel de organiza<;iio social. A incapaci-
dade da teoria social de 16gica profunda de estudar o problema dos ciclos de reforma
e apenas urn indfcio de suas dificuldades em harmonizar a pesquisa hist6rica e a expe-
riencia pratica usando apenas a cren<;a numa lista de tipos de organiza<;iio social, co-
mandados por uma dinamica evolutiva ou por imperativos arraigados de ordem eco-
n6mica, organizacional ou psico16gica.
A teoria explicativa desenvolvida neste livro reconhece a qualidade de ser a
vida social formada ou estruturada: a distin<;ao entre os movimentos rotineiros inter-
nos a urn contexto institucional e simb6lico da vida social e os conflitos mais radicais
em torno desse contexto. Por considerar seria esta distin<;ao, tam bern enfatiza a carac-
terfstica distintiva das formas de vida social mantidas por esse contexto. Mas descre-
ve e explica esses contextos sem se valer de ideias como uma lista de mundos sociais
possfveis ou como trajet6rias possfveis de evolu<;ao. Tambem nao invoca as tendencias
ou restri<;oes que possam gerar esta lista. Apesar de reconhecer o poder que conjuntos
ligados de disposi<;6es institucionais e preconceitos imaginativos exercem sobre n6s,
ela nao transfonna esse reconhecimento numa ocasiao de tratar a hist6ria como a
representa<;ao de urn roteiro escrito previamente e de tratar a sociedade como urn
produto de leis nao criadas. Assim, esta teoria ace ita o primeiro movimento da analise
de estrutura profunda, enquanto rejeita os dois outros movimentos: a classifica<;ao da
estrutura como pertencente a urn tipo indivisfvel e repetfvel e a busca de leis gerais
que governem a identidade, realiza<;ao e sucessao desses tipos. 0 resultado nao e 0
abandono de explicac;:6es hist6ricas e sociais generalizadoras, mas a transformac;:ao de
seu conteudo e caniter. A visao proposta e pelo menos tao abrangente e agressiva em
suas afirmac;:6es quanto a versao ortodoxa original de urn sistema de 16gica profunda
como o marxismo.
Ao contnirio da ciencia social positivista, esta teoria reconhece a ubiqiiidade do
contraste entre a atividade transformadora e a rotineira. Mas, ao contnirio da analise
de estrutura profunda, ela tambem afirma que podemos reduzir a forc;:a desse contraste
e ampliar o sentido de que uma ordem institucional e imaginativa da vida social se
abre a revisao. Podemos apagar esse contraste mediante o uso de invenc;:6es sociais
adequadas. Ao contrario da ciencia social positivista, esta teoria insiste na ligac;:ao dos
elementos que compoem urn contexto formador da vida social. Mas ao contrario do
pensamento de estrutura profunda, ela o faz sem cair no preconceito de que cada
estrutura exemplifica urn de uma serie de mundos sociais possfveis ou de estagios
necessarios de evoluc;:ao. Ao contrario da ciencia social positivista, ela atribui peso a
influencia que contextos sociais e simb6licos entrincheirados exercem sobre a ativi-
dade com urn e os pequenos conflitos. Mas, ao contnirio das teorias de 16gica profun-
da, ela tam bern faz justic;:a a nos sa capacidade impressionante de agir como se esses
contextos fossem fracos e como se nossa lealdade a eles fosse urn artiffcio a ser aban-
donado tao logo seja possfvel. Tal como o analista de 16gica profunda, ela prop6e uma
forma de representac;:ao e explicac;:ao da transformac;:ao das estruturas formadoras de
rotinas e geradoras de regras. Mas ao contrario da argumentac;:ao de 16gica profunda,
ela nao retrata essas mudanc;:as como se fossem, elas pr6prias, governadas por uma
estrutura presa a regras. De todas essas formas a teoria faz algo mais do que simples-
mente oferecer uma explicac;:ao diferente; ela revisa o nosso sentido aceito do que
significa explicar urn estado de coisas.
Somente uma teoria que satisfac;:a a estes criterios exigentes e capaz de extrair
de urn a vi sao da atividade human a que de enfase a nossa capacidade de revisar nossos
contextos imaginativos e institucionais, uma compreensao detalhada da sociedade.
Somente urn a teoria como esta hade nos tornar capazes de integrar teoria e historiografia
sem diluir para sempre a primeira e distorcer a segunda. Somente uma teoria como
esta hade superar o contraste ilus6rio entre a perspectiva do te6rico ou do historiador
e a qualidade da experiencia vi vida, uma qualidade que inclui tanto uma consciencia
da confusao de restric;:6es que nao reflete qualquer ordem racional superior, apenas a
redescoberta constante das oportunidades surpreendentes de transformac;:ao que sur-
gem em meio a essas mesmas restric;:6es. Somente uma teoria como esta pode nos
ensinar a forma de nos darmos mais autonomia e de limparmos da vida social os
trac;:os de dominac;:ao e despersonalizac;:ao pelo aumento do domfnio sobre os contex-
tos de nossa atividade. Somente uma teoria como esta pode evitar a traic;:ao deste
ensinamento que ocone quando apresentamos autonomia ou igualdade como resulta-
dos predeterminados de uma progressao hist6rica inexoravel.
Os temas programaticos no seu ambiente polemico impUcito
Uma prototeoria
Toda a teoria social desenvolvida neste livro pode ser vista como urn desenvol-
vimento de conceito de atividade humana delineado no infcio de Teoria social: sua
situar.;iio e tarefa. As paginas que se seguem reafirmam rapidamente este conceito.
Temos de nos preparar para mundos sociais e mentais particulares, os ambien-
tes coletivos de discurso e associa~ao humanos. Nao continuar para sempre agindo
como se tudo estivesse ao alcance da mao. Mas nao se justifica que qualquer mundo
social ou mental particular seja tratado como o rosto definitivo e incontroverso da
razao ou da civiliza~ao. Nenhum contexto tern condi~oes de incorporar todas as nos-
sas descobertas possfveis sabre o mundo, nem todas as rela~oes praticas e de paixao
que possamos querer estabelecer. Nao ha meios de resolver a tensao entre a necessi-
dade de aceitar urn contexto e a inadequa~ao de todos os contextos particulares. Mas
o sucesso na inven~ao de contextos que nos deem os instrumentos e oportunidades de
revisao pode reduzir esta tensao, reduzindo, dessa forma, o contraste entre a rotina
preservadora de contextos e o conflito transformador de contextos.
Essa redu~ao da qualidade aprisionadora de nossos contextos nao oferece ape-
n as uma solu~ao para o problema dos contextos, mas tam bern nos capacita a enfren-
tar outras dificuldades basi cas de nossa situa~ao: o conflito entre as condi~oes propi-
ciadoras da auto-afirma~ao. Para nos mantermos e nos desenvolvermos, temos de
participar de formas comuns de vida. Ainda assim, todo este engajamento nos amea~a
constantemente com a subjuga~ao a outras pessoas e com as restri~oes de atribui-
~6es ou condi~oes sociais. 0 credo do visionario modernista eo de que os mesmos
instrumentos praticos e simb6licos que refor~am nosso domfnio das estruturas
estabelecidas da vida social tambem nos ajudam a tratar do problema da solida-
riedade humana extirpando-se da vida em grupo alguns de seus males de dependencia
e despersonaliza~ao.
Ja mostrei em outro livro (Paixiio: um ensaio sabre a personalidade) de que
forma este conceito de nossa rela~ao com nossos contextos serve como ponto de par-
tida para urn estudo de nossa vida intima de en contra e como esse estudo, por sua vez,
informa urn ideal moral ou urn projeto existencial diferente. False necessity desenvol-
ve o mesmo conceito na dire~ao de uma teoria social explicativa e de urn programa de
reconstru~ao social.
Antes de come~ar a argumenta~ao explicativa e programatica de False necessity,
e importante sugerir os elementos de uma abordagem rudimentar que liga este conceito
"h~trMo rlt>. nmsa relacao com nossos contextos a teoria social proposta neste livro. 0
conjunto de noc;oes que faz esta ligac;ao eqiiivale a uma prototeoria: menos o esboc;o de
urn sistema te6rico coerente unico, do que a descric;ao de ideias que podem oferecer
uma base para muitas teorias diferentes. Essa prototeoria (ou seja, nao chega a ser exa-
tamente uma teoria), por sua vez, representa apenas uma direc;ao controvertida entre
muitas direc;oes que a visao basica da atividade humana mencionada anteriormente pode
seguir quando aplicada a explicac;ao e a crftica da experiencia social. Ainda assim, a
prototeoria liga, realmente, as propostas e explicac;oes particulares deste livro a uma
visao geral da atividade humana: a concepc;ao de nossa relac;ao com nossos contextos
pode inspirar uma compreensao basica da sociedade e essa compreensao pode informar
uma teoria social. 0 mais importante sao os resultados finais detalhados.
A afirmac;ao desta prototeoria serve a dois objetivos independentes. Prirneiro,
ela elabora a introduc;ao tematica e polemica apresentada nas partes anteriores deste
capitulo, sugerindo como essas ideias podem assumir a forma de uma visao coerente.
Segundo, ela oferece urn meio de distinguir a intenc;ao da execuc;ao. Pode-se rejeitar
grande parte da argumentac;ao programatica e explicativa deste livro, mas continuar
simpatico as ideias rudimentares esboc;adas nestas poucas paginas. Entao, tudo o que
se tern de fazer e transformar a prototeoria numa teoria melhor do que a que e ofereci-
da em False necessity.
Teses da prototeoria
A prime ira tarefa: ligar a mobilizarao de base com a disputa pelo poder go-
vernamental
' "Democracia forte" traduz "empowered democracy", que tern a conotac;ao de democracia que
artfstico (digamos, uma das pe<;:as romanas de Shakespeare) que invoca uma ordem
mais alta e renovada da vida humana e exige urn consentirnento que e tam bern cumpli-
cidade redentora. Da as pessoas urn sentido rnais tangfvel e, portanto, rnais convin-
cente, de como seriam as transforma<;:6es desejadas da vida social. 0 resultado e que
a visiio que inspira os transformadores tern mais probabilidades de atrair a vontade e
a imagina<;:iio a ajudarem a torna-la real.
