Universidade Popular REPO
Universidade Popular REPO
Universidade Popular REPO
e encontro de saberes
Rosângela Pereira de Tugny
Gustavo Gonçalves
organizadores
Universidade popular
e Encontro de Saberes
Brasília, DF
Instituto de Inclusão no Ensino
Superior e na Pesquisa – UnB
Salvador
EDUFBA
2020
Desenho de Capa
Zé Antoninho Maxakali
Revisão
Mariana Rios
Normalização
Sandra Batista
ISBN: 978-85-232-2054-9
CDD – 378.1
Editora afiliada à
Editora da UFBA
Rua Barão de Jeremoabo
s/n – Campus de Ondina
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Tel.: +55 71 3283-6164
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9 Apresentação
13 Introdução
Encontro de Saberes, descolonização e transdisciplinaridade:
três conferências introdutórias
José Jorge de Carvalho
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
O presente texto, introdutório a este volume, foi construído como uma síntese de
três conferências que tive a honra e a oportunidade de proferir na Universidade
Federal do Sul da Bahia (UFSB), durante os cinco primeiros anos de sua cria-
ção. Em todas essas ocasiões, falei sobre o Encontro de Saberes, um movimento
que consiste na inclusão de mestras e mestres das comunidades, povos tradicio-
nais e culturas populares como docentes das universidades brasileiras e latino-
-americanas em disciplinas regulares. A primeira, proferida em 25 de novembro
de 2014 no campus Jorge Amado, foi intitulada “Universidade e saberes práti-
cos, populares e tradicionais”; a segunda, em 18 de fevereiro de 2016, como aula
inaugural no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (Ihac) do campus Sosí-
genes Costa, “A universidade enraizada: um lugar para todos os saberes e todos
os que buscam saberes”; e a terceira, ministrada na ocasião do evento Universi-
dade Popular e Pluriepistêmica, em julho de 2018, por ocasião do seminário que
serviu de base para o livro.
São Paulo leva, sem exagero, 50 anos de avanço sobre seus irmãos mais
adiantados e possui mentalidade inteiramente diferente dos seus com-
patriotas, tendo capacidade de realização incomparavelmente superior
ao restante dos brasileiros; foi assim desde o índio da história do Brasil e,
cada vez mais, esse fenômeno se acentua.
1 Realizei minuciosamente essa pesquisa na ocasião em que escrevi o livro Inclusão étnica e racial no Brasil:
a questão das cotas no ensino superior (2006). Sobre a história da USP, ver: Campos (1954).
2 Ver a obra The humboldtian tradition: origins and legacies (2014), dedicada a reavaliar a, hoje em dia,
quase mítica proposta de reforma de Humboldt.
3 Discorri sobre o modelo humboldtiano em outros escritos. Ver: Carvalho (2018), Carvalho e Flórez-Flórez
(2014a, 2014b).
4 As imagens e os dados aqui apresentados foram elaborados na ocasião do II Seminário Universidade
Nova, realizado em 2007 pela UnB. Trata-se de uma série de slides reproduzidos sob o título de apre-
sentação: “O Plano Orientador de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro e o início da Universidade de Brasília
1962”. Ver: https://docplayer.com.br/4491686-O-plano-orientador-de-anisio-teixeira-e-darcy-ribeiro-e-
-o-inicio-da-universidade-de-brasilia-1962.html.
Como lemos no livro de Fausto Castilho, muitos anos depois, em 1974, como
se a USP ainda não estivesse completa, a Unicamp realizou, então, o sonho do
que seria uma universidade completamente humboldtiana. Castilho colocou
na capa desse livro a foto que retrata o modelo radial de círculos da Unicamp.
Dentro do livro, ele representa, na “Área 2”, os órgãos complementares – que no
modelo de Darcy Ribeiro estavam mais abaixo –; na “Área 1”, as faculdades; e
mais ao centro os institutos, com os institutos gerais no meio. A Unicamp não
apenas continuou o modelo humboldtiano, como também reproduziu espa-
cialmente a diferença entre as áreas do saber, de forma que um acadêmico do
campo da matemática passou a trabalhar, por exemplo, bastante distante de
outro(a) da arte.
Certamente, para Humboldt, essa separação era puramente mental – e isso
pode ser visto na arquitetura da Universidade Humboldt de Berlim, com um
grande edifício estendido horizontalmente. O físico poderia estar ao lado do
arquiteto em algum lugar, até no mesmo andar; era na cabeça que eles não
tinham nada a ver um com o outro. Mas, na concepção da Unicamp, resolveram
fazer mais: até mesmo fisicamente, as diferenças de áreas e funções deveriam
ser demarcadas. Esse fato nos permite refletir sobre uma colonização mental
extrema: utilizou-se a arquitetura como discurso que se desejou literal, como
se um conjunto de significantes espaciais fossem corresponder univocamente
a áreas de saber e a funções de ensino ou pesquisas distintas. Nesse caso,
a arquitetura foi colocada para induzir segregações disciplinares que não pre-
cisam dela para serem vividas.
No apêndice deste livro, foi colocada uma edição fac-símile do texto ori-
ginal de Humboldt em alemão, traduzido em páginas opostas para o portu-
guês. Suponho que isso foi feito para não deixar dúvida de que se trata de fato
do modelo humboldtiano e que a genealogia do projeto da Unicamp remete
diretamente à Berlim de 1807. Apesar dessa crítica, expresso meu respeito à
Unicamp como instituição universitária, assim como respeito minha própria
instituição, a UnB. Mencionei as duas como poderia ter as especificidades
de outras. Tratei de fazer aqui uma pequena ilustração de como funciona o
modelo de instituição adaptado para uma prática monoepistêmica de trans-
missão e criação de conhecimento – quadro que não espelha a diversidade
epistêmica da sociedade brasileira. Contudo, se a meta das duas foi crescer
como universidades exclusivamente eurocêntricas, elas tiveram sucesso até
agora. O desafio nosso é como construir uma meta de superação do modelo
eurocêntrico e passar a executá-la.
Podemos brevemente pensar a história desse modelo que nos colonizou.
A grande revolução científica dos séculos XVI e XVII consolidou um modelo
de conhecimento científico cujas bases eram a física e a matemática. Muito
resumidamente, entre Galileu e Newton, fechou-se um ciclo inteiro de con-
solidação da ciência moderna em que foi possível matematizar o movimento.
Passou-se a calcular o movimento e, a partir daí, matematizar o cosmos inteiro.
E mais ainda, propunha-se a possibilidade de matematizar a vida ao lado de
matematizar o cosmos. Após a física, a química seguiu esse procedimento no
início do século XIX, depois a biologia, e todas as outras disciplinas se orga-
nizaram matematicamente. Sinteticamente, as universidades modernas rees-
truturaram suas grades de saber com base nesse modelo de matematização.
As duas grandes reformas, tanto a napoleônica quanto a humboldtiana, foram
as responsáveis pela consolidação desse movimento. Os saberes tradicionais
que não se encaixavam nesse modelo ou que não vinham da tradição escrita
foram totalmente excluídos. Assim, foram excluídos todos os saberes de tradi-
ção oral e outros inúmeros saberes, também de tradição escrita, que eram cul-
tivados durante séculos e até milênios no continente europeu.5
As universidades brasileiras reproduziram integralmente esse modelo de
instituição acadêmica ocidental moderna sem a menor adaptação à nossa rea-
lidade. Tenho estudado as histórias das nossas instituições atrás de alguma
contraevidência, mas ainda não conheço nenhuma! A ideia que nós assimi-
lamos é a de que não existia medicina até a criação da Faculdade de Medicina
na Bahia em 1808. Mas devemos nos perguntar: como não havia medicina? Por
5 Discorri com mais detalhe sobre as duas reformas e sobre o impacto da revolução científica nas tradições
de saberes que nela não se encaixaram em outros textos: “Encontro de saberes e descolonização: para
uma refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras” (2018) e “Transculturality and
the meeting of knowledges” (2019).
acaso ninguém sabia nada de saúde no país? Os indígenas não conheciam nada
equivalente ao que nós chamamos de medicina? As comunidades afro-brasilei-
ras que estavam aqui há séculos não conheciam nada equivalente à medicina?
Nós aprendemos automática e irrefletidamente essas palavras: não havia aqui
nenhum saber, o que supostamente aconteceu somente quando a família real
portuguesa chegou aqui em 1808 e organizou a primeira Escola de Medicina.
Isso é uma cartilha que circula quase como uma lavagem cerebral: o conheci-
mento vem de determinado lugar, da Europa – e agora também dos Estados
Unidos – e a universidade é o seu depositário. Se não tem origem na universi-
dade, é porque, de alguma maneira, esse conhecimento é falho, inválido, irre-
levante, secundário ou errôneo.
Essa breve análise histórica nos leva a considerar que as universidades
brasileiras contribuíram para intensificar a desqualificação dos saberes indí-
genas e afro-brasileiros, ao invés de integrá-los desde a sua fundação. Houve,
ao mesmo tempo, uma oportunidade perdida e uma desqualificação, porque
as universidades também se construíram copiando o racismo original pré-uni-
versitário. Só que o racismo epistêmico – o endorracismo, obviamente, não o
exorracismo, que adquiria proporções globais – do mundo europeu era, empi-
ricamente falando, menor que o nosso, porque não há nem comparação entre o
vasto universo de saberes dos povos tradicionais com que contávamos (e ainda
contamos) aqui no Brasil e o reduzido campo correspondente dos países euro-
peus na época da consolidação da modernidade ocidental.
Por exemplo, ainda que a Inglaterra, a Alemanha ou a França o desejem,
talvez não tenham condições de realizar um Encontro de Saberes, porque
não contam com mestres e mestras tradicionais. Falo aqui dos três países
hegemônicos da episteme ocidental, que são (coincidência ou não) de perfil
acadêmico e institucional extremamente monoétnico, monocultural e mono-
epistêmico. Felizmente, e até como resposta política da Áustria frente aos três
países mencionados, o Encontro de Saberes faz parte agora da Universidade
da Música de Viena, na Pós-Graduação em Etnomusicologia.6 Devemos per-
guntar: onde estão os mestres e as mestras deles? Eles foram varridos pela
modernidade. Nós temos, pelo contrário, uma abundância, o que é um para-
doxo, se consideramos a maneira como essa abundância não se vê refletida
dentro das nossas universidades.
Após copiar o modelo europeu por quase um século, copiamos agora
ainda mais intensamente o modelo epistêmico norte-americano, que parado-
xalmente é o mais pobre de todas as Américas na perspectiva de riqueza de
conhecimentos tradicionais, pois os Estados Unidos destruíram quase todas
as civilizações indígenas que lá existiam até a chegada dos ingleses. Nós, nas
6 Ver meu texto “Transculturality and the meeting of knowledges” (2019), no livro acerca do ciclo de confe-
rências sobre transculturalidade na Universidade da Música de Viena (MdW). O movimento da MdW é de
integrar a diversidade de tradições musicais do país – além da música ocidental, a turca, a croata, a romani, a
síria, entre outras – e, assim, passar de seu perfil secular monomusical para uma universidade plurimusical.
docentes. Dito de outro modo, não foi a episteme ocidental que condicionou
o nosso racismo acadêmico; pelo contrário, o nosso racismo pós-escravidão
potencializou o eurocentrismo das instituições universitárias cuja vocação
sempre foi, até muito recentemente, a reprodução exclusiva dos quadros da
nossa elite branca em todos os seus nichos – econômico, político, artístico, pro-
fissional, cultural etc.7
TRANSDISCIPLINARIDADE E EPISTEMOLOGIAS
DO COSMOS VIVO
Gostaria de abrir neste ponto a discussão sobre a noção da transdisciplinari-
dade. Ao atualizar o quadro fundador de Darcy Ribeiro com o organograma
acadêmico da UnB de hoje, percebemos como se intensificou a fragmentação
entre as áreas de conhecimento. Antigamente, a UnB tinha seis centros; atual-
mente, ela possui 12. O Instituto de Ciência Política e o de Relações Interna-
cionais, que antes estavam juntos, atualmente se tornaram dois. Além disso,
constata-se que aumentou enormemente o número de institutos, e eles agora
já não correspondem mais à grade humboldtiana do saber da qual retirou-se
seu modelo.
As razões dessas separações não são mais epistemológicas, são político-ad-
ministrativas e bem mais prosaicas. Os professores de alguns departamentos
passaram a divergir entre si, formaram blocos e depois se separaram e criaram
institutos autônomos e exclusivos para abrigar e confinar cada um dos colegia-
dos, que passam a assumir uma nova unidade administrativa, que é logo defi-
nida como uma área disciplinar. Além disso, as faculdades aumentaram muito
mais. Vemos, curiosamente, aparecer uma Faculdade de Educação e uma
Faculdade de Educação Física. Educação física não é educação? Observa-se,
no quadro a seguir, que há um Instituto de Física. Isso é estranho do ponto de
vista lógico: por acaso a física deixou de ser uma ciência exata? O marco lógico
se esgarça ainda mais no caso dos centros, cuja lista é heteróclita e provavel-
mente casuística. Confesso que não fui capaz de encontrar nenhuma lógica de
ordenação desse sistema.
7 O argumento inspirador de Marx e Engels (2007, p. 94) é um dos seus mais conhecidos: “Não é a consci-
ência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”. A discussão, assim, não começa
pela episteme, mas chega a ela pela análise da ação contínua do racismo.
o solo não me estuda, e também não pode interferir no modo em que eu o estudo.
Esse é um mundo cartesiano-newtoniano. Quando subimos para a agricultura,
esse problema se torna muito mais complexo. Agricultura é a união de outras
instâncias. Mas se o solo percebido pelas raizeiras e as mestras e os mestres tra-
dicionais é um solo vivo, a agricultura não poderá ser, portanto, fundada em uma
relação “sujeito-objeto”.
Quando Max-Neef avança nos seus níveis de inter-relação entre os campos
do saber, ele chega à relação na qual o objeto transforma o sujeito. Mas os sabe-
res das mestras e dos mestres funcionam em nível sutil e, dessa forma, pode-
ríamos fazer descender todo esse sistema de valores ao primeiro nível, pois as
águas, as árvores e as pedras seriam, assim, capazes de operar nessa relação
objeto-sujeito. Vemos que o mundo que Max-Neef descreve no primeiro nível
é um mundo inerte, e no mundo dos mestres e mestras não há mundo inerte, o
cosmos não é estéril: ele está vivo. Temos aqui o que eu chamo de uma “episte-
mologia do cosmos vivo”, enquanto o quadro de Max-Neef está falando de uma
transdisciplinaridade que se concebe dentro de uma epistemologia do cosmos
morto ou inerte.12 Essa é uma divergência.
Uma segunda divergência, que talvez seja o maior desafio para a construção
de uma universidade transdisciplinar e pluriepistêmica, é que Max-Neef está
pensando em um nível da inércia, da materialidade, mas a espiritualidade atra-
vessa todos esses níveis que ele postula. A agricultura é também espiritual, não
somente material; existe uma mística para a agricultura, há uma relação com
a terra e com as plantas. As Faculdades de Agronomia instaladas atualmente
nas nossas universidades não conseguem dar conta dessa questão. De fato, uma
universidade transdisciplinar pluriepistêmica baseada no Encontro de Saberes
incorporará uma dimensão espiritual na Faculdade de Agronomia.
Assim, a transdisciplinaridade que pode ser construída com base na teoria de
Max-Neef funciona para um universo monoepistêmico. Ela passa a operar dentro
dessa episteme ocidental moderna e gera um campo acadêmico transdisciplinar,
isto é, uma articulação multidimensional das disciplinas que requer a ativação
suplementar do paradigma complexo.13 O tipo de transdisciplinaridade de que
ele fala, portanto, eu denomino de “transdisciplinaridade especial ou restrita”.14
Ela pode ser chamada de restrita porque se refere apenas aos saberes escritos e,
mais especificamente, àqueles que obedecem ao letramento acadêmico. O conhe-
cimento, nesse caso, é articulado de diversas maneiras, porém somente dentro
do que o letramento científico permite. Nesse sentido, a transdisciplinaridade
12 Teorizei longamente sobre a epistemologia dos cosmos vivo no artigo "O Encontro de Saberes nas Artes
neste livro.
13 Lembrando que os dois propositores da Carta da Transdisciplinaridade, Edgar Morin e Basarab Nico-
lescu, são também dois reconhecidos formuladores da teoria da complexidade.
14 Retiro como metáfora de inspiração as duas relatividades de Einstein, a restrita ou especial, de 1905, e,
finalmente, a geral, de 1915, onde o espaço e o tempo não são mais lineares.
mundo acadêmico, que deverá refazer e, ao mesmo tempo, manter algum nível
de identidade das áreas e temas do saber, se não nos termos de uma disciplina,
certamente em algum outro. A transdisciplinaridade pode converter-se para nós
em um ponto de apoio dentro de um processo geral de descolonização: sair do
modelo humboldtiano já é um passo descolonizador.
Identifico quatro artigos da Carta da Transdisciplinaridade de 1994 que
mantêm afinidades mais diretas com o movimento descolonizador do Encontro
de Saberes.
O artigo 2º diz: “Toda tentativa de reduzir a realidade a um único nível,
regido por uma única lógica, não se situa no campo da transdiciplinaridade”.15
(CENTRO DE EDUCAÇÃO TRANSDISCIPLINAR, 1994, p. 2) Aqui temos uma
clara afinidade, pois os mestres transitam nas aulas por diferentes níveis de rea-
lidade, passando das relações com o mundo físico para as relações com as enti-
dades ditas sobrenaturais, isto é, o mundo dos espíritos ou dos seres (para nós)
invisíveis. E são várias as realidades por onde transitam.
O artigo 5º reforça a dimensão espiritual, quando reconhece a relação das
ciências exatas com “[...] as ciências humanas, [...] a arte, a literatura e a experiên-
cia interior”. (CENTRO DE EDUCAÇÃO TRANSDISCIPLINAR, 1994, p. 2) A expe-
riência interior é muito importante para uma academia pluriepistêmica, porque
os mestres, conforme dissemos, exercitam intensamente a sua vida interior, e
podemos chamar essas experiências de práticas espirituais; e, de fato, sem exce-
ção até agora, todos os mestres que já atuaram como docentes praticam alguma
linha espiritual, seja cristã, indígena, afro-brasileira, espírita ou sincrética. Essa
dimensão, portanto, é constituinte das suas aulas e de seu protocolo de pesquisa.
Essa conexão se aprofunda no artigo 10: “Não existe um lugar cultural privi-
legiado de onde se possa julgar as outras culturas. A abordagem transdisciplinar
é ela própria transcultural”. (CENTRO DE EDUCAÇÃO TRANSDISCIPLINAR,
1994, p. 3) O Encontro de Saberes é constitutivamente transcultural, porque esti-
mula o trânsito entre as várias culturas enraizadas no Brasil: culturas ocidentais,
indígenas, afro-brasileiras, quilombolas ou dos demais povos tradicionais.
Finalmente, o artigo 11 mantém a maior afinidade com os saberes dos mes-
tres: “Uma educação autêntica não pode privilegiar a abstração no conheci-
mento. A educação transdisciplinar reavalia o papel da intuição, do imaginário,
da sensibilidade e do corpo na transmissão dos conhecimentos”. (CENTRO DE
EDUCAÇÃO TRANSDISCIPLINAR, 1994, p. 3) Uma aula do Encontro de Saberes
é um trânsito por todas essas formas e canais de acesso ao saber e maneiras de
transmiti-lo. Ou seja, nós, por um lado, rejeitamos a camisa de força do modelo
humboldtiano e da epistemologia cartesiana-newtoniana; por outro, podemos
continuar dialogando com os acadêmicos ocidentais naqueles aspectos que são
importantes para nós.
Para além das afinidades, porém, as motivações podem não ser as mesmas.
Por exemplo, os formuladores da transdisciplinaridade não falam explicita-
mente de uma aproximação com as culturas tradicionais não letradas e se res-
tringem ao âmbito acadêmico. Por outro lado, conectar-se com as tradições orais
é um gesto prioritário para o nosso projeto descolonizador e pluriepistêmico do
Encontro de Saberes. Nesse sentido, temos pontos de partida distintos. O nosso
ponto é acolher as epistemes não ocidentais plasmadas nas tradições orais; já
o da abordagem transdisciplinar é superar a fragmentação do saber provocada
pela episteme ocidental gerada na revolução científica ocidental e instituciona-
lizada no modelo humboldtiano. Assim, trabalhamos no espaço convergente
entre a transdisciplinaridade e o Encontro de Saberes. Dito de outro modo, não
estamos trazendo a proposta criada na Europa para aplicá-la nas universidades
brasileiras; se o fizéssemos, estaríamos dando continuidade ao nosso processo
colonial. Estamos, possivelmente, exercitando o que Hans-Georg Gadamer16
chamava de fusão de horizontes: o transdisciplinar e o do Encontro de Saberes.
O que Edgar Morin (2005) e Basarab Nicolescu (1999) chamam de transdis-
ciplinaridade já é o modo de funcionamento dos mestres ao assimilar, reprodu-
zir e transmitir os seus saberes. Ao trazer os mestres, nós passamos a ter acesso a
um exemplo histórico concreto de superação do modelo humboldtiano e da epis-
teme cartesiana-newtoniana. Por outro lado, como dito anteriormente, a raiz “dis-
ciplina” no significante “transdisciplinaridade” nos é cara, porque temos o desafio
de encontrar uma nova taxonomia capaz de identificar e reconhecer as várias áreas
novas do saber que serão refeitas em uma universidade descolonizada e pluriepis-
têmica assim transformada pelo Encontro de Saberes. Em termos bem sucintos,
nosso movimento já organizou os saberes dos mestres em quatro grandes áreas
intercambiáveis e interpenetrantes: ciências, tecnologias, artes e espiritualidades.
Quanto à diferença entre as respectivas motivações, elas podem ser expli-
citadas com franqueza. No caso dos fundadores europeus da transdisciplinari-
dade, são as ciências exatas de ponta, as ciências humanas e as artes que, sepa-
radas uma das outras e cada vez mais fragmentadas em um processo de especia-
lização e mútuo afastamento, jogam assim o papel de catalisadores do diálogo
interdisciplinar que poderá conduzir à construção de um novo ambiente aca-
dêmico transdisciplinar. Nesse contexto, é possível afirmar que os mestres são
meio e fim para a transdisciplinaridade no nosso mundo. O Encontro de Saberes
realiza um ato descolonizador radical quando transcende a cena colonial estri-
tamente acadêmica e abre espaço para sujeitos não colonizados, até agora silen-
ciados e deslegitimados enquanto sábios, cientistas ou artistas.
Sem deixar de reconhecer o avanço da proposta transdisciplinar, devo insis-
tir que o Encontro de Saberes radicaliza o diálogo transcultural e transdisciplinar
ao incluir as culturas e as ciências orais tradicionais em igualdade de presença
17 A Declaração de Veneza está incluída como anexo na obra Educação e transdisciplinaridade (2000), do
Centro de Educação Transdisciplinar, nas páginas 172 a 175.
18 Os seminários foram realizados pela Secretaria da Identidade e da Diversidade do MinC.
Brasil uma reunião das mestras e dos mestres de saberes tradicionais de tal pro-
porção. Já no primeiro seminário, os mestres e mestras demandaram do Minis-
tério da Cultura (MinC) a sua entrada no ensino formal. Naquele ano, crescia
a discussão das cotas para negros e indígenas nas inúmeras universidades bra-
sileiras. Houve, então, uma afinidade e uma sincronia entre a luta dos jovens
negros pelas cotas para que entrassem como discentes e a dos mestres das cultu-
ras populares demandando entrar no ensino formal como docentes.
Em 2006, paralelo ao II Seminário, tivemos também o Primeiro Encontro
Sul-Americano das Culturas Populares. No primeiro seminário, houve uma
significativa discussão, que foi colocada em diversos momentos, na qual se
entendia claramente que a luta pelas cotas organizava também as demandas da
pluralidade epistêmica, uma vez que muitos dos mestres também são afro-bra-
sileiros e indígenas e alguns deles inclusive participavam da luta pelas cotas.
Assim, entre as diretrizes, as ações e recomendações retiradas do seminário de
2005 estão: “incluir as culturas populares no currículo do ensino fundamental;
incluir as culturas populares na grade curricular do ensino médio; incluir as
culturas populares na grade curricular do ensino superior; incluir mestres das
culturas populares nos quadros de professores das universidades”. (SEMINÁ-
RIO..., 2005, p. 164-165) Resumindo, tudo isso foi uma demanda da Rede das
Culturas Populares para o MinC. Na realidade, o MinC nem poderia respon-
der, por si mesmo, a essa demanda, porque a inclusão dos mestres depende do
Ministério da Educação (MEC).
Nesse cenário, houve um evento no Rio de Janeiro em dezembro de 2005,
no Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Estive em uma mesa-redonda
conjuntamente com Zulu Araújo19 e Cláudia Márcia Ferreira, diretora do Cen-
tro e Mãe Beata de Iemanjá, uma das grandes lideranças das religiões de matriz
africana, falecida em 2017. Nessa mesa-redonda, coloquei a necessidade de que
as Escolas de Música e de Arte ensinassem a música afro-brasileira.20 As nos-
sas Escolas de Música são de um eurocentrismo extremo: 90% do que ensinam
se restringe à música clássica europeia de 1600 a 1900, com raríssimas exce-
ções; não ensinam percussão afro-brasileira, não ensinam música indígena, não
ensinam quase nenhum das centenas de gêneros das nossas tradições musicais
populares. O eurocentrismo na música seria o exemplo mais óbvio da exclusão
epistêmica dos saberes artísticos não ocidentais, espaço em que muitos mestres
presentes estariam mais do que qualificados para atuar como professores.
Um resultado importante desses dois seminários foi a consolidação dos
significantes “mestra” e “mestre”. Todos os sabedores e sabedoras não euro-
cêntricos vinculados às culturas orais tradicionais brasileiras se encaixam no
significante “mestra” ou “mestre”: pais e mães de santo, os xamãs, rezadores ou
19 Edvaldo Mendes Araújo, mais conhecido como Zulu Araújo, então diretor da Fundação Cultural Palmares.
20 Ver: Carvalho (2005).
pajés indígenas, os líderes das religiões de matriz africana, os mestres dos gru-
pos de cultura popular, os mestres de ofício, as raizeiras, parteiras, benzedeiras,
os mateiros, os mestres de capoeira, luthier de instrumentos, entre outros. Com
essa palavra, conseguimos denominar um grande coletivo de sabedores e sabe-
doras excluídos do mundo universitário. Dez anos atrás, não era comum falar-
mos de mestres e mestras no ambiente universitário como agora falamos: a dis-
cussão não alcançava a densidade de hoje e não existia sequer uma gramática
para discorrer sobre esse tema. É um salto impressionante que possamos falar
disso agora, pois o próprio MEC não tinha, naquele momento, acúmulo de expe-
riência para discuti-lo.
“Mestre” é uma palavra equivalente ao termo “sensei” em japonês, que, ao
mesmo tempo, define um cientista e um professor, docente e mestre, servindo
para dirigir-se aos dois. Pode ser equivalente também ao que os bambara cha-
mam de “Doma” ou “Soma”, os “fazedores de conhecimento”, segundo Amadou
Hampâté Bâ (2010, p. 175). É por essa motivação que, paralelamente à realiza-
ção do programa Encontro de Saberes, desenvolvemos o projeto da Cartografia21
dos mestres. Um mapeamento dos mestres é um importante instrumento para
o convencimento intelectual de nossos colegas, porque até agora ainda não con-
seguimos devidamente mostrar o tamanho da sabedoria que existe no Brasil,
da sabedoria que está fora das universidades. É um argumento importante na
defesa da diversidade epistêmica nas universidades mostrar a escala e a varie-
dade de saberes dos mestres e mestras.
Veio então do MinC uma inflexão para a abertura, que poderíamos chamar
de “multicultural”, nas universidades. A partir de uma lista das mestras e dos
mestres que entraram na primeira edição, a primeira demanda trazida pelo
MinC foi a de que a diversidade cultural, de formas de expressão simbólicas e
formas de artes fosse representada dentro do ensino superior brasileiro. O título
inicial do projeto era “Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais”. Posteriormente,
com o avanço das edições da disciplina, esse leque se ampliou para além dos ofí-
cios e das artes.
Outro elemento que surge dessa conjuntura foi a criação do Instituto Nacio-
nal de Ciência e Tecnologia (INCT) de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa,
em 2009, pelo edital do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-
nológico (CNPq) dos INCTs. Assim, durante a gestão do ministro Gilberto Gil,
o INCT de Inclusão firmou a parceria com o MinC por meio da portaria MinC/
MEC de 2007, que permitiu abrir uma disciplina na UnB na qual viriam mestres
e mestras para ensinar, no âmbito do projeto a que demos o nome de “Encontro
de Saberes”. Havia uma expectativa, por parte dos mestres, de poderem ensi-
nar no ensino básico e fundamental. Nada impedia que isso ocorresse, porém
21 Sobre a Cartografia, ver: Carvalho, Vianna e Salgado (2016). Encontro de Saberes se conecta também
com a Lei de Mestres de alguns estados nordestinos, como o Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte,
Paraíba e Alagoas.
22 Discorri especificamente sobre esse tema em outro escrito ao desenvolver a ideia do contraponto epistê-
mico. Ver: Carvalho (2014b).
de Saberes, nós admitimos docentes não diplomados, o que vai contra o procedi-
mento estabelecido de certificação do MEC. Introduzimos conteúdos de tradição
exclusivamente oral em um ambiente onde a escrita é hegemônica e, em alguns
casos, praticamente totalizadora; introduzimos métodos de transmissão distin-
tos daqueles já estabelecidos e legitimados; operamos mudanças nos espaços da
sala de aula; construímos ementas de disciplinas fora dos padrões existentes; e
acolhemos questionamentos das técnicas e do sentido mesmo das avaliações dos
cursos através de notas, entre outras experimentações. Até pouco tempo atrás,
o sabedor e a sabedora eram aqueles que possuíam diploma. A partir de agora,
essa não será mais a única condição: o universo dos que sabem não será apenas
o dos diplomados até agora, mas também dos mestres e mestras certificados.23
O Notório Saber representa uma insurgência, pois o que antes não era certi-
ficado o será agora, e o sentido da certificação mudará. Com o nosso movimento,
será concedido o título de Notório Saber a uma pessoa com pouca ou às vezes
nenhuma escolaridade, e isso vai contra tudo o que as pessoas letradas procu-
ram ao percorrer um longo processo escolar para chegar a alcançar um diploma
de doutorado. Uma pessoa que não tem escolaridade, uma mestra e/ou um mes-
tre passará a possuir diploma equivalente ao nosso. Com isso, o sentido da ins-
tituição universitária se transformará. Dessa forma, ela deverá enfrentar a difi-
culdade atual de como irá pagar os mestres, como irá encaixá-los para que sejam
regentes de cátedras, ou seja, como eles serão enquadrados institucionalmente
enquanto docentes. Para essa engenharia institucional, é necessário ter vontade
e imaginação. Todo esse processo requer que pensemos soluções e procedimen-
tos novos, em múltiplas dimensões e simultaneamente. Enfim, o exercício tem
que ser completo para responder responsavelmente a esse desafio. Acredito que
esse é o elemento mais radical do Encontro de Saberes e fico feliz de ver o aco-
lhimento desse processo na UFSB pela possibilidade de certificação das mestras
e dos mestres.24
23 Essa ruptura, que considero uma das maiores revoluções epistêmicas das universidades brasileiras, teve
seu marco histórico em 2017, quando a Universidade Estadual do Ceará (UECE) titulou 58 mestres e mes-
tras do estado de uma só vez. Sobre a conceituação do Notório Saber, ver: Carvalho (2016).
24 Por outro, seu foco foi a oferta da disciplina do Encontro dos Saberes para as licenciaturas, que realizam
plenamente uma possibilidade que já esta colocada desde o seu início que é a conexão do Encontro de
Saberes com as licenciaturas e com a Lei nº 10.619 e a Lei nº 11.645. Talvez pela primeira vez possamos
de fato encontrar a melhor maneira de cumprir essa lei, que foi a primeira assinada pelo presidente Lula
em janeiro de 2003 e até agora não foi implementada em todas as universidades. Com ela, torna-se obri-
gatório o ensino da cultura afro-brasileira e, depois, com a Lei nº 11.645, o ensino das culturas indígenas.
Não fica claro quem vai ensinar, nós nem sequer temos isso discutido completamente. Através do En-
contro de Saberes, nós poderemos ter o seguinte: nas licenciaturas, formaremos professores que ensina-
rão a cultura afro-brasileira e a cultura indígena no ensino médio e no ensino fundamental. Se não for
através desse encontro, sempre será, então, um conhecimento livresco sobre a cultura afro-brasileira,
sobre a cultura da África e sobre a cultura indígena que será transmitido para os estudantes, porque nós
não estamos necessariamente imaginando que os professores têm iniciação nas religiões de matriz afri-
cana ou em comunidades indígenas. Então, com o Encontro de Saberes, nós temos oportunidade de que
os estudantes, aqui da UFSB, que depois poderão ser professores da lei, tenham uma transmissão dire-
ta, face a face, com os mestres dos saberes afro-brasileiros, quilombolas e indígenas, e então poderão
transmitir esse conhecimento em sala de aula. Se colocarão finalmente numa genealogia desses saberes
para serem transmitidos para a sociedade. Como efeito, o projeto desaliena as culturas afro-brasileiras,
desaliena as culturas indígenas, desaliena as culturas dos povos tradicionais para os estudantes, para a
juventude. Enquanto faço a revisão final desta conferência, acompanho a aprovação pela Universidade
Federal da Minas Gerais (UFMG) acerca da resolução para o Notório Saber dos mestres e mestras. Nota
dos organizadores: há uma especificidade na forma como a UFSB iniciou o Encontro de Saberes. Por ou-
tro lado, a instituição dispõe de uma resolução que certifica mestras e mestres desde 2015, a Resolução
n° 17/2015.
FIGURA 5 – MANDALA DOS SABERES DO MESTRE TEODORO FREIRE DO BUMBA MEU BOI
Fonte: elaborada pelo autor com base em dados do INCT de Inclusão no Ensino Superior
e na Pesquisa.
voltar a Goethe, Paracelso e Cornelius Agrippa para encontrar seus pares oci-
dentais na doutrina das correspondências, do corpo físico e do corpo astral. Seus
saberes são afins daquele campo que alguns estudiosos chamam de “ciência tra-
dicional” e não se encaixam facilmente nos campos disciplinares puramente
racionais com que trabalha Max-Neef em sua proposta. E é nosso o desafio de
integrar todos esses planos racionais e outros em um quadro de saberes que
deverão ser certificados pela academia.
Foi necessário, portanto, criar uma metodologia e uma fundamentação teó-
rica novas para realizar a primeira edição da disciplina na UnB. Não dispúnha-
mos de referências anteriores e tínhamos como horizonte apenas uma pauta:
incluir os mestres e as mestras na UnB como docentes. O “como” iríamos concre-
tizá-la deveria ser inventado. Não podíamos apoiar-nos em universidades dos
Estados Unidos ou da Europa, porque naqueles países nunca foi realizado nada
que se pareça com isso. E não adiantaria, portanto, ter estudado fora do país
em busca de teoria e método para realizar a pauta de inclusão de mestres tradi-
cionais como docentes. Nós colocamos uma pergunta nova e nos dedicamos a
encontrar a reposta para ela, por nós mesmos, enraizados em nosso universo de
conhecimento e de instituições.
A fundamentação teórica mais imediata foi colocar a disciplina como uma
intervenção descolonizadora. Afinal, uma academia de formação colonial trans-
formou os indígenas, as comunidades religiosas afro-brasileiras, as culturas
populares, os quilombolas e os demais povos tradicionais em meros objetos de
estudo. Ou seja, todos tiveram nas academias um lugar preciso: como objetos de
estudo. Ressalvo, mais uma vez, que muitas universidades têm projetos impor-
tantes que valorizam os mestres em cursos de extensão – e é importante que
continuem fazendo, porque existe uma complementaridade entre o Encontro de
Saberes e a extensão. A diferença é que a extensão não outorga um estatuto pleno
de docência, o que pode conduzir os mestres a permanecerem em um lugar de
subalternidade, ainda que reduzida, frente aos professores que os convidam.
Para descolonizar essa hierarquia estabelecida desde o início das nossas insti-
tuições acadêmicas, era preciso que os mestres fossem convidados para ensinar
uma disciplina regular, valendo crédito. Se admitirmos que os saberes que os
mestres e as mestras têm são saberes válidos, importantes, relevantes e profun-
dos, então é imprescindível que eles sejam docentes como nós.
Para abrir o Encontro de Saberes, realizamos na UnB um seminário inter-
nacional para ouvir a experiência de outros países.25 Convidamos colegas da
Colômbia, do Equador, da Argentina e do Paraguai – o representante da Bolívia
não pôde participar – e constatamos que, nos outros países, não há um projeto
análogo, e o que existe em vários países da América Latina são universidades
interculturais indígenas bilíngues. Luiz Fernando Sarango, ex-reitor da Amawtay
ocupam das disciplinas, enquanto a maioria dos mestres possui um saber inte-
grado, multidisciplinar. O desafio é que seu saber possa finalmente dialogar com
o professor de cada disciplina.
O trabalho de construção das ementas é um componente importante dessa
metodologia e nos conduz a outro tema: o desenvolvimento dos protocolos especí-
ficos de diálogo para cada área de saber. Uma ementa do curso como o que a mestra
Lucely Pio fez em Brasília, sobre as plantas medicinais, exige uma conversa com os
professores do curso de Farmácia: como estabelecer um protocolo entre o saber da
farmácia sobre as plantas e o saber da mestra adquirido no horto que ela cultiva no
seu quilombo? A ementa construída a quatro mãos gera o início desse protocolo.
Na arquitetura, por exemplo, tivemos na UnB o mestre Maniwa Kamayurá, grande
construtor das magníficas casas xinguanas. Ele é um mestre de arquitetura e teve
um professor parceiro da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. A ementa do seu
módulo refletiu a maneira com que organizamos os distintos horizontes de conhe-
cimentos em sala de aula para que os alunos dialogassem simultaneamente com
ele e com o professor da faculdade que o acompanhava.
Em algumas áreas, esses protocolos de diálogos de saberes serão melhor
sucedidos que em outras, que poderão exigir um esforço excessivo e que talvez
nem seja possível, porque os saberes podem chegar a ser incomensuráveis. Nesse
caso, o único que resta, por enquanto, é fazer conviverem saberes incomensurá-
veis no mesmo espaço. Na área da psicologia, por exemplo, acredito que nem
sempre será possível realizar uma tradução adequada do saber psicológico oci-
dental com outros saberes xamânicos de cura, ao lado de pajés que incorporam
outros universos.26 A ementa refletirá a tentativa do protocolo de diálogo para
cada área de conhecimento, expondo os seus pontos de dificuldade e desafio.
No caso de uma universidade com o projeto inicial da UFSB, basicamente
interdisciplinar, já existe uma vantagem na construção desse protocolo: os sabe-
res dos mestres são integrados, são transdisciplinares. Nas universidades exces-
sivamente disciplinares, é necessário encaixar os saberes tradicionais em uma
grade que, em muitos casos, não os cabe. Assim, a própria presença do mestre se
transforma na verdade numa proposta de renovação que os professores também
necessitam, qual seja, a de maior abertura do campo transdisciplinar. Os mestres
não vêm até as universidades para se encaixar em um modelo que na verdade
já está praticamente falido; pelo contrário, eles podem se tornar vanguarda de
um outro modelo a que os professores de formação eurocêntrica poderão aderir.
No caso da UFSB, o diálogo com os mestres é possivelmente mais fácil de ser cons-
truído sobre esse solo comum,27 entre outras razões porque o Encontro de Saberes
26 Propus um primeiro modelo de diálogo interpsicológico no caso da saúde mental no artigo “Sofrimento
psíquico na universidade, psicossociologia e Encontro de saberes” (2020), publicado em coautoria com
uma mestra e dois colegas.
27 Ver o texto “Conhecimentos tradicionais e território na formação universitária”, na quarta parte deste
livro (N. do O.).
com os sabedores ou discípulos dos mestres e mestras – alguns deles e delas, por
coincidência, que atuam como docentes do Encontro de Saberes. Nesse sentido,
este pode ser considerado como uma rede da elite epistêmica dos saberes tradi-
cionais, dedicada à promoção dos equivalentes dos nossos professores titulares
ou dos pesquisadores sêniores em todas as áreas.
Podemos também, neste ponto, explicitar nossas proximidades e diferen-
ças com a proposta da Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire. No caso de Paulo
Freire, tratava-se de alfabetizar os adultos tomando em consideração o seu hori-
zonte de conhecimento. Em outras palavras, usar o seu saber para o sucesso do
processo de alfabetização, de forma que eles pudessem, por fim, superar a cons-
ciência ingênua e alcançar a consciência crítico-reflexiva, a qual é formulada nos
termos da episteme eurocêntrica. Nessa pedagogia, os alfabetizadores estão de
um lado e os alfabetizados, do outro lado. Apesar do respeito do educador freire-
ano pelo horizonte de vida do adulto analfabeto que será alfabetizado, não resta
dúvida de que a mestria é colocada no polo do educador, que passou por um trei-
namento para alfabetizar o adulto em uma perspectiva de ajudá-lo a libertar-se
de uma compreensão tida por nós como limitada e errônea do mundo.
Podemos conceber o Encontro de Saberes como um movimento comple-
mentar, porém simétrico, da Pedagogia do oprimido: enquanto na abordagem
de Freire nós nos aproximamos do adulto analfabeto para ensiná-lo, na abor-
dagem do Encontro de Saberes, é o adulto analfabeto que é convidado para
ocupar o nosso lugar de professor e ensinar para os nossos alunos e para nós
mesmos. Pensando na nossa ignorância em relação ao saber dos mestres, não
é adequado para o Encontro de Saberes chamar a consciência dos mestres de
“ingênua” – se assim fosse, como seria a nossa consciência, que os trazemos
para ensinar o que nós não somos capazes de ensinar? Obviamente, o contraste
do Encontro de Saberes com a Pedagogia do oprimido é muito mais complexo
do que posso por ora apresentar.
Podemos dizer que a maioria das nossas universidades federais, especial-
mente as que estão localizadas nas capitais, não está devidamente enraizada em
nenhum dos sentidos fortes do termo – nem socialmente, nem culturalmente,
nem ambientalmente, nem epistemicamente. Como visto antes, a maioria delas
se encontra em um ponto que pode ser aleatório da nossa geografia. São razões
estratégicas, econômicas e políticas que levaram, por exemplo, a Unicamp a ter
sido instalada em Campinas, ou a UnB na fronteira de Goiás com Minas Gerais.
Elas poderiam estar em qualquer outra cidade a 100 ou mais quilômetros do
entorno onde se encontram. Não há nada de substantivo em Campinas que
conecte a Unicamp com a cidade, salvo o fato de que se necessitava de um cam-
pus universitário que suprisse uma ciência avançada para o polo de empresas
de alta tecnologia que havia sido instalado naquela região. Assim, escolheu-se
aquele território, mas não porque a demanda tivesse vindo da classe trabalha-
dora local, dos indígenas, dos grupos afro-brasileiros e povos tradicionais que já
estavam naquela região.
Ela via os camponeses tão desenraizados como a classe operária, que havia
se desenraizado de suas origens simbólicas, culturais e científicas no século
anterior, durante o crescimento do capitalismo e a formação de um mundo que
os transformou em verdadeiras peças de máquinas de trabalho.
Se imaginamos esse empobrecimento epistêmico dos povos tradicionais
da França nos anos 1930, o que se apresenta no nosso contexto? É impossível a
situação da carência francesa descrita pela filósofa ser equiparada, em termos de
tradições enraizadas, ao que temos dos nossos povos tradicionais, com a abun-
dância de tradições indígenas, afro-brasileiras e de todos demais povos tradicio-
nais, cujos saberes nós não consideramos ainda integralmente nas instituições
em que ensinamos. Surgem duas questões, portanto, quando Simone Weil fala
do enraizamento: por um lado, o mundo do qual ela participava era o mundo
europeu do século XX, que, sem conotação pejorativa da palavra, era mais pobre
simbolicamente do que o mundo latino-americano em que nós temos o privilé-
gio de viver; por outro, apesar desse privilégio, temos ainda dificuldade de efeti-
var essa operação de enraizamento.
Por que não enraizamos nossas instituições acadêmicas nas regiões e terri-
tórios de saberes dos nossos inúmeros povos? As razões para esse desenraiza-
mento epistêmico são históricas e precisas: por causa da escravidão, do racismo,
do extermínio, do genocídio étnico e racial, da pobreza, do elitismo, dos precon-
ceitos de classe – todos esses condicionantes negativos juntos. Na França rural
de Weil, os professores não ensinavam as raízes epistêmicas dos povos porque
elas não existiam mais; e aqui no Brasil, as raízes estão vivas, porém não são ensi-
nadas porque os que as sabem não foram chamados para ensiná-las.
O eurocentrismo e a mente colonizada não dão conta de eliminar o racismo,
o genocídio, o preconceito e os valores de classe. Esse conjunto de fatores impos-
sibilita enraizar o saber ocidental no território não ocidental que é o Brasil como
nação plural. Ao colocar essa questão, alerto para mais um ponto como estraté-
gia de enfrentar questões históricas, pedagógicas e filosóficas de várias ordens
que aparecem nesse leque de situações exposto. Estamos de frente a problemas
dos quais não podemos fugir, e um deles é o fato de que nossas universidades são
racistas. Essa é a primeira assunção inevitável. O segundo passo é neutralizar o
negativo, ou seja, entendê-lo dentro de um campo amplo, no qual ele se torna
parte de uma escolha feita dentro de uma diversidade de escolhas que poderiam
ter sido tomadas. Esse segundo passo busca entender, mapear, criar uma radio-
grafia desse negativo para que ele não apareça mais como um fantasma, uma
vez que já foi delineado e entendido. Em terceiro lugar, é então necessário pro-
por novos caminhos. Dessa forma, é possível não ficar preso à energia negativa,
29 Assistir igualmente à série de vídeos-documentários produzida pela BBC de Jim Al-Khalili, A ciência e o
Islã, em: https://www.youtube.com/watch?v=M9eLxDm7mrE.
No entanto, apenas o repetimos, e por isso nós não conseguimos nos enraizar
no nosso horizonte próprio. Os europeus do século XVI estavam preocupados
em não deixar se perderem as tradições herméticas, as longas tradições inici-
áticas do cristianismo e outras que igualmente cultivavam, como, por exem-
plo, as grandes tradições de conhecimentos das plantas medicinais. Como nos
outros continentes do mundo, havia também na Europa a tradição das raizeiras
e curandeiras, que declinou com a consolidação do capitalismo somada à inten-
sificação do patriarcado e à expropriação dos saberes das mulheres. Conforme o
argumento de Silvia Federici no livro Calibã e a bruxa:
REFERÊNCIAS
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alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão
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SANTOS, Maria Stella de Azevedo. O que as folhas cantam (para quem canta folhas).
Brasília, DF: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino
Superior e na Pesquisa, 2014.
TUKANO, Álvaro. O mundo tukano antes dos brancos. Brasília, DF: Instituto de
Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, 2017.
PARTE I
Missão pactuada
com a sociedade
CAPÍTULO 1
kabengele munanga
tempo aos estudos sobre o tráfico negreiro, escravidão e abolição, como se sua
história fosse congelada depois da abolição. Nesse sentido, as questões relati-
vas à sua inclusão na sociedade livre, tais como o preconceito, a discriminação
racial e, consequentemente, a desigualdade racial, deixaram de ser observa-
das, descritas, analisadas e explicadas em busca da inclusão do negro na socie-
dade de classes. Quando a observação sistemática começou, no fim do século
XIX e início do século XX, a partir dos trabalhos pioneiros de Nina Rodrigues,
colocou-se o acento sobre os fenômenos de resistência negra na cultura brasi-
leira, começando pelo estudo das religiões de matrizes africanas, como o can-
domblé, passando mais tarde pelos estudos de outras manifestações culturais,
como a música, a dança, a culinária e as artes plásticas, entre outras, numa
visão racialista.
Vista desse ângulo, a cultura negra no Brasil interessou mais aos pesqui-
sadores universitários do que a situação social das mulheres e homens negros
que produziam essa cultura. Enquanto isso, se construía paulatinamente a ide-
ologia da democracia racial brasileira. A Segunda Guerra Mundial e o Holo-
causto de milhões de judeus e centenas de milhares de ciganos abriram os
olhos do mundo sobre o fenômeno do racismo, levando a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) a promover e
patrocinar projetos de pesquisa sobre o racismo em alguns países ocidentais
castigados pelo nazismo. Em busca de um modelo de relações raciais harmo-
niosas, a Unesco soube que o Brasil já havia experimentado esse modelo, que
poderia beneficiar outros países do mundo onde as relações raciais eram con-
flituosas. Assim, patrocinou, nos anos 1950-1960, um projeto de pesquisa para
melhor conhecer esse modelo e averiguar sua veracidade e as possibilidades de
sua aplicabilidade em outros países.
Além de pesquisadores estrangeiros atuando no país, participaram desse
projeto pesquisadores nacionais do eixo São Paulo-Rio de Janeiro, no Sudeste
do país, e do eixo Bahia-Pernambuco, no Nordeste do país. Esses pesquisado-
res não chegaram a conclusões consensuais. Para os pesquisadores do eixo São
Paulo-Rio de Janeiro, liderado pela chamada Escola de Sociologia de São Paulo,
as relações raciais harmoniosas sustentadas pela ideologia de democracia racial
não existiam, daí a ideia do mito de democracia racial. Pois, na luta pela ascen-
são social na sociedade de classes, os negros encontravam barreiras de natureza
racial que impediam sua mobilidade.
Para os estudiosos do eixo Bahia-Pernambuco, ou seja, do Nordeste do Brasil,
os negros encontravam sim barreiras em sua mobilidade social, mas essas bar-
reiras nada tinham a ver com o mito de superioridade e inferioridade racial entre
negros e brancos, mas sim com a discriminação de classe social ou econômica,
confirmando numa certa medida a existência da democracia racial. Foi a partir
desse projeto da Unesco que se abriu nas universidades brasileiras uma área de
pesquisa denominada “Relações raciais”, que vem se fortalecendo desde os anos
1960 aos dias de hoje. Todos(as) os(as) pesquisadores(as) que vieram na esteira
para análise social da mesma maneira que outras categorias, como as de “nação”
e de “gênero”, que são também imaginárias no sentido de que são histórica e
politicamente construídas.
Rejeitar absolutamente a noção de “raça” em nome do antirracismo – como
se o racismo não existisse na sociedade brasileira – e, consequentemente, defen-
der a tradição racista e antirracista contida no mito da democracia racial torna
difícil a reflexão sobre as características sociais da discriminação no Brasil. São
características justamente fundamentadas na noção de raça enquanto repre-
sentação social presente em nossos imaginários. É preciso que nossos colegas
anticotistas percebam que o abandono da categoria “raça” não vai erradicar o
racismo à brasileira e que deixem de colocar na cabeça de seus estudantes e leito-
res a confusão entre a raça enquanto noção e a raça enquanto objeto e realidade.
A noção de raça é útil enquanto categoria de reflexão sobre os processos
de constituição dos grupos raciais, mas ela é também útil para reflexão sobre
a ação contra a discriminação racial. Hoje, alguns que não usam aspas tentam
fugir dessa noção, substituindo-a pela noção de etnia, um eufemismo confor-
tável falando politicamente correto. No entanto, o racismo não deixou de exis-
tir pelo fato de se usar “etnia” no lugar da “raça”. Mas por que só agora, a partir
do debate sobre ações afirmativas desencadeado em 2000, que a “raça” cuja
existência científica foi negada, há cerca de meio século atrás, explode como
grande novidade científica e como argumento de grande peso contra as polí-
ticas afirmativas? Por que nossos especialistas nunca falaram disso antes, até
em seus argumentos contra o racismo, cuja existência brasileira alguns admi-
tem? Por que continuaram, em seus textos e obras científicas, a falar de raça?
Por que só agora, e não antes? Talvez não encontrem melhores argumentos de
peso capazes de comover brasileiras e brasileiros, brancos e negros. Soa muito
forte quando você ouve, como ouvi falar um deles numa entrevista ao vivo no
canal da Central Brasileira de Notícias (CBN), que “as cotas vão transformar a
gente em ‘raças’, pois as ‘raças’ são cães, e não seres humanos. Chegou até a
essa vulgarização!”.
Dizem que “as ações afirmativas ‘raciais’, ao juntar ‘pardos’ e ‘pretos’ numa
única categoria Negra, produzem efetivamente um Brasil de apenas três raças:
‘negros’, ‘brancos’ e ‘indígenas’, fazendo desaparecer os ‘morenos’, ‘caboclos’,
ou seja, os mestiços”. Essa estrutura lógica é vista em livros como A persistên-
cia das raças, de Peter Fry; Divisões perigosas, organizado por Peter Fry, Yvonne
Maggie, Marco Chor Maio e Ricardo Ventura Santos, um livro que conta com
textos de 38 autores; também em Não somos racistas, de Ali Kamel; Uma gota
de sangue, de Demétrio Magnoli; e A utopia brasileira e os movimentos negros,
de Antonio Risério.
Essa mesma lógica vai contaminar a grande imprensa, como o Jornal Nacio-
nal, O Globo, Folha de S. Paulo, Estado de São Paulo, Correio Brasiliense, Jornal
de Brasília, Veja, entre outros. Sabemos do poder da grande imprensa na forma-
ção da opinião pública junto à população e até junto aos governantes.
Todo esse tiroteio não foi à toa; não foi apenas um conflito de ideias entre
intelectuais. Havia em jogo, além do processo de implementação de cotas já em
experiência em dezenas de universidades públicas estaduais e federais, dois pro-
jetos de lei em tramitação no Congresso Nacional: o Projeto de Lei (PL) nº 73/1999
conhecido como PL das Cotas, e o PL nº 3.198/2000, conhecido como PL do Esta-
tuto da Igualdade Racial. Era preciso barrar a qualquer custo a votação desses
PLs no Congresso antes que fosse tarde demais; era preciso frustrar e barrar o
avanço surpreendente da adoção de sistemas de cotas em algumas universida-
des públicas do país.
Daí a corrida desenfreada contra o relógio que resultou na publicação dos
livros citados e na tradução de livros estrangeiros que tinham um conteúdo
antipolíticas afirmativas, como foi o caso do livro Ação afirmativa ao redor do
mundo, do afro-americano Thomas Sowell, com duas edições pela Editora Uni-
verCidade, acompanhadas de entrevistas do autor nas emissoras importantes,
como a Globo, em seu programa Globo News. De acordo com a estratégia mon-
tada, deixaram de falar de dezenas de resenhas que destruíram as teses de Tho-
mas Sowell nos Estados Unidos e omitiram um dos estudos mais sistemáticos,
fidedignos e autorizados feitos até hoje sobre o impacto das ações afirmativas
no país. Tal estudo foi coordenado por William Bowen e Derek Bok, respecti-
vamente ex-reitores das Universidades de Princeton e Harvard, e publicado no
livro O curso do rio, cuja síntese pode ser lida em diversos textos de Joaquim Bar-
bosa Gomes. O curso do rio desmente a tese de Sowell de que as ações afirmativas
só provocaram conflitos nos países do mundo que as adotaram e não puderam
promover a inclusão racial. Com estatísticas em apoio, o livro mostra o extraordi-
nário impacto do sistema de políticas afirmativas na redução das desigualdades
raciais nos Estados Unidos em matéria de educação.
Com o tempo, muitos de seus argumentos se esgotaram, pelo fato de serem
desmentidos pela experiência das universidades que adotaram o sistema de
cotas. Alegações tais como a dificuldade de definir quem é negro no Brasil, a
excelência, o mérito, os conflitos raciais, a imitação de modelo que nada tem a
ver com a realidade brasileira, a humilhação dos negros considerados como se
não tivessem a capacidade de entrar pela mesma porta do vestibular tradicio-
nal, por eles considerado como justo e democrático, não tinham mais a força que
delas esperavam para barrar a marcha histórica das políticas afirmativas.
Aonde quero chegar com essa história conhecida por várias pessoas? É ape-
nas uma retórica que me ajuda para recuperar o fio condutor que me leva a res-
ponder à questão central: o papel da universidade contra o racismo e em defesa
das políticas afirmativas. O pluralismo do pensamento não empobrece; pelo con-
trário, enriquece. A questão que se coloca é escolher de que lado se colocar: do
lado da demanda e dos interesses das populações que estudamos ou do lado da
ideologia dominante que visa a manutenção do status quo e dos interesses de um
grupo? Os que defendem as cotas, ativistas negro, intelectuais e pesquisadores
de todas as cores não advogam para que as raças biológicas sejam reconhecidas
no Brasil, pois todos sabem muito bem fazer a distinção entre raça enquanto
noção e categoria de análise e raça enquanto objeto. Eles sabem muito bem que
a “raça” da qual falam é uma representação ou uma construção sociológica e
político-ideológica. Eles sabem muito bem que tanto brancos quantos negros,
apesar das diferenças somáticas observáveis, são categorias histórica e politica-
mente construídas. Os negros são negros e os brancos são brancos porque foram
classificados em categorias raciais específicas.
