27050-Texto Do Artigo-106640-1-10-20190616
27050-Texto Do Artigo-106640-1-10-20190616
27050-Texto Do Artigo-106640-1-10-20190616
Resumo: Este trabalho visa de forma sistematizada apresentar ao leitor como a figura da
mulher transitou em diferentes aspectos da sociedade, através da influência religiosa. A
temática da bruxaria, no caso, elaborado com ênfase na Wicca, nos permite observar as
interferências dos agentes sociais no processo que permeia de forma densa as questões de
gênero, principalmente ao que tange às relações de poder e consequentemente as relações de
dominação entre homens e mulheres ao longo da história.A construção de uma mitologia
satânica demandou o esforço em se reconhecer o demônio tanto em suas formas quanto
atuação e nesse contexto, o sexo feminino que antes era associado à divindade passível de dar
a vida, torna-se a bruxa manipuladora da morte. Assim, busco descrever a mudança no
imagético social a partir da figura da mulher na Idade Média.
Palavras-Chave: Wicca; mulher; gênero; bruxa.
Abstract: This work systematically aims to show to the reader how the woman figure woman
transited in different aspects of society through religious influence. The theme of witchcraft,
elaborated with an emphasis on Wicca, it allows to observe the interferences of the social
agents in the process that permeates with density gender issues, especially in power relations
and consequently about the domination relations between men and women throughout the
history. The construction of a satanic mythology required an effort to recognize the devil in
forms and acting both, and in this context, the female sex that was previously associated with
the divinity that could give life, becomes the witch who is the manipulator of death. Thus, I
try to describe the change in the social imagery from the figure of the woman in the Middle
Ages
Keywords: Wicca; woman; gender; witch
1
Graduada em História pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF), graduada também em Ciência
da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atualmente mestranda em Ciência da Religião pela
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); Bolsista FAPEMIG.
Este artigo busca apresentar ao leitor como a figura da mulher transitou em diversos
aspectos da sociedade, através da influência religiosa.Como afirma Souza “a religiãoexerce
uma importante função de produção e reprodução de sistemas simbólicos que têm influência
direta sobre as relações sociais acerca dos homens e das mulheres, portanto, não podem ser
entendidas sem lançarmos olhar sobre ela e suas implicações na construção social desse
sujeito” (2008, p. 23).
Nesse sentido tomamos como referência a religião Wicca, que entendo permitir
perceber de forma clara essas interferências dos agentes sociais no processo muitas vezes de
dominação sobre o sexo feminino. A mulher antes vista como Deusa em uma sociedade
matriarcal, na qual sua figura era central e estabelecia um conjunto de princípios e valores
sociais de igualdade, transfigura-se com o advento do Cristianismo para um ser diabólico,
numa sociedade patriarcal, cujos valores sociais, culturais, econômicos e simbólicos se
alteram para a dominação do outro.
Surgida na Inglaterra entre 1940 e 1950, temos como marco inicial da Wicca a
publicação em 19542, do livro “A Bruxaria hoje” de Gerald Gardner (1884-1964), a religião
se divulga em todo mundo anglo-saxão, principalmente na Inglaterra e Estados Unidos, nas
décadas de 1960 e 1970, acarretando em poucos anos milhares de adeptos. Já no Brasil a
Wicca se instala a partir da onda dos Novos Movimentos Religiosos, ligados aos movimentos
de Contracultura e Nova Era na década de 1980.
Resgatando suas raízes nos primórdios da humanidade, na sintonia com a natureza e
tendo como base da religião o culto ao casal criador: Deusa e Deus, a busca deste trabalho
sobre a Wicca é permitir observar as interferências dos agentes sociais no processo que
permeia de forma densa as questões de gênero, principalmente ao que tange às relações de
poder e consequentemente as relações de dominação entre homens e mulheres ao longo da
história.
2
É importante destacar que somente no ano de 1951 são abolidas todas as leis contra bruxaria na Inglaterra.
[...]O diabo cuja existência foi estabelecida e cuja teologia foi desenvolvida pelo
Concílio de Latrão. A feiticeira é filha e irmã do diabo. Ela é o diabo, seu olhar
mata: ela tem mau-olhado. Tem pretensão ao saber. Desafia todos os poderes: o do
sacerdote, dos soberanos, dos homens, da razão (PERROT, 2007, p. 90).
Uma deusa única e de um deus único de múltiplas faces, a ela subordinados, como
uma espécie de “religião primordial” com raízes no paleolítico, e de toda uma série
de rituais daí derivados [...] A ideia central de Frazer era a de que as antigas religiões
eram cultos de fertilidade, baseados no culto de uma deusa da natureza e seu
consorte, um rei-sagrado. O matrimônio entre a deusa e o rei-sagrado e o posterior
sacrifício e renascimento deste, segundo Frazer, seria um mito central em
praticamente todas as religiões (DUARTE, 2008, p. 42-43).
A Deusa é a primeira em toda a Terra, o mistério, a mãe que alimenta e que dá toda
vida. Ela é o poder da fertilidade e geração; o útero e também a sepultura que recebe
o poder da morte. Tudo vem dela, tudo deve retornar para ela. Sendo terra, também é
a vida vegetal; as árvores, as ervas e os grãos que sustentam a vida. Ela é o corpo e
corpo é sagrado. Útero, seios, barriga, boca, vagina, pênis, osso e sangue; nenhuma
parte do corpo é impura, nenhum aspecto dos processos vitais é maculado por
qualquer conceito de pecado. Nascimento, morte e decadência são partes igualmente
sagradas do ciclo (STARHAWK, 2010, p.145).
Por ser a Grande Mãe ela criou tudo, até mesmo o Deus Cornífero, que passa a ser o
seu consorte, entretanto, é também seu filho, a Deusa é eterna e se expressa de forma Tríplice
representando diferentes estágios da vida da mulher- a Donzela, a Mãe e a Anciã- e as Luas-
Crescente, Cheia e Minguante. Como afirma Prieto (2005, p.30) “essas são consideradas as
três faces da Deusa que atribuem a Ela o nome de deusa Tripla do Círculo do Renascimento,
aquela que mostra sua face de Donzela na fase crescente, torna-se mãe na lua cheia e sábia
Anciã na minguante”. Já o Deus tem uma natureza cíclica:
Para a realização do contato com os deuses os praticantes da Wicca, que podem ser
chamados de wiccanos, wiccanianos ou bruxos, buscam se conectar com a terra, com os ciclos
lunares, as estações de ano, enfim, através de celebrações de ritos as cerimônias, os feitiços,
[...] elas têm contato com o diabo. O diabo cuja existência foi estabelecida e cuja
teologia foi desenvolvida pelo Concílio de Latrão. A feiticeira é filha e irmã do
diabo. Ela é o diabo, seu olhar mata: ela tem mau-olhado. Tem pretensão ao saber.
Desafia todos os poderes: o do sacerdote, dos soberanos, dos homens, da razão
(PERROT, 2007, p. 90).
[...] foi a Inquisição, não as próprias bruxas, que inventou a bruxaria. Em outras
palavras, todas as histórias de assembleias de bruxas, práticas satanistas, orgias e
crimes eram consideradas como criações imaginárias de pessoas neuróticas ou
declarações obtidas dos acusados nos tribunais, especialmente através de torturas.
Realmente esse foi um expediente usado na caça às bruxas nos séculos 15,16 e 17.
Contudo sabemos que a bruxaria não foi inventada pela inquisição. À Inquisição
coube simplesmente associar a bruxaria com as heresias e, consequentemente,
procurar exterminar as chamadas bruxas com o mesmo rigor com os que se
perseguiam os hereges (ELIADE, 1979 p. 59).
Nogueira (2004) ainda faz uma análise sobre a história da bruxaria e cita Johan
Weyer que “pedia piedade para as acusadas de bruxaria, baseando na natureza inferior do
sexo feminino (p.176)”. Devemos considerar que desde a mais remota antiguidade as
mulheres eram as curadoras populares, parteiras, enfim, elas eram as pessoas no meio social
que possuíam o conhecimento sobre a vida e a morte, conhecimento este transmitido de
geração para geração, o conhecimento sobre a natureza permitia o cultivo de ervas, o que
muitas vezes era decisivo para devolver ou não a vida ao indivíduo, desta forma qualificar a
mulher como um ser diabólico por ser detentora de tal conhecimento, se torna um meio de
justificar as ações em nome da Igreja.
A figura antes vista como Deusa em uma sociedade matriarcal, na qual sua figura era
central e estabelecia um conjunto de princípios e valores sociais de igualdade, transfigura-se
com o advento do Cristianismo no período da Idade Média para um ser diabólico, numa
sociedade patriarcal, cujos valores sociais, culturais, econômicos e simbólicos se alteram para
a dominação do outro. Desta forma o sexo feminino que antes era associado à divindade
passível de dar a vida, torna-se a bruxa, responsável pelo mal e manipuladora da morte, já que
possui conhecimentos sobre a natureza e manipulação de elementos dos quais a Igreja
Católica considera mágicos.
