079 O Transmissor Mental

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ASSASSINO E TRAIDOR

Stephen Kadman ergueu contrariado a cabeça, ao ouvir


alguém tocar a campainha da sua casa, no bairro mais
elegante de Washington. Não sentia a menor vontade de
receber visitas; por seu gosto, não abriria a porta e
continuaria mergulhado no trabalho.
Mas Stephen Kadman não podia fazer isto, uma vez que
uma batida a qualquer hora em sua porta podia significar
algo muito importante, mais importante que seus trabalhos
técnicos para o governo dos Estados Unidos. Tão
importante como, por exemplo, uma mensagem da CIA
transmitida pessoalmente.
O problema era este. Se Kadman fosse simplesmente um
técnico eletrônico do governo norte-americano, talvez não
abrisse a porta. Mas como, além disso, era agente da CIA
para telecomunicações, não tinha outro remédio senão
receber o visitante, o qual, na certa, podia ser um agente que
tivesse algo extremamente importante e urgente para
transmitir-lhe.
Stephen Kadman foi abrir a porta. E na mesma hora
arrependeu-se de havê-lo feito.
— Lucius... É você? — resmungou.
— Claro que sou eu, ora! — disse rindo Lucius Terrel.
— Estava esperando alguma garota?
— Não posso perder tempo com bobagens. Eu estou
muito ocupado, acredite.
— Bem... Vai me deixar entrar, ou não?
Kadman hesitou um pouco. Finalmente, sorriu
contrariado. De fato, não ficaria bem bater com a porta na
cara do seu amigo Lucius. A verdade é que simpatizava
muito com aquele rapaz de corpo esguio e jeitão alegre de
gozador; olhos muito claros, um sorriso permanente nos
lábios. Por que não perder alguns minutos na companhia
amena de Lucius Terrel?
— Entre logo, claro que o deixo entrar. Perdeu alguma
coisa por estas bandas, para aparecer assim, de repente?
Lucius entrou, tirou o capote e as luvas, e os jogou
familiarmente numa das cadeiras do vestíbulo.
— De fato. Perdi um amigo — disse com ar de censura.
— Que diabo houve, Stephen? Há séculos que não via você!
— Homem, não exagere... É que estou trabalhando
demais estas últimas semanas. E para ser sincero, continuo
muito ocupado neste momento.
— Bem, admito que sou importuno quase sempre,
Stephen — replicou Terrel. — E já que você pensa assim,
vou tratar de dar o fora. É possível que encontre outro
amigo disposto a me oferecer um trago.
— Deixe disso — riu Kadman. — Não precisa bancar o
sarcástico. Aceita um uísque com gelo?
— Com gelo? — protestou Terrel. — Brrrr...! Você está
louco? Quero uísque puro. E que não falte nem uma gota.
Diga-me, em que coisa estranha você está trabalhando
agora?
— Mmmmm... É segredo profissional. Hei, não senhor!
Faça o favor de não mexer aí. Não gosto que misturem
meus papéis. Foi justamente por isto que me divorciei há
quatro anos.
— Então levou a pior, agora — riu Terrel. — De mim
você não pode se divorciar!
Stephen Kadman riu também. Bom, no final das contas
até que a visita do simpático do Lucius estava servindo para
espairecer um pouco. A vida não é só trabalho. Deve sobrar
tempo para outras coisas. Ou melhor, a vida está cheia de
pequenas coisas e, no intervalo delas, não há outro remédio
senão trabalhar. Era isto, talvez, o segredo da felicidade:
viver alegremente e, de vez em quando, trabalhar um pouco,
para ocupar os momentos de ócio e aborrecimento. Isto
seria o ideal.
— Vou contar a verdade — murmurou Kadman. — No
fundo, estou arrependido do divórcio e... Mas será possível,
homem, já não disse para não mexer nos meus papéis,
desgraçado?
Terrel parou de futricar os papéis que estavam na
mesinha meio escondida no fundo da sala. Largou-os com
um ar caricato de nojo, como se tivesse mexido em lixo e
perguntou, brincando:
— “Isto” é algo importante, por acaso?
— Depende do ponto de vista.
— Não vai me dizer que é segredo de Estado!
— Mais ou menos. Escute, o que aconteceu com aquela
garota, a ruiva com duas pintas na coxa?
— Alice? Ora meu “chapa”, ela já é parte das minhas
recordações nostálgicas... Agora tenho outra amiguinha
que... é morena. Tremenda, entende? Uns olhos enormes,
negros como a noite. E que cadeiras fabulosas! Sabe de uma
coisa que me deixa espantado?
— Que coisa?
— O homem e a mulher.
Terrel pegou o copo que lhe oferecia Kadman e sentou-
se no sofá. Stephen Kadman sentou-se ao seu lado, também
de copo na mão. Encarou, perplexo, o amigo simpático, que
sorvia prazerosamente o primeiro trago de uísque.
— Não compreendi o que você quis dizer, Lucius... O
que há de estranho com o homem e a mulher?
— Já vai ver. Segundo consta, tanto o homem como a
mulher foram feitos à semelhança de Deus.
— O homem foi feito à semelhança de Deus — disse
Kadman. — Mas a mulher é... um complemento.
— De acordo, está bem. Mas, afinal, a mulher foi feita à
imagem e semelhança do homem, até certo ponto. Quero
dizer, que, na realidade, as leis biológicas coincidem de
maneira notável em ambos. Não é correto?
— Sim, está certo. É verdade.
— Eu concordo em que existem certas diferenças entre o
homem e a mulher. Por exemplo, a mulher é a encarregada
de escrever para a cegonha encomendando os bebês.
Também se diferencia do homem em certos, pequenos
detalhes. Mas, definitivamente, insisto, são um a imagem do
outro. Não está de acordo?
— Suponho que, mais ou menos, você está com a razão
— admitiu Kadman.
— Então, eu pergunto: por que os homens são tão feios e
as mulheres tão lindas?
Stephen Kadman caiu na gargalhada. Aquele Lucius
tinha cada uma!
— Não acredito que a feiúra dos homens preocupe você
— disse ele, rindo.
— Além disso — admitiu Lucius — tudo é relativo. As
mulheres são tão tolas, que até encontram motivo de atração
nos homens... Mas, mudando de assunto, Stephen: como
vão indo as experiências telepáticas no Pentágono?
Stephen Kadman estacou em meio à risada. Arregalou os
olhos para o visitante.
— O que disse você? — perguntou.
— Ora, vamos, Stephen! Todo mundo já sabe: no
Pentágono estão realizando experiências para comunicação
telepática com o pessoal a bordo de submarinos submersos
longe da costa. Não é um segredo exageradamente
guardado.
— Talvez — admitiu Kadman. — Mas, o que você tem
a ver com isto, Lucius?
— Não me preocuparia se as experiências continuassem
a ser realizadas de acordo com o primeiro plano previsto.
Ou seja, contato telepático simples. Mas, segundo eu sei,
você planejou um aparelho que facilita a comunicação
telepática. E sei também que o ponto de partida é o
conhecido sistema dos eletroencefalogramas, isto é, o
aparelho que detecta os impulsos cerebrais do paciente
através de eletrodos de contato colocados em diversos
pontos da cabeça. Correto?
— Lucius — murmurou Kadman. — Quem o informou
de tudo isto?
— Eu sei, e isto basta. Diga-me, Stephen: é certo que
você inventou um aparelho que facilita as comunicações
telepáticas entre duas ou mais pessoas situadas a distância,
por maior que esta seja?
— Não creio que isto o interesse, Terrel.
— Você está enganado — sorriu friamente o simpático
Lucius Terrel. — Interessa-me, e muito, Stephen.
E enquanto dizia isto, puxou uma automática equipada
com um longo tubo silenciador. A arma foi apontada
firmemente para o coração de Stephen Kadman, que o
encarou perplexo:
— Lucius... que pretende fazer? — disse em voz tensa.
— Vou dizer claramente, em poucas palavras, amigo
Stephen: quero esse seu invento. E, pelo que já vi, esses
papéis que andei espiando rapidamente são os planos do
aparelho.
— Bem... suponhamos que sejam. E daí?
— Sim, eu estou convencido de que são mesmo, e que
você já acabou o trabalho. Creio que os pequenos detalhes
complementares poderão ser acrescentados por qualquer
bom técnico eletrônico.
— Você enlouqueceu? — sussurrou Kadman.
— Claro que não. Na realidade, sou membro de uma
organização particular de espionagem chamada OPE. E a
organização, Stephen, deseja seu invento.
— Não pode ser verdade! Estou sonhando... Não
acredito que você seja um... um...!
— Um espião — riu Terrel. — Pode dizer sem medo,
Stephen. Só que, ao contrário de você, não trabalho para os
Estados Unidos. Nem tampouco para outra potência.
Trabalho para o OPE, cujas iniciais correspondem a “Our
Private Espionage”.
— “Nossa Espionagem Particular”?
— Isto mesmo. Somos uma espécie de... agência de
compra e venda de segredos importantes, sempre
relacionados com a espionagem. Uma espécie de CIA, só
que particular, procurando sempre o melhor lucro para seus
sócios e empregados. Para encerrar, Stephen: eu tenho que
conseguir os planos do aparelho que você inventou. Minha
visita não foi uma casualidade, mas porque já sabia que
você estava terminando o relatório sobre a possibilidade de
utilizar a telepatia como meio de comunicação entre duas ou
mais pessoas, bem como os desenhos do aparelho que irá
facilitar a comunicação telepática. Será que vai funcionar?
— É possível — replicou friamente Kadman.
— Sim... é possível. E justamente por isto, sou obrigado
a levar os papéis, Stephen.
— Para que?
— É claro que nos interessa um meio de comunicação
que não é possível evitar ou interferir. Dois homens para se
comunicarem precisam falar, ou escrever, ou enviar
mensagens pelo telégrafo, pelos diversos sistemas de
sinais... Mas, até o momento, não há um processo seguro
para que duas pessoas se possam comunicar no planeta
Terra através da telepatia, com facilidade, no momento em
que desejarem e a qualquer distância. Se o aparelho que
você inventou possibilita realmente a comunicação
telepática, todo o mundo sofrerá uma grande transformação.
O telégrafo, o rádio, os códigos não farão mais falta.
Bastará que alguém pense algo para que outra pessoa o
perceba dentro da própria cabeça. Na minha opinião, é a
melhor chave de código secreto que poderá ser jamais
inventada.
— E...?
— Diga-me a verdade: o aparelho funcionou?
— Adivinhe.
— Percebo que você está apelando para a teimosia e a
incompreensão, Stephen. É uma pena, porque de qualquer
maneira vou levar os planos e o relatório sobre as
mensagens telepáticas entre o Pentágono e a tripulação do
submarino, no fundo do mar. Vou levar tudo, Stephen. Mas,
à minha maneira.
— Você não vai levar nada, enquanto eu estiver vivo —
disse arrogantemente Stephen Kadman.
— Ora, ora... quanto a isto, é muito fácil de resolver,
meu querido amigo...
“Plop!... Plop!... Plop!...”
Os três disparos’ soaram abafados, como o rápido
espocar de três rolhas de champanha.
Stephen Kadman, certamente, nada sofreu. A primeira
bala foi bem no coração. A segunda e a terceira foram se
alojar quase junto à primeira, as três na víscera vital. A
primeira fora suficiente para matar Kadman. As outras duas
penetraram um coração já parado, inativo, morto.
Lucius Terrel guardou tranqüilamente a automática e
olhou para o amigo, sem demonstrar a mais leve alteração
na fisionomia, nem qualquer sinal de piedade. E, muito
menos, de remorso.
Afinal, Stephen Kadman fora morto porque... porque
não havia outra maneira, e aquela era a sua hora. E só.
Kadman continuava sentado no sofá, voltado para o
“amigo” Lucius, de olhos arregalados, numa expressão
entre surpresa e colérica. Mas a única coisa correta é que
estava morto, bem morto.
Lucius Terrel encarou-o por instantes, indiferente,
enquanto saboreava, sem pressa, seu copo de uísque.
Depois, antes de largá-lo sobre a mesa, limpou
escrupulosamente as impressões digitais. Enfiou as luvas
negras de pelica e dirigiu-se para a mesa de trabalho de
Kadman. Tirou uma câmara miniatura do bolso, carregada
com sessenta fotos, e uma pilha de minúsculos flashes que,
girando no alto da câmara, estouravam quatro vezes cada
um.
Durante cinco minutos, em completo silencio, dedicou-
se, absorto, a tirar fotografias de todos os documentos da
mesa de trabalho de Stephen Kadman. Não esqueceu
nenhum, inclusive os rasgados e os amassados. Todos,
absolutamente todos os papéis foram micro-filmados.
Finalmente, depois de certificar-se de que tudo estava
em ordem, e assegurar-se que não deixara nenhum indício
acusador, Lucius Terrel dirigiu-se para a saída do escritório
acolhedor em que Stephen Kadman costumava trabalhar.
Não trabalharia nunca mais.
E, enquanto jazia morto sentado no sofá, Lucius Terrel,
assassino e traidor, afastou-se tranqüilamente daquela casa
simpática dos subúrbios elegantes de Washington.

CAPÍTULO PRIMEIRO
Uma organização chamada OPE
Temporada de ópera em Viena
Vôo 715

