A Acompanhante - Nina Berberova
A Acompanhante - Nina Berberova
A Acompanhante - Nina Berberova
Nina Berberova
O autor
Nascida em Sampetersburgo, em 1901, Nina Berberova � autora de uma vasta obra, que
nos �ltimos anos tem estado a ser internacionalmente redescoberta com grande
sucesso, constitu�da por narrativas, trabalhos de cr�tica e hist�ria liter�rias, e
biografias. As Publica��es Dom Quixote editaram j�, na sua Biblioteca de Bolso, o
romance O Lacaio e a Puta.
Nina Berberova
A ACOMPANHANTE
1.� edi��o: Maio de 1992
Dep�sito legal n.� 54 903/92 Fotocomposi��o: Textype - Artes Gr�ficas, Lda.
Impress�o e acabamento: Gr�fica Manuel Barbosa & Filhos, Lda.
Biblioteca Nacional Cataloga��o na Publica��o
Nina Berberova, 1901 - A Acompanhante (Fic��o Universal; 98) ISBN 972-20-0974-5 CDU
882-3119"
Publica��es Dom Quixote Rua Luciano Cordeiro, 116-2.� 1098 Lisboa Codex - Portugal
Reservados todos os direitos de acordo com a legisla��o em vigor
(c) Nina Berberova T�tulo original: L'Accompagnatrice
Obtive estas mem�rias atrav�s do Sr. Z.R., que as comprou ao Ferro-Velho da rue de
Ia Roquette onde tinha adquirido tamb�m uma gravura velha que representava a cidade
de Pskov em 1775 e um candeeiro a petr�leo, em bronze, que fora entretanto
electrificado. Quando viu a gravura, o Sr. Z. R. perguntou ao Ferro-Velho se n�o
teria mais nada de origem russa. "Tenho", disse o vendedor, e retirou de um arm�rio
poeirento, que se encontrava a um canto da velha loja, um caderno de moleskine,
daqueles que as pessoas, sobretudo os jovens, sempre utilizavam para di�rio.
O Ferro-Velho explicou que, cinco anos antes, comprara aquele caderno por 50
c�ntimos juntamente com algumas partituras e dois ou tr�s livros russos (que,
infelizmente, n�o encontrou), num hotel de terceira classe onde uma mulher russa
vivera e morrera. A propriet�ria do hotel, para se compensar do aluguer do quarto,
estava a vender ao desbarato as roupas e outros objectos daquela h�spede - tudo
quanto resta de uma mulher quando desaparece para sempre.
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� hoje o primeiro anivers�rio da morte da mam�. Repeti muitas vezes a palavra mam�
em voz alta. Os meus l�bios j� tinham perdido o h�bito de a pronunciar. Era uma
sensa��o estranha e agrad�vel, que logo se desvaneceu. H� pessoas que tratam as
madrastas por mam�, outras tratam assim a sogra; um dia ouvi um homem j� de certa
idade chamar "mam�zinha" � mulher, que era bastante mais nova que ele. Eu s� tive
uma e nunca terei outra. Chamava-se Catherina Vassilievna Antonovskaya, tinha 37
anos quando eu nasci e fui a sua �nica filha.
Era professora de piano. Nenhum dos seus alunos teve conhecimento da minha vinda ao
mundo - soube-se apenas que por ter estado gravemente doente, ela se ausentara
durante um ano. Os alunos, rapazes e raparigas, esperaram pacientemente o seu
regresso. Antes de eu nascer, alguns alunos iam a nossa casa; depois do meu
aparecimento, a minha m�e deixou de os receber. Estava ausente. Estava ausente dias
inteiros e era uma criada velha que se ocupava de mim. O apartamento era pequeno.
S� tinha duas divis�es.
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A criada dormia na cozinha, a minha m�e e eu no quarto, a outra divis�o estava
ocupada pelo piano - cham�vamos-lhe "a sala do piano". Era tamb�m a� que tom�vamos
as refei��es.
No dia de Ano Novo os alunos enviavam flores � minha m�e e as alunas ofereciam-lhe
retratos de Beethoven e m�scaras de Liszt e Chopin. Um domingo - teria eu os meus 9
anos - encontr�mos na rua as duas irm�s Svetchnikov, que terminavam os seus estudos
no liceu. Beijaram e abra�aram a mam� com tal �mpeto que eu gritei assustada.
- Quem �, querida Caticha Vassilievna? - perguntaram as meninas.
- � a minha filhinha - respondeu a mam�.
A partir desse dia tudo se soube e, numa semana, a mam� perdeu tr�s alunos; um m�s
mais tarde s� lhe restava o Mitenka.
Era completamente indiferente para os pais de Mitenka saber se a mam� era casada ou
n�o, quantos filhos tinha e quem era o pai. Mitenka era um rapaz muito dotado e
pagava bem, por�m, n�o era poss�vel vivermos apenas do que ele pagava. Despedimos a
criada, vendemos o piano e fomos para Petersburgo, onde a mam� tinha alguns
conhecimentos do seu tempo no Conservat�rio. Tamb�m ali era muito estimada.
Lentamente, mas com determina��o, lan�ou-se na luta pela vida, por ela e por mim.
Logo a partir do primeiro Inverno come�ou a calcorrear as ruas � procura de
trabalho, dias a fio, � chuva e ao frio glacial. A mim inscreveu-me na classe
preparat�ria do Conservat�rio. Nessa altura j� eu tocava correctamente.
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Nunca me ocorreu reflectir no que a mam� teria sofrido por deixar a sua terra
natal, onde crescera, sozinha com a m�e, tamb�m ela professora de M�sica. O seu pai
- o meu av� - morrera cedo, e elas encontraram-se na mesma situa��o em que n�s nos
encontr�vamos agora. Situa��o muito semelhante, excepto que, ent�o, n�o existia o
sentimento de vergonha. Quando ela fez 16 anos, a minha av� mandara-a estudar para
Petersburgo, onde completou o curso do Conservat�rio. Regressou ent�o a N. , deu um
concerto, tocou em festas de benefic�ncia e come�ou, pouco a pouco, a ocupar-se de
jovens principiantes.
Nunca me interroguei sobre o que teria sido a sua vida, sozinha, ap�s a morte da
minha av�, como viveu at� aos 30 anos, o que se passou depois, nem quem era o meu
pai. Embora as gavetas da sua secret�ria nunca estivessem fechadas � chave, nunca
encontrei uma carta ou uma fotografia. Lembro-me de que uma vez, era eu ainda muito
pequena, lhe perguntei se eu tinha um pap�. Ela disse:
- N�o, Sonetchka, n�s n�o temos pap�. O nosso pap� morreu.
Ela acentuara muito o "nosso", e chor�mos ambas. Soube tudo a seu respeito de uma
maneira muito simples. Um dia, tinha eu 15 anos, uma amiga da mam�, professora de
Franc�s no liceu N. , veio a Petersburgo. Eram seis horas da tarde. A mam� tinha
sa�do, eu estava sentada num pequeno canap� e lia Tolstoi. Tocaram � porta. Beijos,
exclama��es. "Como mudaste! Como cresceste!"
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Fic�mos s�s durante bastante tempo; anoiteceu; acendemos o candeeiro, algu�m
cantava do outro lado da cerca. Fal�mos e record�mos os anos distantes passados em
N. , na minha inf�ncia. N�o sei como aconteceu; ela come�ou a contar-me que o meu
pai tinha sido um antigo aluno da mam� e que nessa altura ele tinha apenas 19 anos;
que antes dele nunca amara ningu�m. Agora estava casado e com filhos. N�o lhe
perguntei nem o nome nem o apelido.
A mam� chegou a casa. Tinha agora mais de 50 anos, era pequena e p�lida, como na
verdade o s�o quase todas as mam�s. Manchas acastanhadas come�avam a aparecer-lhe
nas m�os, n�o se sabia porqu�. Eu pr�pria n�o sabia o que me estava a acontecer,
mas tinha pena, tanta pena dela! S� me apetecia deitar-me e chorar, n�o me levantar
enquanto n�o tivesse esgotado todas as l�grimas que tinha para chorar. Sentia que
perdia a cabe�a ao pensar naquele inferno; se naquele momento ele me aparecesse
pela frente, creio que me teria atirado a ele, que lhe arrancaria os olhos, que o
teria mordido na cara. Mas acima de tudo eu sentia vergonha. Compreendi ent�o que a
mam� era a minha vergonha assim como eu era a dela. Toda a nossa vida era uma
"vergonha" irrepar�vel.
Mas tudo passou. No Conservat�rio nunca ningu�m me fizera perguntas sobre o meu pai
- tamb�m � verdade que eu n�o tinha grande intimidade com ningu�m.
Chegou a guerra. Tornei-me adulta. Pouco a pouco habituei-me � ideia de que era
preciso ganhar a vida - quanto a profiss�o, j� tinha uma.
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Considerava o meu pai um "canalha". Mais tarde compreendi que n�o era assim. Ele
tinha s� 19 anos e a minha m�e, para ele, n�o passara de um acidente de percurso na
sua caminhada para a maturidade definitiva. Provavelmente n�o suspeitara sequer
que, com aquela idade, ela ainda fosse virgem. E ela? Com quanta paix�o e desespero
o teria amado para aceitar uma liga��o t�o �ntima com um homem que podia ser seu
filho, a ponto de permitir que dessa liga��o - fugaz e �nica na sua vida - nascesse
uma crian�a.
Que lhe restaria de tudo aquilo, na mem�ria e no cora��o?
Depois veio a Revolu��o. A vida modificou-se para todos, em momentos bem
diferentes. Para uns, quando subiram a bordo de um navio em Sebastopol. Para outros
quando os soldados de Boudeny entraram numa aldeia das estepes. Para mim - em pleno
meio da minha pacata vida em Petersburgo.
N�o havia aulas no Conservat�rio. Mitenka, que se arrastava pelas ruas de
Petersburgo h� j� um m�s (tinha vindo estudar composi��o), apareceu em nossa casa
no dia 25 de Outubro. A mam� estava com gripe. Mitenka sentou-se ao piano, depois
almo��mos e ele adormeceu. Oh, como me recordo daquele dia! N�o sei porqu�, n�o
conseguia acabar qualquer coisa que estava a costurar. Ao ser�o jog�mos os tr�s �s
cartas. At� me lembro que para o jantar havia carne de vaca com couves.
Mitenka - filho de ricos negociantes de N. - fora o �nico aluno que a mam�
conservava deste o tempo da "vergonha"; era um jovem fleum�tico, tr�s anos
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mais velho do que eu, completamente indiferente � vida em geral e a si pr�prio em
particular. Era uma pessoa estranha: era distra�do e let�rgico, os professores
tinham dificuldade em lhe inculcar h�bitos de higiene. N�o � que ele fosse muito
dedicado � m�sica - para ele era mais o ve�culo de uma esp�cie de sons desordenados
que, atrav�s dele, sa�am do nada para se transformarem em realidade. Na aula de
composi��o surpreendeu todos com as suas ideias avan�adas, revolucion�rias. Na
conversa era uma nulidade, era incapaz de explicar fosse o que fosse ou de defender
os seus pontos de vista. A mam� ficava cada vez mais desesperada com aquelas
cacofonias obtusas e assustadoras que tomavam posse dele.
Para mim, era-me indiferente. Foi nesse Outono, passados tantos anos ap�s termos
deixado N. , que o vi, por assim dizer, pela primeira vez. N�o era bonito, a barba
era descuidada, pois n�o se barbeava todos os dias, o cabelo come�ava j� a
encanecer. Al�m do mais, usava uma grande luneta com aro de prata, era fanhoso e,
quando se concentrava, fungava ruidosamente. Mas gostava muito da mam�. Desculpava-
se dos seus corais sobre poemas de Khlebnikov e afirmava que tempos viriam em que
mais nada existiria - nem estradas, nem pontes, nem canaliza��es -, nada, para al�m
da m�sica.
Os meus colegas do Conservat�rio que frequentavam a nossa casa consideravam Mitenka
um cretino, mas ningu�m punha em d�vida o seu g�nio. Pessoalmente, eu dispensava os
seus corais e a sua gentileza. Preocupavam-me muito mais os acontecimentos, o
futuro e preocupava-me sobretudo com um
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II
Tinha 18 anos e terminara os meus estudos no Conservat�rio. N�o era inteligente nem
bonita, n�o tinha vestidos caros nem um talento por a� al�m. Em suma, n�o era nada.
A fome come�ou a fazer sentir-se. O sonho que a mam� acalentava de me ver dar
li��es, n�o se realizava, havia apenas li��es suficientes para ela. A mim,
apareciam-me trabalhos ocasionais como ser�es musicais em f�bricas e clubes.
Lembro-me que, muitas vezes, em troca de sab�o e banha, ia tocar m�sica de dan�a
algures no porto. Mais tarde surgiu-me um trabalho regular - todos os s�bados - em
troca de p�o e a��car, num clube de ferrovi�rios perto das oficinas Nikolaiev.
Come�ava por tocar a Internacional, depois Bach, Rimski- -Korsakov, Beethoven,
terminava com os corais de Mitenka (que come�avam a estar na moda). S� que n�o
podia viver apenas de trabalho aos s�bados. Conheci ent�o um cantor que necessitava
de um acompanhante - o que me ocupava tr�s horas por dia. A dist�ncia era grande e
n�o havia transportes. At� que conseguisse inscrever-me para receber as
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senhas de racionamento, passaram-se dois meses. Mas, enfim, tamb�m isso se
resolveu.
O cantor era um bar�tono que em tempo fora bastante conhecido. Agora tinha perto
dos 70 anos e cheirava a tabaco verde e a decrepitude, tinha as m�os encardidas de
ter rachado lenha e trabalhado na cozinha. Estava a emagrecer tanto que de m�s para
m�s as roupas lhe estavam cada vez mais largas, estavam cossadas nos joelhos e
cotovelos, os bot�es a cair. Nunca se lavava, de tempos a tempos rapava o bigode e
a p�ra e ent�o punha tanto p� de talco que empoeirava tudo em seu redor. Dava-me a
impress�o de que era cali�a que se desprendia dele como de um vetusto muro em
ru�nas e que j� n�o cheirava a bolor mas simplesmente a terra h�mida.
Sonetchka, dizia-me ele, porque � t�o magra? A juventude n�o � tudo, � preciso ter
formas, formas! E a menina tem patinhas de franganito, perninhas que pare cem
canivetes e o peito achatado. Que vai ser de si com essa apar�ncia!?
Ele preocupava-se sinceramente com o meu futuro. Por mim, estava contente por ter
aprendido o report�rio e de levar para casa sacos com comida... Um dia, no Inverno,
apanhou frio e ficou de cama. Imediatamente tudo se desmoronou no seu apartamento:
a �gua gelou nos canos, a temperatura dentro do quarto desceu aos dois graus, as
cordas do piano saltaram... acabou-se o petr�leo. O sindicato mandou um m�dico. Eu
continuei a visit�-lo todos os dias. Alguns amigos, algumas senhoras, interessaram-
se. A s�mola de trigo n�o faltou. Mandavam-me pedir sal aos vizinhos. Corria
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ao posto de distribui��o a buscar compotas. Depois, tudo terminou: ele morreu nos
seus len��is sujos, na sua fronha rota, e houve uma enorme confus�o com o funeral.
Que dif�ceis s�o os cuidados a dispensar a um morto!
