Este documento apresenta uma tese de doutorado sobre negritude e sofrimento psíquico no Brasil, analisada sob a perspectiva da psicopatologia fundamental e da psicanálise. O trabalho discute como a questão racial no Brasil pode ser entendida como um sintoma social e individual que causa sofrimento psíquico para os negros. Além disso, aborda conceitos como "escravo psíquico" e os traços do escravismo presentes na sociedade brasileira e nos sujeitos negros. O objetivo é reflet
Este documento apresenta uma tese de doutorado sobre negritude e sofrimento psíquico no Brasil, analisada sob a perspectiva da psicopatologia fundamental e da psicanálise. O trabalho discute como a questão racial no Brasil pode ser entendida como um sintoma social e individual que causa sofrimento psíquico para os negros. Além disso, aborda conceitos como "escravo psíquico" e os traços do escravismo presentes na sociedade brasileira e nos sujeitos negros. O objetivo é reflet
Este documento apresenta uma tese de doutorado sobre negritude e sofrimento psíquico no Brasil, analisada sob a perspectiva da psicopatologia fundamental e da psicanálise. O trabalho discute como a questão racial no Brasil pode ser entendida como um sintoma social e individual que causa sofrimento psíquico para os negros. Além disso, aborda conceitos como "escravo psíquico" e os traços do escravismo presentes na sociedade brasileira e nos sujeitos negros. O objetivo é reflet
Este documento apresenta uma tese de doutorado sobre negritude e sofrimento psíquico no Brasil, analisada sob a perspectiva da psicopatologia fundamental e da psicanálise. O trabalho discute como a questão racial no Brasil pode ser entendida como um sintoma social e individual que causa sofrimento psíquico para os negros. Além disso, aborda conceitos como "escravo psíquico" e os traços do escravismo presentes na sociedade brasileira e nos sujeitos negros. O objetivo é reflet
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JOS TIAGO DOS REIS FILHO
NEGRITUDE E SOFRIMENTO PSQUICO
uma leitura psicanaltica
Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica PUC SP
So Paulo 2005
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica Ncleo de Psicanlise Laboratrio de Psicopatologia Fundamental
JOS TIAGO DOS REIS FILHO
NEGRITUDE E SOFRIMENTO PSQUICO uma leitura psicanaltica
Tese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutor em Psicologia Clnica sob orientao do Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck.
So Paulo
2005 2 FOLHA DE APROVAO
Orientador Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck
Prof. Dr.
Prof. Dr.
Prof. Dr.
Prof. Dr. 3
AGRADECIMENTOS
Agradeo ao Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck, pela orientao deste trabalho e por ter acreditado em sua possibilidade. Aos colegas do Laboratrio de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP; A CAPES e a PUC-Minas; A Fernando Bueno e Anglica Pompilho, por me mostrarem o avesso do avesso. A Oscar Cirino e Slvia Foscarini, grandes companheiros. A Vanessa Santoro, pela travessia. Ao pessoal de casa. 4
DEDICATRIA
Quem foi que disse que eu escrevo para as elites? Quem foi que disse que eu escrevo para o bas-fond? Eu escrevo para a Maria de Todo o Dia. Eu escrevo para o J oo Cara de Po. Para voc, que est com este jornal na mo... E de sbito descobre que a nica novidade a poesia, O resto no passa de crnica policial-social-poltica. E os jornais sempre proclamam que a situao crtica!. Mas eu escrevo para o J oo e a Maria, Que quase sempre esto em situao crtica! E por isso as minhas palavras so quotidianas como o po nosso de cada dia E a minha poesia natural e simples como a gua bebida na concha da mo.
Mrio Quintana
5 RESUMO
A questo dos negros no Brasil aqui discutida como sintoma social e individual, que traz, para o sujeito que porta o atributo cor negra, um sofrimento psquico. A partir dos pressupostos da psicopatologia fundamental, como uma proposta de leitura das crises psquicas, que ocorrem diante de um excesso, e do conceito de analista cidado, ou seja, deste psicanalista que se insere na sociedade e nela intervm com o seu dizer, apontando para desmontar as fices e possibilitar aos sujeitos o desprendimento das fixes. Importante aqui o conceito de escravo psquico, articulado ao de escravo social, para pensar os traos do escravismo presentes em nossa sociedade e nos sujeitos negros que sofrem de sua negritude. Possuindo um passado escravista, este pas ainda vive, em seu cotidiano, situaes de preconceito, discriminao e racismo, claramente expressos nas condies materiais de vida da grande maioria dos negros, mas tambm nas vivncias marcadas, muitas vezes, por um assujeitamento a padres estticos e ao comportamento permanecendo como uma ferida narcsica. Da possibilidade de cura desta ferida e da travessia deste fantasma, sob a tica da psicanlise, do que trata este estudo. 6 ABSTRACT
The question of black people in Brazil, is discussed here as a social and individual symptom which brings psychic suffering to black individuals. This discussion is based on the premises of fundamental psychopathology as a proposition of interpretation of the psychic crisis which occur in face of an excess and on the concept of the citizen analyst, that is to say, of this psychoanalyst who inserts himself in society and acts through his speech, which points out fictions to be dismantled and enables individuals to get rid of fixations. The concept of the psychic slave, articulated with the one of the social slave, is very important when we consider the signs of slavery, which are present in our society and in black individuals who suffer from their negritude. Having a past of slavery, this country still lives, in everyday life, situations of prejudice, discrimination and racism, which are clearly expressed in the material conditions of most black people, but also in experiences which are often marked by subjugation to standards of aesthetics and behavior remaining as a narcissistic wound. This study deals with the possibility of healing this wound and walking through this ghost from the point of view of psychoanalysis. 7
SUMRIO
I- I Captulo: Introduo e aspectos metodolgicos---------------- 09 Especificidade da pesquisa em psicanlise ----- 11 II- II Captulo: O sintoma social----------------------------------------29 Narcisismo das pequenas diferenas------------- 44 III- III Captulo: Escravo psquico --------------------------------------62 A psicopatologia do fracasso --------------------- 64 IV- IV Captulo: Caso clnico------------------------------------------- 99 V- V Captulo: Traos do escravismo ------------------------------- 120 A in-visibilidade do negro ----------------------- 127 VI- Referncias bibliogrficas ------------------------------------------ 141 8 INDICE
PRIMEIRO CAPTULO.................................................................................... 9 INTRODUO E ASPECTOS METODOLGICOS ................................ 9 Especificidade da pesquisa em psicanlise............................................. 11
SEGUNDO CAPTULO................................................................................... 28 O SINTOMA SOCIAL............................................................................. 28 Narcisismo das pequenas diferenas ......................................................... 44
TERCEIRO CAPTULO ................................................................................. 62 ESCRAVO PSQUICO............................................................................ 62 A psicopatologia do fracasso........................................................................... 64
QUARTO CAPTULO..................................................................................... 96 CASO CLNICO........................................................................................ 96
QUINTO CAPTULO..................................................................................... 116 TRAOS DO ESCRAVISMO............................................................. 116 A in-visibilidade do negro............................................................................... 123
8 PRIMEIRO CAPTULO INTRODUO E ASPECTOS METODOLGICOS
Eu ando pelo mundo Prestando ateno em cores Que eu no sei o nome... Adriana Calcanhoto
Este trabalho se insere na perspectiva da psicopatologia fundamental. Segundo Berlinck (2000) 1 , a expresso psicopatologia fundamental foi usada pela primeira vez por Pierre Fdida, para se distinguir da psicopatologia geral de Karl J aspers, criada no incio do sculo XIX. A disciplina de J aspers visa formulao narrativa objetiva das doenas mentais conhecidas, enquanto que a psicopatologia fundamental busca resgatar a dimenso subjetiva e singular do pathos. Assim, quando pathos ocorre, algo da ordem do excesso, da desmesura, se pe em marcha, sem que o eu possa se assenhorar desse acontecimento, a no ser como paciente, inaugurando, assim, condies necessrias e suficientes para a posio do analista e para a transformao desta vivncia ptica numa patologia e, da, numa experincia. O humano , ento, uma espcie ptica, que sofre deste excesso, traduzido enquanto dor em toda forma de sofrimento ou situao que faz sofrer, como amor, paixo, loucura, doena, misria.
Fdida (1988) 2 , ao tentar definir o termo psicopatologia, remete-nos expresso patei-matos, que na tradio do poeta squilo designa aquilo que ptico, que paixo, que vivido. Psicopatologia seria ento definida como um sofrimento que porta em si mesmo a possibilidade de um ensinamento interno.
1 BERLINCK, Manoel Tosta. Psicopatologia Fundamental. So Paulo: Escuta, 2000. 2 FDIDA, Pierre. Clnica psicanaltica: estudos. So Paulo: Escuta, 1988.
9 Neste sentido, no pode haver simplesmente normal e patolgico, uma vez que a linha divisria entre um e outro bastante tnue. A descoberta da psicanlise consiste justamente na possibilidade da experincia interna do que o psicopatolgico, desde que essa experincia interna no se psiquiatrize, no sentido de se tornar uma patologia crnica e nada ensinar quele que a vive.
A posio da psicopatologia fundamental , ento, constituir-se como uma proposta de leitura das crises psquicas, alternativa da psicopatologia geral, que tem como perspectiva principal obter um acordo mnimo quanto definio das categorias diagnsticas, de forma a alcanar uma concordncia entre as diversas disciplinas, ao menos no plano descritivo.
A postura da psicopatologia fundamental exige do profissional que ele esteja sempre disposto a sair de uma posio pr-determinada, fixa, para inclinar-se sobre o sujeito que vem falar de seu pathos, daquilo que o faz sofrer. Nesse sentido, a psicanlise seria a casa mais confortvel, existente na contemporaneidade, para a psicopatologia fundamental, na medida em que prope a escuta do que cada sujeito traz a respeito de seu sofrimento, via transferncia. Esse discurso, compartilhado com o analista, possibilita uma mudana na posio do sujeito, alterando sua posio no mundo. Da parte do analista, aquele que escuta, essa vivncia envolve a sua participao subjetiva, no esforo que far para pr em palavras aquilo que vive na sua clnica.
10 Especificidade da pesquisa em psicanlise
A pesquisa em psicanlise tem algumas especificidades, pois a clnica psicanaltica uma atividade intensa de pesquisa, na qual analisante e analista esto engajados. A pesquisa, portanto, faz parte da atividade clnica do psicanalista. Essa atividade composta no s de prtica clnica cotidiana mas, tambm, da prpria formao do psicanalista, que envolve sua anlise pessoal, superviso clnica e estudos tericos.
No que concerne formao terica, essa atividade cada vez maior na instituio universitria e nesse lugar que o discurso psicanaltico sofre uma toro: a universidade o lugar do discurso do mestre, que tem como requisitos a preciso, a clareza e a objetividade. A atividade clnica, ao contrrio, o lugar onde deve prevalecer o discurso do analista, em que a transferncia comanda o desenlace da anlise. A pesquisa em psicanlise se sustenta ento pela transferncia e suas vicissitudes. A transferncia o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam na anlise; a colocao em ato da realidade do inconsciente na dimenso que lhe prpria: a do engodo, porque o analisante supe ao analista um saber sobre a significao e ento lhe pede dicas dos significantes de identificao. Por exemplo: E agora, o que devo fazer?, uma questo constantemente endereada ao analista. O que o analisante no sabe ou no quer saber que o analista no sabe. Ele um saber suposto.
Em 1926, no artigo A questo da anlise leiga, Freud 3 , preocupado com o futuro da psicanlise, nos alerta que s h uma maneira possvel de aprend-la:
3 FREUD, S. A questo da anlise leiga, (1926). ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.
11 submetendo-se a uma anlise. No bastaria, ao interessado, segundo ele, buscar ampliar seus conhecimentos em disciplinas afins como a psicologia, a literatura, a mitologia, a histria, etc. Apesar de reconhecer o valor desses conhecimentos at mesmo para a atividade clnica, eles no so suficientes. Mais tarde, em Anlise terminvel e interminvel (1937) 4 , volta a afirmar que a anlise condio necessria e insubstituvel para produzir um analista. Mas, claro que o saber advindo de uma anlise no suficiente para o exerccio da prtica, pois uma anlise no transmite os conceitos fundamentais que organizam a experincia.
A psicanlise em intenso e a psicanlise em extenso, conceitos desenvolvidos por Lacan (1987) 5 , por ocasio da fundao de sua escola se definem e se diferenciam enquanto uma prtica teraputica e enquanto uma teia terica. O que ambas tm em comum a transferncia a um sujeito suposto saber e uma transferncia de trabalho. A psicanlise em extenso presentifica a psicanlise no mundo, atravs da transmisso, enquanto a psicanlise em intenso prepara os operadores. A instituio (psicanaltica, universitria) o espao onde os conceitos fundamentais da psicanlise podem ser transmitidos.
Mas, ser analista no tarefa fcil. O criador da psicanlise j nos advertia de que h trs atividades impossveis de serem exercidas: educar, governar, psicanalisar. A impossibilidade dessas atividades se deve ao fato de que nenhuma delas oferece garantia ao outro, pois o mal-estar e a insatisfao sempre estaro presentes nelas, deixando um resto a ser suportado por cada um.
4 FREUD, S. Anlise terminvel e interminvel (1937). ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976. 5 LACAN, J acques. Ata de fundao da Escola Freudiana de Paris: 21 de junho de 1964. Letra Freudiana, n 0, 1987: 27-42.
12 Quanto psicanlise, pode-se pensar sua atividade clnica articulada em trs elos: com os analisantes, com a teoria psicanaltica e com os outros analistas. Esses elos apontam para a transferncia em trs diferentes nveis: na relao analtica, com o saber e com a instituio. Na situao analtica cotidiana, o analisante quem procura o analista e enderea a este uma demanda: demanda de amor, demanda de um saber. a partir desse saber suposto ao analista que o processo transferencial se instala, via livre associao. H, portanto, na psicanlise, uma relao indissocivel entre investigao e tratamento, e, manter-se analista, corresponderia a manter essa posio de hincia entre estes termos. A escuta analtica mantida por essa tenso constante, na qual a investigao pode ou no coincidir com os efeitos teraputicos.
A psicanlise s se sustenta ancorada em dois campos: o da experincia analtica no vnculo social estabelecido entre um analista e um analisante e na sua relao com a cincia, com o saber, atravs da qual cada analista tem que reinvent-la para torn-la cientfica. A verdade e o saber, no que estes se articulam com a cincia e com a arte, a que a psicanlise se instala. Nesse trabalho, a atividade clnica atravessa toda a sua elaborao, mas no isoladamente; outras fontes se mostraram imprescindveis para sua confeco.
As fontes da pesquisa
A primeira das fontes utilizadas refere-se ao meu trabalho com a questo racial. Fao esse desde 1988, pesquisando e participando, como cidado, dos interesses da comunidade negra brasileira. Minha atividade clnica com sujeitos negros teve incio tambm neste perodo, vindo da boa parte do material que ora
13 privilegio. Como j relatado anteriormente 6 , durante a graduao em psicologia, atendi a dois analisantes negros em estgios supervisionados. Esses atendimentos me fizeram pensar sobre a questo racial, num momento posterior, em que iniciava minha atividade profissional, num trabalho junto a crianas de uma instituio que visava trabalhar a cidadania e a identidade do povo negro, a Casa Dandara, em Belo Horizonte. Desde ento, tenho recebido analisantes negros em meu consultrio.
A escuta de um negro no difere da de qualquer outro sujeito, o que no traz nenhuma especificidade. Entretanto, h a, segundo acredito, uma particularidade. As situaes de preconceito e discriminao vividas historicamente pelos negros falam dessa particularidade. Quando um analisante negro diz que foi interpelado, revistado ou batido pela polcia e que isso se deve sua cor, no fantasia. dado de realidade: as estatsticas que fazem um recorte racial apontam para isso. Os assassinatos e os crimes, em geral, so a segunda causa de morte no Brasil; estes acometem, principalmente, a populao das periferias. A cor preta para ser a-batida.
Com relao a outros povos, os descendentes de asiticos, de forma geral, so vtimas de preconceito; mas, no que tange aos asiticos, poderamos pensar em duas vertentes dessa discriminao: uma positiva, que diz de sua capacidade intelectual em todos os nveis de conhecimento, e uma negativa, que diz de sua capacidade sexual, geralmente menosprezada ou desvalorizada, principalmente, em relao aos homens, no que diz respeito ao tamanho do pnis. Nisto, eles so, na maioria das vezes, comparados aos negros, imaginariamente supostos como
6 REIS FILHO, J os Tiago. Ningum atravessa o arco-ris: um estudo sobre negros. So Paulo: Anna Blume, 2000.
14 possuidores de um pnis maior que os demais, constituindo aquilo que Souza (1990) 7 caracteriza como fazendo parte do mito negro: a superpotncia sexual e o exotismo.
Quanto capacidade intelectual, nenhum povo, no imaginrio social brasileiro, se compara aos portugueses, historicamente supostos como burros, enquanto que os indgenas, geralmente so reconhecidos como preguiosos (Mata, 1981) 8 . Isto sem falar nas louras (naturais ou artificiais), que se transformaram em motivo de ironia e sarcasmo, ao ressaltarem seus atributos fsicos, aliados sua suposta ignorncia e incapacidade geral de compreenso do que quer que seja.
Ao que tudo indica, situaes de preconceito e discriminao so uma constante em nosso cotidiano, no s sobre os negros, como em diversos outros segmentos da populao. Embora no sejam apenas os negros que sofrem discriminao e preconceito, estes, em relao a negros tm uma particularidade: referem-se a uma cor e a um corpo marcados historicamente. Isto ser melhor discutido no captulo seguinte, quando tratar do narcisismo das pequenas diferenas.
Outra fonte para esse trabalho se deu numa instituio psicanaltica. Tive a oportunidade de coordenar, de 2000 a 2004, o Grupo de Estudo e Produo em Psicanlise e Questo Racial no Crculo Psicanaltico de Minas Gerais. Esse grupo era composto por quatro psicanalistas negros; surgiu da necessidade de estudar e trabalhar o tema, para alguns, pela primeira vez, pois todos tnhamos, alm da experincia pessoal, analisantes negros em nossos consultrios. A
7 SOUZA, Neusa S. Tornar-se negro: as vicissitudes de identidade do negro brasileiro em ascenso social. 2.ed. Rio de J aneiro: Graal, 1990. 8 MATA, Roberto da. Relativizando: uma introduo antropologia social. Petrpolis: Vozes, 1981.
15 questo principal que nos guiou foi: como o negro se fala na clnica? Era consensual entre ns o fato de a questo racial parecer no interessar aos analistas, de forma geral. Quando de nossas apresentaes em jornadas e congressos 9 , nos perguntavam: Do que vocs esto falando?.
Diante de nossas respostas, retrucavam: Isto comum a todos os neurticos e no especfico dos negros. H algo que se cala quando falamos de negro no Brasil. Desse mesmo negro que rarssimas vezes est presente em nossas apresentaes, que no participa de instituies psicanalticas, ou que no sabe o que vem a ser psicanlise. Quando um negro se faz presente nessas ocasies, em nmero inexpressivo.
Uma das entrevistadas de Souza (1990) 10 reproduz uma fala de seu pai: Voc, crioula, fazendo psicanlise! Psicanalista de crioulo pai-de-santo (p. 66). O curioso dessa fala que eu mesmo j a ouvi, quando iniciei minha formao; o que no deixa de ressaltar a importncia da religiosidade afro-brasileira para uma expressiva parcela da nossa populao, seja ela negra ou no. O que assistimos em nossas apresentaes repete-se nos consultrios particulares dos analistas. Com relao psicanlise, nos ambulatrios pblicos e clnicas sociais, a situao, acredito, deve ser um pouco diferente.
Por isso, acredito que o grupo de estudo teve, guardadas as devidas propores, uma importncia histrica, ao revelar nossa existncia e chamar a ateno dos
9 Ver, a esse respeito: REIS FILHO, J os Tiago et alli. Violncia e questo racial no Brasil: uma leitura psicanaltica. Reverso, n 48, set. 2001: 17-23. REIS FILHO, J os Tiago et alli. Violence and racial matters in Brazil: a psychoanalyutical approach. International Forum of Psychoanalysis, n 11, 2002; 95-99. 10 Op. Cit.
16 demais analistas. como se dissssemos, parafraseando Costa (in Souza, 1990: 16) 11 : Escutem, psicanalistas!. A partir de nossas apresentaes, alguns colegas comearam a nos procurar para trocar idias, perguntar, falar de seus analisantes. Alguns revelaram jamais ter atendido a um analisante negro; outros disseram jamais terem se perguntado sobre a questo racial, ao atenderem negros. Uma colega, que disse no entender do que falvamos em nossa primeira apresentao, veio nos cumprimentar e falar de si em outras oportunidades. O trabalho do grupo causou inquietao, estranheza.
Outra fonte importante utilizada neste estudo uma pesquisa acadmica, realizada durante o ano de 2002, no interior do Ncleo Universitrio de Betim, da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais 12 . Essa visou traar o perfil socioeconmico dos estudantes, num primeiro momento e, num segundo instante, realizar oficinas de grupo 13 , a fim de possibilitar que estes estudantes falassem da questo racial, num ambiente de troca entre pares. O perfil traado mostrou-nos aquilo que os dados estatsticos de nossos institutos de pesquisa revelam h muito tempo: os negros que ingressam nos cursos superiores de nossas universidades ocupam, na pirmide social brasileira, os nveis inferiores, compondo nossa classe mdia baixa, em sua grande maioria.
Esses estudantes tm grandes dificuldades em se manterem, devido s baixas condies econmicas de seus familiares e, em geral, optam pelos cursos da rea das cincias humanas pelo fato de esses oferecerem menor concorrncia nos
11 Op. Cit. 12 REIS FILHO, J os Tiago. Um perfil do estudante negro da PUC Betim. Psicologia em Revista. v. 10, n. 15, jun. 2004:139-143. 13 Oficinas de grupo o nome dado a encontros, estruturados ou semi-estruturados, com tema definido a priori, ressaltando seus aspectos pedaggicos e teraputicos. No nosso caso, privilegivamos a fala, o mais livre
17 concursos vestibulares, pelo valor mais reduzido de suas mensalidades, e tambm por terem menor durao. Nas nossas oficinas, os estudantes falaram de suas dificuldades em se verem como negros; em terem uma imagem mais sintnica e prazerosa de si mesmos e de seus corpos. Falaram, tambm, das situaes de preconceito e discriminao, vivenciadas por eles, durante suas vidas, dentro e fora do ambiente universitrio.
Um fato curioso marcou um de nossos encontros: um dos pesquisadores da equipe chegou mais cedo ao local onde seria realizada uma de nossas oficinas e dirigiu-se a um bar em frente. Encontrou l mais cinco colegas, quatro negros e um branco. Diante da descontrao do grupo, o pesquisador aproveitou e reforou o convite para a oficina, e todos se comprometeram a comparecer, inclusive o colega branco, o que no aconteceu. Na semana seguinte ao encontro, o colega branco disse ao pesquisador que ele havia feito baixar o astral da turma quando de seu convite e, aps sua sada, o clima ficou to pesado que fez-se um silncio enorme. Por que o silncio e o baixo astral? Perguntvamos. Sabemos que o silncio, na maioria das vezes, uma resposta da resistncia. Muitas vezes, ao falarmos de negros, a resposta que temos o silncio. Nogueira (1998) 14 relata um episdio interessante ocorrido em seu consultrio: uma analisante vai a uma primeira entrevista e no retorna, fato comum no cotidiano da clnica. Mas, meses depois, a analisante retorna e diz que, naquela ocasio, no conseguiu dar continuidade ao tratamento porque ela, Nogueira, era negra, ao que esta intervm: era (grifo meu) negra? Felizmente, esta analisante pode dizer de sua dificuldade em saber-se negra, encontrando, na
possvel, tendo como tema bsico a questo do preconceito. Ver, a esse respeito: REIS FILHO, J os Tiago, 2002. Op. Cit. 14 NOGUEIRA, Izildinha B. Significaes do corpo negro. So Paulo: USP, 1998. Tese de Doutorado.
18 figura da analista, o acolhimento da questo; o mesmo aconteceu com os colegas do bar.
Essas trs fontes so acessrias na composio deste trabalho, pois o que me guiar ser um caso clnico. Aqui cabe distinguir histria e caso. Segundo Figueiredo et alli (2001) 15 :
Enquanto o relato clnico, que se apresenta rico em detalhes, cenas e contedos, configura o que chamamos de histria, o caso se apresenta como produto do que se extrai das intervenes do analista na conduo do tratamento, e do que decantado de seu relato. Para tanto, condio necessria que o dispositivo analtico seja colocado em ao (p. 20).
O caso Maria: o negro na clnica psicanaltica
Este trabalho gira em torno das construes feitas a partir do caso clnico Maria. Ela uma negra que sofre de sua negritude, mutilando seu corpo por no conseguir conviver com suas insgnias. Assim como Maria, possvel ouvir _ embora no seja em nmeros expressivos _ relatos de negros que buscam a psicanlise, numa tentativa de subtrao de gozo. Nesses casos, o gozo tem uma ancoragem na cor e no corpo, esses significantes encarnados. Utilizo-me do caso Maria no para a generalizao dos resultados obtidos, mas buscando oferecer uma possibilidade de se pensar o negro na clnica psicanaltica.
15 FIGUEIREDO, Ana Cristina (org.). Psicanlise: pesquisa e clnica. Rio de J aneiro: IPUB-CUCA, 2001.
19
Escuto negros. Em minha clnica eles sempre esto presentes. O fato de eles me procurarem pode ser por eu ser negro, pesquisar e escrever sobre o tema, ser o nico analista negro de minha cidade. Procuram a mim pelos mais diversos motivos. Alguns, inclusive, s ficam sabendo de minha cor quando me vem, o que, muitas vezes, motivo de surpresa ou espanto. Se digo que os negros esto presentes em minha clnica, para mostrar que o mesmo no se d em todos os consultrios de analistas. Alis, acredito que, em alguns, nunca deve ter havido um nico analisante negro.
Essa informao pode parecer insignificante: se os negros no freqentam consultrios de analistas, porque no desejam, diro alguns; ou porque no tm dinheiro, diriam outros; ou porque moram em regies distantes dos consultrios, insistem alguns. Essas so respostas que sempre ouo de meus colegas analistas, em todo o pas. Se tomo essas respostas como sintomticas, o que elas revelam e o que ocultam? Em primeiro lugar, elas revelam uma realidade: os negros, apesar de constiturem a metade da populao brasileira, ocupam, desde que aqui chegaram, as posies mais desprivilegiadas, a base da pirmide social. Habitam as favelas, as periferias, lutam pela sobrevivncia. O acesso dessa parcela da populao sade se d pela via pblica e nesta, quando h atendimento psicanaltico, restrito, escasso.
Mas, e os analistas? Sempre que pergunto a eles se atendem negros, geralmente dizem que tm ou j tiveram algum analisante, mas que nunca se perguntaram pela questo racial. NUNCA! Como podemos ler este fenmeno? Como possvel que, em um pas cuja metade da populao negra, os psicanalistas no atendam sujeitos negros e, quando os atende, no se perguntam pela questo racial? Ser que os analisantes no se perguntam? No querem saber? Ou os
20 analistas no se perguntam e, ao no se perguntarem, calam seus analisantes? Estamos aqui diante de um sintoma. Sabemos, com Freud, que o sintoma o substituto de uma satisfao pulsional frustrada; algo que o sujeito tem de mais particular, de precioso. O sintoma vem marcado pelo recalque e pelo compromisso entre desejo e defesa. Sendo assim, podemos pensar que os sujeitos, negros ou no, procuram anlise por motivos outros que no a questo racial e, por isso, no falam disso.
Claro, o cotidiano da clnica formado pelo comum da neurose, da depresso, das perdas e da dificuldade em lidar com elas. No diferente com os negros. No pretendo reivindicar uma especificidade para o negro, o que acredito, pode trazer mais preconceito e discriminao. Mas, o que chama a ateno : porque se calam quando se fala de negro no Brasil? Se digo que no quero marcar uma especificidade para o negro, tambm no quero negar uma diferena. Esta visvel, literalmente, no s flor da pele, quanto ao redor das cidades, nos orfanatos, presdios, hospcios, ruas e viadutos. Falando assim, pareo concordar com muitos que dizem ser a questo racial fruto da situao econmica dos negros; essa, como veremos, to catica, que realmente nos faz crer que seja a causa do racismo. Entretanto, o problema vai alm, pois os negros que no tm problemas econmicos, no deixam de sentir, na prpria pele, as questes advindas de sua cor ou raa.
Nesse ponto, cabe um esclarecimento: sei que estou partindo da clnica psicanaltica em direo ao social; da particularidade clnica para a generalidade social, o que muito perigoso. Sei desse risco e aceito o desafio. No sei onde essa estrada vai dar, mas, no percorr-la ainda mais frustrante. Pretendo partir de um caso clnico de um sujeito negro para pensar a questo racial no Brasil. Nesse sentido, o caso ser paradigmtico do tema. Acredito que um caso possa
21 servir a inmeras construes, como um fio solto, que ata ou desata. Segundo DAgord (2000) 16 :
Uma construo em anlise o procedimento de extrair inferncias a partir de fragmentos de lembranas e de associaes do sujeito em anlise. Esses fragmentos de lembranas no tm sentido em si mesmos, mas justamente desse sem sentido que eles extraem a sua importncia na construo de hipteses. Nessa construo tudo se torna significativo, inclusive a participao do intrprete (p. 14).
Vou, assim, construir o caso clnico a partir de um ponto de referncia, a questo racial, e tecer comentrios a respeito, partindo de um sintoma individual para um social. Analisarei at que ponto um sintoma particular carrega traos de um sintoma social. Essa questo, em se tratando de psicanlise, polmica e talvez de difcil resposta, o que, espero, no inviabiliza a pesquisa e a tentativa de articulao. Conforme dizia anteriormente, em Freud um sintoma uma formao do inconsciente, produz satisfao pela via do desprazer, sendo de difcil abandono, pois abandon-lo pode produzir um desprazer ainda maior. a face gozosa do sintoma neurtico. Mas, pode um sintoma ser social?
Em um trabalho anterior (Reis Filho, 1999) 17 , comento uma frase instigante do historiador J oel Rufino dos Santos 18 . Segundo ele a negritude o grande recalque brasileiro. Recalque a operao psquica que visa manter uma representao afastada da conscincia; o que recalcado retorna nas formaes
16 DAGORD, Marta. Uma construo de caso na aprendizagem. Pulsional, n 140-141, nov. 2000: 12-21. 17 REIS FILHO, J os Tiago. Uma simples questo de diferena. Reverso, n 46, set. 1999: 47-54. 18 Entrevista ao Jornal do Brasil, 08/05/1988.
22 do inconsciente sonhos, atos falhos, sintomas. Em nvel social, poderamos dizer que os efeitos do recalcamento seriam a criao de mitos e ideologias que, no caso da negritude, teriam como funo tornar opacas ou invisveis as origens das relaes raciais entre ns. O sintoma pode ser social se o considerarmos, de acordo com Koltai (2000) 19 , que o percebe como:
Histrico, localizado e especfico, significado pelo Outro e que, por isso mesmo, pode mudar com o tempo, acompanhando as transformaes do Outro tanto no plano pessoal quanto coletivo. social ainda se o entendermos como a maneira singular pela qual o sujeito enfrenta o discurso de seu tempo (p.111).
Ou seja, h em todo sintoma neurtico, aspectos do social que vem marcar os significantes do sujeito; seus fantasmas so marcados pela realidade histrica. Na transferncia, o sujeito repete e revive situaes afetivas dolorosas do seu passado. No teria, nessa revivncia, um entrecruzamento de aspectos da histria individual com a Histria coletiva? Ainda seguindo Koltai, sim, somos todos portadores de um nome, uma histria singular, inserida na Histria de um pas, regio, civilizao; somos depositrios e transmissores. A histria de cada um, seu romance familiar, seu mito individual, todos sofrem assujeitamentos das quais nem sempre fomos atores, mas que marcam nossa individualidade. Cotidianamente escutamos relatos de conflitos, traumas, humilhaes, perdas, ligados aos nossos analisandos ou a seus pais, irmos, avs. Quantos no trazem marcas de uma histria transgeracional, ainda hoje geradora de sofrimento e dor. E, em se tratando de negros, porque mais de trs sculos de escravido seriam diferentes?
19 KOLTAI, Caterina. Poltica e Psicanlise: o estrangeiro. So Paulo: Escuta, 2000.
23
Cada sujeito, negro ou no negro, deste pas carrega consigo, as marcas do escravismo, presente em dois teros de nossa Histria. Sendo assim, em se tratando de negros, como possibilitar, a esse sujeito, a travessia deste fantasma? Nicas (in Koltai, 2000), nos diz que:
Ao sujeito, uma psicanlise no pode prometer uma mudana dos determinantes de sua histria. O que ela pode tocar, modificando-a, a maneira como o gozo deixou sua marca na histria do sujeito, particularmente sob a forma do sintoma. Ou, dizendo mais precisamente, o sujeito ser convocado, pela operao do analista, a rever a sua responsabilidade subjetiva e, assim, poder querer modificar, ou no, o modo pelo qual ele mesmo investiu a sua histria (p. 10).
Etnografia e psicanlise A etnopsicanlise nasceu da juno da psicanlise com a etnografia. Visava estudar os distrbios psicopatolgicos ligados a uma cultura especfica e tambm a maneira como essas diferentes culturas se classificam e organizam as doenas psquicas. Dentre os autores que se destacaram nesse campo, cito Edmond e Marie-Ccilie Ortigues. Num estudo realizado na dcada de 1960 20 , eles descreveram o choque cultural entre europeus e africanos quando foram desenvolver um trabalho no Hospital de Fann, em Dakar, no Senegal, no perodo de 1962 a 1966. Marie-Ccilie recebia famlias que lhe traziam, basicamente, crianas e adolescentes
20 ORTIGUES, Marie-ccilie e Edmond. dipo africano. So Paulo: Escuta, 1984.
24 encaminhados por mdicos do hospital ou professores do municpio. O que chama a ateno no texto como os autores enfrentavam o desafio de praticar a psicanlise numa sociedade com fortes tradies e prticas no-europias, perguntando-se como se constitui o dipo estrutura nuclear da psicanlise numa sociedade tribal.
Eles vo, ento, partir para uma articulao entre psicanlise e etnologia, explicitando as diferenas entre ambas: o etnlogo quer saber, pergunta, demanda. O psicanalista, ao contrrio, acolhe a demanda, escuta. Em sua prtica clnica, os autores perceberam que a rivalidade edpica deslocada para os irmos ou outros prximos como os tios, os primos, e essas relaes so mediadas pela feitiaria e pela bruxaria.
Com a finalidade de pesquisar como as referncias culturais podem se tornar operatrias na clnica, perguntavam-se sobre o que resolver a situao edpica, numa sociedade onde a funo simblica do pai permanece ligada do ancestral (p. 116). Verificam que a sociedade africana uma sociedade onde a castrao vivida no registro do coletivo da obedincia lei dos mortos, lei dos ancestrais; sua desobedincia equivale a ser excludo, abandonado pelo grupo.
Da dizerem que o trabalho etnolgico pode melhorar a escuta analtica, mesmo sendo um procedimento distinto da escuta. Ficar preso ao discurso etnolgico pode reduzir a psicanlise a um culturalismo compreensivo, o que a faria perder o seu modo prprio de operar e suas referncias tericas especficas, tornando o analisante um informante dos fatos sociais. Vale lembrar que, quando um analista trabalha numa cultura estranha sua, ele ilustra uma caracterstica
25 essencial da atitude analtica, j que nenhuma proposio pode ser compreendida sem que haja uma referncia ao contexto familiar, social, cultural. Ainda assim, acredito que o trabalho clnico no precisa ser precedido de uma informao sociolgica aprofundada, pois, embora um mnimo de informao seja necessrio, o que mais importa sustentar a posio de analista.
Marie-Ccilie e Edmond Ortigues puderam estabelecer isto ao verificarem o transe religioso animista senegals, no qual o sujeito se v confrontado com o sobrenatural. Eles no se deixaram seduzir pelas identificaes imaginrias que fazem da cerimnia um espetculo. Buscaram, nas fontes autenticamente religiosas e sociais do rito, o ponto mais fecundo de aproximao com a psicanlise. E nos advertem: em qualquer cultura ou pas, lidamos com subgrupos que partilham valores e representaes diferentes, trazendo para o trabalho analtico cotidiano o desafio de lidar com diferentes culturas e a singularidade de cada analisante. O analista um estrangeiro.
A histria no o passado. A histria o passado na medida em que historiado no presente historiado no presente por que foi vivido no passado. Em psicanlise, a histria no se confunde com o passado e nem com o vivido pois, a transferncia conduz reconstruo de uma histria por um sujeito. Nesse processo, conta mais o que o sujeito reconstri do que aquilo do que rememora sobre os acontecimentos importantes de sua existncia (Cirino, 2001: 106- 107) 21 .
21 CIRINO, Oscar. Psicanlise e psiquiatria com crianas: desenvolvimento ou estrutura. Belo Horizonte: Autntica, 2001.
26 Aps esta introduo, este trabalho prossegue estruturado da seguinte forma: o segundo captulo fala do sintoma social e de sua mais expressiva manifestao, o narcisismo das pequenas diferenas. O terceiro captulo traz o conceito de escravo psquico, elaborado a partir do conceito de escravo social. No quarto captulo, apresento o caso clnico, paradigmtico do negro se falando psicanaliticamente. O quinto e ltimo captulo revela-nos os traos, as marcas do escravismo no imaginrio e na realidade social brasileira.
27 SEGUNDO CAPTULO
O SINTOMA SOCIAL
Existe na sociedade brasileira uma patologia social no que diz respeito questo racial. Guerreiro Ramos
Freud era judeu, disso todos sabemos. Mas, at que ponto o fato de ser judeu influenciou sua vida e obra? Sabemos, com Gilman (1994) 22 , que, na virada do sculo XIX para o sculo XX, a cincia biolgica tinha um forte componente racial; os judeus serviam como principais exemplos na discusso do papel da diferena racial na predisposio para doenas especficas ou a imunidade elas, tais como a sfilis, a lepra e o cncer. Ser judeu, na Viena fin-de-sicle era ser diferente. No apenas existia o anti-semitismo nas instituies, especialmente as mdicas, como as concepes anti-semitas se tornaram elementos da substncia da prpria medicina. Os judeus viviam uma poca de intensa insegurana, geradora de angstia quanto a eles prprios e seu mundo; eram marginalizados na sociedade europia por causa de suas supostas diferenas biolgicas e psicolgicas inatas. Viena era a cidade mais anti-semita da Europa.
Em seu Estudo autobiogrfico (1926) 23 , Freud revela:
Nasci a 6 de maio de 1856, em Freiberg, na Moravia, pequena cidade situada onde agora a Tchecoslovquia. Meus pais eram judeus e eu prprio continuei judeu. Quando, em 1873, ingressei na Universidade, experimentei desapontamentos considerveis.
22 GILMAN, Sander. Freud, raa e sexos. Rio de J aneiro: Imago, 1994. 23 FREUD, S. Um estudo autobiogrfico (1926). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.
28 Antes de tudo, verifiquei que se esperava que eu me sentisse inferior e estranho por que era judeu. Recusei-me de maneira absoluta a fazer a primeira dessas coisas. J amais fui capaz de compreender por que devo sentir-me envergonhado da minha ascendncia ou, como as pessoas comearam a dizer, da minha raa (p. 18-19; grifos meus).
Portanto, a categoria raa est, desde sempre, atravessando a vida e a obra de Freud. Em sua poca, ser judeu era ser visivelmente diferente, por causa dos aspectos fsicos: nariz, circunciso, a cor da pele. Quanto a esse aspecto, acreditavam os tericos mdicos, do sculo XIX, que a cor da pele dos judeus era diferente pelo fato de os mesmos terem se cruzado com negros em sua constante peregrinao e conseqente miscigenao. Os judeus portavam o sinal do negro. Essa diferena, estampada no corpo, vai, segundo Gilman, influenciar Freud na teorizao da sexualidade feminina, como veremos adiante.
A evidncia da distino biolgica do judeu possibilitava inmeras situaes de violncia. Segundo Gilman (1994) 24 :
A violncia contra os judeus era uma ocorrncia comum e diria desde a poca em que Freud estava na Universidade e bandos de desordeiros anti-semitas arrastavam estudantes judeus para fora das salas de aula e os espancavam. Os judeus, tanto homens como mulheres, reagiam a seu prprio sentimento de crescente vulnerabilidade e sua maior visibilidade. Martin Freud, filho mais velho de Freud, recordava estar passeando com sua tia Dolfi, certo
24 Op. Cit.
29 dia em Viena, quando passamos por um homem de tipo comum, provavelmente no-judeu, que, at onde vi, no se deu conta de ns. Considerei uma fobia patolgica de Dolfi quando ela me agarrou e murmurou aterrorizada: Voc ouviu o que esse homem disse? Ele me chamou de judia suja e fedorenta, e disse que j era tempo de todos sermos mortos. A nica cura real para essa doena a extirpao do judeu(pp.61-62).
No sculo XIX, as discusses sobre a especificidade dos marcadores de diferena fsica e psicolgica inventados pelos etnlogos iam da circunciso marca da feminizao do homem judeu - at a capacidade, dimenso e forma do crnio, cor da pele e do cabelo. A questo no era apenas que os judeus pareciam judeus, e sim que isto os marcava como inferiores.
Para Freud (1926) 25 , a sexualidade feminina era o continente negro da psique humana: desconhecido, primitivo, selvagem; a esfera menos acessvel cincia. Era essa a viso que os europeus tinham da frica.
Mas, at que ponto um sintoma pode ser social? Em sua obra, Freud nos d alguns indcios. Em Moiss e o monotesmo (1939) 26 , ele estabelece uma frmula para o desenvolvimento de uma neurose: trauma primitivo defesa latncia desencadeamento da neurose retorno do recalcado. Da ele supe que pode ter ocorrido, na vida da espcie humana, algo semelhante ao que ocorre na vida dos indivduos, ou seja, que ocorreram eventos de natureza sexual e agressiva que deixaram conseqncias permanentes, mas que foram desviadas e esquecidas e que, aps uma longa latncia, entraram em vigor e criaram
25 FREUD, S. A questo da anlise leiga (1926). In: ESB. Rio de J aneiro; Imago, 1976. 26 FREUD, S. Moiss e o monotesmo (1939). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.
30 fenmenos semelhantes a sintomas, em sua estrutura e propsito. Para dar sustentao a sua hiptese, Freud relembra seu estudo anterior Totem e tabu (1913) 27 , em que cria um mito do qual origina a moralidade e a justia, atravs da criao da primeira organizao social, ocorrida graas renncia pulsional, ao reconhecimento das obrigaes mtuas, a introduo de instituies definidas.
Em todo grupo h uma impresso do passado retida em traos mnmicos inconscientes, o que cria, entre o indivduo e o grupo uma conformidade quase completa. No caso do indivduo, o trao mnmico de sua experincia primitiva foi preservado via recalcamento, sendo, portanto, inconsciente. Mas, h:
a probabilidade de que aquilo que pode ser operante na vida psquica de um indivduo possa incluir no apenas o que ele prprio experimentou, mas tambm coisas que esto inatamente presentes nele, quando de seu nascimento, elementos como uma origem filogentica uma herana arcaica. Surgem ento as questes de saber em que consiste essa herana, o que contm, e qual a sua prova (Freud, 1939:119) 28 .
A resposta que ele nos d que essa herana consiste em certas disposies inatas, caractersticas de todos os organismos vivos; elas representam aquilo que identificamos como sendo o fator constitucional nos indivduos. Um exemplo disso o simbolismo, de carter universal e presente em nossos sonhos, por exemplo. Para dar sustentao a sua hiptese, Freud vai recorrer, mais uma vez, s experincias edpicas e postular que a herana arcaica dos seres humanos
27 FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976. 28 FREUD, S. Moiss e o monotesmo (1939). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.
31 abrange no apenas disposies, mas tambm traos de memria da experincia de geraes anteriores. Ele vai ainda mais longe ao dizer que, se presumirmos a sobrevivncia desses traos de memria na herana arcaica, o abismo existente entre a psicologia individual e a de grupo se estreitaria, pois poderamos lidar com os povos da mesma maneira como lidamos com um indivduo neurtico.
De que forma uma recordao deste tipo ingressa na herana arcaica? Isso pode se dar se o acontecimento foi suficientemente importante, repetido com bastante freqncia, ou ambos. Por outro lado, a recordao pode tornar-se ativa, isto , progredir do inconsciente para a conscincia, mesmo que de forma deformada e alterada. Vrias influncias podem se relacionar, mas o que importante frisar que o trao de memria esquecido pode ser despertado do por uma repetio do acontecimento.
Freud tambm faz, nesse texto, uma explanao sobre o que considera ser a verdade histrica, em contraposio verdade material; sendo que da que nascem as religies e ideologias. A diferena entre ambas a mesma que existe entre as realidades psquica e material, ou seja, tanto a verdade histrica quanto a realidade psquica correspondem aos efeitos do recalcamento. A verdade histrica diz respeito ao retorno do recalcado ou quilo que foi rejeitado, justificando a crena; os fatos so externos a tudo isso, ficando a verdade material perdida no esquecimento e sendo transformada, pelo desejo, em fico, lenda ou delrio. Para Freud, fantasia e realidade se encontram no dizer do analisante, assim como nos mitos e lendas que povoam o imaginrio individual e coletivo.
Traumas so impresses experimentadas muito cedo e esquecidas mais tarde; geram reaes anormais num sujeito, ou seja, alguns sujeitos reagiriam, ao
32 mesmo episdio, de forma absolutamente normal, no desencadeando nenhum conflito neurtico em decorrncia de uma vivncia similar. Entretanto, no fcil distinguir o fator determinante de uma neurose, o que levou Freud a formular as sries complementares, nos quais dois fatores convergem para preencher um requisito etiolgico. Estes fatores so complementares, podendo ser endgenos ou exgenos. Assim, a fixao da libido ou a frustrao, variam em razo inversa, da mesma forma, a vivncia infantil e a constituio hereditria. Em todo caso, fica difcil definir, dentre a constituio hereditria, a fixao infantil ou os traumatismos posteriores, qual tem ou teve a fora maior no desencadeamento de uma neurose ou se todos tiveram o mesmo grau de participao.
Os traumas ocorrem, geralmente, na primeira infncia, at a vivncia edpica. Especial ateno dada s pulses parciais: o seio, as fezes, a voz, o olhar. O olhar est mais ligado ao imaginrio, enquanto a voz adere cadeia simblica, lembrando que o seio e as fezes esto do lado da demanda, enquanto a voz e o olhar portam-se do lado do desejo. Essas experincias so em geral, esquecidas, permanecem inacessveis memria, incidindo sobre o perodo de latncia, podendo se manifestar por resduos mnmicos isolados, as lembranas encobridoras. Elas se relacionam a impresses de natureza sexual e agressiva, gerando mortificaes narcsicas ao eu.
Freud vai vincular estes trs pontos: o aparecimento precoce de experincias traumticas; seu esquecimento posterior e seu contedo sexual-agressivo, chamando a ateno para o fato de que essas experincias so vividas, na maioria das vezes, sob o prprio corpo ou so impresses, principalmente de algo visto e ouvido. No caso clnico ilustrativo deste estudo, h as cenas de Maria e sua me, penteando seus cabelos, num misto de agressividade e
33 erogeneidade. Isso melhor ilustrado no caso clnico, na parte quatro deste estudo.
Sabemos que o recalcado retorna sob a forma de uma compulso repetio, fazendo com que o trauma, ou vivncia traumtica, tenha efeitos positivos e negativos. O efeito positivo a tentativa de coloc-lo em funcionamento mais uma vez, tornando a experincia real, sob a forma de lembrana ou de ato. O trauma no anula a percepo da experincia, mas tambm no se inscreve simbolicamente na cadeia significante, permanecendo como uma espcie de quisto no psiquismo sempre pronto a irromper nos momentos menos esperados, nas situaes as mais diversas. Para compensar o desequilbrio desencadeado, cria-se uma realidade que venha substituir aquilo que falta, seja pelo fetiche, pelo sadismo ou masoquismo. Em todo trauma h a recusa em admitir, no plano simblico, o que mais tarde dar seus sinais no ato, no fetiche ou na construo delirante. Em cenas traumticas de relaes sadomasoquistas, a vtima do trauma encena, por exemplo, a violao e a tortura da qual foi objeto, mas tambm exercita um modo de sobrevivncia, uma defesa, invertendo a posio passiva da cena original (torturada) em posio ativa na cena re-encenada (Reis Filho, 2004:81) 29 .
O negro segura a cabea com a mo e chora...; este o verso de uma famosa cano do Olodum 30 . Pelos versos, os negros choram, lamentam. Lamentos ouvidos desde os navios negreiros, desde as senzalas. Lgrimas, dor e sangue negro tm sido derramados neste pas h quase 500 anos. Aqui tomo de emprstimo os versos de Castro Alves:
29 REIS FILHO, J os Tiago et alli. Trauma, perverso e lao conjugal. Reverso, n 51, ago. 2004: 77-84. 30 Grupo musical integrante da Organizao No-governamental Olodum, referncia brasileira de grupo folclrico, cultural e de militncia poltica de negros.
34
num sonho dantesco, tombadilho Tinir de ferros, estalar do aoite Legies de homens negros como a noite Horrendos a danar Negras mulheres Levantando as tetas Magras crianas Cujas bocas pretas Regam o sangue das mes Outras moas Mas nuas, assustadas No turbilho de espectros arrastadas Em nsia e mgoas vs Um de raiva delira Outro enlouquece Outro que de martrios embrutece Chora e dana ali ... So os guerreiros ousados Que com os tigres mosqueados Combatem na solido Homens simples, fortes, bravos Hoje mseros escravos Sem ar, sem luz, sem razo 31 ...
31 ALVES, Castro. Navio Negreiro. In: ALVES, Castro. Obra completa. Rio de J aneiro: Nova Aguilar, 1997: 277-284.
35 impressionante a atualidade desses versos. Para perceber isso, basta percorrermos as ruas centrais, como tambm as periferias de nossas grandes cidades, assim como o campo. Poderamos pensar que os negros gozam; gozam deste lugar de vtimas, historicamente marcados pela escravido. Tentarei dar outra resposta questo.
Eric Laurent (1999) 32 nos fornece o conceito de analista cidado, querendo, com isso, dizer daquele analista que sai de sua reserva (suposta neutralidade) e participa da sociedade democrtica. Um analista sensvel s formas de segregao, capaz de entender sua funo e ir alm, dizendo muito com seu dizer silencioso e, justamente por isso, no se calando frente s injustias.
Quando dizemos que o analista sabe participar com seu dizer silencioso, estamos afirmando que este distinto do silncio. O dizer silencioso implica em uma tomada de posio, ajudando a civilizao a respeitar a articulao entre normas e particularidades individuais, no permitindo que o esquecimento da particularidade de cada um se d em nome da universalidade ou de qualquer universal, humanista ou anti- humanista. O analista deve ser capaz de escutar e de transmitir, transformando a particularidade em algo til, em um instrumento para todos. Assim, o dizer silencioso contribui para que, cada vez que se tentar erigir um ideal, faa-se a denncia de que a promoo de novos ideais no a nica alternativa. O que tambm no nos faz retomar antigos valores e ideais; devemos insistir no debate democrtico.
Diante das lutas e movimentos sociais, os analistas mantiveram-se em sua funo, nada propondo, permanecendo na posio de intelectuais crticos,
32 LAURENT, Eric. O analista cidado. Curinga, n 13, set. 2000: 12-19.
36 entendendo-se, por isso, aquele tipo de intelectual que se dedicava somente a criar, a produzir o vazio. O analista crtico, por sua vez, aquele sujeito desprovido de ideais, que se apaga, que no cr em nada. Esta figura acabou estimulando um ideal do analista concebido como marginal, intil, o que no serve para nada, salvo para efetuar denncias daqueles que servem para alguma coisa. Posio extremamente elitista, reforada pela imagem do analista instalado confortavelmente em sua poltrona, atrs de um luxuoso div, numa sala com ar condicionado e isolamento acstico, em algum ponto nobre de um grande centro urbano. Por discordar dessa posio, Laurent vem sugerir que:
Os analistas tm que passar da posio de analista como especialista da desidentificao de analista cidado. Um analista cidado no sentido que tem esse termo na teoria moderna da democracia. Os analistas precisam entender que h uma comunidade de interesses entre o discurso analtico e a democracia, mas entend-lo de verdade! H que se passar do analista fechado em sua reserva, crtico, a um analista que participa; um analista sensvel s formas de segregao; um analista capaz de entender qual foi sua funo e qual lhe corresponde agora. (1999: 13) 33 .
Situando o analista que trabalha no servio pblico, Ana Figueiredo (1997) 34
fala que o analista que convm aquele que convive, evocando com isso a poltica institucional. Ela frisa que conviver viver com, atravessar o jogo onde o analista faz de sua diferena uma especificidade e no uma especialidade, tornando-se especial, e no especfico. O analista que convm no o
33 LAURENT, . Op. cit. 34 FIGUEIREDO, Ana Cristina. Vastas confuses e atendimentos imperfeitos: a clnica psicanaltica no ambulatrio pblico. Rio de J aneiro: Relume-dumar, 1997.
37 inconveniente e nem aquele que convence; muito menos aquele que conveniente, como um sujeito dcil e agradvel, escondendo sua arrogncia.
Essa especificidade do analista conquistada atravs do percurso em sua prpria anlise, do modo como este sujeito lidou com seus fantasmas e sintomas. Dessa forma, no possvel a um analista ficar alheio aos rudos do mundo exterior que, sem sombra de dvidas, chegam at o seu consultrio, seja ele pblico ou privado. O analista no pode se permitir nada querer saber do que se passa a seu redor, correndo o risco de ser interpelado pelos acontecimentos, sendo levado a refletir sobre a violncia que chega para todos ns, cada dia com maior intensidade e requinte -, a discriminao, a misria. importante que o analista se interrogue sobre os aspectos do social e do poltico que marcam os significantes de seu analisando, assim como que contedos do fantasma encontram argumento na realidade histrica, pois o social e o poltico marcam a escuta do analista.
Ento o sintoma pode ser social? De acordo com Koltai (2000) 35 sim,
se o considerarmos como algo histrico, localizado e especfico, significado pelo Outro e que, por isso mesmo, pode mudar com o tempo, acompanhando as transformaes do Outro tanto no plano pessoal quanto coletivo. social ainda, se o entendermos como a maneira singular pela qual o sujeito enfrenta o discurso de seu tempo... O sintoma justamente aquilo que impede o sujeito de realizar o que seu tempo lhe prescreve... Uma uniformizao cada vez maior da vida cotidiana que, com a globalizao em curso, vai
35 KOLTAI, Caterina. Poltica e psicanlise: o estrangeiro. So Paulo: Escuta, 2000.
38 atingindo todo o planeta, uniformizao de todos os modos de vida, inclusive as formas de desejo e gozo (p. 111-112).
Segundo Dunker (2002) 36 pode-se analisar o sintoma sob trs mbitos: o narrativo, o quantitativo e o estrutural. Do ponto de vista narrativo, o sintoma se transmite na famlia este pequeno universo de alteridades que atribui legitimidade ao sofrimento. A substituio dessa forma de gozo, apresentada pelo lao familiar pode ser feita por uma outra, oferecida pelo discurso, apresentado pelo lao social. Essa transmisso geracional, familiar, tambm pode se dar de forma distinta oferecida.
