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JOS TIAGO DOS REIS FILHO

NEGRITUDE E SOFRIMENTO PSQUICO


uma leitura psicanaltica




Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica
PUC SP




So Paulo
2005

PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica
Ncleo de Psicanlise
Laboratrio de Psicopatologia Fundamental



JOS TIAGO DOS REIS FILHO



NEGRITUDE E SOFRIMENTO PSQUICO
uma leitura psicanaltica



Tese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia
parcial para obteno do ttulo de Doutor em Psicologia
Clnica sob orientao do Prof. Dr. Manoel Tosta
Berlinck.

So Paulo

2005
2
FOLHA DE APROVAO













Orientador
Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck


Prof. Dr.


Prof. Dr.


Prof. Dr.


Prof. Dr.
3

AGRADECIMENTOS








Agradeo ao Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck,
pela orientao deste trabalho e por ter
acreditado em sua possibilidade.
Aos colegas do Laboratrio de Psicopatologia
Fundamental da PUC-SP;
A CAPES e a PUC-Minas;
A Fernando Bueno e Anglica Pompilho, por
me mostrarem o avesso do avesso.
A Oscar Cirino e Slvia Foscarini, grandes
companheiros.
A Vanessa Santoro, pela travessia.
Ao pessoal de casa.
4

DEDICATRIA






Quem foi que disse que eu escrevo para as elites?
Quem foi que disse que eu escrevo para o bas-fond?
Eu escrevo para a Maria de Todo o Dia.
Eu escrevo para o J oo Cara de Po.
Para voc, que est com este jornal na mo...
E de sbito descobre que a nica novidade a poesia,
O resto no passa de crnica policial-social-poltica.
E os jornais sempre proclamam que a situao crtica!.
Mas eu escrevo para o J oo e a Maria,
Que quase sempre esto em situao crtica!
E por isso as minhas palavras so quotidianas como o po nosso
de cada dia
E a minha poesia natural e simples como a gua bebida na
concha da mo.

Mrio Quintana






5
RESUMO



A questo dos negros no Brasil aqui discutida
como sintoma social e individual, que traz, para
o sujeito que porta o atributo cor negra, um
sofrimento psquico. A partir dos pressupostos
da psicopatologia fundamental, como uma
proposta de leitura das crises psquicas, que
ocorrem diante de um excesso, e do conceito de
analista cidado, ou seja, deste psicanalista que
se insere na sociedade e nela intervm com o
seu dizer, apontando para desmontar as fices
e possibilitar aos sujeitos o desprendimento das
fixes. Importante aqui o conceito de escravo
psquico, articulado ao de escravo social, para
pensar os traos do escravismo presentes em
nossa sociedade e nos sujeitos negros que
sofrem de sua negritude. Possuindo um passado
escravista, este pas ainda vive, em seu
cotidiano, situaes de preconceito,
discriminao e racismo, claramente expressos
nas condies materiais de vida da grande
maioria dos negros, mas tambm nas vivncias
marcadas, muitas vezes, por um assujeitamento
a padres estticos e ao comportamento
permanecendo como uma ferida narcsica. Da
possibilidade de cura desta ferida e da travessia
deste fantasma, sob a tica da psicanlise, do
que trata este estudo.
6
ABSTRACT




The question of black people in Brazil, is
discussed here as a social and individual
symptom which brings psychic suffering to
black individuals. This discussion is based on
the premises of fundamental psychopathology
as a proposition of interpretation of the psychic
crisis which occur in face of an excess and on
the concept of the citizen analyst, that is to say,
of this psychoanalyst who inserts himself in
society and acts through his speech, which
points out fictions to be dismantled and enables
individuals to get rid of fixations. The concept
of the psychic slave, articulated with the one of
the social slave, is very important when we
consider the signs of slavery, which are present
in our society and in black individuals who
suffer from their negritude. Having a past of
slavery, this country still lives, in everyday life,
situations of prejudice, discrimination and
racism, which are clearly expressed in the
material conditions of most black people, but
also in experiences which are often marked by
subjugation to standards of aesthetics and
behavior remaining as a narcissistic wound.
This study deals with the possibility of healing
this wound and walking through this ghost from
the point of view of psychoanalysis.
7

SUMRIO



I- I Captulo: Introduo e aspectos metodolgicos---------------- 09
Especificidade da pesquisa em psicanlise ----- 11
II- II Captulo: O sintoma social----------------------------------------29
Narcisismo das pequenas diferenas------------- 44
III- III Captulo: Escravo psquico --------------------------------------62
A psicopatologia do fracasso --------------------- 64
IV- IV Captulo: Caso clnico------------------------------------------- 99
V- V Captulo: Traos do escravismo ------------------------------- 120
A in-visibilidade do negro ----------------------- 127
VI- Referncias bibliogrficas ------------------------------------------ 141
8
INDICE


PRIMEIRO CAPTULO.................................................................................... 9
INTRODUO E ASPECTOS METODOLGICOS ................................ 9
Especificidade da pesquisa em psicanlise............................................. 11

SEGUNDO CAPTULO................................................................................... 28
O SINTOMA SOCIAL............................................................................. 28
Narcisismo das pequenas diferenas ......................................................... 44

TERCEIRO CAPTULO ................................................................................. 62
ESCRAVO PSQUICO............................................................................ 62
A psicopatologia do fracasso........................................................................... 64

QUARTO CAPTULO..................................................................................... 96
CASO CLNICO........................................................................................ 96

QUINTO CAPTULO..................................................................................... 116
TRAOS DO ESCRAVISMO............................................................. 116
A in-visibilidade do negro............................................................................... 123

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.......................................................... 136



8
PRIMEIRO CAPTULO
INTRODUO E ASPECTOS METODOLGICOS

Eu ando pelo mundo
Prestando ateno em cores
Que eu no sei o nome...
Adriana Calcanhoto


Este trabalho se insere na perspectiva da psicopatologia fundamental. Segundo
Berlinck (2000)
1
, a expresso psicopatologia fundamental foi usada pela
primeira vez por Pierre Fdida, para se distinguir da psicopatologia geral de Karl
J aspers, criada no incio do sculo XIX. A disciplina de J aspers visa
formulao narrativa objetiva das doenas mentais conhecidas, enquanto que a
psicopatologia fundamental busca resgatar a dimenso subjetiva e singular do
pathos. Assim, quando pathos ocorre, algo da ordem do excesso, da desmesura,
se pe em marcha, sem que o eu possa se assenhorar desse acontecimento, a no
ser como paciente, inaugurando, assim, condies necessrias e suficientes para
a posio do analista e para a transformao desta vivncia ptica numa
patologia e, da, numa experincia. O humano , ento, uma espcie ptica, que
sofre deste excesso, traduzido enquanto dor em toda forma de sofrimento ou
situao que faz sofrer, como amor, paixo, loucura, doena, misria.

Fdida (1988)
2
, ao tentar definir o termo psicopatologia, remete-nos
expresso patei-matos, que na tradio do poeta squilo designa aquilo que
ptico, que paixo, que vivido. Psicopatologia seria ento definida como um
sofrimento que porta em si mesmo a possibilidade de um ensinamento interno.


1
BERLINCK, Manoel Tosta. Psicopatologia Fundamental. So Paulo: Escuta, 2000.
2
FDIDA, Pierre. Clnica psicanaltica: estudos. So Paulo: Escuta, 1988.


9
Neste sentido, no pode haver simplesmente normal e patolgico, uma vez que a
linha divisria entre um e outro bastante tnue. A descoberta da psicanlise
consiste justamente na possibilidade da experincia interna do que o
psicopatolgico, desde que essa experincia interna no se psiquiatrize, no
sentido de se tornar uma patologia crnica e nada ensinar quele que a vive.

A posio da psicopatologia fundamental , ento, constituir-se como uma
proposta de leitura das crises psquicas, alternativa da psicopatologia geral, que
tem como perspectiva principal obter um acordo mnimo quanto definio das
categorias diagnsticas, de forma a alcanar uma concordncia entre as diversas
disciplinas, ao menos no plano descritivo.

A postura da psicopatologia fundamental exige do profissional que ele esteja
sempre disposto a sair de uma posio pr-determinada, fixa, para inclinar-se
sobre o sujeito que vem falar de seu pathos, daquilo que o faz sofrer. Nesse
sentido, a psicanlise seria a casa mais confortvel, existente na
contemporaneidade, para a psicopatologia fundamental, na medida em que
prope a escuta do que cada sujeito traz a respeito de seu sofrimento, via
transferncia. Esse discurso, compartilhado com o analista, possibilita uma
mudana na posio do sujeito, alterando sua posio no mundo. Da parte do
analista, aquele que escuta, essa vivncia envolve a sua participao subjetiva,
no esforo que far para pr em palavras aquilo que vive na sua clnica.


10
Especificidade da pesquisa em psicanlise

A pesquisa em psicanlise tem algumas especificidades, pois a clnica
psicanaltica uma atividade intensa de pesquisa, na qual analisante e analista
esto engajados. A pesquisa, portanto, faz parte da atividade clnica do
psicanalista. Essa atividade composta no s de prtica clnica cotidiana mas,
tambm, da prpria formao do psicanalista, que envolve sua anlise pessoal,
superviso clnica e estudos tericos.

No que concerne formao terica, essa atividade cada vez maior na
instituio universitria e nesse lugar que o discurso psicanaltico sofre uma
toro: a universidade o lugar do discurso do mestre, que tem como requisitos
a preciso, a clareza e a objetividade. A atividade clnica, ao contrrio, o lugar
onde deve prevalecer o discurso do analista, em que a transferncia comanda o
desenlace da anlise. A pesquisa em psicanlise se sustenta ento pela
transferncia e suas vicissitudes. A transferncia o processo pelo qual os
desejos inconscientes se atualizam na anlise; a colocao em ato da realidade
do inconsciente na dimenso que lhe prpria: a do engodo, porque o analisante
supe ao analista um saber sobre a significao e ento lhe pede dicas dos
significantes de identificao. Por exemplo: E agora, o que devo fazer?, uma
questo constantemente endereada ao analista. O que o analisante no sabe ou
no quer saber que o analista no sabe. Ele um saber suposto.

Em 1926, no artigo A questo da anlise leiga, Freud
3
, preocupado com o
futuro da psicanlise, nos alerta que s h uma maneira possvel de aprend-la:


3
FREUD, S. A questo da anlise leiga, (1926). ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.


11
submetendo-se a uma anlise. No bastaria, ao interessado, segundo ele, buscar
ampliar seus conhecimentos em disciplinas afins como a psicologia, a literatura,
a mitologia, a histria, etc. Apesar de reconhecer o valor desses conhecimentos
at mesmo para a atividade clnica, eles no so suficientes. Mais tarde, em
Anlise terminvel e interminvel (1937)
4
, volta a afirmar que a anlise
condio necessria e insubstituvel para produzir um analista. Mas, claro que
o saber advindo de uma anlise no suficiente para o exerccio da prtica, pois
uma anlise no transmite os conceitos fundamentais que organizam a
experincia.

A psicanlise em intenso e a psicanlise em extenso, conceitos desenvolvidos
por Lacan (1987)
5
, por ocasio da fundao de sua escola se definem e se
diferenciam enquanto uma prtica teraputica e enquanto uma teia terica. O que
ambas tm em comum a transferncia a um sujeito suposto saber e uma
transferncia de trabalho. A psicanlise em extenso presentifica a psicanlise
no mundo, atravs da transmisso, enquanto a psicanlise em intenso prepara
os operadores. A instituio (psicanaltica, universitria) o espao onde os
conceitos fundamentais da psicanlise podem ser transmitidos.

Mas, ser analista no tarefa fcil. O criador da psicanlise j nos advertia de
que h trs atividades impossveis de serem exercidas: educar, governar,
psicanalisar. A impossibilidade dessas atividades se deve ao fato de que
nenhuma delas oferece garantia ao outro, pois o mal-estar e a insatisfao
sempre estaro presentes nelas, deixando um resto a ser suportado por cada um.


4
FREUD, S. Anlise terminvel e interminvel (1937). ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.
5
LACAN, J acques. Ata de fundao da Escola Freudiana de Paris: 21 de junho de 1964. Letra Freudiana, n
0, 1987: 27-42.


12
Quanto psicanlise, pode-se pensar sua atividade clnica articulada em trs
elos: com os analisantes, com a teoria psicanaltica e com os outros analistas.
Esses elos apontam para a transferncia em trs diferentes nveis: na relao
analtica, com o saber e com a instituio. Na situao analtica cotidiana, o
analisante quem procura o analista e enderea a este uma demanda: demanda de
amor, demanda de um saber. a partir desse saber suposto ao analista que o
processo transferencial se instala, via livre associao. H, portanto, na
psicanlise, uma relao indissocivel entre investigao e tratamento, e,
manter-se analista, corresponderia a manter essa posio de hincia entre estes
termos. A escuta analtica mantida por essa tenso constante, na qual a
investigao pode ou no coincidir com os efeitos teraputicos.

A psicanlise s se sustenta ancorada em dois campos: o da experincia analtica
no vnculo social estabelecido entre um analista e um analisante e na sua relao
com a cincia, com o saber, atravs da qual cada analista tem que reinvent-la
para torn-la cientfica. A verdade e o saber, no que estes se articulam com a
cincia e com a arte, a que a psicanlise se instala. Nesse trabalho, a atividade
clnica atravessa toda a sua elaborao, mas no isoladamente; outras fontes se
mostraram imprescindveis para sua confeco.

As fontes da pesquisa

A primeira das fontes utilizadas refere-se ao meu trabalho com a questo racial.
Fao esse desde 1988, pesquisando e participando, como cidado, dos interesses
da comunidade negra brasileira. Minha atividade clnica com sujeitos negros
teve incio tambm neste perodo, vindo da boa parte do material que ora


13
privilegio. Como j relatado anteriormente
6
, durante a graduao em psicologia,
atendi a dois analisantes negros em estgios supervisionados. Esses
atendimentos me fizeram pensar sobre a questo racial, num momento posterior,
em que iniciava minha atividade profissional, num trabalho junto a crianas de
uma instituio que visava trabalhar a cidadania e a identidade do povo negro, a
Casa Dandara, em Belo Horizonte. Desde ento, tenho recebido analisantes
negros em meu consultrio.

A escuta de um negro no difere da de qualquer outro sujeito, o que no traz
nenhuma especificidade. Entretanto, h a, segundo acredito, uma
particularidade. As situaes de preconceito e discriminao vividas
historicamente pelos negros falam dessa particularidade. Quando um analisante
negro diz que foi interpelado, revistado ou batido pela polcia e que isso se deve
sua cor, no fantasia. dado de realidade: as estatsticas que fazem um
recorte racial apontam para isso. Os assassinatos e os crimes, em geral, so a
segunda causa de morte no Brasil; estes acometem, principalmente, a populao
das periferias. A cor preta para ser a-batida.

Com relao a outros povos, os descendentes de asiticos, de forma geral, so
vtimas de preconceito; mas, no que tange aos asiticos, poderamos pensar em
duas vertentes dessa discriminao: uma positiva, que diz de sua capacidade
intelectual em todos os nveis de conhecimento, e uma negativa, que diz de sua
capacidade sexual, geralmente menosprezada ou desvalorizada, principalmente,
em relao aos homens, no que diz respeito ao tamanho do pnis. Nisto, eles so,
na maioria das vezes, comparados aos negros, imaginariamente supostos como


6
REIS FILHO, J os Tiago. Ningum atravessa o arco-ris: um estudo sobre negros. So Paulo: Anna Blume,
2000.


14
possuidores de um pnis maior que os demais, constituindo aquilo que Souza
(1990)
7
caracteriza como fazendo parte do mito negro: a superpotncia sexual e
o exotismo.

Quanto capacidade intelectual, nenhum povo, no imaginrio social brasileiro,
se compara aos portugueses, historicamente supostos como burros, enquanto
que os indgenas, geralmente so reconhecidos como preguiosos (Mata, 1981)
8
.
Isto sem falar nas louras (naturais ou artificiais), que se transformaram em
motivo de ironia e sarcasmo, ao ressaltarem seus atributos fsicos, aliados sua
suposta ignorncia e incapacidade geral de compreenso do que quer que seja.

Ao que tudo indica, situaes de preconceito e discriminao so uma constante
em nosso cotidiano, no s sobre os negros, como em diversos outros segmentos
da populao. Embora no sejam apenas os negros que sofrem discriminao e
preconceito, estes, em relao a negros tm uma particularidade: referem-se a
uma cor e a um corpo marcados historicamente. Isto ser melhor discutido no
captulo seguinte, quando tratar do narcisismo das pequenas diferenas.

Outra fonte para esse trabalho se deu numa instituio psicanaltica. Tive a
oportunidade de coordenar, de 2000 a 2004, o Grupo de Estudo e Produo em
Psicanlise e Questo Racial no Crculo Psicanaltico de Minas Gerais. Esse
grupo era composto por quatro psicanalistas negros; surgiu da necessidade de
estudar e trabalhar o tema, para alguns, pela primeira vez, pois todos tnhamos,
alm da experincia pessoal, analisantes negros em nossos consultrios. A


7
SOUZA, Neusa S. Tornar-se negro: as vicissitudes de identidade do negro brasileiro em ascenso social.
2.ed. Rio de J aneiro: Graal, 1990.
8
MATA, Roberto da. Relativizando: uma introduo antropologia social. Petrpolis: Vozes, 1981.


15
questo principal que nos guiou foi: como o negro se fala na clnica? Era
consensual entre ns o fato de a questo racial parecer no interessar aos
analistas, de forma geral. Quando de nossas apresentaes em jornadas e
congressos
9
, nos perguntavam: Do que vocs esto falando?.

Diante de nossas respostas, retrucavam: Isto comum a todos os neurticos e
no especfico dos negros. H algo que se cala quando falamos de negro no
Brasil. Desse mesmo negro que rarssimas vezes est presente em nossas
apresentaes, que no participa de instituies psicanalticas, ou que no sabe o
que vem a ser psicanlise. Quando um negro se faz presente nessas ocasies,
em nmero inexpressivo.

Uma das entrevistadas de Souza (1990)
10
reproduz uma fala de seu pai: Voc,
crioula, fazendo psicanlise! Psicanalista de crioulo pai-de-santo (p. 66). O
curioso dessa fala que eu mesmo j a ouvi, quando iniciei minha formao; o
que no deixa de ressaltar a importncia da religiosidade afro-brasileira para
uma expressiva parcela da nossa populao, seja ela negra ou no. O que
assistimos em nossas apresentaes repete-se nos consultrios particulares dos
analistas. Com relao psicanlise, nos ambulatrios pblicos e clnicas
sociais, a situao, acredito, deve ser um pouco diferente.

Por isso, acredito que o grupo de estudo teve, guardadas as devidas propores,
uma importncia histrica, ao revelar nossa existncia e chamar a ateno dos


9
Ver, a esse respeito: REIS FILHO, J os Tiago et alli. Violncia e questo racial no Brasil: uma leitura
psicanaltica. Reverso, n 48, set. 2001: 17-23. REIS FILHO, J os Tiago et alli. Violence and racial matters in
Brazil: a psychoanalyutical approach. International Forum of Psychoanalysis, n 11, 2002; 95-99.
10
Op. Cit.


16
demais analistas. como se dissssemos, parafraseando Costa (in Souza, 1990:
16)
11
: Escutem, psicanalistas!. A partir de nossas apresentaes, alguns
colegas comearam a nos procurar para trocar idias, perguntar, falar de seus
analisantes. Alguns revelaram jamais ter atendido a um analisante negro; outros
disseram jamais terem se perguntado sobre a questo racial, ao atenderem
negros. Uma colega, que disse no entender do que falvamos em nossa primeira
apresentao, veio nos cumprimentar e falar de si em outras oportunidades. O
trabalho do grupo causou inquietao, estranheza.

Outra fonte importante utilizada neste estudo uma pesquisa acadmica,
realizada durante o ano de 2002, no interior do Ncleo Universitrio de Betim,
da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais
12
. Essa visou traar o perfil
socioeconmico dos estudantes, num primeiro momento e, num segundo
instante, realizar oficinas de grupo
13
, a fim de possibilitar que estes estudantes
falassem da questo racial, num ambiente de troca entre pares. O perfil traado
mostrou-nos aquilo que os dados estatsticos de nossos institutos de pesquisa
revelam h muito tempo: os negros que ingressam nos cursos superiores de
nossas universidades ocupam, na pirmide social brasileira, os nveis inferiores,
compondo nossa classe mdia baixa, em sua grande maioria.

Esses estudantes tm grandes dificuldades em se manterem, devido s baixas
condies econmicas de seus familiares e, em geral, optam pelos cursos da rea
das cincias humanas pelo fato de esses oferecerem menor concorrncia nos


11
Op. Cit.
12
REIS FILHO, J os Tiago. Um perfil do estudante negro da PUC Betim. Psicologia em Revista. v. 10, n. 15,
jun. 2004:139-143.
13
Oficinas de grupo o nome dado a encontros, estruturados ou semi-estruturados, com tema definido a priori,
ressaltando seus aspectos pedaggicos e teraputicos. No nosso caso, privilegivamos a fala, o mais livre


17
concursos vestibulares, pelo valor mais reduzido de suas mensalidades, e
tambm por terem menor durao. Nas nossas oficinas, os estudantes falaram de
suas dificuldades em se verem como negros; em terem uma imagem mais
sintnica e prazerosa de si mesmos e de seus corpos. Falaram, tambm, das
situaes de preconceito e discriminao, vivenciadas por eles, durante suas
vidas, dentro e fora do ambiente universitrio.

Um fato curioso marcou um de nossos encontros: um dos pesquisadores da
equipe chegou mais cedo ao local onde seria realizada uma de nossas oficinas e
dirigiu-se a um bar em frente. Encontrou l mais cinco colegas, quatro negros e
um branco. Diante da descontrao do grupo, o pesquisador aproveitou e
reforou o convite para a oficina, e todos se comprometeram a comparecer,
inclusive o colega branco, o que no aconteceu. Na semana seguinte ao
encontro, o colega branco disse ao pesquisador que ele havia feito baixar o
astral da turma quando de seu convite e, aps sua sada, o clima ficou to
pesado que fez-se um silncio enorme. Por que o silncio e o baixo astral?
Perguntvamos. Sabemos que o silncio, na maioria das vezes, uma resposta
da resistncia. Muitas vezes, ao falarmos de negros, a resposta que temos o
silncio. Nogueira (1998)
14
relata um episdio interessante ocorrido em seu
consultrio: uma analisante vai a uma primeira entrevista e no retorna, fato
comum no cotidiano da clnica. Mas, meses depois, a analisante retorna e diz
que, naquela ocasio, no conseguiu dar continuidade ao tratamento porque ela,
Nogueira, era negra, ao que esta intervm: era (grifo meu) negra? Felizmente,
esta analisante pode dizer de sua dificuldade em saber-se negra, encontrando, na


possvel, tendo como tema bsico a questo do preconceito. Ver, a esse respeito: REIS FILHO, J os Tiago,
2002. Op. Cit.
14
NOGUEIRA, Izildinha B. Significaes do corpo negro. So Paulo: USP, 1998. Tese de Doutorado.


18
figura da analista, o acolhimento da questo; o mesmo aconteceu com os colegas
do bar.

Essas trs fontes so acessrias na composio deste trabalho, pois o que me
guiar ser um caso clnico. Aqui cabe distinguir histria e caso. Segundo
Figueiredo et alli (2001)
15
:

Enquanto o relato clnico, que se apresenta rico em detalhes, cenas
e contedos, configura o que chamamos de histria, o caso se
apresenta como produto do que se extrai das intervenes do
analista na conduo do tratamento, e do que decantado de seu
relato. Para tanto, condio necessria que o dispositivo analtico
seja colocado em ao (p. 20).

O caso Maria: o negro na clnica psicanaltica

Este trabalho gira em torno das construes feitas a partir do caso clnico Maria.
Ela uma negra que sofre de sua negritude, mutilando seu corpo por no
conseguir conviver com suas insgnias. Assim como Maria, possvel ouvir _
embora no seja em nmeros expressivos _ relatos de negros que buscam a
psicanlise, numa tentativa de subtrao de gozo. Nesses casos, o gozo tem uma
ancoragem na cor e no corpo, esses significantes encarnados. Utilizo-me do caso
Maria no para a generalizao dos resultados obtidos, mas buscando oferecer
uma possibilidade de se pensar o negro na clnica psicanaltica.


15
FIGUEIREDO, Ana Cristina (org.). Psicanlise: pesquisa e clnica. Rio de J aneiro: IPUB-CUCA, 2001.


19

Escuto negros. Em minha clnica eles sempre esto presentes. O fato de eles me
procurarem pode ser por eu ser negro, pesquisar e escrever sobre o tema, ser o
nico analista negro de minha cidade. Procuram a mim pelos mais diversos
motivos. Alguns, inclusive, s ficam sabendo de minha cor quando me vem, o
que, muitas vezes, motivo de surpresa ou espanto. Se digo que os negros esto
presentes em minha clnica, para mostrar que o mesmo no se d em todos os
consultrios de analistas. Alis, acredito que, em alguns, nunca deve ter havido
um nico analisante negro.

Essa informao pode parecer insignificante: se os negros no freqentam
consultrios de analistas, porque no desejam, diro alguns; ou porque no tm
dinheiro, diriam outros; ou porque moram em regies distantes dos consultrios,
insistem alguns. Essas so respostas que sempre ouo de meus colegas analistas,
em todo o pas. Se tomo essas respostas como sintomticas, o que elas revelam e
o que ocultam? Em primeiro lugar, elas revelam uma realidade: os negros,
apesar de constiturem a metade da populao brasileira, ocupam, desde que
aqui chegaram, as posies mais desprivilegiadas, a base da pirmide social.
Habitam as favelas, as periferias, lutam pela sobrevivncia. O acesso dessa
parcela da populao sade se d pela via pblica e nesta, quando h
atendimento psicanaltico, restrito, escasso.

Mas, e os analistas? Sempre que pergunto a eles se atendem negros, geralmente
dizem que tm ou j tiveram algum analisante, mas que nunca se perguntaram
pela questo racial. NUNCA! Como podemos ler este fenmeno? Como
possvel que, em um pas cuja metade da populao negra, os psicanalistas no
atendam sujeitos negros e, quando os atende, no se perguntam pela questo
racial? Ser que os analisantes no se perguntam? No querem saber? Ou os


20
analistas no se perguntam e, ao no se perguntarem, calam seus analisantes?
Estamos aqui diante de um sintoma. Sabemos, com Freud, que o sintoma o
substituto de uma satisfao pulsional frustrada; algo que o sujeito tem de mais
particular, de precioso. O sintoma vem marcado pelo recalque e pelo
compromisso entre desejo e defesa. Sendo assim, podemos pensar que os
sujeitos, negros ou no, procuram anlise por motivos outros que no a questo
racial e, por isso, no falam disso.

Claro, o cotidiano da clnica formado pelo comum da neurose, da depresso,
das perdas e da dificuldade em lidar com elas. No diferente com os negros.
No pretendo reivindicar uma especificidade para o negro, o que acredito, pode
trazer mais preconceito e discriminao. Mas, o que chama a ateno : porque
se calam quando se fala de negro no Brasil? Se digo que no quero marcar uma
especificidade para o negro, tambm no quero negar uma diferena. Esta
visvel, literalmente, no s flor da pele, quanto ao redor das cidades, nos
orfanatos, presdios, hospcios, ruas e viadutos. Falando assim, pareo concordar
com muitos que dizem ser a questo racial fruto da situao econmica dos
negros; essa, como veremos, to catica, que realmente nos faz crer que seja a
causa do racismo. Entretanto, o problema vai alm, pois os negros que no tm
problemas econmicos, no deixam de sentir, na prpria pele, as questes
advindas de sua cor ou raa.

Nesse ponto, cabe um esclarecimento: sei que estou partindo da clnica
psicanaltica em direo ao social; da particularidade clnica para a generalidade
social, o que muito perigoso. Sei desse risco e aceito o desafio. No sei onde
essa estrada vai dar, mas, no percorr-la ainda mais frustrante. Pretendo partir
de um caso clnico de um sujeito negro para pensar a questo racial no Brasil.
Nesse sentido, o caso ser paradigmtico do tema. Acredito que um caso possa


21
servir a inmeras construes, como um fio solto, que ata ou desata. Segundo
DAgord (2000)
16
:

Uma construo em anlise o procedimento de extrair
inferncias a partir de fragmentos de lembranas e de associaes
do sujeito em anlise. Esses fragmentos de lembranas no tm
sentido em si mesmos, mas justamente desse sem sentido que eles
extraem a sua importncia na construo de hipteses. Nessa
construo tudo se torna significativo, inclusive a participao do
intrprete (p. 14).

