Ponto Virgulina 1 Afrofurismo
Ponto Virgulina 1 Afrofurismo
Ponto Virgulina 1 Afrofurismo
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005
e Em 1972, enquanto Sun-Ra gravava seu filme “Space is
the place”, uma viagem cósmica afrofuturista em que os
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negros estadunidenses embarcam por meio do poder do
jazz em uma nave espacial para buscar um planeta mais
e
seguro, Gilberto Gil preparava seu álbum “Expresso 2222”,
um trio elétrico espacial que partia de Bonsucesso para
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depois do ano 2000, mudando para sempre o Carnaval e a
música brasileira. Aqui estamos, bem depois do ano 2000,
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e algumas das questões que tornavam este espaço-tempo
tão hostil para os negros da diáspora permanecem. Lan-
çamos essa edição no ano de 2020, ano de uma epidemia
a
007
fenômenos que já existiam. Devido ao seu insight e à sua computação, encarte de álbum, manifesto, textos produzi-
popularização, não apenas organizou como inspirou o sur- dos nos Estados Unidos e no continente africano. Seus au-
gimento de novas manifestações. É específico e suprahistó- tores, mulheres e homens com quase cem anos de distân-
rico, serve para descrever a ficção especulativa, mas como cia entre si, apontam para a diversidade e persistência da
trata necessariamente da dwe mundos inteiros precisam ideia. Isso por si só prova que o afrofuturismo é tão artístico
ser transformados também para que a narrativa funcione quanto político, faz dançar justamente as divisões imóveis
e, ao fazê-lo, já estamos praticamente diante de um novo e estéreis que têm atrapalhado nosso engajamento em um
gênero. Mas não é só no campo das artes, ou, é apenas outro mundo possível.
primeiro no campo das artes que o afrofuturismo promove
transformações. Se a visão da história construída pelo oci- Esse volume seria impossível sem a determinação
dente branco, sua filosofia da história, aniquila o passado dos que vieram antes e dos que fazem aqui e agora. Do in-
e vende o momento do presente em nome de um futuro teresse acadêmico e generosidade de pesquisadores como
novo e melhor (e mais branco!) que nunca chega, a visão Kênia Freitas, Stephanie Borges, Viviane Moraes e Waldson
de uma história afrofuturista não é apenas uma em que os Souza. Dos criadores afrofuturistas e também antirracistas,
negros estão também no futuro, mas em que essa pró- aqui e agora no Brasil, como Lu Ain-Zaila, Adirley Queirós,
pria configuração temporal, essa própria relação entre os Fábio Kabral, Ale Santos, Xênia França, Ellen Oléria, Do-
tempos passado, presente e futuro é restabelecida a partir ralyce, Emicida, a editora Morro Branco, a Kitembo Edições
de práticas culturais, filosóficas, antropológicas, religiosas e Literárias, os carnavalescos todos, a cultura hip-hop, os
artísticas negras. cursinhos populares, enfim, a lista é infinita e crescente.
Não há quem tenha mais dificuldade para imagi- Agradecemos também o coletivo de tradutores que aten-
nar um futuro do que um “estranho numa terra estranha”. deu a um chamado no Facebook e, pelo simples desejo
Entre os crimes mais abomináveis de lesa humanidade, de interferir positivamente no presente, ajudou a revisar e
sem dúvida, está a perseguição implacável da memória e trazer esses textos para o português: Camila Elias, Camillo
do pensamento negro. E apesar de tudo, aqui e nos outros Alvarenga, Eugênio Lima, Francisco Araujo da Costa, Ja-
lugares da diáspora, os contadores souberam guardar nas queline Ramos, Jota Mombaça, Juliana Berlim, Milena Du-
palavras um imenso legado em forma de histórias e me- arte, Marcos Manulu, Milena Durante, Nathalia Kloos, Petê
mórias fragmentadas, cifradas, misturadas, e passá-las para Rissatti, Rafael Zacca, Stella Paterniani, Stephanie Borges e
seus descendentes. A história negra ao redor do mundo o Tomaz Amorim.
comprova. O afrofuturismo é mais um dos nós que religam É com prazer que a revista Ponto Virgulina
aos poucos essa história, do seu passado entrelaçado neste apresenta seu primeiro número temático com o tema
presente. AFROFUTURISMO.
O leitor encontrará neste volume textos de gêneros
variados: ensaio, entrevista, conto, catálogo de exposição,
Informações sobre direitos autorais:
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Os trechos originais das obras disponibilizados na revista
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timento expresso dos tradutores. A revista não se destina
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quem imprime, permitida.
01 a vida Morrison vê a intensidade da experiência da Escravidão
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como algo que distingue os negros como as primeiras
tradução
que é na verdade uma patologia. A Escravidão quebrou o
mundo ao meio, quebrou em todos os sentidos. Quebrou a
Tomaz Amorim Europa. Transformou-os em outra coisa, tornou-os senhores
de escravos, os enlouqueceu. Não se pode agir assim por
referência séculos sem se prejudicar de alguma forma. Eles tiveram
GILROY, Paul. “Living que desumanizar, não só as pessoas escravizadas, mas a si
memory: a meeting with mesmos. Tiveram que reconstruir tudo para fazer com que
Tony Morrison”, Small acts.
London; New York: Serpent’s
1 NdT. Citação do romance “Amada” [Beloved], de Toni Morrison.
Tail, 1993.
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tudo na Segunda Guerra Mundial possível. Tornou neces- podem começar do zero. O passado é ausente ou é ro-
sária a Primeira Guerra Mundial, e racismo é a palavra que mantizado. Essa cultura não encoraja a permanência, muito
usamos para abranger tudo isso. A ideia de racismo científi- menos a resolução, da verdade sobre o passado. Essa me-
co sugere um tipo de patologia séria.” mória está muito mais ameaçada agora do que estava trinta
Com “Amada”, Morrison buscou colocar a escravi- anos atrás.”
dão no coração da cultura literária e política da Afro-Amé-
rica.
“A escravidão não fazia parte da literatura de forma
alguma. Parte disso, eu penso, é porque, ao ir das amarras
à liberdade, o que tem sido nosso objetivo, nos afastamos
da escravidão e também das pessoas escravizadas, há uma
diferença. Devemos reposicionar essas pessoas”.
O livro não é um romance histórico como “Raízes
Negras” ou “Jubileu”, mas lida diretamente com o poder
da história, a necessidade da memória histórica, o desejo
de esquecer os horrores da escravidão e a impossibilidade
de esquecer. “O esforço para esquecer, que foi necessário
para sobreviver, é infrutífero e eu quis fazê-lo infrutífero”.
Morrison saboreia a ironia no fato de os autores negros
estarem se afundando em preocupações históricas ao
mesmo tempo em que literatos brancos as estão abolindo
em nome de algo que chamam de “pós-modernismo”. “A
História se tornou impossível para eles. Estão tão preocupa-
dos sendo inocentes e pulando da adolescência à velhice.
Sua literatura e arte revelam esta grande brecha na psique,
no espírito. É um grande buraco na literatura e arte dos
Estados Unidos.”
Então por que ela e outros romancistas afro-ameri-
canos tomaram essa virada decisiva para a história? “Deve
ser porque somos responsáveis. Estou muito contente com
o fato de escritores negros estarem crescendo nessa área.
Abandonamos muito material valioso. Moramos numa terra
onde o passado é sempre apagado e a ‘América’ é o futuro
015
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contaram a mesma história
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- então a mentira já passou
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para dentro da história e
se tornou verdade. ‘Quem
controla o passado’, dizia o
slogan do partido, ‘controla
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o futuro: quem controla o
presente controla o passado.
y
– George Orwell
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escolheram escrever dentro das convenções de gênero da não está nas mãos dos tecnocratas, futurólogos, designers
ficção científica. Isso é especialmente desconcertante à luz e cenógrafos - brancos para homens - que criaram nossas
do fato de que afro-americanos, em um sentido bastante fantasias coletivas? Os “fantasmas semióticos” do Metró-
real, são descendentes de pessoas abduzidas por aliení- polis, de Fritz Lang, as ilustrações de Frank R. Paul para a
genas; eles habitam um pesadelo sci-fi em que campos de Amazing Stories de Hugo Gernsback, os eletrodomésti-
força invisíveis, mas não menos inatravessáveis, frustram cos com pele cromada e em forma de lágrima sonhados
seus movimentos; em que histórias oficiais desfazem o que por Raymond Loewy e Henry Dreyfuss, o “Futurama” de
foi feito; em que a tecnologia é frequentemente aplicada Norman Bel Gedde na Feira de Nova Iorque de 1939 e o
sobre corpos negros (marcações com ferro em brasa, este- “Tomorrowland” da Disney ainda assombram a imaginação
rilização forçada, o Experimento com sífilis de Tuskegee e do público em um ou outro disfarce capitalista.
armas de choque vêm rapidamente à mente). Mas as vozes afro-americanas têm outras histórias
Além disso, o status desprestigiado da ficção cientí- para contar sobre cultura, tecnologia e coisas por vir. Se
fica como um gênero comercial de massas na literatura oci- existe um Afrofuturismo, ele precisa ser buscado em luga-
dental reflete a posição subalterna a qual os negros foram res inesperados, em uma constelação entre os pontos mais
relegados através da história americana. Neste contexto, a remotos. Seus vislumbres podem ser vistos em pinturas de
observação de William Gibson de que a Ficção Científica Jean-Michel Basquiat como Molasses, que representa um
é amplamente conhecida como “o gueto dourado”, reco- robô virando os olhos de bêbado e com os dentões para
nhecendo a correlação negativa entre porção de mercado e frente; em filmes como The Brother from Another Planet de
legitimidade crítica, ganha um significado curioso. Também John Sayle e Born in Flames de Lizzie Borden; em álbuns
Norman Spinrad usa a expressão odiosa “troféu negro” como Electric Ladyland de Jimi Hendrix, Computer Games
para descrever “qualquer escritor de ficção científica de de George Clinton, Future Shock de Herbie Hancock e
mérito que é adotado (...) nos grandes salões do poder Blacktronic Science de Bernie Worrel; e no jazz big-bang
literário”. intergaláctico da Omniverse Arkestra de Sun-Ra, no astro-
A ficção especulativa que trata de temas afro-ame- funk do Parliament-Funkadelic do Dr. Seussian e no dub
ricanos e que lida com as preocupações afro-americanas no reggae de Lee “Scracht” Perry, que nos seus momentos
contexto da tecnocultura do século vinte - e, mais gene- mais estranhos soa como se fosse feito de matéria escura e
ricamente, a significação afro-americana que se apropria tivesse sido gravado no campo gravitacional esmagador de
de imagens da tecnologia e de um futuro prosteticamente um buraco negro (“Angel Gabriel and the Space Boots” é
aperfeiçoado - pode, por falta de um termo melhor, ser uma faixa representativa disso).
chamada de “Afrofuturismo”. A noção de Afrofuturismo O Afrofuturismo também se infiltra através dos
gera uma antinomia problemática: pode uma comunidade quadrinhos escritos e ilustrados por negros como o Har-
que teve seu passado tão deliberadamente apagado, e dware da Milestone Media (“Uma porca na máquina corpo-
cujas energias foram subsequentemente consumidas na rativa está para estourar algumas engrenagens”), sobre um
busca por traços legíveis de sua história, imaginar futuros cientista negro que se veste com canhões montados nos
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guerra ao seu patrão orwelliano multinacional. Os títulos Prospect Hills. Sua crença inabalável no empreendedorismo
dos comunicados de imprensa da Milestone - Hardware, é questionada, no entanto, quando ele passa a proteger
Sindicato de sangue, Estática e Ícone - deixam explícitos os uma moça do subúrbio, Rachel “Rocket” Ervin. Uma delin-
impulsos políticos da empresa sediada em Manhattan: uma quente juvenil, fã de Toni Morrison, a adolescente das ruas
metrópole ficcional, Dakota, oferece um pano de fundo abre os olhos de Augustus para “um mundo de miséria
para super heróis “autênticos e multiculturais” “conectados e falsas expectativas que ele não acreditava ainda existir
em sua luta para derrotar o S.I.S.T.E.M.A.”. A cidade é um neste país”. Ela faz um chamado para que ele use seus po-
campo de batalha dentro do “choque entre dois mundos: deres extra mundanos para ajudar os oprimidos. Quando o
um caldeirão urbano de baixa renda e o nível mais elevado faz, sob o disfarce de Ícone - uma montanha de abdomens
de sociedade privilegiada”. e músculos bem definidos - ela se junta a ele como sua
Ícone [Icon], um exemplar de Afrofuturismo que ajudante. “Conforme a série avança”, nos é dito, “Rocket
empurra memórias do antebellum, cultura hip-hop e cyber- se tornará a primeira superheroína do mundo que também
punk para dentro do seu círculo, pede uma exegese deta- é adolescente e mãe solteira”.
lhada. A história começa em 1839, quando uma cápsula de O grafiteiro de Nova Iorque e teórico dos B-boy,
fuga liberada por uma espaçonave alienígena pousa fortui- Rammellzee, constitui ainda outra encarnação do Afrofu-
tamente no meio de uma plantação de algodão na Terra. turismo. Greg Tate afirma que “as formulações de Ram-
Uma escrava chamada Miriam se depara com “um pequeno mellzee sobre a junção entre sistemas de signos negros e
e perfeito bebê negro” - na verdade, um extraterrestre cuja ocidentais fazem com que as extrapolações de (Houston)
tecnologia morfogenética havia sido alterada para se pa- Baker e (Henry Louis) Gates pareçam elementares em com-
recer com a primeira forma de vida que encontrasse - nos paração”, dando como prova o “Panzerism Ikonoklast” do
destroços flamejantes da cápsula e o cria como seu próprio artista, uma armadura pesada descendente do “wild-style”
filho. O órfão, batizado como Augustus, é um menino e os do grafite dos anos 1970 (aquelas letras que se pareciam
ecos do relato do Velho Testamento de Moisés na arca de com bulbos, como se tivessem sido formadas a partir de
juncos, as crianças trocadas por fadas no folclore europeu e balões retorcidos). Um desenho de 1979 representa uma
a brusca queda do menino Super-Homem dos céus rever- letra “S” blindada: é uma bagunça de ângulos agudos que
beram nas cenas iniciais da narrativa. sugere um “Nude Descending a Staircase” andando de Jet
Como seu homônimo romano, Augustus é um “ho- Ski. “Os romanos roubaram o sistema de alfabeto dos gre-
mem do futuro”: o homem que caiu na Terra aparentemen- gos através da guerra”, explica Rammellzee. “Então, nos
te é imortal, tendo sobrevivido diversas gerações de sua tempos medievais, os monges ornamentavam as letras para
família adotada e eventualmente se apresentando como esconder seu significado das pessoas. Agora, a letra ganha
seu próprio bisneto - Augustus Freeman IV - na Dakota do uma armadura contra outras manipulações”.
presente. Um conservador linha-dura que prega a palavra De modo semelhante, o artista se enclausura du-
de Horatio Alger e faz injúrias ao estado de bem-estar so- rante performances em galerias no Gasholeer, um exoes-
cial, Freeman é um advogado muito bem sucedido, o único queleto 67kg incrustado de dispositivos e inspirado em um
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de 4 anos de criação, a armadura exuberantemente low- ra? (...) Os negros sempre foram mestres do figurativo: dizer
-tech de Rammellzee se ouriça com lançadores de foguete, uma coisa para dizer outra sempre foi fundamental para a
bocais que jorravam jatos de chamas e, o mais importante, sobrevivência negra nas culturas ocidentais opressoras...
um sistema de som. “ ‘Saber ler’, neste sentido, não era brincadeira; era uma
“De ambos os pulsos eu consigo atirar sete jatos de parte essencial do aprendizado de ‘leitura’ de uma criança.
chamas, nove de cada calcanhar do tênis e chamas colo- Este tipo de alfabetização metafórica, aprender a decifrar
ridas da garganta. Duas cabeças de boneca penduradas códigos complexos, é praticamente a parte mais negra da
na minha cintura, em frente às minhas bolas, cospem fogo tradição negra”.
e vomitam fumaça... O sistema de som consiste em um Que histórias, então, estão sendo contadas pelos
Computador que é um sistema de parafusos com cabos. efeitos de “beatbox humano” usados no começo do hip
Estes parafusos podem ser pressionados quando a arma hop, no qual MCs como Fat Boy Darren Robinson usavam
do teclado é encaixada nele. O som viaja através do te- sons vocais para simular baterias eletrônicas e scratching de
clado e dos parafusos, daí através do computador, através toca-discos; os lançamentos do electro-boogie do começo
do cinto e para cima até os quatro alto-falantes de médio dos anos 80 que David Toop chamou de “uma trilha sonora
alcance (com tweeters). Isso tudo fica balanceado pela roda para vidkids viverem as fantasias nascidas do retorno da
dianteira de um caça aéreo. Um dispositivo de resfriamento ficção científica (cortesia de Star Wars e Contatos Imediatos
mantém minha cabeça e peito em temperatura normal. Um de Terceiro Grau) (...) (discos caracterizados por) imagens
amplificador de 100 watts e baterias me dão energia”. desenhadas a partir de jogos de computador, vídeo, dese-
A bricolagem B-boy encarnada no “arsenal à prova nhos, ficção científica e gírias do hip hop”; e o corpo duro
de balas” de Rammellzee, com suas cabeças de boneca e os espasmos robóticos que o breakdancing herdou da
penduradas no estilo fetiche e seu computador remendado mania da “dança do robô” dos anos 1970?
com parafusos e fios, interage com sonhos de coerência Em um primeiro passo hesitante rumo à exploração
em um mundo fraturado, e com a alquimia da pobreza que deste território, eu propus estas e outras questões para três
transmuta tênis em alta moda, toca-discos em instrumentos pensadores afro-americanos cuja escrita sugeriu pontos de
musicais e painéis pintados com spray nos vagões do metrô conexão com o tema tratado: Samuel R. Delany, um semi-
em arte instantânea. Confirmando as palavras de Gibson: ótico e membro de longa data da comunidade de ficção
“A rua encontra seus próprios usos para as coisas”, a cultu- científica; Greg Tate, um crítico cultural e escritor da equipe
ra hip hop reforma, refuncionaliza e intencionalmente usa do Village Voice; e Tricia Rose, Professora Assistente de Es-
de maneira inapropriada as tecnomercadorias e as ficções tudos Africanos e História na Universidade de Nova Iorque
científicas geradas pela cultura dominante, oferecendo um que trabalha atualmente em um livro sobre RAP e a política
depoimento eloquente a favor da afirmação de Gates de das práticas culturais negra. Suas respostas, colocadas em
que “a tradição afro-americana é figurativa desde o seu conjunto, constituem um mapa de um pequeno canto de
início”. uma psicogeografia amplamente inexplorada do Afrofutu-
rismo.
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mencionou que a presença negra na base de fãs de ficção res?
científica estava em ascensão. O que te leva a crer nisso? Mark Dery: Você já sentiu, como um dos poucos
Samuel R. Delany: Simplesmente ir a convenções de escritores negros escrevendo ficção científica, a pressão de
ficção científica e ver mais rostos negros. A única coisa que escrever ficção científica profundamente inscrita dentro da
nós queríamos é que houvesse também um crescimento política do nacionalismo negro?
comparável em escritores negros de ficção científica. Quan- Samuel R. Delany: A resposta depende do que a
do você olha ao redor de várias áreas da cultura popular sua questão quer dizer. Se você quer dizer: você sente que,
- pegue os quadrinhos - você nota um aumento no número no fundo do meu trabalho, eu institui material que encora-
de criadores negros - Brian Stalfreeze, Danys Cowan e Kyle ja a interação com algumas das questões políticas que as
Baker (cuja graphic novel Por que eu odeio Saturno é uma pessoas desprovidas de direitos neste país, vitimizadas pela
sátira contemporânea envolvendo personagens brancos e opressão e por um discurso opressor baseado no mal e em
negros conversando entre si sobre seus problemas mistura- uma noção supervalorizada de nação e seu odioso imperia-
do com algumas observações bastante problemáticas sobre lismo branco - nenhuma outra cor -, com o qual é preciso
o feminismo), Malcolm Jones, Mark Bright e Mike Sargent lidar, mas não pode superar sem a internalização de alguns
com seu projeto James Scott (mas seria possível dobrar o dos conceitos mais poderosos e das relações inescapavel-
tamanho desta lista, com nomes como Derek Dingle, Trever mente implicadas na própria noção de “nação”? Então, se
wan Eeden, David Williams, Ron Wilson, Paris Cullens, Mal- é isso que você quer dizer, minha resposta é: porra, com
colm Davis e Bill Morimon). Mas parece haver ainda apenas certeza! Certamente, do meu romance Dhalgren de 1974
quatro romancistas negros de ficção científica em língua em diante, isso tem sido ponto central, razão e justificativa
inglesa: Octavia Butler, Steve Barnes, Charles Saunders e dentro, do e para o meu projeto.
eu - o mesmo número que havia dez anos atrás. Se, por outro lado, você quer dizer: se eu sinto que
Era muito fácil entender, por exemplo, porque dos a superfície do meu trabalho deve mostrar abertamente
anos cinquenta até os setenta os leitores negros de ficção sinais de solidariedade com aqueles que, pelos desesperos
científica eram muito poucos - embora de maneira alguma reais impostos a eles através da opressão, abandonaram
inexistentes. Mas muito menos do que hoje. As luzes pis- momentaneamente qualquer crítica dos pressupostos da
cantes, os mostradores e o resto da parafernália visual da nação e suas contradições internas, e que, através destes
ficção científica funcionavam como signos sociais - signos sinais em meu trabalho eu me esforço para responder a
que as pessoas aprenderam a ler muito rápido. Eles signi- estas pessoas em uma voz indistinta das delas, confirmando
ficavam tecnologia. E tecnologia era como uma placa em o que nelas não pode ser questionamento, o que nelas não
cima da porta dizendo: “Clube do Bolinha! Fora, meninas. tem o privilégio de ser capaz de criticar os fundamentos
Negros e latinos e pobres em geral, vão embora!”. sobre os quais elas se sustentam - uma confirmação de que
A ficção científica é o tipo de gênero que, até que eu reconheço que o projeto deles é infinitamente prático
você tenha leitores, você não consegue ter escritores. Mas e necessário, e de tal maneira que eu posso normalmente
os leitores estão aqui, hoje. Então, confesso, eu estou me apoiá-lo em algum nível de abstração? Bem, se é isso que
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Isso não é parte do meu projeto - mesmo que eu frequen- pensar e decidir o que eu realmente estava fazendo) conte-
temente o aprove em outros. Ainda assim, simplesmente nha muitos livros, em número de páginas o período inicial
não é o que eu faço de melhor. tem só um terço ou menos da minha produção. Ele diz, veja
Eu fui percebendo com o passar dos anos que bem, que costumava incomodá-lo. Eu me pergunto o quão
um dos aspectos mais poderosos e específicos da ficção incomodado ele está agora?
científica é que ela é marginal. Ela está sempre em sua Agora, parte do que eu, da minha posição margi-
forma mais honesta e efetiva quando opera - e afirma estar nal, vejo como o problema é a ideia de que se tenha que
operando - a partir das margens. Sempre que - às vezes lutar contra a fragmentação e a diversidade multicultural do
apenas através de puro entusiasmo com seu tema - ela afir- mundo, para não falar da opressão generalizada, construin-
ma estar no centro do palco, acho que ela acaba se traindo do algo de tão rígido como uma identidade, uma identida-
de alguma maneira. Eu não quero ver ela operando a partir de na qual deve haver um núcleo fixo e imóvel, um núcleo
do centro de ninguém: do nacionalismo negro, do feminis- que é estruturado para manter inviolada uma fantasia bioló-
mo, dos direitos dos gays, dos movimentos pró-tecnologia, gica tão completa quanto a de raça - seja branca ou negra.
ecologistas ou qualquer outro centro. Eu prefiro muito mais, pelo menos como análise
Se você acha que esta ideia tem algo a ver com o provisória, uma das últimas estratégias retóricas de Ja-
evitar o “politicamente correto”, você estará me entenden- mes Baldwin, que ele propôs no prefácio de seus textos
do completamente errado, do começo ao fim. É apenas não-ficcionais reunidos, The Price of the Ticket. Lá, Balwin
uma estratégia de eficácia. escreveu que percebeu de repente que não havia brancos
Mark Dery: Greg Tate escreveu sobre seu trabalho: - isso quer dizer, “branquitude”, como indicação de uma
“Eu sempre achei os futuros racialmente desarmados de raça, era simplesmente uma fantasia fruto da ansiedade na
Delany problemáticos porque eles parecem negar a possi- qual certas pessoas foram treinadas a embarcar imediata-
bilidade de que aspectos afirmativos da cultura e experiên- mente (e, Baldwin percebeu, se sentiram completamente
cia afro-americanas possam sobreviver à assimilação (...) E, inadequadas ao embarcar) sempre que encontravam certas
apesar de sua ficção estar cheia de negros e outros prota- outras pessoas que eles codificavam como negros ou não-
gonistas de cor (...) a raça destes personagens não está no -brancos. Resumindo, “branco” é simplesmente algo que
núcleo de sua identidade cultural. O que costumava me você, Mark Dery, foi convencido socialmente de que você
incomodar muito porque o que eu esperava do nosso único é, por causa de um espasmo de medo, sempre que você
escritor negro de ficção científica era ficção científica que por acaso olha para mim - ou, de fato, para Greg, ou para
imaginasse o futuro da cultura negra como eu a tinha defi- qualquer outra pessoa não-branca. Perceber isso deu a
nido, de uma posição mais ou menos nacionalista”. Baldwin um senso de poder extraordinário. Na medida em
Samuel R. Delany: Eu suspeito que Greg esteja que esse senso pode empoderar uma observação analítica,
escrevendo sobre meu trabalho inicial - até, digamos, Nova ele pode ser algo que todos nós podemos usar.
(1968). Mas se você alinhar todos os meus livros na prate- Na medida em que uma parte daquele meu traba-
leira, embora aquele período (de 1962, quando eu comecei lho inicial ansiava estar no - estava impregnado com uma
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nal da ficção científica, bem: eu posso admitir - lá - algo do Norte, que ainda está funcionando hoje. Por ambos,
da crítica de Greg acerta na mosca. Mas de Dhalgren em pastores negros e brancos, da Arquidiocese das Carolinas
diante, eu discordaria. do Norte e do Sul, ele depois foi eleito bispo. Mas falar
Mark Dery: Em Starboard Wine, há um discurso sobre de onde suas raízes na África eram é uma tarefa sem
incrível oferecido por você ao Studio Museum do Harlem, esperança. Ele não sabia. Seus pais - nascidos aqui, neste
em que você diz: “Nós precisamos de imagens do amanhã, país, na escravidão - não sabiam. Não lhes foi permitido.
e nosso povo precisa delas mais do que outros”. Nenhum grupo de imigrantes - nem irlandeses,
Samuel R. Delany: A razão histórica pela qual nós italianos, alemães, judeus ou escandinavos - por todos os
ficamos tão pobres em termos de imagens do futuro é preconceitos que todos eles encontraram quando chega-
porque, até pouco tempo, nós fomos sistematicamente ram aqui, e que eles todos superaram, teve que lutar contra
proibidos como povo de manter qualquer imagem do nos- uma destruição cultural massiva deste tipo. E porque isso
so passado. Eu não tenho ideia de onde, na África, meus foi infligido sobre nós, o país está pagando caro desde
ancestrais negros vieram porque, quando eles chegaram então.
aos mercados de escravos em Nova Orleans, os registros É por isso que a história negra é tão importante -
destas coisas foram sistematicamente destruídos. Se eles mais, mesmo em uma área disputada violentamente, na
falassem suas próprias línguas, eles apanhavam ou eram as- vida intelectual negra de hoje.
sassinados. As senzalas nas quais eles eram mantidos eram Mark Dery: Você falou antes sobre a superfície de
organizadas para que dois escravos da mesma área nunca cromo polido que você acredita que funciona como cerca
pudessem estar juntos. Crianças eram regularmente vendi- semiótica, mantendo a ficção científica segregada. Cada
das para longe dos seus pais. E todo esforço concebível foi vez mais, no entanto, os jovens negros periféricos respon-
feito para destruir todos os vestígios do que poderia resistir sáveis por formas de arte tão vitais quanto o hip hop vivem
de uma consciência social africana. Quando, na verdade, em o que poderia ser chamado de “cultura do beeper”,
nós dizemos que este país foi fundado pela escravidão, em que tecnologia digital em miniatura está sempre à
precisamos lembrar que o que queremos dizer, especifica- mão em qualquer lugar. Videogames e telefones celulares,
mente, é que ele foi fundado a partir da destruição sistemá- assim como samplers, sintetizadores, baterias eletrônicas e
tica, consciente e massiva dos resquícios culturais africanos. computadores usados na fabricação de faixas de hip hop,
Que alguns ritmos musicais tenham resistido, que certas são onipresentes. Por que, então, a juventude negra estaria
posturas e estruturas religiosas pareçam ter persistido, isso alienada dos significantes da ficção científica para a alta
é muito impressionante quando você estuda os esforços tecnologia?
em eliminá-los feitos pela máquina de importação de escra- Samuel R. Delany: A resposta imediata é simples-
vos dos brancos. mente que o signo da linguagem é mais complicado do
Meu avô nasceu escravo na Georgia. A Libertação que você está fazendo parecer. A tecnologia em miniatura
veio quando ele tinha dois anos. Quando ele cresceu, ele que você cita não é tecnologia brilhante, piscante e poli-
se tornou pastor episcopal e ajudou a construir uma fa- da. Antes de tudo, ela vem em caixas de plástico pretas e
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de som do gueto - as coisas que são apresentadas não são se tornando mais e mais como magia - com uma classe de
cromadas. São negras. Com a exceção do CD prateado pessoas que sabem os feitiços e encantamentos incrivel-
(que, para se tornar usável, precisa ser inserido no seu leitor mente complexos necessários para fazer as coisas funciona-
digital de capa preta), esse é um conjunto muito diferen- rem, mas quase nenhuma que consiga ir lá e consertá-la.
te de significantes do que os barramentos faiscantes, os Mas eu preciso dizer que, mesmo tendo dado
visores vibrantes e os cilindros fumegantes das imagens da aquela resposta de passagem, eu ouço dentro da sua
ficção científica. pergunta um tipo de celebração da sociedade de consumo
As imagens da tecnologia que se chamam “fic- que se aproxima de alguns problemas muito reais - pro-
ção científica” para a maior parte das pessoas vêm de um blemas que, se nós abrirmos sua questão mais em um
período em que nós tínhamos uma relação muito diferente certo sentido do que outro, vão finalmente trivializar minha
com nossa tecnologia do que a que temos hoje. O perío- resposta. No que você perguntou, eu consigo detectar a
do, entre os anos vinte e os sessenta, que oferece a maior possibilidade de um pressuposto ingênuo de que a redistri-
parte destas imagens de ficção científica era uma época buição de mercadorias é de alguma forma congruente com
em que sempre havia um jovem brilhante de dezesseis ou a redistribuição da riqueza - mas não é. De modo também
dezessete anos por perto que poderia consertar o seu rádio muito sério eu consigo detectar um pressuposto de que
quebrado - e depois, sua televisão quebrada. Ele estava a distribuição de mercadorias vai junto com o acesso à
construindo sua própria rádio de galena e enrolando suas informação sobre estas mercadorias e sobre o sistema de
próprias bobinas desde que tinha nove anos; ele tinha seu mercadorias - a escolha simples de o que se deve fazer
provador de válvulas e seu amperímetro, ele ficava fuçando com as mercadorias, assim como o acesso a como estas
atrás, encontrava o tubo quebrado, encontrava o resistor mercadorias são feitas e organizadas.
ou condensador queimado, tirava, encontrava outro por Então, quando alguém fala de “cultura da juventu-
cinquenta centavos ou cinco dólares, trocava para você de negra como uma cultura tecnológica”, é preciso especi-
com um pouco de cuspe e o seu próprio ferro de solda. E, ficar que é uma cultura tecnológica que está quase comple-
sim, ele era mais ou menos 85% branco. tamente na ponta receptora de um rio de “coisas” a que os
As caixas pretas da tecnologia de rua moderna jovens consumidores não têm nada nem próximo do que
(ou as caixas brancas da tecnologia de computador - uma nós possamos chamar de acesso equitativo.
distinção que não é acidental, tenho certeza) nos colocaram Resumindo, olhar para qualquer destes movimen-
em uma relação muito diferente com seu funcionamento tos culturais de jovens negros como um desenvolvimento
interno, no entanto. As crianças que estavam brotando na fácil e alegre que floresce acriticamente do mundo esma-
manutenção de eletrônicos, hoje, viraram hackers de com- gadoramente branco de produção high-tech que, sim,
putador. E se você está tendo problema como um software, torna esta cultura possível, é, eu suspeito, compreender de
sim, geralmente eles conseguem te ajudar. Mas quando se forma completamente equivocada a natureza ferozmente
trata de hardware - quando um daqueles chips quebram oposicional desta arte: o scratch e o sampling começam,
ou arranham - eles sabem tão pouco quanto os outros. E em particular, como mau uso específico e dessacralização
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tretenimento. E isso mesmo antes de você chegar à com- ensaio sobre o fenômeno, “O Cyberpunk é uma coisa boa
plexa crítica social das letras de RAP - que, para ser ouvida, ou ruim?”, é que você não mencionou os rastafáris orbitais
precisa se esconder dentro dos seus ritmos e das técnicas no Neuromancer de Gibson. Eu acho isso curioso, dado o
de mixagem eletrônica. fato de que os negros não figuram com muita frequência
Mark Dery: Isso não mudou desde o despertar na literatura: os rastas orbitais de Gibson foram anunciados,
do cyberpunk, que enfiou a ficção científica de cabeça na em alguns grupos, como significando algo que ninguém
sujeira urbana? sabia bem o que era.
Samuel R. Delany: O cyberpunk com certeza não Samuel R. Delany: Por que eu deveria tê-los men-
foi a primeira ficção científica a falar de sujeira. Em relação cionado?
à qualquer mudança na percepção, eu me pego pensan- Mark Dery: Para mim, um leitor branco, os rastas na
do se podemos usar o cyberpunk para qualquer coisa que colônia Zion de Neuromancer são intrigantes na maneira
não seja examinar algo que qualquer crítico astuto precisa com que eles mantêm a promessa de uma relação holística
admitir que foi um penetrante engano de percepção de com a tecnologia; eles são árcades romantizados que são
um período do ínterim da tecnocultura urbana, um engano obviamente muito hábeis com gambiarras tecnológicas.
de percepção que - para mim de maneira alguma - não era Eles parecem para mim como Romare Beardens supraluna-
mais possível depois dos protestos do ano passado sobre a res - bricolagens cuja colônia orbital foi remendada a partir
absolvição dos policiais bandidos de Rodney King. de lixo espacial e cuja música, Zion Dub, é descrita por Gib-
“A rua encontra seus próprios usos para as coisas” son (em uma metáfora maravilhosamente mista) como “um
foi a frase tomada tão precisamente e cedo de Gibson (ele mosaico sensual cozinhado a partir das vastas bibliotecas
a usa em pelo menos duas histórias) como o slogan para a da música pop digitalizada”.
sensibilidade cyberpunk. Samuel R. Delany: Bem, deixe-me lê-los para você
Mas tê-lo tirado do contexto imediatamente come- como um leitor negro. Os rastas - ele nunca se refere a eles
çou a reprimir sua considerável ironia. A medida daquela como rastafáris, aliás, apenas usa a gíria - são descritos
ironia era a medida do reconhecimento da frase daquela como tendo “corações encolhidos” e seus ossos são frágeis
raiva, daquele ódio, daquela fúria coruscante das ruas em pela “perda de cálcio”. Sua música, Zion Dub, pode ser
direção ao uso tradicional (que está, no fim das contas, analisada e reproduzida tão completamente pela inteli-
mentindo para as pessoas) daquela parafernália tecnológica gência artificial, Wintermute (que, no livro, representa uma
que é o referente para aquela palavra legal e fresca “coi- corporação multinacional), que os rastas eles mesmos não
sas”. conseguem perceber a diferença - na verdade, o trabalho
Estar no meio de milhões de dólares de devastação de mímica da multinacional é tão bom que o Wintermute
em Los Angeles e dizer, com um sorriso irônico, “a rua en- consegue fazer com que os rastas façam exatamente o que
contra seu próprio uso para as coisas” está além da ironia, ele quer, neste caso, ajudar a mover uma vizinhança branca,
está já no nível do lunático. drogada e sacana de um lugar para o outro. Como grupo,
eles parecem ser analfabetos computacionais: quando um
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Case e vê o ciberespaço, o que ele compreende é “Babi- de “o problema branco”) do que a porção de páginas que
lônia” - a cidade do pecado e da destruição - o que, ainda Bill dedicou aos rastas. Honestamente, se você recorrer a
que faça um comentário irônico sobre o livro, ainda assim escritores brancos para sua concepção de ficção científica
é uma maneira equivalente de dizer que Aerol está com- que pense sobre os problemas que os negros têm aqui na
pletamente sem poder ou conhecimento para lidar com América, eu preferiria ver uma discussão séria do roman-
o mundo real do romance de Gibson: na verdade, através ce espantosamente fascista de Robert Heinlein de 1964,
de suas crenças pseudo-religiosas, eles estão efetivamente Farnham’s Freehold, em que o empregado negro da casa,
barrados do ciberespaço. Pelo que sabemos, as mulheres Joseph, depois de um ataque nuclear bem sucedido, aban-
não fazem parte da colônia rasta. E nós nunca vemos mais dona sua família branca (na qual, depois do ataque, ele foi
do que quatro dos homens juntos - então eles não têm promovido a segundo em comando pelo patriarca branco
nem mesmo uma presença como grupo. Dos três capítulos dominante) e se torna chefe do movimento de negros que
em que eles aparecem, não mais do que três páginas são solucionaram o problema da comida no pós-holocausto
dedicadas à descrevê-los ou a sua colônia. matando e comendo os brancos. Embora eu duvide que
Você vai me desculpar se eu, como leitor negro, você - e com certeza eu também não - ou muitos dos nos-
não me adiantar para proclamar esta apresentação pas- sos leitores aprovariam o curso ou resultado dessa história
sageira de um grupo sem poderes e completamente não de Heinlein, o ponto é que Joseph é articulado, ele tem
propositivo de negros largados, por um escritor branco poder real, e Heinlein está conscientemente ironizando
nascido na Virginia, como a chegada do milênio negro na mitos culturais poderosos de canibalismo precisamente por
ficção científica: mas talvez isso seja só coisa de preto... sua ansiedade problemática. Ele nos força, no curso de sua
Deixe eu retirar a parte ad hominem do argumen- fábula, a pensar sobre a situação - mesmo se você não con-
to. Ele distorce uma situação muito real. Veja, que ele seja cordar com ele, ou com seu porta-voz, Hugh Farnham.
branco e nascido na Virginia, mas ele também abriu mão De um ponto de vista mais positivo, no entanto, eu
de sua cidadania americana durante a Guerra do Vietnã; sugeriria que você olhasse o personagem de Mordecai Wa-
Bill é um amigo meu - e eu acho que ele é um escritor shington no romance de ficção científica de - outro escritor
extraordinário. E o Neuromancer é um livro extraordinário. branco - Thomas M. Disch, Camp Concentration, de 1968.
Mas a sua questão é precisamente indicativa do que eu O personagem de Disch é um prisioneiro sociopata com
estava falando neste ensaio que você citou: as idiotices transtorno de personalidade em uma prisão militar que,
interpretativas que aparecem assim que o livro é tirado do com outros prisioneiros, é submetido a experimentos mili-
seu gênero e cortado da tradição que o precede e produz tares nos quais ele recebe uma injeção com uma substância
- neste caso, a ficção científica. Dizer, como você diz, que que o transforma em um super gênio. Em cada um dos ní-
“negros não figuram com muita frequência na literatura” veis do seu crescimento intelectual, ele reinterpreta sua po-
de ficção científica é perfeitamente verdadeiro. Mas há sição como negro. O livro inteiro é uma grande performan-
apresentações muito mais extensas, muito mais meticulosas ce. Na verdade, Mordecai foi o primeiro personagem negro
e muito mais interessantes de negros na ficção científica de um escritor branco que eu li - tanto na ficção científica,
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mim. Mas, na verdade, todo o livro é um exercício pirotéc- do capitalismo multinacional.
nico que Disch leva a cabo de maneira esplêndida. No fim de “Johnny Mnemonic”, Johnny e Molly de-
E isso, claro, é especificamente para não mencionar cidem ficar e viver sobre a desordem da Sprawl, na bagun-
o que nós - Octavia, Charles, Steve -, como escritores ne- ça optada pelos Lo-teks. E, como o narrador conclui, é uma
gros, fizemos na ficção científica. Eu pensaria, se isso fosse vida muito boa.
do seu interesse, que esse é o primeiro lugar a se olhar Os “Lo-teks” eram as verdadeiras bricolagens
para uma leitura bem pensada e detalhada! românticas de Gibson: eles não eram especificamente
A questão, claro, com os rastas de Gibson, é que te negros, eram brancos “do quarto mundo”. Ainda assim,
forçar a pensar sobre questões raciais simplesmente não é muitas pessoas mais familiarizadas com o gênero da ficção
sobre o que é o texto de Bill, apesar de sua aparição espe- científica a partir do qual Gibson estava escrevendo su-
cífica e breve em Neuromancer. geriram que eles tinham seus próprios antecessores mais
Se você observar o trabalho de Gibson até seu pri- escuros... Mas é bem possível que um Gibson consciente
meiro romance, você percebe que o que ele está fazendo decidiu que o final do Johnny não era muito realista. Era
com seu rascunho dos rastas é te dar algo como um replay bom demais para ser verdade. Não é assim que as coisas
obscuro dos “lo-teks” com os quais ele lidou muito mais in- funcionam no mundo real. Johnny, afinal, é foco de uma ca-
cisivamente e, na minha opinião, com muito mais força, em çada multimilionária da máfia japonesa. Tê-lo se esconden-
seu conto de ficção científica do começo da carreira “John- do nas brechas assim e vivendo feliz para sempre com os
ny Mnemonic” (1983) - em alguns sentidos, a narrativa é um lo-teks - bem, eu entendo como um escritor poderia dizer:
primeiro ensaio para Neuromancer. Lá, o matadouro dos nós temos que fazer um pouquinho melhor do que isso!
lo-teks se transforma na arena na qual Molly, que aparecerá Mas, ao contrário dos Lo-teks, os rastas nem mesmo ten-
de novo em Neuromancer, despacha o mafioso da Yakuza, tam se opor ao sistema. Talvez um Gibson um pouco mais
enviado para os canteiros de obras da cidade para caçar velho tenha pensado que eles iriam falhar se tentassem.
Johnny - e o mata, eu adicionaria, ao som de uma música Mas já que não mostra este fracasso, ele escolheu colocar o
indígena muito mais inquietante do que “o mosaico sen- problema de modo geral nas sombras.
sual” do pop que é o Zion Dub, uma música que o Winter- Há uma dureza superficial maravilhosa, quase hip-
mute teria muito mais dificuldade duplicando e cooptando nótica, em Neuromancer que acompanha sua resistência
para os propósitos de sua multinacional! incessante a qualquer tipo de leitura subjetiva de qualquer
E embora eu não pense nem por um segundo que um dos seus personagens; ao mesmo tempo, o resplendor
esta tenha sido a intenção de Bill, eu sinto que isso fala di- te mantém tentando atravessá-lo, tentando encontrar níveis
retamente do “inconsciente político” do sub gênero cyber- de profundidade em que, uma vez que você os encontra,
punk em que, assim que Bill especificamente “escureceu” a tudo o que você consegue ver é seu próprio reflexo des-
imagem dos Lo-tek e os reapresentou na forma dos rastas, pedaçado. É um dos raros momentos da ficção, dentro e
eles perderam toda sua carga oposicional - diabo, toda sua fora da ficção científica, em que, quase uma década depois
força física - toda sua especificidade cultural, sua presença do seu aparecimento, ela te avisa que existem coisas como
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que elas têm, que não é nada invisível, em nossas vidas! também.
É também um romance em que os Estados Unidos De fato, o que a afirmação de Ross me sugere
da América como entidade política não são mencionados mais do que qualquer coisa é o desgaste da divisão rural/
do começo ao fim. Embora o mundo tenha ficado tão japo- urbano, um desgaste que hoje é um fenômeno tanto de
nizado quanto americanizado, em Neuromancer, os Estados mídia, quanto de meios de transporte. A diferença entre a
Unidos da América podem talvez nem mais existir pelo que cidade e o campo simplesmente não marca mais - no nível
se sabe. Agora, estas são algumas das áreas responsáveis da classe média - o mesmo tipo de distinção de classe que
pelo sucesso e excelência do romance de Gibson. Mas, não marcava vinte e cinco anos atrás.
- não os Rastas. Sinto muito. A microtecnologia que, no cyberpunk, conecta as
Mark Dery: Em “Cyberpunk em Boystown”, Andrew ruas às estruturas multinacionais de informação no ciberes-
Ross expressa sua suspeita sobre a maneira com que os paço também conecta a classe média rural à classe média
cyberpunks romantizaram a decadência urbana, tornando-a urbana.
pano de fundo para revistas de moda e clipes da MTV: Mark Dery: O que você acha dos personagens afro-
“Talvez não seja coincidência que nenhum dos -americanos na ficção científica da televisão - o engenheiro
grandes escritores de cyberpunk tenha sido criado na ci- Geordi La Forge e o klingon Worf em Star Trek: The Next
dade, embora seus trabalhos se alimentem da dieta fan- Generation, por exemplo?
tasmagórica das ruas em sua ilegalidade hobbesiana e sua Samuel R. Delany: Eu preciso confessar, eu não sou
estética do detrito que supostamente permeiam o núcleo muito um espectador de televisão. É muito mais fácil para
esvaziado dos centros das grandes metrópoles. Esta fanta- mim falar de ficção científica escrita.
sia urbana, por mais contracultural que suas reivindicações Em 1986, eu dei aula em um seminário na Cornell
e efeitos fossem, compartilhava a concepção dominante, sobre o trabalho de Gibson até aquele ano, comparando-o
branca de classe média, sobre a vida interna da cidade”. e contrastando-o com o trabalho de outro escritor igual-
Esta convenção literária te incomoda, considerando mente interessante de ficção científica (tão conhecido e
que os criadores e consumidores destes mitos são, como respeitado quanto Gibson - dentro do mundo de leitores
Ross sugere, em geral, brancos suburbanos? e escritores de FC), John Varley; no seminário, eu tentei
Samuel Delany: Na verdade, não. O que você tem estabelecer os fundamentos para uma leitura psicanalíti-
é simplesmente pessoas querendo explorar o que está ca não-redutora dos seus respectivos textos que envolvia
do outro lado da linha do trem. O impulso inicial sempre colocar em conjunto uma crítica da psicanálise pela fic-
envolve um pouco de romantização. E dizer que os cyber- ção-científica, a partir dos trabalhos de escritores como
punks não são “criados na cidade” é, pelo menos no caso Sturgeon, Beste e Zelazny, todos eles que tiveram de lidar
do Gibson, uma pista um pouco falsa. Embora ele tenha detalhadamente com a psicanálise em suas histórias. Mas
nascido no interior, durante sua adolescência bastante iti- isso significa que isso é todo o material a que - pelo menos
nerante, Bill passou uma boa parte da sua vida em cidades com uma olhada rápida nas minhas notas de meia dúzia de
anos atrás - eu tenho algum acesso.
