Se Joga Que Aqui Tem Rede
Se Joga Que Aqui Tem Rede
Se Joga Que Aqui Tem Rede
Iniciando a jornada Se joga que aqui tem rede: quando aventura, O preço da liberdade e o custo
comunidade e autonomia se encontram da confiança
A trajetória do MoL
4 condições para o cultivo de comunidades A faveleira
Entrevistas de aprendizagem autodirigida A UniverCidade Fluxo: por uma
Camila Paoletti Hábitos de aprendizagem: a musculatura necessária pedagogia marginal
Ricardo Farah
Gui Gonçalves Porque e como apreciar por Juliana Machado
Letícia Schuli Buddies, tutores e mentores Aprendendo a ser sujeito na relação
Bel Ribeiro comigo mesmo, com o outro e com o mundo
Autenticidade e perguntas de aprendizagem
Ser feliz sozinho
por Ana C. G. Marques
Aprender é cósmico Sobre a culpa
| prefácio à edição
por Tarik Fraig
E, como esperado de um livro de educação crítica e inovadora, uma palavra que
se repete muito neste livro é emancipação. Palavra que já perpassou por tantas bocas
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e canetas diferentes em nossa história: Paulo Freire, Lauro de Oliveira Lima, Lourenço
Filho, Anísio Teixeira, Nise da Silveira, Tião Rocha, Maria Nilde Mascelani, José Pache-
co, para citar apenas alguns nomes. É uma palavra de peso. Uma palavra que, para
ser dita, exige de quem a pronuncia um tanto de coragem. Em um mundo tão utilitário,
em um mundo em que a educação é vista como meio de aquisição de incrementos
para o currículo, como sistema de distribuição de pontos no game social, essa palavra
tem ainda algum sentido? A resposta é um firme “sim”. Há ainda quem carregue essa
tocha. E não são poucas as mãos.
Sim, eu disse que é um livro crítico e inovador. E é no equilíbrio entre essas duas posturas
que creio residir a sua força. Crítico porque coloca em questão um modo de se fazer
educação que há muito não atende às necessidades da população, que faz promessas
que não é capaz de cumprir, que fomenta relações de dominação que nos separam
daquilo que podemos. Crítica que não é simplista nem reducionista, e que também não
deixa de criticar a si mesma. Inovador porque não se contenta apenas com a denún-
cia. Apresenta experiências, propostas, projetos e iniciativas que nos fazem sentir que
emancipação e liberdade não são palavras vazias nem coisa de outro mundo, mas
palavras que dizem respeito a você e a mim, aqui e agora.
Além de tudo, este é um livro profundamente convidativo. Tal como o MoL, ele faz
diversos convites a quem o lê. Tomo aqui apenas um para comentar, talvez o convite
implícito em todos os ensaios: experimente! Aqui não te será oferecida uma receita de
como criar comunidades de aprendizagem autodirigida (afinal, trata-se de um desma-
-nual). Mas esse grupo nos oferece algo muito mais precioso do que qualquer receita.
Um relato de múltiplas vozes atravessado por uma convicção comum de que, sim!,
vale a pena apostar no desejo. No desejo de aprender, no desejo de criar, no desejo
de transformar a si e ao mundo, no desejo de buscar um modo de vida mais libertador
para nós e para os nossos.
O segredo revelado por este desmanual é a própria ausência de todo segredo.
O Alex, a Juliana, a Amanda, a Ana, a Isadora, o Ciano, o Luís e a Su não param
de nos incitar a começar. Não importa tanto onde estamos, com quem estamos, em
que momento da vida estamos, qual o nosso grau de escolarização, qual a nossa
posição na escada social – sempre é possível começar um oásis. Ainda que, na
maior parte das vezes, ele não esteja ali, pronto, mas tenha de ser inventado
por nós e pelos nossos. Tal é a aposta deste livro.
| prefácio à edição
por Tarik Fraig
Até tentamos descobrir a autoria da frase
“se joga que aqui tem rede”, repetida várias vezes 7
durante o percurso do MoL, mas não conseguimos.
Desde então, assumimos que a frase é “da rede”
mesmo. Ao longo dessas linhas, espero que você
descubra porque ela foi, e continua sendo, tão
importante para nós.
| iniciando a jornada
por Alex Bretas
a trajetória do Mol
caderno 1 | tragetória MOL
textos sobre a
trajetória MOL
Joga
SeSe Joga
queque Tem Rede:
AquiAqui Tem Rede:
um desmanual para
um desmanual para
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comunidades de aprendizagem
comunidades autodirigida.
de aprendizagem autodirigida.
Comunidade 9
“Lugar” onde as pessoas se
conectam profundamente umas com as outras e
também a um propósito comum. Fontes de perten-
cimento e criação de valor individual e coletivo.
Aprendizagem
“Botar pra fora” o conhecimento fazendo algo
melhor do que se fazia antes (agradeço ao Con-
rado Schlochauer por essa definição). Mudar a si
mesmo numa direção percebida como positiva. Autodireção
Conduzir o próprio caminho (de aprendizagem, no caso)
com autonomia e assumir plena responsabilidade por
ele. Ser o protagonista da própria história. Tomar deci-
sões de maneira consciente e agir sem se submeter.
O exercício de análise acima — entendendo análise
a partir de sua raiz etimológica, “decompor um todo
em suas partes constituintes” — é interessante, mas não
dá conta de dizer o que realmente acontece em uma
comunidade de aprendizagem autodirigida. O todo,
aqui, não pode ser reduzido à soma das partes.
A experiência nessas comunidades é, de certo modo,
um paradoxo. Convivem, ao mesmo tempo, pertencimen-
to e libertação, cuidado coletivo e autonomia individual,
caos e ordem, poder e amor.
Em sua expressão máxima, comunidades de aprendi-
zagem autodirigida conseguem satisfazer muitas neces-
sidades humanas de uma só vez — propósito, agência,
inspiração, apreciação, suporte, acolhimento, escuta,
confiança, amor, maestria, criatividade, reconhecimento,
realização, dentre outras.
Talvez por isso, os membros tenham dificuldade de
colocar em palavras o que vivem nelas.
Há uma magia nesses espaços. Não é trivial um lugar
que conjuga conexão humana profunda, desenvolvimen-
to contínuo e construção da própria autonomia. E é por
isso que essas comunidades são tão importantes para
transformar não apenas a educação, mas nossa própria
experiência de vida.
| o sonho
por Alex Bretas
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No meio do caminho
tinha uma
O MoL havia sido pensado originalmente
como um programa híbrido : presencial e digital.
Ao mesmo tempo em que eu já tinha experimen-
tado bastante com comunidades digitais, era no
presencial que a magia acontecia de maneira
mais intensa, especialmente em imersões.
Eu considerei seriamente não lançar nenhuma
iniciativa paga por um bom tempo. Talvez
a pandemia tivesse engolido também o meu
sonho, assim como o de tanta gente.
Ainda assim, alguma coisa dentro de mim me
disse para tentar. Um pouco depois do início da
crise do coronavírus no Brasil, um dos meus princi-
pais clientes corporativos rescindiu o contrato.
Era o sinal do universo que eu precisava.
Exploração (2 semanas)
é o momento de olhar para o lado, pesquisar
e experimentar para descobrir no que o participante
deseja se aprofundar no restante da jornada.
Sprints (6 semanas)
com um foco definido, o participante faz pequenos
avanços de maneira sustentada ao longo do tempo
a partir de uma mentalidade ágil.
Entrega (2 semanas)
é a hora de “embalar” o aprendizado e compartilhá-lo
para o mundo na forma de algo concreto e útil para
as pessoas. A entrega pode ser sobre o tema e no
formato que a pessoa quiser.
| perguntas de aprendizagem
por Alex Bretas
Logo no início do percurso, compartilhei com
os participantes o conceito de CEP+R - Conteúdos,
19 Durante os encontros semanais, havia um
momento em pequenos grupos para que as
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Experiências, Pessoas e Redes, criado por mim e pessoas compartilhassem sobre suas ações.
pelo Conrado Schlochauer. O CEP+R representa Nessas ocasiões, sempre eram feitas
as fontes de aprendizagem, isto é, os caminhos duas perguntas:
pelos quais uma pessoa pode aprender. O que você descobriu?
Como posso te ajudar a ir mais longe?
| cep + r
por Alex Bretas
Aprender de maneira autodirigida não é o
mesmo que aprender sozinho. Além disso, pelo fato
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de muitos de nós não estarmos acostumados com
esse tipo de percurso, ele por vezes pode ser assus-
tadore angustiante. Por isso, convidei um time muito
especial de tutores para me apoiar na condução
do MoL.
A função dos tutores é estar mais próximo de
cada participante para fornecer ajuda no que se
refere a seus caminhos de aprendizagem, quando
necessário.
A ideia não é que os tutores fiquem oferecendo
apoio ‘toda hora - tática que carinhosamente apeli-
damos de “cercar o frango” - , mas sim que estejam
disponíveis caso os participantes precisem. Aprender
a pedir ajuda é uma habilidade fundamental do
aprendiz autodirigido.
No decorrer do programa, os tutores criaram grupos
no Whatsapp com seus tutorados para facilitar a
comunicação. Com o tempo, esses grupos começa-
ram a se encontrar e alguns até ganharam nomes
(Sementeiros, Hackers MoLegais, MoL da Quebrada,
MóLindes etc).
Ao longo do processo, o cuidado dos tutores foi se
revelando fundamental nas jornadas dos participan-
tes. A relação tutor-tutorado se revestiu de confian-
ça, afeto, apreciação, encorajamento e estímulo à
autodireção.
| tutores
por Alex Bretas
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Unschooling no MoL;
MoL Educação Corporativa;
MoL Criatividade; Além dos grupos temáticos, os membros
Biomimética_MoL; da comunidade também começaram a oferecer
Facilitação MoLegal; e participar de encontros para além dos momentos
“oficiais” do MoL. Para facilitar isso, disponibili-
MoLheres Autodirigidas;
zei uma conta paga no Zoom - a mesma utilizada
Gestão e Impacto MoL; para viabilizar as reuniões virtuais do programa -
MoL Comunidades; para qualquer participante que quisesse
Ver por Si Mesmo; oferecer um encontro.
MoL Ambiente de Pensamento Alguns encontros realizados foram:
(Thinking Environment); PKM (Personal Knowledge Management
Amorosidade e Aprendizagem; ou Gestão do Conhecimento Pessoal)
QE MoL (Inteligência Emocional); Intuição e facilitação;
Thinking Environment;
MoL - Comunicação no digital; Ferramentas de autoconhecimento;
MoL Futuro das Profissões. Biomimética
Comunicação e marketing digital.
Cada um desses grupos desenvolveu suas próprias
estratégias para explorar o tema: encontros virtuais, Isso fora as várias entrevistas e conversas
compartilhamento de referências, projetos coletivos etc. informais entre os participantes.
| página oficial
por Alex Bretas
Por meio de um formulário
online, pedi aos membros
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para preencherem os
seguintes dados:
Pergunta de
aprendizagem
2 coisas em que
você é faixa-preta
(sabe muito sobre)
2 coisas em que
você é faixa-branca
(quer aprender)
Whatsapp, Instagram
e LinkedIn
| carômetro
por Alex Bretas
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| portifólio compartilhado
por Alex Bretas
26 Todos os encontros oficiais do MoL foram
gravados, editados e disponibilizados para
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a comunidade. As gravações foram importantes
porque frequentemente as pessoas não podiam
acompanhar os encontros ao vivo.
Além disso, cada encontro também contou
com uma colheita gráfica realizada por duas
participantes da comunidade.
Muito celebradas pelos membros, as facilitações
gráficas serviram para sintetizar as sabedorias
compartilhadas a cada reunião. E, assim como
as gravações, elas também foram úteis para
quem não pôde estar presente no encontro.
Talk 1 (08–07)
Laís Lara Vacco,
Conrado Schlochauer
e Leo Carraretto
Assuntos abordados: como
é um percurso de aprendiza-
gem autodirigida na prática,
lifelong learning e lifewide
learning, cultura de aprendi-
zagem, futuro do trabalho e
da educação.
Talk 4 (12–08)
Claudio Thebas
e Tânia Savaget
Assuntos abordados: coragem
de errar e de compartilhar,
espontaneidade e autenticidade,
como compartilhar o que apren-
demos, como lidar com nossas
expectativas e julgamentos.
Só um adendo: os parágrafos
acima definitivamente não fazem
jus à riqueza das conversas!
Desafio de Entrevistas
Entrevistas são um poderoso instrumento de aprendizagem social. Por isso,
na terceira semana do programa, convidei os membros da comunidade
a entrevistarem uns aos outros a partir de interesses comuns. A atividade
acabou se tornando também uma forma simples de aprofundar os vínculos
entre os participantes.
Arrisca!
O “Arrisca!” é uma forma de
abrir espaço dentro dos encontros do MoL para quem quiser compartilhar aprendizados marcantes em sua vida
pessoal e/ou profissional. O formato é inspirado nas microaulas*, sobre as quais escrevi no livro Kit Educação
Fora da Caixa. Por meio de uma inscrição prévia, qualquer membro da comunidade teria 5 minutos durante
um encontro para realizar sua apresentação.
Alguns temas do Arrisca! foram:
Como me tornei facilitadora de grupos;
Convivendo com a esclerose múltipla;
Como estar mais consciente no aprendizado.
Outros participantes da comunidade também começaram a oferecer oportunidades de colaboração em
projetos próprios. Um exemplo é o Davi Rodrigues, que iniciou um grupo de trabalho com outros participan-
tes do MoL para evoluir seu projeto, intitulado Cartas para Sophia.
semana 6
Desafio de Pedidos e Ofertas +
+ Cara de Pau
semana 7
Equilíbrios Dinâmicos do Aprendiz
Autodirigido + Diálogo + Arrisca!
semana 8
Embalando o Aprendizado +
+ Como ser reconhecido sem Diplomas
semana 1 semana 9
Uma outra visão de Educação A Cura Pela Aprendizagem +
semana 2 + Desafio de Manter a chama
Atitudes do aprendiz autodirigido + da Comunidade Acesa
+ Perguntas de aprendizagem + Buddies semana 10
semana 3 Celebrando e reconhecendo
Início dos sprints + CEP+R + a Jornada.
+ Entrevistas + CEP+R + Entrevistas
semana 4
Apreciação + Autodisciplina +
+ Mentores
semana 5
Organização + Curadoria
| contéudo
por Alex Bretas
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Tudo é um convite. Só o que é sentido faz sentido. Feito é melhor que perfeito.
| frases marcantes
do Mol
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| mol academy
por Alex Bretas
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Talk 1
Academy: Abby Oulton
Assuntos abordados:surgimento da rede
de ALCs (Agile Learning Centers), escolas livres,
construção de comunidade, o mito do gênio
fundador, criação intencional de cultura, acordos,
comprometimento com a transformação social.
Talk 2
Academy: Ciano Buzz e Marcelle Xavier
Assuntos abordados: relações como
a matéria-prima das comunidades, conexão
humana e afeto, como começar um projeto,
projetos educacionais nas quebradas,
“tudo que tenho feito são desculpas pra
gente se encontrar”. A partir das interações no próprio MoL, diversas
comunidades de aprendizagem autodirigida
Talk 3
surgiram ou se fortaleceram.
Academy: Manish Jain
Assuntos abordados: história do Manish,
Não estamos falando mais de iniciativas
isoladas, e sim de um movimento que se articula
os mitos do desenvolvimento e da escolarização,
e se complexifica a cada dia, no Brasil
colonização, como curar a sociedade da doença
e no mundo.
dos certificados, Aliança de Ecoversidades.
Ao longo dos próximos textos, eu e os tutores
do MoL compartilharemos perspectivas a respeito
de temas que perpassam o aprendizado
autodirigido em comunidade.
A experiência que vivemos juntos nos fez
transbordar. E este livro é a nossa entrega
para o mundo.
| mol academy
por Alex Bretas
por Alex Bretas
| entrevistas com integrantes do Mol
Se Joga que Aqui Tem Rede: um desmanual para
comunidades de aprendizagem autodirigida.
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| Camila Paoletti
por Alex Bretas
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| Ricardo Farah
por Alex Bretas
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| Gui Gonçalves
por Alex Bretas
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O que pode uma comunidade de aprendizagem autodirigida? O que foi a experiência do MoL pra você?
Pode, acima de tudo, se entender como Participar do MoL foi como ter pego
comunidade e, assim, criar laços firmes e base o expresso 9 3/4, onde a gente descobriu que
forte para superar os percalços do caminho e alegrar dava para deixar de ser trouxa e assumir a magia
ainda mais as fases tranquilas da jornada. Acredito da aprendizagem autodirigida.
que, em comunidade, aprendemos muito mais, pois O melhor de tudo é a galera do MoL,
tem sempre o outro para nos fornecer parâmetro a cultura do MoL, o espaço seguro, apreciativo,
e respaldo. tecido pra cada um se esticar, crescer, alcançar
Uma comunidade de aprendizagem autodirigida o outro, e junto, todo mundo ser um pouco melhor,
pode ser uma experiência realmente transformadora, com o coração um pouco mais aberto e os olhos
porque não importa qual seja seu tema de interesse, um pouco mais gratos.
no fim sempre vai ser também sobre você mesmo e E foi assim, de pouco em pouco, de encontro
o grupo que te acompanha. É impossível dissociar. em encontro e de ação em ação minha experiência
A comunidade é a calda e a casquinha do sundae de aprendizagem, que começou sendo sobre design
que é a sua jornada de aprendizado. e acabou se tornando um percurso a respeito de
pessoas e comunidades.
No mundo construído do MoL, eu pude
enxergar a necessidade e a importância desse
tipo de espaço, pra gente se experimentar e ser
convidado a ser quem queremos ser. A jornada
é instigante e desafiadora, e uma vez que você
passa por ela, começa a ver oportunidades
para a atitude da aprendizagem autodirigida
em tudo!