Nenhum experimento prefigurador man tern o conteudo inalterado quando e es-
tendido a outra area ou transposto para outra escala. A versao fragmentaria do progra-
ma nunca e somente o programa em microcosmo. E uma opera<;:ao entre uma realida-
de estabelecida e imaginada e o esfor<;:o de avaliar as implica<;:6es de urn programa
complexo em problemas particulares.
Uma forma assumida pelo experimento prefigurador e chamada de movimento
como modelo. 0 rnovimento, como urn partido politico ou como uma confedera<;:ao
livre de atividades de base, tenta ser uma imagem do futuro que defende para o con-
junto da sociedade, o retrato da Republica verdadeira dentro da falsa Republica. As
rela<;:6es entre superior e subalterno, entre decisao coletiva centralizada e iniciativas
individuais ou faccionarias, a fusao de ideais democraticos e comunitarios e sua ex-
tensao aos acordos praticos comuns, tudo isso deve cooperar para a transforma<;:ao do
movimento num fcone vivo de seu programa. Evidentemente, a fidelidade dessa irna-
gem ao programa para toda a sociedade e limitada tanto pelas restri<;:6es das disposi-
<;:6es institucionais correntes e das percep<;:6es correntes de interesses de grupos e
pelos problemas caracterfsticos de urn partido polftico ou de urna organiza<;:ao de base.
Entretanto, a oportunidade existe por que surge da propria natureza da mobiliza<;:ao
coletiva. Lembremo-nos de que a mobiliza<;:ao coletiva acontece quando as pessoas se
unem para atingir os objetivos de transforma<;:ao pelo desafio a hierarquias e papeis
estabelecidos, mesmo que o desafio seja modesto. A mobiliza<;:ao coletiva tern a espe-
ran<;:a de mudar o contexto formador da vida social somente porque ja foge do padriio
prescrito por esse contexto.
0 sucesso do metodo de movimento como modelo depende em parte da capaci-
dade de assegurar uma parte do apoio legal e financeiro que e geralmente destinado a
organiza<;:6es que nao se apresentam como transforrnadoras. Para tanto, e interessante
explorar as sernelhan<;:as estruturais entre a organiza<;:ao passiva e a rnilitante e tirar
vantagem da capacidade de distinguir uma da outra aos olhos da lei. Por exemplo,
uma estrutura sindical unitaria, corporativa e universal, como as que se encontram em
muitos pafses da America Latina, pode ter sido criada, originalmente, por regimes
pseudopopulistas autoritarios como urn meio de mobiliza<;:ao controlada. Ainda as-
sim, uma vez estabelecida, a estrutura do sindicato e suscetfvel de tomada gradual a
partir de dentro. As partes "liberadas" do sistema sindical podem tornar-se os mode-
los fragmentarios da sociedade desejada. Eo trabalho de liberta<;:ao pode ser facilita-
do pel a incapacidade de as leis trabalhistas (ou das pessoas que as administram) dis-
criminarem com a clareza suficiente entre os sindicatos passivos e os radicais ou sin-
dicalistas militantes.
Outro fator de que depende principalmente o sucesso do movimento como mo-
e~= 1~ '
agita<,:ao e as responsabilidades comuns da vida pnitica. A expectativa de prefigura<,:ao
de urn contexto formador reordenado aumenta amedida que o movimento deixa de se
concentrar no conflito com patroes e burocratas e se transforma num ambiente onde
as pessoas realizam suas atividades nonnais. Neste ponto, o engajamento no trabalho
do movimento deixa de competir com as preocupa<,:6es pniticas ou de ser provincia
exclusiva de agitadores e politicos profissionais. Evidentemente, esse objetivo sera
atingido com muito mais facilidade se o movimento operar como uma confedera<,:ao
livre de atividades sociais e organiza<,:6es conduzidas dentro e fora das institui<,:6es
estabelecidas, do que se operasse como urn partido politico. A importancia desse ob-
jetivo e suficiente para assegurar a inadequa<,:ao de urn rnodelo partidario de pratica
transfarmadora.
0 movimento como modelo nao e a unica forma de experimento prefigurador.
Outro metoda, talvez ainda mais importante, pode ser chamado de conflito exemplar.
Toda sociedade hospeda uma serie infinda de pequenos conflitos praticos, renovados
constantemente pela ambigi.iidade das acomoda<,:6es entre grupos diferentes ou entre
esses grupos e a politica governamental. 0 movimento transformador tern de identifi-
car os rnais promissores dentre esses conflitos e intervir neles ao !ado de seus aliados
presentes ou potenciais. Deve tentar resolver as questoes de formas que indiquem
uma parte de seu programa geral. Urn sinal de sucesso nesse trabalho eo fato de uma
solu<,:ao intermedifuia oferecer uma liga<,:ao entre as premissas atuais acerca dos inte-
resses de grupo, identidades coletivas e possibilidades sociais e a forma que seria
assumida par essas premissas se o programa de democracia forte fosse geralmente
aceito e implantado. Assim, esses conflitos sao duplamente exemplares: exemplificam
as controversias comuns que proliferam em toda a sociedade, e as solu<,:6es propostas
prefiguram, mesmo que em modesta escala, disposi<,:6es institucionais alternativas.
Mais uma vez, urn exemplo ajuda a esclarecer o metoda. 0 exemplo e ainda
mais revelador por causa de sua distancia do quadro convencional da agita<,:ao social.
Considerernos as tensoes econ6micas entre pequenos e grande produtores. Nurn ex-
trema da sofistica<,:ao econ6rnica e tecnol6gica contemporaneas, os pequenos produ-
tores podem ser camponeses que trabalham na periferia da atividade agricola capita-
lizada ou em planta<,:6es relativarnente pouco mecanizadas. No outro ,extrema, podem
ser pequenas industrias de alta tecnologia que trabalham para e contra a industria de
produ<,:ao em massa, como urna vanguarda permanente e urn rival ocasional. Como
retaguarda ou como vanguarda, os pequenos produtores trabalham num ambiente eco-
nomic a e institucional desfavonivel, quando mais nao seja, par fon;:a-los a negociar
em mercados organizados principalmente pelos grandes produtares. Os pequenos pro-
dutores podem assumir urn papel subalterno e perigoso e aceitar o trabalho oferecido
a eles pelos grandes. Podem fazer pressao por maiar apoio governamental sob a for-
ma de polftica fiscal, ou de assistencia financeira, comercial ou tecnol6gica. Alterna-
tivamente, podem compor essa pressao sabre o governo com sua propria organiza<,:ao
cooperativa. Acardos cooperativos de ordem financeira, mercadol6gica ou de uso
comunitario de maquinas podem lhes permitir economias de escala, reduzir a
vulnerabilidade a flutua<,:6es do mercado e fugir de urn papel a que os grandes produ-
tores gostariam de confina-los. Assim, alguma forma de parceria competitiva entre
empresas menores e mais flexfveis pode surgir de uma disputa implfcita ou explfcita
com as empresas dominantes. A medida que expandem seus experimentos de
compartilhamento de recursos, as pequenas empresas comegam a desenvolver uma
versao do fundo rotativo de capital- urn princfpio importante de organizaqao econ6-
mica da democracia forte. A medida que combinam esse arranjo flexfvel de
compartilhamento com varias formas de apoio estatal, elas estabelecem urn modelo
preliminar de acordos entre varios nfveis de detentores governamentais e tomadores
privados de capital. Descobrem novos metodos de uso da assistencia governamental
para mudar o carater de mercados e nao para superar o principia de rnercado. De
todas essas formas eles dao uma ligao concreta de estabelecimento de uma versao
reconstrufda e dinamica da pequena empresa cooperativa. Ao participar dos proble-
mas dos pequenos produtores, e ao promover os tipos de solugao aqui descritos, o
movimento transformador pratica o metoda do conflito exemplar. 0 senti do de incon-
gruencia provocado por esse exemplo reflete a influencia de visoes injustificadamente
restritivas de como devem ser os conflitos transformadores de contexto, e de quem
podem ser seus executores.
A pratica dos conflitos exemplares pode se tornar mais poderosa quando os
radicais aprenderem a associar as solug6es praticas que defendem com os ideais im-
plfcitos nos modelos mais moral mente ambiciosos de associagao humana: os modelos
que prometem conciliar mais completamente as condig6es capacitadoras da auto-afir-
magao. A democracia representativa e a comunidade privada sao os mais importantes
dentre esses modelos nas sociedades as quais se destina mais diretamente o programa
de democracia forte. As solug6es exemplares para conflitos exemplares- as solug6es
que permitem antever mais fielmente o programa transformador- sao tam bern as que
estendern os ideais e praticas democraticos ou comunitarios ate areas da vida social
on de eles nao existiam e as que reconstr6em esses ideais durante o processo de estende-
los. Por esses meios a pratica do conflito exemplar ganha o elemento de intensidade
visionaria que de outra forma !he faltaria.
A organiza<;ao do antigoverno:
a estrutura de associa<;ao voluntaria
0 conceito central
0 primeiro nfvel, o fundo social de investimento, fica sob o controle dos corpos
executivo central e representativo da democracia forte. 0 fundo social central cria
fundos de investimento competitivos, que formam o segundo nfvel do sistema. Pode
abrir fundos novos, encerrar antigos e transferir recursos de uns para outros. Mas sua
tarefa mais importante e definir OS Jimites de variac;ao dentro dos quais OS fundos de
investimento competitivos devem operar. Alguns Iimites sao institucionais; outros
parametricos. As decis5es institucionais definem Iimites para as formas permissfveis
de organizac;ao da produc;ao e trocas. As decis5es parametricas influenciam o empre-
go e custo do capital, principalmente por meio dos juros cobrados pelo seu uso. Sao
institucionais e parametricas as regras e polfticas que restringem as disparidades de
salarios e autoridade ou o direito de o pessoal da empresa distribuir os Iucros do
neg6cio como renda conente.
