Felipe Bastos. Intermediação de Seguros

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ÍNDICE

Temas Atuais de Direitos dos Seguros - Volume I - Ilan Goldberg e Thiago Junqueira
Temas Atuais de Direitos dos Seguros - Volume I - (1.º Edição)

12

A quem serve o corretor de seguros?


Intermediação de seguros no Brasil, conflitos de
interesses e a cultura da não transparência

Felipe Bastos1
Sumário: 1. Introdução. 2. O mito da independência dos corretores de seguros. 3. Falta de
transparência e o comprometimento da independência de corretores de seguros no mundo. A) O
escândalo das comissões condicionais nos EUA. B) A regulação da transparência na intermediação de
seguros na União Europeia. C) A transparência na intermediação de seguros em Portugal. Do dever de
informar sobre vínculos contratuais com seguradoras ao dever de informar valores de suas
remunerações. D) A regulação da transparência na intermediação de seguros no Brasil. (i) Do
surgimento dos corretores de seguros ao domínio na intermediação. (ii) A oposição dos corretores de
seguros à concorrência na intermediação de seguros. (iii) A desregulamentação da atividade de
corretagem de seguros. (iv) Conflito de interesses e transparência. A resistência dos corretores ao dever
de informar clientes sobre suas remunerações. 4. Conclusões. Referências bibliográficas.

“Sunlight is said to be the best of disinfectants;


electric light the most efficient policeman.”
(Louis D. Brandeis)

1. Introdução

Para pessoas não envolvidas de forma mais profunda no complexo mercado de


seguros, a indagação que abre o título deste artigo pode parecer tola e sem sentido.
Afinal, na percepção bem difundida junto ao “homem médio”, o corretor de seguros é
um típico fiduciário, vale dizer, um profissional cuja atuação pressupõe lealdade,
diligência e um fluxo adequado de informação em favor do seu cliente, em resumo, um
agir fiel na busca do seu melhor interesse. Em termos práticos, o sentimento que paira
é de que o corretor deve atuar de modo independente na busca do melhor contrato de
1
Advogado, Mestre em Direito (LL.M.) pela University of Virginia School of Law, EUA, Pós-graduado
(MBA) em Direito Securitário pela Escola Nacional de Seguros, Sócio de Veirano Advogados.
seguro disponível ao seu cliente, dentro das diretrizes discutidas entre eles a partir de
fatores como preço, necessidade, capacidade de pagamento, abrangência de
cobertura, franquias etc.
Esse paradigma de atuação pauta a atividade da vasta maioria dos corretores e
corretoras nas relaçõesão mantidas com seus clientes. Porém, talvez para a surpresa
da quase generalidade de segurados, esse modelo de agir está longe de ser a realidade
para muitos dos principais corretores da indústria brasileira 2, conforme examinaremos
a seguir.

2. O mito da independência dos corretores de seguros

Consumidores do serviço de corretagem desconhecem que, no mundo real, muitos


corretores desempenham um papel duplo: respondem aos seus clientes segurados em
uma ponta, mas, na ponta inversa, mantêm vínculos perenes com determinada(s)
seguradora(s), com as quais possuem vínculos contratuais. Não estamos falando de
vínculos decorrentes de contratos de seguros, mas de contratos de serviços que
frequentemente preveem variadas formas de remuneração, metas de produção,
comissionamentos diferenciados, bônus e incentivos financeiros diversos, além de
formas não monetárias (assistência em TI, treinamento, suporte em marketing) ou
indiretas de remuneração (viagens etc.).3
A existência desse tipo de vínculo faz erodir a aura de independência dos corretores a
eles sujeitos. A ligação contratual, em maior ou menor grau, introduz um elemento
perverso de conflito de interesses e hábil a comprometer a atuação isenta e engajada
que geralmente é propalada com orgulho como signo da atuação do corretor.
O corretor, como qualquer agente racional, responde a incentivos. Para ficarmos em
um exemplo dos mais simples: se o corretor possui acordos de comissionamento mais
benéficos com as seguradoras A, B e C, é natural que ele direcione os seus clientes
preferencialmente mais a elas do que às seguradoras D, E e F, com quem ou não
possui acordos ou possui contratos em condições de remuneração menos favoráveis.
Se não fizer isto racionalmente, digamos que fará, no mínimo, subconscientemente.
Muitos corretores de seguros operam no Brasil nessas bases, sem revelar a clientes
que possuem tais vinculações contratuais com seguradoras. A praxe de que o
intermediário seja remunerado exclusivamente pela seguradora 4, aliada à ausência de
uma cultura de seguro entre os segurados e à falta de conhecimento por parte deles
(assimetria de informações) dos bastidores das relações securitárias, criam um campo
fértil para comportamentos eticamente duvidosos na intermediação de seguros.
2
Essa percepção equivocada não é apenas no Brasil. Pesquisa realizada no âmbito da OCDE demonstrou
que aproximadamente 80% dos respondentes acredita que corretores de seguros atuem com
independência. (OECD (2020), Regulatory and Supervisory Framework for Insurance Intermediation, p.
36. Disponível em: https://www.oecd.org/pensions/Regulatory-and-Supervisory-Framework-for-
Insurance-Intermediation.pdf. Acesso em: 09 ago. 2020).
3
OCDE (2020). p. 38.
4
Em diversos países, como Dinamarca, Finlândia, Noruega, Peru, Eslováquia e Eslovênia, o corretor de
seguros é remunerado somente pelo seu cliente (i.e., não pela seguradora). (cf. OCDE (2020). pp. 38-41).
Os corretores de seguros não têm o dever de revelar tais pactos a seus clientes – dirão
muitos deles, invocando vagamente a máxima fundada no princípio da reserva legal,
mas desprezando, ao menos em relação a consumidores, os deveres qualificados de
informação que lhes impõe o Código de Defesa do Consumidor há praticamente 30
anos.
Outro discurso frequentemente entoado é que tal informação não é suficientemente
relevante para ser revelada a seus clientes. Ora, se a informação é relevante ou não, é
o consumidor e não o corretor que deve ser soberano para decidir.
Se você, leitor, pudesse escolher entre contratar seguros por intermédio de um
corretor X, que possui contrato de produção de seguros, com previsão de
comissionamento diferenciado, metas e bônus de produtividade de vendas com duas
seguradoras (seguradoras A e B), ou com o corretor Z, que não tem vínculo contratual
com nenhuma seguradora, em quem você confiaria mais – mantidas todas as demais
variáveis constantes – para desenvolver um trabalho independente de pesquisa de
coberturas, cotação de preços etc., enfim, sobre o melhor seguro para você contratar?
A resposta não oferece nenhuma dificuldade.

3. Falta de transparência e o comprometimento da


independência de corretores de seguros no mundo

A) O escândalo das comissões condicionais nos EUA

Os debates em torno da falta de independência de muitos corretores de seguros são


antigos, mas somente agora estão aportando no Brasil.
Talvez o caso mais paradigmático que se propôs a discutir os limites da atuação dupla
dos corretores de seguros na história da indústria de seguros tenha sido o das
contingent commissions, que chamaremos aqui em tradução literal de comissões
condicionais ou comissões contingentes.5
Em 25 de agosto de 1998, o Departamento de Seguros do Estado de Nova Iorque
emitiu uma carta-circular a todos os corretores e seguradoras licenciados contendo
instruções relacionadas a uma alegada prática que tinha chegado a seu conhecimento:
corretores vinham recebendo de seguradoras, além das tradicionais comissões, uma
compensação não divulgada, em retribuição pela colocação de negócios, sem que tal
informação estivesse sendo repassada a segurados.6
Após meses de investigações, o advogado geral de Nova Iorque, Eliot L. Spitzer, ajuizou

5
Para mais detalhes sobre o episódio, confira-se o artigo de nossa autoria “A Regulação do Agente de
Seguros no Direito Brasileiro e sua Interrelação com a Atuação do Corretor de Seguros no País e no
Direito Comparado”. In: REIS, Adriana Marchesini dos et al. Sanção direta, regulação, seguro de recall,
arbitragem e sinistro (Em Debate, n. 8). Rio de Janeiro: Funsenseg, 2014. pp. 31 a 212.
6
Carta-circular disponível em: http://www.dfs.ny.gov/insurance/circltr/1998/cl98_22.htm. Acesso em
07 ago. 2020.
ação judicial contra uma corretora de seguros líder no mercado mundial sob a
acusação de atuação fraudulenta e violações às normas de defesa da concorrência nas
atividades de corretagem e contratação de seguros. As práticas denunciadas também
incriminavam diversas das maiores seguradoras. 7
Outros estados prontamente intensificaram ou deram início a investigações
semelhantes8, e Spitzer ingressou com ações similares contra outras empresas, além
de prosseguir com investigações contra diversas companhias seguradoras.
Apesar da enorme agitação causada pelas ações judiciais e investigações, os casos não
tiveram, em geral, vida longa. Isso porque as principais disputas se encerraram por
meio de acordos multimilionários firmados antes que qualquer decisão conclusiva
fosse proferida quanto ao mérito das acusações formuladas contra as corretoras de
seguros.9 10
Legislações foram modificadas após o imbróglio e vêm sendo continuamente
aprimoradas para reforçar a transparência na intermediação de seguros, intensificando
o dever de informação dos corretores para com segurados quanto a arranjos de
pagamento de comissões como aqueles denunciados por Spitzer.11-12

B) A regulação da transparência na intermediação de seguros na


União Europeia

No âmbito da União Europeia, a preocupação em torno da falta de transparência na


intermediação de seguros13 também não é recente. A Diretiva de Mediação de Seguros
(Diretiva 2002/92/EC), conhecida pela sigla IMD 14, foi a primeira a explicitar em âmbito

