Dissertação Versão Final
Dissertação Versão Final
Dissertação Versão Final
O preço que se paga pela neurose: uma etnografia de psicanalistas lacanianos do Rio
de Janeiro
1
Maria del Carmen Guilherme Baradat
O preço que se paga pela neurose: uma etnografia de psicanalistas lacanianos do Rio
de Janeiro
Rio de Janeiro
2018
2
Banca Examinadora
3
Agradecimentos
À CAPES, por ter me concedido uma bolsa de fomento à pesquisa, que tornou viável a realização
desta pesquisa;
Ao meu orientador, Cesar Gordon, pela orientação rigorosa e jamais rígida; pelos insights e sua
curiosidade incessante pelo tema abordado, pela paciência e dedicação que teve com este trabalho;
À minha mãe, Marisa, por ter me ajudado a escrever meu primeiro livro da “maçãzinha verde” e
agora por revisar este texto;
À Lorrane, por dividir comigo a visão de mundo, compartilhar sua vida em todos os momentos, pela
presença, pela leitura, escuta e ideias;
À Raquel, Rayana e Gabi, amigas que por mais que longe sempre estão presentes;
Às “Loucas do Mestrado”, Samantha, Daniele, Bárbara, pelo acolhimento, pelas risadas, pelo vídeo
de natal, pela ajuda infinita, sempre dispostas a me ajudarem a buscar soluções para minhas dúvidas;
À Laila, Ana Luisa, Raquel, Lorrane, Gabriel, Gabi, Rayana, Igor, Thais, Larissa, Mateus, Ingrid,
Paulinha, imprescindíveis para esta pesquisa, na medida em que me ofereceram tempo e dedicação a
4
me ajudarem em diversas questões.
À Jane Russo e ao Fernando Rabossi, professores participantes da banca que se propuseram a ler este
trabalho.
Ao professor Octavio Bonet, que pôde ler com atenção meu projeto e me dar dicas de pesquisa;
A todos os psicanalistas que passaram por minha trajetória, que me ensinaram tudo o que sei hoje
sobre a psicanálise, principalmente Paulo Vidal, sempre disponível a contribuir com meu trabalho;
Ao Victor, que, ao seu modo, me mostrou que o amor está nos lugares mais inusitados e contido nos
atos mais humildes, e por isso nunca deixa de me surpreender.
5
Resumo
6
Abstract
This dissertation aims to investigate the various values (monetary and symbolic) produced by the
Lacanian psychoanalysts in the context of offering a psychoanalysis service in the city of Rio de
Janeiro. The research was based on the analysis of interviews with psychoanalysts in two different
stages in the career - the "established" and the "proto-lacanians". I compared the different ways in
which the actors involved in mercantile exchanges - in this case, the psychoanalysts - signify these
relations and establish a relationship with the professional market of the psychoanalyst that has traits
similar to the art market. To do so, I describe the psychoanalytic culture of the psychoanalysts who
live in Rio de Janeiro and try to draw connections between a certain ethos and a symbolic system
related to the professional category with the specific form that these professionals conceive money
in their relations with their patients.
7
PREFÀCIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................1
8
Introdução
É senso comum, em alguns meios, a noção de que ir a um psicanalista custa caro. Não me
esqueço de uma história contada por minha mãe, segundo a qual uma amiga sua fizera, há alguns
tempos, análise com um “psicanalista freudiano”. “Ele era psicanalista ortodoxo”, disse ela. Esta
sua amiga, advogada, morava em São Paulo e era concursada pelo Tribunal Regional do Trabalho.
“Você acredita que o psicanalista dela acompanhava no Diário Oficial todos os aumentos do salário
dela e aumentava o preço de suas sessões na mesma proporção?”, relatou-me indignada. “No final
ela disse que queria sair da análise, pois não tinha mais dinheiro, com exceção de alguns dólares. E
o psicanalista não é que falou que aceitava dólar!?”.
De forma intuitiva, noto que histórias como essa circulam na sociedade brasileira, ao menos
nas camadas médias urbanas, de forma bastante corriqueira. Tais histórias dizem respeito à
percepção socialmente construída da profissão do psicanalista, e dos supostos altos honorários
cobrados por esses profissionais. Já ouvi diversas vezes, de diferentes pessoas, que “fazer análise
custa caro”. Mas, afinal, por que essa ideia se difundiu? O que permitiu que algumas pessoas
construíssem essa imagem do psicanalista como um profissional caro? Questões amplas como essas
me instigam a realizar a pesquisa que ora apresento. Nesta dissertação, procurarei descrever a
cultura psicanalítica1 (Figueira, 1985) (conceito que será explorado adiante), assim como algumas
categorias e sentidos atribuídos às relações monetárias dos psicanalistas, principalmente pela
corrente francesa que tem como Jacques Lacan, o consagrado psicanalista francês, sua principal
referência teórica e estilística. Dessa forma, abordarei brevemente o sistema de pensamento
psicanalítico lacaniano e seu estilo performático, com intuito de iluminar alguns aspectos de um
mundo particular, na medida em que a forma de atribuir um valor (monetário, entre outros) à sessão
de análise encontra-se imbricada em uma rede de sentidos específicos à cultura psicanalítica e a
relações e hierarquias que se estabelecem no contexto prático da psicanálise enquanto ferramenta
de cura ofertada em um “mercado de cura do sofrimento”2.
O objetivo desta pesquisa será compreender como se operam3 valores (monetários,
simbólicos) pelos psicanalistas lacanianos que trabalham no Rio de Janeiro e região próxima, à
1
Ao longo do texto, utilizarei letras itálicas quando utilizar um termo ou conceito “nativo”, e aspas ao utilizar categorias
analíticas e relatos literais.
2
Não pude sistematizar nesta dissertação no que consiste o “mercado de cura do sofrimento”, na medida em que esse
mercado engloba outros serviços de saúde e cura. No entanto, posso apenas no momento utilizar esse termo para
esboçar que a psicanálise está inserida em um contexto mais amplo de serviços que visam e ofertam a cura em um
mercado.
3
Utilizarei o termo “operação” no sentido de operar – no caso, um valor –, ou seja, de colocar em funcionamento um
conjunto de ações e elementos de modo a produzir determinados efeitos na vida social.
9
sessão de análise em relação com seu status profissional. Tais elementos deverão ser analisados
visando comparar diferenças e/ou similaridades entre a operacionalização do valor entre os
psicanalistas que estão no início da construção de sua clientela e os que já estão num estágio
avançado da carreira. Para tanto, foram realizadas dezesseis entrevistas semiestruturadas, doze com
psicanalistas lacanianos jovens recém-formados e quatro com psicanalistas que já possuem um
percurso de vários anos na carreira. Chamarei os primeiros de “proto-lacanianos” e os últimos de
“psicanalistas estabelecidos”. Um outro eixo de dados se deu a partir de relatos informais, colhidos
a partir de minha própria convivência com colegas que são analisandos, além de memórias de
quando cursei psicologia de 2009 a 2015. Tais contatos foram acionados durante a pesquisa,
permitindo que eu recolhesse relatos mais ou menos espontâneos de opiniões e de como a operação
de valores ocorre na prática clínica do dia a dia desses profissionais, principalmente proto-
lacanianos, assim como certa convivência com eles permitiu registrar dilemas e questões que esses
profissionais enfrentam. As entrevistas possibilitaram obter uma descrição de como os psicanalistas
operam os valores (monetários e outros) na prática, e quais categorias e conceitos são acionados
para justificarem e dotarem de sentido suas operações monetárias. Busquei, por fim, descrever o
modelo de troca que se estabelece no dispositivo clínico, entre analista e analisante.
Esta pesquisa tem como tema as operações monetárias dos psicanalistas lacanianos e
localiza-se, pela natureza da discussão que se almeja, na tradição da antropologia econômica,
buscando trazer para esse ramo contribuições no que diz respeito ao modelo específico de troca que
ocorre no dispositivo clínico. Além do mais, esse modelo de troca deverá servir, posteriormente,
como contribuição para possíveis comparações com outros modelos, contribuindo também para uma
compreensão sobre o funcionamento do “mercado de terapia psicanalítica”, assim como de um mais
amplo “mercado de terapias” ou “mercado da cura do sofrimento”.
A relevância do tema se dá por não haver ainda nenhuma pesquisa feita no Brasil na área das
ciências sociais sobre o tipo de troca monetária dos psicanalistas com seus clientes. Se esta pesquisa
pode trazer contribuições para discussões já feitas na antropologia econômica, pode, por outro lado,
levar indiretamente aos próprios psicanalistas lacanianos algumas contribuições sobre suas próprias
práticas. Trazer à luz uma teoria psicanalítica que formula e trabalha com concepções específicas
de dinheiro, pagamento, valor, troca, também seria fonte de possível diálogo da antropologia com
outra área de conhecimento, por mais que, vale sublinhar, nesta pesquisa a psicanálise não será
tratada enquanto objeto da antropologia.
A partir de minha própria experiência enquanto psicóloga, minha percepção enquanto
“nativa”, minhas redes de contato, amigos da área com quem convivi e ainda convivo, e as
entrevistas realizadas, busquei descrever as formas pelas quais os psicanalistas lacanianos do Rio
de Janeiro percebem e operam na prática os valores de uma análise.
10
A operação dos valores permite pensar uma outra questão, a saber, sobre a relação
estabelecida por esses profissionais com a teoria psicanalítica, que diz de um plano ideal, norteador
da prática. A partir das minhas fontes de dados, especificadas acima, nota-se que os psicanalistas
buscam conciliar o plano ideal com o concreto (da prática) no que diz respeito à operação do valor.
O plano ideal diz respeito a um modelo ideal de como se deve operar os valores na clínica a partir
dos ensinamentos4 de Lacan e Freud. Por outro lado, o plano concreto se refere à vida cotidiana do
ofício do psicanalista, sua vida material e suas expectativas individuais em relação ao lucro que
deseja obter com seu trabalho, que se inter-relacionam também de forma dinâmica com expectativas
e ações de seus pares (outros psicanalistas), assim como de seus clientes no que diz respeito ao preço
- elementos que compõem o “mercado” de terapia psicanalítica.
Por mais que os lacanianos propaguem por um discurso oficial fundamentado em teoria e em
“casos exemplares”5, o plano ideal – de como deve ser operacionalizado o dinheiro (de forma
singular) –, eles acabam reconhecendo impasses e especificidades impostas por um plano concreto
que baliza suas ações. O reconhecimento de ambas dimensões parece produzir uma ambiguidade no
discurso dos lacanianos, e também dilemas e contradições sobre suas operações monetárias.
A questão que tomo como central em minha pesquisa a partir de descrições de inspiração
etnográfica é: como que a concepção de pagamento em seu sentido amplo no plano ideal e teórico
é operacionalizado a partir dos diferentes momentos na carreira do profissional? Afinal, se o que se
cobra “é sempre o que o paciente pode pagar, a partir de seu gozo, desejo, sintoma”, como os
lacanianos afirmam, não deixa de haver uma diferença, reconhecida pelos mesmos, entre os que
“cobram menos” e aqueles que “cobram mais”, distinções geralmente relacionadas ao prestígio do
profissional e seu momento de trajetória na carreira. Qual a relação entre o status do profissional,
seu lugar na carreira e a forma como operacionaliza o dinheiro no dispositivo clínico? E como esses
elementos se relacionam também com a tentativa de conciliarem, tanto em suas justificativas, assim
como na prática clínica, o plano ideal e o plano concreto?
Minha hipótese inicial era de que quem consegue seguir a teoria e chegar mais próximo de
concretizar na prática o plano ideal são os proto-lacanianos – ou seja, aqueles que são recém-
formados e estão em busca de “fazer clientela”. Essa hipótese se confirmou ao longo da pesquisa, na
medida em que os proto-lacanianos relatam aceitar uma variedade maior de pacientes, o que os
possibilita que sejam relativamente mais fiéis à ética do caso a caso6 , ao contrário dos lacanianos
4
O termo ensinamento é muito comum entre aos lacanianos ao se referirem ao legado teórico de S. Freud e J. Lacan.
Considero esse termo curioso, pois ele parece não se referir a uma forma de transmissão de conhecimento e debate
que se dá por via de tradições de pensamento constituída por uma constelação de autores, mas por uma relação direta
com determinados mestres, que seriam os detentores de determinado conhecimento a ser transmitido.
5
Os casos exemplares dizem respeito aos casos conhecidos de psicanalistas famosos, citados pelos psicanalistas com fins
de ilustrar sua prática.
6
Ética do caso a caso é uma forma de operar valores a partir de um ideal de singularidade do valor, este atrelado ao
11
que já detêm um acúmulo de prestígio – os psicanalistas estabelecidos – e, consequentemente,
possuem maior poder de decisão sobre o mínimo pelo qual se prestarão a oferecer seu serviço. Dessa
forma, parece haver uma lógica invertida, onde discurso e prática se opõem pelo estágio na carreira:
se os neófitos parecem seguir de forma mais consistente a ética do caso a caso, são ao mesmo tempo
os que mais duvidam dessa ética; se os psicanalistas mais experientes e reconhecidos parecem
negociar o preço da sessão por critérios diferentes da ética do caso a caso, são os que mais endossam
e defendem tal ética em sua dimensão ideal e normativa.
Outra hipótese levantada no início da pesquisa era a de que a teoria lacaniana que aborda o
dinheiro esteja mais a serviço de um regime de justificativa, quando não se implementa na prática o
plano ideal, do que uma proposta teórica em si. Tal hipótese surgiu na medida em que, à primeira
vista, não parece haver uma teoria lacaniana coesa sobre o dinheiro e valor que advenha de um
interesse teórico em si por parte dos lacanianos. Ao contrário, as elaborações teóricas do tema
parecem se dar em função de justificar e defender uma determinada prática que já ocorre – a de se
“cobrar caro”. Essa hipótese não se confirmou, pois ela implica em uma simplificação de relações
complexas, que emergiram ao longo da pesquisa. Afinal, os psicanalistas não apenas justificam sua
prática a partir da teoria, mas a teoria, por mais que muitas vezes distante da prática, essa é
interiorizada pelos psicanalistas, que não possuem uma posição crítica em relação a ela, mas
acreditam inabalavelmente que esta lhes é fundamental para se estabelecer a direção do tratamento7.
Dessa forma, os psicanalistas realmente acreditam que sua prática está baseada na teoria, e não
parecem apenas justificar um interesse econômico via uma teoria.
Outro apontamento importante é que, a partir da análise das entrevistas e de relatos colhidos,
algumas instituições públicas, como as que fazem parte da rede de saúde do SUS, e principalmente
as instituições universitárias, aparecem como parte importante, senão protagonistas, do mercado
psicanalítico, cumprindo papel de agenciar atores da rede de indicações, legitimando ou não
determinados atores que se destacam em uma rede complexa onde hierarquias se formam na
manutenção do mercado psicanalítico.
Um outro ponto que também chama a atenção é a relação que os lacanianos estabelecem
entre psicanálise e arte. Tal relação se dá tanto no que se refere à identidade profissional que os
psicanalistas constroem de si ao se compararem com artistas, assim como ao tipo similar de
produção de valor da obra de arte e do trabalho do psicanalista. A negação entre os psicanalistas de
que se encontram no “mercado” estabelecendo relações mercantis como outros profissionais, parece
desejo, sintoma e gozo singulares de um sujeito singular. Essas categorias serão melhor explicadas no capítulo
seguinte.
7
Esse termo é oriundo de um texto de Lacan, intitulado “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (1998) e
é utilizado pelos psicanalistas quando se referem às suas estratégias e objetivos de manejo de um caso.
12
apontar ainda para uma outra hipótese, a de que haja uma reivindicação por uma “condição de
exceção”8 que usufruiriam os psicanalistas lacanianos. Tal “reivindicação de exceção” parece se dar
como uma estratégia de distinção do psicanalista de outros profissionais – inclusive psicoterapeutas9
- extraindo ganhos simbólicos proveniente do mundo da arte, já estabelecido, reconhecido e
consagrado por alguns tipos de “elites” - como as elites intelectuais, artísticas – que compartilham
de certos gostos mais sofisticados.
No capítulo um, a partir de uma descrição do funcionamento do Serviço de Psicologia
Aplicada (SPA)10 e de um relato de minha trajetória, buscarei trazer o esboço de uma ética e
perspectiva específicas difundidas na universidade e em meios lacanianos de uma peculiar
concepção de pagamento, dinheiro e valor, assim como categorias lacanianas advindas de uma
literatura acadêmica que norteiam a prática e justificativa da operação de atribuir valor a uma sessão
de análise.
No capítulo dois, apresentarei os principais alicerces teóricos da psicanálise e as críticas à
psicanálise oriundas das ciências humanas. Será abordada a teoria psicanalítica a partir de uma
análise de sua chegada ao Brasil no século XX a partir de uma breve resenha histórica. Também
será apresentada a teoria freudiana e lacaniana resumidamente, e seus principais alicerces teóricos.
No capítulo três busco definir o grupo estudado. A partir do conceito utilizado por Evans-
Pritchard “real-relacional”, buscarei descrever como o grupo se constitui a partir de uma identidade
produzida em um campo de lutas por distinção. Também nesse capítulo o meio psicanalítico será
descrito a partir de sua cultura e sistema de pensamento. Além disso, descreverei os psicanalistas a
partir de suas performances, buscando descrever a dramaturgia específica desse grupo profissional,
inseridos em uma cultura psicanalítica.
No capítulo quatro abordarei a questão das indicações e como os valores dos profissionais se
associam a formas hierárquicas a partir das quais valor e status se relacionam a partir de
reconhecimento – seja por mérito ou relações personalistas.
No capítulo cinco, serão descritos os sentidos atribuídos ao dinheiro dentro dos dispositivos
8
Esse termo é utilizado por Bourdieu, ao analisar o campo da arte, referindo-se aos artistas como aqueles que fazem
questão de “conferir à obra de arte - e ao conhecimento que ela reclama - essa condição de exceção” (Bourdieu,
1996, p. 12).
9
Os lacanianos utilizam a palavra “psicoterapia” para se referirem aos psicólogos que não compartilham da perspectiva
psicanalítica. Para os lacanianos, a “psicoterapia” não é “análise”, pois na primeira, se buscaria apenas “curar um
sintoma de forma paliativa”, ao passo que na psicanálise, “um trabalho a partir do inconsciente” seria feito. No meu
entendimento, parece que há uma contraposição entre “raso” e “profundo” nessa distinção feita pelos lacanianos.
10
O SPA é um serviço de atendimento individualizado, inspirado no modelo clássico de consultório particular. Esse
serviço disponibiliza atendimentos gratuitos, ou “quase gratuitos” aos habitantes de Niterói e arredores, e é vinculado
ao curso de graduação de psicologia da UFF. Os profissionais responsáveis por oferecer atendimentos nesse espaço
são estagiários do curso que, nos seus últimos dois anos de graduação, passam pela experiência de atenderem
pacientes a partir de uma perspectiva clínica oferecida no curso, e sob orientação de um professor especialista dessa
mesma área.
13
clínicos dos psicanalistas e forma como operam os valores monetários e simbólicos na prática. O
trabalho do psicanalista será entendido como um bem-simbólico, na medida em que o trabalho
psicanalítico agrega valor a partir de um “mundo à parte” dos bens de consumo de um mercado
pautado por negociações entre oferta e demanda.
14
1. Relatos da ética do caso a caso
De 2009 a 2015 cursei psicologia em uma universidade federal. Durante esse período convivi
com psicanalistas, entre eles, profissionais da rede de saúde mental, professores e estudantes de
psicologia interessados na área da psicanálise lacaniana – essa fortemente presente na minha
universidade, assim como em outras universidades. Vivenciei o processo de ser analisada11 por uma
psicanalista lacaniana durante cinco anos, (pagando entre R$100,00 e R$120,00 a sessão). Também
estagiei12 orientada pela perspectiva psicanalítica no Hospital Universitário Antônio Pedro 13, pelo
período de um ano, e no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) por um ano e meio. Durante esse
tempo, questões acerca do dinheiro cobrado em uma sessão de psicanálise surgiram, principalmente
ao notar que esse tema é rodeado de ambiguidade, mistério, polêmicas, contradições e discordâncias
entre os próprios psicanalistas. A minha impressão era, e ainda é, de que esse tema é, senão um tabu,
um tema controverso entre os lacanianos.
Como estagiária do SPA, sob orientação lacaniana, pude presenciar discussões que diziam
respeito à definição do preço que se cobraria de cada paciente. Tais resoluções de preço, elaboradas
pelos estudantes junto com seus professores supervisores, eram discutidas a partir de critérios
específicos que partiam de um entendimento psicanalítico, e, mais especificamente, lacaniano, do
que é o dinheiro e qual sua relação com o tratamento de um paciente.
Algo, porém, que me chamava sempre a atenção, é que o SPA é um setor de uma instituição
pública, onde, teoricamente, o serviço oferecido pelos estagiários deveria ser, por questões legais,
gratuito. No entanto, de acordo com os lacanianos, “um paciente sempre tem que pagar” e “o
paciente tem que abrir mão de algo” para que “haja análise”. Sendo assim, fazia parte do treinamento
dos alunos dos estágios em clínica psicanalítica lacaniana a cobrança em dinheiro pelo tratamento
11
Esse termo designa entre os lacanianos o processo daquele que passa pelo percurso de “fazer análise”. Ele é mais
utilizado entre psicanalistas do que entre psicólogos. A diferença entre essas duas categorias distintas de profissionais
será mais explicada ao longo do texto.
12
No curso de graduação em psicologia da UFF é obrigatório, para se receber o título de psicólogo, que os alunos estagiem
nos dois últimos anos do curso, dentro de estágios oferecidos dentro do próprio curso, e chamados “estágios
obrigatórios”. Os alunos têm então várias opções de estágio – hospital geral, conselho tutelar, rede de saúde mental
[que pode ser tanto num Centro de Atenção Psicossocial (CAPs) ou no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba], em escolas,
na área de psicologia organizacional, do trabalho, no SPA – e cada estágio tem duração mínima um ano, podendo
continuar ou trocar no segundo. O SPA consiste em um estágio em formato de “clínica privada”, onde se oferece um
atendimento individual e gratuito à comunidade. Os estagiários contam com uma equipe de estagiários e um professor
supervisor, assim como nas outras equipes, supervisionadas por outros professores, e levam suas questões e casos
clínicos para esse espaço, em que se discute em grupo o andamento dos tratamentos.
13
O Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP) é uma instituição vinculada à Universidade Federal Fluminense que
sedia a faculdade de medicina, assim como serve como campo de estágio para diversos outros cursos da universidade
que são voltados à área da saúde.
15
terapêutico, mesmo em uma instituição pública.14 Era recorrente, inclusive, durante as supervisões,
ouvir casos de pacientes que, ao saberem que iriam ter que pagar, questionavam o caráter público
da instituição, e diziam que não esperavam ter que pagar pelas consultas. No entanto, os
psicanalistas reivindicam uma outra lógica que não a do direito, no caso o direito a um tratamento
público e gratuito, em contraposição à lógica do caso a caso, que seria a lógica do desejo. “O desejo,
diferentemente do direito, é diferente para cada sujeito, e é a partir dessa singularidade que a análise
pode operar”.
O SPA funcionava da seguinte forma: a partir de uma ordem aleatória, recebia-se um novo
paciente que buscava um atendimento terapêutico e era realizada uma entrevista preliminar15. O
caso, logo em seguida, era levado à supervisão, e compartilhado com a equipe – composta por alguns
alunos (dependendo da equipe variava de um até doze alunos) e a professora supervisora. Nesta
etapa discutia-se, entre outras coisas, quanto se deveria cobrar, em dinheiro, daquele paciente. Vale
ressaltar que o dinheiro recebido era destinado ao SPA, não ficando nas mãos do estagiário, e usado
na compra de objetos ou materiais necessários para alguns atendimentos com crianças, como
brinquedos, canetas coloridas, etc.
A construção de uma determinada quantia de dinheiro a ser cobrada era discutida em equipe
levando-se em conta a demanda 16de tratamento do paciente, o que ele dizia e a forma como dizia –
que na linguagem dos lacanianos se traduz por, respectivamente, dito e dizer. Igualmente, outras
categorias analíticas formais teóricas e de uso prático – como “sintoma”, “desejo”, “gozo” - eram
recorrentes para tal definição de cobrança. Mas junto a esses critérios, eram também levados em
conta o poder aquisitivo concreto do paciente, sua possibilidade de pagar um transporte para
comparecer ao atendimento, por exemplo, respeitando-se os limites da condição de vida econômica
de cada paciente, mas sendo sempre avaliado, em equipe, qual a relação subjetiva, ou inconsciente,
que o paciente mantinha com sua condição econômica, na medida em que “o dinheiro significa e/ou
tem valor distinto para cada sujeito singular, de acordo com seu desejo e gozo”, segundo a
supervisora.
Demanda é uma noção psicanalítica, que se diferencia da palavra utilizada no português
corrente ou no senso comum, apresentando um sentido bem específico. Para os lacanianos,
“demanda é sempre demanda de amor”. E aquilo que o sujeito que se dirige a um outro explicita
14
Outros grupos de estágio de perspectivas clínicas diferentes, como a fenomenologia e a clínica transdisciplinar também
cobravam de seus pacientes nas consultas, sendo apenas um grupo de estagiários que oferecia atendimento sempre
gratuito. No entanto, a forma de lidar com a questão do pagamento é diferente em cada abordagem.
15
Esse tipo de entrevista encontra-se nas obras de S. Freud, onde ele elabora algumas considerações a serem feitas a
partir das primeiras entrevistas. Para saber mais sobre, ver “Sobre o início do tratamento”, obra de Freud de 1913.
16
A demanda do paciente diz respeito ao que ele traz de queixa inicial para o tratamento. Os psicanalistas, no entanto,
não se norteiam pela demanda do paciente, mas pela sua posição fantasmática, que se refere à sua posição em relação
ao seu desejo (inconsciente).
16
como sua demanda, não necessariamente coincide com o que deseja. Ou seja, a demanda está
articulada a uma ordem oculta inconsciente e a uma ordem de afeto, que não cabe, necessariamente,
ao analista responder. Dessa forma, a demanda dos lacanianos, assim como o desejo, se refere a
uma ação motivada por razões individuais, o que se diferencia também de uma concepção
antropológica, na medida em que, nessa tradição, seria mais comum interpretar que a demanda se
expressa individualmente, mas sempre ocorre em um contexto social que lhe confere sentido. Sendo
assim, em sua concepção específica, os lacanianos tentam compreender aquilo que está para além
da demanda, como o sintoma, o desejo, e para tanto, faz parte da ética do psicanalista que “não se
responda à demanda do paciente”. A demanda poderia se tratar de um sintoma específico que o
próprio paciente identifica, por exemplo, uma queixa em relação ao comportamento do analista,
etc. Cabe ao analista interpretar o que está por trás da demanda do paciente e colocá-lo para
trabalhar em sua análise. É comum ouvir os psicanalistas dizerem que “o paciente procura um
analista com uma queixa, querendo que lhe ajude e resolva seus problemas, sendo que, no final, o
paciente é quem trabalha”.
Falava-se bastante também, no SPA, sobre a função que o dinheiro teria no tratamento de
determinado paciente e os critérios discutidos se norteavam pelo imperativo lacaniano do “caso
singular de cada paciente”, onde não apenas uma quantidade específica de dinheiro era considerada
pagamento, adquirindo, essa palavra, sentido amplo naquele espaço. A própria passagem de ônibus,
por exemplo, para os pacientes mais desafortunados, poderia ser entendida como um pagamento, já
que o sacrifício de pagar pela locomoção, ou o próprio ato de se locomover, poderia ser entendido
como “uma forma de pagar”, assim como dar um objeto como “presente”. Muitas vezes, por
exemplo, aceitavam-se desenhos e outros objetos de crianças como pagamento, dependendo do caso
específico.
Ou seja, a sentença “abrir mão de algo”, muitas vezes salientado por psicanalistas e colegas
meus no que se refere a uma necessidade básica para que a “análise ocorra”, define muito bem o
sentido utilizado pelos lacanianos quando se referem a pagar. O pagamento não necessariamente é
apenas definido em forma de dinheiro, mas compreendido de uma forma peculiar, ou seja, mais
ampla, considerando-se também aspectos inconscientes implicados no ato de pagar.
O pagamento no universo lacaniano é uma perda e a minha impressão particular é de que,
para os lacanianos do SPA, o pagamento pode ser, além de dinheiro, também entendido como um
esforço, uma superação de dificuldades “objetivas” por uma determinação (e/ou obstinação) de
ordem “subjetiva”, colocando em termos simplistas. Por exemplo, comparecer ao atendimento
quando tal ação se mostrava difícil para o paciente (ele estava com pouco dinheiro, chovia, morava
longe, entre outras dificuldades) era entendido como um ato de desejo e era interpretado como uma
implicação do paciente com seu tratamento. E isso se relacionava diretamente com a lógica e com
17
a forma peculiar dos lacanianos de compreender o que é pagamento17, pois ações poderiam ser
consideradas formas de pagar. Eu mesma, por exemplo, já atendi uma paciente cujo transporte à
consulta, que ficava em torno de trinta reais, era considerado o pagamento da sessão.
Um outro ponto que me chamava bastante a atenção era o fato de o SPA receber, em grande
parte, pacientes de uma classe social inferior àquela que busca serviços em consultórios particulares,
que teriam supostamente melhores condições econômicas de pagar uma sessão de análise com um
profissional mais “qualificado”, de acordo com o que comumente se imagina. Dessa forma, os
estagiários lacanianos do SPA cobram preços relativamente baixos em relação aos consultórios
particulares, condizentes com a realidade social/econômica das pessoas que procuram aquele
serviço. Para se ter uma ideia, chegava-se a cobrar, por exemplo, 2, 5, 10, 15 reais por sessão, ou
R$20, quando já era muito – o preço mais alto que já testemunhei foi R$50 (por mais que, segundo
uma amiga, parece existir um limite de R$30, ainda que não seja explícita ou consensual essa
informação). A única invariável é que sempre havia que se pagar algo, seja da maneira qual fosse.
No entanto, logo que o estagiário se graduava e passava a atender em seu próprio consultório
particular, os critérios do valor do tratamento pareciam se modificar, e essa mudança se apresentava
a mim como uma lógica curiosa, na medida em que na universidade parecia haver uma oferta de
tratamento com classes populares para que o estagiário adquirisse experiência, e que, após esse
treino na instituição pública, ele se torna apto a atender classes “mais altas” em consultórios
particulares.
É, inclusive, um momento complicado para o estagiário – e talvez principalmente para os
pacientes – quando os alunos responsáveis por seus tratamentos estão perto da conclusão do estágio
e vão se graduar. Muitos querem levar seus pacientes para seus novos consultórios, onde iniciarão
uma carreira profissional agora não mais como estagiário, mas como profissional diplomado. No
entanto, as novas condições materiais objetivas do seu trabalho (preço de sublocação de um
consultório, aluguel de uma sala comercial, transporte, alimentação), assim como as condições
materiais objetivas do tipo de vida, impostas pela nova condição do status do agora psicólogo
formado (ser “independente” financeiramente dos pais e/ou parentes, “se sustentar sozinho”, ter uma
moradia própria), convocam novos critérios para se pensar o preço da sessão de análise, que na
maior parte das vezes aumenta quando o paciente passa a ser atendido no consultório particular.
17
São vários os casos que eu me lembro de ter presenciado relatos nas supervisões onde os sacrifícios dos pacientes de
comparecer à consulta eram entendidos a partir do conceito de “desejo” e “transferência”. Por exemplo, caso
chovesse no dia de uma sessão marcada, mas o paciente aparecesse como combinado mesmo assim, isso era
considerado positivo do ponto de vista da concepção clínica da supervisora, já que havia um sacrifício (superar um
obstáculo objetivo, chuva, por uma determinação subjetiva, o “desejo” de comparecer à análise). Tudo isso era levado
em conta ao se estipular um preço. Nesse caso em específico, se notaria que o paciente “está vindo”, então seria
estipulado um preço de acordo com essa atitude do paciente, dentro de uma totalidade do caso clínico, onde outros
fatores também entrariam em questão.
18
Discutia-se muito o quanto se deveria cobrar de um paciente que acompanharia a trajetória
do estagiário até seu consultório. Muitas vezes, passava-se a cobrar o dobro, ou uma quantia mais
significativa (por exemplo, se o paciente pagava dez reais, o agora psicólogo formado oferecia a
oportunidade de acompanhá-lo, pagando quinze, vinte, trinta ou até cinquenta reais no consultório),
e o critério para se estabelecer o preço deixava de ser apenas o da ordem do singular, ou seja, o que
se refere somente ao paciente e seu sintoma, desejo, demanda, gozo, implicação no tratamento, sua
relação singular com o dinheiro, mas também se impunham no jogo da negociação de um
determinado preço a situação objetiva de vida do agora profissional diplomado e, também,
referências de precificação oriundas do “mercado de terapias” (o quanto se cobra normalmente por
uma sessão de psicanálise em determinado local, qual o nível de experiência de um profissional que
cobra y, o que o permite cobrar mais que x por sessão).18
As consequências disso eram que, muitas vezes, alguns pacientes se viam impossibilitados
de continuar seu tratamento no consultório particular, situação que repercutia no funcionamento da
instituição, e na forma como os pacientes eram tratados. Havia um constante encaminhamento de
casos, que fazia parte da rotina das supervisões. Um estagiário, em momento de conclusão do
estágio, levava para ser discutido na supervisão um caso que não poderia levar consigo para seu
consultório particular – muitos eram os motivos, mas era frequente ser por causa do custo envolvido
– que acabava, então, sendo encaminhado a um estagiário mais “novato” - e que passaria, a partir
de então, a ser seu novo “psicólogo estagiário”.
Descrevo acima o funcionamento do SPA e a aprendizagem dos proto-lacanianos para
operarem com os valores da sessão durante o estágio, com fins de iniciar a discussão que norteará
esta pesquisa. Para os lacanianos, teoricamente, “não se cobra a partir de leis objetivas determinadas
do mercado”, mas sim pelo caráter simbólico e singular do dinheiro num determinado caso, a
depender do inconsciente do paciente, por mais que na prática observa-se que não somente esses
critérios determinam a negociação do preço. Por exemplo, uma professora supervisora ressaltava
várias vezes a importância de se “marcar simbolicamente a mudança de lugar para o paciente” do
SPA para o consultório através da mudança da quantia cobrada (entendendo-se “lugar” como algo
de ordem também subjetiva). Nesse caso, os valores da análise parecem se associar tanto a um ritual
de passagem do aluno quanto do paciente. No caso do aluno, ele estaria ocupando um lugar de
transição no ritual, ou seja, um lugar liminar, onde não é mais estagiário, mas também ainda não é
profissional estabelecido. O valor a ser ajustado diria de seu novo status, e seria modificado de forma
simbólica. Em relação ao paciente, também haveria uma marcação simbólica dessa mudança de
18
Em relação ao meu próprio percurso, ao sair do SPA, continuei atendendo dois pacientes em consultório particular,
cobrando de cada R$20,00 a sessão, sendo que antes eles pagavam um pouco menos, algo em torno de R$10,00.
Propus que me pagassem uma quantia a mais, pelo motivo de que eu teria que pagar a sublocação da sala.
19
status, como disse a supervisora. No entanto, os detalhes do novo preço a ser cobrado eram
calculados pelos estudantes a partir de uma série de outros fatores já mencionados, como o interesse
do profissional em obter determinado retorno financeiro por seu trabalho.
Essas contradições, por mais que percebidas e discutidas pelos estudantes, eram geralmente
simplificadas pelos professores por justificativas padronizadas. Minha trajetória particular de
vivência no curso de psicologia e contato com a área da psicanálise lacaniana permite dizer que
existe um estoque de “exemplos exemplares” que os psicanalistas e os alunos (que os acabam
reproduzindo) utilizam para criar uma ideia de que o preço que se cobra em uma análise é acessível
a todos na medida em que, desde que haja desejo, é possível ter acesso a um tratamento analítico,
como se o acesso a esse serviço dependesse inteiramente do inconsciente do analisante. Por
exemplo, era muito comum, ao ouvir alguém perguntar se é caro fazer análise, o
profissional/professor/estudante da área responder que “o que é mais caro é a neurose”; “afinal,
quanto custa uma neurose?”.
