Ensinando A Turma Toda
Ensinando A Turma Toda
Ensinando A Turma Toda
Recriar
o
modelo
educativo
refere-‐se
primeiramente
ao
que
ensinamos
aos
nossos
alunos
e
ao
como
ensinamos
para
que
eles
cresçam
e
se
desenvolvam,
sendo
seres
éticos,
justos
e
revolucionários,
pessoas
que
têm
de
reverter
uma
situação
que
não
conseguimos
resolver
inteiramente:
mudar
o
mundo
e
torná-‐lo
mais
humano.
Recriar
esse
modelo
tem
a
ver
com
o
que
entendemos
como
qualidade
de
ensino.
Vigora
ainda
a
visão
conservadora
de
que
as
escolas
de
qualidade
são
as
que
enchem
as
cabeças
dos
alunos
com
datas,
fórmulas,
conceitos
justapostos
e
fragmentados.
A
qualidade
desse
ensino
resulta
do
primado
e
da
super
valorização
do
conteúdo
acadêmico
em
todos
os
seus
níveis.
Persiste
a
ideia
de
que
as
escolas
consideradas
de
qualidade
são
as
que
centram
a
aprendizagem
no
racional,
no
aspecto
cognitivo
do
desenvolvimento
e
que
avaliam
os
alunos,
quantificando
respostas-‐padrão.
Seus
métodos
e
práticas
preconizam
a
exposição
oral,
a
repetição,
a
memorização,
os
treinamentos,
o
livresco,
a
negação
do
valor
do
erro.
São
aquelas
escolas
que
estão
sempre
preparando
o
aluno
para
o
futuro:
seja
este
a
próxima
série
a
ser
cursada,
o
nível
de
escolaridade
posterior,
o
exame
vestibular!
Pensamos
que
uma
escola
se
distingue
por
um
ensino
de
qualidade,
capaz
de
formar
pessoas,
nos
padrões
requeridos
por
uma
sociedade
mais
evoluída
e
humanitária,
quando
consegue
aproximar
os
alunos
entre
si,
tratar
as
disciplinas
como
meios
de
conhecer
melhor
o
mundo
e
as
pessoas
que
nos
rodeiam
e
ter
como
parceiras
as
famílias
e
a
comunidade
na
elaboração
e
cumprimento
do
projeto
escolar.
Definimos
um
ensino
de
qualidade
a
partir
de
condições
de
trabalho
pedagógico
que
implicam
em
formação
de
redes
de
saberes
e
de
relações,
que
se
enredam
por
caminhos
imprevisíveis
para
chegar
ao
conhecimento.
Entendemos
que
existe
ensino
de
qualidade
quando
as
ações
educativas
se
pautam
por
solidariedade,
colaboração,
compartilhamento
do
processo
educativo
com
todos
os
que
estão
direta
ou
indiretamente
nele
envolvidos.
A
aprendizagem
nessas
circunstâncias
é
acentrada,
ora
destacando
o
lógico,
o
intuitivo,
o
sensorial,
ora
os
aspectos
social
e
afetivo
dos
alunos.
Em
suas
práticas
e
métodos
pedagógicos
predominam
a
experimentação,
a
criação,
a
descoberta,
a
coautoria
do
conhecimento.
Vale
o
que
os
alunos
são
capazes
de
aprender
hoje
e
o
que
podemos
lhes
oferecer
de
melhor
para
que
se
desenvolvam
em
um
ambiente
rico
e
verdadeiramente
estimulador
de
suas
potencialidades.
Em
uma
palavra,
as
escolas
de
qualidade
são
espaços
educativos
de
construção
de
personalidades
humanas
autônomas,
críticas,
nos
quais
as
crianças
aprendem
a
ser
pessoas.
Nesses
ambientes
educativos,
ensinam-‐se
os
alunos
a
valorizar
a
diferença,
pela
convivência
com
seus
pares,
pelo
exemplo
dos
professores,
pelo
ensino
ministrado
nas
salas
de
aula,
pelo
clima
socioafetivo
das
relações
estabelecidas
em
toda
a
comunidade
escolar
-‐
sem
tensões
competitivas,
solidário,
participativo.
Escolas
assim
concebidas
não
excluem
nenhum
aluno
de
suas
classes,
de
seus
programas,
3
assuntos
em
estudo,
mas
como
meios
e
não
como
fins
do
ensino
escolar.
A
avaliação
do
desenvolvimento
dos
alunos
também
muda,
para
ser
coerente
com
as
outras
inovações
propostas.
