Em Busca de Jesus Debaixo Das Pedras

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BÍBLIA
€ ARQUEOLOCilA

Para o estudo do contexto histórico das tradições bíblicas, te­


mos duas fontes à disposição. De um lado, escutamos a voz dos
textos antigos. De outro, podemos analisar a cultura material
daquela época, olhando para os objetos escavados.

A coleção Bíblia e Arqueologia quer ser um importante instru­


mento de ajuda nesta busca do ambiente original do mundo
narrado nas Sagradas Escrituras. Com explicações claras e ilus­
trações de alta qualidade, os livros publicados nesta coleção
certamente abriraoTnovos horizontes a quem estiver interessa­
do no estudo da Bíblia.

John Dominic Crossan, professor emérito de Estudos sobre Religião


na DePaul University (Chicago), é autor de diversos livros importan­
tes, incluindo O nascimento do cristianismo, e co-autor de Em busca de
Paulo, publicados por Paulinas Editora.

Jonathan L. Reed é professor de Novo Testamento e Origens Cristãs na


University of La Verne (California). Autoridade em arqueologia da Pa­
lestina do primeiro século, é também co-autor de Em busca de Paulo.

^‘fãulinas
EM BUSCA DE JESUS
C o l e ç ã o B íb l ia e A r q u e o l o g ia

• Arqueologia na terra da Bíblia - Amihai Mazar


• Em busca de Jesus - John Dominic Crossan e Jonathan L. Reed
• Em busca de Paulo - John Dominic Crossan e Jonathan L. Reed
John Dominic Crossan
Jonathan L Reed

EM BUSCA DE JESUS
Debaixo das pedras, atrás dos textos

aui’inas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do livro, SP, Brasil)
Crossan, John Dominic
Em busca de Jesu s: debaixo das pedras, atrás dos textos / John Dominic Crossan
& Jonathan L. Reed ; [tradução Jaci M araschin], — São Paulo ■. Paulinas, 2007.
— (Coleção Bíblia e arqueologia)

Título original: Excavating Je s u s : beneath the stones, behind the texts


Bibliografia
ISBN 978-85-356-2013-9
ISBN 0-06-061634-2 (ed. original)

1. Bíblia. N.T. Evangelhos— Antigüidades 2. Escavações (Arqueologia) — Israel


I Reed, Jonathan L . II, Título. III. Série.

;_C 7-3765 CD D -225.93

ín d ices para catálogo sistem ático;


1. Arqueologia do Novo Testamento 225.93
2. Novo Testamento : Arqueologia 225.93

. Título original: Excavating Jesus: Beneath the stones, behind the texts.
© 2001 by John Dominic Crossan e Jonathan L. Reed.
Pufclicado por acordo com Harper San Franscisco, uma divisão da HarperCollins Publishers,
^ s versões coloridas e em branco e preto das ilustrações são cortesia de Balage Belogh.

Direção-geral: Flávia Regínatto


Conselho Editorial; Dr. Afonso Maria Ligorio Soares
Dr. Antonio Francisco Leio _
Dr Francisco Camil Catão
Luzia Maria de Oliveira Sena
Dra. Maria Alexandre de Oliveira
Dr Matthias Grenzer
Dra. Vera Ivanise Bombonatto
Editores responsáveis; Vera Ivanise Bombonatto
e Matthias Grenzer
Tradução: Jaci Maraschin
Copidesque; Anoar Jarbas Provenzi
Coordenação de revisão: Marina Mendonça
Revisão: Ruth Mitzuie Kluska
Dlreçâo de arte: Irma Cipriani
Gerente de produção: Felicio Calegaro Neto
Capa: Manuel Rebelato Miramontes
Editoração Eletrônica: Fama Editora
Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida
por qualquer form a e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico,
incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou
banco de dados sem permissão escrita da Editora. Direitos reservados.

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1. M apa da Palestina
SUMARIO
P r e f á c io ......................................................................................................................................................................... 11

P ró lo g o
Pedras e textos................................................................................................................................. 15
In t r o d u ç ã o
As dez principais descobertas das escavações sobre Jesu s................................................... 19

C a pítulo 1
Jesus gravado em pedra................................................................................................................. 33
C a pítulo 2
Camadas sobre camadas sobre camadas................................................................................... 61
C apítulo 3
Como se constrói um reino.......................................................................................................... 95
C a pítulo 4
Jesus em seu lugar.......................................................................................................................... 137
C a pítulo 5
Resistência judaica ao domínio romano.................................................................................... 171
C a pítulo 6
Beleza e ambigüidade em Jerusalém .......................................................................................... 211
C a pítulo 7
Como enterrar um rei..................................................................................................................... 253
E pílogo
Solo e evangelho.............................................................................................................................. 291
Agradecimentos............................................................................................................................... 299
Fontes arqueológicas...................................................................................................................... 301
ín d ic e d a s i l u s t r a ç õ e s ........................ ................................................................................................................... 307

índice de nomes e temas............................................................................................................... 309


índice gerai....................................................................................................................................... 325
PREFACIO

É sábado de tarde do dia 23 de novembro de 2002. 0 céu de Toronto cobre-se


de nuvens escuras, e a temperatura chega perto dos quarenta graus agravada pela
ausência das brisas do Lago Ontário. Quando chegamos de táxi para ver a exposição
do Museu Real de Ontário, as calçadas em frente estavam cheias de gente e ficamos
com medo de ter que enfrentar longas filas para comprar as entradas. Mas logo nos
damos conta de que a multidão era formada principalmente por crianças, algumas
com os pais, outras pertencentes a grupos organizados, com intenções completa­
mente diferente das nossas. O Planetário McLaughlin do museu estava oferecendo
a “mostra mundial exclusiva” sobre 0 Senhor dos anéis: a mostra das duas torres, com
“artefatos da produção teatral da nova linha de cinema de 0 Senhor dos anéis”. As
crianças queriam ver esses objetos de fantasia mágica e, quando nos esgueiramos
pelas filas que se alongavam, para entrar no edifício principal, ficamos pensando se
nós, adultos, não estávamos lá também em busca de objetos de fantasia bíblica. Não
deixa de ser irônico que 0 Senhor dos anéis não seja uma saga a respeito de busca,
mas, bem ao contrário, de antibusca; a tentativa de não achar o que não se tem mas
de enfrentar o que é jogado sobre nós.

0 terceiro andar é dedicado ao mundo mediterrâneo, da Mesopotâmia ao Egito,


entre a Núbia e o Levante, e da Grécia e Roma através de Bizâncio e do Islã. A sala 9
abriga exposições sobre o mundo mediterrâneo e nela, depois de algumas semanas de
intenso trabalho, os responsáveis pelo museu conseguiram montar SLpremière mun­
dial de um evento que normalmente levaria um ano para ser preparado. A entrada
e a saída estavam protegidas por telas semitransparentes semelhantes a gazebos, e as
paredes vermelhas brilhantes com letreiros brancos abrigavam no centro, sob uma
armação de plexiglas, uma caixa de origem judaica do primeiro século contendo
ossos (também chamada de ossuário), com uma pequena inscrição de vinte letras
aramaicas: Tiago, filho de José, irmão de Jesus. A inscrição, ampliada graficamente,
dominava a parede de trás, em inglês em cima e em francês embaixo.

Permanecemos no museu quase duas horas, apreciando a exposição, avaliando


nossas reações, bem como as de outras pessoas, ao que a mídia estava chamando
de a mais importante descoberta arqueológica do cristianismo. Cabiam na sala de
cinqüenta a setenta e cinco pessoas revezando-se durante a tarde. Os visitantes
percorriam o trajeto da mostra em sentido horário procurando ler as citações e expli­
cações expostas nas paredes até chegar ao ossuário. Os encarregados da montagem
privilegiaram de maneira inteligente os textos às imagens, provenientes do Novo
Testamento e de autores antigos como Josefo, Hegesipo e Eusébio. Distribuíam-se
pela sala escritos sobre sepultamentos judaicos, inscrições em aramaico e interpre­
tações cristãs de Jesus como “irmão” de Tiago e “filho” de José. É provável que essas
informações já fossem do conhecimento de alguns, mas mesmo assim era impossí-
vel que alguém não se impressionasse profundamente com esse tão bem-sucedido
esforço de educação piíblica realizado pelo Museu Real de Ontário.

A primeira edição em inglês deste livro partiu da dialética entre pedra e texto,
mostrando a interação entre o solo e o evangelho e a integração da arqueologia com a
exegese, respeitando a validade plena de cada uma dessas disciplinas. A metodologia
empregada não tentou reduzi-las a notas de rodapé nem fazer de uma pré-requisito
da outra. Esta edição revisada não mudou o procedimento. Mas o ossuário desco­
berto recentemente contendo talvez a mais antiga evidência tangível de Jesus exigiu
esta segunda edição para utilizá-la como exemplo ou símbolo concentrado desse
processo de integração, muito embora com aspectos ao mesmo tempo positivos e
negativos.

Depois da descoberta e até mesmo antes das conclusões sobre sua autenticidade,
identidade e integridade, não tínhamos dúvida alguma de que ocuparia o primeiro
lugar na lista das principais descobertas arqueológicas das escavações sobre Jesus. C om o
não queríamos deixar de lado nenhuma das dez descobertas anteriores, reunimos
duas delas numa só. Poderíamos ter combinado Caifás e Pilatos porque haviam
trabalhado juntos durante dez anos e acabaram sendo demitidos ao mesmo tempo
por seus superiores romanos. Mas preferimos outra justaposição. Escolhemos a
romanização, urbanização e comercialização da Baixa Galiléia, concentrando-nos no
Mar da Galiléia dos anos 20 d.C. Relacionamos, então, a casa de Pedro e o barco da
Galiléia e denominamos o número 5 de nossa lista de “Mar de Tiberíades” (segundo
0 relato de João 6,1 e 2 1,1). Tanto a casa como o barco refletem, de diversas ma­
neiras, 0 comércio de pesca no lago. Achamos que esse fato justifica a combinação.
Decidimos situar o ossuário em primeiro lugar na lista das dez descobertas por
causa da sua importância para traçar o perfil de Tiago e por este refletir sobre Jesus
não apenas fraternalmente mas também teologicamente. Também, porque acentua
0 lugar da arqueologia como disciplina científica e não como caça a tesouros. Além
disso, por causa das questões que levanta.

Elas são cinco: Será o ossuário autêntico? E a inscrição, original? Identifica a


família? Trata-se de descoberta importante? Teria sido ético o processo? Vamos
responder imediatamente as duas últimas perguntas mesmo que provisoriamente.
Nossas respostas serão válidas não importando o que especialistas, a imprensa e o
público venham a dizer a respeito das três primeiras.

Importância da descoberta. A descoberta é profundamente importante simplesmente


porque exalta o perfil de Tiago, filho dejosé, irmão de Jesus, inesperadamente e de
maneira adequada. Esse personagem era bem conhecido como Tiago, o Justo, mas
foi aos poucos sendo esquecido. Talvez devêssemos chamá-lo de Tiago, o Perdido.
Está na hora, pois, de reconsiderar esse homem que viveu pouco mais de trinta
anos na Jerusalém do primeiro século, aceito tanto por judeo-cristãos como por
judeus não-cristãos, que discordava de Paulo mas tinha Pedro a seu lado, e cuja
morte derrubou o sumo sacerdote judeu Ananus II, que o executara no ano 62 d.C.
Em segundo lugar, quando judeus devotos, provavelmente com alguns fariseus,
protestaram contra essa morte, o governador judeu, Agripa II, demitiu Ananus II
três meses depois. 0 ossuário de Tiago relembra-nos como a “história” cristã primi­
tiva envolvia grupos de judeus que concordavam ou discordavam de outros grupos
similares como, por exemplo, judeo-cristãos que interagiam com judeus fariseus e
saduceus. Em terceiro lugar, em certo momento Tiago chegou a ser mais importante
do que Paulo quando ele, e não Paulo, representou a esperança ecumênica que, por
ter fracassado, lamentamos ainda hoje. Pensemos por um momento em tudo isso
compungidos, imaginando o que poderia ter acontecido se as coisas tivessem sido
diferentes. Existiu afmal um lugar onde peio menos alguns judeo-cristãos e outros,
fariseus, opunham-se aos judeus saduceus. Naquele tempo, peio menos, poucos
poderiam ser suficientes para mudar o futuro.

