Curso de Mariologia - Escola Matter Eclesiae
Curso de Mariologia - Escola Matter Eclesiae
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1
Cf. Lc 1, 26-38; 2.
2
Cf. Jo 19,25-27.
3
Cf. At 1,14.
4
Cf. Jo 20,30s; 21,24s.
5
Lumen Gentium n.º 670.
6
Itinerarium Mentis in Deum, Prologus 4, 53.
MÓDULO 1: O PROTOEVANGELHO (GN 3,15)
O Antigo Testamento não fala explicitamente sobre Maria Santíssima. Alguns de seus textos,
porém ao tratar do Messias, referem-se à Mãe do Messias. Tais são as passagens de Gn 3,15 (o
protoevangelho ou o primeiro anúncio da Boa-Nova), Is 7,14 (a Profecia do Emanuel), Mq 5,13 (a
referência à parturiente).
Outros textos do Antigo Testamento são vistos pela Tradição como ecos antecipados do papel d
que Maria SS. Desempenhou na História da Salvação: assim os que falam de uma maternidade
maravilhosa:
Gn 18, 1-15: Isaque nasceu de mãe estéril;
Gn 25, 21: Esaú e Jacó igualmente;
Gn 30, 22-24: José igualmente
Jz 13, 1-24: Sansão igualmente;
1 Sm 1, 1-28: Samuel igualmente.
Também as grandes mulheres do Antigo Testamento, como Judite e Ester, são tidas como figuras
de Maria SS..
Limitar-nos-emos ao estudo dos textos que, numa exegese sóbria e científica, levam a descobrir
a Mãe do Messias predita pelos Profetas.
8
Ver Módulo 5 deste curso.
9
S. Justino e outras autores antigos dizem que Eva era virgem ao pecar, porque só depois do pecado teve
relações com Adão, conforme o texto sagrado (ver Gn 4,1).
correspondentes aos da queda: assim Jesus Cristo é o novo ou segundo Adão10 a cruz de Cristo é a nova
árvore do paraíso, e Maria é a nova Eva.
S. Ireneu enfatiza fortemente o papel de Maria como conseqüência necessária do desígnio
Salvífico de Deus:
“Da mesma forma que Eva se deixou seduzir para desobedecer a Deus, Maria se deixou persuadir a
obedecer a Deus para ser ela — a Virgem Maria — a advogada de Eva, de sorte que o gênero humano,
submetido à morte por uma Virgem, fosse dela libertado por uma Virgem, tornando-se contrabalançada
a desobediência de uma Virgem pela obediência de outra”11.
No século IV S. Epifânio de Salamina (Chipre), † 403, se faz, de novo, arauto do paralelismo:
“Eva trouxe ao gênero humano uma causa de morte: por ela a morte entrou no orbe da terra; Maria
trouxe uma causa de vida; por ela a vida se estendeu a nós. Foi por isso que o Filho de Deus veio a este
mundo: para que, onde abundou o delito, superabundasse a graça. Onde a morte havia chegado, aí
chegou a vida, para tomar seu lugar; e aquele mesmo que nasceu da mulher para ser nossa vida,
haveria de expulsar a morte, introduzida pela mulher. Quando ainda virgem no paraíso, Eva
desagradou a Deus por sua desobediência. Por isto mesmo emanou da Virgem a obediência própria da
graça, depois que se anunciou o advento do Verbo revestido de corpo, o advento da eterna Vida do céu”
12
.
O fato de dizerem os escritores antigos que Eva era Virgem ao pecar baseia no fato de que o Gênesis
narra a queda do homem e da mulher antes que concebam seus primeiros filhos: Caím e Abel 13Este
modo de entender o Gênesis, um tanto artificial, não prejudica o paralelo Eva-Maria. Este tornou-se
clássico na Tradição Cristã; a ponto de ser reafirmado pelo Concílio II (1962-65) quando diz:
“É com razão que os Santos julgam que Deus não se serviu de Maria como instrumento meramente
passivo, mas julgam que cooperou para a salvação humana com livre fé e obediência. Pois ela, como
diz S. Ireneu, obedecendo, se fez causa de salvação tanto para si como para todo o gênero humano.
Donde não poucos Padres antigos afirmam de bom grado em sua pregação: ‘O nó da desobediência de
Eva foi desfeita pela obediência de Maria; o que a virgem Eva ligou pela incredulidade, a virgem
desligou pela fé. ‘Comparando Maria com Eva. Chamam-na ‘Mãe dos Viventes’ e com freqüência
afirmam: veio a morte por Eva e a Vida por Maria” 14.
Lição 3: Conclusão
Duas grandes reflexões ocorrem à guisa de conclusão de quanto foi dito:
1) O título de Nova Eva é o primeiro título com o qual Maria SS. É venerada pela Tradição
Cristã. É o título de maternidade — Mãe da Vida — em relação a Jesus, o Messias. Esta prerrogativa foi
a primeira a ser definida por um Concílio Geral, ou seja, pelo Concílio de Éfeso em 431: Maria é
Theotókos, Mãe de Deus, na medida em que Deus se quis fazer homem. Deste título decorrem as
demais prerrogativas de Maria SS..
2) Vê-se que a consideração de Maria, desde as suas origens, tem caráter cristológica. Longe de
ser independente de Cristo, é suscitada pela definição da identidade de Jesus Cristo. Assim a autêntica
piedade mariana está relacionada com a fé em, Jesus Cristo
PERGUNTAS
1) Que é sentido estritamente literal? Que sentido literal pleno?
2) Quem é a Mulher de Gn 3,15 segundo o sentido estritamente literal?
3) Quem é essa Mulher segundo o sentido literal pleno? Explique bem.
4) Que é recapitulação ou recirculação?
5) Que significa o nome Eva em hebraico ? Como Maria é a Nova Eva?
10
ver Rm 5,14; 1Cor 15, 45-49;
11
Contra as Heresias.
12
Panárion 78, 18,1-3.
13
Cf. Gn 4.
14
Lumen Gentium n.º 56.
MÓDULO 2: A MÃE DO MESSIAS (IS 7,14; MQ 5,1)
No Antigo Testamento ainda se encontram dois textos que, com certa clareza, falam de Mãe do
Messias, sendo o principal o de Is 7,14.
Lição 1: Isaías 7,14
Os antecedentes deste versículo são os seguintes:
Em 930 deu-se o cisma de Israel, donde resultam o reino do Norte ou da Samaria e o reino do
Sul ou da Judá. Este é o da dinastia de Davi, que tem as promessas de dar ao mundo o Messias, ao passo
que o reino do Norte é cismático.
Por volta de 735 reinava em Judá Acaz (736 -716), filho de Joatão e, por conseguinte,
descendente de Davi. Ao Norte, o rei Facéia (737 - 732) da Samaria e o rei Rasin da Síria se coligaram
para derrubar o pesado jugo da Assíria; queriam ampliar e fortalecer esta coligação, envolvendo nele o
reino de Judá. Acaz, porém, recusou-se a entrar na campanha. Em conseqüência, os dois reis do Norte
resolveram fazer-lhe a guerra; queriam depô-lo e colocar em seu lugar um sucessor, filho de Tabael, de
origem não davídica; vencendo Judá, os dois reis abririam caminho para o Egito, um possível aliado,
sempre disposto a combater os mesopotâmicos — assírios e babilônios.
Ora o exército da síria e da Samaria invadiu Judá, obrigando Acaz a se recolher em Jerusalém,
ameaçada pelos adversários numa situação angustiante. Diz o texto sagrado:
“Agitou - se o coração de Acaz e o coração de seu povo, como se agitam as árvores do bosque com o
vento”15 .
A única saída para Acaz era pedir a intervenção do rei assírio Teglat-Falasar III (745-727), que
não tardaria a atender. Todavia a política de alianças com povos estrangeiros era proibida a Judá, pois
tais alianças acarretavam perigo de contaminação religiosa para o povo messiânico16.
Foi então que Deus enviou o profeta Isaías ao rei Acaz, para lembrar-lhe a “política da fé” ou a
necessidade de confiar na Providência Divina: “Não temas nem te acovardes... Se não credes, não
subsistireis”17. A fé devia ser o fundamento da existência do povo de Deus; este havia de se apoiar na
palavra de Deus.
Já que o profeta exigia de Acaz uma atitude de fé muito intensa, ofereceu ao rei um sinal, penhor
da incolumidade do rei de Judá: “Pede para ti um sinal ao Senhor teu Deus nas profundezas do abismo
ou no alto do céu” 18.
Acaz não era fiel ao Senhor; mandara imolar seu filho aos deuses, “fazendo-o passar pelo fogo
segundo os costumes abomináveis das nações que o Senhor expulsara de adiante dos filhos de Israel”19.
Por isto recusou hipocritamente o sinal, como quem não quer tentar a Deus pedindo milagres 20. Em
conseqüência o profeta, em nome de Deus propôs o sinal:
“Sabei que o senhor mesmo vos dará um sinal: Eis que a jovem concebeu e dará à luz um filho, e
pôr-lhe-á o nome de Emanuel” 21.
O anúncio é solene. Para entendê-lo, é preciso identificar quem seja esse Emanuel e quem seja a
jovem mãe do Emanuel.
Quem é o Emanuel? — Há quem veja nele o rei Ezequias, filho de Acaz. Todavia este não
preenche o título “Deus conosco”. Isaías tem em vista, mediata ou imediatamente, o Messias. Este, sim,
é a garantia de que a dinastia de Davi não será destronada; por causa do Messias, prometido a Davi e à
sua descendência. É que Acaz não será desapossado da realeza; a casa de Acaz (que é casa de Davi)
deverá permanecer incólume, porque a ela foi prometido o Messias como descendente de Davi. — Esta
interpretação é confirmada pela consideração, de Is 9, 5s onde aparece um Menino-Messias, que tem
predicados divinos:
“Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado.
15
Is 7,2.
16
Cf. 2Rs 16,7-10; 2Cr 28, 16-20.
17
Is 7, 4-9.
18
Is 7,11
19
2Rs 16,3
20
Cf. Is 7, 12
21
Is 7,14.
Traz o cetro do principado e se chama ‘Conselheiro Admirável, Deus Forte, Pai Eterno, Príncipe da
Paz’.
O seu glorioso principado e a paz não terão fim, no trono de Davi e no seu reino, firmando-o e
consolidado-o sobre o direito e sobre a justiça” 22.
O título “Deus Forte” (EI Gibbon) está reservado ao Senhor Javé em Is 20, 21; Dt 10, 17; Jr 32,
18; Ne 9, 32.
E quem é a mãe do Emanuel?
a) É dita almah. — Há quem veja nela a esposa do rei Acaz, mãe de Ezequias. Acontece, porém,
que jamais na Bíblia a palavra almah designa uma mulher casada ou jovem que tenha perdido a
virgindade. Mais cinco vezes ocorre este vocábulo no Antigo Testamento:
Gn 24,43s: alude a Rebeca antes do seu casamento com Isaque;
Ex 2,8: refere-se a Maria, irmã de Moisés, ainda núbil.
Sl 68,26: alusão às donzelas virgens que acompanhavam o cortejo sagrado tocando tamborins.
Ct 1,3; 6,8: trata-se de jovens, dentre as quais o rei escolhia sua esposa.
Pr 30,18s: menção da jovem núbil que atrai o jovem.
b) Verdade é que jovem núbil não diz explicitamente virgindade. O termo hebraico preciso para
indicar a virgem é betulah. Contudo supõe-se que a jovem núbil seja virgem a menos que viva
desregradamente. O profeta terá escolhido o vocábulo almah de preferência a betulah, a fim de realçar a
juventude da mãe do Messias, juventude que betulah não indica necessariamente.
c) É de notar que os próprios Israelitas entenderam almah no sentido de virgem, pois os
tradutores do texto para o grego em Alexandria recorreram ao vocábulo parthénos, virgem, já nos
séculos III / II a.C.. Foi o texto alexandrino ou dos LXX que São Mateus citou em Mt 1,23: “Eis que a
virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe dará o nome de Emanuel”.
d) A virgindade da mãe do Messias põe em relevo o caráter extraordinário do seu parto. O filho
dessa Virgem Mãe é especial dom de Deus aos homens, como a salvação é dom de Deus. A Bíblia
apresenta o caso de outras mulheres que deram à luz em circunstâncias extraordinárias homens
importantes da história da salvação: Sara idosa em Gn 21, 1-7 gerou Isaque; Rebeca em Gn 25, 21
concebeu, estéril, Esau e Jacó; Raquel, em Gn 30,22-24 tornou-se mãe de José contra todas as previsões;
a mulher de Mané gerou Sansão, embora estéril, conforme Jz 13, 1-5; Ana, mãe de Samuel, teve seu
filho também na esterilidade, segundo 1Sm 1, 1-28; enfim, Elizabete, de Zacarias, gerou João Batista
em idade avançada23.
Em conclusão: Isaías garante a Acaz a incolumidade do seu trono prometendo o nascimento do
Emanuel ou do Messias, filho de mãe-virgem. É a salvação a ser trazida em plenitude pelo Messias que
assegura a salvação a Acaz sete séculos antes do Messias; a grande bênção do Deus-conosco exerce ação
antecipada nos tempos de Acaz.
Para entender bem o valor do sinal assim dado por Isaías, devemos ponderar o seguinte: estamos
acostumados a ver a história, como algo que se desdobra do passado para o futuro; é uma sucessão de
eventos que dependem de um evento básico pretérito. No caso dos profetas, porém, requer-se outro
modo de conceituar a história: em vez de se desdobrar do passado para o futuro, ela tem seu ponto de
partida no futuro; ela depende do futuro e tem sua justificativa no futuro. Com outras palavras: a história
sagrada tem seu centro no Messias ou em Jesus Cristo e é a partir deste que os eventos se sucedem e
desenvolvem. Ainda: Davi é função de Jesus Cristo, é explicado por Jesus Cristo, em vez de Jesus Cristo
ser função de Davi, explicável por Davi.
Lição 2: Miquéias 5, 1s
Eis o texto de que se trata:
“1 E tu, Belém Efrata,
pequena demais para ser contada entre os clãs de Judá,
de ti sairá para mim
aquele que deve governar Israel.
Suas origens são de tempos antigos,
de dias imensuráveis.
22
Is 9,5s.
23
Cf. Lc 1,11-25.
2
Por isto Deus os abandonará
até o tempo em que dará à luz aquela que deve dar à luz.
Então o que houver restado de seus irmãos, se reunirá aos filhos de Israel”.
Este texto pode não ser tido como profecia messiânica; seria explicável simplesmente como
anúncio de salvação e restauração do povo de Israel após o exílio babilônico; as mulheres voltariam a
dar à luz normalmente e os filhos de Israel dispersos voltariam a se unir aos habitantes de Judá. Todavia
a interpretação messiânica é muito plausível, de mais a mais que Miquéias foi contemporâneo de Isaías
e, possivelmente, seu discípulo. A próprio tradição judaica, antes dos cristãos, viu nestes versículos uma
profecia messiânica a anunciar a vinda de um novo Davi, que governaria com firmeza e segurança o
povo de Deus. S. Mateus dá a ver que tal profecia se cumpriu por ocasião do nascimento de Jesus 24os
próprios sacerdotes e escribas de Israel citaram em Mq 5, 1s para indicar o lugar em que o Messias
devia nascer 25.
Examinemos, pois, de mais perto o texto de Miquéias.
O profeta supõe Israel humilhado por seus inimigos. A humilhação, porém, não é definitiva. Na
pequena cidade de Belém aquela que deve dar à luz um soberano, cheio do poder de Javé, que dará
início à paz messiânica. — Alguns traços particulares são importantes:
a) S. Mateus, em vez de dizer: “Belém,... pequena demais...”, prefere escrever: “Belém... não és
o menor entre todos os clãs de Judá”. O Evangelista atribui aos sacerdotes e escribas de Herodes um
modo de ler que exalta a cidade do Messias.
b) As origens desse soberano são “de tempos antigos”. Há aqui uma referência aos primórdios
mais remotos da casa de Davi, de acordo com a genealogia de Rt 4, 18-22. Mas pode-se ver aí também
uma alusão à origem transcendental ou divina desse Rei.
c) Chama a atenção a construção da frase de Miquéias: em vez de dizer simplesmente que virá o
Grande Rei, o profeta escreve “... até o momento em que dará à luz aquela que deve dar à luz”. Por que
essa referência especial à Mãe do Rei-Messias? Há quem responda que Miquéias queria aludir à Mãe do
Emanuel mencionada em Is 7, 14; essa Mãe já era conhecida dos contemporâneos de Miquéias através
da pregação de Isaías; eis por que ela estaria em primeiro plano no vasto quadro da profecia messiânica,
segundo Miquéias. Tal interpretação é plausível.
d) Para se entender o nexo existente entre o Rei Messias e sua Mãe, convém lembrar que a
rainha-mãe gozava de especial veneração nas cortes do Oriente antigo: na Assíria, na Babilônia, na
Fenícia, do Egito... No Antigo Testamento a rainha-mãe era chamada gebirah, isto é, mãe do Senhor ou
Grande Dama26. O nome da rainha-mãe é freqüentemente mencionado pelo autor dos livros dos Reis:27.
Percebe-se claramente a eminente posição da rainha-mãe, comparando entre si 1Rs 1, 16s e 2, 19;
no caso, a esposa de Davi, Betsabéia, vai pedir ao rei em favor de seu filho Salomão, ajoelhando-se
diante do rei; no segundo caso o rei Salomão recebe a visita de sua mãe Betsabéia, ergue-se para ir ao
seu encontro, prostrando-se diante dela e manda que ela se sente à direita do rei.
Estes dados explicam que à expectativa do futuro Rei messiânico em Israel estivesse associado
a figura honrosa da Mãe do Messias, como em Is 7, 14 e em Mq 5, 1s. A referência à venerável Mãe
do Messias em ambos os casos é consentânea com os costumes das cortes orientais.
Lição 3: Conclusões
De quanto foi dito nos dois primeiros Módulos deste Curso, podem-se deduzir as seguintes
conclusões:
1) A esperança fundamental do Antigo Testamento é a do Messias. Por isto Maria SS. É aí
esboçada estritamente como mãe do Messias. A Mariologia é função da Cristologia.
2) A prerrogativa principal de Maria é a maternidade messiânica.
3) Isaías parece anunciar de algum modo o caráter virginal dessa maternidade. Não tenciona
exaltar a virgindade (o que não se entenderia no AT), mas tem em vista realçar o dom gratuito do Filho
Messias. Não é o homem quem, por sua própria capacidade, gera a sua salvação. Os evangelistas Lucas
e Mateus desenvolveram autenticamente o esboço de maternidade virginal contido no AT.
24
Mt 2,6
25
Mt 2, 4-6.
26
1Rs 15, 13; 2Rs 10,13; Jr 13, 18;29,2.
27
1Rs 14,21; 15,2-10; 22,42; 2Rs 8,26; 12,2; 15,2-23...
4) À Mãe do Messias não toca apenas a função de parturiente. Cabe-lhe também cooperar de
algum modo na obra da salvação humana. E isto, a três títulos:
a) Em Gn 3, 15 não se espera apenas a vitória do Messias, mas é lógico atribuir à nova Eva ou Eva
plenamente realizada um papel de resgate da primeira Eva;
b) não raro no AT compete à mulheres uma função salvífica importante (Ver Joel, Judite,
Ester...).
c) as cortes do Antigo Oriente atribuíram à rainha-mãe um papel privilegiado.
Não se pode esperar encontrara no Antigo Testamento um quadro mariológico muito nítido.
Importa, porém, verificar que as profecias messiânicas mais antigas já delineiam alguns traços de Maria,
concebida como Mãe do Salvador.
PERGUNTAS
1) Queira reconstituir o fundo de cena da profecia de Is 7, 14.
2) Quem é o Emanuel de Is 7, 14.
3) Quem é a “almah” de Is 7, 14? Com que fundamento se pode dizer que é virgem?
4) Qual o pano de fundo de Mq 5, 1s?
5) Por que Mq 5, 1s fala da mãe do Rei prometido?
31
Sl 43.48.87...
32
São Paulo fala de Jerusalém celeste, que é nossa mãe em Gl 4, 26.
4) Como Judite e Ester podem insinuar Maria SS. ?
5) Queira comentar a praxe da Providência Divina, que se serve do que é fraco para fazer
maravilhas.
33
CANTALAMESSA, Raniero. Maria, um espelho para a Igreja. p. 126.
34
Sl 87, 4s.
35
Cf. 1Pd 1, 23.
36
Jo 1, 13.
37
Jo 3, 5.
38
1Cor 4, 15.
39
Gl 4, 19.
40
Cf. Rm 11, 5ss.
41
Is 49, 21.
Não se trata de uma aplicação subjetiva, mas objetiva; isto é, não se baseia no fato de Maria ter
ou não pensado, naquele momento, nestas palavras — de fato, é mais provável que não —, mas no fato
destas palavras, por disposição divina, objetivamente terem se realizado nela. Isto se descobre por uma
leitura espiritual da Escritura, feita com a Igreja e na Igreja. E como sai perdendo quem se coloca na
impossibilidade de jamais a poder fazer! Perde o Espírito, e contenta-se só com a letra. A moderna
ciência da interpretação formulou um princípio interessante: afirma que para entender um texto não
podemos prescindir do resultado por ele produzido, da ressonância que teve na história
(WIRKUNGSGESCHICHTE). Isto vale ainda mais para os textos da Sagrada Escritura; estes não se
entendem, em todo o seu conteúdo e virtualidade, se não a partir da história do que produziram em Israel
e depois na Igreja; a partir da vida e da luz que deles brotam. Isto vale sobretudo para palavras como as
que estamos examinando. Esta ‘história das realizações’ é o que a Igreja chama de Tradição” 42.
O segundo Díptico é mais intenso do que o primeiro; põe sempre em relevo Jesus e Maria, mostrando
a superioridade de Cristo sobre o Batista e a de Maria sobre Zacarias. Com efeito; os elogios a Maria
superam os que tocam a Zacarias:
Zacarias é irrepreensível segundo a Lei de Moisés (1, 6). Maria é cheia de graça — o que muito
significa, se leva em conta a antítese Lei x graça de Jo 1, 17; Cf. 1, 28-30.
A Maria é lícito interrogar o anjo45, ao passo que Zacarias é punido por fazê-lo (Lc 1, 18).
O anúncio a Maria termina harmoniosamente com a entrega da serva à vontade do senhor (Lc 1,
38), ao passo que o anúncio a Zacarias se encerra com o silêncio imposto ao incrédulo.
Isabel prorrompe em breve ação de graças (1, 25), ao passo que Maria exulta no canto do
Magnificat46.
42
CANTALAMESSA, Raniero. Maria, um espelho para a Igreja. p. 110s.
43
Lc 1,5-56
44
Lc 1,57-2,52
45
Lc 1, 34
A estrutura artificiosa de Lc 1-2 aqui apresentada distingue-se ainda por constar de oito quadros,
número que simboliza a perfeição, segundo os antigos. Não há dúvida, a divisão proposta atrás não é a
única possível, mas não deixa de merecer atenção.
Êxodo Lucas
40, 35: A nuvem cobriu com a sua sombra 1, 35: O poder do Altíssimo de cobrirá
o com
46
Lc 1, 47-55
47
Lc 1, 17
48
Lc 1, 17
tabernáculo e a glória do Senhor a sua sombra; por isto aquele que
encheu a Morada49 nascer de ti, será chamado Santo,
Filho de Deus.
Assim Deus realiza em Maria o que realizava na Arca da Aliança: a morada de Deus, ... mas
segundo nova e inaudita modalidade: a conceição Virginal. O paralelismo leva a identificar Jesus Filho
de Deus, com o Deus da Aliança. A identificação parece prolongar-se no relato da Visitação de Maria a
Isabel, relato que faz eco ao do transporte da Arca de Cariat-larim para Jerusalém, conforme 2Sm 6, 2-
11.
5. O modo de rescrever adotado por Lc 1-2 e Mt 1-2 Evangelho da Infância é chamado
midraxe. Esta palavra deve ser bem entendida: longe de significar lenda ou conto, designa uma
interpretação da Escritura ou uma exegese que procura reler a Escritura à luz dos acontecimentos da
história sagrada. Supõe que a Escritura e a história sagrada sejam um único discurso de Deus, que se
vai desdobrando segundo as sucessivas épocas; em conseqüência, os relato posteriores protejam luz
sobre eventos e textos anteriores, e permitem relê-los com mais profundidade. Em certos casos, o
midraxe põe em relevo teológico dos acontecimentos; não é uma crônica fria, mas uma narrativa
vivencial, que abre os olhos do leitor e o interpela.
Tem-se posto em xeque o valor histórico do midraxe; pode-se-lhe dar a autoridade de uma
narrativa fidedigna? — A resposta é positiva. Para nos determos apenas em Mt 1- 2 e Lc 1-2,
observamos que estes dois evangelistas têm a preocupação de apresentar a história de Jesus segundo os
modos de narrar da sua época. S. Lucas o professa explicitamente no prólogo do seu Evangelho:
“Assim parece conveniente, após acurada investigação de tudo desde o princípio, escreve-te
de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste” (1,
3s).
Quanto a S. Mateus, é de notar que, em vez de “fabricar” narrativas que correspondessem a
textos bíblicos, faz o contrário: adapta livremente os textos bíblicos aos acontecimentos que ele narra;
assim, por exemplo:
Mt 2 15 cita Os 11, 1, como se este texto profetizasse a volta, do Menino Jesus, do Egito, quando
na verdade o texto se refere ao êxodo do povo por Moisés;
Mt 2, 18 cita Jr 31, 15, como se aludisse ao pranto das mães dos inocentes massacrados por
Herodes; na verdade, o texto se refere à terra de Judá enlutada pela deportação de seus filhos para a
Babilônia;
Mt 2, 23 cita a frase: “Ele será chamado Nazareno”, que não se encontra tal qual em nenhum
livro do Antigo Testamento, mas resulta da combinação de algumas profecias entre si: Jr 13, 5-7; Is 42,
6; 49,8.
Donde se vê que, para Mateus, os fatos são reais; são eles que iluminam o entendimento dos
textos antigo.
Em conseqüência, deve-se dizer que não há oposição entre gênero literário midraxe e fidelidade à
história.
Lição 3: traços Complementares
1. Tem grande peso na Mariologia a expressão Kecharitoméne com que Maria é designada pelo
anjo Gabriel em Lc 1, 28. É comum traduzi-la por cheia de graça. Mais exato é dizer: “tu que fostes e
permaneces repleta do favor divino”. O conceito de estar preenchida, repleta é muito importante. As
traduções protestantes “agraciada” e “favorecida” empalidecem ou anulam a noção de plenitude do
favor ou da graça. A Tradição viu neste apelativo o fundamento das prerrogativas da Imaculada
Conceição e da Assunção corporal de Maria aos céus, como se dirá oportunamente.
Note-se Jesus é pléres cháritos, cheio de graça, 50 não foi preenchido; nunca existiu sem estar
cheio de graça. Esta é devida à sua humanidade unida hipostaticamente à Divindade, Ao contrário,
Maria é filha de Adão pecador; tinha o débito do pecado, mas dele foi preservada, tornando-se cheia de
graça. Nenhuma criatura é moralmente boa antes de receber a graça de Deus; é esta que comunica
gratuitamente valores ao ser humano.
49
Cf. Nm 9, 18-22; 2Cr 5, 7-6, 2
50
Jo 1, 14
Nenhuma criatura na Escritura Sagrada é tão elogiada quanto Maria SS:.
Lc 1, 28: Kecharitoméne; Lc 1, 29: o Senhor está contigo; Lc 1, 35: o Espírito Santo virá sobre
ti; Lc 1, 42: Maria é a mais bendita de todas as mulheres;
Lc 1, 43: Maria é a “Mãe do meu Senhor”. Ora “Senhor” traduz o grego Kyrios, que por sua
vez traduz i hebraico lahweh. Donde se vê que Isabel exclama: “... a mãe do meu Javé ou do meu
Deus”.
Lc 1, 49: grandes coisas foram realizadas em Maria; Lc 1, 48: por isto todas as gerações a
chamarão bem-aventurada.
PERGUNTAS
1) Que lhe sugere a divisão de Lc 1-2 em dois Díptico e características anexas?
2) Que é um midraxe? Que valor tem?
3) A simetria dos eventos e as ressonâncias do Antigo Testamento em Lc 1-2 tiram a
credibilidade desses dois capítulos?
com o seu primeiro sinal, suscitando a fé dos discípulos .54Mas Maria SS. Aparece aí exercendo um
papel de Mãe e Medianeira muito significativo . Interressa-nos o diálogo entre Jesus e sua Mãe;
evitaremos debater as muitas interpretações que a propósito ocorrem, para nos deter na que mais
provável parece.
Jo 2, 3: “Eles não têm mais vinho”. Trata-se certamente de uma observação solícita da mulher que
compartilha o mal-estar do noivo tido como responsável pela imprevidência. Maria não apenas verifica,
mas pede a seu Divino Filho que intervenha. A fórmula “Eles não têm mais vinho” é paralelas das duas
irmãs de Lázaro: “Senhor, aquele que tu amas, está doente”55em ambos os casos há um pedido discreto.
Pergunta-se: Maria terá pensado em algo mais do que o suprimento de vinho? Terá sugerido a Jesus
que revelasse a sua identidade messiânica atendendo à penúria de vinho?
— A questão não é difícil, pois parece que a revelação inicial da identidade de Jesus devia decorrer
naturalmente da doação de vinho.
Jo 2, 4: “Que queres de mim, mulher? Minha hora ainda não chegou”. A primeira parte da resposta
de Jesus corresponde ao grego Ti emoi kai soi, ou seja, literalmente que há para mim e para ti? Trata-
se de um semitismo freqüente no Antigo Testamento 56 e no Novo Testamento57é empregado para
rejeitar uma intervenção que se julga inoportuna ou para demonstrar a alguém que não se deseja
relacionamento com ele. É o contexto que indica o significado preciso. No caso de Jo 2, 4 significa uma
atitude reservada ou negativa de Jesus frente ao pedido implícito de sua Mãe. A razão desta reserva é
que “não chegou a hora de Jesus”.
No quarto Evangelho, a hora de Jesus é a da sua glorificação final, compreendendo morte de cruz e
ressurreição; Cf. Jo 7, 30; 8, 20; 12, 23. 27; 13, 1; 17, 1. Não pode ser antecipada. Todavia Jesus não se
recusará a atender à sua Mãe, antecipando, de certo modo, a grande Hora ou realizando um sinal que
prenuncie a glorificação de Jesus.
51
Jo 2, 1-11
52
Jo 19, 25-27
53
Jo 2, 1- 11
54
Cf 2, 11
55
Jo 11, 3
56
Cf. Jz 11, 12: 2Sm 16, 10; 19, 23; 1Rs 17, 18...
57
Mt 8, 29; Mc 1, 24; 5, 7; Lc 4, 34; 8, 28...
Quanto ao termo mulher, apelativo insólito nos lábios de um filho, há DE SER ENTENDIDO À
LUZ DE Gn 3, 15: neste “primeiro Evangelho” o Senhor Deus faz da mulher o princípio da linhagem
dos bons, que lutam contra a serpente; por isto a mulher é chamada “Mãe dos vivos (Eva)”. Trata-se,
pois, de um apelativo nobre que Jesus usa mais uma vez em Jo 19, 26; Maria é a Mulher “Mãe dos
vivos” por excelência, pois deu à luz o Vencedor da morte.
Jo 2, 5: “sua mãe disse aos serventes: Fazei tudo o que ele vos dizer”. — Maria não sabe como Jesus
há de proceder, mas tem certeza de que não ficará indiferente ao pedido de sua Mãe; daí a ordem dada
aos serventes.
Note-se o paralelo entre Jo 2, 4s e Jo 7, 3-10: os “irmãos de Jesus” incitam o Senhor a se manifestar
como Messias em Jerusalém; Jesus responde que “o seu tempo ainda não chegou” 7, 6; todavia acaba
subindo a Jerusalém, onde se põe a pregar. — Registra-se, porém, a diferença seguinte: os “irmãos” de
Jesus não têm fé e, por isto, desafiam Jesus, ao passo que Maria SS. Se dirige a Jesus cheia de fé.
A resposta de Jesus a sua Mãe em Jo 2, 6-11 é realmente messiânica. O Senhor doou seis talhas de
vinho, contendo cada qual duas ou três medidas; a metrétes ou, em hebraico, bath correspondia a cerca
de 40 litros — o que significa que Jesus doou, no mínimo, 6 vezes 80 litros, ou seja 480 litros —
quantidade que ultrapassava longe a necessidade dos convivas. Também a multiplicação dos pães, em Jo
6, 11-13, redundou em excesso de pão, de modo que recolheram doze cestos de pães de cevada. Em
ambos os casos a grande quantidade ( seja de pão, seja de vinho) lembra as profecias relativas aos
tempos messiânicos; estes eram tidos como tempos de fartura, fartura que simbolizava a riqueza dos
bens espirituais trazidos pelo Messias. Ver Jl 4, 18:
“Naquele dia, as montanhas gotejarão vinho novo; das colinas escorrerá”.58
Pergunta-se agora: que significado tem o episódio das bodas de Caná para a Mariologia?
Certamente, trata-se de um episódio cristológico, pois o evangelista quer apresentar o primeiro sinal
ou a primeira manifestação da glória de Jesus.59 Não obstante, é também nitidamente interessado na
figura de Maria; sim, embora compreende onze versículos apenas, quatro deles se referem a Maria (vv.
1. 3. 4 e 5). E qual o papel que toca aí a Maria? — O de Mãe espiritual em duplo sentido:
— É a mulher previdente e providente, que compartilha as necessidades dos homens e trata de as
minorar, levando-lhes solução: é por ela que Jesus faz seu primeiro sinal, ela está no limiar da vida
pública de Jesus, intercedendo pelos homens;
— É a fé de Maria que obtém o sinal que provoca a fé dos discípulos: “Ele manifestou a sua glória e
os discípulos creram nele” (v. 11).
A propósito escreve Santo Padre João Paulo II na sua encíclica Redemptoris Mater.:
“21... No texto de S. João, a partir da descrição dos fatos de Caná, esboça-se aquilo em que se
manifesta concretamente esta maternidade nova, segundo o espírito e não somente segundo a carne, ou
seja, a solicitude de Maria pelos homens, o seu ir ao encontro deles, na vasta das suas carências e
necessidades. Em Caná da Galiléia, torna-se patente só um aspecto concreto da indigência humana,
pequeno aparentemente e de pouca importância “Não tem mais vinho”. Mas é algo que tem um valor
simbólico: aquele ir ao encontro das necessidades do homem significa, ao mesmo tempo, introduzi-las
no âmbito da missão messiânica e do poder salvífico de Cristo. Dá-se, portanto, uma mediação: Maria
põe-se de permeio entre o seu Filho e os homens na realidade das suas privações, das suas indigências e
dos seus sofrimentos. Põe-se de permeio, isto é, faz de mediadora, não como uma estranha, mas na
sua posição de mãe, consciente de que como tal pode — ou antes, tem o direito de — fazer presentes ao
Filho as necessidades dos homens. A sua mediação, portanto, tem um caráter de intercessão: Maria
intercede pelos homens. E não é tudo: como Mãe deseja também que se manifeste o poder messiânico
do Filho, ou seja, o seu poder salvífico que se destina a socorrer as desventuras humanas, a libertar o
homem do mal que, sob diversas formas e em diversas proporções, faz sentir o peso da vida.
Precisamente como o profeta Isaías tinha predito acerca do Messias, no famoso texto a que Jesus se
refere na presença dos seus conterrâneos de Nazaré: Para anunciar aos pobres a boa nova me enviou,
para proclamar ao prisioneiros a libertação e aos cegos a vista...60
58
Cf. Jl 2, 23s; Am 9, 13s
59
Lc 2, 11
60
Cf. Lc 4, 18
Outro elemento essencial desta função maternal de Maria pode ser captada nas palavras dirigidas aos
que servem à mesa: “Fazei aquilo que ele vos disser”. A Mãe de Cristo apresenta-se diante dos homens
como porta-voz da vontade do Filho, como quem indica as exigências que devem ser satisfeitas, para
que possa manifestar-se o poder salvífico do Messias. Em Caná, graças à intercessão de Maria e à
obediência dos servos, Jesus dá início à sua hora. Em Caná, Maria aparece como quem acredita em
Jesus: a sua fé provoca da parte dele o primeiro “milagre” e contribui para suscitar a fé dos discípulos.
Lição 2: Maria ao pé da cruz (Jo 19, 25-27)
Após apresentar Maria em Caná, o Evangelista a apresenta de novo, desta vez ao pé da cruz (Jo 19,
25-27). Lá ficou em companhia de João, o discípulo que Jesus amava, e de duas ou três mulheres, entre
as quais Maria Madalena. Foi nesse momento que Jesus, tendo em vista João, disse a Maria: “eis aí teu
filho”: Eis aí tua Mãe”.
O apelativo “Mulher” mais uma vez chama a atenção. Há de ser entendido em consonância com Gn
3, 15 e Jo 2, 4: Maria é interpelada como Mãe... Mãe dos vivos, nova Eva, e o seu filho lhe é apontado
concretamente: é João, o representante de todo gênero humano. Assim é confirmada a maternidade
espiritual de Maria.
A propósito o Pe. Raniero Cantalamessa tem bela página:
Maria não estava, pois, junto da Cruz de Jesus, perto dele, só num sentido físico e geográfico, mas
também num sentido espiritual. Ela estava unida à cruz de Jesus; estava no mesmo sofrimento; sofria
com ele. Sofria no seu coração o que o filho sofria na carne. E quem poderia pensar diversamente, se
pelo menos sabe o que significa ser mãe? Como Cristo grita: Meu Deus, por que me abandonaste? (Mt
27, 46), assim também a virgem Maria deve ter sido transpassada por um sofrimento que humanamente
correspondia ao do Filho. Uma espada trespassará a tua alma. a fim de se revelarem os pensamentos de
muitos corações;61 também do teu, se ousares acreditar ainda, se fores ainda bastante humilde para
acreditar que, de fato, és a escolhida entre as mulheres, aquela que encontrou graça diante de Deus.
Devia ser um irmão protestante a escrever estas palavras; se tivesse sido um de nós. Talvez parecesse
excessivo dizer que Maria no Calvário foi trespassada por um sofrimento que, humanamente,
correspondia ao do Filho. Mas é a pura verdade, desde que se preste atenção ao advérbio
humanamente.
Jesus era também homem; enquanto homem, diante de todos ele não é, neste momento, senão um
filho justiçado na presença de sua mãe. De tanto tomar cuidado para não colocar no mesmo nível Maria
e Cristo. O Salvador e a criatura salva, certa teologia polêmica (ou defensiva, em se tratando de
católicos) corre o perigo real de esvaziar a encarnação, esquecendo que Cristo se tornou em tudo
semelhante a nós. Exceto no pecado62. Certamente não é pecado se um filho que morre naquelas
condições, rejeitado por todos, procura refúgio no coração e nos olhos da mãe que o gerou e que bem
conhece a sua inocência. Trata-se simplesmente de natureza e piedade humana. E como se trata de
piedade humana, e não de pecado, Jesus a experimentou quando estava morrendo. A diferença infinita
entre Cristo e Maria não nos deve fazer esquecer a semelhança, também infinita, que há entre eles; de
outra maneira seria como negar que Jesus tenha sido homem de verdade; seria docetismo.
Jesus já não diz: que temos nós com isso, mulher? A minha hora ainda não chegou (Jo 2,4).
Agora que sua hora chegou, há entre ele e sua mãe algo de grande em comum: o mesmo sofrimento.
Naqueles momentos extremos, quando também o Pai se escondeu misteriosamente ao seu olhar de
homem, restou para Jesus somente o olhar de sua mãe onde procurar refúgio e consolação. Por acaso vai
desdenhar esta presença e esta consolação materna aquele que, no Getsêmani, suplicou aos três
discípulos: Ficai aqui e vigiai comigo (Mt 26, 38)?63
Estando ela ereta junto da cruz, o seu rosto encontrava-se, mais ou menos, à altura do rosto
encontrava-se, mais ou menos, à altura do rosto de Cristo. Quando lhe disse: Mulher, eis aí o teu filho!,
Jesus certamente estava olhando na sua direção, tanto que nem precisou chamá-la pelo nome. Quem
poderia penetrar o mistério daquele olhar entre Mãe e Filho numa hora semelhante? Em qualquer
sofrimento humano, também no de Cristo e de Maria, há uma dimensão íntima e particular, que se vive
em família entre aqueles que estão unidos pelo vínculo do mesmo sangue.
61
Cf. Lc 2, 35
62
Cf. Hb 4, 15
63
S. KIERKEGAARD, Diário, XI 1 a 45 (trad. Ital. Citada, nr. 2837)
Uma alegria imensamente sofredora passava de um para outra, como água entre vasos
comunicantes, alegria porque já não opunham resistência à dor, já não tinham nenhuma defesa diante do
sofrimento, mas deixavam-se invadir livremente por ele até o íntimo. À luta tinha sucedido a paz.
Tinham-se tornado uma só coisa com a dor e com o pecado do mundo inteiro. Jesus diretamente, como
vítima de expiação pelos pecados de todo o mundo,64 e Maria indiretamente pela sua dupla união, carnal
e espiritual, com o filho, (Maria, um espelho para a Igreja, pp. 90s).
A maternidade de Maria em relação ao gênero humano é dolorosa. A ela se aplica, por
excelência, a palavra de Jesus:
“Quando a mulher está para dar à luz, sente tristeza porque é chegada a sua hora. Mas, depois
que deu à luz, não se lembra mais da sua aflição, mas enche-se de alegria por ter nascido um homem
para o mundo” (Jo 16, 21s).
Ao pé da cruz, Maria experimentou a sua hora, como Jesus experimentava a grande hora
predefinida pelo Pai. No sofrimento, ela se tornava Mãe da humanidade. A imagem das dores do parto é
familiar aos escritores do Antigo Testamento, que assim designam os acontecimentos dolorosos
precursores dos tempos messiânicos;65 tal imagem se tornou realidade, em grau máximo, quando a Maria
junto à cruz Jesus foi conferir a maternidade sobre todos os homens. como Mãe da humanidade,
preenche o papel de Nova Sion ou nova Jerusalém, da qual diz i Salmo 87, 2s 5:
“O senhor ama as portas de Sion mais que todas as moradas de Jacó. Ele conta glórias de ti, ó
cidade de Deus... De Sion será dito: Todo homem ali nasceu e foi o Altíssimo que afirmou”.
Jerusalém, mãe de todos os homens, porque portadora da Palavra da vida, é figura de Maria Ss.
Mãe dos viventes por excelência. Sim, as promessas de Deus não se dirigem a cidades ou muralhas
como tais, mas a pessoas concretas, das quais aquelas coisas são símbolos ou imagens. Daí dizer-se que
as promessas feitas a Jerusalém se cumprem plenamente em Maria, a humilde representante de Sion por
ocasião de sua estrada ao pé da cruz de Jesus.
PERGUNTAS
1)Que significa o apelativo “mulher” dirigido por Jesus à sua Mãe em Jo 2, 4 e 19, 26?
2) Que é a Hora de Jesus? Qual o significado da resposta de Jesus à sua Mãe em Jo 2,4?
3) Porque Jesus deu tanto vinho? Que significado tem tamanha quantidade?
4) Queira explicar o paralelo entre a hora de Jesus e a hora de Maria ao pé da Cruz;66
5) Em que sentido Maria é a nova Jerusalém?
64
Cf. 1Jo 2,2
65
Cf. Is 21, 3s; 26. 16-20; 66, 7-14; Jr 30, 6; Os 13, 13; Mq 4, 9. Ver no Novo Testamento Mc 13, 8’; 1Ts 5, 3; Rm 8, 22; Ap
12, 2
66
Cf. Jo 16, 21s
O V. 16 quebra o rítmico do texto, pois, em vez de dizer “Jacó gerou José e José gerou Jesus”,
afirma: “Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus chamado Cristo”.
O circunlóquio chama a atenção. Por isto os antigos manuscritos apresentam variantes, entre as
quais a seguinte, que pretende harmonizar a versículo 16 com os anteriores:
“José, com o qual estava desposada a Virgem Maria, gerou Jesus”.
Esta leitura carece do devido sustentáculo nos códigos antigos. Ao afirmar que Maria gerou
Jesus, quis o evangelista afirmar que ela o fez sem o concurso de varão, ou seja, virginalmente, como
atestam os vv. 18-23, que narram o nascimento de Jesus.
2. O estilo de Mateus, ao descrever a genealogia de Jesus, tem certo paralelo nos escritos de S.
Paulo. Este é muito sóbrio ao falar do Jesus pré-pascal; todavia refere-se às origens do Senhor em
termos que de algum modo podem ser aproximado aos de Mateus. Com efeito; levem-se em conta as
duas seguintes passagens:
Gl 4, 4s: “Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, feito de mulher, feito
sob a Lei...”
O apóstolo, de um lado, acentua a verdadeira humanidade de Jesus, nascido de mulher, mas não
refere homem algum como pai carnal. Haverá aí a intenção de aludir à conceição virginal de Jesus, como
ocorre em Mt 1, 16? Maria teria recebido, no caso, do próprio Deus o Filho ao qual Ela deu a carne
humana. Estaria assim insinuada a dupla natividade de Jesus: a eterna, no seio do pai, como Deus; e a
temporal, no seio da Virgem, como verdadeiro homem.
Em outra passagem, o Apóstolo afirma ser Jesus Filho de Davi, como faz Mt 1, 1;
“Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado Apóstolo, escolhido para anunciar o Evangelho de
Deus, que fora prometido pelos Profetas nas Santas Escrituras, acerca do seu Filho nascido da
posteridade de Davi segundo a carne...”(Rm 1, 1-3).
Neste texto, o Apóstolo afirma a dupla natividade de Jesus: é Filho de Deus, que se faz Filho de
Davi. Como... Filho de Davi? Isto não é explicado; o texto de Gl 4, 4s deve fornecer algum
esclarecimento. O que nos importa neste momento, é verificar o contexto no qual é inserida a figura de
Maria: Jesus é Filho de Deus e Filho de Davi; neste contexto se enquadra o mistério de Maria, a Mãe
desse Jesus.
Tal mistério é elucidado por Mateus na secção seguinte, colocada logo após a genealogia de
Jesus:
2. 2. Mt 1, 18 -23
“A origem de Jesus Cristo deu-se do seguinte modo: Maria, sua Mãe, estava prometida em
casamento a José. Ora, antes de terem coabitado, achou-se ela grávida por obra do Espírito Santo. José,
seu esposo, que era um homem justo e não a queria difamar publicamente, resolveu repudiá-la em
segredo. Enquanto assim cogitava, eis que o anjo do Senhor manifestou-se-lhe em sonho, dizendo: ‘José,
Filho de Davi, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que nela foi gerado vem do Espírito Santo.
Ela dará à luz um Filho e tu o chamarás Jesus, pois Ele Salvará o seu povo dos seus pecados’. Tudo isso
aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor havia dito pelo Profeta: ‘Eis que a virgem conceberá e
dará à luz um Filho. Ao qual darão o nome de Emanuel, o que se traduz: Deus conosco (Is 7, 14)’ (Mt 1,
18-23).
Este texto responde a uma pergunta deixada em aberto pela genealogia anterior: Jesus, embora
Filho de uma virgem, é Filho de José e Filho de Davi. O próprio Deus dissipa os temores concebidos por
José e quer que este exerça a paternidade jurídica ou legal em relação a Jesus, como tutor da Sagrada
Família. O fato mesmo de José ser incitado a dar o nome ao Filho de Maria 67 indica bem que ele é
considerado “ pai segundo a lei” de Jesus.
A secção de Mt 1, 18-23 suscita alguns comentários:
1) O noivado, entre os judeus, eqüivalia a um contrato, que exigia fidelidade recíproca dos
noivos. Daí a perplexidade de S. José, que encontrou Maria grávida antes mesmo que coabitassem.
2) O Evangelho afirma que José era um homem justo e, por isto, quis deixar partir Maria grávida.
Pergunta-se: em que sentido era justo?... justo, porque queria observar a lei israelitas que autorizava o
divórcio em caso de adultério?... justo, porque se mostrou indulgente, deixando Maria partir em vez de
67
Cf. 1, 21
mandar apedrejá-la68justo, porque não queria ser tido como pai de uma criança cujo autêntico pai ele
desconhecia? Ainda se pergunta: se José acreditava na culpa de Maria, como podia esconder o crime por
ela cometido, despedindo-a secretamente?
Estas diversas perguntas só se resolvem satisfatoriamente, se se admite que José reconheceu, por
intuição de sua fé, o mistério de Maria. Convicto da probidade e da virtude de Maria, recusou-se a
aplicar-lhe as normas da Lei relativas ao adultério e, por isto, quis que ela seguisse o seu caminho
(traçado por Deus) sem que ele se envolvesse nos meandros do mistério. O querer despedir Maria,
portanto, não significava vingança ou sanção da parte de José, mas respeito e reverência a um desígnio
de Deus, que sobrepujava seu entendimento.
3) A fim de corroborar a notícia de que Maria concebeu virginalmente, o evangelista
acrescentou: “Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor havia dito pelo Profeta”... (1,
22). Está claro que os acontecimentos da vida de Jesus previstos pelo Espírito Santo é que
condicionavam a formulação das profecias outrora, e não vice-versa: não são as profecias que
condicionam os eventos futuros. Os dizeres “para que se cumprissem as Escrituras” são estereótipos no
Evangelho segundo Mateus;69
4) É de notar outrossim que o evangelista cita o texto de Is 7, 14 segundo a tradução grega dos
LXX e não conforme o texto original hebraico. Este diz: “Eis que uma jovem (álmah) está grávida e dá
à luz um filho’; a palavra ‘almah significa apenas a jovem mulher, sem especificar se é casada ou não.
Os judeus, desde o século II a. C. (se não antes), entenderam que essa jovem seria virgem... que daria à
luz o Messias; daí a tradução de Is 7, 14 nos LXX. Sabe-se que a tradução dita “dos LXX” ou
alexandrina foi realizada pelos judeus residentes no Egito entre 250 e 100 a. C . para atenderem à
necessidade de terem um texto grego das Escrituras (visto que falavam grego e não hebraico no Egito).
S. Mateus seguiu essa interpretação, citando precisamente Is 7, 14 (LXX) para ilustrar a maternidade
virginal de Maria.
Como se vê, o Evangelho segundo Mateus está na linha da tradição atestada pelo evangelista S.
Lucas, embora não descreva os mesmos feitos que este quando trata da infância de Jesus.
PERGUNTAS
1)Que há de singular na genealogia de Jesus em Mt 1, 1-17, com referência a Maria?
2) Que significa a secção de Mt 1, 18-23?
3) Como interpretar o papel de S. José frente a Maria SS. Grávida?
4) Que tem você a notar na citação da profecia de Is 7, 14?
A FÉ DE MARIA
“Características são as palavras de Cristo quando uma mulher exclamou entusiasmada: “Feliz o seio
que te trouxe!” (Lc 11, 27), ou quando lhe dizem: ‘tua mãe está aí’ (Mt 12, 46-50; Mc 3, 31-35; Lc 8,
19-21). Não se deprecia nessa passagem a verdadeira grandeza de Maria. Ao contrário: ‘Mais felizes os
que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática’(Lc 11, 27-28) é o mais elevado louvor à fé de Maria,
ao seu fiat vivo, expresso na frase: ‘Faça-se segundo tua palavra...’
Minha mãe são os que ouvem minha palavra e a põem em prática’ afirmou Jesus (Lc 8, 21).
Realmente, Maria é o protótipo da vida cristã de fé...
Crer fortemente e esperar contra todas as aparências contrárias é o elemento verdadeiramente
característico da psicologia religiosa de Maria. Às vezes a gente pensa que a fé de Maria teve a seu
favor circunstâncias relativamente fáceis, e que sua vida decorreu sem dificuldades. Nada disso. Uma
santidade maior não implica em si numa vida mais dura ou mais suave, sem apenas e sem tormentos. É
claro que Maria não estava sujeita às contradições provindas da natureza humana pecadora e rebelde;
mas como Cristo no jardim das Oliveiras, sua natureza, altamente espiritual a afinada por sua inocência
desde a conceição, era bem mais receptiva e sensível. A inocência não a retirava de um mundo de
pecado e de incompreensão. Nem a abrigava dos reveses imprevisíveis e irracionais da existência
humana. A confusão da vida, as intrigas da sociedade, o desencadeamento cego das paixões humanas
68
Cf. Lv 20, 10; Dt 22, 22-24
69
Cf. Mt 2, 15-23; 4, 14; 8, 17; 13, 35; 21, 4
podem criar situações críticas e vítimas inocentes. A inocência não afastava Maria dessa situações
humanas normais, mas lhe dava uma força que, sem nada retirar do lado difícil das coisas, fazia-a aceitar
no mais santo abandono o lado espinhoso e vivê-lo interiormente de uma maneira completamente
diferente.
Nazaré é a casa dos que crêem lutando. Dos que enfrentam corajosamente as dificuldades da vida em
pleno abandono `a Providência. É a narração sóbria do Evangelhos e não fantasia dos apócrifos que nos
pinta a vida real de Maria. Em nada si assemelha a um conto de fadas, como a história da Branca de
Neve. Não tem passarinhos encantadores cantando em torno dela para elevá-la às alturas e subtraí-la de
todos os perigos. Para nós que temos de enfrentar um mundo nada idílico, ela não seria um exemplo
encorajador, mas apenas um entorpecente que nos deixaria, ao acordarmos, desencanto e tristeza. Sua
vida era em tudo semelhante à nossa feita de mil e uma contingências, dificuldades e aperturas da vida
humana e social, inclinando-se diante do mistério do Deus vivo, ela nos dá o exemplo de uma fé mais
forte que a vida humana, mais forte que a morte... mais forte que a própria morte de seu Messias”.
(E. Schillebeeckx, Maria, Mãe da Redenção, p. 24s).
PARTE I: FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICA - NOVO TESTAMENTO
70
Cf. Ap 12, 5 e Sl 2, 9
Gloriosa e dolorida... O autor sagrado descreve o esplendor da Mulher, valendo-se de textos do
Antigo Testamento:
Gn 37, 9: “José, em segundo sonho, viu o sol, a lua e onze estrelas, que se prostravam diante
dele”
Ct 6, 10: “Quem é essa, que tem o olhar da aurora, bela como a lua, brilhante como o sol,
terrível como esquadrão de bandeiras desfraldadas?”
Essa Mulher bela, que deve dar à luz o Messias, é, antes do mais, a Filha de Sion, o povo
messiânico (que é freqüentemente representado no Antigo Testamento como Mulher). — Na plenitude
dos tempos, a Filha de Sion coletiva se faz muito concreta na pessoa de Maria SS., que, de maneira
singular, se tornou a Mãe do Messias. Tendo este subindo aos céus, o papel da Mulher-Mãe (Mãe da
vida) não cessa; continua na Igreja, que, como Mãe e Mestra, gera seus Filhos para a vida eterna
mediante os sacramentos (especialmente o Batismo e a Eucaristia). O Maligno jamais poderá suplantar
ou aniquilar a Igreja como tal, mas poderá seduzir os cristãos que lhe quiserem dar ouvidos.
Põe-se a questão: a mãe do Messias, Maria SS., teve um parto doloroso? — Não é necessário
tirar esta conclusão de Ap 12, 1s. a Filha de Sion, descrita com traços gloriosos, que convêm a Maria SS.
Elevada aos céus, sofreu penosas provações durante os séculos que preparam a vinda do Messias; a
gestação do Messias por parte de Sion, foi, sem dúvida, dolorosa. É isto que o autor sagrado quer dizer
quando se refere às dores do parto da Mulher.
Podemos estender o nosso olhar... Dizíamos que a Mulher de Ap 12 assume sucessivos aspectos
no decorrer da história: Filha de Sion, Maria SS., Santa Mãe Igreja. Completemos o quadro, colocando
no início da série a 1ª Eva, cujo nome profético significa “Mãe da Vida ou dos viventes”, e no término
final coloquemos a figura da Jerusalém celeste. “preparada com uma esposa que se enfeitou para o seu
Esposo”(Ap 21, 2). Donde se segue a imagem:
A 1a Eva
M
U Filha de Sion
L
H Maria
E 2a Eva
R
Santa Mãe da Igreja
Vê-se, pois, que a Mulher de Ap 12 é a Mulher como tal, na sua função específica da maternidade, já
designada pelo nome EVA. A Mulher perpassa toda a história da salvação; a vida até mesmo a vida do
Messias, só vem aos homens através da Mulher. No Protoevangelho (Gn 3, 15) o Senhor Deus quis
colocar a mulher, e não o homem, como protagonista mais remota da obra da Redenção; ela é fonte ou
origem da linhagem donde sai o Messias e a vitória do Bem o Mal; e nas entranhas da Mulher
(agraciada por Deus ou cumulada dos favores divinos) que está escondida a salvação da humanidade.
“Partindo daqui, talvez seja possível desemaranhar um problema que continua a angustia a
Igreja: a posição da Mulher. Devemos acentuar mais o fato de que uma mulher foi parceira de Deus na
obra salvífica da Encarnação; deveríamos ressuscitar a idéia patrística, viva na teologia medieval,
segunda a qual entre a morte e a ressurreição de Cristo a Igreja só existiu na mulher Maria. Portanto,
ao menos uma vez a existência da fé viva no mundo dependeu de uma mulher! Se Maria e o tipo da
Igreja, ela o é na qualidade específica daquela criatura humana que foi, isto é, como mulher”(O culto a
Maria Hoje, p. 21, nota 14).
Lição 3: A ausência do nome de Maria nos escritos Joaneus
Á guisa de complemento do estudo dos escritos de S. João, abordamos aqui um fato misterioso:
não há dúvida, S. João, à diferença dos outros três evangelistas, evitou chamar a Mãe de Jesus por seu
nome: Maria. Com efeito; S. Marcos refere uma vez o nome Maria; S. Mateus, cinco vezes; S. Lucas,
treze vezes (doze no seu Evangelho, e uma nos Atos dos Apóstolos); S. João, nunca. A omissão não
parece casual, mas, sim, premeditada e sistemática.
João não ignora o nome de José, quando refere os dizeres dos judeus incrédulos: “Por ventura,
não é este Jesus o filho de José, cujo pai e cuja mãe nós conhecemos? Como, pois, diz ele: ‘Desci do
céu’? “ (Jo 6, 42).
João conhece também o nome de Maria, que ele atribui a várias mulheres do Evangelho: Maria
de Cleofas, Maria Madalena, Maria de Betânia, irmã de Marta e Lázaro. São personagens secundárias no
Evangelho; não obstante, S. João as chama por seu próprio nome. O evangelista faz o mesmo com outras
figuras, cujo nome ele podia ter ignorado sem prejudicar a clareza do seu Evangelho: Nicodemos, José
de Arimatéia... Repete-se a pergunta: se o evangelista não silenciou o nome desses personagens menos
importantes, por que omitiu o nome próprio da Mãe de Jesus? — Não se diga que S. João não queria
repetir o que os Sinóticos (Mt, Mc e Lc) já haviam dito, pois neste caso não teria mencionado os nomes
de José e das diversas mulheres chamadas Maria de que falam os Evangelhos anteriores.
Mais: dentre todos os discípulos de Jesus, o que mais devia conhecer a Mãe de Jesus, era S. João,
a quem o Senhor, ao morrer, confiou sua Mãe Santíssima . Apesar disto, o quarto evangelista só
menciona “a Mãe de Jesus” ou “sua Mãe”.