A noção de singularidade também é acionada quase sempre pelos lacanianos para
justificarem que “não há um padrão do preço de uma análise”, “isso é feito caso a caso, de forma
singular”. No entanto, o máximo que já ouvi falar de preço por sessão de análise foi de R$800,00 a
sessão, na Barra da Tijuca, e o mínimo, R$50,00, tirando os casos de exceção19 e os casos de
“clínica social”20. Ou seja, há uma variação, no entanto não tende ao infinito. Os “exemplos
exemplares”, expressos por jargões típicos, podem ser entendidos enquanto falas rituais – na medida
em que seu caráter repetitivo serve para ressaltar, lembrar, justificar, disseminar e fortalecer um
valor compartilhado entre o grupo profissional a saber, a especificidade dos critérios de cobrança de
uma sessão de psicanálise, que estaria “longe de uma lógica objetiva regida por leis do mercado”.
Mas esses argumentos eram sempre contrastados por concepções implícitas, denegadas21, do
que determina o preço, facilmente observados empiricamente, pois já experienciei e ouvi relatos de
amigos e colegas que se depararam com o fato de oferecerem uma determinada quantia por uma
análise e o psicanalista negar, alegando implícita ou explicitamente haver uma quantia mínima a ser
cobrada por ele, e de haver uma diferença de preço cobrado por psicanalistas a depender do bairro
onde atendem e do seu prestígio profissional. E o mais interessante é notar que os lacanianos não
necessariamente negam esses outros fatores, mas os reconhecem assim como afirmam, ao mesmo
19
Os casos de exceção se referem a um momento em que o analista aceita um valor bastante abaixo do que vem cobrando
de seu analisando em função de uma perda de emprego, ou de algum tipo de mudança brusca que ocorre em sua vida
financeira, com fins de que não haja interrupção da análise. Nos casos de exceção de que já tomei conhecimento, os
preços chegavam a R$15,00 a sessão, ou até mesmo a zero.
20
21
Esse termo é aqui utilizado no sentido que Bourdieu (2001) coloca, designando “um recalcamento constante e coletivo
do interesse propriamente 'econômico'” (p. 19) Ironicamente, os conceitos “denegação” e “recalque” advém da teoria
psicanalítica
20
tempo, que o dinheiro é cobrado de forma singular, como já explicado. Parece-me que, para além
dos critérios advindos da teoria lacaniana que dita um preço singular, os psicanalistas lacanianos
reconhecem os outros critérios envolvidos na negociação do preço (como o prestígio, o preço da
sala, o interesse do profissional na sua renda, etc.). No entanto, ora defendem um critério, ora outro,
a depender do contexto e do interlocutor.
Sendo assim, os critérios de formulação do preço da sessão de psicanálise são confusos e
obscuros para aqueles que buscam saber o preço de uma análise e buscam tratamento, e confundidos
e/ou denegados pelos próprios lacanianos. Por exemplo, uma supervisora ao mesmo tempo que dizia
que devia se cobrar um preço de “acordo com o sintoma do paciente, sua posição subjetiva, sua
demanda, seu discurso, sua implicação no tratamento, seu gozo, seu sintoma, etc...”, em outros
momentos dizia que “não se devia cobrar mais do que um paciente podia pagar, mas também não
menos do que ele dispunha como quantidade mínima”, e ora que não se podia “cobrar muito alto
por uma sessão no início da carreira”, pois o jovem analista ainda não “seria de fato um psicanalista”
ou “não teria muita experiência”. Ou seja, para se formular um preço se recorre, na prática, a
diversos critérios de ordem distinta, por mais que o que mais se repita, exaustivamente, de acordo
com a teoria lacaniana, é que há apenas um critério: o da singularidade do caso de cada sujeito
singular.
Cabe ressaltar que a teoria lacaniana permite aos psicanalistas manipular de forma específica
o dinheiro dentro do dispositivo clínico - onde tal manipulação faz parte do seu próprio repertório
de ações curativas, postos em prática a partir de uma performance22. A forma pela qual o paciente se
relaciona, gasta, guarda o seu dinheiro são fontes de interpretação psicanalítica para seu analista.
Vale o mesmo para outras ações: consecutivas faltas do analisante, atrasos no horário da sessão
marcada, esquecimentos, ligações, mensagens por celular, etc. Ou seja, a relação que o analisante
estabelece com o dinheiro faz parte do material subjetivo (inconsciente) do paciente passível de ser
analisado e interpretado pelo analista, assim como qualquer outra ação sua. Sendo assim, a própria
negociação do preço está implicada em uma rede de significados, cuja manipulação, interpretação e
decisão final cabem ao analista.
A forma pela qual o psicanalista negocia o preço, no entanto, não entra em questão durante a
análise, mas faz parte de sua “interpretação”23, ou seja, busca-se um efeito terapêutico com um
determinado uso do dinheiro dentro do dispositivo de análise. “Pode ser tanto o aumento, ou a
22
Performance é utilizado aqui no sentido proposto por I. Goffman, onde a “representação de um papel social” numa
“situação face a face” se dá, remetendo à dramaturgia. No entanto, no que diz respeito ao dispositivo analítico, prefiro
acrescentar que tal concepção de performance deve também ser entendida enquanto uma ação que produz eficácia
simbólica, como propõe C. Lévi-Strauss.
23
“Interpretação”, para os lacanianos, denota a ação do analista em relação ao “analisante” que tenha como finalidade
provocar e/ou modificar o sentido de suas ações e/ou discurso.
21
diminuição”, na palavra dos lacanianos, ou seja, um “manejo clínico”24 que tenha o dinheiro como
recurso para se provocar “um reposicionamento subjetivo do analisante” a ser posto em prática pelo
analista. Por exemplo, pode-se aumentar o preço da análise quando o analisante não está
“trabalhando suas questões”25 da forma como o psicanalista propõe. É interessante, no entanto, que,
se por um lado, as histórias de aumento do preço da sessão são abundantes, nunca ouvi falar de um
psicanalista que diminuiu o valor da sessão como um manejo clínico. Um supervisor dizia que “se
deve cobrar de um paciente o necessário para que ele não pague com a própria carne”, ou seja, deve-
se cobrar um preço que não seja menos do que uma pessoa tenha possibilidade real de pagar, caso
contrário ela buscará pagar com sua melhora ou piora psíquica, sendo movida pela culpa, pois o
paciente, sentindo que não está pagando o suficiente, poderia pagar de outra forma, agradando o
analista com uma falsa melhora de seus sintomas.
Mais um exemplo vem de um relato de uma supervisora, segundo a qual tempos atrás chegara
um paciente para uma analista, conhecida sua, dizendo que a tinha escolhido por ser “a melhor de
todas”. “Essa analista, disse ela, obviamente cobrou caríssimo... se o paciente a coloca nesse lugar
de 'Outro26 todo-poderoso', não há como cobrar pouco”. Ela explicou em seguida que, nesse caso,
se cobrasse pouco a analista estaria destituindo-se do lugar que a paciente a colocara, o que poderia
ser prejudicial para a análise. Eu notava também que, curiosamente, os casos em que se devia
aumentar o preço da sessão ou cobrar um preço alto pelo tratamento eram maiores que os casos em
que se deveria diminuir o preço, ou cobrar pouco.
Um ponto que considero importante nessa discussão é o fato de ser uma prática recorrente
entre os lacanianos a recusa em dar recibos aos seus pacientes. Alguns psicanalistas chegam a
justificar essa prática pelo fato de que o paciente não estaria pagando o valor total que negociou
com seu analista. No entanto, ao emitir um recibo, se isso configura um ressarcimento parcial do
dinheiro investido em sua análise, por outro lado acarreta uma perda nos ganhos totais que o analista
teria com seu serviço. Essa prática comum configura um cenário onde os psicanalistas acabam não
declarando impostos sobre suas rendas, o que acaba sendo, como já ouvi de um colega, “uma lógica
de serviço igual à de 'boca de fumo'”. O “mercado” de terapia psicanalítica parece conter traços de
um mercado informal, tanto por não ser regulamentado, assim como pela recusa, por parte de muitos
psicanalistas se negarem a emitir recibos.
Alguns pontos que venho descrevendo até então, em relação à ética do caso a caso, está bem
24
“Manejo” é expressão nativa que designa a capacidade de um psicanalista em tornar possível um “trabalho de análise”,
pela via da “transferência”. Ou seja, os sentimentos do “analisante” referentes ao analista devem ser manejados
para que sirvam a favor da “análise”.
25
“Trabalhar questões” é utilizado pelos nativos quando se referem à interiorização, ou seja, à subjetivação de questões
antes objetivas pelos seus pacientes, e em sua elaboração, ou seja, construir sentidos de sua própria experiência a
partir de pensamento abstrato.
26
“Outro” é conceito lacaniano que designa uma alteridade que antecede e constitui o indivíduo.
22
exposto no documentário “Rendez-Vous Chez Lacan”27, onde ex-analisantes de Lacan relatam os
preços da consulta com o consagrado psicanalista. Tais preços chegavam a ser algumas vezes
exorbitantes, outras nem tanto. A explicação de um dos entrevistados era que “o interesse era a
psicanálise. Ele [Lacan] queria despertar em cada pessoa um interesse além das finanças”. Relata-
se também um único caso de Lacan de um paciente que não pagava e que serve até hoje como um
dos maiores exemplos de que “não há regras para se cobrar”. E, dessa forma, repete-se ritualmente,
que “Lacan o atendeu por vários anos, e sem receber nada por isso”.
Cabe, por fim, ressaltar que os psicanalistas relacionam o trabalho analítico com a produção
de uma obra de arte, o que os colocaria mais próximos do mundo das artes do que do universo
acadêmico. Eles utilizam a forma de atribuição de valor às obras de arte para ilustrar e justificar a
forma como eles próprios lidam com a questão do pagamento na análise. Assim como no mundo da
arte, o mundo da psicanálise considera cada análise em particular como singularidade, o que tornaria
impossível atribuir um valor fixo às terapias, pois assim como numa obra de arte, não há como
quantificar precisamente tal valor.
27
Filme dirigido por Gérard Miler, disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=to0wpw4K1QQ
23
2. A teoria psicanalítica de Freud a Lacan
A psicanálise nasceu com o século XX, por assim dizer. A publicação com que se
apresentou ao mundo como algo novo, minha Interpretação dos sonhos, tem a data de
1900. Mas, naturalmente, não brotou das rochas nem caiu do céu. Liga-se a coisas
anteriores, que dá prosseguimento; resulta de estímulos que veio a elaborar.
Essas palavras são de Sigmund Freud (2011 [1924], p. 222) conhecido comumente como o
“pai da psicanálise”. Entre os meios psicanalíticos, normalmente se interpreta o início da história da
psicanálise a partir da obra citada pelo seu próprio autor, a “Interpretação dos Sonhos”. Esse texto é
conhecido por conter as primeiras elaborações do conceito de inconsciente, principal categoria
norteadora da prática psicanalítica e que confere distinção, segundo os psicanalistas, em relação a
outras terapias.
A psicanálise é uma teoria que reivindica o acesso exclusivo a um conhecimento sobre a
condição humana a partir de uma sistematização de leis ocultas e universais que determinariam o
funcionamento psíquico do ser humano, assim como a relação que ele estabelece com seus
semelhantes e consigo mesmo. Como aponta Maria Carolina Antonio (2015, p. 37), “a psicanálise
busca dar conta de sofrimentos específicos à individualidade de cada sujeito, oriundos de uma
estrutura não aparente que decorre da concepção de pessoa como ente dividido em duas instâncias
opostas e conflitantes: consciente e inconsciente”.28 A ideia central da psicanálise se baseia na ideia
de que o psíquico não coincide com o consciente (Ibid), e a partir do conceito de inconsciente Freud
propôs uma teoria daquilo que está “por trás” das ações e pensamentos humanos, tornando o
psicanalista aquele que domina o “mundo do invisível”, cujo acesso seria intuitivo e sensitivo (escuta
flutuante)29, por mais que demande, para tanto, uma sistematização racional e complexa das leis que
regem esse mundo que não se apresenta aos olhos daqueles que não dispõem do método psicanalítico.
A obra de Freud é uma imensa construção teórica sobre a origem dos sofrimentos,
adoecimento psíquico, que se expressa pelos “sintomas”, assim como um método de cura (talking
cure). Mas não alheio ao que se vinha produzindo no campo da antropologia em sua época, e
interessado em expandir sua teoria do indivíduo, produzida a partir de observações clínicas, para uma
teoria geral da sociedade e cultura, Freud chega a tomar como referências obras de autores fundadores
28
Essas duas instâncias opostas e conflitantes são bem exemplificadas por uma cena de que me lembro de minha própria
análise, há alguns anos atrás. Ao perguntar para a psicanalista sobre algo que ela havia dito durante a sessão, mas que
fugia à minha compreensão, ela responde: “não há problema não entender...fique com isso que o seu inconsciente
trabalhará nessa questão durante a semana”.
29
Escuta flutuante é um termo criado por Freud e utilizado pelos psicanalistas que descreve um modo específico de se
escutar um paciente no setting analítico. Essa escuta consiste em não ser nem muito atenta do ponto de vista
consciente nem desatenta. Consiste em seguir o fluxo da fala do analisando deixando-se levar por uma atenção que
inclua o inconsciente do analista enquanto ator ativo na escuta.
24
da antropologia clássica como James Frazer e Edward Tylor, e temas explorados por essa tradição de
pensamento entre o final do século XIX e XX, como totem, tabu e magia. Em “Totem e Tabu” (2012
[1912]) e “Mal-estar na civilização” (2010 [1930]), Freud busca explicar o complexo de Édipo – até
então elaborado em termos de um drama individual – em termos históricos, pretendendo explicar o
fundamento originário da religião, da ciência, da moral e da arte (Freud, 2012 [1912]), conjugando
“a gênese dos processos sociais e a da cultura com experiências íntimas, particulares e subjetivas ”
(Antonio, 2015, p. 37).
A partir dessas obras Freud estabelece um mito originário da civilização. O homem primitivo,
não se diferenciando dos demais, viveria um estado de indissociação com o meio externo. A ruptura
com o compromisso estreito com o seu prazer individual, cuja cena final de “Totem e Tabu” expressa
mitologicamente a partir da morte do pai da horda primeva pelos seus filhos, instaura para o homem
primitivo uma nova forma de se relacionar com os demais a partir de uma lei abstrata, em
contraposição à lei encarnada no chefe da horda. A partir desse momento mitológico, o homem
primitivo se vê privado de sua satisfação instintiva plena, e a figura paterna torna-se lei de interdição
internalizada, passando a mediar as relações entre os homens a partir de uma instância moral
reguladora, internalizada pelos homens e em constante conflito com os instintos originais.
A privação da satisfação plena, característica do indivíduo civilizado é o pressuposto básico
do pensamento freudiano. A falta que emerge a partir dessa perda de satisfação primitiva marca a
diferença entre o ser animal, que se relaciona com a natureza e o mundo exterior por seus instintos,
e o humano, sujeito pulsional. A pulsão, ao contrário do instinto, não possui objeto determinado de
satisfação. Os psicanalistas enfatizam essa diferença com exemplos recorrentes do acasalamento de
animais, que ocorre de uma determinada forma em determinada época do ano, a partir dos padrões
de cada espécie. Já o sujeito, separado de sua natureza pela lei, se move pela pulsão sexual, que
independe de seu objeto (Freud, 1996 [1905]). As parafilias seriam um exemplo desse
“desregulamento” do homem, que, privado das coordenadas do instinto, recorre a uma diversidade
de objetos distintos para sua satisfação.
Por mais que Freud, já no final de sua vida, houvesse buscado um diálogo com a antropologia
evolucionista, retirou suas principais bases de outra fonte. A base teórica principal da obra do Freud
é a metapsicologia, elaborada com pretensão de fornecer um esboço teórico da definição da
psicanálise ao ilustrar o inconsciente a partir dos modelos científicos importados de certos
referenciais da sua época – que eram os modelos oriundos da física, da termodinâmica e da fisiologia
– porém adaptando-os a um esboço do inconsciente a partir de um uso próprio deles. A
metapsicologia estava amparada em um esboço tópico – porque ele era ilustrado tal como em espaços;
dinâmico, porque a chamada energia psíquica, a libido, não era estática, se movimentando pelos
sistemas consciente e inconsciente, e pré-consciente; e econômico, referente à dimensão quantitativa,
25
ainda que imensurável – o quantum da libido é um afeto.
Mas sem nos determos muito nos detalhes da metapsicologia freudiana, cabe ressaltar seus
conceitos fundamentais. Os conceitos de desejo e pulsão carregam uma concepção específica de
sexualidade e inconsciente, que seriam “os dois grandes universais da subjetividade humana”
(Antonio, 2015). O homem civilizado possuiria uma vida instintual reprimida pelo contexto
civilizatório, que puniria seus instintos animalescos, e consequentemente o tornaria alheio a uma
porção de si mesmo, desenvolvendo o sintoma, que seria uma satisfação substitutiva dos desejos
reprimidos – inconscientes. Tais noções são essenciais para se compreender a forma como funciona
o setting analítico, assim como os desdobramentos teóricos presentes na obra de Jacques Lacan,
algumas décadas depois.
A leitura da psicanálise se deu em diversos países, sendo reelaborada e modificada a partir de
diversos moldes culturais. As correntes inglesa, alemã e francesa levadas a cabo por, respectivamente,
Melanie Klein, Donald Winnicot e Jacques Lacan são alguns dos exemplos mais ilustrativos.
Os psicanalistas lacanianos são os que seguem a corrente francesa da psicanálise, e
reconhecem o consagrado psicanalista Jacques Lacan como o principal ou até o único intelectual
fundador dessa linha. Lacan, a partir dos anos 50 , a grosso modo, busca reivindicar novas bases
teóricas para a psicanálise a partir do estruturalismo linguístico de Fredinand de Saussure, pois
entendia que, se a psicanálise é uma talking cure, e se as palavras são capazes de colocar o psiquismo
em movimento, a psicanálise estaria “estruturada como uma linguagem”, e talvez as representações,
como Freud dizia, pudessem ser descritas a partir do modelo linguístico estrutural - da mesma forma
que o inconsciente opera substituindo representações, a linguagem opera substituindo palavras. Dessa
forma, Lacan propôs, a partir do esquema de Saussure s/S, que o significante teria primazia sobre o
significado, pois, se na consciência se encontra o significado, talvez se pudesse encontrar o
significante no inconsciente. Portanto, Lacan reivindicou uma leitura particular do legado de
Sigmund Freud, baseado, como Freud, em modelos de sua época, dessa vez, no entanto, advindos da
linguística estrutural de Ferdinand de Saussure e Roman Jakobson, assim como em diálogo com o
estruturalismo de Claude Levi-Strauss, que buscava interpretações da cultura a partir de estruturas
gerais, como a dos mitos. Nota-se que a corrente francesa lacaniana busca reivindicar uma proposta
psicanalítica mais aliada a um entendimento afinado com as ciências humanas, rompendo com uma
noção fisiológica e modelos da mecânica e termodinâmica, modelos de um paradigma científico
considerado avançado na época de Freud.
Os psicanalistas, desde a época de Freud, mantiveram relação estreita com os meios
intelectuais e acadêmicos, no entanto é mais especificamente a partir de Lacan que a psicanálise se
vincula com meios artísticos, sendo um exemplo o movimento do surrealismo, que vinha dialogando
bastante com as produções teóricas de Lacan.
26
O ensino da psicanálise nas universidades tem sido debatido desde seus primórdios, e
geralmente a universidade não é entendida como a instituição a partir da qual os psicanalistas devem
depender para se formar e legitimar. Dessa forma, os psicanalistas inventaram instituições de
formação, que têm por função o ensino da teoria psicanalítica, assim como a averiguação da análise
pessoal que o psicanalista deve fazer durante um tempo considerável (pode durar a vida inteira),
elementos consideráveis fundamentais para tornar apto alguém a se tornar psicanalista.
Desde sua invenção por Freud, a psicanálise vem sendo alvo de críticas opinativas e teóricas.
Ao longo do tempo se produziu, tanto na sociologia quanto na antropologia, assim como na filosofia,
uma vasta literatura que toma a psicanálise enquanto objeto de estudo.
Robert Castel, Michel Foucault, Isabelle Stengers, Gilles Deleuze e Félix Guattari são autores
franceses que, por mais que se distanciem enquanto abordagem e objetivos - tirando os últimos dois,
que formavam uma dupla de pensadores (o primeiro advindo da filosofia, e o segundo, da própria
psicanálise) - têm em comum o fato de tomarem a psicanálise enquanto objeto de interesse em suas
produções intelectuais e se posicionarem de forma crítica em relação a ela.
Foucault produziu ao longo da vida muitos trabalhos teóricos, tendo abordado a psicanálise
em muitos deles, porém sem haver uma obra completa onde se debruçasse de forma exclusiva sobre
o tema. Foucault constrói uma genealogia dos processos de subjetivação resultante das relações
saber/poder nas sociedades ocidentais, assim como estabelece uma relação entre a concepção
ambígua de pessoa produzida pela psicanálise e os sistemas disciplinares, pois tal concepção serve
como justificativa para uma reatualização constante de dispositivos de controle, disciplina e governo
dos sujeitos.
Também são construídos, pelo filósofo, os conceitos de “técnica de si” e “cuidado de si”, e
entende-se a psicanálise como um dispositivo que cria modos de relação do sujeito consigo mesmo e
com os outros, estando tal dispositivo subentendido em sistemas de poder. Na obra do autor, os
conceitos centrais da teoria psicanalítica, como “sujeito” e “desejo” são temas de orientação
conceitual também recorrente na história do pensamento ocidental, sendo contexto que possibilita a
espinha dorsal da psicanálise emergir. A ambivalência das práticas “psi” (da individuação à
responsabilização), onde a questão da responsabilização aparece como estratégia da
governamentalidade da vida pessoal, é exemplo de prática possível apenas na história do ocidente.
Um dos aspectos ocidentais fortemente presentes no dispositivo analítico é a lógica cristã, que opera
no registro da revelação de si e segredos íntimos como via de acesso à verdade do sujeito e alívio do
sofrimento.
27
A questão da clínica psicanalítica se relaciona com os estudos do autor sobre a clínica médica,
cujo advento estaria relacionado de forma intrínseca à autoridade do médico, que possuiria sempre a
verdade, e cuja constituição de modelo clínico possuiria um caráter liberal na medicina: cuidado com
a saúde em uma troca mercantil. Já a psicanálise, mais especificamente, nasce de um discurso sobre
família e sexualidade, mas assim como a clínica médica, é operacionalizada para servir aos sistemas
disciplinares, se articulando ao biopoder. Tais ideias estão presentes em alguns de seus livros, entre
eles “Microfísica do poder”, “História da sexualidade”, “Ditos e escritos I”, “História da loucura”.
Passando a Deleuze e Guattari (2006), eles buscaram não apenas produzir um conhecimento
distanciado da psicanálise, de ordem filosófica ou sociológica, mas também se contrapor à psicanálise
elaborando novas propostas dentro do dispositivo clínico, que estiveram na base da criação do
hospital psiquiátrico francês La Borde. A dupla denuncia aspectos epistemológicos teóricos da
psicanálise principalmente formulada no contexto francês, onde se buscava a influência do
estruturalismo de Lévi-Strauss por Jacques Lacan, no contexto em que sua figura estava ganhando
cada vez mais importância como intelectual e psicanalista. Para os autores, haveria uma redução do
inconsciente pela psicanálise, onde o desejo apareceria de forma desvinculada do campo histórico e
social. Haveria um “código pré-existente” pelo qual se “esmaga” o conteúdo do desejo e delírio que
está contido no campo social e histórico e não se resume pelo complexo de Édipo, castração e
romance familiar. Há, então, uma crítica da redução de enunciações coletivas a figuras individuais,
como “o pai”, e por ter uma “máquina automática” de interpretação da qual nada escapa, sendo “o
que quer que se diga, o que se diz quer dizer outra coisa” (2006, p.200). Ao contrário da concepção
psicanalítica, para Deleuze e Guattari, o que produz enunciado em nós são os “agenciamentos
coletivos”. Ou seja, os autores criticam a concepção individualizada de sujeito, desejo, delírio, falta,
etc. e buscam inserir nessa categoria instâncias sociais.
Uma elaboração desses grandes críticos em oposição ao modelo edípico concebido por Freud
foi o “modelo maquínico” (Deleuze, 2010), onde se coloca, a partir do uso de vários conceitos
advindos inclusive da teoria marxista, questões concernentes à produção material social que estariam
na base da produção de subjetividade em uma determinada época.
Um outro autor, contemporâneo a esse debate, Robert Castel, sociólogo francês, autor da obra
“O psicanalismo” (1978), não se absteve de elaborar críticas severas aos psicanalistas de sua época.
O livro é uma crítica ácida ao campo psicanalítico francês, a partir do qual se produz uma análise dos
seus “processos de difusão, reinterpretação e institucionalização”, buscando uma compreensão da
amplitude e a especificidade de sua inscrição nas relações de poder na década de setenta. O autor
aposta em tomar a psicanálise como objeto da sociologia a partir de seu terreno concreto, já que seria
na
28
sua penetração nas diversas instituições que a psicanálise imprime suas finalidades no
tecido da vida cotidiana [...]; é sobre esse terreno que devemos manter nossa mira para
estabelecer a significação do novo dispositivo de controle social que veríamos aparecer sob
nossos olhos não estivessem eles ofuscados pelos prestígios dos profetas do inconsciente.
(1978, p. 7).
29
pela via da sociologia, como Tobie Nathan e Roger Bastide, ou a partir da filosofia e epistemologia,
como Jacques Derrida e Paul Ricoeur. No entanto, pelos limites desta pesquisa, não adentrarei em
suas discussões, me atendo somente ao que concerne aos principais debates e embates que possam
contextualizar o leitor no campo intelectual no qual a psicanálise se insere e seus obstáculos desde
então enfrentados.
30
Quando, em 2015, eu quis fazer um curso na EBP, fui entrevistada por duas psicanalistas. Ambas me perguntaram com
quem eu fazia análise. Saber com quem o outro faz análise é uma forma de reconhecimento do outro a partir de uma
linhagem, que fornece uma localização dos psicanalistas no espaço institucional das escolas, mas também fora delas.
32
Se, por um lado, a psicanálise passa a florescer e torna-se epidêmica, mais do que foi em qualquer
época anterior, justamente no momento em que proliferam na América do Sul as ditaduras militares,
mais do que nunca a psicanálise estava atrelada a uma busca de libertação “interior”. Nos anos 70,
anos marcados por repressão, tortura de presos políticos e censura, mas também pelo que se
conheceu como “milagre econômico”, com a expansão das camadas médias urbanas e letradas assim
como seu maior poder aquisitivo, assistiu-se a uma “corrida ao divã”, como denomina Russo. Ao
mesmo tempo, os movimentos de contra-cultura pautavam naquela época os costumes e a moral,
assuntos legítimos da política de esquerda, e as chamadas minorias passam a fazer parte de dos
movimentos políticos, que antes se norteavam mais pela luta capital versus trabalho. No meio desse
bojo cultural e econômico a psicanálise adquire relevância entre as camadas médias, por ser
reconhecida enquanto discurso sobre a sexualidade e a libertação do “eu”, passando a ser um valor
compartilhado entre rodas intelectuais da Zona Sul carioca cada um ter “seu” analista. Pela
contracultura, reformar-se interiormente é uma luta política, e é nesse ponto que a psicanálise pode
não apenas ser entendida enquanto um discurso, parte de um processo de despolitização, na medida
em que as pessoas passam a se voltar para si próprias e seu interior para entender o que “está lá
fora”, mas enquanto parte também de uma nova concepção de política, onde o “eu” interior tem a
capacidade de transformar o que “está lá fora”.
Chegamos agora ao momento que mais nos interessa aqui, pois é também a partir da década
de 70, com o boom psicanalítico, que há um processo de “psicologização” dos setores médios em
ascensão. Tal processo é essencial para a criação de uma clientela que busque e banque pagar os
serviços de um psicanalista, na medida em que, para que se busque esse tipo de serviço de “cura
interior”, é necessário que a pessoa se volte para dentro de si mesma, buscando “dentro de si” o que
antes estava “fora”, sendo as regras, o parâmetro e a orientação pautados não mais pela tradição,
mas pela subjetividade. A psicanálise se expande então não apenas enquanto profissão, mas também
enquanto terapia e modo de compreensão do ser humano.
Entre as décadas de 60 e 90, Sérvulo Figueira promoveu reflexões importantes com nomes
da psicologia, sociologia, antropologia, filosofia e psicanálise a respeito da psicanálise no contexto
social, principalmente o brasileiro, chegando a elaborar conceitos como “cultura da psicanálise”,
utilizado por muitos autores que abordam o tema, como Luiz Duarte, Ana Venâncio e Jane Russo.
Figueira ocupou diversas posições no meio psicanalítico brasileiro, sendo membro associado
da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Sendo assim, o debate provocado por ele e
outros pesquisadores não foi feito tão longe dos circuitos psicanalíticos, mas não foi incorporado ou
reconhecido pelas instituições psicanalíticas, como a Escola Brasileira de Psicanálise - RJ e Escola
Lacaniana – RJ, nem pelos psicanalistas e psicólogos acadêmicos.
Figueira possui uma extensa obra onde estão incluídos tanto livros seus como coletâneas
33
organizadas juntamente com pesquisadores da sociologia e antropologia brasileiras, como Gilberto
Velho, assim como pesquisadores da área da saúde, como Jane Russo.
Se vê que há uma tentativa de se tomar a psicanálise como objeto, no Brasil, pela primeira
vez, ao passo em que se busca uma análise rica sobre as “práticas psi” (onde se inclui psicologia,
psiquiatria e psicanálise), buscando-se traçar a sua articulação com a sociedade como um todo, assim
como seu processo de difusão e efeitos produzidos no mundo social.
Nessas obras, o Brasil aparece como palco principal de tais análises, e o autor mencionado
acima recorre a autores conhecidos das ciências sociais como Erving Goffman, Robert Castel, Pierre
Bourdieu, Marcel Mauss, Emile Durkheim, Peter Berger, Louis Dumont e Georg Simmel para
explorar temas que auxiliam a sua problematização do campo “psi” a partir de temas, tais como o
individualismo e o indivíduo, a ideologia, o campo de disputa, a ordem pública, a instituição
psiquiátrica, os valores, a divisão social do trabalho, o poder, entre outros.
Suas preocupações apontam para as estruturas sociais brasileiras como panorama fundamental
para se compreender o “psicologismo” produzido pela “psicologização”, processo cujo centro são as
instituições psicanalíticas a partir de um movimento centrífugo, e onde o desconhecimento de tal
processo pelos profissionais envolvidos nele implica em diversos problemas, como a ignorância dos
profissionais psicanalistas em relação ao entorno social, onde, por exemplo, os distintos extratos
sociais se tornam barreiras epistemológicas a partir dos quais equívocos teóricos ocorrem e falsos “a
priores” se produzem (Figueira, 1985).
Jane Russo, participante do debate, toma a história da psicanálise como fio condutor de sua
análise, a partir do qual se refaz a chegada dos “saberes psi” ao Brasil, por intermédio, primeiramente,
do establishment médico, até o “boom da psicanálise” na década de setenta, época em que também
chega o “lacanismo” ao Brasil. Tais fenômenos ocorrem principalmente nas camadas médias urbanas,
onde se encontravam os consumidores principais dos “saberes psi” (Russo, 2002). Como explicita
Venâncio a respeito do livro “O mundo psi no Brasil”,
A análise da autora segue, com muita propriedade, duas direções complementares. Em primeiro
lugar, apresenta as linhas mestras da história da institucionalização desses campos de
conhecimento – bem referendada em datas, principais personagens, instituições de ensino e
formação – demonstrando como as disputas entre esses atores sociais possibilitaram ou não a
afirmação científica e/ou difusão dos saberes psi no Brasil. Em segundo lugar, e implicada pela
institucionalização dos saberes psi, dá conteúdo ao modo pelo qual se tem conformado um jogo
contrastivo e dinâmico entre abordagens diferenciadas sobre as dimensões física e moral do
humano e os males que nos acometem (2002, p. 410).
34
Luiz Fernando Duarte levanta questões da década de setenta e atuais discutidas por setores
da área de saúde mental no Brasil, como o “atendimento psicológico” às classes trabalhadoras. O
tema da dominação de classes a partir de modelos que buscam intervir no sofrimento “psíquico”, é
colocado como um tema importante a ser abordado, tanto pelos relatos dos trabalhadores da área da
saúde mental que apontam a ineficácia dos tratamentos psiquiátricos e psicanalíticos nas classes
inferiores, como o autor indica, assim como os pressupostos sociológicos que tais profissionais se
utilizam para justificar tal fracasso no tratamento psíquico dessas classes (Duarte, 1988).
Em relação a reflexõess mais atuais, contemplarei brevemente três trabalhos recentes
brasileiros, produzidos dentro do domínio das ciências sociais, frutos de teses dentro de programas
de pós-graduação em ciências sociais.
A primeira, intitulada “Diálogo entre a Sociologia e a Psicanálise: o indivíduo e o sujeito”, de
autoria de Denise Lima, busca, como o próprio título já indica, estabelecer um diálogo entre as
ciências sociais e a psicanálise a partir das categorias de “sujeito” e “indivíduo”. A primeira se refere
à dimensão psíquica do ser humano a partir da determinação inconsciente e a segunda, à dimensão
social pelos seus condicionamentos de mesma ordem. A autora busca, por exemplo, trazer à luz a
importância dos mecanismos psíquicos para se compreender dimensões sociais, assim como nas
teorias sociais formulações importantes para a teoria psicanalítica. Um exemplo é a tentativa da
autora de explicitar o legado freudiano para autores como Norbert Elias, que buscou na psicanálise
alguns conceitos fundamentais como pulsão para o desenvolvimento de sua teoria do processo
civilizatório. Um outro exemplo é como a autora salienta, a partir do conceito de habitus de Bourdieu,
a necessidade de ainda se compreender que, mesmo que nele se inclua uma dimensão do agente
individual, suas disposições constitutivas ainda devem ser esclarecidas, na medida em que o habitus
é assimilado de forma relativamente distinta por “indivíduos singulares” (2012, p. 263). Tendo a
autora buscado as ciências sociais para uma fusão com a psicanálise e salientar a importância desta
última para os cientistas sociais, de forma recíproca, entendo o trabalho de Lima como uma passagem
importante para reflexão, juntamente com os trabalhos já citados de Figueira, onde uma discussão
sobre o individualismo também é feita a partir de Simmel e Elias para a compreensão do solo social
no qual a psicanálise produz seus fundamentos.
A segunda tese, intitulada “O divã e o altar: cultura psicanalítica e o movimento protestante
no Brasil” (2007), de Carvalho, é sobre os conflitos gerados entre as instituições psicológicas e
psicanalíticas seculares e algumas instituições religiosas a partir das investidas protestantes
brasileiras nas últimas décadas. Tais investidas se referem tanto a grupos de estudos, seminários,
especializações, pesquisas, publicações acadêmicas e cursos de formação desses meios religiosos que
ofereceriam formação psicanalítica. O autor se pergunta como o ateísmo freudiano poderia
historicamente se atrelar aos protestantes e quais arranjos se formam para tornar a união de tendências
35
de pensamento, aparentemente tão distintas, possível: “como podem as cosmologias cristãs da alma
e do espírito serem atreladas às concepções radicalmente mundanizadas da condição humana e da
sexualidade edipiana, produzidas por um pensador publicamente ateu?”, Carvalho (2007, p. 12) se
interroga. Os pontos da tese de Carvalho que me interessam aqui dizem respeito à sua contribuição
historiográfica da psicanálise a partir de um rastreamento de sua proximidade ou distanciamento com
determinados círculos e pensamentos religiosos a partir de contextos específicos, e o posicionamento
de psicanalistas, membros de entidades psicanalíticas no Brasil, em relação às instituições presididas
por pastores que promovem e oferecem a formação em psicanálise de forma mais “frouxa” que a das
instituições de formação tradicional, monopólio de psicanalistas mais “intelectualizados” e laicos.