No entanto, após séculos mantida como segredo e restrito ao espaço privado como
forma de se manter, a Wicca se reelabora na Inglaterra na década de 1950 através das
iniciativas de Gardner. Como mecanismo em processo, constituído por sujeitos históricos as
práticas da Wicca encontram solo fértil no contexto da contracultura, momento em que
retomou e se problematizou questões da sexualidade, mas desta vez considerando questões
sociais como a libertação da mulher e também os direitos civis dos homossexuais.
Nesse sentido uma sociedade de estruturas capitalista, cristã e patriarcal, já não
corresponde aos anseios de uma sociedade diversa e plural. Sendo assim, frente a esse novo
contexto histórico, a Wicca se torna uma possibilidade de valorização não só da figura da
mulher, mas de todos que buscam liberdade não só no universo sexual, mas principalmente
religioso.
Para Osório (2004), “nesse ambiente, a mulher tem a oportunidade de compor uma
identidade de gênero pautada em atribuições tradicionais, ao mesmo tempo que modifica o
valor dado a elas, segundo discursos feministas subjacentes à prática wiccana”. Através das
observações aqui apresentadas pelo trabalho de Osório fica claro como a representação de
gênero é fundamental no âmbito religioso “ser homem e ser mulher no grupo religioso
indicam possibilidades fadadas única e exclusivamente ao gênero, que podem representar
ganho ou perda social para os sujeitos (LEMOS, 2008, p.11)”.
Discutir religião é também discutir sistemas de sentido, transformações sociais,
relações de poder, trocas simbólicas entre outros incontáveis pontos. Como ficou claro no
fragmento acima citado “os discursos e práticas religiosas têm a função de estruturar a
masculinidade, dando ao homem a semelhança eterna com a divindade, desde que se exerça a
masculinidade imposta pela religião (LEMOS, 2008, p. 4)”.
Referências bibliográficas
“Conversando com Divaldo Franco”: the (not) said in the discourse of the spiritist leader
Abstract: This article is a cross-section of the Master's thesis "Religious Discourse Analysis:
discursive strategies driven by religious leaders in TV programs" (ASSIS, 2018), developed in
the Graduate Program in Communication of the Universidade Federal de Juiz de Fora. The
objective of this article is to present the ideological precepts that "cross" the discourses of the
spiritist leader Divaldo Franco, identified in a corpus of three editions in sequence of the
religious program "Conversando com Divaldo Franco". The axioms that permeate the Spiritist
universe were considered in opposition to the dissonant voices of those conventionally
propagated that perhaps emerged in the statements of the presenter-leader. For the analysis of
the selected episodes the theoretical-methodological scope of the French Discourse Analysis
was used.
Keywords: Religion; Media; Spiritism; Discourse Analysis
Espiritismo no Brasil
3
Mestre em Comunicação Pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação (Ppgcom) da Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF); Especialista em Ciência da Religião pelo Programa de Pós-graduação em
Ciência da Religião da UFJF.
5
Complexo filantrópico que atende a cerca de três mil crianças e jovens carentes em um dos bairros periféricos
mais carentes de Salvador. Tem 83mil m² e 43 edificações. A obra é basicamente mantida com a venda de livros
mediúnicos, fitas e DVDs gravados nas palestras.
“[...] desde a eclosão dos direitos humanos à Revolução Francesa em 1791 que o
quadro vem sendo revertido. Ainda existem hoje na Terra 800 milhões de indivíduos
condenados à morte pela fome, segundo dados da FAO (Organização Mundial de
Alimentos).”
“[...] um Deus antropomórfico, o Deus de Israel, o Deus dos exércitos, o Deus que
criava e se arrependia, portanto um Deus humanoide. Allan Kardec, que era um
filólogo e profundo conhecedor da língua Francesa, interroga com perfeição:
‘Qu'est-ce que Dieu?’, que é Deus?” (Programa 1)
Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 15, n. 22, p. 1177-1265, jul-dez/2018.. III CONACIR 1193
Figura 2 - Plano Geral Divaldo e entrevistadora
Fonte: Frame do programa “Conversando com Divaldo Franco” (Programa 1)
Cada uma das três edições do programa possui a mesma estrutura: vinheta de
abertura do programa (20 segundos, contendo imagens da Mansão do Caminho com música
tocada em piano em BG6); no primeiro bloco, uma pergunta e uma resposta; entra off7; uma
pergunta e uma resposta; vinheta para chamada do segundo bloco; vinheta abertura segundo
bloco; povo fala; duas perguntas e duas respostas; vinheta para chamada do terceiro bloco;
uma pergunta e uma resposta; considerações de Divaldo Franco sobre o tema abordado e
fechamento do programa com vinhetas. Os offs trazem informações adicionais ao tema, como
dados estatísticos e citações de estudiosos, filósofos e outras personalidades, com
aproximadamente três minutos e meio.
6
Abreviatura do inglês background (“fundo”). Música, voz ou efeito sonoro inserido simultaneamente à fala e
que vai ao ar num volume mais baixo. Dá suporte à transmissão e não deve prejudicar a clareza da fala.
7
Texto narrado por um repórter cuja locução é coberta por imagens.
“Seria uma violência por parte de Deus e as leis cósmicas são leis de amor. A
divindade nos proporciona o livre arbítrio e estabelece o determinismo. O
determinismo é a plenitude; o livre arbítrio é a eleição para alcançar essa plenitude.
(E1) Muitas vezes espíritos egotistas elegem para si direitos que não permitem ao
seu próximo e através de uma estrutura social algo degenerada, multimilenar, alguns
se permitem privilégios com olvido total de todos aqueles que necessitam dos
mesmos recursos. Então os bens da fortuna, que deveriam ser repartidos socialmente
com justiça, ainda se encontram nas mãos da avareza e por isso ocorrem estes
disparates. (E2) Mas aqueles que hoje usufruem com verdadeiro exagero, voltarão
na carência por causa do mau uso que fizeram dos dons e dotes que lhes foram
emprestados. (E3) Não pretendemos preocupar-nos com esses que estão na carência
Pergunta: “Não seria mais fácil ele simplesmente intervir e acabar com tudo isso”?
Resposta: “Seria uma violência por parte de Deus e as leis cósmicas são leis de
amor. A divindade nos proporciona o livre arbítrio e estabelece o
determinismo”.(FD: conservação da tradição religiosa)
“Mas a lei é natural, porque o morrer e o retornar são fenômenos propostos pela
legislação divina. Aquelas dificuldade de hoje serão recompensadas amanhã”.(FD:
conservação da tradição religiosa)
Ele não estava se utilizando do supérfluo. A sua nova posição exigia um esquema
normalmente chamado ‘status’ correspondente a sua função em uma empresa de alto
suporte ou de alto conteúdo, seja de natureza econômica, seja industrial.(FD:
manutenção de questões sociais e ético-religiosas)
Então o nosso amigo, estando naquele carro de luxo, ele está recebendo recursos
para desempenhar bem a tarefa, porque se ele tivesse que pegar o ônibus, ele teria
que acordar uma hora ou duas antes. Chegaria já desgastado ao trabalho e talvez não
pudesse corresponder.(FD: manutenção de questões sociais e ético-religiosas)
Há, nos enunciados acima, uma diretriz discursiva que aponta para uma lei divina
que parece explicar uma suposta evolução espiritual mediante cumprimento de normas, a qual
toda a humanidade estaria sujeita, indelevelmente. Nesse curso, é possível perceber que esses
enunciados são pontos axiomáticos do espiritismo, tratados por Divaldo Franco como “lei
natural”. É o caso, por exemplo, da passagem evangélica que atestaria o espiritismo como o
cumprimento de uma promessa feita por Jesus do envio de um consolador que falaria em seu
nome. A menção ao “consolador” prometido elevaria o espiritismo à categoria da religião,
“[...] Os espíritos não poderiam ‘entrar’ nos porcos porque também não estavam
‘dentro’ do homem. A obsessão é sempre um fenômeno de períspirito a períspirito,
mesmo nos casos graves de subjugação, nos evangelhos denominados como
possessão, o espírito continua dentro do ser humano como um líquido num
vasilhame. Em realidade o texto diz: ‘não nos mande ao Hades, pelo menos deixa-
nos entrar nesses porcos, que estourando, tombaram no mar’. Ora bem, quando esses
espíritos saíram criaram uma psicosfera perturbadora e como os animais podem ver
– não se trata de mediunidade – pela densidade fluídica assustaram-se e então aquela
vara atirou-se no abismo [...]” (Programa 2)
“Seria uma violência por parte de Deus e as leis cósmicas são leis de amor. A
divindade nos proporciona o livre arbítrio e estabelece o determinismo. O
determinismo é a plenitude; o livre arbítrio é a eleição para alcançar essa plenitude.
