A Historia Da Filosofia - Resumo

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ERA PRÉ-SOCRÁTICA

2018, 16h38 -

A filosofia não nasceu na Grécia. A terra natal de Tales, considerado o primeiro


filósofo da história, é Mileto, cidade do sul da Jônia, região que hoje
pertence à Turquia. Ou seja, é correto dizer que a filosofia nasceu no mundo
grego, mas o mundo grego dos séculos 7 e 5 a.C. não tem nada a ver
com a Grécia de hoje. Abrangia a costa do Mar Egeu, de Mármara e boa parte
do Mar Negro, além do sul da Itália e das regiões costeiras da França, Espanha
e África. Demorou quase cem anos para a filosofia chegar à capital Atenas,
onde viveu Sócrates, uma espécie de Jesus Cristo da filosofia.

Motivo: assim como o calendário está dividido em antes e depois do


surgimento do messias cristão, a filosofia também tem duas eras: pré e pós-
Sócrates. Na era pré-socrática, a principal preocupação era saber de que era
feito o mundo e o ser humano. A pergunta “de que são feitas as coisas?” pode
soar ingênua e até infantil. Mas o filósofo Timothy Williamson, de Oxford,
considera uma das melhores perguntas já proferidas — uma questão que nos
conduziu a boa parte da ciência moderna. Pela primeira vez na história, os
pensadores colocaram o raciocínio na frente da mitologia. Eles não
engoliam a ideia de que o mundo surgira do nada. “Nada vem do nada e nada
volta ao nada” era uma premissa básica para os pré-socráticos, o que
significava dizer que o mundo é uma eterna reciclagem, tudo se transforma
sem jamais desaparecer. Eles tinham até uma palavra para esse mundo
perene: physis, do verbo grego “fazer surgir”. Physis era a origem de todos os
seres e coisas mortais do mundo, que estão em permanente
transformação. O café quente esfria, o inverno vira primavera, o longe fica
perto se formos até ele, a criança cresce e vira um adulto. A natureza está em
constante transformação, mas isso não quer dizer que ela é caótica. As
mudanças seguem uma lógica determinada pela physis.
Mas afinal o que era a physis? Cada pensador achava que era uma coisa.
Tales afirmava que o princípio era a água ou o úmido. Anaximandro, o infinito.
Anaxímenes, o ar. Pode parecer simplório, mas era a primeira vez que se
buscava uma resposta racional para a origem do mundo.
TALES DE MILETO

Criado em uma época na qual a religião explicava todas as coisas, das guerras
aos casamentos infelizes, Tales de Mileto rompeu com o pensamento
mitológico e deu o pontapé inicial da filosofia. Foi o primeiro a usar o raciocínio
puro para explicar as questões do homem e da natureza.

Nascido na colônia de Mileto, atual Turquia, Tales é considerado o responsável


por tirar a civilização helênica das trevas intelectuais. A fama vai além das
contribuições para a filosofia. Em 585 a.C., conseguiu prever um eclipse total
do Sol. Sua aptidão para os negócios também era invejável. Certa vez,
percebeu que as condições do tempo estavam favoráveis para a colheita e
investiu no ramo das azeitonas prevendo que o clima turbinaria uma safra
recorde. Dito e feito: Tales encheu os bolsos de dinheiro. Porém, o pensador
ficou mais conhecido pelo teorema de Tales, que ele formulou medindo a
pirâmide de Quéops, no Egito, utilizando apenas uma estaca e as sombras
dela e da pirâmide. Hoje, o teorema é fundamental para medições geométricas,
utilizado desde a construção civil até a astronomia.

Na filosofia, ele acreditava na existência de uma matéria-prima básica


responsável pela origem do Universo: a água. Em uma de suas frases mais
conhecidas, Tales teria dito que “o Universo é feito de água”. Ele observou que,
sem água, tudo morria. Logo, ela era a fonte da vida. Tales chegou a afirmar
que a Terra flutuava sobre um disco de água a partir do qual tudo emergiu.
Ironicamente ou não, a sede teria sido um dos motivos da sua morte, aos 78
anos. “Tales sucumbiu por causa do calor, da sede e do esgotamento da
velhice”, descreveu o biógrafo Diógenes Laércio.
Tales não deixou textos. Tudo o que se sabe sobre ele é baseado na tradição
oral e em registros de outros pensadores. Teve uma vida isolada e íntima. Não
cobrava nada de seus discípulos e, humildemente, desafiava outros sábios a
contestarem suas ideias.

ANAXIMANDRO

Responsável por continuar o pensamento de Tales, Anaximandro foi político,


administrador e construtor de relógios solares — um cidadão célebre. Seu
busto foi encontrado em posição de destaque nas ruínas de Mileto. Assim
como Tales, acreditava na existência de um princípio primordial para o
Universo, mas discordava de que fosse a água. Nas três frases deixadas pelo
pensador, que são os primeiros textos de filosofia escritos, ele defende que o
infinito é a origem de tudo, porque somente algo ilimitado e eterno poderia
explicar a multiplicidade das coisas.

ANAXÍMENES
Nem água, nem infinito. Para o último dos filósofos de Mileto, o ar era o item
fundamental. Ele observou que os lábios franzidos produzem ar frio e, quando
relaxados, ar quente — concluindo que a condensação esfria e a expansão
aquece.Para ele, a condensação do ar teria dado origem a névoas, chuvas e
rochas, ou seja, ao planeta todo. Afinal, nada sobreviveria sem o ar.

PARMÊNIDES

O grande Platão o reconheceu como pai espiritual e dedicou a ele um de seus


diálogos. A profundidade das ideias e argumentações de Parmênides é
considerada até hoje uma das mais ricas da história. E se filosofar já é difícil,
imagine deixar as teorias gravadas em formato de poesia. Parmênides o fez.
Está tudo registrado em poemas filosóficos (exatamente 154 versos).
Nascido em Eleia, hoje sul da Itália, Parmênides é considerado o principal
nome da escola eleática, um dos últimos movimentos filosóficos do fim da era
pré-socrática. Seu grande mérito foi ter reconhecido que nossos sentidos nem
sempre estão certos, valorizando a importância de fazer uma interpretação
racional do mundo. Parmênides chegou a uma conclusão oposta à do
contemporâneo Heráclito. Para ele, a Teoria do Devir não poderia estar certa,
porque algo que “é” e “não é” ao mesmo tempo não passa de uma contradição.
Não há uma terceira possibilidade, dizia Parmênides. Ou o ser é uma coisa ou
não é.

HERÁCLITO

Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. Quando imergimos, águas novas
substituem aquelas que nos banharam antes. O exemplo serviu para ilustrar a
Teoria do Devir de Heráclito de Éfeso, sua tese mais famosa. Para ele, o
Universo anda num eterno fluir, com cada coisa sendo e não sendo ao mesmo
tempo.

Para Heráclito, era o logos — algo como razão ou inteligência — que governa o
mundo. Ele reconhecia que todos os homens possuem o logos, mas acreditava
que a maioria (que chamou de “adormecidos”) não desenvolvia essa
inteligência. Apenas os “despertos” utilizavam o logos de modo consciente.
Suas teorias só foram reveladas após seu bizarro suicídio: cobriu o corpo de
esterco e foi para a praça, onde foi devorado por cães. Heráclito deixou frases
gravadas em lâminas de ouro que ficaram secretamente guardadas com
sacerdotes. Eram curtíssimas e com duplo sentido, como no trecho “a rota para
cima e para baixo é uma e a mesma”.
PITÁGORAS

Quando Pitágoras descobriu que o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos


quadrados dos catetos, seus discípulos consideraram a descoberta uma
revelação divina. Ele próprio acreditava que sua conclusão não havia surgido
do pensamento lógico, mas de uma iluminação. Filósofo e matemático,
Pitágoras também era considerado um líder espiritual. Talvez sua beleza tenha
ajudado na fama. Pitágoras, conta-se, era lindo de morrer. Seus discípulos
desconfiavam que ele era, na verdade, o deus Apolo. Certo dia, segundo
reza a lenda, alguns que o viram nu disseram que sua coxa era feita de ouro.

Aos 40 anos, o filósofo-matemático saiu da cidade natal na Ilha de Samos e foi


para Crotona, na Itália, onde fundou uma seita. Os alunos da escola pitagórica,
cerca de 300, viviam em comunidade e passavam os dias estudando as teorias
do filósofo. A imposição de rituais estranhos, como o que proibia morder um
pão inteiro ou alisar a marca do corpo deixada no lençol ao levantar da cama,
leva a crer que Pitágoras também teria traços de um obsessivo-compulsivo.

Ele se achava. Dizia que ficara 200 anos no inferno antes de chegar aos
homens, em uma longa preparação para chegar ao reino dos mortais. Suas
teses tinham valor de dogmas — poucos tinham permissão para questioná-lo.
Sua principal teoria era baseada nos números. Enquanto os filósofos de Mileto
acreditavam que a causa de tudo era um elemento físico ou o infinito de
Anaximandro, o pensador defendia que os números eram o motivo e o princípio
de tudo. Até o cosmos poderia ser quantificado de acordo com a teoria
pitagórica. Mas os números de Pitágoras eram diferentes dos nossos
algarismos. Não eram abstratos e ocupavam uma dimensão espacial, em
formas de quadrados e triângulos. Outra ideia badalada do pensador
foi a da”música cósmica”. Para Pitágoras, os astros tocavam uma melodia
perfeita e divina durante seu movimento. Mortais não seriam capazes de
ouvir a tal canção porque os sons contínuos passam despercebidos pelos
nossos sentidos.

A seita pitagórica não teve um final feliz. Cidadãos de Crotona se revoltaram


contra a comunidade, considerada uma panelinha aristocrática. Os revoltosos
mataram seguidores de Pitágoras, que fugiu da cidade e se refugiou em
Metaponto, onde morreu pouco tempo depois. Após sua morte, os discípulos
criaram novos centros para difundir a seita e as teorias. O mestre não deixou
nada escrito. Tudo o que se sabe de suas doutrinas só ganhou visibilidade com
os livros do pitagórico Filolau, os quais Platão comprou sob encomenda.

PROTÁGORAS

Pela primeira vez, um filósofo colocava o homem no centro do pensamento. Ao


afirmar que “o homem era a medida de todas as coisas”, Protágoras
inaugurava a ideia de que a verdade depende da experiência pessoal. Nascido
em Abdera, na Grécia, Protágoras concluiu que qualquer afirmação sempre era
relativa a um ponto de vista, a uma sociedade ou ao modo de pensar.
Protágoras foi o principal nome de uma escola polêmica na Grécia nos meados
do século 5 a.C. Os sofistas (palavra que pode ser traduzida como sábios ou
sabedoria) argumentavam contra e a favor de teses com a mesma
eloquência. O objetivo era ganhar qualquer discussão. Foram os
primeiros a fazer do conhecimento uma profissão: cobravam de jovens
atenienses por aulas de retórica, o que desagradava os intelectuais da época.
Foi banido de Atenas após questionar a existência dos deuses e morreu logo
depois, em um naufrágio enquanto fugia para a Sicília.

GÓRGIAS

Seria errado culpar a adúltera Helena pela Guerra de Troia. A moça, na


verdade, foi uma vítima das palavras. Páris, seu sedutor, teria usado o poder
da linguagem para manipular a mente de Helena. Usando essa
argumentação, o sofista Górgias explicou o poder mágico que, para ele, existia
nas palavras. Gênio da retórica, o filósofo acreditava piamente na
persuasão da linguagem. Era uma espécie de precursor dos publicitários,
capaz de sustentar opiniões absurdas e convencer seu público usando apenas
o talento argumentativo. Pela retórica, Górgias e os sofistas provaram que a
inteligência também poderia ser usada para mentir, seduzir e impressionar.

Nascido na cidade de Lentini, na Sicília, o sofista teria vivido 108 anos em


perfeita saúde e propondo pensamentos radicais. O mais famoso foi o das três
teses: 1) nada existe; 2) se algo existisse, não poderia ser pensado e 3) se algo
existisse e pudesse ser pensado, não poderia ser explicado. A ideia polêmica
ganhou várias interpretações. Há quem diga que foi apenas uma brincadeira
feita durante um dos discursos de Górgias para assustar os ouvintes. Outros
sustentam que era uma forma radical de ceticismo.

ERA CLÁSSICA
Entre os séculos 6 e 5 a.C., o mundo grego sofreu uma reviravolta
socioeconômica decisiva para o surgimento de pensadores da estatura de
Sócrates, Platão e Aristóteles. A cultura agrária e aristócrática da Grécia, que
na época reunia cidades-Estados e não formava um país como hoje, deu lugar
à vida urbana e democrática. Uma nascente indústria artesanal e o comércio
levaram hordas de gregos do campo para as cidades. A nova classe
trabalhadora passou a questionar o poder político da monarquia e, por volta de
507 a.C, o reformador Clístenes introduziu um princípio crucial que alterou a
ordem social na região: a igualdade dos homens perante a lei e o direito de
todos participarem das decisões políticas da comunidade. A Grécia virou uma
democracia direta. Nascia a figura do cidadão. Boa parte dos habitantes podia
dar pitaco nas reformas da cidade e expressar opiniões em público (exceto
mulheres e escravos, mas paciência…).

Mas era preciso saber falar para ser ouvido. O ideal de educação no novo
mundo grego valorizava a formação do cidadão e não mais exaltava as virtudes
aristocráticas, típicas dos poemas de Homero e Hesíodo, para quem o homem
ideal era o herói de guerra atlético e corajoso. Os novos professores da classe
cidadã eram os sofistas, pensadores que se apresentavam como mestres da
oratória e da retórica e contestavam tudo e todos. Para os sofistas, o bom
cidadão era persuasivo. Quem dominava a oratória ganhava qualquer
discussão em uma assembleia na pólis. Certo? Sim, mas não para Sócrates, o
pai da filosofia ocidental.

Sócrates construiu grande parte de seu pensamento em oposição ao sofistas,


aos quais acusava de não ter respeito pela verdade. Como podiam defender
uma ideia ou outra apenas para obter vantagem? Cadê a vergonha na cara?
Para o mestre de Platão, o importante era buscar a essência das coisas e do
mundo, o conceito de valores como justiça, amizade, amor, beleza e prudência.
A verdade vem da reflexão racional sobre o que nos rodeia e não da percepção
ou da opinião. O pai da filosofia distribuía perguntas pelas ruas da capital
Atenas que desconcertavam os cidadãos gregos— O que é a beleza? Você diz
que justiça é importante, mas o que é a justiça? Por que você pensa o que
pensa?— e deu forma e método para a filosofia como a conhecemos hoje. Foi
o primeiro filósofo “profissional”. Durante o período de ouro na Grécia, a
filosofia se debruçou sobre quatro conceitos-chave: o bom, o belo, o bem e o
justo. Mas não havia limites para o pensamento do trio filosófico mais influente
da Antiguidade. Sócrates, Platão e Aristóteles estavam envolvidos com
grandes questões: o sentido da vida, justiça social, administração das cidades,
a busca da felicidade, como ser um bom cidadão. Mas iam além. A voracidade
intelectual de Aristóteles era algo sem precedentes. O filósofo de Estagira
(cidade do nordeste da Grécia) se interessou por todos os assuntos, da física à
biologia passando pela ética, a política e a metafísica. A filosofia clássica foi a
mãe das ciências — ideia que vai persistir até o final do século 18.