7
Conforme ABRAHAM, Kenneth S. Insurance Law and Regulation. Foundation Press, 2010. pp. 135-136.
8
O Estado de Illinois adotou iniciativa similar contra uma grande corretora.
9
Os acordos firmados pelo Estado de Nova Iorque estão disponíveis no sítio eletrônico do Department
of Financial Services do Estado de Nova Iorque: http://www.dfs.ny.gov/insurance/invstcomp.htm.
10
A enorme controvérsia em torno das comissões condicionais despertou imenso interesse acadêmico e
normativo, tanto nos Estados Unidos quanto em outros quadrantes do globo. Inúmeros estudos são
continuamente dedicados ao tema, muitos dos quais, registre-se, defendem benefícios desse tipo de
estrutura para o mercado de seguros e seus consumidores, persistindo a polêmica em torno do tema
(e.g., CHENG, Jiang; ELYASIANI, Elyas; LIN, Tzu-Ting. Market Reaction to Regulatory Action in the
Insurance Industry: The Case of Contingent Commission. The Journal of Risk and Insurance, v. 77, n. 2,
jun. 2010. p. 347-368; SCHWARCZ, Daniel. Beyond Disclosure: The Case for Banning Contingent
Commissions. Yale Law & Policy Review, v. 25, n. 2, (SPRING 2007). p. 289-336).
11
Consigne-se que há nos Estados Unidos muitos defensores da tese de que corretores não têm um
dever afirmativo de voluntariar a segurados a existência de algum vínculo ou de recebimentos adicionais
de seguradoras com quem operam. Segundo os cultores desse raciocínio, o dever de informação
somente surgiria sempre que (e somente se) assim perquirido pelo segurado. Por todos, consulte-se
RICHMOND, Douglas R. New Appleman on Insurance Law. Library Edition, Cap. 2. Lexis Nexis, 2009.
12
Apenas a título de curiosidade, Eliot Spitzer se elegeu mais tarde Governador do Estado de Nova
Iorque.
13
A Diretiva 2002/92/EC define “Intermediação de Seguros” como “as atividades que consistem em
apresentar, propor ou praticar outro ato preparatório da celebração de um contrato de seguro, ou em
celebrar esses contratos, de apoiar a gestão e execução desses contratos, em especial em caso de
sinistro.”
14
Acrônimo de Insurance Mediation Directive.
comunitário o conceito de “tied insurance intermediary” (intermediário15 de seguros
vinculado16 a uma seguradora) e a regular de modo específico a relação cliente-
intermediário de seguros quando este último possuir laços contratuais de produção
com seguradoras. O Artigo 12º da diretiva impunha expressamente ao intermediário
de seguros nesta situação o dever de prestar tal informação ao seu cliente 17:

Além disso, o mediador de seguros deve indicar ao cliente, no que se refere ao contrato
que é fornecido:
[...]
ii) Se tem a obrigação contratual de exercer a actividade de mediação de seguros
exclusivamente com uma ou mais empresas de seguros. Nesse caso e a pedido do cliente,
deve também informá-lo dos nomes dessas empresas de seguros; ou
iii) Se não tem a obrigação contratual de exercer a actividade de mediação de seguros
exclusivamente com uma ou mais empresas de seguros e se não baseia os seus conselhos
na obrigação de fornecer uma análise imparcial prevista no n.º 2. Nesse caso e a pedido
do cliente, deve também informá-lo dos nomes das empresas de seguros com as quais
trabalha.
Nos casos em que se preveja que determinada informação é dada apenas a pedido do
cliente, este deve ser notificado do direito de pedir essa informação. (grifos nossos)

Como se vê, há cerca de 18 (dezoito) anos vigora na União Europeia norma que
contempla o dever do mediador de seguros, entre os quais o corretor de seguros
revelar ao cliente se possui vínculo contratual com alguma seguradora e, mesmo se
não o tiver, informar com quais seguradoras trabalha no caso concreto.18
A IMD foi substituída pela Diretiva de Distribuição de Seguros (UE) 2016/97, mais
conhecida pela sigla em inglês “IDD” (insurance distribution directive).
Se a sua predecessora já criava deveres de informação a intermediários de seguros, a
nova diretiva, em vigor desde 1º de outubro de 2018, teve o declarado propósito de
ampliar ainda mais a proteção ao consumidor de seguros nesse aspecto.
Diversamente da IMD, as normas previstas na IDD não estão limitadas à mediação de

15
Na versão da diretiva em língua portuguesa a expressão é traduzida como “mediador de seguros
ligado”.
16
A diretiva define o intermediário de seguros vinculado (ou mediador de seguros ligado) como “[...]
qualquer pessoa que exerça uma atividade de mediação de seguros, em nome e por conta de uma
empresa de seguros ou de várias empresas de seguros, caso os produtos não sejam concorrentes, mas
que não receba prêmios nem somas destinadas ao cliente e atue sob a inteira responsabilidade dessas
empresas de seguros, no que se refere aos respectivos produtos. [...] Considera-se igualmente mediador
de seguros ligado, agindo sob a responsabilidade de uma ou várias empresas de seguros, no que se
refere aos respectivos produtos, qualquer pessoa que exerça uma actividade de mediação de seguros,
em complemento da sua actividade profissional principal, sempre que o seguro constitua um
complemento dos bens ou serviços fornecidos no âmbito dessa ocupação principal e que não receba
prémios nem somas destinadas ao cliente; [...]”.
17
O Artigo 13 da diretiva cuidava da forma/dos meios de prestação das informações impostas ao
intermediário de seguros pelo Artigo 12.
18
Para uma análise mais profunda da IMD, cf. o nosso artigo já citado na obra: REIS, Adriana Marchesini
dos et al. Sanção direta, regulação, seguro de recall, arbitragem e sinistro (Em Debate, n. 8). Rio de
Janeiro: Funsenseg, 2014.
seguros. A IDD mudou e ampliou o seu foco, tendo passado a disciplinar, sempre com
o consumidor como epicentro, todas as múltiplas formas de “vendas” (distribuição 19)
de seguros20. Além dos tradicionais mediadores de seguros tratados pela IMD, cujo
conceito foi alargado21, a IDD também fixou regras para a venda direta de seguros pela
seguradora, a venda a título acessório por outros agentes econômicos (locadora de
automóveis, agência de viagens, supermercados etc.) 22, a venda de seguros por meio
de sítios de Internet de pesquisa e comparação de preços (aggregators) etc.
Em suma, a diretiva objetiva assegurar o mesmo nível de proteção ao consumidor de
seguros independentemente do canal de distribuição de seguros utilizado 23.
Os Artigos 17º a 25º da IDD traçam requisitos de informação e regras de conduta da
atividade de distribuição de seguros. Como princípio geral, os distribuidores de seguros
devem atuar “de forma honesta, correta e profissional, em conformidade com os
melhores interesses de seus clientes”, não devendo ser remunerados de um modo que
colida com o seu dever de agir de acordo com os melhores interesses dos seus
clientes.
A diretiva ainda avança no sentido de intervir também no âmbito interno de
organização dos distribuidores de seguros de pessoas jurídicas, recitando que

[...] um distribuidor de seguros não pode recorrer a mecanismos de


remuneração, de objetivos de vendas ou de outro tipo, suscetíveis de
19
A diretiva define “Distribuição de Seguros” de maneira ampla como “as atividades que consistem em
prestar aconselhamento, propor ou praticar outros atos preparatórios da celebração de contratos de
seguro, em celebrar esses contratos ou em apoiar a gestão e a execução desses contratos, em especial
em caso de sinistro, incluindo a prestação de informações sobre um ou mais contratos de seguro, de
acordo com os critérios selecionados pelos clientes através de um sítio na Internet ou de outros meios e
a compilação de uma lista de classificação de produtos de seguros, incluindo a comparação de preços e
de produtos ou um desconto sobre o preço de um contrato de seguro, quando o cliente puder celebrar
direta ou indiretamente um contrato de seguro recorrendo a um sítio na Internet ou a outros meios;”
(Artigo 2º, 1., item 1)).
20
Considerando (7) “A aplicação da Diretiva 2002/92/CE veio demonstrar que diversas disposições terão
de ser melhor esclarecidas com vista a facilitar o exercício de distribuição de seguros e que a proteção
dos consumidores exige o alargamento do âmbito de aplicação da referida diretiva a todas as vendas de
produtos de seguros. As empresas de seguros que vendem produtos de seguros diretamente deverão
passar a ser abrangidas pela presente diretiva de forma semelhante ao que acontece com os agentes e
corretores de seguros.”
21
“Mediador de seguros” é definido como “uma pessoa singular ou coletiva, com exceção de empresas
de seguros ou resseguros e dos seus empregados e de mediadores de seguros a título acessório, que
inicie ou exerça, mediante remuneração, a atividade de distribuição de seguros;” (Artigo 2º, 1., item 3).
22
Considerando (8) “A fim de garantir que seja aplicado um mesmo nível de proteção
independentemente do canal através do qual os clientes adquirem um produto de seguros, diretamente
junto de uma empresa de seguros ou indiretamente, através de um mediador, o âmbito de aplicação da
presente diretiva deve abranger não só as empresas ou os mediadores de seguros, mas também outros
intervenientes no mercado que vendam produtos de seguros a título acessório, como, por exemplo,
agências de viagens e empresas de aluguel de automóveis, a menos que satisfaçam as condições de
isenção.”
23
Considerando (6) “Os consumidores deverão beneficiar do mesmo nível de proteção, apesar das
diferenças entre os canais de distribuição. A fim de garantir que seja aplicado o mesmo nível de
proteção e que os consumidores possam beneficiar de normas comparáveis, nomeadamente no
domínio da divulgação de informações, é essencial promover a igualdade de condições entre os
distribuidores.”
constituir um incentivo, para si ou para os seus empregados, à
recomendação de um determinado produto de seguros a um cliente,
quando o distribuidor de seguros poderia propor um produto de seguros
diferente que correspondesse melhor às necessidades desse cliente.

Incentivo, para fins da IDD, é definido pelo art. 2º, alínea 2, do Regulamento Delegado
(UE) 2017/2359, em uma conotação bastante ampla também:

“Incentivo”, qualquer remuneração, comissão ou qualquer benefício


fornecido ou recebido por um mediador ou empresa relacionado com a
distribuição de um produto de investimento com base em seguros, ou
fornecido ou recebido por qualquer terceiro distinto do cliente que
participe na operação em causa ou qualquer pessoa que atue em nome
desse cliente.