Dentre as principais decis5es parametricas ou institucionais a serem tomadas
pelo fundo estao: a taxa basica de juros a ser cobrada dos fundos especializados; a
escolha entre a realocac;ao forc;ada de recursos e taxas variaveis de juros como formas
alternativas de controlar o tamanho relativo dos fundos especializados e as relac,:oes
entre os grandes setores da economia; os regimes ou termos alternativos sob os quais
os fundos especializados do segundo nfvel podem oferecer capital; as restric,:oes mini-
mas sobre acumulac,:ao, reinvestimento, investimento em outras empresas, distribui-
c,:ao de Iucros como renda, preferencia pela tecnologia intensiva em capital e a exclu-
sao de trabalhadores externos a ser considerada na economia em geral ou em setores
e fundos em particular; o grau a que os fundos especializados podem permitir que as
empresas com quem se relacionem isolem as prenogativas gerenciais e tecnicas da
decisao coletiva de seus membros criando, dessa forma, uma hierarquia de privilegios
entre segmentos da forc,:a de trabalho; e os Iimites maximos de desigualdade de sala-
rios (ou outras rendas) a serem respeitados pelas empresas na economia em geral ou
em determinados setores.
Algumas decis5es assumem a forma de regras e polfticas validas para toda.a eco-
nomia, outras serao introduzidas nos estatutos de determinados fundos de investimento
e ainda outras podem ser inteiramente abertas ao criteria desses fundos ou das empresas
e equipes que deles recebem o capital. 0 equilfbrio adequado entre essas opc,:oes, assim
como, expresso de maneira mais geral, o poder relativo dos tres nfveis de fornecedores
e tomadores de capital, constitui uma preocupac,:ao importante da polftica partidaria do
governo sob a democracia forte. A eviscerac,:ao do segundo e do terceiro nfveis do siste-
ma, por meio da tomada de decis5es cada vez mais detalhadas e intrusivas, destruiria a
feic,:ao caracterfstica desse regime econ6mico, pois em vez de desintegrada, a proprie-
dade seria transferida para o governo central. Mas a abdicac,:ao da responsabilidade de
decisao por parte das instituic,:oes democraticas centrais e sua conseqtiente concentrac,:ao
nos fundos especializados e nos tomadores primarios de capital, seria igualmente sub-
versiva do regime. De urn !ado, a democracia nao teria meios eficazes de afirmar o
controle coletivo ultimo sobre dois aspectos da vida econ6mica, cruciais para o carater
da sociedade: primeiro, a direc,:ao e a taxa de crescimento econ6mico, e o equilfbrio
conseqtiente de metas econ6micas e nao econ6micas e das reivindicac,:oes de diferentes
gerac,:oes; e, segundo, as relac,:oes de igualdade e desigualdade, de responsabilidade con-
junta e distanciamento mutuo, permitidas na organizac,:ao da produc,:ao e troca, bern como
na distribuic,:ao de seus beneffcios. Por outro lado, a divisao dos direitos de propriedade
sobreviveria por muito tempo se esses dois nfveis do regime fossem deixados por sua
propria conta. Surgiria urn novo sistema de direitos .consolidados de propriedade, a
servic;o do novo plano de divisao e hierarquia social, de uma economia reorganizada
pelos fundos e empresas de maior sucesso.
ldeias suplementares
Direitos do mercado
Direito de imunidade
Direitos de desestabilizarfio
Direitos de solidariedade
Teorias sociais que oferecem uma crftica radical da sociedade geralmente pro-
poem a visao de urn estilo regenerado de rela~6es pessoais. Mas a concep~ao de uma
comunidade hum ana aperfei~oada proposta por essas doutrinas e, em geral, literalmente
incrfvel. A visao de uma forma enobrecida de solidariedade humana foi pouco mais do
que a imagem em reverso da experiencia atual: a dramatiza~ao de urn desejo de evitar
todos os perigos do conflito e da inacessibilidade que resultam da independencia de
nossas vontades e mentes. A contribuit;:ao esquerdista para esta fantasia persistente foi
geralmente a esperant;:a de que o banimento da subjuga<;ao da vida social colocasse urn
ponto final em nossos antagonismos e em nossa absort;:ao em n6s mesmos.
Uma ideia empobrecida e inaceitavel de comunidade enfatiza a exclusao do
conflito e o compartilhamento de val ores e opinioes. Em qualquer sociedade como as
que conhecemos da hist6ria, esse ideal de vida comunitaria somente assume urn a apa-
rencia de realidade em alguns pontos da experiencia social, como a intimidade da
famflia. Ate mesmo nesse caso, sua fort;:a geralmente depende do contraste polemico
e ilus6rio estabelecido entre essa exce<;ao do quotidiano e o carater do mundo do
trabalho diario entregue ao exercfcio de uma dominat;:ao cruel e ao calculo irrestrito
de vantagens. A proposta de separar urn cfrculo privilegiado de relat;:6es comunitarias
geralmente esconde a entrega dessas areas purificadas da comunidade privada as rues-
mas experiencias de opressao e malevolencia contra as quais elas deveriam oferecer
protet;:ao. Quando se usa esse ideal de comunidade para inspirar uma visao da trans-
format;:ao de toda a vida social, substitui-se a oposit;:ao entre a zona privilegiada de
harmonia eo mundo brutal e prosaico do conflito pelo contraste entre o purgat6rio de
uma experiencia hist6rica e o sonho de uma libertat;:ao da hist6ria.
As implicat;:5es deste rom pimento presumido entre hist6ria e a fuga da hist6ria
surge numa compara<;ao com a estrategia narrativa tfpica das primeiras novelas ro-
manticas. Urn homem e uma mulher se amam com uma paixao cuja qualidade subje-
tiva depende da veemencia com que se lant;:a contra os obstaculos colocados no seu
caminho. Geralmente os amantes vern de classes diferentes, urn avan<;o com rela<;ao
as nove las de uma era anterior, quando o am or legftimo e uma hierarquia social confiavel
eram considerados inseparaveis e s6 se admitiam divergencias temporarias devidas a
erros de identifica<;ao ou a origens esquecidas. As autoridades da famflia, da igreja e
da ordem social unem-se contra a uniao dos am antes. A narrativa se dele ita na hist6ria
das aventuras enfrentadas pelos amantes a medida que enfrentam e vencem essas mui-
tas resistencias. 0 finale o casamento, o objetivo e justificat;:ao de toda a Iuta anterior
e a inaugura<;ao de urn exemplo maior de comunidade humana. 0 problema e que a
novela romantica tfpica nada tern a dizer sobre a vida sob as novas condi<;6es, nada
que possa salvar o ideal da felicidade marital da aparencia de inealidade e da falta de
atratividade. 0 silencio torna-se o seu alibi: nao quero aborrece-los com a descri<;ao
das felicidades indescritfveis dessa uniao feliz. Somente nas novelas que adotam uma
rela<;ao mais ou menos deliberadamente ir6nica com o antigo ideal da comunidade
marital, o casamento e retratado em termos aceitaveis.
Uma estrutura narrativa semelhante aparece nas vers6es radical e milenar do
pensamento social que prometem uma comunidade limpa (por exemplo, o comunis-
mo) como recompensa pel as lutas imemoriais. A humanidade, assim como os am antes
romanticos, tern de passar pelos multiplos estagios da prova<;ao dos conflitos nacio-
nais e de classe ate chegar a forma de vida livre de, pelo menos, essas formas de
conflito. Mas como no caso do casamento romantico, esta reconcilia<;ao final nao
pode ser retratada de forma sedutora nem crfvel.
A visao de uma comunidade perfeita, que superou o antagonismo de seus mem-
bros, nao seria tao persistente se nao se apresentasse como a unica alternativa via vel a
certas doutrinas conhecidas. Essas doutrinas identificam as imperfeic,:oes de uma for-
ma particular de organizac,:ao social com as limitac,:6es inerentes avida social, ou apre-
sentam urn pequeno numero de alternativas de organizac;ao social como os reposit6rios
de conjuntos incompatfveis de ideais dentre os quais devemos escolher urn. A visao
da vida social que anima as propostas explicativas e programaticas de Polftica rejeita
essas doutrinas apologeticas sem adotar a premissa milenar e perfeccionista. Esta vi-
sao nos permite complementar as propostas institucionais com urn ideal de rela~6es
individuais diretas que e aceitavel a imaginac,:ao. Pelo menos, a alternativa proposta
aqui nao exige urn rompimento subito de nossa experiencia anterior de vida social;
apenas estende ate o domfnio do pessoal a mesma concepc,:ao de realidade social e o
mesmo ideal social desenvolvido nas partes da False necessity que tratam da estrutura
institucional da sociedade.
0 resultado e urn ideal transformado de comunidade. Como qualquer proposta
de mudanc,:a de uma noc,:ao avaliadora herdada, esta concepc,:ao rev is ada de comunida-
de retira o seu significado tacito das praticas sociais institucionalizadas e nao
institucionalizadas que devem realiza-la. Depois deter revelado, por meio de novas
form as de realiza~ao pratica, uma ambigiiidade insuspeita num ideal herdado, ela nos
con vida a resolver essa ambigiiidade numa dire~ao dada. E se manifesta na questao de
identificar quais aspectos daquele ideal sao, ou deveriam ser, mais importantes para
n6s. (Lembremo-nos de discussao anterior do modelo interno padrao de argumenta-
~ao normativa.)
0 nucleo desse ideal revisado de comunidade e a no~ao de uma zona de aumento
da vulnerabilidade mutua, dentro da qual as pessoas ganham uma oportunidade de re-
solver mais completamente o conflito entre as condi~6es capacitadoras da auto-afirma-
~ao: entre sua necessidade de liga~ao e de participac,:ao na vida de grupo e o medo de
subjuga~ao e despersonalizac,:ao com que esse engajamento pode ameac;a-las. 0 sucesso
dessas experiencias em aceita~ao da vulnerabilidade nos oferece momentos de ardor e
autonomia, e a qualidade da vida durante esses momentos privilegiados, em circunstan-
cias favoraveis, pode se perpetuar em compromissos pessoais duradouros e difundir-se
por meio de uma experiencia social ampliada. Essa noc,:ao de comunidade altera o cen-
tro de gravidade do ideal comunitario, afastando-o da noc,:ao de compartilhamento de
valores e opini6es e de exclusao do conflito. Esta e uma versao de comunidade que
prospera em meio ao conflito, apesar de ser tambem ameac,:ada por ele.