Porém, essas categorias não são congeladas, pois, segundo momentos e luga-
res, elas não incluem as mesmas pessoas. Isso não implica que as pessoas con-
cernidas se definem necessariamente como tais. Lembro-me aqui do episódio
contado pelo escritor afro-americano James Baldwin em seu romance Nobody
knows my name (Ninguém conhece meu nome). Ele conta que, na ocasião do Con-
gresso de Escritores Negros, em Paris, em 1956, o chefe da delegação americana,
John David, um afro-americano de pele clara, viu-se interrogado por um francês
que lhe perguntou por que ele se apresentava como negro, apesar de sua evidên-
cia branca? “É um negro, com certeza”, respondeu Baldwin, do ponto de vista
legal nos Estados Unidos, “e mais do que isso, ele é negro por escolha e militân-
cia e por experiência de vida”.
Assisti a uma cena semelhante em 1976, na Semana do Negro organizada
pelo meu departamento na Universidade de São Paulo (USP), quando o saudoso
historiador Clóvis Moura e o cientista social Eduardo de Oliveira e Oliveira,
mestiços indisfarçáveis, se apresentaram como negros. As pessoas brancas pre-
sentes na sala onde eu era o único negro também indisfarçável ficaram escan-
dalizadas e perguntaram por que eles se consideravam como negros no Brasil?
Ambos responderam que era uma escolha política. Numa conferência interna-
cional de antropologia em Québec, Canadá, para a qual fui convidado em 2007,
o único índio canadense presente, Georges Siou, professor de História da Uni-
versidade de Otawa, em seus pronunciamentos, falava sempre dos males que o
homem branco tinha causado ao seu povo. No entanto, pela cor da pele, ele era
a pessoa mais branca dos brancos presentes na conferência.
Aqui está o exemplo da cor como construção política, ou seja, como categoria
social de dominação. Vistos desse ângulo, os defensores das cotas não querem
fazer desaparecer os morenos e caboclos, como estão sendo acusados. Algumas
pessoas politicamente construídas se assumem como negros e outras não, mas
nenhuma foi excluída do processo de ingresso pelas cotas nas universidades que
as adotaram. Bastaria fazer uma fotografia das alunas e alunos cotistas de todas
as universidades que adotaram o sistema para ver que negros assumidos e não
assumidos, caboclos e morenos, ou seja, os mestiços são todos representados.
O episódio dos irmãos gêmeos da Universidade de Brasília (UnB) e o DNA de
Neguinho da Beija Flor são bem conhecidos entre nós. Se dependesse só da gené-
tica humana ou da genética molecular, acho que não teria mais problemas de
discriminação nos países que revolucionaram essa disciplina. Aqui parece que
o grande geneticista Sérgio Danilo Pena é capaz de dizer que negros brasileiros
não podem reivindicar cotas, porque geneticamente já estão longe dos africanos,
ou seja, não são mais negros.
Voltando ao mito de democracia racial, os defensores das cotas foram acusa-
dos de negar a questão socioeconômica que atinge todos os brasileiros, brancos
e negros, e que deveria ser a bandeira de luta de todos. Estamos de acordo que
não se deve considerar o racial independentemente do social, porque o racial é
uma modalidade do social e este deve ser considerado numa perspectiva ampla
e não estritamente classista. Nenhum defensor das cotas está contra a melhoria
da escola pública, mesmo sabendo das dificuldades dessa melhoria diante dos
lobbies dos donos das escolas particulares e da dificuldade de mobilizar todos os
segmentos da sociedade para que a escola pública mude efetivamente, e não reto-
ricamente. Enquanto isso, os filhos da maioria da população brasileira, brancos e
negros, deveriam ficar de braços cruzados, eternamente punidos e excluídos do
ensino superior de qualidade, esperando melhorar a escola pública, até quando?
Quando se implementa uma política social em qualquer país do mundo, tem
que se dizer para que segmento da sociedade é dirigida essa política, ou seja, tem
que nomear o grupo ou as pessoas a serem beneficiadas. Nesse sentido, as cotas
para ingresso na universidade pública foram destinadas aos negros e indígenas.
Os ativistas negros e intelectuais brasileiros envolvidos na demanda disseram
“cotas para negros e indígenas”. Não disseram “cotas raciais”. Dizer “cotas para
negros e índios” e dizer “cotas raciais” são coisas diferentes. Seria injusto por
causa dos argumentos dos pesquisadores anticotistas negar a contribuição da
universidade brasileira na luta contra o racismo.
O exemplo de cerca de 100 universidades públicas que adotaram sistemas de
cotas sem esperar o amparo das leis é bastante ilustrativo. Outras universidades
que ficaram presas aos princípios de mérito e de excelência e ao mito de demo-
cracia racial prejudicaram a luta contra o racismo ao atrasá-la. Como estamos no
início de um processo cuja duração não podemos prever, a universidade brasi-
leira tem ainda muita contribuição a dar na luta contra o racismo. Nesse sentido,
alguns programas de pós-graduação já estão discutindo medidas afirmativas ou
cotas para o ingresso de estudantes negros(as) e indígenas nos cursos de pós-gra-
duação, nos quais ainda são sub-representados(as). Essas medidas não depen-
dem do amparo das leis, mas sim apenas da autonomia acadêmica que todas as
universidades têm.
Democratizar a universidade brasileira é permitir o acesso a ela para as
categorias sociais excluídas por diversos motivos: racismo, sexismo, classismo,
homofobia e outros. Democratizar a universidade é também descolonizar o pen-
samento, ao romper com estruturas epistemológicas herdadas do único pensa-
mento eurocêntrico e colonizador e substituí-las por novas estruturas que intro-
duzem os diversos pensamentos numa sociedade plural como o Brasil.
A universidade brasileira, como todas as universidades da América do Sul
dita latina, como as universidades africanas e de alguns países da Ásia que
foram colonizados, são epistemologicamente ainda dependentes, apesar das
REFERÊNCIA
BALDWIN, James. Nobody knows my name: more notes of a native son. New York:
Dial Press, 1961.
CAPÍTULO 2
INTELECTUAIS NEGROS
uma conversa com Kabengele Munanga
richard santos
Sua vinda a Porto Seguro restaurou nosso contato, nossos laços de amizade,
e contribuiu para este breve registro do encontro e de suas expectativas futuras
quanto às demandas afrodescendentes no Brasil e na universidade. Falamos
também de sua aposentadoria e dos projetos políticos. Acompanhe a seguir um
breve resumo de nossa conversa.
Kabengele: Bom dia, Richard. Jovem Richard, que hoje é meu colega na univer-
sidade, foi a melhor surpresa ver você hoje aqui.
1 “Maioria Minorizada” é dispositivo de análise para a identificação sociológica de uma maioria popula-
cional que, no Brasil, convencionou-se, politicamente, chamar de negros, mas que, inferiorizados estru-
turalmente, são “minorias” no acesso a direitos, às políticas públicas, na política, na produção científica
e em lugares de poder e “maiorias” em todo o processo de espoliação econômica, social e cultural, além
de serem as maiores vítimas de todas as formas de violência.
Kabengele: Isso, sem absolutamente abrir mão desses outros autores que tam-
bém abriram nossos horizontes para a leitura do mundo, mas não ficar simples-
mente preso a eles, aprisionado a um pensamento que pouco tem a ver com nos-
sas vidas. É isso, creio eu, que é a proposta de descolonizar os conhecimentos das
universidades; passa por essa preocupação. A gente foi educado por um modelo
de educação que não dialoga com a nossa realidade, com o saber da sociedade
popular – que é a proposta desse seminário –, que, antes de ver o que acontece
na sua cidade, você está olhando pro que acontece na Inglaterra ou na França
no século XVIII ou XIV. O que a Revolução Francesa tem a ver com a Revolução
Baiana ou a Revolução dos Búzios? Essa alienação é um problema sério. Nossas
referencias teóricas continuam sendo ocidentais até agora. Às vezes, você deixa
de utilizar um grande intelectual brasileiro, homem ou mulher, negro, porque
você não acha importante. Para mostrar que você faz ciência, tem que citar um
ocidental, americano ou outro branco. Isso é uma alienação total.
Kabengele: O melhor exemplo que a gente pode dar, tanto eu quanto você e todo
intelectual que tem envolvimento com essa questão da diversidade, das injus-
tiças sociais, é mostrar que não basta a retórica sem propor caminhos. E para
propor caminhos, você também precisa conhecer o pensamento do outro; você
não rejeita um pensamento que você não domina. E depois de conhecer esse
pensamento do outro, você pode criticar, você pode rejeitar algumas propostas
epistemológicas da explicação da humanidade, do mundo, de sua realidade, e
construir uma nova ciência. É aprendendo fazendo, aprender a nadar nadando,
e não simplesmente pela retórica. Nesse sentido, você vai chegar em um ponto
de amadurecimento pra dizer: “esse conceito que utilizei há um ou dois anos é
um conceito errado, que não tem a ver com nossa realidade”. Nesse sentido, eu
mesmo nessa idade estou nesse processo continuamente, construindo e descon-
truindo. Tem conceitos que eu introjetei desde o processo da minha educação
colonial até agora que ainda não destruí. Eu costumo comparar com um iceberg:
às vezes, a gente faz um discurso na ponta do iceberg porque temos mais cons-
ciência, mas há questões mais profundas nas bases do iceberg que a gente não
enxerga, e isso é um longo processo de libertação. Eu não acredito que já tenha
me libertado totalmente. Busco deixar a consciência para esses novos intelectu-
ais brancos e negros, para entenderem que eles são problema da sociedade. Eu
costumo dizer que não se trata da questão do negro: o negro não criou nenhum
problema para a sociedade brasileira; a sociedade brasileira é quem criou pro-
blema com o negro. Então, isso é um problema da sociedade. Qualquer membro
da sociedade consciente pra transformar essa sociedade, seja branco ou negro,
está em seu direito como cidadão.
defendo cotas para negros em uma sociedade que, segundo eles, os negros não
existem mais, só existem mestiços. Naquela matéria, eu pedi espaço para o Esta-
dão e não me deram espaço; eu fiz uma resposta on-line que não chegou a todas
as pessoas, e eu não vi nem no próprio Movimento Negro alguém que escreveu
uma linha para me defender. Então, veio esse prêmio, que é um reconhecimento
daquela luta, em que fui atacado duramente. Que uma sociedade que nunca abre
a porta para debater cotas, que é o caso da USP como instituição, venha reconhe-
cer isso, para mim, foi uma grande surpresa, mas, no meu discurso, não deixei de
fazer minha crítica à USP.
REFERÊNCIAS
SANTOS, Hamilton Richard Alexandrino Ferreira dos. A revolução não será
televisionada (!?): o caso comparado da Tv pública no Brasil e na Argentina. 2017.
Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade
de Brasília, Brasília, DF, 2017.
CAPÍTULO 3
INTELECTUAIS NEGROS(AS)
E EPISTEMICÍDIO ACADÊMICO
INTRODUÇÃO
A violência epistêmica a que estão submetidos intelectuais negras e negros
tem raízes na formação da comunidade imaginada brasileira. No ano em que
se completam 132 anos de emancipação oficial do regime escravocrata com
a assinatura da Lei Áurea, os dados oficiais nos permitem observar a situação
dessa população na contemporaneidade: menor escolaridade, altas taxas de
analfabetismo em relação à população branca, baixos salários, maior índice de
desemprego, menor acesso ao sistema de saúde e alto índice de mortalidade.
Infelizmente, são dados ainda comparáveis à situação vivida no final do século
XIX. Fato é que os índices de bem-estar da população negra não tiveram alte-
ração significativa nesses 130 anos de abolição, conforme os dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ([201-]) informam.
O racismo estrutural da sociedade capitalista brasileira é responsável por
esse prejuízo contumaz ao desenvolvimento e às possibilidades de emancipação
plena dessa fatia populacional. Aquela realidade demonstra que, ao contrário
56 mil pessoas assassinadas, o que resulta em 29 vítimas por 100 mil habitan-
tes, índice considerado epidêmico pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Desse total, 53% são jovens; destes, 77% são negros e 93% homens, reproduzindo
e aprofundando as desigualdades sociais e raciais. (NAÇÕES UNIDAS, [2017])
Segundo a ONU, isso significa que cinco jovens negros são eliminados, mor-
tos a cada duas horas no país, totalizando 23 mil jovens negros mortos por ano.
(NAÇÕES UNIDAS, 2018)
Os dados desse estudo foram publicizados pela Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) do Senado sobre assassinato de jovens realizada em 2016, apon-
tando também que mais de 80% dos casos de assassinatos de adolescentes e
jovens negros foram por arma de fogo. (BRASIL, 2016)
Outro estudo, o Atlas da Violência 2017, produzido pelo Instituto de Pes-
quisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2017, apresenta a população negra como
alvo preferencial de eliminação violenta. De acordo com o levantamento, cor-
responde à maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem
vítimas de homicídios, com risco 23,5% maior de ser morta em relação a bra-
sileiros não negros, já observado o efeito da idade, escolaridade, sexo, estado
civil e local de residência.
Somam-se a isso o desestímulo à educação, a falta de acesso à escola, a insu-
ficiência de vagas e a invisibilidade cultural e epistêmica no processo de apren-
dizagem, que dificultam as relações de identificação e pertencimento do sujeito
com o espaço de saberes que deveria ser a escola nos seus mais diferentes níveis.
Talvez, também por isso, vimos os índices educacionais que confirmam a violên-
cia e sistemática exclusão dos não brancos, negros principalmente, do sistema
de ensino regular.
Compreender esses dados numa perspectiva da práxis radical (MOURA,
2014) é atuar contra a situação de minoridade a que a comunidade negra está
submetida nesta “era hiper-tecnológica”, no sentido de Milton Santos (1996-1997,
2000), e atuar para ressignificar o presente vivido. É resgatar os saberes invisi-
bilizados, promovidos ao esquecimento subalternizado, e revivê-los em nossas
memórias e escritos, reexaminando suas proposições e caminhos para um real
encontro de saberes.
1 Milton Almeida dos Santos foi um geógrafo brasileiro graduado em Direito. Destacou-se por seus tra-
balhos em diversas áreas da geografia, em especial nos estudos de urbanização do Terceiro Mundo. Foi
um dos grandes nomes da renovação da geografia no Brasil ocorrida na década de 1970. No dia 1º de ou-
tubro de 1994, foi laureado com o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud, considerado o Nobel
da área, único geógrafo latino-americano recebedor de tal distinção. Após uma série de dificuldades
inerentes a sua origem étnico-racial, postura política combativa, críticas à hegemonia intelectual bran-
ca e produção conectada aos interesses da maioria minorizada, o reconhecimento da sua grandiosidade
como pesquisador e formulador de perspectivas políticas sobre o espaço geográfico se consolidou com
esse prêmio concedido pelo Festival Internacional de Geografia em Saint-Dié-des-Vosges, França.
Clóvis Moura
A obra de Clóvis Moura perpassa a análise sociológica das estruturas fundan-
tes do Brasil, do arcaico à modernidade tardia. Sua contribuição fundamental
é a análise que faz da formação burguesa brasileira, desse escravismo tardio
para o capitalismo. A narrativa utilizada é de cunho sócio-histórico e aborda da
modernização conservadora às condições objetivas criadas pela nascente bur-
guesia nacional, seus acordos e alijamento da massa escravizada do processo.
Descortinando a realidade da formação capitalista nacional, a acumulação pri-
mitiva de capital com a exploração de africanos escravizados e com os prota-
gonistas escravizadores, Moura constrói o marco teórico para fundamentar a
abordagem inovadora de que o capitalismo dependente, e o Brasil, postado à
periferia do mundo, ainda hoje tem raízes profundas nos acordos da elite brasi-
leira e à destinação do Brasil como país periférico, provedor de insumos primá-
rios para a indústria internacional.
Com Moura, podemos compreender a estrutura política, jurídica e comuni-
cacional formada no país para cercear direitos e cidadania à “maioria minori-
zada” (SANTOS, 2018), diante do que Célia Azevedo (1987) cunhou como “onda
negra, medo branco”.
A estrutura do pensamento intelectual de Moura e sua obra transitam no
espaço temporal que se configura entre a abolição da escravidão negra no Bra-
sil e o seu centenário. Sobre esse período, ele aponta as causas das mazelas e da
dependência brasileira do capital internacional e liga esse processo às cidada-
nias mutiladas, no sentido de Milton Santos (1996-1997). Desmonta a tese con-
solidada de que o negro era um elemento passivo e conclui que há uma dialé-
tica radical na atuação negra, historicamente consubstanciada nas lutas con-
tra a opressão, que se dinamiza junto com as pressões e rebeliões negras pré e
pós-abolição. Essa articulação negra radical por políticas reais de emancipação e
progressistas, Moura (2014) chamará de “quilombagem”.
Lélia Gonzalez
Lélia de Almeida Gonzalez, para quem “negro tem que ter nome e sobrenome,
senão os brancos arranjam um apelido ao gosto deles”, foi uma intelectual e
militante negra fundadora do Movimento Negro Unificado (MNU), professora
de Antropologia e Cultura Popular Brasileira do Departamento de Sociologia e
Política da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Autodefinindo-se como feminista, Lélia participou de várias organizações
de mulheres sem nunca se furtar à crítica ao feminismo, enquanto teoria e prá-
tica. A autora desenvolveu inúmeros escritos acerca da situação de exclusão e
discriminação a que estavam submetidas as mulheres negras, tanto no contexto
brasileiro quanto no cenário latino-americano, defendendo a articulação entre
as categorias de raça, classe, sexo e poder para desmascarar as estruturas de
dominação da sociedade colonial.
A atuação de Lélia foi marcada pelo combate ao racismo. Para ela, a chave
para entender a questão racial no Brasil estava na compreensão das matrizes da
cultura brasileira, em que a vertente negra exercia influência quase que total.
De acordo com Ratts e Rios (2010, p. 128), Lélia Gonzalez foi uma “intelectual
diaspórica, com um pensamento erigido por meio de trocas afetivas e culturais,
ao longo do chamado Atlântico Negro, com intelectuais, amigos e ativistas da
América do Norte, Caribe e África Atlântica”. Sua companheira de MNU, a inte-
lectual Luiza Bairos (2009), testemunha que, até a metade dos anos 1980, Lélia
talvez tenha sido a militante negra que mais participou de seminários e congres-
sos fora do Brasil, sempre levando um discurso forte, provocativo e emocionado
sobre a política racial brasileira.
Como resultado de suas travessias diaspóricas, Lélia elaborou um dos seus
trabalhos mais relevantes para o campo dos estudos teóricos afrocentrados, que
Abdias Nascimento
Abdias Nascimento foi um dos maiores ativistas da luta contra o racismo no Bra-
sil. Escritor, artista plástico, teatrólogo, político e poeta, Nascimento participou
da Frente Negra Brasileira nos anos 1930, fundou no Rio de Janeiro, em 1944,
o Teatro Experimental do Negro, e organizou eventos históricos, como o I Con-
gresso do Negro Brasileiro (1950) e a Convenção Nacional do Negro (1945-1946),
que propôs à Assembleia Nacional Constituinte de 1945 políticas afirmativas e a
definição da discriminação racial como crime de lesa-pátria.
Abdias Nascimento sempre afirmou que a questão racial é uma questão
nacional e, portanto, não era possível pensar em modelos de desenvolvimento
que excluíssem de sua construção e gozo mais da metade de sua população.
Nesse sentido, a contribuição nascimentista que queremos iluminar inscreve-se
no plano de formulação de uma proposta sociopolítica para o Brasil elaborada do
ponto de vista da população negra brasileira, denominada “quilombismo”.
A palavra “quilombo” originalmente se refere a um local onde se abriga-
vam negros fugidos, ainda no período da escravidão. Mas, desde a década de
1920, essa palavra vem ganhando novos significados por meio do pensamento de
Astrogildo Pereira, Edson Carneiro e Maria Beatriz Nascimento, em que o termo
“quilombo” passa a ganhar um significado político de resistência.
No final da década de 1970 e início de 1980, o “quilombo” passa a ser uti-
lizado como símbolo da resistência negra. Em 1980, Abdias Nascimento publi-
cou o livro O quilombismo, buscando definir justamente o novo papel político
que o termo histórico “quilombo” deveria receber. A ele se devem a percep-
ção e o registro inicial do quilombismo como um “conceito emergente do pro-
cesso h istórico-cultural da população afro-brasileira”. Nas palavras do autor:
“O quilombismo é um movimento político dos negros brasileiros, objetivando a
implantação de um Estado Nacional Quilombista inspirado no modelo da Repú-
blica dos Palmares, no século XVI e em outros quilombos que existiram e exis-
tem no país”. (NASCIMENTO, 1980, p. 275)
Baseado na vivência cultural, no tempo histórico e na práxis da coletividade
negra, com quilombismo, Abdias questiona as bases do modelo de desenvolvi-
mento brasileiro e seus dispositivos raciais que excluíram negras e negros dos
benefícios do desenvolvimento e elabora uma proposta teórico-prática de trans-
formação política, social e econômica, articulada a uma lógica do comunal ins-
pirada nos quilombos.
A finalidade básica do quilombismo proposto por Abdias é promover a felici-
dade do ser humano, baseada em uma sociedade livre, justa, igualitária e soberana,
por meio da implantação de uma economia de base comunitário-cooperativista, do
uso coletivo da terra e dos bens de produção, convivência harmoniosa com a natu-
reza e equilibrada com todas as formas de existência. (NASCIMENTO, 1980)
De forma pioneira, o quilombismo de Abdias faz um primeiro esforço de
registro de conceitos e experiências da população negra brasileira e sua visão
Kabengele Munanga
Kabengele Munanga é um dos maiores pensadores negros contemporâneos, e
assim é considerado por seus colegas e organizações educacionais e de direitos
que reconhecem nele e em sua obra valorosa contribuição para a emancipação
humana. Tendo como ideia-força de suas pesquisas e produções no contexto da
educação raça e racismo, seus escritos apontam para um racismo à brasileira.
CONCLUSÃO
Buscamos, neste capítulo, ilustrar a contribuição intelectual negra brasileira
para a reflexão do país, seu processo sócio-histórico e possibilidades interpre-
tativas. Trouxemos também uma análise crítica da situação do saber negro e do
apagamento de sua contribuição às ciências sociais. Apresentamos, brevemente,
os contributos de intelectuais contemporâneos fundamentais para a compreen-
são do Brasil e de sua população.
Enquanto autores, desde nossa vivência e formação como intelectuais
negros(as) orgânicos(as), no sentido de Gramsci, e/ou radicais, na proposição
de Clóvis Moura, e militantes como Munanga, trazemos a nossa visão da práxis
radical como uma verdadeira artesania de valorização da pluralidade e da geo-
política de saberes produzidos no Sul.
Como já apontamos no artigo “Aportes teóricos e metodológicos decolo-
niais: o caso da disciplina ‘Pensamento Negro Contemporâneo’”, publicado em
2018, pensar a ação pedagógica inclusiva e plural da universidade brasileira é
uma missão nada fácil quando se abstrai sobre o processo de alfabetização pro-
porcionado pelo Estado nacional desde sua conformação republicana. Assim
sendo, com a entrada, neste século XXI, de jovens e adultos de raízes indígenas
e africanas no âmbito universitário, representantes da maioria minorizada, essa
missão se potencializa em razão da obrigação da universidade de proporcionar
aos alunos em geral e aos negros e indígenas, em particular, uma matriz educa-
cional que contemple realidades e abordagens próximas da vivida por estes(as)
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário
das elites – século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
BAIROS, Luiza. Lembrando Lélia Gonzaléz. Geledés, São Paulo, 28 ago. 2009.
Disponível em: https://www.geledes.org.br/lembrando-lelia-gonzalez-por-luiza-
bairos/. Acesso em: 10 abr. 2018.
CARVALHO, José Jorge de. Entrevista com prof. José Jorge de Carvalho. [Entrevista
cedida a] Ari Lima e Pedro Jaime. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 19, p. 207-227,
2010.
IPEA. Atlas da violência 2017. Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: https://www.
ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=30411.
Acesso em: 28 fev. 2020.
MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. 2. ed. São Paulo: Fundação
Mauricio Grabois: Anita Garibaldi, 2014.
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. 2. ed. São Paulo: Ática, 1988.
(Série Princípios).
NAÇÕES UNIDAS. ONU mulheres chama de ‘escândalo’ morte de 23 mil jovens negros
por ano no Brasil. [S. l.], 8 fev. 2018. Disponível em: https://nacoesunidas.org/onu-
mulheres-chama-de-escandalo-morte-de-23-mil-jovens-negros-por-ano-no-brasil/.
Acesso em: 28 fev. 2020.
NAÇÕES UNIDAS. Vidas negras: pelo fim da violência contra a juventude negra
no Brasil. [S. l.], [2017]. Disponível em: https://nacoesunidas.org/campanha/vidas-
negras/. Acesso em: 28 fev. 2020.
RAMOS, Guerreiro. A redução sociológica. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996.
RATTS, Alex; RIOS, Flavia M. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro, 2010. (Coleção
Retratos do Brasil Negro).
CAPÍTULO 4
fabiana lima
maria do carmo rebouças dos santos
KABENGELE MUNANGA
Em prêmio recebido em 29 de junho de 2018 pela Faculdade de Letras, Filosofia
e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), Kabengele
Munanga disse: “Acredito que não há sentidos em fazer ciência sem ter consciên-
cia dos problemas sociais. E este prêmio carrega muitas mãos, que não foram cita-
das aqui, muitas anônimas, que ainda carecem de direitos por igualdade”.
O fato é que a produção de conhecimento para qualquer mulher negra cria-
dora, acadêmica, intelectual, jornalista, artista, médica, ativista, engenheira,
advogada se dá, como bem nos inscreve Conceição Evaristo, no âmbito da
escrevivência. E é por isso que hoje eu não só estou honrada por poder apre-
sentar, na universidade onde trabalho, nosso convidado especialíssimo, como
me permito falar em primeira pessoa. Audre Lorde, quilombola feminista
1 Discurso proferido oralmente no evento acadêmico A Experiência de uma Universidade Popular e Plu-
riepistêmica, realizado na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) nos dias 9 e 10 de julho de 2018.
Em março de 2010, ele foi indicado pela Reitoria da UnB para representá-la
na audiência pública sobre as ações afirmativas nas universidades públicas, con-
vocada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quando a sua constitucionalidade
foi analisada por essa corte.
A importância da sua atuação é reforçada por Deise Benedito, importante
liderança e referência no movimento de mulheres negras no Brasil, atuante na
elaboração da Declaração de Durban contra o racismo, em 2001, uma das mais
ativas vozes a denunciar o encarceramento em massa de homens e mulheres
negras no Brasil, hoje aluna do mestrado em Direito na UnB. Para ela, o profes-
sor José Jorge:
Vamos romper essa fantasia racista fenotípica e fazer com que um cole-
giado acadêmico de ponta no Brasil comece a se parecer com a composição
racial da nossa sociedade como um todo. Ocorrerá, certamente, um para-
lelo intelectual dessa revolução fenotípica e os pesquisadores e docentes
negros começarão também a sugerir e demandar mudanças e ampliações
nas teorias e nos temas de pesquisa vigentes nos nossos programas e que
até agora muito pouca atenção têm dado aos estudos africanos, afro-brasi-
leiros e às relações raciais no Brasil. (CARVALHO, 2010, p. 219)
REFERÊNCIAS
CARVALHO, José Jorge de. Entrevista com prof. José Jorge de Carvalho. [Entrevista
cedida a] Ari Lima e Pedro Jaime. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 19, p. 207-227,
2010.
LORDE, Audre. Poetry is not a luxury. In: LORDE, Audre. Sister outsider: essays and
speeches. Trumansburg, NY: Crossing Press, 1984. p. 36-39.
CAPÍTULO 5
INTRODUÇÃO
A implantação da política de ações afirmativas da Universidade Federal do Sul
da Bahia (UFSB), no período em que fui responsável por sua condução – de
agosto de 2014 a fevereiro de 2017 –, pautou-se por uma concepção que tinha
por base a permanência estudantil traduzida em ações estruturadas, planejadas
e sustentáveis, especialmente concentradas na construção conceitual e política
lastreada em viabilidade financeira, dada a extrema vinculação com os recursos
disponíveis no orçamento federal, de maneira a corresponder aos compromissos
da universidade nova que se instalara.
O Plano Orientador da UFSB, ao colocar em evidência os teóricos que estu-
dam a educação superior e a comunidade acadêmica, apresenta alguns concei-
tos presentes na obra de Alain Coulon (2008), que estão na base conceitual que
procurou fundar as atividades de permanência estudantil.
Coulon (2008) se guia pela etnometodologia – criada por Harold Garfinkel
nos Estados Unidos –, investigando os etnométodos que constituem a vida social,
caracterizada por meio das ações práticas de seus membros, não somente pelo
1 Definimos “assistencialismo” de forma não pejorativa, mas conceituando como políticas governamen-
tais e não governamentais que lidam com as necessidades de setores mais vulneráveis da população
com ações filantrópicas, de caridade, com o resultado nefasto de criação de dependência dos sujeitos em
relação a apoios financeiros ou materiais de diversas ordens – alimentos, vestuário, transporte e outros.
TABELA 2 – PERFIL DE RENDA DOS ESTUDANTES DAS IFES (1996-2014) E PRIMEIRA TURMA DA UFSB
(2014.3), ATÉ 1,5 SALÁRIO MÍNIMO
Fonte: elaborada pelo autor com base em dados da Associação Nacional dos Dirigentes das
Instituições Federais de Ensino Superior e Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Estu-
dantis (2016).
(*) Salário mínimo = R$724,00
Fontes: elaborada pelo autor com base em dados do IBGE (2010) e Universidade Federal do Sul
da Bahia (2014-2015).
A IMPLANTAÇÃO DO PROGRAMA DE
APOIO À PERMANÊNCIA
A concepção inicial da assistência estudantil da UFSB – da fundação até julho de
2014 – previa a oferta de dois tipos de Auxílios de Permanência financeiros: AP 1
e AP 2. Seus valores eram estabelecidos em função da distância da moradia do
estudante em relação à sede – AP 1: R$ 200 para aqueles que residiam até 50 km
das sedes dos campi; e AP 2: R$ 450 para os que residiam além dessa distância.
Esse formato de assistência visava contemplar as teses de Coulon (2008),
com uma escala progressiva de envolvimento dos estudantes assistidos em ati-
vidades acadêmicas. Gradualmente, os estudantes beneficiados com os auxílios
financeiros deveriam dedicar uma parte de sua carga horária a atividades que
teriam o potencial de afiliá-los à universidade. Por isso, essas atividades seriam
realizadas logo na chegada dos estudantes, “[...] ampliando as possibilidades de
enfrentamento da fase de profundo estranhamento em relação ao ambiente da
universidade típica do primeiro ano” (UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA
BAHIA, 2015), conforme a sistematização programática constante da Tabela 4:
Essa proposta, anterior ao início das aulas, que se deu em setembro de 2014,
pressupunha a organização inicial da Atividade de Orientação Acadêmica (AOA),
cujo plano de 2014 previa dois docentes orientadores para cada 30 estudantes.
Os docentes teriam a missão de acompanhar os estudantes em todo o percurso,
na elaboração e execução de planos de trabalho.
A AOA interpretava o Plano Orientador da UFSB, destacando a autonomia
dos discentes e a disponibilização de uma tutoria por parte da instituição:
[...] considerando:
3 Ver publicação da programação comemorativa ao Dia do Meio Ambiente. Disponível em: https://www.
ufsb.edu.br/component/content/article/828-ciclo-de-atividades-dia-mundial-do-meio-ambiente.
4 Apresentadas no vídeo: “Perspectivas das obras do Campus Jorge Amado”. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=Lgv8pGKrOXw.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde o início das atividades acadêmicas da UFSB, passando pelo período de
minha gestão na Prosis, a concepção, institucionalização, planejamento e exe-
cução da política de permanência estudantil nessa universidade alternaram
momentos distintos – uns de extraordinária inovação e caráter transformador;
outros de retrocessos em vários sentidos.
Retrocessos como: a dificuldade em contar com o engajamento dos docen-
tes no processo de afiliação dos estudantes por meio da resistência à tutoria nas
AOAs e a omissão dos decanos dos Ihacs em relação a essas atividades; a con-
dução equivocada da alta administração da universidade em relação à centrali-
zação funcional no campus Jorge Amado, que limitou a execução da política; a
opção atrasada e equivocada, também da reitoria, em negociar os terrenos para
a implantação dos campi de Itabuna e Porto Seguro fora da malha urbana dessas
cidades revelam desprezo pelo princípio da sustentabilidade ao ser confrontado
com as melhores práticas em mobilidade urbana.
A despeito dessa análise crítica, destaca-se que o projeto da UFSB está
apenas no início de sua implantação. Na política de permanência estudantil,
consolidaram-se algumas práticas, devidamente institucionalizadas. Elas possi-
bilitaram o caminho de implantação de um programa máximo e amplo (PAP) e a
gestão de implantação progressiva, antecipando e trocando as reivindicações do
movimento estudantil por planejamento.
Algumas decisões dessa política, como a recusa de construção e operacio-
nalização de um restaurante universitário, viabilizando os auxílios-alimentação
5 Em artigo publicado no site da UFSB, são enaltecidas as mobilizações estudantis em torno do tema
transporte público no campus Sosígenes Costa (Porto Seguro), dificuldade causada pela própria univer-
sidade, que instalou seu campus em local que não era suprido por linhas de ônibus regulares. Ver em:
http://www.ufsb.edu.br/component/content/article/892-estudantes-do-csc-mobilizam-a-comunidade-
-academica-o-poder-publico-e-empresa-para-propor-melhorias-para-o-transporte-coletivo.
com faixas variáveis de subsídios em função da renda dos estudantes, foi uma
decisão acertada. Isso desobriga a universidade de atuar em área que não diz
respeito diretamente à missão de ensino, pesquisa e extensão. Mas, mesmo com
essa posição, a UFSB falhou ao não viabilizar espaços de alimentação para toda a
comunidade acadêmica nos campi, com qualidade e preços adequados, criando
um incômodo entre os estudantes e levando-os à reivindicação por um “bande-
jão” em cada campus.
Finalmente, fica a preocupação com os caminhos pelos quais a UFSB e seus
órgãos de gestão conduzirão a universidade. As pistas lançadas a partir de 2018
não deixam muitas esperanças para esse projeto que se lançou inovador.
Em março de 2019, medidas drásticas aprovadas pelo Consuni, como a
reforma com a descaracterização da Formação Geral (FG),6 com a flexibilização
da interdisciplinaridade e a possibilidade de escolha precoce e disciplinar do
(per)curso universitário, assim como a extinção das Áreas Básicas de Ingresso
(ABIs) e a entrada direta nas Licenciaturas Interdisciplinares (LIs) nos Cunis,
negam premissas básicas de mobilidade e que estão intrinsicamente relaciona-
das à política de permanência estudantil.
Como fazer para manter os avanços e evitar atrasos nos anos que virão? É pos-
sível evitar que a UFSB retroceda aos padrões das universidades do século XX?
REFERÊNCIAS
ALBERTO, Klaus Chaves Alberto; INHAN, Gabriela; MIRANDA, Clara. Rudolph
Atcon e o planejamento do campus da Universidade Federal do Espírito Santo.
Óculum, Campinas, v. 13, n. 2, p. 237-254, jul./dez. 2016.
6 A Parte III deste livro, “Formação Geral, formação cidadã”, trata especificamente sobre o tema da FG da UFSB.
FERREIRA, Sandro Augusto Silva et al. Plano de atividades da Prosis. 12 jul. 2014.
Não publicado.
HEIJER, Alexandra den; TZOVLAS, George. The European campus: heritage and
challenges. Delft: Delft University of Technology, 2014. Disponível em: https://books.
bk.tudelft.nl/index.php/press/catalog/download/isbn.9789081728324/442/5671?in
line=1. Acesso em: 6 dez. 2018.
INEP. Sinopse estatística da educação superior 2017. Brasília: INEP, 2018. Disponível
em: http://portal.inep.gov.br/basica-censo-escolar-sinopse-sinopse. Acesso em:
6 jun. 2018.
CAPÍTULO 6
A EXPERIÊNCIA DO PET-SAÚDE/GRADUASUS
ação e formação no território
INTRODUÇÃO
Os cursos intercampi de Bacharelado Interdisciplinar (BI) em Saúde da Universi-
dade Federal do Sul da Bahia (UFSB), baseados no Plano Orientador e nos projetos
pedagógicos dos cursos, tentam, em vários aspectos, resilir com a educação tradicio-
nal e desenvolver alternativas para melhoria da formação profissional em saúde vol-
tada para a promoção da saúde, compreensão e defesa do Sistema Único de Saúde
(SUS), com enfoque na integração ensino-serviço-comunidade, em confronto com
a formação profissional em saúde no Brasil, a qual historicamente tem se distan-
ciado dos valores de promoção da saúde de pessoas e coletividades. (ALMEIDA-
-FILHO, 2014; AYRES; 2010; MATTOS, 2001) Nesse contexto, a UFSB, busca, de
forma prática, avançar no processo de formação dos profissionais da saúde, uma
vez que agrega elementos estratégicos para superar a fragmentação clássica entre
aprendizagem teórica e as vivências práticas. (BREHMER; RAMOS, 2014)
Sendo assim, o BI em Saúde tem como prioridade formar egressos que res-
pondam às demandas sociais e também às necessidades individuais e coletivas
PET-SAÚDE/GRADUASUS E INTERPROFISSIONALIDADE
O PET-Saúde/GraduaSUS e os projetos nele desenvolvidos tendem a provocar
um novo olhar para a configuração dos saberes e práticas cotidianas nos serviços
de saúde, sendo que muitos são os atores sociais que participam dessa integração
e se beneficiam direta e indiretamente dela. Para os tutores, docentes da UFSB,
especialmente aqueles que não possuíam um maior contato com a realidade do
território e atuação dos profissionais da rede de atenção básica, foi possível arti-
cular teoria e prática, fundamental para qualificarem suas aulas, atendendo o
que preconiza o Plano Orientador, principalmente no tocante à promoção da
aprendizagem significativa e o uso de metodologias ativas, tais como a aprendi-
zagem baseada em problemas.
Para os preceptores, profissionais do SUS, a integração ensino-serviço-comu-
nidade possibilitou a reflexão da realidade do sistema de saúde brasileiro, integra-
ção nas EAAs e a participação no processo formativo dos estudantes. Além disso,
o projeto promoveu a integração de conhecimentos entre preceptores e tutores,
potencializando a interdisciplinaridade e o trabalho em equipe como caracterís-
tica da interprofissionalidade, compreendida como o desenvolvimento de práti-
cas colaborativas entre profissionais de diferentes áreas de formação que traba-
lham em equipe multidisciplinar para prestar assistência de qualidade a pacien-
tes, famílias e comunidades. (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2010)
No caso específico de Itabuna, a representatividade da comunidade foi inse-
rida na equipe do projeto através do líder comunitário, pelo reconhecimento da
sua importância na participação do diagnóstico das necessidades de saúde no
território, bem como pela sua responsabilidade na melhoria das condições de
vida do ponto de vista do coletivo. Essa proximidade possibilitou seu retorno aos
estudos como aluno especial em diversos componentes curriculares na área da
saúde da UFSB, ampliando o diálogo entre a comunidade e universidade.
Para os estudantes, a experiência do trabalho em equipe e em colaboração per-
mitiu a compreensão da necessidade do respeito à diversidade étnica, social, eco-
nômica e cultural e também a participação em ações com foco na mudança das
condições de saúde do território, com um olhar diferenciado, sensível para as popu-
lações vulneráveis. Além disso, contribuiu com sua formação, a partir de metodo-
logias ativas, aprendizagem compartilhada para a solução dos problemas de saúde
2 O Ciei é um dos Complexos Integrados de Educação que foram criados por adesão, a partir de escolas
de ensino médio de educação em tempo integral. Abrigam os colégios universitários da UFSB. A gestão
pedagógica do Ciei conta com o apoio da coordenação de práticas pedagógicas exercida por um docente
da universidade, ficando a gestão administrativa a cargo da Secretaria de Educação do Estado da Bahia.
Ver, na Parte II deste livro, os textos “Transições paradigmáticas entre a universidade e a escola”, “A in-
terface universidade e educação básica no sul da Bahia” e “O Complexo Integrado de Educação de Porto
Seguro e o compromisso com a educação básica na UFSB”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A formação do profissional de saúde em suas diferentes áreas de atuação deve
estar vinculada ao sistema de saúde e precisa estar a serviço da coletividade.
Entretanto, a maioria das universidades brasileiras ainda tem dificuldades
em absorver demandas com esse perfil, pois tem fortes amarras no modelo
biomédico tradicional, presente ainda no processo de formação acadêmica.
A UFSB rompe essas barreiras a partir dos BIs e sua interação com a atenção
básica e o SUS.
As EAAs formadas por estudantes, ACS, estudantes bolsistas, tutores e pre-
ceptores do PET-Saúde, na implementação dos projetos de intervenção, con-
tribuíram para a formação reflexiva, crítica e autônoma dos estudantes e ACS.
Também foi possível refletir e analisar práticas que colaboram para o desenvol-
vimento do senso crítico em relação às informações sobre saúde. Além disso,
podem-se verificar o desenvolvimento de habilidades e competências para o tra-
balho em equipe e em colaboração e a construção de conhecimentos importan-
tes para a saúde coletiva. Vale ressaltar ainda a ampliação da rede de ensino e
aprendizagem, efetivando o trabalho das EAAs. O uso de metodologias ativas
possibilitou a escuta efetiva da voz dos cidadãos dos usuários do sistema e a dis-
cussão sobre quais problemas são prioridades para a defesa e qualidade de vida
da população.
Entretanto, assim como descrito em diferentes relatos e artigos desenvolvi-
dos por diferentes grupos contemplados pelo programa PET-Saúde/GraduaSUS,
ainda são várias as fragilidades e potencialidades da integração ensino-serviço.
Apesar da complexidade na relação ensino-serviço-comunidade, compreende-
-se que essa triangulação pode integrar o ensino e o serviço e assegurar uma
abordagem completa do processo saúde-doença com ênfase na atenção básica,
bem como possibilitar o fortalecimento do programa de saúde na escola como
veículo propulsor da promoção da saúde no território.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA-FILHO, Naomar de. Bacharelado interdisciplinar em saúde: revolução
na educação superior no campo da saúde. In: TEIXEIRA, Carmen Fontes; COELHO,
Maria Thereza Ávila Dantas (org.). Uma experiência inovadora no ensino superior:
bacharelado interdisciplinar em saúde. Salvador: Edufba, 2014. p. 11-22.
LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da educação. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1991.
PAIM, Jairnilson Silva. Desafios para a saúde coletiva no século XXI. Salvador:
Edufba, 2006.
QUEIROZ, Danielly Maia de; SILVA, Maria Rocineide Ferreira da; OLIVEIRA, Lúcia
Conde de. Continuing education for community health agents: potentialities of
an education guided by the framework of health and popular education. Interface,
Botucatu, v. 18, p. 1199-1210, 2014. Suplemento 2.
CAPÍTULO 7
TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO
E COMUNICAÇÃO NA UFSB
superando desafios na construção
de uma universidade popular
INTRODUÇÃO
No mundo atual, as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) são ins-
trumentos potencializadores para a emancipação e desenvolvimento social e
econômico de uma sociedade. A Carta de Fundação e Estatuto (2013) da Uni-
versidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) evidencia seu compromisso com as
exigências educacionais do mundo contemporâneo, comprometida, sobretudo,
com o desenvolvimento social, econômico e humano da região sul da Bahia. Sus-
tentabilidade e eficiência na gestão administrativa e acadêmica estão entre seus
princípios fundantes e, dentro dessa perspectiva, a carta destaca o pluralismo
pedagógico e uso intensivo de tecnologias digitais de ensino-aprendizagem.
Com o entendimento da relevância das TICs nos processos de ensino-aprendiza-
gem e governança institucional, a UFSB inovou em sua estrutura com a criação
da primeira Pró-Reitoria de Tecnologia de Informação e Comunicação (Protic)
1 A partir do convite a Raimundo Macêdo, formulado pelo reitor da recém-criada UFSB, Naomar de
Almeida-Filho.
FIGURA 1 – SALA DE GESTÃO DE TIC PARA O PRIMEIRO CONCURSO AUTOMATIZADO PARA DOCENTES
DA UFSB EM 2014
1. infraestrutura;
2. sistemas;
3. multimídia e conteúdos digitais; e
4. governança e marcos regulatórios de TIC.
As três primeiras áreas foram organizadas com respectivas diretorias, cada qual
com duas coordenações, e a quarta área constituiu-se em um núcleo administrativo
de TIC, transversal às demais áreas, encarregada de apoio aos processos de gestão
e marcos regulatórios, logística, comunicação interna e externa (UNIVERSIDADE
FEDERAL DO SUL DA BAHIA, 2017a), documentação e alinhamento intercampi.
A dimensão física representa a organização que viabilizou a missão da pró-
-reitoria em uma estrutura distribuída multicampi e constituiu-se em uma rede
de núcleos tecnológicos, um por campus, mais o núcleo de apoio em Salvador,
este até 2017.
Para viabilizar o funcionamento dessa estrutura distribuída multicampi, uti-
lizamos ferramentas digitais de controle e acompanhamento de atividades e rea-
lizamos reuniões rotineiras e semanais cobrindo e integrando os vários níveis
hierárquicos da pró-reitoria. As reuniões rotineiras se dividiam em categorias:
reuniões gerais, visando a integração intercampi entre todos os membros da pró-
-reitoria e o compartilhamento de conhecimentos e desafios; reuniões de g estão
da Protic, buscando o alinhamento de estratégias e desafios entre os gestores
intercampi da Protic; e reuniões técnicas específicas, objetivando a sincroni-
zação de ações para implementações de novas estruturas, projetos e processos
específicos. Nas reuniões, atividades executadas durante o período eram infor-
madas e discutidas, sempre com espaços para livre manifestação. As reuniões
gerais semanais eram replicadas em cada diretoria duas vezes por semana.
As atividades de TIC em instituições federais estão sujeitas a uma série de leis
e regulações, originadas em grande parte no Ministério da Educação e no Minis-
tério do Planejamento. Anualmente, alguns questionários precisavam ser pre-
enchidos com informações diversas sobre as TICs na UFSB, nossa organização e
2 Os Cunis e os CIEs são apresentados e discutidos a Parte II deste livro, “Missão pactuada com a educa-
ção básica”.
REFLEXÕES FINAIS
Sendo a UFSB uma universidade que se propõe popular e com grande alcance
territorial, cobrindo pequenas comunidades remotas do sul da Bahia (UNI-
VERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA, 2013, 2014a), dispor de infraestru-
tura e competência tecnológica digitais era considerado por muitos seu maior
desafio. Como já mencionado, na fase crítica de implantação, nos anos de 2013
e 2014, nos deparamos com a falta de infraestrutura de rede banda larga no sul
da Bahia, com a necessidade iminente de sistemas para gestão informatizada,
necessidade de meios digitais (equipamentos e expertise) para apoio ao ensino-
-aprendizagem nos vários modelos vislumbrados – presencial, não presencial,
síncrono, assíncrono etc. –, um orçamento limitado e, sobretudo, ausência de
profissionais da área de TIC na universidade. As previsões de que em tão pouco
tempo as barreiras de implantação fossem minimamente superadas não eram
nada animadoras.
Enfrentar esse desafio de implantação foi, portanto, antes de tudo, um ato
político de grande engajamento com as causas e princípios norteadores da
UFSB. E esse engajamento foi realimentado constantemente através da parti-
cipação em atividades que extrapolavam a área de TIC, estendendo-se à elabo-
ração de documentos norteadores da universidade – Carta de Fundação, Plano
3 Ver, na Parte III, o texto “Raciocínio computacional na Formação Geral pavimentando o caminho da
interdisciplinaridade”.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Levantamento de Governança de TI 2016
– Relatório Individual: Universidade Federal do Sul da Bahia. Brasília, DF, 2016.
Disponível em: http://www.lasid.ufba.br/publicacoes/UFSB/TCU-GovernancaDeTI-
UFSB-RelatorioIndividual2016.pdf. Acesso em: 1 maio 2019.
MACÊDO, Raimundo José de Araújo; SÁ, Alirio Santos de. UFSB Planejamento
da Infraestrutura de TIC. jan. 2014. Disponível em: http://www.lasid.ufba.br/
publicacoes/UFSB/planejamento-infraestrutura-tic-ufsb-v1.1.pdf. Acesso em: 19
fev. 2020.
MACÊDO, Raimundo José de Araújo; SÁ, Alirio Santos de. Rede digital para
integração social: experiências da Universidade Federal do Sul da Bahia. In:
WORKSHOP DE TIC PARA DESENVOLVIMENTO, 1., 2017, Belém. Anais [...]. Porto
Alegre: SBC, 2017. p. 25-30. Disponível em: https://sbrc2017.ufpa.br/wp-content/
uploads/2017/08/proceedingsWTICpD2017v2.pdf. Acesso em: 1 maio 2019.
MACÊDO, Raimundo José de Araújo; SÁ, Alirio Santos de; FREITAS, Allan Edgard
Silva. UFSB Projeto de Conectividade. nov. 2013. Disponível em: http://www.lasid.
ufba.br/publicacoes/UFSB/projeto-conectividade-ufsb-sumario-executivo-4.7.pdf.
Acesso em: 19 fev. 2020.
CAPÍTULO 8
INTRODUÇÃO
A reflexão a respeito de como as universidades públicas podem contribuir de
forma efetiva para uma transformação da sociedade brasileira, reduzindo suas
imensas desigualdades e injustiças sociais, deve considerar pelo menos dois
aspectos fundamentais: o primeiro diz respeito à produção de conhecimen-
tos que deveriam se voltar prioritariamente para buscar alternativas tecnológi-
cas e sociais com vistas à promoção dos mais diversos direitos que permitirão
uma melhoria efetiva do bem-estar da sociedade; o segundo, quase que como
um corolário do primeiro, diz respeito à necessidade da inclusão e manutenção
dos jovens oriundos das classes sociais mais desfavorecidas, principalmente os
negros e indígenas, nas suas salas de aula, incorporando as suas culturas, os seus
problemas e a riqueza das suas experiências e diversidade cultural.
1 Ver mais adiante, na Parte III deste livro, o texto “Experiências do Sensível na formação acadêmica, a
proposta da UFSB”.
segundo ciclo seriam ofertados e que estes não deveriam obrigatoriamente obe-
decer à vocação ou às necessidades da região. Questionavam também o modelo
de ciclos, pois apenas conheciam os modelos tradicionais e almejavam entrar
imediatamente em um curso profissional.
As inovações trazidas pela formação em ciclos, pelo regime quadrimestral,
pela Formação Geral (FG) única, com capilaridade de acesso aos cursos no sul
da Bahia e real inclusão da população negra e indígena pela criação dos Colé-
gios Universitários (Cunis), só teriam sucesso se nós, docentes e gestores, conse-
guíssemos exercitar juntos com os discentes e técnicos os valores explicitados no
Plano Orientador da UFSB: ética, solidariedade e responsabilidade.
Esses valores estão contidos no pensamento de Paulo Freire, especialmente
no seu conceito de ética universal, que exige a compreensão de que esses prin-
cípios de vida não devem ser apenas explicitados verbalmente, mas serem exer-
citados no cotidiano, nas ações diárias. Eles devem fazer parte do conjunto das
relações dialógicas entre professores, alunos e técnicos e precisam ser constru-
ídos no dia a dia da sala de aula e da instituição. São eles que devem ser a base
de tantas outras competências e habilidades necessárias na formação de todos.
Foi assim, com tais sinalizadores de referência, que a UNIRIO tratou as suas
importantes questões institucionais. A ampliação de mecanismos de partici-
pação tornou-se a marca central das ações realizadas. Exercitamos a prática de
ouvir e efetivamente escutar a comunidade, de olhar e ver o que, por vezes, é difí-
cil mostrar ou perceber.
Essa proposta possibilitou o surgimento de práticas na universidade que
a fizessem promotora de uma educação emancipatória, capaz de expressar a
multiplicidade de pensamentos com uma ampliação de ações com maior com-
promisso social. Percebíamos a necessidade de romper as resistências que impe-
diam as universidades de avançar. Era urgente criar formas estruturais mais
flexíveis que possibilitassem práticas integradoras das áreas, das pessoas e das
instituições. (TUTTMAN, 2004)
Em 2007, essa visão de universidade se viu fortalecida com o Decreto Reuni,
que explicitava entre os seus objetivos a oportunidade de abrir um processo de
discussão visando modificações estruturais e acadêmicas:
As vagas destinadas aos oito primeiros municípios com Cunis não puderam
ser incluídas no Sisu pelo fato de o sistema e-MEC não permitir a inclusão de
seus endereços, classificando-os na sua tipologia como cursos fora de sede. Para
a superação desse empecilho, decidiu-se por um edital e um processo de seleção
em separado no qual os candidatos concorreriam com as suas notas do Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem). Para isso, foi criado o que se denominou de
sistema “Sisu_UFSB”, que se mostrou ideal para a seleção dos Cunis ao favorecer
a inclusão de estudantes dos respectivos municípios. Outra decisão importante
nesse momento foi a de permitir que os candidatos concorressem com as notas
dos dois últimos exames – Enem de 2012 e de 2013. Esse edital também deixava
explícita, conforme o Plano Orientador, a possibilidade de trânsito entre os cur-
sos para os estudantes dos Cunis:
Após essa primeira etapa de desafios ser superada, estava claro que iriam
existir muitos outros obstáculos e provavelmente bem mais difíceis. Tínha-
mos a consciência de estar constituindo uma instituição que se propunha a
ser formadora, com a clareza que todos éramos aprendizes. As normatizações
a serem definidas iriam precisar passar por um amplo processo de discussão
com a comunidade, porque elas é que poderiam garantir o estabelecido no Plano
Orientador e nos editais de seleção. Os critérios de acesso a todos os ciclos teriam
que ser pactuados de forma transparente, solidária e ética. Os estudantes iriam
chegar em breve e mereciam ser recebidos com alegria, entusiasmo, respeito,
os melhores planos pedagógicos possíveis e aulas inaugurais que permitissem
entusiasmá-los, porque, afinal de contas, era com eles, com o seu futuro, com o
futuro do sul da Bahia e com o futuro do Brasil que sonhávamos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao concluirmos a presente reflexão, entendemos que os processos e pensamen-
tos aqui descritos precisam ser avaliados e discutidos. Eles tiveram a finalidade
de indicar fatores que possam contribuir para avanços e, se for o caso, corre-
ções de rumo na implantação da inovadora proposta da UFSB ou, no caso da
UNIRIO, alternativas para a superação das distâncias entre sua realidade e as
necessidades apontadas para uma universidade do século XXI, bem como para
o fortalecimento de ações que insistam e persistam no exercício de uma prática
democrática e emancipadora.
Ousamos apontar também que, muitas vezes, as divergências conceituais
ou ideológicas, o conservadorismo ou reações às mudanças se travestem ou se
escondem por trás das normas ou legislações, que não podem e não devem ser
utilizadas como argumentos limitadores de mudanças acadêmicas inovadoras.
Por outro lado, valorizamos também o entusiasmo e compromisso de pro-
fissionais e estudantes, tanto na UFSB quanto na UNIRIO, que se lançam coti-
dianamente ao desafio constante de romper o estabelecido e buscam a melhoria
da qualidade da educação, possibilitando e materializando, com suas práticas
e estratégias de mudança, o avanço em direção a uma educação democrática e
de qualidade social. Aí reside a nossa esperança, o fortalecimento do sonho em
busca da utopia que nos faz caminhar.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Atos do Poder Executivo. Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007. Institui
o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades
Federais – REUNI. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 abr. 2007.
CAPÍTULO 9
MOVIMENTOS SOCIAIS E
CONHECIMENTO EMANCIPADOR
INTRODUÇÃO
Para falar de movimentos sociais e conhecimento, parto de minhas origens.1
Sou do povo preto que veio da África e indígena tupinambá, povos de conhe-
cimentos e saberes milenares. Sou fundador do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) da Bahia, participei do movimento de trabalhadores
em São Paulo na década de 1980 e sou herdeiro dos que fizeram a revolução
na Rússia, dos anarquistas que fizeram a primeira greve geral no Brasil, há 100
anos. Hoje, estou na construção da Teia dos Povos, na certeza de que temos que
enfrentar o capital, senão o capital destruirá a humanidade.2
1 Este texto é construído a partir da junção e edição de transcrições de dois momentos de fala de Joelson
de Oliveira: a aula inaugural proferida no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (Ihac) do campus
Sosígenes Costa da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) em 4 de julho de 2017, gravada e poste-
riormente transcrita por Isak Serafim e editada por Paulo Dimas de Menezes; e a palestra proferida em
10 de julho de 2018 durante o Seminário UFSB Popular e Pluriepistêmica, transcrita e editada por Rosân-
gela de Tugny (N. do O.).