A IDD exige que, com a devida antecedência em relação à celebração de um contrato


de seguro, o mediador de seguros se identifique como tal perante os seus clientes e
ainda, entre outras coisas, informe “se atua em representação do cliente ou em nome
e por conta da empresa de seguros” (Artigo 18º, alínea “a”, item “v”).
A diretiva não proíbe de forma a atuação do mediador de seguros em situações de
potencial conflito de interesses. Em lugar disso, ela adota uma solução menos enérgica
para mitigar suas externalidades, privilegiando a criação para o mediador de seguros
de um conjunto de deveres positivos de informação ao cliente:
Artigo 19º
Conflitos de interesses e transparência
1. Os Estados-Membros asseguram que, com a devida antecedência em
relação à celebração de um contrato de seguro, um mediador de seguros
informe os seus clientes, pelo menos:
a) de qualquer participação, direta ou indireta, igual ou superior a 10 %
nos direitos de voto ou no capital que tenha numa determinada empresa
de seguros;
b) de qualquer participação, direta ou indireta, igual ou superior a 10 %
nos direitos de voto ou no capital do mediador de seguros detida por uma
determinada empresa de seguros, ou pela empresa-mãe de uma
determinada empresa de seguros;
c) em relação ao contrato proposto ou sobre o qual tenha prestado
aconselhamento:
i) se baseia os seus conselhos numa análise imparcial e pessoal,
ii) se tem a obrigação contratual de exercer a atividade de distribuição de
seguros exclusivamente com uma ou mais empresas de seguros, caso em
que deve também informá-lo dos nomes dessas empresas de seguros, ou
iii) se não tem a obrigação contratual de exercer a atividade de distribuição
de seguros exclusivamente com uma ou mais empresas de seguros e se
não baseia os seus conselhos numa análise imparcial e pessoal, caso em
que deve também informá-lo dos nomes das empresas de seguros com as
quais trabalha;
d) da natureza da remuneração recebida em relação com o contrato de
seguro;
e) se, em relação com o contrato de seguro, trabalha com base:
i) em honorários, ou seja, na remuneração paga diretamente pelo cliente,
ii) numa comissão de qualquer tipo, ou seja, na remuneração incluída no
prémio de seguro,
iii) noutro tipo de remuneração, incluindo qualquer vantagem económica
oferecida ou concedida em conexão com o contrato de seguro, ou
iv) numa combinação de qualquer dos tipos de remuneração especificados
nas subalíneas i), ii) e iii). [...]

A IDD dispõe ainda sobre informações mínimas a serem prestadas pelos distribuidores
de seguros conforme preste aconselhamento24 ao cliente (Artigo 20º).25
Segundo a Comissão Europeia26, sob o prisma dos distribuidores de seguros, as regras
da IDD propiciariam um ambiente de competição mais equilibrado e justo. O aumento
na confiança de segurados em seguros decorrente da aplicação da IDD levará a
maiores oportunidades de negócios também.
A IDD estabelece diretrizes27 e princípios gerais mínimos de harmonização. Isso
significa dizer que os Estados-Membros, ao transporem-na ao seu direito interno,
podem ou adotá-los tais quais previstos na IDD ou introduzir disposições ainda mais
rigorosas destinadas a proteger os clientes, desde que as normas em âmbito nacional

24
Aconselhamento é definido como “a formulação de uma recomendação pessoal a um cliente, quer a
seu pedido quer por iniciativa do distribuidor de seguros, em relação a um ou mais contratos de
seguro;” (Artigo 2º, nº 1, item 15).
25
Os requisitos formais das informações que devem ser prestadas compulsoriamente pelo mediador de
seguros a seus clientes são disciplinados pelo Artigo 23º da IDD. Como regra geral, as informações
devem ser prestadas em papel (por escrito), com clareza, exatidão e de uma forma compreensível para
os clientes, a título gratuito e no idioma oficial do respectivo Estado-Membro. As informações poderão
ser prestadas em outro suporte duradouro diferente de papel ou por meio de um sítio da Internet, se
tais meios forem consistentes e apropriados no respectivo contexto da relação comercial entre o
distribuidor de seguros e o cliente, e se assim for consentido pelo cliente.
26
Disponível em: https://ec.europa.eu/newsroom/fisma/item-detail.cfm?
item_id=636925&utm_source=fisma_newsroom&utm_medium=Website&utm_campaign=fisma&utm
_content=Insurance%20distribution%20&lang=en.
27
Diretivas são instrumentos normativos vinculantes em relação à finalidade por ela prescrita, mas deixa
espaço aos Estados-Membros para a escolha da forma e do método de implementação. Conforme
esclarecem CRAIG e DE BÚRCA, “[d]irectives are particularly useful when the aim is to harmonize the
laws within a certain area or to introduce complex legislative change. This is because discretion is left to
Member States as to how the directive is to be implemented.” (CRAIG, Paul; DE BÚRCA, Gráinne. EU
Law – Text, Cases, and Materials. 4 ed. New York: Oxford University Press, 2008. p. 85).
sejam consentâneas com os direitos da União Europeia e com a IDD. 28 A segunda
opção (maior rigidez) foi a adotada, por exemplo, por Portugal, conforme veremos a
seguir.

C) A transparência na intermediação de seguros em Portugal. Do


dever de informar sobre vínculos contratuais com seguradoras ao
dever de informar valores de suas remunerações

Previamente à transposição da IDD ao direito português, vigia o Decreto-lei nº


144/2006, que por sua vez havia transposto a IMD para o âmbito legislativo interno. O
Artigo 8º do Decreto-lei nº 144/2006 previa três tipos de mediadores de seguros: (a)
mMediador de seguros ligado29 30; (b) agente de seguros31 e (c) corretor de seguros32.
Logo se vê que, mesmo antes da IDD, o direito português já contemplava
expressamente a figura do mediador de seguros ligado (o “tied insurance
intermediary” da IMD) como um sujeito vinculado por contrato com seguradora(s),
mas com contornos diversos do agente de seguros e mais diferentes ainda do corretor
de seguros.
A IDD (Diretiva (EU)– eu – 2016/97) foi transposta ao direito português em 16 de
janeiro de 2019, por meio da Lei nº 7/2019, que revogou o Decreto-lei nº 144/2006.
A Lei nº 7/2019 repete essencialmente, com algumas adaptações, o regime jurídico da
distribuição de seguros e resseguros traçado pela IDD.

28
Nesse sentido, confira-se o Considerando (3) da IDD.
29
Categoria em que a pessoa exerce a atividade de mediação de seguros (alínea “a”):
- Em nome e por conta de uma empresa de seguros ou, com autorização desta, de várias empresas de
seguros, desde que os produtos que promova não sejam concorrentes, não recebendo prêmios ou
somas destinados aos tomadores de seguros, segurados ou beneficiários e atuando sob inteira
responsabilidade dessa ou dessas empresas de seguros, no que se refere à mediação dos respectivos
produtos; ou
- Em complemento da sua atividade profissional, sempre que o seguro seja acessório do bem ou serviço
fornecido no âmbito dessa atividade principal, não recebendo prêmios ou somas destinados aos
tomadores de seguros, segurados ou beneficiários e atuando sob inteira responsabilidade de uma ou
várias empresas de seguros, no que se refere à mediação dos respectivos produtos.
30
“Parece que se incluem nesta categoria, todas as pessoas singulares ou colectivas, que comercializam
seguros associados aos seus bens ou produtos. Refira-se, a título de exemplo, empresas de venda de
automóveis que disponibilizam seguros automóvel; empresas que concedem crédito, que disponibilizam
seguros de vida; agências de viagem, que disponibilizam seguros de assistência e acidentes pessoais,
bancos que disponibilizam seguros de vida e de incêndio e outros danos em coisas a mutuários de
crédito à habitação; empresas que vendem bens diversos e disponibilizam seguros com coberturas de
assistência e furto ou roubo. (ALVES, Paula Ribeiro. Intermediação de seguros e seguro de grupo.
Estudos de Direito dos Seguros. Coimbra: Almedina, 2007. p. 95, nota 240).
31
Categoria em que a pessoa exerce a atividade de mediação de seguros em nome e por conta de uma
ou mais empresas de seguros ou de outro mediador de seguros, nos termos do ou dos contratos que
celebre com essas entidades (alínea “b”).
32
Categoria em que a pessoa exerce a atividade de mediação de seguros de forma independente face às
empresas de seguros, baseando a sua atividade em uma análise imparcial de um número suficiente de
contratos de seguro disponíveis no mercado que lhe permita aconselhar o cliente tendo em conta as
suas necessidades específicas (alínea “c”).
No regime da Lei nº 7/2019 há dois gêneros de mediadores: (a) mediadores de
seguros; e (b) mediadores de seguros a título acessório.
Por sua vez, os mediadores de seguros se subdividem em duas espécies: (a.1) agente
de seguros, que é a pessoa (singular ou coletiva) que exerce a atividade de distribuição
de seguros em nome e por conta de uma ou mais empresas de seguros ou de outros
mediadores de seguros, nos termos do contrato ou dos contratos que celebre com
essas entidades; e (a.2) corretor de seguros, que é a pessoa (singular ou coletiva) que
exerce a atividade de distribuição de seguros de forma independente face às empresas
de seguros.
O direito português conserva a tradicional divisão entre agente e corretor de seguros,
e que, no Brasil, somente há poucos anos foi regulamentada. 33
É interessante notar que a independência em relação a seguradoras é o principal sinal
distintivo entre o corretor de seguros e o agente de seguros em Portugal, sendo
essencial para a caracterização jurídica da atividade do corretor 34. Tamanha a
importância da independência do corretor que a lei estatui, como condição para a
inscrição da pessoa singular no registro nessa qualidade perante a Autoridade de
Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF), ela “não exercer qualquer profissão
que possa diminuir a independência no exercício da atividade de distribuição e, no
caso de pessoa coletiva, ter como objeto social exclusivo atividades incluídas no setor
financeiro.”35
No caso da pessoa coletiva, a inscrição no registro como corretora de seguros
dependerá do preenchimento de diversas condições, entre elas sua estrutura
societária não constituir risco para a independência e imparcialidade do corretor face
perante aàs seguradoras36.
O art. 30º da Lei da Distribuição de Seguros estabelece deveres gerais do mediador de
seguros para com os clientes. E o seu art. 31º impõe ao mediador de seguros deveres
pré-contratuais especiais de informação ainda mais amplos do que as diretrizes
mínimas previstas na IDD37. Por exemplo, o mediador deve informar o cliente sobre o