A ética da descoberta. 0 ossuário de Tiago chegou até nós graças ao comércio dos
antiquários e não peias escavações arqueológicas. Não sabemos, pois, se a descoberta
original se deu por acaso, ou se fez parte de pilhagem planejada. Por isso sempre
paira sobre ela a possibilidade de falsificação. Quando surgem artefatos desse tipo
que chamam a atenção do público, especialistas, sociedades científicas e autoridades
de museus enfrentam sério dilema. Discuti-los e aceitá-los poderia incentivar buscas
paralelas, pilhagens ilegais e destruição imoral de heranças. Mas, por outro lado,
ignorá-las é impossível, pois até a recusa de discuti-los já suscitaria inevitavelmente
comentários a respeito. Usamos o ossuário, neste livro, deliberadamente para res­
saltar a diferença entre estudos arqueológicos e pilhagens culturais.

Qualquer um entende que a resposta à terceira questão sobre a identidade da


família jamais passará de mera possibilidade histórica ou de probabilidade estatística.
Mas imaginemos um cenário diferente. Operários de construção de repente desco­
brem acidentalmente um sepulcro antigo. Cientes da lei, param as obras e chamam
as autoridades que cuidam das antiguidades em Israel. Seus arqueólogos situam o
achado no primeiro século de nossa era e com seus holofotes iluminam três ossuá­
rios: 0 primeiro de Estevão; o outro de Tiago, filho de Zebedeu, irmão de João; e o
último de Tiago, filho dejosé, irmão de Jesus. Nesse caso teríamos certeza de que
o mausoléu pertencia a três santos judeo-cristãos martirizados respectivamente no
início dos anos 30, 40 e 60.

Mas nada disso aconteceu. O que temos agora é o ossuário de Tiago sem nenhum
contexto, indicação de proveniência ou história. E quase uma advertência sobre os
efeitos destruidores da prática paralegal de certos colecionadores, sobre potenciais
sanções criminais aplicadas a quem se envolve com o mercado ilegal de compra e
venda de antiguidades, e a respeito da diferença moral entre trabalhos arqueológicos
científicos e falsificações culturais. O ossuário de Tiago carrega no seu invólucro
de pedra mais sinais de pilhagem cultural do que a pátina da pesquisa científica.
A caixa sofreu rachaduras no transporte de Israel para o Canadá. Mas já havia sido
danificada durante o trânsito do passado para o presente. A descoberta já estava
rachada desde o começo.
2. Ossuário de Tiago rachado no transporte
P ró lo g o

PEDRAS E TEXTOS

Por que Jesus aconteceu? Quando e onde? Por que naquela ocasião? Naquele
lugar? Afinemos mais a pergunta. Por que esses dois movimentos populares, o do
batismo, de João, e o do reino, de Jesus, ocorreram em territórios governados por
Herodes Antipas nos anos 20 do primeiro século de nossa era? Por que não em outra
época? Em outra região?

Imaginemos duas maneiras de responder: por meio de pedras ou textos, solo ou


evangelho, restos materiais ou escritos, frutos da arqueologia ou da exegese. Imagi­
nemos mais um pouco, substituindo os quatro ous por es, igualmente realçados. Não
se trata, pois, de mero caso de arqueologia ou exegese, mas de ambos. Pensemos,
finalmente, na possibilidade de considerar essas opções métodos independentes
entre si sem nenhuma subordinação de um em relação ao outro. A arqueologia não
é fundamento da exegese e esta não pode ser considerada mera decoração daquela. O
evangelho e o solo precisam ser lidos e interpretados de maneira própria e segundo
as disciplinas a que pertencem. Antigas sepulturas cavadas na terra possuem dig­
nidade e integridade próprias sem precisar recorrer a Homero para cantá-las. Sítios
arqueológicos na Terra Santa conservam seus desafios e mistérios sem nenhuma
necessidade de relacioná-los com a Bíblia. As palavras falam. Também as pedras. Mas
nada nos remete ao passado sem o diálogo interpretativo com o presente. Qualquer
dos lados sempre fala e quer ser ouvido em seus próprios termos. A arqueologia e
a exegese só podem se encontrar e chegar a acordos comuns depois que cada uma
tiver realizado completamente sua tarefa.

Este livro procura integrar a arqueologia do solo e a exegese do evangelho,


permitindo que cada qual exerça seu pleno poder explanatório sem querer privile­
giar uma em detrimento da outra. Não há nada novo no desejo dos arqueólogos de
mostrar os resultados de suas escavações. Por outro lado, também não há novidade
alguma no esforço dos exegetas de compartilhar com os outros suas descobertas.
O que é novo neste livro é a cooperação entre um experiente arqueólogo de campo
e um conhecido exegeta de Jesus que unem as duas disciplinas durante a obra toda,
abandonando o método de alternar os capítulos entre elas. Mas como é possível tal
leitura de pedras e textos de maneira integrada?

^ Por que chamar este livro de Em busca de jesus? Como justificar tal ousadia?
É comum falar-se a respeito de escavações de vilarejos, vilas e cidades; casas são
cavoucadas, abrem-se túmulos e se exploram até mesmo barcos. Mas como escavar
a respeito de Jesus? Até que ponto qualquer escavação conseguiria chegar perto de
sua pessoa? Será que o ossuário com a inscrição Tiago-José-Jesus representaria o
objeto mais próximo possível desse objetivo?

O engenheiro eletrônico Oded Golan de Tel Aviv, agora com cinqüenta e poucos
anos, vem reunindo antiguidades judaicas desde a idade de oito anos, possuindo
neste momento a maior coleção particular desses objetos em Israel e, talvez, no
mundo. Entre mais ou menos três mil itens encontram-se trinta ossuários incluindo
0 que, segundo Golan, custou apenas 200 dólares, comprado há cerca de 25 anos de
um antiquário. A transação teria acontecido em 1977, um ano antes do governo de
Israel ter aprovado a lei que transformava todos esses artefatos em propriedade do
Estado. Oded, que fez essa transação, conta que a urna fora adquirida de Silwan, ao
sudeste do Monte do Templo, onde residências modernas foram construídas sobre
rochas salpicadas de orifícios para abrigar sepulturas antigas. Mesmo que essa his­
tória seja verdadeira, o ossuário de Tiago está na mostra sem nenhuma menção do
lugar onde teria sido achado, sem indicação de fontes nem de história.

Mas imaginemos, de novo, este outro cenário. Certo proprietário cavoucando


no porão de sua casa para aumentá-lo, depara-se de repente com uma cova. Chama
as autoridades encarregadas da preservação das antiguidades de Israel e elas en­
contram ali 0 mausoléu de uma família cujos pais chamam-se Maria e José; cujos
filhos adultos, Tiago, Joset, Judas e Simão; e cujas filhas casadas, Maria e Salomé.
Esses nomes, comuns em ossuários isolados sem origem clara, não seriam con­
siderados insignificantes, porque a combinação deles nesse lugar indicaria, sem
muitas dúvidas, o mausoléu da família de Jesus. O Estado de Israel se apropriaria
dessas urnas, e a pessoa que as encontrou (não precisamente o comerciante ou o
eventual colecionador) receberia bom dinheiro. Mas nada disso aconteceu. O que
temos agora é uma caixa de ossos sem saber de onde veio. Queremos examiná-la e
procurar descobrir o que teria sido. Se for, na verdade, o ossuário de Tiago, irmão
de Cristo Senhor, representará o objeto arqueológico mais próximo da pessoa de
Jesus até agora encontrado. Diríamos, em outras palavras, que estaríamos chegando
bem perto de uma "escavação sobre Jesus”.

Por outro lado, de que maneira poderemos falar sobre esse tema? Considerando
que a função da arqueologia consiste em escavar e que, portanto, pode exercer essa
atividade em relação a Jesus, não apenas procurando achar algum possível ou até
mesmo definitivo ossuário fraternal mas recuperando tanto quanto possível o mundo
social no qual viveu, por que o termo “escavação” seria corretamente empregado
tanto a pedras como a textos? Sabemos que os Rolos do Mar Morto de 1947 e os
Códices de Nag Hammadi de 1945 foram encontrados por pastores e camponeses
debaixo do solo por acaso e não pelo esforço planejado de cientistas. Mas quando
este livro fala de “escavações a respeito de Jesus” não apenas de caráter arqueológico
mas também no campo da exegese não se refere a essas escavações em busca de
textos. Os evangelhos possuem algo próprio que nos leva a pensar na possibilidade
de buscar o que está por trás deles. E por isso que o termo se aplica neste livro tanto
à exegese como à arqueologia. Vem daí o método e a maneira que escolhemos para
alcançar o propósito principal da obra.

0 trabalho de escavação arqueológica exige cuidadosa atenção em face de dife­


rentes camadas construídas umas sobre as outras (o termo técnico empregado para
isso é estratigrafia), a não ser que o sítio a ser examinado se constitua de uma só
camada sobre a rocha e tenha sido abandonado sem nenhuma intervenção humana
além dos efeitos danificadores do tempo. As vezes isso acontece também com os
textos. Podem exibir apenas uma camada inviolada a não ser por erros de copistas,
como é o caso da maioria das cartas de Paulo no Novo Testamento. Mas a exegese
neste livro concentra-se principalmente nos evangelhos e, não importando se fa­
zem ou não parte do Novo Testamento, eles apresentam inúmeras camadas como
se fossem um conjunto arqueológico. Por exemplo, quando Mateus absorve quase
inteiramente o evangelho de Marcos, existem obviamente camadas anteriores de
um e posteriores do outro. Da mesma maneira como sítios antigos se formam de
diferentes camadas, os antigos evangelhos apresentam também escritos sobrepos­
tos. Nos dois casos, portanto, o desafio absolutamente fundamental consiste em
examinar essas múltiplas camadas.

Poderíamos chamar nossa tarefa atual de empenho paralelo no qual interagem


diferentes camadas de complexos arqueológicos com superposições de textos dos
evangelhos. Assim, para nossos propósitos, precisamos escavar de diferentes modos
os estratos arqueológicos do mundo de Jesus, bem como os de sua vida. Mas, embora
todos reconheçam a inevitabilidade dos procedimentos arqueológicos empregados
para determinar e datar as sucessivas camadas de um sítio, nem todos se dão conta
da inevitabilidade e necessidade do mesmo processo em relação aos evangelhos do
Novo Testamento, por causa da natureza desses textos e do relacionamento que
temos com eles. Trata-se, naturalmente, de um problema.

Finalmente, resumindo bastante, o que esperamos alcançar ao integrar arqueo­


logia e exegese por meio dessas camadas duplas e paralelas? Por que Jesus aconteceu
naquela época e naquele lugar?

Antes de Jesus, Herodes, o Grande, governava a Judéia sob o poder romano e


expandiu o Monte do Templo em Jerusalém com magnificência desenvolvendo tam­
bém um porto de classe internacional em Cesaréia Marítima. Nada fala mais alto a
respeito dos esforços da romanização de igualar a urbanização e a comercialização
do que os grandes armazéns e as agitadas águas da baía ativa em todas as estações do
ano. Na judaica Cesaréia Marítima, no Sebaste samaritano e no extremo norte de
Cesaréia de Filipos, Herodes construiu templos pagãos dedicados à deusa Roma e
ao imperador divino Augusto, mas quase nada fez na Galiléia em comparação com
outras partes do reino.

Coube a seu filho, Herodes Antipas, no tempo de Jesus, promover intenso projeto
de romanização, urbanização e comercialização da Galiléia, com a reconstrução de sua
primeira capital, Séforis, em 4 a.C. e com a nova construção de Tiberíades em outro
local, em 19 d.C. Sob Antipas, que imitava o pai, guardadas as devidas proporções,
0 reino de Roma atingiu pela primeira vez efetivamente a Baixa Galiléia nos anos
20. Embora as feições da arquitetura greco-romana cobrissem as terras judaicas,
e o comércio e a urbanização do império redistribuíssem riquezas, os arqueólogos
descobriram tanto na Judéia como na Galiléia sinais de que o povo judeu vivia de
maneira distinta dos outros ao redor.