SÓCRATES

Sócrates é para a filosofia o que Jesus representa para o cristianismo. Assim


como o profeta, veio de uma família pobre, nunca escreveu uma palavra,
incomodou muita gente e foi admirado por uma legião. Perambulava pelas
ruas, onde parava desconhecidos e fazia perguntas embaraçosas. Como
Jesus, Sócrates morreu de forma trágica. De origem pobre, seguiu a mesma
profissão do pai, escultor. Mas o ofício logo foi abandonado com a convocação
para a guerra do Peloponeso, onde defendeu Atenas contra Esparta. Foi
também nessa época que o sábio encontrou o amor — ou melhor, os amores.
Não que ele fizesse sucesso com as mulheres — pelo contrário, dizem que sua
feiúra era incomparável —, mas a escassez de homens depois das batalhas
fez os governantes criarem uma lei extraordinária que permitia o casamento
com duas mulheres. Sócrates escolheu Xantipa e Mirton como esposas.

Se lhe faltavam atributos estéticos, sobrava lábia. Sócrates falava dia e noite
sem parar, inquerindo quem quer que cruzasse o seu caminho. A sede
insaciável de diálogo ficou conhecida como método socrático, ou dialética.
Passava os dias formulando questões e perguntando insistentemente, sem
desenvolver uma teoria sequer. Dos diálogos, tentava estimular pensamentos
sobre o que é o bem, o justo, o bom e o belo. A vida e a moral eram as grandes
preocupações do pai da filosofia ocidental. Ele definiu o que acreditava ser uma
vida virtuosa, onde a paz de espírito era atingida fazendo o certo, o que não
era a mesma coisa que seguir o código moral da época. Fazer a coisa certa era
uma questão de consciência — Sócrates acreditava que ninguém deseja fazer
o mal. Esse princípio levaria à famosa máxima “Conhece-te a ti mesmo”,
inspirada na inscrição do Oráculo de Delfos, centro de consulta aos deuses
gregos. Certa vez, perguntou se ser enganador correspondia a ser imoral. “É
claro que sim”, respondeu o interlocutor. Sócrates, então, indagou: “Mas e se
um amigo estivesse muito triste e quisesse se matar e você roubasse a faca
dele? Não seria um ato imoral?” Sim, ouviu como resposta. Sócrates concluiu:
“Mas seria moral em vez de imoral, já que seria uma coisa boa e não ruim”. A
essa altura, enquanto os neurônios do cidadão se debatiam, Sócrates dava-se
por satisfeito. Ele próprio comparou esse método com a profissão de parteira
da sua mãe. Sua mãe usava a habilidade para trazer à luz a vida. Ele paria a
verdade. Um dia, um amigo de Sócrates consultou o Oráculo de Delfos.
Desejava saber se existia alguém mais sábio que o filósofo. A resposta foi
direta: “Não, ninguém é mais sábio que Sócrates”. Quando soube da resposta,
Sócrates ficou pasmo com a afirmação e foi procurar políticos e poetas para
provar o erro do Oráculo. Foi em vão.

Conta-se que, ao conversar com outros sábios, Sócrates concluiu que todos
acreditavam que tinham um conhecimento profundo sobre algum assunto,
quando, na verdade, não era bem assim. A sabedoria do pensador estava em
não alimentar ilusões sobre o próprio saber. Foi dessa lógica que Sócrates
extraiu a histórica frase “só sei que nada sei”, pensamento que lhe rendeu
vários inimigos em Atenas, que o acusaram de ser, na verdade, um sofista
interessado em se aproveitar da retórica para mentir. O filósofo foi levado ao
tribunal, acusado de colocar em risco a moralidade ateniense e dissuadir a
crença nos deuses. Recusando-se a abrir mão de suas ideias, o sábio tomou
um cálice de cicuta — veneno extraído de uma planta que paralisa
gradualmente o corpo. Morreu aos 70 anos. Durante o julgamento, disse uma
de suas frases mais marcantes: “A vida irrefletida não vale a pena ser vivida”.
Segundo relatos de Platão, seu maior discípulo, Sócrates preferia a morte do
que viver sem questionamentos, na completa ignorância. Teria declarado ainda
que, se corromper a juventude significava ensinar a cuidar menos do corpo e
mais da alma, então era culpado. Sócrates não escreveu nada, mas disse
muito. Poucos minutos antes de cumprir seu destino, se despediu dos
discípulos: “Já é hora de irmos. Eu para a morte, vocês para a vida. Quem de
nós segue o melhor rumo? Isso é segredo. Exceto para Deus”.

EPICURO
Durante escavações em sítios arqueológicos gregos e romanos, foram
encontradas várias estatuetas de Epicuro. Era normal que os intelectuais da
época guardassem estátuas de filósofos, mas o que chamou a atenção é que
as de Epicuro estavam presentes até nas casas simples. Os seguidores do
filósofo, nascido na ilha de Samos, acreditavam que contemplar seu rosto
aquietava o espírito. Epicuro adorava comparar seu pensamento à medicina.
Proclamava-se um terapeuta do espírito, médico das almas e cirurgião das
paixões. Na sua escola, chamada de O Jardim, acolhia mulheres, escravos e
até mesmo prostitutas para suas “consultas”.

Como Aristóteles, acreditava que o maior objetivo da vida era a felicidade. Mas
ia além. Achava que a dificuldade em atingi-la estava no medo que sentimos da
morte. Epicuro se propôs a resolver o impasse: se a morte é o fim das
sensações, ela não pode ser fisicamente dolorosa, e, se é o fim da consciência,
não pode causar dor emocional. Ou seja, não há nada a temer. Superado esse
medo, podemos ser felizes. Epicuro morreu aos 72 anos. Não sabemos se ele
estava completamente destemido em relação ao juízo final, mas, em uma de
suas últimas cartas, comemorou a vida doce, feliz e sempre digna de ser
vivida.

PLATÃO
Principal discípulo de Sócrates, Platão se encarregou de registrar as ideias do
mestre na forma de diálogos. Seu texto é uma mistura de teorias complexas
com fragmentos teatrais que traziam o mestre como protagonista, dialogando
sobre a vida, a razão e a verdade. Platão escreveu ao longo da vida cerca de
40 diálogos, verdadeiras obras-primas filosóficas e literárias. Temos a sorte de
contar hoje com tudo o que o filósofo escreveu.

É de Platão um dos textos filosóficos mais lidos da história, o Mito da Caverna.


Conta a fábula de prisioneiros que foram acorrentados em uma caverna escura
quando crianças sem jamais poder sair dali. Tudo o que conheciam do mundo
eram sombras da vida real projetadas nas paredes, ou seja, cópias imperfeitas
das coisas, que conservam suas formas verdadeiras no mundo das ideias, uma
espécie de paraíso onde está guardado o padrão de tudo o que existe —
principal teoria de Platão. O mundo das ideias existe em oposição ao mundo
dos sentidos, esse no qual vivemos, recheado de cópias defeituosas de tudo o
que existe no plano superior.
Quando um dos escravos foge da caverna e fica deslumbrado com a
verdadeira forma das coisas, Platão faz uma metáfora com os filósofos, que
ascendem por meio do conhecimento. Ele defendia a tese de que o mundo das
ideias só poderia ser acessado pelos filósofos. Logo, era essa a classe mais
indicada para governar a pólis. Esse pensamento originou a teoria política de
Platão, na qual ele cria a cidade ideal. Nela, existiriam apenas três categorias
de cidadãos, cada um desempenhando a tarefa para a qual estava melhor
preparado. Aqueles que tinham a “alma com apetite” seriam trabalhadores; os
corajosos, os guardiões da pólis; e os dotados de sabedoria e razão, os
governantes-filósofos.
A tarefa do rei filósofo seria justamente a de regressar à caverna e relatar o
mundo das ideias para os demais – isto é, contar a verdade para a sociedade.
Na comunidade ideal de Platão, os casamentos seriam coletivos e sem casais
fixos. O sexo seria somente para a reprodução, e as crianças criadas pelo
Estado como filhos da comunidade. O pensador também lançou a ideia de
igualdade dos sexos. Na cidade ideal, as mulheres não seriam discriminadas e
poderiam ocupar até postos no serviço militar. Essa teoria levou Platão por três
vezes até a cidade de Siracusa, na Sicília, onde pretendia persuadir os
soberanos a colocar em prática seu plano. Sem sucesso, chegou a ser preso.

Mas, antes de virar Platão, o filósofo, ele era Aristócles, seu nome de batismo,
um estudante das letras e da pintura com excepcional dom para a ginástica. O
apelido, Platão (Pláton, em grego), que significa amplo, teria sido uma criação
do treinador Áriston de Argos por causa do porte musculoso do aprendiz. A
transição do esporte para o pensamento veio aos 20 anos, quando foi
apresentado a Sócrates. A parceria durou cerca de uma década, até os últimos
minutos da vida do mestre. Depois da morte do professor, Platão fundou a
própria escola em Atenas. Considerada por alguns como a primeira
universidade e inspirada nas comunidades criadas por Pitágoras, a Academia
ensinava matemática e geografia. O grande avanço era o ingresso de mulheres
que, pela primeira vez, podiam estudar. O aluno mais ilustre foi Aristóteles.
Platão morreu aos 70 anos. Em sua lápide ficaram gravadas as seguintes
palavras: “Aqui jaz o divino Aristócles, que em prudência e justiça soube
exceder a todos os mortais. Se a sabedoria eleva alguém às alturas, este as
conseguiu. A inveja em nada lhe empanou a glória”.

ARISTÓTELES
Os jardins do palácio de Pela, capital da Macedônia, hoje parte da Grécia, foi
um local que despertou a genialidade de um dos maiores pensadores da
história. Nascido em Estagira, no nordeste grego, Aristóteles foi ainda criança
para Pela quando seu pai, Nicômaco, foi chamado para ser o médico do avô de
Alexandre, o Grande. Conta-se que Aristóteles brincava nos jardins do palácio
e se interessava por quase tudo a sua volta: insetos, plantas, ervas daninhas.
Por volta dos 18 anos, ficou órfão e gastou o que herdara do pai em vinho e
festa. Em 367 a.C., ele partiu para Atenas e ingressou na Academia de Platão
— e de bon vivant se tornou um dos maiores gênios da filosofia.
Aristóteles entrou na escola apenas como ouvinte, mas Platão logo percebeu
que ele não era um aluno qualquer e lhe deu a missão de lecionar retórica. Ele
permaneceu na Academia por 20 anos até a morte do mestre, quando,
insatisfeito com os rumos que a escola tomava, seguiu para a Macedônia para
dar lições a Alexandre, o Grande. Antes disso, casou-se duas vezes e teve
Nicômaco, seu único filho. Aristóteles aprendeu muito com o mestre Platão,
mas foi também seu maior crítico. O filósofo não acreditava na teoria do mundo
das ideias apresentada no Mito da Caverna. Para ele, o mundo real, a
natureza, não tem nada de ilusório. Aristóteles acreditava que a verdade está
neste mundo e não em um universo paralelo, como acreditava Platão.
Aristóteles dizia que eram os homens que formulavam os conceitos a respeito
das coisas para poder reconhecê-las. Veja o exemplo de uma cadeira. Depois
de observar centenas de cadeiras, nós mesmos poderíamos definir o que era o
conceito de cadeira e, desta forma, reconheceríamos um exemplar quando nos
deparássemos com uma. E a cadeira na qual estamos sentados agora não é
apenas um simulacro de uma cadeira verdadeira existente no mundo das
ideias, como Platão diria. O pupilo também não acreditava na dialética como
um método seguro de conhecimento. Para Aristóteles, debater ideias é bom
para a política e a retórica, mas não é indicada para a filosofia ou para a
ciência. Assim, ele fundou a lógica, que definiu como um instrumento seguro
para conhecer o mundo.

Aristóteles tratou de absolutamente todos os temas da sua época com uma


profundidade revolucionária. As contribuições aristotélicas na metafísica,
retórica, ética, filosofia política, além da matemática, da física e da zoologia,
são ainda hoje citadas em faculdades mundo afora. Um dos seus principais
legados foi no campo da lógica, onde sistematizou o estudo propondo uma
abordagem semântica, ou seja, analisando como duas premissas podem
formar uma conclusão verdadeiramente indiscutível.
Apenas a medicina passou ao largo da erudição aristotélica, mas até para isso
o gênio tinha uma resposta: ele se focava em áreas que tinham déficit de
conhecimento, o que julgou não ser o caso da medicina. Além das
contribuições à ciência, é de Aristóteles uma das ideias mais originais sobre
felicidade. Desde Sócrates, os filósofos vinham se perguntando como, afinal, o
ser humano deveria viver. Aristóteles acreditava que era preciso buscar a
felicidade. Ele usava a palavra eudaimonia para explicar que felicidade era na
verdade uma busca racional para se tornar um ser humano melhor, justo e
bom. Mas ele também não era ingênuo e sabia que ser feliz dependia de
alguma forma dos bens materiais, já que eles facilitam a prática de ações
nobres.

SÊNECA

Sêneca era membro do estoicismo, escola que surgiu após a morte de


Aristóteles com Zenão de Cítio. O estoicismo pregava o foco nas coisas que
podemos mudar, e mais nada. Para os estoicos, por exemplo, o
envelhecimento e a brevidade da vida eram inevitáveis. A única coisa que
poderíamos fazer, portanto, seria aceitá-los. Sêneca nasceu em Córdoba, na
Espanha, e viveu a maior parte da vida em Roma. Era conselheiro íntimo de
Nero, mas não demorou para que o imperador acusasse o filósofo de traição.
Nero ordenou que Sêneca se suicidasse. Como bom estoico, o filósofo não
contestou a sentença absurda. Estava colocando em prática o princípio da
ataraxia, um dos mais famosos conceitos da escola, que significa ausência de
inquietação. A morte injusta era uma forma de provar que a única felicidade
possível está na ausência do seu oposto: a dor.
ERA MEDIEVAL
Quando criança, Alexandre, o Grande, o maior conquistador do mundo antigo,
teve Aristóteles como tutor. Dos 13 aos 16 anos, o futuro rei da Macedônia
recebeu aulas de lógica, medicina, moral e arte, entre outros temas, do mestre
da filosofia.

Em 323 a.C., Alexandre morreu aos 32 anos, e sua despedida marcou o fim do
domínio cultural, político e filosófico da Grécia no mundo antigo. Sem o líder
unificador, as cidades-Estado gregas, que antes cooperavam, voltaram a ser
inimigas. A morte do general, que levou o domínio grego e os ensinamentos do
tutor até onde se situa o Paquistão, enterrou também o legado de Platão e
Aristóteles. Nos dois séculos seguintes, o Império Romano ascendeu, e os
romanos não tinham tanto apreço pela filosofia grega. O que de fato cultivaram
dos helênicos foi o estoicismo, que pregava uma conduta virtuosa e obediente
às leis.