Chego, por fim, à tese de Maria Antonio, intitulada “A ética do desejo: estudo etnográfico da
formação de psicanalistas em escolas lacanianas de psicanálise” (2015). Seu trabalho possui um
grande valor pela autora ter dado um tratamento etnográfico a questões tão caras a Figueira, Russo,
Velho e Duarte – como a atuação dos profissionais psicanalistas na área de saúde mental, a relação
entre a teoria psicanalítica, a prática clínica e a estrutura social complexa brasileira, o processo de
institucionalização da psicanálise e as sucessivas rupturas epistemológicas e institucionais no
contexto brasileiro – por mais que sua reflexão se restrinja a uma etnografia no contexto de uma
instituição de formação específica. Seu trabalho, bastante atual, e sua pesquisa empírica a partir do
ponto de vista etnográfico permitiu trazer à luz aspectos antes não analisados em nenhum dos
trabalhos anteriores citados. Sua convivência com psicanalistas da Escola Brasileira de Psicanálise
de São Paulo (EBP – SP), assim como a Escuela de Orientación Lacaniana (EOL) argentina, permitiu
a Maria Antonio elaborar descrições precisas de alguns dos aspectos morfológicos dessas instituições
- como a arquitetura e a ocupação dos devidos espaços por seus frequentadores – seus principais
rituais, assim como um esquema das categorias lógicas presentes no pensamento dos psicanalistas
institucionalizados que estariam no cerne dos princípios que orientam e possibilitam a “fabricação da
pessoa”, assim como a transmissão da expertise clínica a partir de relações específicas. No seu
trabalho também consta a estrutura hierárquica das escolas de formação, cujas figuras de liderança
são parte decisiva na organização coletiva onde se regula, normatiza e legitima a formação
profissional de forma unilateral. Nesse estudo a ética específica do psicanalista ficou em evidência,
já que ela estaria articulada com uma determinada conduta, formação profissional, organização
institucional, visão de mundo e construção de pessoa que ocorre nesse meio profissional.
Como melhor diz Antonio, “a pesquisa [...] permitiu apreender em que sentido uma noção
específica de desejo orienta os códigos de uma ética particular operada pelos psicanalistas na
construção terapêutica da pessoa; e que a formação de analistas se dá por meio de experiências
ritualizadas, organizadas por relações verticalizadas, pautadas em critérios de classificação que
associam aspectos simbólicos, afetivos, sociais, políticos e econômicos” (2015, p. 14).
36
37
3. Os lacanianos
Minha ideia inicial para realizar a pesquisa era acompanhar a supervisão dos casos clínicos
dos alunos dos estágios em clínica psicanalítica lacaniana nas universidades – Serviço de Psicologia
Aplicada (SPA) e/ou outros serviços do mesmo tipo, mas ao enviar alguns e-mails para professores
supervisores de algumas universidades, recebo poucas respostas, sendo nenhuma afirmativa.
Enquanto isso penso em outras possibilidades, entre elas a de realizar minha pesquisa e eu mesma
ser supervisionada por psicanalistas lacanianos em meus próprios atendimentos com pacientes. Mas
ao relatar essa minha ideia para amigas dessa área, elas me alertam que seria impossível obter
qualquer resposta sobre como precificar a sessão pela supervisão, já que “a supervisão é muito
pessoal”, e ela ocorreria de forma singular, de acordo com meus desejos e meu próprio
posicionamento clínico. Além do mais, o supervisor não me “ensinaria” a cobrar, ao invés, me
“escutaria”. Acabo desistindo dessa ideia também por outros motivos, mas me intriga o fato de que
as noções de singularidade e desejo, presentes nas falas de minhas amigas, me parecem categorias
acionadas em função também da preservação do seu campo, servindo como blindagem a qualquer
tipo de investigação que seja “de fora” do meio psicanalítico, assegurando o acesso exclusivo dos
lacanianos à interpretação dos casos clínicos.
Em um momento anterior, ao procurar minha antiga supervisora, havendo mais ou menos dois
meses que havia terminado o estágio, enviei um e-mail a ela e pedi que eu retornasse ao estágio para
acompanhar a supervisão em função de um trabalho final que eu gostaria de realizar para uma de
minhas disciplinas do mestrado. Elisa pede que nos encontremos pessoalmente e, no encontro, depois
de uma semana, pergunta o que eu busco com minha pesquisa. Explico novamente sobre meu
interesse em procurar uma compreensão sociológica da psicanálise e que havia considerado a
supervisão uma porta de entrada interessante, pois nela eu teria acesso à formação e aprendizado dos
alunos – era esse o tema de meu trabalho. Elisa me diz que ali não haveria formação nem aprendizado,
e ela me explica que “ao contrário das outras profissões, aqui [no SPA] não se aprende”, pois “aqui
cada um está de forma singular, implicado com seu próprio desejo” e que “o que se faz na
universidade não é ensinar psicanálise, mas sim tentar abordar alguns temas e a partir daí ver o que
desperta de desejo no sujeito” e “o que se faz aqui tem mais a ver com a arte” – e, comparando os
dois ofícios, reflete: “o que faz alguém se tornar artista? Não se sabe o que se passa...”.
Com a minha insistência, apontando que eu estava situada na sociologia/antropologia e eu
teria um olhar diferente do dela sobre a aprendizagem, Elisa, ao contrário de se convencer, diz: “é
isso que eu temo, que haja uma distorção, pois aqui não há observação, mas sim escuta, e quem tem
38
a escuta são os psicanalistas”. Por fim, chega a dizer que eu levaria constrangimento aos alunos e
minha presença poderia prejudicar a liberdade deles de falar sobre os casos clínicos. Percebo que,
para além de haver de fato um constrangimento para aquele que é observado por um pesquisador -
que é diferente de ser entrevistado - há uma relação de intimidade no espaço da supervisão porque os
lacanianos consideram os casos clínicos enquanto material não apenas instrumental de
direcionamento clínico, onde residem segredos sobre os pacientes, mas é também um material a partir
do qual os segredos sobre o analista envolvido no caso emerge.31.
Não podendo executar o meu plano inicial de etnografar as supervisões nesse momento
anterior a esta pesquisa, experienciei de partida a dificuldade de lidar com profissionais
intelectualizados, já que são resistentes a serem objetificados, resistência que não apenas se expressa
por uma indisponibilidade, mas também por uma ética e uma concepção específica e douta do
trabalho que exercem, expressas por noções complexas e elaboradas, produzindo o efeito imediato
de uma mistificação do seu ofício.
Não podendo executar o meu plano inicial de etnografar as supervisões nesse momento
anterior a esta pesquisa, experienciei de partida a dificuldade de lidar com profissionais
intelectualizados, já que são resistentes a serem objetificados, resistência que não apenas se expressa
por uma indisponibilidade, mas também por uma ética e uma concepção específica e douta do
trabalho que exercem, expressas por noções complexas e elaboradas, produzindo o efeito imediato
de uma mistificação do seu ofício.
O termo “distorção”, utilizado pela supervisora, quando se referiu à análise da prática
psicanalítica por uma outra disciplina, indica, e pode pressupor, de forma implícita, a ideia da
psicanálise enquanto algo pronto e acabado, onde haveria, por uma lógica binária, uma interpretação
verdadeira e uma falsa. Desse modo, isso já é indício de que, segundo sua visão, faria parte da etapa
de ser estagiário assimilar a interpretação verdadeira da teoria e prática psicanalítica. Outras noções
interessantes também surgiram, como a fronteira que há entre a supervisão e fora dela. A fronteira se
estabeleceu a partir de três critérios diferentes: 1) entre a supervisão e o mundo social, passível de ser
compreendido pela sociologia (dentro de sua visão do que é sociologia) e a supervisão, sendo, esta
última, uma extraterritorialidade social, cujos acontecimentos são desprovidos de sentido social
comum; 2) entre a supervisão e os outros saberes acadêmicos, onde a primeira se daria no registro da
“escuta”, enquanto que o sociólogo se encontraria no registro da “observação”; e 3) entre a supervisão
– que representa a profissão do psicanalista – e outras profissões, sendo que na primeira o aluno se
torna profissional pelo seu desejo e singularidade, enquanto que nas outras profissões haveria um
31
Lembro de Elisa já ter apontado para uma colega minha, durante a supervisão, de que determinada atitude dela – um
eventual esquecimento de comparecimento ao SPA para atender uma paciente – deveria ser considerado um ato falho e
que ela deveria levar isso para sua análise
39
aprendizado normal, padronizado e independente da singularidade individual.
A comparação que Elisa fez entre o tornar-se psicanalista e tornar-se artista leva para o
aprendizado do ofício da psicanálise as ideias românticas do mundo da arte, como a de liberdade, de
expressão de uma interioridade, de moção por desejo interior, de uma assinatura original e de um
trabalho artesanal - único e valioso - bem diferente da ideia de um treinamento comum para
desenvolver certas habilidades e um ensino padronizado, burocrático e pragmático - voltado para a
remuneração.
Por mais que a fala de Elisa possa não representar a forma como todos os lacanianos se
relacionam com outras áreas de conhecimento, seus argumentos fundamentais estão presentes nas
falas de Raissa e Carolina, quando lhes conto essa história. Carolina faz a ressalva de que quem possui
a escuta não é apenas o psicanalista, mas quem faz análise também. Fala de uma amiga sua que, não
sendo da área, desenvolveu uma escuta por fazer análise. Dá o exemplo de, quando estarem entre
amigos, conversando, essa amiga “lançava uma” para alguém, algo parecido com uma interpretação
analítica, e ela, Carolina, se impressionava com isso. A escuta dos lacanianos parece ser uma
habilidade desenvolvida de interpretar, tanto no setting analítico, como na vida cotidiana, o que está
“por trás” das ações humanas, dando acesso, àquele que escuta, ao “mundo do invisível”. A escuta
que os psicanalistas detêm e os analisantes desenvolvem parece ser uma habilidade que os diferem
de outras pessoas. Essa habilidade não se restringe ao setting analítico, mas se apresenta em contextos
sociais e nas suas relações pessoais, onde quem faz análise e possui a escuta possui o “poder” de
saber algo que o outro não sabe, de ter “sacadas”, “apontar coisas” e “lançar uma”. Como diz Maria
Antonio (2015, p. 51) “é dessa forma que a psicanálise extrapola a condição de terapêutica e se institui
como sistema de pensamento, que atua com a manipulação de um sistema simbólico produtor de
sentidos; este é incorporado pelos analistas e analisantes, sendo essa assimilação e significação da
experiência de si e dos outros a condição para a realização eficiente da terapêutica.”
Se Carolina se mostrou mais flexível que Elisa em relação à minha participação como
pesquisadora no SPA, por outro lado restringiu o acesso àqueles que teriam a habilidade de escutar.
Reconheceu também que seria difícil, nesses espaços de supervisão, uma abertura a uma pesquisadora
“de fora”, que não estaria a par das singularidades, e dos desejos que estão em jogo nas relações
específicas que se estabelecem entre supervisores, alunos, pacientes, etc. Raissa e Carolina também
se mostraram céticas em relação a uma pesquisa antropológica da psicanálise, pois seria “dificil de
ser realizada”, ou talvez até “impossível”, porque na psicanálise não vou tomar conhecimento de
como funciona “a psicanálise com dinheiro”, mas como “a psicanálise trata o dinheiro em um caso
específico”. Para os lacanianos, não há padrão ou regra a priori que dite uma forma de se precificar
uma sessão, e, além disso, a precificação tem a ver com um caso singular, o que me faria saber não
sobre a precificação, mas sobre como é para um sujeito singular precificar um outro sujeito singular.
40
Portanto, logo ao ter iniciado o trabalho de campo foi fácil sentir uma dificuldade no que se
refere a uma aceitação desses profissionais de serem pesquisados por alguém “de fora”. Essa
dificuldade também foi descrita por Maria Antonio (2015), já que, em sua etnografia feita na Escola
Brasileira de Psicanálise (EBP), ela não estar em análise e nem fazer formação eram motivos de
colocá-la como alguém “de fora”, que não conseguiria compreender determinadas concepções
compartilhadas entre os lacanianos. Acabo fazendo a mesma pergunta que Maria Antonio (2015, p.
56): “Ora, estes são sujeitos sociais, organizam-se em coletivos voltados à formação e qualificação
de profissionais atuantes em práticas sociais determinadas. Por que a antropologia não poderia tomar
a psicanálise como objeto de pesquisa? ” (2015, p. 56). Ora, estes sujeitos sociais estabelecem
relações sociais de troca, oferecendo um serviço que possui um valor monetário, e que configura uma
prática social determinada. Por que a antropologia não poderia ou não conseguiria tomar isso como
objeto?
Cabe notar que, se os psicanalistas se colocam resistentes àqueles que buscam objetificar a
psicanálise por um conhecimento externo a ela, ao longo de minha experiência em que estive imersa
no “mundo psi/lacaniano”, os psicanalistas não deixam de objetificar as outras áreas de
conhecimento. Há um pensamento sistemático acerca do que é a “ciência”, a “universidade” e as
outras áreas de conhecimento, geralmente vistas como “áreas que não operam pelo registro da falta”,
como disse uma psicanalista na EBP uma vez em uma palestra, dando o exemplo do direito, da
engenharia, da medicina, entre outras (os psicanalistas se utilizam do termo falta de forma muito
recorrente, e considero a falta um valor compartilhado pelo grupo de extrema importância, pois é
uma categoria de distinção, e faz parte de uma construção identitária dos psicanalistas, que se
consideram como os que lidam com a falta em seu ofício, se deparando com a incompletude do saber,
ao contrário de outros profissionais.)
Após um desânimo inicial devido à desconfiança e resistência a quem é “de fora”, passei a
temer que a pesquisa ficasse imóvel caso eu esperasse conseguir me inserir no SPA e em outros grupos
de supervisão. Mudo novamente de ideia e resolvo, enquanto penso em outros meios de me inserir
nesses grupos sem ser por via e-mails, entrevistar psicanalistas em diferentes momentos da carreira,
em que eu possa apreender as especificidades de um momento específico de uma trajetória
profissional e sua relação ou não com a operação da precificação da sessão de análise. Além disso,
pelas entrevistas eu teria acesso a um maior número de psicanalistas, de diferentes instituições de
formação, e obteria dados suficientes ao menos sobre como os psicanalistas entendem e justificam
sua maneira específica de negociar os preços da sessão a partir de um relato particular.
Opção feita, resolvo começar pelas lembranças e conversas casuais que tenho com amigos
próximos, como Roberta e Lucia, assim como colegas e outras pessoas. Por ter tido um percurso na
área que agora é meu objeto de pesquisa, mantenho contato com algumas pessoas e, eventualmente,
41
acabo conversando com elas informalmente sobre o meu tema de pesquisa. A partir dessas conversas,
um terceiro eixo de dados surge, na medida em que ouço alguns relatos da experiência dos
analisandos em relação ao pagamento de suas análises.
Minhas memórias me levam aos lacanianos acadêmicos, aos lacanianos de Escolas onde
participei de eventos em duas Escolas localizadas na zona sul do Rio de Janeiro, Humaitá e Leblon,
e duas localizadas no bairro de Icaraí, bairro nobre de Niterói. As recordações também me levam a
mim mesma e aos meus colegas, aos psicanalistas com quem fiz análise, e a alguns conhecidos que
fazem parte de minha rede de relações e que participam ou começaram a participar do meio
psicanalítico recentemente. Durante esta pesquisa, compareci a eventos pontuais, um deles realizados
por uma Escola localizada na Barra da Tijuca, e outro por uma associação psicanalítica em Nova
Friburgo, eventos que debatiam “a questão do preço na análise” e “questões que perpassam a clínica
social”. Durante esta pesquisa também mantive contato próximo e regular com amigos, assim como
eventuais encontros informais com colegas e profissionais da área, que constituem minha rede de
contatos. Meus colegas e amigos se tornaram informantes valiosos para esta pesquisa pela
acessibilidade e abertura para debater o tema da pesquisa.32 Além disso, entrevistei oito lacanianos
iniciantes da prática clínica e quatro psicanalistas “estabelecidos” no mercado de terapia. Cheguei a
enviar e-mails, telefonar e enviar mensagens por celular a vários outros psicanalistas estabelecidos,
sem no entanto haver retorno. Entre dez psicanalistas contatados, apenas quatro responderam e
aceitaram dar uma entrevista, entre eles dois que já conhecia da graduação e uma que conheci em um
evento informal de colegas.
Como explicitado acima, esta pesquisa não foi feita com um determinado grupo de lacanianos
em uma determinada instituição. Dessa forma, o termo “lacaniano” será utilizado enquanto categoria
analítica, ou seja, os lacanianos que descreverei fazem parte, antes, de um recorte feito a partir de
critérios concernentes à metodologia empregada na pesquisa do que de critérios produzidos pelos
próprios lacanianos ou referentes a um espaço específico. Isso se dá na medida em que esta pesquisa
possui vários níveis de dados, como memórias, experiência pessoal, relatos informais e entrevistas.
Outro ponto é que muitos desses lacanianos não reconhecem alguns de seus pares enquanto
lacanianos legítimos, ou não se reconhecem a si mesmos enquanto lacanianos – ou ao menos não se
32
Entre eles, um em particular, Jorge, se tornou meu principal informante, tanto pela convivência bastante
próxima, como pelo fato de Jorge ser um lacaniano (ou proto-lacaniano, como explicarei adiante) que cursa uma pós-
graduação em psicanálise, mas se considera um outsider, e dessa forma é disposto a compartilhar todas as suas impressões
sobre o meio psicanalítico.
42
nomeiam dessa forma – por mais que participem e constituam um “universo lacaniano”, compostos
por questões, práticas, concepções, um idioma próprio (às vezes chamado pelos próprios de lacanês)
e um estilo de conduta perceptíveis na vida cotidiana, o que possibilita entender os psicanalistas
lacanianos enquanto produtores e pertencentes a uma determinada “cultura”, no sentido que Geertz
a define, pois eles participam de um contexto, de um “universo imaginativo dentro do qual seus atos
são marcos determinados” (Geertz, 1978, p. 23). Figueira (1985), de forma mais específica, define a
cultura psicanalítica em termos de ethos (ou código de emoções), de eidos (um outro código para a
organização do pensamento) e dialeto psicologizante (psicotagarelice expressiva), que seriam as três
dimensões da cultura psicanalítica que emergem quando a psicanálise, a partir da década dos anos
70, principalmente, se populariza de tal forma que passa a funcionar como uma “visão de mundo”.
Por mais que a cultura psicanalítica, para Figueira, esteja disseminada em alguns setores da
população brasileira (principalmente entre as camadas médias urbanas), os psicanalistas são aqueles
que disseminam essa cultura, e participam dela de forma intensa, chegando a se “intoxicar” por ela,
como aponta Maria Ângela, uma psicanalista estabelecida e acadêmica, durante uma entrevista.
Os psicanalistas possuem formas específicas, complexas e dinâmicas de reconhecimento –
decorrentes também do fato da psicanálise não ser uma profissão regulamentada e reconhecida pelo
Estado. As formas complexas do reconhecimento se apresentaram no início da pesquisa como um
fator problemático, na medida em que o “psicanalista” ou “lacaniano” - que era assim reconhecido
por mim e talvez por outras pessoas – não se reconhecia ou se intitulava dessa forma esperada ao ser
entrevistado. E, ainda, na medida em que não foi feita uma etnografia em uma instituição ou espaço
físico delimitado, os diferentes tipos e níveis de lacanianos aparecem dispersos em um espaço que
compreende os limites da região metropolitana do Rio de Janeiro.
Para produzir um quadro imagético da complexidade e difusão do campo apresentado, irei
empregar aqui a noção de nebulosa utilizada na astrofísica para denominar uma nuvem de poeira
interestelar, e é utilizada para designar corpos celestes difusos, como as galáxias. As galáxias, rastros
de combinações de materiais dispersos, possuem alguns núcleos mais visíveis por serem mais densos,
e que formam centros de atração gravitacional. É essa imagem que gostaria de utilizar para me referir
às instituições e práticas de psicanálise carioca, na medida em que os psicanalistas são atores
ocupantes e circulantes de um espaço concreto porém nebuloso, onde determinadas instituições se
destacam pelo monopólio de práticas e formas de legitimação dos psicanalistas, sua influência nas
teorias psicanalíticas assim como difusão e prática.
Sendo assim, a nebulosa do mundo psicanalítico carioca é formada por pontos de sustentação
específicos no espaço, onde as Escolas de formação são instituições que detêm o monopólio, ou
disputam o monopólio do discurso psicanalítico, os critérios de formação dos psicanalistas e emanam
a cultura psicanalítica, na medida em que a última “mantém uma relação complexa com as
43
instituições e técnicas de poder, inspirando-as e por elas sendo ampliada e difundida, através de
processos que já foram chamados 'modernização', 'modernização persuasiva', neutralização e
apolitização.” (Figueira, 1985, p. 7). Pela metáfora da nebulosa podemos entender as Escolas de
formação enquanto instituições que equivalem aos pontos mais densos dessa nuvem, pois são
instituições legitimadas pelos psicanalistas e ao mesmo tempo legitimam a atuação profissional dos
mesmos. Elas são, portanto, pontos de referência cruciais. Nessa nuvem, alguns pontos luminosos
também aparecem na região densa, que são os meios acadêmicos, meios pelos quais os psicanalistas
circulam, gerando um fluxo em um duplo movimento que liga as Escolas às pesquisas acadêmicas.
Os meios intelectuais não estritamente acadêmicos também são relevantes e, por mais que
mantenham relação ou até orbitem em torno das Escolas e universidades – essa relação entre Escolas
e universidades será melhor tratada no próximo capítulo -, propagam a psicanálse e dialogam com
um público mais amplo, principalmente pertencente às camadas médias urbanas. Alguns exemplos
são programas de televisão, rádio e colunas de jornal onde o psicanalista se coloca em posição de um
intelectual que é autorizado a falar sobre política, sociedade, família e outras instituições a partir da
teoria psicanalítica. Como exemplo, posso citar o Café Filosófico, transmitido pela TV Cultura.
O fenômeno da construção da imagem do psicanalista enquanto intelectual e da psicanálise
enquanto um sistema de pensamento se constrói na Argentina, a partir dos anos 1940 (Plotkin, 2001)
e a partir dos anos 1970 no Brasil (Russo, 2012). Os jornais, livros, programas de televisão conferem
visibilidade ao psicanalista e reconhecimento deste enquanto intelectual apto a opinar sobre
determinados assuntos, principalmente sobre questões referentes ao que se considera “classe média”,
difundindo entre ela, principalmente, uma linguagem psicologizante, e ao mesmo tempo difundindo
a teoria psicanalítica.33
A poeira mais difusa da nebulosa vai se tornando mais dispersa e invisível na medida em que
se distancia desses centros atratores mais densos, e ela representa outras instituições que são
influenciadas pelo discurso psicanalítico, estão mescladas com outras práticas e não se restringem
aos ideais institucionais das Escolas. Nessa poeira podemos encontrar alguns serviços de saúde do
SUS, como a rede de saúde mental, que se interliga por ambulatórios, residências terapêuticas e
alguns hospitais psiquiátricos e os CAPS. Nesses serviços muitos psicanalistas ou “psicólogos de
abordagem psicanalítica” - como se denominam – estão presentes, e são espaços onde o pensamento
e linguagem psicanalítica circula, por mais que não de forma “pura” (como os próprios psicanalistas
distinguem, entre “psicanálise pura” que seria a de consultório particular, e “psicanlálise aplicada”,
33
As questões abordadas pelos psicanalistas intelectuais podem ser percebidas pelos temas propostos de programas como
“Café filosófico”, transmitido pela TV Cultura. Nele, pela curadoria da psicanalista Maria Rita Kehl, os principais
temas de discussão geralmente se referem à família, a infância, juventude, laços amorosos, ansiedade, medo,
depressão, felicidade, o feminino, o amor, entre outros...A série PSI do canal HBO no Brasil dirigida pelo psicanalista
Contardo Caligaris é um exemplo da difusão da psicanálise por meios de entretenimento.
44
praticada em ambulatórios da saúde mental), como nas Escolas, pois muitas vezes se mesclam com
engajamentos políticos - como a luta antimanicomial – , questões relacionadas às instituições de
atuação e saberes concernentes à saúde pública, por exemplo. Alguns núcleos de estudo da
psicanálise, instituições que oferecem cursos de psicanálise34 e que não são Escolas, também estão
nessa nuvem mais periférica. Os consultórios e clínicas particulares, sejam as de “clínica social”35,
presentes nas áreas nobres e nas periferias, assim como clínicas particulares de saúde mental, que
oferecem acompanhamento terapêutico e atividades de convivência36, como nos Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS), também podem se encontrar nessa região difusa do lacanismo. Para mim é
evidente que os consultórios dos psicanalistas das Escolas encontram-se na órbita dos pontos densos
e luminosos da nebulosa, enquanto a rede de saúde pública e as clínicas sociais (que atendem planos
de saúde e oferecem preços “abaixo do mercado”) encontram-se mais nas periferias - por mais que
haja exceções. Dessa forma, considero pertinente propor uma correspondência entre os pontos
luminosos da Escolas com as regiões mais nobres da cidade, e a matéria mais difusa e nebulosa com
as periferias, pois a maior parte das Escolas se localizam nessas regiões onde as classes sociais de
maior poder aquisitivo se encontram – o que não exclui o fato de existirem algumas exceções como
alguns pontos luminosos periféricos, Escolas que estão na periferia, como a Escola de Psicanálise do
Rio de Janeiro, localizada na Cidade de Deus, ou alguns pequenos centros localizados em favelas por
exemplo, que formam núcleos onde os psicanalistas atuam pela rede de saúde do SUS ou núcleos
vinculados às Escolas.37 No entanto, a maior parte das escolas se concentram na região da zona sul
do Rio de Janeiro (área nobre), em bairros como Barra da Tijuca, Leblon, Ipanema, Copacabana,
Botafogo, Humaitá, Flamengo, Glória. Em Niterói, localizam-se na região nobre do bairro de Icaraí.
Geralmente, também, os consultórios dos psicanalistas institucionalizados nessas Escolas se
encontram em maior parte nessas mesmas regiões. A minha impressão é a de que, quanto mais
afastadas dessa região nobre da zona sul, mais as Escolas ou instituições psicanalíticas se mesclam a
práticas religiosas ou não reconhecidas enquanto “boas” ou “efetivamente psicanalíticas” pelos
psicanalistas das Escolas dos centros luminosos das regiões nobres.
Nesta pesquisa abordarei principalmente os lacanianos acadêmicos, que são também
pertencentes às principais Escolas lacanianas cariocas - parte dessa região densa da nebulosa - assim
como alguns lacanianos que estão iniciando sua formação em Escolas – que denominarei de “proto-
34
Já tomei conhecimento de alguns desses cursos, geralmente divulgados por forma de marketing, prática que
psicanalistas desaprovam e eles mesmos não praticam. A maior parte desses cursos desprezados pelos psicanalistas
lacanianos se referem a títulos e um estudo de tempo determinado que, por se diferir muito dos ideais de formação
das Escolas, são denegridos e desaprovados por elas.
35
As clínicas sociais são clínicas de psicologia que oferecem o serviço da psicanálise por preços menores que a “média”.
Esse tema será melhor abordado no próximo capítulo.
36
37
Ver “Psicanálise na Favela”, livro fruto do projeto “Digai-Maré” que os psicanalistas da Escola Brasileira de Psicanálise
elaboraram para atender pacientes da favela da Maré, no Rio de Janeiro.
45
lacanianos”. De outro lado, cito também alguns lacanianos que atuam no SUS, alguns outros que
trabalham no que denominam “clínica social”38. Ou seja, esta pesquisa trata de uma amostra mais ou
menos representativa da nebulosa lacaniana do Rio de Janeiro.
Como já foi dito, muitos dos profissionais presentes neste trabalho não se reconhecem
enquanto “psicanalista”, nem “lacaniano”. A legitimidade do psicanalista é conferida pelas Escolas
por critérios nem sempre muito bem definidos e geralmente subjetivos, não havendo, por exemplo,
um diploma ou um certificado nem um tempo definido que torne alguém um legítimo psicanalista. O
reconhecimento do psicanalista enquanto tal, portanto, emerge a partir de sua manutenção de uma
rede de relações em uma instituição de formação, e um “percurso” - termo que os psicanalistas
utilizam. Como a psicanálise não é profissão regulamentada, os lacanianos possuem ritos de
passagem específicos e modos de legitimação próprios que ocorrem em contexto institucional, este
marcado por hierarquias, onde figuras de liderança detêm poder e domínio dos procedimentos de
reconhecimento dos profissionais.39 (Antonio, 2015). Talvez esses fatores reverberem na insegurança
ou na afirmação de muitos psicólogos que seguem a linha lacaniana de carregar ou ostentar esse
título. Além do mais, os lacanianos reivindicam para si o título de “lacaniano” também a partir de
situações informais - formas não oficiais de construção de identidade - e um lacaniano que hoje assim
se reconhece enquanto tal em uma situação específica, pode amanhã dizer que não o é, por vários
motivos que buscarei explicar adiante.
Enquanto há um meio institucional de legitimar o psicanalista – por mais que não
estatal –, parece que o título de “lacaniano” é um complemento, um nome utilizado para marcar
características próprias da corrente francesa dessa clínica, e esse nome complementar é mais utilizado
de forma situacional e relacional. Por mais que nas Escolas lacanianas, obviamente, os psicanalistas
sejam lacanianos, essa constatação não os obriga a se apresentarem enquanto lacanianos em todos os
contextos, pois se formam, oficialmente, psicanalistas, e não lacanianos.
De qualquer forma, a mim era evidente, desde o início da pesquisa, que os psicanalistas que
abordo nesta pesquisa são lacanianos, a partir de uma especificidade que marca suas clínicas –a saber,
utilizam Lacan como referência principal de leitura, utilizam constantemente seus conceitos, e se
opõem aos freudianos principalmente advindos da International Psychoanalytical Association
(IPA)40.No entanto, a denominação de “lacaniano” é confusa, e muitos deles parecem não se
identificar enquanto tais. Os psicanalistas já estabelecidos na profissão geralmente não se dizem
lacanianos, já que “Lacan buscou retornar a Freud”, o que faz de todo lacaniano, na verdade, um
38
A “clínica social” geralmente significa um serviço de “custo mais baixo”...terminar depois
39
Essa afirmação advém de uma impressão minha do funcionamento das Escolas, mas que, no entanto, é também descrita
na etnografia de Maria Antonio (2015) sobre o funcionamento institucional da Escola Brasileira de Psicanálise de
São Paulo.
40
Nota?
46
freudiano. Além do mais, em relação a se reconhecerem enquanto lacanianos, esse nome serve mais
como uma referência do grupo ao qual pertencem, o que se dá a partir de níveis de contrastes que
colocam em oposição os lacanianos em relação a outras linhas e práticas. Esse ponto será melhor
esclarecido mais à frente. Em relação aos proto-lacanianos, eles se justificavam de forma
padronizada, alegando que não tinham iniciado sua formação em uma Escola, não participavam de
cartéis, e não se dedicavam sistematicamente ao estudo de Lacan. Ora, esse parece ser o discurso
típico de um lacaniano, na medida em que o reconhecimento da formação em uma Escola como a via
legítima para se tornar lacaniano, assim como a participação das atividades institucionais e a
dedicação à literatura lacaniana fazem parte de um conjunto de práticas que as Escolas reconhecem
e legitimam. E se retornar a Freud fez de Lacan um freudiano, como o próprio dizia, se dizer freudiano
é um discurso típico dos lacanianos. Pelas entrevistas, muitos dos jovens psicólogos apresentavam
receio e não se sentiam confortáveis em dizer que eram lacanianos, ao que indica que o título de
lacaniano tem duas facetas: se denominar lacaniano pode indicar simbolicamente um nível mais
elevado do profissional, que já estaria se “especializando”, mesmo que informalmente, por um estudo
mais “disciplinado” e avançado, possuindo um reconhecimento institucional de sua prática; por outro
lado, denominar-se lacaniano pode levar o profissional a ter que demonstrar para os psicanalistas
estabelecidos que possui um conhecimento aprofundado de Lacan e uma clínica consistente baseada
nos alicerces teóricos dessa linha. Dessa forma, os proto-lacanianos que se dizem “psicólogos de
orientação psicanalítica (lacaniana)” buscam se poupar,de enfrentar possíveis questionamentos
advindos do discurso oficial das Escolas. No entanto, os lacanianos geralmente não se referem à
psicanálise que praticam enquanto “psicanálise lacaniana”, mas se dizem “psicanalistas”, reservando
a definição de sua especificidade clínica, sua “linha”, a ser explicitada em determinados contextos
que demandem esse esclarecimento.41
Portanto, a partir do que expus nos parágrafos acima, optei por utilizar um critério de
definição desses profissionais não interno aos lacanianos, já que por essa via, me perderia em infinitas
definições e disputas por definição que emergem em relações complexas de produção de identidade
por princípios de oposição. Nesta dissertação, portanto, “lacaniano” é uma categoria analítica que
compreende os profissionais que aderem ao discurso proferido pelas Escolas de formação e difundido
nas universidades, instituições que produzem uma definição oficial do que é ser lacaniano, assim
como uma internalização e familiaridade com um sistema simbólico de pensamento típico pelos
41
Jorge, meu informante proto-lacaniano, relata um fato interessante a respeito das nomeações. Ele diz que “enquanto os
psicólogos (proto-lacanianos) se esquivam de se denominarem 'psicanalistas', pessoas de outras áreas de formação,
como do direito, sempre se denominam 'psicanalista' desde o início da carreira, pois não podem se declarar
‘psicólogos'”. Isso geraria um certo vislumbre de liberdade daqueles que ainda não se sentem confiantes a se
nomearem “psicanalistas”. Jorge um dia disse à sua amiga do direito: “eu ainda não consigo me dizer psicanalista, e
ela respondeu 'eu não tenho opção'”.
47
atores dessa categoria profissional. Não busco aqui desconsiderar as auto-definições dos lacanianos,
mas situar a perspectiva individual dos lacanianos em um contexto de percepções e reconhecimentos
institucionalizados, onde as Escolas, principalmente, promovem ritos de passagem que mobilizam
tipos de reconhecimento e pertencimento, que são operações sociais de nomeação (Bourdieu, 1996).
Os lacanianos serão compreendidos enquanto aqueles que compartilham de uma mesma percepção
do que define e autoriza alguém a se auto-identificar enquanto lacaniano e promovem esse discurso
de forma normativa, tendo como consequência, inclusive, o de não se enquadrar na definição de
“lacaniano” por esse mesmo discurso.
A maior parte dos profissionais presentes nesta pesquisa são pessoas com quem convivi
durante o período da graduação e convivo hoje, mantendo relações próximas de amizade, e outros
foram entrevistados. Cabe, para além de situar esses profissionais na nebulosa carioca da psicanálise,
caracterizá-los a partir de critérios de status profissional, estes geralmente em relação com o lugar
ocupado no espaço. É muito provável que um novato, por exemplo, circule pelas periferias, como
pela rede de saúde mental do SUS, antes de chegar aos pontos luminosos da zona sul e abrir seu
próprio consultório.
