Tribunal de Justiça de Pernambuco, V. I

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Vol I :

Tribunal da Relação (1821-1892)


Tribunal de Justiça de
Pernambuco
- 200 anos de história -
Vol I :
Tribunal da Relação (1821-1892)

Organizadores:
Mônica Maria de Pádua Souto da Cunha
Carlos Alberto Vilarinho Amaral

Recife
2021

1
C972t Cunha, Mônica Maria de Pádua Souto da

Tribunal de Justiça de Pernambuco: 200 anos de história / Mônica Maria de Pádua Souto da Cunha
e Carlos Alberto Vilarinho Amaral (Orgs.) . – Recife: Tribunal de Justiça de Pernambuco, 2021.
399p. : il.

ISBN 978-65-994744-0-8

1. Tribunal de Justiça de Pernambuco – história. 2. História de Pernambuco. 3. História do Direito.


I. Amaral, Carlos Alberto Vilarinho. II. Título.

CDD 347.02981.34

2
3
Mesa Diretora - Gestão 2020 - 2021

Fernando Cerqueira Norberto dos Santos Luiz Carlos de Barros Figueiredo


Presidente Corregedor Geral da Justiça

Eurico de Barros Correia Filho Cândido José da Fonte Saraiva de Moraes


1º Vice-Presidente 2º Vice-Presidente

4
Desembargadores

Jones Figueirêdo Alves José Fernandes de Lemos Bartolomeu Bueno de Jovaldo Nunes Gomes
Freitas Morais

Fernando Eduardo de Frederico Ricardo de Leopoldo de Arruda Marco Antônio Cabral


Miranda Ferreira Almeida Neves Raposo Maggi

Adalberto de Oliveira Melo Alberto Nogueira Virgínio Antônio Fernando Araújo Ricardo de Oliveira Paes
Martins Barreto

5
Antônio de Melo e Lima Francisco José dos Anjos Antenor Cardoso Soares José Carlos Patriota Malta
Bandeira de Mello Júnior

Alexandre Guedes Mauro Alencar de Barros Fausto de Castro Campos Francisco Manoel Tenório
Alcoforado Assunção dos Santos

Cláudio Jean Nogueira Antônio Carlos Alves da Francisco Eduardo José Ivo de Paula
Virgínio Silva Gonçalves Sertório Canto Guimarães

6
Josué Antônio Fonseca de Agenor Ferreira de Lima Itabira de Brito Filho Alfredo Sérgio Magalhães
Sena Filho Jambo

Roberto da Silva Maia Jorge Américo Pereira de Erik de Sousa Dantas Stênio José de Sousa Neiva
Lira Simões Coêlho

André Oliveira da Silva Itamar Pereira da Silva Evandro Sérgio Netto de Daisy Maria de Andrade
Guimarães Júnior Magalhães Melo Costa Pereira

7
Eudes dos Prazeres França Carlos Frederico Gonçalves Fábio Eugênio Dantas de Márcio Fernando de
de Moraes Oliveira Lima Aguiar Silva

Humberto Costa Waldemir Tavares de José Viana Ulisses Filho Sílvio Neves Baptista Filho
Vasconcelos Júnior Albuquerque Filho

Demócrito Ramos Évio Marques da Silva Honório Gomes do Rego Ruy Trezena Patu Júnior
Reinaldo Filho Filho

8
9
10
Transcrição Paleográfica1:
Alvará de criação do Tribunal da Relação de
Pernambuco

Carlos Alberto V. Amaral2

BR AN.RIO.22.0.5193
1

Eu El Rei Faço saber aos que este Alvará com


força de Lei virem: Que Tendo Me representado a
Camara da Cidade de Olinda as dificuldades que ex
perimentão os Habitantes da Provincia de Pernambu-
co, de recorrerem à Relação da Bahia para o prose-
guimento das suas Causas, pela grande distancia de
huma à outra Provincia, avultadas despesas, separa-
1  Critérios de transcrição utilizados:
- a transcrição manteve a ortografia
ção de suas familias, interrupção dos trabalhos de que
original do texto, visando garantir a tirão a sua subsistencia, e outros muitos inconvenien-
integridade do documento;
tes ainda quando são entregues a Procuradores, o que
- erros de gramática, concordância
e conjugação dos verbos foram tem indusido a muitos a deixarem sem ultima deci-
conservados; são os seus Pleitos, preferindo antes perde-los, do que
- para facilitar a leitura do documento,
por razões didáticas, cada linha da sugeitarem-se a tão graves incommodos: E sendo hum
transcrição corresponde a uma linha do dos primeiros objectos dos Meus Paternaes cuidados re-
texto original;
mover os embaraços que possão retardar ou estorvar
- as anotações a lápis, inseridas
posteriormente no documento, foram aos Meus fieis Vassallos os Recursos que lhes permittem
transcritas em itálico, fonte Calibri, para as Leis na Administração da Justiça, e que lhes affian-
distinguí-las da transcrição do texto
original do Alvará. ção a segurança pessoal, e a dos sagrados direitos de pro-
priedade que muito Desejo manter, como a mais segu-
ra base da Sociedade Civil: Hei por bem Criar hu-
2  Especialista em Ensino de História, ma Relação na Villa do Recife de Pernambuco,
pela Universidade Federal Rural de
tendo por Districto os Territorios da Provincia de Per-
Pernambuco (UFRPE); Bacharel em
História, pela Universidade Federal de nambuco, comprehendidos nas tres Comarcas do Re
Pernambuco (UFPE) e Licenciado em
cife, Olinda e Sertão somente: Pois o da nova Comar
História, pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE); analista judiciário ca do Rio de São Francisco, não obstante pertencer
do Tribunal de Justiça de Pernambuco, a esta Provincia, se conservará no Districto da Rela-
lotado no Memorial da Justiça.
ção da Bahia, pela mais facil communicação e ma-
ior commercio dos seus Habitantes com aquella Cidade:

11
12
1v

As Provincias com os seus respectivos Territorios, da


Parahiba, Rio Grande do Norte, e tambem a do Ceará
Grande, que Sou Servido desmembrar do da Rela-
ção do Maranhão, Alterando nesta parte o para-
grafo quinto do titulo primeiro do Alvará de treze
de Maio de mil oitocentos e doze.
Esta Relação terá a mesma graduação e Alça-
da que tem a do Maranhão, será presidida pelo Go-
vernador e Capitão General que actualmente he e for
para o futuro da Provincia de Pernambuco, e será com
posta do Chanceller e do mesmo numero de Desem-
bargadores e Officiaes que tem a referida Relação do
Maranhão.
O seu Presidente, Ministros e Officiaes, vence-
rão os mesmos ordenados, Ajudas de custo, Propinas,
Assinaturas e Emolumentos concedidos ao Governa-
dor, Ministros e Officiaes da Relação do Maranhão,
servindo-lhe de Regimento o mesmo que pelo Alva-
rá de treze de Maio de mil oitocentos e doze Fui Servi-
do Dar à Relação do Maranhão; menos quanto
aos Recursos, que os deverá dar para a Casa da Sup-
plicação do Brasil.
E Attendendo a que a graduação desta Relação
e a do Maranhão, he a mesma que tinha a anti-
ga Relação do Rio de Janeiro e a da Bahia, an-
tes do Alvará de dez de Maio de mil oitocentos e
oito: Sou Servido que se considerem habilitados

13
14
2

para requererem e merecerem os Lugares de


Desembargador de qualquer destas Relaçoens,
os Bachareis que tenhão servido Lugares de
Segunda Intrancia, ficando nesta parte re-
vogado o paragrafo setimo do titulo primeiro
do referido Alvará de treze de Maio de mil oi-
tocentos e doze.
Pelo que Mando a Mesa do Desem-
bargo do Paço e da Consciencia e Ordens, Presi-
dente do Meu Real Erario, Conselho da Minha
Real Fazenda, Regedor da Casa da Supplica-
ção, Governador e Capitão General da Provincia
de Pernambuco, Governadores, Ouvidores, Juizes
e mais Justiça das Provincias e Comarcas aci-
ma mencionadas, e quaes quer outras Pessoas a
quem o conhecimento deste Alvará pertencer, o
cumprão e guardem e o fação cumprir e guardar
tão inteiramente como nelle se contem, sem
embargo de quaes quer Leis, Regimentos, Pro
visoens ou Ordens em contrario, por que todas
Hei por derogadas para este effeito sómente
como se dellas Fizesse expressa e individual men
ção. E valerá como Carta passada pela Chan
cellaria ainda que por ella não haja de pas-
sar, e o seu effeito haja de durar mais de hum
anno não obstante as Ordenaçoens em con-
trario. Dado no Palacio do Rio de Janeiro

15
16
aos seis de Fevereiro de mil oitocentos e vinte hum

2v

Rey

Thomaz Antº de Villanova Portugal

Alvará com força de Lei pelo qual Vossa Ma-


gestade Ha por bem Mandar Criar huma Re
lação na Villa do Recife de Pernambuco, servindo-
lhe de Regimento, para a sua regulação e governo,
o da Relação do Maranhão, tudo na forma acima
declarada.

Para Vossa Magestade ver

Cx. 27
m. 52

17
Prefácio

Fernando Cerqueira Norberto dos Santos1

Em 6 de fevereiro de 1821, por Alvará régio, era criado o Tribunal de Justiça


de Pernambuco, naquela época chamado de Tribunal da Relação.
Para comemorar e marcar essa data, foi organizada esta obra que vem a pre-
encher uma grande lacuna na escrita da história do Tribunal, posto que há poucos
estudos publicados sobre a instituição que está à frente da prestação jurisdicional
de Pernambuco há tanto tempo, merecedora que é de ter um registro aprofundado
sobre a sua memória.
No Alvará, foram explicitadas algumas justificativas para a criação de uma
Corte Recursal em Pernambuco, inclusive indicando que foi um atendimento a
um pleito da Câmara de Olinda. Alegou-se que os habitantes da região passavam
por muitas dificuldades ao terem que recorrer das decisões de primeira instância
ao Tribunal na Bahia, pois havia o incômodo causado pela grande distância, bem
como pelas despesas que teriam que ter com o deslocamento e, ainda, a separação
de suas famílias e a interrupção dos trabalhos, dos quais tiravam a sua subsistên-
cia. Sustentaram, inclusive, que todos esses inconvenientes estavam até induzindo
que muitas pessoas deixassem de interpor recursos, mesmo quando insatisfeitos
com a decisão de primeiro grau quanto aos seus pleitos, preferindo perdê-los do que
1  Magistrado de carreira do Poder
sujeitarem- se ao que consideraram graves incômodos. Judiciário de Pernambuco desde
Completando duzentos anos de existência em 2021, o quarto tribunal a ser cria- 26/10/1982 e desembargador do TJPE
desde 05/07/2005. Diretor-Geral da
do no Brasil e o último do período colonial, demorou um ano e meio para começar a Escola da Magistratura de Pernambuco
funcionar, pois a sua instalação somente aconteceu em 13 de agosto do ano seguinte. (2012/2013). Diretor-Geral da Escola
Judicial de Pernambuco (2013/2014).
Conforme explica Jeffrey Aislan de Souza Silva, no capítulo 5 deste livro, os Secretário-Geral da Escola Nacional
eventos políticos que ocorriam no início dos Oitocentos, tanto em Pernambuco, com de Formação e Aperfeiçoamento de
Magistrados - ENFAM (2015/2016).
a Revolução de 1817, quanto no Brasil, que terminaram por levar à independência Corregedor-Geral da Justiça de
do país e a volta do rei para Portugal, contribuíram sobremaneira para o atraso da Pernambuco (2018/2020). Presidente
do Colégio Permanente de Corregedores
instalação do Tribunal. Vale salientar que os desembargadores que iriam atuar na Gerais dos Tribunais de Justiça do Brasil
instituição já haviam sido nomeados em 1821 e também pressionaram o príncipe – CCOGE (2019). Presidente do Tribunal
de Justiça de Pernambuco (2020-
regente para a instalação da Corte. Ela entrou em funcionamento com a presença 2022). Secretário-Geral do Colégio de
de cinco dos sete desembargadores nomeados, assinando como chanceler interino Presidentes dos Tribunais de Justiça do
Brasil (2020). Vice-Presidente do Colégio
o desembargador José Osório de Pina Leitão, português, que era também o primeiro de Presidentes dos Tribunais de Justiça
agravista; como segundo agravista e procurador dos feitos da Coroa e Fazenda as- do Brasil (2021).

18
sumiu Eusébio de Queirós Coutinho da Silva, natural de Luanda, Angola; Bernardo
José da Gama, pernambucano, seria o terceiro agravista e promotor de justiça; João
Ferreira Sarmento Pimentel, português, atuaria como interino, na função de ou-
vidor geral do crime; e, por último, João Evangelista de Faria Lobato, nascido em
Minas Gerais, seria o quinto agravista e ouvidor geral do cível. Um mês depois,
o desembargador Lucas Antônio Monteiro de Barros, natural de Minas Gerais, já
estava tomando posse como chanceler titular. O desembargador Affonso Ferreira,
pernambucano, também foi nomeado para a Relação de Pernambuco, mas tomou
posse depois da data da instalação.
O livro conta com 14 capítulos que tratam de questões diversas relacionadas
tanto à Justiça quanto ao Direito nos períodos colonial e imperial brasileiro, com
ênfase em Pernambuco.
No capítulo 1 Arno Wehling começa questionando de que forma e em que
medida a presença da Corte no Rio de Janeiro e a política lá desenvolvida em rela-
ção à administração da justiça refletiu-se na capitania/província de Pernambuco
e em suas comarcas, para falar sobre os traços estruturais e a dinâmica joanina
na justiça colonial em Pernambuco, fazendo uma inédita reflexão sobre a justiça
pernambucana no período joanino.
Ainda sobre a fase colonial da América portuguesa, Rômulo Xavier discorre, no
capítulo 2, sobre o ordenamento e a prática jurídica em Pernambuco, considerando
o cotidiano e as relações sociais e políticas existentes, problematizando o processo
percorrido pela justiça pernambucana no período colonial, contribuindo sobrema-
neira para a construção do entendimento sobre a mentalidade jurídica colonial no
momento da transição para o Império.
No capítulo 3, Suely Creusa Cordeiro de Almeida analisa a relação da Família
Rego Barros com a Provedoria da Fazenda Real dentro do contexto da justiça per-
nambucana, porquanto foi submetida a uma devassa para investigar um dos seus
integrantes que tinha o cargo de provedor acusado de criar novas jurisdições, ob-
tendo vantagens ilícitas. O texto destaca o papel da política no exercício dos cargos
públicos, no contexto do período colonial e a atuação da justiça em um caso concreto,
ressaltando os seus rituais e trâmites diante de uma denúncia contra influentes
membros da sociedade pernambucana.
Andréa Slemian, no seu capítulo 4, remete-nos à história das origens dos
tribunais da relação em Portugal e no Brasil, tão pouco estudada até hoje, inclusive
tratando sobre o seu funcionamento interno e estruturação. Relata o impacto da
chegada da Família Real na estrutura da justiça no país, dedicando-se a abordar com
mais profundidade como se dava a prática judicial dentro dos tribunais, destacan-
do, a partir de análise pormenorizada, que entre os indivíduos que almejavam pela
proteção da justiça estavam também os grupos sociais medianos e pobres, proble-
matizando essa questão a partir dos resultados de sua pesquisa.
Propondo um novo horizonte explicativo para a ambientação da justiça, com
destaque para os referenciais de uma cultura jurídica assentada no processo de ins-
tituição dos tribunais nas primeiras décadas do século XIX, Jeannie Menezes sugere
novas compreensões sobre a construção das experiências coloniais, no capítulo 6
deste livro. Sugere que, para justiça colonial, as vastas extensões territoriais das
capitanias, levando à indefinição sobre os limites dos juízos, pode ter favorecido a

19
ineficácia da aplicação da justiça e a aproximação com a prática do abuso. Apesar
disso, a presença de juízes foi constantemente requerida, como foi o caso de Per-
nambuco, quando pediu por vários anos a instituição de um tribunal, que só veio
a ser criado no final do período colonial.
Marcelo Casseb Continentino faz uma análise sobre o ambiente jurídico em
que ocorreu a formação do Poder Judiciário brasileiro durante do século XIX, enfati-
zando o período em que a Constituição de 1824 estava vigente e durante a transição
do Brasil monárquico para o republicano, no capítulo 7. Observa-se em seu texto
ricas análises de questões sobre a reformulação substancial do sentido do princípio
da separação dos poderes e a gama de fatores que motivaram esse processo, tendo
em vista especialmente a análise do Poder Judiciário.
No capítulo 8, Mônica Duarte Dantas aborda assunto relevante, os dois modelos
de organização dos poderes no início do período imperial brasileiro, com a criação
dos códigos criminal e do processo criminal e, posteriormente, a reforma de 1841. A
autora não só contextualiza a sociedade brasileira e suas questões sociais e políticas
diante das novas legislações, comparando os dois períodos de vigência dos modelos,
como também se aprofunda na análise das leis e as suas consequentes repercussões.
Problematiza a questão da lei de 3 de dezembro significar ou não uma centralização
do judiciário, diante da extinção do conselho da presidência em 1834 e do Ato Adi-
cional, sugerindo que as inovações trazidas pela Reforma e seus regulamentos im-
plicavam mais do que uma reorganização do Poder Judiciário. Para ela, o que estava
em evidência eram dois modelos de organização política, com distintas ideias sobre
os poderes e relações entre eles e não simplesmente uma questão de centralização.
Tomando como base um processo judicial integrante do acervo do Memorial
da Justiça do TJPE, Marcus Carvalho analisa, no capítulo 9, com maestria, como era
o desembarque dos africanos no Brasil, precisamente nos portos pernambucanos.
A partir da ação de liberdade de Camilo, o autor discorre sobre a história do tráfico
de escravizados no país durante o período imperial, desde a saída da África até a
sua chegada no outro lado do Atlântico.
No capítulo 10, Mônica Pádua levanta questões sobre a rotina da Justiça cri-
minal de Pernambuco de primeira e segunda instância, buscando mostrar tanto os
procedimentos quanto as ligações políticas e sociais dos empregados do Judiciário
com o governo local e central, a partir de histórias encontradas nos processos crimi-
nais do Tribunal da Relação de Pernambuco. Durante a narrativa, também procura
esclarecer quem eram as pessoas envolvidas, bem como as instituições que elas
representavam durante o desenvolvimento do processo, a fim de contribuir para
a compreensão cotidiano vivido na Justiça em Pernambuco no período imperial.
Lídia Rafaela Nascimento dos Santos, no capítulo 11, revela detalhes do coti-
diano da vida em sociedade, analisando as lógicas de convivências que permeiam
as relações humanas por meio de um processo judicial parte do acervo da Relação
pernambucana. Com base em um documento parte do acervo do Memorial da Justiça,
a autora nos mostra um novo ângulo de observação das sociabilidades e da prática
judiciária no Recife Oitocentista.
Por meio da observação pormenorizada da Lei de Terras, Cristiano Christilino
apresenta, em seu capítulo 12, o contexto de criação da legislação e sua repercussão
no Brasil do século XIX. Especialmente para Pernambuco, narra o caso de concen-

20
tração de terrenos por parte dos senhores de engenho maior na Mata Sul do que na
Mata Norte de Pernambuco, chamando atenção para o tamanho reduzido das pro-
priedades dos engenhos. Cita a situação da Freguesia de Nossa Senhora de Nazaré, na
Mata Norte, em que os terrenos se encontravam bastante fracionados e, em grande
parte, as unidades produtivas açucareiras estavam nas mãos de diversos núcleos
familiares. Destaca detalhe importante que revela a forma de organização social
das famílias do lugar, que apresentaram estratégias singulares de transmissão de
propriedade em Pernambuco: a prática da indivisibilidade dos engenhos, utilizada
como um mecanismo de manutenção dos diversos núcleos da mesma parentela na
atividade açucareira.
No capítulo 13, Venceslau Tavares Costa Filho utiliza um documento do acervo
do Memorial da Justiça, uma petição em uma Carta Testemunhável de 1872, elabo-
rada pelo jurista Francisco de Paula Baptista para analisar as suas teorias e os seus
efeitos em relação às suas práticas como advogado diante do Tribunal da Relação
de Pernambuco. O autor também discute as repercussões das reformas do direito
português ao final do Antigo Regime, especialmente em relação à sistemática das
fontes do direito brasileiro no Oitocentos.
O desembargador Jones Figueiredo Alves faz uma análise excepcional do di-
reito de família do Oitocentos, no capítulo 14, por meio de uma ação de alimentos
submetida ao Tribunal da Relação por apelação, tratando especialmente da situação
da mulher na sociedade do período imperial brasileiro. Aproveita também para se
debruçar sobre os procedimentos do Tribunal e como era usada a legislação pelos
operadores do Direito naquele período.
Depois de apresentar o valioso conteúdo deste livro, aproveito a oportunidade
para afirmar que, pela qualidade e aprofundamento do trabalho de pesquisa dos
autores, ele já é uma obra de referência sobre a Justiça Pernambucana. E não é só
isso. Posso considerá-lo um marco para os estudos sobre a memória judiciária. De
fato, é uma publicação de excelência sobre uma matéria que antes era tão rara de se
encontrar e que marca o ano do aniversário do Tribunal de Justiça de Pernambuco
como um presente de consulta para toda a sociedade.

21
22
Sumário

CAPÍTULO 1 - A Justiça Colonial em Pernambuco:


traços estruturais e dinâmica joanina 25

CAPÍTULO 2 - “A pena e a lei”: algumas considerações acerca


do ordenamento jurídico e situações que se passaram no
Pernambuco colonial 55

CAPÍTULO 3 - Justiça local ou de além mar?


As devassas à família Rego Barros no século XVIII 77

CAPÍTULO 4 - As supremas Relações: tribunais e cultura jurídica


entre a colônia e os primórdios do Império do Brasil 105

CAPÍTULO 5 - Entre pedidos, sedições e crises políticas:


a criação do Tribunal da Relação de Pernambuco e seus
primeiros desembargadores 133

CAPÍTULO 6 - Uma cultura judicial de Antigo Regime em diálogo


com a instalação de um Tribunal da Relação – experiências dos
julgados de Pernambuco, sécs. XVIII-XIX 161

CAPÍTULO 7 - O poder judiciário no Brasil oitocentista:


dois momentos de sua formação e evolução 177

CAPÍTULO 8 - O Código do Processo Criminal e a reforma de 1841:


dois modelos de organização dos poderes 211

CAPÍTULO 9 - A escravização de crianças livres no Brasil


e a importância da documentação judiciária para
a pesquisa histórica 241

CAPÍTULO 10 - A justiça de paz e o crime de sedição em Pernambuco


do oitocentos 263

CAPÍTULO 11 - Justiça, crimes e Sociabilidades no Recife das


insurreições liberais 297

CAPÍTULO 12 - A Justiça e a legislação fundiária em meados do século XIX:


dois alicerces da centralização política no II Reinado 327

CAPÍTULO 13 - Continuidade e originalidade do pensamento de


Francisco de Paula Baptista e suas práticas perante o Tribunal da
Relação de Pernambuco 359

CAPÍTULO 14 - Alimentos para a mulher apartada


da casa do marido 387

23
24
CAPÍTULO 1 - A Justiça Colonial em
Pernambuco: traços estruturais e
dinâmica joanina

Arno Wehling 1

1. Introdução

De que forma e em que medida a presença da Corte no Rio de Janeiro e a política


aí desenvolvida em relação à administração da justiça, refletiu-se na capitania/
província de Pernambuco e em suas comarcas?
Para responder a essa pergunta, vamos considerar os traços estruturais, mul-
tisseculares, que marcaram a justiça colonial e quais as alterações provocadas
pela inserção nela da política joanina. As expectativas da Coroa antes e durante o
período joanino, as reações locais e os conflitos e acomodações decorrentes refle-
tiram-se na atuação de governadores, câmaras municipais, magistrados, autorida-
des eclesiásticas, capitães-mores e figuras principais da terra, compondo o quadro
da justiça antes e também depois da independência, do Antigo Regime ao mundo
liberal-constitucional.
Do tradicional juiz ordinário introduzido na doação da capitania a Duarte
Coelho, até o Tribunal da Relação instituído por D. João VI em um de seus últimos
atos no Brasil, muito permaneceu e algo mudou em matéria de administração da
justiça com a passagem da sede do governo português ao Rio de Janeiro. O objetivo
deste trabalho é identificar uma e outra situação, avaliando seus respectivos graus
de continuidade e inovação.

2. Traços estruturais da justiça colonial

Na monarquia absoluta a justiça tinha papel preeminente, junto com outras prer-
rogativas tipicamente soberanas dos reis, como o controle da fazenda (e o mono-
pólio aos poucos conquistado da emissão da moeda), da força militar, das relações
1  Professor Titular (ufrj) e Emérito diplomáticas e da elaboração das leis. Na retórica oficial portuguesa ela aparece
(unirio). Professor do Programa
de Pós-graduação em Direito da
frequentemente como “virtude principal [dos reis] e sobre todas as outras mais ex-
Universidade Veiga de Almeida-rj. cedente”, segundo a afirmação contida na lei de 1595 determinando a elaboração de
Membro da Academia Brasileira de
novas Ordenações, que vieram a ser as Filipinas. (albuquerque; albuquerque, 1992,
Letras e Presidente de Honra do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. p. 429; wehling; wehling, 2004, p. 31).

25
Essa ideia da centralidade da justiça sob a ótica da monarquia não era apenas
portuguesa, obviamente, mas da Europa cristã. E pressupunha, a partir da analogia
religiosa com a ordem cósmica, que ao rei competiria salvaguardar em seu território
a paz social a partir da aplicação da justiça. (maravall, 1972, v. 2, p. 408).
O compromisso não se circunscrevia apenas a uma visão de administração da
justiça, individualizada no sentido de Ulpiano, autor largamente citado à época como
um dos pilares do direito comum, de dar a cada um o seu, mas a uma atribuição
política de que, por este meio, o monarca promoveria o equilíbrio entre as diferentes
partes da sociedade. Neste segundo sentido entende-se o argumento muito repetido
nas leis reais portuguesas e na correspondência oficial em diferentes épocas, de que
o rei deveria prioritariamente proteger os fracos da cobiça e força dos poderosos.
Por outro lado, sabemos que não há um monolitismo na estrutura da justi-
ça, metropolitana ou colonial. Não basta conhecer a organização da magistratura
letrada nomeada em Lisboa ou o parâmetro das Ordenações para entender o que
efetivamente era e como funcionava. A propósito de pesquisa sobre o Tribunal da
Relação do Rio de Janeiro trabalhamos com uma tipologia que pode ser útil para
toda a administração da justiça no Brasil colonial. (wehling; wehling, 2004, p. 36).
Dessa forma, a primeira nuance a fixar é a de que encontramos uma justiça
real diretamente exercida e uma justiça concedida. No primeiro caso, ela se subdividia
num ramo ordinário – os ouvidores gerais e de capitania, os de comarca, os juízes
ordinários e os desembargadores das Relações da Bahia e Rio de Janeiro – e num
ramo especializado, como eram a justiça militar, os juízes fazendários, os de órfãos,
os de defuntos e ausentes e os de águas e matas. Toda essa justiça especializada, à
exceção da militar, foi exercida quase sempre cumulativamente e de modo remu-
nerado pelos juízes de fora e ouvidores de comarca.
A justiça concedida envolvia, como em outras monarquias do Ocidente (ma-
ravall, 1972, v. 2, p. 408), a ideia de delegação real para seu exercício e compreendia
os resquícios da justiça senhorial (sueur, 1989, p. 150) (no caso colonial, os direitos
remanescentes dos donatários das capitanias, extintos apenas no século xviii), a jus-
tiça eclesiástica, exercida pelos vigários, câmaras recursais dos bispados e Tribunal
da Relação da arquidiocese de Salvador e a justiça municipal, privativa dos juízes
ordinários, que eram membros da câmara municipal e de juízes de alçada menor,
como os vintenários e os meio-ordinários. (hespanha, 1992, p. 42).
Todas essas formas de exercício da justiça existiram no Brasil colonial e não
só conviviam com a realidade local, no caso dos magistrados vindos da metrópole,
como dela muitas vezes dela faziam parte intrinsecamente, como os juízes ordiná-
rios, saídos do colégio eleitoral dos homens bons dos municípios ou como os juízes
formados na Universidade de Coimbra porém originários da América portuguesa,
em geral filhos da aristocracia proprietária ou de comerciantes enriquecidos, de
grosso trato.
Assim, interagiam agentes públicos – governadores, ouvidores, militares dos
regimentos de linha, juízes de fora, clérigos regulares e seculares e outros funcio-
nários – e diferentes segmentos sociais, como os proprietários rurais, arrendatá-
rios, comerciantes atacadistas e varejistas, indígenas e escravos de origem africana.
O caso de Pernambuco não destoa do quadro geral do restante da colônia: o
exercício da justiça expunha um lado conflitual, as disputas de poder, pela terra,

26
por privilégios comerciais, pela mão de obra (hespanha, 2012, p. 49) e um lado de
administração social da vida jurídica das pessoas – seu nascimento, casamento,
filiação, óbito, herança, compra e venda de bens e emancipação, são os principais
exemplos de atuação neste aspecto. Questões que desaguavam nas áreas cível e pe-
nal, ou mesmo que sequer chegavam à justiça.

3. Traços estruturais, circunstâncias concretas

Traços estruturais que subjazem às circunstâncias concretas nos permitem perce-


ber a tessitura e o movimento da justiça pernambucana. Chegamos aos primeiros
pelos rastros deixados pelas circunstâncias concretas nos testemunhos e nos do-
cumentos de época.
Dos testemunhos, o inglês Koster e o francês Tollenare, que estiveram em
Pernambuco no início do século xix, também no caso da justiça se revelam boas
fontes. A eles se pode agregar outro testemunho importante e pouco anterior, de
1804, do governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro, em ofício ao secretário
de Marinha e Ultramar, visconde de Anadia.
Os observadores estrangeiros viam a justiça pernambucana com olhos euro-
peus, de uma Europa iluminista e pós-revolucionária, a partir de duas óticas na-
cionais diversas. O governador português, de uma ótica também iluminista, mas
permeada de iberismo e catolicismo, ademais de ser magistrado e detentor de um
cargo oficial.
Os três testemunhos coincidem em muitos pontos sobre a prática da justiça.
Henry Koster (2002, p. 357) criticou a fraqueza e venalidade de juízes e a impu-
nidade dos crimes. Tollenare constatou ademais da venalidade a distância que fica-
vam dos administrados mesmo os juízos inferiores e, quanto aos crimes, coincidiu
com Koster: “por 6 francos manda-se matar impunemente um homem” (tollenare,
1978, p. 77). Prevenindo a possibilidade de acharem que exagerava, afiançou que
ouviu esta observação de dez pessoas fidedignas. Já Caetano Montenegro, que tinha
sido ouvidor em Portugal e era administrador experiente, tendo ocupado a Inten-
dência do Ouro no Rio de Janeiro e governado Mato Grosso, criticou a escassez de
magistrados que se refletia no volume de trabalho e na atuação precária da justiça
leiga, “oprimindo não poucas vezes os bons, outras protegendo os maus e deixando
quase sempre impunes os grandes delitos” (ofício, 1983, p.180).
Outro texto da época, as Revoluções do Brasil, de 1817, a despeito do caráter
panfletário que tinha, criticava a ignorância dos juízes ordinários e denunciava a
tutela que sobre eles exerciam os escrivães. (lima, 1997, p. 245).
Embora essas observações correspondam à realidade, o problema do funcio-
namento da justiça se desdobrava em várias questões diferentes.
A lenta tramitação e o excesso de centralização era um deles. Em 1 de setem-
bro de 1804 o coronel José Pereira de Castro encaminhou ao príncipe regente D.
João pedido de provisão para apresentar agravo ordinário na Casa da Suplicação de
Lisboa, de sentença proferida no Tribunal da Relação da Bahia. O processo, que se
iniciara na comarca de Pernambuco, fora em grau de recurso para Salvador, de onde
retornara à origem. Agora deveria ser encaminhado a Lisboa, para a apreciação de

27
debret, Jean-Baptiste. Casa provisória no
Catumbi no Rio de Janeiro.
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa
do. Debret e o Brasil: obra completa: 1816-
1831. 3. ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013.
p. 120.

mais uma instância, sendo que o pedido era apresentado ao Desembargo do Paço
pelo caminho do Conselho Ultramarino.2
Não era um caso isolado. Em outras situações o pedido seria examinado pela
Mesa do Desembargo do Paço que existia no próprio Tribunal da Relação da Bahia
(como ocorria também no Rio de Janeiro e em Goa) e que se constituía do gover-
nador da Relação (o governador geral ou vice-rei), do chanceler e do desembargador
de agravos mais antigo. Como dispunham de procuração definida no regimento do
tribunal para despachar em nome do rei, dispensava-se a ida a Lisboa. Sendo, porém
o recurso para a Casa da Suplicação, o processo seguia via Conselho Ultramarino
para o Desembargo do Paço e daí para o tribunal metropolitano.
O mesmo ocorreu com o negociante Francisco José da Costa Guimarães, tam-
bém sediado em Pernambuco, que pediu por intermédio do Conselho Ultramarino
ao Príncipe Regente a remessa dos autos de agravo para decisão sobre uma casa
herdada por sua mulher, causa que havia também tramitado em grau recursal na
Relação da Bahia.3
A realização dos inventários de bens aliás era particularmente tortuosa. Em
1777 José Inácio Alves Ferreira requereu à rainha para que o ouvidor José Vitorino
de Andrade pudesse fazer o inventário de bens em posse da viúva, sua mãe. Depen-
dendo do despacho, o processo poderia ir a Lisboa ou à câmara do Desembargo do
Paço no Tribunal da Relação de Salvador.4
Morosidade e centralização, no juízo dos próprios contemporâneos, estavam 2  Arquivo Histórico Ultramarino,
Conselho Ultramarino, 015, cx. 250, doc.
geminadas e exigiam o acionamento de influências, a quem fosse possível. Em 1807 16777. Doravante ahu,cu, 015.
o governador enviou ao secretário de Estado visconde de Anadia um processo re- 3  Idem, cx. 265, doc. 17728.
ferente a bens de uma viúva, com parecer favorável do ouvidor Clemente Ferreira 4  Idem, cx. 127, doc. 9650.

28
França, na condição de provedor dos defuntos e ausentes, com vistas para a Mesa da
Consciência e Ordens, por envolver parcialmente patrimônio eclesiástico.5
No mesmo ano Florência Bezerra Barbosa dirigiu-se ao príncipe regente so-
licitando que o Conselho Ultramarino, como tribunal superior revisasse os autos do
processo de homicídio de seu filho, para que fosse prolatada a sentença do réu pela
Junta de Justiça de Pernambuco, onde aguardava decisão.6 O requerimento não foi
enviado à Relação da Bahia ou à Casa da Suplicação, instâncias judiciais, porque se
encontrava bloqueado na Junta, presidida pelo governador.
No caso de contenciosos envolvendo quantias vultosas e situações diversifica-
das na área comercial era possível um esforço de consolidação, para preservação dos
bens e resolução dos processos. Esse foi o caso de duas causas de 1807. O negociante
Julião Gervásio de Aguiar requereu, já em grau de recurso, que todas as pendências
que tinha com o suplicado José Estevão de Aguiar nos juízos do Recife e Relação
da Bahia fossem remetidas ao tribunal da Junta de Comércio, ficando o governo de
Pernambuco responsável pela “boa arrecadação e segurança de todos os bens e ações
do suplicado”, para evitar prejuízos ao suplicante.7
Já o comerciante lisboeta João Antônio de Miranda solicitou que fosse nomeado
um juiz especial para todas as pendências que tinha com seu sócio José dos Santos
Ribeiro, em Pernambuco. Pedia que este juiz avocasse “todas as causas, bens, livros
e papéis pertencentes à mesma sociedade, para que se sentencie em uma única
instância”8.
Quantias vultosas e interesses poderosos também motivaram o ouvidor Cle-
mente Ferreira França a 20 de julho de 1807 a ponderar ao príncipe regente, no re-
querimento do senhor do engenho Pindorama, João Antônio Gomes, sobre a avaliação
da propriedade e benfeitorias após a compra, ser ele grande agricultor e o primeiro a
produzir café na capitania9.
Mesmo as rotinas submetiam-se a uma rígida centralização, desde sempre em
Lisboa, a partir de 1808 no Rio de Janeiro, o que normalmente implicava em atrasos
e reiteração de solicitações.
Os juízos de residência, sindicância a que se submetiam os ministros de letras
ao término do exercício de seu mandato – em geral, três anos, prorrogáveis ou re-
nováveis – deveriam ser solicitados pelo juiz de fora ou ouvidor ao cessarem suas
funções. O pedido era feito ao Desembargo do Paço, órgão responsável pelas carreiras
e movimentação dos magistrados. Como aconteceu com o ex-ouvidor de Pernam-
buco, Francisco Pereira de Araújo em 1752,10 elas frequentemente precisavam ser
reiteradas, o que era de interesse do juiz ou ouvidor, já que sua carreira não deveria
ficar com uma pendência dessa natureza.
O exercício da advocacia num país onde escasseavam os advogados letrados
5  Idem, cx. 267, doc. 17820. é também exemplo de centralização e demora, pois as solicitações com os docu-
6  Idem, cx. 265, doc. 17729. mentos comprobatórios deveriam dar entrada no foro – o auditório – local, sendo
7  Idem, cx. 264, doc. 17713
encaminhado pela autoridade, normalmente o governador da capitania, ao Conse-
8  Idem, cx. 269, doc. 17877.
9  Idem, cx. 267, doc. 17903. lho Ultramarino, para exame do Desembargo do Paço. A escassez de formados em
10  Idem, cx. 073, doc. 06171. direito era a alegação permanente para o pleito11.
11  Requerimento de Manoel Jácome Foi o que sucedeu ao bacharel em filosofia – e não em direito – Antônio Fer-
Bezerra de Menezes, de 22 de maio de
1805. Idem, cx. 257, doc. 17214. reira de Sousa Vieira que pediu em 1751 provisão para advogar nos auditórios da
12  Idem, cx. 71, doc. 05997. capitania de Pernambuco12. Ou ao padre Joaquim de Macedo, em 1804, que já atuava

29
no juízo eclesiástico e pedia “provisão vitalícia” para fazer o mesmo nos “auditórios
seculares”13
Poder-se-ia tratar também de um fato consumado, como expôs o padre José
Inácio de Abreu Lima, o padre Roma, que em 1807 pediu provisão para advogar em
Pernambuco, comprovando que já praticava o ofício com a aprovação pública e dos
magistrados14.
Entre o despacho do governador, a remessa do processo a Lisboa, o encaminha-
mento da secretaria do Conselho Ultramarino, a decisão do Desembargo, o recebi-
mento do Conselho e o retorno à capitania de origem no Brasil passava-se de um a
dois anos, se as circunstâncias fossem as mais favoráveis ao pleiteante.
Outra rotina administrativa que sofria com os procedimentos da máquina
portuguesa era a ocupação das serventias judiciais e cartorárias. Encaradas como
prebendas e periodicamente renovadas ou atribuídas em caráter vitalício, envol-
viam normalmente uma arrematação inicial sob a forma de donativo, cabendo ao
titular do ofício remunerar-se por meio dos emolumentos cobrados pelos registros,
atas, escrituras e mais documentos que produzia. Em certas circunstâncias, como
impedimentos de saúde, de viagem ou exercício de outros cargos, o oficial poderia
designar um serventuário para atuar em seu lugar, permanecendo, entretanto, a
prebenda em seu poder.
Foi o caso, em 1753, do meirinho da corregedoria da comarca de Pernambuco,
Manoel de Carvalho Fialho, subordinado ao ouvidor, a quem atendia nas correições,
que solicitou serventuário, sendo o processo instruído no Conselho Ultramarino,
onde recebeu parecer favorável15.
A sucessão familiar nos ofícios, se não era um direito líquido e certo, ocorria
com certa frequência em todo o Brasil e não foi diferente em Pernambuco. Em 1779
Cosme Varela, “proprietário encartado” dos ofícios de tabelião e escrivão do Crime
e Cível da ouvidoria de Olinda e Recife pediu à rainha Maria I a mercê do mesmo
ofício para seu filho, sublinhando que era “legítimo e primogênito”16. Não obstante,
essas condições, que se referiam à propriedade em geral pelas leis de sucessões
editadas à época pombalina, não se aplicavam aos ofícios públicos. Elas poderiam
certamente ser levadas em conta pela administração, como de fato ocorria, mas não
constituíam em si um título jurídico.
Em sentido inverso, mas com a mesma argumentação, no ano seguinte João
do Rego Barros pleiteou do secretário da Marinha e Ultramar Martinho de Melo
e Castro o direito a herdar de seu pai o ofício de Juiz da Alfândega e provedor da
Fazenda Real de Pernambuco17. Neste caso o problema era mais complexo, porque
em plena reação da Viradeira contra Pombal e sua política, procurava-se com tal
estratagema desfazer a extinção das provedorias das capitanias, levada a efeito pelo
ministro quando da criação do Erário Régio. O pleito representava nítido confronto
entre a nova política burocratizadora – em termos weberianos – do pombalismo e o
antigo modelo prebendário que havia caracterizado a administração pública portu-
guesa até então: em lugar dos velhos proprietários dos cargos públicos, procurava-se
colocar no lugar os novos membros da burocracia estatal.
Igualmente rotineira e centralizada era a atribuição a determinado magistra- 13  Idem, cx. 246, doc. 16496.
14  Idem, cx. 270, doc. 17063.
do da conservatória de certos interesses, de modo que fosse o juizado privativo das
15  Idem, cx. 074, doc. 06229
causas a eles atinentes. Não havia atribuição automática dos encargos, pois estes 16  Idem, cx. 134, doc. 10060.
tinham de ser solicitados pelo interessado ao rei – isto é, ao Desembargo do Paço 17  Idem, cx. 138, doc. 10623.

30

.
pela mesma via do Conselho Ultramarino. Assim, o contratador do estanco do sal
em Pernambuco, Baltasar Simões Viana, pediu em 1751 ao rei uma nova provisão
para confirmar o juiz de fora João Rodrigues Colaço como juiz conservador de seu
contrato18.
Traço de natureza estrutural da administração do Antigo Regime era a atri-
buição de atividades extrajudiciais aos magistrados letrados, fossem juízes de fora,
ouvidores ou desembargadores das Relações. Esse fato os tornava, além de agentes
judiciais, em funcionários com responsabilidades administrativas e mesmo políticas.
A demarcação das terras de particulares era uma delas. Em 6 de outubro de
1804 o capitão mor José Pereira da Costa Junior e outros solicitaram pelo mesmo
caminho do Conselho Ultramarino e Desembargo do Paço que fossem demarca-
das suas terras localizadas em Palmas, freguesia de Bom Jardim, indicando como
possíveis demarcadores o bacharel Antônio de Morais e Silva, o desembargador
Manoel Leocádio Rademaker ou o ex-juiz de fora de Olinda e Recife, José Ferreira
de Castelo Branco19.
O pedido de demarcação poderia estender-se a outra comarca. Em 1807 Marga-
rida Luzia Gonçalves de Macedo pediu ao ouvidor de Pernambuco que ele ou qualquer
desembargador demarcasse suas terras do engenho Sambá, situado em Porto Calvo,
na comarca de Alagoas20.
Atividade frequente e rendosa para os ouvidores de Pernambuco era a emis-
são de passaportes, quer para viagens a Portugal, quer para deslocamentos a outras
capitanias21. Em se tratando de menor de 25 anos não emancipado, a autorização
implicava numa licença especial emitida pela mesma autoridade22.
Nas cidades portuárias onde havia tribunais da Relação, como Salvador e Rio
de Janeiro, a atribuição de inspecionar os navios chegados ao porto era dos desem-
bargadores, encargo mais tarde passado para a polícia. (wehling; wehling, 2004, p.
367). No Recife a responsabilidade era dos ouvidores. A atividade, supervisionada
pelo magistrado e executada pelo juiz da visita do ouro consistia, conforme a descri-
ção feita por um desses oficiais, Pedro Duarte da Silva, na remessa ao governador
da capitania e ao Conselho Ultramarino da lista de passageiros, da correspondência
e do resumo das cargas23.
O movimento do porto e a frequência com que os ouvidores tinham de aten-
der à solicitação, em especial devido à presença de navios estrangeiros, fez com que
o ouvidor Clemente Ferreira França, em abril de 1807, propusesse ao governador
Montenegro um roteiro de procedimentos para as visitas aos navios, incluindo a
definição do perfil dos eventuais juízes e seus salários24.
Acusações sobre arbitrariedades praticadas pelos ministros de letras como juízes
de fora, ouvidores e desembargadores não eram raras na administração portuguesa
e um dos objetivos dos juízos de residência era identificá-los e puni-los. Favore-
cimento às partes, prevaricação, negligência na condução dos processos e várias
18  Idem, cx. 072, doc. 06082.
formas de corrupção aparecem nos documentos e eram voz corrente na sociedade
19  Idem, cx. 251, doc. 14737.
20  Idem, cx. 265, doc. 17726.
colonial. Uma petição, encaminhada pelo governador Caetano Montenegro ao Con-
21  Idem, cx. 253, doc. 14895. selho Ultramarino em 22 de maio de 1805, desnudava um dos tipos de corrupção.
22  No caso, o ouvidor Clemente Ferreira O documento discutia parecer a respeito das denúncias de Estanislau Pereira
França. O pedido foi de 21 de abril de
1807. Idem, cx. 267, doc. 17812. de Oliveira, distribuidor, inquiridor e contador da ouvidoria de Pernambuco, sobre
23  ahu-cu, 015, cx. 267, doc. 17862. o fato de os ouvidores da comarca se apropriarem (usurparem, na denúncia) os ren-
24  Idem, cx. 267, doc. 17816. dimentos dos seus ofícios. No organograma administrativo era possível à mesma

31
pessoa acumular os três ofícios e seus emolumentos, mas não a autoridade judiciária,
sobretudo em se tratando da própria comarca de exercício.25
Um dos aspectos mais marcantes da administração colonial, não apenas ju-
diciária nem limitada a Pernambuco, foi o conflito entre autoridades, geralmente
devido a problemas de jurisdição que o empirismo da administração facilitava.
Conflitos entre câmaras municipais, juízes de fora e ouvidores conturbavam
suas relações e repercutiam no Conselho Ultramarino. Em 3 de abril de 1751 os
vereadores da câmara de Olinda representaram ao rei contra o ouvidor Manuel da
Fonseca Brandão, que replicou em agosto do mesmo ano, dando conta da devassa
que tirou da câmara por ocasião da correição feita. Estavam em discussão eleições,
remunerações e procedimentos administrativos dos vereadores tidos como indevi-
dos pelo magistrado26.
O relacionamento de Brandão com a câmara do Recife foi sensivelmente me-
lhor, pois pela mesma época esta peticionou ao rei sobre dúvidas na jurisdição ecle-
siástica e secular, destacando os bons ofícios do desembargador e solicitando para
permanecesse na vila, “para o sossego da população”27. Não é difícil perceber nos
conflitos a marca da antiga rivalidade entre Olinda e Recife e de seus respectivos
grupos econômicos e políticos. Quanto a Brandão, desembargador da Relação da
Bahia e interinamente na ouvidoria, logo foi deslocado para o Rio de Janeiro, a fim
de participar da instalação do segundo tribunal da colônia, onde chegou a 16 de
junho de 1752.
De qualquer modo a câmara de Olinda reiterou sua posição, pois ainda em 1752
pedia ao rei que enviasse uma junta de desembargadores das relações da Bahia e do
Rio de Janeiro para dirimir os problemas que persistiam28.
As correições e o poder eminente que tinham os magistrados com as câmaras
eram sempre fonte potencial de atrito, por todo o país. Pela mesma época em que o
ouvidor Brandão teve problemas em Olinda, o juiz mais velho da capitania de Ita-
maracá, Estevão de Castro Rocha, enviou a Lisboa as queixas dos vereadores contra
o juiz de fora e corregedor José Ferreira Gil, devido a excessos que teria praticado
por ocasião das eleições à câmara municipal29.
Os conflitos entre câmaras e autoridades judiciais revelavam às vezes as de-
savenças entre os proprietários rurais e as políticas governamentais ou a ação de
seus agentes, já que os homens bons eleitores e eleitos à vereança eram basicamente
egressos dessa camada. O governo das vilas e povoados, por sua vez, também os
representavam, já que era exercido pelos capitães mores. Um deles, Antônio José
Marques, oficiou à rainha em 30 de agosto de 1778 pedindo provisão para ajuizar
ação contra o ouvidor da capitania, Francisco José de Sales, acusando-o de abuso
de autoridade30. 25  Idem, cx. 257, doc. 17.214.
Eram também nevrálgicas as relações entre as autoridades civis e eclesiásticas, 26  Idem, cx. 072, doc. 06018.
particularmente ao longo do século xviii, quando se acentuou a política regalista 27  Idem, cx. 072, doc. 06028.
de enquadramento da Igreja. A propósito das queixas da câmara do Recife face à 28  Idem, cx. 073, doc. 06139.
29  Ofício de 18 de abril de 1751. Idem,
jurisdição eclesiástica, o ouvidor Manoel da Fonseca Brandão as endossou, concor- cx. 072, doc. 06026.
dando em que era abusiva a remuneração dos juízes eclesiásticos e condenando a 30  Idem, cx. 127, doc. 09652.
criação, pelo bispo de Pernambuco, D. Luís de Santa Tereza, do ofício de corredor de 31  Ofício de 18 de abril de 1751. Idem,
cx. 073, doc. 06099.
folhas31. O conflito envolveu também o juiz de fora de Olinda, Antônio Teixeira da 32  Ofício de 30 de junho de 1752. Idem,
Mata, contra quem o bispo representou junto ao governo metropolitano32. cx. 073, doc. 06118.

32
Anos depois, em 1778, ainda no contexto da política regalista ocorreu o cho-
debret, Jean-Baptiste. Uma tarde na
praça do Palácio. que entre o vigário colado da igreja de S. Pedro Gonçalves, do Recife, frei João da
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa Cunha Menezes, e o governador da capitania, João Cesar de Menezes, a partir de
do. Debret e o Brasil: obra completa: 1816-
uma representação feita pelo sacerdote contra ele na Mesa da Consciência e Ordens.
1831. 3. ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013.
p. 173. O secretário de Estado Martinho de Melo e Castro ouviu o bispo de Pernambuco
D. Tomás da Encarnação Costa Lima e a defesa do governador,33 mas solicitou ao
ouvidor de Pernambuco, João Marcos de Sá Barreto Souto Maior, que examinasse
as acusações mútuas e desse seu juízo sobre o assunto34.
Embora não fosse frequente, a solicitação do secretário de Estado mostra a
confiança de que gozava em Lisboa o magistrado, ao opinar sobre as razões do re-
clamante e eventuais excessos do governador.
Ocorriam também conflitos entre autoridades judiciais. A Junta Governativa de
Pernambuco, em 1804, suspendeu do cargo o ouvidor Manoel Leocádio Rademaker,
acusando-o de procedimentos ilegais, arbitrários e abusivos. Uma das principais
peças acusatórios foi o depoimento de seu antecessor, o ouvidor Gregório José da
Silva Coutinho35.
No mesmo ano o novo governador, Caetano de Miranda Montenegro, recém
33  Idem, cx. 131, doc. 09899. empossado, teve de enfrentar o conflito entre o ouvidor também recém empossado,
34  Idem, cx. 130, doc. 09831. João de Freitas e Albuquerque, e a câmara do Recife. O ouvidor decretou a prisão do
35  Idem, cx. 247, doc. 16577. almotacel do Recife, Antônio José Alves Ferreira, que nessa condição era um funcio-
nário do órgão. No imbróglio o governador, que era também um letrado, definiu-se

33
pelas razões da câmara, considerando que os conflitos de competência entre ela e a
ouvidoria levaram o magistrado à prática de decisões arbitrárias.36
Deve, entretanto, ser observado que os ouvidores não tinham subordinação
hierárquica aos governadores, embora as Juntas de Justiça fossem por eles presididas.
A determinação foi explicitada numa provisão régia de D. João v, de 26 de maio de
1732. (costa, 1983, v. 1, p. 586).
A tendência das autoridades à extrapolação de seus poderes fazia com que se
desencadeasse um complexo mecanismo de pressões e contrapressões e consequen-
temente de negociação. Se os magistrados e os governadores costumeiramente eram
acusados de praticar excessos, também às vezes exerciam papéis de moderadores
e árbitros. Quando houve representação de moradores da capitania do Rio Grande
do Norte contra o arbítrio do governador, Joaquim de Almeida Henriques, o gover-
nador Caetano Miranda Montenegro, à qual aquela estava subordinada, informou
sobre o assunto em 4 de maio de 1805 ao secretário de Estado visconde de Anadia,
posicionando-se com base no parecer do ouvidor da Paraíba João Severiano Maciel
da Costa, para quem a autoridade questionada fora violenta e opressiva em relação
à população37.
O testemunho de Tollenare coincide em grande parte com o que transparece
da documentação de época. Mais uma vez se ressalta a diferença entre o mundo
luso-brasileiro formal e o real.
O autor francês destacava a qualidade das leis portuguesas e dos operadores
jurídicos formados em Coimbra. Ressalvava, porém, que “todos estes cuidados toma-
dos por uma boa legislação são quase inúteis; o fato leva aqui de vencida o direito
[...]” (tollenare, 1978, p. 92).
O distanciamento entre o país formal e o país real, ou na expressão do viajante,
entre o direito e o fato, se explica por diferentes razões que se referem à organiza-
ção da sociedade e à própria geografia. A avaliação de duas altas autoridades como
João Severiano Maciel da Costa, à época ouvidor da Paraíba e do governador Caetano
Pinto de Miranda Montenegro, ao término de sua viagem por terra de Mato Grosso
a Pernambuco para assumir o governo da capitania, conflui para a mesma conclu-
são. Ambos consideravam a força dos principais da terra e o isolamento geográfico
como os principais obstáculos à ação governamental e da justiça.
Estabeleceu-se assim um aparente paradoxo: a fraqueza da administração
portuguesa em chegar aos rincões do sertão num país em que a grande propriedade
era a tônica e ao mesmo tempo uma centralização tida como excessiva pelos con-
temporâneos. As câmaras municipais, dizia Tollenare, não tinham autonomia, tudo
se regulava por Lisboa (e logo pela Corte fluminense) e as decisões políticas e admi-
nistrativas não levavam em conta as diferenças locais – Recife pagava, lembrava o
mesmo autor, o imposto de iluminação do Rio de Janeiro. (tollenare, 1978, p. 97).
Ambos os traços antecediam de muito os governos do início do século xix
e continuaram presentes no Brasil independente e liberal-constitucional e nesse
sentido são estruturais. O mesmo se pode dizer de algumas rotinas, como o pro-
visionamento de advogados no foro ou as prebendas cartorárias. Já as atribuições
extrajudiciais dos magistrados perderam boa parte de sua razão de ser com a se- 36  Ofício de Caetano Montenegro ao
visconde de Anadia, de 17 de agosto de
paração constitucional de poderes, o que por sua vez contribuiu para a diminuição 1804. Idem, cx 250, doc. 16753.
dos conflitos de jurisdição e competência. 37  ahu-cu, 015, cx. 254, doc. 14935.

34
4. O rascunho de uma nova política e a ação joanina

A viagem que o governador nomeado para a capitania de Pernambuco, Caetano Pinto


de Miranda Montenegro, fez de Cuiabá a Recife pelo sertão contribuiu em muito não
só para dar-lhe novas perspectivas em relação às necessidades do governo, como
orientou algumas das disposições do governo português na matéria, especialmente
após a transferência da Corte para o Rio de Janeiro.
Em ofício que enviou a 22 de julho de 1805, ano seguinte a sua chegada a
Pernambuco, ao secretário da Marinha e Ultramar Visconde de Anadia, descreveu
o que viu no sertão sob a ótica de um administrador ilustrado, propondo soluções
que se viabilizariam alguns anos depois, servindo também de modelo para a apli-
cação por todo o Brasil.
Montenegro falava no isolamento dos povoadores, nas dificuldades para serem
feitas as correições de justiça pelas distâncias a enfrentar e acúmulo de funções
dos ouvidores, nos conflitos de jurisdição em regiões pouco conhecidas e mal de-
limitadas e nos abusos perpetrados por aqueles que dispunham do poder local. Em
síntese, constatava a ausência de governo no interior das capitanias de Pernambuco
e da Bahia.
A solução, para ele, consistia em polícia e exata dimensão da justiça. O concei-
to ilustrado de polícia dá bem a dimensão do que tinha em mente: racionalização
das atividades, consideração das distâncias geográficas, articulação das diversas
jurisdições, aplicação e observância das leis, tudo com o objetivo, em suas palavras,
de unir e apertar mais os vínculos da associação civil.
Para tal fim sugeriu três providências: a criação de vilas no interior, com a
promoção institucional de alguns povoados ou julgados; a criação de uma nova co-
marca que cobrisse as necessidades do interior; e a disponibilidade de uma pequena
força militar – 31 soldados, propunha - capaz de fazer “respeitar os magistrados” e
“perder a esperança da impunidade” “aos transgressores” (costa, 1983, v. 7, p. 185).
Previa ainda o montante das despesas e os recursos para cobri-las a partir de
três fontes: a cobrança de imposto sobre a produção de sal da terra, de pedágio das
barcas no rio São Francisco e do foro das sesmarias. Esta terceira fonte implicava
em conflito com a Casa da Torre, que se apossara – na expressão do autor – irre-
gularmente dessas terras e cobrava o foro aos sesmeiros. Mas Caetano Montenegro
prevenia que já no início do governo de D. José, em 1753, tinha sido expedida pro-
visão (anexa ao ofício) mandando disciplinar o assunto.
A proposta do novo governador de Pernambuco poderia ser apenas mais uma
sugestão passada ao governo português por um bem intencionado administrador de
inspiração iluminista, de várias que estão nos arquivos oficiais. Mas ela não só foi
praticamente toda adotada com relativa brevidade, como serviu de paradigma para
medidas semelhantes tomadas por todo o Brasil.
Para isso foi preciso que um fato novo modificasse radicalmente o curso dos
acontecimentos: o estabelecimento da Corte portuguesa no Rio de Janeiro.
Instalada no Rio de Janeiro, a Corte precisou alterar a política tradicionalmente
seguida em assuntos brasileiros, a de governar de Lisboa com vários eixos políti-
co-administrativos para as “grandes capitanias”, as capitanias-gerais que eram as
mais importantes unidades da colônia. (wehling, 1986, p. 49).

35
Centralizar a administração em Lisboa e dividir a administração colonial, a
despeito das dimensões do Brasil, foi a política de quase três séculos, com a qual
conviveram os governadores-gerais e vice-reis. Estes, mesmo quando reivindicaram
a subordinação dos demais governadores o máximo que conseguiram foi a afirmação
de uma certa preeminência, que na prática pouco significava. (wehling, 2015, p. 26).
O deslocamento da Corte e da administração central para o Rio de Janeiro in-
verteu essa lógica, como percebeu Silvio Romero. Embora para efeito externo tenha
sido usado o argumento de que o cerne do Estado português apenas se interiorizara
em seus próprios domínios com a vinda para o Brasil, o efeito interno teve logica-
mente de ser o desenvolvimento de uma nova política, a de centralização a partir
do Rio de Janeiro e não mais de Lisboa.
Os eixos administrativos que ligavam as capitanias-gerais diretamente a Lis-
boa se redirecionaram para o Rio de Janeiro num movimento a princípio puramente
empírico, cuja consolidação foi tornando evidente que uma série de ajustes preci-
sariam ser feitos na administração pública, de modo a viabilizar a nova situação.
Ajustes nas áreas militar, fazendária, judicial e da administração central ti-
veram de ser concretizados para que a Corte no Rio de Janeiro atuasse com um
mínimo de funcionalidade.
Dada a importância da máquina judicial no Antigo Regime, foi a partir dela que
se traçou – rapidamente, para os padrões da época e os traços pessoais atribuídos
ao príncipe-regente, como indefinição e hesitação – um desenho de centralização
focado na administração da justiça, mas com claros desdobramentos de natureza
política e econômica. (wehling, 2010, p. 219).
Centralizar para viabilizar a monarquia em seu novo centro de equilíbrio;
usar a justiça para este objetivo, foram a finalidade e o meio pelos quais optou o
governo joanino no Rio de Janeiro.
A política consequente optou por três etapas, duas das quais simultâneas: a
criação de vilas com seus juízes leigos, a de juizados de fora e ouvidorias com seus
magistrados profissionais e em seguida a criação de dois novos tribunais de apela-
ção, um no Maranhão, outro em Pernambuco.

5. As vilas e a justiça ordinária na política de centralização

Na organização político-administrativa luso-brasileira as unidades básicas da esfera


pública foram a capitania, com o governador, a câmara municipal, com seus juízes
e demais funcionários, a comarca, com os ouvidores e o bispado, com as fregue-
sias. (boxer, 1973, p. 275). A câmara institucionalizava e oficializava a vida social,
estratificando a propriedade rural, o comércio e as atividades artesanais, enquanto
o governo se espraiava desde o núcleo dirigente (o próprio governador, auxiliares
diretos da administração civil e fazendária e, quando existia, tropa de primeira
linha) à esfera judicial e eclesiástica.
Tanto o governo na cúpula quanto o município na base exerciam todas as funções
que a partir do constitucionalismo se subdividiram em executivas, legislativas e
judiciárias. Assim, havia atos e procedimentos com essas características em pra-
ticamente todas as instituições, fossem do governo, fossem do município, variando
seu grau e número, mas não seu gênero. Desse modo, a norma legislativa era da

36
competência de ambas as esferas, embora naturalmente as da administração cen-
debret, Jean-Baptiste. Dom João VI e D.
Carlota Joaquina. tral fossem em maior extensão e número, mas as leis, decretos, avisos e alvarás
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do governo tinham sua contrapartida municipal nos bandos, posturas e editais das
do. Debret e o Brasil: obra completa: 1816-
1831. 3. ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. municipalidades.
p. 333. Desde fins do século xvii o fortalecimento do poder real em Portugal acentuou
a centralização, estimulada ao longo do século seguinte pela adesão de uma elite
político-administrativa fortemente afrancesada aos ideais racionalistas. (subtil, 1993,
p. 157; antigo, 1993, p. 157; hespanha, 1989, p. 404). No plano do governo, esses ideais
consistiam basicamente na racionalização da máquina estatal, o que implicava o
seu redimensionamento, a introdução de práticas derivadas de planejamento e não
mais puramente empíricas ou reativas e a formação de quadros profissionais para
o exercício de parte das funções públicas. (seelaender, 2003, p. 65).
Quando a Corte joanina chegou ao Brasil, essa nova mentalidade já estava
fortemente enraizada na cúpula do Estado português, em especial após o governo
do marquês de Pombal e de seus sucessores.
Dada a importância das câmaras municipais e das ouvidorias de comarca,
espalhadas por um território continental, foi bastante razoável que a política de

37
centralização definida a partir do Rio de Janeiro não só começasse por elas, como
nelas tivesse sua maior expressão. Portanto, criar vilas e comarcas foi uma política
nova, diferente do crescimento vegetativo que até então se observava: a demografia
e a expansão das atividades econômicas eram os argumentos apresentados sempre
que se pleiteava uma e outra coisa. Tais argumentos continuaram sendo apresenta-
dos, mas nesta conjuntura com uma finalidade: tornar o poder público, agora sediado
no próprio Brasil, mais presente em relação às capitais das capitanias e ao interior
do país, um país que era quase todo sertão.
Estabelecer novas vilas aumentava a presença do Estado, ainda que nelas atu-
asse mais o poder dos potentados locais do que o poder central, pois representavam
o rei, sempre presente em espírito e em efígie nas salas de reunião das câmaras. As
vilas, administradas pelas câmaras, tinham entre seus dirigentes principais dois
juízes municipais eleitos periodicamente, com funções judiciais, mas também ad-
ministrativas e legislativas. Eram os responsáveis não só pela defesa dos interesses
locais, como pela implementação das normas e políticas da monarquia, entre elas
- a mais importante na retórica oficial – a aplicação da justiça. Neste sentido eram
delegadas concessionárias de uma das funções majestáticas, a que consistia em, por
meio da justiça, manter o equilíbrio social e realizar o ideal da societas christianae. 38
Entretanto, havia uma realidade sociológica a considerar, tanto em Portu-
gal quanto, principalmente, no Brasil: uma sociedade agrária, demograficamente
rarefeita, disseminada num largo território, com poucos pontos de adensamento,
tornava difícil uma administração da justiça nos moldes idealizados pela legislação.
Esse condicionamento fazia com que as vilas, com seus juízes ordinários e
demais funcionários, fossem a sede de um vasto termo municipal, que teoricamente
centralizava fazendas e povoações ou aldeias distantes. Chegou a haver no Brasil
colonial uma espécie de hierarquia que classificava os núcleos em arraiais, que po-
deriam ou não ter continuidade, aldeias ou povoações e as vilas propriamente ditas.
Para a capilaridade da administração da justiça, previa-se já em Portugal além
do juiz ordinário municipal os juízes de vintena, moradores dos povoados esco-
lhidos pela câmara para essa investidura e que decidiam sobre causas de pequena
monta, com alçada diminuta. Esses povoados possuíam assim um julgado, como
ensinou Pereira da Costa a propósito de Pernambuco: “povoação sem pelourinho
nem privilégio de vila, posto que tenha juiz e justiça própria”. A carta de régia de
20 de janeiro de 1699 criou uma vara dessa modalidade em todas as freguesias do
sertão. (costa, 1983, v. 4, p. 515).
O estabelecimento das vilas, embora fosse de iniciativa governamental, podia
ser solicitada pelos próprios moradores, que viam nele um caminho para a valoriza-
ção do povoado e de seus habitantes, pois os cargos e ofícios que a acompanhavam
eram muitos deles nobilitantes, o que implicava, na sociedade estamental, na pro-
moção social de seus titulares e descendentes. Mesmo em áreas afastadas fazia-se
a solicitação, como aconteceu em 1751 na frente de colonização dos Cariris Novos,
38  Para o Recife, o assunto está
que foi justificada pela necessidade de juízes ordinários para dirimir os pleitos. O estudado e atualizado em George Cabral
governador da capitania Luís José Correia de Sá endossou o pedido e o encaminhou de Souza, Os homens e os modos de
governança: a câmara municipal do Recife
ao secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte Real para a devida autorização.39 no século xviii, Recife, Câmara Municipal,
Na “descompassada extensão da comarca de Pernambuco”, que se constituiu 2003 e Elite e exercício do poder no Brasil
colonial: a câmara municipal do Recife
na principal preocupação do governador Caetano Miranda Montenegro no início de (1710-1822), Recife, ufpe, 2015.
sua administração, havia por mais de 200 léguas apenas 3 vilas (“ainda que duas 39  ahu-cu-015, cx. 071, doc. 06010.

38
não mereçam tal nome”) e 6 julgados para 30.000 habitantes, tendo como consequ-
ência uma “justiça muito mal administrada [...] [e] pouca segurança.” (costa, 1983,
v. 7, p. 183).
Parte dessa área, na confluência do Rio Grande com o São Francisco, teve
uma expansão econômica rápida na primeira metade do século xviii, acelerado
pela exploração mineradora, tornando-se um polo comercial sertanejo que ligava
as capitanias de Pernambuco e Bahia às de Minas Gerais, Goiás, Piauí e Ceará. Por
esse motivo a então freguesia de São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande
do Sul foi elevada à vila em 1 de dezembro de 1752 pelo rei D. José I. Como acontecia
com frequência no Antigo Regime, a vila passou a responder no âmbito civil, ecle-
siástico e militar à capitania de Pernambuco e no judicial à comarca de Jacobina,
pertencente à Bahia. A nova unidade administrativa foi instalada, como era praxe,
pelo ouvidor Henrique Correia Lobato em 29 de agosto do ano seguinte (costa, 1983,
v. 5, p. 297) atribuindo-se dois julgados às povoações de Campo Largo e Pilão Arcado
(costa, 1983, v. 7, p. 183).
A opção pelo vínculo com a comarca de Jacobina se devia à sua proximidade
à nova vila, facilitando a circulação dos processos.
Mais tarde, em 1786, foi criado pelo ouvidor de Jacobina, Florêncio Morais Cid,
o julgado de Carinhanha (costa, 1983, v. 7).
A longa viagem do governador designado de Pernambuco Caetano Miranda
Montenegro deu-lhe a dimensão do problema representado pelo desgoverno do in-
terior. Convenceu-se de que a maneira de fazer o Estado mais presente na região
seria criar mais uma comarca e pelo menos mais duas vilas. Sugeriu para tal fim
três locais: a vila de Barra de São Francisco, Pilão Arcado e Flores, sendo que estas
deveriam passar de julgados a vilas, enquanto a comarca poderia ser instalada em
qualquer delas, avaliando os prós e contras de cada uma (costa, 1983, v. 7 p. 186-187).
Poucos anos depois as modificações sugeridas foram adotadas pela Corte jo-
anina sediada no Rio de Janeiro, e numa dimensão maior, porque transformadas
numa política que deixava de ser regional, para assumir a dimensão geral da colônia.
Num mesmo alvará, datado de 15 de janeiro de 1810, foram criadas a nova
comarca e elevados à vila os julgados de Pilão Arcado e Flores do Pajeú. Os argu-
mentos constantes do documento foram os mesmos apresentados por Caetano Mi-
randa Montenegro, isto é, o dilatadíssimo território, a dificuldade para o ouvidor de
Pernambuco fazer as devidas correições e a “mais exata administração da justiça
aos seus moradores.” (santos, 1981, v. 1, p. 245-246).
Não parece haver dúvida sobre o fato de o então governador de Pernambuco
ter sido fator decisivo para a solução, não só pela semelhança entre ela e o diag-
nóstico apresentado em 1805. Sabemos que, bem impressionado com a atuação de
Montenegro, D. João o chamou ao Rio de Janeiro, para onde se dirigiu em fevereiro
de 1808 e de onde regressou somente em setembro, deixando em seu lugar uma
Junta Governativa composta pelo ouvidor Clemente Ferreira França, pelo bispo e
pelo brigadeiro comandante da tropa de linha (costa, 1983, v. 7, p. 114).
Outras promoções à vila se seguiram em Pernambuco. Em 19 de março de 1811
foi atendida antiga reivindicação dos moradores do povoado de Garanhuns, elevan-
do-o também à vila, a partir de solicitação ao Rio de Janeiro feita pelo governador
(costa, 1983, v. 7, p. 72). Em 27 de julho seguinte foram elevadas as povoações de
Cabo de Santo Agostinho, Santo Antão, Pau d’Alho e Limoeiro, antes dependentes

39
de Olinda, Recife e Igaraçu. A medida foi justificada pelo aumento da população,
debret, Jean-Baptiste. Guardas do
atribuindo-se às novas vilas “todos os privilégios concedidos às mais vilas”, além Palácio.
de dois juízes ordinários, cinco vereadores, um procurador e dois almotaceis, além Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa
do. Debret e o Brasil: obra completa: 1816-
dos funcionários (santos, 1981, v. 1, p. 281).
1831. 3. ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013.
Todos os atos de criação das vilas correspondiam a solenes instalações pelos p. 254.
ouvidores das comarcas em cuja circunscrição se encontravam, José Marques da
Costa na comarca do Sertão (costa, 1983, v. 7, p. 315) e Clemente Ferreira França
na de Recife (costa, 1983, v. 7, p. 324). Discriminavam-se na instalação as fontes
de renda que sustentariam a municipalidade e determinava-se a eleição em lista
tríplice do capitão-mor, para ser submetida ao governador.
Apesar de ver atendida na maior parte sua proposta, Montenegro não se deu
por satisfeito e em correspondência ao novo ouvidor da comarca do Sertão instou
para que se criasse a nova vila de Garanhuns e talvez as de Taracatu e Campo Lar-
go, ao mesmo tempo que acionou a Corte, sendo logo atendido (costa, 1983, v. 7, p.
272). No caso das novas vilas da comarca de Recife, seu papel também foi decisivo
(costa, 1983, v. 7, p. 313).
Quando em 1820 criou-se a comarca do São Francisco, no contexto da mesma
política, a povoação de Campo Largo foi elevada à vila.

40
6. Juizados de fora e ouvidorias na política de centralização

Antiga instituição portuguesa, os juizados de fora somente foram introduzidos no


Brasil na virada do século xvii para o século xviii, numa primeira tentativa de en-
quadramento mais formal dos grupos locais, já que este magistrado oficial, formado
em Coimbra, deveria presidir a câmara municipal da vila ou cidade onde atuasse.
Já as ouvidorias de comarcas envolvem certa polissemia. No século xvi chegou
a existir um ouvidor geral do Brasil junto ao governador geral, cargo tornado su-
pérfluo quando da criação do Tribunal da Relação da Bahia, em 1609. O mesmo não
se pode dizer dos ouvidores de capitanias particulares, que continuaram existindo
até a extinção destas no século xviii. Simultaneamente foram criadas as ouvidorias
de comarcas nas capitanias oficiais que, na medida do seu crescimento, comporta-
ram mais de uma comarca em seu território, como aconteceu com a capitania de
Pernambuco e a do Sertão.
O cargo de Juiz de Fora de Pernambuco foi criado pelo alvará de 28 de janeiro
de 1700, recebendo seu titular ordenado semelhante ao da Bahia, também recém
criado. A fonte tributária assinalada no ato era um novo imposto, sobre couros e
solas. O primeiro juiz, com jurisdição na cidade de Olinda e na vila de Recife ocupou
o cargo dois anos depois.
O juiz de fora deveria reger-se pelo regimento dos juízes ordinários das câ-
maras, que se encontrava nas Ordenações. Em seus impedimentos assumia o cargo
o vereador mais velho, que se tornava o “juiz de fora pela lei” (costa, 1983, v. 4, p.
514). Foi fórmula frequentemente usada por todo o Brasil quando se dava a vacân-
cia do cargo.
Mais tarde, em 1731, foi introduzido nas ilhas do Atlântico e no Brasil o juizado
de órfãos, magistratura em geral assumida cumulativamente pelos juízes de fora.40
Embora às vezes interpretada como grande elemento centralizador da monar-
quia portuguesa, a figura do juiz de fora ao longo do século xviii esteve longe de
cumprir esse papel. Quando da chegada da Corte ao Brasil havia apenas 13 juizados,
vários dos quais em cidades como Salvador e Rio de Janeiro, ou seja, em locais aonde
já se fazia sentir com maior peso a ação governamental.
No caso de Pernambuco, o próprio príncipe regente, ainda em Portugal, em
1804, dividiu o juizado de Olinda, estabelecendo num órgão o do Cível e Crime, a
auditoria dos regimentos e a procuradoria da Coroa e Fazenda e noutro o Juízo de
órfãos, a provedoria de defuntos e ausentes, capelas e resíduos e o Juízo do Fisco41.
Isso não significava necessariamente que existiriam dois juízes, pois os órgãos po-
deriam ser ocupados cumulativamente pelo mesmo juiz de fora, como normalmente
ocorria, o que lhe aumentava os proventos.
De qualquer modo, o procedimento era o de, a cada nomeação, discriminar os
cargos para os quais o magistrado era designado. A ausência deste cuidado gerou
algumas crises, como a violenta polêmica que opôs o juiz de fora do Rio de Janeiro
e cronista Baltasar da Silva Lisboa ao superior da Ordem do Carmo, pelo fato de
aquele não dispor do ato de nomeação para a provedoria de defuntos e ausentes
(wehling; wehling, 2004, p. 457).
Também de acordo com a prática casuística da administração portuguesa, po-
40  Alvará de 2 de maio de 1731. Idem,
vol. iv, p. 515. deria ocorrer que apenas uma das atividades fosse exercida por outro nomeado. Foi
41  ahu-cu, o15, cx. 248, doc. 16667. o que ocorreu poucos anos depois da divisão do juizado de Olinda, em 1807, quando

41
o bacharel Francisco de Brito Cavalcanti de Albuquerque, que exercia interinamente
o cargo de auditor dos regimentos, requereu sua confirmação nas funções.42
Com a instalação da Corte no Rio de Janeiro desencadearam-se várias ações
centralizadoras, dentro de uma clara política de Estado em relação ao assunto. Uma
delas, e possivelmente a mais extensa e mais eficaz, foi a criação de novos juizados
de fora e comarcas.
Considerados o ano inicial e final da presença de D. João e da Corte no Brasil,
os juizados de fora passaram de 13 a 51 e as comarcas de 21 a 28. No caso daque-
les, se em 109 anos foram criados apenas 13, em 13 anos surgiram 38, denotando
uma política claramente concebida e sistematicamente implementada. (wehling;
wehling, 2013, p. 633).
A consulta ao mapa permite perceber, também, que justapostos juizados de
fora e comarcas, o aumento não era apenas quantitativo, mas representava um ní-
tido esforço de centralização, diminuindo as distâncias no interior entre as sedes
dos órgãos.
A primeira medida atinente à justiça pernambucana ocorreu no mesmo ano
da chegada da Corte e com a presença de Caetano Montenegro no Rio de Janeiro. Em
1 de agosto o príncipe regente determinou, a partir da informação do governador,
segundo diz o próprio documento oficial, a extinção da antiga ouvidoria de Itama-
racá, substituindo-a por um juizado de fora. O motivo alegado foram os “conflitos de
jurisdição com as justiças da terra” (santos, 1981, v. 1, p. 216), que ocorriam porque
até o século xviii Itamaracá permanecera como capitania particular. Quando de sua
incorporação a Pernambuco o órgão fora mantido, sobrepondo-se a outras jurisdições.
A criação de um juiz de fora, vinculado à comarca de Pernambuco, contribuiria,
nessa ótica, para imprimir maior funcionalidade à ação da justiça.
No restante do Brasil esse movimento de criação de novos órgãos judiciais -
juizados de fora e comarcas - acelerou-se a partir de 1810, inaugurado em janeiro
pela criação da comarca do Sertão de Pernambuco. Quanto a esta capitania, a alte-
ração mais significativa no âmbito dos juízes de fora foi a separação das jurisdições
do juiz de fora do Recife e de Olinda, quando da criação desta comarca, em 18 de
maio de 1815.
As remunerações dos juízes de fora de Goiana (1808), de Nossa Senhora das
Neves na Paraíba (1813) e Penedo em Alagoas (1815) tiveram como paradigma os
proventos do juiz de fora do Recife. (santos, 1981, v. 1, p. 319, 338).
No caso das comarcas, sua evolução acompanhou o destino da capitania de
Pernambuco. A máxima extensão da autoridade do governador desta ocorreu no sé-
culo xviii, quando teve como capitanias subordinadas o Ceará, Rio Grande do Norte,
Paraíba e Itamaracá, além do Piauí por algum tempo. Pela mesma época existiam
a comarca de Pernambuco (alternadamente sediada em Olinda e Recife, embora o
regimento da ouvidoria, de 1668, determinasse a primeira), da Paraíba, de Itamaracá
(primeiro capitania particular, depois incorporada no governo do marquês de Pombal
ao patrimônio da Coroa), de Alagoas, do Ceará e do Piauí. Na Bahia, além da sede da
Relação em Salvador, havia a comarca de Jacobina, com jurisdição sobre todo o sertão,
que ia de Carinhanha ao sul, próximo a Minas Gerais, até Pilão Arcado ao norte.
A proposta de Caetano Miranda Montenegro partiu da constatação de problemas
graves, como a ausência da autoridade pública no sertão, a impunidade, a justiça
privada e os conflitos de jurisdição ocasionados pela dupla vinculação de vilas e 42  ahu-cu, 015, cx. 266, doc. 17808.

42
julgados à capitania de Pernambuco e à ouvidoria de Jacobina, por sua vez vinculada
debret, Jean-Baptiste. Indumentária dos
Ministros e Secretários de Estado. ao Tribunal da Relação da Bahia e localizada nesta capitania. A ideia de uma nova
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa comarca no sertão procurava enfrentar tais situações, conjugada com a ereção das
do. Debret e o Brasil: obra completa: 1816-
1831. 3. ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. vilas sugeridas e o estabelecimento da pequena força militar. (costa, 1983, v. 7, p. 185).
p. 259. A necessidade da presença de uma forte autoridade no eixo do rio São Fran-
cisco, de Minas Gerais ao sul a Pernambuco ao norte, já tinha sido percebida ante-
riormente. A própria elevação da Barra de São Francisco à vila em 1752 já corres-
pondia a esta avaliação e em 1768 o genealogista Borges da Fonseca, considerando
a ineficiência da comarca de Jacobina, já sugerira o estabelecimento de um novo
governo na região, que poderia ser tanto uma ouvidoria como uma capitania. (costa,
1983, v. 7, p. 294-295).
A 15 de janeiro de 1810 concretizou-se a parte principal da proposta do gover-
nador. O alvará desta data, seguindo em seus considerandos todos os argumentos
por ele apresentados, determinava a criação da nova “comarca do Sertão de Per-
nambuco”, compreendendo as vilas já existentes de Simbres e São Francisco das
Chagas da Barra do Rio Grande e as novas vilas de Pilão Arcado e Flores do Pajeú e
mais os julgados de Garanhuns, Tacaratu e Cabrobó e as povoações de Campo Largo
e Carinhanha. Todas desmembradas da comarca de Pernambuco, exceto a da Barra
de São Francisco, que pertencia a Jacobina. No ano seguinte, a instâncias do gover-
nador, Garanhuns foi elevada à vila. (santos, 1981, v. 1, p. 281).
Cinco anos depois, em 18 de maio de 1815, foi criada a nova comarca de Olin-
da, com seu termo compreendendo as vilas de Igaraçu, Pau d’Alho e Limoeiro,

43
desmembradas da “comarca de Pernambuco” e Goiana, da Paraíba. Determinou-se
que o juiz de fora do Recife não tivesse jurisdição em Olinda, a cuja câmara se re-
conhecia um status especial, permitindo que elegesse seus dois juízes ordinários.
(santos, 1981, v. 1, p. 337).
A comarca do Sertão foi instalada pelo desembargador Antônio José Pereira
Barroso de Miranda Leite, na condição de ouvidor interino, possivelmente a 20 maio
de 1814, na vila de Flores do Pajeú. (costa, 1983, v. 7, p. 273).
O problema geográfico, entretanto, perdurou. A sede da nova comarca, embora
relativamente próxima à capital, distava da sua extremidade sul, o rio Carinhanha
e de seus centros mais importantes, Pilão Arcado e Barra do São Francisco. Por esse
motivo em 3 de junho de 1820 foi criada a nova comarca do São Francisco, desvin-
culada da comarca do Sertão e tendo como sede a vila de São Francisco. A povoação
de Campo Largo foi elevada à vila. (santos, 1981, v. 2, p. 256).

7. O Tribunal da Relação, a centralização e as novas circunstâncias


políticas

A reivindicação para instalar uma corte de apelação em Pernambuco datava pelo


menos de 1796, quando a câmara de Olinda endereçou a primeira de várias petições
à Corte nesse sentido. A negativa veio no mesmo ano, com o governo português
postergando o assunto “para tempo mais oportuno” (costa, 1983, v. 7, p. 7).
Duas novas solicitações foram feitas em 1798, inclusive com a sugestão para
que se nomeasse chanceler do órgão a ser criado o então ouvidor de Pernambuco,
Antônio Luís Pereira da Cunha. Não se tem notícia da resposta da metrópole. (cos-
ta, 1983, v. 7).
Em 1805, no início do governo de Caetano de Miranda Montenegro, o pedido
foi reiterado, dessa vez com parecer favorável do governador, repetido em 1809. Este
segundo documento foi respondido pelo conde da Barca, segundo informa Pereira
da Costa, e em 1810 Montenegro sublinhou a necessidade do tribunal, sugerindo
os recursos para sua manutenção e o quadro funcional, desde logo desistindo da
remuneração que lhe caberia como governador do órgão (costa, 1983, v. 7).
A despeito de ter aceitas suas sugestões sobre os juizados de fora e a comarca
do Sertão, Montenegro não logrou a criação do Tribunal, pedindo então em 1814 que
fosse criada a ouvidoria de Olinda, no que foi atendido pelo alvará de 30 de maio do
ano seguinte (legislação, 1837, t. 2, p. 141).
Por que motivo o governador, tão prestigiado pelo governo do príncipe regente,
não conseguiu a criação do tribunal?
Certamente a falta de recursos do Erário pode explicar o fato, já que a criação
do órgão implicaria em despesas semelhantes às existentes para a manutenção da
Relação da Bahia. A esta razão genérica pode ser acrescentada outra, a urgência do
estabelecimento da Relação do Maranhão. Padecendo de uma crise que se estendeu 43  Apontamentos que se viram para
de 1806 a 1810, a justiça do Maranhão viu praticamente usurpadas todas as suas a devassa mandada proceder contra
as prevaricações [de Elias] Vidigal e
atribuições pela câmara de São Luís e pelo governador da capitania43. Os vereadores sobre arbitrariedades dos governadores
chegaram a autodenominar a câmara tribunal e a si próprios magistrados e julgadores. Francisco de Melo Manuel da Câmara
e José Tomás de Menezes, 1806-1810.
O governo de D. João ordenou sucessivos inquéritos e a prisão do juiz de fora Arquivo do Instituto Histórico e
Luís de Oliveira Figueiredo de Almeida, terminando por determinar a criação do Geográfico Brasileiro, lata 178, doc. 36.

44
tribunal, em 1811, instalando-o no ano seguinte e nomeando seu chanceler o vete-
debret, Jean-Baptiste. 4 de abril de 1826:
Festa de retorno de S.M. D. Pedro I da rano desembargador Antônio Rodrigues de Oliveira, já membro da Casa da Supli-
Bahia. cação desde 1809.
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa
do. Debret e o Brasil: obra completa: 1816- Com esse quadro, pode-se conjeturar – já que não encontramos documentos
1831. 3. ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. explicando o motivo da recusa ao tribunal pernambucano – que a prioridade se-
p. 261.
ria para conjurar a crise maranhense, evitando-se a abertura simultânea de duas
Relações.
No rescaldo da repressão à Revolução de 1817, a câmara de Olinda voltou a soli-
citar, em 1820, a criação do tribunal, com as mesmas alegações anteriores, isto é, as
dificuldades para apresentar recursos à Relação da Bahia, pelos custos financeiros e
deslocamentos a Salvador dos litigantes e seus advogados. (costa, 1983, v. 7, p. 8-9).
Foi finalmente determinada a criação, pelo alvará de 6 de fevereiro de 1821,
do Tribunal da Relação de Pernambuco. Embora a iniciativa tenha sido da câma-
ra de Olinda, a determinação real foi para sediar o novo tribunal no Recife, o que
suscitou a reação olindense. Mas seus protestos junto ao príncipe regente, às Cortes
portuguesas e à Junta Governativa da província foram inócuos e o tribunal instalado
na capital. Não obstante, a aristocracia olindense ainda prosseguiu nas tentativas,

45
construindo prédio para o novo órgão e enviando novas solicitações ao Imperador
em 1824 e 1827. (costa, 1983, v. 7, p. 10-11).
Após o ato de criação do tribunal, foi expedida uma provisão real a 17 de julho
de 1821 para que fossem pagos ao chanceler e aos ministros da Relação desde o em-
barque para Recife os ordenados, acrescidos, na posse, pelas propinas a que tinham
direito. (legislação, 1837, t. 3, p. 206).
O exame do “alvará com força de lei” que criou a Relação de Pernambuco44
permite destacar em primeiro lugar a exiguidade do texto. Em contraste com os
detalhados alvarás de criação dos tribunais do Rio de Janeiro e do Maranhão, de
1751 e 1811 e da lei que instituiu o da Bahia, de 1652, o de Pernambuco limitou-se
a descrever a circunscrição geográfica do órgão e a estabelecer como paradigma
para ele a graduação, alçada e estrutura do Tribunal do Maranhão. Na graduação,
determinou-se que teria a mesma dos demais tribunais da Relação instalados no
Brasil – Bahia, Rio de Janeiro e Maranhão – não se estabelecendo para nenhum
fim, inclusive de promoção funcional, hierarquia entre eles.
Apenas duas modificações foram introduzidas no texto instituidor em relação
a seu modelo. Uma dizia respeito à carreira da magistratura: determinou-se que
a exigência para ser nomeado desembargador da Relação limitava-se a ter exerci-
do cargos de segunda instância. Isso significava um afrouxamento na orientação
anterior, especificada no alvará da Relação do Maranhão, segundo a qual não se
consideravam habilitados aos lugares de desembargador “bacharéis alguns que não
tenham a graduação de correição ordinária, ou três lugares servidos”.45 Abria-se
caminho assim para uma promoção mais rápida na carreira, encurtando o cursus
honorum tradicional.
A segunda modificação para o tribunal maranhense determinava que a ins-
tância recursal às decisões fosse a Casa da Suplicação do Brasil e não a de Lisboa.
Quanto à circunscrição, à Relação de Pernambuco ficaram vinculadas as três
das quatro comarcas de Pernambuco – Recife, Olinda e Sertão, pois a recém criada
comarca do São Francisco teria como tribunal recursal a Relação da Bahia, “pela
mais fácil comunicação e comércio dos seus habitantes com aquela cidade” e mais
as das províncias Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Esta passou assim da juris-
dição do Maranhão para a da nova Relação.
A alçada seria a mesma da Relação maranhense, que por sua vez já havia sido
corrigida monetariamente quanto às quantias estipuladas nos regimentos de 1652
e 1751: quatro contos de réis nos bens de raiz e seis contos de réis nos bens móveis,
descontados frutos, rendimentos e custas.46
Os demais aspectos administrativos seguiram igualmente o paradigma, quanto
aos ordenados, propinas e critérios para o preenchimento dos ofícios. O governa-
dor da nova Relação, entretanto, deixava uma questão em aberto, pois até então o
cargo era exercido pelo governador da capitania ou pelo vice-rei, o que não seria
compatível com o novo regime constitucional que se anunciava. A solução poste-
riormente encontrada para todas as Relações foi fundir na figura do chanceler as
44  Foi utilizada a edição de Cândido
funções deste e do governador. Mendes de Almeida, Auxiliar Jurídico,
O organograma jurisdicional permanecia o mesmo dos demais tribunais, com Lisboa, fcg, 1985, vol. I, p. 30.
os desembargos do cível e do crime, as ouvidorias gerais do cível e do crime, o juiz 45  § 7, art. 1, ibidem.
46  almeida, Cândido Mendes de.
e o procurador dos feitos da Coroa e Fazenda e o promotor de justiça. Funcionaria Auxiliar Jurídico. Lisboa: fcg, 1985. v. 1.
também a mesa do desembargo do Paço, com delegação da mesma repartição para Regimento, item 3.

46
as decisões de sua alçada, como a emissão de cartas de seguro (que logo seriam
extintas com a mudança de regime) e as cartas de emancipação.
Idêntico também deveria ser o funcionamento cotidiano: forma dos despachos
e dos votos, os livros de leis disponíveis aos desembargadores, a indumentária e a
missa que precedia as sessões plenárias.
Foi um dos últimos atos administrativos do rei no Brasil, datado de 6 de feve-
reiro de 1821, e o mais importante, já que daí por diante o cenário seria todo ocupado
pela crise política. O quadro aliás se repetiria no caso pernambucano e explica o
atraso da instalação do tribunal e de seu pleno funcionamento.
Deve ser observado que a data escolhida para a emissão do alvará, 6 de feve-
reiro, não foi fortuita. Ela marcava o terceiro aniversário da aclamação de D. João
vi como soberano do Reino Unido. Sobreviviam ainda muito das regras de etiqueta
do Antigo Regime, e a criação de um tribunal de apelação, dada a função majestá-
tica da justiça, carregava uma simbologia política que foi sublinhada por este ato.
De modo análogo, o alvará que deu regimento ao Tribunal da Relação do Maranhão
datava de 13 de maio, dia do aniversário do rei.
Varnhagen na História da Independência reproduz um pouco o clima da Corte,
que não só leu nos documentos como ouviu de testemunhas oculares. Discorrendo
sobre a permanência ou não do rei ou do príncipe, não oculta certa decepção com
a indecisão do monarca, comentando que “em lugar de resoluções de natureza po-
lítica por que todos ansiavam, apareceu publicado o alvará” criando a Relação de
Pernambuco (varnhagen, 1972, p. 60).
O Tribunal da Relação foi instituído em meio a intensa agitação política, no
Rio de Janeiro e em Pernambuco. Na Corte a polêmica centrava-se no retorno ou não
do rei para Portugal, atendendo ao chamado das Cortes. Em Pernambuco o governo
de Luís do Rego, com sua fidelidade a Portugal, gerava a oposição dos partidários
da ruptura, que poderia ocorrer contra a fórmula política do Reino Unido ou contra
a própria integração ao Brasil, decorrido tão pouco tempo dos acontecimentos de
1817. A rebelião contra o governador, a convenção de Beberibe e a eleição em fins
de outubro de 1821 de uma Junta Governativa liderada por Gervásio Pires Ferreira,
que participara da Revolução de 1817, tornaram inviável a instalação imediata do
tribunal. Três dos desembargadores designados, João Evangelista de Faria Lobato,
Eusébio de Queirós Coutinho da Silva e o pernambucano Bernardo José da Gama
dirigiram-se em dezembro seguinte ao presidente da Junta, para dizer que o governo
do príncipe regente tinha escrúpulos em “comprometer-se com uma província cujas
relações políticas com a regência do Brasil eram duvidosas” (costa, 1983, v. 8, p. 289).
Após manifestação das câmaras de Olinda e Recife no sentido de que seria
possível e desejável a instalação da Relação e pedido idêntico feito pela Junta Go-
vernativa em 20 de dezembro de 1821, acrescido da garantia de que dava “nossa
firme adesão” ao Príncipe Regente, o governo do Rio de Janeiro providenciou os
instrumentos legais para a instalação no primeiro semestre de 1822, que ocorreu
finalmente a 13 de agosto de 1822, no prédio em que funcionara o Erário Régio.
(costa, 1983, v. 8; ofício, 1973, v. 2, p. 666).
Somente cinco desembargadores tomaram posse nesse dia, ainda sob a Junta
presidida por Gervásio Pires Ferreira: Antônio José Osório de Pina Leitão, primeiro
agravista que assumiu como chanceler interino, na ausência do designado; Eusébio de
Queirós Coutinho da Silva; Bernardo José da Gama; João Pereira Sarmento Pimentel;
e João Evangelista de Faria Lobato. As principais funções, como as de agravistas,
47
as ouvidorias do cível e do crime e a procuradoria da Coroa estavam dessa forma
preenchidas. (livro, 2005; costa, 1983, v. 8, p. 288; ofício, 1973, v.2, p. 672). O chan-
celer designado, Lucas Antônio Monteiro de Barros, tomou posse a 7 de setembro
de 1822, constando de seu termo que o fazia por mercê de D. João vi (livro, 2005).
A 27 de agosto anterior tomara posse também o desembargador Francisco Afonso
Ferreira, que participara de 1817 e foi um dos perdoados por D. João vi no dia de sua
aclamação. (tavares, 2017, p. 525).
No ano seguinte foram nomeados desembargadores Adriano José Leal e To-
más Antônio Maciel de Barros. Somente após a Confederação do Equador, em 22 de
dezembro de 1824, tomaria posse mais um desembargador e novo chanceler, André
Alves Pereira Ribeiro e Cirne.
Vários dos desembargadores nomeados possuíam vínculos estreitos com a
Corte fluminense. Eusébio de Queirós tinha sido juiz de fora e ouvidor e estava no
Tribunal da Relação da Bahia, quando foi nomeado para Pernambuco, sendo no ano
seguinte nomeado para a Casa da Suplicação do Brasil. Muito ligado a José Bonifácio,
a pedido deste optou por ir a Pernambuco, renunciando à representação nas Cortes.
Em seguida foi nomeado para o Desembargo do Paço e em 1829 para o Supremo
Tribunal de Justiça do Império (sisson, 1999, v. 1, p. 25).
Bernardo José da Gama, além da liderança política que tinha em Pernambuco,
como líder unitário (melo, 2004, p. 121), vinculou-se ao príncipe regente e Impe-
rador, entrando para a Casa da Suplicação em 1823 e sendo deputado à assembleia
constituinte, além de presidente da província do Pará e ministro do último gabinete
do Imperador.
João Evangelista de Faria Lobato ingressou na Casa da Suplicação em 1822, era
igualmente ligado a José Bonifácio, tornou-se deputado constituinte e em 1826 foi
indicado pelo Imperador na lista tríplice para senador por Minas Gerais.
Tomás Antônio Maciel Monteiro foi nomeado para a Casa da Suplicação já em
seu final, continuando no Supremo Tribunal de Justiça.
Os dois chanceleres efetivos tinham perfil semelhante quanto às relações na
Corte. Lucas Antônio Monteiro de Barros pertencia à Casa da Suplicação desde 1815,
presidiu a província de São Paulo em 1824 e foi igualmente escolhido senador, em
1826. André Alves Pereira Ribeiro Cirne entrou para a Casa da Suplicação, em 18, e
foi fundador do Supremo Tribunal de Justiça, em 1829.
Destes, foram titulares agraciados por Pedro I, Bernardo José da Gama, como
visconde de Goiana, Monteiro de Barros, como visconde de Congonhas do Campo,
e Maciel Monteiro, como Barão de Itamaracá.
Podemos nos indagar o que efetivamente terá levado à criação do Tribunal da
Relação de Pernambuco, na conjuntura em que ocorreu.
Os motivos jurisdicionais estavam explícitos desde a primeira petição da
câmara de Olinda, em 1796, e no endosso dado às reivindicações posteriores pelo
governador Caetano Montenegro. Constam também do considerando do alvará de
6 de fevereiro de 1821 e basicamente eram as dificuldades e custas representados
pelos recursos apresentados à Relação da Bahia, além da morosidade que tal per-
curso representava.
Nesse aspecto os problemas são semelhantes aos arguidos quando da criação
dos tribunais do Rio de Janeiro, em 1752, e do Maranhão, em 1812.

48
Também deve ser lembrada a presença, em postos chaves da administração
central no Rio de Janeiro em 1821 e 1822, de duas figuras que conheciam por expe-
riência própria a situação. Antônio Luís Pereira da Cunha, muito ligado a D. João vi
e D. Pedro i, era Conselheiro da Fazenda e esteve próximo ao Rei nos meses agitados
após a Revolução do Porto. Logo seria Intendente de Polícia da Corte e tinha sido
ouvidor de Pernambuco quando da primeira proposta apresentada pela câmara de
Olinda. Caetano Pinto de Miranda Montenegro, que tanto se empenhara em conse-
guir o tribunal em 1810, depois de um breve ostracismo, estava no Desembargo do
Paço, de que foi presidente, quando se criou a Relação e era ministro da fazenda e
da justiça no processo de sua instalação.
Há, porém dois outros aspectos a ponderar. Na criação da Relação do Rio de
Janeiro em 1752 levou-se em conta a importância econômica e geoestratégica do
centro sul, com as capitanias mineiras de Minas, Goiás e Mato Grosso a exigir maior
atenção das autoridades e com a situação cambiante da fronteira móvel do sul, objeto
do então recente tratado de Madri. Gerou-se assim mais um polo do poder real na
região, para o qual pouco depois se deslocou a capital da colônia.
Na criação da Relação do Maranhão, foi a situação de desordem e franca anomia
que determinou o estabelecimento do tribunal, num esforço para conter as tendên-
cias centrífugas centralizadas nas câmaras municipais, notadamente a de São Luís.
Se em ambos os casos houve motivos jurisdicionais, certamente o agravamen-
to dos problemas políticos condicionou a tomada final de posição das autoridades
centrais.
Não haveria situação semelhante no caso de Pernambuco?
Sugere-se duas explicações complementares. A primeira leva em conta a po-
lítica de centralização joanina desencadeada desde a chegada da Corte no Rio de
Janeiro e que teve seu ponto alto na criação de vilas, com seus juízes ordinários, e
sobretudo na criação de novos juizados de fora e novas comarcas, em número con-
siderável para o que existia em 1808. A criação de mais dois tribunais da Relação,
um no Maranhão e outro em Pernambuco, mais ainda do que a transformação da
Relação do Rio de Janeiro em tribunal máximo como Casa da Suplicação, contribuía
para fortalecer essa pirâmide legal. Recorde-se ademais que antes do constitucio-
nalismo de 1824 as funções de todos esses órgãos eram cumulativamente judiciais,
políticas e administrativas, com ampla atuação em toda a vida social e econômica
dos súditos reais.
Assim, estabelecer o tribunal numa capitania que se espraiava para outras
da região certamente contribuía para o fortalecimento da política de centralização
administrativa – mas também política – planejada a partir da inversão brasileira
de 1808. Isso implicava inclusive no enfrentamento do problema mais tradicional
enfrentado no Brasil pela administração portuguesa, o da força dos régulos do sertão
de que falavam os documentos oficiais e que, no caso da justiça, se traduziam no
homizio de criminosos e na impunidade percebidos por Montenegro, Koster, Tolle-
nare e tantos outros.
A esse significado estrutural pode ser acrescido outro conjuntural, mas não me-
nos importante. O perfil de parte significativa dos desembargadores da Relação de
Pernambuco no Primeiro Reinado nitidamente corresponde ao dos magistrados da
Casa da Suplicação e possivelmente dos juízes de fora e ouvidores do período – fal-
tando para esses a confirmação de uma pesquisa específica. Ou seja, em matéria de

49
liberdades, garantias e concepção da sociedade, defensores da monarquia constitu-
cional, moderada ou temperada, equidistante das posições jacobinas e absolutistas. Em
matéria de relações centro-províncias, unitários com certa abertura para os interes-
ses locais, firmemente infensos tanto ao republicanismo e quanto ao federalismo.
O Tribunal da Relação de Pernambuco poder-se-ia constituir assim num ponto
de apoio conservador e monárquico, que assegurasse aos administrados aquilo com
que D. João vi acenava no alvará de criação: garantia da “segurança pessoal, e a dos
sagrados direitos de propriedade que muito desejo manter, como a mais segura base
da sociedade civil”.

8. Considerações Finais

A política joanina de centralização política e administrativa pela via judicial pode


ser avaliada como bem sucedida no caso pernambucano. Quer consideremos a capi-
tania - do Recife até a comarca do São Francisco, no limite com Minas Gerais - quer
a área de jurisdição do Tribunal da Relação de Pernambuco, cresceu o número de
vilas e a consequente implantação dos juízes ordinários, bem como o de juizados de
fora e comarcas. O problema detectado por Caetano Miranda Montenegro e outros
observadores luso-brasileiros ou estrangeiros, da extrema rarefação do Estado no
interior do país foi enfrentado de forma sistemática, sem solução de continuidade,
entre 1808 e 1821. Neste aspecto são emblemáticas as balizas cronológicas desta
política: o ano de 1808, com a Corte recém chegada aclimatando as instituições
metropolitanas e criando o juizado de fora de Goiana e o ano de 1821, instituindo a
Relação pernambucana às vésperas do retorno a Portugal.
O processo desencadeado por essa ação centralizadora não só deixou marcas
como mostrou-se irreversível e teve continuidade após a independência e no novo
sistema político.
Não foi via de mão única. A política centralizadora utilizou-se de instru-
mentos em princípio realmente centrais – juízes de fora, ouvidores de comarcas,
desembargadores da Relação – mas também dos juízes ordinários das vilas. Estes,
em princípio, como os capitães-mores que as governavam, eram agentes centrífu-
gos, ao contrário dos magistrados reais. Representavam a elite dos homens bons,
principais da terra na expressão corrente em Pernambuco, régulos do sertão, quando
apodados pelas autoridades metropolitanas ou simplesmente “mandões” como dizia
Varnhagen. E tinham o agravante argumentado pela burocracia do Desembargo do
Paço em vários atos de criação das magistraturas que os substituíam: eram rudes,
despreparados e ignorantes das leis.
No entanto, em certas circunstâncias e regiões, era melhor ter uma vila, for-
malmente instituída e subordinada ao rei, ainda que controlada pelo poder local,
do que continuar com um vácuo institucional.
Essa ductilidade, característica de boa parte da administração colonial portu-
guesa, foi fundamental para complementar a atuação dos juízes de fora, ouvidores
e das Relações e permitir canais de negociação entre os grupos sociais dirigentes e
o poder público que começava a se expandir.

50
No entanto, as persistências estruturais resistiram à conjuntura joanina, como
resistiriam a outras que as sucederam. A caricatura da justiça ordinária que aparece
nas Revoluções do Brasil de 1817 coincide com a descrição feita por Oliveira Lima do
poder dos senhores de engenho, protegidos por fugitivos da justiça em seus “ranchos
de mercenários homiziados... com que defendiam suas orgulhosas prerrogativas”
(lima, 1997, p. 245). Tampouco sofreu maior alteração a organização cartorária, que
ultrapassou o período joanino, o Império e chegou à República, ou a estreita relação
entre magistrados, sobretudo os juízes e as elites locais, como se comprovou empi-
ricamente em pesquisa sobre o tribunal pernambucano entre 1831 e 1850.47
Mandonismo, patriarcalismo e clientelismo continuaram assim caraterísticas
da época, às vezes cooptando os próprios agentes estatais, os bacharéis da justiça
real, quer em alguns casos pelas próprias raízes locais destes, quer pela atração do
poder e da riqueza.
Por outro lado, algo mudou. A organização judiciária ganhou não apenas em
centralidade, mas em racionalidade, de acordo com os novos tempos pós iluministas
e continuaria mudando nesse sentido com a implantação do constitucionalismo. A
abolição da sociedade estamental e a nova maneira de tratar crimes e penas, pre-
nunciados em Pernambuco pela Revolução de 1817, gerariam mudanças jurídicas
que estavam no ar em todo o período joanino e começaram a se materializar em
1820-1821 com a Revolução Constitucionalista do Porto.
O próprio papel dos agentes públicos – nesta área, juízes de fora, ouvidores e
desembargadores – mudava, acentuando a consciência centralizadora das persona-
gens. Neste aspecto foi certeira a intuição de Gilberto Freyre: “O bacharel - magis-
trado, presidente de província, ministro, chefe de polícia – seria, na luta quase de
morte entre a justiça imperial e a do pater famílias rural, o aliado do Governo contra
o próprio Pai ou o próprio Avô.” (freyre, 1977, v. 1, p. 18).
A dinâmica joanina da administração da justiça não foi mero conjunto
heterogêneo de procedimentos reativos e casuísticos, mas parte desse processo e à
sua luz deve ser analisada.

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COSTA, F. A. Pereira da. Anais pernambucanos. Recife: Fundarpe, 1983. v. 5.


47  Mônica Maria de Pádua Souto da
Cunha, A justiça criminal no período
imperial: o caso de Pernambuco (1831- COSTA, F. A. Pereira da. Anais pernambucanos. Recife: Fundarpe, 1983. v. 7.
1850), Recife, ufpe, 2020 (tese de
doutoramento), p. 271. COSTA, F. A. Pereira da. Anais pernambucanos. Recife: Fundarpe, 1983. v. 8.

51
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o caso de Pernambuco (1831-1850). 2020. Tese (Doutorado em História) – Programa
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consulta, provisões, etc., etc., do Império do Brazil, desde o anno de 1808 até 1831 in-
clusive, contendo: além do que se acha publicado nas melhores collecções, para mais
de duas mil peças inéditas, coligidas pelo conselheiro Jose Paulo de Figuerôa Nabu-
co de Araújo. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villenueve e Comp., 1837. t. 2.

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219-244.

53
54
CAPÍTULO 2 - “A pena e a lei”: algumas
considerações acerca do ordenamento jurídico
e situações que se passaram no Pernambuco
colonial

Rômulo Xavier1

1. Introdução

Vasco da Gama no cais de Calecute, Hernán Cortés contemplando o esplen-


dor de Tenochtitlán, Francis Drake no mar das Caraíbas e outros valentões
e marinheiros corajosos há muito que se destacam na história da expansão
europeia. Porém, no rastro destes aventureiros, seguiram tipos mais comuns
– comerciantes, parteiras, padres, empregadas domésticas e burocratas. Nas
áreas da América povoadas por esses homens e mulheres, surgiu uma socie-
dade complexa que, apesar de ter fundido os elementos raciais e culturais da
Europa, África e América, conservou sempre um forte sabor europeu em seu
governo e na organização social de sua elite. Sem dúvida alguma, a criação de
impérios ultramarinos foi um dos processos mais significativos da história
européia e da história mundial a partir de 1450 e seus efeitos ainda hoje são
sentidos. (schwartz, 1979, p.ix)

As considerações citadas acima nos servem de guia para a nossa construção e en-
tendimento do ordenamento e prática jurídica em Pernambuco na fase colonial da
América portuguesa. Não se trata tão somente de uma história provinciana, isolada,
sem elos com a história do Atlântico. Não se trata somente, também, de uma his-
tória das elites apartada da história social. Pelo contrário, interpretar uma janela
desse passado nos leva a considerar tanto o cotidiano como burocratas, que outrora
permaneciam invisíveis num frame analítico mais tradicional.
Dada a longa vida do contexto colonial em Pernambuco, pelo menos do ponto
1  Doutorado em História pela de vista da justiça, seria pretensão resumir em um capítulo todos os aspectos de
Universidade Federal Fluminense, sua prática no terreno da vida social e da cultura. Assim, do século xvi ao início
Brasil (2008). Professor Adjunto da
Universidade Federal de Pernambuco, do século xix, Pernambuco mudou bastante, tanto em termos territoriais como em
Brasil. culturas políticas e até mesmo jurídicas. Nesse grande espaço de tempo, desde as

55
primeiras práticas de justiça aplicadas por Duarte Coelho (primeiro donatário) até as
vésperas da Revolução de 1817, Pernambuco viveu uma série de convulsões sociais
e mudanças. Ocupações holandesas, lutas contra os Palmares e a Guerra dos Masca-
tes foram efemérides nesse caminho. Nesse processo também a população cresceu
muito, a economia se diversificou, o Recife floresceu e fez frente à velha Olinda,
oligarca e (quase sempre) aliada aos interesses da metrópole. Na relação com Por-
tugal e outras partes do Atlântico, Pernambuco esteve sempre numa geopolítica do
Império português que ora o prendia ora o deixava respirar. Travou-se então nessa
longue durée2 (burke, 1997) uma longa novela que misturava capítulos de autonomia
e subordinação às vontades de Lisboa.
No capítulo em tela, que se presta a uma reflexão sobre o ordenamento jurídico
no Pernambuco colonial, vamos nos servir tanto de estudos consolidados sobre o
tema até teses recentes que deslindam, em termos mais monográficos (e nem por
isso menos importantes), o tema da justiça, passando pelo uso de fontes primárias,
tão essenciais ao ofício do historiador. Se tem uma espécie de “espinha dorsal” nes-
se estudo, ela seria o Conselho Ultramarino, órgão criado em 1642 por D. João iv e
que lidou com questões judicantes durante quase todo o nosso período de análise.
Não vamos falar aqui da justiça eclesiástica, porque isso constituiria um estudo à
parte, haja vista a riqueza analítica que ele demanda. O nosso campo de análise é o
da história social e cultural, o da “história com rostos” e do “law in action” 3, como
quis António Manuel Hespanha (2005, p. 39). Trataremos da justiça no cotidiano,
da justiça enformada a partir das relações entre as pessoas. Tal conceito de justiça
não busca hipóteses nesse trabalho, mas descreve problemas ao longo do processo
histórico. É a “história-problema”, como bem disse Lucien Febvre.
Nesse ponto, cabe evidenciar a visão segundo a qual a finalidade maior do rei
seria a justiça. Segundo Francisco Carlos Cosentino,

Por isso, adquiriu uma importância destacada na ação do governo à ma-


nutenção da autonomia político-jurídica (iuris-dictio) dos corpos sociais e
o respeito às articulações naturais. [...] Nesse sentido, governar significava
viabilizar a autonomia dos vários corpos políticos formadores do governo,
garantindo o respeito à sua jurisdição.” [...] iurisdictio era, desde os tempos
medievais, o poder político, designado como a possibilidade de fazer leis e
estatutos, constituir magistrados, arbitrar conflitos e emitir comandos. (co-
sentino, 2010, p. 406)

A nossa visão de império português repousa nos estudos encampados por


historiadores brasileiros e portugueses que propõem um debate
2  Termo utilizado para designar
processos estruturais que se modificam
acerca do processo de formação do Estado Moderno, por meio das quais muito lentamente ao longo da História.
se questionou o suposto caráter absolutista e/ou centralizado dos impé- 3  Essa expressão é utilizada pelo autor
em oposição à expressão “law in the
rios ultramarinos português, britânicos entre outros. Nesse sentido, novas books”, segundo a qual o poder “ocupava-
análises discutiram a pertinência e a abrangência da ideia de negociação se apenas de lugares institucionais,
transitoriamente ocupados por pessoas,
entre centro e metrópole e entre periferia e colônia. Na base desse debate mas por pessoas cujas idiossincrasias
se situava também uma maior problematização da natureza das relações de eram irrelevantes”.

56
poder para além de um escopo bipolar e dicotômico. [...] Necessariamente, a
negociação era, por definição, a contraface do conflito, dimensão inerente a
qualquer formação social, especialmente as que deram origem às sociedades
ultramarinas vinculadas às monarquias da Europa moderna, as sociedades
de conquista. (fragoso e gouvêa, 2010, p. 13-14)

Pernambuco colonial, enquanto “sociedade de conquista” (nos quadros propos-


tos acima), sempre esteve enredado nas relações com o Atlântico através da geopolí-
tica de Portugal para esse espaço. Fazer uma divisão eminentemente cartesiana para
se analisar o ordenamento jurídico nesse longo espaço de tempo exige que entremos
no mundo pré-Montesquieu, onde as atividades judicantes se misturavam a outras
de natureza mais administrativas. Era um mundo bem estranho ao que conhecemos
na contemporaneidade, que pode ser bem entendido a partir dos estudos clássicos de
Max Weber. Entraremos numa sociedade estamental, onde não se pensa pela cliva-
gem das lutas de classes. Entraremos num mundo que, apesar de ser aparentemente
irracional para os nossos padrões de funcionalidade jurídico-político-administrativa,
tinha sua própria ordem. A sua peculiar e muito útil funcionalidade.
Os caminhos formais da justiça no império português – e isso nos interessa
particularmente no caso do Pernambuco colonial – compreendia uma teia de ins-
tituições que ia desde o Desembargo do Paço, em Lisboa, até as câmaras, passando
pelos ouvidores e até mesmo os capitães donatários. Também não podemos deixar
de mencionar os tribunais da Relação. A partir da criação do Conselho Ultramarino,
que passou também a cuidar da questão judicante no ultramar lusitano, ampliaram-
-se os tentáculos da justiça. Pernambuco, como posição importante na estratégica
política do reino, não escapou à influência deste conselho.
Desde então, parece-nos oportuno a seguinte consideração de Raymundo Fao-
ro acerca da administração pública colonial, dentro da qual estavam inseridas as
questões de justiça:

[...] na ordem descendente: o rei, o governador-geral (vice-rei), os capitães


(capitanias) e as autoridades municipais. A simplicidade da linha engana e
dissimula a complexa, confusa e tumultuária realidade. Sufoca o rei seu ga-
binete de muitos auxiliares, casas, conselhos e mesas. O governador-geral,
chefe político e militar, está flanqueado do ouvidor-geral e do provedor-mor,
que cuidam da justiça e da fazenda, os capitães-generais e governadores e
capitães-mores das capitanias se embaraçam de uma pequena corte, frequen-
temente dissolvida nas juntas, os municípios, com seus vereadores e juízes,
perdem-se no exercício de atribuições mal delimitadas. A dispersão em todos
os graus se agrava com o vínculo frouxamente hierárquico: todos se dirigem
ao rei e ao seu círculo de dependentes, atropelando os graus intermediários
de comando. (faoro, 2001, p. 204)

Tal explanação de Faoro, bastante didática por sinal, oferece-nos bem o cená-
rio movediço sobre o qual caminhou a justiça no período colonial em Pernambuco,

57
considerando, por fim que, no Brasil, “o arbítrio, a desobediência, a rebeldia das
debret, Jean-Baptiste. Negros ao tronco.
autoridades coloniais, ao lado da violência, terão um papel criador, ajustando um
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa
vinho novo aos odres antigos, não raros desfigurados, deformados pelas pressões do. Debret e o Brasil: obra completa: 1816-
locais” (Ibid., p. 205). 1831. 3. ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013.
p. 185.
Esse estudo perpassa, cronologicamente, a fase da ocupação holandesa em Per-
nambuco. Dessa forma, daremos conta de algumas práticas da justiça no Pernambuco
batavo ao tratarmos da aplicação do direito civil neerlandês em algumas situações.
Também daremos destaque ao arranjo político-administrativo através da criação das
câmaras dos escabinos (equivalente às câmaras no império português), importante
instância da administração do poder local, assim como do Conselho Político, espécie
de segunda instância. Foi no período de ocupação holandesa, inclusive, que teve vez
no Recife o primeiro ensaio de autonomia camarária com a criação da Câmara de
Maurícia. Finda a ocupação, Recife perdera a representatividade própria. Estava aí
o embrião da Revolta dos Mascates no início do século xviii. Ao tratar da câmara
do Recife no século xviii, trataremos um pouco dessa instituição que tratava da
justiça em seus níveis mais imediatos, mas não menos importantes. As municipa-
lidades têm origem nas civitates romanas e se tornaram, paulatinamente, unidades
importantes na administração da Península Ibérica. (hespanha, 1982)
O governo pombalino - meados do século xviii - veio a modificar o panorama
da administração no Império, e em Pernambuco, inclusive. Assim, uma maior ra-
cionalidade político-administrativa veio a conferir à justiça um novo jeito de fun-
cionar. A essa altura, Pernambuco já perdera há tempos a sua condição de capitania

58
hereditária, na visão pombalina, deveria estar bem “amarrado” à política centralista
do reino. Tudo isso num quadro pré-Montesquieu, onde ainda vigia a superposição
de poder e num contexto de visão de Estado bem estranho ao que temos hoje: um
estado Leviatã. Este trabalho não visa a valorar a justiça em cada uma dessas fa-
ses, por mais que o trabalho do historiador (como bem definiu Marc Bloch) muitas
vezes resvale para o de um juiz. De fato, um dos expoentes da Nouvelle Histoire
considerava a mania de julgamento como “outro satânico inimigo da verdadeira
história”. (bloch, 2001, p. 58)
Trataremos a justiça em Pernambuco dentro de um mar de processos sociais,
cujos personagens agiam consciente ou inconscientemente. Trataremos da justiça
em Pernambuco sem a pretensão do paradigma positivista, que via a história wie es
eigentlich gewesen (como ela realmente aconteceu).4 Pelo contrário, afinaremos nossas
ações apenas descrevendo questões e propondo, aqui e ali, mais uma hermenêutica
de uma janela do passado. O passado como teria sido e não como ele realmente foi.

2. Pernambuco no século xvi: o início da construção da “ordem”

A partir da década de 1530, dava-se início à colonização de Pernambuco pelo Capi-


tão-Donatário Duarte Coelho. Nascia, assim, o Pernambuco colonial, na condição de
uma capitania hereditária. Tal modelo político-administrativo já encontrava a sua
anterioridade na costa ocidental africana bem como nas ilhas do Atlântico. Nesse
esquema, Duarte Coelho, como os demais donatários, “representava os poderes do
rei, como administrador e delegado, com jurisdição sobre o colono, português ou
estrangeiro” (faoro, 2001, p. 140). Nas funções públicas, cabia ao donatário “criar
vilas, nomear ouvidores, dar tabelionatos tanto de notas como judiciais”, etc. (Ibid.,
p. 141). Tais leques de possibilidades não deve apressar o leitor a considerar, pelo
menos no âmbito da justiça, que Duarte Coelho tivesse poderes ilimitados. Pelo con-
trário, estaria ele cerceado, pelas próprias Ordenações e poderes centrais do reino,
a delimitar os seus ganhos fiscais e espaço de atuação na justiça como o poder do
monarca. As limitações dos poderes de Duarte Coelho e do Rei nem sempre eram
verificáveis, ainda que existissem numa perspectiva do law in the books. Essas limi-
tações remontam ao movimento inaugurado pela dinastia de Avis para conter os
abusos dos proprietários feudais em Portugal.
A transformação do território brasileiro se formalizou pelas Cartas de Doação
e Forais, “diplomas que se constituem nos primeiros pilares da ordenação jurídica
da sociedade brasileira”, segundo Virgínia Almoêdo de Assis (assis, 2000, p.29). As
Cartas de Doação continham elementos como: concessão de jurisdição, possibilidade
de alguém assumir por incapacidade do Capitão, permissão para doar sesmarias etc.
Os Forais, por sua vez, figuravam como

[...]diplomas que regem a relação entre o Donatário e o rei, onde se definem


os direitos políticos e a percepção de rendas dos Donatários, assim como as
responsabilidades desses perante a Coroa, uma vez que era através deles que
se fixavam os direitos, foros e tributos devidos ao rei e ao capitão-governa-
4  Expressão do historiador positivista
alemão Leopold Von Ranke. dor. (assis, 2000, p. 30)

59
Os Forais foram uma espécie de “primeira constituição” da capitania, definindo
obrigações militares dos moradores, limites do Capitão donatário na apropriação
da terra, valores dos dízimos, especificação dos monopólios da coroa, papel dos ta-
beliães e câmaras, etc. No entanto, sendo o Foral um documento formal, ele em si
não é suficiente para dar conta da realidade jurídica da Capitania de Pernambuco,
justamente pelo fato da dinamicidade do fenômeno jurídico (assis, 2000, p. 34). De
qualquer forma, a Carta de Doação mais antiga entre as capitanias da América por-
tuguesa, foi que foi dada à Duarte Coelho, em 10 de março de 1534.
É pertinente e necessária a exposição de Virgínia Almoêdo de Assis quando
se refere ao estatuto jurídico medieval (segundo alguns historiadores clássicos)5 das
Capitanias e a diferença desse sistema para o espanhol de Capitulações. Segundo
ela – apoiada na tese de Maria Eulália Lahmeyer Lobo – “Castela limitou os direitos
jurisdicionais dos concessionários, conferindo-os apenas a título provisório”. Já no
caso de Pernambuco e demais Capitanias, o caráter medieval de seu estatuto jurídico
residiu no fato de estar em jogo uma concessão hereditária da terra ao Capitão do-
natário (assis, 2000, p. 42). Na verdade, o sistema que vigorou em Portugal foi mais
o Senhorio do que mesmo feudal. A coroa, no caso das capitanias, nunca abriu mão
da propriedade do solo dentro de um regime de concessão, típico caso semelhante
à tradição do senhorio (vainfas, 2000). Por fim, as próprias Ordenações Manuelinas
(Livro ii, Título xv) dispõem sobre o assunto ao considerar ser faculdade apenas do
rei o ato de doação de um território, e que isso se faz não por simples liberalidade,
mas para um fim específico que vise a alguma recompensa (assis, op. cit., p. 44).
Dessa forma, o regime jurídico que embasou o Foral da Capitania de Pernambuco
seria, grande modo, uma extensão do regime jurídico que embasava o regime de
senhorio no final da Idade Média em Portugal.
No início da prática administrativa na Capitania de Pernambuco, praticamen-
te inexistia a figura maior da administração da justiça, o Ouvidor. Geralmente, a
presença deste se associava a um quadro de ausência do donatário de sua capitania,
ocasião em que se enviava um loco-tenente e um Ouvidor. Duarte Coelho sempre
se posicionou contra a ausência de alguns capitães donatários de suas terras. Vide
o caso de Itamaracá, que era administrada por um enviado de Pero Lopes de Sousa
e a quem se referiu em tom de crítica Duarte Coelho (mello e albuquerque, 1967).
Por ironia, no final do século xvi, a Capitania de Pernambuco era administrada por
um loco-tenente nomeado por Jorge de Albuquerque Coelho, terceiro donatário. Esse
exemplo nos serve bem pra ilustrar a dinamicidade da realidade jurídico-adminis-
trativa, de sorte a não podermos enformar a realidade numa prática contínua. Muito
embora a existência de um preposto do donatário estivesse prevista em lei. A livre
nomeação de um loco-tenente por parte do Donatário será limitada posteriormente,
onde será apresentada uma lista tríplice de pessoas habilitadas a tal. De qualquer
forma, a figura do Ouvidor, do qual falaremos na última parte deste estudo, remonta
ao período do senhorio medieval no Reino e era tida como de maior prestígio na
condução da justiça em locais que tivessem jurisdição. De qualquer forma, conclui
Virgínia Almoêdo de Assis que “pode-se afirmar que Loco-Tenente e Ouvidor cons-
tituíram-se os pilares de sustentação do poder do Donatário no seu senhorio, pelas 5  Capistrano de Abreu e Malheiro Dias
duplas funções de governo civil e de justiça.” (Ibid., p. 80). eram adeptos dessa perspectiva.

60
Nessa fase inicial da história de Pernambuco na condição de capitania heredi-
tária, a justiça se expressava mesmo em termos de ocupação fundiária. Era preciso
– e isso estava prescrito nas Ordenações – ocupar e aproveitar a sesmaria. Caso
contrário, sua concessão prescreveria.6 Nesse sentido, alguns casos surgiram, em
Pernambuco mesmo, que envolviam pedidos de fim de concessões de terras por não
aproveitamento. Soma-se o fato de que o aproveitamento, quer seja pela plantação de
cana-de-açúcar quer seja pela prática da pecuária, exigia grande cabedal financeiro.
Aquela atividade mais que essa. De fato, a montagem de uma unidade produtora de
açúcar exigia a compra de maquinário para transformar a cana em açúcar e seus
derivados (moenda, tachos de cobres, formas, caixas de madeira, etc), além da con-
tratação de técnicos, mestres de açúcar e da importação de cativos da Guiné e de
Angola. Por isso percebemos a dificuldade em, de fato, aproveitar a terra recebida.
Nesse exemplo podemos ver a relação entre o ordenamento jurídico colonial e o
vivido. Em alguns casos desse tipo, dada a abundância de terras, nem sempre as
coisas se resolviam sob a letra da lei. Muitas vezes o bom senso, em nome de uma
boa convivência, bastava para dirimir um problema numa sociedade incipiente e
tão necessitada de coesão.
Precipita-se o leitor que enxerga, nas mãos de Duarte Coelho e seus descen-
dentes e famílias amigas (que tão logo houvessem chegado em Pernambuco em
1535), a estabilidade, a mão forte organizativa que estabeleceu uma ordem que
correspondesse à realidade. Pelo contrário, uma vez em Pernambuco, os donatários
e apaniguados tiveram que enfrentar a resistência indígena, processo que durou
décadas, até a geração dos filhos de Duarte Coelho e o estabelecimento de algumas
unidades produtoras de açúcar nas várzeas dos rios Capibaribe e Beberibe. O pró-
prio processo de financiamento dos engenhos foi moroso, uma vez que necessitava
da importação de escravos. O paulatino crescimento da atividade canavieira atraiu
para Pernambuco, até o final do século xvi, comerciantes de outras nacionalida-
des, judeus fugidos da inquisição na Europa etc. Em tal quadro social e econômico
movediço a justiça nem sempre poderia ser aplicada conforme o era na Metrópole,
cenário de sociedades e instituições mais estáveis. As próprias cartas que Duarte
Coelho escreveu ao rei de Portugal são testemunhos de uma miríade de problemas
enfrentados pelos colonos.
Nesse quadro de dificuldades, dada também a distância do reino, as regras
particulares baseadas nos costumes se sobrepujaram às regras gerais (lei e jus
commune). Essa visão, segundo Hespanha, foi encampada pelos historiadores do
direito que enxergam neste um caráter pluralista. Aliás, essa forma de conduzir
a justiça representou, inclusive, uma vantagem em lidar com quadros sociais em
constante mudança nas colônias e em Pernambuco, por extensão (hespanha, 1994).
Esse enviesamento teórico tem embasado muitos historiadores no Brasil e em Por-
tugal nas últimas duas décadas.
Nesse primeiro momento, havia uma inserção muito efetiva da figura do Ca-
pitão donatário nas questões de justiça junto ao Ouvidor. Por exemplo, tanto este
como o donatário poderiam atuar em causas cíveis que não ultrapassassem 100 mil
6  Raymundo Faoro cita um desses casos, réis e apresentassem recursos. Aqueles que fossem legalmente fidalgos ou oficiais
ocorrido em 1576, no seu clássico estudo
régios, nos casos criminais, eram condenados a no máximo 10 anos de exílio. Talvez
“Os donos do Poder” (referência na
bibliografia) a maior influência exercida tanto pelo donatário (Duarte Coelho e seus sucessores)

61
como pelo Ouvidor tenha sido o controle sobre a seleção dos que eram considerados
elegíveis para servirem na municipalidade. Por fim, também poderiam revisar deci-
sões de juízes menos qualificados (schwartz, 1979, p. 21).7 A influência do donatário
e do Ouvidor na seleção dos vereadores da câmara – no nosso caso a de Olinda –
nos mostra como a justiça mais imediata, que era exercida também pelos oficiais
da câmara, estava ligada a figuras da administração superior da própria capitania.
No entanto, até aproximadamente 1557, Pernambuco praticamente prescindiu
da figura do Ouvidor régio. Mesmo com a instituição do Governo Geral, em 1649,
o donatário em Pernambuco não abriu mão da sua função correicional. A própria
Carta de Doação previa isso:

[...] que nas terras da dita capitania não entrem nem possam entrar em tempo
algum corregedor nem alçada nem outras algumas justiças para nelas usar
de jurisdição alguma por nenhuma via nem modo que nem modo que seja
nem menos será o dito capitão suspenso da dita capitania e governança dela.8

A partir do Alvará de março de 1657, terá vez uma reforma jurídica que colo-
cará limites aos poderes dos donatários, de modo que situações em que os mesmos
sentenciassem alguém à morte, sem apelação, agora passariam a fazê-la esses úl-
timos a uma alçada superior. O mesmo se dará em caso de heresia, se igualmente
condenado à morte natural. Também passaria a ser plenamente cabível que o rei
mandasse, se achasse conveniente, um corregedor à capitania.
Todavia, embora sob as vistas da justiça superior local, os oficiais da câmara
de Olinda passaram pouco a pouco a exercer uma espécie de self government político.
Eram grandes produtores de açúcar e constituíam, já em fins do século xvi, o que
se convencionou chamar de “nobreza da terra”. Evidentemente, tal postura de self
government deve ser relativizada pelo fato de também terem que fazer o jogo da me-
trópole. No limite, os vereadores da Câmara de Olinda viviam entre a subordinação
ao monarca e a satisfação de seus próprios interesses. Vários são os estudos que
apontam essa relação tensa entre as câmaras no mundo português e a metrópole.
Do ponto de vista do poder local, estudar as câmaras nos ajuda a entender uma
certa dinâmica do império português, uma vez que cada uma delas se relaciona-
va de forma específica com os poderes do centro.9 Nos vereadores da Câmaras de
Olinda, verificam-se as funções tanto de juízes imediatos, como policiais, fiscais e
7  Embora focado na Suprema Corte
legislativas. Do ponto de vista social, eram escolhidos no seio da “açucarocracia” e nos juízes da Bahia, o autor faz um
da Várzea do Capibaribe. Esta não era apenas um locus economicus, mas também apanhado genérico da justiça nos
quadros do início de nossa fase colonial.
um lócus social. Em seu clássico Nordeste, Gilberto Freyre explicita bem o que era
8  assis, 2000, p. 85. (antt. Chancelaria
essa nobreza da Várzea do Capibaribe (freyre, 2004). Na virada do século xvi para o de D. João iii, Livro 7, fl. 83-85. Carta de
xvii e às vésperas da ocupação holandesa, o ordenamento jurídico em Pernambuco Doação de Duarte Coelho, Évora, 10 de
março de 1534).
era já bem diverso daquele verificado no início da donataria. Ao alvorecer o século 9  Como estudo clássico temos o
xvii, Pernambuco tinha uma elite agrária também diversa de seus primeiros anos, trabalho de Charles Boxer acerca das
câmaras de Salvador, Goa e Luanda.
dentro de um sistema escravista praticamente consolidado no Atlântico sul com a Para Pernambuco temos os estudos de
vila de Olinda respirando a plenos pulmões e com estrutura camarária relevante. Virgínia Almoêdo (Câmara de Olinda) e
George Cabral (Câmara do Recife); para
Esse estado de coisas seria atingido pela sanha da Companhia das Índias ocidentais o Rio de Janeiro, ver o estudo de Maria
em pouco tempo. Fernanda Bicalho.

