Escritas Do Eu

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 15

Ana Maria Lisboa de Mello Org.

Escritas do eu:
introspecção, memória, ficção
Sumário

Introdução7
Ana Maria Lisboa de Mello

reflexões teóricas
El pacto ambiguo y la autoficción 21
Manuel Alberca
Realidad y ficcion; la paradoja de la autobiografía 42
Darío Villanueva
Escrever o livro do mundo: Memória como substância
ética da literatura, ou: a obra literária como memória do presente 60
Ricardo Timm de Souza

escritas do eu na literatura brasileira


A formação do eu em Amanhecer, de Lucia Miguel Pereira 71
Juliana Santos
Navegação de cabotagem: memórias de
Jorge Amado em um álbum de instantâneos. 99
Eurídice Figueiredo
A infância ou a arte de andar e ler:
uma leitura de José [de] Rubem Fonseca 115
Sissa Jacoby
“Querem acabar comigo” e “Despedida provisória”,
de Caio Fernando Abreu: escritas do eu  132
Regina Kohlrausch
Os sentidos da viagem em Rakushisha, de Adriana Lisboa 142
Gínia Maria Gomes
Fragmentos de um discurso quotidiano.
A estética fotográfica em Espelho diário, de Rosângela Rennó  161
Biagio D’Angelo
A narração em Acenos e afagos, de João Gilberto Noll 173
Jaime Ginzburg
Escritas do eu: o perfil da autoficção 182
Anna Faedrich Martins

escritas do eu na literatura portuguesa


Eu sou uma saudade do que fui: vestígios do narrador em
exercício autobiográfico na narrativa portuguesa contemporânea 203
Paulo Ricardo Kralik Angelini
Literatura e conhecimento dos “dias de hoje” (Aquilino Ribeiro) 231
Helena Carvalhão Buescu
Comissão das Lágrimas de António Lobo Antunes:
quando o passado não é um país estrangeiro 239
Ana Paula Arnaut
Sobre os autores 257
Introdução
Ana Maria Lisboa de Mello

A presença mais acentuada de questões e procedimentos relativos à represen-


tação da subjetividade no romance foi-se delineando aos poucos, com mais
vitalidade a partir do Romantismo na Europa. Sergio Givone, ao fazer um
balanço das narrativas da literatura ocidental que foram traçando os contornos
da exploração da subjetividade na ficção, aponta Cervantes como precursor
dessa modalidade, com perquirições sobre o sentido do Eu e de seu estar no
mundo, ainda que incipiente em relação às experiências posteriores (GIVONE,
2009, p. 459-478). Considera Givone que a concepção quixotesca da alma coin-
cide com a elaborada pela tradição teológica: “A alma: ou a perdemos, ou a
salvamos. Perdemos a alma deixando que o mundo a seduza e a capture com
seus enganos, suas ilusões, suas quimeras. Salvamos a alma redespertando nela
a memória daquilo a que está destinada” (Ibidem, p. 460). Quixote recupera
a razão antes de morrer, momento em que a alma não mais pode ser burlada.
Esse desdobramento sobre si teria continuidade em Robinson Crusoé, já que a
personagem de Daniel Defoe, único sobrevivente de um naufrágio, refugia-se
em uma ilha da América do Sul, onde solitariamente passa a refletir sobre a
vida pregressa, seus valores, erros e acertos, ao mesmo tempo em que luta coti-
dianamente para garantir o seu sustento e segurança.
Se a literatura do Classicismo foi influenciada pelo grande desenvolvi-
mento teórico da Matemática e da Física, de modo que os teoremas dos físi-
cos são equiparáveis às geométricas peças de Racine, como observa Edmund
Wilson (1931, p. 3), a literatura romântica mostrou o contrário. Para os autores
românticos, “o universo não era, afinal, uma máquina, mas algo mais miste-
rioso e menos racional” (Ibidem, p. 4).
Contrariamente ao Iluminismo, que acreditou no poder exemplar e didá-
tico da “razão natural”, atuando “em termos de bom-senso, equilíbrio e verdade