É óbvio perguntar: qual terá sido a intenção do evangelista ao proceder assim? — A pergunta é
difícil. Como quer que seja, duas respostas podem ser consideradas:
1) João omitiu o nome de Maria, porque lhe parecia um nome muito comum, em vez de
caracterizar ou distinguir a Mãe de Jesus. Havia muitas Marias no povo de Israel! Se o nome próprio é
aquele que distingue uma pessoa, revelando a sua identidade íntima (como pensavam os Israelitas), o
nome Maria não preencheria essa função em relação à Mãe de Jesus. A expressão que designava de
modo singular e irrepetível a realidade de Maria SS., era Mãe de Jesus. Por conseguinte, o evangelista,
ao referir-se à Mãe de Jesus, estaria revelando a razão de ser mais característica daquela figura
2) Pode-se ainda propor a seguinte reflexão: o quarto Evangelho fala muito do Pai de Jesus; Jesus
se refere freqüentemente ao Pai que enviou e cuja vontade Ele quer realizar; assim, por exemplo:
“O Pai me ama, porque dou a vida para a retomar. Ninguém ma tira, mas eu a dou por mim
mesmo. Tenho o poder de a dar e o poder de a retomar; esta é a ordem que recebi do meu Pai”
(Jo 10, 17s).
Ora a expressão “a Mãe de Jesus” pode ser entendida como um paralelo a “meu Pai (= o Pai de
Jesus)”. Maria seria o eco da divina Figura do Pai não apenas mediante a maternidade física, mas
também através da comunhão com o Espírito Santo, que é o Espírito do Pai; tenham-se em vista as
palavras do anjo da Anunciação:
“O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra, e por isto
Aquele que nascer de ti será Santo e chamado Filho De Deus ”
(Lc 1, 35).
Este texto quer dizer que Maria recebe do pai, por intervenção do Espírito Santo, o seu Filho. Ele
é a Mãe cuja maternidade é dom direto do próprio Pai Celeste.
Para confirmar esta interpretação, aponta-se interessante paralelismo entre Mt 17, 5 (Mc 9, 7; Lc
9, 35) e Jo 2, 5. Com efeito nos primeiros textos, relativos à Transfiguração, o Pai diz aos discípulos:
“Este é o meu Filho, aquele que escolhi; ouvi-o!” (Lc 9, 35). Ora Maria disse aos servidores em Caná:
“Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2, 5); Ela assim faz eco à voz do Pai, que mandou ouvir (ou
obedecer) Jesus. Ela é não somente a filha de Sion, mas a Filha da Voz (Bat kol , hebraico).
Esta conclusão parece corroborada pelo fato de Jesus em Caná, tendo alegado que sua hora ainda
não chegara, não obstante quis fazer o seu primeiro sinal; reconheceu na voz de Maria o eco muito claro
da vontade do Pai.
As duas explicações que acabam de ser expostas, devem-se ao Pe. Horácio Bojorge S. J. no seu
livro: “A Figura de Maria através dos Evangelistas” (Ed. Loyola 1977), pp. 55-66. — Apresentamo-
las, porque são uma tentativa de eludir o misterioso silêncio do quarto evangelista em relação ao nome
da Mãe de Jesus. Parecem porém artificiais; principalmente a segunda, embora se apoie em paralelismo
de expressões, parece deduzir dessas expressões muito mais do que o que elas querem dizer. Fica a
critério do estudioso avaliar o alcance das duas hipóteses. É de notar, porém, que o quarto evangelista
também silenciou o nome de João e Tiago seu irmão, filhos de Zebedeu; é omissão sistemática, todavia
menos misteriosa do que a que ocorre com o nome de Maria, pois, sendo João, filho de Zebedeu, o autor
do quarto Evangelho (como bem se pode afirmar). É compreensível que o autor tenha silenciado seu
próprio nome por motivo de humildade.
Compare-se agora este trecho de São Lucas com o do apócrifo “ protoevangelho de Tiago” c.
19s: o ps. — Evangelho professa também o parto virginal de Maria, mas, para dar realce a esta verdade,
enquadra-o dentro de traços evidentemente fantasistas, mostrando-se com isto um tanto ridículo: narra
que, estando Maria para dar à luz numa gruta perto de Belém, São José foi procurar uma parteira;
quando esta se aproximava com o esposo de Maria, a gruta lhe apareceu recoberta por uma nuvem, a
qual repentinamente se esvaneceu, dando lugar a luz de extraordinário fulgor; o brilho desta se foi
empalidecendo aos poucos, até o momento em que uma criança apareceu e tocou o seio de Maria, sua
Mãe. Então exclamou a parteira: “grande é este dia para mim, pois assisti a extraordinária maravilha!”
Saindo da gruta, a parteira encontrou Salomé, mãe de São João Evangelista, a quem disse: “Salomé,
Salomé, tenho extraordinária maravilha para te contar: uma virgem deu à luz, contrariando à natureza”.
Salomé respondeu: “Assim como Deus é vivo, se não colocar meus dedos e sondar a natureza de Maria,
não acreditarei que uma virgem tenha dado à luz” Salomé então entrou na gruta, examinou Maria e por
fim exclamou Maria e por fim exclamou: “Desgraça à minha impiedade e incredulidade! Tentei o Deus
vivo! E eis que minha mão, como que ressequida pelo fogo, se vai separando de mim”. A seguir, tendo
orado. Salomé foi visitada por um anjo, que lhe mandou tomasse o menino em seus braços; feito isto, foi
curada e, justificada, saiu da gruta, enquanto uma voz lhe dizia: “Salomé, Salomé, não dês a conhecer
tais prodígios antes que a criança tenha entrado em Jerusalém”.
Como se vê, esta descrição é tão cheia de pormenores maravilhosos, que se mostra um tanto
burlesca ou pouco digna de Deus; por não guardar a sobriedade com que tradição referia o parto virginal
de Maria, o autor do apócrifo cedeu à imaginação, tornando-se quase grotesco. O confronto deste trecho
com o do Evangelho de São Lucas leva a admirar o texto bíblico e reconhecer que a brevidade de estilo
do autor sagrado (a qual se explica pelo fato de que os evangelistas não intencionavam focalizar
diretamente Maria) é altamente e digna, desde que lida no contexto da tradição. É muito mais preciosa e
apta para suscitar a fé do que a loquacidade dos apócrifos.
Lição 2: Análise dos Textos
Analisemos agora as principais passagens do Evangelho em que Jesus poderia parecer descortês para
com sua Mãe Santíssima.
2. 1. Lc 2, 49: Jesus no Templo aos doze anos
Jesus, após três dias de ausência, foi de novo encontrado no templo por Maria e José, que, aflitos, lhe
perguntaram por que os havia deixado momentaneamente. O Senhor respondeu: “por que me
procuráveis? Não sabíeis que devia estar em meio às coisas de meu Pai (ou junto a meu Pai)? ”
Estas palavras significam que Jesus na terra vivia continuamente voltado para o pai celeste,
devotando-lhe toda a sua vida na carne. Esta atitude do Senhor não derrogava ao feto filial que Ele nutria
para com sua Mãe Santíssima: até o fim, e ainda na última hora de sua existência terrestre, pregado à
71
Cf At 1, 22; 10, 37-42
cruz. Ele haveria de testemunhar a Maria a sua piedade filial, confiando-a ao discípulo bem-amado.
Contudo Jesus, como homem, observa a devida hierarquia em seus afetos: os laços de família nele não
eram extintos nem atenuados pelo fato de serem subordinados ao amor do Pai Celeste: ao contrário, este
pode conferir valor e solidez especiais a todo e qualquer afeto humano. São Lucas, ao referir a resposta
de Jesus a Maria no Templo, não quis senão incutir esta verdade (fica fora da perspectiva do evangelista
a descrição completa da atitude de Jesus para com sua Mãe no caso).
2.2. Jo 2, 1-11; 19, 26: “ Mulher...”
Muito importante é o fato de Maria ter estado presente e haver interferido no acontecimento que São
João chama explicitamente “o primeiro sinal” do ministério público de Jesus: o Divino Mestre quis que
sua Mãe lhe desse ocasião para manifestar pela primeira vez a sua glória, associando intimamente a
intercessão de Maria à sua obra de Messias. A resposta dada por Jesus em Jo 2, 4 merece atenção detida.
Ao pé da letra soa: “que há para Mim e para ti (no caso)? — Ti emoi kai soi?” Trata-se de construção
tipicamente semítica, ocorrente em outras passagens da Sagrada Escritura, como Jz 11, 12;2 Sm 16, 10;
19, 23s 1Rs 17, 18; 2Rs 3, 13; Mt 8, 29; Mc 1, 24; Lc 4, 34; 8, 28. Significa atitude reservada por parte
de quem fala; consultando-se a melhor fonte de exegese no caso, isto é, os textos da filologia rabínica
(colecionados por Strack- Billerbeck, , Kommentar zum Neuen Testament III 401), verifica-se que
em Jo 2 a expressão eqüivale a dizer. “Por que tal pedido? Por quer nos imiscuirmos em tal coisa? Tu e
eu, que podemos fazer nessa situação?” Jesus logo indica a razão dessa restrição: não chegou sua hora.
A “hora de Jesus”, conforme São João, é o momento da glorificação final de cristo ou de sua ascensão à
direita do Pai; o evangelista, no decorrer do Evangelho, nota sucessivamente a aproximação dessa hora;
72
está claro que, de antemão fixada pelo Pai, não poderia ser antecipada. Não obstante, depois de fazer
observar isto, Jesus realizou o milagre desejado por Maria, não antecipando a sua hora, mas dando com
este milagre (a manifestação de sua glória, como diz São João em 2, 11) um prenúncio ou anúncio
simbólico de sua glorificação definitiva. Jesus, por sua resposta aparentemente restritiva, queria apenas
indicar a sua Mãe que ela Lhe pedia algo de muito grande, ou seja, um prodígio que, por assim dizer,
eqüivalia à antecipação de um desígnio do Pai; mas que, não obstante, Ele atendia à sua prece. Maria
deve ter compreendido, pelo tom de voz e os gestos de seu Filho. Que Estava disposto a atender-lhe
(tudo se passou numa atmosfera muito familiar, em que a Mãe sabia discernir fielmente as palavras e
atitudes de seu Divino Filho): por isto recomendou executassem tudo que ela sabia que seu Filho estava
para mandar. — Em última análise, pois a ATITUDE DE Jesus para com Maria em Caná, longe de
derrogar à dignidade de Maria, é autêntico testemunho de quanto o Filho apreciava sua Mãe.
Quanto ao tratamento “mulher” usado pelo Senhor, nada tem de irreverente; é outro aramaísmo
equivalente desta vez a um apelativo solene: “Dama” (sitt, em aramaico); implicava ternura muito
nobre, pelo que foi repetido por Jesus em outra ocasião solene, ou seja, quando, pendendo do alto da
Cruz, quis prover filialmente ao amparo de sua Mãe: “Mulher, eis teu filho”, disse o Senhor, indicando
João como futuro arrimo de Maria (Jo 19, 26). — Além disto, observa-se que o tratamento “Mulher”, no
contexto de Jo 19 (contexto que alude repetidamente a profecias do Antigo Testamento; 73 faz ecoar as
promessas de Gn 3, 15. 20: “Mulher”, é nestes dois versículos o título portador da esperança do mundo;
é, sim, pela mulher e pela prole da mulher que Deus promete restaurar a harmonia violada; Jesus terá,
pois, do alto da Cruz não somente providenciado ao amparo de Maria, mas também apresentado sua Mãe
qual nova Eva, Mãe espiritual de todos os viventes, a começar por São João.
Aliás, o título de Nova Eva é o primeiro título com que Maria aparece na teologia e na piedade Cristã;
está bem na linha do pensamento paulino, que vê em Jesus o Novo Adão, aquele que com a Nova Eva
repara a desgraça causada pelo primeiro homem e a primeira mulher; 74 — São palavras de S. Ireneu (†
202):
“O Senhor recapitulou por sua obediência sobre o lenho a desobediência antes cometida mediante o
lenho. A sedução de que Eva fora vítima quando ainda virgem destinada ao seu marido, essa sedução
foi dissipada pela boa nova da verdade magnificamente anunciada pelo anjo a Maria, também
despojada, pois, da mesma forma que aquela fora seduzida pela palavra de um anjo a ponto de se
afastar de Deus e transgredir sua palavra, também esta foi instruída sobre a Boa Nova pela palavra de
72
Cf. 7.30; 8, 20; 12, 23.27; 13, 1; 17, 1
73
Cf. 19, 24.28.36s
74
Cf Rm 5, 12-17
um anjo, e, por obediência à sua palavra, chegou a ser portadora de Deus. Da mesma forma que aquela
fora seduzida para desobedecer a Deus, esta se deixou persuadir a obedecer a Deus, para ser — ela, a
Virgem Maria — a advogada de Eva. Assim o gênero humano, submetido à morte por uma virgem, foi
dela libertado por uma Virgem, tornando-se contrabalançada a desobediência de uma virgem pela
obediência de outra” (Contra as heresias. Livro V).
2.3. Mt 12, 46-49; Mc 3, 31-35; Lc 8, 19: ‘Quem é minha Mãe...”
Informado de que sua Mãe e seus irmãos (em boa tradução do aramaico, diríamos: primos) O
procuravam, Jesus certa vez respondeu: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?” E, estendendo a
mão sobre os seus discípulos, disse: “Eis minha mãe e meus irmãos: todo aquele que fizer a vontade de
meu Pai Celeste, esse é meu irmão, minha irmã, minha mãe “ (Mt 12, 47-49).
Tal resposta, longe de significar indelicadeza da parte de Jesus, quer apenas indicar que, acima do
parentesco carnal, o Senhor estimava um novo tipo de parentesco, o parentesco espiritual, o qual se
baseia não nos laços do sangue, mas na fidelidade à Palavra e à Vontade de Deus. Naturalmente, esta
não se opõe aos vínculos e o amor da família, mas subordina-os a si. Se não houvesse fidelidade à
vontade de Deus nos consangüíneos de Jesus, de nada lhes adiantaria o parentesco de sangue com Cristo.
Ora Maria nutriu desde cedo o amor aos desígnios do Pai Celeste, como ela mesma atesta ao anjo: ‘Eis a
serva do Senhor; faça-se em mim segundo a Tua Palavra” (Lc 1, 38). Donde se segue que Jesus com
sua resposta em Mt 12,50 só fez confirmar sua grande ternura para com Maria Santíssima, dando,
porém, simultaneamente a ver qual o título que mais encarecia Maria ao seu coração de Filho: ela
sempre fora (e foi) fiel à vontade Pai. 2.4 Lc 11, 27s: “Bem-aventurados...!”
Uma mulher tendo exaltado a grande felicidade de Mãe de Jesus por haver gerado tão nobre Filho, o
Senhor a admoesta a que entenda o verdadeiro título por que alguém mereça ser felicitado: o título de
cumpridor da palavra de Deus; com efeito, diz Jesus: “Bem-aventurados, antes, os que ouvem a palavra
de Deus e a Põem em prática!” (Lc 11, 28). Ora tal motivo de exaltação se aplica eminentemente a
Maria Santíssima, que, sem dúvida, recebeu a graça de se tornar Mãe do Verbo Encarnado, porque
primeiramente se mostrou em tudo a fiel serva do Senhor; diz S. Agostinho: “Mais feliz é Maria por ter
vivido inteiramente na fé do Messias do que por ter concebido a carne do Messias” (ed. Migne lat. 40,
398). À luz deste princípio, entendam-se as palavras de Cristo: o Senhor quer erguer a estima a Maria
sobre o aspecto mais digno e rico que a mãe de Deus possa apresentar à consideração dos cristãos.
2.5. Gl 4, 4; 1Tm 2, 15: A Mulher por excelência
A título que complemento, sejam as epístolas paulinas também aqui mencionadas.
O fato de que São Paulo se refere uma só vez a Maria, afirmando em, Gl 4, 4 que o Filho de Deus
“nasceu de uma Mulher”, deve-se ao caráter esporádico das suas cartas: ao escrever, o Apostolo visava
apenas a esclarecer problemas ou solucionar casos recém-originados entre os fiéis. Ora é de crer a
Virgem Santíssima, provavelmente ainda viva quando São Paulo escrevia, não devia causar problemas
aos primeiros cristãos. — Ademais a expressão “Mulher”, que São Paulo (seguindo o modo de falar de
Jesus em Jo) aplica a Maria, e, no conjunto da Revelação cristã, grandiosa e alvissareira, como está atrás
notado.
Em 1Tm 2, 15 o Apóstolo diz que a mulher, primeiramente seduzida pelo demônio no paraíso, se
salva pela teknogonía (diá tes teknogonías). Esta palavra grega, composta como é, torna-se suscetível
de dupla interpretação: “geração do filho ou de filhos”. No primeiro caso (tornado bem provável pelo
emprego do artigo definido antes do substantivo grego), Paulo aludiria ao parto de Maria (geração do
Filho por excelência) e apresentaria a Mãe de Cristo em perspectiva grandiosa, como iniciadora da
reabilitação da mulher.
PERGUNTAS
1) Por que Maria aparece tão pouco no Evangelho?
2) Como entender o apelativo “Mulher” em Jo 2, 4; 19, 26?
3) Jesus foi indelicado com sua Mãe em Lc 2, 49, Mt 12, 46-49; Lc 11, 27s?
4) Que há de interessante em 1Tm 2, 15? Desenvolva a sua resposta.
PARTE II: HISTÓRIA DA MARIOLOGIA
MÓDULO 9: DO SÉCULO I AO SÉCULO II
Depois de examinar a fundamentação bíblica da Mariologia, passamos a estudar o desdobramento dos
dados escriturísticos através dos séculos. Como foram os cristãos entendendo e aprofundando os títulos
encontrados no Evangelho: “cheia de graça” (Lc 1, 28 “serva do Senhor” (Lc 1, 38), “mãe do meu
Senhor” (Lc 1, 43), “mãe de Jesus” (2, 7). “bem-aventurada por ter acreditado” (Lc 1, 45), “a mais
bendita das mulheres” (Lc 1, 42). “aquela que todas as gerações haveriam de chamar bem-aventurada”
(Lc 1, 48)...?
Deve-se, logo de início, dizer que a fé no mistério de Maria se desenvolveu em função de Cristo ou
como afirmação do mistério de Cristo em seus matizes. Sirva de exemplo o Símbolo de Fé dito
“Apostólico”; menciona a fé em Jesus Cristo, Deus feito homem, e observa: “foi concebido do Espírito
Santo, nasceu de Maria Virgem”.
Dividiremos o percurso histórico em quatro períodos: 1) Do século I ao II; 2) Do século II ao V; 3)
Do século VI ao XVIII; do século XVIII aos nossos dias.
Lição 1: A Época Patrística
A época patrística é a dos Padres da Igreja, teólogos que contribuíram para a formação correta das
verdades da fé contidas de maneira simples e vivencial nos escritos bíblicos. Tal época vai até S.
Gregório Magno († 604) no Ocidente, e S. João Damasceno († 749) no Ocidente.
1.1. Os dois primeiros séculos
Os documentos dessa fase histórica são relativamente poucos; voltam-se principalmente para a defesa
da fé, sem deixar de conter traços de teologia especulativa e espiritualidade.
1.1.1. S. Inácio de Antioquia († 107)
Sucessor de S. Pedro na cátedra de Antioquia,, foi condenado à morte por ser cristão. Levado, como
réu, para Roma, escreveu algumas cartas, onde se encontra uma passagem notável relativa à maternidade
virginal de Maria:
“Nosso Deus, Jesus Cristo, tomou carne no seio de Maria segundo o plano de Deus...”
Permaneceu oculta ao príncipe deste mundo;75 a virgindade de Maria e seu parto, como igualmente a
morte do Senhor: três mistérios de grande alcance, que se processaram no silêncio de deus (aos Efésios
n.º 18 e 19).
Embora S. Inácio combata os docetas, que negavam a realidade plenamente humana do corpo de
Jesus, não deixou de afirmar o modo singular como essa humanidade foi concebida e nasceu: a Mãe de
Jesus foi Virgem. — O santo julga que este mistério ficou oculto ao demônio, como haviam de pensar
outros escritores antigos. Por falta de dados mais precisos referentes ao demônio, não nos é possível
aprofundar a afirmação de Inácio sobre esse “silêncio de Deus”.
Na carta aos Tralianos 9, S. Inácio fala “de Jesus, da descendência de Davi, filho de Maria, o
qual nasceu de fato, comeu e bebeu”. — Neste texto o autor tem em vista enfatizar a autêntica
humanidade de Jesus, descendente de Davi e filho de Maria.
Faz questão de distinguir dos mitos pagãos o parto virginal de Maria. Com efeito, Tifão lhe diz
que, segundo os gregos, Perseu nasceu de Danae virgem, “pois desceu sobre esta, sob forma de chuva de
ouro, aquele que é chamado Júpiter”; Justino rejeita qualquer afinidade deste mito com o nascimento
virginal de Jesus 76
S. Justino designa Maria como “a Virgem” quatorze vezes. E estabelece um paralelismo entre
Eva, aquela que deu crédito ao anjo mau, e Maria, que acreditou no anjo Gabriel, resgatado o papel de
Eva:
75
Cf. Jo 12, 31; 14, 30)
76
Cf. Diálogo com Trifão 67, 1-2
“Fez-se homem, por meio da Virgem, a fim de que o caminho que deu origem à desobediência
instigada pela serpente, fosse também o caminho que destruiu a desobediência. Eva era virgem e
incorrupta; concebendo a palavra da serpente, gerou a desobediência e a morte. A Virgem Maria, porém,
concebeu fé e alegria quando o anjo Gabriel lhe anunciou a boa nova de que o Espírito do Senhor viria
sobre ela, a Força do Altíssimo a cobriria com sua sombra, de modo que o Santo que dela nasceria, seria
o Filho de Deus. Então respondeu ela: “Faça-se em mim, segundo a tua palavra”. Da Virgem, portanto,
nasceu Jesus, de quem falam tantas Escrituras... aquele por quem Deus destrói a serpente” 77
É um texto apócrifo redigido um grego no fim do século II, que refere o modo de pensar dos
cristãos da época. A antigüidade do texto lhe merece autoridade, embora esteja redigido de maneira
fantasiosa, como ocorre freqüentemente na literatura apócrifa. Eis os principais traços desse livro
referentes a Maria SS.:
Nasce de um casal estéril — Joaquim e Ana. Desta forma o nascimento de Maria é arrolado na
lista das natividades extraordinárias, que exprimem a benevolência de Deus em relação ao seu povo; é
Ele quem suscita os personagens importantes na história da salvação: Isaque (Gn 21, 1-7), José filho de
Jacó (Gn 30, 22s), Sansão (Jz 13, 1-25), Samuel (1Sm 1, 1-28), João Batista (Lc 1, 5-25), Jesus (Lc 1,
26-38).
Maria é levada ao Templo com três anos de idade, e lá permanece consagrada ao Senhor.
Quando completou doze anos, os sacerdotes julgaram oportuno dar Maria em casamento.
Convocaram então os viúvos da sociedade, devendo cada um levar uma vara. José, carpinteiro, que era
viúvo e já tinha filhos, compareceu; na assembléia, em presença do sacerdote do Templo, uma pomba
pousou sobre a cabeça de José — o que foi tido pelo sacerdote como sinal de Deus para que tomasse
Maria por esposa; José fez ver que já tinha idade e filhos... Todavia rendeu-se à ordem do alto e assumiu
sua esposa78. Este traço, cuja historicidade não discutimos aqui, revela a consciência que as primeiras
gerações cristãs tinham, de que os irmãos de Jesus não eram filhos de Maria: o texto dá a saber que esses
“irmãos” eram filhos de José, viúvo antes de se casar com Maria. Tal explicação é aceitável. A tradição
posterior propôs outra explicação, que vai exposta no Módulo 14 deste Curso.
77
Diálogo 100, 4-5
78
1 Eis o texto do apócrifo em foco:
“O Sumo Sacerdote revestiu-se do manto de doze campainhas, entrou no Santo dos Santos e rezou por Maria.
Eis que apareceu um anjo do Senhor e disse: ‘Zacarias, Zacarias, sai e convoca os viúvos dentre o povo, devendo
cada um trazer uma vara. Aquele a quem o Senhor mostrar um sinal, deste ela será a mulher!”
Os mensageiros percorrem todo o território da Judéia. Ressoou a trombeta de Senhor, e todos acorreram.
José deixou o seu machado e saiu também para unir-se a eles... O sacerdote recebeu deles as varas, entrou no
Templo e rezou. Terminada a oração, recolheu de novo as varas, saiu e entregou uma cada um. Nelas não havia sinal algum.
José recebeu a última vara. E eis que uma pomba saiu da vara e pousou sobre a cabeça de José.
Disse o sacerdote: ‘José, coube a ti receber a virgem do Senhor para Tomá-la sob tua guarda’.
José recusou dizendo: ‘tenho filhos e sou velho, ao passo que ela é jovem. Receio tornar-me objeto de zombaria
para os filhos de Israel’.
Disse o sacerdote: ‘José, conserva o temor do Senhor teu Deus e lembra-te de tudo o que Deus fez a Datã, Abiron e
Coré, como a terra se abriu e foram tragados todos por causa de sua rebelião. Obedece agora, José, para que não aconteça o
mesmo em tua casa’.
José, atemorizado, tomou-a sob a sua guarda e disse-lhe: ‘Maria, eu te recebi do Templo do Senhor. Deixo-te agora
em minha casa, pois vou continuar minhas construções. Voltarei a ti. O Senhor te guardará” (protoevangelho de Tiago, cc
VIII, 3 a IX, 13).
1 Ordinário ou julgamento de Deus era a prova à qual antigamente eram submetidas as pessoas suspeitas de crimes: caso
superassem ilesas a agressão do fogo, dos cacos ou dos pregos... pelos quais passavam, eram consideradas inocentes; em caso
contrário, eram tidas como culpadas.
O Protoevangelho de Tiago, continuando o enredo, narra que Maria concebeu virginalmente,
como se lê em Lc 1, 26-38. Isto suscita surpresa em José e nos sacerdotes, mas o Senhor Deus. Mediante
o ordinário,79 dissipou qualquer dúvida sobre a inocência de Maria.
Chegando o momento de dar ã luz, Maria e José estão em viagem para Belém a fim de cumprir a
ordem de recenseamento. Sentido dores, Maria é recolhida numa gruta, enquanto José se põe à procura
de parteira hebréia. Tendo-a encontrado, ambos se dirigem à gruta e a parteira verifica que Maria deu à
luz sem perda da sua virgindade; ela o conta a Salomé incrédula, que acaba tomando consciência da
realidade do fato. — Eis outro traço importante do apócrifo; em termos imaginosos, transmite uma
verdade que já estava nas convicções dos primeiros cristãos: Maria foi Virgem no parto, como o foi
antes do parto e depois do parto.
Do relato do Protoevangelho de Tiago, a Igreja assumiu mis duas outras notícias, estas de menor
porte: os nomes dos pais de Maria SS. Celebrados aos 26 de Julho na Liturgia, e a Apresentação de
Maria no Templo (condizente com o costume judeu de educar as meninas no Templo), festejada a 21 de
novembro.
Vê-se que tal apócrifo é importantes pelas linhas teológicas que o inspiram e pela sua
antigüidade, apesar do estilo evidentemente fantasioso em que é redigido. Com o tempo o imaginoso
deixaria de ter voga, ficando na tradição cristã apenas os traços doutrinários.
“Da mesma forma que aquela (Eva) foi seduzida para desobedecer a Deus, esta (Maria) se
deixou persuadir a obedecer a Deus para ser ela, a Virgem Maria, a advogada de Eva. Assim o gênero
humano, submetido à morte por uma virgem,80 foi dela libertado por uma Virgem, tornando-se
contrabalançada a desobediência de uma virgem pela obediência da outra”
(Contra as heresias V 19).
“Por conseguinte,... encontrou-se Maria, Virgem obediente... Eva, ainda virgem, fez-se
desobediente e tornou-se para si e para todo o Gênero causa de morte. Maria, Virgem obediente, tornou-
se para si e para todo o gênero humano causa de Salvação... A partir de Maria até Eva há retomada do
mesmo circuito (= a recirculação). Pois não existe outro modo de desatar o nó se não fazer que os fios da
corda que deu o nó, percorram o sentido contrário...
79
Cf. Nm 5, 11-31 — Ordinário ou julgamento de Deus era a prova à qual antigamente eram submetidas as pessoas suspeitas
de crimes: caso superassem ilesas a agressão do fogo, dos cacos ou dos pregos... pelos quais passavam, eram consideradas
inocentes; em caso contrário, eram tidas como culpadas.
80
Virgem, porque só depois do pecado é que o texto sagrado narra que ela teve relações com Adão. Como vê, S. Ireneu se
ateve estritamente à letra do texto bíblico. N.D.R.
Eis por que Lucas inicia a genealogia de Jesus começado pelo Senhor; ele sobe até Adão (Cf. Lc
3, 23-38), evidenciando que o verdadeiro movimento da geração não procede dos antepassados até
Cristo, mas vai de cristo a eles segundo... o Evangelho da vida. Assim é que a desobediência de Eva foi
resgatada pela obediência de Maria; com efeito, o nó que a Virgem Eva atou com a incredulidade, Maria
o desatou com fé” (contra as Heresias 3, 22).
Como se Vê, o conceito de “recirculação” supõe a imagem de um nó: o pecado dos primeiros
pais é comparado a um nó no relacionamento entre Deus e o homem; para desatar este nó, não havia
meio senão percorrer em sentido inverso o caminho que levou ao nó. Foi o que Cristo fez, assumindo
consigo Maria na qualidade de nova Eva. O título de “Advogada de Eva” retorna na seguinte passagem
de Ireneu:
“Foi por meio de uma Virgem desobediente que o homem foi golpeado, caiu e morreu; da mesma
forma é pela Virgem, obediente à Palavra de Deus, que o homem... encontrou de novo a vida... Era justo
e necessário que Adão fosse restaurado em Cristo, a fim de que o mortal fosse absorvido e tragado pela
imortalidade e Eva fosse reconstruída em Maria; deste modo uma Virgem, feita advogada de uma
Virgem, cancelou e anulou a desobediência de uma virgem com a sua obediência de virgem”.
(Demonstração da Pregação Apostólica n.º 33).
Pode-se dizer, conforme S. Ireneu, que Eva e Maria não são apenas duas figuras paralelas
justapostas; elas estão unidas entre si por um terceiro elemento, que é o plano de Deus. Eva era um
esboço antropológico da mulher; Maria foi a restauração e o aperfeiçoamento do projeto que havia
falido.
PERGUNTAS
1) Diga o que S. Justino afirma de importante para a Mariologia. Que significa i título “Nova
Eva?
2) Que valor tem o Protoevangelho de Tiago? Explique o por quê.
3) Que entende S. Ireneu por recapitular e recirculação? Como Maria é Advogada de Eva?
Muito importante nessa época é o surto do título Theotókos, Mãe de Deus, na literatura cristã
que possuímos. Origines († 250) é a primeira testemunha desta designação; tê-la-á explanado no texto
grego do seu comentário sobre a epístola aos Romanos, como refere o historiador cristão Sócrates (†
450). Também num papiro do Egito datado do século III foi encontrada uma oração dirigida à
Theotókos, oração até nossos dias existente na piedade cristã: “A vossa proteção recorremos. Santa Mãe
de Deus (Theotókos)”.
Origines professa ainda outro traço significativo: Maria é o modelo do discípulo perfeito. É
preciso imitar Maria para que nasça em nós o Cristo. Desta maneira Orígenes enfatiza o nascimento do
Verbo ou da Palavra de Deus nos corações dos fiéis.
Todavia Orígenes incide em dois erros: 1) julga que a espada predita por Simeão em Lc 2, 35 é a
espada da dúvida que deve ter afetado Maria no Calvário; e justifica sua interpretação dizendo que, se
Maria não tivesse pecado, não teria sido redimida por Cristo (coloca-se assim a questão que durante
séculos dificultou a admissão da Imaculada Conceição por parte dos teólogos, como se verá a seguir); 81
Orígenes parece não ter aceito a virgindade de Maria no parto, embora afirme que não teve outros filhos
além de Jesus.82
No fim do século III Maria SS. Teria aparecido a S. Gregório dito “o Taumaturgo” († 270),
juntamente com S. João Evangelista. É S. Gregório de Nissa († 394) quem o refere (Patrologia grega,
ed. Migne, vol. 46, 910s). temos aí a primeira notícia de aparição mariana na literatura cristã.
Lição 2: Os Séculos IV e V
No século IV, os grandes doutores da fé se detiveram sobre Maria SS., realçando um ou outro
aspecto da mesma.
S Gregório de Nissa († 394) defende a virgindade de Maria no parto, ilustrando-a com a imagem da
sarça ardente, de que fala Ex 3, 2: “Moisés viu: a sarça ardia em fogo, mas não se consumia”; assim
Maria terá dado à luz sem perder a virgindade (sermão sobre o Natal de cristo PG 46, 1136). O mesmo
Gregório de Nissa julga que Maria fizera voto de virgindade, pois ficou perflexa ao areceber o anúncio
do anjo, segundo Lc 1, 34 (ib. 1141).
81
Cf. In Lucan 17, 7.2
82
Cf. In Mt 10, 17
S. João Crisóstomo († 407) afirmou a virgindade perpétua de Maria SS., não porém a sua isenção
do pecado; julga que em Caná, ao pedir vinho para os convivas, Maria terá procedido sob o impulso da
vaidade (In lohannem, homilia 21, 2).83
S. Epifânio († 402) foi Bispo de Salamina (Chipre). Além dos título de Theotókos e Sempre
Virgem (aeiparthénos) professou os de “Mãe dos vivos” (Nova Eva) e “causa de vida”; 84 S. Epifânio
interessou-se também pelo fim de vida terrestre de Maria: morreu ou não? Foi sepultada? João a terá
levado para Éfeso? São perguntas já levantadas pela tradição anterior, mas deixadas sem resposta; 85 O
assunto voltará à baila nos Módulos 19 e 20 deste Curso, dedicados à Assunção corporal de Maria.
Ainda merece referência i diácono sírio S. Efrém († 373). Em poesias e hinos propõe os louvores
de Maria, realçando a sua isenção de pecado. Assim diz a cristo:
“Somente Vós e Vossa Mãe sois mais belos do que qualquer outro ser. Em ti, Senhor, não há
mancha alguma. Na tua Mãe nada de feio existe” (Garmina Nisibena 27, 8). Satanás “feriu Eva no
calcanhar”, mas o pé de Maria o rechaçou (in Diatessaron X 13).
Assim S Ambrósio († 397) pergunta: “que há de mais excelente do que a Mãe de Deus?”. É
apresentada às virgens como modelo de vida (de Virginibus 2.2, 7’ In Lucam2, 26).
S. Agostinho († 430) observa: “se cristo é a cabeça da Igreja, Maria é o membro mais santo, a
mais eminente da Igreja” (sermão 25, 7). Afirma o primado da espiritualidade quando diz que Maria
concebeu o Filho ou a Palavra de Deus “primeiramente em espírito e só depois na carne (prius mente
concepit quam ventre)”.
Após haver afirmado a Divindade do filho e do Espírito Santo nos Concílios de Nicéia I (325) e
Constantinopla I (381) respectivamente, os teólogos se voltaram para o mistério da Encarnação do Filho:
como pode Jesus Cristo ser verdadeiro Deus e verdadeiro homem no sentido pleno destas duas
expressões?
Já a fórmula Theotókos (M de Deus), usual entre os cristãos desde o século III, insinuava a
resposta: Maria é a Mãe de Deus Filho, que, sem perder coisa alguma da Divindade, assume em seu seio
83
S. Tomás de arquino não hesita em dizer que o grande mestre se excedeu ao afirmar tal coisa; Cf Suma Teológica III qu.
27, art. 4, ad 3.
84
Cf. Panarion 79, 18s.
85
Cf. Panarion 78,11.
86
Cf.De Natua et gratia 36,47; Opus Imperfectum contra lulianum IV, 122).
87
Nos Módulos 15 e 16 deste Curso, ao tratarmos explicitamente da Maternidade Divina, desceremos às devidas explicações
da questão. Por ora mantemo-nos no plano histórico, relatando o desenrolar dos acontecimentos.
a natureza humana ou toda a realidade de um homem, sendo, porém, que o eu dessa humanidade não era
eu humano justaposto ao eu divino, mas era o próprio Eu Divino do Filho.88
Todavia a escola de Antioquia (Síria), recorrendo à filosofia aristotélica, afirmava que cada
natureza humana concreta tem seu eu humano próprio. Por conseguinte, apregoava dois eu (o divino)
ou duas pessoas em Jesus Cristo. Estes dois eu estariam unidos entre si por benevolência e amizade
apenas. Daí não se pode dizer que Maria é Mãe da Pessoa Divina unida à natureza humana, mas Maria
seria a Mãe do homem Jesus a Mãe de Cristo, não, porém, a Mãe de Deus (pois Deus não pode nascer de
uma mulher).
Toda Mãe gera uma pessoa. Ora em Jesus havia uma só pessoa — a do Filho de Deus —, que no
seio da Virgem assumiu a natureza humana, fazendo-a existir pela Pessoa do Filho de Deus.
Conseqüentemente Maria pode e deve ser dita “Mãe de Deus”, não na medida em que Jesus é Deus (pois
Deus em sua eternidade não pode ter mãe), mas na medida em que Deus, no tempo oportuno, quis fazer-
se homem. Em Jesus Cristo há um só eu (divino), responsável por tudo o que Jesus fez de divino e de
humano. Por isto pode-se dizer: Deus sofreu por nós, homens,... não na medida em que Jesus é Deus,
mas na medida em que o Filho de Deus assumiu uma verdadeira humanidade e nela quis crescer,
trabalhar, sofrer e morrer.
Já que as discussões prosseguiram entre os teólogos mesmo após o Concílio de Éfeso, novo
Concílio ecumênico se reuniu em 451 na cidade de Calcedônia e reafirmou a doutrina de Éfeso,
reforçado o título Theotókos. Eis um trecho de suas definições:
“O Filho que, antes dos séculos, foi gerado pelo Pai segundo a Divindade, nos últimos tempos
Ele mesmo, por causa de nós e da salvação, nasceu de Maria Virgem, Mãe de Deus segundo a natureza
humana” (Denzinger-Schonmetzer, Enquirídio n.º 301).
De então em diante a piedade mariana se desenvolveu mais aceleradamente. A arte sacra, que
sempre representou Maria com a criança nos braços, foi multiplicando as imagens da Santa Mãe de
Deus.
No século IV a vida ascética ou penitente de muitos círculos cristãos e de monges provocou uma
reação. Esta era devida, em parte, à exaltação da virgindade, que parecia implicar a rejeição do
casamento. Os arautos da réplica foram:
— Helvídio, leigo, que em Roma publicou no ano de 382 um opúsculo que impugnava a figura
de Maria SS., tida por muitos como modelo da vida una; a virgindade perpétua de Maria era atacada na
base de Mt 1, 18-25; Lc 2, 7; 8, 19-21. — S. Jerônimo, que na época morava em Roma, escreveu o livro
“Contra Helvídio”, em que defende, em termos que ficaram clássicos, a perpétua virgindade de Maria.
— Joviniano, poucos anos depois, retomou o ataque. Após levar uma vida ascética rigorosa,
entregou-se a uma conduta menos controlada e passou a afirmar o mesmo valor para a virgindade, a vida
conjugal e a viuvez, pois o Batismo é que faz o cristão; estariam equipados o jejum e os lautos
banquetes, desde que a pessoa comesse com ação de graças, — S. Jerônimo também reagiu contra
Joviniano (Adversus Jovenianum). O que levou um Sínodo Romano a condenar o herege em 390; S.
Ambrósio em Milão confirmou a sentença de Roma; viu-se ainda obrigado a defender por escrito a vida
monástica, pois dois monges deixaram o mosteiro em Milão e foram propagar as idéias de Joviniano.
— Vigilâncio era um sacerdote do Sul da Gália, que em 406 se pôs a combinar o culto dos
santos e às relíquias, assim como o ideal da vida monástica. Perguntava: como se poderá atender às
necessidades do mundo e da humanidade abatida pelo pecado ou como converter os pecadores para a
virtude, se os bons cristãos se retirarem para os mosteiros? Em conseqüência julgava ele que o retirar-se
para o deserto era deserção e não combate. — S. Jerônimo lhe respondeu na obra Adversus
Vigilantium.
Todas estas invectivas contra a vida ascética feriram direta ou indiretamente a piedade para com
Maria SS. — Todavia não tiveram grande significado na tradição da Igreja. A veneração à Santa Mãe de
Deus já estava profundamente arraigada na consciência cristã. Nos séculos subseqüentes seria cultivada
na base de novos subsídios teológicos, como possamos a ver no Módulo próximo.
PERGUNTAS
89
A Igreja Mãe de Deus.
Destacou-se então S. Bernardo († 1153), que proferiu diversos sermões sobre os mistérios de
Cristo e a pessoa de Maria, especialmente a Anunciação e a Assunção. Maria aparece aí como nossa
Medianeira junto ao Mediador. Entre as novas Ordens Religiosas algumas se colocaram sob o patrocínio
de Maria SS.: a de Nossa Senhora do Monte Carmelo e a dos Servos de Maria.
A noção da Maternidade Divina tornou-se mais e mais explícita tanto na arte sacra (as catedrais e
as Igrejas medievais representam muitas vezes a Virgem Mãe em suas pinturas e esculturas) como na
Teologia: o estudo aprofundado da pessoa e da obra de Cristo levou a enfatizar o papel da Theotókos
(Mãe de Deus), levando-se em conta uma observação já feita por S. Agostinho: “Maria concebeu
primeiramente em espírito, por sua doação incondicional a Deus, e depois em seu corpo (Prius mente
concepit quam corpore)”.
Na Idade Média ainda, estiveram abertas as questões relativas à Assunção Corporal e à
Imaculada Conceição de Maria SS.. Aquela se foi resolvendo com certa facilidade no sentido da
afirmação do privilégio mariano, que os orientais também professavam com unanimidade. As dúvidas
sobre a Imaculada Conceição foram dissipadas, ao menos no plano teórico, quando o Bem-aventurado
João Duns Scotus (†1308) propôs a fórmula decisiva: Maria, embora tenha nascido sem o pecado
original, não deixou de ser redimida por Cristo, pois tal privilégio lhe foi concedido por aplicação prévia
dos méritos de Cristo. A história dos dogmas da Assunção e da Imaculada Conceição será estudada
respectivamente nos Módulos 17, 18, 19 e 20 deste Curso.
No século XIV a arte sacra apresenta nova configuração de Maria SS.: em vez de a considerar
apenas como a Mãe que traz nos braços o Menino Jesus, começaram a aparecer Imagens da Virgem Mãe
Dolorosa, colocada ao pé da cruz donde pendia o Filho; esta representação inspirou Michelangelo, que
esculpiu a Pietà ou a mãe que traz nos braços o Filho morto. Esta modalidade de devoção mariana deve-
se em grande parte, aos cruzados, que da Terra Santa levaram para a Europa reminiscências muito vivas
da Paixão e, em geral, da vida humana do Senhor Jesus.
Durante a idade Média também se foi configurando a devoção do Rosário, das qual tratará o
Módulo 29 deste Curso. Várias modalidades foram experimentadas de combinar oração vocal e oração
mental, até se chegar ao tipo do Rosário hoje vigente pela Bula Consueverunt Romani Pontifíces90 do
Papa Pio V (1569).
Ao mesmo tempo que no Ocidente, também no Oriente (separado de Roma desde 1054) a
piedade mariana foi-se desenvolvendo: a liturgia bizantina venera muito enfaticamente a Santa Mãe de
Deus; somente em Constantinopla (Bizâncio) foram construídas 154 Igrejas em honra de Maria SS. — A
devoção dos orientais a Maria tendia e tende a pôr em relevo os aspectos transcendentais ou
privilegiados da Virgem SS., ao passo que a ocidental se deteve em focalizar o semblante humano de
Maria (sem dúvida, transparente à graça divina), Com outras palavras: os orientais consideram
principalmente o papel de Maria na obra de salvação realizada por Cristo. Um escritor oriental anônimo
a definiu como “Mãe do mistério”. S. João Damasceno († 749) Já afirmava: “O nome da Theotókos
(Mãe de Deus) contém toda a economia divina a respeito deste mundo” (Patrologia Grega, ed. Migne,
vol. 94, coluna 1029)91
90
Os Pontífices Romanos costumaram.
91
Economia divina é a dispensação da graça efetuada pelo Senhor Deus em favor do homem e do mundo.
Lutero, por exemplo, não negou a virgindade perpétua de Maria, mas julgava que ninguém está
obrigado a aceitá-la como artigo de fé. Não hesitava em dizer que a expressão “irmãos de Jesus” deve
ser entendida no sentido semita; este atribuía a irmãos o significado de “parente, familiar”; para a
significação ampla da palavra grega adelphoi na tradição dos LXX.92
Lutero também admitia a imaculada conceição de Maria, devida à prévia aplicação dos méritos
de Cristo. Quanto à Assunção corporal, o reformador não ousava professá-la explicitamente, mas não
excluía que o corpo de Maria tenha sido levado pelos anjos dos céus. Deixou um comentário de
Magnificat, em que se lê: “Ó bem-aventurada Mãe, Virgem digníssima, recorda-te de nós, e obtém-nos
que também a nós o Senhor faça essas grandes coisas”. No calendário luterano ficaram três festas
marianas, que têm base no Novo Testamento e estão muito ligadas a Cristo: a Anunciação ou festa da
Encanação, a Visitação de Maria a Isabel ou festa da vinda de Cristo, e a Purificação de Maria aos
quarenta dias após o parto, também tida como festa da Apresentação de Jesus no Templo.
Calvino foi mais radical. Suprimiu as festas marianas. Aceita o título “Mãe de Deus” definido
pelo Concílio de Éfeso em 431, mas prefere a expressão “Mãe de Cristo” Sustenta a perpétua virgindade
de Maria, afirmando que “os irmãos de Jesus” citados em Mt 13, 55 não são filhos de Maria, mas
parentes do Senhor; professar o contrário, segundo Calvino, significa “ignorância”, “louca sutileza” e
“abuso da S. Escritura”.
Zvínglio, o reformador em Zurique, conservou três festas marianas e a recitação da Ave Maria
durante o culto sagrado.
De modo geral, a Reforma protestante se insurgiu contra possíveis exageros da devoção popular
católica.
O Concílio de Trento (1545-1563), que visou a responder ao protestantismo, houve por bem
afirmar a legitimidade do culto a Maria (Denzinger-Schonmetzer, Enquerídio n.º 1821-1825) e
declarou não ter a intenção de incluir a Virgem SS. No rol das criaturas afetadas pelo pecado dos
primeiros pais (ib. 1516).
2.3. A Bibliografia Mariana
Nos séculos XVI — XVIII registrou-se uma série de obras de espiritualidade que se interessavam
pela piedade mariana. Apareceram comentários sobre a Ave Maria (como o de Girolamo Savonarola. O
P. † 1498). Catecismo (como o de S. Pedro Canísio e o Catecismo Romano). Obras de devoção (entre as
quais a “Mística Cidade de Deus” de Maria de Agreda † 1665, que durante certo tempo servia para
suprir o silêncio dos Evangelhos sobre o currículo de vida de Maria).
O teólogo Francisco Suarez S. J. († 1617) foi o primeiro a elaborar um tratado propriamente dito
de Mariologia. Com efeito, em 1584-85 redigiu Quaestiones de Beata Maria Virgine quarttuor et
viginti in Summa contractae (Vinte quatro questões compreendidas numa Súmula sobre a Bem-
aventurada Virgem Maria). Esta Súmula foi em 1592 inserida na obra Mysteria Vitae Christi. Suarez
estava convicto de que devia superar o costume escolástico de reservar a Maria um espaço pequeno, não
condizente com a dignidade e a função da Virgem SS. Na obra da salvação humana; conseqüentemente
compôs “um tratado inteiro e denso a respeito da Bem-aventurada Virgem”. Tal obra, assaz clara e
sólida, exerceu grande influxo sobre os pósteros, de modo que Suarez é considerado o fundador do
moderno tratado de Mariologia.
Todavia o nome de Mariologia foi forjado pelo teólogo siciliano Plácido Nigido, que publicou
em 1602 Summae Sacrae Mariologiae Pars Prima (Primeira Parte de uma Suma de Sagrada
Mariologia). Todavia a Mariologia ficou sendo parte integrante da Teologia, porque a reflexão sobre
Maria SS. é toda elaborada em vista de Jesus Cristo e da Maternidade Divina.
Outras obras de reflexão e de piedade foram escritas nos séculos XVI — XVIII, marcando
fortemente a Mariologia. Assim S. Pedro Canísio († 1597) deixou um tratado completo Sobre a Virgem
Maria, a incomparável Mãe de Deus. O fundador da Congregação do Oratório, o Pe. Pierre de Bérrulle
(† 1629) escreveu sobre Maria SS. em perspectiva teocêntrica, exaltando a dignidade da Mãe de Deus e
a ação do Espírito Santo na mesma. O discípulo de Bérrulle, o Pe. Jean Olier († 1657) desenvolveu o
pensamento do mestre, procurando penetrar na vida interior de Maria. S. Francisco de Sales († 1622) e o
bispo de Meaux (frança). Jacques Bénigne († 1704) escreveram páginas inesquecíveis sobre o amor da
92
Sabemos que os LXX ou versão alexandrina é a tradução grega dos livros do antigo Testamento realizada pelos judeus em
Alexandria (Egito) nos anos de 250 e 100 a. C..
Mãe de Deus. S. João Eudes († 1680) promoveu o culto litúrgico ao Sagrado Coração de Maria,
justificando-o nos seguintes termos:
“Desejamos honrar na Virgem Mãe de Jesus não apenas algum mistério ou algum feito,
como seriam o seu nascimento, a sua apresentação no templo, a Visitação a Isabel, a Purificação
segundo a Lei de Moisés;... não apenas alguma das suas prerrogativas, como a de ser Mãe de
Deus, Filha do Pai, Esposa do Espírito Santo, templo da Ss. Trindade, Rainha do céu e da
terra;... nem mesmo apenas a sua digníssima pessoa, mas desejamos honrar em Maria, antes do
mais e principalmente, a fonte e a origem da santidade e da dignidade de todos os seus mistérios,
de todos os seus atos, de todas as suas qualidades e da sua própria pessoa, isto é, o seu amor e a
sua caridade, pois, conforme todos os santos doutores, o amor e a caridade são a medida do
mérito e o princípio de toda a santidade”
No século XVIII destaca-se a obra clássica de S. Luís Maria Grignion de Monfort († 1716). Era
discípulo de Olier e deixou o Tratado da verdadeira devoção à SS. Virgem, cujos manuscritos foram
descobertos em 1842 e publicados em 1843; o Santo explana amplamente a devoção a Maria e propõe a
“escravidão do devoto a Maria”. Fundou duas Congregações Religiosas: a das Irmãs da Sabedoria
(destinadas a tratar dos enfermos e instruir as crianças) e a Companhia de Maria (para evangelizar os
pobres).
Não faltaram vozes críticas, que julgavam dever levantar-se contra exageros da piedade. Assim a
do autor católico A. Widenfeld († 1678) que publicou em latim “Advertências Salutares da Bem-
aventurada Virgem Maria aos seus devotos indiscretos”; é obra bem intencionada, mas inspirada por
forte intelectualismo, que ignora as exigências e necessidades da piedade popular. Também o Pe.
Ludevico Muratori († 1750) publicou em Paris no ano de 1714, sob pseudônimo, o livro De ingeniorum
moderatione in religions negotio (sobre a Moderação dos Engenhos em Assuntos Religiosos); voltava-
se contra abusos na piedade mariana, especialmente contra o “voto de sangue” praticado mas
freqüentemente na Espanha, e segundo o qual o fiel se comprometia a oferecer-se para defender a
Imaculada Conceição de Maria até o martírio ou o derramamento do sangue.
Merece ser assinalado, ainda no século XVIII, Santo Afonso Maria de Ligório († 1787).
Escreveu uma obra-prima para o tempo: “As glórias de Maria” (1750): fruto de dezesseis anos de
meditação e trabalho, é um comentário da Salve Rainha; quer justificar o recurso à intercessão da SS.
Virgem, apresentada como alguém que está muito presente a cada cristão e a toda a Igreja.
PERGUNTAS
1. Numerosas Congregações Religiosas foram fundadas nos últimos séculos sob a invocação e a
tutela da SS. Virgem. Enumeram-se cerca de 700 Congregações femininas oriundas nos séculos XIX e
XX portadoras de um título mariano (Imaculada Conceição, Assunção Gloriosa, Coração de Maria,
Nome de Maria, Rosário...): reconhecem em Maria a Mãe de Deus e dos homens, a Intercessora
qualificada, o modelo de santidade; procuram depreender da figura de Maria um determinado tipo de
espiritualidade. Assim
— o Pe. Guilherme José Chaminade († 1850) fundou o Instituto das Filhas de Maria (1816) e a
Sociedade de Maria (1817) ou dos Padres Marianistas. O fundador apregoava a aliança com Maria ou
a consagração a Maria para servir a Deus, conforme o seguinte programa:
“À imitação do discípulo predileto, também nós acolhemos Maria como precioso dom de
Deus. Animados pelo amor de Jesus a sua Mãe, nós nos consagramos a Ela a fim de que o
Espírito Santo, com o qual Ela cooperou com amor materno, nos forme segundo a perfeita
imagem do seu Filho. Travando aliança com Maria, desejamos assistir-lhe na sua missão de
formar na fé. Para o Cristo seu Primogênito, uma multidão de irmãos”
(Estatuto n.º 6)
— o Cardeal Charles Lavigerie, fundador da Sociedade dos Padres Brancos (1868) e das Irmãs
Brancas (1869), missionário (s)s na África, pôs as suas Congregações sob a proteção de Maria
Imaculada, Rainha da África, com a justificativa seguinte: “A Virgem Maria é o modelo perfeito de uma
vida espiritual apostólica. Levando uma existência semelhante à de todos, mas intimamente unida ao seu
Filho Jesus Cristo, Ela cooperou para a Salvação de todos os homens a título absolutamente singular.
Confiamo-lhe a nossa vida e o nosso apostolado” (Constituições n.º 24);
— a Madre Maria Oliva Bonaldo fundou em 1940 o instituto das Filhas da Igreja, que
procuraram “trabalhar pela edificação da Igreja segundo o exemplo de Maria e em união com Ela, Mãe
da Igreja”. As Irmãs procuram viver na Igreja “em união com Maria, Mãe e Imagem da Igreja; como
Maria, à disposição exclusiva de Cristo e da Igreja; como Maria, na escuta e meditação da Palavra de
Deus, adoradoras em espírito e verdade para atrair sobre a Igreja o fogo do Espírito; como Maria,
entregues à vontade salvífica do Pai, na fé, em vista da edificação do Corpo de Cristo”. (Constituições
n.º 7).
2. Contam-se também numerosas aparições nos dois último séculos, das quais algumas se
tornaram famosas com a tácita aprovação da Igreja; assim:
— a de Pontmain, em 17/1/18/71 na França ocupada por tropas prussianas. Terá sido vista nos
céus uma inscrição, que dizia: “Ânimo, filhos meus, rezai, Meu Filho se deixou comover. Em breve Deus
vos atenderá” (Ver R. Laurentin, Pontmain, Lavai 1971, 3 vols.);
— a de Fátima: após algumas aparições de um anjo em 1916, houve em 1917 seis aparições da
Virgem, no dia 13 dos meses de maio a outubro (com exceção de agosto, quando se deu no dia 19). A
aparição final terá sido caracterizada pelo milagre do sol, que terá impressionado 70.000 pessoas. Ver
Módulo 26 deste Curso;
— a de Banneux (Bélgica) : de 15/1 a 2/3/1933, Mariette Beco, menina pobre, terá visto oito
vezes Nossa Senhora, que se apresentou como “a Virgem dos Pobres”. Mons. Kerkhofs, Bispo de
Liège, reconheceu essas aparições em 22/8/1940 com as palavras seguintes: “Cremos, em consciência,
poder e dever reconhecer sem reservas... a autenticidade das oito aparições da Virgem SS. a Mariette
Beco”.
Dom B. Billet contou 232 casos de aparições marianas entre 1930 e 1975. A grande maioria não
foi julgada pela Igreja, sendo que algumas foram explicitamente rejeitadas; ver B. Billet, Vraies et
fausses apparitions, Paris 1973. Em Nevada (U.S.A.), por exemplo, a vidente e seus seguidores
deixaram a Igreja Católica, por não ter sido abonados os fenômenos alegados; em El Palmar de Troya,
uma parte da comunidade reunida em torno de uma pretensa aparição chegou ao ponto de obter de um
bispo vietnamita, já idoso e mal informado, a ordenação de Bispo e de um antipapa (19755). Em
Garabandal (Espanha) as Comissões Episcopais receberam dos videntes uma retratação, mas, apear
disto, há quem creia na autenticidade dos fenômenos lá ocorridos em 1963. É de notar ainda que, após as
aparições a Bernadette (de 11/2 a 16/7/1858), cinqüenta videntes em Lourdes disseram que continuavam
a ver Nossa Senhora... Estes fatos justificam a cautela da Igreja diante de propaladas aparições. No
Brasil de nossos dias são numerosos os casos similares, a tal ponto que é justificada a reserva das
pessoas prudentes. Em última análise, a salvação dos fiéis não depende de aparições; estas, quando
genuínas, não acrescentam nova mensagem ao Evangelho, mas exortam à oração e à penitência.
Não falamos de Medjugorje, cuja história é controvertida, embora os frutos espirituais sejam
numerosos e positivos.
93
Cf. J. Stern. La Salette, Documents I — Paris 1980.
quando fala ex cathedra de assuntos de fé e de moral, definição proferida pelo Concílio do Vaticano I
de 1870.
Em 1950 Pio XII definiu a Assunção Corporal de Maria SS. aos céus, sem dirimir a questão da
morte da Virgem SS.. Maria foi assim proposta como modelo e referencial da Igreja; é para a glória de
Maria Ss. que tende toda a Igreja.
É certo que as duas definições não foram algo de improvisado na Igreja, mas não eram mais do
que a ressonância oficial e definitiva da fé do povo de Deus professada desde remotos séculos. Ao
definir as duas verdades marianas, os Sumos Pontífices tiveram em mira não somente atender a
solicitações de Bispo e fiéis, mas também reafirmar a fé católica. Com efeito.
b) no século XX a segunda guerra mundial (1939-45) conculcou a pessoa humana nos campos de
concentração, nos genocídios, na depravação moral... Daí a conveniência de se afirmar solenemente a
dignidade e o destino transcendental do corpo humano proclamando-se a glorificação do corpo de Maria
SS. tabernáculo da Divindade. Tal razão teológica teve seu peso na definição da Assunção Corporal de
Maria SS., que já era cultuada fervorosamente pelos fiéis católicos. Por ocasião da definição do dogma,
Pio XIII exprimiu a esperança “de que todos aqueles que meditarão sobre os gloriosos exemplos de
Maria sejam persuadidos sempre mais do valor da vida humana, se é inteiramente consagrada ao
cumprimento da vontade do Pai celeste e ao bem dos outros. Enquanto o materialismo e a corrupção dos
costumes, dele derivada, ameaçam sufocar todas as virtudes e destrocar a vida humana, suscitando
guerras, seja colocado ante os olhos de todos de modo muito claro, e excelso termo ao qual os corpos e
as almas são destinados. Em suma, possa a fé na Assunção Corporal de Maria aos céus tornar mais firme
e atuante a fé em nossa ressurreição:. Ver a propósito destes dois dogmas os Módulos 17-20 deste Curso
É de notar que a teologia relativa a Maria SS. foi-se renovando e enriquecendo nos dois últimos
séculos.
Na Inglaterra. John Henry Newman (1801-90). Feito Cardeal da S. Igreja depois de convertido
a partir do anglicanismo, propôs a consideração de Maria sob a luz dos Padres da Igreja dos primeiros
séculos; daí a ênfase dada aos títulos de Theotókos, Nova Eva, Mãe dos viventes... (destaca-se a
propósito uma carta escrita ao Ver. E. B. Pusey, anglicano).
Várias obras, de mais de um volume, foram sendo publicadas:
M. J. Scheeben († 1888) escreveu uma Mariologia, inserida na Cristologia como parte desta e
inspirada pelos demais tradados teológicos.