62
3. Durante a ocupação neerlandesa: o (nem sempre) conflito de dois
debret, Jean-Baptiste. Feitores açoitando
negros na roça. mundos jurídicos
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa
do. Debret e o Brasil: obra completa: 1816-
1831. 3. ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013.
Não há dúvidas de que a ocupação holandesa do Nordeste, a partir de 1630, tendo
p. 186. Pernambuco como centro político-decisório, veio a mexer sobremaneira com a vida
cotidiana desta parte da América portuguesa. Nesse sentido, o ordenamento jurídico
não poderia passar sem ser atingido. A companhia das Índias Ocidentais mesmo
tinha um regimento próprio de atuação nas colônias e estava submetida às ordens
de um conselho de dezenove diretores (os Heren xix). No aspecto cronológico de
convivência – nem sempre pacífica – entre o mundo jurídico luso-brasileiro e o
neerlandês, podemos analisar com mais clareza os anos que se estenderam entre a
queda do Arraial Velho do Bom Jesus (1635) e o retorno de Maurício de Nassau aos
Países Baixos (1644), fase considerada por muitos como um relativo interlúdio de
paz. O que está fora dessa chave temporal se caracteriza mais por um clima intenso
de refregas, cujas fontes não dos deixam observar a práxis jurídica com mais vagar.
Antes de mais nada, vale salientar o caráter pretensamente inovador de ad-
ministrar da Companhia das Índias Ocidentais. Criada em 1621, era uma espécie de
companhia semiprivada (pois tinha capital do estado) e que operava por ações no
modelo de joint stock companies. A sua “irmã mais velha”, a Companhia das Índias

63
Orientais, criada no início do século xvii, já colhera desde então muitos frutos da
relação com o comércio no Índico (wallerstein, 1974). Sendo antiga parte do Império
Habsburgo, os Países Baixos, que aderiram à Reforma, empreenderam um grande
movimento de independência contra a Espanha e passaram a atacar as suas pos-
sessões no além mar. Portugal, que entre 1580 e 1640 estava subordinado à Casa de
Madri (fase da União Ibérica), teve, por conseguinte, suas possessões, tanto na Ásia
como na África e América, açambarcadas pela nascente autoproclamada República
holandesa. De fato, a ascensão e hegemonia holandesa no final do século xvi até
meados do xvii foi inconteste, tornando-se a maior nação hegemônica do mundo
ocidental nesse período. A cultura holandesa, eminentemente burguesa, parecia ser
o modelo dessa nação considerada prócer do capitalismo moderno (schama, 1992).
No dizer do historiador inglês Charles R. Boxer, travou-se uma verdadeira guerra
mundial entre portugueses e holandeses, onde estes empataram na África, ganha-
ram na Ásia e perderam no Brasil (boxer, 2002).
Uma vez em Pernambuco, a Companhia deveria encontrar uma forma de en-
tendimento com a população civil local. Essa primeira forma de entendimento sur-
giu através de um pequeno comércio que vicejou entre o Recife, Itamaracá, Goiana
e Igarassu a partir do início do ano de 1635 e dinamizado a partir de meados desse
mesmo ano com a queda da resistência luso-brasileira sitiada no Arraial Velho do
Bom Jesus. Iniciava-se a fase dos kleijne profijten (pequenos lucros) frequentemente
mencionados nas atas do governo holandês no Brasil (Dagelijckse Notule) e na Car-
tas e Papéis do Brasil (Brieven em Paieren uit Brasilië), dois conjuntos documentais
importantes para entendermos a administração holandesa no Brasil (nascimento,
2008). A partir dessa época, os holandeses começaram a empregar barcos de me-
nor calado (iates e chalupas) no contato com as vilas do interior através dos rios
Capibaribe, Goiana etc. Nesse processo, alguns moradores que não participavam da
resistência no Arraial estabeleceram uma convivência pacífica e uma troca comer-
cial mais constante com a Companhia. E foi nesse primeiro processo de relativo
entendimento entre as duas partes, que questões atinentes aos costumes e direito
se tornaram mais evidentes.
Do ponto de vista formal-institucional, a justiça no Brasil holandês ficou a
cargo de um conselho civil, o Politique Raaden (Conselho Político). Sobre suas atribui-
ções observou José Antônio Gonsalves de Mello Neto, eminente estudioso do tema:

Na justiça civil, esta seria dispensada por um tribunal formado por três dos
seus conselheiros, que seriam substituídos alternadamente de três em três
meses. Em caso de justiça criminal e julgamentos eram atribuição do Con-
selho pleno, convertido em tribunal, funcionando nele um Advogado-Fiscal,
como promotor público. Nas questões civis e comerciais vigiam os princípios
do Direito Romano (gemeene ordre); no direito de família e sucessório a legis-
lação da Província da Holanda, bem como os usos e costumes da Zelândia e
Holanda do Sul. (A justiça militar era exercida por um Conselho de Guerra
e um Conselho Naval, formados pelo chefe militar respectivo e por oficiais
superiores. (mello, 1985, p. 10)

64
Essa estrutura funcionou tal qual até 1635. Em 1635 e 1636, dadas reclamações
de corrupção dentre os conselheiros políticos, a fiscalização da justiça passara às
mãos de uma Diretoria Delegada, composta por dois Diretores da Companhia vindos
dos Países Baixos. Com a vinda de Nassau, em 1637, as questões maiores de justi-
ça ficaram a cargo de um assessor do Hogen Raaden (Alto Conselho), que auxiliava
Nassau em várias matérias.
Percebemos, pelo exposto, que o modelo político-administrativo da Companhia
das Índias Ocidentais no Brasil não obedecia a um modelo monolítico. Pelo contrário,
apresentava-se como bastante dinâmico, bem ao sabor da práxis social. Soma-se o
fato de que, no caso dos conselheiros políticos, estes exerciam funções também de
ordem administrativa. Na medida em que os holandeses iam conquistando vilas do
interior e da Capitania de Itamaracá, até mesmo da Paraíba e Rio Grande do Norte,
para esses locais eram designados administradores entre os conselheiros políticos.
Assim, num mundo pré-Montesquieu, a confluência, numa só pessoa, do exercício
do poder judicante e executivo encontra um exemplo no Pernambuco holandês.
Outro aspecto importante da passagem destacada acima diz respeito ao uso do di-
reito costumeiro dos Países Baixos no cotidiano da conquesten batava. Havia, por-
tanto, para o escopo de uma aplicação legal, pelo menos do ponto de vista teórico,
uma programação por parte da Companhia. Ainda que esta fosse um tipo novo de
organização e esforço colonizatório, a mesma não pode prescindir de uma tradição
e ordenamento anteriores.
E na prática, como se davam as aplicações das penas? Vejamos alguns exemplos.
Em abril de 1635, já se noticiava em ata do governo holandês no Brasil o contra-
bando de víveres por parte da tripulação dos navios ancorados no porto do Recife.
Em 21 de abril desse um vrijluiden (cidadão-livre) chamado Jan van Eijsens foi pego
por um auditor da Companhia contrabandeando água ardente, pelo que pagou uma
multa de 30 florins (monumenta, Dagelijksche Notullen, 2005, p.70). Em 14 de setem-
bro de 1635, uma moradora da “nobreza da terra”, Dona Adriana de Holanda, que
havia requerido proteção de sua vida e de seus bens à Companhia, veio novamente
requerer propriedade de mais de 50 caixas de açúcar que remanesciam na freguesia
do Cabo. Ficou decidido que a Companhia confiscaria o excedente. Pelo que expõe a
ata do governo holandês, ela havia alegado proteção de sua vida e de seus bens em
duas ocasiões. A mesma alegava que a posse de todas as caixas seria para pagar aos
que produziram o seu açúcar. Mas a sua demanda foi em vão, dado que o Conselho
e os Diretores delegados negaram (monumenta, Dagelijksche Notullen, 2005, p.120-121).
A Companhia deveria ser hábil em não perder os luso-brasileiros como aliados.
Em 27 de dezembro de 1635, o Coronel Arzciszewsky dava conta de que em Porto
Calvo os moradores estavam fugindo para as matas com medo de um edital que a
Companhia havia publicado, considerado “severo” pelo militar e que considerava a
perda de bens por parte dos mesmos. Pediu-se a presença de um dos Conselheiros
Políticos na região a fim de garantir a revogação desse edital. Consideraram que
iriam se “desculpar, dando como razão a severidade do edital, de modo que eles
(moradores) se instalem em nossas conquistas, o que é muito necessário para a
Companhia” (Ibid., p.162). Vários foram os casos em que a Companhia fez uso de
editais (placaard) para administrar. Nassau usou muito desse expediente. O que é

65
importante salientar aqui é o fato de a Companhia reavaliar uma decisão e assegurar
debret, Jean-Baptiste. Castigo de escravo
os bens de parte da população local que não fosse beligerante. que se pratica nas praças públicas.
Outro caso que foi levado ao Conselho. Em 1 de fevereiro, Elbert Crispijns acu- Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa
do. Debret e o Brasil: obra completa: 1816-
sava Domingos da Silveira perante por este não ter escondido e não ter declarado 1831. 3. ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013.
11 bois à Companhia. O acusador alegava que p. 187.

[...]o senhor Domingos tinha tentado se apossar destes animais, porque ele
não havia declarado os mesmos de acordo com o edital ... Em seguida, ele deu
estes animais a terceiros e tentou escondê-los, ato que mostra a intenção
de praticar ‘dolo malo’, ou seja, crime premeditado. (Ibid., p. 196)

Por essa falta, Domingo da Silveira pagaria uma multa de 23 reais (moeda
espanhola) por cabeça de gado escondida, perfazendo um total de 253. Pior ficou a
situação dos que o ajudaram a esconder os bois.

E visto que os outros portugueses que haviam recebido os animais de Do-


mingos da Silveira também tinham más intensões e estavam cientes de que

66
os animais pertenciam ao Senhor Francisco do Rego (genro de Domingos
da Silveira) e, consequentemente, ao fiscal, assim eles foram condenados a
restituir um valor equivalente ao dobro dos animais que eles esconderam.
(monumenta, Dagelijksche Notullen, 2005, p.196-197)

Até aqui percebemos pequenos crimes de sonegação, cujas penas não passavam
de multas. No entanto, houve casos em que se aplicou a pena de morte. Em 28 de
abril de 1636, um capitão de mato trouxe presos ao Recife “um negro e um mula-
to” que, segundo ele, haviam saqueado e roubado nas estradas, além de terem sido
acusados de matarem, na noite anterior, um português e seu cunhado na localidade
de Paratibe. Os acusados alegaram inocência, mas acabaram sendo condenados à
forca. A ata conclui que os mesmos confessaram que o produto dos roubos estaria
numa casa, “no meio de uma plantação de cana perto do Arraial” (Ibid., p.222-223).
O que pesou sobre eles foi o fato de sempre andarem em companhia dos boshnegers
(negros da mata), grupo de quilombolas que praticavam saques às propriedades do
interior (nascimento, 2010). Um outro caso emblemático, dessa vez envolvendo um
boschneger, ocorreu em 22 de julho de 1636. Capturado e trazido ao Recife, teria tido
como pena inicial o escalpelamento. No entanto, “visto que o cirurgião e o algoz
disseram que isto não poderia ser efetuado sem que o condenado morresse de he-
morragia, foi decidido que ele seria enforcado” (monumenta, op. cit., p.236).
Não seria de se espantar tais crimes capitais aplicados pelos holandeses no
Brasil. Nos Países Baixos, talvez as coisas fossem mais brandas. Em Amsterdam,
havia na época a Rasphuis, primeira prisão correcional de que se tem notícia no
Ocidente. A municipalidade de Amsterdam garantia o monopólio do pau-brasil
para que os presos pudessem beneficiá-las como parte da pena. Em alguns casos de
penas mais graves, o condenado era jogado numa cela, onde se enchia de água e o
mesmo tentava esvaziá-la para que não morresse afogado. Isso servia para que ele
se “redimisse” de seus pecados pelo esforço e sofrimento. A “cela de água”, como era
conhecida, às vezes vencia os seus ocupantes (schama, 1992).
Nas atas do governo holandês no Brasil aparecem várias situações como estas
elencadas acima. Outras situações também podem ser verificadas como, por exem-
plo, os pedidos de moradores que detêm o direito de cobrança dos passos de alguns
rios. Em algumas situações, a companhia respeitou-lhes o direito, muitas vezes
herdados. Nesses casos, respeitou-se o status quo ante. Essa atitude da Companhia
se apresentava como uma tentativa de distensionar o clima que a guerra causava,
além de atrair mais luso-brasileiros para o seu lado. Nassau não perdeu tempo e
continuou essa política da boa vizinhança. Na governança deste, os problemas de
ordem judicante só se avolumaram, dada a maior complexidade social e econômica
a que havia chegado a conquista.
Logo na chegada de Nassau ao Brasil, os vereadores da tradicional Câmara de
Olinda fizeram uma série de pedidos a este e ao Alto Conselho que o assessorava.
Um deles foi que a Companhia respeitasse os seus privilégios “que lhes foi dado pelo
rei e se eles podem ser guiados de acordo com as ordens de Portugal”. Deu Nassau
e o Alto Conselho a seguinte resposta:

67
Com relação aos seus privilégios nós adiamos a decisão e lhes ordenamos
que nos mostrem primeiramente uma especificação e uma prova de seus
privilégios. Quanto à forma de sua justiça e leis de acordo com as quais eles
devem viver, nós lhes esclarecemos que os Todos Poderosos dos Estados
Gerais e Sua Alteza o Príncipe de Orange dão ordens de que sejam governa-
dos seguindo as leis imperadoras, ordens e costumes da Holanda, Zelândia
e Frísia Ocidental. (Dagelijksche Notullen, 04 maio 1637, Coleção José Hygino)

Pelo exposto, percebemos que havia uma certa flexibilidade da administração


superior no tocante à manutenção dos privilégios (desde que provado). A retomada
das propriedades também seria garantida, desde que provadas a pertença e mediante
pagamento de dízimos à Companhia. Percebemos assim que o intuito da Companhia
não seria uma tática de terra arrasada. Ela não impôs a ferro e fogo o seu ordenamen-
to jurídico por completo. Procurou, em algumas ocasiões, entrar em entendimento
com a população local com a finalidade maior de retomar a produção açucareira e o
comércio de escravos, no que foram por um tempo bem sucedidos. A “aliança” entre
os produtores de açúcar e a Companhia só seria parcialmente garantida quando esta
respeitasse a propriedade dos escravos fugidos dos primeiros sem que os oficiais e
soldados deles se apossassem. Assim, o respeito ao direito de propriedade era mais
factível do que as submissões dos luso-brasileiros às ordenações do reino.
Nassau estabeleceu câmaras por toda a conquista, as chamadas câmaras dos
escabinos, equivalente às câmaras no mundo português. Nessa composição, seriam
admitidos portugueses e holandeses. A instalação do escabinato não foi algo tão
simples de ser feito. Pelo contrário, exigiu toda uma estratégia para que os poderes
locais passassem a funcionar em consonância com os interesses dos ‘poderes do
centro’ (Nassau e o Alto Conselho). Numa notulen de junho de 1637, o governo holan-
dês deixou bem claro que os futuros escabinos luso-brasileiros deveriam conhecer
bem os costumes e leis portugueses (de wetten ende costumen van Portugal) (iahgp.
Dagelijckse Notulen. 27/06/1637, Coleção José Higino). Essa condição, por si só, mostra
como os holandeses não poderiam prescindir das leis e costumes anteriores. Nesse
sentido, as câmaras dos escabinos não representaram necessariamente uma ruptura
com a situação anterior. Para os luso-brasileiros, não deveria ser extinto o direito
português. Para os neerlandeses, fazia-se necessário conhecer as leis portuguesas
para saber lidar com situações que envolvessem os costumes “do tempo do rei”.10
Na função judicante, os escabinos, tanto neerlandeses como luso-brasileiros,
deveriam incorporar dois mundos jurídicos: o neerlandês e o Ibérico. Isto pelo me-
nos em teoria. Assim, ao contrário da perspectiva ‘esvaziada’ do poder do escabinato
proprosta por Mário Neme (neme, 1971), pensamos que os escabinos neerlandeses
estavam à espera de um mundo complexo, em que as freguesias dispunham de suas
peculiaridades geográficas e de grupos de poder. A partir de 1637, ano em que se
10  É bastante comum, nas fontes em
formaram as primeiras câmaras de escabinos no Brasil holandês, escabinos como
holandês, a referência a situações que
Wilhelm Doncker e Jacques Hack já tinham o conhecimento, senão pleno, quase ocorreram antes de 1630 (ano da invasão
holandesa) como sendo situações que se
que total de como funcionavam algumas localidades em Pernambuco e na Paraíba.
passaram “no tempo do rei” (tijt van de
Soma-se o fato de que alguns deles, em contato com elementos do Conselho Político king).

68
tenham, antes da administração nassoviana, tomado conhecimento das dificuldades
em se administrar qualquer parte do Nordeste até então conquistada.
Coube ao Conselho Político procurar, em cada território onde se constituiria
uma câmara de escabinos, os moradores mais probos e habilitados em matéria de lei
(no caso dos luso-brasileiros). Este foi o primeiro passo na escolha dos ‘oficiais civis’
(civille officianten). Os moradores selecionados nas esferas locais seriam em número
de 20 ou 30 e seriam eleitores que estariam habilitados a selecionar os esbaninos
portugueses. A escolha dos escabinos não seria, pois, fruto de um sufrágio direto.
Nem poderia, visto que, mesmo nos Países Baixos, onde o sistema de representa-
tividade sugeria um maior grau de “democracia” (se comparado ao Antigo Regime
ibérico), as tomadas de decisões, inclusive ao nível dos Estados Gerais, davam-se mais
num nível de convencimento do que mesmo por voto direto. Este tipo de sufrágio
só faz sentido num mundo pós-Mostequieu, a partir do qual haveria uma ‘quebra’
da sociedade estamental. Na Holanda setecentista, mesmo existindo um capitalismo
financeiro em curso, os costumes de uma sociedade medieval com seus sistemas
de representatividades ainda sobreviviam.
Com Nassau, o Recife passou a ter uma representação jurídica imediata própria,
através da instituição da Câmara da Cidade Maurícia. Agora, pela primeira vez, os
comerciantes e moradores do Recife não precisariam se dirigir até Olinda para di-
rimirem suas questões imediatas. Essa situação foi desfeita tão logo os holandeses
foram expulsos do Brasil. Temos aí um primeiro ensaio de autonomia do Recife,
fato que só irá se verificar após a Guerra dos Mascates, no início do século xviii.
Em princípio, o que a wic imaginava para a administração do Brasil era a
redução do controle de vários espaços a um único órgão: o Conselho Político. Essa
posição “centralista”, que teve como base o Recife, ignorou os problemas locais. A
economia açucareira, espalhada por diversas freguesias, não poderia prescindir de
situações locais de natureza geográfica, política ou social.
Os primeiros relatórios remetidos aos Países Baixos procuraram entender essas
particularidades. Num relatório acerca da capitania da Paraíba aos Estados Gerais, o
conselheiro Serveas Carpentier compara a Vila de Filipéia (que deu origem à atual
João Pessoa) à cidade de Geertruidenberg na Holanda e deixando bem claro que ali
residia “o Tribunal de Justiça e juntamente o clero e os burgueses” (mello, 1985).
Das impressões que os holandeses tiveram ao descrever a capitania da Paraíba, nos
interessa saber que identificaram, no espaço da vila, os elementos da justiça e do
comércio. Assim, remetiam informações aos seus correlatos nos Países Baixos, muito
embora as municipalidades funcionassem de forma pouco diversa aqui.
Politicamente, as municipalidades nos Países Baixos gozavam de maior au-
tonomia que no império português. Ainda que a recente historiografia, sobretudo
brasileira, venha contestando a situação de total subordinação das câmaras no mun-
do português ao poder central, elas ainda guardavam um quê de sujeição ao poder
do monarca. Nos Países Baixos, ao contrário, as formações municipais guardavam
uma considerável autonomia frente ao poder dos Estados Gerais dos Países Baixos.
Na verdade, todos os municípios possuíam representações nesses Estados.

69
4. Depois dos holandeses: uma “nova” ordem

Após a expulsão holandesa, em 1654, uma nova ordem se instalara no Atlântico sul.
A geopolítica do império português era outra bem diversa daquela antes da invasão.
Para termos uma ideia, duas figuras importantes na guerra contra os holandeses
assumiram o governo de Angola (Vidal de Negreiros e Fernandes Vieira) e um ou-
tro, a capitania de Pernambuco, Francisco de Brito Freyre. Em Portugal, já a partir
de 1642, com a ascensão de D. João iv da Casa de Bragança, fora criado o Conselho
Ultramarino, órgão que cuidaria das diversas matérias no ultramar, inclusive a
justiça. Na verdade, esse órgão concentrava e despachava sobre várias esferas da
administração do reino, inclusive questões atinentes às ouvidorias.
Pouco tempo depois da expulsão holandesa, os pró-homens da câmara de
Olinda detiveram o quarto governador de Pernambuco desde esse episódio: Jerôni-
mo de Mendonça Furtado. As acusações foram várias, desde irregularidades contra
o erário régio até mesmo a interferência no andamento da justiça local. Estudioso
do tema, observou Evaldo Cabral de Mello que Mendonça Furtado até “introduzira
um amigo ilegalmente no cargo de ouvidor” (mello, 2003, pág.24). Nessa querela, o
Governo-Geral em Salvador nomeou outro, que não o indicado por Furtado, para o
provimento do cargo. Toda essa situação de animosidade escondia razões pessoais
que extravasavam os limites da capitania de Pernambuco, passando a interferir na
“ordem natural” dos ritos burocráticos na justiça. Dado o novo contexto geopolítico
do reino no Atlântico sul, temos que a coroa, via Governo-Geral, procurava ter o
maior controle sobre Pernambuco, que não tinha mais a essa altura a condição de
capitania hereditária.
No entanto, nos alerta Cabral de Mello para o fato de que seria ingenuidade
“supor que, nestes conflitos de jurisdição, os governadores tivessem em vista a pre-
servação da autonomia pernambucana [...]. Tudo o que eles sustentavam era a manu-
tenção das próprias competências, sobretudo no direito de nomear [...].” (Ibid., p. 31).
Após a expulsão holandesa, foram comuns os conflitos entre os governado-
res de Pernambuco e os governadores-gerais. Isso também se verificava no tempo
da donataria. Tradicionalmente, tanto os donatários como, agora, os governadores,
mantiveram a prerrogativa de nomear e “prover os ofícios políticos”. Tanto que, na
edição do Regimentos dos governadores da capitania de Pernambuco, em 1670, fora
confirmada a prerrogativa dos governadores proverem os ofícios de justiça. Dessa
forma, o Conselho Ultramarino, sediado em Lisboa, achou por bem manter a tradição.
No caso da deposição de Mendonça Furtado, o Conselho Ultramarino conside-
rava “que o desaforo praticado pela câmara de Olinda estava a exigir castigo exem-
plar e que, por conseguinte, cumpria enviar à capitania magistrado imparcial que
averiguasse com rigor o sucedido”. Por fim, o Conselho Ultramarino foi em defesa
de Mendonça Furtado alegando que este tinha a seu favor a presunção de justiça (op.
cit., pág. 56). As relações entre os governadores e os ouvidores nem sempre eram
amistosas. No final do século xvii, o governador João da Cunha Souto Maior fora
questionado pelo então Ouvidor, que também exercia a função de provedor, o Dr.
Dionísio de Ávila Vareiro. A coroa apoiou este último. Concorreu para a resolução
dessa querela o Tribunal da Relação da Bahia.

70
O panorama atribulado da justiça em Pernambuco, que culminou com as dis-
debret, Jean-Baptiste. Engenho manual
que faz caldo de cana. putas jurisdicionais entre Olinda e Recife, não parou nas décadas seguintes. Pelo
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa contrário, em estudo objetivo e elucidativo, Evandro Silva demonstrou que, durante
do. Debret e o Brasil: obra completa: 1816-
1831. 3. ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. todo o reinado de D. João v (1706-1750), “a Nova Lusitânia continuaria sendo palco
p. 229. de litígios entre governadores, bispos, servidores, câmaras municipais e membros
da elite local” (silva, 2010, p.15). Na primeira metade do século xviii, Pernambuco
não tinha mais a condição de capitania hereditária (1716) e a elite açucareira viveu
uma certa dose de desprestígio em função da concorrência do açúcar pernambucano
no mercado externo. “Desprestígio” não quer dizer a sua aniquilação, que fique bem
claro isso. Dentro desse contexto, a práxis da justiça seria moldada pelo andamento
das disputas, particulares ou de grupos, dos atores em questão. A própria figura
e função do ouvidor encerra em si uma historicidade na qual o law in action teve
muita participação. Assim, de uma situação inicial de alguém que deveria ouvir e
encaminhar processos, o ouvidor passou a exarar sentenças e ter função judicante
(Ibid., p. 38).
O “paradigma corporativo” do Antigo Regime admitia, na visão de Hespanha - e
que acatamos aqui entre historiadores brasileiros e portugueses no último decênio
– a limitação dos poderes do rei em função de interesses diversos. Tudo isso para
que se mantivesse um clima de harmonia na governança do ultramar, o que quase
sempre não ocorria. A busca era sempre o equilíbrio, a homeostase do império. Para

71
essa fase, a justiça local dispunha de um corregedor e um juiz de fora designados
para cada comarca. A legitimidade destes advinha da formação em direito por Coim-
bra, com a aprovação do Desembargo do Paço, órgão mater da justiça portuguesa.
Tendo iniciado suas atividades nos tempos de D. João ii, fins do século xv, o
Desembargo do Paço resolvia petições de graça e justiça e servia de última instância
aos recursos de corregedores, juízes e ouvidores. Era um conselho que ajudava o rei
em matéria de justiça, promovia e avaliava magistrados por meio de residências,
etc. Em 1723, o Ouvidor que serviu em Pernambuco, Francisco Correia Pimentel,
dava início à sua habilitação à magistratura real, sendo necessária a chancela do
Desembargo. Para tal, fazia-se o “exame dos bacharéis”. Importante salientar que o
próprio Desembargo do Paço também teve a sua história e mudanças, como qual-
quer instituição, passando por diversas transformações e se constituindo, cada vez
mais, como um órgão judicante que praticamente norteava a justiça no reino e nas
colônias (subtil, 1996).
No processo de habilitação à ouvidoria de Correia Pimentel, verificou-se que
o seu avô materno teria exercido ofício mecânico, o que desabilitaria Pimentel ao
exercício da função. No entanto, concluiu Evandro Silva que isso não foi empecilho
para que ele exercesse o ofício em Pernambuco (Ibid., p. 62). Percebemos aí a dis-
crepância entre a letra e a realidade. Em alguns ofícios régios, não foram poucos os
casos em que se verificou “vistas grossas” a alguns empecilhos legais de assunção
de cargo.
A história da ouvidoria em Pernambuco passou por um processo de modifica-
ção. Até o século xvii, havia uma ouvidoria em Olinda, com jurisdição de Alagoas
até o Ceará. A partir do século xviii, novas comarcas foram criadas sob a jurisdição
de Pernambuco, com um ouvidor residindo em cada um desses lugares. Diante de
tantas atribuições dos ouvidores, uma importante era fiscalizar os vencimentos de
diversos oficiais régios, desde provedores da fazenda até os que exerciam ofícios de
tabeliães (Ibid., p. 77).
Talvez as instituições que mais tenham reverberado, para o caso de Pernam-
buco, as querelas entre assuntos administrativos e jurídicos tenham sido as câmaras
municipais, às quais já nos referimos acima. George Cabral nos resume o quadro
jurídico em Pernambuco no século xvii:

No jurídico a ordem é a seguinte: o Tribunal da Relação da Bahia, composto


por vários Desembargadores e pelo Governador-Geral ou vice-rei; nas Capi-
tanias, o(os) Ouvidor(es) da(s) Comarca (s); em seguida, já no Termo da vila,
o Juiz de Fora, secundado pelos Juízes Ordinários, dos Órfãos, Vintenários
e outros oficiais menores. As câmaras atuavam como primeira instância, e
as apelações e agravos eram feitas seguindo a sequencia descrita. No Reino,
as causas eram acolhidas na Casa da Suplicação, no Desembargo do Paço e
finalmente pelo Rei, juiz supremo. Convém salientar a existência de juntas
de justiça. Em Pernambuco, eram essas juntas compostas pelos Ouvidores
de Pernambuco e Paraíba, além do Juiz de Fora de Olinda, um outro Ouvidor
já fora de serviço e o Governador, que preside a junta. (souza, 2003, p. 76)

72
O autor observou, contudo, que “essa rápida esquematização peca pela simpli-
ficação”, dado que não leva em conta uma série de modificações institucionais ao
longo do tempo. E é justamente a percepção das mudanças institucionais que nos
leva a considerar o paradigma do law in action. Nesse jogo da história social, que
mais parece um labirinto, Cabral de Souza pontua que as municipalidades serviam
de espaço de voz dos munícipes, muitas vezes contra os oficiais régios. Um maior
controle da coroa ocorreu a partir das descobertas das minas, no início do século
xviii, quando as câmaras, ainda segundo o autor, passam a ser controladas com
mais vigor pelo reino. Durante todo o período colonial, vigia, na colônia, uma falta
de limites claros de competências entre os órgãos administrativos e jurídicos. No
caso do Brasil e, por extensão, de Pernambuco, não foram raros os conflitos de ju-
risdições entre instituições locais e funcionários régios. O pragmatismo legal, que se
caracterizou pela criação de muitas leis para atender às necessidades do momento,
quase sempre desembocava num labirinto de cartas régias e alvarás, segundo Cabral,
referindo-se a Caio Prado Jr. (Ibid., p. 80).
Não foram raros os momentos em que munícipes da câmara do Recife se quei-
xaram de posturas indevidas de oficiais régios, incluindo os ouvidores. Segundo
Cabral de Souza, que realizou extenso estudo sobre a câmara do Recife no século
xviii, “muitos desses conflitos de interesse passaram pelos debates e papéis dos ofi-
ciais municipais”, sobretudo no que se refere à justiça (Ibid., p. 111).

5. Conclusão

Pelo exposto, vimos, em linhas gerais, um pouco de como caminhou a justiça na


fase colonial em Pernambuco. Evidentemente, não se procedeu a uma avaliação de-
talhada e exaustiva, o que exigiria um estudo bem mais vasto e detalhado (portanto
menos pontual como o que se apresenta) que um capítulo. Contudo, o fio condutor
de nossas linhas foi o caminho da justiça frente às conjunturas e, por conseguin-
te, às necessidades de pragmatismo. Isso não significa assumir que as ordenações
– bases-mestras legais do reino – tivessem sido de todo desrespeitadas. Apenas
chamamos atenção ao fato de que o próprio estatuto colonial corrompia a ideia de
um sistema jurídico que em tudo funcionasse como o do reino.
Ao fim e ao cabo, o que tentamos fazer foi, dentro da história social, verificar
a historicidade da justiça em Pernambuco, obedecendo a uma condição basilar da
disciplina história: a mudança de uma sociedade ao longo do tempo. A outra condi-
ção é o suporte em indícios, ou seja, fontes. Por isso mesmo, podemos admitir que
o ordenamento jurídico em Pernambuco chegou ao fim do período colonial com
mudanças e permanências em relação aos primeiros anos da governança de Duarte
Coelho. Dentro disso, na transição para o ordenamento jurídico do Império, é bem
possível que a mentalidade jurídica colonial ainda estivesse muito presente, dado
que uma efeméride política é insuficiente para apagar toda uma erfahrung (experi-
ência) ou cultura jurídica de séculos.

73
6. Referências

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75
76
CAPÍTULO 3 - Justiça local ou de além
mar? As devassas à família Rego Barros
no século xviii

Suely Creusa Cordeiro de Almeida1

1. Introdução

Desde os anos 80 do século xx instalou-se um grande debate sobre a força e im-


portância entre as ações do poder central e do local. Russel-Wood (1998) inclusive
escreveu texto clássico procurando demonstrar o quanto o local poderia tornar-se
central no âmbito do Império português ao longo do que foi chamado período co-
lonial, posição essa acompanhada por ampla historiografia. Há também consenso
sobre a ideia de que as instituições portuguesas foram transpostas e adaptadas em
conquistas, e no que tange ao direito, chegou-se até a cogitar a existência de um
direito colonial (hespanha, 1994). Ficou claro para muitos historiadores que seria
impossível entender as dinâmicas coloniais sem analisá-las a partir do paradigma
jurisdicionalista.
No Antigo Regime, segundo Subtil (1992, p. 157), quando surge a expressão
“administração da coroa” logo se deve entender poderes concorrentes. Na figura do
príncipe compactaram-se múltiplas imagens do mesmo, que vão definindo-o de per
si como administrador da justiça, fazenda e milícia, ou senhor da justiça e da paz,
chefe da casa, protetor da religião, cabeça da República, mas, na verdade, o que se exigia
de uma cabeça coroada na teoria coorporativa do poder era que pudesse garantir
o “equilíbrio social estabelecido e tutelado pelo direito, do que decorria automati-
camente a paz” (subtil, 1992, p. 158). Ou seja, a justiça era por excelência área de
governo e a sua alma, sem ela tudo seria confusão, anomia.
No campo da economia, o rei era discricionário, ou comportava-se como um
prudente pai de família. Ele deveria buscar os meios para o sustento da casa. Re-
alizar uma administração ativa provendo, prevendo e promovendo. As ações eram
exercidas por agentes livremente escolhidos e da mesma forma descartáveis como
1  Professora Titular da Graduação e Pós- as juntas, comissários, secretarias, validos etc., agindo com a discrição que se faria
Graduação em História da Universidade em família. No entanto, ao longo do século xviii aprofunda-se o paradigma me-
Federal Rural de Pernambuco. Pesquisa
financiada pelo CNPq. suealmeida. dieval que permitia ao príncipe o direito de violar interesses particulares, sendo
[email protected]. possível construir uma ponte entre o paradigma doméstico e um paradigma político

77
da administração. No plano da administração concreta, os ofícios personalizados
e dados por mercê são substituídos por uma especialização orgânica e funcional, o
que veremos com as juntas, intendências, diretorias etc., que absorverão os antigos
tribunais, conselhos e provedorias, embora lentamente (subtil, 1992, p. 158, 159,
162). Esse processo de transição será possível acompanhar ao longo da trajetória da
família Rego Barros à frente da Provedoria da Fazenda Real de Pernambuco, du-
rante o século xviii. A família, tratada com discrição nas primeiras décadas, será
questionada em sua honra, sendo exposta a casa do morgado aos crimes praticados
e ao confisco de bens através de devassa na segunda metade do século.
Mas as querelas jurisdicionais foram comuns ao ordenamento administra-
tivo da monarquia portuguesa do Antigo Regime. A jurisdição foi o poder de dizer
o direito exercido no espaço público e, para tanto, era necessário estar investido de
efeitos para exercer o tal poder e, portanto, legitimá-lo. Da jurisdição emanava uma
ordem que se constituía por laços horizontais que promoviam a manutenção do
equilíbrio entre uma pluralidade de forças atuantes sobre um território e, embora
houvesse uma cabeça coroada, essa partilhava o espectro político com outras forças
e poderes (cardim, 2005, p. 54-55). A jurisdição era a faculdade que menos expres-
sava pretensões unilaterais de domínio. Quando atuava buscava distribuir o poder
equitativamente entre as partes. No entanto, embora com aparências de liberalida-
de, o Antigo Regime instituiu práticas que permitiam acompanhar muito de perto
as ações daqueles que foram investidos em lugares de poder a favor da monarquia.
Havia uma prática longeva na administração portuguesa chamada tirar residên-
cia. Essa estratégia era aplicada a cada finalização de mandato realizado por oficiais
portugueses em terras do império. Era de praxe que um mandato durasse três anos
ou, em caso de mercê régia, até que a pessoa falecesse, respeitando-se a quantidade
de vidas dadas ou a possibilidade de sucessão, de acordo com a vontade do monarca.
Algumas pessoas de respeito, que gozavam de consideração da monarquia, tomavam
parte desse processo de tirar residência, produzindo ao fim um relatório que, na
maioria das vezes, inocentava o investigado, todavia, em algumas ocasiões emer-
giam malversações e culpas que foram punidas pela coroa. O processo, em geral,
era realizado pelo ouvidor em exercício e levava cerca de trinta dias. O dicionarista
Raphael Bluteau (1728) diz que era a conta que se tomava perante um juiz nomeado
pela administração superior que fosse juiz de fora, corregedor, ouvidor. Já Antônio
Moraes (1813) diz ser exame ou informação do procedimento de juiz, governador
etc. de como procedeu nas coisas de seu ofício.
Esse processo foi em alguns momentos amparado pela graça, que foi um instru-
mento utilizado pela monarquia para realizar os seus interesses. Em sua concepção
geral a graça era uma dispensação, porém recurso excepcional, configurando-se na
mais superior forma de justiça distributiva (cardim, 2005, p. 58). Assim cargos e
ofícios poderiam ser distribuídos pela magnanimidade real com o fito de promover
as vontades reais. É claro que o monarca teria que estabelecer relações com uma
pluralidade de agentes administrativos, as vezes concorrente, reconhecendo sua
presença e convivendo com eles. Órgãos que possuíam auto-organização, ou seja,
não dependiam de um ato constituinte do rei.
Mais complexa e profunda seria a devassa, investigação que era implementa-
da quando havia dúvidas quanto a honestidade do oficial no desempenho de suas

78
funções. A devassa é um ato jurídico. Um processo é instaurado e testemunhas são
ouvidas, na realidade temos um caso crime, que muitas vezes moveu-se por denún-
cia, em casos de avaliar um oficial que há muito tempo não sofria escrutínio, por
fim, se emitira um veredicto (bluteau, 1728).
No que tange aos processos que envolveram a família Rego Barros, teremos
devassas iniciadas ora por denúncia, ora porque a coroa achava que havia necessidade
de verificar as contas. Assim seguiram as averiguações a Provedoria da Fazenda
Real de Pernambuco ao longo do século xviii.

2. A Provedoria da Fazenda Real e a Família Rego Barros

A família Rêgo Barros formou-se a partir do consócio entre Luiz do Rego Barros e a
filha de Arnau de Holanda e desta união surgem dois troncos que são Rego Barros e
Barros Barreto (costa, 1983, v. 1, p. 150). Foi uma família que construiu um lugar de
destaque na capitania Duartina. Fez parte de uma herança material e imaterial da
América portuguesa, pois tornaram-se fidalgos e detentores de hábitos e honraria
a mais ambicionada no Império português.
Francisco do Rêgo Barros foi fidalgo da casa de sua majestade, cavaleiro da
Ordem de Santiago, casado com Dona Arcângela Josefa da Silveira. Filho de pais
nobres e abastados, nascido em Olinda, foi juiz de órfãos, vereador e presidente da
câmara do senado da vila. Pai de Luís do Rêgo Barros e João do Rêgo Barros. Ele
era proprietário do engenho Massiape em São Lourenço, mas o abandonou e seguiu
para a Bahia na época da invasão holandesa, acompanhado pelos filhos que ainda
eram crianças em 1635 (fonseca, 1935, v. 2, p. 213). Foi também proprietário das Sa-
linas, lugar de obtenção de sal antes de 1630. Nesta localidade possuía boa casa de
vivenda. A casa ficava fronteiriça ao forte do Brum, na margem oposta. Depois da
restauração voltou a Pernambuco, mas já era falecido em 1656. Está sepultado com
sua mulher na capela do capítulo do Convento de São Francisco de Olinda (costa,
1983, v 2, p. 400-401, 554, 559, 561-562).
Luís do Rêgo Barros, seu filho, foi provedor da fazenda real entre os anos de
1675 e 1676, e o primeiro a ocupar o cargo, porém de forma interina. Assumiu o
cargo durante o período em que seu irmão, João do Rego Barros, proprietário da
mercê, estava em Portugal recebendo a honraria. Foi fundador da capela de Santo
Amaro das Salinas. Capitão Mor de São Lourenço, militou nas fileiras do exército
restaurador de Pernambuco. Recebeu patente de coronel de ordenanças das vilas das
Alagoas, rio são Francisco, rio são Miguel, todas conferidas pelo governador Pedro
de Almeida em 1674. Em 1681 instituiu o vínculo ou morgado de Santo Amaro das
Salinas. Área extensa, iniciava-se antes do atual cemitério dos ingleses, e ia até a
cambôa do Tacaruna. De leste a oeste da margem oriental do Rio Beberibe, um pouco
além da ponte do Maduro. Ele constituiu nesta área casa de vivenda e escravos. O
vínculo foi extinto em 1835, em virtude da disposição legislativa que abolia todos
os bens vinculados (costa, 1983, v. 1, p. 365; v. 2, p. 562; v. 3, p. 365-370).
João do Rêgo Barros, nascido em 1628, foi o que recebeu a Mercê, assim o se-
gundo a assumir a provedoria. Foi natural da cidade de Olinda, fidalgo da Casa Real
e Comendador da Ordem de Cristo. Já havia militado nas armas por quase 30 anos

79
no momento do pedido. Seu percurso foi de soldado a alferes, recebendo a patente
de capitão em 19.11.1650 em retribuição aos serviços prestados nas guerras do Esta-
do do Brasil. Lutou na guerra da liberdade divina e por seus feitos chegou a Capitão
do Terço da Infantaria de André Vidal de Negreiros, por nomeação de Francisco
Barreto de Menezes em 1652 (costa, 1983, v. 1, p. 472). Contribuiu nas fintas, doou
escravos, para o esforço da guerra (mello, 1896, p. 8-9)2. Capitão-Mor da Paraíba entre
os anos de 1663/1670, sua nomeação, não se sabe ao certo, foi feita pelo Governador
Geral ou pelo Governador de Pernambuco. Findo o mandato, foi tirada residência
na qual só se sobressaiu sua excelente administração, devendo ser reconhecidos os
seus merecimentos como pessoa de qualidade. No entanto, os autos da residência
apontam em outra direção. Ela foi tirada pelo Cônego João Falcão Pessoa, em 1673,
e apontou vários descaminhos na conduta do Capitão-Mor da Paraíba, João do Rego
Barros. Ele foi acusado de interferir nos resultados das eleições para a Câmara da
Vila de Filipéia, fraudar leilões dos contratos do dízimo, alternando preços e toman-
do o ramo das mãos dos já eleitos. Criou e alimentou muitas inimizades e facções,
não administrando a capitania de forma isenta quando se tratava das pessoas que
considerava desafetos. Favoreceu a amigos com o não pagamento de impostos e ta-
xas, também se beneficiando de isenções e negociou com um pataxo francês, navio
estrangeiro, situação normatizada pelo rei como proibida e, por fim, mas não me-
nos grave, apropriou-se indevidamente de escravos de seus adversários. O processo
demonstra que as culpas foram explicitadas, mas não houve punição, e também
demonstra que João do Rego Barros não era limpo de mãos3.
Passando ao reino, conseguiu a propriedade do oficio de Provedor da Fazenda
Real, por mercê4, mais dois escudos de vantagem sobre qualquer ordenado que viesse
a receber, além dos soldos dos ajudantes dos terços da Infantaria de Pernambuco,
mediante o donativo em moeda de 4:800$000, mais o pagamento de 150$000 de novo
direito (mello, 1896, p. 18-22).5 Tomou posse em 1675, realizando juramento na Chan-
celaria Real, seguindo o costume, e tudo foi anotado no verso da carta que registrou
no livro da Chancelaria do Conselho Ultramarino e Casa da Mina, “S.A. manda passar
carta de propriedade do ofício de provedor da Fazenda Real de Pernambuco a João do
Rego Barros”, com o ordenado de 350$000 anual mais emolumentos e propinas que
lhes fossem anexos6, exerceu o cargo até 1697 quando veio a falecer (calmon, 1996,
v. 1, p. 148). Através da Consulta feita ao Conselho Ultramarino, ficamos informados
que João do Rego Barros era íntimo das atividades fazendárias, antes da receber a
mercê, havendo servido como escrivão da administração das minas, tesoureiro do
donativo do dote da rainha da Inglaterra e Paz da Holanda, escrivão da fazenda e
matrícula de Pernambuco. Foi responsável por elaborar e introduzir livros novos
além de uma escrituração adequada. Foi definido como alguém com “inteligência
nas matérias da fazenda real”7. 2  apba - Registro de Patentes de 1648
Ele casou-se com Dona Catarina Theodora Valcacer. Foi provedor da Santa a 1684.
3  ahu/pb - Cx.1, D. 84.
Casa de Misericórdia por duas vezes. Também foi homem envolvido e influente na
4  A mercê foi dada até quando fosse
política local, chegando a escrever ao rei minuciosa carta sobre a morte de Fernão da vontade e conveniência real, sem
Cabral e as dúvidas sobre a sucessão do governo da capitania. Certo tempo depois, obrigação de satisfação.
5  Novo Direito: pagamento que se fazia
foi acatada sua ideia de que em vacância sucederia o bispo (costa, 1983, v. 4, p. 340). quando do recebimento de um cargo.
Como provedor, tratou de múltiplos assuntos com a Coroa, o que atesta uma 6  ahu-pe/Cx.11, D.1023.
correspondência trocada durante os anos de sua atuação na Provedoria de Pernam- 7  ahu, Cx. 11, D. 1023.

80
buco. Foram quarenta cartas trocadas com o Conselho Ultramarino, ou seja, esse
é o número que aparece no registro. Os temas são variados, indo das queixas de
viúvas sobre restituição de patrimônio e mulheres administradoras de engenho,
envio de heranças ao reino, compras de engenho para a manutenção de fortalezas
e munição; reformas na Alfândega que ainda era uma obra flamenga, construção de
uma cadeia em Olinda, construção de um novo armazém para acondicionamento
do sal, construção de uma fragata; cobrança de dízimos, contratos e contratadores,
pagamento devido pelos rendeiros da capitania de Itamaracá, pagamento de entregas
de sal, atenções ao oficialato da Infantaria da capitania, pagamento de engenheiros;
atenção ao porto e aos navios estrangeiros de Buenos Aires e Rio da Prata, envio de
sal, folhas de pagamento dos oficiais, envio de açúcar, empréstimos; pagamento de
côngruas, cobrança de dízimos de propriedades religiosas etc. Nas missivas trocadas,
percebe-se uma ênfase do Conselho Ultramarino na necessidade de esclarecimento
das contas elaboradas por almoxarifes, tesoureiros, feitores e registros de escrivães
por achar que eram grandes as perdas para a Fazenda Real, quando não havia uma
conferência e envio das contas ao Reino8.
Um caso que vale uma anotação especial, ocorrido em 1685, foi o do provedor
ter sido acusado por Francisco Bernardes de Moraes de criar novas jurisdições. João
do Rego Barros teria convocado o citado escrivão da fazenda para, em sua casa,
despachar sobre a arqueação dos navios que partiam para Angola. O escrivão o de-
nunciou ao governador Dom João de Souza, que imediatamente comunicou ao Rei;
esse, por sua vez, admoestou-o, reforçando seguir o Regimento dos Provedores no
Cap. 2, o qual ordenava que todas as decisões sobre a Fazenda Real deveriam ser
tomadas na Casa dos Contos9.
O cargo possibilitou à família Rego Barros obter muitas vantagens como carta
de sesmarias em 31.05.1679, do governador de Pernambuco Aires de Souza Castro,
que era de vinte e cinco braças de terra, no local do antigo Forte de São Jorge, com
todos os seus úteis e depois mais uma data até a praia em 1682, no Fora de Portas
local em que edificou a Capela Nossa Senhora de Pilar (costa, 1985, p. 154-155; guer-
ra, 1970, p. 11). Nesse terreno unido, construiu mais algumas casas para romeiros e
patrimônio da capela. Edificou também uma casa nobre, ao lado da igreja, para sua
residência e, após sua morte, seus descendentes lá viveram por muitos anos. Foram
os primeiros prédios construídos no local, no extremo da Rua do Bom Jesus, próxi-
mo ao cruzeiro de suplício (costa, 1985, p. 154-155). Para garantir a sustentação da
Capela de Nossa Senhora do Pilar, moradores e mareantes, que vinham ao Porto de
Pernambuco, concorrem com boas ofertas que foram empregadas em adorno e asseio
da igreja. Também pagavam os navios e embarcações que entravam pela barra uma
certa devota pensão. Observe-se que todas as contribuições pagas foram impostas
pelo grande poder que possuía como Provedor da Fazenda Real, que era responsável
pelas atividades de embarque e desembarque de cargas no porto do Recife. A funda-
ção da capela deu-se em 1680, mas só em 1683 passou a funcionar. Foi nessa capela
que se alojaram os Terésios, carmelitas descalços, no que ficou chamado Hospício
do Pilar, até terem outro destino. O engenho Massiape, em São Lourenço da Mata,
foi vinculado por João do Rego Barros com mais outros bens, ou seja, a capela e ter-
8  ahu-Cartas, Códice 256, fls. 11 a 248. ras, para a instituição de uma missa cotidiana por sua alma. Ficou encarregado de
9  ahu-Cartas, códice 256, fl. 63. administrar esses bens vinculados, o filho padre, homônimo, João do Rego Barros,

81
encarregado de bem administrar o engenho. Em linha sucessória, o neto mais velho,
também chamado de João do Rego Barros, e os seus filhos, especificamente nascidos
de mulheres brancas e cristãs velhas, não importando se legítimos ou ilegítimos,
prevalecendo a preferência por um clérigo. Durante o século xviii, esse processo de
sucessão provocou muitas dissensões na família. Na falta de um sucessor, a Santa
Casa de Misericórdia de Olinda ficaria responsável. O morgado de Christi no termo
da Vila de Vianna, em Portugal, ficou a cargo do neto mais velho o homônimo João
do Rego Barros (mello, 1896, p. 31-32). Esses bens serviram para satisfação desses
encargos pios instituídos em 1697, feitos em disposição testamentária, situação que
perdurou até 1831. O provedor da Fazenda foi sepultado na capela do Pilar em 1697
(costa, 1983, v. 4, p. 173-176).
Mas, no que tange à Provedoria da Fazenda Real de Pernambuco, as infor-
mações que temos sobre o período que vai de 1675 até 1716, e sobre seu procedi-
mento, são muito confusas e exíguas. Em carta enviada pelo Rei ao governador de
Pernambuco e ao provedor, em 1688, portanto doze anos após receber a mercê do
ofício, ou seja entre 1675/1688, ficamos informados que João do Rego Barros, não
havia até aquele momento prestado contas, através de seu almoxarife, tesoureiro e
feitores, à Provedoria Mor.
Esse silêncio deve ter dado azo ao fato de em 1691 terem sido tiradas duas
devassas sobre sua administração, que tiveram seus resultados manipulados e ocul-
tados. O Desembargador Sindicante, Belchior Ramires de Carvalho, informa que uma
devassa foi tirada pela Secretaria de Estado a outra pelo Conselho Ultramarino. Em
ambas foram apuradas culpas na administração do Provedor da Fazenda Real João
do Rego Barros e seus mais oficiais, envolvendo a Alfândega e a Fazenda Real. O
resumo dos autos o condenara por variadas culpas de descaminhos, eles demons-
tram que o provedor

[...] costumava receber minos de coisas do reino de todos os mestres dos


navios que dele partiam e das carregações no dito porto de Pernambuco,
fazendo lei e obrigação deste costume, em que consta tirava sempre seus
antecessores no tempo da restauração da dita praça até o presente10.

É evidente que essa denúncia esclarece como eram cobradas as devotas doações
para a construção da igreja do Pilar. Mas não foi essa a única acusação. Foi denuncia-
do por interferir na arrematação dos contratos dos dízimos, como fazia na Paraíba.
O Desembargador exemplifica com o caso da freguesia de São Lourenço, quando o
provedor tomou o ramo do arrematador e deu a uma “pessoa de sua obrigação”, por
ser um rendeiro que responderia com mais comodidade às suas questões. Dessa for-
ma ele isentava-se do pagamento das pensões de seus engenhos, estando todos em
contrato da Fazenda Real. Ele também se isentara de pagar aos mestres dos barcos
os fretes das cargas que enviava para fora de Pernambuco, pois não levava os guar-
das as vistorias dos navios, apropriando-se de valores que não eram registrados no
livros da provedoria e alfândega, e, por fim, cobrando a entrega do fardamento da
infantaria pela Fazenda Real. Os outros oficiais seguiam nos mesmos descaminhos,
pois o escrivão Francisco Bernardes foi acusado de cobrar propinas exorbitantes para 10 ahu/pe-Cx. 15, D. 1542.

82
emissão de fianças e certidões aos mestres de navios que carregavam pau brasil no
porto de Pernambuco com destino ao Reino.
Quanto às conclusões das devassas, o Sindicante nos informa que o provedor
e oficiais saíram culpados da que foi movida pela Secretaria da Fazenda, mas que
essa devassa encontrava-se sem pronunciação. Que havia sido feita apelação de
livramento para o Juiz dos Feitos da Fazenda e Casa da Suplicação, “na forma das
mesmas ordens”, não se explicita de quem foram as ordens e nem quais, admitin-
do-se que o provedor sirva no ofício mesmos pendente de apelação, o que pareceu ao
Conselho Ultramarino, incrível!! O Conselho Ultramarino orienta que os resultados
tirados em sua devassa sejam remetidos para a Secretaria da Fazenda, juntando-se
tudo e proferindo uma sentença, para que se faça justiça11. Parece que tudo ficou
adormecido nas prateleiras dos arquivos das instituições.
Ainda em 1696, um ano antes de sua morte, as contas ainda continuavam pen-
dentes12. O estilo seria enviá-las ao Provedor Mor da Bahia, mas o monarca, diante
de tantos atrasos, ordena que se faça prestação de contas diretamente ao Conselho
Ultramarino, mas sobre as devassas e as culpas apuradas o silêncio é sepulcral!13.
Outra missiva, datada em 1701, quando a provedoria estava em processo de
transição com a morte do proprietário da mercê, relatava a questão das prestações de
contas da seguinte forma: “o que se mostra não terem dado as contas o almoxarife
da fazenda real d’essa capitania, desde de outubro de 1668 até o presente”, ou seja,
há quinze anos! Em 1703, as contas não haviam sido dadas. No ano de 1703 o rei
reafirmou a mercê, encartando João do Rego Barros, o neto, no ofício de Provedor
da Fazenda Real. Dessa forma, sabemos que só em 1716 as contas foram inseridas
no processo de devassa que apresentaremos logo a seguir14.
Não é demais informarmos ao leitor que as contas das Capitanias de Itamaracá
e Rio Grande também eram ponto de apreensão da Fazenda do reino. Os almoxarifes
estavam no exercício da função por muitos anos, a exemplo de Francisco Alves de
Vasconcelos do Rio Grande, que estava há vinte e dois anos sem realizar prestação
de contas. Esses inconvenientes levaram ao Conselho estabelecer três anos como
prazo máximo para o exercício da atividade de almoxarife. Esse descaso ou desaten-
ção foi dando azo à anexação dessas capitanias à de Pernambuco15. Ao longo dos 100
anos em que a família Rego Barros exerceu o comando da Provedoria da Fazenda
de Pernambuco outras acusações sobre a malversação das finanças reais vieram à
tona e esses sucedidos comentaremos a seguir.
Vale ressaltar que esse período foi extremamente favorável à formação do pa-
trimônio familiar com a agregação de sesmarias e múltiplas contribuições ofertadas
pelos barcos aportados em Pernambuco para a execução da obra da capela e demais
dependências, como já comentado. Há de se considerar que, pelo poder em que foi
investido, o Provedor da Fazenda Real seria atendido em seus interesses, indepen-
11  ahu/pe- Cx. 15, D. 1542. dentemente da aceitação ou não daqueles envolvidos no transporte de mercadorias
12  Informação Geral da Capitania de e que cruzassem o seu caminho na aduana do Recife.
Pernambuco, 1749, p. 286.
13  Informação Geral da Capitania de Após a morte de João do Rego Barros em 1697, há uma divergência de opinião
Pernambuco, 1749, p. 269. sobre quem assumiu interinamente a provedoria da Fazenda. Manuel de Mello crê
14  Informação Geral da Capitania de
que foi Francisco do Rêgo Barros o filho do provedor falecido, nascido no Recife,
Pernambuco, 1749, p. 272 a 276.
15  Informação Geral da Capitania de casado com Dona Mônica Josefa de Barros e pai do neto João do Rêgo Barros, natural
Pernambuco, 1749, p. 272 a 278. do Recife. Foi fidalgo da casa real e comendador da Ordem de Cristo. Para Manuel

83
de Mello, ele permaneceu no cargo durante os anos de 1699 a 1703 (mello, 1896, p.
9). Já Borges da Fonseca, aponta João do Rego Barros o primo homônimo, que teria
assumido o cargo de Provedor da Fazenda até a maioridade do neto do provedor
falecido (fonseca, 1935, v. 2, p. 206-207)16. Uma outra fonte depositada no Arquivo
Histórico Ultramarino, produzida por um escrivão da devassa de 1774, reafirma a
ideia de Borges da Fonseca de que foi Capitão João do Rego Barros, o primo homô-
nimo, quem assumiu interinamente17. Assim, um dos membros da família poderia
ter sido, mesmo por pouco tempo, o terceiro a ocupar o cargo.18
João do Rego Barros, o quarto provedor da família, foi fidalgo da Casa Real e co-
mendador da Ordem de Cristo. Natural do Recife foi Provedor e Contador da Fazenda
Real, Juiz Privativo e Independente nas arrecadações da Alfândega, mar e direitos
reais e Vedor da Gente da Guerra, entrou servindo de março de 1704 até novembro
de 1738 (mello, 1896, p. 89). O rei Dom Pedro ii, fez-lhe mercê do cargo de Provedor
da Fazenda Real de Pernambuco através do Alvará de 21.01.1699. O texto afirma que

João de Rego Barros por sentença do Juízo das Justificações por ser filho mais
velho de Francisco do Rego Barros, filho único do outro João do Rego Barros
e proprietário do oficio de Provedor da Fazenda Real de Pernambuco, segundo
informação que dele deu o governador de Pernambuco19.

Mas a confirmação por carta régia só chegou em 12.06.1703, havendo sido feito
registro geral20.
Casou-se com Dona Luzia Pessoa de Mello, filha de seu tio André de Barros,
e teve Francisco do Rêgo Barros (mello, 1896, p. 9)21. Em 1713, a provedoria estava
envolvida na devassa movida contra o almoxarife Antônio Gomes de Lima, que foi
executado juntamente com seus herdeiros, dando-se por satisfeito D. João v22. Foi
em sua administração que a câmara de Olinda perdeu o direito de cobrar os seis
contratos de subsídios que são: carne, açúcar, tabaco, balança, garapas e vinhos,
além de rendas de subsídios pagos a Olinda por outras câmaras da capitania. A
provedoria passou a pagar a câmara 600$000 por ano do contrato dos rendimentos
do vinho. Esses contratos passaram a ser administrados por particulares, seguin-
do-se os leilões segundo a normativa do Regimento dos Provedores de 1548. Essa
nova ordem fortaleceu exponencialmente o poder da provedoria. Cremos que nesse
momento o provedor e sua família tornaram-se as pessoas mais importantes da
Capitania de Pernambuco, pois administravam o dinheiro do rei, tendo sob sua tu-
tela os demais graduados funcionários régios como inclusive o governador, ao qual
pagava os salários acudindo-os também com o pagamento das tropas. Os anos de
sua administração foram devassados pelo ouvidor geral da capitania de Pernam-
19  antt - Chancelaria de D. Pedro II,
16  João do Rego Barros, o primo, foi Capitão de Cavalos da freguesia de São Lourenço de Muribara, livro 43, fl. 24v.
vereador da Câmara de Olinda em 1685, juiz ordinário em 1691, provedor da Misericórdia de Olinda 20  antt - Chancelaria de D. Pedro II,
entre 1701 e 1702 e seu benfeitor. livro 28, fls. 119-120.
17  ahu/pe - Cx.117, D. 8974. 21  ahu/pe - Cx. 18, D. 1763.
18  É possível que dois provedores tenha assumido interinamente ainda nesse período (1698/1699) 22  Informação Geral da Capitania de
que foram Inácio de Morais Sarmento logo conduzido para a Relação da Bahia como desembargador Pernambuco, 1749, p. 287.
e Manuel da Costa Ribeiro que foi nomeado Juiz e Superintendente da Casa da Moeda do Recife
(ahu/pe - Cx. 18, D. 1763).

84
buco, José de Lima Castro, o qual não encontrou indícios de irregularidades (lopes,
2008, p. 257)23. No entanto, o processo foi bastante complexo e sobre isso faremos
uma narrativa livre a seguir.
O grande fluxo de navios e pessoas que circulavam pelo Porto do Recife e a
ideia de que muita riqueza tramitava pelas mãos dos oficiais da alfândega e fazenda
deram azo a supor que os ofícios ligados a essas instituições possibilitassem aces-
so a muita riqueza, suposição que os fez muito cobiçados. Trabalhar ligado a uma
instituição imbricada com a Provedoria da Fazenda Real significava fazer parte do
principal aparato burocrático tributário/financeiro da capitania. Esse feito poderia
possibilitar o acesso a informações privilegiadas e mais facilidades acerca dos leilões
dos contratos; influenciar no tabelamento e valores de produtos; de conhecer os ca-
minhos, mas também os descaminhos dentro da instituição, entre outras facilidades
para negociações na capitania. A ideia de que era possível ter acesso a muitos bens
e vantagens através de ofícios ligados as instituições fiscais gerava muitos boatos,
o que chamaríamos hoje de Fake News.
Muitas foram as murmurações disseminadas pelos arredores do Recife e apon-
tavam a falta de bom procedimento de alguns oficiais da alfândega, como a carência
de zelo e cuidado necessários na arrecadação do tributo da dízima. A situação privi-
legiada de alguns oficiais fez crescer invejas e ciúmes ao ponto de no ano de 1716, o
Governador D. Lourenço de Almeida enviar uma carta ao rei D. João v, sobre a ne-
cessidade de se averiguar essas murmurações que o povo disseminava pela capitania24.
Propõe que fosse feita uma sindicância, pois havia muitos anos que tais oficiais não
sofriam nenhuma investigação acerca do trabalho que realizavam, principalmente
as ações do Provedor da Fazenda Real, que acumulava o ofício de juiz da alfândega.
Suspeitava o governador que o fato de se sentirem livres de controles, certamente
deram oportunidade a “muitos vícios” no exercício das funções25.
A carta do governador foi posta em consulta ao Conselho Ultramarino e, por
uma resolução de 18 de novembro de 1716, foi ordenado ao Ouvidor Geral da Capitania
de Pernambuco, José de Lima Castro26, que tirasse uma devassa junto aos oficiais que
compunham a alfândega, suspendendo todos de suas funções e que “puxasse a si os
livros da alfândega, para ver se neles se descobria alguns descaminhos, pertencentes
23  Informação Geral da Capitania de
Pernambuco, 1749, p. 275. a ela [...]”. As devassas e/ou residências faziam parte dos trâmites administrativos
24  ahu/pe, Cx. 27, D. 2484. impostos aos ouvidores e sabiam todos os oficiais, que em algum momento, teriam
25  Anais da Biblioteca Nacional,
suas gestões submetidas a este tipo de fiscalização, principalmente os governadores.
1904, 264; Documentos Históricos da
Biblioteca Nacional, per094536_099. p. Na resolução, ainda era recomendado que tal procedimento só acontecesse após a
64. saída da frota para o reino, pois não deveria haver inconvenientes nos despachos
26  Não é possível até o presente
momento afirmar que José de Lima dos navios. O ouvidor começou a atuar nessa diligência em abril de 1718. (lopes,
Castro também acumulasse o ofício 2008, p. 245).
de Superintendente do Tabaco, porém
é possível que sim, pois o ofício de A escolha desse magistrado foi feita pelo Conselho Ultramarino que, anali-
Ouvidor Geral acumulava na maioria sando sua competência para averiguar o caso, reportava-o como “um dos maiores
das vezes, o ofício de superintendente.
Porém seu nome não é citado no quadro ministros que fora a ela pelo seu bom procedimento, reta intenção e letras [...]”, que,
estruturado pelo historiador Gustavo caso fossem comprovadas as denúncias, o processo deveria ser encaminhado com
Acioli em seu trabalho de tese, pois o
período de 1710 a 1720 está em aberto. agravos para o “juízo dos feitos da Fazenda da Bahia”27.
Anexo X. Em uma carta escrita pelo Provedor da Fazenda João do Rego Barros, em 26
27  Documentos Históricos da Biblioteca de setembro de 1718, o rei foi informado que o Ouvidor Geral o havia enviado uma
Nacional, per094536_099. p. 12.
convocação para que no dia 9 de abril, ele, o provedor e mais oficiais da fazenda e

85
alfândega comparecessem à Casa dos Contos, para sofrerem uma diligência. Assim
como foi pedido, todos se apresentaram na segunda-feira, dia 9, no seu subsequente
registro e no local acertado, e fizeram tudo o que foi solicitado. Foram todos sus-
pensos de suas funções e assinaram os termos que eram necessários. Nesse mesmo
dia, foram fixados editais no pelouro para notificar a população sobre o início das
residências28.
A residência feita pelo ouvidor durou três meses e cinco dias, findando-se no
dia 14 de julho do mesmo ano, quando foi solicitado novamente que todos os oficiais
fossem à Casa dos Contos, para participarem de uma audiência geral.
Nessa audiência foi exposta a resolução da residência. O ouvidor declarava que
não havia encontrado prova alguma “que pudesse resultar contra o procedimento
do provedor e mais oficiais daquela provedoria e alfândega, antes sim, que se lhes
agradecesse o fiel zelo com que se ocupavam no serviço de Vossa Majestade e arreca-
dação de sua Real Fazenda [...]”29 e que todos poderiam voltar a exercer seus ofícios.
Ele também expunha a necessidade de se edificar uma nova alfândega e de se criar
novos guardas para se evitar os descaminhos30.
Findo o processo e provada a inocência, foi a vez do provedor fazer denúncias
e expressar suas insatisfações. Em carta ao rei, além de descrever como a diligên-
cia teria acontecido e de seu amor e obediência às ordens da majestade real, ele
questionava o não pequeno prejuízo de que teria sido acometido pelo seu afastamento
por longo tempo do controle da direção da Provedoria e Alfândega. Carregando nas
tintas e de forma indisfarçada acusou o Ouvidor de ter sido no mínimo imprudente
quanto aos desdobramentos do processo de residência, feito contra a Provedoria e
Alfândega, no período em que eram esperados “os navios de Angola, Costa da Mina
e os da frota”, segundo o provedor, todos estiveram no porto do Recife durante dita
residência, o que o impediu de lucrar com as transações, sendo beneficiado o Ouvi-
dor, o que não teria acontecido se ele “entrasse a residênciá-lo depois que a frota de
1717 partisse daquele porto”31.
O provedor queixava-se que teria perdido todos os seus emolumentos e ficado
com um grande prejuízo, pois o Ouvidor só deveria ter tirado sua residência após
o fim da frota, mas o fez antes porque seria mais lucrativo para si. Denunciava a
demora da publicação da resolução da residência e o seu subsequente registro, o que
impedia a ele, provedor, cobrar seu ordenado. Além de todas essas questões, ques-
tionava o fato de o Ouvidor ter colocado em arrematação o contrato dos dízimos
reais, durante seu impedimento, e que não teria cobrado as propinas do contrato,
fazendo com que ele, o provedor, perdesse todas elas. Dessa forma, solicitava que o
rei mandasse ressarci-lo por todos os danos que como fiel vassalo havia sofrido32. 28  Documentos Históricos da Biblioteca
Nacional, per094536_099. p. 64.
O Procurador da Fazenda, analisando essa documentação no Conselho Ultra-
29  Documentos Históricos da Biblioteca
marino, criticou a duração de 3 meses e 5 dias da residência feita pelo Ouvidor, Nacional, per094536_099. p. 65.
pois, segundo as ordenações do Reino, não se deveria exceder aos 30 dias sem a 30  Documentos Históricos da Biblioteca
Nacional, per094536_099. p. 67.
autorização régia. Em resposta, o Ouvidor afirmava que, na ordem recebida, não era 31  Documentos Históricos da Biblioteca
estipulado o tempo e, por isso, entendera que poderia tomar todos aqueles dias. Para Nacional, per094536_099. p. 67.
o Procurador, o Ouvidor só poderia ter suspendido o Provedor por 30 dias, princi- 32  Documentos Históricos da Biblioteca
Nacional, per094536_099. p. 66).
palmente por não ter encontrado indícios de irregularidades, e que ele (Ouvidor) 33  Documentos Históricos da Biblioteca
só deveria receber os salários e emolumentos, referentes aos 2 meses “que com o Nacional, per094536_099. p. 66).
pretexto da dita devassa serviu de Procurador da Alfândega”33.

86
Esse processo demonstra as lutas, artimanhas e estratégias por poder e bens
debret, Jean-Baptiste. Parte da costa do
Rio de Janeiro conhecida pelo nome de
que se davam entre as autoridades mais graduadas da capitania. Sempre havia con-
Gigante Deitado. flitos de jurisdição, pois existia uma certa autoadministração dos corpos adminis-
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa trativos, mas só o príncipe poderia constranger os corpos. É possível averiguar esse
do. Debret e o Brasil: obra completa: 1816-
1831. 3. ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. movimento entre as autoridades locais e as decisões dos tribunais, pois competia
p. 116. aos tribunais ter um veredito, expressão da vontade da coroa, aos vassalos que a
eles recorressem. Ou seja, exerciam uma mediação entre as partes conformando as
relações entre as instâncias beligerantes (cardim, 2005, p. 49).
Em relação ao pedido feito pelo provedor de que fossem suspensos o pagamento
de todos os salários e emolumentos recebidos pelo Ouvidor, o Procurador respondeu
que não havia fundamento jurídico para o fazer, uma vez que só a ele Provedor
cabia repor as perdas dos 65 dias que teria sido afastado. Com relação aos 30 dias
em que fora tirada a residência, ou melhor, que deveria ter sido tirada, não cabia a
ele receber nada, pois o Ouvidor esteve exercendo em seu lugar. O que se percebe
entre a troca de missivas foi que o Ouvidor, tirando na verdade uma devassa, e não
uma residência, no momento da chegada da frota, passou para suas mãos os rendi-
mentos referentes à Provedoria da Fazenda e, consequentemente, açambarcou para
si os salários e propinas como provedor em exercício. Coube ao Provedor arcar com
todas as perdas e a Fazenda Real ainda poderia deixar de pagar sessenta e cinco
dias de salário, pois alegou excesso de tempo para cumprimento de uma residência,
ou seja, esses dois meses e cinco dias excediam o previsto na lei, o que isentava a
Coroa de qualquer prejuízo financeiro e/ou obrigação.
No Conselho Ultramarino as opiniões foram divergentes. O primeiro a emitir
parecer foi o Dr. José Gomes de Azevedo, que ficou a favor do Ouvidor no que tange
ao exercício da devassa e do tempo utilizado por ele para a análise dos livros da

87
alfândega. Apontava a distância da corte para realizar um pedido formal de mais
tempo para a residência, transpondo-a para a categoria de devassa. O conselheiro
considerava que o Ouvidor deveria receber os emolumentos e os ordenados referen-
tes ao período em que exerceu os ofícios, pois era de costume pagar-se aos magis-
trados que atuavam nas residências e/ou devassas nas quais não havia culpado. O
pagamento deveria ser feito pelo tesoureiro-mor do reino, em vez do almoxarifado
da Fazenda Real do local onde foi feita a sindicância34.
Já para os conselheiros João Pedro de Lemos e Antônio Rodrigues Costa, o
Ouvidor agiu erroneamente ao assumir tais ofícios, pois usurpou prerrogativas da
jurisdição do Governador, que era autoridade para nomear pessoas para servirem
nesses tais ofícios. Porém, já que ele acabou servindo, era justo que recebesse pelo
tempo em que exerceu as funções. Em relação aos emolumentos, o Ouvidor deveria
recebê-los, bem como os oficiais inocentados, pois, caso eles não fossem ressarcidos,
as punições das perdas dos emolumentos em casos de irregularidades não poderiam
ser consideradas castigo. Procedimento dessa monta inviabilizaria a estrutura de
funcionamento da instituição, favorecendo ao crime.
Mas o Conselho Ultramarino, em conjunto, expôs ao rei sua posição da seguinte
forma: que o procedimento executado pelo Ouvidor não pode ser considerada uma
residência, pois foi mais uma devassa especial dando oportunidade à majestade
real compreender os procedimentos feitos pelos oficiais da alfândega, após a análise
dos livros. Como na ordem feita ao Ouvidor para executar a devassa não havia um
tempo determinado e, como ele, teria acumulado seu ofício aos de provedor da al-
fândega, era compreensível e aceitável o período de três meses e cinco dias. No que
tange aos salários, o Conselho Ultramarino opinava que o Ouvidor deveria levar os
emolumentos do período em que serviu nos ofícios, porém o mesmo não deveria
receber o ordenado de Provedor, esse lhe deveria ser pago e, consequentemente, o
mesmo deveria ser feito aos outros oficiais inocentados35. Assim finaliza-se a pri-
meira investigação, feitas as contas da provedoria, durante a gestão da família Rego
Barros, todavia não foi a última.
Francisco do Rego Barros, o quinto provedor, foi fidalgo da casa real e nasceu
na Paraíba. Entrou a servir como Provedor da Fazenda Real de novembro de 1738
e o foi até junho de 1750. Casou-se com Maria Manuela de Mello e teve um filho
chamado João do Rego Barros (mello, 1896, p. 9). Francisco teve sua gestão devassa-
da, evidenciando-se grande escândalo de desvio de patrimônio real, questão a qual
passaremos a comentar.
Quando Francisco do Rego Barros já estava em fase avançada de sua atuação
na Provedoria da Fazenda de Pernambuco, em 1750, sua gestão sofreu uma devassa
movida pelo juiz de fora de Olinda Antônio Teixeira da Mata. A ordem partiu de
Lisboa e era para que se devassasse a Fazenda Real de Pernambuco. A diligência foi
feita através da coleta de depoimentos dos homens de negócio da Praça do Recife, da
Casa dos Contos e Alfândega que parecessem mais dignos. Ressalte-se que os comer-
ciantes de grosso trato, fossem de produtos ou de gente, fizeram seus depoimentos
em duas etapas. A primeira perante o juiz de fora Antônio Teixeira da Mata e na
segunda ao desembargador Manuel da Fonseca Brandão da Relação da Bahia. Todo o
relatório da investigação foi encaminhado para apreciação no Conselho Ultramarino. 34  Documentos Históricos Da Biblioteca
Nacional, per094536_099. p.68.
Implantada a diligência, vai-se concluindo que os prejuízos da Fazenda Real 35  Documentos Históricos da Biblioteca
se deram pelo fato de as ordens reais não estarem sendo cumpridas. O Secretário Nacional, per094536_099. p.67.

88
do Estado, Marco Antônio, já havia informado ao então Capitão General D. Marcos
de Noronha, que deveriam ser recolhidos aos cofres da Fazenda Real os quarteis
vencidos dos contratos e mais todo o restante de numerário que estivesse em mãos
do almoxarife em exercício. No entanto, o almoxarife Antônio de Torres Bandeira,
ausentou-se ocultamente para a corte, tentando apresentar contas em Lisboa. Foi neste
meio tempo que as testemunhas arroladas pelo juiz de fora sentiram-se mais livres
para revelar fatos, pois não se atreviam a jurar o que sabiam, fosse por temor, respeito
e suborno, silenciando! Foram revelados detalhes das relações entre Francisco do
Rego Barros o proprietário da Provedoria da Fazenda Real e Antônio de Torres Ban-
deira seu almoxarife. Contaram que o provedor recebera do almoxarife “quantias
tão consideráveis que completariam a de cinquenta mil cruzados”36.
Retornado de Lisboa o almoxarife, trouxe provisão real de que as suas contas
foram dadas na corte a um ministro especial e, ainda mais, para poder voltar à ca-
pitania e nela também apresentar os mesmos balaços contábeis. Foi nesse momento
que, segundo o juiz de fora, o almoxarife confessou serem verdadeiras as denúncias
de empréstimos em dinheiro, pertencentes à Fazenda, obtidos por Francisco do
Rego Barros e que, na altura, passou-lhe vários créditos os quais ficaram em poder
de sua mulher, a do almoxarife. Contou Antônio de Torres Bandeira que, durante
sua ida à corte, o irmão do provedor, Pedro Velho Barreto, associado a um irmão
seu, forçaram a uma escrava de sua mulher para que furtasse a chave da papelei-
ra, ou cômoda, na qual estavam depositados os referidos créditos, os quais foram
subtraídos durante a noite para que não houvesse provas da dívida. Asseverava o
almoxarife que era uma dívida significativa, pois “não havia dinheiro que bastasse
ao dito Francisco do Rego Barros para as suas despesas”37. Muitas pessoas na vila do
Recife eram sabedoras dos empréstimos, muitos de destacada situação que foram:
Coronel João Lobo de Lacerda, Capitão de Infantaria Manoel Rodrigues Campelo,
João de Oliveira Gouvim, Henrique Martins, Antônio da Silva Santiago, Sebastião
Antunes de Araújo, Guilherme de Oliveira, Felix Garcia Vieira, Antônio Baptista
Coelho, Manoel Ferreira Curado, entre outros. No entanto, rogou o almoxarife se-
gredo, pois temia por sua vida.
Naquele momento o juiz de fora Antônio Teixeira da Mata não mandou fazer
um termo de confissão juramentada, procrastinado a ação, portanto deu azo para
que todas a denúncia feita pelo almoxarife fossem parar aos ouvidos da família Rego
Barros, que tomou providências para afastar o juiz de fora do caso, deslocando-o para
a Paraíba. O juiz fez ciente ao Conselho Ultramarino as suas desconfianças, levando
o Procurador da Fazenda a remeter toda a acusação em segredo para o Desembarga-
dor da Relação da Bahia, Manuel da Fonseca Brandão, pedindo novas averiguações38.
A investigação teve sequência, agora feita pelo Desembargador Manuel da
Fonseca Brandão e, entre outras coisas, foi apurando que um filho do Provedor da
Fazenda (suspeita-se ter sido João do Rego Barros) fora à casa de João de Oliveira
Gouvin em “uma noite a pedir-lhe abonasse o seu pai na devassa dizendo-lhe que
ele não tinha tido culpa nos descaminhos da Fazenda Real e se o tramassem, levaria
a ponta de espada quem falasse na honra de seu pai”. Percebe-se que o caso tomou
proporções, chegando às ameaças públicas de morte.
36  ahu/pe, Cx. 72, D. 6024.
A devassa revelou que “a Fazenda Real padeceu de descaminhos por muitos e
37  ahu/pe, Cx. 72, D. 6024. diferentes modos e que, os teve grandes e irreparáveis no tempo em que foi almo-
38  ahu/pe, Cx. 72, D. 6024.

89
xarife Antônio de Torres Bandeira”, pois nunca foram ocultos os desperdícios e a
profusão de extraordinárias despesas que eram feitas em baquetes, saraus, danças
ao estilo da terra e outros divertimentos nas casas e engenhos do provedor e seus
irmãos, tudo assistido pelo almoxarife Antônio de Torres Bandeira, estando os dois,
provedor e almoxarife, com contas a ajustar, pois era público que ambos não pos-
suíam recursos para tantas despesas39.
Também foram denunciados, almoxarife e provedor, por Henrique Martins
de que levaram de sua loja sedas, veludos, galões de ouro e prata no valor de 23 mil
cruzados e que, o mesmo almoxarife, lhes dissera ser a maior parte para a casa do
provedor da fazenda, bens que depois foram reconhecidos em vestidos da família
de Francisco do Rego Barros pela testemunha.
Na finalização do relatório, em 1752, o Desembargador Manoel da Fonseca Bran-
dão conclui que eram verdadeiras as suspeitas do juiz de fora, pois não era possível
a um almoxarife, em Pernambuco, em cinco anos que serviu ao ofício, alcançar
avultado cabedal, atingindo a quantia de 137:900$00. O desembargador denuncia os
descaminhos como uma realidade de muitos anos, pois os recenseamentos das con-
tas não eram feitos desde a época do almoxarife Mariano de Almeida, que já atuava
ligado à provedoria desde 173840. Já havia tentado tomar as contas da Fazenda Real
o governador D. Marcos de Noronha. Em sua investigação, procurou alcançar os
três anteriores almoxarifes e dois tesoureiros da dízima da Alfandega, chegando à
soma de 229:7007$00, para a qual não se teria um destino41. O desfecho da vida de
Francisco do Rego Barros não foi dos mais tranquilos. Borges da Fonseca (1935, v. 2,
p. 442) nos informa que veio a falecer em 1752, vítima de um tiro. Não conhecemos
a situação em que se deu a sua morte, se foi um tiro acidental ou resultado das
tensões e ameaças feitas durante a devassa.
Mas embora toda esta investigação tenha se dado no início da década de 50 do
setecentos, ela não foi impedimento para que a família continuasse proprietária do
ofício, o que demostra a força da nobreza da terra em articular poderes superiores,
que abafassem os descaminhos por ela praticados.
O Capitão Mor João do Rêgo Barros, fidalgo da Casa Real, cavaleiro professo
na Ordem de Cristo, foi o sexto e último provedor da família Rego Barros. Deu
assistência a seu pai Francisco do Rego Barros durante a tumultuada devassa que
sofreu, assumindo interinamente a Provedoria da Fazenda entre os anos de 1750
até 1757, quando, nesse ano, assumiu definitivamente o cargo, após averiguações de
seu desempenho, e lá permaneceu até 1769, quando a provedoria foi extinta (couto,
1981, p. 408)42. Mas, apesar de ter perdido poder e autonomia, continuou servindo
na Junta de Administração e Arrecadação da Fazenda Real como provedor e conta-
dor, com seu antigo ordenado de 500$000 anuais (costa, 1983, v. 1, p. 366). A Junta
constituía-se em Tribunal da Fazenda, havendo duas sessões ou conferências por
semana, além das extraordinárias. Os membros da Junta eram chamados de de-
putados, funcionando até 1833, quando se transformou em Tesouraria da Fazenda.
Funcionava no edifício do Erário Régio, junto ao palácio de Friburgo ou das Torres,
construído por Nassau, que quando estava em ruínas cedeu seu material para a 39  ahu/pe, Cx. 72, Doc. 6024.
40  ahu/pe, Cx. 52, D. 4567.
construção do prédio do referido Erário Régio (costa, 1983, v. 6, p. 305). O Capitão-
41  ahu/pe, Cx. 72, Doc. 6024.
-mor foi proprietário do engenho Apipucos, que ficava à margem esquerda do Rio 42  ahu/pe - Cx. 146, D. 10661; ahu/pe -
Cx. 78, D. 6113.

90
Capibaribe junto à casa grande e a capela. O açúcar produzido descia em batéis pelo
rio até o mercado da Praça do Recife (costa, 1983, v. 2, p. 53-56).
Participou como acionista da Companhia das Minas de Ouro de São José dos
Cariris, na Capitania do Ceará, nessa fase subalterna à capitania de Pernambuco.
Para incorporação dessa companhia, concorreram o governador Luís Diogo Lôbo da
Silva, o ouvidor da comarca, Dr. João Bernardo Gonzaga, o juiz de fora, Dr. João Ro-
drigues Colaço, o procurador da provedoria, Dr. Caetano Ribeiro Soares e o ouvidor
da Paraíba, Dr. Domingos Monteiro da Rocha43. O que demonstra esforço e interesse
das autoridades mais graduadas. Foi também terceiro vereador da Câmara do Recife
em 1743 (souza, 2015, p. 684).
Sua vida pessoal parece ter sido bastante tumultuada. Ele sofreu denúncia de
Brites Manuela Luzia de Melo, quando engravidou fora do casamento, atribuindo o
feito a João do Rego Barros, que a enganou. Ele foi obrigado a casar-se, pois Brites
era filha de João Paes Barreto e irmã de Estevão Paes Barreto, o sétimo morgado do
Cabo (ferreira, 2011, p. 191). O morgado define sua família como “todos com foro de
fidalgos cavaleiros e de moços fidalgos de casa (...), de nobreza cimeira e principal da
Capitania de Pernambuco, ele sendo cavaleiro professo na Ordem de Cristo e mestre
de campo dos auxiliares da freguesia do cabo”. Os processos movidos esclarecem que
Brites nunca fez vida com João, mas esteve todo tempo sob tutela de seu irmão mor-
gado. O ocorrido acirrou as relações entre as famílias. (almeida, 2005, p. 224-232)44.
Após a morte de João do Rego Barros, mais uma vez a família sofreu os reveses
de uma devassa nas contas da Provedoria da Fazenda e, dessa vez, tiveram seus bens
inventariados para confisco. Um dia a casa cai, no que toca aos Rego Barros, depois
de vinte quatro anos as denúncias foram comprovadas. Tudo que foi abafado veio à
luz, e o Estado tratou de cobrar a conta. Muita gente morreu sem ver a derrocada da
família, que certamente havia amealhado muitos inimigos, mas a geração do final
do setecentos viu ameaças vigorosas sobre as suas fazendas.
A devassa de 1774, ano da morte do último João do Rego Barros, foi intensa
e aprofundou-se sobremaneira ao patrimônio familiar. As ordens eram para que
se investigasse a administração dos três últimos provedores da família45. Todos os
membros da família vivos tiveram suas posses inventariadas, constituindo-se um
rol de tudo o que possuíam de bens móveis e imóveis. Chegou-se aos detalhes do
registro de quadros, cadeiras, joias, santos, baús, escravos etc.
Em 21 de outubro de 1777, chegou em Pernambuco uma ordem expedida de
Lisboa, oriunda do Tribunal de Erário Régio, dirigida a Junta da Fazenda Real, para
que se procedesse ao sequestro de todos os bens de Pedro Velho Barreto, filho de João
do Rego Barros e seus herdeiros, por não ter realizado, o Provedor, o recenseamento
das contas da Fazenda Real junto ao almoxarife Antônio Baptista46.
O Capitão Mor Pedro Velho Barreto foi aquele que, citado na documentação,
parece-nos que respondeu às demandas da investida da coroa sobre os bens da fa-
mília. Ele assevera que as dívidas de seu pai foram pagas pelo fiador do almoxarife,
restando apenas dois contos de réis e no mais que restasse era por conta dos credo-
43  ahu/pe - Cx. 82, D. 6879.
res. A família fez uma petição para ficarem isentos das cobranças provocadas pelo
44  ahu/pe - Cx. 78, D. 6516.
45  ahu/pe - Cx. 117, D. 8974. inventário de João do Rego Barros e só se fazendo herdeiros em caso de benefícios,
46  ahu/pe - Cx. 117, D. 8973. pois, em caso contrário, como criam que a herança foi muito agravada, eximiam-se

91
de participar da partilha do que ficou de seu pai, deixando o que restou para saldar
as dívidas.
A petição pedia a preservação do patrimônio da viúva, filhos e filhas. Pedro
Velho Barreto entendia que seu patrimônio não podia ser arrolado como herança,
pois havia arrematado o engenho Apipucos que estava penhorado a Santa Casa de
Misericórdia em hasta pública por quarenta mil cruzados. Esse estratagema buscava
colocar parte do patrimônio fora das garras da Fazenda Real, que resolvera cobrar
o que lhe pertencia, e foi desviado para a formação de um patrimônio individual
e familiar.
O inventário foi traumático, pois foram juntados devedores e credores e sendo
feitas as contas para saldar as dívidas e satisfazer aos herdeiros. No entanto, desde
de 1774 elaborou-se uma autuação do Régio Tribunal da Junta da Fazenda Real para
promover sequestro e avaliação dos bens da família e que retroagia duas gestões
da provedoria, as anteriores que foram: as de João do Rego Barros (1704-1738), Fran-
cisco do Rego Barros (1738-1750) e, por fim, de João do Rego Barros, que dividia sua
gestão como provedor, entre 1757 e 1769 e, quando foi criada a Junta da Fazenda
Real, continuou na mesma Junta até seu falecimento, em 1774. Todo o patrimônio
foi inventariado, bens móveis e imóveis, principiando-se pelo engenho Apipucos
de invocação Nossa Senhora da Madre de Deus, ou das Dores, no termo de Olin-
da; engenho da Guerra, por invocação Santa Luzia, na freguesia do Cabo; engenho
Massiape por invocação Nossa Senhora da Conceição, na freguesia de São Lourenço;
engenho dos Pintos por invocação Nossa Senhora do Loreto em Jaboatão. Também
foram inventariadas casa e capela do Pilar e os sítios de Água Fria e Santo Amaro.
A documentação depositada nos arquivos do Conselho Ultramarino não nos traz a
finalização do processo com o leilão dos bens e os valores arrecadados, mas deixa
claro que foi feito um trabalho exaustivo de catalogação de tudo que havia nas pro-
priedades, tudo foi listado. O intuito era da recuperação do que havia sido desviado
dos cofres reais. Além do aparato de significativas proporções de juízes, procurado-
res, escrivães e testemunhas envolvidas, a derrocada e humilhação da família Rego
Barros, outrora poderosa, foi pública e notória. Nada é para sempre! Todo o processo
foi acompanhado pelo governador da capitania José Cesar de Menezes.

3. Considerações Finais – Uma análise do poder investido no ofício

Lugar singular para acompanhar a atividade mercantil e controlar o comércio foi a


Provedoria da Fazenda Real. Cargo honroso para quem o exerceu e vital para a saúde
econômica dos cofres da coroa. Esteve nas mãos, por quase um século na forma de
sucessão linhagística, na família Rego Barros, em Pernambuco (mello, 1896, p. 8-9).
Desde a instalação do Governo Geral, em 1548, foi criado o ofício de Provedor
Mor da Fazenda. A responsabilidade do oficial designado incidia sobre o estabeleci-
mento de uma dinâmica de comércio, bem como a fiscalização das receitas e despesas
geradas na conquista portuguesa da América. Primitivamente, foram os donatá-
rios que se responsabilizaram pela organização da administração da Fazenda Real.
Estabeleceram-se inicialmente em cada capitania os cargos de feitor e almoxarife,
como o objetivo de arrecadar as rendas reais e administrar as feitorias. Mas logo

92
foi designado um oficial especificamente para a tarefa e criada a Provedoria Real,
debret, Jean-Baptiste. Um nobre
brasileiro beijando a mão de s.m.i. D.
com o objetivo de acentuar a atividade fiscalizadora. Em cada capitania foi instalada
Pedro i. uma provedoria e aos provedores cabia a responsabilidade por todos os negócios da
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa Fazenda Real (mendonça, 1972, v. 2, p. 99-116).
do. Debret e o Brasil: obra completa: 1816-
1831. 3. ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. Em Portugal, os provedores das comarcas foram magistrados e o cargo foi
p. 258. criado no antigo ordenamento jurídico. A jurisdição da Provedoria da Fazenda Real
incidia sobre os aspectos administrativos, geria os bens individuais ou coletivos de
pessoas ou instituições que estivessem impossibilitadas de administrar eficiente-
mente seu patrimônio, a exemplo, dos órfãos, cativos, ausentes, das capelas, confra-
rias e hospitais. Os provedores poderiam substituir tutores de órfãos negligentes e/
ou mover demandas contra incompetentes administradores por quebra de contrato.
Os testamenteiros teriam que prestar contas aos provedores do que recebessem e
dispendessem. Os provedores seriam fiscais desses testamenteiros, fazendo cumprir
as vontades dos defuntos. Ficava assim sob sua tutela, e passíveis de averiguação,
as notas de tabeliães e escrivães sob pena de privação de ofício. Dessa forma, eles
poderiam atuar como Juízes de Defuntos e Ausentes, embora para esse mister es-
pecífico existisse uma provedoria própria respondendo na Mesa da Consciência e
Ordens (subtil, 1992, p. 168).

93
No que tange aos aspectos fiscais/financeiros o Provedor junto aos oficiais
que o assistiam, como o Almoxarife e o Escrivão, examinavam a escrituração das
receitas e despesas, conferindo constantemente as contas do almoxarifado. A Pro-
vedoria esteve intimamente ligada à Alfândega, comandando ainda um grupo de
oficiais pertencentes a essa instituição, como: escrivães, meirinhos, porteiros e te-
soureiros (silva, 1859). Eles também acumularam o cargo de juiz dos descaminhos
e da alfândega, pois realizavam despacho e cobranças de direitos alfandegários, bem
como o julgamento de irregularidades e descaminhos (salgado, 1985, p. 158-160).
É de 1548 o Regimento dos Provedores da Fazenda Del Rei nosso senhor nas
terras do Brasil. Através desse ordenamento fica esclarecida a abrangência da juris-
dição do provedor, ou seja, até o quanto ele pode dizer a justiça, bem como, o poder
que passava a gozar frente as demais autoridades da capitania (hespanha, 1994, p.
195). Em princípio ficou determinado que houvesse uma alfândega em cada capitania,
além do que as contas das mesmas deveriam ser tomadas constantemente por esse
oficial real. Ele deveria abrir o leilão no mês de novembro de cada ano e estabelecer
a forma para que se fizesse a arrematação das rendas reais; quais eram os contratos
que seriam leiloados; a duração e os valores dos contratos; quem seriam os arrema-
tantes e fiadores e como seria feito o pagamento do montante que ia de 25% a 50%
dos valores acordados segundo as regras estabelecidas. Toda a escrituração deveria
ser realizada pelo almoxarife junto ao escrivão da provedoria. As cobranças das
dívidas deveriam ser feitas no mês de janeiro de cada ano e as contas prontas até
meados de fevereiro, para serem enviadas ao Provedor Mor que servia na Bahia. Os
inadimplentes deveriam ser presos e seus bens executados para que fossem pagas
as suas dívidas com a Fazenda Real.
Também sobre a provedoria de Pernambuco incidia a responsabilidade de ser
juiz da alfândega. Era responsável por arrecadar a dízima das mercadorias no ato
do descarregamento da nau. Esse encargo, a princípio, estava nas mãos do Capitão
Donatário e foi normatizado no Foral da Capitania de Duarte Coelho em 1534. Sa-
bemos que esse podia nomear na terra pessoa de sua confiança para o exercício do
cargo, no entanto, passou, posteriormente, após a instituição do Governo Geral, para
a alçada do Governador Geral na Bahia, nomear um provedor mor que controlasse as
ações e pedisse contas a todos os provedores das capitanias, fossem reais ou não. É
fato que, no que tange a Pernambuco, essa norma não foi aplicada, pois o donatário
impediu a gerência do Governo Geral sobre a Nova Lusitânia47. O primeiro Provedor
da Fazenda Real de Pernambuco foi Francisco de Oliveira, nomeado em 10.01.1537.
Seguiram-se as nomeações em número de 31, e só em 1675 a família Rego Barros
arrematará a propriedade do ofício, juntamente a de juiz da alfândega pelo donativo
de 12.000 cruzados. João do Rego Barros, o primeiro, jurou o cargo na Chancelaria
Mor do reino (godoy, 2002, p. 15).
Através do Regimento dos Provedores da fazenda Real de 1548 é possível vis-
lumbrar o poder da pessoa e da família que foi agraciada com a mercê, quanto ao
controle das dinâmicas comerciais da aduana de uma capitania. Desde o xvi que as
orientações reais são no sentido de haver alfândegas em todas as capitanias, e isso
já era estabelecido no foral das mesmas arrecadando-se as “dízimas das mercado-
rias que as ditas terras forem ou saírem, por me pertencerem segundo a forma do 47  Foral da Capitania de Duarte Coelho,
1534, itens 6 e 7.
foral dado a cada uma”, e o provedor será juiz da alfandega “em quanto eu houver 48  Foral da Capitania de Duarte Coelho,
por bem”48. 1534, itens 6 e 7.

94
Segundo o foral da Capitania de Pernambuco, ficou o donatário responsável
por cobrar a dízima das mercadorias circulantes e dela retirar a redízima. Assim
percebe-se que seria de muito interesse que a fiscalização fosse intensa e feita por
pessoas de sua confiança. No que concerne à orientação da documentação, foral e
carta de doação, o monarca procurava orientar no sentido de haver escrituração
e controle da entrada e saída de mercadorias feitas nas aduanas, então, infere-se
que desde muito cedo havia algum tipo de cobrança e de escrituração dos bens que
circularam no porto de Pernambuco. A orientação dada foi da emissão de certidões
aos mercadores e aos seus vasos nas quais constasse o pagamento dos direitos reais
referentes aos senhorios visitados.
Na normatização está expressa uma detalhada orientação para fiscalização dos
navios chegados aos portos da América portuguesa. O provedor mais almoxarife e
escrivão eram requisitados para proceder ao inventário da carga junto ao capitão do
navio, tudo anotando e taxando. Era exigido ao capitão o livro de carregação ou folha de
avalias e, dos viajantes, que abrissem as camas ou arcas. Tudo que fosse avaliado pelo
provedor e/ou almoxarife como artigos que pagassem direitos deveriam ser leva-
dos para as dependências da alfândega. Ao navio, até que se concluíssem a vistoria,
deveria ser controlada a circulação de pessoas e bens por um guarda da aduana. Os
donos das mercadorias ficavam sob fogo cruzado até que toda a inspeção acabasse. Em
tudo o provedor foi o mestre de cerimônias, podendo confiscar mercadorias àqueles
que fossem denunciados como desobedientes às orientações. Assim, punir-se-ia a
abertura de arcas sem licença, bens de valor não declarados, visitas de pessoas du-
rante o processo de descarregamento chegando-se a confisco, claro, dependendo da
importância do caso. Mercadorias consideradas de difícil transporte, como o trigo,
vinho, louça e alcatrão, eram dizimadas/taxadas pelo provedor, não sendo necessá-
rio que passassem pela alfândega, mas apenas registradas e cobradas as taxas pelo
almoxarife. Em caso de artigos de ferro, couro ou outros que não pudessem chegar
às mesas de registro, o provedor, almoxarife e escrivão as dizimavam no local onde
estivessem e assentavam os valores no livro (mendonça, 1972, v. 2, p. 99-116).
Como em Pernambuco o Provedor da Fazenda também foi o Juiz da Alfândega,
junto ao almoxarife foram responsáveis pelo aforamento das mercadorias chegadas.
Eles o fizeram a partir do parâmetro dos preços da terra. Seguindo essa avaliação, o
mercador pagava a dízima. Uma a uma mercadorias (de vara ou côvado, de quintais
ou arrobas) deveriam ser anotadas e calculadas a dízima.
Em cada alfândega deveria haver dois selos, um para selar as mercadorias que
pagariam direitos e outro para as isentas. Eles foram guardados em arca da qual só
o provedor e o escrivão teriam a chave. O texto do Regimento procura denotar uma
fiscalização rigorosa, pois toda a malversação no processo deveria ser denunciada, os
produtos confiscados e repartidos entre a alfândega e os denunciantes. Para realizar
uma intervenção firme, o provedor teve foro de juiz e julgou as causas que monta-
vam até dez mil réis, dando apelação para aquelas que desta quantia ultrapassassem.
Foi responsável pela venda das mercadorias recolhidas com a cobrança da dízima,
e deveria ter tudo anotado no livro do almoxarife (mendonça, 1972, v. 2, p. 99-116).
Atracando navios no porto de Pernambuco, o provedor deveria ser avisado do
momento do carregamento das mercadorias da terra. Antes da partida, o mestre do
navio apresentaria ao provedor o rol dos produtos acondicionados na nave. Após a

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fiscalização, e sem mais introdução de objeto algum e, com a licença do provedor,
o navio poderia partir, pois sem a licença o mestre corria o risco de perder o vaso.
Nesse ponto é impossível não refletir sobre o poder da Provedoria Real e da
pessoa que detinha a investidura no cargo e, finalmente, da família que o contro-
lou em Pernambuco durante décadas. Analisando o provimento de ofícios no An-
tigo Regime, Roberta Stumpf (2014) elaborou uma hierarquia que colocava a
Provedoria da Fazenda Real entre os “cargos importantes da monarquia”. Ela
define-o como de concessão perpétua/propriedade, embora admita que tam-
bém fosse dado temporariamente. Seu provimento se dava em Lisboa, e tinha
a característica de ser remunerado e nobilitante (stumpf, 2014, p. 631). Ele es-
taria abaixo dos cargos superiores que seriam os de: presidentes de tribunais,
vice-reis, governadores de armas e governadores de capitanias. Ressalte-se aqui
que embora o cargo seja colocado hierarquicamente numa posição de subal-
ternidade a vice-reis, governadores de capitanias e até de ouvidores providos
em Lisboa, o raio de ação da Provedoria poderia ser definido como de maior
abrangência em relações a esses, pois cabia ao provedor administrar todos os
recursos financeiros da coroa em conquista. Assim sendo e tomando o exem-
plo da Capitania de Pernambuco que teve a provedoria nas mãos de uma única
família por quase um século (costa, 1983), esse oficial régio ombreava-se com
autoridades vindas do reino, pois ele mesmo, foi empossado e investido e sendo
indiscutível seu poder e confiança da qual gozava por representar financei-
ramente a coroa nas localidades de ultramar nas quais atuava. Na capitania
era o provedor que pagava salários ao governador e as tropas; normatizava o
leilão dos contratos; recolhia os impostos da importação de mão de obra, ou
seja, taxava a carga dos negreiros e de todas as demais mercadorias que en-
travam e saiam do porto de Pernambuco. Dessa forma, tinha, em suas mãos,
recursos financeiros; a possibilidade de aplicação de leis para o ordenamento
dos processos ligados ao comércio; o controle total sobre os barcos ancorados
no porto desde as mais elementares atividades como o concerto das naves, até
as mais complexas como o desembarque de pessoas escravizadas.
Também o comércio entre as capitanias feito por mar, deveria ser do co-
nhecimento das provedorias, segundo a ritualística já tratada para os vasos
atlânticos. Ou seja, nos portos de partida deveria haver fiscalização e, nos de
chegada, averiguação das origens dos bens transportados, bem como dos im-
postos pagos.
A construção de navios nos senhorios brasílicos estava sob a ótica do
Governador Geral e do Provedor Mor, mas também por desdobramento, dos
governadores de capitanias e seus respectivos provedores. Havia uma necessi-
dade de ter o controle dos barcos e seus proprietários, pois sem esse controle
ficaria impossível ter a mínima dimensão do comércio Atlântico, fosse entre
continentes ou realizados na base da cabotagem. Por fim, vale ressaltar que o
alealdador, avaliador do açúcar, era eleito ou escolhido pelo provedor.
O poder era de tal sorte que podemos concluir que, mesmo não estando
de direito em posição hierárquica cimeira, o estava de fato, por ter em suas
mãos o controle das atividades mais importantes para a monarquia em uma
conquista. Após o Regimento de 1548, as competências das provedorias foram

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sendo atualizadas, ampliadas e reforçadas pelos regimentos dos governadores-
-gerais de 1588, 1612 e 1677, que acentuaram o caráter fiscalizador do cargo
especificando atividades a serem exercidas em conjunto com governadores e
as câmaras (mendonça, 1972, p. 99-116).
Em 1754 foi dado a Pernambuco um novo Regimento da Provedoria da
Fazenda Real da Capitania. A essa altura, governava a Capitania Luís José Cor-
reia de Sá. Havia uma preocupação em normatizar a dinâmica comercial com
a presença das naus de comboio e as guarda-costas. A responsabilidade em
atender às demandas dessas naus no Recife foi do Comissário das Fragatas. O
ofício foi extinto em 1753, e responsabilizado das tarefas, acumulando, o Pro-
vedor de Fazenda Real e seus oficiais. Para tal, foi elaborado o Regimento que
passamos a comentar49.
A preocupação central são as naus de comboio e as guarda-costas, pois
as de comboio se constituíam de uma marinhagem que deveria estar a postos
para realizar defesa dos produtos que circulavam pelo Atlântico, já as naus
guarda-costas faziam a cabotagem nas águas da capitania para impedir in-
cursões de piratas e corsários ao porto da vila do Recife. Para as de comboio
o procedimento era semelhante aos dos navios mercantes, e estava definido
desde 1548 no primeiro Regimento. O provedor deveria ir a bordo e conferir
por nome toda a guarnição (rau; silva, 1955, verbete 43).
Mas, voltando ao Regimento de 1754, destacamos que ele impunha ao
Provedor da Fazenda Real os cuidados mais minuciosos com a tripulação dos
comboios e guarda-costas. Ele devia acomodar a guarnição, encaminhar do-
entes para os hospitais e, nesse caso, à época, cremos ser o do Paraíso na vila
do Recife. Todo um processo de fiscalização das cargas dessas naus deveria ser
realizado nos moldes do Regimento de 1548, que era fazer desembarcar todos os
mantimentos, fossem para tornar a Portugal ou a qualquer outro porto, como
o restou da viagem de vinda. Se a nau ficasse retida, toda a carga deveria ser
guardada em terra. Anotações deveriam ser tomadas pelo escrivão e acompa-
nhadas pelo almoxarife. Percebesse que se acrescentou e muito as tarefas a
serem desempenhadas pela Provedoria da Fazenda Real. Algo que nos chama
a atenção é o fato de estar explícito no regimento que se “fará desembarcar
todos os materiais que forem de cabedal dos meus armazéns de Guiné e Índia
para provimento dos daquele Recife.”
O abastecimento dos navios deveriam ser acompanhados pelo Provedor
da Fazenda Real e pelo Governador da Capitania, tudo registrado pelos oficiais
da Provedoria, mas também sabemos que a presença do secretário do governa-
dor era de extrema importância. A tríade almoxarife e escrivão da Provedoria
mais secretário do Governo teriam que ter tudo sob controle em registro. A
compra era feita aos mercadores da mesa de despacho, acertados os preços em
conjunto com as autoridades já citada, tudo devidamente assinado por Provedor
e Governador, pelo menos deveria ser!
Há uma demanda imensa de ações que eram da alçada da provedoria, por
exemplo: quando os navios precisassem de reparo, era o Provedor quem in-
49  Regimento de 1754. ahu/pe, Cx. 75,
termediava as negociações, encaminhando-as para a vistoria do Patrão Mor e
N. 6335. Mestre da Ribeira, até que se ajustassem os valores para pagamento. Estavam

97
envolvidos carpinteiros, calafates, serralheiros, tanseyro (sic), ferreiro, funi-
leiro, polieyro (sic), vidraceiro, pintor, carpinteiro de obra branca, esparteyro
(sic) e fundidor de cobre. Os juízes desses oficiais deveriam ser chamados à
presença do Provedor da Fazenda Real para ajustar o preço e, escolhendo os
Mestres de sua confiança para a execução e, por fim, interferindo o almoxarife
para ajustar e registrar as arrecadações. Ou seja, o Provedor da Fazenda Real
comandava todo o processo de acerto, execução e pagamento dos oficiais me-
cânicos, tantos os da Ribeira como os de fora, além do piloto que manobrava
os navios na entrada da barra.
Os soldos dos soldados e capitães das naus eram pagos pelo Provedor
antes de zarparem, como estratégia para manter a ordem e a possibilidade de
governo dessas tropas. O soldo adiantado deveria cobrir as despesas de viagem,
completando-se nos portos de chegada o numerário que ainda fosse devido. Ele
também era o responsável por realizar os descontos necessários a esses soldos,
como por exemplo, os gastos com enfermidades nos hospitais da terra. As naus
não deveriam zarpar com a marinhagem descontente ou doente. Falhas nesse
sentido poderiam acarretar motins e a possível perda de mercadorias embar-
cadas. Esses cuidados deveriam ser tomados em todas as margens atlânticas.
Cabia, por fim, ao Provedor da Fazenda Real ter tudo escriturado através
dos escrivães de seus oficiais, Tesoureiro e Almoxarife. Papel para os registros
havia, pelo menos no regimento há verba para compra. Todas as contas deve-
riam ser enviadas ao Conselho da Fazenda Real, anualmente.
Após analisar os regimentos que normatizaram a atuação da Provedo-
ria da Fazenda Real, fica evidente o poder que detinha a pessoa e família que
ocupavam esse lugar. O provedor era responsável pelo dinheiro do rei e, por
sua vez, controlava todos os seus oficiais, inclusive os graduados como o go-
vernador da capitania, pois ficava responsável pelo pagamento de seu salário e
indiretamente o pagamento das tropas regulares. Também poderia controlar a
câmara, a exemplo de Pernambuco, pois açambarcou os seis contratos de sub-
sídios que são: carne, açúcar, tabaco, balança, garapas e vinhos, além de rendas
de subsídios, pagos a Olinda por outras câmaras da capitania.
É indiscutível que as prerrogativas da provedoria real de uma capitania
eram muitas: fiscalizar, arrecadar, administrar receitas e despesas, realizar
o pagamento dos oficiais, registrando todos os trâmites burocráticos, como
já foi dito. Mas ainda entre as responsabilidades de um provedor estava a de
promover os autos de arrematação, atividade ligada ao ordenamento da arreca-
dação dos impostos da coroa. Era um processo que propiciava a “terceirização”
das atividades fiscais do Estado e consistia em leilões, nos quais eram feitos
lances pelos interessados em arrematar contratos. Aquele que desse o maior
lance seria o contratador (barbosa, 2016, p. 394).
Junto ao provedor, o almoxarife destacava-se como oficial de extrema
importância. Ele fiscalizava e cobrava os direitos régios aos contratadores,
realizava as notificações e arrecadava, no mês de janeiro, o que era devido à
Fazenda Real, prestando contas ao provedor. Já o escrivão, assistia e registrava
as rendas e direitos régios, acompanhava as entradas e saídas de mercadorias,
o que viabilizava as cobranças na alfandega. Arrolado como um ofício menor,

98
o porteiro era o guardião dos livros de registro, mas também o responsável
pelos proclamas, correndo às ruas da cidade anunciando o auto de arrematação,
divulgando o último lance e ou notificando os novos até que se cumprissem
completamente o processo, chegando a insistir nas ruas todos os dias (men-
donça, 1972, v.2, p. 91-98; salgado, 1985, p. 287).
Através dos autos de arrematação eram definidos os homens de negócio
que ficavam responsáveis pelas atividades fiscais de uma capitania. Os lances
eram feitos seguindo-se um processo que tomava um cunho exaustivo, pois
prosseguia até que a melhor oferta fosse sancionada com o bater do martelo e
o lançador tomasse os ramos verdes nas mãos, o que simbolizava a posse do
contrato (barbosa, 2016, p. 395).
As fontes nos revelam um processo complexo que passamos a narrar. A
Fazenda Real ordenava o lançamento de editais, que eram postos em lugares
públicos. No dia previsto para acontecer o leilão, ele era anunciado pelo por-
teiro, contando com a presença do provedor da Fazenda Real para presidir os
trabalhos. Organizada a mesa, anunciava-se o início do pregão, seguia-se o auto
ao sabor dos interessados que iam dando seus lances (barbosa, 2016, p. 397).
Em Pernambuco, os autos deveriam acontecer na Casa dos Contos local
privilegiado, pois era o coração da Praça comercial do Recife ao lado da alfân-
dega (oliveira, 2016, passim). “Cada auto possuía características muito próprias,
como duração, valores e quantidade de lançadores” (barbosa, 2016, p. 401), as-
sim, a arrematação dos contratos para arrecadação do imposto dos direitos dos
escravos, contaram com a presença de representantes dos negociantes reinóis
na capitania de Pernambuco durante a primeira metade do xviii depois, sendo
arrematados por mercadores residentes e, por fim, deslocando-se o processo
para Lisboa depois de 1731. Vicissitudes do processo foi a possibilidade de in-
terrupção por falta de lançadores ou a arrematação de durar mais de um mês,
adentrando ao ano seguinte50.
Se o pregão não obtivesse lances a contento, o provedor poderia reiniciar o
processo reformar o edital, pois, segundo o regimento dos provedores, os contra-
tos teriam que receber lances sempre superiores aos do ano anterior. No entanto,
a norma encontrava óbices em anos de seca ou qualquer outros fenômeno ou
acontecimento que comprometesse o poder aquisitivo dos homens de negócio.
Aceito o último lance, o arrematador submetia-se a algumas cláusulas como:
realizar o pagamento com dinheiro de contado; pagamento da décima parte nos
primeiros trinta dias. O contrato deveria ser pago em partes, um terço cada ano.
Para os contratos que envolviam a produção de víveres, deveria ser complicado,
pois o meio circulante era escasso. Mas para os que envolviam o pagamento de
direitos de escravos, poder-se-ia recorrer além da moeda provincial, ao ouro
em pó ou em barras e às conhecidas letras51.
A finalização dos autos de arrematação se dava quando o contrato era
assinado pelo contratante, provedor e demais oficiais e testemunhas presentes.
Metia-se, portanto, o ramo nas mãos do vencedor (dias, 2014, p. 228).
Ao papel e importância do provedor na organização, viabilização e saú-
50  ahu/pe, Cx. 42, D. 3786. de financeira da Fazenda Real não há dúvidas. No que tange a Pernambuco,
51  ahu/pe, Cx. 121, D. 9242. destacamos a importância da família Rego Barros e a abrangência de seu po-

99
der, torna-se impossível não concluir pelo tremendo destaque e capacidade de
influenciar na sociedade pernambucana setecentista. Quanto mais alto se sobe,
maior a queda! Parece que se aplica o adágio à poderosa família da nobreza da
terra. Muito poder, dinheiro e responsabilidades passaram pelas mãos dos pro-
vedores durante o século xviii, alguns não resistiram. As devassas compro-
varam a malversação dos recursos da Coroa, o que levou ao inventário para o
confisco dos bens. É claro que um processo da magnitude que foi citado não foi
concluído rapidamente. Se acompanharmos a documentação ao longo do último
quartel do século xviii, vamos perceber que os papéis continuaram circulando
pelo Atlântico com as súplicas de familiares descendentes para permanecer no
controle de bens requisitados pela Coroa para o pagamento de desfalques feitos,
sem nenhum pudor, à Fazenda Real. A justiça deve ser cega, ou seja, deve in-
cidir sobre todos independente de qualidade e condição, quando nos referimos
ao período trabalhado. A finalização do processo de confisco arrastou-se por
décadas, o que fortalece o entendimento vulgar de que a justiça é lenta. Não
podemos afirmar se verdadeiramente foi feita a justiça, sabemos que os rituais
e os trâmites processuais ocorreram, foram registrados e tiveram um desfecho.
Ontem, como hoje, famílias destacadas socialmente tiveram suas entranhas
expostas quando houve suspeição de suas práticas, havendo a visibilidades de
crimes cometidos, mas nunca será possível mensurar de fato se o castigo so-
frido foi de igual monta e capaz de purgar os delitos praticados.

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tração fazendária na capitania de Pernambuco: 1755-1777. 2014. Dissertação
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AHU/PE, Cx.121,D.9242

AHU/PE, Cx.72,D.6024

AHU/PE-Cx.117,D.8973

AHU/PE-Cx.117,D.8974

102
AHU/PE-Cx.146,D.10661

AHU/PE-Cx.78,D.6516

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Foral da Capitania de Duarte Coelho. Registro folha 143. Livro Dourado da Relação
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Informação Geral da Capitania de Pernambuco 1749. Annaes da Bibliotheca Nacional


do Rio de Janeiro, vol. XXVIII, 1906.

Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, vol. XXVIII, 1904.

103
104
CAPÍTULO 4 - As supremas Relações: tribunais
e cultura jurídica entre a colônia e os
primórdios do Império do Brasil

Andréa Slemian1

1. Introdução

De acordo com o previsto pela Carta Constitucional de 1824, poucos anos depois
de sua outorga criava-se um Supremo Tribunal da Justiça para o Império do Brasil
(por lei de 18 de setembro de 1828). Seu desenho institucional chama a atenção de
qualquer estudioso que se dedique ao tema nos dias de hoje. Cabia a ele o papel de
instância revisora, concebido como baluarte da jurisprudência, conforme estava em
voga nas experiências constitucionais no mundo desde finais do século xviii; no
entanto, o Supremo não funcionaria no Brasil (bem como em Portugal) como última
palavra para o caso. Após a apreciação dos seus ministros, que deveriam indicar se
caberia ou não uma revisão da sentença de acordo com as bases de direito, o processo
deveria ser encaminhado para um dos Tribunais da Relação (Bahia, Rio de Janeiro,
Maranhão ou Pernambuco) para que seus magistrados tomassem a sentença final.
Ainda que fossem estes tribunais de 2ª. instância, cabia-lhes a decisão do caso sem
a obrigatoriedade de seguir o indicado pelo Supremo - por mais estranho que isso
possa parecer a nós atualmente. E tudo leva a crer que, em muitos casos, eles real-
mente não seguiam. Tal estrutura de justiça não raramente foi criticada ao longo
do século xix, mas ela permite que se sublinhe um fato incontornável: o poder que
os Tribunais da Relação já detinham e que seguiriam possuindo para a tomada das
decisões de justiça na passagem da colônia ao Império do Brasil. Ainda assim, na
famosa Análise da Constituição de 1824, José Antônio Pimenta Bueno afirmava ser
o Supremo Tribunal uma corte de cassação que conseguira “firmar a ordem e har-
monia na divisão dos poderes políticos”. (bueno, 2002 , p. 420). E nenhuma palavra
o astuto político dedicara aos Tribunais da Relação. Afinal, os saquaremas, usando
a expressão consagrada por Ilmar Rohllof de Mattos (1999) para definir o grupo dos
1  Universidade Federal de São Paulo conservadores artífices do Império, quiseram construir para si uma imagem o mais
(unifesp), Pesquisadora Produtividade constitucional possível.
em Pesquisa cnpq (Nível 2), Pesquisa
financiada pela fapesp, processo número Diante disso, o que segue chamando a atenção são as poucas obras dedicadas
2017/18137-3. à história dos Tribunais da Relação na América portuguesa. Entre os historiadores,

105
desde a obra pioneira de Stuart Schwartz sobre a Relação da Bahia no século xvii,
e o trabalho de fôlego de Arno e Maria José Wehling para de o caso do Tribunal do
Rio de Janeiro, há uma verdadeira lacuna de estudos mais detalhados sobre o tema.
(schwartz, 1979; wehling; wehling, 2004; mello, 2018). Entre os juristas, esforços
significativos foram feitos nas análises dos tribunais das Relações do Maranhão e
de Pernambuco (valle, 1983; coutinho, 1982), mas infelizmente elas não passam
de iniciativas pontuais. Ao mesmo tempo, nas últimas décadas, há cada vez mais
trabalhos que se dedicam aos temas de justiça, processos e seus agentes, utilizando
profusamente as fontes produzidas pelos Tribunais da Relação, mesmo que com
muito pouca, ou quase nenhuma, reflexão sobre eles mesmos, suas práticas e ritos.
Os motivos para tal ausência nos ajudam a entender alguns enviesamentos
na sua compreensão cuja superação consideramos fundamental. Nesse sentido, pro-
pomos as páginas que se seguem. Em grande parte, o discurso político que toma
corpo no momento da Independência, marcou a narrativa que se construirá nos
Oitocentos sobre a justiça colonial, e teve seu papel na sua distorção. Foi quando ga-
nharam protagonismo na cena pública as falas contra o passado opressor português,
a necessidade de se abolir o absolutismo e os privilégios representados pelo regime
anterior. Não há como negar que este fez parte de um projeto para legitimação do
novo Império encabeçado por D. Pedro, o qual rapidamente aprovou uma Carta
Constitucional, após o fechamento da Assembleia Constituinte de 1823, e encampou
a instalação do Parlamento (com duas Casas), desde 1826. Em meio a ele, abria-se
espaço para a demonização dos tribunais e dos magistrados que, acusados de chi-
canas e corrupções, contribuíam para a demora da justiça e flagelo das populações.
Não à toa, esteve na ordem do dia a adoção de soluções populares como a
dos juízes de paz e dos jurados, ambas as quais seriam saudadas como forma de se
garantir os direitos que apenas os novos tempos trariam. (campos; slemian, motta,
2017). Sem diminuir a novidade que esses últimos significaram para o momento, é
fato que a solução foi dada em meio a um ambiente geral de manutenção do arca-
bouço jurídico português que existiu com a Independência. (slemian; garriga, 2013).
Nesse sentido, seguindo as palavras de José Reinaldo de Lima Lopes, deveríamos
falar muito mais em “reformas” das instituições do passado nesse momento do que
uma profunda transformação das mesmas. (lopes, 2003; neves, 2003). Os tribunais
seriam sua prova mais evidente, já que se preservava não apenas sua estrutura
geral, e mesmo muito de seus procedimentos e recursos, mas igualmente suas pes-
soas. Nesse sentido, vale dizer que quando se instalou o Supremo Tribunal foram
reconduzidos a ele todos os magistrados da Casa da Suplicação, pois continuaria a
valer o critério de antiguidade para a ascensão na carreira. Mudava o formato, mas
não as pessoas, digamos.
A demonização do passado respingaria, sem dúvida, na historiografia pos-
terior e se juntaria a outras razões. Entre essas, tomamos como muito acertada a
afirmação de Laura de Mello e Souza que identificou uma espécie de ressentimento
pós colonial no verdadeiro descaso com que os historiadores no Brasil tratavam de
temas administrativos e institucionais, num misto entre a “dor e o azar de ter feito
parte do Império português”, que só teria terminado com a República. (souza, 2006,
p. 29-30). Daí ser notável como os chamados brasilianistas foram os principais reno-
vadores no interesse por temas vinculados à administração, exemplo claro no nosso

106
caso do próprio Stuart Schwartz. Assim que no momento de profunda renovação
historiográfica no Brasil, desde finais da década de 70 do século anterior, o estudo
das instituições seria ainda mais identificado com um discurso oficioso, em que
essas seriam vistas sobretudo como objetos de dominação social que não expressa-
riam sua dinâmica, terminando por serem desprezadas em nome da valorização dos
agentes sociais e das formas de resistência. Obviamente que se deve entender que
esse foi o momento de saída de um regime de exceção então vivido no Brasil, em
que a crença na redemocratização colocava na agenda mesmo a necessidade de mudar
o foco da política (então muito marcado pela pauta do Estado) para o da vida social.
Da virada do século para cá, novas agendas políticas tomaram a cena entre nós,
e também no mundo, colocando definitivamente em xeque a ideia de que o século
xix inauguraria a pauta de direitos. Há alguns anos, António Manuel Hespanha
já declarava sabermos, há décadas, como “debaixo dos nossos olhos, a instituição
Estado, tal como tinha sido construída pela teoria política liberal, se dissolve e de-
saparece”. (hespanha, 2012, p. 39-40). Em meio a esta crise, afirmava como as ideias
de igualdade, império da lei, democracia, entre outras, viviam um processo de ir-
reversível perda de legitimidade dos governos, diante da ascensão de movimentos
com pretensões de garantia da diferença, e mesmo corporativas ou particularistas
contra o interesse geral. A partir desse contexto, foi possível renovar o olhar sobre
o passado anterior aos Estados nacionais que, vulgarmente alcunhado de Antigo
Regime, tem sido recuperado sobre novas lentes. Daí ser possível hoje apresentar os
Tribunais da Relação como instituições bastante complexas que respondiam a uma
cultura jurídica particular, marcada por procedimentos, concepções que resultam
sumamente importantes para se entender como funcionava a justiça. Tomando isso
como central, defenderemos aqui que estes Tribunais tanto foram um marco no
poder régio nos territórios coloniais, como também eram responsáveis por asse-
gurar os direitos, ou o que na época concebemos sob este entendimento, em nome
do monarca. Longe estamos de querer propagandear que a sociedade anterior ao
mundo contemporâneo fosse mais inclusiva, respeitadas suas diferenças sociais,
do que a nossa. Mas igualmente estamos longe de que a memória que se construiu
da modernidade venha a obliterar o passado, e de alguma forma, igualmente o pre-
sente. Nos deteremos no momento de passagem do século xviii para o xix, o qual
manteve, até 1834, quando da reforma dos Tribunais da Relação, o mesmo modo
operandi colonial. Buscaremos, primeiramente, discutir a complexidade destes ór-
gãos e a cultura jurídica que lhes fornecia significado; e, em seguida, a ação que os
mesmos realizavam no reconhecimento das petições dos súditos, na sua condição
de supremos, alicerçando seus vínculos com a monarquia.

2. A cultura jurídica e os Tribunais da Relação

Há décadas a historiografia sobre a justiça no Antigo Regime tem passado por uma
ampla renovação no tocante a estes temas, que atingiria todo o mundo ibérico e,
consequentemente, o ibero-americano. De um lado, e sob forte influência da obra
seminal de Richard Kagan (1981), pela percepção de que as formas de litigiosidade
na cultura moderna eram muito mais comuns do que se poderia imaginar. Mesmo

107
que os níveis de utilização das instituições judiciais pudesse variar de acordo com
o contexto e momento, suas formas e usos coletivos foram se tornando objetos cada
vez mais de interesse dos especialistas, tanto pela sua amplitude social e estratégias
utilizadas pelos agentes, como pela discussão das formas de disciplinamento social.
(gainôt, 2009; van der heijden & vermeesch, 2019). Muito tem sido estudado a par-
tir de trabalhos que investiram no desvendamento de outros espaços de resolução
de conflitos e de justiça, além de tribunais e de juízes letrados, que passavam por
autoridades intermédias e/ou formas de consenso social ao nível local. Aos nossos
olhos de hoje, este universo poderia ser visto como menos formalizado; mas deve-se
tomar esta ideia com cautela e entender a maior capilaridade dos espaços de justiça
então existentes – um mundo em que a justiça “empregava”, ou seja, dava de comer
a muita gente. (paz alonso, 2008).
De outro lado, e concomitantemente a esta agenda historiográfica, a renovação
dos estudos de história crítica do direito teve um impacto profundo nas formas de
se conceber o mundo antes dos Estados nacionais. (costa, 2002; clavero, 1991; hes-
panha, 1994). No que toca especialmente à justiça, hoje sabemos da centralidade que
lhe cabia na concepção de administração das monarquias tradicionais, padrão que se
reproduziria na América desde o início da colonização. Governar era, em primeira
instância, administrar a justiça, ou seja, dar a cada um o que lhe cabia e pertencia
de acordo com sua posição social, tendo em vista que seus membros concebiam-se
naturalmente desiguais entre si. Como já sabido, tal função cabia primordialmente
ao rei que a delegava aos seus agentes para atuarem em seu nome, desde os órgãos
mais centrais até os mais periféricos (pela delegação de jurisdição). Esta foi a via ins-
titucional com a qual se construiu, ao longo de séculos, a argamassa que sustentou
as relações entre o soberano e seus súditos. Dessa forma, a justiça, entendida em
sentido amplo e como razão primordial da administração, estabelecia um forte elo
de ligação e legitimidade dos regimes. A pluralidade de agentes e esferas, judiciais
e extrajudicias, vem sendo cada vez mais valorizada em uma chave de renovação
de história institucional, demonstrando igualmente a capilaridade entre os espaços
da justiça e a vida social.
Para Portugal e para a América portuguesa tal agenda historiográfica teve e
continua a ter impacto, igualmente por meio da retomada do espaço da administração
como fundamental para entendermos as formas de reprodução social, e mesmo de
uma cultura jurídica que se pode entender com abrangência e capilaridade social.
(cardim, 2008; fragoso; monteiro, 2017). No Brasil, uma vibrante historiografia tem
se dedicado aos aspectos que envolvem a administração da justiça, enfatizando as
disputas entre os ouvidores e os grupos políticos locais, dando a entender como
se tratava de um mundo ativo e marcado por tensões. (atallah, 2010; souza, 2012;
mello, 2015). Em uma outra linha, os estudos sobre as vias judiciais e/ou peticioná-
rias, que tocassem na reivindicação de privilégios e/ou direitos, também tem notória
valorização nos últimos anos. (silva, 2018; prado, 2019; oliveira, 2020). No que toca
a essa última precisamente, que nos interessa especialmente aqui, é sabido hoje que
este universo era garantista no tocante aos direitos: para serem reconhecidos, eles não
precisavam estar estritamente declarados (seja por via de uma constituição, código
ou regulamento como acontece hoje em dia), já que eram juridicamente entendidos
como prévios e inerentes à condição de cada pessoa ou corpo social. (garriga, 2008).

