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Espiritualidades Contemporâneas, (Neo)paganismo,

Esoterismo, Nova Era

A transfiguração do ser: deusa e bruxa no imagético social

The transfiguration of being: goddess and witch in the social imagery

Jessica Freire Pereira de Aquino1


[email protected]

Resumo: Este trabalho visa de forma sistematizada apresentar ao leitor como a figura da
mulher transitou em diferentes aspectos da sociedade, através da influência religiosa. A
temática da bruxaria, no caso, elaborado com ênfase na Wicca, nos permite observar as
interferências dos agentes sociais no processo que permeia de forma densa as questões de
gênero, principalmente ao que tange às relações de poder e consequentemente as relações de
dominação entre homens e mulheres ao longo da história.A construção de uma mitologia
satânica demandou o esforço em se reconhecer o demônio tanto em suas formas quanto
atuação e nesse contexto, o sexo feminino que antes era associado à divindade passível de dar
a vida, torna-se a bruxa manipuladora da morte. Assim, busco descrever a mudança no
imagético social a partir da figura da mulher na Idade Média.
Palavras-Chave: Wicca; mulher; gênero; bruxa.

Abstract: This work systematically aims to show to the reader how the woman figure woman
transited in different aspects of society through religious influence. The theme of witchcraft,
elaborated with an emphasis on Wicca, it allows to observe the interferences of the social
agents in the process that permeates with density gender issues, especially in power relations
and consequently about the domination relations between men and women throughout the
history. The construction of a satanic mythology required an effort to recognize the devil in
forms and acting both, and in this context, the female sex that was previously associated with
the divinity that could give life, becomes the witch who is the manipulator of death. Thus, I
try to describe the change in the social imagery from the figure of the woman in the Middle
Ages
Keywords: Wicca; woman; gender; witch

1
Graduada em História pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF), graduada também em Ciência
da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atualmente mestranda em Ciência da Religião pela
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); Bolsista FAPEMIG.

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Considerações iniciais

Este artigo busca apresentar ao leitor como a figura da mulher transitou em diversos
aspectos da sociedade, através da influência religiosa.Como afirma Souza “a religiãoexerce
uma importante função de produção e reprodução de sistemas simbólicos que têm influência
direta sobre as relações sociais acerca dos homens e das mulheres, portanto, não podem ser
entendidas sem lançarmos olhar sobre ela e suas implicações na construção social desse
sujeito” (2008, p. 23).
Nesse sentido tomamos como referência a religião Wicca, que entendo permitir
perceber de forma clara essas interferências dos agentes sociais no processo muitas vezes de
dominação sobre o sexo feminino. A mulher antes vista como Deusa em uma sociedade
matriarcal, na qual sua figura era central e estabelecia um conjunto de princípios e valores
sociais de igualdade, transfigura-se com o advento do Cristianismo para um ser diabólico,
numa sociedade patriarcal, cujos valores sociais, culturais, econômicos e simbólicos se
alteram para a dominação do outro.
Surgida na Inglaterra entre 1940 e 1950, temos como marco inicial da Wicca a
publicação em 19542, do livro “A Bruxaria hoje” de Gerald Gardner (1884-1964), a religião
se divulga em todo mundo anglo-saxão, principalmente na Inglaterra e Estados Unidos, nas
décadas de 1960 e 1970, acarretando em poucos anos milhares de adeptos. Já no Brasil a
Wicca se instala a partir da onda dos Novos Movimentos Religiosos, ligados aos movimentos
de Contracultura e Nova Era na década de 1980.
Resgatando suas raízes nos primórdios da humanidade, na sintonia com a natureza e
tendo como base da religião o culto ao casal criador: Deusa e Deus, a busca deste trabalho
sobre a Wicca é permitir observar as interferências dos agentes sociais no processo que
permeia de forma densa as questões de gênero, principalmente ao que tange às relações de
poder e consequentemente as relações de dominação entre homens e mulheres ao longo da
história.

Uma construção Histórica

Ao longo de seu desenvolvimento na história, os seres humanos têm buscado


explicações sobre suas inúmeras atitudes e comportamentos. Nesse sentido, alguns
apontamentos são obtidos através de evidências arqueológicas, que nos possibilitam uma certa

2
É importante destacar que somente no ano de 1951 são abolidas todas as leis contra bruxaria na Inglaterra.

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unanimidade em dizer que as primeiras divindades cultuadas pelos seres humanos eram
deusas e não deuses (TERRIN, 1996, p. 193). Perrot (2007, p.83), em seu livro sobre a
História das Mulheres, nos apresenta a relação entre as religiões e as mulheres sempre e em
toda parte como ambivalente e paradoxal, uma vez que compreende a existência de um poder
sobre as mulheres e um poder das mulheres.
O culto ao feminino ressaltava a predominância dos valores maternos, vislumbrando na
história um período de predominância do mundo feminino sobre o masculino. Como afirma
Terrin (1996, p.194) muitos estudiosos das religiões tendem para a hipótese da religião da
deusa mãe, baseada na natureza e no sexo, como a grande religião das origens humanas na
pré-história. No entanto, esse aspecto inicial foi modificado ao longo de nossa história. As
grandes religiões monoteístas fizeram da diferença dos sexos e da desigualdade de valor entre
eles um de seus fundamentos, forçando uma hierarquia do masculino sobre o feminino como
uma ordem de uma Natureza criada por Deus (PERROT,2007, p.83).
Em decorrência do desenvolvimento dos cultos patriarcais, a adoração as deusas passam
gradativamente a permanecer em um plano secundário. Todavia, na história do Ocidente, seu
forte decréscimo decorre a partir da ascensão do Cristianismo à condição de religião do
Império Romano no século IV e sua expansão pela Europa. Nesse contexto, as tentativas
extraoficiais de controle do universo resultam, em última instância, nas práticas mágicas, que
se tornam marcas do diabólico, como afirma Nogueira “magia, feitiçaria, sortilégios,
bruxarias e outras diversas e singulares manifestações das práticas mágicas povoam o
horizonte mental europeu, imprimindo e pautando condutas e crenças” (2004, p.9).
Em um contexto de perseguição religiosa no período medieval, acirrado pela inquisição,
ser mulher se torna algo cada vez mais perigoso. A onda de repressão se espalha, a construção
de uma mitologia satânica demandou um esforço em se reconhecer o demônio, tanto em suas
formas quanto atuação e, nesse momento, o culto ao feminino torna-se algo ligado ao
demoníaco. Desta maneira a figura da bruxa torna-se quase que exclusivamente a figura
feminina, de uma mulher diabólica que se utilizava de forças maléficas.

[...]O diabo cuja existência foi estabelecida e cuja teologia foi desenvolvida pelo
Concílio de Latrão. A feiticeira é filha e irmã do diabo. Ela é o diabo, seu olhar
mata: ela tem mau-olhado. Tem pretensão ao saber. Desafia todos os poderes: o do
sacerdote, dos soberanos, dos homens, da razão (PERROT, 2007, p. 90).

Nesse contexto de demonização e perseguiçãoque marca a ascensão do Cristianismo


na Europa, a magia - feitiçaria, bruxaria ou outra denominação que as práticas mágicas
possam receber - se manteve nas sombras.

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Todavia, diante de um contexto histórico propício já no século XX, ela se reelabora,
sendo denominada Wicca, nome dado à Bruxaria Moderna, no entanto, suas raízes encontram-
se em tempos longínquos como a definição apresentada por Lígia Lima (2005, p.11) nos
possibilita observar:

A palavra Wicca deriva do vocábulo inglês witchcraft e conceitua-se como uma


referência contemporânea às antigas religiões matrifocais e matrilineares baseadas
em cultos e ritos pagãos presentes no final do período Paleolítico e início do
Neolítico. Conhecida também como A Arte ou A Velha Religião, costuma ser
popularmente chamada de Bruxaria, enquanto seus participantes, os witches ou
wiccans, são designados bruxos e bruxas. Wicca, que tem a mesma origem que
witch- vem do inglês arcaico wicce, com raiz na saxônia wic, que se refere sempre à
religião e magia.

A arqueologia nos mostra, através de escavações e achados de pinturas rupestres


datadas do período pré-histórico conhecido como paleolítico, a existência de uma forma
primitiva de culto ao feminino, estatuetas de mulheres como as Vênus primitivas, são formas
dessa representação. Acredita-se que o respeito e o culto ao feminino se davam por alguns
fatores específicos, entre eles temos a manutenção do sustento da tribo, uma vez que, a
mulher era a responsável pela coleta de frutos e plantas comestíveis, além disso, entendia-se
que as mulheres eram seres muito poderosos que sangravam por dias e não morriam e por fim
é delas a fonte de gerar filhos.
Como afirma Prieto (2005, p.15) a Antiga Religião europeia baseia-se na Terra e em
suas manifestações, nos tempos em que povos primitivos cultuavam a Deusa Mãe como
grande criadora, que é responsável por nutrir e sustentar a vida.

Uma deusa única e de um deus único de múltiplas faces, a ela subordinados, como
uma espécie de “religião primordial” com raízes no paleolítico, e de toda uma série
de rituais daí derivados [...] A ideia central de Frazer era a de que as antigas religiões
eram cultos de fertilidade, baseados no culto de uma deusa da natureza e seu
consorte, um rei-sagrado. O matrimônio entre a deusa e o rei-sagrado e o posterior
sacrifício e renascimento deste, segundo Frazer, seria um mito central em
praticamente todas as religiões (DUARTE, 2008, p. 42-43).

Contudo o contexto social se modifica, acarretando também uma mudança nas


relações, segundo Muraro (2000, p.31) no momento em que a fartura da floresta diminui e a
necessidade da caça se torna a forma fundamental da sobrevivência e que através do aumento
populacional nos diversos grupos com a disputa de territórios se torna crescente, a hegemonia
da força física do homem prevalece sobre a mulher. “A relação homem-mulher- natureza não

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é mais de integração, e sim de dominação. O desejo dominante agora é do homem” (2000,
p.66), ou como afirma Saffioti (2004, p.94) a ordem patriarcalde gênero é demasiadamente
forte, atravessando todas as instituições, e as relações sociais nesse sentido é uma delas.

A bruxaria Wicca e a dualidade dos deuses

A Wicca é constitutivamente uma religião baseada na dualidade, que reflete o


equilíbrio entre o feminino e o masculino, a Deusa é considerada a doadora da vida, enquanto
o Deus é o seu fertilizador, como afirma Duarte (2017, p.130), “a Wicca não foi sistematizada
originalmente como uma religião que privilegiasse os aspectos do feminino, ou que tivesse
uma divindade central feminina. Ao contrário [...] dá impressão de valorizar o equilíbrio entre
aspectos femininos e masculinos da divindade”.

A Deusa é a primeira em toda a Terra, o mistério, a mãe que alimenta e que dá toda
vida. Ela é o poder da fertilidade e geração; o útero e também a sepultura que recebe
o poder da morte. Tudo vem dela, tudo deve retornar para ela. Sendo terra, também é
a vida vegetal; as árvores, as ervas e os grãos que sustentam a vida. Ela é o corpo e
corpo é sagrado. Útero, seios, barriga, boca, vagina, pênis, osso e sangue; nenhuma
parte do corpo é impura, nenhum aspecto dos processos vitais é maculado por
qualquer conceito de pecado. Nascimento, morte e decadência são partes igualmente
sagradas do ciclo (STARHAWK, 2010, p.145).

Por ser a Grande Mãe ela criou tudo, até mesmo o Deus Cornífero, que passa a ser o
seu consorte, entretanto, é também seu filho, a Deusa é eterna e se expressa de forma Tríplice
representando diferentes estágios da vida da mulher- a Donzela, a Mãe e a Anciã- e as Luas-
Crescente, Cheia e Minguante. Como afirma Prieto (2005, p.30) “essas são consideradas as
três faces da Deusa que atribuem a Ela o nome de deusa Tripla do Círculo do Renascimento,
aquela que mostra sua face de Donzela na fase crescente, torna-se mãe na lua cheia e sábia
Anciã na minguante”. Já o Deus tem uma natureza cíclica:

Seu deus patrono é o Deus Cornífero da caça, da morte e da magia, que


assemelhando-se ao Osíris egípcio, reina no Além-Mundo[...], de onde ele dá boas-
vindas aos mortos e designa os seus lugares, onde serão preparados , de acordo com
seus méritos e sabedoria, para renascer em novo corpo nesta terra, através do amor e
poder da Deusa, a Grande Mãe que é também a Virgem Eterna e a Feiticeira
Primordial [...] Elas acreditam que o Deus e a Deusa ajudam a realizar a sua magia,
assim como elas os ajudam conferindo-lhes poder por meio de suas danças e outros
métodos. Na verdade, elas aparecem considerar seus deuses mais como poderosos
amigos do que como divindades a serem adoradas (GARDNER, 2004, p. 25).

Para a realização do contato com os deuses os praticantes da Wicca, que podem ser
chamados de wiccanos, wiccanianos ou bruxos, buscam se conectar com a terra, com os ciclos
lunares, as estações de ano, enfim, através de celebrações de ritos as cerimônias, os feitiços,

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as meditações e as festividades são realizadas em detrimento das forças naturais dos deuses
para pedirem saúde, paz, harmonia, sucesso e prosperidade.
Todavia, devemos ressaltar que a partir da chegada do Cristianismo na Europa,
juntamente com todas as proibições que se seguiram, a imagem do Deus Cornífero foi
transformado na figura do Demônio, os chifres que ornam o Deus não aludem ao Diabo, uma
vez que, essa figura não faz parte da crença Wicca, além da própria imagem do Deus a figura
da mulher também se transforma e passa a ser entendida como o ser diabólico, a figura da
bruxa medieval.

O ser diabólico: a bruxa na Idade Média

A construção de uma mitologia satânica demandou um esforço em se reconhecer o


demônio tanto em suas formas quanto atuação e, nesse momento, o culto ao feminino torna-se
algo ligado ao demoníaco. Desta maneira a figura da bruxa torna-se quase que exclusivamente
a figura feminina, de uma mulher diabólica que se utilizava de forças maléficas.

[...] elas têm contato com o diabo. O diabo cuja existência foi estabelecida e cuja
teologia foi desenvolvida pelo Concílio de Latrão. A feiticeira é filha e irmã do
diabo. Ela é o diabo, seu olhar mata: ela tem mau-olhado. Tem pretensão ao saber.
Desafia todos os poderes: o do sacerdote, dos soberanos, dos homens, da razão
(PERROT, 2007, p. 90).

No entanto, é no século XIII que a Igreja Católica através da criação da Inquisição ou


Tribunal do Santo Ofício intensifica sua perseguição aos hereges e todos aqueles que
possuíam crenças diferentes das estabelecidas pela doutrina oficial da Igreja

[...] foi a Inquisição, não as próprias bruxas, que inventou a bruxaria. Em outras
palavras, todas as histórias de assembleias de bruxas, práticas satanistas, orgias e
crimes eram consideradas como criações imaginárias de pessoas neuróticas ou
declarações obtidas dos acusados nos tribunais, especialmente através de torturas.
Realmente esse foi um expediente usado na caça às bruxas nos séculos 15,16 e 17.
Contudo sabemos que a bruxaria não foi inventada pela inquisição. À Inquisição
coube simplesmente associar a bruxaria com as heresias e, consequentemente,
procurar exterminar as chamadas bruxas com o mesmo rigor com os que se
perseguiam os hereges (ELIADE, 1979 p. 59).

Podemos ainda observar a atuação da Igreja sobre as bruxas no trecho seguinte:

A necessidade de controlar com maior atenção as práticas mágicas leva os homens


da Igreja a visualizar nestas a evidência direta da presença do inimigo [...] Do
combate ao paganismo, e a todas as práticas a este vinculadas, os teólogos
procuraram delimitar o campo de ação e os efeitos da magia, colocando-a em

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oposição à religião como pura manifestação do Mal e contando com a intervenção
expressa de uma “divindade” maléfica: o Diabo. É nesta perspectiva que Santo
Tomás de Aquino considerava a superstição- e dentro das superstições incluiu o que
é denominado como práticas mágicas- como “um pecado por excesso, oposto ao
defeito da irreligiosidade e contrário à virtude da religião” (NOGUEIRA, 2004,
p.30/31).

Nogueira (2004) ainda faz uma análise sobre a história da bruxaria e cita Johan
Weyer que “pedia piedade para as acusadas de bruxaria, baseando na natureza inferior do
sexo feminino (p.176)”. Devemos considerar que desde a mais remota antiguidade as
mulheres eram as curadoras populares, parteiras, enfim, elas eram as pessoas no meio social
que possuíam o conhecimento sobre a vida e a morte, conhecimento este transmitido de
geração para geração, o conhecimento sobre a natureza permitia o cultivo de ervas, o que
muitas vezes era decisivo para devolver ou não a vida ao indivíduo, desta forma qualificar a
mulher como um ser diabólico por ser detentora de tal conhecimento, se torna um meio de
justificar as ações em nome da Igreja.

A contracultura e as questões de gênero na Wicca

No contexto mundialvivemos um cenário pós-tradicional que aponta para o declínio da


tradição.Não há mais o “véu sagrado” que predetermina respostas, papéis e identidades de
indivíduos e grupos no todo social, a religião, por consequência, torna-se assunto
crescentemente subordinado ao espaço da subjetividade. Não ocorre apenas o recuo da
religião para a esfera privada, mas também a transferência do sagrado de uma fonte externa
para o si mesmo.
O movimento de Contestação Contracultural dos anos de 1960, afeta de forma
profunda a religião, propondo um repúdio as ortodoxias totalistas e pautando-se numa nova
consciência em relação aos fins da vida “a contracultura, tanto em sua vertente política como
na alternativa e espiritualista, pautava-se por uma aguda oposição ao ethosamericano
dominante do instrumentalismo utilitário” (D’ANDREAS, 2000, p.45).
É nesse solo fértil impregnado pela Nova Era e os movimentos de Contracultura que a
Wicca consegue permear e se enraizar chegando até o Brasil na década de 1980,
principalmente através do mercado editorial de livros esotéricos e de feiras místicas
(BEZERRA, 2012). A religiosidade Nova Era foi definida como “religiosidade do Eu”, que se
refere tanto à falta de mediação entre sujeito e divindade quanto ao fato de que o Eu é o locus
da divindade. Os adeptos das práticas da Nova Era, buscam alcançar a elevação espiritual e

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bem-estar, independente das crenças ou grupos religiosos, e possuem um olhar crítico em
relação às religiões institucionalizadas, como o catolicismo (Amaral, 2000).
É possível perceber que a temática da bruxaria, no caso elaborado com ênfase na
Wicca é permeada de forma densa pelas questões de gênero, no que se refere às relações de
poder e principalmente pelas relações de dominação entre homens e mulheres ao longo da
história. Desta maneira, percebemos como afirma Woodhead “a importância do poder no
quadro do estudo da religião na sociedade, lembrando que a religião e o gênero estão ambos,
no centro das distribuições desiguais do poder e que sua interação tem como efeito e como
objetivo fortalecer as relações de força existentes ou transformá-las” (2013, p. 96).
Nesse sentido, entendo que a necessidade primordial se baseia na compreensão da
definição de gênero, para consenso neste trabalho será adotado o conceito de Saffioti “o
gênero é a construção social do masculino e do feminino” (2004 p. 45). Diante disso,
compreender essa relação entre religião e poder, pertinente às condições de gênero, possibilita
o entendimento ao se ter uma sociedade hierárquica e dominada por homens, que nesse
sentido esperam sacralizar o poder masculino.
Por ser uma religião que facilmente se adapta ao campo religioso onde se instaura, sua
articulação parece conviver bem com o pluralismo moderno e suas atitudes permeiam ambos
os campos do encantamento e da secularização como afirma Silva (2017, p. 14).
Todavia, a Wicca se mostra como umas possibilidades de compreensão dessas mudanças de
relações, uma vez que, por ocupar uma posição de certa forma marginalizada e pertencente a
um movimento contracultural que contesta a dominação masculina e tudo que a ela é atrelada,
permite aos seus praticantes utilizá-la como dispositivo de contestação, perturbação ou
mesmo uma nova divisão de poder condicionadas as relações de sexo.
Osório (2004) explicita essa relação de tal maneira “neste ambiente, a mulher tem a
oportunidade de compor uma identidade de gênero pautada em atribuições tradicionais, ao
mesmo tempo em que modifica o valor dado a elas, segundo discursos feministas subjacentes
à prática wiccana”. Frente ao novo contexto social e as novas questões que permeiam as
relações religiosas, é notório que a Wicca, Tradição, Antiga Religião ou Religião da Deusa,
como pode ser chamada, se tornou uma opção para a valorização do feminino e mesmo a
busca pela igualdade de direitos, nesse sentido a religião busca o papel de contribuir para o
equilíbrio nas relações de poder entre homens e mulheres, uma vez que, na relação de poder a
mulher já compôs tanto a face demoníaca como de sacralidade na história da religião.

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Considerações finais

A figura antes vista como Deusa em uma sociedade matriarcal, na qual sua figura era
central e estabelecia um conjunto de princípios e valores sociais de igualdade, transfigura-se
com o advento do Cristianismo no período da Idade Média para um ser diabólico, numa
sociedade patriarcal, cujos valores sociais, culturais, econômicos e simbólicos se alteram para
a dominação do outro. Desta forma o sexo feminino que antes era associado à divindade
passível de dar a vida, torna-se a bruxa, responsável pelo mal e manipuladora da morte, já que
possui conhecimentos sobre a natureza e manipulação de elementos dos quais a Igreja
Católica considera mágicos.
No entanto, após séculos mantida como segredo e restrito ao espaço privado como
forma de se manter, a Wicca se reelabora na Inglaterra na década de 1950 através das
iniciativas de Gardner. Como mecanismo em processo, constituído por sujeitos históricos as
práticas da Wicca encontram solo fértil no contexto da contracultura, momento em que
retomou e se problematizou questões da sexualidade, mas desta vez considerando questões
sociais como a libertação da mulher e também os direitos civis dos homossexuais.
Nesse sentido uma sociedade de estruturas capitalista, cristã e patriarcal, já não
corresponde aos anseios de uma sociedade diversa e plural. Sendo assim, frente a esse novo
contexto histórico, a Wicca se torna uma possibilidade de valorização não só da figura da
mulher, mas de todos que buscam liberdade não só no universo sexual, mas principalmente
religioso.
Para Osório (2004), “nesse ambiente, a mulher tem a oportunidade de compor uma
identidade de gênero pautada em atribuições tradicionais, ao mesmo tempo que modifica o
valor dado a elas, segundo discursos feministas subjacentes à prática wiccana”. Através das
observações aqui apresentadas pelo trabalho de Osório fica claro como a representação de
gênero é fundamental no âmbito religioso “ser homem e ser mulher no grupo religioso
indicam possibilidades fadadas única e exclusivamente ao gênero, que podem representar
ganho ou perda social para os sujeitos (LEMOS, 2008, p.11)”.
Discutir religião é também discutir sistemas de sentido, transformações sociais,
relações de poder, trocas simbólicas entre outros incontáveis pontos. Como ficou claro no
fragmento acima citado “os discursos e práticas religiosas têm a função de estruturar a
masculinidade, dando ao homem a semelhança eterna com a divindade, desde que se exerça a
masculinidade imposta pela religião (LEMOS, 2008, p. 4)”.

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Diante disso, compreender essa relação entre religião e poder, pertinente às condições
de gênero, possibilita o entendimento ao se ter uma sociedade hierárquica e dominada por
homens, afinal o mundo social funciona como um mercado de ‘bens simbólicos’ dominados
pela visão masculina, como explicita Bourdieu ( 2005, p.118) “ Ser, quando se trata de
mulheres, é ser percebido pelo olhar masculino, ou por um olhar marcado pelas categorias
masculinas”.
Por fim, entendo que a Wicca possibilita a clareza, o respeito e a consciência sobre os
diferentes papéis dentro das relações de gênero, permitindo que muitas mulheres fortaleçam
suas posições pessoais, e a própria experiência de valorização de si mesmas diante do
conhecimento da tradição e práticas wiccanas, principalmente no momento em que o culto a
Deusa e o Deus, representam o sentido de igualdade na religião.

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“Conversando com Divaldo Franco”: o (não) dito no discurso do líder
espírita

“Conversando com Divaldo Franco”: the (not) said in the discourse of the spiritist leader

Ricardo Rodrigues de Assis3


[email protected]

Resumo: Este artigo é um recorte da dissertação de mestrado “Análise de Discurso Religioso:


estratégias discursivas acionadas por líderes religiosos em programas de TV” (ASSIS, 2018),
desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de
Juiz de Fora. O objetivo é apresentar os preceitos ideológicos que “atravessam” os discursos
do líder espírita Divaldo Franco, identificados num corpus de três edições em sequência do
programa televisivo religioso “Conversando com Divaldo Franco”. Os axiomas que
perpassam o universo espírita foram considerados numa contraposição às vozes destoantes
daquelas convencionalmente propagadas que, porventura, emergiramnos enunciados do líder-
apresentador. Para análise dos episódios selecionados foi usado o escopo teórico-
metodológico da Análise de Discurso Francesa.
Palavras-chave: Religião; Mídia; Espiritismo; Análise de Discurso

Abstract: This article is a cross-section of the Master's thesis "Religious Discourse Analysis:
discursive strategies driven by religious leaders in TV programs" (ASSIS, 2018), developed in
the Graduate Program in Communication of the Universidade Federal de Juiz de Fora. The
objective of this article is to present the ideological precepts that "cross" the discourses of the
spiritist leader Divaldo Franco, identified in a corpus of three editions in sequence of the
religious program "Conversando com Divaldo Franco". The axioms that permeate the Spiritist
universe were considered in opposition to the dissonant voices of those conventionally
propagated that perhaps emerged in the statements of the presenter-leader. For the analysis of
the selected episodes the theoretical-methodological scope of the French Discourse Analysis
was used.
Keywords: Religion; Media; Spiritism; Discourse Analysis

Espiritismo no Brasil

De acordo com o Censo Demográfico de 2010, realizado pelo IBGE, o espiritismo


ou doutrina espírita é a religião que majoritariamente agrega fiéis com maior escolaridade e
renda. O termo provavelmente foi introduzido no Brasil pelos seguidores da doutrina
codificada pelo pedagogo e educador francês Hippolyte Léon DenizardRivail, mais conhecido
pelo pseudônimo de Allan Kardec, a quem é atribuída e sistematização do espiritismo (Lang,
2008).

3
Mestre em Comunicação Pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação (Ppgcom) da Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF); Especialista em Ciência da Religião pelo Programa de Pós-graduação em
Ciência da Religião da UFJF.

