Helio Oiticica e A Arquitetura Do Sujeito - Tania Rivera
Helio Oiticica e A Arquitetura Do Sujeito - Tania Rivera
Helio Oiticica e A Arquitetura Do Sujeito - Tania Rivera
MOSAICO
Estudos Contemporaneos
das Artes
Helie Oiticica
e a Arquitetura do Sujeito
Tania Rivera
Edltora da UFF
COLECAO
MOSAICO
Estudos Contemporaneos
das Artes
Helio Oiticica
e a Arquitetura do Sujeito
Tania Rivera
Edltora da UFF
Copyright © 2012 by Tania Rivera
Direitos desta edição reservados à EdUFF
Editora da Universidade Federal Fluminense
Rua Miguel de Frias , 9 – Anexo – Icaraí – Niterói – RJ – CEP 24220-000
Tel.: (21) 2629-5287 | [email protected] | www.uff.br/eduff
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa
da Editora.
Normalização: Caroline Alciones
Projeto gráfico, editoração eletrônica e capa: Joana Lima
Revisão: Angela Taddei
Coordenação Editorial: Ricardo Batista Borges
Catalogação-na-fonte
Bibliografia p. 189
ISBN 978-85-228-0863-2
Helio Oiticica
e a Arquitetura do Sujeito
Tania Rivera
Coleção MOSAICO
11
ele sob a sua égide. É preciso se debruçar sobre o trabalho
de Hélio para… pensar. Para pensar o que não é o artista,
nem sua obra: o que está fora (e dentro) dela: o Brasil e o
mundo, a Cultura e o sujeito. A expressão, o neoconcre-
tismo, o comum, o marginal e a ética. A arte.
Os ensaios aqui reunidos seguem uma certa pro-
gressão na produção de Oiticica, mas são independentes
e podem ser lidos separadamente. Eles não têm como ob-
jetivo apresentar a obra e a trajetória do artista de modo
detalhado e exaustivo, mas sim dialogar com a reflexão
poética que se faz em objetos, em proposições, em textos e
anotações diversas, e nela recolher fragmentos, conceitos,
indicações variadas. Trata-se aqui de pensar com Hélio,
e não apenas sobre sua obra. Ele era um tremendo pen-
sador: teórico, crítico, poeta. Tento ressaltar e explorar
sua própria reflexão colocando-a em diálogo com outros
autores – parece-me que o próprio artista desenvolveu
ao longo de sua obra esse ousado método de se definir e
transformar no contato com o outro, através dele. Busco
nisso segui-lo a partir da minha posição, que é irremedia-
velmente marcada pela psicanálise, mas assume o diálogo
com a filosofia, a literatura e as artes visuais, em mobili-
dade e polifonia, como condição de toda reflexão.
Encontro em Hélio coisas surpreendentes, conflitan-
tes, enigmáticas. Belas. Espero nessas páginas fazê-las pulsar.
12
Da expressão do eu à ação do outro* 1
13
das outras proposições, reaprendido a viver e estava me
expressando através da vida!”3. Há aí um posicionamento
do sujeito que não é mais do que o viver – implicando, po-
rém, um certo reaprender, algum vago mas fundamental
reviramento.
Isso deveria bastar para, a respeito do neoconcre-
tismo, irmos além do slogan de “participação do espec-
tador” que já em 1969 Guy Brett apontava como um
clichê vazio, compreendendo muitas vezes frias e mecâ-
nicas proposições4. O trabalho de Hélio, assim como o
de Lygia, é muito mais radical em sua proposta do que a
mera concessão de algum papel ativo ao espectador. Nes-
se ponto, é muito claro o estreito diálogo em que eles se
desenvolvem: não pode mais haver de um lado criação
e, de outro, fruição da obra. Não se trata de convidar o
espectador a alguma ação diante de uma obra, mantendo
inquestionáveis seu estatuto e os lugares de seu criador
e de seu receptor. Trata-se de pôr em primeiro plano o
sujeito: um viver que não é individual, mas seria o acon-
tecimento humano por excelência, podendo se dar en-
tre pessoas, no campo da arte como no da vida. Lygia e
Hélio realizam assim uma verdadeira torção entre sujeito
14
e objeto, de modo a pôr em crise o objeto de arte e o
sujeito da arte e fazê-los transformarem-se mutuamente.
Na obra de Oiticica vai de par com essa operação, como
veremos, uma sofisticada releitura da relação entre indi-
víduo e sociedade, sujeito e cultura.
Um subjetivo renovado
“Nas minhas proposições”, escrevia Hélio em 1967,
“procuro ‘abrir’ o participador para ele mesmo – há um
processo de ‘dilatamento’ interior, um mergulhar em si
mesmo necessário a tal descoberta do processo criador”5. A
criação é um processo bem mais amplo do que o momento
do surgimento de uma proposição por parte do artista. O
“processo criador” é a própria arte, fazendo-se no partici-
pador e implicando uma espécie de recriação de si mesmo.
Se o artista “mergulha de maneira inesperada num
subjetivo renovado” 6, como escreve Oiticica no texto
apresentado no seminário Propostas 66, é, portanto, por-
que o “subjetivo” é colocado no centro de suas reflexões,
devendo porém ser revisto e transformado por uma pro-
posta estética revolucionária.
15
A reflexão tecida por Mário Pedrosa sobre a questão
da expressão, desde o final dos anos 40, fornece uma base
fundamental ao campo ampliado de discussão no qual
se gesta e desenvolve a releitura carioca do concretismo
e suas derivações. Em “Arte, necessidade vital”, de 1947,
Pedrosa já sublinhava o impacto da descoberta do in-
consciente sobre as preocupações estéticas que fomentam
a arte moderna, ao lado do reconhecimento da arte dos
povos ditos “primitivos”. A “ordem poética”, na expres-
são do crítico, teria podido enfim libertar-se dos restos
de “intelectualismo abstrato” que antes a guiavam numa
direção prevalentemente acadêmica, para manifestar-se
numa espécie de “senha emotiva” que abre as portas para
a arte do século 20. A arte moderna se apoderaria então
das produções humanas acumuladas no domínio da “ex-
pressão desinteressada”, entre as quais se deve arrolar, ao
lado da arte “primitiva”, a arte naïf, das crianças e dos
loucos.7
Tal “expressão desinteressada”, Pedrosa busca carac-
terizá-la por fórmulas como a do psicólogo Henri Vallon:
“só quando os criadores se libertam de uma individua-
lidade refratária a qualquer combinação nova é que se
16
tornam capazes de contribuir a uma intuição nova”8. Há
que se libertar da individualidade para dar origem à poe-
sia, à arte como necessidade vital do homem. A expressão
deve ser “desinteressada”, no sentido de que ela se destaca
do criador em sua individualidade, para alcançar outro
estrato do humano, o de uma ordem poética universal.
A partir do terreno assim preparado por Pedrosa, o
renovado “subjetivo” a que se refere Oiticica delineia-se,
no campo da reflexão neoconcretista na passagem para
os anos 60, em uma demarcação em relação ao expres-
sionismo abstrato e ao tachismo, tão em voga na épo-
ca. Em crítica no Jornal do Brasil em 1959, Pedrosa vê
no tachismo a dominância do plano da “expressão dire-
ta”, no qual “o pintor mescla suas afeições e sentimen-
tos pessoais, seus desejos e faniquitos mais explícitos, ao
ato de realizar, de modo que a obra resultante é apenas
uma projeção afetiva dele”9. O artista se deteria aí num
primeiro processo da criação, sem alcançar o estádio da
“simplificação e cristalização da expressão”.10 Apresentan-
do o menor grau possível de “distância psíquica”, as obras
tachistas teriam para Pedrosa valor de mero “documento
17
humano”. Não chegariam à “distância psíquica ideal” al-
cançada pelo abstracionismo, no qual teríamos, “de um
lado, o artista individual em todo o livre desabrochar de
sua personalidade” e, de outro, “a obra falando sozinha
uma linguagem própria e, sem apelo direto a sentimen-
talidades, a prazeres e sugestões externas, a angústias ou
neuroses da vida privada do seu criador”.11
Já no trabalho criador de Rafael, o grande desenhis-
ta louco do Engenho de Dentro, haveria uma “força plas-
madora”, como diz Pedrosa citando os termos de Klages,
que seria uma “contrapartida ao movimento expressivo”12.
A loucura não interessa a Pedrosa como potência expres-
siva desenfreada e prova do impulso poético para além da
tradição, como para algumas das vanguardas do início do
século XX. Não se trata, em sua concepção, de conside-
rar o inconsciente como fonte direta da beleza convulsiva
defendida pelos surrealistas. Trata-se de encontrar, no dia
a dia com os pacientes psiquiátricos do ateliê de Nise da
Silveira, uma autêntica presença do sujeito indo de par
com uma “antidestreza”, um elemento “anti-instintivo”,
um fator construtivo, poderíamos talvez dizer.
Rafael era capaz de traçar, em segundos, belíssimos
desenhos que teriam sido, segundo Pedrosa, considera-
dos por André Breton superiores aos de Matisse, e para
11 PEDROSA, Mário. Da abstração à autoexpressão, p. 40.
12 PEDROSA, Mário. Da abstração à autoexpressão, p. 44.
18
o crítico se fariam sem “controle consciente ou intelectu-
al”. Ele descreve, fascinado, Rafael deixando subitamente
seus companheiros de brincadeira para
concentrar-se, em relâmpago de tempo, em si mesmo,
ou sorrindo misterioso e alegre, não sei para quem,
num jogo maravilhoso e autêntico, no curso do qual
passava por vezes, pelas costas, o lápis ou pincel de
uma mão para outra, e com o mesmo movimento dei-
xava o outro braço, agora armado, correr livremente
pelo painel, conclusão de um gesto que vinha de lon-
ge. Nesse momento, sim, tudo era jogo, expressão,
autenticidade.13
É justo na loucura, nessa condição extrema do hu-
mano, mais intensamente sujeita à despersonalização, ao
desmantelamento do eu, que o crítico vê a possibilidade
de uma expressão autêntica – autêntica na medida em
que não confirma a “vida privada”, o eu do artista, mas se
desinteressa dele para dar testemunho de uma entrega a
outrem, de um sorriso que não se sabe para quem, da to-
mada de um gesto vindo “de longe”. Um ato fundamen-
tal seria aí retomado, de modo a negar o indivíduo como
seu criador, para alcançar nele um outro. Esse jogo negaria
o eu, para fazer-se humano em uma condição mais essen-
cial do que aquela individual. Para fazer-se, talvez, arte.
19
Sujeito-cor
Em 1959 começou a transição de Oiticica do qua-
dro para o espaço. Ele parte de uma depuração da cor
que já implicaria uma “tomada de consciência do espaço
como elemento ativo, insinuando-se, aí, o conceito de
tempo”. Em suas Invenções, quadrados de cor única, de
30 cm de lado, que aderem à parede, a cor pulsaria graças
a uma estruturação vertical, de superposição. A partir daí
a cor poderá então, num formidável salto, tornar-se ato:
“A cor expressa aqui o ato único, a duração que pulsa nas
extremidades do quadro, que por sua vez se fecha em si
mesmo e se recusa a pertencer ao muro ou a se transfor-
mar em relevo”. Assim Hélio descobre “a técnica que se
transforma em expressão, a integração das duas, o que
será importante futuramente”14. A técnica pode ser, ela
própria, expressão – ou melhor, uma certa transformação
faz, da técnica, expressão. A cor torna-se então corpo-cor,
cor-ato, numa passagem que traz, implícita no corpo e no
ato, uma convocação do sujeito que permitirá a sua obra
todos os seus posteriores desenvolvimentos.
20
Segundo Oiticica, há um espírito de construção na
arte que culmina em um conceito de forma que não é
mais, na arte moderna, aquele ligado a uma “concepção
analítica do espaço, do tempo e da estrutura”15. Trata-se
então da tentativa de efetuar propostas de síntese entre es-
trutura, espaço e tempo, o que implica fundamental reexa-
me da relação entre sujeito e objeto. Ecoando a afirmação
de Malevitch de que “toda obra de arte, todo quadro (...)
deve ser considerado como resultado da solução de um
conflito entre um sujeito e um objeto”16, Oiticica pontua
que “a contradição sujeito-objeto assume outra posição
nas relações entre o homem e a obra”. E prossegue:
essa relação tende a superar o diálogo contemplativo
entre o espectador e a obra, diálogo em que ela se
constituía numa dualidade: o espectador buscava na
‘forma ideal’, fora de si, o que lhe emprestasse coe-
rência interior, pela sua própria ‘idealidade’. A forma
era então buscada e burilada numa ânsia de encontrar
o eterno, infinito e imóvel, no mundo dos fenôme-
nos, finito e cambiante. O espectador situava-se então
num ponto estático de receptividade, para poder ini-
ciar o estabelecimento de um diálogo (...).17
21
Por uma “acentuação da dualidade sujeito-objeto”,
se lograria até então uma espécie de resolução pela al-
ternância entre um e outro. O que busca Oiticica é ir
além de tal alternância, em prol de uma verdadeira sínte-
se dialética entre sujeito e objeto, através de uma noção
de forma que inclui o espectador e, portanto, se transfor-
ma, se nos permitirmos o trocadilho, distanciando-se de
sua concepção tradicional. Expressões como “corpo-cor”
surgem nesse hibridismo em que num mesmo espírito de
“construção” se faz uma busca técnica e expressiva, uma
busca da cor e da forma se inscrevendo no espaço e no
tempo – de modo que não vem apenas em um momento
posterior buscar a participação do espectador, mas só se
concreta como forma expressiva nessa participação.
Na forma expressiva – ou, se quisermos usar o ter-
mo muitas vezes usado por Hélio em seus escritos mais
precoces, na estrutura – em um jogo entre estruturas ma-
teriais, nasce o sujeito. A cor nomeia isso que vai além
da forma e do material para tornar-se corpo-cor, ou seja,
uma arquitetura sutil na qual somos convidados a nos fa-
zer presentes de um modo singular, que vai além da tradi-
cional contemplação que nos assegurava um “ponto está-
tico” diante de um objeto igualmente estático. O Núcleo,
estrutura de placas de cor no espaço, nega ao espectador
22
uma “visão estática da obra”18; é impossível vê-lo de um
só ponto; ele distende o espaço e o tempo obrigando-nos
a girar a sua volta, a penetrar seu campo de ação. Tem-
-se então uma “visão instável” ou “cíclica”. Em alguns
Núcleos, assim como em trabalhos posteriores, como os
Penetráveis, o espectador deve movimentar e mudar a
posição das placas, efetivando-se como participador da
obra em uma visão que chegará a ser “global” ou “esféri-
ca”. Trata-se, para Hélio, de “movimentar virtualmente a
cor”, dinamizá-la no espaço e no tempo. O sujeito é cor,
num mesmo movimento, em um gesto, em um ato efê-
mero em que algo pode se dar: uma “realização existen-
cial no mais elevado sentido da palavra”19. Daí toma seu
mais profundo sentido o uso dos termos construtivismo
e construtor: trata-se nada mais, nada menos do que da
“construção do mundo do homem”20. Da cor, da busca
da “dimensão infinita da cor” que se inter-relaciona com
a estrutura, o espaço e o tempo, chegamos a movimentos
da cor, “um subir e descer de intensidade, um vai e vem
de movimento”, que não interessa pelo seu caráter de
“pulsação ótica”, mas sim como “realização de aspirações
indeterminadas que só aí posso exprimir”.21
23
Mário Pedrosa afirmava sobre os Penetráveis que ali
“o sujeito se fechava em cor”22. O sujeito se abria em cor,
poderíamos dizer, uma vez que suas “aspirações” (seu de-
sejo) se fazem apresentar pela cor, no espaço, incitando-o
a surgir efemeramente, poeticamente.
24
Rhodislândia Contact. Universidade de Rhode Island, 1971. Foto Hélio Oiticica
contando que os estudantes teriam construído nos com-
partimentos formados por delicadas estruturas de telas de
náilon “verdadeiras moradias-lazer temporárias”, um de-
les tendo chegado a aí plantar trepadeiras. Ele prossegue:
Tive o cuidado de advertir, durante uma palestra que
fiz (com slides, etc.), que não interessariam experiên-
cias de catarse: jogar tintas, pedras, etc., o que nada
tem a ver com isso (e que parecem ser a moda aqui):
são super naturalistas e repetitivas no mau sentido:
mas já plantar algo, que cresce, etc., refere-se a outro
nível de consideração, qualidade, etc., assim como
absorver o environment em forma de abrigo casa-
-casaco, como invólucro estrutural-afetivo.23
Não se trata de catarse, de descarga, não se trata
de expressão sem peias, mas de outra forma de convi-
dar o sujeito a se apresentar. Rodislândia é um convite
a uma certa participação, a uma presença durante um
certo tempo, ou melhor: um convite a habitar um espaço
e nele construir um lugar (ainda que “temporário”). Essa
participação tem, portanto, um rigor que Hélio diria
“construtivo” ou estrutural, mas que se conjuga de forma
indissociável com o “afetivo”, como vemos na curiosa ex-
pressão “estrutural-afetivo”.
Não se trata de se confirmar como parte de uma
obra e pretender completá-la pela afirmação de seu eu,
mas, ao contrário, de aceitar transformar a si próprio
26
graças a uma arquitetura, uma proposta. Para Celso
Favaretto, “não se trata de um espaço em que operam
formas, mas de um sistema que desata a fantasia”24. O
eu se revira poeticamente no espaço, abrindo mão da
expressão direta para tornar-se ele mesmo forma sinuosa,
forma indefinida. Forma. Como já dizia Malevitch, “as
sensações de sentar-se, permanecer de pé ou correr são
fundamentalmente plásticas”.25
Falando sobre sua instalação Éden, realizada para
a famosa exposição na Whitechapel Gallery em 1969,
Hélio afirma sua busca de uma “participação num sen-
tido total, não apenas ‘manipulação’ que apele para os
sentidos em isolamento”26. Seu “suprassensorial” impli-
ca que “o participador irá elaborar dentro de si mesmo”
as sensações despertadas pela obra, em uma espécie de
“despertar”. As sensações demandam elaboração, elas não
têm valor em si, como percepção, mas são estopins para
alguma ação do sujeito sobre ele mesmo.
27
Tal “despertar” da arte é uma vivência do sujeito no
espaço:
O participante é retirado do campo habitual e des-
locado para um outro, desconhecido, que desperta
suas regiões sensoriais internas e dá-lhe consciência
de alguma região do seu ego, onde valores verdadeiros
se afirmam.27
Os ninhos, alguns bólides e todos os penetráveis
conformam, de fato, lugares onde devemos nos colocar,
eventualmente em contato com materiais diversos, como
areia, palha, água. Mais sutilmente, como vimos, já se
tratava do espaço desde a virada do final da década de
1950, na convocação do corpo pela presença da cor – a
cor tornada corpo, corpo-cor. A cor torna-se corpo, o es-
paço é apelo ao homem, bem ao gosto da fenomenologia
de Merleau-Ponty e sua concepção da percepção como
“ato que nos faz conhecer existências”28. A influência do
filósofo é explicitada no “manifesto neoconcreto”. A obra
seria capaz de reacender a “experiência primeira – plena –
do real”, como aí escreve Ferreira Gullar, ressaltando que
“a arte neoconcreta funda um novo ‘espaço’ expressivo”.29
28
Mas o prosseguimento da obra de Hélio força os limites
da ideia merleau-pontiana de um despertar do sensorial
para que se atinja o mundo pré-reflexivo no qual o sujei-
to se constituiria. A experiência primeira talvez não seja
plena, como acredita Gullar, mas precária; o real talvez
seja um tanto esfacelado. Mais do que reafirmar um lugar
para o corpo, a obra de Hélio agencia, principalmente,
lugares que nos convocam a um deslocamento, a um des-
conhecimento do campo onde estamos e à realização de
trajetórias múltiplas em um espaço labiríntico. Mais do
que de um “novo espaço expressivo”, trata-se aí de uma
pluralidade de espaços múltiplos, indeterminados. Que
lugar para o sujeito? Seus trabalhos “abertos” e “cósmi-
cos”, como os qualifica o próprio artista, franqueiam o
campo de uma atuação imprevisível e singular por parte
do participador.
Lygia Clark afirmava que sua busca era a de “com-
por um espaço”. E que “a obra deve exigir uma partici-
pação imediata do espectador e ele, espectador, deve ser
jogado dentro dela”30. Dentro dela: para aí ficar? Ou se
movimentar, ambulante? Para se perder como em um la-
birinto, diria talvez Hélio.
30 Apud PEDROSA, Mário. Significação de Lygia Clark. Dos mu-
rais de Portinari aos espaços de Brasília, São Paulo, 1981, p. 197.
29
O espaço de Oiticica é espaço arquitetônico onde
o corpo é convidado a entrar. Porém, em vez de visar a
que ali o corpo se instale placidamente, ele incita a um
movimento do sujeito, em múltiplas trajetórias. Não
basta a presença do corpo para que as “aspirações” do
sujeito se apresentem. Mas o sujeito do inconsciente,
como diz Jacques Lacan, “se engancha no corpo”31. Uma
convocação do corpo pode portanto ser capaz, graças a
uma proposição poética, de reengatar o sujeito em suas
aspirações mais íntimas. Ele não se deixará, porém,
aprisionar em uma arquitetura fixa, mas surgirá, efêmero,
entre os elementos que compõem o espaço, em percursos
múltiplos e fragmentados.
Em texto de 1961, Oiticica explicita sua concepção
de labirinto:
Quando realizo maquetas ou projetos de maquetas,
labirintos por excelência, quero que a estrutura arqui-
tetônica recrie e incorpore o espaço real num espaço
virtual, estético, e num tempo, que é também estéti-
co. Seria a tentativa de dar ao espaço real um tempo,
uma vivência estética, aproximando-se assim do má-
gico, tal o seu caráter vital. O primeiro indício disso é
o caráter de labirinto, que tende a organificar o espaço
de uma maneira abstrata, esfacelando-o e dando-lhe um
caráter novo, de tensão interna.32
30
O espaço não é a casa do corpo – talvez nem em
Lygia Clark ele fosse propriamente corpo e casa, pois já
se tratava aí, mais sutilmente, de uma nostalgia do corpo.
O espaço é, em Oiticica, labirinto – não apenas em suas
maquetas, mas já em seus ninhos e penetráveis. Mesmo
feito de recintos por vezes confortáveis, o espaço aí cons-
truído é desconhecido e sem limites. Descontínuo, es-
facelado, por vezes obscuro, mesmo quando espaço-cor,
ele é tenso, “organificado”. Ele é a materialização da des-
coberta de Merleau-Ponty de que “algo no espaço escapa
a nossas tentativas de sobrevoo”33. Nada está fora dele, é
impossível achar uma saída, e talvez a busca seja a de seu
centro, sempre. Estamos sempre penetrando, mesmo ao
tentar dele escapar, talvez graças à atração do espelho que,
como lembra Paola Berenstein Jacques, é o que se en-
contra frequentemente no fundo do labirinto34. Uma lata
d’água-espelho, talvez, na precariedade crítica tão cara a
Hélio – que aparece em carta a Lygia em 1969:
agora não sinto necessidade de construir objetos mas
uma lata cúbica vazia me deu vontade de colocar
água nela e pronto: é para que se olhe aquela lata
com água, olhe-se como num espelho, o que já não é
31
apropriação como antes mas o objeto aberto essen-
cial, que funcionará conforme o contexto e a parti-
cipação de cada um.35
Se o labirinto contém um espelho, se a busca do es-
paço é busca de si mesmo, desmaterializada como ato a se
fazer no tempo, a lata d’água/espelho não reflete apenas
o eu, mas torna-se objeto aberto. O centro do labirinto é
uma ilusão, estamos sempre deambulando por suas mar-
gens. Nossa posição é marginal, às margens de tudo como
quer Hélio em finais dos anos 60. E essa posição é uma
verdadeira ética (“MARGINetical”, como grafa Hélio36).
No limite, não há lugar possível, e o importante é
deambular pelas margens, se deixar perder nos labirintos
(sejam eles os penetráveis ou, eventualmente, a favela, o
traçado urbanístico orgânico do morro da Mangueira).
Parar alguns instantes nas quebradas. “Não ocupar um
lugar específico, no espaço ou no tempo”, como diz Hé-
lio, “assim como viver o prazer ou não saber a hora da
preguiça, é e pode ser a atividade a que se entregue um
‘criador’”37. Na preguiça, na falta de atividade produtiva
32
pode-se encontrar a “verdade efetiva do homem”, como
dizia Malevich, capaz de liberá-lo da realidade física em
prol da arte.38
33
Tal aparecimento do sujeito no social encontra sua
maior expressão no termo parangolé, sobre a origem do
qual Hélio fala em entrevista a Jorge Guinle Filho, em
abril de 1980, uma semana antes de sua morte.