Ser responsável pelas facilitações
gráficas do MoL foi uma maneira de participar
e absorver todo o conteúdo a partir de uma outra
linguagem, e que delícia foi ouvir as gravações
dos encontros e desenhar, assistindo a tudo aquilo
tomar forma. Foi muito gratificante.
| Letícia Schuli
por Alex Bretas
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| Bel Ribeiro
por Alex Bretas
Algumas coisas que aprendi: 42
A aprendizagem autodirigida é uma disposição interna que nos move a vasculhar
conhecimentos e a fazer nossa própria trilha e seleção de conteúdos, experiências,
pessoas e redes.
Nesse processo, aprendemos a escutar os interesses individuais e a ouvir nossa
própria essência para dela extrair nossos desejos mais pulsantes. A compreensão
da infinitude do saber pode ser definida como a sensaçãode ignorância que
sentimos ao ver quanta coisa ainda não sabemos. E também do quanto ainda
não se concebeu, do quanto ainda não se pensou, do quanto ainda não se construiu.
Ser testemunha disso é fascinante.
O que diferencia os adeptos da educação formal e informal não são suas defesas
sobre essas concepções. São seus modos de vida, suas profundas escolhas sobre como
ver o mundo e suas decisões sobre como querem investigá-lo. Cada um desses grupos
se diferencia, ainda, em relação aos impactos que se permitem sofrer e aos impactos
que querem causar em seu entorno.
A disciplina em relação à própria aprendizagem envolve o despertar da curiosidade,
de uma vontade de ir além e da humildade de se perceber ignorante. E a presença
ou não dessa humildade, por sua vez, revela como quero habitar o mundo: mergulhada
em minhas idiossincrasias ou aberto para o outro.
| Bel Ribeiro
por Alex Bretas
por
a trajetória do Mol
caderno 1 | tragetória MOL
Alex Bretas
Joga
SeSe Joga
queque Tem Rede:
AquiAqui Tem Rede:
um desmanual para
um desmanual para
15
comunidades de aprendizagem
comunidades autodirigida.
de aprendizagem autodirigida.
Se joga que aqui tem rede: Hoje, o senso de aventura está despedaçado.
Precisamos reconstruí-lo. É claro que existem várias
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quando aventura, comunidade formas de fazer isso. Os games são um caminho.
e autonomia se encontram O esporte talvez seja outro. As viagens de mochilão,
as trilhas, estar apaixonado... Uma outra possibilidade
por Alex Bretas é se apaixonar por um percurso de aprendizagem
autodirigida. A educação heterodirigida - cursos,
aulas, professores, ensino - também pode ser capaz
de prover algum senso de aventura, especialmente
Atenção, já vai zarpar! Não temos destino certo, mas o barco
quando se está interessado no tema em questão.
é muito seguro! Venham todos, cabe mais gente!
É um caminho válido.
Mas qual é o ponto de embarcar em um navio sem destinação alguma?
Mas precisamos falar sobre essa outra via. Precisamos
Eu é que te pergunto, marujo: qual é o ponto de embarcar resgatar palavras como descoberta, criação e desco-
em uma jornada onde já se sabe onde vai chegar? nhecido na hora de aprender. E não apenas porque
Existem muitas metáforas para contar o que é a precisamos de aventura, mas também porque só
aprendizagem autodirigida, ou melhor, o que acontece reproduzir o que já está aí não será suficiente para
na aprendizagem autodirigida. Desde que comecei a superar os desafios do nosso tempo.
estudar o tema, já vi pessoas se referirem a caminhadas, Um elemento fundante de qualquer aventura é o medo.
trilhas, expedições marítimas, escaladas, viagens e até Se não houver nenhuma dose de medo, não é uma
mesmo jornadas interestelares. aventura de fato. É mais do mesmo. E como lidamos
O que une todas essas imagens? Todas são aventuras. com o medo? Nossa sociedade tem tentado dois
Está faltando aventura no mundo. E, dentre tantas outras caminhos: medicamentos psiquiátricos e conteúdos
necessidades urgentes que estão faltando - abrigo, comida, de autoajuda. Ambos não estão funcionando.
segurança, carinho, reconhecimento, conexão, amor , Existe uma outra forma: comunidade. Quando o leão
penso que talvez a aventura seja por vezes deixada surgia para um de nossos antepassados, ele não se
em segundo plano. desesperava porque estava junto de outros caçadores.
Ainda assim, aventurar-se é uma das necessidades Algum deles saberia o que fazer. Quando uma mãe
humanas mais fundamentais. Espera-se que o mercado estava prestes a dar à luz, ela sabia que toda a
de jogos eletrônicos atinja um valor superior a 200 comunidade se encarregaria, junto com ela, de
bilhões de dólares em 2023. Só pra você ter uma ideia, ajudar a criar o bebê.
a indústria dos games já supera a do cinema e a da Jornadas de aprendizagem autodirigida podem ser
música combinadas. É o maior mercado de entretenimento entendidas como aventuras, e o medo delas decorrente
atual. Qual a principal demanda que osjogos suprem? pode ser tratado através de uma comunidade. E não é
Aventura. Em tempos de pandemia e confinamento, essa apenas isso que comunidades podem fazer. Elas também
necessidade fica ainda mais evidente. Mas o que é contribuem para tornar o percurso mais divertido, criativo
uma aventura? Da forma como vejo, é uma jornada emo- e afetuoso. Elas exponencializam as oportunidades de
cionante em direção a algo que importa. Nossos ances- aprendizagem de cada indivíduo. Contudo, comuni-
trais viviam aventuras o tempo todo caçando, construindo dades podem se tornar locais de pertencimento tóxico.
casas e desbravando novos territórios. Nessas situações Ninguém duvida que se sentir parte de uma comunidade
raramente sabiam o que esperar. é prazeroso - o ser humano tem um anseio biológico por
Conexão
É a cola humana que sustenta os relacionamentos mais
profundos. Seu pressuposto é a confiança, mas só con-
fiar não é suficiente. Eu posso confiar intensamente em
um grupo de pessoas e ainda assim não dizer o que me
aflige, o que me aprisiona ou o que me alegra. É preci-
Comunidades de aprendizagem autodirigida são so querer dizer. A confiança está para a conexão assim
fenômenos complexos e diversificados. Dessa forma, como a liberdade está para a autonomia: mesmo sendo
o exercício de “encontrar” certas condições ou princípios pilares fundamentais, são incapazes de revelar toda a
necessários para a sua emergência e sustentação é, sem história. Conexão é o que nos faz ter vontade de estar
sombra de dúvidas, um reducionismo. Ainda assim, uns com os outros pela simples fruição de sua compa-
talvez seja um exercício interessante. Com a devida nhia. É o que nos impulsiona na direção da vulnerabi-
consciência de que “o mapa não é o território”, exponho lidade, do acolhimento e da compaixão. Brincadeiras,
abaixo quatro condições que neste momento considero risadas, arte, histórias pessoais, “mandar a real”,
essenciais para o cultivo de comunidades desse tipo. apreciações e celebrações ajudam uma comunidade
Autonomia a cultivar conexão.
Existem poucos espaços sociais realmente construídos Ritmo
com tijolos de liberdade. Quem procura por uma comu- A vida é marcada por diversos tipos de ordenações mais
nidade de aprendizagem autodirigida anseia por isso. ou menos visíveis: as estações do ano, o dia e a noite,
No entanto, apenas liberdade não é suficiente: é preciso estrofe e refrão, dentre tantas outras. A previsibilidade
que a comunidade apoie cada um na conquista de sua das ordenações nos fornece segurança, e a segurança
autonomia. Um ambiente livre pode soar opressor para nos permite explorar. Uma comunidade precisa criar ou
aquele que ainda não aprendeu a navegar a partir da descobrir seu próprio ritmo de atividades e experiências,
própria bússola. Como ajudar pessoas a construírem a às vezes mais tranquilo, às vezes mais intenso. O ritmo
própria bússola? Adotar o lema “se joga que aqui tem da comunidade não deve “engolir” os ritmos de cada
rede” é um ótim’o começo. A impossibilidade de se ensi- membro, e sim informar. Quando sou informado pelo
nar autonomia abre caminho para o fenômeno de inspi- ritmo da comunidade, consigo ter um parâmetro sobre
ração mútua — ou coragem comunitária — que ocorre meu ritmo individual. Além disso, o ritmo coletivo forne-
em um ambiente onde todos “se jogam porque aqui tem ce um senso de compromisso que só é possível quando
rede”. É mais fácil conquistar autonomia dentro de uma compartilhamos nosso percurso com outras pessoas. Ver
comunidade onde todos estão na mesma busca. que todos estão caminhando nos ajuda a caminhar.
Obs.: no que se refere à autonomia, é preciso dizer algo mais. Um ambiente livre, pressuposto
para que a conquista da autonomia possa se efetivar, não é um ambiente onde “todos podem
fazer o que quiser”. Se assim fosse,as relações de poder e as diferenças estruturais de privilégio
“comeriam” toda a liberdade dos menos privilegiados. Toda relação pressupõe poder. Toda
a sociedade é marcada por desigualdades sistêmicas. Desníveis de privilégio entre as pessoas
estão conectados com absolutamente tudo que elas forem fazer e aprender. A interação dentro
da comunidade é afetada por esses desníveis; a capacidade de criar e aproveitar oportuni-
dades de aprendizagem; a própria capacidade de conquistar autonomia, que embora seja
possível para todos, é muito mais difícil para uns do que para outros com base em influências
familiares, raciais, de gênero, econômicas, etárias etc. Por isso, uma comunidade livre deve
ser uma comunidade que ativamente cria mecanismos para equalizar o máximo possível essas
assimetrias, inclusive medidas para conscientizar os membros a respeito dessas diferenças
e recrutá-los na promoção da verdadeira liberdade: a inclusão.
comunidades de aprendizagem
comunidades autodirigida.
de aprendizagem autodirigida.
Aprender poiesis, a capacidade de “produzir a si” continuamente.
(Berry gostaria quem sabe do termo cosmopoiesis?)
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é cósmico Ou seja, cada uma vive de um jeito, de acordo com
cada dimensão interior que quer emergir a cada momen-
por Ana C. G. Marques to. O “conhece a ti mesma” das sabedorias antigas se
traduz no famigerado autoconhecimento contemporâneo.
Ou melhor, auto(re)conhecimento, porque não há nada
a descobrir, apenas relembrar — de quem já somos.
{}
Vazio. Auto(re)conhecer-se, ou viver a partir da autoconsciência,
Silêncio. é movimentar-se. À primeira vista, no que parece ser
uma linha reta, dia após dia. À segunda, em círculos,
Mistério.
ciclo após ciclo. E à terceira, em uma espiral: a dança
O absoluto no Cosmos. da evolução rumo a níveis mais altos de ordem e caos;
E então: complexidade. Percorrer essa trilha individualmente é,
O verbo. também, firmar um ritmo junto da Grande Orquestra,
coletivamente.
Explosão, Big Bang.
Comando da criação, O terceiro princípio orientador da cosmogênese é a
início da vibração do Todo. comunhão: corpos dentro de sistemas dentro de realidades
aninhadas umas nas outras, inevitavelmente conectadas
e co-existindo em redes de relações interdependentes.
O Cosmos não é uma coisa ou um lugar, mas um ato,
Das relações emergem padrões. Assim como acima tam-
um fenômeno, um processo contínuo de criatividade.
bém é abaixo, assim como dentro também é fora; a lei
Cosmogênese. Treze bilhões de anos depois do estalar,
universal do fractal, partes semelhantes a um todo.
cada uma de nós somos uma reverberação desse som
original. A melodia que compomos ao existir é nosso Veja-se refletida e refletido por um espelho, observe-se
instrumento único — vulgo eu, físico, emocional, mental em uma interação com a próxima, contemple uma paisa-
e espiritual — ressoando dentre a Grande Orquestra gem natural. Em qualquer coordenada de tempo-espaço
Universal. (quando + onde) e em qualquer escala (Eu-Eu + Eu-Outra
+ eu-Todo), podemos testemunhar o espetáculo da vida
(Você já se deu conta de que você… existe?
em ação, se diferenciando, subjetivando e entrando em
E existe somente como você?) comunhão. Viver é evoluir; evoluir é aprender. O espetá-
O terráqueo Thomas Berry pensou a respeito e enumerou culo é viver a vida aprendendo a viver.
três princípios orientadores da cosmogênese. O primeiro
Cada ser expressando sua autêntica digital de
é a diferenciação: infinitas expressões de vida. Uma
aprendizagem, desenvolvendo sua singular jornadade
ameba, a chinchila da sua vizinha, você, a Terra, a
aprendizagem encarnações afora, aprendendo de
Constelação de Órion: são todos organismos vivos. No
mãos dadas espiral acima.
Universo, ser é, necessariamente, ser uma manifestação
singular da existência, viva. A autodireção em comunidade.
Do Cosmos para o MoL; do MoL para o Cosmos.
O segundo princípio orientador da cosmogêne’se é a (E um segundo Big Bang explode silencioso)
subjetivação: o desenvolvimento de consciência, intencio-
nalidade e agência de cada expressão. Soa similar à auto- Tomar consciência de que aprendemos cosmicamente
| aprender é cósmico
por Ana C. G. Marques
nos dá a medida de nossa pequeneza frente à
imensidão de tantas Vias Lácteas de conhecimento
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— e buracos-negros de desconhecimento — e também
da nossa grandeza por ocupar a estrela que nos cabe.
Nos desperta a dar verdadeiro valor aos maiores e
menores investimentos de atenção e a qualquer absorção
e compartilhamento de conhecimento consequente. Pois
todo e qualquer processo faz sentido, mediante auto-
consciência, dentro da trilha de evolução.
Nos apazigua frente a dores, pois sempre há o que
aprender, e nos impulsiona perante desafios, pois… há
sempre o que aprender. E nos ilumina: estamos cocrian-
do as condições de que precisamos e que queremos
para participar apropriadamente da teia do viver-aprender?
Perguntas são assim: expressão da curiosidade em mo-
vimento; orientação à jornada feito estrela-guia no céu e
bússola nas mãos; carta anônima lançada ao mar, cujas
marés devolvem a garrafa cheia do inesperado. Quanto
mais aberta a escuta, precisa a questão e inusitada
a correlação, mais fértil a colheita da arte de fazer
boas perguntas.
O som original é a grande pergunta de aprendizagem
da vida aprendendo a viver. E a grande resposta. Se nos
sentimos perdidas em meio à imensidão do aprendizado
cósmico fora e dentro de nossos seres, a Maestra Natu-
reza incansável e generosamente nos oferece todos os
“conteúdos”, “provas” e “diplomas” — e muito mais que
transcende quaisquer aspas — que desejamos e de
que necessitamos.
Realinharmo-nos com o Todo, livre e naturalmente,
nos permite acessar o sagrado na terra e fazer reverência
à vida, o maior aprendizado que podemos alcançar.
Celebremos! Pois o Cosmos celebra e amadurece a si
mesmo a partir da celebração e do amadurecimento
de cada grão de areia, de cada uma de nós.
| aprender é cósmico
por Ana C. G. Marques
Os seis arquétipos
e psicologia em relação ao inconsciente coletivo; quem
sabe isso poderá ser realizado se esse estudo se de-
58
da aprendizagem autodirigida senvolver mais. Por ora, me refiro a esses padrões que
percebi na tutoria, identificados a partir de personagens
capazes de facilitar a compreensão. E é essa a mágica:
por Ana C. G. Marques
com base no que eu e outros aprendizes experienciamos,
você e outros aprendizes irão se identificar.
O intuito está longe de criar uma abordagem teórica
que acumule pó na prateleira. “O importante não são
os conhecimentos”, defende Yaacov Hecht em seu livro
Educação democrática: o começo de uma história, “mas
Em uma tarde ensolarada do quase verão em que eu o crescimento de forças internas que enriquecem e am-
deveria estar escrevendo, eu decido seguir o instinto pliam o repertório de ferramentas de aprendizado”. Que
do meu corpo e ir dançar no mato. De cócoras em cima esses arquétipos contribuam para que a força de apren-
da pedra bruta, inspiro a brisa da floresta e me concen- der esteja sempre evoluindo.
tro para ouvir o que o riacho quer me ensinar. E escuto O mapa e o fogo do viajante
cada célula minha compreendendo que, ininterruptamente,
sou um instrumento cósmico de aprendizagem holística. E o primeiro arquétipo é justamente o que encarnei ao
florescer no meio de água e árvores naquele dia de sol:
O território de aprendizagem é o aqui; as sensações, o de viajante. Movido por um fogo interno de motiva
emoções e pensamentos fluem no agora. Um estado de ção que dá aquele impulso para se interessar, buscar
aprendiz, aberto e atento. A autodireção no tutano. e experimentar, esse estado de espírito é essencial para
Que viagem. E é. estimular tanto o início, quanto o percurso da jornada.
Em conversas aqui e acolá como tutora no MoL, o que As perguntas que o arquétipo do viajante te convida
vinha como um pedido de ajuda porque a pessoa-apren- a fazer são:
diz se sentia confusa com sua pergunta de aprendiza- O que está vivo em você para aprender?
gem se mostrava, a partir da escuta, mais como um
processo de seu universo interno em relação à ansiedade
O que te estimula a quebrar a inércia e começar a travessia?
e autocobrança, por exemplo, do que com a confusão O que te abastece para seguir e movimentando?
em si. A superfície continha os acessos a níveis mais E antes do “quê” é o “porquê”, para aí então chegar
profundos da subjetividade. Tutorar significa facilitar essa ao “como”, “quem” e “quando” e outras interrogações
sutil observação e eventualmente dar as mãos para um típicas do processo de aprendizagem autodirigida.
mergulho de aprendizado sobre o próprio ser. A guiança do viajante exige tanto um olhar de semente,
Gradualmente, percebi como certas questões eram que forma o caminho desde o chão, quanto o de águia,
recorrentes, como se fossem padrões de pensamentos, que vez ou outra sobrevoa o cenário para contemplar
emoções, atitudes e experiências no percurso e reimaginar a trajetória.
de aprendizagem. Viajantes-aprendizes peregrinam por paisagens de
A veia da contação de histórias que habita em mim conhecimento, recebendo e distribuindo presentes do
logo traduziu esses padrões em arquétipos de aprendi- além-mar. O fazem com suas próprias pernas e carregando
zagem. Ressalva: nem tentei investigar a fundo os consa- sua própria bagagem. É o “deserto pessoal” que Hecht
grados usos do termo ‘arquétipo’ para a filosofia nomeia, cujos desafios e descobertas pertencem tanto
| o superpoder da escuta
por Ana C. G. Marques
cidade) e hospedeiro (leva experiência vivida adiante).
