Fontcuberta - Fauna Secreta
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FAUNA SECRETA
Joan Fontcuberta
A zoologia oferece um terreno propício à incerteza: conhecemos os animais mais comuns mas é impossível nos
familiarizarmos com a infinidade de variedades existentes. Somos aqui apresentados a uma fauna incrível e em
muitos casos extinta, da qual por sorte se conserva essa memória gráfica e escrita.
D urante as férias de verão de 1980, numa lúgubre mansão habilitada como Bed and Breakfast, situada na
escarpada costa de Cap Wrath, no norte da Escócia, eu e meu amigo Pere Formiguera encontramos um
estranho arquivo. Lembro que era uma tarde tediosa, que a chuva torrencial nos impedia de sair e que, por alguma
razão, descemos até o porão da mansão. A visão daquele depósito úmido e mal cheiroso despertou a nossa
curiosidade, ávida por descobrir tesouros esquecidos. Em estantes salpicadas de teias de aranha amontoavam-se
cadernos e páginas repletos de anotações em alemão, bem como placas fotográficas e algumas cópias já
amareladas, instrumentos de dissecação e frascos de formol. No solo, jaziam espalhados alguns horripilantes
animais dissecados.
Nos dois dias seguintes, ainda que já houvesse um sol esplendoroso, não saímos daquele antro – verdadeira cova de
Ali Babá das ciências naturais –, maravilhados que estávamos com o conteúdo das fotografias, tentando decifrar
escritos enigmáticos. Pudemos deduzir que seu autor havia sido um zoólogo de tradição neodarwinista, entretido,
entre os anos de 1930 e 1940, em precoces estudos teratológicos. Seu nome era Peter Ameisenhaufen. Seu arquivo,
fruto tanto de investigações de campo quanto de avaliação acadêmica, havia sofrido uma inundação e muitas peças
encontravam-se em estado deplorável. Urgia restaurá-lo e colocá-lo em ordem, mas, sobretudo, era necessário
oferecer todos os dados às considerações de experts e divulgar ao grande público a vida e as descobertas do
professor. A esse propósito, decidimos, Pere e eu, dedicar grande parte de nossos esforços.
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O primeiro passo consistiu em recuperar a sua biografia por meio de dados isolados e do testemunho de antigos
colegas seus; várias entrevistas com sua irmã Elke, que localizamos em Stuttgart, também se mostraram de
grande utilidade, pois, embora octogenária, Elke conservava uma lúcida memória. Pois bem, Peter Ameisenhaufen
nasceu em Munique em 1895. Seu pai foi Wilhelm Ameisenhaufen (Dortmund, 1860 – Dar es Salaam, 1914), de
profissão explorador, caçador e guia de safari. Sua mãe, Julia Hall (Dublin, 1873 – Munique, 1895), era concertista e
professora de piano, e morreu em decorrência do parto. Devido às muitas estadias africanas do pai, o pequeno Peter
cresceu e se educou em Dortmund com sua tia Maria. Logo mais se uniria a eles Elke, nascida da relação de seu pai
com Else Hartig, enfermeira no Hospital Central da capital da Tanzânia. Um destino trágico pairou sobre o casal:
em 1900, Else foi devorada por um leão que tentava domesticar e, dez anos mais tarde, o próprio Wilhelm morreu
devido a uma hemorragia cerebral produzida por um fortíssimo golpe acidental com um elefante que, gravemente
ferido por caçadores furtivos, ele paradoxalmente tentava auxiliar.
Peter foi um adolescente reservado e aplicado na escola, desenvolvendo grande inquietude com relação ao mundo
animal. Sem dúvida foi cativado pela experiência da vida selvagem na África, que conheceu em esporádicas visitas a
seu pai. Apaixonado tanto pela leitura como pela ação, seus heróis poderiam ter sido, ao mesmo tempo, o geólogo e
naturalista Alexander von Humboldt e o geólogo e aventureiro Indiana Jones. Sua biblioteca era povoada de livros
de aventuras próprias para sua idade (Júlio Verne e H.G. Wells), mas também de tratados clássicos das ciências
naturais de todas as épocas (Celso, Plínio, Paré, Lamarck, Bates e Darwin). Destacava-se, em lugar privilegiado,
uma edição original de Des monstres et des prodiges, de Ambroise Paré (Paris, 1585).