Isso eu descobri na rua, essa palavra mágica. Porque
eu trabalhava no Museu Nacional da Quinta, com
meu pai, fazendo bibliografia. Um dia eu estava indo
de ônibus e na praça da Bandeira havia um mendi-
go que fez assim uma espécie de coisa mais linda do
mundo: uma espécie de construção. No dia seguinte
já havia desaparecido. Eram quatro postes, estacas de
madeira de uns 2 metros de altura, que ele fez como
se fossem vértices de retângulo no chão. Era um ter-
reno baldio, com um matinho e tinha essa clareira
que o cara estacou e botou as paredes feitas de fio de
barbante de cima a baixo.
Bem feitíssimo. E havia um pedaço de aniagem pre-
gado num desses barbantes, que dizia: “aqui é...” e a
única coisa que eu entendi, que estava escrito era a
palavra parangolé. Aí eu disse: “É essa a palavra”.41
O parangolé é uma busca, uma “procura das raízes
da gênese objetiva da obra, a plasmação direta perceptiva
da mesma”42, nomeando portanto o ponto agudo da re-
flexão e proposta de Hélio ao longo de toda a sua obra.
Ela mesma é uma palavra encontrada, apropriação da
nomeação de um penetrável feito por outro e achado ao
41 GUINLE FILHO, Jorge. A última entrevista. Hélio Oiticica (En-
contros). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 269.
42 OITICICA, Hélio. Bases fundamentais para uma definição do
parangolé. AGL, p. 66.
34
acaso, na rua. Muito mais do que nomear uma série de
obras com características de capas, tendas ou estandartes,
para Hélio “parangolé é a formulação definitiva do que
seja a antiarte ambiental, justamente porque nessas obras
foi-me dada a oportunidade, a ideia de fundir cor, es-
truturas, sentido poético, dança, palavra, fotografia (...)”.
Formulação global do poético para além do estatuto de
obra e do objeto, parangolé é um termo crítico por exce-
lência: ele visa pôr em crise a noção de arte, de obra, de
sujeito e de objeto. Ele põe em crise, inclusive, a sua pró-
pria definição, desconfiando de formulações estéticas – e
portanto de si mesmo: “Chamarei, então, parangolé, de
agora em diante a todos os princípios definitivos formu-
lados aqui, inclusive o da não formulação de conceitos,
que é o mais importante”. 43
Apesar de seu provocativo caráter de não formula-
ção, de mero índice de experimentação análogo à Merz de
Schwitters, o parangolé encontra uma definição, aquela
de “expressão idiomática, oriunda da gíria no Rio de Ja-
neiro, que possui diferentes significados: agitação súbita,
animação, alegria e situações inesperadas entre pessoas”.44
35
Entre pessoas. O parangolé é, de saída e por definição,
coletivo. Porque ele ocupa um lugar entre o eu e o outro,
entre sujeito e objeto, entre sujeito e cultura. Esse lugar
que é fora de nós e no entanto se torna íntimo, ao nos
convidar a nos retorcermos um pouco, a nos subverter-
mos como a fita de Moebius, objeto que anula a distinção
entre dentro e fora, avesso e direito. Essa conhecida figura
topológica já servira a Lygia Clark para seu Caminhando
(1963), e são versões dela várias obras de Max Bill, como
a Unidade Tripartida (1948-1949) ganhadora do prêmio
de escultura da I Bienal de São Paulo em 1951. A banda
de Moebius reaparece como fita elástica unindo os pulsos
de Hélio e Lygia nas conhecidas fotografias do Diálogo
de Mãos, de 1966, única obra realizada em parceria pelos
dois artistas.45
Algo acontece entre pessoas, graças a um certo obje-
to que se propõe como “transobjeto”46, busca da própria
“estrutura do objeto”47 como algo que nasce entre sujeito
e cultura. O objeto materializaria e atualizaria, portanto,
36
um enganchamento fundamental entre sujeito e cultura,
que Freud já caracterizava em 1929 como um mal-estar.
Na cultura, está o sujeito – ele aí mal-está. Reatualizando
esse mal-estar, uma proposição artística poderia, então,
transtornar um pouco, senão transformar, esse ponto
agudo em que o sujeito é cultura. Ainda segundo Hélio,
referindo-se ao “participador” do parangolé:
Há como que uma violação do seu estar como indiví-
duo no mundo, diferenciado e ao mesmo tempo ‘co-
letivo’, para o de ‘participador’ como centro motor,
núcleo (...). É esta a verdadeira metamorfose que aí
se verifica na inter-relação espectador/obra (ou parti-
cipador/obra).48
A participação torna-se, no parangolé, uma “além-
-participação”, na expressão cunhada por Hélio em en-
trevista a Walmir Ayala. “Creio que já superei o ‘dar algo’
para participar; estou além da ‘obra aberta’”, continua
ele, “prefiro o conceito de Rogério Duarte, de probjeto,
no qual o objeto não existe como alvo participativo, mas
o ‘processo’, a ‘possibilidade’ infinita no processo, a ‘pro-
posição’ individual em cada possibilidade”49. Uma vez o
objeto desmaterializado em prol de projetos múltiplos,
37
entre os sujeitos envolvidos surge um espaço privilegiado:
“há como que a ‘instituição’ e um ‘reconhecimento’ de
um espaço intercorporal criado pela obra ao ser desdo-
brado. A obra é feita para este espaço, e nenhum sentido
de totalidade pode-se dela exigir (...)”50. Graças ao paran-
golé, o espaço torna-se “intercorporal”, em uma “trans-
mutação espacial”, nos termos do artista. Ao empunhar
os estandartes ou vestir as capas, o corpo é convidado a se
movimentar, retorcendo-se em dança. Entre ele e aquele
que vê, que está fora, algo acontece: há um jogo entre
o olhar de quem veste e o olhar de quem assiste, e tal
jogo é capaz de estabelecer uma “participação coletiva”,
nos termos de Oiticica. A fita de Moebius, que confor-
ma boa parte dos parangolés, apresenta uma operação no
espaço capaz de anular a distinção entre fora e dentro –
não porque ambos se uniram em uma conjugação sem
falhas, mas porque entre objeto e sujeito algo se passa,
numa torção, desalojando-nos da posição de senhores do
espaço, do campo visual e do objeto. Movimentando-os.
A transmutação do espaço que a topologia visa estudar
corresponde, no uso da fita de Moebius pelo artista, a
uma proposta de trans-formação do sujeito com o outro,
com a cultura. Como objeto definido para ser carregado
numa certa movimentação do corpo, o estandarte seria
38
“por excelência um elemento ou objeto ultraespacial”51.
O espaço é terreno de subversão, de parangolé, de torção
entre o dentro e o fora, o eu e o outro.
Essa palavra mágica, o parangolé, continua mais
ou menos indefinível. Ela carrega em seus fonemas toda
uma ginga, uma sonoridade que remete talvez à África,
com um certo rebuscamento irônico. Ela cairia bem na
boca de Macunaíma, talvez – pode ser que estivesse até
em medida de substituir a Antropofagia de Oswald de
Andrade. Ela indica que algo quase inominável se pas-
sa, entre as pessoas. Simples ou mirabolante, ínfimo ou
extraordinário, algo acontece. O sujeito surge no outro,
no objeto, na cultura, de forma imprevisível e subversiva,
transformadora. Algo pode se dar então entre mim e o
outro, graças a esse objeto que dá notícias do sujeito e o
convoca, e que nem é mais propriamente um objeto, mas
o estopim de um ato, um acontecimento transformador
do mundo. Num espaço imprevisto surge algo incerto,
porém de potência revolucionária. Aberto. Sobre a Apo-
calipopótese, famoso evento realizado com parangolés no
Aterro do Flamengo em 1968, Oiticica conta que “as pes-
soas participavam diretamente, obliquamente, sei lá mais
como – mas o importante é o sei lá mais como (...)”.52
39
Uma arquitetura comum.
Criação, parangolé e cultura**53
40
B 38 Bólide lata 1 – Apropriação 2, 1966. Foto César Oiticica Filho
Se o artista se apropria desse objeto, nomeando-o
como obra, não é para expô-lo no museu, à maneira de
um ready-made de Duchamp. Para Oiticica, “museu é
o mundo: é a experiência cotidiana”55. O que visa essa
apropriação é reacender, em cada lata-fogo utilizada
como sinalização nas obras da cidade, uma poesia que já
estava lá, nessa criação anônima, perdida no tempo mas
presente como prática coletiva. “Juro de mãos postas”,
escreve Hélio, “que nada existe de mais emocionante do
que essas latas sós, iluminando a noite (o fogo que nunca
apaga) – são uma ilustração da vida: o fogo dura e de
repente se apaga um dia, mas enquanto dura é eterno”.56
Quem a criou, essa lata-fogo? É ao isolá-la na ano-
nimidade de sua criação (ao invés de, graças à assinatura
do artista, retirá-la da anonimidade) que Hélio reacende
sua poesia, acentuando o caráter de sinal ancestral que a
conjuga à própria vida, ao tempo. Ao homem.
Excêntricas criações
A etimologia do termo criação indica o significa-
do de produzir, fazer crescer, impelir (creare), e também
brotar, crescer (crescere), logo chegar à existência, nascer.
42
O verbo creare teria sido inicialmente empregado na lin-
guagem do campo. Posteriormente, na língua corrente,
seria usado para todas as espécies de seres e objetos, com
o sentido de fazer nascer.57
Foi a linguagem empregada pela Igreja que se valeu
do verbo criar com o sentido religioso de fazer nascer do
nada, atributo exclusivo de Deus, o Criador. No século
XII essa acepção está consolidada, carreada pela leitura do
Gênesis (que em grego significa “origem”, “nascimento”,
“criação”) segundo a qual Deus cria o mundo e o homem
do nada. O homem criaria portanto, no uso consagrado
do termo em francês no século XII, quando produz algo
que não existia antes, à semelhança de Deus.
A origem anônima de nossa lata-fogo talvez possa
ser conjugada a este uso original do termo na agricultu-
ra. Algo brota, não propriamente da terra, mas do solo
da Cultura, por assim dizer – neste solo comum aos ho-
mens. Negando o caráter de produção “a partir do nada”,
a lata-fogo se aproxima mais de outro sentido atribuído
ao termo criar: aquele de nutrir uma criança ou um ani-
43
mal, instruir, educar58. Há aí um processo latente, um cer-
to cultivo, uma atividade humana materializada em um
objeto, e que poderia se repetir e renovar a cada ocasião
em que uma lata-fogo é vista na calada da noite. Esse
olhar, essa memória da lata-fogo como obra humana, se
repetiria em cada um de nós, graças à indicação do artista
de tal objeto como uma criação.
Sabemos que apenas com o Renascimento o artista
ganhará nomeação e reconhecimento. Apenas nas ilumi-
nuras do século XIV os artistas começam a assinar suas
obras. Na pintura, Jan Van Eyck inaugura essa prática no
século XV. Com a perspectiva, o artista começará a ocu-
par um ponto no espaço, ganhando um ponto de vista
que se pode dizer individualizado. Ele inova um tanto,
revê a técnica e a tradição a seu modo, e mecenas buscam
seus serviços por sua singularidade. A fama dos mais ta-
lentosos atravessa fronteiras. Só nesse contexto começa
a fazer sentido falar em criação artística. Se o artista se
individualiza e se emancipa do poder divino, deixando
de ser um mero portador deste, é sob o modelo divino da
criação ex nihilo que seu mister parece ser reconhecido.
O artista cria: ele traz ao mundo algo que, por mais que
tenha a mímesis como eixo organizador, é um objeto sem
44
igual no mundo. Talvez decorra disso a idealização de que
ele é objeto, ao menos desde o famoso livro de Vassari As
Vidas dos Mais Excelentes Pintores, Escultores e Arquitetos,
publicado na metade do século XVI. Sob a valorização da
invenção de que seria capaz o artista, pulsam em surdina,
portanto, insuspeitados ecos do poder divino.
A criação no âmbito da arte, ao lado das científi-
cas, na atuação dos grandes homens do Renascimento,
talvez tenha reforçado a importância nascente do indiví-
duo singular – ainda que este apareça inicialmente sob o
modo de um humanismo que não se opõe à comunidade,
mas a reforça e transmite na figura do indivíduo. Grosso
modo, pode-se dizer que durante toda a época moderna
o ideal da criação como atributo do artista se mantém
quase intacto, acentuando-se, contudo, em direção a um
individualismo mais marcado. As vanguardas da primei-
ra metade do século XX talvez pudessem tê-lo atacado
mais impiedosamente, de posse de dispositivos como
a escrita automática e o objet trouvé dos surrealistas e,
principalmente, contando com o golpe certeiro desferido
pelo ready-made duchampiano. Neste, de fato, a criação é
radicalmente posta em crise, na medida em que consiste
em nada além de um gesto, uma certa torção como aque-
la sofrida pela roda de bicicleta ao ser colocada de ponta-
-cabeça sobre um banquinho de cozinha, em 1913 (Roda
45
de Bicicleta). O artista não é mais um criador a partir do
nada – ele não faz nascer um objeto propriamente novo,
mas rearranja os objetos corriqueiros do mundo e os no-
meia como arte.
Tal nomeação simbólica traz insuspeitados ecos do
curioso emprego que toma o termo criar no século XIV:
aquele que denota instituir, nomear (alguém) a uma fun-
ção como a de papa ou cônsul. Na linguagem jurídica,
creare começa a ter o sentido especial de alcançar a ma-
gistratura ou eleger. Nomear é instituir alguém em uma
certa posição simbólica: de um homem, cria-se um juiz
ou um cardeal. De uma coisa qualquer, pode-se, de modo
análogo, criar um objeto de arte.
Com esta nomeação, esta apropriação que institui
simbolicamente um objeto no campo da arte, chegamos
perto do que Walter Benjamin concebe como o artista
moderno: o trapeiro, o catador de lixo que recolhe os de-
jetos, a escória da sociedade e os reapresenta, renomeados
e portanto instituídos no seio de um campo simbólico
especial, o da arte. Poderia este artista-catador ser ainda
caracterizado como um “criador”?
Ele não tem mais a pretensão de, à maneira de Deus,
criar a partir do nada. Ele recolhe o que a sociedade des-
peja e despreza. A partir do lixo encontrado nas ruas, o
46
artista faria, segundo Benjamin, sua “crítica heroica”59. A
criação revira-se em crítica. Deixando de se ocupar em
trazer à luz objetos valorizados pela sociedade, a arte as-
sumiria a tarefa de pôr o mundo em crise e, nele, esten-
deria para o homem o dedo que aponta a crise em seu
seio. Se o artista moderno faz uma crítica heroica, esse
herói moderno está ele mesmo em crise, ele não é mais
do que um “representante do herói”, segundo o filósofo.
Representante um tanto precário, seu lugar não parece
bem estabelecido. Ele talvez seja cambiante, deixando de
ocupar o ponto de vista fixo e individualizado que a pers-
pectiva artificialis lhe asseguraria (ou ao menos lhe teria
facultado). Baudelaire muda de fisionomia várias vezes
por dia, segundo a queixa de Courbet ao fazer seu retrato.
Introduz-se aí uma certa quebra, uma fratura, na ausên-
cia de um ponto de vista fixo e central. “A modernidade
heroica”, diz Benjamin, “revela-se como tragédia em que
o papel do herói está disponível”. 60
Neste contexto, a criação deixa de refletir o lugar
central de Deus para ser vista, ainda nos termos de Ben-
jamin inspirados por Freud, como choque, trauma. Essen-
cialmente, segundo nos parece, porque ela descentraria o
47
sujeito, o faria retomar e comemorar sua condição ex-cên-
trica – ou seja, a impossibilidade de ocupar um centro
organizador e preestabelecido que reconfigura o sujeito
como não mais um “indivíduo” mais ou menos separado,
porém intimamente codependente da “sociedade”, mas
como um sujeito dividido em seu seio e deslocado, assi-
métrico em relação a qualquer princípio organizador do
mundo. Este sujeito de que a psicanálise é a clínica e a
principal teoria.
48
fósforo, por exemplo, na ornamentação que Lacan apre-
cia na casa de Jacques Prévert durante a Segunda Guerra.
É o objeto desvalorizado, o único que sobra na penúria
de uma guerra, o insignificante, o resto, o indigno que
é “criado”. Tal criação refere-se muito menos à particu-
laridade ou “originalidade” do objeto do que, diríamos,
a uma operação que incide sobre o laço entre sujeito e
objeto. A instituição deste último no campo simbólico da
arte implica uma sutil retomada da estrutura do desejo,
pondo em primeiro plano o sujeito. Para tal, basta um
“toque”, nas palavras de Hélio:
A obra nasce de apenas um toque na matéria. Que-
ro que a matéria de que é feita a minha obra perma-
neça tal como é; o que a transforma em expressão
é nada mais que um sopro: sopro interior, de ple-
nitude cósmica. Fora disso não há obra. Basta um
toque, mais nada.62
Um toque, e mais nada – esse objeto torna-se outra
coisa, apesar de continuar o mesmo. Como diz Pedrosa
sobre os bólides, em texto de 1967: “Como que deixando
o macrocosmo, tudo agora se passa no interior desses ob-
jetos, tocados de uma vivência estranha”63. Estranhamen-
te vívido, tornado familiar, o objeto dá notícias de nós
62 Anotação de 6 de setembro de 1960. AGL, p. 22.
63 PEDROSA, Mário. Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio
Oiticica. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo:
Perspectiva, 1981, p. 208.
49
mesmos. Já em 1951 Mário Pedrosa afirmava: “A obra de
arte vive subjetivamente”.64
O objeto de arte vive. O objeto não é produto
do eu nem consiste em um complemento simétrico a
este, mas surge, estranhamente, como uma “vivência”.
Por isso, como diz Celso Favaretto, “o objeto visa ao
comportamento”65. É desse enganchamento, capaz de fa-
zer de um objeto uma vivência do sujeito, que trata a no-
ção de estranheza (Unheimliche), proposta por Freud em
1919 como uma contribuição para o domínio da estética.
O familiar (heimlich) é também estranho (unheimlich) –
o que seria meu pode, estranhamente, surgir no objeto – e
o termo alemão carrega essa antítese66. A experiência esté-
tica tem a ver com esse encontro, um tanto inquietante,
de algo de si, no objeto.
Há um encontro de si na coisa, tal é o “sopro interior”
de que fala Hélio. O “toque” de Oiticica refere-se, portan-
to, menos a um ato do artista do que a um acontecimento
que se dá entre sujeito e objeto: “Acham-se ‘coisas’ que se
50
veem todos os dias”, escreve o artista em 1966, “mas que
jamais pensávamos procurar. É a procura de si mesmo na
coisa – uma espécie de comunhão com o ambiente”67. Ele
dialoga talvez com a célebre máxima de Picasso: “Eu não
procuro, acho”. A lógica aí presente é aquela do objet trou-
vé, o objeto encontrado dos surrealistas, cujo fundamento
é muito bem apresentado na frase de André Breton: “nada
do que nos cerca nos é objeto, tudo nos é sujeito”68. O que
me cerca não é objeto de que eu possa me apossar ou com
o qual possa me relacionar de maneira complementar. O
que está no mundo e que encontro como objeto é meu
“próprio” sujeito (que não é próprio, a bem dizer, mas está
fora – é, de saída, um outro).
Assim, na obra de Oiticica trata-se de uma “estru-
tura objetiva”, criada pelo artista e por ele “objetivada”
em uma “identificação” com o objeto. Tal identificação
“já existe no momento em que as estruturas vão nascen-
do, dando-se o diálogo sujeito-objeto numa fusão mais
serena”. Os Bólides, que Oiticica realiza a partir de 1963,
radicalizam tal concepção, implicando uma “experiência”
entre sujeito e objeto cuja “dialética” é profunda. Nesses
51
Transobjetos, há uma “súbita identificação dessa concep-
ção subjetiva com o objeto já existente como necessário à
estrutura da obra”. A estrutura não é propriamente ante-
rior, mas concomitante ao objeto, ao encontro com ele.
E o artista prossegue afirmando que o objeto deixa de ser
“oposto ao sujeito (…) no momento da identificação”69.
O objeto já estava no sujeito, e o sujeito sai de si para se
encontrar no objeto.
A frase de Breton “… tudo nos é sujeito” apresen-
ta uma interessante ambiguidade em francês, na medi-
da em que sujet denota tanto “sujeito” quanto “tema”,
mostrando bem o território híbrido de que se trata, a
torção, o encontro que faz, do tema, o próprio sujeito.
Como ensina a psicanálise, é na relação com um objeto
primordial de saída perdido (o seio que nos alimenta, no
mito construído por Freud) que o sujeito desejante sur-
ge, já apartado de si mesmo. O objeto não consiste em
um mero tema do qual o sujeito poderia se apossar a seu
bel-prazer, mas é aquilo em que ele se encontra alterado:
tornado outro. Essa alteração é, talvez, o maior tema da
arte, neste sentido.
A afirmativa de Pedrosa sobre a “vida subjetiva” do
objeto decorre de uma leitura própria, apurada e perspi-
caz do surrealismo. Paulo Herkenhoff salienta a ligação
52
do crítico com os surrealistas, dos quais ele se aproximou
em sua estada em Paris no fim dos anos 1920, e lembra
que ele era concunhado do poeta francês Benjamin Pé-
ret. Herkenhoff acredita que Pedrosa teve a clareza, “que
outros latino-americanos não haviam tido até aquele mo-
mento, de que o surrealismo era a via fácil, mas não era
a solução para a América Latina”70. Suas reflexões sobre a
questão da expressão e seu contato com os artistas “lou-
cos” do Engenho de Dentro, que exploramos no capítulo
anterior, não deixam de ter ligação com os fundamentos
do surrealismo, sua busca de uma verdade inconsciente
(ou “automática”) que se manifesta graças ao “acaso obje-
tivo” e tem como consequência, entre outras, um elogio
da loucura. A certeira análise de Pedrosa desdenha como
“solução fácil” neste movimento, provavelmente, tudo o
que o entulha de imagens fantásticas e temas psicanalíti-
cos como a histeria e o sonho, para dele deter apenas o
essencial: a condição descentrada do sujeito que o leva a
poder experimentar, na poesia e na arte, um belo e estra-
nho aparecimento de si no objeto.
Isso parece-me ter fornecido uma base importante,
e até hoje não reconhecida, para a defesa das “possibili-
dades expressivas” que o neoconcretismo proclama ao se
53
destacar e diferenciar do concretismo. Antes da formula-
ção do “não-objeto”71 por Ferreira Gullar e da influência
explícita da fenomenologia de Merleau-Ponty no “Mani-
festo neoconcreto”, Mário Pedrosa foi o maior fomenta-
dor da reflexão que deu origem ao neoconcretismo, e sua
“digestão”, digamos, do surrealismo, bem como suas vas-
tas leituras, sobretudo de Susan Langer, Ernst Cassirer,
Henri Focillon, de Freud e do psicanalista Ernst Kris, lhe
permitiram chegar a uma reflexão crítica sobre a questão
da expressão que é a base sobre a qual puderam surgir
as propostas neoconcretistas. Como vimos no ensaio an-
terior, Pedrosa rejeita a ideia de expressão como proje-
ção do individualismo do artista em prol de uma noção
de expressão que advém de uma “distância psíquica”, de
um destacamento em relação ao próprio eu. “Eu é um
outro”, como já afirmava em 1872 Arthur Rimbaud72,
abrindo caminho para a teoria do sujeito do inconscien-
te, ou seja, para a reflexão sobre o eu como outro que funda
e caracteriza a psicanálise. A condição para que surja uma
obra de arte é que eu seja outro, parece dizer Pedrosa. A
arte recolocaria em jogo essa alteridade, esse descentra-
54
mento fundamental à constituição do eu, na medida em
que a obra seria capaz, nela mesma, de encarnar o que é
autenticamente humano. O objeto não é mais produto
do eu, nem objeto de conhecimento a ele externo; ele
não é aquilo que fala de um indivíduo, mas aquilo que
fala como sujeito.
Ao tachismo então em voga o crítico opõe a arte
dos pacientes do ateliê de pintura criado por Nise da Sil-
veira no Hospital Psiquiátrico Pedro II, onde trabalham
Almir Mavignier e Abraham Palatnik. Como diz Paulo
Herkenhoff, “a matriz da arte contemporânea passa, no
Rio de Janeiro, pelo Engenho de Dentro”73. Se “a obra co-
meça a interessar (…) pelo universo de significações exis-
tenciais que ela a um tempo funda e revela”, como afirma
o “Manifesto neoconcreto”, é porque, muito antes de
Merleau-Ponty equacionar olho e espírito, Breton e seus
companheiros já percebiam no objeto de arte um poder
de convocação do sujeito – em grande parte, graças à se-
minal influência das ideias freudianas para o surgimento
do surrealismo. Não se trata simplesmente, portanto, no
rompimento neoconcreto em relação aos geométricos de
São Paulo, da defesa de um “subjetivismo” frente à ob-
jetividade da arte abstrata vigente, mas, de modo muito
55
mais sofisticado e sutil, de uma subversão na maneira de
conceber a própria noção de objeto – e sua relação com o
sujeito. Em vez de subscrever a uma noção de expressão
afirmativa do eu, trata-se, na fundação do neoconcretis-
mo, da ideia de que o “vocabulário geométrico”, como diz
ainda o “Manifesto…”, “pode assumir a expressão de re-
alidades humanas complexas”74. Na geometria, o sujeito.