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movimento cyberpunk foi um momento vigoroso, interes- inocente que, como eu disse, para mim tem uma validade
sante - e de vida extremamente curta. Ele não tinha existên- histórica que não é mais ativa uma vez que nós passamos
cia antes de 1983. E acabou em 1987. Seu proto-começo pelos protestos do Los Angeles King.
se deu com a história de Bruce Bethke de 1980 “Cyber- Você entende - eu não negaria nem por um mo-
punk”, que não foi publicada até 1983, no Astounding mento a Gibson nada da fama e da atenção que seu bom
Science Fiction de George Scither. Naquele mesmo ano, o e interessante romance conseguiu para ele. Como alguém
editor de FC Gardner Dozois usou o termo para indicar um que é frequentemente citado - com mais generosidade por
grupo de escritores mais ou menos organizados em torno Bill, mas também por outros - como uma influência nele e
da fanzine com base no Texas Cheap Truth, de Bruce Ster- precursor dele, seria mal comportamento de minha parte
ling, como os cyberpunks. (Ironicamente, o próprio Bethke, negá-lo. Esses bem podem ser todos os pontos que eu vou
que havia inventado o termo, não era de forma alguma conseguir fazer na máquina de pinball da Grande Fama
parte do grupo que Dozois costumava caracterizar). Ele Literária.
incluia Gibson, Sterling, Shirley, Shiner, Maddox, Cadigan, Mas eu também acredito que um texto fala com
Laidlaw e alguns outros. No ano seguinte, em 1984, o pri- mais força e com mais intensidade quando seus significa-
meiro romance de Gibson, Neuromancer, ganhou o Prêmio dos são mais claros e mais focados; e, como com qualquer
Nebula de Escritores de FC da América e o Prêmio Hugo texto, é a tradição na qual ele foi escrito que faz com que
da Convenção Mundial de Ficção Científica. Pouco depois, ele signifique com mais clareza. Então, quando eu vejo o
o grupo ganhou uma atenção maior do que o comum no texto de Gibson ser arrancado de sua tradição e colocado
mundo fora da FC através da empolgação criada por um livre para flutuar sobre as camadas confusas de cultura,
artigo extraordinariamente desinformado na revista Rolling mesmo quando as pessoas saem falando sobre o quão
Stone - muitos anos atrás para eu conseguir até mesmo me bom ele é, eu tendo a vê-lo como perdendo seu sentido.
lembrar. O interesse persistiu graças às promessas inco- Para mim, o cyberpunk era empolgante na maneira
muns do Big Movie Deals. Em 1986, William Burroughs foi como ele evocava um diálogo com a comunidade de FC.
contratado por uma empresa de produção que durou muito Era uma força vital e empolgante justamente naquilo que
pouco chamada Cabana Boys para escrever um script para instigou a crítica feminista de Jeanne Gomoll da versão
Neuromancer, e eu passei uma tarde muito agradável com cyberpunk da historiografia de FC em seu “Carta aberta a
ele em sua casa em Lawrence, Kansas, fazendo um brains- Joanna Russ” - e mesmo que esta crítica tenha provocado
torming sobre maneiras de lidar com a história em filme, a resposta arrogante e feia de Sterling na próxima Aurora,
enquanto James Grauerholz preparava uns Tournedos assim como as respostas muito lembradas e importantes,
Rossini verdadeiramente deliciosos na cozinha. É desneces- tanto de homens, quanto de mulheres, incluindo Cy Chau-
sário dizer que o projeto não levou a lugar nenhum. Mas o vin, Lisa Tuttle, Suzy McGee Charnas, Avodon Carol e Don
interesse contínuo nos cyberpunks pelos acadêmicos, como D’Ammassa. (Infelizmente aquela Aurora, número 26, não
algo que eles persistem em ver como vivo e ainda funcio- apareceu até 1990). Era empolgante porque apontava
nando, me parece - eu preciso confessar - como uma busca diferenças e fez críticos como Kim Stanley Robinson, John
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Karen Joy Fowler articularem suas próprias posições. Criou tantas pessoas como ele fala.
um tipo de holofote no campo, agora focado dentro do Mas acho que começamos com uma pergunta so-
grupo cyberpunk, destacando a trilogia Eclipse de Shirley, bre personagens negros na TV.
agora apontado também para escritores talentosos e em- Durante a maior parte da minha vida adulta eu nem
polgantes fora do grupo. As entrevistas e ensaios e artigos tive uma televisão. Durante os anos em que eu tive, eu
de opinião, de Sterling e Shierly e Gibson, de escritores tinha para que um amante ou minha filha pudessem assistir.
críticos à posição do grupo - bem, para mim, as mudanças Eu realmente não conseguiria fazer mais do que uma obser-
para lá e para cá de atenção foram o que deram sentido ao vação simplista e de passagem sobre a representação dos
cyberpunk. Mas este processo já havia terminado, quando negros na ficção científica dos programas de televisão - do
tudo já havia sido dito e feito, em 1987. tipo Star Trek, seja lá qual for a geração. Quando as pesso-
Pelo menos uma vez - em 1987 - um jovem editor as me faziam sentar em frente da tela e assistir, eu gostava
propôs agrupar um guia do cyberpunk com esse material da Whoopi Goldberg.
de e sobre cyberpunk, que Bruce Sterling extinguiu com Eu sou uma pessoa de texto - não sou muito um
algumas ameaças feitas - praticamente de excomunhão homem de mídia. Agora, isso é um fracasso em qualquer
- a qualquer um do grupo cyberpunk que cooperasse ou discussão sobre os referenciais e ressonância de mídia den-
deixasse seu trabalho aparecer nele. Isso foi justamente na tro do cyberpunk, sou o primeiro a reconhecer isso.
época em que o interesse acadêmico começou a aparecer. Mark Dery: Eu tinha a impressão de que engenhei-
Talvez ele tenha sentido que o cyberpunk seria comprome- ros sociais como os tecnocratas anticapitalistas, cujo slogan
tido se alguma das suas afirmações - ou, melhor, alguma era “Governo pela ciência, controle social pelo poder da
dos outros - mais ingênuas ou polêmicas dos dias do Che- técnica”, dominavam a base de fãs de FC no final dos anos
ap Truth tivessem permissão de circular em grande escala. trinta e no começo dos quarenta. Não havia uma inclinação
Para mim, claro, são os vários escritores como “Sue Den- elitista, se não cripto-direitista, nesta literatura desde o seu
min” (Lew Shiner) e “Vincent Omniveritas” (o alter ego de princípio?
Sterling), em todo seu escândalo, que eram uma boa parte Samuel R. Delany: Mais uma vez, isso soa para mim
da vida do movimento - mas parecia muito totalitário e simplesmente como uma incompreensão histórica sobre a
feio visto de fora. E certamente, daquele ponto em diante, história e a tradição da ficção científica. De fato, quando
eu não estava mais interessado no cyberpunk como movi- você fala que a base de fãs foi dominada pela direita nos
mento. Eu acho que muitas outras pessoas, tanto dentro, anos trinta e quarenta, eu não tenho nem certeza sobre ao
quanto fora, sentiram a questão desta maneira. que você deve estar se referindo. O grupo mais importante
Eu acredito muito em contextos - mas uma obra de nos anos quarenta foi o The Futurians - praticamente uma
arte precisa conseguir sobreviver em uma vida transcontex- linha auxiliar do YPSL [The Young People’s Socialist League;
tual. Que o romance de Gibson obviamente tenha a capa- A Juventude da Liga Socialista]. Os jovens que pertenciam
cidade e o vigor para isso - bem, tudo que eu posso fazer ao grupo incluíam Asimov, Judith Merril, Damon Knight,
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Harrison - de fato, quase qualquer um da ficção científica publicados lado a lado em várias revistas de FC. A lista de
da época que você pode ter ouvido falar hoje. Eu entendia nomes contra a guerra era visivelmente maior. Mas o que
que a ficção científica naqueles dias era dominada pela ficou ainda mais claro para nós no campo quando os anún-
esquerda. Ah, havia discussões sobre se você era um trot- cios apareceram era que a divisão era muito claramente
skista ou um stalinista - mas isso era uma discussão para a entre aqueles escritores que viviam na Costa Leste (contra
esquerda, não uma discussão entre esquerda e direita. a guerra) e aqueles que viviam na Costa Oeste (apoiadores
Mesmo a política de Robert Heinlein naquela época do governo). Também estava claro que, lendo as duas de-
foi descrita por seu amigo pessoal L. Sprague de Camp clarações de princípios que iniciavam os anúncios, ambos
como “rosa-choque liberal”. Heinlein, claro, estava inte- tocavam em questões completamente diferentes. De fato,
ressado - muito mais do que os outros - em trabalhar para não havia nenhum motivo para que uma pessoa não pudes-
mudança social de verdade. O resultado foi, conforme o se assinar ambos os anúncios sem cair necessariamente em
tempo passou, que seus métodos e argumentos passaram contradição alguma - embora ninguém tenha feito isso.
a parecer mais e mais conservadores. Mas eu acredito que Mas eu não vejo nenhum dos escritores em nenhu-
Heinlein sempre viu seu público (mesmo quando ninguém ma daquelas listas sendo contra, por exemplo, esforços
mais via assim) como a esquerda articulada e inteligente. maiores na integração racial nas escolas. Então, você vê,
Mesmo em algo como Farnham’s Freehold, ele basicamen- tem direita e Direita.
te saiu para épater les gauchistes. Mark Dery: Eu me pergunto se o que você está
A tensão direitista na base de fãs de FC sempre descrevendo não estaria mais perto, em espírito, do liber-
esteve lá - e sempre foi discutida intensamente. Mas, em tarianismo do que o que nós tradicionalmente pensamos
um campo habitado amplamente por excêntricos liberais, como direitismo.
os direitistas foram sempre vistos como nossos excêntricos Samuel R. Delany: Pode bem ser.
mais transviados. Também, tende a ser um direitismo mais Mark Dery: E por isso esta marca não está legível
sobre coisas como política externa, do que práticas domés- no cyberpunk, cuja política parece mais libertária do que de
ticas. Nos anos sessenta, houve uma propaganda famosa esquerda?
nas páginas das revistas profissionais de FC, que começou Samuel R. Delany: Novamente, eu diria que locali-
quando um grupo de escritores de FC contra a Guerra zar a FC dentro de suas tradições pode ajudar nisso. Há um
do Vietnã sentiu que eles tinham que lançar um anúncio certo processo retórico que acontece sempre que um ar-
assinado dizendo isso. Bem, uma vez que ficaram saben- gumento político é reduzido a um diálogo: você vê isso em
do que eles fariam isso, um grupo de escritores de FC da Platão. Você vê isso em Ayn Rand. Você vê isso em Heinlein
Costa Oeste sentiu que eles precisavam lançar um anúncio - eu vi isso acontecer na minha própria série Nevèrÿon.
assinado dizendo que eles apoiavam o governo no esforço Discussões políticas reais se estendem por ho-
de guerra. (Eles também foram muito claros em dizer que ras - para sempre - e estão cheias de ais e uis, retrocessos
eles não apoiavam a ideia da guerra, mas que eles sentiam gerais, e pessoas voltando às mesmas posições de novo
que, quando havia uma guerra, eles precisavam oferecer e de novo, tentando descobrir o que elas realmente pen-
045
Em um romance, no entanto, você não tem tempo para rável - muito maior, em minha estimativa aproximada, que
expor a coisa toda, ou para representar a maneira terrivel- a base de fãs negra, em uma proporção de vinte ou trinta
mente lenta com que as pessoas se movem, micropasso vezes. Há pelo menos uma convenção anual gay de ficção
a micropasso, de uma posição a outra no passar dos dias, científica, Gaylaxicon, que reúne aproximadamente mil
semanas, anos em discussões assim. No papel, você se participantes todo ano. E a programação gay que, hoje em
concentra naqueles raros momentos de discussões políticas dia, acontece regularmente em outras convenções de fic-
em que duas pessoas que sabem exatamente quais são as ção científica está quase sempre entre as mais lotadas, com
suas posições as apresentam de tal maneira que a pessoa, público de pé. Em qualquer grupo escolhido aleatoriamen-
respondendo a um simples e bem formulado argumento de te, a população gay sempre estará (como os pós-estrutura-
um oponente, consegue mudar de opinião. listas gostavam tanto de dizer) entre 10 e 20 por cento. A
Eu não sou um libertário. Eu prontamente afirmo questão é se, como no debate atual sobre o exército, eles
que sou um marxista - ou, de qualquer maneira, um marxia- têm a liberdade (leia-se: poder) de falar abertamente sobre
no. Eu me lembro o quão angustiado eu fiquei, alguns anos isso sem represálias. E, na base de fãs, pelo menos desde
atrás, quando descobri que algumas das minhas histórias 1978 (apenas nove anos depois de Stonewall), quando a
e romances Nevèrÿon, nos quais havia algumas discussões Convenção Mundial de FC introduziu pela primeira vez uma
irônicas sobre economia, foram reivindicadas - brevemente linha de programação gay, eles têm.
- pelos libertários. De fato, se eu tenho uma crítica geral do Tendo dito isso, há uma grande quantidade de
libertarianismo, como eu o entendo, é que eles parecem ansiedade vaga, não declarada, espalhada sobre FC gay,
acreditar na ficção precisamente daquele tipo de argumen- tendo mais a ver, no entanto, com o medo de que ela “não
to político (que deixa todo mundo em um consenso geral seja comercial”, o que é uma forma codificada de dizer
no final - ha!) que só tem uma existência literária. O que que, na cadeia interminável de mediadores que têm que
está realmente errado com os libertários é o quão intelectu- decidir, antes do fato (em nossa maravilhosa economia de
almente limpa eles querem que a política seja. livre mercado), se algo vai vender ou não para poder inves-
Eu não ficaria surpreso se alguma coisa do “liber- tir, cada um é assombrado pelo fantasma antecipado dos
tarianismo” do cyberpunk fosse de um tipo similar a esse pais de alguma criança de 14 anos em Sabeseláonde, que
mais amplamente retórico. escreverá uma carta para as redes de livrarias e atiçará as
Mark Dery: Como nós concordamos, nós tentamos forças do Fundamentalismo Cristão para cima delas se eles
dedicar esta entrevista a questões de raça. Eu gostaria de forem pegos deixando algum livro gay passar.
terminar, no entanto, com algumas questões sobre gênero Seria de se pensar que, como os fãs gays estão tão
e sexualidade. Para começar, por que tem havido tão pou- expressiva e inegavelmente em destaque, algum editor,
ca FC abertamente gay? atento à programação de uma convenção de FC, iria - pe-
Samuel R. Delany: Existe, é claro, toda uma biblio- los motivos mais mercenários - simplesmente decidir seguir
grafia cheia de ficção científica gay - está presente na bi- o senso comum das leis do livre mercado e dedicar dez ou
bliografia bastante robusta e comprida de Lyn Paleo e Eric vinte por cento de sua linha à FC com interesse a leitores
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qualquer editor que finalmente decidir lutar através das homens transarem com outros homens, como há homens
pressões reais e materiais desta barreira de ansiedade irá, heterossexuais que se excitam com a ideia de mulheres
convenhamos, encerrar o assunto! Mas enquanto isso não transarem com mulheres - que os motores do prazer são
acontece, eles vão inventar desculpas intermináveis sobre muito mais complexos do que nós normalmente imagi-
os motivos de não o fazer. namos; e que se lésbicas e homens gays não existissem,
Mark Dery: Você tem alguma ideia de como você é homens e mulheres heterossexuais os teriam inventado -
percebido pela comunidade gay? porque eles constantemente o fazem.
Samuel R. Delany: Assim como membros de qual- Mark Dery: Você é fã de alguma das escritoras de
quer comunidade, quando apresentados ao trabalho de um FC mais notáveis: Octavia Butler, James Tiptree, Jr. (a.k.a.
produtor, alguns deles gostam de mim - e muitos outros me Alice Sheldon) ou Joanna Russ?
ignoram. Não seria estranho se fosse de forma diferente? Samuel R. Delany: E Ursula Le Guin? Muito. Em um
Mark Dery: O que você, como autor gay de FC, momento ou outro das minhas aulas de FC na Universidade
acha de fanzines K/S ou ficção “slash” [barra, “/”], nas quais de Massachusetts, eu falei sobre todas elas. Eu acho que
fãs mulheres criam continuações de fantasia softcore a par- Russ, aliás, tem simplesmente um dos melhores estilos nos
tir de contextos homoeróticos das narrativas de Star Trek? Estados Unidos, dentro ou fora da ficção científica. Ela é
Samuel R. Delany: Faz uns sete ou oito anos que uma escritora de sensibilidade incrível e, ao mesmo tempo,
eu não vejo nenhuma fanzine “K/S”. Como todo mundo, o tem um poder corrosivo que eu sei que em algum momen-
que me surpreendeu na época, no entanto, era a qualidade to será descoberta pelo mundo literário maior. É só uma
extraordinária da escrita nesse pornô amador - e, de longe, questão de quando. (Seria muito legal se fosse enquanto
não é tudo softcore! E a simples quantidade de material é ela ainda estiver viva!) Se você gostou de Molly Millions em
impressionante. (Eu confesso, eu nunca tinha ouvido isso Neuromancer e “Johnny Mnemonic”, você deveria ler o
ser chamado de “slash” antes - mas isso pode ser uma original: a Jael da Russ, em The Female Man, que apareceu
mudança dos últimos seis anos). Se o nível de produção se nove anos antes, lá em 1975.
manteve desde as últimas centenas de páginas que eu vi Não que Gibson tenha conscientemente pego a
há alguns anos, nesse momento deve ter o suficiente para Molly da Jael. Eu perguntei para ele uma vez e embora
encher um celeiro de bom tamanho! ele também seja um admirador da Russ (quem, pensando
Como homem gay, eu confesso: as muitas centenas bem, não seria), ele me disse que a Jael não estava em sua
de páginas que passaram por mim, para mim, hardcore mente como um modelo consciente na época em que ele
ou softcore, não tinham interesse erótico - assim como, eu escreveu a Molly. Mas os paralelos são impressionantes - de
suspeito, a maior parte das fantasias lésbicas de homens fato, muito impressionantes, o que eles sugerem é a força
héteros não são do tipo que excitam lésbicas praticantes. embasbacante das imagens que Russ lançou pela primeira
Em geral, a coisa toda era muito anti-séptica. vez no cenário da FC - onde elas funcionavam como mo-
Ainda assim, o material “K/S” confirmou algo que delos delicados distorcidos a partir dos fios de magnésio
eu já sabia a partir da minha própria vida: que há tantas e subitamente acesos por uma prosa mais limpa que a de
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na retina sensível, esteja o olho aberto ou fechado. Dúzias Cowan, a primeira empresa formada por artistas, escritores
de escritores no campo da FC - Gibson é apenas um - têm e editores negros de quadrinhos, acabou de lançar quatro
bebido delas, constante e inconscientemente desde então. quadrinhos com super-heróis negros. De acordo com as
Elas são poderosas e penetrantes. pessoas da Milestone, a indústria também sabe que 50 por
Novamente, para repetir minha opinião do texto cento dos leitores de quadrinhos não é branca - são ne-
que você citou da edição sobre cyberpunk do Mississi- gros, latinos e asiáticos-americanos. Então, eu argumentaria
ppi Review: se a empolgação sobre o cyberpunk mandar que as visões visionárias de FC contidas nos quadrinhos
muitos acadêmicos de volta para o espectro da ficção estão definitivamente atraindo leitores negros.
científica e seus diversos feitos e excelências, se ele os Mark Dery: Samuel Delany, que afirma que incur-
fizer cavar alguns dos debates da FC sobre o cyberpunk e sões foram feitas por pessoas de cor no gênero das revistas
aprender e apreciar a história da FC que instrui sobre estes em quadrinho (ele o chama de “para-literatura”), concor-
debates e fortalece estes textos com significado mais rico, daria com você. Mesmo assim, ele avalia que o romance
então o cyberpunk é de fato uma coisa boa. Mas se ele de ficção científica permanece um gênero branco, em sua
funcionar como uma desculpa destes mesmos acadêmicos maior parte.
para desdenhar a ficção científica porque, desde que eles Greg Tate: Bem, se você olhar para a escrita negra
leram Gibson, eles já pegaram o que há de melhor e não que foi feita neste século, de Richard Wright em diante,
precisam se preocupar com o resto, isso seria um gesto tão sempre houve uma porção de fantasia, horror e ficção cien-
trágico - e fundamentalmente tão analfabeto - como de tífica nela. Há sequências de ficção científica no Invisible
um sábio tolo que, depois de ler alguns sonetos de Milton, Man de Ralph Ellison, por exemplo.
decide abrir mão do resto do espectro canônico da poesia Mark Dery: O terrível “battle royale” vem à cabeça
em língua inglesa porque certamente ele já encontrou tudo imediatamente.
o que tem valor. Greg Tate: Certo, e a cena em que a identidade do
protagonista é arrancada no porão da fábrica de tinta. Todo
*** o cenário intelectual do romance, que lida com a condição
de ser alienígena e alienado, fala, de certo modo, sobre a
Mark Dery: Por que a comunidade afro-americana maneira com que ser negro na América é uma experiência
não se utilizou mais da ficção científica, seja como escrito- de ficção científica.
res, seja como leitores? Mark Dery: Alien Nação [Alien Nation].
Greg Tate: Não sei se isso é verdade; eu leio FC Greg Tate: Certamente, e se quiser fazer uma cone-
desde que eu tinha uns doze anos e conheço muita gente xão direta com a série de televisão Alien Nation, lembre-se
negra que também lê. Também, na base de fãs de quadri- que os aliens nesse programa eram ex-escravos que foram
nhos, que certamente é uma área próxima, 25 por cento trazidos para a Terra em uma nave e foram abandonados
dos leitores são negros, o que é um número bem alto. A nessas praias. Mas para voltar a sua questão, eu concor-
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anomalias na literatura afro-americana no sentido de que ces que reconhecem a existência de um poder maior no
eles estão claramente lidando com os tipos de coisas que a contexto da ficção científica.
literatura afro-americana sempre lidou - racismo e alienação Mas para voltar a sua questão inicial, eu teria que
- mas eles tomaram uma decisão consciente de lidar com dizer que a maior parte dos romancistas negros escrevendo
estas questões no contexto da ficção científica. neste século se identificam com a tradição literária afro-
Por outro lado, provavelmente existe um número -americana que inclui Ellison, Wright, Baldwin e Morrison,
bastante considerável de escritores negros proeminentes mais do que com a tradição que inclui Heinlein, Asimov e
que liam ficção científica ou pelo menos estão conscientes mesmo Butler e Delany.
de suas ferramentas e as usaram em seus trabalhos. Claren- Mark Dery: Delany sugeriu para mim que os negros
ce Major e Ishmael Reed estão entre os mais proeminentes. são deixados do lado de fora da ficção científica por uma
Todos os romances de Reed colapsam o tempo: o tempo cerca feita de arame farpado semiótico, que os painéis
ancestral e coisas futuras coexistem, o que é ao mesmo piscantes e outras parafernálias tecnológicas que tipificam
tempo uma maneira muito africana, mítica, cíclica de olhar o gênero funcionam como um tipo de sinal de “Não ultra-
para o tempo e um tipo de pós-modernismo pré-histórico. passe” para escritores de cor.
Em Captain Blackman, de John A. Williams, que é sobre a Greg Tate: Eu não posso concordar com isso, por-
experiência histórica do soldado negro, o autor mata e revi- que você tem uma adoção cheia de coração desse hardwa-
ve o mesmo soldado, guerra após guerra, no estilo Twilight re pela juventude latina e negra quando ela aparece em
Zone. E se você olhar para o escritor nigeriano Amos Tutuo- filmes, programas de TV, videogames. Quero dizer, quem
la, cujo trabalho usa mitologia iorubá em estilo mais FC do poderia ter previsto que jovens homens negros e latinos
que folclórico, ele essencialmente cria suas próprias fanta- teriam gasto tempo o bastante nos fliperamas da Times
sias a partir do espectro amplo de possibilidades implícitas Square durante os anos sessenta para transformar aqueles
naquela mitologia. jogos na indústria milionária que eles são hoje? Há com
Uma das coisas que caracteriza a ficção científica é certeza uma fascinação com o imaginário sci-fi dos vide-
a maneira quase didática com que é oferecida uma instru- ogames e se você olhar para os grafites feitos nos metrôs
ção sobre o potencial para a catástrofe em uma sociedade de Nova Iorque durante a mesma época por artistas como
quando seus membros não prestam atenção aos caminhos Rammellzee, Phase 2, Kase e Blade, há um interesse incrível
que, seja a tecnologia, seja uma forma de vida bizarra, em fantasia do gênero FC, especialmente em um sentido
podem tomar. Neste sentido, a FC fica em paralelo com a apocalíptico, envolvendo a inserção de figuras negras em
mitologia tradicional, que é cheia de contos de precaução. cenários de holocausto pós-nuclear. Muito do trabalho do
Delany uma vez observou que os melhores romances de Blade, por exemplo, está em um cenário do estilo ciberes-
ficção científica têm um componente místico neles; ele pro- paço; seu imaginário parece com computação gráfica, com
vavelmente estava pensando em The Stars My Destination seu nome correndo através do cenário. A pintura de Futura
de Alfred Bester, More Than Human de Theodore Sturgeon, dos anos 2000 The Good, the Bad and the Ugly, que ho-
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fantasmagóricas flutuando no que parece ser uma tela de se dirige para o autoconhecimento. Saber-se uma pessoa
TV pairando sobre uma paisagem urbana sinistra. negra - histórica, espiritual e culturalmente - não é algo que
Então, se você olhar para o trabalho de artistas vi- é dado para você, institucionalmente; é uma jornada árdua
suais negros, de artistas de grafite a Jean-Michel Basquiat, que deve ser realizada pelo indivíduo.
sempre vai haver esta inserção de figuras negras em um Uma das questões para as quais nós estamos ru-
cenário visionário, se não um cenário de ficção científica ou mando nesta conversa é: Onde nos Estados Unidos a ficção
fantástico. O salto imaginativo que nós associamos com a científica termina e a existência negra começa? Pode ser
ficção científica, em termos de colocar o humano em um que ninguém, em sentido literário, tenha tentado expor
ambiente alienígena e alienante, é um gesto que repetidas este paradoxo. Mas o hip-hop - na qual há claramente uma
vezes aparece no trabalho de escritores e artistas visuais identificação com o território ocupado pela ficção científi-
negros. ca - parece tocar nesta questão. A capa do primeiro disco
Mark Dery: O posicionamento do sujeito, literal- do X Clan, To the East, Blackwards, representa um Cadillac
mente, como um estranho em uma terra estranha. rosa entrando no espaço, cercado de estrelas e rostos de
Greg Tate: Certo, e há algumas tradições espirituais mártires negros, como alguma versão interestelar do hall da
de longa data que emprestam a eles este impulso: santeria, fama do Teatro Apollo. E então tem o Fear of a Black Planet
voudon e a religião hoodoo de que Ishmael Reed fala. do Public Enemy - eu não sei se dá para ficar mais ficção
Mark Dery: Vale a pena lembrar, no contexto do científica do que isso.
que eu escolhi chamar de “Afrofuturismo”, que os mojo e Mark Dery: Em “Diário de um inseto”, em Flyboy
goofer dust do Delta blues, junto com amuletos da sorte, in the Buttermilk, você afirma, “Hip-hop é culto aos an-
fetiches, efígies e outros dispositivos utilizados por sistemas cestrais”; depois, no mesmo volume de ensaios, você cita
de crenças sincréticos, como o voodoo, hoodoo, santeria, uma aula dada por Delany no Museu Studo do Harlem na
mambo e macumba, funcionam como controles, Dataglo- qual ele disse, “Nós precisamos de imagens do futuro, e
ves, Waldos and Spaceballs usados para controlar realida- nossas pessoas são as que mais precisam”. Às vezes eu me
des virtuais. Jerome Rothenberg as chamaria de tecnolo- pergunto se não há uma dicotomia no hip-hop e a ênfase
gias do sagrado. quintessencialmente americana no movimento para frente,
Greg Tate: Eu concordo, embora eu ache que você efetuada a partir do progresso tecnológico. Esses impulsos
esteja colocando a carroça interestelar na frente dos ca- contraditórios não ameaçam rasgar o hip-hop ao meio?
valos egípcios, de certa forma. Eu vejo a ficção científica Greg Tate: Não, porque você pode olhar para trás
como a continuação de uma veia de pesquisa filosófica e e para frente ao mesmo tempo. A abordagem de tudo
especulação tecnológica que começa com os egípcios e no hip-hop é sempre com uma noção de jogo, de forma
suas reflexões incrivelmente detalhadas sobre a vida após que mesmo o culto aos ancestrais é sujeito a irreverência.
a morte. A FC representa um tipo de codificação raciona- Ironicamente, uma das coisas que permitiu à cultura negra
lista, positivista, científica daquele impulso, mas ainda vem sobreviver é sua habilidade de operar de uma maneira ico-
de um desejo humano básico de saber o insabível, e para noclasta em relação ao passado; as armadilhas da tradição
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e da improvisação. Você tem que se lembrar, também, que imaginam.
a reverência negra ao passado é a reverência a um paraíso Ao mesmo tempo, eu fico um pouco desconfortável
perdido. Não é o passado que alguém conhece da expe- em criar uma pirâmide de explicação na qual a experiência
riência, mas um passado recolhido a partir de discussões, negra está no fundo e a ficção científica se torna a maneira
de livros de acadêmicos como o Dr. Ben Yochanan que a partir da qual alguém pode discuti-la “logicamente”. Eu
dedicaram suas vidas à pesquisa das glórias científicas de acho que há uma quantidade incrível de insights a serem
civilizações negras. tidos a partir da leitura da literatura afro-americana tendo
Você sabe, a FC, como o hip-hop, é um gênero em vista a perspectiva da FC, e vice-versa. Como eu disse,
muito sócio-histórico. É uma maneira totalizante de olhar há uma qualidade redentora para ambas as literaturas em
para os Estados Unidos, como Delany bem apontou, que termos da maneira com que elas lidam com a situação di-
a literatura mundana nunca poderia nem começar a se fícil do outsider, sem mencionar o simples reconhecimento
aproximar. A ficção científica se afasta da dimensão psicoló- de que existem outsiders na sociedade, que muitos de nós
gica em termos de representação do personagem para um estamos vivendo uma experiência kafkiana aqui e naquele
olhar mais abrangente sobre o impacto das diversas insti- que supostamente é o melhor de todos os mundos possí-
tuições que governam o comportamento e a transmissão veis: os Estados Unidos.
do conhecimento. E da mesma maneira que a FC foca no
impacto das tecnologias de informação e da psicologia de ***
uma sociedade, a literatura negra move o silêncio e a mar-
ginalização intelectual dos negros para a linha de frente. Mark Dery: Como explicar a profunda influência do
Ambos representam uma tentativa de ver tudo através de Kraftwerk na cultura dance negra, uma banda de eletropop
uma lente única, de forma que nós possamos ver o espec- calculadamente sem funk? O impacto deles, seus traços
tro assustador da sociedade que a sociedade não quer claramente discerníveis no tecno, sugere que a própria
reconhecer. noção de funk foi ciborguizada?
Uma das coisas que eu venho tentando dizer é que Tricia Rose: Eu acredito que o que tornou o Kraf-
a condição de alienação que vem com o fato de ser um twerk tão interessante para o Afrika Bambaataa e o Arthur
sujeito negro na sociedade americana tem paralelos com Baker (que usou o “Trans-Europe Express” do Kraftwerk
o tipo de alienação que os escritores de ficção científica como base para o seu clássico electro-boogie “Planet
tentam explorar através de seus diversos dispositivos do Rock” foi a maneira com que eles demonstravam um do-
gênero - transportar alguém do passado para o futuro, mínio sobre a tecnologia, e um domínio sobre a tecnologia
jogar alguém dentro de uma cultura alienígena, dentro de engendra um grau de admiração, particularmente para
outro planeta onde se tem que confrontar maneiras aliení- gente negra cujo acesso à tecnologia é tão limitado. Então
genas de ser. Todos esses dispositivos reiteram a condição parte disso é pura admiração, mas também tem a ver com
de ser negro na cultura americana. As pessoas negras vi- ter uma mente aberta e criativa em relação às diferentes
formas de produzir som.
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ciadores, baterias eletrônicas - é ela mesma objeto cultu- nós podemos tentar tomar controle da besta”.
ral, e como tal ela carrega ideias culturais. Estas máquinas Isso se parece com o que o teórico negro da cultura
forçam músicos negros para dentro de certas maneiras de e da literatura James A. Snead chama de “gerenciamento
produzir sons dentro de certos parâmetros, neste caso, de rupturas”. Como as culturas respondem a rupturas so-
construções musicais do século XIX europeu. Tendo dito ciais? Nós as incorporamos ou as rejeitamos, nos recusando
isso, eu resisto à ideia que sugere que, por definição, ser a transformação? Esta é a questão maior que nós precisa-
negro e ter gingado significa que não se pode ocupar cer- mos nos perguntar quando falamos sobre a transformação
tos espaços. cultural negra porque para cada ponto de continuidade
Mark Dery: É possível estar situado na tradição da há pontos de descontinuidade fascinantes. Este é nosso
música afro-americana e ainda falar a linguagem estética da problema: nós precisamos poder dizer, sim, a lógica indus-
sociedade tecnotrônica? Em outras palavras, é possível ter trial domina uma série de produtos culturais e maneiras de
gingado e ser mecânico? pensar o mundo, ao mesmo tempo em que reconhecemos
Tricia Rose: Sem dúvida; isso é o hip-hop! A ver- que nem tudo é subproduto daquela estrutura.
dadeira questão é: como nós definimos o que significa ser O que o Afrika Bambaataa e o pessoal do hip-hop
“mecânico”? Se nós tomarmos um tipo de visão Escola de como ele viu no uso que o Kraftwerk fazia do robô era uma
Frankfurt/fascista/regimentação industrial/falta de criativida- compreensão deles mesmos como já tendo sido robôs.
de como modelo para a máquina, então é claro que cibor- Adotar “o robô” refletia uma resposta a uma condição
gues com gingado pareceriam uma contradição total; mas existente: a saber, que eles eram mão-de-obra para o capi-
se nós entendermos máquina como um produto da criati- talismo, que eles tinham muito pouco valor como pessoas
vidade humana cujos parâmetros estão sempre sugerindo nesta sociedade. Ao tomar esta posição robótica, se está
o que está além deles, então nós podemos ler o hip-hop “brincando com o robô”. É como usar um traje que te iden-
como a resposta de pessoas de cor da cidade ao cenário tifica como um alienígena: se ele está sempre vestido de
pós-industrial. Embora a maior parte das pessoas não tenha qualquer forma, talvez você possa dominar o vestir desse
o poder de transformar estruturalmente os mundos em que traje em um sentido simbólico para poder usá-lo contra a
elas vivem, muitos tentam respostas microscópicas para as sua interpolação.
coisas que aparecem em seus cenários. A questão é: como os sinais e as imagens são
O electro-boogie aconteceu em um momento his- utilizados? O Kraftwerk, claro, pode ter mais do que um
tórico - “Planet Rock” foi lançado em 1982 - quando a pro- significado. Digamos, por exemplo, que o Kraftwerk não se
dução industrial e o trabalho proletário estavam chegando entendia como algum tipo de fenômeno musical de clube
a uma parada brusca nos Estados Unidos urbano. Negros proletário que tirava sarro do capitalismo fabril e da lógica
urbanos estavam ficando cada vez mais desempregados industrial da vida. Ao invés disso, digamos que eles esta-
e suas melhores alternativas eram se tornar trabalhadores vam completamente dentro da arregimentação industrial,
subterrâneos da indústria de serviços ou na manutenção de que eles eram os capitalistas Carnegie no estilo do século
computadores. As pessoas diziam, “Veja, a tecnologia está
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porque o argumento não é: “Eles sentem um parentesco é conhecido por músicas como “Rocket Nº9 Take Off For
com a maneira com que Kraftwerk se vê”, mas “O que esse The Planet Venus”; seus shows têm incorporados filmes de
símbolo de arregimentação pode significar para eles”? sua orquestra desfilando ao redor da Esfinge. Quais signifi-
Em contraste, há um grande número de cenas cados podem ser extraídos da conflação de Ra de imagens
hip-hop ao redor do mundo nas quais você encontra jovens do Egito antigo e salvadores alienígenas?
racialmente conservadores vestindo roupas com a estampa Tricia Rose: O imaginário de discos voadores de
do Malcolm X. A nova direita na Alemanha pegou todos os Sun Ra é sobre aceitar os poderes místicos que se conhece,
tipos de símbolos culturais negros e alguns jovens do hip- culturalmente, e ver a ciência como um processo místico
-hop não negros sentiram um tipo de relação com a cultura também - um processo que não tem relação apenas com a
negra, mas claramente tinham ideias muito racistas sobre o razão dedutiva, mas com a criação de poder e a postulação
que significa ser negro e como isso se encaixa no esquema de novos mitos sociais. É sobre reconciliar estas duas histó-
do mundo. rias. Se você vai se imaginar no futuro, você tem que imagi-
Estas realidades depõem a favor da multiplicidade nar de onde você veio; culto aos ancestrais na cultura negra
de significados para objetos, significados que não podem é uma maneira de responder ao apagamento histórico.
ser paralisados e movidos através do tempo e do espaço. Ao mesmo tempo, visões românticas de uma me-
O Kraftwerk é tomado de uma forma que pode ou não mória agrária da criatividade negra são seriamente pro-
ser entendida como de resistência; além disso, a própria blemáticas; certamente nós precisamos investigar aqueles
posição do Kraftwerk pode ou não ser entendida como de períodos, mas colocá-los como o pináculo da criatividade
resistência. Eu estou interessada em ler efeitos em contex- negra e o resto da história como declínio, que funciona em
to, que é o porquê de a tecnologia poder ser emancipató- uma relação de um para um com as influências tecnológi-
ria para o hip-hop - por causa dos seus efeitos, não porque cas, é um equívoco completo, tanto da criatividade tecno-
é “naturalmente” emancipatória. lógica de, digamos, os artistas do blues, trabalhando com
Mark Dery: O que significa a expressão do hip-hop as tecnologias mais sofisticadas disponíveis para eles, quan-
“droppin’ science”? to do fato de que mesmo aqueles períodos sem alterações
Tricia Rose: Significa compartilhar conhecimento, constituíam uma pausa de ambientes anteriores. Eu recuso
conhecimento que geralmente é inacessível às pessoas, o modelo frankfurtiano de autenticidade que distingue en-
junto com uma falta de medo em afirmar o que você acre- tre o que é “realmente criativo” e algum tipo de simulação
dita que seja verdade. Tem também a implicação de que a tecnológica de criatividade.
informação que você está comunicando vai revolucionar as Estas noções de autenticidade criativa geralmen-
coisas porque essa é a verdade que tem sido deliberada e te contribuem para uma construção da cultura negra de
sistematicamente negada. A ciência, aqui, significa provas tal maneira que os negros são romantizados. Estas visões
incontroversas. A ciência é entendida como o espaço em românticas se dão muito depois da intervenção inicial
que o futuro acontece. do hip-hop e ao fazê-lo tornam impossível ver a manei-
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transformação da tecnologia e sua relação com ela. Estas te da imagem do robô na cultura hip-hop.
visões constituem uma leitura extraordinariamente contra- Tricia Rose: Bem, eu sou um caso estranho porque
ditória da criatividade negra que posiciona o leitor como minhas fantasias de controle envolvem muita força física; eu
um observador pós-colonial de uma cultura negra que é não tenho uma noção cirandeira hippie de como eu quero
milagrosamente não contaminada pela “nossa” violência que meu espaço seja, e as pessoas frequentemente perce-
e falta de espiritualidade. O romance branco com o blues, bem esse tipo de agressividade como masculina. Embora
exemplificado pelo filme Crossroads, é um exemplo explíci- eu não me veja como particularmente masculina, eu fre-
to desse fenômeno. Claro, negros são dóceis e obedientes quentemente sou acusada de pensar como um homem, o
nesta versão mesmo quando eles se “recusam” a participar que sugere que as pessoas estão operando dentro de uma
das ferramentas criativas possibilitadas pela comodificação noção muito problemática do que é a feminilidade.
pós-industrial. Entre outras coisas, isso indica uma incom- Eu não me incomodo pelo ciborgue como um
preensão profunda da energia transformadora da criativida- imaginário, mas com o fato de que é quase impossível para
de negra em geral e de trabalhadores da cultura jovens e uma jovem mulher média se ver como uma pessoa que po-
negros em particular. deria tomar tanto espaço social. Isso sugere uma contenção
Sem dúvida, há uma tendência entre pessoas que social e psicológica que torna impossível para mulheres se
vivem sob condições extraordinariamente opressoras de verem como atores maiores em um mundo tecnológico.
esperar ansiosamente por um tempo em que elas tinham Mark Dery: Uma coisa que me incomoda na noção
mais controle sobre um espaço menor. Mas o sonho de um de ciborgue como um mito útil é o fato de que a pele cede
lugar em que a pessoa está ligada com o universo de um território a tecnologias invasivas - armaduras mioelétricas,
modo mais espiritual e filosófico é muito frequentemente implantes ciber-ópticos, plugues cerebrais. Se as máquinas
parte de uma fantasia branca pós-colonial que por defini- continuam a significar uma masculinidade inexpugnável, se
ção depende da dominação de outro grupo de pessoas a carne continua a ser codificada como feminina - como é o
para sua reconstrução daquele tempo árcade. caso frequentemente em FC de Hollywood - então o mito
Mark Dery: O problema com este tipo de narrativas, do ciborgue é só mais uma história contada sobre o femini-
parece, é que elas são linhas de montagem para a produ- no subjugado.
ção de oposições binárias. Por exemplo, as utopias ecofe- Tricia Rose: Absolutamente. O ciborgue é um
ministas dos anos setenta na ficção científica, mesmo que construto masculino no qual a tecnologia hospeda toda a
elas imaginassem jardins de prazer terreno, elas também capacidade dura, forte, Exterminador do futuro, e a coisa
vilificavam a tecnologia como algo inerentemente masculi- macia é entendida como a parte fraca, a parte que sangra,
no. Sob esta luz, Donna Haraway teoriza o ciborgue como menstrua. A questão não são as possibilidades do ciborgue
um “mito político irônico” que oferece uma rota de fuga do nelas e por elas mesmas, mas como o ciborgue tem sido
“labirinto de dualismos”. Eu me pergunto o quão útil um construído pelo discurso patriarcal e como ele pode ser
mito assim é para você como uma mulher negra, conside- reinventado.
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que fossem pagas para sentar e reimaginar o gênero da a reprodução é natural para heterossexuais, eu acho ela
ficção científica, elas talvez tratassem a tecnologia de forma repulsiva e muito não-natural”.
diferente, colocando-a em uma relação diferente com o Tricia Rose: Essa é uma questão incrível; eu real-
organismo, e então como se pareceriam os ciborgues? Que mente gostaria de explorar isso porque eu, também, tive
relação a tecnologia teria com o corpo se os ciborgues uma fobia total de engravidar, associando o processo com
fossem imaginados com diferentes enfoques, diferentes contenção, confinamento e ceder ao desejo masculino -
problemas de identidade, diferentes respostas à incorpo- coisas que, eu acho, são produto de uma compreensão de
ração? Novamente, eu me recuso a culpar a tecnologia; que você será estruturada desta maneira se você experien-
é sobre como nós imaginamos sua utilidade e o que nós ciar a gravidez assim ou não. Courtney Love (a guitarrista
valorizamos. Se nós não valorizamos a maneira com que as do Hole e esposa do cantor-guitarrista do Nirvana Kurt
mulheres criam, não importa realmente o que nós inventa- Cobain) disse, em uma reportagem de capa recente da
mos ou não inventamos; nós poderíamos ficar na fazenda Rolling Stone, que ela viveu o pior sexismo da sua vida in-
e as mulheres seriam tão oprimidas quanto. Por esta razão, teira enquanto estava grávida. Mulheres grávidas se sentem
eu não vejo realmente os modelos de ficção científica do fisicamente vulneráveis e sentem que elas significam algum
futuro como necessariamente espaços mais opressores para tipo de acesso masculino a elas; essa é uma posição pro-
as mulheres do que eu vejo ficções atuais de um passado fundamente problemática.
idealizado. A relação entre o desejo pela arma e uma repug-
Mark Dery: Haraway argumenta, em “Manifesto Ci- nância pela gravidez é uma oposição binária baseada em
borgue”, a favor do que eu chamaria de uma ideologia tec- uma definição protestante da sexualidade. A arma é sobre
nofeminista que recusa uma “metafísica anticientífica, uma controle, a ideia de que você precisa estar em controle
demonologia da tecnologia”. O que me leva a perguntar: todo o tempo significa que você não se sente no controle.
a atiradora feminina no livro de Patrick Carr, Gun People, Se as mulheres precisam se agarrar a armas para reivindicar
que diz, “Com uma arma eu tenho mais (...) controle sobre algum tipo de sensação de poder que elas perderam estru-
os eventos potenciais ao meu redor, e mais poder pessoal”, turalmente, isso indica que nós, como sociedade, estamos
se encaixa na definição de Haraway de um monstro opo- terrivelmente fora de equilíbrio. Não é só sobre mulheres
sicionista? Além disso, o que você acha da conexão entre pegando em armas ou sobre homens serem meninos covar-
fetichismo de pistolas e uma aversão ao parto evidenciado des comedores de iogurte, como na imaginação de Robert
por pós-feministas como a diva da vanguarda Diamanda Bly, é sobre como dizer que todos nós temos um espectro
Galás que acredita que “todas as mulheres... têm que ter amplo de reações emocionais, sexuais, físicas e psicoló-
armas” (seu endosso mais célebre vai para o .38 Special), e gicas, e que ambos os sexos são incrivelmente restritos a
que uma vez me disse: estruturas societais.
“Eu sou hostil ao ato de parir. Eu considero funda- Eu convidaria para uma investigação sobre as nar-
mentalmente humilhante para as mulheres andarem por aí rativas maternais e matriarcais africanas sobre o poder da
com este corpo deformado, bizarro, carregando crianças reprodução. Uma amiga feminista uma vez me disse, “Você
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dade feminina porque eles estão aterrorizados pela incrível a narrativa e também reescrevem seus papéis na vida?”.
energia criativa envolvida na reprodução de formas de Além disso, como suas leituras possibilitam a outra geração
vida”. Se as mulheres pudessem aproveitar este poder sem de diretoras feministas reimaginar Sarah Connor? Esses
ter medo dele, isso seria o equivalente a pegar em todas são pequenos blocos de construção potencial rumo a algo
as armas que você quisesse. Mas muitas de nós estão com maior; eles não são o fim, mas meios para um fim maior.
medo de tentar transcender espiritualmente a construção Estas imagens estão abrindo possibilidades, revi-
social da gravidez. sando o que homens e mulheres pensam que mulheres
Nós precisamos de modelos feministas radicais de podem ser, mesmo se eles terminarem reforçando normas
gravidez e maternidade. Eu acho que as mães feministas patriarcais de outra forma. Hollywood precisa reafirmar o
são as manas mais perigosas por aí; se fosse para ser real- status quo, com certeza, mas acredite em mim quando eu
mente hardcore, eu diria que as feministas que se recusam digo que apenas por terem aberto estes portões, eles estão
a ter filhos não estão ameaçando merda nenhuma depois criando uma ruptura que eles talvez não tenham como
de um certo ponto! Eu acho que é fundamental as mulheres suturar.
feministas terem tanto poder e tantos bebês quanto elas
quiserem, criando universos de crianças feministas.
Eu assisti Alien de novo ontem à noite e o que eu
amei na Sigourney Weaver foi a maneira com que ela con-
seguia manipular tanto uma agressividade dirigida quanto
uma sensualidade. Você assiste ela fazendo carinho no gato
perto do começo do filme, no hospital, e é muito sensual
ao mesmo tempo em que você sabe que ela está tentando
matar alguém. De forma parecida, o que foi tão brilhante
sobre o Exterminador do futuro foi a maneira com que o
personagem de Linda Hamilton, Sarah Connor, se tornou
uma guerreira da reprodução.
A questão é: quem está fazendo a construção? O
problema com a série do Exterminador do futuro e com a
trilogia Alien é que a imaginação masculina está dirigindo
a narrativa, que é o que torna a mamãe com pistolas Sarah
Connor tão problemática. Mas a questão mais ampla é,
mais uma vez, não “Como Sarah Connor foi construída pelo
criador do filme”, mas “Como alunas de graduação femi-
nistas que eu conheço (muitas que idolatram essas perso-
067
d ra
texto sobre o futuro.
n N
— Ishmael Reed, Mumbo Jumbo
lo
e para postar o agora
poste o novo
— Amiri Baraka, Fator do tempo,
uma lacuna perfeita
els
A
on
tornaram ricos pela promessa de um futuro próximo, sem
território, raça e corpo, possibilitado pelo progresso tecno-
introdução lógico.
À medida que surgiram avaliações mais pragmáticas
069
paradigmas para entender a tecnologia, aparecem ideolo- italiano, publicou “A Fundação e o Manifesto Futurista”,
gias raciais antigas. Em cada cenário, a identidade racial e em que pedia uma nova estética que pudesse representar
a negritude em particular, é o anti-avatar da vida digital. A adequadamente a sensação de viver num mundo em rápida
negritude é construída sempre como oposta às crônicas de modernização. Marinetti glorificou a destruição criativa da
um progresso orientado pela tecnologia. guerra, exaltou a beleza da “velocidade eterna e onipre-
Essa distinção de raça (e gênero) seria eliminada com sente” e prometeu cantar o potencial revolucionário de
a tecnologia, talvez esta seja a ficção fundadora da era digi- fábricas, estaleiros, locomotivas e aviões. Ele pediu o fim do
tal. O paradigma do futuro sem raça, um complemento da antigo, proclamando: “Mas nós não queremos fazer parte
metáfora da “aldeia global” de Marshall McLuhan, que foi do passado, nós os jovens e fortes futuristas!”1. Ao construir
amplamente apoiado (fazendo de estranhos companheiros) sua visão do futuro, Marinetti implicitamente evocou uma
por visionários pop, acadêmicos e corporações, de Timothy subjetividade que era decididamente masculina e jovem,
Leary, Allucuère Rosanne Stone ao MCI. esculpida na sua relação com o passado e o “feminino”.
Estimulados pelas “revoluções” da tecnociência, os Embora a visão do “neocriticismo”, para entender
teóricos sociais e culturais recorreram cada vez mais à tec- as transformações tecnológicas que caracterizaram o come-
nologia da informação, especialmente à Internet e à World ço de uma nova era, tendesse mais para a glorificação da
Wide Web (W.W.W), para novos paradigmas. Nós pode- dissolução do eu do que para o seu endurecimento, ele foi
mos chamar esse quadro de analistas e impulsionadores impulsionado por um ímpeto semelhante.
da tecnocultura, que enfatizaram a inequívoca novidade da O tecnoevangelista Timothy Leary afirmou que os
identidade na era digital, de: “neocrítica”. Aparentemente avanços tecnológicos indicavam o fim de identidades sociais
trabalhando em conjunto com os anunciantes corporativos, onerosas. Fora com essas categorias antigas dos movimen-
os “neocríticos” argumentaram que a era da informação tos sociais dos anos 1960, com o novo.
introduziu uma nova era de subjetividade e insistiram que Leary previu que “no futuro, os métodos de tecno-
no futuro o corpo não nos incomodaria mais. logia da informação, engenharia molecular, biotecnologia,
Havia uma lógica capitalista peculiar nessas afirma- nanotecnologia e programação digital quântica poderiam
ções, era como se os escritores (neocríticos) tivessem adota- tornar a forma humana uma questão totalmente determina-
do o jargão de marketing de “novos e melhorados”. da por vontades individuais, estilos e escolhas sazonais”2.
