Avaliacao Neuropsicologica Da Linguagem

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 11

Avaliação Neuropsicológica da Linguagem: da Síndrome ao Sintoma

Rui Rothe-Neves
Faculdade de Letras e Programa de Pós-Graduação em Neurociências (UFMG)

1. Introdução

A linguagem é uma das habilidades humanas mais importantes, pois permeia as


relações sociais durante a maior parte do ciclo da vida. A afasia, ou comprometimento da
linguagem conseqüente à perda de tecido cerebral, afeta diretamente o comportamento
adaptivo (ou "funcionamento social") de pessoas acometidas por problemas neurológicos.
No contexto clínico, o diagnóstico e a terapia da afasia são, portanto, questões importantes.
A avaliação voltada para as necessidades da pessoa com afasia serve para determinar se seu
desempenho em tarefas de linguagem é ou não normal comparado a outros adultos da
mesma idade e condição sócio-educacional, para proceder a um diagnóstico diferencial,
para definir qual ou quais seus déficits específicos ou para avaliar suas habilidades no uso
da linguagem em situações cotidianas de comunicação. Neste capítulo, caracterizamos os
limites da avaliação das afasias segundo os tradicionais moldes clínico-anatômicos. Em
seguida, apresentamos as bases da abordagem neurocognitiva e o que esta amealhou da
Linguística e da Psicologia. Com isso, fundamenta-se o caráter multidisciplinar da avaliação
de linguagem, que, como veremos, não é algo recente.

Os limites da classificação na afasia

Tradicionalmente, os modelos neurológicos das afasias baseavam-se na correlação


clínico-anatômica, isto é, na relação entre os comprometimentos clinicamente observados e
a localização e extensão de lesões cerebrais. Surgidos numa época em que praticamente o
único recurso para visualizar os danos neurológicos in vivo era a angiografia – uma
radiografia do crânio após injeção de contraste na carótida ipsilateral – tais modelos partem
da perspectiva da patologia e visam principalmente à classificação dos sintomas em quadros
sindrômicos – as síndromes afásicas – para auxiliar no diagnóstico de novos casos
(Damasio, 1992; Damasio; Geschwind, 1984; Gerschwind, 1970). O Quadro 1 resume as
principais características clínicas e os achados anatômicos nas síndromes afásicas clássicas.
Quadro 1 - Principais síndromes afásicas