J. B. Terrien em 1900 editou “A Mãe de Deus e dos homens” em quatro volumes. E. Campana
é o autor de “Maria no dogma católico” (1927) e “Maria no culto católico” (2 vols. 1933). G. M.
Roschini publicou em quatro volumes “Maria Santíssima na história da salvação” (1969).
Seja registrada outrossim a Fundação da Legião de Maria em 1921, por Frank Duff (†1980),
destinada ao apostolado e muito rica em frutos espirituais. É organizada segundo o modelo da Legião
Romana: tem seu Consilium Legionis em Dublin; além disto, órgãos subalternos em hierarquia
decrescente: o Senatus, a Cúria, o Praesidium, núcleo que trabalha diretamente em nível paroquial e
pastoral. A Legião foi fundada para levar adiante o bem combate da fé, podendo enfrentar qualquer
tarefa, ainda que muito árdua. Cada Legionário deve dedicar ao apostolado ao menos duas horas por
semana.
Em 1958, celebrando o primeiro centenário das aparições de Lourdes, Pio XII quis lembrar o
sentido do fato: “A uma sociedade que em sua veda pública muitas vezes contesta os supremos direitos
de Deus e que deseja conquistar o mundo todo ao preço de sua alma 94 precipitando-se assim para a sua
própria ruína, a Mãe Santíssima lançou um grito de alarme”.
Não se pode esquecer, de resto, que Pio XII consagrou o mundo inteiro ao Coração imaculado
de Maria em 1942 (durante a segunda guerra mundial) e consagrou à mesma a Rússia em 1952. Como se
vê, o pontificado de Pio XII foi fortemente mariano.
De 1962 a 1965 reuniu-se o Concílio do Vaticano II, que procurou abrir pista para o estudo e a
piedade dentro do grande volume de livros e práticas relativas a Maria em meados do século XX. O
Concílio deixou-nos o cap. 8º da Constituição Lumen Gentium, que em termos bíblicos e linguagem
sóbria, mas profunda e tradicional faz uma síntese mariológica, modelo inspirador dos estudos pós-
conciliares. São estas linhas profundas e vazadas na Tradição que exploraremos na parte III deste nosso
Curso, dedicada à sistematização dos conhecimentos mariólogicos.
PERGUNTAS
94
Cf. Mt 8,36
1) Como a piedade mariana influiu na espiritualidade de Congregações Religiosas modernas?
2) Que verdade de fé foi definida em 1854? Explique as circunstâncias, o teor significado dessa
definição.
3) Faça o mesmo em relação à verdade de fé definida em 1950.
4) Queira dizer algo sobre o pontificado de Pio XII e a Mariologia.
1 . 1 Na Escritura
Os Evangelhos afirmam repetidamente que Maria Virgem concebeu o Filho de Deus sem a
intervenção de semente humana. Tenhamos em vista o texto de Mt 1, 18-20:
“Deu-se assim a concepção de Jesus Cristo: Maria, sua Mãe, estava desposada com José. Antes,
porém, da habitarem juntos, achou-se grávida pelo poder do Espírito Santo.”
José, seu esposo, que era homem justo e não a queria difamar, deliberou repudiá-la secretamente.
Enquanto assim decidia, apareceu-lhe em sonho um anjo do Senhor, que lhe disse: “José filho de Davi,
não temas receber em tua casa Maria tua esposa, pois foi pelo poder do Espírito Santo que ela
concebeu”.
É muito claro também o anúncio do Anjo feito a Maria segundo Lc 1, 26. Este texto sugeriu a
alguns teólogos a suposição de que Maria tenha feito voto de virgindade a Deus. Tal hipótese não
decorre necessariamente dos dizeres do Evangelhos.
É de notar ainda a profecia de Is 7, 14, traduzida literalmente do hebraico: “Eis a jovem donzela
(‘almah) concebe e dará à luz um filho, que ela chamará Emanuel”. — A palavra hebraica ‘almah
significa simplesmente a jovem na flor de seus anos, sem alusão direta à virgindade. Verifica-se,
porém, que o mesmo termo na S. Escritura designa a donzela virgem; Cf. Gn 24, 43; Ex 2, 8; Ct 6, 7; Sl
68, 26. Além disto, a tradição judaica entendeu “almah, em Is 7, 14, no sentido de virgem de modo que
os tradutores da Bíblia para o grego (LXX) no século III a C. usaram o temo parthénos, virgem, por
‘almah. Mateus no Evangelho (1, 23) citou a profecia de Isaías em sua forma grega, dando-lhe a
interpretação cristã: a parthénos ou virgem é Maria, e seu filho Emanuel (Deus conosco) é o Cristo
Jesus. — Assim a própria Escritura explica a Escritura.
Há quem oponha a passagem de Lc 2, 48, na qual José é dito “Pai de Jesus”. — Não se deve
esquecer, porém, que o mesmo Evangelista explica exatamente o seu pensamento quando mais adiante
(3, 22) afirma que José era o pai putativo de Jesus: “Jesus era tido como filho de José”. A Providência
Divina quis que Maria fosse verdadeiramente casada com José, homem justo, a fim de que seu lar
tivesse a tutela que o homem pode e deve dar a mãe e filho; quis também que a maternidade virginal de
Maria fosse ignorada pelo público de sorte que o povo tinha Jesus na conta de filho de José.
O magistério da Igreja, por sua vez, sempre ensinou a concepção virginal de Maria. Assim o
Credo dito “apostólico” professa: “Jesus Cristo foi concebido do Espírito Santo, nasceu de Maria
Virgem”. O Símbolo Niceno-constantinopolitano reza: “Encarnando-se de Maria Virgem por obra do
Espírito Santo”.
Em 649, o Concílio regional do Latrão declarou: “Maria, a Santa Mãe de Deus e Imaculada
Virgem,... do Espírito Santo em semente viril o próprio Deus Verbo; deu-o à luz sem perder
integrinidade, e também depois do parto conservou inalterada a sua virgindade”
(Denzinger-Schonmetzer, Enchiridion n.º 503).
Em 1555, o Papa Paulo IV, tendo em vista certos erros de sua época, reafirmou: “Maria persistiu
sempre na integridade da virgindade da virgindade antes do parto, no parto e perpetuamente depois
do parto” (ib. n.º 1880).
Assim foi explicada a fórmula antiga: Maria é aeiparthénos, sempre virgem (antes do parto, no
parto e após o parto).
1. 3. Os Reformadores protestantes
“O Filho de Deus foi formado no seio da Virgem Maria... Isto aconteceu por ação milagrosa do
Espírito Santo sem consórcio de verão”.
Finalmente creio, segundo as palavras do Evangelho, que Maria, como virgem pura, nos gerou o
Filho de Deus e que no parto e após o parto permaneceu para sempre virgem pura e íntegra”
(Corpus Reformatorum: Zwinglii Opera t. I 424).
Podemos observar que até mesmo o Corão de Maomé, que reproduz certas proposições do
Cristianismo, professa a virgindade de Maria 95
Estes testemunhos, aos quais outros se poderiam acrescentar, dão suficientemente a ver como a
crença na virgindade de Maria ocupa lugar eminente no conjunto das verdades que a fé cristã sempre
professou.
Examinemos agora
2. 1. Testemunho bíblico
O texto de Jo 1, 12s pode ser lido de duas maneiras. Tem prevalecido ultimamente a seguinte
forma:
“A todos os que O receberam, deu o poder de se tornarem filhos de Deus, aos que crêem em seu
nome, Ele (o verbo) que não nasceu do sangue, nem da vontade da carne , nem da vontade do homem,
mas nasceu de Deus”.96
Cita-se também Lc 2, 7: “Maria gerou seu filho primogênito, envolveu-o em panos e deito-o
presépio”. Estes dizeres insinuam a ausência das dores e da prostração que costumam acompanhar todo
parto. a Tradição, aliás, repetiu freqüentemente que “Maria deu à luz sem dor”, intencionando assim
professar a maternidade virginal de Maria. Os cristãos, neste ponto, eram herdeiros de modo de ver dos
judeus; com efeito, segundo estes, um dos sinais da era messiânica seria o parto isento de sofrimento.
Eis, por exemplo, o testemunho do apócrifo Apocalipse de Baruque (contemporâneo dos escritos de s.
João, fim do século I ou começo do século II):
Quando o Messias tiver dominado o mundo inteiro e reinar para sempre em paz, diz o texto,
então será inaugurada uma era de felicidade perfeita sobre toda a terra; entre outras coisas, “as mulheres
já não sofrerão durante a gravidez e desaparecerá a dor quando tiverem que dar à luz o fruto do seu
95
Cf. Sura 19
96
A outra forma do texto, mais difundida, mas menos fundamentada nos manuscritos antigos, é a seguinte: “A todos os que O
receberam, deu o poder de se tornarem filhos de Deus, aos que crêem em seu nome, eles que não nasceram do sangue, nem da
vontade da carne, nem da vontade do homem, mas nasceram de Deus”.
Como dito, esta variante hoje é posta de lado, em favor da que apresentamos acima. Ver por exemplo. “Bíblia de
Jerusalém”, última edição, texto de Jo 1, 12s.
seio” (73. 1. 7). O motivo desta novidade é assinalado: “O tempo do Messias trará o fim do desgaste e o
começo da imortalidade”(74. 2).
O rabinos pensavam do mesmo modo. Assim Rabino Abbahu observa que atualmente a mulher
dá à luz em meio a dores, mas que no tempo do Messias se cumprirá o que está escrito: “Antes de sentir
as dores do parto, ela deu à luz; antes de lhe sobrevirem as contorções, ela pôs no mundo um menino”
(Is 66, 7). Ver Gen rabbah 14, 9a 12, 2.
Esta concepção significava, segundo os judeus, que estaria extinta, na era messiânica, a punição
infligida a Eva: “Multiplicarei as dores da tua gravidez; na dor darás à luz filhos” (Gn 3, 16).
Não insistimos sobre o valor da exegese rabínica, mas interessa salientar que a própria tradição
judaica associava entre si a vinda do Messias o parto sem dor. A tradição cristã do parto virginal de
Maria tem aí seu eco antecipado.
Uma objeção, porém, se levanta: S. Lucas (2, 23) aplica a Jesus o texto de Ex 13, 2. 12. 15, texto
conforme o qual Cristo seria “o filho que abre o seio materno”. — A esta dificuldade responde-se: “filho
que abre o seio materno” é expressão clássica da Lei de Moisés para designar o primeiro (ou também...
o único) filho. Tais palavras não têm em vista um fenômeno fisiológico, mas apenas a posição jurídica
do folho na família. Por conseguinte, a passagem de Lc 2, 23 não contradiz ao nascimento virginal de
Jesus.
Eis quanto se pode colher na S. Escritura a respeito da virgindade de Maria no parto. É preciso
reconhecer que estes textos citados, por si mesmos, não bastariam para fundamentar o artigo de fé.
Sabemos, porém, que a S. escritura não pode ser lida independentemente da Tradição oral, que lhe é
anterior e que a acompanha, fornecendo os critérios de interpretação da Palavra escrita; esta desligada da
Tradição oral, pode ser repuxada nas mais diversas direções.
A virgindade de Maria no parto foi especialmente enfatizada por uma corrente de hereges dos
dois primeiros séculos: os docetas. Afirmava que o Senhor não tivera senão um corpo aparente; e para
dar verossimilhança à sua tese, compraziam-se em dizer que Jesus não nascera como os outros homens,
e que, conseqüentemente, Maria permanecera virgem!
À vista, alguns escritores cristão do século III, como Tertuliano e Orígenes, negaram a
virgindade de Maria no parto.
S. Leão Magno Papa († 461): “O Filho de Deus foi concebido do Espírito Santo no seio da
Virgem Maria, que O deu à luz, conservando a sua Virgindade (salva virginite), como O concebeu
conservando a sua virgindade (salva virginitate)” (epístola a Flaviano 2).
S. Gregório Magno Papa († 604): ‘O corpo do senhor, após a ressurreição, entrou onde se
achavam os discípulos, passado por portas fechadas, esse mesmo corpo que, ao nascer, saiu do seio
fechado, manifestam-se aos olhos dos homens. Não é para admirar que o Senhor, ressuscitado para
viver eternamente, tenha atravessado portas fechadas, visto que, para morrer, Ele veio a nós através do
seio fechado da Virgem” (Sobre os Evangelhos homilia 26, 1).
O parto virginal de Maria é, como se vê, fato singular e transcendental, que há de ser preservado
com respeito e reverência.
Lição 3: Dúvidas
Duas são as principais dificuldades que se levantam contra a fé.
1) “Os textos bíblicos que insinuam a virgindade de Maria, são peças poéticas”.
PERGUNTAS
1) Quais são os textos bíblicos que fundamentam a crença na maternidade virginal de Maria?
Explique-os brevemente.
2) De modo especial, a doutrina da virgindade de Maria no parto como justifica?.
3) Analise três das objeções que se fazem contra a maternidade virginal de Maria.
4) Que é que a maternidade virginal de Maria significa para a espiritualidade cristã? Exponha
suas impressões.
São sete os textos do Novo Testamento que mencionam irmãos de Jesus. O mais expressivo é o
de Mc 6, 3:
97
Cf 1Tm 2, 15.
Tendo Jesus pregado em Nazaré, sua cidade natal, os ouvintes, admirados, perguntavam donde
lhe provinha tanta sabedoria, e acrescentavam: “Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de
Tiago, José, Judas e Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós? “98
As outras menções dos “irmãos de Jesus” encontra-se em Mc 3, 31-35 (Cf. Mt 12, 46-50; Lc 8,
19-210; Jo 2, 12; 7, 2-10; At 1, 14; Gl 1, 19; 1Cor 9, 5.
Há claros indícios de que os chamados “irmãos de Jesus” não eram filhos da mãe de Jesus, pois
Jesus foi filho único:
1) Lc 2, 41-52: Jesus, aos doze anos, foi com José e Maria a Jerusalém, permanecendo aí os sete
dias da festa de Páscoa (ver Lc 2, 43). Contando os dias de viagem de ida e volta. A Sagrada Família
deve ter ficado cerca de quinze dias fora de casa. Ora Maria não pode ter deixado no lar por tanto tempo
filhos pequenos. Donde se conclui com muita verossimilhança que aos doze anos Jesus era filho único.
Digamos, porém a título de hipótese: depois dessa peregrinação Maria gerou outros filhos... O
mais velho desses irmãos de Jesus teria então, no início da vida pública do Senhor, cerca de dezoito anos
de idade (Jesus começou sua pregação com trinta anos aproximadamente; 99 Ora o que os Evangelhos
narram a respeito dos irmãos do Senhor, não permite que lhes atribua idade tão juvenil. Com efeito; a
atitude autoritária dos “irmãos” para com Jesus, descrita em Mc 3, 21. 31-35 e Jo 7, 2-5, no Oriente não
teria cabimento se esses irmãos fossem mais jovens; sim, a mentalidade judaica exigia dos irmãos mais
moços um comportamento de reverência para com o primogênito, como se deduz, por exemplo, das
palavras de Isaque a Jacó: “Sê o Senhor dos teus irmãos; diante de ti se curvem os filhos de tua mãe!”
(Gn 27, 29). Os homens autoritários que se dirigem a Jesus em Mc 3 e Jo 7, deviam ser mais velhos do
que o Senhor; por conseguinte, não eram filhos de Maria.
2) Jo 19, 26s: Jesus, ao morrer, confiou sua mãe a João, filho de Zebedeu, membro de outra
família. Este gesto do Senhor seria incompreensível se Maria tivesse outros filhos em casa. Jesus é dito
“filho de José putativo ou suposto” em Lc 3, 23; é dito “o filho de Maria” (com artigo) em Mc 6, 3. O
Evangelho nunca diz: “a mãe de Jesus e seus filhos”, embora isto fosse muito natural se ela tivesse
muitos filhos (ver Mc 3, 31-35; At 1, 14). O Evangelho se refere sempre a “Maria e os irmãos de Jesus”,
embora isto torne o texto estilisticamente pesado.
Estas considerações dão a concluir que Jesus era o filho único de Maria.— Por que então os
Evangelhos falam de irmãos de Jesus?
O aramaico que os judeus falavam no tempo de Jesus e que os evangelistas supõem, era língua
pobre de vocábulos. A palavra aramaica e hebraica áh podia significar não somente os filhos dos
mesmos genitores, mas também os primos e até parentes mais distantes. No Antigo Testamento, vinte
passagens atestam esse significado amplo de irmão. Assim, por exemplo:
98
Cf. Mt 13, 55s.
99
Cf. Lc 3, 23.
100
Semita é o grupo de povos e de línguas que têm origem na Ásia ocidental; compreende os hebreus, os aramaicos (ou
sírios). Os assírios, os babilônios, os fenícios e os árabes
Gn 13, 8: Abraão disse a seu sobrinho Lote, filho do seu irmão: “Somos irmãos”. Ver também
Gn 14, 14. 16.
Gn 29, 12.15: Jacó se declara irmão de Labão, quando na verdade era filho de Rebeca, irmã de
Labão.
Gn 31, 23: refere que Labão com seus irmãos, isto é, com seus familiares do sexo masculino foi
ao encalço de Jacó.
1Cor 23, 21-23: “Os filhos de Merar foram Moholi e Musi. Os filhos de Moholi foram Eleázaro
e Cis. Eleázaro morreu sem ter filhos, mas apenas filhas; os filhos de Cis, seus irmãos (= primos), as
tomaram por mulheres”.
Ver ainda 1Cor 15, 5; 2Cor 36, 10; 2Rs 10, 13, Jz 9, 3; 1Sm 20, 29...
Ora é de notar que a tradução grega do Antigo Testamento realizada em Alexandria (Egito) entre
250 e 100 a. C. usa nos textos citados a palavra grega adelphós, irmãos, embora o grego possuísse
vocábulos próprios para dizer primo e sobrinhos. O linguajar dos LXX, que conservava seu fundo
semita, influiu profundamente na linguagem dos escritores do Novo Testamento, familiarizados como
estavam com a tradução dos LXX.
Na base desta verificação não teremos dificuldade de compreender que “os irmãos de Jesus”
eram, na verdade, primos de Jesus.
Alguns textos do Evangelhos nos fornecem pistas para identificar melhor o parentesco dos
“irmãos” de Jesus.
Em Mt 27, 56 lemos:
Estavam ali (no Calvário), a observar de longe,... Maria de Mágdala, Maria, mãe de Tiago e de
José, e a mãe dos filhos de Zebedeu”.. Cf Mc 15, 40.
Essa Maria, mãe de Tiago e de José, não é a esposa de São José, mas de Cleofas, conforme Jo 19,
25;
“Estavam junto à cruz de Jesus sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria (esposa) de Cleofas, e Maria
de Mágdala”.
Conforme alguns comentadores, Maria, mãe de Tiago e José, era também irmã de Maria, Mãe de
Jesus, Outros preferem distinguir, o texto de Jo 19, 25, “a irmã de sua mãe” e “Maria (esposa) de
Cleofas” como sendo duas mulheres.
Pois bem, os nomes Cleofas e Alfeu designam a mesma pessoa, pois são formas gregas do nome
aramaico Claphai. Ora, o mais antigo historiador da Igreja, Hegesipo (séc. II), refere que Cleofas ou
Alfeu era irmão de São José. Disto se segue que Cleofas e Maria de Cleofas tiveram como filhos Tiago,
José, Judas e Simão. Estes, portanto, eram primos de Jesus, por descenderem de uma certa Maria (talvez
irmã de Maria SS.) casada com Cleofas, irmão de São José. O parentesco pode ser esquematicamente
assim representado:
Neste esquema fica aberta apenas a questão: Maria, esposa de Cleofas, era irmã de Maria, Mãe de
Jesus?
O mesmo esquema explica bem as íntimas relações que uniam as famílias de Cleofas e São José
provavelmente este morreu antes do início da vida pública de Jesus. Parece então que Maria SS. se
retirou com seu Divino Filho para a casa de seu cunhado, de sorte que as duas famílias se fundiram
numa só. Quando Jesus, aos trinta anos, deixou sua Mãe para iniciar sua missão pública, os primos de
Jesus, movidos pelo forte senso de família dos orientais, se tornaram solidários com Maria,
acompanhando-a em suas saídas (a mulher oriental não se apresentava sozinha em público). Isto explica
que nos Evangelhos Maria apareça freqüentemente em companhia dos “irmãos de Jesus”, que não eram
seus filhos.
Em debates sobre o tema é por vezes citado o texto de São Paulo, 1Cor 9, 5: “Não temos o
direito... como os outros Apóstolos, os irmãos do Senhor e Cefas?”— esta passagem não implica que
os irmãos do Senhor devam ser excluídos do grupo dos apóstolos; em tal caso, Cefas também não
poderia ser considerado Apóstolo. São Paulo faz o tríplice enunciado acima apenas para realçar os graus
de dignidade dos que compunham o grupo dos Apóstolos; logo depois de Pedro (sempre o primeiro na
lista), vinham os “irmãos (primos) do Senhor”, que gozavam de especial autoridade na Igreja.
A título de curiosidade, seja ainda mencionada uma sentença que, de vez em quando, é
apresentada, mas não goza de probabilidade: os “irmãos de Jesus” seriam filhos de José nascido de um
primeiro matrimônio do Patriarca. Este, viúvo e de certa idade, se teria casado com Maria. Esta sentença
explicaria a posição autoritária que os “irmãos de Jesus” assumiam em relação ao próprio Jesus, pois
seriam semi-irmãos, mais velhos do que Jesus. Contra tal sentença está o fato decisivo de que a mãe de
dois desses irmãos do Senhor (José e Tiago) ainda estava viva quando Jesus morreu na Cruz.
Outra sentença, de poucos autoridade, afirma que os “irmãos de Jesus” eram filhos adotivos de
São José. — Não há como provar nem refutar esta hipótese, que não somente é gratuita, mas
inverossímil.
Resta-nos agora considerar duas objeções que se levantam contra as explicações até aqui
apresentadas.
Lemos em Mt 1, 25: “José não conheceu Maria (= não teve relações com Maria) até que ela
desse à luz um filho (Jesus)”. Significa isto que, depois de ter dado à luz a Jesus, Maria teve relações
conjugais com José?
Não necessariamente. A expressão “até que” corresponde ao grego heos hou e ao hebraico ad ki.
Ora esta partícula na Escritura ocorre para designar apenas o que se deu (ou não se deu) no passado, sem
indicação do que havia de acontecer no futuro. Tenhamos em vista, por exemplo:
101
Notícia transmitida por Hegesipo.
Gn 8, 7: O corvo que Noé soltou após o dilúvio, não voltou à arca “até que as águas secassem”.
Isto não quer dizer que após o dilúvio o corvo tenha voltado à arca.
Sl 110, 1: Deus Pai convida o Messias a sentar-se à sua direita “até que Ele faça dos seus
inimigos o supedâneo dos seus pés”. Isto não significa que, depois de vencidos os inimigos no fim da
história universal, o Messias deixará de se assentar à direita do Pai.
2Sm 6, 23: “Micol, filha de Saul, não teve filhos até a morte”. Ninguém deduziria daí que os teve
depois da morte.
Gn 28, 15: Diz o Senhor a Jacó: “Não te abandonarei até que eu tenha realizado o que te
prometi”. — Certamente o Senhor não abandonou Jacó depois de cumprir as suas promessas.
Mt 28, 20: “Estarei conosco todos os dias até a consumação dos séculos”. Disto não se segue
que após o fim dos tempos, o Senhor Jesus deixará de estar com os seus.
Ainda hoje na vida cotidiana recorremos a semelhante modo de falar, quando dizemos, por
exemplo: “Tal homem morreu antes de ter realizado os seus planos” ou “antes de ter perdido perdão”.
Poderia alguém concluir que, depois da morte, o defunto executou os seus ouvidos”; não podemos
depreender disto que o ouviu depois de o ter condenado. — Estes são casos em que se faz referência ao
passado, prescindindo do futuro. Essa locução era freqüente entre os semitas e constitui, sem dúvida, a
base pressuposta do texto de Mt 1, 25. Em conseqüência, a tradução mais clara deste versículo seria:
“Sem que ele (José) tivesse tido relações com Maria, ela deu à luz um filho...”Analogamente diríamos,
para explicar as frases atrás citadas: “Tal homem sem ter executado os seus desígnios”; “o juiz condenou
o acusado sem ter ouvido”; “as águas do dilúvio secaram sem que o corvo voltasse à arca”.
Há ainda quem observe que a partícula ad ki se pode traduzir também por eis que. Assim por
exemplo:
Dn 7, 4: “eu contemplava, eis que (ad ki) suas asas foram arrancadas...” Ver Dn 7, 9.11.
No Talmud (livro sagrado dos Judeus) lê-se: “Rabi Aquibá não tinha acabado de dizer o chemá
(=oração litúrgica), e eis que (ad ki) morreu”.
“Embora José não tenha tido relações com Maria, eis que ela deu à luz um filho”.
3.2. “Primogênito”(Lc 2, 7)
Em Lc 2, 7 está escrito: “Maria deu à luz o seu filho Primogênito, envolveu-o em faixas e
deixou-o numa manjedoura”.
O termo “Primogênito” não significa que a Mãe de Jesus tenha tido outros filhos após Ele. Em
hebraico bekor, primogênito, podia designar simplesmente “o bem-amado”, pois o primogênito é
certamente aquele dos filhos no qual durante certo tempo se concentra todo o amor dos pais; além disto,
o primogênito era pelos hebreus julgado alvo de especial amor da parte de Deus, pois devia ser
consagrado ao Senhor desde os seus primeiros dias.102 A palavra “primogênito” podia mesmo ser
sinônima de “unigênito”, pois um e outro vocábulos na mentalidade semita designam “o bem-amado”
Tenhamos em vista, por exemplo, Zc 12, 10s:
102
Cf. Lc 2, 22; Ex 13, 2; 34, 19.
“Derramei sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém um espírito de graça e de
oração e eles voltarão os seus olhos para mim. Quanto àquele que traspassaram, chorá-lo-ão como. Se
chora um filho unigênito; chorá-lo-ão amargamente como se chora um primogênito’.
Mesmo fora da terra de Israel podia-se chamar “primogênito” menino que não tivesse irmão mais
jovem; é o que atesta uma inscrição sepulcral judaica datada do ano 5 a. C. e descoberta em Tell-el-
yedouchieh (Egito) no ano de 1922: lê-se aí que uma jovem mulher chamada Arsinoé morreu “nas dores
do parto do seu filho primogênito”. Notemos neste texto o modo de falar de Mt 1, 25: “primogênito”
vem a ser apenas o filho antes do qual não houve outro, não necessariamente aquele após o qual houve
outros.
Estas considerações dão claramente a ver que não se podem apoiar na Bíblia aqueles que querem
atribuir a Maria a maternidade de muitos filhos.
PERGUNTAS
2) Maria concebeu o Filho de Deus de maneira livre e generosa. Para isto devia ter certo
conhecimento do dom e da missão que lhe eram propostos (não se tratava de conhecimento pleno; 105
103
Cf. Jz 11, 29-39
104
Cf. Lc 1, 38-44
105
Cf. Lc 2, 50
3) Maria concebeu o Filho de Deus numa atitude de fé teologal. Dizem os antigos Padres da
Igreja que ela concebeu em seu espírito antes que no seu seio. Ela acolheu primeiramente a palavra das
Escrituras pela fé para poder acolher o Verbo de Deus em seu seio materno. Em todos os cristãos este
mistério se reproduz, ao menos em parte, pois Deus nasce no coração dos homens pela fé; Lc 8, 21; 11,
28.
4) Maria foi escolhida como filha de Sion ou como membro de um povo chamado a gerar o
Messias. Isto quer dizer que o Sim de Maria é o Sim de uma coletividade; é o Sim de todo o gênero
humano, chamado a se prolongar na Igreja através dos séculos.
5) Maria é privilegiada, mas ela se intitula “servidora de deus e dos homens” ; 106
O próprio
Jesus ensinou que “o maior deve ser como aquele que serve” (Lc 22, 26; Jo 12, 13-15).
Assinalaremos cinco significações deste artigo de fé, que bem evidenciam como a virgindade de
Maria é muito importante não por ser simplesmente um privilégio de Maria, mas por estar intimamente
ligada à identidade de Cristo.
2. 1. A identidade de Jesus
Sem dúvida, o Filho de Deus podia-se tornar homem nascendo biologicamente de José e Maria.
Contudo existia grande conveniência de que nascesse sem o concurso do varão. Com efeito; o Filho de
Deus se fez homem sem ter pai na terra, pois já tinha Pai no Céu; como Deus , era Filho do Pai Eterno;
como homem, tornou-se Filho de Maria; Maria foi fecundada pela ação direta do próprio Deus. A
geração virginal foi o modo pelo qual o Pai quis exprimir na carne humana a sua paternidade em relação
a Jesus. Este não é um mero homem como os outros homens, mas é Deus e homem; por isto nasceu
como nenhum homem nasceu. Vamos assim que é a própria identidade de Jesus que está em foco, no
caso.
Vemos, pois, que a concepção virginal de Maria está muito mais ligada à identidade de Jesus do
que à de Maria. Aliás, toda a figura de Maria — rica de graça — é essencialmente função da figura de
Jesus, como todo o culto a Maria é marcadamente cristocêntrico. Cancelar a virgindade de Maria seria
indiretamente cancelar o aspecto principal da identidade de Cristo.
“Sobrenatural” nada tem que ver com “extraordinário” ou “milagroso”, mas é dom de Deus
(suave e discreto) que está acima das exigências de qualquer criatura. Assim o plano de salvação que
Deus concebeu para o homem, tem um objetivo sobrenatural: levar os homens à comunhão com a Vida
de Deus, fazendo-os filhos no Filho e habilitando-os à visão face-à-face da Beleza infinita
106
Cf. Lc 1, 38.48.
Pois bem, A maternidade virginal de Maria significa que não é o homem quem dá a si mesmo a
salvação, nem ele é capaz de a provocar. Como a virgem não recebeu do homem, mas de Deus, o seu
Filho, assim nós recebemos a salvação de Deus como dádiva totalmente gratuita.
Com outras palavras: a salvação do homem é graça; ela não se deve nem “à vontade da carne,
nem à vontade do homem”, mas à livre e soberana iniciativa de Deus.107
O mesmo teólogo protestante Karl Barth reconhece que “a concepção virginal sufoca todas as
pretensões da teologia natural”; evidencia que “a natureza humana não tem em si mesma a capacidade
de se tonar a carne de Jesus Cristo, lugar da revelação divina”; “é um sinal realizado diretamente por
Deus, sinal que só pode ser compreendido se for tomado como sinal”, isto é, como alusão ao fato de que
Deus é o primeiro a dar ao homem, ... e a dar sem que o homem possa atrair ou merecer a dádiva de
Deus. Ver Dogmatique I, II, 1.
Mais: a superação das leis ordinárias da biologia vem a ser também o prenúncio da nova geração
ou da regeneração que Cristo oferece a todos os que nele crêem e a Ele se incorporam pelo Batismo; este
é um renascer, que não se faz conforme as leis da biologia, mas segundo o Espírito.108
A maternidade virginal de Maria põe em evidência o papel da mulher na obra salvação do gênero
humano; Jesus, em último análise, não está ligado a este senão por meio de Maria.
Esta prerrogativa da mulher não se realizou apenas no plano fisiológico. Com efeito; Maria disse
o seu Sim antes de conceber o Filho (Cf. Lc 1, 38). Este Sim foi dito em nome de todo o gênero humano;
assim uma mulher tornou-se a representante de toda a humanidade no diálogo decisivo do Criador com a
criatura. Concedendo tão valiosa função à mulher, o Senhor Deus quis abrir o caminho à exaltação da
mulher e mostrar a importância que Ele atribuiria a esta na Igreja.109
Mais: o Filho de deus assumiu a natureza humana escolhendo o sexo masculino. Essa escolha
podia parecer um privilégio concedido a um sexo em detrimento do outro. Na verdade, porém, o plano
de Deus incluía a colaboração de ambos os sexos: a uma mulher — Maria — o Criador reservou a
função de representar a gênero humano inteiro diante do anúncio da Vinda do Salvador. Já Santo Ireneu
(† 202) via em Maria a nova Eva, aquela que, mediante a sua fé e obediência, se tornara, para a primeira
Eva e para todo o gênero humano, a “causa da salvação” 110 Assim o casal primitivo se encontra de
novo na obra da salvação: em Cristo vemos, com toda a Tradição, o segundo Adão,111 e em Maria a nova
Eva. Unindo a Virgem-Mãe e o Salvador seu Filho, o Pai Celeste realizou a mais perfeita associação do
homem e da mulher que jamais tenha ocorrido.
Muitos dos que rejeitam a virgindade de Maria, talvez o façam por ter da virgindade uma idéia
negativa. Com efeito; poderiam pensar que a relação carnal é moralmente impura e transmissora do
pecado; por isto, Maria não teria tido cópula sexual. Ora esta noção é falsa; a pureza e santidade podem
ocorrer também no matrimônio cristão plenamente vivido. Numa autêntica visão de fé, a virgindade de
Maria apresenta três aspectos positivos.
a) significa total abertura à ação do Espírito. Não conhecendo homem, como diz o Evangelho (Lc
1, 34), Maria estava destinada a estreitar-se na mais íntima união com Deus. A essência da vida virginal,
107
Cf. Jo 1, 13.
108
Cf. Jo 3, 3.
109
Ver a propósito a Carta Apostólica de João Paulo II sobre a Dignidade da Mulher.
110
Cf. Lumen Gentium n.º 56.
111
Cf. Rm 5, 14; 1Cor 15, 45-49.
portanto, não é algo de meramente negativo, mas é a realização do amor em seu grau supremo e com o
ser Perfeito.
b) a virgindade de Maria está ligada também à maternidade. Não é privação de fecundidade, mas
é fecundidade concedida diretamente por Deus. Algo de semelhante se dá em todo cristão que abrace a
vida una ou indivisa por amor do Reino dos céus;
c) a maternidade virginal de Maria, vivida no casamento com José, significa que a virgindade não
empobrece o coração e os afetos humanos; Maria desenvolveu autêntico amor de esposo para com José.
Mais amplamente podemos dizer: a mais íntima adesão a Deus não sufoca o amor legítimo da criatura
para com as criaturas. De resto, a presença de Maria nas bodas de Caná e a sua intervenção para obter o
vinho necessário à continuação da festa de núpcias confirmam a orientação positiva da virgindade em
relação ao matrimônio. A atuação de Maria em Caná é sinal de que à virgindade toca a missão de
sustentar o matrimônio e obter-lhe a graça do autêntico amor.
As palavras de Maria ao anjo: “Como se fará isso, pois que não conheço varão?” (Lc 1, 34) não
insinuam necessariamente um voto, mas possivelmente o propósito de virgindade, ou seja, o desejo de
entregar integralmente a Deus. Antes de dar consentimento ao anúncio do anjo, Maria quis saber como
se conciliaria essa entrega total com a mensagem da maternidade. Uma tal afirmação de virgindade é
inédita e desconcertante para a mentalidade dos judeus; dificilmente terá sido inventada pelos primeiros
cristãos ou pelo Evangelho; há de ser tida como fato histórico.
Em conclusão, vê-se que a virgindade de Maria não significa desprezo da sexualidade. Ela se
prende mais à identidade do Salvador do que à de Maria, pois põe em relevo a filiação divina de Jesus.
Na verdade, ela pertence ao âmago da mensagem cristã.
É interessante notar que Lázaro, Zvínglio e Calvino, autores da Reforma protestante no século
XVI, deixaram belas expressões de estima e louvor a Maria SS.
Lutero foi formado na tradição católica, que lhe ensinou a veneração a Maria, veneração que ele
guardou até o fim da vida. Eis alguns de seus depoimentos:
Ao referir-se a Mt 1, 25, observa: “Destas palavras não se pode concluir que, após o parto,
Maria tenha tido consórcio conjugal. Não se deve crer nem dizer isto” (Obras de Lutero, edição
Weimar, tomo 11, p. 323).
Por isto Lutero se insurgia contra aqueles que lhe atribuíam a doutrina de que “Maria, a mãe de
Deus, não tenha sido virgem antes e depois do parto, mas tenha gerado Cristo e outros filhos por
contato com José” (Weimar, t. 11,p. 314). Os irmãos de Jesus, mencionados no Evangelho, são parentes
do senhor (Weimar, t.46 ,p. 723; Tischreden 5, n.º 5839). O reformador prometia cem moedas de ouro a
quem lhe provasse que a palavra almah em Is 7, 14 não significa virgem (Weimar, t. 53,p 640a).
A respeito das virtudes de Maria, dizia: “A bem-aventurada Virgem via Deus em tudo; não se
apegava a criatura algumas; tudo, ela o referia a Deus.. Por isto é puríssima adoradora de Deus, ela
que exaltou Deus acima de todas as coisas” (Weimar t, 1, pp. .60s).
No fim de sua vida, aos 17/01/1546, Lutero exclamou num sermão muito agitado: “Não se deve
adorar somente o Cristo? Mas não se deve honrar também a santa Mãe de Deus? Esta é a mulher que
esmagou a cabeça da serpente. Ouve-nos, pois o Filho te honra; Ele nada te nega. Bernardo foi longe
demais ao comentar o Evangelho... Só a respeito de Cristo está dito: Ouvi-o e: Eis o Cordeiro de Deus
... Isto não foi dito a propósito de Maria, nem dos anjos, nem de Gabriel” (Weimar, t. 51, pp. 128s).
Vê-se que até os últimos dias Lutero guardou certa devoção à Mãe de Deus... que ele invocou no
seu comentário ao Magnificat: “A mesma amantíssima Mãe de Deus queira obter a graça para mim, a
fim de que possa expor o seu cântico com proveito e profundidade" (Weimar, t,7, p. 545).
No tocante às imagens, Lutero excluía a adoração e a idolatria, mas não as proibia; afirmava que
as proibições feitas no Antigo Testamento não afetavam os cristãos (Weimar, 7, 10, p. 440-445; t, 28,
pp. 677s). Censurava os iconoclastas como fanáticos e sectários furiosos (Weimar, t, 18, pp. 70.80-82).
Considerava as imagens como a Bíblia dos pobres e tinha-as como muito adequadas tanto à natureza
humana psicossomática quanto ao modo como Deus costuma tratar os homens.
Calvino em Genebra (Suíça) foi muito mais radical do que Lutero na Alemanha. Imprimiu notas
pessoais à Reforma, entre as quais as do presbiterianismo.
“Professo que da genealogia de Cristo não se pode deduzir que Ele foi Filho de Davi a não ser
através da Virgem” (Calvini Opera 2, 351).
A respeito de Mt 1, 25 escreve: “Jesus é dito primogênito unicamente para que saibamos que
Ele nasceu da Virgem” (CO 45, 645).
A propósito de Is 7, 14: “O profeta teria feitio coisa muito fria e insípida se, depois de anunciar
algo de novo e insólito entre os judeus, acrescentasse: Uma jovem conceberá. É assaz claro, portanto,
que ele fala da Virgem, que havia de conceber não conforme as leis ordinárias da natureza, mas por
graça do Espírito Santo” (CO 36, 156s).
Calvino exalta as virtudes de Maria quando escreve: “Quando a virgem disse: Eis a serva do
Senhor, ela se ofereceu e entregou totalmente a Deus, para que se servisse dela conforme os direitos de
Deus. Faça-se em mim; entendo estas palavras como expressão de que Maria estava persuadida do
poder de Deus e voluntariamente se dispunha a atender ao seu chamado; acreditou na promessa do
Senhor, cuja realização ela não somente esperava, mas também pedia ardorosamente ” (CO 45, 30).
Ao comentar a frase: “Bem-aventurada me dirão todas as gerações”, julga que Maria assim
“proclamava uma tão grande dádiva de Deus que não era lícito silenciá-la... Reconhecemos que este
dom foi altamente honroso para Maria.. De boa vontade seguimo-la como mestra e obedecemos aos
ensinamentos e preceitos da Virgem” (CO 45, 38).
Zvímglio em Zurique (Suíça) iniciou uma reforma, que foi posteriormente absorvida pelo
Calvinismo. Escreveu:
“Creio firmemente que, segundo o Evangelho, Maria, como Virgem pura, gerou o Filho de Deus
e no parto e após o parto permaneceu para sempre Virgem pura e íntrega. Também acredito firmemente
que ela foi por Deus exaltada acima de todas as criaturas bem-aventuradas (homens e anjos) na eterna
bem-aventurança” (Zwinglii Opera 1, 424).
Os “irmãos do Senhor ”eram, para Zvínglio, “os amigos do Senhor” (ZO 1, 401).
“Cremos que o corpo puríssimo da Virgem Maria, Mãe de Deus e templo do Espírito Santo... foi
levado pelos anjos ao céus”.
Em conclusão, Zvínglio: “Quanto mais crescem a honra e o amor de Cristo entre os homens,
tanto mais crescem também a estima e a honra de Maria, que gerou para nós um tão grande e propício
Senhor e Redentor” (ZO 1, 427s).
Como se vê, os mestres da Reforma foram muito mais fiéis a Maria do que os seus discípulos,
“reformadores da Reforma do século XVI”. Todavia no Protestantismo contemporâneo nota-se uma
volta às origens, da qual vai aqui transcrito um espécimen, tirado de um Catecismo luterano:
É de esperar que o movimento de volta às fontes tenha sua feliz continuidade no protestantismo.
PERGUNTAS
1) Exponha três significados que a Maternidade Virginal de Maria tem para o cristão.
2) O dogma da virgindade de Maria implica menosprezo da vida conjugal?
3) Que sentido tem a vida virginal ou celibatária para o cristão?
4) Ponha em relevo duas afirmações do texto do Catecismo protestante acima citado.
E comente-as.
5) Indique duas frases que você tenha achado interessante nas declarações dos Reformadores
protestantes
João Paulo II proferiu então uma alocução muito significativa, abordando as questões suscitadas
em torno da temática. De tal pronunciamento destacam-se os tópicos seguintes:
2. Era o ano de 392. Em Roma, a cátedra de Pedro era ocupada pelo Papa Sirício. Em Cápua
celebrou-se um importante Concílio, que as fontes históricas qualificam como plenarium112, pela
participação dos Bispos provenientes de várias regiões do Oriente, e pela gravidade das questões que
teve de enfrentar, entre as quis a composição do cisma de Antioquia e o exame da doutrina de Bonoso,
que negava a perpétua virgindade da Santa Mãe do Senhor. Sabemos que o Papa Sirício
acompanhou com vigilante atenção os trabalhos do Concílio, e que Santo Ambrósio de Milão deixou
neles a marca da sua personalidade forte e prudente (Ep. 71. De Bonoso episcopo: CSEL, pp. 7-10).
O tema então enfrentado oferece-nos o motivo para juntos refletirmos sobre algumas condições
prévias, que parecem indispensáveis para que o teólogo possa aprofundar, com a razão iluminada pela
fé, o fato e o significado da virgindade da humilde e gloriosa Mãe de Cristo.
112
Cf. I. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum nova et amplíssima Collectio, III, Cânones Conciliorum Ecclesiae
Africanae, cân, 48, col. 738
3. Já os Padres da Igreja perceberam com clareza que a virgindade de Maria, antes de construir
uma “questão mariológica”, é um “tema cristológico”. Eles faziam notar que a virgindade da Mãe é
uma exigência da natureza divina do Filho; é a condição concreta em que, segundo um livre e
sapiente desígnio divino, se efetuou a encarnação do Filho eterno, d’Aquele que é “Deus de Deus”113,
só Ele é Santo, só Ele é o Senhor, só Ele é o Altíssimo 114. E conseqüentemente, para a tradição cristã, o
seio virginal de Maria, fecundado pelo Pneuma divino sem intervenção de homem,115 tornou-se, como o
madeiro da cruz,116 ou as ligaduras do sepulcro,117 motivo e sinal para reconhecer em Jesus de Nazaré o
Filho de Deus...
Portanto, só a partir da luz que promana do Verbo, preexistente e eterno, fonte de vida e de
incorruptibilidade, é que se pode compreender a existência e o dom da virgindade da Mãe...
5. Na reflexão adorante sobre o mistério da encarnação do Verbo, foi detectada uma relação
particularmente importante entre o início e o fim da vida terrena de Cristo, ou seja, entre a
concepção virginal e a ressurreição de entre os mortos, duas verdades que se ligam intimamente à fé na
divindade de Jesus.
Elas pertencem ao depósito da fé, são professadas pela Igreja inteira e enunciadas expressamente
nos Símbolos da fé. A história demonstra que dúvida ou incerteza sobre uma repercutem
inevitavelmente sobre a outra, como, ao contrário, a humilde e forte adesão a uma delas favorece o
acolhimento cordial da outra.
Os fatos
6. Na confissão de fé na virgindade da Mãe de Deus, a Igreja proclama como fatos reais que
Maria de Nazaré:
— concebeu verdadeiramente Jesus, por obra do Espírito Santo, sem intervenção de homem;
— deu à luz, verdadeiramente e virginalmente, o seu Filho, razão pela a qual depois do parto
permaneceu virgem; virgem — segundo os santos Padres e os Concílios que trataram expressamente a
questão118 — também no que se refere a integridade da carne;
113
CONC. ECUM. CONSTANTINOP. II, Expositio fidei CL Patrum seu Symbolum Nicaenum Constantinopolitanum.
114
Cf. Missale Romanum, Hymnus “Glória in excelsis Deo”
115
Cf. Lc 1,23-45
116
Cf. Mc 15,39
117
Cf. Jo 20, 5-8
118
Cf. CONC. ROMAN LATERAN; Cân. 3: i. d. mansi. Sacrorum Conciliorum nova et amplíssima Collectio, X, col. 1151;
CONC. TOLET. XVI, Symbolum, art. 22
— viveu, depois do nascimento de Jesus, em total e perpétua virgindade; e, juntamente com José,
também ele chamado a desempenhar um papel primário nos eventos iniciais da nossa salvação, se
dedicou ao serviço da pessoa e da obra do Filho.119
9. ora, na pesquisa do sentido oculto no fato, abre-se ao teólogo um campo de trabalho vasto,
fecundo e exaltante. Se ele, com método rigoroso, com fidelidade à palavra normativa, à Tradição
universal, às diretrizes do Magistério, com atenção à experiência litúrgica, investigar o evento salvífico
da concepção e do nascimento de cristo, bem como a virgindade perpétua de Maria, virá a encontrar-se,
por assim dizer, em contato com a Escritura inteira: com a página em que deus plasma o homem com a
“terra virgem”121; com os textos que narram as antigas Alianças, as profecias messiânicas, as promessas
feitas a Davi, cujos ecos se ouvem distintamente na Aliança da Encarnação; com a narração dos gestos
de Abraão, cuja fé obediente revive, intensificada, no Fiat de Maria; com os relatos da maternidade
prodigiosa de algumas mulheres estéreis — Sara, a mulher de Manoach, Ana, Isabel — que se tornaram
fecundas com o favor de deus; com os trechos que descrevem o nascimento dos discípulos “do Alto”,
“da água e do Espírito” 122, isto é, modelado no nascimento de Jesus no seio de Maria, por obra do
Espírito Santo; com o episódio da maternidade pascal de Maria (Cf. Jo 19, 25-27), ocorrida também ela
na fé à palavra e na qual os Padres divisaram também uma dimensão virginal; o Filho, virgem, confia a
mãe virgem ao Discípulos virgem 123com a mesma literatura intert-estamentária, na qual se sente, em
páginas de intenso lirismo, o pungente desejo de Israel de se tornar esposa pura e fiel, comunidade
escatológica em que já não se ouça o lamento da dor do parto nem os cantos fúnebres da morte. São
exemplos, Eles indicam que expressões tais como Theotókos ou Virgo MATER, se lidas em
profundidade e com atenção às múltiplas vozes convergentes, são como que síntese da economia
salvífica...
11. A exatidão na exposição da doutrina exige que sejam evitadas posições unilaterais,
exagerações ou distorções. Por exemplo, a afirmação da virgindade de Maria deve ser feita de modo que
em nada, direta ou indiretamente, apareçam diminuídos o valor e a dignidade do matrimônio, querido
119
Cf. Lumen Gentium n.º 56.
120
Cf. Rm 16, 26.
121
Cf. Gn 2, 4b-7.
122
Cf. Jo 3, 3-8.
123
Cf. S. Jerônimo, Ep 127,5; CSEL 96, pp. 149-150; S. SOFRÔNIO, In Iohannis Evangelium, 69-76; p. 68, 3, 3788;
por Deus, por Ele abençoado, sacramento que configura o cristão a Cristo, via de perfeição e de
santidade, nem se banalize a mensagem que dela deriva, relegando-a a um aspecto marginal do
cristianismo.
12. Certamente o clima cultural do nosso tempo nem sempre é sensível aos valores da virgindade
cristã. Não seria difícil enumerar as causas. Mas isto não deve desencorajar o teólogo no seu empenho.
No tempo de Paulo, a cultura dominante não esteva pronta a acolher o mistério da cruz, mas ele, por
fidelidade a Cristo, fez dele o fulcro da sua mensagem .124
O teólogo deve ser animado pela confiança serena em que os valores, autenticamente
evangélicos, são válidos para o homem e a mulher contemporâneos, mesmo quando estes os ignoram ou
os transcuram.
A virgindade é dom e graça. Ela é um bem da Igreja, do qual participam também aqueles — sem
dúvida a maior parte —, que não são chamados a vivê-la na própria carne, mas embora sempre no
próprio coração.
Compete ao teólogo indicar as razões que podem ajudar o homem e a mulher do nosso tempo a
redescobrirem os valores da virgindade; ele deve determinar a linguagem mais apta para transmitir os
valores evangélicos, dos quais ela é portadora, mostrar como em muitos casos a virgindade é sinal de
liberdade interior, de respeito pelo outro, de atenção temporal 125 de viver radicalmente ao serviço do
Reino.
Lição 2: Em Síntese
Em suma, a alocução do S. Padre, que certamente visava a pôr termo às hesitações dos fiéis,
afirma as seguintes proposições:
1) A virgindade de Maria vem a ser, antes do mais, um tema cristológico, no sentido de que é
toda relativa a Cristo. Contribui para identificar o Senhor Jesus, indicando que não era mero homem
(embora fosse verdadeiro homem); por ser também Deus Filho, Maria recebeu do próprio Deus o Filho
ao qual ela havia de dar a natureza humana.
2) A virgindade de Maria no parto tem seu paralelo no final da vida terrestre de Jesus: Este,
ressuscitado, atravessava as paredes do Cenáculo sem as rasgar, como o fizera em relação a Maria SS.
quando nasceu.
O principal objetivo da alocução de João Paulo II em Cápua foi precisamente incutir o ponto
mais delicado da temática, ou seja, a virgindade de Maria no parto. A recomendação deste traço ocupa
notável porção do pronunciamento. O S. Padre renunciou a expor teorias biológicas que nos últimos
tempos foram apresentadas para elucidar a partenogênese, como se pudesse enquadrar o caso de Maria
em alguma ocorrência conhecida pelas ciências médicas
124
Cf. 1Cor 2, 2; Gl 3, 1;6, 14.
125
Cf. Mt 22, 30
3) A Escritura do Antigo Testamento prepara o conceito do parto virginal de Maria, conforme a
interpretação dos Padres antigos e da tradição. Com efeito; apontam-se textos bíblicos, em que a graça
de Deus aparece a suprir as deficiências da natureza ou age ultrapassando as possibilidades da natureza.
Assim é recomendada ao leitor a noção de que Deus pode fazer o que Ele quer com os elementos que
Ele escolhe, por mais ineptos que pareçam. É Deus quem toma a iniciativa de salvar o homem
gratuitamente, e não é o homem que provoca Deus para realizar atos salvíficos.
5) A virgindade ou a vida una e indivisa, hoje em dia pouco estimada e praticada, vem a ser
penhor de liberdade interior, de olhar perspicaz sobre os valores transcendentais e de radical vivência a
serviço do Reino de Deus. Por isto fica sendo, em nossos dias mesmos, um ideal ao qual podem e devem
aspirar aqueles (as) a quem Deus concede tal graça.
PERGUNTAS
Assim a Imaculada Conceição e a Assunção de Maria estão em íntima correlação este si. Todavia
foi mais fácil à Teologia formular a Assunção do que a Imaculada Conceição. — Neste Módulo e no
seguinte, estudaremos a Imaculada Conceição de Maria
A fé é a resposta do ser humano a Deus que fala. Tal resposta não é meramente individual, mas é
comunitária. Isto quer dizer que só podemos compreender todas as implicações e conseqüências contidas
na Palavra de deus revelada, se nos colocamos dentro da comunidade de fé que é a Igreja. A Igreja,
como comunhão ou como corpo de Cristo,126 não pode errar na fé nem se pode desviar da Palavra
trazida por Cristo e comunicada aos Apóstolos.
126
Cf. Cl 1, 24; 1Cor 12, 12-27.
Note-se outrossim que a Revelação das verdades de fé foi completa em Jesus Cristo e nos
Apóstolos, mas os cristãos não perceberam todo o seu alcance de uma só vez. Muitas coisas feitas por
Jesus não foram relatadas nos Evangelhos,127 de modo que a Tradição escrita (a Bíblia) e a Tradição oral
no decorrer dos séculos se foram completando até a Igreja chegar à plena intuição das proposições
reveladas por Jesus cristo. É o que nos diz o Concílio Vaticano II:
Com efeito, a Revelação foi formulada em palavras humanas a homens limitados. Por isto a
percepção de tudo quanto nela está contido vai-se realizando na medida em que vão caindo os obstáculos
das limitações humanas que dificultam a compreensão. Foi o que se deu com os dois artigos de fé
concernentes à Imaculada Conceição e à Assunção.
A fé da Igreja reconheceu, desde os tempos dos apóstolos, o papel muito especial desempenhado
pela Virgem SS. na Redenção dos homens. A expressão “cheia de graça” (kecharitoméne) achava-se
no Evangelho de Lucas desde o século I 128 Mas as circunstâncias históricas (das quais falaremos na
Lição 2 deste Módulo) não permitiram perceber com precisão todo o alcance desta proposição de fé. O
povo cristão, como comunidade da fé, foi intuindo esse alcance com clareza crescente e sob a luz do
Espírito Santo. Os teólogos procederam mais lentamente, de modo que, enquanto o “senso dos fiéis”
afirmava a Imaculada Conceição, a teologia hesitou durante séculos, mais vagarosamente chegou à
formulação exata. Em 1854 o Papa Pio IX não fez senão assumir e pronunciar solenemente o que já
estava na consciência dos simples fiéis e dos teólogos ou mesmo na fé da Igreja dos Apóstolos. Escreve
muito sabiamente o teólogo Karl Rahner:
“A Igreja e o magistério sabem que não transmitem uma revelação de deus que
acontece aqui e agora pela primeira vez; sabem que não são profetas, mas, sim, uma
instância cuja função consiste unicamente em conservar, transmitir e interpretar a revelação
de Deus ocorrida em Jesus Cristo num preciso do passado”
(Reflexiones en torno a la evolución del dogma p 13).
127
Cf. Jo 20, 30s; 21, 24s.
128
Cf. Lc 1, 28.
Embora os antigos estivessem conscientes de que Maria sempre viveu na graça de Deus, alguns
entraves obscureciam a intuição das conseqüências desta premissa. — quais seriam?
Nos primeiros séculos, o pensamento cristão se voltou para a absoluta santidade de Jesus,
condição para que realizasse sua obra salvífica. A santidade e a impecabilidade de Jesus foram
deduzidas da sua união hipostática; o eu de Cristo era o da segunda Pessoas da SS. Trindade; como tal,
não podia pecar. Em Maria, porém não houve união hipostática...
2. 2. A universalidade da Redenção
Não há graça nem salvação que não venham de Jesus Cristo. Todos são pecadores e foram
remidos por Cristo. — Ora, se Maria foi isenta do pecado original, ela nada deve a Cristo; está fora do
plano salvífico do Pai.
Todos admitiam que o pecado dos primeiros pais acarretou a morte e graves conseqüências para
o gênero humano, como nota S. Paulo em Rm 5, 12-19; 7, 7-24. Todavia nem todos entendiam do
mesmo modo essas conseqüências. Alguns teólogos julgavam ser a morte física sem mais; outros, a
morte segunda ou a condenação definitiva; outros, a cabeça e as paixões desregradas; outros, a
deterioração do cadáver no sepulcro; outros ainda, o aniquilamento total do indivíduo mediantes a
morte... Enquanto perduravam essas hesitações, era difícil definir de que “pecado original” Maria fora
isenta.
2. 4. Um problema biológico
Os antigos e medievais julgavam que a semente vital masculina era o único princípio ativo na
conceição de um novo ser humano. O útero da mulher seria um recipiente passivo, uma “incubadora
biológica” para o desenvolvimento da semente masculina. O pecado de Adão se transmitiria por
hereditariedade biológica ou pela semente masculina. — Este princípio explicava bem por que Jesus fora
isento de pecado original; não era filho de S. José no plano biológico. Maria, porém, nascera da união
matrimonial de S. Joaquim e Sta. Ana; por conseguinte, não podia ter nascido sem pecado original.
Era problema muito antigo a questão: quando começa a existir um ser humano? — Desde o
momento da conceição ou da fecundação do óvulo pelo espermatozóide? Ou após certo intervalo
(quarenta dias para os meninos, oitenta dias para as meninas? — Prevalecia na antigüidade e na idade
Média esta segunda teoria; em conseqüência, perguntava-se: como falar da conceição Imaculada de
Maria? Quem não tem alma humana (antes do 40º ou do 80º dia) não é sujeito de pecado e, por isto,
não se pode dizer que foi preservado do pecado original em sua conceição.
Foram estas as grandes dificuldades que obscureceram os horizontes dos teólogos que abordavam
o tema da isenção de todo pecado em Maria. Vejamos agora as etapas da reflexão teológica sobre o
assunto
Pouco depois S. Joaquim, que estava no deserto, recebeu aí a mensagem de outro anjo, que lhe
disse: “Joaquim, o Senhor Deus ouviu tua oração. Desce daí tua esposa Ana concebeu em seu seio”.129
O pretérito significa que Ana concebeu milagrosamente sua filha Maria SS. Esta notícia não é
tida como fidedigna; mas exprime no século II a consciência, dos cristãos, de que a conceição de Maria
foi diferente da dos demais seres humanas.
3. Passemos à época do Pelagianismo (séc. V). Este afirmava a capacidade natural do ser humano
para praticar o bem, sem necessitar da graça de deus. Foi então que Pelágio († 422) escreveu a S.
Agostinho: “A piedade impõe que reconheçamos Maria sem pecado”. O S. Doutor aceitou a
observação: quando se trata de pecado, Maria está fora de cogitação. Todavia entendia isto de modo
diverso do Pelagianismo: Maria não teve pecado por graça de Deus, não por santidade da natureza
humana como tal. S. Agostinho não podia chegar à noção de imaculada conceição, porque julgava que o
pecado dos primeiros pais se transmitia pela semente vital do homem; alem do quê, a universalidade da
Redenção lho impedia. Diante disto, o pelagiano Juliano de Eclano († 454) lhe objetava que Agostinho
entregava Maria ao diabo. O S. Bispo de Hipona insurgiu-se contra esta acusação, mas de maneira
insuficiente, ao dizer: “Não entregamos Maria ao diabo em virtude do seu nascimento, pois este é
redimido pela graça do renascer” (Opus imperfectum adversus Juliana 4. 122).
4. No século VII os orientais, no século VII os ocidentais começaram a celebrar a festa litúrgica
da Conceição de Maria (no Ocidente, a 8 de dezembro, nove meses antes da festa da Natividade de
Maria celebrada a 8 de setembro).
Na Grã-Bretanha (séc. X) celebrava-se a Imaculada Conceição. Não se sabe bem qual o objeto
preciso dessas festas, pois as dificuldades de ordem teológica e biológica já citadas obscureciam as
noções. Como quer que seja,, a piedade popular se manifestava sempre do mesmo modo, à revelia de
teólogos como S. Bernardo († 1153).