Havia também muita coisa familiar nessa retórica. Enquanto A predição de Leary era ficção científica social, uma
surgiam proclamações arrebatadoras da capacidade da In- interpretação do não-agora, um possível futuro sem um
ternet de conectar todos, em todos os lugares, ecoavam as
antigas previsões que no passado saudaram a era do tele- 1 Filippo Tommaso Marinetti, “A Fundação e Manifesto do Futuro”,
fone, o imperativo do “neocriticismo” era abraçar o novo e em Art in Theory, 1900–1990: Uma Antologia de Idéias Transformado-
transformar o corpo, tudo perfeitamente alinhado às narra- ras, ed. Charles Harrison e Paul Wood (Oxford: Blackwell, 1992), 148.
tivas mais antigas de tecnologia e esquecimento - a maioria 2 Timothy Leary e Eric Gullichsen, “Paganismo de alta tecnologia”,
notavelmente vinda do movimento futurista da virada do em Caos e Cultura Cibernética (Berkeley, Calif .: Ronin, 1994), 236.
071
“restrições físicas cada vez mais soltas” nos libertariam de descrever a natureza da identidade contemporânea. De
nossos corpos embaraçosos e imaginariam que, no futuro, a acordo com Stone, na “era virtual”, nossa consciência do
identidade seria impulsionada pelos imperativos do consu- self fragmentado é intensificada pela comunicação mediada
midor, seus caprichos e suas escolhas. A tecnologia oferecia por computadores5. Ao elaborar seu argumento, Stone foi
um futuro de seres humanos totalmente novos - sem restri- influenciada por duas teorias de identidade e multiplicida-
ções, não apenas do corpo físico, mas também da experi- de. Considerou-se que o eu descentrado é a reação do cor-
ência humana passada. Leary pressupunha que tal liberdade po / sujeito / cidadão ao poder absoluto do Estado; e por
seria amplamente disponível e universalmente procurada. essa lógica, a identidade fragmentada é uma afirmação da
No entanto, como Andrew Ross advertiu, no “humanismo agência sob um sistema de subjugação total. O argumento
radical” do tipo que Leary defendia seria, por escolha ou de Stone também foi formado pela literatura psicológica
circunstância, “apenas livre uma minoria de humanos”3. Os sobre os distúrbios de personalidade múltipla (MPDs), em
corpos carregam diferentes pesos sociais que mediam de que as “personalidades separadas” são explicadas como
forma desigual o acesso à identidade livremente construída respostas à violência e outros “métodos menos evidentes
que Leary defendeu. Com certeza, sua teoria é um exemplo de sujeição”. Neste modelo, múltiplos eus são entendidos
extremo do “neocriticismo” que caracteriza bastante a escri- como uma tática para negociar diante das formas de opres-
ta sobre o impacto social da tecnologia da computação. E, são.
no entanto, o espírito do discurso de Leary sobre o dese- Apesar das graves implicações contidas nessas hipó-
quilíbrio, que se encaixava em uma visão inflexivelmente teses, Stone aspirava a recuperar tal multiplicidade como
progressista e libertária do futuro, tornou-se uma importante uma prática de prazer e desejo. Mas, em sua corrida para
inspiração para as teorias da identidade na era digital. celebrar as possibilidades abertas pela tecnologia da com-
Para outros, a mudança tecnológica foi o catalisador para putação, Stone ignorou o fato de que, como Kalí Tal suge-
uma transformação das concepções do self 4. A partir da riu, há mais de um século, no seu “ferramentas sofisticadas
obra influente Guerra do Desejo e Tecnologia no Encer- para a análise da cibercultura”, já existiam no pensamento
ramento da Era Mecânica, de Allucquère Rosanne Stone, afro-americano teorias que fornecem precedentes políticos
e teóricos para articular e compreender “identidades múl-
3 Andrew Ross, “A Nova Esperteza”, em Culture on the Brink: tiplas, personas fragmentadas e liminaridade” – presentes
Ideologias da Tecnologia, ed. Gretchen Bender e Timothy Druckery principalmente no conceito de dupla consciência de W.E.B.
(Seattle: Bay, 1994), 335. Para mais uma crítica desse tipo de pós-hu-
Du Bois. Estes conceitos também “contradizem a noção
manidade, ver a contribuição de Alexander G. Wehe-liye para esta
de que a ausência da (ilusão do) eu unitário é algo novo”:
edição, “Feenin”: Vozes pós-humanas na música popular negra con-
temporânea. “ apesar da fácil proliferação de eus na era digital, o fluxo de
4 Ver também Sherry Turkle, Life on the Screen: Identidade na Era da
Internet (Nova York: Simon e Schuster, 1995) e Brenda Laurel, “Com- 5 Allucquère Rosanne Stone, “A Guerra do Desejo e Tecnologia no
putadores como Teatro (Nova York: Addison-Wesley, 1995). Encerramento da Era Mecânica” (Cambridge: MIT Press, 1996), 36.
073
pessoas da diáspora africana6. como os eus estão situados de forma diferente dentro e fora
A dupla consciência de Du Bois não era simples- desta rede.
mente uma afirmação acrítica de múltiplas personalidades, Em contraste, a ecologia mutante da racialização
mas uma análise obstinada das origens e dos riscos dessa na era virtual foi mais amplamente explorada nos estudos
multiplicidade. O que fica de lado na análise de Stone – e de Lisa Nakamura. As análises de Nakamura sobre filmes
no “neocriticismo” em geral - é uma avaliação de identida- de ficção científica, propagandas de tecnologia e turismo
de que não se limita a olhar para o que é aparentemente de identidade em MUDs e MOOs ofereceram contrapon-
novo sobre o self na “época virtual”, mas olha tanto para tos às ideologias raciais muitas vezes ocultas da era da
trás quanto para a frente na tentativa de fornecer insights informação7. Em um estudo de anúncios de empresas de
sobre a identidade, um pergunta o que foi e outro se foi. computação do final da década de 1990, Nakamura explo-
Enquanto Stone dá testemunho pungente da ontologia da rou como a promessa de um mundo liberado do amanhã,
multiplicidade, ela é menos capaz de mostrar como opera livre do pesado peso da identidade racial, é proliferada
a dialética entre definir-se à luz dos laços com a história e por corporações em comerciais de televisão e publicidade
a experiência e de ser definida a partir de fora (por estere- impressa - mais notavelmente em um comercial de 1997 da
ótipos e pelo Estado, seja no espaço virtual ou físico), isto MCI intitulado “Anthem”, que dizia que não havia idade,
determina a forma das identidades agregadas mediadas por gênero ou raça na Internet. Nakamura examinou como
computador, como muito mais do que um fluxo de lazer da várias empresas implantavam imagens de “pessoas de cor”,
personalidade. muitas vezes em locais “exóticos”, para vender seus pro-
Como as previsões de Leary, o argumento de Sto- dutos; no entanto, essas representações eram meramente
ne trazia a questão de quem poderia facilmente deixar de
lado a identidade e, além disso, o que estava em jogo ao
7 Lisa Nakamura, “Onde você quer ir hoje ?: Turismo cibernético,
fazê-lo. Embora Stone tenha o cuidado de sustentar que há a Internet e a transnacionalidade”, em Race in Cyberspace, ed. Beth
de fato um elo entre os eus virtuais e os eus físicos, ela, no E. Kolko, Lisa Nakamura e Gilbert B. Rodman (Nova York: Routledge,
entanto, constrói uma política de identidade que privilegia o 2000), 15-26; Lisa Nakamura, “Corrida no / para o ciberespaço: tu-
desempenho da personalidade. No entanto, compreender a rismo de identidade e passagem racial na Internet”, Works and Days
mudança do terreno da identidade na era virtual requer não (primavera / outono de 1995). MUD é um acrônimo para “multi-user
apenas atenção para a construção técnica dos eus através domain” e MOO para “MUD, orientado a objeto”. Ambos são es-
de uma rede distribuída, mas é preciso ter uma noção de paços virtuais ou comunidades nas quais um participante escolhe um
avatar ou caráter virtual ou assume outra identidade. Em seu estudo
como a multiplicidade funciona para tanto desviar quanto
sobre o LambdaMOO, Nakamura observa que os participantes que
escolheram uma “raça” como parte de seu perfil de identidade es-
6 Minha crítica ao argumento de Stone baseia-se em insights forne- tavam sujeitos a acusações de introduzir “política” no espaço virtual.
cidos por Kalí Tal, que faz um desafio similar a Sherry Turkle. Veja Kalí Consulte “Corrida no / para o ciberespaço: Turismo de identidade
Tal, “A Insustentável Brancura do Ser: Teoria Crítica Afro-Americana e e passagem racial na Internet”, www.English.iup.edu/publications/
Cibercultura”, www.kalital.com/Text/Writing/Whitenes.html. works&days/index.html.
075
ça racial. Como Nakamura explicou: “A iconografia dessas sobre raça e etnia - o desaparecimento da “linha de cor”
imagens publicitárias demonstra que a fábrica de imagens duboisiana - para promover seus produtos.
corporativas precisa de imagens do Outro para representar O estudo de Nakamura elucidou como centrais as
seu produto: uma utopia tecnológica da diferença. Não é, figuras raciais nas narrativas contemporâneas da tecnologia,
no entanto, uma utopia para o Outro ou uma utopia que o mesmo em sua (suposta) ausência. As representações de
inclua progressivamente de qualquer maneira significativa. raça e etnia criaram uma dissonância cognitiva na publici-
Em vez disso, se propõe um mundo ideal de realidade dade tecnológica; a “dessemelhança” foi maliciosamente
social e cultural virtual baseado em métodos específicos de neutralizada, mas nunca totalmente apagada, pois essa alte-
“Othering”8 (NdT.: “alteridade negativa”, ou seja, ver ou ridade era necessária à ideologia da tecnologia que estava
tratar uma pessoa ou grupo de pessoas, como intrinseca- sendo vendida.
mente diferente e alheio a si mesmo.). Se os anúncios examinados por Nakamura podem
Um desses métodos de “Othering”, (NdT.“alteri- ser considerados como reflexo da terra prometida, sem a
dade negativa”) era o uso “pelos anúncios” de imagens raça, da alta tecnologia (com suas inconsistências internas),
de pessoas e lugares exóticos, emancipados de histórias um anúncio recente da Land Rover na África do Sul ilumina
passadas e do contexto sociopolítico contemporâneo. as apostas do outro discurso dominante da raça e da tec-
Como Nakamura observou, “a diferença étnica no mundo nologia, o fosso digital. O anúncio, publicado em revistas
da publicidade na Internet é visualmente “limpa” de suas populares na África do Sul, retrata uma mulher himba da
conotações divisivas, problemáticas e trágicas. Os anúncios Namíbia em trajes tradicionais. Assim como em uma ima-
funcionam como textos corretivos para leitores inundados gem da National Geographic (Nakamura faz uma observa-
com imagens de conflitos raciais e derramamento de san- ção semelhante em relação aos anúncios que ela discutiu),
gue, tanto em casa como no exterior. Essas propagandas a mulher é mostrada com os seios nus. Ela está sozinha no
colocam o mundo direito ”. deserto, seu único companheiro, o mais recente modelo
Através da tecnologia as experiências das pessoas do Land Rover Freelander, partindo rapidamente. Como
retratadas foram consideradas insignificantes ou, nas pala- ele acelera, a força de tração para trás do veículo puxa seus
vras de Nakamura, “feitas para ‘não contar’”.9 seios para ele. Sua “primitividade feminina” e o elegante
O discurso público sobre raça e tecnologia, lidera- acabamento prateado do veículo utilitário esportivo estão
do por anunciantes (e auxiliado por ciberteóricos), estava em nítido contraste; o Freelander rapidamente se dirige ao
preocupado com os novos arranjos sociais imaginários, que futuro, deixando-a no passado. Nesta única imagem, nos é
poderiam ser possibilitados pelo avanço tecnológico. Os apresentada uma metáfora visual para a oposição ostensiva
da raça (passado primitivo) e da tecnologia (futuro moder-
8 Nakamura, “Onde você quer ir hoje?”, 25 (ênfase no original). no) que é o lado mais cortante do conceito da faca de dois
9 Ibid., 21-22, 16.
077
Se um veículo utilitário esportivo deixa as pessoas de lógico12.
ascendência africana literalmente soprando ao vento, então Exemplos de tal participação incluem a contribuição
a era da informação certamente surge como um tornado. do inventor Garret Morgan, que inventou o semáforo em
Embora se pretenda chamar a atenção para as verdadeiras 1923; da química vernacular de Madame C. J. Walker, que
disparidades, no conceito bem-intencionado da exclusão di- criou um negócio de beleza negra multimilionária; da cria-
gital de Janus há, de fato, lacunas críticas no acesso tecno- ção da linguagem de computador Lingo pelo programador
lógico e na alfabetização computacional que são compreen- John Henry Thompson; e de técnicas pioneiras de produção
síveis pelos prismas de raça, gênero, socioeconomia, região musical13.
e idade. No entanto, este paradigma é frequentemente A narrativa racializada da clivagem digital que circula
reduzido, a raça sozinha e, portanto, cai muito facilmente na esfera pública e os daltonismos raciais da teoria ciberné-
com as idéias preconcebidas de desvantagens técnicas tica e da publicidade comercial tornaram-se os quadros de
negras e superioridade tecnológica “Ocidental”. Como a referência, não reconhecidos para a compreensão da raça
mulher Himba deixada de lado na poeira da tecnologia, a na era digital. Nessas estruturas, o futuro tecnologicamente
suposição subjacente e muito retórica do fosso digital é de capacitado é, por sua própria natureza, desvinculado do
que as pessoas de cor, e os afro-americanos em particular, passado e das “pessoas de cor”. As narrativas “neocríticas”
não conseguem acompanhar a nossa sociedade altamente sugerem que isto é algo primitivo ou fora de moda, a obso-
tecnológica. lescência de algo ou alguém, o que confirma o novo status
O paradigma da exclusão digital obscurece o fato de do eu virtual, do produto de ponta ou da sociedade de alta
que o acesso desigual à tecnologia é um sintoma de desi- tecnologia.
gualdades econômicas anteriores à Arpanet (o protótipo da Como Kalí Tal sustenta, a história da diáspora africa-
Internet) e da World Wide Web11. Além disso, esse “mito da na contém uma riqueza de paradigmas teóricos que trans-
improbidade fingida dos negros com a tecnologia”, uma fra- formam em sua cabeça a cisão binária reificada entre negri-
se do historiador da ciência e medicina Evelynn Hammonds, tude e tecnologia, prestando-se prontamente à tarefa de
não leva em conta a centralidade do trabalho dos negros construir quadros de referência adequados para as teorias
na modernização e industrialização, bem como as verdades contemporâneas da tecnocultura. Desde o modelo inicial
10 Infelizmente, a Land Rover da África do Sul (agora uma divisão da 12 Evelynn Hammonds, entrevista com o autor, 23 de abril de 2001,
Ford Motor Company) não concederia permissão para a reprodução Cambridge, Massachusetts.
do anúncio aqui referido. Para mais informações sobre este anúncio 13 James C. Williams, “Enfim, Reconhecimento na América: Um
controverso e para ver a imagem, consulte Adbusters, no. 34 (março- Manual de Referência de Inventores Negros Desconhecidos e Sua
abril de 2001), 38. Também apareceu em “Bust in the Wind”, Harpers, Contribuição para a América (Chicago: B.C.A., 1978), 1: 27-28. Para
1815 (agosto de 2001), 23. mais informações sobre John Thompson, consulte www.lingoworks.
11 Alondra Nelson, “Enfrentando o Novo Mundo - AfroFuturismo: com. Veja Tricia Rose, Black Noise: Rap Music e Black Culture in Con-
Além do Divórcio Digital”, em Race and Public Policy, ed. Makani temporary America (Hanover, N.H .: University Press of New England,
Themba (Oakland, Calif .: Centro de Pesquisa Aplicada, 2000), 37-40. 1994), esp. rachar. 3
079
os padrões fractais encontrados na arquitetura da África Afirmo que quem não trilhou o caminho do Futurismo como
Ocidental, abundam exemplos de prefigurações culturais o expoente da vida moderna está condenado a rastejar
negras de nosso momento contemporâneo14. para sempre entre as antigas sepulturas e a se alimentar das
Para os propósitos deste ensaio, o aclamado ro- crostas do passado.”16
mance de 1972 de Ishmael Reed, Mumbo Jumbo, oferece Para Reed, por outro lado, as catacumbas não são
um terreno particularmente fértil. O romance, que tomou a um lugar arcaico e oculto a ser deixado para trás pela luz
forma de uma história de detetive, era menos uma história limpa da ciência e tecnologia modernas, mas sim a porta de
de detevive do que um mistério epistemológico. Mumbo entrada para uma compreensão mais completa do futuro.
Jumbo detalha um episódio de uma disputa em andamen- “Os necromantes costumavam deitar nas entranhas dos
to entre os JGC - os portadores de “jes grown”( vírus, que mortos ou nos túmulos para receber visões do futuro. Isso é
é uma personificação do ragtime, do jazz, do politeísmo profecia. O escritor negro está nas entranhas da velha Amé-
e da liberdade, o vírus propaga-se por certos artistas ne- rica, fazendo leituras sobre o futuro”, explicou17.
gros, referidos no romance como “Jes Grew Carriers” ou Com essa definição de necromancia, Reed apresen-
“J.G.C.s.”), o meme da cultura diaspórica africana - e os tou uma orientação temporal que parece contradizer os
Atonistas (da Ordem Wall flower, Ordem Invisível, conspira- discursos do futuro baseados em ignorar o passado ou em
ção internacional dedicada ao monoteísmo e controle, esta torná-lo sisudo e estagnado. Ao contrário dos neocríticos,
que tenta localizar e treinar o perfeito “Talking Android”, um Reed conjurou “leituras” de um passado vivo, retido no
homem negro que vai renunciar à cultura afro-americana em presente e levado para o futuro.
favor da cultura americana europeia), defensores da mitolo- O “jes grew” de Mumbo Jumbo é talvez o melhor
gia da civilização “ocidental” da história mundial. O enredo exemplo disso. Reed empresta essa frase do ativista de
do romance centra-se em esforços concorrentes para enco- direitos civis e teórico cultural James Weldon Johnson, que
rajar e restringir o vírus cultural itinerante, “jes grew”. a usou para descrever a proliferação de canções de ragti-
Reed usou a palavra necromancia para descrever seu me, comentando que elas são “jes grew” (ou simplesmente
projeto como escritor, definindo-o como “nós [no] passado grew). No romance, “jes grew” refere-se às culturas diaspó-
para explicar o presente e profetizar sobre o futuro”15. O en- ricas africanas que vivem e evoluem nas formas de gestos,
tendimento de Reed de um passado utilizável é contrário ao música, dança, cultura visual, epistemologia e linguagem,
futurismo do passado no início do século XX. O poeta russo atravessando a geografia e as gerações ao passar de por-
Kasimir Malevich descreveu o futurismo como uma maneira tador para portador e assim ameaçando o conhecimento
monopolizado pelo do “Ocidente”: “Jes Grew” percorreu
14 Eglash, Ron. “Fractais Africanos: Computação Moderna e Design
Indígena” (New Brunswick, N.J .: Rutgers University Press, 1999). 16 Kasimir Malevich, “Do Cubismo e Futurismo ao Suprematismo: O
15 Ishmael Reed, entrevista de Gaga [Mark S. Johnson], em “Conver- Novo Realismo na Pintura”, em Harrison e Wood, Art in Theory, 169.
sations with Ishmael Reed”, ed. Bruce Dick e Amritjit Singh (Jackson: 17 John O’Brien, “Ishmael Reed”, em Dick and Singh, Conversas
University Press de Mississippi, 1995), 51. com Ishmael Reed, 16.
081
ca de sua ladainha. Suas palavras, cânticos mantidos em codificar a cultura negra: passado, presente e futuro. Ao
cativeiro pela misteriosa Ordem.... “Jes Grew” precisava de invés de uma imagem “ocidental” do futuro que é cada vez
suas palavras para contar aos seus portadores o que estava mais separada do passado ou, igualmente problemática,
acontecendo. uma perspectiva do futuro-primitivo que fantasia um retorno
“Jes Grew” era uma influência que buscava seu descomplicado à cultura antiga, LaBas prevê a destilação da
texto e sempre que pensava conhecer a localização de suas experiência diaspórica africana, enraizada no passado, mas
palavras e de suas anotações de dança “Labanotations” não sobrecarregada por ele, contígua mas continuamente
(que é um sistema de notação para gravação e análise de transformada.
movimento humano que foi derivado do trabalho de Ru- O “anacronismo”, que é um elemento de grande
dolf Laban, que descreveu descrito em “Dança” em 1928. parte do trabalho de Reed, é usado para expressar uma
Comentários e outros métodos são usados como um tipo perspectiva única sobre o tempo e a tradição. Esse efeito
de notação de dança e em outras aplicações, incluindo a é alcançado em sua escrita por meio do que ele denomina
análise de Movimento de Laban, robótica e simulação do “sincronizar”: “colocar elementos díspares ao mesmo tem-
movimento humano), ia nessa direção18. O texto que falta, po, fazendo-os funcionar juntos, ao mesmo tempo”19. Essa
originário da África antiga, representa a oportunidade de abordagem é característica de como a tecnologia funciona
codificar Cultura vernacular diaspórica africana e criar um no Mumbo Jumbo. O modelo de sincronia de Reed desafia
repositório tangível da experiência negra. Ao longo do a linearidade progressiva da crítica tecnocultural recen-
romance, PaPa LaBas - o protagonista do romance, detetive te. Como Sämi Ludwig observou, as tecnologias existem
espiritual e proprietário da Mumbo Jumbo Kathedral, um independentemente do tempo no romance; embora tenha
local de coleta de saúde holístico da HooDoo - rastreia “jes sido definida nos anos 1920, a história contém referências
grew” à medida que busca seu texto. Em direção ao final do a tecnologias que não estarão prontamente disponíveis até
romance, tendo descoberto que o texto foi destruído, PaPa anos depois20. Por exemplo, Ludwig observa que um líder
LaBas prevê com otimismo: “Faremos nosso próprio Texto da Ordem Wall Flowers, o braço militar dos Atonistas, fez
futuro. Uma futura geração de jovens artistas conseguirá uso de vídeo e televisão para monitorar o progresso de “jes
isso”. grew” de sua sede. Nesse caso, tecnologias de um cená-
À primeira vista, essa afirmação parece estar alinhada rio do futuro e o presente do autor habitam uma história
com às aspirações utópicas do “neocritismo” contemporâ- situada no passado. A sincronicidade de Reed se estende
neo. No entanto, LaBas não é um impulsionador do novo: à colocação de tecnologias obsoletas no presente. Embora
o prognóstico é uma visão do futuro que é propositalmente não seja um hardware como esse, uma técnica de comu-
influenciada pela tradição. Em vez de se desesperar quando
descobre que o Texto foi destruído, LaBas acredita que a 19 “Conversas com Ismael Reed”, 53.
20 Sämi Ludwig, “Linguagem Concreta: Comunicação Intercultural”
18 Ishmael Reed, “Mumbo Jumbo” (1972; reimpressão, Nova York: em “The Warrior Woman” de Maxine Hong Kingston e “Mumbo Jum-
Scribner, 1996), 211. bo” de Ishmael Reed (Nova York: Peter Lang, 1996), 320.
083
LaBas para receber informações do além. Ludwig compara dos ensaios desta coleção surgiram a partir das relações
as “batidas” às ondas de rádio; elas também poderiam formadas em uma comunidade on-line chamada Afrofu-
ser percepções sensoriais, premonições ou comunicados turismo que eu fundei no outono de 1998, e muitas delas
do passado que vivem através daqueles que, como LaBas, expandem, implementam e assumem os temas discutidos
continuam a fazer uso deles21. (Importante, Reed não coloca pela primeira vez lá. O afrofuturismo pode ser amplamente
seus protagonistas contra outras formas de tecnologia. La- definido como “vozes afro-americanas” com “outras histó-
Bas também faz uso de hardware como sua rádio Kathedral rias para contar sobre cultura, tecnologia e coisas futuras”.23
e uma gangue multicultural no romance, a Mu’tafikah, que O termo foi escolhido como o melhor guarda-chuva para
repatria obras de arte para seus países de origem, empre- as preocupações da “lista” - como vem a ser conhecido
ga ditafones em sua campanha.)22 Reed poderia dizer que por seus membros - “imaginário de ficção científica, temas
usa a sincronicidade para priorizar a tecnologias. Como sua futuristas e inovação tecnológica na diáspora africana”.24
crítica aos mitos dominantes da “civilização ocidental”, seu O “AfroFuturism listserv” começou como um projeto do
uso anacrônico da tecnologia em Mumbo Jumbo levanta a coletivo de artes apogeu com o objetivo de iniciar o diálo-
questão de quais ferramentas são valorizadas por quem e go que culminaria em um simpósio chamado AfroFuturism
com que fins. Com seu romance inovador como um exem-
plo, Ishmael Reed forneceu um paradigma para uma tecno-
cultura diaspórica africana.
As contribuições para essa questão talvez sejam
os “textos futuros” esperados por Papa LaBas no Mundo
Jumbo de Reed. O texto e as imagens aqui reunidos refle-
tem a experiência da diáspora africana e, ao mesmo tem-
23 O termo afro-futurismo foi cunhado por Mark Dery em 1993
po, atendem às transformações que são o subproduto das em uma introdução ensaio que acompanhou uma entrevista com
novas mídias e da tecnologia da informação. Eles escavam e os críticos culturais Tricia Rose e Greg Tate e o teórico e escritor de
criam narrativas originais de identidade, tecnologia e futuro ficção científica Samuel Delany. Veja Black to the Future: Entrevistas
e oferecem críticas às promessas das teorias predominantes com Samuel R. Delany, Greg Tate e Tricia Rose, em “Flame Wars: O
da tecnocultura. Além disso, essas contribuições, reunidas Discurso da Cibercultura”, ed. Mark Dery, South Atlantic Quarterly
sob o termo Afrofuturismo, oferecem uma cultura digital 94.4 (1993): 735-78; citação em 738. Embora este termo abrangente
que não cai na armadilha dos “neocríticos” ou dos futuris- tenha sido usado pela primeira vez por Dery em 1993, as correntes
que o compõem já existiam muito antes. Veja Kowdo Eshun, Captura
tas de cem anos passados. Essas obras representam novas
de Movimento (Entrevista), em “Mais Brilhante que o Sol: Adventures
direções no estudo da cultura da diáspora africana que são in Sonic Fiction”, (Londres: Quarteto, 1998) 175-93. Uma extensa
baseadas nas histórias das comunidades negras, em vez lista de recursos de afrofuturistas foi compilada por Kalí Tal em www.
afrofuturism.net.
21 Ludwig, “Linguagem Concreta”, 319. 24 Esta frase é tirada da minha descrição do listserv, que pode ser
22 Ibid. encontrada em www.groups.yahoo.com/group/afrofuturism.
085
escritores que se formou e se sustentou através da “lista”, ângulos: como estruturas analíticas únicas para interpretar
talvez sua função mais significativa tenha sido como uma a produção cultural negra, como imagens do futuro próxi-
incubadora de idéias. A lista do AfroFuturismo surgiu em mo, como poesia. Ensaios de Alexander G. Weheliye e Ron
um momento em que era difícil encontrar discussões sobre Eglash consideram identidades da era digital. Com “Fee-
tecnologia e comunidades da diáspora africana que fossem nin”: Vozes pós-humanas na música popular negra contem-
além da noção da divisão digital. Desde o início, ficou claro porânea ”, Weheliye reimagina uma das mais citadas cate-
que havia muito território teórico a ser explorado. As pri- gorias sociais contemporâneas, a da pós-humano.
meiras discussões incluíram o conceito de dupla consciência Resistindo a uma única elaboração totalizadora da
digital; retenções culturais diaspóricas africanas na moderna pós-humanidade que é notável, mas sem surpresa seme-
tecnocultura; ativismo digital e questões de acesso; sonhos lhante a do sujeito liberal ocidental, Weheliye se afasta das
de projetar tecnologia baseada em princípios matemáticos preocupações como o ocular (na forma da iconografia da
africanos; as visões futuristas do cinema, vídeo e música tela do computador e do espetáculo da pós-humanidade
negras; as implicações da então florescente revolução do protética visualmente aparente). Em favor da “auralidade”
MP3; e a relação entre feminismo e afrofuturismo. Os con- e oralidade da música R & B, Weheliye recupera o R & B
contemporâneo como uma testemunha da vida diaspórica
25 O foco da lista de discussão foi inicialmente sobre metáforas africana que articula os anseios humanos e, ao mesmo tem-
de ficção científica e produção tecnocultural na diáspora africana po, revela como esses anseios são mediados pelas tecnolo-
e expandiu-se daí para uma discussão livre de todos e quaisquer gias. O vocoder é um exemplo dessa conjunção particular
aspectos da vida negra contemporânea. Uma série de moderadores - de “homem” e máquina: “um dispositivo de sintetizar fala
incluindo Paul D. Miller, Nalo Hopkinson, Ron Eglash e David Gold-
que torna a voz humana robótica”, produzindo uma “voz
berg - dedicou generosamente seu tempo e energia ao estabelecer
negra audivelmente mecânica” que amplifica questões de
periodicamente temas para a lista a considerar o primeiro ano de sua
existência. Agora com três anos e ainda forte, a lista do AfroFuturismo raça e tecnologia. Weheliye oferece uma teoria da subje-
continua a evoluir: os moderadores recentes incluíram Sheree Renee tividade da era digital centrada na codificação das formas
Thomas e Alexander Weheliye. diaspóricas negras em termos das novas tecnologias que
Organizado por Alondra Nelson, o AfroFuturism | Forum, contribuem para as realidades cotidianas da vida negra. Ron
“um diálogo crítico sobre o futuro da produção cultural negra”, foi Eglash reconfigura outra personagem da era digital, a do
realizado na Universidade de Nova York em 18 de setembro de 1999, nerd ou geek. Eglash argumenta que, durante uma época
como parte do Downtown Arts Festival. Este projeto foi possível em que hackers de empresas faziam incursões nos corre-
graças à assistência da Fundação da Família Peter Norton, bem como
dores do poder, o acesso à identidade geek talvez pudesse
os programas de Estudos Americanos e Estudos Africanos na NYU. Os
painéis focalizaram vários aspectos da cultura digital da diáspora af-
suavizar o caminho para a influência e para o capital. Em seu
ricana. Os participantes incluíram Beth Coleman, Kodwo Eshun, Leah ensaio “Raça, Sexo e Nerds: De Geeks Negros a Hipsters
Gilliam, Jennie Jones, Raina Lampkins-Fielder, Kobena Mercer, Tracie Asiáticos Americanos”, Eglash traça as identidades raciais,
Morris, Erika Dalya Muhammad, Alondra Nelson, Simon Reynolds, de gênero e sexuais que aderiram à figura do nerd. O nerd
Tricia Rose, Franklin Sirmans e Reggie Cortez Woolery. masculino tipicamente branco, argumenta Eglash, extraiu
087
lançou as pessoas de ascendência africana como “excessi- ticas genéricas do que ela identifica como um subgênero
vamente sexualizadas e” mais próxima da natureza do que distinto de contos preventivos, há uma visão utópica que se
a cultura, e “orientalismo”, que estereotipou pessoas de atualiza através da violência e da dizimação da população
ascendência asiática como “subsexualizados”, pensadores branca, das sociedades secretas e dos usos alternativos da
excessivamente abstratos. Dado que a identidade geek é tecnologia. Nas obras que ela discute, o “futuro próximo”
esculpida em oposição a outros mitos raciais e de gêne- é uma utopia em que os negros se libertam das restrições
ro, Eglash considera se a apropriação da identidade nerd do racismo; o passado e o presente racistas são distópicos.
pode ser um meio politicamente eficaz de obter o capital Este trabalho levanta a questão de como as utopias sociais
tecnocultural. Embora os benefícios da identidade de nerds podem ser imaginadas e como o passado e o presente mol-
negros possam ser discutíveis, a tecnofilia diaspórica africa- dam o que imaginamos como um futuro positivo. Tal afirma
na tem uma longa história, de acordo com Anna Everett. que os escritos que ela discute por Sutton Griggs, George
Em seu ensaio “A revolução será digitalizada”, Eve- Schuyler, John A. Williams e Chester Himes revelam uma
rett argumenta que a diáspora africana que resultou da es- história pouco conhecida do futurismo afro-americano que
cravidão promoveu, muito antes do termo tornar-se chique, tanto fornece uma outra lente para interpretar a literatura
“comunidades virtuais autossustentáveis através de sistemas negra quanto impõe os mais convincente precedente para
comunicativos paralinguísticos e transnacionais” que sus- a ficção científica negra amplamente conhecida que surgiu
tentaram uma “consciência diaspórica”. Ela afirma que a nos últimos quarenta anos.
consciência em rede da diáspora africana da necessidade A romancista Nalo Hopkinson é uma herdeira dessa
prefigurava a consciência da rede, muitas vezes saudada tradição de especulação literária. Ela apresenta suas pró-
como um dos benefícios da Internet. Ela afirma que essa prias visões do futuro em sua ficção aclamada pela crítica,
consciência comunitária persiste “no ciberespaço e na era que é um exemplo do passado vivo que Ishmael Reed
digital”. Segundo Everett, mesmo com a retórica da divisão defende26. Hopkinson escreve uma ficção especulativa,
digital prevalecendo, 1995 foi um “momento divisor de misturando fantasia, horror e ficção científica com a mito-
águas” para a conectividade negra, evidência de uma “tec- logia, espiritualidade e cultura africanas. Observando que
nologia negra” que desmentia as narrativas predominantes muitas das metáforas da ciência e da ficção científica são
sobre raça e tecnologia na esfera pública. Everett acredita derivadas das antigas origens da língua grega e romana,
que as comunidades diaspóricas africanas no ciberespaço incluindo as palavras ciborgue e telefone, Hopkinson con-
oferecem a oportunidade de fomentar a esfera pública templa as palavras que uma “cultura diaspórica em grande
negra e fortalecer os elos da diáspora africana usando a parte africana poderia construir, e que histórias suas pessoas
tecnologia da informação como uma ferramenta de ativismo poderiam contar sobre tecnologia . Na entrevista “Tornando
e coesão social. Para Kalí Tal em “That Just Kills Me”, a “re- o impossível possível ”, Hopkinson discute como ela es-
volução da informação” fornece inspiração para reconside-
rar textos existentes como contranarrativas para o futurismo
26 “Encher o céu com ilhas: uma entrevista com Nalo Hopkinson”,
do “neocrítico”. Tal reflete sobre a ficção negra militante do www.space.com/sciencefiction/books/hopkinson_intv_000110.html.
089
africanas. Com suas contribuições, “Afro-Future—Dystopic recentes no mesmo plano, Tuggar quer que o espectador
Unity”, “Mother Earth”, and “Vertical” (“Afro Futuro - Uni- as compreenda como ferramentas que podem ter mais em
dade Distópica”, “Mãe Terra” e “Vertical”), a poetisa Tracie comum do que pensamos.
Morris oferece reflexões elegíacas (NdT. originariamente Tana Hargest usa a tecnologia de design assistida por
referia-se a qualquer verso escrito em dístico elegíaco computador para extrair insights sobre os dilemas da vida
cobrindo uma vasta gama de assuntos, entre eles, os epitá- negra depois do movimento pelos direitos civis. Levando o
fios para túmulos. Modernamente, elegia é uma poesia de marketing de nicho ao seu extremo especulativo, o projeto
tom terno e triste.) sobre ciência e tecnologia “ocidentais”. da Hargest é uma corporação, da qual ela é a CEO, chama-
Com este verso, Morris, uma famosa poeta performática da Bitter Nigger Inc. (BNI) que cria produtos de estilo de
e escritora publicada, forja novos rumos com a linguagem vida para afro-americanos vivendo dentro da gaiola dourada
poética. Ela é menos do que otimista em relação à tecnoci- das aspirações da era da informação. Conforme detalha a
ência - cada poema evoca o efeito da perda e do engano -, carta aos acionistas, o BNI é composto por várias divisões,
ligando-a não à promessa de novos futuros brilhantes, mas a sendo uma dedicada a produtos farmacêuticos. Os produ-
abominações biológicas, campanhas de genocídio e catás- tos inteligentes desenvolvidos pela ala farmacêutica do BNI
trofes ambientais. As imagens de Tana Hargest e Fatimah parodiam drogas como Claritin e Celebrex, cujos anúncios
Tuggar dependem de ferramentas da era digital para criar prometem sua própria versão da utopia quimicamente
especulação visual. Tuggar emprega fotomontagem digital aprimorada de uma maneira que lembra a novela satírica
para construir uma colisão de tempo, lugar e cultura de uma de George Schuyler, Black No More, cada produto da BNI
maneira que lembra a sincronicidade de Ishmael Reed. Suas identifica um “problema social” e oferece um produto como
imagens das mulheres nigerianas do norte em suas vidas remédio; todos têm efeitos colaterais. Não é um salto tão
cotidianas, usando tecnologias novas e misteriosas, transmi- grande da farmacogenômica, a promessa de medicamen-
tem mensagens complexas, muitas vezes conflitantes. Tra- tos adaptados para populações específicas possibilitada
balhando com contraste de escala e cor, Tuggar espera que pela codificação do genoma humano,28 para a Hargest’s,
o espectador esteja consciente, nas palavras de um crítico, Tominex, uma pílula que ajuda o consumidor “buppie” (a
“para a natureza construída de todas as imagens da Áfri- black yuppie) a “se dar bem”. (O problema é que a pílula
ca”, em particular para a representação usual do continente é tão grande que, ao tentar engolir o produto / conceito, o
como uma região antiquada, o oposto do que é moderno e consumidor vai se engasgar.) Outro produto, o “Enforcer”,
de alta tecnologia27. À primeira vista, as imagens de cortar é um microchip de correção de comportamento implantado
e colar de Tuggar parecem retratar as mulheres nigerianas em brancos que funciona para refrear o racismo. O aspecto
como vítimas da tecnologia moderna e do imperialismo oci- de Big Brother dessa tecnologia parece colocá-la diretamen-
dental, mas acabam por revelar as mulheres como agentes te em um mundo distópico, mas, semelhante à ficção que
27 Amanda Carlson, “Entre e entre a cultura: A arte de Fatimah 28 “Esta droga para o coração é projetada para afro-americanos”,
Tuggar”, ensaio inédito, 1999. Business Week, 26 de março de 2001.
091
utópico no qual o racismo é reduzido.
A evolução do projeto do Afrofuturismo listserv, da
lista de discussão para a conferência, para essa coleção edi-
tada, foi alcançada através dos esforços de muitas pessoas,
mais principalmente os contribuintes deste volume, muitos
dos quais eu encontrei pela primeira vez no ciberespaço.
Obrigado por compartilhar seu trabalho criativo. Tenho uma
dívida de gratidão para com os membros do coletivo do
apogeu; Simon Watson e Craig Hensala, da Downtown Arts
Projects; e a Peter Norton Family Foundation por seu apoio.
Estou em débito com todos os meus companheiros de
viagem do listserv AfroFuturism por suas idéias e inspiração,
especialmente Amneh Taye, W. Jelani Cobb, Lynn d. John-
son, Pam Mordecai, André Williams, David Goldberg, Kira
Harris, Mark Rockmore, Camille Acey, Juba Kalamka, Bruce
Sterling, Donna Golden, Ama Patterson, Lester K. Spence e
Franklin Sirmans. Meu sincero apreço também vai para uma
incrível rede de pensadores, escritores e realizadores por
seu apoio ao projeto AfroFuturism em suas variadas versões:
Thuy Linh N. Tu, Andrew Ross, Tricia Rose, Logan Hill, Carol
Cooper, Makani Themba-Nixon Jennie C. Jones, Jungwon
Kim, Michelle-Lee White, Erika Muhammad, Robin DG Kel-
ley, Jeff Chang, Mantia Diawara, Paul D. Miller, Lisa Duggan,
Beth Coleman, Sheree Renee Thomas e Alyssa Hepburn.
Minha maior gratidão é devida a Ben Williams - parceiro,
aliado, amigo.
093
Tráfico exótico é amor é ódio é dor é cura nas telas
t
Tráfico exótico é memória rígida é memória esquecida é
potencial desenterrado
Tráfico exótico é diagnose é um remédio é cuidado
Tráfico exótico é tentar
a R ir
exposição Tráfico exótico é trocar fluidos de sobrevivência
Tráfico exótico é amor úmido e suculento
eza
de tabita Tráfico exótico é o eu à venda
rezaire
original
Exotic Trade
tradução
e
Juno Takano
(Newen Edições)
referência
REZAIRE, Tabita. “Exotic trade”.
Goodman Gallery. Joanesburgo,
2017.
Disponível em:
https://tabitarezaire.com/
onewebmedia/ExticTrade_
DigitalCatalogue_TabitaRezaire.pdf
tráfico exótico
095
EXOTIC TRADE
TABITA REZAIRE Exotic Trade is Tabita Rezaire’s first solo exhibition in which she deploys ‘digital
healing activism’ as a strategy to envision decolonial technologies through which
Exotic Trade is love is anger is pain is healing on screens EXOTIC TRADE we can ‘holistically connect to ourselves, to one another, to the earth and to the
multiverse’ (Rezaire).
This otherworldly exhibition digs into the histories, politics and memories
Exotic Trade is hardrive memory is forgotten memory is of information and communication technologies (ICT), exposing the violence
unearthed potential and erasure carried by our current networks and unearthing possibilities for
spiritual technologies.
Exotic Trade is a diagnosis is a remedy is caring Through video installations and digital prints, the artist responds to
Exotic Trade is trying a perceived need to reconnect body, ‘womb-mind’ and spirit to heal the
‘oppressive colonial hierarchies of knowledge systems which define the
Exotic Trade is for you is for us dominant narratives of our time’ (Rezaire).
Exotic Trade is harnessing the power of vibration Exotic Trade explores ‘alternative’ means of receiving, creating and sharing
information through spiritual interfaces by accessing what Rezaire terms the
Exotic Trade is sharing fluids of survival ‘cosmos database’ – from communicating with ancestors to embracing water, the
Exotic Trade is wet and juicy love GOODMAN GALLERY JOHANNESBURG womb and teacher plants as ‘primal-portals’ for ‘downloading’ knowledge.
In the show, Rezaire draws parallels between the layout of submarine optic
Exotic Trade is contradiction is complicity exposed 18 MAY – 17 APRIL 2017 cables (the very architecture of the Internet) and colonial trade routes to point
Exotic Trade is struggling with self-love to the powerful symbolism underpinning ‘electronic colonialism’ whereby the
Internet has literally been built on routes of Black pain.
Exotic Trade is self-commodification is self-realisation is
self-doubt
Exotic Trade is me for sell
JOHANNESBURG
GALLERY HOURS
TUESDAY–FRIDAY: 09H30–17H30
SATURDAY: 9H30–16H00
For Rezaire, ‘the irony is that the technology of the Internet would not exist
without the influence of African spiritualities because the origin of computing
science has, in fact, been traced back to African divination systems’. Rezaire
uses screen interfaces within her practice to remember the ‘space-time’ where
technology, the biosphere and the spiritual world connect.
Exotic Trade will be arranged in the shape of a womb to create a ‘nurturing
space that connects us to the source’, says the artist. This composition relates
to the intention behind key pieces, which celebrate the resilience of Black
womxn in the face of colonialist and capitalist exploitation. Rezaire seeks to
mark the contribution of Black womxn to the advancement of medical science
and technology – often unwillingly and painfully, such as with gynaecology
– and confront the erasure of Black womxn from the dominant narrative of
technological achievement.
Rezaire grapples with inherited traumas that burden Black womxn’s
‘soul-bodies’ and re-construes Black, femme erotic power as a creative and
transformative energy. Her mission is ‘to reimagine a politics of pleasure driven by
unapologetic desire, spiritual awakening, love and compassion’ (Rezaire).
By undertaking a dedicated excavation of the healing potential of forgotten
technologies and asserting their relevance to our present age – a process that
Rezaire calls ‘network archaeology’ – Exotic Trade advocates for the possibility
of nurturing a ‘mind-body-spirit-techno consciousness’ that counters our current
state of disconnection.
Tabita Rezaire
Dilo, 2017
Lightbox
100 x 188 cm
Edition of 5
Tabita Rezaire
Exotic Trade installation view, 2017
Deep Down Tidal explores transcoceanic networks examining the political and
technological affects of water as a conductive interface for communication.
From fibre optic cables to sunken cities, drowned bodies, hidden histories of
navigations and sacred signal transmissions, the ocean is home to a complex
set of communication networks. As modern information and communication
technologies (ICT) become omnipresent in Western lifestyles – rebranded global
to further implement Western domination – we urgently need to understand the
cultural, political and environmental forces that have shaped them.
Looking at the infrastructure of submarine fibre optic cables that carries and
transfers our digital data, it is striking to realize that the cables are layered onto
colonial shipping routes. Once again the bottom of the sea becomes the interface
of painful yet celebrated advancements masking the violent deeds of modernity.
Deep Down Tidal navigates the ocean as a graveyard for Black knowledge and
technologies. From Atlantis, to the ‘Middle passage’, or refuge seekers presently
drowning in the Mediterranean, the ocean abyss carries pains, lost histories and
memories while simultaneously providing the global infrastructure for our current
telecommunications. Could the violence of the Internet - inflicted upon Africa and
more generally Black people lie in its physical architecture?
Research suggests that water has the ability to memorize and copy
information, disseminating it through its streams. What data is our world’s water
holding? Beyond trauma, water keeps myriad of deep secrets, from its debated
origin, its mysterious sea life of mermaids, water deities, and serpent gods, to the
aquatic ape theory, and sacred water spirits celebrated in many cosmologies.
Deep Down Tidal enquires the complex cosmological, spiritual, political
and technological entangled narratives sprung from water as an interface to
understand the legacies of colonialism.
PREMIUM CONNECT
Tabita Rezaire
Premium Connect installation view,
2017
HD video, 13min04s
Edition of 3
Online viewing:
https://vimeo.com/213072636
Password: premium
In the video, Hoetep Blessings, Rezaire makes an offering to what she calls ‘Black
spiritual femmeness’. Rezaire writes, ‘As a remembrance celebrating spiritual
knowledge(s) and Black femme technologies, it acts as an oracle from the divine
power of the c*nt, as a litany for survival and pleasure, and a means to weaponize
the our melanated femmeness.’ Hoetep seeks to reinstall the power of the
kemetic-bantu word ‘hotep’ (htp) – meaning to be at peace – against what it has
recently come to signify on the Internet : ‘a problematic category of Black men’,
Rezaire writes.
Hoetep Blessing excavates htp’s meanings in various fields from the Hypertext
Transfer Protocol – foundation of data communication online - to the
neurotransmitter 5-HTP found in the Griffonia seeds – which increase serotonin
and inner connectivity.
According to Rezaire, Hoetep ‘rescues the spiritual power of the c*nt, of
femmeness, of the ‘hoe’, within Blackness, that which the troll economy tries hard
to disgrace.’ The Kemetic adage, ‘As for us, we do not use words but sounds filled
with power’ teaches us that Ho(e)tep is one we should respect.
Tabita Rezaire
Hoetep Blessings installation view,
2016
Installation and HD video,
12min30s
Edition of 3
ULTRA WET
‘The pyramid of Ultra Wet harnesses healing energy from its tip, while its four
faces retell urgent stories from pre-colonial Africa’, writes Rezaire. The work’s
imagery travels from Credo Mutwa (South African traditional healer)’s village
to sandy landscape of Egypt amid computerize emanations to reclaim the
legacies of feminine energies. As storytellers chant their litanies for survival
towards womxnhood, gender and sexuality in the age of celebrated toxic
masculinities, Ultra Wet celebrates the power of the erotic as a creative and
transformative force to be nurtured and cherished.
The pyramid echoes the remembrance a time-space where gender was not
bound to an arbitrary binary, where the ways of practicing sex did not need to
be an affirmation of identity, where the feminine was praised and nature revered.
‘Viruses then spread into our brains, lands and computers to lead us with fear and
shame’, says the artist.
Exploring networked sexualities, this work digs into ancient African knowledge
and current cybersexual practices, searching for ways of existing as a Black sexual
femme body. How can we reclaim a politic of pleasure and resistance? How can
we develop sexual autonomy outside of exploitative and oppressive structures? Tabita Rezaire Tabita Rezaire
How can we use our sexual energy to shift consciousness? Film still from Hoetep Blessings, 2016 Film still from Hoetep Blessings, 2016
As an answer Rezaire writes: ‘We need to bring our minds and our wombs back Installation and HD video, Installation and HD video,
together to fight, to heal and to create communities where consent, respect and 12min30s 12min30s
desire coexist.’ Edition of 3 Edition of 3
Ultra Wet is an ode to the fertile ground we have been and can still be.
Tabita Rezaire
Ultra Wet installation view, 2017
Projection mapping installation
6min48s
Edition of 3
101
TRÁFICO EXÓTICO
A Internet é exploratória,
homophobic,
olonise and heal excludente, classicista,
patriarcal, racista,
deploys ‘digital
homofóbica, transfóbica,
es through which gordofóbica, coercitiva e
arth and to the
manipuladora. Precisamos
and memories
ng the violence descolonizar e curar
ossibilities for
nossas tecnologias. Cura é
ponds to
o heal the resistência.
define the
–Tabita Rezaire
g and sharing
re terms the
racing water, the
nowledge.
bmarine optic
outes to point
whereby the
103
ber, criar e compartilhar informação através de interfaces
espirituais ao acessar o que Rezaire chama de “banco
de dados do cosmos” - da comunicação com ancestrais
ould not exist
of computing incluindo a água, o útero e até as plantas-professoras como
ms’. Rezaire
e-time’ where “portais primevos” para “baixar” conhecimento.
e a ‘nurturing Na exposição, Rezaire faz paralelos entre a disposi-
osition relates
of Black ção de cabos ópticos submarinos (que são a própria ar-
re seeks to
edical science quitetura da Internet) e as rotas de comércio colonial, para
naecology
arrative of indicar o simbolismo poderoso por trás do “colonialismo
mxn’s eletrônico”, perspectiva através da qual ela ressalta que a
eative and
pleasure driven by Internet foi literalmente construída sobre as rotas da dor
Rezaire).
al of forgotten Negra. [pág. 4]
a process that
the possibility Para Rezaire, a ironia é que a tecnologia da Internet
nters our current
não existiria sem a influência das espiritualidades Africa-
nas pois a origem da ciência da computação foi, de fato,
traçada até os sistemas oraculares Africanos. Rezaire utiliza
interfaces em telas dentro de sua prática artística para re-
lembrar o “espaço-tempo” no qual a tecnologia, a biosfera
e o mundo espiritual se conectam.
Tráfico exótico será disposto no formato de um
útero para criar um “espaço acolhedor que nos conecta à
fonte”, diz a artista. Esta composição está relacionada à
intenção por trás das obras-chave, que celebram a resiliên-
cia das mulheres Negras em face da exploração colonialista
e capitalista. Rezaire busca ressaltar a contribuição das
mulheres Negras para o avanço da ciência médica e da tec-
nologia – muitas vezes forçosa e dolorosamente, tal como a
ginecologia – e confronta o apagamento das mulheres Ne-
Tabita Rezaire gras na narrativa dominante das conquistas tecnológicas.
vista da instalação Exotic Trade (2017)
pág. 6
Rezaire lida com traumas herdados que pesam
sobre os “corpos-alma” das mulheres Negras e reconstrói o
poder erótico femme como uma energia criativa e transfor-
madora. Sua missão é “reimaginar uma política do prazer
105
al, o amor e a compaixão” (Rezaire).
Empreendendo uma dedicada escavação do poten-
cial de cura de tecnologias esquecidas, afirmando sua rele-
e political and
munication. vância para nossa era presente – um processo que Rezaire
n histories of
o a complex chama de “arqueologia da rede” – Tráfico exótico defende
mmunication
ebranded global a possibilidade de nutrir uma “consciência mente-corpo-
understand the
m. -espírito-tecnológica” que se contraponha ao nosso atual
hat carries and
re layered onto estado de desconexão.
mes the interface
ds of modernity.
k knowledge and
eekers presently PAG. 7
st histories and
re for our current DA MARÉ PROFUNDA
d upon Africa and
copy
ur world’s water Da Maré Profunda (no original, Deep Down Tidal) explora
om its debated
pent gods, to the as redes transoceânicas examinando as influências políti-
cosmologies.
l, political cas e tecnológicas da água como uma interface condutora
interface to
para a comunicação. Indo desde os cabos de fibra ótica
até cidades submersas, corpos afogados, histórias ocultas
de navegações e transmissões de sinais sagrados, o oce-
ano abriga um complexo conjunto de redes de comunica-
ção. Conforme as tecnologias modernas de informação e
comunicação (TIC) tornam-se onipresentes nos estilos de
vida ocidentais – reformulados como globais para implantar
ainda mais a dominação ocidental –, precisamos urgente-
mente compreender as forças culturais, políticas e ambien-
tais que deram forma a esta dominação.
Olhando a infraestrutura dos cabos de fibra óptica
que carregam e transferem nossas informações digitais, é
marcante a percepção de que os cabos estão dispostos
Tabita Rezaire sobre rotas marinhas coloniais. Mais uma vez o fundo do
vista da instalação Deep Down Tidal, 2017
HD video
oceano torna-se a interface de avanços dolorosos porém
Edição 1/3 celebrados, mascarando os atos de violência da Moderni-
dade.
Assista online:
https://vimeo.com/213318165
Da Maré Profunda navega o oceano como um
Senha: deep cemitério para o conhecimento e as tecnologias Negras.
pág. 8
Tabita Rezaire
vista da instalação Deep Down Tidal, 2017
HD video
Edição 1/3
Assista online:
https://vimeo.com/213318165
Senha: deep
pág. 11
109
CONEXÃO PREMIUM
111
reproduzem continuamente.
O estudo das redes dinâmicas dos ambientes artifi-
ciais, espirituais e biológicos aprofunda-se nas políticas das
while its four
e. The work’s possibilidades, nas quais uma consciência místico-tecnoló-
aler)’s village
eclaim the gica poderia nutrir uma simbiose mente-corpo-espírito-tec-
for survival
ted toxic nologia.
reative and
113
desenvolver autonomia sexual fora de estruturas explorado- usamos palavras mas sons cheios de poder”, nos ensina
ras e opressivas? Como podemos usar nossa energia sexual que Ho(e)tep é um ser que devemos respeitar.
para mudar a consciência?
Como resposta Rezaire escreve: “Nós precisamos PÁG. 23
reaproximar nossas mentes e nossos úteros para lutar, para SUGAR WALLS TEARDOM
curar e para criar comunidades onde o consentimento, o
respeito e o desejo coexistam.” Sugar Walls Teardom (Sugar Walls, “Paredes de Açúcar”,
Ultra Úmida é uma ode ao chão fértil onde estive- e Teardom, uma corruptela de “teardown”, destruição,
mos e onde ainda podemos estar. desmontagem) explora as contribuições dos úteros das
mulheres Negras para o avanço da ciência médica moderna
PÁG. 19 e da tecnologia. Em Sugar Walls Teardom, Rezaire escreve:
BÊNÇÃOS DE HOETEP “Durante a escravidão, os corpos das mulheres Negras fo-
ram usados e abusados como commodities para o trabalho
No vídeo, Bênçãos de Hoetep (Hoetep Blessings), Rezai- laborioso nas plantações, para a escravidão sexual, para a
re faz uma oferta para o que ela chama de “femmeness exploração reprodutiva e para os experimentos médicos.
espiritual Negra”. Ela escreve: “Como uma recordação, Anarcha, Betsey e Lucy estavam entre os porquinhos-da-ín-
celebrando o(s) conhecimento(s) espiritual e as tecnologias dia reféns do Dr. Marion Sims – o então chamado “pai da
femme Negras, age como um oráculo do poder divino da ginecologia moderna” – que mutilou e torturou inúmeras
buceta, como uma ladainha pela sobrevivência e pelo pra- mulheres escravizadas em nome da ciência.
zer, e como um meio de transformar em uma arma a nossa Sem que se reconheça, os úteros das mulheres Ne-
femmeness melaninada.” Hoetep busca reinstalar o poder gras têm sido centrais para a economia biomédica, como
da palavra kemet-bantu ‘hotep’ (htp) - que significa “estar nos lembra a história de Henrietta Lacks, cujas células do
em paz” - contra o que ela recentemente veio a significar cérvix foram roubadas sem que ela soubesse. Elas viriam a
na Internet: “uma categoria problemática de homens Ne- ser as primeiras células imortais que levaram a um marco na
gros”, escreve Rezaire. história da medicina. A guerra biológica contra as mulheres
Bênçãos de Hoetep escava o significado de htp em Negras ainda perpassa os testes farmacêuticos de nosso
múltiplos campos, partindo do Protocolo de Transferência tempo, a esterilização forçada, os experimentos com con-
de Hipertexto – uma das bases da comunicação de infor- traceptivos, entre outras práticas de saúde maliciosas.
mações online – e chegando até o neurotransmissor 5-HTP Sugar Walls Teardom comemora a história das mu-
encontrado nas sementes de Griffonia - que aumentam a lheres (herstory) e celebra a tecnologia do útero através de
serotonina e a conectividade interna. uma descrição das políticas anatômicas coercitivas. Rezaire
De acordo com Rezaire, Hoetep “resgata o poder pergunta, “De quem é o corpo explorável? Por quem? E
espiritual da buceta, da femmeness, da “puta” dentro da para quem?” Sugar Walls Teardom faz uma homenagem a
Negritude, o que a economia dos trolls tenta com afinco estas mulheres – suas contribuições não foram esquecidas.
115
SENEB
Tabita Rezaire
Vista da instalação Seneb, 2016
HD video, 7’31”
Edição 1/3
Assista online:
https://vimeo.com/171298063
pág. 28
117
SÉRIE FOGO INTERIOR
Tabita Rezaire
Inner Fire: Pimp My Brain, 2017
Impressão sobre metacrilato
170 x 100 cm
Edição 1/5
pág. 32
[pág. 33-34]
05
Bois
Ele parou por um instante nos degraus do banco, assistindo
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o rio humano que corria Broadway abaixo. Poucos o nota-
u
vam. Quase nunca o notavam, exceto de um jeito que doía.
Ele estava fora do mundo. Era “nada!”, como dizia com
amargura. Palavras soltas da multidão chegavam aos seus
ouvidos.
E.B. D — O cometa?
— O cometa…
Era só disso que se falava. Até o presidente do
banco, quando entrou, sorriu para ele condescendente e
perguntou:
— E então, Jim? Assustado?
— Não — o mensageiro respondeu secamente.
— Achei que já tínhamos passado pela cauda do
o cometa
enquanto passava as chaves, mas o mensageiro desceu as — Bum!
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escadas em silêncio. Um estrondo grave e doloroso reverberou em seus
Ele foi descendo sob a Broadway, onde uma luz ouvidos. Ele deu um salto e olhou para o lados. Tudo esta-
fraca vinha do alto entre os pés de homens apressados, va escuro e paralisado. Ele foi tateando em busca da luz e
até o porão sombrio, no negrume e no silêncio sob aquela virou-a de um lado para o outro. De repente, ele sabia! A
caverna mais profunda. Ali, com sua lanterna escura, ele grande porta de pedra havia se fechado. Ele esqueceu o
tateava pelas entranhas da terra, embaixo do mundo. ouro e encarou a morte nos olhos. Com um suspiro, come-
Ele respirou fundo enquanto abria o último portão çou a trabalhar metodicamente. O suor frio banhava sua
de ferro e pisou no lodo fétido que inundava o lugar. Em testa, mas ainda assim ele procurava, batia, empurrava e
paz afinal, ele foi tateando em frente. Um rato enorme trabalhava, até que, depois de horas intermináveis, suas
deu um salto, teias se arrastaram contra seu rosto. Ele foi mãos acharam um pedaço de metal gelado e a grande
explorando a sala cuidadosamente, prateleira por pratelei- porta girou mais uma vez sobre suas dobradiças até atingir
ra, o chão enlameado, cada canto e cada fenda. Nada. Ele algo macio e pesado e finalmente parar. A fresta era ape-
voltou até o fundo, onde a parede tinha algo de diferente. nas o suficiente para ele se espremer. Ele viu o corpo do
Ele palpou e empurrou e forçou. Nada. Ele começou a se atendente do cofre, rígido e frio. Olhando fixamente para o
afastar, mas algo o levou de volta. Ele foi sondando e tra- corpo, ele sentiu uma onda de náusea. O ar parecia inex-
balhando quando, de repente, a parede negra inteira girou plicavelmente podre, com um cheiro forte e peculiar. Ele
sobre dobradiças gigantes e um negrume se escancarou deu um passo, tentou agarrar o vazio e desmaiou sobre o
à sua frente. Ele espiou para dentro: evidentemente, era cadáver.
um cofre secreto, um esconderijo do velho banco que hoje Ele acordou com a sensação de horror, saltou de
estava esquecido. Ele entrou, hesitante. Era uma sala longa cima do corpo e foi tateando escada acima, chamando
e estreita, com prateleiras nos lados e um velho baú de pelo guarda. O vigia estava sentado, como que dormindo,
ferro no fundo. Em uma prateleira mais alta, ele encontrou com o portão oscilando livremente. O mensageiro olhou
os dois volumes de registros desaparecidos, e outros tam- para ele por um instante e seguiu correndo até o subcofre.
bém. Com muito cuidado, ele arrumou os volumes em uma Ele chamou os guardas, em vão. Sua voz ecoava e re-e-
prateleira e se aproximou do baú. Era velho, forte e enfer- coava de um jeito estranho. Ele se apressou mais uma vez
rujado. Ele observou a tranca, enorme e antiquada, e então quando entrou no grande subsolo do banco. Outro guarda
virou a luz para as dobradiças. Elas estavam profundamente estava prostrado com o rosto contra o chão, frio e inerte.
incrustadas de ferrugem. Ele achou um pedaço de ferro ca- Um medo paralisou o coração do mensageiro. Ele saiu cor-
ído e começou a forçá-las. Por cem anos a ferrugem havia rendo até o primeiro porão e entrou no banco. O silêncio
devorado e penetrado a tranca. Lenta, cansada, a tampa se da morte pairava por todo o lugar, e por tudo se viam as
ergueu, revelando seu tesouro com um último rangido: e lá formas caídas, dobradas e estiradas de homens. O mensa-
estava, o esplendor fosco do ouro! geiro parou e olhou ao redor. Ele não era um homem de se
deixar afetar, mas a imagem era terrível!
afrofuturismo o cometa
— Assalto e assassinato — ele sussurrou baixinho presa em sua mão erguida. “Perigo!”, exclamavam as letras
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quando viu a boca retorcida do presidente, gotejando negras das manchetes. “Mundo avisa por telegrama. Cauda
onde estava caído sobre a mesa. do cometa passará por nós ao meio-dia. Gases mortais
E então ele percebeu que se o encontrassem ali, esperados. Feche as portas e as janelas. Esconda-se no
sozinho, com todo aquele dinheiro e toda aquela gente porão”. O mensageiro leu a notícia e seguiu em frente,
morta, sua vida não valeria mais nada. Ele olhou para os cambaleando. Em uma janela no alto, uma menina tinha
lados mais uma vez e foi caminhando na ponta dos pés até uma expressão assustada e manguitos sobre os braços. Na
uma porta lateral. Depois de se virar para trás uma última soleira de uma loja estava uma menina de rosto gentil, seus
vez, girou o trinco em silêncio e se dirigiu para as calçadas olhos virados para os céus, e no carrinho ao seu lado esta-
de Wall Street. va… mas o mensageiro não estava mais olhando. Foi a últi-
Como a rua estava silenciosa! Não havia vivalma, ma gota: o terror estourou em suas veias e com um enorme
apesar de ser meio-dia em ponto. Wall Street? Broadway? grito sufocado, saiu correndo desesperado, correndo como
Quase alucinado, ele olhou para cima e para baixo, então apenas um homem amedrontado sabe correr, berrando
para o outro lado da rua, e enquanto olhava um terror re- e brigando com o ar até que, com um último urro de dor,
voltante congelou seus braços e pernas. Com um grito en- caiu sobre a grama de Madison Square e ficou paralisado.
gasgado de puro pavor, deu um salto, se encostou contra o Quando se ergueu, ele não espiou as formas
edifício gelado e observou a cena sem saber o que fazer. paradas e silenciosas sobre os bancos. Em vez disso, foi
Sob o grande portal de pedra, uma centena de até uma fonte e banhou rosto, depois se escondeu em um
homens e mulheres e crianças estavam esmagados e retor- canto, longe do drama da morte, onde se recompôs e ten-
cidos, forçados contra aquele grande vão como o lixo em tou raciocinar sobre a situação. O cometa varrera a terra e
uma lata, como se numa correria frenética por segurança, o fim havia chegado. Estavam todos mortos? Ele precisava
tivessem moído uns aos outros. Lentamente, o mensageiro descobrir.
foi se esgueirando contra as paredes, molhando os lábios Ele sabia que precisaria se controlar e se acalmar
ressecados e tentando entender o que acontecera, con- ou acabaria louco. Primeiro, era preciso entrar em um
trolando o tremor em seus membros e o terror crescente restaurante. Ele caminhou até um hotel famoso na Quinta
em seu coração. Ele encontrou um executivo com chapéu Avenida e entrou em seus salões lindos e fantasmagóricos.
de seda e sobrecasaca, que também havia se esgueirado Lutando contra a náusea, arrancou a bandeja de um par de
ao longo de uma parede lisa e agora estava morto, uma mãos mortas, voltou correndo para a rua e devorou tudo às
expressão admirada congelada em seus lábios. O mensa- escondidas.
geiro virou os olhos às pressas em busca do meio-fio. Uma — Ontem, não teriam me servido — ele sussurrou
mulher estava recostada contra um poste, cansada, sua enquanto se forçava a engolir a comida.
cabeça caída sobre as sedas e rendas de sua blusa. Ao seu Depois, ele seguiu avenida acima: olhando, es-
lado estava um bonde, em silêncio, e dentro dele… mas o piando, telefonando, tocando campainhas, mas todos
mensageiro deu uma olhada e seguiu em frente. Um jorna- estavam no mais absoluto silêncio. Não haveria ninguém,
leiro imundo estava sentado na sarjeta, a “última edição”
afrofuturismo o cometa
ninguém… ele não ousava pensar nisso, então foi continu- de cerca de vinte e cinco anos, uma beleza rara com um
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ando. vestido sofisticado, cabelo dourado escuro e joias. Ontem,
De repente, parou. Ele se esquecera. Meu Deus! ele pensou com amargura, ela não teria olhado duas vezes
Como fora se esquecer? Era preciso correr para o metrô, para ele. Ele teria sido mera sujeira sob seus pés sedosos.
mas então quase riu. Não: um carro, se ao menos pudesse Ela o encarou. De todos os tipos de homem que imagina-
encontrar um Ford. Ele viu um. Com delicadeza, removeu ra salvando-a, jamais sonhara em um como ele. Não que
seu fardo e se acomodou no assento. Ele testou o afoga- não fosse um ser humano, mas ele vivia em um mundo tão
dor. O carro tinha gasolina. Saiu dirigindo, tremendo, rua distante do dela, tão infinitamente longínquo, que jamais
acima. Os mortos estavam por toda a parte, de pé, en- penetrava seus pensamentos. Observando-o com curio-
costados, recostados, caídos em um silêncio terrível. Ele sidade, no entanto, ele parecia bastante comum. Era um
passou por um automóvel capotado e destruído; depois trabalhador alto e escuro, de um dos tipos melhores, com
por outro, lotado com um grupo alegre cujos sorrisos ainda um rosto sensível com uma expressão de impassibilidade e
pairavam nos lábios mortos; por multidões e por grupos de as roupas e mãos de um homem pobre. Seu rosto era lento
carros, parados por policiais mortos. Na Rua 42, precisou e macio e seus modos ao mesmo tempo frios e nervosos,
desviar para a Park Avenue de modo a evitar o engarra- como uma chama há muito abafada, mas ainda viva.
famento dos mortos. Ele voltou para a Quinta Avenida na Por um instante eles pausaram e avaliaram um ao
Rua 57 e passou voando pelo Plaza e pelo parque, com outro, então a lembrança do mundo morto no lado de fora
seus bebês calados e sua multidão silenciosa, mas quando voltou e os dois se aproximaram.
atravessava a Rua 72 ouviu um grito agudo e enxergou uma — O que aconteceu? — ela exclamou. — Me conta!
forma viva estendida de uma janela. Ele se espantou. Aque- Não tem nada se mexendo. Está tudo em silêncio! Estou
la voz humana soava como a voz de Deus em seus ouvidos. vendo os mortos da minha janela, como que ceifados pelo
— Olá… olá… socorro, pelo amor de Deus! — a sopro de Deus… e estou vendo…
mulher exclamou chorando. — Tem uma menina morta aqui Ela o arrastou até as enormes cortinas de seda,
e um homem também e… e lá tem gente morta na rua, onde, sob o esplendor do mogno e da prata, uma empre-
cavalos mortos também… pelo amor de Deus, chame a gada francesa estava estirada em seu sono eterno, e ao seu
polícia… lado estava prostrado o mordomo, ainda em seu libré.
E com isso suas palavras se perderam em lágrimas As lágrimas corriam pelas bochechas da mulher e
histéricas. ela se agarrou ao seu braço até o perfume de sua respira-
Ele virou o carro num círculo repentino, atropelan- ção banhar seu rosto e ele sentir os tremores que corriam
do o corpo de uma criança e saltando sobre o meio-fio. A pelo corpo dela.
seguir, subiu os degraus correndo, tentou abrir a porta e — Eu estava trancada na minha câmara escura,
bateu violentamente. Depois de uma longa pausa, a porta revelando as fotos do cometa que tirei na noite passada.
pesada finalmente se abriu. Eles se encararam em um mo- Quando saí, eu… eu vi os mortos!
mento de silêncio. Ela não havia notado que ele era negro. — O que aconteceu? — ela exclamou novamente.
Ele não havia pensado nela como branca. Era uma mulher Ele respondeu devagar:
afrofuturismo o cometa
— Alguma coisa, cometa ou demônio, varreu a Ele caminhou lentamente de volta com um paninho
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Terra esta manhã. Muitos morreram! nas mãos, que depois enfiou em um bolso.
— Muitos? Muitos mesmo? — Acho que fui egoísta — ele disse.
— Procurei por toda a parte e não via mais ninguém Mas o carro já estava seguindo em direção ao par-
vivo, só você. que, desviando dos mortos negros e enrugados do Harlem:
Ela sufocou um grito e os dois se entreolharam. os rostos morenos paralisados, as mãos calejadas, as vestes
— Meu… meu pai! — ela sussurrou. simplórias, o silêncio, aquele silêncio selvagem e assus-
— Onde ele está? tador. Os dois saíram do parque e foram descendo pela
— Ele saiu para o escritório. Quinta Avenida, dançando e desviando dos mortos, sem
— Onde fica? jamais precisar de buzina ou campainha, até a Torre Metro-
— Na Torre Metropolitana. politana, enorme e quadrada, aparecer no horizonte. Com
— Deixe um bilhete aqui e vamos. muito cuidado, ele retirou o ascensorista morto de dentro
Mas então ele parou. e o elevador voou até o alto. A porta do escritório estava
— Não — ele disse, decidido. — Antes, precisamos aberta. Na entrada estava a estenógrafa e, a sua frente,
ir ao Harlem. encarando-a, um atendente morto. O escritório interno
— O Harlem! — ela gritou, mas então entendeu. estava vazio, mas um bilhete estava sobre a mesa, dobrado
Ela começou a bater o pé, primeiro com impaci- e endereçado, mas nunca enviado:
ência, depois olhou para trás e se arrepiou. Finalmente, Cara Filha,
desceu as escadas, resolvida. Fui dar um passeio de cem milhas na nova Merce-
— Tem um carro mais rápido na garagem do pátio des do Fred. Não volto antes do jantar. Levarei Fred comi-
— ela disse. go.
— Eu não sei dirigir esse — ele disse. J.B.H.
— Eu sei — ela respondeu. — Vamos — ela exclamou, nervosa. — Precisamos
Em dez minutos, estavam voando contra o vento procurar na cidade.
em direção ao Harlem. O Stutz se ergueu e correu como De cima a baixo, de um lado ao outro, para a frente
um avião. Eles viraram na Rua 110 com duas rodas no ar e e para trás, aquela busca tenebrosa seguiu em frente. Tudo
derraparam na entrada da 135. era silêncio e morte, silêncio e morte! Eles caçaram de
Ele ficou fora apenas um instante. Quando voltou, Madison Square a Spuyten Duyvel, atravessaram corren-
seu rosto estava cinza. Sem olhar, ela disse: do a Ponte de Williamsburg, varreram todo o Brooklyn e
— Você perdeu… alguém? examinaram o rio desde o Battery até Morningside Heights.
— Eu perdi… todo mundo — ele disse simplesmen- Silêncio, silêncio por tudo, e nenhum sinal de humanidade.
te. — A menos que… Exaustos e enlameados, eles desceram a Broadway pela
Ele correu de volta e ficou vários minutos longe, terceira vez, devagar, sob o sol escaldante, até finalmente
mas para ela pareceram horas. pararem. Os dois respiraram fundo. Um odor, um cheiro, e
— Todo mundo. com a mudança do vento, um fedor doentio encheu seus
afrofuturismo o cometa
narinas e lançou seu aviso. A garota se acomodou em seu O que era aquele zunido? Tinha que ser, mas não…
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assento, indefesa e impotente. mas seria o clique de um receptor?
— O que vamos fazer?! — ela exclamou. Ela se aproximou do painel, moveu os pinos nos
Agora foi sua vez de assumir o comando, o que fez furos e chamou, chamou até sua voz se transformar quase
sem demora. em um grito, até seu coração estar martelando dentro do
— O telefone de longa distância, o telégrafo e o peito. Era como se tivesse escutado a última centelha da
cabo, foguetes noturnos e depois… voar! criação e o mal fosse silêncio. Sua voz caiu para um soluço.
Ela olhou para ele com força e confiança. Ele não Ela ficou sentada, olhando estupidamente para o bocal
se parecia com os homens que sempre imaginara, mas agia negro e sarcástico, e a ideia voltou a aparecer. A espe-
como um, e ela estava feliz. Em quinze minutos, eles che- rança estava morta dentro de si. Ainda havia o cabo e os
garam à central telefônica. Quando chegaram à porta, ele foguetes, era verdade, mas o mundo… ela não conseguia
correu para a frente dela e empurrou-a gentilmente para expressar o pensamento ou dizer a palavra. Era podero-
fora enquanto fechava a porta. Ela escutou enquanto ele ia sa demais, terrível demais! Ela se virou para a porta com
de um lado para o outro, sabendo os pesos que carregava, um novo temor no coração. Pela primeira vez, ela parecia
os pobres pesinhos que carregava. Quando ela entrou, ele perceber que estava sozinha no mundo com um estranho,
estava sozinho na sala. O painel sinistro brilhava com a imo- com algo mais do que um estranho, um homem de sangue
bilidade críptica de uma esfinge. Ela se acomodou em um e cultura estranhas. Um desconhecido, talvez impossível de
banquinho e colocou o fone de ouvido reluzente. Ela olhou conhecer. Era terrível! Ela precisava escapar, precisava fugir.
para o bocal. Jamais vira um deles de perto antes. Era largo Ele não podia mais vê-la. Que ideias terríveis ele estaria…
e preto, pontilhado com o uso; inerte; morto; quase sar- Ela recolheu suas saias de seda em torno de seus
cástico em suas curvas insensíveis. Parecia… ela rejeitou a membros jovens e macios, escutou com atenção e se re-
ideia. Mas parecia, insistia em se parecer com… ela virou a colheu para uma sala lateral. No mesmo instante, deu um
cabeça e notou que estava sozinha. Por um instante, ficou passo para trás: a sala estava repleta de mulheres mortas.
aterrorizada, então o agradeceu silenciosamente e se virou Ela saltou sobre a porta e começou a bater com força,
decidida, respirando fundo antes de começar. sangrando os dedos até ela se escancarar. Ela olhou a cena.
— Alô! — ela chamou baixinho. Ele estava na entrada do beco, uma silhueta alta, negra,
Ela estava chamando o mundo. O mundo precisava imóvel. Estava olhando para ela ou para o outro lado. Ela
responder. Mas será que o mundo iria responder? Será que não sabia, não se importava. Ela simplesmente deu um sal-
o mundo… to e saiu correndo, correu até ficar sozinha entre os mortos
Silêncio! e os bastiões dos arranha-céus.
Ela falara baixo demais. Ela parou. Estava sozinha. Sozinha! Sozinha nas
— Alô! — ela gritou a plenos pulmões. ruas, sozinha na cidade, talvez sozinha em todo o mundo!
Ela tentou escutar. Silêncio! Seu coração se acele- Começou a ter uma sensação de engodo, de mãos que se
rou. Ela gritou em alto e bom som: esgueiravam às suas costas, de um movimento silencioso
— Alô… alô… alô! de coisas que não enxergava, de vozes sussurrando uma
afrofuturismo o cometa
conspiração horrenda. Ela olhou para trás e para os lados, qual nada se dizia, encheu suas almas. Mas eles a coloca-
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assustando-se com sons estranhos e ouvindo outros ainda ram de lado.
mais estranhos, até todos os nervos de seu corpo estarem Grandes cabos negros nasciam da terra e desciam
tremendo, estendidos e prontos para gritarem ao menor do sol, adentrando esse covil de bruxaria. Os relâmpagos
toque. Deu um giro e correu de volta, chorando feito uma reunidos do mundo estavam centrados ali, usando raios de
criança, até reencontrar aquele beco estreito e a silhueta luz para unir os pontos mais distantes da terra. As portas se
negra e silenciosa em sua entrada. Parou para descansar, abriram para a escuridão interior, e ele parou por um instan-
depois foi caminhando em silêncio até ele. Ela olhou para te na soleira.
ele com timidez, mas ele não disse nada enquanto a ajuda- — Você sabe o código? — ela perguntou.
va a entrar no carro. — Eu sei o pedido de socorro. É o que usávamos
— Não… isso — ela sussurrou hesitante. no banco.
— Não… isso não! — ele respondeu devagar Ela mal ouviu. Estava escutando o marulho das
Os dois entraram no carro. Ela se debruçou sobre águas nas profundezas, aquelas águas sombrias e agitadas,
o volante e soluçou, grandes soluços secos e trêmulos, águas frias e tentadoras, como se dizia. Ele entrou. Aos
enquanto se dirigiam à central telegráfica no lado leste, poucos, ela foi caminhando até o muro, onde as águas
deixando para trás o mundo da riqueza e da prosperida- chamavam ao longe, e se pôs a esperar. Por muito tempo
de e partindo para o mundo da pobreza e do trabalho. O ela esperou, mas ele não veio. De repente, ela o viu tam-
mundo atrás de si era morte e silêncio, grave e sério, quase bém, parado ao lado das águas negras. Ele removeu seu
cínico, mas sempre decente; aqui, era horrível. Ele trajava casaco com cuidado e se posicionou, em silêncio. Ela foi
todas as formas mais tenebrosas do terror, da luta, do ódio rápido para o seu lado e colocou sua mão sobre o braço do
e do sofrimento, coberto de crime e miséria, de ganância e homem. Ele não reagiu, não olhou. As águas continuavam a
luxúria. Apenas em seu silêncio aterrorador ele se asseme- marulhar em seu ritmo hipnótico e mortal. Ele apontou para
lhava com a morte no resto do mundo. as águas e disse baixinho:
Mas enquanto os dois, voando solitários pelas ruas, — O mundo está sob as águas agora… posso ir?
observavam o horror do mundo ao seu redor, a sensação Ela olhou para seu rosto exausto e seu coração se
de estarem cercados pela morte foi desertando-os pouco a encheu de piedade.
pouco. Eles pareciam se mover por um mundo mergulhado — Não — ela respondeu em uma voz calma e clara.
em um sono silencioso, não morto. Seguiam em reverência No alto, eles se voltaram para a vida mais uma vez
discreta para não acordar aquelas formas adormecidas que e ele assumiu o volante. O crepúsculo escurecia o mundo
haviam encontrado a paz afinal. Atravessavam um cemitério e uma enorme mortalha cinzenta caía gentil e misericordio-
mundial solene sobre o qual algum braço poderosíssimo samente sobre os mortos adormecidos. O brilho tenebroso
brandira sua varinha. Toda a natureza dormia até, e ambos da realidade parecia ter sido substituído pelo sonho de um
tiveram aquela ideia chocante ao mesmo tempo, até os grande romance. A mulher estava recostada em silêncio,
dois se entreolharem: ele, pálido; ela, rubra. Para ambos, escutando o zunido do motor, e buscava quase inconscien-
a visão de uma grande beleza, de fatos gigantescos e do temente a rainha élfica que traria a vida de volta a esse
afrofuturismo o cometa
mundo morto. Ela esqueceu de questionar a velocidade — E seu povo não era o meu povo, mas hoje…
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com a qual ele havia aprendido a dirigir seu carro. Parecia Ela parou. Ele era um homem, nada mais, mas em
natural. Quando deram a volta na Madison Square e che- um sentido maior era um cavalheiro: sensível, bondoso,
garam às portas da Torre Metropolitana, ela soltou uma galante, em tudo exceto suas mãos e seu rosto. Ontem, no
exclamação e arregalou os olhos. Será que havia encontra- entanto…
do a rainha? — A Morte, a grande niveladora! — ele murmurou.
O homem levou-a até o elevador da torre e os dois — E a reveladora — ela sussurrou gentilmente,
subiram rapidamente. No escritório do pai, os dois reco- erguendo-se com os olhos abertos.
lheram tapetes e cadeiras e ele deixou um bilhete sobre Ele se afastou e, após se atrapalhar por um instante,
a mesa. A seguir, os dois subiram até o telhado e ele a lançou um foguete contra a escuridão do céu. O foguete
deixou confortável. Por um tempo, ela ficou descansando, subiu, berrou e voou, formando um rastro fino de luz e
mergulhada em um devaneio sonolento, observando os então espalhando suas estrelas até cair sob a cidade. Ela
mundos no alto e imaginando. Abaixo estavam as sombras mal notou. Uma visão do mundo estava à sua frente. Pouco
negras da cidade; ao longe, o brilho do mar. Ela olhou para a pouco, a profecia de seu destino foi dominando-a. Acima
ele timidamente enquanto ele servia comida. Ele enrolou-a do passado morto pairava o Anjo da Anunciação. Ela não
em um xale, encostando nela com reverência, mas também era uma mera mulher. Não era alta ou baixa, branca ou
com carinho. Ela ergueu seus olhos cheios de gratidão, negra, rica ou pobre. Era a mulher primordial, a mãe pos-
comendo enquanto ele servia. Ele observava a cidade. sante de todos os homens vindouros e Noiva da Vida. Ela
Ela observava ele. Ele parecia tão humano, e tão próximo olhou para o homem ao seu lado e esqueceu de tudo, tudo
agora. menos sua hombridade, sua hombridade forte e vigorosa,
— Você precisou trabalhar muito? — ela perguntou sua tristeza e seu sacrifício. Ela o viu glorificado. Ele não
suavemente. era mais algo distante, uma criatura baixa, um proscrito de
— Sempre — ele respondeu. outro clima e outro sangue, mas seu Irmão Humano incar-
— Eu nunca tive o que fazer — ela disse. — Eu era nado, Filho de Deus e Pai Todo Poderoso da raça do futuro.
rica. Ele não enxergou a glória em seus olhos, pois conti-
— Eu era pobre — ele quase ecoou. nuou a observar fixamente o mar, lançando um foguete
— O rico e o pobre se encontram — ela começou, após o outro contra a escuridão que o ignorava. Um banco
e ele terminou: de nuvens púrpuras escuras vagava no oeste. Atrás delas e
— A todos o Senhor os fez. ao redor, os céus irradiavam uma luz fraca e estranha que
— Sim — ela disse lentamente, e então olhou para inundava o mundo negro e quase produzia um tom menor.
a grande cidade morta que se estendia a seus pés, nadan- De repente, como que varrida por alguma mão enorme, a
do em sombras negras. — E como parecem tolas nossas grande cortina de nuvens desapareceu. Junto ao horizonte
distinções humanas… agora. estava uma estrela branca e longa, mística e maravilhosa!
— Sim. Eu não era… humano ontem — ele disse. E dela ascendia até o polo, como o véu branco de uma
Ela olhou para ele.
afrofuturismo o cometa
nuvem, uma chama pálida e larga que iluminava o mundo e as mãos e sentiu seus ombros se erguerem. Ele caiu e se
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ofuscava as estrelas. inclinou, tateando o chão às cegas, ajoelhado. Uma chama
Em um silêncio fascinado, o homem admirou os azul estalou preguiçosa depois de algum tempo e ela ouviu
céus e deixou os foguetes caírem no chão. Memórias de o berro de um foguete de resposta voando pelo ar.
memórias ganharam vida em cantos mortos de sua mente. Eles estavam parados como a morte, olhando para
Os grilhões pareceram se chocalhar e cair de sua alma. Do lados opostos.
que havia de crasso e opressor e constrangedor em sua — Blém! Crash! Blém!
casta irrompeu a majestade solitária dos reis da antigui- O estrondo e o tinido dos elevadores velozes
dade. Ele se ergueu entre as sombras, alto e sério, com o saltando desde o térreo estremeceu a grande torre. Um
poder em seus olhos e cetros fantasmagóricos voando até murmúrio e um burburinho de vozes desceu sobre a noi-
suas mãos. Era como se um grande faraó ou lorde assírio te. Por toda a cidade morta, as luzes começaram a piscar,
voltasse a vida. Ele se virou para a mulher e viu que ela tremular e se acender, e então uma batida súbita anunciou
olhava diretamente para ele. que as portas de entrada da plataforma estavam cheias
Em silêncio, imóveis, eles se viram face a face, olho de homens. Um deles, com cabelos brancos esvoaçados,
a olho. Suas almas estavam nuas sob a noite. Não era luxú- correu até a mulher e apertou-a contra o peito.
ria, não era amor, era algo maior, mais poderoso, algo que — Minha filha! — ele soluçou.
não precisava do toque do corpo ou do frêmito da alma. Atrás dele veio correndo um homem mais jovem e
Era um pensamento divino, esplêndido. mais belo, vestido no uniforme elegante de um motorista,
Aos poucos, sem fazer nenhum ruído, eles foram que se inclinou sobre a mulher com uma apreensão apaixo-
se aproximando, sob os céus acima, com o mar ao redor, nada e olhou fixamente para ela até ela desviar o olhar, seu
a cidade morta e sombria abaixo. Ele surgiu das sombras rosto se ruborizando mais e mais.
aveludadas, enorme e negro. Esguia e branca como pérola, — Julia — ele sussurrou. — Minha adorada, achei
ela reluzia sob as estrelas. Ela estendeu suas mãos adorna- que tinha perdido você para sempre.
das. Ele ergueu seus braços poderosos. Os dois gritaram Ela ergueu a cabeça para ele com olhos estranhos e
um para o outro, quase em uníssono: inquisitivos.
— O mundo está morto! — Fred — ela murmurou quase vagamente. — O
— Longa vida ao… mundo… acabou?
— Bii! Bii! — o grito rouco e agudo de um automó- — Apenas Nova Iorque — ele respondeu. — É ter-
vel ecoou claramente do silêncio abaixo da torre. rível, horrível! Você sabe… mas você, como você escapou?
Os dois deram um passo para trás e soltaram um Como sobreviveu a esse horror? Está bem? Está ilesa?
grito, mas então se entreolharam com olhos trêmulos e — Ilesa! — ela exclamou.
vacilantes e com o sangue fervendo. — E este homem? — ele perguntou.
— Bii! Bii! Bii! Bii! — o grito enlouquecido voltou. Ele envolveu a forma caída da mulher com um bra-
Quase que de seus pés, um foguete cortou o ar e ço e virando-se para o negro, mas de repente se enrijeceu
espalhou suas estrelas sobre eles. Ela cobriu os olhos com e sua mão voou para a cintura.
afrofuturismo o cometa
— Ora! — ele rosnou. — Mas… é um crioulo! Julia! dinheiro em suas mãos e se encolhendo com aquela visão;
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Ele… ele ousou… lentamente, colocou a mão no bolso, tirou uma boininha
Ela ergueu a cabeça e olhou para o ex-companhei- de bebê e olhou mais uma vez. Uma mulher subiu até a
ro com curiosidade, mas então baixou os olhos e suspirou. plataforma e olhou para os lados, protegendo os olhos. Ela
— Ele ousou… tudo, para me salvar — ela disse era pequena, de pele castanha, com o semblante exausto.
baixinho. — E eu… sou grata, muito grata. Em um dos braços, levava o cadáver de um bebê negro. A
Mas ela não olhou para ele novamente. Quando multidão se abriu e seus olhos caíram sobre o negro. Com
o casal se afastou, o pai tirou um rolo de notas de um dos um grito, ela foi cambaleando até ele.
bolsos. — Jim!
— Aqui está, meu bom rapaz — ele disse, colocan- Ele girou e, com um soluço de alegria, pegou-a em
do o dinheiro nas mãos do homem. — Tome, tome. Como seus braços.
você se chama?
— Jim Davis — veio a resposta em uma voz vazia.
— Jim, muito obrigado. Sempre gostei da sua gen-
te. Se quiser um emprego, me procure.
E com isso, eles se foram.
A multidão subiu e jorrou dos elevadores, conver-
sando e cochichando.
— Quem era?
— Estão vivos?
— Quantos?
— Dois!
— Quem se salvou?
— Uma branca e um crioulo. Lá vai ela.
— Um crioulo? Onde? Vamos linchar o maldito
do…
— Cala a boca! Ele é legal, salvou ela.
— Salvou nada! Não era da conta dele…
— Aí vem ele.
O homem negro foi se arrastando sob o clarão das
luzes elétricas, com os olhos de um sonâmbulo.
— Ora, mas vejam só! — exclamou um curioso. —
De toda Nova Iorque, só uma menina branca e um crioulo!
O homem negro não ouviu nada. Ele ficou em
silêncio sob brilho das luzes, olhando fixamente para o
afrofuturismo o cometa
06 INTRODUÇÃO
141
raça na ficção O presente artigo trata da relação entre raça e ficção
científica. Desejo, em especial, me concentrar no afrofutu-
o caso do Como tenho certeza de que você já sabe, seja por suas
viagens pela ficção científica ou por um projeto como este,
k
nos nos anos de 1960 começamos a ver negros entrando
no gênero. É uma história bonita e simples, porém não é
original verdadeira.
Race in science fiction:
Uma das coisas mais interessantes que os estudiosos
the case of Afrofuturism
asze
143
afrofuturismo. principais sujeitos da modernidade, aqueles que têm os
Primeiro, vejamos uma definição do termo para os envolvimentos mais intensos com ela, a ficção científica tem
fins deste artigo. Afrofuturismo é a ficção especulativa ou a a gramática que nos permite narrar esses envolvimentos.
ficção científica escrita por autores afrodiaspóricos e afri- Histórias sobre viagem no tempo e no espaço e histórias
canos, um movimento estético global que abrange arte, sobre encontros com o outro, o alienígena/estrangeiro, são
cinema, literatura, música e academia. Mark Dery fala de caminhos ideais para trazer vida para essas experiências
um processo de “significação que se apropria de imagens históricas para novos públicos. Apenas para me antecipar
de tecnologia e de um futuro proteticamente aprimorado” aqui por um momento, se pensarmos na história de Derrick
para explorar as esperanças e os medos que os negros Bell, “The Space Traders” (“Os comerciantes do espaço”),
enfrentam em um mundo altamente tecnológico. Da forma poderemos ver como o protagonista, professor Golightly,
que vejo, há três objetivos básicos no afrofuturismo. Em está sempre lidando com a história afro-americana em sua
princípio, o que os artistas afrofuturistas querem é contar tentativa de compreender um futuro incerto, e isso é o que
boas histórias de ficção científica, e acredito que, se falar- lhe permite perceber que os negócios dos Estados Unidos
mos com qualquer autora ou autor negra(o) de ficção cien- com os alienígenas talvez não terminem tão bem. Essa
tífica de qualquer lugar do mundo, ela(e) nos dirá que essa tentativa de conectar o passado com o presente e o futuro
é a primeira coisa na qual ela e ele está interessada(o). No é fundamental para o projeto afrofuturista.
entanto, há também outros dois objetivos políticos associa- O objetivo seguinte dos afrofuturistas é mais po-
dos ao afrofuturismo. Artistas afrofuturistas têm interesse sitivo: não apenas relembrar o passado ruim, mas usar
em recuperar as histórias negras e pensar em como essas histórias sobre o passado e o presente para reivindicar uma
histórias permeiam toda uma variedade de culturas negras história do futuro. É isso que o crítico musical afrobritânico
hoje em dia. Também querem pensar em como essas histó- Kodwo Eshun comenta em sua obra realmente excelen-
rias e culturas poderiam inspirar novas visões do amanhã. te sobre afrofuturismo: como as histórias do futuro foram
Vamos pensar um pouco mais sobre esses últimos raptadas pelo que ele chama de “as indústrias de futuros”.
dois objetivos. Muitos estudiosos pensam no afrofuturismo “As indústrias de futuros” é o termo que ele usa para o
como uma extensão dos projetos de recuperação histórica lugar onde a tecnociência, a mídia ficcional e as previsões
que os intelectuais negros do lado de cá do Atlântico têm de mercado se encontram – especialmente quando as
empreendido há mais de duzentos anos. Como Tony Morri- ideias geradas por esses setores são transmitidas no mun-
son escreveu e falou com eloquência, esse tipo de projeto do pela mídia de massa. O que tendemos a ver na mídia
de recuperação histórica mostra como os escravos africanos massificada repetidamente é a noção de que a negritude é
e seus descendentes vivenciaram condições de falta de uma catástrofe. Os espaços negros são zonas de distopias
moradia, alienação e deslocamento que antecipam muito absolutas, nas quais o capitalismo ou não teve chance de
o que Nietzsche descreveu como as condições fundadoras intervir ainda ou fracassou. É o que vemos repetidamente
da modernidade (cf. Gilroy). E assim é possível começar nos noticiários: cidades negras são sempre descritas de ma-
a ver por que a ficção científica tem tanto apelo entre os neira distópica. A África é um continente gigantesco, com
145
e histórias diferentes, e ainda assim sempre é tratada de mento da ficção científica e do afrofuturismo, e tanto uma
alguma forma como “O” lugar da distopia, assolada por quanto o outro eram gêneros populares com muitas seme-
seca, AIDS e fome, e raramente ouvimos coisas positivas lhanças desde os seus primórdios. Tanto a ficção científica
sobre o progresso africano, a menos que seja em termos da quanto o afrofuturismo eram, em geral, escritos por autores
intervenção capitalista. respeitados do mainstream que estavam experimentando
Para Eshun, o afrofuturismo é importante porque é uma variedade de gênero emergentes. Alguns exemplos
uma espécie de storytelling, uma contação de histórias que famosos dos primeiros escritores de ficção científica são
proporciona aos autores um meio público de intervir nesses Mary Shelley, que brincou com o gênero gótico e escreve
futuros ruins que são escritos pela indústria de futuros e proto-FC em Frankenstein (1818); H.G. Wells, que aperfei-
desafiá-los, alterá-los, reescrevê-los totalmente. Interessan- çoou a história da guerra futura em The Battle of Dorking
te é como Eshun faz comentários divertidos sobre W.E.B. [A batalha de Dorking] (1871) e Guerra dos mundos (1898);
Du Bois quando toca nesse tema. Como alguns de vocês e Edward Bellamy, que atualizou a utopia para falar da era
devem saber, Du Bois foi um sociólogo afroamericano que industrial e criou uma nova forma, a tecno-utopia, com
escreveu ficção científica e cunhou o termo “dupla cons- Looking Backwards [Olhando para trás] (1887).
ciência” (Souls 8), que significa que o povo negro sempre Nesse momento, vemos uma tendência semelhante
vive sob a consciência de ser tanto africano quanto ame- no afrofuturismo norte-americano. Por exemplo, Charles
ricano. O que Eshun vê de valioso no afrofuturismo é que Chestnutt era um autor do mainstream que escreveu contos
ele tem a capacidade de ampliar a dupla consciência e até como “The Goophered Grapevine” [“A vinha encantada”]
mesmo triplicar, quadruplicar ou quintuplicar a consciência, (1887), que é uma explanação gótica sobre o racismo nos
nos trazer uma noção de que há muitos caminhos diversos EUA que gira em torno de brancos do Norte que vão ao
para pensar a existência negra e pensar as relações de ci- Sul e precisam lidar com a história de racismo e escravidão
ência, sociedade e raça. Isso permite que os autores criem quando essa história tem impacto sobre o vinhedo que os
futuros complexos em todas as cores em vez daqueles que do Norte estão comprando.
são simplesmente utopias embranquecidas ou distopias Imperio in Imperium (1899), de Sutton E. Griggs, é
negras. uma história de guerra futura na qual os negros norte-ame-
ricanos pegam em armas contra os opressores brancos; é
AFROFUTURISMO NOS ESTADOS UNIDOS: uma história fascinante, pois em grande parte do romance
1850-1960 um protagonista é muito mais pacífico que o outro. Na
busca por uma solução integrada para o racismo, esse pro-
Então, agora que já mostrei um pouco do histórico sobre os tagonista em especial tenta todos os meios tecnocientíficos
objetivos do afrofuturismo, quero levar você por uma breve possíveis. Ele tenta especificamente educar os negros a se
história desse gênero e fazer algumas recomendações de tornarem engenheiros e especialistas em agricultura e mos-
leitura. O primeiro período sobre o qual quero escrever trar que podem ser modernos cidadãos tecnoculturais. Por
aqui é longo: o desenvolvimento do afrofuturismo nos fim, essa tentativa fracassa, e o outro protagonista incentiva
Estados Unidos, que aconteceu de aproximadamente 1850 o povo negro a pegar em armas e “não evitar a guerra, se
147
importa os meios necessários. Pittsburgh Courier.
Uma história final importante desse período é “New O que é especialmente interessante nesse caso é
Light Ahead for the Negro” [Uma nova luz adiante para o que não era uma política de diferentes mas iguais imposta
negro] (1904), que imagina uma utopia agrícola científica por brancos; em vez disso, parece ter sido escolhida pelos
estabelecida sobre o conhecimento e a indústria negra. próprios autores negros. Parece haver várias razões para
Assim, essa é uma história na qual os negros essencialmen- essa decisão coletiva. Uma hipótese que Samuel Delany
te transformam os Estados Unidos em um país mais produ- levanta é a de que muitos autores negros evitavam revistas
tivo e racialmente integrado ao alavancar o conhecimento de gênero porque lhes pareciam muito frívolas. Se olhar-
tecnocientífico que conquistaram quando escravos e a mos as imagens de capa e o miolo das revistas, poderemos
educação que ganharam quando libertos para construir um ver como The Crises às vezes imprimia capas de ficção
Sul melhor. científica, como a edição de setembro de 1927, com uma
Essa história nos leva às raízes do afrofuturismo. O mulher gigante segurando o Sol sobre uma cidade minús-
gênero continuou a desenvolver-se no início do século XX cula. De alguma forma, isso antecipa os filmes de ficção
de um jeito que poderíamos descrever como “diferente científica ridículos de Hollywood dos anos 1950, mas o
mas igual”. Talvez você não tenha familiaridade com essa projeto real é muito mais parte do movimento modernista,
frase, mas ela foi essencial para a política e a sociedade e assim sinaliza “alta literatura” em vez de “literatura de
norte-americanas na virada do século XX, e sua intenção gênero”.
era pontuar que negros e brancos podiam compartilhar Ao contrário, capas de Amazing Stories eram muito
igualmente os recursos dos Estados Unidos, mas manter diretas e tinham como intuito apelar a leitores em um nível
suas culturas diferentes uma da outra. E, embora isso tenha visceral: sabe-se, quando se lê essa revista, que ela não
mesmo incentivado o desenvolvimento de duas socie- tratará de uma metáfora, realmente será uma leitura sobre
dades separadas, elas não foram iguais nem nos sonhos homens minúsculos lutando contra insetos gigantescos. E
mais delirantes. Em vez disso, a retórica do “diferentes assim é possível imaginar que alguns autores talvez tenham
mas iguais” transformou-se em uma maneira de manter sentido que, se fossem tentar publicar uma história sobre
a maioria dos recursos nas mãos dos brancos e distantes revolução negra ou um gênio tecnocientífico negro, talvez
dos negros. Agora, vamos voltar à publicação de ficção não fossem levados particularmente a sério em revistas so-
científica na virada do século XX, quando descobrimos que bre brancos minúsculos lutando contra insetos gigantescos.
autores negros e brancos estão escrevendo ficção científica,
mas publicando em lugares distintos. Os autores brancos,
em grande parte, publicavam em revistas de propriedade
e operadas por brancos, como a Weird Tales, a Amazing
Stories e a Astounding Science Fiction. Enquanto isso, os
autores afrofuturistas publicavam, em princípio, em jornais
151
cem ter publicado muito nas primeiras revistas de gênero em forma serializada na Anglo-African Magazine entre 1859
é que, de fato, havia várias histórias racistas publicadas e 1862. Blake se passa em um mundo alternativo, no qual
nessas revistas. Talvez o exemplo mais famoso desse fato escravos afro-americanos se revoltam contra seus donos
é “A Martian Odyssey” [Uma Odisseia Marciana], de Stan- brancos do Sul e estabelecem um estado negro livre em
ley G. Weinbaum, uma história de 1932. Essa história com Cuba. Assim que chegam lá, planejam usar todo o conhe-
frequência é tratada como central para a história da ficção cimento que adquiriram como escravos para construir um
científica, pois é simpática ao alienígena e tenta encon- império próprio do algodão, solapando assim o controle
trar relações entre humanos e extraterrestres. Até aquele dos Estados Unidos sobre a indústria algodoeira e fazendo
momento, não se via muitas histórias assim. Claro que o do novo Estado-nação negro um ator mundial tecnológico.
problema é que os seres humanos que habitam a história O que talvez seja o mais fascinante nesta história é que
de Weinbaum sabem que os marcianos que encontraram Delaney e seus amigos realmente planejavam fazer isso. To-
são seres inteligentes e racionais precisamente porque seus dos os recursos oriundos de Blake foram investidos em um
sistemas de classificação de conhecimento são mais sofisti- fundo para enviar escravos libertos de volta à Libéria, onde
cados que aqueles do povo africano da Terra. Dessa forma, entrariam em parceria com fazendeiros africanos para cons-
a história sugere que não é possível ser uma pessoa “real” truir um império do algodão e conseguir sufocar economi-
se for negra – e principalmente se ainda viver na África. Vê- camente o Sul norte-americano. Gosto do fato de esse livro
-se porquê pessoas como Du Bois, Chesnutt e Griggs talvez ser sobre algo que o povo negro realmente tentaria fazer,
não tivessem vontade de publicar em revistas que trouxes- então se transforma em ficção científica em dois níveis.
sem essas histórias – não parecia um local especialmente Outra história desse período que é interessante e
acolhedor. Teriam que encampar batalhas demais. importante ao mesmo tempo é “The Comet” [“O come-
Então, agora que sabemos onde os afrofuturistas da ta”], de W.E.B. Du Bois. Du Bois é mais conhecido como
virada do século passado publicavam e temos uma noção sociólogo e um dos primeiros teóricos modernos de rela-
melhor dos motivos pelos quais publicavam lá, considerare- ções de raça. De fato, ele escreveu algumas histórias de
mos as principais questões que sempre surgem nas histó- ficção científica sobre o tema, inclusive “The Comet”, que
rias afrofuturistas desse período: “Haverá um futuro para o é de uma coletânea de histórias que Du Bois publicou em
povo negro?” e “O que pessoas negras terão de fazer para 1920. É uma história de desastre na qual um cometa que
garantir um futuro no qual sejam cidadãos livres?”. Para passa pela atmosfera da Terra libera um gás venenoso que
responder a essas questões, autores afrofuturistas contaram parece matar a todos, exceto um homem negro que está
a seu público histórias empolgantes sobre pessoas negras em um cofre subterrâneo de banco no momento. Quando
que usaram a ciência e a tecnologia para fazer coisas incrí- sobe à superfície, nosso protagonista fica, em um primeiro
veis: sobreviver a desastres, iniciar revoluções e construir momento, completamente horrorizado com a situação. No
admiráveis mundos novos. Vou falar agora sobre três das entanto, quanto mais fica consigo mesmo na Terra, mais
minhas histórias favoritas desse período do afrofuturismo começa a gostar, pois, de uma hora para outra, ele tem
norte-americano. A primeira é “Blake or the Huts of Ame- acesso a carros e produtos que não podia ter antes, pode
153
de entrada antes, e assim parece que, talvez, no fim das quanto são hoje em dia, e por isso tenho certeza de que
contas, esse desastre não tenha sido de todo ruim. Por fim, ninguém pensou equivocadamente que Black Empire se
nosso protagonista encontra uma mulher branca que se tratava de uma notícia real, mas imagine o quanto deve
descreve como fotógrafa e feminista. No início, nossos dois ter provocado ideias ler essa história de revolução negra
heróis se veem como alienígenas – e realmente é assim que global juntamente com as notícias regulares de depressão
Du Bois escreve, como sendo “alienígenas em sangue e econômica contínua, guerra mundial iminente e o frustrado
cultura” (“O cometa”). Porém, rapidamente eles superam movimento dos direitos civis norte-americanos.
suas diferenças e decidem que vão criar juntos uma nova
raça. Infelizmente esse plano não funciona, pois os leitores AFROFUTURISMO NOS ESTADOS UNIDOS:
acabam descobrindo que o gás venenoso não matou todo 1960-PRESENTE
mundo. Em vez disso, os brancos voltam para reclamar
sua filha perdida e ficam sabendo que a única pessoa que A segunda maior fase do afrofuturismo estende-se de 1960
realmente morreu nesse desastre é o filho do negro. Assim, até os dias de hoje e marca o período no qual o afrofuturis-
parece que Du Bois está afirmando que a única maneira de mo se integra com a ficção científica mainstream. Suspeito
as relações de raça nos Estados Unidos serem consertadas que haja dois motivos para essa integração acontecer nesse
é por meio de uma catástrofe que dizime negros e brancos momento. Em primeiro lugar, esse período marca o auge
igualmente. do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, e por
A terceira história que quero comentar desse perí- isso é natural que vejamos esse fato também na literatu-
odo é Black Empire [Império negro], de George Schuyler, ra. Em segundo, uma nova geração de autores de ficção
originalmente publicado como duas séries no Pittsburgh científica associados ao movimento “New Wave” estava no
Courier, “Black Internationale” e “Black Empire”, entre processo de redefinir a própria ficção científica, e um de
1936 e 1938. Black Empire imagina um presente alternativo seus principais interesses era tornar o gênero social e cienti-
no qual povos afrodiaspóricos reúnem seus talentos cien- ficamente relevante. Os anos de 1960 e 1970 viram autores
tíficos, militares, artísticos e comerciais para decretar uma aclamados pela crítica, inclusive Samuel Delany, Octavia
revolução global contra as nações brancas que os escra- Butler, Charles Saunders e Steve Barnes, começarem a pu-
vizaram e oprimiram por mais de dois séculos. Fazem isso blicar histórias sobre ciência, sociedade e raça em revistas
dizimando os Estados Unidos com uma guerra biológica, e na imprensa de ficção científica mainstream. Hoje em dia,
bombardeando a Europa até submetê-la e estabelecendo é possível encontrar todos esses autores e muitos outros
um Império Negro utópico em África. Como talvez se ima- em antologias, como Dark Matter [Matéria escura] (2000)
gine, mesmo a partir dessa breve descrição, é uma história e Dark Matter: Reading the Bones [Matéria escura: leitura
empolgante, ainda mais porque os editores do Pittsburgh de ossos] (2004), celebrados por grupos de ficção científica
Courier – que era o maior jornal de propriedade e lido por como a Carl Brandon Society e representados em eventos
negros de sua época – lançavam a história de Schuyler em como OnyxCon e a Black to the Future Conference.
capítulos na primeira página, lado a lado com o noticiário
155
período estão interessados em questões de ciência, socie- depois, foi rodado um curta-metragem para a Cosmic Slop,
dade, raça e futuridade. Considerando o relativo sucesso antologia de séries de ficção científica da HBO.1 Como se
do movimento dos direitos civis, a maioria dos artistas pode ver, tanto a versão impressa quanto a cinematográfica
contemporâneos acredita que, sim, existirá de fato algum dessa pequena história arrepiante acontecem em um futuro
tipo de futuro para o povo negro. Contudo, isso leva a uma próximo levemente alternativo, no qual os Estados Unidos
nova questão: como será esse futuro? Para responder a entraram em um período de declínio e estão em perigo
essa questão, os afrofuturistas desse período criam novos de perder seu status de potência mundial. De repente, um
mundos extraordinários do amanhã extrapolados especifi- grupo de alienígenas misteriosos aparece e promete resol-
camente a partir do passado afrodiaspórico. Consideremos, ver os problemas do país se ele simplesmente entregar sua
por exemplo, a premiada história de Octavia Butler, “Bloo- população negra. Como mencionado antes, o professor de
dchild” (“Filho de sangue”), publicada pela primeira vez na Harvard Golightly tenta argumentar com o governo branco
revista Asimov’s, em 1984. “Bloodchild” passa-se em um para declinar da oferta e cumprir seus deveres humanísti-
futuro no qual os seres humanos que abandonaram a Terra cos para com seus cidadãos negros. No entanto, todos os
para colonizar as estrelas são escravizados por alienígenas esforços são em vão, e a história termina com uma imagem
semelhantes a insetos, que usam os humanos para gestar que invoca a história afrodiaspórica, quando os negros nor-
seus ovos. A escravidão terminou e, como seus semelhan- te-americanos são reunidos, acorrentados e arrebanhados
tes do pós-Guerra Civil nos Estados Unidos do século XIX, para dentro de uma nave que os levará a um futuro que
as duas raças entraram em um período de reconstrução, no eles não criaram.
qual devem reconhecer sua interdependência desigual mas Outros autores ainda questionam como seria o
inevitável e encontrar uma maneira de substituir relações mundo se a história em si tivesse se desenrolado de outra
baseadas em ignorância e violência pela educação interes- forma. Essa questão conduz o romance de 2002 de Steve
pécie e pela relação interpessoal. É uma história profun- Barnes, Lion’s Blood [Sangue de leão] e sua sequência de
damente desconfortável de várias maneiras, mas também 2003, Zulu Heart [Coração zulu]. Os livros de Barnes são
cheia de esperança – afinal, “Bloodchild” termina como histórias alternativas nas quais a África se torna o centro do
uma história clássica de Hollywood, com nossa protagonis- desenvolvimento tecnocientífico, e os africanos colonizam
ta inseto fêmea e seu amante humano do sexo masculino as Américas usando os europeus tribais como força de tra-
entrelaçados no tipo de abraço romântico que certamente balho escrava. Embora isso permita um modelo de tecno-
levará a uma nova geração e, como Butler sugere, a uma cultura levemente distinto – um impulsionado por balões e
ordem mundial nova e melhor. energia eólica em vez de trens e outros dispositivos rápidos
Embora “Bloodchild” celebre o tipo de diálogo e movidos a vapor –, as relações sociais que estruturam o
inter-racial e as relações interpessoais que tornaram a mu-
dança possível nos Estados Unidos, outras histórias como 1 Veja essa história gratuitamente em http://www.youtube.com/
“The Space Traders” de Derrick Bell servem como alertas watch?v=D8yFiam9260 (última verificação em 1.8.2013, ainda dis-
de que a história também pode se repetir de uma forma ponível no YouTube)
157
dos Estados Unidos do século XIX. E assim, embora os ato- sendo a chave para a criação de um futuro novo e mais
res tenham mudado de papel, a história termina se repetin- igualitário: a heroína de Hopkinson sobrevive a uma vida
do completamente com a eliminação de animais e povos em um mundo hostil e até mesmo negocia um novo futuro
indígenas norte-americanos. pacífico para humanos e alienígenas exatamente porque
consegue juntar ciência “branca” e cultura “negra” de for-
AFROFUTURISMO GLOBAL: 1980-PRESENTE mas novas e produtivas.
O autor queniano-canadense Minister Faust leva
Por fim, quero enfatizar uma terceira corrente de afrofuturis- esse tipo de mistura tecnocultural adiante no livro acla-
mo que emergiu nos anos 1980 e ainda está em um perí- mado pela crítica lançado em 2004, Coyote Kings of the
odo de crescimento real hoje em dia – é o que chamo de Space Age Bachelor Pad. [Reis Coiotes do Kitchenette da
afrofuturismo global. Como seus semelhantes nos Estados Era Espacial]. Nessa obra, geeks afrocanadenses precisam
Unidos, os afrofuturistas globais com frequência publicam combinar tudo que aprenderam com a ficção científica,
em revistas e editoras de ficção científica ocidentais. Tam- os quadrinhos e os jogos de RPG ocidentais com práticas
bém trocam ideias e colaboram com outros afrofuturistas ancestrais científicas e militares africanas quando desco-
ao redor do mundo via sites on-line, inclusive Jungle Jim brem que um deles é o ponto fulcral de uma luta de 7.000
(uma revista pulp africana bimestral), Story Time (ficção de anos entre o bem e o mal. Embora a história possa parecer
gênero semanal por autores africanos) e 3Bute (uma antolo- exótica, Faust a torna legível para leitores ocidentais com
gia on-line dedicada às questões da modernidade africana). personagens que são bem familiares – inclusive o jovem
Os afrofuturistas globais também são como seus ingênuo que precisa dominar seus talentos sobrenaturais, o
semelhantes norte-americanos, pois suas histórias giram em companheiro engraçado que consegue construir qualquer
torno de questões de raça e futuridade. Aqui, a principal coisa e a princesa guerreira misteriosa que os recruta para
questão é: o futuro parecerá com o passado e o presente sua causa. Como um de meus alunos declarou depois de
conforme vivenciados pelo povo dos Estados Unidos de se esfalfar durante todo um semestre com o romance de
todas as etnias ou refletirá as experiências do povo negro Faust: “Finalmente entendi! É como Guerra nas estrelas,
de outras partes do mundo? Extrapolando suas experi- mas se passa vinte anos atrás no Canadá com negros.”
ências pessoais e históricas, esses autores em geral criam “Virus!” [“Vírus!”], conto do ganense Jonathan Dot-
novos futuros realmente estranhos ao combinar elementos se, de 2011, primeira parte de um romance que está para
do Ocidente e do restante do mundo. Consideremos, por ser lançado chamado Accra 2057,2 usa técnicas semelhan-
exemplo, o premiado romance de Nalo Hopkinson, lança- tes para apelar a um público global. “Virus!” acompanha as
do em 2000, Midnight Robber [A ladra da meia-noite], que aventuras de uma adolescente da área rural de Gana que
imagina um futuro no qual colonizações intergalácticas e
intertemporais são possíveis por uma combinação original 2 NdT. O romance ainda não foi lançado. O autor mantém um
de redes avançadas de computadores, nanotecnologia e site chamado AfroCyberPunk Interactive que pode ser acessado em
práticas caribenhas de contação de histórias. Essa combina- https://www.afrocyberpunk.com.
159
uma agente de informações ilegais no submundo empol- turistas insistem que o passado, o presente e o futuro são
gante mas perigoso da cidade de Accra, no ano de 2057. mais complexos que isso. Nas primeiras histórias afrofutu-
Depois de quase perder a vida para um vírus aparentemen- ristas, a escravidão produz miséria, mas também produz
te oportunista, ela se junta a um policial aposentado e a um genialidade tecnocientífica; nas histórias posteriores, as
programador de computadores exilado para descobrir uma histórias de escravidão e colonização – a história do passa-
trama de dominação mundial que emana do coração do do ruim da modernidade – se tornam a fonte de inspiração
deserto do Saara. O que considero mais incrível nessa his- para se imaginar o que talvez sejam realmente futuros no-
tória é que ela se mescla à história e à cultura de Gana, mas vos e ao menos um pouco melhores. E é isso que acho tão
é fácil de absorver porque é contada de forma que será atraente no afrofuturismo: como todas as melhores ficções
familiar a qualquer um que tenha lido o clássico romance científicas, nos dá esperança de que haja maneiras diferen-
cyberpunk de William Gibson, Neuromancer, ou assistido à tes de sermos cidadãos do moderno mundo global.
trilogia Matrix, das irmãs Wachowski.3
CONCLUSÃO
161
3Bute. <http://3bute.com>. (Acessado pela autora em 10.08.2013.
Não está mais disponível, conforme acesso em 13.3.2019).
Du Bois, W.E.B. “The Souls of Black Folk“. Ed. B.E. Hayes. Oxford:
Oxford University Press, 2008.
afrofuturismo
07 a necessidade Na esquina ao sul do quarteirão ficava a agência funerá-
163
ria da senhora Dade. Bem ao centro da parte norte a do
de amanhãs senhor Sterrit. Entre elas ficava a Levy and Delany, a casa
funerária de meu pai (agente funerário1 era um termo que
ele detestava; ele se considerava um diretor de funerais).
Quando eu tinha sete anos meu pai mandou cobrir a frente
muel
da loja com tijolos vermelhos. Letras em alumínio que se
a
projetavam da fachada a partir de pequenas hastes vieram
tomar lugar do antigo letreiro – letras em neon verde em
S
suas máscaras de sombra2 de estanho, o invólucro metálico
inteiro quase do meu tamanho naquela época. Os operá-
rios do andaime o baixaram em cima da porta, primeiro
o L e depois o Y. Levy tinha morrido antes de eu nascer.
Contudo, crescendo com Levy and Delany, aconteceu que
a necessidade de amanhãs
À nossa esquerda se encontrava a mercearia do se- quadradas do balcão – as da frente feitas de vidro, as bem
165
nhor e da senhora Onley, que os Onleys gerenciavam junto no fundo da loja, de madeira – continham rolos de fita de
com seu filho adulto Robbie. No verão, balcões de madei- eletricista preta, pilhas de ioiôs amarelos e laranja, caixas
ra pintada de verde descansavam sob o toldo, cheios de de tachas para carpete, anéis de papelão com bolas de
repolhos, cenouras, pimentas vermelhas e verdes, embora borracha do tamanho de uma noz em um buraco no meio
aquilo de que eu me lembre com muito mais clareza é da de cada um deles, iluminados com aproximadamente dez
exótica safra de outono: bananas, couves, romãs, cocos, tomadas multicromáticas; ratoeiras (nós tínhamos duas
cana de açúcar, mangas. Minha infância parece ter sido debaixo da nossa pia da cozinha), cujas versões maiores eu
continuamente pontuada pela frase: “Você podia ir lá na pensava, na minha inocência, que deviam ser para caçar
loja, Sam, e me trazer...” da minha mãe. Depois dos inevi- gatos; pregos, parafusos, botões, pilhas de pratos baratos,
táveis episódios do troco caído por acidente enquanto eu sobre os quais eu pensava sobre quem poderia comer algo
carregava a sacola de papel pardo pelas escadas laterais neles; martelos, chaves de fenda com cabos amarelo-claros,
da cozinha, ao longo de muitos meses, enquanto a senhora quadros de cortiça cheios de tachas, caixas de grampos,
Onley permanecia implacavelmente calma atrás do balcão rolos de fita Scotch, a máquina (o ruído da máquina copia-
com seu avental, que alternava entre as cores branca, azul dora de chaves); e pequenas imagens religiosas em moldu-
ou verde, minha súplica era uma frase insistente e enver- ras de plástico púrpura, sujas como os pratos.
gonhada: “Senhora Onley, por favor, não me dê o troco. Antes de mais nada, naquele tempo a loja do senhor
Ponha dentro da sacola de papel. Dessa forma eu não Lockley era a única que eu conhecia com uma grade. (Nós
tenho nem que tocar nele e o pessoal lá em cima receba tínhamos grades nas portas de trás da casa, na casa e na
ele todo”. sala de estar atrás do mármore e das cortinas púrpuras,
À nossa direita ficava a loja de ferragens e artigos mas viver com elas, dia sim e dia não, eu, de alguma forma,
para o lar do senhor Lockley. O senhor Lockley era um dificilmente tinha visto algo parecido). A grade do senhor
homem magro, levemente mais escuro do que um pa- Lockley tinha numerosas barras verticais pretas, as quais se
pel de embrulho, de cabelos brancos, um rosto murcho articulavam entre elas numerosas diagonais com rolos nas
e uma perna (falsa) que eu sempre ficava imaginando se pontas. Se você estivesse na rua de manhã bem no instante
era articulada e de madeira como a do meu primo Jimmy. em que o sol iluminava as cornijas do lado longínquo da
Jimmy perdera a sua durante a Segunda Guerra Mundial e Sétima Avenida, as hastes cortavam a luz em losangos dou-
tinha um jogo de xadrez muito bom. À medida que os anos rados entrelaçados na sombra e os deitavam no esplendor
passavam, a gerência da loja foi assumida cada vez mais empoeirado do lado de dentro.
pelo filho calvo do senhor Lockley, Albert, e sua nora ruiva, Eu acho que tinha nove anos.
Minnie. De memória, aquele lugar, sempre na penumbra, Era uma noite quente de outono, embora às seis
parecia se expandir por quarteirões e quarteirões sob o horas da noite o sol tivesse perdido metade de sua lumi-
teto estampado de alumínio e as primeiras luzes fluorescen- nosidade e dobrado a profundidade de sua escuridão3. Eu
tes da vizinhança. Ao lado do corredor estreito, as bandejas
3 NdT. Blue, no original.
167
grande e se virar para a escadaria que dava para seu apar- maior, uma repreensão que seu pai usara frequentemente
tamento. Subi na porta de metal preto do porão e – tchan! com ele; e desde que meu pai tinha obtido algum sucesso
– se moveu sob meus Keds americanos. Eu andei até a gra- com ela, ele se sentia justificado em usá-la comigo – apesar
de, pus a palma da mão contra uma haste. Era fria e áspera. de, francamente, ela me ser ao mesmo tempo desnortea-
Empurrei de leve. dora e apavorante.
A grade se mexeu – só não se mexeu como uma Corri pra cima.
estrutura rígida de ferro trancado. Ela se ondulou como Mas depois, quando eu estava deitado na minha
uma cortina. Pus meu rosto para cima contra ela, olhei cama no terceiro andar, ouvindo o tráfego noturno riscando
através dela, empurrei de novo. Embora os pés e os topos a Sétima Avenida, pensei de novo na grade. Suas peças
das barras fossem tolhidos por contendores metálicos, o rígidas, umas longas, outras curtas, estavam atadas de uma
movimento que percorria a estrutura saía claramente em maneira tão flexível que durante o dia não só se podia
ondas. Eu podia vê-la ondular. Eu podia ouvir o chacoalhar dobrá-la até a parte final da janela da loja, mas, quando
e assistir às ondas se afastarem longe de mim em direção estivesse estendida, movê-la para qualquer parte se tra-
às partes superiores da janela. Coloquei as duas mãos no duzia através de sua extensão em uma progressão visível
metal, meu rosto o mais próximo que consegui, vendo e audível. O movimento era passado de junção à junção.
através da grade, que daquele ângulo parecia uma simples Cada haste pegava o movimento daquelas que se juntavam
folha de papel. em sua ponta e passava um movimento resultante para
Chacoalhei uma vez. aquelas que se juntavam a seu oposto. Não importava o
Esperei. Enganchei meus dedos em volta das hastes quão barulhento era o ranger, era um processo ordenado e
e chacoalhei duas vezes. padronizado.
Esperei de novo. Minha infância não foi uma infância típica do Harlem.
Então eu sacudi o mais forte que consegui. E conti- Por um lado, vivíamos em uma casa própria e tínhamos
nuei sacudindo. O barulho feria meus tímpanos. As hastes uma empregada. O negócio do meu pai ficava no andar
sapateavam em seus contendores, e todo o conjunto se térreo. Morávamos no segundo andar. Por outro lado, eu
dissolveu em estrondo e algazarra. não frequentava nem a escola pública dois quarteirões ao
“Que raios você está fazendo? Para com isso!” norte nem a escola católica da esquina. Durante minha
Eu me virei. primeira infância, toda manhã meu pai, ou eventualmente
“Você tá maluco?”, meu pai perguntou, como ele um dos empregados, me levava para uma escola particular
geralmente fazia naquele tempo. Ele ouvira o barulho e na rua 89 perto da Park Avenue. O público da escola era
saíra pela porta da casa funerária para ver o que seu esqui- completamente branco, amplamente judeu, e se educavam
sitinho de nove anos de idade estava aprontando. “Pare ali os filhos de uma quantidade boa de milionários, lumi-
com isso e suba já pra casa! Você vai terminar na cadei- nares literários, autoridades governamentais, personalida-
ra elétrica, eu juro!”, o que parecia ser sua mais comum des teatrais, o que mantinha o nome da escola, com uma
169
rodas de fofocas da gente de Nova Iorque nas proprieda- emoções. Qualquer ocorrência social a partir daqui invaria-
des osmóticas do sucesso. velmente criaria movimento, via esses mediadores, através
Nos anos 40 a fronteira sul do Harlem era muito da rede social de uma pessoa a outra. A imagem da grade
mais abrupta do que é hoje: a rua 110, ao longo da parte da janela do senhor Lockley parecia um bom modelo para
alta do Central Park, a delimitava com tal precisão que eu a vida a meu redor nas ruas do Harlem. Parecia também um
podia sentir a qualquer hora da minha viagem de volta para bom modelo para a vida a meu redor na minha escola. E
casa que tinha de me transferir do ônibus quatro da Quinta ainda da minha posição de um garoto de nove anos entran-
Avenida para o ônibus dois, que me levaria até o topo da do nos dez, eu ficava imaginando como essas duas grades,
Sétima Avenida, esperando na esquina do parque sob o duas teias, duas redes se conectavam. Em termos grossei-
toldo de alguma casa noturna fechada, reminiscente dos ros, a grade branca parecia envolver a negra, prendendo-a
tempos de Cole Porter e da mulher libertina que “não vai em seu lugar e mantendo-a muito mais apertada em um es-
ao Harlem em peles de arminho ou com pérolas4”. paço menor. Mas quais eram as reais conexões entre elas?
Minha viagem de ida e volta diária da Sétima Aveni- Havia eu, que passava de uma a outra duas vezes ao dia,
da e rua 132, entre o senhor Onley e o senhor Lockley, até ao lado de mais ou menos quinze outras crianças negras
a escola particular logo abaixo na rua da construção então que moravam no Harlem e, comigo, estudavam na Escola
em curso do museu Guggenheim, a troca dos filhos negros Dalton, das quais metade parecia na época parentes meus.
dos trabalhadores do metrô, assistentes de hospital e mo- Os laços econômicos que conectavam as duas teias podiam
toristas de táxi (meus amigos da vizinhança) para os filhos até mesmo ser moderadamente traçados via senhorios
brancos de psiquiatras, editores e professores de Columbia brancos e donos de loja sempre ausentes que arrancavam
(meus amigos de escola), era uma jornada de violência pró- dinheiro da vizinhança, dinheiro que, no geral, só estava
xima da balística através de uma barreira social absoluta. habilitado a voltar para ali através do trabalho de negros ou
Eu nunca questionei aquela violência. direta ou indiretamente realizado para brancos. Com cer-
A certas violências os jovens se acostumam muito teza os produtos da loja do senhor Lockley e a maior parte
rápido. da safra da loja do senhor Onley arrancavam dinheiro da
Mas pouco depois do incidente com a grade da vizinhança no final das contas. Mas eles ainda deixavam os
janela do senhor Lockley eu comecei a pensar – como você laços da informação e da emoção - sem os quais os laços
sem dúvida começou a pensar há alguns instantes – na econômicos tinham de permanecer opressores.
própria sociedade como uma estrutura muito similar à da Esses laços não estavam lá.
grade. Bem, não tanto como uma grade, mas como uma Sua ausência era a barreira que eu cruzava toda
teia. Uma rede. Cada pessoa representaria uma junção. As vez que saía de casa para e voltava da minha escola. Sua
conexões entre elas não seriam hastes de ferro, mas rela- ausência era a violência.
O que foram os anos 50 para mim?
4 NdT. “won’t go to Harlem in ermines and pearls” no original, Começaram com a eletrocução de Julius e Ethel Ro-
verso da canção The lady is a tramp.
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rais ficaram surpresos, de modo intenso, com aquilo que as intermináveis biografias de Eleanor Roosevelt que minha
eles viam como um claro emblema de algo profundamente avó, que achava que “leitura séria” era ruim para você, re-
errado no país, independente se eles acreditavam na culpa cebia de filhos e netos indulgentes de aniversário, natal e,
ou na inocência do gentil casal judeu. às vezes, até de funerais. Mas o que mais eu andava lendo?
Foram o assassinato de Emmett Till, quatorze anos Eu li os primeiros ensaios de James Baldwin que foram de
de idade, por homens brancos terríveis e misteriosos em al- início recolhidos em Notes of a Native Son, e eu achei que
gum canto do Sul. De nossa janela da frente assistimos em eram tão maravilhosos quanto... bem, quanto ficção científi-
diagonal, atravessando a rua, no lugar que antes havia, um ca. Eu também li Black boy de Robert Wright e Se ele chiar
dia, sido o Lafayette Theater (onde Orson Welles dirigira deixa rolar de Chester Himes9 e eles pareciam... bem, His-
Canada Lee em Blackbeth; mais recentemente tinha sido tória. Eles com certeza não tomaram lugar no mundo das
um supermercado do Harlem e agora era uma igreja batis- marchas pela liberdade e comícios pela integração. Eles os
ta), e cidadãos do Harlem a fazerem comícios, discursos, a explicavam? Eles com certeza diziam que a condição do
cantarem e fazerem mais discursos. homem negro nos Estados Unidos era horrível – de alguma
Foram a decisão da Suprema Corte por integração. forma nestes esforços ficcionais a mulher negra ficava mis-
Foram as primeiras marchas em Washington. Foram Authe- teriosamente rebaixada de uma maneira suspeitosamente
rine Lucy5. Foram Sputnik e Little Rock, anunciados no mes- similar ao modo como a mulher branca ficava rebaixada no
mo noticiário de rádio vespertino do mês de setembro. E, trabalho dos homens brancos contemporâneos a Wright e
a partir das minhas idas à escola toda manhã, pude ver da Hime. (A mulher negra era de algum modo sempre a causa
janela do ônibus que a fronteira da parte baixa do Harlem e a vítima ao mesmo tempo de tudo o que acontecia de
quase não era tão bem definida como tinha sido. Alguma errado com o homem negro.) Mas Wright e Himes pare-
informação e emoção de sobra arrebentaram. Algumas ciam dizer também que, em termos realistas, precisamente
pessoas até gostaram do que aprenderam; mas a maioria, aquilo que tornava aquilo tão horrível o tornava igualmente
em ambos os lados, estava mais chateada com aquilo do imutável. E eles o diziam com uma certeza que, para mim,
que o contrário. apequenava os momentos de aproximação inter-racial que
Os anos 50 foram também a década em que eu se encontravam em livros como Youngblood de John O.
comecei a ler ficção científica. Killens, pouco importava quantos outros Killens agradá-
Leitura de escape6 era o termo às vezes usado para veis devia haver para nós jovens lermos. Começava-se a
isso, que a agregava junto aos westerns e histórias de amor suspeitar que era precisamente a certeza de que nenhuma
mudança real era possível que tornara Wright e Himes tão
populares quanto eram com aqueles leitores estranhamen-
5 Primeira estudante afro-americana a ingressar na Universidade de
Alabama, em 1956. 7 Saga da família Whiteoak escrita por Mazo de la Roche.
6 NdT. Os títulos com traduções no Brasil tiveram seus títulos tra- 8 Personagens criadas pela autora americana Rose Franken.
duzidos, os demais foram mantidos no original. 9 NdT. Título da tradução da editora Marco Zero, 1989.
173
clássicos. Ao menos é o que eu parecia ler neles em um em vez de formar um tema central, pareça mais como uma
mundo que claramente explodia com a mudança racial uma lâmpada nua em um cordão solto, balançando para frente e
manchete após a outra. para trás, acendendo e apagando durante todo o transcor-
A ficção científica que eu lia na época falava sobre a rer dos contos fantásticos, às vezes iluminando as ações, às
situação negra nos Estados Unidos, sobre o progresso da vezes claramente nem como a menor das preocupações do
mudança racial? escritor.
As famosas histórias de “robô” de Isaac Asimov com Bem, então, como se deve ler esses contos fantásti-
certeza chegaram perto. As séries, disponíveis hoje em cos hoje? Eu só posso lhe oferecer o modo como um ado-
quatro volumes (as coletâneas de contos de Eu, robô10 e lescente negro, que gostava bastante de ficção científica,
The rest of the robots11 e as novelas As cavernas de aço e lia essas histórias de um judeu russo de inclinações políticas
O sol desvelado12), lidam com um futuro no qual humanos e liberais, que naquele tempo praticamente abandonou a fic-
robôs vivem lado a lado, embora o preconceito e o desdém ção científica para escrever livros e artigos de popularização
que o robô detetive R-Daneel (um dos principais persona- científica enquanto ensinava Bioquímica em uma faculdade
gens de As cavernas de aço) experiencia é claramente uma de medicina de Boston.
analogia de algumas das formas suaves de preconceito que Era precisamente nessas partes da história em que
nós experienciávamos com os brancos. E “As três leis da a situação dos robôs parecia ser mais análoga à situação
robótica” de Asimov, famosas entre os jovens leitores de do negro americano que eu sempre me perguntava: exata-
FC em todo o mundo, em essência equivalem a: robôs não mente como a situação dos robôs nessas histórias difere da
devem ferir, desobedecer ou desagradar humanos – o que, realidade da situação racial do meu mundo? Afinal, eram
se se substitui humano por branco e robô por negro é com contos fantásticos sobre robôs vivendo e lutando em um
certeza o ideal branco do que o “bom crioulo”13 deve ser. mundo futuro, contos cujo deleite total repousa no fato de
E as histórias, é claro, ganham muito do seu humor perspi- que o mundo deles era diferente do nosso próprio. Sob tal
caz14 e interesse a partir das maneiras engenhosas como os leitura, os contos com certeza não se tornavam menos ado-
espertos robôs descobrem como contornar essas leis sem ráveis. O que eu realmente acho que aconteceu comigo,
de fato quebrá-las ou se meterem em problemas sérios. ao questionar as distinções o mais cuidadosamente quanto
Ainda assim, as histórias tocam em muitos outros proble- mais fortemente as similaridades se apresentavam a fim
de serem vistas, é que me tornei um observador bem mais
10 NdT. Última tradução da Editora Aleph. astuto da nossa própria situação racial do que eu, em caso
11 NdT. No Brasil, a Editora Hemus lançou muitos livros de Asimov,
contrário, teria sido.
inclusive uma coletânea denominada “Robôs”.
12 NdT. Conforme as traduções da Editora Aleph.
Nas universidades e nas escolas de ensino médio15
13 NdT. “good Negro”, no original. A palavra “Negro” caiu em em que a ficção científica está sendo usada hoje como
desuso por ser considerada ofensiva. Prefere-se hoje em dia “Afri- auxiliar no ensino de ciência política, sociologia e ecologia,
can-American”. Por isso, a opção em traduzi-la como “crioulo”
14 NdT. Wit no original. 15 NdT. High schools, no original.
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mundo ficcionalmente científico e o mundo real: pois essas do que o reflexo dos homens e a resistência delas a longo
diferenças são precisamente o que constitui o aspecto prazo é melhor. É uma galáxia de maravilhas, e nosso jovem
ficcionalmente científico dos contos, e é tão somente essa recruta descreve cada uma delas de uma maneira surpreen-
apreensão que pode efetivar a afiação mental que os mais dentemente efetiva. Além disso, para um romance de FC
francos advogados da ficção científica argumentam que ela dos final dos anos 50, era muito longo – quase 300 pági-
promove. nas, bem acima do limite de 157 a 197 páginas que uma
Em 1960 o romance de Robert Heinlein Tropas este- desdenhosa indústria de publicação de brochuras colocou
lares recebeu o prêmio Hugo como melhor romance de FC naquela época como limites automáticos para um romance
do ano. É bem um livro de garotos, um livro sobre o modo de FC. Sim, as coisas com certeza mudaram neste mundo
como a guerra pode amadurecer um homem jovem – um futuro, esta guerra futura.
conto irremediavelmente chauvinista no sentido antigo do Lá pelos dois terços do livro, quando nosso jovem
termo, tornado inócuo apenas pela similaridade de sua herói, tendo sobrevivido às primeiras 200 páginas de
mensagem a tantos quantos filmes de guerra dos anos 40 perigos, está fazendo a escolha inevitável em certas histó-
e 50 e livros de aventura para garotos glorificando a vida rias (continuar ou não e realizar o treinamento para oficial),
militar. há um breve descanso das aventuras. E ali, na calmaria,
E ainda é ficção científica – o que significa que as o narrador, enquanto se prepara para um encontro com
distinções são o que nos interessa. uma bela piloto em treinamento, descreve como ele vai ao
Uns cem anos no futuro. Uma raça alienígena inimi- banheiro para passar maquiagem – já que no mundo futuro
ga foi descoberta com o propósito de exterminar a huma- todos os homens usam maquiagem, e se perderam com-
nidade, e a guerra se estabelece entre humanos e aliení- pletamente as associações que a restringiam à feminilidade.
genas que devem ser exterminados. O jovem que narra a Enquanto ele se olha no espelho, faz uma breve menção à
história conta sobre seu alistamento nas forças militares, tonalidade quase castanho-escura de seu rosto –
do uso de fantásticas superarmas, da armadura que trans- E eu tive que ler duas vezes.
forma o usuário praticamente em um super-homem, dos O herói do livro, que por 200 páginas até aqui este-
cães geneticamente modificados que podem falar e têm ve me contando sobre suas façanhas audaciosas e temores
inteligência humana e lutam ao lado de soldados especiais. íntimos, não era louro e de olhos azuis de incontáveis filmes
Relações tão próximas desenvolvidas entre cão e homem de Segunda Guerra Mundial da RKO. Ele não era cauca-
que, quando o dono é morto, o cão é levado à morte como siano de jeito nenhum – na verdade, e isso vem jogado na
via de regra; ou, quando o cão é morto, o dono se aposen- próxima frase, seus ancestrais são filipinos!
ta e com frequência fica permanentemente hospitalizado, Indo mais ao ponto, entre as muitas mudanças que
porque os laços emocionais são tão grandes que o parceiro tomaram lugar neste mundo futuro pelo qual eu estava
restante só conseguia entrar em colapso. Às mulheres foi deslumbrado e com o qual estava deliciado, a maior de
universalmente dado o emprego de pilotos de aeronaves, todas era que a situação racial, ao lado de todas as mudan-
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ponto em que um jovem soldado tinha de lhe contar sobre Muitas vezes revisei a imagem de como um mundo
suas aventuras por mais de 200 páginas em um romance de racialmente melhorado deveria parecer a partir daquele
300 e nem mesmo ter de mencionar sua ancestralidade ét- primeiro clarão brilhante com que Heinlein me ludibriou – e
nica – porque isso se tornou, no mundo dele, insignificante. provavelmente a muitos outros jovens leitores, negros e
Apenas um punhado de anos mais tarde, um editor brancos – a experimentar. Era 1960; o lado mais audacioso
branco e liberal da Doubleday estava empurrando de volta da fermentação política da década ainda estava para che-
minha tentativa de uma novela de 900 páginas por sobre gar; e os retrocessos dos anos 70 não eram previstos.
sua mesa na minha direção e perguntando: “Como você Mas não se pode revisar uma imagem até se ter uma
espera que eu leve a sério um romance no qual eu não des- imagem para revisar.
cubro que a personagem principal tem a pele escura até A filósofa e estudiosa de Estética Susan K. Lan-
chegar à página 18? Isso é muito importante. Deveria estar ger16, nos dois volumes publicados do seu estudo de três
na primeira página.” volumes, Mind, dedica a maior parte de seu argumento à
Mas ali, naquele romance de Heinlein, este simples proposição de que a esta experiência inicial da imagem,
fato, posto onde estava, em consonância com todas as mu- uma visão de algo ainda não real, é o ímpeto para todo o
danças sociológicas e tecnológicas adjacentes, de súbito progresso humano, científico, social ou estético. Se você
explode uma imagem, breve e brilhante, de um mundo não a vê, você não pode trabalhar em prol dela.
onde as duas redes, as duas teias, a matriz da sociedade A imagem primeiro. Depois a explicação.
negra e a matriz da sociedade branca tornaram-se entre- E se a ficção científica não tiver nenhum outro uso,
laçadas de tal forma que um intercâmbio equitativo de di- seja o fato de que entre todas as suas várias e variegadas
nheiro, bens, informação e emoções tinha de alguma forma paisagens futuras ela nos dá imagens para nossos futuros...
acontecido – para que neste mundo a especificidade da como fez o romance de Heinlein.
raça de uma pessoa fosse na verdade não mais a informa- E seu uso secundário, como nas histórias de Asimov,
ção privilegiada que é até hoje, sugerindo tanto sobre as é fornecer uma ferramenta para questionar essas imagens,
experiências que deveríamos ter tido, sobre as realidades explorando suas distinções, suas articulações, seus jogos
que deveríamos ter conhecido. de diferenças.
A imagem era breve. E era apenas uma imagem – “Você acredita nessa coisa de ficção científica?”,
de modo algum a explicação de como realizá-la. Mas ela sempre me perguntam com muita frequência.
me fez considerar que até então, com todos os meus esfor- Bem, se você diz isso no sentido idiomático – se eu
ços contínuos de “melhorar a situação racial”, eu realmente acho que a ficção científica é uma coisa boa e que as pes-
não tinha tido nenhuma imagem em que a “situação racial soas deveriam lê-la? – então é claro que eu acho. De outra
melhorada” iria parecer. Ah sim, igualdade era uma palavra forma eu não a escreveria.
que eu conhecia; mas como ela se pareceria, seria sentida, Se, contudo, você quer dizer: “Você acredita que to-
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– discos voadores, colônias no espaço, alienígenas vivendo história muito excitante.
em outros mundos, curas para o câncer e seres humanos Agora vamos pensar em outra, também situada em
clonados – vão realmente acontecer?”, então eu tenho de Nova Iorque no ano 2001.
parar e lhe explicar uma coisa sobre a sua pergunta. Com o passar dos anos, a cidade se tornou quase
Vamos pensar em três boas e excitantes histórias de abandonada (como de fato muito do Harlem está hoje).
FC, todas situadas em Nova Iorque no ano 2001. No restante do país, através de energia solar, circuitos em
A primeira é sobre a vida em uma Nova Iorque que miniatura, eficiência de transporte aumentada e avanços
se tornou amplamente superpovoada. Não há mais apar- tecnológicos, é possível para todos viverem mais felizes nas
tamentos luxuosos em Park Avenue e Sutton Place. Todos áreas rurais. Novas cidades surgiram por todos os deser-
eles foram divididos com papéis de parede em pequenas tos do Sul e do Noroeste, enquanto as grandes cidades
células (O próprio Harlem, que, como a canção de Cole da Costa Leste estão agora mais ou menos abandonadas.
Porter comemora, foi um dia uma luxuosa vizinhança branca Apenas alguns poucos grupos de pessoas vieram para a
de Nova Iorque). Cinco e seis pessoas para um quarto é o cidade ou permaneceram. Elas procuram lares nas ruínas
mínimo em qualquer lugar da cidade: o máximo não pode vazias. A maioria delas são famílias de individualistas e são
sequer ser publicado. Pelotões de saqueadores armados bem educados, incluindo médicos e engenheiros. Eles
percorrem livremente pelas ruas onde quer que haja rumo- assumiram alguns prédios públicos remanescentes, constru-
res de que há comida estocada. Supermercados? Eles não íram suas próprias fazendas nos parques da cidade, instala-
existem mais: suas prateleiras foram destruídas e os sem-te- ram seus próprios aquecedores solares e transformaram os
to acampam dentro dessas construções. Algumas poucas metrôs próximos a eles em esgotos. Esses poucos grupos
centrais de abastecimento de comida de larga escala – uma comunais vivem, a sua própria maneira, uma vida bem des-
em Battery Park, uma em Bryant Park, uma em Morningside lumbrante, ainda que excêntrica, produzindo suas próprias
Park e outra em St. Nicholas Park – são cercadas por guar- roupas, sua própria música, histórias, jogos.
das. Os suprimentos são repostos por helicópteros diaria- Mas um belo dia o governo decide destruir os vestí-
mente; as linhas se tecem ao redor dali por milhas quando gios da cidade. “Vocês tem de ir”, eles dizem.
as pessoas fazem fila para pegar suas rações, mas isso é “Nós não vamos” é a resposta. “Vocês abandona-
ineficiente e não há nenhuma garantia de que você consiga ram tudo isso. Ninguém mais vive aqui agora à exceção de
voltar para casa em segurança, mesmo que você espere as nós. Nós tornamos tudo isso nosso e pretendemos manter
horas necessárias para obter seu montante governamen- assim.”
tal de alguns punhados de algas marinhas secas, farinha “Não, nós pretendemos destruir o lugar e transfor-
de soja, um recipiente de leite e outro de mel, os quais a má-lo em outro grupo de poucas cidadezinhas ...”
lei diz que devem se destinar a todas as pessoas todos os Os Guardas Nacionais entram; talvez haja até mes-
dias. mo bombardeios. Mas as pessoas que moram lá possuem
seus próprios métodos de retaliação: eles têm seus pró-
181
adas também. Uma guerra de guardas nacionais e guer- mens e mulheres, vivendo em uma das elegantes mansões
rilhas entrincheiradas começa nas ruas desertas de Nova que pontuam a ondulante vegetação que fora plantada no
Iorque... antigo local onde se localizavam as St. Nicholas Houses,
Uma subpovoada Nova Iorque pode criar um con- decide que eles – e apenas eles – deveriam tentar, como
texto tão excitante de uma história de FC quanto uma um experimento, viver por 10 anos sem os métodos de
superpovoda Nova Iorque descrita no cenário anterior. controle de natalidade universais, simplesmente para regis-
Mas vamos imaginar uma terceira história de FC, de trar e explorar como é que era. Com tão poucas pessoas
novo situada em Nova Iorque no ano 2001. envolvidas, não deveria haver nenhum perigo. A maioria
Por volta de 1985 um método de controle de natali- desses jovens psicólogos nasceu em 1978, 1979. Mas os
dade descoberto podia ser dado tanto para homens quan- mais velhos se recordavam de como era a superpopulação,
to para mulheres, uma vez, na puberdade – e permaneceria se recordavam dos cortiços e das ratazanas e do lixo nas
eficiente pelo resto da vida de uma pessoa. Para ter filhos, ruas – e uma grande separação começa entre a geração
os potenciais mãe e pai têm de simplesmente tomar uma mais velha e a mais nova...
pílula para neutralizar o método, e a gravidez pode aconte- É simplesmente uma história de 2001 tão boa quan-
cer. A população da nação está estabilizada. Vagarosamen- to a anterior número dois.
te as grandes cidades do país se juntam, e com a popula- Agora, não há como todas as três acontecerem ao
ção decrescente e as pressões econômicas as cidades se mesmo tempo em Nova Iorque no ano 2001.
tornam os arranjos habitacionais limpos e elegantes como Ainda que todas as três pudessem fazer boas histó-
uma vez fora previsto. Por volta de 1995 a população esco- rias de FC, divertidas de se ler e concebivelmente agradá-
lar fora cortada pela metade. Superpopulação educacional veis de se escrever. E minhas experiências como um negro
é coisa do passado. E a maior parte da educação, afinal, é crescendo na Nova Iorque bem real dos anos 40, 50 e 60
conduzida em grupos de estudo privados, os quais as crian- irá com certeza contornar minha visão particular de cada
ças escolhem por conta própria e frequentam às segundas um dos meus três contos.
e sextas-feiras, a semana da escola pública agora reduzida Em qual deles eu realmente acredito?
entre as terças e quintas-feiras. Mas com o espaço, prazer Eu acho que aspectos de todas elas são possíveis,
e bem viver incrementados, infiltra-se uma certa languidez. outros aspectos de todas elas soam-me como impossíveis.
Pessoas com ideias realmente novas são de repente vistas E se eu realmente me sentasse para escrever uma
como ameaçadoras a esse fino modo de vida. Quase todas história de FC neste exato momento, situada em Nova Ior-
as mudanças consistem em novas liberdades das quais as que em 2001, seria provavelmente diferente de todas elas.
pessoas devem agora desfrutar. Ainda que a todo instante A ficção científica é uma ferramenta para te ajudar
alguém surja com uma ideia realmente nova, as pessoas a pensar; e como qualquer coisa que realmente te ajuda
dizem, “Daqui a pouco vão querer cortar os métodos de a pensar, por definição ela não realiza o pensamento por
controle de natalidade”. você. É uma ferramenta para te ajudar a pensar sobre o
183
presente no qual a própria mudança assegura que há sem- o bastante no futuro de forma que eu pensei que fosse ra-
pre uma gama de opções para ações, ações pressupondo zoável pressupor uma intermesclagem racial geral até que
diferentes comprometimentos, diferentes crenças, diferen- todo mundo se parecesse... Bem, mais ou menos como eu.
tes esforços (de diferentes qualidades, de diferentes quanti- Poderia haver uma ficção científica especificamente
dades), diferentes conflitos, diferentes processos, diferentes negra? Poderia haver se houvesse mais escritores de FC
alegrias. Ela não te diz o que vai acontecer amanhã. Ela negros.
apresenta imagens alternativas e possíveis de futuros, e Quantos escritores de FC negros se tem?
as apresenta de um modo que te permite questioná-las No momento tem eu; tenho trabalhado na área por
conforme você as está lendo em uma história interessante, mais de uma década e meia.
comovente e excitante. Tem Octavia Estelle Butler, cujo primeiro romance foi
A ficção científica não te dá respostas. É um tipo de publicado há quatro anos.
escrita que, no seu melhor, pode te ajudar a aprender a res- Tem Charles R. Saunders, que escreve um tipo de
ponder perguntas – ou, como talvez o maior escritor de FC fantasia heroica em contexto africano.
moderno, Theodore Surgeon, colocou a coisa, a responder E tem Steve Barnes, um jovem que eu só encontrei
a próxima pergunta – em um mundo onde tanto o fazer e pela primeira vez na convenção de ficção científica mundial
o não fazer, o pensar e o não pensar são, para bem ou para em Phoenix, Arizona, em 1978, cujas primeiras histórias
mal, diferentes ações com diferentes consequências. apareceram alguns anos atrás.
Há um número de perguntas que me fazem com tan- Em resumo, não muitos – para uma área que consti-
ta frequência que, antes que nós comecemos uma sessão tui algo em torno de 15% de toda a nova ficção publicada
geral de perguntas-e-respostas, eu devo usá-las para te nos Estados Unidos.
estimular. Deveriam os escritores negros escrever mais ficção
Há um montante considerável de histórias que científica?
possam ser consideradas especificamente ficção científica A ficção científica é atualmente um mercado de ven-
“negra”? das. As pessoas querem lê-la – todos os tipos de pessoas.
Registrado? Não, não há. Os donos de editoras querem livros e histórias para preen-
Somam uma dúzia de romances de ficção científica cherem suas listas. O mercado para a ficção mundana está,
que publiquei nos últimos 15 anos, dois tiveram especifi- em comparação, se contraindo. Quando editores da ficção
camente personagens centrais negros (Nova, The Einstein mundana (é o que nós na área de FC chamamos de ficção
Intersection), um tinha um personagem central oriental ordinária, do aqui-e-agora) dizem que querem “algo novo”,
(Babel-1717), um tinha um personagem central mestiço de eles também querem algo “seguro”, um bom dispositivo e
índio americano (em meu romance mais popular, Dhalgren) um dispositivo conhecido para alavancar as vendas – que
e dois tinham especificamente personagens centrais bran- estão murchando um pouco no geral.
17 NdT. A sair pela editora Morro Branco em 2019. 18 NdT. Editora Cedibra, 1971.
185
curar novas e interessantes abordagens para as histórias.
Qualquer autor que goste de ler ficção científica,
que se sinta em casa na área e confortável com suas con-
venções, seja qual for a raça ou a cor deste escritor, está
perdendo uma experiência excitante e compensadora em
não lançar mão (a dela ou dele) de uma história ou romance
de FC.
Precisamos de imagens do amanhã; e nosso povo
necessita delas mais do que tudo.
Sem uma imagem do amanhã, somos encurralados
por uma história, economia e política cegas, para além do
nosso controle. Somos amarrados em uma teia, em uma
rede, sem chance de lutar pela liberdade. Somente tendo
imagens claras e vitais de muitas alternativas, boas e más,
de onde se pode ir, é que nós teremos algum controle so-
bre o modo com que devemos, na verdade, entrar em uma
realidade na qual o amanhã trará tudo muito rápido.
E nada dá tal profusão e riqueza de imagens de nos-
sos amanhãs – embora muito delas deveriam ser revisadas
– do que a ficção científica.
afrofuturismo
08 afrofuturismo Por que um termo forjado há 24 anos – para teorizar a
187
ficção distópica que é a vida dos negros na América, a
e
moda?
D r
Do que falamos quando falamos de Afrofuturismo?
k y
“Se houver um Afrofuturismo, ele deve ser procura-
do em lugares improváveis, constelados em pontos distan-
r
tes”, escrevi em 1992, no ensaio em que cunhei esse termo
(Black to the future, publicado em 1993).
O que Jada Pinkett Smith tinha em mente quando,
em um discurso com punho erguido sobre empoderamento
Ma
afrofuturismo reloaded
das oito pessoas mais inteligentes do planeta”. Tudo isso da Era Iluminista em algum momento do século XVII, o
189
faz dele um afrofuturista? Se for o caso, seu poder mágico, futurismo negro determina que o reino ardente do simbó-
enquanto símbolo, é diminuído pela associação demasiada- lico e do mítico e do retórico e do espiritual e do malicio-
mente familiar da negritude com a natureza e o irracional? samente estiloso, sônico e polirrítmico se tornaria o reduto
Ao contrário, por exemplo, do Batman e do Homem de da nossa cultura, a raison d’être e nosso campo de batalha
Ferro, deuses protéticos cujos exoesqueletos são milagres culturalmente triunfalista.”
do engenho tecno-industrial, os poderes da Pantera deri- O Storyboard P, dançarino pós-moderno do
vam em partes do mineral mítico Vibranium, que é tecido Brooklyn, é um avatar do Afrofuturismo? Mestre incontes-
em seu uniforme. Da mesma maneira, sua comunhão mís- tado do estilo de street dance conhecido como “flex”, ele
tica com o Deus Pantera, que o dota de força, velocidade se inspira em Michael Jackson, Amor, sublime amor, break-
e sentidos sobre-humanos de um gato silvestre, se torna dancing e no jazz acrobático de cair o queixo do grupo de
possível graças à ingestão de uma erva rara em forma de sapateado dos anos 30, Nicolas Brothers, para incarnar o
coração. Será que há uma dose elevada demais de H. Rider que pode ser chamado efeito tecnológico. Piscar, oscilar,
Haggard3 em seu exotismo das-profundezas-da-África-mais- cortar, deliquescer, se transformar... Ele é o cinema encar-
-sombria? nado, e incorpora as características idiomáticas de silêncios
Ou é isso que o Afrofuturismo faz – contestar os pre- à manivela, animação stop-motion, imagens geradas por
conceitos positivistas, racionalistas, materialistas do projeto computador. Ele tem um conhecimento fortuito de balé
Iluminista reafirmando o valor da intuição e do subcons- clássico, mas suas reais influências são as balas de Matrix, o
ciente, das maneiras pré-industriais e míticas de modelar o transfigurador em metal líquido do Terminator 2, os espa-
mundo, de um sentido holístico de nossa inter-relação com dachins que desafiam a gravidade em O Tigre e o Dragão.
a natureza, em vez de uma alienação do mundo natural que Seu nome artístico, Storyboard, ressalta o seu desejo de
a colocam sob o signo do Feminino, que convém abater, atravessar a tela, se fundir com o virtual, se transformar em
garimpar, estragar, foder? É o que sugere Greg Tate em seu um efeito especial – e, conscientemente ou não, dominar,
livro em andamento Kalahari Hopscotch, or: Notes Toward através de uma zombaria da imitação indefectível, a má-
a 20-Volume History of Black Science and Afrofuturism4: quina cuja lógica taylorista-fordista ordena nossas vidas.
“Tendo cedido o cenário da guerra racial ao imperialismo Ele chama sua versão da dança “flex” de “mutante”, termo
cujo subtexto racial não escapa ao seu entendimento – é só
3 NdT. Escritor inglês do fim do século XIX, cujo universo ficcional relembrar as ficções baratas da era atômica5 sobre mons-
é impregnado da cultura colonial do império inglês na África. Os pro-
tagonistas de seus romances de aventura são exploradores ingleses
que veiculam uma grande quantidade de clichês sobre os países 5 NdT. A Era atômica ou nuclear – “The Atom-Age” – se refere
africanos. Entre os seus livros mais famosos: As Minas do Rei Salomão, ao período que sucede a Segunda Guerra mundial, e as primeiras
cujo herói, Allan Quatermain, serviu de inspiração à criação de Indiana explosões atômicas, em que um grande número de histórias em quad-
Jones. rinho e filmes de série B representaram um mundo devastado por
4 NdT. Finalmente publicado sob o título: “Flyboy 2: The Greg Tate bombas atômicas e outros desastres ligados à radioatividade – Godzil-
Reader, Duke University Press, 2016. la e Dr. Strangelove estão entre os mais conhecidos.
191
vos e cancerígenos desproporcionalmente localizados ao seus sapatos Oxford que gosto de ler como uma referência
redor de comunidades de cor? –, assim como ele sabe que ao blerd (black nerd) original Steve Urkel, geek da feira de
é sempre hora para tiros em alguns bairros de Nova York, ciências castrado pela sua maestria tecnológica em Family
onde o Whole Foods6 ainda há de plantar sua bandeira de matters, sitcom dos anos 90.
civilização e a Kombucha7 ainda não é a bebida predileta. No filme mudo expressionista alemão que inspirou
“Eu sei como me desviar dos tiros”, afirma Storyboard P. Metropolis: Suite I, os soberanos industriais criam uma inva-
Será que Janelle Monáe é uma garota modelo para sora robótica, um malévolo simulacro de sindicalista, Maria,
o Afrofuturismo? No clip de sua música “Many moons” (do para infiltrar as proles. Monáe inverte essa alegoria; seu
seu álbum sci-fi conceitual Metropolis: Suite I (The Chase)8), androide é uma Harriet Tubman11 hip-hop adaptada à era
ela interpreta a androide de ponta Alpha Platinum 9000 no Novo Jim Crow12, como diz a pesquisadora em direito
Cindi Mayweather. O cenário é uma casa noturna retrô-futu- Michelle Alexander, despertando a “robota” (uma metáfo-
rista cujas coordenadas espácio-temporais se situam entre ra, eu presumo, para a classe baixa negra) com um apelo
The Cotton Club9 e a ideia de Fritz Lang do Estúdio 54, em em que ela canta: “Garota cibernética, dróide de controle
uma megacidade repleta de arranha-céus governada por / fuja agora, eles querem roubar sua alma... Briga de rua,
tecnocratas. A cena é o “leilão anual de andróides” – um guerra sangrenta / Instigadores, terceiro andar... Suor plás-
mercado de escravos, para que fique bem claro, especial- tico, pele de metal / Lágrimas metálicas, manequim... Casa
mente quando se guarda em mente que a origem etimo- Branca, Jim Crow / Mentiras sujas, minhas saudações.”
lógica da palavra “robô”, forjada por Karel Čapek em sua No entanto, Cindi Mayweather é perversamente po-
peça R.U.R. (Robôs Universais de Rossum) de 1920, vem livalente, ignorando o humanismo subjacente das políticas
da palavra tcheca robotnik (escravo), derivada de robota identitárias enquanto ela prega a liberação negra. “Quando
(trabalho forçado, serviço obrigatório, labuta), um parente eu falo de ficção científica, do futuro e de andróides, estou
próximo da palavra alemã Arbeit, que significa “trabalho”, falando do ‘Outro’”, Monáe afirma, “a forma futura do
no sentido do que nos libera – como todo escravo do salá-
rio sabe. Monáe arrasa com o seu topete pompadour dos 10 NdT. Ridley Scott, 1982. Rachael é interpretada por Sean Young.
anos 40 que eu gosto de enxergar como uma alusão à Ra- 11 NdT. Militante pela abolição da escravagem durante o século XIX
nos Estados Unidos, que ajudou a resgatar famílias escravizadas, ela
também militou pelo direito de voto das mulheres no fim da sua vida.
6 NdT. Rede de supermercados nos Estados Unidos que comercial- 12 NdT. As leis Jim Crow reforçavam a segregação nos Estados
iza produtos orgânicos e naturais. Unidos, hoje ainda que a segregação não exista mais legalmente, o
7 NdT. Bebida probiótica de origem chinesa, fabricada a partir da conceito de “era do Novo Jim Crow” sublinha a preponderância de
fermentação de chá, apreciada por sua suposta capacidade de regen- homens afro-americanos nas prisões do Estado, como sintoma de um
eração da flora intestinal. racismo estrutural. Essa constatação é a base do trabalho da defen-
8 NdT. “Bad Boy Records”, Washington DC, 2007. sora dos direitos civis e pesquisadora em direito Michelle Alexander,
9 NdT. Francis Ford Coppola, 1984. A estória se passa em um club em seu livro “The New Jim Crow: Mass Incarceration in the Age of
de jazz nova-iorquino durante a lei seca nos Estados-Unidos. Colorblindness”, The New Press, 2010.
193
mulheres.” Encarnando uma Rachael do movimento pelos res de algodão e dróides domésticos em seres humanos
direitos dos replicantes, Cindi espera ansiosamente por um plenos que sonharam com liberdade. Tate aconselha “os
mundo pós-antropocêntrico no qual máquinas inteligentes discípulos de Marx a reconsiderar o caos das rupturas que
também são criadas em igualdade. “Eu adoro falar sobre ocorrem necessariamente quando a teoria passa a alimen-
androides porque eles são o novo ‘Outro’”, confiou Monáe tar o fato de que mercadorias podem falar, não em um
à MTV. “As pessoas temem o Outro, e eu acredito que nós sentido ficcional ou especulativo de um ‘e se?’, mas como
viveremos em um mundo com androides por conta da tec- um fato biológico incontestável e inegável.” Em um con-
nologia e a maneira como ela avança.” traste gritante à tendência anti-antropocêntrica na filosofia
Talvez, então, seja essa uma das razões pelas quais o contemporânea – sintetizada por uma ontologia orientada
Afrofuturismo esteja tocando uma corda sensível na mente a objetos, que leva os ataques foucaultianos ao humanismo
coletiva, neste momento preciso. As Extensões do ho- iluminista a dimensões extremas de ficção científica, recu-
mem13, como diria McLuhan sobre nossas próteses tecnoló- sando-se a privilegiar humanos a objetos – o Afrofuturismo
gicas, estão se tornando cada vez mais inteligentes, ainda é consciente demais, como Tate nos relembra, do fato que
assim, por enquanto, submissas; Siri é o nova Butterfly Mc- objetos podem ter uma vida interior. Consequentemente, o
Queen14. Como nós terceirizamos mais e mais das nossas Afrofuturismo está muito menos preocupado em derrubar o
funções cognitivas a nossos servos programados, não po- ser humano do seu poleiro ontológico que em forjar alian-
demos exatamente suprimir a apreensão crescente de que ças com Outros de quaisquer espécies, humanas ou pós-
a Internet das Coisas um dia possa montar uma insurreição. -humanas, androides, ciborgues ou monstros esperançosos
Por mais que os paralelos com a América pré-Guerra Civil de uma miscigenação entre homem e máquina.
sejam óbvios, eles não podem se aplicar à esmagadora e Simultânea e paradoxalmente, o Afrofuturismo está
nada surpreendente maioria branca de palestrantes de TED no ar porque o século XXI, que sempre foi uma metonímia
Talks, rapsodistas da Silicon Valley e bajuladores da Apple do futuro, chegou enfim. E ainda que a aceleração ator-
que passam por experts tecnológicos na nossa imprensa. doadora da mudança tecno-social faça com que sintamos a
Contudo, esses paralelos não deixam de se justificar quan- necessidade de um novo tempo verbal – o “futuro presen-
do relacionados a trabalhadores culturais negros tais como te” – para descrever a vertigem do cotidiano, para negros
Monáe ou estudiosos como Greg Tate. Alfabetizações americanos, surreal é o abismo entre progresso tecnológico
usurpadas abriram uma bíblia de revelações para escravos e justiça social – acenada constante e sedutoramente, e
195
xergaram o futuro, irmão, e é assassinato, seja na forma de neira nunca acabou. Como disse Sun Ra, “Vivemos após o
um tiroteio “envolvendo policiais” – eufemismo oficial aos fim do mundo, você não sabe disso ainda?”
homicídios sancionados pelo Estado, que a mídia repete O Afrofuturismo apela aos nossos tempos porque
obedientemente feito papagaio – ou por mortes não natu- somente ele – e não os Precogs corporativos ahistóricos,
rais sob custódia policial ou nas mãos de um justiceiro racial apolíticos das TED talks, nem as fátuas franquias hollywoo-
fanático em sua ronda da Vigilância de bairro ou por uma dianas que não têm nada a dizer dos nossos tempos –
sociedade de gatilho-fácil tão ideologicamente balcanizada oferece uma mitologia do futuro presente, uma narrativa
e demograficamente isolada e politicamente impotente explicativa que recupera os dados perdidos de uma memó-
que a única saída desse lugar, para muitos, é uma das duas ria histórica; somente o Afrofuturismo encara a realidade
ficções especulativas: abdução alienígena que os evangéli- distópica da vida dos negros na América, e exige espaço
cos chamam de Arrebatamento ou o apocalipse-zumbi que para pessoas de cor entre os monotrilhos e monólitos
os “preparadores” sobrevivencialistas, neuróticos de ex- de Hugh Ferris de nossos amanhãs; somente ele insiste
trema-direita anti-governamentais e suprematistas arianos em que a nossa Visão das Coisas por vir18 cumpra com
parecem levar mais do que meio a sério. as nossas aspirações por igualdade racial e justiça social.
Americanos descendentes de africanos não têm “Nós precisamos de imagens do amanhã, e nosso povo
nenhum gosto particular pela fantasia sobrevivencialista de precisa delas mais do que a maioria”, escreve Samuel R.
um retorno às fronteiras americanas, um paraíso retomado Delany no seu ensaio The Necessity of Tomorrow(s). “Sem
por um individualismo robusto e uma justiça dura onde um uma imagem do amanhã, fica-se encurralado pela história
homem feito Rick Grimes de The Walking Dead pode se cega, pela economia e por políticos fora de nosso controle.
erigir contra hordas de vira-latas e “Tornar a América Gran- Amarra-se em uma teia, uma rede, sem nenhuma maneira
de Novamente” com a ponta de uma pistola. Para negros, de se liberar. É somente tendo imagens claras e vitais de
o apocalipse aconteceu há muito, muito tempo quando várias alternativas, boas e ruins, de aonde pode-se ir, que
para lá do abismo atlântico intelectos alienígenas, “frios teremos algum controle sob o meio de atingir nossos obje-
e insensíveis16”, os contemplaram “com inveja” (como os tivos em uma realidade que o amanhã trará rápido demais.
marcianos contemplam a Terra na Guerra dos mundos), E nada oferece tanta profusão e tanta riqueza de imagens
prelúdio ao momento de colocá-los a bordo de navios de para os nossos amanhãs – ainda que elas tenham que ser
escravos e de transportá-los através das galáxias feridas17 revistas – quanto a ficção científica”.
Greg Tate conta uma história sobre um dos seus
16 Frase tirada da “Guerra dos Mundos” de H. G. Wells (1887) :
estudantes na Universidade de Brown, onde ele ensina uma
“No entanto, para lá do abismo do espaço, vastos intelectos frios e
insensíveis, contemplavam esta Terra com inveja, e lenta e segura-
matéria chamada “A história do Afrofuturismo e da ficção
mente, traçavam os seus planos de ataque contra nós.” científica negra”: “Um dos meus estudantes me falou que
17 Referência ao livro de entrevistas com autores contemporâneos
de ficção científica “Across the Wounded Galaxies” (1990) do editor e 18 Em referência ao título do H. G. Wells “Shape of things to come”
professor de literatura comparada Larry McCaffery. (1933).
197
que ela o tornava otimista, aberto, e isso apenas revelou
a mim que ainda existe um certo sentimento terminal da
existência para pessoas afrodescendentes, um sentimen-
to distópico, um sentimento de ser apagado, erradicado,
genocidado, sabe; esse termo, Afrofuturismo, instaurava
em meu estudante as possibilidades criadas por um otimis-
mo cego. Como um talismã, com propriedades encantadas.
Você nunca deve subestimar o valor, o poder conjurador
de certas palavras. O que as pessoas fazem delas tem a ver
com o grau segundo o qual elas querem prosseguir criando
e imaginando o futuro.”
A esperança é uma ficção especulativa.
afrofuturismo
08 5 DE SETEMBRO DE 2017
199
Ingrid
Em 2017, declarei minha candidatura à prefeitura de De-
troit, Michigan. Segue abaixo meu plano de ação apresen-
tado pela primeira vez em agosto, pouco antes da primária.
PLANO DE AÇÃO
Laf leur
de talento, de habilidades e de trabalho. Detroit necessi-
ta de uma nova economia que promova um novo sistema
de valores. Os sistemas econômicos e de governo atuais
são formas antiquadas de administrar e sustentar crenças
e valores desalinhados com os cidadãos de Detroit. Nós
precisamos de uma governança realmente democrática e
pertencente à comunidade. Ao focar nas raízes das causas
plano de ação
◊ Inovar o futuro Para trilhar um novo caminho, Detroit precisa se tor-
201
◊ Fortalecer a economia local nar uma sociedade digital. Usando a tecnologia blockchain
a prefeitura pode aumentar dramaticamente a transparên-
cia, a eficiência e a responsabilidade. Um blockchain é um
A REVITALIZAÇÃO DA CIDADE EXIGE OS SEGUINTES grande livro contábil de transações que é seguro e nunca
ELEMENTOS: pode ser manipulado. O uso da tecnologia blockchain
pode eliminar a burocracia desnecessária. Contratos (entre
◊ Um governo eficiente com total transparência e cidadãos e o governo, o governo e corporações) criados
responsabilidade usando blockchain podem reduzir o tempo necessário para
processar trabalho administrativo, aumentam a eficiência
◊ Erradicação da pobreza pela raiz
das solicitações e documentos, e permitem que qualquer
◊ Participação proativa em indústrias emergentes um acesse o contrato em tempo real. Criar um ID cidadão
e competência inovadora em tecnologias do seguro usando a tecnologia blockchain possibilitaria tran-
futuro sações instantâneas no caso de solicitações de alvarás,
cadastros online para votar, acesso a registros médicos,
◊ Uma economia local forte que estimule peque-
pagamentos de estacionamento, elaboração de contratos
nos negócios
imobiliários e mais.
◊ Uma qualidade de vida que encoraje e apoie a A tecnologia blockchain é também a base das
busca pessoal e coletiva pela felicidade criptomoedas, moedas digitais. A economia local pode ser
amplamente fortalecida pela criação da criptomoeda local
◊ Engajamento cívico ativo de seus residentes de Detroit, chamada D-coin.
Para realizarmos uma verdadeira revitalização, nós devemos RENDA BÁSICA UNIVERSAL (RBU)
considerar as histórias e opressão da maioria da população
afrodescendente em Detroit. Os fundamentos de todas as Nos próximos 15 anos, 38% dos empregos será extinto de-
instituições – governo, polícia, educação, museus – foram vido a automação e a tendência é aumentar. Para amenizar
construídos para silenciar, anular, deslocar e despojar as esta perda, Detroit deve:
pessoas negras de poder. Estas instituições jamais foram
criadas para que os cidadãos negros prosperem verdadei- ◊ Criar uma estrutura de renda básica universal
ramente. É hora de um novo plano e novo sistema que (RBU) em que todo cidadão acima de 18 anos
seja saudável e próspero para a população negra, e como recebe o equivalente $ 2000,00.
resultado para todos os moradores de Detroit. É por este
◊ Metade do valor da RBU seria em D-coin e só
motivo que eu proponho uma renda básica universal. Isto
poderia ser utilizado dentro de Detroit para pa-
ajudará a amenizar a pobreza, aumentar a estabilidade
financeira e inspirar a inovação.
203
locais. de códigos obrigatórias nas escolas; estágios em
empresas que trabalhem nestas áreas.
◊ Detroit processaria, ou mineraria, cada transação
em D-coin. Uma parte da renda gerada retorna- ◊ Internet disponível em toda cidade. Começare-
ria para renda básica universal e o restante seria mos expandindo as redes de malha nos bairros
investido na educação para jovens. para que todas as residências tenham acesso à
internet.
◊ A outra metade, $ 1000,00, seria paga em moe-
da corrente. ◊ Treinamentos em criptografia, programação,
escrita de código e robótica para adultos.
◊ E-residência permitiria que visitantes entrem no
sistema e comprem $ 1,000 D-coins.
ÁGUA
◊ D-coins seriam aceitos no pagamento de servi-
ços públicos municipais como transporte e taxas. Milhares de pessoas vivem sem água em Detroit por causa
de dívidas com a conta de água. A taxa de tratamento de
◊ D-coins podem ser convertidos em criptomoe-
esgoto se tornou proibitiva, e por consequência, os cida-
das mais populares como bitcoin e Ethereum.
dãos não conseguem pagar suas contas de água, que está
◊ Os residentes de Detroit incluem o que estão entre as mais altas do país. Os cortes de água representam
encarcerados. Os fundos da RBU seriam poupa- riscos à saúde pública. Uma moratória dos cortes de abas-
dos e liberados quando o cidadão for libertado. tecimento é absolutamente necessária. Além de medidas
como:
◊ Um morador de Detroit deve residir na cidade
por, no mínimo, três anos antes de receber a
◊ Redesenho da infraestrutura de água para lidar
RBU.
adequadamente com o fornecimento combina-
◊ D-coins adicionais podem ser recebidos por do com o aumento do fluxo de esgoto.
períodos de trabalhos voluntários realizados em
◊ Desvincular as contas de água das taxas dos
organizações ou projetos da cidade que preci-
impostos prediais.
sem de apoio. Um banco de horas municipal.
◊ Criar espaços de captação de água das chuvas
LETRAMENTO DIGITAL nos bairros.
◊ Adoção de um Plano de acessibilidade de água,
Os cidadãos de Detroit devem obter alto nível de compe-
em que as contas correspondam a 2% da renda
tência em tecnologias digitais para participar da sociedade
domiciliar.
digital, e também para inovar.
205
e programação para cidadãos de volta à socie-
Em função da proximidade de Detroit com fontes de água dade.
e terras cultiváveis, estima-se que teremos um aumento da ◊ Acesso à assistência social.
população provocado pelas mudanças climáticas. Para se
preparar, Detroit precisa de: ◊ Criar centros de resolução de conflitos hiper-lo-
cais para solucionar crimes não-violentos.
◊ Um plano climático para que Detroit esteja ◊ Trabalhar com a diretoria dos Distritos comunitá-
operando completamente com fontes renováveis rios das escolas públicas de Detroit para treinar
por volta de 2025. os professores e administradores escolares em
◊ Criar uma cooperativa de energia solar que práticas de justiça restaurativa.
abranja toda a cidade. O dinheiro gerado será
direcionado para os conselhos administrativos
BANCOS
regionais e associações de moradores. As verbas
ajudariam a manter a limpeza e a beleza dos
Criar uma cooperativa de crédito municipal capaz de
bairros, financiando unidades de conservação
processar o dinheiro da indústria da canabis, assim como
comunitárias e microcrédito para negócios.
o D-coin. Associações de moradores e organizações dos
◊ Uma campanha educativa sobre mudança climá- bairros receberão seus financiamentos através das contas
tica e uso de energia. no banco municipal.
Mais encarceramento apenas exacerba o ciclo de pobreza. Detroit tem uma das taxas mais altas de execução de hipo-
Com o treinamento dos policiais e a instituição de práticas tecas desde a Grande Depressão. Entre 2011 e 2015, mais
de justiça restaurativa, Detroit pode reduzir os índices de de 100 mil residências tiveram que ser desocupadas pela
encarceramento e assim aumentar a oferta de talentos. execução das hipotecas e aproximadamente 85% destas
casas foi avaliada indevidamente em mais de 50% de seu
◊ Programas de empreendedorismo para cidadãos valor de mercado. A avaliação indevida resultou em muitos
que concluíram suas penas. moradores de Detroit perdendo suas casas. Para retificar
este crime e garantir que não volte a acontecer, Detroit
◊ Aumento dos serviços de saúde mental para a
pode:
população e cidadãos libertos do cárcere.
◊ Trabalhar com o Condado Wayne para usar seu
excedente para dar restituições aos que perde-
207
vidas e impostos prediais. Eles receberiam uma pela câmara dos vereadores, compartilhar infor-
casa em bom estado e não pagariam impostos mações e manifestar opiniões.
por cinco anos.
◊ Pagar estacionamento com transições em D-coin
◊ Ampliar os esforços para manter as pessoas em sem a pressão de multas.
suas casas e criar um programa de crédito para
◊ Facilitar o acesso a registros de saúde, escrituras,
reformas domiciliares.
licenças, certidões e atestados de óbito.
◊ Ajudar as associações de moradores a criar uni-
dades de conservação comunitárias. DEPARTAMENTO DE PROJETOS CULTURAIS
◊ Usar a tecnologia blockchain para registrar e
tornar mais acessíveis os contratos de imóveis, Para estimular o crescimento do setor criativo, um departa-
escrituras e títulos. mento de projetos culturais é necessário.
209
preta, todos administrados pelos jovens.
◊ Instituir um “Prefeito da noite” que vai supervi- A canabis é uma indústria de crescimento rápido. Previsões
sionar o transporte, o funcionamento estendido indicam que em 2021 a indústria atingirá 50 bilhões de
de clubes e restaurantes, a segurança e criar um dólares. Detroit deve ser estratégica com esta indústria lu-
plano para desenvolver a economia noturna. crativa conforme ela cresce dentro da cidade. Detroit deve
defender a ampla legalização da canabis e do cânhamo e a
◊ Aumentar o acesso a eventos de arte e cultura retidão dentro da indústria.
na cidade, criando um departamento de turismo,
um site e um aplicativo que divulgarão as infor- ◊ A cidade deve adotar a estrutura de licencia-
mações mais recentes sobre eventos em Detroit. mento do estado de Michigan e autorizar que
◊ Criar uma orientação em Cidadania de Detroit outros negócios sejam criados na cidade, como
para que recém-chegados entendam melhor a transporte, cultivo, processamento, segurança e
história e cultura da cidade. compliance.
◊ Agilizar os processos de autorizações e reavalia- ◊ Usar a receita dos impostos para criar programas
ção do zoneamento. educativos sobre o uso medicinal da maconha,
leis relativas à legalização e treinamentos de
negócios. Depois de dois anos de educação,
as receitas irão para os serviços municipais e
IMIGRAÇÃO
escolas.
A diversidade de Detroit é o que faz dela uma cidade ◊ Cultivo de cânhamo em propriedades ociosas da
global em ascensão. Para manter este ecossistema global, prefeitura, manufatura de produtos e exportação
Detroit precisa ser uma cidade santuário onde imigrantes deles para todo o país.
são protegidos pelas políticas públicas e pela lei.
◊ Produção de “concreto de cânhamo” e aplica-
ção para reparar nossas estradas e outras neces-
◊ Criar uma rede de compartilhamento de habili-
sidades de infraestrutura.
dades para troca de conhecimento e de melho-
res práticas. ◊ Trabalhar imediatamente para libertar todos os
encarcerados por posse de maconha ou inten-
◊ Expandir o apoio a organizações que trabalham
ção de comercializá-la.
com imigrantes e refugiados.
◊ Garantir que pessoas aprisionadas anteriormente
poderão participar e abrir negócios ligados à
maconha.
211
empresas pertencentes a mulheres e pessoas
negras.
◊ Criação de Áreas Verdes onde moradores de
Detroit e visitantes possam frequentar parques
e estabelecimentos amigáveis ao consumo de
maconha em várias regiões da cidade.
◊ Legalização do uso de vaporizadores em pú-
blico. Licenciar coffeeshops que permitam o
consumo.
afrofuturismo
10
DRE
Seria possível aos humanos respirar debaixo da água? Um
213
feto no útero da mãe está certamente vivo em um ambien-
te aquático.
Durante o maior holocausto que o mundo já conhe-
ceu, escravas Africanas grávidas, a caminho da América,
eram atiradas ao mar aos milhares durante o parto por
serem uma carga doente e disruptiva. Seria possível que no
mar elas dessem à luz bebês que nunca precisariam de ar?
XCIYA
Experimentos recentes mostraram ratos aptos a
respirar oxigênio líquido. Ainda mais chocante e conclusivo
foi o caso recente de um bebê humano prematuro salvo de
uma morte certa pela respiração de oxigênio líquido atra-
referência
Fim – Escritor Desconhecido
Drexciya. “The Quest”.
Detroit: Submerge, 1997.
2 CDs. Veja em: https://www.
discogs.com/Drexciya-The-
Quest/release/1545133
a busca
215
afrofuturismo a busca
11
hun O termo afrofuturismo vem do livro de Mark Dery de 1993,
217
s
mas sua trajetória começa com Mark Sinker. Em 1992,
Sinker começa a escrever sobre ficção científica negra,
porque tinha acabado de voltar dos Estados Unidos e Greg
Tate escrevia bastante sobre o vínculo entre ficção científica
e música negra. Tate escreveu uma resenha intitulada “Yo
oE
Hermeneutics”, que era ao mesmo tempo uma resenha de
Rap Attack, de David Toop, e do livro de Houston Baker. Foi
um dos primeiros textos a expor essa ficção científica da
música negra tecnológica. Mark foi pra lá, conversou com
219
çam. Com esse isolamento, ao tornar a batida portável, lobisomem por completo você de repente vê num relance
com essa extração da batida, eles geraram uma espécie o humano, e então ele se esvanece de novo. É isso que
de eletricidade. Eu chamo isso de capturar o movimento: a skratchadelia faz, essa mistura instável entre a voz e o
em filmes como Jurassic Park e todos esses grandes filmes vinil. Esse novo efeito de textura, essa mudança de fase
animatrônicos, captura de movimento é o dispositivo por da voz para esse novo som, por assim dizer. Então eu sigo
meio do qual o corpo humano é sintetizado e virtualizado. da skratchadelia do Grandmaster Flash com o Electro, para
Eles têm um cara dançando devagarinho, e cada uma das um outro grupo chamado Knights of the Turntable. E deles
suas articulações se prende a luzes e eles projetam isso para Goldie e 4 Hero, especificamente no graffiti, seguin-
numa interface, e pronto: você literalmente capturou o mo- do a complexificação do breakbeat via wildstyle. Porque o
vimento de um humano, agora você pode virtualizá-lo. E eu wildstyle é uma linguagem criptografada, na qual uma única
penso que é isso que o Flash e esse pessoal fizeram com letra se transforma num ambiente tipográfico no qual se
a batida. Eles agarraram uma batida potencial que sempre adentra. Olhar o wildstyle é uma ginástica da percepção. E
esteve lá, intensificando a da engrenagem do funk, materia- há uma grande relação entre o graffiti e o break. Goldie diz:
lizando-a como uma parte mesmo do vinil que poderia ser “Minhas batidas são esculpidas em 4D, em quatro dimen-
repetida. Eles ligaram a potência material do intervalo, há sões”. E, de maneira similar, tem esse cara famoso do gra-
muito adormecida. É isso que eu sigo, esse isolamento do ffiti, o Kaze 2, que em 1989 já estava falando sobre ir além
breakbeat, numa esfera diferente. Por meio do Grandmaster do wildstyle. O wildstyle era 3D, e o Kaze 2 já estava falando
Flash e da invenção da skratchadelia. em 5 dimensões, ele estava falando em Computer style. Ele
Quando o scratching começou, a reação imedia- dizia: “No meu trabalho eu faço computer style, faço a es-
ta das pessoas foi pensar que era uma manobra, depois cada penta-dimensional com degraus paralelos.” Isso vem
que era um efeito interessante. Mas se você procurar nos do Escher. Então eu sigo a ciência do breakbeat desde esse
livros você verá que a maioria das pessoas, ao falar de sk- isolamento do DNA rítmico, passando pela Escherização,
ratchadelia, de arranhar o vinil, diz que se trata de esfregar até o seu momento de complexificação – e daí sigo para o
o vinil com ritmo, de um jeito percussivo, para acompanhar drum’n’bass, que, por sua vez, como tem as batidas digi-
o restante da música. Elas entendem esse lance de ler o talizadas, é informação manipulada. Eu sigo a ciência do
vinil de trás pra frente como um processo rítmico. Mas, na breakbeat, sigo até a conclusão de faixas de gente como 4
verdade, não é um processo rítmico o que rola. É um efeito Hero, especificamente Parallel Universe, que é onde eu en-
de textura, e isso é uma novidade. Não há nada pareci- fatizo e enfoco a ciência do breakbeat. E uma coisa que eu
do com o scratching, e ele nunca existiu de outra forma noto sobre a ciência do breakbeat, sobre o modo como a
antes de ser essa coisa incrível que é. Scratching é algo ciência é usada na música em geral, é que a ciência é sem-
como uma sequência transformativa, meio como a versão pre usada como uma ciência intensificadora de sensações.
em áudio do que acontece em A coisa ou em Lobisomem Nas duas culturas clássicas da sociedade convencional, a
Americano, quando você vê o humano se transformando ciência é ainda a ciência que drena o sangue da vida e dei-
221
que você ouve a palavra ciência, você sabe que terá uma Daí o famoso constrangimento quando os jornalistas ingle-
intensificação de sensações. Assim, a ciência se refere a ses chegavam em Detroit e perguntavam: “De onde essa
uma ciência da engenharia sensorial, então Parallel Univer- música vem?”, para descobrir que ela vinha justamente de
se anuncia isso, com seus títulos como Sunspots ou Wrinkles onde eles tinham saído, para descobrir que a origem era
in Time. Trata-se dos pontos em que as leis da gravidade e deles mesmos. Esse é o primeiro caso explícito em que a
de tempo e espaço colapsam, e estão, ao mesmo tempo, música branca é a original, e os músicos negros americanos
dizendo que o ritmo está prestes a colapsar quando você são os adulteradores e os que pastichizam. O techno é a
adentra essas zonas. Então você tem alguém como Goldie, completa reversão do mito do clássico dos anos 1960, do
que faz Timeless, e Timeless simples e obviamente refere-se blues e dos Rolling Stones, de toda a herança do rock, que
ao loop infinito do breakbeat, que Goldie experimenta. começa com o famoso mito do Muddy Waters e dos Rolling
E então tem a questão racial do sintetizador, en- Stones. No techno, há uma reversão imediata. No techno, o
tramos na questão racial do sintetizador, que é o techno, Kraftwerk é o delta blues, o Kraftwerk é onde tudo começa.
e toda a relação entre os primeiros rapazes de Detroit e No techno, o Depeche Mode é o Leadbelly. Os Flock of
o que eu chamo de ouvido importado. Os caras ouviam Seagulls são os Blind Lemon Jefferson. A Europa e a bran-
essas coisas todas vindas da Europa, da Inglaterra, ouviam quitude em geral assumem o lugar de origem. E os negros
a branquidade do sintetizador e passavam a usá-lo, porque americanos são sintéticos; a chave no techno é sintetizar a
aquele som os tornaria alienígenas dentro dos Estados Uni- você mesmo em um novo alienígena americano. Então eu
dos. Esse é o segredo por trás das gravações pioneiras em olho para o sintetizador-raça nos termos dos vários desdo-
Detroit. Todos esses caras – Model 500, Cybotron – tinham bramentos disso, por exemplo, há todo um Darkside com
esses sotaques afetados à la Flock of Seagulls. Por quê? Detroit, sobre o qual eu falo. E então vamos a Undergrou-
Porque eles queriam ser alienígenas nos Estados Unidos. nd Resistance, especialmente, que desenvolveu toda uma
Como eles faziam isso? Cantando como as crianças brancas estratégia de guerra, toda uma investida militar, toda uma
do novo romântico inglês. É a ideia da música branca ser sinestesia da guerra a partir do lançamento de seu single.
exótica aos ouvidos americanos negros. Trata-se de virar o Como cada single torna-se uma espécie de míssil lançado
olho do exótico de volta ao inglês, e isso é parte do pro- na guerra contra os programadores.
cesso que aconteceu. Outra coisa que aconteceu foi que Mas o principal ponto é que estou experimentan-
o techno estava acontecendo sem a marca registrada da do destacar o que chamo de ficção sônica das gravações,
indústria musical do Reino Unido, sem o caminho tradicio- que é uma série de coisas que entram em ação a partir do
nal que acontecia quando aparecia alguma música original momento em que se tem música sem palavras. Assim que
nos Estados Unidos, que era pastichizada na Inglaterra se tem música sem palavras, tudo o mais se torna mais
e na Europa, mixada, remixada e mandada de volta. O crucial: o selo, o material da capa, a foto de capa, a foto
que aconteceu foi o inverso, nesse caso, eram os Estados de contracapa, os títulos. Eles se tornam pontos de partida
Unidos tornando bastarda a música inglesa, pegando a da rota tomada por meio da música, ou para o modo como
223
todas essas coisas se tornam bastante importantes. Então uma geração. A diferença entre quem tem mais de 40 anos
muitas das principais fontes do livro vêm dos encartes; os e quem tem menos é exatamente a familiaridade com os
encartes são a coisa principal. Boa parte do livro trata dos diferentes universos de dados e formas que vão se acumu-
artistas que produzem os encartes. Trata dos caras que lando. Daí há um sem-número de desdobramentos fasci-
fizeram as capas para os encartes do Miles Davis, um deles nantes, sobre os quais trato no livro. Algo como o sistema
é o Mati Klarwein, outro, o Robert Springett, que fez capas nervoso do século XXI. Se voltarmos a Norman Mailer, The
para os álbuns do Herbie Hancock lançados no começo dos White Negro, ele fala bastante sobre construir um novo
anos 1970. Há relações diferentes entre diferentes ficções sistema nervoso. E se relermos um pouco Ballard, Ballard
sônicas, entre o título e a música. Hendrix diria: “O que fala com frequência sobre o conflito entre a geometria e a
estou fazendo é um desenho sônico”. E é possível dizer o postura, a competição entre o animado e o inanimado e o
oposto dos encartes. O motivo pelo qual as imagens dos modo como o inanimado com frequência e sorrateiramente
encartes te capturam é porque eles são um som desenha- vence.
do. Ao ouvi-los, você os imagina como visões estranhas Para mim, faz completo sentido colocar filmes de
conjuradas por meio da música. É mesmo estranho. ação e a skratchadelia no mesmo patamar. São as mesmas
Parte do argumento é operar a reversão das narra- velocidades, os mesmos vetores, os mesmos sons: o som
tivas tradicionais sobre a música negra. Tradicionalmente, de um carro derrapando numa curva é o mesmo som das
elas têm sido autobiográficas ou biográficas, ou tem sido rodas de aço em ação. São os mesmos sons que te captu-
fortemente sociais e fortemente políticas. Meu objetivo é ram e te abduzem em ambos os casos. É esse som fan-
suspender tudo isso e então, no choque dessas ausências, tástico da velocidade, quando duas superfícies em fricção
colocar todo o resto, colocar esse imenso mundo aberto literalmente convergem e em seguida se distanciam numa
por meio da micropercepção do material vinílico real. O velocidade fantástica. É um êxtase incrível. Essas coisas es-
que acontece de imediato, em quase todas as narrativas, é tão acontecendo ao mesmo tempo – qualquer momento no
que as pessoas olham de imediato para além, literalmen- tempo que seja bem fácil de ver, é aí que entra a invenção
te olham para além do vinil, em busca de qualquer lógica sônica. É ser capturado por pequenas frações de tempo,
transcendental que elas possam usar, ao invés de começar ter obssessão por breves instantes. Parte do que acontece
sua atenção pelo vinil. O livro é uma materialização disso. na sampladelia são muitas músicas feitas a partir da memó-
Então, estou olhando para todas essas ficções sônicas, ria do sampler, então muitos dos ganchos, muito da música
olhando para todos os diferentes níveis de ciência que exis- pela qual você é abduzido, precisa ter 4 segundos ou 9
tem dentro do objeto físico. segundos. Então há essa gigantesca psicodelia baseada em
Captura de movimento parece uma operação me- disfarçar esses segundos; como Mark Sinker diz, o universo
cânica acontecendo. Em parte porque todos esses termos num grão sônico – e é isso que o sampler faz. Há esse cres-
já são conhecidos por muitos de nós. Eles constituem uma cimento gigantesco da psicodelia que te permite mergulhar
mitologia não-oficial do final do século, toda essa gama de num universo sônico e ele é granular, são microfonemas de
225
para sua filha, “Você pode voar o mais rápido que conse- muitos tremores e barulhos, nesses casos tem muitos sons
gue para encontrar Jesus?” - ela realmente sussurra. Todo nos quais a percussão fica bastante distribuída, espalhada,
o sample deve durar uns 5, 7 segundos, 8 segundos, 11 muito móvel, móvel demais para o ouvido apreender como
segundos, mas tem algo incrível nele. Você é tão abduzido um som sólido. Aí quando o ouvido para de compreender
por ele, porque você ouve uma atmosfera, você ouve uma essa sonoridade como sólida, o som rapidamente passa a
ambiência, você ouve níveis sônicos em primeiro plano viajar pela pele – e a pele começa a ouvir para você. Quan-
dentro do sample. Você sente que vai sendo abduzido. E o do a pele começa a ouvir é quando você começa a sentir
elemento visual também sugere isso. E eu estava lendo o arrepios, e o arrepio desliza pela sua pele, e as pessoas
Michel Chion, que é um cara muito interessante, foi aluno dizem “Eu senti frio”, ou que a música era fria: porque sua
de Pierre Schaeffer, começou compondo musique concrète pele perdeu talvez um grau centígrado de calor conforme
e se tornou um teórico. Ele é a melhor pessoa para pensar a música a atingia, conforme a batida se prensava à pele.
filme e som. Em parte, minha relação com o som vem do Eu sigo todo esse tipo de coisa. Eu penso que, no que
que Chion fala sobre os sons nos filmes, e estou perceben- diz respeito à luz e ao som, existe uma dimensão que eles
do agora que muitos dos meus samples favoritos são de cruzam o tempo todo. Eles se tornaram versões de samp-
sons em filmes. ladelia. E essa sampladelia, por definição, te permite fazer
A sampladelia inaugura um continuum entre o várias analogias. E ela não só faz a analogia, mas te permite
som visual e o som auditivo. O som visual está sempre se alterar e recombinar.
alimentando de ambos. É por isso que eu gosto muito de A sampladelia é um convite à recombinação. É o
samples de filmes. Provavelmente, o motivo de eu gos- que ela é, é como funciona. Você começa a perceber que,
tar tanto do visual é que ele está sempre se agarrando à quando a maioria das pessoas tenta elogiar alguma coisa,
música. Se o elemento visual some, a música o ativa em elas o fazem como algo que desapareceu há 30, 40 anos.
outro lugar. É como se os olhos começassem a ter ouvidos, Você começa a ver os obstáculos que as pessoas colocam
como Chion diria. Seus ouvidos passam a ter sua capacida- para o novo emergir, o modo como as pessoas constante-
de óptica ativada. De um modo meio estranho, seu ouvido mente freiam qualquer batida2. Então, se eu busco parale-
começa a ver. Chion diz que cada um dos nossos sentidos los, vou sempre buscar encontrar os paralelos que estão,
é dotado de plena habilidade dos outros. É basicamente na verdade, à frente do que sugiro. Assim, não pensar no
dizer que a audição acontece por meio do ouvido, mas to- breakbeat como uma técnica antiga que foi ressuscitada.
dos os outros sentidos também podem passar pelo ouvido. Por exemplo, você vê muita gente dizendo que o breakbeat
O ouvido foi feito para ouvir, mas pode realizar todos os é o tambor africano, o retorno do som da batucada africa-
outros sentidos se tiver suas habilidades ativadas. na, quando na verdade é o oposto. O breakbeat precisa ser
Algo parecido que acontece com frequência é uma
grande transferência para o sentido do tato, sobre o que 2 NdT. No original: “...people constantly put the brakes on any kind
também falo bastante. Quando o som se torna subdérmico, of breaks”. O autor faz uma brincadeira sonora com brake e break,
que se perdeu na tradução.
227
de captura de movimento feito em vinil, antes de qualquer ra, a música respeitável – e é desse modo que as pessoas
equipamento digital ser feito. O Grandmaster Flash poderia experimentam e hierarquizam o corpo. Parte do meu argu-
ter sido um profissional da animação computadorizada; se mento é falar sobre a música dance como, ao mesmo tem-
ele tivesse sido, estaria fazendo captura de movimento. Ele po, sinestésica e que faz a cabeça, porque ela tende a ser
só está fazendo primeiro, no vinil. ambas. Assim que você ouve música dance em casa, como
Então eu tendo a procurar por esse tipo de coi- ela é repetitiva, a experiência se torna uma experiência de
sa. Tem tudo a ver com estabelecer sinestesias, porque fazer a cabeça. Nunca entendi porque elas não podem ser,
é realmente isso que acontece. Eu acho que com quase porque elas não são consideradas a mesma coisa.
todas as variedades da psicodelia rítmica, existe uma zona Parte disso tudo é que o hip hop é música de
de guerra que estabelece a sinestesia. De certa maneira, o cabeça, e não música de palco, o hip hop nunca funciona
sistema nervoso é reformulado pelas batidas em um novo melhor no palco. E é porque ele usa todas essas ficções
tipo de estado, para uma novo tipo de condição sensorial. sônicas; então há toda uma direção sinestésica, e, ao
Diferentes partes do seu corpo estão em diferentes estados mesmo tempo, um continuum com a cabeça. O hip hop
de evolução. A sua cabeça pode estar muito atrasada com tem, inclusive, uma expressão, ‘cabeças’ [‘heads’], que quer
relação ao restante do seu corpo. No drum’n’bass, claro, e dizer, mais ou menos, que o hip hop tem seus próprios
por causa do dub, há uma atenção especial ao passo. Exis- hippies e sua própria música progressiva. Estou falando de
te a ideia de que os pés talvez sejam mais evoluídos, e as Cypress Hill, hip hop e toda sua relação com a tecnologia
mãos também, mãos e pés. O Terminator X falava com as das drogas.
mãos. Outros Djs gritavam com as mãos. Tem esse álbum Eu também costumo dizer que o John Coltrane foi
brilhante de skratchadelia chamado Return of the DJ, lança- o primeiro hippie. Eu me olho para os últimos discos do
do pela revista The Bomb em Frisco, todo feito por Djs, um John Coltrane, discos como Cosmic Music, Interstellar Space,
álbum brilhante. Um cara fez uma faixa chamada Terrorwrist, Om. Coltrane teve uma viagem famosa em 1965, daí ele
seu pulso é o terror, seu pulso envia bombas aterrorizantes. gravou seu disco Om. Manuel De Landa diz que quando
Você pode ver como o DJ evoluiu sua mão, que envia ter- você tem uma viagem você se torna um computador líqui-
ror por meio de um estalido, de acordo com o jeito como do, porque seu cérebro se liquefaz, e eu acho que foi isso
ela toca o vinil. Eu penso com frequência que o corpo está que aconteceu com o Coltrane ali por volta de 1965. Ele
em diferentes estágios de evolução, de expansão. É uma começa a usar “Om”, o mantra indiano, tentando fazer uma
constante guerra acontecendo. música universal, e todo o lance do Om é que ele torna o
Muito do principal trabalho da indústria musical humano uma grande vibração, uma grande e poderosíssi-
convencional, do que eu chamo de amortecedor do cho- ma estação de poder que vibra. Om é essa operação de
quefuturista, é manter uma homeostase, manter as regras se transmutar em campo energético. Então existe esse jazz
tradicionais e herdadas da melodia sobre a harmonia, da do final dos anos 1960 no qual todos esses caras estavam
batida sobre o ritmo, da batida sobre a melodia, essa ma- se transmutando em geradores de potência – e essa músi-
229
funcionou. Basta olhar para essa cadeia musical, de Coltra- repente vão se esgueirando e você começa a usá-las. E já
ne a Sun Ra a Alice Coltrane. Todo um tipo de inteireza por existem tantos conceitos na música que tudo o que precisa
meio do volume, uma sagrada amplificação. ser feito é extrai-los e atuá-los para construir a máquina que
A razão de eu não falar sobre literatura é simples: se deseja construir. Você engancha um conceito no outro e
não há necessidade, com o pensamento sobre amplifica- os solda no próximo. Então em parte o livro é escrito como
ção e o ambiente sensorial de amplificação, do volume um livro de emergência. Não é uma história, e é um des-
em si, o impacto sensorial do volume, o impacto sensorial frute resistir à urgência da história, porque, especialmente
da repetição, da transmissão, todas essas coisas. Há tanto na música negra, há uma diretiva rumo à história, à tradição
o que falar, apenas com relação a volume, a pressão. Há e à continuidade, e esse livro é explicitamente sobre os
uma maneira possível de conectar diretamente os primeiros intervalos, sobre o descontínuo. Marshall McLuhan fala so-
com todo o resto. Você pode falar sobre o áudio-social e bre o descontínuo no século XX. Bem, este livro é sobre os
imediatamente você conectou o som a todo o resto; parece intervalos e os cortes. A herança tem sido insistentemente
que a literatura nunca aparece, exceto como tipos diferen- ressaltada e reforçada nas ideias sobre a música negra. Ao
tes de ficção sônica. Nesse caso, exatamente por estarem trazer para o primeiro plano a máquina e, na sequência, o
num disco, e não num livro, eles não aparecem como lite- vinil, todas as qualidades diferentes transitam entre máqui-
rários, mas sim mais como a diferença entre ler um artigo nas, e tornam-se também efeitos das máquinas. Então essa
no jornal e ouví-lo no noticiário. É ouvir uma voz chegando é a ideia de que o sônico pode produzir identidades em
até você por meio de vários canais: assim como você nunca si mesmo. Por exemplo: George Clinton é negro, mas Star
ouve as notícias diretamente, você sempre ouve um relato Child é uma figura alienígena animatrônica – é difícil dizer
sonoro, sempre ouve uma voz transmitida por meio de uma qual a cor de Star Child, Star Child é pura animatrônica. E
série de outras coisas até chegar a você. É o que acontece uma parte do livro sempre opera dessa maneira, sempre
com a ficção no vinil; você ouve por meio do estúdio. Por- procura ver quais alucinações são sonicamente engen-
tanto, não é literário – o literário absolutamente não funcio- dradas, para então persegui-las. Eu nunca experimento
na nesse espaço. Ao mesmo tempo, a representação não é reduzir o sônico ao social, e justamente porque essa é uma
necessária, seja para o significante, para o texto ou para a tendência quase unânime é que eu miro alto, peso a tinta
lei. Não há necessidade de nada disso. mesmo. Quando você lê alguém como Sun Ra, e o Sun
Então o modo de apresentar a teoria é perceber Ra falava muito em música cósmica. E eu penso que com
que a música está teorizando sobre si mesma com maestria. música cósmica ele queria dizer “o que seria a música cós-
Por exemplo, gosto de conceito de percussapella, que é mica?” Seria a música do campo eletromagnético, a música
percussão e acapella, e a percussapella é, simplesmente, a das transmissões de rádio, vamos dizer assim, cruzando
batida, sozinha. Alguns DJs pensaram num termo para des- o campo eletromagnético. Seria a música dos distúrbios
crever esse fenômeno sampladélico do solo de percussão, elétricos, dos distúrbios cósmicos atmosféricos que existem
da percussão como acapella. E é brilhante. Então eu posso no céu. E se você ouvir o Astro Black do Sun Ra, esses são
231
ele está transformando o sintetizador Moog em algo como encarte. Há uma constante telescopia de percepção, da
um circuito que pode atuar como uma corrente alternada atenção voltada a uma gravação até a atenção voltada ao
gigante entre os ouvintes, os Arkestra e o próprio cosmos. vinil como objeto. Eu penso que isso é inovador. Porque o
O Moog é o amplificador que direciona a entrada e a saída vinil é muitas vezes ignorado. As coisas mais imediatamen-
de corrente. Por um lado, ele faz isso de uma maneira bem te prazerosas ao comprar um disco são as coisas sempre
material, porque os sons do Moogy, na verdade, são bas- ignoradas. É bizarro. Então, para enfatizar essas coisas, era
tante semelhantes – se não idênticos – aos sons do cosmos. preciso escrever o livro com uma sensação de familiaridade.
Então é fascinante, porque Sun Ra dizia “Eu sou um instru- As pessoas vão ler com o coração. O livro foi desenhado
mento” e “Os Arkestras são um instrumento”. Por um lado, para ser bastante tátil, da mesma maneira como os dedos
ele dizia que os Arkestra eram cientistas tonais, cientistas anseiam por um encarte. Quando você vê um encarte que
sônicos; por outro, os Arkestra eram o seu instrumento. você gosta, seus dedos vão em direção a ele, não conse-
Então fica essa ideia da música como um circuito de pro- guem se conter, eles o desejam com vigor. É óbvio que é
dução sônica por meio do qual – como Gilles Deleuze dizia isso que estou tentando fazer – todo objeto é uma máquina
– moléculas de um novo povo podem ser plantadas aqui ou de subjetividade. O toca-discos é, o disco é, o livro é. Eu só
acolá. É o que Sun Ra faz: usa o Moog para produzir novos quero que meu livro se torne uma máquina para produzir
povos sônicos. Fora desse circuito, ele o usa para produzir subjetividade. Uma máquina para reunir música.
o novo astro afro-americano dos anos 1970. Nos últimos dez, vinte anos, não há mais lacuna en-
E é exatamente o que eu faço, do início ao fim. Eu tre a ciência, a arte e a música, todas elas formam a mesma
estendo o som para fora, alcançando, assim, esse senti- coisa. É que há períodos em que as coisas tendem a ficar
mento de impossibilidade que essa música oferece com bloqueadas, e, quando você tem momentos de psicodelia
frequência. Na melhor das hipóteses, qualquer música rítmica, é fácil ver o que pode ser desbloqueado e trazido
deveria impressionar por sua impossibilidade, sua completa à tona e tornado máquina conectiva com outras coisas. E
evasão das regras de fidelidade tradicional a um som vivo. há períodos em que as coisas encalham. O breakbeat abriu
E a maneira de alcançar a estranheza da música – em vez várias capítulos retroativos. Ao mesmo tempo, a interrup-
de normalizar a música por meio de qualquer outro tipo de ção da noção até então consolidada de que a origem do
campo – é exagerar o campo sônico, usar o sônico como techno é o Kraftwerk significa que as pessoas relacionam
uma sonda para novos ambientes. Porque toda nova sen- os anos 1970 e os 1990 de uma maneira muito mais livre,
sação sônica que possa ser ampliada é, ao mesmo tempo, movem-se entre Krautrock e Herbie Hancock. Há possibili-
uma nova forma de vida sensorial. Portanto, temos essa dades em aberto na música.
constante brincadeira entre o sônico e o sensorial, que, A principal coisa a fazer agora é mudar para um
frequentemente, tornam-se a mesma coisa. É, em parte, campo novo. Eu parei de me chamar de escritor: consi-
uma alternância entre escalas. Muitas vezes você pode am- derando o livro, eu me denomino engenheiro de concei-
pliar a escala e o som, até submergir no som. Outras vezes tos. Isso torna a coisa toda muito mais fresca, muito mais
233
mesmo que estou fazendo. Eu estou fazendo engenharia, uma boa maneira de descrevê-la. Assim, todo esse tipo de
apreendendo ficções, apreendendo conceitos, apreenden- coisa, todos esses conceitos, fazem sentido de modo que
do alucinações da minha própria área e traduzindo-os para o convencional consolidado é simples e completamente
outra, misturando-os e vendo para onde vamos com eles. incapaz de apreender.
Eu uso esses diferentes conceitos para sondar novas áreas Há, de fato, uma complexificação sensorial que pas-
de experiência, para antecipar e acelerar diferentes incur- sa ao largo das tradições e de quaisquer divisões que de-
sões exploratórias em novos campos de percepção que vem supostamente operar na arte. É como Sadie Plant diz,
sempre existiram, mas cuja força reside em não existirem não é alto ou baixo, é apenas complexo, porque tem mui-
sob termos consolidados convencionais. Os termos conven- tas viagens e sinuosidades nas quais você pode se enroscar.
cionais ainda estão completamente vinculados à literatura Por isso parece bizarro quando os americanos lamentam a
e às duas culturas – e graças a Deus por isso, daí eles não virtualização do corpo, porque parece que estamos fazendo
conseguem adentrar o que está acontecendo. Que é exata- o oposto, parece que estamos apenas começando nessa
mente esse olhar repentino ao final do século. Eu renomeei jornada ao centro dos nossos sentidos. Parece o oposto:
todos os instrumentos: renomeei o sintetizador Sonotron. ciência sempre significa uma hipersensibilidade. A ciência
lannis Xenakis chamou o sintetizador de Sonotron no seu tradicional ainda traz consigo as ideias de esgotamento,
livro. Isso é perfeito porque Sonotron soa como um super- cientistas frios, lógica extrema e todos esses clichês bregas.
-herói de história em quadrinhos, uma convergência sonora Mas em termos musicais, a ciência é o oposto, a ciência é a
em balística. E a bateria eletrônica deve ser renomeada intensificação, é mais sensação. Ciência é ritmo intensifica-
para fazer jus ao que realmente é: um sintetizador de ritmo. do, ritmo alienado. E é assim que toda uma geração enten-
Eu chamo esse problema de escuta em re(tro)visão3. A de ciência. E o que ela entende como abstrato são sensa-
bateria eletrônica não é uma bateria eletrônica. São pulsos ções tão novas que ainda não existe um idioma para elas.
e sinais sintetizados em novos pulsos e novos sinais. Não há Daí o atalho é chamá-las de abstrato. Há toda uma geração
bateria nele. Isso foi um lance estranho que me confundiu que cresceu acostumada a pensar em emoções sensoriais
por anos e anos, até que eu resolvi. Você ouvia e o som era sem ter ainda uma linguagem para elas. Psicodelia rítmica
completamente diferente do som de uma bateria. O mo- é o aspecto psicodélico de qualquer cenário específico.
vimento do funk às baterias eletrônicas é impressionante: Então poderia ser qualquer coisa: de house a trance, de
toda a percepção rítmica das pessoas mudou da noite para breakbeat a jazz, poderia ser qualquer cena – mas eu estou
o dia. E as pessoas, claro, fingindo que nada tinha aconteci- interessado no aspecto psicodélico rítmico de cada cenário,
do, mas foi uma mudança gigantesca, ouvir bipes e sinais e não no cenário em si. Eu estou interessado nos pontos de
diferentes tipos de corrente alternada como som. Foi uma máxima hyperdelia rítmica, é nisso que estou interessado.
mudança gigantesca. No mesmo sentido, Edgard Varèse De modo que poderia ser qualquer um desses...
Pós-modernismo não significa nada na música. Não
3 NdT. No original: “[r]earview hearing”. O autor faz uma brincadeira significa nada. Não significa nada desde pelo menos 1968,
sonora com as ideias de revisão, visão e audição.
235
na Jamaica. Assim que a condição social específica de comprar, mas ouvir um dubplate provoca essa projeção em
ausência de direito autoral foi possível, assim que a noção você. Você se sente 18 meses à frente, você literalmente
de direito autoral do século XIX já não operava, de ime- se sente à frente, você está num plano de aceleração, você
diato havia a liberdade da replicabilidade, a liberdade de se move mais rápido do que você se move. Esse motivo
recombinar. Isso estimulou um Wildstyle de ritmos que se já é suficiente para o pós-modernismo nunca ter existido,
anexariam uns aos outros e se recombinariam entre si. E e, quando se há esse estado de remixologia – bem, o que
assim que isso acontece, é a realização e a morte do pós- aconteceu foi que a remixologia adentrou diferentes áreas.
-modernismo, em 1968. Desde então, por definição, houve No jazz, por exemplo, você tinha Alice Coltrane remixando
pós-modernismo e isso nunca foi relevante, nunca foi uma John Coltrane, mas a tradição do jazz odiava e dizia que
questão, foi simplesmente algo já realizado. Por exemplo, era blasfêmia. Você tinha os Beach Boys remixando suas
“A obra de arte na era de suas técnicas de reprodução”, de coisas e sendo rejeitados. Então nas grandes corporações a
Walter Benjamin: esse argumento não funciona mais – por- remixologia foi sempre barrada, e na Jamaica a remixologia
que um dos principais pontos de Benjamin (ou o que seus se tornou o estado da arte, antes de mais nada por ser tam-
admiradores não cessam de repetir) é que, na era das téc- bém hiperpredatória, permitindo um tipo de aglomeração
nicas de reprodução não há mais aura, a aura única, a aura de ritmos, ritmos impiedosos, uma guerra de batida, o que
especifica, não existe mais. Mas, claro, assim, que você tem o produtor de jungle Andy C chama de guerra do break.
o dubplate tudo isso é defenestrado. O dubplate é onde o As pessoas faziam propostas financeiras para os breaks,
processo de reprodução acontece, o processo mecânico ou apenas os roubavam. Havia essa fronteira selvagem,
de prensar o vinil no prato que está sendo tocado e, de essa guerra selvagem do break acontecendo, o delírio dos
repente, no meio disso você tem o remix único, você tem ritmos. Então estamos muito além do pós-modernismo, e
uma faixa que é única no mundo, mas que no entanto não todos os argumentos tradicionais podem ser jogados fora.
é original, é uma cópia, uma terceira cópia. Pois você tem A ideia de esgotamento, por exemplo, simplesmente aca-
algo que jamais deveria existir no mundo de Benjamin: bou, porque a música não funciona dessa maneira. Ela já é
você tem uma cópia única, você tem o único quinto remix, um patrimônio genético, não vai esgotar a si mesma.
você tem o único décimo remix, você tem o único vigésimo E aí uma série de coisas não funciona, são demasia-
remix. Só há um de cada um deles. O dubplate revela que do literárias: a ideia de citação, de distanciamento irônico.
toda a ideia da perda da aura não faz sentido algum, por- Elas exigem uma distância que o volume, por definição,
que a aura renasce no meio da reprodução industrial. Daí a não permite. Não há distância com volume, você é comple-
aceleração do jungle, a intensificação do dubplate; o dub- tamente engolido pelo som. Não há espaço, não tem como
plate renasce como a música do futuro. Você ouve a música ser irônico quando se está sendo engolido pelo volume e
que não vai estar nas ruas até dali dez, onze meses depois, o volume está te causando transbordamento. É impossível
e de repente há esse buraco entre você e o agora em 1996: manter a ironia, então todas as implicações do pós-moder-
você de repente se imagina em 1997, pensando “Onde eu nismo caem por terra. Não só a literatura fica inútil, mas
237
faz sentido é o som junto à maquina que se constrói. Você das máquinas. Então, há todo um lance sobre vida ma-
pode recorrer a qualquer uma dessas ferramentas teóricas quínica que já acompanha os músicos, de um jeito ou de
específicas, se quiser, mas duvido que funcionem. Para tes- outro. Os produtores já começaram a ensaiar uma teoria
tá-las, basta pôr o disco para tocar. Esse é o teste para ver da vida maquínica. Assim que você olha para o que eles
se meu livro funciona, porque eu quero que ele seja uma estão dizendo – amplia e começa a usar –, você percebe
máquina. Quando digo “funciona”, quero dizer que quero uma série de ficções sônicas e de fabulações científicas, e
que ele opere a engenharia de um tipo e alteração senso- eu chamo tudo isso de ficções sônicas. Já há vinte anos de
rial, algum tipo de distúrbio de percepção. É disso que eu especulação sobre a máquina como uma forma de vida. Há
gostaria, porque mesmo o menor dos distúrbios sensoriais vinte anos de música como campos cósmicos, então o que
é suficiente para enviar um sinal que possa ser transmitido. estou fazendo é usar essas coisas, ativá-las, ligá-las. Desse
Eu penso que a combinação entre o DJ e o escritor modo, o livro todo parece vivo: ao usar vários produtores
faz muito sentido. Penso que ambos trabalham de maneira que estão vivos e ao conectá-los aos do passado, você
diferente a remixologia, e o que estamos fazendo é pe- ativa o elemento sônico, ativa todo um registro sônico,
gando a escrita e a elevando, e a acelerando, tanto quanto todo um registro não-oficial. Ninguém menciona Lee Perry
ao disco. Eu penso que como a prosa britânica tradicional como uma autoridade, é sempre aquela coisa grotesca do
é toda cavalheiresca, masculina, cheia de aspereza e sem Heidegger e depois o George Clinton, nunca é o sentido
nonsense, isso me estimula a buscar o impossível, regis- contrário. Mas foi o Clinton que começou com a mixadelia:
tros de como o futuro pode parecer, com quais sensações. a teoria da mixologia como psicodelia, a teoria da mesa
É por isso que autores chave nesse livro são McLuhan e de mixagem como psicodelia. Em 1979, ei-la, a mixadelia.
Ballard, os caras que eu li de cabo a rabo. A formulação de Esse é o conceito dele: ele pensou uma psicodelia da mesa
McLuhan sobre os humanos serem os órgãos sexuais do de mixagem. Você não precisa de Heidegger algum, por-
mundo maquínico é crucial. O capítulo sobre o Kraftwerk é que o Clinton já é teórico. Então, o que eu tenho feito é
sobre como o Kraftwerk são os órgãos sexuais do sintetiza- extrair esses conceitos e configurá-los para funcionar: eles
dor. funcionam porque estão atados a discos. E isso porque o
Todas as coisas sobre acidentes, bugs, sobre o vetor onde tudo isso funciona é o toca-discos. É o habitual,
produtor como alguém que pode nutrir um bug, que pode você tem que se reconhecer como uma máquina programa-
criar um bug. Ao mesmo tempo, a maioria das músicas da, como um biocomputador programado pelas mesas. Os
mais importantes foram acidentes, foram feitas por meio de movimentos que você precisa fazer para colocar a agulha
erros. São erros de software na programação da máquina, no disco até o movimento da agulha encontrar o sulco:
que formam esses sons – e o produtor pega esses sons e pense nas centenas de milhares de vezes que você fez esse
alimenta o erro, baseia-se no erro, e ao cometer um erro movimento, o hábito de colocá-lo ali. Eis uma maneira de
você tem uma nova forma de vida em áudio. É bastante observar isso com clareza, por exemplo: quando você ouve
comum: na Can nos anos 70, Holger Czukay dizia que as um original raro; digamos que tenha lá uma faixa que você
239
pela primeira vez. De repente, você percebe que a parte caça, estou perseguindo, tentando descobrir novas per-
que você conhece é muito pequena, uma parte que dura cepções: percepções que sempre existiram, mas que ainda
cerca de três segundos e, na sequência, o disco se preci- não foram compreendidas, ainda não foram conectadas a
pita numa mediocridade decepcionante, antes do próximo qualquer outra coisa. É essa incursão exploratória do des-
som que você reconheça aparecer para depois submergir conhecido.
de novo, antes que a próxima parte emerja novamente. Às Por ora, eu parei de dizer “cultura negra”. Sempre
vezes, nas faixas do Parliament, você ouve mais ou menos houve uma percepção bastante forte da cultura negra nos
cinco dessas nos primeiros dois minutos, e essas partes re- Estados Unidos, em parte, claro, por ser uma contra-defini-
conhecem você, porque o que elas fazem é reconhecer seu ção em combate ao conhecimento tradicional da estrutura
hábito de tocá-las. Quando você ouve um som, você tem de apartheid que existiu lá. E você pode perceber que
um lampejo de memória, e você também tam quase uma quase todas as escritoras americanas trabalham contra esse
memória muscular, você se recorda das vezes em que dan- apartheid do conhecimento, tão firmemente consolidado.
çou. Você não apenas se recorda das vezes em que dan- Afinal de contas, todo mundo deve saber que a maioria das
çou, você também se lembra das vezes em que se inclinou americanas negras não podia nem se matricular em escolas
para colocar a agulha no disco para tocar aquele trecho. Às de arte até cerca de 1969. Esse é o nível de gravidade do
vezes você ama tanto aquele trecho que se recorda de ter apartheid americano, desde a estrutura do conhecimento
colocado para tocar de novo e de novo e de novo. Então, para baixo. Assim, a maioria das americanas negras escre-
quando você ouve aquele som que você ama, quando você ve de maneira a assumir uma cultura negra unificada, para
ouve o sample reconhecível no meio do som alienígena, depois explorar ou não os dissensos internos a ela. Mas
esse som reconhece seus hábitos, e é incrível, de repente sentado aqui na Inglaterra, em Londres, fica muito mais di-
você vislumbra a si mesmo como um ser com hábitos, em fícil para mim assumir algo unificado, que dirá uma cultura
um processo de formação de hábitos. Você de repente negra unificada. Eu tendo a começar pelo contrário. Costu-
se vê ao longo dos anos, como você amou esse disco. É mo pensar em coisas mais flutuantes, e em como há vários
incrível, o som tira uma foto dos seus hábitos; provoca um atratores estranhos tentando aglomerar coisas, existem
estalido dos seus hábitos. E de repente você percebe isso várias forças produtoras de inércia tentando centralizar e
com clareza. Quantas vezes eu coloquei isso? É nisso que atrair material para a cultura negra, petrificá-la, solidificá-
quero chegar. Novas sensações que nunca outrora existi- -la, reterritorializá-la, e daí chamar isso de tradição ou de
ram, esse sentimento de ser reconhecido por meio do som. história.
Isso é novo, isso nunca aconteceu antes. E, por definição, Eu vejo a cultura negra muito mais como uma
somente poderia acontecer na geração sampladélica; por série de materiais que foram aglomerados, por um lado,
definição, só poderia acontecer com pessoas que ouvem e como uma série de técnicas, por outro. Muitos produ-
música sampladélica. E não se escreveu sobre essas coisas, tores e engenheiros dos quais eu falo vêem a si mesmos
elas ainda não foram capturadas. como cientistas ou técnicos. Eu costumo pensar na cultura
241
eles inventaram. Eu olho para os sintetizadores, para novas América, forçou a cultura a se tornar imediatamente mental.
versões negras sintetizadas. Eu jamais consigo pensar em Tudo o mais foi, por definição, deixado para trás, deixado
uma cultura negra unificada da onde tudo acontece. Para em ruínas: arquitetura, tudo o mais. Então, a cultura ime-
mim, tudo agora parece sintetizado. Evidentemente, há diatamente se tornou mental, imediatamente se desmate-
coisas que existem há tempo suficiente para que pareçam rializou. De modo que a cultura oral é tudo o que você leva
solidificadas, calcificadas, mas, na verdade, tudo é sinteti- consigo em cabeça, e só. Daí isso precisa ser remateriali-
zado. Porque eu vejo as emergências, que, por definição, zado, seja batendo as mãos, seja por meio da boca. Tinha
são realmente sintéticas, como o techno. Porque eu trago que ser transmitido novamente, tornado herança novamen-
a máquina. Isso torna as coisas muito mais complexas, te, novamente reinventado. Na raça. E tem a peça-chave
porque ao invés de falar sobre cultura negra, vou falar por que me atraiu a tudo isso: a idéia de abdução alienígena, a
exemplo muito sobre coros de bateria ganenses, ou sobre idéia da escravidão como uma abdução alienígena, o que
o motor polirrítmico africano, o motor de percussão polirrít- significa que todos nós vivemos em uma alien-nação desde
mico. E esses são traços africanos muito peculiares. O som o século XVIII. E eu concordo plenamente com isso, isso
é uma tecnologia sensorial, então eu falo bastante sobre aparece muito na minha produção: a mutação dos escravos
tecnologias negras. Trata-se de máquinas – e se estamos africanos masculinos e femininos do século XVIII em negros,
falando da África do século XIX ou XVIII, então trata-se em toda essa série de seres humanos que foram desenha-
de máquinas construídas há muito tempo e herdadas. No dos na América. Todo esse processo, o elemento central
presente, é mais sobre como a cultura negra é essa série de por trás disso tudo, é que na América nenhum desses
máquinas construídas aqui e ali. O dubplate era uma delas, humanos foi designado humano.
construída na Jamaica. O breakbeat foi outra, construída em É por meio da música que a gente percebe como
Nova York. a maioria dos afro-americanos não deve nada ao status de
Ainda não caí na contradição de fazer declarações humano. Afro-americanos ainda precisavam protestar, ainda
sobre o que é que está na cultura negra que produz esse tinham que se revoltar, tinham que batalhar para serem
tipo de tecnologia sintética. Eu ainda não fui capaz de re- considerados humanos Esclarecidos4 nos anos 1960 – é
cuar para a grande questão hipotética do “e se”, provavel- inacreditável. E na música, se você ouvir caras como Sun
mente porque eu não acho que realmente exista, porque Ra – Eu os chamo de déspotas, Ra, Rammellzee e Mad
eu fico tão consumido e espantado com a variedade abun- Mike – parte do lance de ser um músico alienígena afro-a-
dante no outro extremo do telescópio que não consigo mericano é que o esse sentimento de humano é realmente
recuar para observar a vista. Provavelmente por desconfiar inútil, uma categoria traiçoeira, uma categoria que nunca
da ideia de que existam vistas, mas seria mais como uma
mudança no tempo ou na escala. Mudando para uma vista 4 NdT. No original: “Enlightenment humans”. O autor faz referência
do horizonte e depois voltando. Mas também pode ser ao esclarecimento, ao iluminismo, à batalha que os negros precisa-
porque, e isso é algo importante que Greg costumava dizer vam travar para atigir o status de humanidade moderna, esclarecida,
dotada de razão.
243
dade particular com o Sun Ra – porque ele leva ao extremo
dizendo que vem de Saturno. Eu sempre aceito essa impos-
sibilidade. Eu sempre começo daí, disso que a maioria das
pessoas reivindica como um alegoria. Não é uma alegoria:
ele realmente veio de Saturno. Eu experimento exagerar
essa impossibilidade, até que seja irritante, até que seja um
desconforto e que esse desconforto seja apenas um portal
cruzado na cabeça das leitoras e, quando elas deixarem
passar, quando elas escancararem sua percepção sensorial,
passarão por um outro portal e estarão no meu mundo.
Eu as terei capturado. É preciso registrar o desconforto,
porque muito dos movimentos que eu descrevi provocam
essa irritação, a falta do literário, a falta do modernista, a
falta do pós-moderno. Tudo isso provoca uma irritação real
e, ao mesmo tempo, um franco alívio, um alívio de que al-
guém deixou tudo para trás, e partiu do princípio do prazer,
partiu dos materiais, partiu do que realmente dá prazer às
pessoas.
afrofuturismo
12 Alonzo Ramey nasceu para ser super-herói. No momento
245
do seu nascimento, seu teste para a síndrome de Kurtz-
berg-24, a anomalia genética responsável por dar às
pessoas superpoderes, deu positivo. Todos os bebês com
avid
K-24 eram identificados e monitorados por olhos cuidado-
sos que acompanhavam os poderes que desenvolviam. A
D F
imensa maioria de crianças K-24 desenvolviam um conjunto
de poderes que em geral incluía força sobre-humana, resis-
tência, velocidade, pele à prova de balas – os “Padrões”,
como eram chamados esses poderes pelos médicos e
especialistas que rastreavam essas coisas. Algumas das
crianças desenvolviam poderes únicos – desde a piro-teleci-
.W e
nese até a capacidade de respirar embaixo d’água. Os pais
de Alonzo rezavam para que seus poderes fossem limitados
aos Padrões. Com os Padrões, sempre havia a chance de
o super-herói ter uma vida que podia ao menos passar por normal. Po-
rém, quanto mais incomuns os poderes, mais difícil a vida
simbólico
alk
poderia ficar. Com alguns poderes simplesmente não havia
nenhuma chance de levar uma vida normal. Todo mundo
sabia do Flamejador, que podia criar fogo, mas não conse-
guia controlá-lo. O Flamejador precisava estar sempre com
uma roupa especialmente projetada para impedir que ele
queimasse a tudo e a todos ao redor sempre que o fogo
se atirasse aleatoriamente de seu corpo. E também havia
original
The token superhero
r a Elasticena, que podia esticar o corpo como se fosse feito
de borracha, mas levava dias para voltar ao formato normal.
— Eles, os brancos, não vão levar muito na boa um
menino preto com superpoderes — dizia Kelvin Ramey, pai
tradução
Petê Rissatti de Alonzo.
Kelvin havia crescido no interior do Mississippi,
referência quando ser negro significava levar uma vida de segunda
WALKER, David F.. “The classe. Alonzo nasceu em um mundo melhor, depois das
Token Superhero”, brown, marchas e manifestações e mangueiras de água e cães po-
adrienne; Imarisha, Walidah liciais, mas o pai se lembrava de tudo isso e se preocupava
(Org.). Octavia’s Brood. com o filho. Tinham matado Martin, Malcolm, Medgar e
Science Fiction Stories From
Social Justice Movements.
Oakland: AK Press, 2015.
o super-herói simbólico
tantos outros, e nenhum deles tinha sequer um superpoder. seus pais e professores. A Força da Justiça Teen foi criada
247
Nem era possível dizer o que poderia acontecer se algum para preencher a lacuna entre a população mais jovem e a
caipira branco decidisse que um Negão superpoderoso essencial faixa etária adulta, garantindo que consumidores
significaria uma possível ameaça de rebelião no Sul. Era valiosos não perdessem o interesse na Superforça da Justi-
isso, no fim das contas, que todo caipira branco maluco do ça, em suas façanhas, ou, o mais importante, na multibilio-
interior dizia que aconteceria. Várias e várias vezes o Sul nária indústria do entretenimento que mantinha a operação
não conseguiu se rebelar, mas o medo e o ódio ao povo inteira funcionando.
negro permaneciam. E não era apenas no Sul: negros eram — Não sei se gosto da ideia de você se juntar a
temidos e odiados no país inteiro. E onde não eram temi- esse grupo de Força da Justiça da Molecada — disse Kelvin
dos ou odiados, eram mal compreendidos. Ramey a seu filho.
Felizmente, Alonzo ter nascido com a síndrome — Eles se chamam Força da Justiça Teen, não Força
K-24 significava uma passagem para fora do Mississippi da Justiça da Molecada — disse Alonzo.
de seus pais e irmã mais velha. Uma clínica do Norte – o — Teen, Molecada, dá tudo no mesmo. Você é
Centro de Pesquisa e Treinamento Meta-humano Kutzberg novo demais para sair por aí bancando o super-herói.
– queria testar Alonzo regularmente, e, quando seus pode- — Não estou bancando nada, pai, eu sou super-he-
res se manifestaram, quiseram garantir que ele receberia rói — retrucou Alonzo. — E os poderes que tenho são um
o treinamento adequado. Treinamento adequado, claro, dom. É responsabilidade minha usá-los para ajudar meu
significava que seria treinado para usar os poderes para semelhante.
lutar pela verdade, pela justiça e por todas aquelas outras —Viu, eu falei pra sua mãe, fizeram uma lavagem
coisas que falavam nos quadrinhos, filmes e nos programas cerebral em você — comentou Kevin. Ele estava conven-
de televisão que recontavam as aventuras de super-heróis e cido de que seu filho viraria um peão do Homem, embora
combatentes do crime. não pudesse de verdade identificar o Homem ou seus
Quando Alonzo fez dezesseis anos, seus poderes projetos.
tinham se desenvolvido por completo. Para alegria de seu — Não fizeram lavagem cerebral em mim coisa
pai, Alonzo tinha apenas os Padrões – embora seus níveis nenhuma! Eu penso por mim mesmo, como você e a mãe
de força testados até então ficavam no mesmo nível dos me ensinaram.
mais fortes super-heróis. Mas o alívio de Kelvin Ramey de A conversa continuou nessa toada, mas, no fim, Ke-
que seu filho tinha apenas os Padrões durou pouco, pois vin sabia que seu filho seria um super-herói, e nada poderia
Alonzo foi chamado para integrar a recém-formada Força impedir que isso acontecesse. Queria ficar zangado, mas
da Justiça Teen, que foi iniciado pela Superforça da Justiça sua mulher, Voncetta – a pragmática da família – ajudou a
em um golpe de gênio de marketing para atrair a juventu- acalmá-lo.
de. Super-heróis com vinte e trinta anos eram populares, — Meu velho, vai mesmo ficar zangado porque
mas tinham a tendência de fazer menos sucesso entre os nosso filho foi abençoado com asas e decidiu usá-las para
adolescentes, resultado da hostilidade contra os adultos – voar? — perguntou ela.
super-heróis mais velhos faziam adolescentes pensarem em Embora Voncetta o tivesse acalmado, Kelvin não
249
veis exigido para Alonzo se juntar à Força da Justiça Teen. “negro” no nome talvez tivesse sido suportável. Porém,
Então, Voncetta assinou a liberação. tudo isso era fichinha se comparado ao fato de que nem
— Não é que seu pai não queira que você seja um o Punho Negro tampouco seu alter ego recebiam muito
super-herói, é que ele se preocupa com você — disse Von- respeito da imprensa. No âmbito privado, Punho Negro era
cetta. — Você sabe disso, não é, filho? praticamente o líder da Força da Justiça Teen. Em uma luta,
— Sei sim, mãe — disse Alonzo. todos os outros membros esperavam decisões dele, e, em
Com o consentimento por escrito de sua mãe, várias ocasiões, ele salvou cada um deles da morte certa.
Alonzo Ramey se tornou um dos primeiros membros da No entanto, todo artigo sobre as façanhas da força sem-
Força da Justiça Teen e o único membro de cor – a me- pre pareciam diminuir seu envolvimento, dizendo “Punho
nos que se considerasse Netuna, que tinha pele azulada e Negro também estava presente” (quando ele era mencio-
podia respirar embaixo d’água. Netuna havia recebido um nado).
nome terrível e, quando ele se tornou objeto de zombaria As coisas não melhoraram quando Alonzo ficou ve-
pública, o nome logo foi trocado. Alonzo não teve a mesma lho demais para a Força da Justiça Teen, momento em que
sorte. Recebeu como nome de super-herói Punho Negro, o Capitão Liberdade, o líder da Superforça da Justiça, lhe
o que não fazia absolutamente nenhum sentido para ele. ofereceu uma vaga na equipe. Mas, com vinte anos, Alonzo
Ele não tinha punhos estranhamente grandes ou bigornas já havia ficado amargo, cínico e cansado de ser simbólico.
no lugar dos punhos – como o supervilão Punho-de-Bigor- Tentou se reinventar com um novo traje e um novo nome,
na — ou seus poderes eram apenas baseados nos punhos. mas nem um nem outro deram certo. Duas vezes foi ata-
Não, o nome Punho Negro pegou porque, quando o bicho cado por outros super-heróis que o confundiram com um
começava a pegar, ninguém queria pensar muito na hora super-vilão, e então houve a vez em que foi alvejado por
de dar nome ao garoto negro simbólico na Força da Justiça policiais. Felizmente as balas ricochetearam. Desgostoso e
Teen. deprimido, Alonzo Ramey decidiu se aposentar da profis-
A carreira de Alonzo na Força da Justiça Teen corria são de super-herói.
perfeitamente bem, embora fosse o único membro sem um Apesar de suas preocupações originais, ninguém
quadrinho solo ou um contrato de patrocínio. Até Netuna ficou mais decepcionado com a aposentadoria de Punho
conseguiu alguns contratos selecionados – embora tenham Negro do que Kelvin Ramey. Ele finalmente havia entendi-
aparecido depois que seu nome foi alterado para Prince- do que seu filho era um grande super-herói. Na barbearia
sa Oceana. E quando a série animada da Força da Justiça onde Kelvin trabalhava, as façanhas do Punho Negro eram
Teen se mostrou popular o bastante para ter uma linha de um assunto regular de conversas, juntamente com questões
bonecos articulados, o único membro a não ter um boneco relevantes, como a brutalidade policial na comunidade, a
era o Punho Negro. gentrificação e como a música era muito melhor “nos ve-
Se fosse apenas um caso de não ter sua revista em lhos tempos”. A foto autografada do Punho Negro pendu-
quadrinho própria, um boneco articulado ou contrato de rada na parede da barbearia recebia mais comentários do
que as fotos de rappers e atletas famosos.
251
perguntou a seu filho. — Desculpem — disse Alonzo para o grupo de
— Pensei que justamente você ficaria feliz em me adolescentes. — Onde vocês conseguiram essas camise-
ver desistir — respondeu Alonzo. tas?
— Só quero ter certeza de que você está desistin- — Nós fizemos — disse uma das garotas. Ela abriu
do pelos motivos certos — comentou Kelvin. Tomou muito um sorriso imenso, revelando o aparelho que cobria seus
cuidado para não explicar o que eram os “motivos certos”, dentes.
porque sabia que era algo que apenas Alonzo podia definir. — Vocês fizeram camisetas do Punho Negro? —
Então, Punho Negro se aposentou oficialmente, e perguntou Alonzo. — Por quê?
Alonzo tentou se ajustar à nova vida, mas não foi fácil. Con- Todos de uma vez, os adolescentes se lançaram
seguiu um emprego normal e se matriculou na faculdade, em explicações de como o Punho Negro não era apenas o
sem outros planos além de levar uma vida normal. Depois membro mais irado da Força da Justiça Teen, mas também
de alguns meses, no entanto, começou a sentir falta da era o super-herói mais irado do pedaço.
ação e da emoção de ser um super-herói – mesmo quando — Ele faz o que faz porque pode — disse um dos
isso vinha acompanhado de pouco respeito ou reconhe- garotos. — O negócio dele não é só dinheiro.
cimento. E, um dia, enquanto estava no metrô voltando — Ele simplesmente faz eu me sentir bem comigo
para casa, vindo de seu emprego chato no mundo dos não mesma porque, sabe, ele é negro e tal — disse a outra
super-heróis, viu uma coisa que mudou sua vida. garota.
Um grupo de adolescentes brigões, não muito mais — Queria que ele não tivesse se aposentado —
jovens que Alonzo, estava aterrorizando passageiros no disse a primeira garota.
trem que ia para a parte mais residencial da cidade. Seus Naquele momento, ocorreu a Alonzo Ramey que
anos como super-herói foram acionados, e Alonzo começou ser um super-herói significava mais do que contratos de
a intervir, mas, antes que pudesse, outro grupo adolescente patrocínio, uma série de quadrinhos própria e seja lá que
entrou no vagão do metrô. Aqueles garotos, um grupo va- fama e fortuna poderia surgir por lutar a boa luta. Ele pas-
riado de três garotos e duas garotas – de várias procedên- sou por anos de treinamento, esteve em incontáveis mis-
cias – avançaram na direção dos adolescentes brigões. Por sões e salvou centenas de vidas, mas foi naquele momento,
um momento pareceu que as coisas ficariam violentas. no metrô, que entendeu o que tudo aquilo significava.
Os delinquentes que estavam aterrorizando os Sim, ele era um super-herói negro simbólico em
outros passageiros eram maiores, mas os outros garotos um mundo feito em sua maioria de heróis brancos. Sim,
seguraram a barra. E, depois de algumas palavras acalora- seu nome era ridículo, e ele odiava que fosse um lembrete
das adornadas com palavrões, o confronto terminou. Foi constante de que outros sentiam a necessidade de declarar
quando Alonzo percebeu que os garotos que enfrentaram o óbvio quando chegava o momento de definir quem ele
os delinquentes todos estavam usando camisetas com uma era como herói. E, sim, era foda que não recebesse crédi-
imagem de Punho Negro. Em todo o seu tempo como to quando merecia. Mas não era assim que os garotos no
Punho Negro, nunca houve nenhum produto oficialmente metrô o viam. Para eles, ele era simplesmente um super-he-
253
com sua imagem. E aquilo foi suficiente para Alonzo Ramey tia a amargura crescer dentro dele, bem como o cinismo.
repensar tudo. Odiava seu nome, não ligava muito para o traje e, quan-
Pouco depois disso, Alonzo perguntou ao Capitão do finalmente conseguiu virar um boneco articulado, eles
Liberdade se era possível retornar à Superforça da Justiça. fizeram seus lábios parecerem muito maiores do que eram
Ele ficou apreensivo no início, relembrando o que seu pai na vida real. Mas sempre que essas coisas o chateavam,
costumava dizer: “Se for pedir qualquer coisa a um branco, Alonzo Ramey se lembrava de que, no fim das contas, ne-
melhor estar preparado para implorar”. Mas não houve nhuma dessas coisas importava. Para ele, sua vida sempre
necessidade de implorar. Ele não teve que “arreganhar a seria definida por um grupo de garotos e garotas, com no
dentadura” com um sorriso falso – uma coisa que seu pai máximo catorze ou quinze anos, usando camisetas com de-
sempre lhe disse para não fazer. Em vez disso, Alonzo e senhos feitos a mãos inspirados no Punho Negro. Sua vida
Capitão Liberdade conversaram de homem para homem. não seria mais definida por suas aventuras reais do que era
— Tem pouca coisa nessa ocupação que seja fácil pelas aventuras recontadas nos quadrinhos que ajudavam
— disse o Capitão Liberdade. — Se eu pudesse transformar jovens aprenderem a ler. Era isso que definia Alonzo Ramey.
o mundo num lugar melhor, o tipo de lugar onde as pesso- Era isso que mostrava para ele que, apesar de tudo, ele era
as pudessem ser quem elas são, sem nenhuma dessas mer- realmente um super-herói.
das que o mundo impõe à gente, eu transformaria. Mas,
nesse mundo, não haveria necessidade de super-heróis.
E assim Alonzo Ramey voltou a ser um super-herói.
Vestiu de novo seu traje de Punho Negro e saiu às ruas
para combater o crime. Mas, dessa vez, ele havia mudado
sua definição pessoal do que significava ser um super-he-
rói. Sim, passou um tempo lutando com supercriminosos e
se envolvendo no que acabava resultando em um ridículo
show à parte, mas era apenas parte do que ele fazia. Em
vez de patrulhar as ruas do centro da cidade e prender ban-
didos, passava muito de seu tempo estendendo a mão para
jovens que a maioria das pessoas via como uma ameaça.
Ficou conhecido mais por ser um super-herói organizador
comunitário do que por ser um super-herói. Com o dinheiro
de seu primeiro contrato de patrocínio, financiou uma série
de quadrinhos própria que era destinada a promover a al-
fabetização. A série ficou tão popular que resultou em uma
linha inteira de quadrinhos que ajudava a ensinar crianças
de todas as cores a ler.
255
m
prisional e que acredito em pôr fim a todas as prisões, elas
frequentemente me olham como se eu estivesse montada
I
em um unicórnio deslizando sobre um arco-íris. Até mesmo
pessoas engajadas em movimentos sociais, pessoas que
reconhecem o sistema prisional atual como falho, ao
a
fazerem suas críticas parecem sempre ponderar: “mas é
h
isso que temos”.
Apesar de nossa habilidade para analisar e criticar,
a esquerda se enraizou naquilo que é. Nós frequentemen-
a
usando ficção Por isso acredito que nossos movimentos por justiça
i
257
científica Ursula K. Le Guin gerou grande comoção durante da imaginação é o mais perigoso e subversivo de todos os
a cerimônia do National BookAwards 2014 com o seu elo- processos de descolonização.
quente discurso de agradecimento pelo Prêmio por “Des-
tacada Contribuição às Letras Estadunidenses”: “Eu acre- EXPERIMENTANDO A JUSTIÇA
dito que estão vindo tempos difíceis, quando precisaremos
da voz de escritoras capazes de enxergar alternativas aos Minha co-editora adrienne entende a ficção científi-
modos como vivemos agora, que possam enxergar através ca como “um terreno de investigação,” um laboratório para
de nossa sociedade assolada pelo medo (...). Nós precisare- experimentar novas táticas, estratégias, e visões sem um
mos de escritoras que sejam capazes de evocar liberdade.” custo imediato no mundo real. O pessoal ligado ao Octa-
Le Guin acrescentou: “Nós vivemos no Capitalismo. via’s Brood tem feito isso concretamente: as sessões facili-
Seu poder parece inescapável. Mas também assim foi com tadas internacionalmente por adrienne maree brovvn sobre
o direito divino dos reis. Qualquer poder humano pode ser as estratégias emergentes a partir de Octavia Butler (The
resistido e transformado por seres humanos.” Octavia Butler Strategic Reader é baseado nesse trabalho);
É precisamente por isso que precisamos da ficção oficinas de escrita coletiva sobre justiça visionária; oficinas
científica: ela nos permite imaginar possibilidades fora do de táticas de ação direta e ficção científica criadas pelo
que existe hoje. O único modo de desafiar o direito divino colaborador do projeto Morrigan Phillips.
dos reis é se tornando capaz de imaginar um mundo no Enquanto facilito esses processos por meio dos
qual reis já não nos comandem - ou sequer existam. quais articuladoras políticas podem vislumbrar novos
A ficção visionária oferece aos movimentos por jus- mundos, eu tenho visto o tema da justiça criminal emergir
tiça social um processo por meio do qual explorar a criação repetidamente. O tema do abolicionismo prisional está
de novos mundos (embora não seja em si uma solução - e é perfeitamente situado para mostrar a necessidade da ficção
aí que entra o trabalho prolongado de organização comu- visionária, porque nos permite responder a questões como
nitária). Eu propus o termo “ficção visionária” (visionary “o que temos exceto prisões?”
fiction) para abranger os modos de criação entre gêneros Numerosas estórias em Octavia’s Brood exploram
literários fantásticos que nos ajudam a elaborar esses novos ideias acerca de quais aspectos tem a justiça após a ocor-
mundos. Esse termo nos lembra de sermos completamente rência de um dano. Na de Kalamu ya Salaam, trecho de
irrealistas em nossas organizações, porque é somente por um romance maior ainda não publicado, Manhunters, uma
meio da imaginação acerca do assim chamado impossível guerreira mata a irmã de um membro da comunidade numa
que podemos começar a concretamente construí-lo. Quan- sociedade alternativa Afrocêntrica e o conselho reúne-se
do liberamos nossas imaginações, questionamos tudo. para decidir o que ocorrerá com ela. A estrutura não é uma
Reconhecemos que nada disto é fixo, que é tudo poeira de retribuição e punição, mas de cura para os indivíduos e
estelar, e que nós temos a força para moldá-lo do modo para a comunidade inteira.
que o fizermos. Para parafrasear Arundhati Roy: outros Na história de Autumn Brown, Small and Bright,
mundos não apenas são possíveis, mas estão vindo - e já como punição para um crime imperdoável, um dos mem-
259
“emergido” - isto é, forçado ao exílio na árida superfície centro da sociedade, vemos a emergência de comunidades
de uma Terra devastada. Banimento da comunidade é algo visionárias.
que muitas das pessoas que estão trabalhando com res- As pessoas que contribuíram com Octaviars Brood, e
ponsabilidade comunitária debatem conceitualmcnte. as visionárias que vieram antes delas, requerem que olhe-
A obra The River, de adrienne maree brown, uma mos as gentes marginalizadas não como vítimas, mas como
das obras de ficção científica sediadas em Detroit criada líderes, reconhecendo que sua habilidade em viver fora
por ela com o subsídio Kresge, trata de como a justiça de sistemas aceitáveis é essencial para a criação de novos
opera com respeito a crimes que o atual sistema de justiça e justos mundos. Quando fazemos isso, deparamo-nos
criminal sequer reconhece enquanto crime - gentrificação, não apenas com reformas parciais, mas liberação total. E a
remoção, devastação econômica, opressão geracional insti- ficção científica é o único gênero literário que nos permite
tucionalizada. questionar, problematizar, e re-conceber tudo de uma só
Experimentações sobre justiça e prisões não come- vez.
çaram com Octavia’s Brood. Sabemos que não lutamos contra um sistema de
W.E.B. DuBois discutiu raça, prisões, justiça e re- opressão unidirecional — nós estamos lutando contra um
denção em curtas narrativas fantásticas como Jesus Christ sistema branco supremacista hétero-patriarcal e capitalista
in Texas, de sua coleção de 1920 Darkwater: Voices from (bell hooks está certa) — então nossa resposta deve ser
Within the Veil. abrangente e englobante de tudo. Como Audre Lorde
Octavia Butler, especialmente em seus romances disse, “não há uma luta unidirecional porque não vivemos
Parable of the Sower e Parable of the Talents, prolonga vidas unidirecionais.” Devemos reimaginar tudo desde o
essa investigação, assim como em inúmeras outras obras: início.
The Dispossessed (1974) de Ursula K. Le Guin, Woman on Hollow de Mia Mingus é uma estória do Octavia’s
the Edge of Time (1975) de Marge Picrcy, The Fifth Sacred Brood que nos permite reimaginar modos de justiça para
Thing (1974) de Starhawk, Midnight Robber (2000) de Nalo com as diversidades funcionais. Num futuro onde os “Per-
Hopkinson e Who Fears Death? (2010) de Nnedi Okorafor. feitos” têm tentado cometer genocídio contra pessoas com
Resenhas de algumas dessas obras podem ser encontradas diversidade funcional (os “Imperfeitos”), os “Imperfeitos”
em The Transformative Justice Science Fiction Reader, cria- agora vivem na lua, onde os “Perfeitos” haviam imagina-
do em 2012 durante a Conferência Allied Media. do que todos morreriam. Ao invés disso, os “Imperfeitos”
Esse revolucionário programa de leitura explica construíram uma sociedade inteira centrada em suas ne-
como a “ficção visionária” foca naquelas pessoas que têm cessidades, em vez de tentarem ser assimilados no interior
sido marginalizadas pela sociedade em geral, especialmen- de sistemas jamais pensados para eles. Essa história nos
te as que vivem identidades e eixos de opressão intersec- desafia a um deslocamento para além da igualdade, e mes-
cionais. Esse enquadramento fundamentalmente feminista mo da justiça, e ainda assim reflete sobre como liberação e
é talvez melhor exemplificado na obra de Butler. A maioria autonomia podem funcionar.
de suas protagonistas são mulheres ou pessoas trans* ra-
261
Leah Lakshmi Piepzna- Samarasinha, faz o mesmo no que 2070) e fabriquei um verbete:
concerne às pessoas sobreviventes de traumas e assédio
sexual, e suas crianças. Graças às suas habilidades de disso- Enciclopédia do Povo de 2070
ciação (as quais muitos hoje se referem como efeito nega- Verbete: Ferguson (E Além)
tivo do trauma), podem deixar seus corpos e integrar suas
energias curativas, constituindo dessa maneira a única força O terrível assassinato de Michael Brown, um adoles-
capaz de salvar um mundo devastado. cente Preto desarmado, pelo oficial de polícia Darren Wil-
son em Ferguson, Missouri, foi o gatilho para a resistência
NO CHÃO nacional contra a contínua violência policial e desvaloriza-
ção das vidas Pretas. Espantosamente, a mídia hegemônica
Essas viradas transformadoras acerca de como pensamos referiu-se a esses atos de resistência como “tumultos” e
a justiça desafiam as políticas de respeitabilidade (políticas não como os levantes e rebeliões que de fato foram, assim
de assimilação, na verdade). Essa problematização é visce- como os assim chamados “aliados brancos”, que tenta-
ralmente necessária nesse momento em que a juventude ram ditar os termos nos quais a resistência da Juventude
negra em Ferguson, Missouri, rebela-se contra as balas, Preta poderia acontecer. Por sorte, a Juventude Preta não
tanques e sistemas que operam contra ela. Aprendemos comprou a ideia; eles também rejeitaram as políticas da
que adotar os ornamentos de um sistema de injustiça respeitabilidade e o mito da assimilação. Pelo contrário, se
generalizada e se integrar numa sociedade enraizada em articularam internacionalmente com outras pessoas oprimi-
opressão jamais protegerá aquelas pessoas marginalizadas das num movimento contínuo por liberação que transfor-
e oprimidas. Seria a simples continuação da mentalidade e mou fundamentalmente o planeta inteiro.
enquadramento coloniais. Essa mentalidade oferece refor- Essa lente histórica imaginária nos conecta não
mas sutis para o sistema - câmeras no corpo, treinamento somente a futuros visionários, mas também a passados
em diversidade para a polícia, conselhos de cidadãos - mas visionários. Como Soraya Jean-Louis McElrov, estudiosa de
todas elas estão inseridas no sistema já existente. Essas po- artes visuais e co-criadora do Wildseeds: The New Orleans
líticas da respeitabilidade são a principal barreira que nos Octavia Butler Emergent Strategy Collective, escreveu no
impede de imaginar um mundo sem polícia e sem prisões. facebook: “amor e liberdade Pretas residem além do cor-
Inspirada pela contínua organização e resistência po, amor e liberdade Pretas são transtemporais e indestru-
conduzida pela juventude Negra em Ferguson (e que se tíveis. Estou falando sobre imaginação fantástica Preta sem
está espalhando pela terra), fui desmotivada pela resposta restrições. Não se pode realmente amar sem isso. O Afrofu-
da esquerda branca, que tentou ditar os termos dessas re- turismo não é novo!”
beliões, assim como a dos assim chamados líderes Negros, Minha co-e??ditora adrienne e eu, como duas
que reforçaram as políticas da respeitabilidade. Eu come- mulheres Pretas estudiosas de ficção científica, carrega-
cei a escrever um escracho, mas percebi que seria melhor mos sempre isso em nossos corações, porque sabemos
escrever o futuro que eu quero ver, então eu imaginei The que estamos vivendo uma ficção científica. Somos o sonho
263
“irrealista” imaginar um dia em que elas não seriam chama-
das propriedade. Essas pessoas Pretas recusaram a confinar
seus sonhos ao realismo, e em vez disso elas nos sonharam.
Assim elas curvaram a realidade, reformularam o mundo,
para criar-nos.
Isso é parte dos motivos pelos quais eu carrego or-
gulhosamente o título de “abolicionista prisional”; isso me
liga às visionárias libertadoras que aboliram a escravidão.
Isso conecta meus sonhos de liberação com os dos meus
ancestrais e acende toda a nossa responsabilidade e direito
a sonhar novos futuros assim como elas fizeram.
Em seu não terminado manuscrito Parable of the
Trickster, o final da série de parábolas, Octavia Butler escre-
veu:
afrofuturismo
14 um estudo RESUMO
265
comparativo entre O Ifá, mais comumente realizado na comunidade iorubá, é
um conjunto de ações divinatórias feitas por um profissional
o ifá e a ciência da (babalaô) a quem é dada a autoridade para criar e fazer uso
desse conjunto de regras que estabelece uma comunicação
u
uma extensa explicação sobre seu sistema divinatório, seu
referência
ALAMU F.O., AWORINDE H.O.,
ISHARUFE, W. I.. “A comparative
study on IFA divination and computer
science”. (IJITR) International Journal
* Pesquisadores do Departamento de Ciência da Computacão e
of innovative technology and research.
Tecnologia da Informação da Universidade de Bowen, Iwo, Estado de
Volume No. 1, Issue No. 6, October -
Osun, Nigéria.
November 2013, 524 - 528.
267
C1(16) relacionadas a ela [7]. Como o número de sub-hiper-
A informação é uma parte fundamental da vida, altamente cubos em um hipercubo de oito dimensões é 6,561 = 81
necessária para a sobrevivência. Tanto os povos quanto as x 81=3^8, o Ifá possui uma estrutura binária [2] e também
culturas evoluíram consideravelmente. Todas as habilida- uma estrutura ternária de três dimensões N = 8.
des linguísticas e de comunicação já passaram por muitas Mais do que similaridades com os processos usados
mudanças. no Ifá e seu sistema divinatório, a ciência da computação
A divinação é o ato de buscar conhecimento sobre tem sua origem no sistema divinatório do Ifá. Assim, este
o futuro ou circunstâncias secretas através de meios insufi- artigo pretende desenvolver um estudo comparativo entre
cientes que geralmente precisam ser complementados por o Ifá e a ciência da computação.
algum poder que, ao longo da história, vem sendo repre- O Ifá, divindade da sabedoria e do desenvolvimento
sentado como advindo dos deuses. A divinação usa sinais, intelectual, é convocado para avaliar casos e dar respostas
presságios e coincidências para revelar acontecimentos para diferentes problemas dos consulentes. É uma conexão
secretos. entre as pessoas e Deus (Eledumaré) [6].
Os sistemas divinatórios – alguns dos quais consis- Realizar o ato divinatório do Ifá é fazer um “Idafa”
tem praticamente da interpretação de sinais e presságios (ou Dida Owo e Ounte Ale). O Idafa é realizado por um Ba-
–, por sua vez, adotam uma abordagem mais criteriosa [4]. balaô ou Iyanifá (sacerdote ou sacerdotisa iniciado). Baba-
Foram inventados para gerar coincidências que não depen- laô pode ser traduzido como “pai dos segredos” e “Iyani-
dem de eventos externos e que podem ser interpretadas. fá” significa “mãe do Ifá” (ou seja, sua benção). Da mesma
Na antiguidade, as pessoas possuíam formas e linguagens maneira, a ciência da computação é um arquivo reservado
usadas para a comunicação. Nessa época, também havia a poucos profissionais da computação e mantém formas de
formas de realizar cálculos simples e armazenar informação sigilo através de alguns algoritmos de segurança.
[5], como o ábaco, uma ferramenta de cálculo bastante De acordo com o prof. Odeyemi em sua palestra
conhecida. “What is Ifa” [O que é Ifá], o Ifá é a Mensagem Divina de
Olodumaré para a humanidade, para todos aqueles que
II A ORIGEM DO IFÁ desejam recebê-la. A relevância universal do Ifá reside no
fato de que quando um indivíduo de qualquer raça, cor ou
Os deuses iorubá da Região Oeste da Nigéria existiram credo consulta um sacerdote do Ifá em busca de uma men-
no passado como humanos e possuíam formas de comu- sagem pessoal, pode lhe ser revelada uma mensagem de
nicação. Antes de seu desaparecimento, deixaram para as relevância nacional, continental ou mesmo mundial, assim
pessoas um meio de se comunicarem com os deuses em como no caso das redes neurais artificiais. Por exemplo, a
seu reino (o Ifá). Mais de doze mil anos atrás, os africanos mensagem do Ifá pode ser um aviso de que uma guerra,
desenvolveram a divinação oracular do Ifá baseada no fome ou peste se aproxima, ainda que o consulente esti-
quadrado de 16 = 16 x 16 = 26 = 2^8 correspondente aos vesse preocupado apenas com um assunto como o casa-
vértices de um hipercubo de oito dimensões e à Álgebra mento. Por existir há milênios, o Ifá vem sendo utilizado
269
raças [8]. Ifá para interpretar tais sinais [1].
Orunmilá, para facilitar o acesso à recuperação da O corpus literário do Ifá consiste de 256 possibilida-
Mensagem Divina (Ifá), desenvolveu o sistema de código des chamadas Odú e cada Odú também contém histórias
binário compatível com a computação milhares de anos complementares chamadas Esé. Dezesseis são os Odús
antes do surgimento da consciência informática no que se principais enquanto os 240 restantes são Odús misturados
costuma chamar de homem moderno. Portanto, o Ifá está ou menores. Como diz seu nome, cada Odú misturado é
preservado no formato de código binário e é emitido no formado pela combinação de dois Odú principais. Cada
formato de parábola. um dos Odús (tanto os principais quanto os menores) é
O Ifá é codificado por meio de 256 Odús ou Corpus, representado por um sinal específico que é binário em sua
no qual cada Odú representa um compartimento esotérico, natureza [13]. Todos os sinais Odú possuem dois traços
sendo ele mesmo divisível em outros 256 subcompartimen- ilustrados pelos dois primeiros Odús principais; Eji-Ogbe e
tos. Em cada um dos 256 Odús, há 1.680 versos sagrados, Oyeku Meji, como no diagrama abaixo:
todos apresentados no formato de parábola. Assim, o
corpo do Ifá consiste de 430.080 mensagens para a huma- Tabela 1: Dois Traços do Sinal de Odú
nidade [1].
Eji-Ogbe Oyeku Meji
Prof. Olu Longe em sua palestra inaugural “Ifa
Divination And Computer Science” [Divinação Ifá e Ciência 1 1 11 11 2 2
da Computação], realizada em 22 de dezembro de 1983,
afirmou que Orunmilá é uma das divindades iorubás e que 1 1 11 11 Ou 2 2
a divinação Ifá é um dispositivo para a previsão do futuro.
1 1 11 11 2 2
O que essas duas coisas têm a ver com a alta tecnologia do
mundo da ciência da computação? 1 1 11 11 2 2
O Ifá, na verdade, é um antigo sistema de compu-
tação binário que, de algum modo inexplicável, conectou
de maneira bem sucedida a probabilidade dos números Em seu artigo, Bade Ajayi enfatizou que a comunicação
às complexidades da condição humana e ao complexo e com o Odú é obtida por meio do cálculo de um framework
contínuo fluxo de eventos. O Ifá, de acordo com Longe, ba- matemático baseado no modo de agir estabelecido e re-
seia-se no padrão de oito bits com seu colar de divinação querido por cada Odú [1].
de oito peças, dezesseis Odús maiores (capítulos) e 256 O computador digital usa, de fato, o sistema binário.
Odús no total. Como o computador, a antomancia iorubá é baseada no
Bade Ajayi, em seu artigo intitulado “A New Model sistema binário e é, portanto, uma ciência computacional
of Ifa Binary System” [Um Novo Modelo do Sistema Binário que pode ser usada na educação matemática.
do Ifá], afirmou que Orunmilá, o deus iorubá da sabedoria Em uma sessão divinatória, diversos Ibos (instrumen-
e da divinação, usa um sistema geomântico de divinação tos para a cleromancia) podem ser usados para encontrar
271
te. A forma mais comum e simples de Ibo é composta de em consideração o sistema tradicional em que o Corpus do
búzios amarrados uns aos outros representando dígitos (1) Ifá se baseia. Na verdade, a importância da hierarquia dos
e um pedaço de osso animal representando “Iho” (10). 256 Odús para a interpretação da mensagem do Ifá não
Tudo isso está relacionado à atual linguagem da precisa ser excessivamente enfatizada.
computação. Precisamos de predição (científica e confiável)
mais do que de divinação (religiosa e incerta). Considerada PROCESSO DIVINATÓRIO IFÁ
a localização dos traços do Opelê, os pares deveriam ser
perfurados (d) e os pares duplos não perfurados (0). Utili- Os itens usados são grupos de dezesseis coquinhos ou
zando esse modelo do Ifá, 6-A-Bits, o modelo N de papel nozes (Ikin), Opelê (colar sagrado), pó da árvore Ierosum
perfurado computacional foi desenvolvido. Aqui está o (Iyerosun), tábua sagrada de divinação (Opon Ifá) e Ajere Ifá
modelo utilizado pelo Opelê. (recipiente para armazenar nozes de palma).
Os passos básicos são:
Abertos Nome Odú
⋙ Ifá Dida
000000 Ogbe (1)
⋙ Revelação do Odú
000001 Osa (10)
000010 Otua (13) ⋙ Aconselhamento
000100 Irete (14) O Odú Ifá é o Corpus Literário do Ifá. Consiste de
001000 Ogunda (9) 256 partes, em dezesseis coleções de dezesseis, em que
000011 Irosun (5) cada uma das dezesseis alternativas é subdividida em ver-
sos chamados Esé. Cada um dos 256 Odús tem sua assina-
000101 Ose (15)
tura divinatória específica.
001001 Iwori (3) A ciência da computação é o estudo sistemático da
000110 Odi (4) viabilidade, estrutura, expressão e mecanização dos proces-
001010 Ofun (16) sos metódicos (ou algoritmos). Ela subentende a aquisição,
representação, processamento, armazenamento, comunica-
001100 Owonrin (6)
ção da informação e o acesso a ela, seja codificada em bits
000111 Obara (7) e bytes em uma memória de computador, seja transcrita
001011 Ika (11) em genes e estruturas proteicas em uma célula humana.
001110 Oturupon (12)
Os bits são usados para representar, codificar e armazenar
informação [2].
001110 Okanran (8)
001111 Oyeku (2)
273
O fluxograma abaixo mostra as atividades durante a divina- O Diagrama de Caso de Uso mostra os passos das ações
ção Ifá e os passos básicos durante a divinação a partir do tomadas tanto pelo Babalaô quanto pelo consulente duran-
momento de escuta aos problemas do consulente à prescri- te o uso do oráculo Ifá:
ção do Oogun.
Figura 1 Figura 2
Começo Fluxograma Ouve o problema do consulente Um Diagrama
mostrando os ATOR de Caso de Uso
passos básicos mostrando os
da divinação Ifá passos básicos
feitos por um
Escuta do problema do Consulente Realiza o Ifá Dida (divinação)
babalaô na
Babalaô divinação do Ifá
não
O Ebó é necessário?
Figura 3
sim
Reza um objeto Um Diagrama
de Caso de Uso
ATOR mostrando os
Fazer Ebó passos básicos
(rituais) feitos por um
Oferece o objeto ao Ifá
consulente na
divinação do
consulente
Ifá
Recebe análise do problema e
Prescrever aconselhamento sugestões do sacerdote do Ifá
ou Oogun (medicamento)
275
Combinação Representação Nome
O Opelê é um colar divinatório que tem dois lados, o
Ffff 0000 Ejiogbe
esquerdo e o direito, com oito favas de cada um deles. O
lado direito é chamado de macho e o esquerdo de fêmea
Bbbb 1111 Oyeku
[11].
Na ciência da computação, um byte consiste de oito
Bffb 1001 Iwori
bits e um nibble representa quatro bits. Assim, as quatro
Fbbf 0110 Odi
favas de um lado de um Opelê podem ser relacionadas a
um nibble e todas as oito favas do colar a um byte da ciên-
cia da computação, do mesmo modo como bits são orga-
Bbbf 1110 Okanran
nizados em diferentes padrões de zeros e uns para formar
um número ou dígito binário específico. O número binário
Bfbb 1011 Ika
formado a partir da disposição ou combinação de zeros e
Bbbf 1101 Oturupon
uns na ciência da computação pode ser relacionado a um
Odú Ifá na divinação do Ifá.
Bbfb 1100 Oworin
O seguinte diagrama mostra a combinação de favas
do Opelê. O lado côncavo ou liso de uma fava é represen-
tado como b e o lado convexo é representado como f. O
lado côncavo são dois traços, ou seja, 1 no código binário,
e o lado convexo é um traço, ou seja, 0 no código binário
[3].
277
I-P-O (INPUT-PROCESS-OUTPUT/ ENTRADA- ESPECIALISTA
PROCESSAMENTO-SAÍDA)
O sistema divinatório do Ifá como um todo é como um
O padrão de saídas derivado do Opelê é analisado em sistema especializado usado para resolver problemas
relação a todos os 256 Odús e Esés (poemas) para derivar complexos dos consulentes. Assim como um computador
uma solução para o problema dos consulentes (proces- ou programa precisam de um operador para funcionar, o
samento). Em seguida, o sacerdote do Ifá prescreve um sistema divinatório do Ifá também precisa de um operador,
Oogun (medicina) para o consulente (saída). O Ikin (favas o sacerdote do Ifá, que ajuda a guiar o consulente usando
ou nozes de cola sagradas), o Opelê e outros instrumentos o Ifá para resolver seus problemas.
são como as interfaces utilizadas para enviar entradas para O Odú Ifá representa o motor de inferência enquan-
o processamento. Os Odús e Esés são como outras infor- to os Esés (poemas) representam a base de conhecimento.
mações básicas ou regulares que a CPU usa para processar
entradas em um computador. IX. DIVINAÇÃO IFÁ E O USO DE RECONHECIMENTO
DE PADRÕES
Figura 4:
Processos Padrão da fava/noz ENTRADA
Cada um dos 256 Odús tem seu próprio padrão ou assina-
no sistema e Odú derivado tura divinatória. Tanto os frutos sagrados do dendê quanto
de divinação
Ifá e sua o colar divinatório são usados alternadamente por sacerdo-
representação tes do Ifá para chegar à assinatura de cada Odú.
da ciência da
O padrão formado pela combinação das saídas do
computação
Canto de um Esé jogo de Opelê é combinado para formar um Odú específi-
específico para o Odú
derivado do jogo do co que tem um significado específico. Cada Odú é único.
Opelê ou fava/noz
PROCESSAMENTO
CONCLUSÃO
279
hermeneuticsystems.blogspot.com) Visto em 19 de Setembro, 2013
[1] Bade Ajayi, “A New Model of Ifa Binary System” (http://unilorin.
[10] Theophilus Otselu Ogbhemhe & Theophilus Imafidon Obaseki,
edu.ng/publications/yajayi/NEW %20MODEL.doc) Visto em 19 de
“Ifa Divination and Computer Science: A Case study of African Tradi-
Setembro, 2013.
tion”, 2004 (http://soraker.com/IA- CAP/programs/ecap04.pdf) Visto
em 20 de Setembro, 2013
[2] Frank Dodd (Tony) Smith, Jr., “From Ancient Africa”, 2009. (vixra.
org/pdf/0907.0040v3.pdf) Visto em 20 de Setembro, 2013 .
[11] Toyin Adepoju, “Ifa Divination and van Gogh”, 2009. Visto em 18
de Setembro, 2013.
[3] Ifa Quest Matrices, “Ifa Hermeneutics and the interpretation of
landscape in the artistic work of Susan Wenger and Katherine Malt-
[12] Traditional African Religion From Wikipedia, the free encyclope-
wood”, 2007 (www.ifaquestmatrices.blogspot.com) Visto em 19 de
dia (http://en.wikipedia.org/wiki/Traditional_African _religion) Visto em
Setembro, 2013 .
18 de Setembro, 2013.
[4] Jakob Vob, “Describing Data Patterns: A General Construction of
[13] Yemi Ogunsola, “Simplifying Yoruba Number System”, 2012.
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(http://www.ngrguardiannews.com/art/arts/7945 6-simplifying-yoru-
de Setembro, 2013
ba-number-system) Visto em 19 de Setembro, 2013
[5] James Weeks, “Driven by Numbers, Patterns and The Divine”,
2013. (www.acrossthekingsriver.com/tag/malidoma- some/) Visto em
19 de Setembro, 2013.
[6] James Weeks, “Ifa Sees The Big Picture”, 2013. (www.acrossthek-
ingsriver.com/tag/ifa- divination-readings/) Visto em 19 de Setembro,
2013
[7] Nelson Fashina, PhD, “Re(-)Placing Theory in Africa Studies: Ifa Lit-
erary Corpus, Origins, Universality and the integration of Epistemol-
ogy”, 2009. (www.uni- leipzig.de/~ecas2009/index.php?option=com)
Visto em 18 de Setembro, 2013
281
remonta ao século VI A.H., quando o griot Balla Fasseke,
m
da de forma curiosa, lembrando o som de mil cavaleiros ar-
a at
ranhando simultaneamente suas armaduras, foi interpretada
a
para Ibn Abu Hamran por uma viajante solitária chamada
S
Aminata, que estava caminhando para o leste na compa-
nhia de suas cabras. “Esfaqueado pelo vento”, redigiu a
escriba em sua concisa obra chamada ‘As tornozeleiras da
obsolescência’, “seco como uma casca, brilhando por baixo
Sofa
r
libertou da segregação e me iniciou no Antes do Depois.”
Superando tudo com gratidão, ele ofereceu o pouco que
original tinha: um saco de dormir e dois pratos de feijão por dia, na
A brief History
porta de uma mesquita, para que pudesse reunir o oráculo,
of Nonduality
Studies
que era uma anciã, e sua família. Aminata recuou, horrori-
zada. “Deus me livre! Eu percorri todo esse caminho para
tradução escapar desses filhos da puta.”
Camila Elias O Escriba Alongado, chamado assim porque sua
magreza extrema o tornou conhecido nas ruas do Cairo, era
referência responsável por desenvolver os Estudos em Não Dualida-
SAMATAR, Sofia. “A brief history de na região oriental, em uma escola preocupada com a
of nonduality studies’. Expanded
questão do tempo. A pergunta que ele mais fazia a seus
Horizons. 2012. Disponível em:
alunos era “O tempo foi criado antes ou depois da criação?
https://expandedhorizons.net/
magazine/?page_id=2918 Ou ambos foram criados simultaneamente?”. O calor ou o
frio implacável da varanda onde eles sentavam e o estôma-
go vazio daqueles para quem ele falava garantiam que as
283
precárias de Sylvia, realizadas em um cemitério). Sem o carregando uma manjedoura de palha nas costas. Durante
patrocínio de Ibn Barzakh, conhecido pelos mais chegados o transporte, apareceu um idoso, febril e muito inchado por
como “Olho de Sapo”, provavelmente a Escola Oriental picadas de mosquitos. Era Ibn Barzakh, que havia chegado
não teria sobrevivido à morte prematura do escriba, de tarde demais.
uma tosse seca conhecida como “a Garra”. Felizmente, (Posteriormente, você choraria ao saber de sua trá-
Ibn Barzakh era filho de um comerciante rico. Seu topete gica história. Uma única lágrima, como um grão de tapioca.
elegante foi decorado com pingentes de quartzo verde, e Depois você riu. Tive orgulho de sua coragem: Sylvia nos
seu colete tinha tantos bordados feitos por sua irmã Radwa, ensinou a suspeitar desse tipo de acidente. Falhas e perdas
“a Bela do nariz arrebitado”, que podia ficar de pé sozinho. faziam parte do nosso campo de investigação).
Ibn Barzakh abriu seu lar para os alunos da teoria da não Agora estamos na época de ouro dos Estudos em
dualidade, e sua irmã servia bolos embebidos em mel. E Não Dualidade, um período de tamanha riqueza que não
havia mel suficiente para deixar um búfalo atordoado! Eles poderia ser completamente investigado em uma única vida.
não sabiam que, com dois meses de jornada para o sul, No Cairo, Radwa bint Barzakh, “a Bela do nariz arrebitado”,
Deng Machar Deng resolveria todos os seus problemas, agora com mais de oitenta anos de idade, continua a ofe-
com a máxima: “A criação é o tempo!” recer suporte à Escola Oriental. Supostamente, ela estava
Foi na terra pantanosa de Deng Machar Deng, e sempre com uma cópia de “As tornozeleiras da obsoles-
no sul de suas florestas, que os Estudos em Não Dualidade cência”, que mantinha em uma caixa almofadada, coberta
floresceram com maior vigor. (Discutiríamos isso poste- com seus inigualáveis bordados. Tita, Rei dos Azande,
riormente: você defendia que a Escola Oriental era mais enviava a ela seus frascos de couro com manteiga de carité
inovadora e dinâmica, enquanto eu citava os muitos bene- por pombo-correio e, em troca, ela enviava a ele letras de
fícios da Escola Ocidental. Nossa sinceridade era a mesma; músicas repletas de questões filosóficas. Essas anotações
as vitrines das lojas refletiam nossa imagem). Deng Machar eram interpretadas para ele por um vassalo que falava
Deng, que encorajou seus discípulos a pescarem durante árabe, conhecido como o Turco Perdido (embora não fosse
a aula, era visto frequentemente com água até a altura de nem turco, nem estivesse perdido). Muitos jovens Azande
suas coxas magras, talvez se inclinando para recolher sua viajaram para o norte incentivados pela promessa da sabe-
rede, ou cantando, mas sempre carregando no olhar o bri- doria de Radwa, na esperança de conseguir falar com ela.
lho refletido dos pântanos. Adeptos da filosofia espalhada No fim da vida, sua pele estava tão frágil que ela precisava
pelos griots, viajavam por meses só para ouvi-lo. “A criação ser virada a cada meia hora, como se fosse uma ave ao
é o tempo!” era repetido até o litoral de Magrebe. Nas forno. Esta tarefa era realizada por sua acompanhante de
florestas do rio Congo, as aulas do músico geralmente in- toda a vida, uma mulher chamada Khayriyyeh, que conse-
cluíam letras para suas músicas, feito que fazia com que as guia revidar qualquer olhar hostil com suas sobrancelhas
árvores crescessem mais rapidamente. Quando ele morreu, grisalhas. Embora poucas das declarações de Khayriyyeh
sua morte foi chorada em todos os lugares, até o Zimbá- tenham sido preservadas, são creditadas a ela as palavras
285
“Meu Deus!” gritou um turista, no dia da morte de “Você disse: ‘Você também está aqui.’”
Radwa. “Ela está sorrindo! Estará viva?” Eu já estava falando mais baixo, como se os sonhos,
“Quem está sorrindo?” Interrompeu Khayriyyeh. assim como os animais pequenos, pudessem ser afugenta-
“Radwa ou os lábios de Radwa?” dos a qualquer momento. “Você disse, ‘Essas também são
“Radwa ou os lábios de Radwa” se tornou o lema as Cidades Gêmeas.’ Quais são as outras?”
da Escola Oriental. A Escola Ocidental, com base nas enig- Nas esculturas assírias, olhos como os seus, com a
máticas letras de amor de Deng Machar Deng, teve início parte branca ao redor da íris completamente visível, dão a
simultaneamente em Dakar e em Dar al-Baydaa, que fica- conotação de uma visão mística. “Dakar e Dar al-Baydaa, é
riam posteriormente conhecidas como as Cidades Gêmeas. claro,” você disse.
(“Essas também são as Cidades Gêmeas”, você Ao se deparar com tamanha revelação, como pode-
murmurou na noite em que nos conhecemos. Vestindo ria deixar você partir? Fiz elogios no restaurante, bebendo
sobretudo e cachecol, olhamos os vinis de uma loja de dis- enquanto olhava calmamente para você. Você lambeu os
cos quase abandonada. “Quem ainda ouve discos?” você dedos com a mesma calma. Perguntei quem havia sido seu
disse, em tom acusador. professor, e você disse: “Ninguém”. Não há como saber se
“Você também está aqui”, eu disse. isso é verdade.
Você nem piscou. “É que gosto de ver as capas.”) “Quem foi o seu?” você perguntou, com um olhar
Uma época de ouro. E o Rei de Mali – com seus cauteloso.
braceletes dourados – observava, entre as árvores antigas “Sylvia Fazakas. Você precisa ir a uma de suas
de seu jardim, a sombra de filósofos desconhecidos. “Não aulas.” (Nas montanhas de Abissínia, Azazet, o Hesitante –
sei se estão vivos ou mortos”, disse ele, segundo ‘As vidas um dos magníficos excêntricos – saudou seus alunos: “Bom
dos Santos’, de Seti. “Mas eles são meus semelhantes. Por (que não é o oposto de mau) dia (que não é o oposto de
isso, eu não temo ser atingido por punhais, ou por vene- noite)...”)
no”. Dois minutos depois, ele morreria envenenado. Contei Sylvia, assoberbada como sempre, passando as
isso como se fosse uma história engraçada, mas você não mãos pelos cabelos e pela saia, recebeu você com um
riu. Com vergonha, me ofereci para comprar um hambúr- gesto lânguido. Alheia à própria perfeição, ela usava salto
guer em um restaurante próximo. Ou batatas fritas, caso alto, porque se considerava muito baixa. Você sentou
você fosse vegetariana. desconfortavelmente no banco ao meu lado, com o queixo
Isso foi mais tarde, depois de sairmos da loja de escondido pelo nó de seu cachecol feito artesanalmente.
discos. Na loja de discos onde, mediante uma supervisão Os outros participantes da escola, que eu chamava alegre-
misteriosa, era possível fumar cigarros, perguntei a você: mente de Escola Minnesota, uma estudante de medicina
“Por que você disse ‘também’?” e um gângster reabilitado chamado Testa, assopravam as
“Eu não disse, foi você.” mãos e sorviam chá quente, preparando-se para a noite fria
“Acho que não.”
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era ouvida, vinda da lanchonete. Ataque de pânico: o apartamento estava todo desarruma-
Sylvia apoiava o queixo na mão. “Por que vocês do. Mais tarde, depois que você foi embora, ficou pior:
estão aqui?” sangue e cinzas por toda a parte.
“Estamos em um país livre”, você disse. Você deixou sua bolsa em um canto. É claro, pensei
Sylvia esperou. eu, contente: Essa bolsa. Parece uma bolsa de uma pessoa
“Certo”, você admitiu. “Quero ver Deus.” sem-teto. E era, uma bolsa disforme e toda remendada
“Isso parece ser impossível.” com fita adesiva. Você sentou no sofá e mordeu o lábio
“Ela é mesmo a professora?” você me perguntou. rachado. “Está muito frio aqui.” Eu discordei de você da
A estudante de medicina deu uma risadinha. Testa olhava cozinha, que tinha vista para o sofá, enquanto limpava o
para as pichações na mesa. balcão.
“Temos de concordar que só podemos ver o que Quando me virei, você tinha caído no sono.
não somos.” (Um breve florescer em Al-Andalus. Passou em um
“Eu consigo me ver no espelho.” instante, como é rápida a colheita de damascos. Ibn Zahir
“Exatamente.” disse: “Se a criação é o tempo, então a criação é constante.
“Certo. Mostre-me o reflexo de Deus.” O mundo é recriado todos os dias”).
“O reflexo de Deus não é Deus”, disse Sylvia, com Você acordava todos os dias em meu sofá, era um
um sorriso que depois você definiria como ‘o sorriso de milagre. Recriada. Era muito difícil para você continuar
uma rainha das fadas’. fazendo isso? Cabdi Xasan, que foi preso pelos britânicos,
“Jesus Cristo, moça!”, você disse. “É melhor do declarou que nos redefinimos diariamente a partir da não
que nada.” dualidade, até que uma hora nossa força acaba. Achei uma
(“Para ver Deus”, cantava o grande filósofo San, ideia bonita, mas você disse que era deprimente. Você
conhecido como Filho do Nascer da Lua, e a Escriba Azul parecia discordar de mim sempre que podia. Ao contrário
de Tombuctu transcreveu suas palavras com um cálamo, “é da maioria das pessoas, você nunca perguntou de onde
preciso ter olhos, mas isso não é possível, porque Ele não é eu vim. Em um lapso inexplicável de intuição, você pensou
uma coisa, e sim uma ação. Porque não somos o conheci- que eu estava apaixonado por Sylvia.
mento de Deus, mas sua sabedoria”. Os grilos cravejavam “E é nesse ponto que estamos agora”, disse Syl-
a grama; a Escriba Azul vertia lágrimas índigo, e mergu- via – ignorando o declínio dos Estudos em Não Dualida-
lhava o bico de sua pena nelas. Na realidade, nossa teoria de, já que não havia admitido seu apogeu – chegando ao
não é mais do que a história sobre a tristeza. “Podemos momento presente, quando a investigação da unidade é
ter olhos, se formos o Nome de Deus”, cantava a Crian- reprimida e dissipada: uma teoria exilada”. Fios de cabelos
ça. “Talvez seu Nome sejam os anjos. Mas estamos entre acinzentados escapavam de seu chapéu e balançavam com
Verbos”.) o vento na frente de sua bochecha. Ela ensinava o concei-
Nunca pensei que você me acompanharia até mi- to de Ramadhani sobre o Não Transcendental. “O que ele
nha casa. Eu falei durante todo o caminho, desejando que viu”, disse ela, “enquanto a escola de Malindi queimava e
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zar sua profissão, foi que a profissão em si era um erro. Ao um Não Transcendental. O que poderíamos ter aprendido
construir estas escolas, fomos responsáveis pela separação. com ele? O que ele poderia ter nos transmitido? Ele, ou um
Os acontecimentos da história, na mente dele, constituí- dos inúmeros praticantes de nossa fragmentada filosofia,
am um “Não” que era falado pela própria não dualidade. poderia ter transmitido alguma palavra que tirasse você de
Relembrando sua profecia: De agora em diante, será nosso seu caminho?”
destino chegar em todos os lugares, apenas um passo atrás “Eu estou em um próximo nível” você disse, ba-
de nossos inimigos.” tendo no peito. Não tem como saber se isso é verdade ou
“O que estamos fazendo aqui, então?” você disse. não.
“Somos buscadores”, Sylvia respondeu. Você não trabalhava. Enquanto eu estava fora, você
Depois você disse: “Ela não perde uma oportuni- praticava boxe e Tae Kwon Do. E fez um buraco em uma
dade, não é?” Mas eu via que, embora conseguisse res- das cadeiras da minha sala de estar, com um chute. Quan-
ponder a todas as suas perguntas, ela estava incomodada. to a mim, comecei a trabalhar no banheiro de uma loja de
Seus olhos se concentravam no trânsito para além da cerca conveniência, e não queria que você me visse com aquela
escura do cemitério. Meu coração ficou apertado quando blusa vermelha horrível.
ela pegou sua bolsa, que estava úmida pela neve e pare- Comprei pretzels para você, que comeu tudo direto
cia muito com a bolsa de um sem-teto, colocou a alça no do saco, olhando para a parede. E chorou uma única lágri-
ombro e andou entre as lápides geladas, a caminho da casa ma pelo triste destino de Ibn Barzakh.
(onde morava com sua filha, uma ríspida esteticista de cães, “Se pudéssemos diminuir a distância entre nós
sobrecarregada com a tarefa de “cuidar da mamãe”). dois”, você disse, “poderíamos diminuir a distância entre
“Não precisa ser assim”, você disse. nós e Deus.”
Seu olhar me assustou. Parecia raivoso. Ghada Mallasi, conhecida como “a Íbis”, parou a
Nossos alunos foram embora. O vento assoviou por caminho de Quena. Ela não tinha passagem. Ficou à beira
entre as árvores. na estrada por dois dias, esperando que os guardas tives-
“Podemos fazer mais”, você disse. E eu ouvia um sem compaixão. Em sua bolsa, um punhado de doce de
eco das letras de Radwa em minha mente. Depois ouvi o amendoim e o manuscrito de sua obra-prima, “Os prados
estalo de seu beijo, como se fosse uma janela quebrando. do acaso”. Quando percebeu que nunca terminaria seu
Quem é você? Você nunca quis saber do meu trajeto, colocou a bolsa na cabeça e voltou para Ondurmã.
passado e nunca me disse nada sobre sua vida anterior. “Estradas, estradas!” ela escreveu, em seu pequeno aparta-
Eu queria procurar na sua bolsa, mas tive medo. Medo de mento, que a cada ano se afundava mais na areia. “Quanto
achar alguma coisa, alguma prova conclusiva de que você mais estradas houver, e quanto mais bonitas elas forem,
não ficaria. O estudioso Lukhele, conhecido nos livros de mais difícil será chegar em qualquer parte.”
história como “Niklaas, o Louco”, dava aulas às margens Você sentou na cadeira quebrada e eu fiquei de pé,
de um poço, em um país que hoje é chamado de África do ao seu lado. O ambiente estava escuro, mas a claridade da
Sul, mas suas palavras não foram registradas, somente seus cozinha do apartamento ao lado refletia em seu rosto, que
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não como um pingente de gelo, nem como uma lâmina, fliperamas. Por um momento, achei que isso mudaria.
mas como uma memória do passado, rápida e terrível. Aí você parou diante de mim, ofegante, com san-
Eu me ajoelhei e beijei suas mãos frias e macias. gue escorrendo do corte em sua cabeça.
“Diga-me o que fazer.” “Você sentiu isso?”
Sua coragem não tinha limites. Tentamos de tudo: “Sim”, solucei.
meditar, fazer greve de fome, dançar. Testa nos fez comer “É mentira.”
uma planta chamada Khat. Por causa dela, ficamos três Você levantou o ferro novamente.
dias acordados, mastigando de forma irracional. No último “Pare! Pare! Eu senti!”
dia, vi um anjo bater asas na parede. “Olha,” eu disse, “ele Você abaixou o ferro pesado, que desta vez estava
é um dos Nomes de Deus.” Fizemos experimentos com em sua mão. Mas não é do meu feitio ficar lembrando de
fósforos, vapor de alvejante, balde de água gelada. O ex- coisas ruins.
perimento com o grampeador, vejo agora, foi um momento Mais tarde, a estudante de medicina foi até meu
importante. apartamento. Ela trouxe comida e injeções, e fez uma tala
“Estamos quase conseguindo”, você sempre in- para minha mão. “Não chore”, ela disse em nosso idioma,
sistia. Você sentia tudo pairando para além da dor, em um raramente falado, enquanto finalizava as suturas. “Vai ser
espaço livre, como o mar. melhor assim.”
Ao tentar chegar até Abidjan, onde esperava re- É claro que ela estava certa. Eu deveria ter ficado
alizar sua meditação em versos, chamada “O que Sabe o alegre quando vi que sua bolsa não estava mais lá. Você
Trovão”, Onesimo Bondo foi detido e levado para as minas. era perigosa, tóxica. Sua presença na cidade foi como uma
Quero ser justo. Não omitirei as contribuições do praga. Você destruiu meu apartamento e quase me matou.
restante do mundo para a nossa filosofia: o Sapateiro de Você fez com que eu perdesse o emprego. Roubou meu
Bali, cujos sapatos poderiam ser usados em ambos os pés, barbeador elétrico. Quando você volta?
a banda de punk rock de Praga, formada na década de 70, Escrevi essas notas para Sylvia, pois ela me pediu
chamada “The Lips of Radwa” (Os lábios de Radwa). Não que as escrevesse, eu acho, apenas para mim, na esperança
omitirei seu sorriso laranja após beber raspadinha. Você me de que essas palavras me trouxessem de volta ao mundo.
mostrou umas fotografias antigas e granuladas que levava “Isso ajudará você a sonhar com o futuro”, disse ela. Mas
na bolsa: “Sou eu”, você disse, apontando uma imagem não, eu sonho com o presente. Com o agora. Se não fosse
iridescente sentada em um triciclo. Quanto mais de perto assim, qual seria o motivo para eu ser não dualista? Eu abro
eu olhava, mais aqueles pontos que formavam você se a janela e encosto o nariz na tela, sinto o cheiro da prima-
distanciavam, até se dissolverem em uma constelação vasta vera, de escapamento e das magnólias. E nunca sonho com
e distante. Devemos admitir que os estudos sobre não du- você. Como o Rei de Mali, sonho com os outros, colegas
alidade são, em grande parte, um campo de estudo oculto, desconhecidos e queridos, com uma menina de doze anos
um tema desacreditado e enlutado, praticado em cemi- que vive em Rambling, Michigan, chamada Eugenia Cze-
chowicz.
293
gosta. Ela prefere ser chamada de Jenny. Ela acabou de
entender, com a sibilante efervescência cognitiva, que sua
melhor amiga da vida, uma talentosa patinadora de gelo,
é e não é ela mesma. Desafiando as regras estabelecidas
pelos seus pais, ela pilota sua bicicleta de dez marchas por
sobre a ponte.
afrofuturismo
16 1. Nós vimos esses mundos desconhecidos emergirem do
295
trabalho de Wifredo Lam, cujas origens afrocubanas inspi-
ram obras que falam de deuses antigos com novos rostos,
e nas obras de Jean-Michel Basquiat, que nos deu novos
um manifesto deuses com rostos antigos. Nós ouvimos este mundo nas
trompas-ebó de Roscoe Mitchell e nas letras de DOOM.
D. Sco
Himes e William S. Burroughs.
2. O Afro-Surreal pressupõe que além deste mundo
visível, existe um mundo invisível empenhado em se ma-
nifestar, e é nosso trabalho revelá-lo. Como os Surrealistas
africanos, Afro-surrealistas reconhecem que a natureza
(também a natureza humana) cria mais experiências surre-
t M er ais do que qualquer outro processo teria a esperança de
produzir.
3. Afro-surrealistas restauram o culto do passado.
Nós revisitamos os costumes antigos com novos olhos. Nós
nos apropriamos dos símbolos da escravidão do século 19
como Kara Walker, dos símbolos coloniais do século 18 tal
qual Yinka Shonibare. Nós re-apresentamos a “loucura”
como visitas dos deuses, e reconhecemos a possibilida-
ill
original
AfroSurreal Manifesto de da magia. Nós damos continuidade às obsessões dos
antigos e acendemos a chama do desconforto, clareando
tradução a névoa da inconsciência coletiva que se manifesta nestes
Stephanie Borges sonhos chamados de cultura.
4. Afro-Surrealistas usam o excesso como o único
referência
MILLER, D. Scot. “AfroSurreal
modo legítimo de subversão, e a hibridização como forma
Manifesto”. 2009. Disponível de desobediência. As colagens de Romare Bearden e Wa-
em: dscotmiller.blogspot. ngechi Mutu, a prosa de Reed, e a música de Art Emseble
com/2009/05/afrosurreal. of Chicago e Antipop Consortium expressam este trans-
html bordamento. Afro-Surrealistas distorcem a realidade para
um manifesto do afro-surreal
um impacto emocional. 50 Cent e seu tom frio monótono e 9. Na moda (John Galliano; Yohji Yamamoto) e no
297
Walter Benjamin com suas táticas de choque pouco cordiais teatro (Suzan LoriParks), o Afro-Surreal escava os resquícios
podem beijar as nossas bundas. Basta! Nós queremos sen- deste pós-apocalipse com um instinto dandificado, uma
tir alguma coisa! Queremos chorar em público! língua suave e um coração sem coração.
5. Afro-surrealistas se empenham no rococó: o belo, 10. Afro-Surrealistas criam deuses sensuais para ras-
o sensual e o impulsivo. Nós apelamos a Sun Ra, Toni Mor- trearem os ícones de uma beleza colapsada.
rison e Ghostface Killa. Nós contemplamos Kehinde Wiley,
que observa o corpo do homem negro de uma forma que
se aplica à toda arte e cultura: “Não existe imagem objeti-
va. E não há um modo de ver a imagem em si objetivamen-
te.”
6. A vida dos Afro-Surrealistas é fluída, repleta de
pseudônimos e censos - desafiando classificações. Não há
endereço ou número de telefone, nenhuma disciplina ou
vocação. Afro-Surrealistas são commodities de alto rendi-
mento a curto prazo (em oposição às que recebem muito
pouco em longo prazo, também conhecidas como escra-
vos). Afro-surrealistas são ambíguos. “Sou preto ou branco?
Sou hétero ou gay? Polêmica!” Afro-Surrealistas rejeitam
a servidão silenciosa que caracteriza os papéis existentes
para os afrodescendentes na América, os de ascendência
asiática, os latinos, as mulheres e pessoas queer. Apenas
através da mistura, da combinação, da conversa cruzada
entre estas supostas classificações pode haver a esperança
de libertação. O Afrosurrealismo é intersexual, Afro-Asiáti-
co, Afrocubano, místico, tolo e profundo.
7. O Afro-Surrealista usa uma máscara enquanto lê
Leopold Senghor.
8. Ambíguo como Prince, negro como Fanon, literá-
rio como Reed, dândi como André Leon Tally, o Afro-Surre-
alista busca a definição no absurdo de um mundo “pós-ra-
cial”.
Camila Elias
Tradutora técnica nos pares inglês e português desde 2004, quando concluiu Jota Mombaça
seu bacharelado em Letras. Após a gradução, realizou também uma espe- É ensaísta e performer. Engaja-se em processos artísticos nos quais toma o
cialização em interpretação, além de diversos cursos e congressos na área. corpo como vetor de criação e de ação. Seus ensaios, performances e pes-
Também coordena voluntariamente o Barcamp de Tradutores e Intérpretes quisas acadêmicas abordam as relações entre monstruosidade e humanidade,
do ABC. Suas áreas de especialização são: TI, Marketing, Turismo, Websites, estudos kuir (queer), giros descoloniais, interseccionalidade política e tensões
Games/Apps e Finanças. [email protected] entre ética, estética, arte e política nas produções de conhecimentos do sul-
-do-sul globalizado. Colabora com a Oficina de Imaginação Política, São Paulo,
Eugênio Lima e participou de residência artística junto ao Capacete 2017 na Documenta 14
DJ, Ator e MC, Pesquisador da cultura diaspórica, Membro Fundador do Nú- (Atenas/Kassel). Realizou performances em instituições como Instituto Goethe,
cleo Bartolomeu de Depoimentos e da Frente 3 de Fevereiro e Diretor do Co- São Paulo (2014); Pinacoteca do Estado do Rio Grande do Norte, Natal (2013);
letivo Legítima Defesa. Ganhador do prêmio Shell de teatro de melhor Música e Casa Selvática, Curitiba (2013). Vive em Natal. [email protected]
em 2006 e 2020. Ganhador do prêmio do Coca Cola/FENSA 2004 de melhor
música. Ganhador do prêmio Governador do Estado 2014 com o Núcleo Juno Nakano
Bartolomeu de Depoimentos. Tem também um ampla atuação como curador Tradutora, educadora, escritora e pesquisadora nas áreas de gênero e tecnolo-
com destaque para a ”Antologia Brasileira de Dramaturgia Negra” (FUNARTE gia. [email protected]
2017) e “Legítima Defesa - Poéticas-Políticas à Procura de um Pouso - Elabo-
ração poética, portanto política, da imagem da “negritude” (São Paulo 2017). Milena Duarte
[email protected] Mãe do Antônio, mestre em urbanismo e doutoranda em artes, Milena Durante
é tradutora literária (inglês<>português) há treze anos, além de intérprete
Francisco Araujo da Costa simultânea, e pesquisadora das relações entre arte, política, cidade e coletivi-
Tradutor, formado em Publicidade e Propaganda e em Letras pela UFRGS. dade nos tempos atuais. [email protected]
Suas traduções de narrativas da escravidão estão sendo publicadas pela Edito-
ra Hedra em junho de 2020. [email protected] Marcos Manulu
Músico, compositor e economista, ou vice e versa, com um EP gravado (Rebo-
Juliana Berlim binado). Mestrando em Economia Política Mundial na UFABC.
Professora de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio Pedro II, no Rio de [email protected]
Janeiro. Leciona sobre afrofuturismo no curso Ererebá (Especialização em Edu-
cação das Relações Étnico-Raciais no Ensino Básico) da mesma instituição. Tem Nathalia Kloos
vários contos publicados no Brasil e exterior. [email protected] Editora e tradutora. Ela faz parte do coletivo Jef Klak, de crítica social e mídia
independente em Paris. Seus trabalhos de pesquisa abordam artes cênicas, po-
esia contemporânea francesa e movimentos sociais, buscando os nós e pontos
de encontro entre estética e política. [email protected]
FICHA TÉCNICA
Tomaz Amorim
Poeta, tradutor e pós-doutorando em Teoria Literária na Unicamp. Escreve so-
bre crítica cultural e política na Revista Fórum e já colaborou em outros jornais
e revistas. Publicou seu primeiro livro de poemas, Plástico pluma, em 2018 pela
editora Urutau. É militante e coordenador do Núcleo Virtual da Uneafro Brasil.
Tem se interessado por teoria crítica, antropofagia e afrofuturismo.
[email protected]