— Senhorita!
Brigitte Montfort, aliás “Baby”, a espiã mais formosa de
todos os tempos, ergueu vivamente a cabeça, deixando o
livro que lia interessada.
— Sim, Peggy?
— O senhor Pitzer quer lhe falar. Disse que é urgente e
importante.
— Pois não o faça esperar mais. Diga-me: as duas dúzias
de rosas vermelhas chegaram hoje?
— Sim, miss Montfort.
— Aposto que tanta amabilidade deve ser de Johnny e
não do antipático tio Charlie. Mande-o entrar, de qualquer
modo. Não está certo deixar o chefe esperando.
— Trago o peignoir?
— Não, não precisa... Tio Charlie está cansado de me
ver de calcinhas. Faça-o entrar.
E ficou ali tranqüila, só de calcinhas e sutiã, aguardando
a entrada de Charles Pitzer no boudoir muito coquete,
íntimo, decorado com fino bom-gosto, confortável, de
paredes à prova de som.
“Cícero”, o pequeno cãozinho Chihuahua deu um
ladrido ridículo e Brigitte ameaçou-o com o dedo.
— Já sei que você não simpatiza com o tio Charlie,
querido, mas é preciso ser bem-educado. Não vá latir mais,
promete?
O cãozinho murchou as orelhas e aconchegou-se,
enrodilhado, junto da espiã, sentada com as belíssimas
pernas nuas cruzadas, o livro sobre os joelhos.
Charles Pitzer, chefe imediato de “Baby” no Setor de
Nova Iorque, logo surgiu, com uma pasta de couro negro
embaixo do braço e bastante afobado.
— Bom-dia, Brigitte. Tenho aqui um filme que vai
despertar o seu interesse. Além disso, a Central ordenou
que...
— Aceita um cafezinho, tio Charlie?
— Não. A Central ordenou que “Baby” parta agora
mesmo...
— Pelo menos, chefinho querido, sente-se um pouco e
respire. Além do mais, foi tão mal-educado que nem ao
menos perguntou como vou passando.
Pitzer suspirou profundamente, sentou-se e perguntou:
— Como vai passando, Brigitte?
— Muito bem. Obrigada.
— O que? O que disse?
— Muito bem. Obrigada.
— Ué! Que língua engraçada é esta? Fale em inglês,
menina. Sabe muito bem que não conheço outra língua.
— Esta língua é português, tio Charlie.
— Mas pra que diabo está estudando português?
— Por que não? E logo que aprender o português, vou
passar a estudar o holandês. Assim, querido tio Charlie,
saberei todas as línguas que se falam na América e na
Europa. Para uma espiã, é essencial saber muitos idiomas. E
não venha me dizer que o português não é importante!
— Sim, sim, está bem, é... muito importante... Claro que
é importante...
Pitzer parecia já se haver acalmado e, agora, dedicava
toda a sua sorridente e maliciosa atenção ao esplendido
corpo seminu da espiã.
— Está impressionado com alguma coisa, tio Charlie?
— continuou ela em português.
— Hem?
— Acho que você é muito impressionável — insistiu
Brigitte, gozando tio Charlie, que não entendia patavina. —
Quero dizer que você está muito impressionado.
— Ah! Impressionado? Bem, é possível. Nada de
estranho que um homem, olhando para você assim, filhinha,
fique com idéias muito especiais na cabeça.
— Como, por exemplo?
— Eu gostaria de... Bolas! Gostaria de passar uma
temporada neste apartamento como... antigo íntimo da
agente “Baby”.
— Ah! Mas essas suas pretensões são muito elevadas,
tio Charlie!
— Já lhe disse para falar em inglês, Brigitte, por favor!
— De acordo, se assim prefere... Quero dizer que está
bem, se é assim que você... quero dizer: você... Oh! Parece
que estou fazendo uma salada de inglês e português. Você
sabia que o português é um idioma muito fácil? O Rafael
tinha razão.
— Quem é Rafael?
—Rafael é... — Brigitte revirou os olhos. — Bem...
Rafael é um rapaz que conheci há algum tempo no Rio de
Janeiro. Ele disse que para quem sabe o espanhol, o
português é muito fácil de aprender. E tinha razão. Eu estou
preparando uma surpresa para o querido Rafael, assim que
tornar a vê-lo. Mas, tio Charlie, por favor, diga-me o que
veio fazer aqui.
— Eu? Nada... vim aqui para vê-la.
— Somente para isto? — riu-se a espiã.
— E para que mais? Quando um homem a contempla...
Oh! Não... não vim para isto! Vim para enviá-la a Viena.
— Viena... cidade maravilhosa, doce, romântica. A CIA
vai me mandar para lá em férias remuneradas?
— Receio que não. Terá que matar um homem, Brigitte.
Talvez mais de um, se as coisas se complicarem. Mas,
primeiro, terá que matar o homem que vou indicar. Se matar
mais alguém, será por sua conta.
— E por que devo matá-lo? — Brigitte acendeu
vagarosamente um cigarro. — Você sabe muito bem que eu
me recuso a...
— Desta vez — disse Pitzer, sorrindo secamente, —
você não sentirá piedade. Tanto a Central como eu estamos
convencidos de que você não encontrará uma desculpa para
poupar a vida de um homem que matou... que assassinou
um agente da CIA.
Pitzer olhou fixamente para Brigitte. Sabia muito bem
que, se alguma coisa podia endurecer o coração daquela
mulher extraordinária, era a notícia do assassinato de um de
seus companheiros. Isto, somado à sua inclinação inata para
eliminar maus elementos, constituía característica das mais
marcantes da agente “Baby”.
Mas, contra toda a expectativa, Brigitte não se alterou.
Continuou fumando tranqüilamente, sem pestanejar, sem
que suas mãos tremessem. Somente os formosos olhos
azuis, cheios de luz, pareceram subitamente congelar-se.
— Como aconteceu? — murmurou ela.
— Foi um assassinato e uma traição — frisou Pitzer.
— Duas coisas muito feias. Quem era a... vítima?
— Stephen Kadman. Era assessor para assuntos
eletrônicos num projeto do governo sobre a possibilidade de
comunicações telepáticas entre pessoas muito distantes.
Você já sabe que o Pentágono está fazendo provas no fundo
do mar com a tripulação de um submarino?
— Sei muito bem. Não é propriamente um segredo bem
guardado.
— Não... não é um segredo especial. Mas segredo
especial eram os trabalhos de Stephen Kadman que, além de
agente da CIA, era técnico eletrônico do Governo.
— Que espécie de trabalho fazia Kadman?
— Estava terminando os últimos detalhes de um
aparelho que detectava e ampliava as ondas cerebrais.
Segundo consta, devia levar ontem o projeto completo ao
Pentágono.
— Espere ai, tio Charlie. Esclareça melhor a história da
ampliação das ondas cerebrais.
— Pois não. Você sabe que o poder telepático, isto é, a
faculdade de duas pessoas se comunicarem exclusivamente
pelo pensamento, é uma realidade. Uma realidade discutida,
mas que está sendo estudada a sério. Suponho que se esta
faculdade da mente humana fosse desenvolvida
devidamente, eu não precisaria estar aqui.
— Não está feliz ao meu lado, tio Charlie?
— Feliz ao seu lado? Claro que sim! — gritou Pitzer.
— Mas você acabou de dizer que não precisava ter
vindo até aqui.
— Não, não. Por mim, eu viria vê-la todos os dias... Oh!
Já está você me gozando de novo! Bem... Como ia dizendo,
o desenvolvimento da faculdade telepática, que parece
existir nos seres humanos, seria algo sensacional, torno a
dizer. Eu poderia estar agora “conversando” com você da
minha loja de flores, enviando-lhe meus pensamentos,
comunicando-me telepaticamente com você...
— Eu já sei o que é telepatia, tio Charlie. O que pedi foi
que explicasse melhor a questão da ampliação das ondas
cerebrais.
— Pois sim. Bem... Stephen Kadman estava terminando,
ou já terminara um aparelho muito especial. Digamos que
era como uma coroa de elétrodos que, colocada sobre a
cabeça de uma pessoa dotada de um mínimo de capacidade
telepática, ampliava esta capacidade mil por cento. Isto faria
com que os telepatas do Pentágono, com o aparelho
colocado nas calças, pudessem entrar em contato com
outras pessoas muito distantes, as quais também munidas do
aparelho, receberiam perfeitamente seus pensamentos.
Numa palavra; transmissão de pensamento seria uma
realidade.
— Entendo. É um invento muito útil, não é?
— Bem. Não sei até que ponto teria aplicação na vida
normal, Brigitte Se o invento fosse fabricado em série, em
poucos anos seriam suprimidos os telefones, as cartas, os
telegramas, os rádios... Quanto ao nosso mundo particular, a
espionagem, imagine a facilidade para os agentes
transmitirem suas mensagens. Bastaria-lhes pensar para
envia-las telepaticamente ao companheiro mais próximo.
Sem rádio ou transmissão de sinais de qualquer espécie.
Sem riscos, sem alarde, sem despertar a atenção.
— Entendo, entendo. E vou alimentando a esperança de
que, em alguns anos, “Baby” poderá espionar tudo quanto
queira sem abandonar este confortável apartamento. Seria
fabuloso, tio Charlie!
— Bem... isto por enquanto não existe, Brigitte.
— Uma pena — suspirou a belíssima espiã. — Não acha
que tudo isto parece ficção científica, como esses livros de
marcianos, de monstros extraterrestres?
— O que me parece é que você não está levando a sério
o problema, Brigitte.
— Muito a sério. Como se chama esse aparelho
prodigioso?
— “Transmissor Mental”.
— Fantástico! Suponho que mais dia menos dia será
uma realidade tão surpreendente como o rádio, o cinema, a
televisão, os transplantes de coração e as viagens à Lua.
Sim... Por que não? Qualquer dia destes o “Transmissor
Mental” se transformará em realidade. Enquanto isto,
vamos nos ocupar deste assassino e traidor. Já sabem algo a
respeito dele?
— Tudo. É um homem chamado Lucius Terrel, que há
bastante tempo era amigo de Stephen Kadman.
— Estão certos de que foi ele?
— Certíssimos. Quer uma demonstração?
— Claro.
Pitzer abriu a pasta, e tirou um pequeno projetor sonoro,
deixando-o sobre o sofá. Depois, um envelope amarelado,
que colocou perto das coxas de Brigitte, aproveitando a
ocasião para lhes dar uma espiada gulosa. Afinal, tirou uma
comprida tira de microfilme, em negativo, pronto para ser
projetado.
Enquanto preparava a máquina de projeção, explicou:
— Como já disse antes, Stephen era um de nossos
agentes. Um agente fixo, você sabe, dos que nunca são
enviados para fora. O que nós vulgarmente chamamos um
informante seguro. Não resta dúvida de que era um homem
previdente... A ponto de, em sua casa de Washington,
precisamente no living, onde costumava trabalhar, ter
sempre pronta para funcionar uma câmara de microfilme e
um pequeno gravador, ambos naturalmente camuflados,
ocultos das vistas dos visitantes. Os aparelhos começaram a
funcionar, aparentemente, a partir do momento em que o
visitante de Kadman puxou uma automática para ameaçá-lo.
E a partir daquele momento, tudo quanto Lucius Terrel fez
ficou gravado e filmado. Veja.
Primeiro, Pitzer pôs em funcionamento um pequeno
gravador. Depois, focalizou o projetor contra o chão, sobre
o branco tapete de lã de vicunha, onde começaram a
aparecer as imagens... De fato, um tapete não era o lugar
mais apropriado para projetar filmes, mas Brigitte não
necessitava mais para acompanhar a cena e compreender os
acontecimentos.
E, assim, pode ver Lucius Terrel e Stephen Kadman,
ouvi-los... Desde o momento em que o primeiro puxara a
automática até sua saída da casa, a câmara e o gravador
haviam registrado tudo.
Quando a projeção terminou, Brigitte apagou o cigarro
no cinzeiro.
— Um filme muito interessante, sem dúvida —
comentou secamente.
— Suponho que observou a habilidade simples e
astuciosa de Lucius Terrel: microfotografou os desenhos de
Kadman, mas deixou-os intactos. Supõe-se que pretendia
simular um assassinato vulgar, um latrocínio, sem relação
com a espionagem.
— Este homem é burro — disse Brigitte, com uma frieza
que fez estremecer Pitzer —, ou está representando a cena
que o filme nos mostrou. O que é exatamente a OPE, ou
seja, “Nossa Espionagem Particular”?
— Não sabemos. Mas é fácil imaginar que se trata de
uma organização particular de espionagem não relacionada
com os serviços oficiais de nenhum país. Não há
informações sobre ela. Evidentemente, imaginamos que
tentará vender a alguém o que roubou de Kadman. Talvez à
Rússia. Poderia ser a mais interessada e a que estaria mais
disposta a pagar bem por um projeto científico deste tipo,
com aplicações inclusive na espionagem.
Brigitte, enquanto ouvia Pitzer, havia aberto o envelope
pardo, dele retirando algumas fotografias, que eram cópias
ampliadas de várias cenas do filme, bem como fotos de
Stephen Kadman e Lucius Terrel.
— Parece um homem simpático — murmurou.
— Terrel? Sim, é isto mesmo.
— Mas é um traidor e um assassino... É norte-
americano?
— É.
“Baby” assentiu com a cabeça. Dentro do envelope
haviam mais papéis, que examinou meticulosamente,
abstraída da presença de Pitzer. Eram informações
detalhadas da CIA sobre os acontecimentos, tudo o que se
pudera reunir em menos de vinte e quatro horas sobre
Stephen Kadman, o que não fora difícil. E sobre Lucius
Terrel. Também todas as conclusões e informações
complementares sobre a ação de Lucius em casa de
Kadman. Eram mais do que suficientes para um agente
secreto entrar em ação com todas as possibilidades de
sucesso.
— Bem... — disse Brigitte, quinze minutos depois. —
Parece que só me falta localizar Lucius Terrel em Viena e
matá-lo...
—Já está localizado. Instalou-se em uma casa da Cidade
Velha, exatamente no 228 de Beckenstrasse. Um de nossos
agentes, dos vários que foram alertados, o viu sair de um
jato que aterrissou no Aeroporto de Viena na mesma noite.
Desde então, não perdeu mais sua pista. Ele está esperando
por você.
— Para que? estranhou Brigitte. — Por acaso esse
agente não sabe matar?
— A coisa é mais sutil do que parece, Brigitte.
Queremos saber o que é a OPE, e com quem estão
negociando. E finalmente, esta organização de espionagem
particular deve ser completamente destruída. É óbvio que
Lucius Terrel não é o único agente que está operando nos
Estados Unidos. Queremos saber o nome de todos eles.
— Entendo. A coisa complicou-se... levemente. Esta é a
minha passagem de avião para Viena?
— Vôo 715. Sai às onze da manhã. E já são quase dez.
Há uma suíte reservada para você no Hotel Prater. Irá para
lá como jornalista em... férias, mas fazendo a cobertura para
seu jornal. Há uma temporada de ópera. Freqüente-a e envie
alguns artigos para o “Morning News”. E, enquanto isto,
como quem não quer nada, destrua Lucius Terrel e a
organização OPE. Evidentemente, esperamos que a agente
“Baby” regresse com os planos roubados do “Transmissor
Mental”.
— Mais alguma coisa? — perguntou ironicamente
Brigitte.
— Por enquanto é só.
— Tudo muito fácil, na verdade... Você me disse que
Johnny estará me esperando em Viena? Um só agente?
— Um só. Se esta OPE for... filial ou algo parecido da
MVD, não queremos que se tornem conhecidos nossos
agentes na Europa.
— Somente a agente “Baby”.
— É suficiente, não? — sorriu Pitzer.
— Bem. Há bastante tempo estava com vontade de ir a
Viena. Espero que o repertório da Ópera seja interessante.
CAPÍTULO SEGUNDO
“Baby” em Viena
Contato na Marie Theresien Platz
Para caçar leões, é preciso ir à África