Em texto de 1973, Oiticica reconhece na produção
artística daquele momento no Brasil a autenticidade da
“criação de uma linguagem” que evoca (e deglute, talvez)
a Antropofagia que marcou o surgimento da modernida-
de nas artes no país:
O QUE IMPORTA: a criação de uma linguagem: o
destino de Modernidade do Brasil, (sic) pede a criação
desta linguagem, as relações, deglutições, toda a feno-
menologia desse processo (com, inclusive, as outras
linguagens internacionais), pede e exige (sob pena de
se consumir em um academicismo conservador, não o
faça) essa linguagem: o conceitual deveria submeter-
-se ao fenômeno vivo: o deboche ao ‘sério’: quem ou-
sará enfrentar o surrealismo brasileiro?75
56
A menção a um “surrealismo brasileiro” é curiosa e
provocativa, e não recebe reflexão mais detida nos escri-
tos posteriores do artista. A defesa de que o “fenômeno
vivo” venha deglutir antropofagicamente o conceitual
sustenta a ideia de uma “linguagem”, digamos, brasileira,
que talvez mais do que linguagem seja uma atitude de de-
boche (que não deixa, por sua vez, de lembrar o objetivo
surrealista de épater les bourgeois (chocar os burgueses).
Em texto de 1967, pouco após a morte de René Ma-
gritte, Pedrosa havia feito uma espécie de balanço do sur-
realismo, acentuando a articulação ética que ele promove-
ria entre ação e sonho, em busca de uma “transformação
geral das relações sociais” (na expressão do próprio André
Breton76). Diante da “crise contemporânea” que não seria
apenas política ou social, mas também “ética e psíquica”,
Pedrosa afirmava – surpreendentemente para um artigo
cujo título começa com “Surrealismo ontem” – que “a crí-
tica surrealista continua válida, sua ética e sua estética não
desapareceram”. Na criação e nas “reações subjetivas” da
nova geração haveria uma retomada das “preocupações e
pesquisas” surrealistas, “embora sob outras formas menos
românticas ou ingenuamente arrogantes e mais práticas e
numa escala muito maior e coletiva”.77
76 Apud PEDROSA, Mário. Surrealismo ontem, Superrealidade
hoje. Mundo, homem, arte em crise, p. 182.
77 PEDROSA, Mário. Surrealismo ontem, Superrealidade hoje, p. 183.
57
Ecoando a amplitude “coletiva” que o crítico dá às
incidências surrealistas na arte contemporânea, é digno
de nota que, na escrita de Breton, o sujeito surja na pri-
meira pessoa do plural: “nada que nos cerca nos é objeto,
tudo nos é sujeito”. O sujeito desponta, fora de si, como
nós – e no que “nos cerca”, ou seja, no espaço – no espaço
social, no espaço vivo desdobrado graças ao rompimento
do espaço representacional operado pela vanguarda russa
e pelo neoplasticismo. No cruzamento dessas influências
maiores, o neoconcretismo pode ir além do objeto para
agenciar proposições artísticas como espaço de surgimen-
to do sujeito (entre sujeitos, retomando algo que se faz
comum a duas ou mais pessoas).
O não-objeto e o sujeito
Em texto recente no qual apresenta sua visão da his-
tória do neoconcretismo, Ferreira Gullar situa a origem
de sua teoria do não-objeto pouco depois da Exposição
Neoconcreta, no encontro com um trabalho de Lygia
Clark. A artista teria apresentado a peça (que Gullar não
nomeia) em um jantar para o grupo e Pedrosa, dizendo
que não sabia como defini-la. Pedrosa sugeriu que seria
um relevo, mas Gullar retrucou que um relevo pressupõe
uma superfície sobre a qual se erguer, o que ali não havia.
Gullar pensa um tempo e então anuncia ter encontrado
58
uma definição: se trataria de um não-objeto. Ele explica
que “objeto” é aí usado no sentido corrente, “como na
expressão ‘objetos de uso pessoal’, como caneta, mesa, ca-
deira, livro”78. Aquele trabalho de Lygia não se adequava
às categorias de escultura, nem de relevo, então ele teria
pensado: “é um objeto”. “Mas como os objetos têm uso
e este não tem, posso chamá-lo de não-objeto”, concluiu.
No dia seguinte, o poeta e crítico escreveu seu texto
“A Teoria do não-objeto”, para sistematizar isso que os
neoconcretistas estavam produzindo e que não cabia na
“classificação usual de pintura, escultura ou poesia”. Ele
concebe que
o não-objeto nasce (...) do abandono do espaço virtual
(ou fictício) e da ação pictórica (metafórica) para o ar-
tista agir diretamente sobre a tela (o quadro) como ob-
jeto material, como coisa. Esta ação do artista se trans-
fere ao espectador que passa a manipular a obra nova
– o não-objeto – em lugar de apenas contemplá-lo.79
O não-objeto não é um antiobjeto, mas um obje-
to destacado de suas funções habituais, um “objeto es-
pecial”. Em vez de “erguer um espaço metafórico” bem
separado do mundo, trata-se de realizar a obra no espaço
real. Pela aparição da obra, “objeto especial”, tal espaço
59
ganha “uma significação e uma transcendência”80. E tal
significação é “imanente à forma”.81
Se o não-objeto advém do próprio abandono da
figuração e da ficção em prol da materialidade da coi-
sa, fica sem explicação o salto entre essa virada e o novo
papel – ativo – aí concedido ao “espectador”. É nesse
ponto que a leitura de Merleau-Ponty que Pedrosa te-
ria indicado a Gullar vem fornecer alguns alicerces. Tais
objetos especiais seriam aqueles em medida, conforme
o pensamento do filósofo francês, de reafirmar “a arte
como formulação primeira do mundo”82. A arte retoma,
como fenômeno vivo, a fundante experiência do homem
no mundo, alcançando, portanto, enorme incidência on-
tológica e ética: “O que importa não é fazer um poema
– nem mesmo fazer um objeto – mas velar o quanto de
mundo se deposita na palavra”.83
A arte visa uma “redescoberta do mundo: as formas,
as cores, o espaço não pertencem a esta ou àquela lin-
guagem artística, mas à experiência viva e indeterminada
60
do homem”84. O objeto artístico deve, portanto, manter
com o sujeito uma relação, como afirma Gullar, que “dis-
pensa intermediário”. Graças à estrutura do ‘não-objeto’,
na experiência artística espectador e obra se fundiriam
no espaço. A negacão do objeto é afirmação, nele, do
sujeito, e é nesse sentido que “o não-objeto reclama o
espectador (trata-se ainda de espectador?), não como tes-
temunha passiva de sua existência, mas como condição
mesma de seu fazer-se”. Objeto inconcluso, o não-objeto
necessita do outro, pois “sem ele, a obra existe apenas em
potência, à espera do gesto humano que a atualize”.85
61
Pensando na pintura rupestre, Lacan afirma que “o
exercício na parede consiste em fixar o habitante invisível
da cavidade”87. A filósofa francesa Marie-José Mondzain
explora essa ideia de modo a mostrar que o sujeito surge
ao se fazer signo, como fica claro nas chamadas mãos em
negativo da gruta de Chauvet. O homem pré-histórico,
que não habitava as cavernas, busca nessa arquitetura
natural o local onde, iluminado por tochas, ele pode
deixar uma marca de sua presença. Soprando sobre sua
mão pousada na parede da caverna os pigmentos que lhe
enchiam a boca, e então retirando sua mão, ele produz
um signo: algo que o representa, para si mesmo e para os
outros que com ele partilham a luz daquelas tochas. Esse
traço, esse “vestígio de sua ausência”, esse “signo é o pri-
meiro autorretrato, não especular”, afirma Mondzain.88
É na caverna, essa espécie de “vaso” cavado na ter-
ra, essa cavidade formada pela natureza, que o homem
exercitará sua própria fundação como sujeito. Com os
outros. Nesse momento, o acidente topográfico torna-se
arquitetura: cultura.
Sobre “a área aberta ao mito”, cercado circular veda-
do por treliça, na instalação Éden (1969), diz Hélio que
62
a área vazia interior é o campo para a construção total
de um espaço significativo “seu”: não há “proposição”
aqui – estar-se nu diante do fora-dentro, do vazio, é
estar-se no estado de “fundar” o que não existe ainda,
de se autofundar.89
Não se trata aí necessariamente da instauração de
um ponto de vista, de um lugar fixo e predeterminado
para o indivíduo, mas de um espaço aberto ao surgimen-
to do sujeito. A criação não é mais produção do objeto a
partir de um agente inquestionado, mas refere-se a uma
produção do próprio sujeito graças à incitação de uma
certa conformação espacial.
O vaso de argila pode ser visto, nesse sentido, como
uma espécie de modelo da origem da arquitetura, nas ca-
vernas (esses vasos horizontais, em geral) onde os homens
pré-históricos vinham inscrever suas pinturas rupestres.
Por que eles o faziam nas galerias escuras, em vez de expô-
-las à luz do dia? Suas tochas, permitindo e sinalizando o
incrível acontecimento que ali se dava, não deixam de ser
primitivas latas-fogo.
Esse enigma ancestral nos toca através dos séculos,
ensinando sobre a criação da imagem como indissocia-
velmente ligada à origem da arquitetura – espaçamento
necessário para que se inscreva um sujeito no ato criador
da própria Cultura. O espaço é arquitetônico justamente
63
ao se conformar como lugar para o sujeito – os limites
concretos de uma edificação, assim como de uma ca-
verna, a delimitam em relação ao ambiente circundante
criando uma área interna que se opõe a um exterior, mas
a conformam, ao mesmo tempo, como externa ao sujeito.
A caverna dá o modelo deste interno/externo, esse fora/
dentro de que fala Hélio, desse êxtimo, no neologismo de
Lacan: instauração simbólica de uma exterioridade ínti-
ma, lugar onde o mais íntimo (o sujeito) só se instaura no
exterior (na Cultura).
Essa fixação do “habitante invisível da cavidade”,
essa autofundação de que fala Hélio, se dá, curiosamente,
sobre algo que já estava lá. Diferenças de cor ou textura
na superfície das paredes são por vezes incorporadas às
pinturas rupestres – o gesto sobre o elemento da natureza
institui a Cultura como significantização desta. Além dis-
so, em muitas delas imagens são sobrepostas a inscrições
anteriores, criando uma espécie de palimpsesto. Como
se, em vez de individualizar seu “criador”, ao fixá-lo na
cavidade e dar-lhe um lugar, cada traço buscasse enlaçá-lo
a um habitante anterior. Quem seria o autor de tal escrita
plural onde se inscreve o sujeito?
Nessas pinturas rupestres se manifesta que “existe
um encontro secreto, marcado entre as gerações prece-
dentes e a nossa”, como diz Benjamin, completando: “Al-
64
guém na Terra está à nossa espera”90. Cada objeto, cada
obra de arte talvez esteja na terra à nossa espera, dando
notícias de um alguém que é cada um de nós.
Vem daí o que Lacan aponta como “possibilidade
original de uma função como a função poética em um
consenso social no estado de estrutura”91. Apesar de ecoar
o senso comum de Kant, tal consenso social não estaria
ligado à homogeneidade de julgamento, à universalidade
de um juízo estético normativo. Ele parece, antes, indicar a
existência de um certo compartilhamento social na origem
da própria inscrição do sujeito. O campo da arte exerceria
tal função, ou melhor, exploraria tal base comum de modo
a comemorar o surgimento do sujeito na cultura.
Para Lacan, a invenção da perspectiva virá con-
formar o vazio, construindo um espaço na pintura, de
modo a conceder nela um lugar, uma posição para o
homem. Isso sob um modo ilusionista que não deixa,
porém, de quebrar um tanto a ilusão, ir além dela para
assumir sua condição de mera representação. A rapidez
com que a própria construção perspectiva renascentista
dá lugar a uma proliferação do uso da anamorfose, já no
século XVI, mostra que ela se revira em crítica, ou seja,
65
põe em crise seus meios constitutivos92. A mímesis esta-
ria sempre submetida a essa tensão entre a semelhança
ilusória e a construção significante, entre a proximidade
e um certo distanciamento em relação ao referente. E
é na própria distância – aquela que a perspectiva cons-
trói ativa e artificialmente – que algum lugar é conce-
dido ao indivíduo. À medida que se acentua, a partir
da passagem para o século XX, a constatação de que,
nas palavras de Freud, “o eu não é mais senhor em sua
própria casa”93, tal lugar é questionado e o espaço passa
a ser convocado como campo aberto a um surgimento
imprevisível do sujeito. Não mais indivisível (como o
in-divíduo), mas dividido em suas bases, o sujeito não é
senhor da representação, mas torna-se a meta a ser atin-
gida por um complexo arranjo significante que, eventu-
almente, materializa o espaço no real. Em um instante
efêmero, o sujeito pode então surgir, problemático e in-
certo. Mas capaz de se autofundar num ato poético que
não deixa de ter uma dimensão política.
66
O parangolé é o comum
Segundo Oiticica em texto de 1966, haveria uma
tal disseminação do campo da criação artística “que o
próprio ato de não criar já conta como uma manifestação
criadora”. Surge então uma “necessidade ética de outra
ordem de manifestação”: a “manifestação social, incluin-
do aí fundamentalmente uma posição ética (assim como
uma política)” 94. Essa posição não é partidária, ideológi-
ca – ela talvez seja anárquica porque baseada numa liber-
dade radical –, mas é política num sentido mais amplo e
fundamental, o de uma verdadeira ética.
É nessa medida que “a antiarte é a verdadeira ligação
definitiva entre manifestação criativa e coletividade”. A
coletividade é a dimensão da extimidade necessária para o
surgimento do sujeito, da poesia. O objeto é a isca capaz
de capturar essa poesia anônima e coletiva, como afirma
Oiticica no trecho que já citamos acima: “Acham-se ‘coi-
sas’ que se veem todos os dias mas que jamais pensávamos
procurar. É a procura de si mesmo na coisa – uma espécie
de comunhão com o ambiente”.95
O sujeito busca a si mesmo na coisa, e a coisa, como
a lata-fogo, é já uma manifestação do poder criador hu-
mano, anônimo, coletivo. Ao surgir na coisa, o sujeito é
67
fora de si: é anônimo, é algo comum (e no entanto radi-
calmente singular).
A respeito desta reviravolta, o termo definitivo,
conceitualmente preciso em Oiticica, é aquele de paran-
golé. Ele é de saída apropriado, isolado em sua anonimi-
dade, portanto coletivo, e “antiarte por excelência”96. Este
termo indicaria algo não totalmente formulável, algo que
resiste à formulação intelectual, uma certa provocação.
Trata-se de um termo, uma “palavra mágica” literalmen-
te achada “na rua”, como contava Hélio a Jorge Guinle
Filho poucos dias antes de sua morte. Passando de ôni-
bus, na época em que trabalhava com seu pai no Museu
Nacional, como já relatamos no capítulo anterior, Hélio
avistou “uma espécie de construção” realizada por um
mendigo, e que no dia seguinte já havia desaparecido.
Tratava-se de quatro estacas de madeira de cerca de dois
metros de altura, entre as quais erguiam-se “paredes” de
barbante. Em um pedaço de aniagem preso ao barbante,
o artista lê: “aqui é...” e “parangolé”. 97
Em seu texto para o “Esquema Geral da Nova
Objetividade”, o artista diz que gostaria que se manifes-
tassem, nessa exposição, as “experiências coletivas anô-
68
nimas” que “determinaram inclusive minha formulação
do parangolé”98. Como vimos, parangolé já era mais ou
menos definido, na gíria, como “agitação súbita, anima-
ção, alegria e situações inesperadas entre pessoas”99. Algo
se passa entre as pessoas, um acontecimento imprevisível.
Quem o cria? Ele vem das “experiências coletivas anôni-
mas”, e o artista não faz mais do que tentar reavivá-las,
essas experiências vívidas, essa anonimidade que dá notí-
cias de cada um de nós.
Também sobre a instalação Éden, Oiticica afirma,
como en passant: “Nunca me senti tão contente quanto
com este plano do Éden. Senti-me completamente livre
de tudo, até de mim mesmo”100. É na medida dessa des-
personalização do artista no contexto de uma sofisticada
concepção crítica do que é obra e criação que se impõe a
participação do espectador:
Antiarte – compreensão e razão de ser do artista, não
mais como um criador para a contemplação, mas
como um motivador para a criação – a criação, como
tal, se completa pela participação dinâmica do “es-
69
pectador”, agora considerado “participador”. Antiar-
te seria uma completação da necessidade coletiva de
uma atividade criadora latente, que seria motivada de
um determinado modo pelo artista: ficam portanto
invalidadas as posições metafísicas, intelectualistas e
esteticistas – não há proposição de um “elevar o espec-
tador a um nível de criação”, a uma “metarrealidade”,
ou de impor-lhe uma “ideia” ou um “padrão estético”
correspondente àqueles conceitos de arte, mas de dar-
-lhe uma simples oportunidade de participação para
que ele “ache” aí algo que queira realizar – é pois uma
“realização criativa” o que propõe o artista (...), é uma
simples posição do homem nele mesmo e nas suas
possibilidades criativas vitais. O “não achar” também
é uma participação importante (...).101
Trata-se, com a “participação”, de apelar para uma
potência coletiva de “criação” que é (re)criação poética
do sujeito, no objeto, no outro, na cultura em suas raízes,
de forma subversiva e transformadora. Mais do que pro-
duzir algo, trata-se apenas de um achar, de um encontro,
de um parangolé, que não é tanto o achar algo, mas um
achar-se: mesmo não achar é participar porque a “posição
do homem nele mesmo” é uma posição do homem fora
dele, na caverna onde outros já inscreveram algo.
Assim, a nomeação da lata-fogo como obra de arte
por Hélio não só faz daquela lata – ready-made – um ob-
jeto artístico, como faz do encontro com qualquer lata-
70
-fogo uma experiência poética (ou seja, uma verdadeira
experiência). Bastou um gesto, um toque sobre uma lata
com querosene em chamas para encher nossas noites na
estrada (e nossos dias, em casa ou em qualquer lugar,
pouco importa) de encontros com esses sinais deixados
por um outro (desconhecido, anônimo). Esse fogo me
é endereçado, de um modo que me faz anônimo, parte
da cultura, porém singular. Ela me toca como uma ins-
crição rupestre: para mim, fazendo-se no momento de
meu olhar, apesar de datar de milhares de anos. Com que
poesia alguém assujeita-se ao tempo, ao olhar, ao outro!
Encontro de si, na coisa. O objeto encontrado dá
notícias do sujeito – de seu fogo. Criação é encontro.
71
No “Lance de dados não abolirá o acaso”, poema
de Mallarmé ao qual alude Oiticica, e que representa o
marco do que viria a ser a literatura e a arte do século
XX, “cai a pluma”103. Ela, que já era “solitária e perdida”,
não resiste ao naufrágio do homem (este ser “sem nau”).
O gesto deste torna-se não mais que o “fantasma de um
gesto”, submetido a algo maior, ao acaso que brinca com
o agente deste gesto, assujeitando-o. O ato é “vazio”, pois
é ninguém mais que acaso de um lance de dados que
faz o poema – e o sujeito. E, no encontro entre os dois,
a poesia. “Um lance de dados jamais, jamais abolirá o
acaso” – a aposta que ele representa não faz dele ato de
alguém, mas reafirma o acaso. Trata-se, com esse lance,
esse golpe, da suposição de um outro maior, porém não
absoluto, onisciente ou intencional como Deus. Ele não
tem o poder de criar do nada, mas apenas de brincar com
os dados – que já estão justamente, se me permitem o
jogo de palavras, dados. Ele talvez seja como o “Número”:
exato representante da ordem simbólica à qual estamos
todos submetidos.
Roland Barthes, em seu “A morte do autor”, diz ter
sido Mallarmé o primeiro a substituir o escritor, aquele
que supostamente seria proprietário da linguagem, pela
103 MALLARMÉ, Stéphane. Um lance de dados jamais abolirá
o acaso (tradução de Haroldo de Campos). CAMPOS, Augusto;
PIGNATARI, Décio. & CAMPOS, Haroldo. Mallarmé. São Paulo,
Perspectiva, 2006, p. 153-173.
72
linguagem nela mesma. “É a linguagem que fala”, diz
Barthes, “não o autor”104. Suprimindo o autor em favor
da escrita (ou escritura), é ao leitor que Mallarmé dará
um lugar de destaque, na medida em que na linguagem
estamos todos– não por acaso fala-se em “língua mater-
na”: talvez a língua nos crie.
Em seus “Bloco-experiências in Cosmococa – pro-
grama in progress”, Hélio cita uma declaração de Décio
Pignatari:
o lance de dados de Mallarmé
colocou
em cheque a obra: não é obra nem não-
obra.
É uma coisa nova.
E Oiticica prossegue, ecoando em maiúsculas: É
UMA COISA NOVA!105
Tal “coisa nova” não é ex-nihilo, do nada, produto
do gênio criador à imagem e semelhança do Criador. Ela
é “nada ou quase uma arte”, como diz o próprio Mallar-
mé a respeito do que viria a ser o futuro de seu poema106.
73
Ela é uma aposta, um lance de dados pelo qual o artista
convoca o “coletivo”, a cultura, a manifestar mais uma
vez o parangolé no qual nasce o sujeito, poeticamente. É
isso a “coisa nova”: reacender a poesia anônima graças a
algum acontecimento entre nós.
“Nada terá tido lugar senão o lugar”, afirma o po-
ema. Nada terá acontecido, apenas um lugar – tornado,
assim, acontecimento. Nesta que é a primeira escrita oci-
dental a incorporar ao texto o espaçamento da página
em branco, aí disseminando as palavras, o autor desa-
parece, para dar origem à construção de um lugar mó-
vel. Do inelutável naufrágio do homem singular e inde-
pendente, estrela nascida na modernidade, resta o lugar
construído com palavras (frágil arquitetura). Mas nesse
lugar se avista “uma constelação”, ao fim do poema. É
dela (e não do autor) o “pensamento”: “Todo pensamen-
to emite um lance de dados”. (E talvez dessa pluralidade
anônima decorra o que diz Bataille: “o que eu penso, não
o pensei sozinho”107).
74
Não ocupar um lugar específico, no espaço ou no
tempo, assim como viver o prazer ou não saber a hora
da preguiça, é e pode ser a atividade a que se entregue
um “criador”.108
A condição de criador aparece aí entre aspas, cri-
ticada, ironizada. A noção de “crelazer” dá mostras da
mesma ironia, fazendo Hélio chegar a afirmar: “Crer no
lazer, que bobagem, não creio em nada, apenas vivo”. Um
pouco abaixo, o artista debocha: “Prefiro a salada da vida,
o esfregar dos corpos. Quero meu amor!”109
Essa posição não deixa de ecoar a séria fórmula
de Ovídio: Amor regendus arte. Com o amor, Hélio
parece anunciar o que um Jean-Luc Nancy dirá na de-
fesa de um ‘comum’ para além do comunismo, após a
queda do muro: “não existimos sós. Ou antes, não há
só que exista”.110
Em uma carta a Guy Brett em 1968, Oiticica afir-
ma: “Sinto que a ideia cresce para a necessidade de uma
nova comunidade, baseada em afinidades criativas, ape-
sar da diferença cultural ou intelectual, ou mesmo so-
ciais e individuais”111. Tais “afinidades criativas” são uma
108 OITICICA, Hélio. Crelazer. AGL, p. 113.
109 OITICICA, Hélio. Crelazer. AGL, p. 114.
110 NANCY, Jean-Luc. La comparution. NANCY, Jean-Luc e
BAILLY, Jean-Christophe. La comparution. Paris: Christian Bour-
gois, 2007, p. 56.
111 Hélio Oiticica. (catálogo da exposição retrospectiva), p. 135.
75
verdadeira comparição, para usar o conceito cunhado
por Nancy: “nós comparecemos: nós viemos juntos ao
mundo”112. Como na caverna onde deixamos um tra-
ço no palimpsesto aí já inscrito, em movimento sob as
tochas que os fazem visíveis, aparecemos junto – apesar
de em oposição ao outro. O comum aí não conota um
pertencimento a uma substância única, totalmente ho-
mogênea, mas a partilha de uma falta de essência – e a
necessidade de inventar (a si mesmo e ao mundo) que
dela decorre. O sensível é lugar de uma partilha entre os
homens, em um ato político no sentido mais fundamen-
tal do termo, como defende Jacques Rancière com sua
noção de “partilha do sensível”: “o sistema de evidências
sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um
comum e dos recortes que nele definem lugares e partes
respectivas”113. Reparte-se o sensível, de modo a dividi-
-lo, delimitá-lo em uma arquitetura – espaço vazio onde
surge o sujeito, mas em um contexto com-partilhado, ou
seja, comum.