2 Segundo a página oficial da Teia dos Povos: “A Teia dos Povos foi criada a partir dos diálogos continua-
dos da I Jornada de Agroecologia da Bahia, realizada em 2012 e tem o papel de traçar a agenda de ações
anuais que auxiliam no desenvolvimento, empoderamento e emancipação das comunidades integra-
doras. Participam segmentos como acampamentos, assentamentos, quilombolas, indígenas, mestres e
lideranças de tradição oral, pequenos produtores, estudantes, pesquisadores e profissionais em Agro-
ecologia. A Teia dos Povos é uma articulação agroecológico inserido nos movimentos e comunidades,
promotor de mudanças para uma nova sociedade a partir da emancipação, autonomia e dignidade do
ser humano, da Mãe Terra e das suas sementes. A Teia tem como princípios fundantes: I. Terra e alimen-
to como princípio filosófico e de vida, que se constrói através da solidariedade irrestrita aos movimen-
tos pela defesa da territorialidade, tendo como instrumento a pedagogia do exemplo. II. O trabalho e o
estudo para liberdade que possibilite a construção de um novo modo de vida, desconstruindo a herança
dos modelos capitalista, racista e patriarcal. III. Reafirmar o olhar ancestral na edificação de um novo
tempo, contextualizado à nossa forma. A Teia dos Povos criou uma Rede de Sementes Crioulas, promove
e realiza Feiras de Troca de Sementes, Mutirões de Reflorestamento e Plantio de Alimentos, formações
em agroecologia e educação do campo, encontros e espaços auto-organizados pelas mulheres, e Jorna-
das de Lutas para reivindicar os direitos das comunidades integradoras”. Ver em: https://www.facebook.
com/TeiadosPovosoficial/ (N. do O).
Para isso, tenho certeza de que vamos construir essa universidade e não vamos
perdê-la para as elites, porque ela vai nos trazer muita alegria, muitos cientistas,
muitos músicos, muitos médicos e contadores de histórias. Ela vai ser nossa e
vamos ter orgulho dela no mundo todo. Estou aqui na universidade, na casa do
conhecimento, da sabedoria, mas eu também venho de um local que tem conhe-
cimento e sabedoria milenar. Tenho dever de dizer a vocês que eu sou do povo
negro, que veio da África, e lá tem muito conhecimento. Nessa travessia, perde-
mos mais de 20 milhões, mas nós estamos aqui de pé.
Também tenho sangue indígena tupinambá, do povo guerreiro, que tem
muito conhecimento na arte de navegar, na arte da guerra e também vários
conhecimentos na área de “fazer genética”, como outros estão querendo agora
fazer e patentear, dizendo que são donos do conhecimento e também das terras
indígenas. Quando nós fazíamos aqui, não patenteávamos nada – as coisas que
nós praticávamos eram para serviço do nosso povo, da humanidade. Não preci-
sávamos de patente, pois o conhecimento era nosso; agora já vão patenteando,
querendo cobrar royalties, cobrando tudo. Isso é muito difícil para a nossa gente
entender. E eu sou descendente desse povo.
Sou também fruto dos movimentos sociais. Sou daqui do sul da Bahia, de
Itamaraju. Ajudei a fundar o MST na Bahia e já estive em todas as suas ins-
tâncias, desde a base até a mais alta patente. Tenho orgulho de ser do MST e
também da minha trajetória no movimento operário, no movimento de desem-
pregados em São Paulo, no início dos anos 1980, e falamos hoje, há 100 anos da
Revolução Russa, 100 anos também da primeira greve geral no Brasil conduzida
pelos anarquistas.
E hoje estou numa construção, não de mais um movimento, porque já exis-
tem muitos movimentos. É a construção da Teia dos Povos, em que estamos ten-
tando trabalhar, na decisão de juntar os povos, no sentido e na certeza de que nós
temos que enfrentar o capital ou o capital destruirá a humanidade. Isso é o que
nossa geração e a nova geração devem enfrentar.
Quando vi sua proposta, disse: “é essa que precisamos, temos que ‘cair pra den-
tro’ para construir essa universidade, porque ela tem uma proposta inclusiva,
uma proposta que sai dessa mesmice...”. Estava pensando nessas coisas, que
as universidades públicas são elitistas, mais privadas que públicas, que levam
as pessoas a não saberem nada. Como minha avó falava: “meu filho, você está
lavando a cabeça de burro com sabão…”, como que dizendo que dali se sai mais
besta do que entrou, quando assistimos a algumas discussões infinitas, que não
têm nenhum papel na construção humana.
Então, quando vi no papel essa universidade, fiquei maravilhado: “essa
universidade agora vai ajudar”. Porque eu tinha conhecido outra universidade
pública da região, onde o governo do Estado gasta quase 300 milhões todo ano
para mantê-la. Ela não consegue sair do seu muro para ir para um povoadozinho
que é vizinho. Essa universidade, que era para gerar um projeto de desenvolvi-
mento para nossa região, não consegue sair do núcleo dela para ir num povoado
ali colado. E fala de sustentabilidade enquanto o esgoto da própria universidade
cai no rio vizinho, o Rio Cachoeira, que já está morto ao lado dessa comunidade.
Então, nessa universidade que já existia – não estou falando mal dela, só colo-
cando as contradições –, o governo do Estado não faz conta e gasta 300 milhões
por ano. Em todos os cursos importantes, que seriam para fazer qualquer tipo de
intervenção na comunidade e na região, 90% dos alunos não são da região. A uni-
versidade que é pública, paga com dinheiro público, então passa a ser privada,
porque vem gente de fora, que estudou nas melhores escolas particulares e assu-
miu, na universidade, o lugar dos estudantes da região. Aí que fui entender uma
professora falando que não tem necessidade de discutir desenvolvimento regio-
nal e local, porque a universidade não deve ter essa preocupação.
Já havia visto essa professora dizendo que não é dever da universidade bus-
car desenvolvimento para a região, para as localidades, que a universidade não
tinha nada a ver com isso. Então, aqui eu pergunto: qual é o papel da universi-
dade? Se, com o acúmulo de conhecimento que tem, com as possibilidades que
tem, com dinheiro público, se ela não tiver condição de pelo menos provocar os
seus estudantes, os seus professores, para propor um desenvolvimento local e
regional, então essa universidade não vai ter servido para nada.
Por isso, quando vi a proposta dessa universidade nova, achei que devia bater
palma. Eu ainda estou confiante nessa escola, acreditando que ela pode ser vetor
de desenvolvimento dessa que é uma das regiões mais pobres do estado, o sul e
o extremo sul da Bahia. Os maiores índices de violência estão nessa região, por
causa da pobreza, do apartheid, da miséria. Todos os índices, de tudo o que há
de ruim, estão aqui nessa região. Mas acredito nessa universidade, com os pro-
fessores que tem, com os quadros que tem; acredito que, se a juventude agarrar
essa proposta, podemos não deixar acontecer o que aconteceu com outras uni-
versidades públicas na Bahia.
Ela tem que ser diferente, tem que ser uma universidade inclusiva, com os
indígenas com os quilombolas, com os assentados, com os pequenos produtores,
bonita que é aqui. Nós dos movimentos sociais, nós dos povos originais, nós do
povo preto temos que entender essa missão nossa.
Mais que vir para essa universidade, nós não podemos ficar só no smartphone
pensando que aquilo é uma máquina para entreter a gente. Essa é uma máquina
de guerra e pode servir tanto pra nosso bem quanto para nosso mal. E a univer-
sidade também é desse mesmo jeito. Tem muita gente que quer que só a ciência
prevaleça; tem gente que pensa que a ciência é tudo, como o pessoal que está
tentando fazer com que a gente acredite que “o agronegócio, é tec, é pop, é tudo”.
Não é verdade. Eles desembolsam milhões, bilhões de reais para serem eficien-
tes e não são eficientes. Tem que fazer uma propaganda danada, daquela na
Globo, para dizer que eles são tec, são pop, são tudo.
Quem enxergar além dessa propaganda, vai ver que 70% dos alimentos são
produzidos pelos pequenos agricultores, pelas comunidades ribeirinhas, pelas
comunidades tradicionais – 70%! E se for olhar a quantidade de terra e a quan-
tidade de recursos que nós temos e a que eles têm, é insignificante aquilo que
eles colhem todo ano. Então, acho que a gente precisa já assumir o nosso papel,
o nosso comando, a nosso favor. Esse é o nosso papel.
Nós temos que nos agarrar ao projeto estratégico dessa universidade, como
ela foi proposta. Essa universidade se propõe a ser uma universidade inclusiva,
aberta, uma universidade que Darcy Ribeiro pensou – e Anísio Teixeira! Ela
começou a ser implementada na Universidade de Brasília (UnB), não consegui-
ram, e agora nós temos essa possibilidade, aqui, nessa região.
E lembrem-se que essa região é a última fronteira da universidade pública
federal. Nós só tínhamos uma aqui na Bahia, a Universidade Federal da Bahia
(UFBA), em Salvador, e tinha a escola de agronomia do Recôncavo, que hoje é
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Então, só tínhamos esses
dois lugares para estudar e tínhamos que nos deslocar, exceto quem fosse para
as universidades particulares e as duas universidades estaduais: a Universidade
Estadual de Santa Cruz (UESC), que é lá no sul, e a Universidade do Estado da
Bahia (UNEB), que tem campus aqui, mas com recursos limitados para nós. Hoje,
temos o prazer e a alegria de ter uma universidade federal que atende ao sul e
extremo sul da Bahia.
Isso, para nós, foi uma conquista, mas precisamos internalizar esse ganho
porque, se ficarmos com as cotas somente, vêm dois, três indígenas para cá e
somem no meio da multidão. Se ficar só procurando cota aqui para o povo preto,
também sumiremos na multidão. Se também ficar escrevendo que os Colégios
Universitários (Cunis) vão lá para as nossas comunidades, mas sem dinheiro,
sem orçamento, então nós não teremos a nossa universidade.
E nós, todos nós, sabemos que estamos passando por uma crise generali-
zada, não só no Brasil, mas em todo o mundo – mas essa é a crise terminal do
capital. E toda vez que há uma grande crise, quem paga? É quem? Os pobres.
Eles lá fazem uma dívida grandiosa, não perguntam nome, não fazem nada que
deviam, depois quem “paga o pato” somos nós.
Aí vai faltar dinheiro para os Cunis, para bolsas, para contratação de profes-
sores, e não vai ter como aumentar salário – porque agora colocaram numa lei
que são 20 anos para não aumentar salário, não é isso? São 20 anos! Então, nós
fomos praticamente roubados aí, e não fomos nós que fizemos essa crise. É uma
crise de um grupo pequeno, que depois generaliza para todo mundo pagar, e
quem paga a parte maior somos nós.
CONHEÇAM A POLÍTICA
Aí tem uns sabidos, não é? Muita gente dizendo “eu não faço parte, não sou de
partido político, não sou nada...”. Cuidado com esse discurso! Nós não pode-
mos fazer parte de politicagem, da malandragem, mas da política nós temos que
fazer. Entender para “botar o dedo”, porque, no final, quem paga as contas somos
nós. Bertolt Brecht tem um poema muito bom, em que ele fala para a gente assu-
mir o comando. E eu estou dizendo pra vocês: conheçam a política! Venham pra
o campo da universidade e conheçam a política, porque é ela que define tudo.
Infelizmente, é ela que decide tudo.
Mas não queiram ser os maus políticos, os golpistas, os malandros, gente de
propina; não queiram ser esse pessoal. Sejam políticos para a gente preservar
e cuidar do bem comum. Esse tem que ser o real poder político. Não podemos
desistir nunca de ter esse poder.
Nós estamos também num momento difícil para os movimentos sociais, por-
que não estão entendendo o papel estratégico que têm, correndo atrás de coisas
pequenas. Todo mundo agora está falando em eleições? Nós já quisemos resolver
o problema assim. Nós elegemos um presidente, depois elegemos uma presidenta
mulher, e isso não resolveu o problema. Nós estamos de novo querendo cair no
conto do vigário, atrás de soluções fáceis. Por quê? Não existe solução fácil.
Essa elite que está aí é uma elite escravista, é uma elite que está no poder
desde de 1500. Vocês acham que ela vai dividir o poder com os movimentos
sociais? Vai entregar terra indígena? Vai entregar terras aos quilombolas? Vai
entregar terras para o MST? Vai entregar terra aos movimentos sociais? A troco
de quê? Por que eles são bonzinhos?
Só para dizer do mar, 20 milhões de negros morreram. Eles mataram. Mais
de 4 milhões de indígenas, eles mataram, estupraram, fizeram a maior perversi-
dade. Nós que sobramos, nós, negros, indígenas, vivíamos no máximo 20 anos,
de tanto castigo, tanto ataque, tanto trabalho forçado, tanta coisa que nós não
temos nem condições de lembrar. Fizeram tudo isso aí e dessa fortuna toda se
apoderaram. E você acha que eles vão entregar de graça? Falando em eleições?
Eleger Lula agora de novo vai resolver o problema?
Nós temos que começar a entender e participar da política, mas, sobre os
movimentos sociais, eu tenho muito receio que esteja todo mundo parado den-
tro dessa canoa, que é uma canoa furada. Não existe nenhuma possibilidade de
sermos incluídos nesse sistema, de fazer reforma, de querer melhorar esse sis-
tema, porque esse sistema está falido! Esse sistema não é nosso e a humanidade
não cabe dentro dele.
Então, se não cabe, não tem outro jeito: nós temos que destruí-lo. E isso não
é fácil. Nós temos que partir para uma construção. Na humanidade, temos vários
exemplos a olhar, a entender. Na revolução de 1917, nos dez dias que abalaram o
mundo, o povo tomou o poder na Rússia. Depois, com pouco tempo, eles retoma-
ram tudo de novo. Nós fizemos a revolução e eles tomaram o poder.
Nós temos que construir o poder. Essa é uma construção popular, uma
construção grandiosa. É uma missão coletiva, mas é também extremamente
particular, individual. Não vamos fazer as mudanças depois que construirmos
e conquistarmos o poder. Nós temos que fazer revolução agora, todos os dias.
Você, dentro da universidade, tem que fazer a revolução aqui dentro. Você está
na sua casa, você tem que fazer a revolução na sua casa; você está na aldeia, você
tem que construir a revolução na aldeia. Nós temos que sair dessa alienação.
Quando algum professor vier aqui dizendo “tem uma bolsa ali na Veracel
para pesquisar eucalipto”... Não precisa mais pesquisar isso. Essa é a árvore
mais estudada no Brasil, com dinheiro público, do Banco Nacional de Desenvol-
vimento Econômico e Social (BNDES)! Eles já têm tudo. Então, vamos estudar
como é que está a situação da nossa aldeia. Quais os problemas que existem lá
na nossa aldeia, que nós precisamos estudar? Quem está na saúde tem que estu-
dar: como é que está nossa saúde na aldeia? Como nós vamos resolver? Como é
que está nossa saúde do nosso quilombo? Como nós vamos resolver? Como é que
está a economia do nosso quilombo? Como é que vamos fazer? Na nossa aldeia,
como é que está a economia?
Nós vamos ser os próprios coitadinhos? Vivendo de esmola? Nós não precisa-
mos viver de esmola. Nós temos terra, e em terra se planta!
alimento tão grandioso? Como é que vocês fizeram isso? Será que a gente pode
construir outros?
Precisamos começar a dialogar com os mais velhos, aprender com nossos
antepassados. Essas são coisas essenciais, lhes garanto. Ficamos 12 mil anos
aqui, e o pessoal que veio de fora chegou e encontrou um paraíso, uma beleza,
uma coisa extraordinária... Esse povo que estava aqui não tinha ciência? Esse
povo não tinha conhecimento? Não tenha dúvida disso; eles viveram isso. Pega-
ram uma rama venenosíssima e transformaram em uma coisa grandiosa, cria-
ram outros conhecimentos, conheciam as ervas medicinais.
Nós temos esse conhecimento. O nosso povo tem conhecimento, a nossa
localidade tem conhecimento, e nós precisamos cuidar disso. A floresta tem coi-
sas de que nós precisamos tratar. Ao invés de estudar o eucalipto, porque não
estudamos o jacarandá, o pau-brasil, a juçara, os fungos?
Eu estava falando aqui: só no resto que ficou, nos 7% de Mata Atlântica, nós
temos trilhões de dólares! Se nós fôssemos pesquisar os fungos, saber a impor-
tância deles, pesquisar as árvores, as madeiras importantes para recompor; se
nós estudássemos a questão da água, a possibilidade de preservar a água, aí
encontraríamos milhões de coisas que poderíamos transformar em riqueza para
as nossas localidades. E nós temos que vir para a universidade pra isso: enten-
der, aprender a pesquisar essas coisas e tentar avançar nisso.
Para os movimentos sociais, estou dizendo que agora só tem um caminho.
Primeiro, é buscar a unidade dos povos. Os Sem Terra hoje não vão vencer essa
guerra sozinhos, os indígenas não vão vencer essa guerra sozinhos, o povo preto,
os quilombolas não vão vencer essa guerra sozinhos.
mas agora eles voltaram e com mais gana ainda, fazendo o maior retrocesso que
vocês podem imaginar. Não tem nem dois anos de governo e já acabaram com
todas as conquistas que tivemos. Voltaram para a mão do atraso, que está em
falência serviçalmente, para atender os interesses norte-americanos. Primeiro,
fizemos guerra, nós fomos para a guerra para defender os interesses europeus;
agora voltaram novamente com essa postura, mas só que para os interesses pura-
mente norte-americanos.
Essa universidade tem dono e a gente tem que entender isso. A escola para
dominar é uma escola de excelência e de capacidade, tem seus teóricos, tem
tudo, mas nós não entramos lá, nem passamos perto. Também tem a universi-
dade deles, de pensar, de construir. Eles têm institutos para organizar a mente de
quem vai mandar. E eles deixaram para nós? A partir de 1930, era necessário tirar
a população do campo e levar para a cidade, para servir ao desenvolvimento que
eles estavam propondo. Então, fizeram um arremedo de escola: a escola para for-
mar capatazes para mandar, formar os feitores, os capitães do mato. Mas agora já
diferente, na cidade, fizeram a escola para os obedientes, a escola mínima. Você
só tem que aprender a obedecer e a trabalhar, pois sua função é essa e mais nada.
Agora, estamos em um dilema, pois, com o avanço da tecnologia, com a apro-
priação da quarta revolução tecnológica pelo capital – desenvolvida pela huma-
nidade, mas apropriada por ele –, eles não vão necessitar de nós nem para seus
escravos. Na plantação de cana-de-açúcar, não vai precisar; na fábrica, também
não, por conta dos robôs. Eles trocaram o nome da agricultura, botaram “agrone-
gócio” e estão robotizando esse agronegócio. Até os tratores já não necessitam de
tratorista; ao invés disso, vai ter a pessoa que controla o robô.
Temos que entender isto: estamos indo para um caminho do matadouro em
um silêncio estarrecedor. Parece-me que nós não estamos entendendo a gra-
vidade desse momento, o retrocesso dele e, acima de tudo, não entendemos o
papel das cotas e como elas podem nos ajudar, porque as cotas servem simples-
mente para a gente vir para casa dos outros e bagunçar. Tem gente que está que-
rendo gostar dessa casa, mas a verdade é que aqui não tem vaga para nós. Por
mais que tenhamos professores bem intencionados, pessoas finíssimas, a casa
não é nossa, e se a casa não é nossa, eles nos expulsam a qualquer hora que eles
quiserem. Então, nós temos que entender essas premissas para que possamos
entender que a educação, a escola e a universidade são lugares que têm dono.
Se nós quisermos influenciar, temos que ser muito inteligentes para fazer isso.
Caso contrário, nós precisamos – e isso pode ser aqui na UFSB ou em outro lugar
– construir a nossa escola e a nossa universidade. Nós é que temos que construir.
O período das cotas e sua condição servem para entendermos algumas coisas.
Estive na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) na Ilha do Fundão. Pas-
sei dois anos lá. O lugar da nossa escola estava caindo aos pedaços – o prédio de
Filosofia –, esse que não interessa à burguesia, não interessa a nada. A gente almo-
çava lá no restaurante da universidade, que era para pobre, tinha o teto caindo,
aquela sujeira, uma esculhambação. Então, fui entender, quando eu fui no lado
que era da Petrobras, o lado que servia ao capital, tudo era digital: colocava o dedo
para entrar, com homens musculosos na frente que barravam a entrada de quem
não estava credenciado. Fui entender que o que não presta é para nós.
Fui na África do Sul. Para surpresa minha, a mesma característica da UFRJ, a
mesma coisa! Fui pesquisar a questão da terra, a mesma desgraça: 90% da popu-
lação negra da África do Sul está com 13% da terra; 10% de branco têm 87% da
terra. Os brancos ficaram com todas as áreas do conhecimento para mandar e
dominar. E nós, com a filosofia, história, os cursos que não servem para mandar.
Então, quero dizer que, por maior que seja a boa vontade da UFSB, vamos demo-
rar pelo menos uns 20 anos nessa boa vontade para bagunçar aqui dentro. Mas,
se quisermos uma universidade, vamos ter que construir a nossa. Vamos fazer
uma universidade popular e pluriepistêmica.
Colocamos uma frase de Che Guevara lá no nosso assentamento: “O ser
humano deixa de ser escravo quando se converte em arquiteto do próprio des-
tino”. Nesse momento de crise e de discussão, essa união é muito importante,
mas temos que ser arquitetos do nosso próprio destino. Nós abandonamos a luta
de Zumbi, o povo preto; temos que retomar. Os povos indígenas vêm numa cami-
nhada e precisamos fazer uma aliança, pois eles estão em uma luta pela terra, e
união da cosmovisão africana e a cosmovisão dos povos originários é a grande
aliança estratégica que temos que construir para lutarmos por terra e território.
O povo preto tem que assumir que nossa primeira tarefa é terra para morar e
terra para plantar, pois, depois da escravidão, nós não tivemos. Os povos indíge-
nas estão corretíssimos em sua luta de retomada de seu território, e agora preci-
samos juntar para construir a nossa universidade. Temos, ainda, que construir
uma aliança que me parece que está na ordem do dia, a aliança índia-negra-
-popular, para que possamos assumir uma outra perspectiva. Como estava con-
versando com os três mestres dos saberes populares da luta, o companheiro
congolês Kabengele Munanga, o companheiro José Jorge e o companheiro
Edson Kayapó, precisamos fazer mais esse diálogo. Esse seminário aqui,3 vocês
ainda não sabem a importância dele: é um seminário histórico, porque temos de
dar conta de nós, do nosso papel e da nossa responsabilidade, e, além disso, esse
encontro vem em um momento oportuno para discutir essas questões.
Precisamos fazer esse trabalho, precisamos abrir um campo de debate para
construirmos nosso caminho e saber onde queremos chegar. O velho Raul Seixas
dizia: “eu sou o início, o fim e o meio”. O meio é o conhecimento, mas nós temos
que nos apropriar dele para fazer as transformações que nosso povo necessita.
Quando vem um índio aqui que nega seu povo, está morto. Saiu da aldeia com
responsabilidade de voltar para levar um conhecimento para seu povo ou tra-
zer um conhecimento de seu povo para esse espaço e fazer o pessoal acreditar
no conhecimento do seu povo. Seu povo, que foi renegado, destruído, mas tem
3 Joelson se refere ao Seminário UFSB Popular e Pluriepistêmica, realizado em julho de 2018. (N. do O.).
Essa construção é feita todos os dias, toda hora. É lavando o prato, cuidando
da casa, limpando a casa, plantando uma flor, lendo um pouco, ao invés de ficar
no smartphone só vendo besteira... Pega ali um livro pra ler um poema bom, vai
ouvir uma boa música, de Mercedes Sosa, dos clássicos, de Luiz Gonzaga... Para
a gente ter conhecimento, cultura e aprender, acima de tudo, a cuidar do que
é nosso. E esse Brasil, que é o país mais lindo do mundo, pode se tornar o Bra-
sil mais lindo do mundo de novo, se a gente “meter a mão na massa”, se a gente
cuidar dele, se a gente topar construir um processo grandioso de humanidade.
Darcy Ribeiro fala isso com grandeza, com muita sabedoria.
Nós podemos dizer que, como os portugueses foram sábios em construir
uma escola de navegação, nós aqui podemos ser sábios para construir grandes
universidades, para ir além do capital. E podem ter certeza que nós não vamos
perder essa nossa universidade para as elites. Nós vamos fazer de tudo pra cons-
truir uma universidade que será nossa, que vai trazer muitas alegrias para aqui,
com muitos médicos, muitos cientistas de várias áreas, vários músicos, vários
cantores, vários contadores de história... Todo mundo que puder fazer, para um
dia celebrar de novo e dizer: nós construímos uma grande universidade aqui e
temos muito orgulho dela perante o mundo inteiro.
a capacidade de ser comandantes e outros terão que trabalhar para ver o triunfo
da revolução, mas não tem caminho para esse país se não fizermos a revolução,
e a revolução é todos os dias das nossas vidas, é permanente, nunca acaba, por-
que ela não é perfeita. Não pode haver ilusão de que vamos fazer algo perfeito;
não tem perfeição. É todos os dias fazendo. Primeiro, em nós; segundo, onde a
gente mora. Onde a gente pisa, tem que fazer revolução. O pai da educação chi-
nesa disse: “Façam a ideia para os olhos e os ouvidos do mundo e ela por si só se
transforma em milhões”. Sejamos sujeitos da mudança e sujeitos de bagunçar
essa universidade para que possamos avançar nessa perspectiva.
Já disse para os professores que existe muita coisa para se fazer. Quando
estiverem tristes aqui, chateados, vão para uma aldeia indígena, porque lá tem
o maior banco de germoplasma de mangaba do mundo. Só com isso podemos
fazer milhões para retirar da condição que estamos vivendo submetidos os nos-
sos povos originais. Então, se quisermos trilhões de dólares, vamos recompor
a Mata Atlântica, destruir essa ignorância do eucalipto, da pecuária extensiva,
e vamos fazer uma revolução com a Mata Atlântica. É essa responsabilidade
que temos que assumir. Temos tudo na mão; precisamos nos apropriar do que é
nosso e retomar, junto com os povos originários, a nossa terra sagrada e respei-
tá-la como ser vivo.
CAPÍTULO 10
1 Empregamos o conceito de “povo” – “popular” e “público”, por decorrência – com o conteúdo semânti-
co e político determinado pela constituição brasileira: “Todo poder emana do povo [...]”. (BRASIL, 1988,
p. 1) Resta uma contradição a ser considerada, com duas acepções possíveis do termo: povo como tota-
lidade (todos os cidadãos) e povo como maioria dos cidadãos. Assumir as duas modalidades como legí-
timas, considerando-as, respectivamente, como o modo republicano e o modo democrático do conceito
constitucional de povo, implica afirmar que uma universidade popular assume o desafio de ser, conco-
mitantemente, universidade republicana e democrática.
2 Apropriamo-nos da reflexão sobre soberania desenvolvida por Giorgio Agamben (2002). Nela, o sobe-
rano se define como aquele que tem o poder de instituir (ou constituir) tanto a lei como a suspensão da
mesma. Adotamos, ao longo deste texto, portanto, o preceito constitucional da soberania popular.
3 A primeira e segunda vertentes são abordadas nos seguintes textos deste volume: “Políticas de ações
afirmativas e de apoio à permanência: avanços e retrocessos da UFSB (2014-2018)” e “Conhecimentos
tradicionais e território na formação universitária”.
4 A criação e a consolidação da UFSB na região tiveram como roteiro inicial dois documentos fundadores:
Carta de Fundação e Estatuto e Plano Orientador.
5 O nome “Fórum Estratégico Social” foi modificado posteriormente para Fórum Social da UFSB.
1. universidade e sociedade;
2. diversidade, inclusão e equidade;
3. desenvolvimento e sustentabilidade.
6 Dias 24 e 25 de julho, campus Jorge Amado (Itabuna e região): 710 participantes e 105 delegados eleitos;
31 de julho e 1 de agosto, campus Paulo Freire (Teixeira de Freitas e região): 512 participantes e 80 dele-
gados eleitos; 7 e 8 de agosto, campus Sosígenes Costa (Porto Seguro e região): 898 participantes e 136
delegados eleitos. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA, 2016, p. 17)
UM FUTURO EM DISPUTA
A história recente da UFSB parece demonstrar que nos colocamos diante de uma
escolha paradigmática, sobre o próprio conceito de universidade pública. De um
lado, se apresenta viva, ainda que enfraquecida, a proposta de uma universidade
popular, cuja autonomia, outorgada pela sociedade, é afiançada pelas organiza-
ções e segmentos representados em um de seus conselhos superiores. Do outro
lado, uma proposta de reestruturação na direção do que julgamos ser uma uni-
versidade corporativa, que não consegue esconder seus temores em relação ao
comando da sociedade e ao aprofundamento da democracia institucional, cuja
ideia de autonomia se apoia exclusivamente nas bases e interesses de seus seg-
mentos acadêmicos internos.
Optar em definitivo pelo segundo caminho significa, entre outras escolhas,
deixar de ouvir a sociedade na definição de seus rumos, relegar ao esquecimento
as linhas de atuação construídas no âmbito do FS, manter a política de silencia-
mento do CES e o consequente enfraquecimento da política de integração social
participativa na UFSB. Nessa direção, a universidade pública desperdiça uma
enorme chance para consolidação de um modelo político e pedagógico inovador,
com ensino pesquisa e extensão integrados e direcionados pelas demandas do ter-
ritório, atuando organicamente em parceria com a sociedade. Ao se aproximar do
modelo universitário convencional, filosófica e politicamente apartado da socie-
dade, a comunidade acadêmica pode estar colocando em risco a própria sobrevi-
vência de uma universidade pública autônoma no sul e extremo sul da Bahia.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2002.
WORLD CAFÉ COMMUNITY. Café to go! (Café para Viagem!): um guia simplificado
para auxiliar os diálogos durante um World Café. Greenbrae: The World Café
Community Foundation, 2002. Disponível em: http://www.theworldcafe.com/
wp-content/uploads/2015/07/World_Cafe_Para_Viagem.pdf. Acesso em: 10 jan. 2019.
APÊNDICES
Resultados
Menezes com intenção de síntese sem mudança de conteúdo; para acesso aos
textos originais, ver o Relatório do I Fórum Social da UFSB.7 Os textos apresen-
tados no item 3 são de autoria coletiva dos delegados/porta-vozes de cada seg-
mento presente na etapa geral do Fórum Social da UFSB, com revisão final de
Paulo Dimas Rocha de Menezes. Os textos apresentados no item 7 são de autoria
coletiva dos membros eleitos e indicados do CES (item 5) presentes nas oficinas
de consolidação, com revisão final de Paulo Dimas Rocha de Menezes.
Apoio e parceria para políticas Criar medidas de apoio Criar Cunis nos territórios
públicas indigenistas nos efetivo da UFSB aos povos de Coroa Vermelha, Barra
processos de demarcação de indígenas para acelerar Velha e Comexatibá
terras processos de demarcação
de seus territórios
Valorizar e desmitificar a Criar critérios rigorosos e
cultura indígena por meio de colegiado, com Conselho
titulação e participação de de Caciques e outras
mestres tradicionais como instituições indígenas, para
docentes na UFSB garantir a legitimidade de
alunos cotistas
Trabalhadores do campo
Campus Jorge Amado Campus Paulo Freire Campus Sosígenes Costa
8 Uma vez identificado o grande número de participantes e temas contemplados no segmento “Movimen-
tos sociais urbanos”, os grupos presentes decidiram pela formação de subgrupos, nas três etapas regio-
nais do Fórum Social da UFSB.
Organizações religiosas
Campus Jorge Amado Campus Paulo Freire Campus Sosígenes Costa
Comunidade surda
Campus Jorge Amado Campus Paulo Freire Campus Sosígenes Costa
Trabalhadores do campo
Diretrizes Linhas de ação/criação/inovação
Promoção da Coordenação Facilitação e Programa de extensão
educação do para política garantia de acesso permanente:
campo e no campo, de educação e permanência mapeamento e
associada ao do campo, com de trabalhadores desenvolvimento das
desenvolvimento orçamento próprio rurais, assentados, redes socioprodutivas
territorial, e implementação acampados da Mata Atlântica,
cujo processo do primeiro ao e demais com base na ciência
educacional seja terceiro ciclo, camponeses: agroecológica, economia
fundamentado desde o desenho cotas e processo solidária e criativa,
na pedagogia curricular de seleção gestão e conservação
da alternância, aos projetos específicos, Cuni da água, combate ao
relacionado às de pesquisa e nas comunidades uso de agrotóxicos
estratégias dos extensão, com rurais e e monocultivos
movimentos sociais participação dos assentamentos, (eucalipto e pinus,
e integrado aos movimentos com todos os entre outras); criação
povos tradicionais e sociais, através ciclos – não de banco de sementes e
comunidades rurais do CES, na apenas Área viveiros de mudas para
definição do(a) Básica de Ingresso reflorestamento nos
coordenador(a) (ABI) assentamentos, banco
de dados sobre etnias,
populações tradicionais e
soberania alimentar
Organizações religiosas
Diretrizes Linhas de ação/criação/inovação
Promoção da igualdade Constituição de Realização de Concretização de
de oportunidades, núcleos religiosos diálogos pacíficos ações e projetos
respeito e tolerância da sociedade nos núcleos, resultantes
religiosa a através de no espaço da visando a quebra de reflexões
diálogos pacíficos no universidade e de paradigmas periódicas dos
ambiente universitário, núcleos gerais, e promoção do núcleos gerais
proporcionando por campus, com respeito e tolerância em favor das
interações com a representações religiosa, através de comunidades
sociedade específicas regimento elaborado abrangidas pelas
coletivamente organizações
religiosas
Comunidade surda
Diretrizes Linhas de ação/criação/inovação
Ingresso na UFSB: Criação de núcleo de Criação de
reserva de vagas com educação para cultura graduação e pós-
cotas específicas para surda nos campi e -graduação de
surdos estudantes Cunis: parcerias com as Libras na UFSB:
e servidores em comunidades surdas; licenciatura e
concurso públicos; formação continuada bacharelado em
professores surdos para para professores, Letras-Libras;
Não houve
ministrar componente intérpretes e instrutores; especialização,
indicação de
curricular de Libras realização de eventos mestrado e
diretriz por
(L1); contratações acadêmicos, curso de doutorado em
este segmento
de instrutores e Libras; escola bilíngue Libras
profissionais surdos de/para surdos; produção
em outras áreas; de materiais didáticos
português como L2 para em Libras no currículo
surdos; verificação de do ensino básico e para
possibilidade de Enem o Enem
em Libras
Consolidação de resultados
PARTE II
CAPÍTULO 11
álamo pimentel
INTRODUÇÃO
A Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), em seu processo de implanta-
ção, introduziu novos conceitos e práticas de interações com a escola. A univer-
sidade foi criada no ano de 2013 e possui três campi assim distribuídos: c ampus
Jorge Amado, no município de Itabuna; campus Sosígenes Costa, no municí-
pio de Porto Seguro; e campus Paulo Freire, no município de Teixeira de Freitas.
A sede da instituição localiza-se no município de Itabuna.
Uma das principais inovações produzidas pela UFSB desde a sua implanta-
ção é o compartilhamento de espaços-tempos das atividades acadêmicas com
as escolas da rede estadual de educação. Além de atuar dentro dos seus campi
e nas comunidades do seu entorno, a universidade mantém unidades acadêmi-
cas denominadas Colégios Universitários (Cunis) no interior das escolas da rede
estadual de educação.
Entre os anos de 2015 e 2016, três das escolas em que estão inscritos os Cunis
transformaram-se em Complexos Integrados de Educação (CIEs), aprofundando
os processos de integração curricular entre o ensino superior e o ensino médio
Além de buscar responder tais perguntas, este texto apresenta, em suas con-
siderações finais, alguns desafios impostos à sustentabilidade deste processo
face ao contexto atual das políticas educacionais no Brasil.
COOPERAÇÃO INTERINSTITUCIONAL
E INTERSETORIALIDADE
No mês de janeiro do ano de 2015, o reitor pro tempore da UFSB apresentou
ao governador e ao secretário da Educação do estado da Bahia o processo de
implantação dos Cunis nas escolas estaduais da região sul do estado.3 Os primei-
ros resultados apresentados àquela época indicavam uma alternativa viável ao
aprofundamento da presença e participação da universidade no cotidiano das
escolas. Os participantes do encontro consideraram que era necessário ampliar
as formas de inscrição da universidade nas instituições de ensino médio para
que a interação dos Cunis com os diferentes níveis e modalidades de educa-
ção existentes nessas escolas ocorresse de maneira mais orgânica. Além disso,
havia interesse por parte da SEC-BA na transformação do ensino médio regular
em ensino médio da educação integral em tempo integral nas escolas em que a
UFSB se instalara.
Esse encontro originou a formação de um grupo intersetorial com a presença
de representantes da UFSB e da SEC-BA. O grupo iniciou as suas atividades no
mês de fevereiro de 2015. Após uma série de sessões de trabalho realizada ainda
no mês de fevereiro, o grupo apresentou uma proposta intitulada Programa de
Formação Interdisciplinar de Professores da Educação Básica. Esse documento
destacou os seguintes termos de cooperação técnico-acadêmica entre a UFSB e
a SEC-BA:
[...] A escola é uma comunidade com seus membros, seus interesses, seu
governo. Se esse governo não for um modelo de governo democrático, está
claro que a escola não formará para a democracia. Diretores, professores
e alunos devem organizar-se de forma a que todos participem da tarefa
de governo, com a divisão de trabalho que se revelar mais recomendável.
A participação de todos, o sentimento de interesse comum é essencial ao
feliz desempenho da missão educativa da escola [...].
6 Alguns textos deste livro tratam mais especificamente do Encontro de Saberes. Ver “Conhecimentos tra-
dicionais e território na formação universitária”, na Parte IV.
7 Informações obtidas no relatório de realização da Jornada Pedagógica da Pró-Reitoria de Gestão Acadê-
mica da UFSB.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O contexto nacional ao longo do processo de implantação dos CIEs foi marcado
por uma grave crise política, econômica e social. O início da segunda gestão
do governo Dilma Rousseff, com uma maioria parlamentar eleita contrária aos
avanços sociais dos últimos anos, acrescentou dilemas à permanência da demo-
cracia. Temas conservadores na orientação das políticas educacionais, tais como
Escola Sem Partido,8 incrementavam as pautas do parlamento eleito. A elevação
da dívida pública brasileira produziu cortes e restrições orçamentárias em escala
nacional. A corrupção se tornou pauta central da mídia hegemônica e monopo-
lizou os confrontos públicos ocorridos no país. A partidarização do debate sobre
a democracia contagiou instituições públicas e movimentos sociais, reduzindo
o alcance da experiência democrática como uma prática cidadã afirmativa da
construção nacional.
A crise política resultou no impedimento da presidenta Dilma, afastada
definitivamente do cargo no mês de agosto de 2016. Antes do seu afastamento
definitivo, ocorreu uma intensa troca de ministros da Educação, três deles ainda
durante a gestão Dilma: Cid Gomes, Renato Janine Ribeiro e Aloísio Mercadan-
te.9 O quarto ministro, Mendonça Filho, assumiu o cargo no mês de maio, durante
o governo provisório liderado pelo então vice-presidente da república, Michel
Temer. A confirmação do impedimento da presidenta manteve o ministro indi-
cado por Temer, quando da sua confirmação como presidente da república.
Essa crise teve efeitos profundos em todo o país, sobretudo na condução das
políticas públicas de educação. No mês de setembro do ano de 2016, o governo
aprovou uma Medida Provisória (MP) de reforma do ensino médio, a MP nº 746,
transformada na Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, e submeteu ao congresso
um Projeto de Emenda da Constituição (PEC) que prevê inúmeras restrições no
8 Sobre o perfil do congresso eleito, ver a excelente análise do Departamento Intersindical de Assessores
de Imprensa. O estudo intitula-se: Radiografia do Novo Congresso Nacional. No que tange ao Movimento
Escola Sem Partido, o amplo artigo da jornalista Lilian Primi (2016) apresenta a origem e expansão desse
movimento no Brasil.
9 Renato Janine Ribeiro (2018) apresenta excelente análise sobre esse breve intervalo de tempo em que a al-
ternância de ministros da Educação expõe a vulnerabilidade do governo na condução de políticas sociais.
10 Durante a tramitação na Câmara dos Deputados, a PEC fora denominada PEC nº 241. Após aprovação
e encaminhamento para o Senado Federal, a denominação foi alterada para PEC nº 55. Nesse período,
o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) publicou importante
nota técnica em que avalia os principais impactos da PEC sobre as políticas sociais brasileiras.
REFERÊNCIAS
BAHIA. Decreto nº 16.718, 11 de maio de 2016. Dispõe sobre a instituição e
organização dos Complexos Integrados de Educação, no âmbito do sistema público
de ensino articulados com instituições públicas do ensino superior, e altera o
Decreto 16.385 de outubro de 2015. Diário Oficial do Estado da Bahia, Salvador,
12 maio 2016.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 1996.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez;
Brasília, DF: UNESCO, 2000.
OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Boaventura & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica,
2008.
PIMENTEL, Álamo. Entre a escola e o mundo: por uma ecologia dos processos
educacionais. Curitiba: Appris, 2018.
PRIMI, Lilian. Ataque ao Pensamento. Caros Amigos, São Paulo, ano 19, n. 236,
p. 24-28, nov. 2016.
RABELO, Marta Klumb Oliveira. Educação Integral como Política Pública: a sensível
arte de (re)significar os tempos e os espaços educativos. In: MOLL, Jaqueline
(org.). Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços
educativos. Porto Alegre: Penso, 2012. p. 118-128.
CAPÍTULO 12
INTRODUÇÃO
O Plano Orientador e a Carta de Fundação da Universidade Federal do Sul da
Bahia (UFSB) trazem quatro princípios que norteiam as ações, atividades, pro-
gramas e projetos pedagógicos dessa universidade: eficiência acadêmica, inte-
gração social, compromisso com a educação básica e desenvolvimento regional.
Com base no princípio do compromisso com a educação básica, a UFSB buscou
no ano de 2015 uma parceria com a Secretaria da Educação do Estado da Bahia
(SEC-BA) com objetivo de colaborar pedagogicamente com a transformação de
1 Deste artigo, foi elaborado um resumo e enviado para o congresso Porto ICRE’19 – Porto International
Conference on Research in Education 2019, de 17 a 19 de julho, aprovado para apresentação.
2 Rede Anísio Teixeira de Colégios Universitários (Rede Cuni) – ensino superior que atende localidades
com mais de 20 mil habitantes em bairros de baixa renda, assentamentos, aldeias indígenas e quilom-
bos. Os Cunis funcionam preferencialmente em turno noturno, em instalações da rede estadual de
ensino médio. Ver, na Parte III, o texto “Os colégios universitários e o enraizamento territorial da UFSB”.
3 Projeto CIEs elaborado pelos professores Dr. Álamo Pimentel Gonçalves da Silva, Dr. Daniel Fils Puig e
Dr.ª Denise Maria Barreto Coutinho.
iniciou-se ano de 2016 com uma jornada pedagógica ampliada com intuito de
fomentar um debate amplo sobre a proposta para os complexos.
Neste texto, abordaremos a experiência do Cieps, antigo Colégio Estadual
Pedro Álvares Cabral (Cepac), com objetivo de analisar a implementação dessa
proposta entre os anos de 2016 a 2018. Trata-se de um estudo de caso com abor-
dagem qualitativa, cuja metodologia para construção dos dados perpassou pela
escuta sensível e constante da comunidade escolar; apoio na elaboração, orga-
nização e desenvolvimento das atividades/projetos por parte da equipe peda-
gógica e aplicação de questionários de avaliação para professores e estudantes
do Cieps no final do ano letivo de 2018. O questionário foi respondido pelos 26
professores que atuavam no ensino integral e por 116 estudantes – de um total de
cerca 315 estudantes matriculados – do 1º, 2º e 3º ano do ensino médio integral.
Outro que se destaca desde o ano de 2016 é o projeto Aulas para o Enem,4
conduzido pela equipe pedagógica do colégio e pela coordenadora de práticas da
UFSB com o objetivo colaborar com a preparação dos estudantes do Cieps para o
Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), numa visão de preparação para vida
e para o trabalho. As atividades do projeto para essa avaliação envolvem desde
a inscrição dos alunos no sistema do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep) até as aulas de redação e conteúdos das áreas
do conhecimento envolvidas na prova. Esse projeto é realizado em parceria com
membros da comunidade; estudantes da UFSB; decanato do Ihac – explicando
4 Projeto desenvolvido há três anos com cerca de 70 estudantes do Cieps, de outros colégios e da comunidade.
5 O Projeto Paulo Freire teve como objetivo constituir uma rede formada por instituições de ensino supe-
rior da Ibero-América para valorização social e intelectual da carreira docente no ensino básico, prio-
rizando a educação pública em seus distintos aspectos e dimensões e o compromisso da universidade
pública com todas as etapas de formação escolar. Ver, a seguir, o texto “Experiências formativas do Pro-
jeto Paulo Freire na UFSB: por uma pedagogia da possibilidade”.
por meio do Edital nº 24/2017 da UFSB. Após a seleção, passaram por uma for-
mação com os membros da equipe técnica do projeto, elaboraram planos de tra-
balho de acordo com sua área de atuação e passaram duas semanas em Mon-
tevidéu, no Uruguai, onde tiveram a oportunidade de conhecer a educação e a
cultura do país. No retorno, elaboraram relatórios individuais de viagem e bus-
caram colocar em prática as aprendizagens adquiridas durante a viagem.
Os professores do Cieps participantes do Projeto Paulo Freire relataram de
maneira geral que o aprendizado com essa troca de experiência compreendeu
desde a questão da sala de aula, da gestão, da disponibilidade de recursos para
os estudantes até as questões da carreira profissional dos mesmos. Ressaltaram
o quanto aqui no Brasil os ganhos referentes à carreira docente, como o tempo
para o planejamento pedagógico dentro da carga horária de trabalho, são con-
quistas da classe de professores, especificamente do estado da Bahia, que eles
não viram no país visitado.
No ano de 2018, o Cieps deu continuidade ao trabalho com projetos usando a
metodologia das Estações dos Saberes. Algumas mudanças foram necessárias de
um ano para o outro e foram debatidas na nova Jornada Pedagógica. As partes da
tríade educação, diversidade e tempo integral foram sendo interligadas com mais
força em 2018. Os temas das Estações dos Saberes se pautaram na autonomia e
na emancipação dos estudantes enquanto construtores de objetivos para sua vida
pessoal, profissional, familiar e de responsabilidade para consigo e com o outro.
Nesses três anos, a equipe Cieps passou a realizar uma pré-jornada pedagó-
gica – dois a três dias no mês de outubro ou novembro – para avaliação do traba-
lho e discussão das demandas ocorridas até aquele momento. Após discussão, o
grupo sistematiza as propostas de trabalho a serem desenvolvidas durante a jor-
nada formativa no início de cada ano, de acordo com as especificidades do Cieps.
Outro destaque com a implementação do Cieps foi a participação mais efetiva
e colaborativa dos professores nas Atividades Complementares (ACs), coorde-
nadas pelo articulador pedagógico e acompanhadas pela coordenadora peda-
gógica. A partir dessa participação, o articulador da área busca os demais arti-
culadores e coordenação pedagógica para alinhamento das propostas. Em 2018,
a equipe pedagógica – formada por coordenação, articuladores do integral, do
noturno e a coordenadora de práticas – da UFSB passou a se reunir quinzenal-
mente com objetivo de alinhar as propostas pedagógicas discutidas e elaboradas
pelas áreas durante as ACs. Essas ações vêm unindo a equipe na busca de ações
colaborativas e interdisciplinares.
Passados esses três anos de adaptação à nova proposta, a equipe Cieps vis-
lumbrou um caminho possível para uma educação interdisciplinar e pautou
essa demanda para 2019, inclusive lançando esse desafio à UFSB na busca de
uma formação continuada que respalde a interdisciplinaridade entre as áreas do
conhecimento. A coordenação pedagógica e articuladores do Cieps ampliaram
sua atuação enquanto equipe pedagógica e elaboraram um plano de ação, após
verificar a necessidade de uma atenção especial no sentido de sistematizar uma
proposta/plano de ação que oriente o trabalho da equipe pedagógica. Esse plano,
em andamento, está sendo discutido quinzenalmente durante a reunião com os
membros dessa equipe.
[...] uma política de educação integral em tempo integral é uma ação radi-
cal para promover a superação de uma concepção de educação centrada
unicamente no espaço e nos recursos pedagógico-didáticos da escola, em
favor de uma visão de território educativo e de cidade educadora [...].
REFERÊNCIAS
ARROYO, Miguel. O direito a tempos-espaços de um justo e digno viver. In: MOLL,
Jaqueline et al. Caminhos da educação integral no Brasil: direito a outros tempos e
espaços educativos. Porto Alegre: Penso, 2012. p. 33-45.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 48. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
ZANARDI, Teodoro Adriano Costa. Educação Integral, Tempo integral e Paulo Freire:
Os desafios da articulação conhecimento-tempo-território. Revista e-Curriculum,
São Paulo, v. 14, n. 1, p. 82-107, jan./mar. 2016. Disponível em: http://revistas.pucsp.
br/index.php/curriculum. Acesso em: 21 mar. 2018.
CAPÍTULO 13
EXPERIÊNCIAS FORMATIVAS DO
PROJETO PAULO FREIRE NA UFSB
por uma pedagogia da possibilidade
INTRODUÇÃO
A formação docente na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) foi con-
cebida desde o Plano Orientador (2014),1 em perspectiva interdisciplinar, no
sentido de possibilitar, pela experiência formativa por áreas de conhecimento,
a flexibilização do currículo da escola básica, através de itinerários pedagógicos
diversos marcados pelo diálogo interepistêmico com espaços educacionais dos
1 Documento institucional utilizado como balizador das ações iniciais na UFSB que traz o organograma
e o arcabouço teórico-metodológico do modelo da universidade, em termos curriculares, pedagógicos,
acadêmicos e administrativos. Concebida enquanto universidade comprometida com a recriação da edu-
cação superior pública brasileira, no sentido de ser vetor de integração social e de promoção da condição
humana. Nesse documento, portanto, não só o formato institucional é descrito e contextualizado como
sobretudo os princípios que deram forma a um modelo de ensino universitário de percurso interdiscipli-
nar e comprometido com a formação de uma consciência cidadã e planetária são amplamente discutidos.
2 A Rede Cuni se constitui enquanto uma rede de espaços descentralizados da UFSB, sediados em escolas
públicas de ensino médio das regiões sul e extremo sul da Bahia. A seleção de estudantes para a Rede
Cuni é específica, via Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e Sistema de Seleção Unificada (Sisu),
com seleção de vagas de 85% de estudantes de escola pública da região nos três primeiros anos da UFSB
e de 75%, desde 2018. Ver, na Parte III deste livro, o texto “Colégios universitários e o enraizamento ter-
ritorial da UFSB”.
3 Os CIEs são escolas-sede da Rede Cuni que possuem gestão pedagógica compartilhada com a UFSB
desde 2016. Elas passaram a ser escolas de tempo estendido com perspectiva educacional integral e
integradora de conhecimentos, saberes e práticas. Hoje, o Decreto nº 16.718/2016 do estado da Bahia
dispõe sobre a instituição e organização dos CIEs. No âmbito territorial da UFSB, situam-se três CIEs –
Itabuna, Itamaraju e Porto Seguro –, que têm se constituído em território educacional no qual se desen-
volve relação sistêmica entre a escola básica e o ensino superior, retroalimentando as ações dos(as)
professores(as) em formação das LIs, dos docentes e estudantes das escolas e da UFSB. Ver os dois textos
anteriores neste livro: “Transições paradigmáticas entre a universidade e a escola” e “O Complexo Inte-
grado de Educação de Porto Seguro e o compromisso com a educação básica na UFSB”.
4 “Pedagogia da possibilidade” foi um termo recorrente que atravessou os textos dos autores uruguaios.
O trato conceitual cunhou-se em proposição metafórica etnometodológica, pois as experiências de for-
mação foram edificadas na diversidade, nas diferenças sociais e culturais dos sujeitos dos dois países
da America Latina – Brasil e Uruguai. Essa pedagogia situa-se na concreticidade (concretude?) das plu-
rinarrativas dos diferentes sujeitos participantes dessa rica experiência. Soma-se à pedagogia da possi-
bilidade a multirreferencialidade dos conhecimentos, tradições, saberes, conceitos e subjetividades no
vivido-concebido em etnoaprendizagens, no que se refere à concepção de mundo, de formação humana
e de compreensão das relações sociais. Esse fluxo epistemológico foi tecido nas incertezas do processo
de construção das ações e na confiança em uma educação baseada na troca, no diálogo, na trança inter-
nacional e latino-americana de maneiras distintas de se pensar educação como prática para a liberdade.
5 O PFF para a Formação de Professores chegou na UFSB, a partir de negociação do ex-reitor Naomar de
Almeida-Filho com a OEI e o Ministério da Educação (MEC)/Secretaria de Educação Superior (Sesu),
para que fosse desenvolvido, durante o ano letivo de 2017, programa-piloto de mobilidade acadêmica
para LIs da UFSB, a ser avaliado como possível formato de mobilidade internacional para formação
docente, na medida em que incluiria formação docente inicial (estudantes das LIs) e formação docente
continuada (professores da SEC-BA).
6 Neste artigo, será usado o conceito de raça associado ao de etnia, embora cada um dos dois possa apa-
recer separadamente em determinados enunciados. Acompanhando o pensamento de Antônio Sérgio
Guimarães (2003), Kabengele Munanga (2004) e Nilma Lino Gomes (1995, 2017), raça não é utilizada
aqui como categoria biológica consagrada pelo cientificismo do século XIX, mas como categoria analí-
tica que objetiva tratar do caso específico brasileiro, no qual a ideia de raça funciona como operador ide-
ológico delimitador de espaços sociais e formulador de atitudes de exclusão. Dentro de tal perspectiva
analítica, utilizar uma palavra corrente no contexto social e que carrega em si critérios de discriminação
possibilita observar, de maneira crítica, os pilares que fundamentam ideologias racistas.
AUTORIAS DE FORMAÇÃO
O potencial de formação do projeto de mobilidade Paulo Freire atentou-se para
a ênfase na subjetividade dos sujeitos participantes, pelo reconhecimento da
diversidade cultural, étnico-racial e religiosa, de diferentes lugares de memória
das comunidades tradicionais, saberes contemplados pelas matrizes curricula-
res tanto das LIs da UFSB quanto dos CIEs. Para além, principalmente no que
concerne à produção das epistemologias dos saberes docentes, em interface sis-
têmica com a educação básica, refletimos as políticas articuladas entre o ensino
superior e a educação básica, expostas no Plano Nacional de Educação e Pla-
nos Municipais de Educação. Atentou-se também para a prática docente dos(as)
licenciandos(as) e professores(as) em experiência educativa nas rodas de con-
versa formativa, relacionando conjuntamente as experiências a serem vividas em
um país fronteiriço com o Brasil, mas com realidade educacional diferenciada.
Essa proposta de trabalho de formação e observação da prática docente se
inspirou na experiência formativa freireana da obra Cartas à Guiné-Bissau: regis-
tro de uma experiência em processo (1978). O fio condutor literário da escrita for-
mativa somou-se à reflexão de pensar a construção de identidade étnico-racial
dos(as) estudantes e professores(as) baianos(as) enquanto protagonistas da pró-
pria formação em território uruguaio, tecendo simbolicamente outras escritas,
relatando desejos, sonhos e projeções futuras em seus percursos docentes atra-
vés das ações experienciadas no PPF.
Desse modo, a opção da equipe gestora do PPF quanto à seleção dos parti-
cipantes foi a escrita de carta, considerando que esse gênero discursivo é muito
valioso, uma vez que aproxima sujeitos por ser um texto que comunica a desti-
natários, leva à rememoração da própria prática profissional ou trajetória estu-
dantil. Vejamos:
7 Os nomes dos remetentes das cartas foram substituídos por nomes de flores, exceto o nome de uma das
autoras deste capítulo. A intenção é preservar a identidade oficial dos participantes, na medida em que
o que importa é compreender como, através das narrativas das cartas, tem se construído a formação
docente na UFSB.
