Avaliacao Neuropsicologica Da Linguagem
Avaliacao Neuropsicologica Da Linguagem
Avaliacao Neuropsicologica Da Linguagem
Rui Rothe-Neves
Faculdade de Letras e Programa de Pós-Graduação em Neurociências (UFMG)
1. Introdução
Com base nos procedimentos existentes, entretanto, não é simples classificar um paciente
em uma das síndromes afásicas. Segundo Neils-Strunjaš (1996), isto se deve principalmente
a duas importantes limitações desse modelo de avaliação, amplamente conhecido como
"modelo de correlação clínico-anatômica". Em primeiro lugar, há ausência de concordância
entre a classificação feita por especialistas e aquela realizada a partir de testes específicos,
ou mesmo entre mais de um teste. Em segundo lugar, o modelo não permite classificar
cerca de 40% dos pacientes em qualquer das síndromes.
O modelo de correlação clínico-anatômica se baseia na noção de que as síndromes
derivam de lesões em regiões corticais específicas, cujo prejuízo implica nas deficiências de
desempenho observadas nas afasias. Entretanto, não é recente a falta de consenso com
relação à localização de síndromes específicas (Mohr et al., 1978; Alexander, Naeser &
Palumbo, 1987; Anderson et al., 1999). Num dos mais criteriosos estudos realizados para
avaliar a relação entre o comportamento de afásicos e a localização cerebral de suas lesões,
Willmes & Poeck (1993) cruzaram as informações de 188 pacientes sobre a abrangência da
lesão cortical e o diagnóstico sindrômico realizado de acordo com o Teste de Afasia de
Aachen (Huber, Poeck & Willmes, 1984). Este teste é a versão alemã do famoso Teste de
Boston, provavelmente o mais utilizado em língua inglesa (Goodglass & Kaplan, 1982; no
Brasil, ver Radanovic; Mansur, 2002; Mansur et al., 2005). Willmes e Poeck observaram que
apenas 48% dos pacientes cujo desempenho é compatível com síndrome de Wernicke
apresentavam lesões posteriores e 35% daqueles compatíveis com síndrome de Broca
apresentavam lesões anteriores, tal como previa o modelo. Os autores concluem que
"estudos de localização na abordagem tradicional não alcançarão os resultados que os
levem a uma interpretação significativa de processos psicológicos comprometidos, tais
como a afasia" (op.cit., p.1538). Esta imprecisão do modelo deriva das deficiências
conceituais e operacionais inerentes a ambos os termos nele correlacionados, as lesões
cerebrais e o desempenho na linguagem. No que diz respeito às lesões, há uma dificuldade
em precisar o locus anatômico relevante nas lesões relacionadas a afasias, seja em
conseqüência de classificações anatomo-funcionais inadequadas, seja pela própria noção de
localização. Essa dificuldade em precisar as lesões de modo a permitir comparações em
grupos já levara Caramazza (1984) a propor que a única maneira de compreender as
correlações clínico-anatômicas nas afasias seria por meio de estudos de casos 1.
Com o surgimento das técnicas de neuro-imagem, o objetivo de classificação
sindrômica perdeu importância no diagnóstico da afasia. Cada vez mais, é substituído pelo
que Werani (1997) denominou de "descrição sintômica": a descrição detalhada dos déficits
de um paciente em termos dos subsistemas lingüísticos afetados. Esta mudança de
objetivos de avaliação é consequência de uma mudança de perspectiva, em que os modelos
neuro-anatômicos são substituídos por modelos neurocognitivos, concepção que
caracteriza a abordagem da linguagem na Neuropsicologia Cognitiva há mais de três
décadas (Marin, Saffran, Schwartz, 1976; Zurif, 1980; Saffran, 1997). Segundo essa
concepção, a linguagem é processada na mente por uma série de módulos específicos, cada
qual responsável por um tipo diferente de informação. Consoante a isso, Godefroy et al.
(1998) derivaram um sistema a partir de estudos estatísticos e sugeriram uma maneira de
tratar o problema da classificação reduzindo o nível explicativo: em vez de síndromes,
1 Para uma consideração mais atual das contribuições que os estudos de caso podem oferecer, ver Beeson
& Robey (2006).
focalizam nos sintomas e avaliam sua relação com lesões presentes em afásicos, no que
chamaram de “regiões de interesse” (regions of interest – ROIs). Utilizando esse sistema,
Kreisler et al. (2000) encontraram associações confiáveis entre o comportamento de
pacientes afásicos e a localização cerebral de regiões de interesse, diferentemente de
Willmes & Poeck (1993). Depois disso Poeppel & Hickok (2004) já sugeriram rever por
completo a neuro-anatomia funcional das áreas dedicadas à linguagem. Outro aspecto
importante envolve a noção de localização. Formulada no século XIX, parece hoje
inadequada para tarefas complexas como a linguagem. Estudos já não tão recentes sobre o
processamento da linguagem utilizando informações metabólicas a partir de tomografia,
magneto-encefalografia e ressonância funcional magnética de indivíduos sadios (p.ex.: Kaan
& Swaab, 2002), forneceram evidências para conceitos modernos de representações
múltiplas e conectividade em rede como hipóteses explicativas para as funções do SNC.
Em outras palavras, se a linguagem tem representação distribuída no córtex, um modelo
baseado numa localização estrita redundará em fracasso. Do ponto de vista clínico, a
“abordagem sintômica” permite conhecer em detalhe as habilidades que foram afetadas
pelo evento neurológico. Ademais, permite também conhecer as habilidades que
mantiveram-se preservadas, de modo que possam ser utilizadas na intervenção. Com isso, a
pessoa deixaria de ser confrontada apenas com aquelas habilidades em que seu
desempenho não é normal, o que pode levar a uma melhor adesão ao tratamento.