0 ideal de comunidade pode ser quase completamente realizado nas areas nao-
instrumentais da experiencia social, onde se ali vi am as restric,:6es impostas pelo calcu-
lo da vantagem pratica. Mas ja nao se apresenta como a posse privilegiada de urn
cfrculo encantado de existencia privada, em contraste polemico com o resto da vida
social. Torna-se, ao contrario, uma qualidade acessfvel, em maior ou menor grau, a
todas as relac,:6es sociais.
A discussao das paginas seguintes sugere que essa concepc,:ao abstrata e aparen-
temente vazia de comunidade na verdade indica uma linha de transformac,:ao da expe-
riencia subjetiva da vida social. A nitidez dessa linha e demonstrada pela sua mensa-
gem acerca do desempenho e traic,:ao de nossos papeis sociais aceitos.
Um componente da plataforma cultural-revolucionaria: desafiar e confundir
papeis
Urn papel social e apenas urn Iugar tipico numa rela~ao social recorrente. Pa-
peis se apresentam em conjuntos, e esses conjuntos de papeis existem enquanto hou-
ver posi~6es recorrentes detidas por certas pessoas em rela~ao a outras e enquanto
essas posi~6es exercerem autoridade normativa e influencia real sobre as rela~6es
pniticas ou de paixao entre os indivfduos que as ocupam. Urn papel exige posi~6es
discretas, repetitivas e normativamente carregadas.
Qualquer mudan~a importante do contexto institucional formador da vida so-
cial tern impacto transformador sobre os papeis estabelecidos. 0 efeito e maior quan-
do 0 programa institucional visa nao somente asubstitui~ao de urn conjunto de papeis
por outro, mas tambem diminuir a for~a desses papeis e a influencia que exercem
sobre nossa experiencia de liga~ao humana. Na verdade, aliviar os papeis e apenas urn
corolario da suaviza~ao do contraste entre a rotina que preserva estruturas eo conflito
que as transforma.
Uma forma de entender o sentido do ataque cultural-revoluciomirio aos papeis
rfgidos e perguntar o que seria necessaria para que algumas ambi~6es caracterfsticas
do pens amen to moral moderno se realizem. Assim como a teoria classic a liberal trata
o mundo social que ajuda a elucidar e apoiar como se fosse uma massa fluida de
cidadaos e detentores de direitos livres e iguais, assim tambem os estilos dominantes
de especula~ao moral tratam dever e obriga~ao na linguagem dos preceitos
universalistas e neutros com rela~ao aos papeis. Mas, assim como a materia do confli-
to social continua a ser dominada pelas realidades da divisao e hierarquia sociais,
tambe:rn n6s gastamos grande parte de nosso escnipulo moral defendendo posi~5es
com rela~ao as obriga~6es, aspira~6es e expectativas que marcam os papeis que con-
tinuamos a ocupar. Discutimos quais devem ser os deveres associados aos nossos
papeis e como concilia-los, e que peso deve ser atribufdo aos papeis em geral e com
que persistencia devemos nos rebelar contra eles. Assim como a tentativa de tornar
realidade os ideais liberais exige ideias e disposi~6es desconhecidas dos liberais, as-
sim tambem o esfor~o de fazer com que nossa experiencia moral seja mais parecida
com o que grande parte do pensamento moral ja sup6e que ela seja exige uma pratica
de desafiar e confundir papeis que nao tern Iugar nas doutrinas morais tradicionais.
0 revolucionario cultural procura mostrar como se pode ampliar e criticar ana-
liticamente os papeis, combina-los com outros papeis e usa-los de forma incongruen-
te. Interpreta urn sentido menos preciso do que significa ocupar urn papel. Desta for-
ma ele ajuda a romper liga~6es congeladas entre posi~6es sociais, experiencias de
vida e formas estereotipadas de percep~ao e sensibilidade. Desta forma ele traz para o
drama das rela~6es pessoais do dia-a-dia o esfor~o de libertar a sociabilidade do rotei-
ro que lhe foi impasto e de nos tornarmos mais disponfveis uns para os outros, mais
como os originais que nos sabemos sere menos como o funcionario com lugar garan-
tido num sistema de contrastes de grupo.
Os papeis que merecem ser alvo desta subversao cultural-revolucionaria sao,
acima de todos, os que marcam urn Iugar dentro de urn sistema preestabelecido de
divis6es comunitarias, de classes e de genera: o que uma tradiyao sociol6gica mais
antiga denominava de papeis atributivos. Papeis especializados no trabalho nao sao
inerentemente mais nem menos adequados ao desafio e confusao de papeis. Quanta
mais as divis6es tecnicas e sociais do trabalho se apresentarem na vida diaria como
uma grade rfgida de alocay6es funcionais, mais elas merecem a destruiyao, no
micron!vel do desafio cultural-revolucionario e da incongruencia, e no macronfvel da
inovayao institucional.
Existem, hoje, no mundo tres ideias basi cas acerca do trabalho. Estas ideias nao
se referem apenas a enipregos; vistas de uma perspectiva suficientemente ampla, elas
envolvem as vis6es do que as pessoas esperam fazer de suas vidas, e colocam em
questao a liga~ao entre a famflia e a sociedade. A rivalidade desses conceitos que
foram desenvolvidos por classes diferentes e entre povos diferentes, enseja uma obs-
cura mas decisiva Iuta espiritual. Por todo o mundo, as pessoas travam esta !uta por
meio de vis6es contradit6rias da sociedade e de movimentos secretos do cora~ao.
Cada uma destas vis6es de trabalho tern sua sede principal na experiencia e
perspectiva de uma parte da soeiedade. Mas os grupos responsaveis pelo desenvolvi-
mento da ideia variam a cada momento hist6rico, ou mesmo a cada sociedade.
0 trabalho pode ser visto como uma ocupa~ao respeitavel na sociedade. En ten-
dido desta forma, o trabalho permite ao indivfduo (inicialmente o homem, mas depois
todos os outros) manter sua famflia, que lhe oferece as rela~6es confortadoras mais
importantes. 0 emprego como uma ocupa~ao respeitavel ajuda a dar forma a visao
pessoal de sua propria dignidade. 0 empregado realiza uma das coisas que atendem a
uma das necessidades naturais da sociedade. E realiza-a quando executa, ou se prepa-
ra para executar algum trabalho que exija competencia ou experiencia. Seu emprego,
a competencia treinada ou aprendida com que o executa, distingue-o dos ladr6es, dos
dependentes e dos imprestaveis.
A ideia do trabalho como uma atividade respeitavel geralmente acompanha certos
preconceitos acerca da sociedade e famflia. Existe urn catalogo de necessidades natu-
rais: demandas sociais que tern de ser atendidas para que a sociedade continue a ser
como sempre foi. A este catalogo de empregos impessoais corresponde uma lista igual-
mente natural de ocupa~6es, cada uma com suas diferentes habilidades e recompensas.
A pessoa que ocupa uma dessas posi~6es pode ter a esperan~a de viver com sua famflia
dentro de certo padrao de vida. Tern tambem no trabalho uma rela~ao caracterfstica com
as pessoas que executam outros trabalhos. Assim, uma ideia de classes sociais naturais
acompanha a no~ao de necessidades sociais e trabalhos naturais.
0 mundo social que estas atividades respeitaveis mantem em movimento co-
nhece sua quota de conflitos. Mas suas desaven~as - conforme esta visao da vida
social- estao mais associadas a problemas perifericos. As vezes as pessoas sentem ter
sido injusti~adas. Ten tam aumentar sua quota de participa~ao e a de seus companhei-
ros de trabalho, em relac;ao aque lhes foi destinada. De qualquer forma haveni proble-
mas. Mas a ordem basica de necessidades, trabalhos e classes nao 6 o resultado prin-
cipal destas desavenc;as. E apenas uma parte do que sao as coisas. Pode-se avanc;ar
muito no sentido de limitar essa visao da vida social sem renunciar a seus princfpios
centrais. Pois a atitude naturalista com relac;ao a sociedade parece ser muito mais
persuasiva nas minucias da crenc;a ativa do que na caricatura da exposic;ao.
A imagem do trabalho como uma atividade respeitada e visao ampliada de socie-
dade que a estende e justifica fez-se acompanhar de uma visao de familia. 0 trabalha-
dor respeitado e, na maioria dos casos, o homem adulto. Sua execuc;ao do trabalho
respeitavel fora da familia da autoridade moral e apoio economico a sua posic;ao den-
tro dela. A propria familia representa uma versao suavizada, em escala reduzida, do
mundo social. Esposa e filhos ocupam os lugares que lhes foram atribuidos dentro da
familia. Ao desempenhar escrupulosamente seus papeis, ganham o respeito do meio
social ampliado. Quando tudo vai bern, o grande mundo da sociedade e o dominio
me nor da familia demonstram uma harmonia fundamental, tanto nos requisitos econo-
micos quanta nos princfpios marais.
Hoje, esta ideia de trabalho e plenamente aceita entre OS trabalhadores quali-
ficados e semiqualificados dos paises ocidentais ricos e dos comunistas. Ela se de-
senvolve melhor entre aqueles que fazem coisas com as maos ou que aplicam tecni-
cas com resultados tangfveis, do que entre as classes inferiores de burocratas e em-
pregados na distribuic;ao. Mas, ate ha pouco, na historia ocidental e na de muitas
ci vilizac;oes cuja vida os povos ocidentais interromperam, todas as classes da socie-
dade tinham em comum este conceito de trabalho. Ate os grupos mais privilegiados
a aceitavam. 0 senhor proprietario de terras recusava a ideia de ter urn trabalho.
Mas sua visao de si proprio incluia a ideia de ocupar uma posic;ao natural que lhe
dava direitos e lhe impunha o dever de executar tarefas sociais valorizadas. Ele
demonstrava sua condic;ao exibindo em sua pessoas e por seus feitos as qualidades
caracterfsticas de sua casta.