Muitas vezes espíritos egotistas elegem para si direitos que não permitem ao seu
próximo e através de uma estrutura social algo degenerada, multimilenar, alguns se
permitem privilégios com olvido total de todos aqueles que necessitam dos mesmos
recursos”.
Isso posto, verifica-se que Divaldo Franco interage com um telespectador espírita,
letrado e com alto nível de escolaridade, o que vai ao encontro dos dados aferidos pelo IBGE
que apontam o espiritismo como a religião cristã brasileira com maior percentual de fiéis com
ensino fundamental completo (98,6%), além de configurarem também como o maior
percentual com ensino superior (31,5%). As formações discursivas apontam também para um
enunciador de classe média/alta, tanto nas figuras do líder religioso quanto da apresentadora.
8
João 16:7-12 “Todavia digo-vos a verdade, que vos convém que eu vá; porque, se eu não for, o Consolador não
virá a vós; mas, quando eu for, vo-lo enviarei.E, quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, e da justiça e
do juízo.Do pecado, porque não creem em mim;da justiça, porque vou para meu Pai, e não me vereis mais;E do
juízo, porque já o príncipe deste mundo está julgado.Ainda tenho muito que vos dizer, mas vós não o podeis
suportar agora”.
“Ele pede para vir numa situação de dificuldade a fim de aprender na carência”.
“Agora, nas grandes cidades, existe também aquele que tem a dificuldade financeira
e se vale para enganar as pessoas”.
(E1/FD1) “Não podemos fazer culpa pelas ocorrências do processo evolutivo. Ele
não estava se utilizando do supérfluo. A sua nova posição exigia um esquema
normalmente chamado ‘status’ correspondente a sua função em uma empresa de alto
suporte ou de alto conteúdo, seja de natureza econômica, seja industrial”.
(E2/FD2) “Mas aqueles que hoje usufruem com verdadeiro exagero, voltarão na
carência por causa do mau uso que fizeram dos dons e dotes que lhes foram
emprestados”.
(E3/FD3) “Então o nosso amigo, estando naquele carro de luxo, ele está recebendo
recursos para desempenhar bem a tarefa, porque se ele tivesse que pegar o ônibus,
ele teria que acordar uma hora ou duas antes. Chegaria já desgastado ao trabalho e
talvez não pudesse corresponder”.
(E4/FD4) “Ele (espírito) pede para vir numa situação de dificuldade a fim de
aprender na carência a boa administração que a divindade lhe considerar em outra
ocasião”.
(E7/FD4) “Ele vem numa situação que vai valorizar o excesso que desperdiçou”.
Nota-se uma frequência maior das formações discursivas que tendem a justificar
as dificuldades financeiras em detrimento daquelas que apontam as justificativas divinas para
a riqueza e abundância material. Uma das possíveis razões para essa disparidade está ligada
ao fato de que o Brasil é um país de desigualdade social acentuada e essa realidade está
presente no cotidiano inclusive daquelas pessoas que vivem em posições sociais mais
privilegiadas, no caso, a maioria dentre os fiéis espíritas.
A entrevistadora Claudia Saegusa, em vários casos, formula perguntas
evidenciando situações aparentemente contraditórias, oferecendo a Divaldo Franco a
possibilidade de explicar, sob seu ponto de vista, além do conteúdo objetivo da pergunta, o
caráter esclarecedor e desmistificador atribuídos pelo orador ao espiritismo.
Nesses momentos, percebe-se, de forma tênue uma perspectiva espetacularizada,
ancorada em estereótipos que acompanham o Espiritismoe o representa como sobrenatural,
enigmático e oculto. Assim, o programa parece se valer dessa representatividade popular, em
que o líder religioso espírita seria a pessoa capaz de explicar o que aparentemente seria
inexplicável ou de ter a solução para diversos malefícios. Esses apontamentos são
corroborados pela creditação de Divaldo Franco durante o programa: “Médium e Orador
Espírita”. O termo “médium” traz a carga semântica de mediador, no caso do Espiritismo,
entre vivos e mortos ao que se soma a ideia do sensitivo capaz de prever o futuro.
“O Luís Felipe Ferraz namora uma pessoa mais velha que ele e que está com a
autoestima muito baixa. Está passando por uma crise de depressão. Ele acha que ela
está tendo uma influência espiritual, pois ela procurou um psiquiatra e não está
muito bem. Ele quer saber como bloquear essas influências espirituais”. (Programa
1)
“Em o livro ‘Espiritismo dialético’, o jornalista e educador Herculano Pires diz que
a renovação do homem implica a renovação social, mas desde que o homem
renovado se empenhe na transformação do meio em que vive”.
“Eu recordo-me que Chico Xavier, quando ia à televisão sempre vestia-se conforme
os padrões da exigência do momento”.
“Também nós podemos considerar que o paraíso não seja um local pré-determinado,
que tem uma característica geológica, terrestre, para cima ou para baixo, mas um
estado de consciência”.
“Em realidade, não podemos transferir a nossa realidade para os espíritos infelizes.
É uma atitude muito cômoda. Tudo aquilo de ruim que nos acontece é culpa dos
demônios, é culpa dos espíritos inferiores. E a nossa consciência?”
Considerações
REFERÊNCIAS
ASSMANN, Hugo. A Igreja Eletrônica e seu impacto na América Latina. Petrópolis:
Vozes, 1986.
BENVENISTE, E. A forma e o sentido na linguagem. In: Problemas de linguística geral.
Campinas: Pontes, 2006.
BERGER, Christa. Tensão entre os campos religioso e midiático. In: MELO, José Marques
de; GOBBI, Maria Cristina; ENDO, Ana Claudia Braun. Mídia e Religião na Sociedade do
Espetáculo. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2007. Cap. 1, p.
23-32.
BITTENCOURT FILHO, José. Matriz religiosa brasileira: religiosidade e mudança social.
Petrópolis: Editora Vozes, 2003.
Introdução
9
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. This study was financed in part by the Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) – Finance Code 001.
10
Embora defendemos a criatividade religiosa conforme o contexto socio-histórico e que sujeitos podem se
apropriar de concepções de mundo e formas de pensamento, utilizamos o termo “espiritismo”, pois é a forma
como os seguidores da doutrina codificada pelo francês Allan Kardec (pseudônimo de Hippollyte Leon Denizard
Rivail) defendem a sua legitimidade. Segundo este grupo, “espiritismo” é um termo cunhado por Kardec para
denominar a doutrina que lida com espíritos. Por outro lado, acreditamos que colocar as outras religiões
brasileiras que lidam com os espíritos no mesmo grupo que o espiritismo desenvolvido por Kardec pode, de certa
forma,desvanecer as disputas por legitimidade e resistências entre essas diferentes expressões religiosas ao longo
da história no Brasil entre meados do século XIX até os dias atuais.
11
Conforme Arribas (2014), as “Semanas Espíritas” ocorreram uma vez nos anos de 1939 e 1944, durante toda a
semana. Tratavam-se de saraus com discussões sobre a doutrina, peças de teatro, música e literatura.
Primeiramente, o evento ocorrera em Três Rios (1939), Rio de Janeiro, e depois abarcou as regiões de Cruzeiro
(SP), Macaé (RJ), Juiz de Fora (MG), Barra do Piraí (RJ) e Astolfo Dutra (MG), no ano de 1944.
Dos nomes que, por ventura, estejam produzindo o teatro espírita no tempo presente,
elencamos dois para obreve escopo deste trabalho: Renato Prieto e Companhia Amigos da
Luz. O primeiro, Prieto (1955 -), ator e diretor teatral do Espírito Santo, foi-me citado pela
companhia durante a entrevista que realizei, em 2018, como um dos nomes atuantes da
comédia espírita anteriores a eles. Conforme o site do ator, ele se denomina como o primeiro
produtor de comédia espírita, tendo o aval de Chico Xavier: "sugiro a vocês que se juntem
para fazer um espetáculo com temática espírita!"12. Assim, dentre as produções teatrais,
“Quem é morto sempre aparece” e “A morte é uma piada” mesclam o gênero do humor com o
imaginário doutrinário.
Já a Companhia Amigos da Luz é composta por cerca de sete atores amigos, adeptos e
simpatizantes da doutrina espírita, residentes dos municípios de Rio de Janeiro e de Nova
Iguaçu. Produzem teatro espírita desde 2007 e audiovisual de humor desde 2015. Sendo a
aproximação da trajetória do grupo à figura de Leopoldo Machado, um marcador identitário e
de construção da memória. Inclusive, um de seus idealizadores estudara no Colégio Leopoldo,
já na coordenação da irmã do espírita, a pedagoga Leopoldina Machado. Logo, de acordo com
eles, este fato da vida, no momento de formação escolar possibilitara a construção afetiva do
laço com a doutrina, trouxera proximidade e materialidade, visto que a persona de Kardec e
Jesus Cristo parecem mais distantes no tempo e no espaço em contraposição a um espírita
atuante no século passado e no mesmo país.
