Texto Faria Filho 2007
Texto Faria Filho 2007
Texto Faria Filho 2007
I
Culturas escolares,
saberes e práticas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) educativas:
Culturas escolares, saberes e práticas educativas : itinerários
históricos I Marcus Levy Albino Bencostta , (organizador) .
itinerários históricos
- São Paulo : Cortez, 2007.
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-249-1245-0
07-4683 CDD-370.981
~c.oRTEZ
~EDITOR(:l
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@~~ 193
Capítulo 7
* Este texto foi apresentado, inicialmente, numa Sessão Especial proposta pelos
GTs História da Educação e de Alfabetização na reunião anual da Anped/2004. Ele
apresenta uma síntese das pesquisas que venho realizando e/ ou coordenando no âm-
bito do GEPHE, com o apoio da Fapemig e do CNPq. No decorrer de sua elaboração e
re-elaboração, pude contar com a inestimável interlocução com as :1migas Diana Vidal,
Ana Gomes e Carla Chamon e com os colegas Irlen Antônio e Marcos Cezar Freitas. A
todos eles uma enorme gratidão.
MARCUS L. A. BENCOSTTA
194 CULTURAS ESCOLARES, SABERES E PRÁTICAS EDUCATIVAS 195
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estas a partir de uma história cultural que quer lidar com as práticas e
representações dos sujeitos envolvidos neste fenômeno e de uma histó-
ria social preocupada com as conseqüências e dinâmicas sociais da esco-
Eu gostaria, no entanto, de recuperar - digo recuperar, pois em
outro momento trabalhei com estes três sentidos - aqui um terceiro
sentido que pode ser dado ao termo escolarização: aquele que nos reme-
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larização na sociedade brasileira nos últimos dois séculos. De outra par-
te, temos nos preocupado em estabelecer as feições tomadas por esse
fenômeno em momentos específicos de nossa história a partir dos estu-
te mais diretamente ao ato ou efeito de tornar escolar, ou seja, o processo de
submetimento de pessoas, conheciJ:'Il.entos,sensibilidades e valores aos
ip;lp~:rêvti\T,Q?~§.SQ1~~g,.,Nesse caso, mesmo considerando o momento -
portante das culturas escolares e possibilita aproximar-se de uma defi- pesquisa e, do ponto de vista analítico, organizar e compreender as
nição de cultura como estando relacionada à produção de repr~_~~Q.t~çªc:> múltiplas facetas da experiência escolar. Ou seja, penso que essa catego-
simbólica. Ou seja, pensar um conceito de cultura escolar implica, ne- ria - cultura escolar - tem um valor heurístico de cunho metodológico
cessariamente, abraçar uma certa definição de cultura2 e, no nosso caso, e sua utilização requer a explicitação das teorias da cultura e, de resto,
articular duas outras dimensões importantes do fenômeno educativo da história que a sustentam. Tomar a cultura~sc:()larcoIJ:loUIllc:QIlc:~i!o
escolar e, conseqüentemente, de suas tentativas de investigação: o tem- previamente definido, como uma definiçã()_puramente ~osiológica,
po mais longo e a dimensão macro dos processos de escolarização com pode levar-nos ao equívoco d~, na prática da pesquisa, não conseguir
os tempos curtos e a dimensão micro das práticas escolares. Porque as discernir justamente aquilo que faz, do meu ponto de vista, a riqueza e
culturas escolares se situam nesse" entroncamento", ou dizendo de ou- a pliITaIidãde das culturas escolares, que são justamente os sentidos e os
tro modo, é justamente porque al5.cl.11t:t!!as~scolares realizam essa me:- significados experienciados e compartilhados.
diação entre os macroprocessos da escolarização e os microprocessos Penso que há na categoria cultura escolar um potencial analítico que
escolares que a sua investigação dependerá sempre da escala analítica está ancorado, por um lado, na articulação dos diversos elementos consti-
adotada, o que significa que esse "jogo de escalas" (Revel, 1998) é um tutivos da experiência escolar que se propõe, e, de outro, na visibilidade
dos problemas teórico-!lletodológicos a ser enfrentado e uma das condi- que dá às práticas de divulgação, de imposição e de apropriação efetiva-
ções de produção do próprio objeto da investigação. das no interior do campo educacional em dado momento histórico.