Foi assim que a Jane resgatou pontos da sua história
é, o “download” de reconfirmar velhas opiniões
e julgamentos, passando pelas aberturas de mente e
65
para tecer sua pergunta de aprendizagem; que a Isa coração, respectivamente a “escuta factual” e a “escuta
pôde observar qual interesse chamava mais no coração; empática”. O lance, então, é o quarto nível, o da
que o João conseguiu explorar o “porquê” antes do “escuta generativa”.
“como”; que a Larissa transformou sua dor em entrega;
Nele, a prática é tão refinada que quem escuta
que a Márcia se desvencilhou do academicismo; que
consegue acessar a vontade em erupção dentre todas
a Lu constatou como estava se distanciando de seu foco;
as possibilidades dessa interação, trazendo o futuro
e que a Mimi percebeu que não estava mudando, mas
emergente para o presente e encorajando o novo
aprofundando sua busca.
a partir de uma conexão profunda.
E quando outros aprendizes praticavam a escuta entre
si nos encontros grupais? Meu coração de tutora derretia,
E tal conexão, diria qualquer sensei para seu pequeno
gafanhoto, é o melhor solo para qualquer aprendizagem.
e eu constatava como o aprendizado pelo exemplo e
pela cultura entranhava muito mais do que um vômito
verborrágico sobre colaboração.
A escuta profunda parece milagre, mas é apenas o que
a pessoa já está trazendo e não consegue enxergar ou
elaborar com clareza sozinha. E isso exige apenas uma
qualidade: atenção plena. Pela meia hora que fosse, eu
me esquecia de mim e abria um canal cristalino como
doação àquele ser que estava se esforçando para apren-
der a aprender. Prezava pela impecabilidade de cada
palavra e fazia meu melhor — incorporando aí o primei-
ro e o quarto dos acordos toltecas para a felicidade —,
e geralmente o encontro terminava em tom de gratidão
e evolução.
Sem querer me sobrepor ao processos de minhas
companheiras, arrisco dizer que a gafanhota que mais
se regozijou com essa prática de escuta fui eu mesma.
Para quem tinha padrões super passivo-agressivos de
comunicação, padrões que já arruinaram mais de uma
relação, testemunhar a mim mesma habitando o silêncio
e oferecendo uma escuta que fazia diferença construtiva
se tornou um ressignificar magnífico. Absorvi isso em
todas as outras relações da minha vida, para o bem
da harmonia e reconciliação que merecemos.
Por fim, vou deixar de aperitivo para próximas refeições
mais um superpoder da escuta: o de viajar no tempo.
Otto Scharmer, idealizador da Teoria U, elenca os níveis
de escuta desde um primeiro estágio que sequer escuta
| o superpoder da escuta
por Ana C. G. Marques
O que realmente perdemos des que surgiam nos encontros online e grupos de
Whatsapp. Pelo fato de ninguém estar lá sob obrigação,
66
—e ganhamos— com o medo de o apetite era ainda mais sedutor. E a angústia ainda
perder algo mais sufocante.
O FOMO não é novo nem se restringe a ambientes
por Ana C. G. Marques de aprendizagem. O termo foi cunhado na década de
1990 por um marketeiro estadunidense e disseminado
após um estudante de Harvard escrever sobre uma nova
ansiedade nas estimulantes vidas sociais dos jovens do
século XXI de querer — porém sem se dar conta de que
não é possível — fazer tudo.
No mesmo ano, 2004, surgia o Facebook. Logo as
redes sociais, rainhas do imperialismo capitalista digital
Um dos efeitos colaterais de aprender a aprender atual, empregavam técnicas miradas em apertar esse
(ou de qualquer expansão de consciência que o valha) gatilho interno de pertencimento para nos manter viciadas
é passar a ter noção de tudo aquilo que você sabe nas telas negras que nos rodeiam.
que sabe, sabe que não sabe, e sequer não sabe que Participar é imperativo, porque sempre há algo incrível
não sabe. Pelas lentes da autodireção, cada átomo dentro acontecendo e “eu não quero perder essa” — nem que
e fora da sua pele se torna fonte inesgotável de aprendi- isso custe minha saúde mental, emocional e física.
zado em potencial. Quando isso acontece dentro de uma
comunidade com alto nível de engajamento, então, a
Perdemos a suficiência abundante
equação fica elevada ao universo que é cada aprendiz,
resultando em uma soma sinérgica maior que as partes. E bota física nisso: Diana, aprendiz do MoL, sentia a
garganta fechando, Guilherme passava por uma taqui-
Quanta alegria para a inata e ativada sede de
cardia, Maria Clara suava frio, a Cynthia percebia o
aprender! E, também, quanto desespero. Porque essa
pensamento acelerado. Sensações de medo que liberam
empolgação facilmente cai vítima de um mecanismo
no corpo adrenalina e cortisol, hormônios do estresse
contemporâneo que boicota essa equação antes mesmo
que nos mantém em estado de alerta, em prontidão para
de começar a ser possível evoluir dados em informação,
lutar e fugir de… tudo aquilo que mais queremos absor-
conhecimento e sabedoria. O nome desse monstro
ver e aprender.
debaixo da cama é FOMO, sigla em inglês para Fear
of Missing Out, ou Medo de Estar Perdendo Algo. A consequência unânime era uma ansiosa falta de foco
e, portanto, um prejuízo claro na tomada de decisões
Imagine o banquete mais extravagante do mundo e
e na produtividade. Também chamado de um péssimo
você lá, parada e parado babando e já sofrendo por-
cenário para aprender o que for.
que só pode usar uma pinça para saborear o paraíso
na terra. O banquete é a infinidade de links, conteúdos, “Meu FOMO se manifestava quando eu me comparava
convites e delícias mil, e a pinça é nossa limitação de e achava que estava pra trás no grupo, ou quando eu
ser um ser humano finito em seu tempo e energia dentro via muitos grupos de Whatsapp sendo criados e queria
de uma realidade complexa e mutante. entrar em todos”, explica Diana. “Se eu perdia um dos
Um par de semanas de MoL e aprendizes já manifesta- encontros síncronos, eu ficava sem graça de participar
vam a sensação de afogamento com tantas preciosida- no seguinte e bem angustiada”.
comunidades de aprendizagem
comunidades autodirigida.
de aprendizagem autodirigida.
Uma caminhada Nessa imersão, pude me conectar com pessoas maravi-
lhosas que estavam desafiando o status quo, subvertendo
71
autodirigida a lógica heteronormativa e desenvolvendo ferramentas
para criar as suas próprias realidades.
por Amanda Cruz da Costa
Minha mente explodiu!
Até então, eu achava que as ações que eu desenvolvia
no Engaja faziam parte de um “conto de fadas”, mas
em determinado momento eu teria que acordar para
viver o “mundo real”.
Olá minhas hortinhas orgânicas. Mas o que é o mundo real? Nessa oportunidade, conheci
Como estão suas aventuras autodirigidas? pessoas preciosas que estão criando “mundos reais”
diferentes. São agentes de transformação que protagoni-
Vemkbb, me conta! Você já parou para refletir zam suas respectivas caminhadas autodirigidas.
sobre como foi o seu “despertar” para a autodireção?
Na imersão do ALF, fomos orientados a escrever “ofertas”
Decidi utilizar este ensaio para compartilhar a minha e “pedidos”, ou seja, atividades, jogos, dinâmicas, ro-
descoberta enquanto aprendiz autodirigida! Tudo começou das, workshops e formações que gostaríamos de propor
no final de 2018, quando eu participei de um processo ou participar. O Ciano convidou eu e mais dois amigos
seletivo no Engajamundo, uma organização que por meio para ofertar a Caminhada do Privilégio, num intuito de
de formações, mobilização, participação e influência provocar a reflexão sobre privilégios e a posição social
em políticas públicas, se dedica a empoderar a juventude
dos participantes da imersão.
brasileira para compreender, participar e incidir em
processos políticos, do local ao internacional. Ao final do jogo, me encontrei na penúltima posição
e fui abocanhada por uma enorme tristeza. Quer dizer
Esse processo seletivo foi direcionado para mulheres que, se eu quisesse ter as mesmas oportunidades que
pretas e periféricas, num esforço institucional para trazer
o homem branco hetero cis-gênero tem, eu teria que
representatividade para a rede e apoiar o seu posiciona-
trabalhar, estudar, me esforçar 10x mais? SIM lindezas!
mento como uma ONG antirracista.
Bem-vindo ao racismo estrutural.
Todas as pessoas interessadas receberam uma Por conta desse processo, eu encontrei meu lócus
capacitação online sobre os seguintes temas: social, ou seja, o lugar que estou inserida na sociedade.
O que é lugar de fala? Sou uma mulher negra, tenho cabelo crespo e mor na
Racismo individual, institucional e estrutural. Brasilândia. Mas por muito tempo, essa posição
Qual é o papel da branquitude na luta antirracista. foi embranquecida.
Ações afirmativas como reparação histórica. Eu ouvia que era “moreninha, café com leite, cor de
Interseccionalidades: raça, classe e gênero. bombom, mulata”. O racismo é tão cruel que impõe uma
Por conta desse estudo, a curiosidade racial nasceu no necessidade de clareamento, como se o fato de chamar
meu coração. No ano seguinte, em fevereiro de 2019, alguém de “preto” fosse ofensivo.
o Ciano me convidou para a imersão do ALF (Formação Naquele momento da caminhada, era como se escamas
de Facilitadores em Aprendizagem Ágil), que foi facilita- caíssem dos meus olhos! De repente, passei a perceber
da peloAlex Bretas, pela Becka Koritz e pelo outro Alex o racismo em todos os lugares que eu frequentava. Notei
(Aldarondo).
| a dança da autodireção
por Amanda Cruz da Costa
Ilhas de Uma das formas mais estratégicas de se aproximar de
alguém é convidá-la para ser sua parceira de aprendi-
75
presença zagem. Esse tipo de troca possibilita pontos de sinergia,
conexões profundas, liberdade e intimidade dentro
por Amanda Cruz da Costa de um espaço seguro. Contudo, é necessário preparar
o ambiente para que essa relação floresça, e tudo
começa quando uma das partes faz “o convite”.
Fazer convites nos coloca em uma posição de extrema
Oi lindezas! Aqui quem escreve é a Amanda, mas me chame vulnerabilidade. Para ter o Luís como meu companheiro
de aprendizagem, decidi mostrar as entranhas da minha
de Amandinha, pois já somos íntimos (mal conheço, mas já te
alma e ser totalmente sincera, deixando minhas inten-
considero p4k4sss). ções bem explícitas logo em nosso primeiro café online.
Em junho de 2020, recebi um dos convites mais Depois de um longo debate interno, lembro de juntar
marabrilhosos da minha vida: ser uma tutoras do MoL, coragem e dizer para o Luís:
uma comunidade de aprendizes autodirigidos de todo
o Brasil. Minha utopia estava se transformando em reali-
Olha, Luís Sérgio, eu preciso te revelar uma coisa. Eu pedi para ter
dade: trabalhar com meus amigos, experimentar o poder essa conversa virtual contigo porque vejo muita potência em você, e eu
da rede e entregar meu coração em cada encontro quero parte dessa potência pra mim! Estou aprendendo a ser intencional
da jornada! nos meus pensamentos, nas minhas ações e nas minhas relações e
Tudo se intensificou ainda mais quando o Alex me cha-
desejo aprofundar meu relacionamento contigo. Admiro sua leveza e
mou para coescrever este livro juntamente com os outros criatividade, vejo que você é um ótimo influenciador e quero aprender
tutores. Meu primeiro pensamento foi: Wowwwww, que tudo isso contigo. Gostaria de ser meu buddy?
chiqueeeee! Mas será que eu dou conta? Ahhh, sei lá! Foi uma das coisas mais ousadas e cara de pau que
Vou me jogar e ver no que vai dar. já fiz na vida! Apesar de ser super comunicativa, não
E aqui estou eu, sem saber direito o que estou fazendo, é fácil expor minha vulnerabilidade e abrir meu coração
mas com o coração quentinho pela oportunidade de dessa forma. Tive medo de ser rejeitada, mal interpre-
transbordar parte da experiência que vivenciei no MoL. tada e tachada de doida, mas escolhi naquele instante
Assim que a jornada começou, marquei um papo não dar ouvidos ao medo. Assim que terminei de falar,
com o Luís Sérgio (o famosíssimo tiktoker do @Reaprendiz). o Luís abriu um sorrisão e disse:
Meu objetivo era conhecer sua trajetória e aprender Amandinha, querida! Eu estava pensando mesmo em te fazer esse
algumas táticas para me tornar uma celebridade desco-
convite. Eu topo sim, também tem coisas em você que eu admiro
lada do Tiktok. (obs.: o Luis Sérgio tem mais de 108k
de seguidores por lá!)
e quero aprender. Seremos buddy de aprendizagem um do outro,
mas vamos pensar em um nome mais legal?
Nosso papo foi tão incrível que eu decidi, naquele
momento, que ele seria meu buddy. Aprendi no Desafio Depois de um toró de ideias extremamente divertido,
30 Dias de Hábitos de Aprendizagem do Alex a ser decidimos pelo nome “anjos de aprendizagem” pois
intencional nas minhas escolhas, seja relacionada a percebemos que nosso papel enquanto buddies é ser
Conteúdos, Experiências, Pessoas ou Redes (CEP+R). uma espécie de “anjo da guarda” um do outro. O que
Assim que eu escutei o Luís, pensei: quero andar significa, no caso, apoiar, proteger e dar liberdade
com ele no recreio! para cada um protagonizar suas próprias aventuras.
| ilhas de presença
por Amanda Cruz da Costa
Uma das maravilhas de ter um anjo de aprendizagem
é encontrar refúgio durante as investigações, pois
Outra descoberta: nem sempre protelar significa preguiça!
É necessário parar, respirar e investigar os vieses incons-
76
o caminho pode ser tão divertido quanto assustador, cientes que nos levam para o lugar de fuga.
desafiador ou paralisante. Ter um parceiro de trocas é Evite o autojulgamento, acolha a si mesmo, reflita sobre
essencial para que o aprendiz persista até atingir seus as causas da protelação e coma um chocolate. Aproveite
objetivos. Nós dois escolhemos perguntas de aprendi- ainda para celebrar suas pequenas conquistas.
zagem complexas: o Luís optou por investigar questões Mesmo assim, não se conforme com o que você já tem.
relacionadas à educação livre e informal, e eu optei Esteja sempre grato, mas nunca resignado. Luís e eu
por pesquisar a temática do racismo estrutural. adotamos a seguinte frase para nos prepararmos para
Amandinha: O que eu posso fazer para investigar as futuras maravilhas: “isso não é nem a sombra do que
o racismo estrutural a partir do meu lugar de fala? está por vir”. Estabilidade não existe, certeza muito menos.
Luís: Como melhorar minha capacidade de facilitar e Feche os olhos, se jogue no desconhecido e confie
desenhar comunidades de aprendizagem autodirigida? no processo!
Desbravar o caminho da aprendizagem autodirigida Queridos, foi tãaaaao mágico descobrir essas precio-
pode ser algo trabalhoso, uma vez que afronta direta- sidades! Mas calma que tem mais. Em um de nossos
mente a lógica heteronormativa da educação tradicional. momentos de brisa filosófica, Luís e eu descobrimos
Também por isso, escolher alguém para partilhar o encanto das Ilhas de Presença.
as aventuras ao longo da jornada é uma A vida é como um oceano misterioso: um mix de
decisão estratégica. oportunidades, desafios, conquistas, derrotas, amores,
Depois de definir sua pergunta de aprendizagem, a decepções, flagelos, diversão, procrastinação, momentos
investigação que se inicia é como desembarcar em uma de tédio, euforia, silêncio, escuridão, desconfiança, con-
ilha misteriosa que esconde um precioso tesouro. Você fiança, liberdade, aventuras, persistências, aprendizados.
pode escolher ir sozinho ou convidar um tripulante Dependendo da fase, estamos navegando em um mar
corajoso para te acompanhar durante o trajeto. revolto ou flutuando na beira, boiando no silêncio da
Nesse processo, meu buddy se tornou meu amigo, reflexão. Nossas jornadas de educação autodirigida são
meu confidente e meu conselheiro de jornada. Foi incrível do mesmo jeito: às vezes surfamos na onda da desco-
encontrar apoio em alguém disposto a ouvir e compar- berta, e outras vezes tomamos um caldo com a arreben-
tilhar conquistas e fracassos, erros e acertos. Ao longo tação das marés da dúvida.
do tempo, a relação com meu buddy se tornou um lugar Conforme abandonamos medos, inseguranças e incer-
seguro que inspirou liberdade e confiança: um coração tezas para mergulhar nas profundezas, descobrimos
disposto a ouvir, aconselhar e transbordar.Por meio des- paisagens inimagináveis repousando no fundo do mar.
sas trocas, fizemos algumas descobertas interessantes. Durante essa natação curiosa, podemos nos cansar no
A frase “trabalhe com o que você ama, e você nunca meio do percurso. Nesse momento, temos a oportunidade
mais precisará trabalhar” é a maior mentira! Quando de parar em uma ilha paradisíaca para enfim respirar
trabalhamos com o que amamos, damos duro para e desfrutar de um momento de paz.
fazer os projetos darem certo. Que tal alterar a frase Quando temos um anjo de aprendizagem, essas pausas
para “trabalhe com o que você ama e você trabalhará não são solitárias. Nosso buddy também chega à ilha,
muito mais, mas será um rolê divertido e repleto de ora cansado, ora entusiasmado, mas sempre feliz em nos
momentos de fluxo”? encontrar para o mágico momento de compartilhamento.
| ilhas de presença
por Amanda Cruz da Costa
Chegamos na Ilha de Presença! Enquanto um buddy
pega as caldeiras de praia e o guarda-sol, o outro prepara
77
a água de coco e uma porção de camarão para que
ambos possam aproveitar um tempo de delícia frente
ao oceano misterioso.