Esta noção de pecado original originado tornou-se definitiva na teologia, e aplainou o caminho
para se entender posteriormente a imaculada conceição de Maria.
129
Verdade é que alguns manuscritos têm: “tua esposa... conceberá”, o que talvez não seja a forma originária (N. d. R. ).
6. No século XII salientou-se o monge Eadmero († 1134) com seu Tractatus de Conceptione
Sanctae Mariae. Verifica o contraste entre a devoção dos simples fiéis e a ciência dos teólogos, que se
opunham à festa da Conceição; optou pela atitude do povo simples, a quem Deus revela seus mistérios,
recorrendo da castanha. “Não podia Deus conceder a um corpo humano a graça de permanecer livre de
toda pontada de espinhos, ainda que tenha sido concebido em meio aos grilhões do pecado? É claro que
o podia e queria; se o quis, Ele o fez” (ob. Cit. 12). É de lembrar que a castanha sai com a sua casca lisa
de um invólucro cheio de espinhos.
No século XIII S. Alberto Magno († 1280) e S. Tomás de Aquino († 1274) negaram a imaculada
conceição, porque não viam como a conciliar com a universalidade da Redenção. Admitiam, porém, que
Maria tenha sido purificada do pecado no seio materno, logo após a infusão da alma humana no
embrião.
7. Finalmente no século XIV interveio o franciscano João Duns Scotus († 1308). Este propôs o
conceito de Redenção preventiva, em virtude da qual Maria foi preservada de todo pecado graças aos
méritos de Jesus Cristo (e em previsão destes). Maria, como descendente dos primeiros pais, contraiu o
débito do pecado original, mas foi dispensada das conseqüências desse débito. Duns Scotus podia assim
afirmar que a imaculada conceição de Maria não constituiu uma exceção à obra salvífica de Cristo, mas,
ao contrário, manifesta por excelência a eficácia da obra redentora de Cristo. Eis palavras de Duns
Scotus:
“Mais augusto benefício é preservar do mal do que permitir a queda no mal, ainda que
com a intensão de livrar do mal. Se Cristo mereceu, para muitas almas, a graça e a glória na
qualidade de Mediador e Salvador, por que não pôde ter merecido a inocência para alguma
alma?”
(De Immaculata Conceptione B. Virginis Mariae, qu. 1.)
Scotus acrescenta pouco adiante: Deus não está condicionado pelo tempo: Ele pode ter aplicado
antes de Cristo os méritos que Cristo adquiriria pela sua morte e ressurreição.
Concretamente, a posição assumida por Scotus quer dizer que Maria não nasceu sem a graça
santificante, mas teve-a desde o início da sua existência no seio materno; quanto aos dons paradisíacos,
não se pode dizer o mesmo.
A explicação de Scotus foi decisiva. Os franciscanos a assumiram, contribuindo para que mais e
mais fosse aceita pelos teólogos. Prova disto é o ocorrido no Concílio de Basiléia em 1439: o cônego
João de Romiroy propôs que os Padres conciliares definissem como verdade de fé a Imaculada
Conceição de Maria; isto foi aceito, mas a decisão não logrou resultado, porque o Concílio deixara de
estar em comunhão com a Santa Sé.
Houve ainda resistência à fórmula de Scotus por parte dos dominicanos, que eram discípulos de
S. Tomás de Aquino; todavia mesmo entre estes registraram-se arautos da Imaculada Conceição.
No próximo Módulo continuaremos a história do dogma até a sua definição por Pio IX em 1854.
PERGUNTAS
1) Como se relacionam entre si Maternidade Divina, Imaculada Conceição e Assunção corporal
de Maria?
2) A Revelação das verdades de fé encerrou-se com Jesus Cristo? Como se explica que só
vários séculos após Cristo tenha havido definições dogmáticas? Existem novos dogmas após
Cristo?
3) Quais os principais obstáculos à compreensão da Imaculada Conceição?
4) Como se comportaram teólogos e povos simples frente a este privilégio de Maria?
5) Quem propôs a fórmula definitiva para dirimir as dúvidas sobre o assunto? Explique em que
consistiu essa fórmula.
1. O Concílio de Trento não abordou diretamente o tema, mas declarou não ser sua intenção
incluir a Virgem Imaculada dentro da universalidade do pecado original;130 Mandou a propósito
observar as constituições do Papa Sixto IV. Este, mediante duas Bulas (1477 e 1482), proibiu que os
teólogos, ao discordarem entre si sobre a Imaculada Conceição, se acusassem mutuamente de hereges e
adotou oficialmente em Roma a festa da Imaculada Conceição.
2. No século XVII, o Santo Ofício (encarregado das questões de fé em Roma), sob a orientação
dos dominicanos seguidores de S. Tomás de Aquino, desaprovava a expressão “Imaculada Conceição
da Virgem” e preferia que falasse da “Conceição da Virgem Imaculada”, Todavia em 1661 o Papa
Alexandre VII, mediante a Bula Sollicitudo, declarou-se em favor da Imaculada Conceição e proibiu
qualquer ataque a esta doutrina; explicitou a formulação do dogma em termos que de certo modo
anteciparam os de Pio IX em 1854. — O Papa Clemente XI em 1708 estendeu a festa da Imaculada à
Igreja inteira.
3. Uma vez encerrada a controvérsia, o Papa Pio IX houve por bem mandar estudar a fundo o
assunto em vista de uma eventual definição dogmática. Para tanto constituiu uma Comissão em 1848.
Em 1849 publicou a encíclica Ubi primum, pela qual consultava os bispos do mundo inteiro sobre dois
pontos: a Igreja, esparsa pelo orbe, acreditava que a doutrina da Imaculada Conceição era revelada por
Deus? — Era conveniente declarar essa proposição mediante solene pronunciamento do magistério? —
Dos 603 bispos residenciais (que falavam como pastores diocesanos), 546 responderam positivamente às
duas perguntas. Desta maneira era evidente a fé da Igreja.131
A bula definitória passou por oito redações. Finalmente, aos 8/12/1854 Pio IX proferiu a
definição dogmática:
130
Cf. DS, Enquirídio 1516 (792).
131
Notemos que não se tratava de uma “votação democrática”pois esta não constitui critério em matéria de teologia. Mas
trata-se de uma consulta para saber se a Igreja, como depositária da doutrina revelada, sob a guia do Espírito Santo,
considerava como artigo de fé a doutrina da Imaculada. — Neste caso, não há votação, mas expressão dos pastores, que
traduzem a fé de suas comunidades.
“Declaramos, pronunciamos e definimos que a doutrina que ensina que a Bem-
aventurada Virgem Maria, no primeiro instante de sua concepção, por singular graça e
privilégio de Deus Todo-Poderoso e em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero
humano, foi preservada imune de toda mancha da culpa original, é revelada por Deus e, por
isto, deve ser professada com firme e constante por todos os fiéis”
(Bula Ineffabilis Deus).
1) O texto da Bula não diz se a doutrina em foco foi explícita ou implicitamente revelada.
Depreende-se, porém, dos textos bíblicos adiante citados que se trata de revelação Implícita.
2) A razão aduzida em favor do privilégio de Maria são “os méritos de Cristo Salvador do
gênero humano”. Isto quer dizer que Maria foi remida e pertence à dispensação da graça obtida por
Cristo, muito mais rica do que a graça possuída pelos primeiros pais.
3) “Maria foi preservada de toda mancha da culpa original”. Note-se que nada foi dito a
respeito da questão: Maria terá sido preservada também de todas as conseqüências do pecado de Adão,
como são a dor da morte? Se Jesus mesmo quis ser isento destas, Maria também não o foi. Também
nada foi dito sobre a concupiscência em Maria: terá sido preservada das tendências desregradas que
existem nos demais filhos de Adão em conseqüência do pecado? Embora muitas petições tenham sido
levadas a Pio IX no sentido de uma tomada de posição a respeito, o Papa não quis pronunciar-se.
Resta porém, que Maria contraiu o débito do pecado, mas não o pecado mesmo. Esse débito não
constituiu mancha ou sombra alguma. Com efeito: se alguém impede outra pessoa de cair num pântano,
essa pessoa não é manchada pelo fato de que teria caído se não fosse a intervenção alheia.
Examinemos agora:
Antes do mais, observamos que não existe na S. Escritura algum texto que fale explicitamente da
Imaculada Conceição de Maria132
Apesar disto, a Igreja encontrou, no âmago das verdades reveladas, os fundamentos de tal
doutrina. Eis os textos citados pela Bula de Pio IX:
1) Lc 1, 28: Maria foi Kecharitoméne (= foi e permaneceu repleta do favor divino). O anjo não
disse “Ave Maria”, mas “Alegra-te, Kecharitoméne”, como se este fosse o nome próprio da Virgem. É
oportuno aproximar este texto do único outro texto do Novo Testamento em que ocorre o mesmo verbo:
“Bendito seja Deus... que nos agraciou (echarítosan) no Amado” (Ef. 1, 3.6). Maria vem a ser a
primeira e a mais enriquecida de todas as criaturas. Esta plenitude de graça está ligada à vocação de
Maria para ser Mãe do Filho de deus feito homem. O pecado, que é sempre um Não dito a Deus, não
cabe na existência de uma mulher que, por desígnio de Pai, é chamada a colaborar na vitória sobre o
pecado.
132
Não se pode tomar este fato como argumento para afirmar que a Imaculada Conceição não é uma verdade revelada.
Sabemos que foi aos poucos crescendo na Igreja a compreensão mais profunda dos dados implícitos na Escrituras; é o que se
chama o “desdobramento homogêneo do dogma”. Negá-lo seria empobrecer a Revelação Divina; seria reduzir-se à S.
Escritura apenas, como fazem os protestantes, dos quais cada um julga poder interpretar a Escritura segundo “o livre
exame”.
2) Gn 3, 15: O senhor promete inimizade entre a mulher e a serpente. É certo que, tomado ao pé
da letra, o texto se refere à única mulher do contexto, ou seja, a Eva. Todavia a mulher que, por
excelência, deu à luz a prole vencedora da serpente, é Maria SS. — Em Maria se torna pleno o sentido
de mulher ou de Eva (=Mãe dos vivos) de que fala Gn 3, 15. O texto também não fala explicitamente de
Jesus Cristo, mas refere-se à perene inimizade que na história existe entre a linguagem dos bons e os que
seguem o Tentador. São Paulo, porém, descobriu no primeiro Adão o tipo ou a figura do segunda Adão
(Cf. Rm 5, 14) e a tradição patrística descobriu em Eva o tipo ou a figura da segunda Eva (=Maria). Esta
tinha de ser santa e alheia ao pecado para resgatar a primeira Eva, que se entregara à palavra do tentador
e ao pecado; ela está em total inimizade com o sedutor e o pecado.
3) Lc 1, 31: “conceberás em teu seio”. Maria tornou-se, em grau vivo e pleno, o que eram a
tenda do Senhor no deserto e o Santo dos Santos no Templo de Jerusalém, Maria veio a ser também, em
ermos excelentes, aquilo que era “a cidade de Jerusalém, o monte Sion do Santo de Israel; essa morada
de Deus inanimada feita de pedras devia ser pura para que o Senhor deus nos tempos messiânicos nela
habitasse” 133. — Pois bem; mais importante do que qualquer santuário inerte é o santuário vivo de
Maria SS.. Em conseqüência, esta devia ser totalmente pura, isenta de qualquer mancha de pecado. Se o
santuário de Maria não foi santo desde o início de sua existência, ele foi um santuário já possuído por
outro Senhor (pelo Príncipe deste mundo; Cf. Jo 12, 31); o filho de Deus não teria podido reconhecer
nele a santidade e a beleza próprias de sua casa; contentar-se-ia com ser o “segundo” Senhor do seu
próprio Templo.
4) O povo de Israel, esposa do Senhor Deus. Ao pé do monte Sinai o povo de Israel foi
chamado a concluir uma Aliança com o Senhor, que o tirava do Egito. O dia em que isto se deu, foi
considerado dia de núpcias entre Deus e seu povo. Os rabinos muito refletiam sobre tal acontecimento:
afirmavam que o Senhor havia preparado Israel como esposa sem mancha para dizer o seu Sim à Lei de
Deus. Eis algumas das estórias dos mestres de Israel que ilustram este modo de pensar
Filon de Alexandria († 50 d.C.) ensina que os Judeus no Egito se haviam tornado réus de
transgressões 134 Por conseguinte, deviam ser purificados logo que saíssem da terra da escravidão; isto se
faria gradativamente até sanar todas as chagas assim adquiridas. Ora esta purificação se deu no deserto,
antes de chegarem ao monte Sinai. Uma vez lavados de suas faltas, puderam acampar ao pé da santa
montanha, trazendo vestes de uma brancura incomparável. Nessa alvura Filon via o reflexo das mentes
dos Judeus renovadas.135
O rabino Simeão ben Jochai († 150 d. C.) dizia que Israel saído do Egito, assemelhava-se ao filho
de um rei que se recupera de grave doença. Não poderia ir à “escola se não tivesse comido e bebido
durante cerca de três meses. Por isto Deus lhe propiciou água da rocha, maná e codornizes136. E no
terceiro mês após a saída do Egito, o Senhor lhes entregou a Lei 137. O mesmo rabino, segundo se conta,
afirmava que ao pé do Sinai não havia algum Israelita trôpego, surdo ou cego. A assembléia era
semelhante a uma esposa sem mancha, à qual o Esposo exclamava: “Como és toda bela, amiga minha!
Em ti não há mancha alguma ” (Ct 4, 7; Cf. Ct Rabbath 4, 7. 1).
Mais: o Talmud da Babilônia afirmava: “Quando a serpente foi ter com Eva, injetou-lhe a
concupiscência; mas, quando os Israelitas acamparam ao pé do Sinai, cessou a incontinência deles
(Shabbat 145 b). Naquele dia o mundo parecia ter retornado à inocência original. Israel era a mais
bela entre as nações e mostrava-se solícito para com a Lei do senhor (Me Hilta do Rabino Ismael, Jitro,
Bachodesh a Ex 20, 2). Israel era a esposa que procedia do deserto toda pura, abraçada por seu
amado” (Ct 8, 5 {LXX}).
133
Cf. Ez 37, 23-27.
134
Cf. Ezequiel 20, 7s; 23, 8. 19.27.
135
Cf. De Decálogo 10. 45.
136
Cf. Êxodo 16, 1-36; 17, 1-7.
137
Cf. Êxodo 19, 1; Ct Rabbath 2, 5. 1
Ora, os Padres da Igreja e os teólogos fizeram a transposição: o que a sinagoga dizia a respeito de
Israel, eles o disseram a respeito de Maria. Com outras palavras: assim como Deus purificou o seu povo
de toda culpa e fraqueza, para que estivesse em dignas condições de proferir o seu Sim às núpcias do
Sinai, assim Ele preservou Maria de toda mancha, a fim de que o Sim da Anunciação fosse mais belo e
alegre. Sem dúvida, porém, a ausência de pecado não dispensou Maria de viver do claro-escuro da fé;
ela teve que crer no mistério da Paixão e Morte de seu Divino Filho.
Outras figuras do Antigo Testamento poderiam ser citadas a partir das obras de teólogos antigos
e modernos. Nenhum delas constituí um argumento decisivo em prol da Imaculada Conceição de Maria.
Revelam, porém, a fé da Igreja (hierarquia, teólogos, e simples fiéis).O conjunto de explanações
baseadas direta ou indiretamente no texto bíblico é eloqüente de modo suficiente, para demonstrar que
no bojo da Igreja como Mãe e Mestra estava latente a crença na Imaculada Conceição de Maria; esta foi-
se manifestando aos poucos, através de altos e baixos, até ser explícita e oficialmente proclamada por
Pio IX em 1854.
A graça da Imaculada Conceição não foi um mero ornamento concedido por deus a Maria, mas
há de ser considerada dentro do mistério da Redenção e da Igreja.
É preciso contemplar cada verdade da fé no conjunto das demais verdades reveladas. Ora pode-se
dizer que a Imaculada Conceição possibilitou a Maria uma total entrega à obra de seu Filho em favor dos
homens. Sim; esta entrega total encontraria obstáculo no egoísmo do pecado. Maria, sendo cheia de
graça (ou do amor que a preservava de se fechar em si mesmo e em seus próprios interesses), pôde
entregar-se plenamente ao plano redentor do Pai. Pôde abrir seu coração, em nome da humanidade
pecadora, à salvação messiânica que o Pai oferecia ao gênero humano. Assim, a conceição imaculada de
Maria foi a preparação, arquitetada pelo próprio Espírito Santo, para tornar possível o Sim generoso da
Anunciação. É o que o Concílio do Vaticano II lembra:
“ Maria, filha de Adão, consentindo na palavra de Deus, foi feita Mãe de Jesus. E
abraçando a vontade salvífica de deus, com coração pleno, não retida por algum pecado,
consagrou-se totalmente como Serva do senhor à pessoa e obra de seu Filho, servindo com
Ele e sob Ele, por graça de Deus Onipotente, ao mistério da Redenção. Por isto é com razão
que os santos Padres julgam que Deus se serviu de Maria como de instrumento passivo, mais
afirmam que Maria cooperou para a salvação humana com livre fé e obediência.”
(Lumen Gentium n.º 56).
A graça concedida a Maria foi concedida em favor de todos os homens. O S. Padre João Paulo II
desenvolve esta reflexão: Maria está no centro da inimizade com a serpente antiga, em solidariedade
com todos os seus irmãos:
“Maria fica sendo... o sinal imutável e inviolável da escolha feita por Deus... Esta
escolha é mais forte do que toda a experiência do mal e do pecado... Na história da
humanidade Maria continua a ser um sinal de esperança segura”
(Redemptoris Mater 11).
Mais: a graça recebida por Maria sem mérito próprio da Virgem SS. nos diz que toda a história
da humanidade está sob o signo não da desgraça e da condenação, mas da misericórdia, mais forte do
que o pecado. Se nós caímos sob o domínio do pecado por fragilidade nossa, não estamos sujeitos, sem
remédio, a tal domínio. Somos as criaturas que Deus desde todo sempre ama, e que Ele procurou
recuperar na plenitude dos tempos, antes mesmo que alguém o pudesse merecer. O cristão é, portanto,
otimista e esperançoso quanto ao sentido da história. Verdade é que Maria foi preservada do pecado, ao
passo que nós fomos perdoados (ou recebemos o perdão). Todavia, no fundo, trata-se da mesma graça
divina: é a Redenção realizada por Cristo. Quando pedimos no pai-nosso: “Não nos deixeis cair em
tentação”, rogamos que Ele nos preserve como preservou Maria.
PERGUNTAS
1) Por que o Santo Ofício era contrário à doutrina da Imaculada Conceição de Maria?
2) O Papa Pio IX, ao definir o dogma em 1854, inovou alguma coisa? Impôs algo de inédito à fé
dos católicos?
3) Maria foi isenta de dores, de cansaço, de concupiscência desregrada (coisas que decorrem do
pecado dos primeiros pais, do qual ela foi preservada)?
4) Exponha dois textos bíblicos sobre os quais se apoiam a definição de Pio IX.
5) Que se entende por “desenvolvimento dogmático” ?
6) Qual o significado da Imaculada Conceição para o nosso conceito de Historia?
Como se vê, Santo Efrém dá ênfase à virgindade perpétua; a morte é mencionada simplesmente
como um fato.
S. Epifânio († 403) aborda o assunto, revelando incerteza:
“A Sagrada Escritura não diz se Maria morreu, se foi sepultada ou se não foi sepultada...
Conservou absoluto silêncio por causa da grandeza do prodígio, a fim de não deixar
assombrados os espíritos dos homens. Quanto a mim, não ouso falar disso. Conservo a
questão em minha mente e me calo”
(Panarion, Haer. 78, nm. 10s).
A seguir, Epifânio examina a hipótese do martírio cruento de Maria SS. (já que Simeão
predissera que uma espada lhe traspassaria o coração138); considera também a elevação gloriosa de
Maria aos céus conforme Ap 12, 1.14 e conclui:
“É possível que isto se tenha realizado em Maria. Mas não o afirmo de modo absoluto,
nem digo que permaneceu isenta da morte. Com efeito, a Sagrada Escritura se colocou acima
do espírito dos homens e deixou este ponto, na incerteza por reverência a essa virgem
incomparável, a fim de evitar qualquer conjetura baixa e carnal a respeito de Maria.
Morreu? Não o sabemos”.
Cita-se também como obra do século IV um sermão de Timóteo, presbítero de Jerusalém 139, que
cita uma tradição referente à imortalidade de Maria:
“Uma espada transpassará a tua alma! ... Destas palavras muitos concluíram que a
Mãe do Senhor, morta pela espada, obteve o fim glorioso que é o martírio. Mas não foi
assim. A espada metálica divide o corpo e não a alma. Nem era possível que tal acontecesse,
porque a Virgem, imortal até hoje, foi transladada a partir do lugar de sua ascensão por
Aquele que nela fez a sua morada”.
(Homilia sobre Simeão e Ana).
Como se vê, existia nos primeiros séculos a tendência a crer que Maria não morreu. Timóteo
admitia a Assunção da Virgem. Ao mesmo tempo, uma corrente gnóstica afirmava que Maria se
encontrava imortal, oculta em algum lugar da terra.
A fé do povo de Deus se exprimiu no estilo fantasioso dos apócrifos. Como sabemos, estes têm
semelhança com os escritos bíblicos, mas não foram reconhecidos como canônicos. Como quer que seja,
traduzem em linguagem exuberante o modo de pensar dos antigos. Eis, por exemplo, o que se lê no texto
atribuído a São João, “teólogo e evangelista”, texto que inspirou dezenas de relatos semelhantes:
Um anjo, que trazia uma palma na mão, foi anunciar a Maria o seu desenlace a verificar-se
dentro de três dias. A virgem rezou longamente em ação de graças, e deu a notícia a João. Este reuniu
os demais apóstolos, inclusive São Paulo. Na véspera da partida de Maria, São Pedro pregou à multidão
sobre o que devia acontecer. No terceiro dia apareceu o Senhor Jesus às 9 horas da manhã, Maria
agradeceu-lhe e entregou-lhe a sua alma. Jesus então deu a Pedro as instruções necessárias para que
fosse sepultada dignamente num sepulcro novo, e confiou a alma de Maria ao arcanjo São Miguel. A
seguir, desapareceu. Durante os funerais realizaram-se portentos (o Sumo Sacerdote judeu Júlio, por
exemplo, foi curado de uma doença e converteu-se). Três dias depois, Jesus desceu ao sepulcro de sua
mãe com os anjos; estes arrebataram o corpo envolvido em nuvens e o levaram para o paraíso, onde o
depositaram em cima da árvore da vida. Assim se lê diretamente no texto:
“O Senhor a abraçou, tomou a sua alma e a colocou nas mãos de Miguel, que a envolveu em
peles mais brilhantes do que se pode dizer. Nós, apóstolos, vimos a alma de Maria nas mãos de Miguel;
tinha perfeita aparência humana, mas não era nem masculina nem feminina; não tinha senão a
138
Cf. Lc 2, 55.
139
É difícil identificar esse Timóteo; pode ter sido posterior ao século IV.
semelhança do corpo de um esplendor sete vezes mais refulgente do que o sol. Três dias depois
desceram ao sepulcro Jesus, Miguel e Gabriel. Então o Senhor ordenou a Miguel que pusesse o corpo de
Maria sobre uma nuvem e o depositasse no paraíso. E, quando o corpo foi levantado, o Senhor mandou
aos apóstolos que fossem com Ele... Quando todos chegaram ao paraíso, depositaram o corpo de Maria
sobre a árvore da vida. Então Miguel apanhou a alma de Maria e a colocou de novo no respectivo corpo.
E o Senhor enviou mais uma vez os apóstolos ao mundo para pregarem a conversão e a salvação dos
homens”140.
Tal texto carece de valor histórico. Todavia exprime a fé do povo cristão, que deu ocasião a
alguns apócrifos intitulados Transitus Mariae (o translado de Maria), após o Concílio de Éfeso (431).
A afirmação da Maternidade Divina de Maria e de sua santidade (própria do templo de Deus) catalisou
as expressões da crença na vitória de Maria sobre a morte.
É geral entre os padres latinos a afirmação de que Maria morreu. Não negam a glorificação do
corpo de Maria, mas não chegam a pormenores relativos ao fim de vida da Virgem Santíssima.
Interessantes são as palavras de Santo Ambrósio († 397), que comenta a perseverança de Maria
ao pé da cruz de Jesus. Donde lhe vinha tanta coragem? Da sua fé na ressurreição com Jesus Cristo, diz
o Santo Bispo:
“Se ela morria com seu Filho, sabia que havia de ressuscitar com Ele, pois ela não
ignorava o fato misterioso de que havia gerado aquele que havia de ressuscitar”
(De Institutione Virginis 7, 49).
Observe-se como já então o Santo Doutor associava entre si a maternidade Divina e a vitória
sobre a morte.
Santo Agostinho († 430) fala com naturalidade da morte de Maria, aludindo a Jo 19, 27: “Confia
Ele sua Mãe ao discípulo, pis havia de morrer antes de sua Mãe Aquele que havia de ressuscitar antes
que sua Mãe morresse” 141.
Em suma, antes do século IV não há notícia do fim de vida terrestre de Maria. No século IV
aparece os primeiros testemunhos, que afirmam a morte física da Mãe de Deus, sendo que alguns
aventam a hipótese do martírio (por causa da espada de que fala Lc 2, 35). Após o Concílio de Éfeso
(431), que proclamou solenemente a maternidade Divina, foi aflorando no povo cristão a noção de que
Maria não esteve sujeita à deterioração que a morte inflige ao comum dos mortais, portadores de pecado.
Os Nestorianos144 celebram a morte de Maria em termos um tanto folclóricos, pois têm a Virgem na
conta de protetora dos vinhedos. O corpo de Maria estaria conservado intato, à espera da ressurreição
dos mortos.
Os sírios Jacobitas145 celebram a 15 de agosto a morte de Maria, como a dos santos, sem falar de
ressurreição ou de conservação do corpo da Virgem.
Foi esta obra do Pseudo-Agostinho que influiu decisivamente na teologia medieval latina, tornando a
doutrina da Assunção geralmente aceita (S. Tomás julgava que o autor do livro era realmente S.
Agostinho).
No Oriente os séculos VIII e IX ainda foram de incertezas. Mas ao lado dos hesitas houve
teólogos que afirmavam a Assunção corporal de Maria após a sua morte e ressurreição; tais forma S.
Modesto de Jerusalém († 634), S. Germano de Constantinopla († 733), S. André de Creta († 729), S.
Teodoro Studita († 826), S. Jorge de Nicomédia († 880). Todavia firmou-se a crença na Assunção
gloriosa, a tal ponto que o Imperador de Bizâncio Andronico II (1282-1328) promulgou um decreto que
consagrava o dia 15 de agosto como festa solene da Assunção gloriosa de Maria; a arte sacra, a teologia
e a piedade popular se fizeram ecos dessa crença implantada de modo geral.
Em nossos dias, os orientais ortodoxos professam, com unanimidade moral sempre mais
acentuada (apesar dos fluxos protestantes), a Assunção corporal de Maria como sendo objeto de antiga e
piedosa crença do povo cristão.
143
O paraíso era tido como um jardim maravilhoso escondido neste mundo mesmo ou fora dele.
144
Separaram-se da Igreja Católica após o Concílio de Éfeso (431), afirmando que em Jesus havia duas pessoas (a divina e a
humana) e duas naturezas.
145
Os Jacobitas são os Monofisitas da Síria. Derivam seu nome de Jacob Bar Addai, que foi o principal organizador das
respectivas comunidades, tendo sido ordenado bispo em 543.
“A carne da Virgem foi concebida em pecado original e, por isto, contraiu tais deficiências”
(entre as quais a morte146). Como vimos nos Módulos 17 e 18, antes de Duns Scotus († 1308) os
teólogos não ousavam afirmar a Imaculada Conceição, pois isto lhes parecia subtrair Maria à obra
redentora de Cristo147.
Com efeito, no século XVIII foi apresentada à Santa Sé a primeira petição em favor da definição
do dogma da Assunção de Maria; devia-se ao Pe. Cesário Shguanin († 1769), teólogo da Ordem dos
Servos de Maria. Seguiram-se-lhe muitas outras, provenientes de várias partes do mundo católico. No
século XIX destacaram-se as petições do Cardeal Sterkx e de Monsenhor Sanchez em 1849, bem como a
da rainha Isabel da Espanha, dirigidas ao Papa Pio IX. Argumentavam a partir da santidade e da
virgindade de Maria, como também em vista da participação de Maria na obra da Redenção na qualidade
de Mãe do Salvador; a esta santa Genitora convinha que o Filho prestasse a graça de especial vitória
sobre a morte.
No Módulo seguinte serão consideradas a definição dogmática com seus mais próximos
antecedentes e sua fundamentação bíblica; além do quê, se proporá o significado teológico de tal artigo
de fé.
PERGUNTAS
1) Por que a noção da Assunção corporal de Maria aflorou mais facilmente à consciência do
povo cristão do que a da Imaculada Conceição?
2) Que dizem a respeito do fim de vida terrestre de Maria os documentos dos séculos IV e V?
3) Que celebrava a Liturgia no Oriente e no Ocidente com referência ao fim terrestre de Maria?
4) Quais os argumentos aduzidos em prol da glorificação corporal de Maria?
5) Como os antigos e medievais resolviam a questão da morte ou da isenção de morte de Maria?
146
Cf. Suma Teológica III qu. 14, a. 3 ad 1.
147
Ademais é de notar que a isenção do pecado original não implicava necessariamente, para Maria, a isenção das
conseqüências do pecado original, quais são a dor e a morte.
148
Rm 5, 8; 1Cor 15, 24.26.54.57; Hb 2, 14s...
(Acta et Decreta Sacrorum Recentiorum, in Collectio Lacensis, t.7. Friburgo 1882, p. 868).
Centenas de outras petições foram levadas à Santa Sé até Pio XII (1939-58). Este Pontífice solicitou
então aos Padres jesuítas W. Heinrich e R. De Moos que compilassem e publicassem esses textos;
saíram do prelo dois volumes em 1942, trazendo as aspirações de 820 Bispos residenciais, 656 Bispos
titulares, milhares de presbíteros e Religiosos e milhões de leigos. Esta manifestação, muito sensível
levou Pio XII a consultar os Bispos da época a respeito da fé da Igreja no tocante à Assunção. A
primeiro de maior de 1946 Pio XII escreveu a carta Deiparae Virginis a todos os Bispos residenciais,
perguntando-lhes se a Assunção de Maria era tida pela Igreja como proposição de fé revelada e, em
caso positivo, se julgavam conveniente a respectiva definição. A reação a tal carta foi a seguinte:
Dos Bispos residenciais chegaram à Santa Sé 1191 respostas, isto é, 94% do total esperado; somente
de 86 sedes episcopais (geralmente das que se encontram em longínquas regiões de missão) nada
chegou. Contaram-se:
Respostas positivas: 1169, ou seja, 98, 2%.
Aceitavam a possibilidade da definição, mas duvidavam da sua conveniência: 16 Bispos, ou seja,
1,3%.
Duvidavam da própria possibilidade da definição: 6 Bispos, ou seja, 0,5%.
Tendo assim chegado à convicção de que a Igreja inteira, sob a direção do Espírito Santo, acreditava
que a Assunção de Maria estava contida no depósito da Revelação, Pio XII resolveu definir o dogma a
primeiro de novembro de 1950. Eis o teor da definição:
“Para a glória de Deus Todo-Poderoso, que outorgou à Virgem Maria a sua peculiar
benevolência; para a honra de seu Filho, Rei imortal dos séculos e vencedor do pecado e da
morte; para credenciar a glória dessa mesma augusta Mãe e para o gáudio e a alegria de
toda a Igreja..., pronunciamos, declaramos e definimos ser dogma revelado por Deus que a
Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminado o curso da sua vida terrestre, foi
assumida em corpo e alma à glória celeste” 149.
2) Se é graça , deve redundar em “glória de Deus onipotente e em honra do seu Divino Filho”. O
culto a Maria que esquecesse o termo supremo de toda religião (o louvor do Criador), seria falho; a
própria Virgem encaminha os homens ao Salvador (“Fazei tudo o que Ele vos mandar”,150)e a Deus Pai.
3) A definição não é a criação de um novo dogma. Nada acrescenta ao patrimônio da fé. Pio XII
enfatizou que se trata de uma verdade revelada por Deus (na Tradição oral e escrita) e reconhecida pela
Igreja, guiada pelo Espírito Santo. — Note-se que a definição recaiu sobre o fato de que se trata de um
artigo de fé revelado por Deus.
4) Pio XII não quis dirimir a questão da morte ou da imortalidade corporal de Maria. Por isto
usou a fórmula bem ponderada: “terminado o curso de sua vida terrestre”. Havia sim, no século XIX
forte corrente que apregoava a hipótese de Maria não ter morrido, pois isto decorreria da sua absoluta
isenção de pecado ou da Imaculada Conceição. Tal hipótese, porém, não correspondia à Tradição da
Igreja nem ao ensinamento dos teólogos nem ao magistério ordinário da Igreja. Por isto Pio XII não quis
entrar na questão; referiu-se apenas à glorificação celestial de Maria em corpo e alma, ficando a cada fiel
a liberdade de optar pela morte ou imortalidade corporal da Maria. Esta, em nossos dias, encontra
poucos defensores.
Vejamos agora
149
Bula Munificentissimus Deus, n.º 18.
150
Cf. Jo 2, 5.
Lição 2: A Fundamentação Bíblica.
Pio XII quis fundamentar a definição dogmática sobre a Sagrada Escritura lida na Tradição dos
Padres e dos teólogos da Igreja. É importante notar aqui que a Escritura não pode ser dissociada da
Palavra oral, que a acompanhou no decorrer dos séculos, manifestando-se através do magistério da
Igreja e dos fiéis que contemplaram a riqueza dessa santa Palavra. Muito a propósito diz a Constituição
Dei Verbum do Concílio do Vaticano II;
“Cresce a compreensão tanto das coisas como das palavras transmitidas, seja pela
contemplação e o estudo dos que crêem, os quais as meditam em seu coração 151, seja pela
íntima compreensão que experimentam das coisas espirituais, seja pela pregação daqueles
que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma seguro da verdade. A Igreja, pois,
no decorrer dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que
nela cheguem à consumação as palavras de Deus” (n.º 8).
Por conseguinte, sob a luz da fé da Igreja manifestada pelos Padres e teólogos, Pio XII quis reler
os textos seguintes:
Gn 3, 15: “Porei inimizade entre a mulher e a serpente”. Embora a única mulher do contexto seja
Eva, o papel de Eva a combater a serpente só é pleno em Maria . A Tradição referiu-se à nova Eva, que
acompanhou o novo Adão em sua vitória sobre o pecado e a morte. Em conseqüência, Maria
compartilhou o triunfo de Cristo sobre a morte, escapando à deterioração do sepulcro.
Ap 12, 1: “Um sinal grandioso apareceu no céu: uma Mulher vestida com sol, tendo a Lua sob
os pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas”. A mulher revestida de sol significa o povo de
Deus que gera o Messias e que tem a promessa da glória eterna; nesse povo Maria brilha como figura
primacial que dá à luz o Messias e é gloriosa por graça de Deus.
Ex 20, 12; Lv 19, 13: “Honra teu pai e tua mãe”. Os Padres da Igreja viriam neste preceito uma
razão de conveniência para fundamentar a Assunção de Maria. Era, sim, conveniente que o Filho desse o
exemplo de obediência à sua Mãe, preservando-a imune da deterioração do sepulcro.
O Salmo 45, 10-16 fala da rainha que é levada à presença do Rei e colocada à direita do mesmo.
Tal texto foi aplicado pelos Padres à Virgem SS. glorificada no palácio do Rei celeste.
Refletindo sobre estes textos, podemos dizer que nenhum deles, de per si, prova a Assunção
corporal de Maria. Todavia, como dito, a Revelação divina há de ser tomada como um todo que, por via
oral e via escrita, nos fala de Jesus Cristo e da sua vitória sobre o pecado e a morte. Esta vitória é
compartilhada por todo o povo de Deus segundo graus de santificação diversos e, em grau máximo, por
aquela criatura que o Salvador quis, de modo singular, associar à sua obra redentora na qualidade de
Mãe do Redentor. A Assunção de Maria está em relação harmoniosa com a sua Maternidade Divina e a
sua isenção de pecado, como nota Pio XII na Bula Munificentissimus Deus:
151
Cf. Lc 2, 19.51.
“Ela, por privilégio totalmente singular, venceu o pecado com a sua cooperação
imaculada. Por isto não esteve sujeita à lei de permanecer na deterioração do sepulcro nem
teve que esperar a redenção do seu corpo até o fim dos tempos” (n.º 3).
“A ti Deus, Rei do Universo, concedeu coisas que estão acima da ordem da natureza,
pois, assim como no parto Ele te conservou virgem, assim no sepulcro Ele conservou intato o
teu corpo e o glorificou com a divina transladação”152.
A Assunção de Maria não pode ser considerada como um fato isolado. Está inserida no contexto
da obra redentora realizada por Cristo através da Igreja. Conscientes disto, procuremos pôr em relevo a
conexão da Assunção com as grandes verdades da fé católica.
3.1. A maternidade de Maria não foi apenas uma realidade biológica, mas uma profunda
participação na missão salvífica de seu Filho. Toda mãe comunga, de algum modo, com as tarefas
importantes de seu filho. Por isto, dizem os teólogos, Maria, chamada a ser Mãe do Messias, se
entregou a tal tarefa, identificando-se, tanto quanto possível, com os propósitos de seu Divino Filho.
Esta identificação fundamenta a comunhão de sortes entre Jesus e Maria não somente no parecer sobre o
Calvário, mas também na vitória sobre a morte; Maria não foi vítima do império da morte no sepulcro,
mas escapou das garras da morte.
3.2. A Virgindade de Maria fez que Jesus não tivesse um pai terrestre. Donde se segue que tudo
o que era a carne de Maria. Por conseguinte, se a carne de Jesus havia ressuscitado, era conveniente que
a carne de Maria também fosse assim glorificada, acompanhando o Cristo vitorioso.
Outro aspecto da virgindade de Maria é posto em relevo por São João Damasceno († 749):
“Era necessário que aquele que no parto tinha conservado ilesa a sua virgindade, conservasse,
também, sem deterioração alguma, seu corpo após a morte”153.
3.3. A Graça santificante em Maria... A graça santificante, existente em todo cristão fiel, é uma
semente da bem-aventurança celeste ou uma semente de ressurreição e de vida plena. A glorificação dos
nossos corpos, no fim dos tempos, não será algo de artificialmente acrescentando à nossa realidade
íntima: será o pleno desabrochamento da semente da graça existente no cristão fiel peregrino. Em Maria
esse desabrochar foi antecipado; não esperou o fim dos tempos, mas ocorreu logo após a caminhada
terrestre.
3.4. A possível morte de Maria. Não se considere a morte apenas como ruptura ou como algo de
abominável. O cristão que associa a sua morte à morte de Cristo154, participa da expiação dos pecados do
mundo efetuada por Cristo. A morte se torna então a mais radical renúncia ao pecado e a abertura para a
vida plena. É uma plenitude que Jesus transfigurou, pois dela fez o mais perfeito ato de entrega da
criatura ao Pai155; ela vem a ser o supremo ato de fé do cristão. Disto se pode deduzir que Maria
experimentou a morte; ela foi remida por Cristo e deve ter realizado, como os demais seres humanos,
esse supremo ato de fé e entrega que os homens redimidos fazem quando passam pelo transe da morte.
152
Citado pela mesma Bula n.º 8.
153
Bula Munificentissimus Deus, n.º 9.
154
Cf. Rm 6, 5s.
155
Cf. Lc 23, 46.
Quem afirma “direito”, de Maria, de não morrer, talvez só leve em conta o aspecto de pena e
castigo da morte, sem dar o devido valor à grandiosidade da morte do cristão quando unida à morte de
Cristo.
3.5. Com relação à Igreja. Maria exaltada na glória celeste é protótipo; ela representa desde já
aquilo que tocará a cada cristão na consumação da história; ela é em plenitude aquilo que esperamos ser
um dia dentro dos limites da nossa pobreza; ela desperta e aviva em nós a esperança, pois põe em relevo
nítido o que é seguir o Cristo passo a passo na terra até provar o cálice da morte com Ele. É o Concílio
Vaticano II que nos diz:
“A Mãe de Jesus, tal como está nos céus, já glorificada de corpo e alma, é a imagem e
o começo da Igreja como deverá ser consumada no tempo futuro. Assim também brilha aqui
na terra como sinal da esperança segura e do conforto para o povo de Deus em peregrinação
até que chegue o Dia do Senhor156”
(Lumen Gentium n.º 68).
PERGUNTAS
Nos Módulos anteriores acompanhamos Maria em sua Conceição Imaculada (ao iniciar sua vida
terrestre) e em sua Assunção corporal (ao terminar seu curso de vida terrestre). Consideramos agora o
papel de Maria glorificada em relação à Igreja ou aos membros que Jesus Cristo associa ao seu Corpo
Místico através dos séculos. Dizemos que esse papel é o de Maternidade orante ... orante em prol dos
fiéis peregrinos na terra.
156
Cf. 2Pd 3, 10.
Partimos do fato de que não existe graça meramente individual ou graça dada a um indivíduo
para esse indivíduo apenas. Toda graça tem valor comunitário, pois pertencemos todos a uma grande
família, na qual quem se enriquece de bens espirituais, enriquece a família inteira. Como?
Não há dúvida de que “só existe um Mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus,
que se deu em resgate por todos” 157. Salva esta verdade, verificamos que desde o Antigo Testamento
Deus quis chamar homens e mulheres para levar a termo, como mediadores, a salvação destinada a todo
o povo. O título de mediador é explicitamente aplicado por São Paulo a Moisés em Gl 3, 19: “foi
mediador da lei”, mas também mediador da saída do Egito, da Aliança, e intercessor em favor do
povo158; Foram também chamados a exercer um ministério de mediação: Abraão, que intercedeu pelas
cidades depravadas159; os levitas, que ofereciam o sacrifício pelo povo e pediam para este a bênção do
Senhor160; os profetas, portadores da Palavra de Deus e intercessores em favor do povo161.
Assim também no Novo Testamento, os cristãos são chamados a interceder uns pelos outros162, a
fim de que cheguem ao conhecimento da verdade e se salvem; Deus quer salvar uns mediante os outros.
“Uma alma que se eleva, eleva o mundo inteiro”163. Não têm valor as palavras de Caim, que
perguntavam se era guarda do seu irmão, que perguntava se era guarda do seu irmão, como quem se
isenta de responsabilidade164. Essa mediação, longe de negar ou diminuir a intervenção singular do
Filho de Deus, põe-na em evidência; é por efeito da mediação sacerdotal e única de Cristo que o cristão
pode fazer algo em prol do seu irmão. O Senhor exerce sua mediação servindo-se daqueles que Ele
livremente quer associar à sua obra em favor dos homens.
É sobre este pano de fundo que se coloca a intercessão materna ou medianeira de Maria em favor
dos homens peregrinos.
A função de intercessora, que cabe a todo cristão em prol dos seus irmãos, toca a Maria de modo
especial, pois ela ocupa um lugar único na Comunhão dos Santos; é a Mãe do Redentor e, por extensão,
Mãe de toda a humanidade, que Jesus lhe confiou pouco antes de morrer 165. Como toda mãe na família
desempenha uma função peculiar, Maria a desempenha na Igreja. O fundamento dessa função é a
relação de Maria com Jesus, relação que não se limita ao indivíduo Jesus Cristo (pois este nunca existiu
senão em função da humanidade pecadora), mas se entende ao Cristo total (cabeça e membros do Corpo
Místico, Redentor e remidos. Cristo e Igreja). É o Concílio Vaticano II que o diz:
157
1Tm 2, 5.
158
Cf. Ex 32, 11s. 31.34.
159
Cf. Gn 18, 22-23.
160
Cf Nm 6, 22-27.
161
Cf. 1Sm 7, 7-12; 12, 19-23; Am 7, 1-6; Jr 15, 1.
162
Cf. 1Tm 2, 1-4.
163
João Paulo II, Exortação sobre a Reconciliação e Penitência, n.º 16.
164
Cf. Gn 4, 9.
165
Cf. Jo 19, 25-27.
homens de modo nenhum obscurece ou diminui a mediação única de Cristo, mas até
manifesta a sua eficácia. Com efeito, todo o salutar influxo da Bem-aventurada Virgem em
favor dos homens... se origina do divino beneplácito. Decorre dos superabundantes méritos
de Cristo, repousa na mediação de Cristo; dela depende inteiramente e dela tira a sua força.
De modo nenhum impede, mas até favorece, a união imediata dos fiéis com Cristo”
(Lumen Gentium n.º 60.)
O Santo Padre João Paulo II dizia o mesmo aos 12/12/1981, comemorando o 450º aniversário das
aparições de Nossa Senhora de Guadalupe:
Com outras palavras ainda: se durante a sua vida mortal Maria teve como missão cuidar de Jesus,
guiá-lo e orientá-lo, atualmente este cuidado se volta, de maneira própria ao seu própria ao seu estado
glorificado, em favor do resto do Cristo total ou em favor dos membros do Corpo Místico de Cristo que
ainda peregrinam na terra. Por isto a Igreja a interpela como intercessora ou como Maternidade orante e
a contempla a imagem da consumação que esperamos alcançar.
Desde os primeiros tempos, a Igreja invocou Maria como intercessora. Lembremos a oração que
já se proferia no século III: “À vossa proteção recorremos Santa Mãe de Deus; não desprezeis as nossas
súplicas as nossas súplicas em nossas necessidades, ma livrai-nos sempre de todos os perigos, Virgem
gloriosa e bendita”. Também as imagens da Virgem, ao menos a partir do século VI, a representam com
as mãos estendidas na posição de orante e advogada do gênero humano. Começou então a ser usado o
título de “Medianeira” para designar essa função de Maria. Tal título tornou-se sempre mais freqüente a
partir do século XII, mas somente a partir do século XVII se elaborou a doutrina respectiva. No século
XX, finalmente, os teólogos se dedicaram a aprofundar o sentido de tal expressão mariológica.
Todavia o Concílio do Vaticano II não quis tomar posição, pois a doutrina ainda apresentava
pontos obscuros; ademais os padres conciliares e seus teólogos viam claramente que tanto o título de
“Medianeira de todas as graças” quanto o de “Co-Redentora” eram ambíguos e podiam suscitar mal-
entendidos entre os fiéis católicos, assim como distanciamento dos protestantes, que o Concílio queria
aproximar da Igreja Católica. A piedade mariana na primeira metade do século XX tendia a exageros ou
a afirmações pouco fundamentadas na Escritura sagrada e na Tradição.
Por ocasião da redenção do capítulo VIII da Constituição Lumen Gentium, referente a Maria, um
dos pontos mais discutidos foi precisamente o título de “Medianeira”. O Concílio, que não tencionava
definir proposições dogmáticas, acabou por não se pronunciar a respeito de tal expressão. Serviu-se de
expressões claras e já aceitas para indicar o papel de Maria na Igreja: “Maternidade espiritual” “missão
maternal” “intercessão”...Eis o que se lê no & 62 da referida Constituição:
Com efeito; nenhuma criatura jamais pode ser colocada no mesmo plano com o Verbo
Encarnado e Redentor. Mas, como o sacerdócio de Cristo é participado de vários modos seja
pelos ministros, seja pelo povo fiel, e como a indivisa bondade de Deus é realmente difundida
nas criaturas de maneiras diversas, assim também a única mediação do Redentor não exclui,
mas suscita nas criaturas uma variegada cooperação, que participa de uma única fonte.
A Igreja não hesita em proclamar essa função subordinada de Maria. Pois sempre de
novo a experimenta e recomenda-se ao coração dos fiéis para que, encorajados por esta
maternal proteção, mais intimamente dêem sua adesão ao Mediador e Salvador”.
É de notar, neste texto, a afirmação de que “nenhuma criatura jamais pode ser colocada no plano
do Verbo Encarnado”. A função materna e intercessora de Maria, portanto, não decorre de alguma
insuficiência da obra salvífica de Cristo, nem é algo de necessário por causa de alguma pretensa
limitação dos méritos de Cristo, mas depende unicamente do beneplácito do Senhor Deus, que quer
elevar sua Mãe à qualidade de especial mediadora (como, de resto, em grau inferior são mediadoras as
outras criaturas por efeito do beneplácito divino).
Mais: a mediação de Maria em favor dos homens recobre a fase da história que vai da Assunção
até o fim dos tempos. Não se estende à época anterior a Cristo nem atinge a redenção ou salvação dos
seres não humanos. A expressão “Medianeira de todas as graças” ou “Medianeira universal” é
atualmente posta de lado pelos teólogos, pois poderia insinuar uma indevida aproximação de Maria a
Jesus Cristo.
A mediação de Maria é reconhecida pela Igreja muito particularmente em vista de duas grandes
intenções ou tarefas, que estão muito profundamente situadas no coração dos fiéis católicos:
2) a nova evangelização. Eis palavras de Paulo VI: “Na manhã de Pentecostes Maria presidiu,
em oração, ao iniciar-se da evangelização sob a ação do Espírito Santo; seja ela a estrela da
evangelização sempre renovada, que a Igreja, obediente ao mandato do Senhor, deve promover e
realizar, sobretudo nestes tempos difíceis, mas cheios de esperança” (Evangelii Nuntiandi nº 82).
Neste Módulo foi assim exposto o sentido que possa ter, numa genuína concepção católica, a
Mediação de Maria em favor dos homens. No próximo Módulo a doutrina será completada pelo estudo
do título “Co-redentora”, que foi proposto juntamente com o de “Medianeira de todas as graças”.
PERGUNTAS
Perguntamos agora: como definir mais precisamente a cooperação ativa de Maria na obra da
Salvação?
1) Em relação a seu Filho viandante na terra, Maria exerceu uma colaboração ativa, não no
sentido de haver concorrido diretamente para obter-nos as graças da Redenção, como se fosse um
segundo princípio redentor ao lado de seu Filho, compartilhando com Ele a salvação do mundo. Esta
modalidade é excluída, para que fique muito claro que só há um Redentor e Salvador; Maria é criatura
remida por Cristo. Mas, se Maria recebeu a missão de Mãe, coube-lhe a função ativa em relação ao Filho
peregrino entre os homens, como explica a mesma Constituição Lumen Gentium:
“Mais do que as outras criaturas, Maria foi a generosa companheira e humilde serva
do Senhor. Ela concebeu, gerou, nutriu a Cristo, apresentou-a ao Pai no templo, compadeceu
com seu Filho, que morria na Cruz. Assim de modo inteiramente singular, pela obediência, a
fé, a esperança e o ardente amor, Ela cooperou na obra do Salvador para a restauração da
vida sobrenatural das almas. Por tal motivo Ela se tornou para nós Mãe na ordem da graça”
( n.º 61).
2) Maria coopera atualmente, após a sua glorificação celeste, para a aplicação dos frutos da
Redenção aos homens na qualidade de intercessora materna. Maria foi remida de modo
excepcionalmente fecundo não em proveito dela mesmo apenas, mas a fim de desempenhar uma função
própria na aplicação da salvação. É o que vimos no módulo anterior a este.
3) Toda a cooperação de Maria é subordinada a Cristo. Maria só tem valor no plano do Pai por
causa de Cristo. Nunca a veneraríamos se não fosse em vista de Cristo; só conhecemos Maria através de
Cristo. Por isto pode-se formular a autêntica piedade mariana nos seguintes termos: “O Cristão deve
procurar ser, para Maria, um outro Jesus”. Isto quer dizer: o objetivo primeiro do cristão é configurar-
se a Cristo, o primogênito entre muitos irmãos, como diz S. Paulo em Rm 8, 29. Todavia, quanto mais o
cristão se configura a cristo, tanto mais ele se deve saber filho de Maria, devotado a Maria como filho, à
semelhança do irmão mais velho, que era todo Filho do Pai (como Deus) e Filho de Maria (como
homem. Com outras palavras: o cristão chega a Maria através de Jesus e em função de Jesus; para o
cristão nada é anterior a Cristo. Estes dizeres, se de um lado relegam a devoção a Maria para um plano
subordinado a Cristo, de outro lado, mostram que é, de certo modo, obrigatória; não é uma devoção
entre outras, a critério do fiel, mas é a grande Devoção, que decorre necessariamente do ser configurado
a Cristo, que é o ser de todo cristão.
A função de Maria até aqui exposta tem sido expressa pelo vocábulo “Co-redentora”.
Lição 2: Co-redentora
No século X aproximadamente entrou em uso o termo Redemptrix (Redentora) aplicado a Maria
SS. O vocábulo era impreciso e ambíguo. Por isto a partir do século XV (a quanto parece) os teólogos
preferiam dizer “Co-redentora”, título este que se foi propagando, embora tenha provocado hesitação e
contestação da parte de bons autores, principalmente nos últimos tempos.
Nenhum documento de índole magisterial na Igreja usou a palavra Co-Redentora até nossos
dias. Ela aparece, porém, em textos de importância subalterna, provavelmente por influxo de
determinadas correntes teológicas. Assim:
c) em 1914 a mesma Congregação concedeu cem dias de indulgência a quem recitasse uma
oração de “Reparação à Bem-aventurada Virgem Maria”, oração que mencionava a “Co-Redentora do
gênero humano”.
O Papa Pio XI usou tal título na oração de encerramento do ano da Redenção em 1933, assim
como em três discursos dirigidos a grupos diferentes nos anos de 1933, 1934 e 1935.
Depois de Pio XI, nenhum Papa recorreu à controvertida expressão. Bons teólogos foram
evidenciando a ambigüidade dos títulos de “Co-Redentora” e “Medianeira”, e os mal-entendidos que
podiam suscitar, embora sejam suscetíveis de correta interpretação. O Concílio do Vaticano II aplicou a
Maria o predicado de Mediatrix (Medianeira) na Constituição Lumen Gentium nº 62, não, porém, o de
“Co-Redentora”.
Em conclusão, a Teologia hoje recusa o uso dos dois termos referidos (não porque sejam
errôneos, mas porque passíveis de má interpretação), embora reconheça que Maria foi associada à obra
do Redentor e é cooperadora da Redenção.
Examinemos agora os quatro momentos da vida de Maria em que essa colaboração mais se
exerceu.
A cooperação de Maria com o Redentor caracterizou toda a sua existência desde a Anunciação
do Anjo. Teve, porém, e tem seus pontos culminantes.
Maria se entregou ao desígnio de Deus, embora ignorasse o que isso acarretava de renúncias
concretas. Maria viveu da fé, e foi descobrindo aos poucos todo o alcance da sua missão.
2) Nas Bodas de Caná (Jo 2, 1-12) Maria concitou os servidores a fazer tudo o que Jesus lhes
mandasse (Jo 2, 5). Esta ordem de Maria faz eco a numerosas passagens do Antigo Testamento em que
se diz ao povo de Israel que faça tudo o que o Senhor lhe manda; este preceito ocorre por ocasião da
entrega da Lei mediante Moisés como também quando se trata de renovar a Aliança com o Senhor. Ver
Ex 19, 3-8; 24, 3-7; Dt 5, 27; Js 24, 1-15; 2Rs 23, 1-8; 1Mc 13, 2-9. Maria aparece, nas bodas de Caná,
como aquela que impele os homens a participar da obra de salvação do Messias. O S. Padre João Paulo
II o comenta:
“A Mãe de deus não somente exprime e leva a termo a atitude do povo da Antiga
Aliança; a sua intervenção em Caná suscita também a fé dos discípulos. A fé de Maria está na
origem do sinal que Jesus realizou, e prepara os discípulos para acolher a manifestação da
sua glória e crer nele. Por conseguinte, Ela assume um papel de guia no surto da comunidade
de fé e que começa a se formar em torno de Jesus. Deste modo a vida de Maria está
claramente orientada para o serviço do Filho de Deus e de sua missão”
(Discurso do Angelus, 29, 01/1984).
“A Virgem não sofreu em favor dela mesma, pois era a toda formosa, a sempre
imaculada; sofreu em favor de nós, como Mãe de todos. Como Cristo carregou sobre si
nossos sofrimentos e levou sobre si as nossas dores (Is 53, 4), assim também Ela sentiu o peso
das dores de parto de uma maternidade imensa, que nos regenera em Deus. O sofrimento de
Maria, nova Eva, ao lado de Cristo, o novo Adão, foi e é o caminho real da reconciliação do
mundo”
(Discurso do Angelus, 01/04/1984).
Na sua carta sobre a Dor Salvífica (11/02/1984) o S. Padre alude ao sofrimento de Maria em
termos muito enfáticos:
4) A Missão de Maria nos inícios da Igreja. O livro dos Atos dos Apóstolos refere que Maria
acompanhava os apóstolos no Cenáculo, rezando com eles na expectativa do Espírito Santo. Disto se
depreende que, mesmo após a Ascensão do Filho, Ela continuava presente na Igreja prolongando sua
missão de intercessora. O S. Padre o acentua em sua homília de 1º /01/1984:
“Sabemos que o caminho dessa missão de Maria, uma vez iniciado na história da
humanidade, permanece para sempre. Ele possibilita, através da história da humanidade, a
missão salvífica do Filho de Deus — missão que se consuma na Cruz e na Ressurreição. E
juntamente com a missão do Filho permanece na história da humanidade a maternidade
salvífica da sua Mãe Maria de Nazaré”.
Paulo VI, por sua vez, lembra o papel de Maria orante, que acompanha toda a história da Igreja:
Eis os quatro pontos culminantes de Missão de Maria como colaboradora do senhor Jesus na obra
da Redenção. Tal colaboração não deve fazer esquecer que Maria é remida... remida de modo excelente,
de modo que a sua missão é efeito e fruto de Redenção de cristo a Ela aplicada.
PERGUNTAS
1) Como entender que Maria tenha sido associada a seu Filho na Redenção do mundo?
2) Que dizer do título “Co-redentora”? pode ser aplicado as Maria?
3) Pode-se falar de “um parto doloroso mediante o qual Maria se tornou a Mãe dos homens”?
4) Queira comentar a atitude de Maria nas Bodas de Caná.
5) Que significado tem a presença de Maria junto aos Apóstolo no dia de Pentecostes?
Lição 1: Os Fatos
Desde o século XVI tem-se notado, com maior freqüência do que antes, o fenômeno “aparições”.
Assim em 1531 em Guadalupe a Virgem SS. terá aparecido ao índio Juan Diego; em 1858 em Lourdes
(França) a Sta. Bernadete Soubirous; em 1917 em Fátima (Portugal) a três pequenos pastores. No Brasil,
a partir de 1960 registram-se os casos seguintes:
1. 1960: em Erechim, Rio Grande do Sul, Nossa Senhora da Santa Cruz se estaria manifestando a
Dona Dorotéia .
2. 1967 - 1977: Nossa Senhora da Natividade teria aparecido ao Dr. Fausto Faria, em Natividade,
Rio de Janeiro.
4. 1987 - 1988: Alfredo Moreira teria visto Nossa Senhora da Obediência e dela recebido mensagens,
em Congonhal, Minas Gerais.
5. 1988: um grupo de crianças estaria vendo Nossa Senhora e recebendo dela mensagens, em
Taquari, Rio Grande do Sul.
6. Após 1988 até nossos dias numerosos são os casos que vão sendo registrados.
Além desses. Citam-se, no Brasil, muitos outros relatos de fatos extraordinários, como o de Dona
Edelmira de Paiva Nunes: o forro de sua casa desabou, deixando intacta a imagem de nossa Senhora;
vários romeiros teriam visto a Imagem de Nossa senhora da Penha lacrimejar, no Rio, 1984; a Igreja de
Nossa Senhora, Rosa Mística, em juíz de Fora, teria vertido água; o altar de Nossa Senhora, Rosa
Mística. Em Jacarezinho, no Paraná, também teria vertido água, em 1987; o mesmo teria acontecido em
Oliveira Fortes, Minas Gerais, com três quaresmeiras.