Como sempre, Brigitte Montfort não teve nenhuma


dificuldade em ser admitida no país. Do Canadá à China,
passando pela Espanha, Grécia, ou Índia, a agente “Baby”
jamais teve dificuldade em ser admitida em qualquer país.
Seria ridículo que uma espiã de sua categoria internacional,
e de luxo, ainda por cima, tivesse qualquer falha em seu
passaporte ou qualquer outro documento.
Uma jornalista americana, chegada a Viena para assistir
à temporada da Ópera, não seria em hipótese alguma mal
recebida. Pelo contrário.
Assim, pois, “Baby” Montfort chegou a Viena, Áustria,
nas primeiras horas do dia seguinte à sua entrevista com
Pitzer. Naquele momento, sua bagagem não aparentava
nada de suspeito, ou seja, não era pequena. Trazia três
maletas, uma enorme mala, uma máquina de escrever... E
— por que não? — uma deliciosa, simpática e colorida
maletinha vermelha com flores azuis, que obviamente
aparentava, pelo excessivo interesse da belíssima
passageira, conter seus preciosos objetos pessoais: jóias,
material de beleza, coisas íntimas... E era certo que, se a
alfândega decidisse examiná-la, não encontraria nada do
anormal ou de perigoso.
— Hotel Prater — disse ao chofer do táxi.
O chofer encarou-a meio abobalhado. Mas, afinal,
pareceu compreender a pronúncia inglesa do nome do hotel,
e tomou seu rumo.
Dentro de meia hora, “Baby” encontrava-se na suíte do
Hotel Prater, exatamente no coração de Viena. Via-se neve
nas montanhas vizinhas e, pelas ruas, estendia-se um leve
manto branco que engrossava lentamente. Um céu branco-
acinzentado parecia ameaçar a cidade considerada a mais
bela e representativa da Velha Europa.
Tudo isto ocorreu a Brigitte, enquanto contemplava a rua
através dos vidros da janela. Ainda ali estavam suas malas
fechadas, largadas no quarto. Sentiu-se triste, nostálgica,
romântica.
Ao mesmo tempo, a idéia de que teria de matar um
homem, custasse o que custasse, era um canhonaço contra
todos estes sentimentos. Matar, certamente, é o contrário do
romantismo.
Durante quinze minutos, dedicou-se à tarefa de desfazer
as malas e arrumar suas roupas no armário, na boa ordem de
sempre com aquela perfeição irrepreensível de espiã
profissional. A qualquer momento, por grande que fosse sua
bagagem, a agente “Baby” era capaz de abandonar o hotel,
uma cidade, um país, sem deixar o menor rasto.
E, uma vez tudo em ordem, deu uma última vistoria:
capas de pele, o abrigo de chinchila, o de vison branco,
vestidos de noite, vinte e cinco pares de sapato, roupas de
baixo, enfeites... Perfeito, tudo perfeito.
Agora, podia entrar em contato com Johnny.
Retirou da pequena maleta o rádio miniatura e
sintonizou no código de Europa-Viena. Foi simplíssimo
estabelecer contato.
— Johnny?
— Quem chama? — ouviu-se uma voz masculina.
— Só uma pessoa usa o nome de Johnny para todos os
agentes auxiliares da CIA. Sabe seu nome?
— Claro: Anastácia.
— A senha é perfeita — sorriu Brigitte. — Espero que
não se incomode de falar com “Baby”, em vez de
Anastácia.
— Adiante, “Baby” — ouviu-se Johnny suspirar.
— Há um minuto que estou instalada no Hotel Prater.
Parece que não é necessário precipitar-se, Johnny, mas não
me agrada saber que um assassino e traidor está vivo ainda.
Já se esgotaram as quarenta e oito horas que costumo
conceder de prazo. Onde está ele?
— Ainda não saiu do 228 de Beckenstrasse. Mas sairá
antes das doze.
— Estabeleceu algum contato?
— Nenhum. Parece um homem solitário. Seu rosto é de
um tipo simpático.
— O do americano tipicamente ingênuo e amável. Isto
mesmo, Johnny, mas espero que não se deixe enganar. Este
homem, a menos que algo imprevisto demonstre o
contrário, matou, assassinou friamente um companheiro
nosso de Washington.
— Bem, posso matá-lo quando você desejar, “Baby”.
— Não suje suas mãos, que para isto vim eu a Viena. O
que costuma fazer nosso amigo Terrel, Johnny?
— É cedo para falar dos costumes de um homem numa
cidade desconhecida para ele, e onde chegou há pouco mais
de um dia. Até as doze horas, ontem, deu um passeio por
Marie Theresien Platz, seguiu por Burgring, depois por
Luegerring, e almoçou num restaurante bonito e típico de
Viena, com vista para a Rathaus Platz. Depois, sempre
passeando, voltou ao 228 de Beckenstrasse, e não saiu mais.
— Está esperando algo que deverá ocorrer no período da
tarde?
— Evidentemente. E mais: segundo as evidencias, o
nosso homem está aguardando uma visita na casa que
ocupa. Seria capaz de jurar que o contato será estabelecido
lá. Durante a tarde ou à noite.
— Entendo. Diga-me uma coisa, Johnny: a praça Marie
Theresien é bonita?
— Bonita? — exclamou Johnny. — Escute “Baby”: em
Viena tudo é bonito. É verdade que há anacronismos
arquitetônicos; e mesmo, observando bem, incongruências
de estilo e de sistemas. Mas... bonita? Pelo amor de Deus,
“Baby”! Você está em Viena!
— Vou pedir na portaria que me aluguem um carro,
Johnny. Mas, enquanto isso, irei de táxi à Marie Theresien
Platz, para passear no jardim... Existem jardins?
— Você está em Viena — insistiu Johnny.
— Certo, estou em Viena — riu Brigitte — e creio que
devo comportar-me como uma perfeita turista americana.
Dentro de meia-hora, no máximo, estarei na praça Marie
Theresien, de máquina fotográfica “Maceys”, botinhas
vermelhas para neve e abrigo de chinchila. Espero encontrar
ali o nosso querido Lucius Terrel, para entrar em contato
com ele. Conseguirá reconhecer-me, Johnny, caso algo saia
errado?
— Sem dúvida que a reconhecerei — assegurou Johnny.
— Já me viu alguma vez?
— Nunca. Mas todos dizem que a agente “Baby” é a
mulher mais bonita do mundo. Se isto é correto, eu a
reconhecerei, claro.
— Claro — riu Brigitte. — Até logo, Johnny. Ah:
chame-me se acontecer algo novo referente aos passeios do
nosso querido assassino e compatriota.
— Assim o farei. Aufwiedersehen.
— Au revoir — riu Brigitte.
Consultou seu relógio constatando, com satisfação, que
tinha tempo de sobra para o encontro com Lucius Terrel.
Um encontro que, na certa, não era do conhecimento do
assassino e traidor.
Um encontro muito especial, provocado pela agente
“Baby”.
***
Havia pombas, algumas brancas. Símbolo da paz e da
cordialidade, quase do amor. Sob o céu cinzento, salpicado
de minúsculos pontos de neve que caía suavemente, a praça
Marie Theresien, um dos mais famosos lugares da Viena
Antiga, estava banhada de luz cinzenta, romântica e suave.
A água jorrava das fontes e os pombos se acercavam
para beber, num vôo difícil, como se suas asas estivessem
congeladas de frio.
Um belo espetáculo, que Lucius Terrel contemplava
com um amável sorriso de americano típico e jovial,
entusiasmado pelas novidades.
Bem abrigado no capote, acercou-se da fonte para ver de
perto as pombas. Eram poucas, uma pena, mas estas...
— Posso tirar uma foto, cavalheiro? — ouviu alguém
dizer atrás dele, em alemão, se bem que mal pronunciado.
Voltou-se rapidamente, quase sobressaltado. E ficou
mais congelado do que aquelas pacíficas pombas. Não de
frio, mas de assombro. Do mais puro assombro que jamais
sentira.
Ali, em frente a ele, de botinhas vermelhas e um valioso
abrigo de chinchila, via a mais bela mulher que jamais,
jamais havia tido a felicidade de conhecer. Parecia uma
bonequinha de sonho, com aquele gorro branco e enormes
olhos de um azul absoluto, de céu tropical. E uma boquinha
que sorria timidamente, de lábios quase trêmulos devido ao
frio vienense. Nas mãos, uma máquina fotográfica, que
tentava apontar para ele, tremulamente.
A Lucius Terrel custou um bocado de esforço sair da
surpresa.
— O que está fazendo? — exclamou.
— Por favor, cavalheiro, vou tirar uma fotografia...
Poderá fazer a gentileza? Com a neve, a fonte e os
pombos... tão bonitos.
Terrel só teve tempo de levantar o braço, ocultando o
rosto da objetiva, no exato momento em que se ouvia o
“clic” do disparador.
A formosa moça de olhos azuis encarou-o consternada.
— Por que fez isso? — lamentou. — Ia ser uma
fotografia ótima, uma bonita fotografia!
Lucius Terrel dirigiu-se para a moça dos olhos azuis e
encarou-a com fúria mal reprimida:
— O que está pretendendo você? — grunhiu.
Ela pestanejou, assustada. Desculpou-se numa mistura
de inglês e alemão.
— Perdão... Desculpe, Mein Herr. Sinto muito...
Entschuldigen Sie inich... Sinto muito, senhor...
— Quem é você? O que deseja?
— Nada... não quero nada, garanto. Se soubesse que iria
perturbá-lo tanto... Somente desejava tirar uma foto para o
meu jornal. O senhor me pareceu o vienense clássico,
simpático, na Marie Theresien Platz, e quis tirar a foto com
a neve, os pombos... Entschuldigen Sie mich, Mein Herr,
desculpe-me, senhor.
Terrel sorriu prontamente. Achou graça naquele
belíssimo rosto perturbado da moça de olhos azuis. Achou
graça da maneira como pronunciava mal o alemão,
misturando-o ao inglês americano, tão característico. Achou
graça do frio que a fazia tremer e do medo que sentia de
havê-lo molestado... Para dizer a verdade, aquela mulher era
toda cheia de graça.
— Desculpe se fui demasiado brusco — disse em inglês.
— Sinto muito, miss...
Ela arregalou os olhos, encarando-o incredulamente.
— Você é americano! — exclamou.
— Realmente — sorriu Terrel.
— Eu... eu... eu também sou americana!
— Não diga, não diga! — sorriu mais ainda Terrel.
— Naturalmente! Estou aqui para... Oh, você está
zombando de mim!
— Bem. Não é essa a minha intenção, asseguro. Para
que veio aqui?
— Para fazer algumas reportagens sobre a cidade, sobre
a temporada oficial da Ópera! E sobre tudo que encontre!
— E eu mereço uma reportagem?
— Não sei... Mas ao vê-lo junto da fonte, me pareceu
que você tinha toda a pose de um austríaco clássico, com o
fundo de neve e pombos... Oh! Que boba que eu fui! Mas
não podia imaginar que você fosse um compatriota.
— É isto mesmo: nós, norte-americanos, estamos em
todas as partes. Por isso, em muitos lugares, encontramos
esses cartazes dizendo: “Yankee, go home.” Na minha
opinião imparcial, digo que estão certos em afirmar que
somos um pouco incômodos para o resto do mundo.
A moça desandou a rir sem parar e Terrel começou a
pensar que, afinal, aquele encontro poderia converter-se em
algo muito agradável. Aquele riso feminino pareceu-lhe
uma chuva cálida que o empapava completamente,
afugentando o frio vienense, ao qual não estava
acostumado.
— Você é muito simpático!
— E você também — assegurou Terrel. — Você é uma
jornalista, então?
— Oh, sim. Dos Estados Unidos. De Nova Iorque.
Entendo bastante de música e fui convidada... Mas não
quero aborrece-lo falando de meu trabalho!
— Não, não! Absolutamente. Além disso, já compreendi
tudo: temporada de ópera em Viena, um jornal importante,
uma linda melômana... Você está sozinha aqui?
— Sim, estou... Como é seu nome?
— Jack Kinball. Para servi-la.
— Obrigada. Eu me chamo Brigitte Montfort. Ia pedir-
lhe, Jack, que tirasse minha fotografia junto da fonte. Já que
você não quer posar para o meu jornal. Oh! Será
formidável! Enviarei a minha foto com os primeiros artigos!
Já estou vendo os títulos pequenos numa das páginas
internas: “Brigitte Montfort, nossa crítica musical, envia
seus artigos sobre a temporada de ópera em Viena.” Não se
importa de fazer-me este pequeno favor, Jack?
— Tirar-lhe a fotografia? Com todo o prazer.
— Obrigada! Muito obrigada! Já viu que falo muito mal
o alemão, e temia não contar com a ajuda de ninguém na
cidade. Falo um pouco de italiano... Estou bem assim?
Lucius Terrel sorriu, com a cabeça inclinada sobre o
visor da máquina, contemplando a moça dos olhos azuis no
pequeno quadro de focalização Se estava bem, assim? Uma
pequena como aquela estaria bem de qualquer maneira! Era
uma delícia: a neve ao fundo, a fonte meio gelada, pombos,
aquele corpo esguio e elegante coberto pelo abrigo de
chinchila, os grandes olhos azuis...
Apertou o disparador e levantou a cabeça.
— Fotografia tirada. Está garantida a posteride. Espero
que saia bem.
— Meu caro Jack, não sei como lhe agradecer. Por
favor, peça-me alguma coisa. Algo que eu possa fazer por
você.
— Bem — sorriu Terrel. — Desconfio que sou muito
ambicioso.
— Ambicioso?
— Como pagamento pelo meu trabalho de fotógrafo, eu
lhe pediria duas coisas: a primeira que almoçasse comigo. A
segunda, que me desse uma cópia da fotografia que tirei.
Compreendo que é pedir muito, mas...
— Com todo o prazer, Jack! — exclamou Brigitte. —
Encantada em conceder-lhe ambas as coisas! A verdade é
que me sinto deslocada em Viena. E dispor da companhia
de um compatriota para conversar é um luxo que não foi
previsto entre os gastos do meu jornal. Quanto à fotografia,
pode contar com ela. Para onde quer que a envie?
— Bem... Creio que será melhor que eu passasse para
apanhá-la, onde você me indicar.
— Como queira. Hotel Prater — conhece?
— Será fácil encontrá-lo. Por curiosidade: para onde irá
quando terminar o trabalho em Viena? Regressará aos
Estados Unidos?
— Não sei. Depois disto, disponho ainda de duas
semanas de férias. Havia pensado em fazer a volta pela Cote
d’Azur, Chamonix, Cortina D’Ampezzo...
— Belo itinerário. Mas creio que se tornaria ainda
melhor se o realizasse em... companhia agradável, não
acha?
— Brigitte Montfort encarou fixamente Lucius Terrel.
Pestanejou, como uma menina entusiasmada, e acabou
sorrindo.
— Talvez você tenha razão, Jack. Mas já disse que estou
sozinha em Viena. Estou sozinha na Europa.
— Eu também.
— Bem, eu...
— Está de carro?
— Ainda não. Pedi à gerencia do hotel para alugar-me
um, mas até agora...
— Eu também não tenho carro. Importa-se em irmos
passeando? Conheço um restaurante em Viena onde... Bem,
digamos que o romantismo e a civilização uniram-se de
modo muito convincente. Ou não deseja almoçar em minha
companhia, Brigitte?
— Minha resposta é sim. E, além disso, quero saber por
que os norte-americanos como você a gente precisa
procurar no estrangeiro.
Lucius Terral pôs-se a rir com vontade. Segurou o braço
de Brigitte e começaram a andar os dois, conversando,
satisfeitos com aquele “maravilhoso e casual” encontro em
Viena.
***
— Johnny?
— Presente. Como se arranjou com o nosso homem?
— Bastante bem. Mas teria ido muito melhor se não
estivesse pensando a toda hora que não faz muito tempo
matou um de nossos companheiros.
— Sua audácia me dá calafrios, “Baby”. O que pretende
exatamente fazer? E perigoso estar tão perto da presa, não
acha?
— Sim, é perigoso, certamente. Mas, Johnny, não se
pode caçar um leão sem ir à África. E, uma vez lá, é preciso
chegar o mais próximo possível do leão.
— Com risco deste leão arrancar-lhe a cabeça com um
pataço, acho que sabe disto.
— Bah! Nosso amigo Lucius Terrel não passa de um
filhote. Eu quero todo o bando de leões. Ou seja a OPE.
Sabia disto?
— Não.
— Contarei em outra oportunidade. Está acompanhando
Terrel?
— Claro.
— Continue. Ele aguarda algo e quero saber o que é, e
quando é. E um homem hábil e astuto. Arrumou as coisas
para que eu viesse de táxi depois de almoçarmos juntos.
Suponho que regressou à casa de Beckenstrasse.
— Realmente. Uma coisa, “Baby”: não acha que ele
aceitou com facilidade demais a sua companhia? Isto não
parece razoável num espião que está esperando um
encontro.
— Bem. Neste momento, Lucius Terrel tem dois bons
motivos para aceitar a companhia de uma bela dama! Um
deles é precisamente que ninguém espera que um espião
namore numa ocasião destas. Nada mais inocente e normal
do que ter relações, mesmo só de amizade, com uma
mulher. Para o amigo Terrel eu sou uma espécie de...
máscara. Um americano que encontra uma compatriota em
Viena, e que não se importa em sair com ela. Muito
inocente e normal, não acha?
— É muito astuto, certamente. Qual é a outra razão?
— Querido Johnny, a outra razão é ainda mais simples
que a primeira: Lucius Terrel não precisa deixar escapar
uma bonita mulher americana que lhe declara que está
sozinha na Europa e que depois irá percorrer a Cote d’Azur,
Roma e as estações de inverno mais elegantes dos Alpes...
Na minha opinião, Lucius Terrel sabe que vai ganhar bom
dinheiro por seu trabalho nos Estados Unidos e pensou em
gastar boa parte dele na companhia da pequena divina,
bonita, que conheceu em Marie Theresien Platz.
— Puxa...!
— Por acaso você não me achou bonita, Johnny?
— Já conheci mulheres mais feias — disse rindo o
agente da CIA. — O que vamos fazer a partir de agora?
— Reservei lugar na Ópera para o espetáculo desta
noite. Sem dúvida, espero dispor de mais tempo para vigiar
cerradamente Terrel. Ele já está um dia esperando em
Viena, e isto não me parece prudente de sua parte, nem da
parte dessa organização de espionagem particular chamada
OPE. Portanto, é quase certo que os contatos dos
compradores do microfilme com os planos do “Transmissor
Mental” já tenham sido alertados e entrem em comunicação
com ele. Talvez hoje à noite.
— E você irá para a Ópera?
— Bem. Ainda sobra tempo, Johnny. No momento,
continue vigiando Terrel. De agora até as seis da tarde, vou
representar o papel perfeito de jornalista interessada na
temporada de ópera de Viena. Se até as seis horas não tiver
notícias suas, visitarei pessoalmente o 228 da
Beckenstrasse, para tentar descobrir alguma coisa
importante.
— A casa pode ser uma armadilha — disse Johnny.
— Não seja desconfiado — riu Brigitte. — Você até
parece um espião, Johnny!
Desligou o rádio, apagou o cigarro no cinzeiro da
mesinha de cabeceira e voltou a atenção para o armário,
aberto de par em par... Estava diante de um grave problema:
que vestido iria usar aquela tarde?
CAPÍTULO TERCEIRO
Número 228 da Beckenstrasse
Abrigo de chinchila
Sentença de morte