A influência da cultura romana no mundo foi forte o suficiente para deixar os


pensadores gregos no esquecimento por alguns séculos. Em 313 d.C., o
cristianismo ganhou força com o Edito de Milão, que decretou a liberdade
religiosa em Roma. Dois séculos depois, com a queda do Império Romano,
começou a era de total domínio da Igreja na Europa Ocidental, período que
durou quase mil anos. A abordagem grega de filosofia como uma reflexão
exclusivamente racional, independente dos credos, sumiu. Durante toda a
Idade Média, os pensadores se concentram em temas religiosos, uma cruzada
inaugurada por Santo Agostinho, o primeiro a fundir a doutrina cristã com
abordagens da Grécia clássica. Esse esforço de unir a religião ao pensamento
crítico foi a principal tarefa da escolástica, corrente que nasceu nos
monastérios e buscava uma justificação racional para a crença em Deus. A
Igreja controlava o processo de conhecimento na época e criou as primeiras
universidades.

Mas isso tudo ocorria no Ocidente. Na mesma época, no Oriente,


especialmente nas regiões que haviam pertencido ao mais célebre aluno de
Aristóteles, Alexandre, a cultura grega clássica, não por acaso, continuava viva.
Pensadores árabes e persas como Al-Farabi, Averróis e Avicena incorporam as
ideias de Platão e Aristóteles, esquecidos na Europa medieval, à cultura
islâmica do século 7 em diante. O mais curioso é que foi preciso a expansão
muçulmana na Ásia, África e Espanha para levar os esquecidos filósofos
gregos de volta ao Ocidente.

Por meio de fontes islâmicas, pensadores cristãos começaram a dar mais


atenção às obras aristotélicas e platônicas e acharam pontos de
compatibilidade entre o cristianismo e a filosofia clássica, que alcança seu
ápice com Santo Anselmo, considerado o pai da escolástica, aquele que
melhor encontrou um equilíbrio entre fé e razão.

SANTO AGOSTINHO

Nascido numa cidade pertencente ao que hoje é a Argélia, na época parte do


Império Romano, Agostinho teve uma vida de esbanjamento e luxúria até os 32
anos. Embora admirasse os ermitões que iam estudar as leis de Deus, ele só
foi se converter no ano de 386, quando lecionava em Milão. Influenciado por
Ambrósio, bispo da cidade, o futuro santo teve uma revelação espiritual depois
de ler um relato da vida de Santo Antão do Deserto. Antão era filho de ricos
proprietários de terras e, como Agostinho, vivera seus primeiros anos de modo
confortável e perdulário, mas, quando perdeu seus pais, decidiu doar tudo aos
pobres e foi peregrinar pelo deserto, a exemplo de Jesus Cristo. Agostinho
ficou tão tocado pela história que decidiu entrar para a Igreja e regressar à
África, onde foi ordenado padre pouco depois.

Na filosofia, ele recuperou os pensamentos de Platão para conceber a ideia de


um Deus que pertencia a uma realidade perfeita, atemporal e imaterial. Se hoje
essa interpretação parece um tanto óbvia, certamente não era na época: o
cristianismo era uma religião nova, que concorria com outras fés e ainda não
havia firmado as bases de sua doutrina, incluindo uma interpretação sobre
Deus. Antes de se filiar à Igreja, Agostinho foi seguidor da religião maniqueísta,
que via o bem e o mal como as duas forças que regiam o Universo.
Influenciado por seu passado, tentou explicar a existência do mal em um
mundo regido por um Deus bom e onipresente. Até então, a Igreja via o homem
quase como uma marionete de Deus, o que não explicava por que optamos por
coisas erradas se estamos destinados a fazer tudo o que Ele quer. Agostinho
inovou ao propor que Deus foi bondoso ao dar ao homem a escolha entre o
bem e o mal. Assim, os homens bons podem se separar dos outros e merecer
a felicidade eterna. Agostinho morreu em 430, quando Hipona estava sitiada
pelos vândalos, uma tribo em constante luta contra o poderio de Roma. Eles
conseguiram cruzar as muralhas após seu falecimento e incendiaram quase
tudo – mas a catedral e a biblioteca deixadas por Agostinho ficaram intactas.

AL-FARABI

Pouco se sabe sobre a vida de Al-Farabi que, embora tenha escrito muito,
abusou da modéstia ao fugir do registro da própria biografia. Um dos
fundadores do movimento filosófico muçulmano na Idade Média, ele seria
chamado por seus contemporâneos de o Segundo Professor – uma espécie de
herdeiro de Aristóteles, que seria o primeiro. Al-Farabi marcou um novo passo
na filosofia de seu tempo precisamente por ter recuperado as obras dos gregos
clássicos, discutindo tanto os textos aristotélicos quanto os de Platão, que
haviam caído no esquecimento na Europa medieval. Os numerosos escritos de
Al-Farabi também deixaram um legado semântico que curiosamente resistiu na
língua portuguesa: de seu nome deriva o termo “alfarrábio”, usado para
designar um livro antigo.
AVICENA

Dedicado à lógica e à medicina, assessorou muitos príncipes persas, tanto


para curar doenças quanto para dar conselhos. Embora se considerasse
seguidor de Aristóteles, afastou-se dele a respeito da ideia aristotélica de que
mente e corpo compõem uma coisa só. Avicena promoveu o pensamento
dualista — a ideia recorrente de que a mente, ou alma, seria distinta do corpo.
Ou seja, a alma permanece mesmo quando o corpo morre, algo que tentou
explicar na parábola do “homem voador”: se eu ficasse flutuando sem tocar
nem ver coisa alguma, poderia não saber que tenho um corpo, mas ainda
assim saberia que existo. Quase 600 anos depois, Descartes recuperaria a
ideia de que nossa existência é garantida pela consciência — ou, para o
francês: “Penso, logo existo”.

AVERRÓIS
Como Avicena, buscou formas de conciliar o Islã com a obra de Aristóteles,
cujos pensamentos eram considerados hereges no mundo muçulmano. Natural
do califado Almóada, onde hoje está a Espanha, Averróis tinha entre seus
leitores o próprio califa, Abu Ya’qub Yusuf. Com as costas quentes, o filósofo
conseguiu relativa proteção para formular suas ideias. Para ele, o Alcorão só
deveria ser lido de maneira literal pelos homens incultos — a elite esclarecida
precisava entender que o livro sagrado não passava de uma versão poética da
realidade. As ideias de Averróis levavam à conclusão de que as indagações
filosóficas e a religião podiam caminhar juntas: se a leitura mais óbvia de um
trecho do Alcorão entrasse em conflito com a leitura culta (feita em geral pelos
filósofos), aquele preceito não deveria ser seguido ao pé da letra, mas
interpretado como uma mera parábola.

SANTO ANSELMO

Anselmo nasceu em berço nobre: seus pais ostentavam parentesco com a


nobre dinastia da Casa de Savoia, que oito séculos mais tarde lideraria a
unificação da Itália e reinaria sobre o país até o fim oficial da monarquia, em
1946. Apesar dos antecedentes, ele optou pela vida religiosa. Desde que
entrou num mosteiro, aos 20 anos, subiu vários degraus na Igreja: foi monge,
prior e abade. Em 1093, já vivendo na Inglaterra, tornou-se arcebispo da
Cantuária.

Seus trabalhos filosóficos buscavam comprovar a existência de Deus por meio


de um debate racional. Anselmo estabeleceu o que Immanuel Kant chamaria
de “prova ontológica” seis séculos mais tarde: um diálogo imaginário com
alguém que negasse Deus, usando da lógica até o ponto em que não houvesse
alternativas a não ser aceitar Sua existência. Para Anselmo, era óbvio que
existe em nossa mente “um ser do qual não é possível conceber nada maior”.
Se Deus existe, Ele é esse ser. Mas, para Anselmo, algo presente apenas em
pensamento é menor do que algo que vive na realidade. O filósofo então
argumentou: se não pode haver algo maior do que Deus, e Ele está em
pensamento, também precisa existir na realidade. Finalmente, a razão
comprovava a existência de Deus — pelo menos para o filósofo.

Anselmo seria criticado nos séculos seguintes, e os questionamentos


costumavam partir da interrogação básica: qual a garantia de que uma coisa
real é de fato maior do que algo que existe só em pensamento? A maior
importância de seu pensamento foi ter buscado um equilíbrio entre fé e razão.
Embora outros pensadores tenham feito isso antes, como Santo Agostinho,
Anselmo costuma ser chamado de “pai da escolástica” pela importância da
razão em sua doutrina. Para ele, a fé começa quando a razão termina. No que
diz respeito à Igreja, as contribuições de Anselmo foram logo reconhecidas:
sua canonização ocorreu poucas décadas após sua morte. Ganhou o título de
santo por volta de 1163.

PEDRO ABELARDO

Em 1115, reconhecido como um filósofo arrojado de Paris, Abelardo era


admirado por alunos que vinham do exterior para aprender com ele. Foi aí que
conheceu Heloísa, e a história de amor entre eles acabou mais famosa do que
seus postulados. Sobrinha de um cônego da Catedral de Notre-Dame, onde
Abelardo lecionava, ela encantou o pensador com sua beleza e erudição. Os
dois começaram um romance secreto que terminou trágico: Heloísa engravidou
e seus parentes juraram vingança. Em uma noite, arrombaram a casa de
Abelardo e castraram o filósofo conquistador. Desiludidos, ela virou freira, e
ele, monge beneditino. Pouco se sabe sobre o destino do filho do casal,
Astrolábio.

A filosofia de Abelardo buscou problematizar os “universais”, isto é, tudo o que


podemos agrupar sob uma mesma palavra. Para ele, os universais são apenas
conceitos que derivam e guardam semelhança com as coisas. Ao contrário de
Platão, ele dizia que um termo como “carvalho” pouco tem a dizer sobre cada
árvore desse tipo que existe na realidade. Também contribuiu para aprimorar o
método escolástico, um passo essencial para os teólogos que viriam a seguir.

SÃO TOMÁS DE AQUINO

Tomás de Aquino já havia investido nove anos de sua vida escrevendo a Suma
Teológica, um total de 512 questionamentos filosóficos, quando algo estranho
aconteceu. Ele foi visto levitando diante de um crucifixo em seu convento de
Nápoles. Em meio a uma oração, o próprio Cristo teria começado a falar com
ele. Tomás nunca chegou a escrever sobre a experiência mística — nem
escreveu mais coisa alguma. A suposta aparição fez o religioso considerar
“uma ninharia” tudo o que fizera até ali, desistindo de formular novas
perguntas. Ele viria a falecer apenas três meses depois, aos 49 anos. O futuro
santo havia tentado conciliar sua fé com o raciocínio de Aristóteles para
entender a origem do Universo – enquanto o grego afirmava que o Universo
sempre existiu, a Bíblia dizia que Deus o havia criado. Para Aquino, a ideia
aristotélica de o Universo não ter um início definido não impedia o Cosmos de
ter sido feito por Deus. Em Seu infinito poder, Ele teria condições de criar um
Universo eterno. O pensamento tomista sofreu altos e baixos até ser
recuperado em 1879 pelo papa Leão 13, que o considerou uma das bases da
filosofia cristã.

DUNS SCOTUS

Duns Scotus tem biografia rodeada de dúvidas. Os mistérios incluem sua


morte: ele teria sido enterrado vivo, após entrar em coma por consequência de
um derrame. Frei franciscano, nunca reuniu seus escritos em uma obra única,
o que fez muitos deles se perderem. Destacou-se por sua oposição a Tomás
de Aquino, que defendia que as qualidades dos homens eram meras analogias
das qualidades de Deus — a bondade humana, por exemplo, não poderia ser
idêntica à divina. Scotus dizia que os atributos têm o mesmo significado,
diferenciando-se apenas em grau. A bondade de Deus é infinitamente maior,
mas ainda é a mesma bondade.

PENSADOR OU SANTO?
Na Idade Média, filosofar com qualidade elevou muitos pensadores à categoria
de santo. Mas os devotos de Duns Scotus ainda lutam para comprovar
supostos milagres e vê-lo ao lado dos seus pares filósofos no topo da fé cristã.
Seu processo de canonização atravessa sete séculos e é um dos mais longos
da história: a beatificação, o terceiro dos quatro passos para ascender à
condição de santo, veio somente em 1993, por obra de João Paulo 2º.
RENASCIMENTO
O Renascimento não é precisamente um período histórico, mas a síntese de
um espírito novo que surgiu na Itália. Na filosofia, o movimento foi inaugurado
por Dante, com a sua Divina Comédia, no início do século 14, mas foi a partir
dos séculos 15 e 16 que os pensadores ampliaram a faxina para varrer a
poeira medieval. Os renascentistas eram bons marqueteiros: usavam os
termos “renovar”, “restituir a uma nova vida”, “fazer reviver” para marcar uma
oposição clara à cultura da Idade Média, que julgavam um período de barbárie
e escuridão. A história fez questão de acabar com essa propaganda enganosa
— a Idade Média não foi só horror. O nome Renascimento, enfim, colou, mas o
período marcou, na verdade, o parto de uma outra cultura, que colocou o
homem e suas inquietações — e não mais o Deus dos medievais — de volta
ao centro do mundo. Não por acaso, a fase também é chamada de
humanismo. Nascia uma filosofia inteiramente secular, separada da Igreja.
Os renascentistas beberam na mesma fonte dos medievais, na filosofia grega.
Platão e Aristóteles — sempre eles — foram a inspiração dos ideais
antropocentristas. Platão foi amplamente recuperado na Itália renascentista
que dominou o mundo cultural da época — a imprensa de Gutenberg se
encarregou de espalhar as ideias renascentistas para o resto da Europa. Os
humanistas colocaram em prática o uso da razão e da evidência empírica na
investigação do mundo. Mas a coisa não era tão pé-no-chão assim. Uma das
correntes do pensamento da época, o neoplatonismo, explorava a ideia de que
o homem era parte da natureza e podia agir sobre ela por meio da magia e da
astrologia. Outra corrente, mais realista, iniciou a defesa dos ideais
republicanos contra o poderoso Império Germânico e contra os papas. O
florentino Nicolau Maquiavel é seu primeiro representante. A liberdade política
da antiga Grécia era exaltada como exemplo de participação social. A
indignação contra o status quo levou a mudanças profundas e marcou a
Reforma Protestante, que teve como resposta a Contra-Reforma e a
Inquisição.
Os pensadores renascentistas escreviam bem à beça. As obras mais famosas
da época são hoje mais conhecidas como peças literárias do que como
tratados filosóficos. O Elogio à Loucura, de Erasmo de Roterdã, por exemplo, é
considerado uma das sátiras mais brilhantes da literatura mundial. Montaigne,
autor de Ensaios, é tido como o inventor do gênero. Apesar do entusiasmo
marcado pelas grandes aventuras marítimas da época e pelo pulsante
comércio que entupia a Europa de novidades vindas do Oriente e da América,
sem esquecer da efervescência das artes, com Da Vinci, Botticelli e
Michelângelo botando para quebrar, as obras mais famosas do campo
filosófico são céticas e pessimistas. Para Maquiavel e Montaigne, por exemplo,
não havia muita saída para a corrupção na política — uma interpretação
tremendamente atual, diga-se.

