Ficha de Trabalho Nº 2 - O Conto - A Aia
Ficha de Trabalho Nº 2 - O Conto - A Aia
Ficha de Trabalho Nº 2 - O Conto - A Aia
FICHA INFORMATIVA Nº 1
Curso: Técnico de Mecatrónica Automóvel 11 – 2º PERÍODO
Formadora: Paula Calçada
UFCD: 6655 – Literatura do nosso tempo
A Aia
Nome___________________________________________________. Data_______/_______/_____
de Eça de Queirós
1
Ligaduras.
2
Diminuir.
3
Na turma, bando.
4
Sentinela, vigia, à espera.
1
preciosas. Somente, o berço de um era magnífico de marfim entre brocados 5, e o berço de
outro, pobre e de verga6. A leal escrava, porém,
a ambos cercava de carinho igual, porque, se um era o seu filho, o outro seria o seu rei.
Nascida naquela casa real, ela tinha a paixão, a religião dos seus senhores. Nenhum
pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo rei morto à beira do grande rio.
Pertencia, porém, a uma raça que acredita que a vida da terra se continua no céu. O rei seu
amo, decerto, já estaria agora reinando em outro reino, para além das nuvens, abundante
também em searas e cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens 7
tinham subido com ele às alturas. Os seus vassalos 8, que fossem morrendo, prontamente
iriam, nesse reino celeste, retomar em torno dele a sua vassalagem. E ela, um dia, por seu
turno, remontaria num raio de lua a habitar o palácio do seu senhor, e a fiar de novo o linho
das suas túnicas, e a acender de novo a caçoleta 9 dos seus perfumes; seria no céu como
fora na terra, e feliz na sua servidão.
Todavia, também ela tremia pelo seu principezinho! Quantas vezes, com ele
pendurado do peito, pensava na sua fragilidade, na sua longa infância, nos anos lentos que
correriam, antes que ele fosse ao menos do tamanho de uma espada, e naquele tio cruel, de
face mais escura que a noite e coração mais escuro que a face, faminto do trono, e
espreitando de cima do seu rochedo entre os alfanjes 10 da sua borda! Pobre principezinho
da sua alma! Com uma ternura maior o apertava nos braços. Mas o seu filho chalrava 11 ao
lado, era para ele que os seus braços corriam com um ardor mais feliz. Esse, na sua
indigência12, nada tinha a recear a vida. Desgraças, assaltos da sorte má nunca o poderiam
deixar mais despido das glórias e bens do mundo do que já estava ali no seu berço, sob o
pedaço de linho branco que resguardava a sua nudez. A existência, na verdade, era para ele
mais preciosa e digna de ser conservada que a do seu príncipe, porque nenhum dos duros
cuidados com que ela enegrece 13 a alma dos
senhores roçaria sequer a sua alma livre e simples
de escravo. E, como se o amasse mais por aquela
humildade ditosa14, cobria o seu corpinho gordo de
beijos pesados e devoradores, dos beijos que ela
fazia ligeiros sobre as mãos do seu príncipe.
No entanto, um grande temor enchia o
palácio, onde agora reinava uma mulher entre
mulheres. O bastardo, o homem de rapina 15, que
errava no cimo das serras, descera à planície com
a sua horda, e já através de casais 16 e aldeias felizes ia deixando um sulco de matança e
ruínas. As portas da cidade tinham sido seguras com cadeias mais fortes. Nas atalaias
ardiam lumes mais altos. Mas à defesa faltava disciplina viril. Uma roca 17 não governa como
uma espada. Toda a nobreza fiel perecera 18 na grande batalha. E a rainha desventurosa
5
Tecidos de seda com motivos em relevo.
6
Vime.
7
Criados.
8
Subordinados, súbditos.
9
Pequeno vaso em que se queimam perfumes.
10
Espadas.
11
Falava à toa.
12
Pobreza.
13
Escurece.
14
Feliz.
15
De crime.
16
Pequenos povoados.
17
Utensílio usado para fiar.
18
Morrera.
2
apenas sabia correr a cada instante ao berço do seu filhinho e chorar sobre ele a sua
fraqueza de viúva. Só a ama leal parecia segura, como se os braços em que estreitava o
seu príncipe fossem muralhas de uma cidadela 19 que nenhuma audácia20 pode transpor.
Ora uma noite, noite de silêncio e de escuridão, indo ela a adormecer, já despida, no
seu catre21, entre os seus dois meninos, adivinhou, mais que
sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe, à entrada dos
vergéis22 reais. Embrulhada à pressa num pano, atirando os
cabelos para trás, escutou ansiosamente. Na terra areada 23,
entre os jasmineiros, corriam passos pesados e rudes. Depois
houve um gemido, um corpo tombando molemente, sobre lajes,
como um fardo. Descerrou violentamente a cortina. E além, ao
fundo da galeria, avistou homens, um clarão de lanternas,
brilhos de armas... Num relance tudo compreendeu: o palácio
surpreendido, o bastardo cruel vindo roubar, matar o seu
príncipe! Então, rapidamente, sem uma vacilação, uma dúvida,
arrebatou o príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o
pobre berço de verga, e, tirando o seu filho do berço servil, entre
beijos desesperados, deitou-o no berço real que cobriu com um
brocado24.
