Prego Na Cabeça

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Prego na Cabeça

Antes que a primeira gota de chuva caísse, o mundo estaria limpo mais uma
vez.

Sob um enfadonho luar de fevereiro, a noite prosseguia calma, aconchegante, até


silenciosa, sem qualquer resquício de anormalidade. Assim pensava a maioria das pessoas, mas
a maioria das pessoas, por terem um total ou parcial desconhecimento sobre o Oculto, jamais
poderiam crer que somente há alguns quilômetros da cidadezinha Pepita, no meio de um mar
verde escuro de árvores, estava um pequeno vilarejo isolado chamado Fadigueiro. Por lá, a pura
barbárie encontrava um refúgio para ecoar suas melodias de medo, tão horripilantes que nem o
mais bravo dos homens suportaria ouvir, principalmente em uma noite tão bonita quanto essa
que parecia fluir tão serena. Para a sorte de uns e o azar de outros, quilômetros de árvores
abafavam o terror. E a noite fluía ainda com beleza.
Pepita era um lugar bonito, apesar de não ter muita coisa para se ver ou fazer, no
entanto, certamente era ótimo para viver uma vida sossegada se você é do tipo que não precisa
de tanto para levar a vida. O pequeno hotel da cidade estava passando por belíssimos problemas
financeiros, a freguesia era sempre fraca em janeiro, o pico de turistas na cidade ocorria mesmo
no mês seguinte, fevereiro, graças à grande safra de camarão. Para comemorar essa época farta,
ocorria o então famoso Festival do Camarão. Várias barracas se amontoavam no centro da
cidade e um parque temático era montado, garantindo a diversão das crianças e dos adultos.
Todos os pequenos adoravam dar uma volta no Camarão Travesso. Mas essa época ainda não
chegara, então o hotel tinha que se virar com a baixa freguesia. Nesse respectivo dia, apenas três
pessoas estavam hospedadas no hotel. Fizeram o checkin há três dias, e o gerente constatou que
eram tipos bem estranhos. Chegaram juntos em um táxi. No hotel, pediram quartos separados. O
trio de jovens era formado por um garoto e uma garota negra, abençoados por uma bela
aparência. O rapaz com seu maxilar bem marcado e a garota com lábios carnudos e cabelo
trançado. A outra pessoa era uma jovem de cabelo curto bem escuro e repartido no meio.
Parecia muito nova, no auge dos seus vinte e tantos anos, contudo, sua beleza jovial era
estragada por uma horrenda cicatriz na ponta direita do lábio inferior, quase chegando na maçã
do rosto. Os três vestiam ternos. Pessoas de ternos era incomuns naquela área.
Eram por volta das 19:30 quando os três sujeitos saíram de seus respectivos quartos
para fazer o checkout. Não carregavam uma bagagem grande, cada um com sua mochila e nada
mais. Os ternos agora estavam parcialmente ocultos por leves casacos, caso a noite pudesse ser
mais fria do que o imaginado.
Apesar de terem se retirado do hotel, ainda estavam parados em frente a fachada do
mesmo. esperando alguém, de repente. A garota de cabelo curto estava sentada em um banco de
madeira velho encostado no baixo muro de pedra acentuado com plantas de um verde bem
escuro. Ela comia um barra de cereal que tinha pego da máquinas de lanches do hotel. E barras
de cereais pareciam ser um assunto sério para a jovem, do tipo que é necessário escolher a dedo
e com cautela, visto que ela passou sete minutos para escolher uma mísera barra. Os outros dois
estavam em pé, um em cada ponta do banco. O silêncio entrelaçado dos três eram bem
constrangedor, mas ninguém ousava quebrá-lo, foi assim por alguns minutos insuportáveis, até
que a garota sentada tossiu feito um cão moribundo.
— Desculpa! — disse ofegante. O rosto vermelho feito tomate.
— Tudo bem — respondeu a outra jovem que estava em pé.
— Me engasguei com o amendoim da barra — explicou.
— Cê sabe que horas são, Clarice? — perguntou o rapaz, dando pouca atenção a
situação.
— Sete e quarenta e seis.
— Onde esse cara se enfiou, hein?! — resmungou o rapaz.
— Relaxa, Thomas. Ele já deve estar chegando — falou a garota de pé.
— Sua irmã está certa, ele já deve estar vindo — concordou Clarice. — Sendo sincera,
eu queria que ele nem viesse. Não estou com um bom pressentimento.
Era um sentimento válido. Dois dias atrás, eles foram mandados para realizar uma tarefa
boba: exorcizar possíveis demônios de primeiro grau. Nada demais. É o tipo de criatura que se
pode matar até mesmo com uma arma de fogo. Dado o tamanho da Fenda que os especialistas
da Associação detectaram, seria brincadeira de criança. Provavelmente o mais difícil seria
chegar ao local, já que se trata de um lugarzinho remoto e de difícil acesso. Tudo bem, Clarice
já tinha trocado seus sapatos socias por botas para essa missão. Só que uma resolução simples
de uma tarefa simples seria pedir demais para o ramo de exorcismo.
Tudo aconteceu quando o trio fazia um rastreio na área, em busca de vestígios, Thomas
viu um Arauto da Desgraça sobrevoá-los durante a atividade. Ignez não acreditou e achou que
Thomas poderia estar confundindo a criatura com alguma ave de rapina (mesmo um Arauto se
parecendo mais com um enorme morcego do que com uma ave). Minutos depois o demônio
passou novamente e dessa vez todos viram. Ficou claro o que era. A reação imediata foi histeria
coletiva. Depois, os três se encaminharam de volta ao hotel e reportaram o ocorrido. Ignez e
Thomas estavam há três anos no trabalho, Clarice há um ano e meio, ambos nunca tinham visto
aquele tipo de demônio. Isso porquê é um fenômeno raro, e quase sempre é motivo para temer o
futuro. Arautos da Desgraça são como cachorros de estimação de grandiosos demônios. Ou
talvez estejam mais para papagaios. Seja qual for, eles precedem uma ameaça, servem como
uma ferramenta de varredura de área para seus donos, que quase sempre não são um amor de
pessoa. Era esperado que uma nova equipe fosse mandada, substituindo o trio por agentes de
terceiro grau. A realidade, no entanto, decidiu fazer uma surpresa: a equipe permaneceria a
mesma, e um Mestre-Exorcista se juntaria a eles. Então o temor de Clarice por lidar com algo
desconhecido e possivelmente além de sua capacidade se mostrava palpável.
— Não adianta atrasar o inevitável — rosnou Thomas. — Temos que fazer esse
trabalho cedo ou tarde. E eu prefiro que seja o mais cedo possível. — Sua postura impaciente
notória como sempre.
— Tudo vai ocorrer bem. Com um Mestre-Exorcista, não temos o que temer. — falou
Ignez, com um tom esperançoso.
— Ter um Mestre-Exorcista com a gente é o que me preocupa. Cês sabem que esses daí
só pegam peixe grande, não é?! E o que a gente vai fazer se tivermos que lidar com uma parada
que não é da nossa altura?!
Ignez ficou calada, fervendo por dentro. Uma coisa que ela odiava era ter suas frases
inspiradoras avacalhadas pelo próprio irmão. Clarice percebeu isso, e resolveu mudar o rumo da
conversa para algo que todos gostassem.
— Pessoal, o que vocês vão fazer com o bônus que vamos receber? — perguntou
Clarice.
— Acho que vou comprar cuecas novas — disse Thomas, primeiro que todos. — Ah,
também uma nova barra fixa para malhar — O entusiasmo contido aos poucos era exibido. —
Também preciso de um novo coldre para minha pistola, esse tá muito velho — falou batendo no
coldre preso a cintura. — Talvez eu leve uma garota que eu conheci pra um encontro, num
restaurante fino, aqueles que só dá a nata gorda! Sabe, essa garota que eu conheci é super gata,
além disso, é inteligente para um caralho. Ela merece um jantar massa!
— Bem, eu vou comprar um novo notebook, de uma marca boa dessa vez! Ah é, e
brincos! — respondeu Ignez, sonhando acordada.
— Eu ainda não pensei no meu... Acho que vou guardar uma parte para faculdade e com
o resto eu vou pagar uma cirurgia no ouvido. Minha última missão foi um desastre e eu me
ferrei toda. Mas só se sobrar dinheiro, já que eu tenho que comprar os remédios para diabetes do
meu pai, e um deles é bem caro.
Um silêncio subiu por alguns instantes. Os irmãos sentiram uma pitada de dó em suas
línguas. Mesmo estando pouco tempo no ramo de Exorcismo, eles tinham plena consciência das
condições desumanas que esse trabalho os submetem, além do risco diário de ser possuído por
um espírito maligno ou ter seu sangue retido pelas presas de um vampiro, de certo modo, um
agente de baixo nível quase nunca consegue sair sem sequelas, sejam elas físicas ou mentais. O
emprego não oferecendo plano de saúde, e o salário dificilmente cobrindo os gastos médicos,
aquela era uma vida de merda.
— Caso sobre grana para cirurgia, posso te acompanhar, se quiser — disse Ignez.
Clarice sorriu.
— Aí, conta comigo também — disse Thomas. E o sorriso dela ficou ainda maior. Um
carro a todo vapor passou por eles e fez com que Thomas se lembrasse do sujeito atrasado. —
Mas será que esse cara não chega nunca?! Eles tinham que chamar logo essa aberração pra nos
comandar... — ele balançava a cabeça inconformado, e seu pé batia no chão sem parar.
— Pelo amor de Deus, você se comporte quando ele chegar! — exigiu Ignez. — É a
nossa primeira vez trabalhando com um Mestre-Exorcista, tudo o que dizermos e fizermos será
reportado para Associação, você não pode estragar nossa chance de conseguir uma promoção!
— Eu concordo com ela... — disse Clarice, em voz baixa.
— É que eu não vou com a cara dele.
— Você nunca viu a cara dele, idiota — retrucou a irmã.
— E nem preciso. O sujeito é filho de um demônio com uma humana, preciso dizer
mais? Ele só está vivo por capricho do velhote xamã.
— Para de ser pessimista! Ele é muito íntimo da Angelina. Você sabe o quanto ela nos
apoiou e ajudou para entrarmos na Associação de Exorcistas. Devemos muito a ela — Ignez
estava certa, e Thomas sabia. — E se ela confia nele, então eu acho que podermos confiar
também. Dar uma chance, pelo menos.
— É, você ganhou essa — admitiu ele. E Ignez o fez ficar sem graça puxando sua
bochecha.
Ao fundo, duas luzes brancas subia na pista. O hotel ficava na entrada da cidade, onde
se podia ver a longa via em uma vista ampla, em contrapartida, à noite, a luminosidade da
estrada era mínima. O ronco do motor passou a ficar mais alto, era um som gostoso de se ouvir,
logo ficou visível a cor do carro, um preto fosco muito belo. Pelo que havia sido comentado
entre os exorcistas (de que aquele cara só conhecia a cor preta), ficou claro de quem se tratava.
O carro chegou devagar e parou no meio-fio, perto dos três sujeitos. A janela do motorista
abaixou e um rosto masculino apareceu.
— Então vocês serão os meus companheiros? — dentro do carro, uma trilha de heavy
metal animava o interior.
— Sr. Arthur? É você? — indagou Clarice, estupefata com ele. Boatos diziam que ele
era lindo, no entanto, este não era um adjetivo à altura daquele homem.
— O próprio. — ele parecia tudo, menos um agente do governo. Seu cabelo longo e
ondulado descia até as costas; parecia mais um rockeiro de quinta categoria. — Desculpem a
demora. Antes de vir aqui, eu tive cuidar do espírito de uma loira presa num banheiro de escola.
— Imagina — disse Ignez. E olhou para o irmão, lançado-lhe um olhar de aviso para se
comportar. — Não demorou nadinha.
Os três entraram no carro. Clarice se sentou na frente, ao lado de Arthur. Os irmãos
ficaram no banco de trás.
— Vamos começar o serviço — disse Arthur, e pisou no acelerador.

Durante a primeira hora todos os agentes conversaram entre si. A conversa fluía bem.
Mesmo com Thomas arisco em relação à Arthur, aos poucos, ele parecia estar gostando dele, ou
fingia isso muito bem. O Mestre-Exorcista se mostrou ser alguém simpático e engraçado,
contrariando muitos dos rumores que circulam na Associação. Discutiram sobre a missão e
como deveriam agir. Ignez comentou a história do Arauto da Desgraça, e Arthur falou como era
estranho eles continuarem na linha de frente. Todos chegaram ao infeliz consenso de que, no
fim, ordens são ordens, e estavam lá para segui-las.
Seguiram uma estrada reta por um bom tempo, uma floresta preenchia com densidade
todo arredor. O tráfego era mínimo, a maioria dos veículos que passavam naquela via eram
caminhões, pois era uma rota muito usada para transporte de material recém-extraído, vindo dos
bosques da região. O objetivo era encontrar Fadigueiro, que ficava em algum lugar ao fundo da
floresta. Para chegar lá, bastava fazer uma curva numa estradinha de terra que era quase
invisível aos olhos de quem trafegava por lá, tanto pela velocidade com a qual os veículos iam
como pelos pela discreta abertura da estrada entre quilômetros de floresta fechada. Bons olhos e
calma eram mais que necessários.
— Acho que estamos pertos de achar a estrada de terra — informou Clarice, olhando
em seu tablet. — Você pode seguir direto por mais alguns quilômetros, Sr. Arthur.
— Pode deixar. Ei, tive uma ideia — anunciou Arthur estalando os dedos. — Que tal
nos conhecermos melhor? Cada um fala três coisa que gosta e três coisas que odeia. Fechado?
— Começa você para gente pegar a visão — falou Thomas.
— Certo. Eu gosto de: rock, drogas pesadas e flores.
Esse cara é doente, pensou Ignez.
— Hmm, o que eu odeio é: comida presa no dente, filmes chatos e pessoas.
Ele definitivamente é doente, concluiu Ignez em seus pensamentos.
— Minha vez — anunciou Thomas. — Eu gosto namorar mulheres, malhar, ir a praia,
atirar em demônios, irritar minha irmã, sair com garotas, dormir até tarde e comprar coisas.
— Eu tenho quase certeza que você passou de três coisas. — falou Arthur. — E ainda
repetiu uma.
— Ah, eu só me empolguei — E deu de ombros. — Eu odeio muito acordar cedo, levar
fora, ficar sem malhar e ter o salário atrasado. Também odeio quando não preciso atirar em
nada.
— Sua vez, Clarice — disse Arthur.
— Bem, eu... É... Vejamos... Talvez... Tipo...
— Só fala o que vier na mente!
— David Bowie, gatinhos e filmes de terror! — disparou de uma vez. — Essas são as
coisas que eu gosto... Eu odeio quando me tratam mal, me ignoram ou tentam se aproveitar de
mim. Não gosto de nada disso...
— Compreensível, eu acho— disse Arthur, sem entender muito bem a situação.
— Beleza, só falta eu — falou Ignez. — Eu gosto de ler romances, nada muito erótico,
porque eu acho ridículo. Gosto de cuidar da minha pele e gosto também de ajudar os outros. Eu
não gosto de receber ordens de gente cretina, ficar em lugares apertados e fazer prancha.
— Você faz prancha de surf? — perguntou o Mestre-Exorcista.
— Meu Deus — suspirou incrédula. — Falo do exercício físico.
— Faz mais sentido. E aí, Clarice, estamos perto da estrada?
— Quase lá — falou ao conferir o tablet.
— Por que você não coloca um GPS nesse seu carro? — perguntou Thomas, no banco
de trás, mais inquieto que uma criança.
— Eu não sei usar isso.
— Como não sabe? — Uma fagulha se ascendeu na cabeça de Thomas e ele lembra
sobre os boatos de Arthur ser analfabeto. — Você teve educação básica, cara?— ele perguntou.
Clarice e Ignez ficaram apreensivas com a reação de Arthur.
— Mais ou menos. Não tenho nenhuma certificação oficial.
— Sabe matemática? — perguntou o jovem, se empertigando banco e ficando bem
próximo de Arthur.
— O suficiente pra efetuar um pagamento ou comprar alguma coisa.
— Sabe ler?
— Claro que eu sei, porra! — exclamou, não com raiva, mas com indignação.
— É, podia ser pior — satisfeito, Thomas se jogou para trás novamente.
— Sr. Arthur, é verdade que você é imortal? — perguntou Clarice, aproveitando o vento
da conversa.
— Não necessariamente imortal, mas eu tenho mais benefícios que um ser humano
normal. Se acontecer de eu “morrer”, só vou ter que passar pelo Labirinto da Vida e aí volto
para o Inferno, já que lá é meu lugar de origem. Serei julgado pelos Divinos, sendo levado para
o Tártaro para ser castigado ou assumindo algum papel de importância no rumo do Universo —
ele falava isso com uma estranha naturalidade. — Para eu morrer, a Morte teria que anular
minha existência, por algum motivo.
— Como é o Céu? — agora foi a vez de Ignez perguntar algo.
— Acho que não posso expor esse tipo de informações para vocês, suas cabecinhas não
suportariam. O que tem nos livros já é o suficiente.
— Quem criou os dinossauros? — indagou Ignez, com astuto interesse.
— Meu ex-pai — respondeu Arthur. — Aliás, os chifres do triceratops são bem
parecidos com os dele, aquele velho não tem criatividade.
— Não existe “ex-pai” — disse Ignez.
— Eu reneguei ele, então ele não é mais meu pai. Alguém quer chiclete?
— Eu quero — respondeu Clarice pronta para pegá-lo. — Eca, canela! Esquece. Isso
devia ser proibido.
— Ei, ei, me fala dos dragões! Eles existiriam mesmo? — perguntou Thomas.
— Dragões? Qual é, cara, em que mundo você vive?
— E quantos as fadas? — perguntou Clarice.
— Ah, é claro que elas existem! — respondeu Arthur.
— Puxa... — Ignez jogou suas costas no banco do carro e deu um longo suspiro. —
Tem tanta coisa que eu queria saber! Pena que parte do conhecimento é restrito pra maioria dos
agentes. Talvez eu devesse mudar de área.
— Talvez você devesse mesmo — concordou Arthur.
— E ela é super inteligente — acrescenta Thomas. — Mais inteligente do que qualquer
pessoa que eu já conheci. Ela se daria muito bem em qualquer área em que se precise usar mais
a cabeça do que o corpo.
— Como vieram parar no Departamento de Exorcistas? O que motivaram vocês?
Os irmãos se entreolharam.
— Longa história — disse Thomas. — A gente prefere não contar.
— Tudo bem. E quanto a você, Clarice?
— Bem, ser exorcista não era bem meu plano. Meu avô era zelador e trabalhava no
prédio da Associação. Quando eu terminei o ensino médio ele conseguiu me arrumar um estágio
por lá, só levando papelada para o pessoal. Durante esse tempo, meu pai parou de trabalhar por
causa da gangrena, nisso ele acabou amputando a perna esquerda. Eu e meu avô somos a única
fonte de renda da casa. Tenho um irmão mais novo e preciso sustentar ele no lugar do meu pai.
Acabei me aprofundando no trabalho e consegui uma vaga na Academia de Exorcistas. Passei
por pouco, e agora tô aqui.
— E o que aconteceu com sua mãe?
— Ela morreu logo após o meu irmão nascer.
— Sinto muito por isso — disse Arthur.
— Obrigada. Eu me sinto presa nesse trabalho. Meu sonho era fazer direito. Eu tô
tentando juntar uma grana para isso, mas agora tudo parece um sonho distante.
Por um momento o carro ficou em silêncio total.
— Eu não desistiria do direito — falou Ignez de repente. — Em algum momento você
vai conseguir tempo e dinheiro pra isso. Tem gente que começa a faculdade com cinquenta
anos.
— É verdade, vi uma reportagem de um homem que começou com sessenta e saiu com
sessenta em cinco — comentou Thomas empolgado.
— É, talvez eu faça — disse Clarice, e deu um sorriso inseguro, mas esforçado.
— “Sra. Clarice, advogada”, isso soa muito bem, não acham?! — com essa, Arthur a
fez corar.
— E quando ela conseguir o doutorado vai ser melhor ainda — falou Ignez, convicta.
— Dra. Clarice. Que sonoridade boa!
E todos concordaram. Ela sorriu, e seus olhos brilharam.
— Obrigada, pessoal! — exclamou. Sua atenção logo mudou quando viu o que estava à
frente — Gente, a estrada de terra está logo ali! — ela apontou para a vasta escuridão. Quando o
carro chegou mais perto com seus luminosos faróis, a estrada bem disfarçada ganhou forma.
— Foi nessa região que avistamos o Arauto da Desgraça. — disse Ignez. — Se dermos
sorte ele ainda pode estar por aqui.
O carro parou ao lado da estrada de terra.
— Deixa eu ver se consigo sentir algo — disse Arthur. — Fiquem quietos.
Todos ficaram. Arthur desligou o carro e fechou os olhos. Ele não percebeu nenhuma
aura hostil, o que era de se esperar, Arautos da Desgraça são mestres em esconder sua presença.
Nenhum demônio também foi detectado, outra vez, previsível, pois o dono de um Arauto da
Desgraça logicamente tem capacidade para também esconder sua aura.
— Nada — disse por fim.
— Vamos ter que ir lá para o fundo e vasculhar, não é? — perguntou Clarice, sabendo a
resposta.
— Pelo visto, sim— respondeu o xamã.
O carro ligou novamente e os faróis se acenderam, rasgando a escuridão. O ronco do
motor era realmente gostoso de se ouvir. Então o carro entrou mata à dentro. O que estava
adiante era desconhecido para a equipe. O que estava adiante já esperava por eles.