Em uma ordem estabelecida de forma lógica e cronológica pela posição ocupada nos estágios
da carreira, há os proto-lacanianos – que são recém-formados e estão em vias de iniciar sua formação
em uma Escola; há os lacanianos intermediários, que têm algum vínculo institucional, estão em
formação ou consultório, mas estão numa posição intermediária de tempo e reconhecimento na sua
trajetória clínica.; e há os lacanianos estabelecidos, em sua maior parte institucionalizados e
legitimados por instituições, seja a acadêmica ou a Escola de formação, reconhecidos ou não
enquanto intelectuais por um público mais amplo. Darei enfoque nesta pesquisa aos proto-lacanianos
e aos lacanianos estabelecidos na medida em que a comparação entre esses dois extremos da carreira
fornece contrastes interessantes para os fins de uma análise comparativa acerca de suas práticas
monetárias.
Em combinação aos estágios na carreira, acrescenta-se o tipo de atividade, emprego,
perspectivas e aderência às instituições de formação oficiais. Há os lacanianos que trabalham no SUS,
seja na saúde mental, na atenção primária, secundária e terciária, e na própria gestão. Dos lacanianos
que trabalham nesses espaços da saúde pública, a maior parte são recém-formados, e estão se
formando enquanto residentes. Outro tipo de lacaniano é o que trabalha em consultório particular,
tendo seu próprio espaço – geralmente os mais velhos e com mais tempo de carreira -, ou sublocando
uma sala de um consultório de um outro profissional – caso mais frequente entre os lacanianos recém-
formados. Há também os que trabalham em “clínicas sociais”, nome dado por eles a clínicas que
oferecem um serviço mais barato, seja com um teto menor de valor cobrado, seja recebendo por meio
de convênios com planos de saúde. Há os lacanianos acadêmicos, que também, geralmente, possuem
48
seus próprios consultórios e, entre os acadêmicos, há os lacanianos que aderem em parte ou
totalmente às concepções e teoria lacaniana, mesmo pertencente a uma outra tradição e disciplina,
como é o caso de professores da filosofia, ciência política, antropologia, etc.42
Cabe salientar que os tipos lacanianos são classificações com fins ilustrativos, construídas
para viabilizar uma análise de inspiração etnográfica, tornando possível visualizar a diversidade e
heterogeneidade da nebulosa lacaniana no que diz respeito às práticas diversas assim como o status
diverso do profissional. Além disso, os tipos de lacanianos não agregam características unitárias
mutuamente excludentes. Por exemplo, um proto-lacaniano pode estar no início de carreira, se
considerar lacaniano, mas não necessariamente ter como perspectiva ingressar em uma Escola de
formação, não reconhecendo estas enquanto via necessária para seu autoreconhecimento. E pode
haver psicanalistas com longa data de carreira, mas que não possuem reconhecimento clínico, mas
apenas acadêmico, ou vice-versa.
3. 3. Segmentaridade psicanalítica
42
Um conhecido meu que oferecia cursos de Lacan e fazia interlocuções com filósofos, como Alain Badiou e Slavoj
Zizek, entre outros da ciência política.
49
quando voltar a clinicar, será “provavelmente a partir da perspectiva psicanalítica lacaniana”. Sua
perspectiva clínica, seu linguajar e as questões que ele levanta, fazem com que ele acabe sendo
reconhecido como psicanalista e lacaniano em alguns espaços:
Nunca me apresentei como lacaniano, mas já fui identificado como lacaniano por outros
psicólogos. Tem um colega que é psicólogo e fazia residência comigo. Ele é um outsider
na psicologia também […]. Em uma conversa informal eu falei de inconsciente, e ele
respondeu: “ah esses psicanalistas...igual você”. Então ali eu fui identificado enquanto
psicanalista e eu reagi, eu falei “peraí, não é bem assim”, mas eu fui identificado à revelia.
Pode ser que em algum momento eu cumpra a função de lacaniano por conta desse passado.
A maioria dos psicanalistas que conheço, com os quais convivi ao longo de meu percurso
acadêmico, costumam reificar a psicanálise, tratando-a anacronicamente enquanto uma coisa, e algo
em si acabado, essencializando sua a natureza epistêmica e a identidade profissional Isso se
demonstra na forma como os psicanalistas se referem tanto à psicanálise, sempre no singular e de
forma abstrata e estática, assim como muitas vezes entendendo sua “descoberta” por seu “pai
fundador”, Freud, geralmente esquivando-se de entendê-la a partir de referências históricas e
culturais. É comum que os lacanianos critiquem a psicanálise praticada nos Estados Unidos como
uma psicanálise que fugiu de sua “verdadeira” forma, tornando-se uma “psicanálise do ego”. Há um
debate bastante conhecido entre os lacanianos, onde se fala sobre os “desvios” ou “distorções” que
teriam acometido a psicanálise, reconhecida como “a verdadeira”. Como aponta Figueira (1989),
criticando uma concepção anacrônica e abstrata do que é a psicanálise:
Outro exemplo é que, obviamente, há várias versões sobre o que é o inconsciente, como
podemos ver em Pierre Bourdieu, Noam Chomsky, Sigmund Freud, Kurt Lewin – autores situados
em tradições e áreas diversas –, sendo o inconsciente psicanalítico apenas uma das significações
possíveis do termo em questão. No entanto, dificilmente um psicanalista considera o exposto acima,
preferindo falar do inconsciente como se fosse um dado sobre o qual a psicanálise deteria o
monopólio. Se para os psicanalistas há uma psicanálise mais “verdadeira” que deveria ser resgatada
50
– e geralmente considerando-se Lacan como aquele que fez o “retorno a Freud”, e resgatou a essência
da psicanálise –, do ponto de vista antropológico a psicanálise enquanto prática e teoria que se
articulam em determinados contextos institucionais e tomam formas específicas e constituem uma
identidade profissional, não sendo compreendido de forma essencial, mas pela sua dimensão
relacional, pois é por uma operação social de distinção que opõe a psicanálise lacaniana seja a outros
segmentos internos do campo da psicanálise – como as “linhas” kleiniana, winnicottiana, ferencziana
– seja a outras áreas profissionais e científicas. É intrigante pensar, contudo, que se tomarmos como
referência a própria teoria lacaniana para examiná-la, chegaríamos a uma conclusão parecida, pois
para Lacan a identidade só se afirma pela alteridade, como ele assinala citando Rimbaud: “o eu é um
outro” (Lacan, 2010). No entanto, os psicanalistas não aplicam essa fórmula de forma reflexiva em
relação à própria prática. Essas observações incitam a pensar em que medida as instituições
psicanalíticas se assemelham a instituições religiosas na forma de reprodução e difusão de suas ideias
e ideais.
As operações de distinção por oposição dos lacanianos são perceptíveis por determinados
padrões de justificativa. Em minha monografia do curso de conclusão de Psicologia, intitulada “O
discurso de singularidade – reflexões acerca da psicanálise, da Ciência e da Universidade”, pude
empreender uma pequena pesquisa sobre como os psicanalistas definem a singularidade de sua
prática, esta sempre sendo colocada em oposição ao que eles denominam Ciência e Universidade,
categorias englobantes de quase todas as práticas científicas e profissões. Chegam, também, a se
contrapor aos discursos religiosos. Por outro lado, eles tendem a se identificar com o mundo das artes,
que teria comum oposição ao saber acadêmico/científico e a um conhecimento “enrijecido” e talvez
pela imagem recorrente do senso comum que relaciona o nome “ciência” às ciências físicas e naturais,
isto é, a ciência hard, com seus laboratórios e jalecos. Dito de outra forma, parecem se referir a uma
ciência supostamente “careta”. Em relação aos lacanianos, eles se auto intitulam dessa forma em
oposição à IPA (International Psycanalysis Association), instituição criada por Freud e com a qual
rompeu em Paris, fundando sua própria Escola, a École Freudienne de Paris (EFP) em 1964.
Utilizarei aqui a ideia de “relatividade estrutural” a partir da forma como Evans-Pritchard
descreve a estrutura política dos Nuer, pela noção de “segmentaridade” (1940). Evans-Pritchard diz
que essa estrutura “somente pode ser compreendida quando é colocada em relação a de seus vizinhos,
com quem formam um único sistema político. Tribos Nuer e Dinka contíguas são segmentos dentro
de uma estrutura comum, tanto quanto o são os segmentos de uma mesmo tribo Nuer.” (1999, p. 138).
Ou seja, a tribo teria uma “estrutura segmentada”, e a noção de segmentaridade serve para
compreender os mecanismos de produção de alianças e oposições tanto entre os próprios lacanianos
assim como entre lacanianos e demais grupos. Assim como entre os Nuer, a identidade do lacaniano
se produz nessas relações segmentares, seja quando se opõem à Ciência, à Universidade, e à religião,
51
que engloba alguns psicólogos, clínicos e outros, ou áreas da saúde, como a psiquiatria, medicina, e
outras terapias, e ao universo das terapias alternativas, consideradas “místicas”, e práticas religiosas.
A heterogeneidade da identidade dos psicanalistas lacanianos se homogeiniza ou não na
medida em que se modifica a batalha que travam com seus opositores. Uma psicanalista professora
universitária , por exemplo, relata que, quando houve tentativas de regulamentação da psicanálise na
França, todos os psicanalistas das linhas mais díspares se uniram, “tanto os da International
Psychoanalytical Association (IPA), como Miller, Roudinesco e Melman”.43 Ao que parece, todos
travaram a mesma batalha. No entanto, essa é uma batalha temporária. Como Evans-Pritchard aponta
sobre os Nuer, “tribos adjacentes opoẽm-se umas às outras e lutam entre si. Algumas vezes elas se
juntam contra os Dinka, mas tais combinações constituem federações frouxas e temporárias para uma
finalidade específica e não correspondem a qualquer valor político”. (Ibdem, p. 136). Ou seja, assim
como os Nuer, a identidade dos psicanalistas se constrói pela oposição mútua e oposição comum de
segmentos. E entre as oposições comuns, há aquelas mais frouxas e as mais consistentes. A oposição
à “Ciência” e à “Universidade” se faz de forma parecida com que os Nuer se opõem aos Dinka, onde
há uma “hostilidade equilibrada”, e produz de forma mais consistente uma identificação dos
psicanalistas com o mundo das artes. No entanto, diante da possibilidade de a psicanálise ser
considerada um discurso comum, um misticismo, uma quimera ou uma mera opinião, reclamam para
si um espaço epistêmico banhado de uma discursividade advinda do campo científico, com alusões
indiretas ao campo científico, como rigor, lógica, método. Por outro lado, quando confrontados com
a dureza cientifica, reclamam para si o discurso do mundo das artes, da liberdade, da singularidade,
e de um discurso mais romântico, poetizado e assistemático.
Por mais que haja uma porção de oposições em relação a segmentos “externos” ao meio
lacaniano, as oposições mútuas entre os próprios lacanianos são da mesma forma bastante marcantes,
como demonstra a história das instituições psicanalíticas, que são marcadas por cisões, geradas por
dissidências internas nas próprias Escolas (Russo, 2012). É comum ouvir, por exemplo, que houve
um “racha” em uma Escola, como houve recentemente, em 2015, na Escola Tempo Freudiano, no
Rio de Janeiro Os psicanalistas tendem a manter oposições de hostilidade equilibrada a quase todas
as outras práticas e saberes, com exceção do mundo artístico e, para isso, operam uma distinção entre
saber e conhecimento. O saber se refere a um saber do inconsciente, que não se acessa pela via dos
estudos, como em todas as outras áreas acadêmicas e científicas, que buscam apenas o conhecimento.
O saber seria singular, e é diferente para cada sujeito, e esse saber se produz com o desejo de cada
um, e principalmente pela análise pessoal. É comum, inclusive, os lacanianos considerarem difícil
ou até impossível explicar certos conceitos, porque eles são compreendidos a partir “da análise de
43
52
cada um”. Para exemplificar, uma vez em que estive em um evento de uma Escola de formação, há
alguns anos, cheguei a perguntar a uma psicanalista presente no local, o que era, afinal, o objeto a' –
um dos conceitos mais misteriosos da teoria lacaniana. Ela me respondeu que só pela minha análise
eu descobriria. Em um momento posterior, logo quando iniciei o mestrado, me inscrevi no curso de
formação psicanalítica da Escola Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, e recebi um e-mail
informando que a seleção para o curso se daria principalmente por entrevistas com três psicanalistas
diferentes no Rio de Janeiro. Lembro que todas as psicanalistas perguntaram para mim se eu fazia
análise, ressaltando a importância desse fator para ingressar na atividade da Escola, assim como com
quem eu fazia análise. Em um momento específico, na terceira entrevista, a psicanalista me perguntou
o motivo de minha pesquisa sobre a psicanálise ser em antropologia, ao que eu expliquei falando de
meu interesse em compreender algumas questões da psicanálise por um ângulo externo. Ao explicar
isso, a psicanalista, franzindo o cenho, me perguntou se não era possível eu resolver essas questões
em minha análise. Esse caso ilustra bem o sistema de pensamento lacaniano, onde o conhecimento
teórico está vinculado principalmente a uma experiência individual de análise, a partir da qual os
conceitos ganham sentido. É nesse sentido que os lacanianos sustentam que não se ensina psicanálise,
mas se transmite um saber. O psicanalista que é professor universitário, então, não teria como missão
ensinar, como um outro professor qualquer, como exemplifica a fala de uma professora que diz que
“na universidade não se ensina nada, aqui não temos aprendizado, como em outros cursos. Aqui se
transmite algo da ordem do inconsciente para suscitar o desejo do aluno.”44 Os lacanianos se apegam
ao processo de uma análise pessoal como uma especificidade da psicanálise, que a tornaria um saber
diferente dos demais conhecimentos. Isso seria a justificativa da ideia já exposta dos lacanianos de
que não é possível formar psicanalistas nas universidades. “Nas Escolas se transmite, e não se ensina
psicanálise”, que seriam duas lógicas distintas de apreensão de coisas de naturezas também distintas.
Posso citar também, alguns dos elementos que unificam os segmentos da estrutura política
dos psicanalistas. Os lacanianos assim como os freudianos de qualquer outra corrente, além de serem
contra a regulamentação da psicanálise, também consideram seu terreno teórico e discursivo, e até
sua ética de conduta enquanto um espaço “contra-ideológico”, fora das demais visões de mundo, fora
das opiniões políticas - “direita-esquerda” - fora da economia. Esse movimento é identificado por
Castel (1978) enquanto uma tentativa de usufruir “um direito de extraterritorialidade social”, que os
protegeria, segundo esse autor, de possíveis objetificações advindas de outras áreas de saber. Dessa
44
Essa é uma questão bastante interessante, pois essa reivindicação por um saber ou saber diferente dos demais parece
abrir espaço a questionamentos, se levarmos em consideração que a aliança do saber teórico e prático se dá de forma
similar em outras tradições científicas e acadêmicas. Afinal, se algum aluno de antropologia perguntar ao seu
professor o que significa determinado conceito, talvez o último lhe responda que “só indo a campo ele
compreenderá”. Ou no caso do químico, “só indo ao laboratório a teoria se tornará compreendida”. A ciência, como
Thomas Kuhn descreve, ocorre por meios de convivência social e aquisição de saber prático a partir da interação
com os pares (Kuhn, 2011).
53
forma, se aliam ao campo da arte e se opõem à “religião”, ao “Discurso do Mestre”, à “Ciência”. Os
psicanalistas também se consideram fora do senso-comum, senão em constante conflito com este,
por abordar temas como o da sexualidade de um ponto de vista não comum e “subversivo”.
Por mais que os psicanalistas considerem apenas as Escolas como instituições que formam e
autorizam o psicanalista, a cultura psicanalítica está presente também na universidade, e tem efeitos
principalmente naqueles que se empenham em seguir pela clínica psicanalítica, optando por
disciplinas, estágios, e fazendo sua própria análise. Tais elementos se combinam e propiciam uma
entrada do aluno graduando nessa cultura. É a partir desses contextos institucionais, universitários e
de formação, que se adquire um ethos, um “código de emoções”, que consiste em “um individualismo
psicologizante que privilegia a expressão da emoção, confundido o pessoal antes inconfessável com
o recalcado ou reprimido” (Fiqueira, 1985, p.8). Da mesma forma, algumas categorias e fenômenos
tomam certa centralidade, ou seja, se constitui o eidos, “uma lógica para o pensamento”, que seria
“um psicologismo individualizante que insiste em procurar sob determinadas aparentes uma 'outra
coisa' que, inscrita no domínio pessoal, possa dar a impressão de explicar, dissolvendo ou relegando
a segundo plano o aparente, impondo-se como verdade” (Ibid). O saber psicanalítico instaura na
pessoa uma forma específica de compreender as relações humanas a partir de divisões centrais, como
consciente e inconsciente, e as estruturas centrais da subjetividade humana, neurose, psicose e
perversão, que acabam formando chaves classificatórias organizadoras dos tipos humanos que
norteiam a forma dos psicanalistas compreenderem as relações humanas, assim como interpretam
(em todos os sentidos dessa palavra) e dominam o conhecimento sobre algo que escapa ao outro. A
terceira dimensão da cultura psicanalítica que se incorpora pelos lacanianos, além do ethos e do eidos,
é o dialeto, a “psicotagarelice expressiva”, que seria “um infindável exercício de autocontrole no qual
o poder interpessoal se exerce através do equilíbrio precário entre manipulação autoritária do outro e
dosagem automanipulatória da confissão” (Ibid) Ao longo deste capítulo, abordarei essas três
dimensões de forma descritiva.
Tanto a lógica do pensamento, que seria o que Bourdieu (1996) denomina como “visão e
divisão do mundo”, assim como o a psicotagarelice expressiva e o código de emoções, são dimensões
que aparecem combinadas e produzem uma determinada conduta e estilo próprio aos psicanalistas, o
que abordarei como uma performance. Ao longo deste capítulo abordarei essas três dimensões de
Figueira a partir de descrições de inspiração etnográfica.
***
54
Iago, um psicólogo recém-formado que já citei, que estava na época, cursando uma
especialização em saúde mental, me relatou as mudanças que o contato com a psicologia, e
principalmente com a teoria psicanalítica, produziram na sua forma de se relacionar com as pessoas:
Eu acabei ficando numa posição um pouco mais agressiva dentro do contexto familiar [...]
a partir do que as teorias colocavam, principalmente a psicanálise, de estar na família um
pouco mais questionadora, colocando questão nas coisas. […] Era isso de ouvir uma
conversa entre irmãos e eu querer falar alguma coisa a partir de alguma teoria mas sem
dizer que era uma teoria, mas colocando aquilo e acabava causando alguns ruídos. Isso era
difícil porque acabava me afastando da minha família e da vida amorosa também - de fazer
leituras, atos de uma ex-namorada entendia aquilo como negação ou algo do tipo.
A partir do relato de Iago nota-se que categorias teóricas como negação fazem parte da vida
cotidiana, e passam a ser uma forma de conhecer o outro para além dele próprio. As categorias
psicanalíticas constituem esse dialeto que possibilita criar um julgamento douto sobre o outro na vida
cotidiana, e dessa forma as atitudes daqueles que convivem com os psicanalistas não estão isentos de
se tornarem um código a ser decifrado pela teoria psicanalítica – o que talvez possa também ocorrer
com outros psicólogos, mas considero que a linguagem psicanalítica tem uma especificidade que é a
de considerar que as atitudes dos outros não se apresentam de forma consicente a eles. O dialeto
psicanalítico, presente na vida cotidiana, possibilita que os pares transmitam um julgamento ou
percepção de forma mais rápida e codificada, da mesma forma que um especialista transmite
determinadas coordenadas a seu colega. Mas tratando-se de interpretações dos comportamentos
alheios e de si mesmo, essa linguagem toma formas específicas. Por exemplo, se transmite um
julgamento sobre uma pessoa ao dizer que ela é histérica, ou obsessiva, ou que possui traços de
psicopatia ou perversão, ou que é borderline, e por aí vai. Lembro uma vez que, durante um evento
de uma Escola, ao entrar no banheiro, no intervalo entre duas apresentações, ouvi duas psicanalistas
comentando: “não entendo porque fulano age assim, sempre o achei obsessivo. Será que é histérico?”
Presencio conversas do dia a dia, entre amigos, em que se busca diagnosticar um conhecido comum,
como se percebe pelo diálogo entre Jorge e Maria. Ele diz: “pelo que você me falou, ou ele é um caso
de psicopatia ou é um neurótico extremamente narcisista”. Como diz uma psicanalista entrevistada,
Maria Ângela, “quando você fala com colega psicanalista você já fala no jargão, né”. E pelo jargão,
tudo se faz compreendido, supostamente.
Os psicanalistas tomam a problemática da sexualidade humana e a falta estrutural como eixos
centrais para se compreender o fenômeno humano, e compartilham de uma noção trágica da vida
assim como uma noção de “pessoa individualizada” (Antonio, 2015). Jorge, um colega proto-
lacaniano, já chegou a comentar um dia: “o lacaniano é extremamente fatalista porque, de certa forma,
55
querendo ou não, o inconsciente é uma espécie de cena trágica grega. São todas histórias que você
tenta sair de seu destino e quanto mais você tenta mais você se vê caindo nele”.
O sistema de pensamento lacaniano e suas classificações também norteiam as ações dos
lacanianos, e contribuem para a construção de uma determinada fachada profissional (Goffman,
1989)45. É muito comum, por exemplo, os lacanianos se apresentarem em situações a partir de uma
determinada maneira, ou seja, representam seus papéis, talvez mais reclusa, austera, ou blasé. No
entanto, me refiro aqui a uma meta-representação, na medida em que os lacanianos possuem uma
dose extra de performance. Ou seja, eles representam a representação de ser lacaniano. A dramaturgia
lacaniana é acentuada, e possui doses de um mistério por parte dos atores, que parecem buscar causar
determinadas reações de sua platéia. Uma amiga já me relatou uma vez que havia um psicanalista
com quem trabalhava que sempre “sustentava o silêncio”, o que gerava certo constrangimento quando
pegava carona com ele retornando para casa. O “sustentar o silêncio”, termo bastante comum entre
lacanianos, parece indicar que não se deve agir em resposta a uma imposição social de ritual de
interação, mas a interação ser norteada por desejos internos. A forma dos psicanalistas se
apresentarem na vida cotidiana também se relaciona com o processo de análise, que produz uma
concepção de intimidade, e incentiva a não exposição de questões e problemas íntimos a uma plateia
que não seja o seu próprio psicanalista. Lembro-me de ter conhecido, em um evento casual, um proto-
lacaniano que me fez o seguinte relato sobre seu processo de começar a fazer análise pessoal e
atender: “eu comecei a ficar mais sério, a não interagir tanto nas conversas. As pessoas perguntavam
para mim 'está tudo bem?', e eu estava bem, mas apenas me sentia diferente. Não sentia a necessidade
de ficar falando o tempo todo”. A valorização da vontade individual – ou do desejo – que ocorre na
análise produz uma concepção de pessoa individualizada onde o desejo individual sobretermina
aspectos de ordem coletiva e objetiva. “Sustentar o desejo diante do outro”, “Se colocar como sujeito,
e não como objeto”, são expressões comuns do meio. Para os lacanianos, as situações objetivas da
vida existem, porém cada um se posicionará frente a elas a partir de sua singularidade, seu desejo,
seu gozo e seu sintoma.
Os psicanalistas, e acredito que não somente os lacanianos, são pessoas que geralmente
rejeitam valores que expressem ideais de compaixão, empatia, generosidade, ou pelo menos buscam
transparecer isso, de forma bem geral. Se dizem imunes ao discurso do sofredor, e não se permitem
guiar por noções de piedade, compaixão e pena. O relato abaixo de Marisa, psicanalista estabelecida,
exemplifica a repulsa que os psicanalistas tem por essas noções:
45
Goffman define fachada como o “equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconsciente empregado
pelo indivíduo durante sua representação” (Goffman,1989, p. 29).
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Eu queria fazer medicina porque eu tenho uma coisa de querer resolver problema dos
outros. E me livrei já, graças a Deus desse sintoma horroroso, pagando, pagando, pagando
[na análise]. Mas assim, eu tinha uma ideia de que eu acho que eu posso ajudar, essa coisa
meio Madre Teresa de Calcutá, meio samaritana – mas que droga que é isso! Então a
inspiração de medicina veio daí de querer salvar as pessoas, resolver tudo.
Não apenas Marisa considera uma “droga” e um “sintoma” sua vontade de querer “resolver
os problemas dos outros” e “ajudar”, mas também declara que “se livrou” desse sintoma fazendo
análise. Para além desse relato, durante minha convivência com psicanalistas, posso salientar que um
traço que caracteriza esses profissionais é uma certa preservação de sua vida íntima, e uma noção
bastante forte de individualidade. Essa concepção do que devem ser as relações humanas também
contribuem para uma fachada blasé, que tem como traço uma sabedoria a mais que os outros sobre
as estratégias humanas de captura emotiva, que são comumente reconhecidas como “chantagem
emocional”. Um psicanalista, Paulo Eduardo, que foi meu professor, por exemplo, uma vez disse que
“o discurso pela via do sofrimento é o discurso pela via da sedução” . Ou seja, para os psicanalistas,
a pessoa que se expõe ao outro pela via da sofrência, expondo suas angústias, estaria na verdade se
isentando de se responsabilizar pelo seu próprio sofrimento. Há inclusive uma frase de Lacan,
famosa, que ele diz que a depressão é uma “covardia moral”. A “responsabilização” é um dos
principais valores dos psicanalistas, e que está no centro do tratamento analítico. Como diz Jorge, “o
psicanalista não busca levar o paciente ao céu, mas oferece a ele a oportunidade de ter um inferno
mais tranquilo, com mais responsabilidade”. Pela minha experiência e convivência com esses
profissionais, seria um espanto ouvir de um psicanalista que ele que ajudar o paciente, ou mesmo
curar. O que um psicanalista propõe é um tratamento, tendo um significado um pouco diferente, pois
para ele significa “se haver com o Real”, ou seja, que o sujeito possa se haver com aquilo que o
acomete, e se deparar com ele. O fatalismo dos psicanalistas leva-os a crerem que no mundo “não há
salvação”. E quando se entende que não há salvação, é aí que está o efeito de cura. Como um colega
já apontou uma vez, “é quando o paciente enxerga que estão todos tão ferrados como ele que há
alguma melhora”.
Percebo que entre os proto-lacanianos, principalmente entre os que ainda estão na graduação
de psicologia e acabaram de ir ao encontro do mundo psicanalítico, os conceitos psicanalíticos são
utilizados talvez de forma mais recorrente na vida cotidiana, em decorrência de um possível
deslumbramento pela teoria recém-conhecida propícia a uma gama de interpretações das relações
humanas. Atos-falhos são identificados; cortes e pontuações são constantes. Por exemplo, uma
colega minha, Raissa, proto-lacaniana,já chegou a me dizer que queria que seu irmão, que tentava há
alguns anos um alto cargo em um emprego, fizesse análise. Raissa dizia que “queria entender que
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poder é esse que ele busca para ele”. O mundo lacaniano é, portanto, marcado por distâncias,
“silêncios”, seriedade, e também é um mundo rico de questões, reflexões e interpretações sobre a
subjetividade e a interação humana. Um universo onde nada é o que parece ser, ou tudo que parece
ser não é, o que faz do psicanalista um detetive das atitudes e desejos dos sujeitos.
A trajetória da formação profissional do psicanalista pode ser separada analiticamente em
etapas, cujo início pode se dar mesmo antes de se iniciar a graduação (geralmente em psicologia).46
A escolha pela psicanálise parece passar, pelo menos de forma geral e a partir dos casos próximos a
mim, por um capital cultural (Bourdieu, 2006) da parte do aprendiz, e requer, por exemplo, um
interesse pela arte, ou por uma “determinada arte”, geralmente as do tipo reconhecidas por uma parte
da elite intelectual brasileira.47 De qualquer forma, a formação em psicanálise, considerando todas as
etapas possíveis - e não somente as reconhecidas pelos psicanalistas, que se daria somente nas Escolas
– parece requerer uma cultura específica de uma classe social.
Da mesma forma que na maioria dos casos a cultura de uma determinada camada social
possuidora de um capital cultural facilite a entrada do aluno na trajetória de formação, a própria
formação também desenvolve um determinado ethos. O ethos psicanalítico é construído de diversas
formas, a partir de um determinado ambiente de interação, fornecido pelas instituições acadêmicas e
as de formação oficial – as Escolas. E esse processo ocorre pelo estudo, pela relação com os pares,
pela imitação e pela análise pessoal – ferramenta poderosa de construção paulatina de uma noção de
pessoa individualizada e autônoma – e pela imitação, que reproduz um modelo de psicanalista através
da imagem de Lacan. Pela imitação os alunos aprendem trejeitos e passam a se expressar como seus
professores, que por sua vez, buscam se expressar de forma bastante parecida com a dramaturgia
francesa de Lacan. A valorização do desejo enquanto fonte das motivações e fonte de interpretação
das atitudes desemboca em uma forma bem específica de compreender as relações humanas, que são
compreendidas e percebidas a partir da valorização da interioridade. Ou seja, a experiência de se
tornar lacaniano hierarquiza determinantes de ordem subjetiva sobre as de ordem objetiva (Antonio,
2015), fazendo buscar o que se esconde por trás das explicações da objetividade das coisas.
O processo de análise constrói uma noção de “pessoa” individualizada. O desejo do sujeito é
um valor central para os lacanianos, e eles identificam suas motivações a partir de uma interioridade.
É comum, por exemplo ouvir de um colega ou amigo que não vai sair com fulano tal noite ou que
46
Geralmente os psicanalistas possuem graduação em psicologia. Alguns são também psiquiatras. No entanto, hoje em
dia, em grande parte das Escolas lacanianas não existe uma restrição sobre o diploma, e já vi circular em Escolas
pessoas advindas da filosofia e engenharia, por exemplo. Para mais informações sobre como, a partir da metade da
última década, os psicanalistas se relacionam com determinados títulos acadêmicos, ver “O mundo psi no Brasil”, de
Jane Russo.
47
Não é pelo interesse por “van Dame” que se chega à psicanálise, por exemplo, mas por Bergman, ou Fellini. Da mesma
forma não é pelo funk ou pagode que se dialoga com a psicanálise. Talvez no máximo um samba bem sofisticado do
Paulinho da Viola.
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não vai fazer determinado curso, não vai tentar determinada pós-graduação, etc., porque não está
muito desejante. O desejo circunscreve uma série de fenômenos dentro de um sentido que possibilita
a compreensão das ações da própria pessoa como a dos outros. O desejo, para além de seu
entendimento teórico, é uma categoria que possibilita dotar de sentido os discursos e condutas
humanas. Por exemplo, faltar a uma entrevista pode ser entendido enquanto um ato falho, ou seja,
uma atitude que revela, “sem querer”, por um tropeço, um desejo interno do sujeito. Os lacanianos
valorizam o sujeito desejante, o que é ativo em suas escolhas, se opondo a ele o sujeito paralisado, o
que ocupa uma posição passiva, a posição de objeto diante do outro. Já vi um psicanalista renomado,
Jorge Forbes, mencionar que nas Escolas de formação “os psicanalistas brigam muito porque uma
análise possibilita ao sujeito sustentar seu desejo diante do outro”. Na seleção de estágio do SPA,
por exemplo, os critérios de seleção não se baseavam em um conhecimento formal e teórico do texto
apenas, mas principalmente no desejo daquele aluno em se tornar parte daquela equipe. Estar
“desejante na clínica” é considerado o motivo principal pelo qual se escolhe o oficio, não se levando
em conta, ou pelo menos não se dizendo dos possíveis ganhos financeiros com aquela profissão. O
lacaniano é um ser desejante por excelência, que situa suas ações no campo do desejo. Um exemplo
é de uma amiga próxima, Juliana, que concluiu o mestrado em psicanálise na França, recentemente,
me relatou sobre a interessante experiência de ser orientada na sua dissertação, pois sua orientadora
não dava dicas sobre pesquisa, mas questionava seu desejo sobre sua pesquisa, e o que ela desejava
buscar. Ela chegou a criticar essa postura, e dizer que era difícil obter uma orientação mais prática.
Chegou a dizer também que nessa universidade os psicanalistas eram do tipo blasé. O blasé, segundo
Simmel (1973, p. 12)) está relacionado aos “fundamentos sensoriais da vida psíquica” das
metrópoles, onde a incansável produção de estímulos e mudanças geraria uma exaustão emocional
ao indivíduo caso ele não se protegesse delas. O indivíduo da metrópole, portanto, está imerso em
relações complexas, movido por operações lógicas objetivas, na medida em que as relações de troca
são impessoalizadas, subtraindo o emocional e individual das relações, tornando-as objetivas, no dia
a dia. Da mesma forma, pela extensão qualitativa e quantitativa das cidades, emerge o comportamento
extravagante, como os maneirismos, o capricho e o preciosismo, formas pelas quais o indivíduo
moderno possa ser reconhecido na multidão, enfim, como “sendo diferente”. Tenho a impressão de
que o “blaserismo” não é caso isolado da universidade francesa de Juliana, mas é uma tendência dos
psicanalistas no Brasil, que se acentua no entrecruzamento de dois elementos: quanto maior é a
trajetória do psicanalista e maior seu reconhecimento, assim como seu pertencimento e maior
envolvimento em uma Escola de formação, por mais que não seja uma regra. O “blaserismo” pode
remeter a um tipo de individualidade e gostos estéticos europeizados, valorizados também presentes
em determinados setores e classes elevados da sociedade brasileira, por mais que esses símbolos de
sofisticação circulem em esferas cada vez mais estritas. Intuitivamente levanto a hipótese de que, por
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ser uma corrente francesa, o lacanismo carrega elementos marcantes da cultura francesa - ou de um
momento da cultura francesa (uma tentativa de emular uma cultura francesa que já não existe mais
enquanto tal) - como a valorização do sofrimento e uma ideologia individualista.
Utilizo a noção de representação (Goffman, 1989) para descrever a forma como os
psicanalistas lacanianos representam sua profissão e constróem sua fachada em um contexto social.
No entanto, o termo mais adequado seria meta-representação, para salientar que os psicanalistas são
atores que tendem a se expressar de forma dramática, assim como expressam sua opinião de forma
característica. Por exemplo, um professor, no segundo período da graduação, no primeiro dia de aula,
pediu que levantasse a mão quem, entre os alunos, gostaria de ter a mesma vida amorosa e sexual dos
pais. Salvo uma aluna que levantou a mão, o restante dos alunos permaneceu imóvel, enquanto seus
olhos percorriam o espaço total da sala, constatando, de forma visivelmente consternada, de que
parecia haver uma unanimidade na turma em rejeitar a vida amorosa dos pais. O professor, com um
sorriso malicioso e um ar jocoso, chegou a dizer frases como “esse é só o começo”, “essa é a primeira
má notícia, mas vocês verão, a coisa só vai piorar”. Esse exemplo - por mais que advenha de um
professor que é, em si, muito performático – ilustra que os psicanalistas tendem a dramatizar
(Goffman, 1989) a prática e a teoria psicanalítica com elementos de pessimismo e por uma visão
trágica da vida. Essa visão trágica se faz perceber também pela forma como os lacanianos citam a
teoria e enfatizam determinados pontos da obra teórica de Lacan. Fazendo referência ao seminário 7
de Lacan48, Raíssa, uma amiga, em uma situação casual, corrobora uma opinião bem geral dos
lacanianos, que é a de que a psicanálise não busca apaziguar o sofrimento humano. Raíssa me diz “ao
contrário da arte, da ciência e da religião, a psicanálise não busca dar conta do Real. A arte busca dar
um contorno para o Real - e Lacan utiliza a metáfora do vaso, onde se contorna o vazio. A ciência
busca dar uma explicação ao Real e, já a religião, busca tamponar o Real.” O Real, para a psicanálise
é aquilo que está fora da ordem simbólica. É o impossível de ser simbolizado, de ser dito. Raíssa
defende a especificidade da psicanálise no que diz respeito ao trato com o Real. Esse é inclusive um
dos grandes bordões do lacanismo. De qualquer forma, o Real parece ser um conceito que conecta os
psicanalistas com um tipo de estilo expressivo, se não contornar os sofrimentos e angústias da vida,
mas incluí-los em seu cotidiano e expressá-los.