Na medida em que os textos combinam com as pedras, os artefatos arqueo­


lógicos judaicos relacionam-se claramente com a fé e com a lei divina da aliança
calcada na justiça, na retidão, na pureza e na santidade, porque a terra pertencia ao
Deus sempre ao lado dos justos e retos. Na Lei, ou Torá, Deus dissera: “A terra me
pertence”. Como entender a maneira como aqueles reis herodianos clientes usavam
a terra? E que dizer do Império Romano que assim se vangloriava: ‘A terra nos
pertence, porque a tomamos de vocês; é o que se chama guerra; ou, se preferirem
teologia, nosso deus Júpiter tomou-a de seu deus lahweh”. Ao anunciar o Reino de
Deus nos anos 20 na Baixa Galiléia, Jesus e seus companheiros ensinavam, agiam
e viviam em oposição à localização do reino de Roma por Herodes Antipas nas
terras de seus camponeses. Não estamos falando a respeito da violenta resistência
militar contra Roma que resultou nas ruínas do Templo de Jerusalém e da fortaleza
de Masada. Esse tipo de resistência não era o de João nem de Jesus, pois, se fosse,
Antipas teria decapitado muito mais gente do que João, e Pilatos teria crucificado
muitos outros além de Jesus. Mas mesmo não violenta, tratava-se certamente de
resistência contra a injustiça distributiva do comércio romano-herodiano — daí a
ênfase de Jesus em alimentos e saúde — praticada em nome da aliança, da terra, da
Torá e do Deus do judaísmo. _
In tr o d u ç ã o

AS DEZ PRINCIPAIS
DESCOBERTAS DAS
ESCAVAÇÕES SOBRE JESUS

Este livro trata de escavações relacionadas com Jesus; arqueologicamente, entre


pedras para reconstruir seu mundo; exegeticamente, entre textos para reconstruir
sua vida. Acima de tudo, quer integrar os dois tipos de escavação com a finalidade
de localizá-lo no mundo onde viveu, bem como sua visão e programa, no seu tempo
e lugar. Esses dois tipos de escavação exigem exame e identificação, reconstrução e
interpretação. Especialmente, interpretação. Os textos em si não podem fazer isso.
Na verdade, até mesmo sua interpretação chega a ser muitas vezes bastante contro­
vertida. Nem os textos nem as pedras falam conosco diretamente. Ambos exigem
nossa respeitosa interpretação. IVÍas quais são, para início de conversa, as dez mais
importantes descobertas arqueológicas, juntamente com as exegéticas, que nos vão
guiar no processo paralelo de “escavar sobre Jesus”?

Descobertas arqueológicas
As dez principais descobertas arqueológicas abrangem objetos particulares e
lugares gerais. As primeiras quatro referem-se a objetos específicos — com ligações
diretas ou indiretas com textos dos evangelhos —, embora contenham importantes
aspectos de seus mundos contemporâneos. Seguem-se cinco pares. Não se trata de
malabarismo para evitar que a lista aumente para dezesseis itens, muito embora
talvez isso pudesse ser decorrência deste estudo. Em cada caso percebe-se um fe­
nômeno específico mais visível nos pares do que em cada um de seus elementos:
comércio no lago de Tiberíades, reino romano-herodiano na terra judaica, urbani­
zação da Galiléia, resistência judaica a Roma e vida urbana judaica. O último item é
um conjunto de objetos cuja importância para a religião judaica do primeiro século
é interna e externamente cumulativa. O valor dessas coisas vem não de exemplos
ou de categorias isoladas mas sim do número de casos na mesma categoria e da
combinação entre eles.

1. Ossuário de Tiago, irmão de Jesus

2. Ossuário do sumo sacerdote José Caifás


3. Inscrição do prefeito Pôncio Pilatos

4. Esqueleto de Yehochanan crucificado

5. Lago de Tiberíades: casa de Pedro e barco galileu

6. Cesaréia e Jerusalém: cidades de Herodes, o Grande

7. Séforis e Tiberíades: cidades de Herodes Antipas

8. Masada e Qumrã: monumentos da resistência judaica

9. Gamla e Jodefá: cidades judaicas na Galiléia do primeiro século

10. Vasos de pedra e piscina com degraus: religião judaica

1. Ossuário de Tiago. Este ossuário do primeiro século foi revelado em novem­


bro de 2002, pertencente a um colecionador particular de antiguidades em Israel.
A caixa foi construída com delicada pedra calcária contendo ossos de alguém que
foi novamente sepultado depois da decomposição do corpo, com a inscrição em
aramaico, Tiago, filho de José, irmão de Jesus. Teria sido comprada de um vendedor
de antiguidades em Jerusalém, cuja identidade não se conhece. Alega-se que teria
sido encontrada na cidade árabe de Silwan, ao sul de Jerusalém. Se a inscrição for
autêntica, então o ossuário não apenas contém os restos de Tiago, irmão de Jesus
e líder na igreja primitiva, mas também oferece dados sobre Jesus da mais tangível
evidência existente.

2. Ossuário de Caifás. Operários de construção que trabalhavam num parque


aquático na Floresta da Paz, ao sul da cidade velha de Jerusalém, em novembro de
1990, entre o Haas Tayelet e o Abu Tor, encontraram uma cova lacrada do ano 70
d.C. Sobre a urna, que ainda mostrava sinais de rica ornamentação com duas rose­
tas, lia-se o nome de Caifás escrito de maneira grosseira. Seu nome e o da família
sepultada com ele mostravam que o pequeno túmulo sustentado por colunas fora
0 lugar de repouso do sumo sacerdote mencionado pelo nome em Mateus 26 e João
18 por causa do papel que desempenhou na crucifixão. Trata-se de ligação direta
com as histórias da execução de Jesus nos evangelhos.

3. Inscrição de Pilatos. Arqueólogos italianos, em 1962, removendo areia e detri­


tos das ruínas do teatro em Cesaréia Marítima, antigo centro de poder romano no
Mediterrâneo, descobriram uma inscrição com o nome de Pôncio Pilatos. Essa pedra
havia sido usada, de cabeça para baixo, na renovação do teatro no quarto século
de nossa era. Permaneceu oculta e preservada até o presente. A inscrição em latim
anunciava que Pilatos havia dedicado um Tiberium, estrutura pública em honra do
imperador do mesmo nome, e que a cidade havia sido construída para honrar seu
predecessor, César Augusto. A inscrição põe fim a dúvidas sobre o título exato de
Pilatos, nomeando-o prefeito em lugar do título inferior de procurador. A descoberta,
no entanto, foi mais celebrada por dar testemunho tangível dessa proeminente figura
do Novo Testamento. Na verdade, fora comissionada pelo próprio Pilatos, dando-nos
mais um vínculo com os evangelhos.
4. Homem crucificado. Em junho de 1968 Vassilios Tzaferis, do Departamento
de Antiguidades de Israel, escavou túmulos ao nordeste de Jerusalém, num lugar
chamado Givat Hamivtar. Na necrópole, descobriu na rocha a tumba de uma família
do primeiro século d.C. com cinco ossuários. Um deles continha os restos de dois
homens e de uma criança. O osso do calcanhar direito de um dos homens, medindo
5 pés, com 5 polegadas de altura, provavelmente pertencente a um jovem de mais ou
menos 25 anos de idade, havia sido perfurado por um prego de 4,5 polegadas. Uma
pequena base de madeira segurava o pé para que o peso da perna não o forçasse a
se soltar, uma vez que a cabeça do prego era pequena. Mas o prego entortou depois
de ter sido fixado na madeira de oliveira de que era feita a cruz, ficando, por isso,
preso ao próprio osso depois da remoção do corpo para o sepulcro. Os braços haviam
sido amarrados em vez de pregados e as pernas não foram quebradas. Contrariando
as práticas costumeiras, o corpo foi dado à família para sepultamento. O ossuário
trazia o nome do morto, Yehochanan, o homem crucificado.

5. Lago de Tiberíades. Em primeiro lugar, de 1968 a 1985 os arqueólogos francisca­


nos Padres Corbo e Lofifreda escavaram a igreja octogonal do século quinto construída
em cima de uma igreja-casa do século anterior que, por sua vez, fora edificada sobre
uma casa simples com pátio do primeiro século a.C. em Cafarnaum. Por volta do
segundo século d.C. nas paredes de um de seus quartos foram rabiscados grafites
em aramaico, hebraico, grego, latim e siríaco. Esse recinto não continha artefatos
domésticos e fora revestido de gesso diversas vezes, indicando que fora bastante
valorizado pela primeira geração de cristãos. Os escavadores concluíram que se
tratava da casa de Pedro, “a residência do chefe dos apóstolos,” segundo escritos de
antigos peregrinos. Em segundo lugar, durante o rebaixamento das águas do lago
num período de seca em janeiro de 1986, dois membros do kibutz Ginnosar, ao lado,
descobriram um barco de consistência frágil, soterrado e encharcado. Depois de
esforços extremamente difíceis para recuperá-lo e de fazê-lo passar por processos
adequados de preservação pelos arqueólogos do Departamento de Antiguidades de
Israel, o barco medindo 8 por 12 pés pode ser visto agora num espaço climatizado
do kibutz. Os testes usados em cerâmica e com carbono 14 revelaram que datava do
tempo de Jesus. Além do remador, podiam sentar-se nele 12 pessoas. Esse tipo de
embarcação era utilizado para pesca e para atravessar o lago. E conhecido, agora,
como 0 barco de Jesus.

6. Cesaréia Marítima e Jerusalém. Depois de mais de vinte anos de escavações


em Cesaréia Marítima e mais do que isso ao redor do Templo de Jerusalém, foram
extraídos do solo inúmeros objetos e monumentos capazes de encher museus e
sobrecarregar os espaços de armazenagem do Departamento de Antiguidades de
Israel. Entre os achados, destacam-se as enormes estruturas monumentais cons­
truídas por Herodes, o Grande (37-4 a.C.), importante legado arquitetônico de seu
reino. Cesaréia Marítima, de um lado, foi transformada de praia tranqüila sem baía
natural nem fontes de água pura, num dos portos mais modernos e movimentados
do Mediterrâneo oriental. A cidade foi chamada assim em honra de César e ador-
nada com um magnífico templo dominado pelas estátuas do imperador Augusto
e da deusa Roma. Em Jerusalém, de outro lado, Herodes embelezou e expandiu o
Templo judaico. Transformou o Monte do Templo na maior plataforma monumental
do Império Romano: com pedras artisticamente talhadas, pórticos impressionantes e
colunas decoradas, criando a mais bela estrutura jamais vista, segundo testemunhas
oculares. Os dois projetos mostram a lealdade a Roma e a dedicação ao Deus judaico,
mas, acima de tudo, significam o tributo que prestava a si mesmo e a seu reino.

7. Séforis e Tiberiades. Como seu pai, Herodes Antipas agia como cliente de Roma
(4 a.C.-39 d.C.), não como rei, mas na qualidade de tetrarca inferior, apenas sobre a
Galiléia e Peréia, sem nenhuma autoridade sobre o resto do território judaico. Como
0 pai, construiu cidades, mas nunca com o mesmo esplendor alcançado pelo pai.
Herodes Antipas não era rico nem poderoso como Herodes, o Grande. Mas urbani­
zou a Galiléia com a edificação de Séforis e Tiberíades. Esta última, naturalmente,
em homenagem a Tibério. Embora Tiberíades seja hoje belo lugar de lazer ao longo
do mar, oferece poucas chances de escavações. As ruínas de Séforis continuam ina­
bitadas e têm sido escavadas até agora por quatro grupos nas últimas décadas. As
descobertas espetaculares incluem um teatro em estilo romano, um grande aqueduto
subterrâneo e mosaicos dionisíacos, do período romano. Fazem-nos perguntar até
que ponto Antipas impôs o estilo arquitetônico greco-romano à população judaica
e qual teria sido seu impacto na construção de seu reino na Galiléia. Séforis, afmal,
distava apenas 4 milhas de Nazaré, a cidade onde Jesus morava.

8. Masada e Qumrã. Dois sítios na remota e desolada costa ocidental do Mar


Morto escavados por volta dos anos 1950 e 1960, respectivamente, dão testemunho
da resistência judaica contra Roma no primeiro século d.C. Masada, um palácio-for­
taleza no alto de um penhasco construído por Herodes, o Grande, foi tomado pelos
sicários judaicos no começo da revolta em 66 d.C., mas foi retomado pelas legiões
romanas quatro anos depois da destruição do Templo, em 70 d.C. A descoberta da
arqueologia das obras do cerco romano e as narrativas do historiador judaico Josefo
sobre o suicídio dos sicários ilustram vividamente sua violenta resistência ao domínio
romano. O complexo de um mosteiro construído sobre um terraço argiloso pela seita
judaica Khirbet Qumrã preserva as ruínas de outro tipo de resistência, comunitária
e não violenta, na qual o retiro, o estudo e a pureza representavam armas contra
influências estrangeiras e decadência moral. Esses dois sítios são monumentos da
resistência judaica.