Com base nos procedimentos existentes, entretanto, não é simples classificar um paciente
em uma das síndromes afásicas. Segundo Neils-Strunjaš (1996), isto se deve principalmente
a duas importantes limitações desse modelo de avaliação, amplamente conhecido como
"modelo de correlação clínico-anatômica". Em primeiro lugar, há ausência de concordância
entre a classificação feita por especialistas e aquela realizada a partir de testes específicos,
ou mesmo entre mais de um teste. Em segundo lugar, o modelo não permite classificar
cerca de 40% dos pacientes em qualquer das síndromes.
O modelo de correlação clínico-anatômica se baseia na noção de que as síndromes
derivam de lesões em regiões corticais específicas, cujo prejuízo implica nas deficiências de
desempenho observadas nas afasias. Entretanto, não é recente a falta de consenso com
relação à localização de síndromes específicas (Mohr et al., 1978; Alexander, Naeser &
Palumbo, 1987; Anderson et al., 1999). Num dos mais criteriosos estudos realizados para
avaliar a relação entre o comportamento de afásicos e a localização cerebral de suas lesões,
Willmes & Poeck (1993) cruzaram as informações de 188 pacientes sobre a abrangência da
lesão cortical e o diagnóstico sindrômico realizado de acordo com o Teste de Afasia de
Aachen (Huber, Poeck & Willmes, 1984). Este teste é a versão alemã do famoso Teste de
Boston, provavelmente o mais utilizado em língua inglesa (Goodglass & Kaplan, 1982; no
Brasil, ver Radanovic; Mansur, 2002; Mansur et al., 2005). Willmes e Poeck observaram que
apenas 48% dos pacientes cujo desempenho é compatível com síndrome de Wernicke
apresentavam lesões posteriores e 35% daqueles compatíveis com síndrome de Broca
apresentavam lesões anteriores, tal como previa o modelo. Os autores concluem que
"estudos de localização na abordagem tradicional não alcançarão os resultados que os
levem a uma interpretação significativa de processos psicológicos comprometidos, tais
como a afasia" (op.cit., p.1538). Esta imprecisão do modelo deriva das deficiências
conceituais e operacionais inerentes a ambos os termos nele correlacionados, as lesões
cerebrais e o desempenho na linguagem. No que diz respeito às lesões, há uma dificuldade
em precisar o locus anatômico relevante nas lesões relacionadas a afasias, seja em
conseqüência de classificações anatomo-funcionais inadequadas, seja pela própria noção de
localização. Essa dificuldade em precisar as lesões de modo a permitir comparações em
grupos já levara Caramazza (1984) a propor que a única maneira de compreender as
correlações clínico-anatômicas nas afasias seria por meio de estudos de casos 1.
Com o surgimento das técnicas de neuro-imagem, o objetivo de classificação
sindrômica perdeu importância no diagnóstico da afasia. Cada vez mais, é substituído pelo
que Werani (1997) denominou de "descrição sintômica": a descrição detalhada dos déficits
de um paciente em termos dos subsistemas lingüísticos afetados. Esta mudança de
objetivos de avaliação é consequência de uma mudança de perspectiva, em que os modelos
neuro-anatômicos são substituídos por modelos neurocognitivos, concepção que
caracteriza a abordagem da linguagem na Neuropsicologia Cognitiva há mais de três
décadas (Marin, Saffran, Schwartz, 1976; Zurif, 1980; Saffran, 1997). Segundo essa