Note-se que o sucesso de um tal empreendimento depende de se especificarem os
déficits lingüísticos. Em nossa opinião, este objetivo é ainda difícil de se alcançar em solo
brasileiro, seja para fins de investigação científica, seja para fins de diagnóstico e
intervenção. Isto se deve a uma herança ainda não superada do modelo clínico-anatômico:
o fato de a linguagem ser reduzida a aspectos parcamente definidos, como "expressão" ou
"compreensão", ou avaliada apenas por meio de tarefas simples (nomeação de figuras ou
objetos, fluência verbal, repetição de frases e cumprimento de ordens). Com raras exceções
(Fontanari, 1989; Ortiz, Osborn & Chiari, 1993), as tarefas disponíveis no Brasil para
avaliação do desempenho de linguagem na afasia não foram desenvolvidas para avaliar
isoladamente os diferentes subsistemas lingüísticos necessários ao desempenho normal:
fônico, sintático e semântico (aspectos pragmático-discursivos, em geral, não são previstos
em modelos psicolinguísticos). De fato, desde que se estabeleceu como disciplina científica,
como veremos a seguir, a Lingüística oferece muitas evidências a partir das quais a
linguagem deve ser concebida como um complexo sistema de conhecimentos
interrelacionados.
3 Décadas depois, isto resultaria no debate teórico-linguístico sobre o “agramatismo”, registrado nos
volumes especiais de Brain and Language organizados por Yosef Grodzinsky (v. 45, n.3, out. 1993) e
Victoria Fromkin (v.50, n.1-3, 1995).
4 No original: "The cognitive neuropsychological approach represents a shift from clinical and anatomic
concerns to an emphasis on functional architecture. One assumption that underlies this approach is that
language breakdown patterns reflect the natural divisions of the language system and hence that the
disorders reveal its componential structure."
psicolinguística não visa uma avaliação de afasia, mas uma avaliação de distúrbios de
linguagem presentes em quadros de várias etiologias, a maioria dos quais, na população
adulta, é de vítimas de acidente vascular encefálico. A identificação seletiva dos transtornos
presentes nos subsistemas da linguagem, bem como as compensações que o indivíduo
afetado faz para lidar com esses transtornos, é alcançada por meio da análise detalhada dos
elementos e estruturas linguísticas que se apresentam comprometidas em cada tarefa. As
conclusões sobre o estado do paciente se baseiam em quatro características de seu
desempenho (cf. Neils-Strunjaš, 1996):
1. dissociação: sua capacidade de realizar uma tarefa a contento e não outra, o que
aponta para um déficit seletivo;
2. associação: sua incapacidade de realizar mais de uma tarefa, o que aponta para um
déficit subjacente e comum às tarefas realizadas;
3. análise de itens e de sujeitos: a primeira diz respeito à comparação do desempenho em
uma tarefa, item a item, de modo a verificar se determinado déficit é função
daquela estrutura linguística específica; e a segunda, à comparação do desempenho
de um indivíduo com o de um grupo de outros sujeitos com transtornos
semelhantes, a fim de se verificar a especificidade do problema; e
4. análise do tipo de erro, capaz de fornecer evidências sobre a natureza do problema.
Para uma análise clínica, os itens 1 e 2 acima são certamente os mais importantes.
Serão essas características que permitirão avaliar um paciente "a olho nu". No entanto, se
quisermos ter uma compreensão mais adequada dos distúrbios que o paciente nos
apresenta, as análises descritas no item 3 são indispensáveis. A análise de itens permite
verificar se um único elemento do conjunto de estímulos é o responsável por um baixo
desempenho – o que facilitará bastante o planejamento da intervenção posterior. Por outro
lado, a análise de sujeito nos permite apreciar a gravidade do distúrbio apresentado por um
paciente. Obviamente, isso requer comparar os resultados de um sujeito com dados de
outros pacientes com características comparáveis, tais como a etiologia do déficit, o tempo
pós-morbidez, dados demográficos e resultados de outros testes realizados – em outras
palavras, requer normas.
Das quatro características mencionadas acima, a de nº 4 merece extremo cuidado.
Os erros apresentados geralmente se interpretam à luz de uma teoria. É bom que o
avaliador seja capaz de julgar em função de um mapeamento muitos-para-muitos entre erro
e natureza do problema, sempre lembrando que o erro lingüístico se interpreta em função
do contexto. Este último tipo de análise é, por exemplo, o foco da área de estudos hoje
denominada de Fonética Clínica, em que os recursos de análise fonética descritiva e
instrumental são aplicados à fala (ver p. ex. Shriberg & Kent, 1995). Para realizar essa
análise, o examinador primeiro determina quais os principais fatores não-lingüísticos que
estão afetando o desempenho do sujeito que está sendo examinado. Estão em jogo
principalmente déficits neurológicos que comprometam o desempenho do aparelho fono-
articulatório e déficits neuropsicológicos em funções que afetam a interação comunicativa,
como a atenção, a memória e as funções executivas. O examinador utiliza suas observações
do comportamento do paciente e entrevistas com familiares, bem como testes específicos,
a fim de poder julgar se o desempenho lingüístico do sujeito examinado se deve
primariamente a comprometimentos da linguagem ou se esses são uma conseqüência de
disfunções de outros sistemas.