Um exemplo disso pode ser visto em sujeitos que se lanam em experincias transgressivas, num confronto com a lei, mas tambm como alternativa ao imperativo de gozo hegemnico numa famlia ou grupo social. Assim, a cultura comparece oferecendo um gozo a mais, deslocando o sujeito de um sintoma tipo familiar para um sintoma social, o que acarreta um esvaziamento de seus significantes fundamentais. A singularizao do sintoma poupada pela identificao s formas prontas do sintoma prescritas pela cultura. Outras formas de mal-estar e sintomas transitrios substituem o gasto psquico necessrio para produzir e sustentar o sintoma. O retraimento evolui assim para a apatia e a indiferena. A narrativa do conflito evolui para a narrativa do consumo ou para a descrio de experincias (Dunker, 2002: 153). Os filmes Cidade de Deus, dirigido por Fernando Meirelles e Madame Sat, dirigido por Karin Anoun, e exibidos recentemente, do-nos exemplos do que disse anteriormente.
36 DUNKER, Christian I. L. O clculo neurtico do gozo. So Paulo: Escuta, 2002.
39 Estamos numa regio limtrofe entre a tica e a moral; plena diviso, diviso do sujeito pelo significante (alienao) e pelo objeto (separao), e a pretenso do eu de ser uno; entretanto, um estranho. a tenso que vivemos, da diviso, da estranheza. Freud, e depois Lacan, vieram apontar-nos que no h Bem Supremo, pois este Das Ding, a me, o objeto incestuoso, portanto, um bem proibido. Para Freud (1933) 37 , o eu representa o que pode ser chamado de razo e senso comum, em contraste com o isso, que contm as paixes. Para conter essas paixes, percebidas pelo eu como ameaas sua integridade, erguem-se barreiras sociais, via recalque, modificando ou transformando o advento da pulso. Isso possvel graas aos ideais: construes culturais que visam normatizar aquilo que percebido como ameaador, sabendo que o recalcado sempre retorna em sonhos, atos falhos, sintomas, chistes e, em nvel social, nas formaes sociais e polticas. Nessa tenso entre o eu e os ideais, reside o conflito neurtico, que pode impossibilitar ao sujeito as aes e aqui, por extenso, desencadear os conflitos sociais.
Ao abordar a questo do supereu, Freud nos traz algumas dificuldades. Primeiro, ele o tempo todo confundido com o ideal de eu, s obtendo um status diferenciado em O eu e o isso (1923) 38 . Ele busca retratar a e depois na Conferncia XXXI: A disseco da personalidade psquica (1933) 39 as funes da conscincia, da manuteno do ideal e da auto-observao preliminar essencial da atividade de julgar; o supereu goza de um determinado grau de autonomia do eu, sendo sua medida de exigncia e dele advir a moral e a tica. A moral aquilo que nos permite dizer se uma ao boa ou m; uma das dimenses constitutivas do mundo intersubjetivo. No podemos pensar a
37 FREUD, S. A disseco da personalidade psquica (1933). In: ESB. Rio de janeiro: Imago, 1976. 38 FREUD, S. O eu e o isso (1923). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976. 39 FREUD, S. (1933). Op. Cit.
40 humanidade sem a moral e a intersubjetividade. Tambm no podemos deixar de pensar a tica, a tica da psicanlise.
O supereu observa, dirige e ameaa o eu, agindo, muitas vezes, com severidade e crueldade, colocando-se entre uma necessidade e uma ao, atravs da atividade do pensamento. Por ser um veculo do ideal de eu, pelo qual o eu se avalia, o supereu impulsiona com uma exigncia de perfeio sempre maior, que ele se esfora por cumprir, via identificao. O no cumprimento desse ideal pode gerar os sentimentos de culpa e de inferioridade, expresso da relao do eu com o supereu. A relao do supereu com o isso tambm de tenso, pois o isso no possui organizao, no conhece nenhum julgamento de valores: no conhece o bem, nem o mal, nem a moralidade; est vinculado ao princpio do prazer. Quem se encarrega de administrar as exigncias do isso e do supereu o eu, essa parte do isso que se modificou pela proximidade e influncia do mundo externo. O eu controla a motilidade e o tempo e sintetiza os contedos psquicos. rdua tarefa para uma nica instncia, que tem de conciliar seus trs tirnicos senhores: o isso, o supereu e a realidade. Viver muito perigoso! Em uma passagem de seu texto, Freud escreve:
A humanidade nunca vive inteiramente no presente. O passado, a tradio da raa e do povo, vive nas ideologias do supereu (grifo meu) e s lentamente cede s influncias do presente, no sentido de mudanas novas; e, enquanto opera atravs do supereu, desempenha um poderoso papel na vida do homem, independentemente de condies econmicas (1933: 87).
Parafraseando Freud, em uma passagem anterior ele afirma: Isto verdade, mas muito provavelmente no a verdade inteira. A verdade nunca inteira. Diante
41 disto, cabe pensar: ser s gozo ou lamento constatar a inexpressiva presena de negros na mdia, em cargos de poder, nas Universidades? Ser que 45% da populao brasileira est fora dessas instncias por incapacidade intelectual, desinteresse, inibio, problemas sociais ou puro gozo neurtico? Retomando Freud (1933) 40 , se o eu obrigado a admitir sua fraqueza, ele irrompe em angstia angstia realstica frente ao mundo externo, angstia moral, referente ao supereu e angstia neurtica referente s foras das paixes do isso (p. 99- 100).
No sintoma, trata-se da intruso do que no funciona no real, do que se coloca de maneira enviezada, para impedir que as coisas funcionem. De acordo com Santiago (1994) 41 , a clnica psicanaltica muda por que o sintoma sofre transformaes no decorrer da histria demonstrando, assim, que este tem uma estrutura de metfora, condicionada s manifestaes do mal-estar na civilizao. Segundo esse autor:
necessrio admitir que tais manifestaes no so simples abstraes, mas que assumem seu assento e sua incidncia efetiva no campo do Outro simblico, considerado como lugar de inscrio (p. 31).
Como o Outro no uma entidade fixa e estanque, seu lugar est aberto aos acontecimentos e eventualidades histricos. Encontramos em seu lugar as estruturas de parentesco, a metfora do Nome-do-Pai, mas tambm o sistema de significantes e o sistema dos ideais. As formas sintomticas mudam ao longo do
40 Op. Cit. 41 SANTIAGO, J sus. Aspectos da histeria na civilizao da cincia. Curinga, n 3, jun. 1994: 29-31.
42 tempo, obedecendo metfora das configuraes dominantes do mal-estar da civilizao.
Retomando a questo da vtima, Koltai (2002) 42 acrescenta que esta parece estar se tornando uma representao dominante da subjetividade, em nossa sociedade da reparao, pois a vtima permanece no registro da demanda, impossvel de ser satisfeita. No quero me aliar s vtimas, mas a histria aponta para algo mais que um reclame, uma queixa. Como construir referncias identificatrias para o negro e, ao mesmo tempo, operar uma desalienao desses ideais? Quando o negro sai de seu lugar historicamente marcado o navio negreiro, a senzala, a favela, a cela se depara com uma dura realidade: a de no ter referncias identificatrias, no ter algo ou algum em quem se espelhar, se mirar. Como pensar o olhar e a voz, essas pulses parciais constitutivas do eu, que podem ser marcas de pura angstia?
Apesar de considerar que defender os direitos universais de extrema importncia, no se deve deixar de salientar o perigo que se corre quando, ao defend-los, ser mal interpretado como defensor de uma universalizao que desconsidere a diferena, a singularidade. No quero defender uma universalizao que abole toda diferena, inclusive a diferena sexual, defendendo um modo de vida igual para todos. Primo Levi (1988) 43 nos adverte que considera-se tanto mais civilizado um pas, quanto mais sbias e eficientes so suas leis que impedem ao miservel ser miservel demais, e ao poderoso ser poderoso demais (p. 89). preciso encontrar uma forma de tratar essa patologia brasileira, causada por nossa profunda desigualdade. As novas leis podem no ser a sada mais satisfatria, mas no seria adequado permanecermos calados.
42 Op. Cit. 43 LEVI, Primo. isso um homem? Rio de J aneiro: Rocco, 1988.
43
Narcisismo das pequenas diferenas
necessrio fazer uma diferenciao entre preconceito e discriminao. Do ponto de vista etimolgico, podemos observar que a palavra preconceito significa um pr-julgamento, uma maneira de se obter uma concluso antes de qualquer anlise. O praeconceptu, de origem latina, significa posio irrefletida, pr-concebida e tambm pode ser entendido como pr-juzo. O preconceito uma atitude negativa, contra algum. Baseia-se numa comparao social em que a pessoa se coloca como referncia positiva e o outro, objeto de preconceito, visto em situao de desvantagem ou inferioridade social, econmica, cultural ou biolgica. O preconceito uma atitude que viola, simultaneamente, no mnimo, trs normas bsicas: a da racionalidade, a da afeio humana e a da justia. Assim, muito mais do que um prejulgamento ou simplesmente intolerncia (Bento, 1992) 44 .
O preconceito faz parte do humano, assim como o incesto e o crime. Estes, por serem efeitos de civilizao, devem ser combatidos, para no ficarmos entregues barbrie. Preconceito um pr-julgamento, irracional, tambm entendido como prejuzo, dano, estrago, perda. O preconceito irmo da ignorncia pois fruto de uma atitude de quem pensa que sabe, enquanto que a ignorncia resulta de quem no quer ou no pode saber, terreno bem conhecido na neurose. Ter preconceito ou ser preconceituoso significa ter uma opinio negativa antes de se obter elementos necessrios e significantes para um julgamento imparcial, da ser o preconceito adversrio da civilidade, visto que o processo de civilizao um estgio no relacionamento entre os homens; a civilidade pressupe
44 democracia, o exerccio cotidiano de um mnimo de regras de convivncia e de tolerncia para com o Outro. Quando a incapacidade para julgar com serenidade se manifesta, a civilidade sucumbe ou desaparece (Dines, in Lerner, 1997: 59) 45 .
H casos e situaes em que o preconceito se manifesta de forma direta, como no caso dos nazistas em relao aos judeus. Essa forma de expresso torna o ato preconceituoso mais visvel devido ao seu extremo, mas torna possvel o seu combate, atravs de formas tambm diretas de resistncia. Basta observarmos o volume de rebelies, fugas, assassinatos, cometidos por aqueles que ocupam os lugares mais desprivilegiados em termos de excluso: presdios, asilos, abrigos... A outra forma de manifestao seria aquela disfarada, que se esconde sob um vu qualquer de neutralidade sempre suspeita como o caso da suposta cordialidade caracterstica do povo brasileiro.
Com relao origem, Dallari (in Lerner, 1997) 46 aponta, como os principais geradores do preconceito: a ignorncia, a educao domesticadora, a intolerncia, o egosmo, o medo. Sobre a ignorncia, j comentamos anteriormente. A educao que recebemos fruto da socializao que acontece na intimidade do lar, nas escolas, no trabalho e em grupos sociais diversos; a intolerncia deriva do individualismo moderno que veiculado pelos meios de comunicao de massa 47 ; o egosmo gera preconceito porque o egosta julga bom o que lhe convm e mau o que lhe causa embarao ou prejuzo.
44 BENTO, Maria Aparecida Silva. Resgatando a minha bisav: discriminao racial no trabalho e resistncia na voz dos trabalhadores negros. So Paulo: Pontifcia Universidade Catlica, 1992. Dissertao de mestrado. 45 LERNER, J lio (ed.). O Preconceito. So Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1997. 46 Op. Cit. 47 A realidade dos programas de rdio e, sobretudo de televiso, nos quais apresentadores ou locutores emitem suas opinies ou induzem os convidados a faz-lo, chegando, na maioria das vezes, expresso de preconceito virulento ou cenas de violncia explcita.
45 Em Alm do princpio do prazer, Freud (1920) 48 distingue o medo do susto e da angstia. Segundo ele:
A angstia descreve um estado particular de esperar o perigo ou preparar-se para ele, ainda que possa ser desconhecido. O medo exige um objeto definido de que se tenha temor. Susto, contudo, o nome que damos ao estado em que algum fica, quando entrou em perigo sem estar preparado para ele, dando-se nfase ao fator da surpresa (pp. 23-24).
Para os negros, o medo um sentimento experimentado diariamente diante de um policial, um agente de segurana, um recepcionista e de todos aqueles cuja funo barrar o acesso, seja em locais pblicos ou privados. Cabe lembrar que, na maioria das vezes, os que barram tm a mesma cor daqueles que so barrados, o que costuma causar ainda mais estranheza, admirao e susto.
Ainda segundo Dallari, o preconceito acarreta a perda do respeito pelo humano, restringe a liberdade de muitos, introduz a desigualdade, estabelece e alimenta a discriminao, promove a injustia. Para combat-lo precisa-se de atos. Assim como ele transmitido via educao, esta tambm pode elimin-lo.
Sendo fruto da ignorncia, o preconceito est articulado ao senso comum, este conjunto de crenas, valores, saberes e atitudes que julgamos naturais por que transmitidos de gerao a gerao, sem questionamentos; nos dizem como so e o que valem as coisas e os seres humanos, como devemos avali-los e julg-los.
48 FREUD, S. (1920) Alm do princpio do prazer. In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.
46 O senso comum a realidade como transparncia: nele tudo est explicado e em seu devido lugar (Chau, in Lerner, 1997: 116) 49 .
Ainda de acordo com Chau, as caractersticas mais significativas do senso comum so: o subjetivismo, que torna universal o singular; o juzo, o modo como cada um avalia e julga; a heterogeneidade; a individualizao; a generalizao e a causalidade (estabelecimento de relaes de causa e efeito, todas elas incidindo sobre pessoas, fatos ou coisas). Os preconceitos cristalizam o senso comum, tendo efeitos sob a forma de pensar e de sentir de uma sociedade, no que diz respeito ao preconceito contra os negros, frases como: Preto parado suspeito; correndo ladro!, so um bom exemplo de como a sociedade os trata.
Cabe lembrar que, ao falar em preconceito, vislumbramos a possibilidade de um conceito; porm, so coisas distintas. Se a base para a formao de um pr- conceito a ignorncia, ele, em geral, dispensa o trabalho do pensamento. O pensamento organiza, rene, sintetiza os dados imediatos da experincia, da o conceito ser fruto de um trabalho intelectual que visa chegar a uma verdade, enquanto o preconceito se acredita verdadeiro.
Um dos preconceitos mais arraigados em nossa sociedade o da pacificidade e da cordialidade do povo brasileiro, o que no passa de uma mscara. Essa mscara oculta, alm da questo racial de que trato aqui, a nossa diviso social, destacando dois extremos: o das carncias, onde se situa uma boa parcela de nossa populao e a imensa maioria dos negros e o dos privilgios, geralmente desfrutados pela classe mdia e alta. Como as pessoas no se dispem a abrir
49 Op. Cit.
47 mo de seus privilgios, transformando-os num bem comum, resta a carncia como condio de muitos. O fato de a classe mdia desfrutar privilgios no torna seus integrantes cidados, pois cidados tm direitos e no privilgios. Da a dificuldade em reduzir a imensa desigualdade social e econmica, pois quem tem acesso s instncias de poder e que poderia pleitear a reduo das carncias no o faz por temor de perder seus privilgios. No preciso dizer que a Abolio, antes de trazer reais benefcios aos negros, garantiu ingleses privilgios aos brancos.
Em se tratando de cidadania, o gegrafo Milton Santos (in Lerner, 1997) 50 fala- nos das mutilaes que esta sofre em nosso pas, ao que ele nomeou cidadania mutilada. Mutilada no trabalho, na remunerao, nas oportunidades de promoo, na localizao das moradias, nos meios de transporte, na educao e na sade. Nesse cenrio, os negros sofrem dessa mutilao que sempre vem aliada a outras: o destrato das polcias e da justia, por exemplo.
Para entender a questo do preconceito, do racismo e da discriminao, Santos (1997) vai lanar mo de trs dados: a corporalidade, a individualidade e a cidadania. A corporalidade inclui dados objetivos, a individualidade inclui dados subjetivos, e a cidadania inclui dados polticos e jurdicos. Por isso, o preconceito, o racismo e a discriminao podem vir da corporalidade _ a maneira como o sujeito visto _, da individualidade _ o modo como o sujeito ensa a si mesmo e aos outros e tambm da forma como se localizam no mundo, ou seja, da cidadania. O fato de alguns negros serem privilegiados no lhes garante o exerccio pleno da cidadania o exerccio dos direitos pois estes so
50 Op. Cit.
48 apontados como exceo. As excees - os negros que chegaram l - so sempre lembradas quando preciso garantir nossa democracia racial.
Por outro lado, os esteretipos so imagens construdas atravs de simplificaes de comportamentos que acentuam semelhanas e diferenas, produzindo generalizaes. Eles desempenham, algumas vezes, o papel de legitimadores ideolgicos de polticas intergrupais, racionalizando e explicando diferenciaes de tratamento. Os brancos, ou melhor, os escravocratas, explicavam o sistema de escravido, dizendo que os negros se adaptavam melhor ao regime de explorao.
Os esteretipos possuem os seguintes pontos bsicos: a) so generalizaes grosseiras para classificar extensos grupos humanos; b) so aprendidos e ensinados durante a infncia; c) sua mudana se d de forma extremamente lenta; d) so utilizados, em climas de tenso e conflito social, como instrumentos hostis contra os grupos ou pessoas estereotipadas negativamente.
Em nossa sociedade, a criao de esteretipos tambm visa ao consumo, tornando o diferente, o extico ou, para dizer de raa, o tnico, um grupo de consumidores. No mercado, h todo tipo de produtos com a marca tnica: revistas, maquiagem, xampus, roupas, discos, jias, bijuterias, penteados, etc. Essa categoria, que consumida e valorizada por um segmento da populao, de certa forma, disfara o preconceito sob o vu do politicamente correto, reforando nesses grupos (negros, ndios, nordestinos, no caso brasileiro) o lugar de objeto que ocupam. Para se ter um retrato dessa situao, basta percorrer os bairros comerciais e os shoppings centers das grandes cidades para se deparar com lojas dedicadas a esse segmento.
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Ainda em relao ao tnico e ao consumo, numa pesquisa realizada em sales de beleza para negros em Belo Horizonte, Gomes (2002) 51 verificou que h uma tendncia nos cabeleireiros em incentivar nos clientes a colocao de enxertos, as tranas, alisamentos de todo tipo. Ao ser indagada sobre o porqu desses cabeleireiros no incentivavam a utilizao dos cabelos in natura, a resposta dada que h um grande conflito nesse segmento: mesmo percebendo o salo de beleza como um local que propicia uma certa militncia, pois podem possibilitar a auto-aceitao, os profissionais precisam e querem ganhar dinheiro e, para isso, precisam investir em tcnicas que, na grande maioria das vezes, vo ao encontro de uma ditadura do mercado.
O preconceito uma violao do preceito de respeito ao ser humano, de fraternidade, pois consiste em uma predisposio negativa e hostil frente a outro ser humano. Trata-se de uma desvalorizao da outra pessoa tornando-a, supostamente, indigna de conviver no mesmo espao e, conseqentemente, excluindo-a moralmente. Em geral, defende-se o compromisso moral perante a famlia, os amigos, os parentes, a sociedade, mas, diante dos estranhos, dos diferentes, daqueles que so estereotipados negativamente, a abordagem permissiva, descabida e arbitrria, justificando a excluso como natural.
Em sntese, ao se analisar as vrias facetas do preconceito, alguns aspectos se tornam evidentes, como a postura de suposta superioridade de um grupo sobre o outro, pela definio de papis diferenciados, pelo privilgio e o medo da competio e das aspiraes do grupo subordinado. O oposto do discurso discriminador seria a fraternidade pois esta domestica o estrangeiro, tornando-o
51 GOMES, Nilma Lino. Corpo e cabelo como cones de construo da beleza e da identidade negra nos sales tnicos de Belo Horizonte. So Paulo: USP, 2002. Tese de Doutorado.
50 semelhante. O semelhante introduz a amizade, a ternura, a solidariedade entre os humanos, que no deve ser pensada apenas como uma reduo da agressividade, uma formao reativa secundria, mas como essa tentativa de humanizar o outro.
O preconceito no se confunde com a discriminao. Esta a manifestao comportamental do preconceito; so aes promovidas com o objetivo de manter as caractersticas do grupo de posio privilegiada e referncia positiva.
Aceita-se, geralmente sem muito debate, que a discriminao seria fruto do preconceito. O problema deste modelo, que correlaciona de maneira direta como sendo um a causa do outro, que no consegue explicar alguns tipos de discriminao como, por exemplo, a racial. O desejo de manter o prprio privilgio branco (teoria da discriminao com base no interesse), e no no sentimento de rejeio aos negros, pode gerar a discriminao. Podemos destacar, ento, que a discriminao poderia ser provocada por preconceito ou motivada por interesse de manter privilgios (Bento, 1992) 52 .
Discriminao um conceito mais amplo e dinmico do que o do preconceito. Ambos tm agentes diversos: a discriminao pode ser provocada por sujeitos e por instituies e o preconceito s pelo sujeito. Tanto a discriminao quanto o preconceito podem ser analisados do ponto de vista do portador quanto do receptor.
O ponto de vista tradicional focaliza a discriminao como mais individualista, espordica, episdica, aberta, escancarada, e mais complexa, do que a perspectiva institucional, que acentua o carter rotineiro e contnuo, aberto ou
52 Op. Cit.
51 dissimulado, quase imperceptvel, o que significa um desafio para aqueles que trabalham com a questo racial.
Podemos citar, como exemplos desse ltimo enfoque, os testes de seleo de pessoas para admisso no trabalho, uma carta de promoo, um anncio no jornal dando preferncia a um grupo ou a um segmento da populao. No mercado de trabalho, os negros sofrem basicamente trs tipos de discriminao: o primeiro a discriminao ocupacional, uma dificuldade em obter vaga para funes melhor remuneradas e valorizadas; este tipo de discriminao tem base no questionamento da capacidade do negro para executar tarefas mais complexas. O segundo tipo a discriminao salarial, que diz respeito s diferenas salariais, quando exercidas as mesmas funes, ou seja, o trabalho do negro no vale tanto quanto o dos demais. Isso ocorre especialmente com as mulheres, e de forma ainda mais cruel com as mulheres negras. O terceiro tipo a discriminao pela imagem (visual) que impede o negro de obter uma vaga pela sua aparncia, o que pode ocorrer para um emprego em uma residncia ou numa grande empresa (Santos, 2000: 90) 53 .
Quanto ao racismo, fala Essed (1995) 54 :
Racismo uma ideologia, uma estrutura e um processo pelo qual, grupos especficos, com base em caractersticas biolgicas e culturais verdadeiras ou atribudas, so percebidos como uma raa ou grupo tnico inerentemente diferente e inferior. Tais diferenas so, em seguida, utilizadas como fundamento lgico para se
53 SANTOS, Hlio. Em busca de um caminho para o Brasil: a trilha do crculo vicioso. So Paulo: Senac, 2000. 54 ESSED, Philomena. Por trs da fachada holandesa: multiculturalismo e a negao do racismo nos Pases Baixos. Estudos Afro-asiticos. Rio de J aneiro: v. 28, out. 1995: 171-183.
52 exclurem os membros desses grupos do acesso a recursos materiais e no materiais. Com efeito, o racismo sempre envolve o conflito de grupos a respeito de recursos culturais e materiais. Ele opera por meio de regras, prticas e percepes individuais, mas, por definio, no uma caracterstica de indivduos. Portanto, combater o racismo no significa lutar contra indivduos, mas se opor s prticas e ideologias pelas quais o racismo opera atravs das relaes culturais e sociais (p.174).
O racismo pode ser entendido como um princpio de inferioridade do grupo segregado, antes de tudo desigual e injusto. O grupo vtima dispe de um lugar na sociedade considerada, qual seja, o de se dedicar s tarefas mais penosas e de no ser demasiado visvel.
Na ideologia dominante, em geral no se reconhece que o racismo seja um problema estrutural. O termo racismo reservado apenas a crenas e aes que apiam abertamente a idia de hierarquias de base gentica ou biolgica entre grupos de pessoas. O problema dessas definies restritas de racismo que elas tendem a fazer vista grossa natureza cambiante do racismo nas ltimas dcadas. O discurso do racismo est se tornando cada vez mais impregnado de noes que atribuem deficincias culturais a minorias tnicas. Essa culturalizao do racismo constitui a substituio do determinismo biolgico pelo cultural. Isto , um conjunto de diferenas tnicas reais ou atribudas, representando a cultura dominante como sendo a norma, e as outras culturas como
O racismo pode, portanto, ocorrer sob trs formas: o racismo individual ou pessoal acontece quando uma pessoa se cr superior a outra em funo de sua raa; o racismo institucional, quando Instituies, Estados e/ou Governos entendem que um determinado grupo racial deve ter primazia em relao a outros grupos e o racismo cultural, que ocorre quando um determinado grupo racial entende que a sua herana cultural se sobrepe em importncia de outros grupos.
Um dos efeitos mais sinistros da ideologia racial no Brasil a pouca ou nenhuma percepo do racismo pelas vtimas, pois vigora uma ideologia nacional de harmonia e tolerncia racial. Uma das conseqncias a auto- rejeio e a rejeio do seu outro. O dio de si. Rgidos esteretipos de pensamentos e repeties constantes: com esses meios, as reaes vo sendo gradualmente embotadas, e confere-se trivialidade propagandstica uma espcie de auto-evidncia axiomtica que a ideologia coloca no oprimido, um tipo insidioso de inferiorizao que resulta em desagregao individual e desmobilizao coletiva. Dessa forma, as resistncias da conscincia crtica so minadas. No caso do Brasil, o nosso chamado racismo cordial sutil, mascarado, engenhoso. No tem nada de cordial, pois mascarado e, por isso, de difcil combate. O fato de a sociedade brasileira considerar os negros incapazes por natureza se reflete diretamente em trs setores sociais: nos meios de comunicao que reproduzem os esteretipos; na polcia que reprime os considerados perigosos e nos prprios negros, que assimilam estas idias,
55 Op. Cit.
54 podendo gerar ressentimento, o dio de si. Diante da questo: o que o outro quer de mim? (Che voui?), a resposta : ele quer o que eu tenho e que ele no tem. A primeira resposta que surge dessa questo da ordem do ter, uma relao de agressividade competitiva e rivalizante. Essa relao existente entre irmos, por exemplo encontra seu limite na simpatia, na relao entre semelhantes 56 .
Quando h algum episdio que se torna pblico _ por exemplo, o assassinato por policiais, do dentista Flvio Ferreira de SantAnna, em fevereiro de 2004, na cidade de So Paulo, quando um comerciante o confundiu com um assaltante _, o tema vem discusso. Neste caso, algumas personalidades so chamadas a dar depoimentos artistas, atletas, polticos e o que se v so denegaes do tipo: eu nunca sofri nenhum preconceito, a no ser uma vez em que fui barrado num hotel.... Quem nunca ouviu este tipo de declarao, especialmente de jogadores de futebol ou artistas populares? Assim, os brasileiros sabem que h racismo, negam t-lo, mas demonstram, em sua imensa maioria, preconceito contra os negros. E estes, como no exemplo acima, so sempre vistos como bandidos, sujos, incapazes e, parece que, por mais esforos que faam para conquistar um lugar social melhor, carregaro em seus corpos as insgnias que no os separam desses implacveis sentidos que configuram o racismo e a discriminao (Nogueira, 1998: 04) 57 .
A questo central que no podemos ignorar que o racismo se estabelece a partir de uma relao desigual e injusta entre os grupos sociais, pois um exerce o papel de grupo dominante, embora nem sempre se identifique como tal. Isto nos remete falsa tolerncia. O grupo dominante afirma ser tolerante em relao aos dominados racialmente e esses devem acreditar na sua boa vontade, mesmo
56 Ver captulo seguinte: O escravo psquico. 57 NOGUEIRA, Izildinha B. Significaes do corpo negro. So Paulo, USP, 1998. Tese de Doutorado.
55 quando os primeiros afirmam no serem racistas. A idia de que os dois grupos devem ser tolerantes irreal e falsa, pois ignora as diferenas de poder entre quem pratica a discriminao racial e quem vtima dessa discriminao. Mas, conforme afirma Koltai (2000) 58 , no h racismo sem discurso, lembrando que o discurso do sujeito se constitui no discurso do outro. As particularidades do sujeito no mundo so significadas pelo sintoma, sendo o sintoma aquilo que constitui trao daquilo que faz lao, conflito/tenso, separao e sutura entre histria individual e histria da cultura. A partir dessa reviso,cabe perguntar como se d, para o sujeito negro, a elaborao, no plano psquico, dos significados que o racismo traz consigo.
Para tentar responder a essa questo, farei primeiramente um passeio terico em Freud e Lacan para, em seguida, falar do racista. Em seu artigo O estranho (1919) 59 Freud nos apresenta a verso daquilo que nos familiar, sendo estranho, estrangeiro. O familiar se torna estrangeiro devido ao do recalcamento. essa terra estrangeira interior, Lacan chamou extimidade, designando com isso o real no simblico; simblico que organiza a experincia, enquanto o real aquilo do qual no se pode dizer. O estranho esse enlace entre o real e o simblico, articulados pelo imaginrio que tudo representa, atravs de nossas criaes, imagens, sentidos e fantasma. O estranho vem ento se apresentar sob trs formas.
Uma de suas formas a do autmato, daquilo que rouba o lugar do que deveria ser espontneo e natural, passando desapercebido. Uma outra forma a do duplo, que aparece como imagem especular ou como sensao de pura presena que, mesmo invisvel, se faz existir, sem sombra de dvidas. Radmila Zygouris
58 KOLTAI, Caterina. Poltica e psicanlise: o estrangeiro. So Paulo: Escuta, 2000. 59 FREUD, S. O estranho (1919). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976. vol.XVII, p. 275-314.
56 (1995) 60 denomina assombrao quilo que vem de algo que efetivamente aconteceu na realidade, vindo a assumir autonomia psquica e, por isso, podendo ser esperado novamente numa realidade futura. A assombrao d forma angstia, e representada pelo medo. Ela se difere do fantasma, uma vez que este designa a sujeio originria ao Outro, traduzida pela pergunta: Que queres? Ela exprime a relao genrica e varivel, porm nunca simtrica, entre o sujeito do inconsciente, sujeito barrado, dividido pelo significante que o constitui e o objeto a, que remete a um vazio do lado do Outro. O fantasma uma parada na imagem, uma forma de impedir o surgimento de um episdio traumtico; imagem cristalizada, defesa contra a castrao, no mbito de uma estrutura significante que no pode ser reduzida ao imaginrio, tal como os devaneios.
A outra forma do estranho o feminino; feminino pensado enquanto diferena, enquanto Outro. um Outro que se ope ao Mesmo, resistindo ao um da norma, fazendo objeo ao todo. A norma o masculino, o adulto, o branco; norma flica.
O estranho vem de onde no se espera, da mais absoluta proximidade, podendo, por isso, provocar situaes de negar sua proximidade mantendo-o distncia, ou ignorar sua estranheza. A vivncia desse estranho familiar no privilgio de nenhum sujeito em particular, no especificando nenhum tipo clnico. Ela aparece para neurticos e psicticos, que partilham a mesma experincia, cada um a seu modo. A experincia da estranheza tambm pode vir com um sentimento de enfado. Tudo certo, mas t esquisito!, a frase dita por um analisante; essa frase denota cansao, fastio, tristeza, falta de sentido para a vida. Sensao que acomete a todos os humanos. Freud distingue o outro enquanto
60 ZYGOURIS, Radmila. Ah! As belas lies. So Paulo: Escuta, 1995.
57 semelhante, no qual nos reconhecemos, segundo as regras do bem e da identificao, e o prximo propriamente dito, este outro inomevel, estranho e estrangeiro a mim mesmo, a coisa freudiana.
esse outro inomevel que ameaa quele que sofre as conseqncias do racismo: estranhar no outro aquilo que julgo oposto aos costumes, o que diferente do esperado e, por isso, causa espanto, admirao, surpresa; da desviar, fugir, atacar, desumanizar, matar. O que inquieta no outro o seu modo particular de gozar, pois o racista no reconhece outra forma de gozo que no a sua; reconhecer outra forma de gozo reconhecer que todo o gozo no lhe pertence. Segundo Koltai (1998) 61
O racismo dio do gozo do outro. Tentar se libertar do gozo do outro uma tentativa mortfera, em que o estrangeiro aparece como representante do gozo e tem, portanto, de ser destrudo. No existe, nem pode existir, sociedade que oferea a todos um gozo igual, uma vez que, do ponto de vista do fantasma, sempre o outro que goza. Imputa-se sempre ao outro um gozo excessivo, acusando-o de querer estragar nosso modo de vida. O que nos incomoda no outro estrangeiro justamente seu modo particular de organizar seu gozo e, mais precisamente, o excesso que o seu (p. 110).
A problemtica da alteridade possui trs eixos: o primeiro diz do juzo de valor: o outro bom ou mau, amado ou no, igual ou inferior. No segundo, aceita-se ou no os valores do outro, assimilando-os, ou ento imponho a ele minha prpria imagem e o assimilo a mim, na tenso quem submete quem. No terceiro eixo, posso conhecer e reconhecer a alteridade que se constitui na superao dos
58 eixos anteriores (de amor-dio, dominao-submisso) (Todorov, 1995) 62 . Qualquer modalidade de poder visa sempre dominar os homens e submet-los docilmente aos seus desgnios. O exerccio concreto do poder implica em maneiras sutis e ostensivas de economia perversa. Inmeros indivduos, especialmente neurticos, mas no s, aliam-se a outros indivduos, entidades, instituies, partidos, traficantes, num pacto profanamente sagrado, em busca de alguns podres poderes, com marcas de gozo, para alm do prazer, desafiando a castrao.
Assistimos ao estrangeiro, no nosso caso, o negro, exercendo fascnio, principalmente pelo exotismo e provocando horror, expresso por meio do racismo. Wiesel (in Koltai, 2000) 63 distingue trs categorias de estrangeiros: o neutro, que indiferente, quase ausente; o que agita, estimula, criador e, devido sua presena, uma sociedade adormecida em seus hbitos pode se permitir recuperar seu brilho. E h aquele estrangeiro hostil, quase odioso, a quem se teme.
Preconceito, racismo e discriminao formam o conjunto daquilo que Freud (1930) 64 , em O mal-estar na civilizao nomeou o narcisismo das pequenas diferenas. Essas pequenas diferenas so aquilo no qual o outro se assemelha e, por conseguinte, formam o terreno da estrangeiridade e gera a hostilidade entre os homens. Diferenas nem to diferentes assim e pequenas s vezes nem to pequenas. Mas todas narcsicas.
61 KOLTAI, Caterina (org). O estrangeiro. So Paulo: Escuta, 1998. 62 TODOROV, Tzvetvan. Em face do extremo. So Paulo: Papirus, 1995. 63 KOLTAI, Caterina. Poltica e psicanlise: o estrangeiro. So Paulo: Escuta, 2000. 64 FREUD, S. O mal-estar na civilizao (1930). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.
59 Segundo Lacan (1998) 65 , cada vez que o sujeito se aproxima da alienao primordial, que ele descreve como o estdio do espelho, surge a agressividade radical, o desejo de aniquilamento do outro, como suporte do desejo do sujeito. O discurso racista surge, ento, como uma das manifestaes da universalidade do discurso cientfico, baseando-se na negao ao outro, de qualquer subjetividade, destituindo-o de seu estatuto humano, reduzindo-o a mero trao diferencial. Ele baseado numa lgica totalizante, em que um todo se ope a outro todo. A lgica totalizante implica pensarmos em fronteiras, margens, separaes fsicas, ideolgicas, culturais, psquicas.
Essa diferena, esse narcisismo das pequenas diferenas, nos remete ao gozo, a outra forma de gozar que no a que se conhece. Isso marca uma estrangeiridade: se h outra forma de gozar, algum pode estar gozando mais e melhor do que eu. O mais gozar de um implica um menos gozar do outro e esse gozo provoca ira, dio, agressividade.
Ele nos lembra que s na fala possvel advir como sujeito, trazendo uma possibilidade de tratar esse sintoma. Isto possvel via anlise, lembrando que na clnica, o preconceito se manifesta quando o analista ou o analisante colocam-se na posio de mestres, gerando a impossibilidade da escuta e da livre associao.
A psicanlise vem mostrar que no existe nada mais estrangeiro para o sujeito que sua prpria exterioridade e a maneira como lida com essa exterioridade determina o que define do Outro como estrangeiro. O que ela pode propiciar o fim desse processo sacrificial, apontando uma outra soluo questo do desejo
65 LACAN, J acques. O estdio do espelho como formador da funo do eu. In: Escritos. Rio de J aneiro: J orge Zahar, 1998. p. 96-103.
60 do Outro. Ela aposta numa mudana de posio em relao ao desejo do Outro, que consiste em separar-se dele, no mais esperar que dele venham as respostas para viver e gozar. Uma psicanlise pode levar um sujeito _ receptor ou discriminador _ a no mais rejeitar esse heterogneo sobre os outros, encontrando seu prprio destino, aceitando suas particularidades, sua parte de um outro gozo e o dos outros. Enfim, encontrar uma outra lgica, no mais baseada na segregao (Koltai, 2000) 66 .
E o Outro, quem ou o que ? Ele no somente o lugar dos significantes, que condiciona o inconsciente estruturado como uma linguagem. O Outro o corpo, o corpo marcado pelas bordas, bordas orificiais de onde se destacam os objetos: seios, fezes, voz e olhar.
A psicanlise social por que oferece ao sujeito uma possibilidade de tratar do gozo. Ela conduz o analisante ao encontro com a pulso de morte e seu gozo, o que tem como conseqncia a produo de efeitos civilizatrios: o encontro do sujeito com o seu prprio dio permite-lhe a conquista de um saber e, possibilitando um certo distanciamento, um desprendimento desse gozo.
66 Op. Cit.
61 TERCEIRO CAPTULO
ESCRAVO PSQUICO
As bestas coisas em que a gente no fazer e no nem pensar vive preso, s por preciso, mas sem fidalguia. J oo Guimares Rosa
A posse de um homem por outro, esse ato de violncia por excelncia, presente em todo contexto histrico da humanidade. De acordo com La Botie (1999) 67 , s os humanos servem voluntariamente. O escravo - sujeito social - est presente, na histria da humanidade, h muitos sculos. Podemos nos reportar Grcia antiga, onde a sociedade era dividida entre cidados, de um lado, e escravos e estrangeiros, de outro.
Para melhor perceber essa sociedade preciso compreender o que um escravo e o que vem a ser a escravido. Escravo aquele que est sujeito a um senhor, como propriedade deste, ou que est sujeito a outrem ou a alguma coisa; um criado, um servo; um indivduo que trabalha em demasia. A escravido o estado ou a condio de escravo, marcada pela falta de liberdade, pela servido, dependncia, sujeio e submisso. Tambm um regime social de sujeio do homem como propriedade privada e utilizao de sua fora, explorada para fins econmicos (Ferreira, 1986: 690-691) 68 .
Pela definio, percebemos que a escravido parte da condio humana, por um lado e, por outro, est intrincada nas mais diversas organizaes sociais ao longo da histria. Tem, portanto, aspectos econmicos, sociais, polticos e
67 La BOTIE, Etinne de. Discurso da Servido voluntria. So Paulo: Brasiliense, 1999.
62 psquicos, conforme ser visto adiante. Aqui, buscarei esclarecer como se d a escravido psquica, de acordo com a teoria psicanaltica e tambm explorar a escravido do ponto de vista social, imposta aos negros no Brasil. Esta, enquanto um modo de produo legtimo, vigorou em nosso pas por mais de trs sculos e, decorridos mais de cem anos de sua abolio, seus traos permanecem presentes em nosso imaginrio e em nossa realidade social.
Buscarei apresentar de qual forma a escravido fenmeno social se articula sua outra face a escravido psquica. No circuito da pulso, esta sai de sua fonte, atinge o campo do outro e retorna. Nesse caminho, ela se depara com o desejo e as formaes culturais. Inicio este percurso com o psiquismo, sua constituio e os destinos pulsionais para, num segundo momento, refletir sobre o modelo escravocrata brasileiro e a forma como este se presentifica em nosso cotidiano, especialmente para os negros.
A idia de pensar a escravido social inscrita, nos dias atuais, no psiquismo dos negros, surgiu, como j disse, de minha prtica clnica em psicanlise, do dizer de analisantes negros, de casos de pessoas pblicas ou destacadas pela mdia, e de conversas informais. Em situaes cotidianas na clnica ou em espaos sociais este ditado popular foi ouvido, com algumas pequenas variaes:
Preto isso: quando no caga na entrada, caga na sada. Se ele no caga na entrada nem na sada, deixa um bilhete: eu volto.
Ditado como esse parece afirmar que, do negro, a errncia, o fracasso e a runa so esperados, por serem coisas de preto. Aqui, o termo fracasso chama
68 FERREIRA, Aurlio B. H. Novo Dicionrio da Lngua Portuguesa. 2.ed. Rio de J aneiro: Nova Fronteira, 1986.
63 ateno no s pelos nmeros que as estatsticas e indicadores sociais apontam, como tambm pelos recursos utilizados para justific-los. Pensando nisso, um autor tornou-se destaque em minha investigao por ter sido o criador do conceito de neurose de fracasso. Esse conceito, se no possibilita a explicao da condio do negro no Brasil, pode ser um auxiliar na ampliao do conhecimento que temos. Partirei, ento, do conceito de neurose de fracasso para, em seguida, dizer da constituio do psiquismo e da escravido psquica.
A psicopatologia do fracasso
O termo neurose de fracasso foi criado por Ren Laforgue para:
designar a estrutura psicolgica de toda uma gama de indivduos, desde aqueles que, de um modo geral, parecem ser os artfices da sua prpria infelicidade, at aos que no podem suportar obterem precisamente o que mais ardentemente parecem desejar (Laplanche e Pontalis, 1983: 392-393) 69 .
O termo utilizado num sentido mais descritivo do que nosogrfico e caracteriza o preo a ser pago por qualquer neurtico como conseqncia do desequilbrio prprio a estes sujeitos e no como reao a um fracasso real.
Laforgue dedicou alguns de seus trabalhos mais significativos a esse assunto. Em A psicopatologia do fracasso (1939) 70 , ele agrupou todas as espcies de sndromes de fracasso que tinham referncia na vida afetiva ou social, individual ou num grupo social (famlia, classe social, grupo tnico, etc.) e buscou sua
69 LAPLANCHE, J . & PONTALIS, J . B. Vocabulrio da psicanlise. 7.ed. So Paulo: Martins Fontes, 1983.
64 causa na ao do supereu. Ele s caracterizava uma neurose de fracasso naqueles casos onde o fracasso constitui o prprio sintoma, exigindo uma explicao especfica e no quando ele o produto por acrscimo do sintoma, por exemplo, nos casos de fobia onde as medidas de proteo exigidas pela patologia impossibilitam o sujeito de se deslocar, causando uma paralisao.
De acordo com Roudinesco e Plon (1998: 454-456) 71 , Ren Laforgue (1894- 1962) foi um dos fundadores do movimento psicanaltico francs e teve um importante papel na histria da psicanlise na Frana, tentando organizar as vrias tendncias que ento vigoravam neste pas, contendo vrias correntes e fiis seguidores. O trabalho de Laforgue chamou-me a ateno e constitui a base dessa investigao. Quando comecei a esboar este trabalho, foi a neurose de fracasso que me serviu de guia, por isso, acredito que vale a pena recuperar a histria desse autor e sua obra. No meu ponto de vista, sua trajetria de vida parece ilustrar aquele que veio a se tornar seu texto mais representativo: a psicopatologia do fracasso.
Laforgue originrio de uma famlia modesta seu pai era um arteso pobre, sua me depressiva e suicida; moraram numa terra estrangeira, a Alscia que, na poca, no era um territrio francs e, muito menos alemo. Torna-se um estrangeiro e, segundo seu relato:
Aprendi a me privar de certezas. E a me manter na faixa estreita da fronteira que marca o limite entre a vida e a morte. Quando se adquiriu o hbito de no ter mais nada a perder, descobrem-se
70 LAFORGUE, Ren. Psyichopatologie de lchec. Paris: Payot, 1939. 71 ROUDINESCO, Elisabeth & PLON, Michel. Dicionrio de Psicanlise. Rio de janeiro: J orge Zahar, 1998.
65 riquezas que no so desta terra. Em vez de procurar flores unicamente nos jardins bem podados, aprende-se a v-las no estrume, e ele existe por toda parte. Assim, inclinei-me sobre os condenados da terra, e foi entre eles, graas a sua misria e a seu despojamento, que encontrei um ensino que ignorava os que eram criados numa preocupao contnua com a convenincia e tendo a obrigao de viver para adquirir uma grande fortuna (Laforgue, in: Roudinesco, 1989: 293) 72 .
Tendo recebido uma rgida educao, foge da casa paterna e faz estudos de medicina em Berlim. Aos dezenove anos, toma contato com a psicanlise atravs da leitura de A interpretao dos sonhos. Identificava-se aos judeus de ento: sem ptria, desarraigados, em uma verdadeira confuso de lnguas. Sua vida foi marcada por uma sucesso de eventos dramticos: foi enviado ao front, em 1914, e viu os horrores da guerra, a realidade das doenas, o medo, as epidemias. Viu de perto a sujeira e a morte quando foi ferido. Casado, viveu conflitos decorrentes de doena da mulher e uma histerectomia, que lhe tirava a possibilidade de ter filhos. Divorciado, se casa uma segunda vez, e torna-se pai de uma filha deficiente. Viveu, tambm, intensos conflitos religiosos, convertendo-se, nos anos 1950, ao espiritualismo, e chega a participar de um movimento de reviso da teoria psicanaltica sob uma tica ocultista, meditativo e orientalista, afirmando uma adeso difusa desses mesmos ideais aos do catolicismo.
Por ocasio da Segunda Guerra, Laforgue foi seduzido pela possibilidade de fundar uma instituio psicanaltica e estabeleceu, para isso, um intercmbio
72 ROUDINESCO, Elizabeth. Histria da Psicanlise na Frana: a batalha dos cem anos. Volume 1: 1885- 1939. Rio de J aneiro; J orge Zahar, 1989.
66 com um general nazista. Esse vnculo, feito atravs de dois encontros e uma carta ao general na qual continha uma lista de nomes de possveis adeptos da futura instituio, foi a base para a acusao de colaborao com o nazismo. Essa mesma acusao teve como pano de fundo as disputas no movimento psicanaltico francs, que atravessava um momento de ciso; alguns colegas aproveitaram a ocasio para tentar se livrar dessa importante figura que era Laforgue. Em seu julgamento, o Tribunal de Apelao de Paris, considerou o processo improcedente por falta de provas. A isso se seguiram outros episdios como a morte da neta, a intensificao das brigas com as sociedades psicanalticas e mdicas. Foi preso e, aps liberto, para fugir s brigas, exilou-se no Marrocos, onde fundou um crculo psicanaltico. Aps cinco anos, retorna a Paris. Faleceu em 1962, vtima das seqelas de uma cirurgia.
Sua obra de psicanlise aplicada, assim como seus textos clnicos, foram esquecidos, mesmo tendo sido considerado um psicanalista notvel, especialmente no tratamento das psicoses. Possua uma clientela significativa e foi comparado, por alguns, a Sndor Ferenczi (1873-1933). Mas, ao contrrio deste, nunca foi considerado um mestre, uma vez que teve uma obra terica de pouca relevncia. Como se v, a vida de Laforgue encaixa-se bem naquilo que ele teorizou sobre o nome de neurose de fracasso: de origem humilde, alcanou algum xito profissional e veio a sofrer as agruras do destino. Sempre perseguindo a fama e o dinheiro, pode-se dizer que assistiu sua derrocada.
Sua obra de maior alcance e penetrao, A psicopatologia do fracasso, foi publicada, em 1936. Nela, ele afirma que a psicopatologia do fracasso tem uma significao social particular por no ser apenas determinada por aspectos adquiridos ou hereditrios, mas tambm por conflitos psquicos e pelo ambiente no qual o indivduo se desenvolve e as necessidades sociais s quais ele tem de
67 se adaptar. Nesse caso, o ambiente familiar e coletivo podem ter um papel perturbador no equilbrio psquico e ocasionar problemas que podem chegar at a comprometer a existncia, ocasionando o fracasso da vida afetiva e da atividade social. Nos casos graves, todas as iniciativas, tanto afetivas quanto intelectuais ou sociais morrem; mas, geralmente, o fracasso parcial. O indivduo consegue xito socialmente, mas falha em sua vida afetiva ou, inversamente, ele bem sucedido afetivamente e fracassa em sua vida social. Nesses casos, difcil apreciar o grau da natureza do mal, at porque pode ser contrabalanado por uma atividade compensatria como no caso de alguns artistas e intelectuais.
Um homem, a servio de seu destino semelhante a uma marionete. mais fcil ignorar que conhecer seu destino, e o melhor meio de se reconciliar com ele aceitar todas as suas possibilidades e todas as suas decepes (Laforgue, 1939: 08- 09) 73 .
Em casos graves de fracasso, o indivduo no integra sua personalidade, enquadrando-se na atividade coletiva de seu meio. Seu desenvolvimento social prejudicado: quando uma criana fracassa nos estudos, no entrosa com os colegas, sente dificuldades em viver sua vida. Essas dificuldades podem ficar mais explcitas em algumas etapas do desenvolvimento, como a puberdade, a maturidade e a velhice, quando h outras exigncias sociais e a necessidade de uma reorganizao psquica para melhor existir.
73 Op. Cit.
68 Alguns indivduos podem reagir a seu sucesso atravs de impulsos criminosos, se endividando, no pagando suas dvidas, assinando cheques sem fundos, mentindo. Esses casos se apiam no plano social e moral e os indivduos vivem um conflito psquico latente que se traduz em sintomas susceptveis de conduzi- los priso. H tambm aqueles que ganham na loteria e vem nisso a possibilidade de realizar seus sonhos: compram manses, carros, constroem cercas e muros que os afastam do convvio social, podendo vir a ocasionar srio desequilbrio psquico. Esses casos apontam para o elemento surpresa: algo inesperado aconteceu. Mas h tambm os casos esperados como a promoo no trabalho, o sucesso de um negcio, uma herana, o sucesso no amor, todos capazes de desencadear os mesmos sintomas. Em se tratando do amor, um indivduo, em virtude de uma obscura necessidade interior, pode escolher como parceiro uma pessoa que o seu contrrio, que poderia ser at mesmo seu inimigo. No so incomuns os casos em que uma derrocada na vida, sob todos os pontos de vista, desencadeada via uma relao afetiva 74 . H casos de fracassos desencadeados por acidentes (de automveis, armas de fogo) e tambm aqueles originados por doenas orgnicas, s vezes contradas ao acaso (tipo gonorria, sfilis, nos nossos tempos AIDS...) ou por azar, nesse caso fruto da ignorncia ou de erro mdico.
Qual a encruzilhada que o indivduo pode hesitar antes de escolher uma direo? Qual o erro que o obriga a seguir uma via contrria quela de seu desenvolvimento normal?, pergunta-se Laforgue (1939: 21) 75 . Ele vai buscar
74 Miller (2000) vem nos dizer que o verdadeiro fundamento do casal o sintoma, um contrato ilegal de sintomas que estruturam as diferentes formas de parceria: pela fala (Lacan), pela identificao (Freud) e pelo desejo (Miller). O sujeito homem busca o objeto a enquanto que o sujeito mulher se relaciona com a falta do Outro, podendo decorrer disso o desvario, a loucura e a histeria. Se o homem ocupar esse lugar em sua fantasia pode se tornar um parceiro devastao, que comporta o ilimitado do sintoma. MILLER, J . A. A teoria do parceiro. In: MONTEIRO, E. e RIBEIRO, V. (orgs.). Os circuitos do desejo na vida e na anlise. Rio de J aneiro: Contra Capa, 2000: 185-207. 75 Op. Cit.
69 sua resposta na famlia, esse primeiro vnculo social de um indivduo, que ajuda na formao da instncia moral que age no psiquismo, fora da conscincia propriamente dita e intervm na determinao de todas as aes. Essa instncia o supereu, que distinguido em individual e coletivo, que vai intervir nos atos e sentimentos do indivduo, vai dirigi-lo nesta ou naquela direo e vai obrig-lo a aceitar ou a rejeitar sua maneira de ser, sentir ou agir. Pela influncia dos pais, ele se desenvolve de forma rigorosa, em virtude de crenas religiosas, por exemplo, impedindo qualquer abertura a outras possibilidades. Mas o sujeito pode tambm utilizar sua inteligncia e sua energia para perseguir o contrrio do que lhe transmitido, via neurose familiar, no que pode ser bem sucedido.
A neurose familiar fruto da escolha de parceiro, no casal, pois um parceiro vai buscar no outro aquilo que julga lhe faltar. Isso ser transmitido aos filhos, que captam os desejos dos pais e tm todas as frustraes destes projetadas sobre si. Para escapar a essas injunes, viabilizadas pelo supereu, o indivduo lana mo de vrios recursos defensivos como o sofrimento, que visa neutralizar a culpabilidade advinda dessa no realizao do desejo dos pais. O infantilismo, a recusa em crescer, se tornar adulto, uma outra forma, assim como as manifestaes psicossomticas de toda ordem e a dificuldade em elaborar uma identidade sexual.
As mesmas foras que agem no indivduo repercutem na vida coletiva, atravs das crenas religiosas, da mentalidade primitiva de certas tribos, dos mitos, e constituem um obstculo abertura normal da personalidade e da sexualidade. Um outro exemplo deste supereu coletivo pode ser visto naqueles povos que se tornam psiquicamente prisioneiros de uma situao social, por exemplo, dos guetos e de suas leis e tendem, inconscientemente, a recri-lo em toda parte. Em muitos casos, o perseguidor, longe de ser um objeto de dio, como seria normal,
70 torna-se objeto de amor inconsciente: a vtima liga-se ao carrasco e extrai do sofrimento um gozo propriamente ertico; isto foi definido como identificao com o agressor. Uma outra modalidade do supereu o de classe, na qual os sujeitos vo estar submetidos a certas leis sociais, de acordo com sua condio social.
s vezes, o que considerado um fracasso do ponto de vista estritamente individual pode se apresentar como um xito do ponto de vista social: a infelicidade de uns pode fazer a felicidade de outros 76 . Essa noo de fracasso social varia de tempos em tempos. O sacrifcio ao qual se entregam os mrtires e heris que conhecemos expressa um fracasso em suas misses e possibilita um reconhecimento e at adorao a posteriori. O que explica estes casos a personalidade e o eu desses indivduos, sendo o eu funo da mentalidade e do conhecimento coletivos, tais quais so formados no curso da histria de um povo. O indivduo to mais bem sucedido na medida em que vence mais eficazmente essa realidade ou se adapta a ela que se apresenta para todos, comportando problemas, exigncias, dificuldades e perigos.
O supereu coletivo e o individual, por outro lado, podem assujeitar, barrar o caminho, paralisar, torturar. Os casos de suicdio representam o extremo disso. A angstia nos persegue, obrigando-nos a fugir dos perigos reais ou imaginrios e a combat-los por todos os meios possveis; somos obrigados a travar uma luta a todo tempo contra esta realidade exterior e interior, fonte de sofrimento ou de alegria e, nessa luta, somos ganhadores ou perdedores. Os perigos da realidade externa so representados por inimigos, por concorrentes, pelas vtimas que se defendem deixando-se devorar, pelas doenas, pela natureza que acaba por nos
76 o caso de inmeros artistas e dolos populares que, quanto mais sofrem e expem seu sofrimento, mais so adorados pelo grande pblico.
71 fazer jogar o jogo da morte. Com relao realidade interna, ela comporta a necessidade de fazer frente s mltiplas aspiraes, desejos e necessidades do isso, que exige satisfao, em detrimento dos obstculos, das interdies interiores ou exteriores e a severidade do supereu. O eu vai buscar conciliar as necessidades interiores de acordo com as realidades interna e externa, o que acaba por distinguir um eu fraco de um eu forte, um eu infantil de um eu adulto.
Conforme dito anteriormente, o supereu coletivo semelhante ao supereu individual; ele formado das diferentes batalhas travadas pela humanidade, pela comunidade. fruto de uma gestao dolorosa, do combate entre vencedores e vencidos, sobreviventes e mortos; ele tambm representa uma poca particular da histria de uma coletividade no curso de seu desenvolvimento, com tudo o que isto comporta de lutas e mudanas sobre o plano da organizao social, de crenas religiosas, conquistas militares e descobertas cientficas. Quando um indivduo nasce, as bases para o seu desenvolvimento j esto construdas em sua famlia e na coletividade a qual pertence. Laforgue argumenta que, tal qual o processo de desenvolvimento de um indivduo atravessado por crises, no diferente com a coletividade, pois guerras, revolues, etc. fazem eclodir crises e mudanas sociais que vo marcar cada indivduo e toda a coletividade. Ele conclui seu livro se perguntando o que a felicidade. Para alguns, estar de acordo com as leis religiosas, para outros o saber advindo da cincia, o trabalho, a realizao material ou amorosa, a obteno de status ou poder. Cada um deve encontrar a forma de conciliar seus desejos e necessidades internos com os determinantes e exigncias externas.
Pelo exposto acima, v-se a limitao da abordagem deste autor que, como psicanalista, deu mais nfase aos fatores externos do que aos internos na
72 formao dos sintomas e da neurose. Se aqui dei relevo sua vida e obra, por que buscava compreender como alguns negros que, tendo cumprido os requisitos da ascenso social, no a sustentaram. Ou seja, aps terem adquirido dinheiro e, s vezes fama, jogam tudo para o alto, percorrendo uma verdadeira via crucis no caminho de volta: alcoolismo, toxicomania, depresso, abandono da famlia e dos amigos, chegando at misria absoluta. Essa trajetria de fracasso no particularidade dos negros; ao contrrio, ela o comum da neurose. Entretanto, em se tratando de negros, h nessa trajetria alguma influncia do passado escravista presente no imaginrio social que se articula aos determinantes psquicos?
Essa idia inicial, pesquisar a neurose de fracasso, teve seu trajeto modificado ao perceber que h traos do escravismo presentes em negros e na sociedade. Estes traos podem influenciar a trajetria de vida de muitos sujeitos, pois a cor da pele um significante encarnado. Mas, antes de tentar responder a esta questo, retomo Laforgue de seu ponto de partida e para dizer mais da escravido psquica.
O texto de Laforgue baseado no artigo Alguns tipos de carter encontrados no trabalho psicanaltico. Nesse artigo, Freud (1916) escreve um captulo intitulado Os arruinados pelo xito, onde diz que:
... as pessoas ocasionalmente adoecem precisamente no momento em que um desejo profundamente enraizado e de h muito alimentado atinge a realizao. Ento, como se elas no fossem capazes de tolerar sua felicidade, pois no pode haver dvida de
73 que existe uma ligao causal entre seu xito e o fato de adoecerem (p. 357) 77 .
Em sua obra, faz uma anlise do supereu, reintegrando-o problemtica da psicologia social. Em sua concepo, o supereu continha uma parte do isso, sob a forma de herana e hereditariedade e tambm uma parte do supereu freudiano, enquanto instncia reguladora. Essa teoria dava origem noo de aparelho psquico das civilizaes e de inconsciente patolgico, a partir do qual ele introduziu a neurose de fracasso e sua psicopatologia. Com isso, explicou a patologia dos chefes polticos por sua infeliz infncia ou seu xito pelo carter excepcional de seus temperamentos. Mas, seus estudos mostraram a fragilidade e a limitao de sua concepo terica que, nesses casos, enfatizava os aspectos de uma determinao psquica. Nem toda infncia infeliz resulta em lderes totalitrios e nem todo carter excepcional resulta em grandes chefes.
Freud (1916) 78 vai ento distinguir dois tipos de satisfao libidinal: uma externa e outra interna. Na satisfao externa, o objeto no qual a libido pode encontrar satisfao est contido na realidade; este tipo de satisfao s se torna patognica se vier ao encontro de uma frustrao interna, inconsciente. Por outro lado, a satisfao interna vem de encontro ao princpio do prazer. Mas, inconscientemente, triunfar equivalente a matar o pai, e a estamos no terreno do complexo de dipo e do sentimento de culpa. Uma culpa imaginria advinda do desejo de assassinato do pai e a conseqente dvida simblica que no consegue, ou no pode, pag-la.
77 FREUD, S. (1916) Alguns tipos de carter encontrados no trabalho psicanaltico. In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976. 78 Op. Cit.
74 Este texto freudiano, sem dvida, abre caminho para uma das grandes viradas ocorridas em sua obra. A partir de Alm do princpio do prazer (1920) 79 , uma reordenao trazida teoria psicanaltica. Freud afirma existir no psiquismo uma tendncia para o princpio do prazer, mas tambm h outras foras ou condies que se opem a esta tendncia: o princpio de realidade que vem substituir o princpio de prazer sob a influncia das pulses de autoconservao do eu; a outra tendncia o recalcamento, produzido nos casos em que a satisfao pulsional capaz de proporcionar prazer por si mesma ameaa provocar desprazer devido a outras exigncias. Freud reconsidera a questo ao tratar de perigos externos, tais como as catstrofes naturais, os acidentes graves e as guerras, todos capazes de desencadear processos neurticos, que levam os sujeitos a se fixarem psiquicamente em seus traumas, da a repetio da cena, principalmente em sonhos. Esses sonhos obedecem compulso repetio, que est a servio do recalcado, forando seu retorno.
Freud tambm pde observar uma cena semelhante do trauma nas brincadeiras infantis que repetem incessantemente a mesma temtica, a exemplo do que assistiu em seu neto, Heinelle: este, tendo um cordo amarrado a um carretel, o fazia desaparecer e reaparecer, num movimento de ir e vir, sempre acompanhado de uma inflexo de voz. Esta brincadeira tornou-se conhecida como fort/da, onde fort =fora e da =aqui. Ela visava diminuir a angstia vivida pela criana diante da ausncia da me: atividade/passividade, amor/dio, prazer/desprazer.
Nesse trabalho, Freud tambm estabelece a dualidade das pulses entre pulso de vida e pulso de morte. A vida psquica seria, ento, animada pelo movimento destas pulses, tendo como tendncia final a reduo (princpio do
79 FREUD, S. (1920) Alm do princpio do prazer. In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.
75 prazer), a constncia (princpio da constncia) ou a eliminao (princpio da inrcia) da tenso interna ao aparelho psquico. A pulso de morte silenciosa e se manifesta na repetio ou, dito de outra forma, no eterno retorno do mesmo.
Encontramos outra forma de manifestao da pulso de morte no masoquismo. Em As pulses e seus destinos (1915), Freud apresenta o processo do sadismo masoquismo da seguinte forma:
a) o sadismo consiste no exerccio de violncia ou poder sobre uma outra pessoa tomada como objeto.
b) Esse objeto abandonado e substitudo pelo eu do sujeito. Com o retorno em direo ao eu efetua-se tambm a mudana de um objetivo pulsional ativo para um passivo.
c) Uma pessoa estranha mais uma vez procurada como objeto; essa pessoa, em decorrncia da alterao que ocorreu no objetivo pulsional, tem de assumir o papel do sujeito.
O caso (c) o que mais comumente se denomina de masoquismo. (pp. 148-149) 80 .
O masoquismo um prazer da dor, prazer do sofrimento, prazer do desprazer. Sofrimento e dor no so a mesma coisa. A dor implica necessariamente o fsico, sua disfuno na realidade, vivida independente da vontade do sujeito. O sofrimento, pelo contrrio, remete ao psquico e ao moral; seu ndice de
80 FREUD, S. As pulses e seus destinos (1915). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.
76 realidade subjetivo, no sendo mensurvel nem objetivvel, podendo encontrar a o desejo inconsciente. Mas, quando sofrimento e dor encontram-se num grau muito elevado, eles podem ser confundidos porque misturados, o excesso, a desmesura.
Em O problema econmico do masoquismo, Freud (1924) 81 vai distinguir trs formas do masoquismo: o primrio, o ergeno e o moral. Define o masoquismo ergeno como sendo:
Esta parte da pulso de destruio que no participa do deslocamento para o exterior (como o sadismo o faz), mas permanece no organismo em que continua ligada libidinalmente pela co-excitao sexual (p. 212).
Por outro lado, o masoquismo moral aquele do qual os neurticos mais habitualmente recorrem quando lhes necessrio, vindo atravs da culpa. Ela d origem necessidade neurtica de sofrer, que lhes traz satisfao. Dentre os desejos masoquistas encontramos, alm do sentimento de culpa, a necessidade de punio, presentes na cena analtica via resistncia, que pode se apresentar tambm enquanto reao teraputica negativa. Entretanto, culpa e masoquismo moral se diferenciam. Na culpa, o acento recai sobre o sadismo acrescido do supereu ao qual o eu se submete. A satisfao uma satisfao libidinal que tem seu prprio objeto e a culpa vem depois dessa satisfao. No masoquismo moral o masoquismo do eu que reclama punio; a satisfao reside na prpria culpa, que erotizada. O eu o reservatrio principal da libido, que investe constantemente os objetos, fazendo uma barreira constante ameaa interna cuja
81 FREUD, S. O problema econmico do masoquismo (1924). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.
77 fonte a pulso de morte. O masoquismo ergeno primrio o meio, por excelncia, de impedir a satisfao da pulso de morte, de impedir nossa destruio. Ele trao de unio entre o orgnico e o psquico; a condio da formao do eu e, ao mesmo tempo, a primeira forma de estruturao- organizao do eu. Ele transforma o prazer em prazer-desprazer, pois, possibilita no s a descarga, como tambm a excitao, dentro do psiquismo. O ncleo masoquista do eu permite o investimento (a ligao) da excitao, tornando-a aceitvel. Caso contrrio, a excitao seria um desprazer insuportvel e impossvel (Rosenberg, 2003) 82 . O masoquismo ergeno desperta uma fome de sofrimento-gozo infinito, provocando a loucura do contato, que leva a buscar uma marca corporal dolorosa que venha inscrever, nomear e, ao mesmo tempo, restaurar uma unidade. Ele tambm valoriza os significantes do objeto perdido (instrumentos que prolongam a mo tais como as roupas, a pele, etc.) e tambm so tocados pela fala e seu poder de persuaso. Essa sensibilidade ao toque, o desejo de tocar e de ser tocado no masoquismo leva esse sujeito a criar encenaes onde poder experimentar sobre si a ligao entre sofrimento e gozo. Segundo Enriquez (2000) 83 essa ligao se alimenta de uma fantasia de sobrevivncia e de renascimento por expiao e exige a busca constante de um fazer-sofrer, ou seja, de criar uma situao capaz de reunir as condies necessrias encenao, num ritual mortfero. De acordo com Deleuze (in Enriquez, 2000) 84 o masoquismo a arte do suspense, da espera; as cenas masoquistas comportam verdadeiros ritos de suspenso fsica, de enganchamento, de crucificao (p. 116).
82 ROSENBERG, Benno. Masoquismo mortfero e masoquismo guardio da vida. So Paulo: Escuta, 2003. 83 ENRIQUEZ, Micheline. Nas encruzilhadas do dio: parania, masoquismo, apatia. So Paulo: Escuta, 1999. 84 Op. cit.
78 Identificando-se ao objeto de seu dio e de seu desprezo, que foi anteriormente um objeto idealizado e amado, o masoquista ir cobrir de lama, ridicularizar, anular a si mesmo e ao objeto. Ela buscar transformar sua ferida narcsica em um triunfo, antecipando, controlando, provocando, prevenindo-se do traumatismo. Obrigar, convencer o outro, assujeit-lo, so suas metas. Nesse jogo, a pulso de morte de um outro ser mobilizada, tornando extremamente perigosa essa situao que pode levar o outro ao crime e ao castigo. Isso advm da culpa que o sujeito reivindica para si, o que o leva a confessar um erro imaginrio ou real, exigindo punio; a mobilizao do dio do outro tambm obedece a uma poltica de identificao com o agressor. Nas palavras de Enriquez (2000) 85 quanto mais eu sofro, mais sou amado, mais eu existo. Por isso tenho que investir a dor fsica e moral, valorizar a dependncia, a passividade (p. 128).
A satisfao pulsional sempre parcial, por isso, Rosenberg (2000) 86 nos diz que o masoquismo o guardio da vida, pois ele sustenta em cada um a capacidade de desprazer que essa satisfao traz. Ele nos permite continuar a suportar o sofrimento e as misrias da vida. O masoquismo nos faz viver. Ele tambm permite o acesso ao dipo, tornando suportvel a angstia de castrao. Quanto ao prazer, devemos pens-lo enquanto necessrio e suficiente. Necessrio para tornar a vida possvel e suficiente para que o sujeito possa escolher esse possvel.
Por outro lado, o masoquismo mortfero quando investe todo o sofrimento, toda a dor, todo o desprazer, ou quase. o prazer da excitao, em detrimento do prazer da descarga enquanto satisfao objetal (o mais-de-gozar, como
85 Op. cit. 86 ROSENBERG, Benno. Masoquismo mortfero e masoquismo guardio da vida. So Paulo: Escuta, 2003.
79 veremos adiante). Outra possibilidade de o masoquismo ser mortfero quando do abandono progressivo do objeto, que letal, como no caso da melancolia, em que vemos a supremacia do sadismo do supereu sobre o eu.
Estamos a nos limites do dio, do dio de si. O dio um afeto to primitivo quanto o amor, sendo fonte de representaes e de desejos inconscientes, expresso do narcisismo. Apresenta mltiplos semblantes tanto na psicopatologia da vida cotidiana quanto do prazer do exerccio do poder e da submisso. Podemos perceb-lo no psiquismo humano e na coletividade atravs da disposio interior para buscar a morte e tambm na agressividade assassina contra um adversrio. Segundo Enriquez (2000) 87 , nas encruzilhadas do dio sobrepem-se um sofrimento psquico e fsico excessivos, pois o sofrimento torna-se causa de dio e o dio torna-se causa de sofrimento. Quando levada ao extremo, a fora da pulso de morte coloca em movimento uma fora destrutiva, que busca aniquilar tudo, inclusive a si mesmo, o que desperta desprazer, desespero e sofrimento. Os vnculos e as identificaes so quebrados, a imagem corporal despedaada, a vida psquica morre. As expresses psicopatolgicas onde o dio se faz expresssivo so a parania, o masoquismo e a apatia.
Na parania, o perseguidor inflige e exige o sofrimento, da os paranicos serem identificados pelo dio e no dio, que justifica e alimenta o sofrimento. A dinmica paranica promove no sujeito a sensao de que este suporta o dio, por isso o paranico erotiza o dio, gozando do sofrimento que esse nutre. O dio ento investido para que possa ser transformado em uma fora de coeso que busca criar os meios de pagar o preo por ser.
87 Op. cit.
80 A posio masoquista caracterizada pelo excesso de sentido dado ao sofrimento, que cultivado na realidade ou na fantasia. Os masoquistas so identificados ou identificam-se pelo sofrimento, no sofrimento e em sua libidinizao, torna o dio inconfessvel, voltado para si, merecido. No caso da apatia, evita-se aceitar que o outro tem o poder de fazer sofrer, no experimenta o dio e contm o sofrimento a qualquer preo, faz disso a condio de sua sobrevivncia. A apatia visa o controle do corpo, do pensamento, da pulso, buscando uma insensibilidade afetiva, evitando o confronto com o outro que geraria, em sua fantasia, uma exploso de dio destrutivo.
Outra manifestao psicopatolgica onde o dio se torna central a melancolia. Nessa, o eu se torna pobre e vazio, ao contrrio do luto, onde o mundo que se esvazia. O processo identificatrio, na melancolia, torna os ataques contra o objeto (de identificao) em ataques contra o eu. A depreciao do objeto transforma-se em autodepreciao, em dio de si. O objeto no abandonado, como no luto o que possibilita o reinvestimento em um outro objeto mas, sim, introjetado. Ele investido narcisicamente, idealizado, o que impede a expresso da raiva pelo mesmo, por medo de destru-lo e perd-lo. como diz Rosenberg (2003): No odiars nem destruirs o objeto, porque com ele destruirs a ti mesmo (p. 143) 88 . Esse processo abre no eu uma ferida narcsica, causada pelos ataques sdicos do supereu, que o empobrece. Essas feridas narcsicas reforam o masoquismo primrio, valorizam a alienao e o sofrimento pelo prazer e o desejo de ser para um outro.
Disso pode-se constatar que o sadismo e o masoquismo, principalmente o masoquismo, so a expresso clnica por excelncia da pulso de morte, por
88 Op. cit.
81 erotizar a destrutividade desta e o desprazer da advindo. Eros, a pulso de vida, que possibilita fazer ligao e dominar os efeitos destruidores da pulso de morte. Entretanto, em determinadas circunstncias, o sadismo ou a pulso destrutiva, que poderia estar voltada para o exterior, pode ser novamente introjetada, dirigindo-se ao interior do organismo, regressando sua situao primeira. Esse processo origina o masoquismo secundrio, que vem se somar ao primrio.
Voltando culpa, ela que transforma o sadismo em masoquismo; neste caso, os neurticos se valem de seus sintomas. Esses possibilitam a eles suportar a culpa ligada a seus desejos (incestuosos, homicidas), mantendo a mesma atravs de um investimento, erotizando o masoquismo moral que acaba por proteger o sujeito de si mesmo.
Pode-se ver um exemplo disso em Dostoievski e o parricdio, artigo no qual Freud (1928) 89 discute a questo da culpa e do masoquismo, analisando um perodo da vida em que o escritor viveu na Alemanha, dominado por uma paixo incontrolvel: o jogo. Essa paixo era uma forma de ele se castigar por causa da dvida crescente, advinda da compulso a jogar, da satisfao que essa atividade lhe trazia e da culpa posterior ao ato. Freud vai apontar a trs fases: a primeira a do castigo, ligado necessidade de punio; a segunda o castigar-se, humilhar-se, desprezar-se, advindos do masoquismo moral e a terceira a do apaziguamento que vinha aps essa sesso, pois no caso do escritor, este se entregava ao seu trabalho. Crime, castigo e alvio, so o resultado desta operao psquica.
89 FREUD, S. Dostoivski e o parricdio (1928). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.
82 Nesse momento, cabe introduzir a noo de gozo, conceito estabelecido por Lacan para dizer do mais alm do princpio do prazer, daquilo que Freud pde verificar clinicamente na compulso repetio, nos sonhos de angstia e vivncias traumticas. Para tanto, os conceitos de real, simblico e imaginrio so fundamentais, pois dizem respeito aos trs registros que circunscrevem a realidade humana; eles formam um elo, em forma de trs anis articulados entre si, o n borromeu, onde um elo no pode ser destacado do outro para que a cadeia no se perca.
O real indizvel, est no limite da nossa experincia; o simblico preexiste ao sujeito, que s pode apreend-lo via imaginrio. Por seu turno, o inconsciente estruturado como uma linguagem e s apreendido atravs de suas formaes: lapsos, chistes, sonhos. O que possibilita a ligao entre os trs registros o objeto a, causa de desejo, aquilo que resta da produo simblica e possibilita a circulao da cadeia de significantes. O objeto a representado sob a forma de objetos parciais do corpo (seio, fezes, voz, olhar). Possui duas vertentes: mais- de-gozar (mais gozo/menos desejo) e causa de desejo (menos gozo/mais desejo), sendo o gozo uma barreira ao desejo. O supereu, com seu imperativo de gozo, marca uma interdio e um convite a ir alm, de realizar o impossvel: voc no deve ser como seu pai X voc deve ser como seu pai. O movimento pulsional a desencadeado versus a dificuldade de satisfao podem gerar inibio, sintoma ou angstia. Da o advento do gozo como forma de satisfao, ainda que originada do desprazer.
Cabe aqui esclarecer que o gozo, em psicanlise, d nfase vertente subjetiva, de como manej-lo a partir do sujeito. Este termo foi extrado da teoria do direito, em que enfatizada sua vertente objetiva, ou seja, gozar de algo que se possui: um objeto, um bem, um ttulo, dos direitos civis, das faculdades mentais.
83 Usufruir de um objeto ter o seu uso regulado pelas leis. Portanto, h um limite para o gozo em sua vertente subjetiva.
Lacan estabelece trs modalidades de gozo, que variam entre os trs registros: o gozo flico, o gozo do sentido e o gozo do Outro. O gozo flico, proveniente do falo imaginrio, do princpio do prazer, a completude do gozo do outro. prprio ao sujeito, se apresentando no sintoma e na fantasia. O gozo do sentido, prprio s formaes do inconsciente, articulado linguagem e suspenso do recalque; sempre vem acompanhado de surpresa, susto, estranheza, exagero ou bizarrice. O gozo do Outro articulado em duas vertentes: a subjetiva, onde o supereu aparece como exigncia de gozo e a objetiva, do objeto a, mais-de- gozar.
Quem barra o gozo o Nome do Pai, sendo essa barreira um efeito da linguagem. Quando vai tratar do conceito de repetio, Lacan se utiliza dos aforismos tiqu e autmaton, conceitos utilizados por Aristteles, quando este pesquisa a causa. A tiqu diz do encontro com o real; autmaton, do retorno, da volta, da insistncia dos signos comandados pelo princpio do prazer. Lacan (1985) 90 nos adverte de que:
No h como confundir a repetio nem com o retorno dos signos, nem com a reproduo, ou a modulao pela conduta de uma espcie de rememorao agida. A repetio algo que, em sua verdadeira natureza, est sempre velada na anlise, por causa da identificao, da repetio com a transferncia na conceitualizao dos analistas (p. 56).
90 LACAN, J acques. O Seminrio: Livro 11: Os quarto conceitos fundamentais da psicanlise. Rio de J aneiro: J orge Zahar, 1985.
84
A tiqu marca o encontro com a falta, a exemplo do trauma, discutido no captulo anterior. Estes desdobramentos: pulso, masoquismo, dio e gozo configuram aquilo que aqui estou chamando de escravido psquica. Para melhor entend-la, fao agora uma breve passagem sobre o complexo de dipo e o estabelecimento das instncias identificatrias eu ideal e ideal de eu para, num momento posterior, me deter sobre o escravismo social.
Lacan (1998) 91 concebe a teoria do complexo de dipo desenvolvendo-o em trs tempos lgicos e coloca a castrao como o centro deste complexo. Tempo lgico aqui significa que no h uma sucesso cronolgica entre eles, so dialticos. No primeiro tempo, o momento da identificao da criana com o objeto do desejo da me: o falo. O falo no o pnis, rgo sexual destacado e valorizado da condio masculina. Nesse caso, o falo imaginrio tudo aquilo que vem a produzir a iluso, a sensao de plenitude, de perfeio. O imaginrio produz a iluso, ou a possibilita, de que nada falta. O falo simblico aquilo que aparece em substituio a uma ausncia, portanto, o falo simblico algo que se pode perder; algo que se pode ter, mas no se pode ser. Ele algo que circula, se d, e recebe e pode ser substitudo por outra coisa, pois est inserido na cultura.
Voltando criana, nesse primeiro tempo, ela o falo da me, logo, a me tem o falo. Devem ser considerados dois personagens e a relao entre ambos. Esses dois personagens: o menino, por um lado, deseja ser tudo para a me, deseja ser o objeto do desejo da me; para isso, converte-se naquilo que a me deseja. Seu
91 LACAN, J acques. O Seminrio. Livro 4: A relao de objeto. Rio de J aneiro: J orge Zahar, 1998.
85 desejo desejo do outro, em duplo sentido, ou seja, ser desejado pelo outro e tomar o desejo do outro como se fora o prprio.
Nesse primeiro tempo, a questo que se coloca a de ser ou no ser o falo para poder satisfazer o desejo da me. o momento do chamado estdio do espelho, formador do eu. Nesse perodo, a criana descobre e conquista a imagem do corpo prprio; at ento, ela no reconhece seu corpo, no o v como uma totalidade, devido sua imaturidade neurolgica. Este estdio dividido em trs momentos lgicos portanto, no cronolgicos.
No primeiro, a criana descobre a imagem do espelho, mas ao perceb-la, acha que a outra imagem a pessoa real; o que demonstra que ela ainda no se diferencia dos outros com os quais convive. Ela e o outro so a mesma coisa. No segundo momento, a imagem deixa de ser um outro real, passando a ser apenas uma imagem, distinta das outras. Entretanto, ela v a imagem, mas no sabe quem ela. No terceiro momento, a imagem a imagem da criana; esta se reconhece na imagem do espelho, a v como uma unidade, mas ainda no tem maturidade neurolgica para se ver como uma unidade. Ela vai, ento, antecipar imaginariamente a unificao, o que lhe trar satisfao, prazer, o chamado jbilo narcsico: ser a imagem de uma perfeio que no se , mas que confirmada pelo outro, lugar do cdigo, da linguagem.
Quando a criana pergunta ao outro: Este sou eu? e v confirmada sua pergunta, v esse corpo unificado, tem a a matriz simblica formadora do eu. isso que propicia o advento do sujeito do inconsciente. Essa identificao primria constitutiva da instncia psquica do eu ideal a matriz de todas as outras identificaes, pois o menino e a me formam uma unidade narcisista em que cada um possibilita a iluso no outro de sua perfeio e produz um
86 narcisismo satisfeito. A me converte o menino em falo, para poder ser a me flica.
Essa colocao do filho como falo pode acontecer ou no; dessa forma, o lugar que a criana ocupa no desejo da me marca uma possibilidade de estruturao psquica que traz conseqncias totalmente distintas. A me pode tomar o filho no s enquanto falo, mas tambm enquanto objeto ou enquanto resto. Em muitos casos, a possibilidade de estruturao do filho tomado enquanto objeto a perverso, e ao filho tomado como resto, a psicose. a me quem traz uma moldura, uma identidade criana, por ser exterior a essa; uma relao assimtrica. Ambas esto presas na mesma iluso e cada uma delas possibilita que a outra se mantenha na mesma. Apresento a situao de alguns negros, em que podemos observar uma fala aprisionada ao desejo de um outro, me ou representante, como se o olhar dessa me fosse mortfero, ou inexistente. Esse olhar mortfero pode nos fazer supor uma falha na tomada desse filho enquanto falo. Vejamos:
Tenho sensao de ser invisvel. O olhar do outro me atravessa, mas no se detm em mim.
Minha me me comparava com minhas colegas brancas. Elas so to bonitas, delicadas. Quem vai se interessar por voc com estes lbios grossos?.
87 No me caso; no quero ter filhos negros. O que posso lhes oferecer? Vo sofrer muito neste mundo (In: Wanda Avelino, 1993) 92 .
Essas falas ilustram a condio de alguns negros inseridos numa sociedade racista. O que essas mes oferecem a seus filhos? Um espelho quebrado, despedaado, e podemos vislumbrar as conseqncias disto. No caso de Maria, que ser apresentado no captulo seguinte, tambm vem nos dizer desse encontro, s vezes doloroso, com o espelho. No seu caso, literalmente diante do espelho que ela se mutila. O estdio do espelho, com seus trs momentos lgicos, forma o primeiro tempo do dipo em Lacan, cujo produto, como vimos, o eu ideal. No segundo tempo, assiste-se entrada de um terceiro elemento na relao especular, narcsica, me-criana. A esse terceiro chamamos pai e o que ele traz uma possibilidade de inscrio de uma lei: a lei da castrao, operao simblica por excelncia, mediatizada por esse terceiro que vem se colocar entre a me e o filho. O pai opera um corte, uma separao, produz uma falta. Me e filho deixam de ser o falo e de t-lo; agora quem o detm o pai. Para alm da lei materna, o pai intervm com a sua palavra, privando ambos, me e criana de um gozo absoluto. O desejo da me tem relao com essa lei paterna; a criana percebe que a me o deseja (ao pai) e, se ela deseja esse homem, porque ele deve ter algo que eu no tenho. A criana deve reconhecer que algo falta me e que ela vai buscar esse algo em outro o pai. A me deixa de seu um Outro absoluto para ser um Outro barrado, o que indica sua castrao e inclui a criana na ordem simblica.
92 AVELINO, Wanda. Grupo de mulheres negras: uma experincia.... Cadernos do Frum de Psicanlise do Crculo Psicanaltico de Minas Gerais. n 14, nov. 1993: 115-1232.
88 O pai intervm imaginariamente, privando a me e a criana de seu objeto. No caso da criana, a castrao faz com que o falo, enquanto objeto imaginrio do desejo materno, aparea em seu registro imaginrio, como falta e, em seu registro simblico, como significante do desejo, o que lhe permite dar sentido a todos os outros significantes, e tambm a ordenar sua sexuao.
Aqui cabe uma ressalva: o pai que surge no segundo tempo do dipo o pai interditor. Ele no apenas porta a lei, mas a lei. , portanto, um pai imaginrio, o pai da horda primitiva, no castrado e no barrado, detentor do falo. preciso um outro tempo para que a criana perceba que o falo no o pai. O terceiro tempo marca o declnio do complexo de dipo. Uma vez que a me no tem o objeto to cobiado, o falo, para o pai, suposto detentor deste, que a criana ir se voltar. O pai instaurado ento como ideal de eu, a segunda instncia psquica que vai marcar todas as outras identificaes da em diante: a dialtica entre o eu ideal e o ideal de eu. O pai vai ser tomado como aquele que porta as insgnias, como o smbolo de algum que ocupa um lugar determinado. A dialtica que se instaura no mais a do ser o falo, mas a de ter ou no t-lo, inaugurando assim o jogo das identificaes, onde meninos e meninas vo tomar posies diferenciadas segundo seu sexo. A partir da, meninos e meninas vo procurar, no pai, o falo que tanto querem, abandonando a me. O menino far do pai seu objeto de identificao e afirmar ter, como o pai tem, o falo. A menina tomar o pai como objeto de amor e como paradigma dos demais objetos substitutos, buscando nesses o que sabe no ter.
O complexo de dipo marca, assim, nossa constituio no campo do Outro. Ele sinaliza nossa servido a esse Outro, tomado enquanto instncia identificatria. Assim, somos todos escravos, desse ponto de vista, pois a servido remete ao poder. Ela justifica e legitima a sujeio de um sujeito a um outro, a um grupo, a
89 um ideal ou uma instncia transcendente. A relao senhor-escravo encontra-se no cerne desta questo, podendo se desdobrar em perseguido-perseguidor. Entretanto, o sentimento de perseguio e a experincia de sofrimento so inerentes condio humana, que, desde o incio se v confrontada a uma dupla injuno: a primeira imposta pela alteridade, pela diferena e a segunda de nosso mundo interno, que pressiona a alteridade, a diferena e a significao. O que nos diferencia a forma como cada um vai lidar com o Outro, como cada um estabelecer ou no seus laos sociais. A relao com nossos senhores estar marcada pela forma como a Lei foi internalizada.
Em seu discurso indignado, La Botie 93 nos fala daqueles que servem pela fora, a exemplo dos derrotados nas guerras e daqueles que servem voluntariamente, servindo ou a um senhor, geralmente um tirano eleito pelo povo, ou que governa sob a fora das armas ou por sucesso de sua raa. Ele acredita que o homem se deixa assujeitar pela fora ou pela iluso, deixando-se ficar nessa posio de servo. Os senhores tiranos, a fim de se manterem, acostumam o povo por obedincia e servido, acompanhados da devoo.
Freud (1919) 94 , em seu texto sobre a psicologia das massas, tambm vem nos falar sobre a servido voluntria. Ele nos diz que o que une os sujeitos no grupo o amor ao lder. J em seu ensaio sobre a religio (1927) 95 , nos alerta de que os homens abrem mo de sua liberdade pulsional para interiorizar as regras sociais. Isto possvel graas a uma oferta da cultura, ou seja, em troca dessa renncia pulsional, algum consolo narcsico. Essas compensaes so de trs tipos: o narcisismo das pequenas diferenas, a arte e a religio. Com relao primeira,
93 Op. Cit. 94 FREUD, S. Psicologia de grupo e anlise do eu (1919). ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976. 95 FREUD, S. O futuro de uma iluso (1927). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976.
90 ele diz que a satisfao narcsica que o ideal cultural proporciona se encontra entre as foras que contrabalanam o combate hostilidade para com a cultura dentro da prpria unidade cultural. Essa satisfao partilhada no s pelas classes privilegiadas como tambm pelos oprimidos, que gozam do direito de desprezar aqueles que no pertencem sua cultura. Essa identificao dos oprimidos com as classes privilegiadas, que os governa e explora parte de um conjunto mais amplo. Eles podem estar ligados afetivamente queles que os oprimem, vendo-os como seus senhores e seus ideais, mesmo sofrendo a opresso. Essa idealizao traz algum tipo de satisfao, pois caso no existisse, no teramos tido tantas civilizaes ao longo da histria.
Vale lembrar que esse narcisismo uma soluo de compromisso neurtica, constituindo um preo inevitvel da civilizao, que surge para controlar as pulses, oferecendo alguma proteo ao desamparo original humano.
No Brasil, que viveu por mais de trs sculos um regime escravocrata, esse fenmeno teve suas particularidades. A Abolio oficial da Escravatura se deu em 1888, e se fez preceder de leis que buscaram a aproximao com esta lei maior. Assim, em 1871, foi sancionada a Lei do Ventre Livre e, em 1885, a Lei dos Sexagenrios declarando extinta a escravido para crianas e idosos, respectivamente. A primeira lei libertava as crianas, mas no libertava suas mes, o que acabava ocasionando a permanncia na situao em que se encontravam. A segunda libertava escravos com mais de sessenta anos, o que tambm no trazia muitas mudanas, pois, alm de os idosos serem poucos, estes no mais conseguiam trabalhar, pelas condies fsicas decorrentes da idade e dos trabalhos forados a que estiveram submetidos durante a vida. Esta lei acabava trazendo benefcios para o senhor, que se via desincumbido de tratar de seu escravo j velho e, muitas vezes doente.
91
A grande maioria de escravos brasileiros era destinada agricultura e minerao, concentrando-se no interior do pas. Ao escravo cabia servir ao seu senhor, ser coisa e, como tal, podia ser vendido, trocado, alugado, emprestado ou usado. Em alguns casos, servir inclua gerar lucro extra, fora dos domnios do senhor, atravs de servios domsticos, agrcolas, na minerao, artesanato, como tambm a prostituio, furtos, etc. Alguns homens e mulheres eram utilizados para procriao, por serem considerados modelos exemplares da espcie; o caso de um baiano que teve mais de cem filhos, para citar um exemplo. O panorama do escravo domstico, muito prximo das famlias, vivendo na casa grande, isolado dos escravos do campo, retrata a situao de alguns poucos privilegiados.
A vida livre tambm era um fato, mas no era fcil ser liberto numa sociedade escravista. O voto era proibido e a suspeita de que o sujeito era um escravo fugido o tornava uma presa fcil para a volta ao cativeiro. A situao de miserabilidade tambm empurrava muitos negros para a permanncia na condio de escravo, ou para continuar a trabalhar para seu ex-senhor, mesmo aps ter obtido a alforria, como condio de sobrevivncia.
Estudos mais recentes revelam que os negros no ficaram passivos diante de sua condio de escravos. Muitos exerceram sua atividade, pela mediao com seus senhores, chegando a comprar ou conquistar sua liberdade. As formas de negociao variavam, indo desde o reconhecimento dos senhores pelos servios prestados por seus escravos, que gerava um sentimento de gratido, e sua recompensa sob a forma de alforria e/ou herana. Talvez o caso mais notrio e
92 presente em nosso imaginrio seja o de Chica da Silva 96 , que se tornou mulher do homem mais poderoso da colnia, o contratador de diamantes J oo Fernandes de Oliveira.
Chica levou uma vida prxima das senhoras brancas da sociedade mineira do sculo XVIII, constituiu famlia, ingressou em irmandades que, segundo seus estatutos, deveriam ser exclusivas da populao branca. Criou as filhas no melhor estabelecimento de ensino da regio, acumulou fortuna, tornou-se proprietria de casa, vindo a ter vrios escravos a seu dispor. Foi uma mulher influente na poltica e na Inconfidncia Mineira. Chica no foi uma exceo, mas um dentre vrios exemplos da grande camada de negros e mulatos livres que procuravam diminuir o estigma da cor e da condio de ex-escravos, fato comum nas Minas Gerais devido sua atividade mineral e tambm agrcola. Ou seja, era permitido a escravos que garimpassem para si, ouro e pedras preciosas, aps extrair uma cota para o senhor. Isso era garantia da enorme produtividade dos mesmos, e tambm possibilitou a muitos a compra da alforria e a insero no mundo dos brancos.
Isso no quer dizer que, na escravido, havia uma relao amistosa: a servido era garantida pela propriedade, submisso e dependncia. A transgresso, presente em todos os momentos e em todas as instncias, era punida severamente, nos pelourinhos, nos troncos, nos castigos com o aoite, atravs do uso de instrumentos de imobilizao, e de marcas no corpo feitas a ferro em brasa. Os negros reagiam a essa situao de diversas formas: individualmente, atravs das fugas, que era a forma mais comum, mas tambm atravs de abortos, suicdios ou, como disse anteriormente, outras formas de negociao com seus
96 Para uma compreenso da importncia histrica de Chica, remeto o leitor a: FURTADO, J nia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito. So Paulo: Companhia das Letras, 2003.
93 senhores: obedincia, alforrias ou coletivamente, nas revoltas, fugas em massa, criando quilombos. Os senhores e feitores tambm eram vtimas de assassinatos, envenenamentos e espancamentos.
Os escravos no possuam sobrenome, pois no tinham personalidade jurdica. Eram coisas, propriedades de um senhor, o que tornou comum a adoo do sobrenome do senhor quando da alforria e aps a abolio. Os negros forros (como eram chamados os alforriados), durante o perodo escravista, tinham que utilizar estratgias para sua insero social ou se tornarem marginais. Essas estratgias consistiam em se integrar sociedade branca local, atravs do pertencimento a irmandades religiosas, grupos culturais e do trabalho. Ter sobrenome, se batizar, freqentar a igreja, tornavam-se prticas obrigatrias, assim como o abandono de suas razes e prticas de origem africana. Com a Abolio, isso se intensificou e o ideal do branqueamento tornou-se quase uma condio. A imigrao europia do comeo do sculo XX, que muito veio contribuir para nossa composio racial, aliada s teorias racistas veiculadas no perodo, muito contriburam para a busca de realizao desse ideal: tornar-se branco. bom lembrar que os movimentos sociais de negros no estavam alheios toda essa problemtica, intensificando sua luta para garantir os direitos cidadania plena.
O ideal de branqueamento tornar-se mais claro foi decisivo no processo de miscigenao que resultou em nosso continuo de cor, dando ao mulato uma atribuio mais positiva, quanto cor, que ao negro. Da tambm surgiu o mito da democracia racial, a ausncia de preconceito e de discriminao racial e a suposta existncia de oportunidades iguais para negros e brancos. Um mito,
94 aliado quele que diz que o negro feio, irracional, extico e superpotente (Souza, 1990) 97 .
Uma das tentativas de driblar essa situao foi a eleio do branco como modelo, um ideal de eu a ser realizado. A contnua excluso e o espelho opaco torna difcil, seno impossvel, a realizao desse ideal, levando alguns negros a uma situao de extrema alienao e escravido. Outras tentativas podem ser vistas na eleio de um parceiro que venha substituir o ideal irrealizvel ou tentar branquear o prprio corpo (a exemplo de Michael J ackson), recorrendo indstria cosmtica e s cirurgias plsticas. Para cumprir os desgnios desse ideal inatingvel, esse negro se violenta e violentado continuamente. Nessa busca, pode sucumbir depresso, ao masoquismo, fazendo da negritude uma ferida que nunca cicatriza. desta condio de escravo, da dificuldade em eleger a negritude enquanto significante positivo, que ser apresentado o caso Maria, no prximo captulo.
Nessa luta entre as pulses de vida e as de morte, temos de reconhecer um limite, saber que existe um ponto ltimo no sujeito a partir do qual o outro s poder ser apreendido enquanto estrangeiro, inimigo, predador, um assassino em potencial, possibilitando a expresso do no e a individuao, mesmo que em plena diviso. nesse limite que residem brancura e negritude. Tanto excessivamente prximo quanto o demasiado distante suscitam igual terror (Enriquez, 2000: 76) 98 .
97 SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes de identidade do negro brasileiro em ascenso social. 2.ed. Rio de J aneiro: Graal, 1991. 98 Op. cit.
95 QUARTO CAPTULO
CASO CLNICO
Gostaria de ser aquele de quem dizem: ele o que conta histrias. Uma histria. A sua histria. Acaso algum dia se conta outra coisa seno a prpria histria? Wladimir Granoff
Em Estudos sobre a histeria, Freud (1895) 99 fala da dupla dimenso do sintoma: esconder e revelar. E, a partir da, apresenta-nos casos clnicos, ponto de partida de sua argumentao terica. A construo de casos clnicos marca, assim, o nascimento da psicanlise, sendo o caso uma apreenso circunstancial e momentnea de uma construo (Souza, 2000: 18) 100 . O caso um relato de uma experincia singular, podendo ser ele uma sesso, algum fragmento de sesso _ como um sonho, por exemplo _, a descrio de sintomas ou o desenlace de uma anlise. O objetivo da construo do caso clnico pode ser o de elucidar uma situao clnica, esclarecendo a estrutura psicopatolgica que subjaz a ela, a reflexo e o avano conceitual da prpria teoria, at servir de modelo ou exemplo de uma dada disciplina ou rea do saber.
Sabemos, com Vigan (1999) 101 , que:
Caso, vem do latim cadere, cair para baixo, ir para fora de uma regulao simblica; encontro direto com o real, com aquilo que no dizvel, portanto impossvel de ser suportado. A palavra
99 FREUD, S. Estudos sobre a histeria (1895). In: ESB. Rio de J aneiro: Imago, 1976. 100 SOUZA, Edson. A vida entre parnteses. Correio da APPOA, n 80, jun. 2000: 13-23. 101 VIGAN, Carlo. A construo do caso clnico em sade mental. Curinga, n 13, set. 1999: 50-59.
96 clnica vem do grego kline e quer dizer leito. A clnica ensinamento que se faz no leito, diante do corpo do paciente, com a presena do sujeito. um ensino que no terico, mas que se d a partir do particular; no a partir do universal do saber, mas do particular do sujeito (p.51).
Um caso, em psicanlise, exige um distanciamento da intimidade experienciada por analista e analisante no processo. Ele requer o rompimento dessa intimidade para ordenar o dito que constitui a trajetria, sua teorizao e seu relato. A construo do caso supe um terceiro, para quem dirigida uma questo, junto de uma dificuldade, inquietao ou descoberta, que toca o analista. Este se v implicado na transferncia e, portanto, o relato de um caso o relato da forma como este analista o escutou.
O caso um recorte, mesmo por que muito difcil relatar uma experincia de anlise. Mesmo havendo inmeros relatos, isto no nos impede de ver neles sua parcialidade, advinda do fato de que, geralmente, um recorte da experincia. Outra dificuldade o fato de que um caso singular, nico, correndo o risco de, ao ser relatado, ter pretenso de universalidade. A construo do caso clnico ocorre quando a clnica tropea numa borda intransponvel e chama a teoria para dar conta dela, ou ao menos para situ-la (Puj, 1994:19) 102 . O relato marca o encontro com um real que causou sua construo, buscando fazer borda ao real, o que estabelece uma vinculao direta entre a construo e o desejo do analista.
102 PUJ , Mrio. La comunicacion del caso. In: Psicoanlisis y el hospital. Buenos Aires, n. 5, invierno 1994: 13-21.
97 O caso clnico ento, uma fico construda pelo analista, por que reconstrudo a partir das lembranas desse; como um fio solto que pode atar ou desatar possveis ns. o encontro entre uma escuta e uma fala, num ponto qualquer, onde estas se cruzam, sempre guiadas pela transferncia. Sendo o caso uma construo, podemos efetu-la das mais diversas formas, a partir daquilo que nos chama ateno, ou daquilo que Lacan (1985) 103 nos fala quando do fenmeno da esquise, tomando como referncia a mancha num quadro, ou seja, um quadro nada mais do que uma mancha de tinta que nos v assim que a olhamos.
A construo do caso pode se dar a partir de vrios pontos, naquilo que toca ao analista. O caso Maria vai ser paradigmtico da questo racial e daquilo que tenho escutado de meus analisantes negros. Mesmo tendo, a grande maioria deles, buscado a anlise por motivos outros que no a questo racial, esta, em algum momento, surge. Acredito que isso se deve, em parte, ao fato de eu ser negro e, algumas questes surgirem, a partir da: sonhos, atos falhos, chistes, etc. Alguns analisantes, quando vem de outros processos teraputicos ou psicanalticos, costumam dizer de uma surdez de seus analistas ou terapeutas anteriores em relao raa. Em encontros sociais, a mesma queixa se apresenta, por parte de analistas e analisantes: dizem nunca ter pensado a respeito, dizem que esse assunto no faz questo, dizem que o analista escuta um inconsciente e este no tem cor nem sexo, etc. Porque a questo racial no escutada? Por que essa evitao, esse temor? Em que questes esbarramos quando levamos adiante a anlise de um sujeito que sofre por causa de sua negritude? So estas e outras questes que estou tentando responder ao longo desta tese pois, o inconsciente pode no ter cor, nem sexo, mas o sofrimento do sujeito, provocado pela discriminao que este sofre, tem cor, sexo e classe social.
103 LACAN, J acques. O Seminrio. Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanlise. Rio de J aneiro: J orge Zahar, 1985b.
98
Freud (1895) 104 j nos advertia de que um sintoma sobredeterminado. Ele denominava trauma as impresses experimentadas em idade precoce e esquecidas depois, e dava a essas uma grande importncia na etiologia das neuroses. Essas situaes traumticas podem caminhar lado a lado com outros fatores, como disposies hereditrias e constitucionais, da a sobredeterminao. O que vai caracterizar um caso como traumtico ou no a forma como cada um vai lidar com a experincia, ou seja, o fator quantitativo, seu excesso pulsional. Por isso, algo que traumtico para um pode ser considerado normal para outro; na srie complementar dois fatores devem convergir para o preenchimento de um requisito etiolgico. Uma parte de um dos fatores equilibrada por uma parte de outro, operando ambos em conjunto. Apenas podemos dizer se o motivo que est em ao simples quando percebemos as duas extremidades da srie.
As vivncias traumticas tm por caractersticas: ocorrerem na primeira infncia; serem recalcadas, ou surgirem como lembranas encobridoras; relacionam-se com impresses de natureza sexual e agressiva e a danos precoces ao eu, chamados de mortificaes narcsicas, que desencadeiam as feridas narcsicas. Os traumas so experincias sobre o prprio corpo do indivduo, ou percepes sensrias, principalmente de algo visto e/ou ouvido, ou seja, experincias ou impresses. O trauma pode ter efeitos positivos e negativos. O efeito positivo a tentativa de por em funcionamento mais uma vez, recordar a experincia esquecida ou at mesmo torn-la real, experiment-la novamente. H fixao no trauma e uma compulso a repeti-lo. O efeito negativo segue objetivo oposto: no recordar e no repetir nada do trauma, uma reao
104 Op. cit.
99 defensiva. expresso em evitaes que podem ser intensificadas em inibies e fobias. So fixaes no trauma tanto quanto as anteriores, porm com intuito contrrio. Essas estratgias defensivas trazem tambm intensas impresses sobre o carter do sujeito. Tanto os sintomas quanto as restries ao eu e as modificaes de carter possuem uma qualidade compulsiva, apresentando uma independncia dos outros processos psquicos que se ajustam s exigncias do mundo externo real e obedecem s leis do pensamento.
Os traos diagnsticos estruturais surgem no desdobramento do dizer, como passagens significativas do desejo que se esboam naquele que fala. Esses sinais aparecem como os ndices que balizam o funcionamento da estrutura psquica. Diagnosticar em psicanlise significa discriminar a identidade do sintoma da identidade dos traos estruturais. No caso de Maria, que veremos a seguir, observamos uma reao caracterstica do funcionamento histrico: um recalcamento associado a um deslocamento. O histrico deseja alguma coisa de forma a faz-lo ser desejado pelo outro. Um outro esteretipo fundamental da histeria a funo da mscara, o que coloca o sujeito distante de si mesmo e de seu desejo, a fim de continuar a nada saber dele. o caso das perucas e artifcios de Maria; seu sintoma, forma de realizao do desejo, induziu nela duas formaes do inconsciente: um fantasma (obsessivo) e um sintoma de automutilao.
A histeria se manifesta sob a forma de distrbios diversificados e passageiros. Os mais clssicos so sintomas somticos como as perturbaes da motricidade, distrbios da sensibilidade e os distrbios sensoriais. Tambm aparecem afeces mais especficas: insnias, desmaios, alteraes da conscincia, da memria ou da inteligncia. Os sintomas histricos so, em sua maioria,
100 transitrios; no resultam de nenhuma causa orgnica e sua localizao corporal no obedece lei da anatomia ou da fisiologia.
Um outro trao da histeria concerne ao corpo enquanto corpo sexuado, dividido entre a parte genital que, em geral, atingido por fortes inibies sexuais e todo o resto no genital, que erotizado e sujeito excitao. Vemos, assim, que o sujeito histrico aquele que sexualiza o que no sexual (Nasio, 1991) 105 .
Na dinmica da histeria, vemos uma pessoa assujeitada a outra, a partir de suas fantasias. Na fantasia histrica, est presente a insatisfao permanente e um estado de vitimizao, de infelicidade, que visa atenuar a angstia neurtica. Assim, o histrico se oferece, mas no se entrega, pois teme o gozo, devido impossibilidade da relao sexual. A insatisfao lhe garante a integridade de seu ser, protegendo-o da ameaa de desintegrao e loucura despertada pela possibilidade do gozo (Lacan, 1985) 106 .
Ele vai viver assim aprisionado numa sexualidade infantil, pelo temor da angstia de castrao, mantendo sua incerteza sexual: sou homem ou sou mulher? Na menina, a angstia de castrao vem acompanhada de dio e ressentimento pela me, que no foi capaz de dar-lhe o objeto to desejado: o falo; a castrao, na mulher um fato consumado. Na histeria, ter o falo , na realidade s-lo, da a investidura flica no corpo tornando-o um corpo-falo.
A ameaa de castrao, na histeria, entra pelos olhos e a angstia que da resulta inconsciente, por estar submetida ao recalcamento acaba por se converter em
105 NASIO, J uan David. A Histeria. Rio de J aneiro: J orge Zahar, 1991. 106 LACAN, J . O Seminrio. Livro 2: O eu na teoria de Freud e na tcnica da psicanlise. Rio de J aneiro; J orge Zahar, 1985.
101 sofrimento em sua vida sexual. Nas outras neuroses, essa ameaa entra pelo ouvido (no caso da neurose obsessiva) e se desloca para o pensamento at fixar- se numa idia, ou entra pelos orifcios do corpo (no caso da fobia) e projetada para o mundo externo (Nasio, 1991: 71-72) 107 .
O desejo do histrico um desejo de insatisfao, pois visa sustentar o desejo do pai. O homem histrico ignora sua potncia, sentindo-se menos homem que os outros. A histrica ignora o que o sexo feminino. Para sab-lo, passa pela intermediao do pai, portador do pnis. Ela se instala no desejo do pai procurando sentir a mesma sensao experimentada por este, possuidor do pnis para saber o que a mulher tem de desejvel, para, a partir da, quem sabe, simbolizar o rgo sexual feminino.
A partir daqui, pretendo trabalhar um caso, articulando-o s questes que a clnica psicanaltica nos impe. Trata-se de um caso de histeria, com as particularidades estruturais e fenomnicas que este quadro clnico traz e que foi citado anteriormente. Maria uma histrica que sofre de sua negritude, da ser um caso ilustrativo deste estudo, que busca articular um sintoma individual naquilo que ele traz do imaginrio social, no que tange questo racial no Brasil. Como a cultura pode modificar um sintoma que tanto individual quanto social? Quais os efeitos do escravismo na constituio psquica do negro? Como fazer uma articulao entre a metapsicologia e a especificidade do negro no Brasil? O que fazer para no se identificar com o agressor? Quais as sadas possveis para o gozo que cada sujeito negro, atendido por mim, encontra? H uma tenso entre o que da cultura e o que da estrutura. o que pretendo responder ao longo deste trabalho. Passemos ento ao caso.
107 Op. Cit.
102
Preciso parar de me mutilar. com essa frase que Maria assim que vou cham-la inicia sua primeira entrevista comigo. Vem indicada por um colega. Esteve em psicoterapia por um perodo de dois anos e decidiu interromper por no ter visto, naquele processo, nenhum progresso. Comea seu relato dizendo de seus constantes ataques ao seu corpo: arranca cabelos. Chegou com este diagnstico de tricotilomania, que conseguiu decifrar junto com sua ex- terapeuta, buscando ambas, na literatura, todo material disponvel. No discurso psiquitrico, de acordo com Kaplan e Sadock (1991) 108 , tricotilomania a incapacidade de resistir a impulsos de puxar os prprios cabelos, precedida de crescente sensao de tenso imediatamente antes de arrancar os cabelos. mais comum em mulheres que em homens; geralmente associada depresso ou a transtorno obsessivo-compulsivo. O incio est relacionado a situaes estressantes e perturbaes no relacionamento me-filho, perdas e medo do abandono.
O couro cabeludo a rea mais comum de eleio do sujeito. Outras reas envolvidas so: as sobrancelhas, os clios e a barba, menos comum o tronco, as axilas e o pbis. O ato de puxar os cabelos descrito como doloroso e podem estar presentes outros atos de automutilao como bater a cabea, morder as unhas, arranhar-se, escoriar-se. O tratamento mdico geralmente envolve o uso de medicamentos ansiolticos e antidepressivos e tratamento dermatolgico. Os mdicos tambm recomendam a psicoterapia, devido a angstia excessiva que a situao traz.
108 KAPLAN, H. & SADOCK, B. Compndio de psiquiatria: cincias comportamentais, psiquiatria clnica. 6.ed. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1991: 521-523.
103 Maria diz que seu corpo seu fardo, tem de carreg-lo, mas isso lhe custa muito, tendo de fazer verdadeiras piruetas para disfarar, esconder dos outros seus atos que, segundo ela acredita, ningum percebe. Para isso, usa os mais diversos disfarces: perucas, enxertos de cabelos, implantes. Seus ataques tiveram incio na adolescncia, por volta dos treze anos, quando de sua menarca. Morava no interior, com sua famlia, devido ao trabalho do pai, encarregado de obras numa construtora de grande porte. Por causa desse trabalho, viviam viajando, nunca chegaram a morar mais de trs anos numa mesma cidade, o que s veio a acontecer quando Maria fez dezoito anos e, tendo completado o segundo grau, resolvera prestar vestibular. Os dois irmos tambm estavam prximos de completar o segundo grau, pois a diferena de idade entre eles muito pequena. Como a aposentadoria do pai estava prxima, este pediu transferncia para a capital, no que foi atendido pelos patres.
Mesmo aposentado, o pai de Maria continuou a trabalhar na construtora. Ela fala do pai com admirao: ele nasceu numa favela, comeou a trabalhar aos oito anos de idade, vendendo balas na rua. Filho de uma grande famlia, pai alcolatra, me empregada domstica, oito irmos, ele era o stimo. O av de Maria morreu cedo, provavelmente em decorrncia de complicaes advindas do lcool, deixou a esposa viva, com sua numerosa prole. Todos os filhos tiveram de comear a trabalhar desde criana, o que impossibilitou a entrada e a permanncia deles na escola. De todos, o pai de Maria o mais bem sucedido. Depois de vender balas, foi lavador de carros e servente de pedreiro. Com essa ocupao, entrou para uma construtora, aprendeu o ofcio de pedreiro. Trabalhava durante a semana na construtora e, nos fins de semana, prestava servios a vizinhos e familiares, ajudando-os na construo de suas casas algo comum na favela, em regime de mutiro. Por ser um bom funcionrio, seus chefes sempre o requisitavam para servios particulares em suas residncias e,
104 um deles, especialmente, percebendo sua dedicao, incentivou-o a estudar para, ento, poder ocupar cargos melhores. Ele levou muito tempo para conseguir concluir o curso fundamental, tornou-se mestre de obras, ou seja, um supervisor dos servios da construo civil.
Ao longo de sua vida, este pai sempre foi tambm pai da famlia numerosa, pois, dos seus irmos, nenhum conseguiu ascender socialmente. Permaneceram morando em favelas, em condies precrias de vida. o pai de Maria quem ajuda a todos, na medida do possvel. Aceitou viver viajando, pois isto lhe garantia uma renda melhor, adiou alguns planos, inclusive o de se casar. Foi num intervalo de obras que ficou conhecendo sua esposa, moradora da mesma favela que sua famlia. Em seguida, veio ser supervisor de uma obra e ficaram namorando, depois retornou s viagens e vinha v-la sempre que possvel. Queria se casar, mas isso s aconteceu depois que construiu uma casa para sua me.
Sobre a me, Maria diz que ela veio de uma famlia melhor estruturada que a do pai, eram apenas trs irmos. Tambm tinha uma vida dura, trabalhou desde cedo, completou o ensino fundamental, era empregada domstica. Aps se casar, no trabalhou mais fora de casa, mesmo porque a curta permanncia nas cidades por onde passavam no permitia. Educou os filhos com rigor. Apesar de dizer gostar muito de sua sogra, evita o mais que pode o contato com os cunhados e toda a famlia de seu marido. Considera-os mal educados, uma influncia negativa para seus filhos. Sempre odiou o ambiente da favela e seu sonho era poder sair de l. Nesse sentido, seu casamento foi o melhor presente que Deus lhe deu: no s saiu da favela como da cidade. Tinha muita saudade da famlia e, quando voltaram a viver aqui, decidiram construir uma casa prxima da sua famlia, que no mais habitava a favela.
105
Numa sesso, quando ainda se encontrava na poltrona, estando bastante angustiada, diz: T tudo preto na minha frente, ao que intervenho dizendo Sim, est tudo preto na sua frente. Ela me olha com um certo espanto. Encerro a sesso. Na sesso seguinte, estando agora no div, retoma a questo da cor dizendo do incmodo que tudo aquilo tinha lhe causado. Passou a semana pensando nisso e diz que seu pai negro, bem negro, assim como toda sua famlia. Sua me mulata, filha de pai negro e me branca, tem os cabelos encaracolados, nem bons, nem ruins demais. Ela e os irmos so mulatos, mais para negros. Isso sempre foi um problema para toda a famlia. A me sempre falou das coisas de negro: falar muito alto, no ter higiene, nem educao, beber e dar vexame, as mulheres que no se do ao respeito, etc. Atribua famlia do marido todas essas caractersticas. Como ela foi empregada domstica, aprendeu com os patres as boas maneiras: falar baixo, no discutir assuntos pessoais na frente de estranhos, comer em silncio, ter o maior rigor com as questes de higiene, no ficar de conversa fiada na porta de casa com a vizinhana. Assim, educou seus filhos, eles no deveriam dar motivos para os outros falarem deles; sempre foram conhecidos pela extrema educao, apesar de os dois irmos serem muito diferentes um do outro. O mais velho super na dele, fala pouco, tem poucos amigos, tranqilo, trabalha, estuda, namora, no demonstra ter maiores conflitos. O mais novo totalmente diferente dos dois: tambm trabalha, estuda, namora, tem muitos amigos, gosta de danar, de fazer festas, de falar da sua negritude, discutir o assunto, por isso l, se interessa, ao contrrio do mais velho que alienado. Maria fica dividida: gostaria de no falar, de no discutir, mas o assunto sempre volta, de uma forma ou de outra.
Em sua infncia, todas as suas bonecas eram brancas, de cabelos compridos, uma, especialmente, era um beb louro e de olhos azuis, do tamanho de um beb
106 verdadeiro. Adorava essa boneca, brincava mais com ela do que com as outras; a mantm guardada at hoje, no conseguiu do-la a ningum. Sonhava em ser assim, diferente, diferente do que realmente . Tinha inveja das amigas, cresceu tendo vergonha de seu corpo, dos lbios grossos, do nariz que no chato, mas lembra o nariz de negros, de sua bunda grande e suas ancas largas, como das negras, dos cabelos que no so como os da me, mas tambm no so como os do pai, para seu alvio. Vivia alisando-os e fazendo escova. No gosta de usar biquni, acha que no lhe cai bem, destaca demais o seu corpo; prefere os mais. Quase no toma sol, diz no precisar. Desde pequena, gosta de ler. Ficava muito sozinha, inclusive falava muito sozinha. A me a vigiava, sempre brincava em um local de onde esta pudesse v-la. Mesmo quando esta no estava presente, sentia o seu olhar. De vez em quando, a me lhe chamava pelo nome; ela nem sempre respondia e a me vinha v-la. Escrevia no quadro negro, tinha hora para brincar, no podia ir casa das amigas para no incomodar a elas e nem s suas mes. Quando a me lhe penteava os cabelos, dizia que eles eram ruins, que precisava dar um jeito. Passava mil produtos para alis-los, fazia tranas, mantinha-os presos. Falava o quanto ela parecia com a famlia do pai, o que, para Maria, era um sinal de que sua me no gostava dela, por no gostar da famlia de seu marido. Seu nascimento foi uma grande decepo: o pai ficou radiante com a notcia da gravidez, mas esperava um filho homem. A me queria dar ao marido o filho homem que tanto queria, e nasceu Maria. Na segunda gravidez, o filho homem, que tanto desejavam, nasceu e o terceiro veio em seguida. Diante da possibilidade de uma quarta gravidez, a me fez laqueadura de trompas. Contam que ela sentiu muito o nascimento do irmo: adoeceu, chorava muito, batia nele. At hoje rivaliza com ele. Mesmo no tendo muitos conflitos com o irmo, morre de cime e inveja. A me se d melhor com ele do que com ela, o que ela no aceita. Queria ter nascido homem. O pai faz tudo que pode para ela. Quando fez vestibular, no passou na universidade pblica e sim
107 em uma particular. O pai se disse orgulhoso dela, pois estava realizando o sonho de ter um filho formado em faculdade. Pagou seus estudos e isso custou famlia algum sacrifcio financeiro.
Na faculdade, foi uma boa aluna, tirava boas notas, mas era super discreta. Estudava, mas no participava das aulas, evitava ao mximo falar. Tinha poucos colegas, apenas uma se tornou sua amiga, uma moa extremamente problemtica, depressiva. Conversam muito, mas Maria no fala de seus problemas pessoais, uma conversa rasa, tem medo de que as pessoas percebam que ela no se sente bem em sua pele, em seu corpo. Queria ser invisvel, por isso procura sempre no chamar ateno. Tem sido assim desde sua adolescncia: a me nunca foi uma mulher vaidosa, no usa maquiagem, nem jias, no vai ao cabeleireiro. Sempre se arrumou sozinha, em casa e muito discretamente; no gosta das mulheres que se mostram, como as cunhadas. Maria s se permitiu ser mais vaidosa quando do contato com a tia, irm mais nova de sua me, de quem tem uma significativa diferena de idade. Para Maria, esta uma mulher batalhadora, estudou, formou-se na faculdade, casou-se. Sempre trabalhou fora, ao contrrio da me, gosta de sair, viajar, se arrumar. Passou a se espelhar nela, o que se deu quando da mudana para a capital. At ento, tinha medo do espelho. Sua tia no sabe de seus ataques ao prprio corpo, coisa compartilhada com a me e sabida pelo pai e irmos. , portanto, um tabu familiar, ningum fala no assunto, todos compartilham em silncio essa dor. Incompreensvel para Maria e os seus, isso teve incio aos treze anos, conforme dito, quando de sua menarca. Um dia se viu mergulhada em uma angstia to grande que comeou a se bater; no conseguiu ver-se no espelho ou o que viu, no era ela. Passou a ter crises cada vez mais constantes e sempre se mutilava. Enquanto as meninas saam, namoravam, ela ficava cada vez mais em casa, trancada, chorando. S ia escola, missa ou saa acompanhada dos
108 pais e irmos. Os pais a levavam a mdicos que receitavam ansiolticos e antidepressivos, conduta que durou por quase dez anos; estes proporcionavam um certo alvio momentneo, mas as crises voltavam e ela tornava a se atacar.
No achava que os homens se interessariam por ela e foi ter o primeiro namorado aos vinte anos, quando j estava na faculdade. Quando de seu primeiro ano na faculdade, diante da insistncia de colegas, resolveu ir a uma festa. Estavam num grupo, juntamente com alguns rapazes: tomavam cerveja e, quando se dirigiu a um deles para pedir um pouco, este disse que no dava bebida para mulher feia. Ela sabia do que ele estava falando, afinal, ela era a diferente do grupo, a nica negra, inclusive, e demorou mais de um ano para sair de casa novamente. Foi quando conheceu seu primeiro namorado, um cara negro. Foi um namoro conturbado, era demasiadamente insegura, achava que ele no devia ver nenhuma graa nela, que a traa. Ele era um cara que gostava de sair, danar, era comunicativo, lembrava o seu pai. Esse namoro durou um ano, com idas e vindas; fugia dele quando estava em suas crises e ele nunca percebeu a sua doena. Nessa poca, usava um enxerto nos cabelos, para disfarar seus ataques. Os encontros com esse rapaz a deixavam mais angustiada, no gostava dele, no se sentia bem a seu lado, chegava a ter asco, nojo dele, de sua boca, seu corpo. Entretanto, permanecia com ele. Achava que justificar o fato de no ter um namorado, no sair de casa, etc., seria muito mais difcil do que manter essa situao, por isso continuava. Esse namoro acabou quando ela flagrou o rapaz com uma outra moa, conforme havia previsto (desejado). Aproveitou a oportunidade para se livrar dele e no precisar dar maiores explicaes.
Tempos depois, encontrou seu atual namorado. Esto juntos h trs anos, fazem planos de se casarem. Com este tudo diferente, sente-se bem, conversam, gosta muito da famlia dele e, eles, dela. uma famlia unida, discreta, branca. No
109 incio do namoro, ela teve medo de no ser aceita pelos pais e irmos dele, mas foi bem recebida. Atualmente, questiona se foi aceita por realmente gostarem dela ou pelo fato de ser, naquela poca, uma universitria e ter uma condio de vida melhor que a do namorado. Tambm fica se perguntando pelo fato de ele ser branco: por que o namoro com o primeiro no deu certo? Ela nunca admitiu para si mesma que era racista, mas nunca tinha se pensado interessada em um negro. Era difcil estar com ele, no se sentia bem. Foi com ele que perdeu sua virgindade, mais por insistncia e medo que por vontade. No queria que ele a abandonasse, tinha medo de no conseguir um outro. A transa foi terrvel, sentiu dores, queria que aquilo terminasse logo. Nas vezes seguintes, sempre tentava desestimul-lo, inventava desculpas, etc. Com o atual diferente, mas isto fruto de um longo processo, no qual esse rapaz comparece como algum realmente interessado nela.
Aps um ano e meio de anlise, Maria deixou de arrancar os cabelos. Foi um perodo difcil, entrecortado por crises onde se fazia sangrar, s vezes. No incio, me descrevia seus ataques: estes se davam sempre em casa, geralmente noite, na solido do seu quarto ou no banheiro. No sabe dizer o que a levava a isso, sentia uma angstia sbita, bastante intensa e comeava a arrancar os cabelos, arrancava at raiz, sangrava, fazia buracos, falhas em sua cabea, chorava compulsivamente. O pai e os irmos nada diziam, a me vinha socorr-la. Este era um segredo que pertencia a ambas, apenas. Era este sintoma que as mantinha unidas. Foi atravs do cabelo que a me se fez presente em sua vida, desde a infncia. Dividem esse segredo, dividem as estratgias utilizadas para escond- lo, camufl-lo, disfar-lo. assim que ela se refere sua relao com sua me, de uma intensa intimidade no que se refere ao seu cabelo e de nenhuma intimidade no que se refere s outras coisas da vida. A me uma mulher fria, distante, silenciosa. H todo um conflito devido raa, cor, pelo fato de a me
110 sempre ter falado o quanto era diferente do marido, de sua famlia. Procurou criar seus filhos para que no fossem confundidos com aqueles meninos pretinhos e mal educados que sempre v na favela ou nos bairros onde viveu. E, para ela, o que mais marca uma mulher negra seu cabelo, a dificuldade para conseguir arrum-lo. Sempre dizia a sua filha: tem de dar um jeito nisso, enquanto penteava os cabelos dela. Sua cor, portanto, e seus cabelos so a marca da diferena entre ela e sua me, diferena impossvel de ser aplacada. Quando se olha no espelho, a me que Maria gostaria de ver e no a si mesma.
Ao longo de sua anlise, Maria vai revelando uma gama de lembranas e vivncias de contedo racial: as muitas vezes em que foi xingada de macaca na escola ou na rua. Certa vez deixaram uma banana em sua carteira, fazendo aluso ao apelido. As inmeras referncias ao cec109, como sendo um cheiro tpico das pessoas negras, os estgios e empregos que perdeu, ou deixou de buscar, aos quais faz uma referncia racial. Em um deles, enviou o currculo, foi chamada para uma entrevista e, quando a viram, disseram j terem preenchido a vaga, no lhe dando a chance de se apresentar.
Para alm dos aspectos estruturais, Maria uma negra que, como tantos outros, sofre de sua negritude. Negritude que a divide no desejo dos pais e na relao com os irmos. A voz e o olhar maternos que marcam sua constituio trazem no discurso o significante da brancura como o representante daquilo que tem valor, enquanto atributo flico: a cor da pele, os cabelos, o comportamento. A me rejeita em si as caractersticas negras, transmitindo Maria a decepo, o susto e a rejeio por ser mulher (queria um filho homem) e negra: temos que um jeito nisso, referindo-se aos cabelos crespos da filha.
109 Cec o diminutivo para catinga de criola: como a iniciao sexual dos rapazes do perodo escravocrata brasileiro se dava com as escravas, em muitas situaes era o cheiro destas que os excitava, o cec.
111
Corpo e cabelos marcados pelo no reconhecimento materno: sem vaidade, sem sensualidade, temendo ver-se no espelho, pois o que via, no era ela. A me diz que negro favelado, mal educado, sujo, as mulheres que no se do ao respeito. Deu aos filhos uma educao rgida, baseada na discrio. Viviam aprisionados no lar, assim como mantinha presos os cabelos da filha. Maria cresceu tendo vergonha e rejeitando o prprio corpo, com todas as marcas de negritude que este porta: cor preta, cabelos crespos, lbios grossos, ancas largas. sobre este corpo que a pulso far uma descarga agressiva: mutilar, arrancar os cabelos at a raiz, sangrar, doer. Diante da impossibilidade de ser como a me, sua dor que ser oferecida, seu sacrifcio dividido entre ambas: segredo guardado, sofrimento partilhado, impossibilidade de eleio desse enquanto um corpo-prazer.
Ela vai buscar alternativas: identificar-se com a tia, modelo de mulher mais prximo que a me. O primeiro namorado, negro como seu pai, desperta desejos incestuosos: teve horror, nojo e no suportou sua presena. Quanto ao atual, branco, no traz essa ameaa inconsciente de transgresso, possivelmente por estar de acordo com os ideais maternos.
Maria traz, em seu relato, inmeras situaes vividas cotidianamente por negros neste pas. Ser discriminado, xingado, humilhado, negligenciado em sua capacidade, reduzido a condio de objeto para o gozo do outro, tudo isso tendo por base a cor da pele e outros traos fsicos, significantes encarnados, incorporados e marcados em corpos e psiquismos de negros. Neusa Souza (1991)110 faz um depoimento ilustrativo desta condio: Saber-se negra viver
110 SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes de identidade do negro brasileiro em ascenso social. 2.ed. Rio de J aneiro: Graal, 1991.
112 a experincia de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas expectativas, submetida a exigncias, compelida a expectativas alienadas (p. 17-18).
Com relao ao cabelo, pela importncia individual, cultural e histrica que esse tem na construo da identidade e da subjetividade negra e para enriquecer o caso Maria, alguns dados de uma importante pesquisa merecem ateno. O cabelo esta parte do corpo que investida, libidinalmente, e possui vrios significantes. Recorro aqui ao extenso trabalho de pesquisa empreendido por Nilma Lino Gomes (2002)111. O cabelo e a cor da pele servem de critrios definidores do pertencimento tnico/racial dos sujeitos. No perodo escravista, o tipo de cabelo e a tonalidade da pele serviam como critrios de classificao, ajudava a definir a distribuio dos escravos nos trabalhos do eito, nos afazeres domsticos, no interior da casa-grande e nas atividades de ganho. Sendo assim, muitas vezes na relao senhor/escravo, esses dois elementos passaram a ser usados como os principais definidores de padro esttico, referentes aos negros. Com o fim da escravido e o incremento do processo de miscigenao, essa situao se complexifica; o cabelo e a cor da pele ocupam um lugar cada vez mais destacado dentre os sinais diacrticos escolhidos no campo da cultura para classificar o negro dentro de um grupo racial ou dentro de uma etnia.
O cabelo no um elemento neutro no conjunto corporal, pois a cultura o transformou em uma marca de pertencimento racial. No caso dos negros, ele um sinal que marca a negritude no corpo, tornando-se um trao identitrio. Ele revela a trajetria de vida de um sujeito, sua condio de existncia e o momento vivido no interior de um determinado grupo social. Seu significado varia de
111 GOMES, Nilma Lino. Corpo e cabelo como cones de construo da beleza e da identidade negra nos sales tnicos de Belo Horizonte. So Paulo: USP, 2002. (Tese de Doutorado).
113 acordo com a cultura, a classe social, idade, sexo, nacionalidade, contexto histrico e poltico. Sendo assim, cortar, alisar, raspar, mudar o cabelo pode significar no s uma mudana de estado dentro de um grupo, mas tambm a maneira como os sujeitos vem a si mesmos e so vistos pelo outro. O cabelo tambm porta um estilo poltico, de moda e de vida. Ele um veculo capaz de transmitir diferentes mensagens, possibilitando as mais diferentes leituras e interpretaes. Ainda segundo Gomes (2002)112, o cabelo a moldura do rosto e um dos principais sinais a serem observados no corpo humano (p. 255).
Queiroz (apud Gomes, 2002)113 revela que, por ocasio dos ritos de passagem, comum cortar ou raspar o cabelo, havendo tambm uma relao entre cabelo, poder e potncia sexual: da rasp-los ou cort-los pode remeter um sujeito castrao. No sistema escravista, a raspagem do cabelo era uma das muitas formas de violncia imposta ao escravo, significando uma mutilao, uma vez que o cabelo era considerado uma marca identitria e de dignidade para muitas etnias africanas.
Pode-se, atualmente, pensar a manipulao do cabelo como um representante da construo de uma estilizao e de uma esttica negra, geradas no contexto de uma sociedade racista. Se aqui trago esses aspectos scio-historicos para lembrar que, desde as tribos africanas, o cabelo um aspecto fundamental na construo da subjetividade dos negros. O caso em questo e a pesquisa de Nilma mostram-nos que esse processo se d, muitas vezes, sob o domnio da dor e da desvalorizao deles. seu cabelo que Maria d-nos a ver, fenmeno histrico por excelncia.
112 Op. Cit. 113 Op. Cit.
114 Algumas situaes vividas por negros e relatadas na clnica: uma mulher negra diz que, sempre que algum bate sua porta, num bairro de classe mdia, e ela atende, pergunta onde est a patroa. Um homem negro diz que, ao caminhar por uma rua e cruzar com uma mulher, esta imediatamente segura sua bolsa, ou muda de calada ou esconde suas jias, independente da forma como ele est vestido (e ele geralmente est bem vestido). Uma criana negra est esperando por seus pais porta de uma escola quando uma senhora passa e lhe d uma moeda. Poderia prosseguir dando uma infinidade de episdios que ouo e vivo diariamente, mas fiquemos por aqui.
A seguir, e para concluir este estudo, veremos quais so os traos do escravismo que permanecem em nosso imaginrio e em nossa sociedade e como podemos pensar formas e estratgias para suportar o mal-estar da advindos.
115 QUINTO CAPTULO
TRAOS DO ESCRAVISMO
Ainda que no existam raas, o racismo existe. Albert J acquard
A escravido est inscrita no Brasil. Faz parte de nosso passado, presente e futuro. Est presente em nosso cotidiano, atravs da religiosidade, de nossos traos culturais. Entretanto, no se fala em raa ou, se fala, para se fazer calar. Temos preconceito de ter preconceito 114 .
No Brasil, quando se fala em questo racial, comum pensarmos em negros: como se apenas os negros tivessem a ver com raa. No conheo, aqui, estudos que falem sobre a questo racial em brancos, tornando evidente que aqui raa marca uma diferena: de classe, de gnero. Marcaria tambm uma diferena psquica?
Fomos a ltima nao do mundo a abolir a escravido, o que se deu em 1888. O trfico de escravos estava proibido desde 1850. Calcula-se em 4 milhes o nmero de negros capturados na frica e trazidos para as terras brasileiras. Destes, estima-se que 20% morriam durante a travessia do Oceano Atlntico. Quando aqui chegavam, os negros eram despidos de seus traos identitrios, separados de seus familiares, tratados como peas. Eram comercializados e passavam a pertencer a seus senhores. Essa pertena tambm conferia a esses senhores o bom uso de seu escravo: todo tipo de servio era feito por este, desde o mais pesado, na agricultura, minerao e construo civil at o mais refinado
114 FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. So Paulo: Difel, 1972.
116 como arte, artesanato, costura, sem falar nos servios domsticos e sexuais. Trabalho era coisa de negro. No era incomum o senhor alugar, vender, trocar ou emprestar sua pea. Mas os negros tambm resistiam escravido atravs de fugas, rebelies, assassinatos de senhores ou retardando a produo, roubando, saqueando, etc.
Da forma como foi concebida, a Abolio entrou para a histria como uma ddiva do Imprio aos negros, desconhecendo a situao de escassez em que estes viviam. Isso no verdade, pois os movimentos abolicionistas, que contavam com a participao de muitos negros, j eram uma realidade, como tambm movimentos liderados pelos prprios negros. Assim sendo, os libertos foram lanados sua prpria sorte. O Estado e os senhores se desincumbiram de proteger estes indivduos. Concomitantemente Abolio, o Brasil assistiu queda do Imprio e ao advento da Repblica. O sculo XIX trouxe consigo as teorias raciais, veiculadas atravs dos naturalistas que visitavam o pas _ Aimard, Agassiz, Gobineau, Spix e Martius _ todos encantados com nossas belezas naturais, mas assustados com nossa miscigenao. Influenciados pelas idias desses naturalistas, intelectuais brasileiros, preocupados com o progresso da nao, introduziram esse mesmo pensamento em nossa sociedade. Assim, vemos Nina Rodrigues, mdico baiano, defender a criao de cdigos penais distintos para negros e brancos. Segundo ele, a inferioridade dos negros era fato comprovado pela cincia evolucionista e a degenerescncia dos mestios era um fato inquestionvel. A seu ver, a imigrao s aumentaria o nmero de degenerados. Mas, Rodrigues deixa de ver o negro apenas como imagem das discusses acerca dos males da escravido e passa a v-lo como objeto de cincia. O foco central de suas anlises ser a miscigenao e a insero do negro na sociedade: a mestiagem.
117 A Abolio trouxe conseqncias sociais para o Brasil. O incremento do processo de urbanizao aumentou os problemas das grandes cidades, trazendo para estas uma massa de indivduos que, encontrando poucas alternativas que lhes garantissem uma melhor qualidade de vida, avolumaram-se nas ruas e nas periferias, criaram favelas. A vadiagem, o alcoolismo e a sfilis tornaram-se questes de segurana e sade pblica, e os negros estavam no centro desta questo.
Um processo de medicalizao da sociedade foi implantado, com a medicina voltando-se para o meio social, visando uma domesticao dos corpos. A psiquiatria convocada a dar a sua contribuio, uma vez que, tanto o alcoolismo quanto a sfilis traziam graves conseqncias psquicas e distrbios sociais. Por iniciativa de um grupo de intelectuais, criada a Liga Brasileira de Higiene Mental, com o propsito de melhorar a assistncia aos doentes mentais, incentivando a preveno e a educao dos indivduos.
Essa proposta da Liga estava baseada na noo de eugenia, importada da Europa e impregnada de uma ideologia racista e discriminatria. Para os eugenistas, o branco (europeu) era o melhor exemplar da espcie humana, o que chocava com a composio racial brasileira. Adaptada aos trpicos, essa teoria contribuiu para formular a tese de que um processo de branqueamento era fundamental para o progresso da nao. Nesse caso, a figura do negro portava os traos da degenerao hereditria, o que vem marcar no s o imaginrio como tambm o cotidiano destes indivduos, pois: preto parado suspeito, correndo ladro (Reis Filho, 2000) 115 .
115 REIS FILHO, J os Tiago. Ningum atravessa o arco-ris; um estudo sobre negros. So Paulo: Anna Blume, 2000.
118 A miscigenao passa, de motivo de vergonha e erradicao no sculo XIX e comeo do sculo XX, categoria de orgulho nacional, nos anos 1930, com Gilberto Freyre 116 . Sua obra, de grande impacto e influncia na nossa cultura, traz a defesa da miscigenao e do sucesso da colonizao portuguesa nos trpicos, fazendo surgir o nosso mito da democracia racial, ou seja, a crena na ausncia de preconceito e discriminao em nossa sociedade. Aqui conviveriam, harmoniosamente, todos os povos e raas e um exemplo disso seria a capacidade de os brasileiros transformarem em cones culturais, elementos antes desvalorizados, tais como o samba, a capoeira, o futebol, etc. e a possibilidade de mobilidade social. O que o autor no pde perceber era o fato de o mito da democracia racial servir de mscara para nossa situao de extrema desigualdade, disfarando-a, e tambm encobrindo uma diviso cultural e econmica. A relao senhor/escravo , segundo Freyre, o principal antagonismo que marca a sociedade patriarcal brasileira, entretanto, a miscigenao, o contnuo de cor e o branqueamento no vo ser problematizados por ele em sua obra.
Nos anos 1950, surge uma nova corrente de intelectuais progressistas que criticam os postulados bsicos da democracia racial, destacando-se Florestan Fernandes e seus colaboradores, Octvio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Para essa corrente de pensamento, a desigualdade social entre brancos e negros no Brasil devia-se ao processo de industrializao, urbanizao e seu impacto sobre a estratificao social. As idias desses pensadores ainda tm um grande impacto nos estudos sobre a questo racial, pois a excluso econmica dos negros, sendo a mais evidente, revela e ao mesmo tempo esconde uma questo
116 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formao da famlia brasileira sob o regime de economia patriarcal. 23.ed. Rio de J aneiro: J os Olympio, 1984.
119 de poder. Assim, durante sculos, a herana cultural e a tradio dos negros foram negadas, tornando-se motivo de vergonha, ao invs de honra.
Durante o regime militar (1964-1979), a produo intelectual sobre a questo racial fica praticamente nula, vindo a ressurgir nos anos 1980 sob a forma de um momento de transio com pesquisas e publicaes a esse respeito. quando tambm assistimos a alguma produo psicanaltica sobre a questo 117 . J que a via econmica, tomada enquanto um sintoma, revela e oculta uma situao, apresento, em primeiro lugar, aquilo que nos revelado por ela para, em seguida, articul-la ao que ocultado.
Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios - PNAD (IBGE 1998) 118 , que tem por funo traar um perfil scio-econmico da populao brasileira, mostra-nos que o miolo de nossa pirmide social vem sendo aumentado por famlias vindas da base, o que vem demonstrar uma mobilizao social ascendente em nosso pas.
Numa classificao em cinco categorias, esse miolo a terceira, tambm chamada classe C. constituda por praticamente um tero de nossa populao, por famlias cuja renda mensal lhes possibilita o acesso a alguns bens antes acessveis apenas classe mdia: eletrodomsticos, telefone, computador, automvel, etc. Essa mobilizao fruto do intenso processo de urbanizao e da entrada da mulher no mercado de trabalho, ocorridos a partir da dcada de 1960, que acarretou mudanas no padro familiar e diminuio do nmero de filhos.
117 Gostaria de destacar os trabalhos de J urandir Freire Costa, Neusa Santos Souza, Izildinha Baptista Nogueira. 118 Veja, 30/09/1998.
120 nessa categoria que vamos encontrar a grande maioria dos negros da classe mdia, o que demonstra, ao longo dos anos, a imensa desigualdade social presente em nossa sociedade. O Brasil um dos pases com a pior distribuio de renda do mundo, ficando atrs, at mesmo de alguns pases latino-americanos e africanos nesse quesito. Aqui, metade da populao negra e, se apenas 5% pertencem s classes mdias, vemos o quanto marcante essa desigualdade. Temos 30 milhes de pessoas em estado de misria e, pelos dados anteriormente mencionados, a grande maioria desses miserveis negra, ou seja, continuam sendo a base de nossa pirmide social. O PNAD mostra que um, em cada trs negros, no sabe ler nem escrever aos dez anos de idade. Em termos de salrio, um negro ganha, em mdia, 87 dlares por ms, os pardos chegam a ganhar 100 dlares - menos da metade do que recebem os brancos. Os negros detm, tambm, os maiores ndices de desemprego e de subemprego. A situao de pobreza afeta a populao como um todo, fazendo com que, no Brasil, 47% dos trabalhadores possuam renda igual ou inferior a um salrio mnimo; porm, na base da nossa pirmide social esto 38,1% dos brancos, 57,8% dos pardos e 63% dos negros.
Numa pesquisa realizada em um dos ncleos universitrios da PUC-Minas, verifiquei (Reis Filho, 2004) 119 que os negros so a apenas 2% dos estudantes e 1,5% dos professores. A mdia de funcionrios, excluindo desta categoria os professores, relativamente superior. Os de categoria operacional _ porteiros, agentes de segurana, faxineiros (em sua grande maioria, negros) _ so terceirizados. Esse nmero inexpressivo, 2% dos alunos, no diferente em outras Universidades do pas. Aqui cabe lembrar que os dados estatsticos variam de acordo com a Instituio, mas sem geral, a variao vai de 1 a 4%, o
119 REIS FILHO, J os Tiago. Um perfil do universitrio negro da PUC Betim. Psicologia em Revista, v. 10, n. 15, jun. 2004: 139-143.
121 que permanece demonstrando a excepcionalidade do fato. Tambm verifiquei que esses alunos tm extremas dificuldades para permanecerem na Universidade, dado o estado de carncia em que vivem, mesmo sendo, esses universitrios negros, aqueles que tm acesso ao progresso social. O abismo que separa os privilegiados dos demais vem se perpetuando ao longo do tempo, pois as mazelas sociais recaem sempre sobre uma mesma populao.
Essa ideologia de que a questo do negro um problema de classe social o que os dados demonstram de forma a no deixar dvidas est implantada de forma consistente em nosso meio, a ponto de ouvirmos depoimentos como esse: se a Izabel Fillardis (atriz) aparecer chiqurrima numa novela, no h preconceito; o novelista Gilberto Braga (2001)120 diz que o problema do preconceito se refere pobreza e no ao fato de ser negro, homossexual, portador de necessidade especial, etc. O que este depoimento oculta o fato de ter precisado decorrer quase cinqenta anos da implantao da televiso no Brasil para que personagens negros tivessem alguma visibilidade, conforme veremos adiante.
Esses dados ilustram bem o fato de a cor ser um critrio fundamental na produo das desigualdades sociais no Brasil. Tambm convivemos com um critrio de classificao segundo a cor que relacional, ou seja, as pessoas so classificadas e se autoclassificam em um contnuo que vai do mais claro ao mais escuro. H uma dificuldade das pessoas se declararem negras ou pretas por causa dos efeitos da ideologia do branqueamento que, aliada nossa miscigenao, faz com que os negros afastem, de diversas formas, as referncias sua origem africana, dificultando a construo de uma identidade tnico/racial. No censo demogrfico do IBGE, de 1980, foram utilizadas 136
120 Conexo Roberto Dvila. So Paulo: TV Cultura, 02/11/2001.
122 expresses de classificao 121 , o que fez com que nos anos seguintes, inmeras campanhas fossem realizadas com o intuito de minimizar essa confuso.
A in-visibilidade do negro
De acordo com Souza (1990) 122 , o ideal de eu do negro brasileiro branco, o que quer dizer que a imagem corporal do negro forjada semelhana do branco, tornando opaca a questo da negritude. Assistimos, a partir do sculo XIX, o desenvolvimento de um projeto de nao no qual a figura do negro destoava. A contnua excluso, aliada a um espelho opaco, torna difcil, e por vezes at mesmo impossvel, ao negro realizar seu ideal, pois em nosso imaginrio, o negro visto atravs de um mito. Um mito uma narrativa que tem um carter de fico. Esta fico tem uma estrutura que traz consigo uma mensagem, a verdade, o que equivale a dizer que toda verdade tem uma estrutura de fico. O mito tambm possui um carter de inesgotabilidade. Esse mito, segundo Souza, foi construdo com base em imagos fantasmticas de esteretipos dos negros compartilhados socialmente. Alguns destes esteretipos so a superpotncia sexual, o exotismo, o ruim, o feio, o irracional, o sensitivo e o sujo, associados cor negra; esteretipos que deram origem a um discurso sobre o psiquismo do negro no Brasil associando, a estes, traos de periculosidade, incompetncia e asco 123 .
Esse processo desencadeou uma forma de ver (ou de no ver) o negro. Por exemplo, um negro, profissional liberal, procura um mdico clnico geral, pois
121 Ver, a esse respeito: MOURA, Clvis. Sociologia do negro brasileiro. So Paulo: tica, 1988. 122 Souza, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes de identidade do negro brasileiro em ascenso social. 2.ed. Rio de J aneiro: Graal, 1991. 123 Ver, a esse respeito: REIS FILHO, J os Tiago. Ningum atravessa o arco-ris: um estudo sobre negos. So Paulo: Anna Blume, 2000: 47-59.
123 estava sofrendo de um problema de impotncia. Ao ouvir esse depoimento, o mdico ficou perplexo e, no sabendo o que fazer encaminhou-o para um colega, pois disse nunca ter imaginado a possibilidade de um negro ter problemas sexuais; o mito da superpotncia a se apresenta.
A idia esttica vlida em nosso pas contrasta com aquela que vemos cotidianamente, gerando a criao do extico, a partir de um olhar mope sobre nossa diversidade. O extico formado por imagens produzidas e veiculadas pela mdia, acompanhadas de seu carter de dubiedade e dissimulao, tornando a diferena uma perverso, pois faz uma ponte entre o normal e o ridculo ou, muitas vezes, absurdo. Geralmente, os exticos assimilam a caricatura de si mesmos (Mussum, Vera Vero, Tiririca, Lacraia, J acar, Tio Macal, so alguns exemplos). Assim, o negro ou torna-se, intelectualmente frgil, esteticamente inferior e de carter duvidoso.
At os primeiros anos do sculo XX, nossa imagtica era criada, principalmente, atravs da imprensa, tendo tambm sido difundida via teatro e cinema. A partir dos anos 1950, com a chegada da televiso, tanto a criao dessa imagtica quanto sua divulgao, tornaram-se produto de grande impacto por causa de seu enorme poder de penetrao domiciliar, o que pode ser constatado at hoje. Falaremos disso adiante.
Historicamente, os veculos de comunicao tm apresentado argumentos para a no incluso de negros em comerciais e demais produtos da mdia: negros no so consumidores, pois so pobres; os clientes no aceitam a incluso de negros; os produtos da mdia refletem a sociedade e se esta racista... Essa tendncia tem sofrido mudanas nos ltimos anos, principalmente em decorrncia de pesquisas que apontam para o aumento de negros consumidores no mercado.
124
No que diz respeito Imprensa, assistimos criao de revistas, jornais, cadernos ou sees especializados na questo racial; essa atitude foi alavancada pelo enorme sucesso editorial da revista Raa Brasil 124 , um fenmeno pois, at setembro de 1996, no existia uma revista dedicada a negros. A revista causou enorme discusso nos setores especializados. Taxada de racista, preconceituosa, sobreviveu graas ao grande volume de fascculos vendidos mensalmente. No primeiro editorial, Aroldo Macedo (1996) enuncia:
Raa Brasil nasceu para dar a voc, leitor, o orgulho de ser negro. Todo cidado precisa dessa dose diria de auto-estima: ver-se bonito, a quatro cores, fazendo sucesso, danando, cantando, consumindo. Vivendo a vida feliz... todos os meses, Raa Brasil vai falar de nossos problemas e apresentar solues. Vai ajuda-lo a se cuidar melhor, a viver com mais alegria e segurana. Vai tambm discutir nossa identidade, resgatar nossa herana cultural e mostrar que a negritude alegre, rica, linda. Estaremos atentos para o preconceito, mas, acima de tudo, queremos afirmar nossas qualidades.
Pelo editorial, percebe-se que a revista nasceu com a pretenso de elevar a auto- estima dos negros; trazendo reportagens diversas sobre o universo da negritude no Brasil: beleza, moda, comportamento, lazer, gente, culinria, etc. Seria apenas mais uma revista, como dezenas de outras que circulam semanalmente pelas bancas de todo o pas, no fosse essa dedicada a um pblico exclusivo.
124 Raa Brasil, ano 1, n 1, set. 1996.
125 No resta dvida tambm que a revista no dedicada a todo e qualquer negro, mas sim queles com poder de consumo.
Apesar disso, no se pode negar que o fato de haver uma revista dedicada aos negros mesmo que priorizando os de classe mdia possibilita um avano na discusso das nossas relaes raciais, trazendo um pouco mais de visibilidade questo. A essa, outras publicaes surgiram e tambm, sees em jornais, para falarmos em mdia impressa.
Entretanto, no Brasil, a televiso continua a ser o maior veculo de comunicao e lazer de nossa populao, tem a melhor produo artstica e de entretenimento do planeta, exporta cultura e informao. A telenovela e o telejornal so os programas de maior audincia e sucesso junto ao pblico e tambm os produtos que incrementaram seu desenvolvimento. De acordo com J oel Zito Arajo (2000) 125 , os negros sempre fizeram parte da telenovela e de todos os gneros da fico televisiva produzida no Brasil (p. 19); entretanto, a televiso, ao longo de sua histria, ofereceu poucas oportunidades aos negros.
O enfoque racial que ela fornece o resultado da incorporao da ideologia do branqueamento ao mito da democracia racial. Conforme Arajo (2000) 126 , apesar de toda a luta da populao negra brasileira, esta ainda no conseguiu produzir imagens e programas reveladores de seus valores e experincias. Em seu gnero mais bem sucedido, a telenovela, assistimos a algo no mnimo curioso: aps cinqenta anos de telenovelas, apenas duas apresentaram famlias negras de classe mdia. Os negros so apresentados, geralmente, em papis estereotipados e j clssicos. A televiso uma grande divulgadora dos
125 ARAJ O, J oel Zito. A negao do Brasil: o negro na telenovela brasileira. So Paulo: Senac, 2000. 126 Op. cit.
126 esteretipos criados para os negros ao longo da histria: a me preta, mamie, mulher negra, gorda, grande, de vontade forte, irritvel e ao mesmo tempo amvel, dcil. A empregada domstica que, ou entra muda e sai calada ou amiga da famlia, tambm dcil, servil. Nesse campo, tambm esto os homens: fiis, companheiros, moleques de recados, jagunos, malandros ou Pai J oo, similar me preta.
Claro que a TV tambm reservou aos negros outros papis: profissionais liberais, executivos, empregados de grande importncia para a trama, etc., mas estes foram to inexpressivos em termos de nmeros, porcentagem, que chegam a pesar pouco na quantificao final. Mesmo em tramas onde vemos que caberia a presena de um negro, esta foi colocada em segundo plano, como, alis, acontece com os negros aparecem na tela, na grande maioria das vezes. A telenovela traz a imagem do branco como ideal de beleza e a classe mdia como ideal de consumo, e, nessas, o negro quase nunca aparece ou por destoar de seu ideal ou pelo suposto no pertencimento a essa classe mdia. Por outro lado, os atores morenos tambm no podem usufruir de sua suposta vantagem sobre os negros, visto que a eles tambm no so dados papis de relativa importncia.
De um modo geral, aos atores negros so reservados os personagens sem ao, ou quase; personagens passageiros, decorativos, que compem o espao domstico ou da realidade das ruas, em especial das favelas e vilas. Claro que assistimos a mudanas nessa perspectiva, mas, em geral, o racismo brasileiro representado da mesma forma em que ele aparece na sociedade, como um tabu sempre escamoteado no discurso oficial e privado dos brasileiros (Arajo, 2000: 309)127. A atriz Ruth de Souza ilustra bem este fato:
127 Op. cit.
127
Os autores vem o negro como servial... As histrias se desenvolvem em cima dos personagens brancos, e o negro no tem vez... (p. 90).
A necessidade de sobrevivncia e a possibilidade de trabalho faz com que os atores aceitem esses papis, mesmo quando oferecem poucas chances dramatrgicas. Mas, como conclui Arajo, estamos longe de vermos na TV dolos negros com o mesmo destaque que vemos no futebol e na msica, espaos privilegiados e, durante muito tempo, quase exclusivos de visibilidade dos negros. At por que, alguns grandes dolos do futebol e da msica relatam inmeros episdios de preconceito e discriminao vividos por eles, dentro e fora do pas. Isto no regra geral, principalmente em se tratando do futebol, que a maioria dos dolos no fala sobre o assunto, por considerarem irrelevante. Talvez muitos acreditem que o fato de terem fama e fortuna os livre do preconceito. Ronaldinho Fenmeno, quando perguntado por que raspava seus cabelos disse que era pelo fato de eles serem ruins e, quando sua famlia foi discriminada no condomnio onde vivia, ele no fez nenhuma referncia questo racial, fazendo silncio sobre o episdio. Muitos se vem presos no mito de que todo negro rico um mulato, e todo mulato pobre um negro, naquela suposio de que o dinheiro, assim como a educao clareia.
Atletas atuantes em pases estrangeiros relatam situaes de discriminao e preconceito vividas por eles, vindas principalmente da torcida adversria. Eles tm reagido diante dessas situaes, criando mecanismos de represso ao racismo, a exemplo do que vem sendo feito em clubes europeus. Quando h situaes de racismo e discriminao contra atletas negros, os clubes so penalizados com multas. Essas so insignificantes, financeiramente falando, mas
128 trazem a questo racial para os tablides dirios. Artistas costumam se pronunciar com mais freqncia com relao ao racismo, pois muitos so discriminados pela forma como se comportam, se vestem, etc.
Hasenbalg (1979)128 nos fala dos efeitos da ideologia da democracia racial nos negros, semelhante ao credo liberal da igualdade de oportunidades: a conseqncia da negao do preconceito e da discriminao a de trazer, para o primeiro plano, a capacidade individual dos membros do grupo subordinado como causa de sua posio social, em detrimento da estrutura de relaes intergrupais. Assim, a responsabilidade pela sua baixa posio social contribui para o sentimento de inferioridade dos negros. Por outro lado, essa maior penetrao dos negros na mdia e setores antes restritos quase exclusivamente a sujeitos brancos, no s fruto de uma fatia do mercado consumidor.
queles que acreditam que a questo racial uma questo de classe social, faz pensar em duas conseqncias da aceitao da mitologia racial:
1. As manifestaes de preconceito contra os negros so atribudas diferena de classes. Assim, quaisquer que possam ser as desigualdades entre brancos e negros, elas no so o resultado de consideraes raciais, mas advm da classe e da baixa posio social dos negros;
2. A ideologia racial produz um senso de alvio entre os brancos, que podem se isentar de qualquer responsabilidade pelos problemas sociais dos negros. Por outro lado, a escravido tambm deixou como herana o exerccio da superioridade do lado de quem tem algum poder sobre quem
128 HASENBALG, Carlos. Discriminao e desigualdades raciais no Brasil. Rio de J aneiro: Graal, 1979.
129 no tem nenhum. Exemplo tpico a frase: Voc sabe com quem est falando?.
Isto talvez explique o fato de o novelista Gilberto Braga poder fazer aquela declarao, de que o problema do preconceito se refere pobreza e no ao fato de ser negro, homossexual, etc. Ele nunca deu importncia aos negros em suas produes e parece no se sentir constrangido por isto. A novela brasileira de maior sucesso no exterior a estria de uma escrava branca, curiosamente uma adaptao de um romance realizada por este mesmo autor. Em outras produes, tambm h a escolha de atores brancos, ou quase, para personagens negros, com a alegao de que os negros no so bons o bastante para interpretar personagens difceis (sic?).
O pior quando o prprio negro introjeta essa perspectiva, sente-se inferior, medocre. A mdia, mesmo dando um espao ainda considerado pequeno aos negros, mostra-nos que este est na moda! Mas, ao que assistimos? O que vemos uma valorizao da imagem e no um reconhecimento da obra. Ambos so as faces do narcisismo, uma ligada vaidade, e a outra ligada ao orgulho. A vaidade a qualidade do que vo, ilusrio, instvel; uma vontade de atrair a admirao, ligada imagem pblica. O orgulho um sentimento de dignidade pessoal, veiculado pelo reconhecimento do prprio valor e do valor de sua obra. A televiso, na maioria dos casos veicula e cultiva a vaidade.
Pelo que foi exposto anteriormente, vamos pensar a questo do negro no Brasil articulada em duas vertentes: uma objetiva e a outra subjetiva. Com relao vertente objetiva, torna-se necessrio tratar-se da cidadania, e essa implica em direitos e deveres comuns a todos os indivduos. Retomo aqui algumas
130 consideraes de Eric Laurent (1999) 129 sobre o analista cidado, pois cidadania traz em si a noo de democracia. A psicanlise, por ser uma disciplina calcada no discurso e na livre associao, prescinde de uma sociedade democrtica para o seu exerccio e os analistas podem incidir, com sua escuta, sobre essa mesma sociedade.
O analista cidado participa intervindo sobre as formas de desrespeito ou de falta de respeito aos direitos de cidadania, contribuindo para que, toda vez que se tentar erigir um ideal, denunciar a promoo destes e de outros, apontando para o fato de novos ideais no serem a nica alternativa. A democracia, assim como o lao social, frgil por que so baseados em crenas. Crenas so fices e tm, portanto, estrutura de verdades. Conhecendo as fices, pode-se trabalhar para que estas no se tornem fixes, efeitos de grupo, prprios de qualquer organizao social.
A luta permanente de setores organizados 130 , buscando dar maior visibilidade ao negro e questo racial no Brasil, tem contribudo com algumas propostas e alternativas para curar essa ferida social. Uma dessas propostas a implantao das aes afirmativas, que servem de referncias para a implantao de polticas pblicas para a populao negra, pelo governo brasileiro. Aes afirmativas so:
Medidas especiais e temporrias, tomadas ou determinadas pelo Estado, espontnea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a
129 LAURENT, Eric. O analista cidado. Curinga, n13, set. 1999. 130 A Frente Negra Brasileira, dos anos 1930; o MNU, Movimento Negro Organizado; o Teatro Experimental do negro; o Grupo Olodum; a Casa Dandara; Coletivo de Mulheres Negras Geleds; Coletivo de Mulheres negras - NZinga; SOS Racismo; Secretaria Especial para Assuntos da Comunidade Negra; os diversos grupos de capoeira, Umbanda, Candombl, Escolas de Samba, comunidades quilombolas, etc. so alguns de nossos grupos.
131 igualdade de oportunidades e tratamento, bem como de compensar perdas provocadas pela discriminao e marginalizao, decorrentes de motivos raciais, tnicos, religiosos, de gnero e outros. Portanto, as aes afirmativas visam combater os efeitos acumulados em virtude das discriminaes ocorridas no passado (GTI, 1997) 131 .
Essa expresso, ao afirmativa, foi utilizada pela primeira vez em 1961, nos Estados Unidos, por um oficial negro americano: um conceito que indica que, a fim de compensar negros, mulheres e outras minorias em desvantagens decorridas da discriminao sofrida no passado, recursos sociais tais como empregos, educao, moradia, etc. devem ser distribudos, de forma a promover o objetivo social final que a igualdade. A ao afirmativa mais do que o combate discriminao, pois implica em levar em conta a cor como um critrio fundamental na produo das desigualdades. Sendo assim, o Estado estabelece preferncias para negros, mulheres ou membros de outras minorias tnicas. A raa s um dos critrios: um candidato negro de baixa capacidade no pode substituir um candidato branco de alta capacidade. Mas, no caso de competio entre dois candidatos de capacidade mais ou menos igual, um branco e outro negro, de acordo com os critrios da ao afirmativa, o candidato negro teria preferncia sobre o branco.
A poltica das cotas, ou seja, a reserva de um percentual de vagas para determinadas categorias, em empresas, e instituies, como forma de garantir o acesso de pessoas historicamente discriminadas, s um dos aspectos da poltica de ao afirmativa. Elas no so eternas, elas duram o tempo necessrio para atingir a igualdade, devendo ser empregado tambm no campo do trabalho.
131 GRUPO INTERMINISTERIAL PARA A VALORIZAO DA POPULAO NEGRA. Ao Afirmativa. In: Ministrio da Justia: Realizao e perspectivas. Programa Nacional de Direitos Humanos. Braslia:
132 Segundo seus defensores, para reverter uma situao politicamente indecente, adota-se uma ao moralmente correta.
Mesmo reconhecendo a necessidade de criao de alternativas no campo das polticas pblicas, visando a melhoria da qualidade de vida e sade dos negros, a implantao de aes afirmativas como o sistema de cotas pode ser uma faca de dois gumes, por se correr o risco de congelar o negro numa posio de escravo, a exemplo do que ocorreu com a Lei urea. Se a cidadania passa pelo acesso a bens de uso e consumo (educao, sade, trabalho, moradia, lazer), esse acesso deve ser possibilitado com uma modificao nas formas de distribuio de renda e no com privilgios.
O Brasil o pas que mais possui ONGs (Organizaes No Governamentais) do planeta e a maioria delas visam a promoo da sade e do bem estar. Ao mesmo tempo, temos a pior distribuio de renda mundial, o que faz aumentar a poltica dos privilgios e a concentrao do poder nas mos dos mesmos.
Um sistema de cotas pode sofrer as vicissitudes da ideologia do branqueamento, tendo como balizadores o nosso contnuo de cor, no qual o mulato ou moreno teriam prevalncia sobre os negros. Como se pode ver, no cotidiano, quanto mais prximo do ideal de brancura, mais oportunidades o sujeito tem, principalmente no mercado de trabalho, em funes onde o fentipo negro visto como indesejvel: geralmente em postos de maior visibilidade. O outro balizador a dificuldade de sujeitos negros se verem como tal. Nas recentes tentativas de implantao da poltica de cotas nas universidades, assistimos vrios indivduos se declarando negros. Se, primeira vista, isso pode ser um
Ministrio da J ustia, anexo IV, 1997. (Mimeo).
133 aspecto positivo no sentido da conscientizao acerca da identidade tnico- racial, pode ser tambm um oportunismo de muitos, buscando, dessa forma, a insero na nossa pequena parcela de privilegiados.
Outro aspecto a manuteno do negro numa atitude de eterna vitimizao, com seu choro, seu lamento. Cidados no lamentam; reivindicam o respeito a seus direitos. Desescravizar os negros torna-se um desafio a ser enfrentado por toda a sociedade.
A vertente subjetiva desta questo diz respeito escravido psquica. Aqui, samos do mbito do coletivo, sem deix-lo de lado, para a dimenso do particular. O negro tem que se haver com um corpo historicamente marcado pelo escravismo. Ele faz parte de uma sociedade que no o v, no o aceita. Isso o faz se sentir como que invisvel aos olhos dos outros e, decorrente desta atitude, o prprio negro vem rejeitar seu corpo. Em muitos casos o negro, ele prprio, se discrimina, tendo dificuldades de aceitar a cor de sua pele, seu cabelo crespo, seu nariz largo, seus lbios grossos...
Um trabalho de conscientizao e cidadania do negro deve se direcionar no sentido de lev-lo a conviver com o seu corpo: corpo que encerra a possibilidade de ser imaterializado pelo enxerto do vu imaginrio e da palavra. O sofrimento ligado imagem do corpo prende-se ao fato de que essa imagem estruturada, fundamentalmente, na dependncia do olhar do Outro. O negro sente que no est conforme ao que o olho do Outro espera dele, percebe-se exposto sob um olho mau e, conseqentemente, torna-se reduzido imobilidade e ao silncio. Como tem experincia de no ser ouvido, sua palavra torna-se desajeitada, intimidada pelo temor de gaguejar, de no saber se expressar. Sabendo-se um mal articulador da palavra, prefere esconder-se no silncio, para no correr o
134 risco de fazer ouvir para alm daquilo que a palavra poderia fazer escutar a dimenso do inaudito, prpria do inconsciente.
Para concluir, assim como Lacan prope a estrutura do n borromeano para se pensar a estrutura do psiquismo com as instncias do Real, do Simblico e do Imaginrio, proponho o mesmo n no que diz respeito questo racial no Brasil: as trs raas constituintes de nosso povo (ndio, negro e branco) se articulariam em n. Do entrelaamento do ndio com o branco, surge o mameluco; do branco com o negro, o mulato e do negro com o ndio, o cafuzo. O que amarra os trs ns o objeto a, em suas vertentes de causa de desejo e mais gozar. com o que advm desta amarrao que temos que nos haver.
Uma anlise, levada ao seu fim, deve conduzir o analisante ao estado de angstia surgida da ameaa do encontro com o Outro e ento atravess-la. Essa travessia ocorre quando uma palavra, um acontecimento, um gesto ou um silncio, uma revelao do analista ou surgida ao acaso, faz o analisante compreender que pode aceitar perder. Aceitar perder parte de algo que estar sempre perdido, a iluso do todo. A escuta de um sujeito negro deve lev-lo at o ponto em que diga: Basta! Quero falar de outra coisa. E ao analista cabe no recuar diante da negritude, pois a travessia deste fantasma possvel.
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