Mais adiante, após outras situações, como a 12ª semana Nacional de Ciên-
cias e Tecnologia – na qual fui monitora –, em outubro de 2015, e o início
do estágio supervisionado, no início de 2016 (o qual falarei em mais deta-
lhes adiante), participei da 68ª Reunião Anual da SBPC (Sociedade Brasi-
leira para o Progresso da Ciência) em junho de 2016, na própria UFSB, como
monitora mais uma vez, e em uma das oficinas, essa sobre o autismo. Foi
uma das semanas mais incríveis da minha caminhada universitária, pelas
mais variadas razões: a abertura sensacional, o ambiente repleto de opções
para busca de conhecimento, as tendas muito bem montadas e equipadas,
a grande variedade de oficinas e o fato de ser na minha ‘casa’. Em meio a
tudo isso, participei de uma oficina muito significativa e importante para
o meu desenvolvimento acadêmico. O assunto era o autismo e as formas de
trabalhar com essa realidade em sala de aula. Um universo totalmente novo
para mim, que nunca tive contato com o assunto, o que fez valer ainda mais
a pena essa semana. [...] Sendo assim, após demonstrar um pouco do meu
percurso acadêmico, gostaria de concluir esta breve carta com o desejo de,
futuramente, incluir mais uma experiência (essa totalmente nova e extraor-
dinária, sem tirar a importância das anteriores) em meu currículo: o Pro-
jeto Paulo Freire. Conhecer outro país – nesse caso, o Uruguai –, aprender
uma nova língua, vivenciar um pouco outra cultura, outra realidade, mas,
acima de tudo, ter contato com diferentes formas de pensar a educação e,
além disso, internacionalizar e transmitir as ideias trabalhadas na UFSB
e durante o meu estágio – todos esses motivos me fazem querer bastante
participar deste intercâmbio, tendo em vista que será uma experiência de
um teor e conteúdo enriquecedor simplesmente imensurável e significativo
para incluir na minha bagagem enquanto docente em formação.
Agradeço a atenção e aqui finalizo a minha carta.9
o ensino desta língua é, por lei, obrigatório e deve ser ensinado nas escolas
como segunda língua.
Durante a estadia do Uruguai, pretendendo observar como funciona o
ensino de língua espanhola como língua materna e/ou para estrangeiros e
também de outras línguas, como o inglês, por exemplo, que é uma língua
internacional. Além destas observações, estar inserido neste país me pro-
porcionará vivenciar suas práticas culturais e seus costumes, partindo do
princípio [de] que, no momento de ensinar e aprender uma língua, tam-
bém é preciso levar em consideração seus aspectos sociais e culturais. As
práticas que serão observadas servirão de aporte para o desenvolvimento
de projetos de imersão na língua e cultura espanhola, que posteriormente
serão desenvolvidos nas escolas de Porto Seguro, sobretudo nos Complexos
Integrados de Educação, trazendo, assim, novas perspectivas para o ensino
de espanhol nas escola[s] da região. A minha participação neste projeto
ampliará significativamente meus conhecimentos e minhas práticas edu-
cacionais na área de língua estrangeira e será importantíssima para que eu
possa desenvolver projetos que ajudarão a trazer benefícios também para a
comunidade [a] que estou me propondo a ensinar. Esse intercâmbio será a
consolidação de tudo que sonhei durante esses três anos [em] que estudo na
UFSB. Desde o momento em que eu entrei na universidade, sempre sonhei
com o momento em que eu seria convidado a mergulhar de cabeça nas opor-
tunidades que fariam de mim um bom professor. Estou tendo, pela primeira
vez, a oportunidade de me desenvolver intelectualmente para disseminar o
conhecimento entre as pessoas, trazendo comigo experiências que me aju-
darão na construção de processos educativos mais eficientes e coesos com os
objetivos de uma educação de qualidade e emancipadora.
Desse modo, eis a proposta da carta de uma das autoras deste capítulo para
pleitear a vaga na equipe técnica como docente da área de humanidades, no sen-
tido de partilhar essa experiência formativa no país estrangeiro. O propósito foi
de fato instituir um pacto com a educação, a partir de projeto formativo cole-
tivo. Nessa via, em um dos trechos da carta, criou-se um diálogo imaginário na
escrita, como se Paulo Freire fosse o principal destinatário. Por isso, iniciou-se a
carta tendo esse educador como personagem dialógico:
‘Ninguém sabe tudo, assim como ninguém ignora tudo. O saber começa com
a consciência do saber pouco (enquanto alguém que atua). É sabendo que
se sabe pouco que uma pessoa se prepara para saber mais. [...] O homem,
como ser histórico inserido num permanente movimento de procura, faz e
refaz constantemente o seu saber. E é por isso que todo saber novo se gera
num saber que passou a ser velho, o qual, anteriormente, gerando-se num
outro saber que também se tornara velho, se havia instalado como um
saber novo. Há, portanto, uma sucessão constante de saber, de tal forma
que todo novo saber, ao instalar-se, aponta para o que virá substituí-lo’
(Freire, 1981, p. 47).
A reflexão de Paulo Freire me desafia a pensar os processos de produção de
conhecimento, processos do ensino-aprendizagem, implicados no ofício de
ser professora, fiado em inventário de experiências docentes e histórias de
vida. Sendo assim, esta escrita torna-se desafiadora, por me conceber uma
viagem, viagem de investigação do labor pedagógico, nas recordações-refe-
rências, na ancoragem de tecer uma escrita de coragem arriscando-me a
pensar as experiências contempladas aos objetivos ontológicos, pedagógi-
cos e políticos, na dialética entre a proximidade e a distância da potencia-
lidade discursiva, na sabedoria deste autor, refletindo a antropologia do
meu saber profissional que certamente se renovará estando neste saber de
experiência, em um projeto tão arrojado de produção de autorias e autono-
mias docentes na relação com o Outro. Então, inicio esta conversa pensando
em refazer o percurso da formação inicial por algumas experiências esbar-
radas no campo de saberes e práticas com estudantes e professores. Neste
ponto, tenho que concordar com Freire que, em educação, por mais que se
estude, tudo é sempre novo.12
Meu primeiro encontro com a África não se deu, porém, com a Guiné-Bis-
sau, mas com a Tanzânia, com a qual me sinto, por vários motivos, estrei-
tamente ligado. Faço esta referência para sublinhar quão importante foi,
para mim, pisar pela primeira vez o chão africano e sentir-me nele como
quem voltava e não como quem chegava. Na verdade, na medida em
que, deixando o aeroporto de Dar es Salaam, há cinco anos passados, em
direção ao ‘campus’ da universidade, atravessava a cidade, ela ia se des-
dobrando ante mim como algo que eu revia e em que me reencontrava.
Daquele momento em diante, as mais mínimas coisas – velhas conheci-
das – começaram a falar a mim, de mim. A cor do céu, o verde-azul do
mar, os coqueiros, as mangueiras, os cajueiros, o perfume de suas flores, o
cheiro da terra; as bananas, entre elas a minha bem amada banana-maçã;
o peixe ao leite de coco; os gafanhotos pulando na grama rasteira; o gin-
gar do corpo das gentes andando nas ruas, seu sorriso disponível à vida;
os tambores soando no fundo das noites; os corpos bailando e, ao fazê-la,
‘desenhando o mundo’, a presença, entre as massas populares, da expres-
são de sua cultura que os colonizadores não conseguiram matar, por mais
que se esforçassem para fazê-lo, tudo isso me tomou todo e me fez perce-
ber que eu era mais africano do que pensava. Naturalmente, não foram
apenas estes aspectos, para alguns puramente sentimentalistas, na ver-
dade, contudo, muito mais do que isto, que me afetaram naquele encontro
que era um reencontro comigo mesmo.
Para mim, o que ficou muito muito presente com estada formativa no Uru-
guai foi o respeito. Por que me chamou muito a atenção como os uruguaios
se respeitam, como eles são educados né. Então, eu acho que eu seja uma pes-
soa que respeite, seja uma pessoa que respeita os outros, mas eu acho que o
respeito, tem uma palavra que eu uso muito no meu dia a dia, a elegância,
aí todo mundo acha que elegância é tu estar em salto alto, com um bom ves-
tido, uma boa marca... Não. A elegância que eu aprendi desde pequenina
com meu pai é a elegância dos gestos, é uma elegância [com] que você trata a
outra pessoa, a elegância que você não expõe a outra pessoa, e, quando digo
‘expor’, eu digo expor um aluno em sala de aula, entende? E tu não precisa
expor as notas dos alunos na parede, isso para mim isso eu não nunca fiz.
Os alunos, você tem que deixar à vontade. Isso para mim é elegância e res-
peito, entendestes? [...] Eu acho que, para mim, agregou um pouco mais, né
[pequena pausa], que estou querendo né, não sei se vou conseguir grupos que
pensem mais parecido comigo, nesse sentido de autoajudar, de se respeitar.
Eu acredito que o conhecimento [...] cresce, multiplica-se quando me abro
para o outro, quando me abro, aprendo com o outro. Então, isso agregou
em mim, um pouco mais, e está muito presente, como quero encontrar um
grupo assim, para fazer, né, fora de sala de aula. Estou pensando muito,
pensando em montar um grupo de estudos com quem quer que seja, [...] por-
que acho que a gente tem que ter grupos para crescer, discutir muito mais
política no sentido daquela de crescimento, de analisar como está nosso
país, como vocês mesmo falaram lá dentro, não conhecem do país vizinho,
né, esse sentido mudou em mim, eu quero saber mais dos outros também,
quero achar um grupo assim, isso veio mudado em mim.13
Dessa forma, entrecruzaram-se, nas duas primeiras seções deste capítulo, dois
movimentos discursivos que se complementam na análise dessa experiência inter-
cultural para a formação docente: um destinado à descrição e criticidade sobre as
ações de gestão do programa na UFSB e outro direcionado ao escrutínio dos percur-
sos formativos dos(as) participantes, na busca de compreender não só os impac-
tos dessa mobilidade acadêmica na formação profissional docente inicial e conti-
nuada, como também os limites e as potencialidades de um programa como esse,
construído a partir de modelo universitário comprometido com trabalho acadê-
mico sério para segmentos sociais/raciais tradicionalmente excluídos do espaço
universitário, através de uma nova maneira de desenvolver formação docente, em
contínuo diálogo produtivo entre teoria e prática, universidade e escola.
Las palabras son imágenes, cuando lejos de transmitir ‘el puro en sí’ relatan
experiencias. A través de ellas podemos ‘ver’, no solo entender, conectar-
nos con lo que acontece en distintos escenarios. (DUSCHATZKY; BIRGIN,
2001, p. 5)
REFLEXIONES
Es, en este sentido que, de acuerdo con Kaline Gonçalves, las miradas se mul-
tiplican cuando expresiones como “Quién educa provoca e incómoda”, renue-
van el pacto del educador como actor social, político de la sociedad. El educador
como sujeto protagónico en la construcción de posibilidades de avanzar en la
adquisición de derechos de una sociedad que marca el imperativo de avanzar en
eliminar brechas existentes en cuanto a desigualdades sociales, culturales etc.
Un objetivo de la formación inicial de un educador es fortalecer la identidad
del educador y romper con la santuarización escolar. La movilidad internacional
no solo permite analizar las prácticas educativas y los contextos institucionales
ajenas, sino que pone de manifiesto gramáticas institucionales en sus contextos
sociales, culturales e históricos.
Finalmente, la mirada de estudiantes y los profesores de la UFSB hacia Uru-
guay permite realzar la visibilidad de una educación desarrollada a través de un
sistema participativo, laico, pluralista y público. No solo se mueven aquellos que
viajan. Diseñar, seleccionar, programar la pasantía implica también hacer zoom
en el propio sistema educativo. De ahí que la cooperación es no solo identifica-
ción sino criticidad, espejo y devolución.
Estas cualidades, si bien son de una construcción de un largo proceso, a
la hora de repensar los factores que permitan seguir avanzando institucional-
mente, no siempre desde la cotidianidad se les otorga el valor que conlleva a las
prácticas educativas realizadas en el sistema educativo nacional uruguayo.
Los niveles del entramado institucional en la que se encuentran los dife-
rentes actores – directores, profesores, alumnos – y comunidades en las que se
insertan las instituciones, no siempre tienen un nivel de legitimación social y
política que les otorga la ley de educación. Por eso, es importante implementar
REFERÊNCIAS
ARROYO, Miguel. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2014.
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas
por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.
GOMES, Nilma Lino. A mulher negra que vi de perto. Belo Horizonte: Mazza, 1995.
SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente:
um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004.
CAPÍTULO 14
INTRODUÇÃO
Nas três últimas décadas, vários marcos regulatórios foram homologados e pro-
vocaram mudanças significativas no campo educacional que impactaram dire-
tamente na universidade e na educação básica. Dentre os marcos regulatórios,
tivemos a Lei nº 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),
que determinou mudanças significativas nas políticas e práticas de formação de
professores. Ao determinar a formação em nível superior dos docentes que atu-
arão em todas as etapas, níveis e modalidades da educação básica, a LDB atri-
bui aos cursos universitários de licenciatura, pedagogia e pós-graduação grande
responsabilidade nesse campo. Diante de tais mudanças, podemos afirmar que
vem se dando também um processo de reconceitualização pedagógica dos cur-
sos de formação de professores em todo o seu escopo, tendo como um dos seus
focos a interface universidade e educação básica.
1 Como normativas nacionais, podemos destacar a meta 15 do Plano Nacional de Educação (PNE), que
determina a garantia de uma “política nacional de formação dos profissionais da educação”, assegu-
rando a “formação específica de nível superior a todos os professores e as professoras da educação
básica” (BRASIL, 2014), e, ainda, o artigo 11, inciso IV, da Resolução nº 02/2015 do Conselho Nacional
de Educação (CNE)/Conselho Pleno (CP), que aponta para a necessidade de uma “interação sistemática
entre os sistemas, as instituições de educação superior e as instituições de educação básica, desenvol-
vendo projetos compartilhados”. (BRASIL, 2015)
2 A saber: artes e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais e
suas tecnologias, linguagens e códigos e suas tecnologias e matemática e computação e suas tecnologias.
3 Os resultados do Fórum Social da UFSB foram compilados e estão resumidos no texto “Universidade
pública e integração social”, de Paulo Dimas e Eva Dayane de Góes, na Parte I deste livro. Os trabalhado-
res profissionais da educação básica da região foram um dentre os 18 segmentos sociais convidados para
debater o papel da universidade na região.
4 Existem três CIEs criados em escolas de ensino médio que abrigam Cunis por adesão à proposta. São
espaços privilegiados para práticas docentes e pesquisas educacionais relacionadas à formação docente
interdisciplinar. Sua gestão pedagógica torna-se compartilhada com a UFSB, supervisionada em parte
pelo seu quadro docente regular e discentes em formação. Para mais informações, ver, na Parte II deste
livro, os textos “O Complexo Integrado de Educação de Porto Seguro e o compromisso com a educação
básica na UFSB” e “Transições paradigmáticas entre a universidade e a escola”.
5 Os Cunis são unidades da UFSB que funcionam em escolas estaduais de ensino médio situadas em
municípios adjacentes aos municípios-sede dos campi universitários. Visam aproximar o local de oferta
de Formação Geral (FG) do local de residência da população nos municípios dos territórios em que a uni-
versidade está instalada. Para mais informações, ver, na Parte III do livro, sobre a FG, o texto “Os Colé-
gios Universitários e o enraizamento territorial da UFSB”.
6 Para maiores informações, acessar os textos da Parte III deste livro, em especial o capítulo “Formação
Geral interdisciplinar no ensino superior: um (per)curso na UFSB”.
[...] como é algo novo para nós, como discentes, sair da sala de aula da uni-
versidade e adentrar em um colégio agora como um futuro profissional da
docência, não deixa de ser algo assustador, e essas etapas vêm justamente
para nos auxiliar a conhecer aos poucos a realidade das escolas, se inteirar
delas, fazer levantamentos sobre suas carências, com o intuito de se tornar
profissionais com olhares e práticas totalmente melhores e diferentes das
quais já existem. (Relatório de Estágio, Estudante 2)
dos alunos em formação, e não como uma expressão fria das leis. Utilizamos,
ainda, Hofling (2001), a fim de garantir o estudo dos conceitos de Estado, socie-
dade, políticas públicas e política educacional.
Ao final do CC, realizamos uma avaliação escrita entre os estudantes, na qual
pedimos que analisassem a experiência. Os depoimentos apontaram para a rele-
vância da proposta de territorialização da análise sobre as políticas públicas edu-
cacionais e para a metodologia de pedagogia ativa que orientou as aulas:
Considero [relevante], pois nos possibilita uma análise num todo em relação
à educação de um determinado município. (Estudante 3, Itabuna)
O trabalho final foi muito interessante, ter contato com as escolas e escu-
tar sobre os trabalhos dos colegas [são aspectos positivos do CC]. (Estu-
dante 5, Itabuna)
Percebi que tenho que ser pesquisadora e conhecer mais sobre os avanços
da educação tanto do meu município quanto do outro em que atuo. (Estu-
dante 7, Coaraci)
[...] sem sombra de dúvidas, tem bastante relevância para meu processo de
formação, pois, além de fortalecer percepções políticas e pedagógicas que eu
já possuía, me fez analisar mais amplamente as políticas públicas, seu real
interesse e papel a desempenhar, bem como, na gestão escolar, suas limita-
ções, aprisionamentos e aplicabilidades. No geral, compreendo a importân-
cia de ser uma cidadã mais participativa, a necessidade de buscar as fontes
necessárias para embasar meus posicionamentos e que tenho, diante disso,
o papel de fiscalizar e cobrar retorno na execução do que for proposto. (Estu-
dante 8, Itabuna)
Santiago e Fabiana Costa. O CC teve como um dos seus objetivos articular o papel
da UFSB no debate sobre a participação social no território vinculada à organi-
zação dos segmentos sociais da região sul da Bahia, tendo como foco as comu-
nidades tradicionais. No percurso do CC, realizamos a discussão dos conceitos
de território, políticas públicas e participação; o estudo e problematização das
comunidades e suas identidades, seu processo de luta social e inserção regio-
nal; o debate sobre os pressupostos teórico das políticas públicas no Brasil; e a
relação entre Estado, sociedade e as demandas sociais por políticas públicas.
Quanto à participação e mobilização social, buscamos a identificação dos con-
flitos locais com as comunidades indígenas e quilombolas e também aqueles de
origem agrária. Para tanto, o CC foi dividido em três módulos:
1. Território;
2. Políticas públicas; e
3. Participação.
9 No projeto institucional da UFSB, expresso em seu Plano Orientador (2014), as Equipes de Aprendiza-
gem Ativa (EAAs) seriam um dispositivo-chave para a formação de professores, articulando os diferen-
tes ciclos de formação e formadores vinculados formalmente à educação básica, os preceptores.
são oferecidos para as LIs, contribuindo para uma formação inicial de docentes
atentos e informados sobre o contexto territorial da universidade.
A integração entre primeiro, segundo e terceiro ciclo, nesse sentido, é fun-
damental porque justifica e potencializa a existência da UFSB no território e
dinamiza o processo formativo interdisciplinar. Ações de pesquisa realizadas no
âmbito da educação básica pelos cursos de terceiro ciclo fortalecem e qualificam
as discussões levadas a cabo na formação de professores e na iniciação cientí-
fica dos dois primeiros ciclos, uma vez que permitem uma maior articulação do
trabalho, amadurecimento do debate teórico, troca e reconhecimento de expe-
riências, além de envolver diversas equipes docentes. Assim, toda a instituição
converge no plano que a orienta e nos anseios a que se destina cumprir, o que é
reforçado por uma ação de permanência e garantia de direitos no território e por
sua participação em instâncias democráticas de representação.
Não há, realmente, pensamento isolado, na medida em que não há homem
isolado. Todo ato de pensar exige um sujeito que pensa, um objeto pen-
sado, que mediatiza o primeiro sujeito do segundo, e a comunicação entre
ambos, que se dá através de signos linguísticos. O mundo humano é, desta
forma, um mundo de comunicação. (FREIRE, 2013, p. 57)
Desde que chegou ao território, não demorou dois anos para que universidade
fosse convidada a compor o Conselho Municipal de Educação de Itabuna (CMEI)
e logo assumisse sua presidência.10 Esse é um dado significativo, posto que, como
analisa Cury (2001), as instituições que se dedicam à formação docente devem ter
presentes como tema central as políticas públicas, a gestão democrática da edu-
cação escolar e a participação social. Consequentemente, sua aproximação com
os CMEs se faz estratégica, pois, se esses temas compõem o currículo dos cursos
de formação docente, dizem essencialmente respeito aos conselhos.
Os CMEs estão presentes em 87,5% dos municípios brasileiros. (IBGE, 2014)
Embora conselhos com objetivos análogos existam desde o Império, foi com a
LDB, que admite a existência de “órgãos normativos dos sistemas”, e com a Cons-
tituição Federal de 1988, que também reconhece, no seu artigo 211, a existência
de sistemas municipais de educação, que eles ganharam sua proeminência e seu
10 A aproximação com conselhos certamente ocorreu também em outros municípios de atuação da univer-
sidade, em particular municípios-sede de outros campi da universidade. Contudo, isso não será tratado
neste texto.
Como vimos, os PPCs das LIs apostam no diálogo e na interface entre uni-
versidade e educação básica e consideram especificidades culturais, sociais,
11 Para mais informações sobre esses CCs, consultar os capítulos da Parte IV deste livro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As práticas e experiências vivenciadas por meio do ensino, da pesquisa e da
extensão fundamentam o trabalho institucional de promoção e desenvolvi-
mento regional e o compromisso com a educação básica. Nesse sentido, há con-
vergências entre as demandas apresentadas no Fórum Social da UFSB, em 2015,
como: a formação de um egresso ciente da diversidade étnico-cultural e reco-
nhecedor do contexto territorial da universidade; a interdisciplinaridade e a
flexibilidade do processo formador como pontos de convergência do currículo
para o primeiro ciclo; terceiro ciclo focado no atendimento à demanda regional
e reconhecimento do contexto territorial do sul da Bahia como diverso étnica e
culturalmente; e a preocupação com a formação inicial e continuada de profes-
sores de forma distinta do que vem sendo realizado pela universidade brasileira.
Destacamos que a construção de alternativas populares e interepistêmicas é
possibilitada nas práticas e experiências relatadas na medida em que a formação
de professores apresenta um currículo interdisciplinar com CCs que envolvem
REFERÊNCIAS
ANDRÉ, Marli Eliza D. A. de. Etnografia da prática escolar. Campinas: Papirus, 2012.
DAYRELL, Juarez. A escola como espaço sócio-cultural. In: DAYRELL, Juarez (org.).
Múltiplos olhares sobre a educação e cultura. 2. reimpr. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2001. p. 136-161.
SANTOS, M. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 9. ed. São Paulo:
Cortez, 2006.
CAPÍTULO 15
alessandra reis
fabiana lima
INTRODUÇÃO
No presente capítulo, duas formas complementares de compreender e de se
inserir no modelo de graduação para formação docente na Universidade Fede-
ral do Sul da Bahia (UFSB) serão colocadas em perspectiva, no intuito de que se
construa diálogo produtivo entre narrativas críticas em primeira pessoa sobre as
Licenciaturas Interdisciplinares (LIs), formato novo no meio acadêmico brasi-
leiro de formação profissional para a docência. Assim, uma estudante da LI em
Matemática e Computação e suas Tecnologias e uma professora atuante nas LIs
em Artes e suas Tecnologias e em Ciências Humanas e Sociais e suas Tecnologias
2 Interepistemicidade implica, na perspectiva de Boaventura de Sousa Santos, Nilma Lino Gomes, entre
outros(as) autores(as), praticar a importância da desierarquização de distintos saberes dentro das ins-
tituições educacionais, possibilitando uma perspectiva curricular e práticas pedagógicas que vão além
do eurocentrismo, abrindo-se a outras epistemes tradicionalmente silenciadas no meio acadêmico. Na
trilha das reflexões teóricas de Foucault (1987), episteme se performa enquanto condições discursivas
que constituem uma epistemologia, ou seja, o conjunto das relações epistemológicas entre as ciências
humanas. A proposta foucaultiana de narrar a história das ciências humanas através de perspectiva
descentralizada e descontínua não só levou à compreensão do homem como problema para o saber
humano desde o século XVI europeu, como sobretudo tem possibilitado, desde então, o delineamento
epistemológico de humanidades que não se restringem ao parâmetro europeu-ocidental, princípio teó-
rico-metodológico donde provém o conceito de interepistemicidade. O princípio da interculturalidade,
também insurgente no campo das lutas e movimentos sociais de grupos subalternizados e dos estudos
pós-coloniais, inclui o da interepistemicidade ao apostar em políticas – culturais, educacionais, econô-
micas – que, construídas a partir da tensão do jogo da diferença colonial, se encaminhem, também no
plano epistêmico, para uma proposta de transformação social e civilizacional.
3 Ver os textos contidos na Parte III deste livro, “Formação Geral, formação cidadã”, que tratam da FG na UFSB.
4 Documento institucional utilizado como balizador das ações iniciais na UFSB que traz o organograma
e o arcabouço teórico-metodológico do modelo da universidade, em termos curriculares, pedagógicos,
acadêmicos e administrativos. Concebida enquanto universidade comprometida com a recriação da
educação superior pública brasileira, no sentido de ser vetor de integração social e de promoção da
condição humana, a UFSB, entre 2014 e 2017, utilizou esse documento para dar forma e direcionamento
teórico-metodológico ao planejamento institucional. Assim, no PO, não só o formato institucional é des-
crito e contextualizado como sobretudo os princípios que deram forma a um modelo de ensino univer-
sitário de percurso interdisciplinar e comprometido com uma formação cidadã no ensino superior são
amplamente discutidos.
5 É importante enfatizar que cursos como a LI em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros e a LI de Ciências
Humanas/História da Universidade Federal do Maranhão (UFMA); a LI Artes da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia (UFRB), bem como os BIs da Universidade Federal da Bahia (UFBA), UFRB, Uni-
versidade Federal do ABC (UFABC), entre outras universidades, apresentam-se, assim como as LIs e os
BIs da UFSB, enquanto propostas de reconfiguração curricular em projetos de graduação que se querem
inclusivos. Embora não caiba nas proposições deste capítulo, os desdobramentos das formações desses
novos cursos na universidade pública brasileira precisam ser melhor investigados, sobretudo a inserção
no mercado de trabalho dos egressos de tais cursos.
6 A Rede Cuni, em linhas gerais, é composta por salas da UFSB em escolas de educação básica. Até agora,
a partir de negociação com a SEC-BA, escolas estaduais têm sediado a Rede Cuni. Essa espécie de ocu-
pação do território da educação básica por uma instituição pública de ensino superior acaba por estabe-
lecer relação sistêmica entre discentes e profissionais da universidade com discentes e profissionais das
escolas. Os impactos desse diálogo na formação docente precisam ser escrutinados. Embora este artigo
não abra espaço para essa análise, que se faz necessária, aponta para as possibilidades enriquecedoras
desse diálogo para a formação dos estudantes das LIs e dos programas de graduação e pós-graduação
relacionados à formação docente na UFSB. Outros aspectos importantes relacionados à experiência dos
Colégios Universitários (Cunis) foram tratados neste mesmo volume com o texto “Colégios Universitá-
rios e o enraizamento territorial da UFSB”.
7 Metodologias ativas de aprendizagem implicam mudanças curriculares, passagem da perspectiva disci-
plinar para (inter)(trans)disciplinar e descentralização dos processos de ensino-aprendizagem da figura
do professor. Enquanto concepção educacional que assume a tríade freireana ação-reflexão-ação, pro-
cura desenvolver nos(as) educandos(as) atitude ativa perante o próprio aprendizado e questionar prá-
ticas pedagógicas marcadas pela centralidade do professor, de onde parte todo o saber. Ao invés da
educação bancária, amplamente problematizada por Paulo Freire, uma relação de parceria entre estu-
dantes e professores acaba por tornar ambos os atores educacionais aprendizes com papéis distintos
nos processos de ensinagem, dentro do qual o despertar da curiosidade, o aprendizado prazeroso e a
construção coletiva de conhecimentos, saberes e práticas são a tônica.
8 Os CIEs, negociados com a SEC-BA desde 2015, passam a se configurar realidade em 2016, em três esco-
las nos municípios de Itabuna, Porto Seguro e Teixeira de Freitas. Podem ser compreendidos como con-
glomerados educativos concebidos enquanto território destinado ao desenvolvimento de uma relação
sistêmica entre escola básica e ensino superior. Tais conglomerados incluem salas da rede de Cunis da
UFSB, escolas integrais de tempo integral (ensino médio), centros noturnos de educação e espaços-tem-
pos pensados para a circulação desierarquizada de estudantes da UFSB e das escolas de ensino médio,
de professores da UFSB e das escolas de ensino médio, de profissionais da educação, intelectuais, artis-
tas, cientistas, mestres tradicionais e indivíduos da comunidade mais ampla das escolas e da universi-
dade empenhados em práticas educativas e/ou em ações para formação de professores, tanto das escolas
de ensino médio quanto dos licenciandos da universidade e, posteriormente, de professores participan-
tes de cursos de pós-graduação em Educação strictu sensu na UFSB.
9 Segundo o compromisso inicial da UFSB com a inclusão social, foram pensadas formas de ingresso na
instituição para selecionar majoritariamente estudantes oriundos de escola pública, pertencentes a gru-
pos sociais subalternizados e moradores do sul e extremo sul da Bahia. A ABI foi, entre os anos de 2014 e
2018, a única forma de entrada na UFSB de todas as turmas dos Cunis e uma das opções de entrada nas
sedes de cada campus. Essa forma de entrada possibilitava que, após a conclusão da FG, fosse escolhida
uma das formações acadêmicas do primeiro ciclo da UFSB. O estudante concluinte da ABI tinha vaga
garantida em uma das cinco LIs. No entanto, caso quisesse ir para algum BI, poderia, considerando a
quantidade de vagas oferecidas para tais cursos.
experiências e nos ensinando uma série de coisas que eram tão próximas de nós
e da nossa realidade.
Morei a minha vida inteira nesse território e nunca tinha tido acesso a tan-
tos saberes, emanados da comunidade local. E me senti muito à vontade, por-
que recebemos índios, caciques, anciões, matutos, capitães do mato, mães de
santo, quilombolas e assentados de movimentos sociais. Todos santos de casa,
oriundos desse território. Impossível, antes da UFSB, jamais ter percebido tantas
riquezas materiais e imateriais assim tão pertinho de mim.10
Em meio a essa experiência, já não dava mais para regressar ao ponto de
partida, porque agora eu já pertencia a esse território e aprendia com sensibili-
dade a reconhecer a cultura da minha terra, a reconhecer-me como parte dessa
terra, a responsabilizar-me por ela. Então, vieram as propostas pedagógicas de
intervenção no território e isso era maravilhoso, porque rompia com um modelo
de f ormação fechado, restrito ao espaço da universidade. E começava para nós,
estudantes, uma nova era: uma universidade que rompia com os muros, que ia
além das suas fronteiras e chegava à comunidade.
Os CCs da FG se entrelaçavam, nos provocando uma reflexão interdiscipli-
nar, conectando-se em uma sequência planejada, orientada e dialogada entre
os professores. A cada final de quadrimestre, desenvolvíamos um projeto macro
com o coletivo, que já havia sido trabalhado durante o quadrimestre, na perspec-
tiva de integrar os conteúdos de cada período.
A grande novidade dessa universidade, para mim, é validar a produção do
conhecimento integrando a comunidade nesse espaço, dando a ela voz em suas
decisões e permitindo que as suas demandas sociais sejam ouvidas e valoradas
por seus integrantes. E com muito respeito, aprendemos a dialogar fazendo o
exercício da escuta atenta a esses novos atores sociais. Eu ousaria dizer que essa
universidade deu ouvido aos invisíveis históricos do território.
Chegamos ao final desse período de um ano sedentos por uma oportunidade
de testar na prática o que aprendemos. E foi então que cada um de nós migrou
para uma área afim. No meu caso, foi a matemática; mais precisamente a LI em
Matemática e Computação e suas Tecnologias. Iniciamos aqui uma nova etapa
com a proposta de agregar algo àquela comunidade, a minha mesma por sinal,
que ora abriu suas portas para nós.
Essa nova etapa trazia consigo uma tensão, já que o costumeiro é uma forma-
ção rígida pautada em uma reprodução de listas de exercícios, em que o professor
é o dono da sala e o aluno é aquele manipulável obediente limitado a questiona-
mentos. Nesse percurso, tínhamos uma formação única para as licenciaturas e
outra concentrada por área. No entanto, ambas convergiam no Estágio Supervi-
sionado. Essa proposta foi muito positiva, pois trocamos experiências entre as
10 Ver, neste mesmo livro, os textos “Movimentos sociais e conhecimento emancipador”, “Conhecimentos
tradicionais e território na formação universitária” e “Caminhos pluriepistêmicos para educação e prá-
tica em saúde”, que relatam as experiências com o Encontro de Saberes na UFSB.
11 “Intelectual negra” é utilizado neste texto no sentido das reflexões de Nilma Lino Gomes acerca do
contexto brasileiro da intelectualidade negra na contemporaneidade, discutido no texto “Intelectuais
negros e produção do conhecimento: algumas reflexões sobre a sociedade brasileira”, publicado em
2010, e da perspectiva traçada por bell hooks no artigo “Intelectuais negras”, de 1995.
12 “Raça”, neste texto, bem como suas derivações “racial” e “racismo” não são utilizadas como categoria
biológica consagrada pelo cientificismo do século XIX, mas como categoria analítica que objetiva tratar
do caso específico brasileiro, no qual a ideia de raça funciona como operador ideológico delimitador de
espaços sociais e formulador de atitudes de exclusão. Dentro de tal perspectiva analítica, utilizar uma
palavra corrente no contexto social e que carrega em si critérios de discriminação possibilita observar
de maneira crítica os pilares que fundamentam ideologias racistas. Por isso, opto por usar “raça” e/ou
“racial” aliado à categoria de etnia e suas derivações, indistintamente.
13 Os termos “decolonial”, “decolonialidade”, “descolonizados” e “pós-coloniais”, apesar das sutis diferen-
ças conceituais entre eles, congregam epistemologicamente uma disposição de enfrentamento das rela-
ções coloniais de poder que constituem o capitalismo moderno de modelo ocidental-europeu desde o
século XVI, sustentadas pela classificação e domínio étnico-racial das sociedades colonizadas, bem como
pela criação de uma subjetividade responsável por formalizar um modo de produzir conhecimento de
orientação eurocêntrica, que se hegemoniza como a única possível, tornando-se, portanto, uma pers-
pectiva cognitiva de domínio e reprodução da colonialidade. (OLIVEIRA; CANDAU, 2010; GOMES, 2010,
2017; GROSFOGUEL, 2010; MALDONADO-TORRES, 2010; QUIJANO, 2010; SANTOS, 2010)
14 O PO da UFSB, publicado em 2014, foi o documento que estabeleceu os princípios institucionais de uma
universidade pública federal criada com o comprometimento da inclusão social, transformação do terri-
tório onde a universidade se situa, através de negociações com a sociedade local, para que a UFSB se ins-
talasse em cidades do sul e extremo sul da Bahia. Tendo tido a primeira turma de ingressantes no final
ção pública de ensino superior. Por isso mesmo, a escolha por um concurso que,
organizado de maneira distinta dos concursos para seleção docente de universi-
dade pública no Brasil, exigia dos(as) candidatos(os) conhecimento da área de atu-
ação e identificação institucional com o projeto de uma universidade pública que
quis, em sua criação, pensar organização curricular e acadêmica em perspectiva
descolonizadora, desde à formação em graduações interdisciplinares ao compro-
misso com outras epistemes que não somente a ocidental-europeia.
Além disso, o concurso foi diferenciado porque rompeu com o formato mais
comum de ingresso na docência superior pública: sorteio de pontos para as pro-
vas escrita e de aula. Contrariamente, o(a) candidato(a) pôde escolher os pon-
tos nas duas etapas, demonstrando que, para além da erudição acadêmica, se
buscava selecionar candidatos(as) que já possuíam trajetória profissional de
identificação com perspectiva interdisciplinar, intercultural e interepistêmica.
Por outro lado, também enfatizava as escolhas metodológicas do docente, indo
na contramão do perfil mais comum de professor doutor brasileiro, que pouco
se interessa pela prática pedagógica em si. Dessa forma, ao invés de se submeter
um memorial, na última etapa do concurso, foi solicitado um plano de trabalho
acadêmico, com a descrição detalhada das formas de atuação do(a) candidato(a)
na universidade, nas searas de ensino, pesquisa, extensão e criação.
Tendo sido aprovada em concurso para uma grande área – campo das huma-
nidades: saberes e práticas –, tão logo iniciei as atividades na instituição, passei a
atuar na FG e nos cursos de primeiro ciclo das áreas de ciências humanas e artes.
Devido à larga experiência docente na educação básica anterior à entrada na
UFSB, eu sabia que, assim que as licenciaturas iniciassem seus percursos espe-
cíficos, eu contribuiria também com essa formação profissional empenhada no
diálogo interdisciplinar entre as áreas de conhecimento da educação básica e
construída para um aprendizado do profissional docente a partir do espaço da
prática nas escolas da região. Além disso, nessa perspectiva de formação docente,
há constante planejamento de intervenções pedagógicas nas escolas, através da
carga horária destinada a CCs que compõem as práticas, nas LIs em Artes e em
Ciências Humanas e Sociais.
A novidade interessante na condição de docente das LIs foi constatar que
a formação dos(as) licenciandos(as) tinha sido iniciada, na verdade, desde
o primeiro ano de FG, quando os(as) estudantes experimentaram mudança
de 2014, é importante ressaltar que os três primeiros concursos docentes na UFSB tiveram o conheci-
mento e a identificação profissional com os princípios do PO como um dos critérios de seleção, fazendo
ingressar na universidade docentes comprometidos na execução do planejamento institucional inicial-
mente estabelecido para a instituição. Eu, como docente selecionada no segundo concurso público da
UFSB, vi na oportunidade de atuar em universidade de concepção curricular descolonizadora a possi-
bilidade de aprendizado e inovação profissional consistente, sobretudo porque, enquanto intelectual
negra, sempre compreendi que políticas de ações afirmativas no ensino superior só lograriam êxito se
acompanhadas de uma mudança curricular, epistêmica, com a inclusão de saberes, conhecimentos e
pedagogias afro-indígenas.
15 São exemplos de CCs comuns a todas as áreas na FG: Língua, Território e Sociedade; Língua, Escrita e
Sociedade; Expressão Oral na Língua Inglesa; Matemática e Cotidiano; Introdução ao Raciocínio Com-
putacional; Matemática e Espaço; Oficina de Textos Acadêmicos e Técnicos e Educação; Experiências
do Sensível; Universidade e Sociedade; Universidade e Contexto Planetário; entre outros. Ver a Parte III
deste livro, que trata sobre os princípios e os componentes da FG na UFSB.
16 O epistemicídio, na formulação teórica de Boaventura de Sousa Santos (2000), inicia, nas nações moder-
nas, com o projeto econômico de expansão territorial europeu, mas se estende para muito além dele,
enquanto marca perversa de colonialidade. De um traço da ocupação europeia em países não europeus,
acabou por se perpetuar como traço mesmo de dominação na modernidade, no sentido de que a vio-
lência inerente ao silenciamento da episteme de grupos étnico-raciais subalternizados tem se tornado,
portanto, prática intelectual corrente na tradição euro-ocidental hegemônica. No Brasil, o sequestro
de formas de conhecimento não ocidentais tem representado não só o menosprezo a tradições étnicas
específicas, mas sobretudo o próprio apagamento dos corpos de indivíduos que fazem parte desses gru-
pos. Sueli Carneiro (2005), em estudo filosófico sobre a construção do “outro” ocidental no campo da
educação, pontua que o epistemicídio fere de morte os corpos negros na sociedade brasileira, porque
produz indigência cultural, ao desqualificá-los enquanto sujeitos cognoscentes.
17 Os demais componentes do Núcleo Comum da Educação são: Bases Epistemológicas da Educação;
Políticas Públicas Educacionais e Gestão Escolar; Educação Ambiental e Sustentabilidade; Educação e
Direitos Humanos; Educação, Gênero e Diversidade Sexual; Educação Inclusiva; Libras.
REFERÊNCIAS
ARROYO, Miguel. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2014.
DU BOIS, William Edward Burghardt. The talented Tenth. Setp. 1903. Disponível em:
https://teachingamericanhistory.org/library/document/the-talented-tenth/. Acesso
em: 13 abr. 2019.
GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por
emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.
OLIVEIRA, Luiz Fernandes de; CANDAU, Vera Maria Ferrão. Pedagogia decolonial e
educação antirracista e intercultural no Brasil. Educação em Revista, Belo Horizonte,
v. 26, n. 1, p. 15-40, abr. 2010.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais
a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENEZES, Maria
Paula (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 23-72.
PARTE III
Formação Geral,
formação cidadã
CAPÍTULO 16
daniel puig
denise coutinho
naomar de almeida-filho
INTRODUÇÃO
No final do século XX, convidado pela Universidade de Harvard para ministrar
conferências sobre os atributos necessários para a formação do pensamento
neste milênio, Ítalo Calvino propôs delimitar elementos do espírito livre na cul-
tura o cidental contemporânea. Cada conferência ganhou o título de um atributo:
1. Leveza; 2. Rapidez; 3. Exatidão; 4. Visibilidade; 5. Pluralidade; e 6. Consistên-
cia. A tarefa ficou inconclusa, pois Calvino faleceu antes de escrever a sexta confe-
rência. Sua pertinente e elegante reflexão foi reunida em obra póstuma, intitulada
Seis propostas para o próximo milênio, publicada em 1990. Intelectual engajado,
teórico reconhecido e literato consagrado, atuante em momentos de profunda
mudança na sociedade ocidental contemporânea, Calvino estava preocupado
com o futuro da espécie humana, numa perspectiva cultural secular e global.
Edgar Morin (2001) propôs sete reformas necessárias ao século XXI: eco-
nômicas, sociais, políticas, éticas, do conhecimento, da educação e do modo
de viver. Num texto sobre saberes essenciais para viver o futuro, que alcançou
enorme difusão na virada deste milênio, Morin aprofundou o tema das refor-
mas da educação. Sua lista de competências educacionais para o sujeito humano
sobreviver no presente/futuro não pode ser resumida com facilidade. Apresen-
tada como um pensamento complexo, orientado para uma mudança episte-
mológica, implica questionamento da própria epistemologia. Condensadas ao
máximo, suas ideias centrais podem ser expressas assim:
1 O Plano Nacional de Educação (PNE), Lei nº 13.005/2014, reforça, nas metas 13 e 15, a necessidade de
uma FG nos currículos dos cursos de formação de professores e pedagogia. Na meta 15, a estratégia 15.6
ressalta a busca pela promoção de uma reforma curricular dos cursos de licenciatura frente às neces-
sidades dos sistemas públicos de ensino e estímulo à “renovação pedagógica”. Preconiza a divisão da
carga horária do curso em “formação geral, formação na área do saber e didática específica”, com a
incorporação de tecnologias de informação e comunicação e articulação com os currículos da educa-
ção básica. Na meta 16, ao estabelecer como finalidade do plano “garantir a todos(as) os(as) profissio-
nais da Educação Básica formação continuada em sua área de atuação, considerando as necessidades,
demandas e contextualizações dos sistemas de ensino”, não apenas cham a atenção para a formação
continuada, como também para a necessária resposta ao contexto local – ênfases que atravessam o PNE.
(BRASIL, 2014) Aplicando tais princípios, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação docente,
estabelecidas pela Resolução nº 2/2015 do Conselho Nacional de Educação, definem o núcleo de estudos
de FG, nas áreas específicas e interdisciplinares, articulando dimensões “do campo educacional, seus
fundamentos e metodologias, e das diversas realidades educacionais”. (BRASIL, 2015)
culturais, especialmente aqueles(as) cujo acesso ao ensino superior tem sido sis-
tematicamente negado em nossa história. Por fim, vale destacar: o presente texto
– e os textos que aqui o acompanham – é em si mesmo um exercício dessa consci-
ência, desse movimento permanente de ampliação das vivências institucionais.
2 Atualmente, a FG acontece em oito municípios do sul e extremo sul da Bahia: Coaraci, Ibicaraí, Ilhéus,
Itabuna, Itamaraju, Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália e Teixeira de Freitas. Segundo os objetivos pactu-
ados na fundação da universidade, seriam mais de 30.
3 Ver, em particular, os capítulos da Parte I.
social estabelecida para o certificado, ou seja, ainda lhe falta a rede de trocas
simbólicas que sustentará seu reconhecimento social. Um vetor desse movi-
mento será a entrada de egressos(as) de qualquer ciclo da UFSB no mundo de
trabalho da região, onde atuarão com as habilidades e competências desenvolvi-
das na FG. Uma vertente ainda não explorada, prevista no plano da implantação,
é a parceria com outras instituições, como os Institutos Federais (IFs), que per-
mitirá, por exemplo, o reconhecimento do CFGU no início de outra formação ou
habilitação profissionalizante.
Na Figura 1, pode-se ver uma planificação do currículo da FG, utilizando a
forma geométrica conhecida como “Pentágono do Cairo” para enfatizar a ine-
xistência de pré-requisitos. Pode-se escolher o percurso livremente, segundo a
oferta de componentes curriculares a cada período letivo. Os blocos temáticos
estão representados em diferentes tons de cinza e branco, e o contorno dos pen-
tágonos indica componentes curriculares obrigatórios, optativos por áreas de
conhecimento e livres – do ponto de vista da escolha de estudantes.
6 Entre os eventos, destacam-se o II Seminário Pedagógico da UFSB, no início de 2015, que decidiu pela
inclusão de Experiências do Sensível na FG, e o X Seminário Pedagógico da UFSB, com o tema “A For-
mação Geral na UFSB”, que aconteceu em de abril de 2016, no campus Sosígenes Costa (Porto Seguro,
Bahia), onde foi debatida, entre outros encaminhamentos, a organização dos componentes curriculares
em blocos temáticos.
7 A título de exemplo, ver, no capítulo “Raciocínio computacional na Formação Geral pavimentando o
caminho da interdisciplinaridade", os relatos de Macêdo, Cavallo, Gorender e Araújo acerca desse com-
ponente curricular, bem como os demais capítulos da Parte III deste livro.
8 Campo de Saberes e Práticas (60h), Língua, Escrita, Território e Sociedade (240h), Matemática e Com-
putação (180h), Universidade e Sociedade (180h), Culturas Complementares (180h) e Experiências do
Sensível (60h).
9 Essa quebra implica efeitos mais profundos, como: situar o movimento de afiliação ligado a um único
bloco temático ou redefinir culturas complementares em áreas de conhecimento, numa lista seme-
lhante àquela utilizada em 2015 para efeito de transição.
10 Uma análise mais aprofundada deste componente curricular é apresentada no texto “Experiências do
Sensível na formação acadêmica: a proposta da UFSB” por Augustin de Tugny e Valéria Giannella.
11 “[...] la sustentabilidad es una cultura, cuya orientación fundamental se haya en la generación de proce-
sos que permiten posibilitar la conservación de una Matriz Biológico-Cultural de la Existencia Humana
cursando en el bienestar, y por ende de una Matriz Biológica de la existencia de los seres vivos que
también se conserva cursando en el bienestar”.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA-FILHO, Naomar de. Educação transdisciplinar e formação profissional:
desafios para a autonomia na universidade brasileira. In: REUNIÃO ANUAL DA
SBPC, 69., 2017, Belo Horizonte. Anais [...]. Belo Horizonte: UFMG, 2017. Disponível
em: http://www.sbpcnet.org.br/livro/69ra/PDFs/arq_2210_2656.pdf. Acesso em:
25 ago. 2018.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez;
Brasília, DF: UNESCO, 2001.
CAPÍTULO 17
COLÉGIOS UNIVERSITÁRIOS E
ENRAIZAMENTO TERRITORIAL DA UFSB
INTRODUÇÃO
A Rede Anísio Teixeira de Colégios Universitários (Rede Cuni) é uma inovação
institucional da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), inaugurada em
2014 com a própria universidade. Este capítulo se apoia em nossas experiências
como docentes, bem como em alguns depoimentos de estudantes, abordando o
período inicial de implantação dos quatro Colégios Universitários (Cunis) per-
tencentes ao Campus Jorge Amado (CJA), que funcionam nas cidades de Ita-
buna, Ibicaraí, Coaraci e Ilhéus.
O espaço inaugurado pelos Cunis aponta para uma tensão entre a inovação
e as expectativas que esses espaços anunciam em relação ao modelo de ensino
universitário predominante no Brasil. Não é no desenho institucional, mas na
compreensão das tensões produzidas pelas práticas que são ali instituídas que
podemos avaliar seu sentido e o alcance. Nesse sentido, compete contextualizar
esse arranjo enquanto possibilidade de mudanças na educação superior brasi-
leira. O objetivo deste texto é, portanto, realizar uma breve descrição dos modos
de funcionamento dos Cunis e seus objetivos, bem como os seus desafios presen-
tes, e apresentar o potencial de sua particular política de inclusão e territorializa-
ção para a promoção de uma maior justiça escolar.
1 Os Cunis do campus Paulo Freire estão localizados nas cidades de Teixeira de Freitas e Itamaraju.
2 Em Porto Seguro, os Cunis funcionam na própria cidade de Porto Seguro e em Santa Cruz Cabrália.
3 No bojo das modificações em curso na UFSB, a Resolução nº 20/2015, que regulava a formação geral, foi
revogada e entrou em vigor, a partir de dezembro de 2017, a Resolução nº 22/2017.
seus estudos em um dos campi-sedes. Apesar disso, cabe destacar que, no CJA,
alguns CCs relacionados às Licenciaturas Interdisciplinares (LIs) têm sido ofer-
tados desde 2015 nos Cunis.
Por meio dos Cunis, os alunos podem acessar a universidade sem passar pelo
Sistema de Seleção Unificada (Sisu) gerenciado pelo Ministério da Educação,
uma vez que o processo seletivo ocorre por meio de edital próprio da institui-
ção. Nesse processo, utiliza-se a pontuação do Exame Nacional do Ensino Médio
(Enem) de dois anos anteriores para dar acesso às 40 vagas para cada Cuni/muni-
cípio, para ingresso na Área Básica de Ingresso (ABI/LI). Há reserva de vagas de
85% para egressos do ensino médio em escola pública, incorporando o recorte
étnico-racial equivalente à proporção censitária do estado da Bahia, com metade
dessas vagas destinadas a estudantes de famílias de baixa renda. Além disso, são
disponibilizadas vagas supranumerárias para indígenas, quilombolas e, a partir
de 2018, para transexuais, travestis e transgêneros.
O ingresso na ABI permitia que os estudantes fizessem a opção por um dos
nove cursos de primeiro ciclo existentes na instituição: cinco LIs e quatro Bacha-
relados Interdisciplinares (BIs), somente ao final do primeiro ano cursado na
instituição e finalizada a etapa da formação geral.
O desenho inicialmente pensando para a formação geral na UFSB priorizava
tanto a oferta de CCs afiliativos – componentes pensados para possibilitar um
primeiro contato do estudante com o conhecimento universitário – como a for-
mação propedêutica, revertendo a “concepção linear e fragmentadora do conhe-
cimento, alienada da complexidade dos problemas da natureza, da sociedade, da
história e da subjetividade humanas” (SANTOS; ALMEIDA-FILHO, 2008, p. 150),
tradicionalmente adotada nas universidades brasileiras.
A formação geral não desconsidera as experiências e compreensões dos
estudantes, mas busca aproximar o conhecimento acadêmico de suas vivências
e experiências. Esperava-se que, nessa etapa, os estudantes ingressantes com-
preendessem os códigos e procedimentos próprios do espaço universitário, ao
mesmo tempo em que fossem estimulados, de forma geral, a analisar o papel da
universidade em sua interlocução com a sociedade e, em particular, compreen-
der o modelo e o desenho curricular da UFSB.
ACESSO TERRITORIALIZADO
A oferta de vagas nos Cunis da UFSB por meio de um edital próprio foi conce-
bida para favorecer o acesso ao público regional. Contempla prioritariamente
egressos da escola pública, candidatos quilombolas e indígenas. Diferencia-se,
portanto, do acesso via Sisu, uma vez que favorece o acesso de uma demanda
regional, que ingressa no ensino superior via cotas raciais e sociais, valorizando
egressos da escola pública, ou por meio de cotas supranumerárias, para quilom-
bolas e indígenas, assegurando a diversidade da região.
Em 2017, realizamos uma pequena enquete com alunos ingressantes na uni-
versidade em dois dos Cunis ligados ao CJA: Ibicaraí e Coaraci.4 O intuito era
mensurar se a estratégia dos Cunis cumpria seu objetivo de promover a inclu-
são de pessoas com menor poder aquisitivo no ensino superior ao disponibilizar
vagas para acesso em municípios circunvizinhos, mais próximos aos locais de
residência de seus estudantes.
4 As enquetes foram aplicadas no CC Universidade e Sociedade em julho de 2017. No Cuni Coaraci, a apli-
cação foi feita pela docente Regina Soares de Oliveira, via Sistema de Gestão das Atividades Acadêmicas
(Sigaa). No Cuni Ibicaraí, foram aplicadas pelo docente Gustavo Gonçalves, utilizando o Google Forms.
Ao todo, responderam às enquetes 44 estudantes, 22 em cada Cuni.
[...] Eu sempre estudei com muito objetivo e por meus pais não terem instru-
ções em nada, mas nunca deixaram de me incentivar a estudar. Então, eu
sentia vontade de retribuir tudo o que eles faziam por mim. Então, mesmo
com as dificuldades, com uma escola que tinha uma infraestrutura não tão
boa, mas com o ensino bom, eu tinha o desejo de progredir. E mesmo com um
ensino médio que não foi o dos melhores, aqui estou eu na UFSB. Ingressei
na UFSB e acredito que tenha sido uma das melhores coisas que já me acon-
teceu. Não há dúvida nenhuma de que entrar na UFSB me representa uma
vitória. Uma conquista individual, familiar e de um grupo de amigos que
também é ingressante na UFSB. (Thainá)
PERMANÊNCIA
Tendo em vista os objetivos da universidade de promover o desenvolvimento
territorial e a justiça social, a permanência dos estudantes na universidade e o
êxito em sua formação universitária são tão importantes quanto a continuidade
de seu vínculo com o contexto comunitário. Ao abordar esse aspecto, percebe-
mos como o Cuni contribui para o processo de afiliação dos estudantes à univer-
sidade, a partir do modo como equaciona aspectos simbólicos e materiais para
viabilizar a permanência dos alunos.
Em relação aos aspectos simbólicos, o acesso de novos públicos à universi-
dade deve ensejar uma crítica radical aos processos sociais, que envolve a forma
como ela lida com a diversidade dos coletivos com os quais atua, evitando con-
vertê-la e cristalizá-la em desigualdade social.
O Plano Orientador da UFSB estimulava a utilização de práticas pedagógi-
cas interdisciplinares, pedagogia de projetos e uma perspectiva interepistêmica,
5 Nos anos de 2014, 2015 e 2016, foram realizadas tentativas de instalar um debate pedagógico na comunidade
acadêmica sobre as inovações pedagógicas da UFSB. Foi utilizado o formato de seminários pedagógicos
organizados pela Pró-Reitoria de Gestão Acadêmica, nos intervalos entre quadrimestre letivos. E
ssas ini-
ciativas apresentaram pouca adesão entre os docentes e não foram avaliadas de forma sistemática.
6 Para preservar o depoente, optamos por manter seu anonimato.
7 A oferta dos CCs de forma metapresencial implica a transmissão da aula em tempo real pelo docente
para os estudantes dos Cunis. Esse tipo de aula permite a interação entre docente-discentes e discentes-
-discentes, apesar da distância física entre as partes. Por sua vez, dentro da instituição, esbarra em pro-
blemas já citados neste texto.
8 Na Parte I deste livro, o texto “Políticas de ações afirmativas e de apoio à permanência: avanços e retro-
cessos da UFSB (2014-2018)” faz uma análise em relação à localização do campus.
PERTINÊNCIA
O bloco temático Universidade e Sociedade, composto pelos CCs Universidade
e Sociedade; Universidade, Desenvolvimento Regional e Nacional; e Universi-
dade e Contexto Planetário,9 esteve articulado no sentido de propiciar o debate,
desde o primeiro quadrimestre dos estudantes na universidade, sobre questões
e problemas territoriais por meio da reflexão dos índices de escolarização nos
municípios, acesso à educação básica, a compreensão do papel da universidade
na sociedade, além do entendimento do próprio processo de afiliação estudan-
til. Outros objetivos eram, ainda, a compreensão dos indicadores do Índice de
Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), levantamento e reconhecimento
de problemas locais, identificação dos papéis dos sujeitos e suas contribuições
para a transformação socioespacial dessas localidades.
