Cupido e Psique PDF

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Cupido e Psiquê

e outras narrativas
da literatura mundial
Cupido e Psiquê
e outras narrativas
da literatura mundial

Seleção e adaptação
Paulo Sérgio de Vasconcellos

São Paulo
Capa
Francisco Achcar

Editoração

Gilberto Kawasaki
Lisete Rodrigues S. Lima

Revisão

Mônica de Almeida

Coordenação

Inês Achcar
Sumário

Mito da Grécia Antiga ....................................................... 7


Midas ..................................................................... 8

Um conto da Literatura Latina ........................................ 12


Cupido e Psiquê .................................................... 13

Narrativas de índios do Brasil .......................................... 27


Como a noite apareceu .......................................... 28
História do guaraná .............................................. 32
A onça e o bode ..................................................... 38

Conto dos irmãos Grimm ................................................. 41


O enigma ............................................................... 42

Contos populares brasileiros ............................................ 47


O bicho Manjaléu ................................................. 48
A festa no céu ........................................................ 56

Contos populares de Portugal .......................................... 59


A Riqueza e a Sorte .............................................. 60
Comadre Morte ..................................................... 63

Fábula ................................................................................ 65
O lobo e o cordeiro (Esopo) ................................ 66
O lobo e o cordeiro (Fedro) ................................. 67
O lobo e o cordeiro (La Fontaine) ....................... 68
Narração de Monteiro Lobato ............................. 69
Narração de Millor Fernandes ............................. 72

Referências Bibliográficas ................................................ 75


Mito da Grécia Antiga
Um mito é uma narrativa que
fala de seres como deuses e
heróis e conta a origem do
mundo e de tudo o que nele
existe.
São muito conhecidos, depois
de mais de dois mil anos da
cultura grega antiga, os mitos
gregos, que têm personagens
como Narciso, Orfeu, o cavalo
Pégaso, etc.
Aqui, você conhecerá o mito
de Midas.
Midas
C erta vez, Sileno, compa- A versão que
aqui se lê é
nheiro do deus do vinho uma adapta-
Dioniso, foi parar no país do rei ção da história
Midas. Sileno seguia a comitiva tal como
contada pelo
do deus, mas, por causa da poeta romano
idade e do muito vinho que Ovídio (século
bebera, acabou ficando para l a. C. - l
trás e se perdendo. Assim que d.C.).
avistou o companheiro de
Dioniso, Midas fez questão de hospedá-lo em seu
palácio e de festejar por dez dias e dez noites
seguidas.
Quando a décima primeira aurora raiou, Midas
levou Sileno até o jovem Dioniso. Alegre com aquele
reencontro, o deus do vinho perguntou ao rei:
— Que recompensa você gostaria de receber?
Escolha qualquer coisa.
Midas, imprudente, respondeu:
— Faça com que tudo o que eu tocar com o meu
corpo se transforme em ouro!
Dioniso concordou e concedeu aquele dom.
Midas se foi, todo contente com o que se tornaria a
fonte de todos os seus males. No caminho, vai
tocando tudo o que encontra para testar se o deus
cumpriu mesmo a palavra. Mal acreditando no que
vê, tira um ramo verdejante de uma árvore, e ele se
torna de ouro. Ergue do chão uma pedra: a seu
toque poderoso, transforma-se numa barra de ouro.
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Colhe espigas de trigo: de repente, é uma colheita
de ouro. Onde lava as mãos, as águas se
transformam em ouro líquido. Não se contém de
alegria, imaginando que tudo a seu redor pode se
transformar em ouro!
Já no palácio, eis que seus criados lhe puseram
à mesa iguarias e pão. Sentindo fome, o rei
primeiramente corta um pedaço de pão, mas, ao
tocá-lo, ele se torna duro e dourado, transfor-
mando-se em metal. Já estava para devorar as
iguarias, mas, quando seus dentes as tocam, uma
camada de ouro as recobre. Não consegue comer.
Mistura água e vinho para saciar a sede, e eis que
ouro líquido escorre em sua boca. Espantado e
assustado com aquela desgraça inesperada,
sentindo-se rico e pobre ao mesmo tempo,
amaldiçoa o bem que tanto desejara. A riqueza não
mata sua fome, a sede intensa queima a sua
garganta. Todo o ouro à sua volta só servia para o
torturar mais e mais.
Por fim, erguendo aos céus as mãos, diz:
— Perdoe-me, Dioniso! Errei, sim, mas tenha
compaixão de mim e me tire esse dom enganador.
Dioniso foi bondoso: vendo o rei confessar seu
erro, restituiu-o ao estado antigo e desfez o que
tinha feito apenas para cumprir o que lhe fora
pedido.
Midas, odiando agora as riquezas, passou a
viver sempre nos campos e nas florestas. Morava
nas cavernas das montanhas. Mas sua inteligência
continuava pequena e perigosa. Um dia, às
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margens de um rio, o deus Pã pôs-
se a dizer às ninfas do lugar que os Ninfas:
cantos que entoava na flauta eram divindades
mais belos que o do próprio deus que habitam
Apolo. Pã, todo orgulhoso, pediu as águas
e as
que o rio julgasse quem era melhor montanhas.
músico. O rio se assenta sobre
uma rocha, transformado em um
velho com os cabelos coroados de folhagens, e dá
início à disputa.
Pã fez ressoar sua flauta rude, e Midas, que
estava por ali, ficou encantado com a música. Eis,
então, que Apolo se apresenta, e o rio e toda a
floresta se voltam para o ver. O deus tinha os
cabelos loiros cobertos por
folhas de loureiro; sua veste
Púrpura: cor de púrpura varria o chão;
cor na mão esquerda, trazia a lira
vermelho-escura
com que se de marfim que tinha pedras
faziam preciosas. Apenas Apolo
vestimentas
usadas iniciou sua música, extraindo
por reis. doces sons harmoniosos do
instrumento, e o rio já se
decidira: a flauta de um devia
reconhecer a superioridade da lira do outro. Todos
os presentes estavam de acordo. Só Midas toma a
palavra para dizer que o resultado foi injusto.
Apolo não pôde suportar que as orelhas
estúpidas de Midas continuassem a ter forma
humana. Ele as faz crescer e as enche de pêlos. Eis
que o rei tem agora orelhas de asno!
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Midas fez de tudo para esconder dos outros
aquelas orelhas, mas o criado que lhe cortava os
cabelos as viu. Porém, não teve coragem de revelar
o segredo aos demais. Ardendo de desejo de contar
a alguém o que descobrira, o criado fez, então, um
buraco na terra e confiou seu segredo baixinho a
ela. Depois, cobriu o buraco com terra e se foi.
Conta-se que naquele lugar nasceram caniços de
que eram feitas as flautas antigas. Passado um ano,
ao crescerem, as plantas traíram o segredo do rei,
pois, quando o vento as agitava com seu brando
sopro, ouvia-se nitidamente a frase:
— O rei Midas tem orelhas de burro!...