33
O assunto será abordado Capítulo D) (ii) infra.
34
Conforme comenta Francisco Rodrigues Rocha, “[a] independência do corretor, de tal modo
importante que chega-se a falar-se de ‘princípio’, é um elemento típico essencial da corretagem.”
(MARTINEZ, Pedro Romano; Matos, Filipe Albuquerque (Org.). Lei da Distribuição de Seguros Anotada.
Coimbra: Almedina, 2019. p. 188).
35
Artigo 18º, nº 1, alínea a).
36
Artigo 18º, nº 5.
37
“Artigo 31º. Deveres de informação em especial. 1 – Com a devida antecedência em relação à
celebração de qualquer contrato de seguro inicial o mediador de seguros deve informar o cliente, pelo
menos: a) Da sua identidade e endereço; b) Do número e da data da inscrição no registo e dos meios
para verificar se foi efetivamente registado; c) De qualquer participação qualificada que detenha numa
determinada empresa de seguros; d) De qualquer participação qualificada no capital do mediador de
seguros detida por uma determinada empresa de seguros ou pela empresa mãe de uma determinada
empresa de seguros; e) Se está ou não autorizado a receber prémios para serem entregues à empresa
de seguros; f) Se a sua intervenção se esgota com a celebração do contrato de seguro ou se a sua
intervenção envolve a prestação de assistência ao longo do período de vigência do contrato de seguro;
g) Da natureza da remuneração recebida em relação ao contrato de seguro; h) Se, em relação ao
contrato de seguro, é remunerado: i) Através de pagamento direto pelo cliente a título de honorários; ii)
Com parte do prémio de seguro a título de comissão; iii) Com base noutro tipo de remuneração,
incluindo qualquer vantagem económica concedida em conexão com o contrato de seguro; iv) Com base
seu direito de “solicitar informação sobre o montante da remuneração que o mediador
de seguros receberá pela prestação do serviço de distribuição e, em conformidade,
fornecer-lhe, a seu pedido, tal informação” (alínea j). Conforme anota a doutrina: “A
alínea j) contém um duplo direito do cliente de ser informado de que pode pedir o valor
da remuneração recebido pelo mediador de seguros e, utilizando essa faculdade,
receber a informação concreta da remuneração.”38
Veja que a informação a ser prestada não é limitada à natureza da remuneração do
mediador de seguros, mas deve incluir ainda os valores específicos decorrentes da
operação de seguros.
Além disso, o mediador de seguro ainda deve indicar ao cliente, inter alia, se atua em
representação do cliente ou em nome e por conta de seguradora; se tem ou não a
obrigação contratual de exercer a atividade de distribuição de seguros exclusivamente
para uma ou mais empresas de seguros, hipótese em que a lei presume em caráter
absoluto que o seu aconselhamento não será baseado em uma análise imparcial e

na combinação de qualquer dos tipos de remuneração especificados nas subalíneas anteriores; i) Se o


cliente tiver de pagar honorários, do montante dos honorários ou, caso tal não seja possível, do método
de cálculo dos honorários; j) Do direito de o cliente solicitar informação sobre o montante da
remuneração que o mediador de seguros receberá pela prestação do serviço de distribuição e, em
conformidade, fornecer-lhe, a seu pedido, tal informação; k) Se o cliente tiver de fazer pagamentos ao
abrigo do contrato de seguro após a sua celebração, distintos dos prémios regulares e dos pagamentos
calendarizados, da natureza e do montante de cada um desses pagamentos; l) Dos procedimentos,
referidos nas alíneas t) e u) do n.º 1 do artigo 24.º e no artigo 76.º, que permitem aos clientes e a outras
partes interessadas apresentarem reclamações e dos procedimentos extrajudiciais de reclamação e
recurso referidos no artigo 52.º; m) No que se refere ao contrato proposto, o nome das empresas de
seguros ou mediadores de seguros que intervêm no mesmo, bem como do regime de responsabilidade
solidária previsto no artigo 47.º;
2 – Adicionalmente, o mediador de seguros deve indicar ao cliente: a) Se atua em representação do
cliente ou em nome e por conta da empresa de seguros; b) Se presta ou não aconselhamento; c) Se
baseia ou não o aconselhamento prestado numa análise imparcial e pessoal nos termos do n.º 5; d) Se
tem ou não a obrigação contratual de exercer a atividade de distribuição de seguros exclusivamente
para uma ou mais empresas de seguros.
3 – O mediador de seguros deve informar o cliente sobre o nome da ou das empresas de seguros com as
quais trabalha relevantes no âmbito das exigências e necessidades apresentadas. 4 – Caso seja prestado
aconselhamento nos termos da alínea b) do n.º 2, o mediador de seguros deve, antes da celebração de
qualquer contrato de seguro, transmitir ao cliente uma recomendação personalizada, ajustada ao tipo
de cliente, às informações por ele fornecidas e à complexidade do contrato de seguro recomendado. 5 –
Quando o mediador de seguros informar o cliente que baseia o seu aconselhamento numa análise
imparcial e pessoal, é obrigado a prestar esse aconselhamento com base na análise de um número
suficientemente elevado e diversificado, quanto ao distribuidor e ao tipo de contratos de seguro
disponíveis no mercado que lhe permita fazer uma recomendação, de acordo com critérios
profissionais, quanto ao contrato de seguro mais adequado às necessidades do cliente, não se limitando
aos contratos de seguro de um distribuidor com quem o mediador de seguros tenha relações estreitas. 6
– Antes da celebração de qualquer contrato de seguro, o mediador de seguros deve especificar, no
mínimo, as respectivas exigências e necessidades e as razões que nortearam as informações ou o
aconselhamento prestado quanto a um determinado produto. 7 – O mediador de seguros encontra-se
dispensado de prestar as informações previstas nos números anteriores quando desenvolva atividade
de distribuição de produtos de seguros que visem a cobertura de grandes riscos. 8 – Se a intervenção do
mediador de seguros envolver a prestação de assistência ao longo do período de vigência do contrato
de seguro, qualquer alteração das informações prestadas ao abrigo do n.º 1 deve ser comunicada ao
cliente.”
38
Conforme Francisco Luís F. Ribeiro Alves (MARTINEZ, Pedro Romano; Matos, Filipe Albuquerque
(Org.). Lei da Distribuição de Seguros Anotada. Coimbra: Almedina, 2019. p. 275).
pessoal.39
Independentemente de qualquer vínculo de exclusividade, deve o mediador de
seguros informar ao cliente o nome das seguradoras com as quais trabalha que sejam
relevantes no âmbito das exigências e necessidades apresentadas na situação concreta
quanto a um determinado produto de seguro.
Como se percebe, o direito português, em linha com a evolução do direito comunitário
europeu e com sua tendência de intensificar a tutela do consumidor de seguros,
aumentou o rol de deveres pré-contratuais de informação por parte de mediadores de
seguros, inclusive corretores de seguros, perante os seus clientes. E o ônus de provar
que prestou todas essas informações ao cliente recai sobre o mediador de seguros.

D) A regulação da transparência na intermediação de seguros no


Brasil

(i) Do surgimento dos corretores de seguros ao domínio na intermediação

Na fase inicial do mercado segurador no Brasil, seguradoras utilizavam angariadores


com o propósito de incrementar suas vendas40:

[...] os ditos angariadores nada mais eram do que agentes credenciados


junto às seguradoras para comercializar, com exclusividade, em nome
delas, os seguros. É nessa sucessão de novos fatos que surge no mercado
segurador a figura do agente de seguros.

O corretor de seguros tal qual conhecemos e nos habituamos a ver


contemporaneamente surgiu como alguém contratado por tais angariadores (rectius:
agentes) de seguros como forma de ampliação de sua produção de seguros. O
panorama é bem descrito por Rita de Cássia da Costa Silva41:

Estimulados, ou melhor, pressionados cada vez mais pelas companhias a


aumentarem sua produção, os agentes de seguros, que eram impedidos de
representar mais de uma companhia e, assim, como as companhias, na

39
Quando o mediador de seguros informar ao cliente que baseia o seu aconselhamento em uma análise
imparcial e pessoal, é obrigado a prestar esse aconselhamento com base na análise de um número
suficientemente elevado e diversificado, quanto ao distribuidor e ao tipo de contratos de seguro
disponíveis no mercado que lhe permita fazer uma recomendação, de acordo com critérios
profissionais, quanto ao contrato de seguro mais adequado às necessidades do cliente, não se limitando
aos contratos de seguro de um distribuidor com quem o mediador de seguros tenha relações estreitas.
(Artigo 31º, nº 5).
40
SILVA, Rita de Cássia da Costa. Breve histórico da profissão de corretor de seguros no Brasil. Rio de
Janeiro: Funenseg, 2007. p. 17.
41
Idem.
busca desenfreada de novos negócios, ofertassem comissões, cada um de
percentual mais elevado que a outra, passaram a se servir dos
“atravessadores de negócios”, os quais recebiam como pagamento parte
da comissão do agente que solicitava seus serviços.
A nova atividade no mercado segurador, a qual deu origem ao que hoje
chamamos corretor de seguros, não era vista com bons olhos, mas tal
atividade foi sedimentada em decorrência do fato de que os até então
profissionais do mercado – agentes de seguros – necessitavam valer-se
cada vez mais daqueles atravessadores para atingirem metas mais
destacadas no ranking geral.

Com o passar do tempo, a estrutura baseada em dispersos agentes de seguros deu


lugar a sucursais de seguradoras, com gerentes e pessoal próprio contratado 42, em um
movimento de verticalização e internalização da atividade pelas seguradoras.
De atores fundamentais para o desenvolvimento do mercado de seguros em sua fase
inicial, os agentes de seguros foram desaparecendo e gradualmente se misturando aos
corretores, com quem passaram a se confundir. Destaca Humberto Roncarati 43:

Na prática, portanto, essas funções se fundiam numa mesma pessoa,


havendo Agentes que também eram Corretores, mas vinculados às
Companhias em cujo nome atuavam e exerciam poderes de representação.
De outro lado, os Corretores que, muito embora se considerem livres de
qualquer subordinação, representam as partes contratantes: Segurados e
Companhias. Foram compreensíveis os conflitos de interesses reinantes à
época. E isso explica como, no evoluir do tempo, as Companhias foram aos
poucos substituindo seus Agentes Representantes por Sucursais, com
gerentes, pessoal e locações próprios.