Fora do brasil, o historiador Yves Chiron contou no século XX até 1993 um total de 362
aparições de Nossa Senhora166. Sobre a grande maioria destas a Igreja não se pronunciou.
Sobre quatro delas o bispo da diocese onde se deu o fenômeno, proferiu um laudo favorável,
aceitando que Nossa Senhora tenha aparecido no local (o que não implica em novo artigo de fé). São as
aparições de Fátima em Portugal (1917), de Beauring na Bélgica (1932), de Banneux na Bélgica (1933),
e de Betânia na Venezuela (1976).
Sobre onze dessas aparições o laudo da Igreja permite o culto no lugar do fenômeno ou até
mesmo a construção de um santuário, o que eqüivale a um reconhecimento indireto da genuinidade das
aparições (sem que isto constitua novo artigo de fé). É o caso de Tung Lu na China (1900), de Heede-im
- Emland na Alemanha (1937), de Wangen/ wigratzbad na Alemanha (1938), de Mariemfrid na
Alemanha (1940), de Codosera na Espanha (1945), de Tre Fontane em Roma (1947),, de L’lle-Bouchard
na França (1947), de San Vittorino Romano na Itália (1967), de Kibeho em Ruanda (1981) de San
Nicolas na Argentina (1983).
Sobre setenta e nove fenômenos de aparição foi preferida decisão negativa após o devido
inquérito. Entre outros, estão os casos de Bouxières-aux-Damas na França (1936), Amsterdã na Holanda
(1945), Urucaina no Brasil (1947), Garabandal na Espanha (1961)...
A decisão negativa pode ser pronunciada pelo Bispo diocesano ou pela Congregação para A
Doutrina da Fé. significa que não consta haver, no caso, um fenômeno transcendental; às vezes mesmo
consta haver explicação natural (parapsicológica) para o mesmo, sem que por isto haja desonestidade da
parte do (s) “vidente (s)”. Pode acontecer também que a palavra do Bispo diocesano seja apenas um
apelo à cautela dos fenômenos alegados, o que importa em dizer que não há aí indícios de
transcendentalidade.
166
Yves Chiron, Enquête sur les Apparitions de la Vierge. Perrin-Mame 1995.
Explicitemos mais pormenorizadamente a atitude da Igreja diante dos fenômenos em pauta.
2. 1. O Inquérito
A Igreja crê na possibilidade a aparições do Senhor e de seus Santos, pois a própria Escritura
atesta a ocorrência de autênticas aparições. Assim São Paulo, na estrada para Damasco, foi
impressionado por uma visão do Senhor, que o chamava à conversão 167. São Pedro teve uma visão antes
de ir à casa do centurião Cornélio.168 S. Estevão, antes de morrer, viu a glória de Deus e Jesus à direita
do pai169 Todavia, antes de se pronunciar a respeito de alguma aparição, a Igreja é cautelosa; manda
examinar cada caso criteriosamente, pois sabe que muitas vezes os fiéis, com toda a boa fé, podem
imaginar estar vendo e ouvindo o que não passa de projeções de sua fantasia.
O exame determinado caso pode chegar a uma das três seguintes conclusões:
1) O título é negativo, pois verifica que, da parte dos (as) videntes, há debilidade mental, fantasia
exuberante, desonestidade, charlatanismo ou simplesmente manifestações de psiquismo exaltado. Este
último foi o caso das visões de Garabanda (Espanha). A Igreja também se pronunciou negativamente
sobre as “revelações” do senhor a Sta. Brígida.
2) O laudo registra frutos positivos no plano espiritual e físico (conversões, afervoramento, curas
de doenças e outros benefícios...), ao passo que nada desabona a saúde mental e a honestidade de vida
dos (as) videntes. Em tais casos, a Igreja não somente permite, mas favorece o culto ao senhor ou ao (à)
Santos (a) que se julga ter aparecido. Daí o culto a Nossa Senhora de La Salette. A Nossa Senhora de
Lourdes , de Fátima... havendo a festa respectiva no calendário litúrgico da Igreja. Note-se bem: embora
a Igreja favoreça o culto a Nossa Senhora em tal lugar, ela nunca diz, nem dirá, que a Virgem SS.
apareceu; o
fenômeno “aparição” não pode ser definido pela Igreja como verdade de fé. A revelação pública e de
fé está encerrada com a geração dos Apóstolos; nenhum artigo pode ser acrescentado ao Credo. Assim
escreve o Concílio do Vaticano II em sua constituição Dei Verbum n.º 4:
O Papa Bento XIV (11740-1758) publicou as seguintes observações a respeito dos fenômeno
extraordinários:
167
Cf. At 9, 3-9
168
Cf. At 10, 9-11
169
Cf. At. 7, 55s
170
Cf 1Tm 6, 14 e Tt 2, 13.
Com outras palavras: Bento XIV quer dizer que a dita “aprovação” da Igreja não é senão uma
permissão; atesta que os fenômenos alegados não estão em desacordo com a fé, os costumes e a missão
da Igreja. Não pedem adesão de fé divina ou católica171, mas pode suscitar a fé humana, fundamentada
no testemunho fidedigno dos videntes ou na experiência pessoal (conversão à fé, afervoramento...) de
quem aceita esse testemunho.
3) Pode também a Igreja abster-se, de modo geral, de qualquer pronunciamento a respeito dos
fenômenos e do culto prestado em decorrência dos mesmos. É o que acontece na maioria dos casos: não
há motivos para condenar os fenômenos relatados; nem a saúde mental dos(as) videntes dá lugar a
suspeitas nem as mensagens apresentadas por elas contêm alguma heresia ou erro na fé. A Igreja
considera os frutos pastorais que decorrem de tais mensagens: muitos fiéis se beneficiam peregrinando a
tal ou tal lugar ou santuário; aí se convertem, recuperam ou adquirem o hábito da prática sacramental, da
oração... Em consideração desses frutos, a Igreja deixa que a piedade se desenvolva até haver razões de
ordem doutrinária ou moral que exijam algum pronunciamento.
Essa atitude da Igreja, que não aprova nem reprova (por falta de razões objetivas para tanto), mas
que permite o culto no local das ditas aparições, é apregoada por mais de um documento da Santa Sé.
Assim, por exemplo, escrevia Pio IX aos 2/5/1877:
“Essas aparições ou revelações não foram aprovadas nem condenadas pela Santa Sé.
Foram apenas aceitas como merecedoras de piedosa crença, com fé puramente humana, em
vista da tradição de que gozam, também confirmada por testemunhas e documentos idôneos”
(citado na encíclica Pascendi nº 57, do Papa Pio X).
Quando não incorrem erro no tocante à fé ou à Moral, os fenômenos extraordinários têm alto
potencial evangelizador, que merece respeito e não pode ser deixado de lado. Aos pastores compete, de
um lado, confirmar os irmãos na fé, e, de outro lado, ajudar os fiéis a superar a demasiada credulidade,
para que esta não venha a ser um fator de descrédito da própria mensagem cristã.
Em conseqüência verifica-se que, enquanto a Igreja não se pronuncia em contrário, fica a critério
de cada fiel optar pelo Sim ou pelo Não diante de um fenômeno maravilhoso. Não há por que acusarem
uns aos outros de credulidade vã ou de incredulidade. Seja respeitada a liberdade de opção de cada um.
Todavia os teólogos propõe elementos que os fiéis devem levar em consideração para formar a
sua consciência frente ao fenômeno contemporâneo das aparições.
171
A fé divina e católica é a fé que há de ser prestada a Deus por todos os fiéis.
Verifica-se que várias das mensagens atribuídas a Nossa Senhora em nossos dias são marcadas
por forte pessimismo. Descrevem a situação do mundo atual em termos apocalípticos: o demônio estaria
solto, a corrupção generalizada, os castigos de Deus seriam iminentes, implicando catástrofes de âmbito
mundial, condenação dos pecadores e salvação para os justos. Não raro são indicadas as datas dos
flagelos, a sua duração, os meios de lhes escapar e outros pormenores estarrecedores... Sobre este pano
de fundo pedem-se oração e penitência. Este pedido final é excelente, embora as práticas indicadas nem
sempre pareçam as mais condizentes com a Tradição cristã. Todavia o teor pessimista da mensagem e as
profecias respectivas, assim como a multiplicação de casos ditos de aparição, levam os teólogos e
pensadores a propor algumas ponderações:
1) o mundo está vivendo uma situação de crise e generalizada: fala-se de fim de uma era ou de
uma civilização — o que suscita em muitas pessoas uma forte sensação de insegurança e medo. Tem-se
a impressão de que os valores clássicos fracassaram, os recursos tradicionais da economia, política, da
sociologia, da pedagogia... estão gastos; muitos esperam espontaneamente uma solução milagrosa
proveniente de fontes não convencionais (“só Deus dá um jeito”, diz-se popularmente).
3) O Brasil é muito sacudido por correntes que dizem receber comunicações do além: alto e
baixo espiritismo, religiões afro-brasileiras, ufologia de várias modalidades, de várias modalidade, Vale
do Amanhecer, Triqueirinho... Os meios de comunicação social exploram o que nessas mensagens haja
de fantasioso e sensacionalista, ampliando enormemente os efeitos da crença nessas mensagens exóticas.
4) Muitas pessoas se deixam levar pelo sentimentalismo e as emoções mais do que pelo
raciocínio e a lógica no tocante à religião. O antiintelectualismo, suscitado pelo existencialismo,
penetrou na religiosidade de numerosos crentes, de modo que poucos pensam em pedir as credenciais ou
os motivos de credibilidade das proposições “místicas” que lhes são oferecidas. . Pode-se até dizer que,
em muitos casos, quanto mais fantasiosa é uma proposição, mais ela chama a atenção e desperta
curiosidade e interesse crédulos. Aliás, já diziam os antigos romanos: “Vulgus vult decipi. — A massa
quer ser enganada”, o que significa que a verdade nua e crua tem menos poder de atração do que a
mentira fantasiosa e colorida.
5) Em virtude dessa indisposição para usar o raciocínio no tocante à religião, muita gente quer
ser dirigida; espera um guru ou um líder privilegiado que lhe dite autoritariamente o que fazer. Assim há
quem queira ser comando, porque não sabe mais como se auto-orientar na sociedade confusa em que
vive. Isto constitui autêntico paradoxo em relação aos anseios de independência que caracterizam grande
parte dos homens e mulheres de hoje.
São estes alguns fatores que marcam a nossa época e podem estar propiciando, de um lado, o
surdo de muitas mensagens falsamente proféticas, terrificantes umas, alvissareiras outras, e, de outro
lado, a rápida e estranha difusão das mesmas... Consciente disto, a Igreja usa sempre de grande cautela
desde que se propague a notícia de algum fenômeno extraordinário. Examinemos mais precisamente
quais as normas ditadas por essa prudência.
Lição 3: Prudência
2) O extraordinário deve ficar sendo sempre extraordinário. Não é a via normal pela qual Deus
guia os seus filhos; o normal é a via da fé..., fé que se distingue de crendice, pois a fé supõe credenciais
ou motivos para crer; a fé não diz Sim a qualquer notícia de portento, mas pergunta: por que deveria eu
crer? Qual a autoridade de quem me transmite a notícia? Em que se baseia/ Como fala?
a) Aparições e revelações não devem ser presumidas nem admitidas em primeira instância num
juízo precipitado. Os fenômenos alegados hão de ser comprovados ou criteriosamente credenciados;
4) Toda autêntica aparição há de ser coerente com as linhas e o espírito do Evangelho. Deve
confirmar o que este ensina. Por isto:
a) as muitas minúcias (quanto a datas, local, duração e tipo dos fenômenos preditos) merecem
reservas, pois não são habituais na linguagem da Escritura Sagrada. O senhor Jesus mesmo recusou-se,
mais de uma vez, a revelar a data da sua segunda vinda e do fim dos tempos173.
b) o que certamente se pode e deve depreender de toda genuína mensagem do céu, é a exortação
à oração e à penitência; La Salette, Lourdes e Fátima clamam altamente por tais atitudes a ser assumidas
pelos fiéis católicos. Dizia o Papa João XXIII, em sua Radiomensagem comemorativa do centenário de
Lourdes, que os dons extraordinários são concedidos aos fiéis “não para propor doutrinas novas, mas
para guiar a nossa conduta” (18/2/1959).
172
Cf. Mt 16, 16-19; Lc 22, 31s; Mt 28, 18-20.
173
Cf. Mc 13, 32; At 1, 7.
Nos três Módulos seguintes serão apresentados casos de aparições que mereceram certa chancela
da Igreja.
PERGUNTAS
1) Que é que a Igreja examina antes de se pronunciar sobre alguma aparição particular?
2) Pode a Igreja proclamar a autenticidade de alguma aparição?
3) Em que sentido a Igreja “aprova” alguma aparição?
4) Por que a Igreja é cautelosa quanto ao fenômeno das aparições?
5) Qual o significado de uma aparição “aprovada” pela Igreja?
Lição 1: A Digitação
Sabemos que na córnea do olho humano se reflete o que a pessoa está vendo no momento. O doutor
Aste Tonsmann fez fotografar (sem que ele estivesse presente) os olhos de uma filha sua, e, utilizando o
procedimento denominado “processo de digitalizar imagens”, pode, sem mais, averiguar tudo quanto via
sua filha no momento de ser fotografada. Este mesmo cientista, cuja profissão é a de captar as imagens
da Terra transmitidas no espaço pelos satélites artificiais, “digitalizou” em 1980 a imagem da Virgem
de Guadalupe. Consiste o procedimento em dividir a imagem em quadrículas microscópicas até o ponto
de, numa superfície de um milímetro quadrado, caberem vinte e sete mil setecentos e setenta e oito
ínfimos, mínimos quadradinhos. Uma vez feito isto, cada mini-quadrícula pode ser ampliada,
multiplicando-se por dois mil, o que permite a observação de pormenores impossíveis de serem captados
a olho nu. Ora os pormenores que se observaram na Íris da imagem guadalupana são: um índio no ato de
desdobrar sua tilma perante um franciscanos; o próprio franciscanos, que era o Bispo, em cujo rosto se
vê escorrer uma lágrima, uma pessoa muito jovem, tendo a mão sobre a barba com ar de consternação;
um índio com o torso desnudo em atitude quase orante; uma mulher de cabelo crespo, provavelmente
uma negra, serviçal do Bispo; um varão, uma mulher e umas crianças com a cabeça meio-raspada e mais
outros Religiosos vestidos com hábito franciscanos, isto é... o mesmo episódio relatado em náhualt por
um escritor indígena na primeira metade do século XVI e editado em náhualt e em espanhol por Lasso
de la Veja em 1649.
Estudo iconográficos foram feitos a fim de comparar estas figuras com os relatos conhecidos do
Arcebispo Zumárraga e de pessoas de seu tempo ou lugar. O que é radicalmente impossível, é que num
espaço tão pequeno como a córnea de um olho, situada numa imagem de tamanho aproximado ao
natural, um miniaturasta tenha podido pintar aquilo que foi necessário ampliar em duas mil vezes para
que pudesse ser percebido.
O fato, estupendo e inexplicável como é, reforça a credibilidade das aparições de Nossa Senhora em
Guadalupe. A seguir, transmitiremos, em tradução portuguesa, o relato dos acontecimento que cercaram
tais aparições, como nos é consignado em primeira mão por Dom Antônio Valeriano. Este escreveu em
náhuatl, dialeto local indígena, uma narração, que foi completada por Alva Istlixochtl.
Lição 2: O Relato
“Dez anos após a queda da cidade do México, a guerra terminou, Houve paz nas aldeias e
começaram a se propagar o conhecimento e a fé no verdadeiro Deus, autor da vida. Naquele tempo, em
1631, alguns dias após o índio do mês de dezembro, vivia um pobre índio, chamado Juan Diego,
supostamente nascido em Cuantitlan. A vida da Igreja estava concentrada em Tlatilolco.
Num sábado de manhã cedo. Juan Diego ia à Missa e dispunha-se a tratar de assuntos de seus
interesses. Quando chegou à pequena colina de Tepeyacac, o dia se levanta. Ouviu um canto que
parecia descer do alto da colina; assemelhava-se ao de vários pássaros. Em dado momento, a voz dos
cantores calou-se e os pendios toscos da colina pareceram responder-lhe em eco. O seu canto, muito
suave e agradável, ultrapassava o do coyoltototl e do tzinzcan e dos outros belos pássaros maviosos.
Juan Diego parou para olhar e disse consigo mesmo: Serei digno do que ouço? Estarei sonhando?
Estou realmente acordado? Onde Estou? Talvez no paraíso terrestre, do qual falam nossos ancestrais.
Estarei eu já no céu?
Olhava para o Oriente, onde se encontrava o ápice da colina e donde parecia provir o belo canto
celeste. Quanto este cessou, de repente se fez silêncio, Juan ouviu alguém que o chamava do alto,
dizendo: Juan Diequito!
Pôs-se então a caminhar em direção da voz. Não estava espantando; ao contrário, cheio de alegria
escalou a colina para ver o lugar donde o chamavam. Quando chegou ao tipo, viu uma Dama, que lhe
fez sinal para aproximar-se. Chegando à presença dela, ficou impressionado pela sua magnificência
sobre-humana; as suas vestes eram radiantes como o sol; a rocha a qual os seus pés pousavam
iluminada pelos raios, parecia um anel de pedras preciosas, e a terra brilhava como o arco-íris. Os
arvoredos e as outras plantas que lá cresciam, pareciam-se com a esmeralda; sua folhagem era como
turquesa e os ramos cintilavam como ouro.
Ajoelhou-se diante da Dama, ao ouvir as suas palavras tão gentis, tão suaves, portadoras de muita
estima. Dizia: Juanito, o menor dos meus filhos, aonde vais? Respondeu: Minha Senhora..., eu devo ir à
tua casa em México Tlatilolco para continuar a estudar os mistérios divinos que nos são explicados por
nossos sacerdotes, os enviados de Nosso Senhor.
Então ela revelou sua vontade santa e benévola: que todos saibam e compreendam por teu
intermédio, ó mínimo de meus filhos, que eu sou Maria, sempre Virgem e santa Mãe do Verdadeiro
Deus, de quem vem toda vida, Criador, senhor do céu e da terra. Desejo ardentemente que se construa
aqui uma Igreja para mim, a fim de que eu possa mostrar e oferecer todo o meu amor, minha
compaixão, minha ajuda e minha proteção, pois eu sou a vossa Mãe misericordiosa. Aqui desejo ouvir e
ajudar a ti e a todos os que me amam, me invocam e põem sua confiança em mim; quero ouvir vossos
queixumes, dar remédio às vossas tristezas, dificuldades e dores. Para poder executar o que a minha
misericórdia deseja, deves ir à residência do Bispo de México e dizer-lhe que eu te envio para
manifestar claramente que eu desejo que ele construa uma Igreja para mim neste local; descerás dizer-
lhe exatamente tudo o que viste de maravilhoso e tudo o que ouviste.
Tem certeza de que te serei grata e te recompensarei, pois eu te farei feliz e merecerás uma grande
retribuição em troca do sacrifício e dos esforços decorrentes da missão que te confio. Ouviste as minhas
palavras, meu filho, o menor dentre todos. Vai agora, e aplica-te com todo o teu ardor.
Após estas palavras, Juan inclinou-se profundamente diante da Dama e disse: Minha Senhora, vou
agora transmitir tuas ordens; despeço-vos de ti. Desceu a colina para executar o que lhe fora confiado;
e dirigiu-se pela estrada grande que leva a México.
Tendo entrado na cidade, procurou logo a residência do Bispo. Este, recém-nomeado, chegara havia
pouco. Chamava-se Frei Juan de Zumárraga, e era Religioso franciscano. Juan Diego pediu aos
serventes que avisassem o prelado. Após certo tempo, chamaram-no, pois o Bispo estava para recebê-
lo.
Diego inclinou-se na presença do Bispo e transmitiu-lhe logo a mensagem da Dama do céu, contanto
tudo quanto vira e ouvira. Após escutar tudo, o Bispo parecia não acreditar e disse: Hás de voltar, meu
filho, a fim de que com calma eu possa ouvir o que tens a me contar; tenho que refletir nisso
cuidadosamente, como devo levar em conta a boa vontade e a expectativa com que vieste.
Juan Diego fio-se muito triste, pois não atingira a finalidade da sua visita.
No mesmo dia retornou ao cume da colina e entrou a Dama do céu, que o esperava no mesmo lugar
onde ele a vira antes. Logo caiu de joelhos e disse: senhora fui aonde me enviaste e transmiti as tuas
ordens. Embora me tenha sido difícil entrar na antecâmara do Bispo, eu vi e lhe dei a saber as tuas
instruções como pediras. Ela recebeu-me gentilmente e me ouviu com atenção, mas, pelo que ele disse,
está claro que não me deu crédito. Disse: Deverás voltar e eu te ouvirei com mais atenção; examinarei
tudo desde o começo e refletirei sobre o pedido e a boa vontade com que vieste.
Compreendi muito que ele imaginava que eu tinha inventado o pedido da Igreja que tu queres para
ti... Por conseguinte, eu te peço que confies a alguém mais importante a mensagem..., pois eu sou um
homem fraco... o últimos... Perdoa-me se te aborreço, minha Senhora e minha Mestra.
O dia seguinte era um domingo. Cedo levantou-se a fim de ir a Tlatilolco para a instrução religiosa...
Chegou precisamente antes das dez e assistiu à Missa... Quando a multidão se dispersou, ele se dirigiu
à residência do Bispo. Logo que chegou, insistiu em ser recebido. Após muitas dificuldades, foi
introduzido na presença do prelado.
Chorando, repetiu-lhe as ordens que recebera da Dama do céu. Desejava ansiosamente que lhe
dessem crédito e que o Bispo aceitasse o pedido, da Imaculada, de construir uma Igreja no exato lugar
que ela indicara. Para examinar as coisas, o Bispo formulou muitas perguntas: Onde ele a vira? Como
era ela? Juan Diego fez um relato completo... Mas mesmo assim o Bispo não lhe quis dar crédito. Disse
que não podia proceder unicamente na base da narração de Diego e que era necessário receber um
sinal para crer que a mensagem vinha de Nossa Senhora. Perguntou-lhe então Diego: Monsenhor, que
tipo de sinal pedis? Eu irei e o pedirei à Dama do céu que me envia.
Quando o Bispo viu que Diego confirmava tudo o que dissera sem hesitações nem mudanças, ele o
mandou seguir por vários de seus servidores, homens de confiança, para que o observassem e vissem
aonde ia, quem ele encontrava e a quem ele falava... Juan tomou logo a grande estrada. Os que o
seguiam perderam-no de vista no ponto em que a estrada seguia pelo barraco antes da ponte de
Tepeyacac; embora olhassem por toda parte ao redor, não viram vestígio dele. Voltaram aborrecidos
não só porque escapara aos olhos deles, mas porque o comportamento dele os perturbava. Depois que
contaram ao bispo o que acontecera, este concluiu que toda a história era falsa, de mais a mais que os
servidores disseram que haviam sido enganados e que Juan Diego inventara o que contara. Em suma,
decidiram que, se por acaso Diego voltasse, eles o puniriam severamente a fim de que não contasse
mais mentiras e deixasse de caçoar deles.
No mesmo momento Juan Diego estava com a SS. Virgem para lhe dar a resposta do Bispo. Tendo-a
ouvido, disse ela: Tudo acontece para o bem, meu filho, voltarás amanhã para levar o sinal que o bispo
pediu. então ele acreditará e ninguém desconfiará de ti...
No dia seguinte, segunda-feira, quando Juan devia levar o sinal ao Bispo, não compareceu ao
encontro com a Senhora. Com efeito; chegando em casa na noite anterior, encontrara sei tio Juan
Bernardino de cama e tão gravemente enfermo que estava a ponto de morrer. Foi primeiramente
procurar um médico, que aliviou os sofrimentos do doente, mas não pode fazer mais nada. Durante a
noite, o tio pediu-lhe que, quanto antes, fosse a Tlatilolco procurar um sacerdote a fim de se confessar e
receber os sacramentos antes de morrer.
Na terça-feira, antes do nascer do dia, Juan Diego estava a caminho de Tlatilolco para chamar o
Padre. Como a estrada passasse por perto da colina de Tepeyacac, dizia consigo mesmo: Se eu seguir
reto, a Senhora me verá e eu não poderei evitar receber o sinal que ela preparou para o Bispo. Antes
do mais, porém, eu tenho que procurar um sacerdote para aliviar meu tio, que deve estar ansiosamente
à minha espera.
Juan Diego, portanto, seguiu por outro caminho, que o levaria mais rapidamente à cidade de
México, evitando ser detido pela Dama do céu. Ele julgava que isto a impediria de o ver, mas ela tudo
contempla sempre e em toda parte. Com efeito, ele a viu aproximar-se, descendo a colina ao mesmo
tempo que olhava para o lugar onde lhe aparecera duas vezes.
Chegou-se perto e disse-lhe: que está acontecendo, meu filho? Aonde vais?
Inclinou-se diante dela e disse: Minha Senhora... ser-te-á doloroso ouvir o que tenho a te dizer. Tu
sabes que um dos teus pobres servidores, meu tio, está muito doente e perto de morrer. Apresso-me para
ir à tua casa em México a fim de chamar um dos sacerdotes bem-amados de Senhor para confessá-lo e
prepara-lo a encontrar Nosso Senhor... É claro que depois irei levar a tua mensagem... Sê paciente
comigo... Voltarei aqui amanhã sem falta.
Tenho ouvido as palavras de Juan Diego, a Mãe muito misericordiosa disse: Escuta e compreende,
meu filho... Não tenhas medo dessa doença... a tua Mãe não está junto de ti?...Nada te deve afligir, nem
a doença do teu tio, pois ele não morrerá. Está certo de que neste momento ele já curado (naquele
momento o tio recuperava a saúde, como Diego pode verificar mais tarde).
Quando Juan ouviu tais palavras, ficou muito contente e pediu que a Dama do Céu lhe desse um
sinal para autenticar as aparições.
Ela respondeu: sobe ao cume desta colina, lá onde me viste. Encontrarás ali muitas flores. Colhe-as
cuidadosamente, fase um ramalhete, trazei-as e monstra a mim.
Juan Diego subiu a colina e ficou muito surpreso por ver aí muitas e variadas rosas de Castela
apesar do frio e do gelo da estação. Exalavam suave perfume e estavam cobertas pela geada que caíra
durante a noite... Colheu-as, fez ramalhete, que ele colocou dentro do seu manto; aquele lugar jamais
produzira flores por causa das pedras e da seca; só dava cardos, plantas espinhosas e cactos; como
fosse o mês de dezembro, o frio e o gelo matavam todas as plantas frágeis.
Desceu a colina para levar as rosas à Dama do Céu. Ela as tomou nas mãos e disse: Meu filho, estas
rosas são o sinal e a prova que deves levar ao Bispo. Tu lhe darás que isto o deve excitar a
compreender e executar o meu desejo. Tu és o embaixador da minha confiança. Eu te mando que não
abras o teu manto sob pretexto algum, nem mostres seu conteúdo a quem quer que seja, antes de
chegares à presença do Bispo. Contarás tudo com muita exatidão: que eu te mandei ao topo da colina
colher as flores e fazer um ramalhete, e tudo o que viste... Deves convencê-lo de que ajuda para a
construção da Igreja que eu quero aqui.
Quando a Senhora do Céu terminou suas instruções, Diego prosseguiu a caminhada pela estrada que
levava a México. Sentia-se feliz e já convicto de que dessa vez tudo correria bem; levava o seu precioso
tesouro bem escondido para protegê-lo e impedir que algo caísse, enquanto ele se deleitava com o
perfume de todas aquelas flores.
Quando Juan Diego viu que não podia esconder o que ele trazia,, receou que acabassem por
espancá-lo; entreabriu então as bordas do seu manto. Vendo que continha rosas de Castela, diferentes
uma das outras, produzidas fora da estação, surpreenderam-se profundamente. Tentaram segurá-las,
mas por três vezes elas lhes caíram dos dedos; antes, em vez de rosas frescas, elas só viam flores que
pareciam pintadas, cosidas ou bordadas no manto.
Foram dizer ao Bispo o que tinham visto e falaram-lhe do pobre índio que esperava havia muito. O
prelado imaginou que se tratava do sinal solicitado para induzi-lo a crer e a atender ao pedido de
Nossa Senhora. Mandou que imediatamente introduzissem o índio. Tendo entrado, Juan Diego repetiu
tudo o que ele vera, assim como a mensagem. Disse:
Senhor Bispo, fiz como pedistes... Disse à Senhora que prometi trazer-vos o sinal solicitado. Ela
compreendeu a vossa prudência a acolheu o pedido com benevolência. Muito cedo hoje de manhã... ela
me mandou ao cume da colina... Eu sabia que lá nunca houvera flores, mas não duvidei das palavras da
Senhora. Quando cheguei ao lugar indicado, parecia-me estar no paraíso. Havia lá grande variedade
de rosas de Castela, todas reluzentes por causa da geada. Eu as colhi e as trouxe para a Dama; ela
mesma as tomou em suas mãos e colocou-as no meu poncho, para que eu vo-las trouxesse.
Ela me disse por que é que eu tinha de fazer isso. Eu o fiz para que vejais nessas flores o sinal
solicitado e executeis o pedido da Senhora... Ei-las, tomai-as.
Diego abriu então o manto branco que ele trazia fechado sobre o peito. Enquanto as rosas se
espalhavam pelo chão, apareceu de repente sobre a veste a magnífica imagem da Virgem Maria, Mãe
de Deus, exatamente aquela que se pode ver ainda em nossos dias na sua Igreja de Tepeyacac, com o
título de Guadalupe. Vendo-a, o Bispo e todas as pessoas presentes caíram de joelhos, considerando-a
com admiração por muito tempo, profundamente tocados e comovidos por aquilo que eles viam. A
seguir, ficaram tristes e aflitos — o que mostra que a contemplavam com os seus corações e a sua
inteligência.
O Bispo, com lágrimas de tristeza, orou e pediu perdão por não ter realizado a tarefa que a Senhora
solicitara. Quando se reergueu, retirou dos ombros de Juan Diego o manto no qual se gravara a
Imagem da Dama do Céu. Levou-o para seu oratório. Reteve Juan Diego por mais um dia em sua casa.
E no dia posterior disse; Saiamos para ver o lugar onde a Senhora do Céu quer que lhe construamos
um templo. Convidou todos os presentes a acompanhá-lo. Logo que Juan mostrou o lugar designado
pela Senhora do Céu, pediu licença para retirar-se. Queria voltar para junto dos seus a fim de ver o seu
tio que estava gravemente enfermo quando Diego partiu para Tlatilolc à prova de um sacerdote...,e que
a Senhora lhe dissera estar curado...
Não deixaram Juan Diego ir-se a sós, mas foram juntos com ele. Uma vez chegados `casa de Diego,
encontraram o tio de boa saúde, sem dores e sem febre. O ancião ficou surpreso por ver o sobrinho
chegar com tão ilustre comitiva e perguntou pela causa de tantas horas. O sobrinho explicou que,
quando partira para procurar o sacerdote, a Senhora do Céu lhe apareceu e lhe disse... que não se
afligisse por causa da doença do tio... Este respondeu que, naquele momento preciso, ele recuperara a
saúde, pois viu a Virgem assim como ele aparecia ao sobrinho e sabia que ela enviara Diego à casa do
Bispo em México. A Dama também mandou ao ancião que, logo que visse o Bispo, lhe revelasse o nome
da imagem: o da Santíssima Virgem de Guadalupe
Levaram então Juan Bernardino à presença do Bispo para que pudesse transmitir pessoalmente as
informações. Ambos, o tio e o sobrinho, ficaram vários dias até que a Igreja da Rainha de Tepeyacac
estivesse terminada no lugar onde Juan Diego a vira pela primeira vez. O Bispo mandou transferir a
imagem da bem-amada Senhora do Céu para a Igreja, onde ficou exposta à veneração de todo o povo.
A cidade inteira, profundamente tocada, foi ver a imagem benta e rezar diante dela. As pessoas se
surpreendiam vivamente por ter aparecido de maneira tão milagrosa, pois ninguém no mundo teria
podido pintar essa bela imagem.
A veste sobre a qual a imagem da Senhora do Céu apareceu milagrosamente, era p poncho de Juan
Diego: um ayate rígido, cuidadosamente tecido, pois naquele tempo as vestes dos índios eram feitas
com fibra de ayate... A imagem é tão grande que, da planta dos pés ao cume do crânio, mede seis
palmos e meio. A bela figura é séria e nobre, de colorido um pouco embaciado. O seu rosto é de
humildade; tem as mãos postas sobre o peito. O cinto é de cor purpúrea. O pé direito mostra apenas a
extremidade do calçado de cor cinza. A veste, na medida em que pode ser contemplada, é de cor rósea,
mas parece vermelha em suas dobras; traz flores bordadas em dourado. Do pescoço pende-lhe um colar
dourado com raios negros para os lados e uma cruz no centro. A Senhora traz uma blusa branca fina
que mal se distingue, apertada em torno dos punhos, cujas orlas são bordadas. A mantilha que envolve,
é azul; cai-lhe bem sobe a cabeça, deixando aparecer o rosto inteiro; está recamada de 46 estrelas de
ouro.
A cabeça está inclinada para a direita. Acima do véu há uma coroa de ouro... Aos pés se Vê a lua...A
imagem tem por fundo o Sol, cujos raios se expandem em todas as direções; são cento e u, alguns muito
longos, outros menos; doze lhe cercam o cabeça.
A bela imagem é sustentada por um anjo aparentemente talhado à altura do peito; a sua cintura está
imersa em uma nuvem. As extremidades inferiores da túnica e do manto da Senhora do céu estendem-se
mais longe do que os seus pés e são sustentadas pelas mãos do anjo... Em suma, a imagem aparece
carregada pelas mãos do anjo, que parece muito feliz por trazer assim a Rainha do Céu”.
O texto que acaba de ser apresentado, tem o sabor da simplicidade e da generosidade dos cristãos que
acompanharam de perto as aparições da Virgem de Guadalupe. A Igreja não impõe à fé dos cristão
alguma revelação particular, mas deixa ao critério de cada um aceitar ou não as respectivas narrações.
As que se referem a Guadalupe, têm forte cunho se verossimilhança, dados os estudos científicos
efetuados a respeito da Imagem de Nossa Senhora de Tepeyacac.
PERGUNTAS
Bernadete Soubirous nasceu aos 7 de Janeiro de 1944, de uma família muito pobre. Desde os seis
anos de idade, sofreu de asma; em 1854 foi vítima de cólera — o que a tornava pequena e magra.
Certa vez, na quinta-feira 11 de fevereiro de 1858, quando Bernadete tinha quatorze anos, foi
colher lenha seca para o aquecimento de casa; era acompanhada por sua irmã Maria e uma amiga
chamada Joana. Estas duas não tiveram dificuldades para atravessar um canal de água que as separava
de uma floresta rica; Bernadete, porém, usava meias (à diferença das companheiras), de modo que teve
de as descalçar para entrar na água. Estava tirando a primeira meia quando ouviu um ruído que parecia o
de um vento de tempestade; olhou para trás sem perceber coisa alguma estranha. Pouco depois, descalça
colocava um pé nágua, quando ouviu o mesmo barulho. Virou então a cabeça e viu em um nicho de uma
gruta, dita de Massabielle, uma jovem mulher de extraordinária beleza. Narra Bernadete:
“Saiu do interior da gruta uma nuvem de cor de ouro, e, pouco depois, uma dama
jovem e bela, bela principalmente, como eu nunca vira; colocou-se na estrada da cavidade...
Logo ela me olhou, sorriu e fez-me sinal para que me aproximasse como se fosse
minha mãe. Perdi o medo, mas parecia-me não saber onde eu estava. Eu me esfregava os
olhos fechava-os, abria-os; a dama continuava ali, sorrindo-me e dando-me a compreender
que eu não estava enganada. Inocente do que eu fazia, tirei do bolso o meu terço e ajoelhei-
me. A dama me aprovou com um sinal de cabeça e pegou nos dedos um terço que pendia de
seu braço direito. Quando eu quis começar a rezar o terço e levar a mão à minha testa, meu
braço ficou como que paralisado; só depois que a dama se persignou é que pude fazer como
ela fizera. A dama deixou-me rezar sozinha; ela desfiava entre os dedos as costas do rosário,
mas não falava; somente no fim de cada dezena dizia comigo: Glória Patri et Filio et Spiritui
Sancto. Quando o terço terminou, a dama entrou para dentro do rochedo e a nuvem de ouro
desapareceu com ela”
(texto transmitido por J. B. Estrade, Les Apparitions de Lourdes.
Souvenirs intimes d’un témoin. Tours 1899, pp. 42s).
“Ela tem aparência de uma jovem de dezessete anos. Está vestida de um vestido
branco, cingida com uma faixa azul, cujas pontas caem ao longo das vestes. Traz sobre a
cabeça um véu branco, que mal deixa perceber os cabelos e cai para trás até a cintura. Os
pés estão desnudos, mas recobertos pela orla das vestes, exceto nas pontas dos dedos, onde
brilha em cada pé uma rosa amarela. No braço direito ela tem um rosário pendente com as
contas brancas e uma corrente de ouro reluzente como as rosas dos pés”
(ibid. p. 43).
A aparição deve ter durado quinze minutos, ou seja, o tempo necessário para rezar o terço.
Entrementes as duas companheiras de Bernadete voltaram da floresta trazendo lenha; ao verem
Bernadete ajoelhada e de olhar fixo na gruta, surpreenderam-se. Maria chegou a atirar uma duas
pedrinhas que tocaram o ombro da irmã, a qual nem o percebeu. No caminho de retorno à casa, Maria
conseguiu que Bernadete lhe confidenciasse o ocorrido sob sigilo. Este, porém, foi violado, de modo
quem quando a mãe das meninas soube do acontecimento, repreendeu Bernadete, dizendo-lhe que não
vira dama alguma e sim uma grande pedra branca.
No domingo seguinte, 14/02/1858, muita gente já tivera notícia do fenômeno. Após muito
resistir, a mãe de Bernadete permitiu que ela voltasse à gruta com algumas amigas; levava consigo água
benta; aspergindo o local, Bernadete diria à dama: “Se a Senhora vem da parte de Deus, adiante-se; se
vem da parte do demônio, retire-se”. Chegadas à frente da gruta, as meninas ajoelharam-se e começaram
a rezar o terço. De repente, Bernadete viu uma dama; lançou-lhe água benta, dizendo: “Se a Senhora
vem da parte de Deus, adiante-se”. A figura aproximou-se, sorrindo. Uma das companheiras de
Bernadete, irritada, jogou uma pedra, que caiu perto da vidente, a qual continuou em êxtase.
Sobrevieram pessoas da redondeza, que levaram Bernadete para casa.
A terceira aparição deu-se na quinta-feira 18/02, por intervenção de uma senhora amiga, que
obteve para Bernadete a licença de sua mãe a fim de voltar à gruta. Dessa vez, a vidente levava papel e
caneta; pediu à dama que escrevesse o seu nome e o que desejava. A resposta da senhora foi: “Não
preciso de escrever o que tenho a lhe dizer”, e depois: “Quer-me fazer o favor de voltar aqui durante
dias?”. Respondeu Bernadete: “Sim, se meus pais o permitirem”. Acrescentou a dama: “Eu não lhe
prometo fazê-la feliz neste mundo, mas sim, no outro”. Pouco depois desapareceu. A notícia das
ocorrência espalhava-se cada vez mais.
Começou então a série de quinze aparições quase diárias. Por ocasião da sexta aparição, no
domingo 21/02, o médico Dr. Dozous examinou o pulso de Bernadete durante o êxtase. Após a Missa
solene, a vidente foi interrogada pelo Procurador do Império; após as Vésperas, pelo Comissário de
Polícia.
Na sétima aparição, aos 23/02, a dama revelou um segredo a Bernadete. Por ocasião da nova
aparição, aos 25/ 02, a vidente recebeu a ordem de beber na fonte d’água e levar e levar-se ali. Ela então
cavou o solo, e encontrou um filete d’água, que subiu inexplicavelmente à altura do chão.
Na décima aparição, Bernadete foi enviada aos sacerdotes para lhes pedir a construção de uma
capela.
Na décima primeira aparição, domingo 28/02, Bernadete pediu à dama um sinal de autenticidade:
fizesse a roseira florescer em pleno inverno. As autoridades civis, descrentes, se inquietavam com os
sucessivos acontecimento com os sucessores acontecimentos, que agitavam a população. Por isto, o juís
de Instrução, o Sr. Rives, chamou Bernadete à sua presença; ameaçou-a de Prisão — o que não intimou
a vidente, a qual respondeu delicadamente que continuava a freqüentar a gruta. São então apregoadas as
primeiras curas ditas milagrosas por efeito da água da fonte; ,os médicos e sacerdotes que as examinam,
as têm como portentosas.
Na décima terceira aparição, a dama renovou o pedido de uma capela e exprimiu o desejo de que
os fiéis comparecessem à gruta em procissão, Bernadete transmitiu tais desejos ao pároco do local.
Na décima quinta aparição deu-se aos 04/03. Encerrando a quinzena de dias solicitada pela dama
(houve dias sem aparição: 22/02 e 26/02). Oito mil pessoas compareceram à gruta; esperavam milagre,
que não ocorreu, causando frustração. Não obstante, o povo já falava de “aparições da Virgem Santa”;
Bernadete, porém, não recebera a notícia do nome da dama e, por isto, chamava-a Aqueró = aquela.
Aos 25/03/1858 deu-se a décima sexta aparição. Bernadete em pé pediu quatro vezes à dama que
lhe dissesse o seu nome; ouviu como resposta: “Que soy era Immaculada Conception”174. Quando a
vidente o transmitiu ao pároco, este, cético, observou: “A Virgem não é a sua Conceição!”.
Aos 07/04 ocorreu a décima sétima aparição. O Dr. Dozous verificou que uma vela se consumia
nas mãos de Bernadete sem queimar.
174
É de notar que o quatro anos antes, ou seja, em 1854, o S. Padre Pio IX havia definido a Imaculada Conceição de Maria.
Aparição de Lourdes fazia eco às palavras do Pontífice.
Aos 16/07, festa de Nossa Senhora do Carmo, a menina sentiu-se impelida a ir à gruta, que estava
internada e inacessível. Ficou à distância e pôde ver a Senhora a sorrir-lhe e a saudar as pessoas, que
acompanhavam. “Nunca a vi tão bela!”, disse Bernadete. Era a última vez...
Bernadete foi interrogada por autoridades civis e eclesiásticas, que tudo fizeram para que caísse
em contradição ou negasse os fenômenos alegados. Nada, porém, conseguiram, embora a vidente fosse
uma adolescente de saúde muito fraca, filha de família extremamente modesta, Aos adversários
graduados associaram-se, para molestá-la, os numerosos peregrinos: havia quem lhe dissesse que se
enganara, pois o demônio é que lhe aparecera, tendo os pés bifurcados debaixo das rosas... Outros,
crédulos demais, a incitavam ao feitichismo, tratavam-na como Santa e queriam que ela tocasse objetos
(coisa que Bernadete recusava); outros ainda queriam retalhar suas vestes para relíquias. Através de
todas essas peripécias, a jovem se conservou tranqüila e capaz de cair em alguma armadilha de ordem
moral (orgulho, mentira, charlatanismo, exploração financeira). O pároco Pe. Peyramale observa: “No
plano moral, o mais estupendo dos fenômenos é ver essa filha do povo, pobre a ponto de muitas vezes
não ter o que comer, recusando com muita dignidade as ofertas que lhe são feitas”.
Aos 28/07/1858, o Sr. Bispo de Tarbes, Mons. Laurence, constituiu uma comissão para investigar
o fenômeno das aparições. Após três anos e meio de trabalho, os peritos entregaram o seu laudo ao
prelado, que, aos 18/01/1862, publicou sua sentença (submetendo-a ao julgamento do Sumo Pontífice);
dizia:
O Senhor Bispo notava que haviam sido solicitadas as luzes de homens muito competentes em
ciências humanas e em Teologia; a sociedade de Bernadete não fora contestada nem mesmo pelos
adversários; o seu equilíbrio mental e as circunstâncias das aparições não permitiam crer que ela fora
vítima de alucinações.
A estes sinais, dizia o prelado, acrescentava-se o grande fervor de multidões que acorriam à gruta
para rezar, assim como as curas repentinas, que surpreendiam os cientistas e só podiam ser obra de
Deus.
À vista, disto, Mons. Laurence anunciava que, atendendo aos pedidos da Virgem SS., um
santuário seria construído no terreno da gruta, que entrementes, por efeitos de trocas, se tornara
propriedade do Bispado de Tarbes.
Assim tiveram origem o título de “Nossa Senhora de Lourdes” e o culto à Virgem tal como
apareceu em Lourdes.
Grandes benefícios de ordem espiritual (religiosa) e de corporal têm sido obtidos em Lourdes. Os
primeiros — conversões, afervoramento, volta à prática religiosa — são incontáveis, pois muitas vezes
ocorrem de maneira muito íntima.
Quanto às curas de moléstias físicas, são cuidadosamente investigadas pela Igreja antes de
proclamar algum milagre. Julga-se que desde 1858 foram a Lourdes dois milhões de enfermos;
atualmente são escolhidos em nove hospitais especializados, em que trabalham milhares de voluntários
(entre médicos e enfermeiros). Todavia desde 1858 apenas 65 curas foram reconhecidas pela Igreja
como milagrosas, embora duas mil curas tenham sido reconhecidas pelos médicos. Isto eqüivale a dizer
que, dois anos aproximadamente, há um milagre em Lourdes; dentre trinta curas, uma é considerada
inexplicável pela ciência e milagrosa aos olhos da fé.
O processo para a averiguação de curas compreende uma etapa médica e outra canônica-
teológica. A primeira desenvolve-se do seguinte modo: a pessoas que diz curada em Lourdes, dirigi-se a
uma Comissão Médica — o Bureau des Constatations Médicales — com toda documentação
respectiva; faz-se o registro devido e convida-se a pessoa a voltar dentro de um ano com uma
documentação mais completa referente à doença, a fim de se examinar a persistência ou não da cura. Á
Igreja não pede aos médicos que falem de milagre, mas solicita-lhes a resposta a três perguntas: 1) Havia
realmente uma doença grave? 2) A cura foi completa, instantânea e insólita (não habitual)?; 3) Tal cura é
inexplicável pela a ciência? — Esta terceira indagação é a que mais embaraço causa aos médicos, pois
em nossos dias a medicina abre novos horizontes para tentar curar doenças incuráveis. — A perícia
médica compreende ainda a Associação Médica internacional de Lourdes, uma espécie de tribunal de
apelação, constituída por vinte dos maiores especialistas europeus, que se reúne em Paris e pode recorrer
a qualquer médico perito em determinada patologia.
Quando os médicos proferem seu laudo, começa o exame religioso da cura em foco: os teólogos
e canonistas procuram averiguar se foi obtida num contexto digno de Deus ou como sinal da Providência
Divina (pois todo milagre, na Teologia Católica, é sempre um sinal). O contexto digno de Deus implica
ausência de frivolidade, mentira, orgulho; positivamente, inclui oração humildade e piedosa da parte das
pessoas envolvidas. O Cardeal Lambertini (Papa Bento XIV entre 1740 e 1758) estipulou em 1734 os
critérios que devem caracterizar uma cura milagrosa (critérios válidos até hoje): seja repentina,
instantânea, plena ou radical, definitiva e inexplicável aos olhos da ciência; seja cura de doença orgânica
(devida a uma lesão, por exemplo) e não de doença funcional (doença nervosa, que não tenha provas
histopatológicas).
Verifica-se que nos últimos tempos o número de curas milagrosa tem diminuído em Lourdes — o
que se explica pelos seguintes fatores: a ciência médica é cada vez mais complexa e requer grande
número de exames que não podem ser obtidos com facilidade; além disto, os médicos não se mostram
propensos a permitir a Virgem, a Lourdes, de pacientes graves, que são precisamente os que mais
interessam à investigação de milagres; também ocorre que os médicos e os oficiais de saúde relutam, por
vezes, a fornecer documentos necessários à averiguação de algum milagre. Não obstante, até os tempos
mais recentes ocorrem curas surpreendentes e Lourdes, submetidas ao exame médico oficial: em 1994
registravam-se cinco casos entregues ao estudo dos peritos, entre os quais se achava o de um peregrino
proveniente da Europa Oriental. O episódio mais recente em 1994 era de um operário francês de 58 anos
de idade, Jean Salauen, nativo de La Luope na diocese de Chartres: a 1º de setembro de 1993, foi
subitamente curado, tendo voltado de Lourdes na véspera; sofria de terrível modalidade de esclerose
com plaquetas, que o obrigava a ficar imóvel na cama desde 1979.
Dos 65 casos de milagre reconhecidos pela Igreja, 48 ocorreram com relação `água das piscinas
de Lourdes. Outras curas se têm dado por ocasião da Comunhão Eucarística, da Unção dos Enfermos e
da oração pessoal. — Em torno dessa água narram-se coisas maravilhosas: dizem que está sempre pura,
mesmo depois que nela se levem enfermos com feridas abertas. É certo que a água de Lourdes nunca
provocou doenças em corpos sadios. O Dr, Francisco explica: “A água em baixa temperatura é sempre
bacteriostática ou evita a multiplicação da bactérias”. Todavia nos últimos dois anos a água das
piscinas de Lourdes está sendo filtrada continuamente e purificada mediante raios ultra-violetas do tipo
dos que só são usados nas salas de cirurgia. Mais: depois que nela mergulha uma pessoa de feridas
abertas, a piscina é fechada, a água retirada, e o recinto é lavado.
Estas considerações permitem concluir que Lourdes é, sem dúvida, em nossos dias um sinal
eloqüente da irrupção dos valores transcendentais ou da Providência Divina em favor da humanidade
sofredora, recomendada ao senhor Deus pela intercessão de Maria SS. Mãe de todos os homens.
PERGUNTAS
Jacinta nasceu aos 10/03/1910 em Aljustrel. Ela e Francisco eram primos de Lúcia. Fez a
primeira Comunhão após as aparições em maio de 1918. Morreu aos 20/02/1920 com dez anos de idade,
vítima da gripe espanhola. Lúcia, em seus cadernos, atribuiu-lhe os dons da profecia, da ciência infusa e
diversas visitas de Nossa Senhora durante a sua última enfermidade.
Francisco nasceu aos 11/06/1908. Nunca freqüentou a escola. Não foi admitido à primeira
Comunhão com sua irmã em maio de 1918. Só comungou das mãos de um sacerdote sob forma de
Viático. Faleceu também de gripe espanhola aos 4/04/1919.
Os despojos de Francisco e Jacinta repousam na basílica da Cova da Íria (local das aparições).
Em dezembro de 1950 foi aberto o processo canônico para a sua Beatificação. O que diz respeito à vida
íntima e penitente das duas crianças, nos é manifestado quase exclusivamente pelos cadernos de Lúcia.
A história das aparições começa em 1915, quando Lúcia (com oito anos de idade) e três outras
meninas, na encosta do Cabeço, avistaram uma figura branca, que identificaram com um anjo.
Em 1916 Lúcia, Jacinta e Francisco viram por vezes um anjo que se identificou como “o Anjo da
Paz” e “o Anjo de Portugal”. Tenha a aparência de um jovem, que exortou as crianças a rezar pelos
pecadores; por ocasião da terceira visita, trazia na mão um cálice, dentro do qual caiam gotas de sangue
provenientes de uma hóstia. Terá convidado os pastorezinhos e repetir a oração seguinte:
“Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, eu vos adoro profundamente e vos
ofereço os muito preciosos Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo,
presente em todos os tabernáculos do mundo, em reparação dos ultrajes pelos quais o mesmo
Jesus é ofendido”.
A seguir, o Anjo terá convidado Lúcia, Jacinta e Francisco a comungarem, embora os dois últimos
ainda não tivessem feito a primeira Comunhão.
Aos 13 de maio de 1917, na Cova de Íria, a dois quilômetros de distância de Aljustrel e ao meio-dia,
os três pastorezinhos tiveram a primeira aparição de Nossa Senhora, que lhes pediu voltassem aos treze
dias de cada um dos meses subseqüentes. Estes encontros ocorrerem como programados, exceto em
agosto, quando as três crianças estavam presas no dia previsto, o que deslocou a aparição para 19/08 em
Valinhos.
Por ocasião da terceira aparição, em julho, Lúcia recebeu a comunicação de um grande segredo
composto de três partes. Como se compreende, tal segredo não foi revelado senão mais tarde “por pura
obediência e com permissão do céu” (como disse Lúcia).
A última aparição, aos 13/10/1917, foi acompanhada do “milagre do sol”: cerca de 70.000 pessoas
disseram ter visto o sol girar sobre si mesmo, projetando em todas as direções feixes de luz cujas cores
variavam; a seguir, o disco solar precipitou-se aparentemente em direção da multidão, irradiando calor
cada vez mais intenso; por fim, voltou à sua posição normal. O fenômeno terá durado cerca de dez
minutos.
Examinemos agora
Diante dos acontecimentos da Cova da Íria, as autoridades eclesiásticas foram, a princípio, muito
cautelosas. A diocese de Leiria, à qual pertence a Cova da Íria, estava sem Bispo em 1917. O novo
titular da sede, D. José da Silva, tomou posse em 5 de agosto de 1920; o prelado mandou abrir um
inquérito sobre os acontecimentos em 1922, ou seja, cinco anos depois das ocorrências; uma comissão
de sete peritos dedicou-se a examinar os fatos e, finalmente, aos 14/04/1929 apresentou seu relatório ao
Bispo diocesano; este, tendo levado ao Papa a notícia das conclusões obtidas, declarou aos 13 de outubro
de 1930, perante cem mil fiéis, que eram dignas de crédito as aparições da Cova da Íria.
Aproximando-se o vigésimo quinto aniversário das aparições, o Sr. Bispo de Leiria deu ordem à
vidente para que pusesse por escrito tudo quanto ela pudesse revelar. Lúcia então, “tendo obtido licença
do céu e agindo por pura obediência”, redigiu quatro relatos de Memórias (datadas de 1936, 1937,
agosto e dezembro de 1941), com letra clara e fluente, demonstrando estar alheia a qualquer pretensão
literária.
A mensagem consta de três partes, duas das quais seriam imediatamente reveladas, devendo ficar
a terceira ainda oculta. Com efeito, o Cardeal Ildefonso Schuster, arcebispo de Milão, em sua Carta da
Quaresma de 1942, deu publicidade às duas primeiras secções. A terceira ficou em envelope lacrado,
sobre o qual se lia: “Não abrir antes de 1960”; interrogada sobre o motivo desta restrição, Lúcia
respondia invariavelmente: “A SS. Virgem o quer assim”.
A primeira parte compreendia uma visão do inferno: Lúcia, Francisco e Jacinta perceberam como
que um grande mar de fogo e nele mergulhados os demônios e as almas. Estas assemelhavam-se a brasas
transparentes e negras ou bronzeadas com forma humana, as quais eram arremessadas para todos os
lados como fagulhas num enorme incêndio. Os demônios distinguiam-se por ter a forma asquerosa de
animais espantosos e desconhecidos, assemelhados a carvões em brasa. — Está claro que não se deve
dar valor estrito a estas expressões: o demônio não tem forma de animal espantoso, pois não possui
corpo, nem almas dos réprobos se apresentam com forma humana. Trata-se de meras imagens literárias,
único artifício apto para incutir às crianças uma noção aproximada dos horrores espirituais ou da
dilaceração interior que é o inferno.
“A guerra (de 1914-1918) vai acabar: mas, se não deixarem de ofender a Deus, no
reinado de Pio XI começará outra pior.
Quando virdes uma noite iluminada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal
que Deus vos dá, de que vai a punir o mundo de seus crimes por meio da guerra, de fome e de
perseguição à Igreja e ao Santo Padre.
Para impedir, virei a pedir a consagração da Rússia a meu Imaculado Coração e a
Comunhão reparadora dos primeiros sábados.
Nesta mensagem chama-nos a atenção, entre outras coisas, a predição de nova guerra mundial
(1939-1945), predição feita sob o governo do Papa Bento XV (1914-1922), a qual se refere ao
pontificado de Pio XI (1922-1939), e não de Pio XII.
— Quanto ao grande sinal prévio à nova conflagração, Lúcia julga ter sido a extraordinária
aurora boreal que iluminou o céu na noite de 25 para 26 de janeiro de 1938 (das 20h 45min à 1h 15min,
com ligeiras intermitências). Ao verificar o fenômeno, a vidente recordou-se da terrível predição da
Virgem.
Ao revelar duas partes do segredo recebido, Lúcia tratou de dar resposta à questão cruciante: por
que esperara vinte e quatro anos para tornar públicas predições de tanta importância?
“Pode ser que a alguém pareça que eu devia ter manifestado todas estas coisas há mais
tampo, porque a seu parecer teriam, há alguns anos, dobrado de valor. Assim seria, se
Deus tivesse querido apresentar-me ao mundo como profeta; mas creio que tal não foi o
intento de Deus... Se assim fosse, penso que, quando em 1917 Ele (Deus) me mandou calar
— a qual ordem foi confirmada por meio dos que O representavam — ter-me-ia mandado
falar.
Julgo, pois,... que Deus apenas quis servir-se de mim para recordar ao mundo a
necessidade que há de evitar o pecado, e reparar as ofensas de Deus pela oração e pela
penitência...
Não encontrando palavras exatas para me exprimir, teria dito ora uma coisa ora outra;
querendo-me explicar, sem o conseguir, formaria assim, talvez, uma tal confusão de idéias,
que viriam (quem sabe?) a estragar a obra de Deus... Minha repugnância a manifestar (a
mensagem) é tal que, embora tenha sob os olhos a carta na qual V. Exª (o Sr. Bispo de
Leiria) me manda anotar tudo de que me possa lembrar e eu sinta intimamente que é a
hora marcada por Deus para fazê-lo, estou hesitante, em verdadeira luta, ponderando se
vos enviarei este escrito ou o queimarei... Acontecerá o que o Bom Deus quiser. O silêncio
tem sido para mim uma grande graça...
Por isso dou graças a Deus, e creio que tudo o que Ele faz está bem”.
Aos 7 de julho de 1952, Pio XII quis consagrar o povo russo ao coração Imaculado de Maria.
Aos 21 de novembro de 1964, Paulo VI renovou a consagração do mundo ao Coração Imaculado de
Maria... Aos 13 de outubro de 1956, em nome do papa Pio XII, o Cardeal Eugênio Tisserant benzeu em
Fátima o Centro internacional do “Exército Azul”, sociedade que se encarregava de levar a devoção
mariana ao mundo inteiro. Estes e outros fatos mostram que a Igreja, embora não se tenha pronunciado
solenemente sobre a autenticidade da mensagem de Fátima, não deixou de levar em consideração os
fatos aí ocorridos em 1917.
A terceira parte do segredo, devendo ficar lacrada até 1960, não foi revelada naquele ano... Isto
deu ocasião a que numerosas conjeturas fossem proposta pela imprensa para interpretar o “segredo”; as
previsões deste eram escabrosas e trágicas, baseadas na fantasia e no gosto do sensacional.
Á vista disto, no ano cinqüentenário das aparições, ou seja, aos 11/02/1967, o Cardeal Ottaviani,
Pró-Prefeito da S. Congregação da Doutrina da Fé, proferiu um discurso elucidativo sobre o assunto, em
que propunha quatro segue:
Expôs o histórico do segredo: Lúcia escreveu em português o que Maria SS. lhe confiara para o
Papa; tal mensagem não devia ser aberta antes de 1960, porque, dizia Lúcia, tudo então aparecia “mais
claro”.
— A esta altura, o conferencista fez uma quase revelação do segredo da Fátima, observando:
175
Vê-se, pois, que é totalmente falsa a notícia de que o Papa, ao ler o conteúdo da terceira parte do segredo, se sentiu mal e
caiu para trás. Aliás, nenhum dos Papas seguintes quis dizer algo a respeito.