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Segundo Prandi (1998), o espiritismo é marcado pela pretensão de associar fé e
ciência e, ao aportar no Brasil na segunda metade do século XIX, adquiriu novos contornos,
notadamente no que tange à religiosidade de cura e a questões inerentes aos elementos da
natureza, características tipicamente constituintes da formação religiosa brasileira. Ao
apresentar em sua base a caridade e a crença na reencarnação como um dos meios de se
alcançar progresso espiritual, iniciou-se um movimento sincrético que aproximou alguns de
seus preceitos ao do candomblé, originando desse contato, grosso modo, a Umbanda, ainda na
década de 1920.
Para Prandi (1998), o espiritismo é uma doutrina que busca unir Filosofia, Ciência
e Religião, numa tentativa de aproximar esses três conceitos, uma vez que não os concebe
como excludentes, ao contrário, entende a Filosofia como parte da estrutura conceitual e
normativa, a Ciência, como norteadora do pensamento racional e positivista e a Religião,
como práxis cristã voltada ao transcendental. Além disso, apresenta como princípios a
imortalidade da alma, a pluralidade das existências e dos mundos habitados e a
comunicabilidade entre os espíritos, alicerçados pelo chamado “Pentateuco Espírita”4, ou, as
cinco obras básicas da doutrina espírita, quais sejam, “O Livro dos Espíritos”, “O Evangelho
Segundo o Espiritismo”, “O Céu e o Inferno”, “A Gênese” e “O Livro dos Médiuns”.
Os encontros dos fiéis acontecem nos Centros Espíritas, locais de reuniões
abertas ao público, de caráter doutrinário, além das reuniões mediúnicas, popularmente
conhecidas por “sessões espíritas”, de caráter reservado. Geralmente os Centros, como são
mais conhecidos, constituem-se, além de salas para reuniões privadas, de auditórios para as
palestras, onde também são promovidos, dentre outros, estudos de obras espíritas e cursos
voltados à assistência social.
Nesses espaços não se encontram referências simbólicas religiosas, como
comumente verifica-se em templos católicos ou evangélicos (cruzes, velas, santos). O único
elemento constitutivamente simbólico no espiritismo é a água, que teria a capacidade física de
reter fluidos benéficos para o fiel, a chamada “água fluidificada”, mas que não é
exclusivamente utilizada por espíritas, uma vez que está presente também entre os
neopentecostais, principalmente depois do surgimento dos programas desse segmento na TV.
Cabe mencionar que a água é componente representativo de quase todas as denominações
4
Referência ao termo “Pentateuco”, palavra de origem grega que significa "os cinco rolos", composto pelos cinco
primeiros livros da Bíblia (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio). Entre os judeus é chamado
de Torá, uma palavra da língua hebraica com significado associado ao ensinamento, instrução, lei. Éuma
referência à primeira parte do Tanakh, os primeiros cinco livros da Bíblia Hebraica, cuja autoria é atribuída
a Moisés.

Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p. 1177-1265, jul-dez/2018. III CONACIR 1190


cristãs, no entanto, numa acepção mais voltada à purificação e renovação, como no batismo e
rituais fúnebres e não como reparadora de energias físicas e psíquicas (cura).
Dados aferidos pelo IBGE apontam que, entre 1940 e 1950, a religião mais que
dobrou em números de adeptos. Para aquela década, o crescimento populacional chegou a
26%, os católicos aumentaram em 24%, os protestantes, 62%, e os espíritas, 78%. Para Stoll
(2003), o fato pode ser entendido pelo crescimento, no mesmo período, do mercado editorial
espírita no país e pela consolidação de Francisco Cândido Xavier, conhecido por “Chico
Xavier”, como o maior expoente dessa vertente religiosa no Brasil.
Em 1971, o líder espírita participou do programa de entrevistas “Pinga-Fogo”,
exibido pela TV Tupi. É possível perceber o alcance da televisão como divulgadora
ideológica, pois essa primeira aparição de Chico Xavier na televisãoé considerada o marco
divisor da popularização do Espiritismo no país, atestandoo alto teor de espetacularização
desse veículo. A partir desse episódio, percebe-se a participação de lideranças espíritas em
programas de televisão, especialmente para discorrerem sobre assuntos de cunho delicado ou
trágico, tratados pela televisão de forma espetacular ou sobrenatural.
O orador Divaldo Pereira Franco, após a morte de Chico Xavier em 2002,
naturalmente assumiu um papel de destaque no cenário espírita, mesmo já contando com
grande visibilidade desde 1952, quando fundou a “Mansão do Caminho”5 em Salvador,
Bahia. Servidor público aposentado, Divaldo Franco tem 90 anos e já divulgou o Espiritismo
em palestras e conferências em mais de 50 países. Geralmente trajando terno ou roupas
formais, o orador conduziu o programa “Conversando com Divaldo Franco”, originalmente
produzido pela TV Mundo Maior e veiculado durante anos em canais de TV abertos, como
Rede TV e TV Gazeta. Em 2008, o programa encerrou suas atividades e a TV Mundo Maior,
hoje detentora dos diretos de imagem e divulgação, continua transmitindo o material
audiovisual que possui gravado em acervo.

“Conversando com Divaldo Franco”

O programa “Conversando com Divaldo Franco” se apresenta no formato de


entrevista, basicamente no estilo pergunta e resposta, mantendo tom de conversa informal
como o próprio nome do programa sugere. Essa percepção pode ser reforçada pela estrutura

5
Complexo filantrópico que atende a cerca de três mil crianças e jovens carentes em um dos bairros periféricos
mais carentes de Salvador. Tem 83mil m² e 43 edificações. A obra é basicamente mantida com a venda de livros
mediúnicos, fitas e DVDs gravados nas palestras.

Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p. 1177-1265, jul-dez/2018. III CONACIR 1191


do cenário, composto de duas poltronas quase de frente uma para outra, de modo que a
apresentadora e o líder religioso se olhem diretamente e também estejam enquadrados pelas
câmeras. Ao fundo, uma imagem de ondas do mar quebrando em uma praia, bastante clara e
em tonalidade verde, sugere um clima de tranquilidade e paz. “Conversando com Divaldo
Franco” guarda as particularidades técnicas de não contar com plateia, uma vez que foi
formatado apenas para transmissão pela TV, além de ser o único dentre os programas
analisados não transmitidos ao vivo.
O programa aborda temas gerais cotidianos como pano de fundo para explanações
doutrinárias, abrindo espaço para participação popular por meio de perguntas direcionadas ao
líder espírita, gravadas em ambiente externo. Divaldo Pereira Franco utiliza vocabulário
rebuscado, como palavras pouco usuais, e variedade linguística formal, com composições
frasais complexas, divergindo do que sugerem os manuais de redação para TV que
compreendem o texto coloquial como o mais adequado para a televisão. Para Paternostro
(2013), a comunicação através da televisão deve buscar atingir o telespectador por meio de
linguagem coloquial, concisa e de fácil interpretação. “A busca do texto coloquial consiste em
se encontrar um texto de entendimento comum para a mensagem que será transmitida”
(Paternostro, 2013, p. 95).
Outra característica apresentada por Divaldo Franco nos programas analisados é o
uso sistemático de referências a passagens históricas e a apresentação de dados de pesquisas
científicas que parecem ser usados para legitimar seu discurso, além de torná-lo erudito.

“[...] desde a eclosão dos direitos humanos à Revolução Francesa em 1791 que o
quadro vem sendo revertido. Ainda existem hoje na Terra 800 milhões de indivíduos
condenados à morte pela fome, segundo dados da FAO (Organização Mundial de
Alimentos).”

“[...] um Deus antropomórfico, o Deus de Israel, o Deus dos exércitos, o Deus que
criava e se arrependia, portanto um Deus humanoide. Allan Kardec, que era um
filólogo e profundo conhecedor da língua Francesa, interroga com perfeição:
‘Qu'est-ce que Dieu?’, que é Deus?” (Programa 1)

“Pode parecer uma resposta simplista, mas se nós observarmos as fotografias do


telescópio Hubble, que nos dá notícias de galáxias, que são absorvidas pelos buracos
negros e de poeira cósmica que se transforma em novas galáxias, poderemos
perguntar que/quem as fez. Neste universo em que nós temos duzentos bilhões de
galáxias e, em nossa galáxia temos aproximadamente cem milhões de sóis, nós
temos que convir que há uma causalidade absoluta de uma inteligência suprema:
Deus.” (Programa 2)

“É a célebre frase da doutora Montessori, autora de ‘A Casa dei Bambini’, em


Roma, quando a mulher lhe perguntou como deveria educar o seu filho e ela
perguntou: ‘e que idade tem seu filho?’” (Programa 3)

“Eu li um conto anedotário” (Programa 3)

Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p. 1177-1265, jul-dez/2018. III CONACIR 1192


“[...] lembro
lembro-me
me de que Pestalozzi, o notável pedagogo suíço, quando chegava um
aluno novo, Cláudia, ele ajoelhava
ajoelhava-sese para receber o aluno novo e então eu me
perguntava: ‘Mas o que Pestalozzi estava querendo dizer?’ (Programa 3)

Apresentado em cenário simples e sem plateia, “Conversando com Divaldo


Franco” destoa dos demais
is programas em análise, pois o líder religioso está sentado em
interação com a apresentadora e com o telespectador, ao olhar para a câmera situada atrás dela
para respondê-la.
la. O processo de comunicação cinésico (gestual) de Divaldo Franco se
apresenta contido,
tido, limitado, nas três edições dos programas analisadose a mesma discrição e
aparente tranquilidade parecem se aplicar ao processo entonacional, pois não há variação.
Uma câmera com teleprompter se encontra exatamente atrás da apresentadora e do líder
espírita
pírita para acompanhamento de leituras. Na parte frontal do cenário, numa posição mediana
entre os dois personagens, há uma terceira câmera que registra o ambiente cênico numa visão
mais ampliada.
Em “Conversando com Divaldo Franco”, nota
nota-se
se alternância entre
e plano geral e
plano americano, o que aponta para o núcleo da cena, ou seja, a figura do orador. Esses
enquadramentos mantêm proximidade em relação à audiência, com a qual Divaldo Franco
busca cumplicidade por meio do que diz, ao mesmo tempo em que per
permitem que o
telespectador-fiel
fiel se sinta parte do diálogo.Na movimentação de câmera não se verifica a
presença de zoom e travelling e os efeitos óticos se restringem a cortes secos.

Figura 1 - Posicionamento de câmeras


Fonte: https://jesuscaminhodaluz.blogspot.com.br/2013/04/

Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 15, n. 22, p. 1177-1265, jul-dez/2018.. III CONACIR 1193
Figura 2 - Plano Geral Divaldo e entrevistadora
Fonte: Frame do programa “Conversando com Divaldo Franco” (Programa 1)

Figura 3 - Plano Americano Divaldo


Fonte: Frame do programa “Conversando com Divaldo Franco” (Programa 1)

Cada uma das três edições do programa possui a mesma estrutura: vinheta de
abertura do programa (20 segundos, contendo imagens da Mansão do Caminho com música
tocada em piano em BG6); no primeiro bloco, uma pergunta e uma resposta; entra off7; uma
pergunta e uma resposta; vinheta para chamada do segundo bloco; vinheta abertura segundo
bloco; povo fala; duas perguntas e duas respostas; vinheta para chamada do terceiro bloco;
uma pergunta e uma resposta; considerações de Divaldo Franco sobre o tema abordado e
fechamento do programa com vinhetas. Os offs trazem informações adicionais ao tema, como
dados estatísticos e citações de estudiosos, filósofos e outras personalidades, com
aproximadamente três minutos e meio.

6
Abreviatura do inglês background (“fundo”). Música, voz ou efeito sonoro inserido simultaneamente à fala e
que vai ao ar num volume mais baixo. Dá suporte à transmissão e não deve prejudicar a clareza da fala.
7
Texto narrado por um repórter cuja locução é coberta por imagens.

Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p. 1177-1265, jul-dez/2018. III CONACIR 1194


O Discurso

Normalmente se associa a palavra “discurso” aos enunciados solenes, emitidos em


ocasiões especiais. Há quem também remeta essa palavra aos pronunciamentos políticos ou ao
ato de fala de pessoas inconsequentes, descomprometidas com a realidade (“tudo não passa de
um discurso”, por exemplo) ou utilize-a para designar um uso restrito e remissivo da língua
aos domínios específicos de alguma área, como “o discurso científico”, “o discurso
acadêmico”, “o discurso político”, “o discurso religioso”, dentre outros.
A noção de discurso se mostra imprescindível para a compreensão da AD, afinal,
ao tratar a materialidade da linguagem em seus múltiplos desdobramentos, o “como se diz” é
o fio condutor da compreensão dos sentidos (Indursky, 2013). A imagem e o som,
componentes intrínsecos da televisão enquanto mídia massiva, são imprescindíveis de análise,
já que o artigobusca os mecanismos discursivos constituintes de uma materialidade formada
por elementos que extrapolam o verbal. Mais a fundo, serão considerados a composição
cênica, a movimentação de câmera, os gestos, a voz, a vestimenta, a variedade linguística.
Juntos, esses elementos contribuíram para a análise de uma materialidade discursiva que não
se esgotou na análise verbal, muito menos na não-verbal e, por isso, filiam-se à AD de Escola
Francesa.
Discurso, portanto, “etimologicamente tem em si a ideia de curso, de percurso, de
percorrer por, de movimento. O discurso é, assim, palavra em movimento, prática de
linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando” (ORLANDI, 2015, p.13).
O discurso, que também é objeto de outras ciências sociais e humanas, adota uma
configuração diferenciada no campo da AD. Por ser uma disciplina da Linguística,concentra-
se, necessariamente, na materialidade da linguagem. Nessa dinâmica, a AD busca o
entendimento da língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico e parte do esforço de
entendimento social, formador do homem e da história que o representa. Para Orlandi (2015),
deve-se primeiramente perceber o sistema não abstrato da AD, a língua viva, com maneiras de
significar, com homens falando e considerando a produção de sentidos como parte integrante
de suas vidas, seja enquanto sujeitos, seja enquanto membros de uma determinada forma de
organização em sociedade, como a religião.

Em consequência, não se trabalha, como na Linguística, com a língua fechada nela


mesma, mas com o discurso, que é um objeto sócio-histórico em que o linguístico
intervém como pressuposto. Nem se trabalha, por outro lado com a história e a
sociedade como se elas fossem independentes do fato de que elas significam
(ORLANDI, 2015, p.14).

Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p. 1177-1265, jul-dez/2018. III CONACIR 1195


Para a autora, depois do surgimento da AD, nos anos 1960, em um contexto social
marcado pelas rupturas inerentes à Linguística e pelo deslocamento na forma em que os
intelectuais passaram a encarar a “leitura” (Orlandi, 2005). A partir dos trabalhos de
Althusser, Lacan e Foucault, não era mais possível considerar o sentido apenas como
conteúdo, o que permite à AD não visar “[a] o que o texto quer dizer (posição tradicional da
análise de conteúdo face a um texto), mas como um texto funciona” (Orlandi, 2005, p. 20).
Isso posto, faz-se necessário explicitar alguns conceitos que abrangem o corpus
deste artigo, tendo em vista a vasta quantidade de termos possíveis de ser utilizados em
diferentes perspectivas. Não se pretende demonstrar um histórico de todos os trabalhos que
teorizam a AD, visto que serão recortados princípios, noções e conceitos que irão compor o
quadro teórico de referência para proceder à análise do corpus ora proposto.
Importante apontar a noção de formação discursiva (FD), em torno da qual se
organizam as demais noções necessárias à composição do referencial teórico. Assim,
conforme Pêcheux (2008), o sentido não existe em si, mas sim determinado pelas posições
ideológicas questionadas nos processos sociais e históricos em que as palavras são
produzidas, apresentando outros sentidos de acordo com as posições (sociais, culturais,
históricas) de quem as emprega. A despeito desse caráter relacional ao qual estão submetidos
a palavra e o sentido, ou seja, em relação às formações ideológicas nas quais essas posições se
inscrevem, “a formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada
(a partir de uma posição) em conjunto com uma conjuntura sócio-histórica, determina o que
pode e deve ser dito” (ORLANDI, 2015, p. 41).
Nessa perspectiva, verifica-se que as FDs podem se apresentar diferentes no
discurso, pois os sentidos se mostram igualmente diversificados, perfazendo a discursividade
e assumindo, dessa forma, outras posições, haja vista a fluidez e a permeabilidade
caraterísticas dessas formações.
Cabe observar a noção de condição de produção de um sentido inserido em uma
discursividade, o que, segundo Charaudeau (2006), compreenderia os sujeitos, as situações e a
memória. A condição de produção de sentido leva à circunstância da enunciação, ou seja, o
“contexto imediato”. Já o chamado “sentido amplo” estaria ligado às produções de sentido
que envolvem o contexto ideológico e sócio-histórico. Exemplificando, o contexto imediato
seria o espaço religioso que servira de cenário para os programas veiculados pela televisão, a
movimentação de câmera, as pregações religiosas de cada um dos líderes religiosos colocados
sob investigação, as vestimentas, o tom de voz e o seu gestual. O contexto amplo seria o que

Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p. 1177-1265, jul-dez/2018. III CONACIR 1196


permite trazer à tona os efeitos de sentido, como a autoridade presente nas lideranças
religiosas, o que confere a tomada do lugar de fala e os mecanismos por meio dos quais os
discursos religiosos proferidos acionariam determinados sentidos em detrimento de outros.
Segundo Courtine (1981), o enunciado consistiria, então, em um esquema,
coordenando a repetição de ditos no interior de uma rede de formulações, entendida pelo autor
como um conjunto estratificado de formulações que consiste em reformulações possíveis de
enunciados. Nessa dinâmica, as diferentes redes de formulações que se estabelecem em uma
FD seriam responsáveis pela existência da FD em questão. Os enunciados se articulariam,
estabelecendo a referência dos elementos de saber de uma formação.
A definição do enunciado, como parte integrante do interdiscurso, “é uma
concepção essencialmente discursiva de enunciado, diferenciando-se, pois, da concepção
linguística e enunciativa do enunciado. Por essa razão a designamos de enunciado discursivo”
(INDURSKY, 2013, p. 46).
Orlandi (1996) entende que a concepção dialógica EU/TU da linguagem supõe
um percurso social constituído da significação que está inserida na relação entre os diferentes
lugares sociais com seus respectivos poderes desiguais. Freda Indursky (2013) afirma que
essa concepção dialógica da linguagem, abordada por Orlandi, aponta para o fato de que o
dialogismo EU/TU surge como delimitador de vozes desiguais,como se percebe na
modalidade de discurso religioso.

Análise dos programas

Em relação à análise do discurso do líder religioso, diversas formações discursivas


poderão ser depreendidadas dos vários enunciados presentes. Divaldo Franco, no primeiro
programa, ao abordar a desigualdade social (FD), o faz por meio de enunciados (E) que
corroboram sua discursividade.

“Seria uma violência por parte de Deus e as leis cósmicas são leis de amor. A
divindade nos proporciona o livre arbítrio e estabelece o determinismo. O
determinismo é a plenitude; o livre arbítrio é a eleição para alcançar essa plenitude.
(E1) Muitas vezes espíritos egotistas elegem para si direitos que não permitem ao
seu próximo e através de uma estrutura social algo degenerada, multimilenar, alguns
se permitem privilégios com olvido total de todos aqueles que necessitam dos
mesmos recursos. Então os bens da fortuna, que deveriam ser repartidos socialmente
com justiça, ainda se encontram nas mãos da avareza e por isso ocorrem estes
disparates. (E2) Mas aqueles que hoje usufruem com verdadeiro exagero, voltarão
na carência por causa do mau uso que fizeram dos dons e dotes que lhes foram
emprestados. (E3) Não pretendemos preocupar-nos com esses que estão na carência

Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p. 1177-1265, jul-dez/2018. III CONACIR 1197


total e que passam por dificuldades. (Enunciados sobre a formação discursiva
“desigualdade social de acordo com a visão espírita”)

Importante perceber elementos considerados clássicos permeando as edições do


programa, como a música tocada em piano na vinheta de abertura, menções a nomes
reconhecidamente voltados à arte e à cultura. Traços dessa formalidade atravessam o discurso
de Divaldo muito além da escolha das palavras, uma vez que emergem formações discursivas
que apontam para conservação de tradição religiosa, e manutenção de questões sociais e ético-
religiosas, que estariam em consonância aos desígnios de Deus.

Pergunta: “Não seria mais fácil ele simplesmente intervir e acabar com tudo isso”?
Resposta: “Seria uma violência por parte de Deus e as leis cósmicas são leis de
amor. A divindade nos proporciona o livre arbítrio e estabelece o
determinismo”.(FD: conservação da tradição religiosa)

“Mas a lei é natural, porque o morrer e o retornar são fenômenos propostos pela
legislação divina. Aquelas dificuldade de hoje serão recompensadas amanhã”.(FD:
conservação da tradição religiosa)

“[...] mas desde que o homem renovado se empenhe na transformação do meio em


que vive, sendo esta, aliás, sua indeclinável obrigação”. (FD: conservação da
tradição religiosa)

“Não podemos fazer culpa pelas ocorrências do processo evolutivo”.(FD:


conservação da tradição religiosa)

Ele não estava se utilizando do supérfluo. A sua nova posição exigia um esquema
normalmente chamado ‘status’ correspondente a sua função em uma empresa de alto
suporte ou de alto conteúdo, seja de natureza econômica, seja industrial.(FD:
manutenção de questões sociais e ético-religiosas)

Então o nosso amigo, estando naquele carro de luxo, ele está recebendo recursos
para desempenhar bem a tarefa, porque se ele tivesse que pegar o ônibus, ele teria
que acordar uma hora ou duas antes. Chegaria já desgastado ao trabalho e talvez não
pudesse corresponder.(FD: manutenção de questões sociais e ético-religiosas)

Há, nos enunciados acima, uma diretriz discursiva que aponta para uma lei divina
que parece explicar uma suposta evolução espiritual mediante cumprimento de normas, a qual
toda a humanidade estaria sujeita, indelevelmente. Nesse curso, é possível perceber que esses
enunciados são pontos axiomáticos do espiritismo, tratados por Divaldo Franco como “lei
natural”. É o caso, por exemplo, da passagem evangélica que atestaria o espiritismo como o
cumprimento de uma promessa feita por Jesus do envio de um consolador que falaria em seu
nome. A menção ao “consolador” prometido elevaria o espiritismo à categoria da religião,

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verdadeira por excelência, reveladora de sentidos que, conforme registrado no livro de João,
no novo testamento da Bíblia8, a humanidade não estaria pronta para entender à época.
“Então o Espiritismo é a proposta libertadora, é o Cristo de volta (não
fisicamente, é óbvio), mas é o seu pensamento de amor através do consolador que Ele
prometeu”.
De acordo com os elementos dinâmicos de interação, o líder religioso não
apresenta dinamismo performático em suas explanações no programa de TV, até mesmo por
seu perfil senil e reservado, que se propõe à doutrinação daqueles que já são adeptos ao
espiritismo, apresentando traços proselitistas pouco acentuados, o que pode encontrar
respaldo nas palavras utilizadas em seu discurso que fazem parte do vocabulário espírita,
desconhecido pela maioria que não tem acesso a essa religião.

“[...] Os espíritos não poderiam ‘entrar’ nos porcos porque também não estavam
‘dentro’ do homem. A obsessão é sempre um fenômeno de períspirito a períspirito,
mesmo nos casos graves de subjugação, nos evangelhos denominados como
possessão, o espírito continua dentro do ser humano como um líquido num
vasilhame. Em realidade o texto diz: ‘não nos mande ao Hades, pelo menos deixa-
nos entrar nesses porcos, que estourando, tombaram no mar’. Ora bem, quando esses
espíritos saíram criaram uma psicosfera perturbadora e como os animais podem ver
– não se trata de mediunidade – pela densidade fluídica assustaram-se e então aquela
vara atirou-se no abismo [...]” (Programa 2)

“Seria uma violência por parte de Deus e as leis cósmicas são leis de amor. A
divindade nos proporciona o livre arbítrio e estabelece o determinismo. O
determinismo é a plenitude; o livre arbítrio é a eleição para alcançar essa plenitude.
Muitas vezes espíritos egotistas elegem para si direitos que não permitem ao seu
próximo e através de uma estrutura social algo degenerada, multimilenar, alguns se
permitem privilégios com olvido total de todos aqueles que necessitam dos mesmos
recursos”.

“Quando o espírito retorna ao mundo espiritual e dá-se conta do desperdício ele já


está em curso numa lei de reparação, então o fenômeno reencarnatório automático”.

Isso posto, verifica-se que Divaldo Franco interage com um telespectador espírita,
letrado e com alto nível de escolaridade, o que vai ao encontro dos dados aferidos pelo IBGE
que apontam o espiritismo como a religião cristã brasileira com maior percentual de fiéis com
ensino fundamental completo (98,6%), além de configurarem também como o maior
percentual com ensino superior (31,5%). As formações discursivas apontam também para um
enunciador de classe média/alta, tanto nas figuras do líder religioso quanto da apresentadora.

8
João 16:7-12 “Todavia digo-vos a verdade, que vos convém que eu vá; porque, se eu não for, o Consolador não
virá a vós; mas, quando eu for, vo-lo enviarei.E, quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, e da justiça e
do juízo.Do pecado, porque não creem em mim;da justiça, porque vou para meu Pai, e não me vereis mais;E do
juízo, porque já o príncipe deste mundo está julgado.Ainda tenho muito que vos dizer, mas vós não o podeis
suportar agora”.

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A cena enunciativa, ao situar as relações entre os sujeitos e demarcar os “lugares de fala”,
pode ser analisada sob o viés dialógico EU/TU, o qual também permite traçar a intensidade
das vozes enunciativas por meio dos marcadores sintáticos de fala. Os traços EU, NÓS
estariam ligados aos enunciadores em posição de superioridade financeira e moral, enquanto
que ELE, AQUELE, ESSE aos necessitados material e moralmente.

“Mas aqueles que hoje usufruem com verdadeiro exagero”.

“Nós temos dez roupas, adquirimos mais dez”.

“É um desrespeito à necessidade daqueles que são os profundamente carentes”.

“Ele pede para vir numa situação de dificuldade a fim de aprender na carência”.

“Agora, nas grandes cidades, existe também aquele que tem a dificuldade financeira
e se vale para enganar as pessoas”.

“Nós experimentamos isso na Mansão do Caminho quando encontrei pessoas


pedintes”.

“Porque assim iremos eliminar o intermediário que é o explorador da infância, como


também da velhice, como aqueles também que têm as receitas permanentes para
comprar o remédio ou aqueles que querem a passagem para voltar”.

“Então nós temos que educar para que as pessoas se dignifiquem”

Verifica-se, no discurso do orador a presença de diferentes enunciados (E), que


evidenciam formações discursivas (FD) responsáveis pela manutenção do status quo
justificada por meio de teorias de causa e efeito. Tem-se, por exemplo, as formações
discursivas (FD1) “bens materiais não é pecado” e (FD2) “justiça divina pode
punir”, que podem ser observadas sejam para (FD3) “fundamentar a
prosperidade material” de uns ou para (FD4) “explicar a resignação que deve
acompanhar a pobreza” de outros. Assim, temos:

(E1/FD1) “Não podemos fazer culpa pelas ocorrências do processo evolutivo. Ele
não estava se utilizando do supérfluo. A sua nova posição exigia um esquema
normalmente chamado ‘status’ correspondente a sua função em uma empresa de alto
suporte ou de alto conteúdo, seja de natureza econômica, seja industrial”.

(E2/FD2) “Mas aqueles que hoje usufruem com verdadeiro exagero, voltarão na
carência por causa do mau uso que fizeram dos dons e dotes que lhes foram
emprestados”.

(E3/FD3) “Então o nosso amigo, estando naquele carro de luxo, ele está recebendo
recursos para desempenhar bem a tarefa, porque se ele tivesse que pegar o ônibus,
ele teria que acordar uma hora ou duas antes. Chegaria já desgastado ao trabalho e
talvez não pudesse corresponder”.

(E4/FD4) “Ele (espírito) pede para vir numa situação de dificuldade a fim de
aprender na carência a boa administração que a divindade lhe considerar em outra
ocasião”.