Bruscamente um homem enorme, de face flamejante 25, com
um manto negro sobre a cota de malha, surgiu à porta da câmara,
entre outros, que erguiam lanternas. Olhou, correu o berço de marfim
onde os brocados luziam, arrancou a criança como se arranca uma
bolsa de oiro, e, abafando os seus gritos no manto, abalou
furiosamente.
O príncipe dormia no seu novo berço. A ama ficara imóvel no
silêncio e na treva.
Mas brados de alarme atroaram, de repente, o palácio. Pelas janelas perpassou 26 o
longo flamejar das tochas. Os pátios ressoavam com o bater das armas. E desgrenhada 27,
quase nua, a rainha invadiu a câmara, entre as aias, gritando pelo seu filho! Ao avistar o
berço de marfim, com as roupas desmanchadas, vazio, caiu sobre as lajes num choro,
despedaçada. Então, calada, muito lenta, muito pálida, a ama descobriu o pobre berço de
verga... O príncipe lá estava quieto, adormecido, num sonho que o fazia sorrir, lhe iluminava
toda a face entre os seus cabelos de oiro. A mãe caiu sobre o berço, com um suspiro, como
cai um corpo morto.
E nesse instante um novo clamor 28 abalou a galeria de mármore. Era o capitão das
guardas, a sua gente fiel. Nos seus clamores havia, porém, mais tristeza que triunfo. O
bastardo morrera! Colhido, ao fugir, entre o palácio e a cidadela, esmagado pela forte legião
de archeiros, sucumbira, ele e vinte da sua horda 29. O seu corpo lá ficara, com flechas no
flanco, numa poça de sangue. Mas, ai dor sem nome! O corpinho tenro do príncipe lá ficara
19
Fortaleza.
20
Atrevimento.
21
Cama tosca e pobre.
22
Pomares, jardins.
23
Desorientada.
24
Pano.
25
Ardente (com fúria).
26
Atravessou.
27
De forma simples, desarranjada.
28
Grito.
29
Corja, grupo.
3
também envolto num manto, já frio, roxo ainda das mãos ferozes que o tinham esganado!
Assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os homens de armas, quando a rainha,
deslumbrada, com lágrimas entre risos, ergueu nos braços, para lho mostrar, o príncipe que
despertara.
Foi um espanto, uma aclamação. Quem o salvara? Quem?... Lá estava junto do berço
de marfim vazio, muda e hirta30, aquela que o salvara! Serva sublimemente leal! Fora ela
que, para conservar a vida ao seu príncipe, mandara à morte o seu filho...
Então, só então, a mãe ditosa31, emergindo da sua alegria extática 32, abraçou
apaixonadamente a mãe dolorosa, e a beijou, e lhe chamou irmã do seu coração... E de
entre aquela multidão que se apertava na galeria veio uma nova, ardente aclamação, com
súplicas de que fosse recompensada magnificamente a serva admirável que salvara o rei e
o reino.
Mas como? Que bolas de ouro podem pagar um filho? Então um velho de casta 33
nobre lembrou que ela fosse levada ao Tesouro real, e escolhesse de entre essas riquezas,
que eram como as maiores dos maiores tesouros da Índia, todas as que o seu desejo
apetecesse...
A rainha tomou a mão da serva. E sem que a sua face de mármore perdesse a
rigidez, com um andar de morta, como um sonho, ela foi assim conduzida para a Câmara
dos Tesouros. Senhores, aias, homens de armas, seguiam, num respeito tão comovido, que
apenas se ouvia o roçar das sandálias nas lajes. As espessas portas do Tesouro rodaram
lentamente. E, quando um servo destrancou as janelas, a luz da madrugada, já clara e
rósea, entrando pelos gradeamentos de ferro, acendeu um maravilhoso e faiscante incêndio
de ouro e pedrarias! Do chão de rocha até às sombrias abóbadas, por toda a câmara,
reluziam, cintilavam, refulgiam os escudos de oiro, as armas marchetadas 34, os montões de
diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de pérolas, todas as riquezas daquele reino,
acumuladas por cem réis durante vinte séculos. Um longo — Ah! — lento e maravilhado,
passou por sobre a turba35 que emudecera. Depois houve um silêncio ansioso. E no meio da
câmara, envolta na refulgência36 preciosa. A ama não se movia... Apenas os seus olhos,
brilhantes e secos, se tinham erguido para aquele céu que, além das grades, se tingia de
rosa e de ouro. Era lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino.
Estava lá, e já o Sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto, e procurava o
seu peito!... E então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar aquele
lento mover da sua mão aberta. Que jóia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado
de rubis ia ela escolher?
A ama estendia a mão, e sobre um escabelo 37 ao lado, entre um
molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei,
todo cravejado38 de esmeraldas, e que valia uma província.
Agarrara o punhal, e com ele apertado fortemente na mão,
apontando para o céu, onde subiam os primeiros raios do Sol,
encarou a rainha, a multidão, e gritou:
— Salvei o meu príncipe, e agora... vou dar de mamar ao meu
filho.
30
Imóvel.
31
Aventurada, feliz.
32
Maravilhada.
33
Grupo social fechado sobre si, gozando de privilégios especiais.
34
Que têm embutidos.
35
Multidão.
36
Esplendor, brilho.
37
Banco comprido e largo, de assento móvel, que constitui uma caixa a que o assento serve de tampa.
38
Cravado.
4
E cravou o punhal no coração.
Boas leituras!