Para Nancy, se existe arte, é em razão de um em-co-
mum, e “a arte detém algo do em-comum que ela talvez
seja a única a deter”114. A arte vem do outro (e vai para
76
o outro, visa atingir outrem). A “comparição”, no termo
cunhado pelo autor para denominar esse comparecimen-
to comum, não se refere apenas à constatação e à defesa
do comum, mas implica uma verdadeira posição ética:
há que comparecer politicamente, ou seja, diante e em
relação ao outro.
Tal comprometimento ético não diz respeito a uma
clara posição em um determinado contexto político, ele
não é uma chamada às armas ou à manifestação. Ele é
convite a uma subversão um tanto marginal, preguiçosa.
Uma resistência que apresenta uma certa “malemolência”
que talvez seja sua maior firmeza, chegando às vezes qua-
se a lembrar o Macunaíma de Mário de Andrade. Sobre
o que denomina “crelazer”, Oiticica escreve: “não ocupar
um lugar específico, no espaço ou no tempo, assim como
viver o prazer ou não saber a hora da preguiça, é e pode
ser a atividade a que se entregue um ‘criador’”.
Essa ideia dá origem ao projeto do Barracão, que
seria o “ambiente total comunitário do crelazer em meu
grupo específico no Rio de Janeiro”. E Hélio provoca:
“Você tem a ideia do seu?” 115
A provocação mostra que se trata, no crelazer, de
mais do que um ócio criador de si com o outro, de modo
um tanto subversivo. O crelazer implica um contágio,
77
uma multiplicação. Uma transmissão: passar ao outro,
como uma missão, a tarefa de passar a outro isso que faz
de cada um outro de si mesmo (e assim por diante, inde-
finidamente).
Nas palavras de Hélio, ainda:
O novo seria a emergência de um estado de invenção
no qual eu cheguei, que ele se torne um mundo, um
edifício sólido e coletivo. Essas coisas são um prelúdio
ao estado de invenção coletivo.116
Da invenção coletiva de que fala Oiticica o paran-
golé é um programa ou um processo, uma “estrutura não
opressiva” que revela uma “potencialidade viva de uma
cultura em formação: (...) a possibilidade aberta de uma
cultura”117. A cultura não é nada mais do que a transmis-
são de que falávamos acima. A própria raiz (“raiz-aberta”,
na expressão do artista), as origens da cultura brasileira
não estariam simplesmente dadas historicamente, mas
restariam a realizar – tarefa para a qual a vanguarda ar-
tística viria dar uma importante contribuição, em uma
dimensão não só política, por tocar e explorar o comum
e suas partilhas, mas fundamentalmente ética, ao assumir
como sua responsabilidade a da (re)construção incessante
da casa (o ethos) do homem, na precariedade da condição
78
marginal do sujeito a ele mesmo, ao outro, ao mundo.
Mais uma vez, com Hélio: Marginetical.
A cultura é tomada aí como um processo, que iria
não só em direção ao futuro, mas também ao passado,
retroativamente, numa constante reinvenção que se dá
entre a gente. Ao mesmo tempo estética e ética, a cultu-
ra é um parangolé que só se faz com nosso corpo, com
nosso olhar, com alguma ginga, eventualmente. Criação
comum e no entanto íntima.
79
A excrita e o real118
81
Podemos chegar a afirmar que o trabalho de Oitici-
ca é escrita, desde o início, pois em seu núcleo encontra-se
uma sofisticada reflexão sobre a palavra e o objeto que faz
com que cada obra possa ser vista como o precipitado de
uma operação de linguagem. Nisso, ele não está sozinho;
a rigor, toda produção artística que dá mostras de uma
significativa reflexão conceitual poderia ser abordada sob
esta chave. Mas os escritos de Hélio vão além. Eles cons-
tituem uma complexa reflexão teórico-poética da qual
irradiam operações múltiplas sobre a linguagem, a arte, o
mundo e o homem.
Conceito-poesia
Nos escritos de artistas faz-se com frequência pre-
sente a intenção de comunicar o que visa ou o que é uma
determinada obra, ou o trabalho de toda uma vida. Esse
discurso do autor propõe-se como uma espécie de me-
diação – e seu objetivo informativo ou comunicacional
muitas vezes também é cumprido por textos de críticos,
especialmente aqueles que dão voz ao próprio artista,
acompanhando suas preocupações e divulgando-as como
parte importante da obra. Os escritos de Hélio não dei-
xam, muitas vezes, de cumprir essa função.
Assim, defendendo-se de supostas acusações, Hé-
lio afirma, em 1969, que seu trabalho nada deve ao de
Lygia Clark: “nada devo a ninguém – sei o que faço e
82
penso, por isso há anos escrevo para deixar tudo claro”119.
Tal busca de explicitação de seu trabalho envolve a pre-
ocupação de legar um testemunho de sua criação, sem
dúvida. Mas também se combina a uma exigência mais
fundamental, interna, conceitual, que só pode se fazer
como escrita: de fato, Hélio forja noções, em seus escri-
tos, que são fundamentos de suas obras. Há textos ou
trechos dos escritos que buscam não comunicar, nem
mesmo justificar ou fundamentar, mas verdadeiramente
fundar sua experimentação. Eles são o testemunho de um
pensamento se fazendo, desde o início da trajetória helia-
na, com noções como “cor tempo”, “cor-luz” e “corpo da
cor”120. Como nota Ricardo Basbaum, toda a obra de Oi-
ticica “está marcada pela presença intensa e insistente da
palavra e do texto”, seja como inscrição no objeto, “seja
como formulação reflexiva acerca do próprio processo”.
Em consequência, cada trabalho estaria envolto em uma
“teia conceitual” capaz de iluminá-lo, o que singularizaria
a apreensão da obra do artista.121
83
Oiticica parece ter plena consciência de uma cer-
ta indistinção entre texto e objeto, ao menos no último
período de sua produção. Em entrevista dada em 1979,
falando sobre a dificuldade de difusão de seu trabalho no
Brasil, devido a seu caráter “experimental”, ele considera
duas opções. A primeira seria a de publicar seu trabalho –
“já que tenho muitos textos teóricos e inventivos: tenho
projetos que só podem se tornar conhecidos e executa-
dos se forem publicados”, diz ele em entrevista a Carla
Stellweg122. A segunda seria a de executar tais projetos.
Seus textos não só são “inventivos” – ou seja, pro-
dutos do mesmo estado de invenção que caracteriza seus
objetos, proposições, etc. – como a publicação é valoriza-
da como meio legítimo de apresentação de sua obra. Da
mesma maneira que seus textos, os títulos da maioria de
seus trabalhos devem, ao lado das categorias mais amplas
criadas pelo artista, ser considerados como invenções ou
como conceitos poéticos: metaesquemas, penetráveis, ni-
nhos, bólides, o crelazer, o suprassensorial, etc. Eles nos
permitem perceber que o fulcro da trajetória heliana é
matéria poética, é operação da linguagem que, ao se do-
brar sobre si mesma, atinge o mundo.
A radicalização poética da escrita de Oiticica, em
fins da década de 1960, dá claro testemunho disso. Em
carta para Lygia Clark datada de 1968, ele relata:
122 STELLWEG, Carla. Entrevista para Journal. Hélio Oiticica (En-
contros). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 220-222.
84
Estou escrevendo muito, com certas influências: de
Rogério [Duarte], no início, do Ginsberg, etc., mas
creio que há coisas no que escrevo: são textos poéticos
mesmo quando tratando de arte: não gosto mais de
teses ou descrições filosóficas: construo o que quero
com a imagem poética na máxima intensidade segun-
do o caso.123
Tratando de arte, os textos devem ser poéticos,
justamente. A imagem poética deve estar em medida de
materializar “coisas”. Já em Nova York, em uma de suas
anotações de 1974, depois publicada como carta-texto a
Waly Salomão, encontra-se o seguinte poema sem título,
ao lado de uma foto de Romero vestindo o parangolé
Capa 25 P 32, compondo um projeto de cartão postal.
Trata-se de uma das mais bem-sucedidas propostas helia-
nas de materialização da coisa (a proposição do parango-
lé, com toda sua força conceitual) na linguagem.
entróculos
feuillicular
chão-vol
q tão bel disvol
voltaria
capafoguear
ROMÉTER
éternel124
85
A forma do poema no espaço da página revira e
dança como um parangolé. A língua se dobra e distende,
se volta sobre ela mesma e, do chão, de repente alça voo,
fragmentando e juntando palavras. Poesia-coisa, poesia-
-ato do corpo, poesia-pensamento-arte.
A escrita deslizante, cheia de neologismos, sinais
gráficos como o travessão e recursos como caracteres em
negrito ou maiúsculas, parênteses, sublinhados e setas,
além do espaçamento das palavras na folha de papel, dá
mostras do contato de Oiticica com os poetas concretos
– especialmente Haroldo de Campos – e da leitura de
autores como Mallarmé, Pound, Joyce etc., ao lado da
colaboração com outros escritores experimentais (como
Frederico Coelho tão bem mapeia e comenta em seu Li-
vro ou livro-me. Os Escritos babilônicos de Hélio Oiticica
(1971-1978)125). Na passagem acima vemos que não se
trata, na escrita heliana, simplesmente de influências es-
tilísticas incorporadas à trajetória do artista, mas de uma
colocação em ato, na escrita, do que já era ponto cen-
tral de sua busca poética. Tal escrita é busca do gozo à
margem da linguagem, em suas beiras, nas bordas da lin-
86
Romero com Parangolé P32 Capa 25, Nova York, 1972. Foto Hélio Oiticica
guagem com o corpo. Por isso, como bem nota Oiticica,
trata-se de texto poético (po-ético, poderíamos brincar,
pois há aí uma ética). Linguagem afetada pelo corpo, es-
crita que se quer vivida no corpo – a língua é aí afetada
por um “um pouco demais”, como diz Lacan a respeito
da literatura.126
Além disso, devemos levar ao pé da letra a afirma-
ção de Hélio de que “há coisas” no que escreve. A “coisa”
está aí, poética, no texto assim como, eventualmente, em
objetos ou proposições. Com Oiticica, talvez possamos
avançar, numa espécie de definição provocativa, que a
poesia é justamente aquilo que, da linguagem, não co-
munica, mas se apresenta como “coisa”. Para Maurice
Blanchot, o poeta “cria um objeto de linguagem”127. Nes-
se sentido Oiticica é sempre, decidida e assumidamente,
um poeta.
Suas obras, suas “coisas”, seus objetos, projetos e ar-
quiteturas são também escrita, podemos dizer, na medida
em que podemos definir escrever como o ato de depositar
em coisa uma operacão linguageira. A escrita faz da lingua-
gem, coisa – um texto, na maioria das vezes, ou um livro.
Ou outra coisa, nos objetos de arte.
126 LACAN, Jacques. Lituraterre. Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 15.
127 BLANCHOT, Maurice. L’ espace littéraire, Paris: Folio (Essais),
1988, p. 42.
88
Poema, 1971.
Objeto-língua
Falando de seus poemas, em carta de 1968, Hélio
afirma: “(...) Sinto necessidade da palavra, palavra-es-
paço-tempo, e objeto-palavra, tudo no fundo se reduz
à mesma expressão só que por formas diferentes”128. De
fato, sua obra vai além da distinção tradicional entre li-
teratura e artes plásticas, construindo muitas vezes ob-
jetos-palavras ou palavras-objetos, na medida em que a
própria relação entre linguagem e coisa é nela um ques-
tionamento central. O trabalho artístico não se faz com
a linguagem, mas na linguagem, ele consiste em opera-
ções de linguagem. Como já dizia Freud em 1905, a pa-
lavra é um “material plástico que se presta a todo tipo de
coisas”129. A consciência disso é a articulação fundante do
neoconcretismo, como bem explicitam os livros-poema
e os poemas espaciais de Ferreira Gullar. Mais do que
um dispositivo isolado, essa imbricação fundamental en-
tre linguagem e objeto implica um sofisticado questio-
namento da própria noção de representação, ou seja, da
relação da palavra e da coisa com o sujeito.
90
Não se trata aí de buscar um amálgama entre lin-
guagem e objeto, em nome da poesia, e nele fazer a obra
jazer eternamente em perfeito solipsismo (ao contrário,
Gullar insiste em que “o poema começa quando a leitura
acaba…”130). Linguagem e objeto se arranjam de formas
múltiplas e desiguais para atingir um ponto de mira: o
sujeito (aquele “lugar” onde a leitura acaba e a poesia co-
meça, justamente). No espaço, no objeto e na linguagem
pode surgir o sujeito – ou melhor, talvez o sujeito só esteja
nos objetos de linguagem que configuram o espaço, só
apareça nesse convite, nessa armadilha, nessa arquitetura
poética por eles construída.
Como afirmavam Gullar, Oliveira Bastos e Reynal-
do Jardim no histórico texto de 1957 marcando a dife-
rença entre os poetas concretos cariocas e os paulistas, a
linguagem não deve apenas precipitar uma “reação” do
leitor, como seria o caso na publicidade, por exemplo,
mas “criar um objeto para ele”131. A linguagem torna-se
objeto e visa o sujeito – não apenas atingindo-o, exigin-
do sua participação, mas, mais fundamentalmente, pro-
91
duzindo o sujeito. É nessa medida que, segundo trecho
já citado do “Manifesto neoconcreto”, o “vocabulário
‘geométrico’” pode “assumir a expressão de realidades
humanas complexas”132. A linguagem, explorada como
produção de signo e imagem no campo do sentido, mas
também do equívoco, do ambíguo e do fora do senti-
do, produz o que o psicanalista Jacques Lacan chama de
efeito-sujeito. Em vez de pressupor o sujeito como origem,
emissor da coisa de linguagem, deve-se pensá-lo como
efeito efêmero de certas operações de linguagem. A arte
explora como nenhum outro campo da cultura tal efeito,
fazendo surgir o sujeito fora dele mesmo, no objeto, no
conceito, na poesia. Como já dizia Hegel, “o homem é o
que ele faz”.133
Se nos bólides os objetos são “tocados de uma vi-
vência estranha”134, segundo a fórmula de Mário Pedrosa,
é porque o objeto vive, ou seja, dá notícias do sujeito. Tal
estranheza mostra uma familiaridade, como quer Freud
com sua noção de Unheimliche, termo que, como já dito
no capítulo anterior, significa ao mesmo tempo estranho
92
e familiar135. No objeto surge o reconhecimento estranho
de si como outro. O que Hélio escreve e faz dá lugar ao
sujeito, ou seja, convoca o outro.
Talvez toda escrita heliana seja um Mergulho do
Corpo, para aludir ao bólide de 1966/67 que traz seu
título grafado no fundo de uma caixa d’água industrial
contendo água até mais ou menos a metade. Essa escrita
realizada no objeto faz deste outra coisa, à maneira do
ready-made de Duchamp, sem dúvida, mas vai muito
além: ela ressalta o quanto a “leitura”, a recepção tem que
ser um mergulho no objeto, na linguagem, uma entrega
na qual o corpo torna-se outro lugar, tendo lugar no objeto.
Mergulho do sujeito na linguagem, não para aí se
reencontrar no corpo, mas para nele se desencontrar e se
reencontrar – se reinventar – fora dele, em qualquer coisa
comum, como um vaso para armazenar qualquer líquido
ou uma caixa d’água em seu modelo mais corriqueiro,
por exemplo. Nesse “comum” o sujeito está mergulhado
com seu corpo, e nele pode se reconfigurar na cultura, no
outro indeterminado que forma o coletivo (e, ao fazê-lo,
ele reconfigura um pouco a própria cultura).
Em texto de novembro de 1969, encontramos:
“(...) ée o que é e sombra noite afeto afetotempo silên-
cio eu-afeto comunafeto”136. Comunafeto. O eu-afeto é
135 FREUD, Sigmund. O Estranho (1919). Edição standard…, vol. XVII.
136 OITICICA, Hélio. 14 nov. 1969. BTN Univ. Sussex. Aspiro
ao grande labirinto, p. 132. Manteremos, ao citar Oiticica, todas as
93
comum: em um subversivo deslocamento, o mais íntimo
aparece entre, fora. O íntimo é, como no neologismo in-
ventado por Lacan, êxtimo. O mais íntimo está fora. Há
um longínquo interior. A arte explora e atualiza isso que
constitui o sujeito fora de si – no outro.
Nesse sentido, a escrita de Hélio revira-se toda para
fora, aponta para o que é externo a ela, é ex-crita. Frederi-
co Coelho nota que ela não é confessional137. A vida está
fora, e portanto a escrita deve se voltar para o exterior,
escrita centrífuga. Escrita que se retorce como uma fita
de Moebius e se transforma em Parangolé. Fala errante,
como aquela que para Blanchot caracteriza a literatura.
Ela designa o fora infinitamente distendido que toma
o lugar da intimidade da fala. Ela se assemelha ao eco,
quando o eco não diz apenas mais alto o que primeiro
foi murmurado, mas se confunde com a imensidade
cochichante, é o silêncio tornado o espaço ressonante,
o fora de toda palavra.138
Não por acaso, as notas e poemas de Oiticica que-
rem fundar um espaço, assim como o resto de sua obra.
Elas querem ir além da folha. Para isso exploram a su-
perfície do papel, na prática inaugurada por Stéphane
particularidades de sua escrita, inclusive as abreviações, os termos
em língua estrangeira e o uso inabitual de sinais gráficos, bem como
tentaremos ao máximo reproduzir o espaçamento das palavras sobre
o papel, quando for o caso.
137 Em observação oral.
138 BLANCHOT, Maurice. L’ espace littéraire, p. 56. Grifos nossos.
94
Mallarmé. Porém, em vez de buscar dar “um sentido
mais puro às palavras da tribo”139, como visava o poe-
ta francês, Hélio inscreve “a pureza é um mito” em seu
Penetrável PN 2 (1966). Ele quer dar um sentido mais
impuro, talvez, às palavras da tribo, e para isso brinca a
seu bel-prazer com neologismos, constrói palavras-vali-
ses, mistura o português ao inglês, às vezes ao espanhol e
ao francês. Torna muitas vezes o texto excessivo, impuro,
sem pausa, usa letras capitais e abreviações, negrito, sinais
gráficos, dois pontos à profusão e, sobretudo, hífens e
flechas, tanto nos manuscritos quanto nos textos datilo-
grafados. Flechas revirando o texto, colocando-o em mo-
vimento, obrigando a leitura a se descolar da superfície e
dobrar virtualmente o plano.
Tais sinais funcionam como uma espécie de dobra-
diça do texto, fazendo dele um Bicho de Lygia Clark, ou
como costuras múltiplas, fazendo dele uma capa, um es-
tandarte, um parangolé. Textos para se vestir, textos para
se dançar.
A metáfora dispersiva
Em adendo escrito à entrevista que Heloísa Buar-
que de Hollanda e Carlos Alberto Pereira com ele fizeram
perto de sua morte, Oiticica critica a posição “teórica”
139 MALLARMÉ, Stéphane. A tumba de Edgar Poe (tradução de
Augusto de Campos). CAMPOS, Augusto.; PIGNATARI, Décio. &
CAMPOS, Haroldo. Mallarmé. São Paulo, Perspectiva, 2006, p. 67.
95
que seria prevalente nos debates culturais no Brasil, fa-
lando de “teóricos de cabeça oca: teóricos que o querem
ser quando a coisa seria não teorizar: que fazer? – !”140. De
nada valeria a teoria externa e independente da produção
artística. A “coisa seria não teorizar”, mas fazer – ou me-
lhor: viver. As proposições não deixam de ser “teóricas”,
porém, no sentido de atualizar a teoria-poesia, a reflexão
que seria de saída artística. E crítica. Como escrevia Hélio
a Lygia em 1974, em letras capitais: “crítico ou é da posi-
ção de artista ou não é”.141
Em seus escritos críticos, ele de fato está falando
de sua própria arte, ao mesmo tempo em que discorre,
com pertinência, sobre a obra de outros artistas. O texto
que melhor explicita esse nó entre escrita poética-crítica-
-artística é, sem dúvida, o conhecido “Pape: Ovo”, ensaio
de 1973 sobre o Ovo de Lygia Pape, obra de 1968 que a
artista define como “um cubo coberto com uma superfí-
cie macia onde a pessoa entra, rompe e ‘nasce’”.142 Dele
recortamos alguns trechos:
96
o OVO-corpo-ambiente dentro = AMBIENTE
FORA identifica o
Deslocamento do corpo com o seu AMBIENTE AO
ALCANCE
DO CORPO com o AMBIENTE INFINITO que
ABARCA AS INFINITAS POSSIBILIDADES DE
DESLOCAMENTO DESSE CORPO.143
O ritmo desta escrita visual faz do papel, corpo, e
performa a dinâmica do rompimento do cubo de Pape
como movimento do corpo em relação ao “ambiente”.
O jogo dentro-fora, tão importante para Oiticica – assim
como para Clark e Pape –, abre-se aqui para o “infinito”,
em uma espécie de dissolução ou desintegração desta du-
alidade, como vemos em outro trecho, que trata do Ovo
como “PERFORMANCE-limite” que
(…) cria no centro do problema dentro-fora
que nada mais é que o núcleo da relação
participada-objeto-ambiente uma desintegração
que a faz explodir em N possibilidades sem concentrar
em nenhuma especificamente
qualquer tipo de interpretação ou representação
O Ovo não comportaria e não permitiria qualquer
interpretação fixa e estável. Ele não é uma metáfora, pois
não transporta “para uma coisa o nome de outra”, na
clássica definição de Aristóteles.144
143 OITICICA, Hélio. Pape: Ovo, in Lygia Pape. Gávea de tocaia,
São Paulo: Cosac & Naify, 2000, p. 302.
144 ARISTÓTELES. Poética. S./l.: Imprensa Nacional/Casa da Mo-
eda, s./d., § 1457b.
97
a referência-nome OVO é magistral e erradamente tomada: o
que importa não é a metáfora germinação-casaca cheia e
depois esvaziada: o que importa é que o OVO é núcleo-proble-
ma e passagem-transformação: ao contrário da metáfora que
acentua o caráter objeto-ovo e as referências superficiais daí
decorrentes
145 OITICICA, Hélio. Pape: Ovo. Lygia Pape. Gávea de tocaia, p. 302.
146 LACAN, Jacques. Le séminaire. Livre VII. L’éthique de la psycha-
nalyse. Paris: Seuil, 1986, p. 146.
98
Em vez de se referir a uma outra coisa, substituindo
esta por aquela, aqui a metáfora revira-se nela mesma (de
forma literal: OVO é quase uma fórmula que poderia
talvez ser lida como algo ou alguém (O) em uma rela-
ção – não direta, mas torcida como uma fita de Moebius
– com algo ou alguém (O)). Ao se retorcer e dobrar so-
bre sua própria letra, em vez de se fechar, ela toma uma
enorme força centrífuga. A metáfora revira-se para fora,
e faz-se sempre outra: outro nome para outra coisa para
outro nome, em um “processo” “inconclusivo” e que vai
além da aparência. Processo “vital”. Resvalo que articu-
la corpo, objeto e ambiente. Metáfora dispersiva, núcleo
que irradia raios inúmeros, em movimento perpétuo. O
ambiente: fora. “Arte ambiental”: a arte joga para fora, é
uma volta para fora de si mesmo. A arte tem a ver com
uma metáfora-mutação capaz de pôr em movimento a
linguagem e fazer da escrita sempre uma referência outra,
em repetida viragem pela qual ela se volta para fora de si.
(…) uma sequência
linear cujo começo é aberto e cujo fim é aberto,
não tendo portanto nem começo nem fim-fim:
frase fragmento como linha quebrada.147
É falando do outro, de Lygia Pape, do Ovo, que Oi-
ticica explicita o ponto mais agudo de sua própria escrita:
a metáfora, em sua escrita-arte Oiticica, não é um nome
147 OITICICA, Hélio. Pape: Ovo. Lygia Pape. Gávea de tocaia, p. 300.
99
de uma coisa usado para nomear outra coisa, mas um no-
me-objeto-situação, à maneira do Ovo de Pape, capaz de
quebrar a linha, pois nomeia diversas, infinitas coisas fora
de si – e põe o sujeito nessa dispersão, nessa subversão da
linguagem que é uma subversão do sujeito. Não se trata
de metonímia – apesar do fluxo ser privilegiado, indo de
uma coisa a outra – porque a associação não se dá de uma
a outra palavra, em contiguidade linear, mas como quebra
e multiplicidade imediata. Trata-se de uma metáfora espa-
cial, topológica, abrindo múltiplas dimensões. Ela é sem
fim, dispersiva – labiríntica, podemos dizer, porque exige
que nela cada um trace seu caminho, sua leitura-escrita.
(Mais do que se tratar, na produção poética de Hélio, da
metáfora do labirinto, trata-se da metáfora como labirinto).