Nessa hora, os parceiros têm liberdade para revelar
segredos profundos, compartilhar sabedorias recém-des-
cobertas e se escutar no que amedronta cada um. É um
esconderijo de leveza e tranquilidade que abastece todo
o resto da jornada pelo mar por vezes adverso.
Autodireção não é sinônimo de solidão. Autodireção é
sinônimo de liderança, vulnerabilidade e rede de apoio.
É se enxergar como um exímio nadador, mas saber os
momentos de parar para reabastecer nas Ilha de Presença.
| ilhas de presença
por Amanda Cruz da Costa
A arte 78
de pedir
por Amanda Cruz da Costa
| a arte de pedir
por Amanda Cruz da Costa
A potência Nos movimentos sociais, quais são as pessoas pretas
que estão protagonizando os espaços de transformação?
79
da diversidade De acordo com o IBGE, a população preta corresponde
a 53,9% dos brasileiros. Desse modo, deveríamos ter,
por Amanda Cruz da Costa no mínimo, 50% de representatividade preta em todos
os espaços. Decidi trazer a população preta como exem-
plo disparador para a análise, mas devemos pensar em
outros grupos minoritários como as mulheres, pessoas
com deficiência, o público LGBTQIA+ etc.
A diversidade traz criatividade
Quando temos diversidade de pessoas, encontramos
diversidade de ideias! Nossa sociedade é governada
“Diversidade é convidar para a festa, inclusão é por um sistema capitalista heteronormativo de supremacia
chamar para dançar”. branca, onde as pessoas que não se encaixam nesse
lógica dominante são constantemente silenciadas
Ei, vemkbb! Você já parou para pensar no valor da
e oprimidas.
diversidade? De acordo com o portal de informação
InfoJovem, diversidade é o conjunto de diferenças com- Por isso é extremamente importante abrir seu coraçãozinho,
partilhadas pelos seres humanos na vida social, ligado ativar a escuta empática, conhecer outras narrativas e se
à pluralidade e multiplicidade dos modos de vida e permitir conectar com o diferente. Somente assim a cons-
percepção de cada um. trução de um espaço acolhedor, livre de preconceitos e
gostosin para todos não será apenas um sonho utópico.
Em outras palavras, diversidade é uma extensão da
individualidade em que as diferenças são enxergadas A diversidade traz liberdade
como uma experiência natural da vida em sociedade, Num ambiente diverso, as diferenças são valorizadas.
contribuindo para a formação da cultura e conexão entre As pessoas se sentem à vontade para questionar, romper
os grupos sociais. padrões e expressar sua individualidade. Frase bonita, né?
Imagina se tivéssemos 1 milhão de Amandinhas num Mas a diversidade não será ativada de forma mágica,
mesmo ambiente? Não ia ser legal! Da mesma forma, apenas pelo desejo das almas. É necessário que os es-
precisamos diversificar os espaços que ocupamos, pois paços diversos sejam cocriados de maneira intencional,
isso intensificará o aprendizado, a inovação de modo que a galera esteja realmente disposta a fazer
e o transbordo. o rolê acontecer. Caso contrário, isso não passará de
A diversidade traz novidade um discurso pomposo, onde as palavras bonitas
ganham mais protagonismo que a ação.
O Brasil é diverso, mas não podemos fechar os
olhos para os 354 anos de escravidão que acabaram Querido leitor, talvez você esteja pensando: Certo,
segregando os diversos grupos sociais do país. Amandinha! Mas como fazer isso? Comece com você!
Diversificando seus amigos, colegas de trabalho, crushs
Respire fuuuuundo e reflita comigo:
(aquela pessoa gata que você escolhe beijar) e demais
Na sua empresa, quantas pessoas pretas estão ocupando pessoas com as quais você se relaciona. Quantas pesso-
cargos de tomada de decisão? as pretas fazem parte da sua vida? E LGBTQIA+?
Quantos políticos pretos você acompanha? Você é amigo de PcDs (Pessoas com Deficiência)?
| a potência da diversidade
por Amanda Cruz da Costa
A transformação pode partir de três lugares: da política,
do coletivo e do âmbito individual. Mas somente um
80
deles depende apenas de você. Assim, quero te fazer
um convite: que tal parar de externalizar esse desafio e
assumir a diversidade como um pilar da sua vida? Tenho
certeza que se você fizer essa escolha, viverá a aventura
mais ahazadôra da sua existência!
| a potência da diversidade
por Amanda Cruz da Costa
| textos inspiradores
por Amanda Cruz da Costa
por
a trajetória do Mol
caderno 1 | tragetória MOL
Ciano Buzz
Joga
SeSe Joga
queque Tem Rede:
AquiAqui Tem Rede:
um desmanual para
um desmanual para
15
comunidades de aprendizagem
comunidades autodirigida.
de aprendizagem autodirigida.
O preço da liberdade multivalores que temos por aqui, mas no final do mês os
boletos ainda precisam ser pagos. Confiar é um risco,
83
e o custo da confiança e riscos são caros, principalmente quando o que se tem
a perder pode ser tudo o que cê tem.
por Ciano Buzz Um espaço de aprendizagem não é um universo
à parte, mas parte do universo de cada um dos aprendizes
e tudo isso é parte da estrutura social que a gente tem.
O risco de aprender tem proporções diferentes diante
da história de cada um e da quantidade de outros riscos
que vem antes. As trajetórias são diferentes, por isso num
processo de aprendizagem ninguém começa do mesmo
lugar, com a mesma disposição física, mental, emocional,
nem com as mesmas condições.
“No meio do caminho da educação havia uma pedra O custo da confiança e as condições da liberdade são
E havia uma pedra no meio do caminho ditados pelo mundo em que vivemos e a partir da forma
Ele não é preto véi, mas no bolso leva um cachimbo” como ele se constrói. Mesmo que eu crie um espaço
livre, esses pressupostos não são suspensos, eles continuam
Criolo a existir. Por isso a experiência de aprendizado, que já
Às vezes olho pro céu e vejo aqueles gigantes de é única pra cada pessoa, se torna ainda mais peculiar
metal cortando as nuvens. Eu briso sobre como um avião pra alguns grupos específicos, e mesmo quando há total
desliza no ar, mas principalmente sobre como ele se liberdade e confiança disponível, elas não são
sustenta a partir da confiança de quem tá dentro dele. o suficiente pra acolher a diversidade.
Até por que é mó fita, né? Pra ficar num trambolho Quanto mais eu me dava conta disso, mais em dúvida
com umas 300 toneladas, suspenso no ar há uns 10 eu ficava se o espaço de aprendizagem que tou criando
quilômetros de altitude, é preciso ter, no mínimo, muita na minha quebrada tava fazendo algum algum sentido.
confiança. Só que de que importa eu trazer essa beleza Eu fui tomado por um sentimento de desconfiança, mas
poética se na prática, nesse avião que tou vendo, quase por mais estranho que pareça, isso foi bom.
não tem gente daqui da minha quebrada? Quantos
brasileiros nunca viajaram de avião nem tiveram que O dia em que comecei a desconfiar da educação livre
confiar em sua aerodinâmica? A confiança tá disponível Imagino você lendo tantos textos bonitos, positivos
pra quem? Seria a confiança, assim como viagens e esperançosos até chegar aqui, neste pântano ácido,
aéreas, um privilégio? e pensar: “poxa, tava indo mó dahora até agora, mas
CONFIANÇA: vem do latim CONFIDERE, “acreditar lá vem esse menino me tacando um balde de água fria”.
plenamente, com firmeza”. COM é um intensificativo pra Foi mal, é que esse texto compartilha meu momento.
FIDERE, “acreditar, crer”, que por sua vez deriva de FIDES, Um não-lugar recheado de dúvidas. Ele fala do dia em
“fé”. O curioso é que FIADO (de Fiador, Fiança) também que eu olhei pra essa coisa maluca que venho criando
vem de FIDERE, “acreditar, crer”, logo de FIDES, “fé”. - esses espaços de aprendizagem na quebrada - e me
E aí é que tá a graça. Entre num estabelecimento periférico perguntei:
qualquer e é bem provável que vai ter uma placa pregada
em algum lugar dizendo: “NÃO VENDEMOS FIADO”. Pra onde que esse rolê tá levando a mim e à minha comunidade?
Nóis pode até falar da abundância na periferia, nos Eu realmente acredito nisso?
| a favelaria
por Ciano Buzz
A UniverCidade Fluxo: Onde vejo como o estigma social cria uma delimitação
territorial que contribui para que o cemitério da Vila
91
por uma pedagogia marginal Formosa siga abrigando os corpos das populações das
classes C, D e E, enquanto o Shopping Aricanduva as
por Ciano Buzz afasta, como foi no caso dos rolezinhos de 2014. Du-
rante os rolezinhos, a utilização do shopping por jovens
periféricos se tornou caso de polícia, sendo até proibida
pela justiça. Eles eram impedidos de acessar o espaço
por serem de quebrada, além de serem marginalizados
por sua estética. E, assim como um dia foram censurados
Há um tempo, fui atravessado pela pedagogia marginal, o samba e a capoeira, eles ficaram à margem por
a aprendizagem que surge na margem. Que surge na serem do funk.
correria que eu e meus vizinhos vivenciamos cotidiana- Tem um cara, o tal do psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi,
mente. Mas qual o centro dessa margem? Ela tá na mar- que fala dum bagulho chamado “estado de fluxo” (flow).
gem de quê? De onde? Pelo menos aqui em São Paulo, Esse rolê é um estado mental em que a pessoa fica total-
é difícil definir bordas, as periferias se misturam entre os mente imersa no que tá fazendo. Um sentimento de total
bairros mais nobres. E mal sabemos definir onde uma envolvimento e entusiasmo no processo da atividade.
coisa acaba e onde outra começa. A Zona Leste, por Como aquele momento em que o tempo para, esque-
exemplo, é a zona que concentra a maior população cemos de comer e não nos sentimos cansados. É esse
em ocupações de moradia — mais de 30% do total de estado que entramos quando fazemos o que realmente
moradores irregulares da cidade. São 18.849 famílias nos interessa e atiça nossa curiosidade.
só aqui — e ainda assim a margem vem sendo cada
vez mais apertada, a região de Aricanduva já se torna Só que, quando eu falo de flow, o que eu penso
uma zona de transição para o centro, abrigando primeiro é na levada da rima que uso no rap e que o
bairros considerados “nobres”. MC usa no funk. E, quando falo de fluxo, eu só lembro
daqui. Aqui na minha quebrada existem poucos espaços
Entretanto, as contradições não demoram a surgir quanto criativos e compartilhados realmente acessíveis. É por
mais se caminha no sentido extremo leste. De um lado, isso que a juventude periférica vive descobrindo formas
na Vila Formosa, existe o quarto maior espaço verde de ocupar e criar seus próprios espaços. Não é difícil
da cidade que, com sua área de 763.175 m², é con- ouvir na favela alguém dizendo: “vâmo no fluxo hoje?”
siderado também o maior cemitério da América Latina.
Curiosamente, não muito longe dali, fica o Shopping O fluxo é um baile funk espontâneo, isto é, que acon-
Aricanduva que, com uma área construída de 341.000 tece sem necessariamente ser organizado previamente.
m², recebe o título semelhante de “o maior shopping Aparece alguém com um carro, bota um som e a festa
da América Latina”. começa. Essa é a resposta! Se não há espaços de con-
vivência, lazer e cultura na quebrada, então a gente os
O shopping é disputado pelos distritos de Aricanduva faz. A gente cria espaços temporários em qualquer lugar.
e Cidade Líder, mas apesar da pouca precisão das divi- Ocupamos um pico, e naturalmente a coisa acontece.
sões desse território, o centro comercial funciona simboli- Em 2017, nasceu o coletivo É bom de ver, Cidade,
camente como um limite, já que atrás de sua giganteza, e aos poucos fomos crescendo, formando um grupo de
a cerca de 100 metros, se inicia no morro um complexo jovens periféricos que, inspirados pelos fluxos, ocupam
de favelas, entre elas o Jd. Itapema, Ipanema, Eliane e e criam espaços no tempo para que mais gente da
Fernandes. É onde eu nasci e ainda vivo.
comunidades de aprendizagem
comunidades autodirigida.
de aprendizagem autodirigida.
Aprendendo a ser sujeito Contrastes e minha relação comigo 96
Tantas mudanças de estado - frio/quente, fome/sacie-
comigo mesmo, com o outro dade, prazer/dor - só acontecem para nós porque temos
e com o mundo a capacidade de percebê-las. Brincando um pouco com
a linguagem, gosto de dizer que “per-ceber” significa
por Juliana Machado uma concepção personalizada de realidade.
A forma como as coisas nos afetam revela nossas carac-
A vida começa dentro de outra pessoa. fica borrada terísticas peculiares, porém tendemos a achar que todo
a linha entre o “eu” e o “não eu”. Nosso mundo é a outra mundo pensa como a gente e que o que está dentro da
pessoa, nossa vida existe porque existe a vida da nossa mente é real e óbvio para todos.
outra pessoa. Quando a gente acredita que o que se passa dentro
Te convido a pairar sobre duas imagens. Primeira: um de nós é universal e comum, parece que não precisamos
lugar onde não precisamos fazer nada e onde perma- nomear nosso “menu de afetos”. Afinal, por que eu
necemos em um estado de nirvana absoluto, sem fome, descreveria algo para você que eu suponho que
sem frio, sem dor, sem cansaço. Segunda: não podemos você conhece tão bem quanto eu?
fazer nada e vivemos em um estado de dependência Essa posição é uma reminiscência da época em que
absoluta, sem gosto, sem tato, sem ar, sem espaço. não havia uma fronteira clara entre o “eu” e o “não eu”.
Um belo dia a gente cresce, não cabe mais. Os recursos Algo como “eu e o outro somos a mesma coisa, somos
disponíveis já não são suficientes para sustentar a vida e, iguais”. Será? Per-ceber é uma ferramenta
então, nascemos. Primeira fome, primeiro frio, primeira de autoconhecimento.
dor. Começo de algo totalmente inédito: contraste. O contraste entre “bom” e “ruim” mapeia e dá relevância
Pulmões cheios, pulmões vazios. Estômago cheio, (relevo) para o nosso mundo interno único. Persistir nesse
estômago vazio. Um conjunto de sensações de despra- exercício de auto-observação pode nos colocar em um
zer que definitivamente um “bebêzico” não deveria ter ciclo virtuoso de “percebo, nomeio, decido como vou
de experimentar. Ou será que deveria, se considerarmos lidar com isso”.
que é justamente esse incômodo que desperta a capaci- A reação primitiva (posição de objeto, à mercê dos
dade de agência? acontecimentos) dá lugar a uma escolha atenta (posição
Pela primeira vez, a gente pode fazer algo que causa de sujeito, autoria da própria vida). O nome disso é
efeito nos arredores. Pela primeira vez, podemos ter consciência: também conhecida como a diferença entre
impacto no mundo - e não apenas no corpo da mãe. estar dentro ou fora da matrix. Só a conquistamos pelas
Quem já ouviu um bebê chorando sabe bem do que vias da experimentação e da aprendizagem.
estou falando. Quanta coisa diz essa manifestação! A partir daí, entenderemos que os resultados de nossas
É a primeira vez que a gente percebe que nosso corpo ações são fruto inevitável de nossas escolhas e dos contex-
recebe coisas do mundo, processa, transforma e entrega tos que as circundam. Aprenderemos, então, a assumir
algo diferente. Quem já trocou fraldas de um bebê sabe responsabilidade por elas. Isso se chama autodireção.
disso. Não é à toa que alguns chamam cocô de obra! Escolha, experimente as consequências, aprenda.
Arrastando a barrinha do tempo para a vida adulta, Recomece. Em última instância, é o contraste que geraa
não seriam esses os momentos inaugurais da expressão consciência.
autêntica e das entregas que fazemos ao mundo?
| sobre a culpa
por Juliana Machado
| textos inspiradores
por Juliana Machado
por
a trajetória do Mol
caderno 1 | tragetória MOL
Luis Sérgio Ferreira
Joga
SeSe Joga
queque Tem Rede:
AquiAqui Tem Rede:
um desmanual para
um desmanual para
15
comunidades de aprendizagem
comunidades autodirigida.
de aprendizagem autodirigida.
O futuro da educação: “O único homem que recebeu educação é o que
aprendeu a aprender”. E como “aprender a aprender”?
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comunidades de aprendizagem Dentre as várias possíveis soluções, viver e experimentar
autodirigidas comunidades de aprendizagem autodirigida é uma das
mais potentes. Nesses lugares, nos reconectamos com
por Luís Sérgio Ferreira nosso desejo natural de aprender. A partir da liberdade
e da confiança, podemos desenvolver aquilo que mais
faz sentido para nós no momento presente, sem depender
de um currículo fixo e universal.