Esse fenômeno foi acompanhado pelo paulatino fortalecimento da atuação dos


corretores como categoria autônoma44, malgrado a resistência das lideranças das
seguradoras em admiti-los como tal durante longo tempo45.
Com o correr dos anos, os agentes de seguros “puros” saíram de cena, ao passo que a
42
SILVA, Rita de Cássia da Costa. Breve histórico da profissão de corretor de seguros no Brasil. Rio de
Janeiro: Funenseg, 2007. p. 17.
43
RONCARATI, Humberto. Resgate de história. Revista Opinião, São Paulo, Seg, n. 6. p. 7.
44
Rita de Cássia da Costa Silva. Op. cit., p. 17, registra artigo publicado na Revista de Seguro clamando
pela atenção de seguradoras e providências para “[...] regulamentando a profissão de – agente – ou
melhor – corretor de seguros, – moralizar uma classe que infelizmente, em virtude do pouco ou quase
nenhum interesse que tem despertado aos nossos Seguradores, é constituída, hoje por elementos assás
hecterogenios!” (“É imprescindível uma medida por parte das companhias de seguros”. Revista de
Seguros, ano I, n. IV, 1920. p. 70).
45
“Em resumo, o que os Corretores buscavam era um ‘Regulamento do Corretor’, ao passo que as
Companhias entendiam ser de ‘Angariadores de Seguros’, mediante Convenção de Trabalho. O Fiscal
Sindical esclarece que Convenção só é aplicável a ajuste relativo a condições de trabalho entre um ou
vários empregadores e seus empregados, ou entre um Sindicato e outro Sindicato.” (RONCARATI,
Humberto. Resgate de história. Revista Opinião, São Paulo, Seg, n. 6. p. 8).
categoria dos corretores de seguros adquiriu gradualmente mais e mais
reconhecimento. Finalmente, em 29 de dezembro de 1964, foi promulgada a Lei nº
4.594, regulando a profissão já bem consolidada na prática do corretor de seguros.
A intermediação de seguros no Brasil tem sido há muitas décadas dominada
completamente pelo corretor de seguros, profissional que logo passou a incorporar
funções de distribuição outrora desenvolvidas pelos agentes de seguros.
O desenvolvimento do mercado segurador brasileiro se deve muito ao trabalho dos
corretores de seguros, cuja atuação não raramente extrapola a intermediação, não
sendo incomum que participem do processo de criação e aprimoramento de produtos
de seguros. Não é injusto afirmar que boa parte das inovações introduzidas no
mercado segurador tiveram a participação ativa de corretores de seguros.
Prova desse prestígio e dessa força política é que corretores de seguros ocuparam os
mais altos cargos das autoridades governamentais de regulação e supervisão de
seguros no Brasil em diversas ocasiões nas últimas décadas.
No período recente, corretores de seguros têm defendido de forma combativa o
protagonismo conquistado, reprimindo sistematicamente quaisquer iniciativas
regulatórias que ameacem quebrar o seu monopólio de fato na intermediação de
seguros. E não apenas as regras de concorrência têm sido alvo do grupo, mas também
as iniciativas visando à introdução de regras de transparência na intermediação de
seguros têm sofrido reações ferozes e ataques dos corretores de seguros, consoante
examinaremos.

(ii) A oposição dos corretores de seguros à concorrência na intermediação de seguros

Em meados de junho de 2013, a Superintendência de Seguros Privados – SUSEP,


autarquia vinculada ao Ministério da Economia e supervisora das atividades
relacionadas à indústria de seguros, colocou em consulta pública, por meio da minuta
de Resolução CNSP nº 11/2013, uma proposta de regulamentação da atuação do
“agente de seguros”.
A minuta de Resolução CNSP nº 11/2013 encontrou imediata e intensa resistência dos
corretores de seguros. Sua Federação e diversos sindicatos em todo o país
manifestaram ferrenha oposição à possibilidade de introdução do agente de seguros
como um meio alternativo de angariação de negócios por parte das seguradoras:

Eu garanto que, no que depender de mim e dos sindicatos, a regulação dos


agentes de seguros não vai acontecer. [...]
Estamos fazendo tudo que podemos. Mas, se mesmo assim a profissão for
legalizada, vamos procurar todas as maneiras e meios legais possíveis e
imagináveis para ganhar a causa [...] vamos ganhar as ruas para [que] o
projeto não avance. 46
46
Pronunciamento proferido durante a 2ª Ecoseg (Encontro Catarinense de Corretores de Seguros) e
reproduzido em matéria de 31 jul. 2013 intitulada “Vergílio garante que agente de seguros não será
Foi com essas palavras incisivas que o Sr. Armando Vergílio, corretor de seguros, ex-
Superintendente da SUSEP e atual Presidente da Federação Nacional dos Corretores de
Seguros, de Capitalização, de Previdência e das Empresas Corretoras de Seguros e
Resseguros – FENACOR, criticou veementemente a iniciativa da SUSEP de disciplinar o
papel do agente de seguros e conclamou corretores a que reagissem contrariamente à
formalização de uma prática que até então era desempenhada exclusivamente pelos
próprios corretores, mesmo que de modo oculto.
Apesar da enorme reação dos corretores de seguros, em 28 de outubro de 2013 foi
publicada a Resolução CNSP nº 297/2013, que disciplinou as operações dos agentes de
seguros, a quem denominou de “representantes de seguros”, como se a não utilização
do nome mundialmente aceito de agente de seguros fosse permitir a sua aceitação de
forma mais suave dentro da indústria e, sobretudo, pelos corretores de seguros.
A regulação do representante de seguros por meio da Resolução CNSP nº 297/2013 foi
incipiente e bastante incompleta. No entanto, foi o primeiro passo mais contundente
no sentido de se combater a informalidade, o conflito de interesses e a absoluta falta
de transparência que campearam o longo período de atuação absoluta dos corretores
de seguros e das seguradoras, por vezes de modo promíscuo e com interesses
cruzados, na distribuição de seguros no Brasil.47
Dispõe o § 7º do art. 1º da resolução que “[é] vedado ao representante de seguros o
exercício da atividade de corretagem de seguros ou a atuação como estipulante ou
subestipulante [sic]”48, proibindo assim a cumulação das atuações em uma mesma
pessoa.
regulamentado” disponível em vários veículos especializados, entre eles o sítio eletrônico do Centro de
Qualificação do Corretor de Seguros – CQCS. Disponível em: https://www.cqcs.com.br/noticia/vergilio-
garante-que-agente-de-seguros-nao-sera-regulamentado/. Disponível também em:
http://www.cqcs.com.br/noticia/vergilio-garante-que-agente-de-seguros-nao-sera-regulamentado/.
Acesso em: 09 ago. 2020.
47
“O corretor de seguro que acaso exerça a sua atividade sem autonomia, com subordinação e
exclusividade, alguns chegando a compartilhar a mesma logomarca, o mesmo endereço e telefone da
seguradora, tendo inclusive em alguns casos obrigações de metas e horários, esse não será em verdade
um corretor de seguro da maneira como concebido pela legislação que o criou, mas um verdadeiro
agente da seguradora e, como tal, seu representante. Algumas seguradoras no Brasil infelizmente usam
esse artifício para escapar das obrigações da legislação trabalhista, fazendo com que seus agentes se
constituam como corretores. Face a essa realidade, é de difícil mensuração o percentual de participação
no mercado desses profissionais ou mesmo a quantidade de agentes atuando hoje no Brasil.” (BELLI,
Valdemiro Cequinel. A Intermediação do seguro no Brasil e os novos canais de vendas. Rio de Janeiro:
ENS/CPES, 2018. p. 13).
48
A vedação a que representantes de seguros atuem como estipulantes ou subestipulantes é porque era
bastante comum a contratação de seguros individuais sob a roupagem formal fictícia de seguros
coletivos, numa manobra jurídica por meio da qual a organização varejista aglutinadora de muitos
clientes e segurados em potencial (redes de lojas de departamentos, operadoras de telefonia etc.)
ocupava a posição nominal de estipulante. Porém, na realidade, esse estipulante tinha interesses muito
mais alinhados à seguradora (vender seguros e faturar com essa venda) do que com o grupo de
segurados, que, a rigor, de grupo ou sentido coletivo nada têm. Daí ter sido comum denominar essas
organizações de falsas-estipulantes, na medida em que essa arquitetura contratual violava claramente a
função do estipulante no seguro genuinamente coletivo. A partir do advento da Resolução CNSP no.
297/2013, deixou de haver dúvida plausível quanto à ilegalidade desse tipo de arranjo. Nada obstante,
ainda é bastante comum verificarmos nos dias atuais a mesma estrutura de falsa estipulação em
negócios de varejo para a distribuição de seguros, totalmente à margem do que prescreve a resolução.
Lamentavelmente, a Resolução CNSP nº 297/2013 não teve a eficácia social plena que
dela se esperava. Segue sendo relativamente comum a atuação dúplice de corretores
também sob funções de representantes de seguros e, portanto, sem a esperada
imparcialidade e independência, como pressupõem os clientes dos corretores de
seguros.
Compreendemos as dificuldades enfrentadas pelos formuladores de políticas de
seguros no País. A desordem na intermediação de seguros está há muito instalada no
mercado brasileiro, no qual operações veladas continuam a proliferar em detrimento
da clareza e provável sacrifício do melhor interesse de clientes. Além disso, em
comparação com mercados maduros, há um abismo gigantesco de conhecimento do
consumidor brasileiro a respeito da operação de seguros e da sua intermediação. Se
mesmo nesses mercados a regulação de transparência na intermediação de seguros
tem se intensificado, pode-se imaginar o quão atrasado o Brasil não está a esse
respeito.
O tamanho desse nosso atraso pode se medir justamente pelas enormes dificuldades
vivenciadas por nossas autoridades de seguros parade regular aspectos basilares da
indústria, mesmo que por meio de medidas regulatórias consolidadaos nos principais
mercados do mundo.
A figura do representante de seguros no Brasil ilustra bem. A simples separação
normativa entre corretores de seguros e agentes de seguros, tradicional no planeta
inteiro desde tempos imemoriais, é capaz de provocar entre nós reações
ferrenhasmuito exaltadas, ataques por parte dos poderes de fato estabelecidos na
intermediação de seguros, com vistas invariavelmente a se manter o nosso anacrônico
estado de coisas e o status quo.
Episódios mais recentes, como veremos a seguir, registram a luta dos corretores para
impedir o estímulo à concorrência no mercado de intermediação de seguros.