Ao refletirem sobre a aproximação com o território onde estão inseridos, por
meio de atividades realizadas durante a formação geral, os depoimentos dos
estudantes de Coaraci trazem não somente essa dimensão curricular, como tam-
bém explicitam os efeitos que essas ações pedagógicas produziram em distintos
atores desses territórios. Um estudante destacou, especificamente, a aproxima-
ção com a educação básica:
9 Esse bloco, modificado pela Resolução nº 22/2017, passou a ser designado como “Bloco Temático de Lin-
guagem Humanística”.
LIMITES E DESAFIOS
Há mais de quatro anos, os Cunis vêm recebendo aulas presenciais e por web-
conferência, enfrentado problemas tecnológicos – ausência de equipamentos
adequados, queda de conexão etc. – e obtendo resultados cuja avaliação tem sido
fonte de disputas na comunidade acadêmica sem, no entanto, um devido apro-
fundamento e debate sobre a questão. Neste texto, iniciamos de forma limitada
essa avaliação. Consideramos que, para mensurar os alcances e desafios expres-
sos no projeto dos Cunis, caberia a realização de uma pesquisa que abarcasse
o maior número possível de estudantes dos Cunis, inclusive em outros campi,
e ainda de outros atores implicados no funcionamento desses espaços, o que
envolveria os assistentes operacionais, os demais docentes que ministram aulas
nos Cunis e os funcionários técnico-administrativos da universidade, que lidam
diretamente com esses espaços.
À guisa de conclusão, cabe destacar que os Cunis, enquanto estratégia insti-
tucional de promoção da inclusão no ensino superior, ainda carecem de maior
debate dentro da instituição em relação à sua função, alcance e modos de fun-
cionamento. A mudança realizada na formação geral sem o devido debate com
a comunidade provocou profundas mudanças no conceito dessa etapa forma-
tiva, impactando fortemente os estudantes que fazem a ABI nos Cunis, possibili-
tando que os blocos temáticos sejam cursados pelos estudantes somente em sua
carga horária mínima e limitando a migração dos estudantes da ABI para os BIs –
vagas remanescentes ou até um terço das vagas de entrada do Sisu de migração.11
10 O interesse dos estudantes pelo tema surgiu em 2017, a partir das discussões feitas no CC Universidade
de Sociedade. Posteriormente, o grupo procurou a docente que havia ministrado esse componente para
verificar a viabilidade do desenvolvimento da pesquisa.
11 O ingresso via ABI em 2019 deixou de existir, uma vez que o acesso aos Cunis ocorre diretamente nos
cursos de primeiro ciclo da UFSB. A seleção no CJA para os Cunis deu-se, majoritamente, para cursos
das LIs.
A não oferta de CCs após o primeiro ano da formação geral nos Cunis implica,
sobretudo, custos com deslocamentos Cuni-sede para os estudantes.
Conforme os depoimentos sugerem, a política de territorialização universi-
tária promovida pelo Cuni de fato abre a possibilidade de uma efetiva inclusão
no ensino superior. Essa possibilidade é valorizada pelos estudantes, benefici-
ários da política, que identificam nela elementos de democratização do acesso
e condições de permanência. Já entre os professores da UFSB, são ambíguas as
reações, variando de uma grande adesão a uma grande resistência, motivada
tanto pela incompreensão – ou compreensão parcial – do modelo de universi-
dade proposto quanto pelos desafios que esse modelo impõe. Há que se con-
siderar a formação desse quadro docente em um modelo universitário em que
os papéis de docentes e discente estão preestabelecidos e o quanto a mudança
nessa estrutura gera desconfortos.
As rápidas transformações promovidas pelos gestores da universidade que
inibiram o acesso e a mobilidade de alunos da ABI para carreiras prestigiosas
nas sedes impactaram prematuramente a função de democratização do acesso a
esses cursos para jovens que ingressaram na universidade pelos Cunis.12 O des-
vio do projeto original nos impede de avaliar se os Cunis chegaram a ser – ou
teriam potencial para isso – indutores de uma verdadeira territorialização demo-
crática dos elementos simbólicos aportados pela UFSB ao sul baiano. Vemos que
a universidade encontra-se em uma encruzilhada que pretende promover os
Cunis como espaços de formação inicial e continuada de professores; contudo,
com fluxo de alunos cada vez mais restrito, desconectando espaços de pesquisa
e espaços de ensino.
No limite, os Cunis tenderiam a se constituir, dentro da UFSB, em uma rede
própria de formação de professores, contribuindo para uma territorialização,
porém com o risco de que ela ocorra de forma segregadora entre as carreiras de
formação de professores, por um lado, e as demais, por outro. Transformar os
Cunis em polos difusores de saberes e reflexões diversas sobre a educação básica,
articulados a programas de formação continuada de professores no município, é
antiga promessa não realizada.
Não existem na instituição, atualmente, uma reflexão sistemática sobre o
potencial inclusivo dos Cunis e uma avaliação realista sobre até que ponto se
alcançou esse potencial nos primeiros anos de existência da UFSB. As decisões
políticas que definem os rumos a serem tomados na encruzilhada referida ante-
riormente não se apoiam em dados produzidos criteriosamente, mas são forja-
das em atos, cujos efeitos para o projeto institucional são pouco estudados.
REFERÊNCIAS
COULON, Alain. A condição de estudante: a entrada na vida universitária. Salvador:
Edufba, 2008.
SANTOS, Georgina Gonçalves dos; SILVA, Lélia Custódio da. A evasão na educação
superior: entre o debate social e objeto de pesquisa. In: SAMPAIO, Sônia Maria Rocha
(org.). Observatório da vida estudantil: primeiros estudos. Salvador: Edufba, 2011.
p. 249-262.
CAPÍTULO 18
spensy k. pimentel
arthur luhr mello
carolina dos santos soares
emiliane nascimento de jesus
jade miranda varjão
liz miranda varjão
rafaela santos da silva
INTRODUÇÃO
Por meio de entrevistas e de depoimentos obtidos em processos de avaliação de
componentes da Formação Geral (FG) – Universidade e Sociedade; Universidade
e Desenvolvimento Regional e Nacional; Universidade e Contexto Planetário –,
propomos analisar a experiência de ingresso na Universidade Federal do Sul da
1 Os alunos que assinam o artigo participaram de turmas da Formação Geral (FG) ministradas pelo
docente Spensy K. Pimentel, exceto Carolina, que foi sua orientanda na iniciação científica e também
participante do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde/GraduaSUS), em que o
docente atuou como tutor.
Bahia (UFSB) a partir das ideias de Paulo Freire e Anísio Teixeira – autores cen-
trais no Plano Orientador da universidade, tomados como ponto de partida no
processo da FG. Essa análise nos serve também para pensar o debate político
interno na UFSB, enquanto expressão de um debate mais amplo sobre modelos
de ensino superior no país, e como ele pode ser visto à luz de críticas clássicas à
universidade, tomando como referência a obra de Maurício Tragtenberg (2004)
e o que escreve sobre a “delinquência acadêmica”.
Este texto alterna as vozes do docente Spensy K. Pimentel e as dos alunos-
-autores, que têm seus trechos sinalizados em itálico. Utilizando uma metáfora
musical, o texto se aproxima de uma performance de jazz, não de uma peça exe-
cutada por orquestra. Percebemos similaridade entre a proposta e o que está des-
crito por Santos (2016, p. 4): “por analogia, na performance jazzística, os vários
textos musicais dos intérpretes envolvidos compõem um discurso formado por
pontos de vista distintos, mas complementares; algo como uma conversa sobre
um assunto qualquer”.
Em fevereiro de 2017, como exercício de finalização do componente Universi-
dade e Desenvolvimento Regional e Nacional, foi solicitado aos alunos da turma
do docente no Colégio Universitário (Cuni) de Porto Seguro que escrevessem
uma carta ao economista Celso Furtado, morto em 2004. Seria uma resposta a
seu texto “Os desafios da nova geração”, um dos últimos que publicou antes de
falecer e que concluía com a seguinte sentença: “A nós, cientistas sociais, caberá
a responsabilidade maior de velar para que não se repitam os erros do passado, ou
melhor, para que não voltem a ser adotadas falsas políticas de desenvolvimento
cujos benefícios se concentram nas mãos de poucos”. (FURTADO, 2004, p. 486)
A ideia era os alunos relatarem a Furtado o que havia acontecido no Bra-
sil desde sua morte até a data do exercício, refletindo sobre como os brasileiros
vinham enfrentando os desafios do desenvolvimento. Fazia poucos meses que o
país tinha vivido o trauma do impeachment, e medidas graves já estavam sendo
tomadas pelos golpistas, como a aprovação da Emenda Constitucional nº 95 – que
havia tramitado como Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 241, depois
nº 55 –, que institui um teto para os gastos públicos no país nos próximos 20 anos.
A aluna Emiliane Nascimento de Jesus produziu, então, a seguinte carta:
Interno Bruto] no Brasil que não conferem com o salário dos trabalhado-
res. Realmente, devo concordar com o sr., pois a recessão é evidente e, com
a falta de investimento voltado para a população, o real desenvolvimento
não existe.
Muita coisa mudou depois que o senhor partiu, e, como diz em seu texto, o
desenvolvimento não é acumulação, mas sim acesso. Nos mandatos de Lula
(PT [Partido dos Trabalhadores]), eu mesma me senti prestigiada. Na ver-
dade, não era assim que deveria, pois não deixava de ser um direito meu
como cidadã brasileira. Acontece que, primeiro, a minha mãe ganhava o
Bolsa Família, e eu fazia parte do Projovem [Programa Nacional de Inclu-
são de Jovens], um projeto voltado para jovens e adolescentes (aulas de
Artes, Teatro e muitas outras oficinas). Também vinha agregado ao Bolsa
Família um valor referente ao meu deslocamento até o Cras [Centro de Refe-
rência de Assistência Social] para ter as aulas do Projovem. Anos depois,
minha mãe é contemplada no projeto Minha Casa, Minha Vida – uma casa
nossa, financiada pela Caixa, mas a casa é nossa.
Meses depois, minha mãe ganhou um cartão Minha Casa Melhor. Mobilia-
mos toda a casa – recebemos um crédito do governo que nunca nas nossas
vidas a gente ia ter. Daí, me inscrevi no Pronatec (Programa Nacional de
Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), me capacitei profissionalmente e, a
partir daí, tive a minha oportunidade de primeiro emprego pelo Programa
Jovem Aprendiz. Hoje, graças a Deus, estou promovida. Atualmente, entrei
na universidade, pelas cotas para negros. Só não vou dizer para o senhor “eu
sou a Universal”, pois não entenderia, mas veja todas essas iniciativas do
Estado, a diferença que fazem.
Acontece, meu caro, que, depois que o mandato do Lula chegou ao fim, e
a Dilma (PT) tomou posse, a elite branca começou a protestar e, depois de
muito alvoroço, aconteceu o que mais temíamos: o impeachment. Temer, o
vice, assumiu e, depois disso, caos: minha mãe não tem mais o Bolsa Famí-
lia, o Projovem não existe mais e a PEC 241 foi aprovada, sustentando um
teto de gastos para o Estado – e nessa, o pobre, como eu e muitas garotas do
Brasil, volta à estaca zero.
Afinal, o desenvolvimento honesto é possível ou é apenas uma miragem?
Aconteceu que nossa geração está cometendo os mesmos erros, é um ciclo
vicioso. Eu penso como tu, mas não entendo o quanto é difícil para os deten-
tores do poder não tornarem isso possível, juro que não entendo...
2 O docente autor atuou de forma praticamente ininterrupta na FG desde sua chegada à instituição, em
2015. Os alunos passaram pela FG entre 2015 e 2017. “Essa etapa da formação geral será oferecida tanto
nos campi quanto na Rede Anísio Teixeira de Colégios Universitários, capilarizada nos municípios e
localidades, cobrindo todo o território de abrangência da Universidade e compreende o neo-quadri-
partir da própria visão dos alunos, trazida por atividades que, como essa carta,
são desenvolvidas em primeira pessoa, constituindo uma espécie de depoi-
mento a respeito das transformações operadas em sua visão sobre o mundo e o
sistema escolar.
Podemos dizer, em primeiro lugar, que a análise apresentada no presente
texto decorre da assunção de uma “atitude etnográfica” em sala de aula:
sobre as ações na educação que propunha: “Ao ouvir pela primeira vez a palavra
conscientização, percebi imediatamente a profundidade de seu significado, por-
que estou absolutamente convencido de que a educação, como prática da liber-
dade, é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade”.
A FG é definida no Plano Orientador da UFSB como um “[...] processo comum
de ensino-aprendizagem, oferecendo visão inter-transdisciplinar do mundo, da
sociedade e do sujeito humano, a partir do ambiente universitário” e objetivando
também o que se denomina “cidadania planetária (consciência ecológico-histó-
rica)”. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA, 2014, p. 50)
Levando em conta a máxima freiriana de que “ninguém educa ninguém;
ninguém educa a si mesmo; os homens se educam entre si, mediatizados pelo
mundo” (FREIRE, 1987, p. 68), podemos observar que, para além de qualquer
justificativa a partir do conteúdo oferecido – e não deixa de ser relevante uma
análise sobre os conteúdos em linguagens, matemática e computação que a FG
possa oferecer –, o contexto gerado pela FG num projeto como o da UFSB pode
propiciar um excepcional ambiente de aprendizagem para a formação cidadã.
É bem verdade que o termo “formação cidadã” tem sido apropriado pelas
mais diversas forças políticas no debate público brasileiro. Cremos, pois, que
seria possível aclarar um pouco mais o sentido proposto no contexto específico
da UFSB a partir do termo “cidadania ativa”, utilizado por autores como Benevi-
des (1994, p. 9): “Distingue-se, portanto, a cidadania passiva – aquela que é outor-
gada pelo Estado, com a idéia moral do favor e da tutela – da cidadania ativa,
aquela que institui o cidadão como portador de direitos e deveres, mas essen-
cialmente criador de direitos para abrir novos espaços de participação política”.
Outro autor que propõe algo afim é Dowbor (2006), em suas formulações
sobre a necessidade de conexão do sistema escolar com as questões de desenvol-
vimento local – aqui compreendido não somente num sentido furtadiano, mas
também do que é formulado por Paulo Freire, autor com o qual Dowbor dialoga
ao longo de sua obra:
Como veremos ao longo do texto, os alunos não avaliam que todos os docen-
tes tenham o mesmo grau de conexão com o projeto da UFSB, mas, pelo menos
SUPOSTA SUPERFICIALIDADE
Um dos temas que destacamos para aferir a impressão dos alunos é a acusação
de superficialidade que seria inerente ao modelo dos BIs e LIs. Emiliane, em sua
análise, afirma:
Já ouvi essa crítica várias vezes e também já fiz essa crítica. São muitos
conteúdos, muitas teorias, muitos artigos para a gente acessar e dominar
quando for prestar um concurso ou aplicar uma aula – não uma aula con-
teudista, mas, para dar qualquer aula, é preciso estudar. Mas é superficial
para quem? Se você não lê, não se aprofunda… Quem é que tem de estudar?
Você ou a universidade? Os conteúdos são apresentados, mas é você que tem
de estudar. Isso de memorizar já passou. Você tem é de saber onde vai pro-
curar aquela fonte, saber investigar. Será superficial se você quiser que seja.
Você não vai se aprofundar olhando alguém dando um mergulho no mar.
Quem tem que se aprofundar é você. Os conteúdos estão aí, disponíveis. ‘Ah,
eu não vou dar conta em um quadrimestre’. Tudo bem, não precisa, o que é
necessário é continuar se aprofundando.
A forma mais prática e simples para resolver esse descompasso seria ter-
mos um governo que privilegiasse essas novas formas de ver a educação.
Nesse sentido, não consigo ver muita esperança para nós nos próximos anos
com esse governo que aí está. É bem verdade que a reforma do ensino médio
promove a possibilidade de pessoas não formadas especificamente em cer-
tos cursos poder lecionar nas diversas áreas. Mas não é por que existe essa
reforma que isso vai facilitar a vida para nós, profissionais interdisciplina-
res. Porque eu não acho que os concursos e outras formas de seleção a serem
estabelecidas por esse novo governo vão nos ajudar. Os concursos provavel-
mente continuarão a ser pautados por essas metodologias tradicionais, tec-
nicistas, de se decorarem dados, estatísticas.
A própria abertura dada pela reforma do ensino médio pode dificultar nossa
vida, por sinal. Pessoas formadas em outras áreas, sem nenhuma experi-
ência pedagógica, vão concorrer conosco. Não entra na minha cabeça que
isso vai dar certo. Será um tapa-buraco que poderá acabar prejudicando a
todos. Nos resta, então, continuar na luta para que o governo faça direito o
que deve ser feito. E, no momento em que tivermos um governo que trabalhe
em prol de uma proposta popular, da escola como um espaço de intercâmbio
Então, além dessa mudança de agora, há outro ponto positivo, que os alu-
nos estão mais antenados. O conteúdo não é só da escola, da instituição.
O aluno tem seus acessos, o conteúdo hoje é mais democratizado – por isso,
ele é mais exigente. Não há mais como o ensino ser disciplinar. Porque o
aluno está conectado com o mundo, o mundo está na palma da mão dele,
por meio do celular. Portanto, o aluno já chega interdisciplinar, e a escola
tem que se adaptar a isso, o quanto antes, para que a educação seja real-
mente eficaz, transformadora.
Toda mudança tem fases ruins, requer uma adaptação, mas acredito que os
frutos serão colhidos a longo prazo; não será hoje ou amanhã, num passe de
mágica. Nós teremos de ter paciência para colher esses frutos. Vão ser alu-
nos que sairão mais capacitados, para poder [haver] um retorno de trans-
formação, de projetos, de envolvimento social, professores que também vão
se adaptar. E é necessário. Com qualquer profissão é assim, mas o professor
tem que ser especialmente maleável. Ele tem que saber que não vai ser sem-
pre daquela mesma forma que ele vai falar e vai ser entendido, ele tem de
saber se compor e se recompor para ser compreendido e que o aluno se sinta
confortável e as coisas realmente aconteçam. O professor tem que saber que
essa mudança é necessária. Os frutos serão colhidos a longo prazo, é um
investimento que estamos fazendo nessa nova geração. (Emiliane)
Os componentes da formação geral deram base para muito do que eu faço até
hoje. Sinto que dei um passo fundamental para aquilo que tenho de enten-
dimento hoje. Se hoje eu entendo algo sobre a diversidade, sobre a interdis-
ciplinaridade, tem muito a ver com esse momento. A formação geral me
ensinou muito disso, que eu não preciso ficar fechada em uma coisa só. Mas
eu percebo que, em relação a meus colegas, o que é oferecido ainda é muito
distante do que o ensino básico oferece. Então, você chega com uma carga de
ideias que é tomada como utopia. Para muita gente, a ideia de comunidade,
de um aprendizado contra-hegemônico, de que as pessoas fora da univer-
sidade produzem conhecimento, não é normal. Para muita gente, o lugar
de produção de conhecimento é a universidade e ponto. Então, a UFSB que-
bra com isso, mas tem de dialogar com gente que nunca teve acesso a esse
tipo de ideia. O desafio passa por um esforço pessoal, e é por isso que muita
gente desiste. Eu vi muita gente dizer: ‘Isso aqui é coisa de maluco, isso não
vai acontecer, não é assim que as coisas acontecem’. Isso, junto com a carga
de leituras, a didática, faz com que as pessoas se afastem. As pessoas não se
dispõem a nem mesmo fazer essas leituras, tomam aquilo como utopia. Mas,
da turma que estudou comigo, também há um bom número de pessoas que
seguiu no rumo que a universidade propõe, no reconhecimento dos outros
saberes, na continuidade das discussões. O que a universidade oferece é
maravilhoso – mas é preciso ter dedicação, estudar o que é apresentado.
Para quem chega já doutrinado por esse outro sistema de ensino, quer só
chegar, ouvir e depois fazer prova, o sistema não funciona, vai parecer coisa
de maluco mesmo. Tudo no modelo me parece efetivamente inovador, mas
parece que as pessoas não estão prontas para o que é proposto. Então, muita
gente prefere ficar de lado sem se envolver, tecendo críticas. (Carolina)
Uma coisa importante para que pudéssemos avançar seria aplicar o modelo
da universidade nos complexos integrados de educação. Porque, se conse-
guirmos começar com essas discussões já no ensino médio, essa pessoa que
já começou ali, quando chega à universidade, já está mais habituada. Isso
eu digo por experiência própria – eu entrevistei pessoas do Cieps [Centros
Integrados de Educação de Porto Seguro] para um trabalho do compo-
nente Território, Políticas Públicas e Participação Social. As pessoas de lá
já não eram mais as mesmas do período em que nós desenvolvemos ofici-
nas na escola, um ano antes – pelo projeto de extensão.6 O pensamento que
eles tinham sobre controle social, participação, já era totalmente diferente.
Eu vi essa mudança acontecer. Podem me dizer o que quiserem, mas, para
mim, tenho certeza que foi a entrada da UFSB que operou essa mudança, foi
o modelo pedagógico que a universidade levou para lá, fazendo com que os
alunos se sentissem mais à vontade para participar.
E aí eu vejo esses alunos que eram do Cieps indo estudar na UFSB. Vejo essas
pessoas em várias atividades hoje. Elas chamam a atenção pela participa-
ção nas discussões. Já está no cotidiano da aprendizagem deles. Não é mais
só o conhecimento pela nota, é o conhecimento para gerar discussão, que os
faz ler as coisas e entrelaçar, criar sentidos. Para que a UFSB chegue nisso e
faça ainda mais sentido para as pessoas, é preciso esse caminho com a edu-
cação básica.
Senão, você tem um encontro muito forte de dois modelos. Um é a educação
bancária, zero Freire. E outro é a educação dentro da universidade, que não
aplica Freire 100%, mas, só de a UFSB abrir a discussão, de você poder falar,
de o professor não falar que você está errado, não te oprimir, isso que é tão
comum na universidade tradicional, já é incrivelmente inovador.
Esse olhar para a educação básica é muito necessário. É o que é preciso fazer
para que a pessoa chegue na UFSB já acostumado com a necessidade de uma
5 A respeito dos CIEs, ver os textos da Parte II deste volume: “O Complexo Integrado de Educação de Porto
Seguro e o compromisso com a educação básica na UFSB” e “Transições paradigmáticas entre a univer-
sidade e a escola”.
6 Programa Arte, História e Língua Maxakali-Pataxó: Educação Pública Intercultural e Integral na Região
Sul da Bahia.
7 Em verdade, poderíamos recuar ainda mais no tempo, questionando-nos sobre o sentido do diploma
universitário na sociedade brasileira a partir da leitura de obras como Recordações do escrivão Isaías
Caminha, de Lima Barreto (1909): “Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances
múltiplos, vários, polifórmicos... Era um pallium, era alguma coisa como clâmide sagrada, tecida com
um fio tênue e quase imponderável, mas a cujo encontro os elementos, os maus olhares, os exorcismos
se quebravam. De posse dela, as gotas da chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo, não se anima-
riam a tocar-me nas roupas, no calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares escolheria os
mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis, com o comum dos homens que não é
doutor. Oh! Ser formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo-intanha
antes de ferir a martelada à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas
salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou? Como está, doutor? Era sobre-humano!...”.
Como se vê, a contradição entre o que é indicado por Freire e as práticas efe-
tivamente adotadas dentro da UFSB é um dos temas recorrentes entre os alunos,
quando estimulados a identificar o grau de coerência entre projeto e realidade
na universidade:
Com Paulo Freire, a gente vê muito essa ideia de que é preciso ouvir os alunos
– não só passar conteúdo, mas ensinar aprendendo. Mas é como eu falava,
os professores muitas vezes têm uma formação tradicional e, quando se
chega lá, não é nada disso. As aulas são seminário atrás de seminário, ativi-
dades que não chegam a lugar nenhum, que não provocam transformação
social nenhuma, como aquelas previstas no Plano Orientador. Quando se lê
Paulo Freire, ele fala que o ambiente de ensino, a universidade, tem de ser
um espaço que transforma a sociedade, mas, como eu falei, há muito poucas
atividades de extensão, há trabalhos que a gente se mata para fazer, artigos
cheios de teoria, de referências e que estão lá guardados, sem nenhum tipo
de continuidade durante o tempo do curso. Nós não entramos em diálogo,
não deixamos esse acervo disponível para as pessoas.
Eu tive professores que nem de longe seguiram a proposta trazida pelo curso
– e isso aconteceu desde o primeiro quadrimestre em que ingressei. Então, se
o professor foge ao plano de aulas, não aplica o que está sendo proposto, fica
complicado para a universidade, porque o aluno fica sem entender o pro-
jeto, sem entender o que está fazendo ali na formação geral, é como se fosse
um ano sem sentido que ele passa ali. (Carolina)
OS SABERES E A TERRA
É também no mesmo texto de Tragtenberg (2004) antes citado que podemos
encontrar a conexão, talvez definitiva, para reforçar a defesa de um “encontro de
saberes” que, de fato, tenha caráter efetivamente inovador, configurando uma
nova “autogestão pedagógica” da universidade popular, indo ao encontro dos
anseios das populações locais do sul da Bahia. O autor conclui afirmando que:
“O assistencialismo universitário não resolve o problema da maioria da popula-
ção brasileira: o problema da terra”. (TRAGTENBERG, 2004, p. 15-16)
É no encontro com os movimentos de luta pela terra no sul da Bahia que sur-
gem mais críticas consistentes à universidade – para além de qualquer defesa de
antigos ou novos modelos, e sim buscando cobrar da academia um compromisso
real com as comunidades. E foi durante atividade da Teia dos Povos – coalizão
de movimentos camponeses, indígenas e negros da região em torno da adoção
A Teia dos Povos, por sinal, se tornou um dos agentes mais provocativos no
debate a respeito de modelos para o ensino superior na região sul da Bahia. Lide-
ranças da coalizão têm questionado a proposta de instalar Cunis nas comunida-
des, reivindicando a criação de cursos feitos sob medida para as c omunidades
rurais da região e pedagogicamente orientados a partir de um debate com os
movimentos sociais. É nessa seara, pois, que cremos ser possível vislumbrar
avanço no debate – para além da infrutífera queda de braço com grupos que
buscam transformar a discussão em uma disputa política, é preciso estabelecer
parâmetros reais para a avaliação do êxito do novo modelo da UFSB.
Isso nos remete, finalmente, às mesmas reflexões de Paulo Freire (1979, p. 15)
com que iniciamos: “A conscientização não está baseada sobre a consciência,
de um lado, e o mundo, de outro; por outra parte, não pretende uma separação.
Ao contrário, está baseada na relação consciência – mundo”.
É por isso que o grande desafio da UFSB é, ao fim e ao cabo, um desafio de
construção democrática – muito além de uma visão tradicional e reducionista
sobre o que seja democracia. “Só existirá democracia no Brasil no dia em que se
montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a da escola
pública. Mas é ela aceita por todos? Parece que não”. (TEIXEIRA, 1997, p. 15)
Para, de fato, abrir-se a um encontro de saberes, a uma ecologia de saberes,
que significa também a radicalização democrática, a UFSB deveria ser capaz de
questionar seu próprio modelo inovador e conseguir tornar-se uma revolução
permanente, desestabilizando currículos, possibilidades de trajetória e divisões
políticas internas. Somente assim, cremos, seria possível efetivar-se como uni-
versidade verdadeiramente popular.
Cabe observar, portanto, que os próprios alunos passam a constituir impor-
tante grupo a ser ouvido para que se efetive tal projeção. Nesse sentido, foi a título
de ilustrar a profusão de ideias que se manifesta no corpo discente a respeito das
possíveis ações que poderiam contribuir para o aperfeiçoamento do modelo da
instituição que apresentamos os depoimentos dos colaboradores deste artigo.
Sim, há coisas que precisam ser melhoradas. Como a UFSB dá ao aluno muita
autonomia, o estudante tem uma predisposição a se perder. Eu vi quase um
8 A fala foi ouvida durante trabalho de campo do docente, que desenvolve atualmente pesquisa etnográ-
fica junto à Teia dos Povos. Cf. Pimentel (2017).
efeito dominó entre as pessoas próximas de mim. Mas muitos que se confundi-
ram depois se encontraram. Porque perceberam que estavam um pouco per-
didas naquela autonomia e buscaram uma orientação acadêmica. Mas eu
acho que isso também é um aprendizado – saber que é preciso pedir ajuda.
Quando entrei na UFSB, eu tinha a pretensão de fazer Psicologia. Isso foi
por terra. Hoje, eu gosto muito mais de outras coisas que eu conheci dentro
da UFSB. A universidade me ajudou a ter um método investigativo melhor,
a ler livros das mais diversas áreas. Eu acho que todas as federais deveriam
aderir a esse sistema. Acho que a evasão cairia bastante com um ensino mais
aberto, com várias opções. E também se formariam profissionais mais com-
pletos. Mas é isso, é preciso passear pelas áreas, ver o que mais te agrada,
para depois aprofundar-se naquilo. (Liz)
9 Angela Ferreira, ativista da Vila Valdete, bairro de Porto Seguro onde Carolina faz pesquisa em sua ini-
ciação científica.
incentiva que eles se inscrevam. Mas, ela dizia, então vamos fazer com que
mais e mais gente se inscreva, porque aí sim, quando tivermos 30 estudan-
tes, aí haverá a demanda, e nós conseguiremos cobrar a prefeitura para que
haja um ônibus. E é isso mesmo – porque, se não houver estudantes, eles
nunca criarão esse ônibus para lá.
Um dia desses, eu tinha uma impressora para doar para eles. Só que Angela
não tem como ir pegar lá em minha casa a impressora; ela trabalha o dia
todo. E eu pensei que realmente eu vou ter de levar a impressora até lá. Por-
que, afinal, que doação é essa minha, se eu não faço o possível para chegar
até ela, sabendo da dificuldade que ela tem? Essa ideia de que ‘já fiz a minha
parte, agora faça a sua’ não funciona. Porque às vezes as pessoas simples-
mente não têm nenhum meio para fazer a parte delas. (Carolina)
ignorar o que acontece na política como um todo, em nosso país. Pois boa
parte dos temas propostos em Universidade e Sociedade tem ligação com
o atual cenário do país. Mas percebo, também, que a política está direta-
mente relacionada a esses dois temas: universidade e sociedade. Pois, para
vivermos em sociedade, devemos seguir várias regras, normas e políticas e
que inclusive uma universidade é moldada por essas regras, normas e polí-
ticas. E hoje vejo que não tem como eu ser uma estudante e ser ao mesmo
tempo uma cidadã que ignora o que acontece na política.
REFERÊNCIAS
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS
DE ENSINO SUPERIOR (Brasil). Perfil socioeconômico e cultural dos estudantes
de graduação das instituições federais de ensino superior brasileiras. Uberlândia:
ANDIFES, 2016. Disponível em: http://www.andifes.org.br/wp-content/
uploads/2017/11/Pesquisa-de-Perfil-dos-Graduanso-das-IFES_2014.pdf. Acesso em:
20 fev. 2020.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1987.
TEIXEIRA, Anísio. Educação para a democracia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.
CAPÍTULO 19
rogério ferreira
INTRODUÇÃO
Em diferentes ambientes discursivos, acadêmicos ou não, o conhecimento mate-
mático tem sido reconhecido como tema importante para a formação humana.
No entanto, muitas vezes, os argumentos utilizados para posicionar esse campo
de saberes como elemento fundante para o exercício de cidadania baseiam-se
em verdades absolutas ou chavões que, por sua fragilidade, desvirtuam a essên-
cia de sua construção.
Desse modo, torna-se capital identificar armadilhas subsidiadas pela tra-
dição acadêmica que comumente poda possibilidades interpretativas acerca
da matemática e de sua história. Torna-se, portanto, desafiador idealizar uma
arquitetura curricular que tenha esse campo como uma das raízes para a Forma-
ção Geral (FG) de estudantes que ingressam na universidade.
O desafio que aqui se caracteriza foi assumido pela Universidade Fede-
ral do Sul da Bahia (UFSB) quando, já em seus primeiros passos, compreendeu
que todo(a) estudante, antes de qualquer movimento específico de profissiona-
lização, necessita formar-se criticamente, de modo inter e transdisciplinar, em
práticas socioculturais, configura uma estratégia curricular que visa gerar per-
tencimento do(a) estudante em relação à construção de conhecimento matemá-
tico, bem como gerar liberdade criativa acerca dessa construção. É nesse con-
texto que a próxima seção será edificada, buscando deixar claras as vertentes
que apoiaram a constituição da visão curricular promovida pela UFSB em seus
primeiros anos de funcionamento.
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matemática interepistêmica para uma formação libertadora 395
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396 Rogério Ferreira
As relações entre matemática, cultura e arte são muito mais íntimas do que
se apresentam nos livros e temáticas das aulas para a maioria dos estudan-
tes do ensino público brasileiro. Nossas raízes africanas, por exemplo, nos
trouxeram, além das contribuições na culinária, religião, ritmo e música,
outras variantes do conhecimento, dentre as quais as técnicas de desenho
que relacionam matemática e arte. Assim como a cultura dos sona, outras
também não foram divulgadas no ambiente escolar das escolas brasilei-
ras, o que restringiu e dificultou o acesso a estes conhecimentos. A cultura
artística dos sona não se limita a relacionar arte e matemática através das
técnicas de desenho; [isso] faz parte da cultura dos sona enquanto grupo e
inclui nuances de filosofia e história. Enquanto instrumento educacional,
constitui-se como uma prática educativa de grande valor cultural, capaz
de transformar o olhar do aluno sobre o aprendizado da matemática, já
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404 Rogério Ferreira
Por longos anos, durante a formação básica escolar de uma criança, ela
aprende não a desvendar os mistérios da sociedade, a desenvolver um pen-
samento crítico ou a se conduzir em direção ao conhecimento; ela aprende
o que o sistema de ensino e os professores querem que ela aprenda. E, geral-
mente, ela aprende que estudar é chato e complicado, aprende que matemá-
tica é a pior matéria e que não serve para nada, porque o sistema educacional
não ensina os estudantes a aprenderem, serem formadores e participantes do
conhecimento, mas ensinam apenas o que é necessário para fazer uma prova,
fazendo com que os alunos decorem os conteúdos e não despertem nenhuma
estima pelo ato de estudar. Estudando os desenhos dos povos africanos e
enxergando a beleza e a riqueza que esses belíssimos desenhos nos remetem,
percebemos o quanto o ensino brasileiro é preconceituoso por nos omitir o
conhecimento dessas práticas e culturas que deveriam fazer parte de nós, já
que o povo brasileiro é formado também pelos povos africanos. Na tentativa
Não se pode esquecer que a matemática tem funcionado como espinha dor-
sal para a construção discursiva voltada a um mundo, tecnologicamente depen-
dente, de característica capitalista, acumulativa, consumista, carregada de
significados que têm continuadamente desvalorizado raízes socioculturais e
histórias de vida. Para romper radicalmente com esse sentido dado à matemá-
tica, o qual é muitas vezes fortalecido por ações educativas formais, é preciso
atuação conjunta de todos que despertam para importância de fazer da mate-
mática ferramenta favorável ao bem viver, à transformação do exercício político,
ao encontro intercultural de natureza dialógica – portanto, de mútua aprendi-
zagem. Assumir-se como educador é tarefa de todos que desejam romper com
modelos e sistemas que se fazem vigentes sob a égide de mecanismos de poder.
A quarta vertente, isto é, a matemática como conhecimento teórico-abs-
trato, ganha força e sentido quando abarcada pelas demais diretrizes explora-
das neste texto. Isso ficou patente nos depoimentos e nas relações pedagógicas
estabelecidas. Mas, se essa quarta vertente é entendida como peça única a ser
utilizada para ensinar matemática, então certamente, já na infância, esse ensino
permanecerá produzindo desprazer, exclusão e dependência. Modelos tradi-
cionais de ensino de matemática, apoiados em processos lineares de repetição
e memorização, têm feito do caráter teórico-abstrato da matemática seu refú-
gio epistemológico. A exigência de adaptação a qualquer custo a esses modelos,
pedagogicamente ignorando aspectos essenciais que contextualizam a constru-
ção de saberes matemáticos, tem constituído prática secular de violência.
Diante desse cenário, as transformações experimentadas pelos(as) estudan-
tes por meio da arquitetura curricular construída e vivenciada na UFSB, no con-
texto de uma visão interepistêmica de matemática, não só geram otimismo, como
também colocam em xeque aqueles que permanecem discursando ser impos-
sível democratizar a matemática como bem cultural de indivíduo e sociedade.
Entretanto, esse otimismo não se faz ingênuo, pois riscos são iminentes quando
se busca modificar uma estrutura há tempos estabelecida e que tem servido à
manutenção de nichos de poder. Desconstruir verdades inevitavelmente poten-
cializa conflitos, visto que a zona de conforto por muitos usufruída passa a ser
criticamente analisada. Soma-se a essa problemática o iminente risco de a tradi-
ção pedagógica não analítica burramente querer manter-se tradição. A supera-
ção desse cenário se dá pela práxis educativa que, por motivos múltiplos, ainda
não é fomentada a contento no contexto do ensino de matemática.
Essa realidade conflituosa está fortemente presente dentro e fora da UFSB.
Portanto, mesmo nessa universidade que se abre à inovação, o cuidado com
a construção curricular aqui detalhada deve ser permanente. É fato que parte
dos(as) docentes da UFSB, principalmente com formação em áreas ditas exatas,
tende a ir contra muitos dos argumentos apresentados neste texto. Essa postura
é esperada e suas motivações são facilmente detectadas no bojo de um estado
pedagógico-epistemológico antiquado que hoje se faz presente na maioria dos
processos formativos realizados nos níveis de graduação e pós-graduação. Vários
REFERÊNCIAS
D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade.
Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
FERREIRA, Rogério. Areia ancestral. Carta Fundamental, São Paulo, n. 68, p. 24-27,
maio 2015.
CAPÍTULO 20
RACIOCÍNIO COMPUTACIONAL NA
FORMAÇÃO GERAL PAVIMENTANDO O
CAMINHO DA INTERDISCIPLINARIDADE
1 Adotamos o termo “raciocínio computacional” como tradução livre do termo “computacional thinking”,
do inglês. Alguns autores de língua portuguesa utilizem o termo “pensamento computacional”. No en-
tanto, preferimos “raciocínio computacional”, pois pensamento pode ser consciente ou inconsciente,
enquanto que raciocínio refere-se a uma operação lógica mental.
2 Registra-se aqui que o interesse de ter-se um componente curricular dessa natureza na FG, à época de-
nominado Introdução à Linguagem Matemática e Computacional, já havia sido manifestado por Nao-
mar de Almeida-Filho, em comunicação pessoal a Raimundo Macêdo, ainda em abril de 2012, nos pri-
meiros passos de formulação do projeto da UFSB.
3 Em português: O ensino de ciência da computação na França: não se pode esperar mais, é urgente.
4 Esses três docentes prepararam roteiros e materiais de forma colaborativa, que foram então sendo adap-
tados pelas equipes docentes locais às demandas específicas das turmas.
5 Na ocasião, houve intenso diálogo da equipe docente liderada por David Cavallo e Bilzã Araújo, em par-
ticular no campus Socígenes Costa, para avançar na proposta pedagógica do componente, sendo discu-
tidos aspectos metodológicos da aprendizagem baseada em projetos.
6 Sob a coordenação geral de Raimundo Macêdo, coordenador intercampi das equipes docentes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As novas formas, mídias e significados construídos nas últimas três décadas a
partir do advento da era digital e do surgimento da internet, em particular, nos
trouxeram a um cenário de acesso, gestão e produção de informações sem pre-
cedentes, revolucionando a natureza dos problemas que enfrentamos e reque-
rendo articulação e integração de saberes e práticas de campos diversos. Como
alerta o filósofo Michel Serres, em sua obra intitulada Polegarzinha (2013), pre-
cisamos estar atentos tanto às habilidades que estão deixando de ser necessárias
quanto às novas habilidades que estão sendo desenvolvidas pelos nossos jovens
em decorrência da revolução que nos proporciona o fácil acesso à informação.
Ademais, não devemos pensar nas novas tecnologias apenas como consumido-
res. A possibilidade de desenvolvimento da competência para a criação, produ-
ção e expressão através das novas tecnologias deve ser um direito de todas as
comunidades, possibilitando que desenvolvam papéis de maior prestígio social
REFERÊNCIAS
ANGELI, Charoula et al. A K-6 computational thinking curriculum framework:
Implications for teacher knowledge. Journal of Educational Technology & Society,
[Palmerston North, NZ.], v. 19, n. 3, p. 47-57, 2016.
GANDER, Walter et al. Informatics education: Europe cannot afford to miss the
boat: report of the joint Informatics Europe and ACM Europe Working Group on
Informatics Education. 2013. Disponível em: https://www.informatics-europe.org/
images/documents/informatics-education-acm-ie.pdf. Acesso em: 19 set. 2019.
HYEONJIN, Kim et al. Enhancing teachers’ ICT capacity for the 21st century
learning environment: three cases of teacher education in Korea. Australasian
Journal of Educational Technology, Austrália, v. 28, n. 6, p. 995-982, 2012.
PAPERT, Seymour. Mindstorms: children, computers, and powerful ideas. New York:
Basic Books, Inc., 1980.
PERLIS, Alan J. The computer in the university. In: GREENBERGER, Martin (ed.).
Computers and the World of the Future. Cambridge, Mass.: M.I.T. Press, 1962.
p. 180-219.
SMITH, Megan. Computer Science for All. 30 jan. 2016. Disponível em: https://www.
whitehouse.gov/blog/2016/01/30/computer-science-all. Acesso em: 19 set. 2019.
THE ROYAL SOCIETY. Shut down or restart? The way forward for computing in UK
schools. London: The Royal Society, 2012. Disponível em: https://royalsociety.org/~/
media/education/computing-in-schools/2012-01-12-computing-in-schools.pdf.
Acesso em: 1 maio 2019.
CAPÍTULO 21
augustin de tugny
valéria giannella
Vivemos porque podemos ver, ouvir, sentir, saborear o mundo que nos cir-
cunda. E somente graças ao sensível chegamos a pensar: sem as imagens que
nossos sentidos são capazes de captar, nossos conceitos, tal qual já se escre-
veu, não passariam de regras vazias, operações conduzidas sobre o nada.
A influência da sensação e do sensível sobre nossa vida é enorme, embora
permaneça praticamente inexplorada. Enfeitiçada pelas faculdades superio-
res, a filosofia raramente mediu o peso da sensibilidade sobre a existência
humana. Esforçando-se por provar e fundar a racionalidade do homem, pro-
curando separá-lo a qualquer custo do resto dos animais, ela frequentemente
esqueceu que todo homem viveu no meio da experiência sensível e que pode
sobreviver apenas graças às sensações. (COCCIA, 2010, p. 9)
Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) é uma aposta para uma outra forma
de introdução aos saberes acadêmicos e à formação universitária. O regime de
ciclos adotado pela UFSB se inicia por um ano, três quadrimestres de FG que
abordam “[...] conteúdos considerados necessários para a vida cidadã e pro-
fissional na sociedade contemporânea, em diferentes formatos de CCs modu-
lados. Nessa primeira etapa dos cursos de primeiro ciclo da UFSB, a formação
ético-político-humanística é predominante”. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO
SUL DA BAHIA, 2014, p. 43) A finalidade aqui é a aquisição de competências
e habilidades que permitam a elaboração de uma compreensão pertinente e
crítica da complexa realidade local, regional, nacional e transnacional. O con-
junto de CCs que compõem esse primeiro ano visa promover uma base comum
de estudos gerais, mas de modo não generalista, e, sobretudo, visa induzir sis-
tematicamente a formação crítica cidadã necessária para toda e qualquer inser-
ção qualificada no mundo contemporâneo. Por ser introdutória ao currículo dos
estudantes na UFSB, essa FG se estabelece de maneira propedêutica ao conjunto
de formações disponibilizadas no primeiro ciclo de Bacharelados Interdiscipli-
nares (BIs) e Licenciaturas Interdisciplinares (LIs) e no segundo ciclo de forma-
ções profissionalizantes, bem como nos cursos de pós-graduação ofertados.
A proposta das Experiências do Sensível nasceu da vontade/necessidade de
incorporar nessa base comum de estudos da FG um CC que permitisse aos estu-
dantes iniciar o caminho da vida universitária vivenciando a integração entre
os seus saberes de origem e os próprios do percurso acadêmico. Seria um CC
que providenciasse a recomposição do campo da sensibilidade do estudante
como sujeito aprendiz durante o processo de construção do conhecimento, pro-
pondo como alternativa à sociedade anestésica o reconhecimento estético e o
diálogo com as comunidades que compartilham formas sensíveis de ser e estar
no mundo. Um pressuposto comumente admitido coloca a ordem do sensível
como sendo do domínio das práticas artísticas e toda estesia como condição do
processamento do estético. (OLIVEIRA, 2010) No entanto, a proposta das Experi-
ências do Sensível, aberta a todas e todos estudantes entrando na universidade,
recusa essa segregação e, ao integrar a dimensão sensível como propedêutica
enraizante de acesso a todos os saberes, o CC trabalha em refundar o acesso aos
conhecimentos, sejam eles científicos, tradicionais, do domínio das artes ou das
humanidades, dentro das experiências dos sujeitos como aprendizagem viven-
ciada e consciência identitária.
A aposta foi, então, de inserir a dimensão do sensível como elemento cru-
cial para uma plena formação cidadã emancipatória. Emancipatória pelo reco-
nhecimento das várias dimensões do saber carregadas por cada um dos sujeitos
estudantes e reveladas nas diversas potencialidades das experiências do sensí-
vel; pela possibilidade de considerar esses saberes como constitutivos de uma
formação acadêmica renovada; pela possibilidade de conectar as experiências
vivenciadas por cada um(a) e compartilhadas no seio da comunidade estudan-
til com os conhecimentos acadêmicos; pela relativização do pressuposto caráter
1 Os dispositivos estão assim definidos no Material de Apoio publicado pelo Projeto Inventar com a Dife-
rença: “Dispositivos são exercícios, jogos, desafios com o cinema, um conjunto de regras para que o es-
tudante possa lidar com os aspectos básicos do cinema e, ao mesmo tempo, se colocar, inventar com ele,
descobrir sua escola, seu quarteirão, contar suas histórias”. (MIGLIORIN, 2014, p. 10) A transposição do
modelo do dispositivo para as Experiências do Sensível retoma as noções de exercícios, jogos, desafios
que se desdobram em reconhecimentos e conhecimentos.
Por sua vez, a estudante R.S., concluindo suas anotações em seu diário de
bordo de 2017, escreve:
A[o] chegarmos ao final desse componente, pude perceber que, ao nos colo-
carmos no meio em que vivemos, sentimos a presença daquilo que não com-
preendíamos antes, trazendo à tona sentimentos antes não experimentados.
Essa reflexão nos diz, à sua maneira, como os estudantes reconhecem nas
Experiências do Sensível uma dimensão maiêutica que não se estabelece na
metafísica, mas num conhecimento corporificado, imanente e compartilhado a
ser revelado através do sensível e dos sentimentos.
Reatar com a dimensão sensível da vida e do saber (COCCIA, 2010), para os
estudantes ingressando na universidade, é se abrir para uma outra forma de
entender o ensino “superior”. Encontramos aqui a proposta de Jorge Larrosa
Bondía (2002, p. 20) em explorar “outra possibilidade, digamos que mais exis-
tencial (sem ser existencialista) e mais estética (sem ser esteticista), a saber, pen-
sar a educação a partir do par experiência/sentido”.
2 Um estudo pormenorizado dos surpreendentes diários de bordo produzidos pelos estudantes nos mais
distintos formatos resta a ser realizado. Muitos optaram por criar blogs; outros realizaram verdadeiros
objetos artísticos, relatando de forma criativa suas experiências; outros produziram textos corridos. É
possível perceber que em todos há uma tentativa de imprimir alguma marca pessoal e sensível no relato
reflexivo das experiências. Não sendo esse o objeto do presente texto, apresentamos aqui apenas trechos
de alguns testemunhos representativos das apreciações finais dos estudantes. Optamos por ocultar os
nomes dos autores dos diários de bordo para preservar suas identidades.
CONCLUSÕES INCONCLUDENTES
Considerando que o CC Experiências do Sensível acontece durante o primeiro
quadrimestre da FG na UFSB, ele representa um sinal muito forte e insolitamente
3 A “ciência” é o tesouro a se conquistar no território onde eles estão adentrando as novas universidades,
sancionadas pelos governos Lula e Dilma, que acentuaram, em suas realidades, o caso de estudantes
ingressando no ensino “superior”, muitas vezes os primeiros depois de gerações educadas de outras for-
mas. De todo modo, que sejam os primeiros na família que acessam a universidade ou que originem de
classe média, a desconstrução aqui apontada é igualmente crucial.
concreto de uma nova forma de se pensar e fazer a educação superior. Ele abre
as portas aos estudantes recém-chegados, declarando a legitimidade dos saberes
que incorporam e sugerindo a necessidade de
[...] parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais deva-
gar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais
devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo,
suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção
e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece,
aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar
muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (BONDÍA, 2002, p. 24)
REFERÊNCIAS
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista
Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 19, p. 20-28, 2002. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-24782002000100003&script=sci_
abstract&tlng=pt. Acesso em: 7 fev. 2020.
CARVALHO, José Jorge de; ÁGUAS, Carla. Encontro de saberes: um desafio teórico,
político e epistemológico. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL EPISTEMOLOGIAS
DO SUL: APRENDIZAGENS GLOBAIS SUL-SUL, SUL-NORTE E NORTE-SUL, 2015,
Coimbra. Actas [...]. Coimbra: Universidade Coimbra, Centro de Estudos Sociais.
Coimbra, 2015. p. 1017-1027. v. 1 - Democratizar a Democracia.
PARTE IV
Instituição
universitária
descolonizada
CAPÍTULO 22
CONHECIMENTOS TRADICIONAIS E
TERRITÓRIO NA FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA
Queria falar sobre esses acadêmicos que vêm tirando a própria vida. Não
sei se tenho o domínio disso – digo da academia, porque da vida essa eu
mando bem. Há alguns anos, quando entrei em uma universidade para
dizer sobre nossos saberes tradicionais, a minha primeira observação me
incomodou muito: parecia que eu estava em uma sala de doentes, onde
todos olhavam para minha mãe numa ânsia de se livrar daquele mal.
O mais estranho foi que todos eles pareciam conosco, mas suas identida-
des tinham parado na casa dos avós. E eu fiquei sem entender, porque na
rua eles tinham orgulho de estar ali, mas eles pareciam doentes. Então,
eu comecei a observar o que era aquele lugar, e fiquei pensando nas cotas:
falamos que elas estão prontas, mas não estão. As cotas estão prontas para
serem burladas, trapaceadas pelos falsos pretos. E esse espaço tem cons-
ciência disso, porque, quando um jovem negro denuncia, ele é o réu, o
prisioneiro de seus próprios direitos, que não são respeitados por essas
estruturas organizadas e dominadas pelo sistema que não nos inclui. Não
sei se esse jovem era negro, mas me preocupo com nossos (tirando os fal-
sos) negros ali dentro, quando entram nesse lugar, que, ao invés de for-
mar pessoas, forma máquinas, para desafiar a própria natureza, e destruir
toda tradição desses nossos. Antes, eu pensava ser um orgulho estar nesse
lugar, hoje eu tenho medo, por saber que, quando nossos filhos entram
nessa academia, só entram os corpos, toda sua identidade fica de fora, e
que nós – povos tradicionais – temos que estar nas portas deste lugar para
assegurar, quando nossos filhos saírem, que eles possam reencontrar o
seu eu. Porque essa formação acadêmica é uma imposição desse sistema
para que, ao invés de diploma, saiam de lá com suas cartas de alforria, e é
só. Senhora academia dona dos saberes, mantenha nossos filhos vivos, é o
mínimo que você pode fazer para nos comprovar da sua importância. Des-
culpa a escrita, mas precisava falar.
No dia 17 de maio de 2018, nos deparamos com esse texto publicado por
Makota Kidoiale, Cássia Cristina, nas redes sociais. Makota Kidoiale organizou
em 2017 o livro Manzo, ventos fortes de um kilombo, sobre a história, a vida e os
saberes do Quilombo Manzo Ngunzo Kaiango, comunidade tradicional de matriz
africana de nação bantu localizada no bairro Santa Efigênia, região metropoli-
tana de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Cássia participou como assistente de
Mametu Muiandê na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2016 e
2017 na disciplina Catar Folhas: Saberes e Fazeres do Povo de Axé; e como mes-
tra, em 2017, na disciplina Pensamento e Ação Comunicacional em Comunida-
des Tradicionais.
Embora se trate de um brevíssimo manifesto, circunstancial, este texto con-
tém profundas reflexões da mestra sobre quem somos, o que é a universidade
para uma grande maioria de pessoas do Brasil e como ela age sobre os seres.
Makota Kidoiale chega a desafiar de forma contundente a universidade a com-
provar sua importância mantendo seus filhos vivos. Leio que sua frase final, esse
clamor por manter vivos seus filhos negros, encerra dois sentidos: o da vida car-
nal e o da vitalidade espiritual, da relação dos jovens com os saberes dos anci-
ãos e as formas de vida que prezam conservar. Makota denuncia a universidade
formadora de máquinas e espectros que desafiam a “natureza” e destroem tra-
dições, bem como os processos de fraude contra as cotas conquistadas pelos
negros para acessarem isto que ela denominou “espaço”, um espaço historica-
mente reservado aos brancos da elite brasileira.
Seu breve post é um testemunho histórico de temas importantes da atuali-
dade das universidades brasileiras:
1. a ameaça racista ao sistema de cotas conquistado há duas décadas
pelos movimentos negros e indígenas para possibilitar o acesso de
sua juventude às universidades públicas brasileiras, muitas vezes
contando com a cumplicidade de gestores das instituições;
1 O antropólogo José Jorge de Carvalho, coordenador do INCT Inclusão e autor do projeto Encontro de Sa-
beres, vem desenvolvendo sua teoria em diversos artigos seus e em colaboração com pesquisadores par-
ceiros: “Uma proposta de estudos culturais na América Latina: inclusão étnica racial, transdisciplinari-
dade e Encontro de Saberes” (2017); “Encuentro de Saberes: proyecto para descolonizar el conocimiento
universitário eurocéntrico” (2014), com parceria de Juliana Flórez-Flórez; “El encuentro de Saberes ha-
cia una universidad pluriepistêmica”, com Juliana Flórez-Flórez e Máncel Martínez (2017); e “Encontro
de saberes: um desafio teórico, político e epistemológico” (2015), com Carla Águas. Destacamos também
a dissertação de Tautê Frederico Gallardo Marciel de Oliveira, Projeto Encontro de Saberes nas universi-
dades: uma leitura sociológica do diálogo entre distintas epistemologias, defendida na Universidade Fe-
deral do Paraná (UFPR) em 2017, e a tese de Raoni Machado Moraes Jardim, Educação intercultural e o
projeto Encontro de Saberes: do giro decolonial ao efetivo giro epistêmic, defendida em 2018 na UnB, bem
como a monografia de Cassiano Vedana, intitulada Brasil Afro-Índio: saberes de tradição oral na forma-
ção do professor de música, apresentada na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) em 2017.
2 Consta no texto de apresentação desse relatório: “A Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) realizou, ao
longo de 2015, uma das mobilizações mais expressivas já organizadas por meio de um chamamento públi-
co promovido por uma instituição de ensino superior na região Sul do Estado da Bahia: o I Fórum Social da
UFSB, com o tema ‘Universidade e Sociedade em Diálogo’. A UFSB criou como um dos seus órgãos superiores
o Conselho Estratégico Social, no que se diferencia de instituições similares nacionais. Nos Conselhos Univer-
sitários da maioria das universidades existe uma representação da comunidade externa, muitas vezes com
participação bastante tímida, uma vez que muitas questões discutidas neste fórum lhe são alheias. A criação
de um Conselho Estratégico Social com alto grau de representatividade externa viabilizará um fórum perma-
nente de discussões, com foco em questões amplas de relações entre a universidade e a sociedade em geral.
Trata-se de órgão de caráter consultivo, contribuindo com análises e tendências de longo prazo referentes a
processos macrossociais e políticos pertinentes ao desenvolvimento regional. O Conselho Estratégico Social,
em articulação com a universidade, se encarrega da organização do Fórum Estratégico Social, que tem como
objetivo discutir e propor políticas e projetos para a Região Sul da Bahia. Esse Fórum deve ocorrer a cada dois
anos. Portanto, cumprindo as determinações contidas no seu Estatuto a UFSB organizou o seu I Fórum Social
nos meses de julho, agosto e setembro de 2015, iniciando pelas etapas preparatórias regionais, realizadas nos
municípios sede de seus campi, a saber, Itabuna (24 e 25 de julho), Teixeira de Freitas (31 de julho e 1º de agosto)
e Porto Seguro (7 e 8 de agosto), e, para conclusão dos trabalhos, o Encontro Final do I Fórum Social da UFSB
em Porto Seguro, de 14 a 18 de setembro de 2015”. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA, 2015)
Assim, cabe-nos aqui propor o início de uma reflexão sobre como a UFSB,
nos seus primeiros anos de implantação, interagiu com a proposta do Encontro
de Saberes.