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Um conto da
Literatura Latina
O conto que você vai ler
a seguir, uma espécie de mito,
é narrado no livro As metamor-
foses ou o asno de ouro,de um es-
critor africano do século ll d.C.
que escrevia em latim: Apuleio.
A história central do livro é o
relato das aventuras de Lúcio,
um rapaz que, ao tomar por
engano uma poção mágica,
acaba transformado em asno!
Dentre as várias histórias con-
tadas pelas personagens, a
mais famosa é a que você lerá a
seguir.
Cupido e Psiquê
Em grego, psiquê significa
E ra uma
vez um rei e
"alma"; primitivamente, era o uma rainha que
sopro vital que dá vida a tinham três filhas
todos os seres animados.
muito bonitas. A
Cupido, deus do amor, era
representado como uma
mais nova era de
criança com asas, uma beleza per-
carregando tochas e um feita, que deixa-
chicote, pois o amor tortura va todos que a
os seres humanos com o viam admira-
sofrimento. dos e encan-
tados. Cha-
mava-se Psi-
quê. Vinha gente até de outras cidades e outros
países para vê-la. Tão bela era a moça que parecia
ter Vênus, a deusa do amor, tomado forma humana.
Em pouco tempo, começaram as pessoas a
abandonar o culto à deusa, esquecendo seus
templos e rituais: todos se dirigiam àquela moça,
adoravam-na e rezavam invocando seu nome. Ora,
Vênus ficou irritada e indignada por ser assim
deixada de lado por uma mortal. Chamou seu filho,
o menino alado, contou-lhe o que estava aconte-
cendo e, por fim, disse:
— Meu filho querido, vingue essa Alado:
ofensa feita à sua mãe. Faça com que que tem
Psiquê se apaixone por algum ser asas.
horrível, tão horroroso que, no mundo
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inteiro, não exista ninguém mais infeliz do que ela!
Mas Psiquê já era infeliz: sua beleza era tão
perfeita que todos a adoravam como quem venera a
estátua de uma deusa, mas ninguém no reino
desejava se casar com ela. Enquanto suas irmãs
mais velhas se casaram facilmente, Psiquê vivia
solitária e amaldiçoava sua beleza como se ela fosse
um peso insuportável.
O rei resolveu, um dia, ir ao templo do deus
Apolo implorar um casamento para sua filha.
Através de seus sacerdotes, o deus disse que Psiquê
estava destinada a se casar com um monstro
terrível, que provocaria terror até ao mundo dos
mortos. E ordenou ao pobre pai que colocasse a
filha num certo rochedo, no alto de uma montanha.
O rei voltou dali arrasado. Pai e mãe lamentaram a
sorte de Psiquê.
Mas era preciso obedecer às ordens do deus.
Foram todos em procissão até o rochedo. Era o
casamento de Psiquê, mas a moça chorava como se
estivesse assistindo a seu próprio funeral. Ao
chegarem à pedra, Psiquê foi deixada ali sozinha, e
todos retornaram para a cidade.
A moça, aterrorizada, sozinha sobre o rochedo,
não parava de chorar. De repente, um vento muito
suave agitou a barra de seu vestido, envolveu-a
toda e com um movimento delicado tomou-a nos
braços. Ergueu-a do rochedo e levou-a até um
gramado cheio de flores. Ali, Psiquê adormeceu.
Quando acordou, Psiquê viu um bosque de
árvores frondosas e uma fonte de água cristalina.
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No meio do bosque, avistou um palácio que não
parecia erguido por mãos humanas: todo revestido
de ouro, prata, pérolas e pedras preciosas.
Encantada, Psiquê perdeu o medo e se aproximou
do palácio. Abriu a porta e o que viu a espantou:
riquezas imensas espalhadas por toda parte! Psiquê
as contemplava maravilhada, quando uma voz de
repente se fez ouvir:
— Por que esse espanto? É tudo seu! Entre
naquele quarto, repouse e, quando quiser, peça um
banho. A voz que você ouve é de suas escravas.
Estamos aqui para cumprir suas ordens.
Psiquê achou que algum deus a estava
protegendo. Seguindo a recomendação daquela voz
que não vinha de nenhum corpo, simplesmente
ecoava pelo palácio, adormeceu e, ao acordar,
tomou um banho. De repente, notou ali perto uma
enorme mesa repleta das mais finas iguarias. Ela
sentou-se e viu que os pratos lhe iam sendo servidos
por um sopro invisível. Comeu até não poder mais.
Depois, foi deitar-se. Era noite. De repente, ouviu
um ruído. Adivinhou o que estava acontecendo: seu
marido vinha para passar a noite com ela, mas, em
meio à escuridão total, ela não podia ver seu rosto.
Ele nada disse e, antes de amanhecer, partiu.
O tempo foi passando. Os pais de Psiquê
envelheciam mergulhados em profunda tristeza,
com saudades da filha. Um dia, o marido de Psiquê
lhe disse:
— Minha amada esposa, suas irmãs conse-
guiram descobrir que você não morreu. Pretendem
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ir até o rochedo em que você foi abandonada. Se
você ouvir os seus lamentos, não responda, não
diga nada, nem olhe naquela direção. Se fizer isso,
causará em mim uma grande dor, e uma desgraça
para você mesma!
Psiquê prometeu agir conforme o marido lhe
pedia. Mas, quando ele, como sempre fazia, assim
que o dia surgiu, foi embora, Psiquê pôs-se a chorar
e a lamentar sua solidão. Sentia-se muito triste, sem
contato com seres humanos naquele palácio
enorme.
Corriam os dias, e Psiquê estava sempre triste e
amargurada; o marido notou e, diante dos pedidos
insistentes da esposa para que o vento trouxesse ao
palácio suas irmãs, finalmente, concordou:
— Está bem, então. Faça como desejar, mas
lembre-se de que eu avisei. Você vai se arrepender
quando for tarde demais! Pode ver suas irmãs. Mas
escute bem: nunca, nunca tente ver o rosto de seu
esposo, está me ouvindo? Nem mesmo se suas
irmãs insistirem para que você faça isso.
Psiquê, agradecida, prometeu ao marido agir
como ele recomendava. Mais eis que suas duas
irmãs chegaram ao rochedo e lá se puseram a cho-
rar e a gritar, chamando por Psiquê. Obedecendo
a seu marido, o vento levou as irmãs pelos ares até
ela. O reencontro foi emocionante, e as três
choraram de alegria ao se verem reunidas. A irmã
mais nova serviu às outras as mais finas iguarias,
presenteou-as com pedras preciosas e colares,
mostrando-lhes todo o palácio. Quando quiseram
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saber quem era o seu marido, Psiquê inventou que
era um moço muito bonito, que durante o dia estava
sempre caçando pelas montanhas da região.
Depois, receando trair-se e dizer o que não deveria,
mandou o vento levar de volta as irmãs.
De volta para casa, mordidas de inveja de
Psiquê, as irmãs conversaram entre si. Uma delas
disse:
— Como o destino é injusto! A mais nova de nós
possui as maiores riquezas que se possa imaginar.
Você viu com seus próprios olhos, minha irmã:
pedras preciosas, ouro e prata por toda parte! E ela
ainda está casada com um moço muito bonito. Eu
tenho um marido que é mais velho que meu pai e
mais careca do que uma abóbora, além de parecer
um anão, de tão baixinho!
— Mas e o meu, então? — respondeu a outra.
Está sempre com reumatismo, sempre doente. Eu
pareço mais sua enfermeira do que sua esposa... E
você viu como Psiquê nos tratou com desprezo e
arrogância? Para nos humilhar, ficou exibindo suas
riquezas. Deu umas migalhas e nos enxotou do seu
palácio. Precisamos encontrar um meio de castigar
aquela metida!
As duas irmãs, então, voltaram para suas casas
sem dizer a ninguém que tinham reencontrado
Psiquê. O marido a advertiu:
— Muito cuidado! Suas irmãs tentarão
convencer você a ver meu rosto. Mas eu estou avi-
sando: se você o vir uma vez, nunca mais o verá de
novo. Então, não volte a falar com aquelas bruxas!
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Outra coisa: você está esperando um filho.
Diante daquela notícia, Psiquê ficou muito
contente. Passou a contar os dias e as horas que
faltavam para ser mãe. Mas eis que um dia a moça
pediu ao esposo, de novo, a oportunidade de rever
as irmãs, de quem tinha muitas saudades.
Convencido por suas lágrimas e carícias, ele
consentiu. As irmãs retornaram ao rochedo e, na
pressa de rever Psiquê, nem esperaram pelo vento;
precipitaram-se do alto... Seria o fim delas, mas o
vento, muito contra sua vontade... cumprindo as
ordens de seu senhor, aparecendo de repente,
tomou-as consigo e levou-as ao palácio.
As irmãs se comportaram como se amassem
Psiquê do fundo do coração; quando souberam de
sua gravidez, disseram:
— Se a criança for tão bonita quanto os pais,
será um Cupido!
Mas, no meio da conversa, passaram a fazer
perguntas à irmã mais nova a respeito de seu
marido. Psiquê, esquecida da mentira que contara
anteriormente, disse que se tratava de um senhor
que tinha cabelos grisalhos e vinha de um país
vizinho.
Ao retornarem a casa, as duas fizeram comentá-
rios sobre a história de Psiquê. Concluíram que a
irmã mentia ou nem mesmo sabia como era o
aspecto do marido. Decidiram encontrar, o mais
rápido possível, uma maneira de acabar com sua
felicidade. Quando voltaram a reencontrar Psiquê,
uma delas disse, derramando lágrimas fingidas:
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— Querida irmã, você está feliz na ignorância
dos riscos que está correndo! Nós, que sempre nos
preocupamos tanto com sua felicidade, descobri-
mos que o ser que dorme junto com você é um
monstro terrível, uma serpente gigantesca e vene-
nosa. Você não se lembra do que disse o adivinho
do deus Apolo? Os caçadores da região viram o
monstro sair do palácio e entrar nas águas do rio
que corre aqui por perto. Mais: assim que você der
à luz, que é só isso que aquele monstro está espe-
rando, ele a devorará! Fuja daqui e venha morar
conosco, minha pobre irmã!
Ao ouvir aquelas palavras, Psiquê ficou atordoa-
da, sem uma gota de sangue no rosto e tremendo
toda. Quando conseguiu falar, disse:
— Queridas irmãs, obrigada por se preocu-
parem comigo. O que vocês me dizem parece
verdade. Nunca vi o rosto de meu marido. Ele vem
à noite, sem deixar se ver e, de manhã, vai embora:
não sei de onde vem nem para onde vai. Deve ser
mesmo um monstro: procurou me assustar para que
eu não desejasse ver sua face. Por favor, ajudem-
me! Não sei o que fazer.
Vendo que Psiquê estava em suas mãos, uma das
irmãs lhe disse:
— Nós já pensamos em como salvar sua vida,
querida Psiquê. Pegue uma navalha, a mais afiada
que houver aqui e esconda-a na sua cama, no lugar
em que você dorme. Depois, pegue uma lamparina,
cheia de azeite, que ilumine bem, e deixe-a acesa,
mas totalmente tampada por alguma panela. A
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serpente virá se arrastando na escuridão, como
sempre, até o leito, para estar com você. Quando
perceber que ela está dormindo profundamente, vá
pegar a lamparina, volte e de uma vez, sem hesitar,
corte a cabeça da serpente! Então, nós viremos
correndo. Com o tempo, você terá um casamento
de verdade, com um ser huma-
no. Sem
Quando as irmãs voltaram hesitar:
para o rochedo levadas pelo ven- de maneira
to, Psiquê se viu só novamente. firme,
Estava vacilante, com o cora- decidida.
ção dividido. Tinha horror do
monstro, mas amava o marido! Ao cair da noite, o
esposo chegou, deitou-se ao seu lado e depois
adormeceu. Psiquê encheu-se de coragem, buscou
a lamparina e depois pegou a navalha. Aproximou
a luz do ser que estava estendido ao seu lado. Mas,
quando pôde ver claramente, à luz da lamparina,
descobriu, sim, um ser feroz e cruel, mas não era a
serpente. Repousava ali Cupido em pessoa, o
belíssimo filho de Vênus! Psiquê ficou espantada e
confusa. Via os cabelos dourados do deus, que
tinham um perfume delicioso. Seu pescoço era
branco, suas faces rosadas e todo o seu rosto
brilhava a ponto de parecer superar o brilho da luz
da lamparina. As asas eram de uma brancura e uma
delicadeza indescritíveis. Aos pés da cama, estavam
no chão o arco e as flechas do deus.
Encantada, Psiquê imediatamente foi tomada de
amor pelo deus do amor... Embora tivesse medo de
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acordá-lo, pôs-se a beijá-lo. Mas eis que da lâmpada
uma gota de azeite fervente cai sobre o ombro do
deus! Cupido acordou, dando um salto e,
percebendo o que acontecera, fugiu dos beijos e
abraços de Psiquê e bateu as asas. Desesperada,
Psiquê agarrou-se à sua perna direita. E lá foi ela,
voando além das nuvens com o deus. Finalmente,
vendo que Psiquê estava esgotada de cansaço e
ameaçando se espatifar no chão, Cupido a tomou
nos braços e colocou-a sob uma árvore. Comovido,
disse-lhe:
— Confesso que desobedeci às ordens de minha
mãe Vênus. Ela queria que você se apaixonasse por
um monstro. Mas eu me apaixonei por você. Avisei-a
tantas vezes para tomar cuidado com suas irmãs, e de
nada adiantou. Seu castigo será minha fuga.
E, tendo assim falado, voou para bem alto e
desapareceu entre as nuvens. Depois, deitou-se no
leito todo de ouro da mãe, gemendo muito por
causa da ferida no ombro. Quando Vênus soube do
que acontecera, ficou furiosa: aquela moça que se
julgava superior em beleza à própria deusa do amor
tinha conseguido fazer com que seu filho se
apaixonasse por ela! E o patife do menino a
desobedecera! Os dois haveriam de pagar caro!
Enquanto isso, Psiquê ia de uma lado para o
outro, percorrendo, desesperada, toda a terra à
procura de Cupido. Mas uma escrava de Vênus
encontrou-a e levou-a até à deusa, arrastando-a
pelos cabelos. A deusa recebeu Psiquê com uma
gargalhada, dizendo:
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— Veio visitar a sogra? Ou o marido? A ferida
que você provocou nele está pondo sua vida em
risco.
Depois, Vênus pegou um punhado de trigo, de
cevada, de milho, de papoula, de grão-de-bico, de
lentilha e de fava, misturou tudo e disse:
— Você é uma escrava, e feia; certamente só
conquista os homens por ser tão empenhada no
serviço. Vamos ver se é assim mesmo. Separe os
grãos por tipo e coloque-os em ordem, um por um.
Antes de cair a noite, virei para ver se você conse-
guiu realizar bem essa tarefa.
Psiquê ficou sem saber o que fazer, triste e
abatida diante daquele monte de grãos misturados.
Mas uma formiga teve dó dela, correu de um lado
para o outro chamando suas colegas para ajudá-la.
E eis que um batalhão de formigas pôs-se a separar
os grãos.
Ao cair da noite, Vênus foi ver o trabalho. Acu-
sou Psiquê de agir de maneira desonesta: quem
fizera aquilo não fora ela, mas Cupido. Jogou-lhe
um pedaço de pão e foi dormir.
Antes do raiar do dia, a deusa se levantou e foi
até Psiquê, dizendo-lhe:
— Está vendo aquele bosque perto do rio? Ali
pastam livremente ovelhas muito ferozes que têm
uma lã dourada. Traga-me um floco dessa lã!
Psiquê ficou desconsolada. Encaminhou-se para
as águas do rio com a intenção de se lançar nelas.
Mas, quando estava para se jogar, um caniço do
meio do rio teve dó e contou-lhe como poderia
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obter o floco de lã: de manhã, com o sol quente, as
ovelhas ficavam furiosas e atacavam os seres hu-
manos para matá-los, mas à tarde elas descansavam
nas margens do rio. Nessa hora, Psiquê poderia
buscar entre as folhagens, tranqüilamente, flocos
de lã presos nos ramos das árvores.
Psiquê seguiu as recomendações do caniço.
Quando levou a lã a Vênus, a deusa disse que sabia
muito bem quem tinha inventado um meio de
conseguir realizar aquela tarefa. Depois, acrescen-
tou:
— Mas vamos ver se você é realmente corajosa
e esperta! No alto daquela montanha (está ven-
do?), há uma fonte. Ali brota a água que vai ori-
ginar os pântanos do mundo dos mortos e alimentar
seu rio. Quero que você me traga um pouco
daquela água geladíssima neste vaso de cristal.
Psiquê foi até a montanha que Vênus lhe
indicara. Mas ela era muito alta e difícil de escalar.
Além disso, do meio das pedras corria uma água
nojenta e malcheirosa. Em algumas cavernas da
montanha, viam-se dragões horríveis, cujos olhos
nunca se fechavam, sempre vigiando. E as águas
falavam, gritando: "Vá embora! Saia daqui!".
De novo entregue ao desespero, a moça pôs-se a
chorar. Mas de repente surgiu uma águia, aproxi-
mou-se dela e tomando o vaso no bico se dirigiu até
a fonte. Era a águia do supremo rei dos deuses,
Júpiter. Quando as águas lhe gritaram para que
fosse embora, ela respondeu que estava a serviço de
Vênus, o que facilitou a aproximação.
23
Quando Psiquê levou o vaso cheio da água do
reino dos mortos, Vênus disse:
— Você deve ser uma bruxa! Mas ainda há mais
uma tarefa para você cumprir. Pegue esta caixinha
e vá até o reino dos mortos. Lá, diga à rainha dos
mortos: "Vênus pede que lhe envie uma porção de
sua beleza, o bastante para um dia. É que ela gastou
a sua tratando do filho doente". Preciso passar essa
porção no meu rosto antes de ir, hoje, a uma reu-
nião com os outros deuses.
Desesperada, Psiquê subiu ao alto de uma torre
para de lá se jogar. Como poderia ela ir ao reino dos
mortos estando viva? E como de lá voltar? A torre,
com dó da moça, disse:
— Vou-lhe ensinar onde se encontra uma porta
para o reino dos mortos. Você entrará e irá até o pa-
lácio do rei infernal. Leve em cada uma das mãos
um bolo de farinha e mel, segurando na boca duas
moedas. No cami-
nho, você encon-
Para os antigos gregos trará um burro
e romanos, os "infernos" coxo e um homem
não se resumem a um também coxo car-
lugar de punição, como regando o burro de
na tradição católica. lenha. Ele lhe pedirá
Trata-se do reino das ajuda para apanhar
sombras, situado a lenha, mas você
embaixo da terra, para não deve dizer ne-
o qual todos iriam ao nhuma palavra.
morrer. Seguindo adian-
te, você chegará
24
ao rio dos mortos, onde verá o barqueiro Caronte.
Dê a ele uma de suas moedas. Quando estiverem
atravessando o rio, você verá um velho, em meio às
águas, erguendo as mãos e pedindo para ser
puxado para o barco. Não tenha dó e siga em
frente. Logo verá o palácio da rainha dos mortos.
Mas à frente dele há um cão monstruoso, que tem
um latido parecido com um trovão. Jogue-lhe um
dos bolos e ele não lhe fará nada. A rainha dos
mortos a receberá amavelmente, convidando-a para
sentar e comer um delicioso banquete. Mas você
deverá se sentar no chão e se contentar com um
pedaço de pão velho. Depois de cumprir sua
missão, dê o outro bolo ao cão e a outra moeda ao
barqueiro. Atravessado o rio, siga suas pegadas,
fazendo o caminho de volta. Logo você estará sob
este nosso céu. Mas atenção: nunca abra a caixinha
para ver o que há dentro dela; nunca! Essa é a
minha recomendação mais importante.
Psiquê fez exatamente como a torre lhe havia
dito. Tudo correu bem. Mas, regressando do reino
dos mortos, ficou impaciente de curiosidade para
saber o que havia dentro da caixinha:
— Eu lá sou tonta para levar comigo uma
porção da beleza divina e não pegar nem um
pouquinho dela para mim? Quem sabe se essa não
seria a maneira de reconquistar aquele meu marido
tão belo?
E Psiquê, então, abriu a caixinha. Mas de den-
tro dela só saiu um sono irresistível que foi tomando
conta de seu corpo, pouco a pouco, até que ela caiu
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no chão parecendo morta. Nisso, a ferida de
Cupido já tinha cicatrizado. Com saudades de
Psiquê, o deus abandonou o quarto em que a mãe o
trancara e foi até a moça. Encontrou-a caída no
chão e a despertou picando-a suavemente com uma
de suas flechas. Disse-lhe:
— De novo, você é vítima da curiosidade,
pobrezinha! Mas ande, vá até minha mãe e termine
de cumprir a tarefa que ela lhe deu.
Apenas disse essas palavras, Cupido voou pelo
ar, enquanto Psiquê se dirigia até Vênus. O deus,
porém, ainda apaixonado, temia a ira de sua mãe.
Foi até Júpiter, o pai dos deuses, e contou-lhe tudo,
pedindo sua proteção. Júpiter convocou a assem-
bléia dos deuses e assim falou a todos:
— Deuses, este jovenzinho que eu mesmo criei
tem provocado muita confusão. Está na hora de pren-
dê-lo nos laços de um casamento. Já que ele escolheu
uma certa moça, vamos deixar que ele se una a ela
para sempre. Quanto a você, minha filha Vênus, não
fique triste. Seu filho não se casará com uma mortal,
não. Este não será um casamento desigual.
Então, chamou o mensageiro dos deuses e ordenou
que trouxesse Psiquê ao céu. Deu à moça uma taça de
ambrosia, o alimento dos deuses imortais, e disse:
— Tome, Psiquê, e torne-se imortal. Cupido
nunca se afastará de seus braços. Vocês, a partir de
agora, estão unidos por toda a eternidade!
E assim Psiquê se uniu a Cupido. Algum tempo
depois, nasceu o filho do casal, a quem deram o
nome de Prazer.
26
Narrativas de
índios do Brasil
Nosso país tem um
grande número de comunidades
indígenas, mais de duzentos
povos, cada um com seus cos-
tumes e suas histórias, lendas e
mitos.
Selecionamos algumas nar-
rativas que falam das origens do
mundo: como nasceu a noite,
como surgiu o guaraná, qual a
causa do ódio entre a onça e o
bode.
Como a Trata-se de lenda
noite tupi registrada e
publicada por
apareceu Couto de
Magalhães. O
texto foi
N o princípio não ligeiramente
adaptado.
havia noite – havia
somente dia em todo
tempo. A noite estava adormecida no fundo das
águas. Não havia animais; todas as coisas falavam.
A filha da Cobra-Grande – contam – casara-se
com um moço. Esse moço tinha três criados fiéis.
Um dia, ele chamou os três criados e disse-lhes:
— Vão passear, porque minha mulher não quer
dormir comigo.
Os criados foram-se, e então ele chamou sua
mulher para dormir com ele. A filha da Cobra-
Grande respondeu-lhe:
— Ainda não é noite.
O moço disse-lhe:
— Não há noite; somente há dia.
A moça falou:
— Meu pai tem noite. Se quer dormir comigo,
mande buscá-la pelo grande rio.
Tucumã é o O moço chamou os três criados;
a moça mandou-os à casa de seu
fruto da
palmeira de pai, para trazerem um caroço de
mesmo nome. tucumã.
Os criados foram, chegaram à
28
casa da Cobra-Grande. Esta lhes entregou um
caroço de tucumã muito bem fechado e disse-lhes:
— Aqui está; levem-no. Vamos! Não o abram,
senão todas as coisas se perderão.
Os criados foram-se e estavam ouvindo barulho
dentro do coco de tucumã, assim: tem, tem, tem...xi...
Era o barulho dos grilos e dos sapinhos que cantam
de noite.
Quando já estavam longe, um dos criados disse
a seus companheiros:
— Vamos ver que barulho será este?
O piloto da canoa respondeu:
— Não, do contrário nos perderemos. Vamos
embora, eia, remem!
Eles foram-se e continuaram a ouvir aquele
barulho dentro do coco de tucumã, e não sabiam
que barulho era.
Quando já estavam muito longe, reuniram-se no
meio da canoa, acenderam fogo, derreteram o breu
que fechava o coco e abriram-no. De repente tudo
escureceu.
O piloto então disse:
— Nós estamos perdidos; e a moça, em sua casa,
já sabe que nós abrimos o coco de tucumã!
Eles seguiram viagem.
A moça, em sua casa, disse então a seu marido:
— Eles soltaram a noite; vamos esperar a ma-
nhã.
Então todas as coisas que estavam espalhadas
pelo bosque se transformaram em animais e pás-
saros.
29
As coisas que estavam espa-
Paneiro: lhadas pelo rio se transformaram em
cesta feita patos e em peixes. Do paneiro
de cipó. gerou-se a onça; o pescador e sua
canoa se transformaram em pato;
de sua cabeça nasceram a cabeça e
o bico do pato; da canoa, o corpo do pato; dos
remos, as pernas do pato.
A filha da Cobra-Grande, quando viu a estrela
d’alva, disse a seu marido:
— A madrugada vem surgindo. Vou separar o
dia da noite.
Então ela enrolou um fio e disse-lhe:
— Você será a ave cujubim. Assim ela fez o
cujubim; pintou a cabeça do cujubim de branco,
com argila; pintou-lhe as pernas de vermelho com
urucu e, então, disse-lhe:
— Você cantará para Urucu: fruto do
todo sempre quando a ma- urucuzeiro, que
nhã vier raiando. tem valor
Ela enrolou o fio, sacu- medicinal e
diu cinza em cima dele e produz um
disse: corante
— Você será inham- vermelho.
bu, para cantar nos di-
versos tempos da noite e de madrugada.
De então para cá todos os pássaros cantaram em
seus tempos, e de madrugada, para alegrar o
princípio do dia.
Quando os três criados chegaram, o moço disse-
lhes:
30
— Vocês não foram fiéis: abriram o caroço de
tucumã, soltaram a noite, e todas as coisas se perde-
ram, e vocês também. Vejam: vocês estão transfor-
mados em macacos e para sempre andarão pelos
galhos das árvores.
(A boca preta e a risca amarela que esses
macacos têm no braço dizem que são ainda o sinal
do breu que fechava o caroço de tucumã e que
escorreu sobre eles quando o derreteram.)