108
Dizer garantista, no entanto, está longe de significar democrática, já que falamos
de uma sociedade profundamente desigual. Ao contrário, os silenciosos e constantes
movimentos para reconhecimento dos direitos amalgamaram os vínculos sociais e
simbólicos entre súditos e a própria monarquia ao longo de séculos; e assim serviam
à manutenção do status quo por meio da materialização de um verdadeiro pacto que
não raras vezes era evocado pelos colonos diante das tensas e conflitivas negociações
entre um lado e outro do Atlântico. Se o monarca dependia dos seus súditos, estes
também dependiam do seu rei para se afirmarem localmente. Trazer essa questão
para pensar o funcionamento da justiça nos parece ser uma chave especialmente
significativa para entender sua dimensão no universo colonial, que segue tendo
transcendência no período de passagem para o Império do Brasil.
Para que se tenha ideia do que estamos falando, comecemos com um exem-
plo. Em petição encaminhada pelos moradores do Arraial de São Luis e Santa Ana
Ribeiros de Paracatu à Relação do Rio de Janeiro, no ano de 1753, os mesmos reque-
riam providências contra o “grave prejuízo” que lhes causavam os advogados pelos
cobranças nos pleitos.2 Alegavam que “por causa dos Advogados do mesmo Arraial
[se] eternizam os autos em seu poder o tempo que lhes parece, não dando atenção
aos mandados, que contra eles alcançam as partes para se lhes fazer penhora nas
Ordenações”; e solicitavam a Sua Majestade a providência de mandar que os Tabeliões
façam um “livro para nele se registrarem os mandados, que contra os Advogados
se tirassem, impondo a pena de quatro mil reis por cada um tudo para as despesas
da Relação, como é vulgar e observado no Estado da Bahia”. Do pedido se emitiu um
acordão favorável: que se ordenasse por carta ao ouvidor da Comarca do Sabará man-
dar às vilas da dita Comarca, em especial no Arraial de Paracatu, que o escrivão de
cada juízo registrasse em livro todos os mandados que se passarem aos advogados.
A petição é emblemática. Trata-se de uma decisão tomada no Tribunal da
Relação diante da observância de justiça no pedido dos moradores de Paracatu que
se sentiam profundamente agraviados pelos advogados. Não deixa de ser menos
importante que o Acórdão tome medidas referentes ao caso em si mesmo, e que as
estenda a todas as vilas da comarca, agindo de forma explícita na administração.
Nesse sentido, os magistrados amparavam a vila contra as supostas arbitrariedades
de outros agentes no espaço colonial. Ação que fora possível porque tinham eles
o papel de representar o próprio rei por meio de seus magistrados que possuíam
jurisdição para decidirem em seu nome. É já sabido que estes tribunais muitas vezes
rivalizavam com outros poderes existentes no território, tema que a bibliografia tem
explorado desde sua instalação na Bahia, em conflitos com governadores, câmaras
e potentados locais. (schwartz, 1979; valim, 2018). Mas a petição enuncia que, para
pensá-los de corpo inteiro, vale discutir o amplo espectro de significados que suas
ações comportavam.
Remontar rapidamente a suas origens nos ajuda a entendê-los. A instalação
do primeiro Tribunal da Relação em terras portuguesas se deu na cidade do Porto,
no mesmo ano, 1582, em que se instituiu a Casa da Suplicação em Lisboa. O que
não se tratava de mera coincidência. Ambos faziam parte de um longo processo de
2  Arquivo Nacional do Rio de Janeiro,
Tribunal do Desembargo do Paço definição da administração da justiça desde os primeiros tempos da monarquia em
(doravante anrj-tdp); Registro de que o rei visitava seus domínios recolhendo as queixas das populações contra juízes
Provisões, Cartas e Alvarás da Relação
do Rio de Janeiro 1752-1808, Códice 24, inferiores, ou enviava os magistrados régios, até a instituição de Casas para recebe-
volume 1, Fl. 8-8v. rem os recursos provenientes dos territórios delimitados para sua jurisdição. (silva,

109
1902). Em Portugal, sua criação foi fruto de uma reforma dos tribunais superiores
colocada em práticas por Filipe ii, em que se estabeleceu uma jurisdição para o Sul
e outra para o Norte: a primeira, que chamar-se-ia definitivamente de Casa da Su-
plicação em Lisboa, abrangia as comarcas da Estremadura (com exceção de Coimbra
e Esgueira); e a segunda, “Relação da Casa do Porto”, que abrangia as comarcas de
Entre-Douro e Minho, Trás-os-Montes e Beira. (subtil, 2002, p. 210; camarinhas,
2014). Nas áreas que lhe eram correspondentes, ambos exerciam o papel de relação,
ou seja de exposição, que faz um Juiz, ou um Comissário de um negócio, ou de uma Cau-
sa, que se lhe deu para ver, e examinar. Mas apenas à Casa da Suplicação cabia ser o
tribunal de última instância em matéria jurídica, bem como de interpretação das
leis, conhecendo os recursos vindos da própria Relação do Porto. Dessa forma, não
se tratava de simples hierarquização de funções, mas de uma concepção territorial
em que congregavam no seu âmbito uma série de atribuições que desempenhavam
como “supremas” nas comarcas de sua jurisdição.
Este seria o modelo de Tribunal transladado ao Novo Mundo, com algumas
adaptações importantes. Como é sabido, o primeiro a ser instalado foi o da Bahia
em 1609 que possuía jurisdição sobre todas as capitanias e comarcas, mas não no
Estado do Maranhão (cujo território continuaria subordinado à Lisboa no que toca
aos recursos). Sua justificativa, igualmente sabida, era que os ouvidores não da-
vam conta de atender todas as dinâmicas do território, e fazia jus à necessidade de
organização administrativa dos próprios domínios. (schwartz, 1979; mello, 2018).
Durante mais de um século este seria a única Relação na América, bem diferente-
mente do caso na América espanhola: as Audiências, instituições congêneres aos
nossos Tribunais e que serviram como exemplo para criação dos mesmos – há que
se lembrar que o da Bahia se instalou em meio ao período da União Ibérica - seriam
peças fundamentais no governo das novas terras, e já existiam no número de onze
no século xvi, sendo instaladas mais três até fins do século xviii.3 Não há dúvida
que os tempos distintos destes processos explicam em parte essa diferença de ritmos,
já que a monarquia espanhola investiu mais pesadamente desde seu início, retroa-
limentada pelos metais preciosos e seu poderio econômico; enquanto Portugal, até
o xvi muito voltado para o império da pimenta na Índia, somente olharia com olhos
muito mais atentos para suas terras americanas a partir do deslanche da produção
açucareira e, sobretudo, da Restauração de 1640.
O monopólio dessa instituição na América portuguesa somente foi quebrado
em 1751, quando se deu a criação de um Tribunal da Relação no Rio de Janeiro. Neste
momento, sua implementação estava, sem dúvida, relacionada com a importância
3  Foram elas: a de Santo Domingo
que o Centro-Sul do Brasil adquiriu no século xviii em função das descobertas aurí- (1526), Nueva España (1527), Panamá
(1538, restabelecida em 1563), Guatemala
feras de Minas Gerais, seguida do grande aumento populacional na região, concomi-
(1542, restabelecida em 1568), Lima
tante a uma clara política da coroa em aumentar a malha judicial existente nestes (1542), Santa Fé (1547), Nueva Galicia
domínios ultramarinos. (wehling; wehling, 2004; camarinhas, 2010). Em linhas (1548), Charcas (1555/1561), Quito (1563,
restabelecida em 1720), Chile (1567,
gerais, seu regimento seguia praticamente a mesma estrutura daquele existente restabelecida em 1605/1609), Manila
na Bahia, com uma pequena diferença: no Rio de Janeiro (e depois no Maranhão), (1583, restabelecida em 1595), Buenos
Aires (1661, restabelecida em 1782),
o desembargador nomeado como chanceler poderia saber das suspeições contra os Cuzco (1787) e Caracas (1786) (garriga,
governadores, o que não estava previsto ao mesmos na Bahia.4 Tudo indica que o 2010, p. 236; slemian, 2014).
4  Regimento de 13 de outubro de 1751
primeiro Tribunal não tocava nesta questão, por necessidade de fortalecimento de (Colleção da Legislação Portugueza, 1830, p.
sua autoridade quando de sua criação; mas é fato que isso aponta para que, no século 484-502). mello, 2018, p. 104-105.

110
xviii, ele ganhasse mais poderes sobre fiscalização sobre o governo da província. O
que merece ser ainda mais estudado.
A princípio, o Tribunal da Relação possuía a função primordial de receber
recursos ordinários sobre as decisões, apelações e agravos, em 2ª, instância; mas,
como um órgão supremo, cujas decisões recebiam o selo real, ele agregaria no seu
âmbito uma série de agentes e atribuições que dissessem respeito ao território de sua
jurisdição, tal qual vigorava desde a instituição mãe instalada no Porto. Era assim
que, para além dos magistrados responsáveis pelos recursos ordinários (chamados
de agravistas), no seu espaço passaram a atuar um ouvidor para matéria civil e um
outro para crime, correspondentes à jurisdição do Tribunal, com todas suas atri-
buições. Também um juiz dos feitos da Coroa e um procurador, responsáveis por
manter os interesses do monarca. Uma figura central era o chanceler: a ele caberia,
entre outras funções, verificar todas as cartas e sentenças emitidas pelos desem-
bargadores, devassar todos os oficiais da justiça, passar todas as “cartas e provisões
assim de graça, como de justiça e fazenda, assinadas pelo governador”, bem como
“todas as cartas de execuções das dízimas das sentenças”.5
O chanceler era um alto funcionário que, de acordo com as Ordenações Filipinas,
cuidava do “controle oficioso e prévio” de todas as decisões, tendo como “principais
atribuições as de selar e mandar publicar os diplomas emanados dos tribunais ou
oficiais da Corte”, também de verificar se as decisões iam contra os direitos do rei,
ou contra o “povo, ou Clerezia”. (hespanha, 2004). Em função disso, no espaço do
Tribunal, o Chanceler presidia, as sessões da Mesa Grande, onde eram tratados vários
assuntos que não encaminhados na forma de processos ordinários (ou seja, que não
seguiam necessariamente os trâmites previstos de 1ª. e 2ª. instâncias). Desta tomaria
parte o governador da capitania, o qual tinha um papel ativo no órgão, bem como
o desembargados dos agravos mais antigo.
Entender o que significava esta Mesa permite que se adentre na complexidade
do próprio órgão no que tocava à sua função régia. Desde o Tribunal da Bahia, cabia
a ele despachar, em território americano, todos os negócios pertencentes ao Desem-
bargo do Paço, instituição existente em Lisboa, onde tramitavam todos os alvarás
e provisões concedidos em nome do rei pelo seu poder de graça. Essa mimetizava
a própria lógica, ao mesmo tempo, contratual e católica da monarquia: legitimada
pelo discurso de devoção e temor a Deus, a graça expressava o alto poder de discri-
cionariedade do monarca no atendimento das petições e súplicas dos seus súditos.
(clavero, 2006; hespanha, 1993). Mas ela estava longe de ser gratuita, já que previa
uma relação de troca de uma concessão em nome da vassalagem, e tampouco valeria
para tudo e todos o tempo inteiro. Como atribuição exclusiva daqueles que represen-
tavam o rei in judicando, no Tribunal da Relação caberia à Mesa concedê-las, como
citado literalmente acima nas funções do chanceler, mas também atender a outras
solicitações citadas no regimento como de “justiça e fazenda” que não apenas os de
graça. Seus atos eram espécies de “mandados” ou “ordens” que conferiam um bene-
fício a alguém, emitidas apenas por tribunais ou agentes que pudessem atuar em
nome do rei. (souza, 1827, t. 2, p. 408). Nesse sentido, a Mesa expressa uma função
acoplada à Relação, de emissões de provisões e decisões que poderíamos chamar de
extrajudiciais, por não se configurarem como pleitos. Se tomamos a carta dos mo-
5 Idem. radores de Paracatu mencionada acima, vejamos como ela não se tratava de uma

111
simples solicitação de graça, mas sim de justiça à medida em que apontava razões
para sua queixa. Assim que várias matérias poderiam passar por este espaço, e a
profusão com que suas solicitações ocorriam será analisada logo a seguir.
Para além das atribuições mencionadas, é notório como os Tribunais da Re-
lação igualmente tratavam igualmente de jurisdições privilegiadas (de pessoas,
mas igualmente de viúvas, órfãos, etc), bem como casos graves ou vinculados aos
oficiais reais ou assuntos de grande importância. O fato de que seus magistrados
entrassem em assuntos da política fazia parte do mundo da época em que admi-
nistração e justiça eram vistas como indissociáveis, e em que cabia aos tribunais
um papel de preservação da ordem, bem como aos magistrados de decodificação
do direito. (garriga, 2006; martinez, 1999). Nesse sentido, é que caracterizar esses
tribunais como territoriais fazia todo sentido, pois que as condições locais tinham
forte peso nas decisões e na administração da justiça, o que vem sendo chamado
pelos especialistas como uma operação de localização do direito, (aguero, 2016; duve,
2017). Tudo somado, as várias atribuições que existiam no âmbito destes tribunais
eram resultado da sua formação histórica para onde confluíram ações e agentes
reconhecidas como legítimas para atuar como supremas, ou seja, em nome do rei.
Essa tradição se reproduziu claramente quando a Família Real se instalou no
Brasil, em 1808. Foi neste momento que o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro se
converteria em uma duplicação da Casa da Suplicação na América (já que a primeira
continuaria a existir em Lisboa), elevando todos seus magistrados a esta condição.6
Mantinha o novo órgão as atribuições várias existentes no âmbito do Tribunal, mas
agregava-se a possibilidade de receberem recursos de ultimíssima instância. A prin-
cípio ficara definido que todos os agravos e apelações do Pará, Maranhão, Açores e
Madeira, que anteriormente se interpunham à Lisboa, deveriam seguir a esta Casa
no Rio de Janeiro. Mas é interessante que um ano depois, em 1809, a Casa da Supli-
cação de Lisboa volta a ser reconhecida como responsável pelos recursos enviados
por essas partes, como funcionava antes, reconhecendo à vinculação história do
Norte do Brasil (antigo Estado do Maranhão e Grão-Pará) com o Reino de Portugal.
Com o monarca no Brasil, instalaram-se mais dois Tribunais da Relação,
como é sabido, o do Maranhão em 1812, e o de Recife (criado em 1821, mas instalado
apenas em 1822).7 Ambos seguiam em linhas gerais os regimentos anteriores, mas
mantinham uma especificidade que nos interessa destacar: nos territórios de sua
jurisdição mantinham o papel de Desembargo do Paço, com manutenção da exis-
tência Mesa Grande presidida pelo chanceler. O que significa dizer que se mantinha
o padrão que caracterizava o Tribunal em moldes tradicionais, exercendo naquele
território todas as atribuições de justiça que as caracterizavam como supremas. Assim
que mesmo com o monarca no Brasil, as Relações contavam com certa autonomia
no funcionamento tanto na determinação dos recursos ordinários, como para a sé-
rie de atribuições extrajudiciais que passavam pelo controle da magistratura bem
como na emissão de provisões e cartas por graça ou direito reconhecido (justiça). 6  Alvará de 10 de maio de 1808 (Colleção
Autonomia que se fazia presente mediante a preservação dos estilos que evocavam das Leis do Brazil do Império do Brazil,
1891, p. 23-26).
a tradição dos mesmos tribunais. (slemian, 2020). 7  Alvará de 13 de Maio de 1812 para a
Logo após a Independência e com a ascensão do discurso de construção de uma Relação do Maranhão; e alvará de 06
de fevereiro de 1821 que cria a Relação
justiça em moldes constitucionais, ganharia muita força as falas pela separação dos do Recife (Colleção das Leis do Império do
poderes e autonomia do judiciário. As disputas entre as autoridades nas Relações Brazil, 1889).

112
ganhariam, portanto, um novo marco. Sobre isso, é significativo o caso das dispu-
tas entre os presidentes de província e os chanceleres nos Tribunais do Maranhão
e da Bahia, em que os primeiros acusavam os segundos de fazer as nomeações dos
ministros da Casa, assinar alvarás de perdão e tudo que competia à função de re-
gedor (anteriormente exercida pelos presidentes das províncias nas Relações). Uma
provisão real, de 15 de junho de 1825, resolveu o problema, dando aos chanceleres
o gozo do exercício destas funções, baseando-se em artigo da lei de 20 de outubro
de 1823, que falava em independência da administração da justiça em relação ao
governo.8 Mas o tema era controvertido.
Idêntico fortalecimento dos Tribunais da Relação aponta estar colocado quando
da extinção da Casa da Suplicação em 1828.9 A medida extinguia o icônico tribunal,
mas dividia suas funções entre vários órgãos e agentes que permaneciam existentes.
Para as Relações, passariam as competências de decidirem os conflitos de jurisdição
entre as autoridades de seu distrito, inclusive as eclesiásticas, além de prorrogar o
tempo das fianças e dos inventários, além de conhecer os recursos dos ausentes. Ou
seja, aumentava-se seu papel de interferência em conflitos que se dessem no espa-
ço de sua jurisdição, confirmando-as até esse momento como tribunais territórios.
Isso mudaria depois de 1834, quando uma reforma das mesmas seria colocada em
prática. No entanto, tudo indica que manteriam seu poder sobre a determinação do
direito em todo o século xix, conforme iniciamos estas nossas linhas.
Para além de tudo isso, é possível defender que o Tribunal da Relação, além de
um órgão complexo que congregava múltiplas ações no Ultramar, teve igualmente
um papel simbólico em alicerçar os vínculos coloniais entre os súditos e o monarca.
É o que veremos a seguir. A falta de estudos que abordem esta dimensão deve-se
às razões apontadas acima, que tenderam a encaixar o Tribunal como instituição
apenas afeita a uma lógica de privilégios, redes de favorecimento e corrupções, sem
permitirem que estes sejam igualmente vistos em semelhança com outras institui-
ções congêneres na América e na Europa, numa larga tradição de reconhecimento
por parte dos monarcas de direitos prévios dos seus súditos.

3. Um mundo de provisões

António Vanguerve Cabral, na sua Prática judicial, narra um caso ocorrido em 1703,
quando ele exercia o papel de ouvidor em Itamaracá, ao colocar o problema se seria
possível haver uma provisão após um caso julgado para que o juiz suspendesse a
execução:

[…] na causa de Amaro Correa com a viúva Izabel Correa, irmão do dito, es-
8  Lei de 20 de outubro de 823, tando esta tratando de sua execução por passar em caso julgado, alcançou
Artigo 33: “A administração da
Justiça é independente do Presidente, o condenado Provisão para apelar & admitindo-lhe eu a sua Appellação, me
e Conselho”. (Coleção das Leis do requereu mandasse suspender a execução, ao que lhe não deferi, de que se
Império do Brasil, 1887); da provisão
mencionada, Colleção das Decisões do agravou, & não seguio o Aggravo, & me pedio lhe mandasse dar Certidão
Governo do Império do Brazil, 1885. de como tinha apelado, & preparado os termos da Appelação, & com a dita
9  Lei de 22 de setembro de 1828
(Colleção das Leis do Imperio do Brazil, Certidão requereu Substatoria à Relação da Bahia, que lha concedeu, & lhe
1878, p.47 ss). puz o cumpra-se, & se substeve na execução. (cabral, 1730, p. 209).

113
Ou seja, o réu com a viúva, diante da negativa do ouvidor de suspender a exe-
debret, Jean-Baptiste. Desembargadores
cução da causa, enquanto apelasse da mesma, fizeram um requerimento à Relação da a caminho do Palácio da Justiça.
Bahia que lhes fornecera uma provisão a seu favor. Com isso, Cabral viu-se obrigado, Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa
na sua função, de suspender sua execução, pois que o Tribunal havia reconhecido o do. Debret e o Brasil: obra completa: 1816-
1831. 3. ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013.
direito dos réus à mesma. Não seria equivocado dizer que, casos como estes, indi- p. 258.
cavam que a Relação tinha poderes para ordenar uma ação aos juízes inferiores que
pudessem ser acusados de agir arbitrariamente.
A emissão de provisões como estas eram uma prática cotidiana do Tribunal,
as quais passavam por decisão tomada na Mesa Grande e, em seguida, seladas pelo
chanceler. Assim que se deve imaginar que, para além dos processos ordinários que
chegavam mediante interposição de apelação e agravos, havia todo um universo ex-
trajudicial que, muitas vezes não atrelados aos primeiros, inundavam com petições o
espaço do mesmo Tribunal. A reflexão sobre estas vias e a tentativa de quantificá-las
deve ser vista como parte do esforço em entender as Relações também como órgãos
fundamentais na construção da argamassa social que cimentava as relações dos súditos
com o monarca pelo atendimento das suas demandas por justiça.
Entre nós, também pelas razões apontadas acima, há uma certa tendência em
tratar os caminhos dos tribunais e de formas justiça como por natureza ineficazes,
dispendiosos e disponíveis apenas às classes mais abastecidas. Ou em outro sentido,
em enquadrar as manifestações dos súditos sempre e apenas como ações em nome de
privilégios ou por graça, em uma leitura esquemática do complexo mecanismo da “eco-

114
nomia moral do dom” já desenvolvido pela historiografia. (fragoso, 2001). No entanto,
como igualmente apontado, a historiografia tem repensado estas questões tendo em
vista uma maior capilaridade das formas de justiça existentes no mundo moderno;
para além disso, os dados que apresentaremos a seguir nos permitem igualmente
colocar novos problemas à temática.
Para que isso seja possível, há que antecipadamente se entender que este uni-
verso jurídico se movia mediante petições endereçadas a autoridades ou mesmo ao
monarca, por meio de seus Conselhos e órgãos régios. Mas que isso, sua legitimação
estava na ideia de que os direitos deveriam estar preservados pela tradição histórica,
entendidos como prévios e inerentes à condição de cada qual, sendo função do go-
verno preservá-los. Assim, peticionar por algo era a regra pela qual os indivíduos ou
corporações, homens, mulheres, livres e/ou escravos, manifestavam seus interesses,
faziam demandas, expressavam suas queixas. (russell-wood, 2000; silveira, 2008;
silva, 2018). Os caminhos que poderiam ser trilhados pelas mesmas poderiam variar
muito, a depender igualmente de seu teor. Mas há que se imaginar que um grande
número não seguiam as vias processais, onde reside a importância em recuperar ou-
tros espaços que judiciais, conforme destacamos aqui. (garriga, 2008)
Para a América espanhola, é notório como tem sido destacado o papel das Au-
diências, para além do espaço político das disputas, no sentido de amparo e proteção
dos súditos, inclusive indígenas. (lira, 1972; barragán, 2000; owensby, 2008, novoa,
2016; puente luna, 2018). Particularmente, que estes caminhos também poderiam ser
expressos pela emissão das provisões ordinárias feitas em nome do monarca, como
atos extrajudiciais, que forneciam uma declaração de reconhecimento por um agra-
vo sofrido por alguém, de queixa contra alguma autoridade, de legitimação de posse
de algo, do direito pela interposição de recursos ou para citar pessoas, entre outras.
(garriga, 2014). Cabe notar que a prática de que os tribunais ou magistrados supremos
fornecessem, em nome do rei, cédulas ou provisões para amparo de direitos de seus
súditos não era para nada estranha ao mundo moderno; ao contrário. Elas remonta-
vam há séculos como expressão das formas de administração de justiça, bem como da
relação entre os reis e seus súditos como um pacto de deveres em prol de obediência
e segurança.10 Não há dúvida que o posterior constitucionalismo baseado na centra-
lidade da lei, em que os direitos passaram a depender da vontade do legislador para
serem garantidos, tendeu a excluir esta história do passado. Nada mais contundente
desta construção do que a frase de Pimenta Bueno com a qual começamos este texto.
Um caminho inicial seria o de quantificar os atos dos tribunais; o que sempre é
muito penoso entre nós, por não possuirmos os livros/séries completos nos arquivos
que nos permitiam a organização de dados para o período que nos interessa aqui. Mas
a partir de indícios que pudemos juntar para a Relação do Rio de Janeiro, é possível
pensarmos as formas de abrangência social dos mesmos, tendo em conta alguns
dados sobre o movimento dos processos que seguiam vias ordinárias vis-à-vis o nú-
mero de ações que seguiam os caminhos das provisões e atos extrajudiciais. A partir

10  Alguma semelhança há com as tradicionais writs inglesas, ordens reais dirigidas a um tribunal
local para que as petições encaminhadas pudessem ser rapidamente satisfeitas no reparo de algo ato
injusto ou de proteção ao demandante contra falsas acusações (origem da emblemática medida do
habeas corpus). Nas palavras de Van Caenegem (1973, especially “Royal writs and writ procedure »)
para o caso inglês, elas se converteram em verdadeiros “instrumentos de governo justo”, medidas
“executivas” que muitas vezes eram preferidas pelos súditos ao invés dos caminhos judiciais dos
tribunais.

115
da contagem minuciosa dos livros de distribuição disponíveis do Tribunal da Rela-
ção (desde 1763), chegamos aos números abaixo, referente ao número de processos
distribuídos por ano (o que, vale dizer, não inclui os que estavam em andamento):

Fonte: arquivo nacional do rio de janeiro. Códices do Poder Judiciário. Relação do Rio de
Janeiro. Distribuição das apelações e agravos ordinários. Códices 47, 48, 50, 51, 52.

Inicialmente o que nos chama atenção é que elas mantenham um número mais
ou menos na faixa entre 150 a 250, demonstrando certa constância de sua atividade
nestas décadas.11 A enorme baixa vivida no final da década refere-se a um período
bastante conturbado quando, após a extinção da Casa da Suplicação, o Tribunal ain-
da não tivera uma reformulação; por isso acreditamos que ela deva ser matizada.
Se tomarmos a quantificação das provisões e cartas emitidas pelo mesmo Tri-
bunal no período que nos foi possível realizá-la em função dos livros encontrados
no Arquivo Nacional, veremos que seu número é igualmente significativo. Ainda
mais se imaginarmos que tratavam de petições que, sem tomar a via processual,
faziam solicitações várias por amparo real. Para o período que vai de 1753 a 1808,
foram encontrados um total de 8798 despachos, entre provisões e alvarás, em 16
livros12, permitindo a realização do gráfico abaixo:

11  Dos Códices encontrados para sua


contabilidade, não tivemos acesso ao de
número 49 em função do seu péssimo
estado de conservação.
12  anrj-tdp, Registro de Provisões,
Fonte: arquivo nacional do rio de janeiro. Códice 24 (16 volumes) - Tribunal do Cartas e Alvarás da Relação do Rio
Desembargo do Paço – Registro de Provisões, Cartas e Alvarás da Relação do Rio de de Janeiro 1752-1808, Códice 24, onde
Janeiro 1752-1808. encontram-se 16 livros com as seguintes
datações: 1753-1755 = 357 (Livro 1), 3
Por livros, o Gráfico 2 demonstra como seu número manteve-se mais ou anos; 1755-1759 = 449 (Livro 2), 5 anos;
menos equânime durante o período – note-se que o que aparece bastante despro- 1759-1762 = 447 (Livro 3), 4 anos; (salto

116
porcional é apenas o livro 15, de 1802 a 1807, o que se deve ao livro também se re-
ferir a seis anos. De modo geral, poderíamos falar em uma média de 170 provisões
emitidas por ano, o que não inclui os pedidos que chegam (pois é impossível termos
acesso às petições originais). Como a Mesa tratava de várias e distintas matérias,
optamos por chamá-los genericamente por “despachos”.
Uma análise qualitativa destas provisões nos permite avançar muito na
discussão acerca abrangência dos pedidos ao Tribunal, bem como das ações sociais
que estavam por trás das mesmas. Partindo da tipologia dos pedidos das próprias
petições, temos as seguintes categorias de solicitações que obtiveram provisão:
1. Cartas de seguro;
2. Fianças;
3. Citar e demandar;
4. Emancipação de idade (suplemento de idade);
5. Apelar/agravar da causa;
6. Comutação de pena/degredo.
Entre as que aparecem em menor número, estão as de:
1) Erros de ofício, que se referem a erros ou má comportamento de escrivães,
tabeliões e outras autoridades, em que aparecem alguns juízes de órfãos;
2) Solicitação de provisão de ofício (ou alívio de cargo), que são poucas;
3) Pedidos de prova de direito comum, quando se solicitava a confirmação de
alguma “prova” por uma das partes;
4) Para “residir nas audiências” para livrar-se de alguma acusação por seu
procurador (poder atuar em uma audiência, como sessão, em nome de outra
pessoa);
5) De permissão para advogar;

Vale dizer que também há queixas que, mesmo não apresentadas por uma
classificação por parte de quem as registrou nos livros, também poderiam seguir
por esta via. Abaixo se podem ver os gráficos que representam os totais dos casos
mais citados para todo o período:

temporal); 1766-1770 = 472 (Livro 4),


5 anos; 1770-1772 = 369 (Livro 5), 3 anos;
1772-1778 = 649 (Livro 6), 7 anos; 1778-
1781 = 611 (Livro 7), 4 anos; 1782-1784
= 554 (Livro 8), 3 anos; 1785-1787= 467
(livro 9), 3 anos; 1787-1791 = 712 (Livro
10), 5 anos; 1791-1795 = 586 (Livro 11), 5
anos; 1795-1798 = 602 (Livro 12), 4 anos;
1798-1800 = 407 (Livro 13), 3 anos; 1800-
1802 = 460 (Livro 14), 3 anos; 1802-1807 Fonte: arquivo nacional do rio de janeiro. Códice 24 (16 volumes) - Tribunal do
= 1395 (Livro 15), 6 anos; 1807-1808= Desembargo do Paço – Registro de Provisões, Cartas e Alvarás da Relação do Rio de
261 (Livro 16), 2 anos Janeiro 1752-1808.

117
Fonte: arquivo nacional do rio de janeiro. Códice 24 (16 volumes) - Tribunal do
Desembargo do Paço – Registro de Provisões, Cartas e Alvarás da Relação do Rio de
Janeiro 1752-1808.

Fonte: arquivo nacional do rio de janeiro. Códice 24 (16 volumes) - Tribunal do


Desembargo do Paço – Registro de Provisões, Cartas e Alvarás da Relação do Rio de
Janeiro 1752-1808.

Para nosso propósito, uma primeira questão deve levar em conta a separação
dos casos em que não havia conflitos entre partes, ou seja, os de jurisdição volun-
tária. Entre estes, estão as de emancipação, em que a/o suplicante solicitava ter
idade suficiente para tratar de seus bens (muitos se referiam a órfãos). Seu núme-
ro é menor no início do período (conforme se verifica no Gráfico 3), mas ele sobe
exponencialmente em finais do século - o que pode se referir ao aumento do nú-
mero de toda população do Centro-Sul do Brasil, nesse momento. Em função disso,
fizemos os gráficos com separação dos tipos, levando em conta duas situações: as
que apresentavam todos os casos (Gráfico 4) e as que retiravam as emancipações
(Gráfico 5). O objetivo de retirá-las é perceber quais eram as principais solicitações
que envolviam conflitos e que, portanto, implicavam uma ação social, no sentido
de obter o reconhecimento de algum direito.
Uma segunda questão diz respeito às petições que poderiam ser enquadradas
como de graça, como é o caso das solicitações de comutação de degredo ou de pena,
para a qual, muitas vezes, não havia qualquer razão específica alegada na solicitação.
Como já tem sido demonstrado pela historiografia, cabia ao monarca a possibili-
dade de diminuição ou mesmo de retirada de penas, numa chave típica de perdão

118
paternal, de acordo com valores políticos coevos. (hespanha, 1990; lara, 2006). O
interessante aqui é que estes pedidos de petições estão longe de serem maioria, e
seus casos sofrem uma leve diminuição ao longo das décadas. O que de cara salta
aos olhos é que ao menos 41% dos casos se referiam aos pedidos para não estar
em prisão, materializado através das solicitações por cartas de seguro e de fianças.
Primeiramente, há que se explicar o que são elas.
As cartas de seguro eram provisões ordinárias adquiridas a partir de petições
em que se demandava que aqueles acusados de qualquer delito fossem mantidos em
liberdade, enquanto seu caso ainda estivesse em julgamento. As cartas de seguro
remontavam há séculos em Portugal, e alguns tratadistas a tratavam como específi-
cas do mundo luso. (leitão, 2009; hespa.nha, 2015). Como marcava a doutrina desde
a época moderna, elas poderiam ser de dois tipos: as negativas, em que cabia ao réu
negar o feito, e aos magistrados a apreciação de suas razões, sem levantamento de
provas; e as confessativas, em que os réus confessavam, expondo os motivos para
o ocorrido, de modo a justificarem sua liberdade.13 Ao Tribunal da Relação cabia
apenas sua prorrogação, depois que as originais aprovadas pelos ouvidores nas lo-
calidades já tivessem sido vencidas (ou seja, tivessem perdido seu prazo de validade).
A justificativa é quase sempre a mesma: a demora na resolução do caso e o pedido
para que o réu pudesse esperar pelo seu julgamento final fora da prisão. Chamadas
de livrar-se solto do crime, seu número é alto entre as provisões aprovadas - o que
nos faz pensar que era ainda mais alto nas localidades. Em suma, representavam
o direito aos réus de não serem encarcerados por alguma autoridade enquanto não
fosse provada a acusação. Por serem remédios ordinários, uma certa semelhança
com o habeas-corpus, ou com outros tipos de writs inglesas, não seria descabida,
ainda que seu enquadramento seja muito diferente do significados nos dias de hoje.
Na sua grande maioria, a alegação para prorrogação expressava-se sob o argu-
mento de que estavam a findar seus livramentos, como se nota no caso abaixo:

Diz Alexandre Pereira da Cruz que nas Causas Crimes que pendem por Apelaçam
no Juizo da Ouvidoria da Villa de Sam Joao de El Rey se lhe Concedeo sua Carta de
Seguros, e porque são findas, e o Suplicante não pode findar seos Livramentos,
como consta da Certidam dos termos de seos Livramentos junta recorrer A
Vossa Magestade para que lhe faça a graça de lhe conceder Provisoens de
reformação das ditas Cartas de Seguro para findar seos Livramentos, e da
mesma certidão consta serem dois Livramentos.14 (grifo nosso).

Casos semelhantes, mas não idênticos, eram o das petições por alvarás de
fianças, que igualmente tocavam no tema de livrar-se da prisão. Estas se diferiam
dos seguros, pois eram requeridas depois que alguém fosse preso, solicitando sua
13  Na edição que J. M. da Costa faz do
Tratado de Gregorio Martins (1764, p. 132) soltura enquanto não houvesse decisão final do caso. (cabral, 1730). Há que se notar
ela aparecia como “Petição de carta de que, na época, a prisão não era uma pena; ao contrário, colocar alguém no cárcere
seguro confessativa com defesa”, em que
se deveria descrever o crime imputado, servia para fins diversos, sobretudo preventivos, aos que representassem qualquer
com a descrição de como ele ocorrera, perigo à ordem, aos que estivessem submetidos a alguma ameaça, e mesmo para
dando as razões para que o réu o tivesse
em parte cometido. detenção de algum acusado suspeito de fuga, enquanto a verificação do caso estivesse
14  anrj-tdp, v. 1, fl. 3-3v. em curso. (aguero, 2008, p. 256). Neste sentido, tanto as provisões de cartas de se-

119
guro como a de fianças eram instrumentos que reconheciam amparo contra o uso
indevido que alguma autoridade pudesse fazer de seu poder de conduzir alguém à
prisão. Não era incomum, portanto, que algumas de suas petições apontassem erros
de ofícios de algum oficial ou juiz.
Mesmo que parte dessas petições pudessem estar inseridas no transcurso
(marco) de um processo ordinário, muitas acabavam sendo aprovadas a partir de
queixas e/ou querelas, como se pode ver referido na própria documentação. Para
nosso objeto, vale explicar rapidamente o que são essas. Numa larga tradição que
remontava à Idade Média, as querelas eram queixas encaminhadas à uma auto-
ridade superior quando, por alguma razão, não coubesse apelação. (barbosa, 1668;
garriga, 2008, p. 79). No século xviii, elas aparecem na doutrina portuguesa como
um mecanismo de acusação contra um fato criminoso, ou por algum agravo sofri-
do por outrem, dirigido à alguma autoridade competente.15 Fartamente utilizadas
no universo do Antigo Regime, onde as querelas eram a regra para denunciar atos
de particulares e de autoridades, seu trâmite era mais simplificado e rápido em
contraste ao longo tempo e custos que os processos ordinários poderiam vir a ter
(vale lembrar que a crítica à demora dos tribunais é muito mais antiga do que se
pode imaginar). (paz alonso, 2001). Dessa forma, seu procedimento era comumente
extrajudicial, e com ele se se descortina todo um intenso universo de ações sociais
que existia concomitantemente ao processual e que merece ser levado em conta se
queremos entender a capilaridade das formas de justiça existentes.
De um total de 1630 solicitações recolhidas para os casos de cartas de segu-
ro, ao menos 627 eram provenientes de querelas e 375 de devassas, contabilizando
1002 pedidos. Dizemos ao menos, pois muitos casos não citam exatamente a for-
ma original em que a ação foi iniciada. Mesmo assim, que mais de 60% não sejam
provenientes de processos ordinários, é significativo.16 Tanto as querelas, como as
devassas - que eram abertas por autoridades no exercício de sua função, median-
te alguma denúncia – eram meios mais simplificados de resolução de conflitos, e
tendiam a demonstrar os níveis de litigiosidade existente. O que confirma nossa
hipótese que estas demonstram igualmente a abrangência social e capilaridade dos
espaços da justiça que tinham igualmente espaço no Tribunal. Se ainda contarmos
que as cartas de seguro eram fornecidas localmente pelos ouvidores, já que as Re-
lações aprovavam apenas suas prorrogações, podemos imaginar que seu alcance
fora ainda maior.17

15  souza (1820), capítulo III, “Da Querela. Querela é a delação que alguém faz em Juízo competente
de algum fato criminoso por interesse ou particular, ou público” (p. 34); “Difere a Querela da denúncia
em que os Queixosos são obrigados a provar a sua queixa, e os denunciantes só dão a notícia dos
fatos às Justiças a quem pertence o seu conhecimento” (p.35).
16  A contabilidade é: Livro 1, 1753-1755 (40 querelas, 21 devassas); Livro 2, 1755-1759 (19 devassas, 39
querelas); Livro 3 (24 devassas, 69 querelas); Livro 4 (34 querelas, 30 devassas); Livro 5 (35 querelas, 16
devassas); Livro 6 (55 querelas, 32 devassas); Livro 7 (49 querelas, 15 devassas); Livro 8 (19 querelas, 11
devassas); Livro 9 (18 querelas, 22 devassas); Livro 10 (43 querelas, 27 devassas); Livro 11 (30 querelas,
16 devassas); Livro 12 (47 são querelas, 23 devassas); Livro 13 (29 querelas, 11 devassas); Livro 14 (31
querelas, 11 devassas); Livro 15 (130 querela, 25 devassas); Livro 16 Seguro (24 querelas, 7 devassas);
Totais: 627 querelas, 375 devassas (1002 petições).
17  Para o caso de Minas Gerais, Maria Resende Teixeira nos fornece números bastante significativos,
ainda que apenas para o início do século xix, daquelas solicitadas para os ouvidores locais. (Teixeira,
2001, p. 274s.) Em São João del Rei, para um total de 283 querelas que ela computou até 1820, 989
foram os casos de cartas de seguro (34,02%), e de 1821 em diante, para 71 casos, foram 30 (405). Seus
números são bastantes significativos, e sua conclusão é que as cartas representam importante recurso
para evitar o cárcere em São João del Rei sobretudo no que dizia respeito às querelas.

120
As solicitações para citar e demandar indicam caminho semelhante, ainda
que se observe uma brutal diminuição das mesmas ao longo do período analisado.
Eram casos ligados sobretudo a cobranças rápidas de dívida quando o acusado se
encontrava na prisão – não raro exatamente por crimes financeiros -, em que pa-
recia ser tradicional valer-se de um instrumento extrajudicial. É exatamente como
aparece na petição de Jose Francisco Vaz, por cabeça de sua mulher que era herdeira
do falecido pai, para citar Antonio José Ribeiro Barboza, em 1793:

[…] e como o suplicado sendo homem rico e estando a meses preso, não cuida
em fazer a dita reposição talvez, maliciosamente, afim de q não seja citado,
pelos suplicantes e outros herdeiros em quanto existe na prisão, a vista do
q parece q a dezobedinecia e contumacia do suplicado pelo qual existe, e
existirá na prisão não deve prejudicar ao direito e ação q contra elle tome.18

Caso em que a suplicante acusava seu devedor, um homem rico, de agir mali-
ciosamente para não ser citado a pagar.
As petições para apelar e/ou agravar da causa, em número especialmente
significativo, muitas vezes alegavam haver perdido o prazo para a interposição do
recurso (que, no caso da apelação, era muito mais estrito), mas também estavam
na chave de solicitar algum direito que uma autoridade inferior não reconhecera.
O que não é nenhuma novidade, já que os recursos de apelação eram efetivamente
aqueles que iam contra decisão de um juiz inferior. Ainda que, em muitas vezes,
fosse alegado perda de prazo ou erro de procedimento de algum dos envolvidos, o
fato é que muitas delas mencionavam direitos que poderiam ter sido negligenciados
anteriormente. Citamos, como exemplo, o caso de dois escravos que solicitavam
ao Tribunal da Relação a anulação de uma apelação feita pelo seu pai contra os
mesmos, em São Paulo.19 Ambos alegavam que, tendo recorrido judicialmente pela
sua liberdade, haviam sido vitoriosos na primeira sentença, mas o pai conseguira
reverter a decisão na 2ª. instância local (ao que se entende que ambos eram filhos
do senhor com uma sua escrava). Com a morte do pai, solicitavam a anulação des-
ta apelação (restitutio in integrum) e o encaminhamento dos autos para a Relação,
alegando estarem postos em “cruel cativeiro” como “pobres, rústicos e miseráveis”
que seriam.20 A petição revela como, mesmo estando no âmbito de um processo, a
petição chegava à Mesa e fora concedida.
Entre as categorias menos recorrentes, mas sem deixar de serem significativas,
estavam os pedidos de petição contra erros de autoridades, ou sejam irregularidades
e queixas contra diversas autoridades que não apenas judiciais. O interessante aqui
é que, na época, estas poderiam tomar outras vias - como seguir ao governo da pro-
víncia e mesmo ao Conselho Ultramarino. Para todo o período, contabilizavam um
total de 75 que chega a ser um número significativo, se pensamos que não se trata-
vam dos casos ordinários. E vale igualmente notar que essas denúncias poderiam
aparecer no Tribunal na forma de pedidos de cartas de seguros por parte daqueles
18  anrj-tdp, Livro 11, fl, 181v. que eram acusados por erros de ofício, ou que passassem por correição. Encontramos
19  anrj-tdp, Livro 4, fl. 19v-20. 50 casos destes - entre escrivães, tabeliães e mesmo meirinhos - que solicitaram as
20  Na época, a condição de “rústico” e/ou
“miserável” era entendida como um direito ditas cartas após sofrerem acusações de crimes no exercício de seus cargos. Assim
à proteção. hespanha, 2010. solicitava sua carta o bacharel formado, Alberto Luis Pereyra, no exercício da fun-

121
ção de procurador da companhia do contrato dos Diamantes, movido por acusação
debret, Jean-Baptiste. Oficial da Corte
feita pelo ouvidor geral da comarca de Serro Frio e do intendente dos diamantes indo ao Palácio.
da mesma comarca, em 1753.21 Também o advogado Francisco da Sylva Ascoly, que Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa
solicitava carta de seguro pela culpa que se lhe imputava na devassa Janeirinha, por do. Debret e o Brasil: obra completa: 1816-
1831. 3. ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013.
erros de ofício na Vila de Santo Antonio de Sá, em 1766. Juízes e órfãos e vereadores p. 255.
também eram, entre outros, aqui suplicantes para se livrarem da prisão.
As petições intituladas por provas de direito comum eram sumamente interes-
santes e dizem muito sobre a forma como operava a justiça neste universo. Eram
elas pedidos de reconhecimento de provas por parte do Tribunal para que uma
acusação pudesse seguir adiante. Nos casos aqui analisados elas aparecerem majo-
ritariamente solicitadas para conflitos que se referem à cobrança de dívidas. Ainda
que uma e outra pudessem dar origem a processos ordinários, a opção pela aprova-
ção de uma provisão pela Mesa claramente significava a busca por uma resolução
mais rápida. Mais uma vez, confirma-se o papel destas provisões e cartas na busca
por ações de amparo, com maior celeridade, na medida em que os indivíduos se
sentissem agraviados.
Finalmente, parece-nos fundamental fazer uma reflexão sobre aqueles que,
afinal, solicitavam estas cartas e provisões, sabendo que as mesmas tinham um
custo financeiro para os que a solicitavam (em termos comparativos, muito menor 21  Livro 1, 1753, p. 33-33v.

122
do que se poderia gastar com processos ordinários). Pelas informações que temos de
seus demandantes, é muito difícil traçar um preciso perfil social dos mesmos; no
entanto, muitas aferições podem ser feitas pelos tipos das causas. Primeiramente,
que foi comum, nos casos que envolviam bens, tratarem-se de pequenas ou médias
posses, e de suplicantes de mediana ou mesmo baixa condição econômica (em que,
por vezes, alegava-se inclusive pobreza dos demandantes). Situações triviais que
envolviam bens corriqueiros, que iam desde o furto ou auxílio na fuga escravos,
extravio de madeiras, roubo de cavalo ou de vacas, demolição de casas, conflito por
venda de terras, queima de propriedade, galinhas, entre outros. No mesmo sentido,
uma das justificativas frequentes para se solicitar a saída da prisão, ou mesmo o não
encarceramento, eram os inconvenientes e prejuízos que a prisão poderia causar
aos negócios dos demandantes.
Este foi exatamente o caso relatado por João da Fonseca que, em 1761, na cidade
do Rio de Janeiro, encontrava-se preso por querela movida por Ignacia de Mora e
seus escravos contra ele.22 Acusavam-no de ter roubado uma negrinha crioula, filha
de uma sua escrava, ao que ele se defendia alegando havê-la comprado. Solicitava
ele ao Tribunal um alvará de fiança (para o qual pagava 50 mil réis), alegando não
apenas ser inocente, mas os graves prejuízos econômicos que teria por ser sapateiro.
Obviamente que se deve ler com cuidado tal justificativa, no que toca às diferenças
de status quo, dado que havia pedidos diferentes desse. Veja-se o caso de Antonio
Bernardo dos Santos que, em Minas Gerais, solicitava igualmente um alvará de
fiança (para o qual pagava 200 mil réis), dizendo ser vítima de acusações falsas
por ferimentos provocados após um tiro que haveria recebido.23 Utilizava a mesma
justificativa de irreparável prejuízo, mas ele era proprietário de uma fábrica, onde
citava possuir 30 escravos.
No caso das cartas de seguro, muitas delas tratam de acusações de ferimentos,
bofetadas, ou agressões, em menor número mortes, mas também assuadas (desordens,
algumas mesmo com poucos envolvidos), injúrias, adultérios e, mesmo, deflora-
mentos. Ações criminais as mais variadas, incluindo de menor e maior gravidade,
se podemos dizer assim. No tocante às posses envolvidas, é significativo como as
acusações para as quais se solicitavam livrar-se da prisão se referiam a médios ou
pequenas bens, dando a perceber como disputas corriqueiras eram denunciadas e
envolviam normalmente a prisão de alguém. Casos de fraude também poderiam
ser denunciados, como fez Domingos Antonio Gomes, acusando Joze de Mendonsa
Dormundi, no Juízo da Provedoria Real, de ter “cortado e fabricado taboas de tapi-
nhoens [tapinhoã] para venderem”.24 Ou mesmo outra em que se diz em que “João
Teixeira de Carvalho e outros seus feitores” se defendem de uma devassa de assuada
por terem ocupado “uns matos para plantar de milho”, conforme requereu o capitão
Paulo Mendy Capelo no Juízo ordinário da Vila do Caito, Comarca do Sabará, em
Minas Geais.25 Por mais que se pudesse dizer que os primeiros fossem pessoas que
serviam a interesses de outros com posses, o fato é que uma devassa fora aberta
contra eles, exigindo a prorrogação do seguro.
A abrangência social também pode ser medida pelos que aparecem como supli-
cantes ou mesmo querelantes/denunciantes do caso. Neste sentido, é muito signifi-
22  anrj-tdp, v. 3, fl. 198-198v.
23  anrj-tdp, v. 3, fl. 258v-259v. cativo que apareçam uma diversidade de agentes, entre eles muitos escravos, pretos
24  anrj-tdp, Livro 9, 1791, fl. 236. e pardos forros. Mas há que se distinguir as posições em que estes aparecem para
25 anrj-tdp, Livro 4, 1766, fl. 34-34v. que faça sentido refletir o quanto as provisões estariam disponíveis para muitos ou

123
apenas para a manutenção do status quo. No caso especial dos escravos, quatro são
as situações em que estes aparecem. Uma primeira delas, eram as solicitações para
que se livrassem dos crimes de ferimentos e mesmo de mortes de outros escravos,
até defloramento de escravas. Embora se saiba do papel da violência doméstica neste
sentido, podemos afirmar que estes não são os mais recorrentes quando tratamos
das solicitações das cartas de seguro. Muito mais são os vários casos em que seus
senhores solicitam uma carta de seguro para si conjuntamente com seus escravos.
Este foi teor da petição abaixo, enviada em 1783, por Antonio Carvalho Galvão para
livrar-se de uma querela em que lhes acusavam de ferimentos:

Diz Antonio Podersozo de Carvalho Galvão, por si e como cabessa de seo escra-
vo Joaquim mulato, e tão bem como administrador dos escravos do Capitam
Jeroimo da Silva Pereira, Francisco e Pedro Benguelas, e Matheos Angola,
moradores no distrito da Vila de Sam Jose do Rio das Mortes, que contra
eles suplicantes deo huma querela Manoel Gonçalves de Araujo perante as
justiças da dita villa, com o falso fundamento de que lhe havido feito huns
ferimentos em seos escravos.26 (grifo nosso)

Mais eloquente ainda das possibilidade de uso da violência contra outrem


por meio da arregimentação de escravos são os casos em que havia denúncia de
desordem: este foi o caso do Coronel Joaquim Silverio dos Reys, que solicitava uma
carta de seguro para si, para outro coronel, para sua mulher e escravos, acusados
de uma “assuada.27 Não à toa, estes casos geralmente ocorriam quando se tratava de
violência física, ferimentos e espancamentos, além de desordens, que demonstram
as formas de uso da violência a partir do poder doméstico dos senhores, que não
apenas envolviam seus escravos, mas também mulher e filhos.28 Igualmente da ca-
pacidade de querelar-se diante da possibilidade de serem as cartas de seguro signos
apenas de impunidades (o que poderia igualmente valer igualmente para castigos
ou morte de escravos).
Mas deve-se tomar essa conclusão com cautela pelo que observamos a seguir.
Há vários escravos que conseguem provisões de cartas de seguro em situações
distintas. Se há algumas petições, como a citada acima, que foram feitas em nome
de seu senhor “por cabeça de seu escravo”, há outras, e não poucas, em que se cita
precisamente o nome do escravo ou escrava, sem indicar sequer o nome completo
do senhor ou senhora. Como se vê abaixo:

Sebastião escravo de Jose Francisco, que perante as justicas ordinarias de


Cabo frio, esta o suplicante livrandosse com a justiça, da culpa q lhe resultou

26 anrj-tdp, Livro 8, 1783, fl. 112


27 anrj-tdp, Livro 11, 1792, fl.47.
28  Veja-se este caso que o suplicante falava em nome de seus filhos e escravos, “Copia= Dizem
Francisco Pereira de saa, e Manoel Pereira de Saa, filhos de João Pereira de saa, e este por cabeça de
seso escravos Joze Angola, e outro Joze Angola, Joaquim Angola, Domingos Angola, Pedro Angola,
Manoel Crioulo, Antonio Angola, outro Domingos Angola, Custodio Crioulo, Jose Crioulo e angelo
Crioulo que no juiso da ouvidoria geral do crime se estão os suplicantes livrando com carta de seguro
da querela que delles deo João de Souza Coelho[...]”. (1790, fl. 270, livro 10).

124
da devaça a q se procedeo pelo ferim.to de Ignacio Jose Frz; Crioulo forro, e
como está findo.29

Embora ambos, escravos e senhores, pudessem almejar não estar na prisão,


nota-se um claro protagonismo dos primeiros na forma como está expressa em
petições como essa imediatamente acima. E se tivermos em conta que os regimes
de trabalhos dos escravizados pudessem ser distintas no campo e nas cidades (pen-
sando nas práticas de coartação e de ganho), tais dados podem ser muito reveladores
dessa ação social por justiça.
Neste sentido, um caso particular, parece-nos interessante para seguirmos na
discussão de quem tinhas seus direitos assegurados. No ano de 1761, Maria do Espí-
rito Santo e sua filha Leonor solicitaram um alvará de fiança ao Tribunal, negando
haverem espancado e ferido “umas escravas”.30 A acusação havia sido feita por uma
parda forra (liberta) que, ainda que não estivesse entre as agredidas, possivelmente
teria relações com estas. O caso não parecia ser novo. A senhora e sua filha con-
tavam na sua petição que ambas já haviam sido condenadas pecuniariamente por
um juiz local, e que, tendo apelado do Tribunal da Relação, não puderam seguir com
a causa. Também alegavam que não haviam sido inicialmente presas por tirarem
uma carta de seguro, a qual vencera (no sentido de caducar) precisamente agora. A
seu favor, diziam ser mulheres pobres que não tinham mais pessoas que uma filha
e uma neta para se sustentarem. Sendo um fato que as senhoras conseguiram sair
da prisão, não se pode negar a cultura que alimentava igualmente as ações da parda
em querelar com as mesmas.
No mesmo sentido, a quantidade de pretos e forros como suplicantes das cartas
de seguro também está longe de ser pequena. Vários eram os casos em que estes
estavam ou na posição de suplicantes das cartas, ou como querelantes, movendo
uma queixa ou ação contra alguém, ou como suplicantes para estarem livre da pri-
são, defendendo-se de uma acusação. Este foi o caso da parda forra Veronica Antonio
da Conceição que, moradora em Minas de Goiás, “esta a suplicante cuidando em
livrar-se da culpa que lhe arguiu Maria Baptista de Lima e sem embargo de toda a
deligência não tem sido possível”.31 Forros poderiam estar em ambas as posições,
e mesmo obter livramento da prisão em relação à acusação feita por outro forro;
colocando alguns problemas para a tese de que as cartas de seguro seriam primor-
dialmente instrumentos utilizados em nome da impunidade de grupos poderosos.
As cartas de seguro seriam extintas no início da década de 1830 e o Código
do Processo Criminal de Primeira Instância, de 1832, introduziu o recurso de ha-
beas corpus. No Império, pouquíssimas referências os doutrinadores como Pimenta
Bueno, com quem iniciamos este texto, faria a elas. Mas era notável que, para os
anos de 1827-1828, um levantamento que foi possível realizar nos livros do arquivo
do Tribunal da Relação de Pernambuco permitisse-nos levantar que de um total de
225 provisões aprovadas pelo mesmo, 38 (17%) ainda fossem pelas prorrogações das
29 anrj-tdp, Livro 13, RJ, fl. 17, livro 13. mesmas.32 Provenientes basicamente de querelas e devassas, muitas se referiam a
30 anrj-tdp, v. 3, fl. 386. casos de assuada (desordem) e agressões. Vale dizer que, em 1834, a Mesa que des-
31  anrj-tdp, Livro 11, 1794, fl. 205v.
pachara estas ações desapareceria com a reforma dos Tribunais da Relação então
32  Arquivo Público de Pernambuco,
Registros Diversos, r.d. 1/2: 1827-1828. promovida, bem como se promoveria um esvaziamento das funções extrajudiciais
dos mesmos. Não nos cabe aqui discutir o quanto o que veio depois foi mais ou

125
menos significativo do ponto de vista do reconhecimento dos direitos dos cidadãos
do Império, bem como de sua capilaridade social. Nossa intenção aqui foi apenas
recuperar sua complexidade e centralidade, bem como aspectos que parecem que
foram deixados de lado na passagem para o Império ou possam contribuir para seu
retrato de corpo inteiro.

4. Considerações finais

No seminal estudo sobre o Tribunal da Relação da Bahia, Stuart Schwartz, ao afir-


mar ser ele primordialmente uma instituição para maior controle e manutenção
dos domínios ultramarinos, tenda a minimizar o alcance e acesso à justiça, sobre-
tudo em regiões em que predominavam o poder dos potentados locais rurais. Sem
desvalorizar a imensa contribuição do autor, bem como negar a imensa desigual-
dade existente na sociedade colonial, a história que contamos aqui possibilita que
se problematize em parte tais afirmações mediante a discussão de outros espaços
e temporalidades distintas. Sobretudo, à luz de novas pesquisas que tem pautado a
análise sobre a cultura jurídica e sua imensa capilaridade nas camadas sociais, a
complexidade dos Tribunais e o padrão de justiça representado pelo rei que colocava
em disputa nos vários agentes sociais nos territórios e a possibilidade de proteção e
amparo a partir de sua própria desigualdade. Tudo indica que esta sociedade estava
longe de ser amorfa, e que seu alto grau de litigiosidade e de encaminhamento de
demandas eram fruto de uma ação por reconhecimento, não apenas de privilégios,
mas também por direitos. A questão dos abusos, da coerção, do universo dos des-
mandos, etc, devem ser vistos vis-à-vis à potente condição de peticionar como prática
amplamente vigente até o início do século xix, pelo menos.
O potente discurso que legitimaria os Estados nacionais ao longo do século xix
também auxiliaria na demonização do passado desta tradição que, como iniciamos
acima, teve muita transcendência no Brasil. Ainda que não seja nosso objeto aqui,
sua desconstrução permite que se revisite o tema da construção historiográfica
que condenou o mundo ibérico e ibero-americano à eterna periferia da história das
formas, discursos e práticas políticas, como já vem demonstrando Jorge Canizares
(2008) para o caso da América espanhola. E Portugal e suas colônias como atraso,
tema que merece ser igualmente revisto.
No entanto, o espaço colonial tinha suas marcas. As repúblicas de governo
local, da mesma forma que no Velho Mundo, eram pautadas pelo reconhecimento
dos direitos dos súditos pelos monarcas em nome da ordem social e do status quo,
tecendo os fios que vinculavam um ao outro, mesmo com distâncias tão grandes. Na
América, as formas de trabalho compulsório aumentariam exponencialmente suas
contradições, como é notório no Brasil e sabido por todos. No entanto, o que nossa
análise parece escancarar é que os indivíduos que almejavam pela proteção estavam
longe de serem apenas de classes abastadas: nossas provisões significam que havia
espaço para atendimento de grupos sociais, medianos ou pobres, que poderiam ser
igualmente assistidos nas suas demandas mais corriqueiras. Talvez fossem estes os
que mais fortemente ajudassem a produzir o tecido colonial, um espaço de antítese
das rebeliões pela materialização de sua batalha por reconhecimento. Ilusão, alguém

126
poderia argumentar; mas não maior do que a do próprio Estado que nasceria poste-
riormente sob o discurso falaciosos de falar em nome de todos e todas.

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131
132
CAPÍTULO 5 - Entre pedidos, sedições e crises
políticas: a criação do Tribunal da Relação de
Pernambuco e seus primeiros desembargadores

Jeffrey Aislan de Souza Silva1

Na estrutura política do Império português, o rei possuía a suprema iurisdictio, ou


seja, o monarca era a fonte de toda a jurisdição. A justiça era um dos principais
elementos na relação entre os reis e seus vassalos, e o monarca estaria para con-
servar e manter o equilíbrio entre os poderes. (agüero, 2006, p. 36-38). Era função
do rei garantir justiça e paz, além de estabelecer lei geral para todo o reino. Como
mantenedor da justiça, sua função era garantir os direitos constituídos, seu papel
era “o de conservar, constituindo-se apenas como árbitro dos conflitos sociais e
garante dos equilíbrios estabelecidos”. (hespanha, 1994, p. 487-489).
A prática jurídica apresentava-se como interpretativa, com a missão de manter
a paz e dar a cada um “o que era seu”. Naquele momento, o direito era tido como
o orientador da “boa ordem” e praticamente toda a atividade política aparecia sub-
metida a ele. O direito assumia um papel constitucional que se impunha a todas
as esferas de poder. (barreto; hespanha, 1993, p. 124; slemian, 2004, p. 73). Dentro
dessa estrutura, e considerando a impossibilidade dos monarcas de dar conta de
toda a prática jurídica em seu território, tais funções foram concebidas a institui-
ções e indivíduos.
A estrutura jurídica implementada na América portuguesa, segundo o his-
toriador Nuno Camarinhas, foi caracterizada pela “continuidade e transposição” de
saberes e práticas aplicados no reino, visto que as jurisdições criadas e mantidas na
América Portuguesa, mesmo com adaptações, foram reproduções das que existiam
em Portugal (camarinhas, 2015, p. 110), e era composta de uma série de cargos exer-
cidos por homens, em sua maioria, formados em direito civil ou canônico, na Uni-
versidade de Coimbra. A jurisprudência dos Estados Ibéricos, em especial Portugal,
durante o período que denominamos Antigo Regime, era baseada em uma “justiça
1  Doutorando em História na
de juízes”. No exercício de suas funções na magistratura, esses indivíduos eram
Universidade Federal de Pernambuco. imbuídos de iurisdictio (jurisdição), que significava que tinham “o poder de dizer o
Graduado e Mestre em História
pela Universidade Federal Rural de
direito”. Tal estrutura de organização concebia o magistrado como “o bom julgador”,
Pernambuco. baseado na ideia moral do indivíduo virtuoso, e enquanto autoridades jurispruden-

133
tes, com poder de dizer o direito, eram responsáveis pela manutenção da justiça, da
prática da equidade e do bom desempenho das instituições. (slemian, 2004, p. 73).
Os magistrados, além de incutidos de iurisdictio, eram tidos como “os pruden-
tes”, exercendo funções como “produtores de saber social e político”, e “mediadores
de conflitos”. (hespanha, 1994, p. 502; Id., 2001, p. 1189; barreto; hespanha, 1993,
p. 130). Como intermediários na relação entre os súditos e os monarcas, além de
subordinados ao rei, eram representantes de sua autoridade, exerciam o poder de-
legado a eles em seu nome, suas atuações eram tidas como extensão da autoridade
e do poder do monarca. (hespanha, op. cit., p. 498-502).
Dentro desse processo de estrutura política e burocrática, os homens formados
e capacitados para exercer os cargos na magistratura passavam por um processo de
progressão nas carreiras. Tal caminho era caracterizado pela passagem por diversos
cargos na administração judiciária, quase sempre de maneira ascendente. Pode-
riam iniciar a carreira na administração de bens de órfãos, defuntos e ausentes, ou
instituições como provedorias, alfândegas, e depois responsáveis por administrar
territórios maiores, como vilas e comarcas.
Entre os cargos e as instituições responsáveis por administrar a justiça, im-
plementados tanto em Portugal quanto no espaço ultramarino, que englobava o
Brasil, além de territórios na África e na Ásia, houve o destaque para os cargos de
juízes ordinários,2 juízes de fora3 e os ouvidores.4 Após a experiência adquirida nos
cargos de nomeação régia – em geral de juízes de fora e ouvidores –, os magistrados

2  Oficiais de justiça escolhidos entre os “homens bons”, ou seja, os componentes das câmaras das
vilas da América portuguesa. Tinham competência jurídica e administrativa, mas não eram letrados,
ou seja, não tinham formação em direito civil ou canônico. Suas sentenças deveriam ser proferidas
sempre nas câmaras das vilas, com a presença dos demais vereadores. Em geral, tinham mandatos
estabelecidos por no máximo três anos, posteriormente substituídos por outro “homem bom”,
componente da mesma câmara. Suas competências e atuações jurídicas variavam de acordo com a
quantidade de habitantes existentes nas vilas e demais localidades que estavam sob sua jurisdição.
Os recursos das decisões desses magistrados, em geral, e quando possíveis, seguiam para os ouvidores
das comarcas ou os Tribunais da Relação (wehling; wehling, 2004, p. 49-70).
3  Magistrados letrados, formados em direito civil ou canônica pela Universidade de Coimbra,
nomeados pelas instituições régias para atuar na administração da justiça nas vilas da América
portuguesa. Tinham competências jurídicas e administrativas, sendo introduzidos na administração
colonial a partir da segunda metade do século xvii. No âmbito jurídico, atuavam nas questões civis e
criminais. Tinham competência para produzir devassas, como também proferir sentenças. No âmbito
administrativo, supervisionavam a aplicação das leis do reino pelas câmaras municipais, deveriam
impedir o abuso de poder de grupos abastados, controlar a atividade dos juízes almotacéis e impedir
a interferência do foro eclesiástico nos assuntos que eram de jurisdição régia (Ibid., p. 71-76).
4  Magistrados letrados, formados em direito civil ou canônico pela Universidade de Coimbra,
responsáveis pela administração da justiça em uma comarca – espaços com limites territoriais
determinados, compostos por vilas, cidades e julgados. O cargo de ouvidor de comarca foi introduzido
na América portuguesa no século xvii. Anteriormente, no século xvi, os donatários das capitanias
tinham poder para nomear os ouvidores que atuariam no território. Entre o século xvi e xvii também
existiu o cargo de ouvidor-geral do Brasil, lotado em Salvador, centro político do Brasil colonial,
mas que foi perdendo força, até ser definitivamente extinto pela coroa portuguesa. Com o passar
dos anos, e buscando ter um controle mais efetivo das questões jurídicas, o número de comarcas foi
aumentando, e consequentemente o número de ouvidores. Tinham competências civis e criminais,
podendo receber ações novas ou avocar processos que estivessem tramitando na alçada dos juízes
ordinários. Poderiam emitir sentença, como também proferir apelação, agravo e emitir cartas de seguro,
e deveriam fiscalizar o trabalho dos juízes ordinários. Muitos ouvidores, em especial na capitania
de Pernambuco, ocuparam funções administrativas em mesas de inspeção e instituições como as
Alfândegas. Entre as principais funções desses magistrados, estava a correição, que era a diligência
feita pelos ouvidores, com os demais oficiais de justiça. Ambos deveriam, anualmente, percorrer os
territórios que estavam sob sua supervisão, avaliando o “estado da justiça” e o funcionamento das
câmaras das vilas (Ibid., p. 77-84).

134
poderiam ser nomeados Desembargadores. Nessa função, poderiam tomar assento
em algum tribunal, seja em Portugal, no Brasil ou em Goa, na Ásia portuguesa.
Contudo, a historiografia tem mostrado, e na capitania de Pernambuco houve di-
versos exemplos, de magistrados que receberam nomeação de desembargador, antes
de tomar assento em um tribunal. Na estrutura de poder da América portuguesa,
ser nomeado Desembargador também era considerado uma ascensão social. O cargo
tinha caráter nobilitante.
Os tribunais no império português eram nomeados de Relação, implementadas
tanto no reino quanto no espaço ultramarino. Havia outros dois tribunais, com suas
estruturas reorganizadas no século xvi, reconhecidos como os graus mais altos de
ascensão na carreira da magistratura. O primeiro deles, a Casa de Suplicação, loca-
lizada em Lisboa, era responsável pelo recurso das decisões tomadas pelas Relações,
e, em geral, era o último grau de recurso das decisões jurídicas. A instituição tinha
vital importância no caráter jurisdicional do reino, visto que as decisões dadas pe-
los desembargadores da Casa de Suplicação produziam jurisprudência. (hespanha,
1994, p. 228-236; camarinhas, 2014, p. 223-241; Id., 2010, p. 72-77). Além da Casa de
Suplicação, havia o Desembargo do Paço, uma das principais instituições de cará-
ter jurisdicional do reino de Portugal, com funções bastante alargadas na prática
jurídica. Composta por um reduzido número de desembargadores, escolhidos pelo
monarca, era considerado o grau máximo de ascensão na carreira da magistratura.
O Desembargo do Paço tinha autonomia jurisdicional tanto para aconselhar o
monarca em decisões importantes na administração do império, resolver conflitos
entre as instituições e jurisdições, como também para exercer funções normativas e
reguladoras. Era diretamente responsável pelo recrutamento e inserção dos recém-
-formados em Coimbra, na carreira da magistratura. Os magistrados do Desembargo
do Paço também eram responsáveis por avaliar a atuação dos magistrados em suas
funções e decidir sobre a progressão de suas carreiras. O Desembargo do Paço de
Portugal foi composto, em sua maioria, por magistrados advindos da Universidade
de Coimbra, oriundos da atividade docente, além de magistrados que se destacaram
em funções administrativas e políticas. O contingente de desembargadores que atuou
na instituição nunca passou de no máximo doze, o que fazia com que a rotatividade,
entrada e consequentemente a saída de desembargadores, visto que o cargo era de
caráter vitalício, também fosse lenta (subtil, 1996).

1. Os Tribunais da Relação no Brasil

As Relações tinham estrutura administrativa semelhante à Casa de Suplicação de


Lisboa, e foram introduzidas na Colônia para administrar a justiça em nome do
rei, que era “seu presidente natural”. As decisões das Relações tinham o mesmo
caráter de uma decisão expedida pelo monarca, e o conteúdo das decisões jurídicas
dos desembargadores não poderia ser controlado por nenhuma outra instituição
na colônia, nem mesmo os governadores das capitanias. (hespanha, 2010, p. 64-65).
Na prática, o trabalho dos desembargadores nos tribunais era muito mais amplo do
que apenas julgar os agravos e as apelações dos súditos.

135
Ao longo do período colonial, as Relações operaram, também e principalmente
em funções de governo e regulação de instituições e indivíduos em cargos adminis-
trativos. Os desembargadores atuaram na administração, regulação e fiscalização de
instituições, como as alfândegas e provedorias das capitanias. Também foram cha-
mados a interferir na resolução de conflitos entre indivíduos que exerciam cargos
na administração colonial, regularam funções e eleições para cargos nas câmaras
das capitanias, e administraram a cadeia das vilas onde estavam instaladas. Con-
cediam prorrogação das cartas de seguro expedidas pelos magistrados e tinham a
prerrogativa de avocar para si processos criminais, retirando-os do foro de juízes
de fora e ouvidores.
Além dessas funções, os desembargadores das Relações eram constantemente
requisitados em busca de opiniões e soluções sobre os diversos aspectos e contextos
da administração colonial. Seja em se tratando de conflitos e regulação de terras,
na administração das aldeias de índios existentes nas capitanias e províncias, na
instalação ou extinção de instituições, no aumento de soldo dos militares e até mes-
mo opinando sobre as formas de condução das questões jurídicas, como processos
e a conduta de magistrados dos foros situados abaixo do tribunal. As opiniões e
proposições dos magistrados dos Tribunais da Relação eram apresentadas aos re-
quisitantes na forma de pareceres. No caso do Tribunal da Relação de Pernambuco,
a expedição de pareceres, despachados a pedido dos presidentes de província, con-
selho de governo e demais autoridades locais, foi um dos principais atributos dos
desembargadores do tribunal.
O ingresso dos Tribunais da Relação na América portuguesa iniciou-se em
1609, com a criação da Relação da Bahia na vila de São Salvador, capitania da Bahia.
O historiador Stuart Schwartz, pioneiro nos estudos sobre o Tribunal da Relação
da Bahia, defende que o tribunal foi criado com a intenção de aumentar o controle
da jurisdição real na Colônia. (schwartz, 2011, p. 27-40). Embora a Relação tenha
sido uma reivindicação dos colonos, devido à necessidade de um tribunal local para
julgar as apelações e agravos das causas ajuizadas e aos altos custos de se recorrer
aos tribunais existentes em Portugal, o autor reitera que ela veio para defender os
interesses da Coroa. Na prática, como o único tribunal existente na América por-
tuguesa, pelo menos até 1752, e graças a dificuldades administrativas e a falta de
pessoas qualificadas para os demais serviços judiciários, os desembargadores do
Tribunal da Relação da Bahia eram submetidos a um enorme volume de trabalho.
A dimensão das tarefas dos magistrados, como já apontamos, suplantava a esfera
jurídica, fazendo com que os magistrados atuassem em funções de governo e ad-
ministração. (Ibid., p. 197-287).
Schwartz, ainda na sua análise, mostra que, ao longo dos séculos xvii e xviii,
a insuficiência de magistrados sempre foi um ponto de reclamações. Além do vo-
lume de trabalho a que eram submetidos, em muitos momentos, os desembarga-
dores foram obrigados a realizar grandes deslocamentos em todo o território para
conduzir investigações especiais, concluindo que “juízes ausentes de Salvador em
investigações especiais, atribuições extras de natureza administrativa e um grande
número de casos à espera de julgamento combinavam para retardar o processo ju-

136
dicial”. Além da incidência de desembargadores doentes, passível de ser encontrado
em todo o período de funcionamento da instituição. (Ibid., p. 205).
Na segunda metade do século xviii, a descoberta do ouro nas Minas do centro-
-sul da Colônia provocou uma extensão da magistratura para o interior da América
portuguesa. Com o sucessivo crescimento econômico e populacional daquelas re-
giões e a exploração aurífera, a vila de São Sebastião do Rio de Janeiro recebeu um
novo Tribunal da Relação, instituído em 1752. Segundo Maria José e Arno Wehling,
a criação do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro está ligada primeiramente à
“sistemática reafirmação da autoridade régia”, que, para os autores – como também
para Schwartz – tinha sua definição a partir da alta burocracia portuguesa, onde a
justiça ocupava papel estratégico. Em segundo ponto, os autores argumentam que
a criação de um Tribunal para o centro e o sul da Colônia não era apenas o cumpri-
mento de uma reivindicação para aperfeiçoar a justiça na região mineradora, mas
um ato político e centralizador do Estado português. (wehling; wehling, 2004, p. 124).
Reafirmando muitas das conclusões tomadas por Schwartz, Maria José e Arno
Wehling argumentam que a responsabilidade dos Tribunais da Relação não se res-
tringia à questão judicial, alcançando também natureza política e administrativa.
A criação da Relação do Rio de Janeiro coincidiu com a mudança de orientação do
Estado português a partir do governo do Marquês de Pombal, caracterizada por
uma racionalização do Estado e, no campo jurídico, por uma tentativa de revisão
legislativa. (Ibid., p. 348).
Após a criação da Relação do Rio de Janeiro, o Tribunal da Relação da Bahia
ficou responsável por ser o tribunal apelativo das capitanias da Bahia, Sergipe,
Pernambuco e da comarca das Alagoas, além das capitanias da Paraíba, Ceará e
Rio Grande do Norte. Ao Norte, a jurisdição da Relação da Bahia tinha seu limite
nas capitanias do Piauí e Maranhão que, como a capitania do Pará e do Rio Negro,
tinham seus pleitos julgados diretamente pelos tribunais portugueses, pelo menos
até 1812, graças à criação da Relação do Maranhão. A Relação do Rio de Janeiro ti-
nha sua jurisdição estendida a todas as capitanias do sul da América portuguesa.
Após a vinda da família real para o Brasil, em 1808, houve um significativo
crescimento da malha administrativa e jurídica do território. Essa ampliação teve
a cidade do Rio de Janeiro, que se tornou eixo do império, como foco principal, mas
também foi vivenciada nas outras capitanias. O príncipe d. João, enquanto regente,
instituiu na nova capital do império significativa parte da estrutura administrativa
que existia em Lisboa. Foram instaladas no Rio de Janeiro instituições importantes
para a manutenção da estrutura administrativa e corporativa do império portu-
guês, como o Desembargo do Paço, a Mesa de Consciência e Ordem, a Intendência
Geral de Polícia e a elevação da Relação do Rio de Janeiro para o status de Casa de
Suplicação do Brasil.
Além dessas instituições, houve um acréscimo significativo de comarcas e
cargos de juízes de fora e ouvidores nas capitanias e vilas da América portugue-
sa. A capitania de Pernambuco, que possuía destaque entre as capitanias do norte,
não ficou afastada dos olhares e interesses do regente, assim como da ampliação
da estrutura burocrática. Houve aumento no número de comarcas e juízes de fora
foram instituídos, para melhorar a administração e a prática jurídica no território.

137
(wehling, 2007, 75-93). No bojo dessa ampliação administrativa, foi criado outro
Tribunal da Relação, instituído na vila de São Luís, Capitania do Maranhão, em 13
de maio de 1812. Considerando a argumentação já citada sobre a implementação
das Relações da Bahia e do Rio de Janeiro, pode-se pensar no interesse da coroa em
fortalecer o poder régio na localidade, especialmente por ser uma área afastada do
novo centro do poder.
Segundo a historiadora Isabele Mello, desde o final do século xviii, já havia
interesse por parte de agentes da administração ultramarina em criar outra Relação
na América portuguesa, embora sem precisar onde o novo tribunal seria instalado.
Após a chegada da corte e a elevação da Relação do Rio de Janeiro a Casa de Supli-
cação do Brasil, tentou-se alterar o “trâmite jurídico” das apelações e agravos que
partiam do Estado do Maranhão e Grão-Pará. Como mostramos acima, o Estado do
Maranhão e Grão-Pará não respondia à jurisdição das Relações da Bahia e do Rio
de Janeiro. Os pleitos dos súditos daquela região seguiam para serem analisados
diretamente pelos tribunais portugueses, contudo, após a invasão francesa ocorri-
da em Portugal, questão que motivou a vinda da família real para o Brasil, novas
medidas precisaram ser tomadas.
Para Isabele Mello, o Tribunal da Relação do Maranhão foi instituído pensando
não apenas nas solicitações dos súditos, mas na importância política e econômica
da região, visto que a localidade vinha passando por transformações econômicas e
políticas desde o período pombalino. A autora ainda considera que após a chegada da
família real, a região vinha sofrendo importantes ações diplomáticas com o território
da Guiana Francesa, tomando “nova importância para política imperial portuguesa”.
(mello, 2018, p. 96-98). A invasão francesa a Portugal deixou os súditos do Estado
do Grão-Pará e Maranhão em falta com a justiça régia. Com a impossibilidade de
comunicação com as instituições do reino, era imposta uma falta significativa em
acesso à justiça, para uma parte importante dos súditos do império. Instituir uma
Relação na localidade foi também uma reparação por parte da coroa, dando possibi-
lidade para a população continuar exercendo as prerrogativas de súditos, recorrendo
de seus pleitos jurídicos.

2. A Instalação do Tribunal da Relação de Pernambuco

A Relação de Pernambuco foi o último tribunal a ser instituído no Brasil pelo gover-
no português. Mas os pedidos para instalação de um tribunal que possibilitasse aos
pernambucanos autonomia em relação à jurisdição do Tribunal da Relação da Bahia,
iniciaram no século xvii. Segundo Stuart Schwartz, a açucarocracia pernambuca-
na não gostava da intromissão do tribunal da Bahia em seus assuntos. (schwartz,
2011, p. 188-191). Contudo, naquele momento, instalar um novo tribunal na América,
independentemente de onde fosse, não fazia parte dos planos da administração por-
tuguesa e, em 1654, uma decisão régia negou o pedido dos pernambucanos. Alguns
anos depois, em 1672, a Câmara da vila de Olinda voltou a solicitar a instalação
de um Tribunal da Relação em Pernambuco, assim como a criação de um governo
geral centrado na capitania, mostrando mais uma vez o interesse da população da
localidade em ter autonomia sobre o tribunal instalado na Bahia.

138
Os “homens bons” da câmara de Olinda argumentaram que era dificultoso
para os pernambucanos, assim como os moradores das capitanias da Paraíba, Ceará
e Rio Grande do Norte, recorrerem de seus pleitos na Relação da Bahia. A distância
e os custos para se deslocar para a Salvador, foram apontados como os principais
motivos. Além desses fatores, argumentaram que houve um aumento da crimina-
lidade e, consequentemente, de impunidade, visto que o ouvidor-geral da capitania
não tinha condições de administrar a justiça em um território tão amplo, como era
o espaço da comarca de Pernambuco. A solicitação, novamente, não foi atendida,
mesmo a administração régia reconhecendo que havia inconvenientes para aqueles
que almejavam apelar à Relação da Bahia. (caetano, 2018, 207-221; silva, 2019, 45-49).
Os pedidos para a instalação de uma Relação em Pernambuco reapareceram
pouco mais de 100 anos depois, dessa vez combinados entre as câmaras das princi-
pais vilas da capitania de Pernambuco. Entre os anos de 1795 e 1802, as câmaras das
vilas de Olinda, Recife, Igarassu e Sirinhaém enviaram pedidos a rainha d. Maria I,
solicitando a instalação de um Tribunal da Relação na capitania. Os pedidos estavam
amparados em argumentos semelhantes aos apresentados nas súplicas enviadas no
século xvii. Apontaram novamente a dificuldade de locomoção, seja por terra ou por
mar, e os altos custos da viagem para Salvador. Argumentaram que, muitas vezes,
pleiteantes precisavam se fixar na vila ou enviar procuradores, o que aumentava
os custos, fazendo com que a possibilidade de recorrer dos pleitos ficasse restrita à
parcela mais abastada da população e impedida aos mais pobres. Para os represen-
tantes das câmaras, uma Relação em Pernambuco promoveria mais tranquilidade
e felicidade à região, aumentaria a renda dos negócios locais e os desembargadores
poderiam fiscalizar melhor o trabalho dos demais magistrados da capitania, melho-
rando a prática da justiça na localidade. Os pedidos também eram afiançados pelo
ouvidor da comarca de Pernambuco, naquele momento o desembargador Antonio
Luís Pereira da Cunha, que almejava ser nomeado chanceler da Relação, caso ela
fosse instalada (caetano, 2018, 223-244; silva, 2019, p. 49-55).
Até o governador da capitania da Bahia, Fernando José de Portugal e Castro,
que também era um respeitado magistrado, tendo sido desembargador no Tribunal
da Relação do Porto, foi consultado sobre a criação de uma Relação em Pernam-
buco. Em outubro de 1799, Portugal e Castro argumentou que não havia necessidade
de uma Relação naquela localidade, e relativizou argumentos das câmaras de Pernambuco
em relação às distâncias e os custos daqueles que buscavam recursos jurídicos em
Salvador. Mas o principal motivo apontado foi que a criação de uma nova Relação,
além de ser muito penoso aos cofres portugueses, e que a colônia não tinha condição
de arcar com tais custos naquele momento, diminuiria o espaço de jurisdição e as
rendas da Relação da Bahia, que já havia perdido espaço de atuação e poder com a
instalação da Relação do Rio de Janeiro, em 1752.5
O príncipe d. João, regente no trono desde 1793, deixou a decisão sobre instalar
ou não a Relação a cargo do Conselho Ultramarino. Em decisões expedidas a partir
de 1802, o Conselho Ultramarino não autorizou a criação da Relação em Pernam-
5  AHU. Avulsos da Bahia. 02 de buco, argumentando que a medida não era necessária, além de muito custosa. En-
outubro de 1799, Caixa 215, Documento tendiam que algumas regiões passaram por significativos crescimentos econômicos
15113.
e populacionais, mas a instituição de juízes de fora, magistrados letrados enviados

139
pela coroa, em algumas vilas, seria o suficiente para melhorar a administração da
justiça no território.6
Como apontamos, a vinda da família real para o Brasil possibilitou um signi-
ficativo aumento da malha administrativa, em especial de comarcas e de magistra-
dos em cargos de juízes de fora e ouvidores, assim como a criação de novas vilas.
Aproveitando esse crescimento da estrutura administrativa, tanto das capitanias,
quanto das municipalidades, em 1810, o então governador da capitania de Pernam-
buco, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, enviou uma solicitação de instalação
de um Tribunal da Relação em Pernambuco.7
Mais uma vez o pedido não foi atendido. Contudo, a capitania de Pernambuco
foi acrescida de mais duas comarcas, o que trouxe dois novos magistrados para a
localidade, assim como foi instituído um juiz de fora na vila de Goiana, norte da
capitania. O aumento no número de comarcas, assim como de magistrados, mos-
tra-nos que a coroa estava preocupada com a administração da justiça em Pernam-
buco. (silva, 2020, 25-46). Mas procurou formas mais simples e menos onerosas aos
cofres do reino para resolver a questão da justiça. Como é possível inferir, instituir
um Tribunal da Relação era custoso para os cofres do reino, visto que, além dos
desembargadores, o tribunal era composto de uma série de cargos, fundamentais
para o funcionamento da instituição naquele contexto, como secretários, escrivães,
médicos, contadores, capelães, guardas, entre outros.
Alguns anos depois da solicitação enviada pelo governador Caetano Pinto de
Miranda Montenegro, Pernambuco foi palco de um dos principais movimentos de
contestação ao poder régio, a Revolução de 1817. O movimento, preparado por grupos
civis e militares, chegou a tomar o poder e instituir uma república na capitania.
Mas graças ao envio de militares do Rio de Janeiro e da Bahia, e contando também
com a ajuda de senhores de terra da capitania, que foram contrários à Revolução, o
movimento foi fortemente reprimido pela coroa. Alguns dos seus principais líderes,
entre eles clérigos, foram condenados a brutais suplícios e outros imediatamente
presos nos cárceres de Pernambuco e da Bahia. (leite, 1988).
No ano de 1817, o império português enfrentou eventos de contestação tanto
no Brasil, com a Revolução de 1817, quanto em Portugal, com a Conspiração Gomes
Freire. Esses eventos foram o prenúncio de uma insatisfação com um regime de
governo pautado na centralidade de poder na figura do monarca e na falta de ações
pautadas em ideias e valores liberais, já em voga em outros lugares. (schiavinatto,
1999, p. 65-91). Entre o final do século xviii e o início do século xix, movimentos
como a Independência dos Estados Unidos (1776), a Revolução Francesa (1789), a
instituição das Cortes e da Constituição de Cádiz na Espanha (1812) e do cresci-
mento de territórios independentes da Espanha na América, ambos os movimen-
tos pautados em ideias liberais e no estabelecimento de Constituições, ganharam
adeptos no império português.
Essas ideias, aliadas ao forte desgaste que era sentido pelos súditos residen-
tes em Portugal, que se sentiam órfãos e desprestigiados em termos econômicos 6  AHU. Avulsos de Pernambuco. 11 de
e políticos, com a longa permanência da família real no Brasil, produziram um julho de 1802, Caixa 234, Documento
15834.
movimento que instituiu o constitucionalismo em Portugal, iniciado na cidade do 7 APEJE. Fundo correspondência para
Porto, conhecido como Revolução Liberal do Porto (1820). O movimento, iniciado por a corte. 02 de julho de 1810. Códice 17.
p. 47-57.
civis, entre eles desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, além de comer-

140
ciantes e militares, logo recebeu adesão da maior parte da população de Portugal.
Posicionaram-se a favor da introdução de ideias liberais e sobre a produção de uma
Constituição para o império. Mas sem romper com o poder monárquico, mantendo
d. João no trono, naquele momento já coroado como d. João vi, desde que o monarca,
assim como os demais membros da família real, aceitassem se submeter à Consti-
tuição. (alexandre, 1993). A Constituição seria produzida por uma Assembleia que
exerceria o poder legislativo, composta por deputados eleitos em todas as partes do
Império, tanto em Portugal, quanto no Brasil e nos territórios portugueses na África.
A notícia da Revolução Liberal do Porto chegou no Rio de Janeiro em setembro
de 1820, e em Pernambuco em outubro daquele ano. Naquele momento, o governador
da capitania de Pernambuco, Luís do Rego Barreto, enfrentava uma rebelião na Ser-
ra do Rodeador, vila de Bonito, interior da capitania, que foi fortemente suprimida
pelas forças militares de Recife e Olinda. Somados a esses fatos, o governador tinha
inimigos em Pernambuco, pessoas tanto ligadas a importantes famílias quanto às
camadas médias e aos mais pobres, que eram contrárias à sua forma de conduzir
o governo. Aliado a esses fatores, no final daquele ano, uma conspiração inspirada
nas ideias que serviram de base para a Revolução Liberal do Porto, conduzida por
militares estabelecidos em Pernambuco, tinha a intenção de assassinar Luís do Rego
e livrar a capitania de sua tirania, pelo menos aos olhos de uma parcela da popula-
ção. (cabral, 2013). Mesmo descoberta a tempo e com uma investigação aberta para
descobrir e prender os conspiradores, o medo de que um movimento semelhante ao
sucedido em 1817 viesse ocorrer novamente ficou ainda mais forte. (Ibid., p. 143-151).
No Rio de Janeiro, as autoridades, em especial o ministro Tomás Antonio de
Villa Nova Portugal, principal ministro de d. João VI, correspondente e principal
interlocutor do governador Luís do Rego Barreto, tomava ciência dos eventos que
ocorriam tanto em Portugal quanto em Pernambuco. O avanço das ideias liberais
e constitucionais, assim como a adesão a essas ideias e conceitos no Brasil, espe-
cialmente após duas importantes províncias – Bahia e Pará – declararem apoio
às Cortes instituídas em Lisboa, expulsarem os governadores nomeados pelo rei,
e instituírem uma Junta Governativa, entrava no rol de preocupações do monar-
ca, dos ministros e dos aliados mais próximos ao rei. (neves, 2003; schiavinatto,
1999; lima, 2006).
Foi nesse contexto que o rei d. João vi, em 6 de fevereiro de 1821, expediu
um alvará régio instituindo um Tribunal da Relação na capitania de Pernambuco.
No dito alvará, o rei afirmou atender a uma solicitação da câmara de Olinda, devi-
do às dificuldades de se recorrer ao Tribunal da Relação da Bahia, considerando as
grandes distâncias, avultadas despesas, interrupção de trabalhos indispensáveis e
demais inconvenientes. Alegando ser

um dos primeiros objetos dos Meus Paternais Cuidados remover os embara-


ços que possam retardar ou estorvar aos meus fieis vassalos os recursos que
8  Coleção Leis do Brasil. Alvará de 06 lhes permitem as Leis na Administração da Justiça, e que lhes afiançam a
de fevereiro de 1821, Parte II. Rio de segurança pessoal, e a dos sagrados direitos de propriedade, que muito desejo
Janeiro - RJ. Imprensa Nacional, 1889,
p. 04-05. manter, como a mais segura base da sociedade civil.8

141
Como nos disse o historiador do direito António Manuel Hespanha, é neces-
sário sempre desconfiar das fontes, buscar os sentidos que não estão expostos. A
instalação da Relação de Pernambuco não pode ser interpretada apenas como um ato
de benevolência do monarca para com os súditos da capitania de Pernambuco. Como
já apontaram os estudos sobre as Relações já instituídas na América portuguesa, os
tribunais eram representantes da coroa, instituídas para fortalecer os interesses da
administração portuguesa. Os desembargadores, como magistrados que exerciam a
justiça em nome do monarca, eram os representantes do poder régio nas localidades.
Melhorar a prática da administração da justiça era um elemento importante e
uma preocupação para a coroa. Como também apontou Felipe Caetano, a instalação
da nova Relação pode ser entendida como uma forma de reatar e fortalecer laços
com os pernambucanos e demais moradores das capitanias do norte, fortemente
abalados graças aos eventos vivenciados na Revolução de 1817. Mas a necessidade
de observar e estar a par das ações dos pernambucanos era latente, além do que a
administração e o governo da justiça, como já apontamos, era apenas uma dentre
as funções que eram realizadas pelos Tribunais das Relações. Na conjuntura de
crise política que a instituição foi implementada, a decisão de instituir a Relação
de Pernambuco também foi um projeto pensando no futuro do império português.
Dito isso, adensar a malha administrativa da América portuguesa com a criação
do novo Tribunal seria uma forma de colocar magistrados, funcionários da coroa,
para aumentar a vigília sobre um território que já havia dado sucessivas mostras de
descontentamento com o regime monárquico. O tribunal seria uma forma de manter
o olhar da administração régia sobre um território que já havia se insurgido contra
os valores monárquicos vinculados ao Antigo Regime.
No alvará expedido, D. João reafirmou o caráter corporativo e jurisdicionalista
da monarquia portuguesa, enquanto introduziu termos como direito de propriedade,
segurança pessoal e sociedade civil, já comuns na linguagem política do liberalis-
mo e do constitucionalismo, que começaram a aparecer no império após a eclosão
da Revolução do Porto. A Relação de Pernambuco teve o mesmo Regimento dado à
Relação do Maranhão, criada em 1812, na Vila de São Luís. O espaço de jurisdição
da Relação de Pernambuco compreendia, inicialmente, as comarcas da província de
Pernambuco – Olinda, Recife e Sertão – e as comarcas das províncias da Paraíba,
Rio Grande do Norte e Ceará. A instituição teria a mesma graduação e alçada das
Relações já instaladas no Brasil e, como as demais, seria presidida pelo Governador
da Província de Pernambuco, além de composta pelo desembargador chanceler e o
mesmo número de desembargadores e oficiais que tinha a Relação do Maranhão.9

3. Ser desembargador no Império português: os primeiros magistrados


nomeados para a Relação de Pernambuco

Os Tribunais das Relações eram instituições compostas por diversos cargos, mas
os principais atores eram os desembargadores. O alvará expedido pelo monarca
impôs que, para exercer o cargo de desembargador na Relação de Pernambuco, os

9  Coleção Leis do Brasil. Alvará de 06 de fevereiro de 1821, Parte II. Rio de Janeiro - RJ. Imprensa
Nacional, 1889, p. 04-05.

142
magistrados nomeados deveriam ser bacharéis formados em leis ou cânones, servi-
dos em lugares de segunda entrância. O que significava que deveriam, no mínimo,
ter exercido a função da magistratura em vilas que fossem cabeça de comarca.10
O governador e os desembargadores teriam os mesmos emolumentos, vencimen-
tos, propinas e ajudas de custos que os magistrados da Relação Maranhense, suas
apelações e agravos seriam enviados para a Casa de Suplicação do Rio de Janeiro.11
O contexto político em que o Tribunal da Relação de Pernambuco foi criado e
consequentemente instalado – a crise do Antigo Regime no império português e o
processo de independência do Brasil, foram fortes condicionantes para demora do
início dos trabalhos do Tribunal. Os eventos que emergiram nesse momento, não
por acaso, obrigaram a família real e as instituições responsáveis pela escolha e
nomeação dos magistrados, como o Desembargo do Paço, a se preocuparem com a
crescente demanda dos movimentos políticos que despontavam no Brasil, grande
parte deles favoráveis ao projeto liberal português.
As Cortes de Lisboa passaram a exigir a volta da família real para Portugal, que
deveria assim retomar o seu lugar como sede da monarquia. D. João VI, com a maior
parte da família real, retornou a Portugal. Partiu do Rio de Janeiro em 21 de abril
de 1821, deixando o príncipe herdeiro da coroa d. Pedro como regente do Brasil, que
já carregava o status de Reino Unido a Portugal e Algarve desde dezembro de 1815.
Após a volta do rei para a Europa, coube a d. Pedro seguir com os encaminhamen-
tos políticos e administrativos para a instalação do Tribunal, como a nomeação de
alguns desembargadores e do corpo de funcionários que iria compor a instituição.
Os primeiros magistrados nomeados para tomar assento na Relação de Per-
nambuco foram os desembargadores Lucas Antonio Monteiro de Barros, Antonio José
Osório de Pina Leitão, João Evangelista de Faria Lobato e Francisco Affonso Ferreira,
e os ouvidores Eusébio de Queirós Coutinho da Silva, Bernardo José da Gama e João
Ferreira Sarmento Pimentel. Com exceção de Monteiro de Barros, desembargador
da Casa de Suplicação do Rio de Janeiro, e João Evangelista de Faria Lobato, desem-
bargador da Relação da Bahia, que foram nomeados pelo rei no mesmo dia em que
a Relação foi instituída (6 de fevereiro), os demais magistrados foram investidos
nos cargos em nome do monarca, mas por alvará assinado pelo príncipe regente d.
Pedro, futuro imperador.
O regimento do Tribunal da Relação do Maranhão, que também valeria para
a Relação de Pernambuco, estabelecia que o Chanceler da Relação, cargo dado ao
desembargador Lucas Antonio Monteiro de Barros, teria um ordenado de 700$000
anuais, acrescido de 600$000 em propinas, pagas pelos cofres da Relação. Os demais
desembargadores teriam ordenado de 600$000, acrescido de propinas de 300$000,
também pagos pelos cofres da Relação.12

10  Segundo Nuno Camarinhas, entrância designava o início da magistratura. Lugares de segunda
entrância eram as cidades ou vilas que eram cabeças de comarca, ou seja, a sede da comarca,
em geral, também era o lugar de morada e fixação do ouvidor. Os lugares de primeira entrância
eram denominados os lugares de Letras que não eram cabeça e sede de comarca. camarinhas. Os
desembargadores no Antigo Regime (1640-1820). In: subtil, José. Dicionário de Desembargadores
(1640-1834). Lisboa: Editora da Universidade Autónoma de Lisboa, 2010, p. 22.
11  Coleção Leis do Brasil. Alvará de 06 de fevereiro de 1821, Parte ii. Rio de Janeiro - rj. Imprensa
Nacional, 1889, p. 04-05.
12  Coleção Leis do Brasil. Regimento da Relação do Maranhão. Alvará de 13 de maio de 1812, Parte
I. Rio de Janeiro - RJ. Imprensa Nacional, 1889, p. 11-12.

143
Ser nomeado para um tribunal era o reconhecimento de uma trajetória no
campo da administração da justiça, assim como a formação de boas alianças, que
os ajudassem a tomar assento nessas instituições. O caminho para chegar a ocupar
tais postos era razoavelmente longo. O início da trajetória na magistratura come-
çava na formação universitária. Desde o século xvi, para ser inserido no serviço da
magistratura régia, havia a obrigatoriedade do curso de direito, que em Portugal era
oferecido pela Universidade de Coimbra. Segundo estudos feitos pelos historiadores
Nuno Camarinhas e José Subtil, a significativa maioria dos magistrados que atuaram
na administração da justiça em Portugal formaram-se em Coimbra. (camarinhas,
2010; subtil, 2010).
O curso de direito oferecido pela Universidade de Coimbra possuía duas espe-
cialidades: direito civil e direito canônico. Segundo o historiador Stuart Schwartz,
havia certa preferência pelo curso de direito canônico, pois “preparava os alunos
tanto para a burocracia civil como para a eclesiástica”. (schwartz, 2011, p. 78). Nuno
Camarinhas apontou que a predominância pela escolha do curso de direito canônico
na faculdade de direito de Coimbra durou até a década de 1760, quando foi suplantado
pelo curso de direito civil. (camarinhas, op. cit., p. 240).
Entre os magistrados nomeados para o tribunal da Relação de Pernambuco,
entre 1821 e 1840, 83% deles formaram-se em Leis. Apenas quatro desembargadores,
totalizando 8% desses magistrados, formaram-se em Cânones (silva, 2017, p. 06).13
Entre os magistrados nomeados para a Relação de Pernambuco entre 1821 e início de
1822, que conseguimos identificar a especialidade seguida, apenas o desembargador
Francisco Affonso Ferreira formou-se em cânones. Os demais escolheram o curso
de leis. Após a formação universitária, em geral, os formados que tivessem interesse
em adentrar no serviço da magistratura régia, “os lugares de Letras”, passavam por
um processo denominado “Leitura de Bacharéis”, conduzido pelo Desembargo do
Paço. Segundo Camarinhas, a Leitura de Bacharéis era “a forma mais simbólica que
os juristas de carreira” dispunham para marcar o território e ter o controle sobre
o campo. (camarinhas, op. cit., p. 253).
O exame consistia em algumas etapas. No primeiro momento, o requerente,
recém-formado com interesse em adentrar na magistratura, apresentava uma petição
ao rei, exibindo seu nome completo, idade, naturalidade, filiação e grau universitário
que possuía e o pedido para “se habilitar aos lugares de Letras”. Quando aprovado, o
processo era remetido ao local de naturalidade do requerente. O candidato aos lugares
de Letras indicava testemunhas que seriam inquiridas pelo ouvidor ou corregedor
da comarca de onde vivia. As testemunhas respondiam, sob juramento, perguntas
“previamente indicadas pelo Desembargo do Paço”. Em geral, as perguntas estavam
relacionadas ao passado da família do candidato, a condição social e econômica de sua
família, assim como os costumes apresentados pelo requerente e sua família.14 Após

13  Identificamos que um dos magistrados nomeados tinham formação nas duas especialidades, e quatro
deles, até o momento, não conseguimos identificar qual especialidade seguiram (silva, 2017, p. 06).
14  Entre as questões importantes que eram inqueridas no processo, havia destaque para os seguintes
pontos: 1a. Se o candidato, pais e avós maternos e paternos eram cristãos-velhos, ou seja, limpos de
sangue, sem ascendência moura, escrava ou judia; 2a. Se o candidato, seus pais e avós vivam “sob a
nobreza”, dependendo de suas próprias rendas e não tinham histórico de “ofício mecânico”; 3a. Se
o candidato e sua família apresentavam bons costumes e respeito aos preceitos da religião católica
(wehling; wehling, 2004, p. 253).

144
a inquirição das testemunhas, o magistrado nomeado para conduzir a acareação era
o responsável por dar despacho favorável ou contrário ao requerente, enviando seu
parecer ao Desembargo do Paço. Se o resultado fosse positivo, o candidato estaria apto
a prestar os exames conduzidos pelo tribunal. (wehling; wehling, 2004, p. 251-253).
O processo não era barato, visto que todas as custas, inclusive de deslocamento
do ouvidor e escrivães que inquiriam as testemunhas, ficava a cargo do candidato.
A parte final do exame consistia na realização de uma prova “com o tema indica-
do pelos examinadores”, que, em geral era sobre uma lei. Segundo Camarinhas, o
tema da prova era sobre o direito romano, perante um júri composto por desem-
bargadores. Caso aprovado, ficaria esperando sua primeira nomeação para um cargo
na magistratura, que poderia ser exercido no reino ou nas colônias ultramarinas.
(camarinhas, 2010, p. 258; wehling; wehling, op. cit., p. 253).
Entre os magistrados que conseguimos localizar informações sobre os exames
de leitura, podemos observar que o tempo entre a finalização do curso em Coimbra,
a realização do exame de Leitura de Bacharéis e a indicação ao primeiro cargo na
magistratura, não foi longo. O desembargador Lucas Antonio Monteiro de Barros,
natural de Vila Rica, capitania de Minas Gerais, nomeado Chanceler da Relação de
Pernambuco, formou-se em 1787, finalizou sua Leitura em 1789, tendo sua primeira
indicação a cargo de juiz de fora em 1790.15
O desembargador Eusébio de Queirós Coutinho da Silva, natural de São Paulo
de Luanda, na capitania de Angola, nomeado Procurador dos Feitos da Coroa e Fa-
zenda da Relação de Pernambuco, formou-se em Leis em junho de 1803, finalizou
sua leitura em março de 1804, tendo seu primeiro cargo na magistratura no ano
seguinte (1805), nomeado juiz de fora da vila de Benguela, em Angola.16
O desembargador Francisco Affonso Ferreira, natural da capitania de Pernam-
buco, concluiu o curso de cânones em 1799, finalizou sua leitura em 1801. Devido
à escassez e o estado da documentação, as trajetórias dos desembargadores estão
cobertas de lacunas. Embora não seja possível apontar o ano de sua primeira nome-
ação para cargo de Letras, em 1806, Affonso Ferreira estava tirando sua residência17
como juiz de fora na vila de Alfândega da Fé, em Portugal,18 o que pode significar
que a nomeação para um primeiro cargo ocorreu poucos anos depois da realização
de seu exame de Leitura de Bacharéis. O desembargador João Ferreira Sarmento
Pimentel, nascido em Portugal, formou-se em 1803, e realizou sua leitura em 1804.

15  Os dados foram colhidos na Base de Dados – Memorial de Ministros: letrados e lugares de
Letras. Portugal e Ultramar, 1620-1830. https://memorialdeministros.weebly.com/resultado-letrados.
html?cbResetParam=1&IDJuiz=4319. Acessado em: 05 de junho de 2020.
16  Memorial de Ministros: letrados e lugares de Letras. Portugal e Ultramar, 1620-1830. https://
memorialdeministros.weebly.com/resultado-letrados.html?cbResetParam=1&IDJuiz=3504. Acessado
em: 05 de junho de 2020.
17  Segundo Isabele Mello, a residência era um exame sobre os procedimentos e atuação dos funcionários
régios. Tinha intenção de averiguar a atuação de governadores, juízes de fora, ouvidores, no exercício
de suas funções. No caso específico dos juízes de fora e ouvidores, as residências eram tomadas por um
magistrado nomeado pelo Desembargo do Paço. O magistrado que estivesse passando pela sindicância
deveria ficar afastado da cabeça da comarca. O magistrado sindicante publicava um edital informando
o início da residência do ouvidor, e passava a receber testemunhas e analisar documentos sobre a
atuação do magistrado. Somente após a conclusão de sua residência, o magistrado poderia requerer
provimento em outros cargos (mello, 2015, p. 154-155).
18  Memorial de Ministros: letrados e lugares de Letras. Portugal e Ultramar, 1620-1830. https://
memorialdeministros.weebly.com/resultado-letrados.html?cbResetParam=1&IDJuiz=4999. Acessado
em: 05 de junho de 2020.

145
Mesmo com a impossibilidade de apontar o ano de sua primeira nomeação, em
1814 já estava assumindo um segundo posto,19 o que mostra que também começou
a carreira pouco depois da realização de sua leitura.
Não conseguimos localizar as Leituras de Bacharel de Bernardo José da Gama,
Antonio José Osório de Pina Leitão e João Evangelista de Faria Lobato. Gama era
natural da capitania de Pernambuco, formou-se em junho de 1807 e retornou ao
Brasil na mesma comitiva que trazia a família real e os demais súditos do reino,
que partiram de Lisboa em novembro de 1807, em sua migração para a América
portuguesa. No ano seguinte (1808), Gama recebeu sua primeira nomeação para o
cargo de juiz de fora da vila de São Luís, na capitania do Maranhão. Sobre Antonio
José Osório de Pina Leitão e João Evangelista de Faria Lobato, mesmo com lacunas
na documentação sobre suas trajetórias, identificamos significativo destaque na
experiência que possuíam em cargos na magistratura.
Segundo José Subtil “o provimento de lugares de magistratura” era uma mercê,
e não podia ser confundido como “um simples ato administrativo”.20 Alçar postos
melhores nos lugares de Letras, podendo chegar até os tribunais, era uma graça
atribuída de acordo com as ações e os merecimentos. Os magistrados poderiam “in-
vocar prerrogativas próprias do exercício de seus cargos para adquirirem contagens
de serviço e direitos adquiridos”,21 ou seja, poderiam requerer ascensão na carreira,
devido aos seus feitos na magistratura.
Nos alvarás expedidos tanto pelo rei, quanto pelo príncipe d. Pedro, nomean-
do os magistrados para os primeiros desembargadores para o Tribunal, o regente
e futuro imperador, argumentou que os magistrados estavam recebendo a mercê,
segundo “seus merecimentos e letras”. Como poderemos observar no quadro apre-
sentado abaixo, os desembargadores tiveram significativa trajetória na magistra-
tura em Portugal, no Brasil e na África portuguesa, o que nos mostra o interesse
da coroa em ter um corpo de desembargadores diverso e experiente tratando da
justiça em Pernambuco.
Ser nomeado para um tribunal não era apenas o resultado de uma trajetória
na magistratura. As conexões políticas e familiares, muitas vezes, mostravam-se
extremamente importantes para que alguns indivíduos chegassem até os tribunais
superiores. Para muitas famílias, em especial da América portuguesa, enviar um ou
mais filhos para os cursos jurídicos na Universidade de Coimbra era um projeto de
ascensão familiar, tanto político quanto econômico. Segundo Maria Beatriz Nizza,
na segunda metade do século xviii, especialmente após a reforma na Universidade
de Coimbra, iniciada em 1772, o envio de estudantes oriundos da capitania de Per-
nambuco para a instituição ficou atrás das capitanias da Bahia, Minas Gerais e Rio
de Janeiro. (nizza da silva, 2013, p. 44). Eduardo Santos Borges mostrou que, entre as
regiões do Império, Salvador era uma das localidades que mais enviava estudantes
para os bancos da Universidade. Em alguns momentos, havia mais alunos matri-
culados oriundos de Salvador do que cidades importantes do reino, como Lisboa e
Porto. (borges, 2017, p. 145).

19  Memorial de Ministros: letrados e lugares de Letras. Portugal e Ultramar, 1620-1830. https://
memorialdeministros.weebly.com/resultado-letrados.html?cbResetParam=1&IDJuiz=5147. Acessado
em: 05 de junho de 2020.
20 subtil. O Desembargo do Paço (1640-1834), p. 245.
21 subtil. O Desembargo do Paço (1640-1834), p. 246.

146
Quadro 01 – Primeiros desembargadores da Relação de Pernambuco22

Formação e
Local de
Magistrados Leitura de Cargos Exercidos na Magistratura
Nascimento
Bacharéis
1790 – Juiz de Fora da Alfandega da Fé – pt
1794 – Juiz de Fora de Ponta Delgado - pt
Antonio José
Bacharel em 1806 – Intendente do Ouro na Comarca do Rio das Mortes – mg
Osório de Pina Portugal
Direito 1809 – Desembargador da Relação da Bahia (Aposentado em 1818);
Leitão
1821 – Desembargador Ouvidor Geral do Crime na Relação de
Pernambuco.
1805 – Juiz de Fora de Benguela – Angola;
1808 – Ouvidor da Comarca de Angola;
1818 – Ouvidor da Comarca de Serro Frio - mg;
Eusébio de 1818 – Provedor dos Defuntos e Ausentes da Comarca de Serro
Leis – 1803
Queirós Coutinho Angola Frio - mg;
Leitura – 1804
da Silva 1818 – Desembargador da Relação da Bahia, mas servindo na
Comarca de Serro Frio;
1821 – Desembargador Procurador dos Feitos da Coroa e Fazenda
da Relação de Pernambuco.
1808 – Juiz de Fora na vila de São Luís – ma;
Bernardo José da 1815 – Ouvidor da comarca de Sabará – mg;
Pernambuco Leis – 1807
Gama 1818 – Juiz do Crime do Bairro da Rua Nova de Lisboa;
1821 – Desembargador Agravista da Relação de Pernambuco.
[?] – Juiz de Fora;
João Ferreira 1814 – Auditor de Brigada – pt;
Leis – 1803
Sarmento Portugal 1817 – Corregedor em Miranda – pt;
Leitura – 1804
Pimentel 1820 – Ouvidor de Sabará – mg;
1821 – Desembargador Ordinário da Relação de Pernambuco.
1808 – Juiz de Fora de Paracatu;
1815 – Juiz de Fora de Serro Frio;
João Evangelista Minas [?] – Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes;
Leis – 1788
de Faria Lobato Gerais [?] – Ouvidor da Comarca de São João Del Rei;
[?] – Desembargador da Relação da Bahia;
1821 – Desembargador da Relação de Pernambuco.
1790 – Juiz de Fora na Ilha de Santa Maria;
1796 – Juiz do Crime na Bahia;
Lucas Antonio
Minas Leis – 1787 1801 – Ouvidor em Vila Rica - mg;
Monteiro de
Gerais Leitura – 1789 1808 – Desembargador da Relação da Bahia;
Barros
1814 – Desembargador da Casa de Suplicação;
1821 – Chanceler da Relação de Pernambuco.
[?] – Juiz de Fora em Alfândega da Fé – pt;
1806 – Ouvidor da Comarca do Ceará;
Francisco Cânones – 1799
Pernambuco 1812 – Ouvidor da Comarca de Pernambuco;
Affonso Ferreira Leitura – 1801
1818 – Desembargador da Relação da Bahia;
1822 – Transferido para a Relação de Pernambuco.

22  Os dados do quadro foram colhidos em: subtil, José. Dicionário dos desembargadores (1640-1834). Lisboa: ediual, 2010; tribunal de justiça de
pernambuco. memorial da justiça. Livro de Compromissos e Posse do Tribunal da Relação de Pernambuco: (1822-1882). Recife: Tribunal de Justiça
de Pernambuco, 2005; Memorial de Ministros - https://memorialdeministros.weebly.com/. Site do Supremo Tribunal Federal - http://www.stf.
jus.br/portal/ministro/ministro.asp?periodo=stj.

147
Diferente da América espanhola, onde houve implementação de Universidades
desde o século xvi, o império português centralizou o ensino universitário e jurídi-
co em uma mesma Universidade, fixada desde meados do século xvi, na cidade de
Coimbra. A imposição de ir para o reino para poder cursar leis ou cânones obrigava
as famílias a despenderem gastos significativos com os parentes que eram enviados.
Embora não houvesse distinções rígidas que impedissem a entrada nos bancos da
Universidade, o que fez com que homens negros e pardos, mesmo poucos, pudessem
adentrar na instituição, a grande maioria era branca de famílias abastadas, ou de
magistrados com condições de custear os gastos com o curso e a fixação na cidade.
Paulo Cadena, ao analisar a trajetória de Pedro de Araújo Lima, futuro regen-
te do Império do Brasil e conselheiro do imperador d. Pedro ii, apontou os gastos
substantivos que seu pai Manoel de Araújo Lima, proprietário de engenhos na vila
de Sirinhaém, sul da capitania de Pernambuco, despendeu para a conclusão do
curso jurídico de seu filho. Como mostrou Cadena, havia substanciais gastos com
a viagem, moradia, alimentação, compra de materiais para estudos, livros e ainda
uma quantidade significativa de valores que eram pagos no andamento do curso,
especialmente para a obtenção dos graus almejados. (cadena, 2018, 79-91). Além do
processo de Leitura de Bacharéis que, como apontamos, era integralmente custeado
pelo indivíduo que pleiteasse a entrada na carreira de Letras. Diante dos argumentos
podemos perceber que, tanto para os nascidos no reino, mas especialmente para os
nascidos nas regiões ultramarinas, cursar a Universidade de Coimbra era bastante
custoso.
O investimento era justificado por causa do poder e do respeito dado a carreira
de magistrado, em especial para aqueles que chegavam à função de desembargador
nos tribunais superiores. Além de nobilitante, a função de magistrado era carregada
de grande capital simbólico e poder. O magistrado era uma persona publica e, graças
à forte comunicação entre direito e religião, comum no Antigo Regime, sua figura
estava inspirada na ideia de que o desempenho de sua função exigia condições,
qualidades e virtudes. (garriga, 2017, p. 132-135).
José Subtil, tratando especificamente do papel dos desembargadores no im-
pério português, chama atenção para a “importância nuclear” que tais indivíduos
tinham no contexto político do império. Como estavam nos tribunais superiores,
o autor aponta alguns aspectos importantes do poder dos desembargadores. Pri-
meiramente, o privilégio de interpretação e aplicação do direito, assim como dos
códigos, ordenações, leis, cartas régias e alvarás expedidos pelo monarca e demais
autoridades. Em segundo lugar, o controle que tinham sobre os tribunais superiores,
como as Relações, a Casa de Suplicação e o Desembargo do Paço. Em terceiro lugar,
o autor também destaca a capacidade de seleção e avaliação dos magistrados régios,
encarregados do governo da justiça, que estava nas mãos dos desembargadores do
Paço. (subtil, 2005, p. 254).
Subtil também chama a atenção para a capacidade de circulação que os de-
sembargadores tinham entre os tribunais e demais órgãos de governo, tanto no
reino quanto no ultramar. Os desembargadores, além de circularem pelos tribunais
em Portugal, no Brasil e em Goa, na Ásia portuguesa, estavam presentes em ins-
tituições importantes na administração do império, como o Conselho de Governo,
Conselho de Fazenda e Conselho Ultramarino. Nessas instituições, os magistrados

148
davam pareceres e tomavam assento em cargos e funções que suplantavam os
Tribunais da Relação. Por fim, o autor aponta para o capital político e cultural que
revestia os desembargadores, devido também, entre outras questões, à “ritualização
e cerimonial das práticas profissionais bem como o reconhecimento do prestígio
do cargo”. (Id., p. 254-255).
Alçar a função de desembargador era importante porque eles contribuíam para
“legitimar o monarca, ordenar e orientar suas opções de governo”. Esses magistra-
dos constituíam o que Subtil chamou de “um governo de togados”, responsáveis por
cumprir “a função mais nobre do príncipe”. O modelo político do Antigo Regime,
baseado na ideia de uma ordem cosmológica que regulava a todos e a vontade dos
homens, conferia aos desembargadores capitais políticos, sociais e simbólicos, que
“os asseguravam dignidade e respeito a suas funções”. (Id., p. 255-256).
O desembargador Antonio José Osório de Pina Leitão, nascido em Portugal, foi
o magistrado com mais experiência em atuação nos Tribunais Superiores portu-
gueses, entre os primeiros magistrados nomeados para a Relação de Pernambuco.
Adentrou na Relação da Bahia em 1809, e aposentou-se no mesmo tribunal em 1818.
Após a Revolução Pernambucana de 1817, foi citado pelo Intendente de Polícia do
Rio de Janeiro Paulo Fernandes Viana, como um
dos magistrados de “mais avantajadas ideias” da-
quela Relação.23 Segundo o alvará expedido pelo
príncipe d. Pedro, Pina Leitão foi reinserido na
magistratura graças aos “desejos que ele lhe ma-
nifestou de entrar outra vez no Real serviço”. Em
decreto expedido em 23 de fevereiro de 1821, Pina
Leitão foi nomeado Ouvidor Geral do Crime da
Relação de Pernambuco, para “servir em tempo
de seis anos” ou quanto mais, enquanto não fosse
decidido o contrário.24
Embora tenhamos poucas informações so-
bre sua trajetória na magistratura, desponta um
elemento muito interessante de sua vida – sua
carreira como tradutor e poeta. Traduziu obras
clássicas, como as Georgicas de Virgílio, além de
escrever elegias e odes, como a elegia ao príncipe
d. José, filho da rainha d. Maria i, falecido em
1788, e a ode ao rei d. João vi, devido à sua acla-
mação e coroação em 1818. Sua maior obra, como
também a mais conhecida, foi a “Alfonsíada: Poema
heroico da fundação da Monarchia Portugueza pelo sr.
Rei D. Affonso Henriques”, e oferecida ao rei d. João vi.

Figura 1 – Desembargador Antonio José


Osório de Pina Leitão 23  bn – Documentos Históricos, Revolução de 1817, v. CII, 06 de julho de 1817, p. 24-26.
Fonte: J. J. de Souza. Retrato (busto) de 24  apeje. Nomeação do Desembargador Antonio José Osório de Pina Leitão – 09 de abril de 1821.
Antonio José Osório de Pina Leitão, 1818. Registros Provinciais n. 15, p. 221-222. O ouvidor-geral do crime recebia ações criminais novas ou
https:/www.csarmento.uminho.pt/site/s/ recursos de sentença. Tinha a capacidade de avocar para si, processos em primeira instância, num
sms/item/5228#?c=0&m=0&s=0&cv= raio de quinze léguas, especialmente quando os processos eram graves e admitiam pena de morte
0&xywh=236%2C20%2C828%2C378. natural ou civil (wehling; wehling, 2004, p. 150).

149
Outro magistrado nascido em Portugal foi o desembargador João Ferreira
Sarmento Pimentel. Chegou à Relação de Pernambuco como desembargador ordi-
nário dos agravos e apelações,25 nomeado em 13 de maio de 1821, “atendendo a seu
merecimento e letras”,26 após ampla experiência na magistratura. Ocupou os cargos
de juiz de fora, corregedor e ouvidor na comarca de Sabará, na capitania das Minas
Gerais, como mostramos no quadro acima. Em sua leitura de bacharel, é apontado
que Sarmento Pimentel era membro de uma das principais famílias da região onde
tinha nascido, a província de Trás dos Montes, e descendia, tanto do lado materno
quanto paterno, de “outras [famílias] de igual nobreza”, e sem “crimes que o impe-
çam” de assumir lugares no serviço régio.27
Entre os desembargadores, dois deles eram naturais da capitania de Minas
Gerais, que estava entre as localidades do império ultramarino que mais enviou
estudantes para Coimbra. O primeiro deles foi o desembargador João Evangelista
de Faria Lobato, nomeado Ouvidor Geral do Cível da Relação de Pernambuco.28 Era
desembargador da Relação da Bahia, tendo sido nomeado no ano anterior (1820).
Embora saibamos pouco sobre sua trajetória, entre os desembargadores nomeados
era o que possuía mais experiência em lugares de Letras, tendo passado por dois
postos de juiz de fora, nas vilas de Paracatu e Serro Frio, e dois postos de ouvidor, na
comarca de Rio das Mortes e São João Del Rei, todos na capitania de Minas Gerais.
O desembargador Lucas Antonio Monteiro de Barros, foi o outro magistrado
natural da capitania de Minas Gerais. Tomou assento como Chanceler da Relação
de Pernambuco.29 Monteiro de Barros vinha de uma família de posses e destaque
político nas Minas Gerais. Em sua Leitura de Bacharel, é apontado que sua família
é honrada, descente e que vive de suas próprias fazendas.30 O magistrado também
tinha larga experiência na magistratura. Foi nomeado no mesmo dia em que foi
expedido o alvará de criação do tribunal (6 de fevereiro de 1821). Sua nomeação para
o principal cargo do tribunal foi o resultado de uma trajetória ascendente que havia
começado ainda no final do século xviii, como juiz de fora, chegando a desembar-

25  Os desembargadores dos Agravos e apelações tinham competência civil e criminal, e deveriam
ter conhecimento das decisões expedidas pelos ouvidores gerais do civil e do crime, assim como de
todas as apelações e sentenças expedidas pelos juízes na área de jurisdição do tribunal. Cabia a eles
os despachos ordinários dos agravos e das apelações das sentenças definitivas e interlocutórias em
alçadas de bens móveis e de raiz. Contudo, dentro dos tribunais, os agravos e apelações das causas
crimes, da chancelaria e dos feitos da coroa e fazenda eram privativos dos desembargadores destas
respectivas matérias (ibid., p. 148-150).
26  apeje. Nomeação do Desembargador João Ferreira Sarmento Pimentel – 13 de maio de 1821.
Registros Provinciais n. 15, p. 236-237.
27  Processo de Leitura de Bacharel de João Ferreira Sarmento Pimentel. Arquivo Nacional da Torre
do Tombo. Fundo Desembargo do Paço. Habilitação de Leitura de Bacharéis, Letras I/J, Maço 68, n.
31, 1804, f. 05.
28  O ouvidor Geral do Cível era o magistrado responsável por conhecer, por ações novas, os feitos
de sua área, mas não podiam avocar processos para si, como ocorria com o Ouvidor Geral do Crime.
Também eram os responsáveis pelas causas dos prelados, viúvas e miseráveis. (wehling; wehling,
2004, p. 151).
29  O Chanceler era o presidente do Tribunal, contendo assim “certa proeminência hierárquica”.
Tinha competência sobre as cartas e sentenças expedidas pelos desembargadores e deveria conhecer
as suspeições que existiam contra os demais magistrados, e por apelação, tinha de conhecer todas as
causas interpostas ao tribunal. Também era o juiz responsável pela Chancelaria da Relação, contendo
assim funções administrativas e a corregedoria dos tribunais. (Ibid., p. 148-149).
30  Processo de Leitura de Bacharel de Lucas Antonio Monteiro de Barros. Arquivo Nacional da
Torre do Tombo. Fundo Desembargo do Paço. Habilitação de Leitura de Bacharéis, Letras L, Maço 15,
n. 06, 1789, f. 07.

150
gador da Relação da Bahia em 1808, e à Casa de Suplicação do Brasil em 1814, como
mostra o quadro acima. Em 12 de outubro de 1819 foi agraciado com a nomeação de
Superintendente Geral dos Contrabandos e, no dia 21 do mesmo mês, recebeu outra
nomeação para o cargo de Juiz Conservador da Companhia de Vinhos do Alto Dou-
ro, em Portugal.31 Serviu na função de Superintendente Geral dos Contrabandos da
capitania do Rio de Janeiro, com beca de desembargador da Casa de Suplicação do
Brasil, até ser nomeado Chanceler da Relação de Pernambuco.
Seu pai Manoel José Monteiro de Barros, era filho de um minerador estabele-
cido há muito tempo na região das Minas Gerais. Ocupou os cargos de Guarda-mor
das minas de Vila Rica, além de capitão do regimento de cavalaria de milícias da
comarca do Rio das Mortes. Graças ao destaque político e econômico conquistado,
Manoel José conseguiu lançar os filhos em carreiras importantes, assim como con-
seguir bons casamentos para as filhas. Como mostrou Maria Fernanda Martins, a
trajetória de seus filhos, filhas, assim como netos e netas foi bastante ascendente.
(martins, 2011, p. 121-139).
Entre os magistrados nomeados, o desembargador
Eusébio de Queirós Coutinho da Silva, natural de Luanda,
capitania de Angola, uma das mais importantes possessões
dos portugueses na África, foi o único que descendia dire-
tamente de um magistrado. Foi nomeado Procurador dos
Feitos da Coroa e Fazenda da Relação.32 Seu pai, Domingos
Plácido da Silva, também natural de Angola, foi advogado,
representante da câmara de Luanda e ouvidor-geral interino
e provedor dos defuntos e ausentes da comarca de Angola.33
Em 1786, chegou a solicitar o cargo de secretário de gover-
no da capitania34 e de juiz de fora da vila de Luanda.35 A
ocupação e o fato do mesmo ter a possibilidade de pleitear
tais cargos perante as instituições ultramarinas demonstra
que o mesmo tinha respaldo político e era membro de uma
família conhecida e respeitada na capitania de Angola. Na
leitura de bacharel de Eusébio de Queirós Coutinho da Silva,
o caráter nobilitante de sua família também é explicitado.
O documento aponta que não foi encontrado nenhum im-
pedimento para o pleiteante ser aprovado e nomeado aos
lugares de Letras, visto que Queirós Coutinho era “filho e

Figura 2 – Desembargador Lucas 31  Biografia de Lucas Antonio Monteiro de Barros. Site do Supremo Tribunal Federal. http://www.
Antonio Monteiro de Barros stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stj&id=241. Acessado em 06 de agosto de 2020.
Fonte: A mística do Parentesco. 32  O Procurador dos Feitos da Coroa e Fazenda era o responsável de proteger os interesses e o
https://www.parentesco.com.br/index. patrimônio real de qualquer tentativa de usurpação, “seja secular ou eclesiástica”. Segundo os Wehling,
php?apg=album&idp=32654. seu papel era o de “preservar os interesses do Estado”, “processando os acusados de burlá-lo” (wehling;
wehling, 2004, p. 151-152).
33  ahu. Avulsos de Angola. 29 de julho de 1785, Caixa 70, Documento 40; ahu. Avulsos de Angola.
28 de novembro de 1785, Caixa 70, Documento 26; ahu. Avulsos de Angola. 30 de dezembro de 1786,
Caixa 71, Documento 62-63.
34  ahu. Avulsos de Angola. 14 de agosto de 1785, Caixa 70, Documento 51.
35  ahu. Avulsos de Angola. 15 de outubro de 1786, Caixa 71, Documento 53.

151
neto de pais e avós que não delinquiram em crime de lesa-majestade divina”, eram
“de boa vida e costumes” e “sem nota de plebeu por parte dos avôs”.36
Como seu pai, a trajetória do desembargador Queirós Coutinho também co-
meçou em Angola, primeiro como juiz de fora de Benguela e, posteriormente, como
ouvidor da comarca de Luanda. Após sua vinda para o Brasil (1818), foi nomeado
desembargador da Relação da Bahia, mas servindo no posto de ouvidor e provedor
dos defuntos e ausentes da comarca de Serro Frio, capitania de Minas Gerais. Como
nos disse José Subtil, muitos magistrados recebiam a beca de desembargador, mas
não tomavam assento nos tribunais. Segundo o autor, esses magistrados configu-
ravam uma categoria intermediária entre os desembargadores de carreira (aqueles
que ocuparam cargos nos tribunais) e os juízes territoriais. (subtil, 1996, 321). Mas
muitos desses desembargadores, que estavam em posição “intermediária”, chegaram
a tomar assento definitivo nos tribunais, como veio a ocorrer com Queirós Coutinho,
que foi nomeado procurador dos feitos da coroa e fazenda da Relação de Pernambuco
de acordo com o seu merecimento e letras, em 5 de julho de 1821.
Entre os primeiros magistrados nomeados, o único que pudemos atestar que Figura 3 – Desembargador Eusébio de
se formou em cânones foi o desembargador Francisco Affonso Ferreira, nomeado Queirós Coutinho da Silva
Fonte: Catálogo de Ministros do Supremo
Juiz dos Feitos da Coroa e Fazenda.37 Natural da capitania de Pernambuco, Affonso Tribunal de Justiça do Império. http://
Ferreira também gozava de significativa experiência na magistratura, especialmente www.stf.jus.br/portal/ministro/
verMinistro.asp?periodo=stj&id=254
nas capitanias que, a partir daquele momento, estariam sob a jurisdição do novo
tribunal. Como vimos no quadro acima, em 1806, Affonso Ferreira foi nomeado
ouvidor da comarca do Ceará e, em 1812, foi transferido para a comarca de Pernam-
buco, onde ficou até 1818, quando seguiu para a Relação da Bahia.
Ferreira esteve na comarca do Recife durante a Revolução de 1817. Em seu relato
sobre a revolução, Francisco Muniz Tavares afirmou que Francisco Affonso Ferreira
era um bom sujeito, “incapaz de cometer violência” ou de roubar, ou “atropelar os
seus concidadãos”. (tavares, 2017, p. 98). Mas sua atuação, enquanto funcionário
régio, foi criticada pelo desembargador Paulo Fernandes Viana, Intendente de Polícia
do Rio de Janeiro. Viana o acusou de aderir à revolução, alegando que o magistrado
“tomou serviço no governo revolucionário” e não se animou em defender a coroa
em nenhum momento, “ainda que depois pela força ansiasse e cedesse”.38 A sua
participação na revolução não foi negada, contudo, não sofreu penalidades, pois não
foi imputado como um dos líderes, nem “cabeça pensante” do movimento.
Devido ao alvará expedido pelo rei d. João vi, em 6 de fevereiro de 1818, aqueles
que não fossem apontados como conspiradores e líderes do movimento pela devassa

36  Processo de Leitura de Bacharel de Eusébio de Queirós Coutinho da Silva. Arquivo Nacional da
Torre do Tombo. Fundo Desembargo do Paço. Habilitação de Leitura de Bacharéis, Letra E, Maço 2,
n. 10, 1804, f. 03.
37  Era o magistrado responsável pelo julgamento das causas em que a coroa era réu ou autor
dos processos. Era a instância responsável pelos casos da provedoria da fazenda, devendo realizar
anualmente devassas dos funcionários da Alfândega e da Provedoria Real. Era o magistrado responsável
pelos recursos das decisões eclesiásticas. Além dessas funções, também servia como Aposentador
Mor, responsável pela aposentadoria dos magistrados e funcionários da Relação, além de acumular
a função de Almotacel Mor, devendo supervisionar a provisão de alimentos no tribunal ou onde a
Relação estivesse. (wehling; wehling, 2004, p. 151).
38  bn – Documentos Históricos, Revolução de 1817, v. cii, p. 25.