100
abraçar. Está, porém, ‘acima’ deles, em plano ideal,
o que não acontece na lírica, em poesia, pois o que
poderia ser mesquinho, o dia a dia, torna-se vivência
e eterniza-se no poema.148
Já havia uma poesia escrita, ainda que “secreta”,
desde 1964, mesmo ano em que Hélio faz os primeiros
parangolés. Entre o “ideal” e o “mesquinho”, o cotidiano,
está a vivência que lhe interessa como arte. O lírico tam-
bém se dirige a um plano ideal, nota o artista no prosse-
guimento do trecho acima citado, mas o “cerne de seu
material” seria o “passageiro”. Se seu trabalho até então
buscava o “plano ideal”, ele logo abraçará o acontecimen-
to imediato, o evento passageiro no qual algo se passa,
“rola” algum parangolé, podemos dizer mesclando gíria
mais recente. “Florescência do cotidiano”, escreve Hélio
um pouco abaixo.
Escrita imediata, se não automática: palavra bólide.
Ela não cai inteiramente na tentação surrealista da
escrita automática, de uma escrita-expressão direta do
inconsciente, do registro exato do murmúrio constan-
te que nos acompanharia e ao qual bastaria dar ouvidos
para que ele revelasse suas maravilhas. Tal automatismo é
sempre problemático, porque não há murmúrio linear ao
qual bastasse dar ouvidos. A relação do sujeito à lingua-
gem, quando posta em questão, desorganiza e transforma
101
a própria linguagem, ao mesmo tempo em que deixa sem
chão o sujeito. Na literatura de Breton e alguns outros
surrealistas, o automatismo beirava, no início, a paródia
pedante e barroca, antes de ser abandonado como proce-
dimento. A escrita imediata de Oiticica, por seu turno,
não faz qualquer apologia do automatismo e muito me-
nos do inconsciente, mas aposta no tempo como condi-
ção fundamental – daí seu caráter apressado, suas abrevia-
ções, seu esquematismo que frequentemente se aparenta
a notas tomadas em vista de um texto futuro. A escrita é
“vivência”, nas produções helianas a partir de 1965, por-
que ela abraça o dia a dia, a sucessão de pequenas coisas
que podem ser como fulgurações poéticas que tomam o
lugar de qualquer “eternização” lírica. Trata-se de uma
escrita cotidiana, heterogênea e incompleta, no sentido
de que muitas vezes parece desenhar esquemas apressa-
dos, que deveriam talvez um dia se desenrolar como texto
acabado. Escrita-lembrete, ou melhor: dobra de escrita,
potência de criação de outras frases, outras palavras – que
vêm do outro e devem ser citadas, parodiadas, apropria-
das neste instante. Já.
O Caminhando de Lygia Clark (1964) levava a uma
vivência do tempo que é subversão do espaço euclidiano,
pelo corte contínuo da fita de Moebius que vai fazendo o
caminho de cada um, no passar do tempo que se faz ato-
-arte. Já Oiticica quer realizar a mesma torção dentro/fora,
mas incontinenti. Cambalhota repetida a cada segundo.
102
Tal escrita imediata não deixa, contudo, de se apro-
ximar da proposta surrealista da escrita automática, na
medida em que se pode ver nesta, como sugere a refinada
análise de Octavio Paz, o projeto de “deslocar o centro da
criação e devolver à linguagem o que é seu”149. O efeito
de drogas, a utilização de máquinas, de combinações ma-
temáticas ou do puro acaso na criação literária comparti-
lhariam este mesmo objetivo, segundo o poeta e crítico.
Já Walter Benjamin percebia que, no Surrealismo, trata-
-se de afirmar que “a linguagem tem precedência” tanto
sobre o sentido quanto sobre o eu150. O texto de Oiticica
abraça a ideia de se deslocar, colocar em primeiro plano
o significante, como queria a maior parte da literatura
experimental do século XX.
Assim, já em texto de 1969:
não sei quando foi há cinco anos talvez mas que sécu-
lo de progresso regresso transgressão da lei (da minha
não da opressionisticossocial): eu estava no céu para-
diso paradise paraíso perdido ou só como no útero
mútero mugir de surdo ou cuíca além das escadas
luzes bandeirolas macarronadas parafuseamento roxo
ou delegático delgado corte no espaço pião pé trio
149 PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 116.
150 BENJAMIN, Walter. O Surrealismo. O Último instântaneo da
Inteligência Europeia. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política
(tradução de Sérgio Paulo Rouanet). São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 23.
103
quarteto quadra jarda luz olhar céu e noite pra frente
pra trás pra cima energograma sem lama clamor ou
ódio mas o sorriso era fora e dentro lamento único
momento no paradiso paradise paraíso (…).151
O que à linguagem se devolve é excesso, transbor-
damento. O paraíso retomado e reperdido, em transgres-
são que corta o espaço, acelera e retorce a língua em bar-
rocas volutas, em voltas e reviravoltas repetidas (“paradiso
paradise paraíso…”). Nada se narra, nada se descreve a
não ser a própria linguagem como ato, acontecimento-
-língua abrindo o mundo para algo que não se conta, não
se representa, mas se apresenta nas palavras, na materia-
lidade da letra, entre palavras. A repetição impõe-se – na
aliteração de alguns fonemas, na recorrência de algumas
palavras –, fiel àquilo que Jorge-Luís Borges caracteriza
como a “maior angústia” e chama, em um poema, de
“prolixidade do real”152. O real, excessivo, pede repetição,
sempre. A escrita tenta apreender o real, mas este sempre
a transborda, demandando mais escrita. Há na escrita
algo que pulsa e poderia chegar a explodir – isso a move
em espiral, em círculos centrífugos, mas também impede
que ela se cristalize, enfim, em livro.
104
Tal escrita do exagero tem como principal traço uma
certa verborragia, um deslocamento incessante e em di-
reções diversas. À maneira de Joyce em Finnegans Wake,
tal fuga da linguagem convoca: chama a voz. A busca de
alcançar a vida, com a arte, toca no que é excessivo, no de-
mais do corpo despertado pela retomada repetida do laço
com o outro. A escrita é fluxo em direção ao outro e é voz,
é leitura. Ela deve, como Joyce e como a poesia em geral,
ser lida em voz alta, confirmando a leitura como atividade
endereçada ao outro (e retomando o fato curioso de que
até o século XIII não existia leitura “em voz baixa”153).
Que a fala, na leitura, se aproprie da palavra (“A palavra,
o que se vê, ouve-se, grita-se, cantata-se, catarsis-se”).154
Que se viva a palavra. Que a palavra seja música
(“Tudo que eu faço, na realidade, é música”, dizia Oiti-
cica em entrevista a Jary Cardoso155). Palavra para can-
tar, dançar, palavra para ex-istir, submerso na linguagem
que é depositária (e causa) de meus excessos e de minhas
paixões, precariamente, adversamente (“quem disse q sei
parar na hora/ certa ou errada?/ NEVER! I’M A BIG
MOUTH”, escreve Oiticica em carta-texto a Waly Salo-
105
mão156). O que podemos chamar de um certo desbunde,
longe de ser estilo ou descompromisso, é justo o movi-
mento pelo qual assume-se o ato explosivo que funda (e
refunda) a cultura, sempre. Que o mundo se refaça como
um livro infinito e explosivo – já que, ainda segundo
Mallarmé, “não há explosão senão um livro”.157
Mixagens
Sobre as Galáxias de Haroldo de Campos, em carta-
-texto a este, de 18 de julho de 1971:
li as galigaláxias estupendas: camadas que se super-
põem como mapas regionais, sem limite de significa-
do: overlapping transparencies; (...) o texto de 1970
já é diferente na continuidade da leitura: as palavras
tendem a se concentrarem mais, núcleo-palavras,
como bombinhas que se ativam, mais do que o fluir
dos outros, fluir-superposto; (...) há um sistema de
colisões-deslizamentos (...); o texto – branco do papel
se abrem (sic) em camadas: não há suporte formal da
pagina-livro (sic): parecem como se fossem superposi-
ções fílmicas einsensteinianas: texto sensorial.158
106
O texto é singular e plural, texto em camadas so-
brepostas. O sensorial é uma escrita em camadas, pa-
limpsesto que é o próprio funcionamento psíquico para
Freud, como ele desenvolve em 1925 no pequeno texto
“O Bloco Mágico”. O psiquismo é, para ele, como um
bloco de notas, no qual se inscrevem traços de percepção
(numa espécie de “texto sensorial”, como queria Oitici-
ca). Como no conhecido brinquedo infantil, há uma sé-
rie de camadas: a uma base de cera onde ficam marcados
tais traços sobrepõe-se uma folha de papel protegida por
plástico. Quando se inscreve algo na camada mais super-
ficial, esta fica em contato com a cera. Um dispositivo
pode, contudo, desfazer tal contato de maneira a tornar
o bloco aparentemente virgem. Em sua base persiste, po-
rém, a marca inscrita, agora invisível. Da mesma manei-
ra, um traço pode estar presente no psiquismo de modo
invisível, quer dizer, subtraído à consciência. Diferente-
mente deste brinquedo nossa memória pode, no entanto,
reevocar o que ficou inscrito na base de cera, tornando-o
novamente presente na consciência. O trabalho psíqui-
co consiste, desta maneira, em um jogo de memória que
é uma leitura/reescrita incessante de “bombinhas”, para
falar como Oiticica, que se ativam, colidem e podem se
superpor ou decompor em camadas.
Em incessante movimento, o texto não pode mais
ser visto como um tecido, uma tessitura formando um
plano mais ou menos homogêneo, nem como a execu-
107
ção de uma peça por uma orquestra. A “máquina” textual
torna-se um sampler, e sua lógica passa a ser aquela de
uma combinatória de elementos oriundos de planos di-
vergentes – arranjo entre elementos heterogêneos, numa
multiplicidade de discursos fragmentados e tomados hori-
zontalmente, sem hierarquia, sem organização linear, mas
abrindo-se em narrativa múltipla e tempo descompassado.
Lisette Lagnado, organizadora dos manuscritos do
Programa Hélio Oiticica, que os disponibiliza em meio
digital, descreve o arquivo do artista como um enfeiti-
çador “pântano de agendas, cadernos, folhas escritas à
mão e datilografadas, roteiros, cartas, artigos, homena-
gens, fotografias, entrevistas, rascunhos, transcrições de
livros, adendos com instruções, tudo com muitas cópias
em carbono, ora iguais, ora modificadas”159. Oiticica ar-
quivava tudo cuidadosamente, providenciando inclusive
fotocópias de suas cartas. Mais do que uma preocupação
arquivológica que viria facilitar o acesso dos pesquisado-
res a esse material, a lógica predominante talvez seja a do
acúmulo, das relações infinitas, das galáxias de Haroldo
de Campos ou das mallarmaicas “subdivisões prismáticas
da ideia”, impedindo uma via linear e nos lançando em
um notável labirinto de projetos e reflexões, no qual er-
ramos por caminhos mil vezes percorridos, perguntando-
159 LAGNADO, Lisette. O além da obra de Hélio Oiticica. Revista
on-line Trópico, 08/07/2007. Consultado em pphp.uol.com.br/tro-
pico/html/print/2882.htm em fevereiro de 2012.
108
-nos se a prolixidade decorre disso ou caracteriza o pró-
prio material. O projeto Newyorkaises, concebido como
uma reunião de diversos elementos produzidos nos anos
do artista na cidade, não deixa de ser o grande labirin-
to a que ele aspirava. Deste livro-objeto fragmentado e
múltiplo fariam parte, entre outras coisas, os Bloco-Ex-
periências in Cosmococa – programa in progress e outros
blocos de reflexão teórico-poético-visual (como Bodywise
e Mundo-Abrigo), um questionário a ser encaminhado a
algumas pessoas escolhidas, fotografias diversas, referên-
cias a muitos artistas e a compilação de trechos de filó-
sofos como Nietzsche e Sartre, além de John Cage, Yoko
Ono, Torquato Neto e vários artistas brasileiros, como
Lygia Clark e Carlos Vergara.
Em carta a Clark de 1972, ele se refere a este projeto
ao afirmar que está “reformulando muitas ideias, reto-
mando outras e montando um texto-montagem só de ex-
certos de outros artistas, escritores, ensaístas, etc”160. É de
fato notável, no material heterogêneo das Newyorkaises, a
presença de citações em profusão, como apropriações em
um campo ampliado de reflexão. O artista parecia, por
essa via, saber e querer explorar a condição apontada por
Georges Bataille na frase que já citamos: “o que pensei,
não pensei sozinho”.161
160 CLARK, Lygia & OITICICA, Hélio. Cartas 1964-1974, p. 219.
161 Apud BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable. Pa-
ris: Minuit, 1983, p. 16.
109
Como as Newyorkaises, também o bloco mágico
freudiano seria lugar de inscrição de marcas deixadas pelo
outro, escrita de que somos objeto (em nosso corpo-ca-
derno), mais do que agentes (escribas). Trata-se, na expe-
riência de escrita de que testemunham os textos helianos,
da atualização dessa escrita sensorial que constrói um
texto-outro a partir de fragmentos do outro e do mundo.
Como dizia Rimbaud, “eu é um outro” – na enunciação
do que é a condição da escrita que Oiticica assume em
toda sua dimensão poética e crítica. Em carta a Augusto
de Campos de 1971, ele afirmava:
Estou trabalhando muito em textos nos quais quero
repor tudo sobre minha posição estética, etc.; sem
cair em teorias discursivas: com muita citação, jux-
tapostas (sic), com fotos, imagens, recortes de jornal
e revista, etc.162
Para “repor” sua posição estética, Oiticica preci-
sa citar outros e mixar textos e imagens diversas, numa
complexa e um tanto labiríntica justaposição. Esse tra-
balho, essa escrita não provém de um autor, mas faz um
sujeito, no sentido em que tem como resultado uma certa
“posição” (e talvez essa posição do sujeito seja sempre “es-
tética”). Plural e movente, essa “posição” não tem nada de
um “manifesto” ou de um estudo teórico que forneça as
110
bases da prática do artista. Ela parte de uma indefinição
entre o pensamento e o objeto, o texto e aquilo de que
ele trata, a palavra e a imagem, o autor citado e aquele
que o cita. E é justo por ser tão heterodoxo que o projeto
de Oiticica alça todo seu arquivo – ou seja, praticamente
toda sua produção – ao estatuto de uma extraordinária
teoria da arte.163
Como afirma Coelho a respeito de um texto que
deveria fazer parte da seção Babylonest, “em seu estilo
fragmentário e descritivo, Oiticica apresenta uma espé-
cie de diário-reportagem, de crônica-crítica do seu coti-
diano em Manhattan e das reflexões que sua circulação
pela cidade suscitava em seu trabalho”164. Há algo de um
testemunho, de um “diário-reportagem”, como diz ainda
Coelho, de algo próprio ao artista, suas vivências, leituras
etc. Mas não se trata de trazer “suas impressões” a respeito
de uma ou outra coisa, e sim de trazer as coisas, as frases,
as imagens do outro, e nessa montagem heteróclita a par-
111
tir de fragmentos-lampejos (anunciando já a lógica das
Cosmococas com seus slides a se embaralhar), apresentar
o que é seu e do outro em pé de igualdade, ambos frag-
mentados. Jogando entre um elemento e outro, Hélio
mixa então o que vem do outro e o assume como tal para
fazê-lo seu. Não lhe interessa o termo apropriação, diz ele
comentando sua Mesa de Bilhar na Exposição Opinião
66, por ele possuir “um lado ainda metafísico” que a pro-
posição do jogo vem ultrapassar165. O jogo se dá sempre
com um ou vários outros, e o que dele se faz ludicamente
meu não pode ser confundido com uma assinatura ou
um engodo de autoria. Trata-se de jogar com o que vem
do outro e assim retomar a Antropofagia andradiana, que
já afirmava, firme: “só me interessa o que não é meu”.
Apesar de a uma determinada altura o patrocínio
necessário para sua publicação ter sido ofertado a Oiti-
cica, o livro jamais foi concluído. O artista renomeará
Conglomerado esse material crescente, cuja reunião não
linear privilegia a contiguidade e o hiato, “as colisões-
-deslizamentos”166, configurando-se como uma obra aber-
112
ta que convocaria o leitor/olhador a uma fundamental
participação. Segundo Frederico Coelho, o novo nome
implica uma nova condição assumida por Hélio: o livro
ganha uma “definição espacial” na qual se propõe “um
recorte estratégico”, aquele do artista na massa de seus
arquivos167. Tal livro híbrido, que oscila entre o informe e
o inacabado, é quase impossível de ler/ver. Por isso mes-
mo, talvez ele possa ser tomado como a proposição artís-
tica maior de Oiticica, englobando todas as suas obras e
fundindo arte e vida, linguagem e visualidade, criação e
crítica, cultura e sujeito, sempre de modo múltiplo, frag-
mentário, plural.
Já em 1961, em um comentário sobre Goethe e o
sublime, Hélio anotava:
Só assim consigo entender a eternidade que há nas
formas de arte; sua renovação constante, sua impere-
cibilidade, vêm desse caráter de “inapreensibilidade”;
a forma artística não é óbvia, estática no tempo, mas
móvel, eternamente móvel, cambiante.168
Tal mobilidade e tal transformação no tempo, bus-
cadas desde o início da poética heliana, se materializam
em sua escrita em vertiginosa operação de linguagem da
qual resultam quebra e abertura, rompimento com a nar-
rativa que é convite para outras escritas, a ela externas.
113
“Uma escrita da invenção, do cotidiano, do experimen-
tal. Uma escrita, enfim, da diferença”, afirma Coelho169.
Excrita, a escrita heterogênea de Hélio Oiticica, espe-
cialmente em seu período nova-iorquino, aproxima-se
da noção de alegoria, à qual voltaremos no próximo ca-
pítulo170. Ela é alegórica na exata medida da etimologia
do termo: allos é outro e essa escrita diz o outro – mas
isso não basta: ela deve dizê-lo de outra forma. Ela quer
dizer o outro, outramente. Disseminando-se, fazendo-se
múltiplos elementos não idênticos a si próprios. Nada a
unifica: não há referência última, a metáfora é labirinto
onde a significação se perde, a alegoria não é alegoria de
algo – mas de si mesma, em uma mise en abîme sem fim.
Heteroescrita, ela não basta em si, mas necessita do outro
para significar, no exterior de si mesma. No espaço fora,
do outro, ela traça uma arquitetura do sujeito.
114
Frames, cocaína e mal-estar
115
irremediavelmente, da vida. A problematização da relação
sujeito/objeto que marca a trajetória heliana se radicaliza
na afirmação do ato/acontecimento. O parangolé, que já
indicava um acontecimento entre pessoas, se espraia até o
ponto de prescindir de estandartes e capas. A arte talvez
seja, mais do que qualquer coisa, uma pessoa viva.
Arte é antiarte, nesse sentido, porque não existe “o
problema de saber se arte é isto ou aquilo ou deixa de
ser – não há definição do que seja arte”172. Trata-se, nas
“apropriações” de Oiticica, de achar um objeto e dele
“tomar posse”, como da lata-fogo de que falamos acima.
Um belo projeto heliano é “colocar uma obra perdida,
solta, displicentemente, para ser ‘achada’ pelos passantes,
ficantes e descuidistas, no Campo de Santana, no centro
do Rio de Janeiro”173. Não se trata em absoluto de intera-
tividade ou participação programada, mas da atitude do
náufrago que lança ao mar a garrafa com um bilhete –
pedido de socorro ou simples declaração, em ato, de que
se está vivo. É impossível garantir que um dia a garrafa
chegará a alguém.
Mas se trata de antiarte também no sentido em que
há aí algo destrutivo, extremamente provocativo, rebelde.
“Toda a grande aspiração humana de uma ‘vida feliz’ só
virá à realização através de grande revolta e destruição”,
escreve o artista. E completa: “O programa do Parangolé
172 OITICICA, Hélio. Posição e programa. AGL, p. 77.
173 OITICICA, Hélio. Programa ambiental. AGL, p. 79.
116
é dar ‘mão forte’ a tais realizações”. Não que Oiticica to-
masse partido e fizesse parte do jogo político no sentido
estrito. Anarquista como seu avô, ele declara que
estão como que justificadas todas as revoltas indivi-
duais contra valores e padrões estabelecidos: desde as
mais socialmente organizadas (revoluções, p. ex.) até
as mais viscerais e individuais (a do marginal, como
é chamado aquele que se revolta, rouba e mata). São
importantes tais manifestações, pois não esperam
gratificações, a não ser a de uma felicidade utópica,
mesmo que para isso se conduza à autodestruição.174
O “programa ambiental” ou parangolé é uma etapa
dessa luta, desse conflito. Apesar de ser “o otimismo”, “a
criação de uma nova vitalidade na experiência humana
criativa”, ele não se encaixa em uma simples promessa
redentora. A felicidade é utópica e pode implicar auto-
destruição. Nesse texto de 1966, o tom é mais aguerrido
que nunca, e permite um gran finale no qual a utopia se
alia à fúria destruidora:
O princípio decisivo seria o seguinte: a vitalidade,
individual e coletiva, será o soerguimento de algo só-
lido e real, apesar do subdesenvolvimento e do caos
– desse caos vietnamesco é que nascerá o futuro, não
do conformismo e do otarismo. Só derrubando vio-
lentamente poderemos erguer algo válido e palpável:
a nossa realidade.175
117
A “nossa realidade” ergue-se com destruição e vio-
lência. Como já apontava Freud, a cultura é campo de
crise e permanente mal-estar. Há algo fundamental à cul-
tura que é, paradoxalmente, contra ela mesma – como
se, ao atingir seu cume, a construção se voltasse contra si
própria, autofágica, e se pusesse a demolir o edifício. Há
algo como uma bomba no seio da cultura, e ela ameaça
implodir toda essa ancestral e mais ou menos sólida mo-
rada. Talvez aqueles que se assumem como produtores de
cultura, de algo tornado “comum”, mesmo quando são
austeros e admirados, sejam todos, no fundo, perigosos
homens-bomba.
Há algo de demoníaco, de destrutivo, na Cultura. É
a isso que Freud chama pulsão de morte. E é isso mesmo
que Oiticica explora, especialmente em sua reflexão sobre
a cocaína.
118
Em notas de 1974 que compõem os “Bloco-expe-
riências in Cosmococa – programa in progress”, sobre o
conceito poético de Cosmococa (CC), concebido em 1973
em parceria com Neville D’Almeida, Hélio revê a Tropi-
cália para nela acentuar a tentativa de “checar” o deslo-
camento da imagem “numa espécie de salada multimedia
(sic) sem muito ‘sentido’ ou ‘ponto de vista’”176. Ele não
teria nada a ver com a pop art ou o “superrealismo” eu-
ropeu e americano, mas sim com o poema “popcreto” de
Augusto de Campos Olho por olho, de 1964. Nesta cola-
gem, imagens de sinais convencionais dão lugar a uma
profusão de olhos, em um texto de formato piramidal
no qual as imagens (fotográficas, em geral) tornam-se
progressivamente maiores, na sucessão das linhas, e aos
olhos misturam-se algumas bocas. Nisso que poderia ser
considerado uma “salada” muito bem ordenada, o que
se dá a ver é o próprio olho multiplicado. A imagem e o
texto não se oferecem passivamente a um ponto de vista,
mas fazem de sua matéria o próprio olhar, disseminado,
plural, alojado entre o visual e a linguagem. De modo
igualmente crítico, trata-se nas Cosmococas, para Oiticica,
da “fundação fragmentada de limites da não-representa-
ção”. Os slides que compõem cada CC são fotografias de
119
fotografias – capas de disco ou livro ou jornal em torno
de algum personagem mais ou menos pop como Buñuel,
Hendrix, Yoko Ono ou Marilyn Monroe – nas quais se
fez alguma intervenção com o pó branco de cocaína.
Eventualmente, o instrumento usado para manipular a
droga também é mostrado.
Assim como os filmes super-8 feitos por Hélio
em Nova York, as CCs rejeitam o princípio da monta-
gem cinematográfica, que proporia “um sentido”, para
se afirmarem como “momentos-frame”, na proposta que
o artista denominará “quase-cinema”. A imagem deve
ser fragmentada, de modo a levar “a outro tipo de iden-
tificação que conduz ao comportamento e fragmenta o
hábito unívoco do q é verbo-voco-visual”177. A fórmula
verbivocovisual, cunhada por James Joyce e cara aos po-
etas concretos, não é assimilada por Oiticica como uma
unificação sinestésica entre língua, linguagem e visuali-
dade, mas como um hábito que deve ser esquartejado
de modo a revirar a primazia do sentido. A paralisação
no frame, unidade básica do cinema, marca como fun-
damental o momento de aparecimento da imagem, bem
como o intervalo entre uma e outra imagem, na contra-
mão da contiguidade e da associação sintática que, pela
montagem, assegura habitualmente a construção de uma
narrativa. O quase cinema é algo essencial ao audiovisu-
al, mas é anticinema, na medida em que se opõe a tal
177 OITICICA, Hélio. Bloco-experiências in Cosmococa, p. 179.
120
organização narrativa para recuperar seu elemento cons-
titutivo, o frame, como fragmento que resiste ao sentido
e à representação, pondo de lado “a unilateralidade do
cinema-espetáculo”178. Em vez de se adequar ao hábito
que unifica palavra e imagem sob a égide do sentido, a
cosmococa quer induzir no olhador “outro tipo de iden-
tificação”, como diz Oiticica na citação acima. No pros-
seguimento do texto, esta outra identificação não é des-
trinchada, mas apenas ligada ao “comportamento”, o que
parece acentuar nela a ação, em lugar da recepção passiva
de uma narrativa.