Muito embora a inclusão de mestras e mestres no corpo docente da UFSB
não estivesse claramente pautada no seu Plano Orientador, cujo texto é anco-
rado na premissa conceitual de “ecologia dos saberes” e “epistemologia dos
conhecimentos ausentes” de Boaventura de Souza Santos, seu texto propõe as
ações: “criação de espaços que facilitem a penetração da ecologia de saberes”, a
prática de uma “extensão ao contrário”, a “valorização” e a “criação de comuni-
dades epistêmicas mais amplas” e a “promoção de diálogos” com “saberes que
circulam na sociedade e igualmente a compõem”.
3 Lemos em Menezes (2012, p. 13): “O conceito de biodiversity hotspots, os ‘pontos quentes’ da biodiver-
sidade no planeta, foi formulado pelo Grupo de Estudos da Biodiversidade da TNC (The Nature Con-
servancy), em 1985, com objetivo de direcionar investimentos em conservação da biodiversidade para
lugares onde se encontrassem as melhores relações de custo e benefício. Segundo Luis Gómes, ‘[...] mais
de um terço da biodiversidade planetária se encontra concentrado em apenas 1,4% da superfície do
mundo [...]; vinte e cinco áreas, as mais ricas, [foram consideradas] como ‘hotspots’ (GÓMES, 2000,
[s.p.])”. No entanto, uma publicação intitulada Hotposts Revisitados apresenta um estudo atualizado no
qual destaca as 34 regiões biologicamente mais ricas e ameaçadas do mundo.
4 O autor também coloca: “Como se não bastasse para desmistificar a floresta como ambiente inerte, va-
zio, deserto verde que se desenvolve sobre um solo pobre, as pesquisas de Anna Roosevelt, Michael He-
ckenberger, Eduardo Neves, dentre tantos outros, a partir de ruínas, geóglifos e análise de estratificação
da floresta, apontam para a existência de uma paisagem antropogênica extensa e complexa com valas,
estradas, pontes, terraplanagens, canais para navegação, tanques de criação de tartarugas, pomares e
cultivos extensos, em um padrão disperse e multicêntrico. Essa lógica de ocupação ‘galática’, com pa-
drões típicos de planejamento urbano em plena selva, os pesquisadores não hesitaram em chamar de
urbanismo, se valendo inclusive de analogias com a baixa densidade e os cinturões verdes das cidades-
-jardim inglesas desenhadas por Ebenezer Howard no final do século XIX.
A floresta que emerge das diversas versões multinaturalistas, desde a crítica xamânica de Davi Kope-
nawa e Bruce Albert ao urbanismo xinguano, não é passiva, neutral, muda e muito menos natural. Não
é obviamente um meio ambiente (‘palavra de branco para o que já destruíram’) como um continente
florístico e faunístico a ser conservado sem os indígenas. E não é um duplo primitivo do mundo urba-
no – um ‘ainda-não-cidade’ –, mas um pluriverso de seres, entidades e relações capazes de engendrar
urbanidades de outras naturezas. A cosmopolítica amazônica é um artefato trans-específico e extensivo
projetado em reciprocidade pelos indígenas que há milênios a habitam, juntamente com os seus coin-
quilinos não humanos”. (CANÇADO, 2017, p. 124)
Esse decreto está em consonância com a Convenção nº 169 sobre povos indí-
genas e tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), adotada em
1989. Os conceitos básicos que norteiam a interpretação das disposições da con-
venção são: “[...] a consulta e a participação dos povos interessados e o direito
desses povos de definir suas próprias prioridades de desenvolvimento na medida
em que afetem suas vidas, crenças, instituições, valores espirituais e a própria
terra que ocupam ou utilizam”. (RAMOS; ABRAMO, 2011, p. 8, grifo nosso)
As questões postas pelo Plano Orientador da UFSB apontam, nessa esteira,
a centralidade da discussão e das ações a serem efetivadas e o aprofundamento
da consciência sobre os embates assimétricos que determinam “verdades cien-
tíficas” nos quais diferentes campos do saber são instituídos e valorizados em
detrimento de outros:
5 Para uma discussão sobre a ABI, ver os textos “Saberes e tramas de uma formação docente decolonial”,
na Parte II, e “Os Colégios Universitários e enraizamento territorial da UFSB”, na Parte III deste livro.
6 Vários colegas receberam as mestras e mestres nos componentes curriculares e participaram da cons-
trução dessa cartografia, das ementas e dos resumos biográficos das mestras e dos mestres. Ressalto o
trabalho e o empenho das professoras Cynthia Barra, Francismary Silva, Denise Coutinho, Maria Apa-
recida de Oliveira Lopes, Lenir Abreu, Eliane Povoas e dos professores Francisco Nunes, Daniel Piotto e
Augustin de Tugny na organização, pesquisa e sistematização do trabalho. Alguns parceiros da socieda-
de civil também colaboraram com a realização da cartografia inicial: Toni Ormundo (Cabrália), Associa-
ção Artimanha (Teixeira de Freitas), Terreiro Matamba Tombeci (Ilhéus) e Comunidade de Marambaia.
Claudemiro, Álvaro, Elíscio, João Valença e Barreto. Na década de 50, foi for-
mado Contra-Mestre por Mestre João Grande. Mestre Virgílio foi fundador
e primeiro presidente da União de Capoeiristas do Sul da Bahia – UCASUB,
tendo posteriormente renunciado ao cargo. Atualmente, é presidente da
Associação de Capoeira Angola Mucumbo (ACAM) e dá aulas de Capoeira
Angola na Tenda do Teatro Popular e no Terreiro Matamba Tombeci Neto,
em Ilhéus. Em 2007, lançou um CD com 20 composições de sua autoria, inti-
tulado ‘Velho Angoleiro’, projeto este com fomento do edital Capoeira Viva.
Em maio de 2009 e dezembro de 2010 participou de eventos na Universi-
dade Estadual de Santa Cruz (UESC) nos quais foi homenageado por sua
contribuição à Capoeira Angola. Em 2011 foi contemplado com o prêmio
Viva Meu Mestre, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-
nal (IPHAN). Mestre Virgílio recebe grande reconhecimento por outros gru-
pos de capoeira, sendo convidado todos os anos para participar de eventos
de capoeira em outros municípios da Bahia e em outros Estados.
relação com os modos de produção e com a terra, sua estética (os toques,
os cantos, as danças, as roupas, as miçangas, os adereços, etc.). Desmisti-
ficação de alguns fortes preconceitos relacionados ao candomblé e, conse-
guintemente, aos afro-brasileiros. Os processos formativos do candomblé
angola no Terreiro Matamba Tombenci Neto, fundado em 1885, localizado
em Ilhéus. A importância da relação entre o candomblé e as festas sagra-
das e profanas da comunidade ao seu redor: a interação comunitária com
o terreiro. O potencial formativo da cultura do candomblé na contempo-
raneidade. As tradições orais e as estratégias de valorização da cultura dos
povos afro-brasileiros e africanos.
passando por uma diversa linhagem de sábios formadores. Deu seus pri-
meiros passos aos oito anos de idade, no terreiro de mãe Denise em Euná-
polis, Bahia. Aos 18 anos conheceu o Ilê Axé Oxalá de mãe Maria de Oxalá
e foi feito pela mãe Neti de Xangô com a participação do axogum da casa
Cristiano de Xango (Abonin), com a orixá Logum Ede, também em Euná-
polis. Foi quando recebeu o direito de dar seus primeiros passos no axé.
sua própria fábrica. Também em Medeiros Neto conheceu sua esposa, Dar-
lene Araújo Paes, baiana de Itanhém, e tiveram uma fornada de filhos: Rudi-
miller (22), Jéssica (20) e Saulo (17). Mas o barro acabou e eles tiveram que se
mudar para Teixeira de Freitas, uma cidade baiana em rápido crescimento.
Num bairro de periferia quase desabitado eles montaram a Cerâmica João
de Barro, mas nos primeiros anos passaram muitas dificuldades.
A Mata Atlântica, com sua enorme riqueza e biodiversidade não foi encon-
trada ‘virgem’ pelos europeus quando aqui chegaram: é o resultado de milê-
nios de intervenção humana. As plantas úteis (castanhas, cacau, madeiras
de lei, plantas medicinais) proliferaram de forma diferencial a partir das
técnicas do manejo dos povos originários que aqui viviam. Ainda hoje, os
povos indígenas da região sul da Bahia perpetuam suas formas de conhe-
cer e conviver com as matas e suas tecnologias de manejo ambiental. Por
isto, a relação com os medicamentos, a fabricação de objetos, casas, canoas,
as formas de ir e vir, as relações sociais, as linguagens de assovios, os can-
tos, as danças, a culinária, estão todas relacionadas à permanência de uma
vida vigorosa da Mata. O módulo ministrado por um cacique e guia da mata,
mestre Braga, permitirá aproximar os estudantes deste universo, traçando
desde o histórico dos povos Pataxó da região de Barra Velha e Monte Pascoal
e sua luta pela retomada do Parque, até o delicado e fino conhecimento dos
seus caminhos, com suas folhas, árvores, nascentes, cursos de água, pássa-
ros, insetos, mamíferos, cantos, danças e mitos da mata.
7 Ver o texto “Caminhos pluriepistêmicos para educação e prática em saúde”, que trata precisamente de compo-
nentes curriculares e práticas da formação em saúde em diálogo com as mestras e os mestres do território.
8 “Entre outros, já são Doutores Honoris Causa os seguintes mestres: Bule Bule, pela Universidade Fe-
deral da Bahia; Dona Dalva, mestra do samba de roda, pela Universidade Federal do Recôncavo; Dona
Raimunda, líder das quebradeiras de coco de babaçu, pela Universidade Federal de Tocantins; Raoni,
líder indígena, pela Universidade Federal do Mato Grosso; Almir Naryamoga Suruí, pela Universidade
Federal de Rondônia; Mestre Bimba, capoeirista, pela Universidade Federal da Bahia; Teodoro Freire,
mestre de Bumba-meu-boi, pela Universidade de Brasília; Mestre Darcy do Jongo, pela Universidade Fe-
deral do Rio de janeiro; Mestre Salustiano, do Maracatu e do Cavalo Marinho, pela Universidade Federal
de Pernambuco; Mãe Stella de Oxóssi, mãe de santo do Ilê Axé Opô Afonjá, pela Universidade Federal da
Bahia e pela Universidade Estadual da Bahia; Mestre Camisa, capoeirista, pela Universidade Federal de
Uberlândia; Mestre João Pequeno, capoeirista, pela Universidade Federal da Bahia.
Um dos exemplos mais recentes foi a concessão do título (pouco comum, inclusive) de Professor Hono-
REFERÊNCIAS
ASSOCIAÇÃO RELIGIOSA E CULTURAL MANZO NGUNZO KAIANGO. Manzo,
ventos fortes de um Kilombo. Belo Horizonte, Faculdade de Letras da UFMG, 2017.
ris Causa, em 18 de fevereiro de 2016, ao intelectual e líder politico indígena brasileiro Ailton Krenak,
pela Universidade Federal de Juiz de Fora, onde ele ensinou, como mestre docente, em disciplinas do
Encontro de Saberes, em 2014 e 2016. É possível que a singularidade do título por ele recebido, que une
reconhecimento politico com afirmação de sua condição de docente, já seja uma antecipação dos seu
futuro (e merecido) Notório Saber”. (CARVALHO, 2016)
CARVALHO, José Jorge de. Notório Saber para os Mestres Tradicionais: Uma
revolução no mundo acadêmico. Instituto Central de Ciências - Notícias, Brasília, DF,
[201-]. Disponível em: http://www.inctinclusao.com.br/noticia/118/notorio-saber-
para-os-mestres-tradicionais-uma-revolucao-no-mundo-academico. Acesso em:
11 maio 2018.
CARVALHO, José Jorge de. Uma proposta de Estudos Culturais na América Latina:
Inclusão Étnica Racial, Transdisciplinaridade e Encontro de Saberes. In: ALMEIDA,
Júlia; PATROCÍNIO, Paulo Roberto Tonani do (org.). Estudos culturais: legado e
apropriações. Campinas: Pontes, 2017. p. 157-190.
CARVALHO, José Jorge de. Sobre o notório saber dos mestres tradicionais nas
instituições de ensino superior e de pesquisa. Brasília, DF: INCTI, 2016. (Cadernos de
Inclusão, 8).
CARVALHO, José Jorge de; ÁGUAS, Carla. Encontro de saberes: um desafio teórico,
político e epistemológico. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL EPISTEMOLOGIAS
DO SUL: APRENDIZAGENS GLOBAIS SUL-SUL, SUL-NORTE E NORTE-SUL, 2015,
Coimbra. Actas [...]. Coimbra: Universidade Coimbra, Centro de Estudos Sociais,
2015. p. 1017-1027. v. 1 - Democratizar a Democracia.
OLIVEIRA, Tautê Frederico Gallardo Marciel de. Projeto Encontro de Saberes nas
universidades: uma leitura sociológica do diálogo entre distintas epistemologias.
2017. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Departamento de Ciências Sociais,
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017.
MENEZES, Paulo Dimas Rocha de. Território de cidadania: ensaios de gestão pública
compartilhada na Mata Atlântica. 2012. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto
de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012.
RAMOS, Christian; ABRAMO, Laís. A Convenção 169 sobre povos indígenas e tribais.
In: ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção nº 169 sobre
povos indígenas e tribais e Resolução referente à ação da OIT. Brasília, DF: OIT, 2011.
1 v. p. 5-11.
CAPÍTULO 23
dirceu benincá
frederico monteiro neves
INTRODUÇÃO
A região do extremo sul da Bahia é marcada por processos históricos de explora-
ção e colonização iniciados nesse território há mais de 500 anos. Assim, foram
oprimidos sistematicamente corpos, culturas e mentes dos povos tradicionais,
bem como a própria natureza. Chegamos aos tempos atuais com graves
problemas relacionados à concentração da terra, ao desmatamento, à morte dos
rios, à escassez de água, a extensas monoculturas – sobretudo de eucalipto –, às
vastas fazendas de gado e um elevado contingente populacional em situação de
vulnerabilidade e exclusão social.
De outra parte, o território compreende uma expressiva sociobiodiversi-
dade, com a presença de vários grupos étnicos e movimentos sociais, entre os
quais o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), comunidades
quilombolas, indígenas, ribeirinhas e outras. O extremo sul baiano possui algu-
mas áreas remanescentes de Mata Atlântica com grande variedade de espécies
1 Na Parte I, esse tema é tratado nos textos “Universidade pública e integração social” e “Movimentos sociais
e conhecimento emancipador”.
um processo orientado por uma via de mão única. Essa compreensão se traduz
em práticas colonialistas e autoritárias que não contribuem para a construção da
autonomia e da emancipação humana.
Em contraposição às racionalidades e ações colonialistas, ganham expressi-
vidade as reflexões descoloniais e as múltiplas práticas alternativas. Nesse sen-
tido, Walter Mignolo (2008) ressalta a importância e a necessidade de instituir
processos de descolonização, o que requer opção descolonial, desobediência
epistêmica e fazer descolonial. Para ele:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos demonstrar aqui limitações da extensão universitária tradicio-
nal em dar conta da complexidade dos processos que atravessam a nossa
2 A FG faz parte da etapa de formação inicial dos estudantes da UFSB. De acordo com o PO da instituição,
“a etapa de formação geral, prévia aos percursos formativos, tem a finalidade de promover visão inter-
disciplinar, consciência planetária, abertura à crítica política, acolhimento à diversidade e respeito aos
saberes da comunidade”. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA, 2014, p. 39) Ver todos os capí-
tulos da Parte III deste livro, “Formação Geral, formação cidadã”, que trata especificamente da FG.
REFERÊNCIAS
ALTIERI, Miguel. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável.
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Quito, 30 mar. 2009. Disponível em: http://www.alainet.org/es/active/29839. Acesso:
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FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1983.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 65. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2018.
CAPÍTULO 24
1 Este texto é baseado em uma conferência proferida por José Jorge de Carvalho no Encontro da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) realizado em 2016 na Universidade Federal do Sul da Bahia
(UFSB), em uma programação intitulada “SBPC Artes”. Devido ao grande interesse em trazer a discussão
sobre as artes no mundo da ciência e seu vínculo com os conhecimentos tradicionais, resumimos as pala-
vras de Pablo Lafuente de apresentação a conferência: “Esta é a primeira apresentação da ‘primeira’ SBPC
Artes nos 68 anos de existência dessa sociedade. Isso é algo interessante. Entendo que, em um contexto
onde prima a discussão da ciência e da tecnologia, introduzir um elemento na perspectiva das artes de po-
vos tradicionais é um ato que não é fácil, nem muito óbvio, porém necessário. Tentar superar essa separa-
ção entre as disciplinas científicas, modos de conhecer científico, e os modos de conhecimento de outros
povos, que possuem outras práticas, é um exercício que de fato questiona muitas das estruturas e modos
de fazer postos, esses que o projeto da modernidade, tanto na Europa quanto no Brasil, tentou implantar.
É possível constatar que esse trabalho de encontro entre esses modos de conhecimento precisa ser conti-
nuado. Percebemos que, mesmo dentro da SBPC, que possui presença indígena e artística, essa presença
fica periférica. Mesmo assim, acho que esse trabalho de introdução desde a periferia, pode, pouco a pouco
ou rapidamente, contaminar e desfazer esse edifício muito pesado. Esse trabalho de refazer, decompor
e fazer de novo, José Jorge de Carvalho tem feito durante décadas. Ele pesquisa em três instâncias dife-
rentes. Primeiro, tem seu trabalho como antropólogo, estudando campos da música e da espiritualidade
em relação às artes. Depois, se preocupa com quem está ali presente para produzir esse conhecimento,
tendo feito um trabalho ativista em relação às cotas, uma intervenção para trazer à universidade pessoas
que não tinham a possibilidade de entrar, quebrando barreiras raciais e de classe que impossibilitavam
o trabalho dessas pessoas neste contexto. Em terceiro, discute, para além das pessoas, os modos de fazer
dentro da universidade com o projeto Encontro de Saberes, que tenta trazer mestres tradicionais para
dentro das universidades, trazendo modos outros de produzir conhecimento e de disseminá-lo, trocá-lo.
Esses modos muitas vezes, questionam como a universidade pratica a organização e a disseminação dos
conhecimentos. É um trabalho ao mesmo tempo gentil e perigoso para a instituição, pois ela pode não se
reconhecer nele. Com ele, ela se desfaz e refaz, mas em uma direção completamente distinta e enriquece-
dora. Acho estes três eixos importantíssimos para a SBPC, para a UFSB que estamos construindo e para as
universidades brasileiras em geral”. (N. do O).
INTRODUÇÃO
Inicio este texto recordando que o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-
tífico e Tecnológico (CNPq) se constituiu integralmente com as ciências ditas
exatas, entendidas como detentoras de conhecimentos que não precisam cons-
truir vínculos com os campos expressivo, estético e simbólico. Podemos verifi-
car a composição inicial do quadro científico do CNPq na foto da sua fundação,
emoldurada em tamanho grande, que durante muito tempo esteve exposta na
entrada do seu antigo edifício, localizado na quadra 507 da Avenida W3 Norte,
em Brasília. Nessa foto, estão presentes somente cientistas das ciências exatas
– físicos, matemáticos, químicos, engenheiros – e das ciências da saúde. A sua
fundação foi um grande esforço que, após uma geração, provocou um salto nas
ciências exatas no Brasil. Naquele momento fundador, não havia representantes
das ciências humanas, sociais, nem das artes.2
2 Da esquerda para a direita, os integrantes da foto são: 1. Sylvio Torres (conselheiro), veterinário;
2. Edmundo Pena Barbosa da Silva (conselheiro), representante do Ministério das Relações Exterio-
res; 3. Heitor Grillo (conselheiro), agrônomo; 4. Álvaro Ozorio de Almeida (conselheiro), médico bió-
logo; 5. Olympio Oliveira Ribeiro da Fonseca Filho (conselheiro), médico; 6. Lélio Itapuambyra Gama
(conselheiro), astrônomo e matemático; 7. Luiz de Barros Freire (conselheiro), físico; 8. César Lattes
(conselheiro), físico; 9. Orlando da Fonseca (conselheiro), engenheiro civil; 10. Armando Dubois Ferrei-
ra (conselheiro), engenheiro militar; 11. Álvaro Alberto da Motta e Silva (presidente do CNPq), químico;
12. Arízio Vianna (conselheiro), advogado representante do Departamento Administrativo do Serviço
Público (Dasp); 13. Arthur Moses (conselheiro), médico biólogo; 14. Joaquim da Costa (conselheiro), físi-
co; 15. Francisco de Sá Lessa (conselheiro), engenheiro; 16. Álvaro Deffini (conselheiro), químico; 17. José
Baptista Pereira (conselheiro), engenheiro; 18. Mário Abrantes da Silva Pinto (conselheiro), engenheiro
civil; 19. Aércio de Albuquerque Antunes (secretário do Conselho); 20. Diamantina Ferreira da Cunha
(assistente do presidente do CNPq). Disponível em: http://centrodememoria.cnpq.br/integrantes.html.
Essas informações foram colhidas na página do Centro de Memória do CNPq, na qual lemos: “A sala Ál-
varo Alberto, no Edifício Sede do CNPq em Brasília, onde hoje se realizam as reuniões do Conselho De-
liberativo (CD) é dominada por uma ampla fotografia, hoje histórica, que mostra a primeira reunião do
CD, instalado em 17 de abril de 1951, realizada no gabinete do diretor geral do DASP, no Rio de Janeiro,
local em que no dia anterior teriam sido empossados os membros do CD, por representação institucio-
nal”. (CNPQ, [200-]) Alertamos para o fato de que nem todos os membros do CD aparecem na foto. A le-
genda numerada identifica os fotografados.
3 Agradeço aos colegas Augustin de Tugny, Pablo Lafuente e Rosângela de Tugny pelo convite a inaugurar
a SBPC Artes, que se realizou em Porto Seguro, em 2016, e me deu o ensejo para redigir estas reflexões.
Agradeço também a Letícia Vianna pela ajuda inestimável na preparação deste texto.
4 O programa recente do Ciência sem Fronteiras não mudou esse quadro epistêmico, pois as ciências so-
ciais, humanidades e as artes ficaram de fora.
SBPC também seria um espaço para abrigar esses pesquisadores, pois, se existe
pesquisa em artes, existe um campo de ciência nas artes. Isso nos leva a outra
reflexão: a bolsa de pesquisa em artes não é voltada prioritariamente para a cria-
ção, mas para a análise e a interpretação das criações artísticas.
Em princípio, nós que estudamos as artes entraríamos no CNPq no lugar de
cientistas na episteme dominante, o que é diferente de uma bolsa de criação nas
artes. Outras instituições outorgam bolsas de criação, mas as bolsas de produti-
vidade em pesquisa nas artes são destinadas ao estudo das artes mais do que o
desenvolvimento de uma perspectiva artística nas pesquisas científicas. Apesar
de todo esse quadro, a discussão que nos mobiliza neste momento deve passar
pelo ensino das artes, pela pesquisa artística na universidade, e deve avançar
mais profundamente para o que são as artes como um campo de saber separado,
ou não, do campo da ciência.
vida na corrida infinita por um mundo cada vez mais dominado exclusivamente
pela técnica.
Nesse texto, que não cessa de reverberar desde sua publicação, Heidegger vai
sofisticar e dar corpo à teoria aristotélica das causas em termos lúcidos e poéti-
cos. Ele toma como exemplo a taça que se encontra em um templo para proce-
der à adoração aos deuses no mundo antigo e elabora uma reflexão de que teria
existido um momento em que o mundo estava integrado, com o ser humano, a
natureza e os deuses, todos participando do cosmos. Por razões que conhecemos
bem, ele não vê essa integração no lugar em que vive, a Alemanha em 1953, e a
remete há 2.300 anos atrás, na Grécia Antiga. Heidegger argumentava que a taça
que está no templo possui primeiro uma causa material, a prata, mas ela não é um
brinco ou anel de prata, ela é uma prata taça; em seguida essa matéria, hyle, passa
ao eidos, a forma e o modelo, que fazem dela uma taça. Em terceiro lugar, está a
causa final: para que serve essa taça? Para ser preenchida de água ou vinho e com
ela se realizar a libação. O que dá sentido ao objeto é o fato de ele estar em um
templo: caso contrário, não teria uma causa final; logo, não teria sentido nenhum.
O que ele critica na técnica contemporânea é o rebaixamento da noção de
causa eficiente, que no mundo antigo seria o forjador da taça; e que este, no
mundo moderno, desconectou-se com o sentido do objeto que forja e da sua
conexão com a matéria, com a sua forma e a sua finalidade. E fazer a taça, na rea-
lidade, não é o único sentido, ou o mais importante, pois existe antes a nobreza
do material, depois a nobreza da forma e ainda uma razão muito nobre e supe-
rior, que é, através dela, conectar-se com os deuses. Ele vai resumir Aristóteles
e mostrar que as quatro causas são interdependentes, inseparáveis enquanto
aspectos de uma mesma presença. Daí não fazer sentido isolar a causa eficiente
das demais.6
Na leitura heideggeriana da técnica moderna, temos apenas eficiência alcan-
çada através de um dispositivo ou recurso para alcançar algo cuja finalidade foi
agora transformada em mera instrumentalidade. Esta é a fonte do perigo que
ronda nosso modo de vida: transformar a natureza em meros recursos e meios
para nossos planos – incluindo aos próprios seres humanos como objetos para
a realização dos nossos planos. Ele explora as inúmeras dimensões semânticas
de um significante poderoso, Gestell, traduzido às vezes por armação ou disposi-
tivo, que indica não somente o apagamento de expressão de todo o cosmos, mas
a objetificação e a instrumentalização de todas as coisas e fenômenos do mundo,
orgânicos e inorgânicos. O pressuposto do tom angustiante de Heidegger é que o
mundo europeu em que ele vivia – e que ainda continua assim – não pode mais
6 Heidegger (1997b, p. 45-47, grifo do autor) oferece a definição escolástica das quatro causas: “1. a causa
materialis, o material, a matéria a partir da qual, por exemplo, uma taça de prata é feita; 2. a causa for-
malis, a forma, a figura, na qual se instala o material; 3. a causa finalis, o fim, por exemplo, o sacrifício
para o qual requerida é determinada segundo matéria e forma; 4. a causa efficiens, o forjado da prata que
efetua o efeito, a taça real acabada”.
voltar a uma arte grega não instrumentalizada. Apesar de afirmar uma conexão
entre a tecnologia e a arte, ele não apresenta um caminho para a superação do
impasse da técnica que restauraria o espaço de produção de verdade da arte. Eis
suas palavras de fechamento do ensaio:
7 Para uma crítica demolidora desse mito ocidental colonialista de uma civilização grega superior a todas
as demais e livre de influências externas, ver Bernal (1987).
8 A exposição da oposição entre a res cogitans e a res extensa é encontrada nas Meditações sobre filosofia
primeira (2004), de Descartes, já na I e na II.
9 Desenvolvi uma análise do modelo humboldtiano em outros escritos. Ver: Carvalho (2018, 2019b) e
Carvalho e Flórez-Flórez (2014a, 2014b).
meu pensar é objetivo, e com isso quer dizer que meu pensamento não se
separa dos objetos, que os elementos dos objetos, suas imagens contem-
pladas, penetram nele e por ele são impregnados da maneira mais íntima;
que meu ver é um pensar, e meu pensar é um ver.11 (GOETHE, 1997, p. 101)
Como diz Henri Bortoft, Goethe quer garantir a primazia do modo senso-
rial-intuitivo de apreensão dos fenômenos antes que eles sejam capturados pelo
modo verbal-intelectual, que imediatamente abstrai e generaliza, e o cálculo
10 Para a teoria do Encontro de Saberes, ver Carvalho (2017, 2018) e Carvalho e Flórez-Flórez (2014a, 2014b).
11 A tradução brasileira utiliza o termo “contemplar” no lugar de “ver”, utilizado nas traduções espanhola
e inglesa; o termo usado por Goethe é “Anschauen”, que alguns autores traduzem inclusive por “intuir”
e até por “perceber”. Optei por “ver” porque ele defende uma atitude ativa de estudo ao “ver” o objeto
para com ele dialogar e entender a dinâmica da sua forma.
passa a predominar por sobre uma compreensão mais profunda e mais com-
pleta. E enfatiza o “ver” porque o ponto talvez mais alto e fecundo da sua pro-
posta científica foi o seu estudo das cores. Justamente pela sua ênfase no ver
como base da investigação, ele discordou do método de Newton de começar o
experimento pela utilização de um conjunto de prismas para investigar a decom-
posição da luz e identificar e separar o espectro das cores. Por outro lado, sua
abordagem consistia em ver a luz aparecendo do sol diretamente: somente a par-
tir daí iria observar a formação das cores nas bordas entre a luz e o escuro.
Há 200 anos, a teoria das cores de Goethe gera essa discussão: estava ele certo
ou não em sua crítica à teoria de Newton? Por muito tempo, acreditou-se que
sua crítica não se sustentava. Contudo, para grandes físicos atuais, a leitura goe-
thiana está à altura da newtoniana, pois, na medida em que ela inverte a aborda-
gem do criador da física moderna, consegue alcançar o ciclo das cores a partir de
uma percepção direta. As cores para Goethe já têm vida, e o cientista não precisa
matá-las enquanto impacto sensível direto no corpo para depois deduzir mate-
maticamente a sua existência– sendo esse último procedimento a quintessência
do projeto newtoniano.
Como o resume Arthur Zajonc:
12 O vídeo com a entrevista na íntegra pode ser encontrada no artigo “‘Zarte Empirie’: Goethean Science as a
Way of Knowing”, de Wahl (2017). A entrevista foi traduzida e transcrita pelo autor deste capítulo. Ver em:
https://medium.com/age-of-awareness/zarte-empirie-goethean-science-as-a-way-of-knowing-e1ab7a-
d63f46.
13 Aqui me inspiro no estudo de Everardo Lara Gonzalez e Natalia Sgreccia (2010) acerca do ábaco náhuatl
tradicional, que ele chama de matemática qualitativa. A formulação inicial desse termo foi, ao que tudo
indica, de Lévi-Strauss (1954), apesar de sua motivação ter sido ainda basicamente cartesiana.
14 Isis Brook (1998) sistematizou as quatro habilidades preconizadas pela metodologia goethiana: 1. percep-
ção sensorial exata; 2. imaginação sensorial exata; 3. ver é olhar com atenção; 4. tornar-se um com o objeto.
mesmo tempo essas duas coisas. Nesse texto, ele estuda as plantas e sua gênese,
chegando a postular uma planta primordial, a Urpflanze, propondo que todas as
plantas seriam variantes de uma única. E ele tinha também a teoria de que tudo
na planta é flor, defendendo a tese de que todas as demais partes são suas varian-
tes, daí a ideia de metamorfose.
Saiu recentemente uma belíssima edição de A metamorfose das plantas
com um texto do grande botânico norte-americano Gordon Miller, que viajou
o mundo inteiro procurando espécimes de exemplares de todas as plantas que
Goethe (2009) observou e descreveu no livro. Apesar desse esforço hercúleo
de pesquisa, faltou a ele localizar duas plantas. Nesse trabalho, o pesquisador
fotografou minuciosamente as plantas que Goethe havia desenhado – pois ele
as desenhava: a forma era importante, a matéria teve importância e sua finali-
dade também, já que seria sua composição no universo. Esse livro único na his-
tória das ciências naturais contém algumas maravilhas – e uma em particular
me impactou.
Ao observar a maneira do crescimento das plantas, em geral, se imagina
uma gênese da forma mais simples até a forma acabada e mais complexa, e
esse processo de crescimento se desenvolve até a planta adquirir o formato
final projetado. Surpreendentemente, Goethe (2009, p. 109) encontrou uma
planta, a Delphiniumastolat, que em algum estágio de seu crescimento inver-
teu esse processo, iniciando seu crescimento com cinco partes subdivididas e
terminando com três menores e indivisas. Visto com o olhar apenas quanti-
tativo, seria como se um leque de pétalas encolhesse depois de inteiramente
aberto. O fenômeno de crescimento dessa planta é surpreendente, pois não é
econômico do ponto de vista da causalidade física ou da entropia. O que ocorre
é que a forma imprime seu projeto sobre a transformação física da matéria,
rearranjando-se quando se apresenta completa para o mundo em uma aparên-
cia menor, e não maior, no final da transformação. A evolução da forma teve
como papel crescer até diminuir o necessário para realizar a ideia primordial.
A complexidade do desenho da planta, nesse caso, se revela quando ela alcança
a forma simplificada. Esse tipo de pensamento por muito tempo foi sufocado
por uma epistemologia calcada em um evolucionismo linear. E a própria ideia
ordinária de desenvolvimento torna-se aqui contra intuitiva quando o avanço
formal é o encolhimento, a redução. Dito em uma linguagem qualitativa, o
máximo nem sempre é o maior.
Nas obras de Bortoft (1996, 1998, 2012), Seamone Zajonc (1998), entre outros,
encontramos desdobramentos contemporâneos dos estudos de Goethe em inú-
meras áreas, tais como a forma e o padrão nos mamíferos cascos, chifres, man-
chas e listas); a zoologia, meteorologia, as formas e fluxos das águas; a geologia;
e a anatomia, além da teoria das cores e da ciência das plantas, já citadas. Assim
como as “etnociências” procuram sintetizar os conhecimentos indígenas nas
áreas da botânica (a ciência do concreto de Lévi-Strauss), da astronomia (etno-
astronomia), da música (etnomusicologia), entre outras, sempre em uma tônica
15 Um lado mais espiritualizado da epistemologia de Goethe foi a antroposofia proposta por Rudolf Steiner
(1994, 1998, 2004), válida para a saúde e para a educação.
Em todas as áreas, Goethe praticou uma arte e uma ciência que partem do prin-
cípio de que o cosmos está vivo. Como ele disse em uma frase famosa: “como poeta
e artista eu sou um politeísta, e como cientista, por outro lado, eu sou um pante-
ísta, um deles tão firmemente como o outro”. (MASON 1996, p. 362, tradução nossa)
16 Arthur Zajonc chama os fenômenos puros também de “arquetípicos” e argumenta que, para Goethe, a mate-
mática seria apropriada para a compreensão dos “fenômenos científicos”, tais como os estudos do movimento
de Galileu e a lei da gravidade de Newton; e, obviamente, a expansão da própria linguagem matemática, como
as geometrias não euclidianas de que falaremos mais a seguir. O termo empregado por Goethe é “Urphäno-
men”, traduzido por uns como “fenômeno puro” e por outros como “primigênio” ou “arquetípico”.
Por esse motivo, a epistemologia de Goethe se assemelha à dos indígenas, das comu-
nidades tradicionais afro-brasileiras e dos demais povos tradicionais. Obviamente,
sua abordagem surgiu no mundo europeu, de um pensador da cultura europeia,
nem indígena e nem afro-brasileiro, nem asiático. Contudo, foi um europeu que
não concordou com o pensamento dominante de sua época, que tinha assumido a
tarefa colonialista de impor para o mundo inteiro a sua abordagem, até então singu-
lar, de matematização e objetificação generalizadas do cosmos e da vida.
Daí apresentamos as bases da ciência goethiana não para promovê-la sim-
plesmente como mais uma área de produção acadêmica no Brasil, mas porque
ela possibilita o diálogo interespistêmico com as artes dos povos tradicionais
que também se constroem e se reproduzem como expressões de uma consci-
ência holística e integrada. Mais ainda, a epistemologia goethiana antecipa e é
perfeitamente compatível com a abordagem transdisciplinar pela sua atenção
na multidimensionalidade dos fenômenos – e, simultaneamente, na atenção à
vida interior do observador, ou à sua espiritualidade.17 Ela é também reescrita
pelos pesquisadores goethianos contemporâneos como uma “ciência holís-
tica”, termo que Goethe não usou; e muitos estudiosos o colocam como precur-
sor de várias teorias contemporâneas, como a da complexidade, dos sistemas,
do caos e a da emergência.
O profundo sentimento ecológico de Goethe coloca-o como um contemporâ-
neo nosso; isto é, como um sábio na contracorrente da ciência do século XIX, com
seu sentimento de dominação da natureza e seu apoio cognitivo ao capitalismo
ecocida e genocida que hoje sufoca a todos nós em todo o planeta. Contra essa ciên-
cia de base baconiana-cartesiana que trata a natureza como um objeto a ser medido
e dominado – ou, como alertou Heidegger, como um mero recurso para sua utiliza-
ção através da técnica, Goethe (1996, p. 72, tradução nossa) reagiu com um aforismo
dramático: “A natureza não revelará nada sob tortura: sua resposta franca a uma
pergunta honesta é: ‘Sim! Sim! – Não! Não!’ Mais do que isso é pura maldade”.
Mesmo sendo um europeu, Goethe pode ser colocado como uma refe-
rência para os acadêmicos, cientistas e artistas dos continentes submetidos
a essa dominação epistêmica europeia que ainda se mantém após mais de
200 anos. Significativamente, por exemplo, o reconhecido acadêmico indiano
J. P. S. Uberoi i ntitulou seu livro como The Other Mind of Europe: Goethe as
Scientist (1984). Escrito já dentro do espírito da teoria pós-colonial, que foi
17 Dois capítulos deste volume tratam mais detalhadamente do que vem a ser o Encontro de Saberes: “Introdu-
ção: transdisciplinaridade, descolonização e Encontro de Saberes”, do mesmo autor, e “Conhecimentos tra-
dicionais e território na formação universitária”, de Rosângela de Tugny. O termo se refere inicialmente a um
projeto idealizado e realizado pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) de Inclusão no Ensino
Superior e na Pesquisa, que consiste basicamente em levar mestras e mestres de comunidades tradicionais a
lecionarem disciplinas regulares e curriculares nos cursos de graduação e pós-graduação nas universidades.
Com a expansão e intensificação do Encontro de Saberes, vemos a expressão ser tomada cada vez mais como
uma teoria, que é sempre profundamente vinculada a um compromisso, uma prática e uma política educa-
cional (N. do O.). Ver: Carvalho (2017, 2018, 2019b) e Carvalho e Flórez-Flórez (2014a, 2014b).
18 A Figura 2, do kuño, representa a beleza das formas coloridas. A Figura 3 representa o tronco do Kuarup,
o ser humano ancestral e a Figura 4, com menos desenhos, permite ver com nitidez a geometria hiper-
bólica no dorso do cesto.
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o encontro de saberes nas artes e as epistemologias do cosmos vivo 495
uma linha horizontal e outra vertical, com a largura aproximada do raio da semies-
fera final da peça. O emborcamento para baixo de dois lados contíguos do qua-
drado, replicado nos dois lados opostos, transforma aquela superfície plana em
uma superfície semiesferoide. Em seguida, as pontas dos lados levantados são tor-
cidas, entrecruzadas e amarradas em feixes, fazendo surgir uma superfície típica
da geometria imaginária lobatchevskyana – no caso, uma geometria hiperbólica.
Uma vez gerado no kuño o espaço curvo da geometria hiperbólica, ele é, prá-
tica e artificialmente, fechado nas quatro bordas através de um nó que une os
três ou quatro feixes inclinados; e com essa amarração, ele se transforma em
uma peça artesanal útil, um implemento de pesca. Como instrumento da vida
cotidiana, ele regressa ao universo dos objetos reais, porém carregando o dese-
nho da geometria imaginária na sua forma física tal como sucede com o tipiti,
que carrega embutida na sua forma material a imagem real incompleta, porém
completa enquanto imaginária, da garrafa de Klein.
Após a execução da cesta, ela é bordada com linhas coloridas, também em uma
trama que segue as linhas paralelas curvas e cujo desenho se adapta, em expres-
são e visibilidade, à superfície esferoide do kuño, tanto do lado côncavo como do
convexo da figura. Ou seja, por sobre essa superfície curva, a jovem mehináku
ou kamayurá tece desenhos gráficos simétricos, em geral com uma faixa central
nítida, e a forma estética resultante exibe o caráter binário do trançado, restau-
rando no plano estético o efeito da geometria euclidiana, que havia sido transfor-
mada antes em bordado. Há aqui um tour de force artístico, dada a dificuldade
de tecer em uma semiesfera uma figura de visibilidade típica para uma superfí-
cie plana. Há ainda outra grande sutileza na arte visual do kuño, pois o desenho
colorido cobre a maior parte das linhas paralelas encobrindo e dificultando – ou
mesmo disfarçando, para o olhar apressado e calculante – a imaginação do espaço
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O ENCONTRO DE SABERES NAS ARTES E AS EPISTEMOLOGIAS DO COSMOS VIVO 497
curvo hiperbólico, que exige, para a sua apreensão, outra faculdade que Goethe
exigia do observador de fato minucioso: “a imaginação sensorial exata”.21
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498 José Jorge de Carvalho
23 Analisei a complexidade geométrica e a sofisticação estética da darruana em um triálogo com as filosofias oci-
dental e oriental, especialmente com os pensamentos de Dogen Zenji e Kitaro Nishida. (CARVALHO, 2019a)
as celebrações”. O que ele quis dizer é que a MdW é tida como uma das “melho-
res” instituições de ensino da música clássica do mundo, porém essa tradição
musical é expressa apenas em concertos, apresentações e espetáculos, e nunca
em celebrações rituais, comunitárias ou sagradas. No caso brasileiro, são muito
poucas as expressões das culturas populares e tradicionais que não mantêm rela-
ção com celebrações rituais, ligadas a práticas de espiritualidade, sejam de ori-
gem cristã, afro-brasileira, indígena ou sincrética. Contudo, pensando na confi-
guração do CNPq de hoje, não seriam os representantes das artes sagradas que se
sentariam na mesa para avaliar e construir políticas de pesquisa, mas os repre-
sentantes das artes expositivas, da performance como espetáculo.
Com o Encontro de Saberes, estamos mostrando que as artes indígenas e
afro-brasileiras são expressões de civilizações indígenas e afro-brasileiras vistas
na perspectiva de suas singularidades estéticas, simbólicas e expressivas. Seria
essa linha de pensamento que organizaria um curso de Artes transdisciplinar,
realmente integrado com as expressões dos nossos povos tradicionais. Assim,
para construirmos um currículo de artes que inclua as civilizações indígenas e
afro-brasileiras, traremos para as aulas as celebrações, as artes performáticas, as
fórmulas e suportes materiais, as tinturas, os pigmentos, os utensílios de apoio,
os instrumentos musicais, a tecnologia de construção e todos os demais saberes
que são associados às artes.
Imagino que chegaríamos, então, a uma espécie de grande ateliê, onde have-
ria lugar para todos os suportes materiais e formas de expressão e seria desen-
volvido o estudo de todas as expressões e gêneros artísticos, sem separação de
origem étnica, racial, religiosa, civilizatória ou de qualquer outro tipo. Os ateliês
mudariam de um campus para o outro, sensíveis aos contextos socioculturais de
cada universidade; e em um lugar mais alto de integração, as expressões artís-
ticas integrariam os saberes simbólicos, tecnológicos, científicos, psicológicos,
espirituais, políticos, ambientais, entre outros.
encaixam e dialogam com muito maior facilidade com uma ciência ocidental que
acolha as artes e se relacione com o cosmos como uma entidade viva.
Iniciei esta conferência rememorando a foto de fundação do CNPq, com os
honoráveis cientistas nela presentes em 1951. A aspiração do Encontro de Sabe-
res tem sido, até agora, contribuir para a construção de uma universidade brasi-
leira pluriepistêmica, e o presente livro reflete o esforço magnífico da UFSB de
ser uma das primeiras a realizar essa aspiração em nosso país. Contudo, não ape-
nas as universidades devem incumbir-se dessa tarefa, mas o próprio CNPq deve-
ria tornar-se um Conselho de Desenvolvimento Científico pluriepistêmico. Para
tanto, ele continuaria com a classificação humboldtiana das ciências de modo
a atender aos projetos dos cientistas que com ela operam; acolheria também as
pesquisas baseadas na ciência goethiana, permitindo o inevitável espaço de dis-
senso que seria gerado pela convivência entre as duas epistemologias ocidentais;
e finalmente acataria a epistemologia do cosmos vivo praticada pelos mestres e
mestras dos povos tradicionais.
Nesse clima pluriepistêmico e transdisciplinar, chegaríamos, finalmente, a
um Encontro de Saberes das Artes pleno e irrestrito. A representação visual e icô-
nica desse CNPq ampliado poderia materializar-se em uma nova foto, símbolo
da sua refundação, na qual estariam presentes cientistas, homens e mulheres,
pesquisadores de todas as ciências humboldtianas, da ciência goethiana e mes-
tres e mestras dos povos tradicionais – a todos e todas garantido o trânsito pelas
ciências ditas exatas, as humanidades e as ciências sociais e as artes, sempre em
igualdade de importância. É a esse ponto que nos dirigimos.
REFERÊNCIAS
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BORTOFT, Henri. Goethe’s scientific consciousness. London: The Institute for Cultural
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CAPÍTULO 25
augustin de tugny
Como tomar em conta esse programa de regime estético das artes, de arte
como experiência, de partilha do sensível numa formação contemporânea em
artes na universidade? E mais especificamente numa universidade nova, que tem
como meta a inserção social e acadêmica das populações de uma região especí-
fica como é o extremo sul do estado da Bahia, com suas comunidades indígenas,
afrodescendentes, pesqueiras, o êxodo rural nas periferias das cidades, os confli-
tos por terra, a violência repressiva, a evasão escolar, o avanço do agronegócio e
do turismo predador?
ALGUNS CAMINHOS
Vários caminhos possíveis foram adotados simultaneamente para propor
essa reparação, com formas diversas de trabalhar os conteúdos e as práti-
cas, com abrangência diversa no âmbito da universidade. Essas linhas não
somente se estabelecem numa proposta reparativa, mas inauguram uma
inclusão das artes no processo amplo da formação universitária e possibili-
tam uma abordagem contemporânea das artes, se estabelecendo em outras
linhagens, heranças e possibilidades críticas e criativas que as definidas na
tradição canônica europeia.
Experiências do sensível
Como inclusão primeira das artes na formação universitária, cada estudante que
inicia seu percurso na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) através da
Formação Geral (FG) cursa o componente curricular Experiências do Sensível,
que consiste numa série de exercícios a serem efetuados individualmente e no
coletivo da turma e que têm por finalidade inserir a dimensão sensível na abor-
dagem e aprendizagem dos saberes, ampliando as práticas do regime estético das
artes a uma forma propedêutica para FG universitária.5 Importa definir aqui o
5 Para maiores informações sobre as Experiências do Sensível, ver o capítulo “Experiências do Sensível
na formação acadêmica”, de autoria da professora Valéria Giannella e do autor deste texto na Parte III
deste livro.
Essa efetividade ou modos de fazer que Rancière (2005, p. 14) chama de “sim-
ples práticas” comportam “modos de discurso, formas de vida, ideias do pensa-
mento e figuras da comunidade”. Ao introduzir no início da vida u niversitária
“outra possibilidade, digamos que mais existencial (sem ser existencialista) e
mais estética (sem ser esteticista), a saber, pensar a educação a partir do par expe-
riência/sentido” (BONDÍA, 2002, p. 20), possibilitam-se necessários reconheci-
mento e inclusão das dimensões estéticas do saber como experiência vivenciada
para efetivamente fazer sentido através dos sentidos.
Como possibilidade dessa forma outra de abordar o ensino de arte, há fun-
damentalmente o reconhecimento não somente do potencial criativo do(a)
estudante, mas também da riqueza de sua experiência própria, da variedade de
seus conhecimentos e de desejos e habilidades adquiridos em ambientes não
necessariamente formais de ensino-aprendizagem, bem como a necessidade
ética e política de reconhecer e acolher sujeitos com outras formas de ser e
estar no mundo e que se expressam na indissociabilidade do logos e do pathos.
(RANCIÈRE, 2005) Assim como define o projeto pedagógico do Bacharelado
Interdisciplinar (BI) em Artes, “o CC Experiências do Sensível é uma inova-
ção pedagógica que visa reintroduzir a dimensão do sensível como elemento
integrador e indispensável a uma formação crítica e cidadã”. (UNIVERSIDADE
FEDERAL DO SUL DA BAHIA, 2016, p. 25)
Não se trata aqui de iniciar uma formação artística no sentido da aprendi-
zagem dos modos de fazer das artes, mas da abordagem do percurso acadêmico
num modo estético que estabelece uma outra forma, outra atitude em relação
aos saberes canônicos; desmonta a reputação do possível acesso de alguns pri-
vilegiados a eles e a formalidade acadêmica que, na tradição europeia, des-
liga o sujeito sensível do conhecimento. Através dessa conexão entre saberes
e sentidos, dessa possibilidade de dizer, explicitar, expor os sentidos da expe-
riência para cada um no comum, as Experiências do Sensível providenciam
também o reconhecimento dos saberes que cada estudante carrega com ele
ao entrar na universidade – saberes que não somente lhes são próprios, mas
que o situam também num coletivo, que o fazem reconhecer-se como oriundo
de comunidades de conhecimentos e de vida, que o elegem como portador de
heranças epistemológicas, muitas vezes ignoradas ou rechaçadas no universo
formal da educação.
6 “‘Elemento’ é uma exposição sobre a temática da abordagem policial, fruto da parceria entre o f otógrafo
Kauan Almeida e o artista Thawan Dias. Trata-se de uma exposição multimídia, cujo objetivo apon-
ta para denunciar o racismo institucional praticado por policias, partindo do principio [sic] que esta
instituição seleciona, com base em estereótipos e preconceitos, determinados sujeitos-suspeitos nas
práticas de abordagens. ‘Elemento’ dá ênfase na diversidade de formas em que o corpo se coloca nas
abordagens, evidenciando o corpo negro-masculino. A partir de ordenanças estes corpos se apresentam
nas abordagens nas seguintes posições: mãos na cabeça ou para o alto, pernas abertas, no chão, de joe-
lho”. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA, 2018)
Ao encenar e divulgar esses atos humilhantes aos quais ele mesmo, por sua
condição de jovem negro, teve que se submeter e que todo jovem da periferia
sabe reconhecer, por muitas vezes ter sido levado a executá-los, o fotógrafo traz
à consciência de um público ampliado pelas redes sociais as marcas do racismo
institucionalizado e inscrito nos corpos de suas vítimas em gestos de submissão.
A possibilidade de revelar e transmitir expressões recatadas, reprimidas, através
de uma forma artística sem se referir aos modelos predeterminados pelas artes
canônicas, mas sabendo usar de alguns códigos da apresentação e divulgação –
fotografia preto e branco, distância de ponto de vista, exposição –, corresponde
a essa potencialidade dada às expressões populares em suas possibilidades de
criação poética e emancipação.
esses ainda regem grande parte da produção artística contemporânea? Por isso,
importa inserir, no corpus de matérias que constituem o currículo de formação
em artes, componentes curriculares específicos que tratam das estéticas e poé-
ticas dos povos originários e das comunidades afrodescendentes. Esse conjunto
de saberes e modos de viver e criar na diversidade dos povos ameríndios, na
amplitude da diáspora afrodescendente, constitui um amplo universo até agora
conceituado como exótico ao mundo acadêmico, “objeto” de estudo de uma
parte ínfima dos pesquisadores em ciências sociais, com seus atores excluídos
do sistema universitário ou num déficit de inclusão escandaloso, apesar do sig-
nificativo aumento com a aplicação das Leis de Cotas.
O currículo da formação para o BI em Artes da UFSB apresenta a obrigatorie-
dade de cursar componentes curriculares que tratam das estéticas ameríndias
ou negrodescendentes, bem como oferece a possibilidade de se inserir nas poéti-
cas desses grupos. Há aqui uma opção fundante dessa formação em sua escolha
de uma perspectiva descolonizadora que não se propõe a impor uma episteme e
as poéticas que dela fluem regidas pelas artes canônicas, mas a aprender e inte-
ragir com a epistemodiversidade que caracteriza o território de sua implantação.
O desafio é de tamanha amplidão quando se reconhece, com Manuela Carneiro
da Cunha (2009, p. 329), que existem “muito mais regimes de conhecimento e
de cultura do que supõe nossa vã imaginação metropolitana”. Ela nos adverte,
citando as reflexões de Claude Lévi-Strauss, que temos de nos conscientizar no
confronto entre a cultura científica e os saberes tradicionais de que ambos os
conhecimentos são sustentados por operações lógicas, mas partem de pontos de
vista divergentes. O conhecimento científico parte de unidades conceituais; já o
conhecimento tradicional nasce de unidades perceptuais, como sabores, cheiros
e cores. (CUNHA, 2009, p. 303)
Reencontramos aqui a dinâmica estética iniciada com as Experiências do
Sensível a ser ampliada no reconhecimento das culturas ameríndias e negrodes-
cendentes, nas suas relações com o tempo, o espaço, as ancestralidades e espi-
ritualidades, em seus cantos e danças, na perpetuação da literatura oral, mas
também na materialidade de suas produções, através do tecelagem, da pintura,
da plumaria, da arquitetura, do cuidado às plantas, da agricultura, da pesca e
da caça e por meios mais contemporâneos, como a literatura escrita e o cinema.
Tradução
Essa ampliação do campo de referências das artes às expressões estéticas e
poéticas dos povos originários da América e da diáspora afrodescendente em
sua diversidade e sua multiplicidade de aparições requer um trabalho perma-
nente de tradução alargada, não somente na passagem de uma língua para
outra, assim como atua a tradução literária, mas também de um sistema de
pensamento para outros que resulte em pontes sobre o desconhecido, em
rotas invertidas, em caminhos a se perder de vista. Por isso, se faz necessária
A questão da história
Entre os elementos referenciais do ensino das artes, a história – mais espe-
cificamente, a história da arte – é valorizada como possibilidade de situar as
propostas e formalizações contemporâneas numa genealogia que assegura
uma forma de legitimidade, seja em continuidade, em citação ou em rup-
tura deliberada na tradição das vanguardas. Além de constituir uma cultura
específica ao mundo das artes – cultura que se estabelece geralmente numa
dinâmica eurocêntrica –, essa história acaba propondo um repertório de ima-
gens, sons, gestos, textos e palavras que perpetuam o modelo tanto de apre-
ciação das obras quando da produção de novas. Se, por uma reformulação
elaborada inicialmente por Aby Warburg e bastante divulgada recentemente
por Georges Didi-Huberman, podemos abordar a história da arte não mais na
perspectiva evolucionista que sustentava as apresentações em curso desde o
início do século XIX, mas através de uma iconologia que atravessa os tempos
ou se reformula temporalmente pela sobrevivência anacrônica das imagens
tecidas numa eterna e sempre reformulada montagem, a história da arte con-
tinua sendo essa ciência – mesmo que ciência sem nome (DIDI-HUBERMAN,
2002) – que define a presença e avalia a potência das obras vistas ou aprecia-
das a partir da tradição eurocêntrica.
O artista Bruno Moreschi, em seu projeto intitulado História da_rte, coor-
denou uma equipe ampla que fez o levantamento exaustivo dos artistas apre-
sentados em 11 livros usados nos cursos de Artes Visuais no Brasil e constatou
que, entre os 2.433 citados, somente 8,8% eram mulheres, 0,9% negras e negros,
e 26,3% não europeus – sendo 38% destes norte-americanos. (MORESCHI, 2017)
Esse panorama demostra a inadequação das narrativas hegemônicas impostas e,
como diz a professora brasileira e descendente da diáspora africana, Vera Lúcia
Benedito, citada por Moreschi (2017):
7 Ver o texto “Arte e diversidade epistêmica na universidade: uma conversa com Pablo Lafuente”, na parte
IV deste livro.
8 O Atlas Mnemosine é o nome dado por Aby Warburg ao processo de classificação, montagem e investi-
gação sobre a permanência e os modos de ressurgência das formas de arte e das referências ao longo da
história que ele iniciou em 1924 e desenvolveu até sua morte em 1929.
9 Para as artes visuais, costuma ser exigida uma habilidade em desenho, que é avaliada por uma prova te-
órica e por dois exercícios práticos: desenho de observação e ilustração ou “composição gráfica imagina-
tiva”, o que é feito, por exemplo, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Para a música,
são provas teóricas de percepção e leitura musical e práticas de instrumentos, geralmente reduzidas aos
instrumentos que são trabalhados nas habilitações do curso almejado. Para a dança, além de uma prova
teórica específica, os candidatos devem realizar diversos exercícios corporais que demonstram suas ap-
tidões físicas, bem como seu entendimento da linguagem corporal da dança. Já a entrada em um curso
de Teatro exige, além de uma prova teórica específica, uma prova prática de interpretação teatral.
ou a longa iniciação das formas de expressão dos povos tradicionais, até encon-
trarem uma forma de expressão ou uma mídia que se adequa à poética que per-
seguem. A estudante Erlane Rosa, por exemplo, insistia para poder cursar um
componente curricular de desenho que lhe ensinasse os rudimentos consagra-
dos dessa arte até ela mesma encontrar um modo de desenhar adequado a sua
proposta artística, que, aos poucos, se desenvolveu com agilidade, permitindo a
ela inventar modos de fazer e apresentar suas obras tratando da violência contra
mulheres e a população LGBTQ+, que foram apresentadas em diversos espaços
expositivos e selecionadas para a 11a Bienal da União Nacional dos Estudantes
(UNE), em Salvador.
O caso de Vinícius pode ser exemplar, mas não é o único que se formula
nessa possibilidade de transdisciplinaridade e de abertura entre modos e formas
de fazer artes. Há, de fato, ajustes a serem feitos ao currículo, mas podemos con-
siderar que a aposta dessa formação em Artes numa dinâmica contemporânea,
em profundo respeito dos modos de fazer e viver as artes na diversidade das cul-
turas e das comunidades que habitam o território do extremo sul da Bahia, res-
ponde a uma necessidade mais profunda dos estudantes, e ainda mais quando
se consideram os cursos de segundo ciclo ofertados pelo Centro de Formação em
Artes, Artes do Corpo em Cena (ACC) e Som, Imagem e Movimento (SIM), em que
os estudantes podem aprofundar e profissionalizar sua formação sem perder o
viés interdisciplinar e uma dinâmica interepistêmica.
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CAPÍTULO 26
ARTE E DIVERSIDADE
EPISTÊMICA NA UNIVERSIDADE
uma conversa com Pablo Lafuente1
pablo lafuente
entrevista de maria iñigo clavo
tradução de augustin de tugny
Além de fazer parte da equipe de curadores da 31ª Bienal de São Paulo em 2014,
Pablo Lafuente trabalhou na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) entre
setembro de 2015 e junho de 2016. Esta entrevista tem como objetivo aprofun-
dar a discussão sobre o projeto educativo dessa universidade; compreender sua
contribuição para a criação de ferramentas para uma diversidade epistêmica
dentro de uma academia que, por ora, é predominantemente eurocêntrica;
explorar as dificuldades desse processo; e, por fim, indagar o papel da arte nessa
transformação da universidade e da região.
Maria Iñigo (M.I.)2 – Para iniciar nossa conversa, quais são, a seu ver, as prin-
cipais mudanças trazidas pela UFSB ao conceito ocidental de “universidade”?
1 Esta entrevista foi publicada na revista espanhola Re-visiones (n. 7, 2017) sob o título “Conversaciones
sobre el concepto de epistemodiversidad y el papel del arte en el proceso de descolonización de la Uni-
versidad”. Agradecemos aos editores pela autorização para a publicação desta tradução, realizada por
Augustin de Tugny (N. do T.).
2 Agradeço a Maria José Guzmán e a Gustavo Gonçalves por me ajudarem a conhecer o projeto e por me
hospedarem em sua casa durante minha estadia em Ilhéus.
3 A entrevista foi realizada em outubro de 2017, na época do processo de escolha do novo reitor.
Essa vocação local é garantida em parte por um conselho estratégico social formado
por membros de comunidades da região – comunidades de trabalhadores rurais,
comunidades indígenas, empresários e representantes de outras instituições locais
– cujas deliberações e conclusões orientam, mesmo sem ser decisórias, os proces-
sos dentro da universidade. Essa perspectiva compensa o fato que os professores
e grande parte dos funcionários técnico-administrativos chegaram recentemente,
contratados de outras áreas, principalmente urbanas, para atuar na região. A pre-
sença do conselho assim como essa vocação local implicam necessariamente uma
relativização dos processos de produção e de transmissão dos saberes acadêmicos
que às vezes não estão apropriados à situação ou que se confrontam a outros sabe-
res com os quais podem ter compatibilidade ou não, desfazendo aqui e ali a sepa-
ração entre áreas de conhecimento e as exigências de seus protocolos específicos.
M.I. – O programa pedagógico da área de artes propõe um foco especial sobre “as
artes e práticas culturais ameríndias e africanas, recompostas em variados con-
textos do território americano, inclusive no âmbito das áreas metropolitanas”.
Como se constrói a diversidade epistêmica na UFSB?
P.L. – Mais que uma procura por estudantes, se trata de uma atividade que nasce da
vocação de se relacionar com o contexto local da qual falei no início. Numa região
onde a educação pública está muito descuidada por parte da administração e das
autoridades, a universidade insiste na capacitação de futuros professores e na cola-
boração com a rede de educação básica. Dessa forma, nas localidades vizinhas às
três cidades onde estão os campi, em colégios secundários, ela organiza cursos de
um ano que oferecem uma certificação independente e que servem como introdu-
ção à universidade. Assim, a instituição universitária sai de si mesma para operar
em outros contextos, se torna mais familiar para diferentes grupos e, ao mesmo
tempo, confronta suas pedagogias e seus professores com outras realidades. Isso
permite abrir portas na universidade tanto para os que querem ter um contato limi-
tado com ela como para os que pretendem ingressar nos cursos de graduação.
Essa estratégia de implantação não é especificamente destinada à população
indígena local, mas tem como objetivo contatar o maior número possível de pes-
soas da região. É verdade que tem um número considerável de jovens pataxó na
região de Porto Seguro e Prado, assim como de tupinambá na região de Ilhéus,
mais ao norte, e de pataxô hã hã hãe em Pau Brasil, com suas especificidades
culturais e políticas, mas também vivendo condições compartilhadas com o resto
da população local, particularmente no que se refere aos recursos econômicos
limitados e ao escasso acesso a serviços básicos. Além disso, há também na
região população de origem indígena que não se reconhece como indígena ou
não é reconhecida como tal. Assim há indígenas estudantes dos Cunis e da uni-
versidade, em diversas áreas, que recebem, assim como os demais estudantes
com baixa renda, a bolsa permanência do Ministério da Educação.4
4 Observamos que os estudantes indígenas e quilombolas recebem uma bolsa específica concedida pelo
Programa de Permanência Estudantil do Ministério da Educação (N. do T.).
P.L. – Regimes do Sensível pretende ser um exercício do uso dos sentidos e de suas
implicações estéticas – entendido em seu significado mais amplo, como um modo de
sentir o mundo –, mas também políticas, éticas, históricas, poéticas, emocionais...
De fazer parte do mundo que nos rodeia. O foco do componente está nas situações
coletivas de troca de experiências que os diferentes estudantes podem contribuir e
compartilhar ou que o grupo pode gerar como grupo. O objetivo é colocar em jogo
o mundo que rodeia cada um deles e o grupo a partir desses sentidos, sem recorrer
imediatamente às classificações, narrativas e utilidades, mas detendo-se nas condi-
ções materiais compartilhadas que propiciam experiências, também compartilha-
das, que podem falar da história e também do que se pode fazer com ela.
5 O componente, na realidade intitulado “Experiências do Sensível”, é ofertado por uma equipe multi-
disciplinar de docentes e não é próprio da área de artes, da forma como foi concebido na UFSB. Gosta-
ríamos de remeter o leitor ao capítulo “Experiências do Sensível na formação acadêmica, a proposta da
UFSB”, na Parte III deste livro (N. do T.).
modos de conhecer que suprimem o sujeito, suas formas de afetar e ser afetado,
de ouvir e ser ouvido, de ver e ser visto, de apreciar e se submeter à apreciação,
de estar presente em espaços comuns com outros sujeitos. A consequência mais
grave desse empobrecimento é a separação do mundo entre sujeitos e objetos,
com finalidade de produzir conhecimento instrumental”. Como isso modifica o
resultado da aprendizagem dos estudantes?
M.I. – O candomblé faz parte dos conteúdos curriculares como referente episte-
mológico ou temático?
P.L. – Hoje em dia, as artes visuais têm uma propensão interdisciplinar como
resultado de formas de trabalho que se intensificaram durante as últimas cinco
ou seis décadas em diversos formatos e em conexão com teorias sociais e polí-
ticas, com a ciência, com a pesquisa... Mesmo que essas conexões não sejam
universais e não se estendam a todas as áreas das artes. De qualquer modo, essa
facilidade de conexão pode servir como exemplo, mas sabendo que esse hábito
de conexão, às vezes, entra em conflito com a necessidade de pensar a técnica
– algo que a arte contemporânea não considera como fundamental, mas que é
chave para muitas artes tradicionais. Talvez não esteja respondendo à sua per-
gunta, mas propondo aqui um problema ou um conflito: entre, por um lado, a
“facilidade” para a arte contemporânea europeia ou ocidental de ser “qualquer
M.I. – Bom, você contesta e ao mesmo tempo não, mas sua resposta me parece
muito interessante, porque essa separação entre arte erudita e arte popular está
no coração do projeto colonial. Se não questionamos essa separação, converte-
mos a descolonialidade numa mera temática, numa matéria curricular, e não
num desafio para nossas estruturas.
Abordando um outro assunto, o modelo de artista que o currículo parece pro-
curar é de um artista educador para escapar da forte tradição formalista brasileira.
Como escapar da tradição pedagógica doutrinante ou paternalista brasileira – por
exemplo nos Centros de Cultura Popular? Como evitar limitar o potencial das artes?
P.L. – O Brasil tem tradições pedagógicas bastante fortes, não somente nos Cen-
tros de Cultura Popular, contrastando com o sistema educacional público, que
opera em condições precárias, com dificuldades institucionais históricas e uma
administração política que parece querer sabotá-la, há uma história presente
de pedagogias libertárias, críticas, igualitárias, de minorias... Bem rica. Creio
que podemos dizer que, frente à pobre situação da educação pública, a função
educadora se converteu no Brasil em uma função política urgente, que não tem
por que ser relacionada com qualquer impulso doutrinário ou de doutrinação.
Na área das artes na UFSB, lembrando novamente que existe diversidade nas
abordagens dos diferentes professores, combina-se a pedagogia em um coletivo
– não há autonomia acadêmica entre os docentes, cada componente é definido
por um grupo de professores que devem trabalhar em conjunto, mesmo que à
distância entre os diversos campi – com uma abordagem educacional aberta que
evita o modelo de educação como transmissão de informação e que se foca na
proposta de situações de grupo. Essa mesma pedagogia coletivista, propositiva e
situacional poderia ser adotada por artistas-pedagogos.
Por outro lado, acho que é importante questionar as definições da arte com
as quais estamos acostumados, que são frequentemente estabelecidas a partir
de uma perspectiva modernista. Como, por exemplo, o suposto caráter visio-
nário do artista ou de sua obra, se isso quer dizer que ele tem uma prática ou
natureza experimental, em ruptura ou vanguardista. Associar a arte a essas
qualidades é algo que as práticas indígenas em geral não fazem, por exemplo.
Ou a ideia que a utilidade impõe, de certa maneira, limitações para a prática
artística, e não sua intensificação.
M.I. – O diálogo com o popular e o que ele coloca em crise me interessam. Popula-
rizar a arte erudita e tornar erudita a arte popular? Como fazer com que os saberes
populares sejam compatíveis com o tipo de pensamento que os nega? Há um com-
ponente intitulado “Estéticas Negrodescendentes”, mas o conceito de estética da
filosofia ocidental é particularmente excludente com respeito ao “popular”.
P.L. – Não me sinto atraído por nenhum desses dois movimentos, de transformar
uma coisa em outra. Acredito que seria mais interessante entender o processo a
partir de uma perspectiva de igualdade, no sentido que tanto as artes o cidentais
como as artes indígenas, por exemplo – insisto em dizer que essa expressão é
inadequada –, são processos culturais complexos com uma série de pressupos-
tos e implicações específicas. O uso da palavra “estética” no título desse e de
outros componentes curriculares é, para mim, um equívoco, mas um equívoco
que pode ser produtivo no processo pedagógico, como pode ser o uso da pala-
vra “arte”. Qualificar, por exemplo, o trabalho de cestaria indígena ou a tradição
do maracatu do Nordeste como arte é inapropriado, porque os separa de outros
âmbitos (religioso, utilitário, político...) nos quais operam e não como campos
secundários. Mesmo que essas práticas já estejam acontecendo em diversos con-
textos como práticas “separadas” – reduzidas à música ou dança, por exemplo –,
para o comércio, o divertimento ou o espetáculo. Essas dinâmicas de resistência,
de confusão, de contaminação, de apropriação e suas éticas e políticas respecti-
vas passam ao primeiro plano, e é importante abordá-las sem uma atitude lega-
lista e de julgamento rápido.
Por outro lado, paralelamente, se a palavra “universidade” pode ser utili-
zada para denominar uma instituição diferente do que sua concepção clássica
identifica, a palavra “estética” pode também trair suas definições canônicas e
funcionar de outras maneiras. De fato, é assim que funciona nos “salões de
estética” ou de “beleza”, em que se cria cultura material concreta no corpo des-
ses que os frequentam.
P.L. – Não diria que Durham, Deliss, Fisher e Hammons não teriam utilidade no
Brasil atual ou no resto da América Latina, mas me sinto confortável dizendo
que não são essenciais para entender o que acontece aqui ou o que poderia acon-
tecer. A recente polêmica de Durham com os líderes cherokee demonstra uma
fragilidade em sua posição como artista que acho ser constitutiva dos mode-
los de prática artística inserida no mundo da arte contemporânea globalizada,
que, ao mesmo tempo, reivindicam uma relação com visões do mundo não oci-
dentais. Nessa perspectiva, até que ponto uma prática como a de Fisher, que se
desenvolveu nos anos 1990 como resposta a questões raciais e culturais num
contexto anglo-saxão, seria fundamental para pensar práticas artísticas e cul-
turais no Brasil de 2017? Claro que qualquer tipo de importação deveria trazer
com ela também parte de seu contexto temporal e político, mas acho que o mais
importante é ter consciência que a finalidade em desenvolver práticas artísti-
cas num território específico não deveria implicar que essas práticas devam ser
exportáveis para os museus do primeiro mundo – uma lógica de transposição
global na qual opera grande parte do trabalho dos autores que você mencionou,
precisamente porque eles trabalham no centro do contexto globalizado da arte
contemporânea. Contrapondo essa dinâmica, eu diria bem alto que a importân-
cia de uma prática não pode vir de seu reconhecimento nesses contextos, nem
de sua adaptabilidade a eles. Por exemplo, porque, para se adaptar, tem que res-
ponder à demanda de que sejam práticas autorais, individualizadas, como creio
que os nomes que você mencionou comprovam.
O imaginário “as Américas”, mais do que um prisma geográfico-cultu-
ral, o entendo como entidade poética-geográfica, no estilo da Amereida que a
Escola de Valparaíso canta. Nesse sentido, é uma história política, emocional
e geográfica alternativa, na qual o critério para que algo faça parte dela não é
puramente geográfico, mas também, e principalmente, o tipo de lógica a qual
responde. E aqui, o importante é fazer as conexões entre essas lógicas. É verdade
que conexões poderiam ser feitas com lógicas divergentes oriundas de geogra-
fias não americanas, mas o campo é tão amplo que parece razoável começar com
um território menor.
M.I. – Concordo em parte com você, porque concordo também com Mieke Bal
que os conceitos viajantes podem trazer mais benefícios que perigos; em todas
as direções, claro, não somente do Norte ao Sul. Mas ainda estou preocupada
com a desvalorização da imensa produção prática/teórica do campo artístico;
por exemplo, há valiosas referências feitas à antropologia. Enquanto que um
marco exclusivamente “americanista” não pode se aproveitar dessas ferramen-
tas e limita ainda mais as possibilidades de questionar metodologias.
P.L. – Sim, sim, o trabalho dessas pessoas que você menciona pode contribuir nas
operações críticas. Não é porque são tradições importantes no contexto europeu
ou norte-americano que devem ser deixadas de lado. É uma questão de urgên-
cias, de prioridades. Você não pode fazer tudo ao mesmo tempo. Para voltar ao
que já mencionei, a Escola de Valparaíso também não tem uma presença no ima-
ginário político, cultural ou acadêmico da UFSB ou do Brasil em geral – e são
“vizinhos”. É algo mais fácil de ser traduzido, tanto pela língua que usam como
pelo território onde se estabelecem. Se tivesse que escolher prioridades, insisti-
ria nos diálogos entre as experiências pré-coloniais, coloniais e pós-coloniais das
Américas, já que esses diálogos até hoje têm sido muito fragmentados e frágeis.
O contexto do Primeiro Mundo já tem seus mecanismos próprios e bem-sucedi-
dos para exportar tanto seus problemas como suas soluções.
M.I. – O Museo Reina Sofia ou o Bronx Museum de Nova York estão tornando
evidente como Mário Pedrosa trabalhou com doentes mentais e como isso teve
influência sobre a arte concreta. Sabemos que Lygia Clark trabalhou com pros-
titutas e temos Oiticica com suas experiências nas favelas. A UFSB realiza uma
releitura da história da arte a partir de todas essas experiências? Tanto que seus
intelectuais se inspiraram no “popular”...
P.L. – Este trabalho de reescrita da história da arte não é um projeto que está
acontecendo na universidade, talvez porque a história da arte como tal não tem
muita presença aqui. Nem Lygia Clark nem Hélio Oiticica são referências obri-
gatórias. Mário Pedrosa ou Mário de Andrade também não. Poderiam ser, claro,
mas esse projeto de reescrita da história da arte não é prioridade do projeto agora.
As urgências se focam mais nas questões práticas que historiográficas.
P.L. – O que o sistema oficial, o sistema modernista da arte identifica como arte
(de Tarsila do Amaral a Oiticica) pode participar, não é “proibido”, mas não é
uma referência obrigatória. Acho que é fundamental ter em mente que a produ-
ção mais “interessante” da arte modernista no Brasil é aquela que surge de um
ato de apropriação da cultura popular por artistas de classe alta e média, e isso
inclui, de novo, tanto Tarsila quanto Oiticica. Então, se vamos falar de Oiticica,
devemos considerar o que permitiu essa apropriação.
Independentemente disso, acho que uma das estratégias possíveis para
construir novos modos de fazer e pensar é trocar o foco, não olhar para o que a
universidade e o sistema da arte já têm olhado, e dar tempo e atenção para outras
coisas – porque tanto o tempo quanto a atenção são limitados, na universidade e
fora dela. Podemos argumentar que é importante acompanhar a Documenta6 ou
ler Artforum, porque são dominantes na escala global. Ou podemos decidir que
preferimos nos engajar nas atividades de um museu comunitário na periferia
de Belém. As duas escolhas nem sempre são compatíveis. Especialmente por-
que a segunda necessita de mais constância, de esforços maiores, de mais tradu-
ções, de materiais que não estão facilmente disponíveis. O sistema de difusão da
cultura “confirmada” ou “estabelecida” já se encarrega de produzir e disseminar
6 Exposição de arte contemporânea que é organizada a cada cinco anos desde 1955 em Cassel, Alemanha.
M.I. – Uma coisa interessante é que sua passagem pela UFSB se fez entre sua
participação na Bienal de São Paulo em 2014 e a exposição Dja Guata Porã: Rio
de Janeiro Indígena no MAR, em 2017, e me parece interessante entender esse
trânsito para um modelo de trabalho com um ponto de vista indígena. Sei que é
uma pergunta complexa, mas é tão importante agora!
P.L. – Acho difícil ter uma narrativa clara sobre minha própria vida... Mas posso
tentar! Os dois projetos curatoriais foram construídos com processos colabo-
rativos, com curadorias coletivas horizontais, e os dois pretendiam repensar e
modificar os processos institucionais convencionais. Entre os dois, sinto que
esses meses na UFSB foram importantes. Por um lado, porque fiquei um tempo
com comunidades pataxó, sem propósitos concretos de trabalho ou de pesquisa,
e isso me familiarizou com algumas questões e modos de ver e fazer que são
importantes para eles. Também porque a prática colegiada dentro da universi-
dade com estudantes e funcionários serviu como treino para práticas colegia-
das fora dela. E finalmente, porque, como já mencionei, entrei em contato com
dinâmicas que as estruturas das instituições modernas enfrentam com lógicas
diferentes e às vezes incompatíveis e que, se tomadas a sério, poderiam sacudir
as fundações dessas instituições. Trabalhar no Dja Guata Porã foi, nesse sentido,
uma extensão disso: como trabalhar com grupos indígenas do estado de Rio de
Janeiro na construção coletiva dum projeto de exposição dentro de um museu
de arte, com todas as implicações metodológicas e institucionais que podem se
apresentar. E, devido às experiências anteriores, à escala, aos participantes, o
resultado foi mais satisfatório que na bienal, “funcionou” melhor.
P.L. – É difícil responder: não quero simplificar essas cosmovisões nem pro-
por que elas têm um denominador comum. Também não quero pensar nelas de
maneira utilitária, em termos do potencial que elas possam ter para nos mudar,
nós brancos e nossas instituições. Acho que posso dizer algo mais modesto: a
partir do momento em que membros desses povos indígenas entram nessas ins-
tituições – e acredito que devemos defender e facilitar esse direito de entrar, não
somente como visitantes, mas como trabalhadores, gerentes, diretores... –, é
fácil perceber como as questões legais, administrativas, conceituais, de urgên-
cias e preocupações, de tempos e espaços, de formas de expressão, emergem
e problematizam os processos convencionais. Acontece uma situação similar
quando populações periféricas ou de baixa renda entram em contato com essas
instituições. Acredito que somente merecem ser defendidas e de fato continuar
existindo na medida em que se comprometam em encarar essas problematiza-
ções abertamente e com toda disposição para se transformar.
P.L. – Não tenho conhecimento disso. Segundo a lógica da UFSB, não seria
um departamento já que a universidade se organizou por áreas (artes, saúde,
ciências, humanidades...), sem departamentos “fechados”. Criar uma “área de
estudos indígenas” seria difícil, talvez, porque ela deveria se sobrepor a todas
as áreas existentes e abriria para a questão de porque não ter uma “área afro-
descendente”. Há um outro problema: os regulamentos do Ministério da Edu-
cação determinam que os professores da universidade devem ter mestrado e,
preferencialmente, doutorado. Há um número crescente de indígenas que têm
acesso à universidade, mas o número de graduados ainda está muito baixo.
Há também programas para conceder títulos para portadores de conhecimen-
tos tradicionais, mas esse processo é muito lento. Mas, independentemente
M.I. – Algo de tudo isso poderia nos ajudar a pensar crítica e construtivamente
como o Masp [Museu de Arte de São Paulo] retomou a cultura material popular
através das investigações de Lina Bo Bardi reproduzindo suas curadorias?
P.L. – Não sei se queria acabar com uma nota negativa, mas não tenho outro jeito
de responder à pergunta. Não sou um especialista do trabalho de Lina Bo Bardi,
mas acho que há elementos muito interessantes na sua concepção de museu
popular, particularmente no trabalho que ela fez em Salvador da Bahia. “Recu-
perar” o trabalho dela para mim quer dizer recuperar seu espírito e sua orienta-
ção, não suas soluções formais, porque essas soluções formais foram feitas em
resposta a uma situação, a hábitos, a processos diferentes dos atuais. O Masp
vem fazendo isso: reproduzir, quase de forma literal, as soluções formais de Lina
Bo Bardi, como referência e como conteúdo, ao mesmo tempo introduzindo
novos conteúdos que acho interessantes. Sinto que, com exceção de alguns pro-
jetos e programas de pequeno porte, não há questionamento dos mecanismos de
funcionamento de um museu moderno, nem de seu relacionamento com esses
que vivem ao seu lado e o frequentam. É um museu eminentemente “moderno”,
no qual um número pequeno de pessoas decide o que o resto da equipe vai
implementar como conteúdo para um público abstrato e com preços de entrada
bem caros. Acho que o MAM [Museu de Arte Moderna] da Bahia foi mais fiel ao
espírito de Lina Bo Bardi durante os três anos em que foi dirigido por Marcelo
Rezende. Mas sempre é possível que as coisas mudem, especialmente nos tem-
pos movimentados que vivemos...
P.s.: Ao reler minha última resposta, percebi que, enquanto tentei apresentar
uma imagem complexa da UFSB, na qual haveria lugar para diversos interes-
ses e agências dentro e fora da instituição, assim como diversas possibilidades
de intervenção e construção, quando respondi à pergunta sobre o Masp, fiz o
oposto. Ofereci uma visão monolítica da instituição, tomando somente em conta,
e mesmo assim de forma simplista, as linhas programáticas da direção, sem con-
siderar que a atividade de um museu não se reduz às grandes exposições e que
diversas equipes estabelecem relações com diversos grupos de modos diferen-
tes, às vezes com visões divergentes ou complementares àquelas que são mais
visíveis ou apresentadas como oficiais. De fato, nos últimos dois ou três anos, o
Masp encaminhou projetos e discussões bem interessantes, que não deveríamos
deixar de lado.
CAPÍTULO 27
naomar de almeida-filho
INTRODUÇÃO
Este capítulo tem o objetivo simples e singelo de compartilhar questões e refle-
xões provocadas pelo desafio de organizar, de modo consistente e rigoroso, o
currículo do Bacharelado Interdisciplinar (BI) em Saúde da Universidade Fede-
ral do Sul da Bahia (UFSB) articulado a programas de formação de carreiras e
profissões de saúde em cursos de segundo ciclo. (ALMEIDA-FILHO et al., 2014)
Tal desafio compreende a busca por modelos de formação de sujeitos críticos
capazes de implementar políticas públicas em saúde, operar práticas resolutivas
de cuidados em saúde, utilizar tecnologias de modo adequado e produzir conhe-
cimento relevante para a saúde da população, com equidade, justiça e qualidade.
(SOUZA, 2016) Nesse sentido, para além do plano da retórica, é preciso primeiro
superar a fragmentação produzida pela abordagem disciplinar reducionista, já
que muitos projetos se comprometem com modelos de inter-transdisciplinari-
dade no âmbito acadêmico, porém sem conseguir traduzir essa opção epistemo-
lógica para o campo das práticas.
se tornarão agentes de intervenção sobre a saúde, tem-se dado com base nesses
recortes. Essa questão pode ser formulada de modo esquemático como uma ten-
dência à correspondência entre modelos de formação e modos de cuidado em
saúde, confirmados nas práticas sociais concretas.
Em suma, a complexidade e a historicidade do ser humano não encontram
respaldo na pobreza dos fragmentos disciplinares ou nos recortes de territoria-
lização somática ou mesmo nos planos distintos da ocorrência de fenômenos.
Os modos de organização dos saberes e práticas que prevalecem no campo para-
digmático da saúde têm grande dificuldade de responder às necessidades reais
de saúde da população. Não são, enfim, fígados, cérebros ou intestinos que ado-
ecem, e sim pessoas vivas, com histórias, relações pessoais e nomes. Tais modos
de compreensão enfrentam grandes problemas quando a questão principal deixa
de ser como organizar a prática a partir do conhecimento sobre doenças e lesões
que se aprende em livros, laboratórios e aulas. E então, no mundo real, o desa-
fio de cuidar de pessoas concretas confronta e nega uma forma de organização
do conhecimento em blocos de territorialidade cognitiva articulados a uma seg-
mentação das ciências naturais ou biológicas referidas ao organismo humano.
QUESTÕES PEDAGÓGICAS
Uma questão pedagógica preliminar então se reconfigura: como formar sujei-
tos de fato competentes para o cuidado à saúde de outros sujeitos? A vertente de
ação transformadora, quase corolário dessa questão, traduz-se em como viabili-
zar a superação de tais impasses, tanto do ponto de vista epistemológico quanto
pedagógico. Ou seja, como formar sujeitos mediante processos de ensino-apren-
dizagem diretamente engajados na prática concreta de produção de atos em
saúde no mundo real.
No que podemos designar como modelo UFSB de formação em saúde, uma
possibilidade de superar a limitação dos modelos baseados na disciplinaridade
encontra-se no desenvolvimento de estruturas curriculares em regime de ciclos,
com entrada unificada no primeiro ciclo de formação e com flexibilidade, mobi-
lidade e graus de diferenciação regulados nos percursos formativos que condu-
zem a um segundo ciclo mais focado em práticas, no qual se define o caráter
profissionalizante da formação.
De um ponto de vista estritamente curricular, por exemplo, o adjetivo
“interdisciplinar” que qualifica o BI em Saúde se manifesta, na fase de formação
específica, em quatro eixos curriculares ou blocos temáticos transversais que
visam a superar a desarticulação segmentar das disciplinas na compreensão
do nosso objeto privilegiado de conhecimento e de práticas. Primeiro, o estudo
das bases bioecológicas da saúde humana, a partir do que tem se designado por
teoria ecossistêmica da saúde. (CHARRON, 2012) Segundo, o foco nos proces-
sos de determinação cultural, social e política da saúde-enfermidade-cuidado,
MATRIZ DE COMPETÊNCIAS
Para conceber um modelo ou protótipo de programa de formação em bases alter-
nativas, tal como proposto para a UFSB, devemos pensar mais a partir de um
modelo tipo matriz de competências e menos numa grade curricular. Quando
afirmamos algo sobre determinados problemas de saúde e cuidados correlatos,
na verdade estamos embutindo uma série de estratégias de aproximação, com-
preensão e intervenção – em tese, portadoras de eficácia ou resolutividade –
sobre um dado objeto de saberes e práticas.
A primeira dessas estratégias compreende o que chamamos generica-
mente de diagnóstico, ou seja, formas estruturadas de conhecer e reconhe-
cer os problemas de saúde-enfermidade-cuidado nos quatro ciclos de vida.
Para além do diagnóstico, definido como conjunto articulado e programado
de ações para identificação de sinais e sintomas indicativos de uma certa enti-
dade mórbida, esse reconhecimento implica também conhecimento, no caso,
de mecanismos de ocorrência, ou seja, conhecimentos sobre a etiologia com-
plexa dos determinantes da saúde-doença. Nesse momento, é possível identi-
ficar formas e modos de prevenção e controle como uma segunda estratégia a
compor essa matriz de competências. Prevenção e controle são intervenções
que se dirigem, na maioria das vezes, a ambientes e situações, porém algumas
se referem ao comportamento dos sujeitos como um nível secundário de refe-
rência do cuidado em saúde. E, finalmente, um outro nível – que corresponde
a uma terceira entrada na matriz de competências – incorpora as terapêuticas
ou modos de intervenção ou produção de atos de cuidado, que merece maior
destaque nesta análise.
Uma questão muito complexa é o fato de que, historicamente, o desenvol-
vimento tecnológico para o cuidado à saúde foi baseado em modelos lineares
convencionais de aplicação do conhecimento científico. (SOUZA, 2016) Nesse
aspecto, um problema crucial é que, no caso de sociedades modernas, mesmo
periféricas como a nossa, com forte herança da matriz cultural europeia, a
Ciclos de vida
Gestação e Infância e Idade Velhice e
Focos de prática
puerpério adolescência adulta morte
Propedêutica e diagnóstico XX XXX XX X
Prevenção e controle XXXXX XXXX XXX XX
Terapêutica e intervenção X XX XXX XXXX
Para responder essa questão, é preciso uma abordagem mais ampla acerca
da formação do profissional de saúde em geral. Hoje, acontece no mundo uma
transição muito rápida, quase não há condição de mensurar os efeitos da mas-
sividade da tecnologia na vida contemporânea. Tecnologias de uso cada vez
mais corriqueiro, com equipamentos e processos que têm grau de complexidade
muito grande, não mais são geridas pela lógica de valor/custo baseado em tempo
e energia, e sim no valor definido pelo conhecimento incorporado no produto.
De fato, a constituição de valor das mercadorias cada vez menos se define clas-
sicamente por uma base física dos produtos – matéria-prima, insumos mate-
riais etc. –, incluindo o tempo usado na produção numa definição convencional
cumulativa de carga horária. O capítulo V de O capital analisava a decomposi-
ção do processo de trabalho com base no processo de produção definido dessa
maneira. (AZHAR, 2017)
Hoje, processos automatizados podem tomar ainda algum tempo, decres-
cente em sua taxa de retorno, mas não mais tempo do que o trabalho humano.
O limite do trabalho humano é o limite do corpo, porém os limites da automação
não são mais o limiar físico da velocidade e da fadiga. O elemento mais funda-
mental desse processo de produção termina sendo o conhecimento embutido
nessa tecnologia e também no mecanismo de controle dessas máquinas, que se
chama “programação”. O produto intelectual formado por cadeias de algoritmos
designado como programação se torna, então, elemento essencial a ser agregado
à constituição de um valor que não usa mais as mesmas regras de entendimento
que eram válidas na época clássica do capitalismo industrial. (AZHAR, 2017)
Consideremos neste momento uma maquininha como qualquer telefone
celular da geração atual. Na constituição de seu valor, e daí seu preço, o custo do
material empregado é mínimo. O tempo utilizado para fazer essa maquininha
é pouco também, até porque todo o processo miniaturizado está praticamente
fora do alcance da capacidade manual humana, sendo, por isso, automatizado.
É, portanto, impossível de ser feito manualmente. O que se paga por um desses
aparelhos é muito mais a inteligência nele incorporada. Essa inteligência e seus
efeitos podem ser reproduzidos sem insumos físicos, de modo que, para cada
nova máquina, esse valor é replicado sem custos. Essa forma de agregação do
valor à mercadoria é totalmente distinta da forma clássica, porque o processa-
dor que opera esse equipamento custou muito pouco do ponto de vista da sua
materialidade – primeiro, porque seu núcleo de processamento é minúsculo e
foi fabricado num processo de quase total automação; e, segundo, porque seu
sistema operacional e aplicativos não têm materialidade alguma. Estamos, neste
momento, neste mundo, experimentando uma transição da qual não sabemos
os efeitos, porque começa com velocidade, intensidade e alcance muito grandes,
trazendo inclusive um componente social inesperado: a desigualdade de acesso
dos sujeitos aos usos e benefícios de produtos dessa natureza que também não
dá para ser medida pelos mesmos padrões e parâmetros do modo clássico de
produção. (PIKETTY, 2014)
COMENTÁRIOS FINAIS
Enfim, juntamente com uma consciência mais clara e crítica da implicação
social dos processos de produção de cuidado, precisamos dominar as formas de
aplicação das tecnologias desenvolvidas para as intervenções nos corpos sociais,
individuais e coletivos, para a promoção da saúde; tudo isso, agregado a uma
competência de uso dos saberes, práticas e técnicas de cuidado em saúde com
efetividade concreta. Trata-se, enfim, da competência fundamental de como
fazer aplicação da tecnologia no máximo da sua eficácia e eficiência, fazendo
dessa eficácia efetividade e transformação sustentável. Esse é o conceito que pro-
pus designar como “competência tecnológica crítica”. (ALMEIDA-FILHO, 2018)
No campo da educação em saúde, o maior desafio para a saúde coletiva e
seu subcampo da educação em saúde será a recriação de modelos de formação
capazes de tornar esse conceito, e outros similares, elementos de transforma-
ção ampla da injusta, desigual e precária realidade de saúde que define e aflige a
sociedade brasileira contemporânea. Nessa perspectiva, o profissional da saúde
do futuro deve ser capaz de aplicar modos matriciais de organização e articu-
lação do conhecimento desde suas etapas iniciais de formação. Isso implica
conhecer e praticar a inter-transdisciplinaridade, visando a contestar, criticar e
transgredir os modos antiquados de formação e de prática profissional, embora
respeitando as regras externas do processo de formação. Isso permitirá uma
compreensão mais clara do papel da tecnologia nos processos educativos para
REFERÊNCIAS
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CAPÍTULO 28
O MODELO DE FORMAÇÃO EM
SAÚDE DA UFSB COMO PROPOSTA
DE EDUCAÇÃO INTERPROFISSIONAL
INTRODUÇÃO
Acolhido por governos de vários países, o movimento da Atenção Primária
à Saúde (APS) ampliou a cobertura da oferta de serviços nos níveis básicos de
atenção à saúde e a demanda por formação de profissionais sensíveis às espe-
cificidades culturais das comunidades, com competência técnica e orientados
por conhecimento validado, capazes de atuar em equipe em regiões até então
desassistidas e responder às necessidades sociais. (STARFIELD; SHI; MACINKO,
2005) Nesse contexto de preocupação crescente com a construção de um tra-
balho em equipe, passou-se a enfatizar cada vez mais a necessidade de uma
educação interprofissional, com enfoque na humanização e na prática da inte-
gralidade da atenção à saúde. (FRENK et al., 2010)
2015) Nesse contexto, alguns autores, como Almeida-Filho e outros (2015) e Silva
e demais autores (2015), destacam o modelo de formação em ciclos e os Bachare-
lados Interdisciplinares em Saúde (BIS) como possibilidade de reorientação da
formação frente à necessidade de mudança na formação profissional em saúde.
Este texto tem como objetivo apresentar a fundamentação jurídico-norma-
tiva e ético-epistemológica do protótipo político-institucional de modelo de for-
mação em saúde da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Dessa forma,
pretende-se demonstrar sua potência para a formação de profissionais aptos à
prática colaborativa em saúde, capazes de prover atenção integral, humanizada
e resolutiva, com compromisso ético e pautados em conceitos ampliados de
cidadania. A metodologia utilizada incluiu revisão bibliográfica e documental,
bem como a análise dos registros pessoais dos pesquisadores.
1 “Profissionais de saúde para um novo século: transformando a educação para fortalecer os sistemas de
saúde em um mundo interdependente”.
A lei também estabeleceu que pelo menos 30% das atividades do internato
devem ser desenvolvidas em serviços de atenção básica e urgência e emergên-
cia no SUS, tornou obrigatório o cumprimento das DCNs e respeitou o tempo
mínimo de dois anos de internato. (BRASIL, 2013a) “No Capítulo II, que trata ‘Da
Autorização para o Funcionamento de Cursos de Medicina’, foram acrescenta-
dos parágrafos que reafirmaram [...] a obrigatoriedade de critérios de necessi-
dade social para a oferta do Curso de Medicina [...]”. (OLIVEIRA et al., 2017, p. 65)
Essas modificações definiram um novo marco regulatório para os cursos de
Medicina no Brasil, cuja abertura passou a exigir critérios relacionados com a
necessidade social e a estrutura da rede de serviços de saúde. Com isso, esta-
beleceu-se regulamentação específica para os cursos de graduação de Medicina
que extrapola a LDB. (OLIVEIRA et al., 2017) Em abril de 2014, o CNE aprovou
as novas DCNs, que incluem, ainda, uma avaliação nacional dos estudantes de
Medicina a cada dois anos, obrigatória e classificatória para os programas de
residência médica.
As DCNs e os demais instrumentos normativos acerca da formação profis-
sional em saúde reafirmam uma base comum para a educação, cujos princípios
devem buscar uma formação pautada em saberes e práticas nas diversas áreas de
conhecimento científico, enfatizando competências técnico-científicas, ético-
-políticas e socioeducativas contextualizadas. Esse profissional deve ser capaz
de conhecer e intervir sobre os problemas/situações de saúde, com senso de res-
ponsabilidade social e compromisso com a cidadania.
Entretanto, é forçoso reconhecer que, apesar da implantação das DCNs, pro-
mulgadas há quase duas décadas, permanecem grandes desafios às IES, espe-
cialmente no tocante a mecanismos de integração curricular, diversificação de
cenários de aprendizagem, articulação com o SUS, resgate da dimensão ética,
humanista, crítico-reflexiva e cuidadora do exercício profissional, assumindo uma
concepção ampliada de saúde. (BATISTA, 2012) De fato, o perfil dos profissionais
egressos das nossas IES continua direcionado à reprodução do modelo médico-
-assistencial hegemônico, o que, ao menos em parte, deriva da permanência de
um modelo de formação em saúde “elitista, centrado no hospital”, caracterizado
por “especialização precoce e orientado para tratamentos de alta complexidade”,
“fragmentado em especialidades” e que “desvaloriza a relação médico-paciente”.
(ALMEIDA-FILHO et al., 2014; TEIXEIRA; COELHO; ROCHA, 2013)
Na maioria dos cursos de saúde no Brasil, o ensino ainda se caracteriza
por práticas já superadas em contextos mais avançados de educação superior.
(ALMEIDA-FILHO et al., 2018) Costa (2007) ressalta a importância de repensar a
prática docente como parte das mudanças necessárias à formação de um novo
profissional de saúde, identificando a desvalorização do ensino, a falta de profis-
sionalização docente, o individualismo e a resistência a mudanças como alguns
dos problemas a superar. Faria e Silva (2013) entendem que mudanças na forma-
ção requerem a construção coletiva dos projetos pedagógicos, a coerência dos
currículos face às DCNs e, em especial, metodologias de ensino-aprendizagem
que promovam a interdisciplinaridade e o trabalho colaborativo.
Apesar do consenso de que a educação interprofissional pode contribuir
para a prática colaborativa, também são muitas as barreiras que dificultam essas
iniciativas: lógica e estrutura do ensino superior, incompatibilidade dos currícu-
los, dificuldades na articulação ensino-serviço, “uniprofissionalismo” e carên-
cia de apoio institucional. (AGUILAR-DA-SILVA et al., 2011; COSTA, 2016; SILVA
et al., 2015) Em resumo, “os profissionais continuam sendo formados separada-
mente para, no futuro, trabalharem juntos” (COSTA, 2016, p. 198), “persiste uma
formação inadequada dos profissionais que atuam ou irão atuar no sistema” e,
portanto, também há grande defasagem entre “ensino e realidade e aspectos
pedagógicos”. (MACHADO; XIMENES NETO, 2018, p. 1973)
2 Ver o texto “Formação Geral interdisciplinar no ensino superior: um (per)curso na UFSB”, na Parte III
deste mesmo livro.
COMENTÁRIOS FINAIS
Na medida em que o cuidado em saúde é realizado por profissionais com dife-
rentes formações que atuam sobre problemas de extrema complexidade, reali-
zando tarefas interdependentes, mas privilegiando as orientações provenientes
dos seus respectivos conselhos de classe, o setor da saúde é especialmente inte-
ressante para o estudo da educação interprofissional, particularmente no atual
contexto em que é pressionado a diminuir a fragmentação de suas práticas, seja
por razões de efetividade ou de custos. (D’AMOUR, 1997 apud AGUILAR-DA-
-SILVA et al., 2011)
No Brasil, a educação interprofissional ainda é incipiente e os resultados de
sua implementação são pouco conhecidos. (SILVA et al., 2015) Embora o SUS e
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TEIXEIRA, Carmen Fontes de Souza; COELHO, Maria Thereza Ávila Dantas; ROCHA,
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v. 18, n. 6, p. 1635-1646, 2013. Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/
csc/2013.v18n6/1635-1646/pt. Acesso em: 13 maio 2019.
CAPÍTULO 29
rafael patino
gabriela lamego
lina faria
INTRODUÇÃO
O presente trabalho reflete sobre o uso de metodologias participativas na forma-
ção dos estudantes dos Bacharelados Interdisciplinares (BIs) em Humanidades e
Saúde1 a partir da análise de experiências concretas nos componentes curriculares
Relações Sociais e Políticas na Contemporaneidade e do bloco temático Práticas
Integradas em Saúde. Defende-se que o uso de metodologias participativas, um
dos pilares que fundamentam a proposta pedagógica da Universidade Federal do
[...] o lado da ação carregado de energia no qual se entende que essa energia
implica, simultaneamente, cognição, afeto, avaliação, motivação e o corpo.
Longe de serem pré-sociais ou pré-culturais, os afetos são significados
sociais e relações sociais inseparavelmente comprimidos e essa é a explica-
ção que lhes confere sua capacidade de energizar a ação. (ILLOUZ, 2011, p. 9)
sugeridos pelos docentes, mas construíram relações e diálogos entre suas expe-
riências pessoais e as dos seus pares e as perspectivas teóricas pelas quais são
abordados os fenômenos estudados. Há, nesse processo, por meio de uma cons-
trução coletiva, um compromisso subjetivo no processo de aprendizagem, que
inclui ainda uma nova etapa em que os estudantes escolhem temas de interesse
para o desenvolvimento de seminários e outras discussões teóricas. É nesse sen-
tido que as dimensões emocional e cognitiva permitem um processo de elabora-
ção complexo sobre as temáticas tratadas no componente curricular.
2 Ver o texto “Caminhos pluriepistêmicos para educação e prática em saúde”, na Parte IV deste livro, que
descreve e analisa essa experiência.
diante da condição de vida dos moradores de rua deram lugar a outros, como
solidariedade, compaixão e admiração a partir do conhecimento das histórias de
vidas desses sujeitos. Reconheceram as dificuldades sociais, familiares e econô-
micas que muitos enfrentam (ou enfrentaram) em suas vidas, como abandono,
violência familiar, empobrecimento, falta de emprego e dependência de álcool
ou drogas. Aos poucos, os moradores de rua deixaram de ser grupo homogêneo
e despersonalizado para se tornar pessoas identificadas por nomes, histórias e
particularidades na sua vida sua cotidiana.
Segundo Feuerwerker, Costa e Rangel (2000), os processos de práticas que
envolvem diretamente as comunidades e territórios contribuem para a formação
de estudantes e demais profissionais como promotores de saúde, capazes de se
adaptar ao ambiente, atender à demanda da população e responder às necessi-
dades sociais de forma mais sensível e humanizada. O impacto da aprendizagem
nos cenários de prática nos componentes curriculares favorece uma formação
generalista, humanista, social e reflexiva, tendo como ponto de partida a cons-
trução de novos significados sobre os sujeitos e coletivos com os quais estabele-
ceram vínculos nos territórios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A principal motivação na construção deste texto foi o reconhecimento de que os
afetos e as emoções são dimensões importantes que participam do processo de
ensino e aprendizagem, se fazendo presentes de diferentes formas nas práticas
docentes. As emoções interferem na forma como estudantes discutem e apre-
endem conteúdos teóricos e vivenciam experiências práticas em seus processos
de formação acadêmica e em suas vidas cotidianas. Nesse sentido, essa perspec-
tiva contribui para o desenvolvimento de projetos orientados pelos princípios da
educação popular comprometidos com a autonomia dos sujeitos e a transforma-
ção da realidade.
Dessa forma, entendemos que incluir as dimensões emocional e afetiva
nos processos de ensino-aprendizagem permite uma maior articulação entre
as experiências vividas, os conteúdos e objetivos dos componentes curriculares
no processo de formação profissional. A dimensão afetiva é fundamental para a
construção de conhecimentos significativos e contextualizados, intensamente
vinculados aos problemas reais de territórios e comunidades. Por esse motivo,
sua consideração no planejamento das atividades de ensino e pesquisa é capital
dentro de processos orientados à solução de problemáticas concretas.
A experiência no componente curricular Relações Sociais e Políticas na Con-
temporaneidade permitiu discutir metodologias que favorecem e facilitam a emer-
gência das dimensões afetivas na sala de aula, objetivando a conexão de conceitos
e noções abstratas com experiências e problemáticas concretas. Entendemos que
essa estratégia metodológica constitui uma via prática, no campo da educação,
REFERÊNCIAS
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na educação superior no campo da saúde. In: TEIXEIRA, Carmen Fontes; COELHO,
Thereza Ávila Dantas Coelho (org.). Uma experiência inovadora no ensino superior:
Bacharelado Interdisciplinar em Saúde. Salvador: Edufba, 2014. p. 11-22.
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FARIA, Lina; SANTOS, Luiz Antonio Castro. As profissões de saúde: uma análise
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FREIRE, Paulo. Educação como prática para a liberdade. 26. ed. São Paulo:
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HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais.
São Paulo: Editora 34, 2003.
JAPIASSU, Hilton. A crise das ciências humanas. São Paulo: Cortez, 2013. eBook.
KOYRÉ, Alexandre. Estudios de historia del pensamiento científico. México, D.F.: Siglo
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MERHY Emerson Elias, FRANCO Túlio Batista. Por uma composição técnica do
trabalho em saúde centrada no campo relacional e nas tecnologias leves: apontando
mudanças para os modelos tecno-assistenciais. Saúde em Debate, Rio de Janeiro,
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MORIN, Edgar (org.). A religação dos saberes, o desafio do século XXI. Rio de Janeiro:
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STEIN, David. Situated learning in adult education. ERIC Digests, Columbus, OH,
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THOMPSON, Simon; HOGGETT, Paul (ed.). Politics and the emotions: the affective
turn in contemporary political studies. London: Continuum, 2012.
CAPÍTULO 30
CAMINHOS PLURIEPISTÊMICOS
PARA EDUCAÇÃO E PRÁTICA EM SAÚDE
INTRODUÇÃO
O Bacharelado Interdisciplinar (BI) em Saúde da Universidade Federal do Sul da
Bahia (UFSB) busca avançar no que se concebe e pratica como modelo de ensino e
aprendizagem em saúde. O BI em Saúde promove uma “formação interdisciplinar
de base humanística, artística e científica no campo da Saúde” (UNIVERSIDADE
FEDERAL DO SUL DA BAHIA, 2016, p. 9) e contribui para a consolidação de uma
instituição comprometida com o território no qual está inserida e sua comunidade.
O Projeto Pedagógico do Curso (PPC) propõe um percurso acadêmico que
reforça a autonomia de pesquisa e aprendizagem dos discentes. Dessa forma, o
curso é capaz de produzir distintas trajetórias acadêmicas entre os estudantes,
todas elas se encontrando necessariamente em Componentes Curriculares (CCs)
práticos que buscam desenvolver intervenções em saúde como mecanismo peda-
gógico e forma de inserção da instituição no território. Além disso, o curso se pre-
ocupa com a discussão do conceito ampliado de saúde e, para isso, possui como
uma das linhas de investigação os saberes tradicionais e populares em saúde.
esse último organizado em quatro blocos temáticos.1 Essas duas outras etapas
da formação não são hierárquicas, podendo ocorrer simultaneamente. Apesar
disso, seu cumprimento é obrigatório para a formação. Dentro da formação espe-
cífica, o CC Cultura, Saberes Tradicionais e Práticas em Saúde firma o primeiro
contato direto com a discussão dos saberes tradicionais de saúde e sua alteri-
dade em relação à biomedicina. Nele, os alunos são levados a encontrar mestres
dos saberes tradicionais ou pessoas com conhecimento de uma racionalidade
médica tradicional e, a partir da condução de um trabalho final, apresentam sua
pesquisa à turma, sobre outra tradição de cura e cuidado.
Ainda é nesse componente que há um interesse institucional de contratar
mestres dos saberes para participarem como professores convidados. Apesar de
isso ainda não ter ocorrido, é comum que mestres sejam convidados para parti-
cipar das apresentações dos alunos, contribuindo para a formação dos discentes.
Além desse CC, no núcleo comum da formação específica, em seu bloco temático
Bases Psicossocioculturais da Saúde, os CCs Bases Psíquicas, Sociais e Culturais
da Saúde (60h), Crenças, Religiões, Espiritualidade e Saúde (60h), Modelos de
Saúde-Enfermidade-Cuidado (60h) e o Racionalidades Médicas e Sistemas Tera-
pêuticos (60h) dão continuidade e aprofundam essa discussão.
A realização das experiências que relataremos está intimamente relacionada
a essa formação que valoriza não só a racionalidade biomédica como produtora
do cuidado e cura, mas também reconhece os saberes tradicionais e popula-
res que cumprem um papel substancial para a saúde e cura de diversas comu-
nidades. Os CCs da grande área da saúde possuem uma certa obrigatoriedade,
especialmente os do eixo teórico-prático que formam o bloco Práticas Integra-
das em Saúde. No último quadrimestre do ano de 2016 e no primeiro de 2017,
cursamos os seguintes componentes: 1. Práticas Integradas de Promoção e Vigi-
lância em Saúde, Espaço e Convivência; e 2. Práticas Integradas de Promoção
e Vigilância em Saúde Espaço de Convivência: Planejamento e Intervenção,
ambos pertencentes a esse bloco. Esses CCs são práticos e buscam, por meio do
desenvolvimento de pesquisa e de uma profunda análise do território – reali-
zando uma territorialização em saúde –, construir uma intervenção de saúde.
Conjuntamente com outros colegas, participamos da construção inicial do
que se tornou o projeto Rede Medicinal Pataxó: Educação e Saúde Integral Indí-
gena. Apesar de ter sido desenvolvido inicialmente dentro do espectro do CC de
Práticas, esse trabalho se expandiu e teve continuidade, sendo conduzido coleti-
vamente por discentes da UFSB e da equipe docente da Escola Indígena Pataxó
de Coroa Vermelha.
2 Retomada em 1972, mas somente declarada “de posse permanente indígena” em 1997, a Terra Indíge-
na de Coroa Vermelha é localizada entre Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália. (BOMFIM, 2012, p. 67)
Atualmente, as aldeias de Coroa Vermelha formam o que é considerado a maior aldeia urbana do Brasil.
O território de Coroa Vermelha foi conquistado após uma intensa mobilização do povo pataxó por suas
terras, reafirmando sua cultura e o direito de existir. A Escola Indígena Pataxó de Coroa Vermelha se
tornou um local para o fortalecimento da cultura pataxó, essa que durante os mais de 500 anos de colo-
nização sempre foi marginalizada e vítima de etnocídio. A escola indígena se constrói nas lutas sociais e
se tornou um centro para a comunidade. No seu surgimento, o espaço da escola era integralizado a uma
rede cultural, a qual era constituída por uma Unidade de Saúde da Família Indígena, salas de fitoterapia,
espaço para esportes e centros culturais. Ainda que no meio de conflitos e dificuldades, a tentativa per-
manente de retomada do trabalho de horta como sistema pedagógico marcou os últimos anos. Ainda é
importante recuperar que a escola cumpriu importante papel com o movimento de retomada da língua
ancestral patxohã. Ela se tornou local de reunião do grupo Atxohã – coletivo que reúne pesquisadores
pataxó e integrantes da comunidade para a retomada da língua ancestral, como Nayara Pataxó, Awoi,
Ajuru e Matalawe, importantes professores, pesquisadores e lideranças na difusão do patxohã e retoma-
da da língua do povo guerreiro. (SANTOS et al., 2017, p. 208)
apresentando seus conhecimentos sobre ela: sua história, suas formas de uso e
onde foi encontrada.
Nesse processo, cada aluno desenvolve uma pesquisa individual sobre uma
planta medicinal, que é registrada textual e graficamente. Com a produção de
desenhos e a partir desses trabalhos, a equipe do projeto organizará um livro.
O papel dos alunos da UFSB que participam do trabalho é o de condução dos
encontros, conjuntamente com a equipe docente da escola indígena, e a orga-
nização daqueles que envolvem os mestres pataxó. No decorrer das atividades,
os alunos são orientados a observar seu progresso na busca pelo saber. Essa
perspectiva pedagógica é fortemente inspirada pelo filósofo francês Jacques
Rancière (2002, p. 42): “É preciso ser sábio para julgar os resultados do traba-
lho, para verificar a ciência do aluno. O ignorante, por sua vez, fará menos e
mais, ao mesmo tempo. Ele não verificará o que o aluno descobriu, verificará
se ele buscou”.
É também inspirada nas propostas de Paulo Freire a partir de sua ótica trans-
formadora e emancipatória dos processos de ensino e aprendizagem. Já nas pri-
meiras páginas de seu livro Pedagogia da autonomia, Paulo Freire (2002, p. 13)
expõe que a verdadeira aprendizagem só ocorre com a emancipação do sujeito
durante sua formação: “[...] nas condições de verdadeira aprendizagem os edu-
candos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução
do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo”.
As atividades buscam estimular os alunos a serem pesquisadores e sistema-
tizadores dos saberes do próprio povo, pesquisando histórias e conhecimentos
dos mais velhos, bem como visitando as matas, jardins e hortas de plantas medi-
cinais. A partir dessa busca, pretende-se promover uma prática pedagógica for-
temente ancorada na emancipação, na pesquisa ativa, na interdisciplinaridade e
pluralidade epistemológica.
O trabalho permite não apenas que os alunos da escola indígena desenvol-
vam seu aprendizado, mas também nos leva, estudantes da saúde, a refletir sobre
o que é a saúde. Passamos a entender a ampliação desse conceito a partir de uma
experiência prática que nos lança, de um lado, à tradição medicinal pataxó e,
de outro, em uma intervenção pedagógica que visa à promoção da saúde. Esses
dois caminhos nos levam tanto a expandir teoricamente a apreensão de um con-
ceito, quanto a ampliar nossa percepção e experiência acerca do que significa
uma intervenção em saúde e sua possibilidade de inserção e reverberação social.
A proposta está ancorada na educação popular em saúde. Em seu desen-
volvimento, promoveu discussões que se atentavam principalmente acerca do
corpo e da saúde. Dessa forma, não nos atemos a doenças específicas, caracte-
rizando-as sob o modelo biomédico e estabelecendo uma relação vertical com
a comunidade-foco da ação em saúde. Buscamos, a partir da colaboração dos
mestres e das investigações dos alunos, promover uma saúde integral, que, para
além da patologia, está atenta à cultura, aos problemas sociais, à história e aos
saberes tradicionais.