Como estar preparado para o século em que a mudança
é a única constante com um currículo que não muda com
“O futuro da educação é plural e complexo! Não acontece em constância? Como criar um currículo ágil o suficiente
escolas lineares, mas sim em comunidades de aprendizagem para acompanhar tantas mudanças?
que abraçam a autonomia e o pertencimento”. Eu acredito que é impossível. O mais prático e eficaz
é permitir que o próprio indivíduo veja por si mesmo
Essa foi a frase que me veio à mente durante um dos e descubra o que faz mais sentido e é necessário no
encontros com o meu Anjo de Aprendizagem no MoL, momento, vivendo uma aprendizagem a partir do fascínio,
Amanda (que também é uma das autoras deste livro). navegando pela complexidade com sua própria bússola.
Plural pois não acredito em um único modelo nem em Porém, ver por si mesmo e navegar com a própria bússola
“certo” ou “errado”. A liberdade é o valor capaz de não significa fazer sozinho. Pelo contrário. “Nascemos
potencializar os processos educacionais. É preciso, em comunidade, inteiramente conectados a outros seres
neste sentido, fazer proliferar diferentes espaços onde humanos. Sem conexão, não podemos sobreviver. Está
a autonomia possa de fato ser vivida. Oportunidades no nosso DNA pertencer” (Radha Agrawal). Se está em
para as pessoas viverem uma educação que as torne nosso DNA cultivar conexões com pessoas e pertecer
aptas a lidar com as complexidades do nosso século. a grupos, por que com o aprendizado seria diferente?
Século que, além de complexo, é entrelaçado, De acordo com outro estudioso de comunidades,
instável e não linear. “A mudança é a única constante”, Charles Vogl, nesses locais as pessoas se preocupam
disse Yuval Noah Harari, para introduzir o capítulo verdadeiramente com o bem-estar uns dos outros. Quan-
sobre o futuro da educação, no livro “21 lições para do aqueles à nossa volta se importam conosco, sentimos
o século 21”. uma atmosfera de colaboração, acolhimento, vulnerabili-
E o que é a aprendizagem senão, como diria meu dade e esperança. O resultado disso são ambientes
amigo Alex Bretas, “viajar pelo (e rumo ao) desconheci- de aprendizagem potentes e emancipadores.
do”? Aprender é, em essência, mudar. O futuro da edu- Infelizmente, viver uma experiência assim ainda é um
cação é aprender para mudar constantemente - e viajar privilégio para alguns poucos que tiveram a oportunidade
por (e rumo a) realidades ainda mais complexas. (ou a sorte) de se deparar com essas comunidades. Mas
A verdadeira educação significa dominar o processo não por muito tempo.
de busca e construção de conhecimento, e não dominar Acredito que essas iniciativas serão cada vez mais
conhecimentos específicos. Até porque é bem provável comuns em todos os lugares e para todas as idades.
que eles se tornem inúteis em breve. Em “Liberdade para Uma evidência disso surgiu justamente em uma curadoria
aprender”, o psicólogo humanista Carl Rogers defende: de conteúdo do MoL, no relatório “Mais 21 empregos
| a genialidade sufocada
por Luís Sérgio Ferreira
Inicialmente, Hecht apresenta o conceito do “quadrado”.
A área abaixo representa esquematicamente todo
109
o conhecimento codificado da humanidade.
E este é o quadrado:
A hierarquia criada na escola gera um problema
que Yaacov analisa por meio do conceito de curva
normal. Esse problema é o responsável por sufocar
nossa genialidade. A ideia da curva é representar
os estudantes justamente nesses três grupos:
“fracos”, “medianos” e “excelentes”.
| a genialidade sufocada
por Luís Sérgio Ferreira
Crença 1: “aquilo que faz com que você seja único não é
relevante para a vida. O que é importante é o quanto
quanto mais tempo passamos respirando a educação
quadradista, mais nossa identidade vai sendo moldada
110
você consegue se aproximar do ‘modo ideal’, isto é, se a partir dela. Para muitos de nós, são no mínimo
você tem notas altas e é ‘excelente’.” 12 anos em uma cultura que enaltece o embrutecimento,
Crença 2: “não há nenhum significado no valor que você a padronização, a comparação e a competição, retiran-
do pouco a pouco o oxigênio de nossa genialidade.
dá a si mesmo. Para provar o seu valor, você
precisa receber autorização de um especialista de Será que quem me percebeu como “gênio” percebeu
fora o professor, o sistema, etc.).” que minha aprendizagem só pôde se desenvolver por ser
livre? Não sei. Ainda que eu fosse apreciado por sair
Crença 3: “poucos apenas podem ser excelentes. Na cur- do padrão, minhas atitudes e habilidades ainda soavam
va normal, a maioria de vocês será sempre mediana.” como “talentos naturais” ou “dons”.
É a partir dessas e de várias outras crenças que a cultura Desde que me deparei com o universo da educação
educacional “quadradista” gradativamente atrofia a auto- autodirigida, percebo como o aprendizado poderia ser
confiança e as paixões. E isso nos distancia cada um caminho de emancipação e cura do ser humano.
vez mais da genialidade. Para isso, a singularidade de cada um precisa ser respei-
Tal cultura, de acordo com o filósofo francês Jacques Ran- tada. Percebo, em especial, uma capacidade maior para
cière, causa “embrutecimento” nos estudantes. entender quem sou, quais são minhas forças e como
“Embrutecer” significa se sentir incapaz de aprender e ser mais perseverante em meus sonhos e objetivos. Neste
conhecer o mundo por si mesmo. É sempre necessário sentido, concordo com Nietzsche, que afirma:
que um “outro” lhe apresente o caminho. Em outras pa- “Só não falem de dons e talentos inatos! Podemos no-
lavras, embrutecer é se tornar dependente de um “mestre”. mear grandes homens de toda espécie que foram pouco
Rancière, neste sentido, defende uma educação baseada dotados. Mas adquiriram grandeza, tornaram-se “gênios”
no princípio da liberdade, de modo que nos desapegue- (como se diz)... Todos tiveram a diligente seriedade do
mos da obsessão por transmitir conteúdo do mestre para artesão, que primeiro aprende a construir perfeitamente
o aprendiz. Essa obsessão é análoga ao que Paulo Freire as partes, antes de ousar fazer um grande todo”.
nomeou como "educação bancária”, em que apenas o (Friedrich Nietzsche em “Humano, Demasiado Humano”)
professor (que tudo sabe) “deposita” conhecimento A noção de “artesão” que Nietzsche compartilha vai
no aluno (que nada sabe). ao encontro do que a aprendizagem autodirigida propor-
A crença na educação quadradista e bancária é o ciona: a capacidade de modelar e ser um “designer” da
inverso do que Jacques Rancière, retomando os métodos própria vida, criando caminhos que fazem sentido para
do professor Joseph Jacotot , chamou de “princípio da si mesmo, construindo perseverança sem depender de
igualdade de inteligências”. Segundo essa ideia, todos “dons” ou “talentos inatos”.
podem ser gênios, desde que vivenciem um processo de
emancipação intelectual. Emancipar-se, no caso, signifi- Joseph Jacotot foi um “anti-pedago-
ca reaprender a aprender a partir da vontade, criando go” francês responsável por propagar
instâncias para verificar o que se aprendeu. ideias educacionais revolucionárias
nos séculos XVII e XVIII. Criou o método
Infelizmente, não é isso que ocorre no sistema educa-
do Ensino Universal, que estimulava
cional convencional. E, como a cultura na qual estamos os aprendizes a descobrirem por
envolvidos influencia drasticamente em nossas crenças, si mesmos sem dependerem de
“mestres explicadores”.
| a genialidade sufocada
por Luís Sérgio Ferreira
Na mesma linha, o educador e multiplicador da apren-
dizagem autodirigida Blake Boles afirma que “educação
pensado como algo distante de nós, como um miraculum,
o gênio não fere. [...] Chamar alguém de ‘divino’ significa
111
é a capacidade de ser o autor da própria vida em vez dizer: ‘aqui não precisamos competir’.”
de meramente tolerar a que foi apresentada a você”. Em outras palavras: quando não vemos os bastidores,
Ser “autor da própria vida”, para mim, está ligado neces- mas apenas o palco, quando não vemos o esforço
sariamente à capacidade de encontrar suas paixões exercido por alguém para atingir um estado de excelên-
e desenvolver consistência para alçar voos cada cia, explicamos isso como “dom”, o que nos poupa da
vez maiores. dor da comparação.
É exatamente isso que se vê no conceito de garra, Dan Chambliss, sociólogo estadunidense, chegou a
cunhado pela psicóloga estadunidense Angela Duckworth. uma conclusão com o estudo “A trivialidade da excelência”
Essa ideia se insere no campo da psicologia do êxito, que abraça essa visão: a genialidade não é um atributo
ou seja, porque algumas pessoas atingem sucesso sobre-humano, e sim conquistada através de atividades
e outras não. aprendidas pela prática e transformadas em hábitos,
Duckworth reúne dados de diferentes estudos científicos com treino, constância e perseverança.
que mostram que o que torna alguém notável não são Cultivar garra, de acordo com Angela Duckworth, é
suas notas ou excelência escolar, mas sim a capacidade possuir “um interesse profundo e constante, uma disposição
de desenvolver paixão e perseverança a partir de de enfrentar desafios, um senso de propósito amadure-
objetivos de longo prazo. cido e uma confiança energética em sua capacidade de
Talento, de acordo com a pesquisadora, é a rapidez persistir”. De forma mais didática, para construir garra é
para adquirir determinada habilidade. E talento não é preciso somar interesse e propósito (polaridade da paixão)
suficiente para se tornar um gênio. Por mais que o talento e prática e esperança (polaridade da perseverança). Vale
seja valioso, o esforço conta em dobro. Ainda sim, ressaltar que todos esses aspectos são plásticos, ou seja,
Angela afirma que nossa cultura enfatiza o “viés do talen- podem ser desenvolvidos durante a vida.
to”. Mesmo que de maneira implícita, tendemos a preferir Você pode: aprender a descobrir o que te fascina,
e valorizar quem tem um “talento natural”. adquirir o hábito da disciplina, cultivar um senso de pro-
Continuando com Nietzsche: “diante de tudo o que pósito e significado em relação ao que faz e, com o
é perfeito, estamos acostumados a omitir a questão do tempo, desenvolver resiliência. Há duas maneiras de se
vir-a-ser”. Preferimos acreditar na ”sua presença como se fazer isso: “sozinho” (de dentro para fora) ou junto de
aquilo tivesse brotado magicamente do chão”. Angela outras pessoas (de fora para dentro). Ou seja: pode
Duckworth reitera: “preferimos a perfeição já totalmente partir de você, ou pode partir do apoio de pessoas
formada. Preferimos o mistério à trivialidade”. e comunidades.
Ainda Nietzsche, em “Culto ao gênio por vaidade”: Quero enfatizar aqui algumas vias que Duckworth reco-
“Porque pensamos bem de nós mesmos, mas não menda para desenvolver a garra - ou genialidade - de
esperamos ser capazes de algum dia fazer um esboço fora para dentro, notadamente “educar para a garra”
de um quadro de Rafael ou a cena de um drama de e “arenas da garra”.
Shakespeare, persuadimo-nos de que a capacidade “Educar para a garra” ressalta a importância de pais,
para isso é algo sobremaneira maravilhoso, um acaso professores, treinadores e líderes despertarem um senso
muito raro ou, se temos ainda sentimento religioso, uma de garra nos estudantes. Alguns aspectos básicos são
graça dos céus. É assim que nossa vaidade, nosso amor acolhimento e carinho acompanhados de um alto nível
próprio, favorece o culto ao gênio: pois só quando é de responsabilidade. Além da liberdade para enfrentar
| a genialidade sufocada
por Luís Sérgio Ferreira
e lidar com os próprios problemas e escolhas de vida. Quanto mais arenas de autodireção um indivíduo possui
em sua trajetória de vida, mais ele tende a ser capaz
112
Apesar de em casa eu não ter tido esse balanço ideal
entre acolhimento e responsabilidade - sendo bem since- de praticar o aprendizado autodirigido. Na minha his-
ro, acredito que isso seja muito raro -, sou grato por um tória, consegui identificar duas arenas da autodireção
elemento primordial que meus pais me fizeram acessar: principais.
autonomia para tomar minhas próprias decisões e lidar A primeira foi minha breve “carreira” como cracker
com elas. de celular dos 12 aos 14 anos anos. “Crackear” um
“Arenas da garra” é sobre a importância das atividades celular significa desbloqueá-lo para que seja possível
extracurriculares para despertar garra nos alunos. O fato instalar aplicativos piratas. E a segunda foi, entre os 15 a
de persistirmos em atividades difíceis e de interesse pró- 17 anos, minha experiência como “arquiteto mirim” dese-
prio, alcançando progresso e reconhecimento, nos ensina nhando e projetando maquetes eletrônicas de casas
lições que se aplicam em outros contextos da vida. E isso no software SketchUp. O ponto máximo dessa segunda
nos permite desenvolver inteligência emocional e capaci- arena foi ter projetado do zero a casa em que meu
dade de enfrentar dificuldades. pai mora hoje.
Isso corrobora o que o educador e ativista da desescola- Em ambas as histórias, transformei meus aprendizados
rização indiano Manish Jain disse em uma das conversas e habilidades construídas de maneira autônoma em uma
que tivemos no MoL Academy: forma de ganhar algum dinheiro. Meu pai me encaminha-
va clientes e eu era remunerado pelos serviços. Com isso,
“As atividades consideradas como “extra” curriculares eu fui sendo reconhecido socialmente pelo meu esforço e
na escola não são extras, mas sim onde de fato acontece aprendizado. E isso aumentava a crença em meu próprio
o verdadeiro aprendizado transformador. O currículo potencial ou, em termos técnicos, autoeficácia.
fixo ensinado na sala de aula é que é ‘extra’, secundário’”.
Autoeficácia significa a “crença que uma pessoa tem
Isso aconteceu com o próprio Manish. Eram nessas na sua própria capacidade para completar uma determi-
atividades fora da escola que ele estava expandindo seus nada tarefa ou resolver um problema”. Para isso, reconhe-
interesses, se conectando com pessoas intencionalmente, cimento, aprovação e apoio social são ingred
se desenvolvendo, enfrentando desafios reais e de fato entes cruciais.
encontrando seu lugar no mundo.
Boa parte do desenvolvimento das minhas arenas
Da mesma forma, eu vivi essa sensação e percebi como de autodireção como cracker de celular e arquiteto mirim
esse desenvolvimento “extracurricular” e fora do quadrado veio de um fator em comum: a procrastinação dos estu-
me impulsionou a conquistar mais autoconhecimento e dos formais. Ao procrastinar, eu gastava inúmeras horas
garra. E isso, pra mim, tem tudo a ver com genialidade. pesquisando coisas “aleatórias” na internet. É a tal “perda
Tomo a liberdade aqui para combinar um dos conceitos de tempo” que os quadradistas dizem.
de Angela Duckworth com a autodireção, teorizando Enquanto ignorava o quadrado do currículo e me
sobre o que chamo de “arenas da autodireção”. Uma permitia viver longas explorações sem um objetivo bem
arena de autodireção consiste em uma atividade desen- definido, eu estava exercitando minha curiosidade e
volvida por interesse próprio por alguém que chegou a desenvolvendo a poderosa ferramenta de “aprender qual-
obter algum nível de reconhecimento a partir dela. Ao quer coisa no YouTube”.
longo do desenvolvimento da atividade, a pessoa preci- O ponto em que quero chegar é: para nos tornarmos
sou cultivar uma postura de proatividade e autonomia no gênios, não importa o quão “aleatório” ou fora do
que se refere à própria aprendizagem. quadrado seja o tema, matéria ou assunto que estamos
| a genialidade sufocada
por Luís Sérgio Ferreira
investigando. O que importa de fato é “como” se apren-
de. Sendo mais específico, o que mais importa para se
113
encontrar a genialidade é aprender com o que
nos fascina.
Não ser refém do quadrado te permite viver percursos
de aprendizagem livres. Viver percursos de aprendizagem
livres te permite dominar a capacidade de aprender. E
é isso que pode te tornar um gênio. Quais arenas da
autodireção você poderia viver a fim de encontrar sua
genialidade sufocada?
| a genialidade sufocada
por Luís Sérgio Ferreira
As descobertas Alguns anos depois, em novembro de 2020 - desta vez
com 19 anos -, cá estou eu vasculhando minhas gavetas
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da feira gastronômica incessantemente em busca do meu título de eleitor. Em
meio à busca diligente, encontro uma pilha de papéis an-
por Luís Sérgio Ferreira tigos. Perdido entre eles, esse curioso retrato do passado.
Eu, que sempre fui aficionado em pensar na ideia
Uma carta ao futuro, de viagens no tempo, encontrei essa carta e fiquei ali,
Acabei de concluir meu curso de inglês e agora preciso escrever uma parado, segurando uma verdadeira “máquina do tempo”
redação sobre minhas expectativas para o futuro. Bem, como minha em minhas mãos. Sentia como se estivesse conversando
professora Daniela sabe, estou planejando largar a escola. Existem comigo mesmo. Conectado entre duas linhas temporais
através de um pedaço de papel desgastado.
milhões de razões para eu fazer isso, mas a principal é porque odeio
o sistema educacional e como ele funciona. Não concordo com um Com a descoberta da carta, veio também uma retros-
sistema ineficiente que não ensina nada de útil na vida real. pectiva sobre o que vivi desde sua escrita até o momento
Devido à minha insatisfação com o sistema educacional, tenho grandes presente. O instante em que o texto foi produzido marca-
va o início de um importante processo que se sucederia:
planos para o futuro. Primeiro, vou ingressar na FIAP e estudar admi- o início dos meus estudos livres fora da escola. Como
nistração com ênfase em tecnologia. Enquanto estiver na faculdade, intencionado no início da correspondência, eu estava
entrarei no mercado de trabalho para ganhar experiência no mundo planejando “largar a escola”. Dito e feito.
dos negócios. Depois de alguns anos trabalhando em uma grande A partir do segundo semestre de 2018, já do lado de
empresa, estarei pronto para abrir meu próprio negócio. Meu sonho fora da educação formal - mas ainda sem companheiros
é criar uma escola diferente, com um sistema de ensino diferente. Na para me acompanhar nessa jornada fora da trilha -, me
minha escola, os alunos poderão estudar as áreas de conhecimento que senti com mais liberdade e tempo. Era como se eu estives-
preferirem. Os alunos terão liberdade para estudar em salas de aulas se em uma grande feira gastronômica: um pavilhão com
diferentes e modernas, sem cadeiras enfileiradas. A internet e os livros diversos estandes, um mais atraente que o outro.