(iii) A desregulamentação da atividade de corretagem de seguros

Em novembro de 2019, foi editada a Medida Provisória nº 905, que, dentre várias
outras questões, desregulamentou a atividade do corretor de seguros.
Nesse particular, a medida teve a finalidade declarada de “flexibilizar a atividade de
intermediação, angariação e promoção dos contratos de seguro”, segundo sua
exposição de motivos. Além dessa finalidade, pronunciamentos posteriores da
Superintendente da SUSEP dão conta de que a Medida Provisória também teve como
objetivo aliviar as atividades de supervisão desempenhada pela SUSEP, cujos escassos
recursos (humanos e financeiros) eram excessivamente ocupados e consumidos por
tarefas não prioritárias na agenda regulatória do órgão ligadas a cadastramentos,
renovações de habilitações, fiscalização da grande massa de corretores de seguros
etc.49

49
Para uma análise mais profunda das mudanças previstas na Medida Provisória em matéria de
corretagem de seguros, confira-se o nosso artigo “A ‘Autorregulação Regulada’ do Corretor de Seguros –
Avanços, Retrocessos e Desalinhamentos Atuais no Modelo Brasileiro”, disponível em nosso blog:
A Medida Provisória gerou verdadeira revolta de muitos inúmeros corretores de
seguros, muitos dos quais temendo que a categoria e a própria atividade caíssem em
profundo desprestígio em decorrência da desregulamentação.
Muito embora o caminho da autorregulação da atividade do corretor fosse algo
desejado por uma grande parcela dos corretores de seguros, a maioria parecia
entender que o Governo Federal teria errado grosseiramente na dose do remédio
administrado por meio da Medida Provisória nº 905/2019. Isso porque, de uma só vez,
ela revogou a Lei 4.594/64, que regulava a profissão do corretor de seguros, assim
como excluiu os “corretores [de seguros] habilitados” do Sistema Nacional de Seguros
Privados.
A própria Exposição de Motivos da Medida Provisória é categórica ao determinar que,
por meio da proposição com força de lei, “desregulamenta-se a atividade, não
cabendo mais ao Conselho Nacional de Seguros Privados disciplinar a corretagem de
seguros e a profissão de corretor e se retirando a obrigatoriedade de prévia habilitação
e registro para se exercer a atividade de corretor.”
A desregulamentação da profissão dos corretores de seguros acendeu um temor –
legítimo, por sinal – de precarização da atividade e da classe dos corretores de seguros,
provocando críticas (em boa parte procedentes) da comunidade securitária. Afinal, até
que a transição de poderes do governo para as entidades autorreguladoras privadas se
operasse, em tese, qualquer pessoa poderia intermediar a comercialização de seguros,
independentemente de treinamento e habilitação técnica específica.
A possibilidade de que terceiros pudessem rivalizar e competir com corretores na
intermediação de seguros gerou uma grande mobilização da categoria.
Uma forte contraofensiva dos corretores de seguros foi articulada no Congresso
Nacional. Não por coincidência, aA Comissão Mista instalada com a missão
constitucional de examinar o texto da Medida Provisória teve como Vice-Presidente o
Deputado Lucas Vergílio, corretor de seguros, Presidente de Sindicato dos Corretores
de Seguros do Estado de Goiás – SINCOR-GO, e filho de Armando Vergílio, Presidente
da FENACOR.
A versão final do parecer elaborado pela Comissão Mista contendo o Projeto de Lei em
Conversão da Medida Provisória (PLV) representou uma grande demonstração de
força política por parte dos corretores de seguros. 50
O PLV repristinou a Lei nº 4.594/64, que regulava a profissão de corretor de seguros,
mas com importantes modificações. A versão proposta pela Comissão Mista previa
uma descrição muito mais abrangente das atribuições dos corretores de seguros. Além
disso, marchando na direção diametralmente oposta à filosofia liberalizante que
inspirou a Medida Provisória nº 905/2019, outros dispositivos aumentavam a proteção
legal aos corretores e suas comissões contra práticas comerciais negociadas com

https://falandodeseguros.org.
50
Para um exame mais detalhado das principais disposições do Projeto de Lei em Conversão da Medida
Provisória 905/2019 (PLV), confira-se o nosso “Corretagem de Seguros. Episódio 2: A Conversão da MP
905/2019 em lei. Do Risco de Precarização para a Proteção Aumentada dos Corretores”, nosso blog:
https://falandodeseguros.org . Disponível em: https://falandodeseguros.org/2020/02/26/corretagem-
de-seguros-episodio-2-a-conversao-da-mp-905-2019-em-lei-do-risco-de-precarizacao-para-a-protecao-
aumentada-aos-corretores/.
seguradoras (v.g., impossibilidade de descontos nas comissões de corretagem,
vedação à alocação aos corretores de custos administrativos de seguradoras com
propostas etc.).
O PLV também fortaleceria muito as entidades autorreguladoras da corretagem de
seguros, as quais são inteiramente dominadas por grupos políticos da classe dos
corretores de seguros, e retirava a capacidade de que a SUSEP fiscalizasse a atuação
dos corretores, os quais não mais estariam sujeitos ao poder normativo e de
supervisão do CNSP.
Em suma, o PLV pretendia reverter a tendência de enfraquecimento dos corretores de
seguros decorrente do texto original da Medida Provisória nº 905/2019 para o seu
fortalecimento em um grau nunca antes existente no País. O PLV conferiria aos
corretores de seguros autonomia em relação ao CNSP e à SUSEP, ao passo que
garantiria maiores proteções estatais aos corretores e às comissões de corretagem nas
relações que manteriam com as seguradoras, afastando-se diametralmente da filosofia
de liberação do mercado de corretagem à competição aberta que inspirou a edição da
Medida Provisória.
O PLV sofreu severos questionamentos por parte do Governo Federal.
Embora tenha avançado no Congresso, o PLV não logrou aprovação a tempo, vindo a
Medida Provisória nº 905/2019 a caducar, perdendo assim sua eficácia 51. Com o
término de sua eficácia, o regime jurídico que passou a vigorar com relação aos
corretores de seguros voltou a ser aquele que precedia a sua edição.
Se os corretores de seguros possuíam fundamentos plausíveis para criticar alguns
aspectos da Medida Provisória nº 905/2019, as mudanças que suas lideranças políticas
introduziram em seu texto, por meio da PLV, careciam de qualquer sentido jurídico ou
econômico. Careciam sobretudo de razoabilidade. O PLV, fruto de forte lobby dos
corretores de seguros, prometia agudizar ainda mais os problemas crônicos de falta de
transparência, atuação em conflitos de interesses, sem independência e
imparcialidade que marcaram boa parte da intermediação de seguros no Brasil,
protegendo feudos estabelecidos, asfixiando a concorrência no setor por outros
atores, em suma, rumando na contramão da tendência normativa verificada em todo o
mundo civilizado.
Com a perda de eficácia da Medida Provisória sem aprovação do PLV, nem foi
sacramentada a desregulamentação da corretagem de seguros, como pretendido pelo
Governo Federal, tampouco os corretores saíram da disputa com os superpoderes que
ambicionavam, e sujeitos a um regime de proteção estatal alargado e sem paralelos no
mundo e na história da indústria dos seguros no Brasil, como quase ocorreu.

(iv) Conflito de interesses e transparência. A resistência dos corretores ao dever de


informar clientes sobre suas remunerações

51
A perda de eficácia da Medida Provisória nº 905/2019 por encerramento do seu prazo de vigência foi
formalizada por meio do Ato Declaratório CN nº 127, de 28 de setembro de 2020.
Em seu último e muito atual capítulo de combatividade dos corretores de seguros, a
categoria tem como principal alvo a Resolução CNSP nº 382, de 4 de março de 2020
(Resolução CNSP nº 382/2020), que entrou em vigor a partir de 1º de julho do mesmo
ano. A resolução teve clara inspiração na IDD Europeia e procura criar um ambiente
mais transparente para o consumidor de seguros e entre os próprios intermediários de
seguros. Ela dispõe sobre princípios a serem observados nas práticas de conduta
adotadas pelas seguradoras, sociedades de capitalização, entidades abertas de
previdência complementar e intermediários, no que se refere ao relacionamento com
o cliente.
A resolução define intermediário como “o responsável pela angariação, promoção,
intermediação ou distribuição de produtos de seguros, de capitalização e/ou de
previdência complementar aberta, tais como o corretor de seguros, o representante
de seguros, o correspondente de microsseguros, o distribuidor de título de
capitalização, dentre outros executores das atividades enumeradas neste inciso”.
A Resolução CNSP nº 382/2020 determina que entes supervisionados e intermediários
devem conduzir suas atividades e operações “observando princípios de ética,
responsabilidade, transparência, diligência, lealdade, probidade, honestidade, boa-fé
objetiva, livre iniciativa e livre concorrência, promovendo o tratamento adequado do
cliente e o fortalecimento da confiança no sistema de seguros privados.”
O seu artigo 4º incorpora a ideia da IDDI de que intermediários de seguros devam atuar
no melhor interesse do cliente. O caput prevê que a relação entre o intermediário e o
ente supervisionado (no caso deste artigo, a seguradora) não pode prejudicar o
tratamento adequado ao cliente. Deve ficar claro para o cliente qualquer resquício de
conflito de interesses decorrente dessa relação entre o intermediário e a seguradora.
Para que esse objetivo não caia no vazio, a resolução criou para os intermediários
deveres pré-contratuais de informação muito semelhantes aos previstos na IDD 52,
aplicáveis em situações que vão desde eventual participação societária cruzada entre
eles e seguradoras (coligação direta 53 ou indireta) até vínculos contratuais com
seguradoras capazes de comprometer uma atuação do intermediário livre de conflitos
de interesses54.