O pequeno sedan Volkswagen, azul-escuro, deteve-se,


finalmente, numa esquina de Beckenstrasse, uma casa antes
do 228. Hora: seis e dez da tarde... isto é, da noite. A noite
vienense, cinzenta, escura, fria. Não estava nevando, mas o
céu leitoso prenunciava uma copiosa nevasca. Sobre o
asfalto brilhavam ainda os últimos flocos caídos durante a
tarde, convertidos em fina camada de gelo, que os carros
estilhaçavam ao passar, lentamente, evitando a temida
derrapagem.
Ao sul, no fundo, ficava a Helden Platz; à sua direita,
bem iluminado, o Parlamento, com fachadas para Helden
Platz, Marie Theresien Platz, Rathaus Platz e o
Wienerwald. Mais para o fundo ainda, ao sul, como uma
figura longínqua, irreal, o bloco do Palácio de Amostras.
Possivelmente, ainda muito animado às seis da noite.
Mas ali, em uma das ruas do Schottenkjrche, tudo era
mais tranqüilo e silencioso.
Dentro do pequeno e veloz modelo da Volkswagen, a
agente “Baby” estava chamando seu contato naquela missão
que a levara ao próprio coração da velha Europa.
— Johnny? Estou vendo você.
— Estou assim tão à vista?
— Bem... É que a reconheci com meu binóculo especial.
— Ah! Magnífico. Alguma novidade?
— Nenhuma. Nosso homem Continua trancado no covil,
esperando, O que fez esta tarde? Comprei algumas coisas,
revelei mais fotografias, passei... Ah, e também escrevi uns
artigos para o jornal.
— Admirável — ironizou Johnny. — Tem alguma idéia
para entrarmos em ação? Creio que vou morrer nesta
missão, mas de frio. Eu sou do sul da Califórnia; quase
mexicano, na verdade.
— Sinto muito. Eu também, diga-se a verdade, não
gosto do clima daqui, mas..
— Acaba de parar um carro, “Baby”. Você não o vê daí,
porque está atrás da esquina.
— Vejo a esquina, Johnny, mas não vejo...
— É do outro lado, O carro está parado deste lado da
casa. Saltaram um homem e uma mulher. O carro
prosseguiu... deu a volta... foi-se. Agora você vai ver, os
dois personagens estão quase dobrando a esquina. Já!
Brigitte estava olhando para a esquina oposta àquela
onde se encontrava. Viu duas sombras, uma do homem,
outra de mulher, mas isto era tudo. Somente sombras.
Longe demais para ela. Além disso, podiam não ir à casa de
Terrel... O melhor seria recorrer ao seu binóculo de visão
noturna.
Tarde demais.
Mas muito conveniente. O homem e a mulher entraram
no 228 de Beckenstrasse, sem bater na porta. Com chave
própria, abriram a cancela do jardim. Quando Brigitte focou
seu binóculo, a dupla estava entrando na casa. A porta
fechou-se.
— Johnny.
— Estou ouvindo. Acredita que sejam os compradores?
— Não sei. Mas vou verificar. Permaneça onde está,
pronto para entrar em ação.
— Que vai fazer? É absurdo correr riscos
desnecessários, “Baby”. Nós os temos encurralados. Só é
preciso...
— Se quisesse apanhar somente Lucius Terrel, ele já
estaria morto, Johnny. Quanto aos compradores, não me
interessam de modo especial. O que me interessa é a OPE.
Repito que quero todo o bando e não um só leão. Até logo.
Desligou o rádio, enfiou-o no bolsinho do abrigo e abriu
sua maletinha vermelha, da qual retirou um microfone
adesivo supersensível e um receptor-gravador sincronizado
com ele. Guardou os dois pequenos aparelhos em outro
bolso do abrigo, e saiu do carro, caminhando resolutamente
para a esquina. Entrou na rua, olhando a grade que cercava
a casa. A OPE, pelas aparências, trabalhava bem: nada de
apartamentos, hotéis, ou edifícios muito habitados; uma
casa, de dois andares, discreta e afastada.
Mas isto, também, pode ser arriscado.
Às vezes, uma espiã bem treinada, e até mesmo vestida
com um abrigo de chinchila, pode saltar o gradil e cair
silenciosamente no jardim, como um felino.
E foi o que aconteceu. Uma vez no jardim, “Baby”
deslizou velozmente até esconder-se na sombra protetora de
um frondoso castanheiro. Dali, examinou atentamente a
casa. O primeiro andar parecia estar totalmente apagado,
mas uma janela do segundo estava acesa, precisamente em
frente a ela, a alguns metros apenas.
A fachada da casa não era difícil de escalar, com grandes
pedras que sobressaíam das juntas e uma trepadeira seca
que ascendia. Isto, para “Baby”, era pouco menos que uma
escada muito cômoda.
Não vacilou mais. Por sorte, aquela fachada dava para
uma rua lateral, do lado em que o jardim era mais frondoso.
E, uma vez colocada junto da janela, a própria luz desta a
deixaria totalmente mergulhada na sombra, cegando quem
olhasse para lá.
Em quinze segundos, “Baby” Montfort encontrou-se a
cinco metros de altura, descalça, pés firmemente apoiados
em uma das saliências, junto à janela. Arriscou uma
olhadela por instantes, mas não conseguiu ver nada, pois as
cortinas estavam fechadas. Mas, possivelmente, poderia
ouvir. Seus pés estavam começando a congelar-se sobre a
pedra, mas este era dos menores contratempos que estava
acostumada a suportar.
Cuidadosamente, aplicou o microfone adesivo ao vidro
da janela, deixando-o preso a ele. Depois, tirou o pequeno
receptor e pôs no ouvido uma minúscula placa do tamanho
de um chiclete, que estava ligada por um fio ao receptor.
Voilá...
“Baby” em ação.
***
— ... tanto atraso! — exclamou Terrel, em alemão.
— Acalme-se, Terrel — replicou o homem, também em
alemão. — Não há motivo para impaciências. Já entramos
em contato com um agente soviético que, por sua vez, como
é lógico, pedirá instruções... e dinheiro. Os russos são mais
desconfiados que os americanos, você deve saber. É
possível que, antes de entrar em contato conosco, procurem
averiguar primeiro e pedir informações para os Estados
Unidos, aos seus agentes de lá, sobre a veracidade do roubo
dos desenhos do “Transmissor Mental”. Não estamos
lidando com novatos.
— Eles entraram em contato com o 15, para fechar
negócio?
— Não, não. Receberam um pequeno rádio, com o qual
podem nos chamar à vontade. Não vamos ser tão loucos a
ponto de dar o endereço do nosso quartel-general a
ninguém. Absolutamente a ninguém. E esperamos que você
se lembre disso sempre.
— Claro — grunhiu Terrel. — Mas, definitivamente,
terei de tratar com os espiões soviéticos, não é assim?
— Se aceitarem comprar os microfilmes, sim,
naturalmente. Acaso está com mêdo, Terrel?
— Não, não. A coisa não me agrada muito, mas não vejo
por que ficar com medo. No final das contas, os russos estão
interessados em comprar, e espero que sejam... amáveis
comigo.
Sem dúvida alguma. Eles não têm interesse de criar
inimizade com uma organização que lhes pode vir a ser útil.
Não precisa preocupar-se.
— Eles virão aqui, a esta casa?
— Sim. Mas não se inquiete, pois esta casa, e outras que
temos preparadas em Viena, serão eliminadas de nossos
serviços. Ora, vamos, Terrel, tudo dará certo. Os russos
virão, comprarão os microfilmes e irão embora. E pronto.
— Quanto pedimos?
— Quinhentos mil dólares.
— Não está mal. Como de praxe, dez por cento serão do
agente que conseguiu o material, suponho.
— Sem dúvida. Pode contar com os seus cinqüenta mil
dólares. Poderá depositá-los num banco da Suíça, se
preferir. Depois, após uma temporada na Europa, poderá
voltar para os Estados Unidos e continuar trabalhando. A
menos que lá descubram que foi você que...
— Quem pensa que eu sou? Poderei voltar quando
quiser aos Estados Unidos. Já tinha esta viagem à Europa
planejada há várias semanas, e quem me conhece sabe
disso. Ninguém pode desconfiar de mim com relação ao que
sucedeu a Kadman. Tive o cuidado de anunciar ao nosso
círculo de relações que naquela noite não estaria em
Washington...
— Melhor assim.
— Creio que levarei algumas semanas para regressar aos
Estados Unidos — sorriu Terrel. — Há algum
inconveniente em que, após o acordo com os russos, passe
um temporada de férias pela Cote d’Azur, Chamonix...?
— Nenhum. Afinal, Terrel, tudo vai bem e esperamos
que o acordo não falhe. Fique com o radio de bolso, para
um caso de emergência. Mas, por nada do mundo se
aproxime do 15. Espero que isto esteja bem claro.
— Não se preocupe, Herr Weissermann.
— E não faça relações com ninguém em Viena — disse
a mulher.
Lucius Terrel a encarou alarmado.
— Não. Claro que não.
A mulher inclinou a cabeça e seus grandes olhos verdes
se semicerraram, atentos. Era muito alta, ruiva, corpo
esplendido. Sobre a cama via-se seu abrigo, junto ao capote
de gabardina acolchoado de Lukas Weissermann. Este se
mantinha de pé, próximo a Terrel, que estava sentado na
cama. Anna Bauer estava sentada numa pequena poltrona
do quarto mal arrumado, com poucos móveis. Era evidente
que aquela casa só se utilizava para pequenas coisas, e que
seria abandonada assim que se tornasse conhecida.
— Você não parece estar muito seguro do que disse,
Terrel — murmurou Anna.
— Ora... às vezes é inevitável conversar com alguém.
— Explique-se. Está dizendo que fez amizade com
alguém aqui de Viena?
— Não é isso: eu me refiro a camareiros, choferes de
táxi...
— E isto é tudo? — sorriu Weissermann.
— Claro. Isto é tudo. Espero que não...
— Continue assim. É que ficamos alarmados, Terrel.
Bem, parece que não há mais nada que falar. Com respeito
ao microfilme, ainda não nos esclareceu, mas isto não tem
importância. Para nós da OPE, não interessam as
descobertas científicas, a não ser para negociá-las. Além do
mais, esse tal de “Transmissor Mental” parece uma
estupidez.
— Stephen Kadman estava certo de que seria um êxito.
— Pois melhor para os russos... e para nós, que
ficaremos com os quinhentos mil dólares. Espero que saiba
conservar os microfilmes em lugar seguro, Terrel.
— Sem dúvida alguma — sorriu o traidor e assassino.
— Pois então é só. — Weissermann estendeu a mão. —
Aguarde nosso chamado sobre a chegada dos russos. Fique
atento ao rádio que lhe entreguei.
— A todo instante. Auf Wiedersehen, herr Weissermann.
— Auf Wiedersehen.
Anna Bauer erguera-se, e estendeu a mão ao americano,
que se apressou em apertá-la, um pouco intranqüilo ao
receber nos seus o impacto maligno dos olhos verdes da
austríaca. Era muito bonita, sem dúvida, mas havia algo em
seus olhos que fazia estremecer. Algo, sim. A morte. Anna
Bauer parecia capaz de matar sem piedade alguma, com
aquele olhar.
— Espero, Terrel, que continue sua vida solitária em
Viena. Não esqueça esta... medida de segurança.
— Não esquecerei, Fraulein. Garanto...
***
Do lado de fora, a agente “Baby” estava guardando o
receptor. Era óbvio que Weissermann e a tal Fraulein iam
sair logo. De modo que convinha uma rapidíssima retirada.
Guardou o receptor e o microfone, e iniciou a descida, com
os pés tão gelados que mal sentia o contato das pedras
salientes nas quais se apoiava.
Chegou sem novidade embaixo, voltada para a parede,
ainda apoiada na trepadeira seca... e, súbito, uma grande
mão caiu sobre sua boca, enquanto um braço rodeava
fortemente sua cintura. Por segundos, a agente “Baby” ficou
paralisada pela surpresa, enquanto uma voz desconhecida,
de homem, sussurrava ao seu ouvido, em alemão:
— Os passeios noturnos...
O cotovelo direito de Brigitte voou fortemente para trás.
Ouviu-se o gemido do homem, e as mãos que agarravam a
espiã internacional afrouxaram por instantes a pressão. O
suficiente para que os dentes brancos e agudos de “Baby” se
cravassem ferozmente na mão que lhe fechava a boca. O
homem tornou a gemer de dor e surpresa, retirando
vivamente a mão. Brigitte agarrou com as duas mãos o
braço que ainda a mantinha segura pela cintura e girou
verticalmente sobre si mesmo, em graciosa pirueta quase de
balé, lançando o homem contra a parede.
Esperou-o na volta, recebendo-o com um golpe de caratê
aplicado com a planta do pé descalço, que acertou o homem
no peito, tornando a arremessá-lo contra a parede. Brigitte
aguardou o impulso de volta. Tinha que acertar aquele
homem no queixo, para deixá-lo imediatamente fora de
combate.
Só que desta vez o homem, apesar de sentir as costelas
amassadas, reagiu melhor, adaptando-se àquela luta que o
pegara de surpresa, inicialmente.
Veio de volta, sim, mas desviou-se para o lado. Assim, o
pé de Brigitte não alcançou seu objetivo e, em troca,
durante a fração de segundo em que estava no alto, aquele
pezinho foi uma presa tentadora para o desconhecido, que
segurou-o com ambas as mãos e empurrou-o para cima,
obrigando Brigitte a cair para trás, de costas.
Uma queda que poderia ter provocado uma fratura óssea
e a derrota, se a espiã internacional não treinasse
diariamente. Assim, girou no ar, numa agilíssima torção, e
caiu de bruços, amortecendo a queda com as mãos. Ao
mesmo tempo, o outro pé foi lançado contra o rosto do
inimigo, acertando-o em cheio na boca.
Ouviu-se o partir dos dentes, junto com um nome feio
em alemão. Brigitte ergueu-se imediatamente, com os dois
pés livres, e aproximou-se do homem, que estava de
joelhos, com uma das mãos na boca e a outra metida no
capote.
A automática relampejou, um brilho frio, lívido, na mão
do homem. Um pontapé a desviou no justo momento em
que se ouviu o apagado “plop” do disparo silencioso.
Devido ao golpe na mão, o homem se desequilibrou,
cambaleando... E Brigitte Montfort passou rapidamente para
as suas costas. Um golpe de judô nos rins deixou o homem
como petrificado, como se o ar tivesse se convertido em
matéria sólida dentro de seu corpo. O braço direito de
“Baby” rodeou-lhe o pescoço robusto, pela garganta. A mão
esquerda se apoiou na cabeça, no alto, e forçou para frente,
numa tentativa de quebrar aquele pescoço hercúleo, que
resistiu à pressão, com a agravante do homem estar-se
recuperando rapidamente.
Uma vez que não conseguira matar de imediato o
desconhecido, a espiã se consolou em perder uns segundos
mais, sem abandonar a presa. Sua mão esquerda segurou
com força a direita, para o estrangulamento, e o primeiro
puxão para trás, fortíssimo, obrigou o homem a gemer
roucamente, meio asfixiado.
Mesmo assim, conseguiu levantar-se, cambaleante,
suspendendo pendurada ao seu pescoço a mais tenaz e
eficiente estranguladora de todos os tempos. A “pegada”,
Brigitte sabia muito bem, era impossível de ser contra-
golpeada: passara anos aperfeiçoando-a. E sempre havia
dado bons resultados.
Daquela vez também não falhou. O homem caiu
novamente de joelhos. Suas mãos se crisparam
freneticamente no suave abrigo de chinchila, arranhando,
puxando pela manga... Mas aquele fino braço de aço estava
fundido irremediavelmente em sua garganta e, em menos de
cinco segundos, os esforços do homem perderam a
violência, a energia. Passados cinco segundos, relaxaram e,
afinal, suas mãos penderam frouxamente, enquanto o
pescoço perdia sua rigidez defensiva. O corpo também
relaxou, pareceu amolecer, desmoronar-se... e caiu para trás,
prendendo o da espiã internacional, que assim mesmo
Continuou apertando dez segundos mais.
Soltou-o de repente, ajoelhou-se ao seu lado, tomou-lhe
o pulso. Fim. A morte havia chegado.
Ofegante, Brigitte pôs-se de pé e foi rapidamente até
onde deixara os sapatos. Calçou-os, correu para o gradil,
escalou-o às pressas e saltou facilmente para o outro lado.
Poucos segundos mais tarde, enfiou-se ligeira no carro e
partiu, afastando-se dali. Ligou o rádio:
— Johnny?
— Onde está, “Baby”? O casal saiu, estão...
— Matei um homem, Johnny. Agora mesmo, há alguns
segundos — ouviu-se no rádio a exclamação do espião. —
Não houve outro jeito, ia atirar contra mim. Mas isto
complicará muito as coisas, Johnny. Eles abandonarão a
casa, naturalmente, de modo que desejo que os siga e
informe para onde vão. Sobretudo, não perca de vista
Lucius Terrel. Ele está encarregado de vender os planos do
“Transmissor Mental” aos russos. Pediram quinhentos mil
dólares pelo microfilme, Johnny.
— Mas... o que aconteceu?
— Escalei a parede e os ouvi perfeitamente, com um
microfone. Ao descer, havia um homem me esperando.
Você não o viu entrar no jardim da casa?
— Claro que não! Se eu o tivesse visto...
— Já sei, já sei. Deve ter entrado pela porta dos fundos,
não sei... O que mais sinto, Johnny, é que espantamos a
caça. Agora eles abandonarão rapidamente a casa, assim
que encontrarem o homem. Por favor, Johnny: não perca de
vista Lucius Terrel.
— Vou tentar. As coisas se complicaram, “Baby”.
— Eu sei! Mas não vamos desistir e perder a pista,
espero.
— Claro. Confie em mim. Eu a chamarei quando
descobrir alguma coisa.
— Estarei esperando no hotel. Procure chamar-me antes
da hora do espetáculo.
— Que espetáculo?
— A ópera desta noite! Adquiri um camarote para cinco
récitas!
— Pensa em ir à ópera depois de...?!
— Naturalmente que penso, se as circunstâncias
permitirem. Eu sou uma jornalista, esqueceu? E vim a
Viena precisamente para assistir ao Festival de Ópera.
— Bem... De acordo. Farei o que puder, “Baby”.
— Chame assim que souber alguma coisa, sempre e a
qualquer hora antes do espetáculo.
— Certo. Você está bem?
— Sim, até logo, Johnny.
Desligou o rádio, guardou-o e suspirou profundamente.
Tinha certeza de que tivera alguma sorte. É verdade que a
caça ia disparar do número 228 de Beckenstrasse, mas
Johnny os seguiria, certamente. Teria sido muito pior se
Lucius Terrel a visse. Aí sim, estaria tudo perdido.
Mas, felizmente, mesmo que a caça se espantasse, Terrel
jamais poderia relacionar aquele homem estrangulado com
a doce, formosa e simpática miss Montfort, de Nova Iorque,
USA.
***
Weissermann apontou o cadáver para o atribulado,
muito pálido Lucius Terrel. De pé junto ao homem
estrangulado, estava Anna Bauer, olhando de maneira
perversa para o americano.
— Não entendo... — gaguejou Terrel. — O que
aconteceu?
— Schultz era o nosso chofer, Terrel. Quando eu e Anna
subimos para vê-lo, ele ficou encarregado de levar o carro
para a porta de trás e depois dar uma espiada ao redor da
casa. Está bem claro que alguém o surpreendeu... Alguém
que nos estava vigiando.
— Não — disse friamente Anna Bauer. — Eu creio que
as coisas aconteceram ao contrário, Lukas. Schultz não
tinha motivo para entrar no jardim. Se entrou, foi porque
viu alguém aqui dentro. Foi ele que surpreendeu o nosso
visitante, e houve uma luta em que ele levou a pior. Foi
estrangulado. Com uma chave-de-braço de pressão dupla. É
um processo que já empreguei uma ou duas vezes. Quem
fez isto é uma pessoa muito perigosa.
— Mas não compreendo... — insistiu Terrel. — Não
compreendo nada...
— Pois está bem claro: alguém, que conhece você, o
está seguindo e vigiando.
— A mim? Impossível! Por que não a vocês?
— Esta possibilidade está eliminada. Há muito tempo
que nos encontramos em Viena, dirigindo o quartel-general
da OPE. Jamais tivemos por aqui a menor contrariedade. Se
alguém nos vigia agora é porque você foi seguido desde os
Estados Unidos.
— Mas é impossível!
— Pois não há outra explicação.
— É preciso levar o cadáver para dentro — disse
friamente Anna Bauer. — Não podemos deixá-lo aqui.
— Mas não posso ficar nesta casa com um cadáver!
— Não se preocupe. Você sairá daqui dentro de alguns
minutos. E indicaremos outro lugar. Mas Anna tem razão, é
preciso levar o corpo para dentro. Ninguém entrará na casa
e poderemos aguardar o momento oportuno para sumir com
Schultz. Ajude-me, Terrel.
Levantaram o cadáver e o levaram para a casa. Subiram
ao andar superior, deixaram-no em um dos quartos e
fecharam a porta.
— Um momento — disse Anna Bauer. — Quero ver
uma coisa, Lukas. Abra.
A porta foi aberta de novo. A formosa ruiva dos olhos
verdes acendeu a luz do quarto. Depois, ajoelhou-se junto a
Schultz e fitou suas mãos, fortemente crispadas no último
espasmo.
Não sem esforço, Anna Bauer abriu uma daquelas mãos.
Tirou dela algo que examinou e depois mostrou aos dois
homens.
— O que é isso? — perguntou Terrel.
— É uma coisa que concorda perfeitamente com as
marcas que vi no jardim, sobre a neve e ao pe do
castanheiro. Eram marcas de sapato de mulher. É isto, tenho
quase certeza que são pêlos de um abrigo de chinchila.
Lucius Terrel empalideceu intensamente.
— De chinchila...
— O que foi, Terrel?
— Eu... Oh! Não, não pode ser!
— O que não pode ser? — semicerrou seus olhos felinos
a ruiva.
— Eu... eu antes menti porque me pareceu que... que não
tinha importância. O certo é que esta manhã conheci uma
mulher que estava com um abrigo de chinchila.
— Quem é ela? Como a conheceu?
— É jornalista... uma compatriota minha que está em
Viena para enviar a Nova Iorque artigos sobre a temporada
de óperas.
— Com todos os diabos! — gritou Weissermann.
— Você é um cretino, um estúpido! Como a conheceu, o
que falou com ela?
Lucius Terrel explicou o encontro “casual” com a
belíssima moça de olhos azuis. E entendendo que poderia
ser perigoso omitir alguma coisa, esclareceu que almoçara
com ela e que voltariam a se ver...
— Um erro — disse Anna Bauer. — Um erro nosso,
Lukas. Como foi possível admitirmos na OPE semelhante
imbecil? Terrel, sinceramente: você não percebe a série de
bobagens que cometeu? Como esta mulher conseguiu
enganá-lo tão facilmente?
— Não sei... eu não creio... É impossível! Essa mulher
não é capaz de matar nem uma mosca...
— Uma mosca creio que não, mas um homem acho que
sim. Não entende? Ela é da CIA e o está seguindo desde o
começo! No fundo, devemos ficar satisfeitos que isto tenha
acontecido. A morte de Schultz serviu, ao menos, para nos
deixar alerta. Em que hotel ela disse que estava?
— No Hotel Prater.
— Está bem — disse Weissermann. — Anna, tome
providências sobre essa mulher. Elimine-a. Eu levarei
Terrel para o 15 e dali o enviaremos para uma das outras
casas de Viena. Quero que quando os russos nos chamem
pelo rádio tudo esteja solucionado.
— Está bem.
— Não falhe. Quero que mate o quanto antes essa
Brigitte Montfort, ou seja lá quem for.
— Já sabe que nunca falho — sorriu Anna Bauer. —
Pode contá-la como morta.

CAPÍTULO QUARTO
Crime no banheiro
Onde estará Johnny?
Noite de estréia

Sobre a cama se via o vestido de noite, as roupas de


baixo, o casaco de vison branco. No chão, sobre o tapete, os
finos sapatos de salto altíssimo. Diante do espelho do
toucador do bonito quarto da luxuosa suíte, Brigitte
Montfort, completamente nua sob a transparente camisola,
escovava os cabelos, devagar, pensativa. Junto dela, o
pequeno rádio de bolso, pronto para receber a chamada de
Johnny a qualquer momento. Sua vontade era chamá-lo,
mas sabia por experiência própria como era perigoso
chamar um companheiro em pleno trabalho.
E, por isso, não restava outra coisa senão esperar
pacientemente o desenrolar dos acontecimentos. Achou que
já havia escovado suficientemente seus sedosos e compridos
cabelos negros, que brilhavam num tom quase azul.
Guardou a escova na maletinha e tirou o pente. Parou
reflexiva, por instantes, antes de começar a pentear-se,
vagarosamente, sempre pensativa.
E mal havia dado algumas penteadas nos cabelos,
quando o rádio emitiu um suave zumbido de chamada.
Abriu imediatamente o contato.
— Adiante, Johnny!
Silêncio.
— Johnny? Está aí, Johnny?
Silêncio absoluto.
— Johnny!
Desligou o rádio e, outra vez, ouviu-se o suave “bip-bip-
bip” de chamada. Tornou a ligar, dando contato.
— Johnny? — murmurou.
Silêncio sepulcral.
A espiã “Baby” empalideceu intensamente. Suas mãos
estavam tremulas quando deixou o rádio sobre o toucador, e
ainda tremiam quando tirou da maletinha vermelha de flores
azuis um pequeno aparelho que parecia um fotômetro.
Deixou-o junto do rádio portátil. Depois, tirou do receptor-
gravador, com um seco puxão, a minúscula peça que era um
auricular potentíssimo com fio. Em poucos segundos, o
auricular foi desembaraçado do fio. E com este condutor,
fez uma ligação entre o rádio-receptor e o aparelho que
parecia um fotômetro. Imediatamente, a pequena agulha do
mostrador moveu-se para a direita, ficando parada ali.
Brigitte foi movimentando o fotômetro preparado, até que a
agulha passou a se movimentar. Movimentou-a um pouco
mais e examinou-a. Apontava para ela mesma. Ou seja, para
suas costas. Portanto, Johnny encontrava-se em algum lugar
de Viena na direção da frente do Hotel Prater. Fechou o
rádio e, imediatamente, a agulha indicadora tombou para o
ponto morto. Mas o rádio de chamada reiniciou seu
zumbido: “bip-bip-bip”...
Mais uma vez escutou. O silencio foi total, e a agulha
assinalou o mesmo lugar anterior.
Durante alguns segundos a espiã internacional, atônita e
ainda pálida, contemplou intrigada a agulha localizadora.
O que significaria o silencio de Johnny? Por que a
chamada pelo rádio se não podia falar? Talvez...?
Voltou-se rapidamente quando soou a campainha da
porta da suíte. Ligeiro, meteu os aparelhos na caixinha e
fechou a maleta, sacando a pequena pistola de cabo de
madrepérola, que ficou oculta na palma de sua mão.
Saiu do quarto e foi até a porta da suíte.
— Quem é?
— Camareira, miss Montfort.
Brigitte olhou as horas, de cenho franzido. Encolheu os
ombros e abriu a porta. Uma esbelta mulher de cabelos
ruivos e grandes olhos verdes estava ali diante dela,
trajando o uniforme interno do hotel. Junto dela, no
corredor, uma grande cesta, destas usadas para roupa suja.
Na parte inferior era fechada, para não se verem as roupas
amassadas. Na parte de cima, prateleiras com lençóis
cuidadosamente dobrados.
— O que deseja?
— Lamento muito o atraso... Esta manhã, houve defeito
no circuito das máquinas de lavar e não foi possível
consertá-lo até há pouco. Com sua licença...
— Um momento. Não compreendo... De que está
falando?
— Dos lençóis de sua cama, miss Montfort. Venho
trocá-los.
A espiã conteve-se para não franzir novamente a testa.
— Já foram trocados esta manhã, não?
— Não, não. Bem, na minha ordem de serviço está
assinalado que terminaram antes de chegar à sua suíte, de
modo que deixaram ficar os mesmos. E depois, como houve
defeito nas máquinas, não foi possível trocá-los até agora.
— Bem — disse Brigitte pestanejando. — Eu estava
fazendo outras coisas e... pensei que haviam sido trocados.
— Mas não foram. De qualquer maneira, se acha que é
inoportuno o momento...
— Não, não. Pode entrar.
— Obrigada. Serão somente dois minutos.
— Está bem. Vou tomar banho agora. Enquanto isto,
pode fazer seu trabalho.
— Pois não, miss Montfort.
Brigitte fechou a porta, enquanto a camareira dirigiu-se
para o quarto, empurrando a enorme cesta volante de
roupas.
Quando ela entrou no quarto, a camareira estava
hesitante diante do abrigo de vison, sobre o leito.
— Pode deixá-lo em qualquer lugar — disse Brigitte,
displicente. — Não é necessário avisar-me quando terminar.
— Como queira, miss Montfort.
A espiã entrou no banheiro... e, imediatamente, a
camareira deixou de prestar atenção ao casaco de vison, e
muito menos ainda à cama desarrumada.
— Abriu o compartimento de roupa suja e tirou uma
imponente “Luger”, com silenciador. Aproximou-se da
porta do banheiro e colou o ouvido à madeira. Ouvia-se o
forte ruído da água do chuveiro...
Sua mão esquerda segurou a maçaneta e girou-a
devagar, sem o menor rumor, que aliás, seria abafado pelo
barulho da água. Lentamente, foi abrindo a porta. O ruído
do chuveiro se ouviu mais forte, agora. Viu a pia, a privada,
no fundo o box fechado por vidros translúcidos. Um vapor
abundante de água quente subia para o teto por sobre o box.
A camareira acabou de abrir a porta e deslizou
silenciosamente até a porta de vidro. Abriu-a subitamente
com a mão esquerda, e a direita, empunhando a automática,
apontou incisivamente para o interior.
— Este será o seu último banho... — começou a dizer.
Mas a frase foi interrompida por uma exclamação de
assombro, de surpresa total. O box estava vazio! A água
quente jorrava, mas ali não estava ninguém.
Anna Bauer compreendeu o engano e sobressaltou-se.
Com uma exclamação de raiva, voltou-se rapidamente para
a porta do banheiro, que ao ser empurrada fez surgir a
figura de Brigitte Montfort, pistola na mão, com uma
expressão tão gelada em seus belos e angelicais olhos azuis
que até Anna Bauer hesitou por instantes.
Ergueu a automática nervosamente, tensa...
“Plop”.
A bala disparada pela suave, “tola e inocente” miss
Montfort cravou-se com um surdo choque em seu coração,
exatamente no centro, depois de rasgar a roupa e o seio
esquerdo de Anna Bauer, na parte inferior.
A assassina da OPE caiu de joelhos, com os olhos fora
das órbitas, largando a automática. Por segundos, ficou
assim, de olhos fixos na agente “Baby”... Mas, não. Não era
isso. Na verdade, os olhos mortos de Anna Bauer só
poderiam estar fitando o além. O fatal Reino do Além, para
onde tentara mandar miss Montfort.
Depois, bruscamente, Anna Bauer caiu de bruços. Era,
pura e simplesmente, mais uma entre muitas outras vitimas
que haviam ousado considerar presa fácil a “pobre e
desamparada” miss Montfort.
Esta, friamente, passou por cima do cadáver e fechou a
torneira do chuveiro.
Depois, tranqüilamente, foi para o quarto, sentou-se em
frente ao toucador e recomeçou a pentear-se, como se nada
houvesse acontecido. Maquilou-se com a discrição que a
caracterizava, pouquíssimo rimmel nas pestanas, um toque
de batom nos lábios rosados, e tratou de vestir-se com a
roupa de gala.
Enfiou no bolsinho da capa de vison branco os
minúsculos aparelhos que escondera no toucador, fixou a
pistolinha na coxa esquerda com esparadrapo cor de carne e
inspecionou tudo à sua volta. Tudo em ordem, tudo perto.
Empurrou a cesta de roupa suja para a porta do banheiro
e calculou com o olhar as medidas da camareira assassina.
Deu-se por satisfeita com o exame, já que a mulher
caberia na cesta. Abriu esta e viu a bolsa, que suspendeu
com o dedo pela tira. Colocou-a sobre os lençóis e despejou
seu conteúdo: cigarros, isqueiro, carteira de identidade...
Anna Bauer, austríaca, moradora em Linz, Áustria. Teria
sido melhor que Anna Bauer jamais tivesse saído de Linz.
Lenço, chaves, produtos de maquilagem, algumas notas de
mil xelins austríacos... olhou interessada uma chave com
uma pequena placa de metal pendurada e o número 15
gravado. Examinou-a, esperando encontrar o nome de um
hotel de Viena, mas não foi assim. Era estranho... uma
chave com uma placa que só tinha o número 15 gravado.
Foi o único objeto que guardou no bolso. Repôs o resto
na bolsa e colocou-a na cesta... onde enfiou Anna Bauer,
que ficou ali enrodilhada como uma serpente. O que no
fundo era verdade.
Uma espiada no banheiro fez Brigitte franzir a testa.
Ficaram algumas manchas de sangue no chão, o que, sem
dúvida, não era conveniente. De modo que mais uma vez
teve que recorrer à sua maletinha vermelha, na qual deixara
a chave gravada com o número 15 e de onde tirou um
vidrinho de acetona com o qual retirava o esmalte das
unhas.
Pingou algumas gotas sobre as manchas de sangue,
deixando estar por alguns instantes, enquanto voltava para
guardar o vidrinho e empapar de água um dos panos da
cesta de roupa suja. Com esse pano úmido, esfregou as
manchas, eliminando-as rapidamente, com a certeza de que
nem a mais detalhada análise do chão deixaria perceber a
presença de sangue. Tudo havia sido escrupulosamente
limpo.
Deixou o banheiro em perfeito estado, em completa
ordem. Depois levou a cesta rolante até a porta da suíte e
entreabriu uma pequena fresta.
Não ouviu nada. Não viu nada. Abriu um pouco mais,
olhou para fora e viu o corredor vazio, solitário. Sem
vacilar, empurrou a cesta e a levou para o fundo do
corredor, onde estava o elevador de serviço.
Com indiferença, deixou ali a cesta e regressou para a
suíte. Ela sabia muito bem que a camareira da manhã
trocara os seus lençóis, de modo que, quando Anna Bauer
fosse encontrada dentro da cesta, ninguém poderia suspeitar
que fora à sua suíte, pois não estivera lá e nem trocara as
roupas. Isto, no caso daquela mulher ser empregada do
hotel, o que duvidava muito.
— Sinto pela polícia vienense — disse para si mesma,
sorrindo.
Pôs o abrigo de vison, olhou-se no espelho, examinou
suas mãos para verificar se havia alguma mancha de sangue
e chegou à conclusão de que tudo estava em ordem.
Saiu do quarto, chamou o elevador, desceu para o
vestíbulo e saiu para a rua. Logo estava ao volante de seu
Volkswagen alugado. Lá fora, finíssimos flocos de neve
manchavam de branco a fria noite vienense.
— Johnny? — tornou a chamar pelo rádio.
Nada. Silêncio.
Não insistiu mais. Pôs o carro em marcha, depois de
ligar os dois aparelhinhos de localização. Para encontrar
Johnny, bastava seguir as indicações da agulha do falso
fotômetro.
***
Deteve o carro quando percebeu que seu colega de
missão não podia estar a mais de duzentos metros de
distância. Sem sair do carro, tirou o casaco e o revirou,
transformando-o num casaco negro, encomenda especial de
Brigitte, ao comprar aquela prenda.
Deu uma olhada no aparelho localizador para assegurar-
se que não tomaria o caminho errado, desligou-o e saiu do
carro, fechando-o.
Caminhou por uma rua, rodeou a próxima casa, e... lá
estava o carro de Johnny, que conheceu por tê-lo visto
naquela manhã, de longe, na Marie Theresien Platz, e
quando o espião seguira discretamente a ela e Lucius Terrel.
Um homem apareceu na esquina, caminhando apressado
sob a fina, quase simpática nevasca. Em sentido contrário,
um casal de namorados muito abraçados um ao outro,
caminhavam ligeiro. Logo, os três desapareceram naquele
cenário frio e pouco acolhedor, nos arredores da cidade.
Convencida de que ninguém poderia vê-la, “Baby”
dirigiu-se até o carro de Johnny, caminhando lentamente,
bem abrigada em sua capa, com as mãos nos bolsos... e no
revólver. Antes de chegar, distinguiu Johnny, sentado ao
volante. E, um calafrio, que não era do frio, percorreu-lhe o
corpo.
Chegou junto ao carro, olhando atentamente à volta e,
sem vacilar, apertou a maçaneta da porta. O corpo de
Johnny escorregou molemente para o seu lado, inerte. A
cabeça pendeu num breve e frouxo movimento para frente,
e Brigitte a susteve com a mão, olhando aqueles olhos
abertos, já vidrados, frios, inexpressivos.
— Johnny, Johnny... — gemeu. — Sinto muito,
companheiro...
Era evidente que Johnny não poderia ouvi-la. Não
poderia ouvi-la nunca mais. Tinha duas manchas de sangue
quase unidas no lado esquerdo do capote, aproximadamente
à altura do coração. Aflita, com os olhos úmidos por duas
lágrimas que procurava conter, Brigitte empurrou Johnny
até o outro extremo do banco e colocou-se ao volante. As
chaves estavam na ignição e ia tocá-las, quando afastou
ligeiro as mãos. Colocou luvas de pelica negra e aí, então,
pôs o carro em marcha, afastando-se rapidamente do local.
Parou o carro num ponto fora da cidade, cerca de um
quilometro do lugar onde encontrara o corpo, frente ao
muro de um casarão.
A primeira providencia foi abrir o porta-malas dianteiro.
Depois, com esforço, agarrou Johnny e conseguiu levantá-
lo, enfiando-o naquela tumba fria e metálica. Quando
fechou o porta-malas, finalmente, duas lágrimas rolaram de
seus formosos olhos azuis.
Voltou para o assento do carro e pegou o rádio portátil,
que Johnny havia colocado no porta-luvas, e que fechara ao
sair na pista de alguém. Tudo parecia muito claro: Johnny
fora surpreendido e levara dois tiros mortais, mas não
morrera instantaneamente, como provava o fato de querer
avisa-la pelo rádio. Mas, não conseguira falar... Quantos
segundos teria conseguido sobreviver Johnny aos dois tiros?
Mas, agora, que importância poderia ter isso?
Subitamente, quando estava guardando o rádio de seu
companheiro, Brigitte viu o sangue no vidro do
velocímetro. Uma mancha de sangue que... Não. Não era
uma mancha, mas... números. Dois números. O 1 e o 5...
Era o número 15! Ao que parecia, Johnny vivera o
suficiente para ligar o rádio e escrever com o próprio
sangue aquele número, no vidro. Não, não, fora
precisamente o contrário. Primeiro, Johnny escrevera o
número. Depois tentara chamá-la, mas não conseguira.
O número 15. Era o mesmo gravado na placa de metal
da chave encontrada na bolsa de Anna Bauer. Logicamente,
aquilo tinha um significado, mas, qual? Que significado
poderia ter o número 15?
Limpou o vidro com um pano que colocou novamente
no porta-luvas, revistou o carro atrás de alguma pista e,
finalmente, apeou. Fechou-o, atirou as chaves para baixo do
carro e afastou-se.
Devia pedir outro Johnny à CIA? Deveria pôr-se em
contato com ela, aumentando a potencia de seu rádio?
Parecia a atitude mais sensata, mas desistiu imediatamente.
Estava claro que já a haviam localizado, já que enviaram
Anna Bauer para matá-la. Se outro agente da CIA fosse
designado para ajudá-la, o máximo que conseguiria, talvez,
seria que o matassem também. A menos que o nome
Johnny, como ela, fosse um espião excepcional e...
Deteve-se sob a nevasca. Um espião excepcional, que
não fosse facilmente eliminado! Por que não pensara
antes?!
Cinco minutos depois, entrava em seu Volkswagen e
partia. E quase meia hora mais tarde, na Central de
Telégrafos de Viena, miss Montfort enviava o seguinte
telegrama:
Signore Angelo Toinasini
“Villa Tartaruga” — La Valetta — Malta
Preciso urgente seu comparecimento para assessorar-
me em assunto secreto de vendas ponto chamarei de Viena
amanhã às 16 por EU-206 ponto beijos
Brigitte

O telegrama foi passado urgente, com a afirmação de


que chegaria o mais tardar na manhã seguinte à “Vila
Tartaruga”, na ilha de Malta. E não havia dúvida que, assim
que recebesse o telegrama, Número Um viria para Viena. A
OPE podia consierar-se liquidada com aquele reforço da
agente “Baby”.
Brigitte, aliviada, foi afinal à Ópera.
CAPÍTULO QUINTO
Contato entre espiões
Um homem e uma mulher
O asilo de velhos da “Villa Tartaruga”

Ficar no hotel era perigoso e “Baby” não se enganava a


este respeito. Sair seria igualmente tolice, porque poderiam
tentar matá-la, esperando-a lá fora e talvez com mais
vantagem para a OPE. Mas, permanecendo no hotel, ela
seria uma isca a que seus inimigos não poderiam resistir.
Uma isca e um perigo, que possivelmente gostariam de
eliminar.
Este era o maior desejo de Brigitte: que alguém insistisse
na tentativa de Anna Bauer. Porque se tal acontecesse não
atiraria para matar, somente para ferir, submetendo o
prisioneiro ou prisioneira a um “amável” interrogatório. E
assim talvez reencontrasse a pista de Lucius Terrel, que não
comparecera ao encontro marcado na Marie Theresien
Platz. Estava escondido, mas, onde?
Não tinha a menor idéia. E se quisesse ter uma
oportunidade de recuperar a pista, “Baby” deveria esperar
pacientemente no hotel um novo ataque, ou qualquer outra
ação por parte da OPE que lhe proporcionasse meios de
entrar em ação. Talvez, neste ínterim, Lucius Terrel já
houvesse vendido aos russos o “Transmissor Mental”. Fato
este que, somado à morte de Johnny, estava convertendo a
atual missão de “Baby” num verdadeiro fracasso.
A única pista que possuía era a chave com a placa tendo
gravado o número 15. O mesmo número que Johnny
escrevera antes de morrer. Por que?
Brigitte olhou o relógio. Três e meia. Tempo de sobra
para terminar tudo.
Ordenou os papéis que estivera escrevendo e os releu
velozmente. Tudo estava ali explicado, sem que faltasse um
só detalhe. Finalmente, leu o último papel enfiado na
máquina de escrever portátil, destinada aos artigos
jornalísticos. Aprovou com a cabeça e, em vez de escrever
“Fim”, bateu rapidamente a frase “eu te amo”. Tirou a
última página da máquina e colocou-a no maço de folhas
prontas. Separadas ao lado estavam as folhas datilografadas
do artigo que escrevera sobre a Ópera de Viena. Muito
interessante para a jornalista Brigitte Montfort, mas sem
interesse nenhum naquele instante para a agente “Baby”.
Pegou seu isqueiro de platina e brilhantes, equipado com
a diminuta câmara fotográfica no interior e microfotografou
as páginas daquele relatório que eram de seu interesse.
Naquela tira de filme estava fotografado Lucius Terrel.
Depois de microfotograr ar aquelas páginas, Brigitte
levou-as para o banheiro, onde as queimou, deixando cair as
cinzas na privada. Voltou ao quarto onde estava a máquina,
meteu num envelope a primeira reportagem sobre a
temporada de óperas, fechou-o, escreveu o nome e o
endereço do “Morning News” de Nova Iorque.
Pegou a maletinha vermelha e, com três peças
diferentes, formou um pequeno tubo oco no qual escondeu
os microfilmes. Em seguida, montou os três tubos de
alumínio que, enroscados, transformavam-se em seu
utilíssimo fuzil portátil. Tirou o cabo do secador de cabelos,
que era a culatra disfarçada do fuzil e atarraxou-o ao
conjunto. Dentro dele escondeu o rolinho de microfilmes.
Acendeu um cigarro, pegou o rádio portátil, o fuzil, uma
revista de modas e, depois de colocar uma poltrona junto da
janela do quarto que dava para a rua, sentou-se, consultou o
relógio e pôs-se a ler tranqüilamente...
Às quatro horas em ponto, hora austríaca, apertou o
botão do rádio, sorrindo.
— Número Um? — perguntou.
— Você está bem, Brigitte? — ouviu-se a voz do agente
Número Um.
— Eu sim. Mas mataram o Johnny.
— Lamento... Sei como sofre com isso, querida. O que
está acontecendo em Viena?
— Você encontrará a explicação num microfilme.
Poderá revelá-lo, Número Um?
— Claro. Eu vim disposto a tudo, já sabe.
— Eu tinha certeza de que podia contar com você. E
espero que seja um osso mais duro de roer do que Johnny.
— Vou tentar.
— “Vou tentar”! — riu Brigitte. — Ainda está para
nascer o homem ou a mulher que poderá acabar com
Número Um. A mim tentaram matar. Uma mulher. Já ouviu
falar em Anna Bauer?
— Não.
— E o sobrenome Weissermann.
— Bem... também não. É um nome alemão muito
comum, e isto é tudo.
— Já ouviu falar em OPE?
— “Our Private Espionage”? — disse Número Um.
— Exatamente — disse animada Brigitte. — Sabe
alguma coisa a respeito?
— Pouca coisa. Realizaram pequenas operações na
Europa e, segundo meus informantes deste vasto mundo,
andaram agindo no Sudeste Asiático. Também possuem
contatos na América do Sul. Não passam de peixes
pequenos.
— Mas estão crescendo, querido. E “Baby” adora peixes
grandes.
— Entendo — riu Número Um. — Brigitte, você não
sabe a alegria que sinto em ouvi-la! Quando e aonde vamos
nos ver?
— No momento, em lugar nenhum, meu amor. A menos
que eu o chame, não deve aparecer.
— Está com medo que me aconteça o mesmo que ao
Johnny?
— Não me perdoaria nunca, Número Um — murmurou
a espiã. — Mas não é este o motivo, pois sei que para matá-
lo é preciso muita astúcia e boa sorte. Mas, no momento,
prefiro que você fique na sombra, se não se importa. Sei que
não é digno, mas...
— Esqueça isso. Diga somente o que deseja que eu faça,
e eu o farei.
— Obrigada. Você conhece bem Viena?
— Conheço toda a Europa, como você sabe... Você está
custando a entrar no assunto, “Baby”. Por que?
— Quero acabar definitivamente com a OPE. — Houve
um silencio que pareceu tão longo a Brigitte, que esta
tornou a chamar, suavemente. — Número Um?
— Sim... estou ouvindo.
— Tenho a impressão de que não está gostando da idéia
de eliminar a OPE.
— Entre nós não é preciso ocultar nada, querida. Não
tenho motivos especiais, mas eles são espiões... particulares,
como eu. Ignoro seus motivos, mas talvez sejam tão
poderosos como os meus.
— Duvido. Mas compreendo o ponto de vista. Você se
considera meio colega deles, não é?
— Mais ou menos.
— Bem, não quero forçar você a...
— Esquecemos um pequeno detalhe, Brigitte. Eles
tentaram matá-la e, portanto, isto para Número Um
significa: lavraram sua própria sentença de morte.
— Você ainda me ama? — sussurrou docemente a espiã.
— É possível.
— Oh! É somente possível?
— Digamos que é... provável.
— Provável! Que palavra tão incerta, meu amor!
— Então direi que com toda a certeza: eu te amo.
— Certo? Sem hesitação?
— Sem hesitação. Eu te amo, Brigitte.
— Era isto que eu queria ouvir — suspirou a espia.
— Você está brincando comigo. Sabe muito bem que a
amo e sempre amarei. Gostaria de poder dizer o mesmo de
seus sentimentos com relação a mim... Onde está você?
— Hotel Prater, na...
— Sei onde fica.
— Ótimo. Então vou aguardar que passe aqui em frente
o quanto antes... Você está de carro?
— Aluguei um, apenas cheguei ao aeroporto.
— Não me diga que é um Alfa-Romeo, cor de cereja,
esporte, conversível.
— Não tinham o modelo. É um Mercedes negro, 220 S.
Passarei por ai dentro de... doze minutos. E deixarei
abaixado o vidro da janela direita, que ficará voltada para a
fachada do Hotel Prater. Está bem?
— Querido, você não existe. Chame quando acabar de
ler o microfilme e estiver a par de tudo. Sim, amor?
***
Exatamente doze minutos mais tarde um belo Mercedes
220 S, negro, passou diante do Hotel Prater, em marcha
reduzida. O chofer devia ser muito calorento, porque a
janela direita estava completamente aberta, com o vidro
baixado.
Do terceiro andar do hotel, Brigitte apontou
cuidadosamente para a janela aberta do carro. Abrira a
janela, fechando as cortinas. Somente a ponta do fuzil
especial de alumínio, de liga endurecida, aparecia entre as
cortinas, o justo necessário para disparar.
Afinal, depois de acompanhar durante cinco segundos a
trajetória do belo carro negro, ouviu-se o ruído quase
imperceptível do tiro. Imediatamente Brigitte olhou, em
expectativa, para a parte do assento dianteiro do carro
negro. Uma mão grande, de nervos salientes, muito
bronzeada pelo sol, apareceu ali e arrancou o fino dardo
cravado no assento. Depois, o Mercedes prosseguiu a
marcha, afastando-se.
***
Quase às seis e meia soou a chamada no rádio da agente
“Baby”, que se apressou a atender.
— Fale, querido.
— Tudo entendido. Muito interessante o “Transmissor
Mental”. Já ouvi falar sobre as provas que estavam se
realizando no Pentágono com telepatia, mas ignorava que a
coisa estivesse tão adiantada.
— Qual é a sua opinião? Acha que o “Transmissor
Mental” poderia ser uma realidade?
— Ora, Brigitte, tenho certeza de que você também não
levou o negócio muito a sério.
— Assim é. Isto mesmo.
— Fora de dúvida — admitiu Número Um, — isto será
possível talvez em um século ou dois. Se é possível tirar
encefalogramas e coisas assim, também não é fora de
propósito a idéia de recolher oscilações cerebrais e remete-
las pelo rádio a distâncias incalculáveis. Mas, por enquanto,
vamos levar o negócio na brincadeira.
— Deve ser tão somente o começo daquilo que um dia
será realidade.
— Claro. É algo assim como os transplantes de coração
do Dr. Barnard. Dentro de um século, ou talvez em menos,
poderemos trocar de coração, como que troca as meias. Isto
será ótimo para os namorados não correspondidos: se um
homem está enamorado de uma mulher que não lhe
corresponde, poderá trocar de coração, deixar de amá-la e
viver muito feliz e tranqüilo.
— Querido — riu Brigitte, — estou feliz sabendo que
você está bem-humorado!
— É somente cinismo, meu amor. Bem, o que vamos
fazer?
— Desconfio que a única coisa que podemos fazer é
aguardar a vinda de alguém para matar-me. É a nossa única
possibilidade, Número Um.
— Bem... Esqueceu a chave?
— A chave de Anna Bauer, com a placa gravada com o
número 15?
— A chave.
— No começo estava esperançosa achando que fosse de
algum hotel, ou tivesse outra indicação, mas...
— Espere, menina. Vamos ver: Johnny não escreveu o
número 15 com seu próprio sangue?
— Sim...
— Perfeito: onde estava Johnny quando você o
encontrou e levou-o até aquele lugar, avisando depois a CIA
para enviá-lo aos Estados Unidos?
— Já disse no relatório que era em Offenhollstrasse...
— Sim, sim... Mas, o carro estava diante de que
número?
— Não me recordo. Estava tão consternada com a... Meu
Deus!
— Pelo amor de Deus, querida, será possível que isso
não ocorreu a “Baby” Montfort?
— Não, não. Estava muito deprimida, e... Fui uma tola,
Um!
— Todos falhamos de vez em quando — disse
amavelmente Número Um. — De qualquer modo, é
somente uma possibilidade, Brigitte, não uma certeza. O
que eu tenho certeza é de que se recordará do lugar exato
em que o carro estava parado na Ofjenhoffstrasse.
— Claro que sim. Oh, querido, não posso me perdoar
por ter praticado tamanha estupidez!
— Fique calma. Não é tão grave.
— Oh, meu Deus... será que estou ficando velha?
— É possível. A propósito de velhos, “Baby”: gosto
muito deles. E se você está se achando muito velhinha,
conheço um asilo magnífico onde poderia passar bem feliz
os últimos dias de sua vida, sejam muito ou poucos.
— Que asilo é este?
— Fica na ilha de Malta. É uma vila bonita, chamada
“Tartaruga”. Seu proprietário é uma boa pessoa, um tal
signore Ângelo Tomasini. Às vezes se encoleriza, mas no
fundo é um bom sujeito.
— Número Um — murmurou Brigitte, — eu te adoro.
— Aceita a oferta? Você não quer se aposentar e passar
uma velhice sossegada na “Villa Tartaruga”?
— Bem... Esperemos ainda um pouco. Claro que,
quando for uma velha, cheia de rugas, míope, cardíaca e
meio caduca, esse senhor Ângelo Tomasini talvez retire a
oferta...
— Estou certo de que não, O signore Tomasini estará
eternamente esperando por você, “Baby”.
— Creio que vou chorar — disse falando sério a divina
espiã. — Não acredito que me ame assim tanto e tão
profundamente, Um.
— Claro — respondeu o fabuloso espião, com a voz
embargada. — Você tem razão. Não é possível amar tanto
assim. Bem: já que você está regendo o concerto, torno a
perguntar: o que faremos?
— Você já sabe.
— Talvez. Chegam trinta minutos?
— É suficiente.
— Um beijo e até logo.
— Um beijo, meu amor.
CAPÍTULO SEXTO
15, Offenhoffstrasse
A agente “Baby” em apuros
“Por favor, Um”