(E5/FD4) “Poderemos dizer que são espíritos iniciando processo de evolução,


passando por disciplinas morais muito severas, através das quais eles adquirem o
equilíbrio para futuros empreendimentos. Nesses futuros empreendimentos, também

Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p. 1177-1265, jul-dez/2018. III CONACIR 1200


eles terão direito à abundância que lhe será exigida uma aplicação com sabedoria
para poder evitar a recidiva na necessidade”.

(E6/FD4) “Aquelas dificuldade de hoje serão recompensadas amanhã”.

(E7/FD4) “Ele vem numa situação que vai valorizar o excesso que desperdiçou”.

Nota-se uma frequência maior das formações discursivas que tendem a justificar
as dificuldades financeiras em detrimento daquelas que apontam as justificativas divinas para
a riqueza e abundância material. Uma das possíveis razões para essa disparidade está ligada
ao fato de que o Brasil é um país de desigualdade social acentuada e essa realidade está
presente no cotidiano inclusive daquelas pessoas que vivem em posições sociais mais
privilegiadas, no caso, a maioria dentre os fiéis espíritas.
A entrevistadora Claudia Saegusa, em vários casos, formula perguntas
evidenciando situações aparentemente contraditórias, oferecendo a Divaldo Franco a
possibilidade de explicar, sob seu ponto de vista, além do conteúdo objetivo da pergunta, o
caráter esclarecedor e desmistificador atribuídos pelo orador ao espiritismo.
Nesses momentos, percebe-se, de forma tênue uma perspectiva espetacularizada,
ancorada em estereótipos que acompanham o Espiritismoe o representa como sobrenatural,
enigmático e oculto. Assim, o programa parece se valer dessa representatividade popular, em
que o líder religioso espírita seria a pessoa capaz de explicar o que aparentemente seria
inexplicável ou de ter a solução para diversos malefícios. Esses apontamentos são
corroborados pela creditação de Divaldo Franco durante o programa: “Médium e Orador
Espírita”. O termo “médium” traz a carga semântica de mediador, no caso do Espiritismo,
entre vivos e mortos ao que se soma a ideia do sensitivo capaz de prever o futuro.

“Enquanto algumas pessoas gastam R$ 50 mil numa simples bolsa de grife, a


maioria da população mundial sobrevive com menos de R$ 1 por dia, que dá menos
de R$ 30 por mês. E também os gastos anuais com alimento e veterinário para cães e
gatos nos Estados Unidos seriam suficientes para que o saneamento básico chegasse
a 75% da população mundial. Por que ocorre essa disparidade? Onde está a justiça
divina aí? Não seria mais fácil Ele simplesmente intervir e acabar com tudo isso?”
(Programa 1)

“O Luís Felipe Ferraz namora uma pessoa mais velha que ele e que está com a
autoestima muito baixa. Está passando por uma crise de depressão. Ele acha que ela
está tendo uma influência espiritual, pois ela procurou um psiquiatra e não está
muito bem. Ele quer saber como bloquear essas influências espirituais”. (Programa
1)

“A Clotilde Graça disse que ficou paraplégica há dezoito anos em um acidente de


carro e que o marido dela está com ela, mas a ignora, pois ela está em uma cadeira
de rodas e diz que no dia seguinte que assistiu ao seu programa uma vizinha, que é

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como se fosse sua filha lhe deu de presente um livro seu, Divaldo. Ela quer saber se
isso significa algo e como ela faz para ter uma vida mais feliz?” (Programa 1)

O líder espírita utiliza seu discurso como mecanismo de divulgação e


aprimoramento de conhecimentos dos fiéis sobre a doutrina, o que permite apontar que suas
explanações ocorrem também para reafirmá-lo como um nome notável no cenário espírita. Ao
demonstrar seus conhecimentos e responder as perguntas que lhe são dirigidas, não discursa
em nome de Deus. Divaldo Franco estaria mais próximo, de fato, à postura de um orador
respeitável do que de um mediador entre Deus e o fiel. Como forma de legitimar seu discurso,
lança mão de algumas citações d’“O livro dos Espíritos”, de Allan Kardec, além de suas
próprias interpretações e considerações acerca de passagens evangélicas e de demandas
sociais cotidianas, ligadas ao comportamento condizente com os preceitos espíritas.
Divaldo discorre sobre a vida e a morte, além dos comportamentos humanos
diante dessas questões, entendidas como dilemas da existência humana. Assim, não se coloca
como porta-voz de Deus ou de alguma verdade absoluta, mas mostra-se, em certa medida,
como o mensageiro de uma nova interpretação cristã sobre Deus, alicerçada em figuras e
obras literárias exponenciais na história do espiritismo. Conclui-se, então, que Divaldo Franco
não discursa em nome de Deus, mas desvia a autoridade que lhe é garantida pelo discurso
religioso para discursar em nome do espiritismo.

“Allan Kardec, em ‘Obras Póstumas’, ressalta que o resultado de todos os


progressos individuais é o progresso geral”.

“Em o livro ‘Espiritismo dialético’, o jornalista e educador Herculano Pires diz que
a renovação do homem implica a renovação social, mas desde que o homem
renovado se empenhe na transformação do meio em que vive”.

“Naturalmente, o supérfluo, conforme está em ‘O Livro dos Espíritos’, o necessário


supérfluo é tudo aquilo que é perfeitamente dispensável”.

“Eu recordo-me que Chico Xavier, quando ia à televisão sempre vestia-se conforme
os padrões da exigência do momento”.

“Allan Kardec perguntou às entidades venerandas, conforme lemos na pergunta 625,


de ‘O Livro dos Espíritos’: ‘Qual o ser mais perfeito que Deus ofereceu à criatura
humana para servir-lhe de guia e modelo?’ e os espíritos responderam: ‘Jesus’”.

“A existência de Deus está muito bem demonstrada no ‘O Livro dos Espíritos’, no


capítulo número um, na questão de número um”.

Podem-se considerar marcações que convidam o telespectador-fiel a repensar


posturas religiosas, diante da migração constante de fiéis entre religiões no Brasil. Nesse

Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p. 1177-1265, jul-dez/2018. III CONACIR 1202


tocante, as exortações sinalizam o fato de que, conforme demonstrado em pesquisas, parte do
número de adeptos espíritas se dá em decorrência da conversão de cristãos de outras
denominações, sobretudo católicos.
Os espíritas consideram a bíblia basicamente um livro de consulta à história do
cristianismo, principalmente o novo testamento, uma vez que narra os feitos da vida de Jesus,
considerado pelos espíritas como o construtor e idealizador do planeta Terra. Diferentemente
de outras religiões, que concebem a bíblia como livro sagrado, indefectível e incontestável, o
espiritismo tem-na como registro religioso. Corrobora essa ideia a obra de Allan Kardec
intitulada “O Evangelho segundo o Espiritismo”, de 1864, que se propõe a uma releitura de
passagens do evangelho sob o ponto de vista espírita.
Assim, podem-se entender esses alertas como uma tentativa de padronizar
possíveis reminiscências religiosas de modo a promover uma unicidade discursiva espírita,
além de que o Espiritismo se propõe a despertar uma visão cosmogônica mais universalista e
abrangente.

“É uma visão literal. Necessitamos compreender que, àquela época, os discípulos


não tinham nenhuma ideia de como se operavam os fenômenos”.

“Também nós podemos considerar que o paraíso não seja um local pré-determinado,
que tem uma característica geológica, terrestre, para cima ou para baixo, mas um
estado de consciência”.

“O provérbio vem exatamente de uma observação muito unilateral. O egoísmo é da


natureza humana”.

“Em realidade, não podemos transferir a nossa realidade para os espíritos infelizes.
É uma atitude muito cômoda. Tudo aquilo de ruim que nos acontece é culpa dos
demônios, é culpa dos espíritos inferiores. E a nossa consciência?”

A autoridade concedida pelo discurso religioso oferece a Divaldo Franco a


possibilidade de legitimar sua figura de liderença interpretando leituras evangélicas e os
pontos axiomáticos do espiritismo. Em determinamos momentos parece fazer de seu discurso
um silenciamento sobre possíveis vozes interpelantes que poderiam emergir divergindo de
seus apontamentos.

“É um apelo à fraternidade. Se ele dissesse ‘quando estiverdes orando eu estarei


somente convosco’ iria estimular-nos o egoísmo, essa conduta nefanda do
individualismo. Jesus é a proposta da fraternidade universal. Então quando Ele nos
conclama a buscar outrem para orar, equivale dizer que estamos também solidários,
para evitar que sejamos solitários. Então a colocação do Mestre é oportuna, o que
não quer dizer que o indivíduo, quando esteja a sós não receba sua resposta. Pois
que, ainda na continuação desse texto ele irá dizer: ‘batei e abrir-se-vos-á. Buscai e
achareis. Pedi e dar-se-vos-á’. Aí nós vamos ver, na linguagem imperativa, o
indivíduo e não o grupo pedindo”.

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“É uma visão literal. Necessitamos compreender que, àquela época, os discípulos
não tinham nenhuma ideia de como se operavam os fenômenos. Os fenômenos
apresentavam-se lhes no caráter sobrenatural. Os espíritos não poderiam ‘entrar’ nos
porcos porque também não estavam ‘dentro’ do homem. A obsessão é sempre um
fenômeno de períspirito a períspirito, mesmo nos casos graves de subjugação, nos
evangelhos denominados como possessão, o espírito continua dentro dos ser
humano como um líquido num vasilhame. Em realidade o texto diz: ‘não nos mande
ao Hades, pelo menos deixa-nos entrar nesses porcos, que estourando, tombaram no
mar’. Ora bem, quando esses espíritos saíram criaram uma psicosfera perturbadora e
como os animais podem ver – não se trata de mediunidade – pela densidade fluídica
assustaram-se e então aquela vara atirou-se no abismo despedaçando-se nas
montanhas, porque este local chamado ‘Decápole’, as dez cidades gregas, era
particularmente um local de criadores de porcos. Gadara ou Gersesa ou Gercesa, no
evangelho está sob os três epígrafes. E então Jesus vai lá levar a boa nova e eles
recusam, principalmente porque aquele lunático, aquele psicopata vai à cidade, todos
o reconhecem. Está sarado como? E ele mostra que foi Jesus quem o curou e refere-
se ao prejuízo dos porcos e os Gadarenos não o receberam. Preferiram os porcos
como muitos de nós, ainda hoje, preferimos os vícios que são os suínos da nossa
conduta à revelação do Cristo”.

Considerações

Diante da análise do discurso de Divaldo Franco, percebem-se marcações voltadas


ao tradicionalismo e caráter proselitista pouco evidente. Há a emergência de uma
discursividade voltada a atender ao público espírita, já familiarizado com um vocabulário
próprio, amplamente utilizado por Divaldo de forma erudita e permeado de citações utilizadas
para legitimar seu discurso. O cenário mínimo, sem composições cênicas, destoa do elitismo
presente no discurso que reafirma o caráter cientificista da Doutrina Espírita, que formata um
programa distante das massas e do entretenimento. Divaldo Franco, como figura central do
programa, corrobora esses apontamentos, uma vez que sua presença como liderança religiosa
se afasta da concepção de um líder envolto em carisma e performatividade.

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O riso espírita no teatro: representações dos preceitos de Kardec sobre vida
e morte no contemporâneo
The Spiritist laughter in theatre: representations of Kardec precepts about life and death in
the contemporary9

Grazyelle de Carvalho Fonseca


[email protected]

Resumo: Considerando o crescente papel da criatividade religiosa brasileira na cartografia


das religiões, este trabalho objetiva refletir acerca da construção de representação do sujeito
espírita, a fim de compreender o repertório simbólico no tempo presente. Partimos da
observação e descrição da peça “Morrendo e aprendendo”, da Companhia Amigos da Luz, a
fim de analisar o uso do teatro na construção de representação doutrinária, inclusive, sobre o
“umbral” e o preceito kardecista “Fora da caridade não há salvação”. Tal como Schechner,
considero que a performance não visa somente entreter, mas também transformar o sujeito –
mesmo que temporariamente –, ensinar e lidar com o sagrado e o profano, e que com isso é
possível observar o jogo de negociação entre religião, riso, vida e morte.
Palavras-Chave: Performance; Espiritismo; Teatro; Humor.

Abstract: Considering the risingrole of Brazilian religious creativity in thecartography of


religions, this essay aims to understand a process ofconstructionof representation about
Spiritists subjects, to comprehend the symbolic repertoire at the present. We start from
observation and description of the play “Morrendo e aprendendo” by Companhia Amigos da
Luz, in order to analyze the construction of doctrinaire representation. Moreover, the concept
of“threshold”, and the Kardecist precept “Without Charity there is no salvation” are also
analyzed. I consider, as Schechner, that performance does not only intendedto entertain but
can change the subjects – either temporarily or permanently –, teaches and deals with the
sacred and profane too. Thus, we can watch the game of negotiation between religion,
laughter, life, and death.
Keywords: Performance; Spiritism; Theatre; Humor.

Introdução

Desde a sua inserção no Brasil, nos meados do século XIX, o espiritismo10 se


desenvolve de uma maneira muito peculiar ao espiritismo francês, pois, a doutrina sofre

9
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. This study was financed in part by the Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) – Finance Code 001.
10
Embora defendemos a criatividade religiosa conforme o contexto socio-histórico e que sujeitos podem se
apropriar de concepções de mundo e formas de pensamento, utilizamos o termo “espiritismo”, pois é a forma
como os seguidores da doutrina codificada pelo francês Allan Kardec (pseudônimo de Hippollyte Leon Denizard
Rivail) defendem a sua legitimidade. Segundo este grupo, “espiritismo” é um termo cunhado por Kardec para
denominar a doutrina que lida com espíritos. Por outro lado, acreditamos que colocar as outras religiões
brasileiras que lidam com os espíritos no mesmo grupo que o espiritismo desenvolvido por Kardec pode, de certa
forma,desvanecer as disputas por legitimidade e resistências entre essas diferentes expressões religiosas ao longo
da história no Brasil entre meados do século XIX até os dias atuais.

Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p. 1177-1265, jul-dez/2018. III CONACIR 1206


apropriações conforme o contexto espaço-temporal e cultural de práticas e visões de mundo
diversas do contexto burguês e de negação do religioso da Europa. O espiritismo brasileiro
assimila a ritualística, o imaginário e as práticas católicas, devido a disputas e negociações de
legitimação social no território entre o fim do século XIX e início do século XX, dividindo os
“puristas”, que defendiam a doutrina científico-filosófica tal como postulada por Kardec, dos
“religiosos”, que adotavam uma perspectiva mais catolicizante. Entretanto, vale ressaltar que
o espiritismo kardecista surge num contexto em que o religioso era colocado em oposição à
racionalidade, sendo a doutrina, uma alternativa moderna de adaptar fenômenos dos espíritos
à prova natural, tal como as instâncias da matéria e empiricamente verificável.
Sem classificar a doutrina “à brasileira” como menor ou pior em relação à francesa,
Stoll (2002) nos oferece a perspectiva de que o espiritismo sofre um processo de apropriação
e torna-se um produto de ato criativo no Brasil. “Neste sentido, o Espiritismo à brasileira seria
uma versão original e não um produto menor, adulterado ou desviante” (Stoll, 2002, p. 367).
Desta maneira, este trabalho parte dessa premissa de Stoll, bem como, acrescenta o ponto de
vista de Rocha e Vásquez (2016) de que contextos econômicos, políticos, culturais e
religiosos do país influenciam na criatividade das religiões como um todo, que originam
identidades, visões de mundo e estilos de vida.
Dentro desses contextos, os meios de comunicação, internet e artes possibilitam a
exposição e difusão de líderes e grupos com práticas e ideias religiosas. Demarcam o Brasil
como um país espiritualizado. Argumenta Rocha e Vásquez (2016):

[...] o Brasil se tornou um importante nó de uma nova cartografia policêntrica de


produção religiosa global porque o campo religioso brasileiro diversificado,
dinâmico, criativo e profundamente híbrido tem interagido com processos ligados à
globalização, tais como imigração transnacional, inovações tecnológicas nas áreas
da comunicação e transporte e o rápido crescimento das indústrias culturais
associadas ao turismo, entretenimento, autoajuda e construção da identidade – sejam
elas religiosas, espirituais, raciais ou étnicas. (Rocha e Vásquez, 2016, p. 30)

Considerando a capacidade criativa do sujeito acerca do repertório doutrinário, pode-


se observar o intercâmbio simbólico, como também, construção de interpretação e
representação do imaginário religioso. Inclusive, o domínio do sagrado da sociedade brasileira
representa também um espaço “privilegiado de figuração e produção de experiência e
identidade” (Stoll, 2009, p. 13) em sua ritualística – seja de transe, mediunidade ou possessão.
Já no que concerne ao campo da comunicação social, editorial e das artes cênicas, sujeitos têm
produzido, mercantilizado, circulado e recepcionado mensagens e informações acerca do
espiritismo: filmes como “Nosso Lar”, “As mães de Chico Xavier” etc.; livros e romances

Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p. 1177-1265, jul-dez/2018. III CONACIR 1207


espíritas como “Violetas na Janela” – que depois fora adaptado para o teatro; e assim por
diante.
Desta maneira, a comunicação da doutrina espírita através do teatro não é uma
proposta recente. Ao recuar na história do espiritismo no Brasil, encontramos alguns
protagonistas. Entretanto, não se trata de definirmos aqui quem ou quais grupos teriam tido o
pioneirismo da evangelização através da linguagem teatral. Acreditamos ser interessante
apontarmos alguns nomes e compreender a encenação da doutrina enquanto práticas e visões
de mundo individuais em relação ao coletivo. Partindo dessa concepção, destacamos os
seguintes nomes do passado: Carlos Imbassahy e Leopoldo Machado; e os seguintes do
presente: Renato Prieto e Companhia Amigos da Luz.

 Carlos Imbassahy e Leopoldo Machado

Natural de Salvador, Bahia, Carlos Imbassahy (1884 – 1869), viveu no município de


Niterói, Rio de Janeiro. Atuou profissionalmente como promotor público na Bahia, mas
depois retornara ao Rio de Janeiro, onde trabalhou como estatístico no Ministério da Fazenda,
bem como, acumulara a função de jornalista e escritor, sendo a sua publicação literária
predominantemente espírita. Sua contribuição para a doutrina também se deu no campo do
teatro: com tom jocoso, ele teria abordado a doutrina nesse tom com o objetivo de atrair a
juventude e trazer leveza à teoria doutrinária. Escrevera, então, esquetes cômicos para as
“Semanas Espíritas” (1939 – 1944), idealizadas por ele e Leopoldo Machado, a fim de
incentivar jovens espíritas a produzirem arte. Dentre os esquetes, foi autorda peça
denominada “Firma Roscof e Cia.”11, conforme argumenta Célia da Graça Arribas:

Além de ter sido um orador reconhecido, fazendo inclusive “escola” no movimento


espírita por haver adotado um estilo novo de expor assuntos, alternando os
ensinamentos espíritas com assuntos leves e jocosos (o que lhe rendeu inimizades de
líderes austeros), Imbassahy, junto com sua esposa, investiu na ideia do teatro
espírita. Encenou esquetes e pequenas peças durante as Semanas Espíritas, e chegou
até a escrever uma comédia, intitulada Firma Roscof e Cia, incentivando os jovens
espíritas à arte “pura e sadia”. (Arribas, 2014, p. 59)
Por sua vez, Leopoldo Machado (1891 – 1957), também natural do estado da Bahia,
instalou-se em Nova Iguaçu após o convite do prefeito coronel Alberto Melo para suprir a
demanda escolar da cidade. Então, fundou a escola privada “Ginásio Leopoldo”, em 1930,

11
Conforme Arribas (2014), as “Semanas Espíritas” ocorreram uma vez nos anos de 1939 e 1944, durante toda a
semana. Tratavam-se de saraus com discussões sobre a doutrina, peças de teatro, música e literatura.
Primeiramente, o evento ocorrera em Três Rios (1939), Rio de Janeiro, e depois abarcou as regiões de Cruzeiro
(SP), Macaé (RJ), Juiz de Fora (MG), Barra do Piraí (RJ) e Astolfo Dutra (MG), no ano de 1944.

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junto com a esposa e a irmã. Jornalista e educador, Leopoldo atuou com a juventude espírita
ou “Mocidade Espírita”. Desta maneira, circulou o país com o propósito de divulgação
doutrinária e de levar o teatro para a juventude espírita. Publicou, inclusive, livros intitulados
“Teatro para a mocidade” e o “Teatro espiritualista”.

 Renato Prieto e Companhia Amigos da Luz

Dos nomes que, por ventura, estejam produzindo o teatro espírita no tempo presente,
elencamos dois para obreve escopo deste trabalho: Renato Prieto e Companhia Amigos da
Luz. O primeiro, Prieto (1955 -), ator e diretor teatral do Espírito Santo, foi-me citado pela
companhia durante a entrevista que realizei, em 2018, como um dos nomes atuantes da
comédia espírita anteriores a eles. Conforme o site do ator, ele se denomina como o primeiro
produtor de comédia espírita, tendo o aval de Chico Xavier: "sugiro a vocês que se juntem
para fazer um espetáculo com temática espírita!"12. Assim, dentre as produções teatrais,
“Quem é morto sempre aparece” e “A morte é uma piada” mesclam o gênero do humor com o
imaginário doutrinário.
Já a Companhia Amigos da Luz é composta por cerca de sete atores amigos, adeptos e
simpatizantes da doutrina espírita, residentes dos municípios de Rio de Janeiro e de Nova
Iguaçu. Produzem teatro espírita desde 2007 e audiovisual de humor desde 2015. Sendo a
aproximação da trajetória do grupo à figura de Leopoldo Machado, um marcador identitário e
de construção da memória. Inclusive, um de seus idealizadores estudara no Colégio Leopoldo,
já na coordenação da irmã do espírita, a pedagoga Leopoldina Machado. Logo, de acordo com
eles, este fato da vida, no momento de formação escolar possibilitara a construção afetiva do
laço com a doutrina, trouxera proximidade e materialidade, visto que a persona de Kardec e
Jesus Cristo parecem mais distantes no tempo e no espaço em contraposição a um espírita
atuante no século passado e no mesmo país.
Assim, membros da companhia consideram Leopoldo como patrono dos seus
trabalhos, visto que, segundo eles, o educador teria aberto caminho para este tipo de trabalho
no presente. A memória individual e a coletiva se relacionam: os acontecimentos vividos
pessoalmente e por tabela, pessoas, personagens e lugares formam a essência da pessoa ou
grupo (Pollak, 1992), bem como, estruturam a narrativa. A figura de Leopoldo pode não ter
feito parte do mesmo espaço e tempo físico que o grupo, mas a instituição de educação, sua

12
Ver: http://www.renatoprieto.com.br/comeco.html. (Último acesso em: outubro de 2018).

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história para o movimento espírita e o território são incorporados à memória individual ou
coletiva. Um deles me relata:

O teatro... Ele era um dramaturgo, ele escreveu comédia. Tem uma comédia dele.
Tem mais de uma. “Teatro para a juventude”, acho que é uma coisa assim o nome
dos livros que ele fez, tomos I, II e III. Esquetes para serem trabalhados com humor
nas mocidades. Quer dizer, ele já fazia o que a gente hoje tenta fazer. Então, ele para
a gente é um patrono. (informação oral)13

Tanto no passado quanto no presente, observamos a circulação e o intercâmbio


simbólico entre sujeitos com fins de divulgação de projetos com interpretações da doutrina no
teatro. Assim sendo, dos nomes citados acima, uns reivindicam o pioneirismo, outros, o
caminho aberto, embora nem sempre a comédia fora bem recebida no âmbito religioso. De
acordo com o historiador George Minois (2003), a relação entre o riso e a religião é ambígua
e ambivalente. Com a ascética cristã, observa-se a demanda pelo sério, pelo caráter do ser
humano sofredor em contraposição à gargalhada demoníaca, que ameniza o medo do inferno
e da morte. “Se as pessoas riem do fim dos tempos, é porque não existe nada sério. O riso
aparece como arma suprema para superar o medo. Quem ri do inferno pode rir de tudo. O riso
– eis agora o inimigo – para aqueles que levam tudo a sério” (Minois, 2003, p. 275).
Assim, o riso do fiel deveria ser comedido. Entretanto, segundo o autor, no
contemporâneo, o riso tem sido uma maneira de atrair fieis e refletir as escrituras. Por outro
lado, acreditamos que, mais do que atrair fieis, o riso na religião pode ser uma maneira de
trazer leveza ao aprendizado da doutrina, ser um diálogo interno entre adeptos da religião, a
fim de apontar desvios e acertos das condutas morais do sujeito que segue a doutrina. Bem
como, uma maneira de inserir-se no nicho de consumo de formas simbólicas da religião.
Vale ressaltar que não são abordagens neutras, mas interpretações da literatura do
espiritismo com perspectiva cômica e um diálogo com o senso comum. O riso é uma
ferramentade observação do disforme, a fuga da norma, da falta de correspondência entre
aquilo que se prega e as ações. É uma estratégia para evidenciar o que é subestimado nas
vivências cotidianas (Berger, 2017).Sendo assim, o motivo mais expressivo da criação satírica
da sobrevivência religiosa está nas condutas dos sujeitos, na forma como eles acreditam ou
mistificam normas sociais da vida, sendo mais difícil a representação cômica acerca da
experiência estética ou afetiva, que é séria e forte (Propp, 1992). Como no caso da peça que

13
LUCA, Fábio de. Entrevista Companhia Amigos da Luz – Sidney Grillo e Fábio de Luca. [jul. 2018]
Entrevistadora: Grazyelle Fonseca. Rio de Janeiro, 2018. 1 arquivo .mp3 (47:30).

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analisaremos a seguir, este momento do afeto da consciência religiosa é destinado para o ato
sério e de redenção.
Com isso, surgem-nos as seguintes questões: Como o humor, enquanto um gênero do
riso, pode ser uma estratégia para compreender a doutrina que lida com os espíritos? Como
ele se relaciona com discursos relativos à vida e à morte?Deseja-se, portanto, analisar como a
performance humorística pode ser uma ferramenta de aproximação da doutrina, visto que
através do riso - além de ser uma característica inerente ao homem e presente no cotidiano -
pode-se evidenciar os desvios dos costumes, bem como, refletir criticamente sobre as
escrituras sobre a relação entre indivíduo e o cosmos.