Acompanha-‐se
o
percurso
de
cada
estudante,
do
ponto
de
vista
da
evolução
de
suas
competências
para
resolver
problemas
de
toda
ordem,
mobilizando
e
aplicando
conteúdos
acadêmicos
e
outros
meios
que
possam
ser
úteis
para
se
chegar
às
soluções
pretendidas;
apreciam-‐
se
os
seus
progressos
na
organização
dos
estudos;
no
tratamento
das
informações
e
na
participação
na
vida
social
da
escola.
Escolas
abertas
às
diferenças
e
capazes
de
ensinar
a
turma
toda
demandam,
portanto,
uma
resignificação
e
uma
reorganização
completa
dos
processos
de
ensino
e
de
aprendizagem.
A
possibilidade
de
se
ensinar
todos
os
alunos,
sem
discriminações
e
sem
métodos
e
práticas
de
ensino
especializados,
deriva,
portanto,
de
uma
reestruturação
do
projeto
pedagógico-‐escolar
como
um
todo
e
das
reformulações
que
esse
projeto
exige
da
escola,
para
que
esta
se
ajuste
a
novos
parâmetros
de
ação
educativa.
Não
se
pode
encaixar
um
projeto
novo
em
uma
velha
matriz
de
concepção
do
ensino
escolar.
As
escolas
que
reconhecem
e
valorizam
as
diferenças
têm
projetos
inclusivos
de
educação
e
o
ensino
que
ministram
difere
radicalmente
do
proposto
para
atender
às
especificidades
dos
educandos
que
não
conseguem
acompanhar
seus
colegas
de
turma,
por
problemas
que
vão
das
deficiências
a
outras
dificuldades
de
natureza
relacional,
motivacional,
cultural
dos
alunos.
Nesse
sentido,
elas
contestam
e
não
adotam
o
que
é
tradicionalmente
utilizado
para
dar
conta
das
diferenças
nas
escolas:
as
adaptações
de
currículos,
a
facilitação
das
atividades,
além
dos
programas
para
reforçar
as
aprendizagens
,
ou
mesmo
para
acelerá-‐las,
em
casos
de
defasagem
idade/séries
escolares.
Para
melhorar
a
qualidade
do
ensino
e
para
se
conseguir
trabalhar
com
as
diferenças
nas
salas
de
aula
é
preciso
que
enfrentemos
os
desafios
da
inclusão
escolar,
sem
fugir
das
causas
do
fracasso
e
da
exclusão
e
desconsideremos
as
soluções
paliativas,
sugeridas
para
esse
fim.
As
medidas
comumente
indicadas
para
combater
a
exclusão
não
promovem
mudanças
e
visam
mais
neutralizar
os
desequilíbrios
criados
pela
heterogeneidade
das
turmas
do
que
potencializá-‐los,
até
que
se
tornem
insustentáveis,
obrigando
as
escolas
a
buscar
novos
caminhos
educacionais,
que,
de
fato,
atendam
à
pluralidade
do
coletivo
escolar.
Não
teremos
condições
de
ensinar
a
turma
toda,
reconhecendo
e
valorizando
as
diferenças
na
escola,
enquanto
os
professores
do
ensino
escolar
(especialmente
os
do
nível
fundamental),
persistirem
em:
-‐
Propor
trabalhos
coletivos,
que
nada
mais
são
do
que
atividades
individuais
realizadas
ao
mesmo
tempo
pela
turma.
-‐
Ensinar
com
ênfase
nos
conteúdos
programáticos
da
série.
-‐
Adotar
o
livro
didático,
como
ferramenta
exclusiva
de
orientação
dos
programas
de
ensino.
-‐
Servir-‐se
da
folha
mimeografada
ou
xerocada
para
que
todos
os
alunos
as
preencham
ao
mesmo
tempo,
respondendo
às
mesmas
perguntas,
com
as
mesmas
respostas.
-‐
Propor
projetos
de
trabalho
totalmente
desvinculados
das
experiências
e
do
interesse
dos
5
alunos,
que
só
servem
para
demonstrar
a
pseudo
adesão
do
professor
às
inovações.
-‐
Organizar
de
modo
fragmentado
o
emprego
do
tempo
do
dia
letivo
para
apresentar
o
conteúdo
estanque
desta
ou
daquela
disciplina
e
outros
expedientes
de
rotina
das
salas
de
aula.
-‐
Considerar
a
prova
final,
como
decisiva
na
avaliação
do
rendimento
escolar
do
aluno.
Essas
práticas
configuram
o
velho
e
conhecido
ensino
para
alguns
alunos
-‐
e
para
alguns,
em
alguns
momentos,
algumas
disciplinas,
atividades
e
situações
de
sala
de
aula.
É
assim
que
a
exclusão
se
alastra
e
se
perpetua,
atingindo
a
todos
os
alunos,
não
apenas
os
que
apresentam
uma
dificuldade
maior
de
aprender
ou
uma
deficiência
específica.
Porque
em
cada
sala
de
aula
sempre
existem
alunos
que
rejeitam
propostas
de
trabalho
escolar
descontextualizadas,
sem
sentido
e
atrativos
intelectuais,
sempre
existem
os
que
protestam
a
seu
modo,
contra
um
ensino
que
não
os
desafia
e
não
atende
às
suas
motivações
e
interesses
pessoais.
O
ensino
para
alguns
é
ideal
para
gerar
indisciplina,
competição,
discriminação,
preconceitos
e
para
categorizar
os
bons
e
os
maus
alunos,
por
critérios
que
são,
no
geral,
infundados.
E
a
atuação
do
professor?
Não
podemos
esquecer
do
que
nos
ensinou
Paulo
Freire
em
idos
de
1978:
"A
educação
autêntica,
repitamos,
não
se
faz
de
"A
para
B",
ou
de
"A"
sobre
"B",
mas
de
"A"
com
"B",
mediatizados
pelo
mundo".
O
professor
palestrante,
tradicionalmente
identificado
com
a
lógica
de
distribuição
do
ensino,
é
o
que
pratica
a
pedagogia
do
"A"
para
e
sobre
"B".
Essa
unidirecionalidade
supõe
que
os
alunos
ouçam
diariamente
um
discurso,
nem
sempre
dos
mais
atraentes,
em
um
palco
distante,
que
separa
o
orador
do
público.
O
professor
que
ensina
a
turma
toda
não
tem
o
falar,
o
copiar
e
o
ditar
como
recursos
didático
pedagógicos
básicos.
Ele
partilha
com
seus
alunos
a
construção/autoria
dos
conhecimentos
produzidos
em
uma
aula;
trata-‐se
de
um
profissional
que
reúne
humildade
com
empenho
e
competência
para
ensinar.
O
ensino
expositivo
foi
banido
da
sua
sala
de
aula,
na
qual
todos
interagem
e
constróem
ativamente
conceitos,
valores,
atitudes.
Esse
professor
arranja
e
explora
os
espaços
educacionais
com
seus
alunos,
buscando
perceber
o
que
cada
um
deles
consegue
apreender
do
que
está
sendo
estudado
e
como
procedem
ao
avançar
nessa
exploração.
Certamente
um
professor
que
engendra
e
participa
da
caminhada
do
saber
com
seus
alunos
e
mediatizado
pelo
mundo,
consegue
entender
melhor
as
dificuldades
e
as
possibilidades
de
cada
um
e
provocar
a
construção
do
conhecimento
com
maior
adequação.
Os
diferentes
sentidos
que
os
alunos
atribuem
a
um
dado
objeto
de
estudo
e
as
suas
representações
vão
se
expandindo
e
se
relacionando
e
revelando,
pouco
a
pouco,
uma
construção
original
de
ideias
que
integra
as
contribuições
de
cada
um,
sempre
bem-‐vindas,
válidas
e
relevantes.
6
Pontos
cruciais
do
ensinar
a
turma
toda
são
o
respeito
à
identidade
sociocultural
dos
alunos
e
a
valorização
da
capacidade
de
entendimento
que
cada
um
deles
tem
do
mundo
e
de
si
mesmos.
Nesse
sentido,
ensinar
a
turma
toda
reafirma
a
necessidade
de
se
promover
situações
de
aprendizagem
que
formem
um
tecido
colorido
de
conhecimento,
cujos
fios
expressam
diferentes
possibilidades
de
interpretação
e
de
entendimento
de
um
grupo
de
pessoas
que
atua
cooperativamente.
Sem
estabelecer
uma
referência,
sem
buscar
o
consenso,
mas
investindo
nas
diferenças
e
na
riqueza
de
um
ambiente
que
confronta
significados,
desejos,
experiências,
o
professor
deve
garantir
a
liberdade
e
a
diversidade
das
opiniões
dos
alunos.
Nesse
sentido,
ele
é
obrigado
a
abandonar
crenças
e
comportamentos
que
negam
ao
aluno
a
possibilidade
de
aprender
a
partir
do
que
sabe
e
chegar
até
onde
é
capaz
de
progredir.
Afinal,
aprendemos
quando
resolvemos
nossas
dúvidas,
superamos
nossas
incertezas
e
satisfazemos
nossa
curiosidade.
As
diferenças
entre
grupos
étnicos,
religiosos,
de
gênero
etc.
não
devem
se
fundir
em
uma
única
identidade
,
mas
ensejar
um
modo
de
interação
entre
eles,
que
destaque
as
peculiaridades
de
cada
um.
O
professor,
da
mesma
forma,
não
procurará
eliminar
as
diferenças
em
favor
de
uma
suposta
igualdade
do
alunado,
que
é
tão
almejada
pelos
que
apregoam
a
(falsa)
homogeneidade
das
salas
de
aula.
Antes,
estará
atento
à
singularidade
das
vozes
que
compõem
a
turma,
promovendo
o
diálogo
entre
elas,
contrapondo-‐as,
complementando-‐as.
Desigualdades
e
sucesso
na
escola
As
desigualdades
tendem
a
se
agravar
quanto
mais
especializamos
o
ensino
para
alguns
alunos.
Essa
desigualdade,
inicialmente
escolar,
expande-‐se
para
outros
domínios
e
áreas,
marcando
indelevelmente
as
pessoas
atingidas.
O
ensino
para
a
turma
toda
vai
obstinadamente
contra
esse
mecanismo
perverso
da
escola
que
atinge
as
crianças
desde
cedo,
especialmente
as
que
têm
uma
deficiência.
Não
se
pode
imaginar
uma
educação
para
todos,
quando
caímos
na
tentação
de
constituir
grupos
de
alunos
por
séries,
por
níveis
de
desempenho
escolar
e
determinamos
para
cada
nível
objetivos
e
tarefas
adaptados
e
uma
terminalidade
específica.
E,
mais
ainda,
quando
encaminhamos
os
que
não
cabem
em
nenhuma
dessas
determinações,
para
classes
e
escolas
especiais,
argumentando
que
o
ensino
para
todos
não
sofreria
distorções
de
sentido
em
casos
como
esses!
Essa
compreensão
equivocada
da
escola
inclusiva
acaba
instalando
cada
criança
em
um
locus
escolar,
arbitrariamente
escolhido.
Aumenta
ainda
mais
as
diferenças,
acentua
as
desigualdades,
justificando
o
distanciamento
e
o
fracasso
escolar,
como
problema
do
aluno,
exclusivamente.
Tal
organização
escolar
também
pode
impedir
o
funcionamento
ativo
dos
alunos
frente
a
situações-‐problema,
pois
os
grupos
de
alunos
de
nível
mais
elevado
têm
oportunidade
de
ir
mais
longe
e
os
de
nível
mais
baixo
de
funcionar
com
menos
eficiência.
7
É,
sem
dúvida,
a
heterogeneidade
que
dinamiza
os
grupos,
que
lhes
dá
vigor,
funcionalidade
e
garante
o
sucesso
escolar.
Temos,
pois,
de
desconfiar
das
pedagogias
que
se
dizem
de
bons
propósitos,
mas
que
desmembram
as
crianças
em
turmas
especiais
para
favorecer
a
aprendizagem
e
o
ensino.
Precisamos
nos
conscientizar
de
que
as
turmas
escolares,
queiramos
ou
não,
são
e
serão
sempre
desiguais.
Talvez
seja
este
o
nosso
maior
mote:
fazer
entender
a
todos
que
a
escola
é
um
lugar
privilegiado
de
encontro
com
o
outro.
Este
outro
que
é,
sempre
e
necessariamente,
diferente!
Referências
FREIRE,
Paulo.
(1978).
Pedagogia
do
oprimido.
São
Paulo:
Paz
e
Terra.
GALLO,
S.
(1999).
Transversalidade
e
educação:
pensando
uma
educação
não-‐disciplinar.
In:
N.
Alves
(Org.).
O
sentido
da
escola.
(pp17-‐43).
Rio
de
Janeiro:
DP&A
Editora.
Publicado
na
Pátio
–
revista
pedagógica
–
ARTMED/
Porto
Alegre-‐
RS,
Ano
V,
nº.
20,
Fev/Abr/2002,
pp.18-‐28.