Existe tambem, espalhada pelo mundo, uma outra ideia mais punitiva do que
seja trabalho. De acordo com essa concepc;ao, falta ao trabalho qualquer autoridade
intrinseca, qualquer poder de conferir dignidade ou direc;ao a uma vida humana. Tem-
se que realiza-lo para obter ou apoiar as coisas importantes: a fanu1ia e a comunidade
ou, se o pior acontecer, o proprio indivfduo. Se o trabalho ainda puder ser considerado
honrado nesta visao instrumental, e por causa das atividades mantidas pelos ganhos
que oferece.
A visao instrumental do trabalho representa uma reduc;ao drastic a das expecta-
tivas acerca do que uma pes so a pode fazer da propria vida. E, na verdade, e se percebe
como sendo uma aberrac;ao: o estigma de uma derrota terrivel ou o prec;o da transic;ao
para urn melhor estilo de vida. Nos pafses ocidentais ricos atuais, tres tipos de traba-
lhadores parecem geralmente partilhar desta visao do trabalho.
Alguns sao pessoas derrotadas na tentativa de evoluir para uma classe trabalha-
dora respeitada, ou os que foram expulsos dessa classe depois de terem sido admiti-
dos. Passam de urn emprego instavel e sem perspectiva para outro e definham na
subclasse sofredora.
Outros que adotam esta visao instrumental do trabalho tambern ocupam os pi ores
cargos e os mais inseguros. Geralmente vern de urn pafs estrangeiro ou regiao atrasada,
para onde esperam voltar. Para eles, trabalho e urn purgat6rio governado por regras que
mal entendem. Fazem a melhor analogia possfvel entre essas disposi<;:6es e as ideias de
obriga<;:ao e recompensa que trouxeram para a nova terra. Seu objetivo mais importante
e voltar para o Jar, para urn a vida melhor que inclui a experiencia de trabalho como uma
atividade respeitada. Esta experiencia pode se frustrar ou ser substitufda pelo desejo de
ficar onde estao e tornarem-se os trabalhadores respeitados com que associam a volta a
propria terra. Enquanto isso, vi vern nas suas comunidades e acham nessas liga<;:6es co-
munitanas o consolo e a auto-estima que seus empregos lhes negam.
0 terceiro grupo dos que adotam a visao instrumental do trabalho e composto
de jovens ou mulheres casadas que aceitam trabalhos temponirios. Tambem para eles
o conceito imediato de trabalho pode ser instrumental pois se trata de uma atividade
auxiliar de seu interesse principal: uma carreira futura ou a vida da familia.
Em outros lugares do mundo- em alguns dos pafses comunistas ou do Terceiro
Mundo- o aces so a experiencia do trabalho como uma atividade respeitavel continua
vedado a grande maioria das pessoas que sao levadas a uma visao puramente instru-
mental do trabalho. Mas, sempre que possfvel, elas se levan tame exigem algo melhor.
Pois entender desta forma a atividade diaria e ver o mundo social como algo
absolutamente opressor ou alheio. Sea personalidade nao for destrufda por esse mun-
do (com exce<;:ao dos trabalhadores temponirios), ser-lhe-a negado qualquer sentido
de ser parte dele. Abala-se, mas nao se destr6i a confian<;:a numa ordem natural de
necessidades, trabalhos e classes. Os derrotados e os exclufdos entendem melhor o
que o auto-engano dos trabalhadores respeitados tende a ocultar: que toda a ordem de
empregos e classes- e nao apenas os detalhes e ajustes- resultam da !uta e da repres-
sao da !uta. Ja viram o punho sem a luva e viram pelajanela, com olhos dos exclufdos
que nao se deixam enganar, a indiferen<;:a dos bem-aventurados. Mas trocariam sem
hesita<;:ao esta descoberta - que e em parte a descoberta da falsidade da premissa
naturalista- pela suspensao de sua derrota ou exclusao.
Surgiu uma terceira ideia de trabalho que esta virando as coisas pelo avesso.
Associa auto-realiza<;:ao e transforrna<;:ao: a mudan<;:a de qualquer aspecto do ambien-
te pratico ou simb6lico da vida do indivfduo. Para ser uma pessoa completa, conforrne
esta concep<;:ao, e necessaria engajar-se na !uta contra os defeitos ou limites da socie-
dade atual ou do conhecimento disponfvel. Os objetivos da auto-realiza<;:ao e do servi-
<;:o a sociedade se combinam com a no<;:ao de que este servi<;:o exige que se lute contra
as coisas e concep<;:6es tais como sao. Pode ser uma !uta simb6lica, em vez de uma
!uta aberta. Mesmo quando envolva conflitos da vida real, ela pode ser moderada e
oculta sob a aparencia de urn servi<;:o leal. Mas nao pode ser abandonada sem cobrar
urn pre<;:o em desilusao e fracasso. A resistencia torna-se o pre<;:o da salva<;:ao. 0 peso
desta obriga<;:ao diminui somente quando se passa da preocupa<;:ao com os terrnos da
vida coletiva para esfor<;:os mais impessoais da arte, filosofia e ciencia, ou para a
dedica9a0 imediata as pessoas.
Esta ideia de trabalho- daquilo que da maximo valor a vida- ja se enraizou
entre os educados e os privilegiados e, especialmente, entre os jovens educados para
o privilegio. Pode ser claramente encontrada entre intelectliais, agitadores, artistas e
cientistas. Mas estende-se tambem as grandes profiss6es. Cada profissao faz mais do
que ligar o exercfcio privilegiado do poder a afirma~ao de competencia. Serve tam-
bern como a cena de urn conflito entre a ideia de uma atividade respeitavel eo padrao
mais ambicioso da voca~ao transfmmadora.
As pessoas que se converteram a esta visao do que deveriam fazer de suas vidas
tern problemas na sua experiencia de vida e nas suas rela~6es com todos os grupos que
se mantiveram presos a outra visao do valor da vida e do .trabalho. E diffcil de entender
o significado destes problemas, mesmo depois de se ter tentado entende-los com mente
clara e cora~ao calmo. Existe urn defeito na ideia da voca~ao transformadora que a
condena a futilidade e ao auto-engano? Neste sentido, ela seria semelhante a visao ro-
mantica do amor, com que tern sido historicamente associada? Ou seriam estas dificul-
dades e surpresas o carninho inevitavel para a compreensao mais completa?
N a juventude, uma pessoa pode se deixar influenciar pel a ideia da voca~ao trans-
formadora. Muita coisa pode atraf-la a isso. Mesmo para aqueles que negam que ela
indique alguma verdade ultima acerca da mente e atividade, e diffcil deixar de notar
sua presen~a, na verdade, sua omnipresen~a nas produ~6es da alta cultura. As obras
literarias e do pensamento social, da teoria especulativa e da cria~ao de slogans mo-
rais vicejam nela. A cultura popular, mais abrangente, expressa-a de diversas formas
reconhecfveis, ainda que dilufdas. Tanto os her6is polfticos quanto os anti-her6is mo-
dernistas da nossa epoca parecem corporificar urn ou outro aspecto de seus principais
interesses.
Quanto mais a serio se tomam essas ideias, maiores serao as dificuldades. Tao
logo se comece a enfrentar as resistencias e os embara~os do mundo social, o esfor~o
de realizar a ideia da voca~ao transformadora parece se tornar urn programa mais
irreal e autodestrutivo. Parece exigir tanto uma oportunidade favoravel quanto os dons
correspondentes. Se faltar qualquer urn deles, o que come~ou como grandes esperan-
~as terrnina como uma simples ansiedade.
A medida que se acumulam os obstaculos a participa~ao transformadora, o trans-
formador em potencial enfrenta cada vez mais claramente o dilema destrutivo. Pode
recolher as velas e buscar objetivos mais modestos e realistas. Mas nao e facil passar
da ideia da voca~ao transformadora para a de ocupa~ao respeitavel. A primeira impli-
ca uma percep~ao das rela~oes entre o eu e a sociedade que atinge as funda~6es da
segunda. A partir do momento em que o indivfduo a tenha reconhecido e realizado,
esta percep~ao e muito convincente para ser esquecida, por menor que tenha sido o
sucesso, ou mais incompleta a realiza~ao.
As premissas subjacentes a ideia da voca~ao transformadora combinam uma
ideia acerca da sociedade com uma ideia a respeito do eu. A sociedade nao precisa de
necessidades naturais, empregos e classes; qualquer que seja a ordem social, ela sera
o resultado das lutas que aconteceram e das que foram evitadas. 0 trabalho de uma
pessoa pode atender a uma necessidade humana cuja exigencia de aten~ao ela consi-
dere inquestionavel. Mas o que as pessoas fazem desta pessoa, de sua posi~ao e seu
trabalho nao e algo que se possa aceitar sem discussao como sendo a ordem natural
das coisas. Esse contexto dado pode confirmar, distorcer ou derrotar sua inten~ao.
A ideia do eu que se une a esta no~i'io de sociedade e o primado da negativa
transformadora em todas as atividades human as. Pode-se en tender urn a parte da reali-
dade fazendo-a passar, na realidade ou na imagina~i'io, por uma serie de varia~5es
transformadoras: imaginando-a diferente do que e ou parece ser. Todas as empresas
mais complicadas da personalidade envolvem revis5es igualmente complicadas do
cemirio pnitico ou simb6lico atraves do qual se move o indivfduo. Por meio desses
esfor~os, e somente por meio deles, pode alguem se descobrir ou se fazer.
Estas ideias a respeito do eu e sociedade traem uma descren~a no que chamei
antes de premissa naturalista, assim como revelam uma visi'io particular do objetivo
de uma vida de trabalho. A no~i'io de uma voca~i'io respeitavel ni'io pode facilmente
voltar a se tornar plausfvel sem ressuscitar a visi'io do eu e da sociedade implfcita na
premiss a naturalista.
A pessoa que ni'io consegue manter seu compromisso com a voca~i'io transfor-
madora, nem ter fe na ideia de uma voca~i'io respeitavel, logo se vera caindo na con-
cep~i'io instrumental de trabalho. Busca na familia ou nos espetaculos de uma cultura
ornamental o conforto que o compense de sua perda incompensavel. Nao consegue
perceber seu proprio trabalho instrumental como a transi~ao necessaria para uma for-
ma maior de experiencia.