Depois de poucos minutos seguindo de carro pela estrada, a mata passou a ficar muito
fechada, impossibilitando de seguirem com o veículo. Arthur deixou-o no meio da estrada, um
pouco ressentido. Mas aquela era uma estrada velha que apenas os moradores de Fadigueiro
usavam, a possibilidade de furto era mínima. Ele apenas pegou sua espada no porta-malas,
lanternas para a equipe e um maço de cigarro de uma grande caixa de cigarros raros, comprada
de forma ilícita. Quando ele colocou sua arma na cintura ninguém escondeu a curiosidade,
olharam mesmo, sem vergonha na cara. Thomas pediu para segurar um pouco e Arthur
cordialmente negou. Aquela era uma arma lendária, com vários feitos conhecidos. Dizem que
ela carrega um poder de destruição inimaginável, outros acreditam que a espada sussurra para
Arthur coisas malignas para fazer com os humanos.
As árvores pareciam se estender sem fim. Eram enormes do tipo que o topo é difícil de
se enxergar. A lua estava parcialmente tampada por nuvens, para o azar da equipe. A devasta
escuridão se alastrava em todo o lugar, criando um cenário assustador e nada agradável.
— Que ódio. Esse lugar me dá calafrios! — reclamou Ignez. Os casacos estavam se
saindo muito contra aquele frio.
—Parece o cenário de um filme de terror — comentou Clarice. — Odeio missões em
lugares remotos. Minha antiga equipe adorava, por alguma razão.
As duas conversavam entre si, estando um pouco atrás de Arthur e Thomas, que iam
mais adiante, fumando juntos e discutindo a melhor forma de matar um vampiro.
— O que aconteceu com sua antiga equipe? — perguntou Ignez. — Se você quiser
falar, claro. Sei que as vezes pode ser difícil, quando acontece acidentes e essas coisas.
— Eles estão bem — ela respondeu. — Ninguém morreu. Eles que me expulsaram da
equipe porque me achavam uma inútil.
— O quê? Por quê?!
— Por causa da minha técnica de Utente. Eles acham que é imprestável. E por isso sou
um peso morto.
— Que idiotas! — exclamou Ignez com muita revolta.
— Não... Acho que eles estão certos. — ela abaixou a cabeça ao dizer isso.
— Lógico que não!
— Nas últimas missões eu fui mesmo imprestável. Um dos meus parceiros perdeu um
olho para salvar minha vida. Ele disse que se arrependeu de ter feito isso.
— Foi nessa missão que você conseguiu essa cicatriz? — perguntou apontando para a
boca dela.
— Sim. Nosso trabalho era exorcizar uma criança que tinha sido possuída pelo espírito
de uma prostituta. Em determinado momento enquanto eles faziam o ritual, o espírito se
descontrolou e pulou na primeira pessoa que viu, no caso, eu. Meu parceiro tentou nos afastar,
foi nesse momento que ela pegou a colher do prato de sopa que estava perto e enfiou no olho
dele, daí ela gritou bem alto: “pague o que me deve, seu mão de vaca!”
— Essa deve ter sido um missão difícil. Eu sinto muito por isso.
— independente de tudo, eu não consigo sentir raiva dele. Como eu poderia? Ele perdeu
um olho pra me salvar. Ele tem todo o direito de me humilhar, se quiser.
— Ninguém tem o direito de humilhar ninguém. Eu aprendi que quando você salva a
vida de alguém, você se torna responsável por ela para sempre. É assim que eu e Thomas
agimos. Já salvamos um ao outro diversas vezes, assim sempre nos tornamos responsáveis um
do outro.
— Vocês parecem ser uma ótima dupla.
Ignez olhou e sorriu para Thomas que andava à frente com Arthur, eles ainda falavam
sobre vampiros. Os dois pareciam muito versados no assunto, com Arthur explicando que já
conheceu todo tipo de vampiro, inclusive, namorou uma. E Thomas argumentando que estudou
tudo sobre eles, e que não existe um livro sobre vampiros que ele já não tenha lido ou um filme
que ele não tenha assistido.
— É, acho que formamos mesmo — assentiu Ignez. — Mesmo Thomas não tendo
técnica nenhuma, ele é ótimo com armas especiais. Só que a partir de agora, seremos um ótimo
trio.
— Você quer dizer que eu vou entrar oficialmente pra sua equipe?!
— Claro! Nosso antigo parceiro morreu e precisamos de um substituto. Só se você tiver
a fim, é claro — falou, fingindo dar de ombros.
— Nossa eu tô muito a fim! Obrigada, sério! — Clarice demonstrou sua alegria com um
abraço apertado, que pegou Ignez desprevenida, mas que acabou gostando muito.
A alegria é interrompida quando Arthur, de súbito, estagna, o que logo assusta a todos.
— O que houve? — indagou Thomas.
— Eu tô ouvindo gritos — informou Arthur.
— Eu não escuto nada — disse Thomas, forçando os seus ouvidos a captarem algum
som.
— Meus sentidos são mais apurado do que o das outras pessoas. Suponho que os gritos
venham de Fadigueiro.
Ignez e Clarice se aproximaram dos dois.
— O que devemos fazer? — perguntou Clarice.
— Quantos quilômetros ainda faltam para chegar lá?
Clarice conferiu no seu tablet.
— aproximadamente três quilômetros.
Demorou até que Arthur voltasse a falar.
— Não vai dar tempo — disse ele.
— Se corrermos, talv-
— Não. — falou Arthur, interrompendo Ignez. — Todos já morreram.
Clarice teve certeza que sentiu sua alma sair do corpo nesse momento.
— E como você sabe? — indagou Thomas.
— Alguém disse: “terminamos por aqui.”
— Então é mais de um? — questionou Thomas, quase consigo mesmo.
— Provavelmente.
— Ainda estão falando alguma coisa? — perguntou Ignez.
— Não. Estão calados. Vamos continuar, estejam preparados para qualquer coisa.
E assim prosseguiram. Ninguém conseguia falar mais nada. O único som daquela trilha
era a familiar cantiga da floresta, um coro de grilos, sapos, corujas, folhas se agitando e o vento
uivando. Enquanto caminhavam, a equipe percebeu Arthur distante, estranhamente distante.
Parecia inerte em pensamentos, e o resto da equipe estavam ficando preocupada com isso. Um
dos pontos de confiança para eles era estar junto de um Mestre-Exorcista, só que aos poucos
esse alicerce se desfazia.
O tempo passava e a estrada de terra já poderia ser renomeada para estrada de grama,
pois o mato já estava tão alto que, enquanto avançavam, era necessário subir bem as pernas a
cada passo para não tropeçar em nada. Os mosquitos também não ajudavam.
Minhas pernas estão destruídas... — reclamou Clarice, não conseguindo aguentar
aquilo calada. Sua testa começava a ficar úmida de suor.
— Aguenta aí — disse Thomas. — O vilarejo deve estar perto.
— Eu sei — ela conferiu o mapa pelo tablet. Foi nesse momento que a merda começou
a feder. — Que estranho...
— Que foi? — perguntou Arthur.
— O tablet não tá funcionando. Olha — ela mostrou aos demais. A tela do tablet
piscava repetidamente. E para surpresa de todos: desligou de vez.
— Aaaaah!!! Pessoal, o que pode ser isso?! Vocês acham que é o Arauto da Desgraça?!
Sr. Arthur?!
Clarice estava realmente histérica.
— Vocês está chamando muita atenção. Se acalme! — advertiu Arthur. Clarice tampou
a boca para abafar seus gemidos. — O Arauto da Desgraça não tem nenhuma habilidade
especial. Ele não pode causar interferência em eletrônicos.
— Se não é ele... — começou Thomas.
— Então, quem é? — terminou Ignez.
Uma coisa que ficaria marcado naquele dia seria o gigantesco trabalho de
reflorestamento daquela área.
— OLHEM! — gritou Clarice, apontando para o céu. Por alguns instantes, todos
ficaram hipnotizados com aquela visão. Centenas de pássaros cortavam o horizonte, migrando
da direita para esquerda. Não uma única espécie, mas diversas, eram aves de todos os tamanhos.
De repente se escutou um galope desenfreado e, saltando no meio da estrada, apareceu um
cervo. Vários cervos. O susto foi tanto que Arthur apertou a empunhadura da espada e por
pouco não sacou. Outros bichos desesperados também fugiam dali, raposas, guaxinins, roedores
esquisitos, e Clarice achou ter visto um puma aos tropeços no meio da bicharada.
— Que porra é essa?! — perguntou Thomas, com uma voz áspera.
— Alguma coisa lá na frente deve estar causando um grande estrago na floresta — disse
Arthur. E antes que todos sentissem, Arthur escutou, no fundo da terra, o subsolo fazer um
barulho estranho. — Merda...
— O que foi? — perguntou Clarice, desesperada. Arthur pareceu nem ouvir. — O que
foi, Sr. Arthur?! — ela tentou sacudi-lo mas ele era pesado demais para isso.
— Acho que está vindo um terremoto — respondeu finalmente.
Ao dizer isso, sua suposição logo se mostrou verídica. Todos sentirem o solo tremer.
Uma coisa assustadora de se sentir e que sem dúvidas provoca pânico em qualquer um, para eles
não foi diferente, no entanto, o susto mesmo foi ver o céu coberto por dezenas de árvores que
pareceram terem sido lançadas com doentia facilidade.
O estardalhaço foi enorme. Todos se jogaram no chão para não serem atingidos para o que
viesse do céu. E o impacto das árvores caindo sob as outras foi um som aterrador. Levou três
minutos para que alguém conseguisse realizar alguma ação. O chão não parava de tremer, e o ar
estava enrolado em uma nuvem de areia. Com tanto poder sendo liberado, Arthur pôde sentir
uma aura realmente maligna se aproximando. Uma aura conhecida.
Após os tremores darem uma trégua, pareceu que o mundo voltou a si outra vez.
— Pessoal? Tem alguém vivo?! — perguntou Arthur em um grito.
— eu tô aqui! — gemeu Thomas, arfando feito um cachorro machucado.
— Eu tô viva, eu acho — respondeu Ignez, com uma respiração pesada.
— Onde está a Clarice? — perguntou Thomas. Ela não tinha respondido nada. Arthur
acendeu seu braço esquerdo em um luminoso fogo, ajudando os outros a o encontrarem.
Colados uns nos outros eles deram poucos passos à margem da estrada e conseguiram encontrar
Clarice que estava se tremendo no chão. Chorando, talvez. Era difícil ver com exatidão.
— Consegue se mexer, Clarice? — perguntou Arthur, tentando ter alguma
sensibilidade.
— Eu... Eu... — ela estava sem voz. O que ficou no lugar foram apenas uma grunhidos
deprimentes.
Thomas se abaixou e tentou consolá-la com algumas palavras. Difícil dizer se serviu de
algo, mas ela ao menos teve forças para se levantar novamente.
— Pessoal, quero dizer uma coisa — anunciou o Mestre-Exorcista.
— Que desgraça está acontecendo aqui, Arthur?! — perguntou Ignez aos gritos.
— Papai Noel chegou mais cedo — respondeu com um deleitoso sarcasmo. — O que
você acha? É um demônio, caramba! Só que vocês não dão conta dele. Então, vou segurar ele
enquanto a ajuda chega.
— A gente foi mandado aqui pra matá-lo e quer que a gente meta o pé daqui? Tá dodói,
cara?! — Thomas testava a paciência de Arthur, mas ele permanecia imutável.
— Não peço isso como um amigo preocupado, é a ordem do seu superior — nesse
momento ele pareceu ser mesmo um agente de alta patente. — Olha pro estado da sua
companheira — ele se referia à Clarice, a menina estava só os nervos. — Ela não tem condições
de lutar. Levem ela para o início da estrada. Depois, peguem meu carro e fujam para a cidade e
liguem para Associação. Eu vou cuidar do demônio enquanto isso.
— Que merda a gente vai relatar pro nosso Departamento?! — indagou Thomas. —
Que a gente se cagou nas calças e arregou?!
— Vocês ainda estão na missão, seus idiotas! — informou-os com certa agressividade.
Seus olhos em vermelho sangue na ruína da floresta. — Esse é um Demônio Ancestral. Uma
Calamidade! Entendem agora?! Todo o país está em risco. Fujam e liguem para Associação,
tragam todos que puderem. Todos os Mestres-Exorcistas que estiverem perto. Digam a eles que
Lascivus e Libidus estão aqui.
Thomas ficou paralisado. Engoliu sua saliva em seco. Sua irmã arrumou a postura e
assumiu seu lugar.
— Você fala daqueles dois irmãos? Aqueles dos livros que estudamos?
— É.
— Como você sabe?
— Convivi muito tempo com ambos. Conheço bem a aura deles.
— Esse que quase nos matou seria q-
— Lascivus, provavelmente — respondeu Arthur antecipadamente. — Ele curte
destruição. A irmã provavelmente deve estar ocupada sodomizando homens. Eu consigo
entreter um velho amigo por um algum tempo. Agora, super gêmeos, me obedeçam e tirem sua
amiga daqui.
Uma risada distante explodiu a bolha de tensão.
— Ele está vindo — disse Arthur.
Os irmãos então caíram na realidade.
— Não morra — disse Ignez.
— Eu não teria tanta sorte.
Ignez segurou Clarice pelo ombro e de lá saíram. O Mal se aproximava. Sua risada cada
vez mais nítida e horrível. Arthur conseguia enxergar bem com seus olhos de demônio, isso
valia para ambos. Foi se formando uma silhueta alta dentro da nuvem de areia, caminhando na
direção de Arthur. Com a poeira abaixando, a silhueta passou a ganhar forma, com traços bem
visíveis. O mais chamativo sem dúvidas era um olho em seu peito, também tinha correntes
amarradas em sua cintura, presas por um cinto ou cinturão. Como modelo ele não teria futuro;
seu rosto era desfigurado e desproporcional, além de um sorriso que não cessava, exibindo
dentes afiados.
— Finalmente te achei... — disse o demônio. Falava em Língua Antiga. Arthur entendia
perfeitamente. — Você está com algo que me pertence...
— Ela não pertence a ninguém. Como chegou até aqui? — perguntou Arthur, não
parecia se sentir ameaçado, ao menos não demonstrava.
— Como todos os outros, através de uma Fenda.
— Fendas não se abrem de qualquer jeito, e demônios do seu porte não podem
atravessar facilmente. O que você e a puta da sua irmã estão armando?
— Não tenho nada à lhe dizer, Corruptus. Entregue-me minha prometida, e eu prometo
exterminar os humanos em poucos dias.
— Esse não é mais meu nome! — gritou Arthur, mostrando o quanto sua voz podia ser
severa. — E minha irmã não é sua!

UM MÊS ATRÁS

— Pela última vez, Lilith, eu não vou ler Dom Quixote de novo! Eu já li pra você três
vezes! É, eu sei que você gosta do Dom Quixote, mas tá na hora de mudarmos um pouco. —
Arthur se aproximou de uma pilha de livros protegida por um tipo de cobertura, feita com folhas
de bananeira. De lá ele puxa um livro aleatório. — Olha, vamos tentar esse: “Sonho de Uma
Noite de Verão”, é de Shakespeare. Angelina diz que esse cara só escreve coisa de primeira.
Vamos dar uma chance. Tá, depois desse, eu leio de novo Dom Quixote pra você. Sério? Você
acha que pareço com o Dom Quixote? Tá me chamando de doido por acaso? Se bem que eu tô
conversando com uma espada agora, acho que não posso ficar ofendido com isso. — A lua
sendo vista da praia estava linda. Uma fogueira bem ao lado de Arthur acolhia-o com seu calor
— Você quer saber quantos livros ainda temos? — Arthur se aproximou da pilha de livros
embaixo da cobertura e fez uma rápida contagem. — Acho que ainda nos resta uns vinte livros.
É, temos tempo pra ler tudo.
A ilha escondida abrigava o cansado do mundo. Arthur estava de férias e decidiu passar
um mês num lugar remoto, longe de qualquer resquício de civilização. Foram dois dias voando
para encontrar um lugar que o agradece suficientemente. Quando encontrou, logo se adaptou.
— Lilith... Você se arrepende? Não se faça de boba. De fugir comigo, você se
arrepende? — ele sorriu com a resposta dela. — Fico feliz. Um dia eu vou achar um jeito de te
tirar daí.
Lilith passou a falar sobre o que sentia. Ou se o que sentia era real.
— Seus sentimentos não são falsos, Lilith. Você ainda tem alma. É isso que importa.
Até encontrarmos uma forma de te trazer para o mundo físico, eu cuidarei de você. Isso, e você
cuida de mim. Pois assim são os irmãos.

O demônio avançou contra Arthur com grande ímpeto. Estava decidido em acertar um
soco. Mas o exorcista foi mais ágil e saltou por cima de Lascivus. Lilith estava em sua cintura.
Ele a sacou e ficou em posição de ataque.
— Você vai pagar por todo o sofrimento que trouxe à minha irmã! — exclamou Arthur.
— Foi você que a aprisionou em uma arma! — retrucou o demônio.
— Só fiz isso para deixá-la a salvo de você, seu maldito.
O demônio deu um riso debochado.
— Eu posso ver o quão preocupado você é para com ela. Usando-a como um
instrumento de matança, que belíssimo gesto de amor fraterno.
— Você não sabe de nada. Lilith não faz nada que não queira. A voz dela não foi e
nunca será calada.
— Isto me é muito cômico, pequeno Corruptos. Você afirma aos céus e ao inferno que a
voz dela ainda urge, muito porém, eu não consigo escutá-la.
— Claro que você não consegue. É preciso ter um laço verdadeiro com alguém antes de
poder ouvir sua alma.
Arthur agitou sua espada no ar e lançou dezenas de labaredas de chamas, iluminando
aquela estrada arruinada com o brilho quente do seu fogo. Lascivus também não era tolo,
conseguiu desviar da primeira onda, e foi acertado por algumas das últimas labaredas, sem lhe
causar muito dano.
— Mesmo com o passar dos anos, você continua sendo a mesma criatura fraca de
sempre, Corruptus. Incapaz de derrotar um verdadeiro Demônio. Seu pai estava errado sobre ti,
és um traidor covarde, e nada mais.
— O seu rei está errado sobre muitas coisas, Lascivus, mas nesse ponto eu vou ter que
discordar.
— Por quê está ajudando estas criaturas? Tão fracas que, quando me viram chegar,
correram como bichinhos assustados. Eu poderia ter matado eles com minhas correntes, todavia
eu não fiz. Queria conversar com você a sós, para resolvermos a questão de minha Prometida.
Arthur revirou os olhos.
— Minha irmã não é sua. Ela está dizendo que só de sentir sua aura perto dela tem
vontade de vomitar. E olha que ela nem tem mais corpo pra isso!
— Você está inventando! — latiu Lascivus.
Arthur em tom de prosa levou a espada bem pertinho do ouvido e disse:
— Hmm... Ela acabou de falar que sempre teve aversão à esse olho esquisito no seu
peito.
Lascivus então perdeu a linha.
— Você é mesmo uma desgraça para a Criação! Não serve nem pra ser um humano!
— Chega dessa conversinha de bar. Vai tentar me matar ou não? — perguntou Arthur,
com sua costumeira petulância.
— Você fez sua escolha!

Depois de bons minutos caminhando de volta, o trio finalmente chegou ao começo da


estrada. A luz ficou por conta de Thomas, Ignez e Clarice tinham perdido suas lanternas durante
o tremor. Andar de volta por aquela estrada foi aterrorizante, havia agora um medo racional de
que algo surgisse da escuridão e os atacasse, talvez novo tremor mais forte ocorresse, ou sabe-se
lá mais o quê. Clarice ao longo do caminho recuperou sua força e passou a andar sem a ajuda
dos irmãos. Ainda assustada e nervosa, dizendo coisas sem sentido. E a mais ilógica das coisas
ditas foi a de que ela iria pedir demissão assim que a missão estivesse terminada. Claro que a
garota falava da boca pra fora. Se saísse, como iria pagar o aluguel da casa? A luz? A água? A
comida? Mesmo resmungando em revolta, ela sabia que não iria se demitir, a vida não permitia
tamanho luxo. Se sobrasse dinheiro (ela sabia que não sobraria), iria fazer um tratamento para
cuidar da ansiedade.
— Me desculpem — Falou Clarice. Sua voz saiu fraca e cambaleante.
— Pelo quê? — indagou Ignez, sem vida em seu tom.
— Pelo meu surto. Eu fiquei igual uma criancinha assustada quando a terra começou a
tremer. Achei que eu fosse morrer.
— Não precisa se desculpar — disse Thomas. — Todos nós ficamos assustados.
— Mas vocês foram valentes e conseguiram juntar forças pra sair de lá. Se não tivessem
intervindo eu iria continuar ali no chão me tremendo, e o demônio iria chegar e me...
Um choro irrompeu.
— Calma — Ignez passou seu braço pelo ombro de Clarice num gesto acolhedor. —
Isso não é motivo para se envergonhar. Você temeu pela sua vida, e daí? Isso só prova que você
é humana.
— Mas eu... — entre lágrimas ela concluiu: — mas eu sou uma Exorcista! Não poss-
— E você é humana também! Não fomos treinados para esse tipo de situação, você
ouviu o Arthur. Essa luta não é nossa. O melhor que podemos fazer é alerta a alta patente para
que eles sim possam prestar algum apoio. Vamos fazer a nossa parte.
— Eu não vou mais dar chilique, eu juro! — e limpou as lágrimas que desciam pelo seu
rosto — Eu prometo provar que sou útil!
— Faça o que você pode fazer, é o bastante — falou Thomas.
— Eu vou! Serei como vocês, e agir quando preciso.
Os irmãos não conseguiram ter uma reação contente com a última parte. “Serei como
vocês”, e como eles eram? Não sabiam ao certo. De incontáveis probabilidades que a vida
poderia ter, essa não era uma das melhores. O ímã que os puxaram para tal poço de desgraça era
desconhecido, ou só oculto na alma. Algo que se teve início a partir de uma tragédia de infância,
tudo o que veio em seguida foi por meio de um vontade absorta que os levou para tal caminho
hostil.
— É ótimo ser uma inspiração, mas seja você mesma — comentou Ignez. — Esta
sempre vai ser a sua melhor versão — e terminou com algumas batidinha no ombro de Clarice.
Após longos minutos andando por aquela estrada escura e solitária, o som de carros na
pista se tornou audível, souberam então que estavam próximos de onde Arthur deixara seu
carro.
— Pessoal, vocês acham que alguém escutou aquele barulho? — perguntou Clarice.
— Você diz o barulho daquele monte de árvores sendo arremessadas pro outro lado da
floresta como se fossem gravetinhos? Óbvio que não! — respondeu Thomas, um pouco áspero.
Ignez lhe deu uma cotovelada para repreende-lo.
— Apesar da barulheira, estamos bem distantes da cidade então acho que não chamou
tanta atenção assim. Mas, pela manhã, aquelas árvores derrubadas com certeza não vão passar
despercebidas. Seu tablet continua com defeito, Clarice?
— Eu... deixei ele lá.
— Ótimo trabalho — disse Thomas. — Como vamos comunicar a Associação agora?
— Me desculpem! — exclamou Clarice, lamuriosa. Ignez temia outra crise de choro. —
Quando tudo aconteceu eu me desesperei e me joguei no chão, acabei derrubando o tablet.
— Não liga pro Thomas, Clarice, ele é um cavalo — O irmão a olhou indignado com
tamanha injúria. — Não estamos bravos como você de verdade. Vou pegar o meu celular na
mochila que ficou no carro do Arthur, aí a gente informa os superiores do ocorrido.
— Ok.
Sem explicação alguma, Clarice sentiu suas pernas tremerem. Ela não sabia o motivo.
Não. Não eram somente as pernas de Clarice, mas sim as pernas de todo mundo.
— Merda! Vocês também estão sentindo? — perguntou Thomas. Seu corpo começava a
suar frio.
— Nunca senti algo assim antes — disse Ignez. — Como um Demônio Ancestral veio
parar aqui? Deveria ser impossível... Merda, como estamos fudidos!
— Parece que os livros não revelam tudo, afinal — suspirou Thomas. — Melhor
darmos o fora antes que piore.
E nada mais falaram.

É difícil imaginar um cenário onde o homem conviva em uma harmonia conjunta em relação a
sua própria existência. Nós, as pessoas que sabem do Oculto, somos privilegiados por termos
conhecimento da nossa verdadeira existência. Uma benção que por milênios tentou estar
exposta às margens do mundo para todos verem. Porém, como muito se foi negado, acabaram
descartando aquilo que viria ser a verdadeira Concepção Humana. Sabendo disso, a
humanidade passou a se encher de crenças e misticismos para suprir o vazio que nos assola
desde os primórdios de nossa caminhada. Este vazio nada mais é do que a grande pergunta da
vida: de onde viemos?
Alguns poucos felizardos (como você, por estar lendo este livro de absoluto sigilo) sabem a
verdadeira história da nossa existência. Para um homem religioso comum, todos nós surgimos
à custa da boa graça de um Deus, seja ele qual for. Para o homem da ciência, a humanidade
descende do Homo Hablis, um espécime evoluído do Australopithecus, nosso ancestral macaco.
Dentre os dois, o que mais se aproxima da verdade é o homem da ciência, mas meu objetivo
não é indicar lados que se dizem corretos (ao fim, todos são errôneos). O que promovo para os
poucos que irão ler esta peça sagrada é mostrar a prematuridade do homem em se colocar
como ciente de si e de toda a Criação. Pode-se perceber isso com o simples fato do homem
cultuar o que não se sabe, em sua total arrogância, considerar ser ciente do saber Divino, uma
total equivocação. Para ser claro, se existisse um somente Deus, nós não teríamos capacidade
o suficiente para compreender sua total magnitude e toda sua soberania exercida sob a Terra,
como muitos afirmam conhecer. Como pode ser observado no decorrer de séculos, nos
embriagamos com as mais diferentes formas de deuses, todos eles falsos e repletos de valores
escrupulosos que refletem um disfarçado ideal, forçado pelas garras e presas humanas. Mas
então, a verdadeira Criação poderia ser divulgada para as diferentes massas do mundo? Seria
isso o certo a se fazer com a Verdade? Temo que não.
A humanidade, coberta com seu manto se orgulho e pedantismo, não suportaria a ideia de ter
um pouco dos dois mundos intrínseco em seu DNA. O Céu e o Inferno. Para a humanidade, nós
nunca poderíamos ter em nossa carne fidedigna e nossa alma imaculada, um pedaço do “Mal”.
Mesmo pecadores, é inadmissível a ideia de em correto acordo, termos sido criados pelos dois
lados. Nascemos limpos, e nos sujamos com pecados no decorrer da vida, cabe a nós a
tentativa ininterrupta de purificação ao longo de nossa existência, buscando um respectivo
salvador.
Creio que não há mais espaço para novos Deuses, ainda mais estes que divergem tanto das
figuras que declaramos ao logo dos séculos serem o nosso verdadeiro Criador. Assim, a
decisão de revelar a verdadeira Criação seria mais uma parábola para a Caixa de Pandora.
Quem sabe os males que ela propagaria na nossa já fragmentada sociedade?