31
História do Conto dos
índios Maués
guaraná registrada e
publicada por
A ntigamente, contam,
Nunes
Pereira.
existiam três irmãos:
Ocumáató, Icuamã e
Onhiamuaçabê.
Onhiamuaçabê era dona do Noçoquém, um
lugar encantado no qual ela havia plantado uma
castanheira.
A jovem não tinha marido; porém todos os
animais da selva queriam viver com ela. Os irmãos,
ao mesmo tempo, a queriam sempre em sua
companhia, porque era ela quem conhecia todas as
plantas com que preparava os remédios de que
precisavam.
Uma cobrinha, conversando com outros ani-
mais, certa vez, disse que Onhiamuaçabê acabaria
sendo sua esposa. Foi então espalhar pelo caminho
por onde ela passava todos os dias um perfume que
alegrava e seduzia.
Quando Onhiamuaçabê passou pelo caminho,
aspirando o perfume, disse:
— Que perfume agradável!
A cobrinha, que estava próximo, disse a si mesma:
— Eu não dizia? Ela gosta de mim!
E, correndo, foi-se estirar mais adiante para
esperar a moça. Ao passar ao seu lado, tocou-a
levemente numa das pernas. E só isto bastou para
32
que a moça engravidasse, porque, antigamente,
uma mulher, para que isso acontecesse, bastava ser
olhada por alguém, homem, animal ou árvore, que
a desejasse para esposa.
Porém os irmãos de Onhiamuaçabê não que-
riam que ela se casasse com gente, animal ou árvo-
re, e que tivesse filhos, porque era ela quem conhe-
cia todas as plantas com que preparava os remédios
de que precisavam.
Por isso, quando a moça apareceu grávida, os
irmãos ficaram furiosos. E falaram, falaram e fala-
ram, dizendo que não queriam vê-la com filho.
Chegou o dia do nascimento da criança. A moça,
depois do parto, no barracão feito por ela mesma,
lavou a criança e tratou de criá-la.
Era um menino bonito e forte; e cresceu forte e
bonito até a idade de falar. Logo que pôde falar, o
menino desejou comer as mesmas frutas de que os
tios gostavam.
A moça contou ao filho que, antes de o sentir em
sua barriga, plantara no Noçoquém uma castanheira,
para que ele lhe comesse os frutos, mas que os irmãos,
expulsando-a da companhia deles, apoderaram-se de
Noçoquém e não o deixariam comer castanhas. Além
disso, os irmãos da moça tinham entregue o sítio à
guarda da Cutia, da Arara e do Periquito.
O menino, porém, continuou a pedir a
Onhiamuaçabê, mãe dele, que lhe desse a comer as
mesmas frutas que os seus tios comiam.
Um dia, então, Onhiamuaçabê, a moça, resolveu
levar o filho ao Noçoquém para que comesse cas-
tanhas.
33
Assim, indo a Cutia ao Noçoquém, viu no chão,
debaixo da castanheira, as cinzas de uma fogueira,
onde haviam assado castanhas. A Cutia correu e foi
contar o que vira aos irmãos da moça. Um deles
disse que talvez a Cutia se enganasse; o outro disse
que não podia ser verdade.
Discutiram. E, afinal, resolveram mandar o Ma-
caquinho-de-boca-roxa tomar conta da castanheira,
para ver se aparecia gente por ali.
O menino, que havia comido muitas castanhas e
cada vez mais as cobiçava, já conhecendo o ca-
minho do Noçoquém, tornou a ir lá no dia seguinte.
Ora, os guardas do Noçoquém, que tinham ido
adiante, com ordens de matar quem ali encontras-
sem, viram o menino subir, às pressas, à castanhei-
ra. E, estando próximos, bem próximos, ocultos por
outras árvores, tudo observando, correram e foram
esperá-lo debaixo da castanheira, armados com
uma cordinha para decepar a cabeça do comedor
de castanhas.
Dando por falta do filho, a mulher já se havia
posto a caminho para o buscar, quando lhe ouviu os
gritos.
Correu na direção do filho, mas já o encontrou
decepado às mãos dos guardas. Arrancando os
cabelos, chorando e gritando sobre o cadáver do
filho, a moça Onhiamuaçabê disse:
— Está bem, meu filho. Foram os seus tios que
mandaram matá-lo. Eles pensavam que você ficaria
um coitadinho, mas não ficará.
Arrancou-lhe primeiro o olho esquerdo e plan-
34
tou-o. A planta, porém, que nasceu desse olho não
prestava; era a do falso guaraná.
Arrancou-lhe, depois, o olho direito e plantou-o.
Desse olho nasceu o guaraná verdadeiro. E, conti-
nuando a conversa com o filho, como se o sentisse
vivo, foi anunciando:
— Você, meu filho, será a maior força da Natu-
reza; você fará o bem a todos os homens; você será
grande; você livrará os homens de umas moléstias e
os curará de outras.
Em seguida, juntou todos os pedaços do corpo
do filho. Mascou, mascou as folhas de uma planta
mágica, lavou com sua saliva e o suco dessa planta
o cadáver do filho e o enterrou.
Cercou-lhe a sepultura com estacas e deixou um
dos seus guardas de inteira confiança vigiando-a.
Recomendou a esse guarda, que era o Caraxué,
que a fosse avisar, assim que
ouvisse qualquer barulho saído da
Caraxué: sepultura, pois ela saberia quem era.
uma
espécie de Passados alguns dias, o Cara-
sabiá. xué, ouvindo barulho na sepultura,
correu, correu e foi avisar
Onhiamuaçabê.
A moça veio, abriu o buraco da sepultura e de
dentro saiu o macaco coatá. Onhiamuaçabê soprou
sobre o macaco coatá e amaldiçoou-o: ele andaria
sem repouso pelos matos.
Fechou de novo a sepultura e lançou-lhe em
cima o sumo das folhas da planta mágica com que
lhe lavava o cadáver.
35
Dias depois, o Caraxué foi avisá-la de que
ouvira um barulho na sepultura do menino. A moça
veio, abriu o buraco da sepultura e dele saiu o
cachorro-do-mato. Ela soprou sobre ele e o amal-
diçoou, para que ninguém o comesse.
Fechou de novo a sepultura e foi-se embora.
Dias depois o Caraxué foi avisar que ouvira
barulho, de novo, dentro da sepultura.
Onhiamuaçabê foi até lá; abriu o buraco da
sepultura e dele saiu o porco-queixada, levando os
dentes que deveriam caber a todos os Maués e a
todos os homens.
Onhiamuaçabê expulsou também o porco-
queixada.
(À proporção que saía um bicho da sepultura do
menino e que era expulso, a planta do guaraná ia
crescendo, crescendo.)
Passados alguns dias, o Caraxué ouviu barulho
na sepultura e foi avisar Onhiamuaçabê. Ela veio
de novo, abriu a sepultura e dali saiu uma criança
que foi o primeiro Maué, origem da tribo.
Esse menino era o filho de Onhiamuaçabê, que
ressuscitara.
Onhiamuaçabê agarrou-o, sentando-o nos
joelhos. E pôs-lhe um dente na boca, feito de terra.
(Por isso os índios Maués dizem que se originaram
de cadáver e por isso seu dente apodrece.)
A mulher foi lavando tudo, tudo, devagarinho,
os pés, a barriga, os braços, o peito, a cabeça do
menino com o sumo das folhas da planta mágica,
que mastigara.
36
Quando ela estava entretida, fazendo isso com o
filho, os seus irmãos chegaram, de repente, e a
obrigaram a deixar de lavar-lhe o corpo.
(Esse é o motivo por que os Maués não mudam
de pele, como fazem as cobras.)