52
Artigo 19º, alínea “e”.
53
Código Civil, art. 1.099. Diz-se coligada ou filiada a sociedade de cujo capital outra sociedade participa
com dez por cento ou mais, do capital da outra, sem controlá-la.
54
“Art. 4º. A relação entre o ente supervisionado e o intermediário não deve prejudicar o tratamento
adequado do cliente, devendo ficar claro para os clientes qualquer conflito de interesses decorrente
desta relação.
§ 1º. Antes da aquisição de produto de seguro, de capitalização ou de previdência complementar aberta,
o intermediário deve disponibilizar formalmente ao cliente, no mínimo, informações sobre: I – qualquer
participação, direta ou indireta, igual ou superior a 10% nos direitos de voto ou no capital que detenha
em um ente supervisionado; II – qualquer participação, direta ou indireta, igual ou superior a 10% nos
seus direitos de voto ou no seu capital detida por um ente supervisionado ou pelo controlador de um
ente supervisionado; III – a existência de alguma obrigação contratual para atuar como intermediário
de produtos de seguros, de capitalização ou de previdência complementar aberta com exclusividade
para um ou mais entes supervisionados, informando os respectivos nomes ou os nomes dos entes
supervisionados para os quais atua como intermediário, caso não haja contrato de exclusividade; e IV –
o montante de sua remuneração pela intermediação do contrato, acompanhado dos respectivos valores
de prêmio comercial ou contribuição do contrato a ser celebrado. § 2º. As informações de que tratam os
incisos I e II do § 1º deste artigo devem ser disponibilizadas ao cliente por meio dos materiais de
Os deveres pré-contratuais fixados na Resolução CNSP nº 382/2020 são em essência os
mesmos previstos na Lei nº 7/2019 portuguesa55 para o mediador de seguros.
A Resolução CNSP nº 382/2020 dispõe ainda que seguradoras elaborem, implementem
e gerenciem uma política institucional de conduta sintonizada com os princípios
descritos na resolução. Tal política institucional de conduta, ao analisar o perfil do
cliente, deve considerar aspectos relacionados à adequação de produtos de seguros
aos seus objetivos e necessidades; sua compatibilidade à situação financeira do
cliente; e o nível de conhecimento do cliente quanto aos riscos relacionados a cada
produto, inclusive o seu nível de tolerância ao risco e sua capacidade de suportar
perdas (art. 6º, § 4º).
A figura do cliente oculto é introduzida como mecanismo de supervisão e fiscalização,
como forma de atestar a adstrição dos entes supervisionados e intermediários às
“práticas de conduta de intermediários e entes supervisionados à regulação vigente.”
O cliente oculto poderá pesquisar, simular e testar, de forma presencial ou remota, o
processo de contratação, a distribuição, a intermediação, a promoção, a divulgação e a
prestação de informações de produtos, de serviços ou de operações relativos a seguro,
capitalização ou previdência complementar aberta, com vistas a verificar a adequação
das práticas de conduta de intermediários e entes supervisionados à regulação
vigente.
O descumprimento ou a inobservância de norma ou regulação de prática de conduta,
no que se refere ao relacionamento com o cliente, ou à política institucional de
conduta, sujeita o infrator à penalidade de multa de R$ 10 mil a R$ 500 mil.
As lideranças políticas dos corretores de seguros reagiram muito negativamente ao
dever de revelação a clientes das remunerações auferidas em decorrência dos
contratos de seguros firmados para clientes, conforme exigido pela Resolução CNSP nº
382/2020.
A FENACOR e o SINCOR-SP disponibilizaram Nota Técnica para instruir os corretores de
seguros a respeito da Resolução CNSP nº 382/2020. 56 No que diz respeito ao dever de
informar o cliente sobre a remuneração do corretor de seguros, as entidades de classe
afirmam que “a norma não estabelece de que forma essa informação deve ser
disponibilizada ao cliente.” A entidades instruem corretores a que não assinem
“contratos, acordos, termos de anuência e/ou outros instrumentos similares”
solicitados por seguradoras. Segundo a Nota Técnica, deve bastar que corretores de
seguros informem às seguradoras “que estão dando cumprimento às normas que
regem a sua atividade na relação com seus clientes, inclusive o que consta da
Resolução CNSP nº 382/2020, atitude esta que não irá expor quem quer que seja a
qualquer tipo de responsabilidade.”
A Nota Técnica prossegue expressando sua discordância com os novos deveres de

comercialização e de divulgação, canais de atendimento oficiais ou pelo respectivo sítio eletrônico,


quando houver, devendo ser dada publicidade sobre a forma de acesso às informações. § 3º. A
informação de que trata o inciso III do § 1º deste artigo deve estar disponível no sítio eletrônico, quando
houver, e constar da comunicação direcionada ao cliente. (grifos nossos).
55
Artigo 31º, alínea “j”.
56
Nota Técnica disponível em: https://www.sincor.org.br/resolucao-38220-fenacor-orienta-corretores-
de-seguros/. Acesso em: 09 ago. 2020.
informação criados pela resolução:

[...] Somos sabedores dos impactos que essa medida causará no mercado de corretagem
de seguros, pois, além de não trazer a transparência desejada, ela tem alto potencial para
atingir micro, pequenos e médios corretores de seguros, além do emprego e da renda, o
que vai de encontro com o desejo do Governo Federal. Porém, enquanto empreendemos
esforços em busca do entendimento, visando à reversão dessa medida, precisamos ser
responsáveis, pragmáticos e práticos.
Esta Federação permanece em posição contrária ao comando contido na norma em linha
com a quase totalidade dos corretores de seguros, não apenas pelo exposto
anteriormente, que devem ser somadas às outras questões fáticas e jurídicas que vêm
sendo declinadas publicamente desde, pelo menos, a consulta pública realizada pela
SUSEP sobre essa matéria. [...]
Por fim, vale salientar tratar-se de uma obrigação desarrazoada que, claramente, pode
gerar diversos conflitos entre corretores de seguros e sociedades seguradoras, sociedades
de capitalização e entidades abertas e de previdência complementar, entre corretores de
seguros e seus clientes e entre os próprios profissionais, situação essa que não é desejada
para a continuidade de desenvolvimento do Setor de Seguros no Brasil.

A posição declarada conjuntamente pela FENACOR e pelo SINCOR-SP contrariamente


ao dever de informação é manifestada como posição majoritária dos corretores de
seguros, alegando que a aplicação da norma “pode gerar conflitos diversos entre
corretores de seguros e sociedades seguradoras [...]”, e apresenta forte viés político.
Ela discute a instabilidade criada (e insuflada por lideranças políticas) pela resolução no
meio dos corretores de seguros, mas não se preocupa em avaliar os ganhos que a sua
aplicação representará em informação para o seu principal beneficiário: o cliente, i.e.,
o consumidor dos serviços de seguros – e a reboque o ganho em transparência no
mercado de intermediação, na esteira das normas mais modernas do mundo.
A possibilidade de virem a ter suas práticas de conduta fiscalizadas sob o sistema do
cliente oculto também provocou acesas discussões entre os corretores de seguros.
Como forma de aplacar alguns ânimos exaltados de corretores, a SUSEP emitiu, em 26
de junho de 2020, a Carta-Circular Eletrônica nº 11/2020/DIR2/SUSEP, por meio da
qual a autarquia informou ao mercado “que exercerá as atividades de supervisão de
conduta relacionadas à referida norma [i.e., Resolução CNSP nº 382/2020], apenas
com caráter educativo e de orientação, sem caráter punitivo, até 31 de dezembro de
2020.”
Em 30 de junho de 2020, a FENACOR impetrou mandado de segurança coletivo contra
ato da Superintendente da SUSEP com a finalidade de suspender liminarmente, até o
julgamento definitivo do mérito do writ, a eficácia do art. 4º, §1º, IV, e do art. 9º,
ambos da Resolução CNSP nº 382/2020, que tratam respectivamente do dever pré-
contratual de informar o valor de suas remunerações a clientes previamente à
celebração do contrato de seguro e da utilização do mecanismo de supervisão do
cliente-oculto.57
A FENACOR alega fundamentalmente que o CNSP não possui competência para impor

57
Mandado de Segurança Coletivo nº 5039233-46.2020.4.02.5101/RJ.
obrigações a corretores de seguros “a dar publicidade à remuneração devida pela
contrapartida não relacionada à prestação do seguro per se.” E acrescenta que
“aspectos relativos ao comissionamento não dizem respeito à operação de seguro, ao
menos no que tange ao seu conceito estabelecido na legislação supracitada.
Novamente: trata-se de um acerto privado entre corretor e segurador do qual não
participa o segurado, situando-se, portanto, fora do escopo de regulamentação dos
seguros previstos no ordenamento jurídico.” 58 O impetrante também alega que um
excesso de informação sobre remuneração poderia ser danoso à concorrência e
também aos próprios consumidores.
O juízo da 10ª Vara Federal do Rio de Janeiro deferiu a liminar pleiteada, malgrado tê-
lo feito por meio de decisão baseada em fundamentação genérica. 59
Em sede de agravo de instrumento, o Desembargador Federal Ricardo Perlingeiro, da
5ª Turma Especializada em Direito Administrativo do Tribunal Regional Federal da 2ª
Região, deferiu efeito suspensivo postulado pela SUSEP a título de antecipação de
tutela recursal. Praticamente adiantando em sua decisão entendimento quanto ao
mérito recursal, a decisão monocrática foi fundamentada nos seguintes termos:

Com efeito, verifica-se a existência de probabilidade de provimento do recurso, tendo em


vista que a fixação de obrigação de apresentar, previamente ao contrato de seguro, os
valores de corretagem ao segurado (art. 4º, § 1º, inciso IV) diz respeito à medida inscrita
nas competências da CNSP estabelecida do art. 32 do Decreto-lei nº 73/66 de “I – Fixar as
diretrizes e normas da política de seguros privados;” e “XII – Disciplinar a corretagem de
seguros e a profissão de corretor.”
A obrigação imposta pela Resolução CNSP 382/2020 de apresentação prévia dos valores
de comissionamento diz respeito à transparência da intermediação dos contratos de
seguros em benefício de toda a sociedade seguradora, razão pela qual se insere no âmbito
das competências nos incisos I e XII do Decreto-Lei 73/66. Não existe limitação legal para a
atuação regulatória somente quanto à relação securitária, mas sim à toda política de
seguros privados.

58
Página 14 da petição inicial.
59
“[...] Em exame sumário, observa-se a plausibilidade das alegações, notadamente quanto à ausência
de competência da Presidência do CNSP, e por corolário, da Superintendência da SUSEP, nos termos do
art. 33 do Decreto-Lei nº 73/66 e dos art. 21, XIX; 22, § 2º; e 29, III, do Decreto 60.459/67, para a criação
de obrigação profissional não prevista em lei stricto sensu para os corretores de seguro.
Com efeito, há relevância na alegação da impetrante no sentido de que ‘a regulamentação do CNSP
sobre os aspectos da profissão de corretor, em atendimento ao art. 32, inciso XII, do Decreto-Lei 73/66 é
meramente incidental, uma vez que a competência do Conselho estaria limitada a disciplinar apenas os
aspectos atinentes à operação de seguro, com a vedação constitucional para a criação, por meio de ato
infralegal, de obrigações diversas daquelas já estabelecidas pela lei stricto sensu, em respeito ao
princípio da estrita legalidade no que tange à regulamentação de atividades e profissões’.
Ademais, em decorrência do cenário jurídico-econômico decorrente da pandemia do COVID-19, mostra-
se carente de razoabilidade o prazo assinalado para o cumprimento, pelo mercado de corretores, das
alterações promovidas pela aludida resolução, haja vista que, nos termos do seu art. 17, ela entra em
vigor na data de hoje, 1º de julho de 2020, o que também comprova a urgência na concessão da
medida.
Por fim, é bom consignar que não se vislumbra prejuízo inverso pela concessão da medida liminar ora
pretendida, ressaltando nesse sentido a via célere do mandado de segurança.
Isto posto, DEFIRO A LIMINAR pleiteada para suspender, até ulterior decisão neste processo, a eficácia
do art. 4º, § 1º, IV e do art. 9º da Resolução CNSP nº 382/2020.”
Quanto à presença de periculum in mora, não há risco punibilidade para os atingidos pela
Resolução CNSP 382/2020. Eis que foi editada a Carta Circular no 1/2020/DIR2/SUSEP em
26 de junho de 2020 pela SUSEP, esclarecendo que, em função da pandemia de COVID-19,
nos primeiros 06 (seis) meses de vigência da Resolução não seria aplicada nenhuma
penalidade em virtude de eventuais violações, sendo o período até 31 de dezembro de
2020 destinado a uma supervisão voltada à orientação e à correção de eventuais
equívocos identificados.
Por outro lado, observa-se que a suspensão da eficácia da norma importa redução do
referido tempo de seis meses concedido às sociedades seguradoras (e os profissionais de
intermediação) para adaptar seus processos e suas políticas internas, seus sistemas
informáticos, adequando-se à obrigação pela transparência. De modo que se observa risco
de dano grave, de difícil ou impossível reparação, em periculum in mora inverso, apto a
ensejar a atribuição do efeito suspensivo ao presente agravo de instrumento.
Destaca-se que a Resolução impugnada foi publicada no dia 10 de março de 2020, com
data prevista para entrada em vigor em 1° de julho de 2020. Houve tempo suficiente para
a Agravada impetrar o mandado de segurança em data anterior ao dia 30 de junho de
2020, o que também afasta a o periculum in mora em favor do recorrido.
Em conclusão, uma vez presentes os requisitos (art. 995 do CPC) necessários para a
suspensão da eficácia da decisão agravada, a qual suspendeu a eficácia do art. 4º, § 1º, IV
e do art. 9º da Resolução do Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP no 382/2020,
DEFIRO O PEDIDO DE ATRIBUIÇÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AO AGRAVO DE
INSTRUMENTO.

O julgamento do mérito do agravo de instrumento interposto pela SUSEP segue


pendente até a data de conclusão desse artigo, mas a decisão de efeito suspensivo
respalda a atuação normativa do CNSP e os atos administrativos praticados pela SUSEP
em consonância com a resolução impugnada.
Com a eficácia punitiva das normas objeto da Resolução CNSP n o 382/2020 postergada
para 2021 pela própria SUSEP, espera-se que seguradoras e intermediários em geral,
sobretudo corretores de seguros, aproveitem o tempo restante de 2020 para ajustar
suas práticas de conduta perante clientes aos preceitos informativos da resolução.

4. Conclusões

Como se viu, o problema da atuação dos intermediários de seguros em conflito de


interesses é antigo nos mercados mais maduros de seguros no mundo. De todos os
intermediários, a atuação de corretores de seguros é a que chama mais atenção e
inspira preocupações legais e regulatórias. Seus clientes depositam confiança e
legitimamente esperam que corretores de seguros por eles nomeados exerçam seu
munus com independência e imparcialidade, sem desalinhamento de interesses com
seus mandantes.
A situação do conflito de interesses revela-se mais grave no Brasil do que nesses
outros mercados mais desenvolvidos. E isso se dá por razões históricas. Em nosso País,
os corretores de seguros foram, até muito recentemente, praticamente os únicos
intermediários de seguros, exercendo um monopólio de fato da atividade e cumulando
funções que no mundo inteiro são mais próprias a agente de seguros. A par disso, a
praxe entre nós – e diz-se praxe, porque não há regra jurídica que imponha essa
dinâmica – sempre foi de corretores serem remunerados exclusivamente por
seguradoras, e não por segurados, ou seja, em uma estrutura que facilita o surgimento
de incentivos perversos.
A atuação dupla de parte dos corretores de seguros não é exclusividade brasileira.
Uma das diferenças é que noutras jurisdições há agentes de seguros que rivalizam com
corretores na distribuição de seguros, enquanto por aqui os corretores reinam
absolutos.
Nos Estados Unidos, escândalos de proporções gigantescas a respeito de atuação de
corretoras de seguros e seguradoras de forma promíscua e em conflito de interesses,
decorrentes desse papel duplo dos corretores, foram revelados ainda na década de 80.
No âmbito da União Europeia, há cerca de 18 (dezoito) anos os efeitos nefastos da
atuação híbrida de parte dos corretores de seguros (e anteriormente clandestina aos
olhos da imensa maioria de seus clientes), mesmo que em um ambiente de muito
maior concorrência com outros agentes, vem sendo regulada de maneira rigorosa – o
corretor de seguros lá há muito possui, entre outros vários deveres, o de informar seus
clientes sobre vínculos contratuais com seguradores que possam ocasionar conflitos de
interesses e comprometer sua isenção e independência.
Os problemas dos conflitos de interesses, do comprometimento da independência dos
intermediários de seguros e de falta de transparência nesse segmento somente
recebeu atenção das autoridades brasileiras muito recentemente.
O primeiro passo para o seu enfrentamento se deu a partir da regulação da figura do
agente de seguros (regulamentação do artigo 775 do Código Civil), a contragosto da
classe dominante dos corretores de seguros. Isso ocorreu por meio da Resolução
Circular nº 297480/2013, com base na qual o agente de seguros foi rebatizado
desnecessariamente com o nomen juris de representante de seguros. A
impossibilidade de que o representante de seguros atuare como corretor (art. 18 da
circular) atraiu feroz resistência dessa última classe profissional.
Apesar da normatização do representante de seguros, o panorama da falta de
formalização e transparência na intermediação de seguros pouco mudou.
Por tudo isso, o diagnóstico de problemas na intermediação de seguros é mais
alarmante no Brasil do que em mercados de seguros maduros. Nestes, o conflito de
interesses é menor, pois vem sendo reprimido há muito tempo – tanto por meio de
deveres jurídicos compulsórios de informação quanto pela própria concorrência sadia
dentro do segmento de intermediação de seguros. Também lá a cultura do seguro é
mais difundida, assim como é maior o conhecimento construído por parte de
segurados ao longo do tempo sobre seguros e sobre os relacionamentos que se
formam em seus bastidores.
Diante desse panorama, compreende-se que o CNSP, em sua missão de buscar corrigir
falhas crônicas de falta de transparência em nosso mercado de intermediação, lance
mão de mecanismos rigorosos. Rigorosos, mas não inéditos, tampouco arbitrários.
O modelo de deveres pré-contratuais de informação adotado pelo CNSP por
intermédio da Resolução nº 382/2020, que obriga intermediários de seguros a
informar os clientes sobre eventuais vínculos societários qualificados com seguradores
(e vice-versa), bem como sobre a pré-existência de alguma obrigação contratual para
atuar como intermediário de seguros, é o que vigora na União Europeia desde a
Diretiva de Mediação de Seguros de 2002 (IMD), tendo sido não apenas mantido, mas
ampliado por meio da Diretiva de Distribuição de Seguros de 2016 (IDD), gestada e
estudada por muitos anos.
A SUSEP está bem acompanhada de países como Portugal e outros, ao exigir, como
opção regulatória, que intermediários de seguros informem a clientes
compulsoriamente sobre suas remunerações em decorrência do contrato de seguros.
Ao contrário de algumas lideranças políticas de corretores de seguros apregoam, não
se tem notícia de que as informações prestadas no cumprimento dessas exigências,
por exemplo, em Portugal tenham ocasionado quaisquer danos à livre concorrência,
ao mercado de intermediação e, sobretudo, aos clientes consumidores de seguros. Um
maior grau de transparência e menor assimetria informacional tem contribuído na
União Europeia para melhorar a percepção dos consumidores em relação a produtos
financeiros em geral e seguros em particular. Não por outro motivo, a ampliação do
fluxo de informações a consumidores tem sido o caminho político-jurídico adotado no
âmbito da comunidade europeia para fomentar um ambiente concorrencial mais
amplo e equilibrado para intermediários e, em última análise, mais benéfico ao
consumidor.
Espera-se que todos os atores do mercado segurador brasileiro, não apenas os
intermediários de seguros, mas também seguradoras, segurados e os demais
participantes em menor grau do setor adquiram essa mesma consciência, em prol de
um mercado mais aberto, transparente, íntegro e cada vez mais livre de conflitos
éticos e morais.
Bem examinada, a Resolução CNSP nº 382/2020 não deve provocar o mínimo receio
nos corretores de seguros. A esmagadora maioria dos corretores atua de maneira fiel
aos valores de independência e imparcialidade. A chave do relacionamento corretor-
cliente sempre se assentou na estrita confiança de um agir no melhor interesse do
cliente, sem agendas ocultas ou paralelas. A fidúcia é a base, mas não o seu principal
diferencial.
Seguros não são produtos triviais. E se tornam cada vez mais numerosos e complexos –
na esteira da complexidade crescente como dos riscos que pretendem garantir. Por
isso, o corretor que tenha domínio técnico de sua matéria-prima sempre será essencial
para a indústria e, principalmente, para o consumidor, para quem continuará
agregando enorme valor.

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