Assim, membros da companhia consideram Leopoldo como patrono dos seus
trabalhos, visto que, segundo eles, o educador teria aberto caminho para este tipo de trabalho
no presente. A memória individual e a coletiva se relacionam: os acontecimentos vividos
pessoalmente e por tabela, pessoas, personagens e lugares formam a essência da pessoa ou
grupo (Pollak, 1992), bem como, estruturam a narrativa. A figura de Leopoldo pode não ter
feito parte do mesmo espaço e tempo físico que o grupo, mas a instituição de educação, sua
12
Ver: http://www.renatoprieto.com.br/comeco.html. (Último acesso em: outubro de 2018).
O teatro... Ele era um dramaturgo, ele escreveu comédia. Tem uma comédia dele.
Tem mais de uma. “Teatro para a juventude”, acho que é uma coisa assim o nome
dos livros que ele fez, tomos I, II e III. Esquetes para serem trabalhados com humor
nas mocidades. Quer dizer, ele já fazia o que a gente hoje tenta fazer. Então, ele para
a gente é um patrono. (informação oral)13
13
LUCA, Fábio de. Entrevista Companhia Amigos da Luz – Sidney Grillo e Fábio de Luca. [jul. 2018]
Entrevistadora: Grazyelle Fonseca. Rio de Janeiro, 2018. 1 arquivo .mp3 (47:30).
Com maioria oriunda da cidade de Nova Iguaçu, RJ, a Companhia Amigos da Luz foi
formada em 2007 por amigos atores, sendo “Morrendo e aprendendo” o seu primeiro
espetáculo. Portanto, até o atual momento, esta performance teatral continua em turnê
conforme solicitada pelos contratantes dos centros espíritas e teatros seculares. No que
concerne ao público, este é composto, em sua maioria, por adultos que teriam tomado
conhecimentodo grupo através do “Canal Amigos da Luz”, criado em 2015 pela companhia
na plataforma de publicação de vídeos,YouTube. Segundo a Companhia, o canal atende as
funções de produção e publicação de esquetes cômicos de divulgaçãoda doutrina e do trabalho
de humor espírita no teatro. Isto é, eles se inseriram em um nicho que até então era pouco
explorado pelos espíritas: a atuação profissional do teatro espírita de gênero humorístico.
A partir da observação do trabalho do grupo no ambiente virtual, fui à Saquarema (RJ)
assistir à peça dos Amigos da Luz, chamada “Morrendo e Aprendendo”, em 30 de março de
2018,visto que era parte da proposta metodológica do projeto de dissertação de mestrado. De
acordo com relatos, já era a terceira vez que o grupo se apresentava naquele local. Era
Semana Santa, feriado católico, e a turnê da Região dos Lagos seria em Saquarema e
Araruama. Chegando a Saquarema, dirigi-me ao Theatro Mario Lago, que é um teatro
municipal da cidade com capacidade para aproximadamente 150 pessoas e a apresentação
fora iniciada às 19 horas com significativa presença de adultos.
Partindo do pressuposto de realizar um trabalho de linguagem didática sobre a
doutrina, de acordo com o grupo, “Morrendo e aprendendo” foi a primeira peça teatral
produzida por eles. Então, foi-me informado que seria interessante para aqueles que nunca
haviam assistido às performances do grupo, começar da presente peça em análise, seguida de
De antemão, a sinopse coloca em evidência que a peça busca não somente entreter,
mas lidar com os tabus acerca da morte: parte do clima tenso do velório à atenuação do
sentido da morte. Entretanto, diferencia o mundo terreno (carregado de materialidade) do
espiritual (mundo da essência). Através da performance, identidades são delineadas, histórias
são contadas a partir de comportamentos restaurados e recombinados, treinados para exercer
funções. No teatro, observa-se a ênfase da narração e da personificação e, assim como nas
performances da vida cotidiana, a restauração de hábitos, rituais e rotinas são encenados não
somente para entreter – isto é, para agradar o público –, mas para lidar com o sagrado e o
profano, afirmar ou modificar identidades, ensinar ou persuadir. (Schechner, 2003)
Ao terceiro sinal de aviso, as luzes se apagaram e um ator, representando uma mulher,
com salto e procedimentos estéticos, correra entre a primeira fileira e o palco: a personagem
estava a caminho do velório da amiga. Assim, o início da peça deu-se com um caixão no meio
do palco. Ela então disparou: “Com tanto lugar para morrer: Copacabana, Paris... Você vem
morrer aqui em Saquarema!”. Em tom de desdém, a introdução do nome da cidade à fala da
personagem logo provocou o riso da plateia. Assim, considerando que o cômico possui
relação direta, ou indireta, com o ser humano (Propp, 1992), observamos, de início, que a
noção de lugar provocara riso na seguinte contraposição: os lugares que remetem à noção de
riqueza – Copacabana, Paris etc. – e o lugar de simplicidade – como a cidade cuja peça estava
sendo encenada que, embora atraia o turismo, não remete necessariamente à riqueza e ao
glamour –, bem como, aponta os últimos dias de vida de uma “socialite” em uma cidade sem
o marcador da classe social de origem.
14
COMPANHIA AMIGOS DA LUZ. Sinopse da peça Morrendo e aprendendo. Disponível em:
https://www.amigosdaluz.com/morrendo-e-aprendendo (último acesso em outubro de 2018).
15
Segundo este preceito, Allan Kardec compreendia que o bem deveria ser restituído com o bem, e o mal
também deveria ser retribuído com boas ações, pois o ódio não deveria cegar o indivíduo. Ver: KARDEC, Allan.
Obras Póstumas. Araraquara: IDE: 2008.
Desta forma, é através dos laços familiares e de uma união matrimonial que os laços
espirituais são estreitados. Conforme Kardec, os laços familiares são uma lei natural de
estreitamento social, que “Deus quis que os homens aprendessem assim a amar-se como
irmãos” (Kardec, 2009, p. 243). Já a paternidade e a maternidade, segundo Kardec, são
inerentes à responsabilidade de guiar um ser humano no caminho do bem, busca-se evitar que
o caminho seja desviado. Enquanto que o casamento é um elemento diferenciador em relação
à vida animal, ele representa o “progresso da humanidade” com a finalidade de atingir a
solidariedade fraternal através da união livre e fortuita.
O imaginário da doutrina espírita adquire presença carnal e vive através do palco e dos
atores. A história é narrada como se o espectador estivesse naquela realidade encenada, a
consciência e a subjetividade das personagens são exteriorizadas. A narração é ação: “frente
ao palco, o confronto direto com a personagem, elas são, por assim dizer, obrigadas a
acreditar nesse tipo de ficção que lhes entra pelos olhos e pelos ouvidos” (Prado, 2014, p. 85).
Todavia, diferente de Prado (2014), acreditamos que não se trata de uma obrigação de
acreditar na narrativa, mas de um “acordo”, um “fazer crer” que visa dialogar com as visões
Considerações finais
O riso da plateia não era comedido, eram altas gargalhadas na maioria dos momentos.
Uma mulher atrás de mim disse a outra: “Estou chorando de tanto rir”, impactada pela energia
coletiva gerada pela performance. Ao final da peça, o grupo apresentou cada um dos atores e
o diretoragradeceu aos patrocinadores. Indicou que era necessário estabelecer um contato com
os apoiadores locais, visto que eles estavam apoiando a cultura. Disponibilizaram-se a fazer
foto e falar com cada pessoa que desejasse após a peça, quase todos da plateia optaram por
falar com eles e posar para fotos.
Trata-se de um cuidado com a audiência: as performances estão correlacionadas ao
público que ouve e assiste, “a força da performance está na relação muito específica entre os
performers e aqueles-para-quem-a-performance existe” (Schechner, 2011, p. 215). Afetada
pelo envolvimento da narrativa e dos atores, a audiência é parte integrante de uma vida teatral
coletiva e colaborativa do fluxo de modulação de “intervalos de som e silêncio, a densidade
crescente e decrescente de evento temporal, especial, emocional” e cinestésico (Schechner,
2011, p. 218).
De acordo com os informantes da Companhia Amigos da Luz, a relação espiritismo,
humor e morte é uma busca de desmistificação desta última. De um lado, o riso tira a força do
medo morte, de outro, o espiritismo oferece uma visão “consoladora”, que abranda as
inconformidades dos indivíduos com o fim da jornada terrena de um ente querido. A partir
disso, o humor pode vir a se tornar um aliado para uma leve divulgação doutrinária.
Mais que uma busca de conciliação com a morte à espreita, a peça dialoga com a vida
cotidiana e religiosa. Recombina comportamento previamente exercido, a fim de evidenciar
problemas de condutas humanos e um caminho possível nas escrituras do espiritismo. Ao
mesmo tempo em que a vida espiritual anda lado a lado com a material, pois são as ações
terrenas e do livre-arbítrio que faz o sujeito colher bons ou maus “frutos”, estes modos de vida
são colocados em oposição: o plano espiritual precisa ser destituído do apego da carne e da
matéria, senão, a condição humana do orgulho, da dor e do sofrimento persistirão em um
plano liminar, o “umbral”.
Resumo: O ressurgimento da tradição pagã no Ocidente tem sido fortemente marcado pela
aproximação do pensamento místico às preocupações de algumas vertentes do ecologismo
contemporâneo. Tendo isso em vista, neste artigo recorro à bruxa, eco-ativista e escritora
Starhawk, a fim de traçar um rápido panorama de sua trajetória, bem como apresentar técnicas
e conceitos criados e/ou recuperados por ela que resgatam tradições espirituais de culto à
Deusa e de retorno à terra. No contexto de uma reflexão sobre feitiçaria, ecologismo e
“animismo”, o propósito é demonstrar como diferentes sensibilidades em torno da natureza
vão sendo guiadas pela emergência de novas espiritualidades, bem como fazer uma breve
reverência a Starhawk, que recupera os modos de saber e práticas de “respeito pela santidade
de todas as coisas vivas”.
Palavras-chave: Neo-paganismo; Starhawk; Ecologia; Animismo.
Abstract: The resurgence of the pagan tradition in the west has been strongly marked by an
approximation between mystical thinking and the concerns of some strands of contemporarily
ecologism. With this in mind, in this article I resort to the witch, eco-activist and writer
Starhawk, in order to trace a brief panorama of her trajectory, as well as present techniques
and concepts created and/or recovered by her that reclaim spiritual traditions of Goddess
worshipping and return to the earth. In the context of a reflection on witchcraft, ecologism and
“animism”, the purpose here is to demonstrate how different sensibilities surrounding nature
are guided by the emergence of new forms of spirituality, as well as make a brief reverence to
Starhawk, who recovers knowledges and practices of “respect to the sacredness of all living
things”.
Keywords: Neo-paganism; Starhawk; Ecology; Animism
16
Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pesquisa novos
movimentos ecológicos, crise da modernidade e o imaginário do fim do mundo nas sociedades ocidentais.
17
“A política é uma forma de magia e nós trabalhamos com magia direcionando energia através de uma visão”
(tradução livre).
18
Permacultura é um princípio de design ecológico que abrange uma ampla gama de conhecimentos, da ecologia,
ao uso de energias renováveis e manejo dos recursos naturais, com intuito de planejar e criar ambientes
sustentáveis e permanentes que atendam não apenas esta, mas também as futuras gerações.
19
Juntamente com Charles Williams e outros, ela ensina cursos EAT nos EUA, no Canadá e na Europa. Ela
também defende a ‘permacultura social’: a aplicação dos princípios da permacultura a organizações sociais,
políticas e estratégias. Desde seu primeiro curso em maio de 2001, a Earth Activist Trainings formou mais de
1000 alunos que agora conduzem projetos que vão desde estratégias de desativação comunitária em Iowa City a
programas de captação de água na Bolívia, de hortas urbanas em São Francisco a programas da região –
informações extraídas em setembro de 2018 no site oficial da Starhawk. Ver
https://starhawk.org/about/biography/
20
Starhawk consultou e co-escreveu o popular trio de filmes conhecido como Série de Espiritualidade Feminina,
dirigido por Donna Read Cooper para o National Film Board do Canadá: Goddess Remembered (1989), The
Burning Times(1990) e Full Circle (1993). A trilogia estava entre as dez maiores de vendas e aluguéis do Film
Board por mais de uma década. Seu primeiro documentário foi Signs Out of Time (2004) sobre a vida da
arqueóloga Marija Gimbutas, a estudiosa que fez grandes descobertas sobre as culturas da Deusa da antiga
Europa. O segundo documentário de Starhawk e Donna foi o Permaculture: The Growing Edge, lançado em
2010. Starhawk também fez vários documentários curtos que podem ser encontrados no YouTube: The Spiral
Dance Ritual, Spiral Dance: Three Decades of Magic e Permaculture Principles at Work, com quase 200.000
visualizações.
21
Será utilizado neste trabalho a edição brasileira de 2007.
Em linhas gerais, pode-se dizer que, a partir da “reinvenção” da Wicca nos Estados
Unidos, esta religião passou a ser vista e procurada por aqueles que buscam alguma forma de
espiritualidade mais centrada na terra, na natureza viva e em ideias ligadas à ecologia e ao
feminismo (Castro, 2016). A ligação da Wicca a esse conteúdo político mais explícito foi tão
bem articulada por Starhawk que, a partir da publicação, em 1979, de seu primeiro livro, The
Spiral Dance, ela se tornou a mais influente wiccanadepois de Gardner, considerada a
Se por um lado a imagem da bruxa se conectava a muitas das ideias feministas dos anos
70, por outro lado, o “ambientalismo emergente foi apropriado no sentido de compor a visão
holística dessa Bruxaria que se desenvolvia” (Filho, 2016, p. 63). Sendo assim, pode-se dizer
que tanto o feminismo quanto o ambientalismo foram significativos às concepções e
reinterpretações da religião Wicca e das novas espiritualidades que, via de regra, ressurgiam
fortemente alinhadas às tendências da contracultura americana.
Para fins deste artigo, minha proposta é apresentar a correlação entre a bruxaria de
Starhawk e o pensamento ecológico. A abordagem do feminismo não será aqui aprofundada,
ainda que reconheça a importância desse movimento para o entendimento que faz Starhawk
da Deusa. Contudo, os temas relativos ao pensamentoecológico, de meu interesse neste
momento, serão mais centrais, tendo em vista a designação que tem se referido a Wicca e a
comunidade neopagãs, em geral, como tradições baseadas na Terra e de culto a Deusa.
3. Entre mundos
“pode ser interpretado como uma espécie de sinalizador, expressão de uma tentativa
de contrabalançar as tendências majoritárias de uma sociedade individualista e
(...) os neopagãos acreditam que curando a si mesmos, algo acontece nessa teia,
ressoando de alguma forma no meio mais amplo. De outro modo, eles acreditam que
estão auxiliando na cura da própria Terra; as “feridas” desta última são entendidas
como a sua degradação por parte do homem, como matas queimadas, árvores
desmatadas, rios poluídos etc. (Castro, 2017a, p. 50)
22
Sobre isso, é importante enfatizar que, além do que Starhawk expõe, a afinidade entre Paganismo e Ecologia, a
liberdade religiosa e a diversidade de expressão do divino são, também, características que atraem pessoas ao
movimento. Para outros, particularmente mulheres, o reconhecimento da sacralidade do princípio feminino – a
Deusa – constitui uma descoberta profundamente enriquecedora. Muitas pessoas veem na ética comunitária o
principal ponto de atração do Paganismo, enquanto outras, ainda, são atraídas pela ausência de dogmas e pela
valorização da liberdade individual de pensamento e de ação. Estas e outras razões contribuem para explicar o
crescimento do movimento em todo o mundo (Oliveira, 2009).
Assim, vemos como para Starhawk, é crucial que o retorno ao círculo seja
compreendido não apenas como uma prática para realização do poder pessoal, mas,
sobretudo, para que se honre cada aspecto do ritual no espaço sagrado e cada princípio que
constitui a Religião da Deusa; sendo eles a “imanência” da Deusa e a “ligação” entre todos os
seres e a “comunidade”, o que inclui nossa relação com a Terra. Ela explica que quando a
ânsia pela expansão da consciência leva à uma visão do interior que evita o contato com o
mundo em volta, isto pode representar uma limitação do potencial espiritual e da percepção.
A noção de “cura pessoal” deve, neste sentido, estar vinculada à realidade social mais ampla,
ao contexto sociocultural, a qual, não obstante, podem oferecer impedimentos reais para que
alguns indivíduos ou grupos, apenas com a força da vontade, consigam criar de modo
exultante sua própria realidade – “se a espiritualidade deve atender, verdadeiramente, à vida
(...) seu enfoque não deve ser a iluminação individual, mas o reconhecimento da ligação e
cometimento de um para com o outro”(Starhawk: 2007:317).
23
O círculo é disposto na Bruxaria toda vez que se dá o início formal ao ritual. “O círculo existe nos limites do
espaço e tempo comuns; encontra-se ‘entre mundos’ daquilo que é visível e invisível” (...) Quando organizamos
um círculo, criamos uma forma energética, uma fronteira que limita e contém os movimentos das forças sutis”
(Starhawk, 2007, pp. 116-117)
Starhawk sempre se preocupou em mostrar que os valores que ela descreve como
estando vinculados à bruxaria, na verdade, permeiam muitas outras tradições religiosas e
culturas, tais como as indígenas, por exemplo, mas também tantas outras. Recuperar tais
valores de honrar a Terra, pode, sem dúvida, ser uma forma de realmente ajudar a enfrentar as
crises gêmeas: a ecológica e a social. Contudo, tão importante quanto recuperar tais valores é
coloca-los em prática. Ela conta que, após a escrita de The Spiral Dance, livro voltado
exclusivamente a ensinamentos de feitiços e rituais, ela sentiu grande necessidade de um
engajamento político mais ativo.
Outra forma que Starhawk tem encontrado para colocar em prática essa
sensibilidadeeco-espiritual foi criando o Earth Activist Training25(EAT), curso oferecido por
ela voltado para o ensino da permacultura, que é um sistema de design ecológico, surgido na
Australia nos anos 70, que reúne um conjunto de princípioséticos, os quais, como ela mesma
descreve, poderiam ser facilmente os mesmo da tradição da Deusa ou de qualquer cultura
indígena. São eles:
Cuide da Terra, cuide das pessoas, cuide das próximas gerações obtendo apenas o
necessário e o justo; não use o mundo de forma exagerada nem devolva a ele seus
excessos. Juntamente com os princípioséticos, surge uma série de procedimentos
que nos ajuda a desenhar sistemas que supram nossas necessidades – de comida e
abrigo e até de entretenimento – ao mesmo tempo que regeneram o ambiente natural
ao nosso redor. (Starhawk, 2018, p. 61)
24
Texto original em inglês: “a community of people working to unify spirit and politics. Our vision is rooted in
the religion and magic of the Goddess, the Immanent Life Force. We see our work as teaching and making
magic: the art of empowering ourselves and each other. In our classes, workshops, and public rituals, we train
our voices, bodies, energy, intuition, and minds. We use the skills we learn to deepen our strength, both as
individuals and as community, to voice our concerns about the world in which we live, and bring to birth a
vision of a new culture”. Extraído em setembro de 2018 no site oficial do coletivo Reclaiming. Texto original no
linkhttp://www.reclaiming.org/. Acesso em outubro de 2018.
25
http://earthactivisttraining.org/
26
Como nos casos emque grupos de bruxas que se reuniram nos EUA para realizar um feitiço contra a
candidatura de Donald Trump. Reportagem acessada em outubro, 2018. Ver:
https://www.vox.com/2017/6/20/15830312/magicresistance-restance-witches-magic-spell-to-bind-donald-trump-
mememagic
27
Texto original em inglês: “Goddess religion is not based on belief, in history, in archaeology, in any Great
Goddess past or present. Our spirituality is based on experience, on a direct relationship with the cycles of birth,
growth, death and regeneration in nature and in human lives. We see the complex interwoven web of life as
sacred, which is to say, real and important, worth protecting, worth taking a stand for. At a time when every
major ecosystem on the planet is under assault, calling nature sacred is a radical act because it threatens the
overriding value of profit that allows us to despoil the basic life support systems of the earth. And at a time when
women still live with the daily threat of violence and the realities of inequality and abuse, it is an equally radical
act to envision deity as female and assert the sacred nature of female (and male) sexuality and bodies” –Texto
original no linkhttp://www.starhawk.org/. Acesso em outubro de 2018.
“Algumas pessoas adoram dividir e classificar, enquanto outras fazem pontes”. Assim
começa o artigo escrito pela filósofa belga Isabelle Stengers, intitulado Reclaiming Animism
(2017). Neste belo trabalho, a autora faz uma reflexão contundente em torno da noção de
“animismo28” tomada do antropólogo francês Phillip Descola, ao que elaconvoca a todos –
acadêmicos, ocidentais, modernos – para uma escalada no pensamento, para uma aventura
científica – ao invés de continuarmos atados a mais um experimento validado dentro dos
critérios da “verdadeira” Ciência. Diante de tantas atrocidades e catástrofes anunciadas que
ameaçam e extinguem tantas vidas neste planeta, Stengers fala da urgência de reativarmos
(toreclaim) o animismo, como um exercício à superação de qualquer versão das “narrativas
épicas” que postularam a ascensão do cientista sobre toda e qualquer forma de conhecimento.
Por isso, construir pontes, no sentido colocado por Stengers (2017), diz respeito à
capacidade de tecer “relações que transformam uma visão em um contraste ativo, com poder
de afetar, de produzir pensamento e sentimento” (p. 02). Esta capacidade foi por ela
identificada em um encontro com as bruxas neopagãs contemporâneas e outros ativistas nos
Estados Unidos, ao que ela descreve que o clamor da neopagã Starhawk – "A fumaça das
bruxas queimadas ainda paira nas nossas narinas" – a fez compreender que o orgulho
moderno que herdamos nos faz “interpretar”, tratar em termos de “construções” ou meras
“crenças”, todo saber e prática que desafia os limites do racionalismo ocidental moderno.
Esquecemos que esta herança advém de uma “operação de erradicação cultural e social –
precursora do que foi cometido em nome da civilização e da razão” (Stengers, 2017, p. 9).
28
“A ontologia animista está presente em regiões da América do Sul e do Norte, e também na Sibéria e em
partes da Ásia. Sua característica principal é a imputação de subjetividade a plantas, animais e outros elementos
do ambiente físico de modo a estabelecer relações pessoais com eles” (Sá Junior, 2014, p. 19).
5. Referências bibliográficas
CASTRO, Dannyel T. A festa das almas: o culto aos ancestrais no neopaganismo. Rev.
Ultimo Andar. N. 28. 2016.
__________________. Entre carvalhos e samaúmas: a espiritualidade céltica
contemporânea entre a eco-religiosidade e a identidade regional. Diversidade Religiosa, João
Pessoa. n. 7. N. 1. 2017a.
__________________. Estudos sobre o neopaganismo no Brasil. Fragmentos de cultura. V.
27. N. 3. Goiânia. 2017b.
CRUZ, Patrícia P.; PEREIRA NETO, Francisco. A Ecologia e o Sagrado: a trajetória
antropológica de uma cosmologia contemporânea. Tessituras, Pelotas, v. 2. N. 1. P. 231-250.
2014
D’ANDREA, Anthony A. F., O Self perfeito e a Nova Era. Individualidade e Reflexividade
em religiosidades pós-tradicionais. Edições Loyola. Chicago. 2000.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo. Ed.
Elefante. 2017
FILHO, Celso Luiz. T. A Deusa não conhece fronteiras e fala todas as línguas. Um estudo
sobre a religião Wicca nos Estados Unidos e no Brasil. Tese de Doutorado em Ciências da
Religião da Pontífica Universidade Católica de São Paulo. SP. 2016.
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997.
MAGNANI, José Guilherme Cantor, O Neo-esoterismo na Cidade, Revista USP, Dossiê
Magia, São Paulo, p.6-15, 1999.
OLIVEIRA, Aurénea M.; OLIVEIRA, Gustavo G. Modernidade, (des)secularização e pós-
secularismo nos debates atuais da sociologia da Religião. Revista Teologia e Ciências da
Religião. UNICAP. PE. V. 1. 2012
OLIVEIRA, Rosalira. Ouvindo uma Terra que fala: o renascimento do Paganismo e a
Ecologia. Rev. Nures. N. 11. SP. 2009.
OLIVEIRA, Rosalira. Religiões da terra e ética ecológica. Dossiê: Biodiversidade, Política e
Religião. Horizonte. PUC MInas. BH. V. 8. N. 17. 2010.
SÁ JUNIOR, Luiz Cesar de. Philipe Descola e a Virada Ontológica na Antropologia. Revista
ILHA. v. 16, n. 2, p. 7-36, 2014.
STARHAWK. A dança cósmica das feiticeiras: guia de rituais para celebrar a Deusa. Ed.
Nova Era. 7a ed. Rio de Janeiro. 2007.
STARHAWK. Truth or Dare: Encoumters with Power, Authority and Mystery. San
Francisco. Harper Collins Publisher. 1989.
STENGERS, Isabelle. Reativando o animismo – Belo Horizonte: Chão de Feira, 2017
29
Texto original em inglês: “Our magical tools and insights, our awareness of energies and allies on many
planes, can deepen and inform our activism. And our activism can deepen our magic, by encouraging us to create
ritual that speaks to the real challenges we face in the world, offers the healing and renewal we need to continue
working, and a community that understands that spirit and action are one”. –Texto original no
linkhttp://www.starhawk.org/. Acesso em outubro de 2018.
Resumo: O Artigo apresenta o resultado da pesquisa sobre as práticas formativas das famílias
pagãs wiccanianas que caracteriza o repasse do legado religioso. A ancoragem teórica traz
autores que tratam dos fundamentos da religião wicca, seus pressupostos históricos, porém
assentados no paganismo contemporâneo. Os aspectos metodológicos remetem à
hermenêutica e linguagem da religião com conteúdo produzido através de encontros que os
praticantes realizam em âmbito nacional e através de aplicação de entrevistas
semiestruturadas com oito famílias. Neste artigo trataremos do eixo: saberes e processos
formativos das famílias e os resultados ainda indicam que as vivências possibilitam às
crianças e jovens permanecer ou não na religião, dando continuidade ou não ao legado
religioso.
Palavras-chave: Paganismo; Religião; Wicca; Ritos familiares.
Abstract: The article presents the result of research on the formative practices of the
Wiccanian pagan families that characterizes the passing of the religious legacy. The
theoretical anchorage brings authors who deal with the fundamentals of the Wicca religion, its
historical assumptions, but settled in contemporary paganism. The methodological aspects
refer to the hermeneutics and language of religion with content produced through encounters
that practitioners perform at national level and through the application of semi-structured
interviews with eight families. In this article we will deal with the axis: knowledge and
formative processes of the families and the results still indicate that the experiences allow
children and young people opt for the permanence or not in religion, continuing or not to the
religious legacy.
Keywords: paganism; Religion Wicca Family Rites
Introdução
33
Termo que vem do latim e refere-se aquele que vive no campo, ou pelo sentido que se ergueu após a
cristianização do Império Romano que se traduz por aqueles que adoravam o espirito de um determinado lugar,
localidade.
[...] Eu sou pagã hoje no Brasil e celebro a Roda do Ano criando junto com os
deuses e com as pessoas que me cercam a dança ancestral, refazendo os caminhos já
trilhados por nossos antepassados de uma maneira nova e em consonância com
nosso tempo. Levo minhas crianças às celebrações lunares e solares, desejando que
elas cresçam cada vez mais em consciência, auto-determinação, independência e
liberdade. Que elas possam fazer a magia do amor modificar os mundos.
Eu sou pagã hoje no Brasil, vivendo em cidades grandes sou uma bruxa urbana que
descobre a natureza nos locais mais inusitados. Danço minhas danças de poder nas
danceterias, ou vou para parques. Sempre que posso busco a mata, o cerrado e a
praia. Compro meus instrumentos em shoppings ou os faço com minhas mãos.
Reabasteço-me na natureza e dou poder a tudo que me cerca, vivificando com minha
magia tudo o que faço, de escrever um texto a preparar um almoço, da roupa que uso
ao modo como me movimento. Descubro a riqueza da minha terra, da herança
indígena às contribuições européias e africanas, e as honro em meus rituais sem
esquecer que a Deusa não tem nacionalidade, e fala todas as línguas [...]
Reabasteço-me na natureza e dou poder a tudo que me cerca, vivificando com minha
magia tudo o que faço, de escrever um texto a preparar um almoço,
da roupa que uso ao modo como me movimento.
Descubro a riqueza da minha terra, da herança indígena às contribuições européias e
africanas, e as honro em meus rituais sem esquecer que a Deusa não tem
nacionalidade, e fala todas as línguas.
Eu sou pagã hoje no Brasil e conheço muitos pagãos, cada vez mais gente que
acorda do pesadelo das visões retilíneas do universo e passa a sonhar o doce sonho
da Terra. (CERIDWEN, 2017, s/p).
Considerações finais
Referências
A circuit of autonomy: the Wicca, the New Age and the polemic of social representation
Introdução:
34
Doutorando e Mestre em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), graduado em
Ciências Sociais pela mesma instituição. O presente trabalho foi realizado com o Apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – código de financiamento 001.
Phd Student and Master in Religious Studies by Universidade Federal de Juiz de Fora - Brazil (UFJF), graduated
in Social Sciences by the same institution. Thisstudywasfinanced in partbythe Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - FinanceCode 001.
É visível que a Wicca segue as mesmas ideias em seu credo básico. O culto à Deusa, como
sendo uma entidade imanente e transcendente. Imanente porque ela se manifesta na natureza e
é a própria natureza e tudo que há nela, inclusive nós, humanos. Transcendente porque a
Deusa supera toda a existência, ela a produz, a conduz, a destrói e a renova. Ela é a condução
do Ciclo da Vida que perpassa a toda manifestação, e o controla segundo suas fases,
relacionadas ao ciclo lunar: crescente, cheia, minguante e escura –, Jovem, Mãe, Anciã e
Tríplice. Ela se apresenta à humanidade em sua totalidade natural e transcendente, em sua
imanência através da natureza ou através de suas faces35.
A Deusa possui um consorte natural, o Deus. Ele é a expressão do próprio Ciclo da
Vida, é aquele que nasce, cresce, morre e renasce, tendo essas etapas conduzidas ou
protagonizadas pela Deusa que é sua mãe, sua amante, sua amiga. Esse deus, também
imanente e transcendente, é a própria vida e a própria existência, representada, igualmente, na
sua totalidade natural e transcendente, em sua imanência através da natureza ou através de
suas faces36.
Vivenciar a Wicca, portanto, é conectar-se com a natureza, e aliar-se a seu poder
divino, transcendendo a si mesmo e ao mundo, para chegar à Deusa, e depois, retornando ao
mundo, conectado, potencializado, divinizado. É então que o homem pode integrar-se à
natureza, reconhecendo-a como divina e a si mesmo como divino e integrado à totalidade
existencial.
Ou seja, primeiro a transcendência, depois a imanência. Primeiro é preciso alcançar o
divino. Depois, integrar-se, atuar no mundo compreendendo que ele é divino, assim como
também o somos. Contudo, a transcendentalização é autônoma e individual. Por mais que o
indivíduo participe de covens ou de grupos fechados, ou mesmo sendo um solitário em sua
prática, a transcendência é um caminho que se trilha sozinho, porque ele requer que o
indivíduo vá ao âmago de sua existência, encontre em si a centelha divina, se reconheça como
35
Para os wiccanos todas as deusas existentes no mundo são expressões ou arquétipos da Deusa.
36
Também, para os wiccanos, todos os deuses existentes no mundo são expressões ou arquétipos do Deus.
No caso da Wicca, aplicamos a autonomia no que diz respeito aos métodos, às práticas
mágicas e religiosas37e à socialização interna a esse “circuito Neo-Eso” (Magnani, 1986). O
indivíduo tem livre circulação entre as práticas e os grupos, e é livre para montar sua própria
interpretação e estrutura prático-religiosa, visando alcançar a Deusa (a centelha divina) em
seu interior. Existe um grau de controle (ou tentativa) por parte dos grupos, associações e/ou
covens, mas delas falaremos mais adiante. O que nos interessa aqui é que essa autonomia
(como centro e característica essencial da Nova Era), está absolutamente presente na Wicca.
“Essa irreverência espiritual se manifesta em um tipo de errância individual que
contribui para uma religiosidade porosa, aberta para os vários campos espirituais disponíveis.”
(Amaral, 1994, p. 34, grifo da autora). Esse movimento, Amaral chamou de “espiritualidade
caleidoscópica” (idem), como uma forma de definir essa (re)apropriação e manipulação
sincrética – e eu acrescentaria eclética - que os novaeristas – no nosso caso, os wiccanos –
fazem das diversas tradições culturais religiosas e não-religiosas de que tem acesso (Amaral,
1994).
É perceptível que há um confronto explícito da composição desses arranjos religiosos
híbridos de várias tradições e culturas de maneira muito mais eclética do que sincrética.
Contudo, esse cotejo é suavizado ou atenuado, no caso wiccano, por sua pretensão holística:
“tudo é a Deusa”. Dessa forma, não pode haver defrontação ou incompatibilidade em
tradições ou religiosidades distintas, elas precisariam, portanto, serem compreendidas em sua
conectividade e unicidade transcendente; de modo que
37
Terapias holísticas, trabalhos com chakras, encantos, poções, trabalhos com ervas, rituais e práticas religiosas
oriundos de várias outras religiões, trabalhos energéticos e limpezas de aura, meditações e todas as demais
práticas situadas no circuito Nova Era também fazem parte das práticas wiccanas. Contudo, na Wicca elas são
ressementizadas, uma vez que são retiradas de seu significado original e inserido na perspectiva holística: “tudo
é a Deusa e todas as honras são em seu nome”.
Enfim, só nos resta concordar com Osório (2006) e constatar que a Wicca faz parte da
Nova Era. Ela também estava em seu processo embrionário e hoje está completamente
abrigada no seio de sua própria gestação.
Uma frase particular que demonstra o caráter autonômico desenvolvido na Wicca foi
proferida pela bruxa e escritora Ligia Amaral Lima – dona da Loja Jeito de Bruxa, introdutora
das Runas como oráculos no Brasil e uma das primeiras bruxas modernas a se assumir como
tal no cenário brasileiro – no I Seminário sobre Paganismo da União Wicca do Brasil em
setembro de 2015. Na ocasião, a bruxa terminou seu discurso contra o que ela chamou de
“guerra de egos” no cenário Pagão com a seguinte frase “nós não somos os escolhidos, somos
os autointitulados. Devemos viver em perfeito amor e perfeita confiança. E assim podemos
ser porque a Deusa e o Deus nos permite”.
Os escolhidos a que ela se referia seriam os cristãos, que pregam a salvação ou a
eleição ao reino celestial e que marcariam, segundo a autora, uma era de ego e patriarcado na
humanidade. O Paganismo, que teria vindo em resposta, traria novamente a ordem “natural”
do equilíbrio no qual ninguém precisaria ser eleito, pois a salvação viria da harmonia com a
vida e a natureza sagrada. Desse modo, nenhum pagão precisa de credencial para se dizer
como tal, ou para se intitular bruxo ou sacerdote. Essa postura vem da convivência harmônica,
contrária a postura baseada em egos, manifestada por uma das frases mais famosas da Wicca
desde sua criação, geralmente proferida no início de todo ritual: “estou aqui com amor e
confiança plenos”.
A relação que se vê é de autonomia. Quando se acessa a divindade que reside dentro,
transcende-se ao nível do sagrado, reconhecendo-se como tal. Esse movimento permite ao
praticante tomar para si uma atitude completamente autonômica, respaldada na totalidade e no
holismo da Deusa e do Deus. Um wiccano pode ser tudo o que ele quiser, e cultuar tudo o que
ele queira, desde que o faça com amor e confiança plenos.
O ego citado, e praticamente tema das discussões do I Seminário sobre Paganismo em
2015, refere-se exatamente ao ponto sensível que tange essa pesquisa: a disputa por espaço e
representatividade entre as lideranças (ou supostas lideranças) do circuito wiccano.
Adiantamos que esse ego se manifesta por pessoas ou grupos que vão exatamente na
contramão desse princípio autonômico, que censuram ou direcionam as práticas wiccanas
tidas como mais corretas ou de maior credibilidade, e elencam ou canalizam para si um poder
A polêmica da representatividade:
Criada em julho de 2004 no Rio de Janeiro, a União Wicca do Brasil é uma associação
sem fins lucrativos que visa a representar politicamente a comunidade wiccana e pagã como
um todo. Segundo o sacerdote OgSperle, seu atual presidente, o projeto tem como objetivo
38
As tradições familiares nada mais são do que a manutenção de conhecimentos e tradições de magia herdados
de geração em geração, ou resgatados de um ancestral que praticava artes mágicas no passado. Nem toda
tradição familiar é wiccana, mas toda tradição familiar pode ser incorporada a Wicca. A própria Bruxa Ligia
Amaral, por exemplo, se diz descendentes de Strigas (bruxas italianas de tradição familiar) e assim além de
wiccana é também sacerdotisa de uma tradição familiar que foi passada a ela a partir de sua avó.
Nosso projeto não é pleitear melhorias pra nossa comunidade só não. A gente luta
junto ao governo por uma conquista de todos os wiccanos e pagãos, não só aqueles
que fazem parte da UWB. Nós não dividimos ou segregamos a comunidade, e
mesmo os que se opõem a nós se beneficiam de nossas conquistas.
O que essa frase nos mostra é que ainda há resquícios da polêmica iniciada em 2014,
há aqueles que não se sentem representados pela UWB. Mais ainda, aponta um caminho
típico da UWB, o político. Acompanhei o envolvimento da instituição (através das
participações de OgSperle) em reuniões e associações políticas do Rio de Janeiro,
principalmente nas relacionadas à promoção da liberdade religiosa e de movimentos
ecumênicos. As conquistas a que o sacerdote se referia passam pela promoção do credo
wiccano e da elaboração de parcerias políticas e representativas, promovendo visibilidade à
seriedade da Wicca enquanto religião.
Esse movimento de representação em uma religião autonômica, privatizada e subjetiva
gera oposições. A primeira delas é originária da ABraWicca, que foi a primeira associação do
gênero no país. Também causou polêmicas, como aponta Osório (2005), o fato de que a
ABraWicca teria tentado delimitar o que é ou não Wicca a partir de sua definição. Entre os
entrevistados a esse respeito, o que se percebeu é um ressentimento a esse momento e uma
desconfiança crescente das instituições representativas que encontram-se disponíveis. Hoje o
site da ABraWicca não elenca Cristiano como seu ex-presidente, uma vez que ele foi e ainda é
protagonista de muitos desses embates.
Não sou filiado sabe, nem minha sacerdotisa é. Mas a gente apoia muito o trabalho
de divulgação e conscientização que eles fazem. A gente só não precisa de uma
entidade dizendo o que somos ou deixamos de ser. Acho que são os Deuses que nos
revelam isso, né?! (Gabriel)
Essa frase se junta a de Ligia Amaral Lima (referência em bruxaria e Wicca no Brasil)
no mesmo seminário em 2015: “nós não somos os escolhidos, somos os autointitulados. E
assim podemos ser o que quisermos em perfeito amor e confiança, pois a Deusa e o Deus nos
permitem”. Essa emblemática fala foi pronunciada por uma bruxa fortemente apoiadora e
Não! Não queremos institucionalizar nada. Não estamos aqui para dizer quem é ou
deixa de ser wiccano. Não é essa a questão. Estamos aqui para representar política,
social e juridicamente a Wicca frente ao Estado do Rio de Janeiro e ao Estado
Brasileiro. Estamos aqui para lutar pelo direito religioso dos wiccanos e reduzir o
preconceito e desconhecimento a respeito da nossa religião. Não somos uma
instituição, mas uma associação, e o que fazemos, fazemos para toda a comunidade
pagã, inclusive em prol daqueles que nos recriminam. (Sperle)
A Guerra de Egos:
Um ponto muito debatido em meu campo é o que Ligia Amaral chamou em 2015 de
“guerra de egos”. Por esse termo ela designou a disputa por legitimidade e liderança dentro da
Wicca e do paganismo como um todo.
Criticada como uma postura contrária ao arquétipo wiccano, essa “guerra de egos”
surge quando uma liderança ou bruxo de relativa visibilidade decide agir ou orientar a ação
dos wiccanos de uma maneira diferente das que convencionalmente são padronizadas. Essa
Eu frequento tudo. Não vejo diferença. Eu vou, ouço com atenção tudo o que é dito
e absorvo o que é bom pra mim, o que considero certo. Não quero ficar entrando em
disputa. Acho que os dois lados estão certos e errados. Se eu pegar o certo nos dois
lados, eu saio ganhando, não acha?! Mas eu tenho que dizer: o Claudiney é brigão
mesmo, ele caça treta com tudo e todo mundo... As vezes cansa. Por isso a gente tem
evitado falar o nome dele, até nos espaços que sabemos que ele é bem-vindo.
(Bernardo)
Nesse sentido, o maior desafio enfrentado pela Wicca no campo estudado tem sido seu
reconhecimento como religião detentora de princípios e credo próprio, mesmo de base
autonômica, ela possui um tronco único. Muitos olham pra Wicca enxergando apenas sua
copa, a diversidade de suas práticas, a multiplicidade de suas tradições. Outros, com olhares
mais críticos, enxergam apenas suas raízes, que descem profundamente pelo terreno histórico
– apesar de suas águas advirem de fontes e interpretações modernas e individuais, até
românticas, do passado. Enquanto isso, a União Wicca do Brasil abre a frente de uma luta
para que se enxergue também seu tronco, sua base comum. E assim, ao se olhar para a Wicca,
poder-se-ia ver a “anciã árvore da senhora” descrita no poema da Rede Wicca (Cantrell,
2002): segundo a narrativa wiccana, ela seria, portanto, uma antiga árvore de muitos galhos e
profundas raízes.
O problema em questão é a pergunta que fica “e quem diz que árvore é essa?”. Eis
aqui o ponto chave da institucionalização. Segundo os próprios wiccanos, seriam eles
mesmos, em suas vivências emocionais que tocariam e alcançariam a Deusa. Segundo as
representações, é preciso limitar o quão íntimo a pessoa se diz do credo em si. É preciso
aprender com pessoas que trilham o caminho há mais tempo, para evitar inverdades. O
sacerdote Pedro me disse em um dos rituais, quando foi questionado se existe ou não um
cerceamento da Wicca por parte dos grupos constituídos:
não há cerceamento. Todo mundo pode ser wiccano. Mas não é todo mundo que vai
se iniciar, né?! Se iniciar é dizer seu “sim” a Deusa. Abandonar seu velho eu e sua
velha vida, nascer de novo. Para dizer um “sim” você tem que está muito certo do
que quer, mais até, você conhecer muito bem onde está se metendo. Ninguém pula
num buraco sem antes ver onde ele vai dar. O que nós e o pessoal da UWB somos
contra são essas pessoas que leem um dois livros e já se iniciam. Elas não entendem
com o que estão lidando, por mais que a Deusa seja boa, ela cobra e muito, ela é
mãe, né?! (Pedro)
Essa dinâmica tem seus picos e seus lado: os que são a favor da institucionalização, os
que são contra, os que acham que a Wicca deve ter representatividade social por pessoas
sérias e reconhecidas, aqueles que pensam que ela não é uma religião para ser vivida dentro
do sistema. Ela deveria, então, ser íntima, silenciosa. E nesse contexto o problema da
representação é o simples ditado “é difícil agradar a todos”. Campanhas como a “a UWB não
Referências Bibliográficas: