Escritas Do Eu
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Escritas Do Eu
Escritas do eu:
introspecção, memória, ficção
Sumário
Introdução7
Ana Maria Lisboa de Mello
reflexões teóricas
El pacto ambiguo y la autoficción 21
Manuel Alberca
Realidad y ficcion; la paradoja de la autobiografía 42
Darío Villanueva
Escrever o livro do mundo: Memória como substância
ética da literatura, ou: a obra literária como memória do presente 60
Ricardo Timm de Souza
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lógica” (GUINSBURG, 1978, p. 15), o Romantismo, conforme observa Guinzburg,
inverte essa linha de pensamento. É, nesse contexto, que o discurso histórico
sofre uma mudança revolucionária, fundada na dialética da interação entre o
individual e o coletivo:
É a história que produz a civilização. Mas não a História, e sim as histórias. Suas
fontes propulsoras estão menos na ação isolada do homem abstrato, singulari-
zado na sua ratio, do que, de um lado, no indivíduo, fantasioso, imprevisível, de
alta complexidade psicológica, centrado na sua imaginação e sensibilidade, gênio
intuitivo investido de uma missão por lance do destino ou impulso inerente à sua
personalidade, que é o herói romântico, encarnação de uma vontade antes social
do que pessoal, apesar da forma caprichosamente subjetiva de seus motivos e
decisões, e, de outro lado, num ser ou organismo coletivo dotado de corpo e alma,
de alma mais do que de corpo, cujo espírito é o centro nevrálgico e alimentador
de uma existência conjunta (Ibidem, p. 13).
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liação positiva do sonho, do devaneio, até da alucinação, [...] cujo resultado é,
segundo Henri Ellenberger, “a descoberta do inconsciente” (DURAND, 2004, p.
35). No livro Histoire de La découverte de l’ inconscient, Ellenberger assinala que:
Para além da Natureza visível, o romântico buscava penetrar nos segredos do
“fundamento” (Grund) da Natureza onde ele via o fundamento da própria alma.
As vias suscetíveis de levar a esse fundamento não se reduzem ao puro intelecto,
mas incluem o Gemüt, ou seja, as profundezas mais íntimas da vida emocional.
Decorre disso, o interesse do Romantismo por todas as manifestações do incons-
ciente: os sonhos, o gênio, a doença mental, a parapsicologia, os poderes ocultos
do destino, a psicologia animal... Também advém daí, o seu interesse por con-
tos populares e o folclore, por todas as expressões espontâneas do gênio popular
(ELLENBERGER, 2001, p. 230).
9
egoísmo” (HAUSER, 1982, p. 1023). Para René Alberès, o autor russo, através das
personagens, expõe a alma humana negativamente, em seu vazio e sua angústia,
fazendo-a avançar em direção de tudo aquilo que não é a sua alma verdadeira:
“seus erros, seus crimes, sua exaltação, sua impotência” (ALBERÈS, 1962, p. 268).
Nesse sentido, evocam, pelo viés negativo, aquilo que o ser humano não deveria
ser. Dostoiévski intuitivamente antecipa, em seus personagens, o processo psica-
nalítico de exploração do subconsciente, sem a terminologia específica que será
trazida por Freud e seus seguidores.
No final do século XIX, o romance simbolista subverte as convenções da
narração realista e revela diretamente o fluxo do pensamento do protagonista
em monólogo interior. Valérie Michelet Jacquod, em Le roman symbolist: un
art de l’“extrême conscience”, discute as avaliações críticas sobre essa produ-
ção, caracterizado-a com, entre outros, elementos apontandos por Michel
Raimond, a saber: “monólogo interior, evolução dos pontos de vista, desin-
tegração da personagem e metamorfoses da composição”.1 Esses recursos, de
modo bastante ousado, conferem flexibilidade ao gênero romanesco na virada
do século XIX para o XX.
A ruptura do romance simbolista com as técnicas tradicionais de ênfase
na mímese do real faz com que seja chamado por Eric Marty de “romance do
ser”,2 marcado por uma linguagem que parecia ter perdido a imediaticidade e a
disponibilidade para desvelar o ser das coisas. O monólogo interior torna-se a
expressão do pensamento mais íntimo, revelador dos processos de busca de si-
mesmo e do Absoluto. Para Jacquod, cada romance simbolista integra, “em um
grau ou outro, de maneira explícita ou não, o ideal do ‘romance do ser’, aquele
que visa descrever um estado poético do sujeito, mais frequentemente do sujeito
que escreve, fato que o aproxima do poema em prosa (JACQUOD, 2008, p. 20).