Até então, todos os dias eu era forçado a consumir
serão as principais fontes de conhecimento. um cardápio limitado. Não mais.
Infelizmente, hoje não temos permissão para abrir uma escola como
Com liberdade, as possibilidades são infinitas. Posso
essa, pois o governo proíbe as pessoas de criarem um sistema educa- experimentar qualquer sabor e qualquer culinária que
cional desse tipo. Mas espero ser capaz de dirigir minha própria escola eu sinta vontade. Posso sentir o gosto de aprender sobre
revolucionária. A demanda por uma escola diferente está crescendo arquitetura, marketing digital, finanças, empreendedoris-
ultimamente por causa da pressão do vestibular, então acredito que no mo, filosofia, desenvolvimento pessoal, dentre inúmeros
futuro isso será possível. Resumindo: quero mudar a educação brasilei- outros assuntos.
ra. Esse é o meu sonho e essas são minhas expectativas para o futuro. E, principalmente, eu posso descobrir novas “comidas”
que eu nem sabia que existiam como futurismo, design
As palavras acima, traduzidas do inglês, foram escritas thinking, comunicação não-violenta e psicologia positiva.
por mim não muito tempo atrás. Em 12 de julho de Qualquer iguaria que fosse.
2018, com 16 anos bem vividos, o (um pouco mais)
jovem Luis Sérgio tinha acabado de concluir seu curso de Começo, então, a saborear os temas que mais me atra-
inglês. O último dever de casa? Uma carta para o futuro em. Por meio de vídeos no YouTube, cursos, textos, pod-
para testar suas habilidades com a nova língua. casts, palestras e livros, vou me experimentando em novas
comunidades de aprendizagem
comunidades autodirigida.
de aprendizagem autodirigida.
Minhas aventuras Este material vem sendo ensaiado há pelo menos três anos,
em que fui revisitando memórias, resgatando reflexões,
121
autodirigidas relendo meus textos e produções e compondo, como um
Frankenstein, a colcha de retalhos que a seguir
por Su Verri lhe apresento.
Como conheci Alex
O ano era 2017; o mês, outubro. Naquele momento,
eu já estava há dois anos no processo de desescolarização
dos meus filhos e da minha família. A situação financeira
Apesar de todas as pessoas serem autodirigidas, nem não estava muito boa e existia uma necessidade de nos
todas têm consciência disso. Quanto maior a consciência conectarmos com outras pessoas que acreditassem nas
sobre autodireção, mais autodirigida a pessoa se torna. mesmas coisas, o que naquele momento não era
Descrever a autodireção é algo bastante subjetivo, porque tão simples.
o conceito vai muito além do entendimento enrijecido em Minha investigação começou pelas redes sociais, por
relação à aprendizagem promovido por uma educação meio das quais fui conhecendo pessoas e famílias que
bancária que se resume ao acúmulo de informações e praticam novas maneiras de viver e aprender. Conheci
conteúdos, reproduzindo uma cultura de aprendizagem o Alex por meio do Facebook, comecei a seguir o seu
estreita, depositária e cumulativa. perfil e logo ele lançou a proposta do Grupo de Investiga-
Aprender de forma autodirigida significa expandir nossa dores da Nova Educação (GINE). Como disse, naquele
visão para a totalidade das capacidades humanas que momento eu estava com pouca grana, mas com um
não vêm sendo trabalhadas na educação bancária e questionamento interno sobre como seguir com a apren-
construir uma nova cultura de aprendizagem que considere dizagem dos meus filhos no processo de desescolariza-
a potência singular de cada pessoa e as capacidades ção, e conhecer o Alex me pareceu uma luz no fim do
e competências para muito além dos currículos escolares. túnel. O valor era simbólico e cabia no meu orçamento.
Existe algo muito profundo na autodireção que significa Os encontros eram online e quinzenais e, com eles,
reaprender sobre a própria vida, passando a experienciá-la começou uma etapa muito importante da minha vivência
com autonomia em vez de somente “teorizá-la”. autodirigida na qual pude de fato tomar consciência do
A minha jornada de conscientização sobre a autodireção significado do termo autodireção. Em paralelo, encontrei
tem sido um profundo e intenso processo de cura emocional pessoas com quem realmente podia dizer o que penso e
e renascimento para uma nova maneira de viver, que praticar a aprendizagem em que acredito.
significa reaprender a me relacionar comigo mesma e Tirar os meus filhos da escola não foi um processo fácil.
com as pessoas a partir de uma visão consciente, trans- Antes de conhecer o Alex e de entrar para o grupo de
parente e autorresponsável diante da vida. estudos, as coisas eram bastante complicadas porque
Com este texto, pretendo trazer alguns recortes, contar vivíamos “na clandestinidade” e precisávamos pensar
algumas histórias, relembrar momentos, reviver, ressignificar muito no que dizer para as pessoas por medo da intole-
e compartilhar um pouco das vivências que tenho expe- rância. E assim cheguei ao GINE, buscando um espaço
rimentado desde que conheci o Alex e todas as outras em que pudesse contar minha história – mas, principal-
pessoas que gravitam nessa rede de amor e abundância, mente, buscando meios de continuar sustentando esse
mostrando um pouco de como esse processo tem sido caminho autodirigido com meus filhos, que acabou se
profundo, intenso, transformador e muito gratificante. expandindo para uma pesquisa de doutorado informal.
Mais informações em
http://autogestao.camp.
ALF Nature
Mirella Freire
Wilbert Zumba e Mayara
Brunna Pujol
Thais Sanches
Maria Cordélia
Vitória Refatti
Andréa Monteiro
Guilherme Gonçalves
Guilherme Padovani
Tássia Souza
Thiago Freire
Victor Couto
Alice Rocha
Sophia Longoni
Renata Moraes
Andreza Adami
Regina Célia Lima
Cacá Rehnius
Lorena Gomes
Rosângela Ludovico (Ludo)
Cristiane Martinera
Maria Ivone Freitas
Mathias Costa
Diana Zava
Nycolle Corrêa
Gabriela Pereira
Alex Bretas
Viagens em busca Num dos encontros do MoL, emergiu a frase: “a entrega
é entregar-se”. Essa frase representa bem o meu processo
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de mim mesma autodirigido na vida, e quero ressaltar o quanto uma
comunidade que oferece espaço seguro para as pessoas
por Su Verri serem elas mesmas oferece também uma rara oportunida-
de de investigação de si com profundidade. Indo além
da autodireção, ou caminhando com ela nos braços,
pode-se mergulhar nos próprios processos de autoconhe-
cimento e autoconsciência, a ponto de causarmos uma
mudança de paradigma em nossos modos de operação
e, consequentemente, nos sistemas em que atuamos.
Confesso que compartilhar coisas sobre mim e me
Uma das habilidades que considero mais valiosas num vulnerabilizar ainda é um desafio, pois esse “me jogar
aprendiz autodirigido é a capacidade de compartilhar na vida” já me rendeu algumas quedas bastante dolori-
impressões sobre si mesmo e suas experiências únicas. das. Porém, poder me jogar com confiança e com uma
A habilidade de apreciar o compartilhar do outro é igual- rede para me amparar é uma experiência única que vivo
mente valiosa: olhar para o outro exergando a beleza desde que conheci o Alex. Sobrevivi por anos sozinha
que há em sua verdade e celebrar junto e com sinceridade e nadando contra a maré, mas a qualidade do meu
suas conquistas são as grandes dádivas de estarmos desempenho e da expressão da minha potencialidade
reunidos em uma comunidade de aprendizagem. Para só se ampliaram de fato quando tive um espaço segu-
além dos conhecimentos construídos, a comunidade lida ro para ser eu mesma dentro de uma comunidade de
com conexão humana profunda, empatia e compaixão aprendizagem. Me sinto privilegiada por isso. Mesmo
e constitui um espaço saudável para o desenvolvimento que soe absurdo – e de fato é –, poucas pessoas têm
das potencialidades de cada um. a oportunidade de serem elas mesmas.
No entanto, como vivemos em uma sociedade que dita Como as pessoas não estão acostumadas a serem elas
padrões e comportamentos, compartilhar a respeito de mesmas, até aquelas que têm essa oportunidade precisam
nós mesmos com transparência e vulnerabilidade não é embarcar em uma jornada de reencontro e reencanto,
uma tarefa tão simples. Não estamos acostumados a nos passando a abandonar comportamentos que adotam
abrir, e cada um de nós carrega algumas lembranças ou adotaram em função dos outros. Por exemplo: deixar
negativas por ter sido ridicularizado ou por ter tido suas de se defender e de se esconder e passar a se vulnera-
emoções, sonhos e conquistas diminuídas na esfera fami- bilizar, falar de si com profundidade, arriscar-se, experi-
liar, no trabalho, entre os amigos e especialmente mentar, aprender a expor seus sentimentos e ideias com
na escola. transparência e integridade, dentre várias outras ações.
Saindo do lugar de culpabilizar nossos agressores Quando o MoL começou, compreendi o tamanho da
e compreendendo que todos atuam a partir de valores responsabilidade e o quanto o processo estava mexendo
enraizados em uma determinada cultura, podemos em lugares profundos de mim e me envolvendo comple-
cocriar uma nova realidade que estabeleça uma cultura tamente, ainda que conscientemente eu não quisesse me
consciente e regenerativa a partir da apreciação do envolver tanto. Naquele primeiro momento, quando meu
outro e do incentivo à busca essencial do que há de coração disse sim – mesmo que minha mente me disses-
singular na jornada de vida de cada um com respeito, se que não –, entrei em um modo de operação automá-
acolhimento e apoio. tico, sem perceber minha ansiedade e a sobrecarga de
| slow learning
por Su Verri
tos e uma elaboração mais detalhada, caso você leitor
queira trocar receitas comigo.
atrás em um processo que nos remete à racionalização
exclusiva dos saberes, sem que eles atravessem também
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O movimento slow food nasceu em 1986 na Itália, o corpo e as emoções. Somos levados a nos comparar
fundado por Carlo Petrini. Seu objetivo é realizar uma com outras pessoas constantemente e experimentamos
contraposição filosófica, política e ideológica ao modelo escassez de tempo e imediatismo por resultados. No
fast food, defendendo uma alimentação consciente, que fim do dia, tudo isso gera pessoas ansiosas e insatis-
respeite o produtor, a natureza e o tempo saudável e na- feitas que exigem demais de si mesmas e estabelecem
tural de preparo dos alimentos. Evita-se o uso de alimen- relações baseadas em cobranças e exigência consigo
tos sintéticos, industrializados e que utilizem agrotóxicos mesmas e com os outros. Todo esse contexto implica que
em sua produção. aprender e trabalhar devem ser tarefas árduas e sofridas,
o tempo todo.
“É inútil forçar os ritmos da vida. A arte de viver consiste em aprender
Estamos vivendo a era do excesso de informações e da
a dar o devido tempo às coisas”, diz Carlo Petrini. falta de sabedoria. As pessoas não sabem o que fazer
A proposta para o slow learning, partindo dessa ideia, com tanta informação e acabam adoecendo. Muitas não
é que façamos as escolhas certas a respeito do que sabem como e nem onde aplicar o conhecimento que
e como aprender, respeitando nosso tempo orgânico acumulam, e acabam subutilizando-as ou aplicando-as
e percebendo como está o nosso corpo. Slow learning de maneira indevida ou incoerente. Com tantos peixes
significa a recusa frente ao aprendizado exclusivamente acumulados na geladeira, muitos começam a apodrecer.
mental e racional e a harmonia em contraposição ao
Estabeleci para mim mesma algumas ações e atitudes
excesso de informações e ao imediatismo de respostas
para conseguir vivenciar o slow learning na prática, que
e soluções. Que possamos passar por processos de
bebem da minha forma particular de aprender e me
aprendizagem mais profundos, sensíveis e conscientes,
relacionar com outras pessoas e com o conhecimento.
com tempos mais generosos para nós mesmos e para
Acredito que essas ações podem contribuir para o cami-
o outro.
nho autodirigido de outras pessoas, e é por isso que
Em uma comunidade de aprendizagem autodirigida como as compartilho abaixo.
o MoL, em que a maioria das pessoas inicia a jornada
Voltar a ler livros de papel: me rendi por um bom tempo
ainda com uma mentalidade heterodirigida (o outro
aos PDFs e arquivos digitais, e a qualidade e quantidade
dirigindo meu aprendizado), é comum que aconteça um
de leituras diminuíram muito. Eu amo ler. Ao fazer a leitu-
maravilhamento, uma curiosidade e uma euforia no co-
ra de um livro impresso, você cria uma relação diferente
meço. As pessoas simplesmente não estão acostumadas
com o conhecimento e tem um tempo de assimilação e
a ter tanta liberdade, interações autênticas e abundância
“digestão” mais harmoniosos. Também é uma ótima alter-
de saberes. Nesse contexto, os participantes sentem o
nativa para reduzir o tempo de exposição às telas.
FOMO porque querem aprender todas as coisas imedia-
tamente – e sentem medo de que acabe logo, porque Superar o paradigma escolarizante: vivemos em um
“tudo que é bom dura pouco” conforme o senso comum. mundo que ainda se baseia nesse paradigma, e por isso
é sempre possível cair em algumas de suas armadilhas.
Vale ressaltar que vivemos em uma cultura heterodirigi-
Percebi em mim mesma padrões que vêm dessa herança
da e escolarizada que compreende o aprender como
cultural escolarizada, por exemplo: a necessidade de
um acúmulo de conteúdos e informações. No campo
acumular conhecimentos e vivenciar novas experiências
profissional, isso gera culpa e necessidade de estarmos
o tempo todo, estar antenado com o que está aconte-
sempre atualizados sobre diferentes temas e novidades
cendo constantemente, ler todos os livros “de referência”,
da nossa área de atuação. Estamos sempre correndo
| slow learning
por Su Verri
conhecer os pensadores do momento, dentre outros. Isso
pode se tornar um tanto frenético e acelerado a ponto
impressos, tempo estabelecido para uso de redes so-
ciais e Whatsapp e retomada dos meus caderninhos de
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de ser totalmente estressante e nos fazer perder o prazer anotações, consegui reduzir bastante meu tempo de tela,
em aprender. No slow learning, menos é mais: é preciso utilizando-o de forma intencional apenas para os traba-
esvaziar a mente para se conectar com o saber profundo lhos indispensáveis.
que emerge de suas (poucas) escolhas conscientes Saber fazer as escolhas de aprendizado certas:
por aprender. significa escolher apenas aquilo que realmente ressoa
Buscar o estado de presença: estar presente no aqui e em você, que está vivo e que faz seu coração pular de
agora, priorizando uma conexão profunda com as pes- alegria. É assim que você sabe que está aprendendo o
soas e sentindo o campo mesmo que seja em um encontro que deveria: seu corpo e a alegria que ele é capaz de
online. Exercitar a escuta generativa, praticar uma co- gerar te mostram o caminho a ser seguido.
municação autêntica, observar a si mesmo com espírito
Nem sempre é fácil fazer as escolhas certas porque,
de indagação, sentir, permitir-se, entregar-se, cocriar a
como viemos de uma cultura de aprendizagem com-
confiança na humanidade, ser vulnerável, conectar-se
pulsória, podemos estar distanciados do que faz nosso
verdadeiramente, ser humano e humana novamente em
coração vibrar. Essa mesma cultura também nos incita
potência e plenitude. Paradoxalmente, essa potência
a compreender a aprendizagem como algo pesado e
não significa perfeição. A humanidade plena considera
doloroso. Assim, parece que o que dá prazer não pode
a imperfeição e a fragilidade como grandes caminhos
ser realmente útil pra mim. Essa é uma crença limitante
para o exercício da empatia e da compaixão.
que precisamos desconstruir.
Desligar as notificações dos aplicativos: como tutora
Depois de parir essas reflexões, que também foram ges-
de uma comunidade online, me vi em alguns momentos
tadas com o devido tempo, te convido a pensar: o slow
perdida no buraco negro de mensagens dos muitos
learning faz sentido na sua vida? Quais ações e atitudes
grupos de WhatsApp, além de centenas de mensagens
você gostaria de colocar em prática considerando essa
privadas. Além de desligar as notificações, fiquei atenta
ideia? O que mudaria na sua vida caso isso acontecesse?
à qualidade da minha presença e atenção ao responder
cada mensagem e passei a dedicar tempos específicos
para os grupos. Fazendo um paralelo com o presencial,
me imagniei interagindo realmente com as pessoas,
intencionando uma comunicação consciente e buscando
uma conexão profunda, mesmo por meio de ferramentas
digitais e assíncronas.
Usar mais caderninhos: por conta das demandas virtuais,
em alguns momentos acabo deixando de lado o uso dessas
simples e maravilhosas ferramentas que são o papel e
a caneta. São meios que estimulam a criatividade e a
expressão autêntica bem mais do que muitas alternativas
digitais. É sempre bom resgatar o hábito de escrever
à mão.
Prestar atenção ao tempo de exposição às telas:
já repare que o excesso de telas é um agravante das
minhas crises de ansiedade. Com a escolha por livros
| slow learning
por Su Verri
Uma Carta Como é uma carta pública, existem partes dos nossos
bastidores que pretendo narrar aqui para contextualizar
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para a Isa o leitor.