Meu amigo Jorge chega a me dizer que tem uma explicação para a dramaturgia lacaniana, e
explica que “eles buscam parecer ser o que eles estudam; por estudarem o inconsciente, buscam
produzir um discurso parecido com o inconsciente”, onde as regras de linguagem são invertidas, são
ditas frases sem sentido aparente, fazem trocadilhos e neologismos, e estabelecem relações
específicas entre coisas pela lógica do significante. Ou seja, como diz Jorge, “imitam o objeto
48
As publicações de Lacan são divididas em seminários, indo do número 1 até o 26. Os seminários são obras transcritas
de aulas suas ocorridas na França durante as décadas de 50, 60 e 70 na École des Autes Études da Sorbone, em Paris.
60
estudado, transformando-o em um estilo de expressão.” Jorge explica que “para Lacan a linguagem
não é uma faculdade mental cuja finalidade seria a comunicação. Linguagem seria mais como um
discurso de Deus que preexiste”, “seria mais um código que comanda o sujeito. É como se você, ao
falar, houvesse uma maquininha falando por você. Seria um código autônomo que comanda o
sujeito”, o que faz de Lacan às vezes até um chartalatão para autores cognitivistas, tal como Chomsky.
Chomsky e Lacan chamam de linguagem coisas totalmente diferentes. Para o primeiro, a linguagem
seria uma faculdade cognitiva. Para Lacan, uma vez que há linguagem, ela se torna autônoma e
produz inclusive sintomas. É muito comum, seguindo a orientação de análise lacaniana, buscar no
discurso do paciente os significantes que o acorrentam em determinados sintomas. Para exemplificar,
relatarei alguns trechos de casos clínicos e algumas falas de que me lembro do período de minha
graduação.
1) Uma psicanalista lacaniana já chegou a dizer que, a partir de sua própria análise, percebeu
como havia significantes determinantes, como inclusive, o seu apelido de quando era criança, “Falta”,
significante que a fazia “cair no mesmo lugar sintomático de ser alguém em falta com os outros”
2) Uma professora, durante a graduação, já chegou a relatar em sala de aula que tinha um
paciente com fobia de morcegos. E aí, na análise, revelou-se que o significante morcego remetia à
sua relação com o “amor cego”. Ou seja, morcego era um aprisionamento do paciente à cegueira que
supunha haver em suas relações amorosas. E ele expressaria esse significante sem se dar conta dessa
relação oculta, que só se pode, de fato, se revelar numa análise.
3) Outro caso é o de Maria. Indo à sua analista revela que tem uma fixação por um
determinado cabelo de uma colega. Inveja-o e gostaria de ter um igual. Diz que sua psicanalista faz
a seguinte intervenção: “cabelo? Tem aí algo de de 'ca-bélo' [adjetivo que indica beleza], 'belo', algo
'belo'”.
4) Em outra situação, um paciente de um hospital psiquiátrico, considerado psicótico, tinha
uma grande questão envolvendo seu pai; em um determinado momento, fez um gesto obsceno para
a estagiária de psicologia, mostrando seu dedo médio erguido, em deboche. A estagiária,
surpreendida, interroga os colegas em outro momento: “pois qual o nome desse dedo? O pai de
todos”.
Os casos chegam a ser tão caricaturais que passam a se tornar piadas entre amigos. Por
exemplo, dois colegas chegam a fazer ironias com os deslocamentos dos significantes. Há anos, um
relata que sonhou que estava em um lugar repleto de tamanduás. Analisando o significante
“tamanduá”, e elaborando a respeito da relação amorosa à qual estava enredado na época, o segundo
aponta: “tamanduá, tá amando-a”. Ou seja, “está amando-a” seria a interpretação de um significado
oculto.
Os casos podem parecer exóticos àquele que não é habituado ao mundo lacaniano, no entanto,
61
esse tipo de interpretação dos significantes é bastante recorrente entre os lacanianos. De qualquer
forma, os lacanianos seguem o curso de sua vida com um toque dramático, e transmitem a psicanálise
aos interessados de forma bastante teatral. Me lembro uma cena que ocorreu uns cinco anos atrás. Ao
conversar com dois amigos proto-lacanianos do curso de psicologia, estávamos às voltas em uma
discussão sobre o conceito de Real - um conceito bastante misterioso. Um de meus amigos, Fábio,
nos contou que seu tio, um psicanalista, ao ser indagado sobre o Real, recortou um quadrado no centro
de um papel, e, colocando o papel em sua face, no meio desse espaço colocou sua língua para fora e
falou: “Isso é o Real”. Como já foi dito, o conceito de Real é um dos mais obscuros para os lacanianos
e quase nenhum deles que conheço sabe explicá-lo de forma simples ou sistemática. Para tanto,
geralmente contam pequenas histórias como essa para entreter amigos, onde alguém busca, de forma
performática, transmitir o significado desse conceito. É muito comum entre os lacanianos, inclusive,
quando não compreendem algo, ou algo ser misterioso, dizerem que “é algo da ordem do Real”.
Lembro-me de muitas disciplinas de psicanálise durante a graduação onde a performance era
excepcionalmente acentuada. Os professores falavam com pausas, davam ar misterioso às suas
palavras, e geralmente causavam espanto, angústia ou outros sentimentos na plateia de alunos. Um
professor dizia lentamente: “Freud foi um grande lixeiro de sua época...ele pegava os restos...”. Uma
professora dizia, dramaticamente, “a psicanálise é como jogar um xadrez...” e chegava a desenhar
alguns enigmas no quadro. Lembro-me de um professor, em específico, cujas palavras pesavam
demasiadamente, pois eram poucas e profundas. Ele iniciava a aula perguntando: o que é o amor?
Após um longo silêncio, alguém ousava improvisar uma resposta. O professor questionava de forma
muito inteligente a pergunta, e outro silêncio se fazia. A aula produzia uma tensão constante, onde os
alunos eram confrontados com questões acerca da vida, da morte, do amor, entre outras, de forma
bastante intensa. As palavras eram ditas com cuidado, e o professor chegava a bater na mesa com sua
mão após proferir alguma frase, geralmente de efeito. Ele dizia coisas como “o discurso pela via do
sofrimento é para seduzir o outro”. Dizia de forma pausada e reflexiva, criando uma atmosfera de
reflexão e envolvimento emocional com o tema. Maria Ângela conta que já ouviu falar de um
professor que fazia performances “esquisitas”:
pelo que me contaram, ele achava que a sala de aula era o divã da psicanálise, então
ele ficava em silêncio...me contaram umas coisas esquisitas, não sei se é verdade,
que ele não falava, que ele fazia umas interpretações...mas também eu não sei se
foi um momento da vida dele e depois ele parou com isso.
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amiga minha que, ao deixar o seu prato do jantar cair na mesa após beber alguns choppes, diz: “está
aí a queda do objeto desde sempre faltoso”. Em um outro contexto, em um ambiente festivo, após
reparar que um dos participantes da comemoração havia caído no sono após exagerar no uso de
bebidas alcoólicas, uma psicanalista comenta: “meu Deus, esse menino é pura pulsão!”50. Nessa
mesma festa, músicas com letras psicanalíticas são improvisadas, e trocadilhos e substituições com
termos lacanianos são cantados com muitos risos. Os lacanianos parecem ter consciência do mundo
particular de que participam e em momentos de descontração, de bastidores em relação às plateias
de pacientes ou outras pessoas não familiares podem expor o sistema de pensamento lacaniano de
forma jocosa, assim como outros grupos profissionais certamente fazem. Certamente essas
brincadeiras ocorrem em outros meios profissionais, mas busco delinear a forma específica pela qual
se manifesta o humor no meio lacaniano. No entanto, já conheci e ouvi falar de psicanalistas mais
sérios, distantes, e que levam muito a sério sua crença psicanalítica a ponto de sustentar sua fachada
de psicanalista com mais empenho e disciplina. O que se deve levar em conta, contudo, ao abordar a
fachada dos lacanianos é que os estilos expressivos estão geralmente circunscritos em uma
determinada instituição, uma Escola. Maria Ângela, psicanalista já estabelecida, um nome referência
da saúde mental do Rio de Janeiro, professora em uma universidade federal, diz que na década de 70
e 80, no Rio de Janeiro, havia o Colégio Lacaniano, cujos membros, segundo ela, eram muito
performáticos. E havia a Escola Letra Freudiana, onde as pessoas já eram mais sérias. Ela chega a
identificar os psicanalistas da universidade onde me graduei de um “estilo discreto, elegância
discreta, como diz o Caetano” referindo-se a um verso de música do compositor Caetano Velloso.
Lembro que, entre os estudantes, no início da graduação, o vocabulário psicanalítico era o
mais facilmente assimilado pelos alunos, e que, não importava o gosto pessoal pela psicanálise
enquanto teoria, seus principais conceitos eram utilizados no cotidiano para fazer graça ou para
referências em geral. Por exemplo, era comum opinar sobre as mulheres a partir da categoria
“histérica”, e sobre os homens, se falava sobre se ele tinha falo ou se era obsessivo, conceitos muito
utilizados também em contextos de paquera.
No entanto, o que foi descrito até o momento diz respeito a características presentes também
em diversos meios profissionais. Talvez a especificidade dos lacanianos em sua apresentação na vida
cotidiana esteja na intensidade expressiva de um leque de dizeres que transmitem reflexão, ou seja,
nos seus estoques de frases de efeito e aforismos – e nesse ponto talvez resida a especificidade dos
lacanianos, que os difere de todas as outras profissões. Os lacanianos produzem e reproduzem muitas
fórmulas e frases, que são repetidas ritualmente também no cotidiano, seja por sua pertinência teórica,
50
A pulsão para a psicanálise, como foi explicado no capítulo anterior, é o que distingue o instinto dos animais do desejo
humano. A pulsão humana é sem objeto fixo, o que torna muito mais complexa e variada objetos e formas de
satisfação sexual humana. Esse assunto será melhor abordado no próximo capítulo.
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porque expliquem alguns mal-entendidos teóricos, seja porque quebram com determinadas noções
advindas do senso comum. Meu antigo professor dizia: “um ato, na clínica, não se faz. Ele se
sustenta”. E “um discurso atinge quando tem efeitos no corpo”. Uma colega me diz, em contexto de
conversa descontraída: “A interpretação não busca descobrir um segredo, mas o que possibilita
sustentar um dito”.
Em um evento da Escola Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (EBP-RJ), que ocorreu
em 2012, denominado “Horizontes sobre o feminino”, tive a oportunidade de estar presente e fazer
anotações de frases que considerava interessantes na época de graduanda em psicologia. Olhando
hoje as anotações de alguns anos atrás, posso notar o toque dramático das apresentações dos trabalhos
dos psicanalistas, e parecem ser uma via para ilustrar a mistificação de sua prática ou, o ar misterioso
pelo qual os psicanalistas expõem seus trabalhos. Podemos tomar as frases, por mais que destacadas
dos seus devidos contextos, como frases anotadas por uma estudante de psicanálise
interessada. :”mulheres, as melhores analistas, quando não as piores”; “a mulher sempre quer se
decifrar conservando o enigma”; “o homem goza localizadamente e a mulher goza
deslocalizadamente”; “o não-todo é feminino por mais masculino que o sujeito seja”; “a inexistência
é uma forma de poder existir o vazio”; “para o homem o amor marcha sem dizer, já o gozo da mulher
não marcha sem falar”. Sem contar com frases do consagrado Lacan. Entre elas “o Outro do Outro
não existe”, ou um dos títulos de seus textos “A beira do eu e o eu da beira”; “a mulher não existe”;
a relação sexual não existe”. Não consigo dizer hoje o que significam essas frases e não tenho dúvidas
de que seria difícil para os lacanianos explicarem de forma sistemática seu significado oculto. No
entanto, elas evidenciam a forma idiossincrática pela qual eles transmitem conhecimento uns aos
outros e se comunicam entre si, além de constituir a fachada de profissão mistificada e complexa a
um público leigo.
É curioso notar que enquanto os pacientes, no dispositivo clínico, fazem um “movimento
social antidramatúrgico” ao confessarem “pecados”, segredos que os expõem (Goffman, 1989), os
psicanalistas devem acentuar sua dramaturgia, pois é a partir de um lugar de especialista, ou como os
lacanianos denominam de suposto saber, que uma eficácia terapêutica pode operar. Os psicanalistas
são muito performáticos, pois, segundo eles, uma análise não ocorre por meio de explicações
pedagógicas e correções do comportamento, mas sim a partir de interpretações que produzam
ambiguidade no sentido que o paciente traz, podendo instaurar o vazio, a partir do qual o sujeito pode
emergir se posicionando, a partir de seu próprio desejo. Ou seja, a interpretação do psicanalista é
mais uma meta-performance, na medida em que o psicanalista atua51 efetivamente, que instaura um
mistério, ou um discurso ambíguo e às vezes uma frase com duplo sentido, mais difícil de entender
51
Os psicanalistas chegam a utilizar esse termo para indicar um ato em que, por motivos clínicos, se fez uma atuação
diante do paciente.
65
do que uma explicação clara e objetiva. Uma analisanda, minha amiga, Lorena, expressa isso de
forma clara quando diz que enviou uma mensagem de texto extensa à sua analista por motivo de
emergência por uma crise em seu relacionamento amoroso. A resposta da psicanalista foi simples e
enigmática: “você se ama nele”. Lorena relatou na hora que não compreendeu o que queria dizer
aquela mensagem, e a aposta da psicanalista seria a de que, deduzi, por ser ambígua e enigmática, a
paciente não se apegaria a um sentido unívoco imposto, mas sim produziria sentidos em torno da
interpretação e assim trabalharia sua questão.
A meta-representação do psicanalista é, portanto, essencial no dispositivo clínico, que acaba
se tornando seu cenário de atuação, onde modos de se conduzir e se expressar acabam sendo
misteriosos e impressionando o paciente, que passa a mistificar a figura do psicanalista. Esse tipo de
interação parece estar relacionado com casos extremos, como o da excentricidade, forma pela qual
muitos psicanalistas são reconhecidos, inclusive Lacan. Lembro-me de um psicanalista que conheci
e que oferecia um curso de capacitação para acompanhantes terapêuticos na zona sul do Rio de
Janeiro. Cheguei a frequentar seu curso por alguns meses, que ocorria em seu próprio consultório, e
cuja atmosfera remetia a algo misterioso e excêntrico. Na antessala, ou o que seria uma sala de espera,
um quadro de Jaques Lacan estava à vista, acima de uma mesa onde uma garrafa de vinho com duas
taças se encontravam em uma bandeja. Entrando na sala de atendimento, constituída pelo divã, tapete,
luzes indiretas, tinha-se a sensação de acolhimento, de um ambiente confortável e aconchegante. Por
mais que a parte interna de seu consultório fosse parecida com outros consultórios que já visitei e
frequentei, havia ali uma “atmosfera” peculiar, principalmente construída pela dramaturgia do
psicanalista. Ele recebia a todos cordialmente e de forma bastante educada, e, quando se sentava em
sua poltrona, discutia os textos às vezes com um cachimbo na mão , porém sem acendê-lo. O
cachimbo parecia ser peça que fazia parte do cenário de atuação. O vinho, o cachimbo, assim como
outros elementos que se encontram em outros consultórios, parece exprimir uma tentativa de imitação
de Lacan, senão de um estilo francês de conduta, porém deslocado e adaptado para um cenário
carioca, o que às vezes é o que faz determinadas pessoas estranharem ou ridicularizarem
determinados psicanalistas que exageram nessa dramaturgia. Além disso, sua figura era um tanto
exótica.
Maria Ângela, psicanalista entrevistada, relata também o caso dos “performáticos”, como
denomina os psicanalistas do Colégio Freudiano, hoje extinto. Quando a interrogo sobre os
“performáticos”, ela me pergunta:
Você conhece o Magno Machado Dias – MD Magno? Precisa explicar mais alguma coisa?
(risos) Ele entrava com uma capa lá [no Colégio Freudiano], pelerine, aquela capa que acho
que Lacan usava. Ele entrou com uma capa pelerine, parecia um Mandrake. O pessoal era
66
muito performático. (...) E tinha congressos, nos anos 80...os congressos do Colégio
Freudiano bombaram, eram congressos incríveis. Teve o famoso congresso da banana, que
a capa do livro era um azul turquesa com uma banana enorme, tipo Andy Warhol. Era
banana amarela, aquela capa azul turquesa, pá! Psicanalista com banana amarela realmente
(risos)...eles eram performáticos.
Os casos acima relatados obviamente não são corriqueiros, constituindo um tipo que exagera
alguns dos traços típicos dos psicanalistas, e não pode ser considerado enquanto um padrão. No
entanto, as relações de imitação, ou a relação mimética (Girard, 2009) que os psicanalistas
estabelecem com a figura de Lacan chama a atenção daquele que chega a circular pelo meio lacaniano
e já parece ser conhecida em alguns meios. No programa de televisão “Provocações, apresentando
por Antonio Abujamra, e transmitido pelo canal Cultura, até algum tempo atrás, foi convidado para
uma entrevista o psicanalista Jorge Forbes. Este, psicanalista paulista famoso, se mostrou
evidentemente constrangido quando o entrevistador lhe perguntou se era verdade que dava aula
fumando um charuto igual ao de Lacan, e que suas aulas eram em francês. Após gaguejar um pouco,
o psicanalista justificou sua conduta, e inclusive chegou a fazer críticas severas sobre as tentativas de
imitação de Lacan, que acabam sendo “cafonas”. Tais imitações as quais o psicanalista se refere são
a de psicanalistas que buscam falar de forma enigmática e agir de forma excêntrica, assim como
Lacan52.
De modo geral, considero os psicanalistas dotados de uma disciplina dramatúrgica (Goffman,
1989), atuando com grande controle de suas ações e geralmente agindo pela sensatez, não se deixando
abalar por demandas ou se ausentando de ocasiões que possam fazer “cair sua fachada” diante de
determinadas plateias. No contexto universitário me chama a atenção o distanciamento que a maior
parte dos professores tem dos alunos, e se privam de saídas após aulas e presença em chopadas,
eventos onde alguns outros professores da psicologia estão presentes de forma descontraída. Os
psicanalistas geralmente possuem uma “fachada” de seriedade, e o efeito da restrição de contato da
parte dos psicanalistas com a plateia de alunos gera um “temor respeitoso”, sentimentos presentes
quando os atores se empenham em mistificar sua imagem, fazendo a plateia imaginar (ou fantasiar,
na linguagem lacaniana) sobre o que se esconde por trás da fachada (Ibid). Tal atitude pode ser
compreendida pelo fato de que os psicanalistas são seu próprio instrumento e propaganda de seu
trabalho, e seria difícil alguém buscar o serviço de um psicanalista que se exponha nas suas
contradições inerentes a qualquer ser humano, e não transmita confiança, melhor se colocando como
uma pessoa segura de si em suas próprias relações pessoais, o que pode ser melhor sustentado a partir
de uma distância de determinadas plateias. Outro agravante é que alguns desses professores atendem
52
Disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=VMa2qcgO3ac
67
alunos, ou seus parentes. Como diz Maria Ângela,
[a distância existe] porque eu acho que alguns recebem os alunos ou parentes de alunos no
consultório. E eu acho que fica aquela coisa de não se misturar para não confundir os
departamentos. Pelo menos eu sei de um ou dois [na universidade] que atendem alunos ou
parentes de alunos, ou recebem encaminhamentos para o consultório via alunos. (…) Eu
me misturo com os alunos e eventualmente, claro, as pessoas que eu recebo no meu divã
eu não saio convivendo com elas. Mas aluno, grupo de estudo...eu não tenho essa: vou
beber com aluno e vou estudar, não tenho esse problema. Mas é raro [entre os
psicanalistas].
Seja pelo motivo de “não misturar os departamentos”, ou para preservar a fachada, a distância
existe, e tem como efeito a mistificação. No entanto, não apenas a relação distante parece ser a
explicação da percepção do psicanalista enquanto uma pessoa mais misteriosa, digamos, mas o
próprio processo de análise pessoal parece ter o mesmo efeito naquele que se torna efetivamente um
analisando, que é o da individualização, criando um espaço de intimidade, que o psicanalista não se
vê na obrigação de compartilhar. A individualização produz uma concepção de autonomia e gera a
falta de certos sentimentos de lamento e culpa, o que torna os psicanalistas pessoas capazes de
recusarem estar presentes em uma ocasião ou dizer “não” a alguém de forma inescrupulosa, muitas
vezes gerando uma ideia de que os psicanalistas são “frios”, ou, como diz Venâncio sobre uma antiga
analista sua, “uma muralha de pedra”. O distanciamento, por mais que frequente, não pode ser
generalizado. É o caso de Maria Ângela, no relato acima. Inclusive a conheci em um evento, uma
festa de colegas proto-lacanianos, que trabalham na rede de saúde mental. Ela, já mais velha,
reconhecida e professora, que foi orientadora de um deles na monografia de conclusão da residência
em saúde mental, estava presente e se misturando com alunos e seus amigos. Mas por mais que ela
estivesse descontraída, interagindo com todos e bebendo cerveja, ela manteve durante quase toda a
ocasião, inclusive quando já era noite, seus óculos escuros. Isso demonstra que a “mistura” com os
alunos tem um limite.
O universo lacaniano se caracteriza também por um conjunto de valores estéticos e
simbólicos, que, por mais que não sejam regra, podem ser percebidos impressionisticamente. Por
exemplo, os lacanianos tendem a valorizar bastante a arte, e produzem eventos de todos os tipos, nas
Escolas e nas universidades, buscando sempre interlocução com filmes e obras artísticas. Como já
foi dito, e como veremos mais adiante, os psicanalistas se consideram “artesãos da transferência”
(Gallo, 2014), artistas postos em cena, prontos a produzir uma obra de arte a partir de seus casos
clínicos. Ao entrar nos consultórios dos lacanianos, quadros estão sempre à vista, com assinaturas de
Van Gogh, Gustav Klimt, Salvador Dalí, entre outros. Luzes indiretas, um tapete confortável,
68
estatuetas, um divã, manta, e mais referências à arte. Percebe-se também que o tipo de arte valorizada
é uma determinada arte, que, em sua maior parte me parece europeia.
Outro elemento importante que me chama a atenção da vida dos lacanianos é a angústia. A
maior parte dos lacanianos com quem convivi, convivo e conheci, ressalta a angústia não somente
como algo que inevitavelmente acompanha o ser vivente, mas como algo necessário para se buscar
uma análise, ou seja, é um sentimento necessário para se transformar subjetivamente. Já ouvi uma
vez uma aluna, Maria, se interrogar, diante de um professor, se ela teria uma vida fútil caso não lidasse
com o sofrimento da clínica e o estudo da psicanálise, ao que o professor respondeu que “ela não
seria jamais fútil, pois ela se angustiava”. A angústia aqui pode ser entendida enquanto oposta à
futilidade, portanto, ao raso, ao superficial. Seria na angústia que os sentimentos mais profundos e
nobres residiriam.
Os psicanalistas também valorizam o vazio, já que é por ele, produtor de angústia, que as
coisas se transformam. Uma frase bastante repetida de Lacan é que “a angústia é o único sentimento
que não mente”. A angústia tem valor para o lacaniano, na medida em que é apenas por ela que se
pode “trabalhar suas questões”. É muito ressaltada a sua importância, ou se fala sobre o quanto a
clínica angustia, porque se está diante de um “não saber”, ao contrário das outras profissões. Numa
supervisão, me lembro da supervisora ter me indicado, sobre um caso que eu atendia, que eu poderia
falar determinada coisa para a paciente, mas não a partir de minha própria angústia. Ou seja, ali se
pressupunha que havia angústia. Assim como, ao sair do estágio, minha colega Maria contou que
atenderia os pacientes no consultório, mas não iria pagar supervisão porque não tinha dinheiro, ao
que o supervisor apontou que ela “poderia me angustiar e por isso era bom ter uma supervisão”.
Outro elemento importante que é internalizado pelos lacanianos é uma forma específica de se
relacionar com o outro, onde “não se deve responder a todas as demandas do Outro”. Um exemplo
é uma frase muito comum, fazer um corte ou cortar alguém. Durante conversas, essas palavras são
compartilháveis e entendidas por todos os lacanianos, e fazem parte inclusive de uma ética específica
de lidar não apenas com os pacientes – no sentido de cortar, ou seja, cortar a fala do paciente durante
a sessão de análise com fins de pontuar ou interpretar seu discurso, mas os lacanianos cortam também
pessoas em situações da vida cotidiana, e dizem “cortei fulano”, ou sugerem “por que não dá um
corte nessa pessoa?” ou, às vezes, em ato, cortam alguém durante uma conversa, geralmente
destacando uma frase e fazendo a outra pessoa pensar no que disse. Outras palavras muito conhecidas
e reconhecidas no meio lacaniano é “deixar na falta”. A falta, para os lacanianos, funciona da mesma
forma que o corte, dentro e fora de seus consultórios. Ouve-se com bastante frequência, em qualquer
meio lacaniano, alguém dizer, seja da importância da falta, seja um conselho de que “é necessário
deixar sicrano na falta”.
Esses são exemplos de não apenas uma linguagem, mas de uma ética de conduta, ou, como
69
apontou Antonio (2015), um sistema simbólico compartilhado pelos lacanianos. Por mais que a
maior parte dos exemplos digam respeito a diversas categorias intelectuais, principalmente advindas
da área de humanas, busquei descrever as formas específicas pelas quais os lacanianos expressam
essas características.
70
4. A rede de indicações
53
Fonte: https://exame.abril.com.br/negocios/enfim-o-que-difere-mesmo-marketing-multinivel-e-piramide/
71
Pensando bem foi a divulgação dela [Carolina]! Porque como que a gente ia ter contato
com esses eventos se não fosse com ela? Os folhetos, né? Acho que era ela que divulgava.
Nossa, nunca tinha parado para pensar nisso. Estou até chocada. (…) A gente nem reparou,
só anos depois estou parando pra pensar nisso. E vai formando uma rede , porque até minha
mãe foi parar em uma analista dessa Escola, porque eu fui procurar a Escola, porque eu a
conhecia através da Carolina, e aí eu fui indicar alguém pra minha mãe da Escola
Lacaniana, então vai virando uma pirâmide, olha que loucura!
Talvez o que tenha motivado Manuel a me dizer naquela noite sobre a sua “descoberta” do
sistema de indicações, que ele expôs de forma perplexa aludindo ao esquema piramidal, assim como
o que tenha deixado Joana perplexa com minhas perguntas tenha sido o fato de que, norteados por
categorias como desejo, a aproximação com determinados psicanalistas e Escolas tenha sido
experienciado e sido significado durante a graduação a partir de uma referência do desejo individual
e transferência com figuras de lideranças, e não por redes de relações que se formam em um contexto
institucional. No caso de Manuel, mais especificamente, sua perplexidade se deu por ele estar tendo
que se haver, na prática, com questões concretas sobre as indicações, conseguir pacientes, obter lucros
financeiros com sua profissão, questões que até então, durante a graduação, não pareciam
importantes, tanto pelo status de aluno tanto porque existe um discurso que entende o desejo enquanto
principal motor das realizações na vida em todos seus âmbitos. Jorge chega a dar uma opinião crítica
quando exponho a perplexidade de nossos colegas a respeito das redes de indicação:
A gente fica perplexo porque nada disso é às claras...que o que norteia é o desejo, essas
categorias ideais, etc. Desejo é um valor de gente rica. Se você está com todas suas contas
pagas, com tudo seu em dia, com comida em casa, com TV em casa, aí você tem tempo de
colocar o desejo em algum desses lugares.
Quando Manuel passa a se interrogar sobre o porquê de não receber indicações dos “grandões
lá de cima”, se sente como parte de um “nível inferior” em relação aos lacanianos que estão no “topo”,
ou seja, que são reconhecidos, “estabelecidos no mercado”, o que configura uma hierarquia
escamoteada por “categorias ideais”, como diz Jorge, como desejo, singularidade e transferência.
Antonio (2015) aponta para o fato de as hierarquias serem imperceptiveis para os lacanianos
da EBP-SP pelo fato de contraporem hierarquia a singularidade, noções não excludentes. Dessa
forma, essa oposição lógica gera o que chama de uma “cegueira” em relação às hierarquias
institucionais, que também constituem o mercado psicanalítico, uma vez que a indicação parece ser
uma das principais formas de manutenção e expansão desse mercado. As entrevistas indicam que os
proto-lacanianos vão desvelando aos poucos essas relações e possuem uma visão mais pragmática de
72
preço e mercado que os psicanalistas “do topo”, na medida em que atualmente o mercado das
psicoterapias tomou novas formas, se tornando mais competitivo devido à enorme oferta de
profissionais qualificados. Como mostrarei adiante, através de um relato de um psicanalista, em
contraposição à realidade dos proto-lacanianos, parece que nas décadas de 70 e 80 havia uma
facilidade maior em ascensão na carreira de psicanalista. Todos os motivos não podem ser aqui
expostos, pois demandaria uma nova investigação. No entanto, observei durante a pesquisa que os
proto-lacanianos que se formaram de 2010 em diante demonstram que se situam na disputa de
mercado de forma mais estratégica, calculando prejuízos e lucros, o que os psicanalistas “do topo”
costumam apontar como um impedimento ao “trabalho analítico”, pois esse trabalho ocorreria pela
via do desejo, e não por um “cálculo justo”. Dessa forma, se, por um lado, os proto-lacanianos se
espantam com as relações hierárquicas e os monopólios e disputas por indicações que desenham o
cenário e a lógica do mercado psicanalítico de forma mais explícita nos tempos atuais, os psicanalistas
“do topo” parecem não se dar conta dessa lógica, na medida em que ela se apresenta a eles de forma
mais naturalizada, mistificada sob a fórmula do desejo. Na fala de Andressa, uma psicanalista
universitária estabelecida, ela explica como indica profissionais a quem lhe pede, expondo a
hierarquia existente entre os psicanalistas estabelecidos e os proto-lacanianos:
Eu acho que quem está começando está muito cru. Quando alguém me pede um
psicanalista, eu vou indicar um psicanalista. Eu não vou indicar, por exemplo, um aluno
meu que acabou de sair da faculdade, até porque eu não legitimo aquele menino - e eu não
estou fazendo pouco caso, não é isso - como um psicanalista. É diferente se a pessoa me
pergunta: 'me arruma um psicólogo?' Porque eu acho que quando a pessoa demanda 'um
psicanalista', ele também vem demarcando o que ele quer […]. Eu entendo que psicanalista
é alguém que tem uma formação em psicanálise, não necessariamente precisa ser membro
de uma Escola, mas que tenha um percurso.”
Pela fala de Andressa, assim como por outros casos, nota-se que os psicanalistas se
reconhecem enquanto psicanalistas por sua formação e trajetória, o que os distingue dos psicólogos,
indicando que psicólogo poderia ser qualquer profissional diplomado, recém-formado ou não, ao
passo que o psicanalista parece necessariamente possuir um percurso maior. Essa distinção produz
uma hierarquia, que sobrepõe psicanalistas a psicólogos, para além das hierarquias já existentes entre
os próprios psicanalistas, além de indicar que o psicanalista também teria uma inserção no mercado
mais tardia. Esse fator parece se relacionar tanto com a dificuldade que os proto-lacanianos têm em
se auto-denominarem psicanalistas, assim como a não cobrarem preços altos na etapa inicial de sua
carreira, pois não teriam formação nem “trajetória”, por mais que o mesmo possa ocorrer com
73
psicólogos que se reconhecem apenas enquanto psicólogos. No entanto, minha impressão é a de que
o diploma autoriza o psicólogo de forma mais rápida e efetiva, ao passo que o reconhecimento do
psicanalista por seus pares, ou seja, de forma “extra-oficial”, demora décadas e depende de uma série
de relações que se estabelece em um contexto institucional das Escolas.
Normalmente, no universo psicanalítico, e no universo de terapias em geral, as palavras “rede
de contatos” são utilizadas. No entanto, essa rede é ao mesmo tempo horizontal e vertical, pois os
pares se unem formando redes, mas, alguns “nomes circulam” de forma distinta. Letícia, proto-
lacaniana, diz que “o paciente não aparece no seu consultório aleatoriamente...não é por um cartão
seu que cai do céu no colo dele. O seu nome precisa circular”. Ou seja, alguns nomes circulam na
rede. Mas não circulam livremente, pois os nomes dos proto-lacanianos circulam em núcleos
diferentes que os dos psicanalistas estabelecidos, “do topo”. Se, por um lado, os nomes de
psicanalistas “do topo” circulam no “topo” e na “base” da pirâmide – se tomamos o modelo de
pirâmide emprestado de Manuel - por outro, os nomes dos proto-lacanianos apenas circulam entre
colegas também proto-lacanianos, ou por espaços institucionais onde eles circulam por trabalho ou
formação – nesse último caso as residências na rede de saúde são um exemplo. A rede parece ser
constituída por núcleos “do topo” e “da base”, onde neles “nomes circulam” de forma diferenciada,
com diferentes status. Dessa forma, o psicanalista que já “tem percurso” e formação, é reconhecido
dentro de vários meios, e ainda legitimados por instituições universitárias, pelas Escolas, e pelas
indicações.54.
Tudo indica que os graduandos que ainda não atendem fazem parte importante do nível mais
baixo da pirâmide, pois ela é bastante ampla, e sustenta boa parte das indicações. Esse é um esquema
simplificado, pois as indicações não vêm só dos alunos iniciantes. Há outras indicações que podem
ser de meios onde os psicanalistas circulam, e que não se restringem aos meios psicanalíticos e
universitários, assim como há as indicações que os pacientes e ex-pacientes fazem, em meios não
psicanalíticos e acadêmicos. Mas essa figura da pirâmide serve para ilustrar o que acaba ocorrendo a
partir das relações que as Escolas estabelecem com os meios universitários, pois chega a ser comum
em algumas universidades psicanalistas atenderem alunos – o que já vi acontecer com uma colega e
já ouvi falar de vários casos – e, por via de seus alunos, conseguirem indicações. Jorge, que cursa
pós-graduação em uma universidade federal no Rio de Janeiro, diz que “boa parte dos pacientes que
chegam aos consultórios dos psicanalistas que dão aula lá vão por indicação dos alunos da iniciação
científica”. O aluno da graduação é um ator importante dessa rede, pois ao mesmo tempo que não
pode atender, não sendo um concorrente para os psicanalistas “do topo,” nem para outros iniciantes,
54
Nesta pesquisa eu apenas tive acesso à forma como os próprios integrantes da “cultura psicanalítica” mobilizam e
hierarquizam sua rede de contatos, o que restringe minha análise, não podendo fornecer dados sobre como o público
leigo chega aos consultórios dos psicanalistas e dos proto-lacanianos
74
sua indicação passa a ter um valor assim que ingressa na universidade, valendo mais que a de um
leigo, e ele se torna uma referência para familiares, amigos e colegas, quando estes últimos buscam
uma análise. Como exemplo, já relatado acima, Joana, chegou à sua analista por se inserir no contexto
de uma Escola via sua colega Carolina, e assim que começou sua análise com uma psicanalista dessa
Escola, indicou psicanalistas através de sua própria analista a toda sua família. Dessa forma, Joana
tornou-se uma referência de indicação em sua família, pois sua indicação passou a ter um valor a
partir de uma autoridade conferida por seu curso em psicologia. Logo, com as demandas frequentes
de indicação a Joana, esta pedia nomes à sua analista, que pôde indicar seus colegas, que faziam parte
de sua Escola.