DANTE ALIGHIERI

Dante é mais conhecido por sua obra poética do que por suas teorias
filosóficas — um traço comum entre os pensadores renascentistas. O poeta-
filósofo viveu entre a transição da Idade Média e do Renascimento, ou seja, um
limbo entre a religiosidade extrema e o início do humanismo secular. Sua obra
principal, A Divina Comédia, marca o início do movimento renascentista, que
reuniu na Itália uma concentração inédita de artistas, intelectuais, filósofos e
cientistas. A repercussão da Divina Comédia foi tão acachapante que ajudou a
consolidar o dialeto de Florença como a base da língua italiana.
A obra narra uma viagem imaginária e póstuma de Dante. Do começo, quando
se encontra em uma “selva negra”, Dante é guiado pelo pagão Virgílio e depois
por Beatriz, sua musa, que o leva ao paraíso. No livro, o autor visita o céu, o
inferno e o purgatório, encontrando personagens históricos pelo caminho.
Apesar da temática religiosa, A Divina Comédia faz uma crítica à Igreja. O
autor condena pontífices às trevas por considerar sua conduta imoral, uma das
críticas que geraram revolta nos altos escalões eclesiásticos. Depois da morte
de Dante, seus restos mortais foram procurados para que pudessem queimá-lo
como herege — ainda que depois de morto. Mas a importância do livro resistiu
aos ataques e até hoje é usada por padres como referência teórica. A obra se
chamava originalmente apenas Comédia. O adjetivo foi incorporado por
Giovanni Boccaccio, um poeta e crítico literário italiano do século 14,
especializado na obra do filósofo.
Dante também ocupou cargos importantes no governo florentino, o que lhe
rendeu inimizades políticas. Exilou-se em Ravena, após a vitória dos seus
inimigos, apoiados pelo papa Bonifácio 7º. Escreveu Monarquia, obra menos
conhecida, em que defendia a separação entre funções do Império e da Igreja.
Para Dante, o imperador teria poder executivo, e o papa atuaria como mestre
espiritual. E os dois precisam se respeitar.
Nas horas vagas, era um romântico incurável. Era membro do grupo secreto
“Os fiéis do amor”: trovadores líricos que idealizavam a figura feminina.

THOMAS MORE

Formado em Direito por Oxford, Thomas More teve uma carreira de sucesso
como braço direito de Henrique 8º. Mas, apesar de viver entre a nobreza,
escreveu uma obra-prima protossocialista. Seu livro mais famoso, Utopia, narra
a vida em uma ilha imaginária onde as pessoas trabalhavam pouco e tudo era
compartilhado. Fez ataques à monarquia, que garantia seu ganha-pão.
Inspirou-se na República, de Platão, e tornou a palavra “utopia” (um lugar ou
situação ideal, mas de difícil realização) parte da linguagem comum.
Curiosamente, as críticas contra o patrão em Utopia não lhe causaram
problemas.
Ele só se indispôs com o chefe monarca quando Henrique 8º se voltou contra a
Igreja Católica e fundou sua própria doutrina, o Anglicanismo. Sua recusa em
aceitar a manobra do rei lhe rendeu uma condenação à morte, na Torre de
Londres, em 1535. Quatrocentos anos depois, em 1935, ele foi canonizado por
ter pago com a própria vida pela fidelidade ao catolicismo. O pensador era
muito amigo de Erasmo de Roterdã, que dedicou ao camarada a sua obra mais
conhecida, o Elogio da Loucura. More foi uma espécie de discípulo de Erasmo,
apesar do amigo ter sido um duro crítico do cristianismo.

ERASMO DE ROTERDÃ

Um monge que criticou a doutrina da Igreja, detestava morar no convento e


acreditava que o mundo material não era tão ruim assim. Esse era o filósofo e
escritor holandês Erasmo de Roterdã. Filho bastardo de um padre, Erasmo
também se formou em teologia, mas defendia uma educação longe dos
clérigos. Louco?

Talvez. Mas ele próprio dizia que a loucura era uma das virtudes que
garantiram a felicidade. Erasmo via na loucura uma parte essencial do homem,
o atributo que pode nos trazer as alegrias mais sinceras. Como bom discípulo
do desvario, ele criou em sete dias sua obra mais célebre, Elogio da Loucura,
onde a própria insanidade é a narradora da história.
No livro, dirigiu críticas mordazes a doutrinas e valores hipócritas da Igreja, que
já não se mostrava tão santa assim. Foi um dos primeiros autores a enfrentar
os dogmas que guiavam o poder medieval, propondo uma educação livre do
controle religioso. Fora da Itália, o teólogo era considerado um dos grandes
líderes do pensamento humanista, movimento que pregava o homem como
dono de sua própria vida. As ideias renascentistas de Erasmo inspiraram
Lutero na Reforma Protestante. Porém, o monge holandês não se juntou ao
movimento. Guiado por um espírito independente, preferia não se filiar a
nenhum extremo. Para externar sua posição, criou o sermão Sobre o Livre
Arbítrio, indo contra uma das ideias centrais de Lutero. Para Erasmo, apesar do
homem ter o poder de fazer suas escolhas livremente, ele nunca encontraria a
salvação sem a graça divina. Ele defendia um retorno às crenças sinceras, um
contato com Deus sem intermédio de missas, padres ou confessionários.

MAQUIAVEL

Maquiavel escreveu O Príncipe, uma obra-prima da política, mas não se deu


bem na vida pública. Depois de 14 anos trabalhando como secretário na
Segunda Chancelaria de Florença, perdeu seu cargo quando a família Médici,
sua inimiga, voltou ao poder em 1512. Foi exonerado e exilado em sua
fazenda. Acabou a vida longe da política.
No livro, cujas fortes ideias forjaram o adjetivo “maquiavélico” para definir um
indivíduo que busca o poder sem escrúpulos, o historiador e poeta resolveu
romper com a tradição idealista, que remonta a Platão, e mostrar como as
coisas funcionam na prática. Inspirou-se em César Bórgia, que passou pela
política, Igreja e Exército sempre com perfil pragmático. Para Maquiavel, o líder
ideal deveria ser perspicaz como a raposa e feroz como o leão. Ele poderia
fazer inimigos e promover punições mais duras desde que estivesse em busca
de um bem maior. Mas o líder defendido por Maquiavel não podia ser um louco
desvairado: tinha de agir com sabedoria. O autor nunca pregou planos
diabólicos, como assassinatos políticos, ou artimanhas que lhe classificariam
como maquiavélico. Foram os leitores que interpretaram a receita de Maquiavel
como uma espécie de passe livre para a maldade. A clássica frase “Os fins
justificam os meios” resume bem sua ideia, mas não foi escrita pelo autor — é
um dito popular.
MONTAIGNE

Cético, este filósofo do século 16 acreditava que a verdade é inacessível e


flutuante. Sua obra-prima, Ensaios, foi escrita quando a Renascença estava na
sua última fase, e o otimismo já não era mais o mesmo. Por isso, sua produção
era repleta de desconfiança sobre tudo, e o livro foi tão influente no meio
literário que acabou fundando um gênero: o ensaio.
Montaigne falava de canibais, religião e amor, mas unia temas aleatórios com
fluência e reflexões sobre o homem. Nas passagens sobre educação, por
exemplo, era contra a decoreba. Criticou o exibicionismo intelectual e defendia
que alunos soubessem articular os conhecimentos e tirar suas próprias
conclusões. Dizia que não devíamos dar bola para a opinião dos outros e que a
busca pela fama corrompe o ser humano, pensamento que ia na contramão da
cultura da época. Montaigne era um playboy do século 16. Foi alfabetizado em
latim, graduou-se em Direito e jogava dinheiro pela janela. Apesar do apreço
pela vida louca, chegou a ser prefeito de Bordeaux por duas vezes, entre 1580
e 1590. Teve vários affairs, mas não se envolveu seriamente com nenhuma
mulher. Seu único amor foi La Boiétie, seu melhor amigo, com quem teve uma
“divina ligação”, compartilhada “até o fundo das entranhas”, em suas próprias
palavras. Foi a morte prematura do companheiro que o deprimiu e o levou a
escrever seus ensaios.

GIORDANO BRUNO
Abriu um novo horizonte de liberdade e evolução científica, mas foi perseguido
pela Inquisição e acabou na fogueira. O pensador acreditava que o mundo era
um grande animal, onde todas as coisas (todas mesmo) possuem alma.
Teólogo, filósofo e escritor, Bruno também era astrônomo. Inspirado por
Copérnico, defendeu a infinitude do Universo e lançou a possibilidade de que
todas as estrelas poderiam ter seu próprio sistema solar — hipótese que só
seria comprovada no século 21. A ideia batia de frente com a crença cristã de
que os humanos são criações únicas, feitas à imagem do Criador. Para
sublinhar seu nome na lista negra da Igreja, Bruno retomou conceitos pagãos,
afirmando que Deus faz parte do Universo, presente em todos os cantos, e não
uma entidade com cadeira cativa num único lugar. Para ele, a energia presente
em todas as coisas não se perde após a morte, mas se transforma.

CAMPANELLA
Foi o filósofo que encerrou o período renascentista. Em sua obra mais
famosa, A Cidade do Sol, escreveu sobre uma sociedade comunitária, onde
todo o conhecimento era compartilhado e não existia nem propriedade privada
nem família. Campanella acreditava que as novas gerações poderiam ser
melhoradas por cruzamentos. Por isso, a procriação era planejada. Gordos
deveriam procriar com mulheres magras em busca de um equilíbrio.
Campanella fundamentou sua obra aliando as leis naturais e a fé cristã. Para
ele, o mundo é um grande organismo, onde tudo é vivo e sensível.
ERA MODERNA
Depois do Renascimento ter abalado o monopólio da Igreja sobre o
pensamento, cultura e política europeia, o século 17 marca a vitória definitiva
da razão e da ciência sobre a religião — um movimento batizado de
Iluminismo. A Europa, que antes era um continente unificado pelo poder
eclesiástico, divide-se em nações poderosas. Grã-Bretanha, França, Espanha,
Portugal e Holanda consolidam seu poderio econômico com colônias ao redor
do mundo e, em cada país, surge uma próspera classe média urbana.

Aos filósofos modernos coube a iniciativa de integrar o raciocínio filosófico com


o científico, em alta depois que as grandes navegações — e os grandes lucros
provenientes do comércio com as Índias — comprovaram noções negadas pelo
poder eclesiástico, como o fato de a Terra ser redonda. Os britânicos Thomas
Hobbes e Francis Bacon foram pioneiros nessa fase, que inaugura o período
conhecido como a Idade da Razão. Não por acaso, vários desses filósofos são
matemáticos de formação, como René Descartes, tido como o fundador do
pensamento moderno. Para ele, o raciocínio matemático é o melhor modelo
para conhecer o mundo. A pergunta “o que posso conhecer?” marcou a crença
de que a sabedoria vem da razão, pensamento que dominaria o continente
europeu no século seguinte. Na Grã-Bretanha, porém, uma tradição filosófica
bem diferente ganhou corpo. Inspirado em Francis Bacon, John Locke chegou
à conclusão de que não é a razão, mas a experiência, a fonte de conhecimento
sobre o mundo.

Apesar da divisão entre o racionalismo continental e o empirismo britânico,


havia algo em comum: a importância do ser humano, um ser dotado de razão e
capaz de experimentar o mundo. Questões como a natureza do Universo, que
até então dominavam o pensamento, saíram da filosofia e entraram para a
ciência, a cargo de figuras como Isaac Newton. À filosofia, restaram perguntas
de ordem epistemológica, existencial e política: “como podemos conhecer o
que conhecemos?”, “qual é a essência do eu?” e “o que ocorrerá no mundo se
a monarquia cair?”. Dúvidas que lançaram bases para um sério
questionamento sobre o status quo e para a consolidação do ideal democrático
nascente. A grande mudança intelectual dos modernos foi considerar as coisas
externas (a natureza, a política etc) como representações ou conceitos. Isto é,
tudo o que pode ser conhecido deve ser transformado pelo homem em um
conceito distinto e demonstrável, permitindo ao homem interpretá-lo a seu bel
prazer. Na convicção moderna, a razão governa emoções, vontades e define o
melhor sistema político. Mas toda essa certeza chega ao fim com Immanuel
Kant, que dá uma guinada no pensamento filosófico. Com a Crítica da Razão
Pura, Kant coloca um freio no afã racionalista ao demonstrar como e por que
nossa racionalidade não é absoluta (ou não pode responder a tudo).

DESCARTES

Aos 24 anos de idade, René Descartes se alistou no Exército holandês,


passando a integrar as tropas de Maurício de Nassau. Não seria sua única
experiência bélica: o jovem que depois ficaria famoso por seu legado à
matemática e à filosofia ainda pegou em armas pelas legiões da Bavária, e
chegou a participar de uma batalha nos arredores de Praga, em 1620, durante
a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). O gênio nascido na França enveredou
para a carreira militar tentando provar a si mesmo que não tinha os pulmões
fracos. Quando veio ao mundo, os médicos garantiram que seus dias estavam
contados: a mãe morreu de tuberculose pouco após o parto, e o pequeno René
dificilmente teria um destino muito diferente. Mas seu pai, Joachim, contratou
uma ama de leite e garantiu que o filho passasse os primeiros anos em casa,
longe do contato com outras crianças — e, principalmente, suas doenças.

Deu certo. Descartes chegou à idade adulta e pôde até virar soldado, mas não
tinha jeito para a trincheira. Introspectivo e com gosto pela leitura, logo
conseguiu ser dispensado para se dedicar em tempo integral àquilo que já
vinha fazendo nas horas vagas — desenvolver ideias revolucionárias, que
reuniria mais tarde no Discurso do Método, sua obra-prima que trata da prática
científica, do pensamento humano e até mesmo de Deus, entre outras
questões. Descartes ganhou fama por criar e emprestar o nome ao sistema de
coordenadas cartesiano, que abriu caminho para o surgimento da geometria
analítica — e dos pesadelos de muitos estudantes do ensino médio pelo
mundo afora. Longe dos números, fundou o pensamento racionalista,
influenciando gerações de estudiosos e ganhando a alcunha de pai da filosofia
moderna.
Conforme a doutrina cartesiana, é a razão, e não a experiência empírica, que
deve ser a fonte do conhecimento — assim, nós entendemos o que é real e o
que não é por meio da dedução, e não dos cinco sentidos. Com a conhecida
frase “penso, logo existo”, Descartes resumiu o conceito de que nossa própria
existência seria comprovada pelo fato de que podemos duvidar e pensar a
respeito dela. Por extensão, ele concluía que a existência de Deus podia ser
comprovada pelo método racionalista: o simples fato de podermos ter a ideia
de perfeição e de infinito, sendo imperfeitos e finitos, garantiria a verdade
dessa ideia. E, se Deus existe, também existe o mundo sustentado por Ele.