“Todas as indiscrições que circulam, são inteiramente falsas”. Difundiram a idéia de que a
“mensagem secreta” continha visões apocalípticas e funestas previsões para o futuro do mundo.
O Cardeal Ottaviani quis, antes, inspirar paz e confiança aos seus ouvintes:
Mas a confiança que a mensagem de Fátima inspira,... nos faz entrever, num sereno
abandono à Providência, os primeiros e nebulosos indícios (que se manifestam nos anos
posteriores a 1960) de uma futura construção do mundo na paz e no reino de Cristo. Se, como
queremos crer, as notícias que nos vêm são verídicas e exatas, os corações se abrem à
esperança. Parece que a Virgem, neste cinqüentenário dos acontecimentos de Fátima, nos
dirige um convite à confiança”.
As observações do Cardeal Ottaviani permitem crer que o “segredo de Fátima”, longe de ser
sinistro ou trágico, se refere à crise do ateísmo, perceptível em 1967 através de “indícios nebulosos”.
Esta interpretação explica por que Lúcia afirmou que a mensagem seria “Mais clara” em 1960; explica
outrossim a discrição dos Papas a propósito; o assunto era delicado demais para ser objeto de
comentários públicos.
Julga-se, porém, que o segredo de Fátima continha ainda algo mais. Com efeito, o Cardeal
Ottaviani acrescentou no fim da sua conferência:
“Há outros sinais manifestos que nos incitam à confiança. Os esforços do Papa em Prol da paz
em certos setores já não são totalmente vãos, como eram outrora”.
Estas palavras parecem aludir às relações entre a Igreja e os povos não cristãos, prevendo
entendimento mútuo.
Tais notícias mostram quanto infundadas são as interpretações sinistras do segredo de Fátima. A
imprensa tem explorado a temática em sentido sensacionalista. É oportuno que o público saiba discernir
as suas fontes de informação e seja notificado por fontes limpas a respeito dos pronunciamentos
oficiosos da
S. Igreja concernentes aos assuntos da própria Igreja e da fé.
PERGUNTAS
176
Estas palavras aludiam à Rússia soviética e ao seu sistema filosófico-político ateu e materialista; a segunda guerra mundial
deu ocasião a que o comunismo se implantasse em vários territórios do Leste europeu.
1) Que diz a Igreja sobre o terceiro segredo de Fátima?
2) Merecem crédito as interpretações que correm a respeito?
3) Há razões para crer que o fim do mundo está próximo?
Aos dezesseis anos, perdeu seu pai e se tornou senhor do patrimônio. Seu tio Luís, muito rico e
sem filhos, o escolheu para suceder-lhe um dia à frente de seu Banco. Só fazia uma censura a Afonso,
devida às suas freqüentes viagens a Paris. Afonso mesmo reconheceu-o mais tarde:
Em 1841 tornou-se noivo de sua sobrinha Flora Ratisbonne, judia de fé convicta. Não podendo
casar-se de imediato, dada a pouca idade da noiva, Afonso resolveu empreender uma viagem a Nápoles
e à ilha de Malta, onde passaria o inverno de 1841-1842. Por engano providencial, em vez de se dirigir à
Agência de Viagens correspondente, foi procurar o escritório de viagens para Roma. A esta cidade
chegou aos 6 de janeiro de 1842.
Havia algum tempo, uma lenta evolução se realizava em Afonso. A incredulidade ia cedendo a
uma vaga crença em Deus, suscitada, em grande parte, pelo convívio com a noiva. Diz ele: “A presença
de minha noiva despertava em mim não sei que sentimento de dignidade humana; eu começava a crer na
imortalidade da alma e, mais do que isso, comecei instintivamente a rezar. A lembrança de minha noiva
elevava o meu coração para um Deus que não conhecia, que nunca tinha amado nem invocado” (ibd).
Eis ainda como Afonso mesmo descreveu seu estado de alma na época de sua conversão:
“Vivi até a idade de 14 a 15 anos na religião hebraica, que me tinha sido ensinada, e, a
partir desta data até os 23 anos aproximadamente, vivi sem religião alguma e mesmo sem
crer em Deus, embora seguindo os sentimentos da moral natural, especialmente de caridade e
compaixão que sentia em mim mesmo. Há cerca de cinco anos, comecei a me aproximar de
Deus e trabalhar pela moralização da juventude israelita, tendo inscrito meu nome numa
sociedade construída para este fim. Há um ano, celebrei meu noivado com uma jovem
israelita chamada Flore Ratisbonne, minha sobrinha, e, como se tratasse de uma pessoa
irrepreensível, senti-me inclinado mais fortemente para a religião judaica, que ela
professava. Entretanto as cerimônias da sinagoga não produziam em mim nenhuma
impressão e, pelo contrário, me aborreciam. Eu sentia, cada vez mais, uma aversão real
contra o cristianismo, que considerava como idolatria, e esses sentimentos aumentaram
durante minha permanência em Nápoles”.
Passamos agora a palavra ao próprio Afonso Ratisbonne; valer-nos-emos dos depoimentos que
ele prestou por ocasião do inquérito instituído pelas autoridades religiosas de Roma no intuito de
averiguar as circunstâncias e a autenticidade da alegada aparição da Virgem SS.
Em Roma, janeiro de 1842, Afonso foi visitar um amigo católico, o Barão Teodoro de Bussierre:
“Falamos do meu irmão padre, de quem eu me queixei amargamente por ele ter batizado
meu sobrinho que estava à morte. Conversamos sobre religião e eu manifestei minha
oposição às conversões, declarando que não aprovara o abandono da religião onde Deus
nos tinha feito nascer e que, aliás, todas as religiões são boas. Comuniquei-lhes o efeito que
me tinha causado o gueto e a opressão contra meus correligionários judeus, assim como a
aversão pelas superstições católicas, como eu as chamava.
‘Pois bem, respondeu o Senhor de Bussierre, como você é um espírito forte, não recusará
usar uma medalha que eu vou-lhe dar’. ‘Eu vou usá-la, respondi, por pura complacência, a
fim de provar que os judeus não são tão obstinados quanto se diz’. As crianças começaram a
procurar um cordão para colocar a medalha em meu pescoço e eu disse brincando: ‘Com
isso, já sou católico!...’
‘Como você é sincero, replicou o barão de Bussierre, vou pedir-lhe outro favor: recitar
uma curta oração a Nossa Senhora, composta por São Bernardo, que começa com essas
palavras: Lembrai-vos’. Consenti como se fosse uma brincadeira que forneceria matéria
para o meu diário de viagem. Como o Senhor de Bussierre dissesse que não possuía senão
um exemplar da oração, respondi-lhe que lhe daria uma cópia feita por mim e guardaria a
sua.
Ele não quis aceitar; eu prometi e guardei a oração como prova da superstição católica.
Quando cheguei ao hotel, copiei-a com efeito, e nada encontrei nela de extraordinário. Mas
tornei a retê-la muitas vezes, de modo que, sem querer, a decorei.
Ela me voltava sempre à memória e eu não podia deixar de repeti-la interiormente, sem
experimentar contudo uma emoção religião”.
Eis agora o momento importante: Aos 20/01/1842 Afonso foi convidado para dar um passeio em
Roma na companhia de Teodoro de Bussierre. Este, porém, lhe pediu autorização para parar brevemente
na igreja de Santo André delle Fratte, onde Teodoro tinha que se avistar com um dos padres da paróquia.
“Eu lhe respondi que fizesse o necessário, porque eu o esperaria. Ao andar pela igreja, eu
me senti subitamente agitado e como que cercado de um véu. A igreja se tornou obscura,
exceto uma capela luminosa; eu vi de pé, sobre o altar, viva, grande, majestosa, cheia de
beleza e misericórdia, a Santíssima Virgem Maria, como está representada na medalha
milagrosa da Imaculada Conceição.
A esta visão, caí de joelhos, no lugar em que mi encontrava, tentei várias vezes levantar os
olhos para a Santíssima Virgem, mas seu fulgor e o respeito me fizeram abaixá-los, sem me
impedir, entretanto, de sentir a evidência da aparição. Fixei os olhos sobre suas mãos e nelas
percebi a expressão do perdão e da misericórdia. Em presença da Santíssima Virgem, embora
Ela não me tenha dito uma única palavra, compreendi o horror do estado em que me
encontrava, a deformidade do pecado, a beleza da religião católica; numa palavra,
compreendi tudo.
Passaram-se onze dias, no dia 20 ao dia 31 de Janeiro, quando recebi o batismo das mãos
do Eminentíssimo Cardeal Vigário, na Igreja do Gesù”.
Aos 11 de fevereiro, o Vicariato de Roma abriu um inquérito sobre os acontecimentos. Até o dia
12 de abril de 1842 foram ouvidas nove testemunhas, que depuseram com unanimidade em favor da
saúde física e mental de Afonso Ratisbonne e da sinceridade de sua conversão instantânea. Aos 3 de
junho de 1842 foi publicado o Decreto que reconhece a autenticidade desse “admirável acontecimento”;
o texto alude, por duas vezes, à intercessão da Virgem Maria e não à sua aparição, o que não significa
que a negue ou conteste, mas, sim, que vai de maneira realista e direta ao cerne do que ocorreu no dia
20/01/1842. Enfatizando a “unanimidade maravilhosa” dos depoimentos, afirma “que nada tem mais a
desejar para reconhecer aqui a marca de um verdadeiro milagre”. E concluiu: “O Eminentíssimo Cardeal
Vigário da Cidade de Roma disse, pronunciou e definitivamente declarou que dá testemunho pleno do
verdadeiro e insigne milagre operado por Deus infinitamente bom e onipotente, mediante a intercessão
da Bem-aventurada Virgem Maria, na conversão instantânea e perfeita, de Afonso Ratisbonne, do
judaísmo ao Catolicismo… ‘Convém revelar e publicar as obras de Deus’ (Tobias 12, 7)’”.
Queira reler o relato da conversão de Pe. Afonso Ratisbonne e pôr em relevo os traços que
caracterizam essa figura humana: fidelidade às tradições da família, docilidade ao Espírito Santo,
sinceridade.
“Peçamos a Deus que nos faça compreender bem as palavras do Magnificat... Oxalá Cristo nos
conceda esta graça por intercessão de sua Santa Mãe! Amém.”.
Em relação à Imaculada Conceição, não é claro o pensamento de Lutero; este não é sistemático
em suas afirmações; não raro é influenciado pela situação do momento a [pela finalidade que tem em
vista, chegando, por isto, a proferir sentenças contraditórias. Lutero sustentou que o filho de deus devia
nascer de uma Virgem pura; em 1528, afirmou que a alma humana de Maria, ao ser infundida no seu
corpo, foi purificada da culpa original177. Mas em escritos posteriores, identifica a Virgem SS. com os
demais seres humanos, que, para ele, são simultaneamente justos e pecadores.
Como quer que seja, as referências de Lutero à Mãe de deus surpreendem por sua freqüência e
seu conteúdo — o que bem mostra que, para ele, Maria não era assunto secundário. Em suma, podemos
observar com Nordhues Petri:
“As afirmações de Lutero permitem dizer que Maria poderia ocupar um lugar importante
também na piedade plasmada pelas exigências e pelos princípios da Reforma, sem que por isto se deva
renunciar aquilo que é considerado essencial para a concepção evangélica da fé” (U.V. Balthasar,
Beinert, Jungclause e outros, O Culto a Maria hoje, p. 80).
O que acaba de ser dito a propósito de Lutero, aplica-se, de certo modo, também aos outros
reformadores do século XVI, especialmente a Zvinglio, de Zürich (Suíça). Ver Módulo 13 deste Curso.
Todavia a veneração a Maria foi-se atenuando sempre mais no decorrer dos tempos entre os
protestantes. No século XVIII particularmente, século do racionalismo iluminista, os reformados
deixaram de reconhecer a figura de Maria e de celebrar até as festas marianas que têm fundamento
bíblico (Anunciação, Visitação, Apresentação no templo...).
177
Schimmelpfennig R. é da opinião de que Lutero defendeu exatamente a doutrina que em 1854 foi proclamada dogma de fé
pelo Papa Pio X. Cf. Die Geschichte der Marienverehrung im deutschen Protestantismus. Paderborn 1952, pp. 14s.
em Maria, considerando-a modelo de santidade e antecipação da sorte final que deve tocar a todos os
justos. De outro lado, porém, o protestantismo alega quatro princípios, tidos como fundamentais para
rejeitar a piedade mariana. — É o que passamos a considerar.
1) Somente a Escritura. Este axioma exclui a Tradição oral, que é anterior à Escritura e a
berçou. Ora é pela Tradição oral que conhecemos a Imaculada Conceição e a Assunção gloriosa de
Maria, assim como a sua perpétua virgindade.
2) Somente a graça. Este princípio exclui os méritos do homem. Ora Maria é a criatura que, por
sua incondicional fidelidade ao senhor, se torna a benemérita por excelência. Este modo de falar católico
“escandaliza” os protestantes.
O mesmo princípio rejeita qualquer instituição estável que contenha e distribua, em nome de
deus, a graça divina; assim são excluídos a Igreja como instituição, a hierarquia eclesiástica e os
sacramentos. Alguns protestantes admitem que Jesus tenha confiado a Pedro e aos demais apóstolos um
primado, mas não aceitam a transmissão desse primado.
— o opus operatum ou a eficácia dos sacramentos. Para os católicos, os sacramentos são canais
da graça, independentemente da fé de quem os recebe; quem recebe a Eucaristia, recebe realmente o
Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Cristo, sem referência ao grau de fé que tenha. — Ao contrário, o
protestantismo considera os sacramentos como sinais que exprimem a fé do crente e não como causa
objetiva e necessária da graça;
— as obras do homem ou o valor da cooperação humana. Por conseguinte, Maria, tida como a
mais importante colaboradora da obra da Salvação, vem a ser pedra de escândalo para os protestantes.
4) Somente Deus. Este princípio recapitula os anteriores, e é a sua fonte inspiradora. Somente
Deus salva, sem a colaboração do homem. Em conseqüência, a apresentação de Maria como Mãe e
intercessora parece derrogar à singularidade de Deus, ainda que se diga que Maria nada pode fazer senão
por graça do próprio Senhor.
Eis, porém, que os últimos decênios teólogos católicos e protestantes têm-se aproximado uns dos
outros em comissões destinadas a estudar temas controvertidos. Eis alguns dos resultados obtidos:
1. Somente a Escritura. O Concílio do Vaticano II não quis falar de duas fontes da Revelação:
A Escritura e a Tradição Oral. Mas afirmou uma só fonte — A Palavra de Deus — que se expande por
dois canais: a Tradição oral (anterior) e a Palavra Escrita (posterior à primeira).
Por sua vez, os protestantes reunidos na Comissão Teológica do Conselho Ecumênico das Igrejas
em Montreal (Canadá) reconheceram a função importante da Tradição. O relator de um estudo chegou a
propor a fórmula: a Tradição apenas, querendo com isto significar que a S. Escritura procede da
Tradição Oral, que a berçou e acompanha178. Aliás, já em 1907 Adolf von Harnack, protestante liberal,
observava:
2. Somente a fé, somente a graça. Os católicos reconhecem que a salvação não é outorgada por
meios mágicos, mas requer a fé da parte da criatura. Do seu lado, os protestantes estão dispostos a
valorizar ao ministérios exercidos na Igreja em nome do Senhor e a partir de um dom totalmente gratuito
de Deus. Esta concepção lhes possibilita admitir a função de Maria na Igreja como dom exclusivo da
graça de Deus.
A aproximação que assim se verifica no plano dos estudos, tem-se traduzido em expressões
muito concretas e significativas, como se verá a seguir.
“Maria faz parte do Evangelho… É apresentada como aquela que ouviu de maneira
exemplar a palavra de Deus, como serva do Senhor que diz sim à palavra de Deus, como a
cheia de graça que por si mesma nada é, mas que é tudo por bondade de Deus. É, com efeito,
o modelo original dos homens que se abrem a Deus e se deixam enriquecer por Ele, o modelo
original da comunidade dos crentes, da Igreja… ‘Concebido por obra do Espírito Santo,
nascido de Maria Virgem’, é uma verdade que confessamos a respeito de Jesus;
conseqüentemente confessamos que Maria é Mãe de Nosso Senhor. O elemento feminino,
receptivo, materno não é a parte pior da realidade humana; antes, é a melhor e, sobretudo, a
178
O princípio “Somente a Escritura” levou o protestantismo a um certo empobrecimento, reconhecido por teólogos
contemporâneos: o Evangelho é mais do que uma palavra escrita; é uma palavra viva, que se transmite de geração em
geração.
melhor da realidade cristã”
(p. 392s).
Assim o Catecismo Luterano afirma que Maria não é só católica; ela é também evangélica. Maria
é tida outrossim como arquétipo da Igreja, à semelhança do que afirma a teologia católica:
“Como ela deu ao mundo o Salvador, assim a Igreja o leva aos homens por meio do
Evangelho. Como Maria, assim também a Igreja vê em si mesma a humilde serva a quem o
Senhor fez grandes coisas (Lc 1, 48s)”
2) Após a segunda guerra mundial (1939-1945) apareceram em âmbito protestante novas formas
de vida comunitária, à semelhança da vida conventual que Lutero abandonou. Sejam citadas:
— a Comunidade de Taizé, que tem origem protestante, mas assumiu caráter ecumênico,
acolhendo em seu seio católicos fiéis ao catolicismo;
Precisamente na Sociedade das Irmãs de Maria de Darmstadt vive Madre Basiléia Schlink, que
publicou o livro “Maria — Der Weg der Mutter des Herrn”, traduzido para o português por Irmã
Arturis e publicado em Curitiba no ano de 1982. Desse precioso escrito, sejam extraídos alguns trechos
dos mais significativos encontrados no respectivo epílogo:
Epílogo
“Por justiça teria sido necessário encomendar-lhe um carro de ouro e conduzi-la com
4.000 cavalos, tocando a trombeta diante da carruagem, anunciando: Aqui viaja a mulher
bendita entre todas as mulheres, a soberana de todo o gênero humano. Mas tudo isso foi
silenciado; a pobre jovenzinha segue a pé, por um caminho tão longo e, apesar disso, é de
fato a mãe de Deus. Por isso não nós deveríamos admirar, se todos os montes tivessem pulado
e dançado de alegria”.
179
Essa expressão significa que Maria não é a mãe de uma grande homem qualquer, mas sim a mãe do Filho de Deus, o qual
é a segunda Pessoa da Divindade. Infelizmente a Divindade de Jesus é negada hoje muitas vezes, ao ser apresentado como
um mero homem ou até mesmo como um pecador. (N. d. Basiléia Schlink).
“Esta única palavra mãe de Deus contém toda a sua honra. Ninguém pode dizer algo
de maior dela ou exaltá-la, dirigindo-se a ela, mesmo que tivesse tantas línguas quantas
folhas crescem nas folhagens, quantas graminhas há na terra, quantas estrelas brilham na céu
e quantos grãozinhos de areia existem no mar. Para entender o significado do que é ser mãe
de Deus, é preciso avaliar e pesar esta palavra no coração”
(explicação para o Magnificat).
Ao ler estas palavras de Martinho Lutero, que até o fim de sua vida honrava a mãe de
Jesus, que santificava as festas de Maria e diariamente cantava o Magnificat, se percebe quão
longe nós geralmente nos distanciamos da correta atitude para com ela, como Martinho Lutero
nos ensina, baseando-se na Sagrada Escritura. Quão profundamente todos nós, evangélicos, deixamo-
nos envolver por uma mentalidade racionalista, apesar de que em nossos escritos confessionais se lêem
sentenças como esta: “Maria é digna de ser honrada e exaltada no mais alto grau”!180
O racionalismo ignorou por completo o mistério da santidade. O que é santo, é bem diferente
do resto; diante do que é santo, só nos podemos quedar em admiração, adorar e prostrar-nos no pó. O
que é santo, não é possível compreendê-lo. Diante da exortação de Martinho Lutero, de que Maria nunca
pode ser suficientemente honrada, na cristandade, como mulher suprema, como a jóia mais preciosa
depois de Cristo, eu sou obrigada a me confessar adepta daqueles que durante muitos anos de sua vida
não seguiram esta admoestação de exaltá-la e assim também não cumpriram a exortação da Sagrada
Escritura que dali por diante todas as gerações considerariam Maria bem-aventurada (Lucas 1,48). Eu
não entrara na fila destas gerações. É verdade que também li na Sagrada Escritura como Isabel, mulher
agraciada por Deus, falando pelo Espírito Santo e denominando Maria “a mãe do meu Senhor”, lhe
prestou a maior homenagem, ao lhe dizer como prima mais idosa: “Donde me vem a honra de tu
entrares em minha casa?!” Eu, de fato, poderia ter apreendido o procedimento correto com Isabel. Mas
eu não prestei homenagem a Maria com pensamento algum, com nenhum sentimento do coração, com
palavra alguma, nem com algum canto. E muito menos eu a louvava sem fim, deixando de seguir a
orientação de Lutero, quando escreve que jamais chagaríamos a exaltá-la o suficiente.
Minha intenção, ao escrever este opúsculo sobre o caminho de Maria, segundo o que diz
dela a Sagrada Escritura, foi conscientemente reparar esta omissão pela qual me tornara culpada
para com o testemunho da Palavra de Deus. Nas últimas décadas o Senhor me concedeu a graça de
aprender a amar e honrar cada vez mais a Maria, a mãe de Jesus. E isto, à medida que, pela Sagrada
Escritura, me ia aprofundando no conhecimento de sua vida e dos seus caminhos. Minha sincera
intenção, ao escrever este livro, é fazer o que posso para ajudar, a fim de que entre nós, os evangélicos, a
mãe do nosso Senhor seja novamente amada e honrada, como lhe compete, segundo as palavras da
Sagrada Escritura e conforme nos recomendou Martinho Lutero, nosso reformador.
Com gratidão gostaria de confessar aqui quanto o testemunho de sua obediência, de sua entrega
total de disponibilidade para andar todos os seus penosos caminhos, me foram uma bênção. Pois ela
viveu e andou o caminho da humilhação, numa atitude que — no dizer de Lutero, quando escreve a
introdução ao Magnificat — nos pode servir de exemplo: “A delicada mãe de Cristo sabe ensinar
melhor do que ninguém — pelo exemplo de sua prática — como devemos conhecer, louvar e amar a
Deus”…
Quanto amor nós, os evangélicos, dedicamos aos apóstolos Paulo e Pedro! Muitas vezes até
encontramo-nos num relacionamento individual e espiritual com eles. Nós os honramos e lhes
agradecemos por terem andado este caminho de discípulos de Cristo. Agradecemos ao apóstolo Paulo,
porque sabemos que, sem ele, a mensagem de Jesus não teria chegado até nós, os gentios. Exaltamos,
cheios de gratidão, os mártires de nossa Igreja, cujo sangue foi semente da qual a Igreja tira vida. E nos
esquecemos muitas vezes de agradecer a Maria, a mãe do nosso Senhor.
180
Art. 21, 27 da Apologia da Confissão de Augsburgo
Não está ela inserida na “nuvem de testemunhas” que nos circunda181 e cujo testemunho nos deve
fortalecer para a luta que temos a sustentar?
Se honramos apóstolos e arcanjos e deles esperamos que sejam nossos guias no caminho, usando seus
nomes para denominar comunidades e igrejas nossas, — então, como é que poderíamos excluir Maria,
que está ligada a Jesus como a primeira e mais íntima e que andou com Ele o caminho na cruz?
A nossa Igreja Evangélica deixou de lhe prestar honra e louvor, receando com isto reduzir a
honra devida a Jesus. Mas o que acontece é o seguinte: toda honra autêntica dirigida aos
discípulos de Jesus e também à Sua mãe, aumenta a honra do Senhor. Pois foi Ele, só Ele, que os
elegeu, os cobriu com Sua graça e fez deles Seu vaso de eleição. Por sua fé, seu amor e sua
dedicação para com Deus, é Deus colocando no centro das atenções e é glorificado.
Jesus espera de nós que a honremos e amemos. É isto que nos é proposto pela Palavra de Deus e é,
portanto, Sua vontade. “E somente os que guardam Sua palavra, são os que amam a Jesus de verdade
(João 14, 23)”.
PERGUNTAS
Neste Módulo estudaremos o histórico da devoção do Rosário; após o quê, analisaremos o seu
significado na piedade dos fiéis católicos.
181
Cf. Hebreus 12, 1.
1. O costume de rezar breves fórmulas de oração consecutivas e numeradas mediante um artifício
qualquer (contagem dos dedos, de seixos, de ossinhos, de grãos…) constitui uma das expressões
espontâneas da religiosidade humana, independentemente do Credo que alguém professe.
Entre os cristãos, tal hábito já estava em uso entre os eremitas e monges do deserto (séc. IV/V):
ávidos de manter sempre o espírito unido a Deus em estado de oração, diziam centenas de breves preces
controladas por um sistema de calcular: sendo insuficiente para isso o uso de dedos das mãos,
começaram a recorrer a seixos.
Paládio, historiador cristão do séc. V, refere que um eremita do séc. IV, chamado Paulo, fez o
propósito de recitar diariamente 300 orações dispostas em determinada ordem; desejoso de não omitir
alguma por descuido, recolhia então 300 pedregulhos que ele guardava em seu regaço e ia lançando fora,
um por um, cada vez que rezava uma prece (História Lausíaca 20). O mesmo historiador menciona dois
outros ascetas, dos quais um recitava 700 orações e o outro 100 por dia — o que faz crer que o costume
do eremita Paulo não devia ser caso isolado. Contudo o sistema dos pedregulhos, por mais útil que fosse,
não podia ser adotado em quaisquer circunstâncias: seria impraticável, por exemplo, por parte de
monges que quisessem rezar coletivamente na igreja. Daí o recurso a novo artifício: passou-se um fio ou
cordel através dos grãos previamente perfurados, fabricando-se assim pequenas correntes ou colares.
Este uso, que é, como se vê, muito antigo na Igreja, tomou incremento especial no Ocidente: no
fim do séc. X havia-se implantado entre os fiéis o costume de rezar a oração do Senhor, o “Pai-Nosso”,
certo número de vezes consecutivas. Tal praxe teve origem provavelmente nos mosteiros, onde muitos
cristãos professavam a vida monástica, sem, porém, possuir grande capacidade para o estudo; não
estavam, por conseguinte, habituados a seguir a oração comum e oficial da Igreja, que compreendia a
recitação dos salmos. Em conseqüência, para esses irmãos ditos “conversos” ou “leigos”, os Superiores
religiosos estipularam a recitação de um certo número de “Pai-Nosso” em substituição do Ofício Divino
celebrado solenemente no coro.
Para favorecer esse exercício de piedade, foi-se aprimorando a confecção das correntes que
serviam à contagem das preces: cada um desses cordeis de grãos se dividia geralmente em cinco
décadas; cada décimo de grão era mais grosso do que os outros a fim de facilitar o cálculo) portanto,
ainda não se usavam, como hoje, séries de dez grãos pequenos separados por um grão maior, pois só se
dizia o Pai-Nosso). Tais instrumentos eram chamados “Paternoster” tanto na França como na
Alemanha, na Inglaterra, na Itália, ou, menos freqüentemente, “numeralia, fila, computum, preculae”; os
seus fabricantes constituem prósperas corporações, ditas dos “Patenotriers” ou dos “Paternosterer”.
Ao lado de tal praxe, ia-se desenvolvendo entre os fiéis outro importante exercício de piedade, ou
seja, o costume de saudar em tom filial e alegre a Virgem Santíssima; fazendo isto, os fiéis
intencionavam evocar principalmente as alegrias de Maria aqui na terra, em particular a alegria da
Anunciação. Com este fim, repetiam a saudação do anjo a Maria (“Ave, cheia de graça…”, Lc 1,28)
acompanhada das palavras de Elisabete (“bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o fruto de tuas
entranhas”; Lc 1, 42). A invocação subseqüente “Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós…” ainda
não estava em uso na Idade Média182.
182
A principio a Ave-Maria constava apenas das palavras do anjo Gabriel e de Isabel (cf. Lc 1, 28 e 42). Na segunda metade
do séc. XIII, talvez por ordem do Papa Urbano IV, acrescentaram-se as palavras: “bendito é o fruto do vosso ventre Jesus
Cristo. Amém”. Em 1483 começou-se a dizer também: “Santa Maria, Mãe de Deus,…”, pedindo da graça de uma boa morte.
A forma atual da Ave-Maria aparece pela primeira vez num Breviário da Ordem dos Cartuxos em 1563, mas só se
generalizou em meados do século XVIII.
Em conseqüência, por volta do ano 1150 ou pouco antes (época em que a saudação angélica já
era muito usual), os fiéis conceberam a idéia de dirigir a Maria 150, 100 ou 50 saudações consecutivas, à
semelhança do que faziam repetindo a oração do Senhor: cada Ave-Maria era acompanhada de uma
“venia” ou de um gesto de reverência, que ao mesmo tempo dava caráter penitencial ao piedoso
exercício. Cada uma das séries de saudações (às quais cá e lá se acrescentava o Pai-Nosso) devia,
segundo a intenção dos fiéis, construir uma coroa de rosas ofertadas à Virgem Santíssima; daí os nomes
da “rosário” e “coroa” (em francês, “chapelet”, isto é, ornamento da cabeça) que se foram atribuídos a
tal prática; a mesma era outrossim chamada “Saltério da Virgem Santíssima”, pois imitava as séries de
150, 100 ou 50 Pai-Nosso, que faziam as vezes de saltério dos irmãos conversos nos mosteiros. Assim se
vê que os “Paternoster” e posteriormente os “rosários” entraram na vida de piedade dos fiéis à guisa de
Breviário dos leigos, com o fito de entreter nos fiéis a estima para com os salmos e a oração oficial da
Igreja; o Rosário tem assim o seu cunho de mentalidade e de inspiração bíblicas.
Quanto ao nome “rosário”, em particular, foi muito fomentado por uma historieta popular do séc.
XIII: narrava-se então que um monge cisterciense se comprazia em recitar freqüentemente 50 Ave-
Maria, as quais emanavam de seus lábios como rosas que se iam depositar na cabeça da Virgem
Santíssima!
Outra etapa importante foi a associação de meditação à recitação vocal das “Ave-Maria”. No séc.
XIV tal praxe estava em vigor nos mosteiros das monjas dominicanas de Tõss e Katharinental. Contudo
a difusão e a paulatina generalização desse costume devem-se a um cartuxo, Domingos Rutero, que
viveu no início do séc. XV; Domingos propunha a recitação de 50 “Ave-Maria”, cada qual com seu
ponto de reflexão (ou seu mistério) próprio. Outros sistemas de meditação entraram aos poucos em
vigor: houve quem se aplicasse a 150, 165, 200… pontos ou mistérios. O dominicano Alano da Rocha (†
1475) sugeria a recitação de 15 “Pai-Nosso”, 150 “Ave-Maria” associados à contemplação de 150
mistérios, que percorriam os principais aspectos de obra da Redenção desde o anúncio do anjo a Maria
até a morte da Virgem Santíssima e o juízo final.
Mais uma faceta da evolução do Rosário, já insinuada pelos precedentes, foi a inclusão dos
mistérios dolorosos da Paixão do Senhor entre os temas de meditação. Isto se explica pelo caráter
sombrio e tristonho que por vezes tomou a piedade popular no fim da Idade Média: o grande Cisma do
Ocidente (1378-1417), a guerra dos Cem Anos, o flagelo de pestes , os temores de fim do mundo muito
chamaram a atenção dos fiéis para as tristezas da vida, em particular para as dores de Cristo e Maria;
muitos então, além das sete alegrias de Maria, focalizavam devotamente as suas sete dores…
A consideração destes tópicos de história mostra claramente que durante séculos a maneira de
celebrar o “Saltério de Maria” variou muito, ficando ao arbítrio da devoção dos fiéis a forma precisa de
honrar a Virgem por essa via. Papel de relevo na orientação geral da prática do Rosário coube, sem
dúvida, à benemérita Ordem de S. Domingos, à qual foi sempre muito caro esse exercício de piedade:
através de Irmandades do Rosário, assim como por meio de pregações, escritos, devocionários, etc…, os
dominicanos difundiram largamente a devoção.
De passagem diga-se: vê-se assim quanto é falso afirmar, como faz folhetinho espalhado em
nosso público, que o Rosário é inovação introduzida no Cristianismo em 1090. Quem o lê, colhe a
impressão errônea de que o Rosário se originou a toque de decreto da suprema autoridade da Igreja.
Foi finalmente um Papa dominicano, São Pio V (1566-1572), quem deu ao Rosário a sua forma
atual, determinando tanto o número de “Pai-Nosso” e “Ave-Maria” como o teor dos mistérios que o
devem integrar. O Santo Pontífice atribuiu à eficácia dessa prece a vitória naval de Lepanto, que aos 7 de
outubro de 1571 salvou de grande perigo a Cristandade ocidental; em conseqüência, introduziu no
calendário litúrgico da Ordem da S. Domingos a festa do Rosário sob o nome de festa “Nossa Senhora
da Vitória”. A solenidade foi, em 1716, estendida à Igreja universal, tomando mais tarde o nome de festa
“de Nossa Senhora do Rosário”. A devoção foi de então por diante mais e mais favorecida pelos
Pontífices Romanos, merecendo especial relevo o Papa Leão XIII, que determinou fosse o mês inteiro de
outubro dedicado, em todas as paróquias, à recitação do Rosário.
Concede-se indulgência plenária a quem recite o Rosário (quinze mistérios) ou numa igreja ou
em família ou numa comunidade ou numa associação religiosa. A indulgência é parcial nas demais
circunstâncias.
À recitação do terço (cinco dezenas apenas) também se atribui indulgência plenária, desde que 1)
as dezenas sejam ditas sem interrupção e 2) se una à oração vocal a meditação dos respectivos mistérios.
2. Independentemente de quanto acaba de ser dito aqui, está difundida uma narrativa que visa a
explicar a origem do Rosário em termos diferentes; haveria sido diretamente entregue, em visão, pela
Virgem Santíssima a S. Domingos quando este no séc. XII, em sua árdua missão contra a heresia
albigense, pedia o auxílio da Mãe de Deus, no mosteiro de Prouille (onde S. Domingos instituía um
centro de pregação e o primeiro cenóbio dominicano feminino).
Abalizados críticos católicos não reconheceram a autenticidade dessa narrativa. Uma das mais
fortes razões por eles evocadas é o silêncio das fontes históricas: nenhuma das peças antigas do arquivo
do Prouille, nem os sete primeiros biógrafos de S. Domingos, nem algum outro documento dos séc. XIII/
XIV refere algo da apregoada visão.
O costume antigo de repetir orações à guisa de coroa espiritual não se concretizou apenas no
Rosário de Nossa Senhora. Além deste, estão em uso entre os fiéis outras coroas espirituais
representadas por um colar de contas correspondente. Assim:
a) a coroa dos Crucíferos: tem a mesma forma que o Rosário mariano, e recita-se de mesmo modo,
sem obrigação, porém, de meditar os mistérios; é apanágio da Ordem dos Cônegos da Santa Cruz ou
Crucíferos;
c) a coroa das Sete Dores de Maria: compõe-se de seta séries de 1 “Pai-Nosso” e 7 “Ave-Maria”;
acrescentam-se 3 “Ave-Maria” em honra das lágrimas da Virgem Dolorosa; durante a recitação
meditam-se as sete Dores de Maria. É devoção muito cara à Ordem dos Servos de Maria;
d) a coroa das Sete Alegrias de Maria: divide-se em sete décadas, cada qual constando de 1 “Pai-
Nosso” e 10 “Ave-Maria”. Acrescentam-se mais duas “Ave-Maria”, a fim de perfazer o número 72
saudações angélicas; dizem-se, por fim, 1 “Pai-Nosso”, 1 “Ave-Maria” e 1 “Glória” segundo as
intenções do Sumo Pontífice. Esta coroa se prende especialmente à história das famílias religiosas
franciscanas;
e) a coroa angélica, em honra a S. Miguel Arcanjo e dos nove coros angélicos. Constitui-se de nove
séries de 1 “Pai-Nosso” (grão maior) e 3 “Ave-Maria” (grãos menores), às quais se seguem 4 “Pai-
Nosso” (grãos maiores); além disso, compreende invocações aos coros angélicos;
f) a coroa de Sta. Brígida: constava, a princípio, de 6 dezenas (cada qual de 1 “Pai-Nosso”, 10 “Ave-
Maria” e 1 Credo, seguidas de 1 “Pai-Nosso” e 3 “Ave-Maria” (63 “Ave-Maria” correspondente aos 63
presumidos anos de vida da Virgem SSma. sobre a terra). Foi posteriormente reduzida a cinco dezenas.
Esta devoção, ainda usual em nossos dias, teve surto na antiga Ordem de Sta. Brígida.
O Rosário tem provocado reservas e objeções baseadas na índole aparentemente mecânica desse tipo
de oração: muitos o têm na conta de exercício fadado ao automatismo e à rotina, apto a esterilizar a vida
de união com Deus mais do que a estimulá-la.
Não obstante, verifica-se que tanto os Santos como grandes sábios cristãos muito estimaram o
Rosário. — Pergunta-se então: como entender o valor atribuído a essa devoção?
Não se poderia formular um juízo adequado sobre tal prática, caso se levasse em conta apenas a sua
face externa. A repetição de preces vocais pode realmente dar a impressão de que se mecaniza a oração
(a qual é essencialmente elevação da alma a Deus); pode assim parecer incorrer na condenação que Jesus
proferiu no Evangelho: “Quando orardes, não multiplicareis as palavras, como fazem os pagãos, os
quais julgam que serão atendidos em vista da multidão de suas palavras” (Mt 6,7). Neste texto, não há
dúvida, o Senhor reprova a concepção que faz coincidir oração com repetição de vocábulos, como se o
homem pudesse influir sobre a Divindade pelo aparato de sua verbosidade.
Não é, porém, por efeito dessa mentalidade que se repetem as “Ave-Maria” na recitação do Rosário.
Não; estas têm valor totalmente subordinado; visam apenas criar uma atmosfera, um clima, dentro do
qual o espírito mais compassadamente se possa elevar a Deus; é a contemplação interior, acompanhada
de atos de amor, que constitui a finalidade de repetição de fórmulas no Rosário. A oração vocal, no caso,
pode ser comparada ao corpo, ao passo que a contemplação faz as vezes da alma do Rosário. Ora, assim
como a alma humana, em condições normais neste mundo, precisa da colaboração do corpo até mesmo
para exercer as suas funções mais sublimes, assim também a elevação da alma a Deus na oração precisa
de um esteio sensível, que, no caso do Rosário, vem a ser a recitação das “Ave-Maria”; esta cria como
que um “espaço” espiritual dentro do qual a meditação e o afeto se devem desenvolver; a monotonia das
fórmulas é quebrada pelo ritmo progressivo da meditação ou da contemplação. Assim o Rosário põe em
ação todas as potencialidades do homem, tanto as espirituais como as corporais, para promover a união
com Deus.
À luz do que dissemos, o Rosário há de ser tido como expressão característica da natureza humana
colocada na presença de Deus. É mesmo expressão tão autêntica ou natural que ela tem seus paralelos
fora da piedade ocidental. Assim entre os cristãos orientais está muito em uso, tanto na liturgia comum
como na devoção particular, o chamado “hino acatisto”: consta de um proêmio poético e de 24 estrofes,
cada qual iniciada por uma letra do alfabeto grego, celebrando o anúncio do anjo a Maria 183. Nesse hino
156 aclamações à Virgem SSma., precedidas cada qual pela mesma saudação, correspondem de certo
modo às 150 “Ave-Maria” do Rosário. Como atestam os viajantes, não há cristão oriental que não saiba
de cor o hino acatisto.
183
Cf. Lc 1,26-36
Mesmo nas principais religiões da Ásia e no Islamismo é costume rezar mediante a repetição da
mesma fórmula. Ora o fato de que tal praxe esteja difundida entre homens de civilização e
temperamento tão diversos significa que ela bem corresponde às disposições mais espontâneas da
natureza humana.
“As práticas e os métodos de meditação não cristãos dizem-nos que o homem pode ser
reconduzido da dispersão e da laceração exterior e interior à reflexão, à interioridade e ao
reconhecimento com a ajuda da repetição contínua e aparentemente monótona de uma
palavra ou de uma frase. Uma única e mesma palavra, uma única e mesma frase
continuamente repetidas tornam-se o veículo do reconhecimento e da concentração psíquica e
espiritual… Que o indivíduo recorra ao esquema orgânico e fixo de uma oração
continuamente repetida não é necessariamente uma coisa de que deva envergonhar-se. Pelo
contrário, agindo desta forma, o orante manifesta significativamente a sua pobreza e
incapacidade na busca do mistério de cuja energia e de cujo centro vive o homem”.
Estas considerações concorrem para que se entenda a posição que o S. Padre o Papa Pio XI tomou
frente ao Rosário, declarando:
“Quando estão longe do caminho da verdade aqueles que rejeitam esse método de oração
(o Rosário) qual fórmula fastidiosa e cantilena monótona, conveniente apenas a crianças e
mulheres simples!… A piedade se comporta à semelhança do amor: mesmo que repita sempre
as mesmas palavras, estas não exprimem sempre a mesma coisa; mas algo de novo por elas
se traduz, algo de novo inspirador por novos e novos afetos do amor”
À guisa de conclusão, ainda se impõe breve observação sugerida pela sinceridade e a honestidade:
apesar dos vários títulos que recomendam a recitação do Rosário, verifica-se que na prática não é fácil
rezá-lo como ele deve ser rezado. São Luís-Maria Grignion de Montfort († 1718), certamente grande
amigo das devoções marianas, julgava que o Rosário é, ao mesmo tempo, “o método mais fácil de
meditação” e “a mais difícil das orações vocais”.
Por isto, se um cristão, por mais fiel que seja à graça de Deus, não consegue familiarizar-se com esta
forma de devoção, será preciso respeitar a ação do Espírito Santo em sua alma e não lhe impor como
obrigação de consciência tal modalidade de oração (a menos que lhe seja prescrita por Regra ou por
voto); cada justo tem sua personalidade própria, que a graça de Deus costuma não destruir, mas antes
desenvolver e aperfeiçoar.
PERGUNTAS
Estas observações explicam a veneração (não adoração) prestada aos Santos na Igreja. Se a sociedade
civil cultua com homenagens seus grandes antepassados, o cristão cultua com profunda reverência
aqueles que conseguiram chegar ao auge da vocação cristã. Cultuando-os, os fiéis não derrogam ao culto
de adoração devido a Jesus Cristo e a Deus Pai (na unidade do Espírito Santo); todo Santo é mero
reflexo da Santidade de Cristo; é obra excelente da graça do Redentor; por isto quem cultua um Santo,
cultua-o em função de Cristo, louvando a Deus por quanto fez no seu Santo; o culto dos Santos é relativo
a Cristo e ao Pai.
Com outras palavras: a santidade dos heróis da fé não é mais do que participação na santidade de
Cristo. A santidade dos homens nada acrescenta à santidade de Cristo. A santidade de Jesus mais a
santidade de Maria e a santidade de todo o Corpo Místico de Cristo não resultam em santidade maior do
que a de Cristo só. É São Tomás quem o diz: “Nec est aliquid maius Ipse et alii quam Ipse solus. — Ele
e os outros não são algo de maior que ele só” (In IV Sententiarun, Dist. 49, qu 4, art. 3, ad 4).
Explicitando, podemos dizer: Cristo, como cabeça do gênero humano e Pai (2º Adão) de uma nova
humanidade, possui a plenitude da graça ou a graça capital (= a graça da cabeça). Todas as graças que
os homens recebem, derivam-se dele e são o espelho da graça dele, sem aumentar a riqueza da graça da
Cabeça186.
184
A heroicidade das virtudes é a primeira coisa que a Igreja investiga quando se trata de um processo de Beatificação (=
reconhecimento da santidade).
185
Com isto não queremos diminuir os méritos de um bom profissional; apenas verificamos que o profissional exímio pode
ter uma personalidade moralmente defeituosa, ao passo que o santo é uma personalidade moralmente consumada.
186
Paralelamente podemos dizer: quando um mestre comunica seu saber aos discípulos, originam-se muitos sábios, que
participam da sabedoria do mestre, mas nem por isto há mais sabedoria.
Estas observações explicam um fato interessante; quanto mais os cristãos tomaram consciência da
obra messiânica ou salvífica de Jesus Cristo, tanto mais também compreenderam que o Messias tem um
povo messiânico; há algo de Cristo (não somente o conhecimento e o amor de Cristo) em cada cristão;
há, sim, a vitória de Cristo a se concretizar e particularizar em cada cristão. Exemplo muito claro desta
tomada de consciência é a própria veneração a Maria: para definir a identidade de Cristo (uma só pessoa
tem duas naturezas), o Concílio de Éfeso, em 431, não encontrou melhor fórmula do que a proclamação
solene de Maria, Mãe de Deus (Theotókos); afirmando ser Maria a Mãe de Deus, o Concílio afirmava
que Jesus é Deus,… Deus, que tomou a natureza humana no seio de Maria Virgem.
No séquito de Cristo, foram cultuados primeiramente os mártires como aqueles que mais
precisamente participaram da Paixão e Vitória do Senhor. Maria SS. é invocada como Mãe de Deus
desde o fim do século III na oração: “A vós recorremos, Santa Mãe de Deus…”. Aos poucos se
compreendeu que também aqueles que não derramaram sangue em morte violenta, mas se ofereceram
diariamente ao Pai até o fim em grau heróico, são expressões da vitória do Redentor.
“Como o amor de Cristo é inseparável de nosso amor fraterno, assim o culto dos Santos,
de forma nenhuma, é um culto supérfluo nem uma prática facultativa. Nesse sentido o culto
dos santos — tomado globalmente, abstraindo da devoção a esse ou àquele determinado
Santo, ou de tais ou quais práticas — é obrigatório para todo cristão. O Cristo total que
veneramos é o Cristo com todo o séquito dos Santos, dos quais ele é a “coroa”, como diz a
liturgia da festa de Todos os Santos. É verdade que a santidade dos eleitos não é mais do que
a pura participação do Cristo, ou do dom de Cristo; todavia, sua pessoal e livre aceitação da
graça ocupa um lugar insubstituível na dispensação dessa graça. Na medida em que eles são
assim insubstituíveis, eles todos desempenham um papel positivo na economia da graça. Uma
vida intensa de união com Cristo necessariamente confluirá no culto dos santos”
(Maria, Mãe da Redenção p. 94).
O fato de que muitos seres humanos participam da santidade de Cristo, não pode deixar de
estabelecer uma certa comunhão entre esses seres humanos; são irmãos; são, de algum modo, gêmeos
entre si, pois recebem a vida da mesma fonte ou da mesma cabeça. Nessa comunhão não pode faltar o
amor, … o amor a Cristo e o amor aos irmãos; o amor é a expressão da santidade. Por isto é que os
irmãos rezam uns pelos outros enquanto peregrinos na terra (intercedem junto a Deus em favor da saúde
ou do bem-estar dos seus semelhantes187. Essa expressão do amor fraterno não pode ser extinta pela
morte de alguém: “O amor é forte como a morte”, afirma o Cântico dos Cânticos 8, 6; isto quer dizer
que o amor não quebra, como a morte não quebra ou é inexorável. Donde se segue que, entre os
peregrinos na terra e os consumados no céu, continua a haver vínculos de solidariedade fraterna. Deus,
que é o Autor desses vínculos ou dessa comunhão, encarrega-se de a manter viva; Ele faz que os Santos
tomem conhecimento de nossas necessidades e nossas preces, a fim de que possam interceder por nós na
glória.
A intercessão dos Santos na glória em prol dos irmãos militantes na terra já era conhecida pelo povo
de Deus do Antigo Testamento, ou seja, é uma expressão de fé pré-cristã. Tenhamos em vista 2Mc 15,
12-14:
187
Esta prática ocorre na Bíblia mesma; ver Ex 32, 11-14; Sl 99,6; 1Sm 7, 8-12; Ef 6, 19s; Rm 15, 30.
“Este foi o espetáculo que coube a Judas Macabeu apreciar: Onias, que tinha sido Sumo
Sacerdote, homem honesto e bom, modesto no trato e de caráter manso, expressando-se
convenientemente no falar, e desde a infância exercitado em todas as práticas da virtudes,
estava com as mãos estendidas, intercedendo por toda a comunidade dos judeus188. Apareceu,
a seguir, da mesma forma, um homem notável pelos cabelos brancos e pela dignidade, sendo
maravilhosa e majestosíssima a superioridade que o circundava. Tomando então a palavra,
disse Onias: ‘Este é o amigo dos seus irmãos, aquele que muito ora pelo povo e por toda a
cidade santa, Jeremias, o profeta de Deus’”.
Aliás, a tradição judaica conhecida seus grandes intercessores como eram Moisés e Samuel 189. O
caso mais típico é o de Abraão, que intercede em favor de Sodoma e Gomorra, usando da liberdade de
argumentar com Deus, que lhe decorria do fato de ser o “amigo de Deus”190.
Aliás, é dito no Antigo Testamento que Deus espera que os irmãos intercedam pelos irmãos na terra.
Muito mais há de querer que os irmãos já vitoriosos na glória intercedam por seus semelhantes ainda
caminheiros na terra. Conferir:
Is 59, 16: “O Senhor viu que não havia ninguém; espantou-se de que ninguém interviesse”.
Ez 22, 30: “Procurei entre eles um homem capaz de construir um muro e capaz de pôr-se na brecha
em favor da nação, para que eu não a destruísse, mas não o encontrei”.
É sobre este pano de fundo que passamos a considerar o papel de Maria na piedade e na vida do
cristão.
No conjunto dos Santos, Maria ocupa um lugar único, pois foi chamada a ser a Mãe do Redentor e
Mãe dos homens. Disto se segue que a veneração pelos cristãos dedicada a Maria difere da devoção aos
demais Santos, como S. Antônio ou S. Terezinha. A prova disto é que existem verdades de fé (dogmas)
condernentes a Maria, mas não os há em relação aos outros Santos. Verdade é que esses três dogmas
marianos não são mais do que o eco de dogmas cristológicos: o Filho de Deus quis fazer-se homem;
donde a Maternidade Divina. Para ser digno habitáculo da Divindade, Maria nunca esteve sujeita ao
pecado (donde a Imaculada Conceição) nem à conseqüência do pecado que é a morte (daí a Assunção
Gloriosa). A eminência do culto a Maria foi expressa pelo Concílio de Nicéia II em 787 mediante o
termo hyperdoulía, ao passo que os demais santos são cultuados em doulia (veneração)191.
Em conseqüência, deve-se dizer que a devoção a Maria não é facultativa, como é facultativa a
devoção a São Jorge ou a Santa Bárbara.
188
Onias continuava a função de intercessor que ele já exercera em vida na terra; cf. 2Mc 3,10s; 4,5 (N.d.R.)
189
Cf. Jr 15, 1.
190
Cf. Gn 18, 22-33.
191
A proposição hyper indica o sentido superlativo. Doulia se distingue de latria, adoração, reconhecimento da suprema
soberania, atitude que é devida a Deus só.
Cristo ou quanto mais ele se identifica com Cristo, tanto mais terá em seu íntimo os sentimentos de
Cristo. Ora Jesus era todo Filho do Pai (como Deus) e todo Filho de Maria (como homem). Donde se
segue que, quanto mais centrado em Cristo for o cristão, tanto mais deverá sentir-se filho de Maria. A
devoção mariana, portanto, está na lógica mesma do “ser um outro Cristo”, programa de todo cristão. O
cristão deve procurar tornar-se, para Maria, um outro Jesus.
Desta maneira percebe-se um paralelo entre Maria e a Igreja. A pertença à Igreja é conseqüência
natural e necessária da adesão a Cristo, Cabeça do Corpo Místico. É na Igreja que o cristão mais e mais
se identifica com Cristo e mais e mais se descobre a maternidade da Igreja e de Maria. É o que leva
Schillebeeckx a dizer:
“Para quem está verdadeiramente consciente do papel de Maria, é impossível passar, sem
Maria, uma vida que queira ser cristã, uma vida que não contrarie o apelo de Deus, não
derrogue à ordem cristã, não negligencie as delicadas atenções de Deus. Os pregadores e as
testemunhas da fé devem, por isso, levar a peito a pregação do mistério mariano e valorizá-
lo, porque este mistério… está na medula da religião cristã”
(ob. cit. p. 97).
Já que Maria exerceu uma função privilegiada na história da salvação e na dispensação da graça, a
devoção do cristão deve refletir este aspecto mariano da nossa Salvação: crer e esperar no Pai como
Maria e com Maria; amar e servir aos homens com Maria e como Maria, que se entregou plenamente a
Deus para colaborar na Salvação do mundo. O Papa Paulo VI, num discurso dirigido aos Padres do
Concílio do Vaticano II em 21 de Novembro de 1964, descreveu nestes termos a verdadeira devoção a
Maria, que, longe de ser sentimental, deve ser forte e atuante:
“Em sua vida terrestre, Maria realizou a figura perfeita do discípulo de Cristo… e
encarnou as bem-aventuranças evangélicas proclamadas por Cristo. Por isto toda a Igreja…
encontra nela a mais autêntica forma da perfeita imitação de Cristo… (Maria é) o modelo da
fé e da plena resposta a cada chamado de Deus, o modelo da plena conformidade com a
Doutrina de Cristo e com o seu amor, para que os fiéis, unidos no nome da Mãe de todos, se
sintam mais firmes na fé e na adesão a Cristo, e, ao mesmo tempo, ferventes num grande
amor para com os seus irmãos e promotores do amor aos pobres, da justiça e da defesa da
paz”.
Estas palavras significam que a genuína devoção a Maria implica a imitação de Maria, a servidora do
Senhor, fiel às exigências da fé e da caridade.
De modo especial, vale a pena salientar o aspecto corajoso da figura de Maria, que certamente não foi
privilegiada ao se tratar de provações e tribulações. Não há verdadeira entrega a Deus sem amor, e todo
amor implica sacrifício. Tal foi o amor de Maria. Depois que carregou em seus braços o Menino-Deus,
ela se tornou a mãe que sofre e se sacrifica. Ela experimentou a dor de um coração materno quando
Herodes ameaçou o Filho,… quando perdeu Jesus no templo aos doze anos de idade. Experimentou o
sofrimento, quando Jesus saiu de casa para iniciar seu Ministério Público. Experimentou o sofrimento da
via sacra do Calvário. Ainda que o filho cresça, toda mãe continua a ver no filho o menino que ela
trouxe nos braços. E quando Jesus pendia na cruz, prestes a exalar o último suspiro, Maria lhe assistia
intrépida, mas com o coração traspassado por uma espada192. E, na descida da cruz, Maria recebeu o
corpo inanimado do Filho e o estreitou contra o coração, que aos poucos ia descobrindo o paradoxo da
Redenção Humana.
Pois bem. A devoção mariana não pode ignorar esse aspecto da Mãe que sofre, visto que o sofrimento
é a partilha quase cotidiana de todo homem e mulher. A vida só tem valor quando animada pelo amor,…
amor que é inseparável do sofrimento. Nossos sofrimentos são uma parcela da Paixão de Cristo (Cl
1,24), parcela que depositamos nos braços de Maria, como Jesus foi depositado em seus braços no
Calvário. Ela é a admirável Pietà, que nos recebe e que atira sobre as chagas do mundo crucificado o seu
manto maternal.
Este papel de Maria-Mãe acolhedora é exposto com encanto e sabedoria por Schillebeeckx, quando
escreve:
“Em nossa vida, Maria é o coração que dá. O coração que compreende nossas necessidades e que
maternalmente as expõe ao Filho, o Deus que continua sendo seu Filho. Ela pode dizer-lhe como em
Caná: ‘Eles não têm mais vinho’. Ah, se pudéssemos ouvir o colóquio de Jesus e Maria a nosso
respeito, veríamos como estão sempre a par das necessidades. Tudo como em Caná. ‘Eles não têm mais
vinho’ vem a ser ‘falta-lhes dinheiro’, ‘estão na pior das misérias’, ‘seu pai está doente e a mãe tem oito
crianças para educar’, ‘eles desejam conformar-se com as leis do matrimônio, mas…’, ‘mamãe partiu
para uma longa viagem, diz o papai aos filhinhos, e papai não sabe se ela voltará…’.
Não esqueçamos que a vida terrestre atual, de que se ocupam a gloriosa mãe e o Filho glorificado,
só será realmente abençoada se a relacionarmos com as palavras de Maria aos servidores de Caná:
‘Fazei tudo o que meu Filho vos disser’. Degustareis então do que ela vos der em nome do Divino Filho,
e direis como os convidados de Caná: ‘Guardaram o melhor vinho para o fim’”.
“Porque vós estais lá para sempre,
simplesmente porque vós sois Maria,
simplesmente porque vós existis,
Mãe de Jesus Cristo, muito obrigado!”
(Paul Claudel, Poèmes de Guerre, La Vierge à Midi)
CARO CURSISTA, AQUI TERMINA SEU CURSO DE MARIOLOGIA. QUE A MÃE DE DEUS E NOSSA MÃE
CONTINUE A ACOMPANHÁ-LO E ILUMINÁ-LO PELAS ESTRADAS DESTA VIDA!
PERGUNTAS
1) Que é um Santo?
2) Por que veneramos os Santos?
3) Qual a diferença entre latria e dulia?
4) Como se situa Maria no conjunto dos Santos?
5) É facultativa a devoção à Maria?
6) Quais as características de autêntica devoção a Maria?
Deus criou o mundo invisível, Neste sobressai o homem como ponto de convergência das
criaturas inferiores. É por isto que abordamos agora a Antropologia Teológica (o estudo do homem
numa perspectiva de fé).
192
Cf. Lc 2, 35.
Lição 1: Quem é o homem?
AS. Escritura apresenta suas noções a partir de premissas semitas e de premissas gregas.
Os semitas (hebreus) eram muito dados Ao concreto e material, de modo que tinham dificuldade
para conceber noções abstratas. Na fase mais antiga da sua história, diriam que o homem é carne viva,
ou seja, carne (basar), que é animada por um alento vital (nefesh) como fruto do sopro (ruah) que vem
de Deus. O homem podia ser designado por qualquer destes vocábulos, que exprimiria sempre a pessoa
humana em sua globalidade. Se quiséssemos precisar, diríamos: basar indicava na sua fragilidade de
física e moral: nefesh punha em relevo o espírito vital que anima o homem; ruah significava o homem
enquanto movido por Deus em vista da história da salvação. Em tais circunstâncias, os judeus não
podiam conceber a noção de alma separada do corpo, nem tratavam de definir com precisão as
propriedades dos diversos aspectos do ser humano. Todavia os autores bíblicos não afirmavam que a
morte dissolve por completo o ser humano: distinguiam, entre o cadáver, que era sepultado, e os
refaím, sombras, que sobreviviam no cheol193 em estado de sonolência194; (Abraão morre e vai reunir-
se à sua parentela, ao passo que o seu cadáver é sepultado numa gruta): algo de semelhante se dá com
Jacó195; Jacó em Gn 37,35 diz que irá reuni-se com seu filho José no cheol. Estava verificação é
importante porque mostra o cerne do conceito de alma ou psyché como foi concebida pelos autores
bíblicos inspirados pelo helenismo.
Os doutores e teólogos dos primeiros século afirmam a unidade substancial do ser humano,
opondo-se tanto às doutrinas reencarnacionistas198 (que afirmavam a preexistência da alma humana
anterior à vida presente) como às teorias emanatista (que concebiam a alma como emanação da
divindade)199: todavia muitos sofreram a influência do platonismo, que menosprezava o corpo em favor
da alma. Muito lúcido, porém, é o testemunho de uma obra atribuída (duvidosamente) a S. Justino (+
16,7):
193
O cheol, para os judeus, era uma região subterrânea na qual se encontrariam os refaim ou o núcleo de personalidade
inconsciente dos defuntos (sem possibilidade de sanção alguma).
194
Cf. Gn 25,8-10.
195
Cf. Gn 49,29-32.
196
Cf. Sb 3,3; 5,15.