Vou, assim, construir o caso clnico a partir de um ponto de referncia, a questo
racial, e tecer comentrios a respeito, partindo de um sintoma individual para um
social. Analisarei at que ponto um sintoma particular carrega traos de um
sintoma social. Essa questo, em se tratando de psicanlise, polmica e talvez
de difcil resposta, o que, espero, no inviabiliza a pesquisa e a tentativa de
articulao. Conforme dizia anteriormente, em Freud um sintoma uma
formao do inconsciente, produz satisfao pela via do desprazer, sendo de
difcil abandono, pois abandon-lo pode produzir um desprazer ainda maior. a
face gozosa do sintoma neurtico. Mas, pode um sintoma ser social?

Em um trabalho anterior (Reis Filho, 1999)
17
, comento uma frase instigante do
historiador J oel Rufino dos Santos
18
. Segundo ele a negritude o grande
recalque brasileiro. Recalque a operao psquica que visa manter uma
representao afastada da conscincia; o que recalcado retorna nas formaes


16
DAGORD, Marta. Uma construo de caso na aprendizagem. Pulsional, n 140-141, nov. 2000: 12-21.
17
REIS FILHO, J os Tiago. Uma simples questo de diferena. Reverso, n 46, set. 1999: 47-54.
18
Entrevista ao Jornal do Brasil, 08/05/1988.


22
do inconsciente sonhos, atos falhos, sintomas. Em nvel social, poderamos
dizer que os efeitos do recalcamento seriam a criao de mitos e ideologias que,
no caso da negritude, teriam como funo tornar opacas ou invisveis as origens
das relaes raciais entre ns. O sintoma pode ser social se o considerarmos, de
acordo com Koltai (2000)
19
, que o percebe como:

Histrico, localizado e especfico, significado pelo Outro e que,
por isso mesmo, pode mudar com o tempo, acompanhando as
transformaes do Outro tanto no plano pessoal quanto coletivo.
social ainda se o entendermos como a maneira singular pela qual
o sujeito enfrenta o discurso de seu tempo (p.111).

Ou seja, h em todo sintoma neurtico, aspectos do social que vem marcar os
significantes do sujeito; seus fantasmas so marcados pela realidade histrica.
Na transferncia, o sujeito repete e revive situaes afetivas dolorosas do seu
passado. No teria, nessa revivncia, um entrecruzamento de aspectos da histria
individual com a Histria coletiva? Ainda seguindo Koltai, sim, somos todos
portadores de um nome, uma histria singular, inserida na Histria de um pas,
regio, civilizao; somos depositrios e transmissores. A histria de cada um,
seu romance familiar, seu mito individual, todos sofrem assujeitamentos das
quais nem sempre fomos atores, mas que marcam nossa individualidade.
Cotidianamente escutamos relatos de conflitos, traumas, humilhaes, perdas,
ligados aos nossos analisandos ou a seus pais, irmos, avs. Quantos no trazem
marcas de uma histria transgeracional, ainda hoje geradora de sofrimento e dor.
E, em se tratando de negros, porque mais de trs sculos de escravido seriam
diferentes?


19
KOLTAI, Caterina. Poltica e Psicanlise: o estrangeiro. So Paulo: Escuta, 2000.


23

Cada sujeito, negro ou no negro, deste pas carrega consigo, as marcas do
escravismo, presente em dois teros de nossa Histria. Sendo assim, em se
tratando de negros, como possibilitar, a esse sujeito, a travessia deste fantasma?
Nicas (in Koltai, 2000), nos diz que:

Ao sujeito, uma psicanlise no pode prometer uma mudana dos
determinantes de sua histria. O que ela pode tocar, modificando-a,
a maneira como o gozo deixou sua marca na histria do sujeito,
particularmente sob a forma do sintoma. Ou, dizendo mais
precisamente, o sujeito ser convocado, pela operao do analista, a
rever a sua responsabilidade subjetiva e, assim, poder querer
modificar, ou no, o modo pelo qual ele mesmo investiu a sua
histria (p. 10).

Etnografia e psicanlise
A etnopsicanlise nasceu da juno da psicanlise com a etnografia. Visava
estudar os distrbios psicopatolgicos ligados a uma cultura especfica e
tambm a maneira como essas diferentes culturas se classificam e organizam as
doenas psquicas. Dentre os autores que se destacaram nesse campo, cito
Edmond e Marie-Ccilie Ortigues.
Num estudo realizado na dcada de 1960
20
, eles descreveram o choque cultural
entre europeus e africanos quando foram desenvolver um trabalho no Hospital
de Fann, em Dakar, no Senegal, no perodo de 1962 a 1966. Marie-Ccilie
recebia famlias que lhe traziam, basicamente, crianas e adolescentes


20
ORTIGUES, Marie-ccilie e Edmond. dipo africano. So Paulo: Escuta, 1984.


24
encaminhados por mdicos do hospital ou professores do municpio. O que
chama a ateno no texto como os autores enfrentavam o desafio de praticar a
psicanlise numa sociedade com fortes tradies e prticas no-europias,
perguntando-se como se constitui o dipo estrutura nuclear da psicanlise
numa sociedade tribal.

Eles vo, ento, partir para uma articulao entre psicanlise e etnologia,
explicitando as diferenas entre ambas: o etnlogo quer saber, pergunta,
demanda. O psicanalista, ao contrrio, acolhe a demanda, escuta. Em sua prtica
clnica, os autores perceberam que a rivalidade edpica deslocada para os
irmos ou outros prximos como os tios, os primos, e essas relaes so
mediadas pela feitiaria e pela bruxaria.

Com a finalidade de pesquisar como as referncias culturais podem se tornar
operatrias na clnica, perguntavam-se sobre o que resolver a situao edpica,
numa sociedade onde a funo simblica do pai permanece ligada do ancestral
(p. 116). Verificam que a sociedade africana uma sociedade onde a castrao
vivida no registro do coletivo da obedincia lei dos mortos, lei dos
ancestrais; sua desobedincia equivale a ser excludo, abandonado pelo grupo.

Da dizerem que o trabalho etnolgico pode melhorar a escuta analtica, mesmo
sendo um procedimento distinto da escuta. Ficar preso ao discurso etnolgico
pode reduzir a psicanlise a um culturalismo compreensivo, o que a faria perder
o seu modo prprio de operar e suas referncias tericas especficas, tornando o
analisante um informante dos fatos sociais. Vale lembrar que, quando um
analista trabalha numa cultura estranha sua, ele ilustra uma caracterstica


25
essencial da atitude analtica, j que nenhuma proposio pode ser compreendida
sem que haja uma referncia ao contexto familiar, social, cultural. Ainda assim,
acredito que o trabalho clnico no precisa ser precedido de uma informao
sociolgica aprofundada, pois, embora um mnimo de informao seja
necessrio, o que mais importa sustentar a posio de analista.

Marie-Ccilie e Edmond Ortigues puderam estabelecer isto ao verificarem o
transe religioso animista senegals, no qual o sujeito se v confrontado com o
sobrenatural. Eles no se deixaram seduzir pelas identificaes imaginrias que
fazem da cerimnia um espetculo. Buscaram, nas fontes autenticamente
religiosas e sociais do rito, o ponto mais fecundo de aproximao com a
psicanlise. E nos advertem: em qualquer cultura ou pas, lidamos com
subgrupos que partilham valores e representaes diferentes, trazendo para o
trabalho analtico cotidiano o desafio de lidar com diferentes culturas e a
singularidade de cada analisante. O analista um estrangeiro.

A histria no o passado. A histria o passado na medida em que historiado
no presente historiado no presente por que foi vivido no passado. Em
psicanlise, a histria no se confunde com o passado e nem com o vivido pois,
a transferncia conduz reconstruo de uma histria por um sujeito. Nesse
processo, conta mais o que o sujeito reconstri do que aquilo do que rememora
sobre os acontecimentos importantes de sua existncia (Cirino, 2001: 106-
107)
21
.



21
CIRINO, Oscar. Psicanlise e psiquiatria com crianas: desenvolvimento ou estrutura. Belo Horizonte:
Autntica, 2001.


26
Aps esta introduo, este trabalho prossegue estruturado da seguinte forma: o
segundo captulo fala do sintoma social e de sua mais expressiva manifestao, o
narcisismo das pequenas diferenas. O terceiro captulo traz o conceito de
escravo psquico, elaborado a partir do conceito de escravo social. No quarto
captulo, apresento o caso clnico, paradigmtico do negro se falando
psicanaliticamente. O quinto e ltimo captulo revela-nos os traos, as marcas do
escravismo no imaginrio e na realidade social brasileira.



27
SEGUNDO CAPTULO

O SINTOMA SOCIAL

Existe na sociedade brasileira uma patologia social
no que diz respeito questo racial.
Guerreiro Ramos

Freud era judeu, disso todos sabemos. Mas, at que ponto o fato de ser judeu
influenciou sua vida e obra? Sabemos, com Gilman (1994)
22
, que, na virada do
sculo XIX para o sculo XX, a cincia biolgica tinha um forte componente
racial; os judeus serviam como principais exemplos na discusso do papel da
diferena racial na predisposio para doenas especficas ou a imunidade elas,
tais como a sfilis, a lepra e o cncer. Ser judeu, na Viena fin-de-sicle era ser
diferente. No apenas existia o anti-semitismo nas instituies, especialmente as
mdicas, como as concepes anti-semitas se tornaram elementos da substncia
da prpria medicina. Os judeus viviam uma poca de intensa insegurana,
geradora de angstia quanto a eles prprios e seu mundo; eram marginalizados
na sociedade europia por causa de suas supostas diferenas biolgicas e
psicolgicas inatas. Viena era a cidade mais anti-semita da Europa.

Em seu Estudo autobiogrfico (1926)
23
, Freud revela:

Nasci a 6 de maio de 1856, em Freiberg, na Moravia, pequena
cidade situada onde agora a Tchecoslovquia. Meus pais eram
judeus e eu prprio continuei judeu. Quando, em 1873, ingressei
na Universidade, experimentei desapontamentos considerveis.


22
GILMAN, Sander. Freud, raa e sexos. Rio de J aneiro: Imago, 1994.
23
FREUD, S. Um estudo autobiogrfico (1926). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.


28
Antes de tudo, verifiquei que se esperava que eu me sentisse
inferior e estranho por que era judeu. Recusei-me de maneira
absoluta a fazer a primeira dessas coisas. J amais fui capaz de
compreender por que devo sentir-me envergonhado da minha
ascendncia ou, como as pessoas comearam a dizer, da minha
raa (p. 18-19; grifos meus).

Portanto, a categoria raa est, desde sempre, atravessando a vida e a obra de
Freud. Em sua poca, ser judeu era ser visivelmente diferente, por causa dos
aspectos fsicos: nariz, circunciso, a cor da pele. Quanto a esse aspecto,
acreditavam os tericos mdicos, do sculo XIX, que a cor da pele dos judeus
era diferente pelo fato de os mesmos terem se cruzado com negros em sua
constante peregrinao e conseqente miscigenao. Os judeus portavam o sinal
do negro. Essa diferena, estampada no corpo, vai, segundo Gilman, influenciar
Freud na teorizao da sexualidade feminina, como veremos adiante.

A evidncia da distino biolgica do judeu possibilitava inmeras situaes de
violncia. Segundo Gilman (1994)
24
:

A violncia contra os judeus era uma ocorrncia comum e diria
desde a poca em que Freud estava na Universidade e bandos de
desordeiros anti-semitas arrastavam estudantes judeus para fora das
salas de aula e os espancavam. Os judeus, tanto homens como
mulheres, reagiam a seu prprio sentimento de crescente
vulnerabilidade e sua maior visibilidade. Martin Freud, filho mais
velho de Freud, recordava estar passeando com sua tia Dolfi, certo


24
Op. Cit.


29
dia em Viena, quando passamos por um homem de tipo comum,
provavelmente no-judeu, que, at onde vi, no se deu conta de ns.
Considerei uma fobia patolgica de Dolfi quando ela me agarrou e
murmurou aterrorizada: Voc ouviu o que esse homem disse? Ele
me chamou de judia suja e fedorenta, e disse que j era tempo de
todos sermos mortos. A nica cura real para essa doena a
extirpao do judeu(pp.61-62).

No sculo XIX, as discusses sobre a especificidade dos marcadores de
diferena fsica e psicolgica inventados pelos etnlogos iam da circunciso
marca da feminizao do homem judeu - at a capacidade, dimenso e forma do
crnio, cor da pele e do cabelo. A questo no era apenas que os judeus
pareciam judeus, e sim que isto os marcava como inferiores.

Para Freud (1926)
25
, a sexualidade feminina era o continente negro da psique
humana: desconhecido, primitivo, selvagem; a esfera menos acessvel cincia.
Era essa a viso que os europeus tinham da frica.

Mas, at que ponto um sintoma pode ser social? Em sua obra, Freud nos d
alguns indcios. Em Moiss e o monotesmo (1939)
26
, ele estabelece uma
frmula para o desenvolvimento de uma neurose: trauma primitivo defesa
latncia desencadeamento da neurose retorno do recalcado. Da ele supe
que pode ter ocorrido, na vida da espcie humana, algo semelhante ao que
ocorre na vida dos indivduos, ou seja, que ocorreram eventos de natureza sexual
e agressiva que deixaram conseqncias permanentes, mas que foram desviadas
e esquecidas e que, aps uma longa latncia, entraram em vigor e criaram


25
FREUD, S. A questo da anlise leiga (1926). In: ESB. Rio de J aneiro; Imago, 1976.
26
FREUD, S. Moiss e o monotesmo (1939). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.


30
fenmenos semelhantes a sintomas, em sua estrutura e propsito. Para dar
sustentao a sua hiptese, Freud relembra seu estudo anterior Totem e tabu
(1913)
27
, em que cria um mito do qual origina a moralidade e a justia, atravs
da criao da primeira organizao social, ocorrida graas renncia pulsional,
ao reconhecimento das obrigaes mtuas, a introduo de instituies
definidas.

Em todo grupo h uma impresso do passado retida em traos mnmicos
inconscientes, o que cria, entre o indivduo e o grupo uma conformidade quase
completa. No caso do indivduo, o trao mnmico de sua experincia primitiva
foi preservado via recalcamento, sendo, portanto, inconsciente. Mas, h:

a probabilidade de que aquilo que pode ser operante na vida
psquica de um indivduo possa incluir no apenas o que ele prprio
experimentou, mas tambm coisas que esto inatamente presentes
nele, quando de seu nascimento, elementos como uma origem
filogentica uma herana arcaica. Surgem ento as questes de
saber em que consiste essa herana, o que contm, e qual a sua
prova (Freud, 1939:119)
28
.

A resposta que ele nos d que essa herana consiste em certas disposies
inatas, caractersticas de todos os organismos vivos; elas representam aquilo que
identificamos como sendo o fator constitucional nos indivduos. Um exemplo
disso o simbolismo, de carter universal e presente em nossos sonhos, por
exemplo. Para dar sustentao a sua hiptese, Freud vai recorrer, mais uma vez,
s experincias edpicas e postular que a herana arcaica dos seres humanos


27
FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.
28
FREUD, S. Moiss e o monotesmo (1939). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.


31
abrange no apenas disposies, mas tambm traos de memria da experincia
de geraes anteriores. Ele vai ainda mais longe ao dizer que, se presumirmos a
sobrevivncia desses traos de memria na herana arcaica, o abismo existente
entre a psicologia individual e a de grupo se estreitaria, pois poderamos lidar
com os povos da mesma maneira como lidamos com um indivduo neurtico.

De que forma uma recordao deste tipo ingressa na herana arcaica? Isso pode
se dar se o acontecimento foi suficientemente importante, repetido com bastante
freqncia, ou ambos. Por outro lado, a recordao pode tornar-se ativa, isto ,
progredir do inconsciente para a conscincia, mesmo que de forma deformada e
alterada. Vrias influncias podem se relacionar, mas o que importante frisar
que o trao de memria esquecido pode ser despertado do por uma repetio do
acontecimento.

Freud tambm faz, nesse texto, uma explanao sobre o que considera ser a
verdade histrica, em contraposio verdade material; sendo que da que
nascem as religies e ideologias. A diferena entre ambas a mesma que existe
entre as realidades psquica e material, ou seja, tanto a verdade histrica quanto
a realidade psquica correspondem aos efeitos do recalcamento. A verdade
histrica diz respeito ao retorno do recalcado ou quilo que foi rejeitado,
justificando a crena; os fatos so externos a tudo isso, ficando a verdade
material perdida no esquecimento e sendo transformada, pelo desejo, em fico,
lenda ou delrio. Para Freud, fantasia e realidade se encontram no dizer do
analisante, assim como nos mitos e lendas que povoam o imaginrio individual e
coletivo.

Traumas so impresses experimentadas muito cedo e esquecidas mais tarde;
geram reaes anormais num sujeito, ou seja, alguns sujeitos reagiriam, ao


32
mesmo episdio, de forma absolutamente normal, no desencadeando nenhum
conflito neurtico em decorrncia de uma vivncia similar. Entretanto, no
fcil distinguir o fator determinante de uma neurose, o que levou Freud a
formular as sries complementares, nos quais dois fatores convergem para
preencher um requisito etiolgico. Estes fatores so complementares, podendo
ser endgenos ou exgenos. Assim, a fixao da libido ou a frustrao, variam
em razo inversa, da mesma forma, a vivncia infantil e a constituio
hereditria. Em todo caso, fica difcil definir, dentre a constituio hereditria, a
fixao infantil ou os traumatismos posteriores, qual tem ou teve a fora maior
no desencadeamento de uma neurose ou se todos tiveram o mesmo grau de
participao.

Os traumas ocorrem, geralmente, na primeira infncia, at a vivncia edpica.
Especial ateno dada s pulses parciais: o seio, as fezes, a voz, o olhar. O
olhar est mais ligado ao imaginrio, enquanto a voz adere cadeia simblica,
lembrando que o seio e as fezes esto do lado da demanda, enquanto a voz e o
olhar portam-se do lado do desejo. Essas experincias so em geral, esquecidas,
permanecem inacessveis memria, incidindo sobre o perodo de latncia,
podendo se manifestar por resduos mnmicos isolados, as lembranas
encobridoras. Elas se relacionam a impresses de natureza sexual e agressiva,
gerando mortificaes narcsicas ao eu.

Freud vai vincular estes trs pontos: o aparecimento precoce de experincias
traumticas; seu esquecimento posterior e seu contedo sexual-agressivo,
chamando a ateno para o fato de que essas experincias so vividas, na
maioria das vezes, sob o prprio corpo ou so impresses, principalmente de
algo visto e ouvido. No caso clnico ilustrativo deste estudo, h as cenas de
Maria e sua me, penteando seus cabelos, num misto de agressividade e


33
erogeneidade. Isso melhor ilustrado no caso clnico, na parte quatro deste
estudo.

Sabemos que o recalcado retorna sob a forma de uma compulso repetio,
fazendo com que o trauma, ou vivncia traumtica, tenha efeitos positivos e
negativos. O efeito positivo a tentativa de coloc-lo em funcionamento mais
uma vez, tornando a experincia real, sob a forma de lembrana ou de ato. O
trauma no anula a percepo da experincia, mas tambm no se inscreve
simbolicamente na cadeia significante, permanecendo como uma espcie de
quisto no psiquismo sempre pronto a irromper nos momentos menos esperados,
nas situaes as mais diversas. Para compensar o desequilbrio desencadeado,
cria-se uma realidade que venha substituir aquilo que falta, seja pelo fetiche,
pelo sadismo ou masoquismo. Em todo trauma h a recusa em admitir, no plano
simblico, o que mais tarde dar seus sinais no ato, no fetiche ou na construo
delirante. Em cenas traumticas de relaes sadomasoquistas, a vtima do trauma
encena, por exemplo, a violao e a tortura da qual foi objeto, mas tambm
exercita um modo de sobrevivncia, uma defesa, invertendo a posio passiva da
cena original (torturada) em posio ativa na cena re-encenada (Reis Filho,
2004:81)
29
.

O negro segura a cabea com a mo e chora...; este o verso de uma famosa
cano do Olodum
30
. Pelos versos, os negros choram, lamentam. Lamentos
ouvidos desde os navios negreiros, desde as senzalas. Lgrimas, dor e sangue
negro tm sido derramados neste pas h quase 500 anos. Aqui tomo de
emprstimo os versos de Castro Alves:


29
REIS FILHO, J os Tiago et alli. Trauma, perverso e lao conjugal. Reverso, n 51, ago. 2004: 77-84.
30
Grupo musical integrante da Organizao No-governamental Olodum, referncia brasileira de grupo
folclrico, cultural e de militncia poltica de negros.


34

num sonho dantesco, tombadilho
Tinir de ferros, estalar do aoite
Legies de homens negros como a noite
Horrendos a danar
Negras mulheres
Levantando as tetas
Magras crianas
Cujas bocas pretas
Regam o sangue das mes
Outras moas
Mas nuas, assustadas
No turbilho de espectros arrastadas
Em nsia e mgoas vs
Um de raiva delira
Outro enlouquece
Outro que de martrios embrutece
Chora e dana ali
... So os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solido
Homens simples, fortes, bravos
Hoje mseros escravos
Sem ar, sem luz, sem razo
31
...



31
ALVES, Castro. Navio Negreiro. In: ALVES, Castro. Obra completa. Rio de J aneiro: Nova Aguilar, 1997:
277-284.


35
impressionante a atualidade desses versos. Para perceber isso, basta
percorrermos as ruas centrais, como tambm as periferias de nossas grandes
cidades, assim como o campo. Poderamos pensar que os negros gozam; gozam
deste lugar de vtimas, historicamente marcados pela escravido. Tentarei dar
outra resposta questo.

Eric Laurent (1999)
32
nos fornece o conceito de analista cidado, querendo, com
isso, dizer daquele analista que sai de sua reserva (suposta neutralidade) e
participa da sociedade democrtica. Um analista sensvel s formas de
segregao, capaz de entender sua funo e ir alm, dizendo muito com seu dizer
silencioso e, justamente por isso, no se calando frente s injustias.

Quando dizemos que o analista sabe participar com seu dizer silencioso, estamos
afirmando que este distinto do silncio. O dizer silencioso implica em uma
tomada de posio, ajudando a civilizao a respeitar a articulao entre normas
e particularidades individuais, no permitindo que o esquecimento da
particularidade de cada um se d em nome da universalidade ou de qualquer
universal, humanista ou anti- humanista. O analista deve ser capaz de escutar e
de transmitir, transformando a particularidade em algo til, em um instrumento
para todos. Assim, o dizer silencioso contribui para que, cada vez que se tentar
erigir um ideal, faa-se a denncia de que a promoo de novos ideais no a
nica alternativa. O que tambm no nos faz retomar antigos valores e ideais;
devemos insistir no debate democrtico.

Diante das lutas e movimentos sociais, os analistas mantiveram-se em sua
funo, nada propondo, permanecendo na posio de intelectuais crticos,


32
LAURENT, Eric. O analista cidado. Curinga, n 13, set. 2000: 12-19.


36
entendendo-se, por isso, aquele tipo de intelectual que se dedicava somente a
criar, a produzir o vazio. O analista crtico, por sua vez, aquele sujeito
desprovido de ideais, que se apaga, que no cr em nada. Esta figura acabou
estimulando um ideal do analista concebido como marginal, intil, o que no
serve para nada, salvo para efetuar denncias daqueles que servem para alguma
coisa. Posio extremamente elitista, reforada pela imagem do analista
instalado confortavelmente em sua poltrona, atrs de um luxuoso div, numa
sala com ar condicionado e isolamento acstico, em algum ponto nobre de um
grande centro urbano. Por discordar dessa posio, Laurent vem sugerir que:

Os analistas tm que passar da posio de analista como
especialista da desidentificao de analista cidado. Um analista
cidado no sentido que tem esse termo na teoria moderna da
democracia. Os analistas precisam entender que h uma
comunidade de interesses entre o discurso analtico e a democracia,
mas entend-lo de verdade! H que se passar do analista fechado
em sua reserva, crtico, a um analista que participa; um analista
sensvel s formas de segregao; um analista capaz de entender
qual foi sua funo e qual lhe corresponde agora. (1999: 13)
33
.

Situando o analista que trabalha no servio pblico, Ana Figueiredo (1997)
34

fala que o analista que convm aquele que convive, evocando com isso a
poltica institucional. Ela frisa que conviver viver com, atravessar o jogo
onde o analista faz de sua diferena uma especificidade e no uma especialidade,
tornando-se especial, e no especfico. O analista que convm no o


33
LAURENT, . Op. cit.
34
FIGUEIREDO, Ana Cristina. Vastas confuses e atendimentos imperfeitos: a clnica psicanaltica no
ambulatrio pblico. Rio de J aneiro: Relume-dumar, 1997.


37
inconveniente e nem aquele que convence; muito menos aquele que
conveniente, como um sujeito dcil e agradvel, escondendo sua arrogncia.

Essa especificidade do analista conquistada atravs do percurso em sua prpria
anlise, do modo como este sujeito lidou com seus fantasmas e sintomas. Dessa
forma, no possvel a um analista ficar alheio aos rudos do mundo exterior
que, sem sombra de dvidas, chegam at o seu consultrio, seja ele pblico ou
privado. O analista no pode se permitir nada querer saber do que se passa a seu
redor, correndo o risco de ser interpelado pelos acontecimentos, sendo levado a
refletir sobre a violncia que chega para todos ns, cada dia com maior
intensidade e requinte -, a discriminao, a misria. importante que o analista
se interrogue sobre os aspectos do social e do poltico que marcam os
significantes de seu analisando, assim como que contedos do fantasma
encontram argumento na realidade histrica, pois o social e o poltico marcam a
escuta do analista.

Ento o sintoma pode ser social? De acordo com Koltai (2000)
35
sim,

se o considerarmos como algo histrico, localizado e especfico,
significado pelo Outro e que, por isso mesmo, pode mudar com o
tempo, acompanhando as transformaes do Outro tanto no plano
pessoal quanto coletivo. social ainda, se o entendermos como a
maneira singular pela qual o sujeito enfrenta o discurso de seu
tempo... O sintoma justamente aquilo que impede o sujeito de
realizar o que seu tempo lhe prescreve... Uma uniformizao cada
vez maior da vida cotidiana que, com a globalizao em curso, vai


35
KOLTAI, Caterina. Poltica e psicanlise: o estrangeiro. So Paulo: Escuta, 2000.


38
atingindo todo o planeta, uniformizao de todos os modos de vida,
inclusive as formas de desejo e gozo (p. 111-112).

Segundo Dunker (2002)
36
pode-se analisar o sintoma sob trs mbitos: o
narrativo, o quantitativo e o estrutural. Do ponto de vista narrativo, o sintoma se
transmite na famlia este pequeno universo de alteridades que atribui
legitimidade ao sofrimento. A substituio dessa forma de gozo, apresentada
pelo lao familiar pode ser feita por uma outra, oferecida pelo discurso,
apresentado pelo lao social. Essa transmisso geracional, familiar, tambm
pode se dar de forma distinta oferecida.

Um exemplo disso pode ser visto em sujeitos que se lanam em experincias
transgressivas, num confronto com a lei, mas tambm como alternativa ao
imperativo de gozo hegemnico numa famlia ou grupo social. Assim, a cultura
comparece oferecendo um gozo a mais, deslocando o sujeito de um sintoma tipo
familiar para um sintoma social, o que acarreta um esvaziamento de seus
significantes fundamentais. A singularizao do sintoma poupada pela
identificao s formas prontas do sintoma prescritas pela cultura. Outras formas
de mal-estar e sintomas transitrios substituem o gasto psquico necessrio para
produzir e sustentar o sintoma. O retraimento evolui assim para a apatia e a
indiferena. A narrativa do conflito evolui para a narrativa do consumo ou para a
descrio de experincias (Dunker, 2002: 153). Os filmes Cidade de Deus,
dirigido por Fernando Meirelles e Madame Sat, dirigido por Karin Anoun, e
exibidos recentemente, do-nos exemplos do que disse anteriormente.



36
DUNKER, Christian I. L. O clculo neurtico do gozo. So Paulo: Escuta, 2002.


39
Estamos numa regio limtrofe entre a tica e a moral; plena diviso, diviso do
sujeito pelo significante (alienao) e pelo objeto (separao), e a pretenso do
eu de ser uno; entretanto, um estranho. a tenso que vivemos, da diviso, da
estranheza. Freud, e depois Lacan, vieram apontar-nos que no h Bem
Supremo, pois este Das Ding, a me, o objeto incestuoso, portanto, um bem
proibido. Para Freud (1933)
37
, o eu representa o que pode ser chamado de razo
e senso comum, em contraste com o isso, que contm as paixes. Para conter
essas paixes, percebidas pelo eu como ameaas sua integridade, erguem-se
barreiras sociais, via recalque, modificando ou transformando o advento da
pulso. Isso possvel graas aos ideais: construes culturais que visam
normatizar aquilo que percebido como ameaador, sabendo que o recalcado
sempre retorna em sonhos, atos falhos, sintomas, chistes e, em nvel social, nas
formaes sociais e polticas. Nessa tenso entre o eu e os ideais, reside o
conflito neurtico, que pode impossibilitar ao sujeito as aes e aqui, por
extenso, desencadear os conflitos sociais.

Ao abordar a questo do supereu, Freud nos traz algumas dificuldades. Primeiro,
ele o tempo todo confundido com o ideal de eu, s obtendo um status
diferenciado em O eu e o isso (1923)
38
. Ele busca retratar a e depois na
Conferncia XXXI: A disseco da personalidade psquica (1933)
39
as
funes da conscincia, da manuteno do ideal e da auto-observao
preliminar essencial da atividade de julgar; o supereu goza de um determinado
grau de autonomia do eu, sendo sua medida de exigncia e dele advir a moral e a
tica. A moral aquilo que nos permite dizer se uma ao boa ou m; uma
das dimenses constitutivas do mundo intersubjetivo. No podemos pensar a


37
FREUD, S. A disseco da personalidade psquica (1933). In: ESB. Rio de janeiro: Imago, 1976.
38
FREUD, S. O eu e o isso (1923). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.
39
FREUD, S. (1933). Op. Cit.


40
humanidade sem a moral e a intersubjetividade. Tambm no podemos deixar de
pensar a tica, a tica da psicanlise.

O supereu observa, dirige e ameaa o eu, agindo, muitas vezes, com severidade e
crueldade, colocando-se entre uma necessidade e uma ao, atravs da atividade
do pensamento. Por ser um veculo do ideal de eu, pelo qual o eu se avalia, o
supereu impulsiona com uma exigncia de perfeio sempre maior, que ele se
esfora por cumprir, via identificao. O no cumprimento desse ideal pode
gerar os sentimentos de culpa e de inferioridade, expresso da relao do eu com
o supereu. A relao do supereu com o isso tambm de tenso, pois o isso no
possui organizao, no conhece nenhum julgamento de valores: no conhece o
bem, nem o mal, nem a moralidade; est vinculado ao princpio do prazer. Quem
se encarrega de administrar as exigncias do isso e do supereu o eu, essa parte
do isso que se modificou pela proximidade e influncia do mundo externo. O eu
controla a motilidade e o tempo e sintetiza os contedos psquicos. rdua tarefa
para uma nica instncia, que tem de conciliar seus trs tirnicos senhores: o
isso, o supereu e a realidade. Viver muito perigoso! Em uma passagem de seu
texto, Freud escreve:

A humanidade nunca vive inteiramente no presente. O passado, a
tradio da raa e do povo, vive nas ideologias do supereu (grifo
meu) e s lentamente cede s influncias do presente, no sentido de
mudanas novas; e, enquanto opera atravs do supereu, desempenha
um poderoso papel na vida do homem, independentemente de
condies econmicas (1933: 87).

Parafraseando Freud, em uma passagem anterior ele afirma: Isto verdade, mas
muito provavelmente no a verdade inteira. A verdade nunca inteira. Diante


41
disto, cabe pensar: ser s gozo ou lamento constatar a inexpressiva presena de
negros na mdia, em cargos de poder, nas Universidades? Ser que 45% da
populao brasileira est fora dessas instncias por incapacidade intelectual,
desinteresse, inibio, problemas sociais ou puro gozo neurtico? Retomando
Freud (1933)
40
, se o eu obrigado a admitir sua fraqueza, ele irrompe em
angstia angstia realstica frente ao mundo externo, angstia moral, referente
ao supereu e angstia neurtica referente s foras das paixes do isso (p. 99-
100).

No sintoma, trata-se da intruso do que no funciona no real, do que se coloca
de maneira enviezada, para impedir que as coisas funcionem. De acordo com
Santiago (1994)
41
, a clnica psicanaltica muda por que o sintoma sofre
transformaes no decorrer da histria demonstrando, assim, que este tem uma
estrutura de metfora, condicionada s manifestaes do mal-estar na
civilizao. Segundo esse autor:

necessrio admitir que tais manifestaes no so simples
abstraes, mas que assumem seu assento e sua incidncia efetiva
no campo do Outro simblico, considerado como lugar de
inscrio (p. 31).

Como o Outro no uma entidade fixa e estanque, seu lugar est aberto aos
acontecimentos e eventualidades histricos. Encontramos em seu lugar as
estruturas de parentesco, a metfora do Nome-do-Pai, mas tambm o sistema de
significantes e o sistema dos ideais. As formas sintomticas mudam ao longo do


40
Op. Cit.
41
SANTIAGO, J sus. Aspectos da histeria na civilizao da cincia. Curinga, n 3, jun. 1994: 29-31.


42
tempo, obedecendo metfora das configuraes dominantes do mal-estar da
civilizao.

Retomando a questo da vtima, Koltai (2002)
42
acrescenta que esta parece estar
se tornando uma representao dominante da subjetividade, em nossa sociedade
da reparao, pois a vtima permanece no registro da demanda, impossvel de ser
satisfeita. No quero me aliar s vtimas, mas a histria aponta para algo mais
que um reclame, uma queixa. Como construir referncias identificatrias para o
negro e, ao mesmo tempo, operar uma desalienao desses ideais? Quando o
negro sai de seu lugar historicamente marcado o navio negreiro, a senzala, a
favela, a cela se depara com uma dura realidade: a de no ter referncias
identificatrias, no ter algo ou algum em quem se espelhar, se mirar. Como
pensar o olhar e a voz, essas pulses parciais constitutivas do eu, que podem ser
marcas de pura angstia?

Apesar de considerar que defender os direitos universais de extrema
importncia, no se deve deixar de salientar o perigo que se corre quando, ao
defend-los, ser mal interpretado como defensor de uma universalizao que
desconsidere a diferena, a singularidade. No quero defender uma
universalizao que abole toda diferena, inclusive a diferena sexual,
defendendo um modo de vida igual para todos. Primo Levi (1988)
43
nos adverte
que considera-se tanto mais civilizado um pas, quanto mais sbias e eficientes
so suas leis que impedem ao miservel ser miservel demais, e ao poderoso ser
poderoso demais (p. 89). preciso encontrar uma forma de tratar essa patologia
brasileira, causada por nossa profunda desigualdade. As novas leis podem no
ser a sada mais satisfatria, mas no seria adequado permanecermos calados.


42
Op. Cit.
43
LEVI, Primo. isso um homem? Rio de J aneiro: Rocco, 1988.


43

Narcisismo das pequenas diferenas

necessrio fazer uma diferenciao entre preconceito e discriminao. Do
ponto de vista etimolgico, podemos observar que a palavra preconceito
significa um pr-julgamento, uma maneira de se obter uma concluso antes de
qualquer anlise. O praeconceptu, de origem latina, significa posio irrefletida,
pr-concebida e tambm pode ser entendido como pr-juzo. O preconceito
uma atitude negativa, contra algum. Baseia-se numa comparao social em que
a pessoa se coloca como referncia positiva e o outro, objeto de preconceito,
visto em situao de desvantagem ou inferioridade social, econmica, cultural
ou biolgica. O preconceito uma atitude que viola, simultaneamente, no
mnimo, trs normas bsicas: a da racionalidade, a da afeio humana e a da
justia. Assim, muito mais do que um prejulgamento ou simplesmente
intolerncia (Bento, 1992)
44
.

O preconceito faz parte do humano, assim como o incesto e o crime. Estes, por
serem efeitos de civilizao, devem ser combatidos, para no ficarmos entregues
barbrie. Preconceito um pr-julgamento, irracional, tambm entendido
como prejuzo, dano, estrago, perda. O preconceito irmo da ignorncia pois
fruto de uma atitude de quem pensa que sabe, enquanto que a ignorncia resulta
de quem no quer ou no pode saber, terreno bem conhecido na neurose. Ter
preconceito ou ser preconceituoso significa ter uma opinio negativa antes de se
obter elementos necessrios e significantes para um julgamento imparcial, da
ser o preconceito adversrio da civilidade, visto que o processo de civilizao
um estgio no relacionamento entre os homens; a civilidade pressupe


44
democracia, o exerccio cotidiano de um mnimo de regras de convivncia e de
tolerncia para com o Outro. Quando a incapacidade para julgar com serenidade
se manifesta, a civilidade sucumbe ou desaparece (Dines, in Lerner, 1997: 59)
45
.

H casos e situaes em que o preconceito se manifesta de forma direta, como
no caso dos nazistas em relao aos judeus. Essa forma de expresso torna o ato
preconceituoso mais visvel devido ao seu extremo, mas torna possvel o seu
combate, atravs de formas tambm diretas de resistncia. Basta observarmos o
volume de rebelies, fugas, assassinatos, cometidos por aqueles que ocupam os
lugares mais desprivilegiados em termos de excluso: presdios, asilos, abrigos...
A outra forma de manifestao seria aquela disfarada, que se esconde sob um
vu qualquer de neutralidade sempre suspeita como o caso da suposta
cordialidade caracterstica do povo brasileiro.

Com relao origem, Dallari (in Lerner, 1997)
46
aponta, como os principais
geradores do preconceito: a ignorncia, a educao domesticadora, a
intolerncia, o egosmo, o medo. Sobre a ignorncia, j comentamos
anteriormente. A educao que recebemos fruto da socializao que acontece
na intimidade do lar, nas escolas, no trabalho e em grupos sociais diversos; a
intolerncia deriva do individualismo moderno que veiculado pelos meios de
comunicao de massa
47
; o egosmo gera preconceito porque o egosta julga
bom o que lhe convm e mau o que lhe causa embarao ou prejuzo.



44
BENTO, Maria Aparecida Silva. Resgatando a minha bisav: discriminao racial no trabalho e resistncia
na voz dos trabalhadores negros. So Paulo: Pontifcia Universidade Catlica, 1992. Dissertao de mestrado.
45
LERNER, J lio (ed.). O Preconceito. So Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1997.
46
Op. Cit.
47
A realidade dos programas de rdio e, sobretudo de televiso, nos quais apresentadores ou locutores emitem
suas opinies ou induzem os convidados a faz-lo, chegando, na maioria das vezes, expresso de preconceito
virulento ou cenas de violncia explcita.


45
Em Alm do princpio do prazer, Freud (1920)
48
distingue o medo do susto e
da angstia. Segundo ele:

A angstia descreve um estado particular de esperar o perigo ou
preparar-se para ele, ainda que possa ser desconhecido. O medo
exige um objeto definido de que se tenha temor. Susto, contudo,
o nome que damos ao estado em que algum fica, quando entrou
em perigo sem estar preparado para ele, dando-se nfase ao fator da
surpresa (pp. 23-24).

Para os negros, o medo um sentimento experimentado diariamente diante de
um policial, um agente de segurana, um recepcionista e de todos aqueles cuja
funo barrar o acesso, seja em locais pblicos ou privados. Cabe lembrar que,
na maioria das vezes, os que barram tm a mesma cor daqueles que so
barrados, o que costuma causar ainda mais estranheza, admirao e susto.

Ainda segundo Dallari, o preconceito acarreta a perda do respeito pelo humano,
restringe a liberdade de muitos, introduz a desigualdade, estabelece e alimenta a
discriminao, promove a injustia. Para combat-lo precisa-se de atos. Assim
como ele transmitido via educao, esta tambm pode elimin-lo.

Sendo fruto da ignorncia, o preconceito est articulado ao senso comum, este
conjunto de crenas, valores, saberes e atitudes que julgamos naturais por que
transmitidos de gerao a gerao, sem questionamentos; nos dizem como so e
o que valem as coisas e os seres humanos, como devemos avali-los e julg-los.


48
FREUD, S. (1920) Alm do princpio do prazer. In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.


46
O senso comum a realidade como transparncia: nele tudo est explicado e em
seu devido lugar (Chau, in Lerner, 1997: 116)
49
.

Ainda de acordo com Chau, as caractersticas mais significativas do senso
comum so: o subjetivismo, que torna universal o singular; o juzo, o modo
como cada um avalia e julga; a heterogeneidade; a individualizao; a
generalizao e a causalidade (estabelecimento de relaes de causa e efeito,
todas elas incidindo sobre pessoas, fatos ou coisas). Os preconceitos cristalizam
o senso comum, tendo efeitos sob a forma de pensar e de sentir de uma
sociedade, no que diz respeito ao preconceito contra os negros, frases como:
Preto parado suspeito; correndo ladro!, so um bom exemplo de como a
sociedade os trata.

Cabe lembrar que, ao falar em preconceito, vislumbramos a possibilidade de um
conceito; porm, so coisas distintas. Se a base para a formao de um pr-
conceito a ignorncia, ele, em geral, dispensa o trabalho do pensamento. O
pensamento organiza, rene, sintetiza os dados imediatos da experincia, da o
conceito ser fruto de um trabalho intelectual que visa chegar a uma verdade,
enquanto o preconceito se acredita verdadeiro.

Um dos preconceitos mais arraigados em nossa sociedade o da pacificidade e
da cordialidade do povo brasileiro, o que no passa de uma mscara. Essa
mscara oculta, alm da questo racial de que trato aqui, a nossa diviso social,
destacando dois extremos: o das carncias, onde se situa uma boa parcela de
nossa populao e a imensa maioria dos negros e o dos privilgios, geralmente
desfrutados pela classe mdia e alta. Como as pessoas no se dispem a abrir


49
Op. Cit.


47
mo de seus privilgios, transformando-os num bem comum, resta a carncia
como condio de muitos. O fato de a classe mdia desfrutar privilgios no
torna seus integrantes cidados, pois cidados tm direitos e no privilgios. Da
a dificuldade em reduzir a imensa desigualdade social e econmica, pois quem
tem acesso s instncias de poder e que poderia pleitear a reduo das carncias
no o faz por temor de perder seus privilgios. No preciso dizer que a
Abolio, antes de trazer reais benefcios aos negros, garantiu ingleses
privilgios aos brancos.

Em se tratando de cidadania, o gegrafo Milton Santos (in Lerner, 1997)
50
fala-
nos das mutilaes que esta sofre em nosso pas, ao que ele nomeou cidadania
mutilada. Mutilada no trabalho, na remunerao, nas oportunidades de
promoo, na localizao das moradias, nos meios de transporte, na educao e
na sade. Nesse cenrio, os negros sofrem dessa mutilao que sempre vem
aliada a outras: o destrato das polcias e da justia, por exemplo.

Para entender a questo do preconceito, do racismo e da discriminao, Santos
(1997) vai lanar mo de trs dados: a corporalidade, a individualidade e a
cidadania. A corporalidade inclui dados objetivos, a individualidade inclui dados
subjetivos, e a cidadania inclui dados polticos e jurdicos. Por isso, o
preconceito, o racismo e a discriminao podem vir da corporalidade _ a
maneira como o sujeito visto _, da individualidade _ o modo como o sujeito
ensa a si mesmo e aos outros e tambm da forma como se localizam no mundo,
ou seja, da cidadania. O fato de alguns negros serem privilegiados no lhes
garante o exerccio pleno da cidadania o exerccio dos direitos pois estes so


50
Op. Cit.


48
apontados como exceo. As excees - os negros que chegaram l - so
sempre lembradas quando preciso garantir nossa democracia racial.

Por outro lado, os esteretipos so imagens construdas atravs de simplificaes
de comportamentos que acentuam semelhanas e diferenas, produzindo
generalizaes. Eles desempenham, algumas vezes, o papel de legitimadores
ideolgicos de polticas intergrupais, racionalizando e explicando diferenciaes
de tratamento. Os brancos, ou melhor, os escravocratas, explicavam o sistema de
escravido, dizendo que os negros se adaptavam melhor ao regime de
explorao.

Os esteretipos possuem os seguintes pontos bsicos:
a) so generalizaes grosseiras para classificar extensos grupos humanos;
b) so aprendidos e ensinados durante a infncia;
c) sua mudana se d de forma extremamente lenta;
d) so utilizados, em climas de tenso e conflito social, como instrumentos
hostis contra os grupos ou pessoas estereotipadas negativamente.

Em nossa sociedade, a criao de esteretipos tambm visa ao consumo,
tornando o diferente, o extico ou, para dizer de raa, o tnico, um grupo de
consumidores. No mercado, h todo tipo de produtos com a marca tnica:
revistas, maquiagem, xampus, roupas, discos, jias, bijuterias, penteados, etc.
Essa categoria, que consumida e valorizada por um segmento da populao, de
certa forma, disfara o preconceito sob o vu do politicamente correto,
reforando nesses grupos (negros, ndios, nordestinos, no caso brasileiro) o lugar
de objeto que ocupam. Para se ter um retrato dessa situao, basta percorrer os
bairros comerciais e os shoppings centers das grandes cidades para se deparar
com lojas dedicadas a esse segmento.


49

Ainda em relao ao tnico e ao consumo, numa pesquisa realizada em sales de
beleza para negros em Belo Horizonte, Gomes (2002)
51
verificou que h uma
tendncia nos cabeleireiros em incentivar nos clientes a colocao de enxertos,
as tranas, alisamentos de todo tipo. Ao ser indagada sobre o porqu desses
cabeleireiros no incentivavam a utilizao dos cabelos in natura, a resposta
dada que h um grande conflito nesse segmento: mesmo percebendo o salo de
beleza como um local que propicia uma certa militncia, pois podem possibilitar
a auto-aceitao, os profissionais precisam e querem ganhar dinheiro e, para
isso, precisam investir em tcnicas que, na grande maioria das vezes, vo ao
encontro de uma ditadura do mercado.

O preconceito uma violao do preceito de respeito ao ser humano, de
fraternidade, pois consiste em uma predisposio negativa e hostil frente a outro
ser humano. Trata-se de uma desvalorizao da outra pessoa tornando-a,
supostamente, indigna de conviver no mesmo espao e, conseqentemente,
excluindo-a moralmente. Em geral, defende-se o compromisso moral perante a
famlia, os amigos, os parentes, a sociedade, mas, diante dos estranhos, dos
diferentes, daqueles que so estereotipados negativamente, a abordagem
permissiva, descabida e arbitrria, justificando a excluso como natural.

Em sntese, ao se analisar as vrias facetas do preconceito, alguns aspectos se
tornam evidentes, como a postura de suposta superioridade de um grupo sobre o
outro, pela definio de papis diferenciados, pelo privilgio e o medo da
competio e das aspiraes do grupo subordinado. O oposto do discurso
discriminador seria a fraternidade pois esta domestica o estrangeiro, tornando-o


51
GOMES, Nilma Lino. Corpo e cabelo como cones de construo da beleza e da identidade negra nos sales
tnicos de Belo Horizonte. So Paulo: USP, 2002. Tese de Doutorado.


50
semelhante. O semelhante introduz a amizade, a ternura, a solidariedade entre os
humanos, que no deve ser pensada apenas como uma reduo da agressividade,
uma formao reativa secundria, mas como essa tentativa de humanizar o outro.

O preconceito no se confunde com a discriminao. Esta a manifestao
comportamental do preconceito; so aes promovidas com o objetivo de manter
as caractersticas do grupo de posio privilegiada e referncia positiva.

Aceita-se, geralmente sem muito debate, que a discriminao seria fruto do
preconceito. O problema deste modelo, que correlaciona de maneira direta como
sendo um a causa do outro, que no consegue explicar alguns tipos de
discriminao como, por exemplo, a racial. O desejo de manter o prprio
privilgio branco (teoria da discriminao com base no interesse), e no no
sentimento de rejeio aos negros, pode gerar a discriminao. Podemos
destacar, ento, que a discriminao poderia ser provocada por preconceito ou
motivada por interesse de manter privilgios (Bento, 1992)
52
.

Discriminao um conceito mais amplo e dinmico do que o do preconceito.
Ambos tm agentes diversos: a discriminao pode ser provocada por sujeitos e
por instituies e o preconceito s pelo sujeito. Tanto a discriminao quanto o
preconceito podem ser analisados do ponto de vista do portador quanto do
receptor.

O ponto de vista tradicional focaliza a discriminao como mais individualista,
espordica, episdica, aberta, escancarada, e mais complexa, do que a
perspectiva institucional, que acentua o carter rotineiro e contnuo, aberto ou


52
Op. Cit.


51
dissimulado, quase imperceptvel, o que significa um desafio para aqueles que
trabalham com a questo racial.

Podemos citar, como exemplos desse ltimo enfoque, os testes de seleo de
pessoas para admisso no trabalho, uma carta de promoo, um anncio no
jornal dando preferncia a um grupo ou a um segmento da populao. No
mercado de trabalho, os negros sofrem basicamente trs tipos de discriminao:
o primeiro a discriminao ocupacional, uma dificuldade em obter vaga para
funes melhor remuneradas e valorizadas; este tipo de discriminao tem base
no questionamento da capacidade do negro para executar tarefas mais
complexas. O segundo tipo a discriminao salarial, que diz respeito s
diferenas salariais, quando exercidas as mesmas funes, ou seja, o trabalho do
negro no vale tanto quanto o dos demais. Isso ocorre especialmente com as
mulheres, e de forma ainda mais cruel com as mulheres negras. O terceiro tipo
a discriminao pela imagem (visual) que impede o negro de obter uma vaga
pela sua aparncia, o que pode ocorrer para um emprego em uma residncia ou
numa grande empresa (Santos, 2000: 90)
53
.

Quanto ao racismo, fala Essed (1995)
54
:

Racismo uma ideologia, uma estrutura e um processo pelo qual,
grupos especficos, com base em caractersticas biolgicas e
culturais verdadeiras ou atribudas, so percebidos como uma raa
ou grupo tnico inerentemente diferente e inferior. Tais diferenas
so, em seguida, utilizadas como fundamento lgico para se


53
SANTOS, Hlio. Em busca de um caminho para o Brasil: a trilha do crculo vicioso. So Paulo: Senac, 2000.
54
ESSED, Philomena. Por trs da fachada holandesa: multiculturalismo e a negao do racismo nos Pases
Baixos. Estudos Afro-asiticos. Rio de J aneiro: v. 28, out. 1995: 171-183.


52
exclurem os membros desses grupos do acesso a recursos materiais
e no materiais. Com efeito, o racismo sempre envolve o conflito de
grupos a respeito de recursos culturais e materiais. Ele opera por
meio de regras, prticas e percepes individuais, mas, por
definio, no uma caracterstica de indivduos. Portanto,
combater o racismo no significa lutar contra indivduos, mas se
opor s prticas e ideologias pelas quais o racismo opera atravs das
relaes culturais e sociais (p.174).

O racismo pode ser entendido como um princpio de inferioridade do grupo
segregado, antes de tudo desigual e injusto. O grupo vtima dispe de um lugar
na sociedade considerada, qual seja, o de se dedicar s tarefas mais penosas e de
no ser demasiado visvel.

Na ideologia dominante, em geral no se reconhece que o racismo
seja um problema estrutural. O termo racismo reservado apenas a
crenas e aes que apiam abertamente a idia de hierarquias de
base gentica ou biolgica entre grupos de pessoas. O problema
dessas definies restritas de racismo que elas tendem a fazer
vista grossa natureza cambiante do racismo nas ltimas dcadas.
O discurso do racismo est se tornando cada vez mais impregnado
de noes que atribuem deficincias culturais a minorias tnicas.
Essa culturalizao do racismo constitui a substituio do
determinismo biolgico pelo cultural. Isto , um conjunto de
diferenas tnicas reais ou atribudas, representando a cultura
dominante como sendo a norma, e as outras culturas como


53
diferentes, problemticas e, geralmente, tambm atrasadas (Essed,
1995)
55
.

O racismo pode, portanto, ocorrer sob trs formas: o racismo individual ou
pessoal acontece quando uma pessoa se cr superior a outra em funo de sua
raa; o racismo institucional, quando Instituies, Estados e/ou Governos
entendem que um determinado grupo racial deve ter primazia em relao a
outros grupos e o racismo cultural, que ocorre quando um determinado grupo
racial entende que a sua herana cultural se sobrepe em importncia de outros
grupos.

Um dos efeitos mais sinistros da ideologia racial no Brasil a pouca ou
nenhuma percepo do racismo pelas vtimas, pois vigora uma ideologia
nacional de harmonia e tolerncia racial. Uma das conseqncias a auto-
rejeio e a rejeio do seu outro. O dio de si. Rgidos esteretipos de
pensamentos e repeties constantes: com esses meios, as reaes vo sendo
gradualmente embotadas, e confere-se trivialidade propagandstica uma
espcie de auto-evidncia axiomtica que a ideologia coloca no oprimido, um
tipo insidioso de inferiorizao que resulta em desagregao individual e
desmobilizao coletiva. Dessa forma, as resistncias da conscincia crtica so
minadas. No caso do Brasil, o nosso chamado racismo cordial sutil,
mascarado, engenhoso. No tem nada de cordial, pois mascarado e, por isso,
de difcil combate. O fato de a sociedade brasileira considerar os negros
incapazes por natureza se reflete diretamente em trs setores sociais: nos meios
de comunicao que reproduzem os esteretipos; na polcia que reprime os
considerados perigosos e nos prprios negros, que assimilam estas idias,


55
Op. Cit.


54
podendo gerar ressentimento, o dio de si. Diante da questo: o que o outro quer
de mim? (Che voui?), a resposta : ele quer o que eu tenho e que ele no tem. A
primeira resposta que surge dessa questo da ordem do ter, uma relao de
agressividade competitiva e rivalizante. Essa relao existente entre irmos,
por exemplo encontra seu limite na simpatia, na relao entre semelhantes
56
.

Quando h algum episdio que se torna pblico _ por exemplo, o assassinato por
policiais, do dentista Flvio Ferreira de SantAnna, em fevereiro de 2004, na
cidade de So Paulo, quando um comerciante o confundiu com um assaltante
_, o tema vem discusso. Neste caso, algumas personalidades so chamadas a
dar depoimentos artistas, atletas, polticos e o que se v so denegaes do
tipo: eu nunca sofri nenhum preconceito, a no ser uma vez em que fui barrado
num hotel.... Quem nunca ouviu este tipo de declarao, especialmente de
jogadores de futebol ou artistas populares? Assim, os brasileiros sabem que h
racismo, negam t-lo, mas demonstram, em sua imensa maioria, preconceito
contra os negros. E estes, como no exemplo acima, so sempre vistos como
bandidos, sujos, incapazes e, parece que, por mais esforos que faam para
conquistar um lugar social melhor, carregaro em seus corpos as insgnias que
no os separam desses implacveis sentidos que configuram o racismo e a
discriminao (Nogueira, 1998: 04)
57
.

A questo central que no podemos ignorar que o racismo se estabelece a
partir de uma relao desigual e injusta entre os grupos sociais, pois um exerce o
papel de grupo dominante, embora nem sempre se identifique como tal. Isto nos
remete falsa tolerncia. O grupo dominante afirma ser tolerante em relao aos
dominados racialmente e esses devem acreditar na sua boa vontade, mesmo


56
Ver captulo seguinte: O escravo psquico.
57
NOGUEIRA, Izildinha B. Significaes do corpo negro. So Paulo, USP, 1998. Tese de Doutorado.


55
quando os primeiros afirmam no serem racistas. A idia de que os dois
grupos devem ser tolerantes irreal e falsa, pois ignora as diferenas de poder
entre quem pratica a discriminao racial e quem vtima dessa discriminao.
Mas, conforme afirma Koltai (2000)
58
, no h racismo sem discurso, lembrando
que o discurso do sujeito se constitui no discurso do outro. As particularidades
do sujeito no mundo so significadas pelo sintoma, sendo o sintoma aquilo que
constitui trao daquilo que faz lao, conflito/tenso, separao e sutura entre
histria individual e histria da cultura. A partir dessa reviso,cabe perguntar
como se d, para o sujeito negro, a elaborao, no plano psquico, dos
significados que o racismo traz consigo.

Para tentar responder a essa questo, farei primeiramente um passeio terico em
Freud e Lacan para, em seguida, falar do racista. Em seu artigo O estranho
(1919)
59
Freud nos apresenta a verso daquilo que nos familiar, sendo
estranho, estrangeiro. O familiar se torna estrangeiro devido ao do
recalcamento. essa terra estrangeira interior, Lacan chamou extimidade,
designando com isso o real no simblico; simblico que organiza a experincia,
enquanto o real aquilo do qual no se pode dizer. O estranho esse enlace
entre o real e o simblico, articulados pelo imaginrio que tudo representa,
atravs de nossas criaes, imagens, sentidos e fantasma. O estranho vem ento
se apresentar sob trs formas.

Uma de suas formas a do autmato, daquilo que rouba o lugar do que deveria
ser espontneo e natural, passando desapercebido. Uma outra forma a do
duplo, que aparece como imagem especular ou como sensao de pura presena
que, mesmo invisvel, se faz existir, sem sombra de dvidas. Radmila Zygouris


58
KOLTAI, Caterina. Poltica e psicanlise: o estrangeiro. So Paulo: Escuta, 2000.
59
FREUD, S. O estranho (1919). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976. vol.XVII, p. 275-314.


56
(1995)
60
denomina assombrao quilo que vem de algo que efetivamente
aconteceu na realidade, vindo a assumir autonomia psquica e, por isso, podendo
ser esperado novamente numa realidade futura. A assombrao d forma
angstia, e representada pelo medo. Ela se difere do fantasma, uma vez que
este designa a sujeio originria ao Outro, traduzida pela pergunta: Que queres?
Ela exprime a relao genrica e varivel, porm nunca simtrica, entre o sujeito
do inconsciente, sujeito barrado, dividido pelo significante que o constitui e o
objeto a, que remete a um vazio do lado do Outro. O fantasma uma parada na
imagem, uma forma de impedir o surgimento de um episdio traumtico;
imagem cristalizada, defesa contra a castrao, no mbito de uma estrutura
significante que no pode ser reduzida ao imaginrio, tal como os devaneios.

A outra forma do estranho o feminino; feminino pensado enquanto diferena,
enquanto Outro. um Outro que se ope ao Mesmo, resistindo ao um da norma,
fazendo objeo ao todo. A norma o masculino, o adulto, o branco; norma
flica.

O estranho vem de onde no se espera, da mais absoluta proximidade, podendo,
por isso, provocar situaes de negar sua proximidade mantendo-o distncia,
ou ignorar sua estranheza. A vivncia desse estranho familiar no privilgio de
nenhum sujeito em particular, no especificando nenhum tipo clnico. Ela
aparece para neurticos e psicticos, que partilham a mesma experincia, cada
um a seu modo. A experincia da estranheza tambm pode vir com um
sentimento de enfado. Tudo certo, mas t esquisito!, a frase dita por um
analisante; essa frase denota cansao, fastio, tristeza, falta de sentido para a vida.
Sensao que acomete a todos os humanos. Freud distingue o outro enquanto


60
ZYGOURIS, Radmila. Ah! As belas lies. So Paulo: Escuta, 1995.


57
semelhante, no qual nos reconhecemos, segundo as regras do bem e da
identificao, e o prximo propriamente dito, este outro inomevel, estranho e
estrangeiro a mim mesmo, a coisa freudiana.

esse outro inomevel que ameaa quele que sofre as conseqncias do
racismo: estranhar no outro aquilo que julgo oposto aos costumes, o que
diferente do esperado e, por isso, causa espanto, admirao, surpresa; da
desviar, fugir, atacar, desumanizar, matar. O que inquieta no outro o seu modo
particular de gozar, pois o racista no reconhece outra forma de gozo que no a
sua; reconhecer outra forma de gozo reconhecer que todo o gozo no lhe
pertence. Segundo Koltai (1998)
61

O racismo dio do gozo do outro. Tentar se libertar do gozo do
outro uma tentativa mortfera, em que o estrangeiro aparece como
representante do gozo e tem, portanto, de ser destrudo. No existe,
nem pode existir, sociedade que oferea a todos um gozo igual, uma
vez que, do ponto de vista do fantasma, sempre o outro que goza.
Imputa-se sempre ao outro um gozo excessivo, acusando-o de
querer estragar nosso modo de vida. O que nos incomoda no outro
estrangeiro justamente seu modo particular de organizar seu gozo
e, mais precisamente, o excesso que o seu (p. 110).

A problemtica da alteridade possui trs eixos: o primeiro diz do juzo de valor:
o outro bom ou mau, amado ou no, igual ou inferior. No segundo, aceita-se
ou no os valores do outro, assimilando-os, ou ento imponho a ele minha
prpria imagem e o assimilo a mim, na tenso quem submete quem. No terceiro
eixo, posso conhecer e reconhecer a alteridade que se constitui na superao dos


58
eixos anteriores (de amor-dio, dominao-submisso) (Todorov, 1995)
62
.
Qualquer modalidade de poder visa sempre dominar os homens e submet-los
docilmente aos seus desgnios. O exerccio concreto do poder implica em
maneiras sutis e ostensivas de economia perversa. Inmeros indivduos,
especialmente neurticos, mas no s, aliam-se a outros indivduos, entidades,
instituies, partidos, traficantes, num pacto profanamente sagrado, em busca de
alguns podres poderes, com marcas de gozo, para alm do prazer, desafiando a
castrao.

Assistimos ao estrangeiro, no nosso caso, o negro, exercendo fascnio,
principalmente pelo exotismo e provocando horror, expresso por meio do
racismo. Wiesel (in Koltai, 2000)
63
distingue trs categorias de estrangeiros: o
neutro, que indiferente, quase ausente; o que agita, estimula, criador e,
devido sua presena, uma sociedade adormecida em seus hbitos pode se
permitir recuperar seu brilho. E h aquele estrangeiro hostil, quase odioso, a
quem se teme.

Preconceito, racismo e discriminao formam o conjunto daquilo que Freud
(1930)
64
, em O mal-estar na civilizao nomeou o narcisismo das pequenas
diferenas. Essas pequenas diferenas so aquilo no qual o outro se assemelha
e, por conseguinte, formam o terreno da estrangeiridade e gera a hostilidade
entre os homens. Diferenas nem to diferentes assim e pequenas s vezes nem
to pequenas. Mas todas narcsicas.



61
KOLTAI, Caterina (org). O estrangeiro. So Paulo: Escuta, 1998.
62
TODOROV, Tzvetvan. Em face do extremo. So Paulo: Papirus, 1995.
63
KOLTAI, Caterina. Poltica e psicanlise: o estrangeiro. So Paulo: Escuta, 2000.
64
FREUD, S. O mal-estar na civilizao (1930). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.


59
Segundo Lacan (1998)
65
, cada vez que o sujeito se aproxima da alienao
primordial, que ele descreve como o estdio do espelho, surge a agressividade
radical, o desejo de aniquilamento do outro, como suporte do desejo do sujeito.
O discurso racista surge, ento, como uma das manifestaes da universalidade
do discurso cientfico, baseando-se na negao ao outro, de qualquer
subjetividade, destituindo-o de seu estatuto humano, reduzindo-o a mero trao
diferencial. Ele baseado numa lgica totalizante, em que um todo se ope a
outro todo. A lgica totalizante implica pensarmos em fronteiras, margens,
separaes fsicas, ideolgicas, culturais, psquicas.

Essa diferena, esse narcisismo das pequenas diferenas, nos remete ao gozo, a
outra forma de gozar que no a que se conhece. Isso marca uma estrangeiridade:
se h outra forma de gozar, algum pode estar gozando mais e melhor do que
eu. O mais gozar de um implica um menos gozar do outro e esse gozo
provoca ira, dio, agressividade.

Ele nos lembra que s na fala possvel advir como sujeito, trazendo uma
possibilidade de tratar esse sintoma. Isto possvel via anlise, lembrando que
na clnica, o preconceito se manifesta quando o analista ou o analisante
colocam-se na posio de mestres, gerando a impossibilidade da escuta e da
livre associao.

A psicanlise vem mostrar que no existe nada mais estrangeiro para o sujeito
que sua prpria exterioridade e a maneira como lida com essa exterioridade
determina o que define do Outro como estrangeiro. O que ela pode propiciar o
fim desse processo sacrificial, apontando uma outra soluo questo do desejo


65
LACAN, J acques. O estdio do espelho como formador da funo do eu. In: Escritos. Rio de J aneiro: J orge
Zahar, 1998. p. 96-103.


60
do Outro. Ela aposta numa mudana de posio em relao ao desejo do Outro,
que consiste em separar-se dele, no mais esperar que dele venham as respostas
para viver e gozar. Uma psicanlise pode levar um sujeito _ receptor ou
discriminador _ a no mais rejeitar esse heterogneo sobre os outros,
encontrando seu prprio destino, aceitando suas particularidades, sua parte de
um outro gozo e o dos outros. Enfim, encontrar uma outra lgica, no mais
baseada na segregao (Koltai, 2000)
66
.

E o Outro, quem ou o que ? Ele no somente o lugar dos significantes, que
condiciona o inconsciente estruturado como uma linguagem. O Outro o corpo,
o corpo marcado pelas bordas, bordas orificiais de onde se destacam os objetos:
seios, fezes, voz e olhar.

A psicanlise social por que oferece ao sujeito uma possibilidade de tratar do
gozo. Ela conduz o analisante ao encontro com a pulso de morte e seu gozo, o
que tem como conseqncia a produo de efeitos civilizatrios: o encontro do
sujeito com o seu prprio dio permite-lhe a conquista de um saber e,
possibilitando um certo distanciamento, um desprendimento desse gozo.


66
Op. Cit.


61
TERCEIRO CAPTULO

ESCRAVO PSQUICO

As bestas coisas em que a gente no fazer e no nem pensar vive preso,
s por preciso, mas sem fidalguia.
J oo Guimares Rosa

A posse de um homem por outro, esse ato de violncia por excelncia, presente
em todo contexto histrico da humanidade. De acordo com La Botie (1999)
67
,
s os humanos servem voluntariamente. O escravo - sujeito social - est
presente, na histria da humanidade, h muitos sculos. Podemos nos reportar
Grcia antiga, onde a sociedade era dividida entre cidados, de um lado, e
escravos e estrangeiros, de outro.

Para melhor perceber essa sociedade preciso compreender o que um escravo
e o que vem a ser a escravido. Escravo aquele que est sujeito a um senhor,
como propriedade deste, ou que est sujeito a outrem ou a alguma coisa; um
criado, um servo; um indivduo que trabalha em demasia. A escravido o
estado ou a condio de escravo, marcada pela falta de liberdade, pela servido,
dependncia, sujeio e submisso. Tambm um regime social de sujeio do
homem como propriedade privada e utilizao de sua fora, explorada para fins
econmicos (Ferreira, 1986: 690-691)
68
.

Pela definio, percebemos que a escravido parte da condio humana, por
um lado e, por outro, est intrincada nas mais diversas organizaes sociais ao
longo da histria. Tem, portanto, aspectos econmicos, sociais, polticos e


67
La BOTIE, Etinne de. Discurso da Servido voluntria. So Paulo: Brasiliense, 1999.


62
psquicos, conforme ser visto adiante. Aqui, buscarei esclarecer como se d a
escravido psquica, de acordo com a teoria psicanaltica e tambm explorar a
escravido do ponto de vista social, imposta aos negros no Brasil. Esta, enquanto
um modo de produo legtimo, vigorou em nosso pas por mais de trs sculos
e, decorridos mais de cem anos de sua abolio, seus traos permanecem
presentes em nosso imaginrio e em nossa realidade social.

Buscarei apresentar de qual forma a escravido fenmeno social se articula
sua outra face a escravido psquica. No circuito da pulso, esta sai de sua
fonte, atinge o campo do outro e retorna. Nesse caminho, ela se depara com o
desejo e as formaes culturais. Inicio este percurso com o psiquismo, sua
constituio e os destinos pulsionais para, num segundo momento, refletir sobre
o modelo escravocrata brasileiro e a forma como este se presentifica em nosso
cotidiano, especialmente para os negros.

A idia de pensar a escravido social inscrita, nos dias atuais, no psiquismo dos
negros, surgiu, como j disse, de minha prtica clnica em psicanlise, do dizer
de analisantes negros, de casos de pessoas pblicas ou destacadas pela mdia, e
de conversas informais. Em situaes cotidianas na clnica ou em espaos
sociais este ditado popular foi ouvido, com algumas pequenas variaes:

Preto isso: quando no caga na entrada, caga na sada. Se ele no
caga na entrada nem na sada, deixa um bilhete: eu volto.

Ditado como esse parece afirmar que, do negro, a errncia, o fracasso e a runa
so esperados, por serem coisas de preto. Aqui, o termo fracasso chama


68
FERREIRA, Aurlio B. H. Novo Dicionrio da Lngua Portuguesa. 2.ed. Rio de J aneiro: Nova Fronteira,
1986.


63
ateno no s pelos nmeros que as estatsticas e indicadores sociais apontam,
como tambm pelos recursos utilizados para justific-los.
Pensando nisso, um autor tornou-se destaque em minha investigao por ter sido
o criador do conceito de neurose de fracasso. Esse conceito, se no possibilita a
explicao da condio do negro no Brasil, pode ser um auxiliar na ampliao
do conhecimento que temos. Partirei, ento, do conceito de neurose de fracasso
para, em seguida, dizer da constituio do psiquismo e da escravido psquica.

A psicopatologia do fracasso

O termo neurose de fracasso foi criado por Ren Laforgue para:

designar a estrutura psicolgica de toda uma gama de indivduos,
desde aqueles que, de um modo geral, parecem ser os artfices da
sua prpria infelicidade, at aos que no podem suportar obterem
precisamente o que mais ardentemente parecem desejar
(Laplanche e Pontalis, 1983: 392-393)
69
.

O termo utilizado num sentido mais descritivo do que nosogrfico e caracteriza
o preo a ser pago por qualquer neurtico como conseqncia do desequilbrio
prprio a estes sujeitos e no como reao a um fracasso real.

Laforgue dedicou alguns de seus trabalhos mais significativos a esse assunto.
Em A psicopatologia do fracasso (1939)
70
, ele agrupou todas as espcies de
sndromes de fracasso que tinham referncia na vida afetiva ou social, individual
ou num grupo social (famlia, classe social, grupo tnico, etc.) e buscou sua


69
LAPLANCHE, J . & PONTALIS, J . B. Vocabulrio da psicanlise. 7.ed. So Paulo: Martins Fontes, 1983.


64
causa na ao do supereu. Ele s caracterizava uma neurose de fracasso
naqueles casos onde o fracasso constitui o prprio sintoma, exigindo uma
explicao especfica e no quando ele o produto por acrscimo do sintoma,
por exemplo, nos casos de fobia onde as medidas de proteo exigidas pela
patologia impossibilitam o sujeito de se deslocar, causando uma paralisao.

De acordo com Roudinesco e Plon (1998: 454-456)
71
, Ren Laforgue (1894-
1962) foi um dos fundadores do movimento psicanaltico francs e teve um
importante papel na histria da psicanlise na Frana, tentando organizar as
vrias tendncias que ento vigoravam neste pas, contendo vrias correntes e
fiis seguidores. O trabalho de Laforgue chamou-me a ateno e constitui a base
dessa investigao. Quando comecei a esboar este trabalho, foi a neurose de
fracasso que me serviu de guia, por isso, acredito que vale a pena recuperar a
histria desse autor e sua obra. No meu ponto de vista, sua trajetria de vida
parece ilustrar aquele que veio a se tornar seu texto mais representativo: a
psicopatologia do fracasso.

Laforgue originrio de uma famlia modesta seu pai era um arteso pobre,
sua me depressiva e suicida; moraram numa terra estrangeira, a Alscia que, na
poca, no era um territrio francs e, muito menos alemo. Torna-se um
estrangeiro e, segundo seu relato:

Aprendi a me privar de certezas. E a me manter na faixa estreita da
fronteira que marca o limite entre a vida e a morte. Quando se
adquiriu o hbito de no ter mais nada a perder, descobrem-se


70
LAFORGUE, Ren. Psyichopatologie de lchec. Paris: Payot, 1939.
71
ROUDINESCO, Elisabeth & PLON, Michel. Dicionrio de Psicanlise. Rio de janeiro: J orge Zahar, 1998.


65
riquezas que no so desta terra. Em vez de procurar flores
unicamente nos jardins bem podados, aprende-se a v-las no
estrume, e ele existe por toda parte. Assim, inclinei-me sobre os
condenados da terra, e foi entre eles, graas a sua misria e a seu
despojamento, que encontrei um ensino que ignorava os que eram
criados numa preocupao contnua com a convenincia e tendo a
obrigao de viver para adquirir uma grande fortuna (Laforgue, in:
Roudinesco, 1989: 293)
72
.

Tendo recebido uma rgida educao, foge da casa paterna e faz estudos de
medicina em Berlim. Aos dezenove anos, toma contato com a psicanlise atravs
da leitura de A interpretao dos sonhos. Identificava-se aos judeus de ento:
sem ptria, desarraigados, em uma verdadeira confuso de lnguas. Sua vida foi
marcada por uma sucesso de eventos dramticos: foi enviado ao front, em
1914, e viu os horrores da guerra, a realidade das doenas, o medo, as
epidemias. Viu de perto a sujeira e a morte quando foi ferido. Casado, viveu
conflitos decorrentes de doena da mulher e uma histerectomia, que lhe tirava a
possibilidade de ter filhos. Divorciado, se casa uma segunda vez, e torna-se pai
de uma filha deficiente. Viveu, tambm, intensos conflitos religiosos,
convertendo-se, nos anos 1950, ao espiritualismo, e chega a participar de um
movimento de reviso da teoria psicanaltica sob uma tica ocultista, meditativo
e orientalista, afirmando uma adeso difusa desses mesmos ideais aos do
catolicismo.

Por ocasio da Segunda Guerra, Laforgue foi seduzido pela possibilidade de
fundar uma instituio psicanaltica e estabeleceu, para isso, um intercmbio


72
ROUDINESCO, Elizabeth. Histria da Psicanlise na Frana: a batalha dos cem anos. Volume 1: 1885-
1939. Rio de J aneiro; J orge Zahar, 1989.


66
com um general nazista. Esse vnculo, feito atravs de dois encontros e uma
carta ao general na qual continha uma lista de nomes de possveis adeptos da
futura instituio, foi a base para a acusao de colaborao com o nazismo.
Essa mesma acusao teve como pano de fundo as disputas no movimento
psicanaltico francs, que atravessava um momento de ciso; alguns colegas
aproveitaram a ocasio para tentar se livrar dessa importante figura que era
Laforgue. Em seu julgamento, o Tribunal de Apelao de Paris, considerou o
processo improcedente por falta de provas. A isso se seguiram outros episdios
como a morte da neta, a intensificao das brigas com as sociedades
psicanalticas e mdicas. Foi preso e, aps liberto, para fugir s brigas, exilou-se
no Marrocos, onde fundou um crculo psicanaltico. Aps cinco anos, retorna a
Paris. Faleceu em 1962, vtima das seqelas de uma cirurgia.

Sua obra de psicanlise aplicada, assim como seus textos clnicos, foram
esquecidos, mesmo tendo sido considerado um psicanalista notvel,
especialmente no tratamento das psicoses. Possua uma clientela significativa e
foi comparado, por alguns, a Sndor Ferenczi (1873-1933). Mas, ao contrrio
deste, nunca foi considerado um mestre, uma vez que teve uma obra terica de
pouca relevncia. Como se v, a vida de Laforgue encaixa-se bem naquilo que
ele teorizou sobre o nome de neurose de fracasso: de origem humilde, alcanou
algum xito profissional e veio a sofrer as agruras do destino. Sempre
perseguindo a fama e o dinheiro, pode-se dizer que assistiu sua derrocada.

Sua obra de maior alcance e penetrao, A psicopatologia do fracasso, foi
publicada, em 1936. Nela, ele afirma que a psicopatologia do fracasso tem uma
significao social particular por no ser apenas determinada por aspectos
adquiridos ou hereditrios, mas tambm por conflitos psquicos e pelo ambiente
no qual o indivduo se desenvolve e as necessidades sociais s quais ele tem de


67
se adaptar. Nesse caso, o ambiente familiar e coletivo podem ter um papel
perturbador no equilbrio psquico e ocasionar problemas que podem chegar at
a comprometer a existncia, ocasionando o fracasso da vida afetiva e da
atividade social. Nos casos graves, todas as iniciativas, tanto afetivas quanto
intelectuais ou sociais morrem; mas, geralmente, o fracasso parcial. O
indivduo consegue xito socialmente, mas falha em sua vida afetiva ou,
inversamente, ele bem sucedido afetivamente e fracassa em sua vida social.
Nesses casos, difcil apreciar o grau da natureza do mal, at porque pode ser
contrabalanado por uma atividade compensatria como no caso de alguns
artistas e intelectuais.

Um homem, a servio de seu destino semelhante a uma
marionete. mais fcil ignorar que conhecer seu destino, e o
melhor meio de se reconciliar com ele aceitar todas as suas
possibilidades e todas as suas decepes (Laforgue, 1939: 08-
09)
73
.

Em casos graves de fracasso, o indivduo no integra sua personalidade,
enquadrando-se na atividade coletiva de seu meio. Seu desenvolvimento social
prejudicado: quando uma criana fracassa nos estudos, no entrosa com os
colegas, sente dificuldades em viver sua vida. Essas dificuldades podem ficar
mais explcitas em algumas etapas do desenvolvimento, como a puberdade, a
maturidade e a velhice, quando h outras exigncias sociais e a necessidade de
uma reorganizao psquica para melhor existir.



73
Op. Cit.


68
Alguns indivduos podem reagir a seu sucesso atravs de impulsos criminosos,
se endividando, no pagando suas dvidas, assinando cheques sem fundos,
mentindo. Esses casos se apiam no plano social e moral e os indivduos vivem
um conflito psquico latente que se traduz em sintomas susceptveis de conduzi-
los priso. H tambm aqueles que ganham na loteria e vem nisso a
possibilidade de realizar seus sonhos: compram manses, carros, constroem
cercas e muros que os afastam do convvio social, podendo vir a ocasionar srio
desequilbrio psquico. Esses casos apontam para o elemento surpresa: algo
inesperado aconteceu. Mas h tambm os casos esperados como a promoo no
trabalho, o sucesso de um negcio, uma herana, o sucesso no amor, todos
capazes de desencadear os mesmos sintomas. Em se tratando do amor, um
indivduo, em virtude de uma obscura necessidade interior, pode escolher como
parceiro uma pessoa que o seu contrrio, que poderia ser at mesmo seu
inimigo. No so incomuns os casos em que uma derrocada na vida, sob todos
os pontos de vista, desencadeada via uma relao afetiva
74
. H casos de
fracassos desencadeados por acidentes (de automveis, armas de fogo) e
tambm aqueles originados por doenas orgnicas, s vezes contradas ao
acaso (tipo gonorria, sfilis, nos nossos tempos AIDS...) ou por azar, nesse
caso fruto da ignorncia ou de erro mdico.

Qual a encruzilhada que o indivduo pode hesitar antes de escolher uma
direo? Qual o erro que o obriga a seguir uma via contrria quela de seu
desenvolvimento normal?, pergunta-se Laforgue (1939: 21)
75
. Ele vai buscar


74
Miller (2000) vem nos dizer que o verdadeiro fundamento do casal o sintoma, um contrato ilegal de
sintomas que estruturam as diferentes formas de parceria: pela fala (Lacan), pela identificao (Freud) e pelo
desejo (Miller). O sujeito homem busca o objeto a enquanto que o sujeito mulher se relaciona com a falta do
Outro, podendo decorrer disso o desvario, a loucura e a histeria. Se o homem ocupar esse lugar em sua fantasia
pode se tornar um parceiro devastao, que comporta o ilimitado do sintoma.
MILLER, J . A. A teoria do parceiro. In: MONTEIRO, E. e RIBEIRO, V. (orgs.). Os circuitos do desejo na
vida e na anlise. Rio de J aneiro: Contra Capa, 2000: 185-207.
75
Op. Cit.


69
sua resposta na famlia, esse primeiro vnculo social de um indivduo, que ajuda
na formao da instncia moral que age no psiquismo, fora da conscincia
propriamente dita e intervm na determinao de todas as aes. Essa instncia
o supereu, que distinguido em individual e coletivo, que vai intervir nos atos e
sentimentos do indivduo, vai dirigi-lo nesta ou naquela direo e vai obrig-lo a
aceitar ou a rejeitar sua maneira de ser, sentir ou agir. Pela influncia dos pais,
ele se desenvolve de forma rigorosa, em virtude de crenas religiosas, por
exemplo, impedindo qualquer abertura a outras possibilidades. Mas o sujeito
pode tambm utilizar sua inteligncia e sua energia para perseguir o contrrio do
que lhe transmitido, via neurose familiar, no que pode ser bem sucedido.

A neurose familiar fruto da escolha de parceiro, no casal, pois um parceiro vai
buscar no outro aquilo que julga lhe faltar. Isso ser transmitido aos filhos, que
captam os desejos dos pais e tm todas as frustraes destes projetadas sobre si.
Para escapar a essas injunes, viabilizadas pelo supereu, o indivduo lana mo
de vrios recursos defensivos como o sofrimento, que visa neutralizar a
culpabilidade advinda dessa no realizao do desejo dos pais. O infantilismo, a
recusa em crescer, se tornar adulto, uma outra forma, assim como as
manifestaes psicossomticas de toda ordem e a dificuldade em elaborar uma
identidade sexual.

As mesmas foras que agem no indivduo repercutem na vida coletiva, atravs
das crenas religiosas, da mentalidade primitiva de certas tribos, dos mitos, e
constituem um obstculo abertura normal da personalidade e da sexualidade.
Um outro exemplo deste supereu coletivo pode ser visto naqueles povos que se
tornam psiquicamente prisioneiros de uma situao social, por exemplo, dos
guetos e de suas leis e tendem, inconscientemente, a recri-lo em toda parte. Em
muitos casos, o perseguidor, longe de ser um objeto de dio, como seria normal,


70
torna-se objeto de amor inconsciente: a vtima liga-se ao carrasco e extrai do
sofrimento um gozo propriamente ertico; isto foi definido como identificao
com o agressor. Uma outra modalidade do supereu o de classe, na qual os
sujeitos vo estar submetidos a certas leis sociais, de acordo com sua condio
social.

s vezes, o que considerado um fracasso do ponto de vista estritamente
individual pode se apresentar como um xito do ponto de vista social: a
infelicidade de uns pode fazer a felicidade de outros
76
. Essa noo de fracasso
social varia de tempos em tempos. O sacrifcio ao qual se entregam os mrtires e
heris que conhecemos expressa um fracasso em suas misses e possibilita um
reconhecimento e at adorao a posteriori. O que explica estes casos a
personalidade e o eu desses indivduos, sendo o eu funo da mentalidade e do
conhecimento coletivos, tais quais so formados no curso da histria de um
povo. O indivduo to mais bem sucedido na medida em que vence mais
eficazmente essa realidade ou se adapta a ela que se apresenta para todos,
comportando problemas, exigncias, dificuldades e perigos.

O supereu coletivo e o individual, por outro lado, podem assujeitar, barrar o
caminho, paralisar, torturar. Os casos de suicdio representam o extremo disso.
A angstia nos persegue, obrigando-nos a fugir dos perigos reais ou imaginrios
e a combat-los por todos os meios possveis; somos obrigados a travar uma luta
a todo tempo contra esta realidade exterior e interior, fonte de sofrimento ou de
alegria e, nessa luta, somos ganhadores ou perdedores. Os perigos da realidade
externa so representados por inimigos, por concorrentes, pelas vtimas que se
defendem deixando-se devorar, pelas doenas, pela natureza que acaba por nos


76
o caso de inmeros artistas e dolos populares que, quanto mais sofrem e expem seu sofrimento, mais so
adorados pelo grande pblico.


71
fazer jogar o jogo da morte. Com relao realidade interna, ela comporta a
necessidade de fazer frente s mltiplas aspiraes, desejos e necessidades do
isso, que exige satisfao, em detrimento dos obstculos, das interdies
interiores ou exteriores e a severidade do supereu. O eu vai buscar conciliar as
necessidades interiores de acordo com as realidades interna e externa, o que
acaba por distinguir um eu fraco de um eu forte, um eu infantil de um eu
adulto.

Conforme dito anteriormente, o supereu coletivo semelhante ao supereu
individual; ele formado das diferentes batalhas travadas pela humanidade, pela
comunidade. fruto de uma gestao dolorosa, do combate entre vencedores e
vencidos, sobreviventes e mortos; ele tambm representa uma poca particular
da histria de uma coletividade no curso de seu desenvolvimento, com tudo o
que isto comporta de lutas e mudanas sobre o plano da organizao social, de
crenas religiosas, conquistas militares e descobertas cientficas. Quando um
indivduo nasce, as bases para o seu desenvolvimento j esto construdas em
sua famlia e na coletividade a qual pertence. Laforgue argumenta que, tal qual o
processo de desenvolvimento de um indivduo atravessado por crises, no
diferente com a coletividade, pois guerras, revolues, etc. fazem eclodir crises e
mudanas sociais que vo marcar cada indivduo e toda a coletividade. Ele
conclui seu livro se perguntando o que a felicidade. Para alguns, estar de
acordo com as leis religiosas, para outros o saber advindo da cincia, o
trabalho, a realizao material ou amorosa, a obteno de status ou poder. Cada
um deve encontrar a forma de conciliar seus desejos e necessidades internos com
os determinantes e exigncias externas.

Pelo exposto acima, v-se a limitao da abordagem deste autor que, como
psicanalista, deu mais nfase aos fatores externos do que aos internos na


72
formao dos sintomas e da neurose. Se aqui dei relevo sua vida e obra, por
que buscava compreender como alguns negros que, tendo cumprido os requisitos
da ascenso social, no a sustentaram. Ou seja, aps terem adquirido dinheiro e,
s vezes fama, jogam tudo para o alto, percorrendo uma verdadeira via crucis
no caminho de volta: alcoolismo, toxicomania, depresso, abandono da famlia e
dos amigos, chegando at misria absoluta. Essa trajetria de fracasso no
particularidade dos negros; ao contrrio, ela o comum da neurose. Entretanto,
em se tratando de negros, h nessa trajetria alguma influncia do passado
escravista presente no imaginrio social que se articula aos determinantes
psquicos?

Essa idia inicial, pesquisar a neurose de fracasso, teve seu trajeto modificado ao
perceber que h traos do escravismo presentes em negros e na sociedade. Estes
traos podem influenciar a trajetria de vida de muitos sujeitos, pois a cor da
pele um significante encarnado. Mas, antes de tentar responder a esta questo,
retomo Laforgue de seu ponto de partida e para dizer mais da escravido
psquica.

O texto de Laforgue baseado no artigo Alguns tipos de carter encontrados no
trabalho psicanaltico. Nesse artigo, Freud (1916) escreve um captulo
intitulado Os arruinados pelo xito, onde diz que:

... as pessoas ocasionalmente adoecem precisamente no momento
em que um desejo profundamente enraizado e de h muito
alimentado atinge a realizao. Ento, como se elas no fossem
capazes de tolerar sua felicidade, pois no pode haver dvida de


73
que existe uma ligao causal entre seu xito e o fato de
adoecerem (p. 357)
77
.

Em sua obra, faz uma anlise do supereu, reintegrando-o problemtica da
psicologia social. Em sua concepo, o supereu continha uma parte do isso, sob
a forma de herana e hereditariedade e tambm uma parte do supereu freudiano,
enquanto instncia reguladora. Essa teoria dava origem noo de aparelho
psquico das civilizaes e de inconsciente patolgico, a partir do qual ele
introduziu a neurose de fracasso e sua psicopatologia. Com isso, explicou a
patologia dos chefes polticos por sua infeliz infncia ou seu xito pelo carter
excepcional de seus temperamentos. Mas, seus estudos mostraram a fragilidade
e a limitao de sua concepo terica que, nesses casos, enfatizava os aspectos
de uma determinao psquica. Nem toda infncia infeliz resulta em lderes
totalitrios e nem todo carter excepcional resulta em grandes chefes.

Freud (1916)
78
vai ento distinguir dois tipos de satisfao libidinal: uma externa
e outra interna. Na satisfao externa, o objeto no qual a libido pode encontrar
satisfao est contido na realidade; este tipo de satisfao s se torna
patognica se vier ao encontro de uma frustrao interna, inconsciente. Por outro
lado, a satisfao interna vem de encontro ao princpio do prazer. Mas,
inconscientemente, triunfar equivalente a matar o pai, e a estamos no terreno
do complexo de dipo e do sentimento de culpa. Uma culpa imaginria advinda
do desejo de assassinato do pai e a conseqente dvida simblica que no
consegue, ou no pode, pag-la.



77
FREUD, S. (1916) Alguns tipos de carter encontrados no trabalho psicanaltico. In: ESB. Rio de J aneiro:
Imago, 1976.
78
Op. Cit.


74
Este texto freudiano, sem dvida, abre caminho para uma das grandes viradas
ocorridas em sua obra. A partir de Alm do princpio do prazer (1920)
79
, uma
reordenao trazida teoria psicanaltica. Freud afirma existir no psiquismo
uma tendncia para o princpio do prazer, mas tambm h outras foras ou
condies que se opem a esta tendncia: o princpio de realidade que vem
substituir o princpio de prazer sob a influncia das pulses de autoconservao
do eu; a outra tendncia o recalcamento, produzido nos casos em que a
satisfao pulsional capaz de proporcionar prazer por si mesma ameaa
provocar desprazer devido a outras exigncias. Freud reconsidera a questo ao
tratar de perigos externos, tais como as catstrofes naturais, os acidentes graves
e as guerras, todos capazes de desencadear processos neurticos, que levam os
sujeitos a se fixarem psiquicamente em seus traumas, da a repetio da cena,
principalmente em sonhos. Esses sonhos obedecem compulso repetio, que
est a servio do recalcado, forando seu retorno.

Freud tambm pde observar uma cena semelhante do trauma nas brincadeiras
infantis que repetem incessantemente a mesma temtica, a exemplo do que
assistiu em seu neto, Heinelle: este, tendo um cordo amarrado a um carretel, o
fazia desaparecer e reaparecer, num movimento de ir e vir, sempre acompanhado
de uma inflexo de voz. Esta brincadeira tornou-se conhecida como fort/da,
onde fort =fora e da =aqui. Ela visava diminuir a angstia vivida pela criana
diante da ausncia da me: atividade/passividade, amor/dio, prazer/desprazer.

Nesse trabalho, Freud tambm estabelece a dualidade das pulses entre pulso
de vida e pulso de morte. A vida psquica seria, ento, animada pelo
movimento destas pulses, tendo como tendncia final a reduo (princpio do


79
FREUD, S. (1920) Alm do princpio do prazer. In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.


75
prazer), a constncia (princpio da constncia) ou a eliminao (princpio da
inrcia) da tenso interna ao aparelho psquico. A pulso de morte silenciosa e
se manifesta na repetio ou, dito de outra forma, no eterno retorno do mesmo.

Encontramos outra forma de manifestao da pulso de morte no masoquismo.
Em As pulses e seus destinos (1915), Freud apresenta o processo do sadismo
masoquismo da seguinte forma:

a) o sadismo consiste no exerccio de violncia ou poder sobre
uma outra pessoa tomada como objeto.

b) Esse objeto abandonado e substitudo pelo eu do sujeito. Com
o retorno em direo ao eu efetua-se tambm a mudana de um
objetivo pulsional ativo para um passivo.

c) Uma pessoa estranha mais uma vez procurada como objeto;
essa pessoa, em decorrncia da alterao que ocorreu no objetivo
pulsional, tem de assumir o papel do sujeito.

O caso (c) o que mais comumente se denomina de masoquismo.
(pp. 148-149)
80
.

O masoquismo um prazer da dor, prazer do sofrimento, prazer do desprazer.
Sofrimento e dor no so a mesma coisa. A dor implica necessariamente o
fsico, sua disfuno na realidade, vivida independente da vontade do sujeito. O
sofrimento, pelo contrrio, remete ao psquico e ao moral; seu ndice de


80
FREUD, S. As pulses e seus destinos (1915). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.


76
realidade subjetivo, no sendo mensurvel nem objetivvel, podendo encontrar
a o desejo inconsciente. Mas, quando sofrimento e dor encontram-se num grau
muito elevado, eles podem ser confundidos porque misturados, o excesso, a
desmesura.

Em O problema econmico do masoquismo, Freud (1924)
81
vai distinguir trs
formas do masoquismo: o primrio, o ergeno e o moral. Define o masoquismo
ergeno como sendo:

Esta parte da pulso de destruio que no participa do
deslocamento para o exterior (como o sadismo o faz), mas
permanece no organismo em que continua ligada libidinalmente
pela co-excitao sexual (p. 212).

Por outro lado, o masoquismo moral aquele do qual os neurticos mais
habitualmente recorrem quando lhes necessrio, vindo atravs da culpa. Ela d
origem necessidade neurtica de sofrer, que lhes traz satisfao. Dentre os
desejos masoquistas encontramos, alm do sentimento de culpa, a necessidade
de punio, presentes na cena analtica via resistncia, que pode se apresentar
tambm enquanto reao teraputica negativa. Entretanto, culpa e masoquismo
moral se diferenciam. Na culpa, o acento recai sobre o sadismo acrescido do
supereu ao qual o eu se submete. A satisfao uma satisfao libidinal que tem
seu prprio objeto e a culpa vem depois dessa satisfao. No masoquismo moral
o masoquismo do eu que reclama punio; a satisfao reside na prpria culpa,
que erotizada. O eu o reservatrio principal da libido, que investe
constantemente os objetos, fazendo uma barreira constante ameaa interna cuja


81
FREUD, S. O problema econmico do masoquismo (1924). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.


77
fonte a pulso de morte. O masoquismo ergeno primrio o meio, por
excelncia, de impedir a satisfao da pulso de morte, de impedir nossa
destruio. Ele trao de unio entre o orgnico e o psquico; a condio da
formao do eu e, ao mesmo tempo, a primeira forma de estruturao-
organizao do eu. Ele transforma o prazer em prazer-desprazer, pois, possibilita
no s a descarga, como tambm a excitao, dentro do psiquismo. O ncleo
masoquista do eu permite o investimento (a ligao) da excitao, tornando-a
aceitvel. Caso contrrio, a excitao seria um desprazer insuportvel e
impossvel (Rosenberg, 2003)
82
. O masoquismo ergeno desperta uma fome de
sofrimento-gozo infinito, provocando a loucura do contato, que leva a buscar
uma marca corporal dolorosa que venha inscrever, nomear e, ao mesmo tempo,
restaurar uma unidade. Ele tambm valoriza os significantes do objeto perdido
(instrumentos que prolongam a mo tais como as roupas, a pele, etc.) e tambm
so tocados pela fala e seu poder de persuaso. Essa sensibilidade ao toque, o
desejo de tocar e de ser tocado no masoquismo leva esse sujeito a criar
encenaes onde poder experimentar sobre si a ligao entre sofrimento e gozo.
Segundo Enriquez (2000)
83
essa ligao se alimenta de uma fantasia de
sobrevivncia e de renascimento por expiao e exige a busca constante de um
fazer-sofrer, ou seja, de criar uma situao capaz de reunir as condies
necessrias encenao, num ritual mortfero. De acordo com Deleuze (in
Enriquez, 2000)
84
o masoquismo a arte do suspense, da espera; as cenas
masoquistas comportam verdadeiros ritos de suspenso fsica, de
enganchamento, de crucificao (p. 116).



82
ROSENBERG, Benno. Masoquismo mortfero e masoquismo guardio da vida. So Paulo: Escuta, 2003.
83
ENRIQUEZ, Micheline. Nas encruzilhadas do dio: parania, masoquismo, apatia. So Paulo: Escuta, 1999.
84
Op. cit.


78
Identificando-se ao objeto de seu dio e de seu desprezo, que foi anteriormente
um objeto idealizado e amado, o masoquista ir cobrir de lama, ridicularizar,
anular a si mesmo e ao objeto. Ela buscar transformar sua ferida narcsica em
um triunfo, antecipando, controlando, provocando, prevenindo-se do
traumatismo. Obrigar, convencer o outro, assujeit-lo, so suas metas. Nesse
jogo, a pulso de morte de um outro ser mobilizada, tornando extremamente
perigosa essa situao que pode levar o outro ao crime e ao castigo. Isso advm
da culpa que o sujeito reivindica para si, o que o leva a confessar um erro
imaginrio ou real, exigindo punio; a mobilizao do dio do outro tambm
obedece a uma poltica de identificao com o agressor. Nas palavras de
Enriquez (2000)
85
quanto mais eu sofro, mais sou amado, mais eu existo. Por
isso tenho que investir a dor fsica e moral, valorizar a dependncia, a
passividade (p. 128).

A satisfao pulsional sempre parcial, por isso, Rosenberg (2000)
86
nos diz que
o masoquismo o guardio da vida, pois ele sustenta em cada um a capacidade
de desprazer que essa satisfao traz. Ele nos permite continuar a suportar o
sofrimento e as misrias da vida. O masoquismo nos faz viver. Ele tambm
permite o acesso ao dipo, tornando suportvel a angstia de castrao. Quanto
ao prazer, devemos pens-lo enquanto necessrio e suficiente. Necessrio para
tornar a vida possvel e suficiente para que o sujeito possa escolher esse
possvel.

Por outro lado, o masoquismo mortfero quando investe todo o sofrimento,
toda a dor, todo o desprazer, ou quase. o prazer da excitao, em detrimento
do prazer da descarga enquanto satisfao objetal (o mais-de-gozar, como


85
Op. cit.
86
ROSENBERG, Benno. Masoquismo mortfero e masoquismo guardio da vida. So Paulo: Escuta, 2003.


79
veremos adiante). Outra possibilidade de o masoquismo ser mortfero quando
do abandono progressivo do objeto, que letal, como no caso da melancolia, em
que vemos a supremacia do sadismo do supereu sobre o eu.

Estamos a nos limites do dio, do dio de si. O dio um afeto to primitivo
quanto o amor, sendo fonte de representaes e de desejos inconscientes,
expresso do narcisismo. Apresenta mltiplos semblantes tanto na
psicopatologia da vida cotidiana quanto do prazer do exerccio do poder e da
submisso. Podemos perceb-lo no psiquismo humano e na coletividade atravs
da disposio interior para buscar a morte e tambm na agressividade assassina
contra um adversrio. Segundo Enriquez (2000)
87
, nas encruzilhadas do dio
sobrepem-se um sofrimento psquico e fsico excessivos, pois o sofrimento
torna-se causa de dio e o dio torna-se causa de sofrimento. Quando levada ao
extremo, a fora da pulso de morte coloca em movimento uma fora destrutiva,
que busca aniquilar tudo, inclusive a si mesmo, o que desperta desprazer,
desespero e sofrimento. Os vnculos e as identificaes so quebrados, a imagem
corporal despedaada, a vida psquica morre. As expresses psicopatolgicas
onde o dio se faz expresssivo so a parania, o masoquismo e a apatia.

Na parania, o perseguidor inflige e exige o sofrimento, da os paranicos serem
identificados pelo dio e no dio, que justifica e alimenta o sofrimento. A
dinmica paranica promove no sujeito a sensao de que este suporta o dio,
por isso o paranico erotiza o dio, gozando do sofrimento que esse nutre. O
dio ento investido para que possa ser transformado em uma fora de coeso
que busca criar os meios de pagar o preo por ser.



87
Op. cit.


80
A posio masoquista caracterizada pelo excesso de sentido dado ao
sofrimento, que cultivado na realidade ou na fantasia. Os masoquistas so
identificados ou identificam-se pelo sofrimento, no sofrimento e em sua
libidinizao, torna o dio inconfessvel, voltado para si, merecido. No caso da
apatia, evita-se aceitar que o outro tem o poder de fazer sofrer, no experimenta
o dio e contm o sofrimento a qualquer preo, faz disso a condio de sua
sobrevivncia. A apatia visa o controle do corpo, do pensamento, da pulso,
buscando uma insensibilidade afetiva, evitando o confronto com o outro que
geraria, em sua fantasia, uma exploso de dio destrutivo.

Outra manifestao psicopatolgica onde o dio se torna central a melancolia.
Nessa, o eu se torna pobre e vazio, ao contrrio do luto, onde o mundo que se
esvazia. O processo identificatrio, na melancolia, torna os ataques contra o
objeto (de identificao) em ataques contra o eu. A depreciao do objeto
transforma-se em autodepreciao, em dio de si. O objeto no abandonado,
como no luto o que possibilita o reinvestimento em um outro objeto mas,
sim, introjetado. Ele investido narcisicamente, idealizado, o que impede a
expresso da raiva pelo mesmo, por medo de destru-lo e perd-lo. como diz
Rosenberg (2003): No odiars nem destruirs o objeto, porque com ele
destruirs a ti mesmo (p. 143)
88
. Esse processo abre no eu uma ferida narcsica,
causada pelos ataques sdicos do supereu, que o empobrece. Essas feridas
narcsicas reforam o masoquismo primrio, valorizam a alienao e o
sofrimento pelo prazer e o desejo de ser para um outro.

Disso pode-se constatar que o sadismo e o masoquismo, principalmente o
masoquismo, so a expresso clnica por excelncia da pulso de morte, por


88
Op. cit.


81
erotizar a destrutividade desta e o desprazer da advindo. Eros, a pulso de
vida, que possibilita fazer ligao e dominar os efeitos destruidores da pulso de
morte. Entretanto, em determinadas circunstncias, o sadismo ou a pulso
destrutiva, que poderia estar voltada para o exterior, pode ser novamente
introjetada, dirigindo-se ao interior do organismo, regressando sua situao
primeira. Esse processo origina o masoquismo secundrio, que vem se somar ao
primrio.

Voltando culpa, ela que transforma o sadismo em masoquismo; neste caso,
os neurticos se valem de seus sintomas. Esses possibilitam a eles suportar a
culpa ligada a seus desejos (incestuosos, homicidas), mantendo a mesma atravs
de um investimento, erotizando o masoquismo moral que acaba por proteger o
sujeito de si mesmo.

Pode-se ver um exemplo disso em Dostoievski e o parricdio, artigo no qual
Freud (1928)
89
discute a questo da culpa e do masoquismo, analisando um
perodo da vida em que o escritor viveu na Alemanha, dominado por uma paixo
incontrolvel: o jogo. Essa paixo era uma forma de ele se castigar por causa da
dvida crescente, advinda da compulso a jogar, da satisfao que essa atividade
lhe trazia e da culpa posterior ao ato. Freud vai apontar a trs fases: a primeira
a do castigo, ligado necessidade de punio; a segunda o castigar-se,
humilhar-se, desprezar-se, advindos do masoquismo moral e a terceira a do
apaziguamento que vinha aps essa sesso, pois no caso do escritor, este se
entregava ao seu trabalho. Crime, castigo e alvio, so o resultado desta operao
psquica.



89
FREUD, S. Dostoivski e o parricdio (1928). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.


82
Nesse momento, cabe introduzir a noo de gozo, conceito estabelecido por
Lacan para dizer do mais alm do princpio do prazer, daquilo que Freud pde
verificar clinicamente na compulso repetio, nos sonhos de angstia e
vivncias traumticas. Para tanto, os conceitos de real, simblico e imaginrio
so fundamentais, pois dizem respeito aos trs registros que circunscrevem a
realidade humana; eles formam um elo, em forma de trs anis articulados entre
si, o n borromeu, onde um elo no pode ser destacado do outro para que a
cadeia no se perca.

O real indizvel, est no limite da nossa experincia; o simblico preexiste ao
sujeito, que s pode apreend-lo via imaginrio. Por seu turno, o inconsciente
estruturado como uma linguagem e s apreendido atravs de suas formaes:
lapsos, chistes, sonhos. O que possibilita a ligao entre os trs registros o
objeto a, causa de desejo, aquilo que resta da produo simblica e possibilita a
circulao da cadeia de significantes. O objeto a representado sob a forma de
objetos parciais do corpo (seio, fezes, voz, olhar). Possui duas vertentes: mais-
de-gozar (mais gozo/menos desejo) e causa de desejo (menos gozo/mais desejo),
sendo o gozo uma barreira ao desejo. O supereu, com seu imperativo de gozo,
marca uma interdio e um convite a ir alm, de realizar o impossvel: voc no
deve ser como seu pai X voc deve ser como seu pai. O movimento pulsional a
desencadeado versus a dificuldade de satisfao podem gerar inibio, sintoma
ou angstia. Da o advento do gozo como forma de satisfao, ainda que
originada do desprazer.

Cabe aqui esclarecer que o gozo, em psicanlise, d nfase vertente subjetiva,
de como manej-lo a partir do sujeito. Este termo foi extrado da teoria do
direito, em que enfatizada sua vertente objetiva, ou seja, gozar de algo que se
possui: um objeto, um bem, um ttulo, dos direitos civis, das faculdades mentais.


83
Usufruir de um objeto ter o seu uso regulado pelas leis. Portanto, h um limite
para o gozo em sua vertente subjetiva.

Lacan estabelece trs modalidades de gozo, que variam entre os trs registros: o
gozo flico, o gozo do sentido e o gozo do Outro. O gozo flico, proveniente do
falo imaginrio, do princpio do prazer, a completude do gozo do outro.
prprio ao sujeito, se apresentando no sintoma e na fantasia. O gozo do sentido,
prprio s formaes do inconsciente, articulado linguagem e suspenso do
recalque; sempre vem acompanhado de surpresa, susto, estranheza, exagero ou
bizarrice. O gozo do Outro articulado em duas vertentes: a subjetiva, onde o
supereu aparece como exigncia de gozo e a objetiva, do objeto a, mais-de-
gozar.

Quem barra o gozo o Nome do Pai, sendo essa barreira um efeito da
linguagem. Quando vai tratar do conceito de repetio, Lacan se utiliza dos
aforismos tiqu e autmaton, conceitos utilizados por Aristteles, quando este
pesquisa a causa. A tiqu diz do encontro com o real; autmaton, do retorno, da
volta, da insistncia dos signos comandados pelo princpio do prazer. Lacan
(1985)
90
nos adverte de que:

No h como confundir a repetio nem com o retorno dos signos,
nem com a reproduo, ou a modulao pela conduta de uma
espcie de rememorao agida. A repetio algo que, em sua
verdadeira natureza, est sempre velada na anlise, por causa da
identificao, da repetio com a transferncia na conceitualizao
dos analistas (p. 56).


90
LACAN, J acques. O Seminrio: Livro 11: Os quarto conceitos fundamentais da psicanlise. Rio de J aneiro:
J orge Zahar, 1985.


84

A tiqu marca o encontro com a falta, a exemplo do trauma, discutido no
captulo anterior. Estes desdobramentos: pulso, masoquismo, dio e gozo
configuram aquilo que aqui estou chamando de escravido psquica. Para melhor
entend-la, fao agora uma breve passagem sobre o complexo de dipo e o
estabelecimento das instncias identificatrias eu ideal e ideal de eu para,
num momento posterior, me deter sobre o escravismo social.

Lacan (1998)
91
concebe a teoria do complexo de dipo desenvolvendo-o em trs
tempos lgicos e coloca a castrao como o centro deste complexo. Tempo
lgico aqui significa que no h uma sucesso cronolgica entre eles, so
dialticos. No primeiro tempo, o momento da identificao da criana com o
objeto do desejo da me: o falo. O falo no o pnis, rgo sexual destacado e
valorizado da condio masculina. Nesse caso, o falo imaginrio tudo aquilo
que vem a produzir a iluso, a sensao de plenitude, de perfeio. O imaginrio
produz a iluso, ou a possibilita, de que nada falta. O falo simblico aquilo que
aparece em substituio a uma ausncia, portanto, o falo simblico algo que se
pode perder; algo que se pode ter, mas no se pode ser. Ele algo que circula,
se d, e recebe e pode ser substitudo por outra coisa, pois est inserido na
cultura.

Voltando criana, nesse primeiro tempo, ela o falo da me, logo, a me tem o
falo. Devem ser considerados dois personagens e a relao entre ambos. Esses
dois personagens: o menino, por um lado, deseja ser tudo para a me, deseja ser
o objeto do desejo da me; para isso, converte-se naquilo que a me deseja. Seu


91
LACAN, J acques. O Seminrio. Livro 4: A relao de objeto. Rio de J aneiro: J orge Zahar, 1998.


85
desejo desejo do outro, em duplo sentido, ou seja, ser desejado pelo outro e
tomar o desejo do outro como se fora o prprio.

Nesse primeiro tempo, a questo que se coloca a de ser ou no ser o falo para
poder satisfazer o desejo da me. o momento do chamado estdio do espelho,
formador do eu. Nesse perodo, a criana descobre e conquista a imagem do
corpo prprio; at ento, ela no reconhece seu corpo, no o v como uma
totalidade, devido sua imaturidade neurolgica. Este estdio dividido em trs
momentos lgicos portanto, no cronolgicos.

No primeiro, a criana descobre a imagem do espelho, mas ao perceb-la, acha
que a outra imagem a pessoa real; o que demonstra que ela ainda no se
diferencia dos outros com os quais convive. Ela e o outro so a mesma coisa. No
segundo momento, a imagem deixa de ser um outro real, passando a ser apenas
uma imagem, distinta das outras. Entretanto, ela v a imagem, mas no sabe
quem ela. No terceiro momento, a imagem a imagem da criana; esta se
reconhece na imagem do espelho, a v como uma unidade, mas ainda no tem
maturidade neurolgica para se ver como uma unidade. Ela vai, ento, antecipar
imaginariamente a unificao, o que lhe trar satisfao, prazer, o chamado
jbilo narcsico: ser a imagem de uma perfeio que no se , mas que
confirmada pelo outro, lugar do cdigo, da linguagem.

Quando a criana pergunta ao outro: Este sou eu? e v confirmada sua
pergunta, v esse corpo unificado, tem a a matriz simblica formadora do eu.
isso que propicia o advento do sujeito do inconsciente. Essa identificao
primria constitutiva da instncia psquica do eu ideal a matriz de todas as
outras identificaes, pois o menino e a me formam uma unidade narcisista em
que cada um possibilita a iluso no outro de sua perfeio e produz um


86
narcisismo satisfeito. A me converte o menino em falo, para poder ser a me
flica.

Essa colocao do filho como falo pode acontecer ou no; dessa forma, o lugar
que a criana ocupa no desejo da me marca uma possibilidade de estruturao
psquica que traz conseqncias totalmente distintas. A me pode tomar o filho
no s enquanto falo, mas tambm enquanto objeto ou enquanto resto. Em
muitos casos, a possibilidade de estruturao do filho tomado enquanto objeto
a perverso, e ao filho tomado como resto, a psicose. a me quem traz uma
moldura, uma identidade criana, por ser exterior a essa; uma relao
assimtrica. Ambas esto presas na mesma iluso e cada uma delas possibilita
que a outra se mantenha na mesma. Apresento a situao de alguns negros, em
que podemos observar uma fala aprisionada ao desejo de um outro, me ou
representante, como se o olhar dessa me fosse mortfero, ou inexistente. Esse
olhar mortfero pode nos fazer supor uma falha na tomada desse filho enquanto
falo. Vejamos:

Tenho sensao de ser invisvel. O olhar do outro me atravessa,
mas no se detm em mim.

Minha me me comparava com minhas colegas brancas. Elas so
to bonitas, delicadas. Quem vai se interessar por voc com estes
lbios grossos?.



87
No me caso; no quero ter filhos negros. O que posso lhes
oferecer? Vo sofrer muito neste mundo (In: Wanda Avelino,
1993)
92
.

Essas falas ilustram a condio de alguns negros inseridos numa sociedade
racista. O que essas mes oferecem a seus filhos? Um espelho quebrado,
despedaado, e podemos vislumbrar as conseqncias disto. No caso de Maria,
que ser apresentado no captulo seguinte, tambm vem nos dizer desse
encontro, s vezes doloroso, com o espelho. No seu caso, literalmente diante
do espelho que ela se mutila. O estdio do espelho, com seus trs momentos
lgicos, forma o primeiro tempo do dipo em Lacan, cujo produto, como vimos,
o eu ideal. No segundo tempo, assiste-se entrada de um terceiro elemento na
relao especular, narcsica, me-criana. A esse terceiro chamamos pai e o que
ele traz uma possibilidade de inscrio de uma lei: a lei da castrao, operao
simblica por excelncia, mediatizada por esse terceiro que vem se colocar entre
a me e o filho. O pai opera um corte, uma separao, produz uma falta. Me e
filho deixam de ser o falo e de t-lo; agora quem o detm o pai. Para alm da
lei materna, o pai intervm com a sua palavra, privando ambos, me e criana de
um gozo absoluto. O desejo da me tem relao com essa lei paterna; a criana
percebe que a me o deseja (ao pai) e, se ela deseja esse homem, porque ele
deve ter algo que eu no tenho. A criana deve reconhecer que algo falta
me e que ela vai buscar esse algo em outro o pai. A me deixa de seu um
Outro absoluto para ser um Outro barrado, o que indica sua castrao e inclui a
criana na ordem simblica.



92
AVELINO, Wanda. Grupo de mulheres negras: uma experincia.... Cadernos do Frum de Psicanlise do
Crculo Psicanaltico de Minas Gerais. n 14, nov. 1993: 115-1232.


88
O pai intervm imaginariamente, privando a me e a criana de seu objeto. No
caso da criana, a castrao faz com que o falo, enquanto objeto imaginrio do
desejo materno, aparea em seu registro imaginrio, como falta e, em seu
registro simblico, como significante do desejo, o que lhe permite dar sentido a
todos os outros significantes, e tambm a ordenar sua sexuao.

Aqui cabe uma ressalva: o pai que surge no segundo tempo do dipo o pai
interditor. Ele no apenas porta a lei, mas a lei. , portanto, um pai imaginrio,
o pai da horda primitiva, no castrado e no barrado, detentor do falo. preciso
um outro tempo para que a criana perceba que o falo no o pai. O terceiro
tempo marca o declnio do complexo de dipo. Uma vez que a me no tem o
objeto to cobiado, o falo, para o pai, suposto detentor deste, que a criana ir
se voltar. O pai instaurado ento como ideal de eu, a segunda instncia
psquica que vai marcar todas as outras identificaes da em diante: a dialtica
entre o eu ideal e o ideal de eu. O pai vai ser tomado como aquele que porta as
insgnias, como o smbolo de algum que ocupa um lugar determinado. A
dialtica que se instaura no mais a do ser o falo, mas a de ter ou no t-lo,
inaugurando assim o jogo das identificaes, onde meninos e meninas vo tomar
posies diferenciadas segundo seu sexo. A partir da, meninos e meninas vo
procurar, no pai, o falo que tanto querem, abandonando a me. O menino far do
pai seu objeto de identificao e afirmar ter, como o pai tem, o falo. A menina
tomar o pai como objeto de amor e como paradigma dos demais objetos
substitutos, buscando nesses o que sabe no ter.

O complexo de dipo marca, assim, nossa constituio no campo do Outro. Ele
sinaliza nossa servido a esse Outro, tomado enquanto instncia identificatria.
Assim, somos todos escravos, desse ponto de vista, pois a servido remete ao
poder. Ela justifica e legitima a sujeio de um sujeito a um outro, a um grupo, a


89
um ideal ou uma instncia transcendente. A relao senhor-escravo encontra-se
no cerne desta questo, podendo se desdobrar em perseguido-perseguidor.
Entretanto, o sentimento de perseguio e a experincia de sofrimento so
inerentes condio humana, que, desde o incio se v confrontada a uma dupla
injuno: a primeira imposta pela alteridade, pela diferena e a segunda de nosso
mundo interno, que pressiona a alteridade, a diferena e a significao. O que
nos diferencia a forma como cada um vai lidar com o Outro, como cada um
estabelecer ou no seus laos sociais. A relao com nossos senhores estar
marcada pela forma como a Lei foi internalizada.

Em seu discurso indignado, La Botie
93
nos fala daqueles que servem pela fora,
a exemplo dos derrotados nas guerras e daqueles que servem voluntariamente,
servindo ou a um senhor, geralmente um tirano eleito pelo povo, ou que governa
sob a fora das armas ou por sucesso de sua raa. Ele acredita que o homem se
deixa assujeitar pela fora ou pela iluso, deixando-se ficar nessa posio de
servo. Os senhores tiranos, a fim de se manterem, acostumam o povo por
obedincia e servido, acompanhados da devoo.

Freud (1919)
94
, em seu texto sobre a psicologia das massas, tambm vem nos
falar sobre a servido voluntria. Ele nos diz que o que une os sujeitos no grupo
o amor ao lder. J em seu ensaio sobre a religio (1927)
95
, nos alerta de que os
homens abrem mo de sua liberdade pulsional para interiorizar as regras sociais.
Isto possvel graas a uma oferta da cultura, ou seja, em troca dessa renncia
pulsional, algum consolo narcsico. Essas compensaes so de trs tipos: o
narcisismo das pequenas diferenas, a arte e a religio. Com relao primeira,


93
Op. Cit.
94
FREUD, S. Psicologia de grupo e anlise do eu (1919). ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.
95
FREUD, S. O futuro de uma iluso (1927). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.


90
ele diz que a satisfao narcsica que o ideal cultural proporciona se encontra
entre as foras que contrabalanam o combate hostilidade para com a cultura
dentro da prpria unidade cultural. Essa satisfao partilhada no s pelas
classes privilegiadas como tambm pelos oprimidos, que gozam do direito de
desprezar aqueles que no pertencem sua cultura. Essa identificao dos
oprimidos com as classes privilegiadas, que os governa e explora parte de um
conjunto mais amplo. Eles podem estar ligados afetivamente queles que os
oprimem, vendo-os como seus senhores e seus ideais, mesmo sofrendo a
opresso. Essa idealizao traz algum tipo de satisfao, pois caso no existisse,
no teramos tido tantas civilizaes ao longo da histria.

Vale lembrar que esse narcisismo uma soluo de compromisso neurtica,
constituindo um preo inevitvel da civilizao, que surge para controlar as
pulses, oferecendo alguma proteo ao desamparo original humano.

No Brasil, que viveu por mais de trs sculos um regime escravocrata, esse
fenmeno teve suas particularidades. A Abolio oficial da Escravatura se deu
em 1888, e se fez preceder de leis que buscaram a aproximao com esta lei
maior. Assim, em 1871, foi sancionada a Lei do Ventre Livre e, em 1885, a Lei
dos Sexagenrios declarando extinta a escravido para crianas e idosos,
respectivamente. A primeira lei libertava as crianas, mas no libertava suas
mes, o que acabava ocasionando a permanncia na situao em que se
encontravam. A segunda libertava escravos com mais de sessenta anos, o que
tambm no trazia muitas mudanas, pois, alm de os idosos serem poucos,
estes no mais conseguiam trabalhar, pelas condies fsicas decorrentes da
idade e dos trabalhos forados a que estiveram submetidos durante a vida. Esta
lei acabava trazendo benefcios para o senhor, que se via desincumbido de tratar
de seu escravo j velho e, muitas vezes doente.


91

A grande maioria de escravos brasileiros era destinada agricultura e minerao,
concentrando-se no interior do pas. Ao escravo cabia servir ao seu senhor, ser
coisa e, como tal, podia ser vendido, trocado, alugado, emprestado ou usado. Em
alguns casos, servir inclua gerar lucro extra, fora dos domnios do senhor,
atravs de servios domsticos, agrcolas, na minerao, artesanato, como
tambm a prostituio, furtos, etc. Alguns homens e mulheres eram utilizados
para procriao, por serem considerados modelos exemplares da espcie; o
caso de um baiano que teve mais de cem filhos, para citar um exemplo. O
panorama do escravo domstico, muito prximo das famlias, vivendo na casa
grande, isolado dos escravos do campo, retrata a situao de alguns poucos
privilegiados.

A vida livre tambm era um fato, mas no era fcil ser liberto numa sociedade
escravista. O voto era proibido e a suspeita de que o sujeito era um escravo
fugido o tornava uma presa fcil para a volta ao cativeiro. A situao de
miserabilidade tambm empurrava muitos negros para a permanncia na
condio de escravo, ou para continuar a trabalhar para seu ex-senhor, mesmo
aps ter obtido a alforria, como condio de sobrevivncia.

Estudos mais recentes revelam que os negros no ficaram passivos diante de sua
condio de escravos. Muitos exerceram sua atividade, pela mediao com seus
senhores, chegando a comprar ou conquistar sua liberdade. As formas de
negociao variavam, indo desde o reconhecimento dos senhores pelos servios
prestados por seus escravos, que gerava um sentimento de gratido, e sua
recompensa sob a forma de alforria e/ou herana. Talvez o caso mais notrio e


92
presente em nosso imaginrio seja o de Chica da Silva
96
, que se tornou mulher
do homem mais poderoso da colnia, o contratador de diamantes J oo
Fernandes de Oliveira.

Chica levou uma vida prxima das senhoras brancas da sociedade mineira do
sculo XVIII, constituiu famlia, ingressou em irmandades que, segundo seus
estatutos, deveriam ser exclusivas da populao branca. Criou as filhas no
melhor estabelecimento de ensino da regio, acumulou fortuna, tornou-se
proprietria de casa, vindo a ter vrios escravos a seu dispor. Foi uma mulher
influente na poltica e na Inconfidncia Mineira. Chica no foi uma exceo,
mas um dentre vrios exemplos da grande camada de negros e mulatos livres
que procuravam diminuir o estigma da cor e da condio de ex-escravos, fato
comum nas Minas Gerais devido sua atividade mineral e tambm agrcola. Ou
seja, era permitido a escravos que garimpassem para si, ouro e pedras preciosas,
aps extrair uma cota para o senhor. Isso era garantia da enorme produtividade
dos mesmos, e tambm possibilitou a muitos a compra da alforria e a insero
no mundo dos brancos.

Isso no quer dizer que, na escravido, havia uma relao amistosa: a servido
era garantida pela propriedade, submisso e dependncia. A transgresso,
presente em todos os momentos e em todas as instncias, era punida
severamente, nos pelourinhos, nos troncos, nos castigos com o aoite, atravs do
uso de instrumentos de imobilizao, e de marcas no corpo feitas a ferro em
brasa. Os negros reagiam a essa situao de diversas formas: individualmente,
atravs das fugas, que era a forma mais comum, mas tambm atravs de abortos,
suicdios ou, como disse anteriormente, outras formas de negociao com seus


96
Para uma compreenso da importncia histrica de Chica, remeto o leitor a: FURTADO, J nia Ferreira. Chica
da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito. So Paulo: Companhia das Letras, 2003.


93
senhores: obedincia, alforrias ou coletivamente, nas revoltas, fugas em massa,
criando quilombos. Os senhores e feitores tambm eram vtimas de assassinatos,
envenenamentos e espancamentos.

Os escravos no possuam sobrenome, pois no tinham personalidade jurdica.
Eram coisas, propriedades de um senhor, o que tornou comum a adoo do
sobrenome do senhor quando da alforria e aps a abolio. Os negros forros
(como eram chamados os alforriados), durante o perodo escravista, tinham que
utilizar estratgias para sua insero social ou se tornarem marginais. Essas
estratgias consistiam em se integrar sociedade branca local, atravs do
pertencimento a irmandades religiosas, grupos culturais e do trabalho. Ter
sobrenome, se batizar, freqentar a igreja, tornavam-se prticas obrigatrias,
assim como o abandono de suas razes e prticas de origem africana. Com a
Abolio, isso se intensificou e o ideal do branqueamento tornou-se quase uma
condio. A imigrao europia do comeo do sculo XX, que muito veio
contribuir para nossa composio racial, aliada s teorias racistas veiculadas no
perodo, muito contriburam para a busca de realizao desse ideal: tornar-se
branco. bom lembrar que os movimentos sociais de negros no estavam
alheios toda essa problemtica, intensificando sua luta para garantir os direitos
cidadania plena.

O ideal de branqueamento tornar-se mais claro foi decisivo no processo de
miscigenao que resultou em nosso continuo de cor, dando ao mulato uma
atribuio mais positiva, quanto cor, que ao negro. Da tambm surgiu o mito
da democracia racial, a ausncia de preconceito e de discriminao racial e a
suposta existncia de oportunidades iguais para negros e brancos. Um mito,


94
aliado quele que diz que o negro feio, irracional, extico e superpotente
(Souza, 1990)
97
.

Uma das tentativas de driblar essa situao foi a eleio do branco como
modelo, um ideal de eu a ser realizado. A contnua excluso e o espelho opaco
torna difcil, seno impossvel, a realizao desse ideal, levando alguns negros a
uma situao de extrema alienao e escravido. Outras tentativas podem ser
vistas na eleio de um parceiro que venha substituir o ideal irrealizvel ou
tentar branquear o prprio corpo (a exemplo de Michael J ackson), recorrendo
indstria cosmtica e s cirurgias plsticas. Para cumprir os desgnios desse
ideal inatingvel, esse negro se violenta e violentado continuamente. Nessa
busca, pode sucumbir depresso, ao masoquismo, fazendo da negritude uma
ferida que nunca cicatriza. desta condio de escravo, da dificuldade em eleger
a negritude enquanto significante positivo, que ser apresentado o caso Maria,
no prximo captulo.

Nessa luta entre as pulses de vida e as de morte, temos de reconhecer um
limite, saber que existe um ponto ltimo no sujeito a partir do qual o outro s
poder ser apreendido enquanto estrangeiro, inimigo, predador, um assassino em
potencial, possibilitando a expresso do no e a individuao, mesmo que em
plena diviso. nesse limite que residem brancura e negritude. Tanto
excessivamente prximo quanto o demasiado distante suscitam igual terror
(Enriquez, 2000: 76)
98
.


97
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes de identidade do negro brasileiro em ascenso
social. 2.ed. Rio de J aneiro: Graal, 1991.
98
Op. cit.


95
QUARTO CAPTULO

CASO CLNICO

Gostaria de ser aquele de quem dizem: ele o que conta histrias.
Uma histria. A sua histria.
Acaso algum dia se conta outra coisa seno a prpria histria?
Wladimir Granoff


Em Estudos sobre a histeria, Freud (1895)
99
fala da dupla dimenso do
sintoma: esconder e revelar. E, a partir da, apresenta-nos casos clnicos, ponto
de partida de sua argumentao terica. A construo de casos clnicos marca,
assim, o nascimento da psicanlise, sendo o caso uma apreenso circunstancial
e momentnea de uma construo (Souza, 2000: 18)
100
. O caso um relato de
uma experincia singular, podendo ser ele uma sesso, algum fragmento de
sesso _ como um sonho, por exemplo _, a descrio de sintomas ou o desenlace
de uma anlise. O objetivo da construo do caso clnico pode ser o de elucidar
uma situao clnica, esclarecendo a estrutura psicopatolgica que subjaz a ela, a
reflexo e o avano conceitual da prpria teoria, at servir de modelo ou
exemplo de uma dada disciplina ou rea do saber.

Sabemos, com Vigan (1999)
101
, que:

Caso, vem do latim cadere, cair para baixo, ir para fora de uma
regulao simblica; encontro direto com o real, com aquilo que
no dizvel, portanto impossvel de ser suportado. A palavra


99
FREUD, S. Estudos sobre a histeria (1895). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.
100
SOUZA, Edson. A vida entre parnteses. Correio da APPOA, n 80, jun. 2000: 13-23.
101
VIGAN, Carlo. A construo do caso clnico em sade mental. Curinga, n 13, set. 1999: 50-59.


96
clnica vem do grego kline e quer dizer leito. A clnica
ensinamento que se faz no leito, diante do corpo do paciente, com a
presena do sujeito. um ensino que no terico, mas que se d a
partir do particular; no a partir do universal do saber, mas do
particular do sujeito (p.51).

Um caso, em psicanlise, exige um distanciamento da intimidade experienciada
por analista e analisante no processo. Ele requer o rompimento dessa intimidade
para ordenar o dito que constitui a trajetria, sua teorizao e seu relato. A
construo do caso supe um terceiro, para quem dirigida uma questo, junto
de uma dificuldade, inquietao ou descoberta, que toca o analista. Este se v
implicado na transferncia e, portanto, o relato de um caso o relato da forma
como este analista o escutou.

O caso um recorte, mesmo por que muito difcil relatar uma experincia de
anlise. Mesmo havendo inmeros relatos, isto no nos impede de ver neles sua
parcialidade, advinda do fato de que, geralmente, um recorte da experincia.
Outra dificuldade o fato de que um caso singular, nico, correndo o risco de,
ao ser relatado, ter pretenso de universalidade. A construo do caso clnico
ocorre quando a clnica tropea numa borda intransponvel e chama a teoria
para dar conta dela, ou ao menos para situ-la (Puj, 1994:19)
102
. O relato
marca o encontro com um real que causou sua construo, buscando fazer borda
ao real, o que estabelece uma vinculao direta entre a construo e o desejo do
analista.



102
PUJ , Mrio. La comunicacion del caso. In: Psicoanlisis y el hospital. Buenos Aires, n. 5, invierno
1994: 13-21.


97
O caso clnico ento, uma fico construda pelo analista, por que reconstrudo
a partir das lembranas desse; como um fio solto que pode atar ou desatar
possveis ns. o encontro entre uma escuta e uma fala, num ponto qualquer,
onde estas se cruzam, sempre guiadas pela transferncia. Sendo o caso uma
construo, podemos efetu-la das mais diversas formas, a partir daquilo que nos
chama ateno, ou daquilo que Lacan (1985)
103
nos fala quando do fenmeno da
esquise, tomando como referncia a mancha num quadro, ou seja, um quadro
nada mais do que uma mancha de tinta que nos v assim que a olhamos.

A construo do caso pode se dar a partir de vrios pontos, naquilo que toca ao
analista. O caso Maria vai ser paradigmtico da questo racial e daquilo que
tenho escutado de meus analisantes negros. Mesmo tendo, a grande maioria
deles, buscado a anlise por motivos outros que no a questo racial, esta, em
algum momento, surge. Acredito que isso se deve, em parte, ao fato de eu ser
negro e, algumas questes surgirem, a partir da: sonhos, atos falhos, chistes, etc.
Alguns analisantes, quando vem de outros processos teraputicos ou
psicanalticos, costumam dizer de uma surdez de seus analistas ou terapeutas
anteriores em relao raa. Em encontros sociais, a mesma queixa se apresenta,
por parte de analistas e analisantes: dizem nunca ter pensado a respeito, dizem
que esse assunto no faz questo, dizem que o analista escuta um inconsciente e
este no tem cor nem sexo, etc. Porque a questo racial no escutada? Por que
essa evitao, esse temor? Em que questes esbarramos quando levamos adiante
a anlise de um sujeito que sofre por causa de sua negritude? So estas e outras
questes que estou tentando responder ao longo desta tese pois, o inconsciente
pode no ter cor, nem sexo, mas o sofrimento do sujeito, provocado pela
discriminao que este sofre, tem cor, sexo e classe social.


103
LACAN, J acques. O Seminrio. Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanlise. Rio de J aneiro:
J orge Zahar, 1985b.


98

Freud (1895)
104
j nos advertia de que um sintoma sobredeterminado. Ele
denominava trauma as impresses experimentadas em idade precoce e
esquecidas depois, e dava a essas uma grande importncia na etiologia das
neuroses. Essas situaes traumticas podem caminhar lado a lado com outros
fatores, como disposies hereditrias e constitucionais, da a
sobredeterminao. O que vai caracterizar um caso como traumtico ou no a
forma como cada um vai lidar com a experincia, ou seja, o fator quantitativo,
seu excesso pulsional. Por isso, algo que traumtico para um pode ser
considerado normal para outro; na srie complementar dois fatores devem
convergir para o preenchimento de um requisito etiolgico. Uma parte de um
dos fatores equilibrada por uma parte de outro, operando ambos em conjunto.
Apenas podemos dizer se o motivo que est em ao simples quando
percebemos as duas extremidades da srie.

As vivncias traumticas tm por caractersticas: ocorrerem na primeira
infncia; serem recalcadas, ou surgirem como lembranas encobridoras;
relacionam-se com impresses de natureza sexual e agressiva e a danos precoces
ao eu, chamados de mortificaes narcsicas, que desencadeiam as feridas
narcsicas. Os traumas so experincias sobre o prprio corpo do indivduo, ou
percepes sensrias, principalmente de algo visto e/ou ouvido, ou seja,
experincias ou impresses. O trauma pode ter efeitos positivos e negativos. O
efeito positivo a tentativa de por em funcionamento mais uma vez, recordar a
experincia esquecida ou at mesmo torn-la real, experiment-la novamente.
H fixao no trauma e uma compulso a repeti-lo. O efeito negativo segue
objetivo oposto: no recordar e no repetir nada do trauma, uma reao


104
Op. cit.


99
defensiva. expresso em evitaes que podem ser intensificadas em inibies e
fobias. So fixaes no trauma tanto quanto as anteriores, porm com intuito
contrrio. Essas estratgias defensivas trazem tambm intensas impresses sobre
o carter do sujeito. Tanto os sintomas quanto as restries ao eu e as
modificaes de carter possuem uma qualidade compulsiva, apresentando uma
independncia dos outros processos psquicos que se ajustam s exigncias do
mundo externo real e obedecem s leis do pensamento.

Os traos diagnsticos estruturais surgem no desdobramento do dizer, como
passagens significativas do desejo que se esboam naquele que fala. Esses sinais
aparecem como os ndices que balizam o funcionamento da estrutura psquica.
Diagnosticar em psicanlise significa discriminar a identidade do sintoma da
identidade dos traos estruturais. No caso de Maria, que veremos a seguir,
observamos uma reao caracterstica do funcionamento histrico: um
recalcamento associado a um deslocamento. O histrico deseja alguma coisa de
forma a faz-lo ser desejado pelo outro. Um outro esteretipo fundamental da
histeria a funo da mscara, o que coloca o sujeito distante de si mesmo e de
seu desejo, a fim de continuar a nada saber dele. o caso das perucas e artifcios
de Maria; seu sintoma, forma de realizao do desejo, induziu nela duas
formaes do inconsciente: um fantasma (obsessivo) e um sintoma de
automutilao.

A histeria se manifesta sob a forma de distrbios diversificados e passageiros.
Os mais clssicos so sintomas somticos como as perturbaes da motricidade,
distrbios da sensibilidade e os distrbios sensoriais. Tambm aparecem
afeces mais especficas: insnias, desmaios, alteraes da conscincia, da
memria ou da inteligncia. Os sintomas histricos so, em sua maioria,


100
transitrios; no resultam de nenhuma causa orgnica e sua localizao corporal
no obedece lei da anatomia ou da fisiologia.

Um outro trao da histeria concerne ao corpo enquanto corpo sexuado, dividido
entre a parte genital que, em geral, atingido por fortes inibies sexuais e todo
o resto no genital, que erotizado e sujeito excitao. Vemos, assim, que o
sujeito histrico aquele que sexualiza o que no sexual (Nasio, 1991)
105
.

Na dinmica da histeria, vemos uma pessoa assujeitada a outra, a partir de suas
fantasias. Na fantasia histrica, est presente a insatisfao permanente e um
estado de vitimizao, de infelicidade, que visa atenuar a angstia neurtica.
Assim, o histrico se oferece, mas no se entrega, pois teme o gozo, devido
impossibilidade da relao sexual. A insatisfao lhe garante a integridade de
seu ser, protegendo-o da ameaa de desintegrao e loucura despertada pela
possibilidade do gozo (Lacan, 1985)
106
.

Ele vai viver assim aprisionado numa sexualidade infantil, pelo temor da
angstia de castrao, mantendo sua incerteza sexual: sou homem ou sou
mulher? Na menina, a angstia de castrao vem acompanhada de dio e
ressentimento pela me, que no foi capaz de dar-lhe o objeto to desejado: o
falo; a castrao, na mulher um fato consumado. Na histeria, ter o falo , na
realidade s-lo, da a investidura flica no corpo tornando-o um corpo-falo.

A ameaa de castrao, na histeria, entra pelos olhos e a angstia que da resulta
inconsciente, por estar submetida ao recalcamento acaba por se converter em


105
NASIO, J uan David. A Histeria. Rio de J aneiro: J orge Zahar, 1991.
106
LACAN, J . O Seminrio. Livro 2: O eu na teoria de Freud e na tcnica da psicanlise. Rio de J aneiro; J orge
Zahar, 1985.


101
sofrimento em sua vida sexual. Nas outras neuroses, essa ameaa entra pelo
ouvido (no caso da neurose obsessiva) e se desloca para o pensamento at fixar-
se numa idia, ou entra pelos orifcios do corpo (no caso da fobia) e projetada
para o mundo externo (Nasio, 1991: 71-72)
107
.

O desejo do histrico um desejo de insatisfao, pois visa sustentar o desejo do
pai. O homem histrico ignora sua potncia, sentindo-se menos homem que os
outros. A histrica ignora o que o sexo feminino. Para sab-lo, passa pela
intermediao do pai, portador do pnis. Ela se instala no desejo do pai
procurando sentir a mesma sensao experimentada por este, possuidor do pnis
para saber o que a mulher tem de desejvel, para, a partir da, quem sabe,
simbolizar o rgo sexual feminino.

A partir daqui, pretendo trabalhar um caso, articulando-o s questes que a
clnica psicanaltica nos impe. Trata-se de um caso de histeria, com as
particularidades estruturais e fenomnicas que este quadro clnico traz e que foi
citado anteriormente. Maria uma histrica que sofre de sua negritude, da ser
um caso ilustrativo deste estudo, que busca articular um sintoma individual
naquilo que ele traz do imaginrio social, no que tange questo racial no
Brasil. Como a cultura pode modificar um sintoma que tanto individual quanto
social? Quais os efeitos do escravismo na constituio psquica do negro? Como
fazer uma articulao entre a metapsicologia e a especificidade do negro no
Brasil? O que fazer para no se identificar com o agressor? Quais as sadas
possveis para o gozo que cada sujeito negro, atendido por mim, encontra? H
uma tenso entre o que da cultura e o que da estrutura. o que pretendo
responder ao longo deste trabalho. Passemos ento ao caso.


107
Op. Cit.


102

Preciso parar de me mutilar. com essa frase que Maria assim que vou
cham-la inicia sua primeira entrevista comigo. Vem indicada por um colega.
Esteve em psicoterapia por um perodo de dois anos e decidiu interromper por
no ter visto, naquele processo, nenhum progresso. Comea seu relato dizendo
de seus constantes ataques ao seu corpo: arranca cabelos. Chegou com este
diagnstico de tricotilomania, que conseguiu decifrar junto com sua ex-
terapeuta, buscando ambas, na literatura, todo material disponvel. No discurso
psiquitrico, de acordo com Kaplan e Sadock (1991)
108
, tricotilomania a
incapacidade de resistir a impulsos de puxar os prprios cabelos, precedida de
crescente sensao de tenso imediatamente antes de arrancar os cabelos. mais
comum em mulheres que em homens; geralmente associada depresso ou a
transtorno obsessivo-compulsivo. O incio est relacionado a situaes
estressantes e perturbaes no relacionamento me-filho, perdas e medo do
abandono.

O couro cabeludo a rea mais comum de eleio do sujeito. Outras reas
envolvidas so: as sobrancelhas, os clios e a barba, menos comum o tronco, as
axilas e o pbis. O ato de puxar os cabelos descrito como doloroso e podem
estar presentes outros atos de automutilao como bater a cabea, morder as
unhas, arranhar-se, escoriar-se. O tratamento mdico geralmente envolve o uso
de medicamentos ansiolticos e antidepressivos e tratamento dermatolgico. Os
mdicos tambm recomendam a psicoterapia, devido a angstia excessiva que a
situao traz.



108
KAPLAN, H. & SADOCK, B. Compndio de psiquiatria: cincias comportamentais, psiquiatria clnica.
6.ed. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1991: 521-523.


103
Maria diz que seu corpo seu fardo, tem de carreg-lo, mas isso lhe custa muito,
tendo de fazer verdadeiras piruetas para disfarar, esconder dos outros seus atos
que, segundo ela acredita, ningum percebe. Para isso, usa os mais diversos
disfarces: perucas, enxertos de cabelos, implantes. Seus ataques tiveram incio
na adolescncia, por volta dos treze anos, quando de sua menarca. Morava no
interior, com sua famlia, devido ao trabalho do pai, encarregado de obras numa
construtora de grande porte. Por causa desse trabalho, viviam viajando, nunca
chegaram a morar mais de trs anos numa mesma cidade, o que s veio a
acontecer quando Maria fez dezoito anos e, tendo completado o segundo grau,
resolvera prestar vestibular. Os dois irmos tambm estavam prximos de
completar o segundo grau, pois a diferena de idade entre eles muito pequena.
Como a aposentadoria do pai estava prxima, este pediu transferncia para a
capital, no que foi atendido pelos patres.

Mesmo aposentado, o pai de Maria continuou a trabalhar na construtora. Ela fala
do pai com admirao: ele nasceu numa favela, comeou a trabalhar aos oito
anos de idade, vendendo balas na rua. Filho de uma grande famlia, pai
alcolatra, me empregada domstica, oito irmos, ele era o stimo. O av de
Maria morreu cedo, provavelmente em decorrncia de complicaes advindas do
lcool, deixou a esposa viva, com sua numerosa prole. Todos os filhos tiveram
de comear a trabalhar desde criana, o que impossibilitou a entrada e a
permanncia deles na escola. De todos, o pai de Maria o mais bem sucedido.
Depois de vender balas, foi lavador de carros e servente de pedreiro. Com essa
ocupao, entrou para uma construtora, aprendeu o ofcio de pedreiro.
Trabalhava durante a semana na construtora e, nos fins de semana, prestava
servios a vizinhos e familiares, ajudando-os na construo de suas casas algo
comum na favela, em regime de mutiro. Por ser um bom funcionrio, seus
chefes sempre o requisitavam para servios particulares em suas residncias e,


104
um deles, especialmente, percebendo sua dedicao, incentivou-o a estudar para,
ento, poder ocupar cargos melhores. Ele levou muito tempo para conseguir
concluir o curso fundamental, tornou-se mestre de obras, ou seja, um supervisor
dos servios da construo civil.

Ao longo de sua vida, este pai sempre foi tambm pai da famlia numerosa, pois,
dos seus irmos, nenhum conseguiu ascender socialmente. Permaneceram
morando em favelas, em condies precrias de vida. o pai de Maria quem
ajuda a todos, na medida do possvel. Aceitou viver viajando, pois isto lhe
garantia uma renda melhor, adiou alguns planos, inclusive o de se casar. Foi
num intervalo de obras que ficou conhecendo sua esposa, moradora da mesma
favela que sua famlia. Em seguida, veio ser supervisor de uma obra e ficaram
namorando, depois retornou s viagens e vinha v-la sempre que possvel.
Queria se casar, mas isso s aconteceu depois que construiu uma casa para sua
me.

Sobre a me, Maria diz que ela veio de uma famlia melhor estruturada que a do
pai, eram apenas trs irmos. Tambm tinha uma vida dura, trabalhou desde
cedo, completou o ensino fundamental, era empregada domstica. Aps se casar,
no trabalhou mais fora de casa, mesmo porque a curta permanncia nas cidades
por onde passavam no permitia. Educou os filhos com rigor. Apesar de dizer
gostar muito de sua sogra, evita o mais que pode o contato com os cunhados e
toda a famlia de seu marido. Considera-os mal educados, uma influncia
negativa para seus filhos. Sempre odiou o ambiente da favela e seu sonho era
poder sair de l. Nesse sentido, seu casamento foi o melhor presente que Deus
lhe deu: no s saiu da favela como da cidade. Tinha muita saudade da famlia
e, quando voltaram a viver aqui, decidiram construir uma casa prxima da sua
famlia, que no mais habitava a favela.


105

Numa sesso, quando ainda se encontrava na poltrona, estando bastante
angustiada, diz: T tudo preto na minha frente, ao que intervenho dizendo
Sim, est tudo preto na sua frente. Ela me olha com um certo espanto. Encerro
a sesso. Na sesso seguinte, estando agora no div, retoma a questo da cor
dizendo do incmodo que tudo aquilo tinha lhe causado. Passou a semana
pensando nisso e diz que seu pai negro, bem negro, assim como toda sua
famlia. Sua me mulata, filha de pai negro e me branca, tem os cabelos
encaracolados, nem bons, nem ruins demais. Ela e os irmos so mulatos,
mais para negros. Isso sempre foi um problema para toda a famlia. A me
sempre falou das coisas de negro: falar muito alto, no ter higiene, nem
educao, beber e dar vexame, as mulheres que no se do ao respeito, etc.
Atribua famlia do marido todas essas caractersticas. Como ela foi empregada
domstica, aprendeu com os patres as boas maneiras: falar baixo, no discutir
assuntos pessoais na frente de estranhos, comer em silncio, ter o maior rigor
com as questes de higiene, no ficar de conversa fiada na porta de casa com a
vizinhana. Assim, educou seus filhos, eles no deveriam dar motivos para os
outros falarem deles; sempre foram conhecidos pela extrema educao, apesar
de os dois irmos serem muito diferentes um do outro. O mais velho super na
dele, fala pouco, tem poucos amigos, tranqilo, trabalha, estuda, namora, no
demonstra ter maiores conflitos. O mais novo totalmente diferente dos dois:
tambm trabalha, estuda, namora, tem muitos amigos, gosta de danar, de fazer
festas, de falar da sua negritude, discutir o assunto, por isso l, se interessa, ao
contrrio do mais velho que alienado. Maria fica dividida: gostaria de no
falar, de no discutir, mas o assunto sempre volta, de uma forma ou de outra.

Em sua infncia, todas as suas bonecas eram brancas, de cabelos compridos,
uma, especialmente, era um beb louro e de olhos azuis, do tamanho de um beb


106
verdadeiro. Adorava essa boneca, brincava mais com ela do que com as outras; a
mantm guardada at hoje, no conseguiu do-la a ningum. Sonhava em ser
assim, diferente, diferente do que realmente . Tinha inveja das amigas,
cresceu tendo vergonha de seu corpo, dos lbios grossos, do nariz que no
chato, mas lembra o nariz de negros, de sua bunda grande e suas ancas largas,
como das negras, dos cabelos que no so como os da me, mas tambm no so
como os do pai, para seu alvio. Vivia alisando-os e fazendo escova. No gosta
de usar biquni, acha que no lhe cai bem, destaca demais o seu corpo; prefere os
mais. Quase no toma sol, diz no precisar. Desde pequena, gosta de ler. Ficava
muito sozinha, inclusive falava muito sozinha. A me a vigiava, sempre brincava
em um local de onde esta pudesse v-la. Mesmo quando esta no estava
presente, sentia o seu olhar. De vez em quando, a me lhe chamava pelo
nome; ela nem sempre respondia e a me vinha v-la. Escrevia no quadro negro,
tinha hora para brincar, no podia ir casa das amigas para no incomodar a elas
e nem s suas mes. Quando a me lhe penteava os cabelos, dizia que eles eram
ruins, que precisava dar um jeito. Passava mil produtos para alis-los, fazia
tranas, mantinha-os presos. Falava o quanto ela parecia com a famlia do pai, o
que, para Maria, era um sinal de que sua me no gostava dela, por no gostar da
famlia de seu marido. Seu nascimento foi uma grande decepo: o pai ficou
radiante com a notcia da gravidez, mas esperava um filho homem. A me queria
dar ao marido o filho homem que tanto queria, e nasceu Maria. Na segunda
gravidez, o filho homem, que tanto desejavam, nasceu e o terceiro veio em
seguida. Diante da possibilidade de uma quarta gravidez, a me fez laqueadura
de trompas. Contam que ela sentiu muito o nascimento do irmo: adoeceu,
chorava muito, batia nele. At hoje rivaliza com ele. Mesmo no tendo muitos
conflitos com o irmo, morre de cime e inveja. A me se d melhor com ele do
que com ela, o que ela no aceita. Queria ter nascido homem. O pai faz tudo que
pode para ela. Quando fez vestibular, no passou na universidade pblica e sim


107
em uma particular. O pai se disse orgulhoso dela, pois estava realizando o sonho
de ter um filho formado em faculdade. Pagou seus estudos e isso custou
famlia algum sacrifcio financeiro.

Na faculdade, foi uma boa aluna, tirava boas notas, mas era super discreta.
Estudava, mas no participava das aulas, evitava ao mximo falar. Tinha poucos
colegas, apenas uma se tornou sua amiga, uma moa extremamente
problemtica, depressiva. Conversam muito, mas Maria no fala de seus
problemas pessoais, uma conversa rasa, tem medo de que as pessoas
percebam que ela no se sente bem em sua pele, em seu corpo. Queria ser
invisvel, por isso procura sempre no chamar ateno. Tem sido assim desde
sua adolescncia: a me nunca foi uma mulher vaidosa, no usa maquiagem,
nem jias, no vai ao cabeleireiro. Sempre se arrumou sozinha, em casa e muito
discretamente; no gosta das mulheres que se mostram, como as cunhadas.
Maria s se permitiu ser mais vaidosa quando do contato com a tia, irm mais
nova de sua me, de quem tem uma significativa diferena de idade. Para Maria,
esta uma mulher batalhadora, estudou, formou-se na faculdade, casou-se.
Sempre trabalhou fora, ao contrrio da me, gosta de sair, viajar, se arrumar.
Passou a se espelhar nela, o que se deu quando da mudana para a capital. At
ento, tinha medo do espelho. Sua tia no sabe de seus ataques ao prprio corpo,
coisa compartilhada com a me e sabida pelo pai e irmos. , portanto, um tabu
familiar, ningum fala no assunto, todos compartilham em silncio essa dor.
Incompreensvel para Maria e os seus, isso teve incio aos treze anos, conforme
dito, quando de sua menarca. Um dia se viu mergulhada em uma angstia to
grande que comeou a se bater; no conseguiu ver-se no espelho ou o que viu,
no era ela. Passou a ter crises cada vez mais constantes e sempre se
mutilava. Enquanto as meninas saam, namoravam, ela ficava cada vez mais
em casa, trancada, chorando. S ia escola, missa ou saa acompanhada dos


108
pais e irmos. Os pais a levavam a mdicos que receitavam ansiolticos e
antidepressivos, conduta que durou por quase dez anos; estes proporcionavam
um certo alvio momentneo, mas as crises voltavam e ela tornava a se atacar.

No achava que os homens se interessariam por ela e foi ter o primeiro
namorado aos vinte anos, quando j estava na faculdade. Quando de seu
primeiro ano na faculdade, diante da insistncia de colegas, resolveu ir a uma
festa. Estavam num grupo, juntamente com alguns rapazes: tomavam cerveja e,
quando se dirigiu a um deles para pedir um pouco, este disse que no dava
bebida para mulher feia. Ela sabia do que ele estava falando, afinal, ela era a
diferente do grupo, a nica negra, inclusive, e demorou mais de um ano para
sair de casa novamente. Foi quando conheceu seu primeiro namorado, um cara
negro. Foi um namoro conturbado, era demasiadamente insegura, achava que ele
no devia ver nenhuma graa nela, que a traa. Ele era um cara que gostava de
sair, danar, era comunicativo, lembrava o seu pai. Esse namoro durou um ano,
com idas e vindas; fugia dele quando estava em suas crises e ele nunca percebeu
a sua doena. Nessa poca, usava um enxerto nos cabelos, para disfarar seus
ataques. Os encontros com esse rapaz a deixavam mais angustiada, no gostava
dele, no se sentia bem a seu lado, chegava a ter asco, nojo dele, de sua boca,
seu corpo. Entretanto, permanecia com ele. Achava que justificar o fato de no
ter um namorado, no sair de casa, etc., seria muito mais difcil do que manter
essa situao, por isso continuava. Esse namoro acabou quando ela flagrou o
rapaz com uma outra moa, conforme havia previsto (desejado). Aproveitou a
oportunidade para se livrar dele e no precisar dar maiores explicaes.

Tempos depois, encontrou seu atual namorado. Esto juntos h trs anos, fazem
planos de se casarem. Com este tudo diferente, sente-se bem, conversam, gosta
muito da famlia dele e, eles, dela. uma famlia unida, discreta, branca. No


109
incio do namoro, ela teve medo de no ser aceita pelos pais e irmos dele, mas
foi bem recebida. Atualmente, questiona se foi aceita por realmente gostarem
dela ou pelo fato de ser, naquela poca, uma universitria e ter uma condio de
vida melhor que a do namorado. Tambm fica se perguntando pelo fato de ele
ser branco: por que o namoro com o primeiro no deu certo? Ela nunca admitiu
para si mesma que era racista, mas nunca tinha se pensado interessada em um
negro. Era difcil estar com ele, no se sentia bem. Foi com ele que perdeu sua
virgindade, mais por insistncia e medo que por vontade. No queria que ele a
abandonasse, tinha medo de no conseguir um outro. A transa foi terrvel, sentiu
dores, queria que aquilo terminasse logo. Nas vezes seguintes, sempre tentava
desestimul-lo, inventava desculpas, etc. Com o atual diferente, mas isto
fruto de um longo processo, no qual esse rapaz comparece como algum
realmente interessado nela.

Aps um ano e meio de anlise, Maria deixou de arrancar os cabelos. Foi um
perodo difcil, entrecortado por crises onde se fazia sangrar, s vezes. No incio,
me descrevia seus ataques: estes se davam sempre em casa, geralmente noite,
na solido do seu quarto ou no banheiro. No sabe dizer o que a levava a isso,
sentia uma angstia sbita, bastante intensa e comeava a arrancar os cabelos,
arrancava at raiz, sangrava, fazia buracos, falhas em sua cabea, chorava
compulsivamente. O pai e os irmos nada diziam, a me vinha socorr-la. Este
era um segredo que pertencia a ambas, apenas. Era este sintoma que as mantinha
unidas. Foi atravs do cabelo que a me se fez presente em sua vida, desde a
infncia. Dividem esse segredo, dividem as estratgias utilizadas para escond-
lo, camufl-lo, disfar-lo. assim que ela se refere sua relao com sua me,
de uma intensa intimidade no que se refere ao seu cabelo e de nenhuma
intimidade no que se refere s outras coisas da vida. A me uma mulher fria,
distante, silenciosa. H todo um conflito devido raa, cor, pelo fato de a me


110
sempre ter falado o quanto era diferente do marido, de sua famlia. Procurou
criar seus filhos para que no fossem confundidos com aqueles meninos
pretinhos e mal educados que sempre v na favela ou nos bairros onde viveu. E,
para ela, o que mais marca uma mulher negra seu cabelo, a dificuldade para
conseguir arrum-lo. Sempre dizia a sua filha: tem de dar um jeito nisso,
enquanto penteava os cabelos dela. Sua cor, portanto, e seus cabelos so a marca
da diferena entre ela e sua me, diferena impossvel de ser aplacada. Quando
se olha no espelho, a me que Maria gostaria de ver e no a si mesma.

Ao longo de sua anlise, Maria vai revelando uma gama de lembranas e
vivncias de contedo racial: as muitas vezes em que foi xingada de macaca na
escola ou na rua. Certa vez deixaram uma banana em sua carteira, fazendo
aluso ao apelido. As inmeras referncias ao cec109, como sendo um cheiro
tpico das pessoas negras, os estgios e empregos que perdeu, ou deixou de
buscar, aos quais faz uma referncia racial. Em um deles, enviou o currculo, foi
chamada para uma entrevista e, quando a viram, disseram j terem preenchido a
vaga, no lhe dando a chance de se apresentar.

Para alm dos aspectos estruturais, Maria uma negra que, como tantos outros,
sofre de sua negritude. Negritude que a divide no desejo dos pais e na relao
com os irmos. A voz e o olhar maternos que marcam sua constituio trazem no
discurso o significante da brancura como o representante daquilo que tem valor,
enquanto atributo flico: a cor da pele, os cabelos, o comportamento. A me
rejeita em si as caractersticas negras, transmitindo Maria a decepo, o susto e
a rejeio por ser mulher (queria um filho homem) e negra: temos que um jeito
nisso, referindo-se aos cabelos crespos da filha.


109
Cec o diminutivo para catinga de criola: como a iniciao sexual dos rapazes do perodo escravocrata
brasileiro se dava com as escravas, em muitas situaes era o cheiro destas que os excitava, o cec.


111

Corpo e cabelos marcados pelo no reconhecimento materno: sem vaidade, sem
sensualidade, temendo ver-se no espelho, pois o que via, no era ela. A me
diz que negro favelado, mal educado, sujo, as mulheres que no se do ao
respeito. Deu aos filhos uma educao rgida, baseada na discrio. Viviam
aprisionados no lar, assim como mantinha presos os cabelos da filha. Maria
cresceu tendo vergonha e rejeitando o prprio corpo, com todas as marcas de
negritude que este porta: cor preta, cabelos crespos, lbios grossos, ancas largas.
sobre este corpo que a pulso far uma descarga agressiva: mutilar, arrancar os
cabelos at a raiz, sangrar, doer. Diante da impossibilidade de ser como a me,
sua dor que ser oferecida, seu sacrifcio dividido entre ambas: segredo
guardado, sofrimento partilhado, impossibilidade de eleio desse enquanto um
corpo-prazer.

Ela vai buscar alternativas: identificar-se com a tia, modelo de mulher mais
prximo que a me. O primeiro namorado, negro como seu pai, desperta desejos
incestuosos: teve horror, nojo e no suportou sua presena. Quanto ao atual,
branco, no traz essa ameaa inconsciente de transgresso, possivelmente por
estar de acordo com os ideais maternos.

Maria traz, em seu relato, inmeras situaes vividas cotidianamente por negros
neste pas. Ser discriminado, xingado, humilhado, negligenciado em sua
capacidade, reduzido a condio de objeto para o gozo do outro, tudo isso tendo
por base a cor da pele e outros traos fsicos, significantes encarnados,
incorporados e marcados em corpos e psiquismos de negros. Neusa Souza
(1991)110 faz um depoimento ilustrativo desta condio: Saber-se negra viver


110
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes de identidade do negro brasileiro em ascenso
social. 2.ed. Rio de J aneiro: Graal, 1991.


112
a experincia de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas
expectativas, submetida a exigncias, compelida a expectativas alienadas (p.
17-18).

Com relao ao cabelo, pela importncia individual, cultural e histrica que esse
tem na construo da identidade e da subjetividade negra e para enriquecer o
caso Maria, alguns dados de uma importante pesquisa merecem ateno. O
cabelo esta parte do corpo que investida, libidinalmente, e possui vrios
significantes. Recorro aqui ao extenso trabalho de pesquisa empreendido por
Nilma Lino Gomes (2002)111. O cabelo e a cor da pele servem de critrios
definidores do pertencimento tnico/racial dos sujeitos. No perodo escravista, o
tipo de cabelo e a tonalidade da pele serviam como critrios de classificao,
ajudava a definir a distribuio dos escravos nos trabalhos do eito, nos afazeres
domsticos, no interior da casa-grande e nas atividades de ganho. Sendo assim,
muitas vezes na relao senhor/escravo, esses dois elementos passaram a ser
usados como os principais definidores de padro esttico, referentes aos negros.
Com o fim da escravido e o incremento do processo de miscigenao, essa
situao se complexifica; o cabelo e a cor da pele ocupam um lugar cada vez
mais destacado dentre os sinais diacrticos escolhidos no campo da cultura para
classificar o negro dentro de um grupo racial ou dentro de uma etnia.

O cabelo no um elemento neutro no conjunto corporal, pois a cultura o
transformou em uma marca de pertencimento racial. No caso dos negros, ele
um sinal que marca a negritude no corpo, tornando-se um trao identitrio. Ele
revela a trajetria de vida de um sujeito, sua condio de existncia e o momento
vivido no interior de um determinado grupo social. Seu significado varia de


111
GOMES, Nilma Lino. Corpo e cabelo como cones de construo da beleza e da identidade negra nos sales
tnicos de Belo Horizonte. So Paulo: USP, 2002. (Tese de Doutorado).


113
acordo com a cultura, a classe social, idade, sexo, nacionalidade, contexto
histrico e poltico. Sendo assim, cortar, alisar, raspar, mudar o cabelo pode
significar no s uma mudana de estado dentro de um grupo, mas tambm a
maneira como os sujeitos vem a si mesmos e so vistos pelo outro. O cabelo
tambm porta um estilo poltico, de moda e de vida. Ele um veculo capaz de
transmitir diferentes mensagens, possibilitando as mais diferentes leituras e
interpretaes. Ainda segundo Gomes (2002)112, o cabelo a moldura do rosto
e um dos principais sinais a serem observados no corpo humano (p. 255).

Queiroz (apud Gomes, 2002)113 revela que, por ocasio dos ritos de passagem,
comum cortar ou raspar o cabelo, havendo tambm uma relao entre cabelo,
poder e potncia sexual: da rasp-los ou cort-los pode remeter um sujeito
castrao. No sistema escravista, a raspagem do cabelo era uma das muitas
formas de violncia imposta ao escravo, significando uma mutilao, uma vez
que o cabelo era considerado uma marca identitria e de dignidade para muitas
etnias africanas.

Pode-se, atualmente, pensar a manipulao do cabelo como um representante da
construo de uma estilizao e de uma esttica negra, geradas no contexto de
uma sociedade racista. Se aqui trago esses aspectos scio-historicos para
lembrar que, desde as tribos africanas, o cabelo um aspecto fundamental na
construo da subjetividade dos negros. O caso em questo e a pesquisa de
Nilma mostram-nos que esse processo se d, muitas vezes, sob o domnio da dor
e da desvalorizao deles. seu cabelo que Maria d-nos a ver, fenmeno
histrico por excelncia.



112
Op. Cit.
113
Op. Cit.


114
Algumas situaes vividas por negros e relatadas na clnica: uma mulher negra
diz que, sempre que algum bate sua porta, num bairro de classe mdia, e ela
atende, pergunta onde est a patroa. Um homem negro diz que, ao caminhar por
uma rua e cruzar com uma mulher, esta imediatamente segura sua bolsa, ou
muda de calada ou esconde suas jias, independente da forma como ele est
vestido (e ele geralmente est bem vestido). Uma criana negra est esperando
por seus pais porta de uma escola quando uma senhora passa e lhe d uma
moeda. Poderia prosseguir dando uma infinidade de episdios que ouo e vivo
diariamente, mas fiquemos por aqui.

A seguir, e para concluir este estudo, veremos quais so os traos do escravismo
que permanecem em nosso imaginrio e em nossa sociedade e como podemos
pensar formas e estratgias para suportar o mal-estar da advindos.


115
QUINTO CAPTULO

TRAOS DO ESCRAVISMO

Ainda que no existam raas, o racismo existe.
Albert J acquard

A escravido est inscrita no Brasil. Faz parte de nosso passado, presente e
futuro. Est presente em nosso cotidiano, atravs da religiosidade, de nossos
traos culturais. Entretanto, no se fala em raa ou, se fala, para se fazer calar.
Temos preconceito de ter preconceito
114
.

No Brasil, quando se fala em questo racial, comum pensarmos em negros:
como se apenas os negros tivessem a ver com raa. No conheo, aqui,
estudos que falem sobre a questo racial em brancos, tornando evidente que
aqui raa marca uma diferena: de classe, de gnero. Marcaria tambm uma
diferena psquica?

Fomos a ltima nao do mundo a abolir a escravido, o que se deu em 1888. O
trfico de escravos estava proibido desde 1850. Calcula-se em 4 milhes o
nmero de negros capturados na frica e trazidos para as terras brasileiras.
Destes, estima-se que 20% morriam durante a travessia do Oceano Atlntico.
Quando aqui chegavam, os negros eram despidos de seus traos identitrios,
separados de seus familiares, tratados como peas. Eram comercializados e
passavam a pertencer a seus senhores. Essa pertena tambm conferia a esses
senhores o bom uso de seu escravo: todo tipo de servio era feito por este, desde
o mais pesado, na agricultura, minerao e construo civil at o mais refinado


114
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. So Paulo: Difel, 1972.


116
como arte, artesanato, costura, sem falar nos servios domsticos e sexuais.
Trabalho era coisa de negro. No era incomum o senhor alugar, vender, trocar
ou emprestar sua pea. Mas os negros tambm resistiam escravido atravs
de fugas, rebelies, assassinatos de senhores ou retardando a produo,
roubando, saqueando, etc.

Da forma como foi concebida, a Abolio entrou para a histria como uma
ddiva do Imprio aos negros, desconhecendo a situao de escassez em que
estes viviam. Isso no verdade, pois os movimentos abolicionistas, que
contavam com a participao de muitos negros, j eram uma realidade, como
tambm movimentos liderados pelos prprios negros. Assim sendo, os libertos
foram lanados sua prpria sorte. O Estado e os senhores se desincumbiram de
proteger estes indivduos. Concomitantemente Abolio, o Brasil assistiu
queda do Imprio e ao advento da Repblica. O sculo XIX trouxe consigo as
teorias raciais, veiculadas atravs dos naturalistas que visitavam o pas _
Aimard, Agassiz, Gobineau, Spix e Martius _ todos encantados com nossas
belezas naturais, mas assustados com nossa miscigenao. Influenciados pelas
idias desses naturalistas, intelectuais brasileiros, preocupados com o progresso
da nao, introduziram esse mesmo pensamento em nossa sociedade. Assim,
vemos Nina Rodrigues, mdico baiano, defender a criao de cdigos penais
distintos para negros e brancos. Segundo ele, a inferioridade dos negros era fato
comprovado pela cincia evolucionista e a degenerescncia dos mestios era um
fato inquestionvel. A seu ver, a imigrao s aumentaria o nmero de
degenerados. Mas, Rodrigues deixa de ver o negro apenas como imagem das
discusses acerca dos males da escravido e passa a v-lo como objeto de
cincia. O foco central de suas anlises ser a miscigenao e a insero do
negro na sociedade: a mestiagem.


117
A Abolio trouxe conseqncias sociais para o Brasil. O incremento do
processo de urbanizao aumentou os problemas das grandes cidades, trazendo
para estas uma massa de indivduos que, encontrando poucas alternativas que
lhes garantissem uma melhor qualidade de vida, avolumaram-se nas ruas e nas
periferias, criaram favelas. A vadiagem, o alcoolismo e a sfilis tornaram-se
questes de segurana e sade pblica, e os negros estavam no centro desta
questo.

Um processo de medicalizao da sociedade foi implantado, com a medicina
voltando-se para o meio social, visando uma domesticao dos corpos. A
psiquiatria convocada a dar a sua contribuio, uma vez que, tanto o
alcoolismo quanto a sfilis traziam graves conseqncias psquicas e distrbios
sociais. Por iniciativa de um grupo de intelectuais, criada a Liga Brasileira de
Higiene Mental, com o propsito de melhorar a assistncia aos doentes mentais,
incentivando a preveno e a educao dos indivduos.

Essa proposta da Liga estava baseada na noo de eugenia, importada da Europa
e impregnada de uma ideologia racista e discriminatria. Para os eugenistas, o
branco (europeu) era o melhor exemplar da espcie humana, o que chocava com
a composio racial brasileira. Adaptada aos trpicos, essa teoria contribuiu para
formular a tese de que um processo de branqueamento era fundamental para o
progresso da nao. Nesse caso, a figura do negro portava os traos da
degenerao hereditria, o que vem marcar no s o imaginrio como tambm o
cotidiano destes indivduos, pois: preto parado suspeito, correndo ladro
(Reis Filho, 2000)
115
.



115
REIS FILHO, J os Tiago. Ningum atravessa o arco-ris; um estudo sobre negros. So Paulo: Anna Blume,
2000.


118
A miscigenao passa, de motivo de vergonha e erradicao no sculo XIX e
comeo do sculo XX, categoria de orgulho nacional, nos anos 1930, com
Gilberto Freyre
116
. Sua obra, de grande impacto e influncia na nossa cultura,
traz a defesa da miscigenao e do sucesso da colonizao portuguesa nos
trpicos, fazendo surgir o nosso mito da democracia racial, ou seja, a crena na
ausncia de preconceito e discriminao em nossa sociedade. Aqui conviveriam,
harmoniosamente, todos os povos e raas e um exemplo disso seria a capacidade
de os brasileiros transformarem em cones culturais, elementos antes
desvalorizados, tais como o samba, a capoeira, o futebol, etc. e a possibilidade
de mobilidade social. O que o autor no pde perceber era o fato de o mito da
democracia racial servir de mscara para nossa situao de extrema
desigualdade, disfarando-a, e tambm encobrindo uma diviso cultural e
econmica. A relao senhor/escravo , segundo Freyre, o principal
antagonismo que marca a sociedade patriarcal brasileira, entretanto, a
miscigenao, o contnuo de cor e o branqueamento no vo ser problematizados
por ele em sua obra.

Nos anos 1950, surge uma nova corrente de intelectuais progressistas que
criticam os postulados bsicos da democracia racial, destacando-se Florestan
Fernandes e seus colaboradores, Octvio Ianni e Fernando Henrique Cardoso.
Para essa corrente de pensamento, a desigualdade social entre brancos e negros
no Brasil devia-se ao processo de industrializao, urbanizao e seu impacto
sobre a estratificao social. As idias desses pensadores ainda tm um grande
impacto nos estudos sobre a questo racial, pois a excluso econmica dos
negros, sendo a mais evidente, revela e ao mesmo tempo esconde uma questo


116
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formao da famlia brasileira sob o regime de economia
patriarcal. 23.ed. Rio de J aneiro: J os Olympio, 1984.


119
de poder. Assim, durante sculos, a herana cultural e a tradio dos negros
foram negadas, tornando-se motivo de vergonha, ao invs de honra.

Durante o regime militar (1964-1979), a produo intelectual sobre a questo
racial fica praticamente nula, vindo a ressurgir nos anos 1980 sob a forma de um
momento de transio com pesquisas e publicaes a esse respeito. quando
tambm assistimos a alguma produo psicanaltica sobre a questo
117
. J que a
via econmica, tomada enquanto um sintoma, revela e oculta uma situao,
apresento, em primeiro lugar, aquilo que nos revelado por ela para, em
seguida, articul-la ao que ocultado.

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios - PNAD (IBGE
1998)
118
, que tem por funo traar um perfil scio-econmico da populao
brasileira, mostra-nos que o miolo de nossa pirmide social vem sendo
aumentado por famlias vindas da base, o que vem demonstrar uma mobilizao
social ascendente em nosso pas.

Numa classificao em cinco categorias, esse miolo a terceira, tambm
chamada classe C. constituda por praticamente um tero de nossa populao,
por famlias cuja renda mensal lhes possibilita o acesso a alguns bens antes
acessveis apenas classe mdia: eletrodomsticos, telefone, computador,
automvel, etc. Essa mobilizao fruto do intenso processo de urbanizao e
da entrada da mulher no mercado de trabalho, ocorridos a partir da dcada de
1960, que acarretou mudanas no padro familiar e diminuio do nmero de
filhos.



117
Gostaria de destacar os trabalhos de J urandir Freire Costa, Neusa Santos Souza, Izildinha Baptista Nogueira.
118
Veja, 30/09/1998.


120
nessa categoria que vamos encontrar a grande maioria dos negros da classe
mdia, o que demonstra, ao longo dos anos, a imensa desigualdade social
presente em nossa sociedade. O Brasil um dos pases com a pior distribuio
de renda do mundo, ficando atrs, at mesmo de alguns pases latino-americanos
e africanos nesse quesito. Aqui, metade da populao negra e, se apenas 5%
pertencem s classes mdias, vemos o quanto marcante essa desigualdade.
Temos 30 milhes de pessoas em estado de misria e, pelos dados anteriormente
mencionados, a grande maioria desses miserveis negra, ou seja, continuam
sendo a base de nossa pirmide social. O PNAD mostra que um, em cada trs
negros, no sabe ler nem escrever aos dez anos de idade. Em termos de salrio,
um negro ganha, em mdia, 87 dlares por ms, os pardos chegam a ganhar 100
dlares - menos da metade do que recebem os brancos. Os negros detm,
tambm, os maiores ndices de desemprego e de subemprego. A situao de
pobreza afeta a populao como um todo, fazendo com que, no Brasil, 47% dos
trabalhadores possuam renda igual ou inferior a um salrio mnimo; porm, na
base da nossa pirmide social esto 38,1% dos brancos, 57,8% dos pardos e 63%
dos negros.

Numa pesquisa realizada em um dos ncleos universitrios da PUC-Minas,
verifiquei (Reis Filho, 2004)
119
que os negros so a apenas 2% dos estudantes e
1,5% dos professores. A mdia de funcionrios, excluindo desta categoria os
professores, relativamente superior. Os de categoria operacional _ porteiros,
agentes de segurana, faxineiros (em sua grande maioria, negros) _ so
terceirizados. Esse nmero inexpressivo, 2% dos alunos, no diferente em
outras Universidades do pas. Aqui cabe lembrar que os dados estatsticos
variam de acordo com a Instituio, mas sem geral, a variao vai de 1 a 4%, o


119
REIS FILHO, J os Tiago. Um perfil do universitrio negro da PUC Betim. Psicologia em Revista, v. 10, n.
15, jun. 2004: 139-143.


121
que permanece demonstrando a excepcionalidade do fato. Tambm verifiquei
que esses alunos tm extremas dificuldades para permanecerem na
Universidade, dado o estado de carncia em que vivem, mesmo sendo, esses
universitrios negros, aqueles que tm acesso ao progresso social. O abismo que
separa os privilegiados dos demais vem se perpetuando ao longo do tempo, pois
as mazelas sociais recaem sempre sobre uma mesma populao.

Essa ideologia de que a questo do negro um problema de classe social o que
os dados demonstram de forma a no deixar dvidas est implantada de forma
consistente em nosso meio, a ponto de ouvirmos depoimentos como esse: se a
Izabel Fillardis (atriz) aparecer chiqurrima numa novela, no h preconceito; o
novelista Gilberto Braga (2001)120 diz que o problema do preconceito se refere
pobreza e no ao fato de ser negro, homossexual, portador de necessidade
especial, etc. O que este depoimento oculta o fato de ter precisado decorrer
quase cinqenta anos da implantao da televiso no Brasil para que
personagens negros tivessem alguma visibilidade, conforme veremos adiante.

Esses dados ilustram bem o fato de a cor ser um critrio fundamental na
produo das desigualdades sociais no Brasil. Tambm convivemos com um
critrio de classificao segundo a cor que relacional, ou seja, as pessoas so
classificadas e se autoclassificam em um contnuo que vai do mais claro ao
mais escuro. H uma dificuldade das pessoas se declararem negras ou pretas
por causa dos efeitos da ideologia do branqueamento que, aliada nossa
miscigenao, faz com que os negros afastem, de diversas formas, as referncias
sua origem africana, dificultando a construo de uma identidade tnico/racial.
No censo demogrfico do IBGE, de 1980, foram utilizadas 136


120
Conexo Roberto Dvila. So Paulo: TV Cultura, 02/11/2001.


122
expresses de classificao
121
, o que fez com que nos anos seguintes, inmeras
campanhas fossem realizadas com o intuito de minimizar essa confuso.

A in-visibilidade do negro

De acordo com Souza (1990)
122
, o ideal de eu do negro brasileiro branco, o
que quer dizer que a imagem corporal do negro forjada semelhana do
branco, tornando opaca a questo da negritude. Assistimos, a partir do sculo
XIX, o desenvolvimento de um projeto de nao no qual a figura do negro
destoava. A contnua excluso, aliada a um espelho opaco, torna difcil, e por
vezes at mesmo impossvel, ao negro realizar seu ideal, pois em nosso
imaginrio, o negro visto atravs de um mito. Um mito uma narrativa que
tem um carter de fico. Esta fico tem uma estrutura que traz consigo uma
mensagem, a verdade, o que equivale a dizer que toda verdade tem uma estrutura
de fico. O mito tambm possui um carter de inesgotabilidade. Esse mito,
segundo Souza, foi construdo com base em imagos fantasmticas de
esteretipos dos negros compartilhados socialmente. Alguns destes esteretipos
so a superpotncia sexual, o exotismo, o ruim, o feio, o irracional, o sensitivo e
o sujo, associados cor negra; esteretipos que deram origem a um discurso
sobre o psiquismo do negro no Brasil associando, a estes, traos de
periculosidade, incompetncia e asco
123
.

Esse processo desencadeou uma forma de ver (ou de no ver) o negro. Por
exemplo, um negro, profissional liberal, procura um mdico clnico geral, pois


121
Ver, a esse respeito: MOURA, Clvis. Sociologia do negro brasileiro. So Paulo: tica, 1988.
122
Souza, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes de identidade do negro brasileiro em ascenso social.
2.ed. Rio de J aneiro: Graal, 1991.
123
Ver, a esse respeito: REIS FILHO, J os Tiago. Ningum atravessa o arco-ris: um estudo sobre negos. So
Paulo: Anna Blume, 2000: 47-59.


123
estava sofrendo de um problema de impotncia. Ao ouvir esse depoimento, o
mdico ficou perplexo e, no sabendo o que fazer encaminhou-o para um colega,
pois disse nunca ter imaginado a possibilidade de um negro ter problemas
sexuais; o mito da superpotncia a se apresenta.

A idia esttica vlida em nosso pas contrasta com aquela que vemos
cotidianamente, gerando a criao do extico, a partir de um olhar mope sobre
nossa diversidade. O extico formado por imagens produzidas e veiculadas
pela mdia, acompanhadas de seu carter de dubiedade e dissimulao, tornando
a diferena uma perverso, pois faz uma ponte entre o normal e o ridculo ou,
muitas vezes, absurdo. Geralmente, os exticos assimilam a caricatura de si
mesmos (Mussum, Vera Vero, Tiririca, Lacraia, J acar, Tio Macal, so
alguns exemplos). Assim, o negro ou torna-se, intelectualmente frgil,
esteticamente inferior e de carter duvidoso.

At os primeiros anos do sculo XX, nossa imagtica era criada, principalmente,
atravs da imprensa, tendo tambm sido difundida via teatro e cinema. A partir
dos anos 1950, com a chegada da televiso, tanto a criao dessa imagtica
quanto sua divulgao, tornaram-se produto de grande impacto por causa de seu
enorme poder de penetrao domiciliar, o que pode ser constatado at hoje.
Falaremos disso adiante.

Historicamente, os veculos de comunicao tm apresentado argumentos para a
no incluso de negros em comerciais e demais produtos da mdia: negros no
so consumidores, pois so pobres; os clientes no aceitam a incluso de negros;
os produtos da mdia refletem a sociedade e se esta racista... Essa tendncia
tem sofrido mudanas nos ltimos anos, principalmente em decorrncia de
pesquisas que apontam para o aumento de negros consumidores no mercado.


124

No que diz respeito Imprensa, assistimos criao de revistas, jornais,
cadernos ou sees especializados na questo racial; essa atitude foi alavancada
pelo enorme sucesso editorial da revista Raa Brasil
124
, um fenmeno pois, at
setembro de 1996, no existia uma revista dedicada a negros. A revista causou
enorme discusso nos setores especializados. Taxada de racista, preconceituosa,
sobreviveu graas ao grande volume de fascculos vendidos mensalmente. No
primeiro editorial, Aroldo Macedo (1996) enuncia:

Raa Brasil nasceu para dar a voc, leitor, o orgulho de ser negro.
Todo cidado precisa dessa dose diria de auto-estima: ver-se
bonito, a quatro cores, fazendo sucesso, danando, cantando,
consumindo. Vivendo a vida feliz... todos os meses, Raa Brasil vai
falar de nossos problemas e apresentar solues. Vai ajuda-lo a se
cuidar melhor, a viver com mais alegria e segurana. Vai tambm
discutir nossa identidade, resgatar nossa herana cultural e mostrar
que a negritude alegre, rica, linda. Estaremos atentos para o
preconceito, mas, acima de tudo, queremos afirmar nossas
qualidades.

Pelo editorial, percebe-se que a revista nasceu com a pretenso de elevar a auto-
estima dos negros; trazendo reportagens diversas sobre o universo da negritude
no Brasil: beleza, moda, comportamento, lazer, gente, culinria, etc. Seria
apenas mais uma revista, como dezenas de outras que circulam semanalmente
pelas bancas de todo o pas, no fosse essa dedicada a um pblico exclusivo.


124
Raa Brasil, ano 1, n 1, set. 1996.


125
No resta dvida tambm que a revista no dedicada a todo e qualquer negro,
mas sim queles com poder de consumo.

Apesar disso, no se pode negar que o fato de haver uma revista dedicada aos
negros mesmo que priorizando os de classe mdia possibilita um avano na
discusso das nossas relaes raciais, trazendo um pouco mais de visibilidade
questo. A essa, outras publicaes surgiram e tambm, sees em jornais, para
falarmos em mdia impressa.

Entretanto, no Brasil, a televiso continua a ser o maior veculo de comunicao
e lazer de nossa populao, tem a melhor produo artstica e de entretenimento
do planeta, exporta cultura e informao. A telenovela e o telejornal so os
programas de maior audincia e sucesso junto ao pblico e tambm os produtos
que incrementaram seu desenvolvimento. De acordo com J oel Zito Arajo
(2000)
125
, os negros sempre fizeram parte da telenovela e de todos os gneros
da fico televisiva produzida no Brasil (p. 19); entretanto, a televiso, ao
longo de sua histria, ofereceu poucas oportunidades aos negros.

O enfoque racial que ela fornece o resultado da incorporao da ideologia do
branqueamento ao mito da democracia racial. Conforme Arajo (2000)
126
,
apesar de toda a luta da populao negra brasileira, esta ainda no conseguiu
produzir imagens e programas reveladores de seus valores e experincias. Em
seu gnero mais bem sucedido, a telenovela, assistimos a algo no mnimo
curioso: aps cinqenta anos de telenovelas, apenas duas apresentaram famlias
negras de classe mdia. Os negros so apresentados, geralmente, em papis
estereotipados e j clssicos. A televiso uma grande divulgadora dos


125
ARAJ O, J oel Zito. A negao do Brasil: o negro na telenovela brasileira. So Paulo: Senac, 2000.
126
Op. cit.


126
esteretipos criados para os negros ao longo da histria: a me preta, mamie,
mulher negra, gorda, grande, de vontade forte, irritvel e ao mesmo tempo
amvel, dcil. A empregada domstica que, ou entra muda e sai calada ou
amiga da famlia, tambm dcil, servil. Nesse campo, tambm esto os homens:
fiis, companheiros, moleques de recados, jagunos, malandros ou Pai J oo,
similar me preta.

Claro que a TV tambm reservou aos negros outros papis: profissionais
liberais, executivos, empregados de grande importncia para a trama, etc., mas
estes foram to inexpressivos em termos de nmeros, porcentagem, que chegam
a pesar pouco na quantificao final. Mesmo em tramas onde vemos que caberia
a presena de um negro, esta foi colocada em segundo plano, como, alis,
acontece com os negros aparecem na tela, na grande maioria das vezes. A
telenovela traz a imagem do branco como ideal de beleza e a classe mdia como
ideal de consumo, e, nessas, o negro quase nunca aparece ou por destoar de seu
ideal ou pelo suposto no pertencimento a essa classe mdia. Por outro lado, os
atores morenos tambm no podem usufruir de sua suposta vantagem sobre os
negros, visto que a eles tambm no so dados papis de relativa importncia.

De um modo geral, aos atores negros so reservados os personagens sem ao,
ou quase; personagens passageiros, decorativos, que compem o espao
domstico ou da realidade das ruas, em especial das favelas e vilas. Claro que
assistimos a mudanas nessa perspectiva, mas, em geral, o racismo brasileiro
representado da mesma forma em que ele aparece na sociedade, como um tabu
sempre escamoteado no discurso oficial e privado dos brasileiros (Arajo,
2000: 309)127. A atriz Ruth de Souza ilustra bem este fato:


127
Op. cit.


127

Os autores vem o negro como servial... As histrias se
desenvolvem em cima dos personagens brancos, e o negro no tem
vez... (p. 90).

A necessidade de sobrevivncia e a possibilidade de trabalho faz com que os
atores aceitem esses papis, mesmo quando oferecem poucas chances
dramatrgicas. Mas, como conclui Arajo, estamos longe de vermos na TV
dolos negros com o mesmo destaque que vemos no futebol e na msica, espaos
privilegiados e, durante muito tempo, quase exclusivos de visibilidade dos
negros. At por que, alguns grandes dolos do futebol e da msica relatam
inmeros episdios de preconceito e discriminao vividos por eles, dentro e
fora do pas. Isto no regra geral, principalmente em se tratando do futebol,
que a maioria dos dolos no fala sobre o assunto, por considerarem irrelevante.
Talvez muitos acreditem que o fato de terem fama e fortuna os livre do
preconceito. Ronaldinho Fenmeno, quando perguntado por que raspava seus
cabelos disse que era pelo fato de eles serem ruins e, quando sua famlia foi
discriminada no condomnio onde vivia, ele no fez nenhuma referncia
questo racial, fazendo silncio sobre o episdio. Muitos se vem presos no mito
de que todo negro rico um mulato, e todo mulato pobre um negro, naquela
suposio de que o dinheiro, assim como a educao clareia.

Atletas atuantes em pases estrangeiros relatam situaes de discriminao e
preconceito vividas por eles, vindas principalmente da torcida adversria. Eles
tm reagido diante dessas situaes, criando mecanismos de represso ao
racismo, a exemplo do que vem sendo feito em clubes europeus. Quando h
situaes de racismo e discriminao contra atletas negros, os clubes so
penalizados com multas. Essas so insignificantes, financeiramente falando, mas


128
trazem a questo racial para os tablides dirios. Artistas costumam se
pronunciar com mais freqncia com relao ao racismo, pois muitos so
discriminados pela forma como se comportam, se vestem, etc.

Hasenbalg (1979)128 nos fala dos efeitos da ideologia da democracia racial nos
negros, semelhante ao credo liberal da igualdade de oportunidades: a
conseqncia da negao do preconceito e da discriminao a de trazer, para o
primeiro plano, a capacidade individual dos membros do grupo subordinado
como causa de sua posio social, em detrimento da estrutura de relaes
intergrupais. Assim, a responsabilidade pela sua baixa posio social contribui
para o sentimento de inferioridade dos negros. Por outro lado, essa maior
penetrao dos negros na mdia e setores antes restritos quase exclusivamente a
sujeitos brancos, no s fruto de uma fatia do mercado consumidor.

queles que acreditam que a questo racial uma questo de classe social, faz
pensar em duas conseqncias da aceitao da mitologia racial:

1. As manifestaes de preconceito contra os negros so atribudas
diferena de classes. Assim, quaisquer que possam ser as desigualdades
entre brancos e negros, elas no so o resultado de consideraes raciais,
mas advm da classe e da baixa posio social dos negros;

2. A ideologia racial produz um senso de alvio entre os brancos, que podem
se isentar de qualquer responsabilidade pelos problemas sociais dos
negros. Por outro lado, a escravido tambm deixou como herana o
exerccio da superioridade do lado de quem tem algum poder sobre quem


128
HASENBALG, Carlos. Discriminao e desigualdades raciais no Brasil. Rio de J aneiro: Graal, 1979.


129
no tem nenhum. Exemplo tpico a frase: Voc sabe com quem est
falando?.

Isto talvez explique o fato de o novelista Gilberto Braga poder fazer aquela
declarao, de que o problema do preconceito se refere pobreza e no ao fato
de ser negro, homossexual, etc. Ele nunca deu importncia aos negros em suas
produes e parece no se sentir constrangido por isto. A novela brasileira de
maior sucesso no exterior a estria de uma escrava branca, curiosamente uma
adaptao de um romance realizada por este mesmo autor. Em outras produes,
tambm h a escolha de atores brancos, ou quase, para personagens negros, com
a alegao de que os negros no so bons o bastante para interpretar personagens
difceis (sic?).

O pior quando o prprio negro introjeta essa perspectiva, sente-se inferior,
medocre. A mdia, mesmo dando um espao ainda considerado pequeno aos
negros, mostra-nos que este est na moda! Mas, ao que assistimos? O que vemos
uma valorizao da imagem e no um reconhecimento da obra. Ambos so as
faces do narcisismo, uma ligada vaidade, e a outra ligada ao orgulho. A
vaidade a qualidade do que vo, ilusrio, instvel; uma vontade de atrair a
admirao, ligada imagem pblica. O orgulho um sentimento de dignidade
pessoal, veiculado pelo reconhecimento do prprio valor e do valor de sua obra.
A televiso, na maioria dos casos veicula e cultiva a vaidade.

Pelo que foi exposto anteriormente, vamos pensar a questo do negro no Brasil
articulada em duas vertentes: uma objetiva e a outra subjetiva. Com relao
vertente objetiva, torna-se necessrio tratar-se da cidadania, e essa implica em
direitos e deveres comuns a todos os indivduos. Retomo aqui algumas


130
consideraes de Eric Laurent (1999)
129
sobre o analista cidado, pois cidadania
traz em si a noo de democracia. A psicanlise, por ser uma disciplina calcada
no discurso e na livre associao, prescinde de uma sociedade democrtica para
o seu exerccio e os analistas podem incidir, com sua escuta, sobre essa mesma
sociedade.

O analista cidado participa intervindo sobre as formas de desrespeito ou de
falta de respeito aos direitos de cidadania, contribuindo para que, toda vez que se
tentar erigir um ideal, denunciar a promoo destes e de outros, apontando para
o fato de novos ideais no serem a nica alternativa. A democracia, assim como
o lao social, frgil por que so baseados em crenas. Crenas so fices e
tm, portanto, estrutura de verdades. Conhecendo as fices, pode-se trabalhar
para que estas no se tornem fixes, efeitos de grupo, prprios de qualquer
organizao social.

A luta permanente de setores organizados
130
, buscando dar maior visibilidade ao
negro e questo racial no Brasil, tem contribudo com algumas propostas e
alternativas para curar essa ferida social. Uma dessas propostas a implantao
das aes afirmativas, que servem de referncias para a implantao de polticas
pblicas para a populao negra, pelo governo brasileiro. Aes afirmativas so:

Medidas especiais e temporrias, tomadas ou determinadas pelo
Estado, espontnea ou compulsoriamente, com o objetivo de
eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a


129
LAURENT, Eric. O analista cidado. Curinga, n13, set. 1999.
130
A Frente Negra Brasileira, dos anos 1930; o MNU, Movimento Negro Organizado; o Teatro Experimental do
negro; o Grupo Olodum; a Casa Dandara; Coletivo de Mulheres Negras Geleds; Coletivo de Mulheres negras
- NZinga; SOS Racismo; Secretaria Especial para Assuntos da Comunidade Negra; os diversos grupos de
capoeira, Umbanda, Candombl, Escolas de Samba, comunidades quilombolas, etc. so alguns de nossos
grupos.


131
igualdade de oportunidades e tratamento, bem como de compensar
perdas provocadas pela discriminao e marginalizao, decorrentes
de motivos raciais, tnicos, religiosos, de gnero e outros. Portanto,
as aes afirmativas visam combater os efeitos acumulados em
virtude das discriminaes ocorridas no passado (GTI, 1997)
131
.

Essa expresso, ao afirmativa, foi utilizada pela primeira vez em 1961, nos
Estados Unidos, por um oficial negro americano: um conceito que indica que,
a fim de compensar negros, mulheres e outras minorias em desvantagens
decorridas da discriminao sofrida no passado, recursos sociais tais como
empregos, educao, moradia, etc. devem ser distribudos, de forma a promover
o objetivo social final que a igualdade. A ao afirmativa mais do que o
combate discriminao, pois implica em levar em conta a cor como um critrio
fundamental na produo das desigualdades. Sendo assim, o Estado estabelece
preferncias para negros, mulheres ou membros de outras minorias tnicas. A
raa s um dos critrios: um candidato negro de baixa capacidade no pode
substituir um candidato branco de alta capacidade. Mas, no caso de competio
entre dois candidatos de capacidade mais ou menos igual, um branco e outro
negro, de acordo com os critrios da ao afirmativa, o candidato negro teria
preferncia sobre o branco.

A poltica das cotas, ou seja, a reserva de um percentual de vagas para
determinadas categorias, em empresas, e instituies, como forma de garantir o
acesso de pessoas historicamente discriminadas, s um dos aspectos da poltica
de ao afirmativa. Elas no so eternas, elas duram o tempo necessrio para
atingir a igualdade, devendo ser empregado tambm no campo do trabalho.


131
GRUPO INTERMINISTERIAL PARA A VALORIZAO DA POPULAO NEGRA. Ao Afirmativa.
In: Ministrio da Justia: Realizao e perspectivas. Programa Nacional de Direitos Humanos. Braslia:


132
Segundo seus defensores, para reverter uma situao politicamente indecente,
adota-se uma ao moralmente correta.

Mesmo reconhecendo a necessidade de criao de alternativas no campo das
polticas pblicas, visando a melhoria da qualidade de vida e sade dos negros, a
implantao de aes afirmativas como o sistema de cotas pode ser uma faca de
dois gumes, por se correr o risco de congelar o negro numa posio de escravo,
a exemplo do que ocorreu com a Lei urea. Se a cidadania passa pelo acesso a
bens de uso e consumo (educao, sade, trabalho, moradia, lazer), esse acesso
deve ser possibilitado com uma modificao nas formas de distribuio de renda
e no com privilgios.

O Brasil o pas que mais possui ONGs (Organizaes No Governamentais) do
planeta e a maioria delas visam a promoo da sade e do bem estar. Ao mesmo
tempo, temos a pior distribuio de renda mundial, o que faz aumentar a poltica
dos privilgios e a concentrao do poder nas mos dos mesmos.

Um sistema de cotas pode sofrer as vicissitudes da ideologia do branqueamento,
tendo como balizadores o nosso contnuo de cor, no qual o mulato ou moreno
teriam prevalncia sobre os negros. Como se pode ver, no cotidiano, quanto
mais prximo do ideal de brancura, mais oportunidades o sujeito tem,
principalmente no mercado de trabalho, em funes onde o fentipo negro
visto como indesejvel: geralmente em postos de maior visibilidade. O outro
balizador a dificuldade de sujeitos negros se verem como tal. Nas recentes
tentativas de implantao da poltica de cotas nas universidades, assistimos
vrios indivduos se declarando negros. Se, primeira vista, isso pode ser um


Ministrio da J ustia, anexo IV, 1997. (Mimeo).


133
aspecto positivo no sentido da conscientizao acerca da identidade tnico-
racial, pode ser tambm um oportunismo de muitos, buscando, dessa forma, a
insero na nossa pequena parcela de privilegiados.

Outro aspecto a manuteno do negro numa atitude de eterna vitimizao, com
seu choro, seu lamento. Cidados no lamentam; reivindicam o respeito a seus
direitos. Desescravizar os negros torna-se um desafio a ser enfrentado por toda a
sociedade.

A vertente subjetiva desta questo diz respeito escravido psquica. Aqui,
samos do mbito do coletivo, sem deix-lo de lado, para a dimenso do
particular. O negro tem que se haver com um corpo historicamente marcado pelo
escravismo. Ele faz parte de uma sociedade que no o v, no o aceita. Isso o faz
se sentir como que invisvel aos olhos dos outros e, decorrente desta atitude, o
prprio negro vem rejeitar seu corpo. Em muitos casos o negro, ele prprio, se
discrimina, tendo dificuldades de aceitar a cor de sua pele, seu cabelo crespo,
seu nariz largo, seus lbios grossos...

Um trabalho de conscientizao e cidadania do negro deve se direcionar no
sentido de lev-lo a conviver com o seu corpo: corpo que encerra a possibilidade
de ser imaterializado pelo enxerto do vu imaginrio e da palavra. O sofrimento
ligado imagem do corpo prende-se ao fato de que essa imagem estruturada,
fundamentalmente, na dependncia do olhar do Outro. O negro sente que no
est conforme ao que o olho do Outro espera dele, percebe-se exposto sob um
olho mau e, conseqentemente, torna-se reduzido imobilidade e ao silncio.
Como tem experincia de no ser ouvido, sua palavra torna-se desajeitada,
intimidada pelo temor de gaguejar, de no saber se expressar. Sabendo-se um
mal articulador da palavra, prefere esconder-se no silncio, para no correr o


134
risco de fazer ouvir para alm daquilo que a palavra poderia fazer escutar a
dimenso do inaudito, prpria do inconsciente.

Para concluir, assim como Lacan prope a estrutura do n borromeano para se
pensar a estrutura do psiquismo com as instncias do Real, do Simblico e do
Imaginrio, proponho o mesmo n no que diz respeito questo racial no Brasil:
as trs raas constituintes de nosso povo (ndio, negro e branco) se articulariam
em n. Do entrelaamento do ndio com o branco, surge o mameluco; do branco
com o negro, o mulato e do negro com o ndio, o cafuzo. O que amarra os trs
ns o objeto a, em suas vertentes de causa de desejo e mais gozar. com o que
advm desta amarrao que temos que nos haver.

Uma anlise, levada ao seu fim, deve conduzir o analisante ao estado de angstia
surgida da ameaa do encontro com o Outro e ento atravess-la. Essa travessia
ocorre quando uma palavra, um acontecimento, um gesto ou um silncio, uma
revelao do analista ou surgida ao acaso, faz o analisante compreender que
pode aceitar perder. Aceitar perder parte de algo que estar sempre perdido, a
iluso do todo. A escuta de um sujeito negro deve lev-lo at o ponto em que
diga: Basta! Quero falar de outra coisa. E ao analista cabe no recuar diante da
negritude, pois a travessia deste fantasma possvel.


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