7
lógica” (GUINSBURG, 1978, p. 15), o Romantismo, conforme observa Guinzburg,
inverte essa linha de pensamento. É, nesse contexto, que o discurso histórico
sofre uma mudança revolucionária, fundada na dialética da interação entre o
individual e o coletivo:
É a história que produz a civilização. Mas não a História, e sim as histórias. Suas
fontes propulsoras estão menos na ação isolada do homem abstrato, singulari-
zado na sua ratio, do que, de um lado, no indivíduo, fantasioso, imprevisível, de
alta complexidade psicológica, centrado na sua imaginação e sensibilidade, gênio
intuitivo investido de uma missão por lance do destino ou impulso inerente à sua
personalidade, que é o herói romântico, encarnação de uma vontade antes social
do que pessoal, apesar da forma caprichosamente subjetiva de seus motivos e
decisões, e, de outro lado, num ser ou organismo coletivo dotado de corpo e alma,
de alma mais do que de corpo, cujo espírito é o centro nevrálgico e alimentador
de uma existência conjunta (Ibidem, p. 13).

É, sobretudo, no âmbito do Romantismo alemão que surgem obras cujos


heróis empreendem uma viagem iniciática, que consiste em uma trajetória
solitária para a conquista de si mesmo, como tão bem analisou Marcel Brion
(1977). A viagem solitária, que oportuniza a introspecção e a incursão em
regiões inexploradas da alma, reflete igualmente a autobiografia dos escritores,
ao projetar as suas aspirações e fantasias de liberdade. Esse leitmotiv, recorrente
entre alemães, vai continuar a exercer uma fascinação nos escritores europeus
dos séculos XIX e XX.
É também no Romantismo alemão que o tema do duplo, do encontro do
outro – o estrangeiro íntimo que habita o homem – ganha ressonâncias trági-
cas e fatais e se irradia para as literaturas de outros países na mesma época; o
duplo torna-se o adversário, o inimigo que o desvia do caminho certo e que é
preciso combater. Anne Richter, na Introdução do livro Histoires de doubles: d’
Hoffmann à Cortazar, observa que o idealismo serve de suporte a essa concep-
ção do Eu dual para os escritores dessa época, que pode ser resumida nas ideias
de que “a verdadeira vida está em outro lugar, fora daqui. O mundo é duplo e,
na realidade cotidiana, dele nós só captamos a aparência” (RICHTER, 1995, p. 12).
Assim, no século XIX, a sensibilidade romântica rompe com ideais estéti-
cos clássicos, com paradigmas iluministas, e dá à subjetividade – ao Eu – um
valor preeminente, de tal modo que prepara o caminho para que a literatura
posterior – simbolista, surrealista, modernista – explorasse a subjetividade, o
sonho e o inconsciente, dando lugar a narrativas de sondagem da vida inte-
rior, com perquirição filosófica e visão poética. Conforme Gilbert Durand, é
no coração desses movimentos que se estabelece progressivamente uma reava-

8
liação positiva do sonho, do devaneio, até da alucinação, [...] cujo resultado é,
segundo Henri Ellenberger, “a descoberta do inconsciente” (DURAND, 2004, p.
35). No livro Histoire de La découverte de l’ inconscient, Ellenberger assinala que:
Para além da Natureza visível, o romântico buscava penetrar nos segredos do
“fundamento” (Grund) da Natureza onde ele via o fundamento da própria alma.
As vias suscetíveis de levar a esse fundamento não se reduzem ao puro intelecto,
mas incluem o Gemüt, ou seja, as profundezas mais íntimas da vida emocional.
Decorre disso, o interesse do Romantismo por todas as manifestações do incons-
ciente: os sonhos, o gênio, a doença mental, a parapsicologia, os poderes ocultos
do destino, a psicologia animal... Também advém daí, o seu interesse por con-
tos populares e o folclore, por todas as expressões espontâneas do gênio popular
(ELLENBERGER, 2001, p. 230).

