Fernando Cerri

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FRONTEIRAS INTERDISCIPLINARES NO ENSINO DA HISTÓRIA

Luis Fernando Cerri *

O título proposto para o grupo de trabalho é um convite aberto para a utilização


da metáfora geográfica na discussão epistemológica sobre a pesquisa do ensino de
história e sobre o fenômeno da disciplina História na Escola, no processo em que se lida
com os saberes do e para o educando. De fato, embora nem sempre nos apercebamos,
as expressões de raiz geográfica estão presentes no cotidiano da academia e da Escola:
lutamos por mais espaço para as nossas idéias e posicionamentos, demarcamos
territórios, ganhamos ou cedemos terreno, pensamos sobre o lugar de nossas propostas
dentro do processo educativo, e assim por diante. Evidentemente, essa opção deve ser
consciente dos riscos de se falar em espaço e fronteiras num mundo de avanço
tecnológico incessante que encurta as distâncias e leva muitos teóricos a ver o espaço
como uma categoria esvaziada de significado e a fronteira como algo em extinção
(Ortiz, 2000, p. 52).

Aceitando esse convite, o presente texto discutirá, no processo de definição das


fronteiras, a definição do território do ensino de história, entendido concomitantemente
como prática educativa e como um campo de pesquisa das Ciências Humanas. Em
seguida abordaremos os consensos e conflitos na constituição desse território, tecidos
nos muitos combates pelo ensino da História travados principalmente no decorrer do
século XX, com destaque para a década de 1980. Na seqüência, discutiremos este
território diante da "globalização" colocada pelas propostas trans e interdisciplinares,
evidenciando as possibilidades e os perigos deste processo, para, finalmente, abordar as
díades, ou seja, os pontos de contato com as várias disciplinas e saberes fronteiriços a
este campo de pesquisa / prática pedagógica.
Ensino de História: constituição e território

O que é o ensino de História de que tanto falamos nestes últimos anos,


principalmente desde o primeiro Perspectivas do Ensino de História, em 1988? Naquele
ano, o evento foi marcado pela ampla presença de professores do ensino de 1 o. e 2o.
Graus, e pelo caráter de balanço da História ensinada nas escolas e no ensino superior.
Seu caráter era mais o de um evento de professores de História em todos os níveis
discutindo a sua prática e trocando experiências que um evento acadêmico
esquadrinhando um objeto de pesquisa. Se por um lado, diremos, esta dicotomia é
falsa, por outro é sensível que o ensino de História como uma preocupação de pesquisa
acadêmica desenvolveu-se bastante desde então, sendo marcado inclusive pela criação
de um outro evento voltado a essa temática, os Encontros de Pesquisadores do Ensino
de História (já ocorridos em Uberlândia, Campinas e Ijuí).

Um dado da realidade só torna-se um tema de estudos quando um ou mais


motivos estabelecem-no como problemático. A princípio, o que não está em crise não é
notado nem investigado. A crise do ensino de história, como já destacaram vários
textos (entre eles talvez o mais conhecido seja o artigo de Elza Nadai, O Ensino de
História no Brasil: Trajetória e Perspectiva) decorre tanto da derrocada da ditadura
militar e sua influência sobre o ensino e a formação dos cidadão na escola quanto dos
deslocamentos epistemológicos da História, pesquisada e ensinada nas universidades.
As transformações na ciência História, que recompõem as fronteiras internas (cf. LIMA,
1999), geram transformações que são sentidas na prática de ensino da academia em
torno dos anos 70 e que pressionam consequentemente os cursos de formação de
professores. Formados dentro de novos paradigmas, os professores insatisfazem-se com
a estrutura didática que encontram nas escolas. Some-se a isso o processo de retomada
dos movimentos sindicais dos docentes sob a ótica do novo sindicalismo, no contexto
de crítica ao regime militar e de recuperação da escola pública e das condições de
trabalho do professor.

Ocorrendo na segunda metade da década de 80, o primeiro Perspectivas é


tributário de todas essas transformações, que se expressam nas suas atividades
registradas em parte nos Anais do evento.
No Seminário de 1988, os textos eram marcados, via de regra, por um caráter
narrativo, descritivo de situações, experiências e técnicas de ensino. São mais
espaçados nos Anais os textos que provocam uma reflexão a partir de um
posicionamento analítico e de uma discussão que promova o diálogo entre o objeto em
foco e as múltiplas vertentes da teoria. Temos aí, talvez e sem o concurso da vontade
dos interlocutores, o estabelecimento de uma primeira fronteira interna ao ensino de
história: as narrativas das experiências em sala formariam uma espécie de "ciência
aplicada". Do outro lado estaria a "ciência pura" do ensino de história como um campo
que se constitui no diálogo com teorias da História e da Educação e outras ciências,
feito via de regra na academia como trabalho de pesquisa dos docentes das disciplinas
de formação de professores para a Escola, ou no âmbito dos programas de pós-
graduação. Esse campo se constitui mais lentamente em torno da existência das
preocupações, reflexões, e posicionamentos político-pedagógicos no âmbito da História
na Escola, deriva de suas angústias e questões não respondidas, como por exemplo o
motivo dos poucos avanços globais mesmo com todas as boas idéias, boa vontade, bons
materiais e bons programas. A necessidade de um aprofundamento da reflexão,
ultrapassando as questões do método e da técnica, perguntando-se enfim sobre os
condicionamentos históricos, psíquicos e sociais do ensino de história, acaba por gerar
paulatinamente um campo de pesquisa lotado preferencialmente nas Universidades, nas
estruturas institucionais (departamentos, institutos, faculdades) destinadas a acolher a
História e a Educação.

Assim, repito, sem que o quiséssemos ( pois o discurso era o de superação das
dicotomias referentes ao ensino de História: ensino - pesquisa, Universidade - Escola,
teoria - prática, bacharelado - licenciatura), constituiu-se uma fronteira indesejada mas
efetiva. A lógica do sistema educacional infelizmente não obedece aos desejos do
grupo que milita nessa área, e, tirante algumas exceções pontuais, à academia
permaneceu cabendo o papel de pesquisar o ensino de História enquanto à Escola coube
o papel de "praticá-la". As pesquisas são feitas pelos professores universitários ou por
seus orientandos nos programas de iniciação científica ou pós-graduação.

Evidente que esses espaços são permeáveis, e essa permeabilidade é constituída


primeiro pelo posicionamento dos envolvidos em ter como desejo, como u-topia, a
superação das dicotomias entre os papéis de professor e de pesquisador. É constituída
também pelo fato de que os pesquisadores não poucas vezes são professores da Escola
afastados temporariamente de todo ou de parte de seu trabalho cotidiano para os cursos
de especialização, mestrado ou doutorado; também pelo fato de que os graduandos que
pesquisam o ensino de história geralmente concluem o curso e passam a atuar como
professores. Essa permeabilidade também se coloca pelos pontos de contato entre
professores e pesquisadores que se institucionalizaram: as atividades de formação
contínua de professores, as publicações, o material didático. Mas os espaços e sua
fronteira estão dados, significam por vezes a necessidade de coexistir com as tensões
entre o "pessoal da prática" e os "teóricos" da Universidade, das Secretarias de
Educação e de instituições de pesquisa e normatização da Educação. Essas fronteiras
demandam um esforço cotidiano para que não caiamos na lógica da ciência e da
sociedade, constituindo lugares autorizados para a fala sobre o objeto ou, trocando em
miúdos, vigiar sempre para que a academia e/ ou o Estado não se constituam como o
lugar do discurso competente sobre a História ensinada. Sobre a necessidade de manter
essas permeabilidades e evitar reducionismos e dicotomias, Henry Giroux é bastante
expressivo ao comentar o caso norte-americano:

Presos a limites disciplinares tradicionais e reciclando velhas ortodoxias, muitos


educadores críticos correm o risco de se transformar em velhas sombras
dançando na parede de uma obscura conferência acadêmica, esquecidos de um
mundo externo repleto de ameaças reais à democracia, à sociedade e às escolas.
Também tenho testemunhado, entre um enorme número de educadores nos
Estados Unidos, um crescente antiintelectualismo que é levemente codificado
em apelos a uma prática "real", à linguagem acessível e a políticas superficiais.
(...) Em alguns casos, o próprio criticismo educacional tem se transformado em
uma celebração reducionista da experiência, que ressuscita a oposição binária
entre teoria e prática, com esta última tornando-se uma categoria não-
problemática para invocar a voz da autoridade pedagógica. Neste caso a teoria é
rejeitada como incidental à reforma educacional, ou, simplesmente, como o
discurso de acadêmicos pedantes que têm pouco a dizer àqueles que trabalham
no campo. (Giroux, 1999, p. 12)
A dicotomia é uma tendência, é quase uma força magnética ou uma inércia de
repouso de um sistema educacional (e notadamente de formação de professores) secular
que tende a separar as coisas que julgamos que deveriam estar juntas. As idéias de
integração entre a teoria e a prática, de formação do professor - pesquisador, de
superação da licenciatura e (ou versus) bacharelado no sentido de uma formação
unificada do profissional e outras idéias correlatas são princípios ainda "fora da ordem",
ainda não inscritos definitivamente nos consensos educacionais, e precisam ser
encaradas dessa forma por nós para que não sejam arrastadas pela força da correnteza.

Se o ensino de História pode ser comparado a um território, a metodologia de


ensino pode ser entendida como a sua primeira cidade, quiçá a sua capital. É em torno
dos saberes sobre a prática de ensinar a História e seus problemas que se estruturarão as
demais investigações, que crescerão até a fronteira, na qual realizam as trocas
necessárias para a vitalidade dessa prática e desse campo cuja epistemologia estamos
procurando delimitar e compreender. Esta cidade primeira envolverá as discussões
sobre o relacionamento entre o professor e o aluno, especificamente quando tratam de
História; haverá uma Psicologia dessa relação, uma metodologia da elaboração e da
validação dos materiais didáticos, uma discussão sobre a especifidade da avaliação neste
caso; enfim, esta urbe poderia ser denominada como Didática da História, numa
concepção estrita da expressão. Esta capital, como toda capital, representará o
território, e em contrapartida condicionará todos os outros lugares, que convergirão ou
partirão da prática de ensino. Nessas rotas encontraremos outros saberes, como a
História da História como disciplina escolar, a teoria dos currículos de História, a
investigação da tradução da História nas múltiplas linguagens de que a humanidade
dispõe, e assim por diante. Cada um desses saberes já começa a ser uma fronteira sem
deixar de ser ainda o ensino de História. São como cidades abertas.

O campo da História das Disciplinas, que tem em André Chervel um dos seus
primeiros e principais enunciadores, define a prática de ensino como um momento e um
fazer específico do conhecimento. Dotadas de motivações (transmissão de conteúdo
cultural, formação do espírito do aluno) e de lógicas de funcionamento (mais que a
vulgarização ou a adaptação do conhecimento acadêmico para crianças e jovens)
próprias, as disciplinas, por esta chave de leitura, podem ser vistas como instâncias de
participação na criação do saber. O conceito de saber histórico escolar, manejado a
partir dos estudos de Moniot, Audigier e outros, permite complexificar a abordagem da
relação da disciplina escolar com o conhecimento acadêmico: permite pensar o
professor como criador, como intelectual do seu ofício, mesmo que não o saiba ou não o
pretenda. A assunção desse conceito obriga o professor da Escola a reflexões sobre o
saber que produz, tirando-o do eixo estreito da melhor técnica para transmitir
conhecimento e permitindo-lhe dispor-se como um investigador, um companheiro de
longa viagem do pesquisador / docente universitário. É evidente, entretanto, que de
produtor criativo de conhecimento escolar por força da especificidade do papel da
disciplina no sistema escolar a investigador da "prática", há ainda uma diferença que
exige protagonismo para ser transposta. E protagonismo não se concede nem se obriga:
assume-se.

Para Klaus Bergmann, num texto traduzido para o português no início da década
de 1990, a definição do campo do que chama de Didática da História passa
necessariamente pelo conceito (que o autor não aprofunda) de "consciência histórica".
Pedindo a devida licença para a deselegante prática da autocitação, podemos definir a
consciência histórica como

"(...) intrínsecamente identitária, como é histórica (no duplo sentido de datada e de


algo que faz referência ao tempo histórico) toda identidade político-territorial.
Por enquanto, a consciência histórica é como um objeto num quarto escuro:
embora não o possamos vislumbrar, sabemos que existe por ocupar um
determinado espaço, o que lhe dá a característica de algum condicionamento sobre
a nossa movimentação neste quarto. Podemos, então, conceituar a consciência
histórica primeiramente por este “espaço” que ela ocupa, ou seja, pelos
condicionamentos que impõe à vida social, pelas condições das quais participa no
processo de estabelecimento dos grupos humanos e de seu inter-relacionamento.
Referimo-nos, em primeiro lugar, à necessidade humana de estabelecer
significados para o(s) grupo(s) do(s) qual(is) se participa, significados que se
encontram – não exclusivamente – no passado, no presente e no futuro que se
constrói e que se imagina para a coletividade. Desta forma, a consciência
histórica é o nome que estamos atribuindo a esses significados que são
construídos em (por) cada grupo humano sobre si próprio, caracterizando-se no
tempo e no espaço. (CERRI, 2000, p. 1-2)

Para Bergmann, o que chama de Didática da História (e que nós estamos chamando,
certamente de forma imprópria e incompleta mas arraigada pela força do uso, de ensino
de História) vai muito além da discussão sobre métodos e técnicas, e o estudo da
formação e da dinâmica da consciência histórica é o móvel cuja investigação constitui a
espinha dorsal da área. É importante compreender a história que se aprende fora da
relação pedagógica escolar, porque esta é apenas um dos componentes do aprendizado
da História por parte dos alunos: muitas das suas noções e valores sobre o tempo, sobre
identidade, sobre o passado, são aprendidos antes, fora e concomitantemente ao ensino
formal. Os alunos chegam à escola já carregados de uma História cujo aprendizado não
foi controlado pelo professor ou pela escola, mas que teve origem na experiência
pessoal, no convívio com os mais velhos, na prática da religião, no contato diário com
os meios de comunicação. Contribuir para a compreensão desses processos extra-
escolares de aprendizado da História é importante para a própria metodologia escolar
do ensino de História, principalmente para identificar fatores que determinam,
condicionam ou minam os limites de aprendizado e contingenciam a compreensão da
História. A vantagem dessa concepção é a de não ignorar as relações entre a escola, a
História ensinada e a cultura (principalmente a indústria cultural), que são sempre
problemáticas, mas mais ainda quando são ignoradas ou postas em segundo plano.

O texto de Bergmann ajuda a estender as fronteiras para muito além da prática de ensino
e da educação formal. Apesar de um normativismo que não pode agradar à experiência
educacional crítica brasileira, o autor define a Didática da História como a própria
investigação sobre o significado da História no contexto social. Entendendo os focos de
emanação de discurso histórico (no sentido de atribuição de sentidos aos grupos
humanos no tempo) como múltiplos, isto dá a esse campo de investigação um objeto
significativamente amplo e ainda bastante inexplorado, o que nos deixa diante de uma
agenda de pesquisa que parece ser maior do que as forças que dispomos no momento,
bem como nos coloca a bordo de uma tendência atual na historiografia, como
reconhece, por exemplo, Stephen Bann (1994), sobre os usos da História. Entretanto,
assumir essa agenda passa por aceitar o desafio de pensar o ensino de história não mais
privilegiadamente na sala de aula e na escola, mas também nestes espaços. Essa postura
pode ser o salto, quantitativo e qualitativo, que prenuncia-se em várias pesquisas na área
do ensino de História no Brasil, com o qual esta área tende a ganhar um referencial de
análise mais amplo e uma possibilidade crescente de relacionamento com outros
territórios do saber.

Por fim, Gonçalves (1998) alerta-nos para mais um dos motivos pelos quais o ensino de
História precisa transpor seus muros e repensar suas fronteiras: a crise do ensino de
História não deve ser investigada apenas em seu próprio campo ( o ensino de História ),
mas precisa levar em conta uma crise mais ampla e dupla: da Escola em si e da Escola
Pública em particular.
Territórios contestados e fronteiras fluidas: entre a História e a Educação

Fenômeno que acompanha o ensino de História desde a sua gênese como campo
de saber sobre a prática educativa, é a disputa pelo seu lugar institucional nas
Universidades. Mais do que uma questão meramente administrativa ou um embate de
interesses por parte de grupos diferentes dentro da academia, a discussão sobre "onde
deve ficar a prática de ensino de História" (e outras disciplinas) reflete questões de
caráter teórico mais profundo, que poderíamos traduzir por "quem - ou qual disciplina -
tem legitimidade para pesquisar o ensino de História e formar o seu professor". Na
verdade, considerando que a formação do professor é uma soma de múltiplas
contribuições, a disputa que se estabelece é pelo comando, pela hegemonia do
processo. Essa disputa ocorre em maior ou menor grau, sendo quase inexistente em
algumas instituições e beirando o paroxismo paralisante em outras. A brilhante
discussão entre Ana Maria Monteiro, Serlei Ranzi e Marlene Cainelli, no 3o.
Perspectivas, embora evitasse abordar diretamente essa problemática (afinal ela é
existente mas surda), acabou tendo que abordá-la no momento do debate com a platéia,
momento em que colocaram-se vantagens e desvantagens da prática de ensino lotada
nos próprios departamentos de História ou nos departamentos / institutos / faculdades de
Educação. Uma das conclusões, se a memória não falha, era a de que a lotação pouco
importava quando havia uma prática profícua de diálogo entre os vários protagonistas,
superando a postura de demarcação de espaços.

O que temos chamamos de Ensino de História é uma área de investigação cujas


questões são pertinentes aos curso de História que formam professores, especialmente
nas disciplinas que são trabalhadas pelas Faculdades de Educação. Já foi argumentado
também que a interface ocorre tendo como centro o saber histórico comunicado (que
freqüentemente tem sido o saber escolar). Epistemologicamente (seguindo o raciocínio
de Bergmann), estamos diante de uma nova disciplina dentro da ciência histórica cujo
motor principal é, como já foi argumentado acima, a compreensão, avaliação e
melhoramento da circulação do conhecimento histórico pela sociedade e seu uso pelos
diferentes grupos, incluso aí o sistema educacional e a educação informal. Ocorre que,
na prática, o ensino de História vem se constituindo do trabalho de pesquisadores que
estão institucionalmente ligados a História e à Educação, principalmente, valendo-se de
conceitos, métodos e técnicas dessas e de outras ciências, e portanto institucionalmente
o que existe não é ainda uma disciplina, mas uma área de interesse interdisciplinar que é
compartilhada por profissionais diversos, dentro e fora da academia, e isso é de uma
riqueza ímpar. A história da ciência é pródiga em apontar exemplos de disciplinas que
surgiram primeiro, na prática, como campos interdisciplinares. Exemplo é a própria
História como a conhecemos hoje, como sugere a leitura de François Furet (s.d.).

A necessidade de que as dicotomias entre História e Educação no campo do


ensino de História sejam superadas dentro de estruturas novas que favoreçam o diálogo
é, senão um consenso, amplamente reconhecida entre os historiadores. Demonstra isso
o fato de que a comissão do MEC para elaboração das diretrizes curriculares para a
graduação em História (formada por três renomados historiadores, Ciro Cardoso,
Elizabeth Cancelli e Margareth Rago) em conjunto com a Associação Nacional de
História (Anpuh, que inclui professores - pesquisadores do ensino de História) elaborou
um perfil profissional que aponta para uma formação unificada, que tornaria anacrônica
a distinção entre bacharel e licenciado.

Como contraponto, as resistências a esse diálogo aparecem em documentos


como a Proposta de Diretrizes Curriculares para a Formação Inicial de Professores da
Educação Básica, em Cursos de Nível Superior, que defendem uma estruturação que,
em vez de favorecer esse diálogo, dificultam-no, reforçando um posicionamento que
está em vias de superação. Essa Proposta aponta os Institutos Superiores de Educação
como lugares privilegiados de formação do professor, distintos e separados dos cursos
de bacharelado, entendendo estes últimos como estruturalmente perniciosos para a
formação do professor. Ou seja, no exato momento, pelo menos na História, em que
problemas antigos são reequacionados, propõe-se simplesmente que esse diálogo seja
esquecido em favor de uma falsa solução, que não considera a necessidade de
integração entre a produção do conhecimento e a formação do professor, remetendo-nos
ao clichê da criança e da água do banho. Neste caso, todos vão janela afora: bebê, água,
bacia e babá. Propõe-se que criemos tudo de novo, com outra babá, bebê, bacia, água
do banho ...

Não podemos afirmar isso contundentemente para as outras graduações, mas a


formação do professor de História refere-se diretamente à lógica da disciplina
acadêmica, que é marcada (reportamo-nos novamente a Lima) pelo intenso trânsito nas
fronteiras com outras disciplinas; embora Lima não tenha mencionado (e embora isso
seja sintomático), o ensino de História hoje está ganhando o significado de espaço
acadêmico de trânsito entre a História e a Educação, como que também vem
constituindo uma alternativa e ampliando os limites da tradicional História da
Educação, hoje praticamente um território de pedagogos. A lógica contemporânea do
avanço do conhecimento não é mais a da fragmentação em guetos, mas a reintegração
de teorias, saberes e métodos em torno da resolução de problemas comuns.

Portos, rios e rodovias: transdisciplinaridade e interdisciplinaridade

A melhor forma de iniciar esse tópico, inclusive amarrando-o com a conclusão


do tópico anterior, é recorrendo à seguinte citação de Silva, que está comentando a
questão do multiculturalismo na ação educativa, mas que é válida também para a multi /
interdisciplinaridade: "(...) um multiculturalismo crítico certamente não propõe um
encerramento e um fechamento cultural. Em vez disso, uma perspectiva multicultural
crítica supõe pontos de contato entre as culturas, capacidades de tradução entre elas"
(SILVA, 1995, p. 196).

A interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade são exigências formais dos


currículos nacionais postos pelo Governo Federal (Parâmetros Curriculares Nacionais
do Ensino Fundamental e Médio). Esse conceitos são mais claros nos documentos para
o Ensino Fundamental: a História se mantém como disciplina e a partir desse espaço são
traçados conteúdos e procedimentos compartilhados com outras disciplinas, bem como
abordados tópicos transdisciplinares aos quais, supõe-se, a história deverá dar o toque
da sua especificidade.

A situação é menos clara no que se refere ao Ensino Médio, onde a princípio


parece imperar, na área de "Ciências Humanas e suas tecnologias"(!) uma
indisciplinaridade autojustificada (como diz a própria propaganda do Ministério) em
"educar para a vida" (e não mais para o vestibular). Ao mesmo tempo em que essa
configuração abre grandes avenidas para a interlocução e ações conjuntas com outras
disciplinas, estabelece-se o risco do presentismo e o utilitarismo para as Ciências
Humanas no currículo, com o que a História perde a sua especificidade e as
Humanidades perdem a sua profundidade e capacidade de contribuir efetivamente e
criticamente para a formação do jovem, conformando-se à mera instrução, talvez
mesmo o adestramento para o mercado de trabalho e de consumo.

A definição a ser dada para estas questões passa pelas definições do papel da
História na escola: se consideramos seu conteúdo como um fim, então a disciplina deve
manter-se delimitada e com espaço próprio e definido (ou seja, uma carga horária, um
horário definido de aulas, um professor nomeado para a função, a responsabilidade por
uma fração específica do currículo, e assim por diante), integrando conteúdos e
discussões de outras disciplinas ou participando eventualmente de projetos
multidisciplinares que integrem a sua contribuição para o aprendizado de um tema
transdisciplinar. Se, por outro lado, o conteúdo e os procedimentos das disciplinas são
vistos apenas como um meio para as finalidades transdisciplinares da educação
(formação do cidadão e seus comportamentos desejáveis, do consumidor, da tolerância,
da identidade), então não faz sentido a manutenção, na escola, de um espaço claramente
delimitado para a História, e nem para nenhuma outra disciplina: o eixo da atividade
educacional passa dos conteúdos disciplinares para os temas transdisciplinares.

Não é visível hoje uma definição institucional num ou noutro sentido.


Primeiramente porque a lógica do relacionamento entre as disciplinas é distinto no que
se propõe para o ensino fundamental e para o ensino médio. Em segundo lugar, porque
onde a segunda postura parece mais destacada, no ensino médio, os Exames Nacionais
do Ensino Médio têm trazido questões que apontam, no mínimo, para uma relutância
em desfazer-se da cobrança do aprendizado dos conteúdos específicos da História,
colocando-os portanto como finalidade do ensino de História.

Fronteiras e alfândegas
A tese do autor deste texto (ver as referências bibliográficas) pode ser citada
como exemplo entre as pesquisas que procuram chegar às fronteiras do ensino de
História a partir de uma concepção de que o mesmo ocorre também como um fenômeno
social que extrapola a escola. Nesse sentido, é fronteiriço em relação à grande maioria
dos estudos na área cujo foco é escolar, e também em relação à relação pedagógica
enfocada, a que ocorreu tendo por agentes o regime militar e os seus colaboradores e a
classe média. A ação da publicidade referente a temáticas políticas sobre a formação da
consciência histórica é o objeto desta tese. Levantaram-se as peças publicitárias de
instituições públicas e privadas no período do chamado “milagre econômico”
publicadas em revistas de circulação nacional, selecionando as que eram relativas a três
temáticas básicas para a formação da identidade nacional: o sujeito, o tempo e o espaço
relativos à nação brasileira, tais como aparecem nestes discursos publicitários. Segue-se
a análise algumas peças selecionadas referentes a cada uma das temáticas, procurando
destacar os seus mecanismos de disposição e transmissão de informações, argumentos e
valores, tanto no aspecto verbal quanto icônico.

O passo seguinte, para investigar a recepção destas mensagens, foi apresentar


algumas das peças analisadas à apreciação de um grupo de colaboradores que
participavam do universo populacional para o qual essas publicações eram destinadas,
estabelecendo assim entrevistas onde suas memórias, percepções e opiniões puderam
ser registradas, permitindo realizar aproximações e traçar considerações sobre a história
e a nação ensinadas e aprendidas neste período.

Este estudo procurou realizar a concepção de ensino de História como Didática


da História, de Klaus Bergmann, entendendo a História emanando de múltiplos focos e
experiências sociais e buscando apreender o seu trânsito, dos produtores aos
consumidores. Em termos de instrumental e referências teóricas, baseou-se em estudos
de Psicologia Social (E. Canetti, M. Halbwacs), Ciência Política (teóricos do
nacionalismo), estudos do fenômeno comunicativo (R. Barthes, M. Bakhtin) e História
Oral (Selva Fonseca, Ecléa Bosi). Se é verdade que todo trabalho na área forçosamente
dialoga com referências várias, no mínimo com a História e a Educação, quanto mais o
objeto se afasta do núcleo básico da Metodologia do Ensino, mais aberto fica o leque
dos diálogos que são possibilitados.

A dificuldade em pensar as fronteiras do ensino da História está dada por vários


motivos, mas o principal é que, mais que um campo, nosso objeto é ele mesmo uma
fronteira entre a História e a Educação, como já argumentamos acima. Dado este
caráter, fica fácil perceber a predisposição, e mesmo a necessidade de estabelecer
contínuas trocas através das fronteiras de outras disciplinas próximas e mesmo
distantes, e também fica cada vez menos claro a distinção da origem de cada um dos
tópicos da investigação acadêmica e da produção escolar do conhecimento histórico,
principalmente porque muitos dos seus conceitos e instrumentais de análise são comuns
a outras disciplinas. Também é necessário reconhecer que é nesse diálogo que o
conhecimento sobre o ensino de História é capaz de avançar e de aprofundar-se. Talvez
essa condição interdisciplinar constituinte funcione em parte como um antídoto contra
os mecanismos de controle e delimitação (e empobrecimento de possibilidades) do
discurso, que Foucault (1996) indica pesar sobre as disciplinas. Sem um corpo
claramente definido e fechado de proposições e regras criadoras de verdade, o ensino de
História tem o potencial de discutir seus assuntos mais livre e criativamente, mas isso é
uma possibilidade que depende de atitudes "disciplinares" (no duplo sentido) adequadas
a este ideal.

Espera-se que o presente Grupo de Trabalho faça um esboço da cartografia


desses encontros entre as disciplinas, contribuindo inicialmente para a tarefa de mapear
as fronteiras do ensino de História, bem como discuta as características de cada um ou
de todos esses encontros.
Referências Bibliográficas

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* Doutor em Educação pela FE-Unicamp. Professor do Departamento de História da


Universidade Estadual de Ponta Grossa - PR. Endereço eletrônico: [email protected]

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