Nossa participação como alunos da UFSB nesse trabalho nos apresenta inte-
ressantes desafios. Somos levados a desenvolver atividades pedagógicas, muitas
vezes conduzindo encontros acerca de temas a respeito dos quais podemos nos
considerar ignorantes. Nossos saberes em relação às plantas medicinais pataxó
são muito menores que os dos alunos da escola indígena. Mesmo assim, o local
que ocupamos está mais próximo do professor do que de um aluno. Como pensar
em uma atividade pedagógica na qual os papéis estão tão invertidos? Talvez essa
inversão seja um anseio da educação popular em saúde. A maioria das interven-
ções em educação popular busca conscientizar a população sobre algo que ela
desconhece, mas, para isso, faz uso de métodos capazes de promover uma troca
de conhecimento que pretende ser menos hierárquica. Nesse projeto sobre as
plantas medicinais, buscamos promover ações para que os alunos se aprofun-
dassem em conhecimentos do seu próprio povo e, nesse processo, levantamos
discussões promotoras de saúde. Somos, como sugere o título do celebre livro
de Rancière, O mestre ignorante. Nosso trabalho “encerra uma inteligência em
um círculo arbitrário do qual não poderá sair se não se tornar útil a si mesma”.
(RANCIÈRE, 2002, p. 27) Nesse sentido, a pedagogia emancipatória tratada por
Rancière serve como base dessa prática.
A força pedagógica desse método se confirmou ao longo das atividades. Se, em
um primeiro momento, os alunos afirmavam conhecer poucas plantas, ao decor-
rer dos encontros, foram capazes de desenvolver longas conversas com os mes-
tres sobre seu uso, local de plantio, época, modo de colheita, formas de preparo
dos medicamentos e também sobre as doenças e problemas de saúde, fossem eles
físicos ou espirituais. Estudantes que, em um primeiro momento, se mostravam
desinteressados passaram a aproveitar a presença dos mestres cada vez mais.
Outro movimento interessante foi a aproximação dos alunos dos seus paren-
tes que possuíam mais conhecimento. Assim, as avós, avôs, pais ou tios que já
eram referência como detentores de saberes passaram a estar mais próximos dos
alunos. Nesse movimento, outras receitas, usos das plantas foram aparecendo
nas escritas e falas dos alunos. Percebemos que grande parte dos estudantes pos-
sui algum parente que, de alguma forma, é uma referência sobre os saberes das
plantas medicinais.
Esse processo de reafirmação do conhecimento também levou os alunos a
se verem como detentores desse conhecimento. No início, os alunos se esqui-
vavam das discussões sobre as plantas e sempre se colocavam em um lugar de
desconhecimento total. Quando apareciam usos vindos dos estudantes, geral-
mente eram aqueles de plantas medicinais popularmente conhecidas, tais como
o capim-santo e a erva-cidreira, enquanto as plantas de sabedoria dos pataxó,
tais como a juçara branca, o cipó-caboclo, a carqueja, entre outras, ficavam mais
esquecidas. Com a presença dos mestres, como Dona Japira e Jonga, os jovens
foram se aproximando mais das plantas da restinga e da mata usadas pelos pajés
e mais velhos e, nesse processo, também mostravam que muito já sabiam desde
o início, mas não afirmavam esse saber.
4 Devemos essa reflexão a um riquíssimo encontro com o professor José Jorge de Carvalho, da Universi
dade de Brasília (UnB), quando, em uma discussão acerca do papel das universidades no que diz res-
peito aos saberes tradicionais, refletimos sobre o papel da expansão do SUS para comunidades que até
então tinham a medicina tradicional como principal forma de cuidado e cura.
5 Esse número se refere apenas aos povos originários, podendo, assim, ser aumentando se levarmos em
conta a impressionante presença de povos e culturas tradicionais de matriz africana e popular.
saúde. O trabalho com a educação em saúde é uma das tentativas que buscam
conter essa lógica colonizadora e autoritária da tradição biomédica no processo
de expansão do SUS.
Além dessas duas políticas supracitadas, destaca-se a referência à Política
Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, documento que busca
incorporar Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (Pics) dentro do
SUS. Essa política, por um lado, representa um avanço relativo à inclusão de
outras racionalidades médicas dentro do sistema de saúde – incorpora 29 tera-
pias complementares6 –; por outro, mostra um descaso quase absoluto com as
práticas populares de saúde do território nacional. A gama de terapias comple-
mentares inseridas nessa política abrange somente práticas de saúde não bio-
médicas já reconhecidas e consagradas dentro do espectro ocidental europeu e
norte-americano.
Dentro das Pics, a única prática que contempla a inclusão dos saberes popu-
lares é a fitoterapia e, com ela, busca-se afirmar a viabilidade do uso das plantas
pela Unidade de Saúde da Família Indígena. O eixo de fitoterapia está integrado
com a Política e Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (2016),
assim como uma série de ações que visam valorizar a prática fitoterápica dentro
do SUS. Entretanto, mesmo dentro do campo das plantas medicinais, encontra-
mos grandes desafios. A pequena lista de plantas aprovadas pelo SUS – 71 plantas
medicinais – parece demasiadamente redutora. Os alunos da Escola Indígena
Pataxó de Coroa Vermelha, com duas excursões a campo, foram capazes de cata-
logar mais de 80 plantas. A mestra Japira e seu companheiro, Jonga, afirmam
conhecer mais de 500 plantas de uso medicinal. Fica evidente o quão é insufi-
ciente essa lista de plantas medicinais, tendo em vista a dimensão da biodiversi-
dade nacional e a diversidade de tradições fitoterápicas.
Além disso, observou-se nos documentos institucionais7 que, em sua maio-
ria, as plantas empregadas pelo SUS obedecem à tradição ocidental do uso
fitoterápico, tais como: xaropes, cápsulas, tinturas, pomadas, óleos essenciais e
comprimidos, deixando de lado as garrafadas, banhos – cozidos, frios e fermen-
tados – e demais usos adotados pelas tradições indígenas, negras e populares.
Apesar desse cenário pouco otimista, é possível encampar produções capazes de
6 São elas: yoga, termalismo social/crenoterapia, terapia de florais, terapia comunitária integrativa, shan-
tala, reiki, reflexoterapia, quiropraxia, ozonioterapia, osteopatia, naturopatia, musicoterapia, medita-
ção, medicina tradicional chinesa (acupuntura), medicina antroposófica/antroposofia aplicada à saúde,
homeopatia, hipnoterapia, geoterapia, dança circular, cromoterapia, constelação familiar, bioenergé
tica, biodança, ayurveda, arteterapia, aromaterapia, apiterapia e plantas medicinais (fitoterapia).
7 Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (2006), Política e Programa Nacional de Plantas
Medicinais e Fitoterápicos (2016), A Fitoterapia no SUS e o Programa de Pesquisas de Plantas Medicinais
da Central de Medicamentos (2006), Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no
SUS (2015), Cadernos de Atenção Básica: Práticas Integrativas e Complementares; Plantas Medicinais e
Fitoterapia na Atenção Básica (2012), Formulário de Fitoterápicos da Farmacopeia Brasileira (2011), Me-
mento Fitoterápico da Farmacopeia Brasileira (2016).
SABERES DO MATO
Durante a execução do projeto da horta medicinal, passamos a secundar a produ-
ção de um livro de mestra Japira, que, em um dos encontros, nos procurou com
esse interesse. Antônia Santana Braz, conhecida como Japira, é pajé da Aldeia
Novos Guerreiros e tem, desde o início da fundação da UFSB, ministrado aulas
e participado de encontros na instituição. Participou da primeira realização do
Encontro de Saberes da universidade logo no seu início, em novembro 2014.
Foi convidada para participar de CCs do BI em Saúde, como: Cultura, Saberes
Tradicionais e Práticas de Saúde; e Educação Popular em Saúde, além de partici-
par de diversas rodas de conversa voltadas tanto para a história do povo pataxó
quanto para os saberes das plantas medicinais e cuidados em saúde.
Nascida em Barra Velha depois do Fogo de 51,8 Antônia Santana Braz carrega
na sua trajetória de vida a história e o conhecimento do povo pataxó do territó-
rio do extremo sul da Bahia. Japira é filha de Alfredo Braz, vice-cacique de Barra
Velha, e de Sebastiana, filha de pai negro e de Maria Rosa. A avó de Japira, Maria
Rosa, mais conhecida como Dona Neném, foi uma parteira pataxó que auxi-
liou em mais de mil partos e era considerada uma grande referência para toda
comunidade indígena da região da Aldeia Barra Velha. Ela foi uma das princi-
pais influências e inspirações na sua formação como pajé e liderança. Através de
Maria Rosa, Japira aprendeu sobre as plantas, rezas e trabalhos poéticos da cura,
o que constitui um amplo repertório de conhecimentos empregados para a cura,
o cuidado e o acolhimento.
Seu pai, Alfredo Braz, foi vice-cacique conjuntamente com Tururim Pataxó.
Ambos assumiram a liderança de Barra Velha logo após os acontecimentos
do Fogo de 51, evento que marcou a dispersão do povo pataxó em todo territó-
rio sul baiano e também mineiro. A trajetória de seu pai na liderança de Barra
8 O Fogo de 51 foi um massacre que marcou profundamente a história do povo pataxó. Ocorrido em 1951,
o evento possui importante espaço nas memórias da comunidade devido a sua brutalidade e crueldade.
Por dias, oficiais do aparato repressivo do Estado assassinaram, torturaram, estupraram e humilharam a
comunidade da aldeia-mãe Barra Velha – localizada próximo de Caraíva, Porto Seguro, na Bahia. A atro-
cidade é sempre presente nas falas das lideranças antigas e dos mais jovens, que a veem como símbolo
da perseguição à comunidade indígena, mas também como da resistência e força da comunidade, que
se manteve viva, lutando por suas terras, sua cultura e direito de existir. (CUNHA, 2013)
9 Aldeia Boca da Mata (1981), Ampliação da área de Coroa Vermelha (1994), Bairro Carajá (1998), Aldeia
Itapororoca (2005) e Aldeia Novos Guerreiros (2013).
põe a descrever as qualidades curativas uma planta, estas sempre aparecem atre-
ladas a aspectos mitológicos, poéticos, sensoriais e estéticos responsáveis por
qualificar seu uso. Podemos observar isso em passagens do seu livro em constru-
ção, no qual a agência curativa é estabelecida por outras qualidades, sensíveis.
Cipó-chumbinho: A origem dele é na terra, mas, assim que ele nasce, ele
topa uma árvore e vai se enrolando. Quando ele dá umas três voltas, ele tora
sua raiz, ficando preso só na árvore e vivendo no ar. Ele é um mato orgu-
lhoso, não gosta da terra, gosta de ficar no ar, por isso que ele é bom para
banho. Se você tomar esse banho, as coisas vão dar certo [...].
Ao falar dos usos da colônia, a mestra conta: Em Barra Velha, ela dava
dentro da mata. Quando morávamos na aldeia Corumbauzinho e íamos
para a aldeia Barra Velha, atravessávamos o córrego chamado Corumbau-
zinho, onde crescia muito dela na sua beira, na mata virgem, tinha o Bicho
Homem. O Bicho Homem gritava em cima e o córrego passava embaixo [...].
possibilita expandir essa relação, mostrando uma prática de saúde que floresce
também de um complexo simbólico, sensível e expressivo.
Os saberes de Japira são permeados por uma multiplicidade de percepções,
encontros e relações. São ao mesmo tempo facilmente entendidos como perten-
centes ao domínio das artes, das ciências vegetais, biológicas e humanas. Sua
sabedoria se distingue não somente no conhecimento enquanto tal – este se
vincula a outra metodologia de investigação das plantas, corpos e dos espíritos.
Seu trabalho permeia tantos campos do conhecimento por não fragmentar o seu
objeto de saber. A planta não é abordada somente a partir dos seus usos medi-
cinais; ela tem existência em sua vida cotidiana, na história de seu povo e na
perpetuação de sua cultura. Assim, vemos que os objetos de estudo da mestra
se encontram integrados a tantos campos do saber, pois se encontram inseridos
na sua vida em sua completude. Diferentemente da nossa ciência, que compar-
timentou a investigação do nosso universo, Japira integra a existência do objeto
à vida mais ampla, tornando sua abordagem imperativamente transdisciplinar.
No início do trabalho de construção do livro, Japira nos reportou uma extra-
ordinária quantidade de plantas que conhecia, chegando a centenas de plan-
tas medicinais. No primeiro momento, pensamos construir um livro de plantas
medicinais similar a um catálogo. A partir de uma extensa listagem das plantas,
iríamos abordar cada uma separadamente, escrevendo suas qualidades e usos.
Para isso, iniciamos uma série de incursões nas matas e na restinga, escrevendo
e fotografando as plantas que a mestra nos mostrava. Após termos coletado em
torno de uma centena de plantas, com somente dois dias de pesquisa, iniciamos
a escrita do texto.
Quando começamos, utilizávamos a seguinte metodologia: líamos as plan-
tas por nós catalogadas e, a partir disso, transcrevíamos o que Japira dizia acerca
dos seus usos e histórias. Apesar dessa proposta buscar trabalhar cada planta
individualmente, era muito difícil nos ater a somente uma. Falar de uma planta
sempre levava a uma extensa rede de relações na composição dos banhos, garra-
fadas e sumos. Uma planta nunca está só, e rapidamente Japira ia até sua horta e
nos trazia diversas espécies, sobre as quais muito falava, contava histórias, casos
e modos de uso. Essas histórias de cura se encontravam com as histórias de sua
vida e, assim, rapidamente uma complexa rede de relações se estabelecia.
A organização desse livro deveria ser capaz de abarcar as plantas em seus
múltiplos aspectos: não somente anunciar suas propriedades curativas, mas
tecer essas redes com a totalidade de seu universo curativo. Vimos que Japira,
quando se adentrava nos seus preparos curativos, construía uma extensa rede
de relações entre as plantas e outros elementos curativos, fazendo com que rara-
mente elas fossem abordadas sozinhas. Um exemplo disso é que, ao descrever a
aroeira, Japira apontou para uma lista de 17 plantas que podem se relacionar à
aroeira para formar banhos medicinais. Outro exemplo seria a relação estabele-
cida entre a pele do pé da galinha da angola, a aroeira, cajueiro e o mastruz no
trato de fungos de pé. A medicina da mestra é impressionantemente integrativa
– uma planta sempre está para outra. Assim, na composição dos preparos, os
efeitos de uma planta são, quase sempre, complementados e potencializados
com o uso de outra. Vimos, ao longo da escrita, a mestra tecer uma rica rede de
relações interespecíficas que conectavam diversas espécies de plantas, mas tam-
bém as integrava ao uso de parte de animais e a procedimentos terapêuticos de
ordem simbólica para o cuidado espiritual.
Outra importante característica de seu saber curativo é que, para a trans-
missão de seus conhecimentos, Japira recorrentemente buscava colher e ter em
mãos as espécies sobre as quais falava. Um nome de uma planta dificilmente
era capaz de despertar todas as informações que poderíamos receber sobre
elas. Quando a mestra segurava em suas mãos as folhas e galhos é que ocorria
a maior transmissão de saberes. Essa tomada das plantas em mãos demons-
tra que seu conhecimento se ancora em uma prática constante e se expressa
visando a comunicação ao outro, que torna parte da experiência do descobrir e
interage com o ente do conhecimento. Não há divisão entre saber teórico e prá-
tico. Conhecer as plantas é entrar em contato com elas, é encontrá-las no territó-
rio, produzir seus preparos, é ser afetado por essa ação transformadora frente ao
mundo. Nessa instância, podemos evidenciar uma proximidade da abordagem
de Japira do conhecimento com a de Paulo Freire (2013, p. 174): “a educação se
re-faz constantemente na práxis. Para ser tem que estar sendo”.
Podemos ver as plantas medicinais como agentes do saber. Elas guardam
parte do seu conhecimento, já que é no encontro com elas que eles são avivados,
recriados e expandidos. Para a mestra, o conhecimento não existe sem aquilo
que se busca conhecer; assim, deveríamos pensar que o próprio território arma-
zena seus conhecimentos, que estão permanentemente em construção e trans-
formação. As plantas não são estáticas; elas agem sobre a pajé quando ela se
lança a esse encontro. Essa interação é observada quando a mestra se aproxima
de uma planta e a ela são reveladas propriedades curativas, ou quando desper-
tam histórias de seu povo, ou agem na cura para além do corpo físico, se esten-
dendo a outros espaços de atuação, invisíveis, simbólicos e espirituais.
O desenvolvimento dos seus saberes sobre as plantas parte mais de uma
complexa abordagem sensível do mundo do que do armazenamento estrutu-
rado do conhecimento. Essa metodologia que consiste em gerir os encontros e
estabelecer outra comunicação com o ente do conhecimento é o que a mestra
diz ser a “visão diferente” do pajé, capaz de penetrar em um mundo oculto dos
seus saberes de cura. Quando indagamos a mestra sobre o que qualifica a distin-
ção do pajé para demais anciãos que muito sabem dos saberes medicinais, ela
responde: “a força espiritual só o pajé tem. O pajé tem uma visão, tem os olhos que
chegam mais longe”.
A relação estabelecida por Japira com a cura e com seu complexo fitote-
rápico, animal, ecológico e cosmológico é dramaticamente diferente daquela
adotada pela medicina hegemônica. Há um abismo que separa essas duas
medicinas. A prática curadora de Japira se volta para a relação com o outro,
parte por ser afetada nessa interação com plantas e pessoas. O corpo, para a
mestra, não é visto como espaço de intervenção a fim de sua normalização;
é um âmbito de relação. O cuidado dele perpassa por instâncias que buscam
conectar aspectos biológicos a poéticos, sensoriais, comunitários e cosmoló-
gicos – vemos uma abordagem integral da saúde. Outro importante ponto de
diferença entre esses modelos médicos consiste nos seus instrumentos curati-
vos. Enquanto, para Japira, as plantas, espécies animais e outros agentes cura-
tivos são entendidos como vivos, capazes de comunicar suas qualidades e usos,
para a biomedicina, os remédios são instrumentos estáticos da ação médica
sobre o corpo do outro. Para a pajé, “as plantas ensinam, qualquer planta que
você pega e faz o banho, você sabe para que ela serve”.
Essa relação com os elementos curativos ainda deve ser vista sob outro
ponto. Entendê-los como agentes vivos implica uma outra abordagem do pro-
cesso cura, sustentada sob outra ótica estética. Enquanto nossos remédios bus-
cam a configuração de uma estética da ausência, da anestesia, os da mestra se
voltam para a estesia, possuem cheiro, textura, poesias e histórias que buscam
ampliar a presença do ser em seu cuidado.
Todo esse trabalho tem nos ensinado antes uma forma de buscar o conheci-
mento do que necessariamente técnicas de cura. O papel dos mestres pode ser
muitas vezes nos ensinar como pensar e investigar o mundo, mais isso do que
necessariamente nos tornar capazes de dominar suas complexas técnicas de tra-
balho. Antes de aprender com Japira sobre suas plantas, devemos aprender com
ela como olhar, escutar, sentir e estar atento para o que ocorre a nossa volta.
Esses dois trabalhos mostram a potência que o BI em Saúde possui para o
avanço de uma formação em saúde capaz de se conectar e estabelecer diálogo
com os conhecimentos do território em que o curso habita. É a partir dessas
experiências que a instituição ganha força e sentido de existência, passa a afe-
tar seu território de atuação e a ser afetada por ele. O caminho a ser percorrido
pela UFSB não pode ser outro: realizar um enraizamento radical nas terras do
extremo sul baiano, criando uma relação com a comunidade local que valorize
seus saberes e contribua com seu crescimento e desenvolvimento econômico,
social e humano.
REFERÊNCIAS
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (Brasil). Formulário de
Fitoterápicos Farmacopeia Brasileira. Brasília, DF: ANVISA, 2018. Primeiro
Suplemento. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/documents/33832/259456/
Suplemento+FFFB.pdf/478d1f83-7a0d-48aa-9815-37dbc6b29f9a. Acesso em: 2 nov.
2018.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 54. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.
SANTOS, Cosme Araujo dos et al. Retomadas pataxó: língua, terra e cantos.
In: ENCONTRO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ETNOMUSICOLOGIA, 8., 2017,
Rio de Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2017. p. 204-212.
CAPÍTULO 31
Joelson: Acredito que temos aqui uma boa discussão que é sobre as cotas,
sobre a questão racial, sobre a universidade pública, a universidade integradora.
E temos uma discussão que já vem de muito tempo, que é sobre a educação, sobre
o papel da educação. Mas nós estamos com um grande problema, que é esquecer
o princípio, que consiste na terra e no território. Essas duas coisas são fundantes,
são o princípio e o modelo do trabalho. Esse modelo capitalista do trabalho foi
usado para produzir mais-valia, mas agora até para isso ele não vale. Até o traba-
lho escravo está se perdendo, pela apropriação que o capital fez da quarta revo-
lução tecnológica. O campo se esvaziou – e essa também foi uma estratégia, por
causa das revoluções violentas dos camponeses –, e levaram o povo para os gran-
des centros para ser mão de obra barata para o capital. E agora está chegando o
1 Este texto consiste no registro da roda de conversa realizada paralelamente ao Seminário Universidade
Popular e Pluriepistêmica, em 10 de julho de 2018 no campus Sosígenes Costa da Universidade Federal
do Sul da Bahia (UFSB), em Porto Seguro. Por se tratar de uma conversa realizada entre integrantes de
universos epistêmicos distintos, coube-nos manter, sempre que possível, os traços da oralidade. Trans-
crição e edição: Rosângela de Tugny.
José Jorge: Isso que você está colocando tem me preocupado muito, e cada um de
nós tem a sua perspectiva. A intervenção a que me dediquei foi na universidade,
que é o lugar onde atuo. Ela é racista e excludente. Então, a luta pelas cotas é de
trazer os excluídos para dentro: negros, indígenas, quilombolas, pessoas de baixa
renda. E em seguida, os saberes, que também estavam excluídos, vindos dessas
mesmas comunidades que estavam excluídas: dos indígenas, dos quilombolas, dos
afro-brasileiros. Devemos incluir esses saberes completando as cotas epistêmicas.
Assim, as cotas raciais dos jovens vêm com uma dupla inclusão: os jovens entram
para estudar e, quando eles entram, os sábios das comunidades deles estão ali para
ensinar. Se não, quando eles entram, como muitos dizem, eles vão mudar a cabeça
deles, vão branquear as cabeças e sair de lá quase negando as comunidades de
onde vieram. Então, eles têm que se espelhar nos sábios, inclusive porque temos a
ausência dos docentes negros. Temos um outro problema: entraram jovens negros,
mas nós não temos docentes negros. Vamos ter que ter docentes negros e mestres
negros. Nós ainda não aumentamos o número de docentes negros.
O outro ponto de que você fala é mais complicado. O debate colocado até
agora não mudou a natureza das universidades. Agora, temos que pensar nas
universidades pós-cotas, as universidades cotistas. Como que elas vão mudar?
As cotas foram a política que colocamos, lutamos para colocar, e a universidade
está do jeito que ela está. Aí entram os cotistas. Ela não pode continuar desse
jeito. Ela não é mais a universidade que era antes. Ela tem que pensar, na linha
do que você está falando. Os cotistas vêm das comunidades. Então, ela tem que
pensar numa educação de onde eles vieram. A UFSB [Universidade Federal do
Sul da Bahia] é uma que está com essa ideia: fazer uma formação básica; pensar
na figura do educador. E no meu caso, o que me preocupa nesse momento do
capitalismo, como você falou: os mestres e as mestras, eles vêm todos de comu-
nidades não capitalistas ou anticapitalistas. Ou vêm de assentamentos, ou áreas
quilombolas ou indígenas – são não monetarizados – ou povos de terreiro, cuja
maioria é de economia solidária e mesmo os das culturas populares que formam
sistema de cooperação solidários de baixo consumo. Eles não estão capturados
pela lógica do consumo. Se juntarmos agora, temos que pensar uma plataforma
para que da universidade se pense num projeto anticapitalista para o país. Jun-
tando tudo: cotas, Encontro de Saberes, as comunidades com seus representan-
tes, para pensar um projeto que no país nunca houve, um projeto de nação livre,
independente, soberana, socialista. Devemos começar este debate. Para mim, o
momento do nosso encontro é para formular por aí.
Kabengele: Partindo desse encontro aqui, que tem um foco central na questão
da educação – “que tipo de educação construir numa universidade que tem uma
proposta de universidade popular?” –, temos que pensar no próprio conceito
de educação, que é muito complexo e muito amplo. Tem a educação que vem
das comunidades culturais que compõem o Brasil, que começa no lar. E tem a
educação escolar. Educação escolar é monopólio de Estado. Em todas as socie-
dades, sejam capitalistas ou socialistas, ela sempre foi monopólio. No entanto,
essa educação como monopólio do Estado sempre foi construída com base em
uma visão do mundo, que é a visão do mundo ocidental. Num país como o Bra-
sil, que nasceu do encontro entre as culturas, do encontro de civilizações, um
país de diversidade por excelência, a gente tem que construir uma educação
plural, multicultural, em que nossos jovens, quando chegam na universidade,
em vez de se formarem simplesmente em uma única visão do mundo, que é
a ocidental, tenham uma educação que tem a ver com essa riqueza da diver-
sidade cultural. É preciso construir um modelo de educação no qual existam
diálogos interculturais, no qual essas culturas dialoguem entre elas, se enri-
queçam mutuamente, sem excluir ou os que vêm do mundo ocidental ou dos
outros mundos. Esse é o modelo de educação que a universidade que se diz
popular precisa construir.
Como fazer isso, se o modelo que é de referência é o ocidental, baseado em
uma educação monológica, sobre um conhecimento acumulado nos livros, que
parte dos clássicos, como se simplesmente fosse a única visão do mundo? Então,
devemos introduzir esses valores, através de discursos interculturais. Não há
como fazer isso sem incluir nessa educação outra visão do mundo. Daí essa
importância de incluir outros saberes. Não os saberes ocidentais. Por esses sabe-
res não ocidentais, passam filosofias de vida, passam conhecimentos medici-
nais, tecnológicos, incluindo esses modelos para dialogar com essa diversidade.
Assim, pode chegar um estudante indígena na universidade e, no dia seguinte,
ele ter uma aula sobre as culturas indígenas, sobre saberes indígenas (sem excluir
o Ocidente), que mostra que nenhuma é superior ou inferior, pois todas contri-
buíram na construção do Brasil. Acho que essa é a proposta desta universidade,
que é diferente das universidades elitistas.
Professor José Jorge trabalha com essa proposta dentro da UnB [Universi-
dade de Brasília] para trazer essa diversidade que passa por outros saberes. Isso
é um processo a ser construído. Não vai ser fácil. Vai encontrar barreiras nesse
meio hegemônico da educação. Para interromper com essas barreiras, tem que
passar por uma educação que conte ao mesmo tempo com professores de todas
as áreas da educação. Como nós vimos hoje: professores das artes, da matemá-
tica, da saúde, das ciências. Vimos um professor de matemática que tem uma
outra experiência da matemática que passa pela experiência do sensível e mostra
para os estudantes que a matemática resolve problemas da vida, questões prá-
ticas. Não ficam a especular o espaço sozinhos. Qualquer modelo de educação e
formação tem uma dose de subjetividade. O físico quântico, quando observa o
Não precisa ser negro para falar disso. Mas também não podemos destituir os
negros e as mulheres, porque eles têm experiências que fazem parte desse conhe-
cimento construído pela experiência do sensível, que é intransferível. E a gente
o tem incorporado para construir esse novo modo de pensamento. As comuni-
dades de assentamentos: por que vocês não podem entrar numa universidade
para ensinar as práticas que fazem? Por que não? Por que um mecânico não
pode entrar numa universidade para ensinar as suas práticas? Lembro-me que,
quando eu estudava ainda em Louvain, na Bélgica, na área de engenharia mecâ-
nica, eles chamavam operários especializados que sabiam e davam aulas de prá-
ticas de uso de máquina na Politécnica. Era um operário qualificado. Ele não
tinha diploma universitário. Você vai na área de educação física: imaginem uma
roda de mestres de capoeira na qual as pessoas se comunicam, na qual a per-
formance de cada um estimula o outro, sem competição para saber quem é o
melhor. Como você compara isso com uma fila indiana, a ginástica que se fazia
na escola da colonização, pulando, sozinho? Por que não pode mudar?
José Jorge: Eu acho que as cotas não são esmolas, ainda que se ouça esse
argumento.
José Jorge: Temos que fazer uma análise específica de cada situação para ver
qual é a estratégia para mudar esse quadro. As nossas universidades estão cons-
truídas de uma maneira muito desigual. O grupo docente é formado por 99% de
brancos. Então, para se aprovar uma proposta de transformação nela, que seja
dentro dela, ela tem que passar pelos conselhos. Então, tem que rachar o grupo
dos brancos. Necessariamente. Uma parte dos brancos tem que virar antirra-
cista e ser solidário com os indígenas, negros, quilombolas, para mudar o qua-
dro. A universidade começou existindo com todos os brancos no grupo da elite,
apoiando simplesmente a reprodução da elite. A um certo momento, com as
cotas, nós rachamos o grupo branco no interior da universidade. Kabengele lutou
como negro contra colegas que eram contra as cotas. Eu, como branco, lutei con-
tra colegas brancos que eram contra as cotas. Parece de fora que os brancos estão
concedendo aos negros e aos indígenas as cotas. Mas não é isso.
José Jorge: Não é pelo seguinte: o que fez rachar o grupo branco? A pressão e a
demanda dos negros e dos indígenas e outros grupos. Nesse momento, os bran-
cos dominam nas universidades, porque o número de docentes negros e indí-
genas é muito baixo. Então, tem que ter uma arena de luta no interior do grupo
branco, que inclua os antirracistas.
Edson Kayapó: Sou indígena do povo kayapó do Pará e Amapá. Estou atual-
mente trabalhando no Instituto Federal da Bahia (IFBA), campus de Porto
Seguro, como professor de História Indígena. Estive durante muito tempo como
coordenador da licenciatura indígena e estou na coordenação de um programa
que se chama Saberes Indígenas. Mas, antes de tudo isso, me considero um ati-
vista do movimento indígena em nível nacional. Eu tenho feito essa articulação
e, como as moedas são os títulos, faço questão de dizer que sou doutor em Histó-
ria pela PUC de SP [Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. Venho tam-
bém fazendo uma articulação que é institucional, tentando fazer frente a esse
racismo institucional. E como o Joelson estava com a palavra, volto para você e
depois continuo.
Joelson: Estamos aqui tentando fazer um diálogo para entender tanto essas
questões da universidade, da educação, o papel das cotas e de algumas questões
estruturais. Precisamos desmembrá-las e conhecê-las para que possamos melho-
rar nossa atuação e capacitar os nossos, que estão vindo para cá para assumirem
responsabilidade, não deles, mas da comunidade deles. Quando ele vem para cá,
foi porque teve uma luta, um processo, todo um arcabouço que fez um negro e
um índio chegar aqui pelas cotas e estudar. Temos o compromisso de defender
e manter as cotas. Mas isso não é um privilégio de um indivíduo; é um privilégio
da coletividade. E agora nós estamos num dilema: a entrada de negros e índios
dentro na universidade acarretou um ódio muito grande na sociedade brasileira.
O filho da empregada, o indígena, o quilombola, o povo preto, as mulheres
negras: todo esse pessoal que está entrando está dando outro colorido à univer-
sidade. Toda regra tem exceção; não podemos generalizar tudo isso. Mas a elite
e um público muito grande da pequena burguesia branca fazem um processo
de guerra total contra essas cotas, que eu digo que são o mínimo do mínimo dos
nossos direitos. Os povos indígenas perderam todo o seu território, pois eram
donos do país todo. Sofreram um genocídio que não tem dinheiro que paga.
Nós, povo preto, fomos trazidos da África para cá, sofremos genocídio, escra-
vidão e depois nos jogaram ao léu, sem casa, sem terra, sem pão, e ainda cons-
truíram cadeias para nos colocar lá dentro “por vadiagem”. A legislação daquela
época era para fazer isso. Antes, já tinha a Lei de Terras, que era para nos proibir
de ter terras, em 1850.
Então, eles criaram todo um arcabouço. E agora, a gente abre uma janelinha,
e eles ficam loucos. Inclusive, o golpe tem fruto disso aí. O golpe – que outros
chamam do impeachment da presidenta Dilma – foi uma aliança das elites bra-
sileiras com a classe média racista. Foi um golpe racista. Então, como é que nós
agora comentamos essas questões? Temos a necessidade de nos qualificar. Lutar
pelas cotas, mas, ao mesmo tempo, precisamos avançar, ir além das cotas.
Edson Kayapó: Como Joelson comentou, nós, povos indígenas, que nos iden-
tificamos como povos originários, desde o início da invasão europeia, sofremos
Kabengele: Antes, vou retomar o que discutíamos antes. Eles acham que é um
privilégio. O problema não é eles acharem que é um privilégio. O problema é eles
não quererem que os negros e os indígenas estejam nas universidades, para for-
mar elite, uma elite que vai competir com eles no comando do país, no mercado
de trabalho. Eles querem que os negros e os indígenas fiquem no lugar onde
estão. Se for só eles dizerem que é um privilégio, não tem problema. O problema
é que eles não querem que os negros estejam onde se forma a elite. E para mini-
mizar isso, eles usam os argumentos de mérito, da excelência, para diminuir,
rebaixar e dizer que eles não devem estar aqui. É um medo. O problema é que
eles não querem que se forme uma elite negra e indígena para estar no comando
do país, para competir, para mostrar que temos capacidade e competência como
eles.
Agora, temos de saber que a universidade é dirigida por homens e mulhe-
res que são racistas e não racistas. A universidade como instituição sozinha não
decide. São esses segmentos da sociedade que dirigem a universidade. Então, há
um conflito. Há um enfrentamento. A universidade não é uma coisa neutra. Há
homens e mulheres que pertencem às ideologias que se enfrentam, são contra
ou a favor. Há um enfrentamento com as pessoas que vão desqualificar os negros
e indígenas dizendo que é um privilégio, com esse discurso árido que conhece-
mos. Pessoas que não vão confessar que são racistas. Numa sociedade que se diz
não racista, eles vão encontrar outros argumentos para desqualificar a luta. Vão
se fechar nos conceitos de mérito, de excelência e de qualidade. Como se o outro
não tivesse mérito. Não é um campo livre. Vamos enfrentar argumentos.
Com isso, precisamos mobilizar e conscientizar estudantes. É por isso que o
ingresso de estudantes negros e indígenas na universidade é muito importante.
Contamos com isso para transformar a universidade. Estamos em um campo de
enfrentamento e precisamos de nos fortalecer. Por isso que costumo dizer para
os colegas que não desqualifiquem ou digam: “isso aqui o branco não pode dizer
porque é branco”. Não. São pessoas conscientes que querem transformar a socie-
dade e unir forças. Conquistar as cotas não foi fácil. O professor José Jorge sabe
o quanto lutamos. Chegamos na audiência pública e as pessoas sentiram a força
dos argumentos. Pessoas que defenderam cotas – tanto brancos quanto negros
– para mim são superiores em termos de qualidade de raciocínio do que outras.
aos ministérios, quer dizer que as cotas vão dando cargos de poder. Os indígenas
chegam a dirigir o Ministério do Meio Ambiente e decidem que não se mexe mais
na Amazônia. As cotas te qualificam para tomar o poder decisório do Estado.
É por isso que brigo por elas.
Kabengele: Joelson, você trabalha no Movimento Sem Terra. Sabe que nossas
bases populares são vítimas do racismo. Sentem a discriminação. Mas nem sem-
pre sabem como trabalhar. Eles precisam da liderança. Essa liderança vem de
onde? Vejam o caso de Ambedkar [Bhimrao Ramji Ambedkar], que foi um dalit
na Índia, um indígena, uma liderança, que no sistema de castas era o grupo dos
“intocáveis”. Ele estudou Direito na Inglaterra, passou pelos Estados Unidos,
encontrou os Black Panters, retornou para a Índia propondo grupos de eleitorado
separados para os “intocáveis”. Mahatma Gandhi não sabia o que fazer; entrou
em greve de fome, pois era contra as cotas. Não queria dividir o povo indiano.
Foi aí que chegou ao conselho e foi o relator da Constituição da Índia. E essa lide-
rança vem de onde? Da universidade.
José Jorge: Então, essa universidade, horrorosa do jeito que ela é, leva ao poder.
Joelson: Então, vamos voltar a essa questão que tentei colocar sobre a impor-
tância da cultura africana.
Falo de aportes. A gente não veio aqui para influenciar. Construímos culturas.
Trouxemos outras. Inventamos coisas. Criamos coisas.
José Jorge: É uma mudança muito grande. Quando ando pelos corredores do
Minhocão e penso como era aquilo no ano de 2000 e vendo agora, houve um
salto impressionante. Dei aula muitos anos em salas em que só havia estudantes
brancos. Agora isso não existe mais. A universidade está integrada racialmente.
Acho que agora temos até mais do que 50% de estudantes negros, e indígenas
também. Você conhece a maloca indígena? Um lugar de convivência dos estu-
dantes indígenas. Os estudantes ocuparam um outro espaço do minhocão que se
tornou o quilombo. Lá tem o Centro de Convivência Negra. Todo o tempo, há dis-
cussões, seminários. É uma enorme mudança. Agora estamos colocando a pro-
posta de cotas para toda a pós-graduação. Tem a educação do campo. E depois
vamos discutir a docência, para docentes indígenas e negros. É uma mudança.
Admito que é uma mudança positiva muito poderosa.
Joelson: Edson, os povos originários estavam aqui há mais de 12 mil anos. Você
poderia colocar aqui para nós qual a grande participação deles na construção da
cultura e em todo o processo de construção desse país e sobre a negação desse
povo e de sua sabedoria. Como você vê isso dentro das universidades?
Edson Kayapó: Primeiro, gostaria de fazer uma crítica aos livros didáticos e
aos professores de história particularmente, que, quando vão tratar das heran-
ças dos povos indígenas para a composição do povo brasileiro, geralmente men-
cionam coisas pouco significativas diante de tantas outras. E falam como se
os indígenas nem existissem mais: “nós brasileiros, herdamos dos indígenas o
hábito de tomar banho todos os dias”, “gostar de andar descalço, tomar banho
de chuva, comer peixe assado, comer farinha”, coisas muito pequenas diante de
uma contribuição tão grande. Outra coisa que gostaria de lembrar é que os estu-
dos arqueológicos, linguísticos, antropológicos, históricos, concluem que, no
tempo em que os portugueses aqui chegaram, havia aqui uma diversidade de
cerca de 1.200 línguas diferentes, havia uma população estimada em 10 milhões
de pessoas – nesse lugar que eles apelidaram de Brasil – e que compõem cente-
nas e centenas de povos diferentes. E, em um período de tempo muito pequeno,
houve uma política de genocídio e quase extermínio desses povos.
Mas diante de tanta resistência, hoje temos uma diversidade que é de mais ou
menos 300 línguas diferentes, 350 povos diferentes. E temos hoje uma resistência
que está posta. Hoje, a Amazônia preservada não é a Amazônia das m adeireiras,
das mineradoras e do agronegócio. A Amazônia preservada é onde os nossos
povos estão: garantindo para o mundo a preservação do espaço. E tem outra
viu e ficou satisfeita com aquela cena: ninguém estava correndo, brincando no
rio, subindo nas árvores. Só que ela viu uma cena, saindo pelo quintal da escola.
Lá ela se deparou com uma cena. Era um dia chuvoso, era uma aldeia de barro
vermelho. Tinha uma criança brincando no barro, carimbando a parede bran-
quinha com a mãozinha. Essa supervisora começou a gritar insistentemente
achando que tudo aquilo era um absurdo, porque ali tudo era sujo, as paredes
eram sujas de terra. Parecia um mantra: “sujeira” e “terra”. E aí, o pajé que via
essa cena disse: “Isso não é sujeira. Isso é terra. Isso é de onde nós viemos e para
onde iremos, mas não é sujeira”. E essa fala dele é uma fala originária. Aí a super-
visora fez silêncio e foi para outro lugar.
Então, para encurtar, uma lição que os povos indígenas estão dispostos a
ensinar é que terra, território, é espaço sagrado. A humanidade precisa aprender
isso. Enquanto ela não aprender isso, ela vai ficar agonizando com a terra aque-
cendo, as águas subindo, e o extermínio da humanidade em um período médio
de tempo. O que os povos originários estão dizendo é: “as onças são nossas irmãs,
as árvores são nossas irmãs, os pássaros são sagrados, o meio onde vivemos é
sagrado e as pessoas também são sagradas. Nós temos que respeitá-las e convi-
ver de maneira harmônica”. Se a humanidade quiser dialogar para aprender e
colocar isso em prática, acho que vai ser um bom ensinamento.
nem para sair. Então, temos que nos reconectar de novo com a gente. E foi Darcy
Ribeiro, acho, quem disse que “Somos a sociedade do futuro se nos descolonizar-
mos e construirmos uma perspectiva nossa”.
José Jorge: Você colocou de manhã uma observação para a África do Sul. Você
disse que chegou lá e perguntou quanto de terra os negros tinham e descobriu
que eram 13% de terra, sendo que formam 90% da população. Eu não sei do caso
do Brasil. Eu acho que, no Brasil, embora a população negra seja 50%, não deva
ter nem 5% de terra. Não deve ser proprietária de quase nada. As comunidades
quilombolas e indígenas formam 12%, mas, dentro desses 12%, a maioria são
terras indígenas. Então, calculo que seja menos do que 5%. Em área urbana, ela
não é proprietária. Você falou da Lei de Terras de 1850. Veja nosso histórico:
tivemos uma independência que não serviu para nada, uma abolição da escravi-
dão que não reparou nada. Não teve reparação em seguida, de nada. Uma repú-
blica que começou mais reacionária do que o Império que acabava, porque os
escravocratas deram um golpe quando houve a abolição da escravidão. Então,
começamos muito mal.
Teríamos que pensar agora na estratégia de todos os povos e um projeto de
uma nova independência, um projeto de emancipação revolucionária, vendo as
bases sociais de todos os mestres, unindo a população universitária com a popu-
lação dos assentamentos, dos quilombolas, das comunidades indígenas. Seria
vocês unirem o campo não branco da elite para fazer um novo projeto. Para mim,
é isso: como fazer uma proposta anticapitalista na base, pela base das comuni-
dades, pelas comunas? É o que me move neste momento, articular algo nesse
sentido. Como a Bolívia está fazendo. Como Álvaro Garcia Linera faz. Ele está
tentando retomar o modelo dos ayllus, que era o modelo tradicional de vida dos
indígenas nos Andes, para que ele seja a base de um Estado plurinacional socia-
lista. Tomar as comunidades indígenas como referência porque elas estão mais
ou menos livres dos velhos modelos eurocêntricos. Então, temos que fazer isso:
pegar os movimentos indígenas, quilombolas, assentados, todos os grupos dos
povos tradicionais, e aí fazer uma proposta com os grupos e movimentos urba-
nos e quilombos urbanos para pensar uma emancipação não só de classes, mas
de classes e comunidades tradicionais juntas.
Kabengele: Vou pegar um gancho com essa ideia da terra sagrada. Acho que
há uma mesma visão de mundo em várias culturas africanas. A terra é sagrada.
A vida brota da terra. Os ancestrais mortos são enterrados na terra. O mundo
dos ancestrais não é o céu, lá em cima, como na visão cristã. É embaixo da terra.
Então, a terra é sagrada e, sem ela, não há vida. Isso faz com que, na visão dos
africanos, a natureza – o mundo animal e vegetal – não seja separada do mundo
humano. Inclusive, há uma relação dialética de igualdade. Nesse sentido que
alguns animais têm o estatuto de realeza. O leão, por exemplo, não é consumido;
sua carne não é consumida. Ele é um animal real. Quando raramente é caçado,
é para servir de pele, como símbolo de poder e da autoridade que os reis usam.
Algumas aves também. Há esta relação de força vital entre o mundo animal, o
mundo vegetal e o ser humano.
É como passa o princípio de axé, que é a vitalidade dos mundos vivos em
relação de simbiose. É por isso que, em África tradicional, a terra não é proprie-
dade. Nem a palavra “propriedade” não se aplica, pois, na sociedade coletiva, o
rei não tem direito de vender a terra. A terra é um patrimônio social. Inalienável.
Você tem o direito de uso dentro de seu grupo étnico, mas você não pode tocar.
Você pode viajar e voltar e basta dizer que é filho de fulano e fulano, e a terra
é sua. Mas você não tem propriedade. Essa concepção de terra como sagrada,
entre os povos chineses também – na China tradicional –, os camponeses consi-
deravam a terra como sagrada. Eles usavam enxadas fininhas para não machu-
car a terra. E essa terra sagrada é que é um problema entre povos indígenas e
comunidades quilombolas.
Por que essa terra é ameaçada? Porque essa terra tem riqueza e não pode ficar
em suas mãos: tem que fazer agronegócio nessa terra. Aí não querem respeitar
os ancestrais, apenas querem ameaçar os povos. Aí é onde há uma decomposi-
ção das sociedades, onde entram drogas, entra prostituição, as doenças que eles
não conheciam. E a terra é um problema sério. Não há identidade sem território.
Você já viu um país sem território? Como nossas comunidades tradicionais vão
existir sem terra e território? Serão faveladas nas grandes cidades e acabou. É por
isso que a luta pela terra é importante para a preservação da vida dessas comu-
nidades indígenas e quilombolas. E eles não têm interesse em ver isso. Na África
do Sul, fizeram a mesma coisa. O apartheid pegou todas as terras dos povos indí-
genas, cerca de 87% ficou entre as mãos da minoria branca, os 15% da população
branca da África do Sul, os filhos dos bôeres, holandeses e alemães. Confisca-
ram, naquilo que chamaram de bantustões.
Joelson: A terra é sagrada, mas também parece que tem uma maldição aí:
Zumbi, Ganga Zumba e Dandara, que lutaram pela primeira república socia-
lista da terra, foram exterminados, o nosso povo do Haiti que fez uma revolução
importante e sangrenta, em que exigiam a terra, também foram neutralizados e
até hoje pagam o preço dessa maldição. E na África do Sul, quando eu estive lá, eu
fiquei com o coração cortado de ver a situação do nosso povo, sem terra, vivendo
em casinhas de pombo, sem ter nem onde botar o fogão. Uma coisa triste, depois
do apartheid. Fiquei de coração partido. Também fiquei preocupado com a indi-
ferença do nosso povo com essa questão.
José Jorge: A terra é central. O golpe é para tirar a terra, roubar a terra. Estão
vendendo terras na Amazônia. Terras da fronteira.
Edson Kayapó: Penso que três ações têm que ser feitas: os corações coloniza-
dores tem que ser amansados. Esse movimento tem que se dar obviamente no
diálogo e com muito ritual dos nossos povos que estão na exclusão para tocar
esses corações. O outro movimento é o de reencantar as relações humanas.
Esse sistema cartesiano desencantou. Houve um desencantamento. Tudo o que
era sagrado foi afastado. E a natureza foi vista como uma inimiga, como algo
que precisava ser dominado. Temos que promover um movimento de reencanta-
mento em que as pessoas se reconheçam como irmãs, efetivamente, e reconhe-
çam o meio como irmão, os rios, as aves, os animais. E o outro movimento, que é
complementar, que é de dizer que se o processo colonizador e a colonização do
pensamento por aqui se deram pela cabeça, através de ideias que vieram solapar
o que nós éramos naquele momento, a descolonização tem que acontecer com os
pés no chão, considerando que a terra é sagrada, porque é onde estão os nossos
antepassados, nossos ancestrais – e nesse sentido, o discurso dos povos originá-
rios é muito afinado com essa forma africana de pensar. Porque a terra é onde de
fato está toda nossa história, nossa memória, os nossos antepassados.
Então, com os pés na terra sagrada, vamos fazer um movimento de desco-
lonização, que é reconhecer toda essa riqueza da terra, que é onde está nossa
origem, onde estão nossos ancestrais, as forças sagradas, a energia sagrada que
move todas as coisas E o ser humano é muito bobo. Fica fazendo bagunça demais
sobre a terra, achando que a terra é um ser sem vida. E aí desmatam, poluem os
rios, promovem guerra pelo ar, pelo mar, pelos rios, pelo subterrâneo. A terra
está sendo até muito tranquila, porque ela pode se aborrecer com uma força
muito poderosa e inteligente. A terra pode se aborrecer dessa bagunça toda num
piscar de olhos. Ela pode se aborrecer e, por exemplo, congelar por mil anos e
depois voltar para ver se encontra algo mais interessante por aqui. A terra pode
dar “nota zero” para todo o mundo. Vamos acabar com isso aqui e organizar as
coisas. Penso que a universidade pode ter um papel fundamental nesses diálo-
gos todos, com o reencantamento das relações, com a descolonização do saber,
com a descolonização do poder, do pensamento. Ela tem que estar formando
tanto a população negra quanto a população indígena e a população do campo e
também essas pessoas que nós queremos que seus corações sejam amansados.
Porque parece que a maior parte das pessoas que estão nas universidades
são pessoas de coração colonizador e muito violentas. A universidade tem que
assumir o compromisso de amansar esses corações no diálogo com os saberes
ancestrais desses povos que historicamente foram transformados em grupos
da desigualdade. Nossas diversidades foram transformadas em desigualdade.
Nós precisamos, então, reverter essa situação, que é sair do campo da desigual-
dade e reivindicar o direito à igualdade, mas uma igualdade que respeite a diver-
sidade. Acho que a universidade tem um papel fundamental nisso tudo.
SOBRE OS AUTORES
Álamo Pimentel
Pedagogo, doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Professor associado do Programa de Pós-Graduação em Estado e Socie-
dade da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Trabalhou na Diretoria de
Ensino-Aprendizagem da Pró-Reitoria de Gestão Acadêmica entre 2015 a 2016.
Alessandra Reis
Graduada em Administração pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC)
e licenciada na área de Matemática e Computação e suas Tecnologias pela Uni-
versidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Campus Jorge Amado (CJA). Leciona
hoje Matemática em escola da rede privada da cidade de Itabuna.
Alírio Santos de Sá
Professor associado ao Departamento de Ciência da Computação (DCC) do
Instituto de Matemática e Estatística (IME) da Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Pesquisador do Laboratório de Sistemas Distribuídos (LaSiD) da UFBA.
Diretor de Infraestrutura de Tecnologia de Informação e Comunicação (TIC) da
Pró-Reitoria de Tecnologia da Informação e Comunicação (Protic) da Universi-
dade Federal do Sul da Bahia (UFSB) de 2014 a 2017.
Augustin de Tugny
Professor adjunto, doutor em Artes, Centro de Formação em Artes (CFA), Insti-
tuto de Humanidades, Artes e Ciências (Ihac) Sosígenes Costa, da Universidade
Federal do Sul da Bahia (UFSB).
E-mail: [email protected]
Daniel Puig
Professor adjunto do Centro de Formação em Artes (CFA) e ex-pró-reitor de Ges-
tão Acadêmica da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Coordenou a
implantação dos Complexos Integrados de Educação (CIEs), em parceria com a
Secretaria da Educação do Estado da Bahia (SEC-BA), e das Licenciaturas Inter-
disciplinares (LIs) nas diversas áreas da universidade.
Denise Coutinho
Professora associada do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
e colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, ambos da UFBA.
Membro da equipe fundadora da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
Dirceu Benincá
Doutor em Ciências Sociais com pós-doutoramento em Educação. Professor da
Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), campus Paulo Freire, em Teixeira
de Freitas, na Bahia.
E-mail: [email protected]
Edson Kayapó
Doutor em Educação e mestre em História Social, ambos pela Pontifícia Univer-
sidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e graduado em História pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente, é professor efetivo do Instituto
Federal da Bahia (IFBA), atuando na coordenação da licenciatura intercultu-
ral indígena, além de estar na coordenação adjunta da Ação Saberes Indígenas
na Escola da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e
Inclusão (Secadi), do Ministério da Educação (MEC).
Fabiana Lima
Professora adjunta da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Campus Jorge
Amado (CJA), e desenvolve projetos de pesquisa, extensão e criação em educação
e relações étnico-raciais, literatura afro-diaspórica, artes afro-diaspóricas, edu-
cação integral e formação docente. Foi coordenadora geral da Comissão Projeto
Paulo Freire da UFSB, Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI), Ministé-
rio da Educação (MEC), Secretaria da Educação do Estado da Bahia (SEC-BA).
Gabriela Lamego
Professora adjunta da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Doutora em
Saúde Pública pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da
Bahia (UFBA).
E-mail: [email protected]
Kabengele Munanga
Professor titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São
Paulo (USP), professor visitante sênior na Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia (UFRB). Uma apresentação do professor pode ser encontrada no capítulo
4, “Dois acadêmicos na luta pelas cotas e contra o racismo nas universidades”.
Lina Faria
Professora adjunta da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), campus
Sosígenes Costa. Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social
(IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
E-mail: [email protected]
Marina Miranda
Professora adjunta da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e integrante
da equipe técnica da UFSB no Projeto Paulo Freire, tendo orientado estudantes
licenciados bolsistas que fizeram parte desse programa de mobilidade acadê-
mica para formação docente. Mestre em Educação pela Universidade Federal
do Espírito Santo (UFES) e doutora em Educação pela Universidade Federal da
Bahia (UFBA).
Naomar de Almeida-Filho
Professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São
Paulo (USP). Professor credenciado do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Uni-
versidade Federal da Bahia (UFBA). Pesquisador I-A do Conselho Nacional de
Pablo Lafuente
Trabalha como curador, escritor e educador no Rio de Janeiro. Foi cocurador da
31ª Bienal de São Paulo, em 2014, e da mostra Dja Guata Porã: Rio de Janeiro
indígena, no Museu de Arte do Rio, em 2017-2018. Em 2015-2016, foi professor
visitante na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Atualmente, trabalha
como coordenador do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação no Rio de
Janeiro e está desenvolvendo, junto com Naiara Tukano, Sandra Benites e Mau-
ricio Fonseca, o projeto expositivo Sawé no Serviço Social do Comércio (Sesc) Ipi-
ranga, previsto para inaugurar em abril de 2020.
Rafael Patino
Professor adjunto da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Doutor em
Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia (Pospsi) da Universi-
dade Federal da Bahia (UFBA).
E-mail: [email protected]
Richard Santos
Professor adjunto do Centro de Formação em Artes (CFA) e do Instituto de Huma-
nidades, Artes e Ciências (Ihac) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB)
e credenciado do Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-
-Raciais da UFSB. Doutor em Ciências Sociais pelo Departamento de Estudos
Latino-Americanos (ELA) da Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Comu-
nicação pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Especialista em História e
Cultura no Brasil pela Universidade Gama-Filho. Graduado em Ciências Sociais
pela Universidade Metodista de São Paulo.
Rogério Ferreira
Pesquisador do campo da etnomatemática. Doutor em Educação. Mestre em
Matemática. Professor na Universidade de Brasília (UnB). Articulador do bloco
temático sobre saberes matemático-computacionais em suas interfaces com a
tecnologia e da construção do projeto pedagógico da Licenciatura Interdiscipli-
nar (LI) em Matemática e Computação e suas Tecnologias.
E-mail: [email protected]
Sérgio Gorender
Professor associado III do Departamento de Ciência da Computação (DCC) do
Instituto de Matemática e Estatística (IME) da Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Pesquisador do Laboratório de Sistemas Distribuídos (LaSiD) da UFBA.
Diretor de Sistemas da Pró-Reitoria de Tecnologia da Informação e Comunica-
ção (Protic) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) de 2014 a 2017.
Spensy K. Pimentel
Professor na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), atua nos bacharelados
e licenciaturas interdisciplinares de Artes, Saúde e Humanidades e na Forma-
ção Geral. Jornalista e antropólogo, tem mestrado e doutorado em Antropologia
pela Universidade de São Paulo (USP), com estágio de pesquisa na Universidade
Nacional Autónoma do México (UNAM). Realiza pesquisas entre povos indíge-
nas há 20 anos, atuando como consultor de órgãos públicos, Organizações Não
Governamentais (ONGs) e projetos artístico-culturais. Também atuou no jorna-
lismo impresso, internet e atualmente produz documentários.
Valéria Giannella
Professora adjunta, doutora em Políticas Públicas do Território, Centro de For-
mação em Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós-Graduação em Estado
e Sociedade, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (Ihac) do campus Sosí-
genes Costa, Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
E-mail: [email protected]
Vanner Boere
Graduado em Medicina Veterinária pela Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM), com especialização em Primatologia pela Universidade de Brasília
(UnB), mestrado em Psicobiologia pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN) e doutorado em Psicologia – Neurociências e Comportamento
pela Universidade de São Paulo (USP). Tem afiliação institucional ao Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências (Ihac) do campus Jorge Amado da Universidade
Federal do Sul da Bahia (UFSB).
E-mail: [email protected]