Já na Tropicália não se tratava, como reflete a poste-
riori o artista em suas anotações sobre as Cosmococas, de
criar “um novo repertório de imagens”, mas de eliminar a
imagem, “propor soluções de não-imagem, isto é, de não-
-representação”. As “proposições imagético-sensoriais” –
entrar, sair – seriam, para o artista, grotescamente banais.
Trata-se de nada mais que um jogo, de “não-pop não es-
teticamente absorvido mas o lixo-imagem dos restos do
repertório da representação: não- ambiente”.179
121
Apesar de o artista denegá-lo, é inequívoco o diálogo
com a Pop Arte – explícito na escolha de figuras como
a Marilyn tão importante no trabalho de Andy Wahrol,
ao lado da reduplicação do dispositivo fotográfico para
criar imagens de imagens (para não falar das conexões
com o Cinema Expandido de Warhol). Porém, a apresen-
tação acentuadamente fragmentária da imagem e a pre-
sença da droga asseguram uma dimensão crítica que faz
desta proposta um não-pop, na expressão de Hélio. Em
uma leitura crítica do campo Pop, as Cosmococas realizam
uma intervenção deliberada nas imagens, com suas linhas
brancas redesenhando a presença de um sujeito que olha
as imagens da cultura de massa – e marca nelas, bela e
transgressivamente, a cifra de seu prazer e de seu corpo,
através da droga. O caráter asséptico das imagens no Pop
é revirado e duramente rejeitado nessas belas e estranhas
imagens apropriadas de maneira marginal e ética (esse “li-
xo-imagem” da citação acima é Marginetical, podemos di-
zer, usando a palavra-valise do próprio artista). A presença
da cocaína é um vestígio, um sinal da presença do sujeito
em seu corpo, em sua paixão e em sua loucura, em seu
gozo (E a tinta, o pigmento? E o branco sobre branco de
Malevitch, já não seria isso? – parece provocar Oiticica).
O pó é uma pista – reforçada pela presença de instrumen-
tos para a manipulação da droga, em muitos dos slides. A
122
droga está para as Cosmococas como as pegadas do crimi-
noso para a cena do crime. Para Paulo Herkenhoff, elas
“operavam com a presença” e, do “ponto de vista da cri-
minalística”, “atuam como provas materiais do crime”.180
Algo resta do sujeito, uma vez realizado um ato
onde está em jogo seu gozo, e isso que resta é justamente
o que pode se chamar arte. Em uma estranha metáfora
lançada em um de seus Seminários, Lacan afirma que um
pássaro, se fosse pintor, pintaria deixando cair suas penas.
“Não esqueçamos”, prossegue o psicanalista, “que a pin-
celada do pintor é alguma coisa em que se termina um
movimento”.181
A “salada multimídia” proposta pelas Cosmococas
– com seus slides dispostos em ordem aleatória e proje-
ção múltipla em espaços nos quais elementos como redes,
colchões ou uma piscina e luzes jogam com um material
sonoro-musical – não compõe um ambiente unificado.
Está em jogo um ritmo de intervalos, de fragmentação
entre elementos de natureza diversa, no qual se abre o
experimental no sentido preciso dado por Mário Pedrosa,
aquele do “exercício experimental da liberdade”. Muito
123
mais do que uma interação por parte do espectador ou
participante, trata-se de convidá-lo a recolocar em jogo
o mundo da representação e seu lugar nele. Lisette Lag-
nado nota argutamente que “as redes de CC5, almofadas
e colchões (CC1) ou a piscina de CC4 são antes oásis
de descanso. A palavra “suspensão” se adequa melhor –
suspensão da realidade”182. Em tal suspensão aposta-se,
como vimos há pouco Hélio afimar, em uma “identifi-
cação” não unificada por um sentido prevalente. Identi-
ficação plural, incorporação do fragmento, do que recusa
a representação unitária em prol de uma apropriação da
dispersão, construindo, em ato, um “si mesmo” (idio)
múltiplo, em ruptura, em revolta. Em jogo.
A noção de imagem é levada na obra tardia de Hé-
lio, portanto, a um deslocamento que é aquele mesmo
da linguagem, que a poesia explora de modo talvez mais
explícito desde Baudelaire e Rimbaud, referências fun-
damentais para o artista. A centralidade do sentido, da
significação, é radicalmente questionada pela ideia de
que os fundamentos da linguagem seriam fragmentados,
fazendo desta um deslocamento de significantes capaz
124
de gerar algum sentido, mas em parte independente des-
te e roçando sempre nos limites da não representação.
Trata-se, então, nas Cosmococas, de fundar limites à não
representação, quebrando a dominância da significação.
Tal fundação deve afundar, no jogo de palavras de Hélio,
o já estabelecido, em prol de uma coisa nova, marginal:
“a margem não é ‘maldição’ mas prova de q A COISA
NOVA se funda: afunda o afundado.”183
Trata-se justamente de fundar um mundo, no ter-
mo Cosmococa, inventado por Neville D’Almeida: “no-
me-mundo: propôs não um ‘ponto de vista’, mas um pro-
grama de INVENÇÃO-MUNDO”.184
O jogo da coca
A cocaína do período nova-iorquino prolonga a
reflexão sobre a maconha que já era muito presente no
pensamento de Oiticica no final dos anos 1960, e sobre
a qual ele escreve a Lygia Clark, em 1968, linhas bem ao
gosto de seu conceito de Crelazer:
Supra (aboutissement) – a chegada ao suprassensorial
é a tomada definitiva da posição à margem. Supra-
marginalidade – la vita, malalindavita, o prazer como
125
realização, vitacopuplacer. Obra? Que é senão gozar?
gostozar. Cair de boca no mundo. Cannabilibidinar.
Hummm... Sei que estou vivo – é só o que resta – o
sabor, salabor, salibidor. A nova era chegou: margi-
nalibidocannabianismo: l’opera morreu. Morra a mão
de ferro; sentir para o gozo.185
A droga está emparelhada com a postura margine-
tical que o artista cria nesta mesma carta, e apresenta o
corpo de modo libidinal e gozoso. Desde as reflexões so-
bre o suprassensorial, é explícita a referência à droga – não
apenas à maconha, mas também às ditas “drogas alucinó-
genas” – como um dos meios possíveis, mas não o único,
nem o mais importante, para se atingir um “dilatamento”
das “capacidades sensoriais habituais”186. A droga está de
saída ligada ao ultrapassamento da obra em prol de uma
vivência perceptiva que se expande em um campo simul-
taneamente libidinal e ético de relação com o outro.
A respeito da presença da cocaína nas Cosmococas,
o próprio artista registra que ela não é obrigatória. Seria
mais “uma blague geral:... why not?: se se usam tintas
fedorentas e tudo que é merda nas ‘obras de arte (plásti-
cas)’ porque não a PRIMA tão branca-brilho e tão afim
126
aos narizes gerais?”187. O deboche não deve ser aí tomado
como sinal de falta de intenção ou rigor reflexivo e con-
ceitual. Trata-se de jogar, como ensinado por Mallarmé,
e nesse jogo, retomado em toda sua potência corporal,
gozosa, atinge-se alguma verdade. O artista refere-se en
passant ao “JOY ZARATRUSTIANO” de Nietzsche. O
jogo é dionisíaco, misturando ao vinho do deus grego a
potência tresloucada do profeta inconformista, e fazendo
dançar de prazer o homem superior que teria superado
cultos estúpidos. “Que não há de querer a alegria!”, es-
creve o filósofo. “É a mais sedenta, mais cordial, mais
terrível, mais secreta que toda dor; quer-se a si mesma,
morde-se a si mesma (...); é tão rica que tem sede de dor,
de inferno, de ódio, de vergonha, do mundo, porque este
mundo, ah, já o conheceis”188. O que Hélio visa com o
termo inglês joy não é alegria ingênua ou prazer inocente:
trata-se de algo terrível, próximo da dor, e que encarna a
demoníaca busca de aniquilar a si mesmo.
A presença da cocaína nas CCs dialoga com a ori-
gem da literatura modernista, na qual a fragmentação da
linguagem vai de par com a experiência do uso de dro-
gas. Neville D’Almeida tem provavelmente razão quan-
do afirma, em entrevista a Paulo Herkenhoff, que “pela
127
primeira vez na vida, a droga era pigmento”; já sua afir-
mação seguinte, “a droga era uma atitude intelectual”189,
é muito pertinente, mas não pode ser vista como algo
inédito na Cultura ocidental. Para a vanguarda literária
do século XIX, pelo menos desde Baudelaire, tratava-se
do uso de drogas, não como meio para alguma liberação
ou mera inconsequência, mas como uma investigação
poética a respeito da representação e do sujeito, através
da realização de experiências na acepção quase científica
do termo. A embriaguez exige certo método (“Nós te afir-
mamos, método!”, diz Rimbaud em “Matinée d’Ivresse”,
parte do livro Les Illuminations, que Oiticica cita e fo-
tografa). E certa fé – uma crença blasfematória de um
homem sem Deus. “Temos fé no veneno” – ainda Rim-
baud, com o verso citado por Oiticica em seu poema
Über Coca190. Trata-se, portanto, de a ele se entregar, com
volúpia, como afirma em seguida o poeta francês: “Sabe-
mos dar nossa vida inteira todos os dias”.191
Da experiência descentradora do uso de drogas, as-
sim como daquelas que se avizinham da loucura, não é à
toa que se fala em ficar fora de si. Mas tal experiência de
subversão do eu não deve ser confundida com a defesa
189 HERKENHOFF, Paulo. Arte e crime. Quase-cinema. Quase-
-texto..., p. 258.
190 Itaú Cultural/Programa HO, n.° de tombo 0267/73.
191 RIMBAUD, Arthur. Oeuvres complètes. Paris: Jean Claude Lat-
tès, 1995, p. 254.
128
psicodélica da abertura das portas da consciência através
do uso de substâncias como o LSD. O “absoluto místi-
co-deificado” ligado a esta droga é, para Hélio Oiticica,
um contrassenso. Interessa, sim, a coca como “joke-jogo
supremo no qual se joga com a simultaneidade e com a
contiguidade da multidão infinita de possibilidades de
experiência individual q germinam nas coletividades da
ALDEIA GLOBAL de MCLUHAN”. Tal experiência
individual-coletiva deve ser, para Oiticica, “mútua incor-
poração experimental no play das experiências simultâ-
neas q se permeiam: como CORPOS Q DANÇAM e q
se laçam e se afastam jamais fixados num ‘ponto de vista’
permanente”192. Assim, a cocaína toma, na reflexão de
Oiticica, o lugar já ocupado pelo parangolé nos escritos
anteriores: ela assinala a perda de um ponto de vista fixo,
o descentramento do eu, em prol de experiências coleti-
vas e corporais que (re)constroem, com desejo e gozo, a
própria Cultura.
Não se trata de pregar o uso de droga alguma, ne-
nhum pretenso “remédio espiritual”. “Como pode al-
guém saber qual o veneno q cada pessoa necessita?”, dis-
para Oiticica. E prossegue:
Ninguém se está querendo salvar!: pelo contrário:
como diz ARTAUD let the lost get lost: BAUDE-
LAIRE quando faz odes ao ÓPIO e ao HAXIXE não
está receitando remédios: está sim nos envenenando
129
de experiência: não estava pregando ou promovendo
o comércio do ÓPIO-HAXIXE (o q não abole a pos-
sibilidade de q estivesse transando: quem sabe?: )193
A experiência envenena, o veneno ativa a experi-
ência. Não se trata de salvar ninguém, a experiência da
droga não é redentora. A presença da cocaína é crítica. A
droga ativa uma dimensão experiencial que não se atém
aos efeitos de cada substância no organismo, mas deve ser
tomada como experiência única, tornando talvez “obso-
letas e superficiais” as conceitualizações a partir da dife-
rença entre os efeitos causados, como por exemplo alu-
cinações ou dependência física, como sugere Oiticica em
uma das questões previstas no “questionnaire in progress”
que faria parte das Newyorkaises.194
Que os perdidos se percam, como diz Artaud, porque
nascemos podres no corpo e na alma, somos congeni-
talmente inadaptados; suprima o ópio, você não supri-
mirá a necessidade do crime, os cânceres do corpo e da
alma, a propensão ao desespero, o cretinismo inato, a
varíola hereditária, a friabilidade dos instintos.195
Estamos todos de saída perdidos, em um mal-estar
que serve de base para a experiência com a droga – que é
marginal e ética, como queria Oiticica que fosse sua obra.
193 Itaú Cultural/Programa HO, n.° de tombo 0301/74, p. 10/16.
194 Itaú Cultural/Programa HO, n.° de tombo 0261/73.
195 La Liquidation de l’opium (em La révolution surréaliste,
01/01/1925) disponível em http://jclandry.free.fr/Artaud/Artaud.
htm. Acesso em: 28/01/2012.
130
As linhas de cocaína sobre capas de disco, pôsteres,
fotografia no jornal etc. são escrita-quebra, jogo de ras-
tros capaz de fragmentar a imagem:
ideias-anotações sobre MAQUILAGENS
- fragmentação do acabado: o rastro-coca aplicado à
capa, cara, pôster, etc., fragmenta visualmente ao ‘ma-
quilar’ a ‘unidade’ da imagem-todo: capa, cara, pôster
- fragmentos: não mascara: emascara-se: a MAQUI-
LAGEM aqui referida não atua como mágica-másca-
ra: fazer do feio belo: fazer do velho moço: etc.: (...)
nessa maquilagem-rastrococa o problema é outro:
jogo do acaso.196
A droga fragmenta o sentido e potencializa o acaso
imprescindível, desde Mallarmé, para que a arte se afirme
como crítica da realidade e construção de uma verdade
mais real, digamos, do que aquela que nos apresenta o
mundo da “imagem-todo”, irmanada ao sentido unifica-
do em uma espécie de realidade maquiada. Sobre a CC4
Nocagion, Hélio sublinha o “acaso como jogo”, presente
no instante em que cada foto é tirada, na ordem em que
os slides vêm do laboratório, na ordem em que eles serão
colocados no carretel e no timing de projeção dos slides.
“Os desvios e mudanças” são importantes para sua “es-
trutura inventiva” e as “operações do acaso” são elemen-
131
tos essenciais para sua manifestação”197. Jogo de dados no
qual pode surgir algo além da imagem-máscara: a poesia,
o gozo, o sujeito.
O gozo e a droga
Desde os Paraísos Artificiais de Baudelaire, de 1860,
a literatura alia-se à droga em uma mesma provocação
do desejo como programa para transformação da lingua-
gem (ou seja, da arte e do mundo). Trata-se de evocar – e
invocar – os poderes demoníacos ou dionisíacos, como
diria Nietzsche, das substâncias capazes de deixar o ho-
mem alterado e trazer o desejo à tona em toda sua pe-
rigosa radicalidade. O desejo não é apenas a afirmação
do eu sobre os outros e as coisas do mundo e a escolha
destes como objetos de satisfação para esse eu. O desejo
implica, mais subterraneamente, uma repetitiva entrega
ao objeto na qual o eu pode chegar a se dissolver, como
mostra tão claramente a dependência a algumas drogas.
Henri Michaux afirma, em suas reflexões sobre a mesca-
lina, que “para gostar de uma droga deve-se amar estar
assujeitado”.198
132
Na poesia e na arte também há algo dessa disso-
lução, dessa relação radical com o objeto na qual prazer
e sofrimento se misturam. Baudelaire afirma, não sem
a ironia que dá o tom dos Paraísos Artificiais: “É fácil
apreender a relação que existe entre as criações satâni-
cas dos poetas e as criaturas vivas que se devotaram aos
excitantes”199. O que há aí de “satânico” dá, sem dúvida,
notícias daquilo que Freud tenta apreender como pulsão
de morte, potência desejante que opera pela repetição e
reafirma o assujeitamento do eu a algo externo, podendo
levar ao ponto extremo do aniquilamento de si. Não há
modo mais radical de denominar tal força psíquica senão
como “de morte”, como potência paradoxal de destrui-
ção do desejo por ele mesmo, resultando na destruição
do eu ou, como prefere Freud, em uma espécie de “retor-
no ao inorgânico”200. Antes ou mais subterraneamente do
que buscar a vida através da ligação com o outro, a pulsão
visaria, devido a uma tendência à inércia, chegar a um
ponto de total ausência de tensão. Se no objeto de arte
que “vive subjetivamente”201, como vimos afirmar Mário
133
Pedrosa, surge o sujeito, nas coisas do mundo, em silên-
cio, ele poderia se disseminar até a morte.
A pulsão de morte denomina o campo no qual se
afirma o fato de que, nas palavras de Baudelaire, “do
mesmíssimo modo que de uma droga medonha, o ser
humano desfruta deste privilégio de poder tirar go-
zos novos e sutis até mesmo da dor, da catástrofe e da
fatalidade”202. A respeito da mescalina, Michaux afirma
não encontrar o sobrenatural ao qual a cultura indíge-
na liga a substância. “Deixa-se tão pouco o homem”,
diz ele. E pergunta: “É necessário falar do prazer? Era
desprazeroso”203. O desejo não se regula sempre em bus-
ca do prazer e evitando o desprazer, como acreditava
Freud até 1920, mas mantém uma zona difusa na qual
se encontram esses dois extremos naquilo que Lacan
consagra pelo termo gozo (jouissance), justamente, assim
como Baudelaire. Há algo de desregulado, desmedido,
no campo do gozo. Curiosamente, um dos argumentos
arrolados por Freud para introduzir essa questão, em
1920, vem do campo da arte: ela não nos poupa, nota o
psicanalista, “das impressões mais dolorosas”, como por
exemplo na tragédia, e no entanto pode ser experimen-
tada como uma espécie de “gozo mais elevado”.204
134
As operações sobre a linguagem, e em especial o
burilamento afirmado na escrita de Baudelaire nos Para-
ísos Artificiais, visam atiçar o desejo para chegar ao gozo.
No comentário de J. Barbey D’Aurevilly, o poeta “tem
sempre a expressão burilada; mas às vezes, o seu buril
queima! É para melhor queimar o desejo. É como no
Chapeuzinho Vermelho: ‘É para melhor te comer, minha
netinha!’, ou te fazer melhor comer haxixe, meu filho!”205.
A linguagem queima. A linguagem pode carregar desejo,
contaminar-se de gozo e arder como o bólide lata-fogo de
Hélio Oiticica.
Por isso é importante reafirmar, nas Cosmococas, o
papel da cocaína: branca escrita quase lírica, mas bom-
bástica como o branco sobre branco de Malevitch. Rastro
do desejo em seu abuso, em sua força demoníaca, gozosa:
TO GET OUR FAIR SHARE OF ABUSE
ABUSE do q é ROCK DROGA
ABUSE é loud
pode ser redundante
pode ser e é necessário
mais q FAIR SHARE
deve-se querer TOTAL ABUSE206
135
O abuso é necessário, a desmedida deve ser buscada.
Música, droga e dança reúnem-se em festa, em gozo niet-
zscheano, na fé – diante da morte de Deus e da ausência
de remédio e salvação – no próprio veneno. “Temos fé
no veneno. Nós sabemos dar nossa vida inteira, todos os
dias. Eis o tempo dos Assassinos”, escreve Rimbaud em
“Matinée d’Ivresse” 207. O poeta alude à hipótese linguís-
tica que atribui a origem do termo “assassino” ao termo
“comedor de hachiche” (hashishiyyin, em persa), e a uma
famosa seita que atuava no Oriente Médio no século XI e
usaria a droga, conforme reza a lenda, para estimular seus
membros a matar os inimigos.
O “abuso total” de Oiticica é necessário, é fogo aceso
para uma verdadeira crítica da cultura – para a afirmação
da arte como radical crítica da cultura, ou seja, reconstru-
ção em ato, na vida, em gozo, do sujeito na cultura.
Freud e a cocaína
Em junho de 1973, Hélio Oiticica escreve Über
Coca, apresentado como “poema freudfalado”, “according
to Freud as homage – love”, apropriando-se do título do
artigo científico publicado por Freud em 1884 sobre a
droga e republicado em uma coletânea explicativa em
1963. Este material foi lido pelo artista ao lado de diver-
sos textos sobre droga, como os de Baudelaire, Rimbaud
136
e Artaud, em diálogo com Silviano Santiago. A aproxi-
mação de Oiticica com a psicanálise, neste momento, se
dá de modo inteiramente saturado pela presença da dro-
ga: “FREUD É COCA (quem “estuda” FREUD e não
é expert em COCA não estuda FREUD: freuda-se)”.208
O poema concreto de Oiticica, que deveria se des-
dobrar em uma Cosmococa, explora a dimensão fragmen-
tadora da cocaína no jogo “caco coca”, repetido como
uma espécie de estribilho.
coca coca
caco coca
Ery
Erythro
throxylon
xylon coca
coca
(som: cafunga) sffun
uh
caco coca
O poema concreto de Oiticica, que reproduzimos em
anexo, a partir da página 183, deveria se desdobrar em
uma Cosmococa. Ele explora a dimensão fragmentadora
da cocaína.
Em uma época na qual as fronteiras entre droga e
medicamento eram muito mais permeáveis e nem mes-
mo eram ilegais substâncias como o ópio e o haxixe,
137
Sigmund Freud foi um dos primeiros pesquisadores a se
interessar pelos alcalóides extraídos das folhas da Erythro-
xylon coca cultivada na América do Sul. O jovem médico
encontrava-se então muito distante ainda do que viria a
inventar sob o nome psicanálise, cerca de dez anos mais
tarde. Como de hábito nas origens da psicofarmacologia,
ele utilizava em si mesmo, por via oral e em pequenas
doses, a substância preparada pela empresa alemã Merck
(que mais tarde será nisso substituída pela americana Pa-
rke Davis & Co.). Seus efeitos consistiam, segundo ele,
em “exaltação e euforia duradoura, em nada diferente da
euforia normal de uma pessoa saudável”209. Há quem veja
ligação entre a experiência de Freud com a cocaína e a
invenção da psicanálise, mas os pacientes psiconeuróticos
que ele começa a receber alguns anos mais tarde – como
as histéricas que naquela época chegavam a apresentar
pseudoalucinações e estados alterados de consciência –
estavam provavelmente bem mais “fora de si” do que o
jovem médico residente após ingerir um pouco de solu-
ção de cocaína diluída em água.
Mais do que uma “estimulação direta”, parecia a
Freud que o estado de ânimo induzido pela droga seria
devido a sua capacidade de levar “ao desaparecimento de
138
componentes que, no estado geral de bem-estar, provo-
cam a depressão”210. O uso pessoal que ele relata em cartas
à noiva limita-se a objetivos como o de ‘destravar a lín-
gua’ em um jantar. O jovem cientista Freud buscava na
cocaína aquilo que a ciência alcançaria apenas seis déca-
das mais tarde, com o primeiro antidepressivo.
Em outro trecho do poema, Oiticica escreve
cocafogo
cocahino
coqueuforia
a pausa q refresca
Parke, Davis & Co. ca coca
caco coca
cocaMerck
cocamedo
Oiticica, em seu poema, alude ao fato de que a
cocaína, tomada como uma espécie de tônico geral, es-
tava presente naquele final do século XIX em produtos
comercializados, usualmente sob a forma da mistura da
infusão de folhas de coca a uma bebida, como era o caso
do “vinho Mariani” e da Coca-cola. Na propaganda do
primeiro, lia-se: “Nada jamais foi tão altamente recomen-
dado”. Apreciado pelo papa, o vinho Mariani, além de
refrescar, fortificar, nutrir, ajudar a digestão e fortalecer
139
“o sistema”, seria capaz de prevenir a malária e a gripe211.
Nesse contexto, não parece tão aberrante a estrondosa
declaração de um cocainômano, relatada por um farma-
cologista alemão em 1928: “Deus é uma substância”212.
Apenas nos primeiros anos do século 20 apareceram leis
antidrogas que levaram à modificação das fórmulas des-
ses produtos.
cocamania
cocacolapso
cola coca
caco coca
o branco sobre o branco213
De refrescante e tônica na coca-cola, a substância
em breve será vista como um perigo moral. Alguns auto-
res haviam anteriormente indicado a eficácia da cocaína
no tratamento da dependência ao ópio, ignorando e ne-
gando explicitamente o risco de a primeira provocar ela
mesma o vício. Partilhando a convicção de que a coca
teria um efeito antagônico sobre a morfina, Freud indi-
ca seu uso ao amigo e colega Ernst v. Fleischl, que fazia
140
uso regular de morfina em doses altas, inicialmente para
tratar uma grave nevralgia. Fleischl prefere aplicar a co-
caína em injeções subcutâneas e aumenta rapidamente
as doses, logo começando a apresentar crises de delirium
tremens. Alguns anos depois ele morre e Freud recrimina-
-se por ter recomendado o uso da cocaína que teria, acre-
ditava ele, apressado seu fim.