A revelação dos conflitos do Eu exigiu uma renovação no discurso literário


no século XIX. Nesse sentido, é significativa a inovação introduzida por Mme
Bovary (1856), de Gustave Flaubert, romance que aproxima, através do discurso
indireto livre, o narrador onisciente e a protagonista Emma, fazendo com que,
como observa Vargas Llosa, as fronteiras entre esses dois seres ficcionais se eva-
porem. Esse procedimento gera ambivalências na tessitura narrativa, de modo
que, “o leitor não sabe se aquilo que o narrador disse provém do relator invisível
ou do próprio personagem que está monologando mentalmente” (LLOSA, 1979,
p. 154). O uso do discurso indireto livre é um procedimento que permite narrar
diretamente os processos mentais da personagem, descrever a sua intimidade
e colocar o leitor no centro da sua subjetividade. A personagem fala através do
discurso do narrador, provocando a citada fusão entre as duas instâncias ficcio-
nais, interdependentes.
No que se refere à construção das personagens, é significativa a contribuição
de Dostoiévski para o desenvolvimento do romance de introspecção. O escritor
realiza a expressão da autoconsciência, deslocando a ênfase da retratação do real
para a forma como a personagem vê a realidade e a si mesma, ou seja, introduz,
conforme observa Bakhtin, “tudo no campo de visão da própria personagem”
(BAKHTIN, 1981, p. 40). Cindidas por pressões opostas, diante de alternativas
em relação às quais devem se posicionar, as personagens dostoiévskianas des-
dobram-se em constantes processos de autoanálise e autocrítica. Nesses con-
flitos, entra em pauta o confronto entre a liberdade individual e os interesses
coletivos. Conforme Hauser, “o herói de Memórias do subterrâneo, Raskolnikov
[de Crime e Castigo], Kirilov [de Os demônios] e Ivan Karamazov [de Os Irmãos
Karamazov], todos eles atacam esse problema, todos se batem contra o perigo de
serem devorados pelo abismo da liberdade absoluta, do arbítrio individual e do

9
egoísmo” (HAUSER, 1982, p. 1023). Para René Alberès, o autor russo, através das
personagens, expõe a alma humana negativamente, em seu vazio e sua angústia,
fazendo-a avançar em direção de tudo aquilo que não é a sua alma verdadeira:
“seus erros, seus crimes, sua exaltação, sua impotência” (ALBERÈS, 1962, p. 268).
Nesse sentido, evocam, pelo viés negativo, aquilo que o ser humano não deveria
ser. Dostoiévski intuitivamente antecipa, em seus personagens, o processo psica-
nalítico de exploração do subconsciente, sem a terminologia específica que será
trazida por Freud e seus seguidores.
No final do século XIX, o romance simbolista subverte as convenções da
narração realista e revela diretamente o fluxo do pensamento do protagonista
em monólogo interior. Valérie Michelet Jacquod, em Le roman symbolist: un
art de l’“extrême conscience”, discute as avaliações críticas sobre essa produ-
ção, caracterizado-a com, entre outros, elementos apontandos por Michel
Raimond, a saber: “monólogo interior, evolução dos pontos de vista, desin-
tegração da personagem e metamorfoses da composição”.1 Esses recursos, de
modo bastante ousado, conferem flexibilidade ao gênero romanesco na virada
do século XIX para o XX.
A ruptura do romance simbolista com as técnicas tradicionais de ênfase
na mímese do real faz com que seja chamado por Eric Marty de “romance do
ser”,2 marcado por uma linguagem que parecia ter perdido a imediaticidade e a
disponibilidade para desvelar o ser das coisas. O monólogo interior torna-se a
expressão do pensamento mais íntimo, revelador dos processos de busca de si-
mesmo e do Absoluto. Para Jacquod, cada romance simbolista integra, “em um
grau ou outro, de maneira explícita ou não, o ideal do ‘romance do ser’, aquele
que visa descrever um estado poético do sujeito, mais frequentemente do sujeito
que escreve, fato que o aproxima do poema em prosa (JACQUOD, 2008, p. 20).
Em Os loureiros estão cortados (1887), Dujardin produz essas mudanças
na narrativa de ficção ao explorar o estado de alma do protagonista do relato
– Daniel Prince – através do monólogo interior, com uma linguagem que pre-
tende mostrar o movimento ininterrupto da consciência. Esse recurso evoca o
fluxo de pensamentos que atravessa a alma da personagem, à medida que nas-
cem, sem um encadeamento lógico. Apesar da simplicidade da história – um
estudante na expectativa de um encontro com uma jovem, Léa, por quem está

1 Cf. RAIMOND, Michel. La crise du roman: des lendemains du naturalisme aux années vingt. Paris:
J. Corti, 1985. JACQUOD, Valérie Michelet. Le roman symboliste: un art de l’ “extreme conscience”.
Géneve: Droz, 2008, p. 15 (traduzimos).
2 Termo empregado por Eric Marty, apud JACQUOD, Valérie Michetet. Le roman symboliste, 2008,
p. 19.