concepção, a linguagem é processada na mente por uma série de módulos específicos, cada
qual responsável por um tipo diferente de informação. Consoante a isso, Godefroy et al.
(1998) derivaram um sistema a partir de estudos estatísticos e sugeriram uma maneira de
tratar o problema da classificação reduzindo o nível explicativo: em vez de síndromes,
1 Para uma consideração mais atual das contribuições que os estudos de caso podem oferecer, ver Beeson
& Robey (2006).
focalizam nos sintomas e avaliam sua relação com lesões presentes em afásicos, no que
chamaram de “regiões de interesse” (regions of interest – ROIs). Utilizando esse sistema,
Kreisler et al. (2000) encontraram associações confiáveis entre o comportamento de
pacientes afásicos e a localização cerebral de regiões de interesse, diferentemente de
Willmes & Poeck (1993). Depois disso Poeppel & Hickok (2004) já sugeriram rever por
completo a neuro-anatomia funcional das áreas dedicadas à linguagem. Outro aspecto
importante envolve a noção de localização. Formulada no século XIX, parece hoje
inadequada para tarefas complexas como a linguagem. Estudos já não tão recentes sobre o
processamento da linguagem utilizando informações metabólicas a partir de tomografia,
magneto-encefalografia e ressonância funcional magnética de indivíduos sadios (p.ex.: Kaan
& Swaab, 2002), forneceram evidências para conceitos modernos de representações
múltiplas e conectividade em rede como hipóteses explicativas para as funções do SNC.
Em outras palavras, se a linguagem tem representação distribuída no córtex, um modelo
baseado numa localização estrita redundará em fracasso. Do ponto de vista clínico, a
“abordagem sintômica” permite conhecer em detalhe as habilidades que foram afetadas
pelo evento neurológico. Ademais, permite também conhecer as habilidades que
mantiveram-se preservadas, de modo que possam ser utilizadas na intervenção. Com isso, a
pessoa deixaria de ser confrontada apenas com aquelas habilidades em que seu
desempenho não é normal, o que pode levar a uma melhor adesão ao tratamento.
Note-se que o sucesso de um tal empreendimento depende de se especificarem os
déficits lingüísticos. Em nossa opinião, este objetivo é ainda difícil de se alcançar em solo
brasileiro, seja para fins de investigação científica, seja para fins de diagnóstico e
intervenção. Isto se deve a uma herança ainda não superada do modelo clínico-anatômico:
o fato de a linguagem ser reduzida a aspectos parcamente definidos, como "expressão" ou
"compreensão", ou avaliada apenas por meio de tarefas simples (nomeação de figuras ou
objetos, fluência verbal, repetição de frases e cumprimento de ordens). Com raras exceções
(Fontanari, 1989; Ortiz, Osborn & Chiari, 1993), as tarefas disponíveis no Brasil para
avaliação do desempenho de linguagem na afasia não foram desenvolvidas para avaliar
isoladamente os diferentes subsistemas lingüísticos necessários ao desempenho normal:
fônico, sintático e semântico (aspectos pragmático-discursivos, em geral, não são previstos
em modelos psicolinguísticos). De fato, desde que se estabeleceu como disciplina científica,
como veremos a seguir, a Lingüística oferece muitas evidências a partir das quais a
linguagem deve ser concebida como um complexo sistema de conhecimentos
interrelacionados.