O Volkswagen deteve-se, justamente, onde na noite


anterior estacionara o carro de Johnny. No mesmo instante,
um homem, completamente vestido de negro, surgiu das
sombras junto ao muro do casarão, rodeou o carro por trás,
abriu a portinhola direita, entrou... e envolveu em seus
braços a mais bela espiã do mundo.
Seus lábios se juntaram num beijo, tão avidamente que,
visto por algum expectador de plantão, este diria que, se
poderia até derreter a carroçaria do Volkswagen. Um beijo
longo, profundo, completo...
Quando se separaram, Brigitte acariciou aquele rosto
enxuto, seco, curtido pelo sol; os olhos negros de Número
Um eram duas manchas brilhantes, grandes, naquele rosto
que parecia de cobre, ou de bronze.
— Meu amor, há quanto tempo não estava em teus
braços?
Os dentes alvíssimos de Número Um brilharam na
escuridão.
— Não faz assim tanto tempo. Já esqueceu o caso dos
robôs?
(Assassinos Invencíveis)
— Não esqueci — riu ela com vontade.
— E a mim?
— Esquecer você?
— Ás vezes tenho a impressão que só nos vemos quando
necessitamos um do outro profissionalmente, Brigitte.
— A vida dos espiões é dura e cruel, amor. Você está
bem, Número Um? É feliz... na medida do possível?
— No possível, sim. Mas está faltando uma velhinha na
“Vila Tartaruga”.
— Oh! Eu gostaria de estar com oitenta e tantos anos,
Um!
Os dois começaram a rir. Número Um passou uma de
suas enormes mãos de artista e atleta em plena forma pelo
rosto de Brigitte.
— Creio que não é o momento de falar em coisas que
possam abrandar nossos corações. Trouxe a chave?
— Claro. Olharemos o número da casa mais próxima
para...
— Não é preciso, o número 15 da rua está cinco casas
mais adiante.
— Pobre Johnny! Deve tê-los seguido, foi descoberto...
O que não entendo é por que deixaram o carro aqui com o
cadáver. E porque não me atacaram quando vim buscá-lo.
— Eu sim, encontro uma explicação. Quando a viram,
compreenderam que você era muito mais difícil de pegar
que Johnny, e preferiram não complicar as coisas. Se
houvesse um tiroteio, o assunto iria compromete-los. Por
isso, era melhor deixar aqui o carro, ocultar-se e deixar que
alguém o retirasse. Nestes casos, sempre se supõe que o
lugar em que se encontra um carro com um cadáver é o
mais longe do ponto em que o crime foi cometido. E assim,
conseguiriam afastar você e a policia do local que é,
precisamente, o que procuramos.
— Isto. Suponho que esta chave sirva para a porta da
casa número 15.
— Dê-me a chave, vou experimentá-la.
— Não, não... Quem vai sou eu, Número Um.
— Imaginando que esta é a chave. O que fará você?
— Entrarei na casa.
— Sozinha?
— Por que não?
— Muito bem —Número Um cruzou os braços sobre o
amplo peito atlético. — e o que estou fazendo aqui em
Viena?
— Dando-me cobertura, querido — disse ela sorrindo.
— Sim?
— Está bem. Eu entrarei pelo outro lado. E advirto-a de
uma coisa: só a ajudarei se você suplicar.
— De acordo — riu ela. — Agora, espião genial,
arrume-se como puder para entrar na casa.
— Bem, antes, por via das dúvidas, vamos nos despedir.
Envolveu com seus braços cobertos pelo casaco de vison
o pescoço de Número Um, que moveu as mãos procurando
aquela fina cintura que conhecia tão bem. Se o mesmo
expectador de plantão visse novamente o beijo, com certeza
diria que, se o beijo durasse uns segundos mais, a carroçaria
do Volkswagen teria ficado em brasa e lançaria faíscas para
todos os lados.
Depois, sem dizer mais nada, Número Um saiu do carro,
foi até o muro, olhou para os lados e, após assegurar-se de
que ninguém estava olhando, saltou-o como se em vez de
ter quase três metros de altura, não passasse de uma pedra
num passeio de jardim.
Brigitte saiu do carro, depois de virar o forro do casaco
branco de vison, transformando-o num abrigo negro. Pegou
a maletinha e, com sua habitual ousadia e sangue-frio,
encaminhou-se para a casa número 15. Por que não pensara
naquilo antes? Estava cada vez mais aflita com a morte de
seu companheiro. Era algo que não podia evitar. Sentia
vontade de chorar, de matar, de atacar com toda a fúria.
Estava se descontrolando. E isto não podia acontecer, de
maneira nenhuma. Não convinha.
A casa 15 da Of/enhoffstrasse tinha a porta em nível
mais baixo que a rua. Havia uma pequena portinhola
gradeada, aberta. Três degraus. Depois um pequeno pátio,
cheio de neve. No alto da porta via-se o número 15, em
algarismos góticos alemães.
Brigitte tirou sua pistola e empunhou-a com a mão
esquerda. Com a direita, meteu a chave na fechadura, deu a
volta... e ouviu-se o “dique” habitual. A porta abriu-se para
dentro, silenciosa-mente. Parecia estar muito bem azeitada.
Fechou-a e ficou imóvel, na mais completa escuridão.
Lá para o fundo, ouviu claramente passos masculinos,
aproximando-se. Apenas três segundos mais tarde, uma luz
acendeu-se no teto, ao mesmo tempo em que um homem
surgiu no vestíbulo, cheio de móveis antigos, escuros,
tristes.
O homem ficou boquiaberto, como fascinado,
completamente estupefato. Rapidamente, sua mão direita
voou para a axila esquerda...
“Baby” só precisou levantar a mão e apertar o gatilho
duas vezes.
Plop... Plop...
Assim é a vida... E assim é a morte, O homem soltou seu
revólver, levou as duas mãos ao peito, seus olhos giraram
até aparecer somente o branco da córnea... e caiu no chão,
como um pedaço de pau, um velho tronco morto fulminado
pelo raio. E foi tudo.
— Pognorky — disse alguém. — Quem é?
Brigitte sorriu, angelicamente. Abriu sua maletinha,
tirou uma máscara de gaze, igual à dos cirurgiões ao operar,
e colocou-a sobre a boca e o nariz. Depois, tirou de um
pequeno estojo de metal meia dúzia de pequenas ampolas
que, dizia o rótulo, devia conter um desses produtos que a
“World Beauty Association” de Nova Iorque assegura que
dão excelentes resultados para conseguir um seio elástico e
de músculos fortalecidos, depois de um certo número de
fricções semanais. Mas evidentemente a agente “Baby” não
precisava de semelhantes produtos. Ao contrário, era muito
útil o gás líquido que continham aquelas falsas ampolas de
“beleza e corpo sempre jovem”.
Com uma impavidez própria das rainhas passeando
soberanas em seu palácio, a espiã foi entrando pela casa,
deixando atrás de si um cadáver com a indiferença de quem
atira fora a ponta do cigarro já fumado.
O corredor era comprido, mal iluminado. Via-se uma
porta ao fundo e duas de cada lado. Por uma das portas
laterais surgiram dois homens, um dos quais, sem dúvida,
era o que chamara pelo falecido Pognorky, perguntando
quem havia batido.
Reagiram da mesma maneira, apanhados de surpresa,
paralisados por mais tempo do que deviam.
Uma só ampola de gás quebrada aos seus pés e, em
menos de dois segundos, caíram fulminados. Com muita
delicadeza, Brigitte passou por cima deles, ignorando-os
com um desprezo mortificante. Era melhor assim, que não
estivessem em condições para outra coisa que não fosse
dormir.
Uma grande sala, outra porta ao fundo. Depois, outro
corredor, que descia em rampa suave. Outra porta, tendo ao
alto uma lâmpada vermelha que se acendia e apagava
rapidamente, em períodos perfeitamente alternados.
A seguir, outro corredor, ainda mais curto que os
anteriores, também em declive. Uma porta de cada lado.
Uma delas se abriu e surgiram um homem e uma mulher.
Pelo jeito, todo mundo naquela casa sofria de estupefação.
A mulher ainda foi mais rápida do que o homem ao tentar
sacar a arma...
Mais rápida, porém não o suficiente. A pequena ampola
de gás havia estourado aos seus pés e ambos foram ao chão
desmaiados, como mortos.
Tudo estava acontecendo de maneira fácil em demasia.
Fácil em demasia. Abriu a última porta... e viu surgir
uma espécie de escritório, com fichários, máquinas de
escrever, um possante rádio de ondas curtas, mapas de todo
o mundo, dois aparelhos de calefação, cadeiras, duas
poltronas, um telex, um computador, um filtro e uma
escrivaninha.
Quatro pessoas, três homens e uma mulher, ocupando
lugares diferentes no escritório, voltaram-se para ela,
sempre com aquele ar de assombro estúpido. Outra ampola
de gás, jogada no meio do escritório, foi dose suficiente
para todos. Brigitte recuou dois passos, saindo dali e
fechando a porta. Tirou a máscara, esperou quinze segundo
e, quando ia abrir novamente a porta, uma voz áspera
ordenou às suas costas:
— Deixe cair a pistola. Mas não as ampolas. Não creio
que seja conveniente, agora que está sem a máscara
protetora, miss... Montfort? Brigitte Montfort?
Brigitte deixou cair a pistola. Depois, cautelosamente,
guardou no estojo as ampolas que sobravam. Fechou a
maletinha e voltou-se sorrindo, num gesto de balé. À sua
frente estavam dois homens.
— Que tal, Herr Weissermann — saudou em perfeito
alemão.
— Admirável, Fraulein Montfort. Ou por acaso não é...?
— Sim, claro. Sou Brigitte Montfort.
— Pensei que falava muito mal o alemão.
— Ora, Lucius Terrel é um bobo... É um assassino e um
traidor, mas muito pouco inteligente. Como está vendo,
Herr Weissermann, o meu alemão não poderia ser mais
perfeito e impecável.
— Certamente. Asseguro-lhe que é grande minha
admiração... Como conseguiu escapar de Anna?
— Anna Bauer? Era uma... simples amadora na arte de
matar. Muito ingênua. Devo dizer-lhe, Herr Weissermann,
que seu pessoal é muito pouco eficiente. Pelo menos em
comparação comigo.
— Admito. E pode acreditar que lhe dedico a maior
admiração, miss Montfort. Orgulho-me de conhecer
espionagem o bastante para opinar que é uma agente...
como poderia dizer?
— Fora de série? — sorriu Brigitte.
— Sim... Essa é a expressão correta. Bem, certamente
trabalha para a CIA.
— Mais ou menos.
— É preciso felicitar a CIA por contar com tão bom
elemento. Enviaremos um telegrama de Berlim, ou de Nice,
com nossas felicitações.
— O senhor é muito amável.
— Mas é necessário, para isto, saber o seu verdadeiro
nome... porque senão, os dirigentes da CIA americana
ficariam um pouco confusos.
— Quase sempre uso o meu nome verdadeiro. Creio que
assim deveriam proceder todos os espiões de categoria.
Mas, Herr Weissermann, se deseja informar a CIA
corretamente do nome da agente que pretende eliminar,
diga-lhes que conseguiu matar “Baby”.
Herr Weissermann quase deu um passo atrás, enquanto
o homem que estava junto dele, de revólver na mão,
empalideceu visivelmente.
— Não! — murmurou Weissermann. — Não é possível!
Você! Você é a famosíssima agente “Baby”?
— Com muita honra, Mein Herr — sorriu Brigitte,
fazendo uma graciosa saudação com a cabeça.
— Incrível! A agente mais temida e admirada por todos
os serviços de espionagem do mundo inteiro... Incrível!
— O mesmo disse um mendigo, no dia que encontrou
uma nota de mil dólares numa lata de lixo, Herr
Weisserman: incrível! Mas a verdade é que estava com o
dinheiro na mão. Por favor, importa-se de passar para o
escritório? Os efeitos do gás já cessaram e este corredor está
gelado, enquanto lá dentro há calefação.
— Abra e entre. Você primeiro. E, “Baby”, a um
movimento qualquer, dos classificados como “estranhos”,
receberá duas balas nas costas.
— Não, pelo amor de Deus — disse sorrindo
angelicamente aquele querubim de olhos azuis. — Pelas
costas, não, Herr Weissermann. Quero ser filha digna de
minha mãe. Qualquer coisa menos matar-me pelas costas,
por favor.
— Entre.
Entraram os três. No chão viam-se os quatro
personagens encarregados do escritório da OPE.
Weissermann indicou o fundo da sala a Brigitte e ela
obedeceu docilmente.
— O que aconteceu com sua mãe?
— Morreu fuzilada. Mas de frente, Herr Weissermann.
E com os olhos bem abertos. Faz mais de vinte anos,
durante a Segunda Grande Guerra. Fuzilada pelos alemães,
por ser espiã. O senhor é alemão, talvez?
— Talvez.
— Ora, não se assuste. Não tenho nada contra os
alemães. E não porque meu pai era alemão. É. verdade que
a nacionalidade conta pouco para o fato das pessoas serem
boas ou más, honradas ou canalhas. No caso concreto da
OPE, estão reunidos agentes de tantas nacionalidades que
isto corrobora a minha opinião: americanos, africanos,
europeus, asiáticos e suponho que australianos, também.
Gente de todo o mundo. Esta é a Central Organizadora da
OPE?
— Vejo que é muito perspicaz.
— Não, não... é que já conheci organizações similares.
Bem, não desejo ofendê-los, mas em sua maioria eram mais
importantes, de maior envergadura, que a OPE.
Naturalmente — sorriu — todas elas foram destruídas por
mim.
— Parece que aqui terminou sua boa sorte.
— Tudo tem seu princípio e, por conseguinte, o seu fim.
Parece que somente Deus e o céu são eternos. Estou vendo
vários arquivos bonitos... São os que contem as fichas de
seu pessoal em todo o mundo, Mein Herr?
— Na realidade, você entende do assunto, “Baby”.
— Força do hábito — suspirou Brigitte. — Há tantos
anos lido com indivíduos da sua espécie, com organizações
criminosas para lucro próprio!
Weissermann inclinou a cabeça e semicerrou os olhos,
subitamente desconfiado.
— Você veio sozinha?
— Sempre trabalho sozinha. Bem... quase sempre. De
vez em quando designam um colega para ajudar-me, mas...
alguns deles tiveram muito pouca sorte.
Herr Weissermann sorriu friamente.
— Correto. Seu companheiro que nos seguiu ontem à
noite teve muito pouca sorte. Franz — e apontou para o
acompanhante — encarregou-se dele para mim, muito...
espertamente. Tem uma excelente vista. Por falar nisso,
Franz, vá dar uma espiada por aí. Reviste, especialmente, o
pátio.
— Sim, Mein Herr.
Franz saiu do escritório, seguido pelo olhar gelado da
agente “Baby”.
— Foi Franz quem matou meu companheiro?
— Sim. Mas isto já é velharia, miss Montfort. Há outras
coisas que me interessam muito mais. Diga-me como
conseguiu localizar o estúpido Lucius Terrel.
— É segredo profissional — sorriu “Baby”.
— Bem... está bem... Na minha opinião este infeliz não
nos serve para mais nada e, portanto...
— Tendo em vista isto, quando vender o microfilme
com os planos do “Transmissor Mental” para os russos, o
pobre Terrel será eliminado?
— Naturalmente.
— É uma tática compreensível. E ao menos esta alegria
posso levar para o outro mundo. Por favor, não deixe de
matá-lo.
— Sua vontade será cumprida. Vejamos... Oh, parece
que temos notícias. Por favor, que receber a mensagem?
O telex estava funcionando e Brigitte aproximou-se dele.
Segurou a tira de papel, mantendo-a suspensa até o fim da
mensagem. Cortou-a e estendeu-a a Weissermann, que
sorriu astutamente, recuando um passo.
— Pode lê-la, se não se importa.
Brigitte concordou, olhou o conteúdo da tira de papel e
informou:
— Está em espanhol. Diz o seguinte: “Assunto atentado
Palma de Maiorca impossibilitado pela Brigada de
Investigação Criminal espanhola. O personagem abandonou
San Juan sem novidade. Estamos seguindo-o a Paris”.
Parece que os espanhóis não são muito amigos de confusão
em seu território. Quem é a vítima do atentado?
— Não interessa. Voltemos às poucas perguntas que
desejo fazer-lhe, Fraulein... Até que ponto está a CIA a par
das atividades da OPE e de sua base central em Viena?
— Com grande pesar, devo admitir que somente eu sei
todas estas coisas, Herr Weissermann.
— Verdade?
— Já lhe disse que sempre trabalho sozinha.
Ouviram-se passos atrás de Weissermann, mas, ao
mesmo tempo, Franz falou, informando que era ele quem
chegava. Entrou no escritório central da OPE, encarou
Weissermann e sacudiu negativamente a cabeça.
— Então — murmurou Weissermann, — é verdade que
miss Montfort veio só... Assombroso! Não menos
assombroso que essas pequenas cápsulas de gás que foi
distribuindo por toda a casa... Duram muito os seus efeitos,
miss Montfort?
— Três horas, no mínimo.
— Ah... É desagradável, convenhamos. Isto significa
que a OPE vai ficar inativa durante este tempo. Espero que
nossos agentes espalhados por aí não se alarmem. Bem: o
que podemos fazer durante essas três horas? Não sugere
nada?
— Podíamos ir passear no famosíssimo Prater vienense.
— Não está mal — riu Weissermann, — mas eu tenho
uma idéia melhor, creio: Franz vai matá-la, e depois a
enterrará no pátio.
— A idéia me desgosta profundamente, Herr
Weissermann. Tanto mais que não gosto de seu amigo
Franz. Sabia, Mein Herr, que a agente “Baby” sempre
conseguiu vingar, mais cedo ou mais tarde, seus
companheiros mortos na mesma missão?
— Já ouvi falar por aí... Será que ficaria satisfeita se eu
matasse Franz?
— Realmente.
— Sinto muito. Eu já prometi satisfaze-la matando
Lucius Terrel, que além de haver demonstrado não ser tão
esperto como pensa, significa um grande perigo para nós,
um perigo para a OPE. Mas Franz é um velho camarada,
muito útil e eficiente. Sinto muito “Baby”.
— Suponho que devo resignar-me.
— Faça um esforço — sorriu Weissermann. — Além
disso, não é belo morrer em Viena? Terá, para sempre, a
felicidade de descansar em solo vienense, sob a branca
neve, vendo as montanhas brancas e ....... Mate-a, Franz.
Agora.
— Por favor! — suplicou Brigitte. — Pode conceder-me
uma última vontade, Herr Weissermann?
— Diga o que é.
Brigitte sorriu ainda mais friamente que Weissermann.
Seus olhos se congelaram daquela maneira terrível que fazia
todos sentirem um calafrio.
— Querido Um — murmurou, — por favor, ajude-me
imediatamente.