Quando ha problemas, a ideia da voca~i'io transformadora pode tomar outra
dire~i'io. Pode aumentar, em vez de diminuir suas ambi~5es. Alem do toma-la-da-ca
da vida social com urn esti'io os grandes exercfcios que resgatam o pensamento, a pra-
tica e a arte revolucionarios. 0 artista que se senta no seu quarto revestido de corti~a
oferece a unica promessa verdadeira de felicidade e salva~i'io (somente para ele ou
para todo mundo?). Alguem trabalha no Museu Britiinico sistematizando ideias acer-
ca das quais a maioria de seus contemporiineos bern informados nao sabe o que pen-
sar. Depois de algumas gera~6es, havera mortandade na Manchuria em nome destas
doutrinas. Em meio a violenta como~i'io cfvica, alguem chega aesta~ao de trem e toma
o Estado como apoio de urn grupo disciplinado de seguidores e de uma massa indig-
nada, e inaugura uma nova ordem da vida social.
Como rotas de fuga para a ideia de voca~i'io transformadora sitiada, essas ima-
gens servem como delfrios corruptores. Excluem todos, a exce~ao de urn pequeno
grupo de pessoas extraordinarias. Escondem a textura real de acomoda~i'io, circuns-
tiincia, resistencia e desilusao, a fantastica contradi~ao entre inten~ao e resultado,
mesmo naquelas experiencias incomuns. 0 cora~ao, em seu desespero, prefere esque-
cer tais indignidades.
As duas dire~6es que a voca~ao transformadora pode tomar sao as duas formas
complementares de perda da razao. Pois o elemento cognitivo da loucura e precisa-
mente a alterniincia entre duas experiencias de percep~ao e raciocfnio. Percep~6es e
ideias se congelam no Iugar; nao se recombinam nem sao substitufdas. Ao mesmo
tempo, pode-se, sem esfor~o, decompor qualquer coisa e combina-la com tudo o mais.
A coexistencia simultiinea dessas experiencias faz com que todas as percep~6es e
pensamentos pare~am arbitrarios.
Mas suponhamos que alguem consiga evitar que a ideia do trabalho transforma-
dor caia em qualquer uma destas dire~6es. Logo se vera em desacordo, nao somente
com pessoas que tern uma perspectiva diferente dos objetivos da transfonnac,:ao, mas
tambem com pessoas que tern uma visao completamente diferente de trabalho. Teni
entao de reconhecer que a atividade inspirada por tais intenc,:oes contem, direta ou
indiretamente, uma afirmac,:ao de poder a que outros resistem e que ele proprio se
considera incapaz de justificar ou confessar. Ele pode mesmo tentar fazer com que
outros, em nome dos seus pr6prios ideais de trabalho e comunidade, ajam de formas
justificadas pelas suas ideias de trabalho e comunidade, mas que esses outros conde-
nam como uma rendic,:ao ao egofsmo.
Por exemplo, urn militante de urn pafs ocidental rico !uta para defender o direito
de aborto para a mulher solteira. Ele o faz, em parte, porque tern uma ideia de digni-
dade pessoal associada a sua propria ideia de vocac,:ao. Quer imaginar, ou tornar uni-
versal a sua ideia. A familia openiria rejeita essa proposta, nao somente por motivos
de crenc,:a religiosa, mas tambem pelo desejo de preservar, por meio da repressao a
encontros sexuais ocasionais, sua propria au tori dade hienirquica, que acompanha suas
ideias de trabalho como uma atividade respeitavel. Afinal, qual forma de solidarieda-
de mais inclusiva e mais perfeita o paladino auto-indicado tern a oferecer para substi-
tuir a que pretende destruir?
Se o paladino potencial for alguem que aja no mundo, podera criar a fantasia de
que pertence a uma massa de pessoas que cada vez mais participam de sua visao de
hist6ria e trabalho. A existencia de facc,:oes, as confusoes densas de animosidade pes-
soal e diferenc,:as programaticas, a Iuta pela lideranc,:a, os elementos de auto-exaltac,:ao
existentes na concepc,:ao da sua vocac,:ao- cada urn representa urn a batida na sua porta
a que ele preferiria nao responder. Entretanto, uma vez que tenha provado o gosto do
poder, ele descobre que essas fantasias sao convenientes e se apresenta como a voz
daqueles a quem da ordens.
A ideia da vocac,:ao transformadora comec,:ou a influenciar multidoes por todo o
mundo. Conduz uma Iuta, em grande parte silenciosa, contra as duas outras noc,:oes de
trabalho. De onde surgiu essa visao exigente e ate onfrica? Qual seu significado hu-
mano essencial? Esta enado quem ave apenas como o resultado de epis6dios locais
na hist6ria do pensamento. Em partes do mundo ocidental, a ideia traz a marca de urn a
versao secularizada das ideias protestantes de vocac,:ao. Mas espalha-se por toda par-
te, de forma independente ou por contagia. 0 conceito de uma vocac,:ao respeitavel foi
solapada pelas ideias sobre o eu e sociedade descritas anteriormente. Por meio delas,
a ideia de uma vocac,:ao transformadora se liga a tudo o que mostra as pessoas a qua-
lidade construfda, reconstrutlvel e reimaginavel da vida social, a tudo o que liberta a
concepc,:ao eo teste da personalidade de restric,:oes sociais rfgidas. As pessoas aganam
doutrinas religiosas, polfticas e marais tradicionais e as reinterpretam do ponto de
vista da perspectiva da nova revelac,:ao.
Uma vez que se veja a ideia da vocac,:ao transfonnadora deste ponto de vista
mais geral, pode-se identificar nela urn significado humano ainda maior. Este signifi-
cado esclarece as ambiguidades, aspirac,:oes e perigos ocultos da ideia, escondidos
com tanto cuidado nos pensamentos e ac,:oes comuns de seus seguidores. Quanta me-
nos urn indivfduo se veja como o ocupante de uma posic,:ao natural dentro de uma
sociedade que tern, ela propria, uma ordem natural, mais agudamente ele hade sentir
certo aspecto de sua situac,:ao no seu mundo. Ele a sente, geralmente menos na afirma-
c,:ao abstrata e geral do que nas ramificac,:oes particulares e concretas. A pessoa se
sente como o centro de seu proprio mundo. Ela se conhece de uma forma como nunca
podeni conhecer qualquer outra mente. Sente, nos momentos menos protegidos, urn
desejo de auto-afirmac,:ao e de satisfac,:ao de urn desejo que nao conhece fronteiras
fixas alem dos limites impastos pela saciedade temponiria, apatia ou desespero. Quando
imagina o mundo sem ele, depois da morte, ainda seve a pairar por sobre ele como urn
observador incorporeo. Mas o indivfduo tam berne forc,:ado a enfrentar o mundo como
urn sujeito entre muitos outros. Tern de desenvolver introspecc,:ao pela participac,:ao no
da-e-toma pnitico e discursivo que constantemente nega sua pretensao de ser o centro
de tudo. Tern de satisfazer suas necessidades materiais e espirituais pela execuc,:ao de
atividades que o forc,:am a tratar com pessoas que nao o veem como o centro e em
cujos lapsos de autocentralizac,:ao ele ve vestfgios mal-suprimidos de sua propria ab-
sorc,:ao em si mesmo.
Mas quando ja se acumularam todos os coiTetivos punitivos, a alegac,:ao do indi-
vfduo de ser o centro ainda se recusa a desaparecer. Como se poderia considera-la urn
erro? Esta embutida nos momentos pre-teoricos mais elementares de percepc,:ao e de-
sejo. Pertence a experiencia ultima e fntima, ainda que mal-definida, do eu. Nossas
ideias reflexivas podem refinar esta experiencia, mas nao podem repudia-la sem per-
derem a persuasao ou mesmo a inteligibilidade.
0 fato de nos declararmos o centro, ao mesmo tempo em que nao o somos, e
mais do que urn fato natural acerca de nos mesmos, como nossa susceptibilidade a
certas ilusoes de otica. E tao basico para a nossa experiencia como a estrutura de
pensamento conceitual cujos preconceitos relativos a identidade e diferenc,:a nos im-
pedem de dizer, ao mesmo tempo, que somos e nao somos o centro. Por qual padrao
escolheremos entre a estrutura conceitual e a experiencia anticonceitual? Apesar de
descrermos da ultima em alguns contextos de entendimento e ac,:ao ou quando certos
interesses ass urn em importancia fundamental, reservamos a prime ira em outros cena-
rios e para outros objetivos. Uma pessoa incapaz de fazer esta mudanc,:a seria conside-
rada mais louca que muitos dos loucos que realmente encontramos. Pois sua loucura
nao seria simplesmente a ampliac,:ao do conflito, uma autodivisao da experiencia co-
mum. Seria a negativa de uma das condic,:oes capacitadoras de nossas percepc,:oes e
responsabilidades rotineiras.
Nao ha condic,:oes de o contraste entre esses dois aspectos da personalidade se
tornar agudo enquanto sobreviverem as ideias de sociedade e eu que se ocultam sob a
ideia de trabalho como uma ocupac,:ao respeitavel. Pois estas ideias evitam que a ex-
periencia de subjetividade e, portanto, a do eu como o centro, atinja dimensoes de
desespero e de ansiedade. Elas ensinam as pessoas a entenderem seu mundo interno
de paixao e a ordem externa da sociedade como domfnios complementares que de-
monstram os mesmos princfpios de ordem e que, quando bern ordenados, dao apoio
indispensavel urn ao outro. Estas ideias naturalistas nao suprimem o contraste, na
nossa experiencia, entre a autocentralizac,:ao e a superac,:ao da autocentralizac,:ao. En-
tretanto, estas ideias podem negar uma voz a essa experiencia e fazer com que suas
manifestac,:oes ocasionais parec,:am meras explosoes de auto-referencia enganadora.
No entanto, quando as pessoas ja nao aceitam a visao naturalista que se oculta atras da
ideia do trabalho como uma ocupa<;ao respeitavel, manifesta-se o conflito entre os
dois p6los da experiencia.