Assim que vêm à luz inequívocos e catastróficos ca-
sos de dependência à cocaína, o círculo médico em Viena
e no exterior chega a emitir algumas censuras a Freud
por suas recomendações tão entusiásticas à nova droga.
Ao lado disso, outro fator faz com que a cocaína esteja
frequentemente presente na memória do psicanalista. De
origem modesta, ele passou por dificuldades financeiras
importantes no início de sua carreira e sonhava com um
rápido reconhecimento profissional que lhe permitisse
desposar o quanto antes sua noiva Martha. Em “Über
Coca” ele indicava a possibilidade de que a substância
fosse eficaz como anestesia em cirurgias oculares, entre
outras, mas não chegou a concluir experimentos nessa
área, pois partiu em viagem de férias. Enquanto isso, seu
colega Karl Koller comprovou a eficácia anestésica da co-
caína e publicou seus resultados com importante reper-
cussão. Freud teria deixado escorrer entre as mãos a fama
que tanto almejava.
No poema, Oiticica joga com o termo ‘coca’ em
outras combinações, como “cocagrama”, “cocasorte” e
141
“edencoca” para terminar, sob uma grossa seta como a
indicar o resultado de tudo isso, com o “cocadado” que
retoma o lance de dados de Mallarmé, o jogo da sorte/
acaso, para fazer dele a operação fundamental visada pelo
uso da cocaína em sua reflexão artística.
O Eu no mundo
Descrevendo os efeitos do haxixe, que em Paris na-
quela época consistia em uma decocção de cânhamo in-
diano à qual era adicionada uma pequena quantidade de
ópio, Baudelaire nota que
A inteligência da alegoria assume em você proporções
que lhe eram desconhecidas; notaremos, de passa-
gem, que a alegoria, este gênero tão espiritual, que
os pintores desajeitados nos acostumaram a despre-
zar, mas que é verdadeiramente uma das formas mais
primitivas e mais naturais da poesia, reconquista seu
legítimo domínio na inteligência iluminada pela em-
briaguez. O haxixe então derrama-se sobre toda a vida
como um verniz mágico; ele a colore em solenidade
e ilumina toda a sua profundidade. Paisagens encres-
padas, horizontes fugidios, perspectivas de cidades
embranquecidas pela lividez cadavérica do temporal
ou iluminadas pelas ardências concentradas de sóis
crepusculares, – profundidade do espaço, alegoria da
profundidade do tempo (…).214
142
A alegoria reaparece, nesse contexto, como nome-
ação de uma transformação poética do mundo. A “árida
gramática”, no prosseguimento deste trecho, dá lugar a
palavras que “ressuscitam cobertas de carne e osso”. E a
música “fala-lhe de você mesmo e conta-lhe o poema de
sua vida: ela se incorpora a você, você se funde a ela”. O
mundo é poesia na medida em que seus elementos dão
notícias do sujeito, graças à “iluminação” da “inteligên-
cia” oferecida pela embriaguez.
A respeito de um personagem usuário de ópio, Ed-
gar Allan Poe fala sobre o aparecimento de “uma procis-
são magnífica e variegada de pensamentos desordenados e
rapsódicos” sob o estímulo mínimo de qualquer elemen-
to do mundo exterior. Também no haxixe, afirma Baude-
laire, acontece algo que a palavra rapsódico bem denomi-
naria: “um fluxo de pensamentos sugerido e comandado
pelo mundo exterior e pelo acaso das circunstâncias.”215
A rapsódia vem “de fora”, como mostram os exem-
plos de uso, na música erudita, de composições impro-
visadas a partir de canções populares, especialmente no
século XIX. Tal apropriação do que vem do outro e é
comum (como a lata-fogo da qual já tratamos), para
transformá-lo um tanto, não deixa de ecoar a antropo-
fagia que marca o modernismo brasileiro. Curiosamente,
143
é como uma rapsódia que Mário de Andrade caracteriza
seu Macunaíma. O Herói sem nenhum caráter, de 1928.
O uso de substâncias psicoativas tem longa tradi-
ção, portanto, para subverter a relação tradicional entre
sujeito e mundo – aquela, digamos, da lógica da repre-
sentação –, acentuando a falta de lugar fixo do sujeito e
a alteridade que é sua própria condição. Alguém sob o
efeito do haxixe dissemina “sua personalidade aos quatro
ventos do céu”, diz Baudelaire216. Às vezes ocorre que nele
“a personalidade desaparece”. O sujeito se reencontra po-
rém, fragmentariamente, nos elementos do mundo, gra-
ças à poesia:
a objetividade, que é a província dos poetas panteístas,
se desenvolve em você tão anormalmente que a con-
templação dos objetos exteriores o faz esquecer a sua
própria existência, e que você logo se confunde com
eles. Seu olhar fixa-se numa árvore harmoniosa curva-
da pelo vento; em poucos segundos, o que no cérebro
de um poeta não seria mais do que uma comparação
naturalíssima tornar-se-á no seu uma realidade. (…) O
pássaro que plana ao fundo do azul representa de início
o infinito anseio de voar para além das coisas humanas;
mas eis que você já é o próprio pássaro.217
144
Uma figura de linguagem torna-se “realidade” sob o
efeito da droga, demonstrando a eficácia desta em cum-
prir a pauta de ultrapassar a representação para atingir
a própria vida. São muito curiosos os exemplos trazidos
por Baudelaire como realização de tal anseio, graças à
droga. Eles mostram situações de agudo descentramen-
to do eu e aparição do sujeito no objeto. Assim, um fu-
mante pode se ver absorvido pela fumaça de seu cachim-
bo ao ponto de se tornar por ele fumado, no exemplo
mencionado pelo poeta e confirmado por seu poema “O
Cachimbo” (“Eu sou o cachimbo de um autor”, diz seu
primeiro verso218). Como já ouvimos dizer Michaux, na
droga o sujeito ama estar assujeitado – ele nela se refaz
sujeito descentrado, surgindo no objeto. Pode tomar aqui
um outro sentido a curiosa insistência freudiana em falar,
a respeito da pulsão de morte, na aspiração ao retorno a
um estado inorgânico.
Para Walter Benjamin, autor também de vários re-
latos de experiências com haxixe e ópio (por ele deno-
minado crock), há uma “singular experiência identitária
que se abre com o recurso ao crock”219. Essa vivência (des)
145
identitária aproxima-se, sem dúvida, daquela buscada por
Oiticica com seus parangolés, um dos quais (Capa 13, de
1966) traz sobre uma tela a inscrição “estou possuído”.
Para a CC8, Oiticica indica como fundamental um
trecho de Oswald de Andrade em Serafim Ponte Grande:
“Serafim vai à janela e qual Narciso vê, no espelho das
águas, o forte de copacabana”220. No lugar do reflexo de
si, base da identidade, coloca-se o objeto, parte do mun-
do. Vai nessa mesma direção a comparação que Benjamin
faz, sob os primeiros efeitos do haxixe, dos objetos “com
os instrumentos de uma orquestra ao serem afinados an-
tes do concerto”221. O mundo transfigura-se na medida
em que os objetos são promessa de um acontecimento
poético ou musical. Uma das “particularidades mais espe-
cíficas do crock”, ainda para o filósofo, seria sua “incansá-
vel capacidade de retirar de uma única realidade – por ex.
um cenário ou a representação de uma paisagem – uma
pluralidade de aspectos, conteúdos e significados”222. A
música do mundo é plural, múltipla, multívoca.
Cosmococa é um programa experimental, aberto e
em progresso, não apenas por ser um convite ao outro e a
suas reações a tal “não-ambiente”, mas porque atua sobre
o mundo de modo a acentuar a multivocidade. Impossí-
146
vel prever o alcance que ele terá, pois o principal ponto de
uma atividade experimental é que ela não se limita a seus
“originadores”, mas cria “MULTI-POSSIBILIDADES
para participação coletiva-individual”223. Saídas múlti-
plas, infinitas e indefinidas. Críticas, porque capazes de
pôr em crise a representação, o mundo, o sujeito.
Não-objeto e mal-estar
Em texto de 1957, já mencionado anteriormente, no
qual Ferreira Gullar, Oliveira Bastos e Reynaldo Jardim to-
mam a firme posição em relação a seus colegas de São Pau-
lo que levaria, pouco tempo depois, à formação do grupo
neoconcreto no Rio de Janeiro, eles afirmam que
A poesia concreta não é um meio ‘mais eficaz’ de ata-
car o objeto, porque o ‘objeto’ não preexiste ao poe-
ma, mas nasce com ele – o objeto é o poema: o poema
ataca o sujeito (o espectador).
A linguagem não tem nenhuma ação direta sobre o
mundo dos objetos a não ser ‘no sujeito’, isto é, na
proporção em que o mundo dos objetos, tornado sig-
nificação, cultura, é já o sujeito.224
147
O objeto, na Cultura, é o sujeito. Na tradução para
nossa língua, a ideia freudiana de mal-estar (Unbehagen,
desconforto) na Cultura apresenta o verbo estar, permi-
tindo-nos rever a afirmação acima de modo a dizer que
no “mundo dos objetos, tornado significação, cultura”,
está o sujeito. Na arte, privilegiadamente, o sujeito está,
ele que nunca é de maneira reificada e constante. O ob-
jeto de arte, na Cultura, viria fazer aparecer aí, em um
átimo, algo muito íntimo e fundamental, mas que está
fora do eu. O mais íntimo a cada um de nós está fora,
é êxtimo (para retomar o termo cunhado por Lacan), e
pode aparecer em um objeto, ou melhor, em uma expe-
riência, na cultura.
O conceito de não-objeto cunhado por Gullar des-
dobra tal ideia fundamental, assinalando que a ênfase pas-
sa da materialidade do objeto de arte para o reviramento
em sujeito que este é capaz de realizar. Se a arte é “for-
mulação primeira do mundo”225, como afirma o crítico e
poeta apoiando-se em Merleau-Ponty, ela implica uma
experiência fundadora do mundo e do sujeito, ao mesmo
tempo. É nessa medida que o não-objeto mantém com
o sujeito uma relação que “dispensa intermediário”226. A
negação do objeto é afirmação, nele, do sujeito, e portan-
148
to “o não-objeto reclama o espectador (trata-se ainda de
espectador?), não como testemunha passiva de sua exis-
tência, mas como condição mesma de seu fazer-se.”227
A reflexão de Oiticica desdobra essa implicacão
fundamental, visando fazer, como explicita no texto “O
objeto”, escrito em 1968 para a revista GAM, com que o
objeto seja “anulado na sua conceituação metafísica que
contrapõe sujeito a objeto”. O objeto não é mais “’obra’
estabelecida ‘a priori’”, ele é
a descoberta do mundo a cada instante, ele é criação
do que queiramos que seja, um som, um grito (…), é
a manifestação pura – a luz do sol que neste momen-
to me banha é o objeto, no espaço e no tempo, no
instante – objeto do instante, que existe à medida em
que é experimentado e não pode ser repetido.228
O objeto é ativação da presença do sujeito no mun-
do (a luz do sol que me banha…). Como vimos com
Baudelaire tornando-se seu próprio cachimbo, a experi-
ência do uso de substâncias psicoativas tem longa tradi-
ção nesta potencialização da presença do sujeito no ob-
jeto, no mundo. Jean Cocteau toca neste ponto em livro
escrito durante um tratamento de desintoxicação:
O pintor que ama pintar as árvores tornando-se uma
árvore. As crianças trazem em si uma droga natural.
(...) Todas as crianças têm um poder feérico de se tor-
149
narem o que querem. Os poetas nos quais a infância
se prolonga sofrem bastante de perder tal poder. Sem
dúvida esta é uma das razões que levam o poeta a uti-
lizar o ópio.229
A droga restitui este poder a tal ponto que “sob o
ópio nos tornamos o lugar dos fenômenos que a arte nos
envia de fora”. E Cocteau leva isso ao extremo: “Acontece
ao fumante ser uma obra-prima. Uma obra-prima que
não se discute. Obra-prima perfeita, porque fugitiva, sem
formas e sem juízes”.230
A paixão pelo objeto, condição básica à arte, é an-
seio por essa condição de extimidade (nossa “intimidade”
que está fora, tornando-se comum). Busca de si na coi-
sa, anseio por um encontro com o real no qual surge o
sujeito, descentrado, subvertido, não identitário. Nessa
busca cheia de gozo o sujeito pode chegar a se dissolver
na coisa, no inorgânico, a ponto de desaparecer, anular a
si mesmo, tornando-se coisa, na morte.
Na cultura ele surge, o sujeito do inconsciente,
sempre um tanto deslocado, sob o modo do mal-estar.
Temos nesse mal-estar o efêmero testemunho da subver-
são do eu – este, ilusoriamente fixo, alienado nas forma-
ções imaginárias, ou seja, ideológicas, de que se compõe
229 COCTEAU, Jean. Opium. Journal d’une désintoxication. Paris:
Stock, 1930/1995, p. 57.
230 COCTEAU, Jean. Opium. Journal d’une désintoxication, p. 56.
150
o campo social. A arte toma e explora uma certa re-volta,
nesse sentido forte do termo. Bela e perigosa revolta, essa
que busca o real e se aproxima da morte.
De novo Cocteau: “Para mim o ópio é uma
revolta.”231
Alegorias
Substâncias psicoativas podem eventualmente ati-
çar o poder que possui a materialidade da linguagem de
tomar a dianteira sobre a dimensão da significação. “É
como se nos indicassem as palavras foneticamente. Aqui
há ligação automática. Há coisas que tomam a palavra
sem pedir autorização para isso”, anota Benjamin em um
de seus protocolos de experiência com haxixe232. As pró-
prias “coisas” tomariam a palavra, retirando do sujeito o
papel central na enunciação.
Benjamin está aí influenciado pelo surrealismo, que
propõe, como bem percebe o filósofo, que “a linguagem
tem precedência” não só em “relação ao sentido”, mas
também em “relação ao Eu”. A individualidade é mina-
da, na experiência surrealista, por uma embriaguez que
não se limita aos “êxtases religiosos” ou aos “êxtases pro-
151
duzidos pela droga”, mas consiste em uma “iluminação
profana” à qual “podem servir de propedêutica o haxixe,
o ópio e outras drogas”233. O próprio pensamento, assim
como a flânerie, são formas de iluminação, além da “mais
terrível de todas as drogas – nós mesmos – que tomamos
quando estamos sós”.234
O eu é ex-cêntrico, ele já se atira para fora de si, e a
droga apenas potencializa essa sua condição, dando pre-
cedência à linguagem de modo a demonstrar e explorar o
assujeitamento do eu à linguagem. Por isso a experiência
da droga se aproxima da poesia: a relação entre sujeito e
linguagem é radicalmente poética.
Lacan lembra que “todo uso da linguagem, seja qual
for, se desloca na metáfora”. Toda linguagem é metafórica,
pois quando se trata de “se aproximar do que quer que seja
que aí significa, o referente jamais é o certo, e é isso que
faz uma linguagem”235. O referente é real, impossível de
designar. Só nos resta, diz Lacan, construí-lo. Em vez de se
servir do deslocamento para significar outra coisa além do
que é afirmado, como faz a metáfora, trata-se, em muitos
152
textos de Oiticica, de brincar com a impossibilidade de se
chegar ao referente. Deslocamento incessante. Em pro-
porção inversa ao desvanecimento do ponto de partida (o
eu), afirma-se fortemente, em tal agenciamento da lingua-
gem, o alvo: o endereçamento a outrem.
A realidade não é um solo firme sobre o qual se
possa construir um conjunto de representações ao redor
do homem. A poesia e a arte anunciam e exploram a
fragmentação deste solo e a impossibilidade de a repre-
sentação dar conta da vida pulsante do sujeito, da cul-
tura. Não se trata de acreditar em uma realidade última
que a linguagem não consegue abarcar totalmente, mas
sim de assumir o real como fragmentário e impossível de
representar plenamente (em contraste com a ‘realidade’
unívoca e plena de sentido). E é na própria linguagem
que tal condição básica se manifesta e pode ser explora-
da. A representação, a escrita, a (re)construção de objetos
torna-se então uma lida incessante e repetida com o real.
Trata-se de fragmentar e de juntar fragmentos – não para
reencontrar, ao fim e ao cabo, a realidade homogênea,
mas sim para ativar a potência pela qual mundo pode eri-
gir mundo (digamos, para ecoar as palavras de Oiticica).
well:
nas minhas
iniciativas de apropriação / absorção / togethernassão de
fragmentos q se estruturam em BLOCOS e PROPOSIÇÕES
153
procuro a não-limitação em grupos homogêneos
ou de casta: dirijo-me ao q me vem de
encontro na cabeça: o q é aberto e não-contente
com o ‘feito’: um JOY de descobrir (-se)
MUNDO erigindo MUNDO (...)236
Mundo é heterogêneo, aberto, mundo é apropria-
ção do que não é meu, mesmo que me venha à cabeça.
Aí descobre-se algo que tem a ver radicalmente consigo
mesmo, é um “descobrir (-se)” e carreia alegria, gozo. Tra-
ta-se, no projeto heliano, não de compor uma “coleção
de fragmentos”, mas sim do funcionamento como “mo-
saico-fragmento q digere e anula o efeito de ‘conquista es-
tética’ das formas fragmentos-linguagem q representaram
no passado e os erige em linguagem nova.”237
A linguagem é “nova” porque é potência de advento
de algo não sabido, nos limites do que a representação
pode abarcar. Não se trata de fazer dos fragmentos uma
“coleção” ou uma linguagem, mas de explorar a lingua-
gem como fragmento, e portanto vê-la como potência de
alteridade em movimento, construindo sujeito e mundo.
Tudo é prelúdio para outra coisa, talvez, em Hélio. Lin-
guagem móvel, mundo construindo mundo: “(...) essa
154
obra como situação tem mesmo q permanecer num pon-
to q é crítico / móvel / da crise-linguagem.”238
Desta linguagem móvel a noção de alegoria tenta
se aproximar, desde que Walter Benjamin dela se ocupou
no texto fortemente dialético a respeito do drama bar-
roco alemão. Nesse texto quase premonitório, no qual a
proposta teórica vai além do objeto estudado (ou talvez o
transforme na medida de uma leitura que lhe é futura), o
filósofo afirma que
(...) a alegoria precisa desenvolver-se de formas sem-
pre novas e surpreendentes. Em contraste, como per-
ceberam os mitologistas românticos, o símbolo per-
manece tenazmente sempre igual a si mesmo.239
Como vimos no capítulo precedente, o próprio Oi-
ticica reflete sobre a metáfora de maneira a aproximá-la
de tal definição da alegoria (apesar de não fazer uso deste
termo), no texto crítico-poético a respeito do Ovo de Ly-
gia Pape escrito em setembro de 1973. Mas é nas Cosmo-
cocas e nas anotações que as acompanham que o artista
poderá desenvolver mais amplamente essa proposta.
Por um momento detenho-me no retrato de Ma-
rilyn Monroe usado na CC3 Maileryn. Trata-se, sem
dúvida, de um símbolo (no caso, um sex symbol), mas a
238 Itaú Cultural/ Programa HO, n.° de tombo 0189/73, p. 07/11
(nota de 22/06/1973).
239 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Pau-
lo: Brasiliense, 1984, p. 205.
155
fragmentação que Oiticica e Neville D’Almeida lhe im-
pingem – com os rastros de cocaína, a descontinuidade
marcada pelo intervalo entre slides e o papel do acaso na
ordem das imagens e em outros elementos da situação
proposta – faz dele uma alegoria, deslocando-o de sua
significação mass media e abrindo-o, surpreendentemen-
te, para outra coisa. Essa ‘outra coisa’, porém, não se cris-
taliza – diferentemente das alegorias barrocas de que trata
Benjamin – em uma outra significação. Ela de fato “pre-
cisa desenvolver-se de formas novas e surpreendentes”,
como citamos acima, porque não cessa jamais de reenviar
para outra coisa, impedindo que se chegue a um signifi-
cado definido. Talvez o que mais atraísse Hélio em Mari-
lyn fosse o fato de que “aquilo que era ou fora criado para
manter MARILYN-imagem” seria “anulado pela própria
atuação MARILYN-viva”240. Viva, Monroe quebrava sua
imagem, de maneira múltipla, anulando sua fixidez.
Podemos dizer que um primeiro momento da ale-
goria consiste justamente em uma operação que impede
que o objeto possua uma significação própria, irradie em
si um sentido único. Em consequência disso, Benjamin
afirma que o objeto só poderá ter a seu dispor
uma significação, aquela que lhe é atribuída pelo ale-
gorista. Ele a coloca dentro de si, e se apropria dela,
não num sentido psicológico, mas ontológico. Em
156
CC3 Maileryn, Block experiments in Cosmococa. Com Neville D’Almeida. Nova York,
1973. Foto Hélio Oiticica
suas mãos, a coisa se transforma em algo de diferente,
através da coisa, o alegorista fala de algo diferente, ela
se converte na chave de um saber oculto.241
A alegoria pode ser vista, portanto, como o procedi-
mento retórico que permite que as coisas tomem algum
sentido, assumindo contudo explicitamente que não se
trata de uma significação que lhes seria imanente, mas
apenas algo tomado emprestado de outra coisa. “Cada
pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer
outra”242. A alegoria faz da significação uma apropriação,
ressaltando o fato evidente (porém denegado na vida
cotidiana), de que ao falar de algo, estamos ao mesmo
tempo falando de algo diferente. Allos é outro, agoreuein
é dizer publicamente. Coube à psicanálise explicitar, na
Cultura, o fato de que a fala tem a potência de dizer outra
coisa diferente daquilo que ela enuncia manifestamente –
fato que já era bem sabido e explorado, sem dúvida, na
retórica e nas artes.
Mas não se trata apenas de duplicar o discurso,
acrescendo à fala consciente uma semelhante a ela, porém
subtraída à consciência. Se um objeto pode, tomado pela
alegoria pós-moderna de Hélio Oiticica, se transformar
em algo diferente de si mesmo, ele não se converte na cha-
158
ve de um saber oculto, como na alegoria segundo Benja-
min. Nada está oculto, nada pode revelar: tudo denuncia
a representação como engodo e mostra às claras a limita-
ção da linguagem em dar conta do mundo. Resta, então,
a possibilidade de dizer outramente. Nem tanto significar
outra coisa, diferente daquilo que é dito – o objetivo aqui
é dizer sempre de outra maneira, questionando a linearida-
de da significação de modo a fazer algo significar inúmeras
coisas e portanto nada em definitivo, à maneira do que
denominamos “metáfora dispersiva” no capítulo anterior.
Há uma dimensão de excesso na linguagem e a alegoria
a revela e desdobra, mostrando sua potência ao mesmo
tempo corrosiva (do sentido) e produtora de gozo.
A exploração do inconsciente pela psicanálise dese-
nha as mesmas linhas de força. Não se trata exatamente
de fornecer uma interpretação que revele uma significa-
ção latente e diferente daquela manifesta na consciência,
e assim chegar à verdade da linguagem, graças ao incons-
ciente. Este não é um conjunto de enunciados subtraído
ao conhecimento, e sim uma potência desorganizadora
dos discursos na medida em que toma palavras como coi-
sas e privilegia sua materialidade como significante ou
letra, em detrimento da dimensão do sentido. O trabalho
inconsciente explora, sobretudo, a dimensão equívoca da
palavra, desdobrando a significação em múltiplas vias
159
não excludentes (mesmo quando contraditórias) e infini-
tas. Em um processo psicanalítico, a interpretação abre as
comportas de tal trabalho inconsciente, desorganizando
a realidade e apontando, com alguma poesia, o gozo de
estar tomado na trama da linguagem.
160
ao termo sublimação244. Mesmo transformado em suave e
consoladora enlevação, ele não deixa de transmitir, por-
tanto, algum gozo, alguma desmedida.
A arte nos permite tirar gozo de “ilusões conhecidas
como tais”, afirma também Freud. Restringindo desta for-
ma seu escopo às “ilusões”, o psicanalista nota que a arte
não seria capaz de nos fazer esquecer “a miséria real”245.
As ilusões formam, contudo, um domínio nada despre-
zível, segundo a teoria psicanalítica. Elas relacionam-se
com as fantasias – que, à maneira das ficções literárias,
conformam narrativamente o vivido, estruturado-o. A
realidade não é o que se opõe à fantasia, mas algo que
com ela se constrói. Para o psicanalista, o comportamen-
to saudável seria aquele que busca, em alguma medida,
modificar a realidade, e é do mundo da fantasia que vem
o material para as “novas construções de desejo” capazes
de transformá-la.246
O homem saudável seria aquele capaz de transpor
suas fantasias desejantes em realidade, o que consiste em
um importante trabalho psíquico, como concebe Freud
161
em 1909247. Uma outra via, paralela a esta, seria a da cria-
ção artística. O artista é capaz de transpor suas fantasias
em criações que lhe permitem reganhar o terreno da “re-
alidade”, na medida em que elas são compartilhadas por
outros homens. Talvez nossa realidade esteja primordial-
mente na arte, esse terreno – de fronteiras tão mal defini-
das e sempre sujeito à dissensão – no qual algo do gozo é
tornado comum.