Conheci a Isadora em 2017, quando também conheci
por Su Verri o Alex e resolvi entrar no novo projeto dele na época, o
GINE. Para coescrever este livro, revisitei todo o acervo
maravilhoso que foi construído durante aquele período
e que é uma espécie de “mini MoL” .
Foi muito lindo nosso reencontro no MoL como tutoras.
Querida Isa, Pudemos aprofundar as afinidades e construir uma par-
Começo um primeiro ensaio para te escrever algo que ceria de estudos e vivências compartilhadas ao longo do
saia do coração. Minha busca é me conectar contigo, percurso. Logo de cara, nos tornamos buddies e começa-
com tudo o que vivemos desde que nos conhecemos – mos a fazer encontros semanais muito nutritivos. Até que,
em 2017, no GINE – e com todo o processo compar- inevitavelmente, cocriamos o grupo MoLheres Autodirigi-
tilhado como parceiras dentro do MoL. Essa também foi das, uma experiência muito profunda e verdadeira.
uma daquelas coisas da serendipidade. Mesmo que alguns momentos tenham sido vales tene-
Sabe que uma das coisas que me passaram pela cabeça brosos, só de saber que você está aí e que todas essas
depois do GINE foi: por onde anda a Isadora, aquela mulheres maravilhosas também estão, já me sinto mais
colega que eu não pude conhecer tão bem? Sinto que fortalecida e disposta a lidar com todos os desafios de
com o MoL demos um grande salto no nível de profundi- ser mulher.
dade das relações que estabelecemos enquanto comuni- Em um certo momento da minha jornada de autodireção,
dade. Me sinto imensamente honrada em partilhar essa ficou impossível ignorar a cura do meu lado feminino
trajetória contigo e com tantas outras pessoas maravilhosas e a integração com meu lado masculino. A autodireção
e em escrever esta carta para você, sabendo que ela não trata de pesquisar e aprofundar coisas que queremos
ficará pública para os leitores do nosso livro. somente com a cabeça: muitas vezes as temáticas nos
Isso também é uma forma de partilhar memórias e momen- atravessam e às vezes nos atropelam como indispensá-
tos com todas essas pessoas e afirmar que nada disso veis para o nosso desenvolvimento emocional. Mesmo
seria possível sem a existência dessa linda comunidade que tentemos fugir dessas situações, algumas vezes
que cocriamos e da qual fazemos parte. É também somos presenteados com novas descobertas.
poder expressar publicamente o quanto somos gratas,
felizes e honradas por estarmos aqui fazendo o que
estamos fazendo.
Escrever esta carta também faz todo o sentido pelas GINE é uma sigla para Grupo de Investigadores
autodirigidas que somos, o que nos faz eternas experi- da Nova Educação, uma comunidade de estudos
mentadoras e “inventadoras” de coisas. (até de palavras educacionais liderada por Alex Bretas entre
que não existem, por que não?) Quando você me fez a 2017 e 2019.’
proposta para escrevermos cartas, topei na hora como Para saber mais sobre minhas aventuras no GINE,
uma forma de demonstrar de maneira explícita o quanto leia o meu outro texto publicado neste livro intitulado
o nosso processo se dá como uma brincadeira levada “Minhas aventuras autodirigidas”. Aqui, focalizo a
muito a sério e que temos o maior amor de sustentar. afinidade imediata que tive com a Isa.
comunidades de aprendizagem
comunidades autodirigida.
de aprendizagem autodirigida.
Uma Carta Nossa conexão vem de muito antes, contudo as andanças
na aprendizagem autodirigida haviam nos direcionado a
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para a Su trilhas sem muitas esquinas. Você se perguntava por onde
eu andava, e eu fazia o mesmo. Acompanhava você de
por Isadora Martins longe pelas redes, admirando sua coragem e sua entre-
ga. Até que nos reencontramos nessa comunidade de
aprendizagem – e de amizade – com tanta gente bonita
de alma. Agora ninguém nos segura, olha só pra nós!
Gestando e parindo projetos, dançando com as mãos
e com o corpo, sonhando como nuvem, escrevendo
para brincar e respirar: nascendo-morrendo-nascendo,
descobrindo o que é essa coisa de se curar e de fi-
Eu sei que havíamos combinado de escrevermos a carta nalmente corresponder ao tal do amor-próprio. Juntas,
uma para a outra e somente depois ler o que nasceu primeiro como buddys (parças) na tutoria e depois
nessas linhas de afeto. Sei, inclusive, que quem sugeriu com a comunidade de MoLheres Autodirigidas.
esse acordo fui eu. Achava que seria mais simples, mas
Estava agora lembrando de uma pergunta que surgiu
preciso admitir: não consegui. Há alguns dias, você me
em um dos nossos encontros do MoLheres. “Por que esse
enviou seu texto e a coceira de lê-lo foi subindo pela
grupo fala tanto a expressão ‘me atravessou?’” Lembra?
pele até alcançar a retina do coração.
Realmente a gente sempre diz isso. Não só no MoLhe-
Então, minha querida, começo esta carta apreciando res, mas no MoL também. O que significa “atravessar”?
sua cumplicidade, tão evidente pra mim em cada suspiro Atravessar o quê? Atravessar como? Com quem?
da nossa amizade – e, agora, para quem nos lê nas
Eu tenho pensado com frequência nisso, até escrevi a
linhas digitadas entre megalópole e maresia. Que alegria
respeito. Sinto que essa palavra descreve muito do nosso
é testemunhar e partilhar da sua existência no mundo.
processo. Afinal, nossa amizade é uma história de travessia.
Sinto-me sortuda, como se tivesse sido visitada por
uma ternura de joaninhas. Não sei exatamente onde vamos chegar, Su. Não me
importo mais, confesso. A chegada já não é mais tão
Eu tenho uma certa mania de contar as mesmas histórias
importante quanto a travessia em si. Porque a chegada
– e imagino que daqui algum tempo serei quase uma
é sempre uma promessa. Quando a gente chega, a gente
caricatura daquelas senhoras maravilhosas que sempre
| entrega é entregar-se
por Isadora Martins
A entrega no contexto da heterodireção nos posiciona
em um sistema organizado por graus, nos levando facil-
pronuncie com palavras o que percebemos com o corpo
a todo momento em tantos lugares e existências. Admira-
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mente a associar certificação com competência, como já mos as pessoas bem-sucedidas e desejamos receber dos
apontava Ivan Illich no afiado “Sociedade sem escolas”: outros essa mesma admiração. No fundo, confundimos
“o aluno é, desse modo, escolarizado a confundir ensino admiração com amor e queremos, desesperadamente,
com aprendizagem, obtenção de graus com educação, ser amados.E o fracasso? Por que o fracasso ganha tan-
diploma com competência, fluência no falar com capaci- to peso? Qual é o medo que se camufla atrás do medo
dade de dizer algo novo”. do fracasso?
Mas, alto lá! Tal permissão de progresso só será conce- O fracasso nos isola.
dida se realizarmos o correto. Existe “o” correto? Nessa
Ao entregar um trabalho e receber o retorno por ele,
perspectiva, “o” correto é o esperado por aqueles que
já viveram aquela etapa, que já ultrapassaram aquele durante muito tempo em minha vida, eu senti alívio –
grau. “O” correto é definido pelos mestres – e os mestres mesmo que ele viesse acompanhado de outras emoções,
se posicionam como representantes do real, porta-vozes até de um certo orgulho contido. Sempre fui uma boa
do conhecimento. São eles que “sabem” do mundo (ou, aluna, daquelas que se esforçam para cumprir o que é
pelo menos, do mundo que nos direcionam para viver). requisitado. Admito, já sem vergonha alguma: o que eu
A entrega, nesse caso, é voltada para a obediência, sentia era alívio por não ter fracassado.
isto é, para a reprodução do que é dito como certo,
Entregas para a potência
para responder a perguntas que já têm uma
resposta esperada. Podemos sentir orgulho de uma entrega porque outras
pessoas reconhecem nosso valor por meio dela – e
Sinto necessidade de fazer uma ressalva: a entrega
tudo bem, embora confiar somente nessa estratégia de
nesse sistema não necessariamente reflete o que apren-
autovaloração seja algo perigoso. No entanto, o que
demos. Em alguma medida, quase todos nós descobri-
nos leva a reconhecer a entrega como mobilizadora da
mos como atravessar esse ritual sem nos entregarmos ao
nossa potência criativa? Nos orgulhamos do quanto
processo de aprendizagem em si. Aprendemos a perceber
ela movimenta dentro e ao redor de nós?
o que precisa ser feito para que o outro nos conceda
aprovação – inclusive a burlar o sistema para conseguir No MoL, a proposta das entregas é bastante diferente
as permissões, se necessário. Quem não conhece alguém daquela que aprendemos na escola. Não nos engane-
que já colou na prova da escola ou estudou apenas na mos: ela continua sendo um marco, um ritual, mas não
véspera? Ou ainda copiou o trabalho do amigo? Talvez é pronunciada com a voz autoritária da exigência. Essa
você, inclusive, tenha sido essa pessoa. palavra, aliás, inexiste no vocabulário autodirigido. Tudo
é convite: você pode apresentar algo sobre suas aven-
A entrega, assim, aponta para dois cenários distintos:
turas de aprendizagem ou não. Ninguém vai te cobrar,
ou ela garante o sucesso (o progresso) ou ela atesta o
nem ficar triste ou te considerar um fracasso caso você
fracasso (que passa a ser sinônimo da necessidade de
não entregue nada. A escolha é sua.
refazer). O “fazer de novo”, tão natural e prazeroso nas
Quando deixa de ser exigência, a entrega já não é um
brincadeiras infantis, passa a ser visto com maus olhos.
Não podemos mais errar.
Sucesso e fracasso, aliás, são luz e sombra de muitas
das promessas que nos fazem ao longo da vida. “O
sucesso é um caminho para a felicidade”, nos dizem ILLICH, Ivan. Sociedade sem Escolas.
mesmo sem dizer. E não é mesmo necessário que se Petrópolis: Vozes, 1985. p. 16.
| entrega é entregar-se
por Isadora Martins
passo para a permissão. Mais do que um certificado, o
que temos para mostrar em um contexto autodirigido são
Capricho não é perfeccionismo
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Era uma data especial: o aniversário de 80 anos da
as entregas em si: o que criamos no mundo a partir do avó. Ela torcia o nariz para o fato de que a avó dizia,
nosso aprendizado. A entrega nasce da vontade pulsante sem pudor algum: “essa, provavelmente, será a última
de compartilhar aquilo que aprendemos. Ela se torna festa de aniversário que farei na vida”. E foi. Só que
um reflexo de nós mesmos enquanto caminhantes ela não sabia disso à época.
e um trampolim para os caminhos do vir a ser.
Os recursos eram escassos, mas a vontade de ver o
Conforme atravessamos a gestação da entrega, perce- sonho da festa realizado era abundante. Para honrar o
bemos que cada uma tem forma e fôrma próprias. E se desejo da avó, os filhos e a neta mobilizaram uma rede
a entrega for carta? Ou coreografia? Ou poesia? Ou de pessoas que, engajadas pelo afeto, se prontificaram
artigo? Ou vídeo? Ou conversa? Ou brincadeira? A a ajudar na missão. Uma amiga cedeu o salão de festas
vastidão de possibilidades se estende como areia. do seu prédio, outra amiga se encarregou dos arranjos
Ainda assim, não é incomum hesitarmos. Diante da não de flores, outros auxiliaram nas lembrancinhas (doce de
obrigação de aceitar o convite e de tantos formatos leite de Minas, uai, afinal a avó era mineira!) e por aí
possíveis, travamos. Não nos sentimos prontos. vai. Tudo feito com carinho e atenção: o desejo era que
Essa hesitação pode vir de uma necessidade interna e os detalhes fossem fragmentos capazes de honrar uma
legítima do aprendiz de continuar a investigação no seu biografia tão bem vivida.
ritmo ou ser um resquício do pensamento heterodirigido Com isso, a neta ganhou um presente: a oportunidade
ao qual fomos disciplinados ao longo da vida. É preciso de escutar novamente as histórias de sua velha e adorada
que nos perguntemos, com sinceridade: eu não me sinto avó. “Nunca vou me esquecer da expressão no rosto da
pronta porque espero que alguém me autorize? Consi- minha avó quando viu a pequena festa, cuidadosamente
dero que estarei pronta apenas quando tiver concluído preparada para representar sua trajetória: um instante
centenas de leituras, entrevistas, pesquisas? Eu preciso para o qual a saudade sempre fará amorosa reverência”.
ser especialista nesse assunto para, finalmente, me ***
autorizar a falar sobre ele? A história da festa para a avó querida ilumina um
Essas questões surgiram aqui e ali em diversas conversas ponto essencial a respeito de uma entrega que orgulha:
com tutorandas e tutorandos do MoL. Aos poucos, con- o capricho. Uma das armadilhas do ego em relação a
forme compartilhavam seus aprendizados, percebi que produzir uma entrega é o perfeccionismo. Às vezes, caí-
muitas pessoas iam ganhando confiança em seu movi- mos na cilada de esperar a criação ficar completamente
mento enquanto aprendizes autodirigidos. É o que eu lapidada para apresentá-la ao mundo ou nos frustramos
gosto de chamar de “confiança no próprio pé”. quando não temos condições de concretizar o ideal que
Compartilhar o que a gente aprende é como abrir uma só é capaz de existir em nossa imaginação. Quando
janela: deixa nossa paisagem ser vista e permite contem- pensamos dessa maneira, continuamos presos na gaiola
plar outros horizontes. Contudo, para que possamos ma- da necessidade de agradar ou de nos provarmos. Sen-
terializar uma entrega para a potência, precisamos estar timos medo de que a criação não seja boa o suficiente
nutridos de quê? O que podem as entregas em uma aos olhos dos outros, pois nossos próprios olhos estão
existência autodirigida? Talvez as histórias dos Sementei- vestidos com as lentes da vaidade e/ou da insegurança.
ros nos ofereçam pistas de inspiração a essas perguntas. O capricho, por sua vez, é um gesto que surge esponta-
Pegue seu café ou chá: lá vem história! neamente quando criamos com amor e atenção. Ele não
é perfeito e nem guarda tal pretensão. O capricho é o
| entrega é entregar-se
por Isadora Martins
afeto concretizado nos detalhes. Ele é prazeroso – provo-
ca o mesmo prazer de cuidar bem de algo ou de alguém
Essa história nos convida a perceber a entrega enquanto
movimento de aprendizagem nessa jornada do aprender
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querido. Você já observou alguém caprichando em uma ao longo da vida. Aqui a entrega não é o ponto final –
atividade? Observe! Todo o corpo da pessoa fica é ponto e vírgula, desdobrando-se em novas expedições.
entregue ao gentil ato de cuidar. Experimentar a entrega se colocando como aprendiz (e
O conto da festa exemplifica o capricho como condição não como especialista) pode ser libertador. Não precisa-
para o sentimento de orgulho. E também traz a pérola mos dominar tudo sobre o nosso tema de interesse para
da entrega em comunidade, que aparece, aliás, em compartilhar a respeito dele. Podemos, ao contrário,
diversas histórias aqui contadas. Afinal, uma entrega não nos posicionar enquanto investigadores, expressar nossos
se faz sozinha. Quão bonito é reconhecer que aquilo desejos e dúvidas com humildade e entusiasmo, gene-
que compartilhamos no mundo resulta da delicada tessi- rosamente dividindo o que descobrimos. Ao fazer isso,
tura de ideias, pessoas, gestos, descobertas, referências, outros aprendizes se aproximam de nós no ímpeto de
histórias e encontros que vivenciamos. Reconhecer a trocar percepções e experiências.
rede que sustenta nossas entregas é pulsar na vibração As conversas pautadas a partir do diálogo são oásis
da gratidão. E, como disse sabiamente o Banzai, em em que “versamos com”. Refrescando os pensamentos
um dos encontros do MoL: “só um coração agradecido em um papo com o Alex, ele me disse, certa vez:
é capaz de aprender”. “o diálogo é quando as pessoas na conversa se permitem
não só trocar significados, mas quando esses significa-
Conversar é versar com
dos as atravessam por completo”. O diálogo é esse pon-
O cenário dessa história é o ambiente de trabalho to de encontro na travessia, onde compreendemos o que
– ainda que virtual. Mobilizada pelo desejo de aprender é dito com nossa mente, nosso corpo e nossos sentidos
sobre comunidades, colaboração e conexão, a aprendiz acordados. Não é sobre chegar a conclusões. É sobre
se perguntava sobre como uma ação de aprendizagem enxergar o outro e se deixar ver: afrouxar as máscaras,
para si poderia integrar outros sujeitos e organizações sorrir com os olhos, escutar com a alma, vislumbrar
com as quais atua em seu cotidiano. A entrega nasceu com a pele: cocriar sentido com o que se sente.
em forma de pergunta, com aquele gostinho delicioso
de “ahá!”: por que não uma roda de conversa? Rascunho e obra-prima
Pela primeira vez ela seria a facilitadora e anfitriã de “Uma entrega que me marcou muito em vários sentidos
uma conversa aberta no trabalho. Aproveitou a opor- foi a do livro que escrevi três anos atrás. Mas a entrega
tunidade e convidou duas mulheres com experiências sobre a qual quero falar não é a do livro pronto, publi-
interessantes e afinadas com sua investigação. “Foi muito cado, e sim a que fiz para um amigo, com o livro ainda
legal porque, ao mesmo tempo que foi uma entrega pra manuscrito, todo rascunhado, com a letra feia”.
mim, outras pessoas puderam compor junto e participar. Assim começou a história de partilha dessa obra que fala
O grupo viu valor nessa entrega e o melhor de tudo: eu de um herói trágico em um universo de fantasia distópico
continuei aprendendo!” – romance escrito no final do caderno da faculdade. A
*** magia dessa entrega, porém, está no testemunho diante
Lembro com exatidão o sorriso no rosto da amiga que do encontro provocado pelo texto. “Eu dei o material
narrou essa história naquele sábado. No desejo de fazer para ele ler e fiquei vendo a reação, só assistindo –
uma entrega e continuar investigando, ela socializa sua eu gosto de fazer isso”. Uma vez concluída a leitura,
vontade e chama mais pessoas para aprender junto. Um os amigos conversaram durante um bom tempo. Foi a
grande “ganha-ganha”. primeira vez que o autor teve contato com o que podia
| entrega é entregar-se
por Isadora Martins
ser uma recepção da escrita quando esta vem das entra-
nhas: “esse acolhimento dele me deu energia e me fez
sua mãe mora, no Rio de Janeiro. Apesar do restaurante
estar vazio, um senhor se aproximou dela e pediu para
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perceber que é possível se conectar”. sentar-se à sua mesa. “Por acaso eu estava sem celular
nesse dia. A gente começou a conversar – ele queria
*** papear e me contou sua história. Ele tinha 92 anos”.
Essa história é preciosa pois demonstra o quanto trans- Qual não foi sua surpresa ao descobrir que ele era um
bordar o que se aprende é generoso: depois de nascer sobrevivente do Holocausto?! Prontamente, ela fez o
na gente, o compartilhar permite que a criação (nesse convite para que ele fosse participar do projeto, ao que
caso, o texto) nasça também no outro. Ao soltar a entre- escutou um caloroso sim. “E graças a esse encontro, eu
ga para o mundo – mesmo incompleta, mesmo que no fiz uma entrega linda!” - comentou ela com uma alegria
rascunho, mesmo com a letra feia –, ela se torna encon- que atravessou a tela do computador. Porém, o mais
tro. Nesse movimento, degustamos um tempo que é um interessante é que o encontro no restaurante fez brotar
lugar, um momento que é uma esquina. E é exatamente mais do que uma entrega. Foi bem ali, naquela mesa,
isso que possibilita a lapidação da criação. É somente que nasceu uma amizade.
no encontro, na conexão, que emerge a obra-prima.