Essa rede é complexa, pois dentro dessa rede basilar, digamos, desse nível inferior a partir do
qual se agenciam indicações, hierarquias também se produzem. Maria, proto-lacaniana, quando
estava no segundo período da graduação, pediu indicação a um veterano, Guilherme, que se
encontrava no sexto período na época. Pediu a ele a indicação porque ele lhe “transmitia confiança”,
pois “fazia análise já há uns dois anos”, e tinha um “discurso psicanalítico”. Guilherme, por sua vez,
pediu a indicação a sua própria analista, que indicou uma colega. Essa indicação acabou se tornando
a nova analista de Maria, com quem ficou por cinco anos. Lorena, por sua vez, amiga de Maria,
pediu indicação de analista a esta última porque ela já “estava fazendo análise há algum tempo” e
“confiava em sua indicação”. No entanto, Lorena não pôde pagar o valor proposto da analista
indicada por Maria (R$180,00 a sessão), que, então, sugeriu o nome de uma outra colega que cobraria
menos. Ou seja, Maria confiou em Guilherme, vendo nele a capacidade de indicar. E uma vez em
análise, Maria se tornou uma referência para Lorena, que também confiou nela. Entre os alunos que
vão se alinhando à psicanálise, e a partir dos lugares que eles vão ocupando na universidade e sua
relação de proximidade com o estudo da psicanálise e prática da análise pessoal, suas indicações
passam a ter mais ou menos valor que outras, e uma hierarquia se forma, estabelecendo relações
verticalizadas, onde os alunos mais aptos a indicar transmitem segurança aos mais iniciantes na
psicanálise, ou aos que simplesmente os veem enquanto uma referência nesse quesito. A partir dos
alunos que possuem indicações valiosas, os nomes “do topo” passam a circular na rede dos alunos da
base. No entanto, estar apto a indicar um psicanalista não significa que a pessoa saiba
necessariamente quem indicar, mas que ela possa acionar determinada pessoa nessa rede que seja
mais apta ou legitimada a indicar. A partir desse movimento, os alunos que transmitem confiança
pedem indicação a seus próprios analistas para outros alunos ou pessoas próximas, que, por serem
estabelecidos e reconhecidos, reforçam essa segurança, permitindo também que o futuro paciente
chegue a seu analista indicado também confiando nele. Como diz Vitória, “alguém em quem você
confia diz que a psicanalista é boa e você passa a confiar também. […] Acho que alguém que você
valoriza e que fala isso, você vai dar crédito. Aí você já olha pra própria pessoa de forma mais
75
transferida.” Raissa explica que chegou à sua primeira analista por indicação de uma veterana da
graduação: “eu perguntei pra uma colega da faculdade que eu admirava, talvez, e eu achava que tinha
uma noção de psicanálise e ela me indicou essa psicanalista.”
Não há, neste estágio da pesquisa, como medir a relevância das indicações dos alunos e dos
proto-lacanianos na rede total de indicações, mas, aparentemente, parecem cumprir um papel
importante, pois vinculam nomes de psicanalistas aos meios universitários, onde graduandos com
indicações atribuídas de valor indicam a pessoas de outros meios não universitários. No caso
específico de minha universidade da graduação, chego a ter a impressão de que os alunos sustentam
boa parte da rede de base das indicações aos professores e seus colegas. No entanto, quando o aluno
se forma, parece haver uma indagação sobre o funcionamento das indicações, como a indagação de
Manuel, pois as indicações de pacientes dadas aos analistas do “topo” não são recebidas de volta
pelos proto-lacanianos de imediato assim que o aluno se forma, pois não são legitimados pelos
psicanalistas por não terem “percurso” e formação. Como me relatou Jorge,
Eu parei de indicar [paciente] para os fodões porque eu percebi que eles jamais vão me
indicar. E vejo muitas pessoas fazendo esse mesmo movimento. E eu passei a indicar para
amigos quando eu percebi que os meus amigos também poderiam indicar pra mim. Isso
acontece quando assumimos pra nós mesmos que adquirimos certa maturidade e que somos
aptos a atender. Por que eu indicava para os fodões antes? Eu sabia que eles não iriam me
indicar, mas eu nem achava que eu era uma pessoa digna de indicação, entende? (diário de
campo)
Eu sinto, por exemplo, que em determinadas universidades é um fenômeno bem típico que
os alunos da graduação alimentem uma parcela dos consultórios desses psicanalistas, não
tenho mais dúvida disso. Inclusive, pessoas que eu conheço mais perto, sei que recebem
indicação dos alunos. Indicam primo, amigo, parente, tio, e o próprio aluno vai fazer
supervisão. (…) Na graduação, estabeleceu-se ali um mercado. (…) Aí eu vou entrar no
meu problema. Eu trabalho com pós-graduação, mestrado, doutorado, ou seja, as pessoas
já estão cavando seu espaço, não são mais os alunos da graduação, porque como aluno de
graduação não tem nem como [atender]. E trabalhando em pós-graduação como trabalho,
76
as pessoas não pedem indicação tanto pra mim. Elas já se indicam entre si. (…) E nessa
não indicam pra mim (risos). Eu perco indicação, porque já sou veterana, e eu estou
ajudando as pessoas a se profissionalizarem já formadas, pra elas indicarem entre elas, e
eventualmente que que eu recebo? Recebo supervisionandos, que estão trabalhando e vêm
trabalhar comigo.
Por mais que Maria Ângela diga que sua rede é “mais esgarçada”, e se diferencie dos
psicanalistas de algumas universidades, que teriam uma rede mais “fechada”, ela diz que, para além
de indicação de ex-pacientes, indicação de colegas “psicanalistas de fora do Rio de Janeiro”, pessoas
com quem trabalha “através da universidade”, acabam sendo pessoas com potencial de indicá-la a
pacientes. Seja pelos alunos ou não, a universidade parece cumprir um papel no mercado
psicanalítico, favorecendo e constituindo relações de proximidade entre psicanalistas, inclusive de
cidades diferentes, o que constitui núcleos da rede onde “o nome circula”, como diz Letícia.
Vale notar, quando Maria Ângela diz que “estabeleceu-se um mercado” na graduação, parece
ser pejorativo e remete a um “negócio”, no sentido moral do termo. Mas podemos entender que a
universidade é intrínseca ao mercado psicanalítico, ao menos no contexto do Rio de Janeiro, e seu
lugar como elemento importante por ser fonte de relações de indicação não ocorre por um erro de ao
acaso “estabelecer-se ali um mercado”. Isso porque seus alunos são agentes, agenciadores de
encontros entre psicanalistas e seus pacientes, assim como os departamentos são agenciadores de
relações entre psicanalistas que passam a se indicar. Podemos tentar aqui estabelecer uma analogia
das universidades com os planos de saúde em sua forma de agenciamento. O plano serve como um
terceiro elemento, mediador das relações entre pacientes e profissionais da saúde, que, a partir de
uma lista de credenciamento, oferecem seu serviço. Da mesma forma, as universidades parecem
ocupar esse lugar de terceiro elemento que media a relação entre os psicanalistas e pacientes, que,
negando a lógica das mediações dos planos de saúde (por ser um “negócio”), acabam sendo mediados
por essas instituições. Ao invés de visibilizarem seu trabalho por uma lista de profissionais
credenciados, contam com a atuação dos agentes da instituição – colegas e alunos – e dessa forma
acabam se tornando visíveis a pessoas que buscam iniciar uma análise..
Novamente, as indicações são importantes, pois elas são feitas baseadas em “confiança”,
palavra que aparece em quase todas as falas quando o assunto é indicar. Os alunos que indicam seus
professores possuem indicações de valor que tem um papel importante na rede de indicações, pois
seu lugar de aluno que estuda e entende de psicanálise transmite confiança e dissemina o nome dos
psicanalistas da universidade e seus colegas ao público leigo – faz o nome circular.
No entanto, há que se evidenciar uma questão importante, pois estou me referindo à rede de
indicações que observei, experienciei e me foi relatada pelos entrevistados. No entanto, como aponta
77
Vitória, “a gente [psicólogos] faz assim, mas deve ter muita gente que vai pelo plano [de saúde]. Olha
lá o plano e escolhe. Acho que talvez quem tem mais dinheiro e entende mais pede indicação”. A
impressão de Vitória é que os planos de saúde são recorridos por pessoas de classes inferiores ou sem
informação sobre o que é uma terapia ou uma análise. Sua percepção denota de que haja uma barreira
simbólica para pessoas que buscam uma análise, pois seria necessário haver um determinado
conhecimento prévio do que seja uma análise. Compartilho da mesma impressão que ela, e sem
possuir dados suficientes sobre como as indicações ocorrem em um campo mais amplo de relações e
classes sociais, posso apenas levantar a hipótese de que as universidades e determinados meios pelos
quais os psicanalistas circulam são suas principais fontes de indicação, indicações que já operam a
partir de um reconhecimento da pessoa que busca uma análise, do que seja uma análise, e sua
distinção das demais psicoterapias, na medida em que psicanalistas geralmente não atendem por
planos, principalmente os psicanalistas “estabelecidos”. Também pode-se entender que, a depender
de onde o psicanalista circula, os lugares que frequenta, a família que possui, os amigos, enfim, um
conjunto de fatores de sua vida social contribuam para que receba indicações de pessoas mais
informadas sobre o que seja uma análise. Há também o fator de que os próprios pacientes do analista
passam a indicar amigos para ele, pois se tornam pessoas autorizadas não necessariamente por um
conhecimento sobre psicanálise, mas por possuírem a experiência de fazer análise com aquela pessoa
e relatar os benefícios ou não do tratamento. Segundo Jorge, “é sabido que quando você tem mais de
dez pacientes, eles por si só já formam uma rede pra você receber pacientes indicados por eles
próprios”.
Como descrito acima, as relações de indicação parecem se basear em admiração e
confiança, por mais que, às vezes, alguns psicanalistas digam que indicam a partir de critérios mais
impessoais e meritocráticos. É o caso de Eduardo, um psicanalista professor universitário, que já me
relatou o seguinte: “eu não indico colegas, amigos, quem fala bonito em evento, quem é bom
professor. Eu indico quem eu vejo que o paciente entrou e saiu diferente, ou seja, a análise teve efeito
em seu corpo”55. Vale notar que o professor, ao se referir ao corpo como meio pelo qual se torna
visível os efeitos de uma análise em uma pessoa, indica que é pelo corpo, ou seja, o que é externo,
ou superficial (no sentido de superfície) que torna aparente aos demais se um sujeito faz análise ou
não. Geralmente os psicanalistas se referem às mudanças que uma psicanálise proporciona em um
indivíduo a partir do termo “posição”, ou seja, haveria uma “mudança de posição” diante do outro
(outros indivíduos) e do Outro (referente ao registro simbólico da alteridade) ao decorrer de uma
55
O professor se refere ao corpo pois, segundo os psicanalistas, uma análise modifica o sujeito antes nos seus atos que
no seu pensamento. O inconsciente é que trabalharia em uma análise. Um exemplo disso vem de minha própria análise.
Ao não compreender racionalmente o que a analista havia dito, ela disse “não tem problema não compreender, nos vemos
semana que vem que até lá seu inconsciente vai trabalhar nisso”.
78
análise. A palavra “corpo” anunciada pelo professor revela a forma pelos quais os psicanalistas
entendem o objeto da análise. Não seriam os pensamentos, mas o inconsciente, e o inconsciente se
mostraria, ao que parece, a partir da postura espontânea do indivíduo, que é ao mesmo tempo
profunda (inconsciente) e superficial (no corpo). Ou seja, a subjetividade a que os psicanalistas se
referem é o inconsciente e não o pensamento, e talvez seja esse o motivo pelo qual é tão comum os
psicanalistas utilizarem no cotidiano as categorias “analisado” e “não analisado” e até “bem
analisado” para classificar as pessoas que passam pelo dispositivo analítico com “sucesso” ou não, e
a análise de seu comportamento serve como fonte de avaliação tanto do profissional quanto de seu
paciente.
Os recortes desta pesquisa não permitem uma análise aprofundada sobre os aspectos
personalista e meritocrático das indicações, mas parece que tanto a relação pessoal quanto o mérito
se combinam para produzir o critério da confiança na indicação, e às vezes um desses elementos se
sobressai ao outro, através da visibilidade do sucesso da análise pelo comportamento (ou corpo),
como colocado acima. Por exemplo, percebo que entre os proto-lacanianos que estão já buscando se
estabelecer no mercado, as amizades parecem ter um papel mais importante por serem o meio
principal de se estabelecer uma rede, já que muitos desses recém-formados ainda não participam de
Escolas, pois ainda estão fazendo especialização, mestrado, ou seja, se profissionalizando de outras
formas que não se restrinjam às Escolas. Como disse em uma conversa uma amiga proto-lacaniana,
Lorena, “eu indico a partir da confiança no trabalho e do fortalecimento entre amigos mesmo”. Iago,
proto-lacaniano, diz:
acho que tem uma rede informal de indicações na base da amizade, e também dos lugares
onde esse psicanalista trabalha, porque é muito comum esse psicanalista não estar só no
consultório, é muito comum o psicanalista estar na rede de saúde mental...ele está em
algum serviço público e atender em consultório, eu acho que isso fortalece ele nas
indicações, porque quando ele trabalha no serviço público, os amigos do trabalho vão de
alguma maneira indicar. E quando ele é professor também, os alunos indicam o próprio
professor, e fazem análise com o próprio professor. Isso é comum. Depende de quais cargos
esse psicanalista está ocupando.
Mas quando se refere aos proto-lacanianos, aos recém-formados, diz que a indicação “é mais
na base da amizade...é com quem ele conseguiu fazer [rede] ou indicações da própria família”.
Priscila, em uma conversa casual, chega a comentar comigo que não entendeu uma situação
na qual uma pessoa para quem subloca seu consultório teria indicado ela a um paciente. Ela diz: “não
entendi essa indicação, porque não vejo motivos para ela me indicar como psicóloga a alguém. Ela
79
nem é minha amiga nem nada. Se fosse você, ou fulana, eu até entenderia, porque somos amigas”.
Ou seja, se o professor se refere ao corpo como forma de avaliação do mérito do profissional, as
indicações entre proto-lacanianos que buscam formar redes de indicação se dão por vínculos de
amizade, de caráter mais personalista. Mas em ambos os casos, as instituições públicas aparecem
também como pontos de suporte do mercado da psicanálise, pois os espaços geralmente de natureza
pública pelos quais o psicanalista transita fornece os contatos e reconhecimento para o trabalho no
consultório, pois pelo trabalho se fazem amizades assim como se visibiliza o trabalho de colegas, e
se julga tanto sua postura enquanto analista e analisando (se é bem analisado ou não). Não somente
as instituições públicas parecem fornecer a uma parte considerável de psicanalistas uma fonte de
indicações, como essas instituições fazem parte da formação do psicanalista de consultório.
O SPA, por exemplo, que é o Serviço de Psicologia Aplicada, descrito no primeiro capítulo,
tem como objetivo a formação profissional do aluno, que adquire prática e se profissionaliza a partir
de um serviço que oferece a um estrato da população, formado por pessoas com baixa renda. Quando
se forma, o recém-formado passa a atender a preços baixos, porém mais altos que no SPA. Existe um
nome, “clinica social”, que é dado ao tipo de atendimento que se oferece. É interessante notar que os
preços da clínica social são mais baratos que o de um atendimento fora dessa perspectiva “social” -
e é essa distinção que sustenta esse nome – mas que constitui um preço relativamente considerável
se tomarmos como referência o salário mínimo. Por exemplo, minha amiga Fernanda diz atender
pacientes pela “clínica social”, e o mínimo que aceita é $40,00 por sessão, chegando até R$100,00.
Alguns pacientes na clínica social chegam a pagar R$50,00 e outros até R$80,00. Maria diz o mesmo,
e ambas atendem pacientes por esse valor mínimo. No entanto, 50,00 por sessão configura um total
de 200,00 por mês, um preço que já delimita o público-alvo desse trabalho “social”, pois equivale a
mais ou menos 20% de um salário mínimo no Brasil. De qualquer forma, o proto-lacaniano segue
ganhando experiência com um público de classes economicamente inferiores que a dos psicanalistas
estabelecidos a partir desse nome “clínica social”.
***
Por mais que normalmente se diga que não exista uma média dos preços da análise, que seria
“algo de cada um”, com seu desejo, a maior parte dos entrevistados, quando interrogados, soube dizer
a média dos preços das análises. Segundo Iago, “com alguém recém-formado é entre R$50,00,
R$70,00, e depois de uns anos formado vai lá pra R$100,00, que é o preço de tabela do psicólogo, e
com alguns anos de formação já acho que vai entre R$120,00 e R$200,00 até que chega ao “topo” e
atende por preços maiores. ” Segundo Maria Ângela, o preço varia de R$150,00 a R$250,00 no Rio
de Janeiro. Tudo indica que termo “clínica social” é utilizado com aparência de uma oferta de um
80
serviço de cunho assistencialista, com uma ideologia de acesso a um serviço de saúde para pessoas
menos beneficiadas mas que, na prática a questão principal desse tipo de clínica é o preço
correspondente ao estágio na carreira dos psicanalistas, que estando numa etapa onde ainda não
possui reconhecimento necessário para cobrar um valor alto, acabam tentando unir uma ideologia
assistencialista com suas necessidades da carreira. Tais necessidades de carreira não seriam o que
embasaria o trabalho assistencial de psicanalistas do “topo”. Pelo contrário, o trabalho clínico com
ideologia inclusiva, que possibilita acesso a uma análise às pessoas de baixa renda, são também
proporcionadas pelos psicanalistas estabelecidos do “topo”, que, sem necessitar cobrar preços mais
baixos, pois já possuem clientela e estão estabelecidos, resolvem montar equipes e abrir consultórios
em favelas, como é o caso do Luciano Elia, um psicanalista que está montando uma equipe para
atender pacientes da favela da Maré, segundo me informou um dos psicanalistas estabelecidos. No
caso desses psicanalistas estabelecidos, ao contrário do que ocorre na “clínica social” dos proto-
lacanianos, há uma questão ideológica que move o trabalho que se oferece. O que pode confirmar a
diferença entre a “clínica social” dos proto-lacanianos e as clínicas inclusivas dos psicanalistas
estabelecidos é o fato de que já ouvi de alguns proto-lacanianos de que finalmente conseguiriam
atender a um paciente por um “valor cheio”, fora da clínica social. É o caso de Jorge que, ao receber
uma indicação de paciente, chegou a celebrar comigo o fato de que iria receber “valor cheio”. Ora,
esse termo parece expressar a discrepância entre os valores que cobram no início da carreira e os
valores idealizados, condizentes com os valores que psicanalistas estabelecidos cobram. A clínica
social dos proto-lacanianos parece um meio do percurso, onde se adquire experiência, mais renome,
mais contatos, até que se chegue a um “valor cheio” de um paciente que não seja da clínica social.
Minha impressão geral entrevistando os alunos recém-formados e os psicanalistas do “topo”,
é que os primeiros possuem uma visão mais crítica e mais apegada à dimensão concreta da clínica,
ao contrário dos psicanalistas do “topo” que defendem categorias mais idealizadas. Isso talvez se dê,
hipoteticamente falando, pelo fato de que hoje, principalmente a partir de uns anos para cá, o mercado
de terapias mudou em decorrência de mudanças sociais no país pelo que atualmente se denomina
“crise econômica”. Como já foi dito, a impressão é de que, em relação aos anos 70, 80 e 90, hoje há
uma oferta muito maior de terapias, e de psicanalistas disputando seu lugar no mercado psicanalítico.
João Eduardo, psicanalista estabelecido que atende há mais de trinta anos e professor universitário
relata sobre como era a oferta de psicanalistas lacanianos na década de 80:
eu tinha feito algumas análises. Fiz com uma kleiniana, que era um pouco de Winnicott.
Eu tinha começado a estudar Lacan mas não havia nenhum lacaniano. Aí no início dos anos
80 chegaram algumas pessoas que tinham feito formação na França com Lacan, em Paris,
então eu fui procurar uma dessas pessoas para fazer análise, e fiz um bom tempo de análise
81
com um psicanalista que veio. (…) Veio um pessoal da França, alguns foram exilados e tal,
e estavam retornando, e começaram a atuar como analistas aqui, aí tinha uma procura por
eles. (…) Tinha um grupo de nordestinos que foi pra França, estudou, e retornou no final
da ditadura, no final dos anos 80 para cá. É porque você estudava Lacan e não sabia como
era [fazer análise lacaniana].
eu tenho impressão que o que houve foi a procura que aumentou, foi o consultório que se
ampliou. Eu posso falar assim pela minha geração. Eu fui por exemplo muito colega do
Marcio, da Maria Estela e outros, e eu comecei a dividir consultório com eles. Um ou dois
anos depois nós tínhamos um consultório na mesma casa e separado. Isso foi início da
década de 80, me formei em 78.
A trajetória como psicanalista de João Eduardo parece ter sido mais fácil – ou no mínimo de
mais rápida ascensão - que a da geração atual. Como ele relata, havia um grupo bastante restrito que
estava começando a trazer a psicanálise lacaniana para o Brasil, que, naquela época, gerava bastante
interesse. Poucos eram os habilitados ou reconhecidos para oferecer uma análise lacaniana, e se,
como Paulo afirma que a procura aumentou, a oferta parece ter aumentado demasiadamente. Além
disso, como já falado nos capítulos anteriores, nos anos 70 ocorreu o boom da psicanálise (Russo,
2012), onde a psicanálise era entendida como novidade e havia uma classe média principalmente
urbana mais intelectualizada pronta a consumir a psicanálise, seja fazendo análise, comprando livros
de psicanalistas intelectuais.
Outro fator para os proto-lacanianos possuírem uma visão mais pragmática em relação ao
mercado da psicanálise, pode ser o fato de que quem está iniciando a clínica está tendo que se haver
com questões concretas, que contrastam de forma mais nítida com os ideais de desejo da psicanálise.
Jorge relata que:
quem está se formando agora não tem esse discurso de 'Escola sagrada'. Eles já entenderam
que o negócio é um mercado. Porque hoje em dia é outra época, tudo mudou. Hoje em dia
ninguém mais pode brincar de rito de passagem. Todo mundo já entendeu que é um
mercado.56 (Diário de campo)
56
Nessa fala Jorge se refere aos ritos de passagem das Escolas, que autorizam os proto-lacanianos a se tornarem
efetivamente analistas. Nesse caso, ele está se referindo a uma mudança, na medida em que hoje em dia, devido à
grande concorrência, os proto-lacanianos não estão mais acreditando nas instituições como forma de legitimação
única, pois necessitam praticar a psicanálise, ganhar dinheiro dentro de um mercado muito disputado.
82
Por outro lado, João Eduardo, diz: “eu aprendi com Pedro Becali que Brasil é o país que tem
mais psicólogos no mundo – tem 300.000. Mas de outro lado, eu acho que para você sustentar um
consultório exige um desejo, uma perseveração, inclusive”. Enquanto os proto-lacanianos recorrem
a esquemas piramidais, fazem estratégias de redes a partir de suas relações pessoais, se demonstram
perplexidade e por vezes desiludidos com o mercado da psicanálise, os psicanalistas estabelecidos,
por mais que salientem esses aspectos, atentam mais ao desejo enquanto elemento que possibilita
uma clínica acontecer.
De qualquer forma, há um sistema complexo de indicações que ocorrem a partir de indicações.
Esses sistemas, cabe abordar aqui um aspecto dele, está muitas vezes submetido a trocas que se
submetem a uma lógica da dádiva, no sentido que Mauss (2017) expressa. Como diz Letícia, “eu
comecei a perceber que as indicações vêm dos pacientes dos seus colegas”. Ou seja, os psicanalistas
estabelecem redes de confiança, seja pela amizade ou admiração. Quando seus pacientes pedem uma
indicação ao próprio analista para um amigo, o psicanalista indica um desses colegas que fazem parte
da rede e essa indicação apenas pode existir esperando-se que o colega retribua também a indicação
em uma próxima vez. São relações de reciprocidade que operam e que permitem compreender as
trocas de indicações como uma grande rede de trocas, porém trocas que ora se expandem, ora se
restringem a determinados núcleos de relações demarcadas, e organizados a partir de monopólios e
reconhecimento, o que configura um sistema hierárquico. Inclusive, alguns profissionais chegam a
obter lucros pelas suas indicações. Há profissionais que por serem reconhecidos, por exemplo,
cobram preços mais altos pela supervisão e sublocação, oferecendo em troca indicação de pacientes
que podem dispensar. No entanto, nessa relação de troca de dinheiro por indicação os proto-
lacanianos permanecem por bastante tempo em um esquema de “submissão” - como uma amiga já
me relatou – apenas pelo fato de obterem indicações a partir da psicanalista que subloca a sala.
Um ponto importante a ser levado em conta é que a confiança que garante o êxito das
indicações e conectam as pessoas a seus analistas se estabelece a partir de um terceiro elemento, que
transfere sua confiança à dupla analista-analisando. Por exemplo, quando um paciente pede indicação
à sua própria analista de um psicanalista para um colega, sua analista ocupa o lugar de um terceiro,
um “outro”, que saberá indicar alguém de sua confiança. A confiança da analista com seu colega de
trabalho é transferida ao futuro analisando pela relação de confiança que o paciente tem com sua
analista, assim como pela relação de confiança que ele tem com seu amigo paciente. Portanto, entre
ele e seu futuro analista, estará a figura da pessoa que indicou. Ou seja, a relação com o psicanalista
é sempre mediada, ou seja, sempre mimetizada, e se configura de forma triangular, onde a relação a
dois se sustenta por um terceiro. Os psicanalistas denominam essa relação de confiança de
transferência, que seria uma relação de amor de uma pessoa em relação à outra, onde se suporia nessa
pessoa objeto de amor algum saber sobre si. Dessa forma, os alunos são transferidos em relação às
83
figuras de autoridade e saber – os professores, alunos mais avançados, analisandos. No entanto, essas
relações transferenciais, que aqui denomino “relações de confiança”, se inscrevem a partir de
contextos institucionais, profissionais e de formação (as Escolas). Afinal, os professores apenas se
legitimam a partir de instituições, que são o terceiro elemento que permite a confiança ou a
transferência ocorrer.
Posso relatar aqui, com fim de exemplificar, minha própria experiência de iniciar uma clínica.
Hoje, para a nova geração dos proto-lacanianos, há recursos que há algum tempo atrás não existiam
para se obter pacientes, como sites especializados em marketing e divulgação de profissionais de
saúde via internet, como o “doctoralia.com”, assim como páginas profissionais no facebook que
permitem patrocínios. Ao me inscrever em um site de divulgação do meu perfil, o assessor do site
me telefona oferecendo um preço por seu serviço, e diz que o plano premium é essencial, pois o mais
importante é que as pessoas vejam minhas avaliações. “Nós fizemos pesquisas e notamos que as
pessoas buscam um psicólogo assim como buscam um hotel”, ele diz, e acrescenta que “quando
buscamos um hotel, queremos saber as avaliações, se as pessoas gostaram, ver fotos e obter o maior
número de informações possíveis para saber se vale a pena ou não passar o fim de semana nele. Pois
bem, com o psicólogo é a mesma coisa”. No caso da internet, as avaliações, positivas ou negativas –
geralmente feitas a partir de atribuição de estrelas, onde 5 equivale a uma nota máxima de satisfação
em relação ao serviço – ocupam o lugar do terceiro mediador, o terceiro que possibilita e sustenta o
vínculo entre o psicanalista/psicólogo e seu paciente, pois é o que possibilita que haja uma relação
de confiança. A partir da categoria “confiança”, explicitada pela maioria dos entrevistados quando
interrogados sobre a indicação, pode-se pensar sobre o que ocorre entre o psicanalista e analisando
em um contexto de análise. O processo analítico se constrói a partir dessa relação de confiança ou
transferência mediada57.
No entanto, o que o assessor diz a respeito das avaliações expostas na internet, podem servir
para um determinado público – leigo, que geralmente chega a psicólogos com clientela em formação
ou a proto-lacanianos, pois quem busca a divulgação é pela necessidade de ganhar visibilidade em
relação ao público consumidor. Mas dentro do meio psicanalítico, os psicanalistas mais respeitados
e reconhecidos são justamente aqueles que, além de não fazerem propaganda de si, chegam a rejeitar
pacientes – se comportam do sentido inverso. Dessa forma, quem faz propaganda de si de tal forma
e recorre a sites da internet e páginas do facebook para divulgar seu trabalho são os proto-lacanianos.
No entanto, os psicanalistas estabelecidos parecem investir em uma “anti-propaganda”, baseada na
57
Transferência é um conceito psicanalítico que compreende aquilo que, do analisando, se transfere à figura do
psicanalista. Ou seja, suas fantasias, seus sintomas, suas demandas, assim como ocorrem com diversas pessoas, também
ocorrerá com seu analista, que ocupará um determinado lugar transferencial para seu paciente. E a relação transferencial
não ocorre sem confiança, ou amor, como alguns psicanalistas dizem.
84
hiper-discrição, no sentido de ser um investimento em se tornar visível de forma aparentemente
desinteressada. Por exemplo, não buscando novos pacientes, não fazendo propaganda de si, mas
apostando em sua rede de relações, que possibilita uma indicação pessoalizada. Uma manifestação
do aspecto mais despojado e aparentemente desinteressado dos psicanalistas estabelecidos pode ser
notado a partir do próprio ambiente de trabalho. A “fachada” do profissional, que se dá pela sua sala
do consultório, pelo que decide mostrar e ocultar ao paciente pode informar seu status, às vezes, pela
forma inversa do que se imagina, da mesma forma que os “novos ricos” são notados por exagerarem
os signos e buscarem se fazer notar por um exagero dos símbolos de riqueza – que os torna alvo de
desprezo pelos “ricos tradicionais”, que, ao contrário, buscam a discrição e se distinguem a partir de
signos mais simples, ou mais contidos. Por exemplo, conheço consultórios de proto-lacanianos que
são bastante novos, em prédios imponentes localizados em bairros nobres. Os espaços são
organizados, decorados com cuidado, com móveis novos, e parecem transmitir que o profissional é
capacitado. Ou seja, o proto-lacaniano busca demonstrar aos seus pacientes sua capacitação pela via
da organização e decoração de seu consultório. Por outro lado, lembro-me de, ao ir entrevistar um
psicanalista estabelecido para esta pesquisa, me deparei, ao chegar ao endereço de seu consultório,
com um lugar que me causou estranheza. Cheguei a duvidar se estaria no lugar certo. Me encontrava
diante de um boteco bastante simples, que, por ser hora do almoço, exalava cheiro de frango e comida
caseira. Ao lado, uma vidraçaria, bastante simples, onde um funcionário cortava vidros do lado de
fora, causando um barulho bastante desconfortável aos poucos pedestres da rua. Entre um
estabelecimento e outro, o número do pequeno prédio de uns três andares estava fixado na parede em
um papel plastificado. Ao lado, uma escada escura que levava ao suposto consultório. Ao bater na
porta do consultório do psicanalista, ele me recebe de forma bastante educada e me convida logo a
me sentar. O espaço é uma sala bastante simples, sem um espaço extra de sala de espera, e também
sem banheiro. Duas das quatro paredes são cobertas por estantes cheias de livros, de aparência similar
a livros de um sebo. Em um canto da sala, uma poltrona antiga e ao lado, um sofá, com uma colcha
esgarçada pelo tempo, mas com cores vivas, que conferia a ela um certo charme vintage
despretensioso. Em cima do sofá, um quadro de uma pintura onde se lia, abaixo dela, que se
localizava em algum museu de Nova York. A única parte da sala que parecia ser mais moderna era
uma escrivaninha, onde se encontrava um computador grande, em que se via um texto em aberto,
sinalizando que o psicanalista estava a trabalhar em uma leitura antes de minha chegada. A decoração
transmitia um valor simbólico diferente de uma sofisticação abastada.
O consultório simples e um pouco excêntrico desse psicanalista me chamou atenção pelo seu
aparente desinteresse em transmitir, como os proto-lacanianos buscam, um determinado tipo de
sofisticação. Por outro lado, o consultório transmitia um outro tipo de sofisticação – o daquele que
não se esforça para se mostrar sofisticado. As paredes denunciavam a erudição do psicanalista que
85
ali se encontrava e continha uma atmosfera mais personalizada, com um requinte charmoso, onde se
notava que ali encontrava-se um profissional ímpar, de longo percurso de carreira. Nesse sentido
pode-se entender as relações de propaganda e fachadas dos atores do mercado psicanalítico como
semelhantes ao mercado da arte, onde o que marca a valorização desse serviço e ofício é o
desinteresse econômico, questão que será melhor abordada adiante.
Da mesma forma podemos considerar as indicações como a principal fonte de
reconhecimento dos psicanalistas, na medida em que há um suposto desinteresse econômico, há
também um desinteresse em se auto divulgar por meio de propagandas. O melhor psicanalista
supostamente não se divulga, ao contrário, ele possui um consultório discreto, escondido, cuja
imagem nos leva a um ambiente misterioso e cheio de livros, o que leva a imaginar que seu interesse
não é econômico. É quase um misticismo, se assemelhando ao trabalho de um artista, reconhecido
pela sua excentricidade e desinteresse no pragmatismo das vendas.
Muita gente era de uma Escola, muita gente era da universidade, e muita gente era
de ambas. Como as pessoas entravam na rede [de saúde mental]? Pela via do
estágio. E uma vez terminado o estágio, esses grandes nomes, que eram
supervisores, preceptores e influentes na rede, indicavam as pessoas que fizeram
estágio, e com o tempo, essas pessoas que estavam muito imbuídas do discurso da
psicanálise, começaram a sentir necessidade de análise. E com quem eles iam fazer
análise? Com um desses caras. Lógico, o cara que foi estagiário de x, x indicava
pra y; o cara que foi indicado por y, y indicava pra z, e assim sucessivamente...quase
Lévi-Strauss, troca de esposas (risos). E aí temos troca de clãs. E aí o que acontecia?
Os supervisores pensavam: 'vamos dar emprego para eles [ex-estagiários] para que
eles possam pagar análise para a gente'. E aí chegamos a ponto interessante. Eles
conseguiram chegar ao ponto em que tinham o controle sobre isso, porque eles
86
indicavam uns aos outros os subalternos, então de fato havia uma troca de clãs. Só
que os indicados, com o tempo, também indicavam os de cima. Então isso daí era
um esquema de pirâmide mesmo. Com o tempo, praticamente todo mundo da
cidade que era da psicanálise [e da rede de saúde mental], estava fazendo análise
com algum picão desses.
Isso gerava uma paranoia generalizada. […] Porque se você tem uma rede de
amigos que são os analistas, e você é analisado por eles, os lá de cima sabem seus
podres. Porque você está trabalhando num lugar onde alguém lá de cima sabe das
suas questões pessoais, sabe do seu drama com todo mundo de lá. E eu de certa
forma sofri uma certa discriminação lá porque meu analista não era da rede.
O que Jorge relata nos trechos acima é, como ele mesmo disse, um sistema de dádivas, onde
se estabelecem alianças entre os psicanalistas da rede – no caso, no seu sentido literal, a rede de saúde
mental – a partir de relações de confiança entre os estagiários, seus supervisores e entre os
supervisores e seus colegas. Todos, no final, ganhavam com essas trocas, pois os laços se estreitavam
entre os psicanalistas “lá de cima”, assim como criava uma determinada identidade aos que faziam
parte desse sistema, pois eram reconhecidos pela sua “filiação”, ou seja, pelo seu analista. E, além
disso, há uma “interdição do supervisionando”, pois não se deve analisar o estagiário que o
psicanalista supervisiona. Um exemplo dessa identidade criada é a discriminação que Jorge relata por
seu analista não ser da rede de saúde mental. Esse sistema de trocas, que acaba ocorrendo em diversos
círculos profissionais, pessoais, acadêmicos por onde os psicanalistas transitam e constroem relações
de confiança e troca pode ser melhor estudado em uma outra pesquisa. Mas pelo formato desta
dissertação e os seus limites, vale apenas salientar os aspectos personalistas que permeiam as redes
do mercado das terapias – neste caso mais especificamente a terapia psicanalítica – em determinados
espaços institucionais.