0 amor pessoal e 0 trabalho de transforma<;ao permitem as pessoas evitar 0
egofsmo e isolamento sem negar o peso da subjetividade. No amor, encontram uma
liga<;ao com outra pes so a que confirma simultaneamente seu sentido de autopossessao.
A a<;ao transformadora lhes oferece urn meio de estabelecer uma liga<;ao alternativa:
urn engajamento como contexto coletivo ampliado de suas vidas que da ao eu agente
e imaginante uma oportunidade de auto-afirma<;ao, enquanto se recusa a santificar o
contexto resistente. Qualquer que seja a sua rota de liga<;ao, ha surpresas a sua espera.
A busca da solu<;ao transformadora enfrenta dois obstaculos que tambem sao
enigmas. 0 primeiro embara<;o e a coexistencia de resistencia constante a todos os
esfor<;os de transforma<;ao da imagina<;ao e da vontade; com nossa incapacidade de
en tender completamente as fontes desta resistencia. Esta incapacidade e nos sa maldi-
<;ao em qualquer area de experiencia. Algumas das raz5es para essa incapacidade sao
caracterfsticas de cada campo de atividade; outras sao comuns a todos os campos.
A natureza nao humana continua a ser pouco suscetfvel de conhecimento e do-
mina<;ao dada sua enorme despropor<;ao com nossos pr6prios eus. Conhecemos ape-
nas em parte a natureza, por meio das formas de pratica e imagina<;ao que, apesar de
imitar as varia<;5es transformadoras do mundo natural, fazem-no da perspectiva limi-
tada de nossos interesses e faculdades. Nosso nfvel de percep<;ao decai para outro,
mais basico e universal, sem qualquer esperan<;a de chegar a urn lugar de descanso.
A sociedade continua a ser imperfeitamente inteligfvel e flexfvel porque e feita
de eus diferentes, cada urn com seu poder de resistir a submissao e exposi<;ao. Alem
disso, nenhum ordenamento pratico ou simb6lico da vida humana representa a forma
definitiva e completa de personalidade ou sociedade, como nao o fazem todos os
ordenamentos que ja existiram quando colocados lado a lado. Em todos os domfnios
da sociedade ou da natureza nao humana, nossas ideias sofrem de uma instabilidade
incuravel: a qualquer momento podemos descobrir algo que nao apenas e novo, mas
que tambem e incompatfvel com nossas premiss as. Podemos ter nao apenas ignorado
esta verdade antes, mas podemos ter ignorado toda forma de pensar ou ver ou falar
necessaria para sua total explora<;ao.
A resistencia de nossas condi<;5es ao domfnio completo pel a imagina<;ao e von-
tade tern urn importante corolario da a<;ao polftica: a incapacidade de entender ou
controlar, na sua totalidade, as conseqtiencias da a<;ao. William Monis descreveu o
sofrimento ir6nico de todo conflito transfonnador com rela<;ao aos tennos da vida
social: "Homens lutam e perdem a batalha, e aquilo por que lutaram acontece apesar
de sua derrota, e quando acontece, nao e aquilo que queriam e outros homens tiveram
de lutar pelo que eles queriam sob outro nome."
0 outro problema com a a<;ao transformadora vern de dentro. 0 ato transforma-
dor nao consegue cobrir a lacuna entre o eu como o centro e o eu entre os outros.
Continua a ser uma proposta de auto-engrandecimento, bern como uma forma de auto-
renuncia. As vicissitudes da voca<;ao transformadora na sociedade exp5em os seus
dois lados. 0 transformador em potencial quer brilhar e governar, enquanto se apre-
senta como o servidor humilde de urn bern impessoal. A vanguarda revoluciomiria
auto-indicada que domina uma populac;:ao passiva e assustada em nome de uma dou-
trina de representac;:ao virtual e apenas o caso extrema do que aparece, de forma me-
nos nftida, em incontaveis disfarces.
A maioria das grandes teorias sociais dos dois ultimos seculos aceitou e tentou
explicar e desenvolver as ideias que estao por tras desta concepc;:ao revolucionaria de
trabalho. Mas o fizeram de uma forma que escondia os embarac;:os que acabo de des-
crever. Portanto elas limitaram o alcance da ideia de vocac;:ao transformadora. Viam
os obstaculos a transformac;:ao como produtos de restric;:oes com a aparencia de lei que
uma mente completamente informada tornaria totalmente inteligiveis. Os transforma-
dores em potencial poderiam se apresentar como agentes de uma necessidade hist6ri-
ca. A alegac;:ao de que eram agentes nao escolhidos dos oprimidos e dos sem voz
continuou sendo sua resposta caracterfstica a suspeita de auto-engrandecimento.
Uma forma de entender a teoria social construtiva antecipada neste livro e le-lo
como uma tentativa de levar ao extremo uma visao de sociedade e de personalidade
dentro da qual a ideia de vocac;:ao transformadora tern sentido. Temos de raciocinar
sabre as restric;:6es sem ve-las como a expressao superficial de necessidades inteligi-
veis e com a aparencia de lei. Temos de descrever a forma como os projetos de vida de
urn indivfduo serao informados pelo conceito antinaturalista do eu e da sociedade.
Temos de tentar mostrar como este indivfduo pode orientar esses projetos de forma
que limitem e enobrec;:am o impulso de auto-engrandecimento.
16
0 ESPfRITO
0 espfrito desta proposta constitucional torna-se clara pelo contraste com ou-
tras doutrinas conhecidas, do presente ou do passado, que se assemelham a ela.
No mundo contemporiineo, o programa mais persistentemente atraente de re-
constru<;ao social tern sido geralmente descrito como democracia social ou como Es-
tado corporativo do bem-estar social. Suas formas mais desenvolvidas surgiram na
Europa Ocidental e no Japao. Com certeza, mesmo entre as democracias industriais
mais avan<;adas, ele prosperou mais em alguns lugares do que em outros. Mas sua
influencia, pelo me nos entre as democracias industriais, e demonstrada pela incapaci-
dade de OS partidos mais a esquerda OU a direita imporem altera<;oes importantes as
suas conquistas, ou de encontrarem urn credo polftico de autoridade com para vel.
Recordemo-nos dos principais dogmas do programa social-democratico. Pri-
meiro, ele defende a variante particular de democracias constitucionais cujos instru-
mentos foram aperfei<;oados inicialmente no perfodo crucial entre o final do seculo
XVIII e meados do XIX- em bora seus proponentes possam dizer que esta estrutura
institucional seja simplesmente a melhor que existe, em vez de mostrar algum interes-
se em procurar alternativas significativamente diferentes. Pois acreditam que os prin-
cipais problemas e interesses estao em outro ponto. Segundo, esta doutrina afiima que
o governo deve supervisionar ativamente uma economia de mercado regulado, o:rga-
nizada confmme as linhas do contexto formador institucional cujo conteudo e genese
ja foram descritos. 0 Estado democratico tern de incentivar o investimento nos seto-
res mais promissores da industria. Tern de procurar colocar a economia nacional em
situa<;ao favoravel na divisao internacional do trabalho. E tern de negociar com as
grandes empresas, como sindicalismo organizado e com outros setores da popula<;ao,
acordos distributivos que permitam a todos passar do conflito destruidor para a cola-
bora<;ao produtiva. Terceiro, e preciso cuidar das necessidades materiais basicas das
pessoas. Este objetivo pode ser atingido por meio do reconhecimento de reivindica-
<;6es universais de seguro social independentes da posi<;ao no mercado de trabalho, ou
de uma enfase na garantia de emprego acompanhada dos beneffcios sociais associ a-
dos. Quarto, as pessoas devem ser incentivadas a participar da organizac;ao do local
de trabalho e da administrac;ao de suas areas locais. Estes engajamentos locais devem
ajudar a apagar as diferenc;as entre a ordem publica e a privada, e a revitalizar o
sentido de cidadania. Quinto, tanto as garantias sociais quanto a participac;ao local
deveriam ser conquistadas de formas que minimizem o conflito em torno do conjunto
da ordem social. Este conflito deixa livres as posic;oes ideol6gicas e ilusoes ut6picas
e a atitude defensiva egofsta que afastam as pessoas das atividades de colaborac;ao
necessarias para resolver problemas praticos.
Dois impulsos mutuamente reforc;adores fundamentam o programa social-de-
mocrata e tornam clara por que ele e apenas a versao mais recente do desejo de negar
ou conter o carater politico da vida social. 0 primeiro destes impulsos e o desejo
perene recuar das conotac;oes violentas da hist6ria para uma vida estavel de interesses
praticos e engajamento comunitario. 0 segundo impulso e o esforc;o para descobrir a
estrutura-objetiva de requisitos praticos e restric;oes organizacionais camuflada pela
con versa desconexa dos ide6logos.
A proposta da democracia forte ve este programa democratico como pratica
espiritual e teoricamente inadequado. E praticamente inadequado porque o desenvol-
vimento da capacidade produtiva ou destrutiva exige uma subversao mais completa
do controle do privilegio sobre os meios de construc;ao da sociedade do que admitem
as versoes institucionais estabelecidas de mercados e dernocracias. E espiritualrnente
inadequada porque esta mesma liquefac;ao das estruturas sociais estabelecidas e ne-
cessaria para desenvolver a riqueza de nossa vida subjetiva e para promover nossas
tentativas de conciliac;ao das condic;oes capacitadoras da auto-afirmac;ao. E teorica-
mente inadequada porque se ap6ia sobre ainda outro resfduo dilufdo da ideia natura-
lista: ainda usa a ideia de uma estrutura latente de coordenac;ao e colaborac;ao flexf-
veis que ainda espera ser descoberta, se conseguinnos nos livrar das distrac;oes do
conflito ideol6gico.
0 programa defendido aqui diverge do ideal social-democratico ao advogar
formas radicalrnente revisadas de organizac;ao de economias de mercado e de gover-
nos democraticos, na busca de disposic;oes institucionais que mais atenuem o contras-
te entre a rotina que preserva contextos e o conflito que os revisa, na sua preferencia
por estilos de garantias sociais que pressuponham estas reformas institucionais, ao
inves de compensar a sua falta, e no esforc;o de associar sistematicamente a participa-
c;ao no autogoverno local e do local de trabalho com o conflito em torno dos tem10s
basicos da vida social.