9. Jodefá e Gamla. Duas cidades, uma sobre uma colina na Baixa Galiléia e a outra
no alto de uma cordilheira no Golan ao leste, foram destruídas pelas legiões romanas
em 67 d.C., permanecendo sepultadas e esquecidas até as escavações do século pas­
sado por arqueólogos de Israel. Além de confirmarem seu fim catastrófico conforme
relatou Josefo, Moti Aviam em Jodefá e Shmarya Gutmann em Gamla mostraram
as frágeis defesas e a vida diária dessas duas cidades judaicas. Nenhuma delas foi
mencionada nos evangelhos nem, tampouco, construíram-se igrejas, mosteiros ou
santuários em seus espaços. Mas preservaram até nossos dias, ironicamente, frag­
mentos arqueológicos da vida judaica no tempo de Jesus.

10. Vasos de pedra e piscinas rituais. Nos lugares onde viviam os judeus na Galiléia
e ao redor de Jerusalém na Judéia, existiam vasos de diferentes formas e tamanhos,
esculpidos ou torneados em pedra-sabão, e piscinas com degraus revestidas de ges­
so, embutidas na rocha, chamadas miqwaoth (singular, miqweh) referidas neste livro
como balneários rituais. Esses itens particulares sinalizavam o caráter judaico para
os contemporâneos pertencentes a um povo diferente. Tanto os vasos de pedra como
os balneários rituais relacionavam-se com práticas de pureza. Esses elementos não
são mencionados nos evangelhos a não ser, de passagem, quando se fala de jarros
na história das bodas de Caná Qoão 2,6). Mas a freqüência com que aparecem nas
camadas arqueológicas da época dá a entender que todos conheciam e que não pre­
cisavam, por isso, ser mencionados nos evangelhos, pois faziam parte da religião
judaica e das características desse povo no tempo de Jesus.

Essas dez descobertas e todas as outras que virão precisam ser postas em seu
ambiente arqueológico. Lembremos o seguinte: às vezes a descoberta torna-se im­
portante por causa de objetos ao seu redor tais como uma pequena moeda de bronze
ao lado ou alguns cacos de louça debaixo dela. Objetos aparentemente sem valor,
quando comparados com a totalidade da descoberta, podem servir para estabelecer
datas e esclarecer contextos, tornando o achado não apenas uma novidade a mais
mas também um dos dez mais importantes até agora.

Descobertas exegéticas
Ao passar das dez mais importantes descobertas arqueológicas para as dez
igualmente mais importantes descobertas exegéticas sobre Jesus, entramos em
outro mundo. Mesmo os que discordam de nossas escolhas arqueológicas podem
ainda conferi-las em sítios ou museus e ver que existem. Ninguém pode negar, por
exemplo, a existência das construções de Herodes, não importando como entenda
seu sentido ou as interprete. Mesmo os que negam que certa estrutura em Cafarnaum
tenha sido de fato a casa de Pedro no primeiro século, ainda assim estará falando a
respeito de um lugar concreto, de um sítio específico e de um edifício em ruínas. O
mesmo não se aplica aos itens desta nova lista.

Os dois primeiros são suficientemente claros. Representam uma grande coleção


de livros judaicos e um pouco menor de livros cristãos. Esse conjunto de textos está
preservado em museus contemporâneos. Trata-se de fato inegável. E surpreendente
que, apesar de todas as escavações cuidadosamente planejadas, financiadas, adminis­
tradas e executadas em busca de antiguidades arquitetônicas e textuais, não foram
especialistas, mas sim pastores beduínos e camponeses egípcios quem descobriu as
duas coleções. O mesmo não se aplica a alguns dos demais itens da lista. O termo
“descoberta” pode ser contestado. Podem-se debater não apenas a interpretação
mas até mesmo a própria existência do fenômeno. Nem todos concordam que essas
descobertas sejam verdadeiras. Contudo, acentuamos esses dez itens porque deter­
minam a maneira como são escavados os restos de textos sobre o Jesus iiistótico,
não importando se respondemos positiva ou negativamente a alguns deles.

Com exceção dos Rolos do Mar Morto, todos os demais itens referem-se a textos
bastante posteriores a Jesus. Mas o que descobrimos e decidimos a respeito deles
importa muito para qualquer reconstrução do Jesus histórico. 0 item fmal da lista
envolve a ampla questão a respeito dos desenvolvimentos teológicos no cristianismo
primitivo, a saber, o choque severo entre Tiago e Paulo como intérpretes de Jesus.
Embora hoje em dia a maioria dos cristãos tenda a pensar que Paulo é o intérprete
normativo de Jesus, no primeiro século até mesmo ele se dava conta de que Pedro,
Barnabé e outros preferiam a interpretação de Tiago à sua. Tenhamos em mente,
pois, que vamos examinar Jesus não apenas pelos olhos de Paulo nem mesmo de
Tiago, mas por meio do debate entre eles e alguns outros.

1. Rolos do Mar Morto

2. Códices Nag Hammadi

3. Dependência de Mateus e Lucas em relação a Marcos

4. Dependência de Mateus e Lucas em relação ao Evangelho Q

5. Dependência de João em relação a Marcos, Mateus e Lucas

6. Independência do Evangelho de Tomé em relação aos evangelhos canônicos

7. Tradição dos Ditos Comuns no Evangelho Q e no Evangelho de Tomé

8. Independência da Didaqué (“ensino”) em relação aos evangelhos

9. Existência de fonte independente no Evangelho de Pedro

10. Reflexo do confronto entre Tiago e Paulo no Jesus histórico

1. Rolos do Mar Morto. Esses documentos formam a biblioteca do grupo sectário


que deliberadamente se separou das autoridades sacerdotais do Templo de Jerusalém
para viver comunitariamente com pureza ritual própria e observar corretamente
o calendário, na costa noroeste do Mar Morto. Depois da primeira descoberta em
1947, a sede da comunidade foi escavada em Khirbert Qumrã, e os livros foram
encontrados em onze grutas nos penhascos atrás dela. Alguns textos conservavam-
se relativamente completos, outros danificados, mas centenas deles rasgados em
pedaços com mais de dez mil unidades. Os conteúdos dessa biblioteca, datando
entre 200 a.C e 70 d.C., descrevem com minúcias a teoria e a prática dos essênios,
seita conhecida de diversos escritores antigos, fornecendo-nos preciosos dados a
respeito do estilo específico de vida em terras judaicas do primeiro século, úteis para
entender o contexto do judaísmo e do cristianismo.
2. Códices Nag Hammadi. Esses documentos cristãos, quarenta e cinco textos
distribuídos em treze livros de papiro ou códices, foram descobertos em 1945 perto
da moderna Nag Hammadi, antiga Chenoboskion, cerca de 370 milhas ao sul do
Cairo. São transcrições do quarto século em copta (escritos egípcios com alfabeto
grego expandido), mas contêm obras cujos originais gregos remontam a séculos
precedentes. Os diversos gêneros e teologias dessa coleção dão ênfase ao gnosticismo
(crença na salvação da escravidão humana no mundo da matéria, oposta ao mundo do
espírito, por meio de conhecimento secreto ou gnosis) e às vezes até mesmo mais ao
ascetismo, embora não representem determinada ideologia precisa das seitas cristãs
conhecidas. É provável que tenham sido reunidas de acordo ou não com os conteúdos
e enterradas em jarros lacrados como proteção contra possível esquecimento por
serem consideradas heréticas. São extremamente importantes como testemunho do
gnosticismo pré-cristão e da diversidade existente no cristianismo primitivo.

3. Marcos, Mateus eLucas. Desde que se tornou óbvio aos especialistas que Mateus,
Marcos e Lucas mostravam muita semelhança quanto à seqüência e ao conteúdo
e que, portanto, se poderia presumir certa conexão genética entre eles (primeira
descoberta), o próximo passo foi a busca de como se deu esse relacionamento (se­
gunda descoberta). Em 1789-1790 JohannJakob Griesbach sugeria que Mateus teria
vindo em primeiro lugar. Marcos copiara Mateus e Lucas reproduzira os dois. Mas
em 1835 Karl Lachmann propôs outra gênese: Marcos seria o primeiro e Mateus e
Lucas copiaram-no independentemente. Essa alternativa é a mais aceita agora. As
camadas de Marcos em Mateus e Lucas justificam o uso do termo “escavação” na
exegese. Mas onde mais tal escavação textual seria requerida nas pesquisas sobre
os evangelhos?

4. Evangelho Q. Esta terceira descoberta baseou-se nas duas anteriores. A partir


do texto de Marcos foi fácil perceber as porções que Mateus e Lucas teriam usado.
Mas havia muitas outras seções em Mateus e Lucas que não vinham de Marcos, e
que seguiam seqüências suficientemente semelhantes para pensar na existência de
outra fonte (terceira descoberta). Em 1838, Christian Hermann Weisse desenvolveu
algumas idéias anteriores de Friedrich Schleiermacher e sugeriu a existência dessa
fonte. Em 1863, Julius Holtzmann deu a ela seu primeiro nome. Chamou-a “L”,
da palavra logia, que em grego significa “ditos” (de Jesus). Em 1890, finalmente,
Johannes Weiss deu-lhe o nome que permanece até hoje. Chamou-a de “outra fonte
comum” em Mateus e Lucas (à parte de Marcos) e, porque estava escrevendo em
alemão, chamou-a de Quelle, que quer dizer “fonte”. A abreviação Q passou, então
a ser universalmente adotada.

5. Sinóticos e João. O consenso dos especialistas sobre fontes diminui rapidamente


quando se vai de Marcos por meio do Evangelho Q para João. Será João dependente
ou independente dos três evangelhos sinóticos? Enquanto certo pesquisador conclui,
maximamente, que temos agora “crescente consenso” em volta da tese da depen­
dência, um outro afirma, minimamente, que nas primeiras décadas do século vinte
a posição mais provável era a favor da dependência; mas, entre 1955 e 1980, já se
tendia para a independência, de tal maneira que hoje em dia nenhuma das posições
pode ser considerada a melhor. Em outras palavras, peio menos isto: não se pode
alegar consenso no debate, mas se podem, certamente, resumir as razões em favor
de cada posição. Porém, em termos da metáfora da escavação, é muito importante
que 0 pesquisador descubra por si mesmo se João depende ou não dos evangelhos
sinóticos. Pensemos, por exemplo, na história da paixão: serão todas as versões
dependentes apenas de Marcos ou existem duas fontes independentes em Marcos
eJoão?

6. Evangelho de Tomé. Entre os textos de Nag Hammadi encontra-se um evangelho


copta completo cujo original grego havia sido descoberto, embora não reconhecido,
em fragmentos de três diferentes cópias na passagem do século dezenove para o
vinte na moderna Bahnasa (antiga Oxyrhynchus), a cerca de 120 milhas ao sul do
Cairo. O Evangelho de Tomé contém apenas aforismos, parábolas ou pequenos diálogos
de Jesus e quase nenhuma narrativa; não há histórias do nascimento, de milagres
nem da paixão e da ressurreição. Sua teologia peculiar nega qualquer validade à
esperança pelo futuro apocalíptico, mas exige, em vez disso, o retorno ao passado
edênico por meio de ascese celibatária. Aqui, também, a questão levantada pela
escavação textual é se esse texto depende ou não dos evangelhos canônicos. Talvez
exista consenso nos Estados Unidos a respeito da tese da independência entre os
especialistas em Tomé, embora muito menos na Europa ou entre os estudiosos dos
evangelhos do Novo Testamento.