Manuel de Almirantes, Sobre os Antigos Deuses

Em Grande Hodierna era possível ver o tempo se fechando aos poucos (talvez fosse
chover no dia seguinte). O vento arrastava tudo o que se podia, as sujeiras dos becos, o lixo das
grandes avenidas, o cheiro pútrido dos esgotos, a brisa suave da praia, o perfume das belas
mulheres, tudo se arrastava e se transformava na grande cidade. Nada ficava no mesmo lugar
por muito tempo, até mesmo as pessoas estavam sempre em transição, tudo efêmero em sua
vasta imensidão vazia, algumas pessoas sentiam isso com muita intensidade, outras nem tanto.
Holly se enquadrava no primeiro grupo.
Num escritório no nono andar do prédio da Associação dos Exorcistas, estava ela, a
inconfundível garota de cachos dourados. Em sua mesa jazia uma pilha de papéis, parecendo
importantes e chatíssimos de se ler. Suas férias acabaram fazia somente duas semanas e ela já
ansiava pela próxima remessa de folga consecutiva. Estava terminando de analisar a primeira
pilha de papéis quando começou a resmungar sozinha, os funcionários das mesas ao lado
olharam ligeiramente, essa era uma atitude muito comum da garota, quando se sentia estressada
ela grunhia como se estivesse com alguma dor, até alguém vir perguntar como ela estava.
— Tudo bem aí, Holly? — perguntou Teddy, um colega de trabalho que se sentava à
direita dela.
Holly jogou a caneta na mesa e recuou para trás na cadeira de rodinhas.
— Não! Não está tudo bem! Eu voltei de férias há duas semanas e parece que estou
trabalhando há dois anos sem folga! — Ela suspirou e passou a mão nos seus cabelos com
certeza rispidez. Sua testa estava um pouco suada, mesmo no ar condicionado. Teddy não
imaginava como ela poderia ficar mais linda. — Pra piorar, a pessoa que eu tenho que auxiliar é
uma barata tonta! Muito tonta! Daquelas que depois de levar uma chinelada e ficam rodando em
círculos. Ele me liga toda hora perguntando o trajeto do caminho já que ele não sabe usar um
simples GPS.
— Você tá falando do Arthur, o Mestre-Exorcista?
— Quem mais seria?! Fala sério, essas minhas férias foram um completo desastre, eu
mal tive tempo de aproveitar. Acredita que eu fiquei de babá da filha da minha irmã enquanto
ela fazia as provas finais da faculdade dela? Eu amo minha sobrinha, não entenda errado. Mas
me desculpe, querida irmã, eu trabalhei igual uma condenada durante um ano inteirinho tendo
que lidar com demônio aqui, demônio ali, demônio na casa da mãe Joana, demônio no cafundó
do Judas e quando o caldo engrossava, eu tinha que ficar até três horas da manhã no serviço até
que o que demônio fosse exorcizado para que eu pudesse concluir a porcaria do inquérito. E SÓ
quando fosse exorcizado. E ai de mim de pedir pra colocarem alguém no meu lugar, pois essa
empresa vagabunda tem que fazer tudo por debaixo dos panos e não tem funcionário o
suficiente para cobrir as demandas de trabalho — Alguns ouviram ela falando aquilo e ficaram
incrédulos com a coragem de Holly. Por sorte, não havia nenhum superior por perto que
pudesse repreendê-la — Sempre sobra pra loirinha aqui fazer o trabalho de quatro pessoas!
— Mas você pelo menos foi remunerada pela hora extra... né?
— Uma Mixaria! — exclamou Holly. Teddy sentia que ela estava há um passo de
agredir alguém para descontar sua raiva — Eu só queria ter me divertido nas minhas férias, ter
conhecido alguém legal, sabe. Minha amiga, Kelly, me arrumou um cara pra sair, mas o
encontro foi um completo desastre!
— É foda quando isso acontece... — comentou Teddy, se sentindo perdido e sem saber
o que dizer.
— Era a porcaria de um escritor! Um escritor, Teddy!
— Eita! Um escritor... — ele não sabia o que tinha os escritores de tão ruins.
— A conversa era toda sobre ele, e como ele era incrivelmente habilidoso e bem
sucedido. E como estava trabalhando no seu novo romance! E de como as fãs alienadas dele não
o deixavam em paz, sempre querendo um pedaço dele!
— Isso né legal não, hein...
— Eu até tentei entrar no jogo dele, perguntei sobre o livro de merda dele, sabe o que
ele me respondeu, Teddy? Você sabe?! — perguntou quase em uma ameaça. Ela ainda iria dar
um soco em alguém.
— Não! — respondeu assustado
— Ele disse: “Ah, acredito que você não entenderia. É um tanto complexo, e muito
pessoal. Ainda estou terminando o manuscrito, mas está ficando do jeitinho que eu queria.
Talvez, quando meu livro for publicado, você possa comprar e tentar entendê-lo.” Foi isso que
ele disse! Com uma voz estridente e insuportável. Ele me chamou de burra, “você não
entenderia. Complexo e muito pessoal”, que merda é essa? Só que, para falar o quanto ele é
incrível, não faltam palavras no dicionário para ele. No meu ver: escritor que fala muito, escreve
pouco. A pior parte foi não poder falar de mim, do meu trabalho e minhas realizações pessoais.
Tive que dizer que sou uma ratinha de escritório qualquer, é o que eu digo pra todo mundo que
não sabe sobre... Você sabe o quê. Se bem que, mesmo que não fosse confidencial e pudesse
falar pra qualquer um, aquele escritorzinho de araque não ia me deixar terminar uma frase
direito.
— Escritores são os piores...
— São mesmo — mas um suspiro enfadado ela deu. Já não parecia mais propensa a
agredir alguém — Eu só queria conhecer alguém legal...
Nesse momento, Teddy viu uma brecha. Era a hora, sem dúvida, era a hora. Ela estava
cansada, desesperada, e implorando por uma luz. Teddy era a luz. Ele já havia ensaiado como ia
falar, e finalmente o momento havia chegado. Ali, naquele escritório, naquela madrugada, ele
iria realizar seu maior feito. Mal podia esperar para contar aos seus futuros filhos a história de
como ele conquistou a mãe deles.
— Ei, Holly, se você saísse comigo eu garanto que não iria se decepcionar — disse
Teddy, todo jeitoso (tentando, pelo menos).
O escritório foi inundado por um breve silêncio. Somente o barulho dos teclados dos
computadores e o coração de Teddy batendo desesperadamente era audível. De repente, Holly
explodiu numa gostosa gargalhada.
— Ai, ai, Teddy! Só você pra me fazer rir num momento como esse! Você é o melhor,
cara! — falou ela, enquanto retirava uma lágrima do olho. — Depois dessa vou até pegar um
refrigerante pra molhar a garganta.
Deu duas amigáveis batidinhas no ombro de Teddy e se retirou de lá. O rapaz ficou
inexpressivo e imóvel tentando processar o que acabou de acontecer. Adeus futuros filhinhos.
No corredor do escritório o branco era perpétuo, do chão ao teto. Holly colocou uma
moeda na máquina de bebidas e escolheu um refrigerante de laranja. Para gastar um pouco de
tempo, decidiu sacar o celular do bolso da calça. Olhou para os dois lados e não tinha ninguém.
Perímetro seguro. Ficou Fuçando algumas coisas no aparelho e viu uma mensagem de Bran. Ele
perguntava por Arthur, queria saber como ele estava. Ela deu um leve sorriso, ficou feliz pela
preocupação daquele que um dia já foi o mais próximo de um irmão que Arthur poderia ter tido.
Respondeu dizendo que ele estava bem, e que estava numa missão. Ela perguntou quando ele
iria dar as caras pela cidade. Mexeu mais um pouco no celular e entrou no Trinado, a timeline
estava bastante caótica como sempre. Deu uma lida rápida em algumas fofocas de famosos,
ódio jorrando nos campos políticos, gatinhos fofos, memes sem graça e mais besteiras. Na área
de notificações ela viu que sua foto com Angelina tinha ganhado muitas curtidas, ultrapassando
a sua foto mais famosa: uma de biquíni na praia, pegando um belo bronzeado (Teddy foi o
primeiro a curti essa foto em um tempo recorde de dois minutos depois de postada). O motivo
da foto com Angelina ter feito sucesso se deve ao fato de ser uma foto com Holly ao lado de
uma filha de Miriam, um tipo de pessoa que levanta muitas dúvidas e curiosidades na sociedade.
A maioria dos comentários eram elogiando a beleza das duas, de como elas pareciam irmãs e se
aquela era mesmo uma filha de Miriam ou se só estava fantasiada como uma. Holly respondeu
alguns comentários mas logo parou quando escutou o som do elevador. Bem ligeiro ela guardou
o celular no bolso e tentou disfarçar a situação.
Quem estava saindo do elevador era, nada mais, nada menos que Olivia Gutenberg, o
braço direito do presidente da Associação. Seu andar era rápido e firme sob saltos altos
caríssimos. Acompanhando ela estavam dois agentes com uma expressão de quem chupou
limão e não gostou. Ela cruzava o corredor e parecia estar indo na direção de Holly. Pobrezinha,
certamente Olivia iria puni-la por estar fora do serviço e usando celular durante o expediente.
Mas, pensando bem, Olivia provavelmente não deve nem saber o nome de Holly. Só mais uma
escrava da firma. Uma pessoa dessa nata deveria ter mais o que fazer além de ficar dando
advertência em funcionários de quinta. Esse pensamento animou Holly. É, talvez Olivia fosse
somente passar direto por ela sem sequer notá-la.
Então Olivia continuou andando com seus passos firmes e rápidos e parou diante da
loirinha.
— Você é Holly Jansen?
Ops!
Aquela era uma mulher alta, olhava para baixo ao falar com a pequena infratora.
— Não! Digo, sim! Me desculpa! Eu já estava voltan-
— Você é que a responsável por auxiliar Arthur Yamamoto?!
— Ele não atende mais por esse sobrenome, senhora... — respondeu Holly, quase em
sussurros.
— O que você falou?
— Nada, nadinha! Sim, eu sou a responsável por auxiliar ele.
— Venha comigo imediatamente!
Olivia girou seus calcanhares e andou de volta em direção ao elevador. Holly um pouco
embasbacada demorou para entender a situação, mas logo seguiu Olivia.
— Aconteceu algo, senhora?!
— Está acontecendo neste instante.
Holly foi tomada por uma aflição que fechou sua garganta. O que diabos estava
acontecendo? Olivia nem deveria ter conhecimento do seu nome. Vir chamá-la pessoalmente
significava alguma coisa séria, seriamente negativa. Ela mencionou o nome “Arthur”, de certo
tudo que envolve esse exorcista são intrigas das piores. A fria expressão de Olivia entregava um
certo descontentamento, mas ainda era plena. Ou isso era sua ótima compostura diante de
grandes problemas ou talvez não fosse tão grave quanto a ansiedade de Holly fazia parecer.
Bem, se comparar as pilhas de documentos chatos com o quê estava por vir, os documentos
revelariam ser um paraíso profissional. Longas horas de dor de cabeça e aflição esperavam por
Holly. Sem tempo para refrigerante de laranja.

Minutos antes à convocação de Holly.


Se um dia Clarice decidisse largar a carreira de exorcista e se tornasse uma taxista, ela
não morreria de fome, e sim em um acidente de carro. A única opção palpável para conduzir o
carro de Arthur era ela. Ignez não sabia a diferença de um acelerador e um freio, Thomas tinha a
coordenação motora de um platelminto e Clarice estava tendo aulas de direção fazia algumas
semanas, então era a menos provável de matar a todos (se não estivermos contando o seu
nervosismo exacerbado diante de grandes crises). O carro seguia a todo vapor, por sorte, o
tráfego de veículos era mínimo, dando uma oportunidade de Clarice chegar até Pepita ilesa.
Ignez estava tentando ligar para Associação, mas a tarefa se mostrava mais difícil do
que deveria ser.
— Como tá indo, Ignez? — perguntou Thomas. Ele estava sentado no banco ao lado do
motorista com o cinto de segurança muito bem colocado.
— Nada bem! Não estou conseguindo sinal!
— Como não? — ele indagou.
— Eu não sei, droga! Como estamos no meio da estrada, talvez a gente esteja fora da
área de cobertura da operadora, ou pior...
— Pior?! Ela disse pior, Thomas?! O quê é pior?! — repetia Clarice sem parar.
— Se concentra na estrada! — exclamou Thomas.
— Bem, com aqueles tremores, as antenas da operadora podem ter sido danificadas...
— Isso é muito ruim?! — perguntou Thomas.
— É. Significa que não vamos conseguir fazer uma ligação até que elas estejam
concertadas.
Clarice e Thomas sentiram um tremendo arrepio na espinha.
— Mas talvez a gente só esteja fora da área de cobertura, vamos chegar na cidade e
descobrir — disse Ignez, tentando manter sua compostura.
Clarice seguia atenta no volante. A estrada toda era um corredor negro, somente os
faróis do carro iluminavam um pedaço do asfalto. Poucos veículos passaram por eles durante
todo o trajeto. Mas isso viria a mudar logo, logo.
Minutos se passaram e finalmente eles cruzaram com a placa “Pepita, 5 km”. Ignez
novamente sacou seu celular e instantemente animou-se ao ver que agora o celular estava
recebendo sinal. Então ela discou um número o mais rápido que pôde, tendo que apagar e
colocar novamente alguns números que digitou errado. O celular começou a fazer a chamada,
seu coração estava acelerado e ela não sabia o motivo.
— Alô? — disse alguém do outro lado da linha.
— Alô! — respondeu Ignez, quase em desespero. — Sou Ignez Orleans, Exorcista de
segundo grau. Meu código de identificação é XT24BL22.
Alguns segundos de silêncio.
— Olá, Ignez, do que precisa?
— Estou às ordens de Arthur, o Mestre-Exorcista e chefe da operação de identificação
de fenômenos suspeitos, iniciada no dia 10 de fevereiro, na costa de Nova Tordesilhas, em uma
pequena cidade chamada de Pepita, no sul do país — Ignez falava tudo muito rápido, quase sem
respirar. —
— Continue.
— Identificamos uma dupla de Demônios Ancestrais de extrema periculosidade. A
equipe foi atacada por um deles durante a missão. O chefe da operação ordenou reforço
imediato, de todos os exorcistas mais próximos, incluindo Mestres-Exorcistas! — disse por fim,
em seguida retomou o fôlego.
— Demônio Ancestral? Você pode confirmar a veracidade dessa informação?
— Arthur falou que se tratava de Lascivus e Libidus. Você conhece Arthur, ele já
morou no Inferno. Disse que conhecia os dois. Também vimos um Arauto da Desgraça, isso só
reforça o fato de que não é um demônio qualquer.
O homem ao telefone ficou em silêncio por um instante. Ignez quase achou que a
ligação tinha caído.
— Eu vou passar essa informação adiante. Como está a situação? Tem feridos?
— Não! Por enquanto, não. Arthur está enfrentando o demônio em um local afasta-
De repente, o chão tremeu com se ameaçasse cair. Clarice perdeu parte do controle e
entrou na contramão, e tudo dentro do carro se sacudiu, inclusive o celular de Ignez que voo na
cara de Thomas.
— Que merda foi essa?! — gritou Clarice em choque. Agora entrando na mão certa.
— O que você acha?! — indagou Thomas irritado, e entregando o celular que o acertou
em cheio na testa para sua irmã.
— Alô, ainda tá na linha?! — perguntou Ignez, ofegante.
— Estou! O que houve?
— Tem tremores acontecendo na região, mesmo longe do campo de batalha! Mandem
reforço, depressa!
— Vou cuidar disso! Até lá, mantenham as pessoas da cidade protegidas contra
possíveis ameaças até mandarmos a cavalaria — e desligou.
No fim da estrada luzes estavam acessas, eram as luzes dos postes das ruas de Pepita.
Um sensação de alívio cobriu aqueles que cruzaram uma longa estrada escura e incerta. Clarice
se empolgou e pisou fundo no acelerador a fim de chegar logo na cidade, algo que por pouco
não mostrou ser um erro fatal. Enquanto dirigia com ímpeto para dentro da cidade, mais um
tremor ocorreu e uma parte do asfalto quebrou e elevou-se quase como uma rampa mal feita.
Clarice notou a irregularidade da pista tardiamente, o carro então passou por cima da rampa o
fazendo girar no ar. Clarice, Thomas e Ignez viram tudo em câmera lenta enquanto estavam
dentro do veículo, até que um forte baque os tomou em cheio e logo em seguida tudo se apagou.
O acidente fez o carro capotar e sair deslizando pela estrada. O veículo se arrastou por um bons
metrôs e o ruído do metal contra o asfalto foi agonizante. O carro parou bem na entrada da
cidade, parecendo quase uma linha de chegada para uma corrida mortal. Bons minutos foram
aqueles até que alguém saísse de dentro do carro. Clarice foi a primeira. Tinha sangue em seu
rosto, Boa parte era do seu supercílio cortado, que fazia escorrer sangue por toda cara. Ela saiu
pelo para-brisas, tendo que chutar incontáveis vezes para quebrar o vidro que era do tipo
laminado, dificultando a quebra. Quando finalmente quebrou, ela se arrastou para fora e saiu
cambaleando na rua. Quando sua cabeça voltou à tona, correu para tentar ajudar os irmãos, e
com esforço conseguiu retirar Thomas do veículo pela mesma passagem em que ela passou. Ele
não sangrava (seu sangue perdido foi só em arranhões superficiais por ter se arrastado por
fragmentos de metais e estilhaços de vidro), somente se queixava de uma grande dor no braço.
Ignez foi retirada logo em seguida, com certa dificuldade. Com o carro muito deteriorado, foi
necessário cuidado para retirá-la de lá. Por sorte a pilha de ferragens se concentrou no lado
direito, e Ignez estava no lado esquerdo do veículo. Ela relatou estar com a cabeça ardendo em
dor, pois havia batido o rosto contra o banco da frente durante o acidente que, em suma, foi
menos intenso do que realmente poderia ter sido se ela não estivesse usando o cinto de
segurança. A Boca e o queixo de Ignez estavam pintados de vermelho, uma boa quantidade de
sangue saiu do nariz quando Ignez com a pancada, no entanto, não chegou a quebrá-lo. Então o
trio se ergueu ao lado do carro capotado. Estavam destruídos, mas estavam de pé. Checaram um
ao outro para ter certeza de que ninguém estava seriamente ferido. Thomas rasgou seu casaco e
deu um pedaço para Clarice limpar o rosto e outro para Ignez limpar a boca. Fedia a suor,
porém ninguém reclamou. Ficaram encarando a obra de arte que haviam feito. Era um modelo
clássico. Arthur comprou de um velhote rico que com muita conversa fiada conseguiu
convencê-lo à vender o carro.
— Vocês acham que o Arthur vai perceber os arranhões no carro dele...? — perguntou
Clarice, com o medo e a inocência de uma criança que aprontou algo.
— Não sei... — Thomas fingiu analisar minuciosamente os danos do veículo. — É
provável que ele note esses arranhões na lataria, estão muito feios. Mas veja pelo lado bom,
quem sabe ele não veja os amassados, as duas rodas faltando e a gente pode dizer que alguém
roubou a porta também! — exclamou Thomas, com talvez, só talvez, um pouco de ironia.
— Foda-se o carro dele, que eu saiba ele é rico pra caralho!
— Me desculpem pelo acidente. Foi tudo muito rápido...
— Não foi sua culpa! — disse Ignez. — Sabemos muito bem o responsável por toda
essa merda. Vamos continuar a missão.
— Espera...
Clarice adotou uma cor pálida, e fez uma careta como se estivesse passando mal. Em
seguida, ela se escorou num poste e soltou uma grossa vitamina de vômito. Os irmãos viraram o
rosto, enojados. O som viscoso e molhado da comida semi-digerida caindo no chão ficou
marcado na cabeça de ambos. Aguardaram até que ela se recuperasse. Recuperada. De volta ao
trabalho.
— Precisamos tirar as pessoas de casa — disse Ignez. — Os tremores estão cada vez
mais fortes, o risco está cada vez maior.
— E como planeja fazer isso, espertona?! — reclamou o irmão.
— Vamos chamar o corpo de bombeiros — sugeriu Clarice. — Eles tem melhores
chances de conseguir a atenção da população.
— Boa ideia, Clarice! — Ignez pegou o celular e tentou ligar.
Thomas olhava os arredores e Clarice se envolveu toda no casaco para proteger-se do
frio. O hotel o qual estavam hospedados estava só há alguns metrôs. Pernoitar por lá foi uma
experiência prazerosa, e dariam tudo para estarem deitados naquelas camas outra vez. Ao longe,
Thomas e Clarice (Ignez estava focada demais no telefonema para reparar) viram o que parecia
ser uma pessoa correndo, com algo nos braços. Depois ficou muito claro do que se tratava. Era
uma mulher, carregava com ela uma criança que deveria ter uns quatro ou cinco anos de idade.
Ainda estavam com as vestes de dormir, sem dúvidas algo muito ruim os tirou do sono e os
botou na rua daquele jeito tão alvoroçado. Ela estava indo em direção ao trio. Thomas cutucou a
irmã para ela também ver aquela cena. Aquela mulher gastou todo o fôlego que tinha, sua
respiração já estava pesada antes mesmo de chegar perto dos três. A criança indo para cima e
para baixo nos braços da (suposta) mãe. Quando chegou bem próximo do trio, ela parou como
se tivesse freios nos pés. Ignez com olhos sempre atentos reparou que ela estava descalça, o que
indicava certa pressa para sair de casa.
— Vocês... Vocês também viram?! — ela perguntou. Bufava muito e estava toda suada.
— Do que você tá falando? O que aconteceu? — indagou Thomas.
— Eu estava dormindo... — A criança pareceu ser um grande peso e ela colocou o filho
no chão. A respiração pareceu melhorar aos poucos — Até que comecei a ouvir um barulho
dentro de casa. Corri para o quarto do meu filho e vi a parede se rachando. Eu peguei ele e desci
para o primeiro andar, então eu vi que o chão da cozinha até a sala de estar também estavam se
rachando! Minha casa fez um barulho esquisito e eu temi que ela fosse desabar! Então eu sai de
casa desesperada!
O trio se entreolhou, estavam assustados. O corpo de bombeiros atendeu a ligação,
Ignez pediu licença e se distanciou para poder falar da melhor forma. Ao longe, mais uma
pessoa estava fora de casa, olhando para trás se via mais duas. O hotel que há alguns minutos
atrás parecia apagado em um sono conjunto de todos os hóspedes, começou a ter suas janelas
iluminadas por luzes que eram acessas dentro do quarto às 00:10 da madrugada. Uma família
inteira vinha subindo a rua debaixo. Crianças ainda bocejando eram arrastadas por pais
assustados. Uma onda crescente de tensão abateu sobre o trio. Aos poucos as pessoas iam se
amontoando naquela rua. O trio sabia que eles não podiam deixar as pessoas inquietas e
temerosas assim daquele jeito. Alguém deveria tomar partido.
— Somos sismólogos! — disse Thomas, adotando um ar culto. — Estudamos tremores
de terra, ou coisas assim — Clarice o encarou sem entender nada. — Relatamos no nosso centro
de pesquisa de grandes barulhos que tem um terremoto embaixo dessa cidade!
— Oh, meu Deus! Um terremoto! Aqui embaixo?! — indagou incrédula uma anciã de
camisola.
— Bem aqui embaixo, madame! — confirmou ele. — Vocês precisam se retirar da
cidade. Mas não peguem a via que vai para o litoral aconteça o que acontecer, vão pelo lado
contrário, em direção ao Norte.
— Oh, céus! Minha mãe perto da praia! Existe algum risco?! — perguntou uma jovem
mulher com uma máscara de tratamento facial no rosto.
— Bem, um pouco, é... — Thomas foi engolindo por um nervosismo, dezenas de
pessoas olhavam para ele com expressões de completo pavor e desespero. — Tem muitos
terremotos no chão daquele lado da rodovia, não é seguro o tráfego de veículos por lá.
— Tsunamis podem acontecer nas praias?! — perguntou um idoso que estava com a
mão levantada feito uma criança. — Minha filha também tem uma casa de praia e eu estou
temendo por ela...
Uma onda de pavor urgiu através do povo.
— Bem... Não, acho que não. Tsunamis estão fora de cogitação, segundo o estatuto...
— Não usem a rodovia que vai para o litoral, por favor! — exclamou Clarice. — façam
com que isso se espalhe.
E assim uma nuvem quente de murmúrio subiu por entre as pessoas da cidade.
— Você ficou maluco?! — indagou Clarice, depois que as pessoas se distanciaram. —
Um terremoto embaixo da cidade? Você sabe como acontece um terremoto?
— Eu sei o básico, vi em um filme uma vez.
— Os bombeiros estão a caminho! — Ignez deu um suspiro aliviado. — Acho que o
pior já passou...
Clarice pareceu se estremecer de alegria com a notícia. Todos, na verdade. Mas a
realidade era outra, o que estremeceu foi o chão. Com mais intensidade desta vez, fazendo as
luzes do poste piscaram com instabilidade. A cidade inteira começava a parecer uma árvore de
natal, piscando sem parar. Um tumulto enorme então começou, as pessoas se desesperam,
gritaram, correram e se digladiaram buscando seus carros para saírem da cidade. Motores
rasgando e buzinas alarmando foram os sons que inundaram a pequena cidade. Não demorou
para o surgimento de um engarrafamento precoce. O trio ficou em uma calçada onde logo acima
estava a varanda de um apartamento de dois andares. Crack! Uma rachadura começou a
penetrar a varanda. O pó do concreto caiu feito farinha em cima de Clarice e ela logo espirrou.
Quando perceberam aquela armadilha mortal deram um grito e depois um salto para o meio da
rua. A varanda cedeu com toda violência, sem dúvidas aquele seria um golpe fatal. Sem dar
tempo para respirar, um carro desgovernado quase os atropelou e tiveram que saltar mais uma
vez para escapar da morte certa.
— Temos que sair do centro, agora! — gritou Ignez se levantando do chão. E mal se
levantaram quando uma descontrolada onda de pessoas passou pela calçada onde eles estavam.
Logo ficaram presos. Umas trinta pessoas na frente e umas quase quarenta atrás. O empurra-
empurra foi violento e Thomas machucou incontáveis vezes seu braço ferido por causa das
múltiplas cotoveladas que as pessoas lhe davam. Não tiveram escolha a não ser ficar na bolha
até ela se diluir. A cidade toda estremecia e tudo em volta caía, postes, fios e pedaços de
concreto das casas. A madrugada seguia em um caos sem fim. Onde estava a polícia? Ao longo
da rua estava uma das muitas viaturas capotadas. Onde estavam os bombeiros? Estes estavam a
caminho, só que foram pegos pelos tremores enquanto se dirigiam para Pepita, o final, de certo
foi trágico. No outro lado da calçada de onde o trio estava, uma dupla de paramédicos faziam
uma reanimação cardiopulmonar de emergência numa senhora de idade, um pedaço da parede
de uma casa onde eles estavam próximos se soltou da estrutura e os esmagou. Qualquer
tentativa de ajuda era em vão. Não havia ordem, só um conglomerado de tragédias. Os
abençoados que conseguiam emplacar seus carros na rodovia choravam de alegria, não
demorava para o choro alterar-se para uma profunda tristeza, quando viam a pista abrir-se no
meio e engolir todos os veículos que seguiam na rodovia. A boca monstruosa não parava por aí,
devorava tudo que ocupava espaço, do vivo ao inanimado. Eis o quieto prefácio do apocalipse.