Fiquei sem trabalho. As minhas botas eram feitas de um tapete; o vestido de uma
coberta de mesa; a peli�a, de uma capa da mam� e o chap�u de uma almofada bordada a
ouro. Tanto me fazia viver como morrer, tudo me era indiferente. A mam� observava-
me com curiosidade e tristeza. Mitenka fungava e ficava at� tarde, olhando-me
remendar roupa, tomar ch�, tocar piano ou ler, sem que eu lhe prestasse a m�nima
aten��o. Uma noite apareceu com um ar reservado: a Maria Mikolaevna Trevina procura
uma acompanhante e n�o � a t�tulo provis�rio, mas para sempre. Para viajar, talvez
at� ao estrangeiro. Mitenka conservava um aspecto meditativo, primeiro porque
tentava expor de maneira sensata e coerente as condi��es do emprego, e isso era-lhe
dif�cil, como, ali�s, lhe era tudo o que fosse comezinho. E depois, porque estava
triste, estava triste por eu deixar a mam� e a ele pr�prio; ele detestava qualquer
mudan�a.
De come�o a mam� ficou desorientada. Ela nunca tinha deixado a m�e dela, mas fora
infeliz. Talvez fosse melhor para mim n�o ser professora mas acompanhante,
libertar-me dela, viver como queria. Olhei-a. Era j� uma mulher idosa, nestes
�ltimos anos tinha emagrecido, como que encolhera; olhos sem brilho, apagados,
cabelo grisalho, por vezes n�o encontrava palavras para se exprimir. N�o servia
para conselheira, de
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apoio. Disse para comigo - n�o posso ajud�-la em nada, outrora fui um obst�culo na
sua vida e agora n�o lhe sirvo de conforto. Qualquer coisa me segredava
confusamente que a felicidade n�o lhe viria de mim. Amar-me-ia ela? Sim, ela amava-
me, mas havia naquela amor uma esp�cie de falha, e quando me beijava tinha sempre a
impress�o de que desejava apagar essa falha - por ela, por mim, por Mitenka e pelo
bom Deus e n�o sei por quem mais.
Eu estava calada. Mitenka, sentado, com as m�os espalmadas sobre o tampo da mesa,
arrastava as suas explica��es: propunham-me um emprego, um emprego est�vel, um
sal�rio al�m do jantar; levar-me-iam a Moscovo, � prov�ncia, viveria como se fosse
de "fam�lia
Como criada? Como dama de companhia?, perguntei de repente com uma curiosidade
enraivecida. Mitenka desatou a rir, a mam� sorriu tamb�m. Era preciso mostrar-me
contente, mas n�o havia alegria. Mas os rel�gios tamb�m trabalhavam sem alegria, a
chuva tamb�m ca�a sem alegria e, no entanto, que estabilidade... como � lindo o
universo de Deus e como a natureza estava organizada com tanta exactid�o e
harmonia.
E pronto, calcei as minhas botas feitas de tapete e toda a minha vestimenta
apala�ada daquela �poca. Assim embiocada tinha o aspecto de uma adolescente
descorada, murcha, de qualquer tribo n�mada da �sia - Ia fui a casa de Maria
Nikolaevna Trevina.
Petersburgo, ano de mil novecentos e dezanove. Grandes amontoados de neve.
Sil�ncio, frio e fome.
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O ventre inchado pelas papas de cevada. P�s que n�o se lavam h� um m�s. janelas
calafetadas com trapos. A fuligem pegajosa dos fog�es. Entro no pr�dio. � um pr�dio
enorme da Rua Fourchtadskaya. O ascensor suspenso entre dois andares. No seu
interior - imund�cies geladas. Uma porta no segundo andar. Bato. Ningu�m. Toco a
campainha. Para minha grande surpresa, ela retine. Uma criada - touca e sapatos
elegantes - abre a porta. Est� calor. Meu Deus, que calor! N�o, n�o � poss�vel - um
fog�o enorme, revestido de ladrilhos de lou�a, aquece de tal maneira que n�o nos
podemos aproximar. Tapetes. Cortinados. Flores naturais - jacintos azuis - num
cesto pousado em cima de uma pequena mesa redonda de um so p�. Um pequeno cofre com
cigarros de marca. Um gato com p�lo azul de fumo, quase t�o azul como os jacintos,
arqueia o dorso ao ver-me entrar, e uma mulher vestida, n�o sei porqu�, com um
vestido branco - ou um roup�o (n�o distingo bem), a n�o ser que seja o que se usa
por baixo do vestido - dirige-se para mim a sorrir, estendeme uma m�o com unhas
compridas e rosadas. E as meias tamb�m s�o cor-de-rosa. As meias!
Teria mais dez anos que eu e, claro, n�o o escondia, porque ela era bonita e eu
n�o. Era alta, tinha um aspecto robusto e saud�vel, um corpo que se desenvolveu com
naturalidade e livremente - eu sou pequena, seca, de apar�ncia doentia, mesmo que
nunca esteja doente. Tinha o cabelo, negro e liso, apanhado na nuca num chignon -
eu tenho o cabelo claro, sem brilho, cortado e frisado desajeitadamente. Ela tinha
o rosto redondo e belo, boca grande de um encanto inef�vel,
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olhos negros com reflexos esverdeados - eu tenho os olhos claros, rosto triangular
e ma��s salientes, os dentes pequenos e espa�ados. Ela move-se, fala, canta, de uma
maneira t�o segura, as m�os acompanham as palavras e os movimentos de uma maneira
t�o calma, t�o igual, ela como que emana uma esp�cie de calor, de centelha - divina
ou diab�lica -, diz o sim e o n�o de forma precisa.
� minha volta, sinto-o, forma-se por vezes uma neblina de incerteza, de
indiferen�a, de aborrecimento, no meio da qual estreme�o como um insecto nocturno
estremece � luz do Sol antes de cegar e se imobilizar. Quando entr�vamos no palco -
ela � frente, deslumbrante de sa�de e beleza, sorrindo, saudando sem esfor�o nem
afecta��o, com grande � vontade, e eu atr�s - o vestido sempre ligeiramente
amarrotado, eu que parecia como que mirrada e que saudava tamb�m inclinando-me e
sem saber onde p�r as m�os, quando aparec�amos as duas, dizia para comigo - "ent�o,
que mais queres da vida? P�r tudo em pratos limpos? Vingares-te? Como? E al�m
disso, contra quem? � preciso passar despercebida, mais calada que a �gua, mais
baixa que a relva. N�o se ajustam as contas nesta vida. Quanto � vida futura, ela
n�o existe!"
Ela instalou-me num sof�, pegou-me nas m�os, depois, para que n�o tivesse muito
calor, desabotoou-me ela pr�pria a gola. Em seguida disse-me para tirar o casaco,
tocou para chamar a criada e mandou servir o ch�. Olhava-me com uma aten��o
indiz�vel, no seu olhar notava-se solicitude, solicitude e curiosidade. Come�ou por
me fazer muitas perguntas: que idade eu tinha,
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como era eu, do que gostava, se estaria de acordo em viajar com ela, se fosse
necess�rio? Depois, quando trouxeram o ch�, serviu-me primeiro e s� depois se
serviu a si, p�s no meu prato finas fatias de p�o com manteiga cobertas com fiambre
e queijo, virando-se ligeiramente para n�o me constranger. Eu comia, comia,
comia...
H� muito tempo que conhe�o a sua m�e de nome, Sonetchka, dizia - vou trat�-la por
Sonetchka, porque � ainda uma crian�a, o que, para lhe ser franca, � a �nica coisa
que me mete medo em si. N�o, n�o me mete medo, mas inquieta-me um pouco. N�o ir� a
menina aborrecer-se comigo? N�o ter� vontade de voltar para casa, para Petersburgo
- porque � poss�vel que partamos para longe, muito longe... a menina nem pode
imaginar para qu�o longe poderemos ir.
Eu trabalho muito. Quatro horas por dia, aconte�a o que acontecer, sem me apiedar
de mim, portanto, de si tamb�m n�o. E depois h� os concertos. Porque vai ser uma
verdadeira tourn�e, a minha primeira tourn�e verdadeira, e � imperativo que ela
seja um �xito. Fiz um gesto.
S� sou conhecida em Petersburgo, prosseguiu ela, tendo notado o meu gesto. Quero
mais. Sou muito ambiciosa. Sem ambi��o n�o h� talento; � necess�rio ser-se
ambicioso, e eu ensin�-la-ei a s�-lo.
Estremeci, mas desta vez ela n�o notou.
Ela falava. Eu escutava. Compreendi que a vida nos podia unir durante muitos anos,
que esta conversa n�o se iria repetir - isso acontece: quanto mais as pessoas se
habituam a viver juntas, mais perdem o desejo de falar sobre si mesmas. Esta
conversa podia
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ser a �nica, sentia-o, e, no entanto, adormeci, sabia que ia adormecer de repente.
Estava persuadida de que devia agarrar cada palavra, que isso me iria ser �til mais
tarde. Entre n�s, um candeeiro baixo iluminou-se sob um quebra-luz de seda, os
cortinados da janela esconderam um crep�sculo esbranqui�ado, uma voz grave e terna
deslizava sobre mim, o perfume entontecia-me, os meus l�bios conservavam o sabor do
fiambre fino e fresco. Tinha colocado as pernas entorpecidas diante de mim como se
fossem dois cepos e quase as esquecia, flutuando numa doce sonol�ncia onde as
sombras passavam diante dos meus olhos fatigados, me tomavam a m�o, me envolviam os
ombros, m�os imponder�veis e quentes afagavam-me o rosto e embalavam-me levemente
enquanto eu tentava, num esfor�o sobrenatural, manter abertos os olhos embriagados
de calor e saciedade.
Ela falava agora dos seus anos de estudo, do seu casamento, dos seus recitais na
prov�ncia durante a guerra; dizia que tinha a vida, a vida toda � sua frente, "e
diante de si tamb�m, Sonetchka", acrescentou, falou dos pa�ses de al�m-mar, onde
talvez, "talvez fosse poss�vel" irmos um dia, de Moscovo, de Nejdanova, das can��es
que Mitenka lhe tinha dedicado e de muitas, muitas outras coisas, at� que se
apercebeu que eu a fixava com os olhos im�veis e ba�os.
Atordoei-a completamente com a minha conversa, minha cara, disse. Pe�o-lhe perd�o.
Levantei-me. Deu-me algumas partituras, pediu-me para voltar dentro de dois dias e
acompanhou-me at� � porta. A� abra�ou-me e beijou-me nas duas faces.
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III
Ao sair de casa de Maria Nikolaevna reparei que j� era noite fechada, estava escuro
e nevava. O vento que me fustigava a cara afogueada afastou imediatamente o meu
desejo de dormir. Acabara de ver o que vira pela primeira vez; as palavras que
ouvira foram para mim completamente novas. Que havia nelas? Nada de especial e, de
resto, j� nem delas me lembrava, mal as tinha compreendido, mas o tom em que tinham
sido ditas e a pessoa que as tinha pronunciado tornara-as extraordin�rias. Nunca na
minha vida tinha encontrado uma mulher igual - emanava dela como que uma for�a, uma
esp�cie de equil�brio misterioso, belo e triunfante.
Mas quando relembrava os jacintos, a criada, o calor e asseio, alguma coisa se
revoltava em mim e perguntava-me: ser� poss�vel que tudo aquilo exista realmente e
que n�o haja nada que lhe possa p�r cobro? Seria bom encontrar qualquer coisa que
vingasse a mam� e a mim, ao meu cantor, a milhares de outras pessoas que tinham as
m�os geladas, os dentes apodrecidos e cabelo que ca�a - de fome, de frio, de medo,
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de sujidade. Ser� poss�vel, camaradas tchequistas, que haja alguma coisa que
explique a exist�ncia daquele apartamento, daquela mulher, daquele gato de p�lo
azulado, e que ningu�m instale naquele sal�o a fam�lia piolhosa de algum oper�rio
que usasse o piano como retrete, e a ela, obrig�-la a limp�-lo de manh� com as suas
m�os rosadas e chamar a isso "servi�o c�vico"? Ser� poss�vel que tudo aquilo
continue tal qual est�? E n�s, os andrajosos, os desprovidos, os famintos, os
aniquilados, teremos que suportar tudo aquilo? O queijo da Holanda, a grossa acha
de lenha de casca segura, o pires de leite para o gatinho molhar a l�ngua?
Estes pensamentos queimavam-me o peito, as l�grimas e a neve gelavam no nariz e na
cara, limpei-as com as costas da m�o e, com as partituras debaixo do bra�o,
afastei-me correndo sem fazer ru�do com as minhas botas de tapete.
E foi atrav�s daquele �dio e daquela amargura que pela primeira vez na vida me veio
uma for�a na qual me sentia respirar mais livremente do que na minha indiferen�a
adocicada e fluida para com tudo, pensei repentinamente nela, em Maria Nikolaevna
Trevina, que me tinha beijado nas duas faces, que me tinha olhado com tanta aten��o
e ternura. Ela pareceu-me como uma perfei��o t�o absurda, t�o inconceb�vel, que
chorei ainda com mais for�a, solu�ando, comecei a correr, a correr ao longo da rua,
sem saber porque corria, nem para onde, nem que necessidade tinha agora da nossa
casa, do nosso quarto, da mam�, nem o que � que eu era, e depois esta cidade, para
fazer o
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qu�? O que era a vida? E Deus? Porque n�o nos fez a todos como a tinha feito a ela?
No dia seguinte pus-me ao piano logo pela manh�. As partituras eram muito variadas:
havia �rias de �pera, can��es de Glinka, m�sica contempor�nea, e uma esp�cie de
estranhas vocaliza��es que nunca tinha ouvido. Trabalhei todo esse dia e na manh�
seguinte.
No outro dia, �s tr�s horas, estava na Rua Fourchtadskaia. O piano era um magn�fico
Bl�thner de concerto. Maria Nikolaevna fez vocalizos durante quase uma hora, depois
bebi ch� com p�ezinhos de leite e a pedido dela toquei Schubert. Ela ouviu e
agradeceu. Durante este tempo o telefone tocou duas vezes no quarto ao lado, algu�m
atendeu, mas n�o a vieram chamar. Ela cantou, cantou...
Eu sei que h� pessoas que n�o suportam o canto: o cantor p�e-se em pose, abre a
boca toda (se de forma natural - � feio; se de maneira estudada - � grotesco), ao
mesmo tempo que se esfor�a para conservar um ar de � vontade, de inspira��o e de
pudor, grita (ou ruge) as palavras numa cad�ncia nem sempre conseguida, por vezes
de maneira acelerada ou sibiladas, como numa charada ou ainda repetidas v�rias
vezes de maneira rid�cula.
Mas quando, ap�s uma aspira��o de maneira nenhuma afectada (t�o simplesmente como
quando se aspira o ar das montanhas pela janela de uma carruagem), ela abriu os
l�bios formosos e bem talhados e que um som forte soou repentinamente cheio e
poderoso e se elevou no ar, compreendi naquele mesmo instante que aquilo era
exactamente essa coisa imor
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tal e indiscut�vel que aperta o cora��o e que o sonho de ter asas se realiza para o
ser humano subitamente livre de todo o seu peso. Os dedos tremeram-me nas teclas
pretas fazendo com que eu temesse decepcion�-la logo no meu primeiro dia. Quanto �
minha execu��o, eu estava segura de mim, mas senti como que um espasmo percorrer-me
a espinha... Era um soprano-dram�tico, as notas agudas eram seguras e maravilhosas,
as graves profundas e claras.
- Mais uma vez, Sonetchka - disse ela, e repetimos a �ria. N�o me recordo o que
era, mas creio que era a �ria de Elizabeth do Tannh�user.
Depois repousou durante cinco minutos, fez festas ao gato, bebeu meia ch�vena de
ch� j� frio, pediu-me para lhe falar sobre a minha inf�ncia em N. Mas eu n�o tinha
nada para contar. Mitenka, Talvez? Oh, n�o. Sobretudo Mitenka, n�o. Meu Deus, ela
conhecia-o bem, o marido dela era primo cola�o da m�e de Mitenka. Que tem talento,
tem, mas acontece que chega a n�o se lembrar do seu pr�prio nome.
