Fernando Cerri
Fernando Cerri
Fernando Cerri
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Assim, repito, sem que o quiséssemos ( pois o discurso era o de superação das
dicotomias referentes ao ensino de História: ensino - pesquisa, Universidade - Escola,
teoria - prática, bacharelado - licenciatura), constituiu-se uma fronteira indesejada mas
efetiva. A lógica do sistema educacional infelizmente não obedece aos desejos do
grupo que milita nessa área, e, tirante algumas exceções pontuais, à academia
permaneceu cabendo o papel de pesquisar o ensino de História enquanto à Escola coube
o papel de "praticá-la". As pesquisas são feitas pelos professores universitários ou por
seus orientandos nos programas de iniciação científica ou pós-graduação.
O campo da História das Disciplinas, que tem em André Chervel um dos seus
primeiros e principais enunciadores, define a prática de ensino como um momento e um
fazer específico do conhecimento. Dotadas de motivações (transmissão de conteúdo
cultural, formação do espírito do aluno) e de lógicas de funcionamento (mais que a
vulgarização ou a adaptação do conhecimento acadêmico para crianças e jovens)
próprias, as disciplinas, por esta chave de leitura, podem ser vistas como instâncias de
participação na criação do saber. O conceito de saber histórico escolar, manejado a
partir dos estudos de Moniot, Audigier e outros, permite complexificar a abordagem da
relação da disciplina escolar com o conhecimento acadêmico: permite pensar o
professor como criador, como intelectual do seu ofício, mesmo que não o saiba ou não o
pretenda. A assunção desse conceito obriga o professor da Escola a reflexões sobre o
saber que produz, tirando-o do eixo estreito da melhor técnica para transmitir
conhecimento e permitindo-lhe dispor-se como um investigador, um companheiro de
longa viagem do pesquisador / docente universitário. É evidente, entretanto, que de
produtor criativo de conhecimento escolar por força da especificidade do papel da
disciplina no sistema escolar a investigador da "prática", há ainda uma diferença que
exige protagonismo para ser transposta. E protagonismo não se concede nem se obriga:
assume-se.
Para Klaus Bergmann, num texto traduzido para o português no início da década
de 1990, a definição do campo do que chama de Didática da História passa
necessariamente pelo conceito (que o autor não aprofunda) de "consciência histórica".
Pedindo a devida licença para a deselegante prática da autocitação, podemos definir a
consciência histórica como
Para Bergmann, o que chama de Didática da História (e que nós estamos chamando,
certamente de forma imprópria e incompleta mas arraigada pela força do uso, de ensino
de História) vai muito além da discussão sobre métodos e técnicas, e o estudo da
formação e da dinâmica da consciência histórica é o móvel cuja investigação constitui a
espinha dorsal da área. É importante compreender a história que se aprende fora da
relação pedagógica escolar, porque esta é apenas um dos componentes do aprendizado
da História por parte dos alunos: muitas das suas noções e valores sobre o tempo, sobre
identidade, sobre o passado, são aprendidos antes, fora e concomitantemente ao ensino
formal. Os alunos chegam à escola já carregados de uma História cujo aprendizado não
foi controlado pelo professor ou pela escola, mas que teve origem na experiência
pessoal, no convívio com os mais velhos, na prática da religião, no contato diário com
os meios de comunicação. Contribuir para a compreensão desses processos extra-
escolares de aprendizado da História é importante para a própria metodologia escolar
do ensino de História, principalmente para identificar fatores que determinam,
condicionam ou minam os limites de aprendizado e contingenciam a compreensão da
História. A vantagem dessa concepção é a de não ignorar as relações entre a escola, a
História ensinada e a cultura (principalmente a indústria cultural), que são sempre
problemáticas, mas mais ainda quando são ignoradas ou postas em segundo plano.
O texto de Bergmann ajuda a estender as fronteiras para muito além da prática de ensino
e da educação formal. Apesar de um normativismo que não pode agradar à experiência
educacional crítica brasileira, o autor define a Didática da História como a própria
investigação sobre o significado da História no contexto social. Entendendo os focos de
emanação de discurso histórico (no sentido de atribuição de sentidos aos grupos
humanos no tempo) como múltiplos, isto dá a esse campo de investigação um objeto
significativamente amplo e ainda bastante inexplorado, o que nos deixa diante de uma
agenda de pesquisa que parece ser maior do que as forças que dispomos no momento,
bem como nos coloca a bordo de uma tendência atual na historiografia, como
reconhece, por exemplo, Stephen Bann (1994), sobre os usos da História. Entretanto,
assumir essa agenda passa por aceitar o desafio de pensar o ensino de história não mais
privilegiadamente na sala de aula e na escola, mas também nestes espaços. Essa postura
pode ser o salto, quantitativo e qualitativo, que prenuncia-se em várias pesquisas na área
do ensino de História no Brasil, com o qual esta área tende a ganhar um referencial de
análise mais amplo e uma possibilidade crescente de relacionamento com outros
territórios do saber.
Por fim, Gonçalves (1998) alerta-nos para mais um dos motivos pelos quais o ensino de
História precisa transpor seus muros e repensar suas fronteiras: a crise do ensino de
História não deve ser investigada apenas em seu próprio campo ( o ensino de História ),
mas precisa levar em conta uma crise mais ampla e dupla: da Escola em si e da Escola
Pública em particular.
Territórios contestados e fronteiras fluidas: entre a História e a Educação
Fenômeno que acompanha o ensino de História desde a sua gênese como campo
de saber sobre a prática educativa, é a disputa pelo seu lugar institucional nas
Universidades. Mais do que uma questão meramente administrativa ou um embate de
interesses por parte de grupos diferentes dentro da academia, a discussão sobre "onde
deve ficar a prática de ensino de História" (e outras disciplinas) reflete questões de
caráter teórico mais profundo, que poderíamos traduzir por "quem - ou qual disciplina -
tem legitimidade para pesquisar o ensino de História e formar o seu professor". Na
verdade, considerando que a formação do professor é uma soma de múltiplas
contribuições, a disputa que se estabelece é pelo comando, pela hegemonia do
processo. Essa disputa ocorre em maior ou menor grau, sendo quase inexistente em
algumas instituições e beirando o paroxismo paralisante em outras. A brilhante
discussão entre Ana Maria Monteiro, Serlei Ranzi e Marlene Cainelli, no 3o.
Perspectivas, embora evitasse abordar diretamente essa problemática (afinal ela é
existente mas surda), acabou tendo que abordá-la no momento do debate com a platéia,
momento em que colocaram-se vantagens e desvantagens da prática de ensino lotada
nos próprios departamentos de História ou nos departamentos / institutos / faculdades de
Educação. Uma das conclusões, se a memória não falha, era a de que a lotação pouco
importava quando havia uma prática profícua de diálogo entre os vários protagonistas,
superando a postura de demarcação de espaços.
A definição a ser dada para estas questões passa pelas definições do papel da
História na escola: se consideramos seu conteúdo como um fim, então a disciplina deve
manter-se delimitada e com espaço próprio e definido (ou seja, uma carga horária, um
horário definido de aulas, um professor nomeado para a função, a responsabilidade por
uma fração específica do currículo, e assim por diante), integrando conteúdos e
discussões de outras disciplinas ou participando eventualmente de projetos
multidisciplinares que integrem a sua contribuição para o aprendizado de um tema
transdisciplinar. Se, por outro lado, o conteúdo e os procedimentos das disciplinas são
vistos apenas como um meio para as finalidades transdisciplinares da educação
(formação do cidadão e seus comportamentos desejáveis, do consumidor, da tolerância,
da identidade), então não faz sentido a manutenção, na escola, de um espaço claramente
delimitado para a História, e nem para nenhuma outra disciplina: o eixo da atividade
educacional passa dos conteúdos disciplinares para os temas transdisciplinares.
Fronteiras e alfândegas
A tese do autor deste texto (ver as referências bibliográficas) pode ser citada
como exemplo entre as pesquisas que procuram chegar às fronteiras do ensino de
História a partir de uma concepção de que o mesmo ocorre também como um fenômeno
social que extrapola a escola. Nesse sentido, é fronteiriço em relação à grande maioria
dos estudos na área cujo foco é escolar, e também em relação à relação pedagógica
enfocada, a que ocorreu tendo por agentes o regime militar e os seus colaboradores e a
classe média. A ação da publicidade referente a temáticas políticas sobre a formação da
consciência histórica é o objeto desta tese. Levantaram-se as peças publicitárias de
instituições públicas e privadas no período do chamado “milagre econômico”
publicadas em revistas de circulação nacional, selecionando as que eram relativas a três
temáticas básicas para a formação da identidade nacional: o sujeito, o tempo e o espaço
relativos à nação brasileira, tais como aparecem nestes discursos publicitários. Segue-se
a análise algumas peças selecionadas referentes a cada uma das temáticas, procurando
destacar os seus mecanismos de disposição e transmissão de informações, argumentos e
valores, tanto no aspecto verbal quanto icônico.
10. LIMA, Lana Lage da Gama. Fronteiras da História. In: NODARI, PEDRO e
IOKOI (orgs.). História: Fronteiras. XX Simpósio nacional da ANPUH. São
Paulo: ANPUH; Humanitas / FFLCH / USP, 1999, p. 17 - 40.
13. ORTIZ, Renato. Um outro território. Ensaios sobre a mundialização. 2. ed. São
Paulo: Olho D'Água, 2000.