152
Figura 4 – Desembargador Bernardo José
da Gama
Fonte: Acervo Fundação Joaquim
Nabuco. http://digitalizacao.fundaj.gov.
br/fundaj2/modules/visualizador/i/
ult_frame.php?cod=3779.

que estava em curso, foram perdoados.39 O ato de Graça, expedido pelo monarca,
livrou Affonso Ferreira de possíveis adversidades, que poderiam levar a sua exclusão
da magistratura ou até mesmo à prisão. No mesmo ano (1818), Affonso Ferreira to-
mou posse na Relação da Bahia, mas após a expedição do Alvará que criou a Relação
de Pernambuco, o magistrado foi transferido para o novo tribunal.
Outro magistrado, também oriundo da capitania de Pernambuco, foi o desem-
bargador Bernardo José da Gama, também nomeado desembargador ordinário dos
Agravos e Apelações. Formado em Leis por Coimbra, voltou ao Brasil na comitiva
que trazia a família real. Seu primeiro cargo na magistratura foi como juiz de fora,
na vila de São Luís, capitania do Maranhão, ainda em 1808. Foi afastado do cargo
em 1812, voltando ao serviço da magistratura em 1815, como ouvidor da Comarca
de Sabará, em Minas Gerais. Em 1818, voltou a Portugal, tendo sido nomeado Juiz
do Crime do bairro da Rua Nova de Lisboa, onde ficou até 1821, quando foi nomeado
para a Relação de Pernambuco. Segundo o alvará que o nomeou para a Relação de
Pernambuco, assumia a função graças ao “seu merecimento e letras”, por tempo de
“seis anos ou mais”, ficando sem efeito a nomeação anterior e estando, inclusive,
dispensado de sua residência por um ano.40

39  Coleção Leis do Brasil. Alvará de 06 de fevereiro de 1818. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1889, p. 15.
40  apeje. Nomeação do Desembargador Bernardo José da Gama – 09 de abril de 1821. Registros
Provinciais n. 15, p. 237-238.

153
Semelhante à trajetória de Pedro de Araújo Lima, analisada por Paulo Cadena
e citada acima, que vinha de uma família de posse de terras e ligações com o co-
mércio atlântico, as famílias dos magistrados pernambucanos Francisco Affonso
Ferreira e Bernardo José da Gama, nomeados para a Relação de Pernambuco, tam-
bém eram detentoras de engenhos, assim como cargos de distinção, especialmente
nos corpos militares da capitania de Pernambuco. Amaro Bernardo Gama, pai do
desembargador Bernardo José da Gama, era proprietário do engenho Araripe do
Meio, na vila de Igarassu,41 possuía o cargo de capitão de infantaria da Ordenança
de Olinda.42 Em 1806, requereu aumento de sua patente, pedindo a graduação de
tenente-coronel de Milícias.43
Francisco Affonso Ferreira também vinha de uma família de proprietários de
terra. Seu pai, Domingos Afonso Ferreira, era um dos proprietários do engenho das
Fernandas, com Félix José Pimentel.44 Também era capitão-mor agregado das Orde-
nanças da vila de Sirinhaém45 e, no início do século xix, participou de uma disputa
jurídica sobre a posse do engenho Quitinguba, que alegava ser coproprietário, com
o padre Feliciano Pereira de Lira.46

3. As incertezas sobre a instalação do Tribunal da Relação

Mesmo com os desembargadores nomeados, as incertezas ocasionadas pelos eventos


políticos atrasaram ainda mais a instalação da Relação de Pernambuco. O debate
sobre a instalação do novo Tribunal atravessou o oceano Atlântico, tornando-se
pauta de discussão entre os deputados das Cortes de Lisboa. Entre novembro de
1821 e abril de 1822, deputados portugueses e brasileiros discutiram a instalação
da Relação de Pernambuco. Alguns chegaram a afirmar que não havia um decreto
expedido pelo monarca, criando uma Relação.47
Enquanto a indefinição sobre a instalação do tribunal aumentava do outro
lado do Atlântico, no Brasil, os desembargadores já nomeados, preocupados com a
manutenção dos seus empregos, recorreram ao príncipe regente. Em dezembro de
1821, os desembargadores Eusébio de Queirós Coutinho da Silva, João Evangelista de
Faria Lobato e Bernardo José da Gama enviaram ofício ao príncipe d. Pedro. Afir-
maram que a declaração das Bases da Constituição pôs em esquecimento o projeto
de criação do tribunal e que a mudança de governo na província de Pernambuco,
com a eleição de uma nova Junta Governativa, presidida pelo comerciante Gervásio
Pires Ferreira, fez com que o príncipe tivesse dúvidas de se “comprometer com uma
província cujas relações políticas com a regência do Brasil eram duvidosas”, princi-
palmente pelo fato de a nova Junta Governativa não ter jurado obediência ao príncipe

41  ahu. Avulsos de Pernambuco. 21 de agosto de 1806, Caixa 261, Documento 17530.
42  ahu. Avulsos de Pernambuco. 10 de janeiro de 1801, Caixa 223, Documento 15083.
43  ahu. Avulsos de Pernambuco. 20 de janeiro de 1806, Caixa 258, Documento 17336.
44  ahu. Avulsos de Pernambuco. 30 de janeiro de 1784, Caixa 150, Documento 10899.
45  ahu. Avulsos de Pernambuco. 02 de setembro de 1799, Caixa 209, Documento 14232.
46  ahu. Avulsos de Pernambuco. 28 de julho de 1801, Caixa 227, Documento 15368. ahu. Avulsos
de Pernambuco. Junho de 1802, Caixa 235, Documento 15852.
47  Sessão de 09 de novembro de 1821. Diário das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa,
v. 04. 31 de dezembro de 1821, p. 3007; Sessão de 07 de janeiro de 1822. Diário das Cortes Gerais e
Extraordinárias da Nação Portuguesa, v. 04. 31 de dezembro de 1821, p. 3611.

154
regente, ainda mantendo maior lealdade às Cortes Constituintes de Lisboa. Para os
desembargadores, essas ações fizeram com que o regente sustasse a instalação da
Relação, enquanto não viessem ordens expressas do Soberano Congresso. Ambos
suplicaram ao príncipe ordens sobre partir ou não para a província de Pernambuco
e se colocaram como súditos leais do governo do regente.48
Em 18 de janeiro de 1822, os três desembargadores escreveram novamente
a d. Pedro, afirmando que nenhum decreto das Cortes ou do executivo, até aquele
momento, havia revogado a instalação da Relação, principalmente porque o tribu-
nal havia sido decretado pelo rei, no momento que o poder legislativo residia no
monarca. Como era um ato do executivo, e o príncipe era o regente do Brasil, a
condução do processo de instalação do tribunal deveria ser conduzido por ele. Ao
final, apelaram novamente para as dificuldades da província de Pernambuco e,
principalmente, para os prejuízos dos empregos que foram despachados, que era, ao
que parece, a principal preocupação dos desembargadores.49
Em um terceiro ofício, de 21 de março de 1822, os desembargadores reafir-
maram a autoridade executiva do príncipe e solicitaram que ele indicasse o que
assumiria como chanceler, devido à impossibilidade de Lucas Antônio Monteiro de
Barros, eleito deputado nas Cortes de Lisboa, assumir sua função. Por fim, solicitaram
a expedição de ordens para que todos os desembargadores partissem imediatamente
para Pernambuco, de modo a começarem os trabalhos.50
A efervescência política vivenciada naquele momento colocou o Tribunal da
Relação de Pernambuco em disputa. A instalação de mais um tribunal superior no
Brasil significaria mais autonomia da ex-colônia, tanto política, quanto adminis-
trativa, o que, naquele momento, não interessava aos representantes do legislati-
vo português. Contudo, as Cortes portuguesas acabaram cedendo e aprovaram a
instalação do tribunal, mas fizeram algumas modificações no regimento do novo
tribunal. Em 23 de abril de 1822, expediram uma Carta de Lei com mudanças no
regimento da nova Relação.51 Contudo, ao que tudo indica, grande parte das poucas
modificações apresentadas foi ignorada.
Os desembargadores nomeados para a nova Relação, procurando resguardar
suas nomeações e seus futuros empregos, ficaram ao lado do príncipe. Talvez a
insistência dos magistrados na instalação do tribunal tenha sido de extrema im-
portância para que o regente e seus ministros decidissem levar o projeto adiante.
O desembargador Antonio José Osório de Pina Leitão, o primeiro dos magistrados
nomeados a chegar em Pernambuco, instalou-se em Recife ainda em janeiro de 1822,

48  apeje. Fundo Tribunais Diversos, v. 01. Ofício de João Evangelista de Faria Lobato, Eusébio de
Queirós Coutinho da Silva e Bernardo José da Gama. Dezembro de 1821, p. 01-03.
49  Biblioteca Nacional. Sessão de Manuscritos, Coleção Pernambuco. Representação
dos desembargadores nomeados para a Relação de Pernambuco solicitando ordem de sua majestade
para a sua efetiva instalação, 18 de janeiro de 1822.
50  Biblioteca Nacional. Sessão de Manuscritos, Coleção Pernambuco. Representação
dos desembargadores nomeados para a Relação de Pernambuco a Sua Majestade solicitando providências
para instalar prontamente a mesma, 21 de março de 1822.
51  Biblioteca Nacional. Hemeroteca Digital. Notícias de Portugal - Decreto das Cortes, 23 de abril de
1822. In: O Conciliador do Maranhão, n. 109, sábado, 27 de julho de 1822.

155
aproximando-se inclusive da Junta Governativa.52 Como era o desembargador mais
velho e experiente, ficou encarregado de conduzir a devida instalação do tribunal,
assumindo como chanceler interino. Os demais magistrados começaram a chegar
no Recife a partir de junho de 1822.
Em 13 de agosto de 1822, o tribunal entrou em funcionamento, na vila do Re-
cife, com a presença de cinco dos sete primeiros desembargadores nomeados para
o tribunal. Pina Leitão assinou o termo de posse como Chanceler interino; Eusébio
de Queirós Coutinho da Silva como segundo agravista e Procurador dos Feitos da
Coroa e Fazenda; Bernardo José da Gama como terceiro agravista e Promotor de
Justiça da Relação; João Ferreira Sarmento Pimentel como interino na função de
Ouvidor Geral do Crime, e João Evangelista de Faria Lobato como quinto agravista
e Ouvidor Geral do Cível.53
Ainda em agosto, no dia 27, jurou e tomou posse o desembargador Francisco
Affonso Ferreira, recém-chegado da Bahia, na função de Juiz dos Feitos da Coroa e
Fazenda. No dia 7 de setembro de 1822, marco histórico da separação política entre
Portugal e o Brasil, tomava posse o desembargador da Casa de Suplicação Lucas An-
tonio Monteiro de Barros, na função de Chanceler da Relação de Pernambuco. Após
assumir seu posto, como de direito, o desembargador Pina Leitão voltou à função
de Ouvidor Geral do Crime e João Ferreira Sarmento Pimentel como desembargador
dos Agravos e Apelações.
Segundo Nuno Camarinhas, ao “lograr o estatuto de desembargador”, os ma-
gistrados recebiam “um título definitivo”, que também era um reconhecimento da
qualidade da experiência adquirida ao longo da carreira. Em sua análise sobre a
origem social dos desembargadores no Antigo Regime, o autor apontou que uma
parte significativa deles (54,7%), foram oriundos de “famílias notáveis, ou seja, das
elites locais”, que seriam “famílias de lavradores abastados que viviam dos rendi-
mentos de suas propriedades”. (camarinhas, 2010, p. 17). Como pudemos perceber, os
primeiros magistrados nomeados para a Relação de Pernambuco encaixam-se nessa
categoria, pois foram oriundos de famílias importantes das localidades do império,
seja no reino ou no ultramar.
Em linhas gerais, podemos perceber que a coroa, ao menos nos primeiros
anos, buscou “equipar” o Tribunal da Relação de Pernambuco com desembargado-
res dotados de experiencia no campo da magistratura, com trajetórias construídas
graças à circulação por diversos locais de importância política e administrativa no
império português.

52  Esteve presente nas atas de Conselho de Governo da província de Pernambuco desde janeiro de
1822. Atas do Conselho de Governo da Província de Pernambuco. Sessão de 18 de janeiro de 1822. In:
Atas do Conselho de Governo da Província de Pernambuco (1821-1834). Recife: Assembleia Legislativa
de Pernambuco; cepe, 1997. V. 1.
53  Termo de Posse dos Desembargadores da Relação de Pernambuco. In tribunal de justiça de
pernambuco. memorial da justiça. Livro de Compromissos e Posse do Tribunal da Relação de
Pernambuco: (1822-1882). Recife: Tribunal de Justiça de Pernambuco, 2005, p. 19-23.

156
REFERÊNCIAS

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lonial na crise do Antigo Regime português. Lisboa: Edições Afrontamento, 1993.

AGÜERO, Alejandro. Las categorías básicas de la cultura jurisdiccional. In: SARIÑE-


NA, Marta Lorente. De justicia de jueces a justicia de leyes: hacia la España de
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159
160
CAPÍTULO 6 - Uma cultura judicial de Antigo
Regime em diálogo com a instalação de
um Tribunal da Relação – experiências dos
julgados de Pernambuco, sécs. xviii-xix

Jeannie da Silva Menezes1

Há na historiografia brasileira uma insistência em observar nas tensões e corrup-


ções dos agentes de justiça a ambientação judicial da época colonial. Após inves-
tigar jurisdições, trajetórias de magistrados e de auxiliares, bem como buscar na
correspondência administrativa as pistas do que acontecia na justiça, dei-me conta
de que esta impressão não era suficiente para pensar, entre outros aspectos, numa
práxis dos agentes, principalmente porque algumas frentes historiográficas, para
mim inovadoras, trouxeram novos horizontes investigativos e me alertaram para
a necessidade de um mergulho mais profundo nos processos judiciais. Sobretudo, o
olhar cartesiano da historiografia que instrumentaliza suas conclusões de uma dada
observação sobre a documentação administrativa, bem como por suas abordagens
de trajetórias de magistrados e de relações institucionais produzidas.
Embora bastante frequentadas em outros momentos das minhas pesquisas,
tais abordagens não atingem a casuística2 das decisões para as quais hoje direciono
no meu estudo do que era considerado justo aos olhos de quem julgava e de quem
recebia as decisões. É um pouco deste exercício que pretendo aqui desenvolver.
Tendo em vista que este capítulo pontua uma celebração de 200 anos do ato
de criação do Tribunal da Relação de Recife, que rememora os começos do que hoje
vem a ser o Tribunal de Justiça de Pernambuco, nada mais comum a um dado exer-
1  Doutorado em História pela
Universidade Federal de Pernambuco cício de memória histórica do que ir direto aos atos de criação ou recorrer a uma
(ufpe, Brasil, 2010); Professora Titular explicação do contexto para sinalizar o momento festivo. Escolhemos, no entanto,
da Universidade Federal Rural de
Pernambuco (ufrpe, Brasil); Professora outro percurso para falar sobre os processos: estabelecer um exercício de reflexão
do Programa de Pós-graduação em sobre as (re) construções do sistema de valores que vigia à época colonial, um pas-
História Social da Cultura Regional.
2  A casuística é um modo de conceber sado ainda muito recente naquele momento e que lastreou condutas, entre outros
as soluções, sobretudo nas decisões aspectos, como arbitrárias ou justas, bem como legitimou também as necessidades
que os teólogos formularam para as
questões controversas e envolviam de um tribunal, tendo em vista que, durante um bom tempo, as soluções para os
assuntos morais e é evidenciado na casos concretos poderiam se encerrar através de ritos bem mais sumários e, pro-
fundamentação dos juízes ao proferirem
suas decisões. O pesquisador da História
vavelmente, não chegaram à alçada das Relações.
do Direito Victor Tau Antzouátegui, Neste exercício de reflexão sobre os processos do judiciário, destacamos a
empreende discussões densas com esta
perspectiva em obas como Casuísmo y
“tarefa artesanal” que teria sido conferida aos juristas, segundo o historiador do
Sistema e El Jurista em el Nuevo Mundo. direito Victor Tau Antzouatégui (2016), e com a qual concordamos, na medida em

161
que coube a eles de perto ou de longe através de suas ideias sintetizar a tarefa de
encontrar soluções para as problemáticas que se apresentaram na definição dos
ambientes jurisdicionais na construção do Novo Mundo.
Até as duas primeiras décadas do século xix era um problema de longo tempo
não resolvido, a criação de uma Relação em Pernambuco, um problema diferente
daqueles que os tratadistas teólogos ou não teólogos, mas sobretudo juristas, ocupa-
ram-se em elaborar. Porém, a retórica3 que se apresenta nas petições encaminhadas
para a solução da problemática e que percorre os séculos em contextos distintos
tem uma aparência com a práxis dos juristas de uma época colonial que alcança e
participa da produção de soluções para o Estado brasileiro nos idos do século xix,
ainda que sob novas orientações, entre as quais figura a instituição dos tribunais
superiores sob um paradigma legalista. É sobre esta experiência anterior que pro-
pomos algumas reflexões para pensar o tribunal como parte de uma cultura judicial
de longo tempo, mas em vias de se transformar, agora sim sob moldes cartesianos.

1. Por uma ambientação dos julgados à cultura de Antigo Regime –


uma problemática historiográfica.

Em linhas gerais, para tratar de uma cultura judicial que se apresentava até o século
xviii nas Américas, temos um sistema de valores composto pelas virtudes morais
que não caberiam na racionalidade administrativa do Oitocentos, mas que, em mui-
tas situações, continuou a se apresentar nas instituições bem depois da primeira
modernidade ou da época colonial. Nos estudos sobre o Direito e a Justiça, a histo-
riografia sobre a América Portuguesa tem sido desatenta quanto a este sistema de
valores, mediante um desapreço da historiografia em investigar a justiça no Antigo
Regime sob a ótica dos sistemas morais que incluíam, entre outras elaborações, o
amor nas relações, inclusive institucionais, as virtudes morais da prudência e do
arbítrio, mediado pela consciência dos juízes, abarcando todas as esferas das relações
interpessoais, portanto necessário considerá-los numa reflexão sobre os julgados,
haja vista que as leis não tinham a centralidade que passaram a apresentar como
referência para o magistrado emitir sua decisão.
Outro aspecto da desatenção da historiografia para com o ambiente da justi-
ça se deve a uma constatável, porém irrefletida, ausência de fundos documentais
(processos, documentação cartorial, obras de juristas) para os três primeiros séculos
nos lados de cá do Atlântico. Em face disto, uma segunda problemática que trago a
este capítulo tem como ponto de partida um olhar para os processos ou a ausência
deles nos trabalhos historiográficos.
Acerca de uma outra historiografia para os estudos sobre a história da justiça,
referenciamos as perspectivas sintetizadas pelo historiador Rafael Ruiz (2019, p.
13-15). Um ponto de partida é a revisão nos conceitos na linha de estudos de uma
cultura jurisdicional da Primeira Modernidade e não necessariamente seguindo as
3  Apontamos aqui as perspectivas
considerações de uma história administrativa composta pelas tradições referenciadas da retórica do judicial com suas
no século xix. Partindo daquele pressuposto, seguimos as fontes processuais que considerações voltadas para uma arte da
argumentação que se configura na obra
aqui serão discutidas por seu aporte teórico e não necessariamente por uma análise de Aristóteles e que hoje se reconfigura
detida nelas exclusivamente, entre as quais incluímos os processos judiciais, mas pelo viés da nova retórica de Perelmann.

162
não somente eles, pois também destacamos na nossa reflexão as obras e o pensamen-
to de juristas e escritos de canonistas, teólogos e moralistas articulados ao estudo
nos processos. E, também em relevo como norte explicativo ou analítico para uma
história da justiça a necessidade de visualizar uma cultura jurisdicional comum
ao mundo ibérico, como já venho discutindo e trabalhando em outras produções.

2. Um tratamento historiográfico para a história da justiça.

Proponho, como consideração, um novo horizonte explicativo para a ambientação


da justiça. Inclusive destaco os referenciais de uma cultura judicial nela assentados
e ainda vigentes por ocasião da instituição dos tribunais nas primeiras décadas do
século xix. Para tal, busco, em outra filiação historiográfica,4 alguns referenciais
para discutir neste capítulo as práticas que os processos judiciais podem sugerir
para uma compreensão do direito e da justiça da primeira modernidade que atin-
gem, inclusive, o momento da criação das Relações, ainda que sob novos postulados
da ação judicial.
Nos debates teológicos do século xviii, alguns horizontes explicativos despon-
taram nas disputas entre probabilistas, probabilioristas e rigoristas5. De modo geral, sem
aprofundarmos as complexas questões que os envolveram, discutia-se se a opinião
tão somente provável ou se exclusivamente a mais provável deveria ser considerada
nas decisões. O debate teológico rendia há certo tempo ao longo dos séculos ante-
riores e ilustrava os modos de pensar as pequenas e as grandes problemáticas em
torno da consciência que desaguavam em questões morais acerca do arbítrio para
julgar, passando por todas as esferas da vida em sociedade.
Aqueles debates importam nesta discussão sobre a justiça porque eles podem
sugerir novas compreensões sobre as experiências coloniais. Exemplo disto é a histo-
riografia que sinaliza as tensões e corrupções como marca do ambiente jurisdicional
nas colônias, sem se ocupar com proposições sobre como julgavam os juízes. Bem
como os muitos trabalhos sobre as trajetórias de magistrados e a estruturação de
comarcas e ouvidorias, que trazem contribuições relevantes para pontuar o espaço
jurisdicional, mas não dão conta de uma explicação sobre o universo no qual orbi-
tava a cultura judicial sob os auspícios de um encontro entre a moral e o direito.
Ora, desde o século xvii há uma correspondência oriunda de diversas frentes
(câmaras, administradores) solicitando a instalação de um Tribunal da Relação na
capitania, devido aos custos e distâncias que a proposição de recursos no Tribunal,
em Salvador, acarretava. Em paralelo àqueles pedidos, porém nunca tratados como
possibilidades explicativas de uma cultura judicial em Pernambuco, a presença dos
4  O historiador da história da justiça, Colégios Jesuítas, primeiro em Olinda e depois em Recife, como centros de uma
Rafael Ruiz, elabora uma discussão
que aponta os problemas presentes preparação profissional primeira para alguns atores do judicial que legaram para a
na historiografia brasileira para tratar localidade a presença de letrados, de suas ideias e de indivíduos formados em hu-
a justiça na Primeira Modernidade,
sobretudo os anacronismos e manidades e letras. Ainda que sem universidades tal e qual ocorria nos mundos
imprecisões que ela apresenta ao tratar hispânicos da América, o espaço destes colégios ambientou o judicial colonial dos
de um fenômeno judicial que precisa ser
visto sob novas categorias de análise. instrumentais da retórica e dos casos de consciência, em seus cursos, a partir dos
5  Rigoristas... quais tivemos a futura instituição da Faculdade de Direito.

163
No movimento entre as solicitações para instituir uma Relação em Pernambuco
iniciadas no seiscentos e o atendimento a elas somente com a criação da Relação
em Recife, destacamos algumas perspectivas para o ambiente da justiça sobre o
qual pretendemos refletir. A centralidade jurisdicional de Pernambuco foi evidente,
ainda que problematizada desde o século xvii, questionada com veemência durante
boa parte do século xviii e com idas e vindas da segunda metade do setecentos até
a instituição dos tribunais superiores nas primeiras décadas do xix. Mas, efetiva-
mente, como os elementos retóricos contidos nas petições informam ou ilustram
uma maneira de pensar a importância dos julgados na cultura judicial do setecentos
é algo ainda não percebido pela historiografia
Em torno da criação das Relações muito já foi dito6. Consideradas tribunais de
segunda instância ou talvez apenas tribunais de “desembargo” dos muitos problemas
que acometiam o Reino, mediante um alvará-régio a resposta definitiva para uma
demanda tão antiga foi efetivada nos idos de 1821. Como conclui Andrea Slemian
(2020, p. 89),

seria simplificador compará-las ao que hoje chamamos de tribunais de 2ª


instância. Elas respondiam a uma antiga concepção de justiça que não estava
dissociada de assuntos de administração, o que justificava a própria presença
do governador em parte de seus atos.

Neste intervalo longo houve uma coincidência de motivações entre o que se


pediu e o que foi atendido. As “dificuldades de recorrerem à Relação da Bahia” para o
prosseguimento das causas, a “grande distância de uma a outra Província”, as “avultadas
despesas”, os “muitos inconvenientes”, além dos “graves incômodos” que justificavam o
ato da criação de 18217, já se apresentavam em 1672.
Novas motivações, no entanto, foram apresentadas quando o alvará tratou da
insatisfação com a ação dos procuradores, provavelmente por ser uma experiência
mal sucedida para sanar as distâncias. Por outro lado, os paternais cuidados do rei
para afiançar a segurança pessoal e a dos “sagrados direitos de propriedade... como a mais
segura base da sociedade civil”, eram inovações no programa político e jurisdicional.
Todo aquele arcabouço de motivações para a existência da Relação não se jus-
tifica se tratado com base na extensa movimentação administrativa/judicial que o
Arquivo Histórico Ultramarino acondiciona, cujo conjunto detém poucas amostras
de processos oriundos dos julgados8. A necessidade de uma Relação é mais facilmente
demonstrada na proatividade entre as autoridades localmente “assentadas” ou entre
elas e agentes de várias partes da América Portuguesa e até do próprio Reino e nas
práticas compartilhadas entre magistrados e seus auxiliares na “circunscrição judi-
cial”9 no Norte do Estado do Brasil, que em seu conjunto pontuam uma relação com

6  Ver o trabalho clássico de Arno Wehling e alguns mais recentes de Isabelle Mattos e Filipe Caetano.
7  Alvará.
8  Na dinâmica dos processos, a instituição que acolhia os julgados em princípio era a câmara,
sobretudo as de Olinda e Recife em se tratando da Capitania de Pernambuco. No entanto, não temos
conjuntos documentais dos julgados que para elas se reportaram até fins do século xviii.
9  Já tratamos deste tema de forma indiciária em alguns artigos, em linhas gerais, privilegiando as
dinâmicas entre magistrados e auxiliares do judicial na jurisdição Norte do Estado do Brasil e não de
uma perspectiva formal. As comarcas seriam circunscrições factícias, não tradicionais, criadas em dado

164
os agentes do judiciário em Pernambuco, porém sobre a qual não nos deteremos10.
Cumpre destacar que a pouca incidência de processos judiciais guardados no Arquivo
Histórico Ultramarino não é, para nós, estranha às culturas políticas e judiciais nos
quadros do Antigo Regime, mas é bem problemática para uma historiografia que
não privilegia as referências daquela cultura judicial em suas análises.

3. Contextos da dinâmica judicial em Pernambuco: a inserção ou


não do juiz letrado.

A estranheza e aposta na centralidade de Pernambuco se justifica pelo fato de que a


então Capitania de Pernambuco não representava a sede do governo como a Bahia,
também não referenciava nenhum tribunal superior que demandasse problemáticas
no nível dos conselhos reinóis e muito menos suas autoridades, sobretudo magis-
trados, eram providas de poderes que lhes conferissem prerrogativas para espelhar
uma praxe para as dinâmicas judiciais nas localidades desse Norte Colonial. No
entanto, numa cultura judicial que prevê as soluções jurídicas por um viés moral,
pouco ou quase nada importa a ritualística burocrática e demorada do processo ju-
dicial, a flexibilidade do ordenamento e a condução do justo pelo viés casuístico da
consciência dos juízes nos explicam mais sobre a escassez de processos, portanto, do
que a perspectiva rigorista que conclui, sobremodo, pelas impressões de recorrentes
desvios naquele aparato jurisdicional.
O recurso às culturas judiciais compartilhadas na experiência jurisdicional
americana nos aproxima de algumas compreensões sobre o fenômeno da disper-
são dos tribunais em espaços vastos e o protelamento de sua instituição em de-
terminados lugares. Em síntese, a lógica que orientava tal instituição era outra,
bem diferente daquela que passou a instituí-los na segunda década do século xix.
Desde já destacamos que a ausência da instituição não esvaziou de significados o
ambiente jurisdicional de um determinado lugar, nem minimizou a presença de
juristas nele, porém nos impõe refletir sobre as implicações da tarefa artesanal de
adaptação das culturas judiciais europeias e de sua transformação ao estar assen-
tada em solo americano.
Uma primeira linha de pensamento sobre a importância das questões morais
para decidir as soluções concretas que se apresentaram como demandas judiciais
primeiro para os juízes ordinários, sem formação letrada, porém detendo os conhe-
cimentos morais suficientes para exercer suas funções, assim como caberia aos de-
mais vassalos, no contexto da atuação quase exclusiva desta categoria de juízes até
fins do século xviii. Somente a posteriori, mediante o ingresso de juízes letrados,
as funções judiciais absorveram um caráter mais exclusivo para o tratamento dos
julgados, ainda assim as questões morais continuaram a incidir na orientação das
decisões dos juízes.

momento no reino para o estabelecimento de mais controles, mais organização jurídico-administrativa.


Neste caso, as comarcas americanas seguiram a mesma tendência.
10  Pensar esta centralidade é problemática para a reflexão aqui apresentada, tendo em vista que
o mundo jurídico colonial não se encerra numa esfera á pare de atuação, mas é o lastro de outras
esferas do poder que estão imbricadas. Porém, a centralidade de Pernambuco tem sido a aposta de
muitas análises na historiografia

165
Havia a constante e permanente parceria da Teologia Moral com a retórica dos
juízes e advogados. Evidenciamos o institucional de Pernambuco nesta atmosfera
de produção letrada, na qual circularam juízes e clérigos exercendo suas funções,
como também permitiram o movimento de saberes trazidos das Escolas Jurídicas
europeias e levaram para elas as experiências adquiridas das vivências nos mundos
americanos.
A narrativa dos conflitos dos juízes com outras autoridades locais, sobretudo
com a inserção do juiz letrado para localidades onde antes só havia juízes ordinários,
já são bem conhecidas assim como as reclamações dos vereadores das câmaras que
remetem para as ações arbitrárias dos magistrados de todas as partes da América
Portuguesa. Nelas, há muitos registros de narrativas que acusam a supressão de
tarefas ou a intromissão de juízes em assuntos que não seriam seus. Porém é pos-
sível tratá-las partindo da retórica que envolvia tais discussões.
Emblemática para esta discussão é uma consulta ao rei verificada na primeira
década do século xviii, mediante a qual,

En 1712 los vereadores de Olinda consultaron al Conselho Ultramarino sobre los


mecanismos de sustitución de los magistrados reales. La corona confirmó
que, faltando el ouvidor y el juiz de fora, asuma el vereador mais velho del mu-
nicipio que sea la cabeza de la comarca del ouvidor ausente. Los oficiales de
Olinda interpretaron al principio que durante la falta del juez letrado, debía
ser el juez ordinario de Olinda el que presidiera las dos cámaras. Hemos vis-
to que entre los dos grupos había rencores enraizados desde hacía muchas
décadas. Por lo tanto, esa situación no era en absoluto conveniente para los
ediles de Recife. Debido a las protestas de los oficiales de Recife, el Conselho
Ultramarino recomendó en 1713 que los sustitutos del juiz de fora ejerciesen
su jurisdicción por separado dentro del alfoz de cada villa. 11

Como ilustra um daqueles registros em uma reclamação, o juiz de fora teria


descumprido as determinações de prisão para escravos vendedores de “panos rou-
bados” dos armazéns e da alfândega, em 1743, declararam os queixosos vereadores,
em que “[...] vulgarmente se inclinarão mais a estes, que aos homens de fora por esperarem
mais conveniência das mercancias que das lavouras, donde não podem tirar os lucros que 11  Consulta do Conselho Ultramarino
esperão”12. ao rei D. João V, sobre o que escreveram
os oficiais da Cámara do Recife, acerca da
Tanto a Teologia Moral quanto os princípios da Retórica Moderna foram temas necessidade da separação daquela vila da
de estudo dos religiosos que ingressavam nos colégios. Quanto às fontes, alguns jurisdição da cidade de Olinda, 19/3/1713,
ahu_acl_cu_015, Cx. 25, D. 2278. Citada
tratados de Teologia Moral que orientam a justificação de categorias como “o perdão”,
por cabral, Tese de doutoramento…, 2007
“a misericórdia, “o arbítrio” e também as “culpas” serão relacionados e, sobretudo, 12  Carta do senado ao rei, abril de 1743,
discutidos pelos chamados juristas do Novo Mundo. Livro de registros da Câmara Municipal
do Recife, p. 200-203, iahgp apud souza,
Segundo Juarlyson Souza (2014), George Félix C. Os homens e os modos
da governança – a Câmara Municipal do
Recife do século xviii num fragmento da
O funcionamento do sistema de ensino montado pela Companhia de Jesus História das Instituições Municipais do
na América portuguesa ocorria a partir de seus três principais Colégios de Império Colonial Português. Dissertação
(Mestrado em História). Recife,
formação secundária – Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco –, aos quais Universidade Federal de Pernambuco,
2002. p. 132.

166
eram submetidas as demais residências da Companhia distribuídas entre as
povoações indígenas próximas ou entre as outras capitanias. (souza, 2014, 81)

Ao se reportar para os estudos de Serafim Leite, o pesquisador nos dá conta


que no Brasil não teria havido a classe de Retórica propriamente dita nos Colégios
da Bahia e do Rio de Janeiro no século xvi (leite, 2006, 74), mas elementos da retó-
rica já eram ministrados nas turmas de Humanidades. Ressalta Serafim Leite [2006]
que nos Colégios da América portuguesa eram estudadas as primeiras letras, três
níveis de Gramática Latina e depois o curso de Humanidades e, ainda, os estudos
de teologia moral expressa por meio das aulas de Casos de Consciência.

3. Julgados e dinâmicas processuais de uma Modernidade a outra.

No conteúdo dos processos judiciais de séculos recuados há recorrentemente cate-


gorias impensáveis na nossa compreensão do justo no presente. Nas narrativas de
decisões que encontramos incluídas no rol de documentos avulsos à documentação
administrativa, sob a guarda do Arquivo Histórico Ultramarino, há indícios desta
compreensão nas palavras de ordem que remetem para o “arbítrio”, a “clemência”, a
“celeridade”, a “misericórdia”, o “remédio” e, ao contrário delas, quase não aparecem
em destaque o “castigo”, a “condenação” ou o próprio “crime e a conduta criminosa”.
Somado a isto, neste ambiente permeado por uma informalidade processual estranha
ao nosso presente, os trâmites do judicial no Antigo Regime, ainda que por vezes
sumaríssimos, registraram uma fundamentação orientada por uma retórica própria
que, inclusive, justificava os modos “informais” de conduzir a administração. Dela
se ocuparam os juristas, contra ela se impôs o paradigma legalista do Oitocentos
que se quis imprimir enquanto uma cultura judicial reformista.
Já relatamos a ausência de julgados em quantidade compondo grandes fundos
documentais para Pernambuco até fins do século xviii. Quando buscamos por estes
arquivos, eles são encontrados em poucos registros anexados à documentação admi-
nistrativa e, em sua grande maioria, até as últimas décadas do setecentos localizados
para os moradores das vilas litorâneas onde se concentrava um volume significativo
de população e circulação de pessoas e ideias. Portanto, as nossas conclusões par-
tem deste tempo-espaço, não destacando espaços para além destas áreas litorâneas.
Por entendermos que os julgados são uma categoria de fontes primordiais a
uma compreensão sobre a justiça de quaisquer tempos, a ausência ou escassez des-
tes fundos nesta espacialidade carece de algumas reflexões que nos leva um pouco
mais longe no quadro da América Portuguesa e, até mesmo, da América Hispânica.
De forma comparativa, os processos judiciais legaram para a América Hispâni-
ca um conjunto bastante significativo de registros, principalmente se comparados ao
que tivemos para a América Portuguesa. O exemplificam os processos criminais da
experiência judicial do vice-reino do Peru e da Prata do Archivo de la Real Audiencia y
Cámara de Apelación de Buenos Aires e os processos da Audiencia do vice-reino do Peru.
Estas fontes funcionam como referência comparativa para os processos pontuais
de localidades como Pernambuco e áreas vizinhas. No entanto, a investigação nos

167
processos pode ir bem mais além quanto às abordagens que nos conectam às prá-
ticas que ocorriam nessa América Hispânica.
Para o caso do Estado do Brasil, a documentação judicial de Pernambuco na
época colonial oriunda de suas vilas litorâneas é bastante fragmentada e dispersa
na documentação administrativa, portanto, propormos um judicial que se confunde
com a administração da justiça é um bom começo. Ou seja, uma observação rápida
dos processos judiciais produzidos até fins do século XVIII em fundos cartoriais
e que se configuram nos arquivos dos tribunais no presente, pode ser ilustrativa
desta orientação.
Para uma explicação que dê conta daquela não ocorrência de fundos contendo
processos judiciais voltamos à Primeira Modernidade e seus diferentes pontos de
partida para lidar com os fenômenos jurídicos, os quais em meio à criação de tri-
bunais no século xix estavam sendo postos em xeque. Paradoxalmente para nós, no
presente, a um primeiro olhar, trata-se de uma justiça que além de não se apartar
do que concebemos como administração, era orientada por componentes morais que
previam a necessidade do perdão como regra e bem menos sob a aura do castigo. Ela
atingia sujeitos desiguais, desde homes e mulheres, categorizava brancos, negros e
índios, e condicionava livres e escravizados de acordo com os seus estatutos. E tudo
era resguardado por uma tradição que remontava a antiguidade dos princípios do
Direito Comum, do Direito Canônico e do Direito Régio.
O tema das paixões do jurista e, por sua vez, do magistrado é relevante para
uma compreensão sobre esta lógica que orientava a ação dos juízes nas suas decisões,
partindo das posições que ocupavam. Fruto de uma tradição largamente sedimenta-
da, a Teologia Moral e o direito se intercruzavam na imaginação jurídica europeia
como dado inevitável da natureza ou da religião, como referenciou em muitos tra-
balhos António Hespanha (2011), em obra dedicada ao tema com contribuições de
diversos autores. Havia uma dimensão afetiva da ordem política ainda vigente no
século xviii que explicaria as confusões entre a ação administrativa e jurisdicional
com as relações pessoais de amor e amizade.
Conforme já pontuamos em alguns trabalhos referenciando as elaborações de
António Hespanha, a justiça era uma das atribuições régias reconhecida no princípio
que garantia extraordinaria potestas. ao príncipe (subtil, p. 158). Era uma função su-
prema e divina, sendo a jurisprudência um dos caminhos observáveis para manter
a ordem naquele Antigo Regime. Nos informa Hespanha que, naquela configuração,
os juízes ordinários dispunham de “relativo prestígio no reino”, porém com uma
expressão reduzida por ser um cargo eletivo e com baixo valor dos rendimentos, o
que gerava a necessidade de obter outras ‘rendas’, além de uma competição constante
com as categorias letradas de juízes. De forma diferente, a presença dos ordinários
que primeiro atenderam às demandas do judicial nas vilas coloniais da América
Portuguesa não necessariamente registrou uma desatenção da Coroa para com esta
área, que esteve sob sua jurisdição. Mas ilustra sim uma compreensão sobre o papel
de julgar, que residia bem mais em componentes morais do que em componentes
de formação letrada, ainda que posteriormente o ingresso dos letrados tenha sido
concretizado aos poucos e recheado de ocorrências.
Quando se olha para a justiça sob o prisma de uma cultura judicial, o paradig-
ma explicativo sobre ela deve ser representativo dos modos sob os quais essa cultura

168
se autorreferencia, e não sob a ótica de um paradigma que tende a ser expressão de
uma outra cultura jurídica oitocentista. Ao tratar sobre os casos na justiça portu-
guesa de Antigo Regime, Hespanha conclui que 85% das questões eram favorecidas
pela jurisprudência e somente 15% pelas leis escritas em Portugal, no século xviii
(hespanha, 1993, p. 15). Estes percentuais indiciam tradições, tais como a presença
da oralidade, embates no nível dos tribunais com suas soluções que demandavam
décadas, diferentemente dos julgados nas câmaras ou numa esfera mais imediata,
que atendia primeiramente às querelas. Nestes meios mais imediatos de expressão
da cultura judicial, os juízes letrados faziam da jurisprudência o instrumento de
regulação mais eficaz.
A cultura judicial é também expressão de um ordenamento jurídico, na medida
em que a disposição de uma complexa rede de secretarias, juízos e oficialato, como
caracteriza Subtil para Portugal, não necessariamente ilustrava o ordenamento. Por
outro lado, as maneiras de concebê-las e demandá-las, no âmbito da teoria e das
práticas que as autorreferenciavam, podem ser mais explicativas. Desta forma, apesar
de menos complexa a constituição de instituições de justiça em localidades como
Pernambuco, em ambas as situações, o horizonte das relações judiciais continuava
a ser o mesmo, comum à orbita das situações que encontramos no mundo Ibérico,
inclusive em se tratando do mundo hispânico, com sua maciça rede de instituições
judiciais, magistrados e lugares de formação letrada.
Em termos de tribunais reconhecidamente como superiores, uma explicação
necessária é pensá-los como tais por seu papel de absorver, atender, enfim envol-
ver as grandes questões do Reino e não por serem expressões de uma hierarquia
piramidal das instituições, porque não era assim que elas se pensavam. Um Desem-
bargo do Paço, uma Mesa de Consciência e Ordens e uma Casa de Suplicação eram, antes
de tudo, altos conselhos por estarem em atuação bem perto do rei, mas acolhiam
demandas do reino, que surgiam dos mais longínquos espaços de sua composição e
que, portanto, poderiam nos parecer menores por suas distâncias. Assim, pensando
o aparato institucional por uma ótica de suas funções nos quadros de uma cosmovi-
são que privilegiava as virtudes morais, uma Relação poderia ser bem mais uma das
necessidades que o exercício retórico entre autoridades impôs do que uma urgência
das populações que recorriam à justiça para resolver suas demandas.
Na sua configuração formal, no ambiente judicial letrado do antigo Regime
atuaram os ouvidores, os juízes de fora e os desembargadores. Escrivães, tabeliães
e meirinhos auxiliavam nas tarefas cartoriais e, por vezes, atuaram como se per-
sonalizassem os cartórios13. Em muitos casos, estes sujeitos, necessariamente do
sexo masculino, por razões moralistas, atrelavam o seu cargo à conquista de ter-
ras e entendiam os cargos como bens patrimoniais e encarnavam os princípios de
uma ordem na qual todos eram desiguais por seus estatutos, condição e qualidade.
Para além das corrupções atribuídas àqueles sujeitos, pouco sabemos da ação,
é sabido que faltavam regimentos e sobravam tarefas, além de longas distâncias a
vencer. Além disto, apesar das dificuldades para o exercício das funções da justiça,
13  Discuto um pouco esta
personalização cartorial em um artigo havia muita disputa pelos cargos na retórica administrativa e que são muitas vezes
elaborado para uma publicação sobre o explicadas sob a ótica dos favorecimentos que os cargos possibilitavam para seus
cargo de escrivão e tabelião do judicial
em Pernambuco, numa obra intitulada
ocupantes e descendentes, sobretudo ao dotar as mulheres e torná-las aptas a um
A justiça colonial. bom casamento.

169
Todo este quadro pincelado com cores sombrias para o ambiente judicial seria
confirmado por uma literatura quinhentista e seiscentista por suas imagens pouco
favoráveis acerca das ações de magistrados, escrivães e tabeliães. Conforme já sin-
tetizamos referenciando António Manuel Hespanha:

Os juízes figuraram como pedantes e injustos, os escrivães por seu desrespeito


às partes e “por ouvir uma coisa e escrever outra” são vistos como corruptos14.
Imagens semelhantes nos foram deixadas pelas referências feitas à pratica
dos juízes na documentação que sucede a criação dos lugares de justiça nas
capitanias. Dominados pelos poderosos locais e protegendo-os sistematica-
mente, julgando segundo a paixão e o ódio, preterindo a justiça (entenda-se
o direito régio), analfabetos e iletrados, totalmente dominados pelos escri-
vães e advogados, eram os juízes de fora que apareciam na correspondência
administrativa. (menezes, 2013, p.88).

Buscamos aqui recompor este quadro sob uma ótica diferente. No nosso per-
curso, as problemáticas sobre a instituição de novos lugares de justiça, expressas nas
solicitações entre agentes camarários, diziam mais dos ciúmes e paixões próprias
ao exercício da administração do que de suas imperfeições. Na mesma linha da
nossa argumentação os estranhamentos entre decisões de magistrados que leva-
vam demandantes de Pernambuco a recorrer para a Relação na Bahia eram menos
uma aposta numa decisão justa e muito mais numa decisão demorada, ou seja, não
necessariamente se buscava pelo melhor direito, mas sim a melhor adequação da
solução ao momento da disputa.

4. A lógica das dinâmicas processuais

Em 1713, por Ordem Régia, determinava-se que o juiz de fora “residisse na cidade de
Olinda, fazendo alternativamente as audiencias e vereaçoes na Vila do Recife” 15 (souza,
2002, p. 133). Esta breve ordem emitida do reino reforça a relação entre o exercício
da justiça como um braço da administração na primeira modernidade. Se, por um
lado, a ordem emitida do reino buscava solução para o problema das hostilidades
entre Olinda e Recife, por outro a desobediência dos juízes ao que fora ordenado
ilustra outras perspectivas. Alegando as distâncias e dispêndios que o deslocamento 14  Hespanha cita como fontes literárias
trazia, o não comparecimento dos juízes às sessões administrativas das câmaras que remetem para as imagens dos juízes
Garcia de Resende com o Cancioneiro
implicavam nos limites ‘flexíveis’ de competências. Eram também expressões de Geral; Gil Vicente com o Auto da Feira,
um ordenamento que flexibilizava condutas, tendo respaldo nos princípios morais a Frágoa de Amores, o Juiz da Beira e o
Auto da Barca do Inferno; e Jorge Ferreira
que previam não a ausência de controles, mas que lembravam a todo o tempo a de Vasconcelos com a Comédia eufrosina
observância de uma conduta embasada na reta consciência. (1561).
15  Esta citação é referenciada por
Se partirmos daquela orientação, a conhecida lentidão da justiça pede uma George Cabral e remete para uma Carta
revisão. Ela é apontada em queixas, como aquela que apresenta um juiz, em 1744, do Senado do Recife ao Ouvidor da
comarca, de 27 de novembro de 1734,
sobre as imprecisões dos limites entre as suas tarefas e aquelas do ouvidor que se Livro de Registros da Câmara Municipal
conflitavam, promovendo a devassa e nela incluindo os ofendidos em crimes e, com do Recife, f. 170v., iahgp.

170
debret, Jean-Baptiste. Retrato de D. João VI.
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do.
Debret e o Brasil: obra completa: 1816-1831. 3.
ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. p. 78.

isto, fazê-los “novamente querelar perante o ouvidor desta comarca pelos mesmos
delitos contra os mesmos culpados” que o dito juiz já houvera sentenciado. A len-
tidão na solução final das questões levadas a juízo não nos fala sobre a atuação do
magistrado na querela, que nos parece ter sido breve, fala-nos bem mais sobre a
reabertura dos casos e da repartição de atribuições da jurisdição do cível e do crime.
Jurisdição, enquanto atribuição de agentes nomeados pelo Reino, era uma esfera
de competência para dizer o direito e até, inclusive, para alargar o seu alcance, na
época colonial. Juízes e oficiais camarários tinham compreensões diferentes sobre
as tarefas de punir e castigar, posto que os Oficiais de Olinda reclamavam por mais
castigos por, naquele momento da presença de letrados, ter ouvidor geral suprimida
a sua alçada “para condenar em pena de morte, aos negros, mulatos, mestiços, e monásti-
16  a.h.u., avulsos de Pernambuco, cx.
10, doc. 960, 28/12/1697. cos... ou saiam libertos, inconclusos sem apelação ou agravo, porque estas são mais fáceis
no cometer delito” (ahu, 1697)16

171
A esfera de jurisdição dos magistrados continuou a representar problemas
durante um bom tempo, mas na verdade o que estava posto em questão era a quem
competia mais autoridade para dizer o que era justo, de uma perspectiva arbitral.
Para tal, continuava a querela anunciando:

A segunda razão por duvidar fazer a remessa da devassa, fiz por ter sobreposto
de jurisdição que defender em razão da devassa ser mais nobre que a querela,
e chamar assim esta e não a querela a devassa, e justamente por esta ser
tirada primeiro que a querela, e como este juízo adquiriu primeiro o direito
da prevenção me parece que o livramento deve correr perante mim, e que
se me deve remeter a culpa na forma que V. Majestade tem resolvido várias
vezes em casos sobre os ministros criminais dos bairros da corte também
porque os corregedores das comarcas na forma do seu regimento não podem
dar livramento aos culpados, mas sim remeterem estes com as culpas aos
juízes do seu domicílio para perante eles se livrarem, o que com maior razão
se deve para ficar no caso referido por se achar o culpado pro pronunciado
posteriormente na devassa pela mesma culpa de que dele requereu.

Já foi bastante relatado nas análises que tratam sobre a justiça colonial sobre
as vastas extensões territoriais das capitanias, segundo as quais um resultado foi
a indefinição sobre os limites dos juízos, para os quais a solução formal era mera-
mente aparente. Retorno a esta questão para problematizar se houve uma justiça
colonial, pois julgo melhor tratá-la como uma justiça na primeira modernidade,
portanto que era parte do mundo ibérico, como tal.
Por outro lado, para pensar as fronteiras imprecisas de limites entre atribui-
ções, favorecendo o distanciamento da eficaz aplicação da justiça e a aproximação
com a prática do abuso. Pergunto, na verdade, se a precisão de limites entre cargos e
funções é um problema para a época colonial ou se é um problema nosso e, também,
chamo à reflexão se a prática do abuso também não poderia ser interpretada às luz
do arbítrio de um juiz que era regido por sua consciência, uma consciência de viés
moral, antes de qualquer sentido. Sejam quais forem os caminhos a percorrer, os
de cunho cartesianos e rigoristas ou o horizonte casuístico de reflexão.
O fato é que, a despeito da nebulosa construção do ambiente judicial e da aplica-
ção da justiça pela historiografia, a presença de juízes foi constantemente requerida
e o pouco que temos de registros processuais apontam para novas explicações sobre
este fenômeno, inconclusivas, portanto, para uma historiografia que referencia mo-
mentos como aquele em que era criada a Relação de Recife para explicar ocorrências
de outros tempos, ainda que em 1821/1822 a resposta sob a forma de alvará ainda
dialogasse com o que se pedira em outro tempo.

172
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175
176
CAPÍTULO 7 - O poder judiciário no Brasil
oitocentista: dois momentos de sua formação
e evolução

Marcelo Casseb Continentino1

1. Introdução

O presente capítulo tem por objetivo analisar o ambiente jurídico em que ocorreu
a formação do Poder Judiciário brasileiro ao longo do século xix, com ênfase no
período de vigência da Constituição do Império de 1824 e da transição do sistema
constitucional brasileiro monárquico para o republicano.
Duas razões principais definem a presente escolha que, sob certo ponto de vis-
ta, é arbitrária, tendo em vista que a história do direito constitucional brasileiro se
deixa reconduzir a tempos mais remotos. Mas não só por isso. É que, até 1824, não
se poderia afirmar a existência de uma magistratura brasileira que teria começado
a se estruturar do ponto de vista formal a partir da vigência de uma Constituição, de
modo que toda a estrutura e funcionamento dependiam das regras, ordens e deci-
sões da coroa portuguesa, bem como de magistrados formados na Europa que depois
viriam a exercer seu ofício no Brasil. Desse modo, podemos considerar o ano de
1824 como marco temporal para início do estudo sobre o Poder Judiciário brasileiro.
Ainda, ao longo do século xix, o Poder Judiciário no Brasil passou por uma
longa e profunda transformação, cujas consequências foram fundamentais para a
configuração institucional com que hoje o Poder Judiciário apresenta-se estruturado
na Constituição Federal de 1988, a qual faz dele um dos pilares do Estado Democrá-
tico de Direito. Portanto, o século xix foi fundamental para a configuração atual de
que se reveste o Poder Judiciário dos nossos dias.

1  Doutor em Direito pela Universidade


de Brasília (unb)/Università degli Studi 2. Período pré-constitucional: antecedentes
di Firenze. Professor da Faculdade de
Direito da Universidade de Pernambuco
(fcap/upe) e do Programa de Pós- A Constituição do Brasil de 1824, marco fundacional do Brasil Império pós-inde-
Graduação em Direito (Mestrado) da
Universidade Federal Rural do Semi- pendente, instituiu formalmente o Poder Judiciário brasileiro. Isso não significa,
Árido (ufersa). Procurador do Estado de contudo, que não houvesse até então o exercício das funções judiciais no Brasil.
Pernambuco. Sócio efetivo do Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico Mesmo sem um Poder Judiciário estruturado (até porque tal instituição como poder
Pernambucano (iahgp). independente somente poderia surgir a partir das Constituições do século xix), a

177
função judicial, desde a chegada dos portugueses, começou a ser desempenhada no
Brasil por desdobramento da complexa estrutura burocrático-administrativa colo-
nial. (hespanha, 2006, p. 59-81).
Aos poucos foram criados e instalados órgãos judicantes no Brasil e se deu o
início da estruturação do complexo sistema de justiça colonial com a designação de
juízes, promotores, ouvidores, procuradores etc. A título meramente exemplificativo,
pode-se registrar a instalação, em 1609, por ordem do Rei de Portugal, da Relação da
Bahia, marcando o início da história do primeiro tribunal de justiça de nosso país,
composto por magistrados vindos diretamente da corte portuguesa. (paranhos, 2001,
p. 59-84). Em 1752, ocorreu o início dos trabalhos do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro, isto é, a Relação do Rio de Janeiro, criado em 16 de fevereiro de 1751, por
decisão real, que, em 1808, seria elevada à condição de Casa de Suplicação, a instân-
cia máxima decisória na estrutura judicial existente. (wehling, 2004, P. 219-246).
Em 1811, criou-se a Relação do Maranhão em substituição à junta de justiça, já em
funcionamento naquela região desde 1777. (leal, 1922, p. 1117-1118).
Já a Relação de Pernambuco, que daria origem décadas depois ao Tribunal de
Justiça de Pernambuco, foi criada pelo Alvará Régio de 6 de fevereiro de 1821, em
decorrência não só das queixas suscitadas pelos habitantes da região, dada a dis-
tância que precisavam superar para apresentar recursos às decisões judiciais e a
demora relacionada à finalização dos processos, mas também pela promissora situ-
ação financeira e comercial da Província. Na República, entretanto, por ato da Junta
Governativa do Estado, foi convertida no Superior Tribunal de Justiça do Estado.
(valle, 1983, p. 46 e ss e p. 215 e ss)2.
As Relações, ensinam Arno e Maria José Wehling (2004, p. 83 e ss), consistiam
em “tribunais de segunda instância para os quais eram remetidas as apelações e os
agravos de sentenças e despachos dos juízes ordinários e dos juízes de fora”. Nesses
tribunais também se concentravam funções políticas e administrativas e, por vezes,
poderiam exercer a correição na respectiva área de jurisdição.
Contudo, para que se possa compreender minimamente como as relações se
transformaram nos tribunais de justiça, com a respectiva extensão de poderes e
atribuições, faz-se necessário investigar o contexto jurídico-político da época, quan-
do se recepcionaram com muita intensidade as doutrinas do constitucionalismo
no Brasil, as quais ajudaram a conformar as instituições jurisdicionais nacionais.

3. Momento constituinte: a Assembleia Constituinte de 1823 e o


imaginário em torno dos juízes

Os processos de elaboração de Constituições são momentos fundamentais da jornada


de qualquer comunidade política para os interessados na sua história constitucional

2  No referido alvará régio de 1821, o rei dom João vi reconheceu: “Eu El-Rei faço saber aos que este
alvará com força de lei virem, que tendo-me representado a Câmara da cidade de Olinda as dificuldades
que experimentam os habitantes da Província de Pernambuco, de recorrerem à Relação da Bahia, para
prosseguimento de suas causas, pela grande distância de uma a outra Província, avultadas despesas,
separação de suas famílias, interrupções dos trabalhos de que tiveram a sua subsistência e outros
muitos inconvenientes ainda quando são entregues a Procuradores, o que tem induzido a muitos
deixarem sem última decisão os seus pleitos, preferindo antes perdê-los do que sujeitarem-se a tão
grandes incômodos (...)”. (valle, 1983, p. 46).

178
porque, dentre outras razões, permitem compreender muitos dos valores, sentimen-
tos, crenças, costumes, princípios compartilhados pela sociedade, das divergências
profundas, dos conflitos crônicos, das frustrações ancoradas em experiências do
passado e da esperança lastreada em um horizonte promissor de expectativas sobre
um futuro melhor. (cau, 2018, p. 147-168).
Com tal premissa, é possível ter-se por válido que um primeiro esforço de
interpretação sobre o papel institucional do Poder Judiciário no Brasil e a percepção
da imagem dos juízes pode ser forjado à luz dos anais da Assembleia Constituinte
de 1823, em cujo âmbito os constituintes travaram debates intensos sobre a reali-
dade social brasileira, o princípio da separação dos poderes e a organização política
do futuro Império, concedendo pistas importantes sobre as ideias e os pensadores
que lhes influenciaram.
Reconhecidas as limitações próprias de que tais fontes históricas padecem3, o
exame dos anais da Constituinte de 1823 nos fornece valioso repertório probatório
para avançar no entendimento compreensão das soluções institucionais adotadas na
estruturação dos poderes do Império, que terminaram por se refletir na Carta de 1824.
Por mais que historiadores como John Armitage (1914, p. 57) e Francisco Adolfo
de Varnhagen (mello, 1973, p. 84-86) tenham retratado um quadro desfavorável à
Constituinte de 1823, porque supostamente composta por pessoas despreparadas e
ineficientes, sabemos que, dentre os constituintes, figuravam intelectuais, estadis-
tas e políticos de distinta formação profissional e acadêmica, de tal modo que parte
significativa desses representantes estava familiarizada não só com os grandes
acontecimentos constitucionais de então, como também com as doutrinas políticas
consagradas e as ideias constitucionais em ampla circulação naquele momento, que
configurava “tempos de Constituição”. (continentino, 2017, p. 15-42).
E o primeiro ponto que chama a atenção é o relativo ao imaginário construído
em torno dos juízes. Sim, embora se estivesse por criar e instituir o Poder Judiciário
brasileiro, os juízes no Brasil, fossem eles portugueses americanos ou portugueses
europeus, já atuavam e tinham possibilitado a formação de uma opinião a seu res-
peito, nem sempre obsequiosa.
O fato é que, em geral, não gozavam de boa fama. Seja pela falta de preparo
técnico, seja pela corrupção acintosa, seja pela parcialidade escancarada nos julga-
mentos, seja pela maléfica submissão à vontade imperial ou dos detentores de poder,
de sorte que a justiça brasileira era muito mal avaliada pela sociedade. De todos os
males, contudo, segundo apurou o brasilianista Thomas Flory (1975, p. 665-666), o
flagelo que mais contundentemente acometia a imagem dos juízes no Brasil era o
recebimento de propinas.
O pesquisador viajante francês, Louis François Tollenare (2011, p. 308)4, que
entre os anos de 1816 e 1818 visitou as províncias de Pernambuco e da Bahia, em

3  Naturalmente, as fontes históricas oficiais apresentam seus limites para o conhecimento histórico,
conforme apontaram Hugo Pereira, Mônica Dantas e Júlio Velloso. (pereira, 2017, p. 31-52; velloso;
dantas, 2018, p. 45-71), de forma que, no presente texto, tentamos analisar fontes de outra natureza,
como as doutrinárias e testemunhais.
4  Eis parte da anotação de Tollenare (2011, p. 308) em que apresenta panorama pouco apreciável da
práxis forense brasileira: “É lamentável dizê-lo, mas a justiça é muito venal. Consigno isto aqui porque
é a opinião geral; quero crer que há exceções; citam-nas. É preciso que os litigantes lisonjeiem os juízes;
o sucesso das causas depende das recomendações. O governador ordena ou impede os julgamentos;
espreita-se frequentemente a sua opinião para agir de acordo com ela. Com vencimentos de 300 a

179
seu diário de viagem, deixou registrado seu desencanto com o sistema judicial bra-
sileiro: “É lamentável dizê-lo, mas a justiça é muito venal”.
Essa visão, no entanto, não era isolada. Antes, reverberava na sociedade e ecoou
quando do processo de elaboração da nova Constituição. Na Assembleia Constituinte
de 1823, diversos deputados testemunharam as arbitrariedades, os abusos e as ile-
galidades cometidos pelos juízes.
O deputado Carneiro da Cunha (brasil, 2003, Tomo i, p. 341)5 protocolou o re-
querimento de providência em face da “toda a especie de violencias e despotismos
da parte dos Magistrados”, para que o Governo interviesse em favor de “victimas
da arbitrariedade judicial”, recomendando aos juízes a conclusão dos processos
pendentes. O deputado José Martiniano de Alencar (brasil, 2003, Tomo iii, p. 300)6
advertia seus pares sobre a má reputação de que gozavam os juízes luso-brasileiros,
que tinham angariado “contra si a indignação e o odio do Povo”.
Uma das vozes mais respeitadas e autorizadas da Assembleia, seja por seus
conhecimentos jurídicos e políticos, seja por sua eloquência e retórica, reiterando a
imagem aviltada que a sociedade tinha dos juízes ante o cometimento de arbitrarie-
dades e de injustiças diversas, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva
(brasil, 2003, Tomo i, p. 173)7 propugnava pela eliminação de qualquer margem de
discricionariedade judicial. Para ele, toda e qualquer margem discricionária deveria
ser eliminada da lei, pois se não os juízes se valeriam dela não só para legislarem
usurpando a função própria dos legisladores, mas, o que seria pior ainda, para abu-
sarem de suas prerrogativas, como sempre o fizeram.
Os juízes, concluía Antônio Carlos de Andrada (Ibid., p. 72),

são servos da Lei, são seos executores; se não as executão tornão-se culpa-
dos. Idéa tristíssima! Podem os Magistrados faltar aos seos deveres a seo bel
prazer? Não de certo; em quanto a Lei está em vigor devem applica-la; se ella
he injusta devemos revoga-la, nós que o podemos fazer.

400.000 réis (2.000 a 2.400 francos), vários juízes vivem com esplendor. Não são inamovíveis. Em
todos os países lamentam-se os processos, mas, sobretudo neste”.
5  Antes de sugerir sua indicação, o constituinte Carneiro da Cunha desabafou perante seus colegas
(brasil, 2003, Tomo I, p. 341): “Bem tristes provas nós temos na opressão dos Povos do Brasil, que
por tres seculos sofrerão toda a especie de violencias e despotismos da parte dos Magistrados sempre
prontos a sacrificar a justiça a seos sórdidos interesses e paixões: não fallo de todos porque alguns
tem havido, mas poucos, de honrado caracter e merecedores do nosso reconhecimento”.
6  Era, realmente, sombrio o diagnóstico realizado pelo Sr. Alencar (brasil, 2003, Tomo iii, p. 300):
“com tudo sempre direi que atacar todos os individuos da classe da Magistratura he uma completa
injustiça, pois entre elles existem alguns que são homens de bem e Juízes probos; mas que diser-se
igualmente que a classe da Magistratura tem entre nós adquirido contra si a indignação e odio do Povo,
he outra verdade innegavel; e a desgraça he que eu acho no Povo alguma rasão para este procedimento.
Com effeito até o presente em todos os ramos da Administração Publica se notavão prevaricações;
isto he innegavel; porém os Magistrados erão aquelles de quem o Povo mais immediatamente recebia
os effeitos do despotismo, e por isso devia aborrecer-se mais. (...); era porém o Magistrado quem
hia até o interior das terras levar a miséria e a opressão ao desgraçado Cidadão; era o Magistrado
quem immediatamente attentava contra a vida, honra, e fazenda do Cidadão; e portanto he contra o
Magistrado que existe maior odio”.
7  É bastante expressivo seu aparte (brasil, 2003, Tomo i, p. 173): “quando se deixa ao arbitrio do Juiz
a graduação das penas, faz este de legislador, e Legisladores somos nós. Não deichemos esta porta
aberta para os Juízes abusarem como tem feito até agora; elles não devem fazer mais do que dizer – o
crime he este, e a pena que a Lei lhe impoem he esta – Eis o que eu pertendo que os Juizes fação, e
nada de applicar penas pelo seo aribitrio”.

180
O deputado Campos Vergueiro (brasil, 2003, Tomo III, p. 281-282), de igual
modo, denunciava a malevolência das leis e dos juízes, particularmente sua im-
punidade, já que raramente eram condenados pelas arbitrariedades cometidas. Ele
chegou ao ponto de propor emenda recomendando ao governo verificar a respon-
sabilidade de autoridades judiciárias por abusos e ilegalidades. (brasil, 2003, Tomo
II, p. 669). Esse tipo de medida não era novidade na Constituinte, caso nos lembre-
mos da providência requerida pelo deputado Carneiro da Cunha8 em face da “toda a
especie de violencias e despotismos da parte dos Magistrados” para que o governo
interviesse em favor de “victimas da arbitrariedade judicial” e recomendasse aos
juízes a conclusão dos processos.
Tratava-se, pois, de um mal secular e de tempos imemoriais, esse que com-
punha a tradição de corrupção na magistratura luso-brasileira. O recebimento de
propinas por parte dos juízes configurava um dos seus piores flagelos. Outro fator
que também contribuía para a formação dessa visão hostil advinha do esnobismo
e do elitismo da magistratura portuguesa, do corporativismo da classe e do cultivo
da mística da educação comum coimbrã. (flory, 1975, p. 665-666).
A esses elementos, somava-se outro não menos relevante: característica mar-
cante herdada pela magistratura brasileira da portuguesa, era o amplo papel institu-
cional desempenhado pelos juízes no sistema de organização política do governo. O
magistrado era um privilegiado ator político, não restringindo sua atuação à mera
aplicação da lei, mas funcionava como um agente de calibração entre os interesses
locais e do poder central. Assumiam a condição de representantes da soberania real
portuguesa na Colônia de modo que a reação brasileira contra o sistema colonial e o
domínio português, em parte, foi canalizada contra os próprios juízes que sofreriam
duros golpes na Constituinte (Ibid., p. 665-666).
Em sua primeira oportunidade, cristalizada com a Constituinte, os brasileiros
opuseram-se a esse tradicional sistema de relações promíscuas entre Executivo e
Judiciário e, ao lado de outras medidas, a exemplo do rígido regime disciplinar e
punitivo dos juízes, instituíram o tribunal do júri civil e criminal como forma de
assegurar a independência do Poder Judiciário contra as indevidas intromissões
governamentais, consolidando o princípio da separação dos poderes.
Um dos objetivos dos constituintes era efetivar a independência dos juízes.
Em seu Projeto de Constituição, previa-se que somente por sentença os magistra-
dos perderiam seus cargos, embora coubesse genericamente ao imperador prover
os empregos civis não eletivos e militares, bem como suspender e remover os em-
pregados na forma da lei. O Projeto de 1823 reconhecia sua inamovibilidade, mas
admitia a mudança dos juízes de primeira instância no tempo, modo e lugar que a
lei determinasse, o que criaria uma brecha legal para as interferências do Execu-
tivo no Poder Judiciário à semelhança do que ocorreu com a Constituição de 1824.
O exame das atas da Constituinte, em suma, deixa-nos perceber que o pensa-
mento constitucional no Brasil, que tinha por referência o modelo constitucional
francês, espelhava uma realidade institucional em que a magistratura não gozava

8  Eis o testemunho do Sr. Carneiro da Cunha (brasil, 2003, Tomo i, p. 341) ao sugerir sua indicação:
“Bem tristes provas nós temos na opressão dos Povos do Brasil, que por tres seculos sofrerão toda
a especie de violencias e despotismos da parte dos Magistrados sempre prontos a sacrificar a justiça
a seos sórdidos interesses e paixões: não fallo de todos porque alguns tem havido, mas poucos, de
honrado caracter e merecedores do nosso reconhecimento”.

181
de credibilidade social, de boa reputação, de imparcialidade no exercício de suas
funções, nem de preparo técnico. Esse pensamento não se desenvolveu em abstrato,
e sim em face dos problemas históricos e concretos em que se achavam os atores
políticos e das soluções que se pretendiam implementar.
A discricionariedade judicial, então combatida, consistia na margem de con-
formação legal que tinha o juiz para, a título de aplicar a lei, revelar seu verdadeiro
sentido no caso concreto. Esse processo, como sabemos hoje, nada mais é do que a
(inevitável e inerente) interpretação jurídica; porém, naquela época, procurou-se
limitar ao máximo o ato de interpretação pelo juiz, já que socialmente percebido
como fonte para práticas judiciais ilegítimas e iníquas.
Em síntese, dentre as ideias em circulação na Constituinte, Montesquieu foi
uma das principais referências intelectuais para os constituintes e elaboradores da
Constituição de 1824. Devemos ressaltar que não se deu uma simples adesão de suas
ideias ou de sua formulação do princípio da separação dos poderes, mas que, diante
da realidade brasileira na qual a magistratura era fonte de opressão e de violação a
direitos, sua teoria dos poderes oferecia soluções adequadas às exigências da ordem
constitucional a serem instauradas no Império brasileiro. Destarte, o Poder Judi-
ciário foi estabelecido na Constituição do Império como um poder extremamente
dependente do Executivo e a ele subserviente.

4. Poder Judiciário na Constituição Imperial de 1824

Infere-se da discussão desenvolvida no item anterior que o barão de Montesquieu


teve uma presença marcante da Constituinte de 1823. O autor da obra seminal “Do
Espírito das Leis”9 foi o mais citado, discutido e cortejado de todos os pensadores du-
rante os trabalhos da Assembleia10. O mais criticado deles foi Rousseau, nome cuja
simples pronúncia já trazia a pecha da exaltação e do radicalismo que constituíam
um risco gravíssimo para qualquer nação, conforme os acontecimentos revolucio-
nários na França denunciavam.
A polarização que os dois filósofos representaram, em termos de ruptura e de
continuidade com a ordem jurídico-política preexistente, permite entender o porquê
de Montesquieu ter sido o grande pensador em evidência entre nós, já que seu traço
característico, a moderação, rejeitava posturas radicais de rupturas profundas com a
ordem vigente e se amparava num constante relativismo e reformismo11.

9  Sobre ele, José da Silva Lisboa (1822, p. 5) teceu elegante comentário: “Ainda que depois do celebrado
Presidente de Montesquieu muito se tenha escrito sobre a Sciencia do Governo, e Constituição dos
Estados, comtudo he reconhecido, que a sua Obra do Espirito das Leis he ainda dos melhores livros,
onde, bem que abunde de paradoxos, e erros, se ensinão excellentes Instrucções Politicas, ou Maximas
Fundamentaes para a boa Consittuição e Legislação”.
10  Embora a Assembleia Constituinte tenha sido dissolvida pelo imperador, Dom Pedro, por meio do
Decreto de 12 de novembro de 1823, as discussões que lá se travaram constituem uma fonte histórica
riquíssima para nossa história constitucional, que nos dão indícios preciosos sobre o pensamento
político e constitucional da época, bem como o contexto histórico e a realidade institucional existente.
Ademais, alguns de seus membros, sendo de se destacar o deputado José Joaquim Carneiro de Campos,
integraram o Conselho de Estado, criado no dia seguinte à dissolução, que elaborou o novo Projeto de
Constituição, que, além de haver se em grande medida espelhado no Projeto elaborado pela Assembleia,
foi outorgado por Dom Pedro, com poucas alterações.
11  Charles Louis, filho de uma família de nobres e vinculada ao mundo da toga, herdou de seus pais
o título de barão de La Brède e o cargo de conselheiro do Parlamento de Bordeaux, em 1713; com

182
Nesse contexto, foi o constitucionalismo francês o modelo constitucional de
referência na configuração significativamente limitada do Poder Judiciário brasilei-
ro. (continentino, 2015, p. 69-185). Além desse fundamental pensador político, foi
também relevante no processo de elaboração da Constituição do Brasil Benjamin
Constant pela inspiração exercida sobre dom Pedro i e os “padres fundadores” da
Constituição de 1824, mediante a instituição do Poder Moderador. A teoria da se-
paração de poderes, positivada na Constituição do Império, ainda que recepcionada
com as modificações inspiradas na doutrina de Benjamin Constant, foi predomi-
nantemente fundamentada no pensamento de Montesquieu.
Por outro lado, o Brasil independente via-se diante da monumental tarefa de
construir sua própria ordem política e jurídica com suas respectivas instituições.
Só que o imaginário que a sociedade alimentava em torno do papel institucional
exercido pelos juízes e do funcionamento da justiça, como visto acima, não des-
toava muito daquele existente na França,12 o que sugeria a adoção de uma solução
institucional semelhante. Ou seja, não havia um ambiente institucional favorável
à constituição de uma magistratura forte, atuante e institucionalmente bem estru-
turada à semelhança daquela norte-americana, que poucos anos depois seria com
extrema proficiência descrita para a França e para o mundo em A Democracia na
América na pena, de Alexis de Tocqueville.
Conforme analisamos no item anterior, os constituintes não foram entusias-
tas do Poder Judiciário. Também não o foram os membros do Conselho de Estado
designados por dom Pedro I para elaborarem a futura Constituição. Esse é um dado
muito característico do imaginário social e político, refratário à atuação judicial e
que se deixou espelhar na Constituição, pois a ênfase constitucional sobre os des-
vios de conduta e sobre a responsabilização dos juízes sugere a existência de um
significativo receio contra a classe dos magistrados.
A Constituição do Império de 1824, na seção “Do Poder Judicial”, revelando
grave consternação contra o abuso das funções judicantes, reservou quatro artigos
para tratar sobre as punições ou faltas disciplinares cometidas pelos magistrados:

Art. 154. O Imperador poderá suspendel-os por queixas contra elles feitas,
precedendo audiencia dos mesmos Juizes, informação necessaria, e ouvido o

a morte de seu tio paternal Jean-Baptiste, em 1716, aos vinte e sete anos, recebeu o título de barão
de Montesquieu e de presidente do citado Parlamento, função que exerceu por alguns anos até que
renunciou ao cargo de magistrado em 1726 e vendeu-o quando tinha apenas trinta e sete anos.
Embora tenha sido um magistrado de atuação discreta, sua experiência pessoal frente a tão distinta
função pública foi fundamental e deixou marcas profundas em sua obra e teorias, particularmente a
da moderação (morgado, 2011, p. 10; segado, 2009, p. 61; melo, 2008, p. 201-249).
12  Para uma visão de como a sociedade percebia o Poder Judiciário francês nos idos do século xviii,
vide o “Relatório sobre a Organização do Poder Judiciário”, de 17 de agosto de 1789, elaborado por
Nicolas Bergasse, um dos maiores seguidores de Montesquieu, que foi membro da Assembleia Nacional,
de 1789. Bergasse (1789) denunciou as mazelas que acometiam a Justiça francesa, reivindicando a
refundação do Poder Judiciário: as pessoas tinham medo dos juízes; eles eram corruptos e despreparados
tecnicamente, além de não poderem ser responsabilizados por atos ilegais e abusivos, cometidos
no exercício de suas funções; a nomeação dos juízes, bem como a suspensão e a demissão, eram
efetivadas pelo monarca, o que gerava sua dependência ao Poder Executivo; as partes litigantes é
que remuneravam os juízes, o que comprometia a imparcialidade, sempre em favor dos mais ricos;
não existia o devido processo legal; o cargo de juiz era comercializável e objeto de herança; dentre
outros males. A queixa mais contundente, e a mais impressionante aos olhos de hoje, referida no
Relatório de Bergasse, dizia respeito ao fato de os juízes não se vincularem às leis, existindo margem
considerável de discricionariedade, e de eles, além disso, incorrerem em constante interpretação das
leis, o que era fonte das maiores arbitrariedades e insegurança que se poderia imaginar.

183
debret, Jean-Baptiste. Guirlanda ornamental iluminada
para o Juramento Solene do Imperador.
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do. Debret e
o Brasil: obra completa: 1816-1831. 3. ed. Rio de Janeiro:
Capivara, 2013. p. 354.

184
185
Conselho de Estado. Os papeis, que lhes são concernentes, serão remettidos
á Relação do respectivo Districto, para proceder na fórma da Lei.
Art. 155. Só por Sentença poderão estes Juizes perder o Logar.
Art. 156. Todos os Juizes de Direito, e os Officiaes de Justiça são responsaveis
pelos abusos de poder, e prevaricações, que commetterem no exercicio de
seus Empregos; esta responsabilidade se fará effectiva por Lei regulamentar.
Art. 157. Por suborno, peita, peculato, e concussão haverá contra elles acção
popular, que poderá ser intentada dentro de anno, e dia pelo proprio queixoso,
ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo estabelecida na Lei.

Sobre a atuação dos juízes, a Constituição foi contundente no art. 15213: os juízes
aplicam a lei. Já se sabia, àquele tempo, e isso inclusive foi denunciado por alguns
dos constituintes brasileiros, que a interpretação das leis constituía uma prática
que poderia alterar substancialmente o conteúdo delas. Nesse sentido, o renomado
historiador do direito constitucional alemão, Michael Stolleis (2011, p. 3-17), já nos
chamara a atenção para o fato de que, desde a Idade Média, o direito de legislar en-
volve a prerrogativa de interpretar a lei autêntica e legitimamente.
No período do Absolutismo, a interpretação foi uma prerrogativa do monar-
ca, que poderia delegá-la a funcionários de sua confiança. A partir do século xix,
o cenário começou a se modificar devido a uma série de fatores, dentre os quais
destacamos a consagração da efetiva independência do Poder Judiciário.
A independência do Poder Judiciário significava resguardar os juízes da su-
jeição, da influência ou da pressão dos demais poderes políticos, em especial do
Executivo. No caso do Brasil, a Constituição de 1824, embora tenha aclamado no art.
151 e 153 que os juízes seriam independentes e “perpétuos” (ou inamovíveis), não
assegurou a efetiva independência e perpetuidade dos juízes, na prática:

Art. 151. O Poder Judicial independente, e será composto de Juizes, e Jurados,


os quaes terão logar assim no Civel, como no Crime nos casos, e pelo modo,
que os Codigos determinarem.
[...].
Art. 153. Os Juizes de Direito serão perpetuos, o que todavia se não entende,
que não possam ser mudados de uns para outros Logares pelo tempo, e ma-
neira, que a Lei determinar.

Bastaria lembrar que, nos termos da Constituição de 1824, ao imperador, ora


atuando como Poder Moderador, ora atuando como Poder Executivo, cabia nomear
os magistrados (art. 102, iii), suspendê-los (art. 101, vii, c/c art. 154)14, conforme
previsão da própria Carta Constitucional.

13  Art. 152 da Constituição de 1824: “Os Jurados pronunciam sobre o facto, e os Juizes applicam a
Lei”.
14  Art. 101, vii, da Constituição de 1824: “O Imperador exerce o Poder Moderador: [...]
vii. Suspendendo os Magistrados nos casos do Art. 154”.
Art. 154 da Constituição de 1824: “O Imperador poderá suspendel-os por queixas contra elles feitas,
precedendo audiencia dos mesmos Juizes, informação necessaria, e ouvido o Conselho de Estado”.

186
Anos mais tarde, quando da discussão da lei instituidora do Supremo Tribunal
de Justiça do Império, cuja criação estava prevista no art. 163 da Constituição de
1824, seria reiterada essa visão em torno dos juízes e do Poder Judiciário, que foi
estruturado em dependência ao Poder Executivo e com a função primordial de apli-
car as leis civis e criminais. Por consequência, a organização dos tribunais seguiria
essa mesma premissa, de modo que o Supremo Tribunal de Justiça foi concebido
em termos tais que o exercício de suas atribuições jamais extrapolaria as disposi-
ções constitucionais e, sobretudo, jamais concorreria com as funções legislativas
da Assembleia Geral.
A Lei de 18 de setembro de 1828, que criou o Supremo Tribunal de Justiça
do Império, manteve-se dentro da tradição judicial portuguesa e pouco inovou em
termos de possibilidade de construir um sistema judicial novo, dotado de maior
largueza institucional.
É preciso reconhecer, entretanto, que nos debates legislativos despontaram
parlamentares que se inspiraram na experiência do Poder Judiciário norte-ameri-
cano e inglês para justificarem a criação do Supremo Tribunal de Justiça com maior
projeção institucional. Foi o caso do deputado Paula Sousa (brasil, 1978, p. 188 e
ss) que, citando a experiência dessas duas nações civilizadas dotada de um sistema
judiciário excelentemente constituído, procurou aprovar uma emenda que vincu-
laria o tribunal inferior ao julgamento do Supremo Tribunal de Justiça do Império
quando este decidisse que a sentença fosse nula ou injusta.
Para o deputado Paula Sousa, seria impossível que o Supremo Tribunal cum-
prisse sua destinação institucional de instância uniformizadora do direito se, dian-
te da declaração de nulidade ou da injustiça de uma sentença, fosse permitido às
relações julgarem essa mesma sentença válida ou justa, isto é, contrariar a decisão
do Supremo. O objetivo de aquele tribunal superior, dizia o referido parlamentar,
“coarctar ou sanar os erros dos tribunais inferiores”, seria ilusório15. Além do mais,
sua proposta de vinculação das relações permitiria apurar a responsabilidade dos
magistrados pelo julgamento nulo ou injusto16.
O deputado Costa Aguiar (brasil, 1978, p. 183-187) somava-se ao pequeno grupo
dos que pretendiam instituir papel institucional mais relevante para o Supremo
Tribunal de Justiça. Para além da discussão daquele projeto, o deputado lembrou
que chegaria o tempo em que os legisladores deveriam propor a alteração da própria
Constituição, já que as atribuições por ela previstas para o Supremo Tribunal quan-
to à concessão e à denegação de revistas estariam bem aquém do potencial e dos
benefícios que ele poderia produzir. À luz dos valores do bem público e da justiça,
ele sustentou que seria “melhor que as sentenças fossem ali mesmo reformadas e
revistas, estando nos termos desta concessão”.
A vasta maioria, contudo, logo opôs o art. 164, I, da Constituição do Império
contra tais propostas. O Supremo Tribunal de Justiça fora concebido com a natureza

15  O deputado Paula Sousa (brasil, 1978, p. 100-103) provocou seus opositores: “Julgando o Supremo
Tribunal que a sentença é nula, sendo ela outra vez julgada válida, produzirá o bem a que nos propomos?
Depois não será um desprezo feito ao Tribunal Supremo a revogação de sua decisão?”.
16  Posteriormente, o mesmo deputado Paula Sousa (brasil, 1978, p. 100-101) responsabilizaria as falhas
da lei, em função do parâmetro constitucional escolhido: “Eu entendo que este Tribunal Supremo de
Justiça é uma imitação do Tribunal de Cassação da França, porque este artigo é tirado da Constituição
de Lisboa; a Constituição de Lisboa tirou da Constituição de Espanha; e esta tirou da da França”.

187
de corte de cassação. Sua feição institucionalmente retraída, segundo alegavam17,
seria uma exigência da própria Constituição que, além de limitar a apreciação do
recurso de revista à concessão ou à denegação, estabelecera, no art. 15818, que as re-
lações tinham a competência de julgar em segunda e última instância. Desse modo,
jungir o Supremo Tribunal de Justiça com prerrogativas de julgar direta, definitiva
e soberanamente os acórdãos por ele anulados em sede de recurso de revista por
injustiça notória e nulidade manifesta representaria criar uma terceira instância,
o que violaria o princípio consagrado na Constituição do duplo grau de jurisdição.
(brasil, 1978, p. 150-151, p. 180-183 e p. 191-194).
É interessante observarmos, ainda, alguns detalhes das considerações reali-
zadas nesse debate, porque nos revelam elementos sobre a compreensão da inte-
pretação judicial, sobre a dimensão institucional do Supremo Tribunal de Justiça e
o recurso de revista por ele julgado, sobre a preeminência e a metafísica imperial e
sobre o esforço de não se criar um tribunal de cúpula que pudesse fugir ao controle
do imperador e ameaçasse sua supremacia imperial.
Nesse contexto, destacamos a manifestação do deputado Almeida e Albuquer-
que (Ibid., p. 36), que reivindicou a primazia da soberania popular e a limitação da
liberdade dos juízes ao estrito teor da lei, com o fim de impedir qualquer margem
de discricionariedade judicial: “é do interesse político que se não autorize um juiz
a fazer-se superior à lei, e a ordenar o contrário do que a lei ordena”. Com enten-
dimento similar, o deputado Custódio Dias (Ibid., p. 34) sugeriu que se reduzissem,
ao máximo, os poderes discricionários dos juízes, quanto ao cabimento do recurso
de revista: “quisera até que com eles se acabasse, se é possível, porque temos visto
o poder discricionário ir ao infinito”.
Revelando as tensões mencionadas acima, o senador marquês de Caravelas
(Ibid., p. 231-234 e p. 208-213) proclamou que o Supremo Tribunal de Justiça seria
“um Argos vigilante que observa a justa aplicação da lei”, o “santuário da justiça”,
e que o verdadeiro fim do recurso de revista seria “sustentar a harmonia e unifor-
midade da aplicação das leis”. No entanto, o marquês de Caravelas (brasil, 1978, p.
213) foi contrário a que o Supremo realizasse a “inspeção do Poder Judiciário” e a
que “todas as resoluções deste Poder devem vir a ele para manter a uniformidade da
nossa jurisprudência”. Em sua visão, o objetivo da lei em votação seria determinar
as atribuições constitucionais, em especial as de conceder e denegar revistas. A vi-
gilância geral sobre o Poder Judiciário, essa competência pertenceria ao imperador.
Essa compreensão das funções institucionais do Supremo Tribunal de Justiça,
contudo, foi posta em xeque pelo visconde de Alcântara (Ibid., p. 232-233). O ex-

17  O deputado Teixeira Gouveia contestou vigorosamente, dizendo que, nos termos da Constituição,
não se admitiria que a revista consistisse em reformar ou declarar nula a sentença, devendo o processo
voltar à relação para receber a última decisão, porquanto o Supremo não emitiria juízo definitivo.
O deputado Bernardo Pereira de Vasconcelos entrou nessa discussão e afirmou que o Supremo “não
pode dar sentença final no caso de revista, porque diz a Constituição conceder ou denegar revistas”,
mesmo achando que a solução da Constituição não fosse boa. O deputado Almeida e Albuquerque
concordou, acrescentando que conferir-se poder ao Supremo para julgar as revistas acarretaria a criação
de uma terceira instância, o que seria contra a Constituição. O parlamentar Lino Coutinho atacou
a proposta de Paula Sousa, por entendê-la contrária à Constituição; seria uma terceira instância. O
deputado Xavier de Carvalho também sustentou a inconstitucionalidade da proposta de o Supremo
ser autorizado a julgar as revistas (Ibid., p. 100-105).
18  Previa o art. 158 da Constituição “Para julgar as Causas em segunda, e ultima instancia haverá
nas Provincias do Imperio as Relações, que forem necessarias para commodidade dos Povos”.

188
-chanceler da Casa de Suplicação e ex-constituinte de 1823 aludiu ao caráter manco
e contraditório do projeto de lei e propôs que se criassem outros requisitos para
o cabimento da revista, tais como “contravenção expressa da lei” e “contrariedade
de outra sentença dada em última instância entre as mesmas partes” para que se
assegurasse a uniformidade de julgamento em todas as causas.
Foi de imediato contraditado pelo visconde de Inhambupe (Ibid., p. 233-234),
ex-constituinte de 1823 e um dos redatores da Constituição de 1824, sob a alegação
de que tal uniformidade jamais seria atingida, posto que desejável. Primeiro, porque
ao Supremo Tribunal não caberia julgar, mas apenas denegar ou conceder revistas.
Segundo e mais importante, sob o nosso ponto de vista, porque a interpretação au-
têntica seria atribuição da competência do Poder Legislativo, embora o juiz detivesse
a competência para realizar a interpretação doutrinal19.
Desse modo, é importante observarmos como, desde sua fase gestacional, o
debate em torno da projeção institucional do Supremo Tribunal de Justiça suscitava
uma sensível tensão jurídica e política que moldava e definia a atividade jurisdi-
cional dos juízes e das relações.
De um lado, na esteira da tradição jurídica luso-brasileira, seriam suas atri-
buições limitadas ao que a Constituição estritamente dispunha, de modo que se
instituiria uma corte de cassação, particularmente competente para conceder ou
denegar o recurso de revista e sem julgar o mérito recursal, arriscando-se falhar o
cumprimento de sua missão institucional de uniformizar a aplicação do direito. De
outro lado, rompendo com a tradição, o Supremo seria transformado em corte de
revisão (e não apenas de cassação), o que envolveria o risco de instituir-lhe com-
petências que ou afrontariam o Poder Executivo e o imperador e os sujeitariam ao
poderio do Judiciário, ou que se tornariam conflitantes com o Poder Legislativo,
investido da função de realizar a interpretação autêntica, ou seja, a interpretação
com eficácia geral.
Outra dimensão não menos relevante da temática relativa à formação dava-se
em relação à questão da independência judicial e se desdobrava em relação à impar-
cialidade dos juízes. Na prática, a independência sobretudo em face do Poder Execu-
tivo foi um dos grandes desafios a ser conquistado, etapa fundamental no processo
de consolidação do Poder Judiciário contemporâneo como instituição de salvaguarda
dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais fundamentais.
Embora não lhe tocasse livremente remover juízes de seus ofícios, essa foi
uma prática recorrentemente adotada pelo governo sem maiores embaraços até pelo
menos o ano de 1850, quando foi editado o Decreto nº 560, de 28 de junho de 1850,
que instituiu a divisão administrativo-judicial ou judiciária das províncias em en-
trâncias. Com a divisão das comarcas em três classes (primeira, segunda ou terceira
entrância), conseguiu-se coibir em parte a prática da remoção de magistrados para
comarcas longínquas, inóspitas ou indesejáveis, o que trouxe alguma restrição ao
poder do governo de remover juízes livremente. (koerner, 2010, p. 111 e ss).

19  Na visão de Pimenta Bueno (1857, p. 69 e ss), conforme veremos no próximo item, um dos
juristas do Império que examinou o tema com a complexidade e a sensibilidade política secularmente
existente, a interpretação constituía o ato de declarar, de explicar o sentido da lei e, como veremos
adiante, classificava-se em “por via de autoridade” ou “por via de doutrina”, a qual pode ser doutrina
judicial ou doutrina comum (dos sábios ou jurisconsultos).

189
Nem interpretação, nem independência, nem papel institucional mais rele-
vante, nada disso foi conferido ao Poder Judiciário pela Constituição do Império. Sob
esse aspecto, difícil seria divisar modificações mais substanciais em face da justiça
que era praticada no Brasil, antes da Independência. Por outro lado, havia constan-
tes acusações e denúncias de abuso de poder e de violação aos direitos dos cidadãos
pelo Poder Público que, à semelhança da França revolucionária, terminaram por
favorecer a institucionalização de uma concepção de maior controle da atividade dos
magistrados. Esse era o quadro institucional brasileiro em meados do século xix.

5. Pensamento Constitucional e Poder Judiciário

A essa altura, já é possível compreender o que aconteceu ao longo do século xix no


Brasil para justificar uma nova concepção do papel institucional dos juízes, chegan-
do-se ao ponto de contemplá-los com a prerrogativa da mais alta monta, consistente
em exercer o controle da constitucionalidade das leis operando, pois, uma reviravolta
na semântica constitucional do princípio da separação dos poderes.
É importante também compreender essa profunda mudança no âmbito do
pensamento constitucional brasileiro, que ofereceu as bases do discurso legitimador
dos juízes na função de intérpretes das leis e futuros defensores da Constituição.
Sim, porque os doutrinadores brasileiros, durante muito tempo, não reivindicaram
qualquer papel de maior relevância institucional para os juízes ou criticaram a for-
ma na qual o Poder Judiciário foi estruturalmente organizado pela Constituição20.
Lourenço José Ribeiro (1977, p. 33-73), primeiro lente da Faculdade de Direito de
Olinda e responsável pela disciplina de “Direito Natural, Público, Análise da Constituição
do Império, Direito das Gentes e Diplomacia”, já em 1829, na conturbada Província de
Pernambuco, que sediara dois movimentos revolucionários de contestação da ordem
constitucional, a Revolução Republicana de 1817 e a Confederação do Equador de
1824, ensinava, numa concepção tributária a Montesquieu, que os poderes do Estado
se dividiam em dois: o Poder Legislativo, cuja função é pensar e querer; e o Poder
Executivo, que obra e executa. O Poder Judiciário não teria vez, permanecendo à
sombra dos outros dois poderes.
Para Lourenço José, o importante era que o poder não fosse concentrado em
uma única autoridade. É elucidativo o exemplo que o lente pernambucano formu-
lara: perguntava-se, em caso de violação à liberdade de imprensa, a quem o cidadão
poderia recorrer: se o ato ilegal viesse do Executivo, ele se socorreria do direito de
petição ao Legislativo; se a conduta abusiva fosse proveniente do Legislativo, o chefe
do Executivo, que não tinha interesse em que a Constituição fosse violada, não san-
cionaria a lei. Em sua concepção sobre a estruturação dos poderes, não havia espaço

20  Em parte, a falta da crítica explica-se por causa das próprias restrições legais existentes em
alguns marcos jurídicos regulatórios. Segundo o art. 7º da Lei de 11 de agosto de 1827, que criou os
Cursos de Ciências Jurídicas em Olinda e em São Paulo, os manuais escolhidos ou produzidos pelos
lentes das Faculdades de Direito deveriam ser aprovados pela Congregação e, posteriormente, pela
Assembleia Geral do Império. Essa lei traz um valioso exemplo sobre a efetiva interferência e controle
governamental nos assuntos universitários e a ínfima parcela de autonomia do docente e da própria
Universidade. O controle, de fato, foi exercido com algum êxito pelo governo, conforme lembrou José
Afonso da Silva (2007, p. 11-21), no memorável caso do livro “Princípios de Direito Natural”, escrito pelo
professor das arcadas, José Maria de Avellar Brotero que não só foi rejeitado pela Assembleia como
publicamente espinafrado pelo deputado Lino Coutinho.

190
debret, Jean-Baptiste. Dom Pedro I, Imperador do Brasil.
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do. Debret e
o Brasil: obra completa: 1816-1831. 3. ed. Rio de Janeiro:
Capivara, 2013. p. 332.

191
institucional ao Poder Judiciário, que sequer era contemplado como instituição de
efetivação da lei no caso concreto ou de proteção dos direitos individuais, função
essa essencialmente exercida pelo Parlamento. (ribeiro, 1977, p. 34-36)21.
No entanto, ainda no lastro de Montesquieu, via como necessária a existência
desse novo poder, o Judiciário, que era mera ramificação do Executivo pois, caben-
do-lhe julgar as ações conforme as leis para premiá-las ou castigá-las, evitaria a
figura do “juiz legislador” ou do “juiz em causa própria”.
Destacou, ainda, o mestre da Faculdade de Direito de Olinda, que a Consti-
tuição de 1824, em seu art. 15, viii, previu ser da competência da Assembleia Geral
fazer as leis, suspendê-las, revogá-las e interpretá-las. Para Lourenço José Ribeiro
(1977, p. 60), isso seria extremamente natural, já que a interpretação da lei consistia
na “explicação da obscuridade da lei”, ou seja, seria um ato de natureza legislativa,
inerente à atuação da Assembleia.
Ademais, por força do art. 15, ix, à Assembleia Geral cabia “velar na guarda da
Constituição”, o que, para Lourenço Ribeiro (1977, p. 61), conferia amplos e indeter-
minados poderes para guardar a Constituição. Um dos mais notáveis dispositivos da
Constituição, essa competência constituía um “princípio cognoscitivo, por onde se
pode julgar legais ou não todas as medidas ordinárias ou extraordinárias que toma-
rem os representantes da Nação, segundo as circunstâncias ocorrentes, uma vez que
não vão de encontro à divisão dos poderes e aos outros princípios constitucionais”.
Quase trinta anos depois, em 1857, foi publicada aquela que talvez tenha sido
a mais reverenciada obra de Direito Constitucional do Império, “Direito Publico Bra-
zileiro e Analyse da Constituição do Imperio”, de José Antônio Pimenta Bueno, que, em
1872, receberia o título de Marquês de São Vicente. Não obstante muitos pontos em
comum com Lourenço José Ribeiro, a começar pelo tom laudatório à Constituição
Imperial, o denominado “jurista do Império” pôde trazer uma contribuição mais
bem elaborada, no que concerne ao Poder Judiciário e à interpretação das leis.
Já na abertura da análise do Poder Judiciário, Pimenta Bueno advertia não en-
xergar qualquer relevância prática na discussão sobre a natureza do Poder Judicial,
seja como poder autônomo, seja como mera ramificação do Executivo; isso era um
resquício da era feudal. O que importava era que os modos de execução da lei, por
ambos os poderes, divergiam e que ambos eram independentes entre si e em relação
aos demais poderes políticos. O Executivo promovia o interesse social e a execução
das leis de interesse geral, enquanto o Poder Judicial tinha uma missão diferente: ele
“examina a natureza e circumstancias dos factos, ou questões de interesse privado
e as disposições das leis, ou direito respectivo, e determina, julga, declara quaes
as relações que vigorão entre essas questões e o direito”. (bueno, 1857, p. 327-328).
Aos magistrados cabia “conhecer das contestações dos direitos ou interesses
que se suscitão entre os particulares, e em punir os factos criminosos pela appli-
cação das leis civis e penaes” (1857, p. 328). Nas sociedades civilizadas, os direitos
e as relações individuais do homem somente deveriam depender da justiça e “da
protecção legal, fixa e estavel” e, jamais, serem sujeitas a vontades individuais.

21  Quando analisamos as atas da Assembleia Nacional Constituinte de 1823, verificamos que, de fato,
o Poder Legislativo rotineiramente exercia funções judiciais, sobretudo impulsionadas por diversas
petições, reclamando sua intervenção a fim de resguardar interesses ou direitos, o que se comprovava
pelo excessivo número de pleitos individuais a ela endereçados.

192
Desde logo, já é possível perceber um dado interessante da exposição de Pi-
menta Bueno, bastante reiterado em muitos dos manuais de Direito Constitucional
ao longo do século xix: ao juiz cabe aplicar as leis. Como podemos perceber, esse é
um modelo constitucional cujas raízes se deixam reconduzir à Revolução Francesa,
que procurava garantir a liberdade dos cidadãos que decorria da uniforme aplicação
das leis a todas as pessoas. Essa semântica do princípio da separação de poderes não
seria desperdiçada nem esquecida com a mudança de regime. Ela permaneceu nos
estratos semânticos das sucessivas Constituições brasileiras, inclusive na de 1988.
Enfatizamos esta ideia porque, na essência, é ela que está na base da polêmica do
denominado “ativismo judicial”22 e das inciativas contra a “ampliação” dos poderes
do Supremo Tribunal Federal.
No entanto, a teoria constitucional de Pimenta Bueno dava alguns pas-
sos adiante, quando confrontada com a de Lourenço José Ribeiro ou, ainda,
com a do mestre paulista José Maria de Avellar Brotero, autor da “Filosofia
de Direito Constitucional”, escrita em 1842. De fato, Pimenta Bueno (1857, p.
69) examinou o ato de interpretar as leis com a profundidade que a matéria
exigia: “O assumpto da interpretação das leis é muito valioso, é uma questão
fundamental que joga com importantes materias do Direito Publico, com a
divisão e independencia dos poderes, e que por isso mesmo demanda idéas
bem assentadas e exactas”.
Em sua visão (bueno, 1857, p. 69 e ss), a interpretação constituía o ato de decla-
rar, de explicar o sentido da lei. Existiam duas espécies de interpretação: “por via de
autoridade” ou “por via de doutrina”, a qual pode ser doutrina judicial ou doutrina
comum (dos sábios ou juriconsultos). A interpretação por via de autoridade, ou via
legislativa, seria a interpretação autêntica, geral e abstrata, determinando o verda-
deiro sentido da lei e afastaria qualquer dúvida em sua aplicação.
Essa interpretação pertencia exclusivamente ao Poder Legislativo, não só por-
que a Constituição assim o dispunha, mas sobretudo por causa da “natureza de nosso
governo, divisão e limites dos poderes politicos”. E arrematava seu raciocínio: “Só
o poder que faz a lei é o unico competente para declarar por via de autoridade ou
por disposição geral obrigatoria o pensamento, o preceito della”. (Ibid., p. 69-70).
É verdade que Pimenta Bueno flexibilizou um pouco o rigor da exclusividade
da interpretação em relação à função judicial. Mesmo assim, era sempre por ocasião
da necessidade da aplicação da lei ao caso concreto, quando o juiz formava sobre ela
uma inteligência, que, no entanto, não constituía regra geral e aplicável a todos os
demais casos. A decisão, nesses casos, era sempre restrita às partes do processo, pois,
do contrário, o juiz estaria a usurpar a autoridade e as prerrogativas do legislador,
fazendo prevalecer sua própria vontade e interesse em detrimento da competência
constitucional atribuída ao Legislativo, que simbolizava a soberania do povo.
Pimenta Bueno (bueno, 1857, p. 70 e p. 70-74) tinha plena consciência de que,
por meio de uma interpretação obrigatória, a vontade da lei se desvirtuaria: “é ma-

22  Esse conceito é extremamente equívoco e problemático, não podendo ser aqui discutido em
detalhes. A expressão “ativismo judicial” comporta diversos sentidos e acepções, sendo a mais comum
delas aquela que lhe agrega uma carga semântica negativa, de modo a caracterizar a atuação judicial,
especialmente a do Supremo Tribunal Federal, como usurpação das prerrogativas constitucionais
legitimamente atribuídas aos demais poderes. Sobre o tema, vide nossa pesquisa, publicada em número
anterior deste Periódico: “Ativismo judicial: considerações críticas em torno do conceito no contexto
brasileiro” (continentino, 2012, p. 123-155).

193
nifesto que a vontade do interprete é quem domina, passa a ser a verdadeira lei, e o
acto do legislador, a norma da soberania nacional, deixa de ter valor algum, serve
apenas de pretexto para o predominio de um outro poder”. Não havia dúvida, inter-
pretar era uma dimensão do ato de criar as leis, razão por que não poderia sair da
alçada do Legislativo, sendo o Executivo e o Judiciário absolutamente incompetentes
para a interpretação, por via de autoridade.
A intepretação judicial, ou por via de doutrina, seria a segunda forma que se-
ria realizada em detalhe na aplicação hipotética ou individual, por meio do estudo
dos fundamentos da lei, a fim de chegar com segurança a suas conclusões diante da
impossibilidade real de as leis previrem todas as circunstâncias dos casos regrados.
Portanto, a interpretação judicial consistia na “faculdade que a lei deu ao juiz, e que
por isso elle tem, de examinar o verdadeiro sentido, o preceito da lei, ou dos prin-
cipios do direito, e de applica-lo á questão ante elle agitada tal qual o comprehende,
e sob sua responsabilidade”.
Sem esse direito exclusivo, justificava Pimenta Bueno (Ibid., p. 78), o juiz ficaria
impossibilitado de cumprir com seu dever, e a administração da justiça emperraria
sem cumprir seus objetivos. No entanto, a interpretação do juiz é concebida como
verdadeira delegação legislativa, de modo que seu escopo devia ser extremamente
restrito e controlado pelo legislador.
De todo modo, um ponto importantíssimo, por ele enfatizado, residia no fato
de que a interpretação judicial não poderia jamais estabelecer uma regra geral, tor-
nando-se obrigatória para outros juízes ou tribunais, hipótese em que se tornaria
uma interpretação autêntica, substituindo-se à própria lei.
O que Pimenta Bueno com sua teoria da interpretação tentou disfarçar, ou
não, poderia ainda conscientemente conceber, em face do próprio modelo consti-
tucional que lhe condicionava a leitura do funcionamento dos poderes políticos,
foi denunciado anos mais tarde por Alfredo Lima (1883, p. 116-121), catedrático da
Faculdade de Direito de São Paulo, em um breve artigo sobre a interpretação das
leis: a interpretação seria um ato necessário à aplicação de qualquer lei, por mais
clara e perfeita que fosse o diploma legislativo, já que o juiz se veria sempre na
contingência de reconstruir o pensamento do legislador.
Assumir a interpretação judicial como ato inerente à aplicação das leis foi um
passo importantíssimo, ao menos teoricamente, para dar sustentáculo à futura forma
republicana do Poder Judiciário que, na sua essência, é uma prática interpretativa das
leis em cotejo com a Constituição, conforme mencionamos acima. Naturalmente, a
discussão sobre a interpretação judicial não esgota a explicação em torno da ascensão
institucional dos juízes e do Judiciário, embora esta seja um pressuposto elementar.
Ao lado da discussão conceitual e prática em torno da interpretação judicial,
a paulatina valorização institucional dos juízes também foi reforçada por reivindi-
cações incessantes que se fizeram sentir ao longo do período monárquico, as quais
lutavam pela efetiva independência dos magistrados em face do Poder Executivo e
pela necessidade de uniformização dos julgados e maior celeridade na administra-
ção da justiça. Em consequência, houve o questionamento do equilíbrio das forças
políticas, cuja referência por excelência repousava no imperador, o que levou à re-
formulação do princípio da separação de poderes. (continentino, 2015, p. 381-398).

194
É marcante, nesse processo de transição, o livro do magistrado José Antonio
de Magalhães Castro (1862, p. 5 e ss) publicado em 1862, no qual investigou as cau-
sas que conduziram a magistratura brasileira à completa desgraça. Ele denunciava
que, não obstante o marco constitucional e legal no que toca à independência, à
imparcialidade e à perpetuidade dos juízes, era evidente a falta de independência
dos magistrados e a calamidade em que se achava a administração da justiça.
Reconhecia que os vencimentos dos juízes eram baixos, mesquinhos mesmos.
Entretanto, o baixo ordenado não justificava as injustiças e as imoralidades que se
perpetravam em nome da justiça. A verdade era que faltava integridade e indepen-
dência moral aos magistrados, o que somente poderia ser revertido pelas virtudes
do ministro de justiça ou da moralidade dos governos. Isso passaria pela necessi-
dade de que o ministro da justiça oferecesse provas concretas de que respeitava os
magistrados probos e punia os réprobos.
De suas ideias e relato podemos inferir, dentre outras coisas, que a independên-
cia dos juízes na realidade não existia em face da ausência da vontade governamen-
tal, ou seja, de uma moralidade administrativa ou de uma política administrativa
que se beneficiava com a forma concreta de funcionamento da justiça por meio da
qual o governo podia exercer um certo controle sobre o Judiciário e suas decisões.
Esse mesmo quadro foi também denunciado e criticado no discurso do presi-
dente do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, Agostinho Marques Perdigão
Malheiros (1865, p. 43-52), elaborado por ocasião do aniversário do 7 de setembro,
em 1864. O prestigiado advogado, sensível à relevância da função judicial, ressal-
tava as conexões recíprocas entre juízes e as garantias dos direitos e da liberdade
enaltecendo o papel da magistratura. No entanto, não deixou de reclamar da mão
pesada do Executivo, que esvaziava as garantias institucionais de independência da
magistratura com consequências funestas para a liberdade dos cidadãos23.
Perdigão Malheiros denunciou ainda a prática do Executivo de editar ins-
truções, regulamentos e portarias voltados à “boa execução das leis”, com base no
disposto no art. 102, xii, da Constituição do Império,24 por acarretar extrapolação
das prerrogativas constitucionais governamentais. Tal prática configurava evidente
abuso de poder, já que o imperador e seus ministros arrogavam-se indevidamente
das atribuições legislativas diretamente por meio desse tipo de legislação ou indi-
retamente, através da interpretação. Com isso, algumas das competências judiciais
foram suprimidas, em especial aquela de interpretar a lei no ato de sua concreta
aplicação para realizar a justiça, já que muitos dos atos infralegais emanados pelo
Executivo tinham por objetivo orientar a atuação dos juízes de modo vinculante
em situações específicas25.

23  O argumento de Perdigão Malheiros (1865, p. 51) é muito persuasivo: “A independencia, v.g., do
Poder Judicial é garantida e reconhecida como um dos melhores e mais seguros meios de guardar
a inviolabilidade dos direitos civis e politicos dos cidadãos. Igualmente é decretada a perpetuidade
dos Magistrados, como condição essencial dessa independencia. E no entanto por mais de uma vez
a mão violenta do Poder Executivo tem infringido esses preceitos, verdadeiros dogmas da nossa
organisação politica”.
24  Eis o teor integral do dispositivo referido: “Art. 102. O Imperador é o Chefe do Poder Executivo,
e o exercita pelos seus Ministros de Estado. São suas principaes attribuições: (...) XII. Expedir os
Decretos, Instrucções, e Regulamentos adequados á boa execução das Leis”.
25  Observe-se, por exemplo, o teor da Resolução de 14 de julho de 1860, em cuja ementa se lê “Sobre
a reluctancia do Juiz de Direito da 2.ª Vara da Côrte ao Decreto n.º 2438, de 6 de julho de 1859”,
relatada pelo Visconde do Uruguai (caroatá, 1884, p. 885-889). Nela, o Conselho de Estado apreciou

195
A crítica do presidente da Ordem dos Advogados não parava por aí. Ele também
atacou o passivismo do Poder Legislativo em relação ao Executivo, a quem aquele
Poder favorecia com continuadas delegações de competência, inclusive em assun-
tos da mais delicada importância, abdicando de suas prerrogativas institucionais e
permitindo a concentração de poderes nas mãos do imperador.
No relatório anualmente apresentado à Assembleia Geral, o ministro de jus-
tiça, José Tomás Nabuco de Araújo (brasil, 1866, p. 10-16), suscitava o problema da
falta de efetiva independência dos magistrados, da falta de garantias e estímulos
para o exercício das funções judicantes, especialmente naquelas regiões de difícil
provimento, onde era corriqueiro os magistrados se sujeitarem mais facilmente ao
patronato e aos interesses da política local, além da necessidade de melhor estrutu-
ração e remuneração da carreira, o que passaria por uma reforma do Judiciário. A
mesma temática, com os mesmos diagnósticos e recomendação de providências, foi
registrada no Relatório do Ministro Martim Francisco Ribeiro de Andrada. (brasil,
1868, p. 10-16).
Os relatórios do Ministério da Justiça, a exemplo daquele elaborado por José
Martiniano de Alencar (brasil, 1869, p. 87-91), à época titular da pasta do Ministério
da Justiça, também sinalizam um outro aspecto imprescindível na reformulação do
Poder Judiciário: a alteração do funcionamento do Supremo Tribunal de Justiça para
que deixasse de ser mera Corte de Cassação e exercesse o efetivo e necessário papel
de “imprimir à jurisprudencia nacional o cunho da uniformidade, e para servir de
centro ao poder judiciário”.
O referido ministro de justiça propunha o estabelecimento de arestos, dando-
-lhes força vinculante, além da possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça julgar
diretamente as questões de direito que lhe chegassem através do recurso de revista.
Pois, como o então ministro observara (Idem, p. 90), “a pratica actual amesquinha
o supremo tribunal, e o reduz a um cravo na roda da justiça, á um obstaculo que
protela apenas e adia”.
Não obstante o continuado esforço dos ministros, somente em meados da
década de 1870 é que, consoante anotou Aurelino Leal (1922, p. 1156-1157), realizou-
-se alteração legislativa na estrutura orgânica e funcional do Supremo Tribunal de

ofício encaminhado pelo Juiz Venâncio José Lisbôa, que discordou do teor do Decreto referido, por
entendê-lo incompatível com os ditames do Código de Processo Criminal e da Lei, de 3 de dezembro
de 1841, bem como com a Constituição que tinha consagrado a divisão dos poderes políticos. Chegando
o caso às suas mãos, o Imperador remeteu-o ao Conselho de Estado, para exame e parecer, tendo
em vista que a conduta do juiz “perscindio dos seus deveres, desconhecendo direitos incontestáveis
do Governo, e praticando de modo reprovado por todos os principios de Direito Administrativo”.
A posição do Conselho de Estado foi uma dura resposta ao “inconveniente” juiz. Inicialmente o
Conselho pontual sua competência de expedir atos normativos dirigidos aos juízes: “o Ministro da
Justiça tem o inquestionável direito de dirigir-se aos Juizes, dando-lhes explicações sobre o modo de
executar as Leis, e de admoestal-os quando as não executam devidamente, sem que por isso fique
ferida a independência do Poder judiciário”. Em seguida, pontuou reforçando sua competência: “a
Secção observará de passagem que as disposições do referido Decreto são perfeitamente juridicas, e
encerram-se aos limites da attribuição que, pela Constituição, tem o Governo de expedir Decretos
e Regulamentos para bôa execução das Leis, attribuição da qual com tanto mais razão devia lançar
mão no caso sujeito, porque não temos Tribunal algum judiciario ao qual a Lei incumba regularisar-
se e conformisar a Jurisprudencia, e fazer desaparecer a confusão e a anarchia que soem produzir
no fóro intelligencias e decisões tão desencontradas, como aquellas que ficam expostas” (p. 887-8).
Ao fim, decretou a pena de advertência ao magistrado: “Que o referido Juiz em attenção a ser um
Juiz activo, intelligente e honesto, deve por ora ser simplesmente advertido da inconveniência da
redacção e modo de seus Officios, da sua insistência e do seu protesto, pelas razões expostas, sendo
porém responsabilisado no caso de não dar cumprimento ao Decreto de 6 de Julho de 1859, e Aviso
de 14 de Novembro do mesmo anno”.

196
Justiça. O Decreto legislativo n.º 2.684, de 23 de outubro de 1875, atribuiu força de
lei aos assentos da Casa de Suplicação e autorizou o Supremo Tribunal de Justiça a
editar assentos26.
Durante os debates parlamentares sobre a reforma judiciária, em 1870 e 1871,
o senador Cândido Mendes se posicionou pela reformulação do Poder Judiciário ao
defender-lhe novas prerrogativas e competências, inovando no discurso constitu-
cional e político. Ele tinha a convicção de que o Judiciário fora muito limitadamente
regulamentado pela Constituição de 1824, por consequência seria um “poder inútil”
e completamente dependente dos demais; o mesmo grau de inferiorização teria
acometido o Supremo Tribunal de Justiça, que amargurou o mesmo diagnóstico: “É
supremo, sem ser supremo” (mendes, 1982, p. 102 e ss).
Inspirado no sistema judicial norte-americano, o senador Cândido Mendes
concebia o Poder Judiciário como “o mais sincero sustentáculo das liberdades”, pois
a genuína função do Poder Judiciário seria salvaguardar os direitos individuais e a
Constituição. A fim de que pudesse cumprir sua destinação institucional e consti-
tucional, o senador defendeu que o Poder Judiciário teria o “direito de interpretar
doutrinariamente a Constituição”, embora tal atribuição não fosse claramente pre-
vista na Constituição. E, quase em tom de advertência, numa linha de argumentação
inspirada nos artigos federalistas dos “founding fathers” 27, destacou que esse poder
de interpretação não configuraria intromissão ou participação judicial no processo
legislativo, mas antes concorreria ao aperfeiçoamento das instituições da nação
((Ibid., p. 251). É que, não sendo um poder político, porque não dependente da “opi-
nião móvel do dia”, o Judiciário seria o poder que mais eficazmente poderia vigiar
a defesa da Constituição; dizendo aos povos: “Não tendes obrigação de obedecer à
esta lei, ou a lei que se está fazendo ou vai promulgar-se não está de conformidade
com a Constituição” ((Ibid., p. 205).
No entanto, não podemos negar, em cada um desses atos de denúncia corporifi-
cados em textos, havia uma clara reivindicação institucional em prol da consolidação
do Poder Judiciário, que pressupunha novo imaginário social dos juízes. Importa
percebermos a mudança de concepção, inclusive contraditando os pressupostos do
pensamento constitucional, questionando diretamente a preeminência imperial, ao
sustentar a primazia do Poder Judiciário em face do Poder Moderador, bem como
defender o controle judicial da constitucionalidade. (Ibid., p. 100). Sem dúvida, para
a formação de outra imagem dos juízes colaboraria o senador Cândido Mendes.
No ano de 1876, o Poder Executivo, mediante o Decreto n.º 6.142, de 10 de mar-
ço, regulando o “modo de tomar os assentos do Supremo Tribunal de Justiça”. Porém,
enquanto esteve formalmente vigente a ordem jurídica e política do Império, não
se registrou a edição de nenhum assento pelo Supremo Tribunal de Justiça, confor-
me relatou o ministro de justiça Francisco d’Assis Rosa e Silva em seu relatório de
1889. (brasil, 1889, p. 53-54).

26  A competência de editar assentos com força de lei significava reconhecer ao Supremo Tribunal
a competência de interpretar doutrinalmente por via de autoridade ou de realizar interpretação
doutrinal mas com força obrigatória. Em outras palavras, autorizou-se que as decisões do Supremo
Tribunal teriam efeitos para além dos casos concretos sub judice.
27  Inevitável reconhecermos a similaridade entre seu argumento e o de Hamilton no Federalist n.º
78 na defesa do controle judicial da constitucionalidade das leis e do protagonismo institucional do
Poder Judiciário (hamilton, madison & jay, 1999, p. 432-440).

197
Necessário ainda mais uma vez destacar que, para entendimento mais claro do
processo de transição do Judiciário no século xix, é preciso retomar-se o contexto
histórico e político no qual o final da década de 1860 marcou o início da decadência
da monarquia constitucional brasileira.
Com efeito, seguiu-se o desgaste do imperador com constantes ataques à mo-
narquia, às suas instituições e à própria legitimidade da Constituição em face do
vício de origem decorrente da dissolução da Constituinte e de sua outorga pelo
imperador dom Pedro I, bem como reclamações e protestos pelos abusos e arbi-
trariedades supostamente cometidos pelo Poder Moderador28. Todas essas críticas,
impulsionadas pelas crescentes manifestações republicanas, fizeram com que fos-
sem rediscutidos os fundamentos e a própria forma de compreensão do princípio
da separação de poderes e, de modo mais remoto, contribuíram para o discurso de
derrocada do sistema monárquico; como consequência, a experiência constitucional
norte-americana despontou no horizonte de expectativas das lideranças nacionais,
ajudando a promover a ruptura com o modelo monárquico constitucional vigente
e a recepcionar o novo modelo, no qual os juízes exerceriam um protagonismo
institucional singular.
Importante, pois, reconhecer que os ideais republicanos reforçaram a luta
pela valorização institucional da magistratura ao recepcionarem muitas das pautas
reformistas dos juízes, advogados e políticos. Um dos mais influentes republicanos
da época, Alberto Salles, em seu livro Política Republicana, abraçou integralmente a
causa da “regeneração” do Judiciário. É inegável, afirmava Salles (1882, p. 535-537),
que o Poder Judiciário era um dos departamentos do poder político e que a Carta
de 1824 o amesquinhara, já que o jogou na dependência do Executivo quando, por
sua força e relevância, deveria tê-lo instituído em simetria com os demais poderes
conservando sua autoridade e autonomia intactas.
Recorrendo ao sistema judicial norte-americano, Alberto Salles sustentou que
o Judiciário fosse investido da prerrogativa de guardião da Constituição, que não
fosse dependente do Executivo e que assumisse o viés político de sua atividade.
Com tal dignidade institucional atribuída ao Judiciário, os abusos cometidos pelo
Legislativo e Executivo seriam devidamente contidos, conforme a história dos Es-
tados Unidos demonstrava.
Esse conjunto de fatores, que tinha em comum a formulação de críticas ao
funcionamento do Poder Judiciário imperial e a reivindicação de uma reestruturação 28  Sobre a ilegitimidade da
Constituição de 1824, por vício de
e valorização de seu papel institucional, aliado à configuração do exercício ilegítimo origem, cuja expressão máxima se
do poder pelo imperador e da pauta republicana, tudo isso terminou por impactar materializou na Confederação do
Equador, na Província de Pernambuco,
entre os autores da futura Constituição da República de 1891, que se afastaram do bem como sua posterior legitimação, em
modelo constitucional europeu, predominante no constitucionalismo imperial, para decorrência da abdicação de Dom Pedro
e da promulgação do Ato Adicional à
se aproximarem do modelo constitucional norte-americano29. Constituição, a obra de Paulo Bonavides
e Paes de Andrade (2006, p. 99-179) é
uma excelente referência.
29  Para uma minuciosa análise
6. Poder Judiciário na República histórico-constitucional da diferença
entre os modelos constitucionais norte-
americano e francês, inclusive quanto à
Seria evidentemente precipitado atribuir à virada republicana a explicação para a instituição de mecanismos institucionais
voltados à tutela dos direitos individuais
configuração fortalecida do Poder Judiciário no Brasil. Transições institucionais e da Constituição, vide: fioravanti, 1996,
não se realizam radicalmente, mas antes submetem-se a processos de modificação p. 51-98.

198
que se sujeitam a um regime de tempo de longa duração. Sobretudo, porque tais
modificações também ocorrem no campo da cultura e da mentalidade jurídica, de
modo que a simples inovação jurídico-formal nem sempre é acompanhada pelas
transformações materiais e das práticas jurídicas.
Não obstante, pode-se reconhecer que a proclamação da República, em muitos
aspectos, acarretou a aceleração do tempo e da recepção de novos institutos jurídicos
no constitucionalismo brasileiro, a exemplo do controle judicial da constitucionali-
dade das leis, da intervenção federal, do habeas corpus, da federação. Essas inovações
espelharam-se na tradição constitucional norte-americana que, àquele momento,
já figurava como um parâmetro confiável a ser seguido para as jovens nações repu-
blicanas que estivessem em busca dos ideais próprios da civilização e do progresso
(continentino, 2015, p. 381-398).
Nesse sentido, podemos recordar alguns exemplos significativos de atores polí-
ticos e jurídicos que contribuíram argumentativamente no processo de reconstrução
da imagem do Poder Judiciário. O desembargador Olegário Herculano de Aquino e
Castro (1882, p. 481-501)30, juntamente com o senador Lafayette e o deputado Lean-
dro Ratisbona, compôs uma comissão de reforma do judiciário criada pelo governo
imperial em 1881.
Na exposição de motivos do projeto de reforma, elaborado pelo referido ma-
gistrado nessa linha discursiva de fortalecimento institucional que cada vez mais
conquistava mais e mais apoiadores, o Poder Judiciário era concebido como condição
essencial para o progresso e para o desenvolvimento da sociedade. Aquino e Castro
acreditava que o Poder Judiciário deveria ser reconstituído no máximo interesse da
sociedade para cumprir sua verdadeira função de “palladio das liberdades” (1883, p.
215-216). Para tanto, como já sabemos, a reforma deveria “firmar a independencia do
Poder judiciario, segregando-o inteiramente do executivo, até hoje soberano arbitro
de seus destinos”. (castro, 1883, p. 181).
Em sua crítica à reforma do Judiciário promovida pela Lei n.º 2.033, de de 1871,
Leonidas Lessa (1875, p. 374-387) associou a organização do Poder Judiciário ao grau
de desenvolvimento e de civilização dos países. A estrutura da justiça dos Estados
Unidos revelaria o gênio e a sabedoria dos legisladores e da nação, fazendo desse
poder ainda superior ao da Inglaterra: “É que, na patria de todos os progressos, não
se podia menospresar tão eminente orgam da civilisação moral dos povos”.
Tamanha era a vinculação entre o progresso da sociedade e o Poder Judiciá-
rio, que Leonidas Lessa (1875, p. 376) pretendeu caracterizar um esforço em escala
mundial para o aperfeiçoamento da instituição: “A Belgica, a Hollanda, Portugal,
emfim todas as nações cultas, esforçam-se para tornar cada vez mais respeitavel
a ordem judiciaria”. Essa imagem positiva da magistratura persistiria e anos após
30  O desembargador Aquino e
Castro, que seria nomeado ministro traria resultados significativos na organização judiciária brasileira.
do Supremo Tribunal em 1886, antes Também José Antonio de Magalhães Castro (1877, p. 10) voltaria a sustentar sua
mesmo de apresentar o projeto de
reforma, já indicara quais seriam suas posição em defesa do Poder Judiciário. Citando Araripe Alencar, em 1877, ele afirmou
principais diretrizes para reformulação que “hoje, a independencia da Magistratura é dogma politico do mundo civilizado”
da organização judiciária, em artigo
publicado no periódico O Direito. Todas
e que “presentia-se nos homens politicos do Paiz uma certa desconfiança contra a
elas relacionadas a providências que Magistratura para restringil-a”.
visavam à efetivação da independência
judicial, que não passaria de uma
É significativo o contraste de imagens ao longo do século xix: de sinônimo de
promessa no texto da Constituição. corrupção, morosidade e ineficiência, a magistratura passou a ser vista como o motor

199
debret, Jean-Baptiste. Guirlanda ornamental iluminada
para o Juramento Solene da Imperatriz.
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do. Debret e
o Brasil: obra completa: 1816-1831. 3. ed. Rio de Janeiro:
Capivara, 2013. p. 354.

200
201
do progresso social e símbolo do progresso e da civilização. Era dogma político das
nações civilizadas, disseram Alencar Araripe e Magalhães Castro31, que pretendia
ver o Poder Judiciário como baluarte contra as arbitrariedades do Executivo em
detrimento dos demais poderes.
Há uma mudança de concepção em curso segundo a qual a ordem consti-
tucional não mais poderia ser bem protegida pelas mãos do imperador. A lógica
inverteu-se: o próprio Poder Executivo e, por que não, o imperador agora já eram
vistos como possível fonte de ameaça e de opressão aos direitos individuais. E a
solução institucional acenava para o Judiciário. Assim, testemunhava o exemplo
norte-americano.
É bem verdade que, antes mesmo da Constituição da República, de 1891, o De-
creto n.º 848, de 11 de outubro de 1890, que organizou a justiça federal, recepcionou,
entre nós, uma concepção radicalmente distinta do Poder Judiciário, conforme se
extrai da Exposição de Motivos escrita pelo então ministro de justiça Campos Salles
(brasil, 1890, p. 2737-2738):

Mas, o que principalmente deve caracterisar a necessidade da immediata


organização da Justiça Federal é o papel de alta preponderancia que ella se
destina a representar, como orgão de um poder, no corpo social.
A magistratura que agora se installa no paiz, graças ao regimen republicano,
não é um instrumento cego ou mero interprete na execução dos actos do
poder legislativo. Antes de applicar a lei cabe-lhe o direito de exame, poden-
do dar-lhe ou recusar-lhe sanção, si ella lhe parecer conforme ou contraria
á lei organica.
O poder de interpretar as leis, disse o honesto e sabio juiz americano, en-
volve necessariamente o direito de verificar se ellas são conformes ou não á
Constituição, e neste ultimo caso declarar que ellas são nullas e sem effeito.

A leitura da exposição de motivos, juntamente com a organização do Poder


Judiciário promovida pelo citado Decreto, não deixa dúvidas quanto à completa mo-
dificação da concepção do Poder Judiciário com plena ressignificação do princípio da
separação de poderes. Devemos reparar que, na Constituinte de 1823, por exemplo,
diversos parlamentares enfatizaram a necessidade de circunscrever-se o exercício
da jurisdição à letra da lei.
Agora, o que o ministro de justiça pretendeu expressamente, diante da inegável
mudança na concepção do papel institucional do Poder Judiciário, foi romper com
a concepção tradicional da função dos juízes (aplicar a literalidade da lei) para, diante
da mutação semântica no próprio conceito de separação dos poderes, promover a
atuação dos juízes como legítimos guardiões da Constituição e dos direitos.
É interessante observarmos, ainda, no Decreto n.º 848, de 1890, a existência 31  E lamenta profundamente a
de uma disposição no mínimo curiosa que se destinava à inequívoca consagração irrelevância institucional do Judiciário:
“De facto, em vez de baluartes contra
do novo modelo constitucional republicano já estabelecido pelo Decreto n.º 510, de as invasões do Poder Executivo, os
22 de junho de 1890, que “publica a Constituição [provisória] dos Estados Unidos do Juizes no Brazil como que maniatados
involuntariamente convergem para
Brazil”. Trata-se do art. 386, que alçou à condição de fonte subsidiária do direito avultar o mal, que todos lamentam”.
brasileiro o direito e a jurisprudência dos países cultos, especialmente dos Estados (castro, 1877, p. 7)
Unidos da América:

202
Art. 386. Constituirão legislação subsidiaria em casos omissos as antigas leis
do processo criminal, civil e commercial, não sendo contrarias ás disposições
e espirito do presente decreto.
Os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações
juridicas na Republica dos Estados Unidos da America do Norte, os casos
de common law e equity, serão tambem subsidiarios da jurisprudencia e
processo federal.

Na Constituinte de 1890-1891, nota-se a significativa alteração no imaginário do


Poder Judiciário. Modificação que, por sinal, foi determinada e imposta pelo governo
provisório para adequar-se à nova forma de Estado federal, no qual a magistratura
desempenharia uma função político-constitucional inédita. Contudo, diante da ino-
vação que o novo modelo constitucional de referência impunha, foi o próprio governo
provisório que pretendeu estabelecer as diretrizes e as balizas para a sedimentação
de um novo pensamento constitucional que, agora, por oposição à sua tradicional
formação, precisaria reinventar-se a partir de novos parâmetros. E o art. 386 do
Decreto n.º 848, de 1890, encarregou-se de contribuir com a implementação da mu-
dança no pensamento constitucional na prática judicial e institucional brasileira.
A concepção do Poder Judiciário investido de maior protagonismo institucional
em afirmação pelo discurso constitucional imperial desde longa data foi assimila-
da pelo governo provisório, pela Comissão que elaboraria o Projeto de Constituição
e pela Constituinte, porque seria imprescindível para manter-se a nova forma de
Estado federal.
Na sessão histórica de abertura da Constituinte, realizada em 15 de novembro
de 1890, foi lida a mensagem do generalíssimo Manoel Deodoro da Fonseca, chefe
do governo provisório da República dos Estados Unidos do Brasil. Retomando os
princípios da revolução republicana, Deodoro da Fonseca vangloriou a unificação “da
América em um só pensamento”, sua “integralisação democrática” e as “evoluções
republicanas nos ultimos annos do imperio”. Quanto ao Poder Judiciário, ressaltou
ser necessário dar forma peculiar à justiça federal ajustada ao caráter liberal e na-
cional, de modo que a justiça exercesse enfim “seu elevado papel”. (brasil, Vol. i,
1924, p. 158-167).
O ministro de justiça Campos Salles também discursou na Constituinte e
defendeu a nova configuração do Supremo Tribunal Federal como órgão de elevada
conotação política e institucional, mediante a justificativa de que, nos Estados Uni-
dos, a justiça federal foi imprescindível para que não ocorresse o desmembramento
da federação; ela atuou muito positivamente na defesa da Constituição e das duas
soberanias, a dos Estados e a da União.
Campos Salles mostrava como a experiência constitucional e institucional
do Império era importante para a construção do regime republicano, cuja pedra
angular era o federalismo32:

Note-se agora a differença entre os dous systemas. No antigo regimen, o


Poder Executivo geral, quando havia um Ministro energico, interferia nos
actos das assembléas provinciaes, para suspendel-os e annulal-os. No emtanto
32  Idem, p. 246. que, agora, a soberania, esta mesma soberania que os nobres representantes

203
não querem comprehender nem acceitar, mas que pertencerá, realmente, aos
estados, será protegida e não poderá ser desrespeitada pela acção de qualquer
Ministro. Quando esta soberania transpuzer as fronteiras do Poder federal,
será obrigada a recuar, não pelo direito da força, mas pela força da sentença
de um tribunal de justiça. (Muito bem.)