Aos 18 anos, Peter se mudou para Munique para iniciar o que seria uma brilhante carreira universitária. Estudou
medicina e biologia na Ludwig Maximilian Universitat, tutelado pelo Dr. Conrad Vogels, o mais distinto zoólogo da
época, e se doutorou nas duas especialidades sete anos mais tarde. Seu excelente desempenho acadêmico mereceu a
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atenção da Junta Reitora da Universidade, que o convidou a fazer parte de seu corpo docente. No campus, ganhou a
reputação de personagem discreto e misterioso, absorto no estudo de híbridos, mutações e deformações genéticas.
Sua cátedra ficou vaga em 1932 após sua expulsão da universidade em circunstâncias obscuras (especula-se que
alguns estudantes denunciaram operações “clandestinas” de enxerto de tecidos e transplante de órgãos, práticas
proibidas naquele tempo). Desde aquele momento, Ameisenhaufen, decepcionado com a estreiteza da comunidade
acadêmica e talvez prevendo o vórtice do nazismo, emigrou para os Estados Unidos. Viajou pelos cinco continentes
com uma reduzida equipe de colaboradores e cientistas na qual se destacava Hans von Kubert, biólogo medíocre,
mas excelente fotógrafo.
No ano de 1932, entra em cena outro personagem fundamental na vida de Peter Ameisenhaufen. Trata-se de Helen
X (a família pediu o anonimato), inteligente moça escocesa que seria o amor de sua vida, um amor sublimado pela
distância e por encontros ocasionais, mas ardentes.
Entre 1933 e 1950, a atividade científica do professor foi mais intensa, com a classificação de quase todas as
espécies que hoje se fazem conhecidas. Dentre elas estão, cientificamente documentadas, os surpreendentes
Solenoglypha polypodida, a serpente que se desloca através de seis pares de pernas, Centaurus neandertalensis,
parte macaco e parte cabra, criatura que apresenta dois braços e quatro patas, o desengonçado herbívoro Alopex
stultus, possível evolução da tartaruga e, ainda, a Truita peluda, ou peixe com pelos. Tudo isso dá conta da Neue
Zoologie, uma fauna incrível e em muitos casos extinta, da qual por sorte se conserva essa impressionante memória
gráfica e escrita. A divulgação das investigações de Ameisenhaufen causou, inicialmente, profunda controvérsia,
mas a evidência irrefutável dos testemunhos fotográficos e documentais silenciou qualquer dúvida ou suspeita.
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No entanto, por volta de 1949, a saúde de Ameisenhaufen se fragilizou, e no ano seguinte ele foi diagnosticado com
leucemia. Seu frenético ritmo de trabalho foi bruscamente desacelerado e ele decidiu estabelecer-se próximo de
Glasgow, junto à Helen, com quem compartilharia os últimos cinco anos de sua vida. Em 7 de agosto de 1955,
Ameisenhaufen realizou uma excursão solitária ao norte do país. Três dias depois, seu carro foi localizado no alto de
um penhasco junto à costa. Seu corpo nunca foi encontrado. Oficialmente, foi declarado desaparecido.
E nquanto somos crianças, nos contam muitas mentiras. Algumas delas são poéticas, outras nem tanto. O
problema é que, ao nos tornarmos adultos, continuam nos contando mentiras. Numa breve reflexão, a questão
importante seria a seguinte: quanta verdade (adequatio intellectus et rei, em sentido estrito) há naquilo que nos
dizem em casa, na escola e na universidade? Afinal, o que há de verdade nos livros e nos museus? O que seria
verdade naquilo que nos contam atualmente os jornais e a televisão? Por exemplo, o homem de fato pisou a Lua?
Aparentemente sim: não só confiamos em quem nos confirma tal fato como também tivemos a oportunidade de ver
as fotografias e as transmissões televisivas.
A verdade utiliza como ortopedia alguns meios destinados a fornecer evidências. A fotografia, especialmente, é um
dos meios mais empregados para esse fim. Entretanto, por extensão, poderíamos falar de toda a classe de sistemas
geradores de mensagens icônicas, produzidas por um aparato ótico – a lente – que permite um registro direto do
real. Mas esses meios, agora nos damos conta, são facilmente manipuláveis; a objetividade não lhes é inerente,
como parecia no início, mas um anseio possível entre muitos outros. Um anseio que, cada vez mais, parece utópico.