A sala era escura e gelada, seu ar parecia cheio e pesado, talvez pela situação em que se
encontravam no momento. Holly estava sentada ao lado de Olivia, outros sujeito importantes
estavam ao seu lado numa enorme mesa circular com um grande painel digital no meio. Olivia
ainda não havia esclarecido a situação corretamente e Holly não se atrevia a fazer uma pergunta
sequer. Todavia, ela não era boba para não se tocar de que o problema ali era extremamente
grave. Todos pareciam nervosos e cochichos não paravam um único minuto sequer. O que
Holly tinha a ver com tudo isso ela não sabia dizer.
— Então, sra. Jansen — começou Olivia de repente. —, ao que parece, uma dupla de
Demônios Ancestrais entrou na Terra e Arthur está lutando com eles neste exato momento.
— Demônio Ancestral?! — Holly pensou ter ouvido errado. — Como isso é possível?
— É o que gostaríamos de saber. Um dos subordinados de Arthur ligou desesperado
pedindo reforço para a Associação.
— reforço? A situação é tão feia assim?
— Sra. Holly, este homem que está sentado bem na sua frente é um dos nossos
geofísicos — o rapaz tentou ser simpático e acenou para a garota, mas o máximo que ela
conseguiu fazer foi um simulacro de sorriso em resposta. — Ele e sua equipe detectaram
fenômenos sísmicos na área onde Arthur e sua equipe se encontram. Os tremores estão cada vez
mais fortes e podem atingir as cidades, talvez já esteja acontecendo — Holly ficou sem reação.
— Eu gostaria de saber se Arthur havia lhe reportado alguma coisa antes, pois um demônio
dessa magnitude não pode simplesmente entrar na Terra desta forma. Isso vai contra anos de
estudo e pesquisa sobre demonologia. E o que mais me impressiona foi o tamanho da Fenda por
onde saíram, não foi captado nenhuma energia anormal naquela região. O que se tinha era uma
Fenda para sair um demônio de segundo grau, terceiro, no máximo. É de fato muito suspeito.
— Eu sei tão pouco quanto vocês, me foi passado a informação de que talvez um
demônio de terceiro grau surgisse, pois uma equipe de Exorcistas viu um Arauto da Desgraça na
área. Foi solicitado um Mestre-Exorcista, e Arthur estava disponível para a missão. Não sei
mais de nada.
— Sra. Olívia! — interrompeu-a o rapaz. — Minha equipe acaba de informar que um
outro abalo sísmico de magnitude 4,5 na escala Nina aconteceu na região.
— São dois Demônios Ancestrais, certo? — perguntou Holly, não contendo sua
curiosidade pela situação. — Vocês sabem quem são?
— Fomos informados que se trata de Lascivus e Libidus — explicou Olivia. — Um dos
dois atacou os agentes que estavam realizando a operação.
— Aqueles dos livros?! — perguntou Holly, atarantada.
— Lógico.
— Puta merda...
— Os tremores estão vindo de epicentros diferentes — explicou o geofísico. — Com
base nas ilustrações presentes em diversos livros acadêmicos de demonologia, temos certa
noção de como se parecem os irmãos demônios. É possível supor que o que está liberando tanta
energia sejam as-
— Correntes... — disse Holly, sendo tomada por um medo febril — Qual é a magnitude
de cada epicentro?!
— Eles chegam até 1,5.
— Nas ilustrações, cada um dos irmãos é retratado com quatro correntes na cinturas.
Quantos epicentros já apareceram ao mesmo tempo?
— Até agora, não mais que quatro. O maior abalo que tivemos foi de 6 graus na escala
Nina.
— Então o Arthur deve estar lutando somente com um dos irmãos... Eu tenho uma
dúvida, se cada corrente libera uma energia de aproximadamente 1,5 na escala Nina, o quão
perigoso seria se as quatro correntes dos dois irmãos liberassem energia simultaneamente?
O geofísico atento em toda situação e tão preocupado quanto todos ali naquele sala
estava prestes a responder a pergunta de Holly quando por um momento ele parou, refletiu
consigo mesmo e... Congelou? De repente, ele pareceu estar em outro mundo. Todos olharam
entre si, e até mesmo Olivia não compreendia o que estava havendo com o geofísico.
— Sra. Olívia, ele está bem? — perguntou Holly em um sutil cochicho.
— Dr. Maharaj, o senhor se sente bem?
— Eu... Eu...
O homem começou a ter uma crise de pânico. Holly arregalou seus olhos esmeralda e o
medo febril dela aumentou ligeiramente. Toda aquela situação era torturante, ela desejou
naquele momento ter seguido a carreira de chef de cozinha, como sua mãe havia lhe
recomendado.
— Tragam um copo d’água com açúcar para o Doutor — pediu Olívia e prontamente
um dos homens na sala foi buscar.
Depois de entregue ele bebeu e gradativamente foi se recompondo. O efeito placebo se
mostrando eficaz.
— Me desculpem — ele disse. — Eu me deixei guiar pela emoção. Peço humildemente
o perdão de todos nesta sala. A jovem garota aqui fez uma pergunta muito pertinente —
comentou, apontando para Holly. Ela corou. — Até então eu não tinha parado para pensar sobre
isso, um grande equívoco meu. Peço perdão. Pois bem, se realmente cada corrente for capaz de
liberar uma energia de magnitude 1,5 na escala Nina, podemos ter um problema.
Individualmente, cada corrente não é capaz de fornecer danos graves em forma de abalos
sísmicos, mas, se somarmos as quatro correntes de um dos demônios, então teríamos uma
energia liberada de 6 graus, o que pode provocar uma destruição considerável, principalmente
se pararmos para pensar que, diferente de um terremoto comum, a liberação da energia da
corrente pode durar um indeterminado tempo, podendo ser breve ou duradouro. Diferente de um
terremoto que dura em torno de dois há três minutos. Nova Tordesilhas vem sofrendo diversos
abalos de magnitude 6 na Escala Nina. — Todos em volta da mesa olharam para o Doutor com
preocupação. — Mas isso não é o pior! — ele exclamou batendo na mesa. — Se o outro
demônio se juntar a luta, e ele for análogo ao irmão em termos de poder, teríamos aqui o que
poderia ser a maior catástrofe humanitária já vista! — Sua voz assumiu um tom mais alto e
alarmado. — As oito correntes liberando energias simultaneamente criaria abalos sísmicos de
magnitude 12 na escala Nina! — gritou ao fim. Sua respiração pesada contrastava com a calma
dos ali sentados, sem entender porra nenhuma do que ele falava.
— Eu não sei se eu entendi direito... — disse Olívia, um pouco confusa.
— É possível nivelar as consequências desse abalo? — perguntou Holly, a única que
parecia minimamente compreender o que o geofísico dizia.
— Nivelar?! Quer que eu nivele?!
Holly concluiu que ele despirocou de vez.
— Se for possível...
— Ok! Só pra efeito de comparação, o maior terremoto que já tivemos, chamado de “O
Grande Sismo de Marreco”, causou a morte de 4 mil pessoas, além de tsunamis ao redor do
mundo. Esse foi um terremoto de magnitude 9,5.
— Eu me lembro disso — comentou Holly. — Acho que eu tinha uns oitos anos quando
aconteceu.
— Pois bem, saibam que existe um consenso entre os especialistas de que não existem
terremotos capazes de ultrapassar o grau 10 na escala Nina. Sabem o que aconteceria se
ocorresse um abalo sísmico de magnitude 12?! Eu pergunto: VOCÊS SABEM?! — indagou aos
berros e levantando-se da mesa.
— Dr. Maharaj! Peço que se mantenha a sua compostura diante desta reunião!
— Fim do mundo... — falou Holly, quase para si mesma.
— Isso! — confirmou o geofísico, estalando os dedos. — Todo o planeta Terra iria se
fragmentar! Magma vindo à superfície, fendas de quilômetros de largura, imensos tsunamis,
cidades afundando e... e... — ele não conseguia concluir. Sentou-se na cadeira novamente e
cobriu o rosto com as mãos.
Todos na sala então começaram a conversar desesperadamente entre si com os nervos
saltados à flor da pele. Então uma série de perguntas foram jogadas em cima de Olivia,
deixando-a importunada com toda essa situação. Sua paciência atingiu o limite, ela explodiu de
vez em um grito:
— CHEGA! — bradou, fazendo a sala entrar em um silêncio imediato. — Sentem-se
todos! O presidente está fora, então eu sou a dirigente por aqui! E eu garanto que estes
demônios morrerão antes do amanhecer — com o indicador ela chamou seu assistente que veio
ao seu chamado como um cachorrinho. Olivia sussurrou algumas ordens que, pelo tom,
deveriam ser cumpridas o quanto antes. — Você aí! — disse, dirigindo-se a Holly. —
Convoque todos os Mestres-Exorcistas que puder.
— afirmativo, capitã! — ela disse.
— Sullivan, ligue para a base aérea e mande preparar todos as aeronaves disponíveis no
aeródromo. Em todos os casos, relatem que é uma situação de calamidade global! Doutor
Maharaj, fique ao meu lado e me atualize da situação.
— Como quiser, senhora!
— E me arrumem um telefone, preciso ligar para o presidente de Nova Tordesilhas! —
e um dos funcionários correu em busca de um telefone. A sala havia perdido um terço das
pessoas, mas a cortina de tensão ainda continuava lá, tão pesada quanto antes. Olivia fechou os
olhos e passou a mão pelos cabelos presos no coque. Em casa, ainda teria que finalizar os
preparativos para a festa de aniversário do filho. A vida nunca lhe deu trégua. Desejou um
cigarro, mas era proibido fumar dentro do prédio. Que se dane, ela arrumaria um cigarro
independentemente. Olivia foi até a janela da sala e observou a cidade no topo do edifício. Caía
a madrugada sob Grande Hodierna e o manto das incertezas sob a vice-presidente.
“Espero que seu rapaz não esteja envolvido nisto, velho Yamamoto.”, ela comentou
consigo, dentre infelizes pensamentos.

Os Antigos Deuses, aqueles que existem antes mesmo de nós existirmos, são donos daquilo que
podemos chamar de um poder magnânimo, o poder da Vida.
Uma pequena parcela das pessoas está realmente a par de tudo que rodeia a vida na Terra.
Como se sabe, Exorcistas são encarregados de eliminar e impedir que demônios devastem
nosso mundo. Mas uma dúvida surge para alguns ao pensar: “se estes seres estão envolvidos
em nosso surgimento, por que então eles vêm aqui e tentam nos matar de maneira tão
irracional e provida de bestialidade?” A resposta é fácil. Os verdadeiros Deuses, os envolvidos
em nossa criação, são os chamados Divindades Ancestrais, dividido entre os Demônios
Ancestrais e as Deidades Ancestrais, seres que habitam em dois Reinos distintos. Essas
Divindades você jamais verá, ao menos que ouse ir para algum dos Reinos Superiores. Para
garantir a prosperidade e a independência da raça humana, foi criado o Tratado Libertário,
onde aqueles que estavam envolvidos na criação da Vida, direta e indiretamente, não podem
interferir em assuntos humanos, seja lá quais forem. Muito menos vir à Terra, mesmo que de
modo discreto e disfarçado. A violação deste tratado resultaria em consequências
inimagináveis, para nós e para Eles. Então, meu caro leitor, por obséquio, se algum dia um
Demônio Ancestral vir à Terra por qualquer razão, é sinal de que os Reinos Superiores estão
em total declínio. O que contribuiria para um risco eminente em nossa existência.

Manuel de Almirantes, Sobre os Antigos Deuses

Passando-se apenas cinco minutos na luta entre Arthur e Lascivus, nada ficara de pé. A
floresta que se arrastava por quilômetros sem trégua, tinha agora longos quilômetros de árvores
caídas para todos os lados. Crateras que cresciam conforme os tremores se intensificavam. As
estrada que cruzava a floresta estava coberta por enormes pilhas rochosas oriundas de encostas
às margens de suas vias. Caminhões, carros de civis e até mesmo o corpo de bombeiros, viram a
estrada se partir ao meio e abrir-se em uma boca negra que os engoliu com maldade. Não existia
forma de sair ou entrar em Pepita por caminhos terrestres. Os animais na floresta foram
arremessados como pedras em catapultas, não era estranho encontrar cervos no alto de casas
destruídas ou corpos de animais menores flutuando em canais de esgoto a céu aberto. Os
tremores desestabilizaram rios próximos e alagaram diversos trechos da floresta, cavernas
ruíram, deslizamentos ocorriam em ondas. Incontáveis vidas de animais se foram em um pedaço
drástico de tudo aquilo que representava a natureza naquela região.
Arthur conseguiu obter vantagem quando começou a voar. Um feito que impressionou
Lascivus, tendo em vista que ele não sabia que o xamã conseguia voar sem asas. Mas a luta se
manteve em um tremendo nível de dificuldade. Tudo em volta de Arthur ruía aos poucos e
desviar de árvores que caíam por detrás de suas costas e ficar atento as correntes que era
lançadas contra ele com devasta agressividade não se mostravam ser tarefas fáceis de serem
executadas em sincronia. As correntes pareciam ter vida própria, mas a realidade era que elas
conseguiam sentir a energia emanando de um corpo próximo, por isso elas sempre eram
lançadas com precisão contra Arthur, uma vez que elas cuidavam do trabalho de acertá-lo. Uma
conseguiu prender-se no calcanhar do exorcista enquanto ele estava no céu e com uma
impetuosa força ela o puxou para baixo. Lascivus enrolou sua mão na corrente e começou a
girar com toda sua força (que não era pouca), Arthur então colidiu com algumas árvores que
estavam em sua volta e que ainda estavam de pé, todas foram partidas ao meio com o impacto
do seu corpo. Depois de uns bons segundos com Arthur sendo girado, a corrente simplesmente
se desprendeu do seu calcanhar, permitindo seu corpo ser lançando para longe. Ele voo até
atingir um paredão rochoso, onde tombou de cabeça. O cenário era de destruição total. Em
poucos segundos Lascivus chegou aonde Arthur estava caído. Ele se aproximou em passos
lentos. O olho em seu peito piscava devagar e era bizarro de se ver. As asas brancas reluziam na
luz da lua. Arthur parecia desacordado, o demônio o puxou pelo blazer rasgado, sua cabeça
jazia caída para trás, sem sinal de vida.
— Você deu o seu melhor, criança — murmurou o demônio. Não havia rancor em sua
voz, nem prazer. — Não tenho como compreender os motivos pelos quais vocês protegia os
insetos daqui, mas me contento em pegar Lilith e fazer deste lugar meu novo reino... Um
momento — assustado ele olhou para a bainha na cintura de Arthur. Estava vazia. — Onde está
Lilith?!
— Bem aqui! — Lascivus virou-se para trás, mas sequer teve tempo se piscar seu olho
do peito. Com um único movimento Arthur cortou seu pescoço. Sua cabeça girou no ar e com
ela sua visão também rodou. De ponta cabeça ele viu os olhos vermelhos daquele que o acabara
de matar.
O Exorcista segurou o corpo de Lascivus antes que caísse no chão. Ele segurou as duas
asas brancas e tentou arrancar, mas elas estavam muito presas ao corpo. Então Arthur usou o pé
como auxílio, pondo-o bem no meio das costas de Lascivus. Puxou e puxou, e as asas
finalmente saíram, com fragmentos de carne, nervos e esguichos de sangue.
Arthur pegou a cabeça caída do demônio no chão e a segurou com as duas mãos. Parte
da coluna cervical ainda estava presa ao crânio e ficou suspensa no ar.
— Você deu seu melhor, maldito. Agora vou te mandar de volta pro Inferno!
— Como... fez isso?
— O que você achou ter matado era na verdade uma projeção espiritual altamente
elevada, chegando ao status de corpórea.
— Você aprendeu bons truques, menino — admitiu Lascivus, entre cusparadas de
sangue.
— Os humanos podem ensinar coisas bem interessantes.
— Eu vejo.
— Me diga o que você está fazendo aqui. O que aconteceu com aquele tratado? Não
está mais valendo?
— Você é muito diferente dele.
— De quem você está falando?
A cabeça horripilante então começou a rir sozinha. Arthur fez uma careta.
— Qual é a graça?!
— Vamos, junte-se a mim e eu prometo dar-lhe um pedaço do meu reino.
— Acho que ser decapitado desgraçou seu cérebro.
— Em respeito ao seu pai, eu posso lhe poupar, mas só se você prometer ser fiel a mim
e minha irmã.
— Você sabe qual de nós dois está sem a cabeça?! — ironizou Arthur. — Eu nunca vou
me aliar a você!
— Você acredita mesmo que salvou os indigentes daqui? Primeiro de tudo, eu não
estaria aqui se você não tivesse roubado minha Prometida. Se vidas se foram, foi por sua causa,
Corruptus.
— Achei que estivesse aqui para criar um reino.
— Isso foi só uma das coisas que eu tive que dizer para convencer a minha irmã a se
aliar a mim. Minha principal razão era recuperar aquilo que você roubou de mim. O reino seria
consequência disso tudo.
Arthur não respondeu. Optou por uma expressão impassível, quase ignorando o que ele
havia dito. Ou ao menos tentando ignorar.
— Vamos acabar com isso — falou o exorcista por fim.
Arthur com certo desprazer fez o que devia ter feito. Começou a apertar aquela cabeça
tagarela contra sua mãos. Aos poucos, o crânio de Lascivus começou a rachar, foi quando ele
uivou de dor.
— Maldito!
Arthur continuava a apertar.
— Maldito!
Era mais difícil do que parecia.
— Maldito!
Os olhos começaram a saltar da órbita e ameaçavam cair para fora.
— MALDITO!
Arthur sentiu um impulso repentino. Como se fosse a força que lhe faltava.
— MALD-
A cabeça explodiu como uma melancia! Miolos para todos os lados. Ele já não mais
gritava. Arthur sentiu seu rosto grudento de sangue.
Estava feito. Ele havia feito seu trabalho. Cuidou de um demônio que ameaçava a vida
na Terra. Só que nada parecia fazer sentido. Por que ele não se sentia um herói? Não era essa a
sensação que subia de imediato no cérebro ao se extinguir o Mal? O que poderia ter acontecido
para ele se sentir tão vazio, de repente? Arthur olhou em volta. Desolação. Era isso que o fazia
se sentir estranho. Desolação, e poderia ser evitada se... Ele não suportava a ideia. A culpa o fez
querer morrer. Muitos foram os caminhos andados pela Terra em busca de alguém ou algo que
pudesse trazer sua irmã de volta ao mundo físico. Ele não queria pensar nisso, se recusava,
porém, talvez não houvesse uma forma de trazê-la de volta. Uma falsa promessa. Um eterna
condenação. Não sendo suficiente, sua ação custou a vida de sabe-se lá quantas pessoas. Ele só
queria morrer naquele momento. Foi por isso que ficou parado e absorto do mundo, sentido-de
culpado e infeliz. O descuido de sua parte foi o que permitiu ser acertado pela corrente de
Libidus, que veio como um imperceptível ataque avassalador. O impacto foi tanto que Arthur
atingiu o paredão rochoso novamente, desta vez, criando uma enorme cratera, além de provocar
uma chuva de rochas, vindas do alto do paredão.
Ela desceu os céus deslumbrante à luz da lua. Sua figura era esbelta e seu corpo
desnudo era uma escultura. Seus cabelos eram como brasas ardentes. Seus chifres avantajados
assemelhavam-se a uma coroa. Quatro belas asas eram o que a levavam de uma forma graciosa
pelo ar. Um de seus braços estava levemente erguido, onde repousava seu Arauto da Desgraça,
feito uma ave de estimação. Ela pousou perto do corpo do irmão. Sua face inexpressiva
admirava o corpo destruído. Viu a gosma desmiolada que era o que havia sobrado de sua
cabeça. Ela sorriu, apenas com os lábios, depois cuspiu no cadáver, e começou a rir. No começo
era uma risada controlada, até se esforçando para conter, mas depois o riso explodiu numa
descontrolada gargalhada gostosa. Logo ela cortou o riso, mas continuou com o sorriso na cara.
— Como pode... Te pedi para que com atenção cuidasse daquela incômoda anomalia e
quando venho aqui, te encontro neste estado deplorável. Realmente não consigo crer que somos
irmãos — O corpo de Lascivus começou a sofrer alguns espasmos, ou talvez estivesse tentando
fazer algum tipo de comunicação. — Que seja. Eu vou resolver isso, como sempre faço. Mas
saiba que você terá de me dar um território maior do que o combinado em troca da minha ajuda.
Mexa sua perna direita se você entendeu — E a perna então se sacudiu. — Ótimo. Agora...
Onde foi parar aquela criança?
Libidus olhou em volta, mas tudo que ela enxergava era destruição. Até que se lembrou
de tê-lo arremessado contra o paredão rochoso. Ele estava embaixo da pilha de pedras, deduziu
ela. Suas belas asas se agitaram, preparadas para voar. Suspensa no ar, pairou bem devagar até
ficar acima da pilha de pedras, suas correntes então se organizaram e começaram a puxar as
pedras, uma a uma. Ela se manteve de braços cruzados até que o trabalho estivesse feito. O
Arauto migrou para o ombro dela, assistindo tudo com atenção. Finalmente, depois de retirar
algumas pedras, ela conseguiu ver um vislumbre do rosto de Arthur. Pouco tempo depois, o
corpo dele já estava visivelmente exposto. Ela desceu até ele, sempre graciosa. Ao vê-lo de
perto, Libidus percebeu que ele mudara. Quando o acertou com a corrente, ele estava bem
distante e ela não pôde reparar direito. Mas agora via-o muito bem, e com deleite. Da última vez
que eles se encontraram, ele não passava de uma criança birrenta e medrosa que se escondia
atrás da mãe ao mísero sinal de ameaça. Ela se agachou e tocou seu rosto, passando seus dedos
com delicadeza no rosto sujo de sangue e terra de Arthur. Ele reagiu, sua cabeça se moveu e
seus olhos lentamente se abriram.
— Era pra você estar morto agora. Sua cabeça explodido, igual a do meu irmão — ela
sussurrou, como uma diabólica voz doce. — Mas tudo que eu te fiz foi esmagar uma parte do
seu crânio. Você é forte.
Ela acariciou os cabelos bagunçados de Arthur, depois, puxou-o para si e o colocou em
seu colo.
— Em outras circunstâncias, eu poderia tê-lo como meu brinquedo. Eu iria te estuprar
todos dias. Quando eu acordasse de um sono vão, antes de me deitar para um outro vão sono. Eu
nunca me relacionei com uma criatura como você, seria uma experiência prazerosa. Me
pergunto o que você pode fazer — Os olhos de Arthur expressavam um devasso nada. Ele não
estava lá. — Me permita, por favor — Libidus sempre tomada por desejos impuros, se aprumou
para bem perto do rosto de um Arthur desacordado e inconsciente, incapaz de entender o que
acontecia em sua volta. Ela o beijou. Seu beijo era quente, e sua língua era sublime. Ela também
teve suas considerações sobre a língua de Arthur. Ela chupou com muito gosto, muito prazer.
Desfrutou cada instante, e com um angustiante, mas satisfatório anseio, ela conteve toda a
euforia que seu corpo sentia, e então explodiu em um clímax surreal e incontrolável, fazendo-a
morder aquela língua maravilhosa até arrancá-la da boca. Foi jubiloso. Logo após, ela sorriu
com a boca aberta, exibindo um pedaço da língua de Arthur para depois engolir com um sádico
prazer. Libidus teve seu rosto banhado por sangue. Limpou o que podia com a língua.
— Você é mesmo muito gostoso, Corruptus. Muito mesmo. E você tem olhos lindos,
realmente muito lindos. Eu quero experimentá-los, se me permitir.
Com os dedos ela fez um carinho pelos arredores da órbita esquerda de Arthur. Depois,
enfiou a unha do indicador lá dentro, na parte de cima do olho. E veio um choro de sangue
horrível. Uma hemorragia ocular ocorreu e seu olho tingiu-se de vermelho. Arthur não gritava,
também não estava morto. Ele apenas emitia alguns grunhidos de dor. O olho estava bem preso,
tendo que usar a unha do seu polegar para conseguir puxá-lo para fora. E conseguiu. O olho saiu
acompanhado por um pedaço do nervo óptico, como uma calda medonha. Um rio de sangue
jorrou sem parar. As pernas de Libidus estavam encharcadas a essa altura. Ela sorriu, feliz.
Admirou o globo ocular por alguns instantes. Deu um beijinho estalado nele, em seguida ela
abocanhou. Com direito a mastigação.
— Não tenho como negar que você provou ser uma iguaria deliciosa, garoto. Me
pergunto qual é o gosto do seu coração... entretanto, por enquanto, mais um olho já vai me
satisfazer.
Ela começou a acariciar o outro olho, exibindo um sorriso infernal. De repente,
lembrou-se de algo muito importante. Seu irmão ainda precisava de uma cabeça nova.
— Porcaria! — xingou com aspereza. — Acho que não poderei comer o seu outro olho.
Me desculpe! Eu adoraria, mas o tolo do meu irmão precisa de uma nova cabeça — Arthur
ouvia tudo em silêncio. Libidus tinha consciência de que ele estava ouvindo cada palavra. — E
tenho certeza que a sua vai servir perfeitamente.