Por ironia, os dias do filósofo francês foram abreviados justamente por conta de
seus pulmões — quando ele acreditava já estar a salvo do problema. Em
setembro de 1649, Descartes foi convidado a lecionar para a rainha Cristina, da
Suécia, numa maratona de aulas que começavam às cinco da manhã. Abatido
pelo congelante inverno escandinavo, o pensador contraiu uma pneumonia e
faleceu apenas seis meses depois.

ESPINOSA

“Maldito ele seja de dia e maldito seja de noite. Maldito seja quando se deita e
maldito seja ele quando se levantar. Maldito seja quando sair, e maldito seja
quando regressa”. Com essas palavras iradas e algumas outras a mais, a
Sinagoga de Amsterdã anunciou para quem quisesse ler a condenação do
“herege” Baruch de Espinosa, em 27 de julho de 1656.

Ser expulso da religião não foi sequer o maior problema de Espinosa por
aqueles dias. Envergonhados com a situação, seus parentes o deserdaram e o
impediram de tomar parte nos negócios da família. O filósofo havia questionado
a forma como víamos Deus e subitamente se viu sem o amparo da
comunidade judaica e de seu lar. Para se sustentar, teve de arranjar emprego
como lustrador de lentes, um trabalho que garantiu a renda, mas acabou
debilitando sua saúde: Espinosa morreria aos 44 anos, provavelmente de uma
silicose causada pelo pó de vidro que respirou em duas décadas de serviço.
Não que tenham faltado oportunidades para tentar outra carreira. A Holanda
vivia uma efervescência econômica, e Espinosa sempre esteve cercado por
contatos influentes. Recebeu até mesmo um convite para lecionar na
prestigiada Universidade de Heidelberg, mas se viu forçado a recusá-lo por
conta da orientação para que não ensinasse teorias contrárias à religião.

De onde vinha tanta convicção? Muitos tacharam Espinosa de ateu, e seus


textos chegaram a entrar no famigerado Index, a lista de livros proibidos para
católicos. O filósofo não negava a existência de Deus, mas O enxergava como
uma figura muito mais impessoal. Para Espinosa, Deus e a Natureza eram dois
nomes para a mesma “substância” que fazia o Universo, e a vontade divina se
manifestava nas leis naturais. Um conceito inovador que, de certa forma,
obrigava a buscar explicações racionais para tudo, negando milagres, por
exemplo. Em seu Tratado Teológico-Político, publicado em 1665 (sem
assinatura, por medo de represálias), o filósofo dizia que o supersticioso era
alguém incapaz de compreender essas leis do Universo – e que precisava criar
explicações simples para aquilo que não conseguia entender. Seu exemplo
fundamental: a ideia de um Deus raivoso, que precisava ser cultuado e
agradado, não passaria de uma superstição. Espinosa defendia que essa
imagem de Deus era conveniente para a Igreja, que podia prometer o perdão e,
desta forma, ganhar poder. Ou seja, a superstição ajudaria a criar regimes
autoritários baseados na religião. Esse pensamento virou uma bandeira cada
vez mais forte nos séculos seguintes: a separação entre a Igreja e o Estado.

THOMAS HOBBES
Hobbes viveu em tempos conturbados para a coroa de seu país, e suas ideias
tinham muito a ver com o clima de incertezas que marcou aquela época.
Nascido prematuramente após sua mãe se assustar com a notícia de que a
Armada Espanhola estava a ponto de invadir a Grã-Bretanha, o pensador
seguiu tendo a vida influenciada pelos acontecimentos políticos. Ferrenho
defensor do rei e com contatos na nobreza, chegaria a se exilar em Paris
quando uma guerra civil balançou as ilhas britânicas entre 1642 e 1651.

Nessa época, o movimento liberal, que defendia a redução do poder da


realeza, vinha ganhando cada vez mais força. Uma série de conflitos se
desenhou no horizonte, culminando anos mais tarde na Revolução Gloriosa e
na assinatura da Bill of Rights, que na prática encerrou o absolutismo inglês.
Contrariando outros filósofos políticos e o anseio revolucionário, acreditava que
o homem não possui uma disposição natural para a vida em sociedade: o autor
de Leviatã sustentava que a natureza humana é regida pelo egoísmo e pela
autopreservação.
Esse instinto abriria caminho para a violência contra o próximo, ao mesmo
tempo em que nos obrigaria a buscar uma “paz” comum que nos dê segurança,
representada pelo contrato social. Hobbes era pessimista quanto à capacidade
de mantermos essa paz sem uma liderança forte e centralizadora. Além do
mais, temia que o excesso de opiniões divergentes pudesse atrapalhar a
sociedade. Para ele, sempre haveria quem tentasse provocar conflitos para
tomar o poder para si, motivo pelo qual cada homem deveria submeter sua
vontade a um déspota. É enganoso pensar que o fim do absolutismo tenha
derrubado as ideias de Hobbes. Seu pensamento era inovador: o rei não devia
seu poder a um desígnio divino, mas a uma necessidade social. Mesmo se
opondo à ideia da democracia, Hobbes pregava a igualdade entre os homens,
e o seu líder deveria ser um representante legítimo. Desse modo, o respeito ao
déspota só deveria existir até o momento em que ele conseguisse assegurar a
paz e a prosperidade almejadas por seu povo.

JOHN LOCKE

Graças a uma infecção de fígado, o Ocidente ganhou um dos seus maiores


filósofos políticos. Não no fígado dele mesmo, que fique claro: Locke era
médico por formação e boa parte do que escreveu surgiu em conversas com
um dos seus pacientes mais ilustres. Em 1666, Anthony Cooper, sofrendo de
dores constantes, buscou ajuda em Oxford, onde se impressionou com o
tratamento de Locke e o convenceu a se tornar seu médico particular. Ocorre
que Cooper também era o Conde de Shaftesbury, um dos fundadores do
Partido Whig, de tendência liberal, que buscava reduzir o poder da nobreza na
Inglaterra.

As ideias do paciente só aprofundaram um gosto que Locke trazia do passado:


o de refletir sobre o homem e a sociedade. Desde a escola, tinha demonstrado
interesse em estudar os filósofos do seu tempo, preferindo Descartes aos
gregos clássicos, e decidiu cada vez mais se aproximar da filosofia. Apesar de
apreciar o pensamento cartesiano, Locke se tornaria um dos maiores símbolos
da corrente oposta ao racionalismo descrito pelo francês. O pensador britânico
foi um notável advogado do empirismo, criando a teoria da “tábula rasa”: o
homem nasce como uma folha em branco, sem qualquer ideia inata, e seu
conhecimento é definido apenas pelas experiências obtidas por meio dos
sentidos. Mas foram seus escritos políticos os que tiveram maior aplicação
prática. Seguindo o pensamento de Hobbes, ele apoiou o conceito de que
havia um “contrato social” na base de cada Estado. Assim, o poder de um
homem não podia derivar de Deus, como apregoavam os reis da época. Locke,
porém, discordava de Hobbes quanto à necessidade de um líder absolutista
para manter esse pacto social, acreditando que os poderes deveriam ser
separados e limitados. Para ele, o Estado tinha a missão de proteger direitos
fundamentais do homem, como a vida, a propriedade e a liberdade. A
autoridade do governo deveria ser conferida por seus governados, que teriam o
direito de modificar seus representantes e até mesmo de derrubá-los caso seus
direitos estivessem sendo violados.

FRANCIS BACON

A aspiração estava longe de ser modesta: Francis Bacon sonhava,


simplesmente, com uma reforma completa da ciência e da filosofia que eram
aceitas em seu tempo. Ao seu projeto de escrever um novo tratado sobre tudo
o que ali estava, deu o poderoso título de Grande Instauração.

No entanto, Bacon tinha um problema sério: a falta de tempo para executar um


plano tão grandioso. Sua ambição não era só intelectual, mas também política.
Eleito deputado para o Parlamento Britânico com apenas 23 anos, o inglês se
dedicou à política até pouco antes de morrer, acumulando cargos importantes
sob o reinado de Jaime 1º. O pensador só se afastou da vida pública em 1621,
quando já havia sido nomeado Grande Chanceler. Sua saída não foi voluntária
— acusado de corrupção, foi expulso do Parlamento e perdeu todos os postos
que havia conseguido até ali. Mesmo tendo escrito muito menos do que
gostaria, Francis Bacon deixou um legado importante: sugerindo que devemos
seguir um rigoroso método experimental para atingir o conhecimento, ele
inaugurou a tradição empirista.

Bacon dizia que devemos avaliar as circunstâncias em que um fenômeno


ocorre (ou não ocorre), detalhando seus casos particulares para relacionar um
ao outro. Esse pensamento por “indução” levaria ao conhecimento que, para o
filósofo, era o caminho para o homem passar a usar as forças da natureza a
seu favor. Porque, no fim das contas, “saber é poder”.

MONTESQUIEU

Charles-Louis Secondat podia ter ficado tranquilo em seu castelo, tomando o


bom vinho da família e curtindo a herança deixada pelo tio. Com apenas 27
anos, o jurista era o líder dos Secondat, dono de uma verdadeira fortuna e
títulos de nobreza. Além de presidir a Câmara de Bordeaux, o jovem também
passou a ser o Barão de Montesquieu, alcunha pela qual ficou mais conhecido.

Montesquieu, porém, já estava influenciado pelos ideais iluministas, que


também acabaria ajudando a construir. Em pouco tempo, ganhou fama como
um crítico voraz dos costumes da Coroa francesa e da Igreja. O pensador se
tornou um admirador do sistema político da Inglaterra, país que àquela altura já
havia tirado o poder do rei e transferido para o Parlamento. Com pitadas de
ironia, os textos sarcásticos de Montesquieu seriam fundamentais para formar
os conceitos da futura Revolução Francesa.

Em diversas viagens pela Europa, o filósofo havia chegado à conclusão de que


os governos do continente costumavam se dividir entre repúblicas e
monarquias — que podiam ser autoritárias ou não. Para ele, a forma mais
eficaz de evitar que o poder fosse exercido por um tirano seria diluí-lo em três
braços: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Essa proposta revolucionária
se tornaria a organização básica da maioria das nações contemporâneas.

LEIBNIZ

Quando você compartilha vídeos engraçadinhos de gatos ou destrói doces na


tela do celular, provavelmente nem desconfia que tudo isso começou lá no
século 17. Falecido há quase 400 anos, Leibniz está por trás do sistema
numérico binário, que mais tarde seria convertido em bytes e usado na
programação dos computadores que usamos hoje.

Assim como Descartes, Leibniz ficou famoso por seus estudos matemáticos,
mas também contribuiu para o pensamento filosófico. Seu brilhantismo foi tão
precoce que Leibniz chegou a ter um pedido de doutorado recusado, em 1666.
Aos 20 anos, o pensador foi considerado “jovem demais” pela Universidade de
Leipzig, mas não pela de Altdorf, para onde se mudou e conseguiu o título
ainda naquele ano. O pensador costuma ser lembrado como um otimista.
Segundo seus escritos, nosso mundo é o melhor entre os mundos possíveis,
pois foi criado à semelhança de um organismo perfeito, Deus, que segue uma
lógica racional. Em busca de uma “matemática divina” capaz de explicar tudo,
Leibniz disse que Deus escolhe sempre os caminhos que permitam haver o
máximo de bem no mundo. Seguindo a teleologia de Aristóteles, que procura
analisar os propósitos de tudo o que acontece, Leibniz defendeu que Deus
permite a existência do mal e do sofrimento como estágios para um bem
superior – como a sensação de alívio após aquela fase particularmente difícil
do viciante Candy Crush.

Explica o porquê?
O racionalista Leibniz formulou um princípio fundamental para o
desenvolvimento da ciência que explica por que nunca paramos de buscar
respostas para as questões existenciais. É chamado de o Princípio da Razão
Suficiente, formulado pelo filósofo-matemático no século 17:

1. Segundo o princípio, há explicação para tudo. Isto é, para cada verdade,


deve haver sempre uma explicação de ela ser assim e não de outra forma. Por
que existe alguma coisa em vez de nada? Fazemos instintivamente esse tipo
de pergunta.

2. Em Por que o Mundo Existe?, o filósofo e jornalista Jim Holt usa o Princípio
da Razão Suficiente para mostrar que, se a premissa está certa, então deve
haver uma explicação de por que o mundo existe — quer saibamos ou não.
3. Mesmo contestado, o Princípio de Leibniz é usado por nós o tempo todo, o
que pode significar que buscar uma explicação para a origem das coisas e dos
acontecimentos seja inerente à racionalidade humana.

BERKELEY

Ao longo dos séculos 17 e 18, muitos filósofos se dedicaram a discutir a fonte


de nossos conhecimentos, criando duas correntes: o empirismo e o
racionalismo. Enquanto os racionalistas asseguravam que já havia ideias inatas
antes mesmo de qualquer experiência, os empiristas preferiam acreditar que
todo o conhecimento vinha somente a partir daquilo que vemos, ouvimos,
tocamos, provamos ou sentimos. Mas, para Berkeley, um bispo anglicano de
um povoado irlandês, havia um problema a ser resolvido antes disso: os
filósofos partiam da premissa de que aquilo que existe no mundo é composto
por matéria. Berkeley passou a questionar se havia matéria, criando o
“imaterialismo”, que levou o empirismo às últimas consequências: se a ideia
que fazemos de um objeto depende dos cinco sentidos, dizia o filósofo, nada
garante a existência daquilo que não podemos perceber. Apesar de submeter a
existência da matéria ao fato de ser ou não percebida pelo homem, o bispo
evitava entrar em conflito com a sua fé. Para ele, havia uma força superior
definindo o que podemos ou não sentir: “quando abro meus olhos, não está em
meu poder escolher o que eu quero ver ou não”, escreveu. “As ideias
impressas em meus sentidos não são criadas por minha vontade. Assim, existe
outra Vontade ou Espírito que as produz”.

DAVID HUME

Nascido em Edimburgo, Hume ingressou na universidade local com apenas 12


anos e foi arrebatado pelos debates filosóficos de seu tempo. Na época, os
grandes pensadores europeus se debruçavam sobre a origem do
conhecimento humano. Hume sustentava que tudo o que sabemos vem das
percepções ou das “ideias” (formadas a partir delas). O filósofo, porém,
identificou um problema nessa divisão: nem todas as nossas ideias são
justificadas por impressões que já tivemos. De onde elas vêm? Opositor
ferrenho da escola racionalista, Hume negou a explicação de que essas ideias
fossem inatas ao ser humano. Concluiu que parte dos nossos raciocínios se
baseia em acontecimentos que nossa experiência define como “prováveis”. Por
exemplo: dizer que um objeto cairá quando for solto no ar, que o sol vai nascer
amanhã, ou que a chuva vai encharcar uma blusa no varal são previsões
baseadas naquilo que já vivenciamos. Mesmo que ainda não tenhamos visto o
próximo nascer do sol, podemos supor que ele acontecerá, pois foi o que
aprendemos com as nossas experiências passadas. Embora não houvesse
como ter certeza de que as leis da natureza seguiriam sempre as mesmas – e
que a alvorada iria continuar vindo -, o hábito ainda deveria ser o melhor guia
para a vida.

THOMAS REID

Thomas Reid mantinha uma respeitosa discordância em relação a David


Hume. Um lia os textos do outro e ambos tinham sérias críticas ao modo de
pensar do colega. Reid descendia de uma linhagem de reverendos
presbiterianos e tornou-se um pastor marcado por suas pregações emotivas.
Quando não estava no púlpito, tratava de justificar filosoficamente aquilo que
chamava de instintos “do vulgar” — isto é, do homem comum. Diferentemente
de Hume, que se mantinha cético quanto às causas de determinados eventos e
à nossa capacidade de interpretá-los sem uma experiência prévia, Reid
advogava a favor do que denominou de “o senso comum”. Para ele, nossos
instintos são inatos e pertencem à natureza humana, seguindo o modo como
fomos construídos para nos preservarmos frente aos desafios do mundo: o
senso comum seria o responsável por sabermos de antemão que não é
saudável pular de abismos ou provocar animais selvagens, por exemplo. Reid
dizia ser possível manter as crenças e as ações afastadas daquilo que o senso
comum recomenda, mas isso significaria uma negação dos comportamentos
naturais — e teria o custo de gerar uma série de conflitos tanto em nosso corpo
quanto na mente.

Assim como pular de um abismo seria pouco recomendável, formular ideias


contrárias aos conhecimentos naturais acabaria provocando frustração e
sofrimento intelectual. Ironicamente, um episódio da história pessoal do colega
Hume podia ser usado para fortalecer o argumento de Reid — de que
contrariar esses comportamentos, mesmo em pensamento, realmente tinha um
custo tão alto, Hume acabou sentindo na pele: enquanto formulava seus textos
para desconstruir a ideia de conhecimento adquirido via senso comum, ele
sofreu um colapso nervoso e levou quase cinco anos para se recuperar.

VOLTAIRE

Corria o ano de 1717 e o reino da França estava sem seu monarca. O


extravagante Luís 14 tinha morrido dois anos antes, e o trono ficou vago: seu
neto, o futuro Luís 15, ainda era jovem demais para assumir e tinha de esperar
a maioridade para ser coroado. O poder passou a ser exercido por um regente,
e um ácido escritor parisiense publicou alguns versos satirizando o governo
provisório. Mas a arbitrariedade continuava: François-Marie Arouet acabou
perseguido e preso na temida fortaleza da Bastilha. Quando recuperou a
liberdade, Arouet já havia adotado o pseudônimo que logo ficaria famoso:
Voltaire.

Os 11 meses passados na cadeia não foram perdidos. Voltaire dedicou as


horas de tédio a trabalhar em Édipo, sua adaptação da obra de Sófocles que
viraria um sucesso de crítica nos palcos de Paris. Foi o sinal de que a carreira
de escritor e dramaturgo podia ir adiante, apesar do descontentamento que
causava nas autoridades. Desde cedo, o pequeno François-Marie apostou na
literatura. Escreveu mais de 2 mil livros e panfletos políticos. As opiniões fortes
provocaram várias prisões e exílios: em 1726, parou outra vez na Bastilha após
brigar com um nobre. Temendo ficar na prisão por tempo indefinido, propôs às
autoridades um desterro na Inglaterra como pena alternativa. O período nas
ilhas britânicas o colocou em contato com as ideias de John Locke. Voltaire já
era um crítico dos reis arbitrários que governavam a França e também da usura
da Igreja. Agora, cada vez mais defenderia a liberdade de expressão, o direito
a um julgamento justo e a tolerância religiosa — além da separação entre o
governo e a Igreja.

Voltaire foi um dos impulsores do chamado “despotismo esclarecido”: sem se


opor diretamente aos reis, sustentava que o monarca precisava se cercar de
pensadores para governar segundo a razão. Enquanto esteve exilado, chegou
a atuar como conselheiro de Frederico 2º, rei da Prússia. Retornou a Paris
após duas décadas para a estreia do que viria a ser sua última peça. Morreu
logo depois, mas suas ideias duraram o bastante para estar na linha de frente
da Revolução Francesa, 11 anos mais tarde.

JEAN-JACQUES ROUSSEAU

Jean-Jacques Rousseau entrou para a história por um caminho diferente


daquele que tinha imaginado. Aos 29 anos de idade, bateu às portas da
Academia de Ciências de Paris disposto a ser reconhecido como um gênio:
apresentou um inovador sistema de notação musical, que pretendia mudar
para sempre a forma como as partituras eram escritas. A ideia naufragou
quando os especialistas consideraram o método complicado demais.

O que poderia ter sido um revés definitivo acabou abrindo outra oportunidade:
Rousseau impressionou Denis Diderot, um dos idealizadores da primeira
Enciclopédia, que lhe encomendou alguns artigos sobre música para incluir na
coleção. A amizade com os enciclopedistas despertaria em Rousseau o
interesse pela filosofia, além de colocá-lo em contato com livros que moldaram
seu pensamento, sobretudo de autores ingleses. Rousseau concorda com
Hobbes e Locke quanto à existência de um “estado natural” para a
humanidade, que teria evoluído para um estágio de civilização a partir do
chamado “contrato social”. Mas, enquanto Hobbes escrevia que o homem é
egoísta e selvagem, Rousseau defende o inverso: o homem é bom e livre por
natureza, com virtudes inatas que são corrompidas pelas necessidades da vida
em sociedade.

Essa ideia está explícita nas primeiras linhas de sua obra mais famosa, Do
Contrato Social: “O homem nasceu livre, e por toda a parte está acorrentado.
Aquele que julga ser senhor dos demais é, de todos, o maior escravo”. O
afastamento do estado natural teria começado quando um homem decidiu
tomar um pedaço de terra, criando a noção de propriedade privada. A partir
daí, a única maneira de manter o controle era por meio de leis, que restringiam
a liberdade natural. Com ideais de uma república democrática, ele propôs a
substituição do Estado mantido nas mãos de reis e da Igreja por um governo
formado por cidadãos. Esse grupo de eleitos também seria responsável por
elaborar as leis de acordo com a “vontade geral”.
Os conceitos de Rousseau não entusiasmaram apenas os revolucionários
franceses — no século seguinte, seus textos sobre injustiça, desigualdade e
opressão seriam uma das principais influências do pensamento político de Karl
Marx.

IMMANUEL KANT
Diferentemente dos grandes pensadores da sua época, forjados nas agitadas
capitais europeias, Immanuel Kant jamais saiu de sua cidade natal. Sem nunca
se casar ou ter filhos, ele cresceu, estudou e lecionou na próspera cidade
portuária de Königsberg, então parte do reino germânico da Prússia (atual
Kaliningrado, na Rússia). O ar cosmopolita conferido pelo porto ajudou Kant a
não ficar isolado e, mesmo sem ter realizado viagens ao estrangeiro, suas
ideias venceram mares e fronteiras, tornando-o famoso ainda em vida.

Kant se diferenciou dos filósofos anteriores por propor de forma convincente


um modelo que combinasse o racionalismo e o empirismo, o conhecimento
adquirido pela experiência. Em sua teoria do “idealismo transcendental”, ambos
são necessários para compreender o mundo. O pensador argumentava que
algo deve existir dentro do espaço e do tempo para ser percebido pelos
sentidos. Ao mesmo tempo, ele diz que não seria possível estudar o espaço se
antes disso já não houvesse um conhecimento prévio sobre ele. Tome esta
revista como exemplo. Sem a “sensibilidade”, que é a capacidade de sentir as
coisas e ter intuições ao longo da vida, você sequer saberia que existem
objetos como revistas. Mas, sem o “entendimento”, que permite pensar sobre
essas coisas e criar conceitos, você também não saberia que o que está
tocando e vendo é — afinal — uma revista. O filósofo também se debruçou
sobre como o homem deveria proceder em relação aos seus semelhantes para
obter a felicidade. Kant postulou o que chamou de “imperativo categórico”: a
necessidade de agir de modo que a ação possa se tornar o princípio de uma lei
válida para qualquer pessoa.

Hoje, estudiosos costumam dividir a filosofia em antes e depois de Kant —


afinal, ele tornou obsoletos vários debates mantidos até ali pelos filósofos
modernos. O pensador fez oposição frontal aos raciocínios produzidos somente
pela razão, que não questionam se a razão tem capacidade para explicar
certas questões. Para Kant, nossa racionalidade é limitada para pensar em
Deus e nas “coisas em si”, e a filosofia não deveria se dedicar a esses pontos,
ao menos não da maneira como vinha fazendo. Kant inspiraria a prolífica
geração de pensadores alemães do século 19, iniciando uma nova era de
discussão na filosofia.
ERA CONTEMPORÂNEA
Kant pôs fim na pretensão filosófica de tentar conhecer as coisas tais como
elas são, a realidade em si. Depois dele, a filosofia passou a ser basicamente
uma grande teoria do conhecimento: o que é possível conhecer
verdadeiramente tendo em vista os limites da nossa razão?

Aos poucos, a corte da “rainha das ciências” começou a se desgarrar e criar


seus próprios reinos. As ciências humanas, como a psicologia, a sociologia, a
antropologia, a história e a geografia, foram ganhando independência e
passaram a ser encaradas como campos de conhecimentos específicos, com
métodos e resultados próprios. O segundo a minar o poderio filosófico foi
Auguste Comte e seu positivismo. O pensador francês achava que a filosofia
deveria ser apenas uma reflexão sobre os resultados e o significado dos
avanços científicos. Com isso, a filosofia se resignou a estudar o conhecimento
adquirido por vias mais sólidas do que o pensamento puro e a ética, que nunca
deixou de ser um tema essencialmente dela.

O século 19 também aproximou alguns pensadores da realidade. A crítica de


Karl Marx ao modo de produção que, segundo ele, sistematicamente explora
os trabalhadores e enriquece os ricos, teve reflexos no mundo real assim que
seu Manifesto do Partido Comunista ganhou as ruas. Marx, no entanto, foi uma
exceção. O interesse pelas estruturas do conhecimento e pela consciência e
seus modos de expressão direcionou a filosofia para recantos herméticos,
como os estudos da linguagem — corrente conhecida como filosofia analítica,
iniciada pelo austríaco Ludwig Wittgenstein. O movimento ficou conhecido
como a “virada linguística”. Outra vertente, conhecida como fenomenologia, se
debruçou sobre os fenômenos que se manifestam para a consciência, a partir
da ideia kantiana de que a razão é uma estrutura da consciência. Seu criador,
Edmund Husserl, considera a realidade como um conjunto de significações ou
sentidos produzidos pela nossa razão.
Foi preciso chegar o século 20, com suas grandes guerras e agitações sociais,
para colocar a política por fim de volta à pauta dos pensadores, que se
tornaram críticos das ideologias e da ideia de progresso. Os filósofos tentaram
frear o delírio científico-tecnológico e o otimismo revolucionário que cooptou
grande parte dos intelectuais. Passaram a se questionar se o homem, imerso
em uma vida acelerada e soterrado pela burocracia, conseguiria ter uma vida
feliz e almejar uma sociedade justa. O primeiro a lançar essa dúvida foi o
alemão Theodor Adorno, um dos fundadores da Escola de Frankfurt, que
buscou inspiração em Marx. Será o homem realmente livre ou uma marionete
da sua condição psiquíca e social?

KARL MARX

Karl Marx morreu pobre, esquecido e sem pátria: exilado em Londres, foi
velado por apenas 11 pessoas, incluindo o coveiro. Suas ideias, porém, se
refletiriam na vida de bilhões durante o século 20. Poucos pensadores
exerceram influência política tão clara quanto Marx. Certamente, nenhum foi
discutido com tanta paixão — mesmo por leigos. Um pouco disso se deve à
missão que Marx julgava ter, hoje estampada em sua lápide: “Os filósofos
apenas interpretaram o mundo de várias formas. A questão, no entanto, é
mudar o mundo”. Foi com espírito revolucionário que o alemão, junto de seu
amigo e financiador Friedrich Engels, lançou o Manifesto do Partido Comunista,
em 1848 — texto curto que ainda hoje ofusca sua obra máxima, o muito mais
complexo O Capital.
O panfleto conclamava os trabalhadores a se levantar contra a classe
dominante, e se afinou com o sentimento da época. Após o Manifesto, no
mesmo ano, várias revoluções sociais eclodiriam pela Europa. Quase todas
foram esmagadas, mas ajudaram a pavimentar o caminho para reformas
sociais. Marx diagnosticou que as mudanças históricas resultam do conflito
entre a classe dominante e a dominada. Em sua época, tal antagonismo seria
entre a “burguesia” (dona dos meios de produção) e o “proletariado” (que, sem
os equipamentos e o dinheiro para produzir, precisa vender sua mão de obra
para sobreviver). No pensamento marxista, o capitalismo geraria crises cíclicas
que elevariam a pobreza, pois dela se alimentava. Marx acreditava que
precisamente isso seria a ruína do sistema: o desenvolvimento aumentava o
número de explorados, que por fim se uniriam pela revolução. A consequência
seria uma sociedade sem classes, na qual os meios de produção se tornariam
propriedade comum.

Para seus críticos, não há dúvidas de que Marx fracassou. A maioria dos
países que tentou seguir a doutrina viu seus governos derrubados, como a
União Soviética e as nações vizinhas, ou teve de mudar sua economia, como a
China. Em nenhum lugar foi possível concluir a transição prevista por Marx,
quando o “socialismo” orientado por um grupo de líderes revolucionários daria
lugar ao “comunismo”, em que a própria ideia de Estado seria obsoleta. Os
admiradores de Marx sustentam que, apesar dos muitos equívocos, algumas
de suas análises foram precisas e seguem atuais. No Manifesto, por exemplo,
ele havia apontado que a sociedade capitalista mudaria o formato familiar
vigente até o século 19. Em 1998, o historiador inglês Eric Hobsbawm (um
marxista convicto) escreveu: “Nos países ocidentais avançados, hoje quase
metade das crianças é gerada ou educada por mães solteiras”.

FRIEDRICH NIETZSCHE

Aos 24 anos, Friedrich Nietzsche foi nomeado para lecionar Filosofia Clássica
na Universidade da Basileia. O que podia ser o começo de uma promissora
carreira acadêmica na verdade foi uma curta incursão, que durou apenas dez
anos. Apesar da inclinação à rotina professoral, Nietzsche sofria com
enxaquecas, problemas digestivos e respiratórios crônicos, que o fizeram
abandonar o cargo na universidade. Na década seguinte, com ajuda de amigos
e vivendo de uma minguada pensão, o filósofo realizou diversas viagens para
outros países, atrás de climas mais amenos. Enquanto viajava, escrevia. Seus
textos fizeram pouco sucesso na época. Assim Falou Zaratustra, por exemplo,
só saiu porque o autor pagou parte da publicação do próprio bolso. Até que, em
1889, Nietzsche sofreu um colapso mental do qual nunca se recuperou.
O filósofo passou os últimos anos de sua vida entre manicômios e os cuidados
de sua família. Faleceu 11 anos mais tarde, sem ter escrito mais nada. O que
ele havia dito até ali? Valendo-se de textos romanceados e de personagens por
meio dos quais manifestava algumas de suas ideias, ele se propôs a discutir o
futuro de nossos valores morais. Quando escreveu “Deus está morto”, o
filósofo não queria dizer que a entidade divina tinha deixado de existir — e sim
questionar se ainda era razoável ter fé em Deus e basear nossas atitudes
nisso. Nietzsche propunha que, recusando Deus, podemos também nos livrar
de valores que nos são impostos. A maneira de fazer isso seria questionando a
origem dessas ideias. Ele se definia como um “imoralista”, não porque
pregasse o mal, mas por entender que o correto seria superar a moral nascida
da religião.

De acordo com seus textos, tanto o pensamento cristão quanto certas


doutrinas filosóficas (em especial a de Platão) davam a entender que o mundo
em que vivemos é apenas “aparente”, havendo um outro mundo “real”, mais
importante. No caso da religião, esse outro mundo só seria acessível após a
morte. Para Nietzsche, essa ideia nos impedia de aproveitar a vida em prol de
um objetivo imaginário. Ele dizia haver apenas um mundo — e afirmava que,
quando percebemos isso, somos obrigados a rever nossos valores e aquilo que
entendemos como humano. Influenciado pelo evolucionismo de Charles
Darwin, Nietzsche sugere, em Assim Falou Zaratustra, o surgimento de um
“super-homem” — um homem futuro, superior aos códigos morais da época do
texto. Mais tarde, esse conceito seria distorcido e usado pelos nazistas para
justificar sua ideia de uma raça superior e dominante.
EFEITO EXPLOSIVO
Nietzsche construiu sua filosofia juntando várias perspectivas sobre o mesmo
tema. Ele não estava interessado em criar uma teoria fechada ou receitas
acabadas, mas em experimentar. Toda a sua filosofia foi oferecer hipóteses
interpretativas.

Mas seu experimentalismo dinamitou os alicerces da filosofia e do homem ao


questionar a crença em Deus, as bases dos valores e a nossa própria forma de
raciocinar amparada na dicotomia entre bem e mal ou certo e errado.
Classificou os valores como “humanos, demasiado humanos” (nome de uma de
suas obras) e não imutáveis como propôs Platão — o que os torna
questionáveis.

HEGEL

Não foram poucos os que tropeçaram nas palavras de Georg Hegel, tentando
decifrar o real sentido por trás de seus termos difíceis, sua linguagem abstrata
e seu gosto por neologismos. Quando se recuperavam, seus leitores se
dividiam em dois grupos: alguns consideravam as ideias geniais, outros não
tinham dúvida de que ele escondia com a linguagem rebuscada sua
incapacidade de compreender o que analisava. Mas nenhum filósofo vindo
após o século 19 ficou imune a Hegel, nem que fosse para criticá-lo.

Desde cedo, ele foi um leitor contumaz. Às vésperas de completar 19 anos,


ficou impressionado pelos ventos da Revolução Francesa, que saudou como
um “glorioso amanhecer”. Eram tempos em que mudar a ordem estabelecida
parecia mais possível do que nunca, e esse sentimento acompanharia o
alemão na tentativa de explicar a história. Para Hegel, a realidade é um
processo histórico, mutável, com as ideias estabelecidas de acordo com o
período em que vivemos. Embora nosso costume seja ver a história como uma
sequência sem planejamento coerente, Hegel argumenta que existe um padrão
para a forma como ela se desenvolve. O filósofo diz que a história caminha
para uma conquista gradual de mais razão e liberdade, até a ascensão de
um geist — termo que costuma ser traduzido como “espírito” ou “mente”.
Como um idealista, o pensador tinha o geist como algo fundamental para o
mundo, contrariando os materialistas, para quem esse posto era da matéria
física. Uma das formas de se chegar a esse estágio de pensamento mais
evoluído seria pela discussão de uma ideia com o seu oposto: nos termos de
Hegel, pela discussão de uma tese com sua antítese. Isso se daria com o
método dialético proposto pelo filósofo, que faria surgir uma terceira ideia mais
elaborada, formada pelas duas anteriores — a síntese.
Tal processo seria contínuo: a síntese viraria ela mesma uma nova tese,
voltando a ser discutida com uma antítese, e formando um novo tipo de
pensamento, e assim sucessivamente. Isso seguiria ocorrendo ao longo da
história até que o geist alcançasse um pleno entendimento de si mesmo.Tantas
abstrações fizeram o pensador colecionar críticos em todas as épocas. Mas os
admiradores também foram muitos. Um de seus maiores legados, a visão da
realidade como um processo histórico em desenvolvimento, ajudaria a
fundamentar, pouco tempo após sua morte, o que viria a ser o pensamento
marxista.

KIERKEGAARD

Para Kierkegaard, os filósofos de seu tempo estavam se perdendo em


abstrações que se desconectavam da vida cotidiana. O dinamarquês foi em
oposição aos colegas e procurou explicar de maneira palpável os dilemas
morais, utilizando a noção de que nossas vidas são determinadas por ações,
orientadas pelas nossas escolhas. O homem teria liberdade de fazer
julgamentos de acordo com sua vontade, por vezes tendo de escolher entre
aquilo que é melhor para si mesmo e aquilo que é mais ético. Essa liberdade
seria a causa de nossa “angústia” diária. Isto é, cada escolha que fazemos é
análoga ao medo de um homem diante de um penhasco, que teme tanto a
ameaça da queda quanto o possível impulso de se atirar no vazio para ver no
que dá. “O crucial é encontrar uma verdade que seja verdadeira para mim,
encontrar a ideia pela qual eu possa viver e morrer”, escreveu.

SCHOPENHAUER

Schopenhauer era um opositor de Hegel — nas ideias e no ego. Quando foi


convidado para lecionar em Berlim, marcou suas aulas para o mesmo horário
daquelas ministradas pelo concorrente, a quem chamava de “charlatão”.
Schopenhauer não ficou nada satisfeito ao ver que os alunos preferiam o rival
— apenas cinco se matricularam em sua classe. Ainda assim, foi um dos
pensadores mais importantes da época. Sustentou que o mundo e os homens
são dirigidos por uma vontade irracional. Enquanto Hegel defendia a ideia de
um geist, um “espírito guiando a consciência coletiva e as ações individuais,
Schopenhauer era mais pessimista: nossos atos seriam guiados por desejos
impossíveis de satisfazer. Tão logo realizássemos uma vontade, surgiria outra.
Para ele, o caminho para atingir a verdadeira felicidade seria justamente a
castidade e a renúncia. Apesar da visão desiludida da existência,
Schopenhauer dedicou parte da sua obra para tratar do amor — e buscar o
amor. Não devemos nos culpar por sofrer de amor, dizia, porque nada na vida
é mais importante do que amar. Mas sua visão não era propriamente
romântica. Para o filósofo, o amor é um artifício biológico para garantir a
sobrevivência da espécie — não amamos senão por um impulso inconsciente
que chamou de a “vontade de viver” (ou de ter filhos). Antes de Darwin e Freud,
foi o primeiro a apontar razões inconscientes e biológicas da paixão. Ele
próprio não foi bem-sucedido no assunto e era um devotado criador de
poodles.
AUGUSTE COMTE

Considerado o fundador da sociologia moderna, Auguste Comte direcionou


suas reflexões na tentativa de remediar o caos social deixado pela Revolução
Francesa. O filósofo desenvolveu a “lei dos três estados”, segundo a qual os
homens explicam todos os fenômenos do Universo passando por três fases: a
teológica, baseada na suposta vontade de seres sobrenaturais; a metafísica,
em que se imagina a ação de forças ocultas; e, finalmente, a fase “positivista”,
em que as explicações são decorrentes do conhecimento científico. Para
Comte, os critérios das ciências biológicas e exatas ajudariam a explicar até
mesmo a sociedade. Seu pensamento teve grande influência no movimento
republicano brasileiro, que eternizou parte de uma das máximas de Comte no
lema da bandeira nacional.

WITTGENSTEIN
Herdeiro de um dos homens mais ricos da Europa, Ludwig Wittgenstein nasceu
em Viena e viajou a Cambridge para concluir sua graduação em Engenharia.
Mas se encantou pela lógica e resolveu ir a Manchester para estudar com
Bertrand Russell. Seu único livro, Tratado Lógico-Filosófico, de 1921, se tornou
um dos principais textos da história da filosofia e impactou todas as ciências ao
impulsionar o movimento conhecido como positivismo lógico. O austríaco
escreveu o livro enquanto era soldado, durante a 1ª Guerra. Nas 70 páginas de
sua obra, empenha-se em definir os limites da linguagem e,
consequentemente, de todo o pensamento. Ao concluí-lo, julgou ter resolvido
todos os problemas da filosofia. Por considerar que não tinha nada mais a
aportar à disciplina, resolveu se dedicar a outras atividades. Passados alguns
anos, porém, começou a rever seu próprio pensamento, tornando-se um de
seus principais críticos. Foi então que voltou a Cambridge, onde lecionou de
1929 a 1939.

BERTRAND RUSSELL

Nos 97 anos em que viveu, Bertrand Russell testemunhou um sem fim de


acontecimentos históricos. Nunca impassível: chegou a passar seis meses na
prisão por falar abertamente contra a 1ª Guerra, em 1916. Nascido em uma
família aristocrática, o conde Russell formou-se em Matemática e, buscando os
fatores que tornavam essa disciplina verdadeira, chegou à Filosofia, em que se
fascinou pela Lógica. Russell dedicou grande parte de sua obra a desmembrar
a linguagem comum para explicar a estrutura lógica existente sob ela.
Acreditava que esse tipo de análise da linguagem, que traduz frases e
expressões em termos mais precisos, seria uma ferramenta útil para desvendar
segredos que levariam a avanços em todas as áreas da filosofia. Mas seus
livros tratam de muitos assuntos, sempre com humor ácido e prosa fluida.

WILLIAM JAMES

Criador do pragmatismo, o americano William James teve seu desenvolvimento


intelectual moldado pelas constantes viagens à Europa. Aos 19 anos, o irmão
mais velho do escritor Henry James já havia visitado o Velho Continente três
vezes. Era fluente em alemão, italiano e francês. Ingressou no curso de
Medicina de Harvard em 1864, mas no segundo semestre abandonou
temporariamente as aulas para integrar uma expedição de oito meses à
Amazônia. Quando finalmente se formou, em 1869, não tinha expectativas de
exercer a medicina. Gastava seu tempo estudando psicologia e filosofia. Do
pai, também filósofo, herdou um profundo interesse pelos valores morais e
espirituais, a necessidade de uma fé. Defendeu que as teorias científicas e
filosóficas devem ser julgadas por suas finalidades práticas. Fenômenos como
a religião são verdadeiros se tiverem bons resultados. “Em princípios
pragmáticos, se a hipótese de Deus funciona satisfatoriamente no sentido mais
amplo da palavra, ela é verdadeira”.

EDMUND HUSSERL
O filósofo, astrônomo e matemático Edmund Husserl queria encontrar a
certeza. Inspirado em Descartes, buscava libertar a filosofia da dúvida. Então,
fundou a fenomenologia, abordagem que propunha olhar para as nossas
experiências com uma postura científica. Segundo esse método, tudo o que é
real é fenômeno — e aí está a essência das coisas. Diferentemente de Kant,
que aceitava a existência de uma verdade incompreensível, Husserl não
acreditava em uma realidade inacessível. Há somente o fenômeno ou a
essência, que é a maneira como compreendemos as coisas materiais ou
imateriais. A abordagem marcou a história da filosofia porque ofereceu um
modo de pensar todos os tipos de realidade.

JEAN-PAUL SARTRE
Estamos condenados a ser livres. Essa é a sentença de Sartre para a
humanidade. O filósofo e escritor francês, ao lado do argelino Albert Camus, foi
um dos maiores representantes do existencialismo, corrente filosófica que
nasceu com Kierkegaard e reflete sobre o sentido que o homem dá à própria
vida. Para Sartre, a existência do ser humano vem antes da sua essência. Ou
seja, não nascemos com uma função pré-definida, como uma tesoura, que foi
feita para cortar, por exemplo.

Segundo o filósofo, antes de tomar qualquer decisão, não somos nada. Vamos
nos moldando a partir das nossas escolhas. Toda essa liberdade resulta em
muita angústia. Essa angústia é ainda maior quando percebemos que nossas
ações são um espelho para a sociedade. Estamos constantemente pintando
um quadro de como deveria ser a sociedade a partir das nossas ações — o
curioso é que o próprio Sartre era viciado em anfetaminas, ou seja, não foi
exatamente um exemplo de conduta. Defendia que temos inteira liberdade para
decidir o que queremos nos tornar ou fazer com nossa vida. A má-fé seria
mentir para si mesmo, tentando nos convencer de que não somos livres. O
problema é que nossos projetos pessoais entram em conflito com o projeto de
vida dos outros. Eles, os outros, tiram parte de nossa autonomia. Por isso,
temos de refletir sobre nossas escolhas para não sair por aí agindo sem rumo,
deixando de realizar as coisas que vão definir a existência de cada um. Ao
mesmo tempo, é pelo olhar do outro que reconhecemos a nós mesmos, com
erros e acertos. Já que a convivência expõe nossas fraquezas, os outros são o
“inferno” — daí a origem da célebre frase do pensador francês.

Em uma França devastada após o final da 2ª Guerra, liberdade não era


exatamente a palavra do momento. Mas as ideias de Sartre inspiraram toda
uma geração de ativistas, como os revolucionários de Paris em maio de 1968,
que ajudaram a derrubar o governo conservador francês. O filósofo ficou
conhecido também pela sua relação com Simone de Beauvoir, outra ilustre
filósofa existencialista. Ela foi sua companheira de toda a vida, apesar de
nunca terem firmado um compromisso. Sartre morreu como um filósofo pop.
Em 15 de abril de 1980, mais de 50 mil pessoas foram ao seu funeral.

THEODORE ADORNO
Em meados do século 20, meios de comunicação como rádio, jornais e revistas
começavam a atingir grandes plateias, mas o fenômeno demorou para
despertar atenção da filosofia — até que Adorno resolveu se debruçar sobre o
assunto em um dos capítulos do clássico Dialética do Esclarecimento, escrito
junto com o amigo Max Horkheimer. Na obra, a dupla mostra como o saber
está ligado a processos de dominação na história da civilização. As críticas se
tornaram fundamentais para compreender não só o impacto das novas
tecnologias de comunicação na sociedade, mas como o poder está mascarado
pelo saber na atualidade. Filósofo, sociólogo, compositor musical e crítico de
arte, Theodor Adorno foi um dos fundadores da Escola de Frankfurt, grupo
informal de pensadores de orientação marxista. Quando se formou em filosofia,
em 1924, já era amigo de Walter Benjamin e de Horkheimer, que também se
firmariam como grandes expoentes da Escola.
Sua fama intelectual surgiria quase uma década mais tarde, com a publicação
de uma tese sobre Kierkegaard, em 1933. Era o ano em que Hitler assumia o
poder na Alemanha, obrigando Adorno e vários intelectuais a abandonar o
país. A primeira parada foi Londres, onde lecionou três anos em Oxford. Em
1938, um convite de Horkheimer para dirigir o projeto de investigação
radiofônica da Universidade de Princeton o levou aos EUA. O filósofo não
gostou do que viu na América, mas o contato com o ambiente no qual os meios
de comunicação estavam em frenética expansão foi fundamental para o
desenvolvimento de sua obra. A observação de um universo regido por
interesses, lucro e conveniências o motivou a refletir atentamente sobre a
massificação da cultura. Para ele, os meios de comunicação de massa eram
parte fundamental da indústria cultural, uma criação do capitalismo que molda
a mentalidade das pessoas que aderem a ela inconscientemente. Adorno
considerava que o rádio, por exemplo, semeava o conformismo e a resignação,
tornando a população inerte frente a um sistema que desfigura a essência do
ser. E a televisão sequer havia chegado.

Em 1949, Adorno e outros colegas decidiram voltar à Alemanha e reconstruir


em Frankfurt o Instituto para Pesquisa Social, que havia sido transferido para
Nova York durante o nazismo. Rapidamente, chegou ao posto de diretor. O
filósofo morreu em 1969, deixando incompleta sua Teoria Estética, em que
defende a relevância do pensamento crítico. Cada ato profundamente crítico,
dizia, é como uma garrafa lançada ao mar para futuros destinatários. Uma das
mensagens dessa garrafa é de que a indústria da cultura engana
constantemente seus consumidores ao prometer entregar-lhes uma felicidade
plena que é irrevogavelmente ilusória.

HANNAH ARENDT

Autora inspirada pelos acontecimentos que a rodeavam e pela sua própria


experiência, Hannah acompanhou o julgamento de um nazista duas décadas
depois de ela mesma ter escapado de um campo de concentração. O homem
no banco dos réus, em Jerusalém, era Adolph Eichmann, responsável por
ajudar a transportar milhares de judeus para a morte durante o Holocausto.
Hannah queria entender por que Eichmann fez coisas tão terríveis. Seus
ensaios para a revista New Yorker revelavam que o réu era um homem comum
que havia optado por não pensar sobre o que fazia. Não tinha ódio pelos
judeus, nem a psicopatia de Hitler. Eichmann alegava que apenas cumpria
ordens ao planejar como milhares de pessoas seriam levadas a campos de
concentração. A filósofa usou o termo “banalidade do mal” para descrever o
que viu em Eichmann, expressão que não procurava rebaixar a gravidade dos
crimes, mas aumentá-los. Sua conclusão era de que o mal não nasce do
desejo de praticar o mal, mas da rendição das pessoas a falhas de julgamento,
por vezes incentivadas por sistemas opressivos. Nada disso, é claro, exime o
mal praticado.

HEIDEGGER

O alemão reabilitou a metafísica no século 20 depois da disciplina ter sido


esquecida por três séculos. Mas, ao retomar a preocupação sobre o que é o
ser, ele reposicionou radicalmente o pensamento sobre a existência. Da
Antiguidade ao século 17, o ser e o ente (coisa) recebiam tratamentos iguais.
Para o filósofo, o ser não é uma coisa. O ser tem um caráter histórico, é um
movimento, logo não se pode determinar o que é a sua essência. O ser só
pode ser pensado, não enunciado. Complexo? Sim, muito. Heidegger é
conhecido pela hermetismo. Mas não só por isso. Um dos seus pensamentos
mais originais foi sobre a tecnologia, que poderia exercer controle sobre a
natureza. Só que esse controle seria uma ilusão. As mudanças climáticas,
agravadas pela ação da tecnologia sobre a natureza, são um exemplo de como
não temos total poder sobre a natureza. Escreveu tanto que, antes de morrer,
deixou textos para alguns editores, e obras inéditas ainda chegam às livrarias
desde a década de 1970.

KARL POPPER
Se o nazismo não tivesse desviado a história de seu curso natural, Popper
provavelmente teria sido apenas um obscuro professor de filosofia da ciência
em Viena. Mas Hitler motivou o filósofo a escrever A Sociedade Aberta e Seus
Inimigos, livro-chave para o pensamento liberal moderno. Nessa defesa da
democracia, Popper cita o historicismo como um dos maiores advsersários da
sociedade, pois isenta os homens do ônus de suas responsabilidades ao
considerar que o futuro já está definido independentemente de suas ações.
Depois da ocupação nazista, fixou residência na Inglaterra, onde foi professor
da London School of Economics e da Universidade de Londres. Interessado no
método pelo qual a ciência decifra o mundo, criou o conceito de falseabilidade.
Para ele, o que torna uma teoria realmente científica é a possibilidade de
provar que ela é falsa pela experiência. Por exemplo: por anos, os cientistas
acreditavam que só existiam cisnes brancos, pois nunca haviam visto um cisne
negro. A aparição de um cisne negro desmonta a tese. A única maneira de
provar que todos os cisnes são brancos é vendo todos os cisnes. A ideia é
usada para diferenciar alegações científicas e não científicas. Popper se tornou
um dos filósofos da ciência mais destacados do século 20.

FOUCAULT
Inquieto e curioso em relação à existência, Michel Foucault frustrou uma família
de médicos ao enveredar pelo caminho da filosofia e da psicologia. Nenhum
desses títulos, porém, o satisfazia. Preferia ser definido como arqueólogo, por
sua dedicação a reconstituir o que de mais profundo existe em uma cultura.

Inspirado no pensamento de Nietzsche, desenvolveu um método que coloca


em cheque a compreensão linear da história. Para ele, a verdade histórica não
é uma sequência rigorosa de causa e efeito facilmente compreensível em
qualquer época, mas, sim, o resultado de um confronto entre forças
antagônicas que fazem sentido em determinado tempo. Seu objetivo era
compreender como antigos fenômenos podem ser reconstituídos da forma
como foram vividos. Como é possível, em suas palavras, fazer uma “história do
presente”? Por exemplo, a Lei Seca instituída nos EUA, em 1919, pode ser
vista hoje como uma maluquice dos legisladores americanos, mas quem
investigar a mentalidade do início do século 20 e os conflitos provocados pelo
álcool vai entender melhor por que uma decisão tão radical foi tomada.

O pensador estava mais preocupado no modo como nosso discurso — isto é,


como falamos e pensamos o mundo — é condicionado por regras, muitas
vezes inconscientes, fixadas pelas condições históricas do momento. Essas
regras mudam — daí viria a necessidade de se fazer uma “arqueologia” para
desvendar como era no tempo antigo. Para Foucault, era errado supor que
podemos falar de “homem” da mesma maneira como na Antiguidade. Segundo
o pensador, o homem como objeto de estudo, por exemplo, surgiu no início do
século 19 — o que explica sua célebre frase acima. Seu estudo que desvenda
as formas de exercício de poder na sociedade também é notório. Foucault
acreditava que a compreensão do que somos, pensamos e fazemos abre uma
possibilidade de ser, pensar e fazer de outra forma.

Essa é a grande contribuição para a filosofia do trio rebelde, como ficaram


conhecidos Foucault, Derrida e Deleuze, seus dois colegas franceses também
badalados depois dos anos 60. Consagrado, Foucault foi convidado a lecionar
no prestigiado Collège de France. Morreu aos 57 anos, em 1984, no ápice da
sua produção intelectual. Deixou inacabada a sua História da Sexualidade, seu
livro mais ambicioso, no qual pretendia mostrar como, por meio da expressão e
não da repressão, a sociedade ocidental faz do sexo um instrumento de poder.

RAWLS

Tem lugar no hall da fama dos filósofos políticos. Abalado pela injustiça das
bombas atômicas da 2ª Guerra, onde lutou pelo exército americano, encontrou
na filosofia sua maneira de mudar a sociedade. Ao longo de 20 anos, maturou
as reflexões que resultariam no best-seller Uma Teoria da Justiça. No livro, o
professor de Harvard defende que as instituições políticas devem ser justas e
propõe experimentos mentais inovadores para definir o que é justo ou não.
Sua teoria parte de uma situação hipotética: um grupo de pessoas na “posição
original”, ou seja, sem saber seu lugar na sociedade, definiria as novas regras.
Esses indivíduos estariam encobertos pelo “véu da ignorância” e assim
decidiriam o que é mais justo para todo mundo. E como ninguém queria sair
prejudicado, escolheriam as regras mais imparciais. A tese baseava-se em dois
princípios caros: liberdade e igualdade. Casos de jogadores de futebol que
ganham milhões eram considerados absurdos pelo pensador. Essa situação só
era aceitável se o fato do jogador ser muito rico tornasse os miseráveis menos
pobres. Para Rawls, não havia ligação direta entre ser bom em algo e merecer
ganhar mais. Esse talento seria uma espécie de “loteria natural”, ou seja, seria
injusto premiar o craque duas vezes.

DAWKINS

Dawkins não é e nem pretende ser filósofo. Mas, em 1976, quando era um
biólogo ainda pouco conhecido, publicou O Gene Egoísta, e ajudou a redefinir
a percepção sobre quem somos — uma tarefa que sempre coube aos filósofos.
No livro, defende que não somos muito mais do que robôs comandados pelos
genes para sobreviver a qualquer custo. E o que faz um gene prosperar em um
ambiente altamente competitivo é seu egoísmo implacável. Apesar da visão
desencantada, a obra se tornou um dos maiores best-sellers da ciência, e
Dawkins, uma notoriedade. Mesmo sem querer, se colocou ao lado dos
pensadores que ajudaram o homem a compreender melhor seu papel no
planeta. Sua sacada foi perceber que o processo de evolução das espécies
ocorre no nível genético (o gene é sua unidade fundamental ou multiplicador) e
que a visão darwinista também pode ser útil para compreender o progresso
cultural. Dawkins cunhou o termo meme, que seria um equivalente
comportamental do gene, para levar a visão evolucionista para fora da biologia.
O conceito deu origem à memética, que inspirou filosófos como Daniel Dennett.
O cientista também é ateu declarado, autor de Deus, um Delírio.

BAUMAN
Zygmunt Bauman era sociólogo por formação, mas sua obra mais contundente
faz uma crítica filosófica profunda da modernidade. Cunhou o conceito
“modernidade líquida” para explicar como nada hoje em dia é feito para durar,
do amor à profissão, tudo é líquido, muda de forma muito rapidamente e sob
pouca pressão. Dessa instabilidade permanente, nasce uma angústia do
homem diante do futuro e do progresso — e isso explica o boom do consumo
de antidepressivos, anabolizantes e toda a ordem de entretenimento que ajude
a afastar essa sensação. Modernidade Líquida é apenas uma das 40 obras
(sendo 16 delas traduzidas para o português) do pensador, que foi professor
emérito da Universidade de Leeds, na Inglaterra.
O PAI DO PÓS
Em 1979, o pensador francês Jean-François Lyotard lançou o livro A Condição
Pós-Moderna, cujo principal mérito foi colocar a expressão pós-modernidade
no vocabulário intelectual e popular. O conceito tem zilhões de definições, mas
pode ser resumido como essa nova fase da humanidade em que a busca pelo
progresso terminou, e os indivíduos estão livres para criar tudo novo (tudo
mesmo), sem as amarras das forças do passado, como o capitalismo.
E HOJE?
O físico Stephen Hawking anunciou em 2011, na badalada conferência
Zeitgeist, do Google, que a filosofia está morta. “A maioria de nós em algum
momento se pergunta: por que estamos aqui? De onde viemos?
Tradicionalmente, essas são questões para a filosofia, mas a filosofia está
morta”, vaticinou um dos mais brilhantes cientistas da atualidade. “Filósofos
não conseguem estar a par do desenvolvimento moderno da ciência,
particularmente da física”, disse, sem piedade. Para Hawking, a filosofia do
século 21 é aquele garoto que chegou à festa depois que os convidados
haviam ido embora.

Apesar de causar mal-estar entre filósofos badalados, como o esloveno Slavoj


Zizek, a cutucada de Hawking não é nova. Desde o século 19, a morte da
filosofia vem sendo anunciada. Mas, agora, o avanço sem precedentes da
ciência, especialmente da neurociência, confronta uma das grandes
motivações da filosofia desde a Antiguidade: a busca pela certeza. Se a ciência
fornece respostas exatas, o que sobraria para a filosofia discutir? Nada, na
opinião de Hawking. Na resposta pública ao físico popstar, os filósofos Creston
Davis e Santiago Zabala concordam que a filosofia que vira as costas para as
descobertas da ciência, se ainda não morreu, está com os dias contados. Na
filosofia do século 21, afirmam, a busca por certezas ou consensos não é mais
seu objetivo primordial. Como diz Slavoj Zizek, “a filosofia na atualidade é uma
disciplina bem modesta. Não resolve os problemas”.

Sem tentar ser a solução para tudo, a filosofia moderna se mostra útil na
formulação de novas interpretações dos fenômenos sociais. Ela se volta para
discutir eventos históricos e avanços tecnológicos e científicos, um campo fértil
para questionamentos desconcertantes sobre o nosso papel na sociedade, os
sistemas de governo, a relação do homem com as máquinas e o próprio livre-
arbítrio. Como sempre fez, a filosofia ainda encontra espaço para apontar
incoerências e aprofundar questões como o respeito aos animais, a ética do
dinheiro, nossa responsabilidade diante da miséria no mundo e o direito de
decidir a hora de morrer — como traz à tona um dos mais proeminentes
pensadores da atualidade, Peter Singer.

Mais: duas perguntas em particular seguem fora da jurisdição da ciência — e,


consequentemente, vão para o terreno da filosofia. A primeira é a natureza da
nossa consciência. Por que e como se forma a percepção de cada pessoa de
que ela é um único e irrepetível indivíduo? Descartes tinha razão quando
compreendeu que o pensamento comprova a nossa existência, mas nem ele —
nem ninguém — conseguiu explicar por que pensamos, afinal de contas. Por
último, o mais abismal dos porquês: por que estamos aqui? Por que existe tudo
isso em vez de um imenso e eterno nada? Cientistas estão longe da resposta,
mas não deixam de persegui-la. E filósofos não se esquecem de seguir
perguntando.

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