Acreditamos nas fotografias das pegadas na Lua, embora todas as expedições espaciais pudessem ser uma grande
montagem. Por outro lado, não confiamos nas fotos dos óvnis: dizemos que se trata de um “truque” e evitamos
maiores problemas. A credibilidade do documento fotográfico depende, em primeiro lugar, de sua função histórica
como fornecedora de informação verdadeira, inquestionável, irrefutável. Mas, em segundo lugar, e talvez em maior
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medida, depende do carisma do discurso institucional a que serve e da confiança que sabem inspirar as fontes de
emissão.
E ste projeto, Fauna secreta, quer tocar fundamentalmente, desde a experiência artística e com uma vocação
inequivocamente lúdica, essa problemática. Como desmontar os dispositivos gnoseológicos da mídia e da
indústria cultural? Ou, em um sentido ainda mais amplo, como desmantelar os processos de produção e
transmissão de conhecimento? Finalmente, descobriríamos que a verdade é pura especulação. Que não há verdade e
sim fantasias que mais ou menos a acercam. E que todas essas fantasias, inclusive as aparentemente mais inocentes
e inócuas, não são ingênuas.
Fauna nasce de uma colaboração fotográfico-literária com Pere Formiguera iniciada em 1985 e constitui uma
instalação pluridisciplinar centrada em um bestiário fantástico: fotografias, radiografias, desenhos de campo,
mapas de viagem, fichas zoológicas, textos, registros sonoros, vídeos, animais dissecados, instrumental de
laboratório, objetos, correspondências, etc. A ideia consiste na apropriação da retórica das exposições próprias dos
zoológicos e museus de ciências naturais. Nesse âmbito, a avalanche de dados, a densidade de detalhes e a auréola
de rigor que lhes são constituintes estão em condição de impor ao espectador qualquer conteúdo, a não ser que,
como pretendíamos, o espectador se rebelasse. Estabelecia-se, assim, um pulso entre, por um lado, a autoridade da
instituição e o controle que ela detém da informação e, por outro, a capacidade de reação do público.
De fato, a zoologia oferece um terreno propício à incerteza: conhecemos os animais mais comuns, mas é impossível
familiarizarmo-nos com a infinidade de variedades existentes, algumas francamente estranhas. A cada ano, são
encontradas milhares de espécies e subespécies novas, não classificadas anteriormente. Temos que considerar,
também, as vastíssimas extensões da geografia do planeta ainda inexploradas, com fundadas esperanças de
tropeçar com vida animal ainda desconhecida. Tudo isso se soma à existência de verdadeiros híbridos ou monstros
naturais, ao interesse atual pela teratologia e pelo estudo das mutações, assim como ao desenvolvimento da
engenharia genética e da biotecnologia. E, definitivamente, ao debate sobre os limites da imaginação sobre as
formas do mundo natural.
Para articular nossa proposta, criamos a história do professor Peter Ameisenhaufen e de seu ajudante Hans von
Kubert, que constituem os nossos alter egos. Escondemos nossa autoria atrás do descobrimento fortuito do seu
arquivo. Assim é introduzido todo um trabalho de falsificação da memória, que afeta a tarefa de historiadores,
arqueólogos ou paleontólogos. Rastreamos a biografia e a investigação científica de Ameisenhaufen, interpretando
uma série de pseudo documentos e pistas falsas, mescladas com outras verdadeiras, que nos levam outra vez ao
debate sobre a autenticidade. Por exemplo, fotografias envelhecidas artificialmente confrontadas com outras
verdadeiramente antigas.
Fauna propõe definitivamente uma reflexão não apenas sobre os modelos do real e a credibilidade da imagem
fotográfica, mas também sobre o discurso científico e o artifício subjacente a todo dispositivo gerador de
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conhecimento, incidindo sobre a multiplicidade de facetas que afetam as diversas disciplinas de criação. Que o
sorriso e a necessária cumplicidade com o espectador não posterguem a dose de crítica que deve nos manter mais
despertos e nos fazer mais livres.
Joan Fontcuberta
Fotógrafo, crítico, editor, curador e professor catalão. Ganhou em 2011 o Prêmio Nacional de Ensaio da Espanha e, em 2013, o Prêmio
Hasselblad de Fotografia.
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