37
A onça e o Conto de origem
indígena, na
bode versão de Sílvio
Romero,
U ma vez a onça quis levemente
adaptada.
fazer uma casa; foi a um
lugar, roçou mato para ali
fazer a sua casa. O bode, que também andava com
vontade de fazer uma casa, foi procurar um lugar e,
chegando ao que a onça tinha roçado, disse:
— Bravo! Que belo lugar para levantar a minha
casa!
O bode cortou logo umas forquilhas e infincou
naquele lugar e foi-se embora. No dia seguinte a
onça foi chegando e, vendo as forquilhas infinca-
das, disse:
— Oh! quem está me ajudando?! Bravo, é Deus
que está me ajudando!
Botou logo as travessas nas forquilhas e o
telhado, e foi-se. O bode, quando veio de novo,
admirou-se e disse:
— Oh! quem está me ajudando?! É Deus que
está me protegendo!
Botou logo os caibros na casa e foi-se. Vindo a
onça, ainda mais se espantou e botou as ripas e os
enchimentos e retirou-se. E assim foi: cada um
construindo uma parte da casa até que ela ficou
pronta. Acabada ela, veio a onça, fez a sua cama e
meteu-se dentro. Logo depois chegou o bode e,
vendo a outra, disse:
38
— Não, amiga, esta casa é minha, porque fui eu
que infinquei as forquilhas e botei os caibros.
— Não, amigo — respondeu a onça — A casa é
minha, porque fui eu que rocei o lugar, pus as tra-
vessas, o telhado e o enchimento.
Depois de alguma discussão, a onça, que estava
com vontade de comer o bode, disse:
— Mas não haja briga, amigo bode, nós dois
podemos ficar morando na casa.
O bode aceitou, mas com muito medo. Armou a
sua rede bem longe da onça. No outro dia, a onça
disse:
— Amigo bode, quando você me vir franzir o
couro da testa, eu estou com raiva, tome cuidado!
— Eu, amiga onça, quando você vir balançar as
minhas barbinhas e dar um espirro, você fuja, que
eu não estou brincando.
Depois a onça saiu, dizendo que ia buscar de
comer. Longe de casa, pegou um grande bode, ma-
tou-o e entrou com ele pela casa adentro. Atirou-o
ao chão e disse:
— Amigo bode, esfole e prepare para a gente
comer.
O bode, quando viu aquilo, disse lá consigo:
"Você matou este que era grande, quanto mais a
mim!" No outro dia ele disse à onça:
— Agora, amiga onça, quem vai buscar de
comer sou eu.
E partiu. Chegando longe, avistou uma onça
bem grande e gorda, disfarçou e pôs-se a tirar cipós
no mato. A onça veio chegando e vendo aquilo
disse:
39
— Amigo bode, para que tanto cipó?
— Fum! Para quê?! O negócio é sério, cuidado
com você mesma... O mundo está para se acabar
num dilúvio...
— O que está dizendo, amigo bode?
— É verdade; e você, se quiser escapar, venha se
amarrar, que eu já me vou.
A onça foi e escolheu uma árvore bem alta e
grossa e pediu ao bode para que a amarrasse nela. O
bode prendeu-a perfeitamente e, quando a viu bem
segura, espancou-a com um pedaço de pau até
matá-la. Depois, arrastou-a, chegou a casa, largou-a
no chão, dizendo:
— Se quiser, esfole e prepare para a gente
comer.
A onça ficou espantada e com medo. Ambos
temiam um ao outro.
Num certo dia, o bode estava tomando ar fresco;
olhou para a onça, e ela estava com o couro da testa
franzido. Ele teve receio e mexeu as barbas e soltou
um espirro. A onça deu um pulo e saiu correndo, o
bode fez o mesmo. Ainda hoje correm cada um para
o seu lado.

40
Conto dos
irmãos Grimm
Os irmãos Grimm (século
XlX) eram professores univer-
sitários alemães que se inte-
ressavam também por nar-
rativas populares.
É muito conhecida sua
coletânea de contos que reúne
histórias como a de Branca de
Neve, Rapunzel e Cinderela.
Esse conjunto de histórias, origi-
nalmente não dirigido apenas a
crianças mas também aos adul-
tos, foi reunido pelos irmãos a
partir das narrativas populares
que ouviram pessoalmente da
boca do povo.
Selecionamos para esta an-
tologia uma de suas histórias
menos conhecidas.
O enigma Traduzido
pelo
E ra uma vez um príncipe organizador
desta
que sentiu desejo de sair pelo coletânea.
mundo e não levou junto con-
sigo senão um criado fiel. Um
dia, ele cavalgava em uma grande floresta e, quan-
do escureceu, vendo que não havia por ali nenhuma
hospedaria, ficou sem saber onde passaria a noite.
Então avistou uma moça que se dirigia a um case-
bre e, quando ele chegou mais perto, viu que a mo-
ça era jovem e bonita. Iniciou a conversa com estas
palavras:
— Cara criança, será que eu e meu criado po-
demos encontrar abrigo nesta casa por esta noite?
— Claro — disse a moça, com voz triste. Mas eu
não aconselho; não entrem ali!
— Por que não? — perguntou o príncipe.
A moça disse suspirando:
— Minha madrasta pratica artes maléficas e não
simpatiza com estranhos.
Então ele compreendeu que tinha chegado à
casa de uma feiticeira, mas, como estava escuro e
ele não poderia prosseguir viagem nem tinha medo,
entrou. A velha estava sentada em uma poltrona
junto à lareira e examinou os estranhos com seus
olhos vermelhos.
— Boa noite! — murmurou ela, fingindo cordia-
lidade. Acomodem-se e descansem.
Depois soprou o carvão sobre o qual, em uma
42
grande panela, estava cozinhando alguma coisa. A
filha avisou-os de que tomassem cuidado para nada
comer e também nada beber naquela casa, pois a
velha preparava bebidas maléficas. Dormiram
tranqüilamente até o raiar do dia.
Quando se preparavam para a partida e o prín-
cipe já estava sentado em seu cavalo, a velha disse:
— Espere um momento, desejo fazer um brinde
à sua partida.
Enquanto ela foi buscar a bebida, o príncipe
partiu a cavalo e o criado, que tinha de prender sua
sela, ficou sozinho, quando eis que a feiticeira volta
com a bebida.
— Leve-a a seu patrão — disse ela, mas naquele
momento o copo quebrou e o veneno derramou
sobre o cavalo, e era tão poderoso que o animal
morreu na hora. O criado correu até seu patrão e
contou-lhe o que tinha acontecido, mas não queria
deixar para trás sua sela e correu de volta para pegá-
la. Mas, quando chegou junto ao cavalo morto, um
corvo já estava sentado sobre ele e o devorava.
— Quem sabe se hoje encontraremos algo
melhor? — disse o criado. Matou o corvo e levou-o
consigo. Percorreram a floresta o dia todo, mas não
conseguiram sair dela. Ao cair da noite, toparam
com uma hospedaria e nela entraram. O criado deu
ao dono o corvo, a fim de que ele o preparasse para
o jantar. Eles, porém, tinham ido parar num covil
de assassinos; com a escuridão, chegaram doze
bandidos e sentiram vontade de matar e roubar os
estranhos. Mas, antes de pôr mãos à obra, senta-
43
ram-se à mesa, e o dono da hospedaria e a feiticeira
se uniram a eles. Comeram juntos um prato de sopa
na qual se tinha picado a carne do corvo. Mal
tinham engolido alguns bocados e caíram mortos,
pois o corvo os tinha contaminado com o veneno da
carne do cavalo. Não restava ninguém naquela casa
senão a filha do hospedeiro, que era uma moça
honesta e não tinha tido nenhuma participação nas
coisas terríveis que ali aconteciam. Ela abriu todas
as portas para os estranhos e mostrou-lhes tesouros
incontáveis. O príncipe, porém, disse que ela
poderia ficar com tudo, pois ele não queria nada, e
partiu com seu criado.
Depois de terem cavalgado por muito tempo,
chegaram a uma cidade onde havia uma princesa
bela mas muito convencida; ela tinha feito
proclamar que quem propusesse um enigma que ela
não fosse capaz de decifrar se tornaria seu marido.
Mas, se ela o decifrasse, ele seria decapitado. Ela
tinha três dias para refletir; mas era tão esperta que
sempre acabava decifrando o enigma antes do
prazo. Já nove tinham morrido daquela maneira,
quando chegou o príncipe e, deslumbrado com a
beleza da moça, quis arriscar sua vida. Então,
apresentou-se diante dela e propôs seu enigma:
— O que é?: um não matou nenhum, mas matou
doze.
Ela não sabia do que se tratava, pensou e pen-
sou, mas não conseguiu desvendar o enigma. Con-
sultou seu livro de enigmas, mas nada encontrou
ali. Em resumo, sua esperteza chegara ao fim. Não
44
sabendo mais o que fazer, mandou sua criada ir até
o quarto do senhor para espioná-lo enquanto
dormia: talvez ele falasse durante o sono e revelasse
o enigma... Mas o esperto criado tinha-se deitado
na cama no lugar de seu patrão e, quando a criada
chegou, arrancou-lhe o manto em que ela estava
envolvida e expulsou-a do quarto a chicotadas. Na
segunda noite, a princesa enviou sua camareira na
esperança de que ela tivesse melhor sorte. Mas o
criado também arrancou-lhe o manto e expulsou-a
a chicotadas. Na terceira noite, o príncipe julgou-se
em segurança e deitou-se em sua cama. Eis que vai
até lá a princesa em pessoa, envolta num manto
cinzento, e se senta perto dele. Quando pensou que
ele estava dormindo e sonhando, pôs-se a lhe falar,
na esperança de que ele lhe respondesse durante o
sono, como muitos fazem. Mas ele estava bem
acordado e compreendeu e ouviu tudo muito bem.
Ela perguntou:
— Um matou nenhum, o que isso significa?
— Um corvo, que se alimentou de um cavalo
morto e envenenado e por isso morreu — foi a res-
posta do príncipe.
— E matou doze... como assim? — perguntou a
princesa.
— São doze assassinos que provaram do corvo e
por isso morreram.
Ao saber a chave do enigma, a princesa quis sair
de fininho, mas o príncipe segurou-lhe o manto
bem firmemente, de tal forma que ela teve de deixá-
lo para trás.
45
Na manhã seguinte, a princesa fez saber que
decifrara o enigma, mandou chamar os doze juízes
e disse a eles qual era a solução. Mas o jovem pediu
permissão para falar e disse:
— Ela foi de fininho até meu quarto à noite e me
perguntou, caso contrário não teria decifrado o
enigma.
Os juízes pediram uma prova. Então o criado
trouxe os três mantos. Quando os juízes viram o
manto cinzento que a princesa costumava vestir,
disseram:
— Que se borde o manto com ouro e prata! Será
seu vestido de casamento.

46
Contos
populares brasileiros
Há uma grande riqueza de
contos populares em nosso
país, contados em várias
versões. Você lerá aqui duas
histórias que hoje as pessoas
parecem não conhecer mais; a
primeira é uma espécie de conto
de fadas de origem européia.
O bicho Manjaléu: papão.
Manjaléu Esta versão é a de
Sílvio Romero,
ligeiramente adaptada.
U ma vez existia Sílvio Romero a ouviu
e registrou em
um velho casado, Sergipe.
que tinha três filhas
muito bonitas; o ve-
lho era muito pobre e vivia de fazer gamelas para
vender. Quando foi um dia, che-
gou à sua porta um moço muito Gamelas:
formoso, montado num belo cava- vasilhas de
lo e quis comprar uma de suas fi- madeira ou
lhas. barro.
O velho ficou muito aborreci-
do e disse que, apesar de pobre, não havia de
vender sua filha. O moço disse-lhe que, se não a
vendesse, o mataria; o velho intimidado vendeu-lhe
a moça e recebeu muito dinheiro.
Retirando-se o cavaleiro, o pai da família não
quis mais trabalhar nas gamelas, por julgar que não
precisava mais de então em diante; mas a mulher
insistiu com ele para que não largasse o seu
trabalho de costume; e ele obedeceu.
Quando foi na tarde seguinte, apresentou-se um
outro moço, ainda mais bonito, montado num
cavalo ainda mais bem aparelhado, e disse ao velho
que queria comprar-lhe uma de suas filhas. O pai
ficou muito incomodado; contou-lhe o que lhe tinha
acontecido no dia antecedente e recusou o negócio.
48
O moço o ameaçou também de morte, e o velho
cedeu.
Se o primeiro deu muito dinheiro, este ainda deu
mais e foi-se embora.
O velho de novo não quis continuar a fazer as
gamelas e a mulher o aconselhou até ele continuar.
Pela tarde seguinte, apareceu outro cavaleiro ainda
mais bonito, e mais bem montado, e, pela mesma
forma, levou embora sua filha mais moça, deixando
ainda mais dinheiro.
A família ficou muito rica; depois a velha apa-
receu grávida e deu à luz um filho, que foi criado
com muito luxo e mimo. Quando chegou o tempo
de o menino ir para a escola, um dia brigou com um
companheiro, e este lhe disse:
— Ah! Você acha que seu pai foi sempre rico!...
Ele hoje está assim porque vendeu suas irmãs...
O rapazinho ficou muito pensativo e não disse
nada em casa; mas, quando ficou moço, lá num
certo dia, armou-se de uma espada e foi ao pai e à
mãe e lhes disse que lhe contassem a história de
suas três irmãs, senão os matava. O pai o conteve e
contou o que se tinha passado antes de ele nascer.
O moço então disse que queria sair pelo mundo
para encontrar suas irmãs e partiu. Chegando a um
caminho, viu numa casa três irmãos brincando por
causa de uma bota, uma carapuça e uma chave. Ele
chegou e perguntou o que era aquilo, e para que
prestavam aquelas coisas.
Os três irmãos responderam que àquela bota se
dizia: "Bota, me bota em tal parte!" e a bota botava; à
49
carapuça se dizia: "Esconde-me, carapuça!" e ela
escondia a pessoa de tal forma que ninguém a via; e
a chave abria qualquer porta.
O moço ofereceu bastante dinheiro pelos obje-
tos, os irmãos aceitaram, e ele partiu. Quando se
viu longe da casa, disse:
— Bota, me bota na casa de minha irmã mais
velha!
Quando abriu os olhos, estava lá. A casa era um
palácio muito ornado e rico, e o moço mandou
pedir licença para entrar e falar com a irmã, que
estava feita rainha. Ela não queria aparecer, porque
dizia que nunca tinha tido irmão. Afinal, ele contou
toda a sua história, a irmã acreditou nele e o tratou
muito bem.
Perguntou-lhe como podia ter chegado ali
àquele fim de mundo, e o irmão contou-lhe o poder
da bota. Pela tarde, a rainha se pôs a chorar e o
irmão lhe perguntou a razão, ao que ela respondeu:
— Meu marido é o rei dos peixes e, quando vem
jantar, está sempre zangado, querendo acabar com
tudo. Não quer que ninguém venha ao seu palácio.
O moço disse-lhe que não se incomodasse por
isso, que tinha com que se esconder e não ser visto,
e era a carapuça. Pela tarde, veio o rei dos peixes,
muito aborrecido, dando pulos e pancadas e dizen-
do:
— Estou sentindo cheiro de gente! Estou sen-
tido cheiro de gente!
Mas a rainha conseguiu convencê-lo de que es-

50
tava errado, até que ele tomou um banho e se
transformou num belo moço.
Seguiu-se o jantar, no qual a rainha perguntou-
lhe:
— Se aqui viesse um irmão meu, cunhado seu,
você o que fazia?
— Tratava e respeitava como a você mesma; e se
está aí, apareça! — foi a resposta do rei.
O moço apareceu, e foi muito bem tratado.
Depois de muita conversa, em que contou sua
viagem, insistiram para que ele ficasse ali, morando
com a irmã, ao que disse que não, porque ainda lhe
restavam duas irmãs a visitar.
O rei lhe perguntou para que servia aquela bota
e, quando soube, disse:
— Se eu a apanhasse, ia ver a rainha de Castela.
O moço, não querendo ficar, despediu-se e, no
momento da partida, o cunhado lhe deu uma
escama, e disse-lhe:
— Quando você estiver em algum perigo, pegue
nesta escama e diga: "Valha-me o rei dos peixes!".
O moço saiu e, quando se viu longe do palácio,
disse:
— Bota, me bota em casa de minha irmã do
meio!
Quando abriu os olhos, lá estava ele. Era um
palácio ainda mais bonito e rico do que o outro.
Com alguma dificuldade da parte da irmã, entrou e
foi recebido muito bem. Depois de muita conversa,
a sua irmã do meio se pôs a chorar, dizendo que era
"por estar ele aí, e, sendo seu marido rei dos carneiros,
51
quando vinha jantar, era dando
Marradas: muitas marradas, a ponto de matar
cabeçadas.
tudo o que via pela frente".
O irmão apaziguou-a, dizendo
que tinha onde se esconder. Pouco
tempo depois, chegou uma porção de carneiros com
um carneirão muito branco e belo na frente; este
entrou e os outros voltaram. (Segue-se uma cena em
tudo semelhante à que se passou em casa do rei dos peixes.)
Na despedida, o rei dos carneiros deu ao cunhado
uma lãzinha, dizendo:
— Quando estiver em perigo, diga: "Valha-me o
rei dos carneiros!".
Também disse, depois de saber a virtude da
bota:
— Se eu pegasse esta bota, ia ver a rainha de
Castela.
O moço foi reparando nisto e formou logo
consigo o plano de ir vê-la. Saiu e, pela mesma
forma, foi à casa de sua irmã mais moça. Era um
palácio ainda mais bonito e rico do que os outros
dois. (Seguem-se as mesmas cenas que nas outras duas
visitas.) Era o palácio do rei dos pombos, e este, na
despedida, deu ao cunhado uma pena, com as
palavras: "Quando se vir em algum perigo, diga:
‘Valha-me o rei dos pombos!’. Na despedida, sabendo
o rei da utilidade da bota, mostrou também desejos
de ir visitar a rainha de Castela.
Logo que o moço se viu longe do palácio, disse:
— Bota, bota-me agora na terra da rainha de
Castela.
52
Assim foi. Chegado lá, ele indagou e soube que
"era uma princesa que o pai queria casar e que era
tão bonita que ninguém passava pela frente do
palácio que não olhasse logo para cima para vê-la
na janela; mas a princesa tinha dito ao rei que só
casava com o homem que passasse por ela sem
levantar a vista".
O estrangeiro foi passar e atravessou toda a
distância sem olhar, e a princesa casou com ele.
Depois de casados, ela indagou pela significação
daqueles objetos que seu marido sempre trazia
consigo; ele tudo lhe contou, e a princesa prestou
muita atenção ao que ele disse sobre a chave.
O rei, seu pai, tinha no palácio um quarto que
nunca se abria, e neste quarto, onde era proibido a
todos entrar, estava, desde muito tempo, trancado
um bicho Manjaléu, muito feroz, que sempre o rei
mandava matar e sempre revivia. A moça tinha
muita curiosidade de o ver e, aproveitando a saída
do pai e do marido para uma caçada, pegou na
chave encantada e abriu o quarto. O bicho pulou de
dentro, dizendo:
— É você mesma que eu queria! – e fugiu com
ela para as matas.
Quando voltaram os caçadores, deram por falta
da princesa e ficaram muito aflitos. O rei foi ao
quarto do Manjaléu e achou-o aberto e vazio.
Depois, valeu-se de sua bota e foi ter onde estava
sua mulher. Esta, quando o viu, estando ausente o
Manjaléu, ficou muito alegre e quis ir-se embora
com o marido. Mas ele não consentiu, dizendo que
53
ela ficasse ainda para indagar do monstro onde
estava a sua vida, para assim dar um fim nele. O
príncipe foi-se embora. Quando o Manjaléu voltou,
viu que ali tinha estado o bicho homem. A moça
convenceu-o a conter seu ódio e, quando ele se
acalmou, ela lhe perguntou onde estava a sua vida.
O monstro zangou-se muito e disse:
— Ah! você e o seu marido que-
Dar cabo: rem saber de minha vida para da-
dar fim, rem cabo de mim! Não digo, não...
matar. Passaram-se dias, sempre a
moça insistindo. Afinal, ele foi
amolar uma espada, dizendo:
— Eu lhe digo onde está a minha vida, mas, se
eu sentir qualquer incômodo, sei que ela está em
perigo e, antes que me matem, mato você primeiro,
entendeu?
A princesa respondeu que sim. O Manjaléu
amolou a espada e disse-lhe:
— Minha vida está no mar; dentro dele há um
caixão, dentro do caixão uma pedra, dentro da
pedra uma pomba, dentro da pomba, um ovo,
dentro do ovo uma vela; assim que a vela se apagar,
eu morro.
O bicho saiu e foi procurar frutas; chegou o
príncipe, soube de tudo e foi-se embora. O Manja-
léu veio e deitou-se no colo da moça com a espada
ali perto. O príncipe chegou com a sua bota à praia
do mar num instante; lá pegou na escama que tinha
e disse:
— Valha-me o rei dos peixes!
54
De repente uma multidão de peixes apareceu,
indagando o que ele queria. O príncipe perguntou
por um caixão que havia no fundo do mar; os peixes
disseram que nunca o tinham visto, e só se o peixe
do rabo cotó soubesse. Foram chamar o peixe do
rabo cotó, e este respondeu:
— Agora há pouco dei um encontrão nele.
Todos os peixes foram e botaram o caixão para
fora. O príncipe o abriu e deu com a pedra; aí pegou
na lãzinha e disse:
— Valha-me o rei dos carneiros!
De repente apareceram muitos carneiros e
entraram a dar marradas na pedra. O Manjaléu lá
começou a sentir-se doente e dizia: "Minha vida,
princesa, corre perigo!" E pegou na espada; a moça
fez que ele desistisse e foi engambelando-o. Os
carneiros quebraram a pedra e voou uma pomba. O
príncipe pegou na pena e disse:
— Valha-me o rei dos pombos!
Chegaram muitos pombos e correram atrás da
pomba, até que a pegaram. O príncipe abriu-a e
achou o ovo. Quando estava nisto, lá o Manjaléu
estava muito abatido, pegou na espada e ia dando
um golpe na princesa. Foi quando o príncipe
quebrou o ovo e apagou a vela; aí o bicho caiu sem
ferir a moça. O príncipe foi ter com ela e levou-a
para o palácio, onde houve muitas festas.

55
A festa Da obra Contos
no céu tradicionais do
Brasil , de
L. Câmara
E ntre todas as aves Cascudo,
ligeiramente
espalhou-se a notícia de adaptado.
uma festa no Céu. Todas
as aves compareceriam e
começaram a fazer inveja aos animais e outros
bichos da terra incapazes de vôo.
Imaginem quem foi dizer que ia
Carreira: também à festa...O sapo! Logo ele,
corrida. pesadão e nem sabendo dar uma
carreira, seria capaz de aparecer
naquelas alturas? Pois o sapo disse
que tinha sido convidado e que ia sem dúvida
nenhuma. Os bichos só faltaram morrer de rir. Os
pássaros, então, nem se fala.
O sapo tinha seu plano. Na véspera, procurou o
urubu e deu uma prosa boa, divertindo muito o
dono da casa. Depois disse:
— Bem, camarada urubu, quem é coxo parte
cedo e eu vou indo porque o caminho é comprido.
O urubu respondeu:
— Você vai mesmo?
— Se vou? Até lá, sem falta!
Em vez de sair, o sapo deu uma volta, entrou no
quarto do urubu e, vendo a viola em cima da cama,
meteu-se dentro, encolhendo-se todo.
O urubu, mais tarde, pegou na viola, amarrou-a
56
a tiracolo e bateu asas para o céu, rru-rru-rru...
Chegando ao céu o urubu deixou a viola num
canto e foi procurar as outras aves. O sapo botou
um olho de fora e, vendo que estava sozinho, deu
um pulo e ganhou a rua, todo satisfeito.
Nem queiram saber o espanto que as aves tive-
ram vendo o sapo pulando no céu! Perguntaram,
perguntaram, mas o sapo só fazia conversa mole. A
festa começou e o sapo se divertiu a valer. Pela
madrugada, sabendo que só podia voltar do mesmo
jeito da vinda, mestre sapo foi se esgueirando e
correu para onde o urubu havia se hospedado.
Procurou a viola e acomodou-se como da outra vez.
O sol saindo, acabou-se a festa e os convidados
foram voando cada um no seu destino. O urubu
agarrou a viola e tocou-se para a terra, rru-rru-rru...
Ia pelo meio do caminho quando, numa curva, o
sapo mexeu-se e o urubu espiando para dentro do
instrumento viu o bicho lá no escuro, todo curvado,
feito uma bola.
— Ah! camarada sapo! É assim que você vai à
festa no Céu? Deixe de ser confiado...
E naquelas lonjuras virou a viola. O sapo des-
pencou-se para baixo que vinha zunindo. E dizia,
na queda:
Bodas
Béu-Béu! ao céu:
Se eu desta escapar casamento no
Nunca mais bodas ao céu!... céu.

E vendo as terras lá embaixo:


57
— Arreda pedra, senão eu te rebento!
Bateu em cima das pedras como um genipapo,
esborrachando-se todo. Ficou em pedaços. Nossa
Senhora, com pena do sapo, juntou os pedaços e o
sapo ressuscitou.
Por isso o sapo tem o couro todo cheio de
remendos.

58
Contos
populares de
Portugal
Portugal tem rico repertório de
narrativas populares que é pouco
conhecido em nosso país, embora
várias histórias de origem portugue-
sa, transformadas em maior ou me-
nor grau, circulem por aqui em nosso
folclore como se fossem contos inven-
tados no Brasil.
As histórias que você lerá a seguir
têm uma clara mensagem moral como
é comum em narrativas como as
fábulas.
A Riqueza Recontado
por Teófilo
e a Sorte Braga, em
versão levemente

U m pobre homem es- adaptada.

tava trabalhando no mato,


a cortar lenha para ir vender pela vila e assim sus-
tentar mulher e filhos. De repente viu ao pé de si
dois homens, bem vestidos, que lhe disseram:
— Nós somos a Sorte e a Riqueza. Vimos ajudar
você.
Cada um deles queria acudir primeiro ao
homem e, por isso, passaram a discutir. Dizia a
Riqueza:
— Eu só por mim o faço feliz; sendo ele rico tem
tudo.
— Pois, mesmo sem ser rico, eu, dando-lhe
sorte, faço-lhe maior benefício. Senão experimente-
mos para ver.
Riqueza virou-se para o pobre do homem e
disse:
— Tome lá esta moeda; amanhã compre carne,
pão e vinho e não trabalhe nesse dia.
O homem foi-se embora contentíssimo para
casa; no outro dia foi ao açougue. Deu ao
açougueiro o dinheiro adiantado, mas, como estava
um grande barulho de gente no açougue, o dono
negou que lhe tivesse dado o dinheiro, e o pobre
homem resignou-se e foi outra vez trabalhar para o
mato.
60
A Riqueza tornou a chegar ao pé dele e, quando
soube de que lhe servira a moeda, ficou zangada e
deu-lhe uma bolsa cheia de moedas. O homem
voltou para casa. Mas, como a bolsa era de pele
vermelha, uma ave de rapina caiu de repente sobre
ele e arrebatou nas garras o saco, e voou. O homem
contou a sua tristeza à mulher e no outro dia foi
trabalhar para o mato. Tornou-lhe a aparecer a
Riqueza; ficou mais desesperada quando soube do
acontecido à bolsa.
— Pois desta vez dou-lhe um saco de moedas
tão grande que você não pode com ele; mas aqui
está um cavalo que vai levá-lo para a sua casa.
O homem agradeceu aquele favor da Riqueza e
pôs-se a caminho para casa. Quando ia por um
atalho, estava num campo uma égua, e o cavalo
botou a fugir atrás dela de tal forma que o homem
não foi capaz de o agarrar, e por mais que andou
não pôde achar o cavalo.
Quando a Riqueza não esperava mais voltar a
encontrar o homem no mato, foi ao sítio de sempre
com a Sorte, e qual não foi o seu espanto quando
viu o pobre do homem a trabalhar como antes.
Disse então a Sorte:
— Agora é a minha vez de o fazer feliz; vou-lhe
dar um vintém. Olhe lá, ó homem, tome esse vintém
e assim que chegar à vila compre a primeira coisa
que lhe aparecer.
O homem em caminho para casa encontrou
quem lhe ofereceu uma vara de pegar azeitonas
pelo preço de um vintém e comprou-a. No outro
61
dia, foi para a apanha e, quando
ia colher azeitonas, caiu-lhe do Apanha:
galho da oliveira uma bolsa de colheita.
pele vermelha cheia de moedas.
Agarrou-a e levou-a para casa, contou à mulher de
onde suspeitava que lhe vinha aquele tesouro. A
mulher combinou ir fazer uma romaria, e puseram-
se a caminho. Quando chegaram a um descampado,
acharam pegadas de cavalo, foram andando por
elas e chegaram a um sítio onde estava um cavalo
deitado ainda com um saco cheio de moedas.
Voltaram logo para casa muito contentes e
mudaram de vida, que até aquele tempo tinha sido
amargurada pelos poucos ganhos e muitos filhos.
A Riqueza e a Sorte foram ao sítio onde o
homem costumava cortar lenha e esperaram por ele
bastante tempo. Por fim a Sorte declarou-se ven-
cedora, dizendo:
— Que é que eu lhe dizia? Não é com muito
dinheiro que se é feliz.

62
Comadre Recontado por
Morte Adolfo Coelho
em Contos populares
portugueses; adaptamos
H avia um homem ligeiramente a
que tinha tantos fi- narrativa.
lhos, tantos que
não havia ninguém
na vizinhança que não fosse compadre dele. Um dia
a mulher teve mais um filho. Que havia o homem de
fazer? Foi por esses caminhos afora ver se
encontrava alguém que convidasse para compadre.
Encontrou um pobrezito e perguntou-lhe se queria
ser seu compadre. "Quero, mas você sabe quem eu
sou?" "Eu sei lá; o que eu quero é alguém para
padrinho do meu filho." "Pois, olha, eu sou Deus."
"Então não me serve, porque você dá a riqueza a
uns e a pobreza a outros".
Foi mais adiante e encontrou uma pobre e
perguntou-lhe se queria ser comadre dele. "Quero,
mas você sabe quem eu sou?" "Não sei." "Pois olha,
eu sou a Morte." "Você me serve, porque trata a
todos por igual".
Fez-se o batizado e depois disse a Morte ao
homem: "Já que você me escolheu para comadre,
quero-lhe fazer rico. Você se faz de médico e vai
por essas terras curar doentes; você entra e, se vir
que eu estou à cabeceira da cama, é sinal que o
doente não escapa e não adianta dar-lhe remédio.
Mas, se estiver a seus pés, é porque escapa. Mas
63
não queira curar aqueles a que eu estiver à cabe-
ceira, porque eu acabo com você.
Assim foi. O homem ia às casas e, se via a co-
madre à cabeceira dos doentes, abanava a cabeça;
mas, se estava aos pés, receitava o que lhe parecia
bem. Vejam lá se ele não havia de ganhar fama e
dinheiro, que era uma coisa! Mas, certa vez, foi à
casa de um doente muito rico, e a Morte estava à
cabeceira. Abanou a cabeça; disseram-lhe que lhe
dariam tantos contos de réis se o livrassem da
Morte, e ele disse: "Deixa estar que eu dou um jeito
em você", e pega no doente e muda-o com a cabeça
para onde estavam os pés, e ele escapa.
Quando ia para casa, sai-lhe a comadre ao
caminho: "Venho buscá-lo por aquela traição que
me fez." "Pois então, deixe-me rezar um padre-
nosso antes de morrer". "Reze, então."
Mas ele rezar, qual rezou! Não rezou nada, e a
Morte, para não faltar à palavra, foi-se sem ele.
Um dia o homem encontra a comadre que se
fazia de morta num caminho; e ele lembrou do bem
que ela lhe tinha feito e disse: "Minha querida
comadrinha, que está aqui morta, deixe-me rezar
um padre-nosso por sua alma!"
Depois de acabar, a Morte levantou-se e disse:
"Pois, já que você rezou o padre-nosso, venha
comigo."
O homem era esperto, mas a Morte ainda era
mais, pois não era?

64
Fábula
A seguir, você lerá várias
versões de uma mesma fábu-
la, que é uma narrativa curta,
com personagens que são,
geralmente, animais falantes.
Na maior parte das vezes, a
moral que a fábula quer trans-
mitir vem expressa claramente,
muitas vezes, como no caso da
que vamos ler, enunciada numa
frase final.
Você provavelmente já conhece
esta fábula, pois é uma das mais
famosas.
Primeiramente, você lerá a ver-
são original do grego Esopo, do
século Vl a. C.; depois a do
romano Fedro, do século pri-
meiro antes de Cristo; em
seguida, a de La Fontaine e a
de Monteiro Lobato.
O lobo e o cordeiro
(Esopo)
U m lobo, tendo avistado um cordeiro bebendo
em certo regato, desejou devorá-lo recorrendo a um
pretexto qualquer. Estava ele no alto, mas acusou o
cordeiro de sujar a água de tal modo que ele não
podia bebê-la. O cordeiro respondeu que mal
tocava a água com os lábios; além disso, estando
numa posição inferior, era impossível turvar a água
que corria do alto.
Como aquele pretexto não colou, disse o lobo:
— Mas no ano passado você insultou meu pai!
O cordeiro, então, explicou que, naquela época,
ele nem sequer era nascido. O lobo lhe disse:
— Você pode ser muito bom para dar desculpas,
mas eu não deixarei de devorá-lo!

A fábula mostra que nenhuma defesa justa terá sucesso


contra os que querem ser injustos.

66
O lobo e o cordeiro
(Fedro)
A um mesmo córrego chegaram certa vez um
lobo e um cordeiro, levados pela sede. O lobo
estava numa posição mais acima; muito mais abaixo
se encontrava o cordeiro. Então, movido por uma
fome terrível, o bandido arranjou um pretexto para
discussão:
— Por que você turvou a água que eu estou
bebendo?
O cordeiro, com medo, respondeu:
— Como posso eu, me diga, fazer aquilo de que
você se queixa, lobo? A água corre de onde você
está até aqui, onde estou bebendo.
Repelido pela força da verdade, o lobo replicou:
— Há uns seis meses atrás, você falou mal de
mim!
O cordeiro, por sua vez:
— Mas eu nem era nascido há seis meses atrás!
— Então foi seu pai que falou mal de mim! —
disse o lobo e, agarrando o cordeiro, devorou-o,
dando-lhe morte injusta.

Esta fábula foi escrita pensando nas pessoas que se


servem de pretextos para oprimir os inocentes.

67
O lobo e o Pronuncie
Fõtéine.
cordeiro O original

(La Fontaine) francês


é em versos.

A razão do mais forte é sempre a melhor:


É o que agora vamos mostrar.
Um Cordeiro matava a sede na corrente de
límpidas águas. Um Lobo, que não comia há tempo,
apareceu, buscando confusão. A fome o atraiu para
aquele lugar.
— Quem tornou você tão atrevido a ponto de
turvar minha água? — disse o animal, cheio de ira.
Você será castigado por essa ousadia!
— Senhor — respondeu o Cordeiro — não se
zangue! Note que eu matava minha sede no regato
a mais de vinte passos abaixo do senhor. Assim, de
modo algum eu poderia turvar sua água.
— Você a turva — insistiu o animal cruel — e eu
sei que no ano passado você falou mal de mim!
— Como eu poderia ter feito isso se eu não era
nem nascido? Eu ainda mamo.
— Se não foi você, então foi seu irmão.
— Não tenho irmão.
— Então foi um parente seu. Vocês não me dão
trégua, vocês, seus pastores e seus cães! Foi o que
me disseram. Preciso me vingar.
Lá em cima, no fundo das florestas, o Lobo agarra o
Cordeiro e depois o devora, sem mais nem menos.
68
Narração de
Monteiro Lobato
Veja como Monteiro Lobato,
baseado no francês La Fontaine,
que recontou as fábulas gregas e
romanas, narra a mesma história
no livro Fábulas:

E stava o cordeiro a beber Esfaimado:


num córrego, quando apareceu
um lobo esfaimado, de horren- faminto.
do aspecto.
— Que desaforo é esse de turvar a água que
venho beber? — disse o monstro arreganhando os
dentes. Espere, que vou castigar tamanha má-
criação!...
O cordeirinho, trêmulo de medo, respondeu
com inocência:
— Como posso turvar a água que o senhor vai
beber se ela corre do senhor para mim?
Era verdade aquilo e o lobo atrapalhou-se com a
resposta. Mas não deu o rabo a torcer.
— Além disso — inventou ele — sei que você
andou falando mal de mim o ano passado.
— Como poderia falar mal do senhor o ano
passado, se nasci este ano?
Novamente confundido pela voz da inocência, o
lobo insistiu:
69
— Se não foi você, foi seu irmão mais velho, o
que dá no mesmo.
— Como poderia ser o meu irmão mais velho, se
sou filho único?
O lobo, furioso, vendo que com razões claras
não vencia o pobrezinho, veio com uma razão de
lobo faminto:
— Pois se não foi seu irmão, foi seu pai ou seu
avô!
— E — nhoque! — sangrou-o no pescoço.

Contra a força não há argumentos.

Estamos diante da fábula mais famosa de


todas — declarou Dona Benta. Revela a
essência do mundo. O forte tem sempre razão.
Contra a força não há argumentos.
— Mas há a esperteza! — berrou Emília. Eu
não sou forte, mas ninguém me vence. Por quê?
Porque aplico a esperteza. Se eu fosse esse
cordeirinho, em vez de estar bobamente a discutir
com o lobo, dizia: "Senhor Lobo, é verdade, sim,
que sujei a água deste riozinho, mas foi para
envenenar três perus recheados que estão
bebendo ali embaixo". E o lobo, já com água na
boca: "Onde?" E eu, piscando o olho: "Lá atrás
70
daquela moita!" E o lobo ia ver e eu sumia...
— Acredito — murmurou Dona Benta. E
depois fazia de conta que estava com uma
espingarda e, pum! na orelha dele, não é? Pois
fique sabendo que estragaria a mais bela e
profunda das fábulas. La Fontaine a escreveu
dum modo incomparável. Quem quiser saber o
que é obra-prima, leia e analise a sua fábula do
Lobo e o Cordeiro.

71
Narração de
Millor Fernandes
Millor Fernandes, jornalista e
escritor contemporâneo, recriou
essa fábula em seu livro Fábulas
Fabulosas:

E stava o cordeirinho bebendo água, quando


viu refletida no rio a sombra do lobo. Estremeceu,
ao mesmo tempo que ouvia a voz
cavernosa: "Vais pagar com a
Cavernosa: vida o teu miserável crime". "Que
grave e crime?" — perguntou o cordeiri-
rouca. nho tentando ganhar tempo, pois
já sabia que com lobo não adianta
argumentar. "O crime de sujar a
água que eu bebo". "Mas como posso sujar a água
que bebes se sou lavado diariamente pelas
máquinas automáticas da fazenda?" — indagou o
cordeirinho. "Por mais limpo que esteja um
cordeiro é sempre sujo para um lobo. "E vice-versa"
— pensou o cordeirinho, mas disse apenas: "Como
posso eu sujar a sua água se estou abaixo da
corrente?" "Pois se não foi você, foi seu pai, foi sua
mãe ou qualquer outro ancestral e eu vou comê-lo
de qualquer maneira, pois como rezam os livros de
lobologia, eu só me alimento de carne de cordeiro"

72
— finalizou o lobo preparan-
do-se para devorar o cordeiri- Aqui, houve
nho. "Um momento, um mo- uma pequena
mento!" — gritou o cordei- adaptação
rinho. "Dou-lhe toda razão, do texto.
mas faço-lhe uma proposta: se
me deixar livre atrairei pra cá
todo o rebanho". "Chega de conversa" — disse o
lobo — "vou comê-lo logo, e está acabado". "Espera
aí" — falou firme o cordeiro
— isso não é ético. Eu tenho,
Ético: pelo menos, direito a três per-
decente, guntas". "Está bem" — cedeu o
apropriado do lobo irritado
ponto de vista com a lem-
da moral. brança do Jungle:
código mi- selva, em
lenar da inglês.
jungle."— Qual é o animal mais
estúpido do mundo?" "O homem
casado" — respondeu pronta-
mente o cordeiro. "Muito
Refreando: bem, muito bem!" — disse o
contendo. lobo, logo refreando, envergo-
nhado, o súbito entusiasmo.
"Outra: a zebra é um animal
branco de listras pretas ou um animal preto de
listras brancas?" "Um animal sem cor pintado de
preto e branco para não passar por burro" —
respondeu o cordeirinho. "Perfeito!" — disse o lobo
engolindo em seco. "Agora, por último, diga uma
73
frase de Bernard
Bernard Shaw". "Vai haver elei-
Shaw: escritor ções em 66" — respon-
deu logo o cordeirinho
inglês famoso
mal podendo conter o
por seu estilo
humorístico e riso. "Muito bem, muito
satírico. certo, você escapou!"
— deu-se o lobo por

vencido. E já ia se
preparando para Provavelmente,
devorar o cordeiro escrita na época da
ditadura militar, em
quando apareceu o
que não havia
caçador e o esquar-
eleições diretas no
tejou. Brasil, a narrativa
faz o cordeirinho
dizer algo que os
eleitores da época
achariam absurdo,
porque totalmente
fora da realidade.

MORAL: QUANDO O LOBO TEM FOME NÃO


DEVE SE METER EM FILOSOFIAS.

74
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

APULEIO. Le metamorfosi o l’asino d’oro. 6. ed.


Milano: Rizzoli, 1987.
BAHLMANN, Clemens et alii. Unterwegs. Berlin:
Langenscheidt, 2003 (conto dos irmãos Grimm).
BRAGA, Teófilo. Contos tradicionais do povo português.
4. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1998.
CASCUDO, Câmara. Contos tradicionais do Brasil.
Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.
COSTA E SILVA, Alberto da. Lendas do índio
brasileiro. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s.d.
ESOPO. Favole. 9. ed. Milano: Rizzoli, 1992.
FERNANDES, Millor. Fábulas fabulosas. 12. ed.
Rio de Janeiro: Nórdica, 1991.
LOBATO, Monteiro. Fábulas e histórias diversas.
13. ed. São Paulo: Brasiliense, 1965.
OVIDE. Les métamorphoses. Paris: Garnier, 1953.
PHÈDRE. Fables. Paris: Les Belles Lettres, 1969.
ROMERO, Sílvio. Contos populares do Brasil. São
Paulo: Landy, 2000.

75

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