CAPÍTULO SÉTIMO
Número Um intervém
A chave de comando
“Baby” sempre volta

Weissermann e Franz titubearam um instante, para logo


reagirem, voltando-se para a porta do escritório central da
OPE.
Ou melhor, apenas começaram a voltar-se. Franz não
teve tempo de nada. Recebeu um balaço na nuca, que o
matou instantaneamente, atirando-o de bruços aos pés da
espiã internacional. Weissermann foi apanhado no ato de
girar sobre si mesmo.
Plop.
O segundo tiro silencioso foi em sua honra. A bala do
imponente “Parabellum” 45 de Número Um penetrou com
um ruído saco em seu peito, pela parte direita, atravessando
o mamilo e indo perder-se no mais profundo do corpo de
Herr Weissermann, que soltou um gemido, largou o
revólver e, lançado para trás, caiu primeiro de joelhos e
depois de bruços.
Número Um guardou o revólver no coldre, com gesto
displicente, fechando o casaco negro.
— Os outros estão dormindo — disse simplesmente.
— Eu sei.
Ele tirou um cigarro e acendeu-o, olhando curiosamente
ao seu redor.
— Não parece uma organização muito importante. Não
entendo esta gente, Brigitte. Se estabelecem como espiões
como quem abre uma barraca de frutas na feira de Sevilha.
Gostaria de saber se são imbecis ou otimistas.
— Suponho que tenham um pouco de cada coisa. Vamos
olhar o fichário. Ver quantos “empregados” tem a OPE em
todo o mundo.
Número Um encolheu os ombros. Para ele, certamente,
estes detalhes não estavam interessando.
— Se os efeitos do gás duram mais ou menos três horas,
creio que foi um erro usá-lo, Brigitte. Teremos que esperar
todo este tempo para interrogá-los sob o paradeiro de
Lucius Terrel.
— Outra falha minha — sorriu Brigitte. — Não é?
— Duas falhas de “Baby”? — Número Um semicerrou
os olhos. — É muita falha, demais para... Ora, ora,
entendo...
Brigitte abriu uma das gavetas do fichário metálico e
manuseou rapidamente as fichas. Número Um postou-se ao
seu lado, sorrindo secamente. Com efeito, logo depois a
espiã tirou uma das fichas, que mostrou ao melhor espião
masculino de todos os tempos.
— Voilà, mon amor.
— A ficha de Lucius Terrel... Lucius Thomas Terrel,
788 Burton Avenue, Washington, USA. Outro endereço na
ficha, 288 Beckenstrasse, Viena, Áustria. E ainda outro, que
deve ser o atual, no 65 de Malden Platz, Viena, Áustria.
Não há dúvida que o pessoal da OPE é pelo menos muito
meticuloso... Acredita que Terrel esteja neste endereço?
— Claro.
— Então devemos ir visitá-lo.
— Primeiro é preciso deixar isto aqui bem
“empacotado” para a CIA.
— Eu não trabalho para a CIA — grunhiu Número Um.
— Mas trabalha para mim, não?
— Nisto, não. Se a CIA deseja apossar-se ou destruir a
OPE, que venham eles mesmos. Ou então que me paguem.
— De acordo — riu Brigitte. — Quanto quer?
— Duzentos e cinqüenta mil dólares — sorriu Número
Um.
— Aceito. Agora trate de amarrar os figurões da OPE,
um por um, muito bem amarrados, querido. Quando o
pessoal da CIA chegar aqui, quero que encontre o serviço
perfeito. E depressa signore Tomasini, porque precisamos
apanhar Terrel.
— Va bene, signorina — disse Número Um sorrindo.
Saiu do escritório da OPE, com o cigarro pendendo dos
lábios. Brigitte recolheu em primeiro lugar sua pequena
pistola. Depois, com meia dúzia de pontapés, afastou para
um canto os corpos de Weissermann e Franz. Deu uma
olhada ao redor e chegou à conclusão que havia tanta coisa
para levar dali, que o melhor era não levar nada. O certo era
chamar a CIA, e deixar tudo como estava. Encaminhou-se
para a porta, saiu ao corredor, deu alguns passos e parou,
pensativa. Sim... o endereço era 65 Malden Platz.
Continuou caminhando... e parou subitamente, desconfiada,
voltando para o escritório. Ouvira um barulho, um gemido...
Empunhou a pistola e apressou o passo. Mas, ao chegar à
porta, percebeu que algo havia mudado.
Entrou cautelosamente, olhando para onde havia deixado
os cadáveres de Weissermann e Franz, e mordeu os lábios
para conter uma exclamação de surpresa: Weissermann não
estava mais ali, no chão!
Pistola na mão, revistou todo o escritório. Deu com
Weissermann a um canto, literalmente pendurado num
último esforço à chave elétrica das instalações da OPE. Não
tinha nenhuma arma na mão, mas riu roucamente ao ver
Brigitte.
— Vinte segundos — gemeu — e você e seu...
Suas pernas dobraram, os olhos reviravam-se nas
órbitas. Ao cair, agora morto de verdade, baixou a chave
elétrica do painel de controle.
Brigitte deu meia volta e saiu correndo dali. Alcançou o
fim da rampa a toda a velocidade e Número Um, que estava
amarrando o homem e a mulher desacordados no corredor,
olhou-a surpreso.
— Temos 16 segundos. Um. Corra!
Número Um não perguntou nada. Alcançou-a, segurou-a
pela mão e correram juntos pela casa, com a maior rapidez
possível. Levaram menos de oito segundos para chegar à
porta de saída. E, em menos de oito, estavam dentro do
Volkswagen de Brigitte, que partiu imediatamente.
— Ignoro a potencia da bomba...
Diante deles, a cinco casas de distância, uma bola de
fogo brotou da terra, estremecendo os prédios vizinhos que,
para felicidade de seus moradores, não eram parede-meia
com o 15. Centenas de vidraças foram rebentadas pela
explosão, num raio de mais ou menos cinqüenta metros. O
Volkswagen estremeceu um instante, sob a intensa onda de
calor. Um montão de pedras e pedaços de madeira saltou
para o ar, envolto em fumo negro, em meio às labaredas...
— O que está esperando? — grunhiu Número Um.
Brigitte partiu dali, dando meia volta fazendo guinchar
ruidosamente as rodas do carro no asfalto.
***
— Parece que você acabou com a OPE — disse Número
Um.
— Sobraram muitos agentes por aí, querido.
— Bah! Você e eu sabemos que esses agentes se
dissolverão na vida normal assim que deixarem de receber
instruções e, principalmente, dinheiro da OPE. Os chefões,
se podemos dizer assim, eram os que estavam na casa. E o
próprio Weissermann se encarregou de eliminá-los. Parece
que só restou mesmo Lucius Terrel, a quem eu trarei.
Estavam em Maldenstrasse, próximo ao ponto em que se
formava a praça do mesmo nome, cuja numeração
continuava a da rua.
— Não — disse Brigitte. — Você já matou Franz,
querido. Lucius Terrel quem vai matar sou eu.
— Está certo. Vamos.
— Também não. Quero subir sozinha, Um. Pode ser
uma armadilha, de maneira que irei só ao encontro de
Terrel. Se não voltar, peço-lhe o favor de terminar o
trabalho para mim, recuperando o microfilme com os planos
do “Transmissor Mental”. Mas, em primeiro lugar, mate-o.
— Se for uma armadilha, melhor será que eu a
acompanhe.
— Com o risco de cairmos os dois? Não. Você sabe que
não poderemos fazer isto. Está com o rádio?
— Claro — respondeu Número Um.
— Eu chamarei, se puder. Mas se em dez minutos não
chamar, nem sair do 65 de Malden Platz...
Beijou-o na boca, sentindo-o rígido, duro.
Evidentemente Número Um a amava muito.
Abriu a maletinha e guardou a pequena pistola, assim
como o rádio mais possante dos dois que trazia. A seguir,
tirou da maletinha uma piteira de marfim e brilhantes, assim
como o maço de cigarros que continha, camuflado
habilmente, o rádio menor, de pouco alcance.
Olhou para Número Um, sorriu levemente e tornou a
beijá-lo na boca, tensa de preocupação.
— Não fique triste, meu amor — sussurrou. — Você
sabe que “Baby” sempre volta.

CAPÍTULO OITAVO
Bonequinha inocente
Um homem rico
Mensagem final

Bateu na porta, depois de haver escondido num desvão


da escada de madeira o maço de cigarro com o rádio
camuflado. Se não tivesse tempo de usá-lo, estava bem ali
mesmo. Se houvesse tempo, tanto fazia levá-lo para cima ou
escondê-lo.
A porta foi aberta. Mas não por Lucius Terrel, e sim por
um desconhecido. Alto, forte, de sobrancelhas espessas,
olhar penetrante.
— Perdão — disse Brigitte. — Acho que estou
enganada.
— Por quem procura?
— Um amigo americano: Lucius Terrel. Mas estou
vendo que não é aqui...
— Pode entrar. É aqui mesmo.
A porta se abriu completamente e Brigitte entrou.
Arrependeu-se de imediato por não ter levado a pistola. E
mais ainda: por não ter permitido que Número Um viesse
com ela. Além do homem que abrira, estavam ali mais dois,
jovens, fortes, de aspecto menos sombrio que o primeiro.
Quase simpáticos, na verdade. Mas...
— Ela procura o americano.
Os dois se puseram de pé, gentilmente, sorrindo. Um
deles, ao vê-la, sorriu ainda mais.
— Somos amigos de Terrel — disse. — Marcou
encontro conosco aqui e chegamos na hora certa, mas ele
não está.
— Neste caso...
— Não, não, por favor. Fique miss...
— Brigitte.
— Ah...
— Bem, sou... amiga de Lucius. Vinha buscá-lo para
irmos à Ópera.
— Uma idéia de bom-gosto... Qual é o espetáculo de
hoje?
— L’A more de Diana, a última obra de Richard Strauss.
Sua obra póstuma. É estranho que Lucius não esteja aqui.
— Talvez tenha saído para alguma coisa urgente.
— Sim... Bem, quando ele voltar, por favor, diga-lhe que
Brigitte o está aguardando no teatro. É um pouco tarde e...
Voltou-se disposta a abandonar aquela pequena e
abarrotada sala, cheia de quadrinhos com paisagens
nevadas, caçadas... Mas o homem que abrira a porta cortou-
lhe o passo, acintosamente. Ao mesmo tempo, a voz do
mais simpático dos membros do trio ordenou:
— Reviste-a. Talvez esteja com ela.
— Que? O que...?
— É uma espécie de brincadeira — disse amavelmente o
homem. — Um jogo divertido, Brigitte.
— Mas vocês não têm o direito de...
— Cale-se — grunhiu o tipo mal-encarado, que já havia
começado a revistá-la.
E a agente “Baby” se calou. Enquanto um dos homens
revistava o abrigo e o vestido, passando maliciosamente as
mãos por todo o seu corpo, o outro abriu a pequena bolsa e
começou a tirar coisas. Em cinco minutos, os dois ficaram
desiludidos. Menos o que revistara a bolsa, que descobrira o
isqueiro de platina e brilhantes.
— Uma bonita jóia, Brigitte — disse sorrindo.
— Tenha cuidado com ela. Dentro há uma câmara
fotográfica.
— Não me diga!
— Sim, sim... Lucius me deu de presente, há tempos,
quando nos vimos em Miami. Gostei muito do presente!
Tirei fotografias gozadíssimas dos amigos com esta câmara
escondida!
— Acredito. Conhece Lucius há muito tempo?
— Bastante.
— Então, tendo em vista que é sua amiga, por que não
está vivendo com ele?
— Oh, não. Lucius me disse que... que não podia ser,
porque não queria que me vissem com ele em Viena. Disse
que iria tratar de um assunto muito rápido aqui em Viena, e
que depois iríamos para a Cote d’Azur passar uma grande
temporada, cheios de dinheiro.
— Pensava em fazer algum bom negócio?
— Não sei... Acho que sim.
— Um negócio de quinhentos mil dólares, por exemplo?
— Quinhentos mil dólares? Meu Deus! É dinheiro
demais!
— Depende do ponto de vista — disse o homem. —
Você gostaria de ter esse dinheiro?
— Claro que sim!
— Muito bem. E... não daria nada em troca?
— Ouça, cavalheiro... — disse zangada a hipócrita espiã.
— Não, não. Perdoe-me... Não me referia a “isto”. Mas
sim a uma pequena cápsula que poderia conter, por
exemplo, algumas fotos tiradas com a câmara que há dentro
do isqueiro.
— Vocês querem fotos dos meus amigos? Pois não
tenho nenhuma aqui... Ouçam: isto é uma brincadeira, não
é?
— Claro... É tudo uma brincadeira, Brigitte.
— Pois, se não se incomodam, continuaremos noutra
ocasião... Não gostaria de chegar atrasada à Ópera. Ou será
que não vão me deixar sair?
Encarou-os com os olhos arregalados, assustada. O
homem deu um sorriso amável e jogou-lhe o isqueiro de
volta.
— Parece-me que nos enganamos — disse. — Perdoe o
incomodo mas foi assim que combinamos com Lucius, por
brincadeira.
— Bem — Brigitte sorriu para os três. — Na verdade
vocês são bastante simpáticos... Oh, Lucius está demorando
demais. Vocês darão o recado, que esperarei por ele no
teatro?
— Daremos. Bom espetáculo, Brigitte.
— Obrigada... e boa-noite.
— Até logo.
Permitiram que saísse. O homem das sobrancelhas
espessas voltou aborrecido para a sala.
— Ela tem algo que ver com isto — grunhiu.
— É possível. Mas talvez não. Precisamos ter cautela
para não nos enganarmos. Vá com Ivan no carro e trate de
segui-la. Turguev e eu ficaremos esperando por Terrel. É
possível que ela os leve até ele. Talvez a tenha enviado na
frente, como uma pombinha ingênua, para ver como
andavam as coisas por aqui.
— Não estou gostando nada disto — disse Turguev. —
Parece-me uma armadilha.
— Não há motivo para alarmar-se tanto. Pode haver um
atraso normal de Terrel e esta mulher ser realmente sua
amante, noiva ou coisa parecida, e não saber em que
confusões ele anda metido. Mas isto saberemos logo se a
seguirmos, sem a perder de vista. Se Terrel vier, nós nos
entenderemos com ele, e assunto encerrado.
— Está bem. Eu vou, então.
***
Quando Brigitte chegou ao Volkswagen, Número Um
não estava mais lá. Ou seja, entendera perfeitamente seu
aviso disfarçado, ao parar na porta, vacilante, meio
desorientada, e tratara de esconder-se em qualquer lugar da
rua. A espiã entrou no carro, deu a partida e afastou-se,
fazendo a volta... Olhou pelo espelho retrovisor.
Sorriu friamente, com desprezo, e tirou o rádio da
maletinba vermelha, estampada de flores azuis.
— Número Um?
— Está sendo seguida. E o meu carro ficou em...
— Não se preocupe. Eu vou para a Ópera. Na casa
haviam três agentes do MVD, de modo que sobrou um só
agora...
— Havia outro no carro, esperando.
— Oh... Bem, a sua ajuda é inestimável, querido. Lucius
Terrel não estava lá, e os russos o esperam. Neste momento,
dois estão aguardando e dois estão me seguindo, na
esperança de encontrá-lo. Coisa pouco provável, já que não
faço a mínima idéia de onde está. Assim, como já disse, vou
para a Ópera, com os dois na minha pista. Espero que eles
gostem de L’A more de Diana. Quanto aos outros dois e a
Terrel, não tenho mais remédio do que deixá-los para você.
É uma pena, porque teria enorme prazer em matar este
traidor. Alguma dúvida, meu bem?
— Nenhuma.
— Ah, outra coisa: os agentes russos parecem estar com
os quinhentos mil dólares. Vi uma pasta de couro que deve
conter o dinheiro. Deste modo, suponho que farão jogo
limpo.
— Jogarão limpo — disse Número Um. — Conheço
bem os russos. Por meio milhão de dólares não ficarão mal
com uma organização que pode proporcionar-lhes coisas
muito interessantes no futuro. Estamos supondo, além do
mais, que antes não tenham realizado negócios com a OPE.
Talvez já tenham utilizado os seus serviços.
— Tudo é possível. Até logo, querido, e preste atenção à
possível vinda de Lucius Terrel. Já sei que é uma bobagem
minha pedir a Número Um que faça as coisas bem. Ciao,
amore.
***
Lucius Terrel fez parar o táxi um pouco antes de Malden
Platz. Depois, seguiu a pé até o número 65.
Subiu as escadas preocupadíssimo. Aterrado era a
palavra exata. Primeiro, fora informado que os russos já
estavam avisados, e que iriam às sete em ponto. Mas, às
sete em ponto, contra todas as normas da espionagem, os
russos não se haviam apresentado para comprar o
microfilme com os planos do “Transmissor Mental”. Então,
entrou em comunicação pelo rádio com a OPE e não obteve
resposta. Alarmado, muito inquieto, saiu do esconderijo em
Malden Platz para, contra todas as ordens, ir até o número
15 de Offenhzollstrasse... Já próximo dali, vira as enormes
labaredas vermelhas que subiam para o céu. E, quando
chegou, tudo estava cheio de policiais e bombeiros... Da
casa número 15 de Oltenhollstrasse só restavam as
fundações.
E por isso estava aterrorizado. Porque não ignorava que
a CIA, ou por intermédio de Brigitte Montfort ou de outro
agente, havia entrado em ação, destruindo a OPE. É claro
que estavam na sua pista, com péssimas intenções e...
Sim. Estava apavorado. A única coisa que poderia fazer
era recolher suas coisas de Malden Platz e sair de Viena e
da Áustria o mais rapidamente possível. Para qualquer
lugar...
Abriu a porta e entrou. Ficou pálido de espanto ao dar
com os dois homens, que o encaravam de cenho franzido. A
CIA o havia encontrado, pensou.
— Terrel?
— Sim — murmurou desanimado; sabia que não
adiantava negar.
— Temos o meio milhão de dólares. Você tem o
microfilme?
As palavras saíram secas, ásperas, da boca daquele
homem. Parecia aborrecido. Mas isto importava muito
pouco agora. Terrel prontamente recobrou o ânimo,
agradavelmente surpreendido. Se aqueles dois eram os
agentes russos, queriam somente o microfilme e pagariam
por ele quinhentos mil dólares. Para que informá-los de que
a OPE havia... desaparecido? Por que não entregar o
microfilme, cobrar os quinhentos mil dólares e sumir? Uma
fuga com meio milhão não é triste...
— Sim — respondeu. — Eu o tenho.
— Então, não percamos tempo. Já esperamos demais.
— Bem... Vocês não vieram na hora combinada...
— Tivemos um enguiço com o carro. Nós não moramos
em Viena, Terrel! E temos que regressar imediatamente. De
modo que não percamos mais tempo. Aqui estão os
quinhentos mil dólares. Espero que não precise contar o
dinheiro.
Jogou em sua direção a pasta de couro. Lucius Terrel,
esforçando-se para não se trair pelo nervosismo, pela
emoção, abriu-a e contemplou por segundos os maços de
cédulas. Meio milhão de dólares só para ele! Nada de dez
por cento... não, não: todinho para ele. Sem dúvida, com
aquele dinheiro, teria muitas probabilidades de encontrar
um lugar para viver tranqüilamente...
— Não vou contá-lo. Basta que o veja. Entregarei
imediatamente o microfilme.
Foi até a mala, abriu-a, levantou o fundo falso e abriu
um pequeno compartimento situado em um dos ângulos.
Dali tirou uma pequena cápsula de plástico, dentro da qual
deveria estar o microfilme.
Um dos russos pegou a cápsula, abriu-a... e a diminuta
tira negra, brilhante, saltou em suas mãos. Segurou-a pelas
pontas e olhou-a contra a luz. Esteve uns segundos
examinando-a e aquiesceu com a cabeça. Enquanto
guardava de novo o microfilme na cápsula de plástico
opaco, falou, sem olhar para Terrel.
— Espero que isto não seja... uma piada, Terrel. A OPE
não duraria nem um dia se a MVD se desgostasse com ela.
— Entendo. Não é piada. Eu mesmo consegui este
microfilme, e garanto pessoalmente sua autenticidade.
— Melhor para todos. Ah, uma coisa: conhece uma tal
de Brigitte?
Lucius Terrel quase deu um grito de espanto. Mas
controlou-se e somente empalideceu um pouco, olhando
meio assustado para o russo.
— Por que pergunta?
— Ela esteve aqui. Disse que veio buscá-lo para irem à
Ópera juntos, e que era... uma amiga sua. Deu a impressão
que não sabia de nada. Está certo?
Terrel não era bobo. Se Brigitte estivera ali, então a CIA
estava na sua pista. Se dissesse isto aos russos, estes se
sentiriam ameaçados pelo mesmo perigo e, na certa, o
matariam, levando o microfilme e o dinheiro.
— Sim — disse. — É isto mesmo. uma garota ingênua,
com que mantenho certas... relações. E isto é tudo. Ela não
sabe nada sobre espionagem. Podem estar tranqüilos.
— Com toda a certeza?
— Absoluta. Ela e eu iremos logo daqui para a Cote
d’Azur, e ela não saberá de nada.
— Estou satisfeito com isto. Chame Ivan e avise-o.
O outro russo tirou um pequeno rádio de pilha e ligou-o,
começando a falar na sua língua, de modo que Terrel não
entendeu nada, mas percebeu que era uma mensagem
tranqüilizando o agente soviético quanto à periculosidade
de, nada mais nada menos, que Brigitte Montfort.
Mas, certamente, isto não interessava a Terrel. Tudo o
que desejava era que fossem embora dali, para ele poder
escapar imediatamente. Que se entendessem a CIA e a
MVD, agora que ele possuía o dinheiro e a OPE havia sido
destruída!
O russo terminou a mensagem, guardou o rádio e disse
algo ao seu companheiro, que sorriu, olhando para Terrel.
— Nós agora vamos até a Ópera, onde nossos
companheiros esperam ouvindo L’A more de Diana para
regressar a... nossa base. Suponho que você irá também ao
teatro onde Brigitte o aguarda, mas não me parece prudente
irmos juntos.
— Claro. Eu sairei dentro de alguns minutos. Tenho que
vestir o smoking.
— Oh, sim. Deveria levar um no carro, como nós.
Adeus, Terrel.
— Adeus. Vou acompanhá-los...
— Não se incomode.
— Como preferirem. Até a próxima.
Os dois russos saíram da sala, para o corredor que levava
à rua. Lucius Terrel correu para a mala, metendo suas coisas
apressadamente dentro dela. Sairia dali imediatamente.
Com tamanha rapidez, que ninguém poderia alcançá-lo.
Ouviu a porta da saída abrir. Depois, um ruído
semelhante a dois estalos, seguido do barulho de algo
caindo no chão... A porta bateu.
Dois estalos... subitamente Terrel entendeu o que estava
ocorrendo e levou um choque tremendo. Empalideceu tanto
que poderia ser confundido com um cadáver de vários dias.
Ficou com os lábios secos. Aqueles estalos... Tiros com
silenciador especial, de dupla absorção de ruídos...
Voltou-se para a mala, tirou o revólver e apontou para a
porta da sala...
Plop.
O tiro acertou em cheio no seu ombro direito. Foi um
impacto tremendo, de bala 45, que o derrubou de joelhos,
depois de obrigá-lo a girar sobre si mesmo, perdendo o
revólver.
Ficou assim, de joelhos, gemendo, olhando para a porta,
desconcertado e assustado. Não conhecia aquele homem
vestido de negro, tão tisnado pelo sol que seu rosto parecia
de autentico bronze. Media mais de um metro e noventa,
tinha os olhos muito negros, as mãos grandes, de nervos
salientes, belas e fortes ao mesmo tempo; um queixo
agressivo, boca que era como um risco na pedra. A enorme
“Parabellum” não se movia em sua mão forte, viril, bela, de
artista.
— Quem... quem é você?
— Sou Número Um, Terrel. Um espião particular,
apaixonado até a morte por Brigitte Montfort. Ela tem uma
mensagem para você.
— Bri... Brigitte Montfort?
— Ela mesma. Escute, Terrel... — acionou o rádio
portátil que tirou do bolso com a mão esquerda e disse: —
Adiante, querida. Ele está de joelhos.
A doce, a incomparável voz de Brigitte Montfort brotou
daquele pequeno aparelho como um jorro gelado:
— Querido, não me incomode agora: estou ouvindo a
ópera.
— Não tem nada pala dizer-lhe? — sorriu Número Um.
— Nada — ouviu-se de novo Brigitte. — Mate-o. É
tudo.
Número Um guardou o rádio e olhou para o pálido,
transtornado, aterrorizado Lucius Terrel, que levantou o
braço não ferido num gesto de súplica.
— Não.... Não! Pelo amor de Deus, Número Um, não...
Eu tenho... tenho meio milhão de dólares... Para você!
Podemos enganar essa mulher...
Plop.
CAPÍTULO NONO
“L’Amore de Diana”
Todos mais ricos...
Aqueles dias em Viena

A representação da ópera L’Amore de Diana estava


sendo um autentico sucesso. Em tudo e por tudo. A
partitura, a qualidade dos artistas, os cenários, a beleza da
Ópera de Viena, em pleno centro da cidade, na Karnter
Strasse, quase no cruzamento das ruas Operring e Wiedner
Hauptstrasse. O prédio do formoso edifício da Ópera estava
rutilante de luzes.
No interior, centenas de jóias refulgiam na platéia e nos
camarotes. Damas elegantíssimas de decotes audaciosos,
peles, beleza por todos os lados. No grandioso cenário, a
obra póstuma de Richard Strauss estava sendo
magnificamente interpretada.
E naquele maravilhoso local, solitária em um camarote,
a mais bela mulher de todas que lá estavam, maravilhosa no
seu elegante, sóbrio mas audacioso vestido de gala. Mais
resplandecente que todas as jóias reunidas naquela seleta
platéia! Trazia um elegante binóculo cor-de-rosa na mão
direita.
Binóculo que não era somente focado no palco, mas
volta e meia desviava-se para o lugar da platéia onde dois
homens voltavam a toda hora a cabeça para ela. Um deles
havia saído uns minutos antes, bem no meio de um ato, sob
os olhares de censura dos espectadores. Ao voltar, sussurrou
alguma coisa ao ouvido do companheiro. Olharam para os
relógios... E mais tarde, antes do final do primeiro ato, o
mesmo que já havia saído tornara a levantar. Parecia muito
inquieto. Abandonara a platéia... e não havia regressado até
se acenderem as luzes.
A mais linda mulher do mundo aproveitou o entreato
para ir a o saguão exibir sua formosura. Quando tirou um
cigarro, meia dúzia de homens, elegantíssimos em seus
smokings impecáveis, saltaram literalmente para ela, de
isqueiro em punho. Um deles foi o escolhido, mas nenhum
arredou pé de junto da belíssima dama de casaco branco de
vison, todos com o rosto brilhando de satisfação, sorrindo
felizes, como se estivessem no paraíso...
Quando tiveram de voltar para os seus lugares, ficou
bem claro que prefeririam continuar ali conversando com a
divina, encantadora, simpática mulher, dona dos mais belos
olhos azuis do mundo. Inclusive o russo, que não a perdera
de vista nem um só momento.
Na metade do segundo ato, ou pouco antes, o outro russo
voltou ao seu lugar. Entrou apressado, com a testa brilhante
de suor. Murmurou algo ao ouvido do companheiro e este
ficou tenso, transfigurado. Olhou para a bela dama, mas O
Outro balançou negativamente a cabeça e pôs-se em pé
novamente, sendo advertido pelos espectadores vizinhos, já
aborrecidos com o movimento.
Os dois abandonaram a Ópera.
Com uma de suas delicadas mãos, Brigitte ligou o
aparelho de rádio do tamanho de um maço de cigarros e
falou:
— Número Um? O que está acontecendo?
— Teus admiradores regressam para... para não sei
onde.
— Me abandonaram? — sorriu a dama.
— Você não interessa mais a eles. Terrel os convenceu
de que você era uma garota inofensiva. Pobre Terrel!
— Que descanse em paz.
***
A espiã mais formosa do mundo entrou alegremente em
sua suíte, com seu passinho miúdo e elegante. Tinha sido
uma noitada agradável. Muito agradável.
Atirou o casaco de vison no sofá e olhou para a porta do
quarto.
— Número Um? — chamou, em voz baixa.
O atleta vestido de negro apareceu na porta, com uma
taça de champanha em cada mão. E no fundo das taças, uma
cereja vermelha, brilhando entre as borbulhas douradas.
Brigitte pegou uma das taças e tomou um golinho.
Ergueu vivamente as sobrancelhas, olhando admirada para
Número Um.
— Oh...
— Sempre trago comigo duas garrafas de “Perignon
55”. E cerejas. Nunca se sabe quando pode aparecer minha
amada “Baby”.
— Você pensa em tudo. E o microfilme?
— Está comigo.
— Os russos?
— Somente feridos... vão sobreviver.
— E os quinhentos mil dólares?
— Estão conosco — sorriu Número Um. — O que você
fará com seus duzentos e cinqüenta mil?
— Serei mais rica.
— Você... ou os velhinhos do asilo de Nova Iorque?
— Todos seremos mais ricos. Já separou a sua parte?
— Aceite-a como um presente.
— Eu sabia — sorriu Brigitte.
Número Um desviou o olhar.
— Ficará muitos dias ainda em Viena? — perguntou.
— Deixe-me ver... Ainda faltam três espetáculos dos
cinco previstos. Mas como não há espetáculo todos os
dias... não sei. Uma semana, mais ou menos.
— Então, desejo-lhe uma feliz estada em Viena.
— Número Um terminou o champanha e apontou para a
mesinha de cabeceira. — O resto da garrafa é um presente
meu.
— Mais presentes, querido? Mas... aonde vai?
— Para a “Vila Tartaruga”.
— Está se sentindo velhinho?
— Ainda não.
— Então, fique aqui.
— Em Viena?
— Sim. Em Viena, e comigo. Aqui mesmo e agora.
— Vai ficar uma semana inteira comigo? — murmurou
Número Um.
Brigitte deixou a taça e seus braços desnudos enlaçaram
o pescoço do melhor espião masculino do mundo.
— Meu amor — murmurou, — qualquer dia, uma destas
missões que cumprimos com tanta facilidade agora nos
sairá mal. Qualquer dia, eu saberei que o meu Número Um
foi morto, ou você saberá que “Baby” foi vencida,
finalmente. Não sei o que pensa a respeito, querido, mas eu,
quando me matarem, fecharei os olhos e meu último
pensamento será para você, e para estes nossos dias em
Viena...
SUCESSO JORNALÍSTICO

Os passageiros do vôo Viena-Paris-Nova Iorque estavam


aparecendo já no saguão. E não havia dúvida que aquela
moça bonita de olhos azuis já havia sido designada, no
mínimo, Miss Vôo 118..
— Hei! Brigitte!
A passageira belíssima fechou os olhos, resignada.
Quando os abriu, deparou com Frank Minello, falando pelos
cotovelos e agitando um ramo de rosas vermelhas. Mas
também estavam ali vários companheiros do jornal,
inclusive Miky Grogan, seu chefe de redação, com um vasto
sorriso que se abria de orelha a orelha e — surpresa
incrível! —também com um ramo de rosas na mão. Todos
falavam ao mesmo tempo...
— Calma, calma! O que está acontecendo?
— Os teus artigos! — gritou Minello. — Tiveram um
êxito tremendo junto ao público! Que finura de expressão,
que profundos conhecimentos de música, que poder
descritivo da doce Viena, da Viena Romântica...!
Brigitte, sorrindo, levantou as sobrancelhas ao ver, um
pouco mais atrás, sobrolho franzido, Tio Charlie, que se
mantinha discretamente na sombra como deve fazer um
espião. A seu lado, sorridente, o Johnny gigantesco da
“Floricultura Charlie”. Brigitte enviou-lhe um beijo
discreto, e até Charles Pitzer sorriu. Sua mão direita ergueu-
se, reunindo os dedos índice e polegar, no clássico gesto de
okay. Tudo saíra bem, perfeito.
— ... e esse modo de escrever sobre a vida em Viena, os
namorados! — prosseguia Minello.
— Foi formidável! Não somente as críticas de cada
ópera representada, mas tudo. E, principalmente, o que
conquistou os corações dos leitores foram os artigos
complementares sobre a velha, formosa e doce cidade
vienense! Recebemos milhares de cartas, assegurando que a
pessoa que escrevia esses artigos devia estar apaixonada por
alguém que a ensinava a amar a velha Viena. Um vienense
residente em Nova...
— Está bem, Frankie — riu Brigitte. — Obrigada a
todos pelas gentilezas e... de fato, jamais poderei esquecer
aqueles dias em Viena.

© 1967 - LOU CARRIGAN


Publicado no Brasil
pela Editora Monterrey
390828 / 390905

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