Em Os loureiros estão cortados (1887), Dujardin produz essas mudanças
na narrativa de ficção ao explorar o estado de alma do protagonista do relato
– Daniel Prince – através do monólogo interior, com uma linguagem que pre-
tende mostrar o movimento ininterrupto da consciência. Esse recurso evoca o
fluxo de pensamentos que atravessa a alma da personagem, à medida que nas-
cem, sem um encadeamento lógico. Apesar da simplicidade da história – um
estudante na expectativa de um encontro com uma jovem, Léa, por quem está
1 Cf. RAIMOND, Michel. La crise du roman: des lendemains du naturalisme aux années vingt. Paris:
J. Corti, 1985. JACQUOD, Valérie Michelet. Le roman symboliste: un art de l’ “extreme conscience”.
Géneve: Droz, 2008, p. 15 (traduzimos).
2 Termo empregado por Eric Marty, apud JACQUOD, Valérie Michetet. Le roman symboliste, 2008,
p. 19.
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apaixonado – a narrativa renova o discurso literário ao instalar o leitor, desde
os primeiros parágrafos, no fluxo de pensamentos do protagonista, em seu
estado nascente, sem ordenação, tal como acontece de fato na mente humana.
Durante as poucas horas em que se desenvolve a narrativa, o pensamento de
Daniel Prince, em forma de fragmentos, mistura-se às suas ações, aos diálogos
que mantém com outras pessoas em seus percursos, à releitura das cartas da
jovem Léa, ao fluxo de lembranças de lugares e de acontecimentos vividos.
Édouard Dujardin afirma, quanto ao monólogo interior, que se trata de
um discurso sem auditor, não pronunciado, através do qual “um personagem
exprime seu pensamento mais íntimo, o mais próximo do inconsciente, anterior-
mente a toda organização lógica, ou seja, em estado nascente, por meio de frases
diretas reduzidas ao mínimo de sintaxe, de modo a dar impressão” (DUJARDIN
apud RABATEL, 2001, p. 74) de um devir contínuo. Considera, ainda, que, embora
o romance simbolista pretenda revelar a vida interior das personagens, ele não
consegue abstrair-se totalmente da vida cotidiana: “O romance que pretenderá
dizer a vida da alma será balançado incessantemente entre a exaltação poética e
o trivial do cotidiano vulgar” (DUJARDIN apud JACQUOD, 2008, p. 19).
Por sua ambição de expressão do essencial, não visível, e de “antirrepre-
sentatividade”, a poesia parece ser o gênero natural para expressar os princípios
da nova estética, de tal modo que o termo “romance” expõe uma contradição
ou uma inadequação em relação aos ideais simbolistas. Para Jacquod, a inter-
pretação de que o romance simbolista é um romance-poema aplica-se somente
a algumas narrativas mais breves, tal como Bruges-la-morte (1892), de Georges
Rodenbach, mas não se sustentaria em obras mais longas; entretanto, a autora
não minimiza a atração que o poema em prosa exerce sobre os romancistas do
Simbolismo.
Gilbert Durand considera que a crise do pensamento ocidental, apontada
em reflexões contemporâneas, emerge com os pensadores pré-românticos e
românticos que refletiram sobre as “causas” da grandeza e da decadência das
civilizações, sobre o “dilaceramento” da consciência, sobre a “alienação” do
homem (DURAND, 1979, p. 16). Essa crise torna-se mais precisa após a Belle
Époque (período que coincide com o Simbolismo) e ao longo do período das
duas guerras mundiais, com os intelectuais da angústia, do “suplemento da
alma” ou os ironistas do “melhor dos mundos”.
No início do século XX, as conquistas dos românticos e dos simbolistas, no
que tange à introspecção e à revelação da subjetividade no romance, continuam
a repercutir na produção ficcional. Experimentando novas formas de criação
romanesca, Marcel Proust começa a publicar, em 1913, Em busca do tempo per-
11
dido, no qual a memória, seguidamente involuntária, reconduz o narrador ao
passado, aos lugares e experiências que ficaram temporariamente obnubilados.
A obra de Proust, segundo alguns críticos, como Gérard Genette, apresenta
um pacto contraditório, já que é autobiográfico e ficcional ao mesmo tempo,
podendo-se afirmar que já prenuncia a aproximação entre a biografia do autor
e a ficção, que será recorrente no final do século. James Joyce, que publica
Retrato de um artista quando jovem, em 1916, inspira-se também nas práticas
simbolistas francesas, sobretudo na utilização do monólogo interior. Ulisses
(1922) é também, em muitos aspectos, um romance que revela ter origens na
experiência simbolista, com o emprego do monólogo, ao mesmo tempo em que
inspira e irradia suas conquistas para criações posteriores.
Herdeiro de todas as transformações do final do século XIX e início do
XX, o romance modernista, como observam Flechter e Bradbury, vai também
pôr em evidência questões como “as complexidades de sua própria forma,
com representações de estados íntimos da consciência, com um sentimento
de desordem niilista por trás da superfície ordenada da vida e da realidade, e
com a libertação da narrativa diante da determinação de um oneroso enredo”
(FLECHTER & BRADBURY, 1989, p. 321). Assim, livre das convenções realistas, lato
sensu, o romance modernista insere, no discurso ficcional, a discussão sobre a
própria criação literária e torna-se mais próximo da vida ao desvelar a sequência
desordenada do pensamento, do tempo, bem como a complexidade da mente.
Nesses romances, o espaço social finito pode vir a ser a moldura para uma
expansão interior infinita. Lugares fechados, como o sanatório para tratamento
de doenças respiratórias em A montanha mágica, de Thomas Mann, localizado
em Davos, nos Alpes Suíços, por exemplo, permitem ao protagonista Hans
Castorp a experiência do devaneio sem restrições, a oportunidade de amadure-
cimento espiritual, situação que, no caso desse romance, se contrapõe ao mundo
dos negócios e da guerra, próprios da “planície”.
Tais romances, com diferentes perfis, revelam o desdobramento do sujeito
sobre si mesmo, o desencadeamento da “recordação”,3 no sentido de Staiger, e o
mergulho no psiquismo, com digressões filosóficas, que aproximam, em muitas
passagens, o romance do ensaio e, em alguns casos, de uma prosa lírica. Neles, a
sociedade é revelada e avaliada pelas reflexões do sujeito – centro de consciên-
cia – que projeta, através de sua própria experiência, uma tela onde todos os
indivíduos podem se reconhecer como diante de um espelho.
3 Para Staiger, “recordar” deve ser o termo para a falta de distância entre sujeito e objeto, para o
um-no-outro lírico. In: STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1975.
12
O romance centrado na exploração da subjetividade desdobra-se em dife-
rentes tendências na primeira metade do último século, algumas delas precurso-
ras de novos procedimentos estéticos, como, por exemplo, a inserção de diários
íntimos no interior da narrativa, como uma espécie de mise-en-abîme, ao lado de
procedimentos já consolidados, sobretudo, a partir da prosa simbolista e deca-
dentista no final do século XIX. A exploração da memória, em monólogo interior,
o entrecruzamento entre a percepção da realidade cotidiana e o impulso de explo-
ração em profundidade da consciência ganham mais consistência e visibilidade
em Marcel Proust e James Joyce.
Laurent Mattuissi, em Fictions de l’ipséite, coloca, ao lado de Proust e de
Joyce, um conjunto de escritores, entre os quais Franz Kafka, Robert Musil
e Virginia Woolf, que reduzem as fronteiras entre a ficção e a autobiografia
(MATTIUSSI, 2002, p. 12). Aliados ao processo de rememoração do passado, que
surge em fragmentos, sentimentos de luto e melancolia emergem na escrita
literária, relacionados aos conflitos e recordações dos autores, inseridos em um
conturbado momento histórico entre as duas guerras mundiais.
Na narrativa ficcional, estados melancólicos são desencadeados por pro-
cessos de elaboração de perdas afetivas, mortes e desilusões, que emergem frag-
mentariamente na memória de personagens-narradores no período de uma
crise, impelindo-os a uma busca de si-mesmos. Nesses processos, sentimentos
de luto e melancolia emergem à consciência, impelindo-os à autoanálise. No
posfácio ao ensaio de Freud, intitulado Luto e Melancolia, Urania Tourinho
Peres assinala a relação entre a escrita melancólica e o sentimento dos escritores
em relação ao seu tempo:
Psicanalistas e poetas nos falam e respondem sobre a dor de existir. Uma perda
eterna, atemporal em seu acontecer, em que o limite entre passado e futuro torna-
se indistinto pela presença constante de uma falta, sinalizando a particular relação
da melancolia com o tempo, tempo que faz pacto com a morte (PERES, 2011).
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um novo espírito se faz sentir “com a música e com o Simbolismo”. Joyce e Biely,
segundo Reavey, preocupam-se com a questão da memória, com a experiência
do tempo (não correspondência entre o tempo cronológico e o psicológico),
com os princípios musicais, valorizados pelos simbolistas. Ambos sintonizam
com esse momento estético e incorporam alguns de seus aspectos para, “de
variadas maneiras, propor uma nova estética, explorar e enriquecer os recursos
de suas respectivas línguas e transformar o modelo do romance” (REAVEY, 1987).
O romancista é, finalmente, o memorialista da percepção aparentemente
mais simples, conforme observam Marc e Jean-Yves Tadié em Le sens de la
mémoire (1999, p. 110-112). Os acontecimentos privilegiados pelo relato ficcio-
nal são produtos dos laços afetivos que o narrador-protagonista mantém com
os objetos, os seres, a vida e com ele mesmo. Sabe-se que a intensidade afetiva
do vivido conta mais do que a sua qualidade. Para os autores, “cada percepção
do mundo exterior desencadeia em nós uma impressão de intensidade variá-
vel, agradável ou desagradável, carregada, portanto, de afeto” (Ibid., p. 117).
Segundo os teóricos, “um acontecimento particularmente proeminente produz
engrama naquilo que está em volta e teria sido esquecido se não fosse isso, tal
como a queda de uma bomba forma em volta do seu impacto um fosso maior
do que ela” (Ibid., p. 118). A emoção tem um papel preponderante no funcio-
namento da memória, o que se pode comprovar no fato de que, ao se explorar
o passado, surgem sempre as mesmas imagens, justamente aquelas que tive-
ram uma carga emocional muito forte. Sublinham, ainda, algo que o monólogo
interior procura reproduzir, ou seja, o fato de que “a intensidade de uma reação
afetiva face a uma percepção é inteiramente independente de nossa vontade,
ainda que ela dependa de nossa personalidade e esteja, portanto, na origem de
uma rememoração involuntária” (Ibid., p. 112).
Os procedimentos apontados aqui, surgidos já no século XIX, são reto-
mados também na literatura contemporânea, com matizes diferentes, sobre-
tudo nos romancistas que vêm construindo narrativas em que o acionamento
da memória pelo narrador, estilhaçada no fluxo do pensamento, associa-se à
história, sobretudo à barbárie que marcou o século XX, com a Guerra Civil
Espanhola, o genocídio dos judeus na Segunda Guerra, a violência dos pro-
cessos de descolonização na África, as ditaduras militares da América Latina.
De acordo com Pierre Ouellet, aqueles que se deslocam, impelidos pela
necessidade de exílio, não têm mais o seu lugar, já que o país abandonado não
existe senão na memória, votada ao luto e ao desprendimento, enquanto o de
acolhida existe na imaginação, como um sonho, mas está destinado às desilu-
sões e à nostalgia (OUELLET, 2005, p. 11-12).
14
Os processos de violência impeliram seres humanos forçosamente à emi-
gração em busca de um abrigo fixo e protegido e deram lugar a uma escrita lite-
rária de caráter transnacional,4 já que a identidade dos escritores é compósita,
carregada de uma herança cultural que se mescla à do país de acolhida.
Nesses casos, a escrita literária seria uma autoficção, na medida em que o
autor revela o processo de ligar o seu próprio passado ao de seus ancestrais, ou
seja, reconstitui a própria história e a própria identidade, recordando o que ficou
reprimido, as experiências traumáticas da família, as experiências de adaptação
a um novo país e cultura, a exemplo de Nur na Escuridão, de Salim Miguel, no
Brasil. Neste romance, o leitor associa a história que lê à própria história do escri-
tor cuja família chegou ao Brasil em 1927, quando ele era muito pequeno. Nur,
em árabe, que significa luz, é a primeira palavra portuguesa compreendida pelo
libanês Yussef, responsável pela família, quando um taxista acende um palito de
fósforo para ler o endereço na caderneta de Yussef e pronuncia a palavra LUZ.
Nur alude, simbolicamente, à iluminação que advém do ato de recordar o vivido
para compreendê-lo, como Dom Casmurro faz nas suas memórias, tentando
“atar as duas pontas da vida” (MACHADO DE ASSIS, 1999). O narrador do romance
de Salim Miguel rememora a história da família em seus deslocamentos pelo
país de acolhida, até a fixação derradeira em Florianópolis, articulando suas lem-
branças à memória dos pais a respeito da vida no Líbano, a decisão de partir, as
adversidades enfrentadas, a trajetória feita de percalços, mas também de alegrias.
No seu processo de construção identitária, o narrador revela a importância desse
trabalho de articulação do presente com o passado familiar, processo no qual as
duas culturas e os idiomas árabe e português também se mesclam.
São também muito recorrentes, na literatura contemporânea, as mudanças
espaciais dos protagonistas, que, situados temporariamente em outros países e
culturas, por opção ou por trabalho, enfrentam a solidão, o estranhamento, e
desencadeiam a busca de si mesmos, tal como, tomando exemplos brasileiros,
acontece nos romances Budapeste, de Chico Buarque, e Rakushisha, de Adriana
Lisboa. Desencadeada pelo deslocamento ou pela sensibilidade para o con-
fronto, essa produção literária voltada para o reconhecimento e o confronto com
o Outro (PATERSON, 2004) é cunhada por alguns teóricos contemporâneos de
“literatura migrante” ou “escrita migrante”. Conforme Pierre Ouellet, a noção
de migrância, deriva do verbo latino migrare, cujos significados são “mudar de
4 Conforme Zilá Bernd, no contexto dos estudos canadenses, destacando as reflexões de Janet
Paterson, o termo transnacional caracterizaria uma postura menos nostálgica em relação a perdas
e apontaria para a oportunidade de uma vida nova no país de acolhida, lugar de trocas e enrique-
cimentos (BERND, 2013, p. 4, no prelo).
15
lugar” e “transportar de um lugar a outro”, bem como o próprio ato de “infringir”,
“transgredir”. A migrância inclui, portanto, a ideia de transgressão, através da
qual o Eu se emancipa de sua identidade primeira, e pode ser caracterizada como
uma passagem ao outro, um movimento transgressivo do Um na direção do Outro,
que infringe as leis do próprio, franqueia as fronteiras da propriedade ou da indi-
vidualidade, para ir além, sempre, do lugar de onde vem ou de onde deriva a sua
identidade, para melhor desfazer esse laço originário e restabelecê-lo em cada novo
destino, um outro devir que é também um devir outro (OUELLET, 2005, p. 19).
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A literatura de introspeção nas últimas três décadas dá lugar a muitas
questões para aqueles que se debruçam sobre ela, tais como: – Quem é o Eu
que se exprime no texto? É um Eu imaginado? Ou o Eu do escritor que rea-
liza uma autoficção? Qual o sentido dessa escrita que efetua um mergulho do
protagonista em si, acionando fragmentos de memória, sentimentos de luto e
melancolia, em uma espécie de exercício de autocompreensão e compreensão
do vivido? Que procedimentos são utilizados para dar mais verossimilhança
ao processo de autorrevelação? De que gêneros as escritas do Eu na contem-
poraneidade se servem e de que modo se imbricam? Em que medida os deslo-
camentos espaciais dos protagonistas e o confronto com o Outro contribuem
para acionar o mergulho em si?
Os estudos reunidos neste livro procuram responder algumas dessas ques-
tões, dar conta de problemas teóricos contemporâneos relativos às formas e às
manifestações das escritas do Eu (primeira parte) e de como essas escritas sur-
gem e que contornos assumem nas literaturas brasileira e portuguesa (segunda
e terceira partes). Os autores discutem e confrontam pontos de vista teóricos
com obras, apontam e comparam procedimentos, problematizam as marcas da
“linguagem interior” em diferentes formas discursivas, reveladoras do embate
entre o Eu e a vida, cientes de que algumas conclusões podem ser provisórias,
já que estamos no centro de discussões teóricas ainda não esgotadas.
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