Come�ou de novo a cantar, e eu, muito diligentemente mas ainda com prud�ncia e
timidez, acompanhava-a nesse milagre que era como que um levantar voo, havia
momentos em que me parecia que uma agulha me penetrava no cora��o e me trespassava
de lado a lado. Interrompeu-me v�rias vezes, deu-me indica��es e pediu-me para
recome�ar. Observava-me e escutava-me. Estaria contente comigo?
�s seis e meia a campainha da porta tocou com for�a. - Espere um momento - disse
Maria Nikolaevna. - � para mim.
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Foi � entrada e ouvi-a abrir a porta ela pr�pria.
- Telefonei duas vezes - dizia uma voz forte de homem - mas disseram-me que estavas
ocupada e n�o podias atender. O que quer isto dizer? � assim t�o dif�cil atender o
telefone?
Mais baixo, mais baixo, Senia, tinha a minha li��o, o meu ensaio. - Est� aqui a
minha acompanhante. - Que v�o todos para o Diabo! Telefonei-te para te convidar
para um passeio. O carro est� � porta. Encomendei-o para as quatro horas, mas
fiquei retido e �s cinco horas n�o havia um motorista. Acabei agora mesmo de me
libertar.
- S�o quase sete horas, onde queres ir agora? Pavel Fedorovitch deve estar a chegar
de um momento para o outro.
O homem devia ter querido responder, mas pressenti que ela tinha posto a m�o nos
l�bios. Segredavam. Depois n�o se ouviu mais nada, e Maria Nikolaevna voltou para a
sala.
Com efeito, mal tinha passado um quarto de hora quando Pavel Fedorovitch chegou a
casa.
- O meu marido - disse Maria Nikolaevna levantando-se para o acolher. Sonetchka
Antonovskaya. Apert�mos a m�o.
Mal tive tempo de pensar que acabava de conhecer um homem e que j� tinha um segredo
que ele n�o conhecia, que era c�mplice de algu�m contra ele, quando Maria
Nikolaevna disse aproximando-se da janela:
- Senia acaba de passar por c�. Queria levar-me a passear. E foi impertinente
porque n�o atendi o telefone quando falou para c�. Um barril de p�lvora!
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- E porque n�o foste? L� fora h� imensa neve, uma maravilha.
Ela n�o respondeu. Eu fiquei de p� com os olhos postos no ch�o. Pavel Fedorovitch
sentou-se na cadeira que lhe estava mais pr�xima. Usava botas militares. Levantei a
cabe�a. Vestia um casac�o militar, tinha barba e usava o cabelo mais comprido do
que permitia a moda naquela �poca - n�o � moda dos artistas, mas antes como usavam
os koupetz' e o seu f�sico era dos mais vulgares, um pouco trivial. Parecia ter
cerca de 45 anos.
jant�mos os tr�s. Eu tentava n�o comer com demasiada avidez, todavia, devido �
falta de h�bito, sentia-me t�o pesada no fim do jantar que me era dif�cil
controlar-me. A criada primeiro serviu Maria Nikolaevna, depois a mim e por �ltimo
a Pavel Fedorovitch. Sentia-me ainda mais intimidada naquela enorme sala de jantar
do que no sal�o ao qual j� tinha tido tempo de me habituar um pouco. A conversa
girou quase todo o tempo � volta de mim. Depois de beber um copo de vinho tinto
fiquei, sem dar por isso, ligeiramente toldada; via-me vermelha e quase opada no
espelho do aparador onde o meu olhar se pousava por momentos. " � porque ela ainda
n�o est� segura de mim, foi exactamente por isso que ela lhe disse que o outro c�
tinha estado." Ri-me nervosamente. "Preciso ganhar a sua confian�a."
'Membro da classe de comerciantes (koupetchestvo) que, no s�culo xix, viviam entre
si e se caracterizavam por terem h�bitos e modo particular de se vestirem e
pentearem. Completamente desaparecidos muito antes da Revolu��o, nas gera��es
seguintes tinham dado origem aos liberais e mecenas, e conservaram-se vivos na
imagina��o russa devido, sem d�vida, ao grande dramaturgo do s�culo xix A. N.
Ostrovsky, que os tinha representado amplamente.
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"Para qu�? Para a trair de seguida?" Deixei cair a colher no prato e salpiquei a
toalha de compota. "� preciso conseguir, merecer... A fim de a salvar mais tarde de
qualquer desgra�a, quando for necess�rio, sem me manifestar, para a salvar no
momento preciso, de a servir como uma escrava, de tal maneira que ela nem se
aperceba que fui eu... � preciso tornar-me indispens�vel, insubstitu�vel, dedicada
at� ao fim, sem piedade para comigo... Oq ent�o tra�-la um dia, tra�-la, a ela com
toda a sua beleza e a sua voz, para lhe provrar que h� coisas mais importantes que
ela, que h� coisas que a podem fazer chorar, que h� um limite para a sua
invulnerabilidade."
Estava ligeiramente embriagada. Ela ria-se da minha cara avermelhada, dos meus
olhos brilhantes, do meu cantor defunto, que ela conhecera e por quem tinha tido um
fraquinho quando era crian�a.
Sonetchka, n�o pode imaginar como ele ficava magn�fico quando vestia as suas cal�as
de palha para o II Acto de On�guine... Come�ou a perder a voz muito cedo; bebia
como um sueco.
- Antes de falecer a comuna de Petersburgo mandou-lhe cereais - disse eu.
Depois do jantar prepararam-se para sair e eu despedi-me, mas antes de me ir embora
Maria Nikolaevna reteve-me. At� amanh�. Foi bom, muito bom trabalhar consigo. Creio
que tem um verdadeiro talento para acompanhante - � uma coisa muito rara. A menina
tocou Schubert mas n�o deve faz�-lo, n�o � a menina. Mas para mim ser� maravilhoso
trabalhar consigo, sinto-o. E a menina? Agrada-lhe?
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S� consegui murmurar algumas palavras.
- Ent�o adeus. Tenho que me ir arranjar. Sonetchka, n�o se importa de me p�r uma
carta no correio? N�o a deite na caixa ali ao canto da rua, h� bem mais de um ano
que n�o fazem a recolha das cartas, deite-a antes naquela da Rua Liteinaia, �
esquerda.
- Muito bem, Maria Nikolaevna.
Reparei ent�o que est�vamos s�s, que Pavel Fedorovitch estava na sala.
Deu-me um sobrescrito azul e r�gido, e fui-me embora. Estava escuro na escada e
desci aos apalp�es quase escorregando nos degraus gelados. Na rua estava escuro
como breu, a neve cintilava na escurid�o, n�o havia candeeiros nem Lua, somente
algumas estrelas. Cheguei � Rua Liteinaia. N�o podia decifrar o endere�o que estava
na carta. A todo o comprimento da rua n�o havia uma luz, nem � direita nem �
esquerda, n�o via nada diante de mim, andava encostada �s paredes para n�o trope�ar
nos mont�culos de neve ou qualquer detrito. Parei junto da caixa do correio. Tentei
ler o endere�o � luz das estrelas. E decidi: se conseguir decifrar pelo menos a
primeira letra do nome (devia come�ar por um S), n�o meto a carta na caixa, levo-a
para casa, abro-a, leio-a e envio-a amanh� de manh�; Fixei os olhos durante muito
tempo at� que se encheram de l�grimas. Enfim, percebi um A alongado e fino.
Subitamente li tudo, como se uma luz tivesse brilhado por tr�s de mim, "A Andr�
Grigorievitch Ber, Zverinskaia 15". N�o sei por que raz�o tive medo. Meti a carta
na caixa e demorei-me ali ainda um pouco com o cora��o em sobressalto.
Dois homens passaram por mim, dois seres andrajosos; transportavam qualquer coisa
volumosa e pesada, parecia ser uma porta. O meu medo aumentou. Do lado da ponte
estalaram repentinamente alguns tiros. Comecei a correr. N�o sei por que motivo
tentei lembrar-me da cara de Pavel Fedorovitch sem o conseguir. Tentava lembrar-me
da sua voz, do que tinha dito, e n�o conseguia. Gostaria de saber se ela o amava,
se ele a amava. O que era dele? O que fazia? O que nos iria acontecer a n�s tr�s,
mais tarde? N�o chegava a tirar uma conclus�o. A imagem dela continuava no meu
pensamento. A sua voz, a sua maneira demasiado livre, demasiado segura de tratar as
pessoas e o futuro. E o facto de ela patentear essas maneiras como um direito
indiscut�vel concedido do alto e para sempre.
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IV
Passaram mais dois meses, ia todos os dias a casa dos Travina, trabalhava com Maria
Nikolaevna, jantava e algumas vezes at� ficava a jogar �s damas com Pavel
Fedorovitch, mas nunca vi Senia nem Andr� Grigorievitch Ber, nem ouvi falar deles.
Em casa continuava tudo na mesma, mas a pouco e pouco afastava-me da minha antiga
exist�ncia. A mam�, as suas preocupa��es, as suas maleitas deixavam-me indiferente.
Mitenka estava a viver o seu primeiro id�lio com uma rapariga neta de X, por quem
estava apaixonado, segundo a opini�o geral, simplesmente por in�rcia - de tal
maneira ele venerava o av�, um compositor muito conhecido. Por�m, nem sequer
pensava imitar X, pois nos seus "corais" ia cada vez mais longe, preparava-se mesmo
para construir um piano especial com quatro teclados para a sua execu��o. Basta de
falar sobre Mitenka. Depois de me ter apresentado aos Travina, ele desapareceu
progressivamente da minha vida e s� o voltei a encontrar em Paris h� relativamente
pouco tempo. Voltarei a falar disso no momento oportuno.
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N�o conhecia ningu�m que me viesse visitar ou �s quais estivesse ligada por
qualquer calor humano. De resto, todo aquele passado n�o me parece, neste momento,
que valha a pena recordar - de facto apaguei-o da mem�ria.
Durante a manh� fazia exerc�cios no piano, ia para as "bichas" de alimentos.
Acendia o fog�o; depois do almo�o - que era sempre o mesmo e consistia de papas e
arenques - lavava a lou�a, limpava-me, vestia o meu �nico vestido apresent�vel e
sa�a.
Na casa de Maria Nikolaevna estava quente. L� davam-me de comer, diziam-me que a
vida era uma coisa dif�cil mas divertida, de vez em quando davam-me presentes. Um
pouco distra�da e de uma do�ura sedutora ao princ�pio, Maria Nikolaevna, por volta
das sete horas, tornava-se alegre e activa. �s vezes Pavel Fedorovitch regressava
mais cedo a casa, instalava-se a um canto no sal�o e ficava a ouvir-nos. Mas a
maior parte das vezes �amos para a mesa logo que ele chegava. Ao fim de uma semana
j� conhecia perfeitamente o seu modo de vida e parecia-me engra�ado que a
curiosidade ou Deus sabe qual outro sentimento me tivessem comovido tanto no
primeiro dia. Pavel Fedorovitch trabalhava numa das administra��es de
abastecimentos daquela �poca. Obtinha tudo o que necessitava incluindo ca�a e pe�as
de museu. N�o se pode dizer que "enriquecesse" no seu emprego, s� que ele pensava
que era sup�rfluo ter demasiados escr�pulos, gostava de viver comodamente,
deliciosamente e copiosamente. Dois anos antes tinha-se tornado muito rico, rico de
maneira inacredit�vel, mais rico do que
todos aqueles que eu conhecia, mais rico que os pais de Mitenka. E agora n�o queria
saber de mais nada, s� desejava viver bem, mesmo na opul�ncia e, por mais bizarro
que isso pare�a, ele conseguia-o. O que mais tinha mudado na vida deles � que, aos
poucos, se tinham afastado do seu antigo c�rculo de amigos e n�o procuravam entrar
noutro. � in�til precisar porqu�: alguns tinham sido fuzilados, outros estavam
presos, muitos tinham fugido e outros ainda tinham deixado de se dar com eles,
convencidos que Pavel Fedorovitch era um patife. Recebiam actores de um certo tipo,
antigos empregados de Pavel Fedorovitch - mas n�o era a "sociedade" onde Maria
Nikolaevna tinha brilhado alguns tempos atr�s.
Nos princ�pios de Abril, Maria Nikolaevna prop�s-me ir viver para casa deles.
Preparavam a sua ida para Moscovo, o apartamento foi vendido ao c�nsul de um pa�s
oriental qualquer. Para mim, aquela �ltima semana em Petersburgo passou como se
fosse um s� dia. Deram-me vestidos e dinheiro para ir ao cabeleireiro. Maria
Nikolaevna tinha entrado subitamente na minha vida pela porta de tr�s; n�o havia
nada sobre o qual ela n�o me tivesse interrogado. A que horas me levanto, de que
lado durmo, qual a cor que me fica melhor, se algu�m j� me tinha feito a corte e se
creio em Deus. Numa palavra, senti repentinamente que estava sem defesas, que ela
estava a ponto de saber tudo sobre mim - os meus sentimentos para com ela e o que
dela pensava. Havia em tudo o que ela fazia uma for�a t�o resoluta que era
imposs�vel resistir-lhe. Naquela noite (faltavam dois dias para partirmos) estava
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em tal estado que por um-nada seria capaz de lhe contar as minhas origens, de
desatar aos solu�os. Ela percebeu naquele momento que as suas perguntas tinham ido
longe de mais (entre outras coisas ela tinha-me perguntado se eu amava algu�m e,
num repente, respondi que n�o, porque Evgu�ni Ivanovitch estava ent�o completamente
esquecido, que durante aquelas semanas me tinha afastado muito da mam� e que,
nessas condi��es, naquele momento, se havia algu�m que eu amasse, era s� ela, Maria
Nikolaevna, bem entendido). Ela compreendeu que tinha ido longe de mais, e que era
o momento de acabar com a conversa. Levantou-se e disse:
- Vamos cantar um pouco, est� bem?
Ela tinha uma grande capacidade de trabalho, para ela n�o existia "estado" nem
"disposi��o". Preparava-se para os concertos em Moscovo. Na v�spera da partida dava
o seu �ltimo recital em Petersburgo e era a minha estreia com ela.
Com o andar dos tempos, apareci ao seu lado dezenas de vezes, mas nunca soube
cumprimentar, em que direc��o dirigir o olhar nem a que dist�ncia devia caminhar
atr�s dela. Passava rapidamente, como uma sombra, sem olhar para o p�blico, tomava
o meu lugar de olhos baixos, punha as m�os no teclado.
Ela? Ela distribu�a sorrisos e olhares como se n�o pensasse noutra coisa que n�o
fosse "Estou aqui. Voc�s est�o a�. Querem ouvir-me? Vou cantar para voc�s. Que bom
poder dar-lhes esse prazer!"
Era assim, parece-me, que eu lia os seus pensamentos nesse dia em Petersburgo
enquanto ela estava em p�,
diante de mim, encostada � curva arredondada do piano.
Sonetchka!, murmurou ela, e compreendi que eu tinha que come�ar primeiro e depois
que ela era a cantora e eu a acompanhante, que esse concerto era o seu concerto e
n�o o nosso concerto como ela dizia e que a mim algu�m me tinha enganado, que tinha
sido tratada, por Deus e pelo destino, como o idiota da aldeia A enorme sala estava
cheia. Durante o intervalo os jovens for�avam a porta do camarim de Maria
Nikolaevna, onde a fina flor do Conservat�rio e do Teatro Maria nos rodeava. Eu
estava ali, sem dizer nada, de vez em quando Maria Nikolaevna apresentava-me �s
pessoas que chegavam. Eu conhecia a maior parte delas, mas julgava que n�o era
decoroso falar-lhes, de resto, n�o tinha nada para lhes dizer. Uma pessoa
cumprimentou-me, pediu-me para repetir o meu nome, mas nesse momento Pavel
Fedorovitch aproximou-se, toda a gente come�ou a rir de qualquer coisa e todos se
puseram a falar.
- Sonetchka, onde est� o meu len�o - sussurrou Maria Nikolaevna com um olhar
receoso. - Parece-me que tenho o nariz a luzir.
Compreensiva, fui procurar o len�o, que encontrei de baixo da cadeira e dei-lho.
A mam� tamb�m l� estava. Tinha uma express�o radiante, o nariz ligeiramente
avermelhado de enternecimento. Teve ainda tempo para segredar:
- � o teu primeiro triunfo, Sonetchka!
Olhei-a com surpresa, n�o, ela n�o tro�ava de mim.
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Como se tinham avan�ado tr�s horas e porque est�vamos em Abril, a noite estava
clara; regress�mos a casa j� passava da meia-noite. Ouvia Pavel Fedorovitch, que
ceava sozinho na sala de jantar; de p�, junto do aparador, eu esperava por Maria
Nikolaevna, que telefonava. Era dif�cil conseguir uma liga��o � noite. Ela esperou
muito tempo, depois falou, muito, muito baixinho. No meu quarto eu n�o me movia.
Podia encostar o ouvido � porta e perceber cada palavra, mas n�o me mexi, fiquei
sentada na cama.
Que me interessava a mim que ela tivesse um ou dois amantes? Que Pavel Fedorovitch
os matasse, a ela e a eles, ou que ela fizesse qualquer coisa a ela pr�pria? E eu,
eu que vou fazer na vida. Eu, porque existo. E de repente a porta abre-se e ela
entra:
- Ainda n�o dorme? Deixe-me beij�-la. Muito obrigada por esta noite.
Pego-lhe na m�o e murmuro:
- Que diz, Maria Nikolaevna, eu n�o fiz nada! P�s-me uma ameixa na boca e riu-se.
No dia seguinte, �s oito horas da noite, partimos para Moscovo.
Na gare est� a mam�, Mitenka e a filha de X, e umas trinta pessoas, umas que eu
conhecia por alto e outras que n�o conhecia de todo. Com um chap�u de couro branco
e uma raposa branca sobre os ombros, Maria Nikolaevna estava � janela da carruagem.
Eu tentava ver qual era o homem para quem ela olhava com mais frequ�ncia, mas a
mam�, em l�grimas, procurando as palavras, entrepunha-se sempre entre mim e ela.
Volta, minha filhinha, dizia ela, o que vai ser de todos n�s? Meu talento luminoso,
s� feliz! Que Deus d� sa�de aos Trevina; como s�o bons e gentis! S� prudente, tem
cuidado, esfor�a-te... Sonetchka, minha pequenina...
Ouvia aquele balbuciar que mal entendia quando as suas �ltimas palavras despertaram
qualquer coisa em mim. "Minha mam�zinha, respondi, "tudo vai correr bem, mam�zinha,
v�s como tudo se comp�s bem. Porque h�s-de inquietar-te? N�o vale a pena
preocupares-te. Tem cuidado contigo." Ela chorava e beijava-me. A sineta deu o
sinal de partida. Saltei para a plataforma da carruagem. Nesse momento, um homem
vestido com um casac�o militar com gal�es, um coldre de rev�lver reluzente �
cintura, saiu da multid�o, deu dois passos ao longo do comboio, apertou fortemente
a m�o que Pavel Fedorovitch lhe estendia pela janela, beijou duas vezos a m�o de
Maria Nikolaevna e agitou o bon�. Toda a gente agitou chap�us e len�os, at�
Mitenka. O homem do casac�o acompanhava o andamento do comboio com grandes
passadas, por baixo da janela.
- Ver-nos-emos em Moscovo - disse.
- Basta, ainda ficas debaixo do comboio, disse ela. - Ver-nos-emos em Moscovo -
repetiu o homem como se fosse uma amea�a.
O comboio ganhou velocidade e ele ficou para tr�s. O Senia engordou tanto, disse
Pavel Fedorovitch dirigindo-se a mim, que dentro em pouco j� nem consegue correr.
Maria Nikolaevna n�o respondeu. Ficou � janela e olhava para tr�s. Pela direc��o do
seu olhar vi que ela
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olhava as pessoas que se tinham ido despedir, � frente das quais se encontrava
Senia, mas mais para a esquerda. Ela olhava com concentra��o mas tristemente...
T�nhamos dois compartimentos cont�guos. Al�m de n�s, viajavam tamb�m naquela
carruagem alguns altos dignit�rios sovi�ticos com quem Pavel Fedorovitch -
encarregado de uma miss�o em Moscovo - depressa travou conhecimento. Primeiro
vieram beber ao nosso compartimento, depois fomos n�s beber ao deles. Envolta num
grande xaile colorido, Maria Nikolaevna obrigou um deles a ajoelhar-se diante dela,
quase durante meia hora, com um copo cheio de vinho na m�o. Pavel Fedorovitch
encetou uma conversa longa e apaixonada sobre a ca�a, sobre a famosa colec��o de
armas de Karachan, sobre a ca�a aos euroques do czar. O terceiro ocupante, que era
jovem e delgado, tinha um rosto de anjo e olhos grandes, quis absolutamente que nos
trat�ssemos por tu depois de termos bebido juntos. Tinha medo, mas passei o meu
bra�o pelo dele e esvaziei o copo, depois do que ele me quis beijar. O meu medo
aumentou. Percebi que estava embriagada e que se ele quisesse me apaixonaria por
ele.
- Vou-te ensinar a beijar - disse ele -, n�o faz mal que n�o saibas, eu ensino-te.
Maria Nikolaevna comentou do outro canto do compartimento:
- Isso n�o se aprende com essa pressa.
Ele tomou-me nos bra�os e senti qualquer coisa doce e h�mida na boca.
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A noite avan�ava pela janela, algu�m cambaleava no corredor, algu�m beijava-me as
m�os, sem me importunar, com muita defer�ncia; enfim, algu�m me conduziu docemente
at� ao meu compartimento. A noite avan�ava pela janela. O comboio corria veloz.
Tinha a sensa��o de que era a vida que avan�ava para mim e que eu me precipitava
nela, nesse desconhecido aveludado.
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Senia chegou a Moscovo duas semanas depois de n�s: eu esperava-o como sem d�vida se
espera um ser amado. E no entanto o tempo fugia, deci dido e r�pido, e cada dia a
vida mosc�'vita revelava qualquer coisa de novo.
Fic�mos instalados em casa da irm� de Maria Nikolaevna, na Rua Spiridonovka. O r�s-
do-ch�o daquela resid�ncia privada era ocupada por uma administra ��o e uma
quinzena de pessoas, todas da fam�lia, ocupavam o primeiro andar. Eu era a �nica
pessoa estranha � fam�lia. Logo no dia da nossa chegada, alguns senhores
desenvoltos come�aram a visitar-nos. N�o perguntavam onde e quando ia Maria
Nikolaevna cantar nem se ia cantar. Era como se a requisitassem, e davam-lhe
ordens, delicadamente, bem entendido, mas sem admitir qualquer objec��o: t�o
depressa devia entrar num cami�o que a esperava � porta para a levar a uma reuni�o
no Kremlin, como era preciso cantar na Filarmonia trechos de �pera bem precisos e
isso em dias bem precisos e n�o noutro qualquer, como tinha que aceitar um contrato
para o Bolshoi para o
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Inverno seguinte. Pavel Fedorovitch, que quase nunca sa�a de casa (afinal a sua
miss�o era fict�cia), disse um dia:
- N�o � no Outono, e agora que devemos levantar arraiais. Como poder�s viver assim?
Maria Nikolaevna olhou-o com confian�a e compreendemos que logo no dia seguinte ele
se iria p�r em campo para arranjar documentos falsos.
Al�m daquelas "requisi��es", aprendi outra coisa em Moscovo; aprendi plenamente o
que � o �xito que n�o � nosso e at� me habituei um pouco a essa ideia. Maria
Nikolaevna n�o me largava. �s vezes pedia-me para lhe ir tratar de qualquer
assunto. Lembro-me que durante uma ceia, creio que depois do seu segundo concerto,
ela devia sentar-se � mesa ao lado de Lounartcharsky e no �ltimo momento fez-me
ocupar o seu lugar. Lounartcharsky corou, n�o fez qualquer coment�rio, mas tornou-
se extremamente verboso at� ao fim da refei��o.
- � senhora ou menina? - perguntou-me lan�ando um bafo avinhado � minha cara. -
Responda: � senhora ou menina?
Trope�ando nas palavras, confessei com franqueza que era menina. Ele repetiu-o a
toda a assist�ncia, deixando aparecer uma l�grima ao canto do olho e fez-me uma
v�nia at� ao ch�o, felizmente Pavel Fedorovitch interveio a tempo.
� minha volta o �xito de uma outra, a beleza de uma outra, a felicidade de uma
outra envolviam-me e o mais penoso � que eu achava que ela merecia, que se eu n�o
estivesse ao piano, no palco onde nem repa
ravam em mim, ou no camarim atr�s de Maria Nikolaevna, se eu pr�pria me encontrasse
no meio daquela multid�o que a aplaudia e corria para v�-la � sa�da dos artistas,
eu t�-la-ia olhado com o mesmo entusiasmo, teria gostado de lhe falar, de lhe tocar
na m�o, de ver o seu sorriso. Mas agora s� tinha um sonho - encontrar o ponto fraco
daquele ser forte, ter o poder de dispor da sua vida quando j� n�o pudesse ficar
mais tempo na sombra.
As suas rela��es com Pavel Fedorovitch admiravam-me �s vezes. Enquanto sem d�vida
alguma ela guardava um segredo, as suas rela��es n�o mostravam nuvens. Ele amava-a
tanto quanto � poss�vel amar-se. Estavam casados h� seis anos. Cada uma das suas
palavras, cada um dos seus pensamentos estavam, para ele, acima de qualquer d�vida,
ela era a sua vida. E ela pagava-lhe exactamente da mesma moeda.
Quanto a mim, esperava a vinda de Senia para a surpreender na sua trai��o. E uma
bela manh�, Senia apareceu l� em casa vindo directamente da esta��o.
- Tira o bon�, mas que grosseria � esta, entrar sem tirar o bon� - disse ela ao
mesmo tempo que continuava a secar o cabelo que acabara de lavar. - Que novidades
h� em Petersburgo?
Deixei a sala e fiquei atr�s da porta. Mas a conversa prosseguiu imediatamente em
voz baixa. As esporas de Senia tilintaram duas vezes. Quando Pavel Fedorovitch
entrou, eu disse-lhe, sem poder esconder a minha emo��o, que estava algu�m com
Maria Nikolaevna. Ele espreitou pela fresta da porta e fechou-a logo.
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- S�o umas cal�as de montar - disse. - Com certeza que � Senia. Apesar de tudo
sempre veio, o imbecil! Est� bem, deixemo-los explicarem-se.
Fic�mos no quarto das crian�as onde n�o estava ningu�m. Passou meia hora. Pavel
Fedorovitch mostrou-me uns pap�is e pediu-me para decorar os nomes sob os quais
ir�amos, a partir da semana seguinte, fazer a viagem para o Sul. Estava
terrivelmente ansiosa e achava estranho que ele estivesse t�o calmo. Subitamente,
ouvimos duas pessoas sa�rem da sala, mas nem Maria Nikolaevna nem o visitante
pronunciaram uma palavra. Senia bateu brutalmente com a porta da rua.
- Ele tinha ainda n�o sei que loucas esperan�as - disse Maria Nikolaevna entrando
no quarto. - Como � penoso. Quinze anos de amizade encantadora, um homem alegre,
nada est�pido. Ei-lo que est� perdido para mim.
Sentou-se. Pavel Fedorovitch perguntou: - Mas n�o foste brutal?
- Um pouco - disse ela, depois p�s os cotovelos na mesa e quedou-se pensativa.
Eu estava de p� junto � janela com os bra�os ca�dos. Tinha vontade de me lan�ar
sobre eles, de lhes pedir que me despedissem.
- Eu tenho novidades, novidades de import�ncia capital - come�ou Pavel Fedorovitch.
- Est� tudo pronto e creio que nos vamos p�r a andar brevemente.
Maria Nikolaevna levantou a cabe�a.
- Horr�vel Moscovo - disse. - Quer seja para o Norte quer seja para o Sul, �-me
perfeitamente igual, contanto que saiamos daqui.
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E cinco dias depois pusemo-nos a caminho: A nossa viagem foi cheia de mist�rios e
de perigos, custou muito dinheiro e j�ias, e durou quase um m�s - mas mesmo nos
momentos mais fant�sticos parecia-se demasiado com outras viagens do mesmo g�nero;
e mesmo que no decurso das nossas perip�cias nos parecesse que s� a n�s tinha
cabido apanhar piolhos, ser roubado at� � �ltima camisa, ter de ficar escondidos
num vag�o de gado estacionado, mas intacto, numa linha f�rrea rebentada por uma
deflagra��o de dinamite, soubemos, � nossa chegada a Rostov, que dezenas e at�
centenas de pessoas tinham vivido o mesmo pesadelo e que ao ultrapassarem essas
dificuldades e j� num ambiente de abund�ncia e alegria, ningu�m se lembrava mais
pelo que tinha passado. T�nhamos agora uma suite num hotel. Em poucos dias, Pavel
Fedorovitch fechou um neg�cio em que ganhou milh�es. Maria Nikolaevna trabalhava,
aparecia em p�blico, brilhava. Eu... pela primeira vez na vida estava apaixonada.
Fomos a casa de Philipoff comer bolos. Ele tinha dezoito anos, estava no primeiro
ano da faculdade e a sua estupidez comovia-me at� �s l�grimas.
Era completo. "Se eu fosse para a guerra, chorava?" e "tenho sofrido de mais na
vida para n�o compreender", e "se n�o puder submeter-se a mim at� ao fim, diga-mo
francamente" - palavras infinitamente doces e completamente vazias de sentido que
me mergulhavam numa beatitude sonolenta.
Em casa tinha escondido esta rela��o. Esfor�ava-me tamb�m por ser conscienciosa e
d�cil. Maria Nikolaevna estudava todos os dias; havia concertos � noite e sobre
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tudo recitais de benefic�ncia. A� tamb�m se sentia aquele sucesso que a envolvia
como o ar. E eu julgava que me ia casar com o meu estudante do primeiro ano,
deixaria os Trevina - sem aviso, sem adeus, come�aria a minha pr�pria vida, traria
uma crian�a ao mundo e abandonaria a m�sica, que me tinha pregado uma partida t�o
dolorosa. E estes pensamentos quase me faziam feliz.
- Sonetchka, venha sentar-se aqui - disse-me um dia Maria Nikolaevna - a menina �
minha amiga, n�o �, e posso falar-lhe francamente?
- Sim, Maria Nikolaevna - e sentei-me onde ela me tinha indicado.
- Olhe para mim. j� h� algum tempo o seu olhar mudou. Como que endureceu... Vamos,
deixe o seu rapazinho. Ele � t�o c�mico.
Fiquei gelada.
- Se ele fosse s� jovem, ou palerma, ou feio ou qualquer outra cousa. Mas o seu �
simplesmente c�mico. Deus sabe porqu�, mas � imposs�vel olhar para ele sem rir.
- Como... sabe?
- Mas n�o h� nada para saber. Ser� poss�vel que seja amor?
- Vamo-nos casar - consegui dizer.
- N�o � poss�vel. Ora isso � que � uma verdadeira anedota. Sabe, ele vai ser um
empregado dos tel�grafos.
- Porqu� dos tel�grafos? Est� na Faculdade de Direito. -- Isso n�o quer dizer nada,
vai ser empregado dos tel�grafos na mesma. E vai sofrer dos dentes toda a vida.
(com efeito, algum tempo atr�s, ele tinha tido uma infec��o).
- ... e quando passearem de bra�o dado...- Maria Nikolaevna, n�o diga mais nada!
Porqu�? � a vida. O universo divino est� maravilhosamente bem planeado, n�o est�?
Deixei-me ficar sentada sem dizer nada. Mais valia que ela me tivesse dito -
pro�bo-a de andar com esse fedelho, ou qualquer coisa do g�nero. Claro, em
compara��o com ela toda a gente era lastim�vel e rid�cula. - Ali�s, vamos partir em
breve, sabe?
- Para onde?
Aproximou-se, p�s-me uma m�o no ombro e olhou - n�o para mim, mas para a sua m�o.
- Para o estrangei-ro - disse-me em voz quase inaud�vel, como se as paredes
tivessem ouvidos.
E pronto, nunca mais vi o meu estudante do primeiro ano. Compreendi de repente que
a minha rela��o com ele tinha um desvio da direc��o priorit�ria que tinha tomado
ainda em Petersburgo, compreendi que n�o havia lugar para mais ningu�m na minha
vida al�m dos Trevina. E voltei a observar e a estar de ouvido � escuta, mas nada
daquilo que eu necessitava me acontecia.
Com efeito, deix�mos Rostov no Outono e chegamos a Constantinopla passando por
Novorossik. Pavel Fedorovitch tornava-nos a vida f�cil e sem preocupa��es. Esta
segunda viagem era menos perigosa e mais simples do que a primeira, mas a minha
vida de n�mada s� devia terminar em 1920, tinha durado exactamente um ano e n�o me
trouxera nada do que eu esperava.
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Tinha-me habituado aos Trevina, tornei-me um membro da fam�lia, era a primeira
ouvinte de Maria Nikolaevna e, ao mesmo tempo, sua serva. A bruma de mist�rio e
dessa qualquer coisa que n�o estava bem, que durante muito tempo me tinha
inquietado, tinha-se dissipado pouco a pouco � volta dela e de Pavel Fedorovitch,
mas sabia que havia de chegar o dia em que essa bruma se iria adensar de novo e eu
ficaria ent�o a saber o que tanto desejava.
Assim, a nossa terceira viagem terminou na Primavera de 1920 - est�vamos em Paris.
Recordo-me que chovia, ia era noite, eu olhava as ruas e os pe�es pela janela do
carro - estava sentada no assento desdobr�vel em frente dos Trevina. Maria
Nikolaevna tinha um ar cansado. Recordo os meus sonhos no quarto do Hotel Regina,
os meus primeiros dias, o retrato de Maria Nikolaevna no Le Petit Parisien. Lembro-
me perfeitamente, como se fosse ontem. E de novo, quantas vezes ia este ano, a vida
recome�ou impetuosa, colorida e generosa. Encontr�mos antigos conhecimentos dos
Trevina, houve sa�das, concertos, restaurantes.
O Ver�o chegou - Maria Nikolaevna partiu para a montanha. Pouco tempo depois Pavel
Fedorovitch juntou-se-lhe. Eu passeava pela cidade, visitei o t�mulo de Napole�o,
as igrejas, dinheiro tinha-o de sobra. Depois disseram-me para ir ter com eles ao
Sul da Fran�a - "midi". Setembro chegou e logo o trabalho recome�ou em cheio: Pavel
Fedorovitch lan�ou-se nos neg�cios, Maria Nikolaevna iniciou a sua prepara��o para
os concertos. Houve um empres�rio - um "tubar�o" e um embusteiro -, mas um homem
encantador,
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cheio de hist�rias engra�adas, de v�nias e todo o genero de sevi�os prestados.
O Outono aproximava-se...
Estava sozinha em casa no dia em que aconteceu. J� t�nhamos um apartamento. Os
Trevina tinham ido almo�ar fora, a criada tinha sido dispensada.
Batem � porta.
Estava ao piano tentando decifrar uma passagem e, sem fazer � m�nima ideia de quem
seria, fui abrir. Um homem entrou, alto, muito alto, ainda jovem, trazia um chap�u
de feltro e vestia um casaco de boa qualidade, mas j� bastante cossado. Empunhava
uma bengala gasta e fora de moda.
A porta da sala estava aberta. Vi que tinha o cabelo castanho-escuro, nariz afilado
e comprido e usava um pequeno bigode.
O olhar n�o tinha alegria.
- A Maria Nikolaevna mora aqui? - Mora.
- Est� em casa?
- N�o, n�o est� em casa. Deu um suspiro de al�vio. - Volta, talvez, brevemente?
Percebi que me tomava por uma criada. - N�o creio.
- E Pavel Fedorovitch? - Tamb�m saiu.
- Voltam juntos? - Creio que sim.
Quedou-se silencioso. Depois tirou um papel do bolso, um l�pis e escreveu qualquer
coisa.
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Est� aqui o n�mero do meu telefone, tome. Diga-lhe, a ela - sublinhou o "ela" -,
diga-lhe que Ber esteve aqui. Andr� Gregorievitch Ber. N�o se vai esquecer? E
meteu-me dois francos na m�o.
Aceitei o dinheiro, agradeci-lhe e disse-lhe com o modo mais persuasivo que podia:
"N�o esquecerei, pode ficar tranquilo."
E quando saiu, sentei-me aqui mesmo, na antec�mara, num tamborete com assento de
veludo e comecei a chorar. Talvez com pena de mim, ou de alegria, porque hoje a
ponta do mist�rio se tinha levantado.
54
VI
Sabia que era preciso, da� a pouco, dizer a Maria Nikolaevna que Ber tinha vindo -
esse mesmo Ber que eu tinha completamente esquecido j� h� meses e a cuja exist�ncia
era sens�vel por uma esp�cie de instinto de c�o. Era o mesmo homem para quem tinha
posto uma carta no correio, na Rua Liteinaia, no meu primeiro dia de trabalho em
casa dos Trevina. E agora est�vamos em Paris. Ter-nos-ia seguido? Estava pronta a
jurar que n�o. Sem d�vida, tinha deixado a R�ssia pelo Norte, e ei-lo que aqui
estava (depois de uma aus�ncia de um ano ) e era a primeira vez que aparecia na
vida de Maria Nikolaevna.
"Ainda te n�o chega?", dizia de mim para mim, "Sentes-te mal? Que queres e porque
procuras destruir esta exist�ncia onde te receberam com tanta confian�a?" Agarrei-
me com as duas m�os a um tren� estreito e olhei-me nele, olhei o meu rosto como se
nunca o tivesse visto de t�o perto. E quanto mais me olhava, mais me parecia que
n�o era eu, que era uma outra que me olhava do fundo do espelho. Que ela tinha o
olhar de uma pessoa disposta a deitar fogo � casa. Que
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a mecha fumegante j� estava talvez apertada na sua grande m�o p�lida e nodosa.
- Da mecha? De que mecha se trata? - No espelho, atr�s de mim, vi um rosto risonho.
Maria Nikolaevna tinha entrado na sala sem fazer ru�do.
- Pavel Fedorovitch foi �s corridas e eu voltei para casa. Por favor, ligue o
ferro, tenho um vestido para passar a ferro para hoje � noite. Onde est� a Dora?
- Eu passo-lho a ferro, Maria Nikolaevna. A Dora saiu.
Est�vamos de p� no meio da sala. Quando vi que ela estava voltada para a luz, de
tal maneira que a sua cara n�o pudesse dissimular nenhuma mudan�a de express�o,
abri a m�o e estendi-lhe o papel com o n�mero de telefone de Ber.
- Um senhor veio procur�-la e pediu para lhe telefonar.
Uf, fez ela e sentou-se.
- O que queria ele? Quem era? Talvez fosse para Pavel Fedorovitch!
- N�o, era para si. Andr� Gregorievitch Ber. "Pronto, j� chega! Ela empalideceu. j�
chega. j� chega. O resto n�o te diz respeito. Ela ficou incrivelmente p�lida. Daqui
a pouco vai-se sentir mal. Est�s contente? Pronto, est� a sentir-se mal."
Mas Maria Nikolaevna n�o se sentia mal, n�o vacilou como me tinha parecido, s�
abanou a cabe�a. Pegou no papel, leu-o ficou pensativa. Eu fiquei de p� e esperei.
- O ferro - disse-me sem me olhar - Sonetchka, tinha-lhe pedido...
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Fui � cozinha e liguei o ferro. N�o se ouvia nenhum som no apartamento.
- E enquanto aquece - gritou com voz forte -, Sonetchka!, por favor, ligue para
este n�mero. Dirigimo-nos para o telefone.
- Mande chamar este senhor Ber e diga-lhe que a menina me informou que ele c� tinha
vindo, mas que estou t�o ocupada estes dias, t�o ocupada, que lhe pe�o desculpa de
n�o o poder receber. Eu inform�-lo-ei quando estiver um pouco mais livre.
As faces estavam coradas, os olhos brilhavam, a voz estava quase a tra�-la.
Liguei o n�mero, mas disseram-me que Ber n�o estava. Ela n�o esperava aquilo,
perdeu o controlo e p�s-se a tirar e a p�r a pulseira. Eu fui para a cozinha.
Passada meia hora chamou-me, queria cantar um pouco antes do jantar.
Que pensa Sonetchka, disse j� ao p� do piano e olhando-me de um modo estranho,
suponhamos que queria saber um endere�o pelo n�mero do telefone. Consegue-se?
- Penso que sim.
N�o o de Ber. Oh, como a menina � esperta, certamente pensou nesse Ber.
Teoricamente, n�o.
- Creio que h� uma lista telef�nica especial para isso. Vi-a quando viv�amos no
Regina.
- Especial? E se n�o ativer?
- Ent�o vai ter que percorrer a lista toda - um milh�o de n�meros.
- Um milh�o, acha que sim? E quantas horas acha que isso vai demorar?
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Que sabia eu? S� um pensamento me ocupava: iria ela pedir-me para n�o falar da
visita de Ber na presen�a de Pavel Fedorovitch? Mas eis que Pavel Fedorovitch tinha
chegado (tendo ganhado muito e alegre como sempre), e Maria Nikolaevna n�o disse
nada, e Maria Nikolaevna tamb�m n�o me disse nada.
- N�o veio ningu�m? - perguntou ele da antec�mara.
Respondi: "Ningu�m, Pavel Fedorovitch", pensando que Maria Nikolaevna me lan�aria
um olhar reconhecido, mas nem sequer virou a cabe�a para mim.
Na manh� seguinte, a seu pedido, telefonei a Ber e transmiti-lhe o que ela me tinha
encarregado de lhe dizer. Ela ouvia a conversa pelo auscultador. Ele pediu-me para
repetir a mensagem e agradeceu. Na noite desse mesmo dia Maria Nikolaevna convenceu
Pavel Fedorovitch a lev�-la a uma casa de jogo onde, ao contr�rio dos clubes
normais, podiam entrar senhoras (clandestinamente, � claro). Voltaram tarde. Maria
Nikolaevna acordou-me ao entrar no meu quarto.
- Num caso como este posso acordar a S�nia-adormecida. Dilapidei dezoito mil, e
Pavel Fedorovitch n�o s� n�o se zangou como at� me consolou (e ainda o chamam
koupetz!). Depois ganhei-os de novo e ainda trouxe mais sete mil. Para jogar �
preciso saber! Cantar � outra coisa! Toda a gente pode cantar!
Ela estava t�o bonita, t�o alegre, que nem Pavel Fedorovitch nem eu sab�amos como a
acalmar. Nenhum de n�s adormeceu antes da madrugada. "Chamam-lhe koupetz!", pensava
eu. Quem ter� o direito de dizer que Travina � um koupetz?
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Mas havia qualquer coisa em Pavel Fedorovitch que eu n�o compreendia, qualquer
coisa que poderia chocar as pessoas que n�o pertenciam ao seu meio.
No decorrer daquele ano ele tinha mudado completamente de apar�ncia. Tinha cortado
o cabelo de "mercador?" e penteava-se com a risca ao lado, � europeia; em vez de
botas, usava sapatos de primeira qualidade e, no Inverno, polainas cinzento-claras,
a sua roupa interior, gravatas, fatos - tudo era do melhor; mandou arranjar as
unhas, tinha o rosto mais redondo e come�ou a usar no anelar, curto e peludo, um
anel com um diamante. E quando estava em repouso, as pernas estendidas, um ventre
que come�ava a desapontar, poder-se-ia tom�-lo por um homem muito correcto, por um
gentleman (cavalheiro) na berma da respeitabilidade.
Mas bastava que come�asse a falar ou a movimentar-se para, repentinamente, se
vislumbrar nele uma esp�cie de alegre vulgaridade, uma esp�cie de animalidade, de
simplismo; via-se que o que lhe agradava acima de tudo era comer bem, beber como um
milion�rio, fazer uma soneca, pregar uma partida, como ele dizia, pavonear-se com
Maria Nikolaevna - o que provocava caretas ,a alguns dos seus amigos, mas n�o
incomodava nada a pr�pria Maria Nikolaevna. Ela dizia que, na sua opini�o, um homem
devia ser exactamente assim: um pouco vulgar nos seus gostos, est�vel na vida sem
se preocupar em saber se a impress�o que causava nas pessoas de quem n�o
necessitava era boa ou m�. Um dia ela disse-me qualquer coisa como: - H� qualquer
coisa inadmiss�vel e contra a natu
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reza num casal em que o homem se perde em altos pensamentos, voga, n�o v� nada �
sua volta, p�e o p� em todas as po�as, senta-se ao lado da cadeira e assoase ao
guardanapo, enquanto ela - faz contas de cabe�a, quanto custa isto e aquilo, os
imperme�veis n�o aguentam a �gua, e - oh!, amanh� � o fim ou ainda qualquer outra
coisa semelhante. O homem deve ter a cabe�a fria e, se necess�rio, empurrar os
outros para ele poder passar. A mulher - a menina pensa talvez que ela deva ser
como um passarinho? Nada disso. Mas se ela tem talento ou pelo menos �nimo - ela
est� salva.
Foi o que ela me disse um dia quando uma noite saiu sozinha - coisa que nunca fazia
-, lembrei-me daquelas palavras e pensei que era tamb�m t�o f�cil enganar aquele
que planeia, que se deixa levar, que se comporta como um imbecil, como aquele que
pela sua natureza sensata e espessa ama a vida que o compensa bem.
Ela saiu � noite. Pavel Fedorovitch estava no clube. Ela n�o disse onde ia. Voltou
cedo, pelas onze horas; n�o devia ter ido muito longe; talvez tivesse passeado de
carro pelo Bosque de Bolonha, talvez tivesse estado no caf� da esquina como
qualquer costureirinha. Foi para o seu quarto. Normalmente eu ainda n�o estava
deitada �quela hora, mas nessa noite, como me sentia bem, tinha-me deitado. Tendo-a
ouvido entrar, vesti o roup�o e mesmo em pe�gas corri a perguntar-lhe se queria que
lhe levasse uma ch�vena de ch� � cama. Bati � porta e, como n�o respondesse, entrei
sem fazer ru�do. Maria Nikolaevna estava sentada diante do toucador e chorava.
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Lancei-me para ela com um �mpeto selvagem, sem saber o que.estava a fazer e
sentindo que chorava tamb�m. Peguei-lhe na m�o, abracei-a com o outro bra�o e
molhei-lhe o vestido com as minhas l�grimas. Ela escondeu a cara nas m�os. Eu tinha
o cora��o despeda�ado, n�o era capaz de dizer nada. Por fim, ela afastou-se de mim
e olhou-me nos olhos. Estava � espera que ela me dissesse... que n�o podia
dissimular por mais tempo. Oh, como o desejava! Como o desejava! Mas ela sorriu-me
simplesmente.
- Vamos beber uma ch�vena de ch� - disse - e tudo vai passar. - E limpou os seus
olhos molhados e os meus com uma borla rosa.
Uma hora mais tarde eu estava de novo no meu quarto, sozinha. At� que enfim, ela
chorou. Isso basta-me. O que eu sonhava realizou-se sem a minha interven��o.
Ela chorou, ela sofria, ela n�o era feliz.
Mas no dia seguinte - que foi anormalmente sobrecarregado e agitado -, vendo-a t�o
igual, calma, sem nuvens, nem acreditava, e quanto mais aquela noite se afastava no
tempo, mais eu duvidava - teria realmente visto as suas l�grimas? Talvez n�o
tivesse sequer chorado, era s� cansa�o. Ou talvez tivesse chorado por raz�es
completamente diferentes, que n�o tinham nada a ver com Ber nem com Pavel
Fedorovitch. Talvez tivesse perdido a sua pulseira preferida, ou tivesse recebido
not�cias tristes da sua fam�lia em Moscovo.
Uma semana mais tarde cantou na sala Gaveau. Tinham-me mandado fazer um vestido
azul decotado; o cabeleireiro tentou dar vida ao meu cabelo
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fraco e seco. Maria Nikolaevna estava extraordinariamente bonita no seu vestido
branco, com a sua tran�a de cabelos negros enrolados � volta da cabe�a. Seguindo a
moda ent�o em voga, o vestido n�o tinha bot�es, enroscava-se e atava-se � volta do
corpo, e isso fazia-a rir. "Imagina", dizia ela a Pavel Fedorovitch durante o
trajecto de autom�vel, "se a tua casaca te enrolasse como este g�nero de rodilha. O
que e que tu dirias?"
Algumas pessoas receberam-nos no camarote poeirento com ramos de flores; o
empres�rio, cuja barba, nesse dia, estava pintada de uma cor quase azul e torta de
um lado, lan�ou um grito quando viu os Travina. Depois viu-me....
- Como a menina �... jovem! - exclamou com entusiasmo. Sim, eu era jovem. Mas n�o
se podia dizer mais do que isso.
Entr�mos ent�o na sala. Ela � frente, eu atr�s, ao longo da primeira fila daqueles
que se tinham instalado sobre o estrado e que, como os que estavam na sala, a
olhavam. Eu acompanhava-a sempre de cor e veio-me � ideia de que se tivesse de usar
uma partitura haveria algu�m atr�s de mim, digamos, uma mo�a com vestido cor-de-
rosa, por exemplo, que se sentaria ao meu lado e voltaria as p�ginas da partitura.
Quer dizer, ela seria para mim o que eu sou para Maria Nikolaevna. Mas eu tocava de
cor e �ramos s� as duas. �ramos duas no estrado e tinha a impress�o de que
est�vamos s� as duas na sala. Sabia que Pavel Fedorovitch estava no primeiro
camarote � direita com alguns amigos. A sala estava apinhada. De toda a maneira
parecia-me que est�vamos s� as duas. Esta
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sensa��o demorou, sem d�vida, um minuto: a partir do momento em que os aplausos
cessaram e at� que, repentinamente, visse Ber sentado na primeira fila.
Ele olhava-a e estava t�o branco quanto o peitilho da camisa. Agora �ramos tr�s.
Toquei o primeiro acorde. Maria Nikolaevna olhava para cima. Mas eu adivinhava que
ela sabia que ele se encontrava ali. Pode n�o olhar para ele, mas ela v�-o na
mesma.
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VII
VIII
� poss�vel que se durante aquelas semanas Maria Nikolaevna tivesse mudado de cara e
de alma, se tivesse sofrido e de maneira que toda a gente, incluindo eu, o tivesse
notado, se tivesse adoecido ou perdido a voz - ou qualquer coisa, sei l�, �
poss�vel que isso me tivesse bastado. Mas n�o notei nada, a n�o ser aquela esp�cie
de suavidade que agora a envolvia e, por momentos, um olhar inquieto. Voltou a ser
am�vel e cuidadosa para com Pavel Fedorovitch e come�ou de novo a estudar muito e
com aplica��o; havia per�odos em que se tornava de uma beleza deslumbrante,
prosseguia a sua vida com seguran�a e liberdade. E eu compreendia que cada vez me
apagava mais perante ela enquanto ela engrandecia como cantora e que f�sica e
espiritualmente ela se aproximava de uma esp�cie do ponto crucial da sua vida,
ponto culminante que ela poderia fazer durar bastantes anos com a sua intelig�ncia,
a sua beleza e o seu talento. Havia no seu equil�brio qualquer coisa que me
fascinava, que quase me causava receio, quase repugn�ncia por ela. N�o tinha
d�vidas de que ela enga
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nava Pavel Fedorovitch, mas fazia-o de uma maneira que n�o era vulgar, e ele,
inconscientemente sem d�vida, ajudava-a: nunca a interrogava, dispensando-a assim
de mentir e n�o a humilhando - ela s� n�o falava. Eu tamb�m j� n�o duvidada que n�o
houvesse uma "aventura" entre ela e Ber - (aplicada a ela esta palavra era t�o
absurda como uma muleta que se tivesse amarrado ao seu corpo estranhamente esbelto
e regular) -, mas sim um amor est�vel, dif�cil e possivelmente sem sa�da. E apesar
desses sentimentos insol�veis, ela continuava a irradiar uma esp�cie de felicidade
constante que eu sonhava castigar.
N�o me chegava fazer compreender a Pavel Fedorovitch que Ber estava em Paris. Era
necess�rio poder provar-lhe que ela se encontrava com ele. N�o pensava, por
enquanto, de que maneira iria utilizar essas provas e como iria p�r Trevina a par
delas. Esperava e espiava.
N�o pensava num �xito fortuito. Seria muito simples: sair e encontr�-los. Muitas
vezes pensei que Maria Nikolaevna me iria ela mesma falar de Ber. Creio que isso
bastaria para que eu abandonasse para sempre a ideia de qualquer vingan�a contra
ela ou um ajuste de contas, contas que s� Deus poderia cobrar. Naqueles �ltimos
tempos era cada vez mais raro que fosse t�o afectuosa para mim como o fora durante
os primeiros meses da nossa vida em comum. Mas �s vezes isso ainda acontecia. Eu
estava sentada ao piano, ela atr�s de mim, de p�, com a m�o no meu pesco�o. Ali
exactamente onde tenho dois tend�es duros e uma covinha no meio. Ela tocava-me no
cabelo.
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- Sonetchka, pensa algumas vezes na sua mam�? Em Petersburgo? Em Mitenka?
- Penso sim, Maria Nikolaevna.
- Talvez um dia tenhamos not�cias deles. Seria muito bom!
Eu disse:
- H� pessoas que chegam de Petersburgo. Uma carta pode chegar tamb�m.
Ela retorquiu vivamente:
- Que carta! A menina n�o pensa nisso, pois n�o! As pessoas fogem pelos campos
gelados atrav�s da Finl�ndia...
Foi assim que fiquei a saber que Ber tinha fugido para ela atrav�s da Finl�ndia.
Como disse atr�s, Pavel Fedorovitch ia para o escrit�rio �s duas horas, e �s tr�s,
Maria Nikolaevna sa�a. Se havia alguma visita l� em casa, dizia: eu volto j�. E o
convidado ou convidados - que, de resto, ningu�m considerava convidados - deixavam-
se ficar, batiam distraidamente nas teclas do piano, passavam os olhos pelos
jornais, jogavam �s damas. A Dora e eu serv�amos-lhe ch�.
Eu tinha planeado tudo com anteced�ncia. N�o acarinhava a esperan�a de saber tudo
logo na primeira vez que a seguisse. A primeira vez que sa� atr�s de Maria
Nikolaevna e a segui na rua, fui a uns trinta passos de dist�ncia, tal era o medo
que tinha de ser vista. Dois dias depois voltei a sair. A nossa rua cruzava outra
que ia dar a um largo, grande e silencioso, com um monumento ao centro. De um lado
havia uma pastelaria, do outro tr�s caf�s lado a lado; dois dos caf�s
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que faziam �ngulo eram espa�osos e bem iluminados, o que ficava no meio era sombrio
e miser�vel, de tal maneira que se algu�m tivesse vontade de entrar escolheria
certamente um dos outros dois e nunca aquele do meio onde, sem d�vida, uma ch�vena
de mau caf� custava menos vinte e cinco c�ntimos que nos estabelecimentos vizinhos.
Maria Nikolaevna chegou ao largo. Pensando que ela ia apanhar um t�xi, contornei o
largo para apanhar o �ltimo carro da fila e segui-la, mas Maria Nikolaevna
ultrapassou a esta��o dos t�xis e entrou directamente pela estreita porta do
pequeno caf� do centro. E voltei para casa.
Quando me precipitei no apartamento ainda conservava uma sombra de d�vida.
Lembrava-me do n�mero do telefone de Ber. Liguei. N�o, ele n�o estava em casa,
tinha sa�do h� cerca de uma hora. A que horas deve voltar?
Nessa altura ouvi que algu�m metia a chave na fechadura da porta da entrada.
Desliguei, a campainha do telefone teniu ligeiramente. Fiquei de p� atr�s da porta,
escondida por um cortinado duplo. Vi Pavel Fedorovitch. Entrou com ar culpado por
chegar a casa �quela hora t�o pouco habitual.
O seu primeiro olhar foi para o bengaleiro. N�o havia convidados. Soltou um suspiro
de al�vio. Passou por mim em direc��o � sala e da� para o quarto de Maria
Nikolaevna. Segui-o p� ante p�; quase que n�o tinha medo; se ele se voltasse faria
daquilo uma brincadeira. Ficou ali bastante tempo, tal como tinha entrado, com o
sobretudo e o chap�u, depois atraves
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sou o corredor para a sala de jantar e olhou duas vezes para o rel�gio.
"Sonetchka!", chamou.
Respondi-lhe do meu quarto.
- N�o � nada... Tinha-me esquecido... Tive que voltar.
A porta bateu. Tinha-se ido embora. Com uma ang�stia inconsciente precipitei-me
para a sua secret�ria em direc��o � gaveta. Como pude ter uma ideia t�o est�pida!
Quem, sem ser eu podia fazer com que ele o tirasse e disparasse? Mas a minha hora
ainda n�o tinha chegado.
Se ao menos eu pudesse ajustar contas de outra maneira - atac�-la abertamente,
roubar-lhe Ber, talvez, fazer com que a sua voz empalidecesse face ao meu jogo, que
ao p� de mim ela deixasse de existir, nem que fosse para uma s� pessoa. Mas eu n�o
tinha nada. Devia vingar-me brutalmente.
Lembro-me do dia seguinte. Durante a manh� fez vocalizos, havia dois convidados
para o almo�o. Pavel Fedorovitch conversava com eles e servia-lhes vinhos finos.
Falavam todos das respectivas adegas. Depois os dois homens foram-se embora.
A modista apareceu para uma prova. Em seguida... Eu sa� primeiro. Cheguei ao largo,
atravessei-o e entrei no pequeno e sombrio caf�. Havia duas filas de mesas, uma de
cada lado, com uma estreita passagem entre elas, e ao fundo havia um tabique.
Instalei-me atr�s desse tabique. Ali ainda estava mais escuro. Sentei-me na
primeira mesa, encomendei uma cerveja e abri um jornal. Os meus c�lculos revelaram-
se certos - dez minutos mais tarde Andr� Grigorievitch Ber, usando
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o mesmo chap�u, a mesma bengala na m�o, entrou e instalou-se na primeira sala muito
perto do tabique. Podia v�-lo atrav�s do vidro fosco, a menos de um metro de mim.
N�o se ouvia qualquer ru�do, chovia por detr�s das vidra�as; era aquela hora
especial em Paris, quando, em princ�pios de Fevereiro, n�o � dia nem noite, e dir-
se-ia que o tempo passa mais lentamente, que a cidade est� mais triste.
... Maria Nikolaevna sentou-se ao lado dele, serviram-lhe qualquer coisa. Ali
estava ela. Eu nem acreditava. Ele pegou-lhe nas m�os, descal�ou-lhe as luvas,
beijou-lhas longamente.
- N�o chores - disse-lhe ela de repente. Seguiu-se um prolongado sil�ncio.
- Tenho as m�os molhadas pelas tuas l�grimas - volveu ela.
Um rel�gio de parede fazia tiquetaque por cima de mim, num canto escuro; um cami�o
passou. O gordo patr�o da baiuca dormitava por detr�s do balc�o de zinco - e_ era
tudo.
- N�o posso - disse ela. - Dei a minha palavra a Pavel Fedorovitch. N�o posso.
Ele retorquiu.
-Tu tamb�m, tu tamb�m est�s a chorar, o teu caf� est� frio e com certeza salgado.
Ela revolveu a colher no copo.
Na imobilidade daquelas grandes silhuetas sombrias pairava qualquer coisa que n�o
se assemelhava � realidade.
- Diz-me qualquer coisa - pediu ele. - Sorri para mim.
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Mas certamente a boca e os l�bios n�o lhe obedeceram.
- N�o posso deix�-lo - ouvi - � como se o fosse matar. E tamb�m n�o o posso
enganar.
- Ent�o sou eu quem o vai matar - sussurrou ele. Ela ficou de novo silenciosa por
muito tempo.
- Eu quero vir aqui para olhar para ti. E tu tamb�m, vens para me ver.
Ele olhou-a longamente.
- Espera - disse ele de repente, e sorriu. - Acreditas na verdade que isto possa
durar assim e que nunca estaremos juntos?
Ela apoiou a cabe�a na m�o, � maneira provinciana. O rel�gio fazia tiquetaque, o
tempo passava, algu�m entrou, bebeu um copo ao balc�o, as moedas tiniram. Foi-se
embora.
Quando, repentinamente, a luz el�ctrica dardejou por cima do balc�o, por cima deles
e de mim, Maria Nikolaevna levantou-se e saiu. Um minuto depois Ber chamou o
patr�o, pagou e saiu tamb�m. Mais dois candeeiros se acenderam.
L� fora j� era noite fechada.
Sa� como aparvalhada. N�o havia ningu�m no mundo com quem pudesse chorar... Ruas,
esquinas, bicos de g�s... N�o reconhecia nada. Cheguei a casa, toquei. Dora abriu-
me a porta. Maria Nikolaevna estava no quarto e no sal�o encontrava-se Nersessof.
Fiquei muito tempo � porta a olh�-lo, e ele olhava-me. Talvez ele tivesse o direito
de dizer que �ramos amigos. Ele era o �nico, das rela��es dos Trevina,
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que sabia o meu nome e a nunca mais se enganar; uma vez, � noite, ele tinha tido d�
de mim. Sentei-me diante dele. Pensei: e se ele fosse meu marido, ou ao menos um
amigo �ntimo? Ou, se n�o fosse ele, qualquer outro, contanto que n�o estivesse s�,
sempre s�, mas sermos dois, com algu�m, para que de tempos a tempos houvesse uma
semelhan�a... Ter-lhe-ia engraxado as botas pela manh�, ter-lhe-ia passado os
len�os a ferro, limpo a navalha da barba. Esper�-lo-ia para jantar, por vezes
aconchegar-me-ia contra ele para que o meu corpo sentisse o calor do seu.
Um homem velho, calvo, estava sentado diante de mim.
- De onde vem?
- Fui passear, Ivan Lazarevitch - respondi maquinalmente.
- Entrei de passagem. Os Disman tamb�m devem vir e Pavel Fedorovitch est� a chegar.
Vamos jantar. Dora punha a mesa na sala de jantar. Maria Nikolaevna dava-lhe as
suas ordens. Levantei-me, fui ao escrit�rio de Pavel Fedorovitch arrastando os p�s
com dificuldade, sem acender a luz abri a gaveta da secret�ria e tirei o rev�lver.
Sa� para o corredor, sem fazer barulho, entrei no meu quarto e escondi o rev�lver
debaixo da almofada.
Tinha decidido matar Pavel Fedorovitch naquela noite.
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IX
Naquela noite t�nhamos convidados, uma dezena de pessoas, mas desta vez n�o havia
jogo de cartas: Maria Nikolaevna ia cantar.
Ela nunca se negava a cantar quando lho pediam, mas naquela noite, pareceu-me que
ela consentiu contravontade. Os convidados instalaram-se ao canto da sala onde
havia um candeeiro e grandes poltronas brancas e profundas. Lialia Disman, tendo
deitado duas almofadas sobre o tapete, estendeu-se em cima: alguns deles estavam na
sombra, Pavel Fedorovitch estava sentado no primeiro lugar um pouco ao lado, eu via
a sua cara. Via que de vez em quando, durante uma pausa, ele se levantava, oferecia
um cinzeiro ou uma laranja a este ou aquele, tirava uma faca do cesto da fruta e
passava-a, deitava nos copos uma bebida servida numa enorme terrina onde, como num
aqu�rio, flutuavam peda�os de anan�s e p�ssego.
Eu estava ao piano, ela ao meu lado. Trajava um vestido escuro e estava mais p�lida
que habitualmente. A voz era maravilhosa como sempre, talvez ainda mais
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- mas se havia algu�m, naquela noite, que a n�o podia ouvir, era eu.
Libert�-la de Pavel Fedorovitch? Desde os primeiros sons que ecoaram sobre mim
compreendi que era um sonho in�til, que me surgiu por acaso num momento de
fraqueza, depois da conversa que surpreendi dela com Ber. N�o, era eu que
necessitava de me libertar dela, tinha chegado o momento de a trair para que
Trevina fizesse justi�a libertando-me a mim para toda a vida.
"Amanh�", disse para comigo. E n�o faz mal qual deles ele matar. Mas ele ajustar�
as contas e eu serei a causadora, eu em quem ningu�m repara, eu que ningu�m ouve,
eu que n�o tenho nome nem talento... Ei-lo sentado, este homem s�lido e sensato,
este "comerciante" que n�o suporta ser abusado e enganado, ei-lo com o seu pulso
firme para quem todos os nossos "permitidos" ou "n�o permitidos" s�o irris�rios,
que, sem hesitar, toda a vida espezinhou os outros para abrir caminho e que agora
n�o ceder� nada do que lhe pertence. Amanh� ele saber� tudo.
Mas como? Como inform�=lo? - era preciso reflec
tir.
Durante as duas �ltimas semanas, n�o sei por que raz�o, tentava evitar-me. Partiu
duas vezes em viagem e eu s� o soube no pr�prio dia da partida, pela Dora.
Escrever-lhe uma carta. Mas se a assinasse - seria a mesma coisa que falar-lhe,
quanto a envi�-la sem assinatura - ele n�o acreditaria. j� l� vai o tempo em que as
pessoas acreditavam em cartas an�nimas. Ao princ�pio elas aniquilavam, depois
causavam mau humor.
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Agora riem-se delas. Telefonar-lhe para o escrit�rio? Reconhecer� a minha voz e
isso ser� a mesma conversa. Mais simplificada e mais brutal... Mas era preciso, o
mais rapidamente poss�vel, voltar a p�r o rev�lver de onde o tirara e esperar at� �
manh� do dia seguinte.
Era assim que eu pensava, ou, por outra, que agarrava por momentos certos
pensamentos enquanto a voz de Maria Nikolaevna me dilacerava o cora��o e o meu
olhar sobre Pavel Fedorovitch, ali recostado e im�vel na sua cadeira, na atitude
reservada que recentemente tinha adoptado.
- j� chega, estou cansada - disse Maria Nikolaevna. Mas ningu�m tinha ainda vontade
de se ir embora. Um jovem pianista de faces coradas tocou, com petul�ncia, dois
estudos de Chopin. Lialia Disman cantou, no seu contralto um pouco rude, algumas
romanzas que Maria Nikolaevna qualificava de "suspeitas".
Fui para o meu quarto, levei com precau��o o rev�lver para o escrit�rio, depois
ajudei Dora a arrumar a sala de jantar. Era meia-noite. As visitas foram-se j�
passava da meia-noite.
No dia seguinte fui despertada por uma conversa em voz alta: Pavel Fedorovitch
dizia a Dora para se despachar a servir-lhe o caf�. Pavel Fedorovitch partira para
Londres em viagem de neg�cios. A sua mala j� estava � entrada. Por muito tempo? Uns
dez dias. Maria Nikolaevna, que mal tinha tido tempo para prender o cabelo com uns
ganchos, tamb�m ali estava. Despediram-se e ele apertou-me a m�o.
- Olhe-me s� para si, Sonetchka - dizia-me Maria Nikolaevna. - Est�-se a tornar
verdadeiramente trans
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parente. Dev�amos mudar de h�bitos, sem isso a nossa vida est� tramada. Ontem
cantei numa sala cheia de fumo - n�o valho nada depois de uma coisa assim! N�o se
deve beber vinho, nem engolir com apetite todo o g�nero de coisas prejudiciais...
Sentada em frente de mim, ela molhava um biscoito no caf�.
N�o se deve ter caprichos, e h� ainda muitas coisas que n�o se devem fazer - estar
triste, por exemplo. E eu, �s vezes, estou triste. Admira-se? Hoje, Sonetchka, tive
um mau sonho, sonhei que a minha cara se cobria de p�los; come�ava pela testa, os
olhos, o nariz, as faces - e t�o depressa. Acordei porque chorava.
Falou durante muito tempo, eu quase n�o respondia. A partida de Pavel Fedorovitch
tinha-me desconcertado. Depois chegou Lialia Desman - tinha esquecido na v�spera as
luvas em casa dos Trevina. Ficou para o almo�o, contou hist�rias engra�adas, das
quais uma me foi incompreens�vel e Maria Nikolaevna corou e disse:
- Por favor, tem cuidado: a Sonetchka � ainda uma garota.
�s duas e meia Maria Nikolaevna mandou-me � biblioteca e da� ir comprar bilhetes
para um ballet. Chovia a c�ntaros, de tal maneira que o guarda-chuva estava
encharcado quando cheguei � esquina e decidi apanhar um t�xi. Numa hora acabei as
minhas voltas. Quando sa� do teatro, uns t�nues raios de sol tentavam penetrar o ar
h�mido de Fevereiro e um p�lido arco-�ris descia das alturas. Fui para a paragem do
auto
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carro. Tudo o que fazia naquele dia, fazia-o como um aut�nomo, n�o sentia nada e s�
pensava em Pavel Fedorovitch, que tinha partido por dez dias.
O que se ia passar a seguir eu ainda o n�o sabia. Desci do autocarro perto da
pastelaria da nossa pra�a. O arco-�ris brilhava algures, muito alto, ali onde
transparecia j� um azul quase primaveril. Contornei o monumento. Em frente do caf�
onde, �quela hora, se encontravam Maria Nikolaevna e Ber, uma po�a de �gua azul-
celeste brilhava.
Eles estavam l�. Estas ruas, estes passeios, estas janelas n�o existiam para mim h�
apenas alguns dias, e agora a sua vista invadia-me de uma fraqueza vertiginosa, de
uma esp�cie de dor inexplic�vel. Era melhor n�o ver nada daquilo: esperei dois
anos, poderei muito bem esperar mais dez dias. E, no entanto, n�o desviei o olhar,
conservei-me im�vel apertando os livros e o guarda-chuva contra o peito; a po�a de
�gua azul-celeste tinha a forma de uma folha de carvalho... Das �rvores nuas
pingavam gotas claras e como p�rolas. Por baixo das �rvores havia um banco que
parecia envernizado. E sentado nesse banco estava Pavel Fedorovitch.
Admirei-me de o ver ali, quando nessa mesma manh� ele devia ter partido para
Londres, mas o que me admirou ainda mais foi, n�o s� que ele ali estivesse sem
sinais da sua costumada gravidade pomposa, mas numa atitude estranha - que lhe n�o
era nada habitual - de cansa�o mortal. E compreendi porque n�o o reconheci logo.
Escondi-me atr�s do monumento e ali fiquei algum tempo. Quando deixei o meu
esconderijo Trevina j� l� n�o estava. Tamb�m n�o estava no passeio, tinha
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desaparecido extraordinariamente depressa, e se o meu estado de esp�rito tivesse
sido diferente, .teria simplesmente duvidado que o vira. Mas tudo o que tinha visto
� minha volta - a carro�a puxada por uma negra com um xaile verde, o quiosque dos
jornais pintalgado com cores bizarras, o arco-�ris - aparecera-me de uma maneira
t�o clara que n�o duvidava que Pavel Fedorovitch estivera momentos antes sentado
debaixo das �rvores olhando a direito diante dele para a porta envidra�ada com a
sua inscri��o "Licores de qualidade". Portanto, ele tinha voltado e talvez
estivesse j� em casa. Mas onde estava a mala dele? Se n�o almo�ou, a Dora ter-lhe-�
dado de comer. Enfim, eis o momento de lhe contar tudo, de ficar a s�s com ele,
cara a cara. De o fazer voltar �quela pra�a no momento em que os outros se iriam
despedir.
Corri para casa, sentindo que me devia apressar, que a vida que ali estava, algures
ao lado, me iria ultrapassar; que as nuvens iriam cobrir o c�u, que o crep�sculo ia
cair, que os bicos de g�s de iriam iluminar como que a lembr�-los que era tempo de
se separarem. Deixei que a porta de entrada se fechasse pesadamente, o ascensor
subiu, lento e silencioso. Eu tinha uma chave. Abri a porta e vi o sobretudo e o
chap�u de Pavel Fedorovitch pendurados no cabide.
Lembro-me que passei a m�o pela manga do sobretudo - estava completamente
encharcada. Entrei na sala. O piano continuava aberto, os lilases brancos da
v�spera tinham-se tornado castanhos e estavam murchos. Aproximei-me da porta do
escrit�rio. N�o se ouvia nenhum ru�do l� dentro.
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- Pavel Fedorovitch - chamei baixinho. N�o obtive resposta.
Posso entrar, Pavel Fedorovitch? E bati duas vezes. Nesse momento tinha o
sentimento claro de que nem sequer teria tempo de me instalar na poltrona de couro
perto da mesa, que diria tudo ainda da porta, e que ele me cuspia na cara e n�o
diria nada.
Mas detr�s da porta n�o vinha nenhuma resposta. Ent�o abri-a.
Pavel Fedorovitch estava sentado em frente da mesa. O dia tinha acabado. Ele
continuava sentado, debru�ado sobre a gaveta do meio que tinha aberto e olhava para
qualquer coisa com aten��o. O bra�o esquerdo pendia entre a poltrona e a mesa, o
bra�o direito estava pousado em frente dele.
- Pavel Fedorovitch - chamei. Mas ele n�o se moveu.
Vi ent�o que ele estava morto e que a m�o direita, tombada sobre a mesa, apertava o
rev�lver.
Gritei. A Dora, que n�o tinha ouvido o tiro na cozinha, precipitou-se ao meu grito.
Perdeu o sangue-frio - n�o sei o que a assustou mais: se o cad�ver de Pavel
Fedorovitch sentado � secret�ria, ou o meu prolongado grito, que ela n�o conseguia
fazer parar e que continuava sempre. Quando penso nisso, tenho a impress�o de que
durou tr�s dias. Na realidade, a Dora pensou em me deitar �gua fria na cara e isso
acalmou-me. Dez minutos depois estendeu-me no sof� e ali fiquei -tamb�m aqui n�o me
lembro durante quanto tempo, mas provavelmente at� ao regresso de Maria Nikolaevna.
Ainda que agora tenha a impress�o de que
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ali fiquei muito, muito tempo, e mesmo como fora do pr�prio tempo.
Aquela meia hora pareceu-me a mais insuport�vel de toda a minha exist�ncia e n�o
somente da minha. Creio que apesar de todo o horror e ang�stia da vida, nove sobre
dez seres humanos n�o experimentaram o que eu ent�o experimentei. Entre "aconteceu"
e "isto n�o podia deixar de acontecer", o meu cora��o tremia e palpitava algures.
N�o posso nem lembrar-me, nem explicar o que sentia (ou pensava - era o mesmo)
ent�o... Sobre mim mesma, sobre o destino, sobre as pessoas, sobre a felicidade, e
de novo a prop�sito do destino e mesmo daquela bala que, pouco tempo antes,
estivera na minha m�o com a qual apontava para o espa�o e que, por si mesma, tinha
encontrado o lugar que lhe era destinado.
- Seja minha amiga, Sonetchka - disse uma voz que sou capaz de reconhecer daqui a
mil anos e ainda que completamente inconsciente - ajude-me.
Tomando-me as duas m�os, Maria Nikolaevna obrigou-me a levantar. Na soleira da
porta encontravam-se uns desconhecidos.
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Tudo mudou, a vida dos dois �ltimos anos, a inquieta��o, as vigias e persegui��es,
tudo tinha acabado e tudo o que tinha acontecido tinha contecido sem mim, fora de
mim, como se eu nunca tivesse existido... Relembrei todo o passado com a sensa��o
de uma lassitude infinita no cora��o e a consci�ncia da minha inutilidade total. As
pessoas e as paix�es tinham passado por mim - via-as do meu canto, aspirava a
juntar-me a elas para estragar qualquer coisa a qualquer delas, para ajudar alguma
delas, para me afirmar nesse acto, e fui evitada, n�o, n�o tomaram a s�rio este
jogo que acabou pelo suic�dio de Pavel Fedorovitch. Ele sabia de tudo antes de mim
sem mim, ele tinha compreendido o que devia fazer, n�o ajustou contas com Ber e
Maria Nikolaevna, deixou-lhe antes o caminho livre para que ela continuasse a viver
como ela quisesse e a ser feliz com quem quisesse. Para que ela fosse livre.
Adquiri o gosto pela conversa comigo mesma. Foi, talvez, a partir desses meus
mon�logos que cheguei a estas mem�rias. Ningu�m, me compreendia. Durante
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aquelas noites luarentas de Fevereiro, ficava diante da janela sem acender a luz,
sem fechar os cortinados. A rua parecia prateada. Parecia-me ver Petersburgo, a
mam�, o nosso velho e grande piano, e aqui e acol� as nossas duas camas (durante os
meses de Inverno dorm�amos no mesmo quarto) - as nossas duas camas estreitas, com
as suas colchas de piqu� branco e, presos nas ma�anetas, os �cones que, durante
tantos anos, nunca tive tempo de examinar bem. A lua esbranqui�ava o asfalto que
gelava ligeiramente. Parecia-me ver a minha infancia em N. , o port�o do p�tio que
rangia, o c�o do propriet�rio que me metia medo, a cozinheira que esperava comigo
que a mam� viesse jantar depois das li��es, a probreza, a tristeza, o abandono da
nossa vida. A Rua de Paris estava silenciosa e vazia; a Lua e o frio espreitavam
por ~detr�s da janela. Parecia ver a vida mover-se ao lado, ro�ar e moer os seres
humanos, mas sem me incluir, fizesse eu o que fizesse para me impor.
Por detr�s do tabique j� n�o existia Pavel Fedorovitch. Maria Nikolaevna estava s�,
mas as pessoas que durante estes �ltimos meses n�o os deixavam s�s um momento, n�o
os deixavam frente a frente, continuavam agora � sua volta, noite e dia. N�o a
convidavam, como outrora o faziam, para sair com elas, n�o exigiam, durante o
jantar, vinhos finos, n�o falavam das corridas, da tourn�e de um grupo vienense ou
da Bolsa. Estavam simplesmente ali - Nersessof e Disman fumavam na sala; no quarto,
Lialia Disman, sentada � turca em cima da cama, exercitava-se a fazer um bordado,
algu�m dava corda ao rel�gio da sala de jantar; no escrit�rio de
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Pavel Fedorovitch o seu s�cio nos neg�cios, antigo advogado e membro do Douma,
fazia contas. E Maria Nikolaevna n�o se admirava. No dia do funeral ela voltou do
cemit�rio com eles todos, no dia seguinte l� estavam eles todos reunidos logo desde
a manh�. Eu perguntei-lhe: a presen�a constante de pessoas em casa n�o lhe pesava?
Ela disse que isso lhe era perfeitamente indiferente e que, provavelmente, ela
partiria brevemente.
O advogado, Nersessof e Disman cochichavam entre eles que os neg�cios de Pavel
Fedorovitch se tinham abalado muito nestes �ltimos tempos. Maria Nikolaevna sabia-
o. Sim, com efeito, os neg�cios de Pavel Fedorovitch iam, na melhor das hip�teses,
menos bem que anteriormente, ela podia chor�-lo com a consci�ncia tranquila
dizendo-se que n�o tinha sido ela mas sim o dinheiro que era o respons�vel pela sua
morte. No entanto, ela sabia muito bem qual tinha sido precisamente a causa.
Uma semana ap�s o funeral ela come�ou a vir falar comigo. Nessa altura (j� algumas
pessoas tinham deixado de a visitar), se havia estranhos, era somente ao almo�o e
ao jantar. Aos ser�es Maria Nikolaevna vinha ao meu quarto, sentava-se sobre a
cama.
- Ainda n�o dorme, Sonetchka? - N�o, Maria Nikolaevna.
- Posso ficar um momento? Gosto de tagarelar consigo. Chegue-se um pouco para l�.
Fiquei deitada, com o cora��o a bater, e olhei para ela. A luz do quarto cont�guo
incidia sobre as suas m�os. Ela estava sentada envolta num roup�o branco,
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quente, a espessa tran�a ca�da pelas costas, as chinelinhas penduradas nos p�s, que
eram bastante grandes e bronzeados.
- Que devo fazer, Sonetchka - perguntou docemente, apertando as m�os e olhando-me.
- Eis que a morte me tocou, e no entanto n�o consigo deixar de ter a sensa��o de
uma esp�cie de felicidade constante. Deus sabe de onde me vem este sentimento e
como isto vai terminar. Pode dizer-se que apesar de tudo houve muitas coisas na
minha vida - mas sou feliz pela vida mesmo! N�o sei bem porqu� - por respirar, por
cantar, por viver neste mundo. Est� a julgar-me?
- N�o, Maria Nikolaevna.
outras pessoas dir�o que o matei. Mas que hei-de fazer se n�o me sinto culpada? E
cr� que ele alguma vez me julgasse? No �ltimo momento, ou antes do �ltimo, ou em
qualquer momento? N�o, sei que n�o, e Deus tamb�m o sabe... De onde me vir� este
sentimento de que tenho raz�o? Pode ser que toda a gente o tenha, mas os outros
escondem-no, por hipocrisia?
Queria responder-lhe. Reflecti durante bastante tempo, depois disse:
- H� pessoas assim. T�m uma esp�cie de grandeza. junto delas tem-se medo, um pouco
(n�o � nada, Maria Nikolaevna, n�o leve isto a s�rio). � raro que se possa
modific�-las, torn�-las enfermas (supondo que n�s, os outros, somos enfermos)...
N�o sei exprimi-lo: um ser feliz vive como que acima dos outros (e esmaga-os um
pouco, est� visto). E isso nem sequer tem de ser perdoado porque � um dom como a
sa�de ou a beleza. Ela meditou por momentos e respondeu sorrindo.
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- De qualquer maneira, Sonetchka, desculpe-me. Cal�mo-nos. Oh!, como ela voltava a
ser inacess�vel com aquele sorriso!
E o dia da nossa separa��o chegou: est�vamos no Ver�o, as janelas abertas de par em
par, o apartamento tinha sido alugado, os m�veis foram levados para um armaz�m;
Maria Nikolaevna partia com Ber para a Am�rica onde tinha assinado um contrato por
dois anos.
j� nada lembrava a nossa vida do tempo de Pavel Fedorovitch. Pouco a pouco, Maria
Nikolaevna rompeu com as suas antigas rela��es, abandonou os neg�cios de Pavel
Fedorovitch � sua sorte, renunciou �s recep��es, �s sa�das, aos c�lculos de
dinheiro. S� contava com ela pr�pria, e essa independ�ncia tornava-a mais forte e
mais jovem; notava-se nela aquela esp�cie de encanto que destaca as mulheres
independentes cuja "sociedade" ficou enlutada e pagam a essa "sociedade" com a sua
completa indiferen�a. Nestes �ltimos tempos ela trabalhava muito comigo e com Ber.
Agora j� conhecia muito bem aquele homem. Tinha deixado de ser um enigma para mim.
Estava todo virado para o futuro, n�o porque tivesse � sua frente uma grande
"carreira" ou que fosse dotado de qualquer talento. Tinha s� trinta anos. Era um
grande taciturno, ardente e muito nervoso, que compreendia por meias palavras um
interlocutor espor�dico, e que adivinhava facilmente os pensamentos de um ser que
lhe fosse pr�ximo. Essa intui��o um pouco sobrenatural substitu�a todas as
qualidades: a "musicalidade" na m�sica, o sentido pr�tico na vida. N�o "prometia"
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nada, mas ao olh�-lo, ao pensar-se nele, tinha-se a impress�o ( e eu n�o era a
�nica a t�-la) que ele tinha talvez diante dele um destino que n�o era
completamente vulgar.
Agora tinha-se tornado pouco a pouco o acompanhador e tamb�m o empres�rio de Maria
Nikolaevna. E dentro de pouco tempo seria seu marido. Como acontece raramente,
aquele amor deixava transparecer uma verdade profunda e fiel onde n�o havia lugar
nem para o ci�me nem para d�vidas. Maria Nikolaevna amava-o... No entanto, por
vezes parecia-me que mesmo sem amor ela podia ser feliz - na verdade, ela n�o
necessitava de ningu�m. Mas ela amava-o.
Eles partiram, e eu, eu fui viver para um hotel. Procurava trabalho. Maria
Nikolaevna tinha prometido n�o me esquecer; deixou-me dinheiro e recomen dou-me a
algumas pessoas. E, apertando-me nos bra�os, disse-me que se eu desejasse voltar
para Petersburgo, isso tamb�m, se podia arranjar.
N�o, n�o tinha desejo de voltar para casa da mam�. E l� partiram; no �ltimo
momento, ao olh�-la, tive a impress�o de que ela n�o partia para a Am�rica dos
neg�cios, em suma, de todos os dias, para a� procurar trabalho, sucesso e o ganha
p�o, mas sim para um pa�s um pouco irreal e, evidentemente, feliz, cujo caminho �
interdito aos outros, mas onde a esperam e onde a amam h� j� muito tempo da mesma
forma que ela gosta de toda a gente.
Ber, que em tempos me tinha tomado por uma criada e me tinha dado dois francos de
gorjeta, n�o me dava muita aten��o, e na altura dos adeuses conservou-se frio. Eu
tamb�m sentia por ele uma certa hostilidade. Os dois est�vamos chegados a Maria
Nikolaevna e eu deixei-lhe o caminho livre, porque n�o havia mais nada que pudesse
fazer. Maria Nikolaevna olhou-me longa e fixamente. � poss�vel que ao despedir-se
pensasse pela primeira vez em mim, na minha vida, mo meu amor por ela.
Conservei-me no cais, desfeita e exausta por um passado que tinha fugido, sem
presente e um futuro vazio e obscuro. Voltei para o apartamento sem m�veis, peguei
na mala (que era ainda da R�ssia), um pacote de livros e partituras, e pedi �
porteira para chamar um t�xi. Nessa altura os fiacres eram baratos em Paris; de
repente fiquei inquieta e poupada - tinha arrumado cuidadosamente todas as minhas
roupas na mala. Puseram-ma debaixo dos p�s, coloquei os livros e partituras ao meu
lado. Atravessei a cidade e pensava, n�o era poss�vel que estivesse s� no mundo, s�
sem um ser humano, sem um sonho, sem aquela qualquer coisa que permite viver entre
v�s - seres humanos, animais, coisas...
Passaram tr�s anos desde que eu assim pensava e durante este tempo quantas vezes
n�o tive eu o desejo de me esconder debaixo da terra como uma toupeira, ou de
gritar que nada est� bem, que no mundo nada est� ordenado com justi�a... Maria
Nikolaevna continuou na Am�rica.
Casou com Andr� Grigorievitch e n�o tenciona regressar para a Europa - canta em
Filad�lfia, parte todos os dois anos em tourn�e e adoram-na, principalmente na
Calif�rnia. Ela envia-me cartas, recortes de jornais (onde
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se fala dela), �s vezes dinheiro. Tenho grande necessidade de dinheiro: ganho pouco
-Toco piano num pequeno cinema situado numa rua que d� para a Porta Maillot. A
nossa orquestra � composta por tr�s pessoas: eu, o violinista, que tamb�m � o
director da orquestra, e o violoncelista, em frente do qual se encontra a bateria.
� estranho, mas foi Nersessof que me encontrou este emprego. Foi quase seis meses
ap�s a partida de Maria Nikolaevna. Pouco tempo depois morreu.
Trabalhava h� perto de um ano naquele cinema quando, sem o esperar, Mitenka chegou
a Paris vindo da R�ssia. Procurou-me para me dizer que a mam� tinha falecido e para
me entregar os seus brincos com turquesas (que n�o tinham nenhum valor).
Ela teria, creio eu, uns sessenta anos. Tinha apanhado frio quando se foi abastecer
de comida em qualquer parte. Meu Deus, aquela vida dura e estranha, meio esquecida,
ainda continua ali. L�, as pessoas vivem como formigas ou como lobos. Em certo
sentido, de maneira mais digna do que aqui...
Mitenka tinha entretanto casado, a sua mulher estava gr�vida e, n�o se sabe porqu�,
escondia-se de toda a gente. Mitenka era sempre o mesmo: fungava e arquejava,
sempre mal lavado, mas j� era c�lebre, o menino-prod�gio tinha-se transformado num
g�nio.
- Quanto a mim, toco num cinema - disse, porque senti necessidade de dizer tamb�m
qualquer coisa, n�o me contendo de o ouvir falar s� a ele.
Inclinou a cabe�a "depenada" e olhou-me com tristeza.
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- E n�o tem vergonha - disse ele falando pelo nariz. - N�o tem vergonha, Sonetchka.
- N�s que esper�vamos tanto de si.
Meu Deus, ele confundia-me com outra pessoa - nunca ningu�m tinha esperado qualquer
coisa de mim! Depois convidou-me para casa dele, para me apresentar � mulher. Esta
apareceu, confusa, com as m�os espalmadas sobre o ventre.
- C� est�- aquela Sonetchka - disse ele - de quem tanto te tenho falado (o seu
rosto n�o exprimiu nada). Antonovskaya, Sofia...
Tendo esquecido o primeiro nome de meu pai, ficou desconcertado, e eu n�o o ajudei
a sair daquele aperto; era bem verdade, tudo aquilo me era completamente
indiferente h� j� muito tempo.
Na verdade, valer� a pena algu�m sentir-se magoado pela sua pr�pria m�e l� porque
se vos cospe na cara mesmo ainda antes de se ter nascido? Tem acontecido - e mais
do que uma vez - que pessoas assim ofendidas se tenham tornado pessoas boas e
orgulhosas. O problema n�o est� no nascimento, mas sim em qualquer outra coisa.
Podem � vontade dizer-me que um garoto qualquer n�o tem o direito de pretender
alcan�ar a magnific�ncia universal, mas n�o deixarei de esperar e dizer para mim
mesma: n�o podes morrer, n�o podes ter descanso, h� ainda um ser que passeia sobre
a Terra. H� ainda uma d�vida que talvez um dia possas resgatar... se Deus existe.
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FIC��O-UNIVERSAL
T�tulos publicados
1. Gaspar, Belchior & Baltasar-Michel Tournier
2. Inf�ncia - Nathalie Sarraute
3. A Insustent�vel Leveza do Ser -Milan Kundera
4. A Obra ao Negro - Marguerite Yourcenar
5. As Infernais M�quinas de Desejo do Doutor Hoffman - Angela Carter
6. O Sangue dos Outros - Simone de Beauvoir
7. O Livro do Riso e do Esquecimento -Milan Kundera
8. Catch 22 - Joseph Hei ler
9. O Golpe de Miseric�rdia - Marguerite Yourcenar
10. O Testamento de Um Poeta Judeu Assassinado - Elie Wiesel
11. O Rei dos �lamos - Michel Tournier
12. Deserto - J. M. G. Le Cl�zio
13. � Espera dos B�rbaros - J. M. Coetzee
14. Os Filhos da Meia-Noite - Salmah Rushdie
15. O Homem Que Olha - Alberto Moravia
16. A Brincadeira -Milan Kundera
17. Um Espi�o Perfeito - John Le Carr�
18. Enciclop�dia dos Mortos - Danilo Kis
19. O Velho Gringo-Carlos Fuentes
20. A Gota de Ouro - Michel Tournier
21. A Tomada do Poder -Czeslaw Milosz
22. Hist�rias de Goldkorn - Leslie Epstein
23. O Futuro Radioso-Alexandre Zinoviev
24. O Amigo Distante - Christoph Hein
25. Hist�ria de Mayta - Mario Vargas Llosa
26. O Amor nos Tempos da C�lera - Gabriel Garc�a M�rquez
27. Doutor Fausto - Thomas Mann
28. Turista por Acidente - Anne Tyler
29. Noites no Circo - Angela Cart�r
30. Quem Matou Palomino Molero? - Mario Vargas Llosa
31. A Vergonha -Salman Rushdie
32. O Livro dos Amores Ris�veis - Milan Kundera
33. Se n�o agora, Quando? - Primo Levi
34. Washington D.C. - Gore Vidal
35. Que o Fogo Consuma Esta Casa - WHliam Styron
36. � Procura do Imperador- Roberto Pazzi
37. P�nico-Joseph Heller
38. O Conselho do Egipto - Leonardo Sciascia
39. Cem Anos de Solid�o - Gabriel Garc�a M�rquez
40. A Tia Julia e o Escrevedor - Mario Vargas Llosa
41. A Fogueira das Vaidades - Tom Wolfe
42. O Pa�s das �guas - Graham Swift
43. Cria��o -Gore Vidal
44. A Valsa do Adeus -Milan Kundera
45. Ref�gios - Lynne Alexander
46. A Convidada - Simone de Beauvoir
47. Um Capricho da Natureza - Nadine Gordimer
48. Uma Casa para Mr. Biswas-V. S. Naipaul
49. O Jogo das Contas de Vidro - Herman Hesse
Digitaliza��o e arranjo
2002-07-07