O uso do teatro na construção doutrinária

Com maioria oriunda da cidade de Nova Iguaçu, RJ, a Companhia Amigos da Luz foi
formada em 2007 por amigos atores, sendo “Morrendo e aprendendo” o seu primeiro
espetáculo. Portanto, até o atual momento, esta performance teatral continua em turnê
conforme solicitada pelos contratantes dos centros espíritas e teatros seculares. No que
concerne ao público, este é composto, em sua maioria, por adultos que teriam tomado
conhecimentodo grupo através do “Canal Amigos da Luz”, criado em 2015 pela companhia
na plataforma de publicação de vídeos,YouTube. Segundo a Companhia, o canal atende as
funções de produção e publicação de esquetes cômicos de divulgaçãoda doutrina e do trabalho
de humor espírita no teatro. Isto é, eles se inseriram em um nicho que até então era pouco
explorado pelos espíritas: a atuação profissional do teatro espírita de gênero humorístico.
A partir da observação do trabalho do grupo no ambiente virtual, fui à Saquarema (RJ)
assistir à peça dos Amigos da Luz, chamada “Morrendo e Aprendendo”, em 30 de março de
2018,visto que era parte da proposta metodológica do projeto de dissertação de mestrado. De
acordo com relatos, já era a terceira vez que o grupo se apresentava naquele local. Era
Semana Santa, feriado católico, e a turnê da Região dos Lagos seria em Saquarema e
Araruama. Chegando a Saquarema, dirigi-me ao Theatro Mario Lago, que é um teatro
municipal da cidade com capacidade para aproximadamente 150 pessoas e a apresentação
fora iniciada às 19 horas com significativa presença de adultos.
Partindo do pressuposto de realizar um trabalho de linguagem didática sobre a
doutrina, de acordo com o grupo, “Morrendo e aprendendo” foi a primeira peça teatral
produzida por eles. Então, foi-me informado que seria interessante para aqueles que nunca
haviam assistido às performances do grupo, começar da presente peça em análise, seguida de

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“Samara Sempre Sabe”, “Muito além da janela” e depois as outras. Ao longo dos atos, foi
possível perceber que morte, riso e religião são intercambiados como forma de trazer leveza à
vida, como também, carregam consigo visões de mundo e formas de pensamento. Neste
sentido, de acordo com a sinopse:

A morte é um assunto bastante controverso e cheio de tabus. Nesse espetáculo, o


público ao entrar no teatro já se depara com um clima tenso de velório, com a
“pobre” protagonista gelada em seu caixão. Mas rapidamente tudo muda, e a morte
passa a ser simplesmente o ponto de partida para uma comédia deliciosa.
MORRENDO E APRENDENDO aborda a vida e a morte de Dona Lourdes
Thereza. Essa senhora, que não passa de uma socialite egoísta e totalmente ligada
aos bens materiais, espera, ao morrer, um tratamento VIP no mundo espiritual. Mas
a realidade se mostra bem outra.14

De antemão, a sinopse coloca em evidência que a peça busca não somente entreter,
mas lidar com os tabus acerca da morte: parte do clima tenso do velório à atenuação do
sentido da morte. Entretanto, diferencia o mundo terreno (carregado de materialidade) do
espiritual (mundo da essência). Através da performance, identidades são delineadas, histórias
são contadas a partir de comportamentos restaurados e recombinados, treinados para exercer
funções. No teatro, observa-se a ênfase da narração e da personificação e, assim como nas
performances da vida cotidiana, a restauração de hábitos, rituais e rotinas são encenados não
somente para entreter – isto é, para agradar o público –, mas para lidar com o sagrado e o
profano, afirmar ou modificar identidades, ensinar ou persuadir. (Schechner, 2003)
Ao terceiro sinal de aviso, as luzes se apagaram e um ator, representando uma mulher,
com salto e procedimentos estéticos, correra entre a primeira fileira e o palco: a personagem
estava a caminho do velório da amiga. Assim, o início da peça deu-se com um caixão no meio
do palco. Ela então disparou: “Com tanto lugar para morrer: Copacabana, Paris... Você vem
morrer aqui em Saquarema!”. Em tom de desdém, a introdução do nome da cidade à fala da
personagem logo provocou o riso da plateia. Assim, considerando que o cômico possui
relação direta, ou indireta, com o ser humano (Propp, 1992), observamos, de início, que a
noção de lugar provocara riso na seguinte contraposição: os lugares que remetem à noção de
riqueza – Copacabana, Paris etc. – e o lugar de simplicidade – como a cidade cuja peça estava
sendo encenada que, embora atraia o turismo, não remete necessariamente à riqueza e ao
glamour –, bem como, aponta os últimos dias de vida de uma “socialite” em uma cidade sem
o marcador da classe social de origem.

14
COMPANHIA AMIGOS DA LUZ. Sinopse da peça Morrendo e aprendendo. Disponível em:
https://www.amigosdaluz.com/morrendo-e-aprendendo (último acesso em outubro de 2018).

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Fotografia 1: A amiga no velório de Lourdes Theresa.
Fonte: A autora, 2018.

Como pode ser observado na fotografia acima, a situação do velório é representada


com uma luz branca, o caixão está na horizontal e a amiga se despede do corpo falecido. É no
velório que os anseios sobre a morte são materializados diante do corpo gelado. Rememora-se
o começo, meio e fim da trajetória vivida com a outra pessoa. Nesta cena da peça, a amiga
também está lutando contra o tempo: realizara procedimentos estéticos para aparentar-se mais
jovem. Diz: “A minha esteticista disse que a cada sorriso, eu deveria fazer um movimento
inverso”, faz então caretas colocando a língua para fora. A plateia ri. O riso é desencadeado
pelo defeito que se torna explícito, pois, “o caráter da personalidade se exprime no rosto, no
movimento, em sua maneira de portar-se” (PROPP, 1992, p. 55-56)
A princípio, quando se pensa na morte uma gama de ideias cristalizadas são evocadas:
há um consenso de que ela é um evento familiar e que provoca sentimentos intensos, que é
um fenômeno fisiológico (Hertz, 1960). Entretanto, Hertz (1960) argumenta que temos a
tendência de criar uma narrativa para além da vida que desaparece: diz-se que a alma vai para
o outro mundo a fim de juntar-se aos antepassados. Como também, o corpo morto é enterrado
com cuidado não somente por questões de higiene, mas também de obrigação moral,
diferenciando-o da natureza dos animais não racionais.
Até este ponto a comédia parece confluir com esta análise de Hertz sobre a morte,
porém, uma descrição do autor nos chama atenção: não importam quais sejam os sentimentos
pessoais, é preciso lamentar durante um período de tempo e as roupas evidenciam o próprio
luto (Hertz, 1960). Então aí encontramos um desvio de conduta da personagem amiga que vai
ao velório: ela usa vestimentas vermelhas, não está triste, zomba dos últimos dias sem luxo da
morta. Por fim, sai do velório com a declaração de que iria visitar uma outra “amiga” que
ficara pobre, mas para ver a cara de derrota dela já que nãosentia afeto. Logo, coloca-se em

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questão quem são os amigos que abarcamos em nossas vidas. Sendo o laço social construído
em conformidade com nossas visões de mundo.
Assim, a peça é ambientada em torno da questão da morte. Entretanto, a principal
mensagem é sobre a vida: é para os homens e mulheres, que estão trilhando as suas
respectivas trajetórias, compreenderem que há sempre tempo de mudar. Considerando os
preceitos kardecistas de vida após a morte e reencarnação, a trajetória não se finda após o
velório e o enterro, mas alcança um “lugar entre”, carregado de materialidade e de orgulho, no
qual, somente a redenção e o reconhecimento dos erros podem intervir no curso dos
acontecimentos e encaminhar o sujeito para a “luz”.
Com vistas a atingir o imaginário dos simpatizantes da doutrina espírita, utilizou-se a
concepção de “umbral”, tal como no livro de Chico Xavier, “Nosso Lar” (1987).
Caracterizado como uma obra psicográfica, este livro narra a história do espírito André Luiz,
que teria dado fim à própria vida através do descuido com seu corpo e alma. De certa forma,
ele apresenta um imaginário acerca do plano espiritual liminar, ainda carregado de
materialidade e de orgulho próprios da natureza humana. Os seus sentimentos no “umbral”
são amargurados, ele experimenta o horror, a loucura e a dor diante da presença de formas
diabólicas e animalescas em um lugar nebuloso, frio e escuro. Só é possível sair daquele lugar
e alcançar outras etapas de cura espiritual a partir do arrependimento do espírito e da
compreensão da responsabilidade pelos atos. É aí que as forças da “luz” entram em seu
intermédio.

Fotografia 2: Lourdes Theresa no “umbral” - um espírito das trevas a acolhe.


Fonte: A autora, 2018.

Porém, na fotografia acima, o padrão vibratório de Lourdes é similar ao espírito das


trevas que a afaga. Não há tratamento “VIP” com luxo e pago com as vantagens do “cartão da
American Express de anuidade mais cara”, como ela esbraveja, mas o lugar sombrio com o
qual sua natureza espiritual se identifica ou buscou ser durante sua trajetória. Isto porque o

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“padrão vibratório” ou, de modo preciso, a “escala espírita” é hierárquica, alcançada através
do “progresso” individual. Maria Laura Cavalcanti (2008) descreve que é uma construção da
trajetória evolutiva do sujeito com sentido unívoco e individualizado em relação aos demais.
Embora adquirida lenta e gradualmente, pode haver outros espíritos com o mesmo nível da
escala pois as vibrações são construídas em nível dinâmico e relacional.
Conforme a sinopse, esta performance teatral busca evidenciar o processo de
aprendizado das leis da vida, que dizem respeito à “lei de causa e efeito”, de “livre-arbítrio” e
“pluralidade de existências”. Tais leis são pertinentes à cosmologia espírita, que busca
conectar as várias encarnações do sujeito ao processo de alcance de graus de elevações
superiores. Desta maneira, a “lei de causa e efeito” ou “lei do carma e da causalidade
cósmica” pode ser definida enquanto uma lei que submete a encarnação às ações individuais
do espírito, cujas ações morais significativas são marcadores da capacidade do sujeito receber
bons ou maus “frutos”. À vista disso, a “lei do livre arbítrio” está diretamente conectada
àquela primeira. Esta é um atributo essencial do espírito e caracteriza as individualidades e
responsabilidades do sujeito. A partir dela, a doutrina busca explicar a hierarquia e a
desigualdade do mundo. Com isso, a “lei da reencarnação” ou da “pluralidade das
existências” encontra amparo nessas duas leis anteriores e também legitima o mundo desigual
e imperfeito ao demarcar que a igualdade é alcançada por meio da justiça. (Cavalcanti, 2008)

Fotografia 3: Cena da vida passada.


Fonte: A autora, 2018.

O mote principal da peça é a vingança / reencontro de Lourdes Theresa com o desafeto


da vida passada: a irmã Felizmina, que fora impossibilitada de viver o grande amor da sua
vida com Lauro, o filho do “senhor doutor coronel professor coronel Ernesto Pereira de
Morais”. Pelo nome do pai do amor de Laura, observamos que é uma sátira à importância
deste homem naquela região, logo, a irmã mais velha fica com inveja da irmã e articula um
plano para se casar e herdar toda a fortuna.

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Entretanto, esse processo de recuperação da memória, tal como representa na cena da
vida passada, da fotografia 2, não ocorre de imediato. Através desta cena – com Felizmina, de
vestes brancas; Serafina, a Lourdes da vida passada com vestes laranja; e Lauro – evidencia-
se ao espectador a ação do passado concomitante à memória do espírito, narrado pela irmã
injustiçada. Ela representa o processo de recuperação da memória do espírito, pois, segundo a
doutrina, toda a lembrança acerca da sua trajetória em outras vidas não é lembrada
imediatamente ao desencarne. Isto é, à medida em que estabelece contato com o plano
espiritual, ele adquire consciência.
Logo, embora o espírito tenha um conjunto de memórias de suas vidas, a intensidade e
a duração dela logo após o desencarne variam conforme o grau evolutivo. Sendo assim, é
necessário um período de adaptação para recuperar a memória espiritual. Inclusive, o
conjunto de memórias das vidas passadas está no perispírito – instrumento semi-material que
liga o espírito à matéria: desde emoções, atitudes até os vícios. (Cavalcanti, 2008)
E é este processo deevidência da memória e construção da construção da pessoa
dotada da capacidade de lidar com suas responsabilidades que observamos ao longo de toda a
peça. Assim, analisaremos no item a seguir a noção da construção de pessoa.

Representação do sujeito espírita

Fundamentada em Mauss e Geertz, Maria Laura Cavalcanti (2008) define a “noção de


pessoa” como formas distintas que seres humanos empíricos são representados pelas culturas
e sociedades. Assim sendo, a autora observa que, no espiritismo, a “noção de pessoa” é
percebida como uma convergência do repertório de práticas e visões de mundo que buscam
conectar dois mundos: o visível e o invisível.Então, no espiritismo, a “noção de pessoa” pode
ser atribuída tanto ao sujeito concreto quanto à “entidade”. Ou seja, vivos ou mortos são (ou
foram) seres humanos que se encontram para cumprir juntos uma trajetória de vida ou acerto
de contas (Stoll, 2009). Isto porque é o espírito a essência do homem carregado de uma dupla
natureza: corpo e alma, espírito e matéria – o visível e o invisível (Cavalcanti, 2008).
Considerando que, para o espiritismo, todo sujeito encarnado é um espírito, cujo
invólucro carnal é somente uma condição necessária para provas e expiações terrenas,
observamos quatro tipos de sujeitos na peça “Morrendo e aprendendo”: (1) o sujeito errante,
que atravessa várias provas durante as encarnações, mas não aprende ou “evolui”;(2) aquele
que fica preso no plano espiritual (umbral) como forma de reencontrar o outro para
reconciliação; (3) o mentor, que teve vidas passadas de erros e acertos, mas que adquiriu

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“evolução” porque decidiu perdoar a malfeitora; e, por fim, (4) o espírito obsessor, que opta
por ficar no plano da dor e do sofrimento, atraindo materialidade e pessoas com padrão
vibratório similar.
Desta maneira, trata-se de uma peça teatral acerca da descoberta espiritual, que se
inicia no momento do velório, possibilitando perceber os laços pessoais que foram
construídos ao longo da vida, e culmina no plano espiritual: o processo de entendimento do
ser enquanto espírito e a tomada de consciência das trajetórias nas vidas passadas. Tal
performance aborda o preceito kardecista “Fora da caridade não há salvação”15, o qual,
conforme publicado em Obras Póstumas (Kardec2008), a caridade é a prática dos preceitos
teóricos do espiritismo. Portanto, ele engloba algumas atitudes do indivíduo, tais como: fazer
o bem conforme a posição social, prestar serviço de acordo com a disponibilidade, receber os
pobres com boas ações e assim por diante.
Sobre a caridade, com tom pejorativo, a personagem diz que doava roupas, bens
materiais e produtos de higiene com o dinheiro excedente. Porém, nem sequer se aproximava
dos moradores das comunidades menos abastadas. Agora com a consciência espírita, ela
lamenta que “eles queriam ser vistos como seres humanos, como crianças, não crianças
carentes”. Logo, o projeto de caridade de Lourdes foi falho, sem o sentimento genuíno. É
preciso compreender que a caridade, junto com o estudo da doutrina e da mediunidade são
meios de salvação do espírita, formas de obter mérito e evolução espiritual (Cavalcanti,
2008).

Fotografia 4: Reconhecimento dos erros do passado e auxílio do mentor espiritual.


Fonte: A autora, 2018.
Como observamos na fotografia acima, o momento de redenção e de compreensão dos
preceitos kardecistas apela para o emocional. Ajoelhadas, as irmãs se perdoam e aceitam o

15
Segundo este preceito, Allan Kardec compreendia que o bem deveria ser restituído com o bem, e o mal
também deveria ser retribuído com boas ações, pois o ódio não deveria cegar o indivíduo. Ver: KARDEC, Allan.
Obras Póstumas. Araraquara: IDE: 2008.

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encaminhamento do mentor espiritual, mais elevado. O mentor, que fora Lauro, na vida
passada, evoluíra espiritualmente porque aprendera a dádiva do perdão. As luzes azul e branca
transformam o cenário sombrio do umbral num lugar com presença de força espiritual
benevolente. À esta altura, ambas já haviam recobrado os ensinamentos de Jesus: “o amor,
ensinado há dois mil anos, mas ainda assim, incidimos no erro, sentimos ódio, queremos
vingança”, diz Lourdes. E, então, os três aceitam cumprir uma nova reencarnação de reparo.
Com vestes contemporâneas, uma vida mais pobre (o pai está saindo para uma
entrevista de emprego), busca-se a reconciliação: Lauro e Felizmina, finalmente são casados e
Lourdes é a filha do casal (fotografia 5, abaixo).

Fotografia 5: Uma nova reencarnação.


Fonte: A autora, 2018.

Desta forma, é através dos laços familiares e de uma união matrimonial que os laços
espirituais são estreitados. Conforme Kardec, os laços familiares são uma lei natural de
estreitamento social, que “Deus quis que os homens aprendessem assim a amar-se como
irmãos” (Kardec, 2009, p. 243). Já a paternidade e a maternidade, segundo Kardec, são
inerentes à responsabilidade de guiar um ser humano no caminho do bem, busca-se evitar que
o caminho seja desviado. Enquanto que o casamento é um elemento diferenciador em relação
à vida animal, ele representa o “progresso da humanidade” com a finalidade de atingir a
solidariedade fraternal através da união livre e fortuita.
O imaginário da doutrina espírita adquire presença carnal e vive através do palco e dos
atores. A história é narrada como se o espectador estivesse naquela realidade encenada, a
consciência e a subjetividade das personagens são exteriorizadas. A narração é ação: “frente
ao palco, o confronto direto com a personagem, elas são, por assim dizer, obrigadas a
acreditar nesse tipo de ficção que lhes entra pelos olhos e pelos ouvidos” (Prado, 2014, p. 85).
Todavia, diferente de Prado (2014), acreditamos que não se trata de uma obrigação de
acreditar na narrativa, mas de um “acordo”, um “fazer crer” que visa dialogar com as visões

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de mundo daqueles presentes e transformar perene ou temporariamente as condutas dos
sujeitos espíritas. Isto é, o “fazer crer” diferencia o mundo da performance encenada daquele
do cotidiano, há clareza da realidade dos sujeitos daquela que é “faz de conta” (Schechner,
2003).

Considerações finais

O riso da plateia não era comedido, eram altas gargalhadas na maioria dos momentos.
Uma mulher atrás de mim disse a outra: “Estou chorando de tanto rir”, impactada pela energia
coletiva gerada pela performance. Ao final da peça, o grupo apresentou cada um dos atores e
o diretoragradeceu aos patrocinadores. Indicou que era necessário estabelecer um contato com
os apoiadores locais, visto que eles estavam apoiando a cultura. Disponibilizaram-se a fazer
foto e falar com cada pessoa que desejasse após a peça, quase todos da plateia optaram por
falar com eles e posar para fotos.
Trata-se de um cuidado com a audiência: as performances estão correlacionadas ao
público que ouve e assiste, “a força da performance está na relação muito específica entre os
performers e aqueles-para-quem-a-performance existe” (Schechner, 2011, p. 215). Afetada
pelo envolvimento da narrativa e dos atores, a audiência é parte integrante de uma vida teatral
coletiva e colaborativa do fluxo de modulação de “intervalos de som e silêncio, a densidade
crescente e decrescente de evento temporal, especial, emocional” e cinestésico (Schechner,
2011, p. 218).
De acordo com os informantes da Companhia Amigos da Luz, a relação espiritismo,
humor e morte é uma busca de desmistificação desta última. De um lado, o riso tira a força do
medo morte, de outro, o espiritismo oferece uma visão “consoladora”, que abranda as
inconformidades dos indivíduos com o fim da jornada terrena de um ente querido. A partir
disso, o humor pode vir a se tornar um aliado para uma leve divulgação doutrinária.
Mais que uma busca de conciliação com a morte à espreita, a peça dialoga com a vida
cotidiana e religiosa. Recombina comportamento previamente exercido, a fim de evidenciar
problemas de condutas humanos e um caminho possível nas escrituras do espiritismo. Ao
mesmo tempo em que a vida espiritual anda lado a lado com a material, pois são as ações
terrenas e do livre-arbítrio que faz o sujeito colher bons ou maus “frutos”, estes modos de vida
são colocados em oposição: o plano espiritual precisa ser destituído do apego da carne e da
matéria, senão, a condição humana do orgulho, da dor e do sofrimento persistirão em um
plano liminar, o “umbral”.

Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p. 1177-1265, jul-dez/2018. III CONACIR 1219


Referências:

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mediúnicos e performances de “auto-ajuda”. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 29 (1): 13-
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Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p. 1177-1265, jul-dez/2018. III CONACIR 1220


Entre mundos:
bruxaria e culto à Terra no pensamento político-ecológico de Starhawk

In between worlds: witchcraft and earth worshipping in the political-ecological thinking of


Starhawk

Gabrielly Merlo de Souza16


[email protected]

Resumo: O ressurgimento da tradição pagã no Ocidente tem sido fortemente marcado pela
aproximação do pensamento místico às preocupações de algumas vertentes do ecologismo
contemporâneo. Tendo isso em vista, neste artigo recorro à bruxa, eco-ativista e escritora
Starhawk, a fim de traçar um rápido panorama de sua trajetória, bem como apresentar técnicas
e conceitos criados e/ou recuperados por ela que resgatam tradições espirituais de culto à
Deusa e de retorno à terra. No contexto de uma reflexão sobre feitiçaria, ecologismo e
“animismo”, o propósito é demonstrar como diferentes sensibilidades em torno da natureza
vão sendo guiadas pela emergência de novas espiritualidades, bem como fazer uma breve
reverência a Starhawk, que recupera os modos de saber e práticas de “respeito pela santidade
de todas as coisas vivas”.
Palavras-chave: Neo-paganismo; Starhawk; Ecologia; Animismo.

Abstract: The resurgence of the pagan tradition in the west has been strongly marked by an
approximation between mystical thinking and the concerns of some strands of contemporarily
ecologism. With this in mind, in this article I resort to the witch, eco-activist and writer
Starhawk, in order to trace a brief panorama of her trajectory, as well as present techniques
and concepts created and/or recovered by her that reclaim spiritual traditions of Goddess
worshipping and return to the earth. In the context of a reflection on witchcraft, ecologism and
“animism”, the purpose here is to demonstrate how different sensibilities surrounding nature
are guided by the emergence of new forms of spirituality, as well as make a brief reverence to
Starhawk, who recovers knowledges and practices of “respect to the sacredness of all living
things”.
Keywords: Neo-paganism; Starhawk; Ecology; Animism

1. Introdução: uma breve biografia

“Politics is a form of magic, and we work magic by directing energy through a


vision”17.(Starhawk,1989)

Mirian Simons, conhecida como Starhawk, escritora estadunidense, nascida em 1951,


autodeclarada ativista, permacultora, bem como uma voz proeminente do ecofeminismo e da

16
Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pesquisa novos
movimentos ecológicos, crise da modernidade e o imaginário do fim do mundo nas sociedades ocidentais.
17
“A política é uma forma de magia e nós trabalhamos com magia direcionando energia através de uma visão”
(tradução livre).

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moderna espiritualidade baseada na terra. Tornou-se internacionalmente conhecida por seu
aprofundamento prático e teórico no vasto universo do neopaganismo e da Wicca, sendo
também conhecida por seus ensinamentos sobre ação direta não-violenta e ativismo ecológico
anti-globalização. A habilidade com que dialoga e transita por mundos, geralmente tão
divergentes entre si, tal como são a espiritualidade e a política, tornou Starhawk uma
referência para o renascimento da espiritualidade baseada na terra e da religião da Deusa,
incorporando essa visão à sua prática política e social. Assim que, nesse diálogo entre
espiritualidade e política, Starhawk tem, desde os anos 70, se dedicado ao trabalho de cura de
ecossistemas, de sistemas sociais e de indivíduos.
Sobre o seu trabalho envolvendo “eco-ativismo espiritual”, destaca-se o Earth Activist
Training (EAT), projeto fundado por ela, cujo objetivo é a prática e o ensino de
permacultura18 com base na espiritualidade e com foco no ativismo19. Foi também co-
fundadora do Reclaiming, uma comunidade global formada por neopagãos que praticam
magia e ativismo político. Enquanto escritora, Starhawk foi autora e co-autora de treze livros,
incluindo The Spiral Dance: a Rebirth of the Ancient Religion of the Great Goddess (1979) e
a novela “ecotópica” The Fifth Sacred Thing (1993) e sua sequênciaCity of Refuge (2015).
Nos anos 80, esteve envolvida em produções fílmicas voltadas para o tema da Espiritualidade
Feminina, tendo criado, com Donna Read, uma produtora própria, a BeliliProductions, para
fins de realização e fomentação de documentários sobre mulheres e o trabalho com a terra20.
Atualmente, Starhawk atua como professora adjunta do Instituto de Estudos Integrais da
Califórnia, e mantém um sítio na Califórnia onde realiza alguns de seus cursos e vivências em
Permacultura. Sua formação acadêmica foi em Belas Artes pela U.C.L.A, tendo, em 1973,

18
Permacultura é um princípio de design ecológico que abrange uma ampla gama de conhecimentos, da ecologia,
ao uso de energias renováveis e manejo dos recursos naturais, com intuito de planejar e criar ambientes
sustentáveis e permanentes que atendam não apenas esta, mas também as futuras gerações.
19
Juntamente com Charles Williams e outros, ela ensina cursos EAT nos EUA, no Canadá e na Europa. Ela
também defende a ‘permacultura social’: a aplicação dos princípios da permacultura a organizações sociais,
políticas e estratégias. Desde seu primeiro curso em maio de 2001, a Earth Activist Trainings formou mais de
1000 alunos que agora conduzem projetos que vão desde estratégias de desativação comunitária em Iowa City a
programas de captação de água na Bolívia, de hortas urbanas em São Francisco a programas da região –
informações extraídas em setembro de 2018 no site oficial da Starhawk. Ver
https://starhawk.org/about/biography/
20
Starhawk consultou e co-escreveu o popular trio de filmes conhecido como Série de Espiritualidade Feminina,
dirigido por Donna Read Cooper para o National Film Board do Canadá: Goddess Remembered (1989), The
Burning Times(1990) e Full Circle (1993). A trilogia estava entre as dez maiores de vendas e aluguéis do Film
Board por mais de uma década. Seu primeiro documentário foi Signs Out of Time (2004) sobre a vida da
arqueóloga Marija Gimbutas, a estudiosa que fez grandes descobertas sobre as culturas da Deusa da antiga
Europa. O segundo documentário de Starhawk e Donna foi o Permaculture: The Growing Edge, lançado em
2010. Starhawk também fez vários documentários curtos que podem ser encontrados no YouTube: The Spiral
Dance Ritual, Spiral Dance: Three Decades of Magic e Permaculture Principles at Work, com quase 200.000
visualizações.

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realizado pós-graduação em Cinema na U.C.L.A. Ganhou alguns prêmios, como o prestigioso
Prêmio Samuel Goldwyn de Redação Criativa. Também realizou um mestrado em Psicologia
com área de concentração em Terapia Feminista, na Universidade Antioch West, em 1982.
Starhawk foi uma veterana de movimentos progressistas, de anti-guerra a anti-armas
nucleares, mas, ao mesmo tempo, profundamente comprometida em trazer as técnicas e o
poder criativo da espiritualidade para o ativismo político. Suas ideias tem encontrado terreno
fértil para o desenvolvimento de novas espiritualidades, sobretudo no contexto norte-
americano. Tomando o modelo da Deusa como caminho para “desafiar sistemas de opressão
e para criar culturas novas, orientadas para a vida” (Starhawk, 2007: 45), Starhawk é parte
da nova geração de pagãos ou neopagãos que experimentam o que ela chama de
“renascimento” da Nova Religião, da Religião da Deusa, da bruxaria, sem, contudo, negar a
riqueza das tradições que as consagraram.
Tendo em vista a extensa bibliografia e a longa trajetória que compreende os trabalhos e
projetos desenvolvidos pela Starhawk, para fins deste artigo irei abordar apenas alguns deles,
tendo, contudo, me debruçado especialmente na análise de sua primeira publicação, The
Spiral Dance, de 197921. Assim, a seguir, faço uma sumária contextualização do processo de
desenvolvimento do movimento Wicca e neopagão no Estados Unidos. Por fim, apresento a
forma como Starhawk atribui a Religião da Deusa um sentido não apenas ecológico, mas
também político. Todas as citações extraídas dos livros e textos da Starhawk, uma vez que são
o cerne desta análise, optei por coloca-las em itálico como uma maneira de destacá-los de
outras citações.