Para finalizar este capítulo, resta abordar o aspecto sacrificial dessas trocas. Como uma vez
me relatou Jorge, para as trocas procederem, vez ou outra implica-se em “abrir mão de um paciente
87
para si, para indicar a alguém, estabelecendo esse laço, para que a pessoa retribua no futuro”. Maria
relata algo similar: “Eu estou atendendo um paciente que diz da necessidade de sua avó fazer terapia.
Pensei, caso ele resolvesse pedir indicação, em me oferecer a atendê-la. Mas aí pensei se não seria
melhor indicá-la a uma colega, para que ela estabeleça essa relação de indicar comigo”.
O aspecto sacrificial das trocas surgiu em algumas falas, exclusivamente de proto-lacanianos.
Isso se dá na medida em que são os proto-lacanianos, principalmente, que estão em busca de
estabelecer laços de reciprocidade. Para Anspach (2012), os ciclos de vingança são rompidos através
de sacrifícios, que então estabelecem os ciclos da dádiva. Dessa forma, os proto-lacanianos podem
acabar deixando de atender um paciente, ou seja, se sacrificando, e passá-lo a um colega próximo
buscando estabelecer ciclos de dádiva. No entanto, não foi possível me aprofundar nesse aspecto das
trocas durante a pesquisa, o que pode ainda ser estudado em uma pesquisa futura.
88
5.A produção de valores e o ofício do psicanalista
Minha psicanalista era tipo uma prostituta. Eu chegava lá, contava coisas que não falava
para mais ninguém. Ela me dava atenção, me ouvia, me acolhia. Eu achava que estava
rolando uma química, era uma parada íntima. E aí, ela chegava e tocava no assunto do
dinheiro, de quanto eu devia a ela. O momento do pagamento era um momento
constrangedor. Parecia que tudo que tinha acontecido ali era mentira. Eu pensava 'então foi
tudo uma farsa, ela não gosta de mim de verdade, só me ouvia por dinheiro?' […] A boa
prostituta te convence de que aquilo não é um programa. Com a psicanalista foi a mesma
coisa.
Esse relato, tirado de uma entrevista com Iago, que iniciou sua análise durante a graduação
em psicologia, fornece um retrato das questões que emergem a partir de uma relação íntima mediada
por um valor monetário. Na medida em que o que está em jogo é uma relação que costumeiramente
ocorre entre duas pessoas que possuem intimidade, no entanto é cifrada por moedas, o produto que
se “vende”, (a escuta atenciosa, as intervenções do analista) parece ser de mentira. Por outro lado,
parece que é o pagamento que permite que a análise possa distinguir a escuta do psicanalista de um
ato caridoso ou amoroso, mantendo um distanciamento necessário para que a análise se distinga de
uma amizade, uma ajuda, uma caridade – e, segundo eles, é necessário para que o trabalho ocorra.
Segundo Zizek (2012, p. 81),
Podemos entender o afastamento, ou o ar austero dos psicanalistas, que não demonstram afeto
amoroso diante de seus pacientes como uma regra conhecida das prostitutas de não beijar na boca de
seus pacientes. O beijo pode estar no mesmo nível de uma demonstração de amor da parte do
psicanalista, que estaria mesclando sentimentos de afeto com um serviço que deve ser entendido
enquanto um serviço, da mesma forma que as prostitutas demarcam essa diferença.
Se a demonstração de amor impossibilita a venda de sexo ocorrer pois a relação sairia do
89
registro impessoal do comércio e entraria em um registro de uma relação amorosa, para a psicanálise
o mesmo parece ser um problema. Os psicanalistas dizem, segundo Jorge, que “não se deve responder
à demanda do paciente – demanda que é sempre de amor – respondendo com amor. Não se deve
atender à demanda de seu paciente para que assim possa escutar seu desejo... é por isso que não se
atende à demanda, para se ouvir o desejo”. Nessa frase, Jorge explicita a forma pela qual os lacanianos
entendem a relação de intimidade. A demanda (de amor) não deve ser atendida, pois dessa forma
suprimiria o desejo, o que parece ser onde o psicanalista busca que se mostre na análise. Venâncio,
proto-lacaniano, chega a relatar um momento da sua vida em que não pagou pela sua análise, e diz
ter sido uma experiência negativa:
Parece que, se por um lado, a questão do dinheiro na clínica coloca o psicanalista na posição
de um profissional que pode estar apenas interessado no dinheiro do paciente e, por outro, a não
cobrança pode colocar o psicanalista na posição de um amante ou de alguém de quem se duvida da
motivação ao fazer um serviço de ouvir as intimidades de outra pessoa sem um retorno financeiro.
Venâncio prossegue:
era praticamente de graça, era uns... R$50,00 por sessão. Só que na época eu estava mal,
também então às vezes eu fazia [sessão] três vezes na semana, sei lá...praticamente de
graça...R$17,00 a sessão (…). Isso foi por dois meses. Então eu trouxe isso à tona, que eu
estava me sentindo desconfortável por pagar tão pouco.
A solução encontrada por Venâncio e sua analista foi ele ficar em débito e ir aos poucos,
depois que arranjasse emprego, pagando os dois meses que não pôde pagar e voltar à normalidade,
pagando R$100,00 a sessão. E aí quando arranjou um trabalho em que ganhava melhor, disse que
queria pagar um outro valor, e propôs R$130, R$140, e ela puxou R$150. Fala que “é um pouco
puxado, mas dá para ser”.
Segundo Venâncio, “faz diferença o pagamento”:
eu acho que o pagamento tem uma função sim, que é fazer valer o que é dito. (…) Eu acho
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que é um investimento, né, a pessoa faz uma espécie de sacrifício, ela dá o dinheiro para
fazer valer o que ela está falando. Acho que por exemplo, se eu faltar à minha analista e
não avisar, não der uma justificativa, ela vai me cobrar pela sessão faltada, então às vezes
posso estar com preguiça, sem vontade de ir, mas eu penso 'se eu for pagar, então é melhor
eu ir que não ir e pagar'. Então é uma coisa que faz com que eu esteja ali também me
dedicando a isso, de fazer análise, a essa proposta. Eu acho que muitas vezes quando você
não paga, ou quando você paga pouco, 'eu posso ir, posso não ir...não sei se eu vou... você
passa a não dar valor.
O “dar valor” ao qual Venâncio se refere parece significar que, a partir de um valor monetário,
se cria um valor de ordem moral, e o dinheiro tem para ele a função de produzir um comprometimento
moral com sua análise. Esse tipo de associação entre valor monetário e valor moral é levado a sério
pelos psicanalistas, pois intervêm no tratamento via aumento do preço da sessão por questões morais.
Já ouvi psicanalistas apontarem para o fato de que se “devia aumentar o valor, pois o paciente faltava
muito às sessões”. Em outras ocasiões, por exemplo, ocorre o oposto. Quando o paciente parece
atribuir um grande valor moral à sua análise, o psicanalista busca aumentar o valor, cobrando o
condizente com esse valor. Em uma conversa entre duas amigas, isso fica claro pela sugestão que
Thalita fez à Maria sobre um caso que Maria estava atendendo há poucos meses: “acho que seu
paciente já está se apropriando da análise, já está trabalhando, já está em um outro momento, está
dando importância àquele espaço. Acho que dá para aumentar um pouco o valor (monetário)”. O
valor parece se estabelecer a partir de um princípio de que a análise deve ser valorizada tanto no
sentido moral e financeiro. E o psicanalista busca entender a análise como um bem que deve estar no
topo da hierarquia do consumo na vida do paciente. Valentin diz que a análise é um “investimento
subjetivo e financeiro”, afinal, “narrar sua própria história é uma grande tarefa”. A partir disso,
segundo Venâncio, o analista perderia as referências usuais dos valores que consideram “comerciais”
quando a análise deveria ser mais custosa, pois uma análise para ter seu valor para um sujeito rico,
necessitaria ser muito mais cara. Venâncio diz:
se você for cobrar uma pessoa que tem muito dinheiro, e cobra pouco, a pessoa pode
menosprezar. Talvez uma pessoa que ganhe 10.000, 15.000, tenha que se cobrar 300,00 a
sessão, para que a coisa tenha um peso.
Venâncio defende que o pagamento teria por função “fazer valer o dito”, e que a análise deve
ter um “peso”. Maria Ângela, psicanalista estabelecida, compartilha dessa visão, e defende, além
dessa questão, que o pagamento enquanto “ato” é importante: “eu entendo que o ato de pagar seja
uma coisa importante. Não só pela perda, como pelo ato, de dizer que eu pago pelo meu sintoma, eu
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pago pelo que está acontecendo aqui, eu pago para ver se eu saio dessa. E o ato de pagar, não só
como uma perda, mas como um ato, eu acho fundamental”. O ato de pagar é valorizado pelos
psicanalistas, o que configura formas específicas de se pagar pela sessão. É comum que os
psicanalistas prefiram dinheiro a transferência bancária, por exemplo, e alguns chegam a cobrar por
sessão, tendo preferência pelo pagamento semanal e não mensal, para haver esse “ato”. Um exemplo
é o caso de Raissa, que relata o seguinte:
Eu sempre paguei em dinheiro, não sei porquê, mas eu sempre achei que tinha que ser em
espécie (risos) mas depois eu entendi que também poderia ser em cheque - também, tem
gente que dá cheque. Mas eu sempre dei em dinheiro e eu só paguei cheque nas vezes que
eu não tinha dinheiro na minha conta, não tinha como pagar, por exemplo aqui [em Paris],
que era toda semana [a sessão], e aí eu dava o cheque e eu falava: 'não tenho dinheiro, você
pode descontar esse cheque daqui a duas semanas?' Então eu fiz o simbólico de pagar, mas
sem pagar de verdade.
No caso, Raissa deu o cheque mesmo pedindo para descontá-lo após duas semanas, porque
não somente entregar o dinheiro, mas o “ato”, “fazer o simbólico de pagar”, é importante.
Pelo dinheiro ser necessário em uma análise, como dizem os lacanianos, e por ser pelo
pagamento – em todos seus sentidos – que uma análise ocorra, há sempre a preocupação de que os
interesses pessoais do psicanalista interfiram no tratamento do paciente. Ou seja, parece que o valor
cobrado tem que sempre ser calculado a partir do sintoma do paciente, e nunca por outras razões
práticas, já que isso prejudicaria a análise. Venâncio explica:
Na psicanálise você tem que se abster de querer ajudar a pessoa no sentido de tipo 'ah, não
fica assim, não, vai passar'...se abster de às vezes tentar manter a pessoa, às vezes a pessoa
vai sair, talvez é o processo dela. Porque senão você vira um guru, você se coloca no mesmo
lugar que de interesses religiosos, interesses ideológicos, de lugar de Mestre...'você tem
que fazer isso, tem que fazer aquilo'. E isso acontece muito...eu vejo muito acontecer, não
só na psicologia, mas nessa coisa de quem vai dizer para o outro alguma coisa de sua vida.
O que Venâncio descreve tem a ver com o preço e a forma como se cobra, pois, como ele
relata:
por exemplo, se você só tem um consultório e você está com poucos clientes e você precisa
dos clientes para se manter, para manter o consultório, isso vai interferir na relação que
você tem com eles...porque às vezes, sei lá...às vezes você vai ter que dizer algo duro, mas
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pertinente ali, fazer uma intervenção mais dura. E aí talvez você pode ficar na dúvida se
você vai fazer isso porque você já está sentindo que está muito difícil pra ela lidar com as
coisas que ela tá trazendo, que muitas vezes quando as pessoas preferem jogar para debaixo
do tapete do que olhar de cara, e aí talvez você não vá fazer essa intervenção que seria
muito importante, que poderia até resultar na pessoa sair porque tem medo que a pessoa vá
embora.(...) Quando você pauta sua clínica somente pela questão monetária, você fica
refém...e não acho que você vá fazer um bom trabalho.
Venâncio subloca um consultório mesmo sem paciente, pagando R$480,00 por mês para
utilizar a sala por 4 horas semanais no Humaitá. Ele está investindo no consultório há dois meses e
paga com seu salário que recebe trabalhando na rede de saúde mental. Não sabe quanto tempo vai
continuar assim pois diz que pela rede de saúde mental não consegue indicação. Fala que conhece
muita gente, mas diz que são também seus concorrentes e por esse motivo seria difícil receber
indicações. “Para conseguir pacientes precisa de um tempo, “fazer network”, atender por plano de
saúde também”, diz. “É necessário fazer as pessoas, os próprios pares e pessoas em geral saberem
que você está atendendo”.
Dentro da relação de intimidade que se estabelece entre o analista e o paciente, o cálculo do
psicanalista, de acordo com as entrevistas, parece buscar um equilíbrio, dentro de um determinado
parâmetro, entre o que ele pode dar por aquele paciente, e o quanto receberá por isso. No entanto,
esse equilíbrio ocorre de formas diferentes a partir dos estágios na carreira em que o psicanalista se
encontra. O relato de Vanessa, proto-lacaniana que atende há três anos ilustra bastante a trajetória do
proto-lacaniano e suas maneiras de estipular valores:
Quando eu comecei era meio “vem todo mundo”, sabe? Porque eu precisava estar
atendendo... (risos). Então eu já atendi paciente por R$15,00 a sessão - sendo paciente que
veio do SPA comigo. Mais de um que veio de lá pagava R$5,00 lá, aí passaram a pagar
R$15,00 no consultório - triplicou o valor. Aí com o tempo, eu fui aumentando… eu nunca
trabalhei com valor fixo, nunca! Mas eu tinha uma referência. Com o tempo minha
referência foi subindo um pouco, fui dizendo para mim que vou tentar agora não atender
nenhum paciente por menos de R$50,00. Estipulei isso para mim, não para o paciente.
Hoje eu continuo não trabalhando com valor fixo, mas tento ter uma referência, de não
menos que R$80,00.
Os valores que são cobrados na clínica, no caso de Vanessa, têm relação direta com seu estágio
na carreira. No entanto, ela chega também a dizer que o valor que cobra tem relação com o quanto
ela vai “dar de si” em um atendimento. A “referência” do valor, palavra que ela usa, parece ter relação
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tanto com seu esforço quanto com o número de pacientes que já atende e o seu tempo de experiência
clínica. Isso indica que a percepção do esforço se modifique com o tempo, ou seja, que os valores
que traduzem o que o psicanalista “doa de si” ao tratamento se modificam, por mais que o esforço
em si não se modifique, na medida em que não se aceita mais “todo mundo” como no início. O
profissional começa a se interrogar mais também sobre o quanto é essa doação de si na medida em
que já parece possuir alguma experiência mínima que possa utilizar para prever esforços futuros.
Portanto, há uma percepção do valor que se modifica ao longo da trajetória do profissional. Nesse
caso vemos que, quanto aos psicanalistas dizerem que cobram de forma singular, cada caso demanda
um tipo de investimento do psicanalista, no entanto o investimento está atrelado às suas expectativas
financeiras que, ao longo da vida, também se modificam. Vanessa explica a percepção do valor
quando relata o seguinte:
Eu já recebi paciente que eu pensei assim: “não dá para atender por tanto, simplesmente
não dá!”. Não consigo porque me exige muito, e atender por menos que isso seria eu estar
me dando mais do que ele. A gente ouve muito isso na faculdade, de você poder escutar
essa coisa do valor dessa maneira, mas é de um tempo para cá que tenho conseguido fazer
isso dessa maneira, de sentir que tem um valor x ali. Por exemplo, se esse paciente aqui
me pagar R$80,00 para mim não vai dar, é muito pouco para mim no sentido de que se eu
estiver aqui, escutando por esse valor, o investimento vai estar sendo mais meu do que
dele. Dependendo do caso sabe, porque tem casos que te exigem muito, te sugam muito,
então você percebe que não dá, que para você não dá por aquele valor, que tem que ser
pelo menos R$100,00 uma sessão dessa, que por menos que isso não tem como. Isso é
uma coisa. Mas não são todos os casos que vêm dessa forma, por mais que já tenha
acontecido. E a outra coisa que eu falei que me ajudou a delimitar isso foi que no momento
que eu consegui ter mais paciente, um pouco mais de pacientes, eu consegui fazer um
recorte. Acho que agora que atendo dez pacientes.
O que Vanessa diz se refere ao quanto o analista dá, e o quanto recebe em troca. Essa relação
se dá a partir de um equilíbrio. Ou seja, pelo valor monetário se cria um meta-valor, um valor em
que haja uma equivalência entre a energia gasta para atender um caso e o que o paciente investe,
onde o dar e o receber não sejam muito distantes. E Vanessa diz que pôde fazer esse recorte
atendendo mais de dez pacientes, ou seja, seus critérios sobre o que seria o equilíbrio foram se
modificando também. Como já foi abordado antes, caso o paciente sinta que não dá o suficiente,
segundo os lacanianos, ele poderia tentar “pagar” de outra forma, dando algo, seja com uma “falsa
melhora”, ou com presentes. E caso o psicanalista sinta que oferece mais do que recebe, ele pode
passar a não atender com todo seu empenho. Um dos outros pontos é que o que se recebe pela clínica
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não vem somente do paciente. É isso que permite a suposta benevolência dos proto-lacanianos ao
oferecer a “clínica social” com preços menores, pois ali não se ganha somente dinheiro do paciente,
mas experiência, contatos, indicações. O interessante disso é que se nota que a relação de dádiva
costuma aparecer em formas de gratificações, como presentes, principalmente quando o valor é baixo
ou quando é gratuito. Durante um período em que estagiei em um hospital público, era recorrente os
estagiários receberem presentes de seus pacientes, e eu mesma já cheguei a ganhar objetos de
variados tipos como presentes após sessões com pacientes que ocorriam no próprio hospital.
Jorge, que trabalha em uma clínica social no subúrbio do Rio de Janeiro, chega a relatar o que
considera “o maior constrangimento clínico de sua vida”:
tem uma paciente minha, muito transferida, que me indicou três outras pacientes amigas
dela. E um belo dia ela perguntou como quem não quer nada “Jorge, quantos anos você
tem?” e eu disse “trinta, completei semana passada”. E ela me deus os parabéns, e ficou
nisso. Mas na semana seguinte, eis que aparece ela com as outras três, com um bolo de
aniversário, uma coca-cola e uma velinha, para comemorar o aniversário do psicólogo.
(Risos). Eu disse: “Fulana, esse é o seu horário”. E ela respondeu “ah, mas eu acho que
você merece”. E eu fiquei muito sem saber o que fazer. (…) E comi o bolo, né? Vou fazer
o que? Não tive como fazer desfeita... (Risos).
Essa situação “constrangedora”, diz respeito a algo que Jorge não esperava receber, pois
transcendia ao distanciamento que se operava pelo dinheiro. No caso do hospital, diante da
abundância de presentes que os estagiários recebiam, o supervisor, João Carlos, chegou a dizer: “não
importa muito receber o presente, mas sim o que você faz com ele”. E com um gesto, teatralizou um
recebimento de presente com interesse pelo objeto recebido, e, na via oposta, teatralizou o que seria
receber um presente e colocá-lo de lado, indicando que o psicanalista não deve cair no “engodo” do
presente, ou seja, deixar ser seduzido pelo presente, demonstrando interesse pelo objeto, mas deixá-
lo de lado. Parece que João Carlos estava indicando que, pelo presente, o paciente buscava romper
com uma relação mercantil, e estabelecer uma relação de dádiva, o que, para a análise, seria
desastroso, pois as pessoas, numa relação de dádiva, não apenas trocam objetos, mas estabelecem
relação onde eles se misturam, e criam expectativas de receber de volta aquilo que se deu um dia.
No entanto, por mais que o dinheiro possibilite, como aponta Anspach (2012), que os atores
envolvidos na troca possam “dar as costas um ao outro” após a transação, característica do mercado
moderno, o “dar as costas um ao outro” - na medida em que “pagar uma mercadoria significa cortar
na raiz toda relação de reciprocidade envolvidas na troca” (Anspach, 2012, p. 77) - se torna uma
questão, geralmente, para o analista e seu paciente, pois entre eles ocorre uma relação de confiança e
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se espera um “cuidado” da parte do psicanalista. Maria e Lorena relatam situações onde a distância
que o psicanalista almeja acaba se voltando contra o próprio. Segundo a primeira, “os psicanalistas
acabam sendo pessoas muito frias, parece que não têm coração”. E conta:
Uma vez eu estava na rua e quase desmaiei. Sorte que morava com um amigo, e ele me
carregou até meu quarto, me deitou, e enviou uma mensagem de voz pelo WhatsApp, a
pedido meu [à minha analista], pois eu não conseguia segurar o celular para avisá-la que
eu não poderia comparecer à sessão. E ela respondeu apenas com um “ok, melhoras”. Eu
achei estranho ela não querer saber o que tinha acontecido. No dia seguinte pela manhã
minha analista me envia uma mensagem avisando que estaria atendendo em seu
consultório, do outro lado da cidade, e que se eu não fosse nesse dia depois ela estaria de
férias. Fiquei muito irritada com a mensagem, porque eu estava de cama, ainda passando
mal, e ela nem se deu ao trabalho de perguntar se eu já estava melhor.
Por mais que Maria pagasse à sua analista, ela não poderia lhe “virar as costas”. Maria parece
relatar que esperava uma relação de cuidado, mesmo que pagando para isso. Na verdade, o próprio
cuidado seria pago. Mas, um outro ponto interessante também emergiu diante dessa situação. Maria
chegou a se interrogar se sua analista agiu assim por pagar pouco, R$50,00 por sessão. Sua analista
teria aceitado, no entanto, não sem lhe dizer que aquele valor era muito pouco. Maria sabia que o
valor estava “abaixo da média”, mas pensou que se a analista compreendesse sua situação iria poder
aceitar. Contudo, no momento em que Maria considera que sua analista não está sendo “cuidadosa”,
ela passa a pensar também se não seria pelo valor que paga, e chega a se interrogar “se eu pagasse
R$200,00 por sessão, será que ela agiria assim comigo?”.
Dessa forma, nota-se que via o pagamento o paciente cria expectativas em relação ao seu
analista, cujo valor monetário parece ser uma via de equilibrar essas expectativas. Vanessa chega a
relatar um caso que ocorreu com uma paciente sua.
Teve uma situação que é mais recente, de uma pessoa que vinha há mais ou menos um ano
e aí eu fiz um reajuste, e a partir, isso teve um efeito que num primeiro momento eu poderia
dizer que é negativo, porque a pessoa não está mais comigo. Mas eu não sei se foi negativo,
porque foi o momento de poder pensar sobre aquilo, sobre o que estava sendo pago, o que
estava sendo trabalhado, o que estava sendo trazido, e foi uma proposta superbaixa. Era
uma pessoa que pagava R$90,00 por sessão mais ou menos, e aí ela propôs aumentar
R$30,00 por mês – e isso não dá nem R$10,00 por sessão, isso é um aumento muito
pequeno. A gente conversou, fechou um outro valor, que não foi o que ela propôs, foi um
pouco mais, mas também entendi ali que não dava para ser muito além daquilo e aí a coisa
desandou. Porque eu senti depois que - a minha leitura foi essa - a paciente passou a me
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cobrar mais. No momento em que ela se sentiu mais cobrada, ela passou a me cobrar mais,
a me pedir coisas. Ela me pedia tarefas para fazer em casa, assim 'como posso trabalhar
minha ansiedade em casa?' E aí eu não trabalho dessa forma. Eu sempre falei 'ah mas vamos
entender o que que é isso, o que você quer trabalhar em casa? Será que existe um exercício
para você fazer em casa? Não passo dever de casa'...eu fazia umas brincadeiras assim. Mas
ela trouxe isso mais no sentido de que eu trocasse minha abordagem com ela porque não
estava sendo eficaz. Eu senti um pouco isso, ela é uma paciente que eu tentei passar para
o divã várias vezes, relativo às coisas que ela falou mesmo, e ela nunca topou, então eu
senti que ela precisava ficar sentada de frente para mim, e a coisa ficou muito no mesmo
plano, 'se você me cobra eu também te cobro'. E quando ela pediu uma abordagem
diferente, eu falei para ela então que eu fazia novamente a proposta dela deitar, e ela não
veio mais.
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Como aponta a psicanalista Elza Macedo (2009), “em uma análise, quando o paciente aborda
a questão do dinheiro, o analista não deve ouvir isso como se fora uma relação comercial e sim,
entendê-la como algo a ser tratado, semelhante a uma formação do inconsciente, como ato falho,
esquecimento, sonho e sintoma”. Dessa forma, na clínica, para além do dinheiro servir enquanto
objeto de equivalência que equilibra os investimentos da parte do analista e do paciente, e uma forma
de se quebrar uma possível relação de dádiva, instaurando uma relação impessoalizada, ele serve
também como uma forma de intervenção clínica e um material de análise do analista. Um caso
bastante interessante, de que me lembro até hoje, foi a história que um professor supervisor meu,
João Carlos, me contou durante a graduação, durante uma supervisão do estágio. Ele relatou que um
paciente seu iria fazer uma viagem importante de avião. No entanto, a partir do momento em que o
paciente comprou sua passagem, começou a dizer em sua análise que iria morrer nessa viagem, e
tinha certeza disso, de que seu avião iria cair. João Carlos relata que tentou trabalhar essa questão
nas sessões, mas até a última sessão antes da viagem o paciente continuava a ter a certeza de sua
morte. No final de sua última sessão João Carlos então falou: “quando você retornar da viagem sua
sessão custará o dobro”. Diante dessa afirmação o paciente ficou furioso e buscou reverter a situação
dizendo que era um absurdo um aumento desse tipo. João Carlos apenas respondeu: “você não ia
morrer no avião?”, e cortou. Meu colega de estágio na época, Iago, que também presenciou esse
relato, comentou comigo recentemente sobre essa história:
O efeito seria de que o paciente, ficando irado com o fato de que no seu retorno pagaria o
dobro, seria porque ele se defrontaria com o fato de que no fundo ele achava que iria voltar
vivo. E ele voltou pagando o dobro de fato. (…) É como se ele tivesse fissurado, neurótico
numa questão imaginária, então o analista trouxe ele para a realidade via grana para trazê-
lo para o concreto. 'O avião não vai cair, você vai voltar e você vai pagar.' (…) O analista
tinha essa relação com a palavra, de manter a palavra. Depois do dito você não volta atrás,
então a palavra é uma coisa muito cara. Então ele falou que teria que pagar quando voltasse
e ele teve que pagar quando voltou.
Parece que esse é um exemplo de como uma neurose pode custar caro. O analista, com a
suposição de que seu paciente não acreditava de fato em sua morte, jogou com o aumento de preço
para ver sua reação. O paciente, diante do fato de se ver negociando um preço que a princípio seria
reajustado após sua suposta morte, ficou espantado de perceber que estaria negociando o preço sem
considerar que não estaria vivo, e, seja por isso ou não, ele de fato conseguiu pegar o avião - esse foi
o desfecho.
Há casos, também, em que o psicanalista cobra do paciente o pagamento de sua análise de
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uma determinada forma, em função do projeto terapêutico que idealiza para seu paciente. É o caso
de Fabiana, uma psicanalista intermediária de 32 anos, que relata que tem um paciente seu que paga
semanalmente por motivos clínicos. “Esse meu paciente tem dificuldade em se organizar
financeiramente, então foi uma proposta aqui do trabalho que ele pagasse por sessão, para que
ajudasse a dar um contorno nessa situação”.
Carolina, proto-lacaniana, conta o caso de uma paciente que atende. Ela é professora de
matemática e para ela, segundo Carolina, “todas as contas têm que fechar no zero”. Dessa forma, a
paciente calculava o valor exato que pagaria, para, no final, de acordo com o dinheiro que recebia de
retorno do plano de saúde, e do imposto de renda, o valor que pagava também fechasse em zero.
Sendo assim, Carolina buscou intervir nesse valor, pois “gostaria de introduzir ali algum valor que
não fechasse no zero”. Para tanto, levou em conta que a paciente tinha o diagnóstico de uma
obsessiva, ou seja, sua estrutura psíquica era de uma obsessiva, e que, para esses casos, geralmente
indica-se, grosso modo, que o manejo seja pela via de deslocar algo do sujeito que saia da conta
exata.
O dinheiro, portanto, é tratado pelos psicanalistas como mais um meio de intervir no sintoma
do analisando, e não está desconectado do contexto de ações curativas que os analistas empregam
durante o percurso clínico.
Durante o tempo em que trabalhei em uma clínica social, havia uma “equipe técnica”,
composta por psicólogos, e os supervisores, “membros efetivos” da associação, à qual a clínica estava
associada. Nessa clínica havia um “piso” e um “teto”. O mínimo para se atender a um paciente era
de R$10,00 por sessão, e o máximo de R$50,00. Sendo novata, perguntei como isso seria colocado
em prática, se se comunicaria esses parâmetros para os pacientes. A supervisora respondeu que não,
que se perguntaria ao paciente o quanto ele poderia pagar, pois “vai que pode pagar mais”?
Discutindo-se sobre como se estipulam esses valores, e como se sabe se o paciente realmente está
pagando um preço que pese para ele, a supervisora responde: “isso dá para saber, né? A pessoa chega
com uma roupa tal, com uma chave do carro na mão, dá para ter uma noção que ela tem dinheiro”.
A questão do cálculo do valor da análise a partir de critérios subjetivos pode, por um lado, ser
uma saída àqueles que precisam negociar, e não poderiam pagar um determinado valor, por outro o
psicanalista se utiliza de sinais emitidos pela imagem do paciente para estipular se ele realmente pode
“pagar mais”. Tentarei fazer um esboço da soma das variáveis possíveis que são levadas em conta
para se “calcular” o preço da sessão: o desejo do paciente (que pode ser compreendido como um
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comprometimento moral)58; a identificação pelo psicanalista dos recursos financeiros do paciente –
tanto pela sua imagem como pelo seu discurso; o quanto o psicanalista já perdeu ou se sacrificou pela
sua formação em termos libidinais e financeiros; o estilo de vida do psicanalista; o quanto o
psicanalista deseja ganhar com o serviço que oferece; a média do quanto se cobra normalmente por
uma análise; os sintomas do paciente e o valor moral atribuído à análise pelo analisando.. Essas
variáveis oferecem um norte possível para se pensar no que está em jogo no cálculo do valor das
sessões, por mais que existam outras variáveis, mais sutis: o lugar conferido ao analista pelo
analisando e os sinais que o analisando emite no ato de pagar. Buscarei descrever essas formas sutis
a partir de relatos.
Letícia, proto-lacaniana, por exemplo, relata que passou a rever o valor que cobrava de uma
paciente quando percebeu que ela sempre vinha lhe pagar com “notas embrulhadas em um montante
maior do que o do pagamento da sessão”, chegando às vezes a dar um valor a mais, retirando desse
“embrulho” de notas. “Foi nesse momento”, disse Letícia, “que vi que teria que rever o valor e passei
a cobrar R$50,00 pela sessão”. Algo parecido ocorreu com Maria. Ela, não tendo o costume de checar
a quantia que recebia dos pacientes, depositando as notas em sua mesa após a sessão, percebeu que
um paciente havia dado R$10,00 a mais pela sessão. Ao chegar em casa e perceber que havia recebido
R$50,00 ao invés de R$40,00, no entanto, não comunicou ao paciente o “erro”, mas interpretou esse
“a mais” como uma forma “talvez, de dar algo a mais”. Ela se perguntou “será que ele não sente que
paga o suficiente? Será que ele acha que recebe mais do que ele dá?”. Passado um tempo, pediu ao
paciente reavaliar o valor de sua sessão, e ele propôs R$50,00. Esses são sinais que o paciente
transmite no momento do pagamento, e que dão indícios aos psicanalistas, via sua interpretação,
sobre a necessidade de reajuste do valor. Parece que esses valores “a mais” indicam aos analistas um
desequilíbrio da dádiva, onde o dinheiro, não pagando o suficiente pelo que o paciente recebe, busca
reequilibrar essa troca ajustando o valor, equilibrando o que se dá e o que se recebe.
Em relação ao lugar que o paciente coloca o analista, pode ser entendido enquanto um ato de
valorização ou desvalorização. É o que Elisa, psicanalista estabelecida, já chegou a comentar. “Se
chega um paciente em meu consultório dizendo que me procurou porque sou 'a melhor de todas', não
há como cobrar pouco, entende?”. E, por mais que Venâncio, acima, tenha relatado que uma pessoa
que tenha bastante dinheiro talvez tenha que pagar mais por sua análise, para ter um “peso”, uma
psicanalista estabelecida, Andreia, já chegou a dizer que “no caso de ricos, o negócio é cobrar uma
merreca”. Isso se daria pelo rico estar acostumado a usufruir e tomar posse das coisas pelo seu
58
Já cheguei, anteriormente, a descrever como o desejo é concebido na sua forma mais prática: uma obstinação de ordem
subjetiva que se sobrepõe a obstáculos de ordem objetiva. Por exemplo, comparecer à sessão de análise mesmo em
um dia chuvoso, durante uma tempestade, sua regularidade, assiduidade, pontualidade. Ou seja, seu esforço e
compromisso com sua análise.
100
dinheiro, o que na análise, isso não deve ocorrer. Maria Ângela faz alusão ao equilíbrio que deve
haver no pagamento, assim como a valorização que o dinheiro confere ao analista:
Quanto custa uma análise? Custa algum custo, você tem que pagar por isso, mas não pode
ser escravidão, né, não pode ser um dinheiro que você não pode...viver sem ele. E também
não pode ser análise baratinha. Não existe coisa pior do que análise baratinha. Que é uma
desgraça que está acontecendo aí com os convênios, com os planos de saúde.
De qualquer forma, se busquei esboçar um cálculo a partir de variáveis, elas podem ser sutis,
e além disso múltiplas, e estão atreladas à visão de mundo psicanalítica, onde há um mundo oculto
por trás das coisas aparentes, mundo oculto que seria o inconsciente.
De fato, por mais que exista uma média, ou seja, alguns limites de cobrança do valor da
análise, que na zona sul do Rio de Janeiro oscila entre R$150,00 e R$300,00 a sessão, segundo os
entrevistados os psicanalistas ficam atentos às nuances que aparecem na clínica, pelas variáveis que
já citei. No entanto, é interessante notar que, se por um lado, para um leigo, o valor acaba sendo mais
ou menos concebido de forma natural, os proto-lacanianos, cientes de como esse cálculo ocorre,
quando buscam uma análise para si próprios, acabam buscando maneiras de manipular os sinais
emitidos em sua análise, tendo em vista manipular o cálculo do analista sobre o valor a ser pago. Um
exemplo disso é Iago, que relata que buscou um serviço de clínica social durante a graduação,
oferecido por uma sociedade psicanalítica (freudiana, não lacaniana). Ele diz que “o preço era
negociável, mas em conversa com [a analista] descobri que havia algum limite para essa negociação.
Então eu chorei miséria e ela fez por R$20,00 a sessão”. Iago buscou análise em um momento da
vida em que era estudante, e não queria pagar muito, pois teria que pedir dinheiro aos seus pais, por
mais que pudesse, de certa forma, “pagar um pouco mais”. Ele relata:
Eu acho que tem alguma coisa que você tem que convencer a psicanalista também que
você tem que pagar pouco. E ela em algum momento...eu acho que deixei de ser
convincente também. Porque durante a análise eu me segurava. Eu podia pagar R$30,00,
mas eu queria gastar pouco, eu era universitário e todo dinheiro que eu tinha para gastar eu
tinha que pedir para minha família, e eu não queria ter que recorrer aos meus financiadores
(…). Mas eu acho que em algum momento eu deixei transparecer que eu podia pagar e eu
acho que ela sacou. Eu acho que a roupa que eu vestia, as histórias que eu contava...aí eu
acho que quando eu fui descrevendo a minha vida, ela pôde perceber que eu tinha
possibilidades de pagar. Eu tenho quase certeza que era isso. (…) Quanto mais eu falava
de mim mais ela sabia da minha situação financeira e social.