A introdução do controle judicial da constitucionalidade no Brasil, que esteve


associada à necessidade de manutenção das prerrogativas e competências constitu-
cionais da União por causa do novo modelo constitucional federal, representou a co-
roação desse processo de transformação do Poder Judiciário brasileiro no século XIX.
Campos Salles tinha conhecimento de que a Suprema Corte norte-americana
era verdadeiramente uma instituição política que, em momentos de tensão e de
confronto político, conseguiu conservar e preservar o pacto federativo, defendendo
a autoridade da Constituição. Turbulências similares, os Estados Unidos do Brasil
enfrentariam haja vista a experiência constitucional do Império após a edição do
Ato Adicional de 1834, que se caracterizou pelos conflitos de competência entre a
Assembleia Geral e as assembleias provinciais. Devidamente ativadas essas práticas
institucionais, constituintes saíram em defesa da necessidade de se instituir um
tribunal forte que, à semelhança do que indevidamente fazia o Conselho de Estado,
assumisse a função de guarda da Constituição e de controle da constitucionalidade
das leis.
Evidentemente, tais inovações institucionais não se realizaram sem ques-
tionamentos. O deputado Amphilophio Botelho Freire de Carvalho (brasil, Vol. II,
1924, p. 80-87), magistrado há anos, contestou a configuração política do Supremo
Tribunal Federal. Ele advertiu os constituintes em relação aos poderes de que se-
ria investido o Supremo Tribunal Federal. Nesse órgão, composto arbitrariamente
pelo presidente mediante a livre nomeação de quinze ministros, seria incorporada
a maior soma de poderes políticos da nova forma de governo, o que transformaria
o Brasil em uma “Singular Federação!”. O Supremo seria o reflexo de uma centra-
lização política indefensável.
Dentre outros, Amphilophio foi seguindo por José Hygino (brasil, Vol. ii,
1924, p. 148 e ss), que se tornaria ministro do Supremo Tribunal Federal. O senador
pernambucano, embora comentasse a necessidade de um tribunal central a que os
demais fossem subordinados a fim de assegurar-se a unidade do direito, contestou
a soma de poderes que se atribuiriam ao Supremo Tribunal: “será a salvaguarda ou
a perda da República”. O tribunal se tornaria “a chave da abobada do novo edifício
politico” e estaria nas mãos do Presidente, que “poderá compor aquelle Tribunal com
creaturas suas e lançar a sua espada de Brenno na balança dos poderes públicos”.
Finalizando seu longo discurso, José Hygino conclamou os congressistas sobre a
necessidade de “alliar o espirito de innovação ao espirito de conservantismo, adap-
tando velhas instituições a uma nova ordem de cousas”.
No entanto, cuida-se de mais um estrato semântico que se superpõe à anterior
concepção do princípio da separação dos poderes e da própria concepção e imagem
do Poder Judiciário e sua atuação institucional. A inauguração de uma nova ordem
constitucional, por mais traumática e profunda que tenha sido a ruptura com a

204
ordem anterior, não tem o condão de promover o descarte de todos os elementos
integrantes daquele sistema jurídico que ficou para trás, tampouco de subitamente
transformar a cultura jurídica da comunidade política da noite par ao dia, de modo
que, a cada novo dia de seu percurso institucional, o Poder Judiciário precisou e
ainda precisa comprovar a legitimidade própria no exercício de suas funções, sob
pena de vir a ser questionado nos fundamentos próprios de suas competências.

7. Conclusão

A perspectiva de longa duração na história constitucional brasileira abre-nos um rico


cenário de práticas institucionais, pensamentos jurídicos, políticos e constitucionais
bem como acirradas disputas sobre a autoridade de dizer o direito. E todo esse feixe
de ideias, discursos e ações ainda está presente, implícita ou explicitamente, em nos-
sos debates jurídicos e políticos da atualidade. Por conseguinte, escrever sobre nossa
história constitucional e em particular sobre a história institucional da formação
do Poder Judiciário é, em certo sentido, pensar e estabelecer possibilidades diversas
de sentido sobre o nosso presente, além de projetar perspectivas distintas de futuro.
No curso desse longo processo de aprendizagem constitucional, assistimos à
reformulação substancial do sentido do princípio da separação de poderes, motiva-
da por uma gama de fatores, em particular pela ilegitimidade na forma com que
o poder político vinha sendo exercido, o que acarretou significativa mudança no
imaginário social do Poder Judiciário.
Paralelamente, a própria noção de interpretação sofreu uma contundente mu-
tação conceitual: não mais significava a mera aplicação da lei (clara e inequívoca)
ao caso concreto, mas passou a descrever e constituir a prática de uma atividade
judicial de reconstrução das causas e do sentido da lei.
Já temos consciência de que nosso tempo histórico atual é o tempo do Estado
Constitucional, o tempo da Constituição democrática. A significação desse tempo, no
entanto, somente nos será paulatinamente revelada na medida em que saibamos que
ele é fruto de uma construção social e histórica. No que diz respeito ao princípio da
separação de poderes, tal qual analisamos neste trabalho, a apreensão em maior me-
dida de sua dimensão será possível, a partir do momento em que tivermos noção de
que seu conteúdo é composto por estratos semânticos historicamente consolidados.
Desse modo, estaremos aptos a melhor observar que – no debate político atual
em torno do controle de constitucionalidade, que gira em torno da ampla extensão
das competências atribuídas ao Poder Judiciário e do problema do estabelecimento
de seus limites versus garantia dos direitos fundamentais/legitimidade da jurisdi-
ção constitucional – os defensores de uma e outra posição estão a ativar e reativar
argumentos de diferentes tempos históricos, numa incessante luta pela definição
da última autoridade (política ou judicial) de dizer o direito.
E algo mais interessante é que, nessa perspectiva temporalmente estendida,
uma das certezas sustentáveis parece-nos correto afirmar que o Poder Judiciário
atual, conforme previsto na Constituição Federal de 1988, teve parte significativa
de sua configuração institucional forjada durante o século xix a partir do momen-
to em que passou a ser compreendido como elemento chave para a consagração do

205
novo projeto constitucional, inspirado no modelo federalista norte-americano, com
a instalação do governo republicano. Se esses fundamentos ainda se sustentam hoje,
eis aí algo que somente o futuro poderá responder. Por agora, porém, sabemos que
a história constitucional nos oferece elementos preciosos para essa reflexão.

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209
210
CAPÍTULO 8 - O Código do Processo Criminal e
a reforma de 1841: dois modelos de organização
dos poderes

Monica Duarte Dantas1

Em 1842, parte das elites das províncias de São Paulo e Minas Gerais se insurgiu
contra um conjunto de leis aprovadas nos últimos meses.2 Feijó, um dos líderes da
revolta, colocava, em manifesto, que o movimento tinha por programa o combate
aos diplomas reacionários: a Interpretação do Ato Adicional, a reforma do Código do
Processo Criminal e o retorno do Conselho de Estado. Caso não fossem atendidos,
isto é, que as leis não fossem revogadas, estavam dispostos a pegar em armas. Po-
rém, considerando a cronologia da revolta3 – que eclodiu em maio, em São Paulo, e
junho, em Minas Gerais – há que se perguntar o quanto da revolta dos liberais não
se devia (além, da dissolução da câmara, ocorrida em maio de 1842) à aprovação da
lei de reforma do Código, promulgada em 3 de dezembro de 1841?
Até pouco tempo atrás, era consenso considerar que a Interpretação de 1840
teria destruído o edifício liberal da regência, posição compartilhada, por exemplo,
por Ilmar Mattos (1994) e José Murilo de Carvalho (1988). Já Miriam Dolhnikoff,
em seu livro O Pacto Imperial, demonstra como, na verdade, a essência da reforma
constitucional de 1834 manteve-se inalterada por todo o Império. (dolhnikoff, 2005).
Ou seja, a divisão de competências entre o centro e as províncias, possível a partir
da transformação dos Conselhos Gerais em Assembleias Legislativas Provinciais,
continuou a viger, mesmo depois de 1840, quando a “Interpretação” foi aprovada por
uma câmara ligada ao Regresso. Nesse sentido, a autora demonstra que, seja em 1832
– quando as matérias a serem reformadas foram discutidas no Legislativo Imperial

1  Bolsista produtividade do CNPq. No presente texto – publicado no periódico História do Direito:


Revista do Instituto Brasileiro de História do Direito - IBHD, Curitiba, v. 1/ n. 1, 2020, p. 94-118 –
reelabora, a partir das discussões constantes de sua tese de livre-docência intitulada Uma ‘Nação
verdadeiramente livre’: a organização judiciária e a ordem do processo criminal no Império do Brasil
(1826-1832) (Instituto de Estudos Brasileiros/Universidade de São Paulo, 2017), várias questões
abordadas em conferência apresentada no IV Congresso do Instituto Brasileiro de História do Direito.
Autonomia do Direito: configurações do jurídico entre a política e a sociedade (São Paulo: Faculdade
de Direito/USP, 2009).
2  Uma versão bastante diferente do presente capítulo foi apresentada, como conferência, junto ao
IV Congresso do Instituto Brasileiro de História do Direito – Autonomia do direito: configurações
do jurídico entre a política e a sociedade, São Paulo, Faculdade de Direito/ usp, 2009. O texto atual,
ainda que siga o ordenamento básico das ideias elaboradas àquela época, traz mudanças importantes,
derivadas de pesquisas realizadas nos últimos anos, contempladas com Bolsa Produtividade do cnpq,
bem como do Pós-Doutorado desenvolvido junto à Faculdade de Direito da Universidade Nova de
Lisboa (2011-2012) e da tese de Livre-docência apresentada, em 2017, à Universidade de São Paulo.
3  Para intepretações recentes da Revolta Liberal, ver Roberto Saba (2012), Bruno Fabris Estefanes
(2013) e Erik Horner (2014).

211
-, seja em 1840, não havia uma discordância fundamental quanto à criação de uma
instância legislativa provincial. Disso Dolhnikoff não subentende a inexistência de
discordâncias, mas demonstra que havia sim importantes pontos de consenso. Afi-
nal, a competência provincial para legislar, tributar, dispor de uma força policial e
criar empregos provinciais e municipais, sem intervenção do governo central, não
foi alterada pela Interpretação.
Em 1840, não eram apenas os políticos ligados ao regresso que viam a neces-
sidade de rever a reforma constitucional de 1834. Certos artigos do Ato Adicional
haviam, de fato, dificultado a governabilidade do país. Já em 1835, Antônio Pauli-
no Limpo de Abreu, ministro da Justiça e interinamente do Império, assinou um
decreto que dava instruções aos Presidentes das Províncias para a boa execução
das leis de 14 de junho de 1831, sobre a eleição da regência e suas atribuições, e de
12 de agosto de 1834, “que reformou alguns Artigos da Constituição do Império”.
Reconhecia o ministro que, apesar do Ato Adicional ter dado às Assembléias Pro-
víncias a faculdade de criar, alterar e suprimir empregos provinciais e municipais
era necessário observar o quão nocivo seria “à regular administração da justiça, e
mesmo ao direito das partes, que elas alterem por qualquer maneira as atribuições
que competem às autoridades judiciárias, pelo transtorno e confusão que semelhante
medida imprimiria no sistema judiciário”.4
Em relação à lei de 3 dezembro de 1841, muito foi dito acerca da existência
de um certo consenso quanto à necessidade de reformulação da legislação penal
e processual penal. Nesse sentido, toma-se como exemplo a nomeação, já em 3 de
outubro de 1833, de uma comissão para a revisão da legislação penal recém apro-
vada, especialmente os “defeitos e lacunas dos Códigos do Processo e Criminal”.5
Compunham a comissão, entre outros, Paulino José Soares de Sousa, futuro artífice
do projeto que se transformaria na lei de 3 de dezembro de 1841.6

4  “Decreto de 9 de Dezembro de 1835. Dá instruções aos Presidentes das Províncias para a boa
execução da Lei de 14 de Junho de 1831, que marca as atribuições dos mesmos Presidentes, e de 12
de agosto de 1834, que reformou alguns artigos da Constituição”, Collecção das Leis do Império do Brazil
de 1835, parte segunda, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1864.
5  “Dentre a legislação aprovada entre 1830 e 1890 alterando pontos específicos do Código Criminal do
Império, destaque seja dado à lei de 10 de junho de 1835, que, dentre outros pontos, previa a punição
com morte aos cativos que atentassem contra a vida de seus senhores, facilitava a condenação à pena
capital daqueles que consumassem o homicídio (bastando o voto favorável de dois terços do júri, e
não mais a unanimidade demandada a estes casos) e estabelecia a execução imediata das penas de
morte proferidas contra os mesmos, sem possibilidade de recurso à segunda instância. Em acordo
com o texto original do Código de 1830, os escravos poderiam ser condenados à morte, como os livres,
unicamente nos casos de homicídio com agravantes, roubo seguido de morte e crime de insurreição.
Se um escravo matasse seu senhor, portanto, e este crime fosse considerado isento de circunstâncias
agravantes, não se poderia, sob hipótese alguma, imputar a pena de morte ao réu. O mesmo valia
para os casos de insurreição e roubo seguido de morte, em que a pena capital só se verificava no
grau máximo. De acordo com a nova lei, pelo contrário, a imputação de morte aos cativos ficava
assegurada nos casos de homicídio ou tentativa de homicídio, envenenamento e graves ferimentos ou
ofensas físicas infligidos a seus senhores e feitores, ou aos familiares destes, mesmo na ausência de
circunstâncias agravantes. Para além destes pontos do diploma criminal, a lei de 10 de junho de 1835,
alterava ainda matérias reguladas pelo Código de Processo (dentre as quais a questão da unanimidade
na imputação das penas capitais e a proibição de recurso aos réus), chamando a atenção ao fato de
ambos os diplomas se destinarem não apenas à população livre, mas também aos escravos do Brasil.
Quando perpetravam crimes, portanto, até então – sublinhando que tal condição se manteve, de todo
modo, a outros crimes possivelmente praticados por cativos, que não os de homicídio e tentativa
de homicídio especificados na lei de 1835 – os escravos brasileiros não respondiam nem a leis em
separado, nem a um distinto processo legal. Para uma análise detalhada do processo de elaboração e
aprovação final da lei de 10 de junho” (dantas e costa, 2018, p. 157-158).
6  Faziam parte da comissão: Baltazar da Silva Lisboa, conselheiro da Fazenda aposentado; Antonio
Rodrigues de Carvalho, José Antônio da Silva Maia, José Correa Pacheco e José Cesário de Miranda

212
Se, então, desde a Regência, percebia-se a necessidade de interpretar o Ato
Adicional e também reformar o Código do Processo Criminal, o que teria levado à
eclosão da Revolta Liberal em 1842? Para tentar responder essa questão é necessário
voltar às leis de 1832 e 1841, bem como a outros diplomas aprovados a partir de 1822.

1. Da Câmara ao Senado: projetos e emendas (1830 a 1832)

Quanto ao “Código do Processo Criminal de primeira instância com disposição


provisória acerca da administração da Justiça Civil”, antes de adentrar em seu con-
teúdo, é preciso recuperar, ainda que brevemente, o processo legislativo que levou
à sua elaboração e aprovação pelas duas casas do Parlamento. Em 8 de novembro de
1830, consta nos Anais da Câmara, que fora a “imprimir com urgência o projeto de
código de processo criminal” apresentado pela comissão eleita para tal fim, composta
pelos deputados Bernardo Pereira de Vasconcelos, Francisco de Paula de Almeida
Albuquerque e José Cesário de Miranda Ribeiro.7 O projeto, tal como o futuro di-
ploma, já se dividia em duas partes, a primeira sobre a “organização da Justiça e, a
segunda, intitulada “da forma do Processo” (código, 1830)8.
Mal abertos os trabalhos do legislativo, em 1831, e a questão do código retornou
ao plenário. O próprio Miranda Ribeiro, membro da comissão eleita em 1830, reque-
reu, aos 6 de maio, que fosse nomeada uma “Comissão Especial, que se encarregue
da revisão do Código do Processo Criminal, que foi por esta Comissão apresentado
na sessão passada, para corrigil-o [sic], emendal-o [sic], e pol-o [sic] em perfeita
armonia [sic] com o Código Penal”.9 Não espanta, dada a conjuntura, o pedido de
revisão do projeto elaborado, afinal, o país deixara de ser governado por d. Pedro I
(que abdicara em 7 de abril).
Em 27 de agosto de 1831, a comissão especial – formada pelos deputados An-
tônio Paulino Limpo de Abreu, Manuel Alves Branco e Paula Albuquerque (que já
participara da comissão anterior) – apresentou ao plenário o novo projeto de código,
juntamente com a seguinte resolução:

Art. 1o O Processo criminal será interinamente regulado nos Juizos de pri-


meira instancia pelo presente Codigo, o qual fica tambem approvado na sua
disposi- ção provisoria acerca da administração da Justiça Civil nos mesmos
Juizos.
Art. 2o Ficão revogadas todas as disposições em contrario.10

Ribeiro, desembargadores; Lourenço José Ribeiro, Paulino José Soares de Souza e Euzébio de Queirós
Coutinho Mattoso Câmara, juízes de Direito; e Joaquim Gaspar de Almeida e Saturnino de Souza e
Oliveira, também bacharéis em Direito. Decreto de 3 de outubro de 1833. “Decreto de 3 de outubro
de 1833. Nomêa uma comissão para a revisão da legislação”, Collecção das Leis do Império do Brazil de
1833, parte segunda, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1873.
7  Para um detalhamento do trâmite dos projetos de Código do Processo, no legislativo imperial, ver
Monica Duarte Dantas e Vivian Chieregati Costa (2018).
8  Faz-se necessário esclarecer que, a despeito do título do impresso, tratava-se, de fato, do projeto
elaborado pela referida comissão.
9  Arquivo da Câmara dos Deputados, encadernados, Atas da Câmara, 1831, sessão de 6 de maio, vol. 1, p. 15-15v.
10  Arquivo da Câmara dos Deputados, encadernados, Projetos da Câmara, projeto numerado como
230, pp. 137-137v.

213
Em 20 de setembro, entrou em discussão a resolução, sendo aprovada, na
sessão seguinte, a fim de ser remetido o projeto de Código à Comissão de Redação.11
Passada menos de uma semana, aos 27 de setembro, foi expedido ofício ao Senado,
remetendo “a inclusa Resolução desta Camara sobre o Codigo do Processo Criminal
de primeira instancia, o qual vai impresso em parte, por brevidade atesto a urgencia
de [usar] semelhante objecto”.12
O texto remetido à casa vitalícia (tal como o projeto de 1830) era dividido em
duas partes, a primeira sobre a “organização judiciaria”, com 54 artigos, e a segunda,
acerca da “forma do processo”, com 323 artigos.13 Ainda que as semelhanças entre
os dois textos fossem maiores que as diferenças, não se pode menosprezar algumas
das alterações feitas pela comissão especial. Dentre estas, cabe destacar a mudança
operada no “Appendice” do projeto de 1830 e a inclusão de um novo título.
O apêndice da comissão de 1830, que vinha logo após o título quinto, dispunha
sobre a maneira como as pessoas que se considerassem injustamente presas pode-
riam demandar sua soltura. Em 1831, tal matéria passou a ser disposta em um título
específico (título vi) acerca do “Habeas-Corpus”, termo não utilizado no projeto de
1830, mas já incorporado no recém aprovado Código Criminal, e cuja utilização, no
texto elaborado pela comissão especial, implicou uma reformulação profunda das
prescrições redigidas anteriormente.
A comissão especial também introduziu um título novo, vii, com matéria
totalmente ausente do projeto anterior. Doravante, o projeto de Código do Proces-
so Criminal de 1a instância teria disposições provisórias acerca da administração
da justiça civil, regulamentando, em mais de duas dezenas artigos, dentre outras
questões, a atuação dos juízes de paz nas conciliações (tal como previsto na Carta);
a restrição da jurisdição contenciosa dos juízes de órfãos; as competências dos ma-
gistrados das municipalidades, doravante reesposáveis pela preparação e processo
dos feitos até a sentença e sua execução; além de matérias relativas às relações.
Em verdade, tanto na parte criminal, como nas disposições sobre o civil, o
projeto de 1831 trazia uma série de artigos que diziam respeito às Relações. Mas não
só, tratavam também da extinção de certas funções, como da revogação de compe-
tências de diversas autoridades.

Fica supprimida a jurisdicção ordinaria dos Corregedores do Civel, e Crime,


e Ouvidores do Civel, e Crime das Relações, comprehendendo esta suppres-
são a jurisdicção de todos os Magistrados, que julgam em Relações tanto
em primeira instancia, como em uma unica com Adjuntos. Os processos de

11  Arquivo da Câmara dos Deputados, encadernados, Atas da Câmara, 1831, v. 2, sessão de 20 de
setembro, pp. 488v-490.
12  Anais do Parlamento Brasileiro – Câmara dos Deputados, sessão de 27 de setembro de 1831 (doravante
apb-cd); Arquivo da Câmara do Deputados, encadernados, Ofícios Expedidos, 1830 e 1831, ofício n. 43.
13  Infelizmente, não foi possível encontrar o texto do projeto que teria sido enviado pela Câmara
à casa vitalícia em 27 de setembro, fosse no Arquivo da Câmara ou do Senado. Ademais, ainda que
tenhamos localizado, no Jornal do Commercio, informação de que tal projeto, juntamente com as
emendas da 1a comissão do Senado, fora impresso e posto à venda ainda em 1831, não foi possível
localizar tal publicação. Assim, a fim de comparar o conteúdo do projeto de 1831 com aqueles que o
antecederam, bem como com o texto final devidamente emendado pelo Senado, procedeu-se à tarefa
de “reconstrução” do projeto de 1831 a partir das rodadas de emendas e discussões ocorridas no
Senado em 1831 e 1832. Para maiores referências e o arrolamento detido dos documentos utilizados,
ver dantas (2017)

214
responsabilidade, e os das appellações, em todas as Relações regular-se-hão
pelas duas especies de processo, que tem lugar no Supremo Tribunal de Jus-
tiça, e sempre em sessão publica. (dantas, 2017, p. 576).

Fica extincta a differença entre Desembargadores Aggravistas, e Extrava-


gantes, e todos igualados em serviço. Igualmente ficam extinctos os lugares
de Chanceller em todas as Relações, e estas presididas por um dos tres De-
sembargadores mais antigos, nomeado triennalmente pelo Governo; e para
estes Presidentes, passarão, á excepção das glosas, que estão extinctas, as
attribuições dos anteriores Chancelleres. (dantas, 2017, p. 577).

Dados os embates, nos últimos anos, entre as duas casas do legislativo e, pa-
ralelamente, à denegação de sanção, por d. Pedro I, a projetos de lei aprovados por
ambas as câmaras, não espanta que tanto a comissão de 1830 e, depois, a comissão
especial tenham visto na elaboração do Código uma possibilidade de já propor a
alteração de várias atribuições das instâncias superiores então existentes. Àquela
altura, a despeito de aprovada a lei que regulamentava o funcionamento do Su-
premo Tribunal de Justiça (tal como previsto na Carta), os deputados não haviam
logrado – em razão da discordância dos senadores – aprovar um regimento para
as Relações e, tampouco, extinguir a Casa de Suplicação, retornando-a à condição
de Relação do Rio de Janeiro. Ademais, o imperador negara sanção aos projetos de
lei que extinguiam os foros pessoais e mistos (regulamentando os foros de causa),
bem como a Intendência Geral de Polícia.14
O projeto da comissão eleita em 1830 fora escrito, então, com o fito de ser
discutido na câmara logo no início dos trabalhos de 1831. Àquela época, a despeito
das crescentes tensões com o monarca, fato é que Pedro I ainda era o imperador do
país. Abertos os trabalhos do legislativo, em 1831, a situação não poderia ser mais
diferente. Respondiam pelo Executivo e o Moderador, como regentes provisórios
(com competências que viriam a ser alteradas pela lei de 14 de junho de 183115), os
senadores marquês de Caravelas e Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, e o general
Francisco de Lima e Silva. Pouco depois, em meados de junho, uma nova regência
foi escolhida, mantendo-se Francisco de Lima e Silva, mas sendo eleitos José da
Costa Carvalho e João Bráulio Muniz, ambos deputados.
Assim, se, em 1830, a fim de ser aprovada no Parlamento, e devidamente san-
cionada, uma nova lei sobre a organização judiciária e a ordem do processo parecia
necessário seguir certas prescrições de diplomas anteriores – especialmente aquelas
introduzidas pelo Senado em projetos de lei elaborados pelos deputados –, bem como
não mencionar algumas matérias que poderiam levar o monarca a denegar sanção

14  Sobre projetos de lei e debates acerca tanto da organização judiciária, como da ordem do processo,
desde a abertura do legislativo até a promulgação do Código do Processo, em 1832, ver Dantas (2017).
15  Destacando-se a proibição de dissolução da casa temporária e a mudança no procedimento de
denegação de sanção dos projetos de lei apresentados pelo legislativo, alterando-se, substantivamente, a
fórmula prescrita na Carta. “Lei de 14 de Junho 1831. Sobre a fórma da eleição da Regencia permanente,
e suas attribuições”. Collecção das Leis do Império do Brazil de 1831, Parte Primeira, Rio de Janeiro,
Typografia Nacional, 1875, pp. 19-24.

215
ao texto16, doravante tornava-se possível recuperar demandas apresentadas pelos
deputados, à casa temporária, desde a abertura do legislativo imperial.
Nesse ponto, faz-se necessário esclarecer que, a despeito de certas afirmações
da historiografia acerca de uma suposta rapidez no tangente à elaboração do Código
de Processo (rapidez, em tais casos, identificada com a ideia de um texto pensado
às pressas e mal elaborado), em verdade a história é totalmente outra.17 Ainda que
a comissão que apresentou seu projeto à câmara, em novembro de 1830, tenha sido
eleita em setembro daquele ano, e que as mudanças e inclusões da pena da comissão
especial tenham sido redigidas em menos de quatro meses, as matérias tratadas
em ambos os projetos há muito vinham sendo objeto de projetos e debates na casa
temporária. Em verdade, algumas das disposições haviam sido longamente discu-
tidas já em 1826, sendo que outras tantas ocuparam incontáveis sessões nos anos
de 1827, 1828, 1829 e 1830. Ou seja, quando os membros das comissões, de 1830 e
1831, prontificaram-se a redigir seus projetos, eles já possuíam um vasto material
devidamente elaborado, discutido e revisto pelos representantes temporários.18
Em 28 de setembro de 1831 – dia seguinte ao ofício da câmara, remetendo aos
senadores o projeto de “Código do Processo Criminal de primeira instância com
disposição provisória acerca da administração da Justiça Civil” –, a casa vitalícia
acusou a recepção do documento. Seu presidente, contudo, ponderando que o texto
“vinha parte manuscripto e parte impresso, e havendo diversas opiniões”, resolveu
pela nomeação de uma comissão especial de cinco membros para examiná-lo19.
Passada uma semana, em 5 de outubro de 1831, a comissão apresentou seu parecer,
declarando que “não obstante conhecer a necessidade da aprovação no estado actual,
[...] acha que alguns dos seus Artigos não podem passar sem alterações, e emendas,
mas desejando combinar essa necessidade com a estreiteza do tempo, he de parecer
que desde ja se ponha em discussão por Capitulo”.20
No mesmo dia 6, após “mui longa discussão, o Sr. Presidente propôs á votação
o Parecer, e foi rejeitado” (não constando nos Anais do Senado, contudo, os discursos
feitos na ocasião). O próprio marquês de Inhambupe, partícipe da comissão, sugeriu

16  No tangente às emendas apresentadas pelo Senado, modificando, em maior ou menor profundidade,
os textos enviados pelos representantes temporários, vale mencionar, ao menos, o projeto de lei
sobre os juízes de paz (sancionado em 1827), e aquele que tratava dos crimes de abuso de liberdade
de imprensa, cujo texto foi remetido, pelos deputados, ao Senado, em 1827, de lá retornando apenas
em 1830 e totalmente alterado (dantas, 2017).
17  Para Thomas Flory, por exemplo, não só o Código foi rapidamente aprovado pela casa temporária
“por aclamación”, como teria sido redigido em sua maior parte por Alves Branco. Infelizmente, o
autor não apresenta qualquer referência para embasar tanto uma, como outra afirmação (flory, 1986,
p. 175-176).
18  Ademais, como em vários outros países, quando da elaboração de códigos, os deputados brasileiros
– não só os membros das citadas comissões – tinham em mãos exemplares de vários livros, projetos
e diplomas estrangeiros que tratavam da matéria em discussão. Circulavam à época, vários diplomas
franceses – não apenas os napoleônicos -; os códigos ou projetos elaborados na Espanha do Triênio
Liberal; os projetos de código redigidos por Edward Livingston para o estado da Luisiana (Estado
Unidos); os códigos da Toscana, Áustria e Baviera; além das obras de Beccaria, Blackstone, Bentham,
entre outras (não necessariamente no original). Sobre essa questão, ver Dantas (2011), Costa (2013),
Dantas (2015) e Dantas (2017).
19  Foram eleitos João Antônio Rodrigues de Carvalho (ce), o marquês de Inhambupe (pe), e o
marquês de Caravelas (ba), todos os três escolhidos senadores em 1826, além de Nicolau Vergueiro
(mg) e Manoel Caetano de Almeida e Albuquerque (pe), ex-deputados à 1a legislatura, e alçados à
casa vitalícia em 1828.
20  Arquivo do Senado Federal, “Emendas ao Código do Processo”, 1832. Avulsos, caixa 23, maço 2,
pasta 17.

216
que outra fosse eleita, agora com três membros, “para a revisão do Codigo”.21 Desta
vez, os antigos deputados, Almeida e Albuquerque e Vergueiro, não lograram al-
cançar a votação necessária, sendo, contudo, reeleitos os outros três membros, ou
seja, Inhambupe, Caravelas e Rodrigues de Carvalho. Eles apresentaram seu parecer,
com quase 40 emendas, em 17 de outubro de 1831. Os senadores resolveram, então,
debater não só o parecer, como todo o conteúdo do projeto, artigo por artigo, ao
longo das 2a e 3a discussões previstas no regimento. Assim, apenas em 2 de outubro
de 1832 – isto é, mais de um ano depois de acusado seu recebimento pelo Senado
– os representantes vitalícios remeteram à casa temporária o projeto de Código do
Processo, amplamente emendado.
Incluídas as alterações propostas nos pareceres, foram feitas quatro rodadas
de emendas. Em termos de divisão e disposição das matérias, pouco foi alterado
pelo Senado. O texto recebido pelos representantes vitalícios continha sete títulos,
e assim se manteve após um ano de discussões. Doravante, porém, o último título
não mais seria denominado “Título vii”, e sim “Título Único”, tratando, ao longo de
seus 27 artigos, da “Disposição provisoria ácerca da administração da Justiça Civil”.
Ao se considerar, contudo, o conjunto de emendas apresentado, o cenário era ou-
tro. No tangente à primeira parte, sobre a organização judiciária, o Senado propôs
40 emendas aos 53 artigos enviados pelos deputados. Comparativamente, a parte
segunda foi objeto de um número menor de emendas: aos 323 artigos do projeto de
1831, os representantes vitalícios propuseram 130 emendas.
Há que destacar que das 170 emendas propostas, apenas algumas dezenas eram
supressivas ou propunham uma redação inteiramente nova em relação ao texto
enviado pelos deputados; a grande maioria dispunha sobre alterações de frases e
orações, ou bem sobre a troca de uma ou algumas palavras. Ainda assim, não se
pode desconsiderar o impacto de 170 emendas a um texto que contava, original-
mente, com 376 artigos. Ou seja, considerando-se o texto enviado pelos deputados,
ao retornar do Senado, as emendas compreendiam – com maior ou menor impacto
– 45% do projeto original.
Na impossibilidade de tratar em detalhes de todas as mudanças trazidas pelas
emendas dos senadores, faz-se necessário mencionar algumas das alterações mais
importantes (considerando-se a temática do presente capítulo)22.
Os senadores suprimiram a menção à possibilidade de haver mais de um juiz
de direito por comarca – a depender, consoante os deputados, de sua população
e extensão (sendo três o número máximo de juízes) –, estabelecendo que apenas
as “cidades mais populosas” poderiam contar com mais de um magistrado. Porém,
mudança ainda mais importante vinha a seguir. Conforme formulação dos repre-
sentantes vitalícios, em tais casos, isto é, da existência de três juízes “com jurisdic-
ção cumulativa”23, em uma cidade populosa, um deles seria o “Chefe da Policia”. Os
senadores criavam, então, uma nova autoridade – de nomeação do centro –, mas
sem competências claramente definidas.

21  Anais do Senado do Império do Brasil, sessão de 6 de outubro de 1831 (doravante asib).
22  Para uma análise detalhada das emendas propostas pelos senadores, ver Dantas (2017).
23  Doravante, todas as citações – não explicitamente referidas a outras fontes – remetem à “Lei
de 29 de Novembro de 1832 – Promulga o Código do Processo Criminal de primeira instância com
disposição provisória acerca da administração da Justiça Civil”, Collecção das Leis do Império do Brazil
de 1832, Parte Primeira, Rio de Janeiro, Typografia Nacional, 1874, pp. 186-242.

217
Outras emendas alteraram ainda mais o determinado pelos deputados no tan-
gente aos juízes de direito. Conforme o projeto de 1831, os juízes de direito, a não
ser por crime, só poderiam ser “tirados” de sua comarca ou província em caso de
promoção para os tribunais superiores, a requerimento de dois terços dos vereado-
res das câmaras municipais pertencentes à comarca em que estivesse lotado, ou,
finalmente, se optasse por trocar de lugar com outro magistrado (estando ambos de
acordo). Ao retornar da casa vitalícia, determinava-se que os “Juizes de Direito não
serão tirados de uma para outra Comarca, se não por promoção aos lugares vagos
das Relações, a que tenham direito, ou quando a utilidade publica assim o exigir”.
Ou seja, retiravam-se as previsões acerca da decisão dos vereadores e da vontade dos
magistrados, incluindo-se uma expressão deveras genérica, “utilidade pública”, que
obviamente abria um imenso caminho para o arbítrio dos ministros e presidentes
de província. Finalmente, emenda supressiva do Senado fez desaparecer do texto
previsão acerca da promoção dos juízes, que, conforme os representantes temporá-
rios, seria “regulada pela antiguidade, contada pelo tempo de serviço”, desde a posse
no seu primeiro lugar como magistrado.24 Se não era muito, já limitava a atuação
do governo, com o que não concordou a câmara alta.
Quanto às autoridades que serviam nas municipalidades, outra mudança altera-
va o projeto dos deputados. Não mais os magistrados que serviam nos termos seriam
chamados “supplentes dos juízes de direito”, doravante passariam a ser nominados
juízes municipais.25 Ademais, para além das atribuições adscritas pelos deputados,
os senadores deram ao novo juiz municipal mais uma competência, a de “exercitar
cumulativamente a jurisdicção policial”. Ou seja, a jurisdição policial, adscrita pelos
deputados somente aos juízes de paz, passava ser de atribuição cumulativa dos juízes
municipais que, diferentemente dos anteriores, não eram escolhidos por sufrágio.26
Tanto neste caso, quanto em se tratando da criação da figura do Chefe de Polícia, as
emendas do Senado abriam espaço para disputas jurisdicionais.
Os artigos sobre os promotores também não passaram incólumes na casa
vitalícia. Conforme o projeto dos deputados, poderiam ser promotores “todos os
que podem ser Jurados, tendo-se attenção aos que forem mais instruidos nas Leis”,
sendo escolhidos por sufrágio. Ao retornar do Senado, ainda que as qualidades
necessárias para exercer a função tenham sido mantidas, a forma de escolha fora
profundamente alterada. Doravante, seriam “nomeados pelo Governo na Côrte, e
pelo Presidente nas Provincias, por tempo de tres annos, sobre proposta triplice
das Camaras Municipaes”, isto é, a sistemática adotada para os “suplentes do juiz
de direito”, ou juízes municipais. No tangente aos promotores, até mesmo a forma
de escolha dos suplentes foi alterada pelo Senado. Em acordo com o projeto da casa
temporária, em caso de “impedimento, ou falta do Promotor nos termos a Câmara

24  Discurso do senador José Teixeira da Matta Bacellar. asib, sessão de 4 de agosto de 1832.
25  Como formulado pelos membros da comissão especial, de 1831, em documento anterior ao projeto
remitido ao plenário da câmara, em setembro, “nenhum tribunal ou juizo excepcional póde existir
no imperio, senão os que vêm marcados na constituição” (dantas, 2017, p. 439). Conforme a Carta,
tratando-se da 1a instância, só poderiam, então, existir juízes de direito, juízes de paz e jurados; daí
a opção pelos suplentes dos juízes de direito para atuarem no âmbito dos termos.
26  “Quanto à forma de escolha, manteve-se que de três em três anos os vereadores fariam uma
lista tríplice, dentre os ‘habitantes formados em Direito, ou Advogados habeis, ou outras quaesquer
pessoas bem conceituadas, e instruídas’. Tais listas deveriam ser ‘remettidas ao Governo na Provincia,
onde estiver a Côrte, e aos Presidentes em Conselho nas outras, para ser nomeado d’entre os tres
candidatos um’” (dantas, 2017, p. 449).

218
Municipal indicara quem faça as suas vezes, e nos julgados os Juízes de Paz da po-
voação da cabeça dele” (dantas, 2017, p. 451). Ao retornar da casa vitalícia, contudo,
ficava a cargo do juiz municipal indicar o promotor suplente.27
Os senadores também propuseram alterações ao que fora prescrito acerca dos
conselhos de jurados. Se o número de jurados do 2o conselho (ou júri de sentença),
não foi objeto de emendas, mantendo-se então a necessidade de 48 cédulas para
que 12 jurados fossem sorteados, o mesmo não ocorreu com o 1o conselho (ou júri
de acusação). Neste caso, os senadores propuseram o aumento de 12 para 23 jurados,
sendo doravante obrigatória a disponibilidade de 60 nomes na urna (e não mais 48).
À casa vitalícia coube, portanto, uma das previsões do Código que mais recebeu
críticas, uma vez promulgado o diploma, tanto dos próprios representantes, como
das autoridades responsáveis pela formação e funcionamento do júri de acusação.
Vale destacar que a posição aprovada na casa vitalícia fora objeto de discussões
acaloradas na Câmara, já em 1827. À época, muitos dos representantes temporários
manifestaram-se contrariamente a um conselho composto por mais de 10 ou 12
pessoas, alegando que um número muito grande de jurados, no primeiro conselho,
poderia não só inviabilizar as reuniões do júri, como até mesmo provocar o descon-
tentamento da população, uma vez que os cidadãos com as qualidades necessárias
para participar dos conselhos teriam que ser chamados a atuar repetidas vezes.
Outra alteração também veio a mobilizar os críticos nos anos subsequentes.
Se, no projeto de 1831, já se previa, na seleção do júri de sentença, a faculdade de
“recusação” de potenciais jurados pelas partes – determinando-se que, em caso, de
mais de um réu, cada qual teria direito à metade, um terço, um quarto das recusações
(e, assim por diante, a depender do número de réus) –, ao voltar o texto do Senado,
determinava-se que, se os réus fossem dois ou mais, e não se acertassem quanto às
recusações, “ser-lhes-ha permittida a separação do processo, e nesse caso, cada um
poderá recusar até doze”. Mais uma vez a emenda do Senado, incorporada ao diplo-
ma final, foi objeto de críticas por contribuir para o aumento do número de causas.
No tangente aos conselhos de jurados, contudo, o Senado propôs ainda mais
alterações. Conforme o projeto de 1831,

Art. [...] Todas as questões incidentes, de que dependerem as diliberações


finaes em hum outro Jury, serão decididas pelos Juizes de Facto ou pelo Juiz
de Direito, segundo a materia pertencer a huma ou outra classificação, con-
ferindo entre si em caso de duvida.
Art. [...] Na occasião de debate (mas sem interromper a quem estiver fallando),
e antes que as questões do Art. 289 sejão propostas, póde qualquer Juiz de

27  Conforme a lei de 15 de outubro de 1827, os Juízes de Paz eram eletivos “pelo mesmo tempo
e maneira por que se elegem os Vereadores das Câmaras”, podendo ser sufragados todos os que
possuíssem qualidades exigidas aos eleitores. Em 1828, foi promulgado o diploma que regulamentava as
câmaras municipais, determinado que os vereadores deveriam ser eleitos pelo conjunto dos votantes,
em sufrágio direto; sistemática, portanto, que deveria ser adotada também para a eleição dos juízes de
paz. As qualidades, para ser votante ou eleitor, vinham dispostas na Carta de 1824, em seus artigos
91 a 94. “Lei de 15 de outubro de 1827. Crêa em cada uma das freguezias e capellas curadas um Juiz
de Paz e supplente”, Collecção das Leis do Império do Brazil de 1827, parte primeira, Rio de Janeiro,
Typographia Nacional, 1878; Lei de 1o de Outubro de 1828- Dá nova fórma ás Camaras Municipaes,
marca suas atribuições, e o processo para sua eleição, e dos Juizes de Paz”, Collecção das Leis do Império
do Brazil de 1827, parte primeira, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1878; “Constituição Política
do Império do Brazil”, Coleção de Leis do Império do Brazil. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1886.

219
Facto fazer as observações, que julga convenientes; fazer interrogar de novo
alguma testemunha; e pedir que o Jury vote sobre qualquer ponto particular,
que julgar de importancia. (dantas, 2017, p. 566)

No caso do primeiro artigo citado, os representantes vitalícios suprimiram


o final da sentença, depois da palavra classificação, adicionando a seguinte oração,
“havendo duvida se a questão é de facto ou de direito, o Juiz de Direito decidirá com
recurso para a Relação”. Ou seja, doravante, caberia ao magistrado togado decidir
se tal ou qual questão era de fato ou de direito, devendo, em caso de discordância,
recorrer ao tribunal de 2a instância, também formado por bacharéis e de indica-
ção do governo. Evidentemente, enfraquecia-se, assim, o poder dos jurados, o que
também foi feito no artigo seguinte, ao adicionar-se, depois de “ponto particular”,
a expressão “de facto”.
Os senadores também alteraram a quantidade de votos necessária, no 2o con-
selho de jurados, para ser condenado o réu. No projeto de 1831, constava que, em
caso de sentenças que implicassem a imposição da pena capital, era necessária a
unanimidade. Em todos os outros casos, ao menos 2/3 dos jurados deveria concordar
com a condenação; sendo que, não alcançados tais votos, o réu seria considerado
inocente. Ao voltar do Senado, mantinham-se os 2/3 nos casos gerais, determi-
nando-se, contudo, que, nos crimes que previam a cominação da pena de morte,
não alcançando o júri unanimidade, bastaria 2/3 para condenar o réu na “pena
immediatamente menor”.28
Finalmente, vale mencionar ainda um duro golpe imposto pelos senadores.
No projeto de 1831, constava que “todas as Autoridades Judiciarias ficam obrigadas
a dar parte a Assemblea Geral de todas as duvidas, omissões, que encontrarem no
presente Codigo”. Por emenda, o Senado não só extirpou tal previsão como, em seu
lugar, dispôs que, em tais casos, fosse notificado o Supremo Tribunal de Justiça,
cujos membros, conforme lei de 1828, era composto por “dezassete Juizes letrados,
tirados das Relações por suas antiguidades”.29
Os representantes temporários acabaram por acatar as emendas da casa vitalí-
cia, afinal, há mais de um ano, esperava-se que o Senado devolvesse à câmara baixa
o projeto de Código do Processo Criminal, “reclamado desde que apareceu a Consti-

28  A casa vitalícia alterou, ademais, as prescrições dos deputados acerca de novo julgamento. Segundo
o texto elaborado na casa temporária, caso a pena imposta pelo júri de sentença fosse maior do que
seis anos de degredo ou desterro, quatro anos de galés, ou capital, era facultado ao réu pedir novo
julgamento por jurados, cabendo ao juiz de Direito tomar as provid6encias necessárias. Se a emenda
proposta no Senado, por um lado, diminuiu as penas que facultavam ao réu requisitar um novo júri
– doravante, “cinco annos de degredo, ou desterro, tres de galés ou prisão”, mantendo-se, claro, a
capital – por outro, tal conselho deveria ser aquele da capital da província, e não de qualquer outro
termo. Em se tratando de províncias de grande extensão territorial e compostas por vários termos, o
deslocamento para a capital, tanto do réu como das testemunhas, poderia implicar grandes custos e
dificuldades, atingindo diretamente as garantias que visavam ser asseguradas por um novo julgamento.
29  Substituíam-se, então, os representantes pela mais alta magistratura togada, o que, em tudo,
feria o espírito do projeto dos deputados. Ademais, àquela altura, dos dezessete membros do Supremo,
quinze eram desembargadores da Casa de Suplicação, cuja extinção e retorno à condição de Relação do
Rio de Janeiro, os representantes, há anos, vinham advogando, sempre com a resistência do Senado.

220
tuição entre nós”, a fim de se combater “a corrupção dos Magistrados” e, mais ainda,
tornar a “Nação”, por meio do julgamento por jurados, “verdadeiramente livre”.30
Não espanta, portanto, que, pouco depois de sancionado o diploma, o ministro
da Justiça, Honório Hermeto Carneiro Leão, assim se manifestasse no relatório da
pasta de 1833:

Julgo de meu dever declarar francamente que o novo Codigo tem defeitos
graves, que necessitão de correcção; a pratica provavelmente descobrirá
muitos, que por ora ainda não são vistos; entretanto já se enxerga que, além
da falta de ordem, methodo, e clareza necessária em huma Lei, que tem de
ser executada por homens não versados em Jurisprudencia, ha no Codigo de
Processo repetições, omissões graves, e ate artigos inteiramente antinômicos.

Ou seja, para além das alterações propostas no Senado, havia ainda outros
problemas no diploma sancionado em novembro de 1832. Dado que as emendas
da casa vitalícia não passaram por uma comissão revisora (como ocorrera com
o projeto de Código Criminal), não espanta que o ministro da Justiça apontasse a
existência de antinomias, lacunas e omissões. Assim, se, de fato, pouco depois de
aprovado o Código, muitos já indicavam a necessidade de revisão do diploma, as
razões para tanto eram as mais diversas, desde o descontentamento com a inclusão
das emendas da casa vitalícia, passando pelos problemas evidentes de um Código
assistemático (para dizer o mínimo), até, claro, discordâncias gerais em relação a
várias de suas prescrições.
Assim, quando a reforma do Código do Processo foi sancionada, aos 3 de dezem-
bro de 1841, ela não só contemplava apenas parte dos descontentes, como introduzia
modificações contrárias aos desejos de muitos outros. A fim de melhor entender
as mudanças operadas pela reforma e o quanto tais modificações justificavam que
parte das elites de São Paulo e Minas Gerais pegasse em armas contra à novidade
legislativa, faz-se necessário recuperar, em mais detalhes, certas prescrições do
diploma de 1832 e as mudanças trazidas pela lei de 1841.

2. Do Código de 1832 à reforma de 1841

O Código do Processo mantinha a divisão das províncias do Império em distritos


de paz, termos e comarcas. Em cada distrito de paz haveria um juiz de paz, um es-
crivão e quantos inspetores de quarteirão e oficiais de justiça fossem necessários.
Os juízes de Paz seriam eleitos na forma da legislação em vigor (ou seja, por eleição
direta do conjunto dos votantes), sendo o mais votado o juiz e, outros três (por nú-
mero de votos), seus suplentes.
Em cada termo, por sua vez, se reuniriam tanto os júris de acusação, como os
júris de sentença. Nos termos haveria também um juiz municipal, um promotor
público, um escrivão das execuções e quantos oficiais de justiça fossem considerados

30  Discurso do deputado Antônio Pedro da Costa Ferreira em sessão da Câmara de 1832, O Astro de
Minas, 25 de agosto de 1832.

221
necessários. Para a nomeação dos juízes municipais as câmaras deveriam, de três
em três anos, fazer uma lista de três candidatos, “tirados dentre os seus habitantes
formados em Direito, ou Advogados hábeis, ou outras quaisquer pessoas bem con-
ceituadas, e instruídas”. Essas listas, no caso das províncias em que não estivesse
a Corte, deveriam ser remetidas “aos Presidentes em Conselho [...] para ser nomeado
dentre os três candidatos um, que deve ser o Juiz Municipal do Termo”. Cabia, então,
aos juízes municipais nomear os escrivães que serviriam nos respectivos termos.
Poderiam ser promotores todos aqueles aptos a serem jurados, sendo nomeados
pelos “Presidentes nas Províncias, por tempo de três anos, sobre proposta tríplice
das Câmaras Municipais”; na falta ou impedimento do Promotor, cabia ao juiz mu-
nicipal nomear um interino.
Deveriam compor os conselhos de jurados todos os que tivessem as qualidades
para serem eleitores. A elaboração da lista dos cidadãos aptos era de competência,
em cada distrito, de uma junta composta por um juiz de paz, o pároco e o presidente
da Câmara municipal; sendo que qualquer decisão, acerca da inclusão ou exclusão
de nomes nas respectivas listas, seria resolvida por uma junta formada pelos juízes
de paz dos distritos compreendidos no termo.
Nas comarcas haveria um juiz de Direito. Em se tratando de cidades popu-
losas, até três juízes poderiam ser nomeados, dentre os bacharéis formados, sendo
um deles o chefe de polícia. Ao imperante (fosse o monarca ou a regência que, em
sua menoridade, respondia pelo governo) cabia nomear os juízes de Direito. Fica-
vam extintas, doravante, as ouvidorias, os juizados de fora, os juízes ordinários, e
a jurisdição criminal de qualquer outra autoridade.
Os juízes de paz, além das funções determinadas pela lei de 182731, eram res-
ponsáveis por “formar a culpa aos delinqüentes”; obrigar à assinatura de termo de
bem viver e de segurança; conceder fiança na forma da lei, aos declarados culpados
no Juízo de Paz; bem como julgar as contravenções às posturas das câmaras mu-
nicipais e os crimes a que não fossem impostas penas maiores que multa até cem
mil réis, prisão, degredo ou desterro por até seis meses.
Formada a culpa pelo juiz de paz, deveria ele remeter os autos para o juiz de
paz da “cabeça do Termo, e havendo mais de um, áquelle d’entre elles que ahi fôr
o do Districto onde se reunir o Conselho dos Jurados”, sendo de sua competência
mandar “notificar as testemunhas, para comparecerem na proxima primeira reu-

31  Segundo o artigo 5º da lei de 1827, cabia ao Juiz de Paz: §1º, conciliar as partes, por meios
pacíficos; §2º, “julgar pequenas demandas, cujo valor não exceda 16$000, ouvindo as partes, e à vista
das provas apresentadas por elas; reduzindo-se tudo a termo na forma do parágrafo antecedente”;
§3º, fazer separar os ajuntamentos, em que há manifesto perigo de desordem [...]; e, em caso de
motim, deprecar a força armada para rebatê-lo [...]”; §4º, por em custódia o bêbado; §5º, evitar as
rixas, procurando conciliar as partes; §6º, fazer destruir os quilombos; §7º, fazer auto de corpo de
delito nos casos e modos marcados pela lei; §8º, sendo indiciado o delinqüente, fazê-lo conduzir à sua
presença, interrogar as testemunhas, e provado por evidência, fazer prendê-lo na conformidade da
lei, remetendo ao Juiz Criminal respectivo; §9º, ter uma relação dos criminosos; §10, fazer observar
as posturas policiais da Câmara; §11, informar ao Juiz de Órfãos a existência de menores e outros de
sua responsabilidade; §12, vigiar sobre a conservação das matas e florestas públicas; §13, participar ao
Presidente de Província todas as descobertas que se fizerem no seu distrito, de quaisquer produções
úteis ao reino; §14, procurar a composição de todas as contendas que se suscitarem entre vizinhos;
§15, dividir o distrito em quarteirões, com não mais de 25 fogos, e nomear para cada um oficial.
Três anos depois, conforme decreto de 28 de junho de 1830, atribuía-se aos Juízes de Paz também
a presidência das Assembléias Paroquiais (revogando-se as instruções de 26 de março de 1824 e o
decreto de 29 de julho de 1828). “Lei de 15 de outubro de 182 – Crêa em cada uma das freguezias e
capellas curadas um Juiz de Paz e supplente”, op. cit.

222
nião de Jurados”. Ao juiz de Direito, restava, tão somente, notificar o presidente da
Câmara, a fim de que este mandasse extrair, da urna dos jurados, sessenta nomes,
notificando-lhes a data em que deveriam comparecer à sessão do 1o conselho. No
dia aprazado, estando presentes “o Juiz de Direito, Escrivão, Jurados, o Promotor nos
crimes, em que deve accusar, e a parte accusadora, havendo-a”, o magistrado togado
ordenaria a um menino sortear 23 cédulas, com os nomes daqueles que comporiam
o 1o conselho. A este corpo de jurados competia decidir se havia ou não matéria para
acusação. Em sendo a resposta negativa, “o Juiz de Direito, por sua sentença lançada
nos autos, julgará de nenhum effeito a queixa, ou denuncia”; já em caso afirmativo,
deveria o magistrado declarar “que ha lugar a formar-se acusação”, notificando o
acusado para comparecer à próxima reunião do 2a conselho, ou júri de sentença. A
esse segundo Conselho, composto por doze jurados (também sorteados, por um me-
nino, de um conjunto de 48 cédulas existentes na urna), cabia deliberar acerca da
culpabilidade ou inocência do réu (ou réus), e mais questões incidentes. Finalmente,
ao juiz de Direito competia, tão somente, se o réu fosse considerado culpado, aplicar
as penas previstas no Código Criminal de 1830.
Em suma, no processo ordinário, do corpo de delito, passando pela formação
da culpa, a decisão de pronúncia e, daí, até a sentença, tudo era essencialmente
resolvido pelo magistrado eleito e pelos “Juízes do Facto”. Tratava-se, então, apesar
da pletora de emendas apresentadas pelos senadores (e que, como visto, alteraram,
em profundidade, o texto originalmente aprovado, em 1831, na casa temporária), de
uma justiça cidadã.32
Os “cidadãos”, contudo, não se faziam representar apenas nos juizados de paz e
nos conselhos de jurados. A despeito das alterações propostas pelos Senadores, juízes
municipais e promotores não só não precisavam ser bacharéis, como deveriam ser
escolhidos a partir de lista tríplice elaborada pela câmara municipal.33
Porém, antes de passar à discussão das mudanças operadas pela lei de 3 de de-
zembro de 1841, é mister recuperar certas especificidades dos governos provinciais
no período em questão. Em 1832, a lista tríplice de juízes municipais e promotores
não era encaminhado simplesmente ao presidente da província, mas sim ao “Pre-
sidente em Conselho”.
Em 1823, conforme lei de 20 de outubro, deu-se nova forma aos “governos
Provinciais, creando para cada uma dellas um Presidente em Conselho”. De acordo

32  Tal expressão – cunhada em 2009, por ocasião da conferência que embasou a elaboração do
presente capítulo –, pressupõe, obviamente, não só o entendimento hodierno da palavra cidadão
(em tudo distinta do que se compreende hoje pelo vocábulo), mas também a oposição entre uma
justiça que tinha na magistratura togada seu principal alicerce (como previsto nas normas herdadas
de Portugal), e outra assentada em jurados e juízes eletivos, ainda que a decisão em nível recursal
(fosse por meio de apelação para a Relação, ou recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça)
implicasse, necessariamente, a intervenção de magistrados nomeados pelo centro.
33  A indicação do juiz municipal era tão mais importante na medida em que, como mencionado, em
acordo com “Disposição Provisória acerca da Administração da Justiça Civil”, a esse magistrado cabia
preparar e processar todos os feitos, até a sentença final. Ademais, nas grandes povoações, em que
a administração da justiça civil pudesse ocupar mais de um magistrado, haveria um juiz do cível “a
quem fica competindo toda a jurisdição civil com exclusão dos Juízes Municipais, cuja jurisdição nessa
parte fica cessando. A designação destes Juízes será feita do mesmo modo, que a divisão em Comarcas”.
A divisão das comarcas e termos, em acordo com o art. 3º do Código do Processo, era de atribuição
do governo, na província onde estivesse a Corte, e nas outras províncias, do presidente em conselho.
Em suma, questões fundiárias, por exemplo, passavam a ser de competência, no caso da maioria dos
municípios do país, de um magistrado escolhido, em lista tríplice, por autoridades eleitas localmente,
recaindo no “Presidente em Conselho”, a nomeação de um dos três nomes indicados pelos vereadores.

223
com o artigo 10, cada conselho seria composto por seis membros, eleitos pela mesma
forma que se elegiam os deputados à Assembleia Geral Constituinte (sendo o mais
votado o vice-presidente); a partir de 1824, o sufrágio passou a seguir as normas
da Carta, reguladas pelo decreto baixado pelo imperador em 26 de março de 182434.
O diploma de 1823 determinava, ademais, que ao presidente cabia despachar “por
si só” e decidir “todos os negócios, em que, seguindo este Regimento, senão exigir
especificamente a cooperação do Conselho”. Contudo, nas “matérias da competên-
cia necessária do Conselho, terá ele voto deliberativo, e o Presidente de qualidade”.
Dentre as matérias que exigiam o voto dos conselheiros, destacavam-se: a proposi-
ção de criação de novas câmaras (“onde as deve haver”), bem como a suspensão de
magistrados e comandantes militares.
A diferença entre as matérias de deliberação do conselho e aquelas exclusivas
do presidente ficava evidente, inclusive, na fórmula das resoluções. Se o Conselho
deliberasse, a resolução teria a seguinte fórmula: “O Conselho resolveu...”; se o presi-
dente decidisse por si só, conforme estabelecido no artigo 26, a fórmula seria então:
o “Presidente temporariamente ordena...”; nas outras matérias em que era facultado
ao presidente consultar, ou não, o conselho, as resoluções tomadas por ele seriam
publicadas com a seguinte redação: o “Presidente ouvindo o Conselho resolveu...”,
ou o “Presidente ordena...”.35
Em 1831, a lei de 14 de junho, “Sobre a forma de eleição da Regência Perma-
nente e suas atribuições”, permite entender melhor como alguns dos artigos da lei
de 1823 passaram a ser interpretados depois da outorga da Carta e, especialmente,
após a abdicação de Pedro I.

Art. 17. A atribuição de suspender magistrados será exercida pela Regência


cumulativamente com os Presidentes das respectivas Províncias, em Con-
selho, ouvindo o Magistrado, e precedendo informação na forma do art. 154
da Constituição.
Art. 18. A atribuição de nomear Bispos, Magistrados, Comandantes da Força
de Terra e Mar, Presidentes das Províncias, Embaixadores e mais Agentes
Diplomáticos e Comerciais, e membros da Administração da Fazenda Nacional
na Corte, e nas Províncias os membros das Juntas de Fazenda, ou as autori-
dades que por Lei as houverem de substituírem será exercida pela Regência.
A atribuição porém de prover os mais empregos civis, ou eclesiásticos (ex-
ceto os acima especificados, e aqueles cujo provimento definitivo competir
por Lei a outra autoridade), será exercido na Corte pela Regência, e nas Pro-
víncias pelos Presidentes em Conselho, procedendo as propostas, exames, e
concursos determinados por Lei.36

34  “Decreto de 26 de março de 1824 - Manda proceder á eleição dos Deputados e Senadores da
Assmbléa Geral Legislativa e dos Membros dos Conselhos Geraes das Provincias”. Colleção das Leis do
Imperio do Brazil de 1824. Parte 1a. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1886.
35  “Lei de 20 de outubro de 1823. Dá nova forma aos Governos das Províncias, creando para cada
uma dellas um Presidente e Conselho”, Collecção das Leis do Império do Brazil de 1823, parte I, Rio de
Janeiro, s/d, p. 10-15.
36  “Lei de 14 de junho de 1831. Sobre a forma da eleição da Regência permanente e suas atribuições”,
Collecção das Leis do Império do Brazil de 1831. Primeira parte, Rio de Janeiro, Typographia Nacional,
1875, p. 19-24 (grifos nossos).

224
debret, Jean-Baptiste. D. Pedro I no
traje da Sagração.
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro
Correa do. Debret e o Brasil: obra
completa: 1816-1831. 3. ed. Rio de
Janeiro: Capivara, 2013. p. 606.

225
Assim, aos regentes cabia nomear magistrados, tal como antes era de com-
petência do imperador (como chefe do Poder Executivo, que o exercia por seus
ministros), em acordo com o artigo 102 da Constituição. Contudo, aos “Presidentes
em Conselho” cabia suspendê-los, bem como prover todos os mais empregos civis
(excetuando-se aqueles arrolados no artigo 18). Parece legítimo concluir, então, que,
em acordo com o Código do Processo Criminal de 1832 – uma vez que os juízes
municipais, como visto, eram de escolha do presidente da província a partir de lista
tríplice das câmaras municipais –, o vocábulo “magistrados” remetia tão somente
aos juízes de Direito (além, é claro, dos magistrados que serviam nas Relações e no
Supremo Tribunal de Justiça).
Contudo, consoante o decreto de 13 de dezembro de 1832, que dava “Instruções
para a execução do Código do Processo Criminal” (promulgado há menos de duas
semanas), as atribuições dos “Presidentes em Conselho” eram bem mais amplas:

Art. 9º. [...] as Câmaras Municipais remeterão ao Governo na Corte, e aos


Presidentes em Conselho nas Províncias, as propostas para Juízes Municipais,
para Juízes de órfãos, e para Promotores Públicos.
Art. 12. Recebidas as propostas, estando elas nos devidos termos, o Governo
na Corte e Província do Rio de Janeiro, e os Presidentes em Conselho nas
outras Províncias, nomearão, dentre os cidadãos propostas para cada um
dos cargos, os que hão de servir de Juízes Municipais, Juízes de Órfãos,
e Promotores [...].
Art. 30. Os Presidentes em Conselho são autorizados a designarem dentre
os Magistrados, que estiverem servindo nas suas respectivas Províncias,
os Juízes de Direito para cada uma das comarcas, e os Juízes especiais do
Cível, havendo na Província alguma povoação nas circunstâncias declaradas
no art. 13 do título único da Disposição Provisória acerca da Administração
da Justiça Civil.
Art. 33. Se na província não houver tantos Magistrados, quantos bastem para
Juízes de Direito de todas as comarcas, que forem criadas, nem por isso se
deixará de por em execução o Código em todas as comarcas; devendo em
tal caso os Juízes Municipais das comarcas, para as quais os Presidentes
não designarem Juízes de direito por falta de Magistrados na Província,
exercer como substitutos dos ditos Juízes, todas as suas funções nos res-
pectivos termos.37

Ou seja, os “Presidentes em Conselho” escolhiam, a partir de lista tríplice,


os juízes municipais, de órfãos e promotores, preferencialmente dentre bacharéis
formados, sendo facultado às câmaras, contudo, na ausência de bacharéis, indicar
“pessoas bem conceituadas, e instruídas” ou, no caso do promotores, aqueles que
tivessem simplesmente as qualidades necessárias para ser jurado. Mas, cabia também
ao presidente e seus conselheiros – lembrando que, ao primeiro, nestes casos, era

37  “Decreto de 13 de dezembro de 1832. Dá instruções para a execução do Código do Processo


Criminal”, Collecção das Leis do Império do Brazil de 1832, parte II, Rio de Janeiro, Typographia Nacional,
1874, p. 195-203 (grifos nossos).

226
facultado apenas o voto de qualidade, ou minerva – determinar onde seriam lotados
os juízes de Direito, bem como escolher os juízes do civil. Ademais, na ausência de
magistrados suficientes para servir em todas as comarcas, caberia aos juízes muni-
cipais (não necessariamente diplomados) servir como juízes de Direito substitutos.
Tais atribuições, do “Presidente em Conselho”, permaneceram inalteradas até
3 de outubro de 1834, quando a lei de no. 40 deu novo regimento para os presiden-
tes de província e extinguiu o Conselho da Presidência, criado em 1823. Doravante:

Art. 12. Fica extincto o Conselho da Presidência, e as attribuições, que com-


petião aos Presidentes em Conselho, serão por elle somente exercidas.
Art. 13. Fica revogada a Lei de 20 de outubro de 1823, e as mais que estiveem
em opposição à presente.38

Se, de fato, os eleitores das províncias deixaram de sufragar os membros dos


Conselhos da Presidência, a partir de 1835 – em acordo com o Ato Adicional – eles
passaram a escolher deputados às com Assembleias Provinciais que, conforme seu
artigo 10, § 7, tinham a faculdade de criar, alterar e suprimir empregos provinciais
e municipais. Tal atribuição, para desespero de mais de um ministro da Justiça, foi
fartamente utilizada por várias assembleias provinciais. No Maranhão, por exemplo,
os representantes chegaram até a criar uma nova figura, o delegado, atribuindo-
-lhe uma série de competências que, conforme lei geral (no caso, o Código de 1832),
eram adscritas aos juízes de paz; invenção esta, dos delegados, que acabou por fazer
eclodir uma imensa rebelião.39
Mas isso só até 1840, quando aprovada, no Parlamento, a Intepretação do Ato
Adicional, cujo texto, em seu artigo 2o, estabelecia claramente que a “faculdade de
crear, e supprimir Empregos Municipaes, e Provinciaes”, dizia respeito tão somente
àqueles que não fossem “estabelecidos por Leis Geraes relativas a objectos sobre os
quaes não podem legislar as referidas Assembléas”. Contudo, em seu último artigo
(de no. 8), determinava o diploma de 1840 que as “Leis Provinciais, que forem opostas
à interpretação dada nos artigos precedentes, não se entendem revogadas pela pro-
mulgação desta Lei, sem que expressamente o sejam por atos do Poder Legislativo

38  Tal lei foi aprovada dois meses depois do Ato Adicional; o que significa que durante quase seis
anos os Conselhos da Presidência conviveram com os Conselhos Geraes de Província, regulamentados
em 1828. Em 1824, a Constituição Política do Império do Brazil, no capítulo V (do título 4º, “Do Poder
Legislativo”), determinava a criação de “Conselhos Geraes de Província” a serem estabelecidos em
todas as províncias onde não estivesse colocada a capital do Império. Os Conselhos deveriam contar
com 21 membros nas províncias mais populosas e 13 nas outras, eleitos na mesma ocasião e pela
mesma maneira que os representantes da Nação. Aos Conselhos cabia propor, discutir e deliberar
sobre os negócios das respectivas províncias, sendo que suas resoluções seriam tomadas de acordo
com a pluralidade absoluta de votos dos membros presentes. A carta previa que o “método de
perseguirem os Conselhos Gerais de Província em seus trabalhos, e sua polícia interna e externa
tudo se regulará por um Regimento, que lhes será dado pela Assembléia Geral”. Os conselhos gerais,
contudo, só foram estabelecidos quatro anos depois, com a aprovação da lei de 27 de agosto de 1828
que dava “Regimento para os Conselhos Gerais de Província”. “Lei n. 10 – de 3 de outubro de 1834.
Dá Regimento aos Presidentes de Provincia, e extingue o Conselho da Presidencia”, Collecção das Leis
do Império do Brazil de 1834. Parte primeira, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1866; “Constituição
Política do Império do Brazil”, Collecção das Leis do Império do Brazil de 1824, parte 1ª. Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional, 1886, p. 7-36; “Lei de 27 de agosto de 1828. Dá regimento para os Conselhos Geraes
de Província”, Collecção das Leis do Império do Brazil de 1828, parte primeira, Rio de Janeiro, Typographia
Nacional, 1878, p. 10-23.
39  Ver Assunção (2011).

227
Geral”. 40 Ou seja, se alguma província tivesse criado novos empregos, retirado ou
atribuído novas competências a empregados provinciais ou municipais, ou mesmo
modificado a forma de escolha de tais empregados – criados por lei geral –, apenas
por meio de novas leis gerais é que poderiam ser revogados os diplomas provinciais.
A lei de 3 de dezembro de 1841, “Reformando o Código do Processo Penal”
– aprovada, portanto, pouco mais de um ano depois de revogado o direito das as-
sembleias de legislar sobre empregos provinciais e municipais -, alterou substan-
tivamente não só as competências de autoridades judiciárias e policiais (criando,
inclusive, novos cargos), como modificou sua forma de escolha ou indicação.41
Primeiramente, no “Capítulo I – Da Polícia”, estabelecia-se que em cada provín-
cia, além de um chefe de polícia (já previsto em 1832), haveria delegados e subdele-
gados. Os chefes de polícia seriam escolhidos pelo imperador e pelos presidentes de
província dentre os desembargadores e juízes de Direito. Já nas funções de delegado
e subdelegado, também de escolha do centro, poderiam servir “quaesquer Juizes e
Cidadãos”. Chefes de polícia e delegados passavam a responder, dentre outras42, pelas
“atribuições conferidas aos Juízes de Paz pelo Artigo 12, §§ 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 7º do
Código do Processo Criminal”43. Aos subdelegados, em seus distritos, por sua vez,
ficavam adscritas “as mesmas attribuições marcadas no artigo antecedente para
os Chefes de Policia e Delegados, exceptuadas as dos §§ 5º, 6º e 9º”. Ademais, para
dirimir quaisquer dúvidas, ficava explícito, no novo diploma, que as “atribuições
criminais e policiais que atualmente pertencem aos Juízes de Paz, e que por esta
Lei não forem especialmente devolvidas às Autoridades, que cria, ficam pertencen-
do aos Delegados e Subdelegados”. Ou seja, em seus primeiros artigos, a reforma

40  “Lei de 12 de maio de 1840. Interpreta alguns artigos da reforma constitucional”, Collecção das
Leis do Império do Brazil de 1840, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1863.
41  “Lei no. 261 – de 3 de dezembro de 1841. Reformando o Código do Processo Criminal”, Collecção
das Leis do Império do Brazil de 1841. Tomo IV. Parte I, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1842, p.
101-122 (doravante “Lei no. 261 – de 3 dezembro de 1841”). Doravante, todas as citações – a não ser
que explicitamente referidas a outros documentos – remetem à referida lei de dezembro de 1841.
42   “§ 2º Conceder fiança, na fórma das leis, aos réos que pronunciarem ou prenderem. § 3º As
attribuições que ácerca das Sociedades secretas e ajuntamentos illicitos concedem aos Juizes de Paz as
leis em vigor. § 4º Vigiar e providenciar, na fórma das leis, sobre tudo que pertence á prevenção dos
delictos e manutenção da segurança o tranquillidade publica. § 5º Examinar se as Camaras Municipaes
tem providenciado sobre os objectos do Policia, que por Lei se achão a seu cargo, representando-
lhes com civilidade as medidas que entenderem convenientes, para que se convertão em Posturas,
e usando do recurso do art. 73 da Lei do 1º de Outubro de 1828, quando não forem attendidos. §
6º Inspeccionar os Theatros e espectaculos publicos, fiscalisando a execução de seus respectivos
Regimentos, e podendo delegar esta inspecção, no caso de impossibilidade de a exercerem por si
mesmos, na fórma dos respectivos Regulamentos, ás Autoridades Judiciarias, ou Administrativas
dos lugares. § 7º Inspeccionar, na fórma dos Regulamentos as prisões da Provincia. § 8º Conceder
mandados de busca, na fórma da Lei. § 9º Remetter, quando julgarem conveniente, todos os dados,
provas e esclarecimentos que houverem obtido sobre um delicto, com uma exposição do caso e de
suas circumstancias, aos Juizes competentes, a fim de formarem a culpa”.
43  “§1º. Tomar conhecimento das pessoas, que de novo vierem habitar no seu distrito, sendo
desconhecidas ou suspeitas; e conceder passaporte as pessoas que lhe o requererem.§ 2º. Obrigar a
assinar termo de bem viver aos vadios, mendigos, bêbados por habito, prostitutas, que perturbam o
sossego publico, aos turbulentos, que por palavras, ou ações ofendem os bons costumes, a tranqüilidade
publica, e a paz das famílias.§3º. Obrigar a assinar termo de segurança aos legalmente suspeitos da
pretensão de cometer algum crime, podendo cominar neste caso, assim como aos compreendidos no
parágrafo antecedente, multa até trinta mil réis, prisão até trinta dias, e três meses de Casa de Correção,
ou Oficinas públicas.§4º. Proceder a Auto de Corpo de Delito, e formar a culpa aos delinqüentes.§5º.
Prender os culpados ou o sejam no seu ou em qualquer outro Juízo. §7º. Julgar: 1º, as contravenções
às Posturas das Câmaras Municipais; 2º, os crimes, a que não seja imposta pena maior que a multa até
cem mil réis, prisão, degredo ou desterro até seis meses, com multa correspondente à metade deste
tempo, ou sem ela, e três meses de Casa de Correção ou Oficinas publicas onde as houver”. “Código
do Processo Criminal”, op. cit.

228
não só retirava a maioria das atribuições do magistrado eletivo (um dos pilares do
Código de 1832), como criava autoridades policiais com competências concorrentes,
abrindo imenso espaço para conflitos jurisdicionais que não demorariam a ocorrer.
Os juízes municipais, doravante nomeados pelo imperador dentre os bacharéis
formados em Direito para servir por quatro anos, passavam a responder também
pelas atribuições criminais e policiais que competiam aos Juízes de Paz (criando-
-se, claramente, mais um conflito jurisdicional no tangente às novas autoridades
policiais); pelo julgamento do contrabando (exceto o apreendido em flagrante ou o
de africanos); pela sustentação ou revogação ex-ofício das pronúncias feitas pelos
delegados e subdelegados; e, tal como dantes, pela substituição dos juízes de direito
em seus impedimentos.
A formação da culpa, portanto, caberia, de 1841 em diante, a subdelegados,
delegados, juízes municipais e chefes de polícia. Contudo, quando a pronúncia, ou
não pronúncia, do réu fosse feita pelo delegado ou subdelegado, o processo deveria
ser remetido ao juiz municipal para sustentá-la ou revogá-la, podendo proceder às
diligências que considerasse necessárias para retificação das queixas ou denúncias
e para esclarecimento do fato.44
Para ocupar o cargo de juízes de direito, de nomeação do imperador “na forma
do Artigo 44 do Código do Processo”, a nova lei determinava que, passados quatro
anos de sua promulgação, só poderiam ser nomeados “bacharéis formados que ti-
verem servido com distinção os cargos de Juízes Municipais, e de órfãos, e Promo-
tores Públicos, ao menos por um quatriênio”. A mudanças operadas pelo diploma
não se restringiam, contudo, a questões atinentes à nomeação. Doravante, além das
atribuições prescritas no Código de 1832, também lhes competia, conforme o § 3,
do artigo 25:

Proceder, ou mandar proceder ex-ofício, quando lhe for presente por qualquer
maneira algum processo crime, em que tenha lugar a acusação por parte da
Justiça, a todas as diligências necessárias, ou para sanar qualquer nulidade,
ou para mais amplo conhecimento da verdade, e circunstâncias, que possam
influir no julgamento.

Quanto aos promotores – pelo menos um por comarca -, passariam a ser no-
meados e demitidos pelo imperador ou pelos presidentes de província, preferindo-
-se sempre os bacharéis formados, sendo que, na sua falta ou impedimento, seriam
nomeados interinamente pelos juízes de Direito.
Mudança substantiva ocorria também com a instituição do júri. Primeiramente
alteravam-se as exigências para a participação nos conselhos de jurados. Se, antes,
bastava que tivessem as mesmas qualidades que os eleitores (conforme estabelecido
na Constituição), doravante, nas cidades do Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São
Luís era exigida renda anual de 400$000 réis (renda equivalente ao que a Consti-
tuição determinava para deputados), 300$000 réiss nas outras cidades do Império,

44  As sentenças de pronúncia proferidas ou confirmadas pelos juízes municipais deveriam ser então
remetidas ao juiz de Direito, na conformidade do Código do Processo Criminal de 1832, para que se
procedesse ao julgamento.

229
mantendo-se 200$000 réis nas vilas do país. Mas tal renda não mais poderia ad-
vir de qualquer atividade, contando-se apenas os rendimentos por bens de raiz ou
“Emprego Público”. Finalmente, os potenciais jurados deveriam saber ler e escrever.
Ou seja, as novas regras, restringiam brutalmente a participação dos cidadãos nos
conselhos de jurados.
Além disso, não mais cabia a uma junta, formada pelo pároco e mais duas
autoridades eleitas localmente, o juiz de paz e o presidente da câmara municipal,
organizar a lista de jurados; doravante, essa atribuição seria dos delegados de polí-
cia. Feitas as listas, a este cabia enviá-las ao juiz de Direito que, juntamente com o
promotor e o presidente da câmara municipal, passavam a constituir uma junta de
revisão. Ou seja, uma junta formada por duas figuras indicadas pelo centro e apenas
uma de eleição local, com faculdade de confirmar (ou não) se aqueles arrolados pelo
delegado de fato possuíam as qualidades necessárias.
No que tange aos jurados, ficava abolido o “Jury de Acusação” (ou 1o conse-
lho), cabendo a pronúncia, como anteriormente mencionado, aos chefes de polícia,
delegados, subdelegados e juízes municipais. Quanto ao júri de sentença, não mais
lhe competia julgar os processos de responsabilidade dos empregados públicos não
privilegiados, como, tampouco, decidir qualquer questão de direito. Explicitava-se,
na reforma, que ao juiz de direito, “depois que tiver resumido a materia da accusa-
ção e defesa, proporá aos Jurados, sorteados para a decisão da causa, as questões de
facto necessarias para poder elle fazer a applicação do Direito”. Finalmente, a lei de
dezembro de 1841 também alterou o número de votos necessários para a condenação
do réu. Em caso de pena de morte, não mais era necessária a unanimidade, mas tão
somente 2/3 dos votos; como visto, no Código, previa-se também a condenação por
2/3 (conforme emenda do Senado), mas, em tais circunstâncias, ao réu seria comi-
nada pena imediatamente inferior à capital. Em todos os outros casos, a maioria
simples tornava-se suficiente para condenar o réu45, não mais sendo necessária a
concordância de 8 dos 12 jurados.
As mudanças operadas pelo novo diploma alcançavam até mesmo os recursos
e apelações. Conforme o Código:

Art. 301. Das sentenças proferidas pelo Jury não haverá outro recurso senão
o de appellação, para a Relação do Districto, quando não tiverem sido guar-
dadas as formulas substanciaes do processo, ou quando o Juiz de Direito se
não conformar com a decisão dos Juizes de Facto, ou não impuzer a pena
declarada na Lei.
Art. 302. Julgando-se na Relação procedente o recurso por se não terem guar-
dado as formulas prescriptas, formar-se-ha novo processo na subsequente
sessão com outros Jurados, remettendo-se para esse fim, os autos ex-officio
ao Juiz de Direito, quando a accusação tiver sido por officio do Promotor; e
entregando-se á parte interessada, quando fôr particular.
Art. 303. No caso de imposição de pena, que não fôr a decretada, a Relação,
reformando a sentença, imporá a que fôr correspondente ao delicto.46

45  No “caso do empate se adoptará a opinião mais favoravel ao acusado”.


46  “Código do Processo Criminal”, op. cit.

230
A partir de 1841, ainda que mantidas as previsões do referido artigo 301, de-
terminava-se que o juiz de Direito deveria apelar “ex-officio” sempre que achasse
que o júri “proferio decisão sobre o ponto principal da causa, contraria á evidencia
resultante dos debates, depoimentos, e provas perante elle apresentadas”. Em tais
casos, uma vez registrado “no processo [os] fundamentos da sua convicção contra-
ria”, seriam os autos remetidos para a Relação a fim de que esta decidisse se a causa
deveria, ou não, ser apreciada por novo júri. Ademais, no tangente a tal discordân-
cia, apenas o juiz poderia apelar, não sendo facultado ao acusador ou promotor, e
tampouco ao réu, fazê-lo.47
Por fim, no último artigo do diploma, de no. 124, dispunha-se que estavam do-
ravante “revogadas todas as Leis Gerais, ou Provinciais que se opuserem à presente,
como se de cada uma delas se fizesse expressa menção”. Isto é, se a Intepretação
deixara uma brecha nesse sentido, a Reforma, em um breve artigo, tornava sem
efeito toda a legislação provincial que, direta ou indiretamente, tratasse da justiça
de primeira instância, tanto criminal como civil.
No ano seguinte, pouco tempo depois de aprovada a reforma, o ministro da
Justiça, Paulino Soares de Sousa – responsável pela elaboração do projeto da Refor-
ma – baixou três decretos regulamentando o diploma.48 Em 31 de janeiro de 1842
foi publicado o “Regulamento n. 120”, que “Regula a Execução da Parte policial e
Criminal da Lei n. 261 de 3 de Dezembro de 1841”. Enquanto a lei de 3 de dezembro
tinha 22 páginas, o regulamento chegava a quase cem páginas, detalhando, em
minúcia, aspectos da lei.
No primeiro artigo das “Disposições Policiais”, que determinava a quem in-
cumbia a polícia administrativa e judiciária, esclarecia-se a hierarquia de mando:
em primeiro lugar estava o ministro da Justiça “no exercício da Suprema inspeção,
que lhe pertence como primeiro Chefe e centro de toda a Administração policial
do Império”; em segundo, os presidentes de província “no exercício da Suprema
inspeção, que nelas tem pela Lei do seu Regimento, como seus primeiros Adminis-
tradores e encarregados de manter a segurança e tranqüilidade pública, e de fazer
executar as Leis”; daí, por ordem, do 3º ao 8º lugar, os chefes de polícia, os delegados
e subdelegados, os juízes municipais, os juízes de paz, os inspetores de quarteirão
e, finalmente, as câmaras municipais e seus fiscais.
O capítulo 3 do “Regulamento” tratava das nomeações e substituições dos
empregados. Haveria um chefe de polícia por província, um delegado em cada ter-

47  Em seu artigo 78, para além dos casos previsto no artigo 301 do Código, em razão de todas as
mudanças feitas – como a criação de novas autoridades policias, a inclusão de atribuições dantes
não previstas ou a alteração das anteriores (com a retirada de grande parte das competências da
magistratura eletiva ou do 1o conselho de jurados, doravante adscritas às autoridades nomeadas
pelo centro) –, os fautores da lei de dezembro de 1841 incluíram disposições até então inexistentes.
Tornava-se possível apelar: “1º Para os Juizes de Direito, das sentenças dos Juizes Municipaes, Delegados,
e Subdelegados, nos casos em que lhes compete o julgamento final. 2º Para ás Relações, das decisões
definitivas, ou interlocutorias com força de definitivas, proferidas pelos Juizes de Direito, nos casos em
que lhes compete haver por findo o Processo. 3º Das sentenças dos Juizes de Direito que absolverem,
ou condemnarem nos crimes de responsabilidade”.
48  Os regulamentos foram publicados, o primeiro, em 31 de janeiro de 1842, o segundo em 2 de
fevereiro e o terceiro em 15 de março do mesmo ano. “Regulamento No. 120 – de 31 de Janeiro de 1842.
Regula a execcução da parte policial e criminal da Lei No. 261 de 3 de Dezembro de 1841”, pp. 39-134;
“Regulamento no. 122 – de 2 de fevereiro de 1842. Contém disposições provisórias para a execução
da Lei No. 261 de 3 de Dezembro de 1841”, pp. 136-141; “Regulamento No. 143 – de 15 de março de
1842. Regula a execução da parte civil da Lei No. 261 de 3 de Dezembro de 1841”; Collecção das Leis
do Império do Brasil de 1842. Tomo V. Parte ii. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1843, 199-209.

231
mo, e tantos subdelegados considerassem necessários os presidentes de província.
Definia-se, então, que só poderiam ser escolhidos para chefes de polícia os juízes
de Direito que tivessem servido ao menos três anos. Chefes de polícia, delegados
e subdelegados seriam conservados enquanto bem servissem e julgassem conve-
niente os presidentes de província, ou seja, poderiam ser dispensados “por mera
deliberação do governo”.49
Os promotores seriam nomeados por tempo indeterminado, pelo imperador
na Corte, e pelos presidentes nas províncias, e mantidos enquanto fosse de con-
veniência do serviço público, “sendo no caso contrário, indistintamente demitidos
pelo Imperador, ou pelos Presidentes das Províncias nas mesmas Províncias”. Na
falta ou impedimento dos promotores, os juízes de Direito deveriam nomear inte-
rinamente quem os substituísse, participando aos presidentes de província, com
informação circunstanciada das pessoas que julgassem dignas de nomeação, ficando,
porém, inteiramente livres, os mesmos presidentes, para escolher outras, quando
as julgassem idôneas.50
O “Regulamento” deixava mais evidente o que a lei de 1841 já demonstrava, que
da justiça cidadã, do projeto de 1831 e do diploma de 1832, não sobrara quase nada.
Ainda que as funções de juízes municipais, promotores e delegados, na ausência
de bacharéis formados, pudessem ser exercidas por leigos, sua escolha (bem como
a de seus suplentes) era, doravante, de inteira responsabilidade dos presidentes de
província ou do imperador, na Corte. Os subdelegados, por sua vez, eram de sugestão
dos delegados, mas cabia ao chefe de polícia nomeá-los. Este, uma das mais altas
autoridades em questões policiais (antecedido apenas pelo ministro da Justiça e pelos
presidentes de província), não só era de nomeação do imperador, como deveria ser
juiz de Direito (e já com três anos de experiência) ou desembargador da Relação.
Mesmo escrivães, oficiais de justiça, carcereiros e inspetores de quarteirão não mais
seriam escolhidos – tal como em 1832 – por alguma autoridade eleita localmente,
como os juízes de paz ou vereadores. Quanto ao magistrado leigo eleito localmente,
desnecessário ressaltar que perdera não só toda sua jurisdição “criminal”, como
também fora quase completamente destituído de sua autoridade “policial” (conforme
a divisão proposta no “Regulamento”).51
Por fim, como visto, os “Juizes do Fato”, ou jurados, tiveram também suas
atribuições sensivelmente reduzidas. Deixando de existir o 1o conselho, ou “Jury de
Acusação”, cabia, doravante, às autoridades nomeadas pelo centro, ou pelos presiden-

49  Artigos 28 e 29, “Regulamento No. 120 – de 31 de Janeiro de 1842. Regula a execcução da parte
policial e criminal da Lei No. 261 de 3 de Dezembro de 1841”; op. cit.
50  Artigos 216, 217 e 218, idem.
51  O “Regulamento No. 120” dividia-se em 2 partes. A primeira tratava das “Disposições policiais” e
subdividia-se nos seguintes capítulos: cap. i “Da policia em geral”; cap. ii “Da organização da Policia,
e seu expediente”; cap. iii “Da nomeação, demissão, vencimentos, e substituição dos empregados”;
cap. iv “Das atribuições dos empregados de Policia”; cap. v “Da forma por que se há de proceder nos
differentes actos da competência da Policia”; cap. iv “Da correspondência das Autoridades policiaies”; e
cap. vii “Das audiências”. A segunda parte, sobre as “Disposições Criminaes”, dividia-se em 17 capítulos:
cap. i “Das autoridades criminaes”; cap. ii “Dos Promotores”; cap. iii “Dos jurados, e do modo de os
apurar”; cap. iv “Do Foro competente”; cap. v “Das suspeições e recusações”; cap. vi “Do auto de corpo
de delicto”; cap. vii “Da formação de culpa”; cap. viii “Da Prescripção”; cap. ix “Da pronuncia, da sua
sustentação, e da ratificação do Processo da formação da culpa”; cap. x “Das Fianças”; cap. xi “Dos
preparatórios da accusação; da accusação, e da Sentença”; cap. xii “Do Processo de Contrabando”; cap.
xiii “Do Processo de responsabilidade dos empregados não privilegiados”; cap. xiv “Da execução das
Sentenças”; cap. xv “Dos Recursos”; cap. xvi “Dos emolumentos, salários e custas judiciaes”; e cap.
xvii “Disposições Geraes”. Idem.

232
tes de província, proceder (ou não) à pronúncia dos acusados. Restava tão somente
ao “Jury de Sentença”, mediante as perguntas do juiz de Direito, afirmar ou negar a
culpabilidade do réu. Se, em 1832, ao magistrado da comarca competia, basicamente,
aplicar as penas na forma da lei (isto é, conforme o Código Criminal de 1830 e alguns
poucos e breves diplomas aprovados desde então), ele se tornava, a partir de 1841,
figura central do edifício judicial. Não só ele podia apelar ex-oficio da decisão dos
jurados, como também “decidir todas as questões incidentes, que forem de direito,
e de que dependerem as deliberações finais do Júri”52.
A “Reforma” e o “Regulamento” de 31 de janeiro, portanto, não alienavam ape-
nas a localidade em relação à administração da justiça e aos negócios policiais, mas
também desapareciam com a província como eventual instância decisória, uma vez
que seus presidentes não eram eleitos – como os membros das assembleias e dos
extintos conselhos –, mas sim indicados pelo governo central.
A lei de 3 de dezembro de 1841, ademais, já previa a punição daqueles que in-
fringissem os futuros “regulamentos que o Governo organizar para a execução da
presente Lei, guardado o respectivo processo, com a pena de prisão, que não poderá
exceder a três meses, e de multa até duzentos mil réis”. Conforme o regulamento
do ministro, aprovado menos de dois meses depois da reforma:

Art. 484. As penas de prisão e de multa estabelecidas no presente Regula-


mento, em virtude do Art. 112 da Lei de 3 de Dezembro de 1841 serão sempre
impostas com audiência verbal ou por escrito (segundo o exigir a natureza
do caso e as circunstâncias) da pessoas em quem tiverem de recair, e à sua
revelia quando não responderem no prazo que lhe for marcado (o qual nunca
excederá a três dias) ou não comparecer.
Art. 485. Se esta em sua resposta alegar fatos e declarar que quer prová-los,
ser-lhe-ão para esse fim concedidos 8 dias, dentro dos quais deverá apre-
sentar todos os documentos e testemunhas que tiver em seu favor, cujos
depoimentos serão escritos no Processo que se formar.
Art. 460. Da imposição das penas de multa e prisão estabelecidas neste Regu-
lamento por virtude do Art. 112 da Lei de 3 de Dezembro de 1841, dar-se-á o
recurso de apelação para a Relação do Distrito, quando forem impostas pelos
Juízes de Direito, e Chefes de Polícia, e para os Juízes de Direito, quando o
forem por Autoridades inferiores.
Art. 461. Esta apelação deverá ser interposta dentro de 24 horas depois de
intimada a Sentença à Parte, e terá efeito suspensivo quando a pena for de
prisão, procedendo-se na forma do Art. 458 § 2º deste Regulamento, quando
for de multa.53

Não bastassem, porém, as quase cem páginas do regulamento de 31 de janeiro


de 1842, passados dois dias, o ministro da Justiça baixou novo decreto, o “Regulamen-
to n. 122 de 2 de Fevereiro de 1842”, com “Disposições Provisórias para a Execução

52  Artigo 200, que regula as atribuições dos Juízes de direito na parte criminal, idem.
53  O que significava que a multa deveria ser depositada em juízo. “Regulamento No. 120 – de 31
de Janeiro de 1842. Regula a execcução da parte policial e criminal da Lei No. 261 de 3 de Dezembro
de 1841”; op. cit.

233
da Lei n. 261 de 3 de Dezembro de 1841”54. Sucintamente, as “Disposições” determi-
navam que, uma vez publicada a referida lei na capital de qualquer província, aos
chefes de polícia competia imediatamente proceder às nomeações de delegados e
subdelegados, enquanto aos presidentes de província cabia fazer o mesmo em relação
aos juízes municipais e de órfãos. Os escrivães deveriam, em seguida, remeter todos
os processos em andamento às novas autoridades competentes (conforme prescrito
na lei de 1841). Aqueles que não o fizessem estariam sujeitos à multa de 100$000 a
200$000 réis e, em caso de reincidência, à pena de prisão por três meses.55
Se, em termos de poder Legislativo, como bem aponta Miriam Dolhnikoff, as
chamadas leis conservadoras não alteraram substantivamente o que fora aprovado
em 1834, no que diz respeito ao Judiciário a situação foi inteiramente diferente.
Conforme estabelecido pela reforma de 3 de dezembro de 1841 (e explicitado nos
regulamentos do ministro da Justiça), às assembleias provinciais, autoridades elei-
tas localmente, magistrados e promotores em atividade, e aos jurados não sobrava
muito (em termos de “Poder Judicial”), a não ser acatar, desobedecer ou pegar em
armas, como fizeram parte das elites das províncias de São Paulo e Minas Gerais,
e mesmo do Rio de Janeiro.56

3. Dois modelos de organização política

Usualmente a historiografia tem se referido à lei de 3 de dezembro como uma “cen-


tralização do judiciário”. Considerando, contudo, não só as mudanças operadas pelo
diploma na administração da justiça e na forma do processo (conforme estabelecido
no Código), mas também a prévia extinção do conselho da presidência, em 1834, e a
proibição dos representantes provinciais de legislarem sobre empregos municipais
e provinciais criados por lei geral, em acordo com a Interpretação do Ato Adicional,
as inovações introduzidas pela Reforma e seus regulamentos implicavam mais do
que simplesmente uma reordenação do chamado Poder Judicial. Com isto estava
de acordo o próprio artífice da lei de 1841 e autor dos regulamentos de 1842. Para
Paulino José Soares de Sousa, as diferenças entre a legislação aprovada na regência
e as chamadas reformas reacionárias não poderiam ser explicadas simplesmente a
partir do binômio descentralização-centralização.
Na década de 1860, Soares de Sousa, já então visconde do Uruguai, atentava, em
seu Ensaio sobre o direito administrativo, para o que considerava a essência da oposição
entre, por um lado, um sistema de governo baseado no self-government, de matriz
anglo-saxônica, e, por outro, uma organização hierárquica de base francesa, assen-
tada na magistratura togada e no papel exercido pelo governo central no tangente à
nomeação das autoridades. Em suas próprias palavras, em capítulo intitulado “Appli-
cação ao Brasil das instituições administrativas Inglezas, Americans e Francezas”:

54  Regulamento no. 122 – de 2 de fevereiro de 1842. Contém disposições provisórias para a execução
da Lei No. 261 de 3 de Dezembro de 1841”,
55  O último regulamento, baixado em 15 de março de 1842, tratava, ao longo de seus 41 artigos, da
“execução da parte civil da Lei No. 261 de 3 de Dezembro de 1841”.
56  Estefanes (2013), especialmente capítulo 2.

234
Os paizes que não tomam por base exclusiva da sua organização adminis-
trativa o systema eletivo (isto é que não constituírem democracias puras)
não tem remédio senão recorrerem à hierarquia. (uruguay, 1862, p. 263).

Ou seja,

Já se tentou entre nós excluir a hierarquia e instituir o systema dos Estados


Unidos.
A acção democratica que se seguiu ao 7 de Abril, em lugar de introduzir
a luz e a ordem no chaos que a abdicação nos deixara, proveniente da luta
entre os novos princípios constitucionais, e uma legislação de tempos co-
loniaes e absolutos; de instituir uma hierarquia accommodada às nossas
circumstâncias, que respeitasse quanto cumpre e convêm o princípio
popular da Constituição; de discriminar e definir bem as attribuições das
autoridades, cercando-as de formulas e de garantias para os administrados,
procurou o remedio exclusivamente no systema eletivo e nos meios que
lhes são peculiares.
Entregou aos Juízes de Paz eletivos, exclusivamente, toda a policia mu-
nicipal, geral, judicial e administrativa, e a formação da culpa em todos
os crimes. Deu-lhes o julgamento definitivo dos delictos que não eram
levados ao Jury.
[...]
Constituio os Juízes Municipais, de Orfphãos e Promotores (fazendo-os
propor pelas Câmaras Municipaes) méras emanações da eleição popular.
(uruguay, 1862, p. 264-265).57

Para Uruguai, em obra que visava não só a recuperar sua própria contribui-
ção para o país, mas também a dialogar com a política hodierna58 – além, claro,
de constituir um grande tratado de Direito –, o “princípio” que regia os Estados
Unidos e Inglaterra estava, portanto, em desacordo com a “organização politica e
administrativa” do Brasil (uruguay, 1862, p. 267).59 Ou seja, a promulgação da Re-
forma de 1841, em relação ao prescrito no Código de 1832, ia muito além de uma
simples centralização.
Em verdade, o que estava em questão eram dois modelos distintos de organi-
zação política, com diferentes concepções acerca dos poderes e das relações entre
eles. A deputação que não só elaborou os projetos de código de processo (em 1830 e
1831), como formulou a lei da Regência e, finalmente, discutiu as bases da reforma
constitucional (isto é, o projeto de lei de 1832 que autorizava a próxima legislatura
a reformar a Constituição), claramente defendia um modelo de organização em que

57  Grifos nossos.


58  Sobre a atuação de Uruguai à época da redação da obra, ver Pedro Gustavo Aubert (2013),
especialmente o capítulo 3.
59  Ainda que o capítulo anterior fosse intitulado “Da centralização”, a leitura atenta de umas
poucas páginas deixa evidente que o assunto tratado não dizia respeito, simplesmente, ao binômio
centralização-descentralização. Ao mencionar os Estados Unidos, por exemplo, afirmava que a “maior

235
o poder legislativo se sobressaia em relação aos restantes, mormente o Executivo,
um modelo que implicava um judiciário livre das imposições da magistratura togada
(indicada pelo centro), assentado, portanto, em juízes leigos eletivos, magistrados
(bacharéis ou não) selecionados por autoridades eleitas e, finalmente, jurados, isto
é, cidadãos (na concepção da época, obviamente). Já os artífices da Reforma de 1841,
propunham um modelo radicalmente distinto do anterior. Visavam a fortalecer
o Executivo, o que implicava restringir, ao máximo, a existência de autoridades
e instâncias eletivas, bem como a participação direta de cidadãos, mormente nos
conselhos de jurados.
Dada a brevidade, e plasticidade, dos artigos da Carta acerca do “Poder Judicial”,
bastava um mínimo de hermenêutica para que ambos os lados defendessem, como
constitucionais, suas posições. Não à toa, pouco depois de aprovada a Reforma, e
previamente dissolvida a assembleia recém-eleita (em 1841), em que regressistas
teriam minoria, eclodiu a Revolta Liberal. Como explicitado por muitos dos rebeldes,
as leis reacionárias, isto é a Reforma do Código do Processo e a recriação, mesmo que
em novas bases, do Conselho de Estado (extinto em 1834), implicavam um flagrante
desrespeito à Constituição, à justiça e, até mesmo, à “decência”.60
Parte da historiografia, contudo, talvez influenciada pelas obras deixadas pelos
próprios artífices da Lei de 1841, tendeu a repetir a máxima de que os liberais, a
despeito da rebelião, uma vez alçados ao poder, teriam se rendido à Reforma, isto é,
às benesses advindas da faculdade de nomear as autoridades judiciárias e policiais.
Tal tipo de afirmação, contudo, parece desconsiderar a história posterior. Passados
poucos anos da promulgação da referida Lei, e alçados os liberais ao poder (no período
genericamente chamado de quinquênio liberal), foram apresentados dois projetos
que visavam a reformar o diploma reacionário.

ou menor centralização ou decentralização depende muito das circumsatancias do paíz, da educação,


hábitos e caracter nacionais, e não somente da legislação. Uma nação acostumada por muito tempo
ao gozo pratica de certa liberdades locaes; afeita a respeitar as suas leis e os direitos de cada um;
que adquirio com a educação e o tempo aquelle senso pratico que he indispensavel para tratar dos
negócios; que tem a fortuma de possuir aquella unidade, mais profunda e mais poderosa, que a que
dá a simples centralização das instituições, a saber a que resulta da semelhança de elementos sociaes;
essa nação póde sem inconveniente dispensar em maior numero de negócios a centralização. Estas
breves considerações explicão o por que a decentralisação na Inglaterra e nos Estados-Unidos não
produz os inconvenientes, que, levada ao mesmo ponto, infallivemente produziria em outros países”.
O mesmo pode ser percebido em suas ponderações acerca da França, “o paiz o mais vogorosamente
centralizado da Europa. Não deve ella porém essa centralização somente ás suas instituições. [...] Deve-a
ao seu caracter nacional, sociável, generalizador e expansivo; ás suas glorias militares, letterarias
e scientificas que estreitão e unem; á universalidade popular da sua língua; ás suas Escolas, a seus
Codigos, á uniformidade da instrucção; aos seus precedentes revolucionários; á sua administração
intensa; ao seu governo unitário; ás suas divisões territorieaes; ao seu amos innato da igualdade, da
independencia nacional e de gloria; á sua Capital, e finalmente áquelle instincto proprio do seu carcater
nacional que a leva a generalizar os systemas; ao método dos seus livros, á codificação das suas leis,
e á homogeineidade de todos os ramos do serviço publico”. (uruguay, 1862, p. 173-176)
60  Assim se dirigiram os deputado paulistas, ao monarca, em 28 de janeiro de 1842: a “Assembléa
Provincial de São Pualo, em cumprimento de seus deveres os mais sagrados, vêm ante Vóspedir que
vos digneis sobreestar na execução das duas denominadas Leis das reformas do Codigo, e criação de
hum Conselho d’Etado, até o tempo em que as possas rever, e revogar, como he de esperar atenta a
sua inconstitucionalidade, e de involta implorar do Monarcha a demissão do actual Ministerio, cuja
continuação no poder poêm em risco a paz do Imperio, a ordem da Provincia, até a segurança do
Throno. [...] Demais não há lei sem imparcial, e concienciosa discussão, sobretudo quando se tracta
do que he puramente constitucional; a fortaleza da Constituição se não deve levar de assalto, preciso
he rodeal-a de regular assedio, e apoderar-se pouco a pouco das portas, que a defendem para que
convencida pela necessidade capitulle a guarnição salvando sempre o que he essencial. Não foi assim
que procedeo a corrompida ou iludida maioria da Assembleia passada; cega, e tumultuaria para levar
avante os nefários projectos do governo, calcou todas as regras não só da justiça como até a da mais

236
Passados alguns anos, o próprio gabinete Saquarema, na figura de seu minis-
tro da Justiça, Eusébio de Queirós – gabinete do qual fazia parte, inclusive, Paulino
Soares de Souza –, baixou uma série de decretos que alteravam várias prescrições,
ou omissões, da lei de 1841, em razão de problemas que sua aplicação vinha criando.
Mudanças mais radicais foram novamente intentadas nas décadas de 1850 e 1860,
tanto na vigência do ministério da Conciliação (que contava, como sabido, com
um presidente saído das hostes regressistas), como no período da chamada Liga
Progressista.
Entre 1870 e 1871, as críticas à lei de 1841 acabaram por forçar um legislativo
maciçamente conservador a aprovar um projeto de reforma da “Legislação Judici-
ária”, promulgada em 20 de setembro de 1871. A despeito de certas interpretações
que tendem a reforçar que as modificações trazidas pelo novo diploma não eram
assim tão importantes, não comungavam dessa ideia muitos conservadores que se
sentiram traídos por seus colegas de partido.
Domingos de Andrade Figueira, deputado conservador pelo Rio de Janeiro,
assim se pronunciou acerca da matéria, anos depois:

Aquela organização [da lei de 3 de dezembro] é tão feliz, tão acomodada às


circunstâncias do país, e entrou de tal maneira nos hábitos da nossa popu-
lação que acha difícil a qualquer governo prescindir dela.
[...] de 1871 para cá, em que a autoridade policial ficou desarmada, o número
de crimes tem sido maior. Nem é possível doutra forma.
[...] 
Inventem quantos corretivos quiserem para o arbítrio da polícia; tornem a
sua responsabilidade efetiva; decretem processos sumários; esgotem enfim
todos os meios para estabelecer corretivos eficazes contra o arbítrio da polí-
cia, mas não a desarmem. Suprimam a polícia, mas não a desarmem. Melhor
era suprimir a polícia que existe do que mantê-la no estado em que se acha,
sem retribuição, sem força armada para a execução dos seus atos e até sem
esta condição necessária de prender os criminosos.
[...]
Mas além disto, pela lei de 1871 já os inquéritos policiais eram insustentáveis;
não só dificultam muito a administração da justiça, como são uma verdadeira
superfestação [sic], um trambolho, na administração da justiça.” 61

Passados alguns anos da promulgação do diploma de 1871, que, como visto,


descontentou muitos dos conservadores, os liberais, que haviam retornado ao poder
em 1878, voltaram a defender novas, e profundas, alterações na lei de 3 de dezembro
de 1841, continuando a fazê-lo pelos próximos anos. Mas, em finais de 1880, quando,

comum decência”. Dezenas de outras petições, enviadas por câmaras municiais de São Paulo e Minas
Gerais, para além da inconstitucionalidade das leis regressistas, mencionavam ainda, no tangente à
Reforma de 1841, seu flagrante desrespeito em relação aos direitos dos cidadãos. Agradeço a Roberta
Saba por ter me concedido cópia das petições existentes no Arquivo da Câmara dos Deputados, por
ele fotografadas quando da elaboração de sua dissertação de mestrado.
61  apb-cd, sessão de 4 de setembro de 1883. Agradeço a Filipe Nicoletti Ribeiro não só por me
fornecer a transcrição dos referidos anais, mas também pelas informações referentes aos projetos
de reforma do judiciário apresentados nas décadas de 1870 e 1880.

237
finalmente, contariam com maioria na Câmara e no Senado, o 15 de novembro alçou
ao poder um governo provisório constituído de setores do exército, republicanos e
antigos conservadores, pondo fim não só à monarquia, como também aos projetos
que tramitavam no legislativo.

4. Referências

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e a política na consolidação do Estado Nacional (1850-1866). 2011. Dissertação (Mes-
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Ed. Revista dos Tribunais; Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988.

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Dissertação (Mestrado em Filosofia) - IEB-USP, São Paulo, 2013.

DANTAS, Monica Duarte; COSTA, Vivian Chieregati. Regulamentar a constituição:


um novo direito penal e processual para um novo país: projetos, tramitação e apro-
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SIQUEIRA, Gustavo; BARBOSA, Samuel (org.). História do Direito: entre rupturas,
crises e descontinuidades. Belo Horizonte: Ed. Arraes, 2018.

DANTAS, Monica Duarte. Da Luisiana para o Brasil: Edward Livingston e o pri-


meiro movimento codificador no império: o código criminal de 1830 e o código de
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DANTAS, Monica Duarte. Revoltas, motins, revoluções: das ordenações ao código


criminal. In: DANTAS, Monica Duarte (org.). Revoltas, motins, revoluções: homens
livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011.

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ciária e a ordem do processo criminal no Império do Brasil (1826-1832). 2017. Tese
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DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São


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239
240
CAPÍTULO 9 - A escravização de crianças livres
no Brasil e a importância da documentação
judiciária para a pesquisa histórica

Marcus J. M. de Carvalho1

Autos processuais são excelentes fontes para a História Social, pois o grande proble-
ma desse ramo da historiografia é como ouvir a voz dos fracos e oprimidos, quase
sempre calada na documentação histórica do século xix. As vítimas da sordidez
humana deixam muito menos registros escritos diretos do que seus algozes. Este
problema é tanto maior quando se trata de cativos e libertos. Em processos judi-
ciais, todavia, eventualmente, essas pessoas são chamadas a falar. Às vezes, seus
depoimentos apenas informam o processo, pois seus testemunhos não valem como
prova, pois são legalmente incapazes. São coisas e não pessoas. Em outras ocasiões,
quando libertos ou mesmo pessoas livres falam nos autos, o que dizem é tomado e
interpretado a partir dos preconceitos da sociedade em que vivem, consolidadamente
escravista. É inevitável, portanto, que tudo que foi efetivamente dito, ao passar para
os autos, sofra intermediações e até distorções. A voz dos cativos, portanto, nunca
é direta, proferida sem ruídos entre eles e o leitor.
Os cativos também não falavam à vontade, pois suas declarações dependiam
das perguntas feitas. As respostas, ditas ao curador ou mesmo ao próprio magis-
trado, promotor ou advogado, eram registradas pelo escrivão, geralmente a partir
do que lhe era ditado, ou ao menos aceito, pelo magistrado. Apesar de todas essas
interferências de agentes comprometidas com a escravização do depoente, o que
chega até nós é um dos registros mais próximos possíveis das percepções dessas
pessoas amordaçadas pela imensa prisão que era a sociedade escravista. As ações
de liberdade são desse tipo de documento que abre uma pequena janela, através da
qual é possível observar a vida dessas pessoas.
Há um dado sobre essas ações que merece ainda uma breve reflexão meto-
dológica: a questão do contradito. Em processos judiciais, as partes não escondem
em que lado estão, o que defendem, o que atacam. Há um confronto. É da natureza
dessa documentação que uma parte diga uma coisa e a outra o oposto. Ambos os
1  Doutorado em História pela
litigantes se arvoram em ser o único portador da verdade em relação ao caso, pois
University of Illinois - System (Estados é a “verdade” construída nos autos que interessa no julgamento do processo. As
Unidos, 1989); Professor Titular de
História do Brasil da Universidade
provas e contraprovas podem ter sido um problema para os magistrados que têm
Federal de Pernambuco (ufpe, Brasil). que escolher um vencedor e um vencido na disputa. Mas o historiador não decide

241
isso. Ele não é o juiz da causa, mas o observador de um passado que busca entender.
Quando esse observador se arvora em julgar o passado, pensa em questões éticas
maiores, à luz da história, da vivência humana mais ampla, e não apenas de que
lado estava a lei em um determinado contexto específico e datado, pois Clio ensina
que a lei e o estamento judiciário são produtos de uma dada configuração de poder,
que leva o pêndulo quase sempre para o lado dos mais poderosos, salvo exceções
que confirmam a regra.
O historiador está, portanto, ciente que processos judiciais são mais um entre
tantos outros cenários onde os poderes relativos dos contendentes se confrontam.
Assim, o litígio não o induz necessariamente em erro, já que não está obrigado a
escolher apenas os argumentos e provas de uma das partes e descartar os argu-
mentos e provas da outra. O que interessa a Clio é o que o embate revela sobre o
passado em que ocorreu. O resultado final pode nem ser a melhor janela disponível
para se observar o passado, ou ser apenas uma delas entre outras tantas nas folhas
dos autos. As sentenças são apenas um entre os tantos documentos contidos nos
autos que servem para se entender o passado. Há outros documentos iguais ou até
mais válidos como fontes históricas, principalmente quando se trata de entender
o contexto em que um dado processo se desenrolou. Processos judiciais, com seus
múltiplos documentos e petições, são artefatos válidos e prolíficos de indícios e
evidências sobre processos complexos, por mais desapontador, ou não, que tenha
sido o resultado final da perspectiva do observador.
Tomando os autos como fontes históricas, percebe-se que, entre os argumentos
e contra-argumentos das partes, há muitas concordâncias entre os litigantes, pois
muitas narrativas são discordantes em relação à questão legal em jogo, mas não no
que diz respeito a outros tantos aspectos da vida humana. Há dados apresentados e
até narrativas complexas que não são necessariamente contestadas pela outra parte,
seja porque não são fundamentais para o julgamento do processo, ou simplesmente
porque fazem parte do conhecimento comum dos envolvidos. Alguns processos
judiciais trazem narrativas, argumentos, certidões, provas e contraprovas que aju-
dam muito na junção das peças desse imenso quebra-cabeças que é construção da
explicação histórica.
A ação de liberdade do cativo Camilo, transcrita e publicada na revista Docu-
mentação e Memória (2012), é um exemplo desse tipo de fonte que abre janelas para
o passado escravista brasileiro. Camilo foi mais um entre os mais de 2 milhões de
africanos que vieram para o Brasil no século xix. Ora, depois de 1815, era proibida
a vinda de gente dos portos africanos ao norte da linha do equador e, depois de
1831, todo o comércio de gente escravizada da África para o Brasil foi legalmente
proscrito. Como algo em torno de 850 mil africanos vieram para o Brasil depois de
1831 e centenas de milhares de pessoas da África equatoriana chegaram entre 1815
e 1831, com certeza, a grande maioria desses dois milhões de pessoas foi ilegalmente
escravizada no Brasil.
A ação de liberdade de Camilo deixa entrever que era concreta a possibilidade
dele ter sido uma dessas pessoas ilegalmente escravizadas em solo brasileiro, pois,
um africano que aqui desembarcasse nessas circunstâncias, sob o ponto de vista
legal, era uma pessoa livre. Essa era a questão a ser decidida pelo magistrado. Em-
bora aqueles que vivem na contemporaneidade prefiram ficar do lado da libertação

242
e não da escravidão, esta questão em si, o terrível drama vivido por uma pessoa que
vivera a maior parte da sua vida como cativo, não é o único elemento que pesa na
avaliação daqueles autos como fonte histórica. Há outras camadas de significado ali
subentendidas ou explícitas que servem ao entendimento da história da escravidão,
do tráfico atlântico e da sociedade senhorial escravista brasileira.
O ponto de partida para estudar esse caso é essa proibição, a partir de 1815, da
vinda de cativos de todo o litoral africano ao norte da linha do equador, ou seja, a
África equatorial, que incluía toda a Costa da Mina, a chamada “África Ocidental”
da literatura anglófona. A partir de 1815, qualquer pessoa vinda dali que pisasse no
Brasil seria automaticamente livre. Pelo que estipulavam os tratados, essas pessoas
iriam se juntar aos chamados “africanos livres”, uma categoria criada depois que
os ingleses proibiram o comércio atlântico de cativos da África para suas colônias,
em 1807. Sob o ponto de vista legal, essas pessoas, repito, não eram libertas. Eram
livres. Isso criou um problema adicional, pois, os “africanos livres não eram consi-
derados aptos aos padrões civilizatórios racistas do ocidente liberal escravista. Por
esta razão, os seus serviços seriam leiloados entre cidadãos para os quais trabalha-
riam por 7 a 14 anos, no chamado “apprenticeship system”, transferido e traduzido
literalmente no Brasil em um sistema de “aprendizado”, que não se diferenciava
muito da escravidão, se é que havia alguma diferença tangível.
A maioria dessas pessoas, portanto, terminou empregada em alguma forma
de trabalho compulsório, quando não foram escravizadas simplesmente. Aliás, no
caso do Brasil, foi exatamente isso que aconteceu, ao ponto do governo imperial
ter deixado até de acompanhar os processos dos africanos livres. A imensa maio-
ria dos salários devidos sequer foram pagos e muitos deles terminaram suas vidas
trabalhando pesado até em órgãos públicos, inclusive no paço imperial, a serviço
do imperador. Como notou Robert Conrad (1975), décadas atrás, de uma certa forma,
sua situação em relação à emancipação podia ser até pior do que a dos cativos, pois
nem a miragem da alforria tinham, afinal de contas, na letra da lei, já eram livres,
não havia como libertá-los. Beatriz Mamigonian (2017) estudou as fontes sobre esta
questão no Brasil e a longa bibliografia a respeito da captura de navios negreiros pela
marinha, inglesa, que resultava no transporte das pessoas que estavam nos navios,
ou para Serra Leoa, ou para alguma das ilhas caribenha sob a soberania inglesa. Só
uma minoria conseguia voltar para sua comunidade de origem. A maioria termi-
nou obrigada a trabalhar para viver em meio a duras leis contra vagabundagem, ou
então foram esquecidas em Serra Leoa.
Essa regra, que obedecia aos tratados entre Portugal e Inglaterra, após a der-
rota de Napoleão, não foi totalmente obedecida, como é bem sabido. O tráfico da
Costa da Mina para o Brasil continuaria. Os estudos sobre o assunto indicam que
houve uma certa transferência dos negócios para os portos do Congo e Angola, mas
a África equatoriana não foi abandonada pelos negociantes atlânticos de gente, pois
ali havia várias localidades que contavam com uma estrutura de oferta de cativos
bem consolidada que não podiam para ser desperdiçadas, pois era muito lucrativo
negociar lá e os chamados “minas” sempre alcançavam bons preços no Brasil. Es-
sas estruturas de oferta de cativos foram beneficiadas pelo aumento do número de
prisioneiros e gente cativa provocado pelas grandes jihads do xix e do colapso do
antigo e poderoso reino de Oió. Os biógrafos de Francisco Felix de Souza, o xaxá do

243
Benim, explicaram muito bem o conforto que era para os comandantes e tripulações
debret, Jean-Baptiste. Loja de barbeiro.
navios negreiros negociarem com ele. Eram recebidos e hospedados com segurança
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do.
e fartura em todos os luxos e mimos possíveis, enquanto esperavam ter seus navios Debret e o Brasil: obra completa: 1816-1831. 3.
carregados de gente escravizada. O xaxá operava ainda com uma noção de confiança ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. p. 198.

nos negócios que surpreendia até os ingleses, chegando a pagar antecipadamente


por pratarias e outros bens que só receberiam (talvez) muito tempo.
Camilo, todavia, veio do Congo, muito ao sul da linha do equador, uma rota
que permaneceu legal até a lei antitráfico de 1831. A ação de liberdade que ele pro-
moveu contra seu senhor é um documento precioso para se entender várias faces
do mundo escravista brasileiro e do comércio ilegal de gente da África. Mas, vale
ressaltar, a lei antitráfico de 1831, a chamada lei para inglês ver, não foi assim tão
inócua, como há muito tem demonstrado a historiografia, pois teve diversos im-
pactos na sociedade e na forma como era operacionalizado o comércio atlântico de
gente, dali em diante “tráfico” simplesmente. A partir de 1831, as embarcações e a
forma de se operar nesse ramo de negócios tiveram que se adaptar à nova realidade,
pois os navios negreiros passaram a desembarcar sua carga humana fora dos portos
das grandes cidades costeiras do Brasil, utilizando outros tantos pontos do litoral,
antes frequentados apenas por acanhadas embarcações de cabotagem. O tráfico en-
volveu as populações dessas localidades nas operações em terra, dos trabalhadores
aos juízes de paz, delegados, subdelegados e até párocos, além de inúmeras pessoas

244
que passaram a trabalhar nas operações de desembarque e vigilância da preciosa
carga humana. Imensas fortunas foram construídas com base em uma atividade
ilegal, francamente apoiada pelos altos estratos da monarquia, fazendo de simples
criminosos nobres e convivas do imperador.
Devido a essas mudanças, depois de 1831, navios menores e mais rápidos pas-
saram a ser preferidos pelos negociantes atlânticos, exceto no caso de alguns poucos
vapores que seriam utilizados já no ocaso do tráfico. Embarcações menores e mais
rápidas iludiam mais facilmente a repressão inglesa, eram carregadas mais rapi-
damente no litoral africano, entravam sem problemas em barras e portos naturais
mais estreitos tanto no Brasil como na África e, obviamente, eram mais velozes.
A beleza e velocidade desses veleiros foi inúmeras vezes elogiada por observado-
res coevos, inclusive oficiais da marinha inglesa, tanto que vários deles, uma vez
capturados, foram rebatizados e passaram a ser empregados pelo próprio cruzeiro
inglês na vigilância contra o tráfico no atlântico.
A pressão da diplomacia inglesa sobre o império do Brasil também aumentou
cada vez mais depois de 1831. Desde de 1826 que os ingleses pressionavam o governo
brasileiro para cumprir os tratados que foram assumidos pelo império em troca do
reconhecimento e empréstimos ingleses. Aos poucos a repressão inglesa ao tráfico
passou a ditar os termos da sua diplomacia com o Brasil, culminando com o bill
Aberdeen, em 1845, quando deixaram de respeitar as águas territoriais brasileiras,
invadindo até a baía da Guanabara, sede do governo imperial. Em Pernambuco, to-
dos os portos naturais margeavam os engenhos de abastados senhores de engenho,
da mais fina nobreza da terra, que participaram ativamente do tráfico, pois, sem o
apoio deles, os desembarques dos navios negreiros seriam inviáveis na província.
Vale ressaltar que, desde o período colonial, esses portos naturais serviam
ao contrabando, inclusive de cativos, apenas em escala mais tímida. Como é bem
sabido, nenhum local das Américas é mais próximo da África atlântica escravista
do que o imenso litoral brasileiro. E no Brasil, no que tange à rota desde o litoral
do Congo/Angola, as correntes e ventos atlânticos favorecem o trajeto até o litoral
entre o Cabo de Santo Agostinho e Cabedelo, o que fazia a viagem de Angola até
Pernambuco durar em torno de 26 dias e meio no final dos anos 1820. Nenhum ou-
tro lugar de toda a América podia ser alcançado em tão pouco tempo. Por isso que
Pernambuco não só recebeu navios negreiros para lá enviados, como outros tantos
arribados por avarias ou outros problemas graves que terminavam escolhendo o
porto mais perto para os socorros precisos em sua rota da África até as Américas.
O pouco tempo de viagem desde a costa da África e a experiência dos negociantes
atlânticos de gente que operavam a partir de Pernambuco permitem também enten-
der um traço curioso do tráfico local, que é o fato de haverem algumas embarcações
que, em pouco tempo, fizeram mais de uma viagem bem sucedida da África para
Pernambuco e vice-versa (carvalho; albuquerque, 2016, p. 16 e passim).
Sob o ponto de vista legal, antes da Independência, qualquer navio negreiro
que viajasse ao Brasil a partir do entorno da foz do rio Congo, deveria pagar as taxas
correspondentes em Luanda, ou em algum outro local onde a administração lusitana
se fizesse presente, como São Tomé, Príncipe ou, alternativamente, nas alfândegas
dos portos brasileiros, no momento do desembarque. Embarcações que pretendiam
repassar a preciosa carga humana em alguma das grandes cidades litorâneas, busca-

245
vam subterfúgios para desembarcar cativos sem pagar os direitos correspondentes,
mas, regra geral, a maioria entrava legalmente nos grandes portos urbanos. Todavia,
a escravidão é baseada na violência sobre o corpo da pessoa escravizada. A presunção
jurídica era de que todos os negros eram escravos. Cabia a eles provar o contrário.
Essa situação inclusive restringia muito o direito de ir e vir dos afrodescendentes
livres e libertos, sempre passíveis de serem ilegalmente escravizados, tal como estava
ocorrendo com centenas de milhares de “africanos livres” à vista de todos aqueles
encarregados de aplicar a lei. É bem documentada pela literatura o cuidado com
que os libertos guardavam suas cartas de alforria, sempre cientes da possibilidade
de serem reescravizados, algo perfeitamente possível no Brasil escravista. Apesar
da ênfase da literatura nas ações de liberdade, supõe-se, com razão, que mais ainda
deviam ser ações buscando reescravizar libertos. (grinberg, 2007).
Essas situações, que não eram raras, causavam profundo desespero e sofri-
mento. Em 1873, o preto crioulo Raymundo, alegou em juízo que fora liberto por
seu senhor Antonio Barros de Monte Rosa e que estava sendo ilegalmente mantido
em cativeiro pelo senhor de engenho Manoel Antonio Dias, que, por sua vez alegava
ser o verdadeiro proprietário de Raymundo. O advogado do senhor de engenho era
ninguém menos do que Tobias Barreto, futuro ícone do movimento abolicionista de
Pernambuco. Peter Eisenberg elencou Manoel Antonio Dias entre os maiores pro-
prietários rurais de Escada. Junto com seus filhos, possuía nada menos do que nove
engenhos. Em 1889, construiu a usina Santa Philonila e, em 1895, a Usina Bomfim.
(eisenberg, 1977, p. 131). Segundo o advogado do senhor de engenho, Raymundo
estava “homiziado” na casa de Antonio Barros de Monte Rosa, que o escravizado
alegava tê-lo alforriado. Raymundo tinha 35 anos, segundo um registro de compra
datado de 1871.
Como seria de esperar, o magistrado decidiu que ele deveria ficar deposita-
do no engenho Jundiá, pertencente a Manoel Antonio Dias. Raymundo, portanto,
teria que ficar com o homem que alegava ser seu senhor, até a sentença definitiva
no processo. Não sabemos que castigos e terror esperavam Raymundo, ou o que se
passou no engenho Jundiá, de Manoel Antonio Dias. O processo foi subitamente en-
cerrado a partir de uma certidão às fls. 41, assinada pelo vigário Simão de Azevedo
Campos, informando que Raymundo havia’ se jogado num taxo de caldo de cana
fervendo. Não houve nenhuma investigação para saber se Raymundo realmente es-
colhera uma forma tão dolorosa para morrer ou se foi cruelmente assassinado por
sua impertinência. A palavra do pároco foi tomada como verdadeira e o caso dado
como encerrado. Um outro detalhe da certidão indica uma das tantas incertezas
da condição escrava. No documento que isentava o senhor de engenho de qualquer
responsabilidade, o padre dizia que Raymundo tinha 41 anos e não 35, como dizia
o registro de compra.2
O medo da reescravização era tão real e constante que foi a causa do Ronco
do Maribondo em 1851/1852. O levante popular aconteceu porque o governo decidiu
fazer um registro civil de toda a população brasileira, convocando todos os habitan- 2  Memorial da Justiça (Recife), Fundo:
Comarca de Escada, caixa nº 290. Ano
tes a se apresentarem para serem identificados, conforme rezava a lei n.797 e n.798, 1873. Requerimento do preto Raymundo,
de 18 de junho de 1851. Até então, a condição da pessoa era definida no batismo. crioulo. José C. Curto, “Resistência à
escravidão na África: o caso dos escravos
Para as pessoas livres, era a garantia da sua condição. Para os cativos, a garantia do fugitivos recapturados em Angola, 1846-
jugo senhorial. Definia também a posição social dos indivíduos, quando constava 1876”. Afro-Ásia, 33 (2005), p. 79.

246
a cor da pele da criança batizada, já que a hierarquia social dependia em grande
debret, Jean-Baptiste. Jovens negras indo à
igreja para serem batizadas.
parte da escala cromática que definia a distância relativa das pessoas em relação à
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do. origem cativa. A lei do censo seguia os princípios laicos da demografia moderna,
Debret e o Brasil: obra completa: 1816-1831. 3. que pretendia contar a população de outra forma. O povo, todavia, interpretou à
ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. p. 137.
sua maneira o que estava acontecendo. Imediatamente, espalhou-se o boato que a
intenção do governo imperial era escravizar a “gente de cor”.
Logo, multidões mobilizaram-se pelo interior do Brasil, a partir de Pernam-
buco e Paraíba, chegando a Minas Gerais. Invadiram armados as igrejas e outros
edifícios, onde deveriam se apresentar, exigindo ver e rasgar a “lei do cativeiro”. O
governo imperial teve que mobilizar batalhões de padres para convencer a popula-
ção que aquilo eram apenas boatos. O mais revelador desse levante foi a dificuldade
do governo em encontrar os culpados pelos rumores, o que sugere que havia uma
percepção popular muito bem sedimentada de que as camadas dirigentes e o governo
imperial eram capazes de tentar revogar todas as alforrias concedidas e ir até além
disso, escravizando todos os que não fossem brancos, inclusive aqueles que nasceram
livres. Não é coincidência que os rumores se espalharam logo após a promulgação
da lei antitráfico de 1850. A lógica popular era clara: se o tráfico iria se acabar, quem
substituiria os africanos? O censo foi suspenso. A rebelião foi bem sucedida.

247
A partir da Lei do Ventre Livre, em 1871, a legislação passou a exigir a matrí-
cula dos cativos. Todavia, nas décadas anteriores, caso algum africano chegasse ao
Brasil sem passar pela burocracia portuária e taxas correspondentes, e desembar-
casse em local controlado por seus escravizadores, nada excepcional aconteceria,
além das rotinas do desembarque. A pessoa era automaticamente escravizada. Cuba
instituiu marcas a ferro que comprovavam o pagamento de taxas ao rei. Isso não
acontecia nem na América portuguesa, nem no Brasil. Os africanos escravizados
eram marcados a ferro quente, mas apenas para identificar o navio em que vinham
ou o proprietário daquele carregamento de gente escravizada. Uma vez no Brasil,
também era incomum serem marcados como gado. Mas não havia a marca insti-
tuída em Cuba para comprovar o pagamento de taxas. Assim, uma vez em terra
brasileira, tendo ou não sido pagos os direitos devidos, o africano podia ser vendido
e revendido como quaisquer outras mercadorias humanas disponíveis. Sendo bem
sucedido o desembarque, estava sancionado o contrabando do cativo africano.
A interrupção dos impostos sobre a entrada de cativos, todavia, significou o
fim de um instrumento fiscal muito lucrativo para a coroa. Aparentemente, não
haveria solução para essa queda da arrecadação, pois a cobrança desse tributo po-
deria servir de prova para a entrada e consequente escravização ilegal de centenas
de milhares de africanos livres. O estado imperial, todavia, criou um artifício legal
para resolver o problema ao instituir uma matrícula obrigatória dos cativos, que
sancionava a escravização de centenas de milhares de pessoas, pois, de acordo com
o artigo 6 da lei n. 151 de 11 de abril de 1842, no “ato da primeira matrícula ninguém
se exigirá o título porque se possui o escravo”. Assim, a lei estabelecia que bastava
ao senhor apenas declarar que o cativo era seu para legalizar a sua propriedade. A
escravização de centenas de milhares de pessoas ficou totalmente ao arbítrio dos
escravizadores (peres costa, 2005, p. 15).
É bem sabido que, na escala do tráfico, Luanda desponta como o maior escoa-
douro de gente escravizada de todo o mundo atlântico escravista. Mas, sendo a ilha
de São Paulo de Luanda controlada pela coroa lusitana, era praticamente inevitável
o pagamento dos direitos correspondentes antes do embarque, salvo os casos de evi-
dente corrupção de funcionários régios. Apesar desses custos, negociar cativos em
Luanda era vantajoso, devido à maior segurança jurídica das transações mercantis
e toda uma estrutura portuária e institucional voltada para o tráfico. Também vale
a pena dizer que, seguindo a lógica do comércio atlântico de gente escravizada, em
Luanda, São Tomé ou Príncipe, as embarcações podiam ser reparadas e aprovisio-
nadas para a viagem de volta ao Brasil.
Uma outra vantagem de se negociar cativos nos portos tradicionais desse tipo
de comércio, como era o caso de Luanda, é que, na eventualidade de ser preciso
substituir tripulantes, não faltavam marujos habilitados nesses locais sob a admi-
nistração lusitana. Esse dado é importante, pois era altíssima a taxa de mortalidade
da tripulação dos navios negreiros. A morte dos cativos representava um prejuízo
a ser evitado. A morte no convés, dependendo de quem fossem as vítimas, poderia
inviabilizar a viagem transoceânica. Assim, esses pontos de parada serviam também
para substituir marujos, ou mesmo mestres e contramestres, que faleciam enquan-
to as embarcações esperavam ser carregadas de gente nos pontos de embarque de
cativos no litoral africano.