7. Tradição dos Ditos Comuns. Cerca de um terço do material no Evangelho Q e no


Evangelho de Tomé são comuns aos dois. Mas não há evidência de que esses dois textos
dependam um do outro em termos de redação, seqüência e conteúdo. Além disso,
a ordem dessa tradição comum é tão completamente divergente que não se pode
plausivelmente postular que tenham se valido da mesma fonte escrita. Finalmente,
não existe nenhuma razão especial para afirmar que o desordenado Evangelho de Tomé
poderia ter alterado a ordem de alguma fonte escrita. Mas existem, mesmo nas esti­
mativas mais conservadoras, trinta e sete unidades da tradição adotadas e adaptadas
pelos dois evangelhos a seus propósitos teológicos bem diversos. Trata-se, então, de
importante caso onde muita “tradição oral” pode ser vista claramente em ação.

8. Didaqué (“ensino"). Há muitas cartas do primeiro século, como as de Paulo,


dizendo aos fiéis como se comportar, mas este pequeno texto, Didaqué (“ensino”
ou “instrução”), é uma regra comunitária ou ordem eclesiástica relatando a vida
do grupo e especialmente as mudanças esperadas dos novos convertidos pagãos à
comunidade judaica cristã. Foi escrito na segunda metade do primeiro século, mas
não se tem certeza da data exata. Foi descoberto em 1873 no interior de um códice
do século onze num mosteiro grego em Constantinopla. Discute-se, também aqui,
até que ponto o documento depende ou não dos evangelhos canônicos. A questão
é crucialmente importante, porque coleta alguns dos ditos mais radicais de Jesus
no início da obra. Esse minicatecismo também aparece no Evangelho Q, mostrando
a importância da estratificação. Dependerão um do outro, ou teriam usado alguma
camada anterior?

9. Evangelho de Pedro. Trata-se de um escrito do segundo século como o Evangelho


de Tomé, oriundo de duas descobertas separadas. Entre 1886 e 1887 achou-se em
Akmin, a cerca de 300 milhas ao sul do Cairo, um longo fragmento grego constituído
de aproximadamente sessenta versículos, copiados num códice em forma de livro
de bolso entre 600 e 900. Foram encontrados, também, dois pequenos fragmentos
gregos, com menos de três versículos, de um rolo datado de por volta do ano 200,
entre os papiros de Oxyrhynchus, já mencionados acima. Seu conteúdo narra o
julgamento, a morte, o sepultamento, a ressurreição e a aparição (presume-se) de
Jesus. Começa e termina com sentenças quebradas e depende dos evangelhos ca­
nônicos. Os estudiosos perguntam, no entanto, se não transparece aí outra história
independente tanto do ponto de vista canônico como da narrativa seqüencial. Se for
assim, qual seria o conteúdo dessa outra história?

10. Tiago contra Paulo. Qual era a questão central nesse debate? Tiago e Paulo
concordavam que a circuncisão não devia ser exigida dos pagãos convertidos, porque
a justificação divina fmal do mundo já começara e era processo contínuo em vez de
instante momentâneo. Concordavam também que o cristianismo judaico e o pagão
deveriam permanecer juntos na mesma comunidade. Mas que dizer a respeito de
kosher nas refeições comunitárias e das preocupações sobre pureza nos contatos
comuns? Perguntava-se se quando judeo-cristãos e pagãos comiam juntos se de­
veria ou não observar as tradições kosher. Tiago dizia que sim. Paulo era contra. Os
principais apóstolos concordavam com Tiago. Essas questões eram ainda debatidas
no ano 50, porque Jesus nada dissera a respeito delas por volta do ano 30.

Camadas paralelas
Voltamos agora ao tema das camadas paralelas em relação às escavações relacio­
nadas com Jesus. A importância das camadas arqueológicas é reconhecida univer­
salmente. Quando se viaja pela Mesopotâmia vêem-se inúmeros sítios que indicam
a superposição de camadas testemunhando habitações humanas. São amontoados
em oposição à monotonia achatada do cenário. Quando se cavouca ou se escava sem
0 cuidado de examinar cientificamente essas camadas, nada mais se faz além de
pilhagem cultural. Se o item achado não for identificado cuidadosa e acuradamente
com a sua camada histórica própria, dificilmente será mais do que mero objeto.
Examinemos, por exemplo, dois exemplos clássicos de análise incorreta de camadas
e, conseqüentemente, das conclusões históricas equivocadas.

0 tesouro de Priam o. No início e no fim da década de 1870 Heinrich Schliemann


realizou escavações em Hisarlik, nos bancos orientais perto do sul dos Dardanelos
turcos, buscando a antiga Tróia. Tratava-se de bem-sucedido magnata do campo
empresarial, autodidata, que havia abandonado a escola secundária para entrar no
comércio, com a idade de catorze anos, passando depois ao ramo da arqueologia, após
ter completado quarenta e um anos. Descobriu não apenas uma cidade soterrada,
mas nove, uma em cima da outra. Tróia II, a segunda de baixo para cima, mostrava
sinais de saques belicosos. Numa das portas encontrou um esconderijo com mais
de cem objetos de cobre, prata e ouro. Fez, então um anúncio sensacional sobre os
“tesouros de Príamo”, e fotografou sua esposa grega, Sofia, usando os ornamentos
de ouro que achara. Depois disso o tesouro desapareceu da Grécia e foi parar na
Alemanha, de maneira fraudulenta, em 1873, e em 1945, ainda durante a guerra,
acabou na Rússia. Mas nada disso, nem mesmo o reaparecimento desses objetos
em 1993 no Museu Pushkin de Moscou e no de São Petersburgo, conseguiu mudar
um fato muito simples.

As nove cidades datam de entre 3000 a.C. e 600 d.C. Tróia VII, de 1250 a 1000
a.C., é a candidata mais plausível para ocupar o cenário da guerra de Tróia. Schliemann
identificou até a quinta cidade relativa a 1300 anos. A cidade governada por Príamo
e Hecuba, cercada por Agamêmnon e Aquiles, destruída por uma bela mulher entre
dois esposos reais (ficção?) ou, melhor, num estreito estratégico entre dois mares
comerciais (fato?), não era, infelizmente, Tróia II, mas Tróia VII. Embora prosaico,
era preciso admitir que “o ouro de Príamo” tinha que se submeter à análise das
camadas arqueológicas, com sua sujeira e detritos, para precisar a localização no
espaço antes de datá-la.

Os muros de Jericó. Entre 1907 e 1909 uma expedição arqueológica alemã dirigida
por Ernst Sellin e Cari Watzinger escavou um oásis num deserto de Jericó, esperando
encontrar a cidade e os muros que Josué e os israelitas conquistadores teriam destru­
ído. O trabalho chegou à conclusão insatisfatória: os muros destruídos encontrados
eram do fim da Idade Média do Bronze (2000-1500 a.C.), pelo menos dois séculos
antes e, portanto, inadequados para confirmar a narrativa do livro de Josué. De
1929 a 1936 John Garstang empenhou-se em corrigir os problemas que, segundo
ele, os alemães haviam criado e cavou novamente muitos dos fossos deixados pelos
arqueólogos anteriores. Cortando outras porções do sítio, identificou cerca de doze
diferentes camadas do Período Neolítico (8000-4500 a.C.). Na extremidade norte do
sítio arqueológico encontrou o que procurava num nível que chamou de Cidade IV:
um grande muro destruído, segundo ele, num cataclismo no final da Idade Tardia do
Bronze (1500-1250 a.C.), que fora a data da conquista bíblica. Na década de 1950,
a arqueóloga britânica Kathleen Kenyon, ajudada por um método mais cuidadoso
de identificar camadas e por mais acurada tipologia de classificação de cerâmicas,
reescavou o lugar. Os muros de Garstang haviam sido, de fato, destruídos por terre­
moto e incêndio, segundo Kenyon, mas pertenciam a fortificações da Idade Antiga
do Bronze (3200-2000 a.C.). Com precisão meticulosa, Kenyon demonstrou como
esse muro da Idade Antiga do Bronze havia sido coberto por aterros que sofreram o
efeito da erosão quando o lugar fora abandonado. Fragmentos de material da Idade
Tardia do Bronze foram acrescentados ao complexo por meio de fendas produzidas
pela chuva. Esses elementos teriam enganado Garstang, levando-o a datar o muro
como 0 de Jericó destruído pelos israelitas. Mas Kenyon teve a palavra fmal: os
muros de Jericó do tempo de Josué ainda não haviam sido achados. Como o ouro
de Príamo, os muros de Jericó precisam se submeter à organização das camadas,
aos fragmentos encontrados entre sujeira e detritos, para que se possa estabelecer
com precisão o lugar antes de estipular qualquer data.

A s cam adas do evangelho. Esses procedimentos são claros e servem para acentuar
a importância do correto estabelecimento das camadas arqueológicas para chegar a
conclusões históricas válidas. Assim como a Ilíada não garante que tesouros acha­
dos sejam de Príamo, também a Bíblia não é suficiente para afirmar que alguém,
afinal, encontrou os muros de Jericó. Trata-se da aplicação correta da metodologia
para estabelecer camadas nas escavações arqueológicas. Mas que dizer a respeito
do estabelecimento de camadas nas escavações exegéticas? Nesse caso as coisas são
bem mais controvertidas.

Alguns especialistas negam a existência de camadas exegéticas na teoria e, por­


tanto, ignoram-nas na prática. Outros afirmam que existem em teoria mas não na
prática. Na exegese dos evangelhos, diferentemente da arqueológica, essas camadas
precisam ser defendidas tanto teórica como praticamente. É também importante,
para a integridade da pesquisa, não aceitar em todas as possibilidades específicas, o
que alguém classificou como fato geral. Mas essa afirmação precisa ser explicada.

Imaginemos quatro testemunhas num tribunal de justiça esforçando-se para


descrever da melhor maneira possível o acidente que presenciaram há quatro se­
manas. Todos são igualmente sinceros, honestos, imparciais e só se envolveram no
caso porque passavam pelo local no momento da ocorrência. Certamente seus relatos
não são idênticos e contêm certas discrepâncias, mas se você fosse o advogado de
defesa ou de acusação, sentir-se-ia mais seguro se todos os quatro concordassem
em quase tudo. Primeira testemunha: o carro preto passou com o farol vermelho
e bateu no Honda Civic. Segunda testemunha: aquela coisa grande passou em alta
velocidade pela luz vermelha e atingiu o carrinho. Terceira testemunha: 0 carro preto
nem parou no farol vermelho. Quarta testemunha: esses carros são muito velozes
e esse passou o farol e bateu no outro. Não houve problema. Tudo correu bem com
a justiça. Mas imaginemos agora outro cenário. Um dos quatro informantes era
um repórter que tomou conhecimento dos fatos direta ou indiretamente de outros,
e contou a história a dois informantes. A quarta testemunha contou o que ouviu
dos outros três. Como vai decorrer agora o julgamento? Não temos testemunhas
oculares mas apenas três ecos. É provável que o carro preto tivesse passado com o
farol vermelho, mas também poderia não tê-lo ultrapassado.

0 senso comum percebe muita semelhança na seqüência e conteúdo de Mateus,


Marcos e Lucas, e até mesmo de João, embora este último exija certas qualificações.
Talvez João tenha vindo depois e, concentrando-se no que os outros haviam dito,
procurasse salientar o que eles omitiram para oferecer uma interpretação mais
profunda do que eles. Mas, certamente, para o senso comum e para a maioria dos
cristãos, o estudo do Jesus histórico consiste em harmonia organizada. Qual é a
melhor maneira de reunir essas quatro testemunhas (ou outras) de maneira con­
sensual? Os evangelistas não eram mentirosos enganadores nem tolos enganados.
Estavam, de fato, prontos para morrer pelo que criam. Alguns poderiam concluir que
0 estudo dos evangelhos é uma síntese. E chegar à conclusão de que se preocupar
com as camadas do evangelho é irrelevante.

As camadas dos evangelhos têm diversos componentes. A crítica da forma esta­


belece os primeiros formatos usados para transmitir a tradição (parábola, aforismo,
diálogo, lei e tc.). A crítica das fontes procura mostrar quem copia de quem. A crítica
da redação parte das cópias para estabelecer o propósito das omissões, adições ou
alterações do copista. A crítica da tradição usa todos os métodos acima mencionados
para estabelecer as camadas sucessivas do desenvolvimento da tradição. Mas talvez
seja a crítica das fontes a que force e fundamente o problema das camadas exegéticas.
Por exemplo, se Mateus e Lucas copiaram Marcos criativamente, e se João, com muito
mais engenho, copiou esses três textos anteriores, que se deduz? Se, por exemplo,
em vez de concluirmos que a entrada de Jesus em Jerusalém na semana anterior à
sua morte foi contada nos quatro evangelhos (independentemente), devemos con­
cluir que essa história foi contada em três camadas sobrepostas baseadas (todas) em
Marcos (dependentemente). Surge, então, a questão: qual das camadas históricas
é de Marcos? Trata-se de uma história originada numa camada datada dos anos 20
ou uma parábola de outra camada do começo dos anos 70 d.C.?

Neste livro não afirmamos que todos, especialmente os dois autores deste livro,
precisam concordar com todas essas camadas dos evangelhos. O que dizemos é que
sempre é necessário tomar decisões a respeito delas tanto em arqueologia como na
exegese, e que as discordâncias não negam sua importância (antes, a afirmam), posto
que são de extrema importância para as escavações a respeito de Jesus.

Examinemos, finalmente, a estratigrafia arqueológica nos sítios e, por outro


lado, nos textos dos evangelhos como prelúdio dos próximos capítulos. Há duas
tendências nessas estratigrafias, na construção das histórias da vida de Jesus e dos
lugares onde viveu. Uma das tendências procura diminuir sua identidade judaica;
a outra, elevar seu status social.

De um lado, quanto mais distantes do tempo de Jesus, mais cristãs tendem a


ser essas camadas. Diferindo das mais antigas, as posteriores tendem a distanciá-
lo do judaísmo e dos “judeus” Qoão, por exemplo) ou utilizar textos judaicos e
truques interpretativos para reinventar o judaísmo como se fosse cristianismo
(Mateus, por exemplo). As camadas arqueológicas tardias que comemoram a vida
de Jesus tendem a apagar os sinais de seu judaísmo presentes nas mais antigas e
substituí-las por feições romanas ou bizantinas. De outro lado, quanto mais Jesus
é removido do contexto da Galiléia do primeiro século, mais elitista e imperial ele
se torna. Ao contrário das primeiras camadas, as posteriores retratam-no como um
ocioso filósofo (por exemplo, João) ou como intérprete de rolos literários e erudito
participante de banquetes (por exemplo, Lucas). Santuários e igrejas antigas na
Galiléia e em Jerusalém apagam suas origens camponesas e humildes presentes em
camadas arqueológicas mais primitivas, substituindo-as por arquitetura imperial e
monumental. Neste livro pretendemos retornar às camadas mais primitivas tanto
de sítios como de textos.
C a p ít u l o 1

JESUS GRAVADO
EM PEDRA

Como transportar um antigo artefato, não importando se autêntico, original,


identificável, importante ou não? Tratava-se de um ossuário de 2.000 anos, feito de
pedra-sabão, usado nos sepultamentos judaicos do primeiro século. 0 jornal nacional
do Canadá, The Globe and Maü [O globo e o correio], do sábado 2 de novembro de
2002, mostrava na primeira página a fotografia de um caminhão blindado dirigindo-se
para a área de descarga do Museu Real de Ontário, Toronto, datada da quinta-feira
anterior. A caixa que estava sendo carregada trazia a advertência de que, contendo
ossos, era muito frágil, avisando aos transportadores: “este lado para cima”, por
meio de duas setas iguais. Mesmo antes de sair do aeroporto Ben Gurion de Tel
Aviv, a caixa de ossos de 20 por 12 e 10 polegadas tinha uma rachadura horizontal
até embaixo, que começava num dos lados maiores fazendo a volta até o menor.

Depois de permanecer numa galeria durante a noite para climatização, a caixa foi
aberta na manhã da sexta-feira e a coletiva para a imprensa adiada para as 3 horas da
tarde. A rachadura de um dos lados maiores agora arqueava-se a partir de pequena
área danificada até outra, em cima, que se insinuava também, pela inscrição que
era, afinal, o ponto focal de toda a excitação ao redor de mais esse ossuário do pe­
ríodo herodiano. 0 proprietário da caixa, identificado depois como Oded Golan de
Tel Aviv, fizera os arranjos para o empacotamento e transporte pela empresa Brinks
Ltda. (de Israel), posto que o artefato fora avaliado em 2 milhões de dólares. Mas,
segundo o diretor administrativo do Museu Real de Ontário, Daniel Rahimi, não
foram observadas as normas de transporte entre museus. Essas exigem gradeados
duplos recheados de material resistente; nesses casos os danos durante o transporte
são extremamente raros.

Os trabalhos de restauração, certamente, conseguirão consertar as rachaduras


antigas e novas e prevenirão que outras aconteçam no fiaturo. Mas, de qualquer forma,
achamos que esses danos nos servem de metáfora sobre o processo da descoberta
desse ossuário. Rachado, como dissemos, desde o começo.
Autenticidade e integridade
A descoberta fora anunciada no dia 21 de outubro de 2002 numa coletiva para a
imprensa em Washington, D.C. A mídia foi convidada e recebeu nomes e números
de telefone de alguns especialistas, que tiveram uma semana para se preparar para
as perguntas dos jornalistas. Durante a coletiva, a sala estava lotada para tomar
conhecimento da descoberta de uma caixa de ossos com a inscrição; “Tiago, filho
de José, irmão de Jesus”, que pertencera à coleção particular de um proprietário até
então anônimo. O ossuário datava do ano 63 de nossa era e dizia-se que continha
os ossos de Tiago, o Justo, irmão de Jesus de Nazaré, ambos filhos do carpinteiro
José. Esse encontro com a imprensa coincidia com a publicação do número de no­
vembro/dezembro da Biblical Archaeology Review [Revista de Arqueologia Bíblica],
cuja capa anunciava em primeira mão mundial; “Evidências de Jesus escritas em
pedra”. A revista contava a história de como o notável pesquisador André Lemaire,
da Sorbonne de Paris, visitara um colecionador israelense, examinara o ossuário a
convite dele e reconhecera imediatamente sua importância. Tratava-se, na verdade, de
inscrição autêntica, segundo escrevera Lemaire num artigo científico. Tudo indicava
que os ossos eram mesmo de Tiago e que a urna continha a mais antiga referência a
respeito de Jesus de Nazaré. As manchetes dos principais jornais ao redor do mun­
do indagavam; “A mais antiga evidência de Jesus?”, ou “Evidência arqueológica de
Jesus?”. A chegada do ossuário ao Museu de Toronto coincidia com um congresso
internacional de especialistas em religião e arqueólogos. 0 anonimato do proprietá­
rio, mais tarde conhecido como Oded Golan de Tel Aviv, terminou até mesmo antes
de se discutir a descoberta e sua importância num painel realizado no mesmo museu
durante o seminário anual da Sociedade de Literatura Bíblia, em novembro.

Autenticidade

Inúmeros estudiosos receberam a notícia com ceticismo. Seu cinismo nada tinha
a ver com o costume de certos acadêmicos de negar a historicidade da Bíblia, mas
com os anúncios de demasiadas descobertas arqueológicas “novas” e “muito impor­
tantes” que acabavam não sendo, na verdade, nada disso. Em face da lista das novas
descobertas que a mídia sensacionalista considerava autênticas, e os especialistas
negavam, relembremos o destino desses ossuários anteriores antes de decidirmos
a respeito dessa importante descoberta recente.

A (prim eira) inscrição de Jesus-José. Em 1931 o renomado arqueólogo judeu


Eleazar Levi Sukenik pronunciou uma conferência com o título; “Túmulos judeus
de Jerusalém perto do local do nascimento de Jesus”, para a Sociedade Arqueológica
Alemã em Berlim. Revelou a existência de um ossuário encontrado em Jerusalém,
com a chocante expressão; “Jesus, filho de José”, feito de pedra-sabão talhada com
martelo e cinzel, medindo 23 polegadas de cumprimento, 12 de largura e 14 de altura,
com pequenos apoios em cada canto. A borda interna no alto, dos dois lados, tinha
sido esculpida para segurar a tampa agora desaparecida. A caixa mostrava sinais
de deterioração. A parte dianteira parecia um tríptico, tendo ao centro um painel
estreito sem figuras, cercado por dois grandes quadrados contendo, cada um, uma
roseta de seis pétalas, no meio de linhas circulares concêntricas.

No painel central, foram riscadas três letras em aramaico, provavelmente com


prego ou algum instrumento de metal, yod, shin e waw, formando a palavra Yeshu,
contração de Yeshua, ou Jesus. Acima da roseta da esquerda e abaixo das margens
dele, via-se outra inscrição mais longa, com o mesmo tipo de escrita aramaica,
aparentemente gravada pela mesma pessoa, com as palavras, Yeshua bar Yehoseph,
ou, Jesus, filho de José.

A audiência não se espantou. Naturalmente, Yeshua e Yehoseph eram nomes


judeus comuns no primeiro século, explicava Sukenik, e, naturalmente, como a maior
parte da audiência cristã acreditava, Jesus, filho de José, segundo os evangelhos, não
deixara na terra seus ossos num sepulcro. Essa caixa e suas inscrições foram depois
ignoradas nos livros-textos e nas aulas de arqueologia do cristianismo primitivo. Este
recebeu o número 9 entre 895 ossuários mencionados na obra A Catalogue o f Jewish
Ossuaries in the Collections o f the State o f Israel [Um catálogo de ossuários judaicos nas
coleções do Estado de Israel], de L. Y. Rahmani, publicada em 1994.

Os ossuários com invocações a Jesus. Em 1947, Sukenik publicou um artigo


sobre ossuários judaicos com o título: “The Earliest Records of Christianity” [Os
primeiros registros do cristianismo], sobre dois ossos do tórax com o número 113
e 114 no catálogo mencionado acima. Além desses dois itens, o artigo relatava
outra escavação pertencente ao mundo secular. Descrevia um túmulo subterrâneo
encontrado num bairro de Jerusalém aberto em 1945 pela primeira vez desde a
guerra judaica contra Roma em 66-74 d.C. Diversos túneis capazes de conter um
corpo (que os estudiosos chamam de kokhim em hebraico, loculi em latim ou lóculos
em português) distribuíam-se a partir de uma câmara de teto baixo. Lá dentro não
havia ouro, prata ou marfim nem tesouros ou obras de arte dignas de mostras em
museus. Em vez disso, espalhavam-se pelo chão as sempre presentes cerâmicas sim­
ples do primeiro século d.C. e uma única moeda datada de 42/43 d.C. Alinhavam-se
aí catorze ossuários, dos quais dez haviam sido decorados como era costume e cinco
ostentavam nomes — três obviamente dos mortos: Simeão Barsaba, Miriam filha de
Simeão e Mattai — em aramaico da época.

Grafites e inscrições nos ossuários 113 e 114 inspiraram o título do artigo e des­
pertaram o interesse de muitos cristãos. Segundo Sukenik, a frente do ossuário 113
mostrava um grafite escrito em grego com carvão: “Ai, Jesus” (!) e no lado do ossuário
114, também em grego, algo semelhante entre desenhos de cruzes também riscadas
com carvão. Essas inscrições, segundo o autor do artigo e outros estudiosos cristãos
afoitos, representariam apelos ajesus em favor dos mortos cristãos ou, então, feitiçaria
mágica e até mesmo proclamação triunfal. Essa prática poderia ser interpretada como
expressão da esperança na ressurreição. A importância que então se lhes atribuía, na­
turalmente, vinha das datas de sua origem, antes do ano 70 d.C., mas possivelmente
entre 42 e 43 d.C. — apenas uma década depois da morte de Jesus — , fazendo desses
ossuários a mais antiga evidência arqueológica do cristianismo.

Mas. Exames mais cuidadosos desses ossuários, ao lado de considerações a


respeito da grande quantidade de inscrições disponíveis com marcas parecidas com
cruzes, acabaram com essas suposições. Logo se viu que as alegadas cruzes eram
apenas a letra tau ou a marca do carpinteiro que indicava onde a tampa devia ser
fechada. As primeiras leituras desses grafites ignoraram a presença de outras mar­
cas parecidas com a letra grega delta. Segundo o consenso atual dos especialistas, a
inscrição no ossuário 113 deve ser lida, lesous loudou, ou “Jesus, filho de Judas”.
A inscrição no ossuário 114 poderia ser lida, lesous Aloth, referindo-se a um nome
bastante comum naquele tempo. Essas inscrições, consideradas temporariamente
espetaculares, serviam apenas para identificar os mortos, como os demais nomes em
outros ossuários. Esse era o propósito das inscrições em ossuários. Nada de cruzes,
de apelos a Jesus nem de registros primitivos cristãos.

0 (segundo) ossuário de Jesus-José. Quando uma explosão de dinamite fez um


buraco em antiga gruta fúnebre em 1980, o Departamento de Antiguidades de
Israel (lAA, sigla para o inglês Israel Antiquities Authority) enviou imediatamente
equipes de salvamento constituídas por arqueólogos ao subúrbio de Talpiot ao sul
de Jerusalém. Os operários que preparavam o terreno para a construção de novos
apartamentos interromperam os trabalhos, e Joseph Gath, do Departamento de
Antiguidades de Israel, começou a examinar a câmara mortuária que havia já sido
revirada na Antiguidade. Registrou e catalogou os achados constituídos de seis
ossuários, que foram transferidos para os galpões da organização, onde, identifi­
cados por cartões desbotados, desses usados em fichas de arquivo medindo 3 por
5 polegadas, ainda permanecem em gavetas de madeira numa espécie de oficina
no bairro cinzento de Romema. Um ou dois deles já foram expostos no Museu de
Israel. Sua ornamentação e decoração não passavam do comum, mas as inscrições
despertavam certa curiosidade.

Numa das caixas de ossos, listada por Rahmani como Ossuário 701, liam-se as
palavras gregas: “de Mariamene que é (também chamada de) Mara”. Mariamene é
outra forma de Mariam ou Mariame, nossa Maria. Na outra caixa, de número 704,
alguém rabiscara com letras pequenas e espichadas o nome Yeshua bar Yehosef,
ou Jesus, filho de José. No ossuário 705, o nome de Yehosef, ou José, aparece num
aramaico mais formal, na forma abreviada, Yoseh. A semelhança das inscrições e da
maneira de gravá-las sugerem que Maria e José eram os pais de Jesus.

Mas seria esse o túmulo da família de Jesus? O Departamento de Antiguida­


des de Israel certamente não acreditava nisso e logo encerrou suas investigações,
permitindo que os operários tapassem os buracos com cimento e continuassem a
construção dos apartamentos. Estaria encobrindo as coisas? Essa era a idéia central
de um artigo no The Sunday Times de Londres, no domingo da Páscoa, 31 de março de
1996, com 0 título sensacionalista: “The Tomb That Dare Not Speak Its Mind” [“O
túmulo que não conseguiu se expressar”]. A lista de nomes é impressionante e Joe
Zias, curador e arqueólogo forense do Departamento de Antiguidades de Israel, foi
citado no artigo dizendo o seguinte: “Se essas coisas não tivessem sido encontradas
num túmulo, eu teria afirmado 100% que buscávamos apenas falsificações”. Mas,
acentuou, “as afirmações vinham de um contexto arqueológico muito respeitado e
sereno. Os dados foram achados por arqueólogos, lidos por eles e por eles interpre­
tados [...]; textos muito, muito bons. Não se tratava de invenções”.

Mas seria esse oJesus que estamos tentando escavar neste livro? Como o próprio
jornal citado acima ponderava, concluiu-se que ninguém na comunidade arqueológica
desde Simeão pensava dessa maneira, pois o nome mais comum nos ossuários era o
dejosé (19 de 147 nomes, masculinos e femininos em ossuários conhecidos) seguido
do nome de Jesus (10 dos 147). 0 nome feminino mais comum depois de Salomé é
Maria, grafado de diversas maneiras (20). É provável que os leitores conservadores
daquela manhã pascal tivessem se sentido aliviados com essa conclusão.

O consenso acadêmico relegou essas descobertas a meras cifras estatísticas e


esqueceu-as em depósitos. Tais inscrições acabaram sendo reenterradas nas páginas
do Catálogo de Rahmani, sepultado nas estantes das bibliotecas de pesquisa. Os
ossuários repousam nos galpões do Departamento de Antiguidades de Israel em
Romema e ocasionalmente aparecem em mostras do Museu de Israel. Assim, resu­
mindo o que queríamos dizer no início desta seção, quando os estudiosos hesitam
ou decepcionam o entusiasmo popular a respeito do novo ossuário de Tiago-José-
Jesus, estão no campo da história. Mas quais são os argumentos a favor ou contra
esse achado e a autenticidade de suas inscrições? Seria tudo falso? Consideremos
os seguintes argumentos.

Ponto e contraponto

A caixa. Não há dúvida de que a urna do ossuário seja autêntica. 0 tamanho,


estilo e modo de construção conformam-se com outras caixas semelhantes do
primeiro século d.C. encontradas em Jerusalém. Foi talhada num bloco de pedra-
sabão — que os geólogos chamam de calcário — medindo aproximadamente 20
polegadas de comprimento, 12 de altura e 10 de largura, suficiente para conter o
maior osso humano, o fêmur. A tampa encaixa nas laterais. É mais ou menos do
mesmo tamanho das urnas judaicas do primeiro século, onde os ossos, depois de
lavados, eram depositados e novamente enterrados. Essa prática é chamada pelos
especialistas de ossilegium.

Não se trata de obra de arte nem de produto de sofisticado artesanato. À primeira


vista, não parece exibir decoração alguma, a não ser pequenas incisões de cada lado da
tampa e na sua extremidade. Depois de demorado exame percebe-se quase apagado
o desenho de uma roseta, na parte de trás (na perspectiva em que estamos agora).
Os lados exteriores são rudes, com marcas de cinzel ainda visíveis, sem nenhum
polimento fmal. A caixa é maior em cima, mas um dos cantos é um pouco menor
do que os outros, criando a sensação de um trapezóide desequilibrado quando visto
dos lados. Parece-se, pois, com centenas de outros ossuários dessa época: simples,
anicônicos, isto é, sem quaisquer figuras humanas ou de animais, ostentando, às
vezes, decorações geométricas, arquitetônicas ou florais.

A presença de biovermiculação e de pátina em boa parte desse invólucro acentua


0 aspecto antigo da urna. A palavra biovermiculação designa detrimentos comuns na
época em pedras desse tipo. Trata-se de erosão provocada por bactérias dando a
impressão de pequenos furos de aparência semelhante aos corais. Pátina é o termo
empregado para descrever camadas microscopicamente finas acumuladas ao longo
do tempo. No caso da pedra deste ossuário, essas camadas adquiriram certo brilho
cristalino com matizes de cinza e bege que, quando vistas pelas lentes de um mi­
croscópio, parecem uma couve-flor. Ficamos convencidos, sem dúvida alguma, de
que a caixa e a tampa são artefatos autênticos existentes há dois milênios.

A inscrição. As dúvidas começam a surgir quando se examina a inscrição,


principalmente a parte fmal. As letras dessa longa frase de oito polegadas foram
cuidadosamente gravadas no lado direito do ossuário mais ou menos no meio dele.
A escrita em aramaico foi bem executada sem espaço entre as palavras. A primeira
leitura feita por André Lemaire tem sido aceita sem problemas: “Ya’cov bar Yosef
akhui diYeshua” (Tiago [Jacó], filho de José irmão de Jesus). Havia na sociedade
semi-analfabeta da Antiguidade, como é de esperar, inúmeras variações ortográfi­
cas na escrita de nomes pessoais. Às vezes, Yosef Üosé) é grafado como Yehosef, e
Yeshua Qesus) abreviado para Yeshu ou aumentado para Yehoshua, em ossuários e
papiros do primeiro século, como já assinalamos. Essas diferenças, entretanto, não
afetam a leitura: Tiago filho de José irmão de Jesus.

O problema surge quando se compara a primeira metade da inscrição, Tiago filho


de José, com a segunda, irmão de Jesus. A inscrição começa segundo o uso comum
do primeiro século. Especialistas como Lemaire não hesitam em datá-la da segunda
metade do primeiro século. A parte saliente em cima das letras formais no ossuário
são típicas dos Manuscritos do Mar Morto, do final das décadas anteriores à guerra
romana que destruiu o Templo em 70 d.C. Contudo, alguns dos caracteres seguintes
têm a forma cursiva, especialmente a letra dalet — por onde passa agora a rachadura.
Além disso, a inscrição tende a se inclinar logo depois da palavra “irmão”, com a
maioria das letras em ângulos levemente diferentes e outras já não grafadas com o
mesmo cuidado das anteriores, principalmente a letra shin de Yeshua.

Se essas inscrições antigas tivessem sido escritas com máquinas de datilografia,


teríamos certeza, no caso, de que duas máquinas diferentes haviam sido usadas.
Lembremos, porém, de que se trata de escrita a mão. A maioria das inscrições desse
tipo não era executada por profissionais, mas por membros da família ou por amigos
com a finalidade de identificar os ossos do morto, talvez para facilitar o enterro do
sobrevivente do casal e até mesmo dos filhos, no mesmo lugar. A presença dessa
mistura de letras (formais e cursivas) não significa necessariamente a existência de
duas mãos ou de falsificação, posto que variantes dessa natureza aparecem em alguns
outros ossuários descobertos por arqueólogos. Na frente de um ossuário encontrado
no Monte Scopus em Jerusalém, decorado com cinco ramos de acanto entre cachos
de uvas, uma inscrição de quatro palavras em aramaico foi assim transcrita: Yehosef
bar Hananiah HaSepher Qosé, o filho de Ananias, o escriba). A primeira palavra,
Yehosef, foi gravada letra por letra com clareza e intensidade. A segunda palavra
é menos clara mas, assim mesmo, as letras podem ser facilmente reconhecidas. A
terceira, quase apagada, é seguida pelo vocábulo quase ilegível, HaSepher (escriba),
dependendo da habilidade interpretativa do especialista. Será que o próprio punho
desgastava as letras durante a escrita nos ossuários? Pode ser. Ou porque o ângulo
das letras ia se modificando à medida que o encarregado desse serviço era obrigado
a estender as mãos sobre o ossuário? Talvez. Mas o que nos preocupa neste caso é
que as palavras escritas em cursivo sejam precisamente “irmão de Jesus”. E exata-
meme nesse ponto que as letras vão descendo em relação às anteriores e as incisões
se tornam menos profundas.

André Lemaire, um dos mais sérios estudiosos de epígrafes, depois de exami­


nar centenas de inscrições semíticas, acredita que não se trate de farsa. Ao lado de
cuidadosa análise, reage instintivamente: “Quando examino uma inscrição é pos­
sível considerá-la verdadeira ou falsa. Neste caso, acho que é autêntica”. Mas Kyle
McCarter, epigrafista da Universidade Johns Hopkins, assinala: “Jamais teremos
certeza absoluta. No trabalho que faço, raramente temos certeza sobre o que quer
que seja”.

A pátina. Se inscrições antigas estão sujeitas a incertezas humanas e se julga­


mentos epigráficos dependem muitas vezes da subjetividade de especialistas, poderá
a “pura ciência” verificar a autenticidade de um ossuário como o que estamos estu­
dando? Hershel Shanks, editor da Biblical Archaeology Review, que divulgou a história,
patrocinou uma comissão, formada por membros do Ministério de Infra-estruturas
de Israel ligados a pesquisas geológicas, para analisar o caso (e não, curiosamente,
de especialistas do Departamento de Antiguidades de Israel em antiguidades e
falsificações). Os geólogos examinaram seis exemplos desse tipo de urna, seis de
pátina ou de revestimento, resultantes da ação do tempo sobre a superfície do os­
suário, e dois exemplos do solo com um microscópio escaneador eletrônico (SEM,
Scanning Electron Microscope) equipado com um espectrômetro eletrônico dispersivo
(EDS, Electron Dispersive Spectrometer). Concluíram que os elementos da pátina eram
consistentes com os do ossuário. Coisas que soam bastante sofisticadas.

Mas. Qualquer tipo de pátina pode ser falsificada: há muitos exemplos disso.
Chama-se de pátina o resultado do processo químico por meio do qual se forma
uma fina camada na superfície de determinado objeto quando seus componentes
reagem com os do ambiente. Esse processo pode ser falsificado de duas maneiras.
O método mais simples consiste na aplicação de nova pátina no objeto antigo. O
outro, mais sofisticado, acelera o processo, que normalmente leva muito tempo
para se desenvolver, por meio de diversos banhos e sepultamentos em terrenos
Ya‘aqov bar Yosef akhui díTeshua
Tiago, filho de José, irmão de Jesus (coleção particular, origem desconhecida)

Shimi bar ‘A siya akhui diChanin


Shimi, filho de Asiya, irmão de Hanin (Rahmani 570, Monte Scopus, Jerusalém)

•íiDnniJ-in~í^ _3 D im
Yehosef bar Chananya haSepher
José, filho de Hananya, o escriba (Rahmani 893, Monte Scopus, Jerusalém)

Yeshua bar Yehosef


Jesus, filho de José (Rahmani 9, origem desconhecida)

Yeshua bar Yehosef


Jesus, filho de José (Rahmani 704, Talpiot Leste, Jerusalém)

Yehudah bar Yeshua


Judas, filho de Jesus (Rahmani 702, Talpiot Leste, Jerusalém)

3. Exemplos de inscrições em ossuários


V____________________________
umedecidos ricos em ferro e sal. Os aparelhos SEM e EDS são capazes de detectar o
primeiro tipo de falsificação. No segundo caso, a caixa e a pátina carregam o mesmo
material químico. É isso que os geólogos certificam. Em outras palavras, o método
ingênuo empregado por eles só consegue detectar pigmentos ou resíduos oriundos
de fontes secundárias.

Mais intrigante, contudo, no relatório de uma página produzido pelos geólogos


pesquisadores, é a observação de que, de um lado, “não havia sinais de uso de instru­
mentos modernos na inscrição” e, do outro, que (partes?) dela haviam sido limpas.
Mas não disseram por quem nem quando nem como. Algumas letras não tinham
pátina, ao contrário de outras, mas não nos disseram quais. Também não informaram
de que letras extraíram a pátina para exame. Igualmente problemático é que a roseta
no lado de trás estava quase apagada enquanto a inscrição se mostrava claramente
visível e bem gravada. O relatório provoca mais perguntas do que dá respostas. 0
proprietário do artefato e a revista consideram o relatório dos geólogos conclusivo
ao mesmo tempo em que ignoram um dos mais importantes passos de qualquer
julgamento científico, a saber, a submissão dos resultados à comunidade científica.
O ossuário não foi examinado por nenhum outro especialista da área que conhecesse
as técnicas de falsificação nem foi exposto à crítica de estudiosos do assunto.

Prestemos atenção ao fato seguinte. Em 1983 o Museu J. Paul Getty, no sul da


Califórnia, adquiriu um kouros, nome dado a raras estátuas antigas de jovens nus, com
documentação para atestar que vinha de uma coleção particular suíça. Descobriu-se,
depois, que os papéis eram falsos (a carta datada de 1952 trazia um código postal
que só começou a ser usado em 1972). A estátua foi então submetida ao escrutínio
de diversos especialistas. As desconfianças aumentaram quando se descobriu outro
falso torso do mesmo estilo de um kouros, alegadamente adquirido na mesma oficina
responsável pelo anterior. O Museu Getty gastou milhões para comprar a estátua
original e, novamente, milhões para adquirir o falso torso e pagar especialistas para
analisar a obra. Depois de anos de debate e de utilização de meios químicos, realizou-
se um colóquio em 1992 no Museu de Arte Cicládica de Atenas, com a presença dos
principais historiadores da arte e arqueometristas do mundo todo. Os documentos
fmais do colóquio fizeram a seguinte advertência: “A pedra continua a ser o meio
menos confiável para se estabelecer provas técnicas de autenticação”. O kouros ainda
pode ser apreciado no museu com a seguinte mensagem: “Grego do ano 530 a.C, ou
falsificação moderna”. O resultado desse empreendimento que custou milhões de
dólares mostra que a única coisa mais difícil do que provar a autenticidade de um
artefato de procedência desconhecida é provar sua inautenticidade.

O relatório da pesquisa dos geólogos não tem sentido algum. Apenas nos diz que
a inscrição não é uma falsificação mal feita. Confirma, além disso, o que qualquer
arqueólogo aceita, isto é, que a urna veio de Jerusalém. Mas não autentica a inscrição
nem afirma sua falsidade. Para chegar a uma conclusão aceitável faz-se necessária
análise mais rigorosa e científica. Até que se chegue lá, quem carregará o peso da
prova; os que dizem que o ossuário é autêntico ou os que o consideram falso?
A fam ília . Apenas para argumentar, consideremos autêntica a inscrição inteira,
bem como a antiguidade da pátina, e perguntemos: teria sido esse Tiago o filho do
no5so José, irmão do mesmo Jesus que estamos buscando? E claro que a combinação
dos nomes e as relações familiares entre eles nos deixam perplexos. Mas qual será
a probabilidade de que essa caixa contenha realmente os ossos de Tiago, o Justo, e
que a inscrição seja a mais antiga gravação do nome de Jesus?

Estamos agora no mundo da estatística onde se dá lugar proeminente à sub­


jetividade em vez da precisão dos números. Examinemos alguns dados. Estudos
recentes chegaram à conclusão de que entre todos os nomes inscritos desde o antigo
período romano na Palestina, 14 por cento eram José, 9, Jesus, e 2, Tiago Qacó). A
partir do exame dessas porcentagens, Lemaire partiu de dois pressupostos razoáveis:
habitavam na cidade de Jerusalém do primeiro século cerca de oitenta mil pessoas,
e os homens, em geral, tinham dois irmãos. Levando em consideração mortes e
nascimentos, Lemaire chegou à conclusão de que existiam vinte homens com o
nome de Tiago, filhos de um pai chamado José, e irmãos com o nome de Jesus, nas
duas gerações anteriores ao ano 70 d.C.

Mas. É bastante remota a chance de que um entre esses vinte Tiagos seja o que
estamos procurando. Entretanto, nesses ossuários, a indicação do relacionamento
fraterno “irmão de” era extremamente rara, em contraposição à citação mais comum,
“filho de”. Lemaire sugere que a expressão “signifique provavelmente que o irmão
representava importante papel, responsabilizando-se pelo funeral ou, mais geral­
mente [...], porque era pessoa muito conhecida”. E, neste caso, se fosse realmente
o nosso Jesus, também “famoso e muito reverenciado”. Mas, por outro lado, posto
que o propósito dessas inscrições era identificar o morto, o nome do irmão poderia
ter sido incluído apenas para distingui-lo de outros membros de uma família grande
como, por exemplo, o avô Tiago do neto do mesmo nome, ou o tio Tiago de outro
tio também Tiago. Se tivéssemos conhecimento do contexto original desse caso a
inscrição seria mais facilmente compreendida. Para decidir se o ossuário pertencia
realmente a Tiago, o Justo, precisamos não só de estatísticas e probabilidades mas
também de intuição e inclinação.

De certa forma o ossuário de Tiago-José-Jesus é como um teste químico para


detectar temperamentos e convicções pessoais de especialistas. O antigo adágio entre
os arqueólogos de campo é que se acha aquilo que se quer achar. E provável que
os céticos rejeitem a autenticidade da inscrição ou de sua identificação com Tiago,
que os editores desejosos de aumentar as vendas tendam a aceitar a autenticidade,
e os cristãos ao redor do mundo desejem que tudo seja verdade. E nós, onde nos
situamos? Por que classificamos esta descoberta em primeiro lugar na lista das
dez mais importantes descobertas nas escavações a respeito de Jesus? Não foi para
afirmar sua autenticidade, mas porque acentua a integridade da arqueologia. Está
em primeiro lugar porque nos ensina a respeito do caráter rigorosamente histórico
dessa disciplina.
Integridade

0 termo latino in situ, “no lugar”, distingue a arqueologia científica da pilhagem


cultural. 0 termo aplica-se a qualquer artefato descoberto no local onde permane­
ceu por séculos ou milênios antes que nossa modernidade tivesse perturbado sua
antiguidade. As descobertas in situ, em lugares nunca antes investigados ou tocados
pela mão humana, são ideais arqueológicos não só porque asseguram a autenticida­
de do objeto mas também porque o situam em seu contexto específico, em lugar e
tempo identificáveis, numa rede de relacionamentos cronológicos e espaciais com
outros artefatos.

Ossuários. Comparemos os três ossuários do primeiro século enumerados aqui,


entre os dez descobertos em Israel nos últimos cinqüenta anos. Em primeiro lugar,
em junho de 1968, ao nordeste de Jerusalém, descobriu-se um complexo funerário
durante obras de construção. Os arqueólogos foram imediatamente notificados e
tudo estava intacto como há dois mil anos. Um dos ossuários continha os ossos
de um homem adulto, de seu filho e, provavelmente por acidente, o osso de outro
homem. 0 nome do adulto, Yehochanan, estava rabiscado na parte exterior da urna.
Foi 0 primeiro esqueleto de alguém crucificado descoberto em terras judaicas. No
calcanhar direito ainda se podia notar um prego, dando terrível ênfase à condição
in situ. Muito se aprendeu com essa escavação controlada mas aberta. 0 osso do
calcanhar com o prego estava dentro do ossuário, denotando que pelo menos nesse
caso havia-se permitido que a vítima da crucifixão romana fosse sepultada pela fa­
mília. Depois da análise dos restos mortais realizada por um antropólogo forense,
ficamos sabendo que os ossos das mãos e dos pulsos não haviam sido quebrados e
que, diferindo das crucifixões medievais, os braços e as mãos tinham sido amarra­
dos, e não pregados na cruz. Tampouco as pernas foram quebradas para apressar a
morte. Mais importante do que isso, porque os escavadores estavam acompanhados
de fotógrafos, livros de campo e catálogos, o relatório publicado foi submetido a
inúmeros escrutínios e debatido por especialistas.

Em segundo lugar, em novembro de 1990, aconteceu algo parecido ao sul de


Jerusalém. Operários de construção encontraram uma câmara mortuária e notifi­
caram os arqueólogos a respeito do achado. Estes constataram que o túmulo havia
sido saqueado por ladrões na Antiguidade e danificado pelos descobridores antes
de sua chegada. Dentro da câmara mortuária, um belo ossuário decorado continha
os ossos de quatro crianças pequenas, de um jovem, de uma mulher adulta e de
um homem de 60 anos. Nele aparecia o nome de Yehosef bar Caiapha, conhecido
no Novo Testamento como Caifás e em Josefo como José Caifás. Tratava-se de seu
ossuário com os ossos da família, todos basicamente in situ. A descoberta trouxe
importantes dados sobre taxa de mortalidade infantil, duração da vida e doenças
comuns na época, graças à análise dos ossos e de outros ossuários ao redor. Além
disso, a presença na câmara de copos, lâmpadas e cerâmica ajudou a determinar a
duração cronológica dos sepultamentos. Algumas moedas não apenas indicaram a
data mas também trouxeram surpresas que discutiremos no capítulo 7. Para algumas
pessoas foi ainda mais importante saber que as autoridades judaicas se encarregaram
de sepultar novamente esses restos mortais com dignidade e respeito.

Finalmente, em outubro de 2002, uma coletiva para a imprensa anunciou a exis­


tência de outro ossuário importante. Não se tratava desta vez de descoberta. Talvez,
em termos de interação entre arqueologia e exegese a respeito de Jesus, esta caixa
de ossos tenha sido a mais importante das três, mas os fatos relacionados com sua
descoberta nada tinham de fantástico. Aparentemente, o ossuário havia sido roubado
de um túmulo ao sul de Jerusalém e vendido para um colecionador de antiguidades
que não se dera conta das implicações da inscrição em aramaico: Tiago, filho de José,
irmão de Jesus. Não se conhece o negociante nem a data da transação (embora o
proprietário afirme com ênfase que fora antes de 1978). Alguns pedaços de finos
fragmentos de ossos estavam dentro da urna na época da compra e se encontram
agora selados dentro de um recipiente em seu freezer.

Precisamos insistir enfaticamente que a maneira como esse ossuário entrou em


cena está longe dos ideais da arqueologia. Tampouco seguem esses padrões as grandes
descobertas de manuscritos da metade do século vinte conhecidos como Rolos do
Mar Morto e Códices de Nag Hammadi. Foram achados por acaso e vendidos por
intermediários e não descobertos nem investigados in situ por arqueólogos. Como
esses manuscritos, o ossuário está aqui e exige discussões a respeito. Por causa
disso, em certo sentido, é o ponto focal deste livro. Trata-se de um único artefato
capaz de reunir arqueologia e exegese ao mesmo tempo. