The Kid - Chaplin
The Kid - Chaplin
The Kid - Chaplin
Ensaiar uma análise textual The Kid (O Garoto de Charlot, 1921), sucesso estrondoso
da carreira de Charles Chaplin é ressalvar como a primeira longa de Chaplin dá continuidade à
relação do seu corpo de trabalho com o género slapstick. É relevante contextualizar este título em
função do contexto norte-americano do início do século XX que, desenvolvendo um cinema
silente voltado para as massas, assistia à expansão da comédia baseada na acção física
(slapstick). Se o surgimento deste novo género se traduziria em novas maneiras de construir
filmes, Chaplin inovaria nestas formas ainda na era do mudo, tornando-se no mais popular dos
cómicos no grande ecrã e num verdadeiro rei da slapstick comedy, assinando algumas das mais
famosas comédias de sempre.
1
Como notou James E. Caron (1), ‘‘o slapstick talvez seja a mais popular das artes
cómicas desenvolvidas na tradição do humor ocidental.’’ Efectivamente, enquanto subgénero da
comédia, o slapstick domina o grande ecrã na era do cinema mudo. Constrói gags visuais através
da actividade física exagerada, nos quais podem ver-se, por exemplo, situações absurdas ou de
perigo, truques, piadas, quedas, erros, lutas, interpretadas por artistas que possuem grande
expressividade ou extrema habilidade, complexificando a linguagem corporal das personagens
cómicas e a interacção entre estas para, através do domínio de um timing perfeito, provocar um
efeito risível.
Charles Spencer Chaplin (1889 – 1977) nascera em Londres, Inglaterra, e viveu uma
infância bastante pobre. Com apenas 19 anos, começa a dedicar-se ao teatro de variedades
(vaudeville) obtendo imediato êxito como mímico. Graças à sua fama, Chaplin conseguiu, em
digressão pelos Estados Unidos, contratos com vários estúdios, onde realizou e protagonizou as
primeiras curtas-metragens, tendo começado nos Keystone Film Company, em seguida na
Essanay e, posteriormente, na First National.
2
Foi em 1914, ano do início da Primeira Guerra Mundial, que conhecemos uma das mais
emblemáticas personagens da história da sétima arte: o Charlot protagonizava a curta Kid Auto
Races at Venice. Neste filme, Chaplin teve a oportunidade de apresentar o personagem que
construíra: este ‘‘troll’’ atravessava-se à frente da câmara enquanto os seus operadores tentavam
filmar, em vão, uma corrida de automóveis. Oscilando entre o plano geral e o POV, vemos
Charlot fitar-nos através da lente, numa comunicação com o espectador que rompe a quarta
parede e nos lembra das raízes de Chaplin no teatro de vaudeville, antes da passagem para o
cinema. Surgindo com o seu icónico bigode, chapéu de côco, bengala, calças largas e sapatos
desgastados e pontiagudos, o burlesco Vagabundo é a desmultiplicação constante do gentleman
maltrapilho, fino de modos mas sem dinheiro. A coreografia apurada ao detalhe, a criação de
complexas composições espaciais, a hiperbolização clownesca das expressões, um excelente
sentido de oportunidade, o controlo dos tempos e o domínio de uma gramática de movimentos
inspirada na pantomima contribuíram para a construção da icónica personagem do Vagabundo
(the Tramp ou Charlot), insígnia do contributo de Chaplin ao cinema.
3
ascensão, em 1919, Chaplin co-fundava o estúdio United Artists, com outros artistas
renomeados, entre eles o cineasta DW Griffith e os actores Mary Pickford e Douglas Fairbanks.
4
Se The Kid seria a primeira longa-metragem produzida por Chaplin e um dos êxitos
mais estrondosos da sua carreira, será um dos filmes em que melhor desenvolverá essa crítica
consistente à desigualdade social. De novo em pele de tramp (o vagabundo), desta vez Chaplin
partilha o ecrã com uma criança-actor de enorme expressividade, Jackie Coogan, que viria assim
a tornar-se na primeira grande estrela infantil de Hollywood. A grande potência cómica desta
parceria é, precisamente, a de duplicar o personagem do Vagabundo, parecendo uma miniatura
deste.
Para além de ser uma importante alavanca da sua carreira, The Kid é narrativamente
relevante pelas revelações que deixa transparecer sobre o percurso pessoal de Chaplin. Com uma
rodagem atribulada e por várias vezes suspensa, esta primeira longa-metragem de Chaplin traça
paralelismos com alguns dos acontecimentos mais traumáticos da sua vida. Em menos de uma
hora, a história evoca a sua passagem por um orfanato devido às condições instáveis dos pais e
descreve outra das suas grandes dores: Chaplin acabara de perder o filho recém-nascido quando
se iniciaram as gravações de The Kid. Em pele de Vagabundo, viu-se como pai do pequeno
Jackie Coogan, vivendo no ecrã momentos que nunca teve oportunidade de ter com Norman
Spencer Chaplin.
5
Se o Vagabundo é o protagonista de um cinema do quotidiano, a mise-en-scène é chave
na construção do contexto. Vemos o berço improvisado em que o bebé dorme, a chaleira como
biberão pela qual bebe, as ruas sujas em que brinca, o prédio em ruínas onde mora, a divisão
única em que dormem e comem. Vemos o mesmo paletó gasto e remendado de Chaplin no
miúdo, em miniatura. Como noutras obras protagonizadas pelo Charlot, esta comédia dramática
inscreve, pelo riso, uma crítica mordaz à estratificação sócio-económica da sociedade. O
contraste entre o bairro pobre de que provém o Vagabundo e a vizinhança rica que o recebe no
final traduz uma analogia positiva ao percurso de Chaplin que, em vida, se afirmou
completamente destituído de qualquer nostalgia pela miséria.
Apesar da imediatez na leitura da comédia física slapstick, o cinema mudo recorre, por
diversas vezes, a outras estratégias de comunicação que auxiliam a plena compreensão da
narrativa. Os intertítulos são um exemplo disso e, em The Kid, cumprem funções variadas. Ora
nos fornecem indicações sobre a passagem do tempo, apresentam ou descrevem personagens
(por exemplo, “a mulher, cujo único pecado era ser mãe”, ou “o seu passeio matinal”), ora
concretizam fragmentos de diálogos (por exemplo, na sequência em que um grupo de senhoras
vê o vagabundo com o bebé: “É seu?”, “Como se chama?”).
A formulação estratégica da trilha sonora é também uma construção relevante: tanto nos
ajuda a compreender os sentimentos das personagens, como a complementar e acompanhar o
desenvolvimento da acção. Por exemplo, na sequência em que há uma ponte sonora e aparece a
mulher com o miúdo ao colo afirmando que ele está doente, é pontuada pelo tom triste da
música, que antevê o peso da cena que se seguirá. (Note-se que a versão a que hoje temos acesso
se diferencia do original lançado em 1921, pois só em 1971 é que foi inserida a trilha sonora
composta pelo próprio Chaplin).
6
conhecida de Chaplin no burlesco, este filme diz muito sobre as suas competências na direcção
de actores, deixando brilhar o pequeno Jackie. Entre as expressivas peripécias vividas por esta
dupla de pai e filho, há os indispensáveis gags de confronto com a autoridade [polícias,
vigilantes, agentes do orfanato, etc], abundantes nos disruptivos filmes de Chaplin.
A luta “absurda” tão típica do slapstick também não falta em The Kid, considerada uma
das sequências mais engraçadas do filme. Inicia-se quando outra criança provoca John,
retirando-lhe os brinquedos. Quando o vagabundo se apercebe e procura parar John, em
reviravolta inesperada, começa a encorajá-lo na luta, como se se tratasse de um combate de boxe,
até à chegada do irmão mais velho do seu adversário. O traço caricatural deste personagem
vestido de enchumaços, descreve-o com força para entortar um poste a soco, o que evoca a
curta-metragem Easy Street (Charlot na Rua da Paz, 1917), em que também é inclinado um
poste de luz. Outra sequência memorável é o momento do sonho, um paraíso onde todos os
previamente apresentados voam com asas de anjo. Aqui, Chaplin explora os primeiros truques de
edição e efeitos especiais de que o seu ídolo Méliès tanto gostava.
7
Somos puxados para dentro do filme na sequência em que o médico da aldeia vai
auscultar a criança: ao descobrir que o Vagabundo não é o pai, olha chocado diretamente para a
câmara, parecendo confirmar essa verdade connosco, espectadores. Só Chaplin fará o mesmo e
também fitará a câmara nesta sequência. O grande punctum dramático deste filme inicia-se com
o intertítulo ‘‘Esta criança está doente’’, que fende a estabilidade, e se sublinha pelo tom de
ameaça posteriormente deixado no ar pelo médico ao Vagabundo ‘‘Tratarei pessoalmente desta
situação’’. O enredo adensa-se em seguida, com a emotiva retirada da criança ao Vagabundo
pelos agentes do orfanato do Estado. Em suspensão da dúvida, acompanhamos o desesperado
Vagabundo a tentar libertar-se e, logo depois, no seu vagueio de telhado em telhado, procurando
a criança e depois na carrinha, lutando com o agente, até conseguir salvar o seu filho.
8
Reinventando as múltiplas possibilidades do slapstick, Chaplin foi o nome maior da
comédia burlesca. Dando corpo e rosto ao Vagabundo sem recurso à voz, distinguiu-se nas
particularidades da sua forma de andar e de vestir tornando-se, não só no mais famoso actor do
mundo como também na personagem mais imitada da história do cinema.
Incansável perfeccionista, Chaplin filmou The Kid entre inúmeros takes (num rácio de
53:1 de material filmado). O resultado foi um filme de seis bobines ao invés das habituais duas.
A primeira ‘‘longa’’ assinada por Chaplin é uma tragicomédia que se anuncia: “uma imagem
com um sorriso – e talvez uma lágrima”. Misturando drama e comédia, Chaplin desenvolve um
dos mais basilares desejos humanos: o cuidado de uma criança. E nesta versão do Vagabundo,
retrata um inspirador herói contra as circunstâncias, dando densidade psicológica e emocional à
personagem do pai que, exemplarmente, encontra formas originais de viver com um filho, com o
amor como necessidade e derradeiro recurso.
Se o realizador de The Kid foi influenciado pelos seus pares e antecessores, inspirou
decisivamente o cinema que se lhe seguiu, permanecendo, até ao presente, como um dos mais
relevantes casos de estudo. Recolhendo unânimes aplausos entre a crítica, guardou-se na
admiração dos cineastas ao longo do tempo, entre eles Sergei M. Eisenstein, Manoel de Oliveira,
Jean-Marie Straub ou Pedro Costa.
9
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) Caron, James E., Studies in American Humor, New Series 3, No. 14 (2006), American
Humor Studies Association, pp. 5-22
(2) Korte, Barbara, New World Poor through an Old Wold Lens: Charlie Chaplin’s
Engagement with Poverty, American Studies, Vol. 55, No. 1, Poverty and the
Culturalization of Class (2010), pp. 123-141
BIBLIOGRAFIA
Caron, J. (2006). Silent Slapstick Film as Ritualized Clowning: The Example of Charlie
Chaplin. Studies in American Humor, (14), new series 3, 5-22. Disponível em:
www.jstor.org/stable/42573699
França, J., n.d. O ESSENCIAL SOBRE Charles Chaplin. Incm.pt. Disponível em:
https://www.incm.pt/portal/arquivo/livros/gratuitos/125_OEssencialSobreCharlesChaplin.pdf
Lisboa, R., n.d. Harold Lloyd, O Palhaço Que Somos | À Pala De Walsh.
Apaladewalsh.com. Disponível em:
http://www.apaladewalsh.com/2015/06/harold-lloyd-o-palhaco-que-somos/
10