248
À medida que o tráfico foi se estruturando, foram surgindo feitorias espe-
cializadas nesse ramo de negócios em diferentes regiões da África que não esta-
vam subordinadas a autoridades europeias. Essas feitorias eram controladas por
negociantes europeus, africanos, brasileiros, euro-africanos e afro-brasileiros que
tinham barracões lotados de gente para serem embarcadas a seu comando. O mais
famoso deles foi justamente o xaxá do Benim. Feitorias bem articuladas com essas
estruturas mercantis podiam embarcar mais rapidamente as vítimas do tráfico e
até consertar navios e arranjar substitutos para os tripulantes mortos. O resultado
é que o contrabando de cativos para o Brasil corria solto em todo o litoral da África
atlântica muito antes de sua proibição.
Nunca saberemos quantos navios vieram diretamente de lá para o Brasil sem
pagar direitos. Isso dificulta saber quantas pessoas escravizadas foram banidas para
a América portuguesa, pois as informações de navios negreiros que operavam re-
gularmente, pagando os direitos devidos, são as mais visíveis na documentação. Os
demais passaram desapercebidos nas fontes disponíveis para os historiadores, ou
deixaram apenas indícios fragmentados de sua passagem nos arquivos históricos. A
ilegalidade, depois de 1831, iria gerar uma correspondência diplomática, notícias de
jornais, relatórios diversos, processos judiciais etc., que serviriam para a produção
de estimativas do número de pessoas que entraram ilegalmente no Brasil.
O mesmo se pode dizer em relação ao lado brasileiro dessa equação pois, qual-
quer proprietário que controlasse o acesso a alguma parte do litoral adequada para
acolher embarcações, podia recepcionar navios negreiros sem maiores atropelos.
Estruturas foram construídas com essa finalidade. Os ingleses ficaram notaram os
equipamentos voltados para o tráfico construídos no litoral brasileiro. Os barra-
cões no litoral do Rio de Janeiro eram particularmente impressionantes, tinham
pomares prontos, água fresca disponível, sendo aptos para recepcionar centenas
de cativos de uma só vez.3 Depois da lei antitráfico de 1850, eles foram destruídos
(Wilberforce; Hurlbert, 1856, p. 233). A construção e uso dessas estruturas só era
possível com a passividade de quem deveria vigiar e punir. De acordo com a lei
antitráfico de 1831, cabia aos juízes de paz vigiar o tráfico. Mas é bem sabido que os
próprios proprietários rurais eram os juízes de paz e os oficiais da guarda nacional.
A correspondência consular inglesa no Recife denunciou várias vezes o uso das
praias de Pernambuco para esta finalidade. Algumas das famílias mais abastadas
da província participaram ativamente do tráfico de escravizados africanos depois de
1831, recebendo navios negreiros nas praias contíguas a seus engenhos, ou quando
tinham terras mais longe do litoral, participando de empreitadas acontecidas nos
engenhos dos vizinhos e parentes que tinham acesso a alguma praia apropriada
para recepcionar esses navios.
Não faltam sobrenomes da nobreza da terra nos anais do tráfico. Mas mesmo
antes da lei antitráfico de 1831 havia grandes proprietários que costumavam rece-
ber cativos diretamente nas praias contíguas a seus engenhos, sem que os navios
passassem antes pelo Recife. Um caso desse foi narrado pelo viajante Tollenare, que
esteve em Pernambuco em 1817, deixando uma descrição de desembarques de na-
vios negreiros no Recife no começo daquele ano, quando a vinda desses navios dos
3  Arquivo Nacional (Rio de Janeiro),
Fundo Justiça IJ6-525, “Relatório
portos ao sul da linha do equador era totalmente legal. O testemunho de Tollenare
Alcoforado-Africanos, 1837-1864”, fls. 2. sobre os desembarques de navios negreiros no Recife é muito citado pela literatura

249
pelo detalhamento e também por corresponder ao que costumam dizer outras fon-
debret, Jean-Baptiste. Escola de meninas.
tes sobre o mesmo assunto. Tollenare observou que, naqueles navios havia muito
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do.
mais gente do sexo masculino do que do feminino e que a imensa maioria da carga Debret e o Brasil: obra completa: 1816-1831. 3.
humana era composta por crianças (tollenare,1956, p. 139). ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. p. 168.

Mais interessante ainda é sua narrativa sobre desembarques no litoral de Per-


nambuco. Em sua estadia, ele conviveu com um dos grandes negociantes atlânticos
de cativos de Pernambuco, José de Oliveira Ramos, que também era proprietário de
um dos maiores engenhos da zona da mata sul, o engenho Salgado. Essa propriedade
mereceu uma minuciosa descrição do viajante, também muito citada pela historio-
grafia. Em uma dada ocasião, Tollenare teve a curiosidade de saber quanto valiam os
cativos do Salgado. Segundo ele, o engenho funcionava com 130 a 140 escravizados
(Ibid., p. 71). O proprietário, todavia, respondeu que simplesmente não sabia, pois
os trouxera diretamente da África em duas embarcações que possuía (Ibid., p. 74).
Ora, ao afirmar que não sabia o valor dos seus cativos, José de Oliveira Ramos
deixou subentendido que eles não haviam sido avaliados por autoridades fiscais ou
portuárias, seja no Recife, ou no litoral africano. O principal ancoradouro do enge-
nho ficava na barra de Suape, segundo o viajante, que teceu rasgados elogios a esse

250
porto natural, segundo ele capaz de receber embarcações de mais de 150 toneladas,
o suficiente, segundo a legislação lusitana, para trazer 375 cativos sem problemas,
pois, por aquelas regras, era possível carregar 5 cativos por cada duas toneladas de
calado. Esse, todavia, não era o único ponto de receptação de navios negreiros dispo-
nível para o engenho Salgado. Pelo lado sul, o engenho margeava com o rio Ipojuca.
Do outro lado, fica a praia de Porto de Galinhas, outro grande ponto de desembarque
de navios negreiros. Essas terras em Porto Galinhas constariam do inventário da
viúva do filho do senhor Ramos, algumas décadas depois. (carvalho; albuquerque,
2016, p. 14-15). Muito antes da proibição total do tráfico, portanto, o “senhor Ramos”
– como o chamava Tollenare – recebia navios negreiros diretamente nas praias
contíguas ao seu engenho, de modo que não sabia qual o valor deles.
Vale a pena ressaltar que José de Oliveira Ramos também enviou navios negrei-
ro para o Recife, onde teriam que pagar os direitos correspondentes. Esse comércio
legal deixou algum registro. Não sabemos, todavia, quantos navios o “senhor Ramos”,
como dizia Tollenare, enviou diretamente para o engenho Salgado, que pode muito
bem ter funcionado como um local de revenda desses cativos, tal como o estabe-
lecimento agrícola, onde desembarcou o africano escravizado Baquaqua, na década
de 1840 na zona da mata norte, próximo à Barra de Catuama, ou Atapus, também
perto de Catuama, onde desembarcou Camilo, junto com várias outras crianças que,
segundo seu depoimento, foram parar em outras propriedades próximas, depois de
ficarem algum tempo aprisionadas na casa de purgar do engenho Itapirema.
As narrativas de Baquaqua e Camilo descrevem o padrão do tráfico em Per-
nambuco depois de 1831, que era efetuar o desembarque nas praias e portos naturais
sob o controle dos grandes proprietários rurais, cujos engenhos margeavam o litoral.
Também foi isso que aconteceu com Maria, Narciso e Joaquim, que desembarcaram
em Porto de Galinhas, praia e porto natural totalmente controlado pelos engenhos
circundantes. De lá, essas crianças foram parar em diferentes lugares, repassados
como quaisquer outras mercadorias. “Quarenta e tantos anos” depois, nas palavras
de Narciso, Joaquim e o próprio Narciso falaram na ação de liberdade de Maria. Nar-
ciso, em 1856, tinha apenas 14 anos, segundo uma lista de africanos livres contida
no processo. Mas Joaquim e Maria eram crianças pequenas quando desembarcaram
e foram ilegalmente escravizados.4 O senhor Ramos, portanto, exemplifica bem o
senhor de engenho-traficante de Pernambuco, que trazia legalmente embarcações
para o Recife, mas eventualmente também levava cativos diretamente para seu
engenho, provavelmente sem pagar os direitos correspondentes, como sugere o fato
de que não sabia sequer quanto valiam.
A partir da consulta dos dados do slavevoyages.org, pode-se observar que, entre
o começo do século xix e o ano de 1817, quando Tollenare visitou o engenho Salgado,
José de Oliveira Ramos desembarcou 2.471 cativos africanos no Recife, ficando atrás
apenas de José Joaquim Jorge Gonçalves, com 2.552 cativos desembarcados nesse
mesmo espectro temporal. Como o próprio Ramos confessou que também levava
navios diretamente para seu engenho, muito provavelmente ele ultrapassou o nú-
mero de pessoas desembarcadas por esse seu concorrente. É possível supor que era
4  Memorial da Justiça (Recife), Fundo: o maior traficante de cativos de Pernambuco nessa época. Nos anos 1820, Ramos
Recife, Caixa 1161. Ano 1884 Autor:
Maria (Africana). Réu: Rita Maria da
envolveria o seu filho, José Ramos de Oliveira, nesse ramo de negócios. Somados,
Conceição. os navios negreiros dessa firma familiar do tráfico desembarcaram 7.062 cativos

251
em Pernambuco, o que os coloca em terceiro lugar na escala geral do tráfico para
a província no século xix, atrás apenas de Elias Coelho Cintra, com 11.866 cativos
desembarcados e o Barão de Beberibe (Francisco Antônio de Oliveira), com 8.250.
Riquíssimo, o filho do “senhor Ramos” e quase homônimo, José Ramos de Oli-
veira, seria o primeiro presidente da Associação Comercial de Pernambuco, órgão
representativo dos negociantes de grosso trato da província. Continuou os negócios
do pai, com desembarques documentados depois de 1831, segundo os dados do sla-
vevoyages. Morreu ainda jovem, em 1846, sendo sucedido na presidência da asso-
ciação por Manoel Alves Guerra, outro grande traficante de escravos da rota para
Pernambuco, com pelo menos doze desembarques de navios negreiros registrados,
antes de 1831, totalizando 2.630 cativos. Ressalte-se que o nome de Guerra aparece
na direção de uma firma voltada para o tráfico para Pernambuco, descoberta pela
marinha inglesa, em 1837. (reis; gomes; carvalho, 2010, cap. 10).
Depois de 1831, esse modelo narrado por Ramos a Tollenare tornou-se a regra.
Os cativos africanos passaram a ser desembarcadas diretamente nas praias contí-
guas aos engenhos de Pernambuco. Como essas pessoas eram livres, de acordo com
a lei antitráfico de 1831, é fácil perceber que elas foram ilegalmente escravizadas
por aqueles que as recebiam em território brasileiro, ou seja, eram os senhores de
engenho-traficantes os responsáveis diretos pelo crime de redução de pessoa livre
à escravidão.5 Como a mesma oligarquia proprietária de engenhos próximos ao
litoral ocupava a justiça de paz e, muitas vezes, até da magistratura local, a coni-
vência e impunidade estava garantida. Por esta razão, uma das chaves da eficácia
da lei antitráfico de 1850 foi a transferência do julgamento dos casos de tráfico para
a auditoria da marinha.
Há casos de desembarques narrados por autoridades consulares inglesas e até
viajantes, mas vale a pena relembrar depoimentos dos próprios africanos vitimados
pelo tráfico e escravizados por proprietários rurais no Brasil. Suas falas estão nas
ações de liberdade. O caso do africano conguês Camilo descreve bem como se dava
um desembarque em uma praia contígua a um engenho. Coube ao juiz julgar se ele
havia entrado antes ou depois de 1831, mas nenhuma das partes contestou a possi-
bilidade de haver crianças pequenas, como ele, em navios negreiros que vinham do
Congo. Muito menos considerou absurda a possibilidade de alguém ser desembarcado
e escravizado ilegalmente em uma praia que margeava engenhos ao norte da ilha
de Itamaracá, ficando depois preso na casa de purgar do engenho Itapirema, junto
com dezenas de outras crianças, antes de tomarem o destino que lhes esperava como
pessoas ilegalmente escravizadas no império do Brasil.
O africano Manoel também contou o que aconteceu com ele. Alegava, em 1884,
que tinha 49 anos e que chegara, portanto, depois de 1831. Era um menino, como
Camilo, pois tinha apenas 7 anos de idade quando desembarcou em Porto de Gali-
nhas, por volta de 1849 ou 1850. De lá deve ter sido repassado como qualquer outra
mercadoria, pois foi parar na freguesia da Muribeca, em cuja matriz foi batizado,
5  Sobre este assunto, veja-se: cunha,
passando a servir o seu senhor, Irineu Cavalcante Filgueira de Menezes, que admitiu 2020, p. 244 e cap. 6 passim.
a veracidade do depoimento, pois preferiu conceder a alforria de Manoel, ao invés 6  Memorial de Justiça (Recife), Fundo:
Comarca Palmares, caixa nº 2.696. Ano
de continuar o litígio em que teria que provar que Manoel não fora ilegalmente 1884. Autor: o africano Manoel. Réu:
escravizado por décadas a fio.6 Irineu Cavalcante Filgueira de Menezes.

252
Em termos da demografia mais geral do comércio de gente escravizada para
Pernambuco, os casos de Camilo e Manoel somam às tragédias pessoais vividas por
centenas de milhares africanos que foram escravizados em Pernambuco nos mais
de 350 anos de duração desse sórdido e intenso negócio que criou e consolidou algu-
mas das maiores fortunas jamais construídas na antiga capitania de Duarte Coelho.
Na vergonhosa escala do tráfico, Pernambuco recebeu em torno de 12% de todos os
cativos africanos banidos para as Américas, ficando atrás apenas do Rio de Janeiro,
Bahia e Jamaica no número de pessoas desembarcadas como cativos.
Quando Camilo, Manoel e os outros meninos e meninas mencionados acima
desembarcaram em Pernambuco, os maiores negociantes e financistas da econo-
mia pernambucana ou ainda estavam ou haviam se envolvido antes no comércio
atlântico de gente escravizada. Esses negociantes aprestaram mais de 2.000 viagens
negreiras desde o Recife até os portos africanos do tráfico entre o século xvi e xix.
Esses dados colocam o Recife ao lado de Bristol, na Inglaterra e acima de todos os
portos franceses envolvidos no tráfico como ponto de saída de navios negreiros
do mundo atlântico escravista (eltis; richardson, 2008; eltis; silva, 2008. Veja-se
ainda: costa, 2013).

Escravizados africanos desembarcados em Pernambuco,


sécs. XVI-XIX

África África sub- Sudoeste


Anos Totais
equatoriana equatorial africano

1551-1575 482 1.979 0 2.461


1576-1600 0 16.110 0 16.110
1601-1625 0 77.060 0 77.060
1626-1650 9.483 35.495 0 44.978
1651-1675 592 40.671 0 41.263
1676-1700 14.312 68.910 0 83.222
1701-1725 53.216 57.532 0 110.748
1726-1750 42.831 30.599 0 73.430
1751-1775 16.673 53.980 0 70.653
1776-1800 3.793 70.712 0 74.505
1801-1825 27.360 130.866 11.789 170.015
1826-1850 2.689 83.033 3.316 89.038
1851-1875 350 0 0 350
Totals 171.781 666.947 15.105 853.833

Fonte: http://www.slavevoyages.org

Não sabemos quando chegaram em Pernambuco os primeiros cativos proce-


dentes dos territórios sob a suserania do antigo e poderoso reino do Congo. Mas
é razoável supor que havia congueses – como Camilo, Maria, Joaquim, Narciso e

253
tantos outros – entre as primeiras levas de africanos banidos para trabalhar até a
morte nos engenhos de Pernambuco. A presença deles em Palmares é considerada
um dado importante para entender a história e hierarquias internas do quilombo,
como denota claramente o nome de Ganga Zumba, na realidade a denominação de
uma das mais altas posições na hierarquia do reino do Congo, o Nganga Nzumba.
Foram as guerras civis do Congo, entre a segunda metade do século xvii e as pri-
meiras décadas do xviii, que permitiram a multiplicação do número de prisioneiros
que foram de lá para Pernambuco, muitos deles provavelmente guerreiros.
As guerras também abriram espaço para a penetração portuguesa no terri-
tório sob a suserania do reino que se fragmentava. Os povos originários daquela
parte da África marcaram a cultura brasileira, principalmente o samba. Também
é de lá que veio a cruz africana, que demarca os pontos cardiais e tem profundos
significados religiosos, expresso na noção da “encruzilhada” das religiões de matriz
africana praticadas no Brasil. Vieram de lá também importantes entidades do pan-
teão dessas religiões, como a pomba gira, e a expressão malungo, de onde deriva o
nome do principal líder quilombola de Pernambuco no século xix: Malunguinho,
que também é divindade no culto da Jurema.
Foi o próprio Camilo que disse que procedia do Congo. No século xix, essa
autodenominação não significava apenas vir de algum lugar no estuário do rio
Congo, onde predominam os Bacongos, mas também de algum dos portos ao norte
de Luanda, próximo à foz daquele rio, como Ambriz, Cabinda e Molembo. Mas esses
eram os portos de embarque, os trajetos desde o interior eram longos e variados.
Essas pessoas comungavam o filo linguístico banto, permitindo uma certa facili-
dade na comunicação entre elas, o que era bem mais difícil entre os advindos da
África equatorial, cujas línguas eram mais ininteligíveis entre si. Esse traço teria
facilitado a assimilação dos angolas e congos entre si e até com outras culturas
de matriz africana advindas da África equatorial. Nesse tráfico de gente da África
sub-equatoriana, após 1831, havia um pouco mais de mulheres nos navios negrei-
ros do que antes e, principalmente, crianças pequenas. Os navios também vinham
sobrecarregados. Por vezes muito sobrecarregados, afinal de contas em um mesmo
espaço cabem muito mais crianças do que adultos. Vale ressaltar, inclusive, que a
tonelagem de uma embarcação não é uma medida de peso, mas de volume, ou seja,
cabia muito mais crianças que adultos em uma mesma embarcação.
A presença massiva de crianças nos navios negreiros é um problema ainda
relativamente pouco estudado. Não é à toa. Incomoda ter que situar a escravidão
no centro da explicação histórica do Brasil, apesar de isso ter sido o mote da quase
centenária obra de Gilberto Freyre, o mais brilhante representante de uma literatura
laudatória do Brasil escravista. Como o passar dos anos, a classe senhorial pernam-
bucana foi capaz de criar uma ideologia legitimadora da sua posição econômica e
social que glamourizou a vida senhorial, retratada a partir da casa grande, esconden-
do, portanto, o crime de escravização de pessoa livre perpetrado sistematicamente.
Inventaram ainda o mito de que os grandes proprietários rurais eram vítimas
de traficantes, digamos assim “malvados”, que extorquiam suas riquezas, o que é
ilógico, pois essas dívidas era geradas pela compra de cativos, “negros novos”, como
se dizia na época, uma expressão que revela a redução de uma pessoa a um simples
objeto de uma operação mercantil. Foi esse mercado interno de cativos que gerou o

254
emparedamento em navios negreiros, morte e, principalmente, escravização ilegal no
Brasil de mais de um milhão e meio de pessoas que eram legalmente livres. É duro,
mas necessário, relembrar que a imensa maioria dessas pessoas era muito jovem,
adolescentes e rapazes entre os 12 e os 20 anos de idade. Mas havia uma substantiva
parcela – a maioria no século xix – constituída de crianças muito pequenas, como
os personagens da tragédia humana narrada neste texto.
A presença de meninos e meninas nos navios negreiros foi bastante notada no
século xix. Serve de exemplo as memórias de James Matson, um celebrado oficial
do esquadrão inglês que patrulhava a costa da África reprimindo o tráfico entre
1832 e 1847. Rememorando suas aventuras, ele disse que, dos 1.683 cativos africa-
nos que capturou em navios negreiros, 1.033 eram crianças. (matson, 1848, p. 23).
A literatura especializada tem observado que, no alvorecer do século xix, a oferta
de crianças e gente muito jovem aumentou em todo litoral africano, mas foi mais
acentuada justamente no sudoeste africano, ou seja, Congo e Angola. Essa presença
de crianças tem explicações variadas dos dois lados do Atlântico, que são difíceis de
ser resumidas no curto espaço deste texto. Mas algumas delas são bem conhecidas.
Para começar, as crianças eram, e ainda são, muito vulneráveis em guerras,
e no caso, da África pre-colonial, às razias promovidas por bandidos especializados
em caçar gente, a serviço de negociantes de diferentes origens nacionais e étnicas.
Essas mesmas guerras, epidemias e catástrofes naturais acarretavam a orfandade
e abandono, legando muitos à própria sorte. Sem proteção, muitas crianças podiam
terminar servindo para redimir dívidas, ou entravam de diversas maneiras nas
estruturas tributárias dos reinos africanos, de tal forma que podiam virar merca-
dorias nos pontos de venda de gente cativa no litoral africano. Obviamente, eram
mais baratas do que os adultos. A vulnerabilidade era (e ainda é) a principal razão
da escravização, pois os adolescentes e adultos têm sempre mais chances de se
defenderem.7 Como disse Alberto da Costa e Silva, na África pre-colonial, as cir-
cunstâncias históricas criaram verdadeiros alçapões através dos quais as pessoas,
inclusive crianças, podiam escorregar e cair na escravidão.8
É importante ressaltar ainda que, no xviii, o século melhor estudado, regra
geral, a oferta sobrepunha-se à demanda. Negociantes que dispunham de melhores
meios de pagamento tinham mais capacidade de adquirir o que queriam, ou mesmo
7  Sobre a escravização e venda de de seguir adiante em busca de locais de venda que correspondessem às suas expec-
crianças na África para os diferentes
mercados, veja-se: campbell, “Children tativas. Mas, basicamente, os traficantes compravam o que estava sendo ofertado no
and Slavery in the New World, p. litoral africano. Os velhos e doentes eram rejeitados, mas as crianças não.
261-285. campbell, Gwyn. miers,
Suzanne. miller, Joseph C. Children in
Para Alberto da Costa e Silva, para se entender a escravização de crianças na
European Systems of Slavery: Introduction. África pre-colonial, a venda e banimento delas através das redes do tráfico, é pre-
In: Slavery and Abolition, v. 27, n. 2,
August 2006, p. 163-182. lovejoy, The
ciso antes de tudo deixar de lado às noções contemporâneas de família, infância e
Children of Slavery, p. 197-217. diptee, paternidade. Estudando a escravização em massa de mulheres e crianças na Euro-
Audra A. “African children in the British
pa em diferentes épocas, Campbell, Miers e Miller apontaram para a tendência, na
slave trade during the late eighteenth
century”, Slavery and Abolition, v. 27, n. 2, tradição intelectual do ocidente, de perceber as crianças como “pequenos adultos”,
August 2006, p. 183-196.
o que não ajuda a abordar de forma adequada este problema, pois assim elas termi-
8  costa e silva, Alberto da. A manilha e
o libambo: A África e a escravidão de 1500 nam sendo esquecidas em estudos sobre a escravidão e comércio de escravizados,
a 1700, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, que dilui todas as vítimas do tráfico na categoria maior de cativos.9
2002, p. 112.
9  Campbell, Miers e Miller, “Children in
Não obstante, qualquer exame mais atento dos processos de escravização de
European Systems of Slavery”, p. 164. pessoas e do comércio de gente escravizada através da história mostra que essa

255
questão não pode ser relegada. As crianças sempre foram vítimas de escravização
debret, Jean-Baptiste. Embarque de cavalos
no mundo inteiro, o que muda são os locais onde isso acontece com mais frequência para a Praia Grande.
através do tempo. As circunstâncias do dezenove apenas agudizaram esta tendência Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do.
que vem de tempos imemoriais, atingindo mais brutalmente os locais de compra de Debret e o Brasil: obra completa: 1816-1831. 3.
ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. p. 235.
gente escravizada pela economia capitalista, então emergente. Se observarmos bem,
mesmo na contemporaneidade, crianças desprotegidas são extremamente vulnerá-
veis às formas mais sórdidas de exploração de uma pessoa por outra e, mais ainda,
da mulher pelo homem. O capitalismo não acabou com esse problema. Ao contrário,
é incompreensível que, em um mundo tão rico, a desigualdade atinja também as
vítimas mais indefesas, as crianças, principalmente as do sexo feminino.
Vale ressaltar que essa oferta de crianças não era algo que possa se explica-
do apenas do lado africano da equação, pois, numa perspectiva de longa duração,
esse fenômeno está intimamente ligado à demanda americana, que se intensificou
muito a partir do final do século xvii, pois, dos doze milhões e meio das pessoas
banidas da África para o mundo atlântico escravista, entre os séculos xvi e xix,
aproximadamente 83 por cento vieram entre 1700 e 1860. Foi muito rápido o dreno,
o que agrava a brutalidade do impacto social, econômico e político no continente
africano, gerando instituições e estruturas sociais e políticas totalmente voltadas

256
para esse tipo de atividade. Esse impacto esmagador rapidamente gerou estruturas
mercantis e de guerra totalmente vinculadas a esse processo de sangramento so-
cial, que, obviamente, não trouxe nenhum benefício para as comunidades africanas
atingidas, servindo apenas para enriquecer uma classe mercantil e nobre rentista
extremamente violenta e excludente.
Ora, sendo relativamente baixa a densidade populacional da África Centro-
-Ocidental, comparada com a África Ocidental, é razoável supor que esse dreno
humano, em tão pouco tempo, provocou uma certa exaustão demográfica da popu-
lação masculina em idade produtiva, fomentando o surgimento de novas formas de
escravização que vitimavam pessoas desprotegidas ou pertencentes a degraus mais
baixos dos laços de dependência das sociedades organizadas em linhagens. Crianças
desses estratos ou desprotegidas passaram a ser escravizadas com mais frequência.
Na África Centro-Ocidental, não apenas as guerras e razias vitimavam as pessoas
mais vulneráveis, mas foram desenvolvidos instrumentos legais e até tribunais
em sociedades vinculadas ao tráfico que, eventualmente, serviam para escravizar
pessoas livres, com seus filhos inclusive, ou transformar em cativos pessoas sub-
metidas a diferentes graus de dependência. Muitas dessas crianças vieram parar
no Brasil, como os personagens das ações de liberdade trabalhados aqui neste texto
(ferreira, 2012, cap. 3 passim; candido, 2013, pp. 180, 209).
Crianças desprotegidas também eram mais facilmente raptadas e aquelas à
margem dos sistemas de linhagens, ou seja, sem proteção comunitária, eram muito
vulneráveis. Para as mulheres de condição escrava ou mesmo das linhagens menos
favorecidas, a maternidade não garantia a segurança dos rebentos. Era real a pos-
sibilidade dessas crianças caírem nas rotas do comércio interno de escravos e dali
serem repassadas a negociantes articulados ao comércio atlântico ou transsaaria-
no, no caso da África sudanesa. Discutindo casos bem documentados de fugas de
escravos na África, Curto detectou casos de mães que tentavam escapar com seus
filhos e filhas. Sabiam o que as esperavam (curto, 2005, p. 79). Ao contrário do que
se possa pensar, em todos os lugares em todas as épocas, as crianças sempre foram
escravizadas, inclusive as da nobreza, que, em momentos de guerra e crises sucessó-
rias, eram vítimas ideais de retaliações. Não foram poucas aquelas que foram parar
no cativeiro nas Américas após serem aprisionadas pelos inimigos dos seus pais.
Uma vez desembarcando no Brasil, todos os africanos eram legalmente livres,
caso viessem de algum porto ao norte da linha do equador depois de 1815. Essa re-
gra seria estendida a todas as vítimas do comércio atlântico de gente escravizada
depois de 1831. Como sabemos, isso não aconteceu. Só uma minoria das pessoas
ilegalmente escravizadas no Brasil alcançaram o status de “africanos livres” e, ainda
assim, caíram naquele limbo entre a escravidão e a liberdade, pois não tinham au-
tonomia para escolher onde trabalhar, nem personalidade jurídica plena, pois eram
tutelados. Os grandes negociantes, proprietários rurais e urbanos, a magistratura
e burocracia imperial eram os maiores interessados na manutenção da escravidão
– sem dúvida – a maior garantia dos seus privilégios. Essa base estrutural da es-
cravidão ampliou-se pela pulverização da propriedade escrava no Brasil, onde eram
inúmeros os pequenos proprietários de escravizados, contribuindo para consolidar
a escravidão e a escravização ilegal de africanos livres como o principal pilar eco-
nômico e social da monarquia brasileira.

257
Não surpreende que qualquer proposta contrária à escravidão era combatida
ferozmente. A retórica escravocrata assemelha-se inclusive com a retórica utilizada
na contemporaneidade, quando se pretende defender privilégios longamente arraiga-
dos. Só mudavam os termos, e olhe lá, pois, se antes de 1850 os críticos da escravi-
dão eram acusados de “jacobinismo”, com o avançar do século xix, os abolicionistas
começaram a ser chamados de comunistas mesmo. No mesmo diapasão, o “querem
transformar o Brasil em Cuba ou Venezuela” é uma tradução contemporânea das
variantes do “querem transformar o Brasil no Haiti”, do século xix.
O resultado da presença de gente muito jovem no tráfico foi o uso recorrente
de termos como moleques, mulecões e mulecotas, expressões que serviam para in-
dicar a idade aproximada das pessoas comercializadas no Brasil. Essas palavras são
derivações do quimbundo. Para Valencia Villa e Florentino, moleques eram todos
os meninos e meninas abaixo dos 12 anos de idade (valencia villa; florentino,
2016, p. 7). Assis Júnior, por sua vez, traduziu mulêKe por “rapaz, garoto, criado de
servir” (assis júnior, 1942). O renomado historiador Joseph Miller, preferiu traduzir
muleke por dependente (miller, 1988, p. 68). Essas possibilidades combinam-se per-
feitamente, “dependentes” e “criados de servir” são termos bastante correlatos nas
sociedades do sudoeste africano submetidas ao tráfico. Essas expressões ingressaram
no vocabulário do tráfico, passando a indicar a idade aproximada de qualquer
africano, inclusive da África equatoriana, passando depois aos afrodescendentes,
entrando assim definitivamente no português falado no Brasil.
Nada no tráfico era feito de forma inocente. Há um episódio que marcou a
história do tráfico para Pernambuco, que esclarece uma das vantagens de se lotar
navios negreiros de crianças pequenas. O “Desembarque de Sirinhaém” abalou até
o gabinete imperial, pois o ministro da justiça, Nabuco de Araújo, o pai de Joaquim
Nabuco, construiu sua carreira política a partir de Pernambuco, sob a proteção dos
Cavalcanti de Albuquerque, cujo envolvimento naquele episódio era claro como a
luz do dia, pois o principal acusado era o sogro de Álvaro Uchoa Cavalcanti, futuro
senador do império, primo em primeiro grau dos irmãos Cavalcanti, eles mesmos
também senadores. Na sua correspondência com o Visconde de Camaragibe, a quem
tratava com extrema deferência, Nabuco de Araújo não escondeu seu constrangi-
mento sobre esse episódio, que envolveu até o presidente da província, José Bento
da Cunha Figueiredo, cuja carreira política também fora construída à sobre dos
Cavalcanti.10
Esse caso serve para identificar uma forte razão para se trazer crianças pe-
quenas nos navios negreiros em direção ao Brasil, descrita na correspondência do
cônsul inglês em Pernambuco para o Conde de Clarendon, em 3 de novembro de 1855.
O assunto da carta foi justamente o desembarque e o envolvimento da fina flor da
classe senhorial pernambucana no episódio. O cônsul observou que a embarcação
era muito pequena, pois tinha apenas 30 toneladas. Pelas regras do comércio legal, 10  Sobre este episódio, veja-se veiga,
antes de 1831, que permitia o embarque de dois cativos por cada cinco toneladas, 1977.
11  Mr. Cowper ao Earl of Clarendon
seria possível trazer até 75 escravizados a bordo. O palhabote, todavia, aportou na 03/11/1855. In British Parliamentary
ilha de Santo Aleixo com 250 cativos a bordo. Isso seria praticamente impossível, Papers, Correspondence with British
Commissioners and other representatives
caso fossem adultos, mas segundo o diplomata inglês, daquelas 250 pessoas, 30 eram abroad and with foreign ministers in
mulheres (women), as demais apenas meninos (boys).11 Explicou ainda a vantagem de England together with reports form the
admiralty relative to the slave trade. Slave
trazer crianças tão pequenas. Sem marcas, passavam mais facilmente por crioulos, trade, V. 42 [Class B], April 1, 1855 to
ou seja, crianças escravizadas nascidas no Brasil. Estava assim legalizado o cativeiro. March 31, p. 242-243, 1856.

258
As ações de liberdade aqui elencadas exemplificam bem a naturalização da
vinda de crianças pequenas nos navios negreiros e a possibilidade concreta delas
serem escravizadas. Descrevem também um padrão de desembarque, às vezes, na
calada da noite, a prisão e depósito em algum engenho até o repasse a alguém que
irá se servir do completo poder sobre o corpo do cativo pelas décadas seguintes. O
que a defesa senhorial alegava, nesses casos era que essas crianças teriam vindo
antes de 1831. Mas não se contestava a tenra idade deles durante a travessia atlân-
tica. Essas ações, portanto, trazem à tona tragédias pessoais de extrema brutali-
dade, agravada quando se percebe que só as circunstâncias do final do século e da
lei do ventre livre, em 1871, deixaram margem para esse protagonismo de pessoas
escravizadas há décadas.
Um dos casos mais emblemáticos do tráfico de crianças pequenas é o de Bem-
vinda, que alegava ter vindo muito pequena de Angola, arrolando como testemunhas
três africanas que afirmaram que já a conheciam na África. O desembarque teria
ocorrido à noite, em Porto de Galinhas, quando Bemvinda tinha apenas 3 a 4 anos
de idade. Segundo alegou seu curador, ela terminou indo parar no engenho Con-
ceição, servindo ao pai do réu, acusado de escravizá-la ilegalmente. Camilo serviu
três gerações senhoriais até ser liberto em idade bastante avançada para os padrões
coevos. Benvinda servia ao filho do seu primeiro senhor no Brasil. José Francisco
Pereira era o herdeiro de Bemvinda. Como tal, tratou de se defender, alegando que
ela entrara antes de 1831, sendo portanto legal a sua condição escrava. Como Bem-
vinda não era tão idosa assim, ele disse simplesmente que ela era apenas um bebê
quando veio para o Brasil. Nas suas palavras, ao desembarcar, Bemvinda ainda “se
amamentava”.12
O comércio atlântico de gente escravizada não foi apenas uma tragédia pes-
soal para algo como 4 a 5 milhões de pessoas banidas para o Brasil, mas a raiz de
muitos dos nossos males que perduram até a contemporaneidade. Com relação ao
período da ilegalidade, pode-se dizer que toda a economia do país foi movida por
um crime brutal, do qual participou a fina flor da sociedade, os homens mais ri-
cos do país e toda a burocracia imperial, com a conivência de quem deveria vigiar,
conter e punir o crime de redução de pessoa livre à escravidão. É impossível saber
o dano causado no ethos brasileiro, na forma de ser da nossa cultura, até hoje ex-
tremamente tolerante com os crimes perpetrados pelos donos do poder. Resta-nos
repensar e reconstruir a história desse processo e talvez assim apontar para um
futuro mais justo e equânime.

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261
262
CAPÍTULO 10 - A justiça de paz e o crime de
sedição em Pernambuco do Oitocentos

Mônica Pádua1

1 Introdução

Considera-se parte da História Social e do Direito o modo como se davam os proce-


dimentos da prática judicial do século xix no trâmite interno da Justiça. A sequência
dos atos procedimentais mostra como funcionava o Judiciário naquele momento
histórico, bem como revela qual o direito que estava sendo aplicado. Como os atos
eram impulsionados pelos juízes como autoridades para as decisões prolatadas,
acredita-se que, a partir da análise da atuação de cada tipo de magistrado, é possível
compreender mais um aspecto sobre a rotina da Justiça. Com base nesse entendi-
mento foi construído um cenário, por meio de casos de processos encaminhados
à Relação de Pernambuco, que representam um desses momentos, época em que
atuava o juiz de paz, durante a primeira década da vigência do Código do Processo
Criminal de 1832 (codigo..., 1842), inserindo suas narrativas no contexto político e
social vivido em Pernambuco, levando-se em conta o direito aplicado. Um desses
casos foi o do crime de sedição, que será aprofundado neste capítulo.
Durante o período cronológico selecionado, estava sendo construído o Estado
nacional, do qual fazia parte a estrutura da Justiça. Nesse tempo, já estava em vigor
o Código Criminal do Império de 1830 (brasil, 1830), que criou regras brasileiras
para a área criminal, intensificando as demandas por novos procedimentos para a
Justiça, que foram corporificados logo depois, com o Código do Processo Criminal
de 1832. (codigo..., 1842).
As principais fontes primárias utilizadas neste estudo foram 23 processos
judiciais encaminhados à Relação de Pernambuco, sob a guarda do Instituto Ar-
1  Doutorado em História pelo queológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (iahgp) e do Memorial da Justiça
Programa de Pós-graduação em História,
Universidade Federal de Pernambuco do Tribunal de Justiça de Pernambuco.
(ufpe, Brasil, 2020); Docente interno Neste trabalho são levantadas questões sobre a rotina da Justiça criminal de
do Tribunal de Justiça do Estado de
Pernambuco, Brasil; Servidora do Pernambuco de primeira e segunda instância, buscando-se mostrar tanto os proce-
Tribunal de Justiça de Pernambuco. dimentos quanto as ligações políticas e sociais dos empregados do Judiciário com o

263
governo local e central, a partir de histórias que trouxeram os processos criminais.
Durante a narrativa, também se procurou esclarecer quem eram as pessoas envol-
vidas, bem como as instituições que elas representavam durante o desenvolvimento
do processo, a fim de contribuir para a compreensão do cotidiano vivido na Justiça
em Pernambuco no período estudado.
Ressalte-se que, com a vigência do Código do Processo Criminal de 1832 (codi-
go...,1842), que impôs novos procedimentos para a área criminal, extinguiram-se os
cargos e órgãos existentes antes do período imperial. O mesmo Código reestruturou
a Justiça Civil, durante a Regência, e foi acompanhado por outras novas normas,
como o Regulamento das Relações, de 1833. (collecção..., 1873). O período estudado
neste capítulo termina com a reforma a reforma da Justiça com a Lei nº 261 de 1841
e sua regulamentação em 1842 (codigo..., 1842), em que se suprimiu competências
dos juízes de paz e se restringiu a atuação do Júri, principais inovações do sistema
judiciário pós Independência, modificações essas ligadas diretamente ao momento
político vivido no Brasil.
Quanto à época selecionada para estudo foi escolhido um processo judicial
representante, a partir do qual se faz a análise mais aprofundada dos empregados
da instituição Justiça e suas ligações sociais e políticas. O documento analisado tem
relação direta com a política, seguindo a linha de se observar em que medida as
decisões da Justiça pernambucana estiveram ligadas a essa área. Ele foi produzido
alguns anos antes do Recife viver a revolta dos Praieiros e essa proximidade foi
bem adequada para analisar a questão local.
Nesse cenário, como enfatizado anteriormente neste texto, já tinham sido
extintos os antigos magistrados e órgãos, como juízes de fora, ouvidores, Mesa de
Desembargo do Paço, Mesa de Consciência e Ordens, que foram substituídos pelas
novas instituições e cargos, como os juízes de paz, municipais e de direito, bem
como pelos Tribunais da Relação, quando de sua regulamentação, em 1833 (col-
lecção...,1873), e pelo Supremo Tribunal de Justiça, estes últimos competentes em
matéria de recurso. Essas mudanças foram colocadas em prática durante o período
regencial, sendo discutidas durante o desenrolar do capítulo.

2. O juiz de paz no Brasil do século xix

A Lei de 15 de outubro de 1827 (collecção..., 1878a) determinou que o juiz de paz


atuaria na Justiça brasileira, confirmando o que foi ordenado pelo artigo 162 da
Constituição de 1824. (nogueira, 1999). O Juizado de Paz já existia em outros lugares
do mundo e implantou-se na América pela primeira vez na Argentina, em 1821.
(campos, 2018). Esse magistrado, parte do inaugurado sistema de justiça do império
brasileiro, foi acusado, quase que no mesmo momento de sua criação, de contribuir
para a ineficiência do Judiciário.
Um dos quatro poderes do Estado, o Judiciário foi estruturado, depois da Cons-
tituição de 1824 (nogueira, 1999), sem os antigos ouvidores, juízes de ordinários
e juízes de fora. Foram criados os juízes de direito e os juízes de paz. Este último
cargo, junto com o Tribunal do Júri, foi novidade e marcou o cenário do Judiciário
imperial. A reforma da Justiça não parou por aí. O Código do Processo Criminal de

264
1832 (codigo..., 1842) trouxe outras regulações, inclusive com competências especí-
ficas para os juízes de paz, seguidas de mais normas reguladoras.
Inicialmente, as competências dos juízes de paz foram alvos de muitas discus-
sões entre os deputados. A Lei de outubro de 1827 (collecção..., 1878a) regulamentou
as atribuições desses magistrados em quatro categorias: “conciliatórias, judiciárias,
policiais e administrativas [...]” (nascimento , 2010, p. 51), podendo julgar as causas
cujo valor e/ou pena não ultrapassasse determinado limite (causas cíveis até 16 mil
réis), tendo competência para realizar o exame de corpo de delito na perícia criminal,
conceder fiança, agir na manutenção da ordem, bem como na prisão de bêbados e
delinquentes, e proceder ao interrogatório dos acusados de crime.
As atribuições judiciárias e policiais dos juízes de paz foram ampliadas a partir
de 1830, com o Código Criminal (brasil, 1830). O Código do Processo Criminal de
1832 (codigo..., 1842) pormenorizou e atualizou as competências, os procedimentos e
a forma de atuação desses magistrados. Também eram responsáveis pela imposição
de termo de bem viver, manutenção da ordem pública e emprego da força pública, vi-
gilância do cumprimento das posturas municipais e pela condução das eleições. Eles:

[...] acumulavam poderes e prerrogativas o suficiente para tornarem-se o foco


das disputas entre facções políticas locais, tanto quanto o alvo das críticas
dos magistrados do império em sua luta pelo controle do poder judicial.
(vellasco, 2004, p. 101).

Maria Fernanda Vieira Martins (2007), aliás, destaca que a autonomia dos
poderes locais também foi reforçada pelo Código do Processo Criminal de 1832 (co-
digo..., 1842). Como prova dessa hipótese levantada ela cita a ampliação das funções
dos juízes de paz, que passam a exercer o poder de polícia localmente, com com-
petência para prender, julgar e até convocar a Guarda Nacional e a força policial,
quando entendesse necessário.
Podendo ser chamados de juízes distritais2, os juízes de paz eram eleitos como
os vereadores municipais e tinham como principal atribuição a função conciliatória
(vieira, 2002). Seu papel era, segundo os artigos 161 e 162 da Constituição de 1824
(nogueira, 1999), tentar fazer com que as partes se decidissem entre elas, antes de
se submeterem a uma decisão jurisdicional, por meio da reconciliação. E essa con-
ciliação era fase obrigatória no processo judicial. O Decreto de 17 de novembro de
1824 (collecção..., 1886), respondendo a uma demanda legal que não estava sendo
possível de cumprir por causa da falta de juízes de paz, estendeu a todos os ma-
gistrados a competência de conciliar, enquanto não houvesse nos lugares aqueles
2  No Império, distrito era a menor das com atribuições.
circunscrições judiciária e policial que
integrava o sistema judiciário de primeira
Três anos depois da outorga da Constituição do império, a Lei Orgânica da
instância nas províncias (silva, 2003). Justiça de Paz de 18273 veio a determinar que em cada freguesia e vila haveria um
3  Lei de 15 de outubro de 1827 cargo de juiz de paz e um suplente. E isso valeu também para os novos distritos que
(collecção..., 1878a).
4  Capelas curadas eram as “Capelas foram criados com as reformas administrativas. Eles prestariam o serviço juris-
administradas, em caráter permanente, dicional em cada uma das freguesias e das capelas curadas4, o que foi confirmado
por um pároco ou cura; são igualadas às
paróquias” (roquetti; galiano, 2011, p. pelo art. 4º do Código do Processo Criminal de 1832 (codigo..., 1842), que atualizou a
202). nomenclatura para distrito. A Lei de 1832 (codigo..., 1842) só não citou o suplente. As

265
decisões dos juízes de paz, se referentes a termo de bem viver, de segurança ou de
apresentação de passaporte podiam ser revistas somente pelas Juntas de Paz, órgão
colegiado. O recurso ao juiz de direito só caberia quando se tratasse de denúncia de
prisão ou concessão de fiança (campos, 2018).
A norma de 1827 (collecção...,1878a), citada anteriormente, estabeleceu ainda
que os juízes de paz seriam eleitos pelo mesmo tempo dos vereadores, e que somente
os cidadãos com capacidade para serem eleitores poderiam ocupar o cargo.
A eleição era a forma de acesso ao cargo do juiz de paz nas duas leis de 1827 e
1832. Ela era realizada em um só turno e os juízes seriam eleitos pelos votantes. A
primeira norma compara a eleição à dos vereadores das Câmaras Municipais. A Lei
de 1º de outubro de 1828 (collecção...,1878b) veio para dispor sobre a organização e
funcionamento das Câmaras Municipais, retirando dessa instituição todas as suas
funções jurisdicionais e, também, estabelecendo regras para a eleição dos juízes de
paz, que se daria de quatro em quatro anos.
Vieira (2002) comenta que a implantação da Justiça de Paz no País foi uma
manifestação do “espírito liberal” do texto constitucional, influenciado pelas ideias
da Revolução Francesa de 1789 e como reação ao poder autoritário do Estado. Pode-se
dizer que inserir na malha do Judiciário do período imperial mais uma vez um juiz
eleito – lembrando que esse tipo de acesso a cargo de magistrado não era novidade,
no período colonial já existia com os juízes ordinários –, que era escolhido pelos
votantes, dava uma vantagem importante para os representantes das camadas sociais
superiores, que esperavam contar com os juízes de paz para efetivar o seu poder, por
meio do controle social. Esses magistrados exerciam atividades que os obrigavam
a estar mais em contato com a população, principalmente no momento que agiam
na competência legal de conciliar as partes de uma demanda ou no exercício de
outras tantas funções que faziam parte de seu poder de polícia.
Campos (2018) menciona posições divergentes da historiografia quanto a quem
os juízes de paz serviam politicamente. A autora comenta que Graham (1997) acredita
que os cargos de juiz de paz eram ocupados sob o comando dos senhores de terras,
por meio do clientelismo. Os integrantes dos estratos sociais superiores recrutavam
os votantes para que escolhessem aqueles homens indicados pelos fazendeiros de
terras, e isso valia para todos os cargos do quadro da administração pública mu-
nicipal. Flory (1986) apresenta outra hipótese sobre a relação das camadas sociais
supracitadas com o processo eleitoral no Império. Ele afirma que as eleições não
ameaçavam importantes deslocamentos sociais, sugerindo, aliás, que os juízes eleitos
eram homens com mobilidade ascendente. Eles seriam novos líderes que formavam
a base social do liberalismo moderado. Apesar de não ter levado a rupturas sociais,
gerou oportunidades de surgimento de novas lideranças que não faziam parte nem
comungavam com as ideias dos antigos líderes das camadas sociais hierarquica-
mente superiores, no que concordam Campos e Vellasco (2011).
Duas características evidentes da Justiça de Paz era a de ser informal e breve
em seus procedimentos. Estava imbuída do princípio da conciliação, que deveria
“distribuir a paz, a união, a harmonia, a concórdia entre os cidadãos e, por meio da
reconciliação (ou conciliação), evitar que as partes recorressem ao procedimento
judicial tão lento e repleto de formalismos”. (vieira, 2002, p. 45).

266
Quando se fala sobre a conciliação, é necessário fazer algumas considerações.
Essa atribuição dada ao juiz de paz era considerada tão importante para o andamento
do processo naquele período que, em obra dedicada a comentar o Código Criminal
de 1830 (brasil, 1830), o conselheiro Vicente Alves de Paula Pessoa (1899) afirmou
que ela é a primeira e mais nobre atribuição do juiz de paz, contribuindo até para
desaparecer os processos e os ódios entre as partes.
Depois da Lei Orgânica da Justiça de Paz (collecção..., 1878a), a Lei de 1832
(codigo..., 1842) acrescentou um ponto sobre a conciliação realizada pelo juiz de paz.
Disse esse Código que o magistrado competente para fazer a conciliação seria aquele
do lugar em que o réu fosse encontrado, ainda que não fosse o local de seu domicílio.
E ainda que, nos casos de revelia à citação do juiz de paz para conciliação, as partes
não seriam dadas como conciliadas e o réu seria condenado às custas. Se as partes
não passassem pelo procedimento conciliatório, essa falta poderia causar nulidade
do processo, dada a relevância que a legislação deu a esse instituto, como se vê em
alguns julgamentos encaminhados ao Tribunal da Relação de Pernambuco5.
Esses magistrados, além da função conciliatória, também tinham atribuições
de conhecer e julgar pequenas demandas limitadas pelo valor da causa, prevenir
e acabar com a desordem, usar a força armada para combater motins, prender os
bêbados, acabar com os vadios e mendigos, dando-lhes trabalho honesto, destruir
os quilombos e evitar a sua formação, fazer o auto de corpo de delito, quando fosse
sua incumbência legal, providenciar a prisão de criminosos de seu distrito e vigiar
a conservação das matas e florestas. Essas eram suas principais competências.
Cabe esclarecer como se dava a jurisdição dos juízes de paz, a fim de entender
qual a abrangência espacial de sua competência. Ela foi regulamentada conforme
dispôs a Lei de 1827 (collecção..., 1878a) e os Códigos Criminal de 1830 e do Pro-
cesso Criminal de 1832 (codigo..., 1842). Os juízes de paz circulavam entre distritos
de paz, termos e comarcas. Atuavam nos distritos existentes dentro de um termo,
sobretudo na sua alçada em questões policiais e criminais (cunha, 2001).
Destaque-se que, de todos os tipos de juízes existentes na Justiça no período
estudado, somente se exigia formação em direito para o juiz de direito. Mais tarde
veio a ser obrigatória a graduação também para os juízes municipais. Todos os ou-
tros magistrados de primeira instância eram leigos, na sua maioria pertencentes às
elites locais, fazendeiros e comerciantes. Essa escolha do legislador por uma Justiça
formada por magistrados leigos, na sua maior parte, denota uma crítica aos juízes

5  Essa foi a situação de um libelo crime civilmente intentado sobre a nulidade de uma letra, interposto
no Recife, usado para produzir prova. Aconteceu antes da vigência do Código do Processo Criminal
e ainda foi julgado por um ouvidor. O processo foi recebido por Evarysto Ferreira França, em 1829, e
depois quem assumiu foi outro ouvidor, Joaquim Alves Almeida. Luís de Sá Pereira, autor do libelo,
pedia que uma letra, de que era considerado devedor, fosse anulada. Justificava o pedido dizendo que
João Francisco de Souza Peixe, réu na ação, estava cobrando juros de uma dívida que já havia sido paga
ao acusado, seu credor. Dizia também que o réu não quisera conciliar. Em resposta, o advogado do réu
pediu a anulação da ação de libelo, alegando que, apesar de ter havido uma audiência de “reconciliação”
entre as partes com o juiz de paz, o termo foi assinado no dia 7 de setembro, feriado, o que invalidava
o documento, já que era proibido o funcionamento da Justiça em dia de festa nacional. O ouvidor, na
sua sentença que posteriormente foi confirmada pelo Tribunal da Relação, em 1831, decidiu que, sem
proceder à conciliação, nenhum processo poderia ter início e não deveria mais progredir. Mandou
que a causa fosse colocada “em silêncio” e que o autor pagasse as custas (iahgp. Tribunal da Relação
de Pernambuco. Autor: Luis de Sá Pereira. Réu: João Francisco de Sousa Peixe. Apelação civilmente
intentada. Recife, 1831. Caixa 1).

267
de carreira, talvez numa tentativa de ficar longe da influência dos interesses do
governo central (cunha, 2001).
Thomas Flory (1986) elenca como razões para a criação dos juízes de paz, a
falta de juízes profissionais, a desmoralização da polícia e o domínio dos mecanis-
mos privados para resolução de conflito, a necessidade de rapidez de uma reforma
da justiça, que poderia ser realizada sem que se tivesse que aguardar por toda uma
reestruturação do Poder Judiciário e, por último, como forma de atacar o despotismo.
Pode-se dizer que a introdução do Juizado de Paz no quadro da Justiça imperial
se estabeleceu em um cenário de críticas aos problemas e queixas da estrutura jurí-
dica, em grande parte herdada de Portugal, em que predominava o abusivo sistema
de emolumentos dos magistrados. Ademais, circulava a ideia de que seria neces-
sária uma estrutura de Justiça que pudesse penetrar em toda extensão do império,
para sustentar e fortalecer o sistema constitucional de um Estado que estava em
construção. Nesse contexto, o juiz de paz atenderia às duas necessidades. Ele agiria
na distribuição da justiça em cada distrito e termo, podendo se contrapor às práti-
cas ortodoxas de uma máquina lenta, decadente e ineficiente. Isso seria viabilizado
graças à legislação que determinou que ele poderia atuar junto à população livre,
por meio da ênfase na conciliação como uma das suas principais atribuições, e tra-
balharia também na função de policiamento e controle da ordem. (vellasco, 2003).
O momento político vivido quando se criou o cargo de juiz de paz explica um
pouco sobre os motivos de sua existência. Denis Bernardes lembrou que a Revolução
do Porto, em 1820, em Portugal, repercutiu no Brasil e “legitimou a ação política
dos diversos segmentos da população, trazendo a política para ruas e praças, reti-
rando-a do restrito ambiente da Corte e da alta administração”. (bernardes, 2011, p.
135). Foram instaladas as Juntas de Governo, inovação importante, inclusive porque
retirava poderes de d. João vi e do príncipe regente d. Pedro da administração das
províncias. Sinal dessa reação pode ser verificado em Pernambuco, quando o ouvidor
de Olinda, em 1821, foi chamado a se apresentar diante da Junta de Governo para
prestar esclarecimentos por causa de queixas da população contra ele. O ouvidor foi
processado e preso por decisão da mesma Junta. (bernardes, 2011).
A derrota da Confederação do Equador fortaleceu a centralização política e
administrativa em meados da década de 1820, na província pernambucana. Medidas
de repressão foram tomadas para controlar a população local. Depois da outorga da
Constituição, em 1824 (nogueira, 1999), voltaram a crescer as contestações de rua e
o conflito político entre a Câmara dos Deputados e o imperador Pedro I. Em 1826 a
Assembleia Geral foi reaberta. Um dos projetos que ocupou a Câmara dos Deputados
foi o da regulamentação do cargo de juiz de paz, criado pela Carta outorgada. A As-
sembleia terminou por reformar a administração municipal para que se adequasse
ao modelo constitucional vigente. (bernardes, 2011).
No ambiente político que permeou a criação do Juizado de Paz, pode-se afir-
mar que a promulgação do Código Criminal (brasil, 1830) e a criação do Supremo
Tribunal de Justiça foram acontecimentos que revelavam a força que a oposição li-
beral ganhara desde meados da década de 1820. Esses acontecimentos contribuíram
“decididamente para solapar as bases tradicionais de poder do primeiro imperador,
herdeiras da Monarquia portuguesa sob o Antigo Regime”. (mattos, 2009, v. 2, p. 21).
E a isso some-se a aprovação da lei de 1º de outubro de 1828 (collecção..., 1878b), que

268
dava “nova forma às Câmaras Municipais, marca suas atribuições, e o processo para
sua eleição e dos juízes de paz”, transformando as Câmaras em corporações adminis-
trativas, no sentido de reorganizar o sistema de justiça e a administração pública.
Os poderes dos juízes de paz foram aprofundados com a entrada em vigor do
Código do Processo Criminal de 1832 (codigo..., 1842) e do Ato Adicional à Consti-
tuição que o afirmaram como autoridades locais. No período da Regência foi organi-
zado o Código citado, no qual os legisladores preocuparam-se em blindar a política
contra a perseguição do governo, proteger os cidadãos das penas cruéis, inclusive
extrapolando a área criminal, trazendo a regulamentação da administração civil.
Com esse Código o juiz de paz consolidava-se como autoridade local. (campos, 2018).
Durante a Regência, momento em que ainda ocorriam agitações políticas
advindas do período de instabilidade anterior, de onde se seguiu a abdicação do
imperador, as reformas jurídicas foram estruturadas em meio a revoltas nas ruas e
nas tropas, ataques da imprensa ao governo e divergências entre facções políticas.
O Ato Adicional de 1834 teve como uma de suas principais repercussões uma
certa ampliação da autonomia das províncias, a partir da criação das Assembleias
Provinciais eleitas, o estabelecimento de rendas definidas e autonomia administra-
tiva, limitada à nomeação dos presidentes de província pelo imperador. Entretanto
havia um movimento contrário, na tentativa de diminuir a autonomia das provín-
cias, que terminou por se consolidar em 1841, com a Lei n. 234, de 23 de novembro
de 1841, que restabelecia o Conselho de Estado e a norma que reformou o Código
do Processo Criminal (codigo..., 1842), Lei nº 261 (codigo..., 1842), de 3 de dezembro
do mesmo ano que, entre outra medidas, retirava várias atribuições dos juízes de
paz (martins, 2007).
É certo que o Juizado de Paz alterou profundamente o cotidiano da Justiça.
O juiz investido do cargo tinha atribuições administrativas, policiais e judiciais.
A ele foram delegados poderes que antes eram competência dos juízes ordinários,
almotacés, juízes de vintena, ou mesmo eram de atribuição de juízes letrados,
como o julgamento de pequenas demandas, elaboração do corpo de delito, formação
da culpa, prisão, entre outros. Com ele, pela primeira vez no Brasil se criava uma
certa estrutura para a atuação da Polícia, que antes da Independência não existia
como instituição. O juiz de paz assumiu, por mais de uma década, as competências
policiais dentro do seu distrito, sem subordinação a qualquer outra autoridade. O
chefe de polícia instituído pelo Código do Processo Criminal de 1832 (CODIGO...,
1842) era cargo decorativo, pois não teve seus poderes e atribuições definidos pelas
normas. O resultado desse sistema foi de uma estrutura policial pulverizada, que
determinou a formação de uma consciência apenas local da criminalidade, já que
não havia uma autoridade na província com competência para coordenar e integrar
todos os distritos. (vellasco, 2004).
Para aprofundar um pouco o entendimento sobre a Polícia, Vellasco (2007), que
estudou a gênese e a formação das instituições no Estado imperial, especialmente o
caso de Minas Gerais, comenta que em 1831, durante a Regência, foram dissolvidas
as forças policiais existentes e criadas novas instituições com atribuições de cuidar
da segurança pública e do Estado. Entre elas a Guarda Nacional e a Força de Polícia,
que sobreviveram até 1850, período em que se estruturou em cada província do país
o corpo de polícia, que contava com praças e companhias de infantaria e cavalaria.

269
Esses órgãos “surgiram da necessidade urgente de dotar o Estado de um aparato que
debret, Jean-Baptiste. Juiz criminal.
pudesse servir como garantia da manutenção da ordem” (vellasco, 2007, p. 243).
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do.
Ressalte-se que os resultados referentes ao experimentalismo legislativo da criação Debret e o Brasil: obra completa: 1816-1831. 3.
da justiça de paz no Brasil foram eventualmente imprevistos e “nem sempre desejá- ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. p. 356.

veis por parte da elite que o criou, proporcionando rápidas mudanças na instituição
no espaço de pouco mais de duas décadas” (campos, 2018, p. 1), levando a reformas
da legislação também quanto a esse cargo na década de 1840.
Ainda em 1828, quando houve a publicação da Lei de 1º de outubro (collecção...,
1878b), ao juiz de paz foi dada mais uma significativa tarefa que representou parte
relevante de seu poder local: ele seria o responsável pela produção e publicação das
listas de pessoas que poderiam votar em seu distrito (art. 5º). Os direitos políticos,
previstos pela Carta brasileira de 1824 (nogueira, 1999), poderiam ser conquistados,
mas não eram permanentes. O voto no Brasil era um “modo a efetivar a dominação
das elites econômicas e políticas”. (pimenta, 2012, p. 65). O direito de participar da
vida política do país estava diretamente relacionado com as lutas sociais, conside-
rando que “o votante não agia como parte de uma sociedade política, de um partido
político, mas como dependente de um chefe local, ao qual obedecia com maior ou
menor fidelidade”. (carvalho, 2018, p. 41). Entretanto, os votantes poderiam negociar
o voto com mais de um chefe político. Por essa razão, os chefes terminavam pagan-
do pelo voto porque, como já comentado neste trabalho, não confiavam somente na
palavra dos que lhe garantiam fidelidade. (carvalho, 2018).

270
Para votar, a pessoa deveria ser do sexo masculino, livre, ter mais de 25 anos
e possuir certa renda. As eleições eram realizadas em duas fases, os votantes esco-
lheriam os eleitores e estes votariam nos deputados e senadores. Já para as câmaras
municipais, os votantes escolhiam diretamente os vereadores. Os libertos nascidos
no Brasil poderiam ser votantes, mas nunca eleitores ou candidatos a deputado ou
senador, mas os nascidos livres poderiam concorrer a esses cargos e serem eleito-
res. Outra exigência para ser eleitor ou candidato era professar a religião católica.
(dolhnikoff, 2017).
Pode-se afirmar que ser eleitor ou candidato, no período imperial, era uma
regalia. Para ter o direito ao voto, como se viu, não bastava ter aquela renda de-
terminada. A essa exigência estavam atreladas outras condições que, em certas
situações, não se encontravam expressas nas normas.
Houve, em 1842, pequena modificação quanto às eleições pelo Decreto Execu-
tivo nº 157, de 4 de maio. Essa norma impôs somente que houvesse a qualificação
prévia dos votantes, com a justificativa dada pelo governo conservador de prevenir
as desordens nas eleições. Em cada distrito haveria uma junta de qualificação ou
paroquial, responsável pela elaboração de uma lista dos cidadãos ativos, que seriam
os votantes nas eleições primárias que escolheriam quem seriam os eleitores da
província, e outra lista dos fogos da paróquia. Ela era formada exclusivamente por
agentes oficiais do Estado. O juiz de paz do distrito seria o presidente e fariam parte
também, como antes ocorria para a Junta de Paz, o pároco. A diferença era que um
novo integrante surgia nesse contexto. Era o subdelegado de polícia, que aparecia
devido às novas funções que assumira, ficando responsável por muitas competên-
cias policiais que antes eram dos juízes de paz. Em meados da década de 1840 o
quadro político mudou e a maioria da Câmara era liberal. Em meio a denúncias de
corrupção nos procedimentos de qualificação, principalmente por parte dos policiais,
os subdelegados e os párocos foram excluídos das Juntas pela Lei nº 387, de 19 de
agosto de 1846, sendo substituídos por eleitores diplomados nas eleições primárias
anteriores (pimenta, 2012, p. 150).
Mesmo depois da reforma de 1841 na Justiça, continuaram valendo várias
determinações da Lei de 1827 (collecção..., 1878a), que regulamentou a atuação dos
juízes de paz. Uma delas foi que ele, depois de eleito, não poderia recusar a função,
com algumas exceções, o que foi recepcionado pelo Código do Processo Criminal (co-
digo..., 1842), que só retirou essa obrigatoriedade do reeleito (art. 11). Os magistrados
seriam competentes para fazer a conciliação das partes; julgar pequenas demandas
até 16$000; controlar e vigiar manifestações em que houvesse perigo de desordem;
combater com força armada os motins; pôr em custódia o bêbado; evitar rixas; usar
de todos os meios para evitar que houvessem vadios e mendigos; envidar esforços
para que se tivesse o sossego público, corrigindo bêbados e meretrizes escandalosas,
vigiando o seu procedimento; destruir quilombos e prevenir a sua formação; realizar
auto de corpo de delito; identificar, fazer conduzir e interrogar o acusado de crime
e prendê-lo, encaminhando-o ao juiz criminal; produzir relação de criminosos do
seu distrito e avisar a outros magistrados de distrito diverso sobre notícia de cri-
minosos fora da sua área de atuação; observar as posturas municipais, impondo
penas delas aos que as transgredissem; vigiar a conservação das matas e florestas

271
públicas e impedir que particulares cortassem madeiras nesses locais; analisar a
pretensão de novos moradores do distrito para o qual foi designado.
Mais uma atribuição relevante foi dada ao juiz de paz pelo artigo 24 do Có-
digo do Processo Criminal de 1832. (codigo..., 1842). Ele integrava a Junta de Paz,
responsável pelas listas dos jurados, também composta pelo pároco ou capelão do
Distrito ou Paróquia, e o presidente, ou algum dos vereadores da Câmara Municipal
ou, na falta destes últimos, um homem bom, nomeado pelos dois membros da Junta
presentes. O magistrado presidiria essa Junta, que escolheria as pessoas que fariam
parte do Júri e teria como secretário o escrivão do Juizado de Paz. E esse poder não
era tão insignificante para o juiz de paz. Diante da comunidade local, estaria nas
mãos dele determinar quem participaria do aparato da Justiça mesmo sendo leigo,
como jurado, para decidir sobre a liberdade e a vida dos acusados.
Pertencer ao Corpo de Jurados dava à pessoa um lugar de destaque no Poder
Judiciário, apesar de ter um alcance entre as pessoas livres e que tivesse acesso à
formação escolar, pois exigia-se alfabetização para integrar o Júri. A participação
era muito intensa, pois havia duas sessões do Júri por ano, com duração de 15 dias
para cada uma delas (carvalho, 2018).
O artigo 23 do Código do Processo Criminal de 1832 (codigo..., 1842) determi-
nava ainda que somente estariam aptos para serem jurados os cidadãos que pudes-
sem ser eleitores, isto é, que tivessem determinada renda mínima, sendo muitos os
excluídos, inclusive os escravos. Acrescentava também o Código que essas pessoas
teriam que ter “reconhecido bom senso e probidade”, sem falar nas limitações im-
postas pela qualidade6.
A partir da vigência do Código do Processo Criminal (codigo..., 1842), que foi
publicado em 29 de novembro de 1832, até 1841, data da reforma da Justiça pela Lei
nº 261 de dezembro daquele ano (codigo..., 1842), dos vinte e três processos anali-
sados, os magistrados realizaram, além da conciliação, o auto de vistoria, o auto
de busca a apreensão e perguntas procedidas, o juramento dos denunciantes e das
testemunhas, a inquirição de testemunhas, o interrogatório dos réus, a acareação,
confrontação e interrogatório dos réus, a expedição de alvará de fiança e o profe-
rimento de sentença de pronúncia. Ainda constam juízes de paz nos documentos
examinados agindo para mandar proceder ao autuamento de petição, ao auto de
6  No período colonial, havia uma
sumário crime, à notificação de testemunhas e ao termo de achada7. classificação dos indivíduos e dos
Se comparadas as atribuições dos juízes de paz anteriores ao Código do Processo grupos sociais por um determinado
conjuntos de aspectos, como ascendência
Criminal (codigo..., 1842) com aquelas impostas depois, pode-se concluir que as suas familiar, proveniência, origem religiosa,
funções foram claramente ampliadas depois de 1832. E essa decisão política explí- traços fenotípicos, diferenças essas que
determinavam uma hierarquia entre
cita na Lei processual criminal brasileira repercutiu na prática judicial do período, eles. Eram usados também os traços
momento ímpar para esse magistrado que, em seu distrito de competência, passou mais aparentes e/ou convenientes para
essa classificação, que dependia também
a ser figura de muito poder judicial e principalmente político diante da comunida- de percepções sociais e individuais
de em que vivia. Ele atuava não só na organização das eleições, como também na de quem realizava o registro e das
autoridades de cada contexto e local
escolha dos jurados, além de ser responsável para receber denúncias de crimes e (paiva, 2015).
decidir se aquela ação criminal seria ou não levada adiante, o que representava a 7  Documento elaborado pelo escrivão,
por ordem do magistrado, no qual se
diferença entre prisão e liberdade e, em alguns casos, a depender do crime e de sua descrevia o objeto, sob a guarda do juízo,
penalidade, sobre a vida ou morte das pessoas. com o qual o acusado praticara o crime.
O termo era assinado por todos no final,
Os juízes de paz tinham que montar toda uma estrutura para exercer as suas inclusive pelas testemunhas, para fins de
atribuições. Para auxiliá-lo em suas atividades, eles deveriam dividir o seu distrito validação.

272
em quarteirões e nomear para cada um deles um oficial para avisar sobre os acon-
tecimentos e executar as suas ordens. Eles também contavam com um escrivão não
remunerado ao seu dispor. E, se de suas decisões houvesse recurso por parte de um
dos interessados, ele seria julgado pelo juiz de direito. Ambos os magistrados eram
remunerados da mesma forma.
Destaque-se que a maioria dos juízes de paz que atuaram nos processos cri-
minais de sua competência, quando citados nos autos pelos escrivães ou junto às
suas assinaturas, tiveram os seus nomes acompanhados dos títulos de capitão-mor,
capitão ou coronel, ou simplesmente de cidadão. Consequentemente conclui-se que
quem ocupava essa função, mesmo sendo eletiva, eram aquelas pessoas pertencen-
tes à camada social mais favorecida da sociedade pernambucana. Essa conclusão
corrobora o pensamento de Graham (1997) sobre a estrutura de poder no século
xix, que indica a unidade familiar doméstica como o fundamento da rede de de-
pendência existente entre o líder ou líderes locais e seus seguidores. Disse ainda
o mesmo autor que essa rede mantinha na liderança o chefe local por meio das
eleições. E considerando que os juízes de paz também eram eleitos, confirma-se,
nesse caso, que os eleitores escolhiam seus representantes entre as pessoas mais
proeminentes daquela região.
O periódico gazeta universal8, de Pernambuco, que tinha como editor José
Tavares Gomes da Fonseca, juiz de paz do 1º distrito do Colégio, no Recife, em 1836,
escreveu sobre algumas questões referentes ao lugar que ocupava, antes da reforma
da Lei Provincial nº 13 de 1836, que criou o cargo de prefeito.
Começou seu editorial afirmando que os Juizados de Paz estavam por ser ex-
tintos e que precisavam de reformas. Reclamava que os juízes de paz tinham muitas
atribuições e que não contavam com as compensações suficientes para que muitas
pessoas continuassem a ocupar o cargo.
Acrescentou uma sugestão para um melhor desempenho das funções de juiz
de paz. Que deveria ser reduzido o seu número, bem como as suas atribuições, e que
deveriam organizar os processos crimes com assistência dos juízes de direito. Tudo
isso para se evitar a impunidade que, muitas vezes, segundo ele, acontecia porque
o processo não seguia até o fim, devido às nulidades que ocorriam pela falta de
conhecimento dos juízes de paz acerca das obrigatoriedades impostas pela lei para
os procedimentos. Logicamente que, como ele era investido do cargo, ao final citou
algumas exceções a esse seu comentário, dizendo que havia alguns juízes que, sendo
letrados como ele, conseguia atuar com competência, tanto como alguns outros que
se esforçam para desempenhar seus deveres.
Mattos (2009, v. 2, p. 30) lembra que esse magistrado “mostrava-se muito
próximo ao governo da casa, do que resultava, em muitos casos, a preservação de
antigos privilégios, monopólios e franquias” ainda do passado colonial. Esse autor
afirma que o juiz de paz pode ter sido o “ponto nevrálgico” do Judiciário, levando a
crer que a sua existência revela a importância da Justiça na nova ordem imperial.
8  Gazeta Universal (pe). Juízes Em 1841, com a publicação da Lei nº 261 (código..., 1842), foram suprimidas
de Paz. Ano 1836. Edição 00028.
Disponível em: http://memoria. muitas das competências dos juízes de paz e distribuídas principalmente à Polícia,
bn.br/DocReader/docreader. representada pelos chefes de polícia, delegados e subdelegados.
aspx?bib=813974&pasta=ano%20
183&pesq=juiz%20de%20paz. Acesso
Questão que deve ser destacada é até que ponto o magistrado do período impe-
em: 01 Mai 2018. rial tinha autonomia em suas decisões. O governo central, desde que o Brasil ficou

273
independente de Portugal, também sofria com a tensão política. Durante o período
analisado neste trabalho, que se inicia em 1831, consagrou-se:

[...] o espaço público como arena de luta dos mais diversos grupos políticos e
camadas sociais, marcando a emergência de novas formas de ação política,
em momento no qual, transbordando a tradicional esfera dos círculos pala-
cianos e das instituições representativas, tornava-se pública, e se assistia a
uma rápida politização nas ruas (basile, 2009, v.2, p. 59).

Pode-se afirmar que, sabendo-se que a legislação era elaborada pelo parlamento
e representantes do governo, seja ele central, provincial ou municipal, havia uma
forma de interpretação que fugia ao controle político, que poderia acontecer quando
as demandas chegavam aos magistrados para serem julgadas.
Vellasco (2009) enfatiza que, no período imperial, diferentemente do colonial,
em que havia o predomínio do privado sobre um poder público incipiente (ainda
que sobre isso haja controvérsias), o Estado-nação, instituído em 1822 e formali-
zado na Constituição de 1824 (nogueira, 1999), inicia-se inserido em um processo
de polarização e de inversão, numa dinâmica de rearranjos na dimensão política e
na redefinição das redes de poder. Essa dinâmica é entendida pelo autor como um
deslocamento, uma redefinição dos espaços de poder e renegociação de suas esferas
nas localidades onde a autoridade do Estado ia se afirmando. Esse cenário apresen-
tado também vale para Pernambuco.
Sobre a sociedade pernambucana, o retrato descrito acerca das decisões da Jus-
tiça pode ser aplicado para aqueles crimes que lá chegaram. Existiram resistências e
elas nunca cessaram, sem falar que, nessa província, inclusive, por alguns períodos,
houve governo revolucionário no poder, com ideias que confrontavam determinadas
limitações do imperador e do poder moderador. E a Justiça, nesse tempo, também
sofreu mudanças de paradigmas políticos em seus julgamentos, mesmo que tenham
sido temporários.

3. Um juiz de paz contra o governo: a história de uma sedição de 1835

Durante a Regência, Pernambuco viveu um período bastante conturbado. Só no


início da década de 1830 diversos movimentos aconteceram na província, a Se-
tembrizada, a Novembrada, a Abrilada, a Revolta dos Cabanos e a Carneirada. Estes
dois últimos ocorridos sob a presidência de Manoel de Carvalho Paes de Andrade
que, depois da sua volta do exílio, chegou com grande prestígio político, assumindo
vários cargos públicos.
Neste texto apresenta-se um processo crime de 1835, em que um dos partici-
pantes da Carneirada foi acusado de ter praticado o crime de sedição.
A sedição é um delito classificado no Código Criminal de 1830 (brasil, 1830)
como crime político. No conjunto documental pesquisado somente se encontrou um
processo com esse tipo penal. Essa relativa raridade de sua existência no conjunto
documental estudado pode se explicar especialmente pela exigência que ele traz

274
para sua tipificação, no caso do sujeito ativo e passivo, bem como quanto ao objeto
jurídico tutelado. Para existir o delito, fazia-se necessário que uma autoridade fizesse
uso de sua prerrogativa de sujeito passivo nessa ação criminal e encaminhasse uma
demanda acusando um subordinado, a fim de que fosse julgado pelo Judiciário. Na
situação apresentada pelo processo existente, onde de um lado está um juiz de paz
e de outro o presidente da província de Pernambuco, como sujeitos ativo e passivo,
respectivamente, em que se discute a insubordinação de um em relação ao outro,
percebe-se a riqueza de detalhes existentes na história, que podem contribuir para
entender mais um pouco sobre a relação dos integrantes do Judiciário com a polí-
tica local.
No processo criminal examinado, o réu, juiz de paz de Paratibe, Olinda-PE,
Manoel Ignácio Bezerra de Mello, foi um dos importantes colaboradores da revolta
no terceiro momento da Carneirada, e teve seu caso judicializado9.
A abertura do processo criminal foi provocada por um ofício do então presi-
dente da província de Pernambuco, Manoel de Carvalho Paes de Andrade, na vigên-
cia de seu segundo mandato, que durou 14 meses, e se concluiria em 11 de abril de
1835. O ofício informando sobre o crime de sedição foi enviado ao juiz de direito e
chefe de polícia do Recife pelo mencionado presidente da província, em 9 de abril
de 1835, dois dias antes de partir para a Corte no intuito de assumir a sua cadeira
no Senado. Ficando o cargo vago, ocupou o seu lugar no governo de Pernambuco
Thomaz Pires de Figueiredo Camargo, logo sendo substituído por Francisco de Paula
Cavalcanti de Albuquerque.
Para o Direito da época, tipificado no artigo 111 do Código Criminal de 1830,
vigente durante o caso analisado neste texto, o crime de sedição era conceituado
como toda a revolta de uma fração do povo ou de um corpo armado contra o governo
ou autoridades locais. (pessoa, 1885).
Em 22 de junho de 1835, no distrito de Paratibe, município de Olinda, em Per-
nambuco, iniciou-se o procedimento para apuração do delito de sedição, em que foi
acusado um juiz de paz. Manoel de Carvalho Paes de Andrade, presidente da provín-
cia de Pernambuco, foi informado sobre o crime por meio de uma correspondência,
enviada em 31 de março de 1835, pelo juiz de paz do 4º Distrito de Igarassu, Luís
Cândido Carneiro da Cunha. De posse dessa informação, o presidente da Província
oficiou ao juiz de direito e chefe de polícia do Recife, pedindo a apuração do crime.
A abertura do procedimento demorou um pouco. Curiosamente o ofício do
presidente da Província, quando foi encaminhado à vara de Paratibe-PE, contou
com escusas de muitos magistrados para assumir o caso. Um juiz de direito e cinco
juízes de paz se declararam suspeitos, impedidos ou mesmo alegaram doença como
motivos para não aceitarem a missão. A tarefa terminou nas mãos do juiz de paz
suplente do 5º distrito de Paratibe, Francisco Xavier Cavalcanti Uxôa.
O réu no processo era tenente coronel. Em 1834, havia atuado na proteção
do governo de Manoel de Carvalho Paes de Andrade que, na época, estava em seu
segundo mandato. Participou ativamente da frente aberta para fortalecer as tropas
governistas da província no campo de guerra contra os cabanos, em Panelas e Ja-
9  iahgp. Tribunal da Relação de cuípe, comandando um dos batalhões composto por guardas nacionais de Olinda,
Pernambuco. Apelação. Apelante: a
Justiça. Apelado: Manoel Ignácio Bezerra
Poço da Panela e Casa forte (cavalcanti júnior, 2015a). Nota-se que a sua rede de
de Mello. 1835. Cx. 1. relações dentro da província pode justificar a motivação do afastamento de tantos

275
magistrados do julgamento do caso, que, provavelmente, não tinham interesse de
se indispor com o acusado ou mesmo mantinham um certo grau de amizade ou
inimizade com ele, todos com cargos no Judiciário, integrantes da elite local.
Na ocasião da acusação, o réu estava exercendo a função de juiz de paz de
Paratibe, mas foi logo suspenso pelo presidente da Província na mesma correspon-
dência que mandou para a Justiça, pedindo a apuração do caso.
Desempenhando a função de combater motins, o juiz de paz do 4º distrito
de Igarassu, Luís Cândido Carneiro da Cunha, enviou uma correspondência ao
presidente da província, Manoel de Carvalho Paes de Andrade, narrando a sedição
que teve lugar em Paratibe, Olinda. A família Carneiro da Cunha, da qual o juiz
de paz do 4º distrito de Igarassu era integrante, fazia parte do grupo de moderados
da província da Paraíba que apoiaram Francisco de Carvalho Paes de Andrade em
seu governo. Comentava-se na época que os Carneiro da Cunha também estavam
próximos do irmão de Francisco, Manoel de Carvalho Paes de Andrade, durante o
seu segundo mandato de 1834-1835 (cavalcanti júnior, 2015b). Tem-se aí um in-
dício de que isso pode ser verdade, porque um cargo de juiz de paz de Pernambuco
estava sendo ocupado por um membro da família Carneiro da Cunha e logo esse
magistrado é que mandou o ofício informando sobre a sedição contra o governo do
presidente da província, justamente o próprio Manoel de Carvalho Paes de Andrade.
A partir da informação prestada pelo juiz de paz do 4º distrito de Igarassu é que a
presidência da Província oficiou ao juiz de direito e chefe de polícia, pedindo para
ser apurado o delito.
A notícia do crime de sedição chegou às mãos do juiz de direito e chefe de
polícia por meio do ofício do presidente da província, conforme já informado. O
magistrado tomou conhecimento do crime e enviou o ofício e toda a documenta-
ção anexada ao juiz de paz suplente de Paratibe, onde aconteceu o crime, para que
ele desse continuidade ao processo, com a formação do sumário crime. Nos docu-
mentos, além de ordenar que se procedesse contra o acusado um processo crimi-
nal para apurar a sua culpa, Manoel de Carvalho Paes de Andrade afirmava que o
magistrado acusado abusara das atribuições de seu cargo, deixando de trabalhar o
quanto estivesse ao seu alcance para sustentação da ordem e tranquilidade pública.
Ao contrário disso, reuniu gente armada em prol do partido dos Carneiros e, para
esse fim, usou armamento que conseguiu com o governo, sob a alegação de que
serviria para perseguir os ladrões de Catucá. O presidente da província concluiu sua
correspondência decretando a suspensão do juiz de paz de suas funções.
Antes de continuar a história do processo convém discorrer sobre essa acu-
mulação do cargo de chefe de polícia e juiz de direito. Era oficialmente permitido e
usual, desde o período colonial, uma mesma pessoa acumular mais de uma função
na estrutura administrativa do governo brasileiro10. E esse caso, encontrado no pro-
cesso apresentado, inclusive, era autorizado por lei. O Código do Processo Criminal
de 1832, em seu art. 6º, permitia que, nas cidades mais populosas, um dos três juízes
de direito fosse também o chefe de polícia. Mais tarde, com a reforma do Judiciário
e da Polícia em 1841, regulamentada em 1842, houve um crescimento de cargos na
Polícia e de seus poderes. E as mudanças continuaram com a reforma de 1871, que 10  Casos de acumulação de cargos
são conhecidos no Brasil desde os seus
“separou a justiça da polícia, sem estabelecer mecanismos de controle efetivo da primórdios como colônia [...] (assis, 2001,
primeira sobre a segunda” (nequete, 1973, v. 1, p. 86). p. 100).

276
Em abril de 1835, data em que o ato criminoso ocorreu, conforme informações
da acusação, o juiz de direito escolhido no governo de Manoel de Carvalho Paes de
Andrade para ser chefe de polícia, e que atuou no começo e no fim do julgamento de
primeira instância do processo, foi Joaquim Nunes Machado. Ele iniciou sua carreira
política ainda da área jurídica e culminou com a liderança do partido praieiro (car-
valho, 2008). Graduou-se em Olinda em 1832, logo iniciando sua carreira política.
Foi juiz de direito da comarca de Goiana, em 1834 e, um ano depois, já era juiz da
primeira vara criminal e chefe de polícia da comarca do Recife, titular da 1ª Vara
Criminal. Foi deputado da Assembleia Provincial de Pernambuco logo que criado
este órgão, sendo reeleito. Foi chefe do partido praieiro. Em 1847, passou a ser de-
sembargador do Tribunal da Relação de Pernambuco. Mais tarde, foi um dos líderes
da Praieira, em 1848. (costa, 1882). O periódico A Voz e a Verdade conta que Nunes
Machado foi transferido de Goiana para o Recife como uma manobra de Manoel de
Carvalho Paes de Andrade para revisar os processos de seus opositores, julgados
improcedentes. O magistrado liderou a facção que lutou a favor do presidente da
província contra os Carneiros, em março de 1835, em Goiana. (cavalcanti júnior,
2015b). Como consequência dessa sua participação na luta contra os Carneiros, Nu-
nes Machado deixou de atuar no processo e só reassumiu depois de alguns meses,
como será evidenciado no texto.
Apesar da correspondência ter sido enviada ao juiz de direito e chefe de polí-
cia em abril, somente em julho o juiz de paz suplente, Francisco Xavier Cavalcanti
Uxôa, começou a dar seguimento aos atos processuais, provavelmente também pelos
motivos já revelados de suspeição de vários magistrados.. Essa demora para apurar o
crime foi cobrada pelo presidente da província e justificada no seguinte documento,
que confirma e conta um pouco mais sobre a história narrada até aqui:

Ilmo. e Exmo. Sr. Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, Presidente


da Província

Como para poder dar cumprimento ao ofício de V. Exa., de 11 do corrente, me


fosse necessário ouvir primeiramente ao sr. Dr. Nunes Machado, porque este
foi o que mandou executar as ordens partidas dessa presidência, relativas
ao juiz de paz de Paratibe, Manoel Ignacio Bizerra; assim o fiz, e aquele sr.
me afirmou que as ditas ordens foram por ele religiosamente cumpridas,
tão assim, que tendo oficiado ao juiz de paz suplente de Paratibe para pro-
ceder a sumário, esse ofício andou nem um ou três dias, de mão em mão...
sem haver quem o abrisse, porque também nenhum suplente queria tomar
conta da vara, até que finalmente foi entregue ao que se acha em exercício.
Ora, sendo assim, claro está que nenhuma culpa houve da parte do chefe de
polícia e sim do juiz de paz, que deveria ter comunicado a este o resultado
do sumário a que se tinha mandado proceder, mas, apesar disto, já oficiei a
aquele juiz para cumprir tudo quanto a este respeito lhe tinha ordenado o
meu antecessor, ficando desta maneira satisfeito o ofício de V. Exa. Não me
posso dispensar de dizer a V. Exa. que não aceito a advertência que me faz
na última parte do seu oficio, “que eu seja mais pronto em cumprir as ordens

277
superiores”, porque, havendo até agora satisfeito pontualmente às minhas
obrigações, e não sendo o fato, que deu lugar à semelhante advertência, acon-
tecido em tempo que eu tivesse com a polícia; de maneira alguma me julgo
digno dela, e muito menos porque essa falta não pode ser imputada ao chefe
de polícia. Recife, 15 de junho de 1835. João José Ferreira de Aguiar, juiz de
direito e chefe interino de Polícia11.

Vê-se claramente que nem o presidente da província era mais o mesmo, nem
o juiz de direito e chefe de polícia, dois meses depois do envio da correspondência
de Manoel Carvalho Paes de Andrade que gerou a abertura do processo criminal
contra Manoel Ignácio Bezerra de Mello. Depois desses dois meses, os cargos já
estavam sendo ocupados por outras pessoas. O presidente da província era Fran-
cisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, e João José Ferreira de Aguiar era o juiz
de direito e chefe de polícia interino. Mas o processo continuou adiante. O juiz de
direito e chefe de polícia Nunes Machado voltaria a agir no processo mais tarde, já
que era o titular do cargo.
Cadena (2011) explica o momento vivido pelo governo de Pernambuco na
primeira metade da década de 1830. Em 1831 os perseguidos pela participação na
Confederação do Equador voltaram ao poder, inclusive os líderes Francisco e Manoel
de Carvalho Paes de Andrade. E foi durante a sua presidência que a província teve
nomeado como chefe de polícia Nunes Machado, no início para combater os Car-
neiros que, “desde 1834 vinham dando dor de cabeça aos presidentes da província
de Pernambuco”. (cadena, 2011, p. 104).
Tinham interesse pelo controle do governo de Pernambuco os irmãos Carvalho
Paes de Andrade, tanto quanto a família Cavalcanti de Albuquerque. Estes últimos,
desde a primeira legislatura da Assembleia Provincial de 1835, ocupavam cargos
tanto em Pernambuco quanto na Câmara dos Deputados, na Corte. Em 15 de abril
de 1835, Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque foi nomeado presidente da
província de Pernambuco, assumindo em 1º de junho, ficando até fevereiro de 1837.
Em 1847, os praieiros viriam a acusá-lo de se aliar aos Carneiros para derrubar Ma-
noel de Carvalho Paes de Andrade. (cadena, 2011).
O que se vê nesse processo criminal que se iniciou quando Manoel de Carvalho
Paes de Andrade era presidente da província é a motivação política como a principal
razão para a instauração da investigação contra o juiz de paz, pois ele havia se aliado
aos Carneiros, que entendia representar ameaça ao seu governo, naquele momento.
Tanto é que, depois que assumiu o cargo de presidente da província Francisco de
Paula Cavalcanti de Albuquerque, que disputava o poder com Manoel de Carvalho
Paes de Andrade, o magistrado acusado de sedição acabou sendo absolvido, como
será relatado adiante.
A partir da notícia do crime encaminhada pelo ofício do presidente da pro-
víncia, em abril de 1835, o juiz de paz suplente do 5º distrito do distrito de Olinda,
11  Jornal A Quotidiana Fidedigna,
o cidadão Francisco Xavier Cavalcanti Uxôa, responsável pelo processo, determinou ano de 1835. Tomo 2/02.01. Número
que se fizesse um auto de corpo de delito para se apurar sedições de mais de vinte 140/04-07. (102) Polícia. Disponível em:
http://memoria.bn.br/pdf/812935/
pessoas armadas contra a autoridade do presidente da província de Pernambuco e per812935_1835_00140.pdf. Acesso em
para investigar quem cometera o delito ou para ele “concorreu com ajuda, favor e 01 Jul 2018. Acesso em: 30 Out 2018.

278
conselho”12. No processo apresentado só se investigou e julgou a culpa de Manoel
Ignácio Bezerra de Mello.
O auto de corpo de delito indireto, elaborado por meio de perguntas, foi iniciado
no dia 29 de julho de 1835, na casa do juiz de paz suplente. As questões serviriam
para se confirmar o dia mês e ano e lugar em que se procedeu a sedição contra as
autoridades ou forma do governo e, principalmente, contra autoridade do presidente
da província, como também para saber se foram praticados outros crimes contra
as ordens do mesmo governo. Para isso, foram passados mandados de notificação
para as testemunhas. Entre elas estavam um coronel, um capitão e dois inspetores13.
A inquirição das testemunhas aconteceu em dois momentos. A primeira vez,
no dia 31 de julho de 1835. Essa etapa era necessária para se construir o auto do
corpo de delito indireto. Foram inquiridas três testemunhas das quatro indicadas
pelos documentos enviados do presidente da província ao juiz de direito e chefe de
polícia, em abril de 1835. As questões foram bem pontuais, como exigia a lei, com
vistas a constituir prova para dar continuidade ou não ao processo. Questionaram-se
os nomes, as naturalidades, as qualidades, a moradia, os ofícios, as idades das tes-
temunhas e o dia mês e ano e lugar em que se procedeu o crime, como também se
foram praticados outros delitos contra as ordens do mesmo governo. No final desse
procedimento, o juiz de paz suplente julgou procedente o corpo de delito e mandou
que se procedesse à inquirição de testemunhas, na forma da lei.
O segundo momento da inquirição das testemunhas se deu em 3 de agosto
do mesmo ano. Dessa vez o intuito era constituir prova para embasar a pronúncia.
Nessa ocasião, foram interrogadas as mesmas pessoas e mais aquela outra indicada
pela correspondência do presidente da província que motivou a abertura do processo
e que não foi inquirida no primeiro interrogatório. Além das mesmas perguntas, o
magistrado acrescentou outras que dariam mais detalhes sobre os fatos ocorridos
na ocasião do crime, para subsidiar a sua decisão. Questionou se o acusado, Manoel
Ignácio Bezerra de Mello, reuniu gente do distrito de Paratibe e se marchou com
eles para depor o governo; se o réu exigiu armamento do governo para o fim de
perseguir os quilombolas de Catucá com a máxima de trair o governo, e se tinha
efetuado a dita marcha com a pretensão de depor o presidente da província; e, ain-
da, se o réu Manoel Ignácio Bezerra de Mello foi conivente na sedição de março de
1835, perpetrada pelos sediciosos, Antônio e Francisco Carneiro, com base no corpo
de delito indireto.
Comenta Wellignton Barbosa da Silva (2003) que nenhum dos protagonistas
desse terceiro episódio da Carneirada foram punidos ou pronunciados. Mas o proces-
so visto neste trabalho mostra que pelo menos um dos importantes colaboradores
da revolta desse terceiro momento da Carneirada, o juiz de paz suspenso, Manoel
Ignácio Bezerra de Mello, foi pronunciado. Quanto à punição, esse já é um outro
12  iahgp. Tribunal da Relação de
Pernambuco. Apelação. Apelante: A
assunto que será visto na sequência da narrativa.
Justiça. Réu: Manoel Ignácio Bezerra É de se ressaltar quem eram as testemunhas apontadas pelo presidente da
de Mello. 1835. Cx. 1. p. 1v.
província em seu ofício ao juiz de direito, pedindo a apuração do fato criminoso.
13  O coronel Francisco Antonio
de Souza Leão, o inspetor Antonio As quatro testemunhas eram homens brancos, três deles casados e um solteiro,
Francisco de Souza Leão, Amador moradores de Paratibe, Paulista e Timbó, todos lugares de Olinda, Pernambuco. A
de Araújo Cavalcanti Lins, o capitão
João dos Santos Pereira e o inspetor maioria declarou que vivia de cultura de canas e um deles não especificou de que
Felippe Duarte Santiago. gênero, só disse que vivia de agricultura. Responderam, em resumo, que o acusado

279
debret, Jean-Baptiste. Oficial de Justiça.
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do.
Debret e o Brasil: obra completa: 1816-1831. 3.
ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. p. 356.

foi conivente na sedição de março de 1835, perpetrada pelos sediciosos Antônio e


Francisco Carneiro, e que obteve do governo trinta granadeiras14 com o pretexto
de abater os ladrões de Catucá15, e que com elas traíra ao governo. Disseram tam-
bém que o acusado fazia parte do partido dos Carneiros e que marchava para depor
o governo. Reuniu, para isso, pessoas do distrito e fez uma longa fala à sua tropa,

14  Arma de fogo usada no período imperial brasileiro pelo governo. Vide processo em que o juiz
de paz do 3º distrito da câmara municipal de Alcântara ao presidente da província do Maranhão
pede também garnadeiras, em 1837: “[...] um quilombo de pretos fugidos e tendo participado a S.
Exa. há mais de um mês que me era preciso trinta garnadeiras, pólvora e bala para se puder dar as
providências que [ ] º distrito presente não tenho tido resposta e agora torno a oficiar a V. Sa. que
logo que receberem este meu ofício queiram darem as providências que se fazem precisas que e o
meu armamento pólvora e balas, pois os ditos fugido já estão fazendo insultos atacando pessoas em
suas casas [...]” (souza, 2014. p. 72).
15  “[...] Começando quase que às portas das cidades gêmeas de Recife e Olinda, nos morros e florestas
do subúrbio a noroeste delas, os mocambos espalhavam-se pelas matas que serpenteavam entre
os engenhos da zona da mata norte, conhecidas pelo nome de floresta do Catucá. O quilombo de
Malunguinho se fortalecia toda vez que as elites brigavam entre si, como em 1817, 1824 e 1831-32, e
feneceu no final do decênio de 1830, após a derrota da Cabanada (1832-1835). Enquanto durou, foi a
alternativa mais radical para os cativos do Recife e da zona da mata seca, daí a sua importância para
o entendimento da resistência escrava, não somente no interior, mas também no principal núcleo
urbano da província”. (carvalho, 2018, p. 7).

280
na qual dirigiu insultos ao presidente da província, concluindo com dar vivas ao
chefe da sedição, o que lhe foi igualmente retribuído, e revelou ainda o juiz de paz
suspenso, publicamente, que era todo Carneirista. Disseram também que o réu mar-
chou, logo no outro dia, com os Carneiros e, chegando a Beberibe, lugar do Recife,
já de posse de 500 mil réis, que lhe haviam sido entregues para fazer as despesas
da guerra, iria obter mais 600 mil réis para esse mesmo fim. Revelaram também
que o processado, “prezando mais o seu interesse que a sua reputação”16, traiu os
Carneiros, deixando-os sós no campo com o pretexto de lutar uma guerrilha na
mata, à espera do major Felippe, que iria em seu seguimento. Uma das testemunhas
chegou a afirmar que, na chegada em Beberibe, o acusado teve uma desavença pecu-
niária com os Carneiros, largando-os no campo, porém nunca a moeda dos revoltosos.
Ao final da segunda inquirição, o magistrado responsável pela demanda de-
cidiu, em 4 de agosto, pela prisão e livramento do juiz de paz suspenso do distrito
de Paratibe, Manoel Ignácio Bezerra de Mello, pronunciando-o e mandando que
o escrivão lançasse o nome do acusado no rol dos culpados e passasse as ordens
necessárias para a sua prisão, fazendo ciência do processo ao juiz de paz da cabeça
do distrito, como era exigido pela lei17. Os autos foram enviados para o Tribunal do
Júri um dia depois.
Antes de ser encaminhado ao Tribunal dos Jurados, o acusado recorreu do
ato do escrivão que enviou os autos com a pronúncia direto para lá. No recurso,
Manoel Ignácio Bezerra de Mello pediu que o processo seguisse para o juiz de paz
cabeça do termo18, alegando que esse reexame era obrigatório e que o escrivão não
o fez, como havia mandado o juiz de paz suplente na sua decisão. Ele pediu ao juiz
que mandasse lavrar um termo e instruísse a petição do recurso e que refletisse
melhor sobre a sua decisão de encaminhar ao Júri, sem passar pelo juiz de paz ca-
beça de comarca. O juiz de paz suplente, responsável pelo processo, despachou no
mesmo dia, mandando lavrar o termo. O escrivão do Juizado de Paz suplente, João
Ignácio Cavalcanti de Albuquerque, informou que, conforme requerido pelo acu-
sado, o processo tinha tramitado para o juiz cabeça do termo “cozido e lacrado, na
forma da lei”. Interessante que o juiz de paz suplente, um dia depois, despachou que
“como me consta o contrário do que alega, que sem demora se faça o cumprimento
do despacho acima”19.
Parece que o escrivão, João Ignácio Cavalcanti de Albuquerque, queria pressa
no trâmite e não estava interessado em respeitar as ordens do juiz de paz suplente.
Tanto ele quanto o promotor responsável pelo processo integravam a família Ca-
valcanti, que tinha muitos membros e protegidos em cargos públicos na província.
Em 1835 “Pernambuco estava enfeudado nas mãos dos Cavalcanti de Albuquerque.
Tanto o poder quanto as terras, eram deles. Quem quiser que os bajulasse, ou se
rebelasse [...]” (cadena, 2011, p. 20). Nesse momento pode-se observar como as posi-
ções daqueles que integravam as camadas sociais superiores na hierarquia tinham

16  iahgp. Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação. Apelante: A Justiça. Réu: Manoel Ignácio
Bezerra de Mello. 1835. Cx. 1. p. 17v.
17  Código do Processo Criminal de 1832, art. 230, “Os processos serão sempre remettidos ao Juiz de
Paz da cabeça do Termo, e havendo mais de um, áquelle d’entre elles que ahi fôr o do Districto onde
se reunir o Conselho dos Jurados”.
18  Conforme o art. 235 do Código do Processo Criminal de 1832.
19  iahgp. Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação. Apelante: A Justiça. Réu: Manoel Ignácio
Bezerra de Mello. 1835. Cx. 1. p. 26v.

281
ascendência no âmbito do Judiciário. Como empregados da Justiça e dominando as
questões políticas, influenciavam nas decisões judiciais prolatadas, inclusive nos
atos administrativos praticados pelos empregados dos escalões mais baixos da hie-
rarquia, como era o caso dos escrivães.
Finalmente, depois de ser cumprida pelo escrivão a ordem do juiz de paz su-
plente, o recurso foi julgado pelo juiz de direito e chefe de polícia do Recife, Nunes
Machado, que já estava novamente no exercício do cargo, em 17 de agosto de 1835.
Ele negou provimento ao recurso, tendo como consequência a manutenção da pro-
núncia, prisão e livramento do acusado e encaminhamento do processo ao Júri. E
isso foi feito pelo escrivão em 6 de setembro do mesmo ano, passando o processo
antes pelo juiz de paz da cabeça do termo.
Em 18 de setembro, em Olinda, na sala das sessões dos jurados, fez-se a cha-
mada dos autos, momento em que o escrivão chamava o réu preso ou afiançado,
os acusadores ou autores e as testemunhas, estas últimas se fossem notificadas a
comparecerem naquela sessão20. Nessa ocasião, estiveram presentes o réu, o juiz de
direito Bento Joaquim de Miranda Henrique e o promotor público Trajano Alípio de
Holanda Chacon Cavalcanti de Albuquerque.
Trajano pertencia à família Cavalcanti de Albuquerque e seria vice-presidente
da província da Paraíba, mais tarde, em 1839, na vaga de Manoel Carneiro da Cunha,
do qual era suplente. Pertencia ao grupo político liderado pela família Carneiro
da Cunha, na Paraíba. Esse grupo tinha muita influência nessa região, ocupando
diversos cargos públicos. Concluiu o bacharelado em Direito em Olinda, em 1835
(santos, 2014), uma razão para estar no Recife, no ano em que foi julgado o processo.
Convém relembrar que os Carneiro da Cunha apoiavam Manoel de Carvalho Paes
de Andrade no seu segundo mandato na presidência da província de Pernambuco.
O Júri não achou matéria para acusação do juiz de paz suspenso, Manoel Ignácio
Bezerra de Mello. A decisão saiu em 24 de setembro de 1835 e foi por maioria de vo-
tos, sendo dois deles pela condenação do réu. No mesmo dia, o juiz de direito e chefe
de polícia exarou a sentença no sentido de respeitar a decisão do Júri e a disposição
do artigo 251 do Código do Processo Criminal de 1832, julgando a denúncia sem
efeito. Ele mandou o escrivão passar alvará de soltura a favor do réu, caso se achasse
preso, e que se desse baixa na culpa. Mas o promotor público apelou dessa decisão.
Em 6 de outubro de 1835, o promotor público, Trajano Alípio de Holanda Chacon
Cavalcanti de Albuquerque, devolveu ao escrivão os autos com a apelação anexada.
No seu recurso, ele começou chamando atenção para a necessidade de ratificação
da decisão do Júri, entendendo que, por não haver esclarecimento sobre o crime, o
acusado não poderia ser julgado, já que o Júri não havia condenado o réu.
Essa ratificação de que falou seria exigência do artigo 245 do Código do Proces-
so Criminal e consistia no ato do juiz chamar à sala das sessões o Promotor Público,
o réu, se ele estivesse presente, e as testemunhas, uma por uma, para validar ou
confirmar tudo o que foi dito por cada um deles antes da decisão do Júri. Ou seja,
todas essas pessoas estariam se sujeitando a novo exame das provas. E o promotor 20  Art. 240 do Código do Processo
disse mais, que o juiz não poderia exarar a sentença sem que essa ratificação fosse Criminal de 1832.

282
realizada e citou, para embasar a sua afirmação, os artigos 24421 e 24822 do mesmo
código, pois teria que haver todo esse novo exame das provas e a ouvida das teste-
munhas para que o juiz de direito decidisse sobre o caso. Considerava, na verdade,
que o magistrado desrespeitara o que a legislação estabeleceu, pois não caberia a
ele decidir se faria ou não a ratificação, mas sim somente se dignar a obedecê-la.
Entendia, portanto, o promotor, que a sentença foi proferida contra a lei e,
subsidiado pelo artigo 301 do Código do Processo Criminal, interpôs a apelação,
motivada pela falta da ratificação. Para ele, essa ratificação não era uma mera for-
malidade, mas sim uma parte essencial e constitutiva do processo. Frisou ser a
ratificação “essencial” porque ela não seria só um meio eficaz, mas sim “um meio
necessário ao conhecimento do crime e seu autor”. Ele acentuou que era essencial
porque o artigo 301 dizia que um dos casos em que caberia apelação para a Relação
seria quando não fossem “guardadas as fórmulas substanciais do processo”. Dando,
assim, ao órgão de segunda instância a justificativa para conhecer (receber) o re-
curso e julgar o seu mérito.
Para garantir que não se duvidasse da sua competência para interpor a ape-
lação, o promotor citou o artigo 37, § 1º23 do mesmo código, afirmando que, sendo
competente para promover a acusação dos crimes da mesma natureza da sedição,
por causa disso teria direito a praticar todos os atos relativos e acessórios da mesma
acusação, bem como os recursos.
Argumentou também que caberia apelação das decisões e sentenças do Júri,
dizendo que “seria absurdo que o código, tendo concedido recurso de todos os des-
pachos, decisões e sentenças, só não o tivesse concedido das sentenças do júri de
cusação, podendo estas serem injustas, e ilegais [...]”24 tal qual as outras. Ele precisou
construir essa narrativa para justificar o cabimento da apelação que, nesse caso,
seguia o que estava estabelecido no artigo 30125 do Código do Processo Criminal de
1832 e na jurisprudência da época. É o que se pode verificar nos arestos do Supremo
Tribunal de Justiça de 1835, especificamente no de número xliv que dizia: “Da ab-

21  Art. 244. Finda a leitura de cada processo, que será feita pelo Secretario, e qualquer debate, que
sobre elle se suscitar, o Presidente porá a votos a questão seguinte:
Ha neste processo sufficiente esclarecimento sobre o crime, e seu autor, para proceder á accusação?
Se a decisão fôr affirmativa, o Secretario escreverá no processo as palavras: - O Jury achou materia
para accusação -.
22  Art. 248. Finda a ratificação do processo, ou formada a culpa, o Presidente fará sahir da sala as
pessoas admittidas, e depois do debate, que se suscitar entre os Jurados, porá a votos a questão seguinte:
Procede a accusação contra alguem?
O Secretario escreverá as respostas pelas formulas seguintes:
O Jury achou materia para accusação contra F. ou F.
O Jury não achou materia para a accusação.
23  Art. 37. Ao Promotor pertencem as attribuições seguintes:
1º Denunciar os crimes publicos, e policiaes, e accusar os delinquentes perante os Jurados, assim
como os crimes de reduzir á escravidão pessoas livres, carcere privado, homicidio, ou a tentativa
delle, ou ferimentos com as qualificações dos artigos 202, 203, 204 do Codigo Criminal (brasil, 1830);
e roubos, calumnias, e injurias contra o Imperador, e membros da Familia Imperial, contra a Regencia,
e cada um de seus membros, contra a Assembléa Geral, e contra cada uma das Camaras.
24  iahgp. Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação. Apelante: A Justiça. Réu: Manoel Ignácio
Bezerra de Mello. 1835. Cx. 1. p. 36v.
25  Art. 301. Das sentenças proferidas pelo Jury não haverá outro recurso senão o de appellação, para
a Relação do Districto, quando não tiverem sido guardadas as formulas substanciaes do processo, ou
quando o Juiz de direito se não conformar com a decisão dos Juizes de Facto, ou não impuzer a pena
declarada na Lei.

283
solvição, há recurso de apelação para a Relação do Distrito das decisões do primeiro
Conselho de Jurados”. (almeida, 1885, p. 175).
Finalizou a sua petição como de praxe. Disse que esperava o provimento da
sua apelação, que se fizesse justiça e pediu a condenação do apelado nas custas.
Em 25 de setembro, o acusado requereu ao juiz de direito que desse baixa
na culpa.
O juiz deu um despacho enviando a apelação ao Tribunal e o escrivão pediu
esclarecimentos sobre essa decisão. Esse já era outro escrivão, o do Júri, de nome
Joaquim José Ciriaco. Ele não tinha entendido se a apelação do promotor seria re-
cebida em ambos os efeitos, devolutivo e suspensivo. Disso dependeria se o réu
aguardaria a decisão do Tribunal da Relação preso ou solto.
Destaque se dê ao que estava em jogo nessa discussão acerca dos efeitos da
apelação. Nesse caso, era a liberdade do acusado. A depender do entendimento do
juiz de direito sobre se a apelação seria recebida nos dois efeitos ou somente no
efeito devolutivo, o réu esperaria a decisão do Tribunal em liberdade ou não. Se
fosse só no efeito devolutivo, ele aguardaria em liberdade; mas se fosse também no
suspensivo, ele ficaria preso até os desembargadores da Relação julgarem o seu caso.
O juiz de direito declarou que a apelação seria recebida somente no efeito
devolutivo, atendendo ao pedido do acusado, em 7 de outubro de 1835. E ele estava
em consonância com o entendimento dos juristas da época. Um desses juristas,
Filgueira Júnior (1874, v. 1, p. 249), ao comentar o artigo 292 do Código do Processo
Criminal, afirmou que “qualquer recurso da parte acusadora nunca é suspensivo
da absolvição do acusado”. A mesma conclusão pode ser encontrada no Repertório
Geral, organizado por Francisco Maria de Souza Filho. O Aviso de 6 de outubro de
1834 foi por ele indicado, como também pelo jurista mencionado anteriormente, para
embasar o seu entendimento, declarando Souza Filho que “o artigo 301 do Código
do Processo Criminal não tornava o recurso suspensivo da absolvição do acusado”
(mendonça, 1847, p. 154). Conclusão: Manoel Ignácio Bezerra de Mello aguardou a de-
cisão do Tribunal da Relação em liberdade. Realmente não faria sentido uma pessoa
que foi absolvida pelo Júri na primeira instância ficar presa esperando a decisão do
Tribunal, em segunda instância.
Antes disso, no dia 5 de outubro, o acusado, Manoel Ignácio Bezerra de Mello,
encaminhou uma tréplica26 ao juiz de direito. Ele argumentava que o promotor era
incompetente para interpor a apelação por não estar autorizado a tomar parte do
processo. É curiosa essa sua afirmação, todavia é de se destacar que a denúncia do
crime não foi feita pelo promotor, já que o processo começou com uma correspon-
dência do presidente da província. Talvez por essa razão o réu tenha argumentado
que o promotor não poderia interpor a apelação, nos termos do art. 241 do Código
do Processo Criminal, interpretando que o promotor só poderia interpor recurso se
tivesse denunciado o acusado ou se fosse autorizado pelo juiz.
Somando-se ao seu discurso, ainda alegou o acusado, na tréplica, que o re-
curso não devia de modo algum ser expedido nos efeitos regulares (suspensivo e
devolutivo), mas somente no devolutivo; segundo ele, os artigos 251 e 271 do Código
do Processo Criminal determinava explicitamente que, sendo negativa a decisão
26  Réplica: “representar-lhe alguma
do júri, o juiz de direito mandaria imediatamente pôr em liberdade o acusado, in- coisa acerca do seu despacho”. (bluteau,
dependentemente de haver apelação. 1789, v. 2, p. 325).

284
Disse mais, que o art. 293 e 294 do mesmo Código do Processo Criminal de
1832 concedia recursos sem prejuízo da execução da sentença e esses artigos davam
armas ao réu para se defender da opressão, como foi o caso nesse processo, de uma
apelação que pediu para suspender os efeitos da sentença de pronúncia, em conse-
quência da decisão do júri e poderia fazer com que a sua liberdade fosse cassada.
Para concluir, citando o art. 251 do Código do Processo Criminal de 1832, o
acusado, Manoel Ignacio Bezerra de Mello, juiz de paz suspenso, requereu que a ape-
lação fosse recebida no efeito devolutivo somente, pedindo também para que fosse
dada baixa na culpa e que ele pudesse livremente gozar dos direitos, cujo exercício
se achavam suspensos pela pronúncia.
A apelação seguiu para o Tribunal da Relação de Pernambuco em 22 de ou-
tubro de 1835. Em 13 de dezembro foi feito o preparo27 e foi aberta vista às partes.
O desembargador juiz semanário28 do Tribunal, Mariano José de Brito Lima, fez
pública audiência e abriu vista ao promotor José Thomaz Nabuco de Araújo Júnior29.
Nabuco de Araújo Júnior, atuando como promotor junto ao Tribunal, confirmou
a apelação do promotor da primeira instância e deu ciência da vista ao processo, já
no ano seguinte, em 21 de janeiro de 1839.
Logo em 4 de fevereiro de 1839, o escrivão da Relação, Antônio Ignácio Torres
Bandeira, certificou que não confirmou vista ao apelado por não haver o mesmo
constituído procurador na segunda instância. Isso já demonstra a falta de interes-
se do acusado, Manoel Ignacio, que nem se dignou a constituir um advogado para
defendê-lo. Logo será visto o motivo dessa sua indiferença.
Em 24 de maio de 1839 os autos foram apresentados ao desembargador pre-
sidente interino da Relação pelo seu secretário. Belmont, o presidente interino,
mandou que se fizesse a distribuição no mesmo dia, determinando quem ficaria
responsável pelo julgamento. Três desembargadores assinaram que deram vistas ao
processo. Um deles, em 31 de maio de 1839, e os outros, dois em dias diferentes de
dezembro de 1842, três anos depois. Até essa data já haviam se passado sete anos
do início do processo na Justiça, sem qualquer conclusão.
O presidente interino da Relação, Belmont, era natural da Bahia e formou-
-se em Direito em Coimbra, Portugal, em 1824. Foi juiz de fora em São Paulo, em
1825. Iniciou sua carreira como desembargador em Pernambuco, em maio de 1827
(collecção..., 1878a). Ficou na Relação até 1843, quando foi forçado, juntamente com
José Libânio de Sousa, também desembargador do mesmo Tribunal, a se aposentar,
por decreto de 5 de agosto do mesmo ano. Enquanto em seu ofício ao presidente da

27  Preparo é o adiantamento das despesas relativas ao processamento do recurso. O recorrente tem que
fazer um depósito em dinheiro, junto ao Tribunal, para que ele julgue o seu recurso.
28  “O que dá a semana servindo algum ofício ou obrigação” (bluteau, 1789, v. 2, p. 387).
29  Filho do Senador pelo Espírito Santo de igual nome, José Thomaz Nabuco de Araújo Júnior ou
Filho, como assinava no processo em análise neste texto, formou-se em direito em 1º de dezembro
de 1835. Alguns meses depois, seria promotor público do Recife até janeiro de 1841, quando passaria
a atuar como juiz de direito da comarca do Pau do Alho, em Pernambuco e, em 1842, voltaria como
magistrado para o Recife. Seria deputado por Pernambuco em 1843. Quatro anos depois, seria removido
para a comarca de Açu, ao que se sabe, por causa de suas posições políticas, retornando para o Recife
em 1849 (patronos, 2018). Um ano mais tarde, voltaria a ser deputado por Pernambuco e não mais
atuaria como magistrado no Recife por estar no Parlamento, aposentando-se como juiz de direito em
1857. Ocuparia também o cargo de presidente da província de São Paulo, em 1852, fazendo parte do
gabinete em 1853, como ministro da Justiça, que administraria em mais dois gabinetes posteriores
(moya, 1956, v. 8).

285
debret, Jean-Baptiste. Oficial de Justiça.
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do.
Debret e o Brasil: obra completa: 1816-1831. 3.
ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. p. 357.

província por ocasião do decreto que o aposentou Belmont somente reclamou da


sua “injusta aposentadoria”, Libânio, também baiano e formado em Coimbra como
o seu colega, segundo comentário de seu médico em publicação científica da épo-
ca, disse mais. Falou que foi vítima de uma “ingrata e infernal política [...] de uma
vingança mesquinha [...] daqueles que querem governar o Brasil como propriedade
sua”, referindo-se ao “gótico castelo Rego-Barros-Cavalcanti”. (valle, 2005, p. 299-
302). Belmont conseguiu ser reconduzido e tomou posse como desembargador na
Relação do Maranhão, em 1850; Libânio faleceu no mesmo ano em que foi aposen-
tado. Novamente é possível observar a força da política local nessa ocasião, agora
intervindo também na 2ª instância da Justiça em Pernambuco.
Saliente-se que, desde a Setembrizada e da Abrilada, em 1831, o Tribunal da
Relação estava paralisado por falta de desembargadores para julgar os processos.

286
Desse tempo só restavam dois desembargadores. É tanto que, mesmo com o auxílio
de juízes para suprir as lacunas, não se podia fazer coisa alguma além dos limites
permitidos pela lei. Um desembargador havia viajado para fora do país. Outros foram
para a Bahia, até o próprio Belmont, o presidente interino da Relação, esteve fora
por um tempo, durante o julgamento do processo analisado nesta seção. Alguns se
afastaram por doença ou para tomar assento na Assembleia Geral do Rio de Janeiro.
Entre remoções para o Recife e ausências por vários motivos, em 1842 a situação
ficou insustentável. Dos vinte e dois componentes do Tribunal, dezesseis estavam
ausentes e seis presentes. Três dos presentes assinaram o processo analisado neste
trabalho: Gregório da Costa Lima Belmont, José Libânio de Sousa e Manuel Rodri-
gues Villares. (valle, 2005, p. 160-161).
Belmont, presidente do Tribunal naquela data, decidiu, por despacho, que o
julgamento seria no primeiro dia útil, seguinte ao dia 17 de dezembro de 1842. Mas
o acórdão, decisão definitiva naquela instância, só sairia no início do ano posterior,
em 7 de janeiro de 1843. Os desembargadores decidiram que, por estar compreendida
nas disposições do decreto de 6 de outubro de 183530 (brasil, 1864) que concedeu
benefício da anistia a favor das pessoas envolvidas em crimes políticos, na mesma
direção do decreto de 19 de junho de 183531. (brasil, 1864), que anistiava os indiciados
pelo mesmo crime no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, julgavam o perdão “por ser
conforme à culpa”, e mandaram que o processo fosse colocado em “perpetuo silên-
cio”, condenando a Câmara Municipal nas custas, devendo pagar pelos seus cofres.
Isso explica a apatia de Manoel Ignácio Bezerra de Mello, acusado do crime de
sedição, quando não se interessou em nomear um advogado para defendê-lo na ins-
tância superior. Provavelmente sabia que o decreto de outubro de 1835 lhe liberava
do crime, já conseguindo ficar solto até que saísse o resultado do julgamento pelo
Tribunal da Relação, que atendeu ao que tinha sido imposto pela norma.

4 Considerações finais

A criação dos juízes de paz pela Constituição de 1824 (nogueira, 1999) pode até ser
vista como resistência à concentração excessiva do poder central, pois seriam eles
eleitos pela comunidade, criando uma possibilidade de ficarem de fora da estrutura
burocrática de poder do Imperador. (campos, 2003). A eleição, forma de acesso ao
cargo, por ser realizada em cada localidade, pode ser considerada uma via de acesso
ao poder dos cidadãos de cada região específica. A legislação facilitou esse acesso às
30  Este decreto estendeu para as
províncias de Pernambuco e Alagoas a elites locais ou a formação de um novo grupo que ascendia politicamente, a par-
anistia dada ao Rio de Janeiro e Minas tir da ocupação dos cargos em cada distrito. Por tudo isso é de se destacar que os
Gerais pelo Decreto nº 6 de 19 de junho
de 1835 a todas as pessoas envolvidas em juízes de paz também tinham suas próprias opiniões e interesses, e poderiam ter
crimes políticos. (brasil, 1864). consciência da sua influência dentro da comunidade em que viviam. O processo
31  Decreto nº 6 de 19 de junho de
1835. Art. 1º. Ficam anistiadas todas as analisado leva a se pensar nessa possibilidade, porque percebe-se que o juiz de paz
pessoas envolvidas em crimes políticos, Manoel Ignácio Bezerra de Mello passou de integrante das forças que defenderam
cometidos até o fim do ano próximo
passado nas províncias de Minas Gerais o governo de Manoel de Carvalho Paes de Andrade contra os Cabanos a acusado de
e Rio de Janeiro, e me perpétuo silêncio crime de sedição contra esse mesmo governante. E observe-se que, no momento da
todos os processos que se fizeram a este
respeito, qualquer que seja o estado em
sua rebeldia, ocupava um cargo que dependia da anuência do presidente da provín-
que se achem”. (brasil, 1864).

287
cia e de quem o apoiava para se manter, não obstante para o ingresso precisasse
vencer uma eleição.
Por volta de 1840, começam a se consolidar muitas críticas ao Júri e aos juízes
de paz. Seu fundamento era basicamente quanto ao perigo do poder estar fugindo
das mãos daqueles que normalmente o controlava, ameaçando a ordem estabelecida.
Nesse contexto, aconteceu um grande esforço para redesenhar a carreira dos ma-
gistrados, acelerado por volta de 1850, auge do predomínio conservador do segundo
reinado. Com a reforma do Código do Processo Criminal em 1841, a maior parte
das funções de juiz de paz passaram para os delegados e subdelegados de polícia e
fixaram-se algumas regras para a nomeação de juízes municipais, a princípio que
fossem bacharéis em Direito, podendo ser nomeado um leigo, caso não houvesse
letrado na região, conforme o art. 13 da lei de 03.12.1841. (lopes, 2017).
Ressalte-se que o que a lei estabelecia nem sempre era aplicado em todas as
comarcas. Inclusive nos lugares mais distantes da capital, os juízes leigos eram em
maior quantidade, até por substituírem os formados em Direito pela falta de letrados
naquelas localidades. E a essa realidade somava-se que, quanto mais distante do con-
trole do governo, mais fácil seria aplicar o direito costumeiro, quando conveniente.
O que se viu durante todo o processo em que um juiz de paz foi acusado do
crime de sedição, em 1835, é que ele tramitou normalmente na primeira instância,
a não ser no início, momento em que se passaram dois meses para que um juiz de
paz assumisse o caso. Quando chegaram os autos ao Tribunal da Relação, a demora
de quase oito anos para sair a decisão pode parcialmente ser explicada pela falta
de desembargadores para julgar os feitos, como também por ter aquele julgamento
perdido o sentido, quando foi publicado um decreto anistiando os acusados de crime
político em Pernambuco, no mesmo mês e ano em que o processo chegou ao Tribunal.
Também pode ser observado que as relações pessoais e de poder estavam
sempre presentes no Judiciário pernambucano, no qual as famílias das elites locais
dominavam as indicações para os cargos. Quanto ao Tribunal, verifica-se que ha-
via desembargadores provenientes de outras províncias, mas que sofriam pressão
política das elites locais também, como ficou evidente no caso da aposentadoria
precipitada de Libânio de Souza, um dos desembargadores que julgou o processo de
Manoel Ignácio Bezerra de Mello. Ele deixa claro o peso da influência política da
família Rego Barros e Cavalcanti na Justiça pernambucana no contexto analisado.
Ressalte-se a discussão doutrinária quanto à recepção da apelação no duplo
efeito ou somente no efeito devolutivo, que teve a decisão conforme o entendimento
dos juristas brasileiros daquele período, bem como no mesmo diapasão dos arestos
do Supremo Tribunal de Justiça, o que revela o conhecimento compartilhado entre
os operadores do direito que atuavam em diferentes províncias do império.
Sobre a aplicação da pena do crime de sedição, mesmo que não seja esse o caso
do réu Manoel Ignácio Bezerra de Mello, já que não foi condenado pela Justiça, des-
taque-se a opinião do jurista Azevedo (1852). Ele afirmava que o legislador definiu
tão vagamente o delito que deixou, por uma necessidade irresistível de sua aplicação
prática, ao arbítrio das autoridades judiciárias as especificações e detalhes. Na sua
visão, a lei deveria ser mais cuidadosa quanto aos casos de pronúncia, porque da
forma como o crime estava descrito, criava dificuldade para o magistrado enquadrar

288
uma pessoa como incursa no crime de sedição, pela falta de uma definição mais
específica para o delito.
Se foi por isso ou por razões outras, em Pernambuco, apesar de ter sido um
período de muita agitação na província, na década de 1830 somente há um processo
criminal do Tribunal da Relação disponível para pesquisa em que uma pessoa foi
acusada de sedição, e ele foi analisado neste capítulo.

Referências

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de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001.

AZEVEDO, Manoel Mendes da Cunha e. Observações sobre vários artigos do


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292
APÊNDICE A - PROCESSOS CRIMINAIS ENCAMINHADOS AO TRIBUNAL
DA RELAÇÃO DE PERNAMBUCO (1832-1840)

Institui-
Ano do
Local de ção de
recebi- Tipo
Código origem da Nome das partes guarda
mento no penal
querela do docu-
TRPE
mento
Apelante: A Justiça
P6
Recife, PE Apelado: José Joaquim da 1832 Furto IAHGP
Caixa 1
Costa
Apelante: Samuel Kitchen
P7 e outros Ferimen-
Recife, PE 1832 IAHGP
Caixa 2 Apelado: Manoel Lins da tos
Veiga
Apelante: José Domingues
P8 Nova Rai- Monte Negro e seu irmão Calúnia e
1832 IAHGP
Caixa 2 nha, PB Apelado: Francisco José injúria
Dias Bolcão e outros
Apelante: André de Albu-
Cidade da querque Maranhão Júnior
P9
Paraíba do 1832 Furto IAHGP
Caixa 2 Apelado: Francisco dos
Norte, PB
Santos
Apelante: José Antônio da
P10 Costa Guimarães
Recife, PE 1832 Furto IAHGP
Caixa 3 Apelado: Francisco Antô-
nio Antunes
Apelante: Flelisberto Cor-
P11 Itamaracá, rea de Mello Falta de
1834 IAHGP
Caixa 1 PE exação
Apelado: O Juízo
Apelante: José Roberto de
P12 Moraes e Silva Falta de
Recife, PE 1834 IAHGP
Caixa 1 Apelado: João Francisco exação
Quintela
P13 -- -- -- -- --
Apelante: O presidente da
província Manoel de Car-
valho Paes de Andrade
P14 Desobe-
Recife, PE Apelado: O juiz de direito e 1834 IAHGP
Caixa 3 diência
chefe de polícia da comar-
ca do Recife, Francisco Ma.
de Freitas Albuquerque
Apelante: Geraldo Antônio
P15 da Costa Borges Contra-
Recife, PE 1834 IAHGP
Caixa 3 bando
Apelado: O Juízo

293
Institui-
Ano do
Local de ção de
recebi- Tipo
Código origem da Nome das partes guarda
mento no penal
querela do docu-
TRPE
mento
Apelante: Antônio Ferreira
P16 Cristóvão Prevari-
Goiana, PE 1834 IAHGP
Caixa 4 Apelado: Joaquim José da cação
Costa Júnior
Apelante: Cristóvão de Fa-
P17 Assu, ria Leite júnior Prevari-
1835 IAHGP
Caixa 1 RN cação
Apelado: O Juízo
Apelante: Antônio Moreira
P18
Recife, PE Torres 1835 Roubo IAHGP
Caixa 1
Apelado: A Justiça
Apelante: Jerônimo José
de Brito e José Machado
P19 Soares
Olinda, PE 1835 Furto IAHGP
Caixa 1 Apelado: João Batista Silva,
Bernardino Gonçalves de
Sena e Luís de Abreu
Apelante: Serafim Inácio
P20 Ferimen-
Recife, PE de Barros Machado 1835 IAHGP
Caixa 1 tos
Apelado: A Justiça
P21
-- -- -- -- --
Caixa 1
Apelante: A Justiça
P22
Olinda, PE Apelado: Manoel Ignácio 1835 Sedição IAHGP
Caixa 1
Bezerra de Mello
Apelante: Amaro Fernan-
des Gama e o Juízo Excesso
P23 ou abuso
Recife, PE Apelado: Inácio Neri da 1836 IAHGP
Caixa 2 de auto-
Fonseca e Romão de Souza ridade
Lisboa
Apelante: O Juízo
P24 Prevari-
Recife, PE Apelado: João Domingues 1836 IAHGP
Caixa 3 cação
da Silva
Apelante: Manoel Ferreira
P25 Homicí-
Aracati, CE do Nascimento 1837 IAHGP
Caixa 2 dio
Apelado: O Juízo
Apelante: Presidente da
Câmara Municipal do Re- Infração
cife, José da Costa Rabelo a postura
P26
Recife, PE Guimarães 1837 munici- IAHGP
Caixa 2
pal
Apelado: Manoel Antônio
da Silva Mota

294
Institui-
Ano do
Local de ção de
recebi- Tipo
Código origem da Nome das partes guarda
mento no penal
querela do docu-
TRPE
mento
Apelante: Antonio Joaquim
P27 de Mello Calúnia e
Recife, PE 1838 IAHGP
Caixa 2 injúria
Apelado: O Juízo
Apelante: Frederico Antô-
P28 nio de Melo
Recife, PE 1839 Estupro IAHGP
Caixa 1 Apelado: Joaquim Aurélio
de Carvalho

Fonte: Tribunal da Relação de Pernambuco. Processos judiciais criminais. iahgp e Memorial da Justiça
(1831-1840)
Nota: Dados trabalhados pela autora (2019)

295
296
CAPÍTULO 11 - Justiça, crimes e Sociabilidades
no Recife das insurreições liberais

Lídia Rafaela Nascimento dos Santos1

1 Introdução

O Tribunal da Relação foi um dos principais órgãos do universo de controle social


do Recife oitocentista. Entre as diversas esferas de inserção social estava a prática
de suas atividades fins. O órgão se instalou em Pernambuco em um período de sig-
nificativas mudanças políticas, sociais e jurídicas. Ele estava no meio do processo
de luta e construção da independência e, desde a sua instalação, ocupou um lugar
central na normatização da sociedade, alterando rotinas da prática judiciária na
província e se organizando em um momento histórico de construção de um orde-
namento jurídico pátrio.
Os casos julgados pelo órgão nos permitem lançar novos olhares sobre a his-
tória do Brasil, seja através do estudo de grandes processos, seja pela observação de
casos corriqueiros, como também dá ensejo a que se faça uma análise desse órgão
em uma escala pouco utilizada nas pesquisas sobre a história da justiça e do direito.
Tudo isso pode ser realizado a partir de uma reflexão sobre a história da sua traje-
tória de atuação e da sua relação com a comunidade que está inserida.
Os processos judiciais são fontes produzidas pela práxis judiciária, resultado
“de uma série de movimentos que sucedem ao delito e o momento em que se cru-
zam os fatores que incidem no mesmo.” (soto, 2001, p. 19). Através da análise das
alegações dos operadores de direito, das decisões tomadas, dos discursos produzidos
sobre os acontecimentos geradores do delito e sobre as partes é possível fazer uma
reflexão sobre a prática judiciária e as articulações dos habitantes do Recife em torno
do objeto do processo judicial criminal investigado neste capítulo.
A apelação crime dos jurados, ora analisada, foi ocasionada pelos homicídios
de um escravo e de um pardo, na madrugada da noite do dia 11 de dezembro de 1843,
e teve como palco as ruas dos bairros centrais do Recife. As narrativas construídas
durante as várias etapas do processo nos permitem refletir sobre a vida dos réus e
1  Doutorado em História pela de algumas das testemunhas, em uma noite corriqueira de um mês muito festivo.
Universidade Federal Fluminense (uff, Como tantas outras noites, aconteceriam sem registros se não fosse a excepcional
Brasil, 2018); Professora Assistente 2 da
Universidade Católica de Pernambuco situação de, em meio a um passeio de fim de noite, dois jovens terem ferido mor-
(unicap, Brasil). talmente um escravo e um pardo que estavam na rua, carregando pão.

297
Os momentos de conflitos, apesar de excepcionais, revelam-nos nuanças do
cotidiano da vida em sociedade. Pensar a sociabilidade é analisar as lógicas das con-
vivências que permeiam as relações humanas em uma sociedade. A sociabilidade
é aqui entendida como uma categoria operacional que se refere às relações tecidas
entre as pessoas que propiciavam o viver em sociedade, as solidariedades institu-
cionais, formalizadas ou não, e uma corrente que a pensa pelo conflito para trazer
novas perspectivas na análise de atitudes e comportamentos coletivos2. Diversas
práticas fazem parte dessa categoria, morar, casar, festejar, associar-se a clubes,
partidos. Essas são apenas algumas delas.
Antes de analisar as nuanças desse caso específico, precisamos considerar
algumas características sociais mais amplas. Para pensar os processos judiciais é
preciso que entendamos o contexto histórico do lugar e época em que os casos acon-
teceram, e isso inclui entender o contexto da sociedade em seus aspectos sociais,
políticos, culturais e jurídicos.
No Recife oitocentista, as pessoas viveram em um período de intensas transfor-
mações. O século xix chegou com muitas mudanças em Pernambuco, seja no aspecto
da estrutura física da cidade, no político, institucional e, também, no judiciário. Em
tempos de revisão do antigo regime, buscava-se implementar novos valores liberais
e civilizatórios que buscavam modificar a vida em sociedade.

2. O Recife e a justiça no tempo das insurreições liberais

Um dos aspectos mais marcantes do Recife Oitocentista foi a intensa circulação dos
valores liberais, que preconizavam transformações no modo de vida, nem sempre
desejáveis. O liberalismo é uma abrangente concepção do Estado, um vocábulo que
esconde diversas possibilidades. Suas diretrizes fundamentais baseiam-se nos prin-
cípios de liberdade pessoal, individualismo, tolerância, dignidade e crença na vida.
Era uma nova concepção de mundo que propunha mudanças nos aspectos
econômicos, institucionais, culturais e jurídico. De origem europeia, não chegou
incólume ao Brasil, pois, o que chamamos de liberalismo brasileiro, definiu-se de-
vido a uma leitura das elites em prol de seus interesses e de uma realidade nacio-
nal. O exemplo das revoluções europeias e das independências das outras colônias
espanholas agravava o quadro político geral. No Recife do século xix, tais questões
circulavam em grande amplitude pela sociedade. Faziam parte do cotidiano e di-
versos espaços de sociabilidades, como academias, clubes, lojas maçônicas, saraus,
jantares, botequins, festas campestres, festas cívicas, igreja, seminário, faculdade
de direito, clubes, teatros etc.
Se o Recife foi um lugar de intensa circulação desses ideais, foi também de
intensas lutas. Muitos se reuniam na busca da autonomia ou de mudanças no jogo
político. Para além dos projetos imperiais de fundar a nação, a conjuntura política
era marcada por muitas convulsões políticas, em Pernambuco, na primeira metade
do século xix, como insurreições liberais e diversos conflitos cotidianos. A realida-
de política de Recife era demasiadamente complexa. Entre 1817-1848, uma série de
2  Ver: arriscado, 2005; boschi, 2006;
conflitos políticos, chamados pela historiografia de “ciclo das insurreições liberais”, soares, 2004; lousada, 1998; vovele,
marcaram a história e a historiografia da região. 1987.

298
A cidade do Recife se tornou palco para as manifestações das insatisfações,
disputas partidárias e picuinhas pessoais. As elites se enfrentavam no âmbito do
poder político central e provincial, atingindo suas malhas de apaniguados e os chefes
partidários. A Insurreição de 1817, Confederação do Equador (1824), Praieira (1848),
Guerra dos Cabanos (1832-1835), Setembrizada (1831), Novembrada (1831), Abrilada
(1832), Carneiradas (1835) foram apenas alguns dos movimentos que alterarem a
ordem pública na capital de Pernambuco no período abordado, gerando grande mo-
vimento de pessoas armadas nas ruas, inclusive escravos, que lutavam pelas suas
liberdades ideais e pelo poder dos seus senhores.
O poder da repressão também foi sentido com muita força na província. Ao
fim da Revolução Pernambucana de 1817, por exemplo, a repressão começou muito
agressiva, depois de intensas lutas, mortes, devastações de engenhos. A feroz repres-
são instaurou processos sobre variadas pessoas, sendo muitos executados. O terror
na Província era grande. Se o rei precisava demonstrar o seu controle, ele também
demonstrava o que podia ser tolerado. O poder do rei precisava mostrar-se benéfi-
co e, em 1818, perdoou os que estivessem envolvidos na revolta, menos os líderes.
A década de 1820 se iniciou ainda sob as sombras da Insurreição Pernambuca-
na. Como quase todo mundo se envolveu no acontecido, o medo e o rancor rondavam
sempre pelas ruas e pelas cabeças. Mas os ventos da mudança continuavam fortes.
Como ressaltou Emília Viotti da Costa (1999), o ano de 1820 começou com profundas
mudanças no panorama político. Depois da Revolução Liberal eclodir na Espanha,
ainda em janeiro, Dom João VI decretou uma série de medidas para tentar conter a
propagação da revolução em Portugal. (costa, 1999, p.42).
A Cidade do Porto se sublevou em agosto, iniciando a Revolução Liberal, que
reivindicava uma Constituição e a volta da Corte para Portugal. O movimento se
espalhou rapidamente pelo território português. Os assuntos da vez eram o constitu-
cionalismo e a convocação das Cortes. Nas novas propostas de Estados que surgiam
com as ideias liberais, como afirma Dênis Bernardes, “a questão da Justiça ocupou
um lugar central, juntamente com a da fiscalidade e a proteção da propriedade pri-
vada.” (bernardes, 2006a, p. 93).
As constituições ocuparam lugares centrais nesse processo. O constituciona-
lismo era a bandeira de luta de variados grupos sociais, um dos símbolos de um
nome modelo de Estado pelo qual muito lutavam.
Pernambuco efervescia com essas disputas e, nesse contexto de intensa con-
fusão, em 06 de fevereiro de 1821, o rei expediu alvará para a instalação do Tribu-
nal da Relação em Pernambuco. Como analisa o historiador Jeffrey Aislan (2019),
nesse alvará:

D. João reafirma o caráter corporativo e jurisdicionalista da monarquia por-


tuguesa, ao mesmo tempo que introduz termos como direito de propriedade,
segurança pessoal e sociedade civil, corriqueiras na linguagem político do
liberalismo e do constitucionalismo, e presentes no império após a eclosão
da Revolução do Porto e presentes nas Bases da Constituição Portuguesa,
que seriam aprovadas poucos dias após a expedição do dito alvará. (silva,
2019, p. 5).

299
Em fins de fevereiro chegou a notícia da confirmação que D. João havia con-
cordado em fazer o juramento da Constituição. Mesmo sem enfrentar o governador
carrasco, os constitucionalistas conseguiram uma vitória com o juramento da Cons-
tituição. O novo estatuto político, decidido nas cortes de Lisboa, como afirma Flávio
Cabral (2008), transformou súditos em cidadãos, garantindo novos espaços para
reivindicações. (cabral, 2008, p. 169). Além dessa mudança, para adequar os gover-
nos das províncias brasileiras às novas formas de organização política, passou-se a
organizar juntas governativas provisórias que assumiriam o comando da província.
Uma decisão das Cortes de Lisboa foi extremamente importante para os rumos
da política em Pernambuco. Segundo Flávio Cabral (2008), entenderam que nenhum
cidadão poderia ser perseguido por expressar sua opinião e que todos os desterrados,
por esse motivo, tinham o direito de voltar para casa. A junta provisional da Bahia,
então, reviu os processos de 1817 e absolveu “os réus do republicanismo”, que ainda
não tinham sido perdoados em 1818: os líderes do movimento. (cabral, 2008, p. 153).
A chegada dos líderes rebeldes aumentou as tensões na província. Várias reu-
niões secretas aconteciam, panfletos eram espalhados e alertavam o Governador dos
planos de luta que culminaram com a organização da junta provisória de Goiana,
que governou em paralelo ao governo de Luís de Rego por quase dois meses. Após
várias tentativas de conciliação, no início de outubro, houve um acordo conhecido
como Convenção de Beberibe, que reconhecia os dois governos nos territórios esta-
belecidos e previa a eleição de uma nova Junta de Governo, exigindo o retorno do
governador Régio Luís do Rego para Portugal.
Em fins de outubro, houve a eleição. A escolha de governantes por uma decisão
dos cidadãos locais, como analisa Dênis Bernardes, encerrando “uma longa história:
a dominação do Antigo Regime em Pernambuco.” (bernardes, 2006b, p. 397). Uma
Junta formada por pernambucanos assumiu o poder na província, tendo como pre-
sidente o comerciante Gervásio Pires. Em sua composição, de acordo com Socorro
Ferraz Barbosa, estavam três “liberais, participantes de uma forma ou outra dos
conflitos com o absolutismo e sobreviventes da Revolução de 1817, três participantes
ativos da Insurreição Pernambucana.” (barbosa, 2008, p. 114).
Mesmo após eleita uma nova junta, jurada a Constituição e depois de expulso o
último governador régio da província, continuava a desordem. As tropas portuguesas
e pernambucanas ainda estavam aquarteladas, a situação era caótica, em assunto de
organização militar. O ano de 1822 começou em meio a essas tensões. Ao mesmo
tempo foi de intensas conquistas que iam consolidando a Independência do Brasil.
A escolha para formar um novo país com Dom Pedro à frente não era óbvia.
Nesse período, os pernambucanos que lutaram para garantir autonomia no governo
local não haviam aderido às cortes portuguesas, tampouco aderiram à causa do Bra-
sil. A independência em Pernambuco foi um processo difícil, as revoltas e a disputa
pela autonomia local tencionaram a adesão ao projeto centralista do Rio de Janeiro.
Em primeiro de junho, Dom Pedro foi reconhecido como regente. Em 13 de
agosto de 1822 se instalou a Relação em Pernambuco. Segundo o desembargador José
Ferraz Ribeiro do Valle (2005), havia mesmo uma desconfiança do príncipe Dom
Pedro quanto à província de Pernambuco e sua lealdade, e essa seria a explicação
para o “retardamento de ano e meio para instalação da Relação.” (valle, 2005, p. 60).

300
Conforme Ariel Feldman (2015), no decorrer do ano de 1822, a Junta Gover-
nativa do Recife, presidida por Gervásio Pires, importante comerciante, senhor
de engenho e um dos anistiados de 1817, havia afrontado as Cortes, sem declarar
apoio ao projeto do Rio de Janeiro. (feldman, 2015, p.15). Uma articulação política de
José Bonifácio conseguiu derrubar a Junta de Governo, que fazia forte oposição ao
centralismo do Rio de Janeiro e, como enfatiza Marcus Carvalho (1998a), “garantiu
a adesão de Pernambuco ao projeto de independência liderado por José Bonifácio.”
(carvalho,1998a, p. 342).
A nova Junta Governativa assumiu, em fins de setembro, o governo da Pro-
víncia. Ela era composta por donos de engenho da zona da mata e, como explica
Marcus Carvalho, ficou por isso conhecida por “junta dos matutos.” (carvalho,1998a,
p. 340). Em outubro, organizaram a celebração do aniversário de Dom Pedro I, no
dia 12 daquele mês. Considerado dia de Grande Gala no Império português, era
comemorado com novos significados, celebrando um príncipe que tinha um papel
importante na luta pela independência.
De acordo com o Assento da Casa de Relação, em 16 de novembro de 1822, a
notícia da Aclamação chegou a bordo da escuna de guerra Maria Zeferina, que vinha
do Rio de Janeiro. Os membros da Relação logo decidiram quatro coisas, escrever
uma carta, informando que “as fórmulas até então usadas nos processos, papéis
públicos e judiciais de Príncipe Regente e Perpétuo Defensor do Brasil se substi-
tuam no foro daqui em diante o que hoje convém de Imperador Constitucional e
Perpétuo Defensor do Brasil”3, expedir ordens para os juízos e justiças do distrito
para observar essa norma e, por último, informar à junta provisória dessas decisões
tomadas por unanimidade de todos os ministros presentes.
Os membros da Relação participaram dos vários rituais públicos que marca-
ram o processo de independência, como a aclamação realizada pela Câmara Muni-
cipal. Esses ritos públicos de festejo da aclamação do Imperador pelo Brasil foram
momentos chaves para a legitimação da Independência do Brasil, por caracterizar
a irreversibilidade da ruptura e demonstrar apoio popular às decisões do soberano.
Por isso foi importante que o ato fosse realizado em vários lugares do território
do Brasil. Pernambuco, enquanto uma das principais províncias do Brasil e onde
a adesão ao projeto de centralidade do Rio de Janeiro havia sido problemática, não
podia ficar de fora desses ritos cívicos.
Mesmo depois da adesão, a província seguia envolta em conflitos e estava
desafiando o poder da Junta. Após a independência, era preciso organizar uma lei
em torno da qual a elite pudesse estruturar politicamente o novo Estado. Foi, então,
convocada uma Assembleia Constituinte, que se empenhou em elaborar um projeto
constitucional. Tal projeto tinha por objetivos substituir as restrições políticas e
econômicas do regime colonial pela estrutura de um Estado Nacional.
Os constituintes buscaram inspiração nas ideias vigentes na Europa, mas
seus projetos não chegaram a ser convertidos em lei. As tensões em Pernambuco
aumentaram com as atitudes de Dom Pedro, em fins de 1823: dissolução da As-
sembleia Constituinte, instituição da presidência de província e medidas contra a
liberdade de imprensa. Em dezembro daquele ano, a província estava a um passo
da guerra civil, devido às ações de Pedro Pedroso, um radical que ocupava o cargo
3  arquivo nacional, 1822, f. 131v. de Governador de Armas.

301
Nesse contexto, a Constituição de 1824 foi outorgada, estabelecendo as garantias
e direitos políticos e civis, além de definir uma nova ordem jurídica e administra-
tiva. Como bem lembra de José Reinaldo de Lima Lopes (2017), a Carta acompanhou
tendências manifestas pelos constituintes, como a aprovação dos jurados cíveis
e crimes, que deveriam ser regulamentadas por leis e códigos posteriores. O júri
garantia a participação leiga no poder julgar, representando uma moderação na
justiça. (lopes, 2017, p. 31).
Tratava-se de uma legislação marcada por ideias e concepções liberais, mas
com algumas especificidades que buscavam a manutenção dos interesses da elite,
entre eles a manutenção da escravidão, ainda que os brios nacionais não permitissem
que esse assunto fizesse parte do documento jurídico. Com a Constituição de 1824,
as penas de marca de ferro em brasa, torturas e mutilações foram abolidas. De uma
forma geral, foram excluídas as penas cruéis. Todavia, em um Estado Constitucional,
o controle social tinha que ser mais requintado, posto que representava a vontade
de um grupo que se mantinha unido por um consenso delicado, e não a vontade de
um soberano que não se preocupava em justificar seus atos.
Em julho foi deflagrada a Confederação do Equador, um movimento que lutou
contra os exageros de poder no Imperador e, entre julho e setembro, conseguiu tomar
a cidade e instaurar um novo governo, que tinha entre seus líderes participantes
ativos de 1817, como Manoel de Carvalho Paes de Andrade e Frei Caneca.
Durante o governo, revoltosos convocaram uma assembleia e lançaram uma
carta constitucional, priorizando o poder legislativo. Foi um movimento urbano
que, com o seu radicalismo, de forma semelhante a 1817, perdeu adeptos entre as
classes dominantes. Em agosto teve início uma violenta repressão que condenou
alguns dos principais líderes à morte e instaurou um período de intensa vigilância
em Pernambuco.
Os liberais realizaram uma série de reformas para reorganizar o judiciário
herdado de Portugal. A primeira delas foi a instituição dos Juízes de paz, em 1827.
Por não fazer parte da estrutura burocrática, teoricamente não seriam influenciados
devido ao cargo pela política imperial, sendo por isso uma importante resistência
contra a concentração excessiva.
Em 1830 foi promulgado o Código Criminal.

O código definia os comportamentos criminosos, os graus de culpabilidade e


cumplicidade, e as circunstâncias atenuantes e agravantes. Proibia punições
com base na retroatividade de leis, bem como qualquer punição que não fosse
estabelecida por lei, estabelecia graus de punição para crimes específicos e,
de maneira geral, satisfez à urgência liberal de introduzir o Brasil na mo-
dernidade. (holloway, 1997, p. 68).

O período da regência foi marcado por uma série de decisões que criou novas
instituições, novas rotinas, modificaram as práticas de normatização que acompa-
nhavam as grandes disputas políticas do período. Como defende Miriam Dolhnikoff
(2005), a história da construção do Estado brasileiro na primeira metade do século

302
xix foi marcada pelas disputas entre os defensores do centralismo e do federalismo,
revelando a enorme “tensão entre unidade e autonomia” (dolhnikoff, 2005, p. 11).
Entre as várias leis que favoreciam as lutas federalistas, podemos destacar o
Código do Processo Criminal, importante por atestar a autonomia no controle so-
cial e dar reforço às instituições liberais. De um modo geral, no início da década,
as leis acompanhavam os impulsos liberais e favoreceram a autonomia local. Como
afirma José Reinaldo de Lima Lopes (2017), a lei que aprovou os juízes de paz e o
Código do Processo criminal, “desenharam o sistema que realmente funcionou na
monarquia brasileira.” (lopes, 2017, p. 31). Em fins da década de 1830, quando o mi-
nistério foi assumido por conservadores, buscou-se desfazer as reformas liberais,
mas sem desfazer as instituições criadas, de uma maneira geral adaptando-as aos
interesses centralistas.
A força policial de Pernambuco surgiu nesse período de organização do Estado
Nacional. A arregimentação e o disciplinamento desse outro aparelho repressivo
surgiram para ocupar o lugar do que tinha sido herdado da época colonial e passou
a ser uma necessidade imperiosa das elites dirigentes brasileiras:

[...] necessidade que no caso de Pernambuco devia se fazer mais premente


ainda por conta da intensa agitação social e política que permeou a vida co-
tidiana de suas principais cidades na primeira metade do Oitocentos. (silva,
2007, p. 71).

Particularmente na cidade do Recife, onde saltava aos olhos o descontentamen-


to das camadas populares, o desejo de liberdade dos escravos e a acirradas disputas
políticas intraelites se transformavam com frequência em combustível para acender
convulsões internas grandes ou pequenas.
O surgimento de forças policiais modernas é algo inerente à organização da
burocracia estatal que estava em desenvolvimento no Brasil dessa época, quando
observa-se a transferência para a esferas públicas poderes que antes estavam dis-
persos com particulares. A maior parte do aparato policial não era remunerada. O
governo recorria ao serviço gratuito de grupos em troca da confirmação ou conces-
são de privilégios. Essa maioria era a parte que convivia com a população, que era
responsável por controlar e manter a ordem cotidiana, como afirma Andrei Koerner
(2006) no Brasil do Oitocentos o vigilante manteve-se “personificado, visível, con-
creto e próximo, como uma ameaça para os subordinados.” (koerner, 2006, p. 219).
Se esses cargos civis, em sua maioria, não eram remunerados, a força armada,
por sua vez, era assalariada. “Com a criação do Corpo de Guardas Municipais Perma-
nentes, no alvorecer do decênio de 1830, podemos dizer, tem início um processo de
burocratização dos aparatos de policiamento no Brasil” (silva, 2007, p. 76), estabe-
lecendo-se, assim, um vínculo entre os soldados e o Estado, o salário, evidenciando
o início da burocratização moderna entre os funcionários públicos voltados para o
policiamento.
Grande parte do tempo dos policiais era dedicado a reprimir comportamentos
do tipo vadiagem, mendicância, violação do toque de recolher, desacato a autoridade,
insulto verbal ou mesmo desordens em geral.

303
Sendo formado nessa época conturbada de organização e constituição do Esta-
do Nacional, o novo aparelho repressivo possuía uma série de desarranjos internos
que comprometiam o seu bom funcionamento. A atuação das autoridades respeitava
uma certa lógica de graduação de atribuições. A Polícia devia ocupar-se dos “crimes
menores”, mais comuns e corriqueiros. À magistratura cabia julgar os “crimes mais
graves”, menos frequentes e com maior complexidade. (campos, 2003, p. 182).
Na década de 1840, em Pernambuco, o movimento praieiro modificou signi-
ficativamente o ritmo do cotidiano. Por vários anos, praieiros e gabirus usaram o
espaço público como um território de conflitos. O Movimento Praieiro englobou
um processo de disputa político-partidária que aconteceu em Pernambuco, entre
1842-1849, que, segundo Marcus Carvalho (2003), foi “um atrito armado resultante
da radicalização de uma disputa intraelite pelo poder político local e cargos corres-
pondentes” (carvalho, 2003b, p. 214.), que tinha entre as suas principais bandeiras
a nacionalização do comércio a retalho, que atraía a lealdade do povo.4
A ala praieira obteve significativa expressão social em Pernambuco, engloban-
do em seu núcleo principal senhores de engenho e, junto com eles, um amplo con-
tingente de dependentes, moradores, rendeiros e lavradores, além dos profissionais
liberais. Os praieiros chegaram ainda a se aproximar de determinados setores de
pequenos proprietários e assalariados urbanos de níveis diversos, que participavam
das eleições primárias.
Os praieiros, que tinham entre as suas táticas conquistar o apoio da população,
seja nas festas ou nos meetings que realizavam, certamente souberam usar bem essa
prática festiva a seu favor. Depois que perderam nas urnas em 1845, os gabirus tam-
bém passaram a usar de estratégia semelhante para ganhar espaço entre o povo.

3. Sociabilidades e espaço público

O Recife do ciclo das insurreições liberais foi uma cidade com o seu espaço público
intensamente ocupado, seja pelas revoltas ou pelo intenso vai e vem que acompa-
nhava as suas atividades comerciais e portuárias, ou ainda por uma mudança se-
melhante a outras cidades brasileiras do período. A independência consolidou um
processo de expansão urbana. Seja por questões econômicas - após-abertura dos
portos houve um revigoramento dos núcleos urbanos do comércio transatlântico
que ganhou fôlego com a independência - ou por problemas do meio rural - como
a seca e o declínio do algodão - a cidade tornou-se um polo de atração, um eixo
econômico, social, político e cultural.
O crescimento populacional acompanhou as transformações. Em 1828, a po-
pulação dos bairros centrais de Recife era de 25.678 habitantes, saltando esse nú-
mero para 40.977, em 1856. Segundo Marcus Carvalho, “somada esta população aos

4  O início do movimento é assinalado pela cisão interna ocorrida em 1842 dentro do partido liberal.
A década de 1840 para os produtores de açúcar foi relativamente próspera, enquanto a cultura
algodoeira sofria as consequências dos preços baixos em relação ao açúcar e enfrentava uma das
maiores secas do século. A pecuária passava por um período de “vacas magras”. Se os anos quarenta
foram prósperos para os senhores de Engenho, foram muito sofridos para a população pobre. Entre
outras coisas, a interrupção das reformas iniciadas no governo do futuro conde de Boa Vista, que havia
além de mudado a cara do Recife, ofertado emprego para tantos, deixou muita gente desempregada.
Ver: marson, 1981; marson, 1989; silva, 2008; carvalho; câmara, 2008.

304
moradores dos subúrbios haveria uns cem mil habitantes em torno do eixo Recife/
Olinda por volta da metade do século.” (carvalho, 2003a, p. 44).
O Recife é uma cidade que nasceu devido a sua atividade portuária e cresceu
em torno das águas. Seus três bairros centrais são três grandes ilhas, interligadas
por pontes. As suas ruas eram estreitas e produziam um traçado urbano irregular,
como podemos ver no mapa 1 abaixo:

Mapa 1 – Bairros Centrais da Cidade do Recife

Fonte: (santos, 2018, p. 19) - Extrato da Planta da Capital Organizado no


Archivo Militar pelo Cap Capitolino P. Severiano da Cunha a partir de
documentos existentes na Repartição Tavares em 1868.

A maior parte da atividade mercantil e dos prédios de governo se concentrava


nos bairros do Recife e de Santo Antônio, ambos com características semelhantes
a outras cidades da América portuguesa, com ruas estreitas, becos e com forte pre-
sença de templos religiosos católicos.
Durante o governo de Francisco Rego Barros (que viria a ser Conde da Boa
Vista), entre 1837 e 1844, desenvolveu-se um projeto de modernização no Recife,
que modificou o traçado urbano da cidade. Abriram-se algumas ruas, fecharam-se
outras. Foram colocados em funcionamento planos para construção de um gran-
de teatro, do palácio do governo, entre tantos outros prédios públicos. Todas essas
mudanças tinham como ponto de partida a construção de uma certa ordem pública
e a realização de um projeto de civilização.
A cidade se modernizava, mas ainda enfrentava sérios problemas. Além do
contraste com a escravidão, havia o desequilíbrio econômico, crônica situação dos
cofres públicos. O grave problema das moedas falsas, o famoso xenxém, também
usado no pagamento dos soldados do exército, trazia enormes dificuldades para o
cotidiano da população. Em uma cidade com elevado desemprego, era preciso con-
tar ainda com a possibilidade de se receber dinheiro que não era válido. Também

305
eram muitos os problemas de saúde, segurança, urbanização e os decorrentes da
expansão da cidade.
Havia uma necessidade de renovação dos padrões de sociabilidade e civilida-
de. Em meio ao processo de renovação cultural, a cidade ganhou novas regras de
condutas, novos equipamentos de divertimentos, novas formas de circulação das
ideias. Houve a tentativa de inserção de mudanças na prática de comportamento,
adequando as novidades aos costumes tradicionais, tendo em vista que eles ainda
mantinham forte influência na sociedade.
As mudanças feitas, em parte, em prol da civilidade, estavam dentro de um
contexto de uma reconstrução necessária de uma antiga colônia que se transforma-
va em país independente. Os divertimentos foram uma ferramenta importante na
construção da identidade nacional e na legitimidade do novo Estado que se formava.
As mudanças estabelecidas nesses momentos diferenciados do cotidiano foram mo-
dificando a rotina de diversas camadas da sociedade, quer sejam das pessoas comuns
ou das instituições, que precisavam se adaptar aos novos parâmetros estabelecidos.
No Brasil Império, vários foram os obstáculos criados para o divertimento,
especialmente dos escravos e homens livres pobres. O aumento da vigilância e das
restrições às classes populares eram desdobramentos lógicos, decorrentes do pro-
cesso de formação, organização e consolidação do Estado Nacional. Surgiram, então,
uma série de instâncias repressivas, justapostas, paralelas e com atribuições que
muitas vezes se cruzavam.
A costumeira convivência em espaços de sociabilidade precisava ser contro-
lada, afinal, os divertimentos não poderiam ocorrer a qualquer dia, em qualquer
hora e de qualquer maneira. Houve ocasiões em que a diversão podia ser vista como
maléfica para a sociedade.
As leis visavam a coibir de forma conjunta o comportamento dos escravos e
homens livres pobres. Natalie Davis (1990) ressalta que a distinção entre as cama-
das populares na França do século xviii não poderia ser feita “apenas ao longo de
um mesmo eixo no qual um comerciante difere de um artesão, mas também ao
longo de um outro eixo no qual o critério é o controle sobre recursos expressivos e
emocionais.” (davis, 1990, p. 9). A cidade muitas vezes aproximava essas pessoas, em
meio aos momentos de descontração, encontros eram forjados, amizades construídas,
amores traçados, desilusões vivenciadas, oportunidades conquistadas e essas situa-
ções podiam ser mais fortes que uma diferença jurídica no dia a dia dessas pessoas.
Havia uma vida em comum entre esses homens nas cidades brasileiras do
século xix. Segundo Clarissa Nunes Maia, era mesmo impossível controlar um sem
controlar o outro. Escravos e homens livres pobres, ainda que diferentes, até mesmo
pela definição jurídica de coisa e pessoa, viviam parte de suas vidas juntos, posto que
a condição jurídica não era a única a definir as relações de convivência cotidiana.
Na definição do comportamento cotidiano das pessoas, como lembra Ezio
Bittencourt (1999), “a cultura desempenha papel fundamental condicionando-o às
normas, valores, padrões, crenças, símbolos e conhecimentos, forjados pela socie-
dade.” (bittencourt, 1999, p. 83).
Durante os momentos de lazer, escravos e homens livres pobres teciam impor-
tantes sociabilidades e definiam muitas das regras próprias a seus grupos; forjavam
nesses espaços sua cultura e muitas vezes estes padrões iam de encontro ao definido

306
pelas elites. Alguns hábitos eram especialmente combatidos, por serem símbolos
dessa desordem. Batuques, bebedeiras, tavernas, casa de jogos foram algumas das
práticas e locais definidos pelas autoridades e pela elite do Recife do século xix como
sendo potencialmente perigosos.
Mais do que vigiar as práticas de sociabilidade e divertimentos populares para
se controlar certos comportamentos desviantes, objetivava-se modificá-los. Algumas
das práticas combatidas nesse período podem ser observadas até os dias de hoje,
ainda que com os seus significados modificados.

4. O caso de João Gomes do Carmo

Uma apelação crime dos jurados do ano de 1845. O Processo de homicídio se ins-
taurou devido ao delito cometido em uma noite de sociabilidades e experiências
ocorridas nas ruas, casas e espaços de convivência do Recife, cujo relato nos permite
pensar diferentes questões do cotidiano e das relações sociais daquela sociedade.
Como já ponderou Sidney Chalhoub (2010):

Até o século xix, quase todos os crimes de homicídio ocorriam no interior


das relações comunitárias: relação de vizinhança, briga de casal, briga no
interior da família, briga entre vizinhos, briga entre trabalhadores, escra-
vos que assassinam senhores, senhores que matam escravos, eram relações
entre pessoas que se conheciam, não raro intimamente. Esses processos
documentavam um momento de crise profunda em uma comunidade; tam-
bém a escala da experiência humana era muito menor, eram centenas de
pessoas, no máximo, no horizonte de uma determinada vila, na qual todos se
conheciam. Quando havia um crime de homicídio, a tendência – e os histo-
riadores aprenderam rapidamente – era que os processos tendiam a ser uma
verdadeira catarse coletiva, no sentido de que as pessoas iam lá e contavam
tudo o que sabiam; e eram experiências riquíssimas. (chalhoub, 2010, p. 96).

Vamos trabalhar com os vários discursos produzidos no processo criminal


que, como bem analisa Maria Helena Pereira Toledo Machado, tinham “o objetivo
de buscar uma verdade sobre o fato além de produzir uma verdade sobre crime,
objetiva inserir o ato criminalizável numa instância discursiva normalizadora.”
(machado, 2006, p. 11).
Os processos judiciais trazem múltiplas versões. Não buscaremos estabelecer
verdades, mas sim pensar a cidade, as sociabilidades e a prática judiciária a partir
dos registros produzidos pelo documento. E, como afirma Keila Grinberg (2011), ao
trabalharmos com o que é ou não plausível em uma determinada sociedade “[...] até
a mentira mais deslavada vira categoria de análise.” (grinberg, 2011, p. 128).
A apelação crime tem como partes João Gomes do Carmo e a justiça. Mas, ini-
cialmente, o homicídio foi judicializado tendo como partes dois réus: João Gomes do
Carmo e João Francisco Pereira. As averiguações buscavam evidenciar a participação

307
dos dois em dois homicídios ocorridos em uma das muito animadas noites do mês
de dezembro, no ano de 1843.
João Gomes do Carmo era um ferreiro que morava no beco do sarapatel e João
Francisco Pereira era pardo, pedreiro e soldado do batalhão da Guarda Nacional
destacado. As vítimas foram, o pardo Bernardo, um caixeiro de padaria e o preto
Antônio, escravo de Ana Joaquina Wanderley, que andavam pelas ruas da cidade
transportando pão, na madrugada.
O processo também envolve outros populares, que necessariamente não faziam
parte da vida uns dos outros, pois muito se desenrolou em um passeio noturno de
dois jovens. A cidade muitas vezes aproximava essas pessoas, em meio aos momentos
de descontração, encontros eram forjados, amizades construídas, amores traçados,
desilusões vivenciadas, oportunidades conquistadas e essas situações podiam ser
mais fortes que uma diferença jurídica no dia a dia dessas pessoas. Os aconteci-
mentos do processo ocorreram nas ruas estreitas e irregulares os bairros centrais
da cidade. Elas não apenas proporcionavam encontros, como também faziam parte
da lógica dos acontecimentos.
A primeira instância do processo ocorreu na delegacia do primeiro distrito
do Recife. Estava em vigência a Lei n° 261, de 03 de dezembro de 1841 e seu Regula-
mento n°120, de 31 de janeiro de 1842, que pôs fim ao processo de descentralização
estabelecido pelo Código do Processo Penal. Os delegados de polícia assumiram as
funções que antes eram dos prefeitos das comarcas, ou mesmo dos juízes de paz e,
também, acumulavam algumas funções judiciárias, como estabelecer fianças, julgar
delitos menores e tinham função investigativa, sendo responsáveis pelo inquérito
e pela sentença de pronúncia.
A decisão de primeira instância foi apelada. Com base no depoimento de João
Gomes do Carmo, ocorrido em 19 de dezembro de 1843, temos a seguinte versão
dos acontecimentos. Ao escurecer do dia 11 de dezembro, um dos acusados resol-
veu visitar Maria Joaquina, moradora do atual bairro de São José, para onde chegou
também o outro réu do processo. Apesar de não ser dito no autos de perguntas,
essa casa deveria ser bem animada, frequentada por algumas mulheres, talvez fosse
um lugar onde, depois de um dia de trabalho, muitos populares podiam passar por
lá para conversar, talvez beber e começar as famosas vozerias, acompanhadas por
alguma dança, tão comuns no Recife Oitocentista.
O francês Tollenare (1961) relata como podiam ser esses encontros de crioulos
brasileiros em suas casas, a partir de uma parada “em um pequeno povoado, à beira-
-mar, chamado Boa Viagem” encontrou um grupo de “crioulos brasileiros”, estavam
em frente às suas casas, “para gozar da frescura da noite. As raparigas cantavam e as
mulheres dançavam ao som de suas canções.” (tollenare, 1961 p. 56). Afirmou tratar
que a “expressão lasciva” dessas danças assemelhava-se à dos negros. Apesar de ser
perceptível o distanciamento que buscou estabelecer na escrita quanto às canções
que eram executadas nesses ambientes, não se pode deixar de observar que o francês
se atraiu pelo que viu, e fez questão de registrar tal situação em seus relatos assim
que chegou ao seu destino, ainda que tivesse “um pouco atordoado pela viagem”. O
grupo do qual Tollenare participava não se limitou a olhar tal dança estranha a seus
costumes. Segundo o francês, “Esta boa gente nos recebeu com muita cordialidade,
e nos forçou a aceitar um gole de Genebra.” (tollenare, 1961, p. 56)

308
Na noite relatada no processo, ao menos Rosa e Severina estiveram na casa
de Maria Joaquina. É provável que as duas trabalhassem pela região. Como ressalta
Marcus Carvalho, havia uma intensa atividade feminina nesse bairro (carvalho,
2002, p. 63) e, por volta das oito da noite, os réus teriam resolvido buscar novos ru-
mos e acompanharam as duas mulheres para casa, que se situava na rua da Senzala
Velha, bairro do Recife.
Os dois acusados, então, resolveram ir a um botequim no beco dos portos, de
propriedade de um “Vicente de tal”. Nesse espaço de encontros, encontraram vários
populares. Sabemos, por depoimentos do processo, de um sapateiro pardo, Francisco
dos Santos e de Aninha Gorda, Cordolina e Rosinha, e que os acusados conduziram
pelo caminho Severina e Rosinha.
De acordo com João Gomes, teriam ficado cerca de três horas no botequim.
Nesses locais, os populares podiam conversar nas horas de descanso ou no fim do
dia, ou nos momentos intercalados pelo trabalho. Lá podiam aproveitar para jogar
ou mesmo ter conversas sobre o que se passava pela sociedade; ou simplesmente
“afogavam as mágoas da luta pela vida e se entorpeciam os corpos doloridos pelas
horas seguidas do labor cotidiano.” (chalhoub, 2001, p. 257).
Nesses momentos, também podiam aproveitar para desenvolverem longas
conversas, enquanto se atualizavam do que ocorria na sociedade, muitas vezes pre-
senciando a leitura de algum impresso, afinal, as tabernas eram locais de leituras
públicas dos impressos, onde se conversava sobre os acontecimentos notáveis da
sociedade, histórias de vida dos que conviviam, ou onde eram tecidas importantes
articulações políticas, ainda mais naqueles idos da década de 1840, em que muitos
dos espaços públicos da cidade se tornaram lugares de disputas entre praieiros e
gabirus. Como afirma Maria Alexandre Lousada (1998), as épocas de transformação
política são geralmente acompanhadas de politização intensa, então, “o poder está
em jogo em todo o lado, os diversos espaços da vida social politizam-se”. (lousada,
1998, p. 149).
Nesses ambientes, discutia-se de tudo e, por mais que a temática fosse séria,
havia um clima mais descontraído, provocado muitas vezes pelo consumo de álcool.
Mas a nós historiadores é “possível apenas cogitar o universo de preocupações que
mediava as conversas dos segmentos sociais pela investigação na documentação.”
(moura, 2006, p. 82).
As posturas municipais preocupavam-se em controlar a presença dos populares
nesses ambientes. Proibia-se que “todas as casas públicas de bebidas, tavernas, ou
barracas, que venderem molhados” e que, “no tempo em que estiverem abertas de
dia, ou de noite, não admitirão ajuntamentos de pretos, e vadios dentro delas, logo
que estiverem providos da mercadoria, fazendo os imediatamente sair”. Além disso,
também proibiam “ajuntamento de pessoas com tocatas, e danças.5
A taberna era um ponto de encontro e diversão onde todos podiam entrar,
local de desclassificados e despossuídos de toda sorte, era um ambiente potencial-
mente perigoso, parte imprescindível do mundo de lazer popular, e as proibições
não conseguiam desfazer essa realidade.
Depois de terem aproveitado o botequim, Gomes contou que acompanharam
“Aninha gorda, Cordolina e Rosinha” até a casa de Rosinha, de onde teriam saído de
5  Diário de Pernambuco, lá às duas da madrugada. Que passaram por muitos becos e ruas estreitas, traçado
20/12/1831.202). urbano característico do bairro do Recife no século xix, até chegar à ponte do Recife.

309
As pontes, mais do que servir como simples passagens, eram tradicionais pontos
debret, Jean-Baptiste. Retratos do rei D.
de encontros. Em uma cidade cercada por águas, é imprescindível a presença de inúme- João VI e do Imperador D. Pedro I.
ras pontes na paisagem urbana. Para transitar entre os bairros centrais do aglomerado Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do.
urbano era quase uma obrigação passar por alguma delas, mas se fazia muito mais que Debret e o Brasil: obra completa: 1816-1831. 3.
ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. p. 606.
isso, os bancos da ponte serviam para conversas muito variadas e, dependendo do ho-
rário, eram ocupados por pessoas de diferentes camadas da sociedade.
A ponte do Recife tinha os arcos da Conceição e de Santo Antônio em seus
extremos. Segundo Raimundo Arrais, os arcos eram um dos conjuntos urbanísticos
típicos do Recife que chegaram até o século xix, onde é possível “momentos sig-
nificativos das representações coletivas urdidas nessa relação dos indivíduos com
o espaço.” (arrais, 2002, p.169). No arco localizado no bairro portuário, colocou-se
em um nicho com a Imagem de Nossa Senhora da Conceição. Foi palco de muitas
manifestações religiosas e, também, políticas. Em 1817, pouco depois da derrota da
Revolução pernambucana, ali se cantou uma ladainha em homenagem à vitória das
tropas reais. Também no nicho da Conceição ocorreu uma das maiores manifesta-
ções de rua do Movimento Praieiro.
Nesse momento de seu depoimento foi perguntado ao acusado João Gomes se
teriam encontrado alguém ao pé do arco da Conceição. Ele respondeu que tinham
encontrado um preto que estava dormindo guardando alguns gêneros, e que João
Paz acordou o preto perguntando-o o que ele fazia.
O Preto podia entender que lhe queriam fazer algum mal, ou mesmo não estar
disposto a aceitar ordens, no fim da noite, de dois transeuntes que passavam pela
ponte, possivelmente embriagados, depois de aproveitar uma noite de divertimentos
no bairro do Recife. Também é possível que o preto tivesse levantado para enfrentar
a Guarda Nacional destacada, como afirma Thomas Holloway (1997):

Envolver-se em batalhas de rua contra as patrulhas dos guardas municipais


era a maneira mais clara de os escravos, negros, mulatos e miseráveis ex-
pressarem o ressentimento dos pobres contra os ricos. (holloway,1997, p. 86).

310
João Gomes afirmou que Paz teria dado uma facada com um canivete de mola
no preto, que ainda conseguiu correr para junto dos gêneros que guardava.
Depois, os dois seguiram para a ponte em direção ao bairro de Santo Antônio
e, em um dos bancos da ponte, encontraram Francisco, soldado do corpo de polícia.
Disse que também o acordaram perguntando o que ele fazia e seguiram para São
José. Continuaram caminhando “por várias ruas e becos até chegar à rua da pracinha,
onde bateram na porta de Caetana de tal, pedindo água. Em plena madrugada, Cae-
tana atendeu aos dois servindo-lhes água e perguntando o que eles faziam, “àquela
hora já deveriam ter feito alguma arte”.
Depois, eles foram até a rua do Caldereiro, onde tinha um terreiro e umas
canoas, e encontraram, então, um “sujeito ao pé das canoas”. As canoas eram essen-
ciais em uma cidade entrecortada por água. Nelas se conduziam pessoas e materiais
diversos. Ele, então, perguntou que horas eram. Como não teve resposta, resolveu
dar umas bofetadas e uma facada. Como o sujeito correu, os dois resolveram perse-
gui-lo por “várias ruas, becos, chegando à altura do beco do Sirigado, encontraram
um preto com um ganso no pescoço.” O ganso no pescoço era uma espécie de colar
de ferro usado como castigo para escravos fugidos.
Os cativos que usavam esse colar eram facilmente reconhecidos pela popula-
ção. Os senhores conseguiam, dessa forma, estender a sua vigilância para além do
seu controle físico e manter o lucro proporcionado pelo trabalho dos escravos de
ganho nos espaços públicos da cidade. O preto trazia um panecum de pao na cabeça,
acompanhado por um pardinho que trazia um pau. João Gomes afirma ter tenta-
do evitar que o amigo se envolvesse em mais confusão, alegando que podiam ser
descobertos. “Não obstante as advertências que matos tinham olhos e paredes tem
ouvido, chegou-se ao preto e pediu que lhe vendesse um pão”.
O preto não quis arrear o panecum para vender só um pão, é provável que o cesto
estivesse pesado e cheio, e que ele já estivesse com um destino planejado, seja uma
rota comum ou um ponto de venda nas ruas da região, onde, costumeiramente, já
abaixava o cesto para vender o pão, como faziam vários cativos, entre eles Baquaqua,
um dos poucos cativos que nos deixaram relatos da sua vida teve essa como uma
das ocupações durante o tempo que foi cativo na cidade, e diz que os seus dias eram
longos, percorrendo a vila e indo até o campo com a cesta na cabeça, depois voltava
para casa ao fim do dia e ia vender no mercado, à noite. (lara, 1988, p. 275).
Gomes pediu novamente que lhe vendesse o pão e, frente à nova recusa, deu
uma facada. O preto arreou o panecum e correu em direção ao pátio do terço. Os
dois réus resolveram correr até o pardinho e dar uma facada, quando este último
saiu correndo e ainda deram outra facada nas costas. O pardinho, mesmo ferido,
conseguiu correr em direção ao Pátio do Terço.
Os dois acusados resolveram não seguir para o Pátio do Terço, um lugar mar-
cado pela forte presença negra e, por ser um espaço de sociabilidade, situado em uma
das entradas para a região central do Recife, era um local de grande movimento,
até mesmo nos dias corriqueiros. Segundo Ivaldo Marciano de França Lima (2010),
até os dias atuais, existe:

[...] uma memória coletiva de que no Pátio do Terço eram feitas as vendas
de escravos ou também que lá era o local permitido para os negros festeja-

311
rem, ou ainda que no Pátio havia muitas casas de negros (terreiros).” (lima,
2010, p.370).

Muitos podiam ainda estar por lá festejando, bebendo ou simplesmente con-


versando, mas não foram só os réus que não foram ao Pátio, as vítimas também
não conseguiram chegar e morreram na tentativa de fuga. João Gomes e João Paz
foram pelo beco do Sirigado, onde encontraram um “cascavel”6 conhecido, de nome
Manoel Caxixi, que conduzia umas pastoras. Tal como os dois, eles escoltavam
mulheres no início da noite, esse outro homem livre pobre se pôs a acompanhar as
mulheres, talvez depois de uma apresentação.
Dezembro era um mês muito intenso no vai e vem da cidade, era o ciclo na-
talino de festas e os pastoris eram presenças marcantes nas ruas, teatros e outros
espaços de divertimento da sociedade. (santos, 2018, p. 194-195). Era fácil reconhecer
as participantes desse festejo pelas ruas da cidade. De acordo com Pereira da Costa,
as pastoras eram meninas vestidas de branco, cingindo capelas, enlaçadas de fita,
com maracá ou pandeiro que em dois grupos cantavam o drama infantil do menino
Jesus. (costa, 1976, p. 433).
Nesse momento, João Paz teria dito terem sido “conhecidos por aquele negrito
que vai atrás do rancho de pastoras”. Recife crescia, mas não era tão grande assim,
as pessoas se conheciam relativamente bem, especialmente pessoas que podiam ter
uma vida em comum, trabalhadores manuais que circulavam pelos mesmos espaços
de trabalho, diversão e moradia.
Eles seguiram por várias ruas até chegar na casa de Paz, onde este último
mudou a roupa, e seguiram pelas ruas até uma casa pegada a um sobrado onde mo-
rava Francisco Antônio, que supõe ser pedreiro, onde Paz entrou e de lá passaram
por várias ruas e becos, até chegar à rua da Penha, onde se recolheram à casa de
Maria Joaquina, Fulustreca. Terminaram a agitada noite tranquilos por lá, até que
sua mãe apareceu avisando que “sua casa fora corrida para averiguação e os dois
saíram e separam e ele escondeu-se na casa de uma tia” até o dia 18 de dezembro.
João Francisco Pereira também narrou a história sobre o início da noite. E
era muito parecida com a que foi dita pelo companheiro. Sua versão acrescenta al-
guns detalhes, como o fato de terem ido cear no botequim de Vicente de tal. Esses
ambientes, segundo Sidney Chalhoub (2010), tinham um papel fundamental na
distribuição de alimentos para a população de baixa renda. (chalhoub, 2001, p. 259).
Ir fazer as refeições em um botequim era uma escolha comum no período.
O editor do jornal Miscelânia periodiqueira ao tentar promover as vendas de seu jor-
nal, questionou o gasto em diversas práticas ligadas ao universo do divertimento:
“O que são 40 réis? Quem é, que faz caso de 2 vinténs? Não se gasta, e desbarata
grosso dinheiro em tanta despesa supérflua, e até em coisas criminosas?” Entre
elas, ele destaca os que vão almoçar aos botequins, podendo almoçar mais barato
em suas casas.7
6  Cascavel, segundo o dicionário de
Mas, depois que deixaram as mulheres em casa, a história ficou bem diferen- Antônio de Moraes Silva, eram os
te. João Paz busca estabelecer outra verdade para a noite do dia 11. Conta-nos que, trabalhadores da alfândega responsáveis
por jogar laços nas caixas de açúcar.
deixando-as em casa, depois foram direto para sua casa na rua Praia e, por todo o (silva, 1832, p. 356).
caminho, só encontraram com Antônio Francisco, que dormia em um dos bancos da 7  Miscelânia periodiqueira, 27/07/1833.

312
ponte. E que, como o conhecia João Paz, afirma tê-lo acordado para dizer para ele ter
cuidado para não levarem o seu chapéu e que, depois da ponte, tinham se separado.
Frente às versões conflitantes, o delegado perguntou se o que João Gomes ti-
nha dito sobre ele era verdade. Reconheceu que era verdade apenas uma parte: que
foram à casa de Caetana pedir água, mas que isso teria ocorrido às 7 da noite e não
às 3 da madrugada.
Logo em seguida, o delegado procedeu ao interrogatório das testemunhas. As
três primeiras foram mulheres, pardas, solteiras, de vinte e poucos anos de idade,
moravam nas ruas centrais da cidade e tinham feito parte da noite dos réus: Maria
Joaquina do Espírito Santo, Caetana Maria e Maria Francisca Duarte, que confirma-
ram a versão de João Gomes. Esta última não foi citada no depoimento dos réus, mas
morava na casa de Caetana Maria e confirmou ter aberto a porta para os réus de
madrugada. Sendo a porta aberta, João Gomes entrou para pedir água e ela acordou
a dona da casa para avisar das visitas inesperadas.
Em seguida, Manoel Roberto da Paz, conhecido por Manoel Caxixi, de 26 anos,
preto, casado estava passando com pastoras pela rua do Padre Floriano quando
passaram dois homens que vinham do beco do Sirigado, atravessando para o beco
que ia para a Penha a passos largos e, mesmo na escuridão, ele reconheceu os réus
e, pouco antes de vê-los, tinha ouvido gritos “para a banda da rua direita ou beco
do Sirigado”.
Depois das quatro testemunhas que, de alguma forma, encontraram os réus
por entre o passeio noturno por espaços públicos e privados da cidade, passou-se a
ouvir testemunhas que tinham notícias sobre as cartas trocadas pelos réus antes de
João Gomes se apresentar. Outra parda, Eufrasia Maria das Dores, também solteira,
morava no beco do Sarapatel, tinha 30 anos e foi interrogada sobre uma carta que
João Gomes tinha enviado para João Paz, enquanto o primeiro estava escondido e o
segundo preso na Fortaleza das Cinco Pontas.
Ela confirmou ter ido entregar a carta a João Paz e ainda ter recebido o pedido
de transmitir um recado para Gomes, mesmo Paz já tendo enviado um recado pelo
Cunha e, como não sabia ler, chamou outro preso e ditou-lhe uma carta para ser
entregue a João Gomes. Eufrásia disse ter entregado a carta à mãe do destinatário.
Antônio da Cunha Soares, branco, solteiro, morava na rua das Cruzes, tinha
cerca de 20 anos de idade, era soldado do corpo de Guardas Nacionais destacados,
tinha sido responsável por escrever a carta de João Gomes, a rogo da mãe do réu,
em meio às tentativas dela de tentar convencer o filho a apresentar-se à justiça,
“dizendo que ele tudo havia declarado mostrando-se inocente” e a melhor solução
para ele era ir e declarar-se inocente. Ela entendia que essa carta convenceria o
filho a proceder de acordo com os seus conselhos.
Segundo Antônio, o objetivo da carta era que, por meio da resposta de João Paz,
pudessem se assegurar da inocência de Gomes. No dia que João Gomes se apresentou
à justiça, a testemunha teria conversado com João Paz e ele pediu para dizer à Mãe
de Gomes que declararia na justiça que eles haviam se separado depois de passar
da ponte. No dia seguinte, ele teria procurado João Gomes e este último teria lhe
dito ter visto os crimes, mas que não participara deles, e contou-lhe uma história
parecida com a do seu depoimento.

313
Depois desse rito, foram copiados os autos de vistorias realizados nos cadáveres.
O primeiro, de um “rapaz acaboclado”, por volta de 20 anos, com quatro ferimentos
e, o segundo, de um preto com cerca de 30 anos, com um ferimento. Apontaram o
fato de que o ferimento de ambos parecia ter sido feito com o mesmo instrumento,
que caracterizaram como um punhal de dois gumes. Os responsáveis pela vistoria
declararam que os ferimentos causaram a morte das duas vítimas.
Depois foram copiadas as cartas, elas estão aqui transcritas por serem raros
registros de diálogos entre dois réus de um crime, não normatizados pela linguagem
usada no Tribunal. As cartas mostram uma tentativa de combinarem as versões.
Carta 1: De João Gomes para João Paz

Primeiro que tudo estimo que está lhe ache gozando perfeita saúde Amigo
ao fazer desde ontem recebida a me ir apresentar, previ já não posso estar
mais oculto, por que as minhas provas são poucas como você bem sabe,
mas ainda não quiz me apresentar enquanto não soubesse de você o que hei
de dizer, pois eu conheço que não sou criminoso, e que sei de tudo quanto
foi passado com você, mas tudo isto sucedeu por que vocês não me atendeu
por isso é que há este ditado matos tem olhos, paredes tem ouvidos, assim
você escreva, me mande dizer, que negou, e o que disse, que é para eu fazer
o mesmo, isto com toda brevidade pois minha Mae só quer que eu confesse
como do que não haja des conxavos nas perguntas, mas eu quero padecer
por seu respeito, e mostrar-lhe que tenho coragem para sofrer todos os tra-
balhos, mas nunca botar a perder meus amigos, e no mais aqui fico as suas
ordens, para o qual é de você amigo, obrigado. J.G.C.

Carta 1: De João Paz para João Gomes

Amigo João Gomes, Cá recebi sua carta e vejo o que me manda dizer nella,
amigo o que se passou na casa Doutor Delegado foi isto, eu fui chamado as
perguntas, ele me perguntou como como eu me chamava, eu disse que me
chamava João Francisco Pereira, isso é que você ha de dizer se ele pergun-
tar lhe pelo meu nome As perguntas que ele me fez foram estas, ele me
perguntou se estive no botequim, eu lhe disse que tinha estado, amigo eu
lhe disse que tinha esta do porque as mulheres foram chamadas, que quem
deu a denuncia foi o Senhor Magalhães, e por este motivo eu não pude ser
bom em nada, as perguntas, que ele me fez foram estas. Perguntou-me em
a que horas sair do Botequim, eu respondi pelas onze horas, ele duvidou,
tornou a perguntar eu lhe disse o mesmo, foi então onde ele me perguntou
se eu tinha vindo com vós, eu lhe disse que vim pelas testemunhas que já
estavam presentes, eu não pude ser bom em nada, perguntou me se eu tinha
vindo para casa direito, eu lhe disse que vim , que nós tínhamos vindo pelo
Recife pela Ponte afora, que quando mós cheguemos no arco de Santo An-
tônio vós seguísseis a frente e eu tomei pelo passeio público, foi então, que
ele duvidou, disse então os delitos que aparecem, nada mais tendo a dizer a
você disse que lhe venero.

314
Após as festividades e feriados de fim de ano, em 2 de janeiro de 1844, deu-se
debret, Jean-Baptiste. Passeio de domingo
à tarde. a sentença interlocutória para se proceder ao sumário contra os dois. Depois, o de-
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do. legado ordenou que, na próxima audiência, os réus assistissem à “formação de culpa
Debret e o Brasil: obra completa: 1816-1831. 3.
pelo crime de morte de um preto que vendia pão e um rapaz que o acompanhava
ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. p. 165.
no lugar da rua direita”, e notificou oito testemunhas.
No dia 16 de janeiro se deu o processo de formação de culpa. Fez-se o auto de
qualificação dos réus João Gomes Carmo e João Francisco Ferreira, que confirmaram
os dados do interrogatório, com a diferença de que Paz destacou apenas ser pedreiro.
Como podemos acompanhar pela publicação dos atos oficiais no Diário de Pernam-
buco do dia 9 de janeiro, por decisão do Comando de armas de 19 de dezembro de
1843, Paz tinha sido excluído do batalhão por cometer crimes civis.
Depois da qualificação, passou-se à inquirição de testemunhas. Dessa vez foram
ouvidos João Borges Alves, violeiro, que morava na rua das águas verdes, inspetor

315
de quarteirão. Os inspetores de quarteirão eram escolhidos entre as pessoas de
poucas posses. Faziam parte das camadas sociais que teriam preferencialmente que
controlar e, para muitas, o emprego que não trazia compensação financeira trazia
muitas preocupações.
Por volta das três da madrugada, saiu de casa para cumprir suas obrigações e
achou, na travessa da viração, ao sair das Águas Verdes, “um rapaz que lhe pareceu
branco e de um preto”, já estando lá uma patrulha da polícia. Não sabendo ainda o
que tinha ocorrido, assistiu às investigações sobre o que havia acontecido e, como
parte de suas funções, também foi comunicar ao juízo sobre os corpos encontrados,
ficou sabendo também terem sido feridos um português, no Recife, e um preto, no
Bairro do Recife. Depois da noite, a conversa sobre os crimes violentos na noite do
Recife deve ter sido um dos assuntos recorrentes entre os populares que circulavam
por aquela região, no ciclo natalino de 1843, e ele descobriu que os autores do crime
estavam presos e que um deles havia, inclusive, confessado.
Outro morador da rua das Águas Verdes, Manoel José Vieira Braga, de 28 anos,
vivia de negócio. Disse ter visto, em dezembro, entre três e quatro da madrugada,
gente na rua e abriu a janela para ver o que ocorria. Assim tomou conhecimento
dos cadáveres caídos. No Recife Oitocentista as pessoas se conheciam relativamente
bem e prestavam muita atenção no que acontecia na rua. Com pouco tempo, vários
dos que aproveitavam a noite ou simplesmente estavam em casa foram averiguar
a situação.
O processo seguiu com a inquirição de Severina Maria da Conceição, preta,
casada, que morava no atual do bairro de São José, vivia de suas costuras e, ao saber
do crime, interessou-se em conhecer mais detalhes dos acontecimentos nas ruas e
nos movimentos iniciais da polícia. Ao encontrar sua amiga Narciza, perguntou-lhe
por que ela tinha ido à casa do delegado, e ela lhe contou que foi para confirmar a
hora da visita dos réus a sua casa, na noite dos crimes, e disse ter sido de madrugada.
Ainda falaram com a dona da casa de Narciza para saber se a mãe do réu te-
ria ido a sua casa perguntar se seria bom se Paz enviasse uma carta a João Gomes
pedindo socorro, e esta última disse que não se embaraçava com isso. Além disso,
conversaram sobre o receio de testemunhar contra João gomes, porque costumavam
sair à rua de noite e não queriam ser ofendidas em suas pessoas.
A preocupação com os perigos da cidade potencializava-se nesse momento do
dia. Diversos crimes podiam ser escondidos pela escuridão. O risco era maior para
uma mulher preta pobre. A presença das mulheres nas ruas da cidade as deixava
suscetíveis à violência, talvez por isso pediam para ser acompanhadas por conhe-
cidos quando deixavam os espaços de divertimentos e encontros. Entretanto a rua
era inevitável para muitas das mulheres das camadas populares.

Apesar dos “rígidos” códigos patriarcais de conduta que impeliam as mulhe-


res a evitarem o contato com o mundo da rua foi, nessa esfera, onde muitas
em virtude de suas duras condições de vida forjaram papéis sociais ao bus-
carem garantir o seu sustento diário, bem como onde também procuravam
por divertimento com os seus pares. (morais, 2011, p. 52).

316
Em seguida, Maria Francisca Duarte, parda clara, testemunhou. Ela vivia de
agências e morava no beco do pocinho, região próxima aos crimes. Falou sobre a
carta sido pedida pela mãe do réu João Gomes e, também, ter descoberto que a rou-
pa do réu tinha sido lavada. João Paz aproveitou os dois testemunhos para afirmar
que esses depoimentos o favoreciam. Favorecendo ou não os réus, os depoimentos
nos mostram a articulação que uma mulher poderia tecer na cidade do Recife para
tentar garantir a liberdade de seu filho.
Outra testemunha foi Antônio Francisco dos Santos, pardo, solteiro, de 21
anos de idade, sapateiro. Ele disse ter ido em um dia de dezembro a um botequim
no porto das canoas, às onze horas da noite, e lá encontrou os dois réus, que teriam
ficado no botequim mesmo quando ele já tinha saído. Na mesma noite, os réus o
encontraram sentado depois da meia noite em um dos bancos da ponte do Recife,
recostado cobrindo o rosto com um chapéu.
João Gomes e João Paz teriam lhe perguntado o que ele fazia e Gomes teria dito
ao réu João Francisco, “compadre vamos-nos embora, este rapaz eu conheço”, pouco
depois, eles teriam voltado, mandando que ele se retirasse, dirigindo-se outra vez a
ele dizendo: “ainda estais aí, é bom que te retires”. Essa atitude o levou a suspeitar
que os dois queriam furtar alguma coisa no arco da conceição. O depoimento tam-
bém demonstra ter sido o processo assunto de suas conversas pelas ruas da cidade,
pois disse saber que Gomes estava preso e havia confessado.
O soldado do corpo da polícia, José Fernando Caparica, pardo, casado, de trinta
e oito anos de idade, morador na rua do fogo, soldado do corpo da polícia e respon-
sável por conduzir João gomes à delegacia, também falou da carta e que a mãe de
João Gomes lhe procurou para dizer que o seu filho não tinha parte nos assassínios
e estava tentando fazer com que ele se apresentasse, mas não sem ter a resposta de
Paz à carta do seu filho. João Paz aproveitou os vários depoimentos sobre as arti-
culações da mãe de João Gomes para argumentar ser esse fato uma prova ser João
Gomes o autor dos assassinatos e, junto com sua mãe, teriam forjado uma falsa
carta inocentando Gomes e incriminando-o.
Há ainda uma correção do prosseguimento do dossiê processo em um despa-
cho ressaltando que não consta que o réu fosse preso em flagrante e não por ordem
escrita da autoridade, sem ele a prisão não pode ser legal.
Em 21 de janeiro houve novo interrogatório com os réus, onde foram pergun-
tados se atribuíam a algum motivo do sumário e se tinham provas de sua inocên-
cia. João Paz respondeu que atribuía à inimizade de João Gomes e ofereceu como
prova de sua inocência o fato de os depoimentos não o incriminarem. Além disso,
afirmava que a informação do réu João Gomes não o podia incriminar,

[...] por quando e princípio reconhecido por ilustres criminalistas, que uma
tal informação em muito pode apenas servir de um remoto indicio, o que
não pode dar lugar a uma pronuncia que no estado de nossa legislação e na
hipótese do interrogado é uma pena assaz rigorosa. E por isso esperava ele
interrogado a imparcialidade e sobejas luzes do Senhor Doutor Delegado de
não ser pronunciado.

317
Como não sabia escrever, quem assinou por ele foi Francisco Borges Mendes,
uma figura pública importante ligada ao partido dos praieiros; como ressalta Marcus
Carvalho, foi indiciado como um dos líderes da Rebelião Praieira e se apresentava
como um solicitador de causas. (carvalho, 1998b, p. 53).
João Gomes respondeu ter andado naquela noite a passeio pelas ruas do Recife,
com o réu João Francisco Pereira, mas sem cometer crime algum. Disse conhecer
todas as testemunhas e não ter um motivo particular a que atribui esse procedi-
mento da justiça. Por não saber escrever, Antônio Marcelino Xavier assinou por ele.
Ainda foi requerido pelo promotor público Benvenuto Augusto Magalhães Ta-
ques que se interrogasse Manoel Gomes, ferido pelos réus. O Delegado concordou com
a solicitação e mandou juntar o auto de vistoria de Manoel Gomes. Em 10 de abril
de 1844, o Delegado concluiu o sumário, considerando os réus autores dos homicí-
dios, com base na confissão do réu João Gomes e no depoimento das testemunhas.
Mandou proceder à prisão e livramento, incorrendo os réus no artigo 192 do
código criminal. O homicídio fazia parte do título ii do Código criminal, dos crimes
contra a segurança individual, capítulo I crimes contra a segurança da pessoa e
vida, que tinha cinco artigos, que tratavam de uma dosimetria mínima e máxima
das penas de acordo com as peculiaridades do crime.
O artigo 192 referia-se a matar alguém com algumas das circunstâncias agra-
vantes previstas no artigo 16 do Código (brasil, 1830), eram elas cometer o crime
com veneno, incêndio, ou inundação, com abuso da confiança, por paga, ou esperança
de alguma recompensa, a emboscada, por ter o delinquente esperado o ofendido em
um, ou diversos lugares, o arrombamento para a perpetração do crime, com entra-
da, ou tentativa para entrar em casa do ofendido, com intento de cometer o crime,
ajuste entre dois ou mais indivíduos para o fim de cometer-se o crime. Para esse
artigo a pena máxima era a morte, a média era a de galés perpétuas e a mínima de
vinte anos de prisão, com trabalho.
Depois, seguindo os ritos processuais, o delegado ordenou que os autos fossem
enviados para o Juiz Municipal da segunda vara do Recife, intimou os réus da sen-
tença e o promotor público. Os promotores públicos foram autoridades criadas pelo
Código de Processo Criminal, nomeadas pelo governo central. Tinham como funções,
denunciar os crimes públicos e policiais, acusar os delinquentes perante os jurados,
solicitar prisão e punição, promover a execução das sentenças e mandados judiciais,
além de alertar sobre problemas dos empregados na administração da justiça.
Os juízes municipais tinham jurisdição policial e eram responsáveis pela
execução da sentença. Em 08 de junho o juiz José Nicolao Rigueira Costa sustentou
a pronúncia decretada contra os réus João Francisco Pereira e João Gomes do Car-
mo, e os condenou a pagar as custas. Em 15 de junho o réu, João Francisco Pereira,
requereu o traslado dos autos, para ser julgado em separado.
O processo foi entregue ao Tribunal dos jurados e em vistas ao Promotor pú-
blico, que elaborou o Libelo acusatório,

Por Libelo acusatório diz a justiça contra os réus


Provará na noite de onze para doze de dezembro último na Rua Direita desta
capital fora dada a morte com ferimentos descritos no corpo de delito folhas
ao pardo Bernardo de tal e ao preto escravo Antônio que o acompanhava

318
Provará que os réus concorreram para o cometimento dos homicídios re-
feridos
Provará que os réus cometeram mesmo esses homicídios
Provará que os réus são em conformidade do artigo quatro do código criminal
autores do crime qualificados seu artigo cento de noventa e três do mesmo
código, duas vezes.
Provará que os réus cumpram os crimes referidos com as circunstâncias
agravantes e a noite do parágrafo primeiro do artigo dezesseis de motivo
reprovado do parágrafo quarto de superioridade em força, e armas, do pará-
grafo seis de surpresa, do parágrafo quinze.
Neste termo provará que conforme nos de direito devem ser os réus con-
denados no grau máximo das penas do citado artigo cento e noventa e três
por cada delito mencionado
Promotor público Magalhães Tacques

Em 22 de junho de 1844 ocorreu a sessão do júri. Com a presença do Juiz e


Direito interino da Segunda Vara do Crime, o escrivão, do porteiro do júri, do pro-
motor público Benvenuto Augusto de Magalhães Tacques, os jurados sorteados fo-
ram chamados pelo toque da campainha. Compareceram quarenta e quatro jurados
e foi declarada aberta a sessão. O juiz passou a analisar as escusas e a dispensar
alguns jurados.
Posteriormente foram chamados o réu João Gomes do Carmo e as testemunhas
do processo. As testemunhas foram recolhidas em um quarto separado e, então, o
juiz perguntou se o réu tinha um rol de testemunhas a apresentar. Como não foram
acrescentadas testemunhas, seguiu-se ao sorteio do conselho de sentença.
Após esses ritos, teve lugar o interrogatório do réu João Gomes no tribunal dos
jurados. Ele confirmou o depoimento feito ao delegado. Em seguida, as testemunhas
foram inquiridas pela acusação e defesa, depois, o conselho se dirigiu à sala de suas
conferências, onde ficaram à porta fechada, até voltar algum tempo depois com uma
decisão a favor do réu. O Juiz confirmou a sentença, absolvendo o réu.
O júri deveria responder se o réu concorreu para que fossem assassinados ou
se cometeu os homicídios, bem como sobre as circunstâncias agravantes de ter sido
o crime praticado à noite, por motivos reprovados, superior em armas e forças, ou
cometido com surpresa. E, também, tinham que responder sobre se haviam ou não
circunstâncias atenuantes. O júri respondeu não a todas as perguntas.
O juiz de Direito, que presidia o conselho de jurados, confirmou a sentença
e ordenou que o escrivão passasse o alvará de soltura. No dia 25 de junho, a sen-
tença foi intimada ao Promotor público. No mesmo dia, depois da sessão aberta, o
promotor resolveu pedir a palavra na sala dos jurados para apelar ao Tribunal da
Relação da decisão do júri.
Depois, seguiu-se ao termo de apelação do promotor uma procuração do réu
com documento onde contestava a apelação como uma das mais notáveis aberrações
da justiça, justificando que o juiz havia concordado com a decisão do júri e que ela
não fora injusta, e que o recurso do promotor não estaria de acordo com o artigo
301 do código do processo e 78, §4, da Lei de 3/12/1841. O acusado argumentava

319
que, pelos mencionados artigos, as sentenças proferidas pelo júri não deveriam ter
outros recursos, senão a apelação para a Relação do Distrito, quando não tivessem
sido guardadas as fórmulas substanciais do processo ou o juiz de direito se não
conformar dos juízes de fato.
Em 27 de outubro, João Gomes do Carmo peticionou para que se inserisse nos
autos a condenação de João Francisco Pereira por homicídio no tribunal dos jurados.
A estratégia de pedir para ser julgado em separado não funcionou bem para ele.
Pelos anúncios das sessões do júri do Recife, publicados no Diário de Pernambuco,
sabe-se que no dia 11 de outubro ele foi julgado, tendo como defensores o Dr. Velez
e Borges da Fonseca, outro célebre praieiro. O júri absolveu o réu, mas o juiz de
direito apelou, por ser a decisão contrária à evidência. O Promotor também apelou
da decisão (Diário de Pernambuco, 15/10/1844).
O acórdão da Relação, de 14 de dezembro de 1844, julgou procedente a apelação
por se haver preterido por muitas evidências, em conformidade com o artigo 238 do
Código do Processo Criminal e 344 do Regulamento de 31/06/1842, decidindo que
o processo fosse submetido a novo júri.
Em 13 de março de 1845 foi realizada uma nova sessão do júri, onde as respostas
para o libelo acusatório foram diferentes. Responderam que o réu concorreu para os
homicídios, mas não os havia praticado diretamente. Concordaram que ocorreram as
circunstâncias agravantes de ter o delito sido realizado à noite, por motivo frívolo e
com superioridade de armas, forças e, ainda, com surpresa. Entretanto destacaram
como circunstâncias atenuantes o fato de “não ter havido no delinquente pleno
conhecimento do mal e de certa intenção de o praticar.”
Frente à decisão do júri, o juiz condenou João Gomes do Carmo a dezoito anos
e quatro meses de prisão, por estar “duas vezes incurso no grau médio do art. 193,
combinado com os artigos 34 e 49 do Código Criminal”. O artigo 183 referia-se aos
homicídios que não estivessem revestidos das circunstâncias agravantes do artigo
192, e tinham como pena máxima a de galés perpetuas, de prisão com trabalho por
doze anos no grau médio e, por seis anos, no grau mínimo.
Os artigos 34 e 49 faziam parte do título sobre as penas, capítulo da qualidade
das penas e da maneira como se hão de impor e cumprir, que definia que a tentativa
de um crime deveria ser punida “com as mesmas penas do crime, menos a terça
parte em cada um dos graos” (brasil, 1830), e o artigo 49 definia que, enquanto não
houvesse prisões com os arranjos necessários para os trabalhos dos réus, as penas
seriam de prisão simples, sendo acrescentada a sexta parte do tempo previsto.
Dessa vez foi João Gomes quem apelou da sentença, constituindo como advo-
gados José Francisco de Paiva e solicitadores Pedro José Nunes e Matheus de Souza
Teixeira. O advogado alegou ter sido a sentença “impelida pela força do ódio e par-
ticular vindicta” e teria procurado e preparado os juízes para condenar o réu, além
disso de ter havido violação das fórmulas processuais.
O promotor público Luiz José de Sampaio alegou não haver motivos para apela-
ção. Em 12 de agosto de 1845, o processo foi distribuído no Tribunal da Relação e, em
26 de agosto, foi certificado ser o réu muito pobre e, por isso, não poderia preparar
o processo e nem pagar pelo selo. Fizeram-se, então, os autos conclusos, julgando
o recurso improcedente, condenado o réu às custas, em 20 de setembro de 1845.

320
A agitada noite de dezembro, que começou como tantas outras, depois de um
dia de trabalho, acabaram transformando radicalmente a vida dos réus. Foi o fato
desse momento de exceção ter ocorrido que possibilitou o registro de partes da vida
dessas pessoas, analisar alguns dos muitos caminhos tomados pelos populares em
seus momentos de divertimento que, como relatam os autos do processo, podiam
se transformar em desordens, tornando-se um acontecimento com significativo
destaque social, envolvendo variadas vidas e instituições da época e possibilitando
um novo ângulo de observação das sociabilidades e da prática judiciária no Recife
Oitocentista.

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325
326
CAPÍTULO 12 - A Justiça e a legislação
fundiária em meados do século xix: dois
alicerces da centralização política no ii Reinado

Cristiano Luís Christillino1

Introdução

Ao longo da década de 1840, o Governo Imperial encaminhou-se para a centrali-


zação e estabilidade institucional. O reordenamento político do Estado, o início da
reestruturação do exército de linha, e a Lei de Organização da Guarda Nacional, em
1850, foram fundamentais para a afirmação do Brasil enquanto potência regional
junto aos vizinhos platinos. Em meados do século xix, o problema central para a
consolidação das fronteiras do Império era o vazio demográfico nas províncias limí-
trofes, que abrigavam amplos espaços internos abertos à colonização. A necessidade
de um projeto enérgico de colonização, especialmente das regiões fronteiriças aos
estados confinantes, acelerou a discussão em torno de uma nova legislação fundi-
ária: a Lei de Terras de 18502.
Essa legislação constituiu o primeiro código legal do Estado brasileiro a respeito
do acesso à terra, apenas 28 anos após a sua independência política. Neste interreg-
no, o Governo Central do Primeiro Reinado, do Período Regencial, e mesmo na fase
inicial do Segundo Reinado, estava diante de um grande desafio: como modernizar
a estrutura fundiária, de modo a mapear as terras públicas e garantir a afirmação
de propriedade e, ao mesmo tempo, contemplar todas as especificidades regionais? O
crescimento da economia, alicerçada em bases rurais, dependia da criação de títu-
los de propriedade juridicamente plenos, para fomentar a expansão do crédito. Isto
1  Doutorado em História pela quando a maioria desses títulos não oferecia garantias para a execução de hipotecas.
Universidade Federal Fluminense É prova disso o vasto número de ações ordinárias e de libelo cível encaminhadas
(uff, Brasil, 2010); Professor no
ppgh da Universidade Federal de aos juizados, motivadas por disputas de terras, sendo muitas delas execuções de
Pernambuco (ufpe); Professor da hipotecas causadas pelo questionamento da validade dos títulos
Universidade Estadual da Paraíba (uepb);
[email protected]. De fato, houve longa demora na tramitação e aprovação do projeto apresentado
2  Lei n° 601 de 18 de setembro de 1850, por Bernardo Pereira de Vasconcelos, em 1842. Esse projeto somente foi aprovado
regulamentada pelo Decreto n.º 1.318 de
30 de janeiro de 1854, conhecido como o
em setembro de 1850, e regulamentado pelo Decreto 1.318, de 30 de janeiro de 1854.
Regulamento de 1854. Isso já apontava sinais de que a aplicação da lei não alcançaria os resultados deseja-

327
dos pelo gabinete chefiado pelo marquês de Monte Alegre, ainda que não incluísse
o imposto territorial.
A Lei de Terras trouxe vários dispositivos que, uma vez aplicados, poderiam
provocar uma reordenação do espaço rural. Ela proibia o acesso à terra por meio
de posse, e somente permitia a obtenção de terrenos devolutos por meio da compra
feita ao governo. A Lei de Terras instituiu as declarações das áreas possuídas nas
respectivas freguesias - os chamados registros paroquiais ou do vigário. Ela previa a
legitimação das sesmarias ou de outros títulos de concessões do governo outorga-
dos até aquela data, e também das posses. No caso dessas últimas, a lei permitia o
acréscimo de outra área igual à ocupada em terrenos devolutos, desde que a extensão
final não ultrapassasse o tamanho da maior sesmaria doada na freguesia onde es-
tava localizada a posse. Esse trâmite consistia em um longo processo que envolvia
a comprovação de posse por ocupação primária ou título de concessão, a medição da
superfície requerida e, em muitos casos, a resolução de ações de embargo promovi-
das pelos confrontantes, além de vários outros trâmites burocráticos. Terminado o
processo, então concedia-se o título de propriedade. Essas três etapas se desenrola-
vam em uma grande variação de extensão temporal, uma vez que poderiam durar
entre 2 e 30 anos (christillino, 2019).
A Lei de Terras de 1850, no Brasil, acompanhou um processo internacional,
uma vez que vários países da América Latina, em meio às transformações capita-
listas, adotaram políticas fundiárias para assegurar juridicamente a propriedade da
terra e transformá-la em mercadoria. (checchia, 2007; smith, 1990). Mas ela corres-
pondeu, antes de tudo, às especificidades de cada país. Os dirigentes latino-ameri-
canos, após os processos de independência, buscavam a modernização desses países
e a superação das suas estruturas coloniais. Em meio às transformações capitalistas
do século xix, havia uma demanda pela renovação da estrutura produtiva, mas sem
alterar as suas respectivas hierarquias sociais (silva; secreto, 1999). No Brasil, a lei
não modernizou a estrutura fundiária e tampouco provocou a consolidação imediata
do capitalismo, mas ela teve um forte impacto político.
A Lei nº 601 de 1850 sofreu um longo caminho na Câmara dos Deputados e no
Senado. O seu projeto original foi apresentado em 1842. Os longos debates travados
a respeito das suas proposições giraram em torno das questões do pagamento do
imposto territorial e, principalmente, da proibição das posses que consistiam na
apropriação de áreas públicas (motta, 1998). O Brasil apresentava uma disparidade
quanto à forma de apropriação e utilização da terra, fosse em função das especi-
ficidades da colonização, ou em função dos recursos naturais das suas diferentes
regiões. A pecuária era desenvolvida de modo heterogêneo nos pampas do Sul, no
Pantanal do Mato Grosso, no Cerrado de Goiás e Minas Gerais, ou ainda na Caatin-
ga do Nordeste. Da mesma forma, a relação entre a agricultura e a apropriação da
terra era diferente nas províncias da Zona da Mata das atuais regiões do Nordeste
e Sudeste, ou ainda nas áreas florestais amazônicas, ou no Brasil meridional. Por
outro lado, nas províncias que futuramente comporiam o Nordeste e o Velho Norte
(nascimento, 2019), e também no Rio de Janeiro e em Minas, de colonização mais
antiga, existia uma fronteira fundiária praticamente consolidada e com poucos
espaços considerados devolutos. Já as províncias do Rio Grande do Sul, Santa Cata-
rina, Paraná e São Paulo ainda contavam com uma fronteira agrária em aberto. O

328
mesmo caso se repetia no Mato Grosso, Goiás, Maranhão, Pará e Amazonas. Nesses
locais, a dinâmica de apropriação de terras devolutas era vital à expansão econômi-
ca e política das suas elites, enquanto que nas primeiras unidades administrativas
a questão mais importante era a da mão de obra. De fato, a restrição do acesso às
suas últimas áreas de terrenos devolutos por parte de famílias livres e pobres era
vista, por muitos, como uma das principais causas da escassez de braços. Portanto,
as diferenças regionais quanto à existência de uma fronteira de expansão agrária,
e dos próprios interesses divergentes das suas elites quanto à liberação ou proibição
de lotes, constituíam um grande obstáculo para a criação de uma lei que regula-
mentasse o acesso à propriedade da terra no Brasil.

1. As mudanças previstas na Lei

A Lei de Terras determinava que a partir da sua promulgação, em 1850, estaria


proibido o acesso às terras públicas pela posse; a sua obtenção ocorreria somente
por meio da compra ao Governo Imperial. Além disso, ela previa pena de dois a seis
meses de prisão e multa de 100 mil réis, para quem a descumprisse. A Lei somente
permitiria a distribuição gratuita de lotes em uma faixa de 10 léguas ao longo das
fronteiras do Império. Com relação às terras devolutas (públicas), a Lei previa que
elas seriam constituídas por aqueles terrenos que não estivessem sob domínio parti-
cular ou utilizados como servidão pública. Quanto às terras sob domínio particular,
elas seriam legitimadas, e seria outorgado um título público de propriedade àquelas
oriundas de sesmarias e demais concessões que estivessem devidamente ocupadas,
e também às áreas obtidas por meio de posse no período anterior a 1850, mediante
a comprovação de sua ocupação efetiva.
A Lei determinava a realização de registros paroquiais de terras nos quais os
proprietários deveriam declarar as suas áreas, para que o Governo Imperial pudesse
demarcar os lotes públicos. Esses registros tiveram início nas províncias do Norte
Agrário, ou Velho Norte, em 1857. Em 1860, começaram os processos de legitimações
de terras, que se estenderam até o final do Império, em 1889, sendo que alguns
desses foram julgados somente durante a Primeira República.
Além disso, os registros paroquiais de terras tiveram um caráter de censo. Os
padres foram responsáveis pela realização dos registros nas freguesias (paróquias),
isto porque a Igreja Católica, no Brasil, estava atrelada ao Estado Imperial pelo pa-
droado régio, e os clérigos ocupavam funções burocráticas. O Regulamento de 1854
determinou que os vigários não poderiam recusar as declarações “pelo modo por
que se acharem feitas”, portanto, uma boa parte dessas declarações ignoravam as
confrontações e, até mesmo, a localização das áreas. Os declarantes não precisavam
apresentar documentos comprobatórios e nem mesmo testemunhas nos casos de
posse (motta, 1998). Logo, essas declarações não asseguravam a legitimidade pública
sobre as áreas registradas, e as suas informações deveriam ser entendidas como um
censo. Contudo, pode-se afirmar que os registros paroquiais de terras constituem
o mais completo censo rural do Brasil em meados do século xix. Eles custavam
relativamente pouco aos seus declarantes, entre 1$000rs e 4$000rs, enquanto que a
multa para aqueles proprietários que não consignassem suas terras era no valor de

329
200 mil réis3. Assim sendo, a grande maioria dos proprietários declarou suas áreas
possuídas ou então pretendidas.
O passo seguinte aos registros paroquiais era o encaminhamento dos processos
de revalidação e legitimação de terras. Esses autos eram abertos pelos proprietários
para a obtenção de um título de propriedade. A Lei de Terras determinava a institui-
ção destes processos para que, depois de medidos e demarcados os lotes particulares,
o Governo Imperial mapeasse os terrenos públicos. Os processos de revalidação de
terras deveriam ser encaminhados por aqueles proprietários que tivessem recebido
concessão de terrenos (sesmarias, datas e outras), ou que tivessem comprado ou her-
dado áreas oriundas de outorga. Já os processos de legitimação seriam encaminhados
por aqueles que tivessem obtido as suas terras por meio da posse ou as adquirido
dos primeiros posseiros. As repartições especiais de terras públicas nas províncias
receberam um número muito maior de processos de legitimação do que de revali-
dação, uma vez que o Regulamento de 1854 permitia a utilização de documentos de
concessões, como sesmarias e datas, como registros legítimos de transmissões de
propriedade (christillino, 2019, p. 23). Essa era uma situação diferente das posses,
que não ofereciam garantias aos seus proprietários.
No caso dos autos de legitimação de terras, o requerente apresentava uma
solicitação de processo ao juiz comissário do município. Este nomeava dois peritos
para a verificação de cultura efetiva e morada habitual, com a finalidade de fiscalizar
a área requerida e atestar sua ocupação permanente. Confirmado o ato da posse
pelos encarregados, o legitimante apresentava testemunhas que comprovassem a
sua cultura efetiva e morada habitual sobre o respectivo terreno, no período anterior
a 1850, ano em que foi promulgada a Lei de Terras e, por conseguinte, proibidas as
ocupações primárias. Realizada essa primeira etapa, o juiz comissário nomeava a co-
missão de medição, formada pelo agrimensor, escrivão e ajudantes. Eram afixados
editais em locais públicos que citavam o lugar e as datas dos trabalhos, e também
eram entregues cartas de citação aos confrontantes, convocando-os para o serviço de
agrimensura. Durante as medições, os posseiros que se encontrassem estabelecidos
no interior das áreas legitimadas poderiam requerer indenização pelas lavouras e
benfeitorias que tivessem construído no local, por meio da nomeação de um árbitro.
Já no caso dos confrontantes, estes também poderiam solicitar o ressarcimento ou
acordo com o legitimante devido a eventuais prejuízos, ou então encaminhar um
pedido de embargo à medição. Essas solicitações e os autos do processo eram enca-
minhados à Repartição Especial de Terras Públicas, na qual recebiam o parecer do
fiscal e do delegado e, mais tarde, do diretor-geral. Então, eles eram enviados para
apreciação do presidente da província. Este poderia aprovar o processo, solicitar a
correção das faltas, ou então anulá-lo4. Caso o processo fosse aprovado pelo presidente,
o legitimante obteria um título de propriedade.
Os processos de legitimação expressaram as disputas existentes em torno da
apropriação fundiária. As ações eram caras e demoradas, e o seu encaminhamento
ocorria geralmente diante da ameaça de outros confrontantes que possuíam o mesmo
poder econômico ou prestígio social. Os fazendeiros não os encaminhavam apenas
para cumprirem as determinações da Lei de Terras, pois esse era um procedimento
3  Conforme o artigo 13 da Lei de Terras
pelo qual se poderia, inclusive, questionar sua ocupação. Em geral, eles foram abertos de 1850.
devido a litígios em torno das posses, o que forçava os seus requerentes à obtenção 4  Conforme o Decreto 1.318 de 1854.

330
de títulos que assegurassem a legitimidade pública sobre as terras privadas. Esses
processos revelam a dinâmica política da afirmação de propriedade e mostram outra
face da aplicação da Lei de Terras de 1850: o impacto da sua execução no processo de
centralização política do Governo Imperial. O Decreto número 1.318, de 30 de janeiro
de 1854, que regulamentou a aplicação da Lei, estabeleceu que as ações de legitima-
ção e revalidação de terras tramitariam nas repartições especiais de terras públicas.
Estes órgãos estavam subordinados às secretarias das presidências provinciais, e
o julgamento sobre os processos caberia ao chefe do Executivo provincial, e não a
um magistrado. Portanto, a aprovação dos autos dependeria da avaliação do presi-
dente provincial sobre os processos. Estes foram encaminhados diante de litígios e
sua aprovação dependeu, em boa parte dos casos analisados e do grau de relações
políticas entre o legitimante e a presidência da província (christillino, 2012). As
ações pesquisadas nas províncias do Rio Grande do Sul e em Pernambuco revelam
a intensidade das disputas em torno da apropriação territorial e os enfrentamentos
entre os membros da elite no apossamento das terras devolutas.
Um processo de legitimação muitas vezes era fruto do enfrentamento de duas
famílias que ocupavam altas patentes na Guarda Nacional. Essas disputas equilibradas
exigiam uma maior aproximação dos fazendeiros com a presidência da província.
Além disso, os dispositivos da Lei, ao proibirem a posse após 1850 e exigirem a
ocupação efetiva das áreas apropriadas para a sua titulação, ameaçaram o direito de
acesso dos mesmos fazendeiros. Por conseguinte, esse contexto exigiu dos posseiros
uma maior negociação política com a Coroa (christillino, 2012).
O Decreto nº 1318, de 30 de janeiro de 1854, apresentou uma série de mecanis-
mos legais que, quando utilizados pelo Estado, poderiam colocar em risco as posses
dos fazendeiros. Por outro lado, a obtenção do título de propriedade dependia do
julgamento do presidente provincial. Os processos de legitimações encaminhados na
província de Pernambuco mostram que uma parcela significativa da elite não vetou
a Lei e ficou dependente da sua aplicação para garantir a afirmação de propriedade
(christillino, 2013). Essa conjuntura repercutiu nas relações políticas estabelecidas
entre os fazendeiros pernambucanos e a Coroa.
A Lei trouxe dispositivos importantes para o controle social sobre as terras
públicas, ao criminalizar a posse e a invasão das áreas devolutas. Esta foi a preo-
cupação de grande parte dos representantes dos grandes fazendeiros na Câmara e
no Senado. No entanto, a lei não conseguiu criar alternativas ao grande problema
econômico e geopolítico enfrentado pelo Império: o vazio territorial. Os casos mais
agudos estavam justamente nas províncias de fronteira: São Pedro do Rio Grande
do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso, Amazonas e Pará.

2. A Lei de Terras e a imigração

Em 1856, o Brasil possuía uma população ainda escassa, com cerca de sete milhões
e seiscentos mil habitantes, conforme o levantamento realizado pelo Ministério de
Negócios do Império. Em 1872, por ocasião do primeiro censo realizado no Brasil,
a população beirava os 10 milhões de habitantes (9.930.478 pessoas). As províncias
da região que futuramente constituiriam o Nordeste, ou o Velho Norte, possuíam a

331
maior densidade demográfica da época, e contavam com quase metade da popula-
debret, Jean-Baptiste. São Carlos vista do
ção brasileira. A Bahia tinha cerca de 1,4 milhões de habitantes; Pernambuco, 1,1 caminho para Curitiba.
milhões; o Ceará 700 mil, e a Paraíba, 400 mil5. Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do.
As províncias do Sudeste tinham uma população considerável para a época, Debret e o Brasil: obra completa: 1816-1831. 3.
ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. p. 273.
de quase quatro milhões de habitantes, e também a maioria de suas terras esta-
vam ocupadas. De fato, Minas Gerais era a província mais populosa do Império,
com dois milhões de residentes. Em Minas e na província fluminense, que contava
com um milhão de habitantes, havia pouca disponibilidade de terrenos livres. Caso
semelhante ocorria na Província do Espírito Santo que, apesar de contar com uma
população de apenas 80 mil indivíduos, possuía poucas áreas abertas para a expan-
são da fronteira interna, concentradas principalmente na Serra do Caparaó, região
montanhosa e de difícil acesso. São Paulo, com 300 mil habitantes, era a província
do Sudeste que tinha uma significativa fronteira agrária aberta. De fato, o Oeste
paulista, em meados do século xix, ainda possuía muitas extensões florestais nas
mãos dos indígenas ou dos caipiras.
As províncias do Sul, de ocupação mais tardia pelos portugueses em relação
ao Nordeste e Sudeste, possuíam uma população relativamente pequena por oca-
sião do censo de 1872, e ainda apresentavam áreas importantes para a expansão
da fronteira interna. A província mais densamente povoada era a de São Pedro do
Rio Grande do Sul, que contava com 434 mil habitantes. Ainda assim, nos campos
das regiões da Campanha e Fronteira, “huns poucos fazendeiros sucessivos, fasem
deserta uma porção de terreno maior do que a occupada por alguns pequenos Es-
tados d’ Allemanha” (relatório, 1849, p. 11). Por outro lado, as áreas florestais da
província meridional encontravam-se em grande parte devolutas; ou seja, ainda não 5  ibge. Disponível em: < https://
https://biblioteca.ibge.gov.br/
estavam formalmente apossadas pelos súditos do Império, embora habitassem essas visualizacao/livros/liv25477_v1_br.pdf >.
áreas um grande número de tribos indígenas, especialmente os kaingang, e também Acesso em: 12 ago. 2020.

332
de famílias livres pobres, que ali se dedicavam a extração do mate. Por sua vez,
a Província de Santa Catarina possuía uma população exígua, com pouco menos
de 160 mil habitantes. Os seus residentes concentravam-se na faixa próxima ao
litoral e na Serra do Mar. Já o Oeste catarinense ainda permanecia pouco povoado,
pois era reivindicado pela República Argentina e o Império do Brasil, o que mais
tarde conhecida como a Questão de Palmas, o que não estimulava o deslocamento de
colonizadores. A Província do Paraná, desmembrada de São Paulo em 1853, possuía
apenas 126 mil habitantes em 1872. Os campos gerais, no Segundo Planalto para-
naense, e os Campos de Guarapuava também estavam ocupados pela pecuária, e
as áreas florestais do Terceiro Planalto paranaense estavam dominadas em grande
parte pelas tribos indígenas Kaingang e, portanto, ainda pouco povoadas pelos súditos
do Império (borges, 2014).
As duas grandes fronteiras internas do Império eram constituídas pela Pro-
víncia do Mato Grosso e pela região amazônica, que abrangia principalmente as
províncias do Pará e do Amazonas, com uma baixíssima densidade populacional
para a época. Em 1872, o Pará contava com uma população de 275 mil habitantes,
e a jovem Província do Amazonas, com apenas 57 mil almas. O clima e as distân-
cias até os principais centros comerciais do Império, e a ausência de uma política
enérgica de colonização, dificultaram o desenvolvimento dessas duas províncias.
O Mato Grosso constituía outra grande fronteira de expansão. Entre 1850 e
1889, além de grande parte do período republicano (até 1977), o Mato Grosso era a
província (depois estado) que possuía a maior extensão territorial do Brasil. Em 1872,
a província contava com uma população de apenas 60 mil habitantes. Para efeito de
comparação, Goiás possuía cerca de 160 mil residentes, bem distribuídos ao longo
do seu território, formados em grande parte pelos migrantes de Minas Gerais, do
Maranhão e da Bahia (bertran, 1994). A baixíssima densidade demográfica do Mato
Grosso acarretou graves problemas à geopolítica do Império. Essa província concen-
trava as fronteiras com dois países cujos limites ainda não tinham sido acertados
por meio de tratados: a Bolívia e o Paraguai.
Frente aos problemas geopolíticos e econômicos causados pela baixa densi-
dade demográfica em boa parte das províncias do Império, a Lei de Terras de 1850
apontava para a promoção da imigração espontânea de europeus. A entrada de imi-
grantes no Brasil do século xix foi uma das consequências do impacto social da
industrialização e da expansão do capitalismo no cotidiano das populações europeias.
A ruína da produção artesanal diante da expansão industrial, da modernização das
técnicas agrícolas, das transformações nos meios de transporte, e da privatização
das terras comunais expulsou um grande contingente populacional do campo para
as cidades (hobsbawm, 2005). Nos estados alemães, a Revolução Industrial ganhou
força nas décadas de 1820 e 1830, e sua consequência mais direta foi a desintegração
do campesinato. O excesso de mão de obra, os baixos salários, e a fragmentação das
propriedades no Sudeste alemão levaram os antigos camponeses a migrarem para
a América, especialmente para os Estados Unidos (cunha, 1995).
A entrada de imigrantes no Brasil por iniciativa oficial remonta à emancipa-
ção política, em 1822. De fato, Dom Pedro I reforçou os batalhões imperiais através
da introdução de mercenários europeus, especialmente alemães. Em meados dos
anos 1840, quando foi retomado o processo imigratório, a conjuntura política, eco-

333
nômica e social brasileira havia se transformado consideravelmente (tramontini,
2000). Os objetivos em torno da imigração europeia também mudaram. A criação
da Guarda Nacional supriu parcialmente a necessidade da introdução de grandes
contingentes de soldados.
Outro ponto central da política imigratória durante o Segundo Reinado era a
expansão do trabalho livre nas lavouras agroexportadoras. A chamada crise de bra-
ços foi intensificada com a Lei Eusébio de Queiroz, em 1850. A principal alternativa
encontrada foi a introdução de colonos europeus sob o sistema de trabalho de par-
ceria. A Lei de Terras determinou que os recursos provenientes da venda de áreas
públicas seriam investidos na imigração de colonos europeus ao Brasil. No entanto,
o incentivo à imigração nesse período também foi influenciado por uma complexa
conjuntura, na qual a imigração seria defendida como solução aos problemas do
Império, e também como propulsora do seu desenvolvimento econômico-social.
A carestia de alimentos nos principais centros urbanos do Império ao longo
do século xix preocupou os ministérios e os governos provinciais que se suce-
diam. A documentação oficial traz vários exemplos de crises de abastecimentos
das principais cidades do Brasil, especialmente no Sudeste (linhares; silva, 1979).
Os relatórios de presidentes de província citam, com certa frequência, o problema
da carestia de gêneros, especialmente na Província do Rio de Janeiro. As colônias de
povoamento do Sudeste geralmente eram estabelecidas em regiões próximas aos
centros urbanos. Nesse sentido, foram criadas as colônias Nova Friburgo, em 1824,
Dom Pedro II, em 1856, e a Colônia Santa Tereza, em 1874.
As tensões em torno do escravismo também influenciaram o projeto de intro-
dução de imigrantes europeus. Ao longo do século xix, o episódio do Haiti e o grande
número de revoltas escravas alertaram o continente americano para a possibili-
dade de rebeliões cada vez maiores e mais frequentes que viessem a desestabilizar
o poder da camada dirigente. No Brasil, os estudos sobre a escravidão no Segundo
Reinado mostram que esse sistema foi marcado pelos conflitos e insubordinações
que levaram muitos líderes políticos e intelectuais a aderirem à defesa de uma
lenta e gradual abolição da escravatura (maestri, 2002). Nesse sentido, o processo
imigratório não representava apenas o fornecimento de braços para a lavoura, mas
era uma maneira de contornar as tensões sociais geradas pelo cativeiro, através da
criação de núcleos laboriosos e ordeiros.
Outro ponto central do projeto de criação das colônias de povoamento nas
províncias meridionais foi a questão da fronteira. Os sucessivos tratados a respeito
dos limites ao Sul do Império e as disputas na região Platina mostraram à Coroa
a necessidade do estabelecimento de núcleos populacionais nessas áreas. De fato,
a instalação de imigrantes europeus seria uma alternativa importante às colônias
militares (roche, 1969, p. 93-104). O assentamento de núcleos populacionais nas fron-
teiras contribuiria significativamente para a afirmação das fronteiras meridionais
do Brasil. Contudo, a ausência de colônias na divisa com os países platinos ao longo
do Segundo Reinado comprometeu esse objetivo estabelecido em torno da imigração.
A fronteira brasileira com o Paraguai e a Argentina, nas províncias de Santa
Catarina, do Paraná e do Mato Grosso, somente foi definida nas décadas de 1870 a
1890 (machado, 2004). Devido a esse fato e aos problemas com o comércio nessa re-
gião, não houve condições para o estabelecimento de colônias ao longo do Segundo

334
Reinado na fronteira das províncias de Santa Catarina, do Paraná e do Mato Grosso.
No Rio Grande do Sul, as áreas de fronteira com a Argentina e com o Uruguai já
estavam ocupadas com estâncias desde o início do século xix. Logo, a instalação
de colônias nessa região, embora importante geopoliticamente, geraria gastos com
a compra de fazendas, uma vez que existiam terras devolutas nas áreas florestais.
Dessa forma, o Governo Imperial incentivou a ocupação da fronteira meridional,
mas não das suas divisas políticas. A questão da fronteira foi um dos motivos que
levou a Coroa a concentrar sua política imigratória na região Sul e a dispensar a
mesma atenção às províncias do Nordeste.
No Velho Norte, os grandes fazendeiros dispunham de mão de obra abundante
e barata no contexto da transição do trabalho escravo para o livre. Províncias como
Pernambuco, Bahia e Paraíba não necessitavam de imigrantes para suprir a falta de
braços para as suas lavouras. Essas eram regiões de ocupação antiga; logo, contavam
com uma estrutura agrária saturada em determinadas áreas. Havia uma concen-
tração de famílias livres não-proprietárias e que dependiam do trabalho sazonal
nas fazendas locais para a sua sobrevivência ou como complementação de renda.
Alguns relatórios do Ministério da Agricultura também citam a questão do clima
como um entrave à criação de colônias de imigração no Nordeste. Evaldo Cabral de
Mello (1999) argumenta que esse foi um pretexto utilizado pelo Governo Imperial
para desviar o fluxo imigratório para o Sul. Os recursos naturais também foram
importantes para a distribuição das colônias. No Nordeste, eram poucas as áreas de
terras devolutas disponíveis à colonização. Os terrenos de melhor qualidade para a
agricultura e localizados mais próximos do litoral já estavam ocupados. Por outro
lado, quando haviam lotes públicos disponíveis para a colonização, eles se concen-
travam em locais mais afastadas. Entretanto, a ausência de uma política de imi-
gração mais ativa para o Nordeste também se deveu à falta de pressão política das
representações dessas províncias. No entanto, alguns dos seus líderes defenderam
que a colonização no Sul privou as demais regiões do desenvolvimento propiciado
por esse processo.
O conservador Tristão Alencar Araripe, magistrado e autor de uma vasta
bibliografia, tinha a convicção de que o processo imigratório propiciou um de-
senvolvimento econômico mais rápido às províncias do Sul por meio do aumento
de riquezas (mello, 1999, p. 70). Logo, as contribuições aos cofres provinciais eram
maiores. Araripe revelou o impacto da colonização nas províncias meridionais
mas, ainda assim, a falta de medidas enérgicas de mapeamento e conservação das
áreas públicas prejudicou drasticamente os projetos de colonização da Coroa e dos
governos provinciais, além da aplicação da Lei de Terras. Ela determinava que o
produto dos direitos de chancelaria (nos trâmites burocráticos pelos quais passa-
riam os processos de legitimações) e das vendas de terras pelo Estado seria aplicado
nas medições de terrenos devolutos e na contratação de colonos livres na Europa.
A falta de demarcação e venda das áreas públicas, além da concentração de lotes
nas mãos dos fazendeiros, também provocou uma lentidão no processo imigratório
no Brasil em relação aos Estados Unidos nesse mesmo período. Entre 1820 e 1861,
cinco milhões de imigrantes europeus entraram nos Estados Unidos, enquanto
que, no Brasil, até 1850, foram menos de 50 mil (costa, 1999, p. 189). A colonização
estrangeira, até 1847, estava ao encargo do Governo Imperial; posteriormente, a Lei

335
número 514, de 28 outubro de 1848, destinou 6 léguas quadradas a cada província
para a colonização (roche, 1969, p. 49). A partir disso, as presidências ficaram en-
carregadas da criação de colônias de imigração. Em 1850, com os valores mínimos
fixados pela Lei de Terras, percebia-se que a emigração para o Brasil não ganharia
força, o que frustrou os projetos de colonização da Coroa.

3. A Lei e a historiografia

A obra de Alberto Passos Guimarães (1989) introduziu a discussão sobre a Lei de


Terras na historiografia. O autor analisou o predomínio do latifúndio nos diferentes
modos de produções pelos quais teria passado a sociedade brasileira. Passos Guimarães
atribuiu à Lei de Terras a transição do trabalho escravo para o livre. De fato, seria
necessária a criação de mecanismos que impedissem o acesso à terra por parte dos
libertos, isso forçaria a criação de um mercado de trabalho livre e alternativo ao
cativeiro. Essa obra serviu de base para a discussão realizada por José de Souza Mar-
tins (1986), que examinou a Lei de Terras como fruto das transformações no mundo
do trabalho, por meio da criação do cativeiro da terra, e na questão do crédito. Nesta
mesma linha, Roberto Smith (1990) analisa a Lei a partir da influência do modelo
de Wakefield; ou seja, de um processo de transformações capitalistas que estava
ocorrendo em outros países. Smith abordou o papel da Lei de Terras na transição
para o capitalismo no Brasil. Emília Viotti da Costa (1999) discutiu a Lei de Terras
de 1850 em uma perspectiva comparativa com o Homestead Act, de 1862, nos Estados
Unidos, e mostrou os seus impactos no desenvolvimento destes dois países. Viotti
(1999) defende que a Lei de Terras representou os interesses dos setores mais dinâ-
micos da elite brasileira e atendeu ao problema da mão de obra.
Paralelamente aos trabalhos anteriores, José Murilo de Carvalho (1981) analisou
a Lei de Terras a partir de debates políticos em torno do seu projeto e da frustra-
ção da sua aplicação. Para Carvalho, a Lei era estritamente ligada aos objetivos dos
cafeicultores fluminenses, e sua execução foi limitada diante dos interesses dos
grandes possuidores de terras: o veto dos barões.
Na década de 1990, a historiografia recebeu contribuições significativas para
o debate sobre a Lei de Terras. Nesta perspectiva, Lígia Osório Silva (1996) afirmou
que a Lei consolidou o poder dos grandes proprietários, na medida em que lhes
possibilitou o título de propriedade. A Lei também teria sido fruto de uma conjun-
tura complexa, o que se refletiu em seu espírito conciliatório e em muitos aspectos
plurívoco, incapaz de pôr fim às apropriações abusivas de terras. No trabalho sobre
o direito e o conflito agrário no século xix, Márcia Motta (1998) inovou a análise
sobre a Lei de Terras de 1850 ao trazer as contribuições de Edward Thompson à
discussão sobre essa legislação. Motta, ao abordar as disputas rurais no século xix,
mostrou que os pequenos posseiros também se valeram da Lei de Terras para fir-
marem seus direitos sobre os terrenos que ocupavam. A autora defende que a Lei
foi resultado da complexidade histórica daquele período, e critica aqueles trabalhos
embasados unicamente na transição do trabalho escravo para o livre e na influência
do modelo externo (no Projeto de Wakefield), ao mostrar a falta de embasamento
empírico de tais interpretações.

336
A Antropologia enriqueceu a discussão a respeito da Lei de Terras. James
Holston trabalhou a hipótese de que a legislação promoveu o conflito ao invés de
solucionar o caos fundiário brasileiro, herdado do sistema colonial (holston, 1993).
Holston mostra que a própria confusão jurídica transmitida da época colonial foi
importante ao Estado no seu controle sobre os fazendeiros. Neste sentido, Warren
Dean (1971) defendeu o uso político do conflito durante o período colonial. Segundo
Dean, alguns juristas suspeitavam que a Coroa Portuguesa concedia sesmarias sem
delimitação precisa para deixar os colonos “brigando entre si, em vez de brigar
contra a coroa” (dean,1971, p. 607).
As nossas investigações sobre a aplicação da Lei de Terras nas províncias de
Pernambuco e do Rio Grande do Sul mostram que este processo não esteve apenas
atrelado à transição ao capitalismo no Brasil, e nem o veto dos barões explica os
limites da modernização da estrutura fundiária. É preciso discutir este processo a
partir do contexto político de meados do século xix, quando foi posta nas mãos da
Coroa a arbitragem sobre os intensos litígios pela posse de terrenos (christillino,
2019; 2013).
A Lei de Terras não modernizou a estrutura fundiária brasileira de acordo
com o seu projeto inicial, mas criou mecanismos de cooptação política em meio
à centralização do poder monárquico. A trajetória histórica do Rio Grande do Sul
mostra que a consolidação das fronteiras meridionais era fundamental à afirmação
política do Brasil no Prata. De fato, esta hegemonia dependia do apoio dos milicianos
sul-rio-grandenses frente aos conflitos na região. Desta forma, a relação estabelecida
entre a Coroa, por meio da presidência da província e os chefes guerreiros ocorreu a
partir de negociações. As ações de legitimações de lotes dos comandantes da Guarda
Nacional revelam que a aplicação da Lei de Terras, na província meridional, também
foi utilizada com fins políticos. A Província de Pernambuco, pelas suas instabilidades
políticas e pela importância dos seus milicianos à hegemonia do Império no Velho
Norte, exigiu uma atenção especial por parte do Governo Central.
Neste sentido, é preciso discutir a aplicação da Lei de Terras relacionada à po-
lítica do Governo Imperial a partir da década de 1850. A Lei não pode ser estudada
separadamente do contexto político que a originou. O veto dos barões não explica
o fracasso da aplicação desta legislação sobre a estrutura fundiária brasileira do
período. A Lei de Terras poderia ser burlada pelos terratenentes, mas ao mesmo
tempo ela criou instâncias pelas quais deveriam ser resolvidos os litígios de terras,
comuns naquele tempo. Caberia aos presidentes de província o veredito final sobre
essas disputas. O Regulamento de 1854 colocou em suas mãos as sentenças sobre
os processos de legitimações de terras. Esse era um importante poder de barganha
política, especialmente diante do histórico de conflitos no acesso à terra no Brasil.

4. Colonização, conflitos, e os burocratas nos caminhos da Lei

Na região da Fronteira do Rio Grande do Sul, as irregularidades no processo de


apropriação fundiária estiveram diretamente relacionadas às concessões de terras,
durante o período colonial. Elas ocorreram principalmente na extrapolação das
dimensões de uma sesmaria. Os concessionários se valeram de vários artifícios

337
para se apropriarem de áreas superiores a três léguas quadradas. Antônio Gonçal-
debret, Jean-Baptiste. Sorocaba.
ves Chaves (2004) político e charqueador em Pelotas, registrou em suas “Memórias
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do.
ecônomo-políticas”, em 1822, as fraudes presentes na distribuição de terras no Rio Debret e o Brasil: obra completa: 1816-1831. 3.
Grande do Sul. Segundo Chaves (2004), o próprio marquês do Alegrete, que foi ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. p. 273.

governador da Capitania do Rio Grande do Sul entre 1814 e 1818, constituiu um


rico patrimônio através da incorporação de terras públicas aos seus bens pessoais.
Com efeito, as áreas apossadas pelo marquês somavam várias sesmarias. Gonçalves
Chaves ainda denunciou outros burocratas que tiraram proveito de seus cargos e
influência para a apropriação de terrenos devolutos, que eram vendidos logo após
a obtenção das concessões. Uma das condições para a concessão de sesmaria era de
que o concessionário não tivesse recebido sorte alguma de terra. Os outorgados não
poderiam acumular doações; no entanto, alguns apareciam na documentação após
receberem várias concessões, como pessoas que ainda não tinham sido contempla-
das com a doação de terras. Contudo, essas apropriações ilegais produziram regis-
tros que conferiram legitimidade pública sobre as áreas apropriadas ao arrepio da
legislação das sesmarias.
Quanto aos mecanismos de apropriação da terra no século xviii, esses foram
pesquisados por Francisco Eduardo Pinto (2007), que mostra a concentração de terras
por meio do acúmulo de concessões de sesmarias aos fazendeiros em Minas Gerais.
Na Comarca do Rio das Mortes, o pesquisador mostrou que, entre 70 nomes que
foram beneficiados com uma doação, 53 já tinham obtido concessão de sesmaria em
outras comarcas. André Figueiredo Rodrigues (2002) também analisou as irregula-
ridades presentes nas concessões de terras na Minas Gerais setecentista, quando a
política de distribuição de sesmarias foi permeada pelos subornos dos beneficiados
para os governadores.
As apropriações abusivas das terras sul-rio-grandenses, no início do século
xix, levaram Antonio Gonçalves Chaves a propor a venda de terrenos pela Coroa.

338
O político e charqueador defendeu que, através da compra, somente ingressariam
nas áreas maiores os indivíduos que realmente estivessem interessados na explo-
ração da terra. As concessões, na opinião de Gonçalves Chaves, deveriam se basear
na exploração racional do solo e, dessa forma, as doações deveriam ser feitas por
meio de lotes pequenos para a época, de 484 hectares se destinados à pecuária, e de
121 hectares para a agricultura. Essa seria uma alternativa ao modelo de sesmarias
(13.089 hectares) e de datas (1.089 hectares), cujas concessões foram suspensas em
1822, ano de publicação da obra de Chaves.
Esses apoderamentos reprováveis de terrenos no período colonial, especial-
mente por meio de fraudes nas obtenções de sesmarias, criaram uma estrutura
fundiária caótica e permeada de disputas. Os litígios traziam à tona as irregulari-
dades em torno da propriedade da terra. Mas a aplicação da Lei de Terras foi, antes
de mais nada, política. A aprovação desses processos exigiu uma maior aproximação
dos terratenentes com o presidente de província, que era o principal representante
local do Governo Imperial. Era ele quem comandava toda a engrenagem burocrática
envolvida nos processos de revalidação e legitimação de terras.
Os processos de legitimação de terras eram, na maioria, encaminhados me-
diante a ocorrência de litígios, e geralmente manifestos por meio dos pedidos de em-
bargo que seriam submetidos ao julgamento do presidente provincial. Ao transferir
para o chefe do Executivo provincial a avaliação dos processos e a decisão sobre as
disputas que envolviam as terras em legitimação, a Coroa chamou para si o poder
de arbitragem sobre os conflitos fundiários. Assim, os presidentes provinciais pode-
riam escolher por quem interceder nesses litígios. A negociação com as elites locais
era a base da política imperial. Logo, a relação de aproximação política estabelecida
entre os chefes locais e a Coroa era um movimento de mão dupla. Nesse sentido, é
importante salientar que, ao chamar para si o poder de deliberação nas principais
questões que giravam em torno da afirmação da propriedade, a Coroa criou mais
um mecanismo para se sobrepor às redes de poder local.
A pesquisa sobre as ações de legitimação mostra que a Repartição Especial
de Terras Públicas de Pernambuco, mais tarde transformada na Diretoria de Ter-
ras Públicas e Colonização, tinha meios de descobrir e coibir as apropriações abu-
sivas das áreas públicas. Em muitos casos, os próprios argumentos dos pretensos
posseiros poderiam ser desconstruídos com simples observações, uma vez que várias
contradições constavam nos autos. Muitas delas foram apontadas nos pareceres
do procurador fiscal e do diretor da Repartição. No entanto, cabia ao presidente
provincial o julgamento final sobre os processos, o que oferecia margem à negociação
política para afirmação de propriedade. Portanto, a Lei de Terras constituiu um
importante poder de barganha da Coroa junto às elites locais (christillino, 2019).
A descentralização dos trabalhos de regularização fundiária em cumprimento
à Lei de Terras valorizou o papel dos funcionários provinciais e municipais, o que
tornou alguns postos estratégicos para as redes clientelísticas locais. As figuras
centrais da burocracia local são: o juiz comissário (escolhido por município), o fiscal,
o diretor geral, e o inspetor geral da Repartição Especial de Terras Públicas, cargos
criados pelo Regulamento e nomeados pelo presidente de província. As legitimações
eram encaminhadas pelos requerentes ao juiz comissário municipal; eles apresen-
tavam, se possuíssem, os títulos de concessões e transferência da área requerida

339
ou o pedido de legitimação de posse. Então, o juiz comissário nomeava a junta de
verificação de cultura efetiva e morada habitual e, posteriormente, instituía a co-
missão de medição, formada por ele próprio, o agrimensor, o escrivão e o ajudante
de corda. O juiz comissário era um elemento-chave das legitimações de terras: as
suas informações, remetidas à Repartição, ou negligenciadas, eram decisivas nos
respectivos processos. Segundo o Regulamento:

Art. 34. Os juízes comissários das medições são os competentes:


1.°) para proceder à medição e demarcação das sesmarias ou concessões do
Governo Geral ou Provincial sujeitas á revalidação e das posses sujeitas à
legitimação;
2.°) para nomear os seus respectivos escrivães e os agrimensores, que com
eles devem proceder às medições e demarcações 6. (brasil, 1854)

Além de chefiar as medições e nomear os seus executores, o juiz comissário


foi o elo de ligação entre as figuras locais e o Governo Provincial. Sua importância
local não se restringiu aos contatos e nomeações que propiciava; sua ação era fun-
damental na afirmação de poder de muitos proprietários, especialmente diante de
litígios com os pequenos posseiros:

Art. 42. Se porém as posses, que se acharem nas sesmarias, ou concessões,


não tiverem em seu favor alguma das ditas exceções, o Juiz comissário fará
proceder à avaliação das benfeitorias, que nelas existirem; e entregue o seu
valor ao posseiro, ou competentemente depositado, se este o não quiser re-
ceber, as fará despejar, procedendo à medição de conformidade com o título
da sesmaria, ou concessão.
Art. 43. A avaliação das benfeitorias se fará por dois árbitros nomeados, um
pelo sesmeiro, ou concessionário, e outro pelo posseiro; e se aqueles discor-
darem na avaliação, o juiz comissário nomeará um terceiro árbitro, cujo voto
prevalecerá, e em que poderá concordar com um dos dois, ou indicar novo
valor, contanto que não esteja fora dos limites dos preços arbitrados pelos
outros dois.7 (brasil, 1854)

Desta forma, o juiz comissário tinha um papel importante na resolução dos


conflitos locais, especialmente em relação às contendas dos fazendeiros com as
6  secretaria da Agricultura rs.
famílias de posseiros pobres, pois era ele quem avaliava as benfeitorias dos intrusos Coletânea da Legislação das Terras
ou, em casos excepcionais, nomeava um árbitro de sua confiança que decidiria o Públicas do Rio Grande do Sul. Porto
alegre, 1961, p. 13.
valor justo das suas construções e roçados. Além disso, o juiz comissário também 7  secretaria da Agricultura rs, 1961,
poderia ser conivente com a incorporação dessas pequenas posses por outros re- p.14.
querentes, com base no seu poder pessoal e político, e ignorar os direitos de ocupa- 8  O art. 4º do Regulamento fala da
submissão da Repartição Especial de
ção adquiridos pelos pequenos posseiros. Houve muitos casos que resultavam em Terras Públicas ao Ministério dos
pedidos de embargos, que eram decididos pelo juiz comissário e pelo municipal, e Negócios do Império, mas os autos
verificados por nós foram encaminhados
a possibilidade de apelar ao presidente da província e ao ministro da Agricultura8. ao Ministério da Agricultura, criado em
1860.

340
Realizada a medição, o juiz comissário emitia seu parecer e encaminhava o
auto de medição à Repartição Especial de Terras Públicas, onde eram recebidos os
pareceres do fiscal, do inspetor geral, do diretor geral (delegado da repartição) e,
finalmente, do presidente da província.
Os fiscais da Repartição Especial de Terras Públicas tiveram um papel con-
siderável no que dizia respeito à aprovação das legitimações e revalidações, pois
dificilmente um auto de medição considerado firme e valioso por estes funcionários
seria contestado pelo diretor (delegado) da mesma Repartição e pelo presidente da
província. Assim, temos:

Art. 5.° Compete ao Fiscal:


§ 1.° Dar parecer por escrito sobre todas as questões de terras, de que trata
a Lei n.° 601, de 18 de setembro de 1850, e em que estiverem envolvidos di-
reitos e interesses do Estado e tiver de intervir Repartição Geral das Terras
Públicas, em virtude deste Regulamento, ou por ordem do Governo.
§ 2.° Informar sobre os recursos interpostos das decisões dos Presidentes
das Províncias para o Governo Imperial.
§ 3.° Participar ao Diretor-Geral as faltas cometidas por quaisquer autoridades,
ou empregados, que por este regulamento têm de exercer funções concernen-
tes ao registro das terras possuídas, a conservação, venda, medição, demar-
cação, e fiscalização das terras devolutas, ou que estão sujeitas à revalidação,
e legitimação pelos arts. 4.° e 5.°, da Lei n.° 601, de 18 de setembro de 1850.
§ 4.°, Dar ao Diretor-Geral todos os esclarecimentos e informações, que forem
exigidos para o bom andamento do serviço.9 (BRASIL, 1854)

Na Repartição, o fiscal seria o principal avaliador das consistências e incon-


sistências das medições. Na maioria dos casos, os seus pareceres foram ratificados
pelo diretor geral do órgão e pelo presidente de província. Enquanto o fiscal dava
seu posicionamento sobre o processo, detectando ou não possíveis erros, era o de-
legado da Repartição Especial de Terras Públicas que emitia o parecer final desse
órgão. Sua posição teria tido o peso da respectiva instituição e ele foi, na prática, o
seu principal julgador, uma vez que os presidentes de província não permaneciam,
em média, mais do que 1 ano nos seus cargos. Assim, geralmente os presidentes
acatavam as decisões do delegado.
No Regulamento de 1854, estabeleceu-se que os juízes municipais, os delegados
e subdelegados distritais seriam os responsáveis pela conservação das terras públicas:
9  Decreto 1.318 de 1854. secretaria da
Agricultura rs, 1961, 09.
10 Decreto 1.318 de 1854. secretaria da Art. 87. Os juízes municipais são os conservadores das terras devolutas. Os
Agricultura rs, 1961, 19.
delegados e subdelegados exercerão também as funções de conservadores
em seus distritos e, como tais, deverão proceder ex officio contra os que co-
meterem os delitos de que trata o artigo seguinte e remeter, depois de pre-
parados, os respectivos autos ao juiz municipal do termo para o julgamento
final.10 (brasil, 1854)

341
O cargo de delegado de polícia esteve ainda mais relacionado à elite rural quando,
na ausência de bacharéis em Direito nos municípios do interior das províncias, o posto
era geralmente ocupado por algum chefe da Guarda Nacional11. Uma vez que na segunda
metade do século xix boa parte dos cargos de juízes municipais era controlada pelos chefes
rurais, especialmente a partir da Reforma Judiciária de 1871 (carvalho, 2003, p. 181), que
criara a figura do juiz substituto, dificilmente aqueles que cometessem abusos seriam
denunciados. Esses juízes estavam inseridos nas redes de relações sociais dos autores
das apropriações abusivas. Em Taquari, na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul,
após a Lei de 1850, uma das principais famílias de colonizadores que incorporou terras
públicas ao seu patrimônio foi a Azambuja. Na década de 1870, enquanto o ten.-cel. Pri-
mórdio Centeno de Azambuja apropriava as áreas nas proximidades do arroio Beija-Flor,
o seu irmão, o ten.-cel. Rafael Fortunato Azambuja, exercia o cargo de juiz municipal
substituto em Taquari (christillino, 2016, p. 68).
Muitos processos foram despachados aos juizados municipais e aos fóruns das
comarcas ao longo do Segundo Reinado, a fim de se resolver as disputas pela pro-
priedade da terra. Esses autos eram apresentados especialmente na forma de ações
sumárias, ordinárias, embargo, esbulho, libelo cível e manutenção de posse. Essas
ações estavam orientadas por dois cursos processuais específicos: os das ações su-
márias e ordinárias. Aquelas que seguiam o curso das ações ordinárias consistiam
em processos mais extensos, com o objetivo de resolver um litígio entre as partes
sem pendências. Já os autos que percorriam o curso processual das ações sumárias
foram desenvolvidos para operar em apenas uma parte do conflito que exigiria uma
resolução mais rápida. Esses eram processos de tramitação mais simples, a fim de
se evitar a demora na tomada de decisão, como no caso de autos contra invasões,
plantações e construções em terrenos em disputas e outros. Nestes casos, a apelação
não suspendia a execução das sentenças.
Os processos encaminhados aos juizados para a resolução de litígio de terras
que seguiram o curso processual sumário foram as ações: sumárias, de esbulho,
embargo e manutenção de posse. Os processos de ação sumária foram aplicados em
questões de terras geralmente quando o acusador possuía um documento comproba-
tório de propriedade da área contestada. Nestas situações, geralmente ocorria o pro-
testo de terceiros contra a posse de um fazendeiro sobre um determinado lote, mas
sem ocorrer a transposição de divisas ou a ocupação da área. Os autos apresentados
como ações de esbulho eram conduzidos em casos de tomada arbitrária da posse ao
seu possuidor. Elas poderiam ser encaminhadas enquanto nunciação de obra nova ou
força nova, se o esbulho tivesse sido feito antes de um ano e um dia, ou como força
velha, caso a ação excedesse este limite temporal. A nunciação de obra nova foi a ação
mais frequente nas situações litigiosas pela propriedade da terra e, geralmente, ela
estava associada ao estabelecimento de arranchamentos com princípio de cultura.
As demandas endereçadas como ações de embargo eram empregadas nos casos 11  O posto de delegado foi instituído no
Código do Processo Criminal por uma lei
em que houvesse alteração no estado do patrimônio, fosse ele imóvel ou semovente. em 1841. Este posto não era remunerado,
Para recorrer ao processo de embargo, o autor deveria comprovar o seu direito de e a nomeação dos titulares esteve a cargo
do presidente de província e do chefe de
propriedade sobre os bens em disputa por meio de títulos ou outros documentos
polícia. Os delegados acumularam um
legais, e apresentar duas ou mais testemunhas que comprovassem o crime de pro- importante poder ao longo do Segundo
Reinado, assim, essas posições eram
priedade. O juiz então solicitava a suspensão dos atos arbitrários dos denunciados
muito disputadas entre os chefes locais
durante a tramitação do processo. Nos casos de disputas de terras, a sua aplicação (vainfas, 2000, p. 583-585).

342
ocorria no momento da ocupação inicial das áreas em litígio, geralmente frente
debret, Jean-Baptiste. Grande cachoeira do
Sumidor na floresta de Picinguaba. à construção de arranchamento, derrubada de árvores e apossamento de campos.
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do. Os processos de manutenção de posse geralmente foram encaminhados à Justiça a
Debret e o Brasil: obra completa: 1816-1831. 3.
fim de se proteger os direitos do possuidor de bens imóveis, móveis e semoventes
ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. p. 276.
contra o impedimento ou contestação de terceiros. A ação de manutenção de posse
era requerida nos casos em que o proprietário fosse ameaçado de esbulho ou efe-
tivamente impedido de exercer o seu pleno direito de propriedade, especialmente
sobre a terra (motta; guimarães, 2011).
Os processos remetidos para a resolução de conflitos de terra que seguiam o curso
processual das ações ordinárias foram as ações ordinárias e o libelo cível. A ação ordinária
era utilizada em casos de disputas entre duas partes, geralmente ligadas às dívidas reali-
zadas por meio da hipoteca de imóveis. A cobrança destes empréstimos gerava o conflito
quanto aos pagamentos, prazos e as taxas de juros negociadas. Os processos de libelo cível
foram aplicados diante de desavenças sobre a validade dos títulos de propriedade, como
nos casos das cartas de concessões ou dos contratos de compra e venda. O libelo cível era
acionado para a solução definitiva da disputa, com amplas garantias de réplicas e defesa
para as partes (motta; guimarães, 2011).
Os confrontos pela propriedade da terra também resultaram em processos
criminais quando os atritos geravam agressões físicas e/ou atentados contra a
vida. De fato, os fazendeiros mais poderosos também tinham uma boa margem de
influência nos juizados municipais. A legislação abria espaço para que, no âmbito
do Judiciário, fossem anulados e relaxados os efeitos da lei:

343
[...] os produtores de leis, de regras e de regulamentos devem contar sempre
com as reações e, por vezes, com as resistências, de toda a corporação jurídica
e, sobretudo, de todos os peritos judiciais (advogados, notários, etc.) os quais,
como bem se vê, por exemplo, no caso do direito das sucessões, podem pôr a
sua competência jurídica ao serviço de interesses de algumas categorias da
sua clientela e tecer inúmeras estratégias graças às quais as famílias ou as
empresas podem anular os efeitos da lei. A significação prática da lei não se
determina realmente senão na confrontação entre diferentes corpos anima-
dos de interesses específicos divergentes (magistrados, advogados, notários,
etc.) eles próprios divididos em grupos diferentes animados de interesses
divergentes, e até mesmo opostos, em função sobretudo da sua posição na
hierarquia interna do corpo, que corresponde sempre de maneira bastante
estrita à posição da sua clientela na hierarquia social.(bourdieu, 1998, p. 217).

Pierre Bourdieu nos mostra que a legislação e a estrutura da Justiça abriam


brechas que permitiam a afirmação dos interesses de uma das partes envolvidas nas
disputas em detrimento da outra, geralmente menos influente. Segundo o sociólogo,
as mesmas lacunas viabilizavam, a partir das estratégias tecidas pelos advogados, a
anulação dos efeitos das leis. Quando os julgamentos sobre as ações passaram para
o controle do poder Executivo, os mecanismos para driblar as disposições legais
tornaram-se ainda mais intensos.
A principal atribuição do presidente de província, na condução da aplicação da
Lei de Terras, foi o julgamento dos processos de legitimação. Foi criada uma verda-
deira instância jurídica para as suas deliberações na própria esfera burocrática do
poder Executivo. Era o presidente provincial que decidia os casos; das suas decisões,
caberia recurso somente ao ministro dos Negócios do Império e, posteriormente, ao
ministro da Agricultura. Não era um juiz de direito especialista em leis que sen-
tenciava os processos, mas sim um chefe político que, muitas vezes, desconhecia
a legislação em vigor a respeito das terras. O próprio fato de a decisão final sobre
os processos caber ao presidente de província mostra o direcionamento político da
aplicação da Lei de Terras de 1850.
Conforme as determinações do Regulamento, o presidente apenas ouviria as
informações prestadas pelo diretor e pelo fiscal da Repartição Especial de Terras
Públicas, mas ele não precisaria ratificá-las. Dessa forma, abriam-se brechas para
sentenças arbitrárias em favor de alguns fazendeiros locais e, além disso, o presiden-
te de província tinha o direito de anular as medições. Isso lhe autorizava favorecer
uma das partes envolvidas nos litígios pois, ao invalidar uma medição, o presidente
poderia abrir caminho para a legitimação de outro requerente sobre a mesma área.
Com efeito, a anulação de uma medição praticamente suprimia a legitimidade do
posseiro na sua disputa pela terra. Portanto, esta era uma função importante do
presidente de província na cooptação das elites rurais, por meio dos processos de
legitimação de terras e da arbitragem sobre os conflitos.
As desavenças pela posse de lotes constituíram uma das bases de negociação
da Coroa com as elites locais. Desde a colonização portuguesa, a política de terras
foi utilizada como um instrumento de barganha do poder político central diante

344
dos potentados rurais. Isso ocorreu em uma época na qual a ocupação do espaço
territorial brasileiro foi marcada pelos conflitos entre concessionários e posseiros,
que confrontavam entre si em decorrência da imprecisão dos limites de suas áreas.
Para James Holston, a inexatidão dos marcos divisórios das concessões de sesma-
rias constituiu-se em uma estratégia da Coroa portuguesa (holston, 1993). De fato,
a resolução ou arbitragem das disputas decorrentes dessa política de concessões
fortalecia o poder real português no ultramar.
As medidas de regularização das concessões também revelaram o seu uso
político. Este foi o caso do Alvará de 1795, que previa a obrigatoriedade do cultivo
e da medição de terras para a confirmação dos títulos das sesmarias. Em 1796, o
governador do Pará, Francisco Maurício de Souza Coutinho, chamou atenção ao fato
de que o avanço dos conhecimentos de matemática permitia a medição das áreas
concedidas no Brasil; portanto, a Coroa teria condições de implementá-la. No entanto,
nesse mesmo ano, o alvará foi suspenso. O governo português estava consciente de
que a sua aplicação criaria o descontentamento dos fazendeiros (motta, 2009). Esse
fato reforça a hipótese de que a conveniência política norteou as medidas legais
em torno das sesmarias, isso porque se sabe que a Coroa tinha meios de coibir as
apropriações abusivas. Dessa forma, o governo português tinha conhecimento das
apropriações ilegais, mas a punição dependia da conveniência política que a inter-
venção poderia trazer ao Estado na sua maior colônia. Essa foi uma estratégia de
negociação também utilizada posteriormente pelo governo do Império do Brasil.
Por conseguinte, a arbitragem dos conflitos criou um importante instrumento de
barganha junto aos chefes locais (christillino, 2019). Os objetivos fundantes da Lei
fracassaram, mas a sua aplicação trouxe resultados políticos significativos para
o governo imperial. Esse foi um processo que não se explica apenas pelo veto dos
barões. (carvalho, 1981), especialmente em Pernambuco, uma província com um
longo histórico de confrontos políticos e que contava com um número expressivo
de milicianos da Guarda Nacional.
No interregno entre a suspensão das concessões de sesmarias, em 1822, e a
aprovação da Lei de Terras, em 1850, foi comum a prática das ratificações de posses
pelos presidentes provinciais. No caso do Rio Grande do Sul, elas foram mais inten-
sas na década de 1840. O então barão de Caxias, quando presidiu a província entre
1842 e 1846, concedeu várias dessas confirmações (christillino, 2019). As disputas
forçaram os interessados na apropriação de terras a buscarem um maior grau de
inclusão nas estruturas políticas do Império, a fim de receberem o aval público so-
bre as suas posses ou áreas de interesse, o que lhes permitiria fazer frente a outros
pretendentes da ocupação dos mesmos terrenos. Portanto, os litígios aproximavam
os terratenentes das estruturas do Estado. A Lei de Terras de 1850 reforçou os me-
canismos de cooptação política dos proprietários e/ou apropriadores de terras por
meio da legislação agrária. É isso que expressa a sua regulamentação.

5. A aplicação da Lei em Pernambuco

Pernambuco foi o maior produtor de açúcar ao longo do período imperial, e a sua


exportação encobriu a importância e a extensão da agricultura de alimentos. A

345
colonização em Pernambuco foi iniciada ainda no século xvi, o que a torna uma
província de ocupação mais antiga em relação às demais regiões do Brasil. Ao lon-
go do período colonial, foram realizadas concessões de terras na Zona da Mata que
consolidaram, na maioria dos casos, a estrutura fundiária antiga. Já o Agreste e
o Sertão foram colonizados em época posterior à da Zona da Mata. O açúcar foi o
principal produto exportado ao longo do período colonial no Brasil, somente sendo
ultrapassado pelo café na década de 1830. Por volta da Independência, Pernambuco
respondia por cerca de um terço das exportações brasileiras de açúcar (42 mil tone-
ladas). Em 1850, o volume vendido no exterior havia praticamente triplicado. Neste
período, Pernambuco respondia por 43% do valor exportado, seguido da Bahia, que
atingia 36% do montante (abreu, 2007).
Os registros paroquiais de terras foram realizados em Pernambuco entre os
anos de 1857 e 1860. As informações dessas declarações mostram que grande parte
dos proprietários da Zona da Mata não declarou a extensão das suas propriedades.
Na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Nazaré, 74,6% dos registros não
informavam a área declarada. E na Freguesia de Escada, na Zona da Mata Sul, esse
percentual foi de 32,29%. Em Nazaré, as declarações evidenciam uma ocupação
antiga, bem como cadeias sucessórias longas, o que provocou o fracionamento dos
engenhos. Grande parte desses engenhos estava dividido apenas no seu valor judi-
cial, e seus coproprietários não sabiam informar a extensão exata das suas heranças
em situação pro indiviso; ou seja, a sucessão de propriedade ocorreu sem a divisão
da área por meio de medição judicial. Nenhum registro dessa localidade citou, nas
suas confrontações, os terrenos públicos.
Sobre a Freguesia de Escada, acreditamos ela ser um caso atípico no que diz
respeito aos registros paroquiais de terras, em função do número reduzido de de-
clarações: somente 96, no total. Nessa Freguesia estava localizada uma das mais
importantes aldeias indígenas de Pernambuco, mas apenas três declarantes citaram
os terrenos da mesma aldeia como confrontação. Os registros de Escada evidenciam
uma estrutura fundiária recente no interior de uma região de ocupação antiga.
Mesmo que ocorresse uma expansão sobre as áreas públicas - no caso, as terras in-
dígenas - elas não foram citadas, porque a sua menção inviabilizaria o mapeamento
dos terrenos pertencentes ao Governo Imperial.
O baixo número de processos de legitimação, somado aos problemas com a
ausência de informações nos registros paroquiais sobre a localização e extensão
das áreas, tornou praticamente impossível a demarcação das terras públicas em
Pernambuco. Em 1868, tinham sido mensurados apenas 3.248 hectares de lotes do
Governo; na maioria dos casos, áreas dos aldeamentos extintos. Somente, em 1875,
foram iniciados os trabalhos de mapeamento das terras públicas e privadas, 15 anos
após o encerramento dos registros paroquiais (lucena, 1875).
As declarações paroquiais permitem a análise de algumas temáticas sobre a
Zona da Mata de Pernambuco, em meados do século xix. Os dados das declarações
relacionados a outros documentos como os processos judiciais, os processos de le-
gitimação de terras, os registros de tabelionato e a correspondência das câmaras
municipais podem revelar vários aspectos da dinâmica em torno da propriedade da
terra. As suas próprias contradições oferecem elementos para o estudo da afirmação

346
de propriedade nas regiões pesquisadas. De fato, trabalhamos os registros paroquiais
considerando-os como intenção de propriedade.
A produção açucareira da Zona da Mata, em meados do século xix, não pode
ser analisada sem se levar em conta as lavouras de alimentos que ocuparam um
importante espaço na região. Contudo, a produção de víveres voltados ao abaste-
cimento interno não pode ser abordada de forma isolada, sem se considerar a sua
complementaridade com a lavoura açucareira. É o que aponta as pesquisas de Bert
Jude Barickman (2003) para a Bahia, entre as décadas de 1780 e 1860, que revela-
ram que a integração entre a plantation e outras formas de agricultura permitiu a
expansão da economia de exportação nessa região. Neste mesmo sentido, Carmelo
do Nascimento Filho (2006) mostrou a diversificação econômica e social na Zona
da Mata paraibana desde o século xviii, e apresentou um vasto universo social que
não se restringia ao binômio senhor/escravo. Por sua vez, Juliana Alves de Andrade
(2006) pesquisou a diversidade social e econômica das regiões da Mata e do Agreste
alagoano, demonstrando a expansão da fronteira fundiária no vale do Paraíba do
Meio, através da ação de pequenos posseiros.
O relatório do presidente Manoel Felizardo de Souza e Mello também apontou
para a produção de alimentos no município de Nossa Senhora da Conceição de Nazaré.
Segundo ele, a estatística de 1857 mostrara que a produtividade dos 142 engenhos,
nos últimos três anos, fora de 1:147:360$000rs12. Enquanto isso, a importância atri-
buída aos demais produtos agrícolas como feijão, farinha de mandioca, milho, arroz,
semente de carrapateira (mamona), entre outros, correspondeu a 75:172$000rs. Os
recursos obtidos com a venda de víveres corresponderiam a 6,55% do total obtido
com a comercialização do açúcar e derivados. Porém, é preciso relacionar esses da-
dos à dinâmica da agricultura de subsistência e à circunstância em que tais dados
foram publicados.
As informações dos relatórios de presidentes de província sobre as produções
agrícolas destinadas ao mercado interno precisam ser analisadas com cautela. No
caso de Pernambuco, onde o açúcar era a menina dos olhos do Governo Provincial,
não é de se estranhar que a produção de alimentos fosse relegada ao segundo plano.
De fato, a minimização de sua importância tinha finalidades políticas na defesa de
novos investimentos para os proprietários que se dedicavam à produção açucareira.
Por outro lado, essa produção era difícil de ser mapeada.
O Governo Imperial não taxava os alimentos comercializados no mercado
interno, devido à falta de estrutura fiscal do Estado e pela própria dinâmica de co-
mercialização dos víveres. Esse fato também foi responsável pela carência de dados
sobre esses gêneros. Os produtos de exportação, por sua vez, eram muito mais fáceis
de serem tributados, uma vez que eram centralizados em alguns poucos portos, o
que dificultava a sonegação. O açúcar era taxado no porto do Recife, onde era re-
gistrada a sua procedência, o que possibilitava o mapeamento da produção de cada
município. O volume de alimentos produzidos seria muito difícil de ser calculado,
uma vez que já não eram cobrados sobre eles os impostos mais diretos do Governo
Imperial. Em Nazaré, por exemplo, os alimentos comercializados eram apenas os
excedentes, pois se tratava de um município densamente povoado para os padrões
12  1:136:000$000rs correspondiam ao
açúcar e 11:360$000rs a canadas de mel
pernambucanos da década de 1850. Logo, sua produção precisava ser extensa para
(relatório, 1859, p. 08). atender às exigências locais. Todavia a farinha de mandioca, o feijão, o milho e o

347
arroz eram vendidos pelos seus produtores nas feiras e casas de comércio mais
próximas e repassados a outros negociantes dos municípios vizinhos, o que tornava
essa produção invisível para a contabilidade provincial. A produção de alimentos
para o mercado interno era difícil de ser mapeada, mas o volume produzido no final
da década de 1850, em Nazaré, foi superior aos 75 contos apresentados no relatório
do presidente Manoel Felizardo de Souza e Mello, já que os seus números não abar-
cavam nem as vendas realizadas em um mercado predominantemente informal, e
nem aquele volume de víveres destinado ao consumo local. A cana-de-açúcar não
teve um predomínio absoluto na Zona da Mata. Os próprios registros paroquiais de
terras da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Nazaré apontaram para uma
importante diversificação das atividades agrícolas na localidade.
Entre esses documentos, predominaram as declarações de partes nos engenhos,
o que era resultado de uma estrutura fundiária diversificada pelas várias sucessões
ocorridas nas propriedades. Nelas, os declarantes procuravam sempre relacionar o
seu registro aos engenhos de beneficiamento da cana. Em alguns desses engenhos
também foram inscritas as benfeitorias para a produção de farinha de mandioca.
Em boa parte delas ocorreu o registro de partes em determinada propriedade, sem
a indicação da existência de engenhos. No entanto, em algumas declarações foram
citadas como principais benfeitorias apenas as casas de fazer farinha e as prensas
para o algodão. Esse foi o caso de José Correia de Oliveira Andrade, que declarou
sete partes no Engenho Paraíso. A primeira parte registrada tinha o valor de sete
contos de réis, e a segunda, de 3 contos de réis. A terceira parte, adquirida de Joa-
quim Angelo de Lira, no valor de 2:100$000rs, era uma área conhecida pelo nome de
Areia da Jussara. José Correia de Oliveira Andrade atestou possuir nessa área “uma
casa de vivenda, a senzalla, casa de farinha com aviamentos, prensa de algodão e
estrebaria”13. Em nenhuma das sete partes declaradas, que juntas somavam mais de
17 contos de réis, sendo uma das áreas mais valorizadas das declarações paroquiais
de Nazaré, aparece o registro de benfeitorias ligadas à produção de açúcar, nem
mesmo a posse de parte das benfeitorias do Engenho Paraíso. Outros declarantes de
áreas com extensões consideráveis também registraram apenas benfeitorias ligadas
à farinha de mandioca, ao algodão e aos cuidados do gado (as estrebarias), como o
fez Joaquim José Alves Vasconcellos14. Esse fato confirma a importância do algodão
para a Província de Pernambuco nesse período (santos, 1978). Contudo, a farinha de
mandioca aparece nos documentos como a principal alternativa ao açúcar. A maio-
ria dos registros que citam as benfeitorias associadas a outras atividades diziam
respeito às casas de fazer farinha. Esse foi o caso de Lino José Mendes, que declarou
na propriedade Balanço do Estreito de São Vicente, onde possuía casa de residência,
senzalas e casa de fazer farinha15.

13  Registro paroquial de terras da


6. Um chão retalhado: a estrutura fundiária nas freguesias de Nazaré Freguesia de Nossa Senhora da Conceição
de Nazaré n° 47. apeje.
e de Escada
14  Registro paroquial de terras da
Freguesia de Nossa Senhora da conceição
A estrutura fundiária da Freguesia Nossa Senhora da Conceição de Nazaré revela de Nazaré n° 63. apeje.
15  Registro paroquial de terras da
um contexto de ocupação antiga expresso no fracionamento das suas proprieda- Freguesia de Nossa Senhora da Conceição
des. Isso levou à formação de uma paisagem rural baseada fundamentalmente em de Nazaré n° 175. apeje.

348
pequenas e médias áreas, a maior parte delas inferior a 500 hectares. Os dados dos
registros que apresentaram a extensão das propriedades chamaram atenção para a
sua dimensão reduzida. Dentre as 127 declarações que documentaram o tamanho
das suas áreas, 63 delas referiam-se a propriedades com áreas iguais ou inferiores a
30 hectares. Assim, embora seus sítios, juntos, somassem apenas 6,66% da extensão
revelada nos registros paroquiais de Nazaré, eles mostram o predomínio da pequena
propriedade. Nesta direção, 11 pessoas declararam suas terras na faixa de extensão
entre 30 e 50 hectares, e mais 12 matricularam suas áreas entre 51 e 100 hectares,
somando, portanto, 86 declarações; ou seja, 68% do total estavam enquadradas entre
as pequenas propriedades. Por sua vez, 37 averbações diziam respeito a áreas que
estavam na faixa dos 101 a 500 hectares, e outras quatro incluídas na parcela entre
501 a 1.000 hectares; ou seja, 32% dos registros se enquadravam em propriedades
médias. Adotamos as últimas duas faixas na qualidade de propriedades médias, a
partir da denominação de Manuel Correia de Andrade (1963, 105).

Tabela 01- Estrutura fundiária da Freguesia de


Nossa Senhora da Conceição de Nazaré

Percen- Percentual
Número de Área
Extensão tual de da extensão
declarantes declarada
declarantes declarada
01-30 ha 63 12,6% 860 ha 6,66%
31-50 ha 11 2,2% 451 ha 3,49%
51-100 ha 12 2,4% 884 ha 6,84%
101-500 ha 37 7,4% 7.332 ha 56,78%
501-1.000 ha 04 0,8% 3.388 ha 26,23%
Mais de 1.000 ha -- -- -- --
Não informaram 373 74,6%
Total 50016 100% 12.915 ha 100%
Fonte: Registros paroquiais de terras da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de
Nazaré. apeje.

Destaca-se o fato de que, em Nazaré, entre os registros que declararam a extensão


das suas áreas, nenhum deles se referiu a lotes maiores do que 1.000 hectares. As suces-
sões ao longo do período colonial e imperial fracionaram as grandes propriedades. Essa
mesma estrutura de ocupação antiga também levou à apropriação de todo o território de
Nazaré, na medida em que nenhum documento indicou a presença de terras devolutas
no município. O mesmo aconteceu em relação à posse, com a ocupação primária sobre
as áreas devolutas.
Somente uma declaração citou a posse como forma de acesso à terra. José Martins
16  Foram 500 registros legíveis das 584 de Oliveira reconheceu dois terrenos nos registros paroquiais de Nazaré. A primeira dizia
declarações apresentadas nos registros
paroquiais de terras da Freguesia de respeito à uma herança recebida de seu pai, na parte que ele possuía na propriedade Alagoa
Nossa Senhora da Conceição de Nazaré. do Pau. A outra área se referia a uma posse na qual o declarante estabeleceu a sua mora-
17  Registro paroquial de terras da
Freguesia de Nossa Senhora da Conceição
dia, casa de fazer farinha, estrebarias, além de um pomar, o que atestaria a antiguidade
de Nazaré n° 565. apeje. da sua ocupação primária17. Alguns proprietários preocuparam-se em declarar as sobras

349
presentes em suas terras; ou seja, aqueles terrenos que estavam sob o seu domínio, mas
que não eram englobados pelos seus títulos.
José Vieira de Mello declarou três partes na propriedade Alagoa de Vicência
em sociedade com o seu irmão, João Vieira de Mello, obtidas por meio de compra a
Maria Tereza da Cunha. A área média aproximadamente 38 hectares, e José Vieira
de Mello registrou ainda mais uma pequena área, no valor de 100$000rs, que cor-
respondia à sobra da mesma propriedade18. Ele procurou descrever a localização e a
divisão da mesma sobra. Tal preocupação expôs as disputas por terras, sempre que
era preciso registrar as pequenas extensões não abrangidas pelos documentos. As
declarações da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Nazaré também reve-
laram uma maior atenção dos proprietários locais em relação ao Regulamento de
1854. De fato, vários registros procuraram mostrar a adequação das suas proprieda-
des aos “rigores” do decreto que regulamentou a Lei de Terras de 1850. Foi o caso do
proprietário Manuel Oliveira Correia, que declarou uma parte no valor do Engenho
Ribeiro Grande, adquirido em 1842. Manuel preocupou-se em afirmar que a área não
era de uso comum, e que ele estaria ocupando a sua parte, na qual tinha edificado
a casa de residência19. Na verdade, ele tinha o receio de que outro coproprietário
do Engenho Ribeiro Grande futuramente viesse a requerer a parcela em questão.
Sabe-se que as sucessivas partilhas das terras, principalmente por meio dos inven-
tários, fracionaram as propriedades dos engenhos. A Lei de Terras abriu caminho
para a legitimação das propriedades por meio dos processos de legitimação, o que
poderia romper com os antigos acordos de uso das terras dos engenhos com acesso
às benfeitorias para o beneficiamento da cana-de-açúcar. Os títulos de propriedade
assegurados na Lei dissolveriam os antigos vínculos familiares, que permitiam a
manutenção do engenho como uma unidade produtiva, e ameaçavam também o
domínio dos pequenos lavradores sobre os seus sítios que faziam parte dos enge-
nhos. Em muitos casos, havia três gerações de herdeiros em um único engenho. Por
isso, o expressivo número de declarantes que registraram extensões inferiores a 30
hectares mostra a preocupação dos pequenos lavradores em assegurar a afirmação
de propriedade sobre suas pequenas áreas.
A estrutura produtiva dos engenhos foi preservada nas mãos das famílias dos
seus fundadores e isso permitia, em boa parte dos casos analisados, o acesso dos vários
herdeiros ou proprietários das parcelas das mesmas unidades produtivas ao uso das
instalações para para o beneficiamento do açúcar. Então em Nazaré, sob a denominação
engenho, temos na verdade uma unidade produtiva que, na maioria dos casos, estava
nas mãos de várias pessoas. Mesmo que grande parte dos registros paroquiais de
terras não apresentasse a extensão da propriedade, seus dados não permitem revelar
grandes latifúndios. Na verdade, encontramos sob a alcunha engenho várias propriedades
originadas pelas várias sucessões e que formavam uma única unidade produtiva. Isso
foi uma tentativa de viabilizar a produção do açúcar para os pequenos produtores de
uma mesma família ou integrados a elas por meio de relações de alianças.
As terras do Engenho Trigueiro foram declaradas por 23 pessoas; ou seja, pelo
18  Registro paroquial de terras da
menos 23 núcleos familiares controlavam uma única unidade produtiva. Tal fato tam- Freguesia de Nossa Senhora da Conceição
bém foi percebido em outras propriedades. Foram apresentados 12 registros das terras de Nazaré n° 54. apeje.
19  Registro paroquial de terras da
do Engenho Jaguá-Meirim, 11 declarações referentes ao Engenho Vertente e também Freguesia de Nossa Senhora da Conceição
11 ao Gameleira, 09 relativas ao Engenho Alagoa Seca e outras 09 ao Engenho Macaco. de Nazaré n° 32. apeje.

350
No Engenho Ribeiro Grande, Anna Josepha da Conceição declarou possuir uma par-
debret, Jean-Baptiste. Freguesia de Santo
Amaro. te no valor de 356$650rs, sendo que o valor total da propriedade era de 10 contos de
Fonte: bandeira, Júlio; lago, Pedro Correa do. réis, obtido no inventário do seu avô, em 184120. Esse caso mostra o fracionamento da
Debret e o Brasil: obra completa: 1816-1831. 3. mesma unidade produtiva, quando um dos declarantes possuía uma parcela inferior
ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2013. p. 279.
a 4% do total. A preservação de tais unidades produtivas ocorria principalmente em
função do acesso às benfeitorias dos engenhos para a produção do açúcar pelos pe-
quenos produtores. Nesse viés, o caso de Henrique Pereira de Moraes é emblemático.
Henrique, enquanto tutor dos bens das suas netas Josepha e Marcelina, de-
clarou uma parte no Engenho Gameleira no valor de 1:014$549rs. Henrique Pereira
de Moraes também registrou dois sítios que adquirira do Capitão Antonio Tavares
de Araujo e sua irmã, Dona Maria do Rosário Souto. Os dois sítios achavam-se
compreendidos pela propriedade do Engenho Gameleira. No mesmo documento, foi
declarado que ele e suas netas tinham “parte nas cobertas das casas, do Engenho
e de caldeira, que foram inteiradas da dita quantia que herdaram dos seus finados
pais”21. A ênfase de Henrique Pereira de Moraes na posse de parte das benfeitorias do
Engenho Gameleira mostra a importância do acesso a elas por parte dos proprietá-
rios. Era isso que, em parte, fazia com que as famílias permanecessem unidas após
a divisão de um engenho entre os herdeiros. De um lado, os donos das parcelas das
terras dos engenhos ou dos sítios que compunham essas propriedades não tinham
condições de instalar novos engenhos; por outro, os herdeiros geralmente não ti-
nham capital para assumir sozinhos os engenhos, caso fosse necessário um grande
volume de recursos para a aquisição da cana dos seus familiares para a produção
do açúcar. Essa foi a principal razão para a indivisibilidade de boa parte dos engenhos
estudados na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Nazaré.
No Sertão, a indivisibilidade das propriedades foi uma prática muito difundida,
como uma forma de garantir o acesso dos vários núcleos familiares aos diferentes
recursos ambientais e benfeitorias das antigas fazendas. Prôa (2017) analisou a es-
trutura fundiária em Tacaratú e Floresta, no Sertão de Pernambuco, entre 1840 e
1880. Ela defende que a administração das fazendas em condomínios foi o fator pre-
20  Registro paroquial de terras da
Freguesia de Nossa Senhora da Conceição ponderante para transmiti-las de uma geração a outra, pois, na maioria dos casos,
de Nazaré n° 237. apeje. seria dessa forma que os herdeiros assegurariam a concentração de terras em posses
21  Registro paroquial de terras da
Freguesia de Nossa Senhora da Conceição descontínuas. Essa era uma prática com raízes no período colonial. Tânya Brandão
de Nazaré n° 225. apeje. (2012) mostrou que essa foi uma estratégia de preservação e ampliação do patrimônio

351
pelas famílias no Sertão do Piauí, no século xviii. Na Freguesia de Escada, na Mata
Sul de Pernambuco, a prática de compropriedade de terrenos foi algo corriqueiro.
De fato, os registros paroquiais de terras de Escada apontam para o fraciona-
mento das propriedades. O pequeno número de declarações mostra que, possivel-
mente em muitos casos, os coproprietários de engenhos não documentaram a sua
parte nesses mesmos engenhos, a exemplo do que ocorreu em Nazaré. Por outro
lado, em algumas situações foram declarados engenhos cujas terras eram superiores
a mil hectares, em nome de um proprietário e demais herdeiros, como foi o caso dos
engenhos Caxangá, Noruega e Bom Fim22. Neste sentido, a estrutura fundiária de
Escada não seria tão diferente daquela analisada na Freguesia de Nazaré.
Nos registros paroquiais de Escada foram declarados 66 engenhos, sendo que
apenas o Engenho São Mateus foi inscrito por mais de um proprietário. Outros oito
engenhos foram averbados em nome do proprietário e demais herdeiros. Cremos ser
pouco provável que cada um dos demais 55 engenhos estivesse nas mãos de um
único dono. Todavia dois fatores permitiram a expansão dos engenhos na Mata Sul:
a inserção dos proprietários no comércio e, principalmente, a apropriação das terras
indígenas por parte das famílias locais.

Tabela 02- Estrutura fundiária da Freguesia de Escada

Percentual
Número de Percentual de Área
Extensão da extensão
declarantes declarantes declarada
declarada
01-30 ha 07 7,29% 101 ha 0,09%
31-50 ha -- -- -- --
51-100 ha 07 7,29% 495 ha 0,45%
101-500 ha 09 9,38% 2.701 ha 2,45%
501-1.000 ha 12 12,50% 7.625 ha 6,93%
Mais de 1.000 ha 30 31,25% 99.133 ha 90,08%
Não informou 31 32,29% --
Total 96 100% 110.055 ha 100%
22  Registros paroquiais da Freguesia
Fonte: Registros paroquiais de terras da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da de Escada nº 61, 70 e 76. Microfilme 761.
Escada. apeje. fundaj.

352
O Aldeamento de Escada funcionou durante a década de 1850, mas já estava
suprimido em 1873. Os indígenas que moravam nesse local foram transferidos
para a localidade de Riacho do Mato. A Aldeia de Recife estava localizada em uma
região bastante fértil, com matas virgens irrigadas por vários rios, o que facilitava
a abertura de novas lavouras canavieiras e também de engenhos movidos à força
hidráulica. Em 1861, o Diretor Geral dos Índios afirmou em seu relatório que ocor-
reram várias invasões às terras da Aldeia de Escada, durante o mesmo período em
que os mesmos especuladores construíram 16 novos engenhos no local, além de 38
pequenas propriedades, destinadas provavelmente à produção de alimentos (silva,
2006, p. 192).
Nos registros paroquiais de Escada apenas três proprietários declararam serem
vizinhos da aldeia indígena. Provavelmente esse número seria maior; esse fato já
indica o avanço sobre as terras do Aldeamento. O Sítio Castelo foi averbado na aldeia
dos índios23; ou seja, o seu proprietário não escondeu que os terrenos pertencessem à
área reservada aos indígenas. João Carlos Cavalcante declarou uma légua de terras
(4.356 hectares) vizinha às áreas indígenas24.
Antonio Marques de Holanda Cavalcanti declarou o Engenho Mameluco nos
registros paroquiais da Freguesia de Escada. Ele não informou a localização exata
da sua área nem a sua extensão25. No processo de demarcação encaminhado por
Antonio Marques de Holanda Cavalcanti, no qual não constava a medição do En-
genho Mameluco, a área apresentada era vasta26. Em 1881, Antonio justificou o seu
pedido de legitimação sobre uma área devoluta anexa ao mesmo engenho, com a
introdução de técnicas modernas para a produção do açúcar. Essa era uma prática
expressamente proibida pela Lei de Terras de 1850, que previa apenas o reconheci-
mento das posses efetuadas até aquela data.

Considerações finais

A falta de medidas mais enérgicas de mapeamento e conservação das áreas públicas


prejudicou drasticamente a aplicação da Lei de Terras, os projetos de colonização
da Coroa e dos governos provinciais e a própria venda de lotes pelo Ministério da
Agricultura. Contudo a omissão do ministério e das presidências de província em
relação às apropriações abusivas de terras expressou a política de negociação e co-
optação da Coroa com as elites locais, por meio da aplicação ou relaxamento da Lei
de Terras. A atuação no comércio permitiu uma concentração de terrenos por parte
dos senhores de engenho maior na Mata Sul do que na Mata Norte de Pernambuco.
Mas, ainda assim, chama-nos a atenção o tamanho reduzido das propriedades dos
engenhos. No caso da Freguesia de Nossa Senhora de Nazaré, na Mata Norte, eles
se encontravam bastante fracionados e, em grande parte dos casos, as unidades
23  Registro paroquial da Freguesia de produtivas açucareiras estavam nas mãos de diversos núcleos familiares. Estas
Escada nº 97. Microfilme 761. fundaj. mesmas famílias apresentaram estratégias singulares de transmissão de proprie-
24  Registro paroquial da Freguesia de
Escada nº 28. Microfilme 761. fundaj.
dade em Pernambuco: a prática da indivisibilidade dos engenhos, utilizada como um
25  Registro paroquial de terras da mecanismo de manutenção dos diversos núcleos da mesma parentela na atividade
Freguesia de Escada n° 64. fundaj. açucareira. As lavouras canavieiras compartilharam o seu espaço com a agricultura
26  Processo de demarcação de Antonio
Marques de Holanda Cavalcanti, fls. 1163. de alimentos na Zona da Mata. Essa era uma atividade importante, mas praticamente
apeje. ausente na documentação oficial, e que permitiu que alguns proprietários optassem

353
pelo cultivo de víveres, ainda que eles tivessem recursos para a instalação de um
engenho. As lavouras de milho, feijão e mandioca dividiram o espaço da Zona da
Mata com a cana-de-açúcar.

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357
358
CAPÍTULO 13 - Continuidade e originalidade do
pensamento de Francisco de Paula Baptista e
suas práticas perante o Tribunal da Relação de
Pernambuco

Venceslau Tavares Costa Filho1

1. Introdução

Este artigo analisa as teorias do Professor Francisco de Paula Baptista e seus efeitos
em relação às práticas do advogado Francisco de Paula Baptista perante o Tribunal
da Relação de Pernambuco. A análise parte de um recurso de Carta Testemunhável,
encaminhado pelo advogado Paula Baptista, em 1872, e segue analisando a doutrina
do professor Paula Baptista em seu Compendio. Discute também as repercussões das
reformas do direito português ao final do Antigo Regime, especialmente em relação
a sistemática das fontes do direito brasileiro na época de Paula Baptista. Quanto à
influência do pensamento de Friedrich Carl Von Savigny, analisa sua recepção na
doutrina de Paula Baptista e a originalidade do pensamento deste jurista brasileiro.

2. Pretensões e limites deste opúsculo sobre a praxe de Francisco


de Paula Baptista perante o Tribunal da Relação de Pernambuco.
1  Doutor em Direito pela
Universidade Federal de Pernambuco Francisco de Paula Baptista é conhecido entre os juristas por ter sido o autor de uma
- ufpe. Professor Adjunto da
Universidade de Pernambuco - upe. das primeiras obras sobre Hermenêutica Jurídica publicadas no Brasil. Além de sua
Professor titular permanente dos relevante atuação como professor da Faculdade de Direito do Recife, Francisco de
Cursos de Mestrado e Doutorado da
Faculdade de Direito do Recife - ufpe. Paula Baptista também foi um advogado que patrocinou diversas demandas perante
Professor titular permanente do o Tribunal da Relação de Pernambuco, instalado em 1821.
curso interdisciplinar de mestrado
em direitos humanos da ufpe. O Tribunal da Relação de Pernambuco foi criado pelo Alvará de 06 de Fevereiro
Professor Doutor da Faculdade de 1821, e é considerada a última Corte deste tipo estabelecida antes da emancipação
Frassinetti do Recife - fafire. Líder
do Grupo de Pesquisa “Fundamentos
política do Brasil em relação a Portugal. A jurisdição desta Corte, ao tempo de sua
do Direito Civil Contemporâneo” criação, compreendia as Comarcas do Recife, as de Olinda e do Sertão, e também as
(cnpq-upe). Membro da Academia
Iberoamericana de Derecho de
Províncias da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará-Grande, que foi desmembrada
Familia y de las Personas, e da do Tribunal da Relação do Maranhão.
Rede de Pesquisa de Direito Civil
Contemporâneo. Advogado. E-mail:
A passagem dos 200 anos do Tribunal de Justiça de Pernambuco suscita a
[email protected] reflexão sobre as práticas dos atores jurídicos que atuavam perante o palco desta

359
Corte de Justiça, analisando em que medida tais práticas podem ser caracterizadas
como fatores de continuidade ou mudança; de preservação da tradição ou de ruptura
em relação aos status quo.
A fim de evidenciar os eventuais traços representativos da mudança ou da
continuidade nos discursos e nas práticas de Francisco de Paula Baptista, anali-
saremos uma peça processual subscrita pelo advogado Francisco de Paula Baptista
e seu conhecido Compêndio de Direito Processual Civil e Hermenêutica Jurídica.
Como demonstraremos adiante, o pensamento e as práticas de Francisco de Paula
Baptista evidenciam as contradições do próprio sistema jurídico brasileiro no século
xix, conciliando mudanças e continuidade.
A vinculação do fenômeno histórico a expressões supostamente antagônicas
como tradição e ruptura (Tradition und Einschnitt) parece ser um lugar-comum na
historiografia. Mas, esta identidade paradoxal não é restrita ao campo da pesquisa
histórica, alcançando também os fenômenos biológicos e sociais (fögen, 2002, p. 14).
Outro aspecto a ser ressaltado neste estudo será a interpretação de Savigny
realizada por Francisco de Paula Baptista, que não se limita ao papel servil de mero
reprodutor das teses deste jurista prussiano. Pretende-se demonstrar que Francisco
de Paula Baptista desenvolveu uma interpretação original da obra de Savigny, con-
ciliando as teses deste autor com a tradição jurídica luso-brasileira.
Na historiografia jurídica contemporânea, a linearidade ou ausência de con-
tradições na análise dos fatos históricos pode revelar tentativas de fraude. Alguns
historiadores e, especialmente, os historiadores do direito foram capazes de produzir
grandes e majestosas narrativas acerca da trajetória dos sistemas jurídicos no tempo
e no espaço. Tais obras prestam grande ajuda a diversos leitores ao conferir sentido
às mudanças e desenvolvimentos com uma clareza admirável. Esta linearidade, con-
tudo, tem um grande custo: grandes narrativas são falsificações. (rossi, 2019, p. 1).
Este texto, contudo, também não pretende ser uma narrativa extremamente
minuciosa sobre as práticas e doutrinas de Francisco de Paula Baptista. Para isto, é
importante se valer da metáfora utilizada por Guido Rossi: conta-se que determinado
Imperador da China desejava um mapa que representasse fielmente os seus domí-
nios, com todos os seus detalhes. Contudo, os mapas produzidos nas mais diversas
escalas (inclusive as maiores) não eram capazes de ilustrar os pequenos detalhes
que se desejava ver retratados. O único mapa considerado satisfatório, portanto, seria
tão grande quanto a própria China e, portanto, inútil. Em outras palavras, pode-se
dizer que alguma simplificação é sempre necessária. (rossi, 2019, p. 1).
Trata-se também de uma análise que tem a pretensão de ser contemporânea.
Além de ressaltar a historicidade dos fenômenos analisados e desta análise mesma,
busca-se encontrar na obra de Francisco de Paula Baptista (um autor que poderia ser
considerado contemporâneo): os índices e as assinaturas do arcaico. Arcaico tem o
sentido de ser próximo da arché, ou seja, da origem. Mas, a origem não está isola-
da em um passado cronológico; continua atuando no devir histórico e não para de
agir nele, assim como a criança continua a agir na vida psíquica do adulto. (gediel;
leonardo, 2015, p. 19).
Assim, a tentativa de compreender as contradições na praxis e na obra de
Francisco de Paula Baptista é um exercício útil para a compreensão das contradições

360
do direito brasileiro contemporâneo. É esta a proposta que se apresenta brevemente
ao leitor deste opúsculo.

3. Breve notícia biográfica de Francisco de Paula Baptista.

Francisco de Paula Baptista é tido como um dos maiores processualistas brasileiros


do século xix. (mitidiero, 2010, p. 174; buzaid, 1950; dias, 2014, p. 172; zufelato, 2018,
p. 90). Nasceu no Recife, no dia 04 de fevereiro de 1811. Havendo estudado humanida-
des na Congregação de São Filipe Néri e no Liceu Pernambucano, matriculou-se em
uma das primeiras turmas do Curso Jurídico de Olinda, obtendo o grau de Bacharel
em 1833. Como era costume na época, defendeu tese de doutorado no ano seguinte
(1834); até que, em 1835, é nomeado lente substituto do Curso Jurídico de Olinda, nas
dependências do Mosteiro de São Bento, naquela localidade. (bevilaqua, 2012, p. 455).
Havendo sido nomeado com apenas 24 anos de idade, Francisco de Paula Bap-
tista teve a sua capacidade como docente questionada pelo diretor da Faculdade, à
época (padre Miguel do Sacramento Lopes Gama), devido a sua juventude. Em rela-
tório enviado ao Governo, referente ao ano de 1836, o Diretor Lopes Gama levanta
o seguinte questionamento sobre o jovem professor: “que respeito pode granjear de
rapazes um lente também rapaz, que acaba de sair da classe e roda de seus colegas?”
(bevilaqua, 2012, p. 63).
Em 1835, também foi eleito Deputado Provincial; obtendo sucessivas renova-
ções de seu mandato até a legislatura de 1864-1865. Conhecido membro do Partido
Conservador, foi responsável pelo jornal A Estrela (1843), periódico vinculado a esta
agremiação partidária, que foi criado para defender a administração de Francisco
do Rego Barros (que viria a ser conhecido como Conde da Boa Vista), Presidente da
Província de Pernambuco de 1837 a 1844. Posteriormente, assim como ocorreu com
outros políticos da época, migrou para as hostes do Partido Liberal; o que suscitou
grande oposição dos antigos correligionários, que perderam um importante quadro
para o grupo adversário. (bevilaqua, 2012, p. 455).
Em 1855, Paula Baptista publica a primeira edição do seu Compêndio de teoria
e prática do processo. Apenas em 1861, seis anos depois da publicação do lente reci-
fense, é que vem a lume a publicação da obra Prática civil e comercial, do Barão de
Ramalho. Esta obra depois será renomeada pelo referido professor da Faculdade de
Direito do Largo do São Francisco em 1868, passando a ser conhecida como Praxe
Brasileira. Em razão disto, Paula Baptista e o Barão de Ramalho são apontados como
os precursores da moderna ciência processual brasileira (zufelato, 2018, p. 92-94).
Em 1860, Paula Baptista publica seu Compêndio de Hermenêutica Jurídica, apre-
sentando a hermenêutica jurídica com referências ao pensamento de Savigny; o que
ainda não havia ocorrido no Brasil ou até mesmo em Portugal (herzog, 2016a, p.
385-386). Posteriormente, as duas obras passaram a ser publicadas em um só volume,
sob o título de: Compendio de theoria e pratica do processo civil comparado com
o commercial e de hermeneutica juridica para uso das faculdades de direito do
Imperio, publicado no Rio de Janeiro pela editora Garnier, em 1890.2

2  Para a confecção deste trabalho, consultou-se a seguinte edição: baptista, Francisco de Paula.
Compendio de theoria e pratica do processo civil comparado com o commercial e de hermeneutica

361
Após 46 anos de docência, Paula Baptista aposenta-se em janeiro de 1881 e
falece no dia 25 de maio do mesmo ano. De acordo com Clóvis Bevilaqua, que havia
sido seu aluno no quarto ano do Curso Jurídico da Faculdade de Direito do Recife,
sua morte se deveu ao fato de que: “como os velhos cônjuges, cujas almas sensíveis
se penetraram, reciprocamente, na intimidade de um longo viver, não pôde resis-
tir à separação. Jubilado em janeiro de 1881, faleceu a 25 de maio do mesmo ano.”
(bevilaqua, 2012, p. 458).

4. Um tal Caetano, Dona Adelayde e juízes “novos”: notícia da


“Carta Testemunhável” subscrita pelo advogado Francisco de Paula
Baptista.

Trata-se de petição datada de 26 de dezembro de 1872, subscrita pelo advogado Fran-


cisco de Paula Baptista. Trata-se de espécie de recurso de agravo (então chamado de
Carta Testemunhável) interposto contra decisão interlocutória proferida pelo juízo
da Vara de Órfãos do Recife. O agravante, patrocinado por Francisco de Paula Bap-
tista, era curador de Adelayde; cunhada, muda e surda de nascimento; e reclama
que ela está sendo seduzida por Caetano: “[...] um tal Caetano da Luz a tem seduzido
furtivamente para com ela casar-se, e a cujo casamento o agravante se tem oposto
com fundamentos justos e conscienciosos.” (cunha, 2014, p. 01).
Acompanhado do Juiz de órfãos, este mesmo Caetano dirigiu-se à casa do
curador/agravante, a fim de ouvir a curatelada por meio de sinais e acenos, bem
como a uma testemunha havida como inimiga do agravante, que relatou supostos
maus-tratos à senhorita Adelayde. Em razão disto, o juízo de órfãos determinou o
afastamento dela da residência do curador, e depositou-a sob a responsabilidade da
viúva Carlota Emília Carneiro da Cunha, nomeando José Cândido de Moraes como
seu curador provisório.
Tendo em vista a decisão contrária ao Senhor João José Silveira, que até então
era curador de Dona Adelayde; o causídico Paula Baptista assevera que esperava
obter vistas dos autos, a fim de apresentar defesa contra as supostas “arguições
caluniosas”. Contudo, o juízo despacha nos seguintes termos: “diga ao suplicante o
que for a bem de seu direito pelos meios legais”.
A fim de evidenciar o suposto erro do magistrado, Paula Baptista chama-o “juiz
de aprendizagem”; afirmando que só pode proceder assim “quem vive em trevas, e
quer as trevas para a administração da justiça”. Também não se pode esquecer do
fato de que o Decreto n. 1.386, de 28 de abril de 1854, que conferiu novos Estatutos
às Faculdades de Direito do então Império do Brasil previa, em seu art. 158, que: “Os
lentes quer Cathedraticos quer substituto terão as honras de Desembargador”. Assim,
em razão da condição de Lente da Faculdade de Direito do Recife, Paula Baptista
sabia estar em posição de prestígio na hierarquia social de então, acima mesmo do
jovem magistrado que proferiu a decisão questionada.

juridica para uso das faculdades de direito do Imperio. 5 ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1898. No
que diz respeito a parte relativa ao direito processual civil, esta edição não difere da 3ª edição do
Compendio, qual seja: BAPTISTA, Francisco de Paula. Compendio de theoria e pratica do processo
civil comparado com o commercial para uso das faculdades de direito do Imperio. 3 ed.
Pernambuco [Recife]: Editora Livraria Academica, 1872.

362
Referindo-se ao Tribunal como “egrégia Relação”, afirma que renovou o pedido
de vista ao substituto legal do juízo, e que este também negou-lhe vistas dos autos,
com base em “sofisticações fúteis”, segundo expôs Paula Baptista.
Mais adiante, cita a doutrina de “Carneiro” sobre a questão da remoção de
tutores e curadores, sustentando ser absurda a remoção sem qualquer justificação,
ainda que sumária. Por outro lado, alega que – ainda que fosse necessário por ques-
tão de urgência – o afastamento provisório e preventivo do curador; a providência
imediatamente subsequente deve ser a concessão de vistas para a ouvida do curador
considerado suspeito.
Diante da negativa da abertura de vistas, Paula Baptista acusa os juízes de
desejarem remover o curador definitivamente, “em um caso de gravidade em que
o sedutor de uma interdita para um casamento infeliz é o mesmo denunciante de
calúnias”.
Diante disto, invoca a doutrina de autores tais como Lobão, e Pereira e Souza;
afirmando que a ninguém se deve negar vistas, mesmo que terceiros. Reforça sua
argumentação, dizendo também que o juízo agravado esqueceu-se do “elemento
histórico de interpretação”, que seria necessário a “fiel inteligência” da disposição
normativa aplicável ao caso; posto que “agarrado a falsa interpretação gramatical”.
Argumenta também que, apesar das diversas decisões do Tribunal da Relação
em sentido contrário, o juízo agravado insiste em não observá-las. Por fim, protesta
afirmando que “juízes novos” semeiam a desordem no foro, em desobediência às
decisões dos juízes experientes (ou provectus) e de “leis claras”; requerendo que o
Tribunal determine que o juízo agravado conceda vistas e “que não mais se inove
no feito sem que o agravante seja ouvido”.
Este documento histórico constitui uma interessante fonte para o estudo da
história do direito brasileiro, pelo que passaremos a tecer algumas considerações
adiante. Por uma questão de justiça, deixo registrado o agradecimento deste pes-
quisador ao Memorial da Justiça de Pernambuco na pessoa de sua gerente, a Pro-
fessora Dra. Mônica Maria de Pádua Souto da Cunha, pelo trabalho de preservação
da memória do poder judiciário em Pernambuco e por nos haver franqueado acesso
a este documento.
De acordo com as lições de Francisco de Paula Baptista, a Carta Testemunhável
tem lugar quando o juízo denega o agravo ou não quer admiti-lo depois de tomado
por termo. Assim, a parte prejudicada tem o direito de exigir carta testemunhá-
vel ao escrivão, que é obrigado a fornecê-la sob sua responsabilidade, para que o
agravante dê conhecimento da violação do direito à superior instância: “vindo por
conseguinte a ser o meio legal e extremo de fazer effectivos os recursos para a
segunda instancia contra a vontade injusta dos juizes inferiores, que os negão, ou
pretendem frustal-os.” (baptista, 1898, p. 350-351).
Os dispositivos apontados por Paula Baptista, em seu Compendio, como normas
de regência da Carta Testemunhável ilustram bem o complexo cenário das fontes do
direito processual brasileiro, na segunda metade do século xix: Ord. l. I, t. 80, §§ 9 e
11; Av. de 16 de Maio de 1797; Av. do 1 de set. de 1849, declarando a Lei de 3 de Dez. de
1841, e Reg. Comm. nº 1597 do 1º de Maio de 1855, art. 77. (baptista, 1898, p. 350-351).
A emancipação política do Brasil, em relação a Portugal, a partir de 07 de
setembro de 1822, não significou uma ruptura com a ordem jurídica que nos foi le-

363
gada pela antiga Metrópole. Enquanto Portugal marchou para se afastar das antigas
Ordenações do Reino, o Brasil ainda era regido pelas Ordenações de Filipe II. Assim,
o direito processual civil brasileiro serviu-se das Ordenações até a promulgação do
Código de Processo Civil de 1939, mantendo-se fiel ao procedimento romano-canô-
nico do direito medieval. (guedes, 2009, p. 206).
Diferentemente do direito romano, que tinha a irrecorribilidade das decisões
interlocutórias como regra geral, o direito germânico (difundido na Europa desde o
tempo das invasões bárbaras) facultava a ampla impugnação das decisões prolatadas
no curso do processo. Isto porque o antigo processo germânico procedia mediante
a prolação de diversas sentenças que visam a resolver questões processuais e ma-
teriais, veiculando muita vez conteúdo correspondente ao julgamento do mérito,
ainda que parcial. Ademais, a ausência de impugnação de tais decisões implicava
na impossibilidade de realizá-la a posteriori, tendo em vista a imutabilidade de tais
atos. (guedes, 2009, p. 211).
Já no direito canônico, especialmente no período anterior à Contra-Reforma,
admitiam-se recursos em relação as decisões interlocutórias e também contra as
decisões definitivas e terminativas. O Decretum Gratiani (ou Concordia discordantium
canonum), por exemplo, admitia a interposição do recurso de apelação seja em rela-
ção às sentenças definitivas ou em relação às interlocutórias. O prazo para a apre-
sentação da Appellatio era de dez dias, independentemente da natureza da sentença,
admitindo também o recurso per saltum a Sé Apostólica (Rota Romana e Supremo
Tribunal da Assinatura Apostólica) e ao Sumo Pontífice. (lima filho, 1996, p. 454).
A concepção da recorribilidade das decisões interlocutórias e da sua irrecorri-
bilidade (após a consumação do prazo para interposição do recurso) decorre, portanto,
da visão canônico-germânica do processo. À semelhança das Ordenações Manue-
linas, as Ordenações Filipinas admitiam três espécies de decisões ou sentenças:
sentenças definitivas, sentenças interlocutórias mistas e sentenças interlocutórias
simples. As sentenças definitivas “eram apeláveis, assim como as sentenças inter-
locutórias mistas; e as sentenças interlocutórias simples, agraváveis”. Neste caso,
as Ordenações Filipinas admitiam o agravo de petição, o agravo por estormento ou
carta testemunhável e o agravo nos autos do processo. (guedes, 2009, p. 231-232).
Parecia que a processualística civil brasileira adotaria outros rumos após a
promulgação do Código de Processo Civil de 2015, quanto à questão da recorribilidade
das decisões interlocutórias. Isto porque o Código de Processo Civil de 2015 teria
adotado um rol taxativo, com interpretação restritiva, quanto às hipóteses de cabi-
mento do agravo de instrumento. Contudo, aparentemente, por decisão do Superior
Tribunal de Justiça no julgamento dos Recursos Especiais 1.696.396 e 1.704.520, sob
o rito dos Recursos Repetitivos (Tema 988), prevaleceu a tradição jurídica proces-
sual luso-brasileira, determinando-se a admissão do Agravo de Instrumento “em
situações não previstas na legislação, prevalecendo o entendimento de que o rol do
artigo 1.015 é de taxatividade mitigada pela urgência”; uma solução conciliatória ao
gosto da praxe jurídica brasileira. (taba, 2019).
Como poderemos ver a seguir, este complexo cenário de fontes ilustrado pelas
normas de regência da Carta Testemunhável, ao tempo de Paula Baptista, é resultado
de um processo de modernização do direito luso-brasileiro, que se iniciou na segun-
da metade do século xviii. António Menezes Cordeiro considera que as primeiras

364
grandes reformas modernizadoras do direito lusitano, levando-se em consideração
a segunda metade do século xviii, foram a Lei da Boa Razão (1769) e a Reforma da
Universidade de Coimbra (1772). (cordeiro, 2004, p. 19). É sobre tais reformas que
passaremos a dissertar, a fim de compreender melhor a mentalidade jurídica da
época de Paula Baptista.

5. A Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769: “a mais importante,


senão a única que temos sobre matérias de interpretação”.

Um dos traços marcantes, no processo de modernização do Estado e do Direito


Português, é reflexo das mudanças na Organização Judiciária no século xviii e do
despotismo esclarecido do Marquês de Pombal: a Lei da Boa Razão, de 18 agosto de
1769. Jurista formado pela Faculdade de Direito de Olinda na terceira década do Sé-
culo xix, Francisco de Paula Baptista a considerava como “a mais importante, senão
a única que temos sobre materias de interpretação” (baptista, 1898, p. 388). Pode-se
dizer que a Lei da Boa Razão moldou decisivamente o direito até então conhecido
por Paula Baptista e pelos juristas brasileiros ao longo do século xix.
Trata-se de uma lei que emprestava um novo perfil aos recursos fundados
em dúvida, no tocante à interpretação da lei, no intuito de dar cabo a uma atitude
intelectual antiquada e a “velhas ferrugens forenses”. Mais do que isto, a Lei da Boa
Razão estabeleceu que se devia lançar mão da razão como critério de seleção das
regras de direito romano, utilizadas para a colmatação de lacunas na legislação em
vigor (saldanha, 2001, p. 58).
Para alguns autores, a legislação portuguesa produzida no período pombalino
e, especialmente, a Lei da Boa Razão teriam um caráter anti-romanista. É esta a opi-
nião de Correa Teles, Coelho da Rocha e Cândido Mendes; que defenderam o caráter
anti-romanista da Lei da Boa Razão. (wehling; wehling, 1997, p. 419).
Observe-se, contudo, que - apesar de a Lei de Boa Razão estabelecer “um siste-
ma racional de fontes, reconduzidas, em termos ideológicos, à vontade do Estado (ao
Rei) e à boa razão” (cordeiro, 2004, p. 19); ela não pode ser encarada como um óbice
intransponível às influências do direito romano. Mais adequado é afirmar que a Lei
da Boa Razão configurou-se em um duplo filtro. Isto porque além de ser considerada
um perfeito exemplar do iluminismo no direito, a Lei da Boa Razão também marcou
uma “viragem nacionalista”, estabelecendo a precedência do direito nacional sobre
o ius commune, abrindo caminho para a era das codificações. (cordeiro, 2004, p. 20).
Conforme leciona Clóvis do Couto e Silva (1997):

A “boa razão” consistia, principalmente, segundo o § 9º da lei de 18.08.1769,


‘nos primitivos princípios que contêm verdades essenciais, intrínsecas, inal-
teráveis, que a ética dos mesmos romanos havia estabelecido e que os Direitos
Romano e Natural formalizaram. (silva, 1997, p. 20-21).

Ora, esta remissão a princípios feita pela Lei da Boa Razão pode ser conside-
rada como uma espécie de cláusula geral, a permitir uma maior liberdade para a

365
jurisprudência, o que também evidencia o fato de que o “recurso às cláusulas gerais
(apesar de ser apontada como uma das grandes ‘inovações’ do projeto Reale), contudo,
não é ‘novidade’ no direito nacional” (costa filho, 2011, p. 152).
Sem dúvida, a Lei da Boa Razão será a forma legislativa utilizada como ex-
pediente de legitimação da tradição romanística no Brasil do Século xix. É bem
verdade, também, por outro lado, que a Lei da Boa Razão também serviu de expe-
diente retórico para o abuso. Teixeira de Freitas (1867), por exemplo, referindo-se à
“immensa teia das Leis extravagantes” acumuladas ao longo de dois séculos e meio,
no intuito de complementar as Ordenações Filipinas, reclama da falta de ordenação
e da dispersão até então observada. Acrescenta, ainda, mais um problema: o fato de
os juristas da época frequentemente se reportarem “ao Direito Romano, e mesmo
geralmente o autorisárão; mandando até guardar as glosas de Accursio, e as opiniões
de Bartolo, e mais Doutores” (freitas, 1857, p. vii). E, conclui:

Essa franqueza que a Ord. L. 3º T. 64 igualmente estendèra ao Direito Ca-


nonico, a famosa lei de 18 de agosto de 1769 que deu largas ao arbítrio com
o título de – boa razão - , o outro subsidio dos – estilos e costumes - , tudo
concorreu, para que os nossos Juristas carregassem suas Obras de materiaes
estranhos, ultrapassando mesmo as raias dos casos omissos. As cousas tem
chegado a tal ponto, que menos se conhece e estuda o nosso Direito pelas
Leis que o constituem, do que pelos Praxistas que as invadirão. Outras causas
ainda contribuem para tão desagradavel situação. (freitas, 1857, p. vii-viii).

Não obstante as vantagens oferecidas pela Lei da Boa Razão em termos de


nacionalização do direito, deve-se compreender o diploma legislativo em questão a
partir de um ponto de vista predominantemente universalista, e não necessaria-
mente nacionalista. Tal universalismo termina por exalar um forte cheiro de ra-
cionalismo filosófico e de universalismo jurídico. (martins junior, 1895, p. 119 -120).
Ora, se no texto das Ordenações Filipinas arrolava-se vagamente como fontes
do direito a vontade do monarca e o utrumque ius, no Século das Luzes almeja-se
substituir o simples recurso ao utrumque ius pelo expediente da razão. Um passo
concreto neste sentido será dado a partir da Lei da Boa Razão. Assim, adotam-se
novas disposições, no que toca aos costumes e ao estilo da Corte. (silva, 1985, p. 276).
Quanto ao estilo da corte, que corresponderia hoje ao que entendemos ser a
jurisprudência dos tribunais, prescrevia-se que a validade do estilo da corte dependia
do fato de ele ter sido objeto de aprovação em virtude de Assento da Casa de Supli-
cação. No tocante ao Costume, determinou que ele só poderia ser tido como fonte
do direito caso houvesse a verificação de três requisitos: i) conformidade com a boa
razão; ii) não ser contrário à Lei; e iii) possuir mais de cem anos. (silva, 1985, p. 276).
José Izidoro Martins Júnior (1895), por sua vez, assinala que a trajetória histó-
rica do direito português é marcada pelo progressivo desenvolvimento legal e dou-
trinário do direito justinianeu, a atacar e obter conquistas sob o combalido direito
nacional português, até então representado nos institutos jurídicos costumeiros e
foraleiros. A luta entre o direito romano e o direito nacional português - na qual o
direito canônico sempre se envolveu fornecendo armas, em alguns momentos em

366
detrimento de um dos combatentes e em outros momentos em detrimento do outro
-, acompanha o enredo da marcha do direito português desde os seus primórdios
até o século xix. (martins júnior, 1895, p. 112-113).
É neste contexto que aparece a Lei da Boa Razão, tendo em vista as chicanas
forenses utilizadas pelos juristas e letrados, com base em antigas fórmulas de di-
reito romano, mas em desprestígio do direito nacional. A Lei da Boa Razão buscará
justamente conter ou minimizar tais excessos no recurso às fontes antigas, con-
ferindo uma interpretação dita “autêntica” a um dispositivo do título 64, do livro
3º das Ordenações, especialmente em relação à parte final do preâmbulo. (martins
junior, 1895, p. 113).
A Lei da Boa Razão, segundo José Izidoro Martins Júnior (1895), poderia ser
comparada a um artefato explosivo lançado contra a trincheira romana que acolhia
aos “soldados da Glosa, os discípulos de Accursio e de Bartholo”. A Lei da Boa Razão,
portanto, teria posto tais estruturas abaixo (martins junior, 1895, p. 113).
Além das vantagens no que respeita à modernização do direito português, a
Lei da Boa Razão também está a serviço da consolidação da supremacia do Poder
Real sobre o Poder Religioso. De acordo com José Izidoro Martins Júnior (1895), o
diploma legislativo em questão levava em consideração duas finalidades básicas:

a) o cerceamento das liberdades doutrinarias e do arbítrio jurídico, de que


gosavam advogados e julgadores, em manifesto prejuízo da jurisprudência
pátria e da suprema judicatura da Realeza; (preamb. e n. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e
8 da lei.)
b) a reducção da influencia e prestigio do Direito Romano, como elemento
subsidiário da legislação: relegado tal Direito para um plano inferior não só
pela definição da boa rasão como pela condemnação das glosas de Accursio
e Bartholo; (ns. 9, 10, 11 e 13 da Lei.) (martins júnior, 1895, p. 117)

Tal condenação da Lei da Boa Razão à Glosa de Acúrsio e à Bartoli opinio resul-
tará, também, em uma condenação implícita à communis opinio. É interessante frisar
que a recepção de Bártolo nas Ordenações Afonsinas dever-se-ia ao fato de que a
doutrina dele “he communalmente mais conforme aa razom”. Agora, com a Lei da Boa
Razão, é escorraçado porque não se harmoniza com a boa razão. Nuno J. Espinosa
Gomes da Silva anota que Bártolo saiu “do quadro das fontes pela mesma porta por
onde entrara” (martins júnior, 1985, p. 278-279).
Para Francisco de Paula Baptista (1898), uma das funções da Lei da Boa Razão
foi justamente expurgar da jurisprudência nacional os erros do bartolismo:

Defendendo esta lei, em meu conceito, uma das melhores leis portuguezas
d’aquelles tempos, nada dissimularei. Quero crer que o legislador, cuidadoso
da missão d’expurgar a jurisprudencia patria dos erros das doutrinas especu-
lativas de Acurcio e de Bartholo, que chegarão ao ponto de fazerem do direito
romano direito derogatorio das leis patrias, se excedera em suas precauções
e medidas de repressão, marcando cem annos para o uso ter força de lei: o
mal era grave e profundo, e o remedio foi applicado em alta dose; mas, fora

367
d’ahi, não vejo os defeitos, que se se apontão, ou se queira imaginar; por
quanto, se interpretação de uso com força de lei foi cerceada, a doutrinal ficou
largamente beneficiada: antepoz-se a razão ao abuso (baptista, 1898, p.445).

Apesar destas críticas, Paula Baptista invoca a Glosa para fundamentar algu-
mas de suas posições no Compendio. (baptista, 1898, p. 253, 375).
A Lei da Boa Razão encontrará suporte doutrinário no usus modernus pandec-
tarum. Assim, o recurso ao direito romano só passaria a ser admitido quando em
conformidade com o uso moderno, ou seja, quando houvesse uma boa razão. Neste
mister, prescreveu-se que - em relação às questões políticas, empresariais, econô-
micas e marítimas -, impõe-se a remissão às leis das nações européias civilizadas,
em vez das regras e fórmulas de direito romano. (silva, 1985, p. 277-278).
Para que o empreendimento pela modernização do direito português fosse
levado a bom termo, impunha-se que - na verificação da lacuna no direito nacio-
nal – não se aplicasse o velho direito comum nos moldes bartolistas, mas sim o
moderno direito natural, de cunho individualista e mais conforme às luzes da-
quele século. Assim, era necessário vincular a atividade hermenêutica dos juristas
a princípios mais atuais, como os veiculados pelo jusracionalismo. É por isto que,
em relação a certas matérias (especialmente as políticas, econômicas, mercantis e
marítimas), os juristas não poderiam valer-se das soluções oferecidas pelo direito
romano tradicional, na falta de um direito nacional atual, mas sim do direito que
as nações européias de evolução social e econômica mais elevada haviam elaborado
para elas. (hespanha, 1978, p. 76).
Resta evidenciada uma clara preocupação em se restringir a interpretação
doutrinal, o que também fica evidenciado no tocante às decisões da mais importante
Corte de Justiça do Reino: a Casa de Suplicação. A preocupação com a atividade de-
senvolvida no âmbito deste órgão do Poder Judiciário explica-se pelo fato de que as
incertezas cultivadas no seio dele irão se estender a toda a organização judiciária.
(hespanha, 1978, p. 76).
Além da Casa de Suplicação, também os Tribunais das Relações do Porto,
Goa, Baía e do Rio de Janeiro detinham o privilégio de proferir Assentos. A Lei da
Boa Razão irá deslegitimar esta prática, de modo que somente os Assentos da Casa
de Suplicação gozarão de autoridade. Preservou-se, contudo, “a possibilidade de os
Assentos das Relações subalternas adquirirem valor autêntico, desde que fossem
confirmados pela Casa da Suplicação.” (silva, 1985, p. 279).
Outro dado relevante diz respeito à atitude da Lei da Boa Razão em relação
ao direito canônico. O legislador neste caso considera como erro manifesto a con-
duta adotada no foro temporal tendente a “conhecer dos pecados, que só pertencem
privativa, e exclusivamente ao foro interior e à espiritualidade da Igreja.” (silva,
1985, p. 278).
Neste diapasão, a Lei da Boa Razão conduz-se no sentido de conferir mais
segurança e previsibilidade às relações sociais, por meio do expediente da vedação
da aplicação do direito canônico aos tribunais civis, de modo a colocar um ponto
final às querelas existentes entre o direito da Igreja e o direito romano, impasses
tais que não eram solucionados satisfatoriamente pelo chamado “critério do pecado”

368
(Ordenações Filipinas, iii, lxiv). A aplicação deste critério, na prática, obrigava os
juízes do foro temporal a decidir sobre uma matéria que lhes era completamente
estranha. (hespanha, 1978, p. 78-79).
Diante disto, o legislador firma posição de modo a excluir da apreciação dos
tribunais seculares o conhecimento dos pecados, cabendo a eles apenas o conhe-
cimento dos delitos. Assim, apartava-se o direito canônico do foro temporal, de
modo que a observância das disposições de direito canônico cabe aos Ministros e
Consistórios Eclesiásticos nas decisões de sua alçada. Concluía-se, assim:

[...] o ciclo evolutivo do direito canônico na história das fontes do direito,


no nosso país. Em 1211, o direito canônico sobrepunha-se ao próprio direito
régio; agora, em 1769, deixa, sequer, de ter valor como fonte subsidiária.”
(silva, 1985, p. 278).

Este processo de laicização do direito impulsionado pela Lei da Boa Razão tal-
vez tenha influenciado a visão de Paula Baptista em relação à Liberdade de Crença.
Tratando do tema da revogação implícita das leis, considerava que o fato da Consti-
tuição brasileira de 1824 haver assegurado a liberdade de consciência3 implicou na
revogação da chamada “excepção de excomunhão”:

É o que chamamos revogação implícita das leis. Exemplo: Garantida a li-


berdade de consciência pelo artigo 179 § 5 da Constituição, revogada ficou a
ordenação do liv. 3º tit. 49 § 4 que autorizava a excepção de excomunhão;
por quanto se além das penas espirituaes continuassem a existir soffrimen-
tos temporaes para o excomungado, bem como o soffrimento da privação de
seus direitos civis, não poderia haver tolerancia religiosa, etc., etc. (baptista,
1898, p. 398).

A posição laicizante de Paula Baptista, portanto, não deve ser compreendida


como revolucionária ou vanguardista, naquele contexto; mas sim como uma evi-
dência do sucesso do projeto político-jurídico iniciado pelo Marquês de Pombal, que
teve continuidade no Brasil.
Tal posicionamento chama a atenção diante do momento de união entre a
Igreja Católica e o Estado brasileiro ao longo do Século xix. Em 1823, nos primeiros
anos do Tribunal da Relação de Pernambuco, a Corte solicitou a Junta Provisória
3  Cf.: Constituição Política do a construção de um oratório, para que os Desembargadores pudessem assistir às
Império do Brazil, de 25 de março
de 1824, art. 179: “A inviolabilidade missas antes dos despachos (valle, 1983, p. 99). Descrevendo a Sala dos Despachos
dos Direitos Civis, e Politicos dos do Tribunal da Relação de Pernambuco, considerada a parte nobre das Casas da Re-
Cidadãos Brazileiros, que tem
por base a liberdade, a segurança lação, afirma José Ferraz Ribeiro do Valle (1983):
individual, e a propriedade, é
garantida pela Constituição do
Imperio, pela maneira seguinte. V. No Salão, porta fechada, protegida pela vigilância do Guarda-Mor, despacha-
Ninguem póde ser perseguido por vam os desembargadores, depois de missa celebrada pelo Capelão, no Oratório
motivo de Religião, uma vez que
respeite a do Estado, e não offenda a
da Casa, em obediência ao preceito: ‘Antes de entrarem no despacho, se dirá
Moral Publica”.

369
todos os dias Missa por um Capelão, que o Governador para isto escolher’.
(valle, 1983, p. 57-58).

A reforma legislativa empreendida pelo Marquês de Pombal não encontrou


solução de continuidade com a Lei da Boa Razão; mas foi continuada na reforma
universitária, “com especial incidência no curso de Direito. A fina sensibilidade ra-
cionalista apreendeu claramente que o ensino do Direito e a sua concretização estão
interligados de modo indissociável” (cordeiro, 2004, v. 1, p. 20). Pode-se destacar na
reforma universitária portuguesa de 1772 os seguintes tópicos: i) “a introdução de
disciplinas de História e de Direito pátrio”; e ii) “a obrigação de elaborar compêndios,
a cargo dos professores” (cordeiro, 2004, v. 1, p. 21).

6. O Compêndio de Paula Baptista no contexto da Reforma dos


Estatutos da Universidade de Coimbra.

A obra reformadora de Pombal, iniciada com a Lei da Boa Razão, completa-se com
a grande reforma do ensino universitário (com a publicação dos novos Estatutos
da Universidade de Coimbra, em 1772), “que constitui a expressão mais perfeita, no
domínio da pedagogia, do despotismo esclarecido que nos governou” (cruz, 1981,
v. 2, p. 11).
Os novos Estatutos da Universidade de Coimbra farão aquilo que não poderia
ser alcançado somente pela Lei da Boa Razão: a criação, pela via das novas gerações
de juristas, de uma mentalidade igualmente nova, nos moldes do novo espírito
que anima a legislação portuguesa e, sobretudo, adaptada aos novos expedientes de
interpretação e integração da lei, de modo a fazê-los predominar na doutrina e na
jurisprudência. Para que isto acontecesse, introduziram no currículo universitário
as ideias do direito natural e do usus modernus pandectarum (cruz, 1981, v. 2, p.11).
Os Estatutos aprovados em 1772, portanto, reforçaram a necessidade de se aferir
a boa razão dos textos romanos à luz do uso moderno. Ademais, instituiu novas
disciplinas jurídicas, tais como o Direito Natural, a História do Direito Pátrio e as
Instituições de Direito Pátrio. Introduziu-se, ainda, um novo método de ensino (o
método sintético-demonstrativo-compendiário), que seria mais adequado ao enten-
dimento do novo espírito, de modo a permitir a instauração de uma mentalidade
jurídica diversa da que era cultivada anteriormente (justo, 1995, p. 37).
Tal método sintético-demonstrativo-compendiário, a ser observado pelos Pro-
fessores na exposição da matéria, consistia na organização de “compêndios ‘breves,
claros e bem ordenados com o succo e a substância das doutrinas”. Tais compêndios
se destinariam a fornecer as definições e divisões das disciplinas, em harmonia com
as regras da boa dialética: partia-se dos princípios e regras mais simples e fáceis
de serem compreendidas, e depois passava-se para as conclusões mais específicas,
hauridas a partir de um número maior de ideias e por isto mesmo mais complexas
e sublimes, a exigir mais da inteligência dos estudantes (silva, 1985, p. 282).
Destarte, não foi por acaso que Francisco de Paula Baptista produziu seu Com-
pêndio de direito processual civil e hermenêutica jurídica. A organização de tais

370
Capa de Carta Precatória citatória dirigida pelo Juízo de
orphãos da Comarca de Goiana a igual juízo da Comarca de
Pedras de Fogo da Província da Paraíba. 23 de abril de 1899.
Fonte: Memorial da Justiça do tjpe. Carta precatória citatória.
Goyana, 1899. p. 1.

371
compêndios era a realização dos fins almejados pelo método sintético-demonstrati-
vo-compendiário dos Estatutos da Universidade de Coimbra. Assim, ressalta Gláucio
Veiga (1981) que: “Inviolável e uniformemente, nos cursos jurídicos, abraçaram-se
compêndios e idéias, numa espetacular rotina, se bem que, como assinalamos, ex-
plicável como legítima defesa do regime” (1981, v. 2, p. 67).
Ademais, o Decreto n. 1.386, de 28 de abril de 1854, que conferiu novos Esta-
tutos às Faculdades de Direito do então Império do Brasil previa, em seu art. 72, a
concessão de prêmios aos Lentes que fossem autores de compêndios “ou obras para
uso das aulas, e os que melhor traduzirem os publicados em lingua estrangeira,
depois de terem sido ouvidas sobre elles as Congregações e de serem approvados
pelo Governo”; o que pode ser considerado um fator de estímulo à feitura das obras
e evidencia a consolidação do método sintético-demonstrativo-compendiário entre
nós (herzog, 2014, p. 506).
O impacto dos Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1772, será enorme
entre nós. Diz-se isto porque as nossas primeiras Faculdades de Direito tomarão por
modelo justamente esta Universidade de Coimbra moldada pelo Marquês de Pombal
e seu despotismo esclarecido (wolkmer, 2010, p. 103).
Como já tivemos oportunidade de afirmar, o rompimento com Portugal não
teve o condão de interromper as velhas tradições metropolitanas, de modo que o
chamado período olindense da Faculdade de Direito, instalada na então Província
de Pernambuco (1827-1854), será compreendido como um tempo de predomínio do
pensamento estrangeiro (especialmente o francês) e das tradições universitárias
coimbrãs. Isto teria auxiliado na “penetração e perenização das idéias lusitanas no
espaço acadêmico. Coimbra era tomada como modelo pela Olinda acadêmica. Odilon
Nestor, por sua vez, acrescenta: ‘Em Olinda, era de algum modo, Coimbra que se
reeditava’” (costa filho, 2004, p. 20).

7. Savigny: “insigne mestre” de Paula Baptista.

Seja no exame da fonte documental utilizada neste opúsculo (anexo 1), bom pergun-
tar, ou em relação ao Compendio de Paula Baptista, verifica-se a forte influência do
pensamento do Friedrich Carl Von Savigny na praxe e na doutrina de Paula Baptista.
Além da reverência ao “insigne mestre” Savigny, manifestada em diversas passa-
gens do Compendio (baptista, 1898, p. 31), é de se registrar a invocação da doutrina
de Savigny para a fundamentação do pedido formulado na Carta Testemunhável
analisada neste trabalho.
Nota-se, na historiografia jurídica contemporânea, um grande interesse em
torno de Savigny e da influência de sua obra em diversas partes do mundo, inclu-
sive em Portugal e no Brasil (herzog, 2016a). Destaque-se neste sentido o livro de
Benjamin Herzog, que veicula no subtítulo “um apelo por mais Savigny e menos
Jhering” (ein Plädoyer führ mehr Savigny und weniger Jhering), com destaque para a
análise da influência de Savigny na obra de Paula Baptista (2014).
Na Alemanha contemporânea, a doutrina de Savigny sobre a interpretação
do Direito e seus quatro métodos de interpretação continuam a ocupar um espaço
central no sistema jurídico alemão, que ressalta a aplicação da “lex lata” como en-

372
contrada nas regras jurídicas da legislação em vigor, “reservando-se a aplicação dos
princípios contidos na constituição a um número muito restrito de casos específicos
(os famosos hard cases dworkinianos)”. Além do Savigny’sche Quart (ou seja, os quatro
métodos desenvolvidos por Savigny: 1. grammatikalische Auslegung; 2, historische Aus-
legung; 3. systematische Auslegung; 4. teleologische Auslegung); a hermenêutica jurídica
contemporânea na Alemanha também recorre “as verfassungskonforme e a europare-
chtskonforme Auslegungen, ao que se opõem muitos juristas, alegando que esses dois
tipos são apenas formas específicas dentro dos tipos clássicos de Savigny” (quarch,
2014, p. 251-285).
Como já afirmamos anteriormente, Paula Baptista obteve os graus de bacharel
e doutor em Direito ainda na primeira metade do século xix. Um dos mais influen-
tes teóricos alemães neste período entre nós foi Friedrich Karl Von Savigny. Este
jurista foi um típico exemplar da elite prussiana da primeira metade do século xix,
e viveu de 1779 até 1861, o que lhe permitiu presenciar importantes transformações
políticas na Europa, especialmente as repercussões da Revolução Francesa.
Ele foi Professor de Direito em um tempo em que as Faculdades de Direito
na Prússia (em um tempo histórico anterior a unificação da Alemanha) tinham
competência para julgar recursos de apelação; além de ter sido o mais famoso e
influente defensor de duas importantes idéias, quais sejam: I) a verdadeira origem
das normas jurídicas está no Volksgeist, ou seja, o espírito que governa certo povo,
aprimorado através de costumes imemoriais, que são racionalizados pela ciência
jurídica nacional; e II) que o direito aplicado ao povo alemão em seu tempo, baseado
em um Direito Romano historicamente adaptado ao Direito costumeiro alemão, era
um sistema racionalmente elaborado, mas sem recair em universalismos (kennedy,
2010, p. 811-812).
Savigny é apontado como “o mais ilustre” representante da Escola Histórica,
entre outros motivos, por haver “descoberto” o Direito não mais na consciência
individual dos membros da sociedade, mas sim em uma “consciência coletiva”: o
Espírito do Povo (bonnecase, 1928, 400).
Pode-se descrever a proposta da Escola Histórica alemã, em linhas gerais, a
partir da comparação da vida dos povos e de cada um de seus elementos constitu-
tivos com a vida humana, que não permanece sempre a mesma, apresentando-se
como uma “sucessão contínua de desenvolvimentos orgânicos”. Da mesma forma,
a língua e o direito inserem-se neste processo de transformação ininterrupta, re-
sultando do mesma origem, e submetidos às mesmas necessidades, igualmente in-
dependentes do acaso e das vontades individuais.Tais transformações seguem uma
marcha regular e submetem-se a um encadeamento de circunstâncias invariáveis,
que estão intimamente ligadas às diversas manifestações do Espírito do Povo, do
qual o direito nasce (bonnecase, 1928, p. 402).
Pode-se dizer que Savigny e suas ideias constituirão o prenúncio de uma crise
da Ciência européia do direito. Para Carl Schmitt, esta crise se instaura em meados
do século xix e resulta na vitória do positivismo legalista. A era das revoluções
iniciadas em 1848 marcaria uma transição da hegemonia do direito natural para o
positivismo. Pode-se dizer que um dos principais marcos desta transição paradig-
mática traduz-se na publicação da seguinte obra de Bernard Windscheid, em 1854:
“Der Traum des Naturrechts ist ausgeträumt” (schmitt, 1950, p. 14).

373
Bernard Windscheid pode ser considerado um dos principais continuadores
da obra de Savigny, destacando-se no contexto do desenvolvimento da chamada
jurisprudência construtiva (ou, como é mais conhecida no Brasil, jurisprudência
dos conceitos). Com a publicação desta obra, cujo título pode ser traduzido como O
sonho do direito natural desapareceu. De acordo com Carl Schmitt (1950, p. 15),
Bernard Windscheid apresenta nesta obra uma teoria bastante positivista e realista,
não obstante ser um conhecido romanista, chegando ao ponto de propor uma “puri-
ficação” do direito, ou seja, “um reducionismo positivista estatalista, apesar de ainda
não ser capaz disto e realmente sem entender as possíveis repercussões futuras”.4
Não se pode negar, contudo, que a Revolução francesa e o seu Code tiveram
grande impacto no mundo jurídico ocidental e em certas regiões do oriente. Frente
ao cipoal jurídico existente em épocas anteriores ao ingresso do Code no mundo
legislativo, uma legislação simplificadora como a do código napoleônica foi recebi-
da com entusiasmo e alcançou uma grande repercussão. O Code civil dos franceses,
mais do que uma simplificação, promoveu diversas reduções: reduz-se a um só os
sujeitos produtores de direito; reduz-se o jurista ao papel de mero exegeta de um
texto normativo estranho, que ele não contribuiu para criar (grossi, 2006, p. 14).
Pode-se até mesmo afirmar que a crença difusa da “maioria silenciosa dos
juristas” na estatalidade do direito, no monopólio da lei e na passividade da juris-
prudência é uma herança deste projeto político burguês notabilizado na França
(grossi, 2006, p. 15).
Enquanto os franceses pregavam a ruptura com o Antigo Regime e suas tra-
dições, Savigny trazia um conjunto de ideias justamente no sentido de preservar
a “cultura”, ou seja, o conjunto de tradições que vão constituir o chamado “espírito
do povo” (wieacker, 1980, p. 439). Alguns o acusam de colocar-se contra o projeto
político e jurídico dos revolucionários franceses em razão de sua posição na aristo-
cracia, sua francofobia e seu nacionalismo (lardeux, 2006, p. 02). Mas, o fato é que
ele se notabilizou por apresentar argumentos vigorosos de modo a se contrapor ao
movimento que começava a ganhar força na década de 1810, nos Estados germânicos,
pela confecção de um código civil nos moldes do Code napoleônico. Savigny pode ser
apontado como o maior expoente da chamada Escola Histórica alemã.
Chama-se de Escola Histórica alemã o conjunto de ideias jurídicas em voga na
Alemanha (ainda dividida) do início do século xix, e que advogava a historicidade
do direito, levando em consideração a historicidade de cada povo, afirmando ser o
direito uma manifestação do espírito do povo (volksgeist) (wieacker, 1980, p. 407).
Assim, o direito nesta perspectiva assume-se como parte importante da cultura
de cada povo.
Friedrich Carl Von Savigny, um dos principais expoentes desta corrente de
pensamento, concebe a cultura “como uma tradição literária (“história da literatu- 4  No original: “Vermutlich glaubte
der Romanist und Pandektist
ra”); no caso especial da história do direito romano na Idade Média, quase como a Windscheid mit diesem Satz sehr
história dos manuscritos e livros que nos transmitiram testemunhos e opiniões realistisch und wohl auch sehr
positivistisch zu sein, obwohl er,
doutrinais sobre as fontes do direito romano” (wieacker, 1980, p. 439). Este ponto gerade als Romanist und Pandektist,
de vista ressaltado por Savigny permite que se “nacionalize” o direito, permitindo eines reinen d. h. staatsbezogenen
Setzungspositivismus kaum fähig war
uma certa autonomia em relação às antigas fontes romanas e à legislação estran- und die eigentlich Gefahr gar nicht
geira (meira, 1984, p. 128). begriff” (schmitt, Carl. Die lage der
europäischen rechtswissenschaft.
Ora, no contexto germânico de então, a tradição jurídica escrita consistia Tübingen: Internationaler
basicamente em um conjunto de interpretações dos textos romanos realizadas por Universitäts-Verlag, 1950, p. 15).

374
autores alemães, o usus modernus pandectarum. É neste contexto que se fala em uma
“sobrevivência” do direito romano, ou seja, em uma “presença de conteúdos e de
formas romanas dentro de sistemas modernos, neles integrados e redimensionados”
(saldanha, 1984, p. 116).
Pode-se dizer que Savigny é herdeiro de uma longa tradição romanística que
remonta à predominância do mos italicus na formação dos juristas alemães, que
depois foi impactada pela reforma humanística empreendida pelo mos gallicus (bur-
meister, 1974, p. 251-252). O mos italicus “é um método casuístico”, também chama-
do de “magistraliter docere”, e geralmente denominado “vulgaris ratio” pelos juristas
alemães do século xvi (burmeister, 1974, p. 241). Theodor Viehweg (1979), inclusive,
ressalta que a tópica aristotélica pode ser encontrada “no mos italicum, bem como
na civilística atual e presumivelmente também em outros campos” (viehweg, 1979,
p. 17). Talvez, a prolongada influência do mos italicus nas Universidades alemãs e na
vida jurídica daquele país explique a rejeição de Savigny a soluções prêt-a-porter,
que parecem servir para qualquer época e qualquer lugar.

8. Continuidade e originalidade do pensamento de Paula Baptista em


relação a teoria da interpretação jurídica.

A formulação de um sistema de regras de interpretação do direito a partir da obra


de Savigny, por Paula Baptista, representará uma relativa emancipação do direito
brasileiro em relação aos juristas de formação portuguesa. Nascido e formado ex-
clusivamente no Brasil, Paula Baptista leu o System de Savigny, em alemão, “dife-
rentemente do que era habitual àquele tempo, em Portugal” (herzog, 2016b, p. 283).
Todavia a ascendência do pensamento de Savigny sobre o de Paula Baptista não
foi plena; posto que este jurista brasileiro não tenha seguido a posição de Savigny
“a decisiva questão relativa à fundamental recusa de fazer uso dos motivos da lei
(ratio legis) como auxílio interpretativo”. Na doutrina de Paula Baptista, o referen-
cial teórico de Savigny termina por se misturar com a hermenêutica antiquada do
iluminismo setecentista; além de não ser possível afirmar que ele compartilhava
do ceticismo de Savigny quanto à ratio legis. (herzog, 2016b, p. 283).
Assim, por exemplo, misturam-se no corpo da Carta Testemunhável as referên-
cias ao método histórico (de Savigny)5 e a Lei Natural ou ao Direito Natural, à moda
iluminista.6 Contudo apesar de ser possível assinalar um certo distanciamento de
Paula Baptista em relação a Escola da Exegese, porquanto defenda que os juízes não
apenas tenham o direito, mas também o “dever de interpretar” (a contrário sensu da
5  Cf.: “O juiz agravado ignorando disposição consagrada no art. 4º do Code) (baptista, 1898, p. 369-370); não se pode
ou esquecendo o [elemento] histórico
negar a influência iluminista em referências a uma lei natural, com “princípios
de interpretação, tão cabível no
caso para fiel inteligência da citada eternos e imutáveis”, que deve ser aplicada no silêncio do direito positivo e também
disposição, quer agarrado a falsa nos casos duvidosos. (baptista, 1898, p. 387).
interpretação gramatical inclui aquelas
palavras do Dec” (cunha, 2014). O iluminismo, enquanto filosofia, encontra no Code de Napoleão e na Escola
6  Cf.: “Imperial Senhor, não é da Exegese sua expressão jurídica. A antiga ordem classista (com suas corporações
possível que contra as suas doutrinas
de magistrados [provectus] e de leis de ofício, ordens religiosas, etc.) é substituída pela ideia de vontade geral personi-
claras, juízes novos estejam a inovar ficada pelo parlamento que a representa. O resultado da vontade geral é a lei, que
no foro plantando a desordem no
foro no regime da justiça, ferindo até corporifica tal manifestação. Daí o moderno princípio da legalidade, qual seja a
dogmas da lei natural” (cunha, 2014).

375
adequação das condutas a lei; regra fundamental da concepção moderna de demo-
cracia. (grossi, 2007, p. 54).
Mas, Paula Baptista (1898) não era adepto da ideia de uma ordem jurídica que
se reduz apenas à lei. Para ele, reduzir o juiz a condição de mero aplicador das leis
“seria uma tentativa tão pueril, como a de quem quisesse contar as estrellas do
Céo”. E acrescenta: “É, portanto, de interesse publico, que os juizes tenhão o direito,
e mesmo o dever de interpretar (art. 4 do Cod. Civ, franc.)” (baptista, 1898, p. 372).
Parece-nos que, em vez de reduzir o direito à norma, Paula Baptista mais se
aproxima de uma visão do direito como ordenamento; compreendendo o direito
como uma forma de ordenar e não de restringir a realidade subjacente, prestando
contas e respeitando a sua complexidade. Segundo Paolo Grossi (2007): “Conceber o
direito como ordenamento possui, desse modo, o significado de iniciar a tentativa
de recuperação da complexidade, da complexa riqueza do universo jurídico” (grossi,
2007, p. 63).
A veneração de Paula Baptista pelo direito natural era reflexo de sua admiração
pela razão dos iluministas setecentistas: uma razão abstrata, universal e imutável.
Nesta toada, Paula Baptista (1898) invoca justamente a Lei da Boa Razão, expressão
do despotismo esclarecido (ou iluminista) entre nós, para justificar o recurso ao
direito natural:

A lei de 18 de Agosto de 1769, a mais importante, senão a única que temos


sobre materias de interpretação, no § 9 assim se exprime: ‘Mando por outra
parte, que aquella boa razão, que a Ord. do l. iii tit. 64 determinou que fosse
na pratica de julgar subsidiaria seja aquella boa razão, que consiste nos pri-
mitivos, principios, que a ethica dos mesmos Romanos havia estabelecido,
e o direito divino e o direito natural formalisarão para servirem de regras
civis e moraes entre o Christianismo’. (baptista, 1898, p. 388)

O Direito Natural defendido por Paula Baptista destoa da proposta do jusna-


turalismo tomista medieval, que não considerava ser possível constituir, a partir
do direito natural, um conjunto de regras imutáveis.
Santo Tomás de Aquino, por exemplo, sustenta que o direito natural é mutável,
pois a própria natureza humana também é mutável: “‘Natura […] hominis est mutabilis’.
Assim como, fazendo uso da mesma fórmula, fala alhures da mobilidade necessária
das leis humanas, que são normalmente a expressão da lei natural.” (villey, 2005, p.
149). Definitivamente, o jusnaturalismo de Paula Baptista não pode ser caracterizado
como um jusnaturalismo de vertente tomista.
Some-se a isto também um certo distanciamento de Paula Baptista em relação
à proposta de Savigny quanto aos elementos da interpretação (Elemente der Auslegung)
(herzog, 2014, p. 508). Paula Baptista (1898), por exemplo, afirma que a interpretação
não é necessária quando a lei “é clara e precisa” Entretanto isto não significa que
ele desconhecia o entendimento de Savigny:

[…] censura os que limitão a interpretação aos casos accidentaes de obscuri-


dade nas leis: diz, que ella acompanha a applicação de todas as leis à vida real

376
(seus discípulos accrescentão ‘ainda as mais claras) e a define reconstrucção
do pensamento contido na lei’ (baptista, 1898, p. 369-370 ).

Entretanto critica a posição de Savigny por considerar que ela pode conduzir
o jurista para além dos “dos limites da interpretação para entrar no domínio da
formação do Direito. Ou existem motivos para duvidar do sentido de uma lei, ou
não existem” (baptista, 1898, p. 369-370).
Sem que seja possível afirmar qualquer antecipação do futuro em relação
a Paula Baptista, não deixa de ser interessante analisar a crítica dele diante dos
desenvolvimentos da teoria hermenêutica ao longo do século xx, que deu passos
largos, “aproximando de forma evidente o momento normativo e o momento de
interpretação-aplicação” (grossi, 2007, p. 75).
Acrescente-se também que Paula Baptista (1898) reduz os elementos (ou méto-
dos) de interpretação a apenas três: gramatical, lógico e científico. Esta divergência,
todavia, não é radical; posto que considere o método histórico compreendido no
científico: “Savigny dá o nome de systematico ao elemento, que achei mais próprio
chamar scientifico, e accrescenta um outro, o historico, que, quanto, a mim, está
incluído no scientifico” (baptista, 1898, p. 378-379). Contudo, parece que há uma
certa coincidência da posição dele com a de Savigny, quanto à necessidade do re-
curso a todos os métodos (ou elementos) para uma interpretação adequada da lei:
“os tres elementos estarão presentes como necessários para dar ao interprete plena
consciência da lei” (baptista, 1898, p. 383).
Por fim, parece-nos que Paula Baptista também não tomou uma posição fir-
me e consciente em relação à invocação dos “fins da lei”, em sua interpretação. Tal
questão desenvolveu-se no contexto jurídico brasileiro a partir da difusão das ideias
de Jhering. Neste sentido, o art. 5º da Lei de Introdução as normas do direito brasi-
leiro, promulgada em plena ditadura do Estado Novo (em 1942), prescreve que: “Na
aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências
do bem comum”.
Ora, costuma-se ver nestes fins sociais, apesar do conteúdo e da semântica
da norma não possuírem contornos precisos na experiência jurídica brasileira,
“uma ênfase na teleologia. Isso, por sua vez, vem acompanhado de uma tendência
ao alargamento das competências do judiciário em detrimento das do legislador”
(herzog, 2016b, p. 284).
Cumpre registrar que Rudolf von Ihering notabilizou-se por suas críticas à ju-
risprudência dos conceitos, por desenvolver teses tais como a da culpa in contrahendo
e por haver colocado a finalidade (zweck) como conceito fundamental para o direito
(Grundbegriff des Rechts). Apesar de muitos o identificarem atualmente com a crítica
ao formalismo, ele defendia que a forma era a “irmã gêmea da liberdade” (Zwillingss-
chwester der Freiheit) (rückert, 2004, v. 5, p. 129). O fato é que, mesmo na Alemanha,
não faltarão insinuações (ainda que qualificadas como obscuras) no sentido de que
o darwinismo social de Ihering qualifica-o enquanto espécie de precursor de um
racismo naturalista próximo do sustentado pelos adeptos do partido nazista alemão.
(rückert, 2004, v. 5, p. 129).

377
Quanto ao problema da interpretação do direito, é possível intuir que pode
ter se verificado no direito brasileiro um fenômeno em relação ao qual Savigny
advertiu e Paula Baptista também. O recurso aos fins da lei (assim como advertiu
Savigny) podem, na prática, alçar o jurista ao status de legislador. Por outro lado, a
expansão da interpretação no direito brasileiro pode conduzir o jurista ao domínio
da formação do direito, segundo Paula Baptista.
Por fim, na concepção de Clóvis Bevilaqua (2012), Paula Baptista é “a figura
mais alta da Faculdade de Direito do Recife, antes de Tobias” (bevilaqua, 2012, p.
458). Esta visão, assim como a interpretação que se faz tradicionalmente da Escola
do Recife precisam ser repensadas diante dos rumos contemporâneos da historio-
grafia jurídica. Clóvis Beviláqua, por exemplo, que é considerado um dos grandes
expoentes da Escola do Recife, terminou por defender um racismo científico à luz
das ideias de Rudolf von Ihering e de outros autores (costa filho, 2013). A não adesão
de Paula Baptista a tais ideias supostamente progressistas pode ser interpretada
como um ponto positivo atualmente.
É de se questionar, também, se o germanismo é um traço característico da
Escola do Recife, na medida em que já é possível identificar semelhante germanismo
em Paula Baptista. Autores tais como Graziela Bacchi Hora defendem que a adesão
dos membros da Escola do Recife ao positivismo comteano em um dado momento
resultou em um saldo positivo, a exemplo da difusão da tese favorável à laicização
do Estado (hora, 2012, p. 291).
Como pudemos demonstrar ao longo deste texto, o processo de laicização do
direito e do Estado recebe um impulso vigoroso a partir das Reformas implemen-
tadas no período pombalino, o que explica a defesa de tais teses por Paula Baptista.
Paula Baptista, enfim, foi um homem do seu tempo. Deve ser interpretado
como um pensador do século xix, sem que se exija dele a obrigação de ter opiniões
que se encontram em voga nesta segunda década do século xxi. Francisco de Paula
Baptista, portanto, foi um grande pensador do direito brasileiro do século xix.

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381
Anexo: Carta Testemunhável subscrita por
Francisco de Paula Baptista (1873).

1
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO
DIRETORIA DE DOCUMENTAÇÃO JUDICIÁRIA
MEMORIAL DA JUSTIÇA
Av. Alfredo Lisboa, s/n, Brum, Recife-PE. Fone: 81-31819440

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Este documento integra o acervo do Memorial da Justiça do TJPE


Transcrição elaborada por Mônica Maria de Pádua Souto da Cunha, em setembro de 2014.

382
2
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO
DIRETORIA DE DOCUMENTAÇÃO JUDICIÁRIA
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CAPÍTULO 14 - Alimentos para a
mulher apartada da casa do marido

Jones Figueirêdo Alves1

1. Introdução

Este capítulo relata processo judicial do Tribunal de Relação onde uma jo-
vem mulher, submetendo-se a aparente abandono do marido, vem a juízo, em 1862,
reclamar alimentos, diante de um casamento de pouco tempo de duração. Ela é
colocada sob a égide da legislação da época, que determina não poder separar-se
1  O autor é Desembargador Decano por autoridade própria, obrigar-se a viver com o marido debaixo do mesmo teto, a
do Tribunal de Justiça de Pernambuco,
quem compete exigir da mulher “respeito e obediência em tudo que for lícito e honesto,
compondo o colegiado desde 09.02.1999.
Magistrado de carreira, tem 45 anos do que resulta da parte dela”, decorrendo, daí, a obrigação de o acompanhar, seguin-
de judicatura (27.11.1975). Mestre em do por isso ao foro e domicílio do marido. O fato singular do processo é quando o
Ciências Jurídicas pela Faculdade de
Direito da Universidade Clássica de alimentante reclamado “chama a sua mulher à coabitação e uso do matrimônio”, como
Lisboa (FDUL). Assessorou a Câmara prejudicial de mérito ao julgamento2.
Federal junto à Comissão Especial para
a tramitação final e a aprovação do As apelações cíveis perante a Casa de Relação de Pernambuco, já eram julgadas
Código Civil de 2002. Integra a Academia em estilo inovador, onde os desembargadores lançavam as suas tenções, não mais
Brasileira de Direito Civil, é membro do
Instituto Brasileiro de Direito de Família escritas comumente em latim e em papel apartado. O processo tramitava, entre eles,
(IBDFAM) e membro fundador do a partir do mais antigo, onde cada um dispondo a respeito, de forma continuada, uma
Instituto Brasileiro de Direito Contratual
(IBDCont). Integra também a Academia vez visto o feito, concordava ou não com a primeira tenção, seguindo-se o acordo para
Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ), o julgamento, quando levadas, afinal, à Relação. Bastavam duas tenções conforme,
e é membro convidado do Instituto dos
Advogados de São Paulo (IASP) e do não exigindo-se a continuação a terceiros julgadores. Lavrava-se, então, a sentença,
Instituto dos Advogados de Pernambuco “por força do acordo” (daí, acórdão). Assim, eram julgadas, de estilo, as apelações
(IAP). Autor de obras jurídicas nas áreas
de Direito Civil e Direito Processual cíveis, os agravos ordinários e os instrumentos de agravo, enquanto nas apelações
Civil. Preside a Comissão de Gestão e criminais os seus julgamentos eram feitos oralmente, por conferência, em Mesa.
Preservação de Memória do Tribunal de
Justiça de Pernambuco. Neste sentido, dispunham, há muito tempo, as Ordenações do Reino e os As-
2. Os autos do processo (1862-1867), sentos da Casa de Suplicação para a redução dos votos, tendo o Decreto de 23.05.1821,
pertencente ao período do Tribunal de
em Portugal, introduzido o uso do idioma de origem da nação portuguesa. Quando
Relação (1822-1892), integram o acervo
histórico do Memorial de Justiça, do instalado no Recife o quarto Tribunal de Relação (13.08.1822), os julgamentos eram
Tribunal de Justiça de Pernambuco, e expeditos, reunidos os Desembargadores, perante o Chanceler, na Sala dos Despa-
se encontram disponíveis para consulta
pública. chos (Sala de Sessões), “onde permaneciam em trabalho, pelo menos quatro horas,

387
marcadas pelo relógio na Mesa Grande.” (VALLE, 1983, p. 58-59). A província de DEBRET, Jean-Baptiste. Empregado do
Pernambuco, àquela altura, experenciava importante crescimento econômico, com governo saindo a passeio.
Fonte: BANDEIRA, Júlio; LAGO, Pedro
sua renda alfandegária duplicada na última década e superior a cinco vezes, no ano Correa do. Debret e o Brasil: obra
seguinte à instalação da Corte. Enquanto isso, os recursos eram manejados, à medida completa: 1816-1831. 3. ed. Rio de
Janeiro: Capivara, 2013. p. 169
necessária de pronto expediente e com a instrumentação adequada, sob o estímulo
das atividades do novo Tribunal de Relação, cuja criação atendeu aos reclamos da
Província de Pernambuco.
Anota-se que o Tribunal foi sediado na Vila do Recife, diante da “grande aflu-
ência dos negócios”, e de sua promissora atuação comercial e expressivo superavit de
exportação, servindo-lhe o Colégio dos Jesuítas, anexo à igreja de Nossa Senhora do
Ó, no Pátio do Colégio, hoje denominada Praça Dezessete. Ali, o Chanceler interino
Antônio José Osório de Pina Leitão3 (Pinhal, Portugal), em exibindo o Alvará Régio
perante a Junta Provisória do Governo da Capitania, presidida por Gervásio Pires
Ferreira, requereu a posse da Relação, “na conformidade do Alvará”, o que foi deferido,
havendo este, após juramento e empossado, dado posse aos demais desembargadores,
com a consequente instalação da Relação. 3  O Chanceler efetivo Lucas Antônio
Foram empossados os Desembargadores Eusébio de Queirós Coutinho da Sil- Monteiro de Barros (*Congonhas do
Campo, Vila Rica, Minas Gerais), que
va (Angola, África), Bernardo José da Gama (Recife, Brasil), João Ferreira Sarmento não tomara posse com os demais,
Pimentel (S. Nicolau de Carrazedo, Portugal) e João Evangelista de Faria Lobato em 13.08.1822, por “motivos que
sobrevieram”, coincidentemente tomou
(Vila Rica, Minas Gerais, Brasil). Solenidade simples, mas cuja importância históri- posse em 7 de setembro de 1822, pelas
ca impõe-se presente e iniludível no curso de dois séculos, sob a singularidade da 12h, quando no mesmo dia, às 16:30h, era
proclamada a independência do Brasil.
toga que se torna, a cada julgamento, o manto diáfono do julgador sobre os dramas
4 VALLE, José Ferraz Ribeiro do. Uma
humanos e os conflitos de interesses. Os desembargadores da Relação de 1822 usa- Corte de Justiça do Império.... Idem, p.
vam as vestes talares4, quando o seu uso em Portugal fora determinado desde dois 59. O vestuário, de origem etrusca, foi
utilizado em Roma pelos Senadores e
séculos antes, por Alvará de 09 de abril de 1600, de Filipe II. As suas Ordenações, por nobres patrícios, reservando-se, então,
isso chamadas Ordenações Filipinas, vigiam ao tempo do novo Tribunal de Relação. aos magistrados, a toga “forensis”.

388
2. As Ordenações Filipinas

São exatamente as Ordenações Filipinas (Código Filipino) que servirão no


Brasil - até 1916, quando editado o nosso primeiro Código Civil (Código Bevilacqua)
- como os normativos fundamentais ao desempenho da jurisdição do Tribunal de
Relação no trato das questões postas a julgamento.
A esse propósito, explica João Mendes que: “As Ord. L. I, título II 6, 7 e 8, e IV
§§ 13 a 17, assim como os Assentos de 29 de abril de 1629, 18 de julho de 1691 e 17 de
março de 1718, trazem não só o processo, como as regras para regular o vencimento
e a redução dos votos, quer nas apelações crimes em que julgavam por conferência,
quer nos efeitos em que julgavam por tenções.” (MENDES, 1918, p. 330-331).
Esse sistema jurídico, em vigor desde 1603, quando editadas as Ordenações
durante o domínio espanhol em Portugal, por Filipe II, de Espanha, perdurou, em
Portugal, na sua esfera cível, até 1867, quando revogadas pelo Código Civil português
(Código Seabra). De efeito, as Ordenações, com sua identidade estrutural tratada se-
gundo o modelo das Decretais de Gregório IX, dispunham em cinco livros acerca do:
(I) Direito Administrativo e Organização Judiciária; (II) Direito dos Eclesiásticos, do
Rei, dos Fidalgos e dos Estrangeiros; (III) Processo Civil; (IV) Direito Civil e Direito
Comercial; e (V) Direito Penal e Processo Penal.
Em nosso país, as Ordenações Filipinas continuaram em vigor depois da in-
dependência do Brasil, por determinação da Lei de 20 de Outubro de 1823 e, como
referido, até o surgimento do nosso Código Civil. Ainda no período imperial, tive-
mos, antecedendo o Código Civil, o Decreto nº 130, de 1890, que instituiu a primeira
lei do direito de família.
Em tema do presente estudo, interessa mais de perto o Livro IV das Ordena-
ções, regendo o direito material como sucedeu durante todo o período imperial e
até quase um século depois da Independência, enquanto na esfera do processo civil,
houve, muito antes, o advento do Regulamento 737, de 1850.
Cumpre referir, demais disso, a notável influência do direito português du-
rante o Brasil Imperial. A civilística luso-brasileira do século XIX pontua-se com
os dois grandes juristas da época: Manuel Antônio Coelho da Rocha (1793-1850)5,
em Portugal, e Augusto Teixeira de Freitas (1816-1883), no Brasil, cuja “Consolida-
ção das Leis Civis”, publicada em 1858, influi na elaboração do Código Civil de 1916.
Sobre eles, referiu Antônio Santo Justo, consagrado jurista português:

Une-os a mesma cultura jurídica fortemente apoiada no direito romano,


difundida em Coimbra e Olinda; e a circunstância de terem tido um papel
decisivo na codificação portuguesa e brasileira. E separa-os a defesa de po-
sições originais e inovadoras, que a independência dos seus espíritos e as
diferentes sociedades justificam. (JUSTO, 2008, p. 205).

5  Autor das Instituições de Direito Civil


Portuguez, 1844. Coimbra, Imprensa
da Universidade, 1848, 2ª ed., em dois
Realmente. A civilística luso-brasileira nos aproxima e identifica em tal or-
tomos. dem de latitude que formamos uma alma lusíada, a refletir que somos dois povos
unos, por culturas e sentimentos; a um só tempo ou tempo instante portugueses e
brasileiros. Somos portugueses enquanto brasileiros somos.

389
3. A ação de alimentos convenientes

O processo cível que de aqui se cuida tem lugar no ano de 1862, quando apre-
sentada ação de alimentos em 13 de março daquele ano perante a 2ª Vara Cível da
Comarca do Recife. O pedido de prestação alimentícia teve como promovente d. Josefa
Leopoldina de Melo, através do advogado Nascimento Feitosa, em face de Luiz José
Rodrigues de Sousa, seu marido, por quem “tristemente abandonada” há um ano e mês,
obrigando-se a se recolher em casa do seu genitor. Ele vendera o único prédio que
tinha, “levando consigo para a Europa todos
os seus fundos pecuniários, com pequena
exceção”. A autora, casada aos dezesseis
anos, convivera com o marido por pouco
mais de dois anos.
A suplicante pleiteou “alimentos
convenientes”, ou seja, adequados à sua
posição e aos meios do casal, “compreen-
dendo estes casa, sustento, roupa, curativo,
e tudo quanto é preciso a uma senhora para
tratar-se com decência”. Em ser assim e
porque o suplicado ainda se achava na
Europa em lugar incerto, a suplicante
requereu ao juízo “admiti-la a justificar
a incerteza do lugar, e a ausência do su-
plicado, e que justificadas, se passe carta
de editos por sessenta dias, sendo essa
citação para todos os termos da causa, e
sua execução”.
Como observado na inicial, a mu-
lher requereu arbitramento de alimen-
tos provisionais e da “quantia precisa para
as despesas judiciais” nelas importando as
custas do processo e a verba honorária
do advogado e procurador. Para os refe-
ridos arbitramentos o magistrado hou-
ve de designar dois profissionais que,
sob juramento prestado, apresentaram
os valores.
Tratou, ainda, a inicial de destacar
haver a suplicante citado o marido por
editais pelo juiz de paz, “a fim de ver se ele
queria amigavelmente prestar à suplicante
alimentos convenientes à sua posição”, e que
tinha sido feita a “conciliação à revelia”,
não tem este enviado coisa alguma a seu Capa da Ação de Alimentos movida por Josefa Leopoldina de Mello em face de Luiz José
sustento. Anota-se que essa tentativa de Rodrigues de Sousa, perante o Juízo da 2ª Vara Cível da Comarca de Recife (PE). 13 de março
de 1862.
conciliação pré-processual constituía, à
Fonte: Memorial da Justiça do TJPE. Ação de Alimentos. Recife, 13/03/1862.

390
época, pressuposto necessário à demanda, nos termos da Constituição Imperial de
1824, expressando o seu art. 161 que: “sem se fazer constar que se tem intentado o meio
da reconciliação, não se começará processo algum”, com o encargo atribuído aos juízes
de paz.6
Importa observar, outrossim, que o pedido alimentar invoca a prestação de
uma verba condizente “a tudo quanto é preciso”, podendo essa cláusula de “tudo quanto
preciso for” significar versarem alimentos de que necessite o cônjuge “para viver
de modo compatível com a sua condição social” (BRASIL, 2002), como se extrai do
art. 1.694 do atual Código Civil, Lei nº 10.406, de 19.01.2002, levando em conta as
demais necessidades e não compreendendo, apenas, a alimentação, a cura, vestuário
e habitação.
A defesa atravessada pelo pretendido alimentante, antes do julgamento dos
arbitramentos, situou-se em manifestação volitiva do demandado apontada como
prejudicial ao pedido da ação. Declarou que apesar de a sua mulher haver se apartado
da casa em que ele a deixara, quando saiu do país, “o que não deveria fazer sem o seu
consentimento, apesar de procurar a companhia de seu pai”, “estava pronto a recebê-la
em sua companhia, e a viver maritalmente”, a tanto concorrendo com as despesas
de seu transporte para onde se encontra no exterior. Chama tal circunstância de
sua vontade como elemento fático a tornar prejudicada a ação, dispensando, daí,
pronunciar-se sobre o pedido.
Seguiu-se sentença do dr. Francisco de Araújo Barros, julgando o arbitramento
em seus valores, para que produza todos os seus devidos efeitos (16.08.1862), com a
obrigação de pagamento dos alimentos provisionais no curso da ação.
O processo teve seu curso com diversos incidentes, com embargos e agravo,
produzindo-se prova testemunhável e, uma vez retirado para a Europa desde feve-
reiro de 1861, insistia o suplicado, em Juízo, pela presença da mulher, na cidade do
Porto (PT), onde se encontrava, “bem como a fazer todas as despesas necessárias com
a sua ida para a companhia dele Réu, sendo que, por incômodos de saúde, ele não pode vir
pessoalmente para acompanhá-la”.
De sua parte, a suplicante dos alimentos, imputando ao réu a dissipação de
bens, adianta que este “vendeu casa, escravos e joias da autora, deixando-a de hóspede
em casa de sua irmã e levou consigo todos os haveres do casal”, e de efeito, colocando-a
6  A lei regulamentadora de Justiça de “reduzida a derradeira penúria”, a necessitar dos alimentos reclamados, vindo a ajuizar
Paz brasileira é de 15 de outubro de 1827.
De notar prevalecente o entendimento ação de alimentos permanentes.
de a conciliação ser atribuída aos Sucede, adiante, que em retornando de Portugal o réu peticionou, a fl. 99,
juízes de paz, tal como consagrada na
Reforma Judiciária de 1871, conforme aduzindo que: “está residindo na Rua do Crespo7, está pronto a receber sua mulher
o que defendia o doutrinador francês e a viver maritalmente, como o declarou às fls. 16 e 48. Já a fez notificar para que
Frédéric Mourlon, a dizer que a
conciliação não era stricto sensu uma
fosse para sua companhia e essa notificação ainda está presente. O réu, fazendo esta
atividade jurisdicional por não envolver declaração que ratificará por termo nos autos, espera que se julgue improcedente a
julgamento.
presente ação, na vez que sua mulher não se acha divorciada por sentença do Juízo
7  A Rua do Crespo é a atual Rua
Primeiro de Março, no bairro de declarado, único competente para autorizar a separação dos cônjuges, sendo certo que
Santo Antônio. Ver: 01. Web:https:// só depois de sentença de divórcio é que a mulher pode pedir alimentos permanentes,
pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Rua_
do_Crespo,_Recife_-_1858.jpg.; 02. Web: sendo divórcio temporário; portanto, sendo perpétuo, tem lugar a divisão de bens”.
https://www.brasilianaiconografica.art. A sentença veio de ser proferida, somente dois anos depois, em 03 de junho de
br/obras/18533/rua-do-crespo;03. Web:
http://brasilianafotografica.bn.br/ 1865, e como adiante se observa, o magistrado Francisco de Araújo Barros pronun-
brasiliana/handle/20.500.12156.1/2497 cia a decisão, diante da superveniência de fatos, à similitude do que o artigo 493 do

391
atual Código de Processo Civil dispõe, ou seja,
tomando em consideração fato modificativo do
direito a influir no julgamento do mérito. Afir-
mou, diante das controvérsias postas na lide,
que: (i) “tudo isso deixa de subsistir desde que o
réu, morando nesta cidade, chama a sua mulher à
cohabitação, e uso do matrimônio”; (ii) a questão
dos bens do casal, em havendo o réu fraudado
a mulher no patrimônio comum e pessoal, “não
é o meio presente para acautelar esse mal”.
“Por todas estas razões e pelo mais que
dos autos é constante”, o magistrado julgou
“improcedente a ação”.8 Vejamos, a seguir, a
decisão.

4. A sentença diante de um fato


modificativo

O relatório da sentença objetiva os fatos


da causa, indicando o juiz, prefacialmente, que:
“Vistos estes autos, deles consta que D. Jose-
fa Leopoldina de Mello Marinho, que havendo
sido abandonada pelo seu marido Luiz José Ro-
drigues de Souza, fora obrigada a recolher-se
à casa paterna, e que tendo direito a ser ali-
mentada pelos bens do casal cujas forças são
superiores a 120 contos de réis, vinha pedir que
lhe fossem marcados alimentos, compreenden-
do-se por estes casa, sustento e tudo quanto é
Petição inicial da Ação de Alimentos
necessário a uma senhora para tratar-se com decência. Com a causa principal pediu a movida por Josefa Leopoldina de Mello
autora alimentos provisionais os quais lhe foram mandados dar pela sentença de fls. em face de Luiz José Rodrigues de Sousa,
perante o Juízo da 2ª Vara Cível da
18 e pelo despacho de fl. 31. Depois desses preliminares seguiu a causa seus turnos,
Comarca de Recife (PE). 13 de março de
e o réu que se acha residindo nesta cidade, Rua do Crespo, pede que se ponha termo 1862.
à causa, declarando que está pronto a viver maritalmente com sua mulher, como já, Fonte: Memorial da Justiça do TJPE. Ação
de Alimentos. Recife, 13/03/1862.
aliás, o havia declarado às fls. 15 e 48. Neste sentido mesmo já fez notificar, como
consta dos autos a fl. 88, o que tudo bem e devidamente ponderado, assim como
apreciados os documentos, e as alegações de uma e outra parte produzidas, atendendo
que, com quanto do processo conste que o Réu, quando deixara sua mulher em casa
de sua irmã, retirara-se para o Rio de janeiro, e d’aí para Portugal, portara-se com
ela de modo a ponto de fazer ver que a abandonara, tentando deixá-la em miséria,
todavia hoje, que reside nesta cidade, a quer ter em sua companhia; atendendo que
ao marido, como chefe da sociedade conjugal, compete o direito de exigir da mu-
lher respeito e obediência em tudo que for lícito e honesto, do que resulta da parte
dela: a obrigação de o acompanhar, seguindo por isso ao foro e domicílio do marido. 8 Em bom rigor técnico-processual,
Coelho da Rocha parágrafo 230 [...]”. julga-se improcedente o pedido.

392
O julgador faz, em dois cortes, citações doutrinárias de Coelho da Rocha (como
antes reportado, um dos juristas portugueses de maior influência), em tessitura
compatível com os fundamentos da sentença em face dos fatos narrados, pelo di-
álogo com o civilista quando trata dos direitos e obrigações entre os cônjuges e os
direitos especiais quanto às pessoas.
Indica, sem transcrição, os parágrafos 230 e 238 de sua obra, valendo aqui
apresentá-los, na sequência:

[...] (i) § 230. Ao marido, como chefe da sociedade conjugal, compete o direito
de exigir da mulher respeito e obediência em tudo o que fôr licito e honesto;
d´onde resulta da parte d’esta: 1.° a obrigação de o acompanhar, que por isso
segue o fôro e domicilio do marido, cit. Cod. Fr. art. 214, 2.° a de lhe prestar
os serviços e trabalhos domésticos, conforme suas forças e estado. Cardoso
Prax. Jud. vbo. Maritus n. 21, cit. Cod. da Pr. art. 194. A mulher tem direito
ao amparo e protecção do marido, e portanto: a) a ser alimentada pelos bens
communs do casal, e na falta d’estes pelos proprios do marido, Ord. L. 4, tit.
103; b) a ser por elle defendida em sua pessoa, honra e bens, assim em juizo,
como fora. Cit. Cod. da Pr. art. 188. Por isso goza das honras e privilégios
de seu marido, excepto d aquelles, que forem privativos do cargo, que elle
occupou; e conserva-os durante a viuvez, em quanto nâo passar a segundas
núpcias, e viver honestamente. Ord. L. 1, tit. 91, § 7, e L. 2, tit. 59, § 15.
Pela faculdade que a Ord. L ã, tit. 36, concede ao marido, de castigar a mu-
lher, se justifica a pratica de a fazer entrar em algum Recolhimento. (ROCHA,
1917, p. 135-136).

E prossegue o magistrado, em seu decisório: “[...] entendendo que, em virtude


daquelas relações, a mulher é também obrigada a prestar ao marido os serviços e
trabalhos domésticos, tudo isso resulta para ela a obrigação de viver com o marido
debaixo do mesmo teto; atendendo que a nenhum dos cônjuges é livre separar-se
por autoridade própria, citado Coelho da Rocha parágrafo 230; entendendo que, em
virtude daquelas relações, a mulher é também obrigada a prestar ao marido os
serviços e trabalhos domésticos e outros que suas forças, e estado, e que de tudo
isso resulta para ela a obrigação de viver com o marido debaixo do mesmo teto;
atendendo que a nenhum dos cônjuges é livre separar-se por autoridade própria,
citado Coelho da Rocha parágrafo 238; entendendo que a mulher não pode exigir
os alimentos do marido se se apartar da casa, salvo se o fizer por sevícias, Digesto
Português, Livro 2º, parágrafo 423”.
Nesse passo, mais uma vez citado, retorna Coelho da Rocha em sua obra avo-
cada aos fundamentos da sentença:

393
[...] § 238. Aos cônjuges nào é livre separar-se por auctoridade propria. Deve
ser requerida pela acçào competente ao juiz, o qual, com audiência do outro
cônjuge, e provada legalmente a justiça da causa, determina por sentença a
separação, ou perpetua, ou temporariamente, quando ha esperanças de re-
conciliação. A acção de separação por sevícias ordinariamente começa pelo
deposito da mulher em casa honesta e segura, para evitar os máos tractos
do marido. Lobão a Meli. L. 2, tit. 7, § 1, n. 10, Corr. Tell. Tract, das Acç. § 40.
Antigamente taes causas eram da competência do juizo ecclesiastico, por
se reputar a qualidade religiosa do sacramento mais nobre, do que a civil
do contracto. Entretanto hoje as justiças civis têm-se intromettido a tomar
conhecimento d’ellas. Mas, admittida esta pratica, parece que, para evitar o
conluio das partes, deve nestes casos ser ouvido o Ministério Publico, como
d’antes o era o Defensor dos matrimónios. (ROCHA, 1917, p. 140-141).

Afinal, o magistrado, considerando que o aparente abandono do réu não mais


subsistiria em seus efeitos jurídicos, porque em retornando a residir no domicílio
conjugal este “chama a sua mulher à coabitação e uso do matrimônio”, julgou improce-
dente a pretensão deduzida em juízo. Na hipótese, admitiu que fato superveniente
influiu no desate da demanda, em hipótese parelha à cogitada pelo artigo 493 do DEBRET, Jean-Baptiste. Família de gente
abastada.
atual Código de Processo Civil. Fonte: BANDEIRA, Júlio; LAGO, Pedro
Correa do. Debret e o Brasil: obra
completa: 1816-1831. 3. ed. Rio de
Janeiro: Capivara, 2013. p. 443.

394
5. O direito aplicado ao caso

Oferecidos embargos à sentença, sob a premissa de que o julgado não podia


se fundar na obrigação de a embargante ir à companhia de seu marido, e rejeitados
estes pelo juiz decisor, a questão subjacente, tal como posta na impugnação àquele
oferecida, situa-se no ponto meramente jurídico, qual é o de saber, se o marido pode
achar-se ou ser obrigado a fornecer alimentos a sua mulher, quando esta não se acha
e se recusa a vir para o domicílio conjugal. Remete-se a questão à não obrigação
de prestação alimentar pelo cônjuge inocente, mais precisamente se os alimentos
são devidos quando imposta culpa ao outro cônjuge que, não obstante culpado pela
9 Ocupou a presidência do Tribunal separação, sustente reclamar alimentos.
de Relação no primeiro triênio Há, de fato, a formulação de um juízo de valor em cada caso, como alinha a
(02.06.1864/02.06.1867) e reconduzido
para outro período, faleceu no ano doutrina do clássico Edgar de Moura Bittencourt (1974, p. 152), convindo lembrar
seguinte (18.12.1868). Natural da Bahia, que o Código Civil de 1916, quando o nosso sistema jurídico deixou de adotar as
formou-se na Universidade de Coimbra.
Ordenações Filipinas, veio, igualmente, dispor, em seu artigo 234, que:
10 Presidiu o Tribunal de Relação no
período de 1869 a 1875. No exercício
da Presidência, foi nomeado Ministro
[...] a obrigação de sustentar a mulher cessa, para o marido, quando ela aban-
do Supremo Tribunal de Justiça, em
17.04.1875, aposentando-se no mesmo dona sem justo motivo a habitação conjugal, e a esta recusa voltar. Neste
ano. Natural de Serinhaém, Pernambuco. caso, o juiz pode, segundo as circunstâncias, ordenar, em proveito do marido
11 Juiz de Direito de Goiana (PE), foi
nomeado desembargador do Tribunal de e dos filhos, o seqüestro temporário de parte dos rendimentos particulares
Relação do Maranhão (1854), vindo, por da mulher. (BRASIL,1916).
decreto, no mesmo ano, para o Tribunal
de Relação de Pernambuco, onde exerceu
a magistratura de segundo grau por
dezoito anos, falecendo no exercício
do cargo em 1873. Natural de Olinda, Os embargos da autora, interpostos e rejeitados, contemplavam a rediscussão
Pernambuco. de que fora o embargado que “voluntariamente abandonou a sua mulher sob pretexto
12 Natural de Serinhaém (PE), como de ir ao Rio de Janeiro” e que, em seu retorno, “passando por este porto deixou de pro-
seu irmão Caetano, o desembargador
Lourenço Santiago integrou o Tribunal curá-la” engendrando, em suma, simulações. No caso, a separação fora atribuída ao
de Relação por vinte anos (1857/1878), réu e embargado, e por ele mantida, quando “longe de modificar seu procedimento, e de
quando, ocupando interinamente a
Presidência, foi nomeado, também como concorrer para restabelecer a união conjugal ou ao menos a coabitação com a sua mulher,
fora seu irmão, Ministro do Supremo tem procurado agravá-lo, e tornado bem difícil qualquer conciliação”.
Tribunal de Justiça, ali tomando posse
em 30.03.1878. Aposentou-se um mês Em seguida, o recurso de apelação foi apresentado perante o Tribunal de
depois, por decreto de 27.04.1878. Para Relação e conclusos ao Conselheiro Presidente Firmino Antônio de Souza9, em 15
a presidência do Tribunal de Relação,
com sua ida ao STJ, foi convidado a de dezembro de 1866, que em mesma data fez remeter os autos ao desembargador
substitui-lo o desembargador Alexandre Caetano José da Silva Santiago10 para o visto. Este, apondo o visto (26.02.1867), re-
Bernardino dos Reis e Silva na qualidade
de Decano da Corte. meteu ao desembargador Antônio Batista Gitirana11 que, em sucessivo, com o seu
13 Integrou o Tribunal de Relação visto, encaminha ao desembargador Lourenço Santiago12. Como o seu irmão Caetano
de Pernambuco por dezoito anos
(1860/1878), tendo sido nomeado
funcionou, com visto no recurso em andamento, deu-se ele por impedido, fazendo-o
Ministro do Supremo Tribunal de Justiça remeter ao desembargador Afonso Artur de Almeida e Albuquerque13. A seu turno,
em 1878, Natural da vila de Parati (Rio
com o visto, encaminha ao desembargador José Pereira da Costa Mota14 que, afinal,
de Janeiro).
14 Integrou o Tribunal de Relação efetuando, igualmente, a análise do processo, mandou à Mesa (09.11.1867) para de-
de Pernambuco por quatorze anos signação de dia do julgamento.
(1864/1878), tendo sido nomeado
Ministro do Supremo Tribunal de Os desembargadores reunidos, confirmaram a sentença apelada por seus fun-
Justiça em 1878, a exemplo dos damentos, por Acórdão em Relação, de 16 de novembro de 1867. Foram vencidos os
desembargadores Caetano José
da Silva Santiago e Afonso Artur desembargadores Gitirana e Mota.
Almeida Albuquerque, que integram o O processo aqui tratado é ilustrativo a refletir o direito de época, a partir da
julgamento, com seus votos vencedores.
Natural de Portugal, nasceu na Ilha da obrigação de a mulher, desapartada da casa do marido, mesmo que em circuns-
Madeira. tâncias excepcionais, ir à companhia de seu marido, quando disposto a recebê-la

395
(ou não), para reaviventar os rumos da união conjugal, mesmo que diante de uma
reconciliação impossível.
No caso em julgamento, atenta-se que ela fora deixada pelo marido, em casa de
sua cunhada, quando a lei, expressamente, refere-se à habitação conjugal, a tornar
certo ou significar o abandono justo, quando em casa alheia, ali a mulher não se sinta
em seu natural conforto. A esse propósito, a doutrina de Edgar de Moura Bittencourt
orienta, em casos que tais, que “maior cuidado deve ser empregado pelo juiz em
reconhecer o abandono injusto” (BITTENCOURT, 1974, p. 37), quando sua retirada da
casa de terceiro (ou mesmo da casa dos pais de um deles) poderá ter justa causa. E
arremata: “Como questão de mérito, o abandono da habitação conjugal e a recusa de
a ele retornar estão sujeitos ao critério do juiz em cada caso, em face de provas, que
podem ser circunstanciais, indiciárias ou presunções.” (BITTENCOURT, 1974, p. 37).
No atinente ao ônus processual da prova, saliente-se que mesmo diante do
Código Civil de 1916, como diploma posterior ao caso julgado em 1865, não ocorria
entendimento uniforme dos tribunais sobre esse ônus quanto aos elementos do art.
234 do CC. Ou seja:

[...] alguns julgados afirmaram que a prova do justo motivo do abandono do


lar, cabe à mulher; outros, mais recentes, proclamam que a inexistência de
justo motivo. Bem como a recusa pela mulher de voltar ao lar, devem ser
demonstrados pelo marido. (BITTENCOURT, 1974, p. 38).

No caso julgado, atente-se, porém, que o demandado fizera notificar a autora,


ao retornar de Portugal, “pronto a receber sua mulher e a viver maritalmente” (...) “a fez
notificar para que fosse para sua companhia” “e essa notificação ainda está presente”, como
referido em petição de fls. 99. E não se houve devidamente esclarecida a incidência
do abandono na sua origem e motivação certa.
Os alimentos devidos ao cônjuge, como instituto do Direito de Família, tiveram
de há muito, a proteção da ordem normativa. Designadamente, os alimentos naturais,
nos limites do “necessarium vitae”, identificados como os alimentos indispensáveis à
mantença da vida. Nesse contexto temporal de origem controvertem historiadores
do direito, a saber que no direito clássico inexistia a obrigação alimentar enquanto
obrigação jurídica própria, ou ainda, recíproca; enquanto que no direito romano
justianeu se sobrepõe que a mulher tem direito a alimentos.
Essa obrigação alimentar é inerente ao dever de mútua assistência em seu
plano de ordem material, mas sobretudo, com fundamento na solidariedade fami-
liar, pelo que muito discute a doutrina sobre o caráter publicístico da obrigação.
Para além do interesse de cada titular do direito aos alimentos, iniludível que há o
interesse social pelo amparo de quem se encontre deles desprovido, como defende
Yussef Said Cahali (2002).
Bem de ver, sob a égide das Ordenações Filipinas, em vigência ao tempo do pro-
cesso, que o maior destaque residia no que dispõe o seu Livro I, Título LXXXXVII, §
15, que apesar de ali tratar da proteção orfanológica, elenca os elementos integrativos
da obrigação alimentar. Porém, no que toca ao elemento ou regra da proporciona-
lidade, como “princípio quase comum a todas as legislações”, segundo refere Fernández

396
Clerigo, impende anotar que os “alimentos devem prestar-se conforme a qualidade dos
alimentandos” (Ordenação, Livro 4, tít. 103 § 1º, e 107, in princ.) e se regulam pelos
bens de quem os dá (Ordenação, Livro 3, tít. IX, § 4, in fine).
Afinal, com o trânsito em julgado do processo, não se sabe, ao certo, se a au-
tora, com pouco mais de vinte e dois anos de idade, retornou ou não ao casamento,
precisamente à companhia do marido, e em acontecido, se viveram, ao depois, fe-
lizes para sempre.
Contudo, certo é que o direito de família evoluiu no curso do tempo, e mais
evoluiu o direito da mulher em sua qualidade de esposa ou companheira e partícipe
eficiente da família, em comunhão de vida e em compartilhando iguais direitos.

4. Referências

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o código civil. Bra-


sília: Presidência da República, 2002.

BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código civil dos Estados Unidos
do Brasil. Rio de Janeiro: Presidência da República, 1916.

CAHALLI, Yussef Said. Dos alimentos. 4. ed. São Paulo: Ed. RT, 2002.

ROCHA, M. A. Coelho da. Instituições de direito civil portuguez. 8. ed. aper-


feiçoada. Lisboa: Livraria Clássica, 1917, t. 1.

VALLE, José Ferraz Ribeiro do. Uma corte de justiça do império: o tribunal de
relação de Pernambuco. Recife: CEPE, 1983.

397
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO

MESA DIRETORA MEMORIAL DA JUSTIÇA


Des. Fernando Cerqueira Norberto dos Santos Mônica Maria de Pádua Souto da Cunha (Gerente)
(Presidente) André Ricardo Andrade de Sousa
Des. Eurico de Barros Correia Filho Carlos Alberto Vilarinho Amaral
(1º Vice-presidente) Cláudia de Amorim Ponce
Des. Cândido José da Fonte Saraiva de Moraes Edvânia Alves Zidanes
(2º Vice-presidente) Hélio Cavalcanti de Siqueira Campos
Des. Luiz Carlos de Barros Figueirêdo Henrique de Carvalho Paes de Andrade
(Corregedor-geral) Ivan da Silva Oliveira
Jamerson Aquino de Andrade
DIRETORIA GERAL Maria Auxiliadora Vieira Vasconcelos
Márcia de Carvalho (Diretora Geral) Maria Tereza Freitas Carrilho Malta
Marcel da Silva Lima (Diretor Geral Adjunto) Maria Verônica Cardoso da Silva
Regina Ferreira Leimig
ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL Suzane Cavalcanti de Almeida
Joezil Barros (Assessor de Comunicação Social) Vilma Alves de Souza Bonora
Rebeka Maciel (Assessora de Com. Social Adjunta)

ASSESSORIA DE CERIMONIAL
Silas da Costa e Silva (Assessor de Cerimonial)

ESCOLA JUDICIAL (ESMAPE)


Des. Adalberto de Oliveira Melo (Diretor Geral)
Des. Waldemir Tavares de Albuquerque (Vice-diretor)
Juiz Sílvio Romero Beltrão (Supervisor)

COMISSÃO DE GESTÃO E PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA


Des. Jones Figueirêdo Alves (Presidente)
Des. Alexandre Guedes Alcoforado Assunção
(Vice-presidente)
Des. Evandro Sérgio Netto de Magalhães Melo

398
FICHA TÉCNICA

ORGANIZAÇÃO TEXTOS DOS CAPÍTULOS


Mônica Maria de Pádua Souto da Cunha Arno Wehling
Carlos Alberto Vilarinho Amaral Rômulo Xavier
Suely Creusa Cordeiro de Almeida
EDITORIA Andréa Slemian
Carlos Alberto Vilarinho Amaral Jeffrey Aislan de Souza Silva
Mônica Maria de Pádua Souto da Cunha Jeannie da Silva Menezes
Vilma Alves de Souza Bonora Marcelo Casseb Continentino
Monica Duarte Dantas
REVISÃO DE TEXTO Marcus J. M. de Carvalho
Mônica Maria de Pádua Souto da Cunha Mônica Maria de Pádua Souto da Cunha
Carlos Alberto Vilarinho Amaral Lídia Rafaela Nascimento dos Santos
Suzane Cavalcanti de Almeida Cristiano Luís Christillino
Jamerson Aquino de Andrade Venceslau Tavares Costa Filho
Hélio Cavalcanti de Siqueira Campos Jones Figueirêdo Alves
Maria Tereza Freitas Carrilho Malta
AGRADECIMENTOS
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Neide De Sordi (Diretora-geral do Arquivo Nacional)
Gilmar Rodrigues Equipe técnica do Arquivo Nacional

CAPA E DIAGRAMAÇÃO
David Oliveira

EDIÇÃO DE IMAGENS
David Oliveira
Gilmar Rodrigues
Marcos Costa

COORDENAÇÃO GRÁFICA
Mariana Ferreira Pellizzi

PUBLICIDADE E DESIGN GRÁFICO


David Oliveira
Felipe Cavalcante
Fernando Gonçalves
Gilmar Rodrigues
Helder Carapeba
Luciano Costa
Marcos Costa
Mariana Ferreira Pellizzi
Priscilla Brustein

399

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