101
Maria, proto-lacaniana, chega a se utilizar dos mesmos recursos de ocultamento que Iago
relata, e conta que, hoje em dia, ao buscar uma analista, “vou com chinelo de dedos, havaiana,
esculhambada”, e chega a ocultar fatos de sua vida. Ela diz que
fazia isso porque eu sou recém-formada, mas eu preciso de análise, porque faz parte da
minha formação. Não posso ficar sem. Mas aí, se demonstro que minha mãe pode me dar
um pouquinho a mais, ou se relato que fui a restaurante tal, se uso roupa tal, ela vai querer
cobrar caro. Mas acontece que se eu pago R$400,00 de análise [por mês], neste momento
da minha vida, é muito para mim. Eu também preciso sair, beber, me divertir, não posso
ser escrava da análise.
A questão parece girar em torno desse equilíbrio que o psicanalista busca, pois se o analista
sente que o paciente pode pagar mais, que paga mais em outras coisas que não em sua análise, ele
sente que o trabalho de análise não está sendo valorizado, e atribui isso à falta de desejo do paciente.
No entanto, às vezes esse equilíbrio parece chegar no limite de cada um, pois a depender do quanto
a pessoa adere ao discurso psicanalítico e penetra em sua cultura, mais valor dá à sua análise e mais
a hierarquiza. Leandro, um colega da antropologia, chega a relatar de uma amiga que teria pagado,
durante um momento de sua vida, vivendo com uma bolsa de doutorado em torno de R$2.300,00,
R$600,00 de análise, pois segundo ela “era muito importante fazer análise”. Ela estava em um
momento muito difícil de sua vida, e sua necessidade a forçava a pagar esse preço, enquanto pagava
quase o mesmo pelo seu aluguel, vivendo em um apartamento muito pequeno, com quem dividia com
mais outras 2 pessoas. Leandro relata isso de forma indignada e diz “é nesse limite que o psicanalista
trabalha, no limite da sua necessidade da análise, em um momento de sofrimento”.
Esse “limite”, relatado por Leandro, pode ser relacionado com uma das variáveis que faz parte
do cálculo do psicanalista ao cobrar por uma sessão, que é seu desejo. O desejo que o psicanalista
analisa do paciente em relação à sua análise, o seu investimento no seu trabalho e análise, é medido
a partir de uma hierarquia estabelecida pelo psicanalista, do lugar que a análise ocupa na vida do
paciente a partir de uma distinção e valoração de outras tarefas, serviços e lazeres em que o paciente
também investe. Como diz Vanessa, explicando umas das pistas que tem para calcular o valor de uma
análise: “às vezes o paciente vem, e a pessoa tem um monte de atividade na vida dela, tem um nível
de vida x, que não é barata, uma vida que não é uma vida barata, mas ela quer pagar pouco aqui. Às
vezes é uma coisa que não condiz com as outras coisas, entendeu?”. Essa fala explicita que o valor
monetário da análise se relaciona com o valor moral desta, onde ela deve ocupar o valor de
importância entre outras atividades da vida do paciente, a depender do seu estilo de vida. É o que
uma psicanalista, Ana, já me relatou um dia: “o paciente te conta que está indo pra Europa, e sai para
102
jantar, e vai em tal e tal lugar, e aqui está com dificuldade para pagar...o que é isso? Tem que ser
trabalhado na análise”. O valor moral, no entanto, é estabelecido a partir da ótica do analista. O desejo
não é do analisado, mas uma representação do desejo a partir do olhar do psicanalista. Essa relação
é, portanto, complexa, porque a noção de sacrifício é muito pessoal. Nesse caso são diferentes
sensibilidades sobre o desejo e sacrifício, que constituem um valor moral que se traduzem em um
valor monetário que possivelmente se equilibra como porta-voz de variáveis bastante sutis.
De qualquer forma, ao menos na cultura psicanalítica, a análise é valorizada, chegando a
estar quase no topo da hierarquia de necessidades. Por exemplo, Raissa chega a dizer que achou um
absurdo quando sua academia estava quase tão cara quanto sua análise, e diz que pensou “peraí, tem
alguma coisa de errado pagando quase o valor de uma análise pela academia”. Vanessa, presente,
chegou a interrogar: “mas por que não pode? Acho que pensamos o tempo todo que a análise tem que
ser a coisa mais cara de todas. Mas será que tem que ser assim?”. Vanessa falou com ar reflexivo,
pois parecia ser uma questão para ela a hierarquia que Raissa havia demonstrado.
O dinheiro enquanto “moeda de um investimento que não é apenas financeiro”, mas
correspondente a outras economias, como o gozo, o sintoma, parece ser um fator que traga
contradições em um contexto brasileiro, e talvez por isso alguns lacanianos acreditem que realmente
cobram a partir da singularidade, mas acabam mesclando esse discurso com outras variáveis, quando
se defrontam com a realidade. No entanto, como a noção de singularidade é uma noção importada,
a partir da leitura de Lacan, essa noção acaba escamoteando relações de desigualdade, pois dão a
impressão de que realmente negociam qualquer preço, sendo que, na prática, eles negociam de forma
singular o preço a partir de parâmetros muito bem delimitados.
As distinções que os psicanalistas fazem entre mercado e contexto clínico psicanalítico faz
com que a questão do contexto social a partir de onde a psicanálise opera está à parte da realidade
social, sendo a última apenas uma variável externa com que eles têm que se haver vez ou outra. A
distinção entre realidade objetiva e realidade subjetiva, havendo a supremacia da última sobre a
primeira, confere ao psicanalista as ferramentas que sustentam o ideal de seu oficio, onde estaria
isento de uma “lei de mercado”.
As questões expostas acima parecem bastante claras aos proto-lacanianos, pois, diante de seu
estágio na carreira, se deparam pela primeira vez com as regras do mercado psicanalítico na prática,
e não somente no discurso, o que gera muitas vezes perplexidade, e sentimentos ambíguos, onde
criticam a psicanálise e seus discursos “idealistas”, mas ao mesmo tempo, a partir de um fascínio
pela teoria psicanalítica e pela imersão na cultura psicanalítica, buscam driblar as contradições
geradas a partir do confronto entre as duas dimensões, baseados nas explicações advindas da própria
teoria lacaniana.
No entanto, é possível que a nova geração de lacanianos, constituída pelos proto-lacanianos
103
atuais mude as concepções lacanianas, na medida em que a realidade brasileira era distinta na época
em que os psicanalistas estabelecidos se formaram.
É possível perceber que, pelos relatos, os proto-lacanianos assim como os lacanianos
estabelecidos defendem uma ética do caso a caso, no entanto, fica claro para ambos os grupos existir
uma média no que toca aos preços do serviço. Ou seja, existe uma variação, porém que não tende ao
infinito. No início da carreira os analistas parecem obter ganhos que não somente o financeiro com
seus atendimentos. O que está em jogo é começar a trabalhar, fazer contatos, conseguir indicações.
Nesse caso, eles atendem por preços bastante baixos, e aceitam uma variedade bastante grande de
pacientes. Com o passar do tempo, como diz Vanessa, passa a existir um “recorte” do valor, dos
pacientes que se aceita ou não. De qualquer forma, busca-se um equilíbrio, entre o que se dá e o que
se recebe. O relato a seguir, de Carolina, ilustra bem o aumento de valor que ocorre no final da
carreira, assim como o equilíbrio dos ganhos:
Cobram [mais]. Sim, eu acho que assim, a pessoa quando ela já tem um destaque, já tem
mais tempo, ela normalmente já vai cobrar mais sim, porque é uma maneira dela selecionar
inclusive, porque chegam muitas pessoas para o psicanalista conhecido, né, ele então uma
das maneiras dele selecionar a clínica dele é cobrando mais caro, porque quem não pode
pagar não vai ficar. Agora, eu acho que mesmo nesses psicanalistas, assim, eu já vi, mais
de um caso em que atenderam pessoas que podiam pagar muito pouco. Mas às vezes é
porque é uma aposta, é porque é um estudante da psicologia, da psicanálise, então assim,
é diferente, você sabe que a pessoa tem um investimento ali, que ela quer fazer formação,
que ela precisa enfim, fazer análise. Tem casos, mesmo para esses psicanalistas, que eles
atendem por um valor que não seria, entre aspas, o valor de mercado. O valor que não
seria valor...uma coisa valorizada, entende? No sentido de não ser muito valor para ele...eu
acho que eles atendem pelo valor que é para a pessoa, que é pouco, entre aspas, assim, é
pouco 'ah o cara é conhecido, o cara cobra caro, conhecido', vamos dizer assim, mas ele
atende uma pessoa que paga muito menos do que as outros por um motivo ou outro, eu já
vi isso acontecer mais de uma vez, a pessoa atender alguém por um valor muito menor
que o dos pacientes, mesmo ela sendo conhecida, sendo psicanalista bambambam.
104
afirmou José Inácio, um psicanalista universitário de longa trajetória clínica, não chegam pacientes
em seu consultório dizendo que não podem pagar, ou que podem pagar pouco. Todos já chegam lá
já tendo em mente que um determinado valor será necessário para se pagar a análise. No entanto,
quando confrontados com pacientes que podem pagar pouco, muitos abrem exceção e cobram preços
abaixo do normal, como R$50,00, diante de uma média de R$150,00. Isso acaba gerando uma
situação curiosa, que é a de que em clínicas sociais acabam ocorrendo casos de pessoas que pagam
mais do que em clínicas particulares da zona Sul, por falta de conhecimento sobre a possibilidade de
negociação. Esse fato faz pensar que a barreira para alguém do subúrbio chegar até um analista da
zona sul não seja apenas territorial, mas simbólica.
Percebe-se que existe uma ética do caso a caso, e que os valores que se cobram na clínica
são singulares. No entanto, a singularidade não pode ser levada ao infinito. Por exemplo, não há
nesta pesquisa nenhum caso de psicanalista que cobre R$1,00 por sessão, assim como não há caso
de ninguém que cobre R$1.000,00 a sessão. Existe um recorte, cuja média foi prontamente dita pela
maior parte dos entrevistados, a saber, entre R$100,00 e R$300,00 a sessão, ressaltando que os proto-
lacanianos chegam a cobrar bem menos. Dessa forma, nota-se que a negociação tem limites claros,
assim como a singularidade dos casos. O relato a seguir, do proto-lacaniano Iago, expõe as barreiras
da negociação entre analista e paciente:
Uma colega, recém-formada, foi atender o primeiro paciente dela, e foi negociar.
Mas ela não sacou que a negociação...ela foi ingênua, ela comprou demais o
discurso de que a negociação ela era real, e que ela não é fake (risos). Aí ela foi
negociar com o paciente...ela era como uma vendedora que perdeu a noção dos
limites, da concretude dos limites da negociação. Então ela iniciou a negociação de
uma forma bem aberta, ela falou “quanto você quer pagar?”, e em seguida falou o
quanto poderia ser o mínimo para ela, que seria R$15,00, e o paciente falou 'então
ok, quero 15,00'. Ela deixou aberto para o paciente, e depois ela me disse que
R$15,00 é o que ela estava pagando por hora pelo preço da sublocação. Ou seja, ela
comunicou a ele o preço de custo, e sem considerar a passagem dele, ou seja, ela
tomou prejuízo. Ela foi ser uma pessoa bacana até, inexperiente (…). Eu acho que
ela comprou de forma ingênua isso da negociação, achando que o interlocutor dela
não ia ser malandro, assim como eu fui malandro na minha análise também, de
chorar miséria e pensar roupa para ir na análise! (Risos). Eu não ia bem vestido
para a análise porque se eu fosse bem vestido eu achava que eu corria o risco dela
me cobrar mais. Então essa amiga perdeu um pouco a malandragem do vendedor
também, que faz parte da análise. Quando ela revelou que existia um custo mínimo,
105
e ele falou 'quero o custo mínimo', ela não conseguiu sair daquilo. E ela o atendeu
por muito tempo, porque ela não conseguia dizer 'quero meu lucro'. Porque se ela
falasse 'não, quinze reais é o mínimo, mas eu tenho que ganhar meu dinheiro', ela
iria revelar para ele qual era o esquema: que existe o custo mínimo e existe aquilo
que eu quero para viver. Você está pagando meu lucro e você está pagando meu
consultório, entendeu? A negociação não é de fato uma negociação.
No relato de Iago percebe-se que quando se diz que é o caso a caso, visivelmente essa
concepção possui seus limites, pois o psicanalista não está disposto a negociar qualquer valor de um
caso inteiramente singular. Há limites para a singularidade do caso. Talvez entre R$150,00 e
R$300,00, determinada pessoa pague R$180,00 e outra R$250,00. Ou até podem haver casos em que
uma pague R$100,00 e outra R$300,00. No entanto, não nos deparamos com pessoas que pagam
R$1,00 e outra que paga R$1.000.000,00. Isso porque há um recorte, ou seja, quem procura um
psicanalista já faz parte de uma determinada classe social, assim como está inserida simbolicamente
no contexto de terapias e análise, possui algum conhecimento sobre, e porque o serviço do
psicanalista não pode transgredir completamente determinadas regras do mercado de terapias.
Tentarei, no próximo subcapítulo, esboçar as regras do mercado psicanalítico, apontando sua
semelhança com o mercado da arte.
Isso é uma questão subjetiva. O que é um analista no início da carreira? Ele é menos
analista que no final da carreira? Não. Isso é uma questão de mercado. Se eu sou famosa,
se eu apareço na televisão, se tenho clínica cheia, se não tenho nem horário...isso é uma
questão de mercado, isso é uma questão subjetiva, isso é uma questão para os prestadores
de serviço...o psicanalista não é um prestador de serviço. Isso aqui é um ofício, é uma arte,
como um quadro. Não tem preço para um quadro”.
No relato acima, de Marisa, o preço de uma análise ocorre de forma análoga, (senão
homóloga) ao preço de uma obra de arte – um quadro, no caso. O quadro não teria um preço, pois
seria, aos olhos da analista, de um valor singular. Os psicanalistas chegam muitas vezes a dizer que
106
“psicanálise não é profissão”, e utilizam a palavra “oficio”, em contraposição à “profissão”, e
chegam a alertar os proto-lacanianos de que não devem depender da clínica para viver, na medida
em que a dependência econômica dos clientes afetaria a prática clínica. Marisa diz:
Eu me lembro do Nazar [fundador da Escola], uma vez ele disse – pelo menos eu ouvi, não
sei se ele disse -, “psicanalista mulher tem que ter marido rico, não pode depender do
dinheiro dos clientes para viver”. Falou meio assim de provocação, kakaka todo mundo riu
e tal. Mas até hoje eu me lembro disso. (…) Eu não sei se ele disse dessa forma, e se hoje
ele repetiria isso, mas eu ouvi isso, e fiquei com aquilo na cabeça...eu não tinha marido para
me bancar...então eu não poderia ser psicanalista? E fui trabalhar isso na minha análise.
Raissa relatou que sua supervisora do estágio, na graduação, dizia: “não faça da psicanálise
sua fonte de renda”. Assim como já ouvi muitas vezes, de vários psicanalistas, que não é bom viver
da psicanálise, pois seu interesse financeiro pode vir a atrapalhar o tratamento, como se o dinheiro
tivesse ali apenas um papel terapêutico. Dessa forma, os psicanalistas tentam diferenciar-se de todas
as outras práticas. Segundo o psicanalista Arthur Rangel, em sua página do facebook, declara:
A psicanálise se separa bastante das diversas áreas de conhecimento; não só das outras
linhas teóricas da psicologia, mas das outras formas de pensamento. Incluindo aí as
ciências, sejam elas humanas ou não. Para não me alongar demais no tema, basta destacar
que o material de trabalho da psicanálise é algo que não é acessível; não há manuais, regras
ou passo a passo a seguir. A psicanálise trabalha com o erro, com o não-conhecimento, o
não-sentido, o esquecimento, o onírico, o desejo e isso já a afasta de todas as áreas de
conhecimento humano. Até a sua forma de transmissão é bem distinta (...).
Tem uma entrevista que Collete Soller60 deu no Norte da França em que ela dizia que o
laço analítico, o discurso analítico, o fato do laço analítico, já é em si uma reação contra o
59
Jornada de Carteis é o nome que os psicanalistas de Escolas dão a um evento onde se apresenta o que foi estudado nos
cartéis durante o ano. Os cartéis são um modelo de grupo de estudo criado por Lacan, e que obedece a lógica
conhecida pelo “4+1”, ou seja, é integrado por cinco membros, sendo um deles o “+1), que seria uma pessoa
supostamente mais experiente no assunto estudado e cuja missão seria a de ocupar um lugar de vazio, ou seja, de
“objeto a”, permitindo o conteúdo de estudo circular e não haver “amarras imaginárias”.
60
Proeminente psicanalista francesa e figura de liderança para os psicanalistas do Fórum do Campo Lacaniano.
107
Discurso do Capitalista, que é esse que nós vivemos hoje com tanta influência em nossa
vida, pelo fato de promover o laço social. E a mesma coisa me parece que é a função do
Cartel; o Cartel promove laços sociais ali dentro da Escola, e ali é absolutamente
importante que nós possamos ver a política da Escola, numa reação também, e numa
posição nossa de psicanalistas contra a coisificação, contra a objetificação dos sujeitos que
o mercado que nós vivemos hoje, tanto dos gadgets, que são vendidos, quanto das
medicações, que são receitadas, quanto dos remédios que são colocados a serviço da
população no lugar de cada sujeito poder falar sobre si mesmo. O Discurso do Capitalista
é um discurso que promove um homem como um proletário. Aliás, Lacan vai dizer que é
a 'proletarização do sujeito'. Quando ele chega em análise ele está tão ocupado com suas
próprias coisas que há uma dificuldade justamente, em função dos tempos que estamos
vivendo, de se ver no laço social, nas relações, de aproveitar a convivência com outras
pessoas.61
A psicanalista denuncia o mercado enquanto algo que, em si, coisifica os sujeitos. A esse
processo de reificação dos sujeitos, a psicanálise seria uma forma de reação, se contrapondo a ele a
partir da possibilidade do sujeito falar sobre si. Nesse relato, há uma concepção moral do mercado,
concebido como algo, ou uma coisa, que se deve reagir contra. Maria Ângela esboça, no relato
abaixo, sua forma de compreender mercado, em oposição que faz à clínica:
Há que se cobrar um preço justo, que é caro, mas não extorsivo, e nem pode ser barato,
desvalorizando. Nem extorsivo nem desvalorizando. E esse equilíbrio caso a caso você
vai ter que extrair, inclusive da própria relação da pessoa com o dinheiro. Mas ao mesmo
tempo você tem que ter um preço. Tem pessoas que demoram a fazer o preço, de acordo
com o sintoma do sujeito. Tem pessoas que tem mais ou menos um preço porque o
mercado exige isso. Você não pode cobrar um preço muito mais barato do que todo mundo
cobra ou muito mais caro do que todo mundo cobra. Tem uma faixa de preço que é a
chamada faixa de mercado, que ela não tem nada a ver com psicanálise. E dentro dessa
faixa do mercado, eu cheguei pra minha analista e ela falou “cobro tanto”, e nem discutiu,
nem disse “quanto é que você pode pagar?”, “você pode pagar mais do que isso?”, “você
não pode pagar isso?”, Ela falou o preço dela. (…).[Pago] R$200,00, agora já está em
R$220,00, a sessão. Está em torno de R$200,00, R$150,00 a R$250,00. R$250,00 é o
preço mais caro e R$150,00 é, digamos, o preço mínimo. No Rio de Janeiro, Zona Sul do
Rio de Janeiro...analistas...em geral lacanianos porque isso está difundido, mas não é
porque é lacaniano que cobra isso, é o mercado, tá? Eu insisto em dizer que isso não é
psicanalítico. Isso é a faixa de preço do mercado. E dentro dessa faixa cada um vai ver...
61
https://www.facebook.com/Campo.Lacaniano.RJ/videos/1889064464471888/
108
agora, tem essas clínicas que estão sendo formadas, que é um grupo de jovens psicanalistas
que está atendendo ao preço que a pessoa pode realmente pagar. Mas aí é para formar uma
clientela.
Os psicanalistas geralmente se utilizam da palavra “mercado” para designar algo que seria
externo à prática clínica, que estaria para além do alcance do analista. Além disso, o mercado é
entendido pelos analistas enquanto algo moralmente negativo, ou seja, algo mal, contrapondo-se ao
bem, que seria a singularidade, a clínica, o ofício do analista, que pode ser entendido enquanto um
ofício de um artista. No entanto, me chamou a atenção que por mais que os psicanalistas geralmente
recorram à arte como ponto de identificação que os distingue do que denominam “mercado”, todos
os entrevistados, inclusive Marisa, conseguem estabelecer padrões dos valores das análises a partir
de sua relação com o estágio na carreira e bairros onde o psicanalista atende.
Durante a pesquisa de campo, fui a três consultórios de psicanalistas estabelecidos. Neles,
pude confirmar com o olhar, reparando no ambiente, o apreço que os psicanalistas têm pela arte. Os
consultórios expressavam ar de requinte. Na sala de espera, quadros de artistas famosos como Van
Gogh, Gustav Klimt, Diego Velazques. No entanto, por ser formada em psicologia e por já ter feito
análise, já frequentei e já visitei outros consultórios de psicanalistas, e posso apontar que,
impressionisticamente chama a atenção a similitude quanto as referências à arte nos consultórios.
Durante a graduação, cheguei a ir a alguns eventos chamados “ciranda de psicanálise e arte”,
organizados por uma Escola de psicanálise localizada no bairro do Leblon. Também já cheguei a
frequentar uma disciplina na faculdade chamada “psicanálise e arte”. Em grupos de estudos de
psicanálise é comum encontrar discussões sobre obras de Shakespeare, Rimbaud, James Joyce,
Baudelaire, entre outros – em sua maioria franceses – que são não apenas estudados, mas
constantemente citados pelos psicanalistas. Os psicanalistas mantêm determinada relação com a arte,
e não é à toa. Com quase todos os psicanalistas com quem já conversei até hoje, principalmente sobre
a questão dos valores em uma análise, considera que, diferentemente de outras “profissões baseadas
em preços de mercado”, a psicanálise encontra-se mais no campo da arte, onde não existiria uma
forma padronizada de se cobrar pelo serviço ofertado. Muito comumente, o termo “artesão” é
recorrido para se falar do trabalho do psicanalista, assim como a palavra “ofício”. A palavra
“artesanal” aparece como forma de diferenciar a formação dos psicanalistas de outras a partir da
ideia de criatividade e autonomia dos processos de produção. O processo artesanal seria aquele em
que cada peça produzida é valiosa e única, diferentemente da produção padronizada em alta escala.
O artesão, diferentemente do empresário, ou fabricante, teria sua autonomia e dominaria o processo
de produção. Sendo assim, a ideia da formação do psicanalista como um processo artesanal busca
elevar essa profissão ao status do artista que, da mesma forma, se contrapõe aos meios alienantes e
109
padronizados de produção, em função de um lugar no “mercado” que possibilite lucros imediatos.
Pode-se pensar que tal relação com a arte advém do próprio terreno a partir do qual a
psicanálise lacaniana se constituiu, que é a partir da aliança de Lacan com artistas vanguardistas do
movimento de arte surrealista da década de cinquenta, como estratégia de romper com o
tradicionalismo das escolas de psicanálise freudianas, que, segundo Lacan, teriam se tornado
ortodoxas (Russo, 2002). No entanto essa relação persiste até hoje, e é explicitada repetidamente
pelos psicanalistas de forma ritual, principalmente quando se opõem ao “mercado”, ao “saber
universitário”, e à “ciência”.
Não se pode negar que há, de fato, uma singularidade na forma dos psicanalistas cobrarem
por suas sessões. Afinal, como já foi abordado anteriormente nesta dissertação, o analista toma a
questão monetária de seu trabalho enquanto objeto de trabalho de análise, assim como pela via do
dinheiro se intervém no tratamento do paciente. No entanto, não seria pela falta de padrão ou pela
ética do caso a caso que os psicanalistas encontrariam-se “fora do mercado”. Afinal, os psicanalistas
estão envolvidos em relações mercantis, mobilizam dinheiro, cobram por serviço. Por que se dizem
fora do “mercado”? Como e por quê? Aliás, o que os psicanalistas consideram que seja “o mercado”?
Mesmo não sendo explicitado o que o “mercado” seria, essa palavra opera servindo para que os
psicanalistas se considerem artistas, “artesãos da transferência”. Segundo Callon (1998, p.1), “the
market denotes the abstract mechanisms whereby supply and demand confront each other and adjust
themselves in search of a compromise”. Nesse sentido, os psicanalistas participariam de um
mercado, na medida em que dependem de relações de oferta e procura, e ofertam uma mercadoria,
pois o trabalho analítico é algo destinado à troca (Appadurai, 2010). Ora, como a procura pelo
serviço dos proto-lacanianos é mais baixa que pelos lacanianos estabelecidos, como esta pesquisa
aponta, os preços cobrados pelos proto-lacaniano são menores. Há um ponto objetivo dessas relações
mercantis que não se pode negar. Porém, por outro lado, pode-se conceber a clínica psicanalítica
enquanto uma contra conduta no mercado, na medida em que fazer uma análise, na medida em que
esse serviço pode ser considerado uma
das trocas que cede espaço a um vasto conjunto de transações que escapam aos princípios
da troca regulada de acordo com as informações aportadas pelos preços, seja porque o
preço não é contabilizado (pelo altruísmo e pelo dom), seja porque as regras da troca
baseiam-se em outros princípios que não a da melhor relação custo-benefício, como é o
caso dos bens simbólicos procurados por seus efeitos de distinção, por sua 'singularidade'.
Essa sequência reflexiva, portanto, ganha força, quando a linguagem do altruísmo, do dom
e da troca simbólica se torna, por sua vez, um meio encontrado pelos indivíduos para
110
qualificarem e valorizarem suas práticas, em contraposição à linguagem da troca mercantil
(Steiner, 2016, p. 14).
“(...) alguns desses enfadonhos tópicos sobre a arte e a vida, o único e o comum, a
literatura e a ciência, as ciências (sociais) que bem podem elaborar leis, mas perdendo a
"singularidade da experiência", e a literatura que não elabora leis, mas que "trata sempre
do homem singular, em sua singularidade absoluta (...)” (Ibid)
Nota-se que o sociólogo, quando lida com o campo da arte, lida com questões iguais colocadas
por aquele que se defronta com os psicanalistas. Afinal, a maior dificuldade em se realizar esta
pesquisa foi a recorrente afirmação dos psicanalistas de que trabalhavam com a singularidade,
portanto, a antropologia não poderia tê-la enquanto objeto de estudo. Esse ponto é também
questionado por Bourdieu (1996, p.12) em relação aos artistas:
Por que se faz tanta questão de conferir à obra de arte - e ao conhecimento que ela reclama
- essa condição de exceção, senão para atingir por um descrédito prévio as tentativas
(necessariamente laboriosas e imperfeitas) daqueles que pretendem submeter esses
produtos da ação humana ao tratamento ordinária da ciência ordinária, e para afirmar a
transcendência (espiritual) daqueles que sabem reconhecer-lhe a transcendência?
112
Considerações Finais
Esta dissertação foi desenvolvida tendo-se em vista de que por mais que etnografias sobre os
psicanalistas já tenham sido produzidas - como é o caso de Antonio (2015), que buscou descrever
como os psicanalistas lacanianos constroem uma noção de pessoa em um contexto constitucional -,
o aspecto financeiro ainda não foi tratado de forma aprofundada no campo da antropologia, e logra-
se que os dados obtidos possam ser utilizados para futuras pesquisas sobre o tema. Nesta dissertação
pesquisou-se uma classe de intelectuais pela via da produção de valor (monetário e simbólico), ou
seja, como psicanalistas lacanianos do Rio de Janeiro produzem e operam valores monetários no
contexto de sessões clínicas de uma análise, tema que os psicanalistas possuem uma conceituação
sobre e eu busquei verificar a partir de uma investigação sociológica/antropológica.
A pesquisa permitiu compreender os lacanianos da nebulosa cariosa a partir de sua cultura,
seu ethos, heidos e dialeto, como operam dentro de uma esfera de trocas, onde uma rede de
agenciamentos, onde se trocam contatos e indicações a partir de relações de confiança, e como
operam o valor monetário no contexto clínico, em relação com o estágio da carreira em que se
encontram, assim como o que idealizam que deva ser a maneira de se tratar o dinheiro com seus
pacientes – que produz um discurso oficial, disseminado pelos psicanalistas estabelecidos,
principalmente, sobre o que é a ética do caso a caso – em contraposição a um plano material e
concreto dos seus ofícios.
A meta-representação lacaniana na vida cotidiana, a saber, a forma pela qual os psicanalistas
representam sua profissão, a partir de traços miméticos importados do carisma de Lacan, que se
traduzem em atos espontâneos e discurso assistemático constitui ponto importante da cultura
psicanalítica. A constelação de valores essenciais que norteiam o grupo profissional – como a
valorização do desejo e uma concepção de sujeito difundida pelos psicanalistas – norteiam a forma
como os atores concebem suas relações de troca. A individualização dos sujeitos, e o entendimento
das condutas sob o viés do desejo torna imperceptível aos lacanianos as hierarquias objetivas que
constituem seu campo mercantil, relações que os proto-lacanianos acabam desenvolvendo maior
facilidade em apreender devido ao seu estágio na carreira, que implica em uma competição e
estratégias de autopromoção não enfrentadas pelos psicanalistas estabelecidos.
Os psicanalistas afirmam que trabalham a partir da ética do caso a caso, onde a singularidade aparece
como valor máximo do grupo no que se refere ao tratamento do paciente na clínica. No entanto, se
são os psicanalistas estabelecidos que difundem a ética do caso a caso e a ensinam aos novatos proto-
lacanianos, são estes últimos que mais a praticam, negociando com uma variedade maior de pacientes
113
que chegam aos seus consultórios com demandas de preços menores.
Vimos que os psicanalistas se assemelham aos artistas em vários aspectos. Ambos os grupos
produzem, a partir de suas ações, valores que os permitem operar a distinção em relação a outros
grupos profissionais “ordinários”, assim como à “ciência” ordinária. No entanto, ambas as profissões
estudadas produzem mercadoria, e mercadorias cujos valores econômicos são relativamente altos.
Não podemos ignorar, também, que a busca por direitos econômicos está em relação direta e indireta
com a mistificação de uma profissão. Assim como a obra de arte, que não deve se valer de leis normais
de mercado, os psicanalistas defendem o “preço singular” de uma análise, já que o preço estaria
relacionado diretamente com o tratamento terapêutico do sujeito, não sendo passível à objetificação
e relativização a partir de uma referência num sistema econômico mais amplo.
Os valores no mercado psicanalítico são produzidos a partir de redes de agentes que, a partir
de relações de confiança, indicam nomes de profissionais a quem busca fazer uma análise. A partir
das indicações, notou-se nesta pesquisa que as universidades, assim como instituições públicas –
como as que fazem parte da rede de saúde – participam desse mercado, agenciando contatos, “fazendo
os nomes circularem”. Dessa forma, assim como os analisantes, os alunos agenciam encontro de
psicanalistas ou até professores com parentes e amigos que buscam fazer análise. O valor simbólico
da análise pode ser entendido pelo empréstimo de prestígio que os psicanalistas obtêm das instituições
universitárias, assim como do campo da arte – ou ao menos buscam obter. Dessa forma, se por um
lado os psicanalistas deslegitimam essas instituições enquanto possíveis formadoras ou parte da
formação da carreira do psicanalista, possuindo suas próprias instituições formadoras, as Escolas,
resta a dúvida se os psicanalistas sobreviveriam ou ao menos teriam a mesma clientela sem vínculos
com as universidades.
O dinheiro na clínica psicanalítica aparece como um equivalente de expectativas do que se dá
e o que se recebe, a nível individual. No entanto, essas expectativas são moduladas por estruturas
objetivas do mercado psicanalítico, constituído por uma rede de hierarquias, onde se espera pagar
mais por alguém dos níveis do topo da pirâmide. As expectativas podem ser entendidas a nível
individual, na medida em que o psicanalista passa a perceber o que ganha e o que oferece de forma
diferente em cada estágio da carreira, a percepção dos ganhos e dos gastos se modifica. Dessa forma,
o valor é uma construção subjetiva e objetiva. As singularidades aparecem sob as formas da barganha,
e adquirem inúmeros significados para os agentes envolvidos, na medida em que o dinheiro no
contexto clínico está também a serviço das intervenções do analista e do manejo clínico.
A partir do dinheiro, o psicanalista se coloca fora do universo de retribuição, ou seja, rompe
com a relação de dádiva e ele e seu paciente podem dar as costas um ao outro após a sessão de análise.
No entanto, as expectativas de cuidado podem não desaparecer do ponto de vista do paciente, assim
como o psicanalista pode receber presentes como gratificação.
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Cabe ressaltar que os proto-lacanianos acabam sendo aqueles que mais praticam a ética do
caso a caso, na medida em que necessitam dos pacientes para iniciarem sua carreira. Dessa forma,
negociam uma variedade maior de preços a partir de seu interesse de troca mais variado e flexível,
pois não buscam ganhos meramente monetários com seus atendimentos, mas também buscam
adquirir experiência e contatos.
Por mais que pela pesquisa tenha ficado evidente que os psicanalistas estabelecidos possuam
uma clientela em sua maioria com recursos suficientes para pagar um preço relativamente alto no
contexto brasileiro para fazer análise, cabe compreender que os pacientes que chegam aos
consultórios dos psicanalistas já estão dispostos a pagar uma quantia alta pelo serviço oferecido pelo
psicanalista, o que facilita ao último uma percepção de que a ética do caso a caso não possui limites
em sua singularidade. De fato, os psicanalistas lidam com singularidades, porém dentro de uma
média de preços reconhecida pelos participantes desta pesquisa.
É tentador acreditar que a disparidade evidenciada na clínica entre os que podem pagar e os
que não podem se configura a partir da simples diferença de classe e de poder aquisitivo, correlata a
essa diferença, que faria da psicanálise um privilégio para poucos. Com o corolário não obrigatório
de que a disposição psíquica do analisando seria apenas a justificativa cínica e superestrutural com
o intuito de escamotear uma dominação de classe e privilégios dentro de uma configuração social de
desigualdade, como a brasileira.
No entanto, se observarmos que alguns psicanalistas relatam que não chegam pacientes a
seus consultórios que não possam pagar, ou que não possam pagar o mínimo que eles estabelecem
para negociar, nota-se que um bom número de psicanalistas estaria sim disposto a uma negociação
de valores que pudesse tornar acessível a análise aos bolsos menos fartos. Porém, muitos desses
bolsos simplesmente, tal como mostram as entrevistas, não chegam, seja por qual motivo for, aos
consultórios desses psicanalistas. O que gera o paradoxo de uma pessoa de classe média negociar
um preço de sua análise às vezes mais baixo do que um paciente paga numa clínica social de uma
periferia. Ou seja, não é uma questão simples. Existem fatores geográficos, econômicos e simbólicos
que parecem construir uma perspectiva do que deve ser uma terapia para pessoas de diferentes
camadas sociais.
Por outro lado, não se trata de tratar o desejo do psicanalista de ouvir o paciente, ou o desejo
de analisar de forma individualizada, isolada de seu contexto. Por mais que o psicanalista possa ter
desejo de analisar, o preço que cobrará não poderá se distanciar de um norte de medidas previamente
estabelecido em um contexto de oferta de serviços de saúde, onde barreiras simbólicas delimitam os
tipos de serviços devem ser oferecidos a quais tipos de pessoas. Nesse caso, a demanda a que os
lacanianos se referem requer compreender uma outra demanda, construída socialmente, onde as
expectativas de cura são moduladas a partir de um mercado mais amplo, um “mercado de cura do
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sofrimento” que, pelos limites deste trabalho, ainda não pôde ser pesquisado a fundo. No entanto,
resta levantar hipóteses de que a visão mais ampla desse mercado permita chegar a melhores
respostas sobre as operações de valores nos consultórios psicanalíticos.
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