197
Cf. 1Ts 6,23.
198
Ver Concílio de Toledo I (400?) em DS 188s. 200s.
199
Ver Sínodo de Constantinopla (543) em DS 403; Concílio de Braga I em DS 455- 464.
alma é a alma de um homem. Logo, se nenhuma das coisas é o homem,
mas se este resulta da conjunção de ambas, e se Deus chamou o homem
à ressurreição e à vida, estão não chamou apenas uma das partes, mas
o todo; a alma e o corpo”.
(Rouet de Journel, Enchiridion n.º 147).
Na idade Média houve disputas sobre a maneira como corpo (matéria) e alma (espírito) se unem
entre si. Finalmente S. Tomás de Aquino († 1274), recorrendo à doutrina aristotélica do
hilemorfismo200, concebeu a alma humana como forma do corpo ou como principio vivificante, que se
une à matéria sem intermediário. Esta concepção se tornou comum a partir de então até nossos dias.
O magistério da Igreja, no Concílio ecumênico de Viena (Gália) 1313, afirmou que a alma
humana é forma do corpo (sem tencionar definir ou canonizar o hilemorfismo de Aristóteles), visando à
tese de Pedro Olivi, que afirmava a existência de intermediários entre o corpo material e a alma
espiritual201. Em 1513, o Concílio do Latrão V, rejeitado a tese de Pomponazzi e Averroes, definiu que
todo o homem tem sua alma própria e única, que é vegetativa, sensitiva e intelectiva, e dotada de
imortalidade pessoal202. Aliás, já em 870 o Concílio de Constantinopla IV definiu haver no homem uma
única alma, responsável por todas as funções (vegetativas, sensitivas intelectivas) indivíduo cf. DS
657[338]).
Ultimamente vários autores têm rejeitado a distinção de corpo e alma, afirmando que são apenas
duas facetas duas facetas da mesma realidade (como cara e coroa da mesma moeda); o homem seria um
todo monolíticos. Em favor desta tese, alegam que a mensagem bíblica, vazada em categorias de
pensamento semita, propõe o homem como um todo sempre corpóreo: entre espírito e matéria seria
oriunda da filosofia grega e indevidamente introduzida na teologia da Igreja; esta sempre condenou o
dualismo.
A propósito, observamos:
1) a mensagem bíblica não está presa a determinadas; muito menos é ela ligada à cosmovisão
semita. Na Bíblia, há livros cuja inspiração filosófica é helenista; o que nos importa, não é o pensamento
semita nem o grego, mas o que o Espírito Santo quis dizer mediante o linguajar dos autores sagrados.
Ora é certo que, desde os primeiros livros judeus da bíblia, aparece o conceito de núcleo da
personalidade a sobreviver sem corpo após a morte do homem (refaím); esse núcleo é compreendido de
maneira mais nítida em escritos posteriores, de modo a podermos falar de alma (psyché) distinta do
corpo.
2) dualismo significa oposição entre dois princípios. É o que admitiam os persas, os gnósticos,
os maniquéus, os cátaros..., afirmando ser a matéria essencialmente má e o espírito essencialmente bom.
Parte da filosofia grega (pitagorismo, orfismo, platonismo...) cedeu a essa mentalidade. A Igreja
certamente rejeita tal modo de pensar. —Outra coisa, porém, é a dualidade; esta afirma a distinção de
dois princípios, se estabelecer antagonismo entre ele: é o que aconteceu, por exemplo, entre homem e
mulher, distintos, mas não antagônicos (e sim complementares) entre si. Ora a distinção entre corpo e
alma nada tem que ver com dualismo, mas sim com a dualidade que o criador estabeleceu entre tantas
das suas criaturas.
Em conclusão: corpo e alma se distinguem realmente entre si, e não são apenas duas facetas da
mesma realidade.
200
O hilemofismo ensina que toda substância corpórea se compõe de matéria (hylé, em grego) e forma (morphé). A forma
determina e especifica a matéria prima.
201
Cf. DS 902[482].
202
Cf. DS 1440[738].
Lição 2: Origem do homem
A teologia considera também a questão da origem do homem na medida em que interessa à fé.
Em Gn 1,17 lê-se que “Deus criou o homem à sua imagem... homem e mulher Ele os criou”. —
O autor sagrado quer ai exaltar a dignidade do ser humano, criado à imagem de Deus por estar dotado de
inteligência e vontade, que o habilitam a dominar a terra inteira; Deus não tem corpo, de modo que não
é pela corporeidade que o homem se assemelha a Deus. O autor não entra em questões de ciências
naturais, de modo que das suas palavras nada se pode deduzir sobre evolucionismo ou criacionismo
direto.
Em Gn 2,7 está dito que Deus formou o homem a partir do barro e lhe soprou na face um hálito
de vida. Esta imagem do Deus-Oleiro é encontrada em vários documentos da antigüidade; é pois, um
expressionismo usual, que deve ser entendido como os antigos o entendiam. Ora estes não conheciam as
questões científicas modernas; ao usar tal metáfora, tinham em vista dizer que, assim como o oleiro está
para o barro, deus está para o homem; há, uma proporção entre o relacionamento do artesão com a argila
e o Deus com o homem; tal relacionamento é de sabedoria, carinho, providência, maestria, domínio etc.
Por conseguinte, qualquer que tenha sido o tipo de origem do homem (disto o autor não trata), Deus é
sábio, carinhoso, providente para com este...
Como se vê, nada se pode depreender da Bíblia das teorias científicas modernas.
Todavia, dado que a questão mais se impõe ao estudioso católico, o papa Pio XII, na sua
encíclica “Humani Generis” (1950), assim se pronunciou:
Esta declaração, portanto, distingue entre corpo e alma. Aquele, sendo matéria viva preexistente
ou do primata. Quanto à alma humana, por ser espiritual não é oriunda da matéria (ninguém dá o que
não tem), mas é diretamente criada por Deus e infundida ao embrião desde que haja a fecundação do
óvulo Vê-se, pois que a pergunta: “O homem vem ou não vem do macaco?” é mal formulada.
Distingamos as partes componentes do homem e jamais admitimos que o macaco hoje existente
(orangutango, chimpanzé...) possa ser ancestral do ser humano.
Aliás, não somente as almas dos primeiros homens foram diretamente criadas por Deus. O
mesmo se dá com toda e qualquer alma humana em qualquer época; não provém da matéria, nem é
gerada pelas almas dos genitores (apesar do que admitiam Tertuliano, 210 e S. Agostinho, †430); com
efeito, a alma humana, sendo espiritual, não se reparte ou não emite uma semente material ou espiritual
que dê origem a outra alma.
203
DS 3896[2327].
a tradição foi entendendo como nome próprio do primeiro homem; é de notar, porém, que o primeiro
homem não devia ter nome hebraico (pois tal língua é relativamente recente na historia). Na base desta
ponderação os estudiosos julgam que o autor sagrado nos fala das origens do homem como tal sem
especificar o número de indivíduos originários. Esta. Doutrina ó aceitável aos olhos da fé contanto que
se diga que Adam (a espécie humana representada pelo indivíduos. Dois ou mais, originários) pecou
(todos pecaram). De tal modo que todo homem da nossa espécie é herdeiro do pecado original e
redimido por Cristo. Segundo os poligenistas, quando São Paulo diz que o pecado entrou no mundo por
um só homem (Rm 5,12), o Apóstolo não tenciona fazer a exegese de Gn 1-3, mas alude aos textos
antigos com eles scam, sem pensar em dirimir as dúvidas atuais referentes ao monogenismo. O mesmo
terá feito o Concílio de Trento em 1546, quando se referiu Adão, o primeiro homem, que transmitiu o
pecado a todo o gênero humano por via de ciência não pode dizer quando e como começou a história do
gênero humano; ela nada tem a opor ao monogenismo.
A título de baliza orientadora, citamos aqui as palavras que Paulo VI proferiu em 11/07/1966, na
abertura de um congresso de teólogos que estudaram o pecado original.
BIBLIOGRAFIA:
FEINER-LOEHTER. Mysterium Salutis 11/3. Vozes.
GOMES, Cirilo Folch. Riquezas da Mensagem Cristã. Lumen Christi.
SCHMAUS, Michael. A Fé da Igreja. Vol. 2. Vozes.
PERGUNTAS
1) Corpo e alma se distinguem entre si ou são duas facetas da mesma realidade? Que dizem a
Bíblia, a Tradição e o magistério da igreja a respeito?
2) O evolucionismo é aceitável no tocante à origem do homem?
3) A alma humana é gerada pelos pais?
204
Cf. Módulo 13.
4) Que quer dizer do poligenismo aos olhos da fé?
Dizíamos, com a igreja, que o ser humano consta de corpo material e alma espiritual. Torna-se
necessário agora demonstrar a espiritualidade da alma humana e a sua mortalidade.
1. A palavra “alma” (do latim anima) significa o principio vital ou animador de um corpo
organizado. Isto quer dizer que 1) todo ser vivo tem alma; 2) há tantos tipos de alma quanto são os tipos
de vida. Ora existem três tipos de vida:
— a vida sensitiva, com as funções da vida vegetativa e, mais, a capacidade de conhecer seres
concretos mediante os sentidos;
Em conseqüência, distinguem-se:
A alma, vegetativa e a sensitiva são de índole material, pois não realizam funções que
ultrapassam o âmbito da matéria; são eduzidas da matéria dos genitores (plantas e animais) quando tem
origem nova planta ou novo animal irracional, e são reabsorvidas pela meteria, quando o vivente está
totalmente desgastado. — Ao contrário, a alma intelectiva ou humana é espiritual. Pergunta-se então:
que é espírito?
2) Espírito é o ser real que não tem matéria nem corpo (quantidade, peso, tamanho...), mas é
dotado de inteligência e vontade. Distinguem-se:
Espírito
{ incriado, não unido à matéria: Deus
criado, não unido à matéria: anjo
criado, unido à matéria: alma humana
A alma humana é realmente espiritual? — Para responder, deve-se levar em conta o seguinte
princípio: o ser e o agir de determinada realidade devem ser correlativos entre si; cada qual age em
função do que é. Em conseqüência, se vejo que determinada substância tem por efeito “salgar”
alimentos, digo o seu ser consta de sódio e cloro (NaCl); se outra substância é corrosiva, suporei que seja
um ácido, como o ácido sulfúrico (HsSO4). Se, pois, desejo saber se a alma humana é espiritual ou
material, devo examinar as suas atividades; se estas não ultrapassam as capacidades da matéria, direi
que a alma humana é material; se as ultrapassam, direi que é espiritual ou material.
1) Percepção do universal
É certo que o ser humano é capaz de conceber noções abstratas, universais, percebendo o
essencial: é apto a reconhecer proporções, relações de dependência, de causalidade, de finalidade. Com
efeito; depois de ver um homem, uma mulher, uma criança, um ancião, um gordo, um magro..., a
inteligência humana se emancipa das diferenças motivadas por cor, tamanho, sexo, idade... e define
todos esses indivíduos como participantes da mesma essência ou natureza; são viventes racionais, todos
iguais entre si pela natureza (que a inteligência apreende), embora diferentes uns dos outros pelos
aspectos que os olhos percebem. Em conseqüência, deve-se dizer: a alma humana, que, por sua
atividade, é capaz de ultrapassar o concreto, o material, é material ou espiritual.
Disponha-se uma série de vasilhas fechadas, na primeira das quais se coloca o alimento de um
macaco. O animal, posto diante de tal série, não sabe onde encontrar a sua ração; o operador então abre a
primeira vasilha e lhe mostra o alimento. Repita-se a experiência encerrado na segunda vasilha o
alimento. O animal, recolocado diante da série, é guiado pela memória sensitiva e, recordando-se do
ocorrido no dia anterior, vai à primeira vasilha. O operador o coloca então diante do segundo recipiente,
do qual animal se serve. Num terceiro ensaio, coloque-se o alimento fechado no terceiro recipiente:
guiado pelas impressões sensíveis do ensaio anterior, o macaco se dirige para o segundo vaso. Caso se
multipliquem as experiências, verifica-se que o animal procura de cada vez o recipiente em que, no
ensaio anterior, encontrou o que lhe interessava. Nunca chega a abstrair dessas diversas experiências a
lei da progressão que as rege. Nunca se desvencilha das notas concretas da vasilha em que por último
encontrou a sua ração, deduzindo que não é o fato de ser a segunda, a terceira ou a quarta vasilha que
interessa mas é o fato de ser a vasilha n+1 (fórmula em que n designa o número da experiência anterior).
Ora uma criança sujeita a tal teste, depois de quatro ou cinco experiências consegue abstrair a lei n + 1
do fenômeno. Isto se dá porque a criança tem um princípio vital (alma) que não é material e, por isto,
pode abstrair do concreto material para perceber noções abstratas universais.
2) A linguagem humana
3) A consciência de si mesmo
O ser humano, além de conhecer os objetos que o cercam, possui o conhecimento de si mesmo
ou a autoconsciência; o homem não somente sente dor, mas sabe que sente dor... Possuindo o
conhecimento dos objetos e de si mesmo, o homem concebe o plano de ordenar o mundo e a si mesmo,
dominando fatores estranhos ao seu ideal, superando paixões desregradas, cultivando boas tendências,
etc. isto tudo escapa às possibilidades de um animal irracional, pois este conhece o seu objetivo concreto
e é incapaz de se emancipar das notas concretas deste e de se voltar para si mesmo de maneira
sistemática a fim de se conhecer. O ser humano, ao contrário, realiza esta instrospecção, porque o seu
princípio de conhecimento (intelectivo) é capaz de ultrapassar o seu objeto concreto, material, para
atingir o próprio sujeito.
4) A cultura e o progresso
Verifica-se que o homem intervém no seu ambiente natural, criando cultura e civilização. Essa
atividade se deve à ação intelectiva e planejadora de pessoa humana. Com efeito; ao conhecer a natureza
que a cerca, o homem percebe as relações entre meios e fins ou as proporções entre os diverso termos, e
concebe projetos para melhorar o seu ambiente (habitat, alimentação, arte...); vai assim construindo
civilizações sucessivas... Ora o animal é incapaz de progredir em suas expressões, porque é guiados por
institutos: embora certeiros em seus movimentos, instintivos, é incapaz de dar contas a si mesmo do que
faz ou dos porquês da sua atividade; é por isto, incapaz de se corrigir ou de se ultrapassar. Em última
análise, a raiz da diferença entre o comportamento do homem e o do animal irracional reside no fato de
que o homem tem um princípio vital imaterial ou espiritual, ao passo que o animal tem uma alma
material ou confinada pelas potencialidades da matéria.
Eis, porém, que uma objeção se levanta; como admitir a espiritualidade da alma humana quando
se sabe que as atividades mais sublimes do homem não se realizam se o organismo está lesado em seu
cérebro ou em seu sistema nervoso?
A resposta não é difícil. Embora a alma seja espiritual. Ela depende do organismo, especialmente
do cérebro e do sistema nervoso, para funcionar devidamente, por conseguinte, se o cérebro está isolado,
a inteligência carece do instrumental sem o qual não pode manifestar a sua perspicácia; o sujeito poderá
chegar a levar vida meramente vegetativa. É o que leva muitos estudiosos a dizer que a inteligência é o
próprio cérebro ou a massa cinzenta. Tal conclusão, porém, é errônea pelos motivos indicados. A alma
humana é espiritual, mas foi feita para animar a matéria e a aperfeiçoar-se em união com esta.
Lição 3º: A imortalidade da alma humana
A morte é a dissolução do ser vivo. Ora a alma não pode dissolver-se por si, porque não é
composta de partes, mas é simples, como todo espírito é simples ou isento de composição. Por isto a
alma humana, uma vez criada, subsiste para sempre, mesmo fora do corpo (do qual ela não depende para
existir). Só poderia deixar de existir se Deus, que a criou, a quisesse aniquilar; todavia julga-se que Deus
não aniquila nenhuma de suas criaturas (embora o possa), pois isto seria uma espécie de contradição;
além disto, seria algo de injusto, porque tornaria impossível a aplicação das sanções merecidas pelo ser
humano nesta vida.
Concluímos, pois que a alma humana é naturalmente imortal e não deixa de usufruir desta sua
prerrogativa, pois Deus não subtrai às criaturas o que lhes outorgou como atributos próprios.
2) O desejo natural
Todo homem deseja existir sem limites de duração. Este desejo se deriva da própria natureza do
homem; não depende de alguma forma de cultura. Ora tal desejo não pode ser frustrado ou vão; se o
fosse, a natureza seria contraditória e absurda. Mais: ela suporia o Absurdo na sua origem, pois teria sido
feita para a vida, e a vida sem fim, mas não teria a capacidade de usufruir da imortalidade. Por
conseguinte, a alma humana há de ser imortal, a fim de poder fruir da plenitude de vida à qual ela
naturalmente aspira.
Dir-se-á, porém; se tal argumento é válido para a alma, há de ser válido também para o homem
todo (composto de corpo e alma), pois o ser humano como tal deseja viver sempre.
Sabemos, porém, pela fé que o Senhor Deus quis conceder ao homem a ressurreição física,
atendendo assim ao desejo natural de imortalidade do composto humano.
3) A sanção da justiça
Todos nós aspiramos ardentemente à justiça. Contudo a justiça na vida presente é precária.
Freqüentemente as pessoas retas são prejudicadas por praticarem o bem, ao passo que os iníquos são
materialmente beneficiados pela perversão.
Ora, se a alma humana não fosse apta a sobreviver após a existência presente a fim de receber a
sanção de seus atos, a justiça ficaria definitivamente conculcada no caso de muitos homens. A história
da humanidade terminaria com o triunfo (ao menos parcial) da injustiça e da desordem sobre a justiça e
o bem. Ora tais conseqüências suporiam um mundo absurdo e, na origem desse mundo, um princípio de
contradição e absurdo, conseqüências estas que não condizem com a ordem e a harmonia que se
verificam em geral no universo. Daí afirmamos que a alma humana é por si imortal e, por conseguinte,
apta a receber na vida póstuma a justa sanção, que muitas vezes na vida presente lhe é negada.
O que acaba de ser dito, pode ser ilustrado pela verificação de certos fenômenos ocorrentes na
natureza. Esta parece excluir a frustração e o absurdo. Com efeito, se tenho olhos, é porque existe a luz,
para a qual o olho é feito; se tenho ouvidos, é porque existem sons e melodias; se tenho pulmões, existe
o ar que lhes corresponde; se tenho fome e sede, existem os alimentos de que preciso; se a agulha
magnética se agita dentro da bússola, existe um polo Norte (invisível, sim, mas muito real) que a atrai.
Analogamente, se verifico em mim a sede espontânea e natural de certos valores ou mesmo do infinito,
posso estar certo de que tais valores e o Bem infinito existem no Além, em correspondência a tais
aspirações.
BIBLIOGRAFIA:
PERGUNTAS
O texto bíblico de Gn 2-3 diz-nos algo de importantes a respeito dos inícios da história da
humanidade; tem-se aí o fundo de cena sobre o qual se desenrola a história subseqüente, especialmente a
obra da Redenção realizada por Cristo.
Os dizeres de Gn 2-3 foram muito estudados, gerando controvérsias teológicas no decorrer dos
séculos. Por isto o magistério da igreja interveio mais de uma vez, definindo pontos relativos à primeira
etapa da história da humanidade; tenham-se em vista as controvérsias pelagiana e semipelagiana dos
séculos V/VI, a Reforma protestante no século XVI, as disputas baianista e jansenista dos séculos XVI-
XVIII. Em conseqüência, não podemos estudar Gn 2-3 somente à luz da lingüística, da historiografia ou
da paleontologia, mas devemos levar em conta também as declarações oficiais da igreja a tal propósito.
O texto Sagrado refere que, após criar o homem, o senhor Deus o colocou num jardim ameno ou
paraíso205. Os traços atribuídos a esse jardim não hão de ser entendidos ao pé da letra, mas significam
que o homem entrou num estado de bonança, decorrente de sua comunhão com Deus. Mais
precisamente: o Criador quis logo elevar o homem a uma ordem de coisas que ultrapassava as
existências da natureza humana. Essa ordem de coisas é também chamada “Justiça (ou santidade)
original”; compreendo os seguintes dons:
1) a filiação divina ou a graça santificante, mediante a qual o homem era chamado a participar
da vida e da felicidade do próprio Deus. Este dom é dito “sobrenatural”, porque ultrapassa as exigências
de qualquer criatura.
d) a ciência moral infusa, que tornava os primeiros homens aptos a assumir suas
responsabilidade diante de Deus.
Os dons da justiça original não implicam que os primeiros homens fossem formosos. Terão sido
dons meramente interiores, compatíveis com a configuração rude e primitiva que as ciências naturais
atribuem aos primeiros seres humanos.207
A Igreja mais de uma vez em seus Concílios afirmou a realidade da justiça original, que é capital
para entender a Redenção trazida por Cristo. Tenhamos em vista o concílio de Trento (1546):
205
Cf. Gn 2,8
206
Cf. Gn 2,25; 3,7-11.
207
Notamos que alguns autores, como Flick e Alszeghy, no afã de conciliar os dados bíblicos e o evolucionismo, julgam que
os dons paradisíacos eram apenas virtualidades ou potencialidades contidas dentro dos primeiros pais; só se desabrochariam
plenamente se estes dissessem Sim ao plano de Deus.
santidade e a justiça em que havia sido constituído; e que, pela sua
prevaricação, incorreu na ira a indignação de Deus e, por, isso, na
morte que Deus lhe havia ameaçado e — na escravidão e no poder
daquele que passou a ter o império da morte (Hb 2,14), a saber, o
demônio, e que Adão, pela ofensa, se tornou pior quanto ao corpo e
quanto à alma — seja excomungada”
(DS 1511 (788)).
Neste texto é acentuada a santidade ou justiça original com um de seus dons anexos apenas: o da
imortalidade. Aliás, este e o da integridade são os dons originais mais incutidos pelos magistério da
igreja e os teólogos; a impossibilidade e a ciência moral infusas são silenciadas por: bons autores
modernos. A Igreja não se definiu a propósito destes são silenciadas por bons autores modernos. A
Igreja não se definiu a propósito destes dois dons. No tocante à integridade ou à ausência de
correspondência desregrada, seja ainda citado o cânon 19 do Concílio de Orange (529):
Os teólogos distinguem entre pecado original originante e pecado original originado, sendo
aquele e dos primeiros pais, este o dos descendentes. — Estudemos o primeiro.
1. A Escritura e a Tradição nos ensinam que os primeiros homens, elevados à justiça original,
foram por Deus solicitados a um Sim, que os confirmaria naquela comunhão com Deus. Muitos a
propósito convém lembrar que Deus não santifica o homem sem o livre consentimento deste.
Os primeiros pais receberam a ordem de não comer da fruta da árvore da ciência do bem e do
208
mal . Este traço bíblico quer dizer que o Criador propôs aos primeiros homens um programa de vida
condizente com a sua dignidade de filhos de Deus; não se guiariam apenas pelo bom senso e a prudência
da natureza, mas, elevados a ordem superior, seriam orientados por norma de vida superior. — Diante
da prova, o homem disse Não a Deus, movido pela soberba; esta, aliás, e a raiz de todos os pecados
como Eclo 10,15. O homem quis ser igual a Deus, tomando o lugar de Deus, como lhe sugeria o próprio
tentador: “No dia em que comerdes, ... os olhos se vos abrirão e sereis como Deus, versados no bem e
no mal ” Gn 3,5. Precisamente o homem quis ser como Deus, capaz de definir o que é mal, sem ter que
pedir normas do Senhor. — A soberba dos primeiros pais se exteriorizou num ato de desobediência, que
não podemos definir com precisão.
Há quem diga que o primeiro pecado foi de ordem sexual. Argumentam afirmando que
A propósito observamos:
208
Cf. Gn 2,16s.
209
Cf. Gn 4,17.25.
210
Cf. Gn 2,25.
211
Cf. Gn 3,7.
212
Cf. Gn 3,16.
1) quando se trata do relacionamento sexual, o texto sagrado diz “conhecer a sua
mulher”213;
2) o aparecimento da concupiscência sexual e a vergonha se seguem à culpa, e não a
precedem, como seria lógico no caso de um pecado sexual;
3) a mulher, punida pelas dores do parto, foi atingida em sua função específica de mãe,
como o homem, condenado a ganhar o não ao suor da sua fronte (3,19), foi atingido em função típica de
trabalhador; não há, pois, necessidade de recorrer a pecado sexual para explicar o tipo de punição da
mulher.
— Deve-se reconhecer que o autor sagrado, escrevendo no século X a. C. (fonte javista), não
podia ter informações minuciosas dos acontecimentos primordiais da humanidade a não ser por
revelação de Deus ou por milagre. Nem é de crer que Deus tenha realizado esse milagre.
“Cremos que a culpa original cometida por Adão fez com que a
natureza, comum a todos os homens, caísse no estado no qual padece as
conseqüências dessa culpa. Tal estado já não é aquele em que no
princípio se encontrava a natureza humana em nossos primeiros pais,
uma vez que se achavam constituídos em santidade e justiça, e o homem
estava isento do mal e da morte”.
213
Cf. Gn 4,17.25.
3. Quais as conseqüências do pecado para os primeiros pais?
O pecado acarretou para eles a perda da justiça original, ou seja, da filiação divina e dos dons a
acompanhavam. O texto sagrado (Gn 3,7) diz que, após o pecado, “abriram-se os olhos e reconheceram
que estavam nus”. Esta nudez é, antes do mais, o despojamento interior ou perda dos dons originais; a
concupiscência ou a desordem das paixões se manifestou; por isto sentiram a necessidade de se vestir a
fim de encobrir a natureza desregrada. Não a diversidade de tendências dentro do homem é algo
decorrente da própria natureza (sensível e espiritual, ao mesmo tempo); todavia ela estaria superada se o
homem não tivesse pecado em suas origens; ela hoje existe em conseqüência do pecado. Da mesma
forma os homens perderam o dom da imortalidade (ou o poder não morrer); sem dúvida, a morte é um
fenômeno natural, inerente à criatura, mas a sua realidade hoje é conseqüência do primeiro pecado,
conforme a Sagrada Escritura214. O mesmo se diga em relação ao sofrimento; é um dos precursores da
morte.
O pecado acarretou também a desarmonia no mundo irracional que cerca o homem; este já não o
é ponto de convergência das criaturas inferiores; ao contrário, estas muitas vezes prejudicam o homem e
lhe negam a sua serventia; tendo-se rebelado contra Deus, o homem sente contra si a rebelião das
criaturas inferiores.
O pecado dos primeiros pais tem repercussão nos seus descendentes. Todavia o pecado original
originado não é culpa pessoal nem falta voluntária; consiste na ausência dos dons originais (graça
santificante, dons preternaturais) que os primeiros pais deveriam ter guardado e transmitido, mas não
puderam transmitir porque pecaram. A criatura que hoje nasce, devia nascer com a graça santificante,
mas isto não acontece; ela nasce destoando do exemplar ou do modelo que o Senhor lhe tinha
assinalado; essa dissonância (que implica a concupiscência desordenada e a morte) é que se chama, por
analogia, “pecado original” nos pequeninos.
Por que Deus quis que a culpa dos primeiros pais assim repercutisse nos seus descendentes? A
criança, que não pediu a eventualidade de nascer, muito menos pediu que nascesse com pecado!
Em resposta, diremos: toda criança que vem ao mundo, nasce dentro de contexto social e
geográfico, do qual é solidário; assim há criança que nascem no Brasil, outras na china, outras na
Etiópia, outras na Europa; há crianças que nascem no século XX, outras nasceram no século II a. C.,
outras no século X d.C..., cada uma traz a herança da família, do lugar e da época em que nasce. Essa
solidariedade é palpável, também no seguinte caso: imaginemos um pai de família que numa noite perde
todos os seus bens numa jogatina, de cassino; os filhos desse homem não tem culpa, mas hão de carregar
as conseqüências (miséria, fome...) decorrentes do destino de seu pai. Ora a solidariedade mais
fundamental que cada um de nós traz, é a solidariedade com os primeiros pais; se estes perderam os dons
originais, nós sem culpa nossa somos afetados por esta perda — o que é muito lógico. Vê-se, pois, que a
transmissão do pecado original não se deve a intenção vingativa de Deus, mas é conseqüência da índole
mesma da natureza humana.
Há, porém, quem julgue que o ato biológico de gerar é pecaminoso se por ele se transmite o
pecado dos primeiros pais. — Respondemos que o ato biológico de gerar foi instituído pelo próprio
Deus; em si ele nada tem pecaminoso; transmite a natureza como se acha nos genitores; tal ato não é a
causa do pecado original ou do estado desregrado em que nascem as crianças,, nem pode exercer influxo
sobre tal estado. O ato biológico de gerar poderia transmitir também a graça santificante, se os primeiros
214
Cf. Rm 5,12.
pais a tivessem conservado. — O que a geração não dá, isto é, a graça santificante, a regeneração ou o
Batismo o deve dar. Por isto é que não se deve protrair o Batismo das crianças. O segundo Adão, Jesus
Cristo. Readquiriu a filiação divina para o gênero humano e a comunica mediante o Batismo.
BIBLIOGRAFIA:
PERGUNTAS
Eis por que, logicamente, passamos a estudar o Messias e sua obra salvífica.
Lição Única: A doutrina do Novo Testamento
No módulo III já foi apresentada a figura de Jesus Cristo, que se identificou como Messias e o
próprio Deus. Desenvolveste a temática, examinarmos alguns título s que caracterizam Jesus nos escritos
do Novo Testamento.
1) Filho do Homem
É expressão semita, que significa homem, geralmente no seu aspecto frágil e precário215.
Em Dn 7,13s a expressão ocorre em sentido enfático. Com efeito o Filho do Homem aprende em
contraposição aos impérios babilônico, medo, persa, macedônico, simbolizados por quatro animais. O
filho do Homem, em Dn 7,27, é identificado com “o povo dos santos do Altíssimo”216. Todavia a
tradição judaica representada pelos apócrifos (Henoque, 4º Esdras) e pelos rabinos, entendeu esse “Filho
do Homem” em sentido pessoal, singular, chegando a identificá-lo com o Messias, que receberia a honra,
o império, o reino, e a quem todos os povos obedeceriam.
Ora Jesus quis designar-se preferentemente por este título; ocorre nos lábios de Jesus 80 vezes,
sendo 69 nos Sinóticos e 11 em Jo. Em alguns textos, Jesus parece fazer alusão direta a Dn 7,13s 217. O
título está associado aos poderes e à autoridade de Jesus: o Filho do Homem perdoa os pecados (Mc
2,10); é Senhor do sábado (Mc 2,28); virá na glória do Pai (Mc 8,38; 13,26); assentar-se-á à direita de
Deus (Mc 14,62)... Mas também o Filho do Homem é sujeito da Paixão e dos opróbrios 218; O Filho do
Homem não tem onde repousar a cabeça (Mt 8,20); veio dar a vida em resgate de muitos (Mc 10,45).
Fora dos Evangelhos, somente S. Estêvão e o Apocalipse chamam Jesus “Filho do Homem”219. Isto
evidencia que o título foi utilizado por Jesus e, depois, posto de lado pelos primeiros cristãos. A razão
pela qual Jesus preferiu intitular-se “Filho do Homem”, é que esta expressão estava, menos do que
outras, associada a conotações políticas; evitaria; pois que julgassem ser Jesus um revolucionário oposto
ao poder romano. As comunidades cristãs antigas preferiram chamar Jesus “Senhor” (Kyrios).
2) Senhor
Ora o Novo Testamento transferiu para Jesus Cristo o título Kyrios. Essa transferência exprime
precisamente a fé cristã na transcendência e na Divindade de Jesus221: Meu Senhor o meu Deus! “Ele é
o Senhor de todos” At 10,36222. A primitiva invocação aramaica persistiu no uso das comunidades
gregas: Marana tha, Nosso Senhor, vem!223. Para Jesus ressuscitado os cristãos transferiram os gestos
215
Cf. Sl 79 (80), 18; Is 15,12; Jó 25,6.
216
Cf. vv. 18.22.
217
Cf. Mt 24,30; 26,64; 16,27.
218
Cf. Mc 9,31; 10,33; 14,21.
219
Cf. At 7,56.
220
Cf. Is 1,24; 1,24; 6.1-8; 43,1.21...
221
Cf. Jo 20,28.
222
Cf. Rm 10,9; 1Cor 12,3; Cl 2,6.
223
Cf. 1Cor 16,22; Ap 22,20.
de reconhecimento que eram tributados somente a Javé224; ( invocação do nome); At 7,59 (a oração é a
entrega confiantes); Fl 2,10 (a adoração; cf. Is 45,23); Jo 9,38 (o cego curado prostrou-se diante de
Jesus); Ap 15,4 (“Só Tu és Santo!”). Importante também é o uso do Sl 109 (110). 1 em Mt 22,43-45; At
2,34-36.
O senhorio de Jesus não substitui o de Deus, pai, mas significa que, a partir da ressurreição, Jesus
comunga com a soberania de Deus pai. Também é de notar que a aplicação do título Kyrios Jesus e não
se deve a influência do paganismo, que assim intitulava os imperadores divinizados; com efeitos, em
1Cor 8,5s Jesus é chamado Kyrios em plena antítese ao politeísmo.
3) Cristo
É, pois, num sentido muito mais profundo do que o político e terrestre que Jesus se apresenta
como Messias. Aliás, Ele rejeitou decididamente os três tipos de messianismo político, meramente
terrenal, que satanás lhe propôs no momento das tentações229. O messianismo de Jesus incluía o
sofrimento e a morte do seu programa: Mc 8,31-34, onde Pedro é chamado “satanás” (= Adversário) por
querer poupar da Paixão o seu Mestre.
224
Cf. At 2,20s
225
Cf. Jo 1,14; 4,25; 20,31; Mt 16,16; Mc 10,47.
226
Cf. Mc 8,29; 12,35-37; Jo 4,25s
227
Cf. Mc 1,25.40-45; 5,21-23.43; 7,31-37; 8,22-26; 9,9.
228
Cf. Mc 14,61.
229
Cf. Mt 4,1-11; Lc 4,1-13.
As comunidades cristã exprimiram sua fé em Jesus, acrescentando-lhe o aposto Christós com
artigo (cf. Jo 1,41) ou mesmo sem artigo (Jo 4,25)230 (“Jesus que é chamado Cristo”). Finalmente
Christós tornou-se um nome independente, antes do mais para indicar o Kyrios glorificado231.
4) O Servo de Javé
A expressão traduz o hebraico Ebed Yahweh. Este é um personagem misterioso que aparece no
“Livro da Consolação”, escrito para Israel exilado (587-538 a.C.); trata-se de quatro poemas: Is 42,17;
49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12. A sua importância consiste em que apresentam uma vítima inocente que se
oferece em sacrifício de intercessão e expiação pelos pecadores. Assim o sofrimento toma um sentido
até então desconhecido; não é necessariamente conseqüência de pecados pessoais, mas é redenção ou
resgate em favor dos pecadores.
Ora Jesus se identificou com o Servo de Javé. Assim, por exemplo, ao dizer: “O Filho do Homem
não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgates por muitos” (Mc 10,45; alusão
a Is 53,10s). Ou “isto é o meu sangue, o Sangue da Aliança que é derramado em favor de muitos”
(Mc 14,24). Ou ainda: “É preciso que se cumpra em mim esta palavra da Escritura: Ele foi contado
entre os malfeitores” Lc 22,37; alusão a Is 53,12). — Assim falando, Jesus apresentou um novo aspecto
da sua pessoa e da sua missão: Ele seria o Messias padecente e triunfante, não apenas o Rei conquistador
que o povo de Israel imaginava em suas fases mais recusadas. Sofreria, assumindo a dor e a morte
devidas ao homem pecador232. para dar um sentido novo à realidade sofredora do Homem. Essa
identificação com o homem levou-o a um total despojamento de sua glória eterna a ponto de fazer as
vezes do escravo condenado à cruz233. Eis uma nova maneira de exprimir a recriação do homem
expressa pelo título “Messias”, esta recriação inclui o perdão de Deus mediante uma imolação
sacrifical: “Ele foi trespassado por causa das novas transgressões, esmagado em virtude das nossas
iniquidades. O castigo que havia de trazer-nos a paz, caiu sobre ele; sim, Por suas feridas fomos
curados” (Is 53,5). Assim se vê que a paixão de Jesus não foi um martírio a mais na série dos profetas de
Israel, mas foi uma oferta voluntariamente realizada a fim de cumprir uma missão ou de atingir a sua
Hora: “Dou a minha vida para retomá-la. Ninguém ma arrebata, mas eu a dou livremente. Tenho o
poder de entregá-la e o poder de retomá-la” (Jo 10,17s).
Os antigos cristãos compreenderam esse sentido profundo da gloriosa Paixão de Jesus, de modo
que fizeram amplo uso dos cantos do Servo de Javé para elucidar o mistério do Divino Mestre: Mt
8,17234; Mt 12,18235; Jo 12,38236; At 8,32s237: 1Cor 15,3238; Fl 2,6-11 contém remotamente uma alusão a
Is 53,2-13.
São Paulo quis ilustrar o seu próprio apostolado mediante os cânticos de Servo de Javé (o que
bem mostra como esses textos eram lidos e utilizados na Igreja antiga)239.
5) Filho de Deus
230
Cf. At 9,34; 5,42; Mt 1,16; 27,17.
231
Cf. . Rm 6,4.8s; 8,178; 9,3; 1Pd 1,11...
232
Cf. Gn 2,17;3,19.
233
Cf. Fl 2,7, com alusão a Is 53,2s.
234
Cf. Is 53,4.
235
Cf. Is 42,1-4.
236
Cf. Is 53,1.
237
Cf. Is 53,7.
238
Cf. Is 63,5.
239
Cf. At 13,47; (cf. Is 49,6); Rm 15,21; (Cf. Is 52,15).; 1Cor 6,2 (cf. Is 49,3); Gl 1,15 (cf. Is 49,1).
O título “Filho de Deus” tinha diversos significados no Antigo Testamento e na literatura
rabínica: podia designar o povo de Israel240, o rei de Israel e, de modo especial, o Messias241. Os
anjos242, os justos243.
Entre os gregos pagãos, “Filho de Deus” podia ser um rei ou imperador ou ainda um taumaturgo
(portador de forças divinas).
Nos escritos do Novo Testamento, o título “Filho de Deus” assume matizes diversos. Os
demônios, por exemplo, proclamavam Jesus “Filho de Deus”244. Também o centurião romano.
Conforme Mc 115,39... Nesses casos, a expressão pode designar simplesmente “um personagem
extraordinário”. Ela tem sentido mais profundo nos lábios de São Pedro, que proclama: “Tu és o
Messias o Filho de Deus vivo!” (Mt 16,16), pois foi o pai Celeste quem revelou a Pedro o mistério de
Jesus.
Foi somente depois de páscoa que os apóstolos atingiram a plena compreensão da expressão
“Filho de Deus”. Por exemplo, pregava enfaticamente que Jesus é o Filho de Deus245. A ressurreição
manifestou o pleno sentido da filiação divina esboçada no Sl 2,7. “Deus cumpriu a promessa feita a
nossos pais, ressuscitado Jesus, assim como está escrito: Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei” (At
13,33); São Paulo tem consciência de que na plenitude dos tempos Deus enviou seu Filho à terra 246. A
fim de que sejamos reconciliados pela sua morte (Rm 5,10). A vida cristã vida “na fé do Filho de Deus,
que nos amou e se entregou por nós” (Gl 2,20).
São João professa do mesmo modo o título de Filho de Deus: “Nisto se manifestou o amor de
Deus entrenós: Deus enviou o seu Filho Unigênito ao mundo para que vivamos por Ele” (Jo 4,9s.14).
Esse Filho comunica aos homens a vida eterna que vem do Pai247. Quem crê no Filho, tem a vida
eterna248; quem não crê, está condenado249.
O próprio Jesus se revelou como Filho de Deus num sentido singular, inacessível aos homens, ao
dizer: “Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece
o Pai senão o filho e aquele a quem o Filho o quiser levar” (Mt 11,27)250. Isto quer dizer: o mistério de
vida de Jesus é tal que só o Pai o pode conhecer, e só Ele está à altura do Pai para o conhecer
adequadamente. Jesus mostra mesmo uma familidade única com o pai, chamado-o Abba, Papaizinho!,
apelativo que os Judeus nunca dirigiam a Deus por supor grande intimidade. É à luz destes textos que se
há de entender a declaração do Pai no Batismo e na transfiguração de Jesus: “Tu és o meu Filho amado,
em ti me comprazo” (Mc 1,11; Cf. 9,7).
Por último notemos que a concepção virginal de Maria, apresentada em Lc 1,26-37; Mt 1,16. 18-
25, é também um testemunho de que Jesus não é filho dos homens como os demais homens, mas é o
Filho de Deus, que, tendo pai do céu, foi entregue pelo próprio pai a Maria (sem contato de varão), para
que esta lhe pudesse dar a natureza humana e a entrada numa estirpe humana. A virgindade de Maria é,
portanto, toda relativa à Divindade de Jesus.
6) Deus
240
Cf. Ex 4,22s; Os 11,1; Dt 32,10...
241
Cf. 2Sm 7,; 89,27.
242
Cf. Jó 1,6; Sl 29,1; Dn 3,25...
243
Cf. Eclo 4,10; Sb 2, 13. 16.18...
244
Cf. Mc 1,34; 3,11; 5,7.
245
Cf. At 9,20.
246
Cf. Gl 4,4; Rm 8,3.
247
Cf. 1Jo 5,11.
248
Cf. Jo 6,40.
249
Cf. Jo 3,18.
250
Cf. 21,37; Mc 13,37.
O título “Filho de Deus” se torna claro por excelência se considerarmos que o Novo Testamento
designa Jesus, sem mais, como Deus.
Assim São Paulo formula a doxologia: “Cristo... que é, acima de tudo, Deus bendito pelos
séculos” (Rm 9,5). Ele é também “o grande Deus e Salvador, Jesus Cristo” (Tt 2,13). São Tomé
reconheceu: “Meu Senhor e meu Deus!”(Jo 20,28). São João abre o seu Evangelho com as seguintes
palavras: “No princípio era o Logos, e o Logos estava junto a Deus, e o Logos era Deus” (Jo 1,1); na
primeira epístola escreve: “Este (Jesus Cristo) é o Deus verdadeiro e a vida eterna” (Jo 5,20). Vejam-se
ainda: Hb 1,8s 2Pd 1,1s; Jo 1,18; Fl 2,6s; Cl 2,9.
O título assim aplicado identidade de natureza ou de substância do Filho com o Pai. Com efeito,
se o Pai é o fim do plano de Salvação dos homens, o Filho o é igualmente: Rm 11,36; 1Cor 8,6; Cl 1,16.
Se o Pai julga, o Filho também julga: Rm 2,2 e 2Cor 5,10; Rm 2,16 e 1 Cor 4,5. O Filho ou Jesus Cristo
é uma das três Pessoas associadas nas fórmulas trinitárias: 2Cor 13,13; Mt 28,19.
Eis como os escritos do Novo Testamento, na primeira hora da Igreja, professam Jesus Cristo
como Deus e homem.
BIBLIOGRAFIA:
FEINER-LOEHTER. Mysterium Salutis III/2. Vozes.
GOMES, Cirilo Folch. Riquezas da Mensagem Cristã. Lumen Christi.
SCHMAUS, Michael. A Fé da Igreja. Vol. 2. Vozes.
DUFOUR, Leon-Xavier, Vocabulário de Teologia Bíblica, Verberes “Messias”, “Filho de
Deus” Servo de Javé.
VAN DEN BORN, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, verbetes correspondentes.
PERGUNTAS
As afirmações a respeito de Jesus extraídas dos escritos de Novo Testamento são posta em
dúvida por críticos modernos. Eis por que devemos agora voltar-nos para a questão da autenticidade
desses dizeres. Na Lição 1ª exporemos a posição dos críticos racionalistas, posição que não se concilia
com o pensamento católico. Na Lição 2ª proporemos a avaliação das teses racionalistas e mostraremos
como considerar a temática numa perspectiva serena e objetiva.
No começo do século XX a chamada “Escola (ou método) história das formas” (EHF) chamou a
atenção dos estudiosos para o intervalo que ocorreu entre a pregação oral de Jesus (27-30) e a fase de
redenção dos Evangelhos (50-100). Nesses dois, três ou mais decênios, a Boa-Nova foi sendo
transmitida oralmente em diversas religiões: Palestina, Síria. Ásia Menor, Grécia, Roma... Em cada
desses territórios, os pregadores procuravam dar-lhe um Sitz in Leben, isto é, um ligar (uma
ressonância) na vivência dos respectivos ouvintes; procuravam fazer que a mensagem se tornasse
resposta adequada aos anseios das populações de cada regiões. Tais pregadores e seus ouvintes não terão
tido preocupações históricas, mas se terão interessado principalmente pelos aspectos existenciais e
concretos do Evangelho. Em conseqüência, dizem vários autores de EHF, a imagem e a doutrina de
Jesus foram tomando feitios povos, distanciando-se da sua face original. Ora os Evangelistas, ao redigir
seus escritos, utilizaram os dados dessa pregação dos apóstolos e Discípulos, de modo que consignaram
nos seus Evangelhos uma figura de Jesus que já não era tão fiel ao Jesus real e à Boa-Nova primitiva,
opor isto no Evangelhos somos informados a respeito daquilo que as primeiras gerações cristã
professavam (temos o Jesus da fé), e não a respeito daquilo que Jesus foi e disse realmente (o Jesus da
história). Para sabermos o que Jesus foi e fez, sem desvios nem deturpações, temos que iluminar do
texto escrito dos Evangelhos os prováveis retoques e acréscimos que os pregadores e as comunidades
antigas impuseram à mensagem inicial; mediante esse trabalho de “desmontagem” e “expurgo” é que se
pode tentar chegar à verdadeira imagem de Jesus e da sua pregação.
Podemos todos estes dados, muitos exegetas críticos em relação ao valor histórico dos
Evangelhos. Estes só nos ofereceriam o Jesus da fé (isto é, Jesus tal como Ele era projetado pela fé
simples ou simplória dos antigos cristãos, ignorantes e dados à imaginação), e não o Jesus da história
(Jesus como Ele foi e pregou realmente). Entre os nomes mais famosos desta corrente, está o de
RUDOLF BULTMANN († 1976): este nos diz que o texto atual dos Evangelhos está todo vazado em
linguagem mítica, isto é, imaginosa, quase infantil, de modo que é preciso renunciar a conhecer a
história real de Jesus e o teor genuíno da sua pregação; mas nem por isto os Evangelhos devem ser
jogados fora: na verdade, eles transmitem uma mensagem existencial ou vivencial muito concreta:
“Convertei-vos! Passai da vida não autêntica para a vida autêntica!” É isto que resulta da demitização
ou é isto que tão somente se pode extrair do texto dos quatros Evangelhos, conforme R. Bultmann.
Como se compreende, tais teorias têm séria repercussão na elaboração de um tratado sobre Jesus
Cristo, pois solapam as bases da reflexão teológica. Qualquer, afirmação que se queira fazer sobre Jesus
a partir dos Evangelhos (e tudo afinal há de ser deduzido por escritos do Novo Testamento), pode ser
impugnada como sendo eco da fantasia dos primeiros discípulos. É por isso que, antes de começarmos e
tratado teológico sobre Jesus Cristo, precisamos de considerar a crítica assim concebida e o seu grau de
verossimilhança.
Lição 2: Avaliação da Crítica
2) É certo também que os pregadores tinham grande interesse em estruturar a fé e a vida dos
viventes, tocando em seus anseios mais profundos; o evangelho é mensagem da Salvação. — Até aqui
tem razão a EHF.
3) Todavia tais premissas não implicam que os pregadores e as comunidades cristãs antigas, no
seu afã de responder aos problemas dos homens, se tenham desviado da realidade histórica ou tenham
mostrado desinteresse pela genuína figura de Jesus. Neste ponto começa a crítica equilibrada; ela afirma
que, apesar de todas as tramitações e geográficas pelas quais passou a mensagem de Jesus, esta se
conservou íntrega, fiel a si mesma, ou, se quisermos, ela se foi desabrochando como uma semente, com
o tempo, vai expandindo suas vitalidades, mas de maneira sempre homogênea. Em conseqüência, quem
crê nos Evangelhos, não crê apenas naquilo que os antigos cristãos imaginavam simploriamente, mas crê
na própria figura e na autêntica mensagem de Jesus Cristo. — E quais seriam os argumentos em favor
desta última asserção? — Ei-los:
a) as primeiras comunidades cristãs não eram “anônimas”251 mas foram fundadas, chefiadas ou
visitadas pelos Apóstolos. Assim em Jerusalém Pedro aparece como o chefe do colégio dos Apóstolos:
At 1, 15-26;2, 14-40;3, 12-26; 4, 7-12; 5,29-32..., Pedro e João na Samaria: At 8, 14-17; Pedro em Lida,
Saron e Jope: At 9, 32-42; Antioquia aparece em comunhão com Jerusalém: At 11,2s. as epístolas
paulinas dão testemunho do zelo dos Apóstolos pela fiel transmissão e conservação da mensagem.
Conforme Hb 2,3, a tradição cristã remonta até os ouvintes da palavras; em 1Cor 15,6 são mencionadas
testemunhas oculares.
b) Os Apóstolos não queriam ser senão testemunhas do que tinham visto e ouvido. Aliás, a
definição de Apóstolo é simplesmente a de testemunha, conforme At 1, 21s. Em At as palavras
‘testemunho”, e ocorrem 16 vezes, ou seja, de ponta-a-ponta252.
d) A fé cristã se acha essencialmente ligada a fatos históricos e objetivos de tal modo que, negada
a sua historicidade, o conteúdo mesmo da mensagem cristã se esvazia. É o que S. Paulo afirma a
propósito da ressurreição corporal de Jesus (que, segundo a crítica liberal, seria um grande mito): “Se
Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é, a vossa fé... ilusória é a vossa fé”
(1Cor 15,1; 4.17)253.
Os Apóstolos eram muito ciosos de distinguir entre mitos (mythoi) a palavra lógos (verdade)254.
251
Expressão dos críticos liberais da EHF.
252
Cf. 1,8; 2,32; 3,15; 10,39.40s, 13,30s; 20,24;22, 15-20; 26,16.22. Vejam-se ainda: Lc 1,1-4; 24; Jo 21,24; 2Ts 1,10; 1Cor
15,3-11; 1Pd 5,1.
253
Ver a propósito Constituição Dei Verbum n.º 2.
254
Cf. 1Tm 1,3s 4,7; 2Tm 4,4; Tt 1,14; 2Pd 1,16.
255
Cf. Jo 14,26; 16,13-15.
expressionismos e seus gêneros literários, mas, entendida no sentido que os hagiógrafos intencionaram, é
a Palavra da Verdade.
f) Notamos ainda que as conclusões negativistas apresentadas pelos críticos liberais são
geralmente baseadas sobre hipóteses (“tais palavras não vêm de Jesus, mas de tal ou tal grupo cristão”);
essas hipóteses ao poucos são considerada como quase certezas e tomam-se, muitas vezes, bases para
novas hipótese; as conclusões desse encadeamento de hipóteses são dadas como certas; assim tais
críticos vão tentando destruir a credibilidade dos Evangelhos. A propósito observamos o papel das
hipóteses na pesquisa científica: o físico, por exemplo, querendo explicar um fenômeno, constrói
legitimamente uma hipótese; se ele a consegue confirmar, o cientista a incorpora ao seu patrimônio; se
comprova o contrário, rejeita-a; se nada consegue, põe de lado, provisoriamente ao menos, tal hipótese.
Mas se por cima dessa hipótese ele constrói outra hipótese, já vai deslizando para o terreno da fantasia;
as conclusões que se seguem desse encastelamento de hipótese, são cada vez menos prováveis, pois as
probabilidades se exprimem por frações que se vão multiplicando. Assim a probabilidade de 1/10 x 1/10
= 1/100!
Ora, acontece freqüentemente, entre os críticos liberais dois Evangelhos, que as suposições são
formuladas sem que se diga que são suposições; outras se lhes encastelo..., e os resultados finais são
apresentados ao público como as mais puras sentenças da moderna pesquisa bíblica. Na verdade, temos
aí preconceitos, e não ciência.
Eis por que tal crítica negativista não pode ser aceita nem aos olhos da fé nem aos da razão. Fica,
pois, o campo aberto ao estudioso para retirar dos textos do Novo Testamento os dados necessários para
construir a Cristologia.
A fé ensina que Jesus é Deus e homem. Todavia esta formulação muito simples exigiu longas
reflexões para ser devidamente expressa. Eis as etapas principais dessas reflexões.
O docetismo professava que Jesus era uma entidade superior que assumira um corpo aparente da
fantasmagórico, de passagem pela terra. — Parece ter sido combatido já pelos Apóstolos em Cl 2,9; 1Jo
4,2; 2Jo 7. Alguns sistemas do gnosticismo adotaram concepções docetistas.
Os ebionistas e adopcionistas admitiam Jesus como mero homem sobre o qual descera a força
da Divindade, à semelhança do que acontecera com os Profetas.
O apolinarismo (de Apolinário, bispo de Laodicéia, 300-390), professava que Jesus era Deus,
sim, mas natureza humana mutilada, isto é, carente de alma racional; esta teria sido substituída pela
presença imediata do “Logos à carne”. Tal doutrina foi condenada por sínodo em 377, na base do
seguinte princípio: “O que não foi assumido, não foi redimido”; donde a alma humana, não tendo sido
assumida pelo Filho de Deus, não terá sido redimida.
Estava, daí por diante, fixada a fórmula de fé: em Jesus há uma só pessoa (divina) e duas
naturezas.
BIBLIOGRAFIA:
PERGUNTAS
1) Que método da história das formas? Que tem de aceitável? Que pode ter de não aceitável?
Não responder senão após atenta leitura das Lições 1 e 2.
2) Que significam as expressões “Jesus da história” e “Jesus da fé” ? São equivalente entre si?
3) Exponha o que propunham o Nestorianismo e o Monofisismo.
1. CRISTOLOGIA (1)
Por “encarnação” entendemos o fato de Deus fazer-se homem sem deixar de ser deus e sem
mutilar a natureza do homem.
Ora o amor é perfectivo e difusivo de si, ou seja, o amor é fonte de perfeição e de autodifusão;
quer dar-se à pessoa amada para beneficiá-la. Por isto Deus se dá ao homem em três comunicações de
ordem ascendente:
1) na criação. Deus fez o homem à sua imagem e semelhança (Gn 1,26-28). Estabeleceu assim a
ordem natural;
2) na elevação do homem à filiação divina ou à comunhão de vida com o próprio Deus. Tal é a
ordem sobrenatural256. Estas duas primeiras comunicações foram deterioradas pelo pecado;
3) na Encarnação; a natureza humana de Jesus, com sua consciência humana e sua liberdade,
existe pela existência da segunda Pessoa da SS. Trindade. É caso único. Esta é a comunicação máxima
de Deus ao homem. Deus quis que a própria humanidade, unida ao Filho de Deus encarnado, se tornasse
o instrumento da sua redenção.
Donde se conclui que a Encarnação era conveniente no plano de Deus-Amor. Não obstante, aos
olhos da razão, ele será sempre “loucura-escândalo”257.
Perguntamos: a Encarnação era tão conveniente que pode ser tida como necessária?
Deus quer os lugares deixados vazios pelos anjos rebeldes sejam ocupados pelos homens. Esta
vontade não pode ser mudada. Todavia o homem, por causa do seu pecado, é incapaz de atingir este fim;
é necessário que o pecado seja reparado. Contudo o homem não pode satisfazer por si, pois os seus têm
valor finito, ao passo que a injúria a Deus tem proporções infinitas e exige reparação de valor infinito. —
Portanto somente um sujeito de valor infinito podia oferecer a Deus a reparação adequada; este sujeito
devia ser o próprio Deus feito homem. Daí a necessidade da Encarnação, conforme S. Anselmo.
A Sagrada Escritura insiste sobre a gratuidade da Encarnação, que depende de um ato da livre
vontade de Deus259. Mais Deus poderia ter concedido diretamente a graça do perdão ao homem, sem
passar por Jesus Cristo. Em suma: nada ou ninguém pode impor coisa alguma a Deus. A própria teoria
de que os homens deviam substituir os anjos decaídos é arbitrária, sem fundamento na bíblia.
2. Outros autores, mais recentes, querem provar a necessidade da Encarnação a partir da teoria de
que Deus devia ter feito o melhor mundo possível; ora este inclui certamente o dom do homem-Deus.
Também este argumento é rejeitado, visto que o melhor mundo possível não existe. O mundo,
sendo um conjunto de criaturas finitas, é sempre sujeito a ser aperfeiçoado; qualquer que seja o seu grão
de perfeição, sempre será ulteriormente perfectível; por isto não pode existir um mundo bom em grau
superlativo, que não possa ser ainda aperfeiçoado. Ademais voltamos a observar que não [podemos
impor padrões a Deus, ditando-lhe i tipo de mundo que Ele devia criar.
Em conseqüência, deve-se dizer que a Encarnação não é necessária por necessidade absoluta;
Deus tinha outros recursos para perdoar ao homem.
3. Todavia podemos afirmar que a Encarnação era necessária relativamente ou sob alguns
aspectos. Com efeito.
256
Sabemos que sobrenatural não quer dizer milagroso, mas algo que ultrapassa as exigências de qualquer criatura.
257
Cf. 1Cor 1,23.
258
Por “Padres da Igreja” entendem-se os mestres e escritores (bispos, presbíteros e leigos) que contribuíram para que as
verdades da fé fossem preservadas incólumes e formuladas autenticamente na época das grandes controvérsias teológicas da
antigüidade. São “pais” porque, pela reta palavra, transmitiram a vida às gerações seguintes. O último dos Padres é, no
Ocidente, São Gregório Magno († 604) e no Oriente São João Damasceno († 749).
259
Cf. Ef 1,5-10.
a) era o melhor, meio para restaurar a dignidade humana. Deus não quis realizar a Redenção dos
homens por via meramente jurídica ou psicológica, mas fê-lo à guisa de recriação. O Filho de Deus
assumiu tudo que é do homem e divinizou-o, tornando-se o sacramento primordial da nossa Salvação;
por seu nascimento, sua adolescência, sua vida pública, sua morte e sua ressurreição Jesus deu novo
sentido à existência do homem; fez uma nova criatura260.
b) A Encarnação era também o melhor meio para provocar-nos à prática do bem; Deus não quis
exortar apenas por palavras e preceitos, mas deu-nos o exemplo da vida santa.
c) A Encarnação nos ensina o valor da natureza humana e do mundo que a cerca “Deus tanto
amou o mundo que entregou o seu Filho único...” (Jo 3,16). A consciência disto levanta a esperança do
homem e o incita a uma resposta mais generosa.
— Observamos de imediato: Deus não pode estar obrigado por criatura alguma; Deus deve
apenas a si mesmo. Paralelamente, o pai não está obrigado a premiar seu filho pelos bons estudos
realizados; mas, se o pai livremente decide fazê-lo, ele se obriga a cumprir tal determinação. É, pois, em
sentido relativo que falamos do motivo da Encarnação: qualquer causa que lhe assinalemos, será sempre
dependente da livre vontade de Deus.
1) Deus quis a Encarnação por causa do pecado do homem; como recitamos no Credo: “por nós
homens, e por nossa Salvação... encarnou-se...” Esta é a tese que a S. Escritura e a Tradição nos
recomendam; Cf. Is 53,4 (o Servidor de Javé); Jo 3,115s; 1Tm 1,15 (“Esta palavra é certa e digna de
todo crédito: o Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, entre os quais sou o primeiro”). O
nome Jesus significa Salvador261. Em favor desta sentença argumentam os teólogos; só podemos
conhecer o designo de Deus através da revelação do próprio Deus; ora nas fontes da revelação só
encontramos o motivos apontado.
O fato de Cristo ter vindo ao mundo por causa do pecado não subordina Jesus a alguma criatura.