2. Starhawk, a wicca e o neopaganismo americano

O século XX foi caracterizado pelo surgimento de diversos novos movimentos


religiosos, uma vez que as instituições religiosas tradicionais e suas doutrinações já não
respondiam mais aos anseios de muitos sujeitos modernos. A ascensão de novas
espiritualidades, contudo, se intensificou de maneira considerável entre as décadas de 1960 e
1970, período de intensa movimentação contracultural, bem como de perda de terreno das
religiões tradicionais. Apesar deste ter sido um período bastante complexo e diverso em
termos de novas ideologias e movimentações políticas, o cenário da contracultura costuma ser
apontado como uma referência importante para pensar a emergência das novas

21
Será utilizado neste trabalho a edição brasileira de 2007.

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espiritualidades. O ressurgimento do neopaganismo e sua difusão pelo mundo, segundo
explicação de Filho (2016), veio amalgamando muitas das ideias e elementos da contracultura
dos anos 1960.
Hobsbawm (1997) se refere a “contracultura” como um período de “revolução cultural”.
Desencadeado nos Estados Unidos, esse movimento se caracterizou pela forte crítica social
aos valores da sociedade capitalista e da civilização ocidental, para os quais se propunha uma
revolução nos costumes e nos valores da época. Ao mesmo tempo, no que interessa à presente
discussão, a contracultura representou o apogeu da religiosidade da chamada Nova Era, uma
vez que as religiões ligadas a esse movimento abriam mão dos moldes tradicionais de religião
“onde há um sacerdote mediando a relação entre o ser humano e o divino” (Castro, 2016:
128). Magnani (1999)explica que os new agers estavam interessados em buscar relações
diretas com o sagrado, baseadas na experimentação de tradições orientais, nativas (ou
indígenas) e ocultistas. O esoterismo contemporâneo incluiria, também, outras tradições
religiosas como as ligadas ao paganismo europeu.
O fenômeno neopagão nas sociedades modernas, embora ainda pouco investigado e de
crescimento lento e impreciso, passou a ser mundialmente conhecido como parte da Nova
Era. Compartilhando do mesmo ímpeto da contracultura, os new agers costumam se orientar
por expressões religiosas animistas, panteístas, pluralistas e não-doutrinárias e se utilizam de
símbolospagãos para produzirem uma visão crítica do mundo moderno (Castro, 2017a, 2017b,
2017c; Oliveira, 2009). Os movimentos ligados à “nova consciência religiosa”, no entanto,
promovem uma descontinuidade para com as tradições religiosas pré-modernas, sobretudo por
incorporarem elementos característicos das sociedades modernas – como acontece com a
pauta ecológica, por exemplo, que hoje caracteriza e define muitas das práticas dessas novas
espiritualidades, as quais vem sendo chamadas de eco-espiritualidades ou eco-religiosidades
(D’Andrea, 2000).
Starhawk se refere ao movimento neopagão como parte de uma tradição viva. Não
sendo estática ou fixa, “ela muda e responde às necessidades e aos tempos que mudam”
(Starhawk, 2007, pp. 28-29). No contexto americano, onde de fato hoje se concentram grande
parte dos neopagãos,

“esses movimentos religiosos passaram a receber influência dos movimentos sociais


que propõem transformações nos paradigmas ocidentais, além de abrangerem outras
influências culturais-religiosas como práticas e crenças dos indígenas norte-
americanos” (Castro, 2016, p. 130)

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O Neopaganismo americano e o europeu podem ser pensados como marcadamente
diferentes em suas trajetórias. Ao chegar da Inglaterra como símbolo da Velha Religião na
década de 1960, o paganismo foi apresentado aos americanos como tendo raízes ancestrais
nas ilhas britânicas, como um culto de mistério de magia e fertilidade. Entretanto, na medida
que o movimento cresce e outros grupos surgem exponencialmente, o neopaganismo vai se
tornando cada vez mais um movimento universal e descontextualizado – uma espiritualidade
“desterritorializada”, como explica Filho (2016). A forma como as tradições antigas chegam
nos Estados Unidos, assim, favorece a transformação global do movimento neopagão e no
modo de vivenciar essas religiões. Enquanto que, em sua origem, este paganismo renascido
no contexto britânico apresentava um forte apelo territorial, ligado ao orgulho étnico nacional
e à ancestralidade.
Difundida de forma não institucionalizada, apropriada e reformulada por grupos e
indivíduos em diferentes contextos, alguns autores explicam que a Wicca passou a ser
interpretada de maneiras diversas, as quais, muitas vezes, não seguiam com rigor a tradição tal
como fora, originalmente, concebida por Gerald B. Gardner – o excêntrico bruxo
tradicionalista inglês “criador” da Wicca. Do ponto de vista da forma como essa religião se
difundiu pelo mundo, podemos entender que, hoje, a Wicca está mais aberta àintrodução de
diferentes elementos, oriundos de outras vertentes espirituais, realizando uma prática menos
rígida, com uma estrutura eclética e contemplando uma grande diversidade de práticas
religiosas. O mesmo ocorreria a outras religiões e tradições neopagãs. Apesar do afastamento
das novas religiões do que seria a estrutura tradicional da Wicca, alguns autores tem falado do
legado deixado por Gardner ao movimento.

A Wicca gardneriana foi o catalisador que desencadeou o movimento Pagão.


Apesar de já existirem grupos que buscavam reconstruir religiões antigas, todos eles
foram, rapidamente, incorporando e adotando inovações de Gardner que forneciam
uma prática, uma teologia, enfim, elementos que não eram tão presentes em tais
grupos. Evidências dessa influência gardneriana, segundo Kelly, (2014:7) foram,
entre outros, o trabalho em círculo com as invocações dos quadrantes e a celebração
de um calendário litúrgico sazonal (Filho, 2016, p. 64)

Em linhas gerais, pode-se dizer que, a partir da “reinvenção” da Wicca nos Estados
Unidos, esta religião passou a ser vista e procurada por aqueles que buscam alguma forma de
espiritualidade mais centrada na terra, na natureza viva e em ideias ligadas à ecologia e ao
feminismo (Castro, 2016). A ligação da Wicca a esse conteúdo político mais explícito foi tão
bem articulada por Starhawk que, a partir da publicação, em 1979, de seu primeiro livro, The
Spiral Dance, ela se tornou a mais influente wiccanadepois de Gardner, considerada a

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principal voz no desenvolvimento da Wicca e também da espiritualidade eco-feminista (Filho,
2016).
Se apropriando da imagem da bruxa como relacionada ao poder feminino independente,
como um indivíduo poderoso e livre, Starhawk consegue com maestria conectar as ideias
feministas americanas à espiritualidade da Deusa. A reinterpretação mito-histórica da
Bruxaria, profundamente abordada e revisada por Starhawk, contudo, não sofre influência
apenas do emergente feminismo radical – sendo os EUA seu centro de difusão –, mas também
de filosofias ambientalistas como DeepEcology e Wilderness que, nos anos 60, também
estiveram em alta, como explica Castro:

De acordo com a antropóloga Susan Greenwood (2005), a visão de mundo desses


religiosos se assemelha aos paradigmas da chamada ecologia profunda(a qual muitos
neopagãos, inclusive, estudam e se inspiram), sobretudo pelo encorajamento
biocêntrico em expandir noções sobre individualidade por ela proporcionado”
(Castro, 2017a, p. 50)

Se por um lado a imagem da bruxa se conectava a muitas das ideias feministas dos anos
70, por outro lado, o “ambientalismo emergente foi apropriado no sentido de compor a visão
holística dessa Bruxaria que se desenvolvia” (Filho, 2016, p. 63). Sendo assim, pode-se dizer
que tanto o feminismo quanto o ambientalismo foram significativos às concepções e
reinterpretações da religião Wicca e das novas espiritualidades que, via de regra, ressurgiam
fortemente alinhadas às tendências da contracultura americana.
Para fins deste artigo, minha proposta é apresentar a correlação entre a bruxaria de
Starhawk e o pensamento ecológico. A abordagem do feminismo não será aqui aprofundada,
ainda que reconheça a importância desse movimento para o entendimento que faz Starhawk
da Deusa. Contudo, os temas relativos ao pensamentoecológico, de meu interesse neste
momento, serão mais centrais, tendo em vista a designação que tem se referido a Wicca e a
comunidade neopagãs, em geral, como tradições baseadas na Terra e de culto a Deusa.

3. Entre mundos

Oliveira explica que o crescimento das formas de expressão religiosa atreladas às


antigas religiões e ao paganismo,

“pode ser interpretado como uma espécie de sinalizador, expressão de uma tentativa
de contrabalançar as tendências majoritárias de uma sociedade individualista e

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hipertecnológica, enfatizando valores de vínculoscomunitários, relações
interpessoais e integração com a natureza” (Oliveira, 2010, p. 33).

No entanto, falar em nome de todos os pagãos ou mesmo oferecer explicações gerais em


nome da comunidade pagã, adverte Starhawk, pode ser um trabalho difícil, visto que as ideias
e premissas básicas presentes no movimento em geral podem variar tanto quanto há de grupos
e expressões desse movimento.
Ainda que o renascimento do paganismo na sociedade moderna esteja relacionado às
inquietações do mundo contemporâneo, não podemos afirmar que todos aqueles que se
identificam com o paganismo, necessariamente, estejam familiarizados com as hipóteses
fundamentais sobre os quais os sistemas de denominação estão baseados. Pelo contrário, tal
como Starhawk esclarece: “muitas pessoas voltam-se para tradições espirituais ligadas à
terra, para celebração de ciclos sazonais e para o despertar de dimensões da consciência
mais amplas”22 (Starhawk, 2007, p. 18). Assim, se há algum desejo de mudança inerente às
comunidades neopagãs contemporâneas, este estaria voltado para o terreno interior antes de
promover alguma transformação em âmbito cultural.

(...) os neopagãos acreditam que curando a si mesmos, algo acontece nessa teia,
ressoando de alguma forma no meio mais amplo. De outro modo, eles acreditam que
estão auxiliando na cura da própria Terra; as “feridas” desta última são entendidas
como a sua degradação por parte do homem, como matas queimadas, árvores
desmatadas, rios poluídos etc. (Castro, 2017a, p. 50)

Algumas tendências ligadas à vivência de uma espiritualidade não comprometida com


outros aspectos da vida que não sejam de ordem pessoal, tem sido problematizadas por
Starhawk. Por exemplo, a premissa do “eu crio minha própria realidade”, muito recorrente
nas comunidades neopagãs, quando tomada isolada, sem o entendimento de que a energia se
movimenta em ciclos, pode repercutir em desvios perigosos, como explica Starhawk (2007):
“às vezes, [a energia] flui para fora, estimulando-nos a mudar o mundo; outras, flui para
dentro, transformando a nós mesmos. Ela não se manifesta indefinida e exclusivamente numa
só direção” (p. 309). Ainda que ela também compartilhe e utilize de tal evocação por sua
força e poder transformador, por outro lado Starhawk observa que, nas últimas décadas, a

22
Sobre isso, é importante enfatizar que, além do que Starhawk expõe, a afinidade entre Paganismo e Ecologia, a
liberdade religiosa e a diversidade de expressão do divino são, também, características que atraem pessoas ao
movimento. Para outros, particularmente mulheres, o reconhecimento da sacralidade do princípio feminino – a
Deusa – constitui uma descoberta profundamente enriquecedora. Muitas pessoas veem na ética comunitária o
principal ponto de atração do Paganismo, enquanto outras, ainda, são atraídas pela ausência de dogmas e pela
valorização da liberdade individual de pensamento e de ação. Estas e outras razões contribuem para explicar o
crescimento do movimento em todo o mundo (Oliveira, 2009).

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“fascinação com o psíquico” e a constante busca pelo self nas sociedades modernas tem
promovido um desequilíbrio na forma de vivenciar o caminho espiritual. Essa tendência,
inclusive, acaba refletindo também na forma como nos apropriamos do poder espiritual de
algumas tradições – seja com o ritmo dos tambores africanos ou das cabanas de Lakota –,
incorrendo na romantização das pessoas que oferecem esses conhecimentos, mas não
participando das batalhas reais que estão sendo empreendidas pela liberação de suas terras e
sobrevivência cultural (Starhawk, 2007, pp. 328-329).
Starhawk, recorrendo ao círculo sagrado23, símbolo utilizado nos rituais pagãos, mostra
que a compreensão cíclica da vida não permite polarizações. O trabalho no círculo deve
alcançar aspectos que tratam do self, mas também da dimensão ecológica e comunitária da
vida:

O círculo é o círculo ecológico, o círculo da interdependência de todos os


organismos vivos. A civilização deve retornar à harmonia com a natureza (...) O
círculotambém é o círculo da comunidade. As antigas estruturas familiares, as redes
de apoio e carinho estão ruindo. A religião sempre foi uma fonte básica de
comunidade, e uma das funções vitais da espiritualidade feminista é a de criar novas
redes de envolvimento... (Starhawk, 2007, p. 320).

Assim, vemos como para Starhawk, é crucial que o retorno ao círculo seja
compreendido não apenas como uma prática para realização do poder pessoal, mas,
sobretudo, para que se honre cada aspecto do ritual no espaço sagrado e cada princípio que
constitui a Religião da Deusa; sendo eles a “imanência” da Deusa e a “ligação” entre todos os
seres e a “comunidade”, o que inclui nossa relação com a Terra. Ela explica que quando a
ânsia pela expansão da consciência leva à uma visão do interior que evita o contato com o
mundo em volta, isto pode representar uma limitação do potencial espiritual e da percepção.
A noção de “cura pessoal” deve, neste sentido, estar vinculada à realidade social mais ampla,
ao contexto sociocultural, a qual, não obstante, podem oferecer impedimentos reais para que
alguns indivíduos ou grupos, apenas com a força da vontade, consigam criar de modo
exultante sua própria realidade – “se a espiritualidade deve atender, verdadeiramente, à vida
(...) seu enfoque não deve ser a iluminação individual, mas o reconhecimento da ligação e
cometimento de um para com o outro”(Starhawk: 2007:317).

23
O círculo é disposto na Bruxaria toda vez que se dá o início formal ao ritual. “O círculo existe nos limites do
espaço e tempo comuns; encontra-se ‘entre mundos’ daquilo que é visível e invisível” (...) Quando organizamos
um círculo, criamos uma forma energética, uma fronteira que limita e contém os movimentos das forças sutis”
(Starhawk, 2007, pp. 116-117)

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Preservando a base ritualística da antiga religião, Starhawk tem mostrado, de dentro da
comunidade pagã, que “devemos nos livrar da tendência de associar religião e
espiritualidade com o afastamento do mundo e do campo de ação” (Starhawk, 2007, p. 19).
Sendo um dos princípios essenciais da thealogiaa noção de que a Terra é sagrada, ela adverte
que “é preciso agir para preservar e proteger a Terra” (idem) (...) “A Deusa somos nós e o
universo; ligarmos-nos a Ela significa nos envolvermos ativamente com o mundo e todos os
seus problemas” (p. 309). Neste sentido, ela vem mostrando através de publicações,
workshops, palestras e cursos que, na medida em que os problemas sociais e ambientais se
intensificam, a necessidade de um engajamento político mais ativo aumenta.

A Religião da Deusa é vivida em comunidade. Seu enfoque básico não é a salvação


individual ou a iluminação e o enriquecimento, mas o crescimento e a transformação
que nasce das interações íntimas e das batalhas comuns. A comunidade não inclui
somente as pessoas, mas também os animais, as plantas, o solo, o ar, a água e os
sistemas de energia que mantêm as nossas vidas (...). Em uma época de
comunicações globais, catástrofes e violência em potencial, a comunidade também
deve ser percebida como incluindo toda a Terra (Starhawk, 2007, p. 25-26 – grifos
meus).

Starhawk sempre se preocupou em mostrar que os valores que ela descreve como
estando vinculados à bruxaria, na verdade, permeiam muitas outras tradições religiosas e
culturas, tais como as indígenas, por exemplo, mas também tantas outras. Recuperar tais
valores de honrar a Terra, pode, sem dúvida, ser uma forma de realmente ajudar a enfrentar as
crises gêmeas: a ecológica e a social. Contudo, tão importante quanto recuperar tais valores é
coloca-los em prática. Ela conta que, após a escrita de The Spiral Dance, livro voltado
exclusivamente a ensinamentos de feitiços e rituais, ela sentiu grande necessidade de um
engajamento político mais ativo.

Nosso compromisso para com a Deusa levou-me, e a outros, em nossa comunidade,


a participar de atos diretos não violentos para protestar contra o poder nuclear, para
interferir na produção e nos testes com armas nucleares, para se opor à interferência
militar na América Central e para preservar o meio ambiente. Isso fez-me ir a
Nicarágua e a um trabalho contínuo para estabelecer alianças com negros e nativos
cujas próprias religiões ligadas à Terra e a regiões tradicionais estão sendo
ameaçadas ou destruídas (Starhawk, 2007, p. 19).

Do desejo de inserir a magia e os conhecimentos da Wicca e do neopaganismo para


outros contextos de ação, Starhawk, juntamente com outros bruxos, criaram o Reclaiming,
uma organização baseada na tradição da bruxaria, localizada em São Francisco, nos Estados
Unidos, mas que se estende a grupos de outras localidades, que se define como:

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uma comunidade de pessoas que trabalham para unificar o espírito e a política.
Nossa visão está enraizada na religião e magia da Deusa, a Força Vital imanente.
Nós vemos o nosso trabalho como ensinar e fazer magia: a arte de nos
empoderarmos uns aos outros. Em nossas aulas, oficinas e rituais públicos,
treinamos nossas vozes, corpos, energia, intuição e mentes. Usamos as habilidades
que aprendemos para aprofundar nossa força, tanto como indivíduos quanto como
comunidade, para expressar nossas preocupações sobre o mundo em que vivemos e
trazer à luz uma visão de uma nova cultura24.

Outra forma que Starhawk tem encontrado para colocar em prática essa
sensibilidadeeco-espiritual foi criando o Earth Activist Training25(EAT), curso oferecido por
ela voltado para o ensino da permacultura, que é um sistema de design ecológico, surgido na
Australia nos anos 70, que reúne um conjunto de princípioséticos, os quais, como ela mesma
descreve, poderiam ser facilmente os mesmo da tradição da Deusa ou de qualquer cultura
indígena. São eles:

Cuide da Terra, cuide das pessoas, cuide das próximas gerações obtendo apenas o
necessário e o justo; não use o mundo de forma exagerada nem devolva a ele seus
excessos. Juntamente com os princípioséticos, surge uma série de procedimentos
que nos ajuda a desenhar sistemas que supram nossas necessidades – de comida e
abrigo e até de entretenimento – ao mesmo tempo que regeneram o ambiente natural
ao nosso redor. (Starhawk, 2018, p. 61)

Através do conhecimento dessas organizações e espaços de diálogo e ação política,


tomamos nota de que Starhawk não está sozinha no trabalho de unir espiritualidade e
política26. Embora isto não defina o movimento neopagão como um todo, não podemos deixar
de notar que uma extensa rede de bruxos, praticantes da Wicca e do neopaganismo, bem como
pessoas ligadas à outras tradições espirituais, tem se dedicado a ações em defesa da Mãe
Terra, Gaia, ou Pachamama,e dos princípios do buen vivir, oferecendo ricas contribuições e
novas maneiras de compreender e colocar em prática uma espiritualidade-ecológica. Apesar
de toda a diversidade que caracteriza o movimento em torno das eco-religiões, todos parecem
caminhar para uma mesma direção: a criação de uma cultura regenerativa e pautada em

24
Texto original em inglês: “a community of people working to unify spirit and politics. Our vision is rooted in
the religion and magic of the Goddess, the Immanent Life Force. We see our work as teaching and making
magic: the art of empowering ourselves and each other. In our classes, workshops, and public rituals, we train
our voices, bodies, energy, intuition, and minds. We use the skills we learn to deepen our strength, both as
individuals and as community, to voice our concerns about the world in which we live, and bring to birth a
vision of a new culture”. Extraído em setembro de 2018 no site oficial do coletivo Reclaiming. Texto original no
linkhttp://www.reclaiming.org/. Acesso em outubro de 2018.
25
http://earthactivisttraining.org/
26
Como nos casos emque grupos de bruxas que se reuniram nos EUA para realizar um feitiço contra a
candidatura de Donald Trump. Reportagem acessada em outubro, 2018. Ver:
https://www.vox.com/2017/6/20/15830312/magicresistance-restance-witches-magic-spell-to-bind-donald-trump-
mememagic

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valores éticos. Estando muitos dessas religiões, tradições e espiritualidades orientadas pelo
tronco comum em torno do qual se unem as suas diferentes manifestações, Starhawk tem
identificado todas estas com o termo “Religiões da Terra”. A ideia de retornar ao círculo não
significa, necessariamente, abraçar especificamente a bruxaria, ela diz: “espero que a religião
do futuro seja multifacetada, brotando de várias tradições” (Starhawk, 2007, p. 320).
Falando, no entanto, estritamente da bruxaria, Starhawk esclarece que o significado que
ela atribui a Deusa corresponderia, justamente, ao de conexão com uma forma de visão que
favoreceria o processo de regeneração do nosso planeta, ao invés de sua destruição. A
“destruição da ordem natural” e o “nosso saque em relação aos recursos da Terra”, ela diz,
tem sido, naturalmente, justificados pela imagem que impregna nossa cultura de um Deus fora
da natureza. Contrariando e opondo-se radicalmente a esse princípio, Starhawk compreende
que o modelo da Deusa, imanente por natureza, estimularia o respeito pelo espírito sagrado de
todas as coisas vivas e, neste sentido, ela conclama que “a Bruxaria pode ser vista como uma
religião ecológica. O seu objetivo é a harmonia com a natureza, de modo que a vida não
apenas sobreviva, mas viceje” (Starhawk, 2007, p. 45). Tendo em vista a nitidez dos
problemas que afetam a saúde da Terra, declara Starhawk, a Religião da Deusa seria uma
tentativa consciente de reformular a cultura (idem, p. 26).
A construção de uma identidade religiosa centrada na natureza estaria, portanto,
concernente ao entendimento que ela faz da Deusa. Para ela, recuperar as tradições antigas
não se restringe a recuperar evidências históricas ou arqueológicas sobre o culto antigo a
Deuses pagãos, tão pouco deve ser entendido como uma tentativa de voltar ao passado. A
Religião da Deusa está interessada na recuperação de uma visão, um sentimento, uma intuição
e uma forma honrosa de estar com a natureza.

A religião da Deusa não se baseia na crença, na história, na arqueologia, em


qualquer grande Deusa passada ou presente. Nossa espiritualidade é baseada na
experiência, numa relação direta com os ciclos de nascimento, crescimento, morte e
regeneração na natureza e nas vidas humanas. Vemos a complexa teia da vida
entrelaçada como sagrada, isto é, real e importante, merecedora de proteção, digna
de ser defendida. Numa época em que todos os principais ecossistemas do planeta
estão sob ataque, chamar a natureza de sagrada é um ato radical porque ameaça o
valor primordial do lucro que nos permite despojar os sistemas básicos de suporte à
vida da Terra. E no momento em que as mulheres ainda vivem com a ameaça diária
da violência e com as realidades da desigualdade e do abuso, é um ato igualmente
radical imaginar a divindade como feminina e afirmar a natureza sagrada da
sexualidade e dos corpos femininos (e masculinos)27. (Starhawk, 2001 - tradução
livre)

27
Texto original em inglês: “Goddess religion is not based on belief, in history, in archaeology, in any Great
Goddess past or present. Our spirituality is based on experience, on a direct relationship with the cycles of birth,
growth, death and regeneration in nature and in human lives. We see the complex interwoven web of life as

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A percepção sobre a ecologia, o eminente apocalipse ambiental, explica Starhawk, tem
forçado todos nós a atentarmos para a interligação com todas as formas de vida. Esta
compreensão holística de integração da natureza, portanto, também é a base da religião da
Deusa. A ecologia, enquanto disciplina científica que surge na primeira metade do século XX,
ou enquanto um pensamento derivado de filosofias e movimentos sociais ligados à
valorização da natureza, difunde a compreensão compartilhada, também pelas religiões
neopagãs, de que a “natureza selvagem” não deve ser protegida apenas por seus atributos
recreacionistas e/ou paisagísticos, mas por serem parte de um ecossistema mais amplo do qual
a espécie humana depende e é parte.
A visão de preservação da diversidade de todas as formas de vida, afirma Starhawk, é
uma ética fundamental da Bruxaria – “servir à força da vida significa trabalhar para
preservar a diversidade da vida natural, para prevenir o envenenamento do ambiente e a
destruição das espécies” (Starhawk, 2007, p. 47). Para que essa visão promova a desejada
mudança cultural necessária, sobretudo, para reverter o quadro de degradação ecológica,
social, psicológica e espiritual, precisamos de imagens, mitos, símbolos e rituais que
expandam nossa percepção e nos dêem uma nova visão. Os símbolos antigos são importantes
pois ativam a visão holística e animista sobre a Terra, nos permitindo participar dos
elementos, do processo cósmico, dos movimentos das estrelas – ao invés de reduzir “a
experiência a um conjunto de fórmulas que nos separam uns dos outros e do nosso próprio
poder” (Starhawk, 2007, p. 314).

Os mitos e símbolos das religiões orientadas para a natureza também começaram


como metáforas da realidade observável: o movimento do sol e da lua, o
crescimento e a morte das plantas, o comportamento animal e as mudanças das
estações (...). Elas tocam as nossas emoções, determinando não somente aquilo que
conhecemos, mas, também, como nos sentimos em relação à natureza (Starhawk,
2007, p. 311)

Esse retorno ao sagrado da natureza significa uma reaproximação com o milagre


cotidiano, com um senso de temor, admiração e gratidão, ela diz, o que, todavia, também
exige um dever de compostar nosso próprio lixo e lutar contra uma usina nuclear perigosa. O
trabalho interior, espiritual, a meditação sobre o equilíbrio da natureza, pode ser considerado

sacred, which is to say, real and important, worth protecting, worth taking a stand for. At a time when every
major ecosystem on the planet is under assault, calling nature sacred is a radical act because it threatens the
overriding value of profit that allows us to despoil the basic life support systems of the earth. And at a time when
women still live with the daily threat of violence and the realities of inequality and abuse, it is an equally radical
act to envision deity as female and assert the sacred nature of female (and male) sexuality and bodies” –Texto
original no linkhttp://www.starhawk.org/. Acesso em outubro de 2018.

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um ato de bruxaria, mas ele se torna mais eficaz quando progride paralelo ao trabalho
exterior. Não obstante, Starhawk constantemente se refere ao valor de mantermos sempre uma
prática pessoal, na medida em que todo trabalho de transformação interna e de conexão com o
divino cria uma nova relação com a Terra e com as pessoas. Ao manter uma prática pessoal
de ouvir a terra, criamos um novo relacionamento que está se curando, não apenas para a
Terra, mas para nós mesmos. Pois quando estamos fora de comunicação com os elementos e
as energias e processos que sustentam nossas vidas, explica Starhawk (2007), não podemos
ser saudáveis e íntegros.

4. Considerações finais: ativar o animismo

“Algumas pessoas adoram dividir e classificar, enquanto outras fazem pontes”. Assim
começa o artigo escrito pela filósofa belga Isabelle Stengers, intitulado Reclaiming Animism
(2017). Neste belo trabalho, a autora faz uma reflexão contundente em torno da noção de
“animismo28” tomada do antropólogo francês Phillip Descola, ao que elaconvoca a todos –
acadêmicos, ocidentais, modernos – para uma escalada no pensamento, para uma aventura
científica – ao invés de continuarmos atados a mais um experimento validado dentro dos
critérios da “verdadeira” Ciência. Diante de tantas atrocidades e catástrofes anunciadas que
ameaçam e extinguem tantas vidas neste planeta, Stengers fala da urgência de reativarmos
(toreclaim) o animismo, como um exercício à superação de qualquer versão das “narrativas
épicas” que postularam a ascensão do cientista sobre toda e qualquer forma de conhecimento.
Por isso, construir pontes, no sentido colocado por Stengers (2017), diz respeito à
capacidade de tecer “relações que transformam uma visão em um contraste ativo, com poder
de afetar, de produzir pensamento e sentimento” (p. 02). Esta capacidade foi por ela
identificada em um encontro com as bruxas neopagãs contemporâneas e outros ativistas nos
Estados Unidos, ao que ela descreve que o clamor da neopagã Starhawk – "A fumaça das
bruxas queimadas ainda paira nas nossas narinas" – a fez compreender que o orgulho
moderno que herdamos nos faz “interpretar”, tratar em termos de “construções” ou meras
“crenças”, todo saber e prática que desafia os limites do racionalismo ocidental moderno.
Esquecemos que esta herança advém de uma “operação de erradicação cultural e social –
precursora do que foi cometido em nome da civilização e da razão” (Stengers, 2017, p. 9).

28
“A ontologia animista está presente em regiões da América do Sul e do Norte, e também na Sibéria e em
partes da Ásia. Sua característica principal é a imputação de subjetividade a plantas, animais e outros elementos
do ambiente físico de modo a estabelecer relações pessoais com eles” (Sá Junior, 2014, p. 19).

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Toda vez que classificamos a memória dessas operações como “sem importância” ou
“irrelevantes”, estamos dando força e perpetuando a “caça às bruxas” – ainda que “caçadores
de bruxas” não existam mais.
Pessoalmente, ter conhecido um pouco da trajetória da Starhawk, seja no neopaganismo
ou no ativismo político, tem me levado a ver como as tradições de culto a Terra e de
celebração da Deusa, mais do que um fenômeno estritamente religioso, podem ser pensados,
também, à luz das questões políticas atuais, entre as quais os problemas de ordem ecológica
ocupam lugar bastante central.
Diante do processo histórico que conduziu a ascensão da ciência em detrimento à outras
formas de conhecimentos, do mecanicismo cartesiano-newtoniano que funda o racionalismo
moderno, da definição da realidade enquanto experiência física e da natureza como mero
plano de fundo das ações humanas, o ato de recuperar o chamado “animismo”, no sentido
posto por Stengers, pode ser uma atitude essencialmente corajosa e politicamente desafiadora.
Nesse sentido, resgatar antigas tradições pré-cristãs e adentrar a política com elementos da
tradição da Deusa, menos do que requerer um regresso ao passado, são ideias que promovem
resistência aos postulados da modernidade secular, a qual, entre outras coisas, estabelece
fronteiras rígidas entre o natural e o sobrenatural, a natureza e a cultura, a política e o
espiritual.
Sendo Starhawk representativa do entrosamento cosmopolítico entre mundos – outrora
separados –, ela recupera a ontologia animista para saudar a Deusa e trazer de volta a imagem
da Bruxa em tempos onde falar em bruxaria significa sucumbir ao irracionalismo e ao
misticismo ingênuo e irracional. Assim, como uma ponte que conecta mundos, Starhawk traz
para dentro da comunidade pagã o engajamento com as questões sociais e globais que, talvez,
falte nestes espaços; ao mesmo tempo, convoca a sociedade de uma maneira geral para ouvir
a Terra sem medo, sem nos sentirmos como fazendo algo ridículo ou perigoso, sem que
pensemos ser isto algo que, obviamente, não é verdadeiro. A perseguição das bruxas deixou o
legado que cortou nossa sensibilidade e nossa intuição. Afim de superar a era da descrença, é
preciso resgatar a imagem da Bruxa.

Nossas ferramentas mágicas e insights, nossa consciência de energias e aliados em


muitos planos, podem aprofundar e informar nosso ativismo. E o nosso ativismo
pode aprofundar a nossa magia, encorajando-nos a criar um ritual que fala aos
desafios reais que enfrentamos no mundo, ofereça a cura e a renovação de que

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precisamos para continuar a trabalhar, e uma comunidade que entenda que espírito e
ação são um só29. (Starhawk, 2003 – tradução livre)

5. Referências bibliográficas

CASTRO, Dannyel T. A festa das almas: o culto aos ancestrais no neopaganismo. Rev.
Ultimo Andar. N. 28. 2016.
__________________. Entre carvalhos e samaúmas: a espiritualidade céltica
contemporânea entre a eco-religiosidade e a identidade regional. Diversidade Religiosa, João
Pessoa. n. 7. N. 1. 2017a.
__________________. Estudos sobre o neopaganismo no Brasil. Fragmentos de cultura. V.
27. N. 3. Goiânia. 2017b.
CRUZ, Patrícia P.; PEREIRA NETO, Francisco. A Ecologia e o Sagrado: a trajetória
antropológica de uma cosmologia contemporânea. Tessituras, Pelotas, v. 2. N. 1. P. 231-250.
2014
D’ANDREA, Anthony A. F., O Self perfeito e a Nova Era. Individualidade e Reflexividade
em religiosidades pós-tradicionais. Edições Loyola. Chicago. 2000.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo. Ed.
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FILHO, Celso Luiz. T. A Deusa não conhece fronteiras e fala todas as línguas. Um estudo
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Religião da Pontífica Universidade Católica de São Paulo. SP. 2016.
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e
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MAGNANI, José Guilherme Cantor, O Neo-esoterismo na Cidade, Revista USP, Dossiê
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OLIVEIRA, Aurénea M.; OLIVEIRA, Gustavo G. Modernidade, (des)secularização e pós-
secularismo nos debates atuais da sociologia da Religião. Revista Teologia e Ciências da
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OLIVEIRA, Rosalira. Ouvindo uma Terra que fala: o renascimento do Paganismo e a
Ecologia. Rev. Nures. N. 11. SP. 2009.
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SÁ JUNIOR, Luiz Cesar de. Philipe Descola e a Virada Ontológica na Antropologia. Revista
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STARHAWK. A dança cósmica das feiticeiras: guia de rituais para celebrar a Deusa. Ed.
Nova Era. 7a ed. Rio de Janeiro. 2007.
STARHAWK. Truth or Dare: Encoumters with Power, Authority and Mystery. San
Francisco. Harper Collins Publisher. 1989.
STENGERS, Isabelle. Reativando o animismo – Belo Horizonte: Chão de Feira, 2017

29
Texto original em inglês: “Our magical tools and insights, our awareness of energies and allies on many
planes, can deepen and inform our activism. And our activism can deepen our magic, by encouraging us to create
ritual that speaks to the real challenges we face in the world, offers the healing and renewal we need to continue
working, and a community that understands that spirit and action are one”. –Texto original no
linkhttp://www.starhawk.org/. Acesso em outubro de 2018.

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Saberes da terra em ritos familiares: vivências formativas religiosas

Earth knowledge in family rites: religious formation experiences

Maria Roseli Sousa Santos30


[email protected]

Resumo: O Artigo apresenta o resultado da pesquisa sobre as práticas formativas das famílias
pagãs wiccanianas que caracteriza o repasse do legado religioso. A ancoragem teórica traz
autores que tratam dos fundamentos da religião wicca, seus pressupostos históricos, porém
assentados no paganismo contemporâneo. Os aspectos metodológicos remetem à
hermenêutica e linguagem da religião com conteúdo produzido através de encontros que os
praticantes realizam em âmbito nacional e através de aplicação de entrevistas
semiestruturadas com oito famílias. Neste artigo trataremos do eixo: saberes e processos
formativos das famílias e os resultados ainda indicam que as vivências possibilitam às
crianças e jovens permanecer ou não na religião, dando continuidade ou não ao legado
religioso.
Palavras-chave: Paganismo; Religião; Wicca; Ritos familiares.

Abstract: The article presents the result of research on the formative practices of the
Wiccanian pagan families that characterizes the passing of the religious legacy. The
theoretical anchorage brings authors who deal with the fundamentals of the Wicca religion, its
historical assumptions, but settled in contemporary paganism. The methodological aspects
refer to the hermeneutics and language of religion with content produced through encounters
that practitioners perform at national level and through the application of semi-structured
interviews with eight families. In this article we will deal with the axis: knowledge and
formative processes of the families and the results still indicate that the experiences allow
children and young people opt for the permanence or not in religion, continuing or not to the
religious legacy.
Keywords: paganism; Religion Wicca Family Rites

Introdução

As escritas deste artigo dispõe o resultado da pesquisa sobre as práticas religiosas de


famílias pagãs wiccaniana se tratam de relatos que evidenciam as vivências ritualísticas que
caracteriza o repasse de saberes do legado religioso no interior dos grupos pesquisados.
A primeira etapa da pesquisa, realizada no período de 2015 a 2017, anunciou os
primeiros registros sobre as práticas religiosas com ênfase aos saberes da tradição, linguagens
e sistema religioso da Wicca31 de oito famílias do paganismo contemporâneo32 distribuídas
pelo território brasileiro, especificamente, pagãos que moram em Brasília, no Distrito Federal,
30
Doutora em Educação, professora adjunta II na Universidade do Estado do Pará.
31
A Wicca como os praticantes e pesquisadores afirma em sua maioria, é a bruxaria moderna; uma religião
iniciática e sacerdotal, centrada nos ciclos sazonais, e com grande ênfase para a figura da Grande Mãe, a Deusa,
personificada na Lua.
32
Termo que se refere aos praticantes de diversos segmentos de uma espiritualidade moderna centradas no culto
a natureza e seus ciclos, dentre elas, podemos citar, além da Wicca, o Druidismo, Azatrú, reconstrucionismo
Celta e Helenismo entre outros; que remete ao paganismo europeu anterior à era cristã.

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no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, Belém e São Paulo. O foco inicial centrou-se no estudo
das práticas religiosas formativas das referidas famílias e dispostas em três eixos: 1) criação
familiar e tradição religiosa; 2) compreensão familiar sobre a wicca e suas
vertentes/paganismo; 3) saberes e processos formativos de natureza religiosa e principais
ritos.
Para este artigo, destacamos dentre os eixos anunciadoso relativo aos saberes e
processos formativos das famílias compreendendo que no campo religioso historicamente a
formação religiosa esteve inicialmente na competência da família,assim como,é na família
que as crianças e jovens tem suas experiências de vida seja pelo ensino, pelos costumes,
tradições que lhes são repassadas e compreendem uma jornada que vai acompanha-lo a vida
toda de forma dinâmica e complexa a considerar as subjetividades e contexto religioso de
cada sujeito.
Tratamos a dimensão religiosa como a que se desenvolve na vida do ser humano e
que o faz estabelecer o encontro com o divino, independente das culturas, dogmas ou ritos
próprios das religiões que suas famílias professem.
O ser humano por si é um ser de espiritualidade diante de sua busca por respostas às
suas inquietações existenciais que surgem diante das percepções e das descobertas do mundo
ao seu redor. E o vínculo familiar demonstra constituir-se o lugar de apoio para as questões
existenciais e ou espirituais. A família, portanto é o lugar de acolhimento e afeto para seus
membros e vai configurando vínculos efetivos e neles estruturam-seatitudes, valores e ética
(NORONHA; PARRON, 2018).
Destacamos a literatura cientifica sobre a formação religiosa brasileira se expressa
como uma produção predominante cristã, própria das religiões dominantes do país e,
consideramos ainda que estasse erguem por um imaginário do Ocidente, que projetam práticas
híbridas das quais em sua essência são nutridas por elementos douniversocristão e do legado
milenar dos povos paganus33. Há de considerar que nesse universo a compreensão da
formação se dá diante das seguintes especificidades: uma relacionada à vida do praticante
comum, do fiel – àquelas direcionadas a natureza religiosa que o insere no seio dos ritos e
liturgias, e outra em relação à formação do sacerdote, dos mestres, ou às outras denominações
dos líderes dos segmentos religiosos.

33
Termo que vem do latim e refere-se aquele que vive no campo, ou pelo sentido que se ergueu após a
cristianização do Império Romano que se traduz por aqueles que adoravam o espirito de um determinado lugar,
localidade.

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Estamos tratando de saberes e processos formativos de famílias pagãs eenfatizamos
que,ao contrário da extensa produção acerca da formação religiosa dominantemencionada
acima, pouco se conhece sobre os processos de formação religiosa das famílias wiccanianas.
E há de ser considerar que a Wicca no cenário brasileiro é recente, mesmo que a literatura já
indique queo movimento pagão começa a ter visibilidade nas últimas décadas no cenário
brasileiro, seja através de teses e dissertações que hoje tratam do tema, ou ainda dos os livros
publicados(SANTOS, 2016).
Para avançar nos estudos propostos privilegiamos a dimensão qualitativa e
participante com aplicação de uma metodologia mista. O uso de técnicas etnográficas de
abordagem, entrevistas complementadas por coleta de história de vida. Houve por parte da
pesquisadora, a inserção direta nos rituais realizados nos encontros nacionais onde ocorrem as
jornadas espirituais com vivencias com as famílias que participam da pesquisa.
Das narrativas das famíliasestudadas na primeira fase da pesquisa,há indicativos de
que as vivênciasocorrem na dinâmica cultural e seguem os ciclos das celebrações sazonais e
em sua maioria constituem-se deritos: os de nascimento desde a descoberta da chegada de
uma nova criança, depois nos ritos de puberdade, nos de casamento e de morte e que estes
estão interligados ao movimento cíclico próprio que está relacionado ao princípio de sagrado
feminino e sagrado masculino.

Uma religião ligada aos saberes da terra

O paganismo contemporâneo se traduz no cenário brasileiro a partir das diferentes


vertentes de espiritualidade da terra ou “religiões da terra”, ou ainda, “religiões da natureza”
esses dois últimos termos mencionados pela pesquisadora Rosalira Oliveira (2010, p.32)
como sinônimos em seu estudo sobre Religiões da terra e ética ecológica para designar
“diferentes tradições nas quais o mundo natural (seus ciclos, animais, vegetais e/ou
características físicas) é visto como presença e expressão do divino”. São religiões com uma
diversidade de vertentes e mostram-se inspiradas em antigas práticas de povos como celtas,
nórdicos, egípcio, gregos, romanos, sírios, etc.
São inúmeras religiões e/ou espiritualidades e suas vertentes a compor o corpus do
paganismo brasileiro, porém optamos por centrar nosso estudo na religião wicca e suas
formas de repasse de saberes considerando-a como a mais conhecida, seja pelo construto
acadêmico ou pelas publicações de seus adeptos.

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A Wicca é uma religião mistérica e iniciática cujos princípios vinculam-se aos ciclos
da terra. Religião moderna, configurada como ramo da bruxaria e que se originou na primeira
metade do final do século XX, a partir das obras de Gerald Brosseau Gardner, antropólogo e
folclorista amador na Grã-Bretanha.
Em seus estudos sobre a institucionalização da Wicca no Brasil, Terzetti (2014),
anuncia que Gardner apresentou as crenças e rituais de uma religião ancestral em vias de
extinção e que a estrutura da Wicca baseava-se numa miríade de elementos de magia
cerimonial e teorias folclóricas que exerciam grande fascínio no meio ocultista. E destaca
ainda que, atravessando o Atlântico nas décadas de 60 e 70, aliou-se a contracultura
americana como “uma alternativa aos jovens do baby boom em relação a um establishment
cristão patriarcal, assim como se tornavaa face espiritualizada do feminismo contracultural
com as influencias de autoras como Z. Budapeste e Starhawk” e que, somente no final da
década de 80 e 90, a Wicca chega ao Brasil no bojo da Nova Era e suas espiritualidades
alternativas (TERZETTI, 2014, p.279).
O fato de a Wicca ser uma religião da natureza implica, na compreensão pelos seus
adeptos, que esta vai muito além das relações entre as pessoas, e estabelece conexão também
com os animais e natureza como um todo.A natureza é tida como a própria Deusa no mundo,
o que configura o aspecto imanente da deidade remete ao conceito de imanência absoluta
aplicado por Deleuze(2002, p.12), que vai ancorar em Spinoza para indica que além da
percepção de mundo que explica o transcendente “a imanência não depende de um objeto e
não pertence a um sujeito”, implicaria toda substância e os modos existem na imanência,
neste sentido o divino está em tudo. A Deusa é “mencionada como o sagrado absoluto criador
de si mesma (mito primordial) e de tudo que existe, inclusive seu consorte e filho e se
expressa nos ciclos de vida, morte e renascimento” (SANTOS, 2016, p. 34).
A dimensão imanente da religião wicca indica que tudo que é existente na
consciência humana tem si seu próprio principio e fim o que incide na própria cosmogonia
wiccaniana que estabelece a relação de que tudo está interligado. Essa premissa pode ser
compreendida na crença dos ciclos de vida e os ritos de fertilidade próprios da natureza.
A bruxaria moderna, como é conhecida a wicca, possui uma liturgia baseada na
recriação de cultos de fertilidade pré-cristãos tem nas festividades de colheita seu percurso
mítico advindo de diversas fontes da cultura europeia. A narrativa mítica configura o que os
adeptos na atualidade chamam de sua “roda do ano” é o corpo mítico, segundo Frazer (1999)
anuncia o ciclo de nascimento, vida, morte e renascimento de forma ininterrupta e, ainda,

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como a representação da união entre um princípio divino masculino e um feminino, pelo qual
a divindade se manifesta.
Os saberes ancestrais da Antiga Religião ligadas à natureza estariam, segundo
Margareth Murray (2006), na capacidade que a terra possui em gerar a vida e que vem desde
os povos paleolíticos e neolíticos na Europa. Sobre a relação da religião wicca e a sua relação
com a natureza, Claudiney Prietto (2009, p.21) nos diz que “A natureza é o coração e alma da
religião Wicca que ensina que todos os seres,animados e inanimados possuem vida e são
merecedores de nosso respeito e consideração”. Como sacerdote wiccaniano Prieto (2006)
manifesta em seu livro Wicca para Todos que a cosmovisão wiccaniana expressa, diferente
das visões das religiões patriarcais onde o homem se vê como explorador dos recursos
naturais sem se preocupar em honrar e proteger, que a natureza é vista como diferentes faces
da Deusa que se torna capazcuidar e proteger toda a vida e esse aspecto é precípuo para que
sacerdotisas e sacerdotes reverenciem a natureza e integrando ao seu sacerdócio diariamente a
ela.
O corpo mítico anunciado pelos teóricos e adeptos da religião, destacamos um dos
principais ritos presente nas liturgias pagãs da wicca que é o Grande Rito – GR, anunciado
como aunião entre o princípio divino feminino e masculino e que ocorre na maioria das
celebrações da religião. O GR é explicado por Gardner (2003) ao dispor que este ato mágico é
o cerne da Wicca e simbolicamente representa o casamento sagrado em que o athame é
mergulhado num cálice estabelecendo a unidade. O mesmo principio rege o calendário
wiccaniano no que eles chamam de Roda do Ano e representam os ciclos de colheitas. Para
Mavesper Cy Ceridwen (2014), bruxa brasileira, advogada epesquisadora datealogia
comparada, a Roda do Ano representa o encadeamento dos festivais sazonais de plantio e
colheita indicando que estes possuem sua origem nos primórdios dos tempos, no período
Neolítico, há mais dedez mil anos, quando surgiram a agricultura e o pastoreio.
Ceridwen (2014) chama a atenção que esses festivais não se restringiam as
festividades célticas, mas que os povos celtas viveram na Europa entre 2000 AEC – Antes da
era Comum- e 400 DEC – Depois da Era Comum), portanto, todas as culturas pagãs do
mundo celebraram os festivais da colheita e mais que um festival de um determinado povo,
celebra-se o que ela chama de a dança da natureza e a forma como a natureza se apresentou
aos nossos ancestrais. Indica a relação entre o tempo em que a agricultura e os ciclos dos
vegetais plantados, assim como a criação doa animais em cativeiro sinalizaram aos humanos
por observação, os ciclos solares com a dimensão de tempo.

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A relação simbólica que remete à união entre um princípio divino masculino e um
feminino e o calendário wiccaniano indicia um ciclo de celebrações que, para Ceridwen
(2014) tem diversas dimensões e funções sociais, além de claramente imbuída de
intencionalidade mágica, posto que as celebrações objetivavam a garantia das colheitas e a
permanência da vida humana diante dos rigores dos ciclos da terra, ao mesmo tempo, eram
marcadores de eventos como: namoros, casamentos, festas de maioridade, celebração dos
mortos – em função dos ciclos dessas colheitas.Significaria então, que a Roda do Ano seria
uma construção cultural humana diante dos eventos naturais e que os próprios eventos
naturais onde toda natureza do planeta apresenta ciclos quaternários bem definidos são parte
da criação humana. E geram os ritos propiciatórios de celebração para obter boas das
colheitas, assim como os rituais de magia simpática seriam desencadeados a partir dessa
interpretação dos ciclos sazonais.
Há diferentes formas de representações acerca da Roda do Ano, Ceridwen (2004)
afirma que a Roda do Ano é celebrada por diferentes tradições e esta pode ser também
definida por outras sazonalidades, como a egípcia ou a grega. E a mitologia central que seria
advinda de leitura dos povos antigos da Europa diante dos solstícios e as diferenças de tempo,
do nascer e do pôr-se do sol, do tempo de luz, dos nascimentos e de escuridão e de morte.
Então o mito da Roda do Ano anuncia quea Deusa engravida do Deus, o mata na colheita e
depois o faz renascer em seu ventre para recomeçar o ciclo.
O olhar investigativo sobre a natureza e a observação em profundidade dos autores
apresentados nos permite discorrer a compreensão de que a religião, ela mesma, numa forma
de linguagem teve seu berço na tradição interpretativa, seja pela tessitura revelativa, poética,
estética, extática (RICOEUR, 1998) e é a partir desta que nos posicionamos para o tema
abordado.

Os saberes, os processos formativos e repasses

Ao empreendermos o estudo sobre os saberes e ritualidades das famílias que vivem o


paganismo contemporâneo na wicca lidamos com a percepção de que suas bases teóricas e
filosóficas estão centradas em uma religião cujo sistema mágico-religioso é iniciático,
sacerdotale de culto à natureza. Essas três dimensões religiosas, segundo seus adeptos, são
instituídas numa dinâmica cultural cotidiana e em consonância com uma ética pagã. Portanto,
para conhecer a dinâmica das famílias com relação aos saberes formativos, devo esclarecer
que para os critérios da escolha definimos: famílias cujo núcleo familiar se apresenta com

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filhos; praticantes há mais de cinco anos e que vivem em sistemas de Círculos, Covens, Grove
e/Ou Tradições.
O fato de optar por famílias que possuíam filhos em idade escolar, deu-se levando
em consideração que a cultura de repasses das tradições ocorrem em situações da vida diária e
nas ultimas três décadas o paganismo contemporâneo brasileiro já demonstra um crescimento,
que pode ser observação nas participações dos eventos nacionais. Neste estudo há a
articulação entre a compreensão de famílias consanguíneas e de família estruturada a partir na
própria organização do covens compreendida como uma família de vínculo iniciático e
mágico.
As primeiras questões problematizadoras recairam sobre que saberes tratam acerca das
vivências formativas nas práticas cotidianas das famílias e como esses saberes são repassados.
Partimos da premissa freireana (1983) que a produção de saberes está engendrada na dinâmica
do real, nas instancias de circularidade dos processos educativos. Esse parâmetro incide
pensar que é na coletividade que parte as indagações do sujeito sobre ele mesmo e sobre sua
atuação em sociedade e as regras estabelecidas para as formas de convivências. Do sentido de
coletividades, disponho aqui um trecho de um texto disponível em vários sites da internet e
redes sociais que se intitula: Eu sou pagã hoje no Brasil, de Mavesper Cy Ceridwen onde é
possível identificar a natureza dos saberes que estão imbricados nas práticas pagãs, ela diz:

[...] Eu sou pagã hoje no Brasil e celebro a Roda do Ano criando junto com os
deuses e com as pessoas que me cercam a dança ancestral, refazendo os caminhos já
trilhados por nossos antepassados de uma maneira nova e em consonância com
nosso tempo. Levo minhas crianças às celebrações lunares e solares, desejando que
elas cresçam cada vez mais em consciência, auto-determinação, independência e
liberdade. Que elas possam fazer a magia do amor modificar os mundos.
Eu sou pagã hoje no Brasil, vivendo em cidades grandes sou uma bruxa urbana que
descobre a natureza nos locais mais inusitados. Danço minhas danças de poder nas
danceterias, ou vou para parques. Sempre que posso busco a mata, o cerrado e a
praia. Compro meus instrumentos em shoppings ou os faço com minhas mãos.
Reabasteço-me na natureza e dou poder a tudo que me cerca, vivificando com minha
magia tudo o que faço, de escrever um texto a preparar um almoço, da roupa que uso
ao modo como me movimento. Descubro a riqueza da minha terra, da herança
indígena às contribuições européias e africanas, e as honro em meus rituais sem
esquecer que a Deusa não tem nacionalidade, e fala todas as línguas [...]
Reabasteço-me na natureza e dou poder a tudo que me cerca, vivificando com minha
magia tudo o que faço, de escrever um texto a preparar um almoço,
da roupa que uso ao modo como me movimento.
Descubro a riqueza da minha terra, da herança indígena às contribuições européias e
africanas, e as honro em meus rituais sem esquecer que a Deusa não tem
nacionalidade, e fala todas as línguas.
Eu sou pagã hoje no Brasil e conheço muitos pagãos, cada vez mais gente que
acorda do pesadelo das visões retilíneas do universo e passa a sonhar o doce sonho
da Terra. (CERIDWEN, 2017, s/p).

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Sobre que saberes, o estudo indicou avançar sobre os aspectos dos rituais inscritos na
vida diária dos adeptos em seu núcleo familiar, indicando sua linguagem religiosa pelos ritos
de passagens e suas simbologias. Foram oitos famílias e de cada uma delas um representante,
sete mulheres e um homem que dos pontos comuns, anunciam que suas liturgias
compreendem: 1) um conjunto de celebrações referenteàs mudanças das estações (equinócios
e solstícios) e as fases lunares –sabbats/solares e esbats/lunares, rituais que se conectam com
os fluxos e refluxos trazidos para a Terra como parte das mudanças naturais; 2) que realizam
festivais honrando deuses específicos em determinadas épocas da Roda do Ano(que estas
celebrações podem ou não ocorrer em diversas partes do mundo em função de que são datas
em que esses deuses são celebrados por diversas culturas e povos). Celebraçõesmuita vezes
restritas aos grupos e/ou abertos ao público e, ainda, 3) que ritualizam cerimônias centradas
nos ritos de passagens próprios de cada família e em acordo com os parâmetros específicos de
cada vertentes e/ou tradição.
Dos ritos familiares, relacionados aos Sabbats e Esbats que representam o principal
elemento do calendário litúrgico wiccaniano e a maioria pratica no seu próprio circulo ou
coven seguindo o ciclo de nascimento, vida e morte expressada na face tríplice da deusa e do
deus, representada pela imagem da jovem, mãe e anciã que é vivida no ciclo mítico. Destaca-
se que, a maioria das famílias entrevistadas celebra a Deusa e seu Consorte, o Deus. Cada
círculo e covens se utilizam de um Deus especifico para o ritual seja um deus grego da
colheita ou um celta, ou germânico, ou mesmo uma deidade brasileira indígena, porém a
escolha atende a uma das representações da face tríplice que aquela deidade assume no
momento especifico do ciclo.
Cada celebração tem um nome especifico e, segundo Prieto (2009) quatrossabbats
maiores chamados de Sanhaim, Imbolc, Beltane e Lammas que celebram o ciclo agrícola da
terra e que tem seus nomes advindos da cultura céltica e, quatro sabbáts menores que são
Yule, Ostara, Litha eMabon, que marcam os equinócios e solstícios e a trajetória do sol. As
famílias quando se preparam para as celebrações elas vivem o que elas chamam de “energias
do ciclo” e essas energias são as energias da terras e da vida presente nela que move e que traz
as mudanças. As casas, os alimentos, as vestimentas tudo vai compondo a celebração até que
o dia propriamente do rito torna-se o dia da festa, da família e da comunidade.
Outro espaço de construção e de pensar como ocorre o repasse de saberes éanunciado
quando as famílias relatam sobre as práticas dos ritos familiares. As maiorias da literatura de
natureza religiosa que apresenta discussões acerca dos ritos de passagens indicam que eles são
todos os rituais e cerimônias que propiciam a passagem de uma pessoa para uma nova forma

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de vida ou um novo status social. São ações que se repetem na dinâmica e organização de um
grupo auxiliando a dinâmica interna e dando significado, poissão passados de geração a
geração. Todas as culturas demonstram ter seus ritos de passagem, o que mudam são as
formas de fazê-los. Nas sociedades antigas ocorriam as cerimônias especiais muito
conhecidos como ritos iniciáticos que marcavam uma transição do indivíduo, e a sua
progressiva aceitação e participação na sociedade na qual ele vivia. Esses ritos são, diríamos
universais para os diversos grupos étnicos no mundo: são ritos de nascimento, quando se
chega à idade adulta, o casamento e a morte, intimamente relacionados ao aspecto divino de
determinada coletividade.
A maioria dos ritos antigos era acompanhada de cantos, orações e invocações às
deidades. Por exemplo, se fosse rito de gestação ou parte, estaria relacionado à deusa ou
deusasresponsáveis por esse ciclo da vida. A maioria das práticas religiosas tem seus ritos de
passagens, no judaismo: a circuncisão; no cristianismo: o batismo, a primeira comunhão, o
crisma; nas religiões afro: iniciação ou feitura de santo, e ainda hoje acontecem esses ritos. Na
Wicca, a literatura de Prieto (2009) e Fauer (2003) apresentamos principais ritos de passagens
praticados nesta religião. Trazem um legado inspirado nos povos antigos, porém atualizam
para um novo sentido da vida pagã diante dos fundamentos aqui já anunciados para a religião
e, apontando para uma ética que busca a reaproximação com a sacralidade da terra, do saber
viver em honra aos espíritos ancestrais.
A literatura dos praticantes da wicca acima mencionadas indica que cada rito de
passagem traduz um processo iniciático, envolvem uma mudança ontológica e apresentam
um os mistérios da jornada dos praticantes que passam por eles. Prieto (2003) menciona que
esses ritos são muito mais que rituais sagrados, são na verdade marcam a vida de um
wiccaniano e são carregados de um processo mágico e social que prepararão as pessoas para
viverem em comunidade e para a vida em todas as suas manifestações acolhendo geralmente
as três fases da vida humana: o Nascimento, vida e morte. Destaca entre os ritos mais comuns
os ritos de unção que ocorre nos primeiros dias de nascimento de uma criança; o wiccaning,
que é o ritual que a criança é apresentada à Deusa e ao Deus, cuidando de sua proteção dos
Deuses assim como, terá auxilio de seus padrinhos, porém não significando que ela esteja
comprometida com a religião de sua família, o que deverá ocorrer somente quando a criança
chegar a idade que tenha capacidade de decidir qual é o melhor caminho espiritual para ela
mesma; os ritos de puberdade que são rituais para marcar a passagem de uma pessoa para a
fase adulta, onde as meninas vivem os mistérios do sangue, com a menarca e os meninos
vivem o encontro com os mistérios masculinos quando vivem, o rito de Transição; o

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handfasting, que é o rito de enlace e significa “União das Mãos”, o casamento pagão que
ocorre quando duas pessoas decidem se unir para viverem juntos como casal, muitas tradições
fazem a renovação desses votos por mais duas rodas; o handparting, que ocorre quando
duas pessoas que se uniram através do Handfasting decidem se separar, elas desfaçam sua
união perante os Deuses. O ritual do croning, é um ritual das anciãs, que marca a menopausa,
quando se torna a sábia e são reverenciadas como a memória viva do mundo e eram as
Guardiãs da sabedoria ancestral de sua cultura, para os homens esse ritual chama-se saging e
ainda o réquiem, que é a cerimônia Pagã de morte, onde os Portais do País de Verão sejam
abertos para que a alma da pessoa possa passar. Vividas para algumas tradições em três
momentos: no enterro da pessoa, a outra uma lunação após a morte e a terceira, um ano e um
dia após a data do falecimento.
São inúmeras as ritualísticas da vida pagã, as anunciadas acima são as principais. No
universo pagão pesquisado foi possível identificar que as famílias já vivenciaram os rito da
unção do nascido, wiccaning, rito da menarca e ritos de Apolo (identificado em uma das
tradições como o rito masculino relativo a puberdade. A maioria dos entrevistados realizaram
o handfasting.
As famílias vivem a dinâmica dos rituais de forma contínua e os ritos são realizados
de forma restrita, somente é possível participar caso seja convidado e com participação
deliberada no coletivo do coven e/ou círculo. Observamos que a participação das crianças e
jovens ocorre na dinâmica dos preparativos das celebrações dos Esbats e sabbats de forma
natural e não é obrigatório a participação nos ritos propriamente dito. Inclusive, raramente se
observou crianças nos esbats, porém nas festivais específicos e sabbtas elas estavam mais
presentes.
Os ritos de passagens que as crianças vivenciam até que estejam na puberdade não
éconsiderada como a inserção propriamente de seus filhos na religião, e sim uma dinâmica
sociocultural que implica que crianças e jovens cheguem a maior idade (18 anos) e venham
por si optar a permanência na religião e assim dar continuidade ao legado religioso. Há a
preocupação pelos pais pagãos de que seus filhos compreendam a dimensão ética e percebe-se
a preocupação de que haja compreensão da natureza imanente das deidades, de que tudo é
sagrado no corpo da deusa e que há um aspecto valorizado de valorização dos saberes
ancestrais, de culto e preservação da natureza e manutenção de seus ciclos como condição de
sacralidade e de visão de futuro. Consideram todas as coisas sagradas e a vida como a grande
dádiva da Deusae cuida-la significa manter o legado.

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As famílias demonstram que os ritos de passagens vividos pelas filhas e filhos são
naturalmente recebidos por eles como desejo dos mesmos, pois estão imersos na dinâmica das
ritualísticas e quando chega “o tempo” eles já começam a manifestar o interesse e “puxar
conversa” sobre o assunto, portanto a apropriação dos saberes ocorre nos fazeres da vida
mágico-religiosa.

Considerações finais

As vivencias formativas religiosas na dinâmica das famílias wiccanianas envolvidas


neste estudo ainda estão a ser constituídas na história recente do paganismo contemporâneo
brasileiro. A possibilidade de compreender as três dimensões dos seus saberes e dos repasses
dos mesmos, seja nos rituais da dinâmica vividas nas celebrações da Roda do Ano; seja nos
ritos de passagens de seus filhos que se inserem na dinâmica cultural religiosa e, ainda nas
celebrações de festivais privados ou públicos permitem o anuncio de uma dinâmica complexa
da cultura religiosa vividas pelas famílias que ainda está para ser partilhada com os espaços
acadêmicos, resguardadas o que não nos foi permitido socializar com o publico em geral.
A relevância de trazer as primeiras de uma pesquisa que ainda está em andamento, e
já apresenta as imagens de uma vida pagã em família e não necessariamente, apenas um viés
de prática somente solitária, é um elemento a meu ver novo na literatura religiosa em questão.
O paganismo contemporâneo se percebe então, como constituição de famílias consanguíneas
partilhando de uma vida religiosa e, ainda de, um outra família que se institui por laços
mágico e iniciático na dimensão de sua estrutura de covens ou círculo. Ao mesmo tempo vê-
se que os saberes da religião estão embebecidos com um compromisso sacerdotal de
reconciliação com a natureza em sua sacralidade e ao mesmo tempo na perspectiva de uma
posição ativista no discurso que indica que o paganismo cresce no Brasil numa dimensão
familiar e assume uma posição de reverencia e preservação à natureza o retorno ao culto a
Grande Mãe e seu consorte.

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Um circuito de autonomia: Wicca, Nova Era e a polêmica da
representatividade

A circuit of autonomy: the Wicca, the New Age and the polemic of social representation

Dartagnan Abdias Silva34


[email protected]

Resumo: A Wicca caracteriza-se por ser uma religião autonômica, ecológica e de


privatização religiosa. Herda dessa constituição um processo de (re)encantamento do mundo
e, ambiguamente, de manutenção do mundo secularizado em que vivemos. Contudo, uma
questão fica levantada e parece permanecer no ar: a representatividade, seu movimento de
“institucionalização” que passa a ser amado e repreendido pelas consequências de sua própria
autonomia. Esta teria levado a Wicca a uma disputa interna por legitimidade e uma igual
repulsa a institucionalização. Teria ficado instituída, então, uma “guerra de egos” interna e
uma polêmica crescente sobre quem pode ou não representar a religião, quem é ou não de fato
wiccano.
Palavras-chave: Wicca, Nova Era, Autonomia.

Abstract: Wicca is characterized by being an autonomous religion, ecological and religious


privatization. It inherits from this constitution a process of (re)enchantment of the world and,
ambiguously, of maintenance of the secularized world in which we live. However, a question
is raised and seems to remain in the air: social representation, its movement of
"institutionalization" that is now loved and reprimanded by the consequences of its own
autonomy. This would have led Wicca to an internal dispute for legitimacy and an equal
repulsion to institutionalization. An internal "war of egos" and a growing controversy over
who may or may not represent socially this religion, who is or is not actually wiccan.
Key words: Wicca, New Age, Autonomy.

Introdução:

Esse trabalho visa levantar reflexões e discussões a respeito da constituição da Wicca


no campo religiosos brasileiro através dos estudos e resultados obtidos durante meu processo
de mestramento (2015-2017).
Nesse processo, estudei e acompanhei a instituição religiosa wiccana União Wicca do
Brasil (UWB), sediada no Rio de Janeiro (RJ). A partir de minha imersão em campo, pude

34
Doutorando e Mestre em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), graduado em
Ciências Sociais pela mesma instituição. O presente trabalho foi realizado com o Apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – código de financiamento 001.
Phd Student and Master in Religious Studies by Universidade Federal de Juiz de Fora - Brazil (UFJF), graduated
in Social Sciences by the same institution. Thisstudywasfinanced in partbythe Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - FinanceCode 001.

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constatar questões proeminentes e importantes que parecem tangenciar a estrutura com a qual
a Wicca se insere no Brasil, levando em consideração que ela é uma religião moderna, criada
em 1951 pelo inglês Gerald Gardner, e que sofre contínuas e fortes influências do movimento
Nova Era, se mostrando muitas vezes como componente desse circuito, que Magnani (1999)
chama de “Circuito Neo-eso”, e outras vezes como um ponto de instância frente a errância
característica da Nova Era.
O que se revela então é que a Wicca absorve modernamente as constituições
novaeristas a respeito da autonomia e privatização religiosa e isso se desenvolve levando a
uma crise a respeito de sua institucionalização, o que conduz ao que chamo aqui de polêmica
da representatividade. Essa polêmica parece se acentuar ao ser consecutivamente marcada
pelo que foi chamado pelo campo de “guerra de egos”.
Ao levantar tais constatações, o presente artigo, visa trazer resultados e apontar
discussões dessa religião que se insere tão perfeitamente no campo religioso brasileiro, e que
parece estar num processo de definição / institucionalização, enquanto religião. A costura
desses retalhos, parece ser a direção para compreender o a Wicca enquanto religião moderna,
de contracultura que vem atraindo mais e mais adeptos na última década.
Cabe, por fim, lembrar ao leitor, que os nomes dos informantes e interlocutores são
fictícios, respeitando os termos de consentimento desses interlocutores ao não ter seus nomes
originais citados, a isso, faço exceção aos nomes de lideranças atuais com quem trabalhei
diretamente.

Wicca, Nova Era e o Circuito de Autonomia:

A Wicca de Gardner (hoje chamada de Gardneriana, uma tradição reconhecida e viva


da Wicca) preserva um arcabouço ritualístico e secreto muito típico das ordens místicas. Já as
comunidades wiccanas mais comuns no cenário brasileiro trazem a abertura que Carozzi
(1999) descreve ter ocorrido no complexo alternativo, ao começar a produzir seminários
abertos ao público, de forma que a frase “a própria organização em rede do movimento da
Nova Era constitui uma nova expressão do aspecto autonômico” (idem, p. 161) pode ser
perfeitamente aplicada à Wicca brasileira na atualidade. A Wicca hoje é uma religião formada
por uma rede de tradições interligadas por um credo básico, completamente integradas nas
redes Nova Era e no circuito Neo-Esotérico (Osório, 2001 e 2005; Ribeiro, 2003).
Segundo Carozzi,

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para o marco interpretativo do complexo alternativo, a incorporação à rede na Nova
Era supõe uma transcendentalização da autonomia. A ampliação da consciência já
não pretende só a superação dos condicionamentos sociais à procura da
autorrealização e o desenvolvimento de potencialidades individuais, mas o
descobrimento de uma centelha divina no interior do homem que o une
energeticamente a um tudo divino que o inclui e supera. A consciência individual
ampliada torna-se consciência planetária e cósmica, outorgando à autonomia um
novo significado. Ser socialmente autônomo é ser agora divino e estar ligado a uma
totalidade divina. (1999, p. 160).

É visível que a Wicca segue as mesmas ideias em seu credo básico. O culto à Deusa, como
sendo uma entidade imanente e transcendente. Imanente porque ela se manifesta na natureza e
é a própria natureza e tudo que há nela, inclusive nós, humanos. Transcendente porque a
Deusa supera toda a existência, ela a produz, a conduz, a destrói e a renova. Ela é a condução
do Ciclo da Vida que perpassa a toda manifestação, e o controla segundo suas fases,
relacionadas ao ciclo lunar: crescente, cheia, minguante e escura –, Jovem, Mãe, Anciã e
Tríplice. Ela se apresenta à humanidade em sua totalidade natural e transcendente, em sua
imanência através da natureza ou através de suas faces35.
A Deusa possui um consorte natural, o Deus. Ele é a expressão do próprio Ciclo da
Vida, é aquele que nasce, cresce, morre e renasce, tendo essas etapas conduzidas ou
protagonizadas pela Deusa que é sua mãe, sua amante, sua amiga. Esse deus, também
imanente e transcendente, é a própria vida e a própria existência, representada, igualmente, na
sua totalidade natural e transcendente, em sua imanência através da natureza ou através de
suas faces36.
Vivenciar a Wicca, portanto, é conectar-se com a natureza, e aliar-se a seu poder
divino, transcendendo a si mesmo e ao mundo, para chegar à Deusa, e depois, retornando ao
mundo, conectado, potencializado, divinizado. É então que o homem pode integrar-se à
natureza, reconhecendo-a como divina e a si mesmo como divino e integrado à totalidade
existencial.
Ou seja, primeiro a transcendência, depois a imanência. Primeiro é preciso alcançar o
divino. Depois, integrar-se, atuar no mundo compreendendo que ele é divino, assim como
também o somos. Contudo, a transcendentalização é autônoma e individual. Por mais que o
indivíduo participe de covens ou de grupos fechados, ou mesmo sendo um solitário em sua
prática, a transcendência é um caminho que se trilha sozinho, porque ele requer que o
indivíduo vá ao âmago de sua existência, encontre em si a centelha divina, se reconheça como

35
Para os wiccanos todas as deusas existentes no mundo são expressões ou arquétipos da Deusa.
36
Também, para os wiccanos, todos os deuses existentes no mundo são expressões ou arquétipos do Deus.

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uma parte da própria Deusa. É nessa subjetividade que ele se conecta com o todo divino e que
ele passa a atuar no mundo como um ser espiritualizado.
Percebe-se também a pretensa holística como constituinte da própria Wicca: a Deusa é
tudo e tudo é a Deusa. Não importa o caminho que se trilhe, tudo te conduz a Ela. Podemos
novamente enganchar a Wicca no movimento Nova Era, ao reconhecermos a importância
similar da autonomia em ambos os movimentos.

A autonomia da Nova Era é a autonomia do indivíduo em relação com qualquer um


e todos os aspectos de sua socialização, autonomia individual em relação com
qualquer influência ou modelo externo, autonomia individual absoluta como forma
de encontrar o Deus dentro, a centelha divina, o Eu Superior, o guia interior.
(Carozzi, 1999, p. 164).

No caso da Wicca, aplicamos a autonomia no que diz respeito aos métodos, às práticas
mágicas e religiosas37e à socialização interna a esse “circuito Neo-Eso” (Magnani, 1986). O
indivíduo tem livre circulação entre as práticas e os grupos, e é livre para montar sua própria
interpretação e estrutura prático-religiosa, visando alcançar a Deusa (a centelha divina) em
seu interior. Existe um grau de controle (ou tentativa) por parte dos grupos, associações e/ou
covens, mas delas falaremos mais adiante. O que nos interessa aqui é que essa autonomia
(como centro e característica essencial da Nova Era), está absolutamente presente na Wicca.
“Essa irreverência espiritual se manifesta em um tipo de errância individual que
contribui para uma religiosidade porosa, aberta para os vários campos espirituais disponíveis.”
(Amaral, 1994, p. 34, grifo da autora). Esse movimento, Amaral chamou de “espiritualidade
caleidoscópica” (idem), como uma forma de definir essa (re)apropriação e manipulação
sincrética – e eu acrescentaria eclética - que os novaeristas – no nosso caso, os wiccanos –
fazem das diversas tradições culturais religiosas e não-religiosas de que tem acesso (Amaral,
1994).
É perceptível que há um confronto explícito da composição desses arranjos religiosos
híbridos de várias tradições e culturas de maneira muito mais eclética do que sincrética.
Contudo, esse cotejo é suavizado ou atenuado, no caso wiccano, por sua pretensão holística:
“tudo é a Deusa”. Dessa forma, não pode haver defrontação ou incompatibilidade em
tradições ou religiosidades distintas, elas precisariam, portanto, serem compreendidas em sua
conectividade e unicidade transcendente; de modo que

37
Terapias holísticas, trabalhos com chakras, encantos, poções, trabalhos com ervas, rituais e práticas religiosas
oriundos de várias outras religiões, trabalhos energéticos e limpezas de aura, meditações e todas as demais
práticas situadas no circuito Nova Era também fazem parte das práticas wiccanas. Contudo, na Wicca elas são
ressementizadas, uma vez que são retiradas de seu significado original e inserido na perspectiva holística: “tudo
é a Deusa e todas as honras são em seu nome”.

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pela irrelevância espiritual do trânsito, os peregrinos da “Nova Era” [os wiccanos]
não demonstram a pretensão de encontrar uma unicidade coerente, fechada e
completa, mas de realizar um jogo combinatório de completa liberdade em
estabelecer relações não-usuais e contraditória. (idem, p. 34).

Enfim, só nos resta concordar com Osório (2006) e constatar que a Wicca faz parte da
Nova Era. Ela também estava em seu processo embrionário e hoje está completamente
abrigada no seio de sua própria gestação.
Uma frase particular que demonstra o caráter autonômico desenvolvido na Wicca foi
proferida pela bruxa e escritora Ligia Amaral Lima – dona da Loja Jeito de Bruxa, introdutora
das Runas como oráculos no Brasil e uma das primeiras bruxas modernas a se assumir como
tal no cenário brasileiro – no I Seminário sobre Paganismo da União Wicca do Brasil em
setembro de 2015. Na ocasião, a bruxa terminou seu discurso contra o que ela chamou de
“guerra de egos” no cenário Pagão com a seguinte frase “nós não somos os escolhidos, somos
os autointitulados. Devemos viver em perfeito amor e perfeita confiança. E assim podemos
ser porque a Deusa e o Deus nos permite”.
Os escolhidos a que ela se referia seriam os cristãos, que pregam a salvação ou a
eleição ao reino celestial e que marcariam, segundo a autora, uma era de ego e patriarcado na
humanidade. O Paganismo, que teria vindo em resposta, traria novamente a ordem “natural”
do equilíbrio no qual ninguém precisaria ser eleito, pois a salvação viria da harmonia com a
vida e a natureza sagrada. Desse modo, nenhum pagão precisa de credencial para se dizer
como tal, ou para se intitular bruxo ou sacerdote. Essa postura vem da convivência harmônica,
contrária a postura baseada em egos, manifestada por uma das frases mais famosas da Wicca
desde sua criação, geralmente proferida no início de todo ritual: “estou aqui com amor e
confiança plenos”.
A relação que se vê é de autonomia. Quando se acessa a divindade que reside dentro,
transcende-se ao nível do sagrado, reconhecendo-se como tal. Esse movimento permite ao
praticante tomar para si uma atitude completamente autonômica, respaldada na totalidade e no
holismo da Deusa e do Deus. Um wiccano pode ser tudo o que ele quiser, e cultuar tudo o que
ele queira, desde que o faça com amor e confiança plenos.
O ego citado, e praticamente tema das discussões do I Seminário sobre Paganismo em
2015, refere-se exatamente ao ponto sensível que tange essa pesquisa: a disputa por espaço e
representatividade entre as lideranças (ou supostas lideranças) do circuito wiccano.
Adiantamos que esse ego se manifesta por pessoas ou grupos que vão exatamente na
contramão desse princípio autonômico, que censuram ou direcionam as práticas wiccanas
tidas como mais corretas ou de maior credibilidade, e elencam ou canalizam para si um poder

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credenciador de práticas e personalidades “verdadeiras” no circuito. Obviamente que essa
discussão é de profunda sensibilidade à comunidade wiccana como um todo, e dificilmente é
tocado sem alçar polêmicas. Contudo, divide a comunidade entre os que acreditam na
necessidade de entidades representativas e as que acreditam nos benefícios da ausência
dessas. No meio desse dilema, na tentativa de fazer o diálogo entre as extremidades, encontra-
se a União Wicca do Brasil, estudada nessa pesquisa.
Quanto ao “amor e confiança plenos” citado, é preciso entender sua abrangência.
Quando se fala em amor, fala-se na totalidade do credo wiccano, que o prega como a resposta
e a mais imortal das coisas. Para os adeptos, o mundo é formado e mantido por ele, que aqui
não é entendido apenas como o amor conjugal. Mas a Deusa é Mãe, Esposa e Amiga,
manifesta em sua tríplice forma uma relação de amor e cuidado. É através dele que a vida é
mantida e renovada, e é essa força que une todas as diferenças e singularidades. Assim, é esse
sentimento a manifestação das próprias deidades no mundo. A confiança resgata a noção de
respeito, de entrega e de amor necessárias para o convívio. É preciso confiar primeiramente
no ciclo natural, na Deusa e no Deus, é preciso confiar em si como centelha divina, nos
sacerdotes que guiam seu processo sagrado e sacerdotal, pois são eles os nossos condutores
até a Grande Deusa. Apenas com confiança um ritual pode ser feito, um encanto terá efeito. A
confiança e o amor geram respeito e gratidão, e assim marcam a autonomia tão contrária aos
posicionamentos egocêntricos denunciados pela Bruxa Ligia Amaral.
Cada wiccano tem total liberdade para montar sua prática ou seu conjunto de práticas.
É indispensável dizer que muitos deles participam de grupos wiccanos e assim tendem a
seguir as práticas de acordo com o credo ou conduta do grupo. Mas mesmo esses possuem
autonomia para montar seu altar e práticas individuais como considerarem mais adequado, e
para participarem de mais de um grupo com práticas semelhantes ou diferentes entre si.
Quando se fala dessa autonomia, pode nos parecer, a primeiro momento, uma mistura
completamente desprovida de base ou de pesquisa, a respeito das raízes que as práticas
incorporadas manifestam. Contudo isso não é verdade. Os wiccanos são orientados a
pesquisarem sobre as práticas que incorporam, a evitarem energias que possam ser
conflituosas em suas práticas e a seguirem seus hábitos com respeito à tradição da qual eles
provém. Ainda assim, evidencia-se que essa já é uma prática desenraizada, permitida por um
processo globalizante do mundo atual, ressematizada de acordo com o arcabouço cultural e
religioso de seu novo praticante, e, por isso, já não pode mais se dizer que seja a mesma
prática vivenciada em sua origem. Mas dentro do credo wiccano isso é perfeitamente possível
e compreensível: afinal, tudo o que existe é manifestação do Deus e da Deusa e assim pode

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ser interpretado de diversas formas, mas no fundo terá sempre a mesma finalidade. Ou seja,
Oxum, Afrodite, Bloddweed nada mais são do que facetas do amor, paixão e romance que
pertencem a natureza divina da Deusa, e assim a orixá africana, a deusa grega e a deusa celta
nada mais são do que emanações, faces ou arquétipos da expressão do amor que é uma das
características da Grande Deusa. Isso permite que, em um ritual ou prática amorosa, as três
sejam igualmente reverenciadas, descontextualizadas de seus ritos e performances originais.
Por fim, outro ponto da autonomia que é muito presente são as autoiniciações, ou os
livros e métodos wiccanos. Muitos sacerdotes (nacionais e internacionais) escreveram livros
de maneira a orientar a prática wiccana de novatos ou iniciantes. Como a maioria dos
wiccanos vivencia sua religiosidade de maneira solitária (sem participar de grupos), esses
livros são bastante populares como métodos de estudo e direcionadores das práticas
individuais. Contudo, em sua maioria, os livros indicam rituais iniciáticos ou sugestão a eles,
o que leva muitos leitores à autoiniciação. Entre os defensores de uma representatividade da
comunidade wiccana, é consenso a discordância a esse processo autoiniciante. Esses
defensores acreditam que apenas a leitura de livros e métodos não dá ao praticante pleno
conhecimento da profundidade da mística e da crença wiccana, tampouco de seu caráter
sacerdotal. Assim, o iniciante não teria base energética nem espiritual para um ritual dessa
profundidade. E talvez aqui a autonomia parece encontrar sua primeira restrição: a Deusa é
tudo e tudo é a Deusa, mas compreender essa totalidade requer práticas e ensinamentos que
não poderiam ser desenvolvidos individualmente, apenas na leitura de livros e métodos.
Todos podem vivenciar e se conectar com a Deusa, mas se tornar wiccanos iniciados,
sacerdotes, é algo que requer um estudo e comprometimento mais profundo que deveria ser
herdado das tradições wiccanas, mesmo que oriundos de tradições familiares38. A autonomia
de práticas, não significaria, portanto, autonomia para auto iniciar-se.

A polêmica da representatividade:

Criada em julho de 2004 no Rio de Janeiro, a União Wicca do Brasil é uma associação
sem fins lucrativos que visa a representar politicamente a comunidade wiccana e pagã como
um todo. Segundo o sacerdote OgSperle, seu atual presidente, o projeto tem como objetivo

38
As tradições familiares nada mais são do que a manutenção de conhecimentos e tradições de magia herdados
de geração em geração, ou resgatados de um ancestral que praticava artes mágicas no passado. Nem toda
tradição familiar é wiccana, mas toda tradição familiar pode ser incorporada a Wicca. A própria Bruxa Ligia
Amaral, por exemplo, se diz descendentes de Strigas (bruxas italianas de tradição familiar) e assim além de
wiccana é também sacerdotisa de uma tradição familiar que foi passada a ela a partir de sua avó.

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unir a comunidade wiccana e pagã em sua diversidade de maneira a divulgar corretamente as
religiões pagãs e mediar os conflitos e disputas inerentes ao campo.
Desde sua criação, a UWB tem passado por polêmicos episódios junto a outros grupos
e associações, mais especificamente junto à ABraWicca (Associação Brasileira de Arte e
Filosofia da Religião Wicca) e ao aqui chamado Cristiano, ex-presidente da ABraWicca. Em
2014, no Facebook se observou uma campanha intitulada “A UWB não me representa”.
Viralizada na internet com o apoio de Cristiano, a campanha questionava a legitimidade da
UWB ao ter dado voz a um possível falso wiccano que teve seu pedido negado a participar de
grupos wiccanos no Brasil e em Portugal. Em justificativa, a entidade negou ter conhecimento
completo das sabotagens que o “falso wiccano” teria realizado em perfis falsos pelo
Facebook, que difamaram os grupos por onde ele tinha passado e afirmou sua intenção de
representar e “abrigar” todo pagão e wiccano que recorresse a ela.
Esse é um projeto e uma fala muito comum de Sperle, que em 2015 me disse:

Nosso projeto não é pleitear melhorias pra nossa comunidade só não. A gente luta
junto ao governo por uma conquista de todos os wiccanos e pagãos, não só aqueles
que fazem parte da UWB. Nós não dividimos ou segregamos a comunidade, e
mesmo os que se opõem a nós se beneficiam de nossas conquistas.

O que essa frase nos mostra é que ainda há resquícios da polêmica iniciada em 2014,
há aqueles que não se sentem representados pela UWB. Mais ainda, aponta um caminho
típico da UWB, o político. Acompanhei o envolvimento da instituição (através das
participações de OgSperle) em reuniões e associações políticas do Rio de Janeiro,
principalmente nas relacionadas à promoção da liberdade religiosa e de movimentos
ecumênicos. As conquistas a que o sacerdote se referia passam pela promoção do credo
wiccano e da elaboração de parcerias políticas e representativas, promovendo visibilidade à
seriedade da Wicca enquanto religião.
Esse movimento de representação em uma religião autonômica, privatizada e subjetiva
gera oposições. A primeira delas é originária da ABraWicca, que foi a primeira associação do
gênero no país. Também causou polêmicas, como aponta Osório (2005), o fato de que a
ABraWicca teria tentado delimitar o que é ou não Wicca a partir de sua definição. Entre os
entrevistados a esse respeito, o que se percebeu é um ressentimento a esse momento e uma
desconfiança crescente das instituições representativas que encontram-se disponíveis. Hoje o
site da ABraWicca não elenca Cristiano como seu ex-presidente, uma vez que ele foi e ainda é
protagonista de muitos desses embates.

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Essa disputa de liderança parece ter se iniciado no confrontamento entre ABraWicca e
Márcia Frazão, nesse sentido,

a disputa sobre o que a bruxaria moderna é ou deveria ser levou a Abra-Wicca,


como saída para a crise, a indicar que, se Frazão é bruxa, não é wiccana. Essa
estratégia não retira da autora seu status de conhecedora dos procedimentos
mágicos, mas a retira do grupo dos wiccanos, o qual a instituição pretende
representar. O movimento é fazer com que Frazão não pertença mais ao grupo da
wicca especificamente, mãos ao grupo da bruxaria e da magia em geral. Desse
modo, delimita-se o grupo apenas por meio da Abra-Wicca que define o que pode
ser considerado wicca ou não (Osório, 2005, p. 133).

Contudo, esse movimento “segregador” encabeçado pela ABraWicca não tardou em


ser contestado. Wiccanos em geral partem de uma simbiose com o movimento Nova Era, e,
como tal, também o fazem do primado de autonomia, e de uma privatização religiosa. Definir
o que é ou não Wicca não foi visto com bons olhos pela comunidade geral. Teria sido esse o
motivo inicial da criação da UWB, segundo Sperle: unir a comunidade àqueles de outras
denominações que não a wiccana. Assim, na camisa com o slogan de 2014 da UWB podia-se
ver a pretendida representação das várias tradições abarcadas no movimento pagão como um
todo (Wicca, Ásatrú, Druidismo, Bruxaria e Xamanismo). Nele, lia-se “Nós somos pagãos”.
A letra “o” de “nós” era um pentagrama contendo as cinco tradições listadas acima como
acentos a essa palavra.
A desconfiança gerada pelo primeiro contato institucionalizador com a ABraWicca
deixou sequelas na comunidade wiccana. Hoje a ABraWicca é pouco referenciada em
conversas entre os wiccanos, apesar de suas lideranças serem constantemente citadas – como
Mavesper, atual presidente da entidade. Mas essa desconfiança também é direcionada à UWB.
Muitas pessoas que participam dos eventos da UWB não são associados, mas seguidores de
associados ou de participantes dos eventos. Em conversa com uma pessoa no I Seminário
sobre Paganismo da UWB, em 2015, pude ouvir a seguinte resposta:

Não sou filiado sabe, nem minha sacerdotisa é. Mas a gente apoia muito o trabalho
de divulgação e conscientização que eles fazem. A gente só não precisa de uma
entidade dizendo o que somos ou deixamos de ser. Acho que são os Deuses que nos
revelam isso, né?! (Gabriel)

Essa frase se junta a de Ligia Amaral Lima (referência em bruxaria e Wicca no Brasil)
no mesmo seminário em 2015: “nós não somos os escolhidos, somos os autointitulados. E
assim podemos ser o que quisermos em perfeito amor e confiança, pois a Deusa e o Deus nos
permitem”. Essa emblemática fala foi pronunciada por uma bruxa fortemente apoiadora e

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filiada a UWB, mas como uma crítica ao que a sacerdotisa se referiu como “guerra de egos”
no paganismo.
Isso não só reflete um medo da perda da autonomia no processo institucionalizador,
como também aponta para o eterno dilema da representação. Ser representado por alguém
pode resultar em perda da subjetividade e da privatização, e isso pode gerar um colapso no
principal atrativo da religiosidade wiccana. Contudo, Sperle salienta que é importante esse
caminho para alcançar vitórias políticas e sociais no reconhecimento religioso e no combate a
intolerância e ignorância a respeito da Wicca. Mas quando perguntado se a UWB exerce um
movimento de institucionalização da Wicca sua resposta foi objetiva:

Não! Não queremos institucionalizar nada. Não estamos aqui para dizer quem é ou
deixa de ser wiccano. Não é essa a questão. Estamos aqui para representar política,
social e juridicamente a Wicca frente ao Estado do Rio de Janeiro e ao Estado
Brasileiro. Estamos aqui para lutar pelo direito religioso dos wiccanos e reduzir o
preconceito e desconhecimento a respeito da nossa religião. Não somos uma
instituição, mas uma associação, e o que fazemos, fazemos para toda a comunidade
pagã, inclusive em prol daqueles que nos recriminam. (Sperle)

As palavras “instituição” e “institucionalização” ficaram estigmatizadas. Em seu lugar


surgiu o ideal da representação, que, mais flexível, não visa a produzir bulas comportamentais
ou classificatórias, mas meramente a atuar com agendas políticas, sociais e jurídicas. A ideia é
tirar a Wicca das sombras, para requisitar espaço social e, principalmente, para gerar
conscientização de que não há demônio nela, pois não é uma religião cristã, e para corrigir os
romantismos clássicos que são reproduzidos na internet e em filmes, seriados e livros a
respeito da bruxaria.

Encontrei ainda outra distinção no interior do campo, quanto às motivações para se


aderir à wicca: de um lado, estão aqueles que procuram um conhecimento profundo
sobre as origens, crenças e rituais wiccanos; de outro, os praticantes que utilizam a
wicca para fins puramente imediatistas, enfatizando mais a prática mágica do que a
experiência religiosa. Esses últimos são chamados pelos primeiros de pink-wicca. O
termo é pejorativo, sendo utilizado por uma parcela dos praticantes como uma forma
de manifestação crítica com relação a um tipo de adesão a wicca, tida como
superficial. (Ribeiro, 2003, p. 12-13, grifo da autora)

É a esse grupo, mais especificamente, que a representação da UWB parece querer


combater. Mas, diferente da ABraWicca, a UWB não define claramente o que é ou não
wiccano ou pagão. Sua bandeira é a de que as pessoas devem estudar com profundidade e
seriedade a respeito da Wicca, e buscar mestres e guias físicos e pessoais que possam orientar
os novatos quanto às “inverdades” presentes na internet. Na visão de Sperle, a leitura de livros
e manuais wiccanos por si só não deveria servir de base para uma iniciação na Wicca. Isso foi

Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p. 1177-1265, jul-dez/2018. III CONACIR 1257


enfatizado nos dois seminários de que participei, em 2015 e 2016 e, mais destacadamente, em
2016 quando Sperle disse que a UWB não encoraja a auto-iniciação.
O que se contrapõe aquié a errância pura, típica da Nova Era. A Wicca é um nó nessa
rede, uma pertença marcada por um credo e clero. Ainda que a Wicca seja autonômica e
privatizada, ela se distingue da errância constante, típica do circuito neo-esotérico. Mas, por
sua flexibilidade, holismo e autonomia, provoca uma errância, e, nesse sentido, é confundida
com a Nova Era. “Você pode ser bruxo sem ser wiccano, e há muitos exemplos disso e muitos
movimentos não wiccanos. Eu, por exemplo, sou da Bruxaria Tradicional. Tenho muitos elos
com a Wicca, mas não sou wiccana” (Dayane). Essa frase foi proferida pela bruxa tradicional
Dayane Aglius no seminário de 2016, como resposta a esse tema levantado por Sperle. Ela
não se posiciona com tom de censura ou disputa, mas em alinhamento ao do sacerdote,
mostrando que há mais de um caminho para seguir a magia que não só a Wicca.
O processo de representação, portanto, é uma tentativa de pautar uma permanência
frente à errância espiritual da Nova Era e um ponto polêmico a respeito do cerceamento dessa
errância e autonomia individuais presentes na dinâmica e articulação wiccana no campo
brasileiro. Acreditamos ser essa polêmica um movimento pendular pertencente à formulação
da Wicca como comunidade emocional nos termos de Hervieu-Léger (1997).Como descreve a
autora, nessas comunidades há uma alternância constante entre princípios de encantamento e
de secularização. Ritualisticamente pontuada pela formulação de communitas, a Wicca alterna
entre momentos antiestruturais e estruturais. Por ser uma communitas ideológica, ela induz a
vontade subjetiva e a procura constante pela manutenção da communitas – marcada pelo
primado autonomia, pelo apelo emocional e pela privatização religiosa. Mas, como toda
communitas espontânea leva a uma communitas normativa (através da formulação de credos e
ofícios especializados) e toda communitas normativa, a um retorno da estrutura, a Wicca,
como religião de contracultura moderna, tende a permanecer constantemente nessa dinâmica.

A Guerra de Egos:

Um ponto muito debatido em meu campo é o que Ligia Amaral chamou em 2015 de
“guerra de egos”. Por esse termo ela designou a disputa por legitimidade e liderança dentro da
Wicca e do paganismo como um todo.
Criticada como uma postura contrária ao arquétipo wiccano, essa “guerra de egos”
surge quando uma liderança ou bruxo de relativa visibilidade decide agir ou orientar a ação
dos wiccanos de uma maneira diferente das que convencionalmente são padronizadas. Essa

Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p. 1177-1265, jul-dez/2018. III CONACIR 1258


postura parece ter começado na relação entre Márcia Frazão e a ABraWicca, conforme
descrito por Osório (2005). Nesse primeiro momento a disputa era a respeito de como a
Wicca deveria ser praticada no Brasil. Enquanto a ABraWicca criava um modelo
institucionalizado e filiativo, Frazão defendia um modelo não-institucional, livre e gratuito, e
criticou o modelo adotado pela instituição, o que iniciou um processo acusatório que se
prorroga até hoje. A bruxa foi acusada de competir pela liderança do grupo (Osório, 2005).
Hoje, os protagonistas parecem ser a União Wicca do Brasil – representada por seu
presidente, OgSperle – e Cristiano, ex-presidente da ABraWicca. Conhecido por ser polêmico
nas redes sociais, Cristiano faz fortes críticas a wiccanos como um todo, censura práticas e
elenca aquelas que considera mais corretas na atuação wiccana. Esses atos geram desconforto
e desentendimento com uma comunidade wiccana maior, que acaba por buscar representação
e conforto na UWB.
A maioria das lideranças ou pessoas influentes que participam da UWB relatam, em
algum momento, ter sofrido censura ou rechaça pública nas redes sociais do bruxo e escritor.
E muitos adeptos, então, buscaram a UWB com a finalidade de legitimar seu jeito de ser
wiccano. Por outro lado, eventos importantes são atribuídos a Cristiano, como a Mystic Fair,
de sua organização – uma importante feira mística que acontece anualmente no Rio de Janeiro
(RJ) e em São Paulo (SP). Essa feira traz uma gama de artigos esotéricos, palestras,
workshops, livros, além de contato facilitado com wiccanos de longa data, e assim atrai
pessoas (wiccanas ou não) dessas cidades, das proximidades e até do Brasil todo. Além da
feira, algumas músicas clássicas das ritualísticas wiccanas norte americanas tem sua tradução
difundida por Cristiano, que executa o trabalho de tradução, canto, gravação e divulgação.
Sua importância como um célebre bruxo wiccano parece estar à altura das polêmicas causadas
por ele.
Contudo, os filiados à UWB ou que se aproximam mais de suas lideranças realizam
um boicote aos eventos realizados por Cristiano. Da mesma forma, seus seguidores mais
ávidos igualmente não frequentam os espaços e eventos da UWB. Cria-se uma arena típica,
em cuja linha divisória estão os wiccanos e simpatizantes que, baseados no primado da
autonomia, consomem os bens simbólicos de ambos os lados.

Eu frequento tudo. Não vejo diferença. Eu vou, ouço com atenção tudo o que é dito
e absorvo o que é bom pra mim, o que considero certo. Não quero ficar entrando em
disputa. Acho que os dois lados estão certos e errados. Se eu pegar o certo nos dois
lados, eu saio ganhando, não acha?! Mas eu tenho que dizer: o Claudiney é brigão
mesmo, ele caça treta com tudo e todo mundo... As vezes cansa. Por isso a gente tem
evitado falar o nome dele, até nos espaços que sabemos que ele é bem-vindo.
(Bernardo)

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Bernardo foi um interlocutor do I Seminário sobre Paganismo, em 2015, com quem
pude conversar num intervalo e perguntar o que pensava da “guerra de egos” mencionada na
primeira mesa. Sua fala é tipicamente o perfil dos wiccanos que se colocam na linha divisória
dessa disputa.
Esse tema foi exaustivamente trabalhado em 2015, no seminário, e mencionado por
todos os componentes da primeira mesa. Mas o nome de Cristiano não foi pronunciado.
Referiam-se a ele como “aquela pessoa que o politicamente correto me impede de dizer”.
Segundo OgSperle, Cristiano recebeu um convite pessoal para participar do seminário, mas
nem ele nem seus seguidores apareceram.
A postura egocêntrica e a disputa por liderança na Wicca foi repreendida no Seminário
como atrasada, originalmente derivada do patriarcalismo. Segundo os sacerdotes da mesa, o
patriarcado é marcado por disputas pelo poder, por posicionamentos pessoais que que findam
expor uma suposta superioridade em relação aos outros com quem dialogam. Frente a essa
fala dos sacerdotes, Ligia Amaral disse, “a Deusa é Mãe! E no colo da mãe cabem todos os
seus filhos. Mãe não tem amor diferente, ela ama, e aos olhos dela todos são especiais”. Em
seguida, a bruxa argumenta sobre a autointitulação, trecho mencionado nos dois capítulos
anteriores.
As religiões cristãs são acusadas pelos wiccanos de introduzirem do patriarcado no
mundo, quando o Deus Pai, para adquirir poder, teria suprimido a Deusa e a relegado ao mal,
ao demoníaco, ao errado. Com isso, seus atributos também foram sobrepujados: no lugar do
equilíbrio, do amor, da liberdade, da igualdade prevaleceu a dominação, a disputa, o
cerceamento, o medo e a segregação. Tudo o que era considerado como feminino tornou-se
associado ao mal e ao impuro.
De fato esse período de perseguição do feminino existiu, mais visivelmente na Idade
Média, como constatam Osório (2002), Ribeiro (2003) e Russell e Alexander (2008).
Todavia, é pretencioso dizer que tal ocorrência é exclusivamente culpa do cristianismo. O
autor wiccano Claudio Crow Quintino (2002) salienta que o patriarcado já existia nas
sociedades antigas, muito antes do advento da Igreja Católica na Europa. Mas, assim como
demonstra Osório (2005), a Wicca é uma religião de contracultura, aqui endereçada como
antagônica do sistema social vigente, pertencente às minorias sociais e, portanto,
reivindicadora de uma nova sociedade alternativa. Como a maioria dos adeptos wiccanos
eram inicialmente de confissão cristã, sua conversão representa a negação da confissão
anterior (Osório, 2005). A Wicca devolve seus seguidores ao seio da Deusa, e assim eles

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passam a rejeitar as antigas práticas desiguais vivenciadas no sistema patriarcal e a se opor
fortemente a esse sistema.

Os atributos dos cristãos, sobretudo católicos e evangélicos, são aqueles rechaçados


ao comportamento da bruxa e são inversos àqueles atributos definidos como
específicos das bruxas wiccanas. O evangélico não é apenas um ator social a ser
atacado, é um Outro. Essa categoria simboliza tudo o que uma bruxa não deve ser:
ela não deve orientar suas práticas religiosas em função do ganho material, ela não
deve ser proselitista, não deve ser machista e preconceituosa, não deve ser
manipuladora, deve respeitar o livre-arbítrio e o indivíduo e deve dirigir-se ao divino
não apenas pela mente, mas também pela emoção e pelas experiências sensoriais.
Os católicos não sofrem tantas acusações quanto os evangélicos porque são
sujeitos vistos como mais próximos ao paganismo. Seriam herdeiros da
tradição pagã europeia, superposta por uma roupagem religiosa cristã e pelo
pensamento judaico-cristão. (Osório, 2005, p. 139)

Nesse sentido, as características cristãs – e, por consequência, patriarcais – tornam-se


recriminadas por parte dos wiccanos (Osório, 2005). Tornar-se um wiccano convertido
significa, portanto, uma vigilância completa e a transformação desses atributos. Alguns
grupos do Sagrado Masculino iniciam seus trabalhos conduzindo os homens a uma reflexão
histórica da opressão machista sobre a mulher e sobre eles mesmo, enquanto grupos do
Sagrado Feminino buscam empoderar a mulher a partir de seu poder uterino, maternal e
transmutador, a partir da ação consciente em combate ao legado patriarcal.
Assim, pessoas que egocêntricas seriam aquelas que ainda possuem a alma presa ao
patriarcado, e, portanto, atrasadas espiritualmente. O ego contraria o primado da autonomia e
conduz a religião a uma institucionalização, com a emissão de bulas, de comportamentos
certos e errados. Por essa razão Ligia Amaral disse que a Wicca é uma religião dos
autointitulados e não dos escolhidos. Não há melhores ou piores, ou mais poderosos e menos
poderosos, há aqueles que se intitulam e os que não; aqueles que buscam o conhecimento e os
que não o procuram; aqueles que estão preparados para viverem em perfeito amor e perfeita
confiança e os que não estão. Nesse sentido espera-se das lideranças wiccanas um
posicionamento mediador, flexível, que conduz o adepto até sua verdade privada, até a Deusa
que mora nele, que é ele próprio, e não uma orientação padronizadora e institucionalizadora
de seus discípulos.
Numa religião autonômica e privada, a manutenção de postura egocêntricas anda na
contramão, mesmo que justificáveis e compreensíveis pela diversidade interna inerente ao
campo. Como salienta Ribeiro (2003), é impossível falar em uma única Wicca. Por sua
polissemia é plausível nos referirmos a “Wiccas”, no plural. Contudo, não se pode negar a
base ou tronco comum dos vários galhos dessa árvore. Afinal, “a Wicca é a religião da Deusa
e nela todos cabem” (Camila).

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Conclusão:

Nesse caleidoscópio (Amaral, 1994) encontramos o tema do reencantamento e da


secularização. É fácil, e até sugestivo, dizer que a Wicca parte de uma premissa de
reencantamento, ao dizer que esse mundo é mágico e é sagrado e ao abordar os temas de
magia e feitiço em um planeta aparentemente científico e desencantado. Mas nos convém
atestar que sua fala (ou pregação) vem aliada ao contexto científico e, portanto, moderno em
que estamos imersos.
A Wicca é uma religião moderna, criada no seio da modernidade como uma forma de
contracultura ou contramodernidade. Esse fato a afirma modernamente na modernidade
(Amaral, 1994 e 2000). As desconfianças que as comunidades emocionais carregam das
instituições têm um caráter muito profundo a ser analisado:

todos os movimentos religiosos emocionais contemporâneos fazem da perda da


substância emocional da vida comunitária a consequência do ajuste das instituições
religiosas à regra do jogo de um campo religioso separado e especializado. [...] [De
modo que] o desenvolvimento atual de uma religiosidade de tipo emocional bem
poderia acompanhar o esvaziamento simbólico do universo moderno, e constituir, ao
mesmo tempo, uma forma de adaptação dos grupos religiosos a este novo dado
cultural. Nessa perspectiva, continua possível ler o transbordamento da expressão
afetiva da experiência religiosa como expressão de um protesto contra o
enquadramento institucional empobrecedor da experiência, tanto pessoal quanto
coletiva da fé. (Hervieu-Léger, 1997, p. 40-42).

A Wicca é desde seu nascimento moderna e contracultural, secularizada e encantada.


O próprio Gradner, seu fundador, tinha temor de que a ciência matasse a magia, mas o
caminho wiccano observado foi o de uma “secularização encantada”. Ela traz o
(re)encantamento do mundo com sua dinâmica emocional e sua vivência, com o primado da
experiência autônoma, visando a retomada da experiência originária de seu mito mais
primevo: de que ela é a retomada da religião (da fé) primordial mais antiga e pura do homem,
vivida em sua Era de Ouro, quando ele estava conectado com a Deusa, com a natureza e com
todo seu cosmos de maneira contínua e perene. E desse processo se ramificaram as várias
tradições religiosas que temos hoje, ao passo que nos distanciávamos dessa comunhão, saindo
da Era de Ouro (desencantamento). Sua retomada, portanto, é o retorno do homem à Era de
Ouro e à comunhão cósmica. Concomitantemente, usa de sua constituição secularizada como
meio de atuação no mundo moderno, suas articulações, seu processo polêmico de
representatividade e institucionalização, sua maneira de se colocar frente às redes sociais.
A bruxa de hoje é uma pessoa que está construindo uma identidade: ser
bruxa. Essa identidade não apenas se refere aos atributos tradicionais de mágico,

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curandeiro, adivinho, mas também a um determinado perfil religioso que indica um
processo de afastamento da cultura popular, a uma determinada identidade de gênero
– feminino ou masculino –, em alguns casos a uma sexualidade, e a uma
determinada opção religiosa. A bruxa de hoje não é um sujeito fora do mundo, ela
mantém contato com a realidade vivida, a modernidade. Como sujeito de classe
média, com alto grau de escolaridade e amplo acesso a informação, ela lida com o
cotidiano da modernidade. Não está autoexilada e um gueto (Osório, 2005, p. 137).

Nesse sentido, o maior desafio enfrentado pela Wicca no campo estudado tem sido seu
reconhecimento como religião detentora de princípios e credo próprio, mesmo de base
autonômica, ela possui um tronco único. Muitos olham pra Wicca enxergando apenas sua
copa, a diversidade de suas práticas, a multiplicidade de suas tradições. Outros, com olhares
mais críticos, enxergam apenas suas raízes, que descem profundamente pelo terreno histórico
– apesar de suas águas advirem de fontes e interpretações modernas e individuais, até
românticas, do passado. Enquanto isso, a União Wicca do Brasil abre a frente de uma luta
para que se enxergue também seu tronco, sua base comum. E assim, ao se olhar para a Wicca,
poder-se-ia ver a “anciã árvore da senhora” descrita no poema da Rede Wicca (Cantrell,
2002): segundo a narrativa wiccana, ela seria, portanto, uma antiga árvore de muitos galhos e
profundas raízes.
O problema em questão é a pergunta que fica “e quem diz que árvore é essa?”. Eis
aqui o ponto chave da institucionalização. Segundo os próprios wiccanos, seriam eles
mesmos, em suas vivências emocionais que tocariam e alcançariam a Deusa. Segundo as
representações, é preciso limitar o quão íntimo a pessoa se diz do credo em si. É preciso
aprender com pessoas que trilham o caminho há mais tempo, para evitar inverdades. O
sacerdote Pedro me disse em um dos rituais, quando foi questionado se existe ou não um
cerceamento da Wicca por parte dos grupos constituídos:

não há cerceamento. Todo mundo pode ser wiccano. Mas não é todo mundo que vai
se iniciar, né?! Se iniciar é dizer seu “sim” a Deusa. Abandonar seu velho eu e sua
velha vida, nascer de novo. Para dizer um “sim” você tem que está muito certo do
que quer, mais até, você conhecer muito bem onde está se metendo. Ninguém pula
num buraco sem antes ver onde ele vai dar. O que nós e o pessoal da UWB somos
contra são essas pessoas que leem um dois livros e já se iniciam. Elas não entendem
com o que estão lidando, por mais que a Deusa seja boa, ela cobra e muito, ela é
mãe, né?! (Pedro)

Essa dinâmica tem seus picos e seus lado: os que são a favor da institucionalização, os
que são contra, os que acham que a Wicca deve ter representatividade social por pessoas
sérias e reconhecidas, aqueles que pensam que ela não é uma religião para ser vivida dentro
do sistema. Ela deveria, então, ser íntima, silenciosa. E nesse contexto o problema da
representação é o simples ditado “é difícil agradar a todos”. Campanhas como a “a UWB não

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me representa”, mostram que há o típico jogo político em torno da representação – se defina
ela institucional ou não.
As sequências desse dilema, parecem só se resolver quando a religião conseguir dar
uma resposta mais efetiva à “guerra de egos” como foi descrita, e nesse sentido, parece que as
constatações de análise teológicas de Ligia Amaral Lima podem apontar um caminho válido.

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