Outro aspecto que vale a pena mencionar aqui é o ***
poder da apreciação. Imagino que o relato seria bem Serendipidade vem do inglês “serendipity” e se refere
diferente caso o amigo não tivesse acolhido com atenção às descobertas afortunadas feitas, aparentemente, por
o texto. Além disso, há a apreciação do próprio autor acaso. Essa foi a palavra que me veio à mente (e ao
com a oportunidade de testemunhar a reação coração) quando escutei essa história pela primeira vez.
do leitor. Parece uma experiência abençoada por Kairós, o deus
Apreciar nada mais é do que jogar um foco de luz do tempo oportuno na mitologia grega. A sincronicidade
em direção a algo ou alguém. É quando iluminamos que surpreende – e como! Um espectador poderia dizer que,
conseguimos ver com mais nitidez o que se apresenta no quando a mulher desacelerou, o que ela buscava a en-
presente. Quando apreciamos e somos apreciados, senti- controu, sem que ela fizesse esforço. Contudo, ela não
mos confiança e conexão, o que nos encoraja em nosso estava distraída a ponto de não perceber. Eis o nó da
processo de aprendizagem. A apreciação é capaz de questão. As oportunidades nos alcançam, mas estamos,
nutrir a si e ao outro com doses poderosas de vitalidade. de fato, atentas para vivê-las? Quando Kairós nos visita,
É um apelo para aquietar os ruídos, apagar as garatu- estamos realmente disponíveis para recebê-lo?
jas, largar os excessos. Engraçado como às vezes agra- Eu adoro essa história e sou muito grata pela oportuni-
decemos sem apreciar. Mas, se apreciamos, é impossível dade de escutá-la e compartilhá-la. Além de curiosa, ela
não agradecer. conta sobre o eco: a gente cultiva mundos e os mundos
nos cultivam de volta. Ou, como me disse uma vez a ma-
O que eu busco também está me buscando ravilhosa Juliana Machado: “tudo que estamos buscando
Era uma vez uma mulher com um desafio: encontrar também está à nossa procura”. Eis a abundância.
alguém que tivesse sobrevivido ao Holocausto para uma
curadoria no trabalho. Ela estava mergulhada nesse projeto
até a cabeça, mas essa missão lhe parecia improvável.
Certo dia, ela não foi trabalhar para resolver algumas
pendências familiares. Acabou indo almoçar sozinha
bem cedo, em um restaurante pequenino no bairro onde
| entrega é entregar-se
por Isadora Martins
Deixar nascer mundo. Ela não é mais semente, é muda. À semelhança
das plantas, cresce fundo no nosso solo ao mesmo passo
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Existe uma diferença crucial entre uma entrega exigida
e uma entrega desejada, cultivada dentro de si: o nasci- que necessita se expandir rumo ao sol.
mento (e, consequentemente, os afetos que ele provoca). Lembro que, quando escutei essa história, me comovi:
Foi o Alex quem me lembrou do educador-jardineiro ao mesmo tempo em que a pessoa falava de preparo,
Rubem Alves, em uma passagem que gosto tanto que ela também dizia sobre desprendimento. Não à toa,
não poderia deixar de compartilhar aqui: essa mesma pessoa afirmou, em outro encontro, sobre
“se você tem uma visão do sonho, você fica grávido… a experiência do MoL: confiar no processo é vivê-lo
se você tem uma visão do jardim, você fica grávido, com inteireza.
você começa a… puxa vida, mas que coisa fantástica, Nossas criações de aprendizagem são como filhos.
você começa a ter prazer antecipado. Aí você está dis- Cada uma nasce de um jeito. Elas se revelam, nós
posto a passar por todos os sofrimentos, vai lá, cavouca as encontramos. Não sabemos de antemão como elas
de manhã, carrega pedra, corta a mão, machuca o pé, serão. Por isso, precisamos de disposição e confiança.
finca espinho, mas não tem importância, porque todo Nos preparamos para uma entrega e também soltamos
esse sofrimento é para quê? É para dar à luz um filho, a ambição de querer controlá-la. Nosso trabalho no
que é o jardim da gente.” momento do parto é fluir. Deixar o jardim se tornar berçário.
Não é de se espantar que uma das histórias contadas A metáfora do parto também abraça o fato de que, às
naquele sábado nos Sementeiros tenha sido, justamente, vezes, a entrega é demorada e dolorida, ainda que
a de um parto: recompensadora. Isso porque ao mesmo tempo que
“Essa foi uma entrega que exigiu a minha entrega. Eu parimos a entrega, parimos a nós mesmos. Nascem a
me preparei muito e, quando chegou o momento, me mãe e a criança simultaneamente. Não raro, o processo
entreguei. Eu tinha o sonho de ter um parto domiciliar, de entrega revela arestas que precisamos olhar e curar
mas acabou que minha filha nasceu no hospital. Foi um dentro de nós: hesitações, inseguranças, arrogâncias,
parto demorado, durou 30 horas. Foi lindo do jeito que perfeccionismo, medos ou crenças limitantes.
tinha que ser. Na época da gestação do meu segundo A pessoa que atua como educadora, tutora ou mentora
filho, eu me propus a mergulhar ainda mais fundo para pode ser parceira nesse parto. Um dos maiores elogios
viver esse sonho. Ele nasceu em casa, depois de uma que já recebi veio em forma de uma brincadeira irreve-
hora e meia apenas. A experiência é inexplicável”. rente com meu nome: “Isadoula”. Não sei explicar muito
*** bem a alegria que me envolveu quando escutei esse
apelido pela primeira vez de um amigo do MoL. Doula
Antes do parto, existe a gestação; antes da gestação, significa “mulher que serve”. São aquelas que se dedi-
existe o desejo. É esse sonho do jardim do qual fala o cam, com ternura, paciência e encorajamento, a acom-
educador. A entrega, na perspectiva autodirigida, não panhar a gestação, o parto e o pós-parto da mulher,
parte do outro – ela nasce primeiro em nós, ancorada oferecendo suporte físico e emocional.
naquilo que nos move. A relação entre mãe e doula se consolida no terreno
Penso que a entrega, quando nasce de dentro (e não da confiança e da afinidade. A doula é aquela que se
quando é empacotada de fora), nasce comprida. Difí- mantém ao lado, firme e carinhosa, e realiza o mínimo
cil até precisar quando ela começa exatamente. Cada de intervenção. Sinto que nós, educadores e educadoras
entrega tem seu tempo próprio. Não adianta apressá-la - e todos somos educadores e educadoras! -, podemos
ou desacelerá-la. Uma hora, contudo, o parto é ines- aprender muito com as doulas na intenção de apoiar
capável. A entrega quer reivindicar sua concretude no processos de aprendizagem.
| entrega é entregar-se
por Isadora Martins
Deixar morrer deixemos morrer ilusões, hábitos e padrões antigos.
É preciso desaprender. Toda vez que fazemos uma escolha,
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A última história deste ensaio é uma história de travessia,
de morte e de luto. Também no encontro dos Sementeiros perdemos algo, e isso também é uma pequena morte.
foi a última história a ser compartilhada. “Pensei muito No oceano da autodireção, cada entrega que ganha
no que contar e decidi compartilhar a respeito da morte a concretude do mundo é um portal de vida-morte-vida
do meu pai”. Existiam questões mal resolvidas entre ela que atravessamos, onde aprendemos sobre nós e nos
e a figura paterna, entretanto, quando sua mãe faleceu, despedimos de pedaços de nós – onde, em suma, nos
se viu tomada por um amor tão profundo que decidiu transmutamos enquanto aprendizes. Ao contar histórias,
levá-lo para morar em sua casa. A convivência, porém, nos apropriamos de nossos aprendizados. A entrega é,
não era fácil e ela se dedicava ao máximo nos cuidados portanto, um convite para darmos conta do vivido, para
com ele. No dia em que ele fez aniversário, a filha se nos aventurarmos, para compartilhar nossos erros, para
organizou para que suas tias, irmãs de seu pai, pudes- cultivarmos amizades, para descobrirmos nossas potên-
sem visitá-lo. Isso o alegrou tanto que o pai se esforçou cias, para fazer de novo (e de novo). Para nos orgulhar-
para mudar o temperamento, começando a contar histórias mos, sem que nosso ego atrapalhe o caminhar. Para nos
de sua vida que, até então, sua filha desconhecia. Nascia tornarmos mercadores de sonhos. Para consolidarmos o
ali uma inédita cumplicidade e a filha viu seu pai se nosso amoroso servir no mundo. Para semear horizontes.
transformar antes de realizar sua passagem. “A minha Para, um passo por vez, nos emanciparmos.
entrega foi cuidar dele”, finalizou ela para uma plateia A entrega é um convite para criarmos repertório nos
de aprendizes emocionados. deliciando com a vida.
*** ***
Se a imagem do parto nos relembra sobre o movimento Expresso aqui minha gratidão às sementeiras e aos
de deixar nascer, a história da morte nos orienta a deixar sementeiros que compartilharam as histórias acima comigo
morrer. Celebro e agradeço a coragem dessa amiga em e aos tutorandos e tutorandas que tive o privilégio de
se vulnerabilizar ao compartilhar esse episódio tão íntimo acompanhar durante o MoL. Agradeço profundamente
de sua vida. por sua generosidade, sua confiança e sua entrega.
Ana Claudia Quintana Arantes, médica referência em Com vocês, aprendi que ser tutora é ser tutoranda também.
cuidados paliativos no Brasil e autora do livro “A morte é É troca. É pisar o mesmo chão. Vocês foram meus tutores
um dia que vale a pena viver”, diz que o luto é a busca tanto quanto eu fui de vocês. No nosso pequeno mundo,
por pistas de amor entre os escombros de uma vida que nosso Molzinho, suas descobertas foram minhas — e
desmorona com a perda de uma pessoa querida. Na vice-versa. Outro dia escutei que as pessoas buscam
história acima, a filha estava de luto pela mãe. Nessa uma comunidade pelo propósito, mas permanecem por
arqueologia do luto, ela se aproxima do pai e, juntos, conta dos afetos que encontram. Sinto que isso é muito
eles encontram pistas de amor capazes de aproximá-los: verdadeiro. Poucas palavras conseguem resumir tão bem
uma chance para que pudessem, finalmente, ressignificar o que foi essa comunidade do MoL quanto amizade.
seus percursos e sua relação um com o outro.
Obrigada por tanto!
Deixar morrer e deixar nascer são dois movimentos
fundamentais para as entregas. E ambos só são possíveis
quando nos entregamos verdadeiramente ao processo
de aprender. Ao deixar nascer, vemos vicejar o sonho.
Mas, para que ele nasça, muitas vezes é preciso que
| entrega é entregar-se
por Isadora Martins
Hoje é dia uma mensagem para facilitadores
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Chegou o dia da semeadura da comunidade!
de encontro Já preparaste o solo, já alimentaste a terra. Hoje é dia
de encontro. Antes de escalar a montanha dos sonhos,
por Isadora Martins senti de vir aqui para lhe contar um segredo, desses
que só merecem ser compartilhados com quem aprecia
um pedaço de chão com a mesma devoção de quem
contempla o céu.
(E como a graça de toda confissão está no sussurro,
falarei miudinho apenas para seus ouvidos).
Já faz algum tempo que enxergo comunidades de apren-
dizagem como jardins. São organismos vivos, afinal.
A pessoa facilitadora ou educadora é, por assim dizer,
uma jardineira. E é sobre a singela arte da jardinagem
que quero lhe falar.
comunidades de aprendizagem
comunidades autodirigida.
de aprendizagem autodirigida.
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Alex Bretas
Alex Bretas é escritor, palestrante e uma das principais
referências em aprendizagem autodirigida no Brasil. Foi
o iniciador do movimento de aprendizagem ágil no país
e é um dos criadores do Learning Sprint, um método de
aprendizado autodirigido para grupos em empresas.
Depois de completar um “doutorado informal” sobre
novas formas de aprendizagem, Alex tem se dedicado
a criar comunidades digitais como o Masters of Learning
(MoL), além de palestras em eventos no TEDx, ITA,
Museu da Amanhã e outros.
Saiba mais em www.alexbretas.com
| sobre o autor
Alex Bretas
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Ana C. G. Marques
Peregrina e aprendiz desde o útero, encontrou um
propósito maior para sua formação em comunicação
quando se apaixonou pela natureza que somos, mas
de que nos esquecemos.
Sincronizou seu processo de auto(re)conhecimento com
o despertar e a expansão de consciência coletiva, e pariu
o projeto Metaconexão, um santuário de experiências
regenerativas para dedicar atenção à atenção, ser o
interser e aprender a aprender. Ama conversar,
cozinhar e dançar.
| sobre a autora
Ana C. G. Marques
156
Amanda Costa
Formada em Relações Internacionais, Amanda empreen-
de o PerifaSustentavel, é colunista da Agência Jovem de
Notícias e atua como mobilizadora de redes do Youth
Climate Leaders.
Liderança Forbes Under 30, Amanda tem o objetivo de
mobilizar jovens para construírem um planeta inclusivo,
colaborativo e sustentável através das redes Embaixadores
da Juventude da ONU, Global Shapers Community
e United People Global.
| sobre a autora
Amanda Costa
157
Ciano Buzz
Ciano Buzz é um artista multipotencial, aprendiz e
educador autodirigido que se define como um “griô punk
afrobrasiliano”. Ciano é um menino gay, negro e perifé-
rico que usa a música, literatura e ilustração para narrar
ao mundo as histórias de sua gente. Por meio da arte e
da educação livre, acredita que é possível reimaginar os
futuros das periferias e das quebradas.
Há vários anos, conduz uma pesquisa independente
chamada “Anatomia do Olhar” relacionada a educação,
arte, realidades sociais oprimidas e escrita. É habitante
da zona leste de São Paulo e participou da cocriação
do manifesto do doutorado informal.
| sobre o autor
Ciano Buzz
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Juliana Machado
Juliana Machado trabalha como educadora há mais
de 15 anos e usa a psicanálise para entender melhor os
percursos humanos. Conhece e aplica educação sistêmica,
futurismo e novas economias a partir da fluxonomia 4D.
É cofundadora e facilitadora do ALC São Paulo, papéis
que apoiam sua busca por aprender sobre metodologias
ágeis aplicadas à colaboração e à aprendizagem
autodirigida.
| sobre a autora
Juliana Machado
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| sobre o autor
Luis Sérgio Ferreira
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Su Verri
Mãe de dois adolescentes desescolarizados, Su Verri
pesquisa sobre aprendizagem e desenvolvimento huma-
no há mais de 10 anos. No currículo formal, é professora
de educação básica e especialista em psicopedagogia
e educação ambiental.
No currículo informal, é facilitadora, cocriadora e mentora
de jornadas e comunidades de aprendizagem, além de
atuante nos movimentos de unschooling, aprendizagem
ágil e aprendizagem autodirigida no Brasil e no mun-
do.É fundadora do ALC Nature, o segundo Centro de
Aprendiagem Ágil do Brasil.
| sobre a autora
Su Verri
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Isadora Martins
Isadora é educadora, jornalista e se reconheceu como
jardineira de comunidades de aprendizagem autodiri-
gida no Masters of Learning (MoL). Hoje, se dedica a
investigar e impulsionar percursos de aprendizagem com
crianças, jovens e adultos ligados à educação popular,
arte, filosofia, autoescuta poética e reencantamento
com o mundo.
Há cinco anos, coordena o projeto CEEB – Centro
Educacional Eurípedes Barsanulfo –, uma escola integral
filantrópica voltada para a população em situação de
vulnerabilidade social no interior do Maranhão. Gosta
mesmo é de estar junto: de escutar e contar histórias,
trocar e brincar.
| sobre a autora
Su Verri
| sobre os autores
Se joga que aqui tem rede