A Lingüística na abordagem neurocognitiva

O intercâmbio de conhecimentos sobre linguagem e cérebro entre a Lingüística e a


Neurologia vem de longa data (cf. Doody, 1993a; 1993b; para uma introdução em
português, ver Morato, 2004). Spreen (1968, p.191) nos diz que "talvez o primeiro
tratamento verdadeiramente psicolingüístico da afasia" seja um estudo sobre o agramatismo
publicado em 1913 pelo famoso psiquiatra alemão Arnold Pick. Mas certamente foi Roman
Jakobson quem iniciou uma reflexão sistemática sobre a análise linguística do desempenho
de pessoas com afasia (Jakobson, 1955; 1956/1971) 2. Já o esforço sistemático para superar
a precariedade das tarefas para avaliação da linguagem na afasia pode ser visto como uma
das consequências da "virada psicométrica" por que passou a Neuropsicologia, sobretudo
nos EUA (Meier, 1992). Este termo refere-se ao momento, a partir do final dos anos 1950,
em que pesquisadores interessados na avaliação neuropsicológica passaram a utilizar e a
refletir sobre os procedimentos metodológicos desenvolvidos naquela área da Psicologia
que se ocupa da avaliação, a psicometria. Até então, a avaliação neuropsicológica era
principalmente clínica, baseada nos conhecimentos pessoais do neurologista. Contudo, a
psicometria já tinha desenvolvido ou adaptado, desde o início do século XX,
procedimentos destinados a garantir a validade e a confiabilidade de medidas psicológicas.
Numa das primeiras reflexões sobre a construção de uma avaliação
psicometricamente consistente para a afasia, Benton (1967) nos mostra a necessidade de
buscar conhecimentos sobre a linguagem gerados na Linguística para avaliar os
comprometimentos na afasia. Durante a década de 60, a teoria da gramática gerativa de
Chomsky tornou-se a corrente majoritária de pensamento na Linguística e trouxe duas
consequências importantes para o estudo das afasias. Como se sabe, Chomsky concebe a
linguagem como estruturas mentais que possibilitam ao falante compreender e produzir
qualquer frase de sua língua, mesmo as que ele nunca ouviu (ver p.ex., Hauser, Fitch &
Chomsky 2002). Com isso, Chomsky instalou a Linguística no seio das então incipientes
Ciências Cognitivas. Isto muda o estatuto do estudo das afasias, abrindo caminho para uma
abordagem cognitiva, que veremos mais adiante. A outra consequência importante foi a de
2 A conferência original de 1955, de difícil acesso, apareceu em francês na coletânea Language enfantin et
aphasie (Paris: Editions du Minuit, 1969) e em sua versão em inglês (Studies on child language and aphasia.
Haia: Mouton, 1971). Já o capítulo de 1956 teve edição brasileira (“Dois aspectos da linguagem e dois
tipos de afasia”, in: Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969).
chamar atenção para a sintaxe do afásico e para os modos de investigar sua competência –
isto é, o conhecimento interno – e não exclusivamente a sua fala 3.
Durante as décadas de 1970-80, modelos baseados em investigações neuropsicológicas
passaram a influir sobre a maneira de conceber a organização da linguagem. Com o
sugestivo título "A natureza não-anômala de enunciados anômalos", Fromkin (1971) foi a
primeira a apresentar uma análise fonológica de erros de pacientes afásicos como fonte de
argumentos sobre a maneira como a linguagem se organiza. Como Chomsky concebera
uma teoria linguística explicitamente cognitivista, estudar a linguagem era também uma
maneira de entender como funciona esse aspecto importante da mente humana. Estava
criada a condição para integrar o estudo das afasias no contexto de uma concepção mais
ampla da mente humana, que caracteriza a abordagem da linguagem na neuropsicologia
cognitiva (Zurif, 1980; Marin; Saffran; Schwartz, 1976; Saffran, 1982; revisão em Saffran,
1997). Segundo essa concepção, a linguagem é processada na mente por uma série de
módulos específicos, cada qual responsável por um tipo diferente de informação. A
abordagem da neuropsicologia cognitiva representa uma mudança, das preocupações
clínicas e anatômicas para uma ênfase na arquitetura funcional. Um pressuposto que subjaz
a essa abordagem é que os padrões de distúrbio da linguagem refletem as divisões naturais
do sistema e, portanto, a desordem revela sua estrutura (Saffran, 1997, p.151) 4 Uma
interpretação menos forte dos distúrbios investigados também é possível, em vez de
admitir os resultados como evidências diretas da arquitetura da mente. Neste caso, o
objetivo é especificar da melhor possível os déficits de linguagem na afasia – como, de
resto, os de qualquer etiologia – a fim de, então, investigar empiricamente a relação entre
estes e algumas estruturas específicas do SNC, por exemplo como fizeram Kreisler e
colaboradores (2000).
O termo "abordagem psicolingüística" tem sido utilizado para designar
procedimentos de avaliação da linguagem cujo objetivo é justamente especificar os
subsistemas lingüísticos afetados. Para isso, baseia-se na pesquisa sobre os processos
psicológicos subjacentes à linguagem (psicolingüística), integrando em suas ferramentas de
avaliação as variáveis que se referem a determinado subsistema. Com isso, a abordagem

3 Décadas depois, isto resultaria no debate teórico-linguístico sobre o “agramatismo”, registrado nos
volumes especiais de Brain and Language organizados por Yosef Grodzinsky (v. 45, n.3, out. 1993) e
Victoria Fromkin (v.50, n.1-3, 1995).
4 No original: "The cognitive neuropsychological approach represents a shift from clinical and anatomic
concerns to an emphasis on functional architecture. One assumption that underlies this approach is that
language breakdown patterns reflect the natural divisions of the language system and hence that the
disorders reveal its componential structure."
psicolinguística não visa uma avaliação de afasia, mas uma avaliação de distúrbios de
linguagem presentes em quadros de várias etiologias, a maioria dos quais, na população
adulta, é de vítimas de acidente vascular encefálico. A identificação seletiva dos transtornos
presentes nos subsistemas da linguagem, bem como as compensações que o indivíduo
afetado faz para lidar com esses transtornos, é alcançada por meio da análise detalhada dos
elementos e estruturas linguísticas que se apresentam comprometidas em cada tarefa. As
conclusões sobre o estado do paciente se baseiam em quatro características de seu
desempenho (cf. Neils-Strunjaš, 1996):
1. dissociação: sua capacidade de realizar uma tarefa a contento e não outra, o que
aponta para um déficit seletivo;
2. associação: sua incapacidade de realizar mais de uma tarefa, o que aponta para um
déficit subjacente e comum às tarefas realizadas;
3. análise de itens e de sujeitos: a primeira diz respeito à comparação do desempenho em
uma tarefa, item a item, de modo a verificar se determinado déficit é função
daquela estrutura linguística específica; e a segunda, à comparação do desempenho
de um indivíduo com o de um grupo de outros sujeitos com transtornos
semelhantes, a fim de se verificar a especificidade do problema; e
4. análise do tipo de erro, capaz de fornecer evidências sobre a natureza do problema.

Para uma análise clínica, os itens 1 e 2 acima são certamente os mais importantes.
Serão essas características que permitirão avaliar um paciente "a olho nu". No entanto, se
quisermos ter uma compreensão mais adequada dos distúrbios que o paciente nos
apresenta, as análises descritas no item 3 são indispensáveis. A análise de itens permite
verificar se um único elemento do conjunto de estímulos é o responsável por um baixo
desempenho – o que facilitará bastante o planejamento da intervenção posterior. Por outro
lado, a análise de sujeito nos permite apreciar a gravidade do distúrbio apresentado por um
paciente. Obviamente, isso requer comparar os resultados de um sujeito com dados de
outros pacientes com características comparáveis, tais como a etiologia do déficit, o tempo
pós-morbidez, dados demográficos e resultados de outros testes realizados – em outras
palavras, requer normas.
Das quatro características mencionadas acima, a de nº 4 merece extremo cuidado.
Os erros apresentados geralmente se interpretam à luz de uma teoria. É bom que o
avaliador seja capaz de julgar em função de um mapeamento muitos-para-muitos entre erro
e natureza do problema, sempre lembrando que o erro lingüístico se interpreta em função
do contexto. Este último tipo de análise é, por exemplo, o foco da área de estudos hoje
denominada de Fonética Clínica, em que os recursos de análise fonética descritiva e
instrumental são aplicados à fala (ver p. ex. Shriberg & Kent, 1995). Para realizar essa
análise, o examinador primeiro determina quais os principais fatores não-lingüísticos que
estão afetando o desempenho do sujeito que está sendo examinado. Estão em jogo
principalmente déficits neurológicos que comprometam o desempenho do aparelho fono-
articulatório e déficits neuropsicológicos em funções que afetam a interação comunicativa,
como a atenção, a memória e as funções executivas. O examinador utiliza suas observações
do comportamento do paciente e entrevistas com familiares, bem como testes específicos,
a fim de poder julgar se o desempenho lingüístico do sujeito examinado se deve
primariamente a comprometimentos da linguagem ou se esses são uma conseqüência de
disfunções de outros sistemas.

Limites da abordagem psicolinguística

Em geral, os instrumentos existentes para avaliação de distúrbios de linguagem


padecem de dois grandes defeitos, a que chamaremos de "constitutivo" e de "normativo".
O defeito constitutivo é de natureza teórica, refletindo a idéia de que a linguagem é uma
função unitária. Como já vimos, a linguagem é uma função complexa que envolve
conhecimentos em vários níveis. Tratá-los como se fossem um único traço implica na
impossibilidade de conhecer um déficit restrito. Isso se reflete na composição das tarefas
tradicionalmente utilizadas para avaliação da linguagem em pacientes neurológicos:
nomeação de partes do corpo, resposta a comandos verbais, repetição de frases e fluência
verbal. Essas tarefas exigem mais de uma função, não necessariamente específicas da
linguagem. Como exemplo, consideremos a tarefa de resposta a comandos verbais. O
examinador solicita ao paciente que cumpra comandos simples, por exemplo: "coloque o
indicador direito no nariz". A falta de resposta é interpretada como uma dificuldade de
compreensão – não à toa, as baterias de avaliação de afasia referem-se à tarefa como um
teste de compreensão. Porém, o cumprimento de um comando verbal simples inclui não
apenas a compreensão oral do comando. Componentes importantes na resolução dessa
tarefa são as capacidades de planejamento e realização motoras e o envolvimento do
paciente na tarefa. Enquanto a execução motora costuma ser avaliada com testes simples
("levante o braço"), seu planejamento e o envolvimento na tarefa, aspectos executivos,
costumam ser relegados a segundo plano. Portanto, uma tarefa de compreensão deve
buscar minimizar o aspecto da resposta, de modo a apreciar melhor o processamento do
estímulo de entrada.
Corolários do defeito constitutivo são a falta de diagnóstico diferencial e a má
construção dos instrumentos de testes. Como uma função central e complexa, a linguagem
não se confunde com a fala: enquanto uma é a capacidade mental, a outra é uma realização
efetiva e, como tal, submetida a diversas restrições, contingentes ou não. Para que
possamos dizer que alguém apresenta um distúrbio de linguagem é preciso poder dizer que
seu desempenho inadequado não pode ser explicado por distúrbios que afetam
exclusivamente os aspectos motores da fala, ou seja da articulação ou da fonação. Essa
diferenciação pode ser feita de duas maneiras: procedendo a uma avaliação fonoaudiológica
e manipulando os estímulos dos testes de linguagem de modo a examinar o desempenho
em diversos ambientes lingüísticos. Esse segundo aspecto remete ao segundo corolário, à
má construção dos testes. Do ponto de vista metodológico, os estímulos dos testes de
linguagem devem ser manipulados para favorecer uma riqueza de ambientes e, ao mesmo
tempo, controlar fatores de variação indesejada, como freqüência, comprimento e tipo de
palavra, características que sabidamente afetam a compreensão ou produção de linguagem.
Em resumo, como geralmente se considera que a linguagem é uma capacidade
indiferenciada, não se detalham os instrumentos de testes, não se a avaliam os sistemas
concorrentes nem se controlam seus estímulos.
O segundo defeito, a que chamamos "normativo", é uma violação à regra
formulada por Anastasi (1965, p.21): "Nenhum escore num teste psicológico tem
significado até que seja comparado com as normas do teste". Ou seja, para que se possa
concluir algo sobre a natureza e a extensão de algum déficit, de linguagem ou não, enfim,
para que um teste seja útil, à pesquisa psicolingüística sucederá a psicométrica. Sem ela, não
é possível interpretar os resultados da avaliação de um único sujeito, por exemplo em
contexto clínico, e o instrumento será inútil.
Referências bibliográficas

1. Alexander, M. P., Naeser, M. A., & Palumbo, C. L. (1987). Correlations of subcortical


CT lesion sites and aphasia profiles. Brain, 110(4), 961-988.
2. Anastasi, A.; Urbina, S. (2000). Testagem Psicológica. 7.ed. Porto Alegre: Artes Médicas.
3. Anderson, J. M., Gilmore, R., Roper, S. et al. (1999). Conduction aphasia and the arcuate
fasciculus: a reexamination of the Wernicke-Geschwind model. Brain and Language,
70(1), 1-12.
4. Beeson, P. M., & Robey, R. R. (2006). Evaluating single-subject treatment research:
Lessons learned from the aphasia literature. Neuropsychology Review, 16(4), 161-169.
5. Benton, A. L. (1967). Problems of test construction in the field of aphasia. Cortex, 3, 32-
53.
6. Caplan, D. (1992). Language: Structure, Processing, and Disorders. Cambridge (MA):
MIT Press.
7. Caramazza, A. (1984). The logic of neuropsychological research and the problem of
patient classification in aphasia. Brain and Language, 21, 9-20.
8. Damasio, A. R. (1992). Aphasia. New England Journal of Medicine, 326(8), 531-539.
9. Damasio, A. R., & Geschwind, N. (1984). The neural basis of language. Annual Review of
Neuroscience, 7(1), 127-147.
10. Doody, R. S. (1993). A reappraisal of localization theory with reference to aphasia. Part
1: Historical considerations. Brain and Language, 44(3), 296-326.
11. Doody, R. S. (1993). A reappraisal of localization theory with reference to aphasia. Part
2: Language theories from outside neurology. Brain and Language, 44(3), 327-348.
12. Fontanari, Juliano L. (1989). O "token test": elegância e concisão na avaliação da
compreensão do afásico. Validação da versão reduzida de Renzi para o português.
Neurobiologia, 52(3):177-218.
13. Fromkin, V. A. (1971). The non-anomalous nature of anomalous utterances. Language,
47:27-52.
14. Geschwind, N. (1965). The organization of language and the brain. Science, 170:940-944.
15. Godefroy O, Duhamel A, Leclerc X, Saint Michel T, Hénon H, Leys D. (1998). Brain-
behaviour relationships: models for the study of brain-damaged patients. Brain;
121:1545-1556.
16. Goodglass H, Kaplan E. (1982). The Assessment of Aphasia and Related Disorders. 2nd ed.
Philadelphia: Lea & Febiger.
17. Hauser, M. D., Chomsky, N., & Fitch, W. T. (2002). The faculty of language: What is it,
who has it, and how did it evolve? Science, 298(5598), 1569-1579.
18. Huber, W.; Poeck, K. & Willmes, K. (1984). Der Aachener Aphasietest. Göttingen:
Hogrefe.
19. Kaan, E.; Swaab, T.Y. (2002). The brain circuitry of syntactic comprehension. Trends in
Cognitive Sciences, 6(8):350-356.
20. Jakobson, R. (1969). Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia. In: Linguística e
Comunicação. São Paulo: Cultrix.
21. Kreisler, A.; Godefroy, O.; Delmaire, C.; Debachy, B.; Leclercq, M.; Pruvo, J.-P.; Leys,
D. (2000). The anatomy of aphasia revisited. Neurology, 54(5):1117-1123.
22. Mansur, L. L., Radanovic, M., Taquemori, L., Greco, L., & Araújo, G. C. (2005). A
study of the abilities in oral language comprehension of the Boston Diagnostic Aphasia
Examination-Portuguese version: a reference guide for the Brazilian population.
Brazilian Journal of Medical and Biological Research, 38(2), 277-292.
23. Marin, O. S., Saffran, E. M., & Schwartz, M. F. (1976). Dissociations of language in
aphasia: implications for normal function. Annals of the New York Academy of Sciences,
280(1), 868-884.
24. Meier, M. J. (1992). Modern clinical neuropsychology in historical perspective. American
Psychologist, 47(4), 550-558.
25. Mohr, J. P., Pessin, M. S., Finkelstein, S., Funkenstein, H. H., Duncan, G. W., & Davis,
K. R. (1978). Broca aphasia Pathologic and clinical. Neurology, 28(4), 311-311.
26. Morato, E. M. (2001). Neurolingüística. In: Fernanda Mussalim; Anna Christina Bentes
(orgs.). Introdução à Lingüística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 143-170.
27. Neils-Strunjaš J. (1998). Clinical assessment strategies: evaluation of language
comprehension and production by formal test batteries. In: Stemmer, B. & Whitaker,
H. A. (Orgs.) Handbook of neurolinguistics. San Diego: Academic, p.72-82.
28. Radanovic, M., Mansur, L. L., & Scaff, M. (2004). Normative data for the Brazilian
population in the Boston Diagnostic Aphasia Examination: influence of schooling.
Brazilian Journal of Medical and Biological Research, 37(11), 1731-1738.
29. Ortiz, K. Z., Osborn, E., & Chiari, B. M. (1993). O teste M1-Alpha como instrumento
de avaliaçäo da afasia. Pró-fono, 5(1), 23-29.
30. Hickok, G., & Poeppel, D. (2000). Towards a functional neuroanatomy of speech
perception. Trends in Cognitive Sciences, 4(4), 131-138.
31. Saffran, E. M. (1982). Neuropsychological approaches to the study of language. British
Journal of Psychology, 73(3), 317-337.
32. Saffran, E. M. (1997). Aphasia: cognitive neuropsychological aspects. In: Feinberg, M.
E.; Farah, M. A. (Orgs.). Behavioral neurology and neuropsychology. New York: McGraw-Hill,
Cap. 10, p.151-165.
33. Shriberg, Lawrence D; Kent, Raymond D. (1995). Clinical phonetics. Boston: Allyn and
Bacon.
34. Spreen, O. (1968). Psycholinguistic aspects of aphasia. Journal of Speech and Hearing
Research, 11(3), 467-480.
35. Werani, A. (1997). Symptomorientierte Diagnostik bei Aphasien; eine neurolinguistische
Aufgabensammlung. Opladen: Westdeutscher Verlag.
36. Willmes, K., & Poeck, K. (1993). To what extent can aphasic syndromes be localized?.
Brain, 116(6), 1527-1540.
37. Zurif, E. B. (1980). Language Mechanisms: A Neuropsychological Perspective: The
effects of focal brain damage on the processing of syntactic elements may provide an
important clue to the manner in which language is organized in the brain. American
Scientist, 68(3), 305-311.

Você também pode gostar