Com efeito; Cristo é nossa lei e nosso modelo; somos a imagem de Cristo; nossa salvação redunda em
glória para ele, como o quadro pintado resulta em glória para i pintor.
Um mundo onde haja pecado, pode ser melhor do que um mundo sem pecado desde que o
pecado se torne ocasião de um bem maior. Ora o pecado, em nosso mundo, deu ocasião à Encarnação e à
Redenção; contribuiu para manifestar melhor o amor de Deus aos homens; o Filho de Deus se tornou
Filho dos homens para que os homens por ele se tornassem filhos de Deus (filhos no FILHO). Daí os
dizeres da Liturgia de Sábado Santo: “O feliz culpa, que nos mereceu um tal e tão grande Redentor!”.
2) João Duns Scotus O.F.M. († 1308) e, com ele, a escola franciscana, supõem outra tese.
Afirmam que Jesus Cristo é de Tal excelência no plano de Deus que mesmo que não fosse pecado. O
Filho de Deus se teria encarnado. Com outras palavras: o Verbo Encarnado estava previsto o
predestinado antes de todas as criaturas, e, em particular, antes do pecado,
2) como a razão de ser, a causa exemplar e a causa final de toda a ordem natural e
sobrenatural;
260
Cf. 2Cor 5,17.
261
Cf. Mt 1,21; Lc 1,31; 2,11.
3) como cabeça e Mediador dos anjos e dos homens.
Se não fosse o pecado, o Verbo Encarnado preencheria as funções de Mestre dos homens e
“Rematador” da obra do Pai. Dado o pecado, o Verbo se fez também o Redentor dos homens.
Esta tese não deixa de ter sua harmonia; é aceitável. Mas é gratuita, pois carece de todo
fundamento na S. Escritura e na Tradição.
Em Gl 4,4 São Paulo nos diz que “na plenitude do tempo Deus enviou se Filho nascido de uma
mulher...”
Plenitude do tempo indica, sem dúvida, o momento propício. Não significa, porém (e isto parece
paradoxal), que o homem estivesse no apogeu das suas virtudes morais e da cultura, para assim receber
o Redentor. Ao contrário, a Providência Divina quis escolher, para a vinda do Filho, uma época em que
os homens profundamente marcados pelo pecado. Esse quadro de prevaricação é esboçada por S. Paulo
em Rm 1,16-32 (a triste situação dos pagãos) e 2-1-38 (a dos judeus); daí concluiu o Apóstolo: “ Todos,
tanto os judeus como os gregos, então debaixo do pecado” (3,9), e mais adiante: “Todos pecaram e
todos estão privados da glória de Deus” (3,23), ou ainda: “A Escritura encerrou tudo debaixo do
pecado” (Gl 3,22).
E ainda o Apóstolo quem responde: “... para que nenhuma criatura se possa vangloriar diante
de Deus” (1Cor 1,29). Com outras palavras: Deus quis que o homem recebesse a Salvação
gratuitamente, sem mérito próprio, para que não se pudesse vangloriar. Aliás, é esta uma norma básica
da teologia do Cristianismo, muitas vezes vivenciadas nas páginas bíblicas “Deus não ama o homem,
porque o homem seja bom (tenha tais e tais méritos), mas o homem é bom (e tem méritos) porque Deus
o ama”. A iniciativa absoluta e soberana, na Salvação do homem, é Deus. Por isto diz S. João: “Ele nos
amou primeiro” (Jo 4,19).
Uma vez percorridos os preâmbulos da Cristologia, passemos logo à sua questão principal.
Vimos que o Concílio de Calcedônia (451) chegou finalmente à fórmula: em Jesus Cristo há uma
só pessoa ou um só eu (divino) e duas naturezas. As duas natureza — a divina e a humana — se unem
entre si não por laços afetivos apenas, mas por subsistirem numa só e mesma pessoa. — Tentaremos
aprofundar estes dizeres.
1. Que é natureza? Para responder, devemos expor primeiramente o que é essência: é aquilo que
faz algo ser o que ele é; a essência do homem, por exemplo, não é a cor dos cabelos ou a estatura do
corpo, mas é “ser vivente racional”; a essência de Deus é “ser por si, e não por outrem”. — Ora a
natureza é a essência na medida em que é princípio de agir.
2. as naturezas não existem senão quando realizadas concreta em indivíduos. A natureza humana
só existe em pessoas; a pessoa hypóstasis, em grego) é o que faz subsistir a natureza humana.
3. Voltando-nos agora para Jesus, dizemos: havia nele tudo o que integra a natureza humana
(corpo, alma, com inteligência, vontade, consciência psicológica, afetos, capacidade de trabalhar, sofrer,
morrer...). Todavia a subsistência da natureza humana de Jesus não era devida a uma pessoa humana, e,
sim, à segunda pessoa da SS. Trindade; este se tornou, pelo mistério da Encarnação, o sujeito
responsável, em última instância, pelas ações de Jesus. O que quer dizer: a segunda Pessoa da SS.
Trindade que, desde toda a eternidade, subsistia na natureza divina com o pai e o Espírito Santo, passou,
pela Encarnação, a subsistir na natureza humana em Maria Virgem; contudo nada perdeu do que é de
Deus (poder infinito, ciência universal...) É este tipo de união entre a natureza humana que se chama
hipostática, isto é, pessoal (pois se faz pela hipóstase ou pessoa do Verbo Divino).
2) Em Jesus Cristo há uma só pessoa, adorável mesmo em sua humanidade e capaz de dar valor
infinitos aos seus atos humanos, merecendo-nos em estrita justiça a salvação eterna.
3) Em Jesus cada uma das naturezas (a divina e a humana) é fonte de suas atividades próprias.
A natureza é gerada, come, dorme, cresce em sabedoria, a idade, sofre, e morte; só não compartilha o
pecado dos homens; notemos bem que essa natureza humana de Jesus é integrada não só por um corpo,
mas também por uma alma espiritual com suas faculdades próprias, ... alma espiritual que não é a
Divindade (ou a natureza divina) de Jesus.
A natureza divina está presente em Cristo na medida em que é a natureza do Filho, e realiza as
atividades próprias de deus como os milagres, o perdão dos pecados... Visto que a natureza divina não se
reparte, devemos dizer que em Cristo o pai: e o Espírito santo estão presentes, pois a única natureza
também é deles, estão presentes por concomitância (ao Filho). Todavia o ato de encarnar-se ou de fazer
subsistir a natureza humana recebida de Maria Virgem não é realizado pelas três pessoas, mas
exclusivamente pela do Filho.
4) O sujeito último de todas ações de Cristo é a segunda pessoa da SS. Trindade, mesmo quando
Ele comia, bebia, padecia e morria, por isto é lícito dizer: “deus morreu... na medida em que assumiu a
natureza humana e mediante essa natureza humana”. Ao contrário, não se deve dizer:” A Divindade
morreu por nós”, porque tal expressão indica a natureza e a natureza só age na medida em que subsiste
numa pessoa.
Por conseguinte, quando a mão de Cristo tocava um doente para curá-lo, era a pessoa do Filho
que o tocava mediante a sua humanidade. Por isto se diz que Jesus foi o Sacramento Primordial, isto é o
primeiro grande sinal que exprimia Deus e comunicava a vida divina aos homens; através das palavras,
dos gestos e das ações de Cristo era Deus que se dava aos homens. A Igreja prolonga essa estrutura
sacramental do Cristo, como realidade visível que traz em si e comunica a vida de Deus; por último, os
sete sacramentos ritos são os filetes terminais desse Sacramento primordial, que é Jesus Cristo —
Atribuição de predicados humanos a Deus e de predicada divinos à humanidade em Jesus chama-se
“comunicação dos idiomas” (ou das propriedades).
Nos últimos decênios têm sido propostas novas teorias para explicar o mistério da Encarnação;
todavia são insuficientes, pois não preservam a preexistência da pessoa de Jesus Cristo e chegam a
destruir o mistério da SS. Trindade. A propósito a igreja se pronunciou aos 21/02/72 pela declaração
Mysterium Filii Dei.
BIBLIOGRAFIA:
FEINER-LOEHTER. Mysterium Salutis III/4. Vozes.
GOMES, Cirilo Folch. Riquezas da Mensagem Cristã. Lumen Christi.
Declaração “Misterium Filii Dei” (em português) em “Pergunte e Responderemos” 151/1972,
pp. 310- 322.
PERGUNTAS
I. CRISTOLOGIA (2)
Visto que Jesus era verdadeiro Deus e verdadeiro homem, pergunta-se: Jesus, como homem ou
em sua consciência psicológica sabia que era Deus?... Sabia que a sua natureza humana estava unida à
divina e subsistia pela segunda pessoa da SS. Trindade?
Estas questões têm sido amplamente discutidas. Não é fácil responder-lhes, pois não é fácil
penetrarmos no íntimo das consciência: nem eu conheço bem a mim mesmo; menos conheço os meus
contemporâneos; muito ainda poderei conhecer o que havia no íntimo de Jesus, que viveu na terra há
quase vinte séculos. Como quer que seja, eis a resposta mais plausível que ao quesito se possa dar:
Jesus tinha uma só pessoa, que era divina, ou a pessoa do Filho de Deus. Encarnando-se, essa
pessoa nada perdeu do que era e possuía eternamente; por conseguinte, mesmo peregrino na terra, o eu
de Jesus conhecia tudo o que Deus conhece: o mistério da SS. Trindade com sua riqueza de atributos, e
todas as coisas.
Além da sua natureza divina, Jesus tinha uma natureza humana. Esta, embora não tivesse um eu
humano próprio, mas o eu do Filho, tinha uma consciência psicológica, isto é, a faculdade de conhecer a
si mesma (como todos nós a temos). É aqui que se coloca a pergunta: como essa consciência humana de
Jesus via a humanidade de Jesus? — Respondemos:
1) Sabia que Jesus era verdadeiro homem e vivia como verdadeiro homem;
2) sabia que subsistia pela substância da segunda pessoa da SS. Trindade. Não podia crer
que tinha uma pessoa humanas; isto implica em Jesus uma tremenda ilusão a respeito de si mesmo.
Em conseqüência, Jesus teve uma experiência religiosa tal como nenhuma criatura humana teve,
por isto podia dizer que ninguém conhece o pai senão o Filho e ninguém conhece o Filho senão o Pai262.
Não era possível que Jesus tivesse a consciência humana de si mesmo sem conhecer que Ele tinha Deus
como Pai... Pai que é a primeira pessoa da SS. Trindade.
Na consciência de Jesus, o divino tinha a supremacia; o principal traço dessa consciência era
saber-se Filho de Deus, isto, porém, não atenuava em Jesus a noção de ser verdadeiro homem, portador
do destino do mundo inteiro, chamado a uma vida autenticamente humana até a morte, e morte de cruz.
Todavia não é necessário dizer que Jesus tinha sempre de modo plenamente atual a consciência
de ser Filho de Deus. Com outras palavras: não somos obrigados a crer que Jesus pensasse a todo
momento: “Eu sou o Filho de Deus”; podemos admitir que ele possuísse tal noção como um hábito que
nunca se apagava, mas que nem sempre emergia das profundidades da sua consciência: paralelamente,
um rei, embora nunca ignore que é rei, nem sempre está a recordar que é o rei da sua nação.
Em nossos dias, a tendência a realçar a verdadeira humanidade de Jesus tem levado alguns
autores a assemelhar Jesus a um profeta, que embora gozasse de favores divinos, ignorava o plano do pai
em sua totalidade e, conseqüentemente, o desfecho de sua missão na terra. Jesus se teria mesmo
enganado, pregando a iminência da catástrofe final, quando na verdade veio não o Reino de Deus
aguardado, mas esta realidade de vinte séculos que é a igreja.
Esta tese não corresponde à fé da igreja. Como então conceber a ciência que Jesus tinha do plano
do Pai, da sua missão e das criaturas?
Muitas são as respostas dos teólogos, que, recorreu a noções de psicologia, formulam sábias e
teorias. Fixando-nos apenas no essencial, diremos o seguintes:
2) Além disto, porém, Jesus, como homem, devia conhecer o designo do Pai e o desfecho da sua
missão, pois Ele precisava de proclamar a sua mensagem com segurança; dizia Ele: “Eu falo do que vi
junto ao Pai” (Jo 8,38). Ora esse conhecimento era-lhe comunicado por ciência infusa, ciência não
adquirida pelo estudo ou pela experiência, mas por comunicação direta de Deus.
Observemos agora que em todo ser humano existem três planos: o plenamente consciente, o
subliminarmente consciente ou o subconsciente e o inconsciente . Todos nós sabemos muitas coisas que
não utilizamos coincidentemente, mas que podem se trazidas à tona da consciência, como também,
podem ser relegadas de novo para o plano inconsciente. — Aplicando isto a Jesus, o podia ter ora
lucidamente em sua consciência, ora imerso no fundo do inconsciente; Jesus utilizava a ciência infusa
segundo as necessidades da pregação; podia também impedir que, em conformidade com a vontade do
pai, certos temas se tornassem, presentes à sua consciência.
262
Cf. Mt 11,25s.
263
Cf. Lc 2,53.
Assim se explicariam, por exemplo, as palavras de Jesus a respeito do juízo final: “Daquele dia e
daquela hora ninguém sabe..., nem o Filho, mas somente o Pai” Mc 13,32. Com efeito, não era do
desígnio do pai que Jesus nos revelasse a data do juízo final, por isto Jesus dizia ignorá-la, não fazendo
uso consciente da noção que a respeito Ele trazia em seu inconsciente. — Não se deve, porém, admitir
que o não-uso da ciência infusa levasse Jesus a conceber erros, pois estes seriam incompatíveis com a
dignidade do Verbo encarnado e com a sua missão de Mestre da verdade.
O fato de que Jesus podia prescindir da ciência infusa, explica que Ele pudesse realmente usar
suas faculdades humanas (a inteligência especialmente para adquirir noções).
3) Além da ciência adquirida e da ciência infusa, há quem admita em Jesus a visão beatífica ou a
intuição face-à-face de Deus que toca aos justo no céu. Esta tese, porém, é discutida. Os que a
professam, apelam para o fato de que Jesus devia ter em si tudo o que toca aos homens, quer peregrinos
na terra, quer glorificados no céu; Ele é a fonte de cuja plenitude recebemos graça por graça 264. A
ciência de visão parece sugerida por dizeres de Jesus como os de Jo 1,17; 3,11,31s; 6,46; 8,46;38. A
visão face-à-face, porém não influiria sobre a sensibilidade de Jesus para não excluir as possibilidades da
dor e do sofrimento da agonia Ele se sentiu triste até a morte265.
Não raro são citados textos que parecem insinuar que Jesus se enganou ao prever a irrupção do
Reino. Tais seriam:
Mc 9,1: “Em verdade vos digo que estão aqui presente alguns que não provarão a morte até que
veiam o Reino de Deus chegando com poder”266.
Tais textos se referem à queda de Jerusalém, ocorrida em 70 d.C. Esta, aliás, é considerada como
prenúncio e figura do juízo final, de tal sorte que no sermão escatológico267; a destruição de Jerusalém e
o fim do mundo são considerados numa só perspectiva; as predições concernentes ao próximos tempos
são assim relativas à ruína da Cidade Santa, e não ao fim do mundo. Tal era o estilo profético; fundia
num só quadro acontecimentos próximos e distantes que tivessem algum paralelismo entre si.
De resto, sejam lembrados os textos em que Jesus prevê longa duração para a sua obra: as
parábolas do joio e do trigo (Mt 13,24-30;36-43), da mostarda (Mt 13,31s). do fermento (Mt 13,33), da
rede de peixes (Mt 13, 47-50).
3.1. A Graça
Graça é dom. Ora certamente a humanidade de Cristo foi enriquecida com muitos dons, dos quis
sejam alguns postos em relevo.
1) A graça da união: na união hipostática Deus se deu a Jesus não mediante um dom criado, mas
imediatamente por si, e de modo irreversível. Tal Dom se chama “a graça da união” ou a “graça
incriada”. Em conseqüência Jesus possui uma santidade substancial, ao passo que a nossa é acidental.
Jesus propriamente Filho de Deus por viver da pessoa do Filho de Deus; nós, ao contrário, somos filhos
adotivos.
264
Cf. Jo 1,16.
265
Cf. Mt 26,38.
266
Cf. Mt 10,23: 16, 28.
267
Ver Mt 24,34; Mc 13,30; Lc 21,30.
2) A graça habitual ou santificante. Este é um dom que nos faz filho de Deus, habilitados a
participar da vida do próprio Deus: recebemo-lo no Batismo.
Pergunta-se; era necessário que Jesus tivesse a graça habitual? A resposta é afirmativa com
efeito; Jesus é a Cabeça e a Fonte de cuja plenitude recebemos graça por graça. Ora isto não seria
possível se Jesus não possuísse todos os dons que os homens deveriam receber para a sua santificação;
portanto possuía a graça santificante e, com ela, as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo. Todos
estes dons em Jesus são chamados “a graça da Cabeça”.
Possuidor de tantos dons, Cristo não teve pecado, nem o podia ter; não podia desobedecer ao pai.
Ele mesmo interrogava seus adversários: “Quem de vos me argüirá de pecado?” (Jo 8,46). A S.
Escritura o incute repetidamente: Is 53,9s; Lc 1,35; Jo 1,29;14,-30: 2Cor 5,21; Hb 4,15; 7,26; 1Pd 3,22;;
1Jo 3,5.
Conseqüentemente, põe-se a pergunta: Jesus era livre? O seu sacrifício e a sua entrega ao pai
tiveram algum mérito? — É o que passamos a estudar.
3.2. A liberdade
Liberdade de arbítrio é a faculdade de nos orientarmos para o nosso fim supremo (ou para a
nossa plena realização) de maneira espontânea, e não constrangida ou violenta. Assim entendida, a
liberdade é um meio, e não um fim. Ela nos possibilita praticar o que Deus quer (= o que concorre para o
nosso maior bem) de modo responsável, por decisão espontânea e sem coação interna. Liberdade de
arbítrio não é arbitrariedade; também não é necessariamente possibilidade de pecar.
Ora Jesus, como verdadeiro homem, foi livre e usou da sua liberdade para se entregar
generosamente à vontade do Pai. Ele sentiu a dor que tal atitude podia causar à natureza humana; não foi
um faquir insensível. Por isto estremeceu e suou sangue diante da perspectiva da sua Paixão; chegou a
pedir ao Pai que o isentasse do cálice, mas superou o horror natural, dizendo: “Faça-se a tua vontade, e
não a minha, ó Pai” Lc 22, 41- 44.
Foi por espontânea vontade que Jesus assumiu a sua morte no tempo e no lugar previstos pelo
Pai268. Jo 10, 17s. Assim Jesus fez da sua condenação uma oferenda voluntária. Embora não tivesse
pecado pessoal, Ele conheceu toda a miséria do pecado; sim, nos santos observa-se que, quanto mais
íntima é a sua união com Deus, tanto mais clara também é a noção de pecado que eles têm; a perda da
consciência do pecado só ocorre no pecador empedernido. Além disto, notemos que, se Jesus não lutou
contra a concupiscência nele instalada, lutou contra as forças do mal que o ameaçavam por fora 269,
exercendo então as virtudes da coragem, da fortaleza e da decisão. Os evangelistas notem que Ele
assumiu a sua viagem final a Jerusalém de maneira resoluta, de modo a causar espanto e medo aos
próprios discípulos270.
268
Cf. Lc 13, 32s.
269
A multidão era inaceitável, pois conforme os antigos Padres, “o que não foi assumido, não foi redimido”
(S. Atanásio).
270
Cf. Mc 10, 32; Lc 9, 51.
afasta de Deus e sente a solidão como se Deus se tivesse afastado; Jesus quis experimentar tal situação
na cruz para dela nos livrar. Ademais é de notar que as palavras de Mc 15, 34 são a citação do salmo 21
(22), 2, que Jesus quis recitar na cruz porque descreve, como nenhum outro, pormenores da Paixão do
Messias.
Já que em Cristo há duas naturezas, há também dois modos de agir: o divino e o humano.
As operações exclusivamente divinas de Jesus eram as que Ele executava com o Pai e o Espírito
Santo desde todo o sempre: criar, conservar, mover as criaturas...
As operações humanas de Jesus nunca eram meramente humanas, porque tinham como sujeito o
Filho de Deus; por isto são ditas “divino-humanas” ou teândricas. Distinguem-se dois tipos de operações
teândricas:
a) as de sentido largo: a natureza humana realizava o que lhe era próprio (comer, dormir,
sofrer...). Eram sempre atividades de Deus feito homem.
Em conseqüência, dizemos que a natureza humana de Jesus se tornou causa eficiente da salvação
dos homens. As graças divinas que o Filho de Deus quis comunicar ao gênero humano, Ele quis que
fossem dons não somente da natureza divina, mas também da natureza humana de Jesus. Isto se explica
pelo fato de que na humanidade de Jesus habitava todo o poder da Divindade; nesse homem havia
comunicação de atividades ou a pericorese (interpenetração) de duas operações. A carne de Cristo
tornou-se como que um ferro penetrado de fogo (ferro em brasa), e, ao agir, agia como uma espada em
brasa.
BIBLIOGRAFIA:
PERGUNTAS
1) Jesus, como homem, sabia que era Deus? Conhecia o plano do Pai? Explique.
2) Que se entende por “graça da Cabeça”?
3) Jesus foi livre para cumprir o plano do Pai?
4) Que é operação teândrica? Exponha sua importância
II. SOTERIOLOGIA
A teologia considera a Redenção sob dois aspectos: 1) o físico-místico (infância e vida pública
de Jesus); 2) o satisfatório ou propiciatório (a Páscoa do Senhor). Vejamos um e outro separadamente.
O fato mesmo de que Deus se fez homem e viveu as etapas da vida de um homem desde a
conceição no seio materno até a morte, é obra de Redenção. Com efeito; pelo contato mesmo com a
natureza e as etapas da vida humana, Deus divinizou ou deu sentido novo, recriou, tudo o que é do
homem, à semelhança de fogo, que ígneo tudo o que ele atinge ou ainda à semelhança do bálsamo, que
torna perfumado tudo que ele penetra. Principalmente os antigos teólogos orientais enfatizavam a
Redenção por contato. Consideramos os diversos aspectos desta obra:
2) Pela Encarnação todo o universo foi consagrado e teve início a edificação dos homens.
Notemos ainda que a Encanação tornou os homens consangüíneos com o Filho de Deus. Ela é
também ilustrada pela imagem das núpcias do Filho de Deus com a natureza humana no seio da Virgem.
1.1. O Batismo de Jesus foi ato de obediência e humildade, em antítese à soberba do primeiro
pecado.
A palavra grega baptízomai significa submergir, ao qual se segue um emergir Assim o Batismo
de Jesus ‘` um compêndio de toda a vida de Cristo, que foi humilhação e exaltação; é também a
aceitação simbólica da morte redentora272. Aceitando o Batismo, de Jesus manifesta a intenção de sofrer
a morte de cruz pelos homens.
O Batismo de Jesus foi também a santificação das águas para que estas se tornasse o sacramento
da nossa regeneração; pelo contato com a carne de Cristo, a água recebeu o poder de vivificar o homem.
— Conseqüentemente o nosso Batismo também, é a aceitação da morte por ascese; comprometemo-nos
então a morrer com Cristo para o pecado.
2.2. A pregação de Cristo, predita nas Escrituras273. Tornou-se plena comunicação da Palavra de
Deus aos homens274 Cristo é a Palavra (Jo 1,1) e a Imagem Cl 1,15) do pai, que por sua existência
terrestre, nos revela o Pai.
O mundo anterior a Cristo estava sob o poder do demônio, que é o pai da mentira275. Por isto a
manifestação da verdade realizada por Cristo já é certa vitória sobre o demônio ou início da nossa
Redenção. A Escritura assinala muitas vezes que a palavra de Jesus comunicava a vida (Jo 1,1-5; 1Jo
1,1; 2,13) e santifica os homens (1Tm 4,5; Tg 1,18; 1Pd 1,23). A sua eficácia é comparada à de uma
espada (Ef 6,17; Hb 4,12s). Disto se segue a importância da pregação e da catequese. “A fé vem pela
pregação, e a pregação é pela palavra de Cristo” (Rm 10,18).
271
Cf. Cl 1,16s.
272
Cf. Mc 10,38.
273
Cf. Dt 18, 18; Is 61,2.
274
Cf. Hb 1,1.
275
Cf. Jo 8,44; 12,31; 14,30; 2Cor 4,3.
2.3. Os milagres de Jesus. A palavra milagre vem do latim miraculum= o que provoca
admiração. Geralmente se considera o milagre tão somente sob este aspecto. A Bíblia, porém, tala de
seméion, sinal (Jo 6,26; 10,37s; 15,24); ora o sinal é sempre algo que não tem sentido em si mesmo, mas
é relativo; mas é uma mensagem dirigida a alguém.
O milagre é, pois, uma palavra... palavra de Deus mais forte e enfática do que os vocábulos
habituais Deus dirige aos homens esse tipo de linguagem sempre que o julga oportuno. Tenha-se em
vista o episódio de Mc 2,5-12: Jesus perdoa os pecados ao paralítico; os escribas que o vêem, julgam que
está blasfemando; então Jesus confirma as palavras anteriores mediante o sinal da cura do paralítico.
Por conseguintes, os milagres de Jesus nos Evangelhos não são meras demonsuações de poder.
Mediante curas, exorcismo, domínio sobre a natureza.... Jesus quis significar que Ele vinha recriar o
homem, restaurando na sua integridade a natureza vulnerada pelo pecado. Não basta, pois, admirar os
milagres de Jesus; é preciso também saber lê-los ou reconhecer o seu significado transcendental. Santo
Agostinho diz que quem não atinge essa significação mais elevada, é semelhante ao analfabeto que vê
belas letras de imprensa; admira o seu traçado, mas passa ao lado do principal, porque não sabe ler.
Assim entendemos por que os milagres de Jesus estavam profundamente inseridos dentro da pregação do
Senhor; a ressurreição deveria ser o sinal por excelência ou o sinal de Jonas276, que atenderia aos anseios
dos fariseus.
A obra salvífica de Cristo foi uma só desde o nascimento até a Ascensão. Por isto a Encarnação e
as diversas fases da vida oculta como da vida pública de Jesus deviam culminar na morte e ressurreição.
Principalmente estas duas etapas finais estavam intimamente associadas ente si, a tal ponto que os
antigos gregos falavam de páscha staurósimon (Páscoa na cruz) e Páscha anastâsimon (Páscoa na
ressurreição). Os teólogos latinos desenvolveram o aspecto satisfatório e expiatório da Redenção, de
preferência ao aspecto físico-místico. A mente latina sempre foi voltada para os valores jurídicos ao
passo que a oriental é mais atraída pelos místicos. Uma e outra se completam mutuamente.
Com efeito. A morte de Cristo não foi apenas propiciação oferecida ao Pai pelos pecados. Foi
algo cuja iniciativa se deve ao próprio Pai. Sim; foi Este quem nos predestinou em cristo277; iniciou a
nossa salvação já no Antigo Testamento e deu ao Filho o mandamento de entregar a vida por nós278.
Trata-se de amor motivado, mas de oura benevolência279.
Ao amor do Pai corresponde o amor de Filho, que na cruz se exprime num sim ao pai e na
restauração da vida dos homens.
276
Cf. Mt 12,38-40.
277
Cf. Ef 1,3-6.
278
Cf. Jo 10,18; 14.31; Rm 5,8-10,8,32.
279
Cf. 1Jo 4,10; 2Cor 5,18.
Cristo, Sacerdote deste o primeiro instante de sal Encarnação, ofereceu um sacrifício perfeito.
Desde a sua entrada no mundo. Ele mesmo era a vítima consagrada pela união com o Verbo280.
a) Cristo exerceu um ato de livre entrega ao pai. A sua morte não foi um fato inevitável, como a
dos demais homens. cristo não apenas aceitou e sofreu a morte necessária, mas voluntariamente entregou
a vida em testemunho de sua obediência ao pai e de seu amor aos homens. Assim a morte de Cristo é
mesmo mais preciosa e grandiosa do que a dos mártires.
Era essa sujeição ao plano de deus que os sacrifícios do Antigo Testamento deviam exprimir; o
sangue estão derramado era o símbolo da entrega interior que o oferente fazia a Deus. Ora Cristo não
ofereceu apenas um sacrifício vigário ou uma vítima irracional que simbolizasse o amor dos homens,
mas, como novo Adão e Cabeça da humanidade, Ele entregou a sua própria vida. E, isto, Cristo o fez
desde que entrou no mundo, colocando então toda a sua vida sob o signo da entrega282. Donde se vê a
unidade de toda a vida do Cristo, entrega permanente ao pai. Foi esta obediência de Cristo que trouxe a
salvação.
A atitude interna de Cristo que em pleno amor se doa ao pai e se entrega aos homens, é-nos
apresentada na figura do Sagrado Coração de Jesus. Esta nada tem de sentimental, mas significa o que
havia de mais profundo na santíssima humanidade de Jesus.
Poderia alguém perguntar: por que sacrifício cruento? Deus se compraz no sangue? — Seria falso
pensar assim. Na verdade, o que Deus quer, é a entrega do homem ao seu Criador (que é, ao mesmo
tempo, a plena realização da criatura humana). Essa entrega, porém, não pode deixar de ser dolorosa,
porque dentro do homem existe o pecado, que leva ao egocentrismo e à auto-suficiência. Viver para
Deus, portanto, implica morrer ao pecado e ao velho homem, e o sangue é precisamente o símbolo dessa
morte. — A morte violeta de Cristo na cruz é a manifestação mais pungente do contraste que existe entre
a santidade de Deus e a hediondez do pecado; este é tão horrendo quanto é dolorosa a morte de cruz.
Conforme a Escritura, o pecado, a morte e o demônio eram os senhores deste mundo antes da
vinda de Cristo283. Todavia a vida de Cristo foi luta contra o pecado e o demônio; isto se evidenciou
principalmente nos exorcismo, que desmantelavam inicialmente o império do Maligno,... Império que
foi difinitavamente destruído na cruz284.
— Vitória sobre o pecado. A carne foi instrumento pelo qual o primeiro Adão pecou no início
da história. Tornou-se sede da miséria humana. Ora precisamente Deus quis salvar os homens mediante
a carne, a fim de vencer o pecado através do instrumento mesmo do pecado. É o que se chama
“recapitulação” ou a arte de fazer que os instrumentos do pecado e da morte se tornem recursos para a
vida e a glória285.
280
Cf. Hb 10,1-4; 7,26-28; 9;25-28.
281
Cf. Rm 5,12-19; 1Cor 15,22. 45-49.
282
Cf. Hb, 5-10.
283
Cf. Rm 5,12-19; Jo 12,31; 14,30; 1Jo 5,19; 2Cor 4,3.
284
Ver a propósito Ap 12, 10-12.
285
Cf. Rm 8,3.
A carne Messias representa a carne de todo o gênero humano; sobre ela pesou à sentença que
pairava sobre a humanidade pecadora (“no dia em que desobedeceres, morrerás”. Gn 2,17); a carne
inocente de Jesus, fazendo voluntariamente as vezes da humanidade pecadora, libertou do jugo do
pecado todos os homens. — A carne tornou-se assim instrumento do sumo amor de Deus, ela que fora
objeto de condenação. Isto significa que a carne foi interiormente redimida e santificada, e não apenas
salva por imputação extrínseca dos méritos de Cristo.
— Vitória sobre a morte. Cristo inocente nada devia à morte (Jo 12,31; 14,30). Por isso ela o
pode deter286. — Assim a morte só podia servir à glorificação de Cristo. Ela ainda permanece no mundo
e domina cada homem, mas servindo para a nossa glorificação ou passagem para o pai. A morte é
atualmente o inimigo que nos dá a ocasião da vitória definitiva. No dia da consumação final, ela será
destruída287.
— Vitória sobre o demônio. Este foi despojado do seu poder288. Desde a tentação no deserto até
a cruz quis dominar Jesus289; instigou os homens contra a o Salvador290. Mas foi vencido. Tal derrota e
ilustrada pelos Padres da Igreja mediante a seguinte imagem: a santíssima humanidade de Cristo, em
tudo semelhante à dos demais homens, exceto no pecado, foi apresentada ao demônio como isca. O
Maligno abocanhou-a com avidez, julgando fazer mais uma presa; todavia não percebera nela o anzol da
Divindade; a sua fisgada, aparentemente vitoriosa, torno-se-lhe fatal. Era, de resto, justo que o Senhor
Deus apresentasse ao demônio, como antagonista, uma carne humana semelhante aquela que ele
suplantara no primeiro encontro da história ou no paraíso. Neste encontro com o segundo Adão, Satanás
foi derrotado pelo adversário que ele havia derrotado.
A tríplice vitória de Cristo sobre o pecado, a morte e o demônio trouxe ao mundo PAZ291.A
mensagem de Cristo é essencialmente PAZ (SHALOM)292.
BIBLIOGRAFIA:
PERGUNTAS
286
Cf. Ap 1,18.
287
Cf. 1Cor 15,26.
288
Cf. Jo 12,31; Cl 2,13-15.
289
Cf. Lc 4,13; Lc 22,3.53.
290
Cf. Jo 13,2; 1Cor 2,8.
291
Cf. Rm 5,1.
292
Cf. Ef 2,17; 6,15.
COM O NOME E O ENDEREÇO DO(A) CURSISTA, PARA:
Neste Módulo terminaremos o estudo da obra Salvífica de Cristo e daremos início às lições
Eclesiologia.
A morte é a separação de corpo e alma de ser humano. Por e conseguinte quando Jesus
293
morreu , a sua alma anunciou redenção e vida nova aos justos que haviam morrido anteriormente. É o
que se acha insinuado em 1Pd 3,18-22; 4,6(?) e em antiga tradição formulada no Símbolo dos Apóstolos:
Foi morto e sepultado; “desceu à mansão dos mortos”. Esta expressão traduz o grego Hades e o latim
inferi; supõe as concepções dos antigos, segundo as quais haveria, debaixo da terra (plana), uma região
para os mortos. Nesta se distinguiriam diversos estrados, dos quais o mais elevado seria i limbus (a orla);
neste limbo ( dito “dos pais ou dos antepassados”), os justos falecidos antes de Cristo aguardariam a
obra do Redentor para poder usufruir de bem-aventurança celeste294. Essa expectativa é insinuada em Hb
11, 39s.
O texto de Mt 27,52s fala de uma “redenção” dos justos realizada por Cristo logo depois da sua
morte. A temática é um tanto obscura, dando margem a teorias e hipóteses que não vem ao caso discutir.
Guardaremos apenas como de fé o artigo professado no Símbolo dos Apóstolos.
2. A ressurreição de Cristo
É o sinal por excelência da autenticidade messiânica de Jesus ou o sinal de Jonas295. Com outras
palavras: é o sinete colocado pelo pai sobre a missão de Jesus, confirmando tudo o que Ele anunciara,
pois só Deus pode ressuscitar um morto: daí as palavras de São Paulo: “Se Cristo não ressuscitou, vazia
é a nossa pregação, vazia também é a nossa fé” (1Cor 15,14).
293
Jesus morreu como homem, não como Deus. A Divindade permaneceu unida ao corpo e à alma de Jesus, mesmo quando
separados pela morte. O que quer dizer que a união hipostática em Jesus nunca foi destruída.
294
Não se confunda o “limbo dos Pais” (que terminou com a morte do Salvador) com o limbo das crianças. Este seria um
estado póstumo reservado às crianças mortas sem Batismo depois de Cristo. Todavia a existência do limbo das crianças não é
de fé, como se dirá nas lições sobre os Novíssimos (módulo 34).
295
Cf. Mt 12,38-40.
A ressurreição corporal de Jesus causava horror aos antigos gregos dualistas, que viam no corpo
um sepulcro ou um cárcere para a alma. O Cristianismo, porém, a professa firmemente, pois significa a
recriação do homem, que não é apenas espírito, mas composto de espírito e matéria.
Na ressurreição de Jesus, a glória de Deus, que nele estava latente, se tornou patente A morte de
Senhor não foi interrupção da vida, mas passagem para uma vida nova296.
Desde que Cristo aceitou a morte e a venceu, esta tem novo sentido para nós; não é destruição,
mas transformação da matéria, porque dá origem a nova criatura, penetrada pela glória ou pelo esplendor
(dóxa) de Deus. É esta glória que São Paulo tem em vista quando fala do corpo espiritual (1Cor 15,44);
este é matéria totalmente penetrada pelo Espírito (Pneuma) Santo.
3. A Ascensão do Senhor
Jesus ressuscitado elevou-se aos céus, diz a S. Escritura299. É legítimo perguntar se agradou
quarenta dias para estar na glória celeste; seria muito plausível que o tivesse feito o logo no dia da sua
ressurreição, pois este mundo, ainda marcado pelo pecado, não era o habitat condigno do seu corpo
glorioso; Ele era nova criatura300, primícias de um mundo novo. Notemos que a Escritura não diz que
Jesus morava com seus discípulos, mas apenas refere que lhes aparecia301. A questão fica aberta. O fato,
é que Jesus ressuscitado completou a instrução dos discípulos aparecendo-lhes regularmente; o Senhor
lhes aparecia ter nova autoridade; recordavam as palavras pré-pascais de Jesus sob a luz de páscoa e
penetravam-lhes mais a fundo o sentido302. O mistério de Jesus mortal se lhes tornava patente; viam que
a glória está em continuidade com a esvaziamento e a morte303.
Notemos que a Ascensão de Jesus não significa a restituição do Filho de Deus à sua glória
celeste (o Filho nunca perdeu o que é de Deus), mas é a exaltação do homem Jesus, crucificado e morto,
até a gloria do Filho de Deus; é a humanidade de Jesus que experimenta a glorificação. — A Ascensão
remata a Redenção em Jesus; com efeito, a Encarnação velara mais do que revelara o Verbo; ora a
Ascensão o revela plenamente e, fazendo-o transparecer através da matéria. Por conseguinte, a
Ascensão vem a ser
— a festa da realeza de Cristo por excelência. No Apocalipse Jesus aparece como cordeiro
imolado, mas em pé, trazido em suas mãos o livro dos desígnios de Deus ou toda história da
humanidade304. em Ef 4,7s Jesus é assemelhado a um guerreiro que, vitorioso, volta para a sua cidade,
levando consigo os troféus da vitória;
296
Cf. 1Tm 3,16.
297
Cf. Rm 6,1-14.
298
Cf. Ef 2,4-6.
299
Cf. At 1,2s.
300
Cf. 2Cor 5,17.
301
Cf. Lc 24,15-36; Jo 20,14.19.26; 21,1...
302
Cf. Jo 2,21; 12,16.
303
Cf. Fl 2,5-11.
304
Cf. Ap 5,6s.
305
Cf. Hb 8.1s; 9,24.
306
Cf. Hb 9,1-15.
— a abertura do santuário celeste para o gênero humano. “Onde a Cabeça está, aí também
devem estar os membros do corpo” (S. Leão Magno)307;
4. Pentecostes
Jesus glorificado nos subtraiu a sua presença visível, mas não nos deixou órfãos (Jo
14,18). Ele quis mandar-nos um outro Paráclito ou Consolador (Jo 14,16). Este seria dado como fruto da
vitória de Cristo ou como conseqüência da exaltação de Jesus; daí as palavras do Senhor: “É de vosso
interesse que eu parta, pois, se eu não for, o Paráclito não virá a vós” (Jo 16,7). A mesma verdade é
expressa em Jo 7,39: “ Jesus falava do Espírito que deviam receber os que nele cressem, pois o Espírito
ainda não fora dado, porque Jesus não fora glorificado”.
É o Espírito Santo que reúne todos os fiéis no corpo Místico de Cristo, fazendo-os viver
da vida da Cabeça. Cristo assim se torna presente a nós de novo modo de modo sacramental; deixa de
estar conosco, lado a lado, para estar em nós. Assim têm início a Igreja e os sacramentos, que, mediante
a ação do espírito Santo, nos transmitem a vida de Cristo:
A Cristologia apresente Jesus Cristo como centro da história e fonte da salvação. Todo esse
tratado pode ser compendiado nas palavras de São Pedro:
“Há um só Deus e em só Mediador entre Deus e os homens: um homem, Cristo Jesus, que se deu
em resgate por todos” (1 Tm 2, 5).
“Não há sob o céu ouro nome dado aos homens pelo qual possamos ser salvos” (At 4, 12).
A obra de Cristo, porém não nos salva aotomaticamente. Ao contrário, Jesus se apresenta a todo
o homem (Mt 25,31-46) e lhe pede uma opção. Pergunta-se então: como se realiza o encotro entre Jesus
e os homens através do tempo e do espaço?
1) a resposta intelecuctualista ou psicológica. O nosso encontro com Jesus se daria pelo estudo
e pelo afeto, que levam a conhecer e a amar determinado personagem. — Tal é o que ocorre em todas as
sociedades filosóficas fundadas por um hrande mestre; os dicípulos, através dos tempos, se unem a este,
307
Cf. Ef 2,5s.
308
Cf. 1Cor 16,22; Ap 22,20.
lendo e admirando os seus escritos. Não é porém. Deste modo tênue que entedemos o nosso encontro
com Cristo;
2) a vida sacramental. Dizemos que, além de nos deixar a sua palavra, Jesus nos deixou a sua
presença. Os sacramentos são sinais que tornam presente ou perpetuam (não repetem) a obra salvífica de
Cristo.assim Cristo nos vem por palavras e por sinais que comunicam a vida do senhor. A palavra é uma
forma de sinal; o sinal é uma forma de palavra.
Mas palavra e sinal constituim, comunidade, supõem alguns que falam ou apresentam e outros
que ouçam e apreendam. Tal comunidade é a igreja. Como se vê, esta não é sociedade meramente
humana, mas vem a ser oCristo presente sob forma sacramental, conforme e esquema abaixo:
Deus Pai
|
Jesus Cristo
|
Igreja
|
7 sacramentos
ORDEM SACRAMENTAL
Assim vemos que a igrja tem, antes do mais, uma dimensão espiritual ou transcendental (é o
corpo de Cristo prolongado, que o Espírito Santo vivifica). Além disto, tem dimensões de ordem
antropológica, histórica, judaíca e escatológica (o que nela se encontra, é o eschatón, o último, o
definitivo). A igreja m’stica não exclui a igreja do Direito e das leis nem a igreja da palavra, mas estas
três facetas da igreja se complementam entre si.
O que acabamos de dizer, pode ser reassumido pelo conforto de duas imagens:
I
Um cometa luminoso aparece em noite escura. Percorre sua trajetória e desaparece.
Os homens observam-no com muita curiosidade.
Resolvem escrever “As Memórias do Cometa” num livro.
Em torno do livro constitui-se a Sociedade dos amigos do Cometa
II
Um pedregulho é lançado nágua. Pecorre sua trajétória e desaparece.
Desaparecendo, nágua, desencadeia uma série de ondas concêntricas.
Dimaniza toda a água do lago até as extremidades do mesmo.
Se há folhas secas caídas sobre a superfície do lago, quebra-se a ondulação, mas o pedregulho
continua presente com sua força dentro do lago.
Uma outra imagens significam Jesus Cristo e a Igreja.
Na primeira, o cometa representa Cristo; apareceu na terra, foi visto e ouvido; depois que
desapareceu, os seus apóstolos e discípulos escreveram as “Memórias” (donde a Bíblia do Novo
testamento), em torno da qual se reúne a Sociedade dos seus discípolos ou a igreja.
Na segunda imagem, o pedregulho significa Jesus Cristo (a falta de brilho não importa no caso);
desapareu aos olhos dos homens, mas permanece latente, debaixo dágua, encoberto por véus, a
dinamizar toda aa água do lago, comunicando a esta a sua força ou a sua “vida”; essa água portadora do
pedregulho e “vivificada” por este é o símbolo da Igreja.
Ora dizemos que a primeira imagem representa o conseito protestante da igreja. Esta, no caso, é
essencialmente a assembléia dos fiéis que lêem a Palavra de Deus e que valorizam profundamente o
contato com pisicológico (de conhecimento e afeto) que o livro lhes proporciona com Jesus. — A
segunda imagem transmite o conceito católica de Igreja; esta é, no caso, essencialmente o Sacramento de
Cristo ou o Cristo oresente e atuante sob véus, de modo que tem um contato com seus fiéis, antes do
mais, ontolégico ou contato de ser, de vida; há uma comunhão de vida entre o Cristo e os seus,
simbolizada também pela videira, de que fala Jesus em Jo 15,1-8. Nessa água da igreja, Cristo santifica
todos os homens bem dispostos. Se sobre a superfície do lago há folhas secas ou ramos caídos, a
simetria da face ondulada é rompida e o pedregulho parece ausente. Na verdade, porém, ele está sempre
a vivicar os fiéis velado, não raro, pelas impurezas (falhas e deficiências) que os homens colocam sobre
a face humana da igreja. Somos nós que quebramos a beleza do lago ondulado; é a nós que compete
retirar as imundícies que encobrem a presença do Cristo nesse lago.
De quanto se disse, segue-se que o protestante pode mudar de “Igreja” ou fundar nova “Igreja”
ou ficar fora da Igreja, pois ele vê nesta uma assembléia que o deve estimular a ler e viver a Palavra de
Deus; se determinada “Igreja” não lhe satisfaz, é-lhe lícito procurar outra ou fundar a sua, na qual
encontre edificação. O que lhe importa em todo e qualquer caso, é ficar com o livro nas mãos.
Para o católico, é incomcebível viver for ada Igreja: “Somos peixinhos, que nasceram nágua e só
podem sobreviver”, dizia Tertuliano († 220). Também é incomcebível mudar de Igreja; no lago ao lado,
talvez mais belo porque isento de folhas secas, o pedregulho (Cristo) não estará sacramentalmente
presente; quando o fiel católico experimenta a fraqueza dos homens na Igreja, a sua resposta de ser
procurar fortalecer os fracos e remover as impurezas (a começar pelos seus pecados pessoais) da face
humano da Igreja. Nesta há uma santidade objetiva permanente, devida a Cristo, santidade que não se
confunde com a bondade ou a virtude oscilante dos homens, que junto com Cristo integram a Igreja.
BIBLIOGRAFIA:
FEINER-LOEHTER. Mysterium Salutis III / 6 e 7. Vozes.
GOMES, Cirilo Folch. Riquezas da Mensagem Cristã. Lumen Christi.
SCHMAUS, Michael. A Fé da Igreja. Vol. 3 e 4. Vozes.
PERGUNTAS
1. Qual o significado da Ressureição de Cristo para nós?
2. Qual o significado da Ascensão do senhor?
3. Qual o sentido de Pentecostes na história da Salvação?
4. Queira explicar o que se entende por “Igreja, sacramento da salvação”.
Ora uma leitura atenta dos textos dos Evangelhos demostram que
1) Jesus previu a longa duração de sua obra. É o que se depreende das parábolas do Joio e do
trigo (Mt 13,24-30. 36-43), dos peixes bons e maus (Mt 13,49), do grão de mostrarda (Mt 13,31s), do
fermento na massa (Mt 13,33); a imagem do banquete (Mt 8,11s) e a petição “ Venha o teu Reino!” (Mt
6,10; Lc 11,2) ilustram também o pensamento de Jesus.
Os textos que insinuam o contrário, hão de ser lidos à luz dos anteriormente citados; Mt 10,23;
Mc 9,1 referem-se não à segunda vinda de Cristo, mas ao juízo de Deus sobre Jerusalém ocorrido em 70
d.C. como prenúncio do juizo universal no fim dos tempos.
2) Jesus lançou as linhas estruturais e definitivas de sua Igreja. Jesus chamou os doze
Apóstolos: Mc 3,13-19; Mt 10,1-4; Lc 6,12-16; Jo 6,67. O número 12 é importante, pois mostra a
contunuidade com o antigo Israel, que era o povo das doze tribos. Segundo os judeus, a vinda do
Messias provocaria a reunião das tribos dispersas pelo exílio. A escolha dos dozes significa que chegara
o tempo de construir um Israel renovado. A importância do número 12 se preende ainda do fato de que
os apóstolos o quizeram restaurar após a defecção de Judas309. Aos dozes Lesus quis conterir o poder de
ligar e desligar310, isto é, de proibir e permitir, exercendo funções de jurisdição; as mesma faculdades
foram entregues a Pedro, de modo que possui pessoalmente a mesma jurisdição que os doze exercem
colegialmente. Consideremos, pois, mais atentamente a figura de Pedro.
O nome Pedro é mencionado 171 vezes nos escritos do Novo Testamento. O segundo nome de
Apóstolo mais citado é o de João (46 vezes). Nos Evangelhos, Pedro aparece com certo relevo:
Três rextos atribuiem a Pedro uma função especial: Mt 16, 16-19; Lc 22,31s; Jo 21,15s:
O fato de que esta passagem só se encontra em Mt, e não nos paralelos de Mc e Lc, tem
suscitado a suspeita de críticos quanto à sua autencidade: seria interpolação tardia, devida a cristãos
desejosos de impingir o primado de Pedro. — Verifica-se, porém, que tal trecho está impregnado de
aramaísmos, de modo que parece fazer ressoar a própria linguagem de Cristo; com efeito, observem-se
309
Cf. At 1,15s.
310
Cf . Mt 18,18.
os termos “ Simão bar Jona, carne e sangue, pai que estás nos céus, Kepha (Pedra), portas do inferno,
chaves, ligar, desligar”. O trocadilho do v. 18 não seria possível em grego (que emprega os vocábulos
Petros, petra), mas somente em aramaico. — Ademais Mt 16,18s se encontra em todos os antigos
manuscritos e nas antigas traduções de Mt. O fato de que ocorre em Mc, se explica por ser este o eco da
pregação de Pedro, que silencia tudo que seja honorífico para Pedro311.
Feitas estas observações de ordem crítica, estudemos o conteúdo de Mt 18,18s: Jesus mudou o
nome de Simão, Filho de João, chamado Pedro (Kepha), Cf. Jo 1,42. Ora toda mudança de nome na
Bíblia implica a outorga de uma missão; Cf. Gn 17,5 (Abrão-Abraão); (Sarai- Sara); 32,29 (Jacó-
Israel)... A Pedro, pois, Jesus quis confiar especial encargo, simbolizado pelo nome Kepha. Este
significa Rocha ou fundamento sólido; caso... a Rocha sobre a qual se ergueria o edfício da igreja. Se tal
edifício deve ser duradouro, também o há de ser o seu fundamento; por conseguinte as faculdades que
Jesus confere a Pedro, hão de ser transmissíveis aos seus sucessores.
Sobre essa Rocha Jesus deve fundar a sua igreja, ekklesía em grego (= convocação, assembléia);
tal vocábulo é a tradução do hebraico qahal, que designa o povo santo, segregado para o serviço do
Senhor312. Em vez de falar da igreja ou qahal de Deus, Jesus falou da sua Igreja313 — o que atesta a
Divindade de Jesus e enfatiza a função central de Jesus na obra da Salvação, embora a igreja esteja
confiada a Pedro.
A igreja assim constituída será inabalável. As “portas do inferno”314 isto é, as forças do mal que
devam o homem ao pecado e à morte, não prevalecerão contra ela.
Chaves... A entrega da chaves significa e entrega de poderes315. Pedro será plenipotenciário, com
Eliaquim o fora, conforme Is 22,20-22;36,2.22; 37,2.
“Na terra... no céu”. Isto significa que as palavras de Pedro têm conseqüências transcendentais;
são confirmadas no céu pelo Senhor Deus; por isto são palavras sacramentais. A salvação não é um dom
individual, mas comunitário; passa pela Igreja e por Pedro.
Um dos episódios que mais revelam o exercícios dos poderes de Pedro, é a admissão dos
primeiro pagão (Concílio) na Igreja em At 10,1-4. O incidente de Gl 2,11-21 não supõe divergência
311
Se Mc não tem a promessa do primado, é claro que Lc também não a tem, pois este depende daquele.
312
Cf. Ex 19,5s; Dt 4,10; 9,10; 18,16;23,2; 31,30.
313
Este possessivo (“minha Igreja”) não é estranho se levarmos em conta afirmações como: “Jerusalém, quantas vezes quis
congregar teus filhos.... “(Mt 23, 37); “Onde dois ou três estiverem congregados no meu nome, estarei no meio deles” (Mt 18,
20).
314
As portas eram antigamente o lugar mais fortalecido de um edifício ou de uma cidade. O inferno (hades, em grego) seria a
Cidade da morte e do Príncipe da morte, o Maligno. Donde “portas do inferno” = o poder do Maligno.
315
Cf. Is 22,20-22. Ap 3,7.
entre os apóstolos Pedro mas incoerência da parte de Pedro, que se adaptava aos preceitos rituais dos
judeus Paulo censurou Pedro porque o exemplo deste arrastava os irmãos, dotado com era de especial
autoridade
1. Quando o Apóstolo fala do Corpo de Cristo, que é a igreja, não utiliza o adjetivo “místico”;
1Cor 12, 27; Ef 1,22; Cl 1,24. A palavra “místico” vem de “mistério” (mysterium), o que na antiga
igreja significa o sacramento, especialmente a Eucaristia; no contexto da teologia antiga, “corpo mítico”
seria o corpo eucarístico de cristo. Somente no século XII se foram associando os vocábulos “corpo” e
“místico”para designar a Igreja; é o corpo de Cristo que é produzido pela Eucaristia e que produz a
Eucaristia316, como se pode depreender de 1Cor 10, 16b 17: “O pão que partimos, não é a comunhão
com o corpo de Cristo? Já que há um só pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, visto que todos
participamos desse único pão”317.
A expressào “corpo” já era utilizada pelos filósofos estoicos para designar uma sociedade bem
organizada como o Estado. Nos escritos de S. Paulo tal imagem significa
— comunhão de vida entre Cristo e os Cristãos; a união entre Jesus e seus discípulos não é
apenas a de um mestre venerado por seus seguidores (união psicológico), mas é comparável à do tronco
com os ramos da videira (entre ao quia existe o fluxo da mesma siva ou da mesma vida). Essa comunhão
de vida é enfaticamente professada por São Paulo: “Vivo eu, não, não; é Cristo que vive em mim” Gl
2,20318.
— identidade de sorte. Como Jesus foi admirado e aclamado, mas tembém zombereado e
condenado pelos seus, assim a igreja se apresenta como o grande baluarte dos valores cristãos e
humanos, que os homens nem sempre enter dem320.
É contume dizer-se que Jesus quis fundar sua Igreja em pentecostes, ao enviar o Espírito Santo,
que congregou numa grande família populações das mais diversas partes da terra como podemos confirir
316
Os antigos diziam: “A Igreja faz (consagra) a Eucaristia e a Eucaristia faz a Igreja”.
317
Neste texto há alusão ao Corpo de Cristo físico, ao corpo eucarístico e ao corpo eclesial.
318
Cf. Cl 1,24
319
Cf. Rm 8,5-11.
320
Cf. As palavras de Jesus em Mt 11,4-6.
em At 2, 1-31321. É o Espírito Santo que mediante os seus dons, faz na igreja a unidade dentro da
multiplicidade de carecterísticas étnicas, lingüísticas, culturais...
A Escritura atesta que Jesus está presente e atua na igreja por seu Espírito322. O livro dos Atos
refere a constante atividade do Espírito na Igreja: At 4,8.31.32-34; 6,3.5; 7,51.55; 8,29.39; 10, 19.29;
15.28; 16,7. Merecem especial relevo três características da ação do Espírito:
— é Ele quem leva a conhecer sempre melhor o Cristo e o pai, e suscita nos discípolos as
expressões da fé cordiana, que pode cheganaté o heroísmo do martírio 323. É ele quem geme nos corações
dos fiéis que oram, com gemidos inenarráveis324. Numa palavra: os Cristãos vivem no Espírito Espírito
Santo, nada podendo fazer de bom a não ser pelo Espirito Santo325.
— o Espírito age de modo especial na hierarquia da igreja, não somente quando esta exerce suas
funções sacramentais, mas também quando preenche tarefas jurídicas e administrativas. Não há oposição
entre o elemento jurídico (insticional) da igreja e a ação carismática do Espírito Santo: o Direito
Canônico também é fruto da ação do Espírito na igreja; ele está a serviço da caridade e da satificação
de todos os fiéis. O mesmo Espírito que na Igreja desperta a criatividade, inspira também a obediência e
a submissão à lei. A ação do Espírito tende a intregrar cada vez mais os fiéis no corpo e na estrutura
visível da única igreja de Cristo;
A imagem das núpcias de Javé com a filha de Sion jä ocorre com freqüência no Antigo
Testamento328. Tal imagem se consuma no Novo Testamento, onde Cristo aparece como o Esposo da
sua Igreja329.
A união entre Cristo e a Igreja é mais íntima do que a união entre esposo e esposa. Com efeito;
como o esposo se dá à sua esposa, de modo a serem dois numa só carne330, assim se deu à sua igreja
mediante a sua morte, ressurreição e a vinda do Espírito Santo331. Essa doação, porém, não ocorreu uma
vez só no passado, transitoriamente; ao contrário, ela dura até o fim dos séculos.
Jesus vive para a sua Esposa. Ele e alimenta com a sua Palavra e o seu Corpo na Eucaristia.
Dando-lhe o seu Corpo, Ele se torna um só Corpo com a igreja; segundo S. Agostinho, Cristo diz a todo
fiel que se aproxima da Eucaristia: “cresce e come a minha carne; não és tu que me transformas em teu
corpo, mas sou eu que te tranformo em meu corpo”.
321
O Papa Pio XII, na sua encíclica Mystici Corporis Christi, diz que a Igreja emanou do lado de Cristo pendente na cruz: o
sangue e a água que então jorraram, seriam figuras dos Sacramentos do Batismo e da Eucaristia, que perfazem a Igreja; cf. Jo
19, 33- 37. Podemos dizer que Jo 19 e At 2 se completam mutuamente.
322
Cf. Jo 14,15-26; 16,5-15.
323
Cf. Ef 3,16; Ap 2,7.11.17.29; 3,6. 13.22; Rm 15,13.
324
Cf Rm 8,26s.
325
Cf 1Cor 12,3.
326
Cf. 1Cor 12-14.
327
Cf. Constituição Lumen Gentium nº. 12.
328
Cf. Ez 16,1-63; Os 1 e 3; Is 54, 4-8; 62,5
329
Cf. Ef 5,21-33; 2 Cor 11,2; Jo 3,29s.
330
Cf. Gn 2.24.
331
Cf. Ef 5,2; Gl 1,4; 2,20; 1Tm 2,6; Tt 2,14: At 12,28.
Tal união estará consumada no fim dos tempos; o Apocalipse descreve a nova Jerusalém como
Esposa que se adornou para entrar nas núpcias do Cordeiro332. Entrementes o Espírito e a Esposa
clamam: “Vem! Marana tha! Vem. Senhor Jesus!” (Ap 22,17.20). E ouvem a resposta: “Sim, venho em
breve!” (Ap 22.7.20).
É o espírito que, vivificando a Esposa, entretém os seus ardentes anseios até o encotro
consumado no face-a-face da eternidade.
BIBLIOGRAFIA:
FEINER-LOEHTER. Mysterium Salutis IV/1 e 2. Vozes.
GOMES, Cirilo Folch. Riquezas da Mensagem Cristã. Lumen Christi.
SCHMAUS, Michael. A Fé da Igreja. Vol. 4. Vozes.
PERGUNTAS
1) Quis Jesus fundar a igreja? Em caso positivo, quando a fundou?
2) Qual a função de Pedro na igreja conforme os Evangelhos?
3) Que significa, no plano teológico, a imagem da “igreja, corpo de Cristo”?
4) Que significa o adjetivo “místico”na Eclesiologia?
5) Que se depreende da imagem da “igreja, Esposa de Cristo”?
332
Cf. Ap 19,7s; 21,2-9.
333
Missal Romano.
A segunda edição deste nosso Curso, que agora apresentamos, passou por meticulosa revisão e
conta com o acréscimo dos Módulos 24 e 27.
Atenciosamente
Caro (a) Cursista, bons estudos!
Rio de Janeiro, 1º de Julho de 1997.