A arte provê, sem dúvida, novas “construções de
desejo” que abrem caminhos diferentes para as pulsões.
Especialmente a pulsão sexual, diz Freud, seria levada a
substituir seus objetos por outros e assim a
deslocar as condições de sua satisfação, a transferi-las
para outros caminhos, o que na maioria dos casos
coincide com a nossa bem conhecida sublimação (das
metas das pulsões) (…). A sublimação das pulsões é
um traço especialmente destacado do desenvolvimen-
to cultural, ela possibilita que atividades psíquicas
superiores – científicas, artísticas e ideológicas – re-
presentem um papel tão significativo na vida cultural.
Quando se cede à primeira impressão, fica-se tentado
a afirmar que a sublimação é, antes de tudo, um des-
tino imposto às pulsões pela cultura. Mas é melhor
refletir mais sobre isso.248
162
É melhor refletir mais, porque a arte nem sempre
é pacificadora e a favor da cultura em suas vias já esta-
belecidas. A sublimação não está sempre alinhada às leis
e à tradição na posição contrária à satisfação direta das
pulsões, e portanto não se trata de a cultura via de regra
reprimir a pulsão. Mais adiante no mesmo texto, o psi-
canalista conjectura que talvez não seja apenas “a pressão
da cultura, mas algo na essência da própria função (a da
vida sexual) que nos nega a satisfação completa e nos im-
pele para outros caminhos”249. Não se trata exatamente
de uma oposição entre cultura e pulsão refletindo aquela
dualidade, mais antiga, entre natureza e cultura. A pulsão
já é cultural e portanto já carrega em si impossibilidade
e plasticidade. A arte retoma e explora essa condição e a
potencializa, dela extraindo gozo.
Com a sublimação, trata-se, então, menos de subs-
crever às valorizações culturais já estabelecidas do que de
retomar e transformar um tanto o vínculo ambivalente e
conflitante que constitui o sujeito na cultura. Como diz
Lacan comentando os escritos de ninguém menos do que
Sade, a obra de arte pode ser “uma experiência que, por
seu processo, arranca o sujeito de suas amarras psicosso-
ciais” – e nos impede “qualquer apreciação psicossocial
da sublimação de que se trata”.250
249 FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura, p. 115.
250 LACAN, Jacques. Le séminaire. Livre VII. L’éthique de la psycha-
nalyse. Paris: Seuil, 1986, p. 237.
163
A sublimação não pode ser confundida com algu-
ma adaptação psicossocial. Em vez de domesticar o gozo
graças à escolha de proposições e objetos culturais como
metas e objetos de desejo, ela pode, por incitação desses
objetos ou ações, colocar em pauta o gozo em toda sua
força de revolta – aquela revolta, justamente, que destrói,
mas também constrói cultura.
A tentativa de destruição de ilusões e de convocação
do gozo tem longa tradição. No Brasil, o modernismo
não deixou, desde a semana de arte moderna, de adotar
este tom, como mostra uma passagem de Amar verbo in-
transitivo, de Mário de Andrade, que, com um deboche
que não deixa de antecipar o de Oiticica em algumas pas-
sagens, mostra uma reflexão consistente oriunda de uma
leitura crítica que parece crítica mas é, no fundo, profun-
damente fiel a Freud:
Sublime é ser da Terra e evoluir que nem o cristal,
a fruteira e o mico. (...) Sublime é vencer o anjo...
iluminado? iluminado, das forças psíquicas e subir
pedestremente a rua Martim Francisco ou a aveni-
da Angélica, é indiferente, contanto que se chegue
na avenida Higienópolis, entrar de novo em casa, se
deitar, e enfim dormir (...). Porém sucede que o anjo
das forças psíquicas, iluminado? iluminado, vence al-
guma vez... A psicanálise chama isso de sublimação...
Vamos e venhamos: que sublimação essa tão pouco
sublimizante que perverte, anormaliza e excetua a
164
gente! Não tem guerê nem pipoca: a sublimação é um
contratempo. E o cidadão vira fenômeno e se chama
Anacreonte, Petrarca ou Dirceu, monstros de feira!
Como é ridículo o poeta! Ridículo imaginar coisas,
gozar, sofrer imaginações. E é por esses raciocínios
que não me rio da ararice humana, porém do meu
ridículo particular. Considero-o absolutamente cômi-
co. ABISSOLUTAMENTE.251
A sublimação parece mais perverter do que levar a
qualquer “evolução” civilizatória, de fato. Lacan notaria a
seu respeito, quase meio século mais tarde, que “sublime
quer dizer o ponto mais alto do que está em baixo”252. Se a
arte convoca gozo, isso nada tem a ver com qualquer apa-
ziguamento ou adaptação à realidade – aliás, para Lacan,
gozo é “o que não serve para nada.”253
Não serve para nada, a não ser confrontar com um
“núcleo opaco”254. Bem distinto do coito em si, o sexual
é no humano o domínio desta opacidade impossível de
representar que Lacan chama de real.
165
A saturação do real
Em nota de junho de 1973, Oiticica escreve:
ineficácia da representação (como mundo,
meio de vida): a realidade do ‘estar aqui’
Do ‘momento vivido’ é mais do q
a representação dela.
– resolução nenhuma pode ou deve ser buscada numa
‘nostalgia do viver
natural’ pré-representação – resolução
‘para-além da representação’ só pode ser
atingida pela saturação existencial (...)255
Em contraste com a sublimação, que em química
significa a passagem de um elemento do estado sólido ao
gasoso, sem passar pelo estado líquido, o termo saturação
indica a estase de uma solução em seu ponto máximo
de concentração do soluto. Em físico-química, saturado
está o ar quando contém todo o vapor de água possível,
em dadas condições de temperatura e pressão. A subli-
mação carrega a ideia de uma transmutação um tanto es-
petacular (o “mais baixo”, digamos, tornando-se o ponto
“mais alto”, de imediato), enquanto a saturação denota a
permanência no estado gasoso ou líquido em seu ponto
extremo, prestes a se transformar. Basta adicionar pouco
mais do soluto, e a solução se tornará outra coisa: caso
166
aconteça uma pequena alteração da temperatura ou pres-
são, o vapor se tornará chuva, por exemplo. A saturação
indica um equilíbrio precário, prestes a se romper. Insis-
tência no ponto de quase transformação.
Saturação também indica exagero, impregnação,
intensidade. Em lugar da exaltação e da purificação que o
termo sublimação evoca, a saturação existencial concebida
por Hélio Oiticica tem a ver com a afirmação de um mo-
mento desejante vivido de forma intensa e, eventualmen-
te, com o auxílio da cocaína ou da maconha. Não se trata
de buscar uma resolução da tensão entre representação e
vivência no elogio de uma vivência pré-representativa. É
curioso que o artista não se refira aqui a Merleau-Ponty
e seu mundo pré-reflexivo – ou talvez se limite a aludir
a ele para rapidamente rejeitá-lo. Seja como for, é cla-
ro no pensamento heliano que não se trata de recuperar,
pela “vivência”, um momento do ser “bruto”, anterior à
representação, à linguagem, mas sim de levar a experiên-
cia a seu ponto máximo de tensão, aquele onde não há
mais ser unificado – e a representação, correlativamente,
se fragmenta e critica.
Uma vez fragmentada a representação, trata-se, tal-
vez, de retornar ao real, como seria o caso, segundo Hal
Foster, em boa parte da arte contemporânea. Se trataria
do que ele chama “realismo traumático”256. Baseando-se
256 FOSTER, Hal. The return of the real. Cambridge/Londres: MIT,
1996, p. 130.
167
em Lacan e pensando em Andy Wahrol, entre outros ar-
tistas, o crítico americano vê em trabalhos como Ambu-
lance Disaster (1963) não apenas uma representação de
algo que poderia ser tomado como traumático (o aciden-
te), mas a produção de uma espécie de trauma na própria
estrutura da obra, na repetição da imagem e no apareci-
mento de manchas sobre essas imagens. O trauma, que
vem de ‘ferida’, em grego, é algo que eventualmente fere
fisicamente, como, no exemplo dado por Freud, um aci-
dente de trem. Mas o trauma é também uma ferida na
tela da representação, um corte como o de Lucio Fon-
tana no linho do quadro. Sob modos diversos, e eventu-
almente tornando a imagem um mero simulacro, a arte
pós-moderna efetuaria, para Foster, uma virada: “da rea-
lidade como um efeito de representação para o real como
uma coisa de trauma”.257
Freud liga intimamente o trauma à pulsão de morte.
Trata-se de uma situação de extremo assujeitamento, na
qual uma grande soma de excitação é vivenciada de ma-
neira passiva e sem preparação prévia. Esse gozo, que rom-
pe as barreiras que separam o prazer do desprazer, pede
repetição. Assim, um acidente de trem pode ser frequente-
mente revivido em pesadelos, por exemplo. A compulsão à
repetição é o modo de funcionamento da pulsão de morte
e busca tornar representação isso que foi vivido como um
168
brusco encontro com o real. Pela repetição, toma lugar
o sujeito, na tentativa de se assenhorar minimamente do
que foi sofrido de maneira totalmente passiva.
Na busca de um “para além da representação” por
Hélio Oiticica, o gozo é convocado e explorado (amansa-
do, tornado jogo) através da presença da droga. A “satu-
ração existencial” traz o ponto de excesso, a tensão gozosa
na qual a arte torna-se vida mais radicalmente, rompen-
do as delimitações do campo da representação de forma
tão vigorosa quanto o do corte de Fontana, porém sob
um modo distinto. A busca da “cor-luz”, no início da
reflexão de Oiticica, já dava mostras de uma espécie de
saturação da cor, “para que ela esteja pura como ação”
no tempo258. Alguns meses mais tarde, em maio de 1960,
Hélio anotava: “É preciso que a cor viva, ela mesma (…).
É preciso que o homem se estruture”259. Nas Cosmococas,
o rompimento com a representação se radicaliza pela re-
cusa da tela (sobre a qual normalmente se projetam os
slides) como seu suporte – para fazer da luz branca do
projetor mais um slide, que deve ser mostrado na mesma
duração de tempo que os demais, como ele afirma nas
notas sobre CC6. Nada além da luz – afastando o mundo
dos objetos, da representação, para que surja o real que o
169
sustenta (brilhante demais, chegando a quase cegar, coisa
fulgurante). O sol que me banha, ou o fogo fora de sua
lata (para aludir, mais uma vez, ao bólide lata-fogo). Em
nota de 1960, Oiticica citava Goethe: “Não há maneira
mais segura de afastar o mundo nem modo mais seguro
de enlaçá-lo do que a arte”.260
A luz artificial do projetor de slides pode ser to-
mada como uma espécie de domesticação, pela cultura,
do fogo que a natureza caprichosamente apresentava à
humanidade. Em um singular ensaio escrito em 1931,
Freud aborda o mito de Prometeu para fazer deste per-
sonagem um modelo de herói cultural: o homem que
teria roubado o fogo dos deuses e renunciado a apagá-lo a
seu bel-prazer (urinando sobre ele, supõe curiosamente o
psicanalista)261. Prometeu teria, por assim dizer, colocado
o fogo em uma lata, fazendo dele um instrumento funda-
mental para o desenvolvimento cultural. Do real, a cul-
tura. Em seu célebre texto sobre o cubismo, Guillaume
Apollinaire já afirmava, em 1913, que os “novos artistas”
necessitam de uma beleza que seria a própria “expressão
do universo, à medida que ele se humanizou na luz”. E
ele conclui seu ensaio, poucas linhas abaixo, com essa sur-
preendente declaração: “Amo a arte de hoje porque amo,
170
acima de tudo, a luz, pois todos os homens amam, acima
de tudo, a luz: foram eles que inventaram o fogo”.262
Em Lacan, encontramos a respeito do fogo a se-
guinte menção, que ele não desenvolve mais longamente:
De onde vem o fogo? O fogo, é o real. Isso põe fogo
em tudo, o real. Mas é um fogo frio. O fogo que
queima é uma máscara, por assim dizer, do real. O
real deve ser buscado do outro lado, do lado do zero
absoluto.263
O projetor, a luz artificial é um “fogo frio”: imitação
controlada das chamas e do fogo do sol.
Em um de seus Notebooks, Hélio Oiticica anota,
em 1974:
COSMOCOCA a cada fragmento se modifica e
acaba por formar como q uma GALÁXIA
de INVENÇÃO de manifestações individuais
poderosas:
LUZ Q INTENSIFICA:
MAIS LUZ:
MAIS COOL Q O COOL:
CALL ME HELIUM do Hendrix 264
262 APOLLINAIRE, Guillaume. Sobre a pintura. Pintores cubistas.
Porto Alegre: L&PM, 1997, p. 27.
263 LACAN, Jacques. Le séminaire. Livre XXIII. Le sinthome. Paris:
Seuil, 2005, p. 121.
264 Itaú Cultural/ Programa HO, n.° de tombo 0318/74 - 15/24, p.
05/06. Nota de 28/06/74.
171
O gás hélio foi descoberto pela análise do espectro
solar durante um eclipse, e por isso foi batizado com o
nome do deus grego do sol. Além de ser o mais leve gás
existente, ele tem algo de sol, de luz. A invenção é, para
Oiticica, luz intensa gerando mais luz, de maneira ex-
cessiva e autoengendrante (seguindo a lógica das galáxias
infinitas – de letra, de cosmos – de Haroldo de Campos).
Mas a luz é cool nos dois sentidos do termo inglês: des-
colada, leve e fria, ela é quase o próprio ar, o céu-luz que
Hélio já é.
O real talvez seja a própria luz (o sol, em última
instância), condição básica de todo olhar – que delineia
um espaço no qual pode surgir um sujeito (chamado Hé-
lio, eventualmente). Pouco depois de falar do real como
fogo frio, porém, Lacan toma outra direção para dizer
que o real não é mais que “um pedaço”, um troço, “um
caroço”265. Só temos acesso a pedaços do real.
Sem escala
Em seu Delirium ambulatorium, já de volta ao Rio
de Janeiro, Hélio exercita a ruptura extrema do sistema
representativo simplesmente andando pelas ruas da
cidade (o que curiosamente lembra Rimbaud e seu “sou
172
pedestre e nada mais”266, além de remeter à flânerie tão
cara a Baudelaire e seu maior leitor, Benjamin). A peça
Manhattan Brutalista (1978) é um pedaço de asfalto
achado nos escombros das obras na Avenida Presidente
Vargas. Essa coisa, esse troço é tornado alegoria: além de
lembrar o contorno da famosa ilha da qual o artista chegara
há pouco, ele lhe “faz pensar em Gaudi e Kioto”267. De
um encontro um tanto bruto (brutalista, ao menos, com
sua carga de asfalto e modernidade) com o real, Oiticica
faz uma quase representação, uma metáfora dispersiva na
qual se põe em questão a possibilidade de um pedaço do
mundo representar outra coisa. Nesse movimento, toma
lugar o sujeito, em sua relação conflitante porém poética
com a cultura. Com gozo e não sem ironia, pastiche,
sátira. Na busca incessante pelo real, demarcando-se da
coisa informe apenas por um gesto, e graças a uma certa
luz, trata-se de um retorno do sujeito.
Devolver a terra à terra (1979) leva ao extremo a
eliminação da distância entre a representação e a coisa
representada. Trata-se de uma espécie de dobra do real
sobre ele mesmo, em um gesto que talvez seja aquele do
266 RIMBAUD, Arthur. Rimbaud por ele mesmo. São Paulo: Martin
Claret, s/d., p. 137.
267 BRETT, Guy. O exercício experimental da liberdade. Hélio Oiticica
(catálogo da exposição retrospectiva), p. 237.
173
qual parte toda representação. Um torrão de terra oriunda
de outro local é assentada sobre a relva no aterro de lixo
do Caju, perto do porto do Rio de Janeiro, cuidadosa-
mente enformada por um molde de madeira de 80cm de
lado, que em seguida é retirado. Terra sobre terra, como o
branco sobre branco de Malevitch. Oiticica nomeia esta
ação “contrabólide”: “é a contraoperação poética da q ge-
rou o BÓLIDE”268. Na proposta de trabalhos que, como
o Bólide Vidro 4, Terra (1964), consistiam em potes de
vidro ou caixas contendo terra ou pigmento, tratava-se de
uma “súbita identificação” de uma “concepção subjetiva
com o objeto já existente como necessário à estrutura da
obra”, e essa identificação – como vimos acima, no en-
saio “Uma arquitetura comum…” – revela que o objeto
não é oposto ao sujeito, mas nele já se encontrava, de al-
guma maneira. Nos contrabólides, em contraste, trata-se
não mais de conter e guardar a terra ou pigmento, mas
de concretizar “a presença de um pedaço de terra-terra”,
dando-lhe “uma concreção primeira e contida afastando-
-a do estado disperso naturalista”. O sujeito perde de vez
sua primazia, sua preeminência na lida com o objeto, na
“concreção” que afirma o real como matéria primeira de
onde irão surgir objeto e sujeito. Hélio afirma que não
174
lhe interessa, no Devolver a terra à terra, acentuar a na-
tureza, como nos Earth Works americanos. Ao contrário,
nós diríamos: importa-lhe acentuar a cultura, o gesto
(talvez não muito distante daquele que criou a lata-fogo)
capaz de fazer da terra, arquitetura (para o sujeito e, em
jogo com ele, o objeto).
Por isso o contrabólide é um programa-obra in
progress que deve ser repetido “quando houver ocasião-
-necessidade para tal”, escreve Oiticica269. Seu caráter de
“concreção de obra-gênese” é apresentação disso mesmo
de que se trata, na cultura: construir um lugar (com a
representação e indo além dela, contra ela) para o sujeito.
O Ready constructible, de 1978-79, já colocava em
primeiro plano essa radical proposta, mostrando como
o acento neoconstrutivista brasileiro se alinha e ao mes-
mo tempo se demarca e singulariza no campo da arte
contemporânea. Em uma caixa de madeira, sobre a terra,
ergue-se um cubo feito de tijolos com espaços regulares
entre eles, formando uma trama, uma construção vazada
como os nossos cobogós. As quatro paredes baixas deli-
mitam uma pequena área vazia em seu centro.
Este trabalho é herdeiro do conceito do ready made,
mas o critica e transforma, ao afirmar que
175
ele instaura
FUNDA ESPAÇO
FUNDA ESPAÇO
(EM) ABSOLUTO
: herd o IN-OUT
o dentro e o fora
huis-clos
aberto-fechado
aberto-aberto
fechado-fechado270
Em vez de se colocar, como o ready made, no terre-
no da crítica do estatuto do objeto de arte e da acentua-
ção (também crítica) do gesto do artista como produtor
do objeto, o ready constructible vai além do objeto para
retomar a questão do espaço, seguindo à risca o projeto
neoconcreto e evocando novamente a estrutura da fita
de Moebius que conjuga dentro e fora em um mesmo
movimento de subversão do sujeito. Ele ganha o espa-
ço, pondo o suporte em questão para fazer-se no mun-
do, do modo mais radicalmente concreto. E se assume
como arquitetura mínima, arquitetura começando a se
fazer, construindo, do espaço, algum lugar para o sujeito.
Como a oposição complementar entre objeto e sujeito
há muito já havia sido ultrapassada por Oiticica, em prol
de um ato fundante, não interessa a ele o caráter já aca-
176
Ready Constructible nº 1, 1978. Foto César Oiticica Filho
bado, pronto, do ready made, mas o gesto, o “exercício”
que origina e está, portanto, sempre entre o pronto e o
inacabado:
exercício meu extremo entre
o READY e o INACABADO:
estrutura
determinada sem começo-meio-fim:
impossibilidade
e total declaração de q a existência de uma
possível escultura, possa ter sentido
nos dias de hoje:271
Escultura é estrutura, construção se fazendo e ori-
ginando mundo, arte, homem. O ready-constructible é
“in-corporação” total do que antes Hélio chamava “am-
biental”. Nele nada é narrativo ou linear, com começo,
meio e fim: tudo é adensamento, coisa informe, concre-
ção extrema, gérmen concentrado do qual poderá surgir,
em um desdobramento, alguma narrativa. Segundo Guy
Brett, aí “o próprio objeto é uma espécie de esqueleto
para o pensamento” 272. Objeto-conceito.
Hélio prossegue afirmando se tratar de “um exer-
cício de concreção do não concluído” ou da “proposta
de estruturas determinadas do exercício do indetermina-
178
do”. Achar um objeto é fácil, difícil é fazer um objeto ou
escultura que seja capaz de mostrar o seu próprio fazer,
em ato e em processo, entre indeterminação e conclusão.
Mundo erigindo mundo.
O READY CONSTRUCTIBLE N. 1
q funda espaço
se ergue num terreno
(mini-maxi terreno já q
é algo sem escala)
barrento como se fora algo
moldado todo da mesma massa: como
se fora (e o é) algo indeterminado
não se sabendo onde começa
(ou por onde se começa)
o sólido e o arenoso
e quem sabe o q
poderia vir a ser
lama-líquida273
Sem escala, essa estrutura extrema é o próprio real.
Como lama líquida que não é ainda tijolo mas não é mais
terra, trata-se aí de algo indeterminado, pronto para virar
linguagem, objeto. Coisa da qual surgirão sujeito e objeto.
Em seus escritos sob efeito da mescalina, Henri Michaux
registra que palavras ou música não têm qualquer efeito
sobre ele, e anota: “apenas o real semeia e produz”.274
179
Como uma espécie de arquitetura mínima, pílula de
cultura que convida o sujeito, o último “acontecimento”
realizado por Hélio, Esquenta pro Carnaval, em janeiro de
1980, consistia em uma tábua de 60cm de lado coberta
de ladrilhos. Apresentando este projeto em sua última en-
trevista, o artista falava em “levar a descoberta do espaço
urbano à favela” e se refere à tábua como uma “área” que
iria “funcionar como área para maquete e área local”. E
prosseguia:
Uma coisa mini e maxi ao mesmo tempo. Quero co-
locar esse quadrado ladrilhado num determinado lo-
cal e deixar lá por um determinado tempo. Depois
transfiro para outro lugar. Em seguida trago para casa
no fim do dia. Mais adiante ele vai servir para outra
finalidade. Fica assim como uma espécie de espaço
limitado-ilimitado.275
Muitos anos antes, em uma anotação de 1960, Hé-
lio já dizia que “a criação é o ilimitado”, e que “é preciso
movimentar o ilimitado, que é nascente, sempre novo;
faz-se”276. Para movimentar o real, trata-se, em 1978, de
construir uma estrutura mínima, um gérmen de arqui-
tetura que quer, saturadamente, mostrar, terra sobre ter-
ra, algo que persiste, indeterminado, bruto, opaco, afir-
180
mando-se na fundação de um espaço para o sujeito. Vaso
construtivo, caverna construída: tábua ou ladrilho sobre
terra. Cultura e sujeito em obra.
Nesse ponto de saturação, diante desse objeto ca-
paz, por um segundo, de suspender mundo e linguagem
em um mesmo hiato, se foi Hélio Oiticica em morte
precoce. Persiste, saturada, bela e enigmática, ao mesmo
tempo sólida e delicada, construída e sempre a se refazer,
sua móvel arquitetura.
181
ANEXO
Über Coca, 1973
Referências
189
BLANCHOT, Maurice. L’Écriture du désastre. Paris: Gallimard, 1980.
BRAGA, Paula (org.). Fios soltos. A arte de Hélio Oiticica. São Paulo: Pers-
pectiva, 2008.
190
FERREIRA GULLAR; OLIVEIRA BASTOS & JARDIM, Reynaldo.
Poesia concreta: experiência intuitiva. Experiência neoconcreta. São Paulo:
Cosac Naify, 2007.
Hélio Oiticica (Encontros) (org. de Cesar Oiticica Filho, Sergio Cohne In-
grid Vieira). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.
191
LACAN, Jacques. Le séminaire. Livre VII. L’éthique de la psychanalyse. Paris:
Seuil, 1986.
LACAN, Jacques. Le séminaire. Livre XVIII. D’un discours qui ne serait pas
du semblant. Paris: Seuil, 2006.
192
MALLARMÉ, Stéphane. Um lance de dados jamais abolirá o acaso (tradu-
ção de Haroldo de Campos). CAMPOS, Augusto; PIGNATARI, Décio.
& CAMPOS, Haroldo. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2006.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 2006.
OITICICA, Hélio. Pape: Ovo, in Lygia Pape. Gávea de tocaia, São Paulo:
Cosac & Naify, 2000.
PEDROSA, Mário. Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975.
193
PEDROSA, Mário. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Pau-
lo: Perspectiva, 1981.
RIMBAUD, Arthur. Rimbaud por ele mesmo. São Paulo: Martin Claret, s/d.
194
Agradecimentos
195