Lentamente, tudo se desfez, ao sopro do que era uma noite serena. Pepita estava quase
totalmente destruída. Por quilômetros: casas e prédios desmoronados, lugares onde múltiplas
famílias residiam agora não passavam de pilhas de entulho. Todos, agora sem vida, morando
sob os escombros. O trio de exorcistas teve sorte ao encontrar um campo de futebol durante a
fuga da cidade. O campo era amplo, ao centro, não havia nada que pudesse ceder e cair sob as
cabeças do trio. Eram os únicos lá, por mais que pudesse ser seguro, ninguém suportou a ideia
de ter que ficar mais tempo na cidade, e ficar parado em um campo aberto enquanto tudo ruía
era angustiante. O trio permaneceu lá até os tremores pararem.
— Vamos ficar aqui pra sempre? — perguntou Ignez. Os três estavam sentados na linha
circular do meio campo. A arena estava uma escuridão só, já que os postes daquela rua (e de
todas as outras de Pepita), caíram ou perderam os fios.
— O que você sugere, espertinha? Quer ir ao cinema assistir um filmezinho enquanto
Arthur termina o serviço?
No meio da escuridão ninguém pôde ver, mas o rosto de Ignez contorceu-se numa
expressão de raiva.
— E se ela já matou os demônios? — questionou Clarice. — Talvez já esteja tudo
terminado...
— Ou talvez os demônios tenham matado ele — comentou Thomas. — Nunca se sabe.
— Vira essa boca para lá! — exclamou Ignez.
— Ué, não deixa de ser uma possibilidade.
— Para de pensar o pior — suspirou Ignez. — Olha, eu não sei vocês, mas eu não vou
ficar aqui parada! — levantou-se com ímpeto. — Deve ter muitas pessoas desesperadas agora,
achando que irão morrer soterradas. Está escuro e está silencioso. Não podemos ficar aqui
parados e deixar as pessoas sofrerem assim.
— Não somos bombeiros e não temos treinamento para fazer resgates — explicou
Thomas, demonstrando um enfadonho cansaço na voz.
— A gente faz o que pode. O que não podemos fazer é deixar as pessoas na mão.
— Vamos esperar os bombeiros, eles sabem como resolver essas coisas.
— Todas as estradas ligadas à Pepita provavelmente estão intransitáveis. O resgate
aéreo pode demorar a vir. Vamos fazer o correto e ajudar quem precisa. Você tá comigo,
Clarice?! — Ignez ligou o flash do celular na cara de Clarice, que reagiu à luz com espanto.
— Eu não sei... Nunca resgatei ninguém. E se eu atrapalhar ou fizer besteira?
— Você não vai. Me lembro de hoje cedo você ter falado que se pudesse, gostaria de
ajudar as pessoas sem ter que usar sua técnica de Utente. Bem, é a sua chance. Vamos fazer o
que estiver ao nosso alcance e é tudo que importa. E aí, vocês vêm ou não? — Ignez viu a cara
de Thomas e Clarice, definitivamente não estavam muito animados com a ideia. Mas, mesmo
relutantes, toparam.
— Acho bom você não matar ninguém, Ignez — alertou o irmão.
Assim seguiram. Saíram do campo de futebol com uma sensação mista de desconforto
aflição. Tudo em volta se encontrava aos cacos e toda a cidade estava desnivelada. Era perigoso
andar naquela escuridão, no entanto, não foi o bastante para os deter. Liderados por Ignez, eles
rodaram várias ruas gritando: “TÊM ALGUÉM AQUI?!”. Berros e berros, mas ninguém
respondia. Isso os fez temerem o pior.
— Droga! Ninguém responde — exclamou Ignez.
— Você tentou... — disse Thomas.
— E vou continuar tentando, caralho! — exclamou a irmã com severidade. Em uma
situação normal, a rua toda teria ouvido, mas o perpétuo silêncio era o único a ouvi-la. — Não
podemos perder a esperança...
Ignez sentiu seu peito fechar-se em uma dor sepulcral.
— Não precisa chorar, Ignez — falou o irmão. — Desculpa...
— Eu não tô chorando, seu babaca!
— Clarice?
— Eu prometi não chorar mais, esqueceu?
— E então quem tá-
— Ali! — gritou Ignez. — O choro vem Dalí!
A jovem correu em direção ao choro. Ele vinha do final da rua, no meio da pista. Ignez
estava com seu celular servindo de lanterna, mas por pouco não caiu na enorme fissura que
abriu-se na superfície.
— Cuidado! — Thomas muito ágil segurou a irmã pela gola do casaco e puxou-a para
trás, derrubando-a no chão. — Você tá bem?! — perguntou enquanto estendia a mão para ela.
— Sim! — e levantou-se com a ajuda dele. — Obrigada. O choro vem lá de baixo, tem
alguém preso lá!
— Me dá seu celular — pediu Thomas, e Ignez gentilmente entregou. Ele se inclinou na
borda da fissura e iluminou o fundo. A luz não conseguia chegar ao fundo, mas era o suficiente
para ver quem estava chorando. — É uma criança! Tem uma criança lá embaixo.
— Meu Deus! — Ignez cobriu a boca, espantada.
— Ele tá preso no banco de trás de um carro. O pai ou a mãe deviam estar tentando sair
da cidade quando esse buraco apareceu e engoliu o carro. Ei, garoto! — gritou Thomas o mais
alto que pôde. — Você tá bem?!
O choro cessou aos poucos. A criança estava presa no banco pelo cinto, Thomas via a
parte de trás da cabeça dele pelo vidro traseiro do carro. Com esforço, a criança conseguiu virar-
se o suficiente para ver a direção da lanterna do celular, embora não conseguisse enxergar quem
estava lá em cima.
— Socorro! — gritou o garoto. — Me ajuda, por favor!
— Vamos te ajudar — disse Thomas. — Primeiro, me diz se você tá machucado.
— Eu não sinto minha perna e... e... Minha cabeça tá doendo.
— Você bateu a cabeça?!
— Sim! Por favor, me tira daqui!
— Me diz quanto é cem menos vinte e cinco.
— O quê?!
— Cem menos vinte e cinco. Rápido!
— Setenta e cinco!
— A luz incomoda seus olhos?!
— Não!
— O que você tá fazendo? — perguntou Ignez confusa.
— Estou tentando medir a gravidade da pancada na cabeça dele. Acho que não foi tão
sério. Ele não sofreu nenhuma concussão nem nada, eu acho. Ele parece pleno, por enquanto....
Garoto! Qual o seu nome?
— Tobias!
— Tobias, vamos te tirar daí, num instante. Você tá sozinho?!
— Eu estava com meu pai, mas ele... ele...
Tobias começou a soluçar e a se perder nas palavras.
— Calma, Tobias! Só me diz se... Se seu pai... O estado dele... O que você vê?
— Eu tô vendo — De repente, o garoto irrompeu em lágrimas. — Eu tô vendo o lado de
dentro da cabeça dele...
Ignez e Clarice não se conseguiram se conter, uma cobriu o rosto em choque e a outra
inspirou ao limite que seu pulmão suportava.
— Já vamos te tirar daí! Aguenta firme, parceiro!
— Tá...
— Como vamos fazer isso? — perguntou Thomas, baixinho, para que Tobias não
ouvisse a situação lá em cima.
— Não faço ideia! — disse Ignez. — O buraco é muito fundo. Temos que achar algo
pra puxar ele, tipo uma corda.
— Onde vamos arrumar uma corda nesse monte de destroços?! — indagou Thomas.
— Talvez não precise ser uma corda — disse Ignez. — deixa eu ver... Ah! Podemos
usar os fios dos postes que caíram.
— Talvez funcione — concordou Clarice.
— Deixa eu cuidar disso — falou Thomas. — Ignez, vem aqui e continua apontando o
celular pro buraco. Clarice, me ajuda a procurar um fio seguro pra usar.
Os irmãos trocaram de posição e agora era Ignez quem iluminava a fissura. Ela
começou a conversar com Tobias para acalmá-lo.
Thomas e Clarice foram procurar algum cabo seguro. Tiveram de contar com a Lua para
que fizesse a iluminação, não era de muita ajuda, mas o que valia era a intenção.
— Aqui, esse cabo — Falou Thomas, e Clarice se aproximou de onde ele estava. —
Não tô vendo direito, mas acho que é um cabo de telefonia. Ele tá rompido e então não deve ter
corrente.
— Tem certeza? — indagou Clarice com preocupação.
— Não. Eu não sou eletricista, não entendo nada disso, porém, é a nossa melhor opção.
Ele acompanhou a extensão do cabo pela esquerda que tinha aproximadamente três
metros, reparou que de fato estava solto.
— Aí, Clarice, olha se do seu lado o cabo tá solto.
Assim ela fez. Seguiu a extensão do cavo por dois metros e meio. Estava solto.
— Aqui tá solto.
— É, vai servir.
Ainda com receio, Thomas agarrou o cabo. Sem choque, ainda bem. Voltaram para a
borda da fissura.
— Achamos um cabo. Parece firme, só que é curto. Vai ter que usar sua técnica,
maninha.
— Sem problemas. Troca de lugar comigo.
E novamente os irmãos trocaram de lugar.
— Como ele está? — perguntou Thomas.
— Bem. Só cansado.
— Certo.
Ignez pegou o cabo que Clarice segurava e em menos de cinco segundos o cabo
começou a crescer magicamente.
— Que incrível! — exclamou Clarice. — Eu queria ter uma técnica como essa.
— Você ainda não me falou a sua — disse Ignez.
— É ridícula. O quanto vocês vão estender?
— Não sei. Acho que isso dá — e instantemente o cabo parou de crescer. — Deve ter
uns quinze metros aqui, mais que o suficiente.
As duas levaram o cabo para perto do Thomas.
— Certo, como vamos fazer isso? — questionou Ignez.
— Alguém vai ter que descer lá embaixo — falou Thomas sem enrolação. — Não tem
outra forma.
— É muito perigoso — comentou Clarice.
— Não tem jeito. Alguém tem que descer, quebrar o vidro traseiro e tirar ele de lá.
— Não podemos jogar algo daqui de cima pra quebrar o vidro? — sugeriu Ignez,
mesmo não gostando do que tinha dito. — Daí nós só jogamos o cabo e ele sobe, sei lá...
— E correr o risco de machucá-lo? Sem chance! Além do mais, ele sozinho não tem
força pra sair pelo vidro traseiro. Assim que ele tirar o cinto de segurança o corpo dele vai
pender pra baixo, vai ser uma luta contra a gravidade com a qual ele não tem chances de vencer.
— Você tem razão — admitiu a irmã. — Quem vai descer? — perguntou hesitante.
— Acho mais seguro descer o mais leve de nós três.
— Ei, vocês estão legal?! — perguntou Tobias, depois de ficar algum tempo no
silêncio, apenas ouvindo vagos cochichos no alto.
— Estamos — respondeu Thomas. — Aguenta só mais um pouquinho.
— Tá...
— Enfim, quem de nós três é mais leve? — indagou Thomas. — Meu peso corporal é
de setenta e quatro quilos.
— Nos últimos meses eu fiquei treinando para ganhar mais peso — explicou Ignez. —
Minha meta é sessenta e cinco quilos. Acho que devo estar com uns sessenta. Clarice?
— quarenta e nove — ao responder, sentiu um arrepio na espinha, como se fosse seu
fim.
— Temos uma campeã! — exclamou Thomas com empolgação.
— Que ótimo...
— Vai dar certo — confortou-a Ignez. — Beleza, como vamos fazer isso?
— Tobias, vou precisar usar a lanterna por alguns minutinhos enquanto preparo seu
resgate. Tudo bem ficar no escuro?
— Tudo bem!
— Você é corajoso, cara! Aguenta aí! — Thomas saiu da borda da fissura e o buraco
voltou a ser preenchido por uma densa escuridão. — Temos que achar um ponto de ancoragem
para amarrar a corda, depois, eu vou fazer um estribo pra você por o pé, Clarice. Eu a maninha
vamos te descendo pelo cabo até lá embaixo. Você tem que levar alguma ferramenta forte o
bastante para conseguir quebrar o vidro traseiro. Você vai ajudar a passar o Tobias pelo vidro e
então ele coloca o pé no estribo e ele sobe da mesma forma que você desceu. Em seguida a
gente joga o cabo de novo pra você subir. Consegue fazer isso?
Clarice fechou o punho involuntariamente, o suor que escorria pela mão era frio.
— Eu acredito que consigo.
Thomas colocou a mão no ombro dela e sorriu, seus olhar trazia a verdade: — A gente
sabe que sim. Agora, ponto de ancoragem. Pra já! — e bateu duas palmas para sinalizar o início
da tarefa.
O trio então começou a caçar coisas que fossem fortes para servir como sustento da
corda. Muitas foram as sugestões, mas nenhuma parecia segura e funcional o bastante. Até que
Thomas percebeu que poderia usar o caminhão que estava tombado de lado bem perto da
fissura. Ele rondou o caminhão procurando o melhor ponto e então decidiu amarrar o cabo na
bandeja de suspensão do veículo.
— Beleza, isso tá bem firme — disse Thomas. — Agora vamos achar algo que possa
quebrar o vidro, não deve ser difícil...
— Que tal esse bloco de concreto? — sugeriu Ignez com o bloco na mão.
— Vai servir — disse Thomas. — Agora vamos jogar cabo no buraco.
Thomas se dirigiu até a fissura e jogou o cabo lá embaixo. Quando encostou no vidro do
carro Tobias tomou um leve susto. Thomas voltou a iluminar o local e isso de certa forma
pareceu acalmar o garoto. Clarice sacudiu as mãos e aqueceu o corpo, talvez até demais, os
irmãos ficaram um pouco preocupados, mas não falaram nada.
— Tô pronta — disse Clarice.
— Certo. Esse buraco deve ter uns cinco metros, acho que é tranquilo pra você descer
sem se cansar. Use seus pés como apoio na parede e vai descendo devagar, vou ficar iluminando
pra você.
— Boa sorte, amiga! — disse Ignez.
A jovem foi em frente. Sentou-se na borda da fissura com o cabo na mão. Respirou
fundo e despencou para baixo.
— Não se mexe muito! — disse Thomas enquanto assistia Clarice girar pendida no
cabo. — Agora com calma encosta os pés na parede. Boa! Incrível! agora vai descendo.
E com um passo de cada vez ela foi até ficar há poucos centímetros do carro. Um certo
receio de ficar em pé no veículo tomou conta dela. Sendo tarde de mais para voltar, ela encarou
a realidade e pôs os dois pés de uma vez. Estável, aparentemente.
— Arrasou amiga! — gritou Ignez lá de cima.
Clarice respondeu com um sorriso.
— Como estão as suas mão? — perguntou Thomas.
— Ardendo um pouco, mas nada demais.
— Beleza, minha irmã vai jogar o bloco de concreto. Fica atenta.
Ignez deitou-se no chão bem na borda da fissura e tentou deixar o bloco de concreto o
mais perto o possível de Clarice para que ela não tivesse dificuldades em agarrá-lo.
— Vou soltar — anunciou Ignez.
— Certo.
O bloco pareceu leve ao cair, ela não teve problemas em segurá-lo. Com o instrumento
na mão, era hora da ação.
— Ei, acho que nos apresentamos ainda — anunciou a jovem salvadora paro o garoto
preso. — Eu me chamo Clarice.
— Eu sou Tobias.
— Nome legal. Isso na sua boca é um chiclete? — perguntou ao ver que a mandíbula
dele descia e subia.
— É. Me ajuda quando eu tô nervoso.
— Me ajuda também — comentou Clarice.
— Sério? Pensei que só eu fizesse isso! Meu sabor favorito é o de canela. Todos os
meus amigos falam que é ruim, mas eu gosto.
— Não liga pra eles. É preciso ter um paladar refinado para apreciar o chiclete de
canela.
— Você também gosta?! — perguntou o garoto entusiasmado.
— É o meu favorito — disse ela. — Então... Pronto?
— Acho que sim.
— Eu vou bater com um pedaço de concreto no vidro, feche os olhos por segurança, tá
bom?
— Beleza.
— No três. Um, dois... três!
A primeira pancada foi forte, o vidro rachou e fez um “crack”. Mas Clarice estava
numa posição onde não podia usar toda a força que seus braços realmente possuíam. Ela
agachou, com uma mão na parede para o equilíbrio e com a outra segurava o bloco de concreto.
— Agora vai. Um, dois... três!
O tinir de vidro ecoou alto. Os irmãos lá me cima gritaram extasiados. “Boa”, “mandou
bem”, “arrebentou”, eram umas das muita palavras que eles diziam.
— Você se feriu? — perguntou Clarice para Tobias.
— Acho que não.
— Certo. Continua de olhos fechados, tem alguns pedacinho de vidro que não se
soltaram, vou quebrar tudo pra você não se ferir enquanto passa.
Não demorou para que o vidro traseiro estivesse seguro para a passagem de pessoas.
— Acho que tá ok — disse Clarice, analisando sua obra. — Você consegue tirar o cinto
de segurança?
— Consigo. Mas eu tô com medo.
— Tá tudo bem. Você precisa tirar o cinto para eu poder puxar você.
— E se não der certo?
— Vai dar. Não vai demorar nada, eu prometo.
— Promete?
— Em nome da minha falecida mãe: eu prometo.
— Eu também perdi minha mãe. Quando eu era pequeno.
— Hmm, e como você tá grande agora! — brincou.
Tobias deu um sútil sorriso.
— Desculpa — disse ela. — Sei como você se sente, estamos no mesmo barco. “O
barco dos sem mãe”.
— Acho que agora estou no barco dos sem pais.
Clarice engoliu em seco. A luz da lanterna do celular que estava lá em cima era fraca,
todavia, ela ainda permitia ver o interior do carro. Clarice podia ver sangue o espalhado na
frente amassada do carro, e vagamente... A cabeça aberta do pai de Tobias.
— Vamos lá, vamos dar o fora daqui — disse a garota.
E de súbito, Tobias tirou o cinto. Instantaneamente seu corpo foi jogado pra baixo,
batendo o corpo bem no banco ao lado do motorista.
Tobias soltou um grunhido de medo.
— Tudo bem, tá tudo bem! Eu vou abaixar minha mão e você segura, pode ser?
— É...
Clarice agachou o máximo que pôde e jogou seu braço para dentro do carro.
— Vem, pega minha mão — falou entre gemidos.
Enquanto Tobias virava o corpo, seus olhos se encontraram com a figura horrível que
era seu pai naquele momento. Daquele ângulo agora ele podia ver que o acidente realmente foi
brutal. A frente do carro foi completamente arrebatada pelo fundo do buraco, que fez com que a
carroceria se achatasse para o interior do veículo, esmagando o corpo desprotegido do pai de
Tobias. Era uma insanidade pesar que, se a fissura fosse mais funda, a força do impacto seria
maior, possivelmente achatando o veículo até o banco de trás, e fazendo carne moída de Tobias.
— Não olha pra ele! Olha pra mim! — dizia Clarice para Tobias.
— Meu pai...
— Eu sei que isso é aterrorizante e você tem todo o direito de chorar, talvez até eu chore
junto! Mas vamos sair daqui primeiro, ok, amigão?!
Tobias enxugou as lágrimas e atendeu o pedido. Ele tentou ficar de pé no banco, porém
sempre perdia o equilíbrio, depois de inúmeras tentativas ele finalmente ficou numa posição alta
o bastante para alcançar a mão de Clarice, e com um mini-salto ele conseguiu segurá-la.
A jovem usou até a força que não tinha para puxar a criança. Ela não sabia que um
garoto de oito anos poderia pesar tanto. Com metade do corpo para fora, Tobias conseguiu uma
mão para subir e em seguida os pés. Enfim o garoto saiu e os irmãos lá no alto vibraram de
alegria.
— Mandamos bem — disse Clarice oferecendo sua mão para um “bate aqui”, e sem
demora Tobias bateu, um pouco mais aliviado agora que não estava mais preso lá dentro.
A jovem ficou um tempo agachada recuperando o fôlego, quando sentiu sua respiração
estável ela ficou de pé novamente. Nisso o carro deu uma rangida e uma leve afundada, o que
foi o suficiente para deixar todos em pânico.
— Calma, calma! — gritou Thomas lá do alto. — Já passou. Vamos, saiam logo daí!
Clarice se esforçou para voltar a si. Olhou para o garoto e viu que ele também estava
assustado, para não preocupá-lo ela retomou o foco.
— Não foi nada, Tobias — comentou ela em um bom domínio dos batimentos
cardíacos. — Deixa eu te ajudar a subir — Tobias se aproximou do cabo e olhou com
desconfiança para o estribo improvisado.
— Tem certeza que é seguro?
— Certeza eu não tenho, mas é o melhor que temos. Você é leve, não vai ser problema
— ao falar isso, lembrou-se do esforço descomunal que fez para puxá-lo para cima.
— Ok.
— Coloca um dos seus pés aqui e...
Em pouco tempo Tobias conseguiu pegar o jeito e logo ficou pendurado no cabo.
— E você, Clarice? — perguntou o garoto com seus enormes olhos castanhos.
— Eu vou logo depois de você — e sorriu.
Tobias corou e também sorriu.
— Muito bem, vou te puxar — anunciou Thomas. — Vou ter que soltar o celular pra
usar as duas mãos, cê quer ficar com ele para iluminar aí, Clarice?
— Pode ser.
Devagarinho Thomas abaixou seu braço para dentro da fissura e ao ver Clarice com
suas mãos estendidas pro alto, ele soltou. Ela pegou sem problemas.
— Hora do resgate! — exclamou o rapaz com empolgação.
De pé, ele e Ignez seguraram a corda com as duas mãos e como se estivesse em um
cabo de guerra, começaram a puxar a corda.
— Tá dando certo! — gritou Clarice ao ver Tobias subindo pela corda.
— Uhull! — gritou Tobias alegre.
Lá em cima os irmãos usaram toda a força que podiam, na cabeça de Thomas não seria
tão pesado assim, já que se tratava de uma criança. A realidade, no entanto, se mostrou
diferente. Mas apesar da dificuldade, a alegria tomava conta de todos, uma euforia vindo do
nada. Tudo ocorria bem quando, no meio do caminho, o estribo cedeu e Tobias ficou pendurado
na corda somente com as mãos, girando como se estivesse numa barra de pole dance.
— Tobias! — gritou Clarice totalmente desesperada.
— Merda! — xingou Thomas enquanto segurava a corda.
Entre gemidos de esforço Ignez disse: — Depressa... Puxa!
Tomados por uma adrenalina do momento, conseguiram o ímpeto que precisavam.
Thomas passou a dar longas e fortes passadas com a mão ao puxar a corda e Ignez manteve uma
plena resiliência dando apoio ao irmão. Tobias subiu ainda mais rápido do que antes e em
segundos seus olhos já podiam contemplar a rua desolada por onde se abriu a fissura. Em
puxadas finais, Thomas arrebatou o garoto para superfície e assim que passou pela borda ele
usou as próprias para se afastar da fissura.
Os irmãos correram para perto da criança e Ignez deu um abraço surpresa que o pegou
desprevenido.
— Conseguimos! — exclamou Ignez. — Puta que pariu, conseguimos!
— Olha a boca! — advertiu Thomas com olhadelas para Tobias.
Instantemente ela cobriu a boca, com vergonha. Todos se entreolharam e caíram na
risada com a situação.
— Agora, vamos tirar a Clarice — disse Thomas.
— Temos que nos certificar de que o cabo vai suportar ela, quase que dava merda... —
disse Ignez.
— Tem razão — concordou o irmão. — Vamos dar uma reforçada no cabo e talv-
Daí e diante, tudo ocorreu como um rápido relâmpago. Tênue, vago e nada mais que
borrões na mente, assim recorda os irmãos. À medida que o solo tremeu, os batimentos saltaram
para frenéticas batidas quase que instantaneamente. Rápidos olhares, respiração presa, suor
jorrando da pele, escuridão, medo, impotência, medo, medo, medo, medo... Arrependimento.
— CLARICE! — gritaram os irmãos no mais alto tom que podiam alcançar.
Correram para a borda da fissura entre tropeços, o solo tremia leve, mas como do vinho
pra água ele se intensificou. Antes de chegarem na borda, saiu de dentro da fissura e penetrou
em seus ouvidos um ruído metálico que rugiu alto e os fez temerem por suas próprias vidas,
mesmo que não estivessem em risco. Então o ruído prosseguiu com uma fricção agonizante
contra a parede de terra no fundo da fissura, e desceu ao poço da escuridão. Ela gritou com
ferocidade, mas mal se pôde ouvi-la por conta do contraste que era a boca da escuridão à engoli-
la em uma única abocanhada. Clarice encontrou o fundo da fissura, se pôde comprovar pois um
vago som de metal se chocando com algo ecoou lá embaixo.
Cessaram-se os tremores.
Ignez pôde retomar para a borda da fissura, tão desgovernada que mais uma vez seu
irmão teve que segurá-la para que não caísse lá embaixo.
A plenos pulmões ela gritou para o abismo: — CLARICEEEEEEEEE!!!
Clarice não respondeu, muito menos o abismo, ainda que Ignez sentisse ele olhando
para ela.

A escuridão bem ao fundo de sua alma estava repleto de muitos nadas e vários vazios. A
incógnita da vida por fim teria sua buscada resolução. O Fim. Ele estava de frente para sua vida,
desencarnado da matéria, insensível à dor, aos sentidos, a corrupção de sua existência. Poderia
finalmente dar um basta de uma vez por todas. O chão era de uma água ondulante e impossível
de submergir. O reflexo eterno de quem ele era. Conhecendo-te a ti mesmo em infinito ciclo.
Ele se aproximou da entrada do labirinto e, bem no limiar, ela o esperava, paciente e
benevolente, pois com compaixão ela trata todos os seres. Dos ímpios aos justos, dos quebrados
aos (quase) perfeitos, dos que rastejam por entre a carne aos que dela se oferecem. Perto da
entrada ele se ajoelhou aos pés dela, encostando sua testa na água fria. Pediu permissão para
entrar. Ela tocou sua cabeça.
— Levanta-te, meu filho.
Arthur assentiu.
— Finalmente te achei...
— Não, meu filho. Você não me achou.
Ele engoliu em seco.
— Como? Depois de tudo que eu passei você me diz isso?
— Tudo o quê? — ela indagou com certa curiosidade.
— Tudo que eu vivi, passei, sofri! Depois de tudo isso...
— Você ainda não viveu nada. Eu vi tudo, você também viu. Só sofrestes à mesma
medida que qualquer outro ser pecante.
— Vamos lá, mãe, me deixe passar pelo Labirinto da Vida.
— Não posso permitir.
— Eu morri, droga! O quê mais você quer de mim?!
— Morreu apenas porque deixou ser moto. Infligiu contra a própria vida ao permitir ter
sua vida tirada por Libidus.
— Eu perdi.
— Por isso vou lhe dar a dádiva de recomeçar.
— Eu não quero recomeçar nada. Quero nadar no Tártaro junto com outros ímpios,
dizem que lá é lindo nessa época do ano. Me permite?
— Está à disposição para matar todos por um egoísmo tão irracional?
— Estou.
— Você terá o pior dos castigos se assim fizer. Os outros Deuses não terão
misericórdia.
— Eu me resolvo com eles. Labirinto da Vida, posso passar, fazendo favor?
— Você sabe que não quer realmente “morrer”. Como ficará tua irmã? Não se sente
responsável por ela? Teus amigos? Teu amor?
— Lilith... Não tem nada que eu possa fazer para salvá-la, eu já busquei e não achei
nada. Eu não tenho amigos, nunca tive. Nem um amor de verdade.
— Você tem muita neblina na cabeça. Para Lilith há salvação. Você só não está
buscando nos lugares corretos. Eu sei que não queres largar sua irmã nas mãos sujas de
Lascivus. Não foi por causa dele que você a salvou?
— Salvei? A alma dela está presa em uma espada. Eu não salvei ninguém. Parece que
ao longo da minha vida eu nunca salvei ninguém, só atrapalhei.
— Filho... Não deixe que os alheios vejam por você. Tem de acreditar que o certo é
aquilo que você faz.
— Mãe...
— Não chore, meu querido.
— Por que eu nasci? Por que eu tive que vir a vida se ninguém me queria aqui?
Ele se encolheu nos braços dela. Ela o abraçou e demonstrou sua compaixão.
— Você veio para cumprir seu propósito. Se guie pelas pessoas que te amam, elas estão
lá. Você sabe quem são. E é neste momento de fraqueza, de dor, de incertezas, que você precisa
pensar nelas e em todo o amor que eles tem por ti. Não se esconda nas sombras, filho. Não faça
isso.
— a Terra não é um lugar bom... Parece que, quanto mais eu luto, mais as coisas dão
errado. Não vale a pena.
— Você não precisa acreditar que a Terra é um lugar bom. Só precisa acreditar que vale
a pena lutar por ela
— Eu acho que não terei outra oportunidade de morrer, se não for agora, será quando?
Um leve sorriso tomou o rosto da Morte.
— No momento certo, menino tolo. Nunca conheci alguém tão obcecado em morrer
como você — ela riu.
— Bem você é minha mãe, e você é a Morte, acho que não é tão estranho assim.
Ela passou a mão pelas longas madeixas escuras do filho.
— Eu sinto muito por não ter tido muito tempo com você quando eu era mortal.
— Não é culpa sua. Eu não te culpo, mãe.
Ele a abraçou novamente.
— Você é bom, filho. A preciosidade de sua bondade tem mais valor que qualquer joia
que o Homem possa vir a lapidar. Contudo, você precisa ir, não podemos ficar aqui por mais
tempo.
— Eu ainda vou te ver de novo?
— Algum dia, filho. No dia certo. O Labirinto da Vida sempre estará aqui te esperando.
Enquanto isso, aguente a dor. Ame o quanto puder, e mesmo seus inimigos terão respeito por
quem você é.
— Como eu vou derrotar Lascivus e Libidus? Sinto que eu não sou capaz.
— Se apoie em quem você ame e terá forças para mover montanhas. Espere a luz. O
alvorecer logo chegará, não o perca. Chegará em formas risonhas e improváveis, mas ele virá.
Ela virá.
A Morte levantou seu indicador e o empurrou contra a testa de Arthur. Lentamente ele
caiu para trás, o tempo passando sem pressa, seus olhos marejados, sua mãe sumindo de sua
visão, o Labirinto da Vida novamente estando distante de seu alcance. Ele afundou na água que
antes parecia uma ondulação sólida, cruzou o próprio reflexo e atravessou para dentro de si.
Tudo estava sendo deixado para trás, a luminosidade se tornava distante, fria, aterradora, não
havia mais nada enquanto no fundo d’água. Distante, o que ele ouvia ali era o ecoar de vozes,
algumas conhecidas, outras não. O medo cobriu seu corpo, sua mente, suas entranhas e seus
anseios.
Era possível afundar para sempre? Sim. Mesmo sendo um local de pleno
desconhecimento, era sabido que, no Poço da Alma, os desamparados afundavam nas trevas por
toda eternidade por não haver ninguém para puxá-los para cima. Arthur não tinha certeza se
chorava enquanto afundava lá, não era possível sentir suas lágrimas. Mas sabia da dor que
dilacerava seu peito. E assim ele afundou por um tempo incerto, com todos os sentimentos
aflorados em sua alma. Quando o medo e a escuridão pareceriam lhe preencher por completo.
Algo ocorreu. Um toque, uma luz, uma esperança. Um alguém.
“Eu estou aqui, irmão”, falou com doce melodia uma voz. Era idêntica a de Bran, o
Corvo Branco.
Algo tocou em suas costas. Uma mão.
“Eu estou aqui, filho”, disse uma voz da qual ele tanto sentia falta. Talvez fosse seu pai.
Outra mão.
“Eu estou aqui, meu amigo”, contou um alguém camarada.
Mais uma. Elas estavam o empurrando.
“Arthur, seremos amigos para sempre, não é?”, Ele se lembrava desta promessa. Foi
para Lúpula.
“Não acredito que você esqueceu de contar comigo, seu idiota!”, advertiu alguma
garota muito irritada. Não duvidava que fosse Holly.
Seu corpo erguia-se para o alto mais rápido à medida que uma nova mão o empurrava.
“Pela Mãe, eu sempre estarei ao seu lado, Arthurzinho”, ela revelou. Só poderia ser
Angelina.
Suaves filetes de luz surgiam no alto.
“Conte comigo, meu amor”, disse sua grande paixão.
Mais rápido ele subia. A luz começava a tocar seu rosto, o calor penetrava sua pele. A
escuridão agora abria espaço para um oceano dourado.
“Vamos juntos ver o alvorecer, meu Príncipe Encantado”, foi o que disse a voz suave
de uma garotinha. E sua pequena mão também o ajudou a subir.
“Não se esconda nas sombras”, foi o que sua mãe havia dito.
Suas costas tinham agora um grande peso que ele carregava com orgulho. O calor
ardente o tornava mais vivo. O dourado oceânico se transformava num vermelho abundante,
latejante e infernal. Para onde estava emergindo era difícil saber. No entanto, de alguma forma,
ele se sentia seguro em voltar. Arthur mergulhara no sangue da Terra, e dele se banhava. Não
das cinzas, mas do magma ele voltou, de modo oculto, mas com um propósito. Uma certo
propósito, ainda que escrito por linhas tortas. Nas entranhas da Terra o jogaram, e foi lá que
Arthur se fortaleceu.

Lascivus ostentava com bel-prazer sua nova cabeça. O longo cabelo também lhe caía
bem. Foi um presente muito bem vindo. O único incômodo era ter um olho faltando.
— Você precisava mesmo fazer isso, irmã?
— Eu não resisti, ele tinha olhos muito bonitos, um ao menos eu deveria provar. E você
está reclamando de barriga cheia, lhe dei uma cabeça nova e muito bonita, uma gratulação por
minha nobre atitude seria admirável de sua parte.
— Me desculpe. Você sabe que sou grato, irmã. É que agora só tenho um olho para
ver...
— Antes um do que nenhum!
— Sobre Corruptus, você tem certeza que realmente deu um fim nele? — perguntou
Lascivus, inseguro. Nunca antes havia sido decapitado e tido sua cabeça esmagada. Esta foi uma
experiência traumatizante, para dizer o mínimo.
— Eu não falho. Arranquei a cabeça dele e dei a você, não há mais chances dele se
reconectar a cabeça perdida, o corpo está queimando no sangue da Terra, dentro daquele enorme
buraco que se formou com os tremores. O que mais você quer?
— Nada, é que Numen falou que ele era perigoso. Mas derrotar ele foi tão fácil.
— Você parece se esquecer de que ele explodiu sua cabeça e arrancou suas asas. Eu que
devo dizer que matá-lo foi uma tarefa fácil. Além disso, senti Corruptus como um ser
desmoralizado, creio que ele queria mesmo morrer.
— Sendo assim, sou grato pela contribuição do garoto em sua própria morte — e abriu
um largo sorriso. Era macabro ver a cara de Arthur sorrindo em contentamento pela morte do
verdadeiro dono da cabeça. Libidus parecia não se importar.
Para onde vamos, agora? — perguntou a irmã, já entediada daquele lugar.
— Vamos procurar um canto na borda de alguma ilha. Não me recordo o nome.
— Praia.
— Correto.
— E ela? — perguntou Libidus olhando para espada na mão de Lascivus.
— O que tem ela?
— Uma das razões para você ter vindo aqui não era para recuperar sua esposa
prometida?
— E eu já recuperei.
— Mas ela está na forma de uma espada. Pretende-se casar com uma arma?
— Uma arma como companheira é muito mais benéfico do que qualquer fêmea. Mas,
não. Ela será... meu troféu. É uma bela espada, não acha? — perguntou enquanto brincava com
a espada, girando-a feito uma criança exibida.
— Era só para isso que você a almejava?
— Lógico. Para provar que o que é de Lascivus por direito, Lascivus terá. A mim
ninguém engana.
— Há tempos falando de Lilith e como ela deveria ter sido sua para no final ela ter a
utilidade de um mero enfeite — Libidus enfatizou sua fala com um suspiro de desgosto que não
agradou Lascivus.
— E o que você quer de mim? Não vou casar-me com ela só por capricho seu. Afinal,
eu sou o santo Senhor da Promiscuidade! Você também, querida irmã! Dividimos o mesmo
título. Não foi de nossos nomes que atribuíram palavras para dar significado às depravações
humanas?
— Faça como bem entender — disse a irmã com uma pitada elegante de acidez. —
Vamos voltar para as atividades relevantes. Estive pensando, creio que seja mais seguro
matarmos todos os humanos antes de criarmos nosso reino. Logo saberão de nossa existência e
não nos darão trégua.
— Não me diga que você tem medo deles, irmã? — indagou Lascivus, querendo muito
dar risada.
— Como você é estúpido — disse Libidus, curvando os lábios em desprezo. — Se
partirmos em busca de um local para a criação do nosso reino, os humanos irão atrapalhar. Eles
tem armas capazes de fazer estragos muito grandes, não contra nós, claro. Todavia, nosso reino
poderá sofrer com a destruição da guerra que sucederá.
— E o que você sugere, brilhante irmã?
— Acho que temos um tempo proveitoso até que eles nos achem. Se sairmos daqui
agora podemos voar pelos ares até acharmos um bom lugar para o nosso reino, em seguida,
iremos o mais longe possível do local para guerrearmos contra esses vermes. Não me importo
de ter parte da Terra em ruínas, desde que nosso reino fique de pé.
— Eu estou ao seu lado irmã. Pois bem, não vamos perder tempo.
Os dois bateram suas asas e subiram no céu. Enquanto voavam, Lascivus encarava a
paisagem com muita felicidade, sentia-se livre e independente. Aquela era sua casa e ele poderia
fazer o que bem entendesse com ela. Apesar de haver parasitas em sua residência, ele e sua irmã
dariam um jeito nisso. O acordo com Numen se mostrou um grande negócio, a dupla de irmãos
mais do que ninguém se encontrava por cima da carne-seca agora, e mesmo nenhum Deus
poderia intervir em seus negócios.
Uma crise estranha percorria a espinha de muitas pessoas ao redor do mundo,
principalmente aqueles que tem uma fé a qual se podem agarrar em momentos de crise. Uma
aflição global apoderou-se da população, daquelas que você não conta para ninguém pois você
nem mesmo julga crer naquilo de fato, e que não passa de uma sensação temporária. Muitas
crianças onde no mundo era noite foram dormir juntas aos seus pais, outras onde no mundo era
dia foram procurar pelos cômodos até achar um pai, uma mãe ou os dois juntos para ficarem
próximos. Adultos do mundo afora sentiram vontade de ligar para seus pais já bem idosos e
perguntar como estavam, marcar um almoço no domingo, porventura. Sacerdotes sentiram uma
vontade súbita de realizar alguma oração. Algo estava despertando. Fez criar-se a preeminência
de uma força descontrolada. Ora, se a própria Morte recusou-se a levá-lo, quem mais se
atreveria tentar detê-lo? Como já dito, em amparo com o mundo, ele foi cuspido de volta à vida,
arremessado ao alto com o sangue ardente da Terra explodindo em colunas ao topo da
superfície. Chovia lava.
O barulho não passou despercebido. Os irmãos demônios já estavam um pouco longe
para ver com clareza, mas ouviram bem o barulho da lava subindo para o exterior. E sabiam que
algo estava errado. Logo interromperam o voo.
— Você ouviu isso?! — perguntou Lascivus, sendo o mais assustado entre os irmãos e
o primeiro que olhou para trás.
— Ouvi, mas não deve ser nada.
Uma fina neblina da madrugada cobria o céu e não os deixavam ver com precisão a
merda que acontecia lá atrás.
— Você tem certeza que el-
— Se você perguntar isso novamente, eu juro que o levo para fazer companhia a ele —
ameaçou Libidus, e isso serviu para calar a boca do irmão.
Só que então, uma má sensação atingiu ela, seu Arauto da Desgraça que estava em seu
ombro teve um surto e chiou como uma televisão antiga sem sinal.
— O que foi, minha pobre criatura?! — indagou Libidus com preocupação.
O Arauto havia endoidado (ou talvez estivesse mais sã do que nunca) e resolveu que ali
ele não iria ficar, decidiu alçar voo para bem longe. Libidus foi tomada por um impulso de ir
atrás de seu bicho, mas Lascivus interveio segurando ela pela mão. Ao longe, uma aura
despertava de forma bestial e não passou despercebida pelos irmãos. Apesar de diabolicamente
forte, eles já haviam sentido antes, só que antes eles não tiveram medo. Demônios Ancestrais
não poderiam se sentir ameaçados por um aura daquelas. Só que agora, algo mudou.
— Libidus... — ele se atreveu a perguntar novamente: — Você tem certeza que el-
— NÃO! Eu não tenho certeza.
Antes que a primeira gota de chuva caísse, o mundo estaria limpo mais uma vez.
Por ora.
Lascivus que levava a espada na mão (“sua por direito”), sentiu a arma tremer sem
parar, não demorou para que ela começasse a pesar também. Por mais que tentasse, a arma
estava convicta em impor sua vontade, e ele não pôde contra ela. Livre das mãos dele, ela saiu
girando no ar e foi perca de vista pelos dois demônios.
— Pelo visto não foi tão fácil quanto achávamos — disse Libidus — Veja, o maldito
voltou — ela apontou em direção ao horizonte à sua frente, entre a neblina surgia o perigo
resolutivo. Arthur.
— Não é ele. Não pode ser ele — Lascivus, negou-se a crer, sua voz distante, seu corpo
presente — Quem é ele?
O espanto não era de causar surpresa se você também visse a figura no céu. Asas negras
como se de penas de graúna fossem formadas. Dos quadris para baixo, seu corpo era coberto
por um pelo escuro ondulado, se assemelhando a uma ovelha negra. Seus pés eram largos e com
unhas afiadas. Sua cabeça tinha enormes chifres retos saindo de sua testa, logo acima dos olhos,
apontando levemente para direções opostas. Sua feição, bem, ela era de um vazio esmagador,
parecia sem vida, não expressava nada, não portava sentimentos ou pesares. Mas ainda era
habitava um olhar macabro. A parte branca do olho tornou-se negra. O vermelho que só
aparecia em vislumbres na escuridão parecia mais brilhante, mais sangrento. Sua pele estava
cinza, o cabelo negro e ondulado caía até sua cintura, suas mãos tinham garras afiadas, numa
delas ele segurava Lilith.
— O que houve com ele? — Lascivus perguntou para a irmã, mas ela não estava ali
naquele momento, sua cabeça pairando em inconformidade.
“Você não precisa acreditar que a Terra é um lugar bom. Só precisa acreditar que vale
a pena lutar por ela”, Arthur se lembrava dessa frase, mas não de quem a dissera. Pouco
importa. Ele iria guardar para si, e segui-la sem objeções.
Expurga-me tu dos que me são ocultos.
Como uma miragem, Arthur sumiu. Os irmãos ficaram confusos, olharam para todos os
lados desesperados. Por detrás, Libidus sentiu um tipo de penetração que não estava
acostumada, mesmo com seus séculos de sadomasoquismo, causando e sentindo dor, o frio da
lâmina penetrando seu peito foi uma sensação única. No começo, excitante, depois, dolorosa e
insuportável. A lâmina atravessou por completo ao ponto de Libidus poder enxergar o
instrumento mortal que a atingiu pelas costas. Arthur logo retirou a lâmina do peito dela e se
lançou para o irmão.
Libidus despencou do céu com uma enorme abertura em seu peito. Arthur por um
milésimo de segundo estranhou ver seu rosto no corpo de Lascivus, apesar de não ter
demonstrado. Uma tentativa inútil de soco por parte do demônio resultou em um contra-ataque
onde Arthur o pegou pelo braço e o girou para trás, deixando-o imobilizado. Depois, ele
quebrou o braço na altura do cotovelo. Ainda segurando Lascivus, Arthur agitou suas asas
negras e voo reto em direção ao solo. Os dois se chocaram com grande impacto, onde juntos
criaram um belo buraco no chão.
Sendo franco, é muito difícil tentar entender a psiquê de Arthur quando ele assume essa
forma de demônio. Algo que ocorreu poucas vezes em sua vida, as outras você talvez veja em
futuras histórias. Mas sendo Arthur um mestre em combate, algumas de suas decisões tomadas
aqui foram contrárias à sua aptidão em lutas. Por isso, a condição em que ele se encontrava
nesta batalha deve ser levada em consideração, tendo em mente que Arthur sempre relata não
lembrar de nada do que aconteceu durante sua forma demoníaca. Suas escolhas e atitudes
também devem ser vistas como instintivas, uma vez que o xamã não pôde pensar de maneira
coesa. Dou este adendo pelo fato de que, levar demônios que causam terremotos de volta à terra
firme não ser uma ideia muito sensata, apesar das boas intenções.
Ao chão, Arthur exibia suas presas e tom de ameaça como um monstro. Enquanto seu
pé estava sob a cabeça de Lascivus, suas unhas longas e afiadas o feriam. Sua posição de glória,
no entanto, foi interrompida quando o chão começou a tremer com muita intensidade e começou
a se abrir. Arthur então lançou-se para o alto. Lá de cima ele avistou Libidus com suas correntes
fincadas no solo, seu peito começava a se fechar do corte. Arthur voo na direção dela como uma
flecha. Jogou sua espada em tentativa de ataque, mas Libidus desviou a tempo. E com tudo de si
ele se jogou contra ela, Libidus se agarrou a ele para não ser jogada longe e os dois foram
cruzando um longo caminho arrastando-se no chão, destruindo tudo pela frente. Ela se manteve
firme e não o soltou, usando uma mão para agarrar o pescoço dele e a outra para puxar as asas
de Arthur. Com esforço, ela conseguiu tirar algumas penas. Porém, o que conseguiu realizar
com êxito foi fazê-lo se desequilibrar durante o voo e os dois bolaram no chão por um tempo até
Libidus finalmente soltá-lo e quicar no chão feito bola de basquete. Com isso, foram
arremessados para longe um do outro.
Arthur se ergueu novamente e sacudiu sua cabeça tentando tirar a terra do seu cabelo.
Quando virou-se para trás, foi surpreendido por uma das correntes de Libidus que enrolou-se no
seu braço direito, com o qual segurava Lilith. A corrente o puxou e a pressão repentina fez com
que soltasse a espada no chão.
— Desista Arthur — declarou Libidus, ofegante e imunda de terra. — Não existe forma
de matar um Demônio Ancestral. Persistir no mesmo erro é tolice — E a corrente enroscada no
braço de Arthur tentou puxá-lo. Ele não se moveu um centímetro sequer. — Você gasta tempo e
sangue tentando proteger estes seres fracos, mas é tudo em vão — Uma outra corrente se
prendeu no braço esquerdo dele. — Apenas traz desgraça ao nome de seu pai — Ela arfava
muito. As duas correntes tentaram mais uma vez puxá-lo. Ele ainda inerte no chão. — Todo
esse esforço... Você me irrita! — ela gritou. Uma terceira corrente se prende ao braço direito.
Arthur sentiu seu corpo sendo levemente puxado, mas ele reposiciona suas pernas em uma
postura mais firme e assim permanece. — Você... — ela estava sem fôlego. — Não... vai...
atrapalhar... nossos... planos — A quarta e última corrente se enroscou no braço esquerdo.
Todas as quatro puxando simultaneamente ainda não foram capazes de derrubá-lo. Ele parecia
implacável e invencível. Quando ele enrolou seus braços nas correntes, ali, Libidus percebeu ter
feito uma besteira Com todas as quatro correntes fixas em um cinto em sua cintura, não havia
escapatória. Arthur puxou as correntes com tamanha força que Libidus veio se arrastando
totalmente destrambelhada até ele. E com muita delicadeza ele a recebeu com um chute na cara.
Tombada no chão, ela não tinha mais aquele rosto angelical de um demônio. Sua cara
desfigurada. Seu crânio, mais amassado que uma lata de refrigerante. Suas asas decaída e com
penas faltando. Deplorável visão.
Arthur levantou seu braço e Lilith voltou para sua mão. O peito de Libidus já havia se
curado do corte, ele novamente fez outro, um mais fundo, abrindo ela do pescoço até o umbigo.
O sangue escorreu para todo o lado e todo o corpo dela se tingiu de um vermelho vivo e
viscoso. Ele enfiou a mão lá dentro e puxou de tudo: tripas, estômago, intestino, pâncreas e
outras coisas. Tamanha bestialidade tinha uma razão; ele procurava o coração (por não estar
completamente consciente ele não sabia a localização com exatidão, seu subconsciente só se
lembrava que ficava em algum lugar por ali), no entanto, antes que pudesse achá-lo, foi
traiçoeiramente pego por trás. Uma coisa enroscou em seu pescoço e tentou estrangulá-lo. Eram
as correntes de Lascivus, que, claro, não estava morto. Arthur rugiu como uma fera (talvez ele
pudesse ser chamado de uma, dado sua aparência nefasta), e buscou com todas as suas forças
segurar nas correntes que o sufocava, ele não conseguia ver quantas eram, só com alguns
segundos tentando segurá-las é que ele juntou as três correntes em sua mão e deu um puxão que
fez Lascivus ser derrubado. Tal feito não foi o suficiente para conseguir desprender-se das
correntes que ainda continuavam presas em seu pescoço. Em um ato inesperado ele então
mordeu as correntes, uma a uma. E acredite ou não, ele conseguiu quebrar as três! Somente com
a força da mandíbula. Mesmo desatado das correntes, pedaços soltos ainda ficaram presos no
seu pescoço, parecendo-se muito com um cachorro que conseguiu quebrar a corda da coleira.
Arthur viu uma oportunidade de matar Lascivus de uma vez e voo para cima dele, ato
que o fez abaixar a guarda contra Libidus. E assim ela conseguiu usar suas correntes para
prendê-lo pelo pé. Apesar de Libidus não conseguir suportar a força de Arthur, o máximo que
ela pôde fazer em seu estado foi retardar a velocidade dele.
— Irmão! — ela gritou. — Vamos por um fim nisso de uma vez por todas! Ajude-me a
fazer o mundo tremer.
Lascivus olhando a figura medonha que era Arthur naquela forma, se acovardou por um
instante. Mas entendeu o desejo de sua irmã. As correntes nos pés de Arthur o deixaram livre, e
ele voo como um raio até Lascivus. Ele sem ser tolo, subiu para o alto e Arthur passou direto
por ele. Libidus também conseguiu subir ao céu. As correntes na cintura dos irmãos começaram
a tremer e segundos depois elas dispararam feito bala para o chão.
Algo na cabeça de Arthur alertou-o de que aquilo não poderia acontecer de forma
alguma. Não demorou até os tremores começaram outra vez. Arthur segurou uma das correntes,
mas ela não parava de descer em direção ao solo, foi com muito ímpeto que ele conseguiu
diminuir consideravelmente a velocidade dela, mas ainda restavam sete, estavam todas muito
distantes uma das outras, ele não conseguiria segurar todas ao mesmo tempo. O chão vibrou
sacudindo tudo. O solo começou a se abrir em enormes fendas. Nada ali conseguiria se manter
de pé, exceto Arthur. Ele sabia que segurar uma corrente não iria bastar, sua mão estava coberta
de fumaça pelo atrito e nada restara da pele, a carne estava sendo rasgada quase até o osso.
Lilith ainda estava na sua mão direita, ele olhou para ela tempo suficiente lembrar do que
precisava ser feito. Mas antes que pudesse realizar alguma ação, o chão caiu de uma vez. Arthur
não conseguiu alçar voo a tempo, uma pedra gigante que caiu de muito longe o acertou em
cheio, estraçalhando suas costas, o que o fez perder uma de suas asas. Num enorme precipício
ele foi lançado. Engolido pela boca da escuridão e soterrado por enormes blocos de pedra. Foi
hilário, ao menos para os irmãos demônios que caíram na gargalhada. Lascivus riu até se
engasgar, sendo necessário parar os tremores pois ele não conseguia rir e usar sua técnica ao
mesmo tempo. Libidus ainda tentava manter um pouco de classe, colocando sua mão na boca
para disfarçar a risada, mas o que a mão não escondia era sua cabeça que ainda estava bem
amassada.
— Você perdeu, de novo! Nós ganhamos! Nós ganhamos! Nós ganhamos! Nós
ganhamos! Nós ganhamos! Nós ganhamos! — repetia aos berros Lascivus.
Ele voo até ficar bem no meio da boca do precipício, lá do alto ele começou a mijar.
— Você gosta disso?! Você gosta, hein?! Olha irmãzinha, estou urinando no cadáver
dele hahahahaha! E aí? Qual o gosto da minha urina seu maldito?!
Em outras circunstâncias, Libidus ficaria enojada pela atitude do irmão e desaprovaria,
mas desta vez, ela achou que ele merecia comemorar após tamanho perrengue. Só que a
sensação logo passou. Seu jubilo acabou sendo interrompido por uma terrível aflição que
grudou em seu peito. Simplesmente não conseguia parar de encarar o fundo do abismo. O calor
crescia.
— Irmão. Irm-
— CALADA! — gritou Lascivus, interrompendo a irmã.
A temperatura aumentando.
— Por favor, saia já d-
— EU DISSE: CALADA!
A temperatura subiu exponencialmente, o que conflitava com o frio que fazia lá no alto.
Era como se ele estivesse em cima de uma boca de fogão, por mais que não se pudesse ver o
fogo.
— LASCIVUS! — gritou a irmã em desespero.
Já era tarde. Do fundo do precipício, saiu não uma, nem dez, mas milhares de labaredas
de chamas negras. Era incontáveis, e impossíveis de desviar também. Subiram ao céu com
rapidez doentia. Lascivus só pôde olhar elas vindo bem em sua direção. Teve plena consciência
de que ali era seu fim. Seus últimos segundos de vida na Terra se limitaram ao um último olhar
para Libidus, que já estava com lágrimas nos olhos. Pôde forçar um sorriso para ela no fim.
“Vir à Terra foi um erro”, foi a última que ele pensou.
Lascivus teve seu corpo esquartejado em incontáveis pedaços. Era insano pensar que
Arthur balançara sua espada mais de mil vezes em poucos segundos para conseguir aquele
monte de labaredas. No céu o sangue jorrou. Libidus assistiu horrorizada. Fatias bem miúdas de
Lascivus se espalharam no ar como cubos de carne. Seu tronco foi separado dos membros
inferiores e seu cinto com correntes se desprendeu do corpo. Caindo na boca do precipício.
“ Como ele está voando?!”, pensou Libidus. Ela provavelmente não tinha
conhecimento de que os humanos sabem alguns truques.
Arthur voava até ela como um anjo da morte.
— Por que você não morre?! — grunhiu Libidus.
Veias explodiam na testa dela. Sua ira era tanta que, ao ranger os dentes, uma ponta do
canino direito quebrou. O ódio tomou conta dela, quase chorando de frustração. No entanto, ela
engoliu o choro e deixou que a irá lhe dominasse, partindo para um truque que ela raramente
usava. Acontece que seus belos chifres tinham um papel ainda maior do que produzir formosura
e elegância. Eram capazes também de causar grandes destruições se ela bem quisesse. Bem,
naquele momento, era tudo o que ela mais queira.
Criaram-se faíscas elétricas entre a ponta dos chifres. Uma bola volúvel vermelha de
energia apareceu no meio deles, ficando maior a cada instante. Seu crescimento era
absurdamente veloz, não demorou quase nada para que a bola estivesse com quase 75 cm. A
tentativa de acertá-lo foi em vão, apesar da velocidade surreal, Arthur girou no ar com um
reflexo fantástico e a bola de energia passou a poucos centímetros de seu corpo. Em apenas um
piscar de olhos: uma explosão atômica ocorreu. Quando a bola de energia atingiu o solo, uma
baita explosão se alastrou por quilômetros, podendo ser vista de muito longe por quem estivesse
no céu, como foi o caso das pessoas que se aproximavam da área de helicóptero. Libidus franziu
a sobrancelha, incrédula. O que havia sobrado de sua energia ela havia utilizado naquele ataque.
Lilith acendeu em um fogo negro que fez Libidus tremer. Eis uma das poucas coisas
capazes de ferir um Demônio Ancestral. Arthur jogou sua espada quase como uma lança.
Pareceu ser um ataque idiota, fácil de desviar. Libidus não se esforçou para se esquivar da arma
(embora ela tenha se apavorado ao sentir o calor das chamas negras emanando bem de
pertinho). Ele continuava a voar em sua direção, até que repentinamente, ele estendeu a mão
como se quisesse alcançar alguma coisa. Para Libidus era tarde demais. O movimento que
Arthur fez foi para trazer sua espada de volta, e com todo ímpeto ela voltou. Girando até atingir
as costas de Libidus, que sentiu parte de sua alma queimar. Arthur fez uma aparição fugaz. Sem
que sua adversária se desse conta, ele passou direto por ela e, no último instante, a segurou pelo
cabelo.
Arthur levava Libidus para o alto. Ele subiu, subiu, subiu, subiu e subiu. Até um
momento em que o corpo de Libidus relutou em subir mais. O motivo disso foram suas
correntes. Tendo um plano brilhante para que Arthur parasse de levá-la cima, ela decidiu usar
suas correntes como âncora, e o limite havia excedido. E já não havia mais energia em seu
corpo para retrair as correntes. Resultado: elas emperraram no subsolo. As correntes no seu
cinto a impediam de continuar subindo como ela planejou, no entanto, Arthur continuou a puxá-
la mesmo assim. E puxou, puxou, puxou, puxou e puxou. Libidus gritou com a dor descomunal.
O cinto começou a pressionar sua cintura e aos poucos a ferir sua pele. O sangue desceu pelos
quadris e escorreu pelas pernas cinza-pálido. Sua cabeça produzia dores muito agudas, tendo em
vista que seu coro cabeludo estava sendo testado (e se mostrava resiliente). Arthur continuava a
forçá-la para cima e a dor crescia a cada segundo. A espada ainda enfiada em sua barriga,
queimando a carne por dentro. Em vão ela tentou agarrar Arthur, mas suas mãos não
alcançavam ele. Suas energia estava esgotada, ela só queria que aquilo acabasse, chegando ao
ponto de pedir para que ele parasse com aquilo. Aos berros ela implorava por misericórdia, no
entanto, todos os pedidos foram ignorados. Seu corpo chegara ao limite, por fim. Os ligamentos
dos membros inferiores começaram a se desfazer um a um e a dor corrosiva fez Libidus
enlouquecer, gritando até chorar.
De repente, um som líquido e viscoso. Arthur sentiu o peso ser reduzido. Ele estava
novamente puxando Libidus para cima. Ela estava mais leve do que antes. Então ele parou de
subir. Olhou para baixo e viu apenas o tronco de Libidus. Ela estava espedaçada. As tripas
soltas balançavam com o vento. Ele a levantou até a altura dos olhos e retirou a espada que por
pouco não saiu do corpo dela.
— Você... venceu — ela murmurou.
Libidus engasgou-se com o sangue e o cuspiu por acidente na cara de Arthur. Ele
permaneceu impassível.
— Eu não suporto essa sua expressão — ela disse. — Esse seu olhar. Não tem ódio, não
tem raiva. Não tem nada. — um suspiro. —Vai em frente, acabe comigo.
Algumas coisas de dentro dela começaram a cair
Arthur pôs seu dedo indicador sob o peito dela. Ela sorriu, um sorriso triste, mas bonito.
Dava para ver o canino lascado.
— Fica do outro lado.
Ele moveu o dedo para o lado esquerdo do peito.
— É, bem aí.
Ele sentiu um palpitar. Finalmente encontrara o coração.
— Corruptus... — ela falou entre uma tose e outra. — Seu mundo vai cair em trevas em
breve. Eu e meu irmão perdemos esta batalha, mas você e os humanos irão perder uma guerra.
No entanto, se por um acaso você voltar ao Inferno como vencedor, peço a ti que livre meu
irmão e eu da tortura eterna que nos aguarda, prometo que não voltaremos a vir aqui.
Buscávamos um pouco de emancipação, creio que não do jeito certo — ela voltou a tossir. —
Era só isto que eu tinha para lhe dizer. Pode me comer agora.
Então sua cabeça lentamente recaiu para trás. Suas belas e brancas asas agora estavam
amassadas, manchadas e desoladas. Sentia uma sútil fraqueza, ao passo que, a menor das
sensações lhe traziam um sentir intenso. Ela contemplava o céu, não tinha luar e isso a
entristeceu muito. Desde que chegara na Terra, não teve tempo para ver como era a Lua neste
Plano. No entanto, sentiu em sua testa uma gelada batidinha. Outra em seu nariz. Outra em seus
lábios. Um calafrios gosto percorreu sua pele. Gotas de chuva. Ela sorriu. Nunca antes havia
sentido cair uma benção divina sob si. Pôde, no fim de sua vida, compreender a razão pela qual
Arthur lutou por esse lugar.

Na escuridão do horizonte, jatos militares rasgavam o céu preparados para qualquer


coisa. Ao longe, os motores dos aviões anunciavam sua chegada. Milhares de quilômetros
percorridos para um tardio encontro. A chuva começava a cair forte, o frio logo vinha atrás. Ao
olharem para baixo, avistaram todo campo em ruínas, destruição e perda imensurável, além de
um pavor tremendo. Os tremores foram capazes de dar ao mundo um choque do qual eles não
precisavam. No estender de diversos países, as consequências foram sentidas. O principal
responsável por alastrar esse caos foram os tsunamis que vieram a partir de réplicas que
ocorreram ao longo do território litorâneo de Nova Tordesilhas. Estas réplicas conseguiram criar
movimentações em duas placas tectônicas localizadas no fundo do oceano. E assim surgiram os
tsunamis que formaram ondas de até nove metros de altura, atingindo os litorais de outros
países. Este foi sem duvida um dos grandes eventos que chocaram o mundo naquele ano. E
também um momento histórico para a humanidade. No mundo todo presumem uma média de 22
mil mortos e 6.265 desaparecidos, além de 134.357 desabrigados. Números que poderia ter sido
imensamente maiores se o terremoto de magnitude 12 na escala Nina tivesse durado mais
tempo. Sua duração foi registrada por cerca 7 segundos, sua ameaçadora intensidade foi
amenizada pelo curto tempo.
Os jatos que chegaram na área do terremoto permaneceram circulando pela zona de
combate, aguardando ordens de ataque. No entanto a ordem para atacar só poderia ser dada por
um Mestre-Exorcista que constatasse a necessidade da ação. O primeiro a chegar foi Francis
Yankova, estava em um avião militar. Sem pista de pouso, ele saltou do avião e por entre
nuvens de tempestade ele foi descendo. Sendo um belo show de luzes que impressionou a todos
que puderam ver.
Do céu, Francis pôde reparar que havia alguém imóvel lá no chão. Pela asa negra,
podia-se deduzir que se tratava de um demônio. Quando ele chegou ao solo, foi andando
devagar até ele. Bem ao fundo começavam a aparecer helicópteros, provavelmente vindos de
Grande Hodierna. Quando Francis chegou bem perto do demônio, percebeu de quem se tratava.
— Arthur, é você?
Ele levantou a cabeça. Apesar de muito diferente, Francis o reconheceu. Já o tinha visto
assim antes, só que menos cabeludo. O Mestre-Exorcista pegou a escuta e informou:
— Não há necessidade de ataque. O alvo próximo a mim se trata de Arthur, o Mestre-
Exorcista. Mantenham-se atento a qualquer outra coisa que se mexer dentro do perímetro.
A informação foi recebida com uma grande leva de balbúrdia, os pilotos e agentes
discutindo entre si por não estarem acreditando naquilo.
— O senhor tem certeza? — perguntou um dos pilotos do jato.
— Absoluta — e desligou.
Francis chegou em Arthur sem temor. Ele tocou em seu ombro e olhou bem em seus.
Arthur de cabeça baixa olhou para ele.
— Você está bem? Onde estão os Demônios Ancestrais?
Francis viu a boca de Arthur suja de sangue. Ele entendeu o que acontecera ali.
— Você salvou a todos. Muito bem.
Nada além dos olhos se mexia no rosto de Arthur, ele estava totalmente vazio.
— Você está machucado? — perguntou Francis.
Ele não respondeu.
— Ah, esqueci que você não consegue falar nessa forma...
De repente, Arthur caiu de joelhos.
— Ei, você tá bem?! — Francis se ajoelhou junto a ele assustado.
— Eu... perdi — balbuciou Arthur.
— Ah, cara! — disse um dos exorcistas que acabava de chegar no lugar. — Um
demônio chorando! Aí, se eu conto um negócio desses pra alguém, ninguém acredita hahaha!
Arthur cobriu o rosto com suas enormes mãos. Trovões rugiam no céu, o tempo se
fechando. Manchas pretas se formaram nos cantos dos olhos, tudo ficou turvo e nebuloso. Sem
que Arthur percebesse, seu corpo quase atingiu o chão, sendo salvo por Francis.
Iria demorar até o mundo se reerguer outra vez. Sorte aqueles que ainda poderiam ver
nascer um novo dia.

O alvorecer veio. Mas antes, um período de obscuridade se manteve no campo da


inconsciência, repleto de pesadelos e tormentos que pareciam tão reais que era difícil não temê-
los. Vozes carregadas de angústia ecoavam pela cabeça de Arthur. Pessoas o culpando por não
ter sido capaz de protegê-las, culpando por ter trazido os demônios à Terra e o culpando por não
ter estado lá quando elas precisavam. As vezes os pesadelos terminavam com sua morte,
costumava ser uma morte crucificada, eram nestes momentos em que ele podia sentir alguma
paz interna, até os pesadelos recomeçaram. É difícil mensurar o tempo no inconsciente. O
aspecto que prevaleceu era a de uma espiral eterna. No entanto, tudo passa, até o eterno. Por
fim, alvorecer veio e o despertou.
Arthur se encontrava em uma maca de hospital. A irradiante luz da tarde tocou em seu
rosto e não demorou para que seus olhos se contraíssem querendo acordar. Já de olhos bem
abertos, Arthur sentiu algo preso no seu rosto, e ao apalpar sua cara, percebeu que se tratava de
uma mascara de ventilação. Na veia do seu antebraço estava uma agulha por onde estavam
passando o soro. Ficou alguns segundos pensando e refletindo sobre sabe-se lá o quê. Decidido,
ele arrancou a máscara de ventilação da cara e deixou jogada na maca. Puxou a porcaria da
agulha e a deixou pendida no suporte de soro. Ao virar sua cabeça para a direita, viu uma
cortina, responsável por esconder um outro paciente, um sobrevivente do terremoto. Ao seu
lado esquerdo estava uma enorme janela por onde entrava o dourado do sol. Quando olhou pela
janela, seus olhos não suportaram a incidência solar, vendo nada mais que um brilho
incandescente. Segundos depois a visão se reformulava em uma vista belíssima. A capital de
Nova Tordesilhas, Bela Eminência, era repleta de construções vitorianas e coloniais. O hospital
ficava no centro de uma praça bastante movimentada por onde passavam milhares de turistas
diariamente. Ao fundo da paisagem se podia ver o cais cheio de veleiros parados, todos
sonhando em navegar no vasto mar azul. Arthur levantou-se da maca para chegar perto da
janela e foi pego por uma repentina cãibra que o derrubou no chão. “Mas que merda!”, xingou
baixinho. Ficou caído até que suas pernas recuperassem o controle, gastou um tempo
aquecendo-as e finalmente pareciam estar prontas para jogo outra vez. Dirigiu-se até a janela e
ficou bem na borda, olhando a vista. Gaivotas voavam por entre os casarões antigos que
rodeavam a praça, lá embaixo os turistas recebiam um banho dourado do sol e pareciam estar se
divertindo muito, como se nada tivesse acontecido. Arthur se perguntou quanto tempo ficou
desacordado. As pessoas já esqueceram do terremoto? Que danos ele causou? Na perspectiva de
Arthur: parecia ter sido o fim do mundo. Mas o mundo estava ali, funcionando. Crianças
tomando sorvete, turistas com camisas de abotoar, bermudas ridículas que cobriam o joelho,
chapeis, tênis com meia, e sempre tirando fotos ao lado de estátuas; também dava para ver os
ricos de terno sempre ocupados para seus negócios, parecia que tudo o que fazia a roda girar
continuava existindo. É, o mundo continuava normal.
Eram por volta da 14:30 quando a enfermeira entrou no quarto. Ela se espantou ao vê-
lo de pé e quase derrubou a bandeja com remédios que trazia. Com urgência ela pediu para que
ele voltasse para maca, porém, Arthur negou-se e continuo parado no pé da janela. Depois de
muito insistir e ele muito dizer “não”, ela permitiu que ele ficasse em pé. A enfermeira
informou que ele foi resgatado em uma região perto de Pepita, na área do terremoto e de que ele
teve a sorte que muitos não tiveram. Também citou a estranheza do quadro clínico dele, embora
inconsciente, não havia nenhum machucado no corpo, e nenhuma sequela na cabeça. O mais
provável que possa ter acontecido foi a perda de oxigênio no cérebro por algum tempo, devido a
parada cardiorrespiratória que Arthur sofreu (segundo relatado pela equipe que o resgatou),
embora não sendo longa o suficiente para causar graves danos (o que é raro), foi o suficiente
para causar anoxia cerebral, tendo o coma como maior sintoma. O tempo em que ele ficou
inconsciente foi de nove dias, durante esse período ele recebeu visitas diárias de uma moça
loira, a qual a enfermeira disse que era muito bonita e ela achava ser namorada dele. Arthur
ficou em dúvida entre Angelina e Holly, mas lembrou-se de que tão longe de Nova Hodierna,
Holly jamais poderia vir visitá-lo por conta do seu trabalho. Angelina, pela sua alta patente,
teria uma liberdade mais flexível. A enfermeira disse que ela provavelmente viria naquele dia de
novo, e lamentou não poder ligar para a moça loira pois ela dissera que não tinha celular, o que
fez Arthur ter certeza de que se tratava de Angelina. Arthur um tanto distante da realidade disse
que tudo bem, ele iria aguardar. As horas se passaram e às 15:00 ele lanchou duas torradas com
suco de laranja, ovos mexidos e uma maçã. A enfermeira se ofereceu para ajudá-lo a comer e
isso ofendeu Arthur mais do que tudo, respondeu com orgulho que ele não era um idoso e nem
uma criança pequena. Mesmo com a enfermeira tentando explicar a situação, ele não deu
ouvidos. Assim que Arthur deu a primeira mordida na torrada, ela caiu da boca direito no prato.
A enfermeira encontrou uma brecha e conseguiu explicar a ele de que algumas funções motoras
poderiam estar lesionadas e que ele precisava ter paciência. No entanto, depois de algumas
tentativas, Arthur já estava comendo perfeitamente, e a enfermeira simplesmente não conseguia
acreditar naquilo. Enfim ela foi olhar o paciente que estava dividindo a sala com Arthur e trocou
as ataduras dele, depois, morfina para aliviar a dor. Parecia ter tido parte da perna esmagada e
alguns ossos quebrados. Arthur tentou simpatizar com o sujeito mas ele pouco falava, bastou
tomar a morfina e ele voltou a dormir. Com a televisão em um volume baixinho para não
incomodar seu colega de quarto, Arthur gastou boas horas assistindo televisão, mas se
arrependeu previamente por ter ligado. A única coisa que estavam transmitindo eram as notícias
sobre o terremoto que arrebatou o país e os tsunamis que assustaram diversas partes do mundo.
Ele lúcido, sabia que aquelas eram as consequências de Lascivus e Libidus na Terra. Acabou se
sentido culpado por todo aquela catástrofe. O único canal que não estava falando disso era um
canal infantil, então ele deixou lá e passou a acompanhar as aventuras de dois palhaços bobos
tentando resgatar um elefante dourado; no começo parecia trivial, mas com o passar dos atos, a
trama foi se desenvolvendo densamente em uma linda jornada que falava sobre amizade e
companheirismo; era melhor do que nada.
Já anoitecendo, Angelina chegou no quarto, e Arthur sentiu um tremendo alívio por vê-
la. O sentimento foi recíproco. Quando Angelina abriu a porta e o viu acordado vendo televisão,
ela estagnou no vão e seus olhos se encheram de lágrimas. Os dias em que ele passou em coma
foram de profundo desespero para ela, e vendo o nível que foi a luta contra os Demônios
Ancestrais, muitos agentes se sentiram encarregados de espalhar rumores de que Arthur iria
ficar a sete palmos do chão. Apesar de Angelina ter se mantido esperançosa quanto a
recuperação dele, esses pensamentos vinham em sua cabeça de vez em quando. O alívio ao vê-
lo ali foi tremendo, e provou que o xamã não partiria dessa para melhor assim tão fácil. Ela
tentou ter todo o cuidado do mundo para não machucá-lo durante o abraço, mas diferente dela
ele a abraçou com uma surpreendente força. Angelina pegou um banquinho da sala e o puxou
para perto da maca, sentando-se com euforia.
— É tão bom ver você consciente! — exclamou Angelina com um sorriso estampado no
rosto. — Eu não consegui dormir esses últimos dias com você nessa situação — olheiras abaixo
dos olhos eram a prova.
— Sinto muito por isso — comentou, meio abalado.
— Não tem do que se desculpar. Como você está?
— Bem, só um pouco atordoado com os últimos acontecimentos.
— Você não se lembra de nada?
— Só lembro de ter sido interceptado por Lascivus no meio da estrada, aí eu disse para
aquele trio de agentes buscarem ajuda. Depois disso eu só tenho algumas rápidas visões e
memórias vagas, tudo aparecendo em borrões.
— Foi como da última vez que você... — Ela fez uma pausa. Se virou no banco e puxou
devagarinho a cortina que escondia o outro paciente; ele estava dormindo feito pedra. — Foi
como da última vez que você assumiu essa forma de demônio. Você também não se lembrou de
nada naquela vez, não é?
— Isso.
— O que quer saber primeiro? — ela segurou a mão dele e sorriu. A ternura dela fazia
tudo ser menos angustiante.
— O que aconteceu com os exorcistas que estavam comigo?
Angelina desviou o olhar por um instante. Quando voltou a fitá-lo, trazia olhos
lamuriosos e o sorriso desaparecera de seu rosto.
— Thomas foi morto enquanto ajudava algumas pessoas. Ignez, a irmã dele,
sobreviveu, mas se feriu enquanto fazia o mesmo. Ela segue internada em um hospital aqui do
país, porém ela vai ser transferida para o Hospital Central de Nova Hodierna em breve. Clarice,
bem, ela segue desapercebida. Se não me engano, ela caiu em uma fenda que se abriu no meio
da estrada, também tentando ajudar uma pessoa, um garotinho. Ele segue bem.
— Isso é tudo minha culpa!
— Do que você tá falando? Arthur, você impediu a destruição da Terra.
— Engraçado que a televisão só fala do quão destruída ela está.
— Já pensou no que teria acontecido se você não estivesse lá? Além disso, não sei se
existe um Mestre-Exorcista capaz de derrotar dois Demônios Ancestrais. No máximo, só com
todos reunidos, e olhe lá! Você sozinho foi capaz de impedir que um cataclismo acontecesse.
Nos foi passado que se as oito correntes fossem usadas ao mesmo tempo, a Terra iria sacudir até
se fragmentar. Eu sei que os danos da batalha foram muitos, mas se não fosse por você, não
teria ninguém vivo nesse momento.
— Eu fiquei com medo. Com medo de perder e decepcionar todo mundo.
— Todos estão orgulhosos de você — ela apertou a mão dele. — E os que não estão,
deveriam estar! A humanidade está em dívida com você.
— Não, não está! Como posso me sentir o bonzão se tem milhares de pessoas mortas,
no hospital, sem lar, desaparecidas... — Arthur pareceu chorar, mas se controlou. — Eu não sou
herói. Nunca fui.
— Você fez o que pôde.
— E não foi o suficiente!
— O que há com você, Arthur?
— Onde está Lil- minha espada?! — indagou quase em tom de ameaça.
— Os agentes recolheram ela, encontraram não muito longe de onde você desmaiou. Eu
guardei para você.
— Obrigado — falou, agora mais calmo.
— Já que você parece estar melhor, preciso te perguntar algo importante. Pode
responder?
— Posso, eu acho.
— Como Demônios Ancestrais vieram parar na Terra? — nessa Arthur sentiu uma
tremenda sombra pairar sobre si. — com que propósito? E o tal Tratado Libertário?
Era o momento. Diante dele, surgiram duas escolhas: continuar escondendo seu segredo
ou revelar a ela a verdade. Temia que ela não o perdoasse, no entanto, era o certo a se fazer.
— O principal motivo está ligado a mim.
— Você? Como assim?
— Eu espero que você me perdoe quando eu te contar.
— Eu sempre vou estar ao seu lado, não seja bobo!
— Ok. Lascivus, um dos demônios, queria muito a minha espada.
— Com que intuito?
— A alma da minha irmã está presa na arma. Lilith, a Deusa da Revelia.
— Você escondeu isso de mim todos esses anos? — perguntou incrédula.
— Me desculpa, eu não podia arriscar.
— Eu achei que você confiasse em mim...
— Eu confio! Claro que eu confio! Mesmo que eu tenha escondido isso de todo mundo,
você é a primeira pessoa para quem eu conto.
— Ok. Eu... Vou assimilar isso, com o tempo. Mas, sua irmã, por que ela ainda continua
na espada?
— Eu procurei formas de tirá-la de lá, mas não tive sucesso. E é mais difícil quando se
tem que fazer isso em segredo.
— Sabe o que as pessoas da Associação vão pensar se descobrirem que existe um
Demônio Ancestral selado na sua arma?
— Provavelmente não vão ficar muito felizes, eu imagino.
— Você pode perder seus direitos humanos.
— Não que eles sejam muitos...
— É sério, Arthur.
— Eu sei. Preciso dar um jeito de libertá-la, depois eu vejo isso.
— Eu vou te ajudar.
— Verdade?
— Lógico. Quando eu voltar para o Templo de Miriam, vou buscar informações com
algumas sacerdotisas. Mas, sendo realista, isso me parece o tipo de coisa que só magia baixa
resolve.
— É uma forte possibilidade.
— Mas vamos achar um jeito, ok?
— Ok.
— Tem mais alguma razão pela qual esses demônios vieram até aqui?
— Acho que buscavam algum tipo de emancipação. Lembro de Lascivus falar algo
sobre criar um reino.
— Isso me deixa assustada... Se eles violaram o Tratado Libertário e acharam uma
forma de vir à Terra, outros também podem fazer o mesmo, estou certa?
— A punição que eles vão receber no Inferno talvez sirva de lição para outros Demônio
Ancestrais. Eu conto com isso, pelo menos.
— Pela Mãe, o que está acontecendo com os Deuses?
— Seja lá o que for, a humanidade sempre estará no meio do fogo cruzado.
Angelina deu um suspiro enfadado.
— Você se sente melhor para ir pra casa? Eu comprei roupas para você ontem e deixei
guardadas aqui — ela se levantou de um pulo e foi até uma mesa no canto da sala onde estava
algumas sacolas de loja. — São bem bonitas olha — Ela mostrou peça por peça. Eram elas: uma
camisa preta de uma banda de rock (presumindo que ele talvez conhecesse), uma calça cinza
escuro, uma cueca box e um par de botas marrom, além de um óculos escuro caso o forte sol da
cidade incomodasse a visão possivelmente debilitada de Arthur.
— Você é única, sabia? — ele disse, e Angelina deu um belo sorriso.
— Não foi nada. Eu sempre vou cuidar de você. É o que amigos fazem, não é?

Um dia se passou, Arthur por fim saiu do hospital. Mesmo que a equipe medica quase o
proibisse de ir embora, já que ainda eram necessários exames para saber a real situação clínica
dele (perfeita, por sinal), Arthur negou-se a continuar no hospital e logo depois do café da
manhã ele saiu sem avisar ninguém. Como não existia risco de morte e havia a capacidade de
discernimento do paciente (pelo relato da enfermeira ele parecia bem lúcido, pelo menos), os
médicos não tiveram outra escolha a não ser arquivar o prontuário dele, e assim ele fez sua
evasão triunfante. Angelina o encontrou sentado em um banco na praça rodeado por velhinhos.
Ela carregava uma mala. De súbito, Arthur percebeu que se tratava de Lilith ali dentro. Ficou
feliz em poder sentir a presença de sua irmã mais uma vez, e ela ficou contente em saber que ele
havia sobrevivido, pois até então ela não tinha certeza. Angelina ficou instigada em descobrir
que havia uma alma dentro daquela arma, mas resolveu guardar algumas perguntas para mais
tarde, sabendo que aquele não era o momento. Os dois pegaram um táxi e partiram em direção
ao aeródromo militar, onde seriam levados para Grande Hodierna. Arthur perguntou pelo seu
carro, e Angelina disse que não tinha conhecimento sobre o paradeiro do veículo, e que ela
achava melhor comprar um novo, pois certamente ele acabou destruído no terremoto. Arthur
disse que iria fazer isso.
A viagem de volta para Grande Hodierna foi tranquila. Alguns agentes no avião
puxaram conversa a viagem inteira com Arthur, estavam todos empolgados em saber mais sobre
a grande batalha contra os lendários demônios. Todos o saudaram pela bravura, e Angelina viu a
clara angústia estampada na cara dele. A última coisa da qual Arthur queria falar era sobre isso,
ainda que, tentando ser educado, ele respondeu a maioria das perguntas, até que Angelina
interveio e disse para deixarem-no em paz, pois ele ainda estava se recuperando da batalha.
Todos a acharam uma estraga prazeres, mas atenderam o pedido. Eles ficaram juntos durante
toda a viagem. De alguma forma isso fazia Angelina se sentir inteira, não que antes faltasse um
pedaço dela, eram apenas sentimentos bons demais para serem verdade. A esperança de ficar
com ele tomou conta do seu coraçãozinho apaixonado e ela se permitiu sonhar um pouco com
isso; quem poderia julgá-la?
Já em Grande Hodierna, Arthur foi convidado para uma festa de condecoração em
homenagem ao seu grande feito, a qual ele se recusou a ir. Soube que pela sua cidade, os
terremotos não causaram grandes danos, apenas o nível do mar acabou por sofrer uma abrupta
elevação e inundou alguns bairros à beira-mar. Como Arthur não foi em sua própria festa, a
medalha que seria dada a ele durante a celebração foi enviada para seu apartamento. Quando ele
recebeu, encarou a medalha por alguns segundos e em seguida jogou no lixo. Quando soube da
campanha de doação para ajudar os feridos e os desabrigados de Nova Tordesilhas, Arthur doou
quase tudo da sua conta bancária (que não era pouca coisa), na esperança de ajudar o país a se
reerguer. No entanto, o impacto em si mesmo não foi como esperado. Ao fim de sua
contribuição, a imagem que seu espelho revelava não era a de um altruísta filantropo, e sim a
imagem de um homem que achava que poderia concertar seus erros com dinheiro, bem à moda
dos riquinhos.
Algumas semanas de folga foram dadas para Arthur como uma recompensa pelo seu
“incrível feito”. Ele usou esse tempo para ficar recluso em casa se drogando todos os dias e
jogando videogame. De jogos sobre uma máfia oriental até jogos sobre um espião que rastejava
sorrateiramente por bases inimigas para salvar o mundo de armas nucleares, ele jogou de tudo.
Nesse meio tempo ele mal tocou em comida, dado que todos os alimentos perderam seu sabor.
Também não recebeu nenhuma visita, e quando Holly veio, ele ignorou. Angelina estava
ocupada em suas tarefas de sacerdotisa e não podia visitá-lo, nem fazer uma ligação (ainda que
ela tivesse um telefone para ligar, ele provavelmente iria ignorar). Tudo estava cinza e obsoleto.
Certa angústia se dava pelo fato de ter esquecido uma série de eventos que ocorreram durante a
batalha. Ele sentia ter encontrado sua mãe, de alguma forma. Mas não conseguia se lembrar do
encontro, nem do rosto dela, nem do lugar onde estavam, nem de porra nenhuma. A única coisa
que ecoava com fervor pela sua cabeça durante longas noites torturantes cheias de pesadelos era
o grito de dor de alguém. E ele se perguntava se havia sido ele o causador dessa dor.
Lascivus e Libidus sumiram como poeira no vento. Suas almas retornaram para seu
Plano Originário (Inferno), e um corpo material não pode residir sem alma num plano do qual
ele não pertence, assim, os restos dos irmãos desintegraram-se, sobrando somente seus cintos
com correntes. Apenas um dos cintos foi apreendido pela Associação. Escavações iriam
começar no próximo mês para tentar achar o outro.
Uma nuvem negra de desconfiança cresceu sob a cabeça de todos os chefões da
Associação em relação a Arthur. Alguns fortemente acreditavam que ele estava envolvido com
a chegada dos Demônios Ancestrais. Teorias foram criadas. Uma das mais fortes era a de que
alguém da Terra cooperou para a criação de uma Fenda forte o bastante para a passagem deles.
A teoria é consistente e também tem suas falhas (detalhes que não cabem explicar no momento),
fato é que um perigoso complô formava-se contra Arthur, e muitos dos integrantes já o queriam
ver morto há muito tempo.
Enquanto pessoas importantes duvidavam de sua real fidelidade para com os humanos,
Arthur teve que lidar com uma forte melancólica que o dominou. Já não sabia se podia lutar
contra ela, apenas aprendeu a conviver com esse sentimento. Assim prosseguiu um penoso
tempo se alastrando entre semanas, sem perspectiva de dias melhores. Até que um belo dia,
Holly ligou. Mesmo relutante ele sentiu que deveria atender. O assunto era trabalho. Pessoas
estavam pegando fogo sozinhas em Londínio. Um caso clássico de Combustão Humana. Isso o
empolgou, ele nunca havia enfrentado um caso desses e talvez fosse a hora de se arriscar. Era o
momento de agir, ele refletiu. Talvez gastar seus miolos em investigações sobrenaturais fosse
melhor do que ficar em casa se drogando e jogando videogame sem parar (ainda que ele
gostasse muito disso). Sem pestanejar ele informou que estava pronto. O ano só estava
começando, quem sabe o que traria o futuro? Talvez tudo fosse dar errado, talvez tudo já
estivesse errado.
Mas, calma! Ele está seguindo em frente e tentando superar.
Ele tem que superar...


Voltando para um dia após o terremoto.

Em algum lugar nos confins de Grande Hodierna:


— Que espetáculo — comentou Gália, se balançando no banquinho de tanta
empolgação. Suas madeixas castanhas eram escondidas por uma boina. Todo o grupo, com
exceção de Ceifador, estava reunido na sala assistindo o noticiário. Claro, estava sendo falado
sobre as consequências dos tsunamis e dos terremotos que devastaram Nova Tordesilhas. — o
Poderoso Senhor Numen realmente é um gênio, um Deus mesmo!
Todos os outros concordaram.
— Libidus e Lascivus foram tão burros, caíram como patinhos no plano do sr. Numen!
— Gália não parava de falar. — Ele conseguiu entrar na Terra sem que ninguém percebesse,
que demais! Temos que fazer uma festa para comemorar a chegada do Grande Senhor Numen!
Numen assistia televisão em silêncio, com certo deleite por ver tudo fluindo conforme o
arquitetado.
De repente, ouviu-se um ruído metálico. Era a porta anunciando a chegada de Ceifador.
O refúgio da trupe eram em uma fábrica de enlatados abandonada, no lado pobre da capital.
Ceifador desceu as escadas bem devagar, talvez para fazer durar sua chegada aguardada.
— Ceifador!!! — exclamou Gália, empolgada.
— Presumo que tenha algo, estou correto? — indagou Numen, olhando para o envelope
marrom na mão de Ceifador.
— Afirmativo, Chefe.
Numen passou as duas mão no cabelo escuro que estavam penteado para trás. Ceifador
foi até ele e entregou o envelope. Numen fitou aquela coberta de papel em sua mão por alguns
instantes. Depois que abriu, jogou tudo em cima da mesa.
— Finalmente eu consegui localizá-lo — disse Ceifador. Na mesa estavam espalhadas
diversas fotos de um sujeito, todas tiradas de longe sem que o próprio percebesse estar sendo
fotografado.
— Bravo! Bravo! — aplaudiu Gália. — Mal posso esperar para incinerar ele!
— Ele agora atende pelo nome de Arthur Yamamoto — informou Ceifador. — Embora
seja costume o chamarem apenas por Arthur, pois ele não usa mais o sobrenome.
Numen passou a mão pelos seus longos cabelos novamente, era um gesto tão mecânico
quanto piscar os olhos. Sua pele cinza-pálido brilhava na luz da lâmpada.
— Após muito te procurar eu finalmente te encontrei, meu irmãozinho. E vejam só!
Como você cresceu...

FIM.
EPILOGO

Com o fim do começo da aventura de Arthur, vamos agora para o verdadeiro início, o qual
deveria ter sido o fim, se assim a cronologia fosse importante. Volteemos para lá, quando
Emília concluiu seu exame e Helena foi junto com Arthur para seu apartamento, para que lá se
desse início aos preparativos para a garota ingressar no mundo do Oculto.
O dia começou mais tarde do que de costume, Arthur por acidente dormiu demais e
quando viu no relógio, já eram tardias 8:00 horas da manhã. Para sua surpresa, o sofá se
mostrou mais confortável do que ele imaginava, sua cama estava ocupada pela garotinha
chamada Helena. Quando acordou a primeira coisa a lhe dar bom dia foi um delicioso aroma de
comida, a qual ele não reconheceu de imediato. No entanto, Arthur estranhou sentir cheiro de
comida vindo de sua própria cozinha, pois ele não tinha empregados. Quem entra poderia estar
cozinhando? De repente se tocou que Helena estava em sua casa e temendo o pior ele correu
para ver o que estava acontecendo.
O cenário era como se um furacão tivesse passado por lá e parado para fazer alguns
omeletes. Cascas de ovos jogadas na mesa, leite derramada na pia, torradas queimadas e farinha
espalhada no chão (sabe-se lá o que ela ia fazer com farinha).
— Bom dia, senhorita! — disse Arthur, com rispidez.
Helena quase saltou do chão. Estava tão concentrada na sua obra de arte fritando na
frigideira que não percebeu a presença do dono do apartamento.
— Bom dia, Arthur! Estou fazendo nosso café da manhã! — informou sem tirar os
olhos da frigideira.
— Ah, bom! Por um segundo eu pensei que você estivesse tentando destruir minha
cozinha.
— Oh, você sabe, não dá pra fazer um omelete sem quebrar alguns ovos.
— É. Mas dá pra fazer um omelete sem quebrar uma cozinha.
Helena estava com seu cabelo úmido, o que indicava um banho matinal. Ela já parecia
bem a vontade no temporário lar, e Arthur não sabia se isso era bom.
— Pode se sentar, eu vou te servir — ela disse.
— Acho melhor limpar a cozinha antes.
— Depois a gente faz isso. Vamos comer primeiro.
Arthur não relutou. O omelete realmente ficou bom, mesmo não valendo a bagunça
feita. Depois, limparam a cozinha, Helena cooperou bem e os dois terminaram a limpeza bem
rápido. Arthur foi para a sala e sentou-se para ver televisão.
— Oh, Arthur, você pode me ajudar com a lição de casa?
— Ué, que lição?
— Essa da escola — e então começou a vascular a mochila em busca do caderno. — são
equações, eu sou péssima nisso!
— Você não precisa mais fazer isso, esqueceu que não vai mais estudar lá?
Helena pensou por um tempo, enfim concluiu: — Ainda sim, eu gostaria de terminar, é
a última atividade que falta. Mal não vai fazer.
— Que seja.
— Me ajuda aí, por favor!
— Tudo bem — suspirou. — Manda.
— Essa é bem assim: Encontre o valor de z na equação: 3(z-2)+10=2(2z+2)+2.
— Isso é ridículo — debochou Arthur. — Como posso achar o valor de “z” se isso é
uma letra?
Helena ficou sem reação.
— Mas.
A conversa se interrompeu com o celular que começou a tocar.
— Espera um pouco — disse Arthur enquanto tirava o aparelho do bolso. — Depois a
gente continua — ele se levantou e saiu da sala para atender o celular. — “Valor de z...” —
murmurou para si, abafando uma risada.

A manhã era clara e radiante. O frescor da primavera, mesmo na cidade, era sentido
com sua típica suavidade amena. Um carro longo e luxuoso cruzava a autoestrada em direção a
Grande Hodierna, os enormes prédios já começavam a engolir o horizonte. O frio na barriga
causado pela danada emoção que é entrar numa grande capital começava a atacar. O motorista
seguia tranquilo, assobiando e batendo no volante no compasso da música. O trânsito tranquilo
até então, um cenário que seria totalmente diferente duas no futuro, quando milhares de pessoas
estariam saindo e entrando de Grande Hodierna para as festividades de final de ano. Mas
naquela manhã, o clima era de calmaria. Cahir olhava sem muita felicidade para fora da janela,
sua cabeça doía só de imaginar ter que enfrentar esse sol forte todos os dias; Na sua terra, o
calor provido do Sol não era predominante, o frio era quem reinava.
— Preocupado, irmão? — indagou Bran.
— Não. Só estou caindo em maus pensamentos antes da hora, como de costume.
— Relaxe, você logo se acostumará — acalmou-o o irmão.
— Eu tenho mesmo que ir para academia de exorcistas?
— Já conversamos sobre isso. O mundo está mudando, você precisa se preparar.
— E se eu não conseguir me adaptar?
— Eu sou seu irmão, e passei pelo que você está prestes a passar, e veja só, eu sobrevivi
— e abriu um sorriso simpático.
— Não por inteiro... — alfinetou Cahir, dando uma olhada para o lugar onde deveria
estar o braço esquerdo de Bran.
Bran continuou a sorrir.
— Isto aqui só me ocorreu por um deslize de minha parte. Não vai lhe ocorrer nada
irmão, eu garanto.
— Você não pode garantir.
— Não, não posso — admitiu Bran, sem jeito. — Apenas posso garantir que farei o que
estiver ao meu alcance para você ficar a salvo, e forte o suficiente para ser um homem
independente. Isso deveria bastar, não?
— Isso basta.
— Eu colocaria meu braço no seu ombro para lhe acolher — comentou Bran. — Mas
você está sentado no lado amputado.
Cahir o abraçou.
— Bem, isso também funciona — disse Bran. — Caso você não consiga ficar na minha
turma, irei fazer o máximo possível para que fique na turma do meu melhor amigo.
— Por que eu não poderia ficar na sua turma?
— Ora, eu como professor não seria adequado ter um irmão como. A qualquer
conquista sua, iriam dizer que ela foi ganha somente por sermos irmãos, e não por seu mérito. É
quase certo que não vão permitir que você fique comigo.
— Acho que eu entendo.
— Embora isso seja de muita infelicidade, ficar na turma do meu grande amigo também
será muito gratificante. Além dele ser um exímio Exorcista, ele é infinitamente mais divertido
do que eu.
— Você fala de Arthur, correto?
— Isso. Ele é como meu irmão.
— Achei que estivessem brigados.
— Acho que está na hora de reatar alguns laços — suspirou Bran, exibindo um ar
reflexivo. — Se não cedermos o orgulho de vez em quando, morremos por dentro aos poucos.
— Falando em orgulho... Seja franco, Bran, os outros vão rir do meu cabelo branco?
Demorou até que tivesse uma resposta.
No fim, Bran manteve a honestidade e disse:
— Pelas costas e pela frente.

Era Holly que ligara para Arthur.


— E então, o que tá pegando? — disse Arthur, com muito bom humor.
— Bem — o tom de voz entregava um estado de ansiedade. —, Aconteceu algo
inesperado. Tipo, muito inesperado.
— O que houve?
— Existe uma pequena ilha localizada no Oceano Fleumático, se chama Ilha da Enguia.
Foi detectado uma anomalia espiritual repentina lá. Alguma coisa despertou. Alguma coisa
séria. Você foi o escolhido para essa missão já que é o único Mestre-Exorcista disponível no
momento.
— Você pode mandar alguém pra vir cuidar da Helena?
— E quem é Helena, cara? — perguntou confusa.
— Uma garotinha que estou responsabilizado de educar pra ser uma exorcista. É
recente, depois te conto.
— É... Tá. Eu vou mandar alguém pra ir aí ficar com ela. Tem um avião no aeródromo
na tua espera. Vou contigo via ondas de rádio.
— Qual a vestimenta indicada para ocasião, sra. Jansen?
— Um terno preto bem passado!
— Como eu imaginei.
Para você que leu até aqui: você é
um ser humano foda.

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