10
apaixonado – a narrativa renova o discurso literário ao instalar o leitor, desde
os primeiros parágrafos, no fluxo de pensamentos do protagonista, em seu
estado nascente, sem ordenação, tal como acontece de fato na mente humana.
Durante as poucas horas em que se desenvolve a narrativa, o pensamento de
Daniel Prince, em forma de fragmentos, mistura-se às suas ações, aos diálogos
que mantém com outras pessoas em seus percursos, à releitura das cartas da
jovem Léa, ao fluxo de lembranças de lugares e de acontecimentos vividos.
Édouard Dujardin afirma, quanto ao monólogo interior, que se trata de
um discurso sem auditor, não pronunciado, através do qual “um personagem
exprime seu pensamento mais íntimo, o mais próximo do inconsciente, anterior-
mente a toda organização lógica, ou seja, em estado nascente, por meio de frases
diretas reduzidas ao mínimo de sintaxe, de modo a dar impressão” (DUJARDIN
apud RABATEL, 2001, p. 74) de um devir contínuo. Considera, ainda, que, embora
o romance simbolista pretenda revelar a vida interior das personagens, ele não
consegue abstrair-se totalmente da vida cotidiana: “O romance que pretenderá
dizer a vida da alma será balançado incessantemente entre a exaltação poética e
o trivial do cotidiano vulgar” (DUJARDIN apud JACQUOD, 2008, p. 19).
Por sua ambição de expressão do essencial, não visível, e de “antirrepre-
sentatividade”, a poesia parece ser o gênero natural para expressar os princípios
da nova estética, de tal modo que o termo “romance” expõe uma contradição
ou uma inadequação em relação aos ideais simbolistas. Para Jacquod, a inter-
pretação de que o romance simbolista é um romance-poema aplica-se somente
a algumas narrativas mais breves, tal como Bruges-la-morte (1892), de Georges
Rodenbach, mas não se sustentaria em obras mais longas; entretanto, a autora
não minimiza a atração que o poema em prosa exerce sobre os romancistas do
Simbolismo.
Gilbert Durand considera que a crise do pensamento ocidental, apontada
em reflexões contemporâneas, emerge com os pensadores pré-românticos e
românticos que refletiram sobre as “causas” da grandeza e da decadência das
civilizações, sobre o “dilaceramento” da consciência, sobre a “alienação” do
homem (DURAND, 1979, p. 16). Essa crise torna-se mais precisa após a Belle
Époque (período que coincide com o Simbolismo) e ao longo do período das
duas guerras mundiais, com os intelectuais da angústia, do “suplemento da
alma” ou os ironistas do “melhor dos mundos”.
No início do século XX, as conquistas dos românticos e dos simbolistas, no
que tange à introspecção e à revelação da subjetividade no romance, continuam
a repercutir na produção ficcional. Experimentando novas formas de criação
romanesca, Marcel Proust começa a publicar, em 1913, Em busca do tempo per-

11
dido, no qual a memória, seguidamente involuntária, reconduz o narrador ao
passado, aos lugares e experiências que ficaram temporariamente obnubilados.
A obra de Proust, segundo alguns críticos, como Gérard Genette, apresenta
um pacto contraditório, já que é autobiográfico e ficcional ao mesmo tempo,
podendo-se afirmar que já prenuncia a aproximação entre a biografia do autor
e a ficção, que será recorrente no final do século. James Joyce, que publica
Retrato de um artista quando jovem, em 1916, inspira-se também nas práticas
simbolistas francesas, sobretudo na utilização do monólogo interior. Ulisses
(1922) é também, em muitos aspectos, um romance que revela ter origens na
experiência simbolista, com o emprego do monólogo, ao mesmo tempo em que
inspira e irradia suas conquistas para criações posteriores.
Herdeiro de todas as transformações do final do século XIX e início do
XX, o romance modernista, como observam Flechter e Bradbury, vai também
pôr em evidência questões como “as complexidades de sua própria forma,
com representações de estados íntimos da consciência, com um sentimento
de desordem niilista por trás da superfície ordenada da vida e da realidade, e
com a libertação da narrativa diante da determinação de um oneroso enredo”
(FLECHTER & BRADBURY, 1989, p. 321). Assim, livre das convenções realistas, lato
sensu, o romance modernista insere, no discurso ficcional, a discussão sobre a
própria criação literária e torna-se mais próximo da vida ao desvelar a sequência
desordenada do pensamento, do tempo, bem como a complexidade da mente.
Nesses romances, o espaço social finito pode vir a ser a moldura para uma
expansão interior infinita. Lugares fechados, como o sanatório para tratamento
de doenças respiratórias em A montanha mágica, de Thomas Mann, localizado
em Davos, nos Alpes Suíços, por exemplo, permitem ao protagonista Hans
Castorp a experiência do devaneio sem restrições, a oportunidade de amadure-
cimento espiritual, situação que, no caso desse romance, se contrapõe ao mundo
dos negócios e da guerra, próprios da “planície”.
Tais romances, com diferentes perfis, revelam o desdobramento do sujeito
sobre si mesmo, o desencadeamento da “recordação”,3 no sentido de Staiger, e o
mergulho no psiquismo, com digressões filosóficas, que aproximam, em muitas
passagens, o romance do ensaio e, em alguns casos, de uma prosa lírica. Neles, a
sociedade é revelada e avaliada pelas reflexões do sujeito – centro de consciên-
cia – que projeta, através de sua própria experiência, uma tela onde todos os
indivíduos podem se reconhecer como diante de um espelho.

3 Para Staiger, “recordar” deve ser o termo para a falta de distância entre sujeito e objeto, para o
um-no-outro lírico. In: STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1975.

12
O romance centrado na exploração da subjetividade desdobra-se em dife-
rentes tendências na primeira metade do último século, algumas delas precurso-
ras de novos procedimentos estéticos, como, por exemplo, a inserção de diários
íntimos no interior da narrativa, como uma espécie de mise-en-abîme, ao lado de
procedimentos já consolidados, sobretudo, a partir da prosa simbolista e deca-
dentista no final do século XIX. A exploração da memória, em monólogo interior,
o entrecruzamento entre a percepção da realidade cotidiana e o impulso de explo-
ração em profundidade da consciência ganham mais consistência e visibilidade
em Marcel Proust e James Joyce.
Laurent Mattuissi, em Fictions de l’ipséite, coloca, ao lado de Proust e de
Joyce, um conjunto de escritores, entre os quais Franz Kafka, Robert Musil
e Virginia Woolf, que reduzem as fronteiras entre a ficção e a autobiografia
(MATTIUSSI, 2002, p. 12). Aliados ao processo de rememoração do passado, que
surge em fragmentos, sentimentos de luto e melancolia emergem na escrita
literária, relacionados aos conflitos e recordações dos autores, inseridos em um
conturbado momento histórico entre as duas guerras mundiais.
Na narrativa ficcional, estados melancólicos são desencadeados por pro-
cessos de elaboração de perdas afetivas, mortes e desilusões, que emergem frag-
mentariamente na memória de personagens-narradores no período de uma
crise, impelindo-os a uma busca de si-mesmos. Nesses processos, sentimentos
de luto e melancolia emergem à consciência, impelindo-os à autoanálise. No
posfácio ao ensaio de Freud, intitulado Luto e Melancolia, Urania Tourinho
Peres assinala a relação entre a escrita melancólica e o sentimento dos escritores
em relação ao seu tempo:
Psicanalistas e poetas nos falam e respondem sobre a dor de existir. Uma perda
eterna, atemporal em seu acontecer, em que o limite entre passado e futuro torna-
se indistinto pela presença constante de uma falta, sinalizando a particular relação
da melancolia com o tempo, tempo que faz pacto com a morte (PERES, 2011).

Entre as obras que renovaram a ficção na primeira metade do século XX,


pode-se, ainda, inserir St. Petersburg, de Andrey Biely, escrito em 1905 e publi-
cado em 1913, narrativa que Marshall Bermann destaca como um dos grandes
romances do século XX, endossando a opinião de Vladimir Nabokov, que o
coloca ao lado de Ulisses, de Joyce, de A metamorfose, de Kafka e de Em busca do
tempo perdido, de Proust (BERMANN, 1988). Biely amplia as vozes narrativas, jus-
tapõe fragmentos que captam a vida da cidade de São Petersburgo e a vida inte-
rior das personagens. No prefácio ao romance, na tradução americana, George
Reavey observa que, na última década do século XIX, na “Europa e na Rússia”,

13
um novo espírito se faz sentir “com a música e com o Simbolismo”. Joyce e Biely,
segundo Reavey, preocupam-se com a questão da memória, com a experiência
do tempo (não correspondência entre o tempo cronológico e o psicológico),
com os princípios musicais, valorizados pelos simbolistas. Ambos sintonizam
com esse momento estético e incorporam alguns de seus aspectos para, “de
variadas maneiras, propor uma nova estética, explorar e enriquecer os recursos
de suas respectivas línguas e transformar o modelo do romance” (REAVEY, 1987).
O romancista é, finalmente, o memorialista da percepção aparentemente
mais simples, conforme observam Marc e Jean-Yves Tadié em Le sens de la
mémoire (1999, p. 110-112). Os acontecimentos privilegiados pelo relato ficcio-
nal são produtos dos laços afetivos que o narrador-protagonista mantém com
os objetos, os seres, a vida e com ele mesmo. Sabe-se que a intensidade afetiva
do vivido conta mais do que a sua qualidade. Para os autores, “cada percepção
do mundo exterior desencadeia em nós uma impressão de intensidade variá-
vel, agradável ou desagradável, carregada, portanto, de afeto” (Ibid., p. 117).
Segundo os teóricos, “um acontecimento particularmente proeminente produz
engrama naquilo que está em volta e teria sido esquecido se não fosse isso, tal
como a queda de uma bomba forma em volta do seu impacto um fosso maior
do que ela” (Ibid., p. 118). A emoção tem um papel preponderante no funcio-
namento da memória, o que se pode comprovar no fato de que, ao se explorar
o passado, surgem sempre as mesmas imagens, justamente aquelas que tive-
ram uma carga emocional muito forte. Sublinham, ainda, algo que o monólogo
interior procura reproduzir, ou seja, o fato de que “a intensidade de uma reação
afetiva face a uma percepção é inteiramente independente de nossa vontade,
ainda que ela dependa de nossa personalidade e esteja, portanto, na origem de
uma rememoração involuntária” (Ibid., p. 112).
Os procedimentos apontados aqui, surgidos já no século XIX, são reto-
mados também na literatura contemporânea, com matizes diferentes, sobre-
tudo nos romancistas que vêm construindo narrativas em que o acionamento
da memória pelo narrador, estilhaçada no fluxo do pensamento, associa-se à
história, sobretudo à barbárie que marcou o século XX, com a Guerra Civil
Espanhola, o genocídio dos judeus na Segunda Guerra, a violência dos pro-
cessos de descolonização na África, as ditaduras militares da América Latina.
De acordo com Pierre Ouellet, aqueles que se deslocam, impelidos pela
necessidade de exílio, não têm mais o seu lugar, já que o país abandonado não
existe senão na memória, votada ao luto e ao desprendimento, enquanto o de
acolhida existe na imaginação, como um sonho, mas está destinado às desilu-
sões e à nostalgia (OUELLET, 2005, p. 11-12).

14
Os processos de violência impeliram seres humanos forçosamente à emi-
gração em busca de um abrigo fixo e protegido e deram lugar a uma escrita lite-
rária de caráter transnacional,4 já que a identidade dos escritores é compósita,
carregada de uma herança cultural que se mescla à do país de acolhida.
Nesses casos, a escrita literária seria uma autoficção, na medida em que o
autor revela o processo de ligar o seu próprio passado ao de seus ancestrais, ou
seja, reconstitui a própria história e a própria identidade, recordando o que ficou
reprimido, as experiências traumáticas da família, as experiências de adaptação
a um novo país e cultura, a exemplo de Nur na Escuridão, de Salim Miguel, no
Brasil. Neste romance, o leitor associa a história que lê à própria história do escri-
tor cuja família chegou ao Brasil em 1927, quando ele era muito pequeno. Nur,
em árabe, que significa luz, é a primeira palavra portuguesa compreendida pelo
libanês Yussef, responsável pela família, quando um taxista acende um palito de
fósforo para ler o endereço na caderneta de Yussef e pronuncia a palavra LUZ.
Nur alude, simbolicamente, à iluminação que advém do ato de recordar o vivido
para compreendê-lo, como Dom Casmurro faz nas suas memórias, tentando
“atar as duas pontas da vida” (MACHADO DE ASSIS, 1999). O narrador do romance
de Salim Miguel rememora a história da família em seus deslocamentos pelo
país de acolhida, até a fixação derradeira em Florianópolis, articulando suas lem-
branças à memória dos pais a respeito da vida no Líbano, a decisão de partir, as
adversidades enfrentadas, a trajetória feita de percalços, mas também de alegrias.
No seu processo de construção identitária, o narrador revela a importância desse
trabalho de articulação do presente com o passado familiar, processo no qual as
duas culturas e os idiomas árabe e português também se mesclam.
São também muito recorrentes, na literatura contemporânea, as mudanças
espaciais dos protagonistas, que, situados temporariamente em outros países e
culturas, por opção ou por trabalho, enfrentam a solidão, o estranhamento, e
desencadeiam a busca de si mesmos, tal como, tomando exemplos brasileiros,
acontece nos romances Budapeste, de Chico Buarque, e Rakushisha, de Adriana
Lisboa. Desencadeada pelo deslocamento ou pela sensibilidade para o con-
fronto, essa produção literária voltada para o reconhecimento e o confronto com
o Outro (PATERSON, 2004) é cunhada por alguns teóricos contemporâneos de
“literatura migrante” ou “escrita migrante”. Conforme Pierre Ouellet, a noção
de migrância, deriva do verbo latino migrare, cujos significados são “mudar de
4 Conforme Zilá Bernd, no contexto dos estudos canadenses, destacando as reflexões de Janet
Paterson, o termo transnacional caracterizaria uma postura menos nostálgica em relação a perdas
e apontaria para a oportunidade de uma vida nova no país de acolhida, lugar de trocas e enrique-
cimentos (BERND, 2013, p. 4, no prelo).

15
lugar” e “transportar de um lugar a outro”, bem como o próprio ato de “infringir”,
“transgredir”. A migrância inclui, portanto, a ideia de transgressão, através da
qual o Eu se emancipa de sua identidade primeira, e pode ser caracterizada como
uma passagem ao outro, um movimento transgressivo do Um na direção do Outro,
que infringe as leis do próprio, franqueia as fronteiras da propriedade ou da indi-
vidualidade, para ir além, sempre, do lugar de onde vem ou de onde deriva a sua
identidade, para melhor desfazer esse laço originário e restabelecê-lo em cada novo
destino, um outro devir que é também um devir outro (OUELLET, 2005, p. 19).

Tal abertura favorece o desenvolvimento de uma “estesia migrante” ou


“sensibilidade migratória”, no dizer de Ouellet, que se revela nas “formas de
percepção do outro e de apreensão da própria alteridade”; “é a mudança que
faz o sujeito” e não o sujeito sendo agente de sua transformação, de modo que
a identidade está sempre em movimento interno.
Ouellet sublinha que, ao falar de literatura “migrante”, não se refere ape-
nas às obras poéticas, romanescas ou teatrais de autores nascidos em outros
lugares, dos quais guardam na memória e na escrita os elementos culturais da
origem, como é o caso, por exemplo, de Relato de um certo Oriente, de Milton
Hatoum, mas também da mobilidade intersubjetiva e intercultural que caracte-
riza também certos autores autóctones.
Centrada na questão da alteridade, essa produção fundamenta-se no
contraste entre modos de ser, no cruzamento de vozes, procedimento que dá
espaço à palavra dos temporariamente esquecidos, já que os narradores arti-
culam as suas memórias às dos antepassados, para compreender o presente. A
trama cultural do texto literário expõe o funcionamento da memória no pro-
cesso de recuperação da cultura de origem e se constitui, no caso da Literatura
Brasileira, em uma vereda nova ou, pelo menos, renovada na literatura, cen-
trada no binômio identidade/alteridade.
Nas últimas três décadas, a crítica literária vem dando especial atenção às
escritas do Eu, debruçando-se sobre gêneros cujas fronteiras são dúcteis ou inter-
cambiáveis (autobiografias, autobiografia ficcional, autoficção, memória, diário,
confissões, correspondência...). Através de uma série de procedimentos, que des-
velam ou deixam pistas, a escrita do Eu na literatura tem-se mostrado complexa
e flutuante nas suas abordagens teóricas. A autoficção, por exemplo, neologismo
empregado por Serge Doubrovsky no final da década de 1970, tem suscitado mui-
tas controvérsias entre os estudiosos da narrativa contemporânea. O termo dá
lugar a um pacto de leitura que Hélène Jaccomard (1993) considera contraditório,
porque se funda, concomitantemente, no pacto autobiográfico e no ficcional.

16
A literatura de introspeção nas últimas três décadas dá lugar a muitas
questões para aqueles que se debruçam sobre ela, tais como: – Quem é o Eu
que se exprime no texto? É um Eu imaginado? Ou o Eu do escritor que rea-
liza uma autoficção? Qual o sentido dessa escrita que efetua um mergulho do
protagonista em si, acionando fragmentos de memória, sentimentos de luto e
melancolia, em uma espécie de exercício de autocompreensão e compreensão
do vivido? Que procedimentos são utilizados para dar mais verossimilhança
ao processo de autorrevelação? De que gêneros as escritas do Eu na contem-
poraneidade se servem e de que modo se imbricam? Em que medida os deslo-
camentos espaciais dos protagonistas e o confronto com o Outro contribuem
para acionar o mergulho em si?
Os estudos reunidos neste livro procuram responder algumas dessas ques-
tões, dar conta de problemas teóricos contemporâneos relativos às formas e às
manifestações das escritas do Eu (primeira parte) e de como essas escritas sur-
gem e que contornos assumem nas literaturas brasileira e portuguesa (segunda
e terceira partes). Os autores discutem e confrontam pontos de vista teóricos
com obras, apontam e comparam procedimentos, problematizam as marcas da
“linguagem interior” em diferentes formas discursivas, reveladoras do embate
entre o Eu e a vida, cientes de que algumas conclusões podem ser provisórias,
já que estamos no centro de discussões teóricas ainda não esgotadas.

referências bibliográficas
ALBERÉS, R.-M. Histoire du roman moderne. Paris: Albin Michel, 1962.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 1981.
BERMANN, Marshall. All that is solid melts into air: the experience of modernity. New
York: Viking Penguin, 1988.
BIELY, Andrey. St Petersburg. Trad. John Cournos. New York: Grove Press, 1987.
BRION, Marcel. L’Allemagne Romantique. Le Voyage iniciatique. Paris: Albin Michel,
1977. 2 v.
DURAND, Gilbert. O Imaginário: Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem.
Rio de Janeiro: Difel, 2004.
______. Science de l’ homme et tradition. Paris: Berg International, 1979.
ELLENBERGER, Henri F. Histoire de la découverte de l’ inconsciente. Paris: Fayard, 2001.
FLECHTER, J.; BRADBURY, M. O romance de introversão. In: BRADBURY, M.;
MACFARLANE, J (Org.). Modernismo: guia geral. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
GIVONE, Sergio. Dizer as emoções: a construção da interioridade no romance moderno.
In: MORETTI, Franco (Org.). A cultura do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

17
GUINSBURG, J. Romantismo, historicismo e história. In: GUINSBURG, J. (Org.). O
romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978.
HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. São Paulo: Mestre Jou, 1982. t. 2.
JACCOMARD, Hélène. Lecteur et lecture dans l’autobiographie française contemporaine:
Violette Leduc, Françoise d’Eaubonne, Serge Doubrovsky, Marguerite Yourcenar.
Genève: Droz, 1993.
JACQUOD, Valérie Michelet. Le Roman symboliste: un art de l’“extreme conscience”.
Géneve: Droz, 2008.
LLOSA, Vargas. A orgia perpétua: Flaubert e Madame Bovary. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1979.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Dom Casmurro. Porto Alegre: L&PM, 1999.
MATTIUSSI, Laurent. Fictions de l’ Ipséité. Essai sur l’ invention narrative de soi. Génève:
Droz, 2002.
OUELLET, Pierre. L’esprit migrateur: essai sur le non-sens commun. Montréal: VLB
Éditeur, 2005.
PATERSON, Janet. Figuras de L’Autre dans le roman québécois. Montréal: Nota Bene,
2004.
PERES, Urania Tourinho. Uma ferida a sangrar-lhe a alma. In: FREUD, S. Luto e melancolia.
Tradução, introdução e notas de Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
RABATEL, Alain. Les répresentations de la parole intérieure: monoloque intérieur,
discours direct et indirect livre, point de vue. La langue française, Paris: Armand Colin,
n. 132, dez. 2001. La parole intérieure.
RAIMOND, Michel. La crise du roman: des lendemains du naturalisme aux années
vingt. Paris: J. Corti, 1985.
REAVEY, Georges. Foreword. In: BIELY, Andrey. St Petersburg. Tradução de John
Cournos. New York: Grove Press, 1987.
RICHTER, Anne. Les métamorphoses du double. In: RICHTER, Anne (Org.). Histoires
de doubles: d’Hoffmann à Cortazar. Bruxelles: Editions Complexes, 1995.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
TADIÉ, Jean-Yves; TADIÉ, Marc. Le sens de la mémoire. Paris: Gallimard, 1999.
WILSON, Edmund. Axel’ s Castle. A study in the imaginative literature of 1870-1930.
New York: Charles Scribner’s sons, 1931.

18

Você também pode gostar