Se a democracia social, concebida nestes termos amplos, representa a
contrapartida e rival rnais proxima do programa da democracia forte, o republicanismo
cfvico ou classico pode dar a impressao de ser uma de suas fontes. Mas a genealogia
nao e mais precisa do que a comparac;ao. 0 republicanismo cfvico a que me refiro foi
a arma ret6rica mais importante dos muitos que se opoern tanto ao privatismo egoista
quanto a desigualdade escandalosa, vistos como o vfcio que continua a marcar as
formas ocidentais contemporaneas de organizac;ao econ6mica e governamental. A
ret6rica republicana tfpica e a necessidade de recuperar a dedicac;ao desinteressada ao
bern comum que seria supostamente a caracteristica de antigas republicas. Sua arnbi-
c;:ao e assegurar a igualdade de situac;:ao material e mobilizar uma dedicac;:ao desinte-
ressada ao bern comum. Assegura-se a igualdade mediante a garantia, a cada cidadao,
de uma unidade de propriedade mais ou menos igual. Mediante a proibic;:ao da aliena-
c;:ao (por exemplo, da terra) e por constantes redistribuic;:oes, evita-se o solapamento
desta igualdade fundamental. A devoc;:ao ao bern comurn deve ser atingida mediante a
exigencia de que os cidadaos, desde a infiincia, participem das responsabilidades pu-
blicas, e pela aplicac;:ao de todas as variedades de educac;:ao e exemplos que possarn
afasta-los da tendencia de se fecharem em ligac;:6es estreitas e prazeres materiais. A
tenacidade com que uma versao parcial desta doutrina tern sido defendida, sob as
mais variadas circunstancias hist6ricas, s6 e com paravel a regularidade de seu fracas-
so sempre que teve a oportunidade de influenciar, mesmo que de forma obliqua, a
politica real.
0 custo material das doutrinas republicanas classicas esta na paralisia da capa-
cidade de inovar. Pois, como enfatizaram repetidarnente os estagios anteriores desta
discussao, o desenvolvimento da capacidade pratica depende da capacidade de
recombinar e renovar, por meios consensuais ou e<oercitivos, nao somente os fatores
de produc;:ao, mas tambem as disposic;:6es que constituem o cen:irio organizacional da
atividade produtiva. Urn pais preso as restric;:6es a recombinac;:ao exigidas por aquele
republicanismo classico nao conseguiria sobreviver em meio a rivalidade militar, eco-
nomic a e ideol6gica entre nac;:6es-Estado. Nem teria condic;:6es de oferecer a seus
cidadaos as muitas oportunidades de experimentac;:ao individual e coletiva abertas
pelo enriquecimento.
0 custo espiritual da doutrina republicana classica e ainda mais terrivel. Os
titulares de direitos iguais vi vern numa circunstancia de austeridade inibida. Esta aus-
teridade nao se deve apenas as restric;:6es que este sistema de direito imp6e ao pro-
gresso material; e tambem o resultado da incompatibilidade entre este regime e o
Iuxo. Luxo significa, em parte, o excesso e variedade de prazeres sensuais, particular-
mente na medida em que este prazer se afasta do apego as coisas materiais ou as
representac;:6es simb6licas. A psicologia da variac;:ao e excesso nao pode se conciliar
facilmente com uma circunstancia que exige a inatividade das disposic;:6es sociais
basic as, a igualdade basica das condic;:6es externas da vida e o isolamento comparati-
vo de cada detentor de direitos dentro de sua esfera separada de direito. Nesta cir-
cunstancia, o individuo e vftima de dois conjuntos contradit6rios de emoc;:oes que as
vezes coexistem e outras se substituem urn ao outro. Ele as vezes se deixa abater pelo
torpor da rotina estreita (afinal, quanto ha para fazer no pequeno terre no de urn yeoman
ou de seu correspondente atual?), enquanto observa por sobre o ombro para garantir
que ninguem o vai ultrapassar nem invadir o que e seu. Os seguidores desta doutrina
social sempre alegaram que o cidadao de sua Republica desejada hade colocar o bern
comum acima do interesse privado. Mas o conteudo deste bern comum se exaure na
defesa do sistema de esferas inviolaveis de direito contra todos os inimigos internos
ou externos. A igualdade de subjetividades diferentes tern de ser assegurada pelo va-
zio comum; qualquer riqueza de experiencia subjetiva cria o perigo da disc6rdia
cumulativa e da auto-absorc;:ao sem esperanc;:a. Os cidadaos talvez disfarcem sua
indignayao diante de qualquer afastamento desta igualdade na linguagem de uma vir-
tude pomposa e impiedosa. Estas emoy6es as vezes dao Iugar a outras: nenhuma or-
dem social consegue afundar o desejo na rotina. 0 individuo fantasia necessidades e
satisfay6es fabulosas. Se sua imaginayao nao 6 adequada para gerar estes anseios, ele
pode busca-los em outras sociedades ou nos rebeldes e desajustados que condena
ostensivamente, mas que, no fntimo, ele inveja, ou pela amplificayao dos desejos e
satisfay6es de que ele ja usufrui. Pode-se contar com que estes desejos serao persis-
tentes e proibidos. Quando abertamente exibidos, eles antagonizam o regime. Quando
negados, permanecem como ressentimento e autodepreciayao, para envenena-lo.
0 programa da democracia forte evita estes custos materiais e espirituais quan-
do, define o carater e as formas de igualdade e participayao. A igualdade aproximada
de circunsUincias materiais que ele busca deve surgir sob a forma do efeito convergen-
te das reivindicay6es absolutas de satisfayao das necessidades materiais minimas (rei-
vindicay6es incluidas entre os direitos de imunidade), o carater condicional e tempo-
rario do acesso ao capital e a abertura do contexto formador de poder e produyao a
contestayao e a mudanya. A participayao na vida publica por ele proposta nao 6 o
culto de objetivos altruistas contrastados rigidamente com as necessidades privadas,
nem a mania fatal de reuni6es que terminam inevitavelmente em tedio para muitos e
manipulayao por poucos. Ao contrario, prop6e amp liar o alcance e a clareza das am-
biy6es privadas mediante a ampliayao do nosso sentido das formas possfveis de asso-
ciayao, por meio das quais aquelas podem ser concretizadas e redefinidas. Desta for-
ma, ele busca superpor as delfcias da satisfayao privada, os prazeres - nem privados
nem publicos - da criayao, dentro da sociedade, de formas distintas mas comuns de
vida que permitam atividades comuns mas distintas.
Portanto, o programa democratico radical delineado aqui 6 menos uma continu-
ayao da visao classica republicana do que urn superliberalismo. Leva a guerra contra
o privilegio e a superstiyao ate urn ponto que exija o abandono das fonnas de organi-
zayao governamental, econ6mica e legal com as quais o liberalismo tern sido tradicio-
nalmente associado. Tendo se conciliado com a modernidade, nao precisa preparar o
futuro fingindo restaurar o passado. Este superliberalismo 6 tam bern a forma aceitavel
do ideal esquerdista que rompe o encanto da teo ria social de 16gica profunda, enfrenta
a necessidade de pensar institucionalmente, recusa-se a se definir por referencia a
interesses de classe formados pelas mesmas institui96es que pretende reconstruir e
busca promover a liberdade e igualdade pel a transforma9ao da subversao numa forma
pratica de vida.
0 significado da imperfeis;ao
Auto-reprodur;;fio e estabilidade
Militcmcia e engrandecilnento
Solidariedade e autonomia
A tese da personalidade
A tese macro-micro
A tese do antiparticularismo
A medida em que o conteudo da cren<;:a religiosa muda, tam bern de vern mudar
os agentes da a<;:ao religiosa. Quem sao os agentes de uma pratica de religiao que tern
seu centro na experiencia pessoal exemplar, que reconhece a rela<;:ao da fe com a
democracia, que conecta o grande mundo das institui<;:5es com o pequeno mundo das
rela<;:5es pessoais mediante uma pratica e visao de reconstru<;:ao social e que deixa
livre a for<;:a que subverte o particularismo de suas sugest5es profeticas?
A hist6ria moderna da religiao assistiu adifusao da ideia do sacerd6cio de todos
os crentes. Mas ha dois problemas: o primeiro, e que a religiao descrita nas primeiras
quatro teses exige que todos os crentes sejam profetas alem de sacerdotes; o segundo
problema e que a experiencia caracterfstica de viver na fe tornou-se hoje uma expe-
riencia em que as mesmas pessoas sao simultaneamente crentes e nao-crentes. Nem a
igreja, nem o partido politico, nem a parceria entre essas duas entidades pode se ex-
pressar adequadamente em nome des sa religiao e des sa experiencia. Quem en tao pode
faze-lo?
0 perigo moral e psicol6gico e o de que essa religiao possa proporcionar o
vefculo e a oportunidade a uma lideranc,:a carismatica- nao apenas na polftica enten-
dida de modo estrito, mas em cada cenario da vida social. Os seguidores dos lfderes
carismaticos, como os trabalhadores mobilizados pelos ativistas profeticos da Igreja
Cat6lica radical no Brasil sentem-se, entao, dilacerados entre a sensac,:ao de estarem
inspirados e a de estarem excluidos do poder e da grac,:a da inspirac,:ao original. 0
antfdoto e conectar o grande mundo das instituic,:6es e o pequeno mundo das relac;:oes
pessoais de maneira que pennitam que as pessoas participem dos conflitos de visao e
que as lembrem de seu poder de resistir, transcender e conectar-se, diminuindo a de-
pendencia da atuac;:ao privilegiada da lideranc;:a carismatica. Para tanto, precisamos de
instituic,:oes polfticas e econ6micas e de estilos de associac;:ao pessoal que acelerem o
experimentalismo em cada dominio da vida social. Desse modo damos urn significado
pratico aideia de transformar todos em profetas.
Traduc;:ao de Almiro Pisetta. 0 original em ingles - Five theses on the relation of religion to
politics, illustrated by allusions to Brazilian experience - encontra-se a disposic;:ao do leitor
no IEA-USP para eventual consulta.
lNniCE 0NOMASTICO