Nesse sentido, a produção do contexto de inteligibilidade das cul- Todavia, sendo mais que uma forma de descrever a escola e os seus
turas escolares dependerá sempre da escala, da lente adotada. Nessa processos de organização e transmissão culturais, a cultura escolar é,
perspectiva, analisada desde o lugar de uma escola particular, a cultura também, ooJ:>j~to histórico que pretendemos investigar e um campo de
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escolar poderá sinonimizar-se com a noção de cultura da escola (daquela estudos dentro da área derustória da Educação e de várias outras áreas
escolar em particular), ou mesmo com a de cultura institucional. Mesmo das Ciências da Educação. Assim, se referirmos à categoria penso que
assim, é preciso que se considere que a§. cu1tu!él.~.~scolares vistas~desde
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seja mais rigoroso dizer cultura escolar (no singular) e, do ponto de vis-
o lugar de uma escola singular, ou sob essa escala microanalítica, não ta do objeto ou do campo de estudos, culturas escolares (no plural) pare-
podem ser compreendidas em sua singularidade e generalidade se não ce-me o mais adequado. Passar de uma aos outros (e vice-versa) no
se realizarem as necessárias mediações com os processos socirus mais movimento da investigação é uma maestria que deveríamos sempre ter
amplos. Nesse caso, como em qualquer outro, é a adequada construção em mente e buscar realizar.
do contexto de inteligibilidade que permitirá uma análise mais fecunda
e, em última instância, legitimará a abordagem pretendida. * * *
Cultura escolar é tomada aqui como uma categoria, como um
constructo teórico que permite, metodologicamente, operacionalizar a A partir destas considerações iniciais, gostaria de reforçar certos
pressupostos que norteiam este meu investimento nesta linha de inves-
tigação, mesmo correndo o risco de repetir ou de ser demasiadamente
2. A esse respeito ver, no âmbito da sociologia da educação, o trabalho de Forquin
simplificador. Ao expô-los e explorar algumas de suas implicações para
(1993) e, na antropologia da educação, o trabalho de Gomes (2004). Esta última autora
tem desenvolvido uma importante reflexão sobre a relação entre culturas e culturas a pesquisa espero estar oferecendo mais elementos para o nosso debate
escolares a partir de trabalhos com as escolas indígenas Xacriabá. e, neste caso, para a própria reformulação dos mesmos.
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I - Em primeiro lugar, tal como o P~~~~~Q~ge~~§<:olªrizaç~ªºLª~ da impossibilidade de se expandir aquele modelo escolar que funciona-
culturas escolares não são um pressuposto, elas~ são o processo e o re~,:" va no âmbito doméstico e, desse modo, cria algumas das condições para
sultado das experiências dos sujeitos, dos sentidos construídos e com- uma afirmação cada vez maior da instituição escolar. Por isso mesmo, é
partilhados e/ou disputados pelos atores que fazem a escola. ror isso, também em tomo dele que se elaborarão as primeiras e bastante rarefei-
ao mesmo tempo que tenho que considerar - do ponto de vista teóri- tas culturas escolares primárias no Brasil.
co e metodológico - a existência de outras culturas institucionais que Uso a imagem da rarefação para dizer que, no' que diz respeito à
estão em consenso e/ou conflito com a escola - como a cultura fami- escola primária, não advogo a inexistência de culturas escolares no Bra-
liar, a cultura religiosa etc. -, é preciso que eu considere que os sujei- sil do início do século XIX, mas penso também que é preciso considerar
tos que a constroem guardam, eles também, diversos pertencimentos que boa parte dos elementos que considero fundamentais para a carac-
e identidades pelos quais as culturas escolares estarão continuamente terização de uma cultura escolar estava ainda em constituição.
informadas. Momento muito diferente é aquele do final do século XIX em
Assim, ao longo do processo de escolarização é preciso considerar que, articulada a partir dos espaços dos grupos escolares e dos tem-
os deslocamentos dos lugares ocupados pelos sujeitos no interior das pos dos cursos seriados, as culturas escolares ganham em densidade
culturas escolares. No início do século XIX, por exemplo, a chamada e complexidade. Nesse momento estão postas todas as condições de
que os defensores do método mútuo fizeram para que os alunos partici- possibilidade de reproduzir e expandir cotidianamente a legitimida-
passem da instrução de seus colegas em momento algum deveria pôr de da forma escolar de SOcialização e, com ela, o próprio processo de
em questão o papel do professor como condutor das novas gerações. O escolarização.
mesmo não ocorre, todavia, na defesa que crescentemente se faz a partir Nesse momento, projetos como os de cursos primários organica-
do final do Oitocentos, ancorada sobretudo nos métodos intuitivos, de mente articulados, que já estavam sendo elaborados no Brasil desde pelo
uma maior presença dos alunos na condução de sua própria aprendiza- menos os anos 20 do Oitocentos, ganham visibilidade política e viabili-
gem e, mais tarde, na própria condução do ensino. dade prática. Mas esse é também um momento de intensa apropriação
º~~_º1Jserva eIltre_l!!!l:~()~tro~oEleI!!º-~_~r_e~~~e~!~_t~~~~() das práticas culturais extra-escolares e de tensionamento com o próprio
entre as prescriçõ~$pgclagé>giç(1spor umamai()~J?élrti~!Pélção dos alu- pensamento pedagógico que se elaborava. Veja, por exemplo, a questão
nos na condução de suaprópriaformação e as práticasp!ofesso~éli~que da violência praticada pelos professores contra os alunos. Insistentemente
teimam em assumir UlIlçl PQsi窺<:le centralidade na escola. Um dos combatida pela "modernas pedagogias", a violência contra as crianças
resultados dessa tensão no âmbito das culturas escolares é o questiona- no ambiente escolar é uma das provas mais cabais de como as práticas
mento mais ou menos explícito, mais ou menos consciente do papel do culturas e os sentidos partilhados atravessam os muros das escolas e se
professor como legítimo condutor do processo de escolarização das no- patenteiam no dia-a-dia das escolas brasileiras rurais e urbanas.
vas gerações. Poderíamos ainda, para efeito de exemplificação, aludir à possibili-
Do mesmo modo, o método mútuo significa entre nós um elemen- dade de pensarmos as culturas escolares no final do século XX no Brasil.
to estruturante e um lugar de articulação de um discurso fundador so- O que caracteriza esse período, do ponto de vista que estamos analisan-
bre os projetos de escolarização projetados no início do Oitocentos. Nes- do, é a escolarização de quase todas as crianças brasileiras e de boa parte
se sentido, somos tentados a afirmar que ele toma possível a elaboração dos adolescente e jovens. Há um conjunto de instituições criadas e
200 MARCUS LA. BENCOSTTA
CULTURAS ESCOLARES, SABERES E PRÁTICAS EDUCATIVAS 201
mantidas no entorno da escola, das quais as mais visíveis talvez sejam no Brasil podemos falar de culturas escolares, entendendo que, aqui,
as indústrias editoriais e de entretenimento educativo, e há também um o plural deixa ver as modificações ocorridas ao longo do processo de
dos maiores mercados de trabalho ocupados por homens e mulhefes escolarização, os deslocamentos dos eixos articuladores das culturas
das mais diferentes idades e origens étnico-sociais. escolares e, mesmo, das posições dos sujeitos no interior destas mes-
Podemos dizer que, de certa forma, realizamos a utopia dos brasi- mas culturas. Neste sentido, podemos dizer que pode ocorrer que num
leiros que, ainda no início do século XIX, projetavam uma escola para determinado momento inicial do processo de escolarização não haja
atingir as mais baixas camadas sociais. Mas aqui, diferentemente de um uma cultura escola ou que esta seja rarefeita a ponto de tomar-se qua-
século atrás, os tempos e espaços escolares "explodiram." em todas as se imperceptível. No entanto, uma cultura escolar densa e "madura"/
direções, o que parece representar ao mesmo tempo a sua fortaleza e implica necessariamente a complexificação da escola e do processo dei
seu calcanhar-de-aquiles. Estando em todos os lugares, a escola corre o escolarização.
risco de não estar em nenhum deles, de forma mais densa, e cada vez Sendo assim., as5,1&@as escolares não são passíveis de reforma, de
mais, assistindo a uma espécie de "avanço" para trás, quando as nor- mudanças e intervenções bruscas, justamente porque precisam ser cons-
mas atuais de desregulamentação da escola nos fazem achar o século truídas nas experiências e nas práticas escolares. Por isso mesmo, pen-
XIX estranhamente atual. sar a cultura escolar é pensar também as formas como os sujeitos escola-
Ousaria dizer que estamos presenciando um momento histórico res se apropriaram das tradições, das culturas em que estavam imersos
em que à fixidez dos tempos e dos espaços escolares contrapõe-se a -', nos diversos momentos da história do processo de escolarização.
maleabilidade e a ambivalência das linguagens e dos discursos da edu- Assim, por exemplo, as culturas escolares no Brasil não podem ser
cação enquanto eixo estruturante das culturas escolares. Não se trata de entendidas se deixarmos de lado a forma muito particular como nossos
defender ou de achar que a linguagem não estivesse sempre presente sujeitos escolares se apropriaram das tradições religiosas e científicas na
nas culturas escolares ou coisa do gênero. Trata-se, isto sim, de aquilatar produção tanto de nosso pensamento pedagógico quanto na organiza-
o grande peso adquirido pelas políticas discursivas - tia comunicaç2..o ção das práticas escolares ou, mesmo, na produção de sentidos no inte-
de massa aos discursos pedagógicos - na estruturação (ou na desestru- rior das experiências de escolarização. As conseqüências de se levar em
turação!) das práticas e das experiências educativas escolares atuais. conta essas questões se transbordam/espraiam por vários objetos espe-
(Pode-se contra-argumentar que a linguagem sempre esteve "lá" a es- cíficos de nossa investigação.
truturar as culturas escolares, o que é certamente verdadeiro, mas é pre- Podemos pensar em um exemplo desdobrado em duas vertentes.
ciso considerar por outro lado que nem sempre os sujeitos educacionais Estamos vendo que em Minas Gerais as escolas normais tiveram pouco
tiveram consciência disso e, mais ainda, não significavam a linguagem ou nenhuma importância no processo de feminização do magistério pri-
pedagógica como estruturante disso que estamos chamando de cultura mário na segunda metade do século XIX. Em 1884, enquanto as mulhe-
escolar.) res compunham mais de 44% do professorado, destas apenas 13% eram
normalistas. Nesse caso, se não foi nas escolas normais que as mulheres
II - Em segundo lugar, penso, como M. Sahlins (1990), que o elaboraram o projeto de vir-a-ser professoras, é preciso também pergun-
processo de reprodução da cultura escola é, também, o de sua transfor- tar qual o peso que os discursos pedagógicos oriundos das corporações
mação. Assim, podemos entender que na história da escola primária médicas, da nascente intelectualidade educacional e dos políticos inte-
CULTURAS ESCOLARES, SABERES E PRÁTICAS EDUCATIVAS 203
202 MARCUS L A. BENCOSTTA
ressados na instrução tiveram no processo de feminização do magisté- Outro componente deste processo parece ser a permanência de uma
rio no Brasil. Se não foi por meio das escolas normais, como e sob que apropriação marcadamente religiosa que o magistério primário sempre
fez dos conhecimentos científicos no Brasil. Neste sentido, a dificuldade
condições e a partir de quais mediadores as mulheres tomaram contato
da escola primária brasileira em lidar com os conhecimentos científicos
com as intensas discussões que se faziam a esse respeito no Brasil no
está menos na ausência de laboratórios e equipamentos, e muito mais
final do século XIX?
na dificuldade de lidar com uma outra tradição cultural que não fosse a
Isso nos tem levado a indagar acerca da ambiência cultural em que religiosa, vale dizer, cristã e católica. Isto talvez explique a longa perma-
essas mulheres elaboraram o projeto de serem professoras, e nossa hi- nência das lições de coisas bastante espiritualizadas, o entrelaçamento dos
pótese é que o ambiente religioso não apenas doméstico mas também discursos científico e religioso na explicação dos mais diversos fenôme-
das missas, cultos e festas religiosas é fundamental na experiência de nos naturais e sociais, dentre outros.
elaboração da possibilidade de vir a ser professora. Talvez isto nos aju- Espero assim ter conseguido demonstrar não apenas as possibilida-
dasse a entender por que para essas mulheres não há nenhuma incom- des mas também a fecundidade da articulação entre escolarização e cultu-
patibilidade entre o entendimento do magistério como uma missão e ra escolar para a pesquisa em história da educação. Dentre outros aspec-
sacerdócio e como profissão. tos,ét PétI."l:Ír dessa proposição penso que no lugar daapªJ:~!l!~lin~ar:iciª~
Também aqui poder-se-ia contra-argumentar com o fato de que é de do processo de escolarização, baseado num alto grau de consenso em
hoje bastante sabido que um dos principais norteadores da feminização tomo de seus elementos principais, tais como a racionalidade científica,
do magistério foi justamente a maior presença das meninas na escola a centralidade do sujeito cognoscente no processo educativo e a supre-
em um momento em que apenas as mulheres pnde~::;.111 "!hes àar aulas. macia da escola como agência socializadora, podemos vislumbrar lutas
Mesmo assim, não podemos deixar de lado o fato de que foi preciso as mais diversas por imposição de projetos cultUrais, lutas estas que
têm nas reformas educativas uma de suas mais importantes faces.
encontrar mulheres dispostas a entrarem nessa função e nessa profis-
são. Então, mais uma vez, teríamos que perguntar: onde e como tal" dis- Sendo assim, o fracasso ou não das reformas educativas não pode
posição" foi produzida e como a mesma foi mobilizada pelos projetos de forma alguma ser Duscado-ou explicado apenas pela maior ou menor
escolarizadores? Hipoteticamente, poderíamos pensar que, talvez me- eficácia das mesmas em resolver os problemas que atacar, mas, sobretu-
do, por sua capacidade de deslocar ou não os eixos das culturas escola-
nos do que pelos projetos civilizatórios iluministas, as mulheres tenham
res de seus lugares e, neste processo, de criar oportunidades para a pro-
sido mobilizadas pelas necessidades de manter suas famílias em situa-
dução de novos sentidos e significados da escolarização. O estudo desse
ções financeiras adversas e, por que não, pelos projetos de reordenação
fenômeno. no passado e no presente, é uma das tarefas dos investigado-
da Igreja católica em curso naquele momento. res das culturas escolares.
Assim, se pensarmos como J. Scott (1999), que os sujeitos não "pos-
suem" experiência, mas que se constituem sujeitos no interior mesmo * * *
das experiências, o nosso olhar poderia voltar-se para surpreender a
feminização do magistério no "instante de perigo" que antecede a pre- Gostaria, finalmente, de apontar dois desafios que poderiam rece-
sença física das mulheres no interior da sala de aula, para usar uma das ber nossa atenção no campo da história da educação. O primeiro situa-
belíssimas imagens de W. Benjamim acerca do trabalho do historiador. se no plano macro e diz respeito a uma economia política da educação
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do ponto de vista da história e o segundo representa um conjunto de res poderia ser a de desnaturalizar este discurso e mostrar também o
demandas postas hoje, a meu ver, para aqueles que pesquisam a histó- significado e o desafio que foi montar um serviço da envergadura do da
ria das culturas escolares no Brasil. 3 educação primária em nosso país. Isto poderia contribuir, ao mesmo
Há atualmente, da parte dos administradores públicos brasileiros, tempo, para retirar esta reflexão dos pesquisadores liberais que estão
sobretudo em nível municipal, uma clara consciência sobre a impossibi- sempre a justificar a ausência do Estado nessa área, mas também, e so-
lidade de se aumentar os gastos com a educação pública, fazendo-nos bretudo, para mostrar a impossibilidade histórica de se construir um
crer que a elevação de sua qualidade ou deve esperar dias melhores, ou sistema de educação de qualidade num país cuja massa salarial é das
deve ser feita com os mesmos mecanismos de reforma do currículo, da menores do mundo e no qual a concentração de renda é deplorável.
formação de professores e dos métodos propostos desde o século XIX. Assim, se não considerarmos o Estado como demiurgo da história
Por outro lado, assistimos estarrecidos à proliferação de discursos e de e como um bloco monolítico, é possível pensar que uma história da eco-
políticas que apostam mais uma vez na educação escolar como uma nomia poiítica da escolarização no Brasil pode nos ajudar a entender
forma de realizar a reforma social no Brasil. que a questão não é apenas, nem sobretudo, que a escola pública piorou
Se a economia política da educação é um assunto que não tem preo- à medida que os pobres nela adentraram, mas que a escola pública pos...:
cupado com grande centralidade nem os pesquisadores e professores sível sempre foi o retrato do investimento que a sociedade brasileira -
que lidam atualmente com as políticas educacionais, a ponto de muitos e não apenas o Estado - conseguiu realizar nos serviços e direitos
de nossos cursos de pedagogia terem retirado dos seus currículos a dis- sociais.
ciplina de economia da educação - como de resto retiraram também, Do ponto de vista das análises mais contextuais, a categoria cultu-
por supérfluas, a biologia e a estatística educacionais, dentre outras - , ra escolar tem significado, sem dúvida, um refinamento metodológico e
também nós historiadores raramente tratamos do assunto. Em geral, até analítico de nossas pesquisas e tem possibilitado o fortalecimento do
realizamos histórias das políticas educacionais, mas muito raramente diálogo, por um lado, com a historiografia e, por outro, com as demais
pomos no horizonte de nossas preocupações questões relativas a uma áreas/ciências da educação. No entanto, este refinamento, geralmente
história da econômica política do processo de escolarizaçtio. Praticamente acompanhado pela produção de objetos cada vez mais específicos e que
não existem pesquisas a respeito dos custos econômicos da escolariza- demandam estudos cada vez mais verticalizados, traz, também, alguns
ção para o Estado brasileiro, assim como pouco nos perguntamos até problemas. O primeiro e, ao nosso ver, mais sério é a ausência de pes-
hoje sobre os altos custos sociais do fracasso escolar na escola primária quisas de base no âmbito da história da educação. Acreditamos que a
brasileira nos dois últimos séculos. passos largos, muito largos, passamos de uma história das políticas, da
Parece que, entorpecidos pelos discursos críticos acerca da falta de orgarLização e do pensamento educacionais, para uma história das cul-
investimento do Estado brasileiro na escolarização das camadas popu- turas escolares sem que, no entanto, tenhamos produzido uma cultura
lares, não nos demos conta ainda que uma contribuição dos historiado- historiográfica e pesquisas de base que dêem suporte a esta passagem.
Em países como a França, por exemplo, a investigação sobre obje-
3. Este "conjunto de desafios" foi produzido de forma compartilhada por Diana
tos cada vez mais específicos, seja na área da história do livro, da leitura
Vidat André Paulilo, Irlen Gonçalves e por mim (ver nota 2). Os sentidos produzidos ou da educação, foi antecedida e, em boa parte, possibilitada por inves-
por sua inserção neste texto são, no entanto, de minha inteira responsabilidade. timentos de peso na pesquisa de base na área da editoração, da circula-
206 MARCUS LA. BENCOSTTA
CULTURAS ESCOLARES, SABERES E PRÁTICAS EDUCATIVAS 207
vemos também reconhecer, por outro, que temos sido muito tímidos na estarmos alimentando perspectivas teóricas e políticas que, no campo
explicitação de seus limites para os trabalhos no campo da história da da historiografia, estaríamos combatendo.
educação e das culturas escolares. Até que ponto, por exemplo, não estamos produzindo um conheci-
O que possibilitou, em parte, a renovação dos estudos historiográ- mento historiográfico demandado pelas constantes reformas educacio-
ficos no século XX foi, dentre outros aspectos, a tomada de consciência nais do presente? Até que ponto o presentismo e o pragmatismo das
por parte dos historiadores da relação dinâmica entre o passado e o pre- políticas educacionais estão atingindo nossas pesquisas? Até que ponto
sente. De outra parte, no âmbito da história da educação, não há dúvida estamos aparelhados (ou nos aparelhando) para um diálogo fecundo e
de que a renovação dos estudos esteve (e está) intimamente atrelada à crítico com os nossos colegas das demais áreas da educação e com os
possibilidade de uma nova história das instituições escolares e à preten- responsáveis pelas políticas educacionais?
são de se produzir uma história do cotidiano escolar - a famosa asser-
tiva acerca da possibilidade de entrar na caixa-preta da escola proposta
pela sociologia - e de dar visibilidade aos diversos su.jeltosque partici- Referências
pam das culturas escolares, notadamente aos professores.
Tal virada, aliada a processos já explicitado por outros trabalhos BASTOS, M. H. C. e FARIA FILHO, L. M. (Org.). A escola elementar no século
(Carvalho, 2000; Faria Filho e Vidal, 2003), possibilitou a constituição de XIX: o método monitorial/mútuo. Passo Fundo: EdUPF, 1999.
um outro lugar para a história da educação dentro das "ciências da edu- BOTELHO, L. R. Dos 8 aos 80. Belo Horizonte: Veja, 1979.
cação", bem :::C~Q ~em contribuído para u cre~cente prestígio de nossa CARDOSO, C. E; VAINFAS. R. (Org.). Os domínios da história. Rio de Janeiro:
disciplina dentro do campo da educação. Campus, 1997.
Como parte desse novo cenário, mais e mais os historiadores são CARVALHO, M. M. C. de. L'histoire de láéducation au Brésil: traditions
historiografiques et processus de rénovation de la discipline. Paedagogica
chamados a participar do debate sobre os problemas atuais da educa-
Histórica Internacional. Journal of the History of Education, n. 3, 2000, v. 36,
ção. Das reformas à formação de professores, passando pela problemá-
p.909-933.
tica dos tempos e dos espaços, os historiadores sempre têm o que dizer!
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. São Paulo: Vozes, 1994.
(Pelo menos é o que imaginamos e fazemos nossos colegas acreditar!)
CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janei-
Além disso, o diálogo estabelecido significa, cada vez mais, a pos- ro: Bertand Brasil, 1990.
sibilidade de participação em projetos de reforma e de extensão univer-
CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de
sitária, alé~. de lJl!la aHyidade mais intensa no mercado editorial, seja pesquisa. Té.uria,; Educaçãc. Porto Alegre, n. 2, 1990.
aquele mais restrito à produção acadêmica para os pares, seja para o
DEMARTINI, Z. B. E Crianças como agentes do processo de alfabetização no
imenso mercado da divulgação científica, sobretudo para professores.
final do século XIX e início do XX. In: MONARCHA, C. (org.). Educação da
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CULTURAS ESCOLARES, SABERES E PRÁTICAS EDUCATIVAS 211
210 MARCUS L A. BENCOSTIA
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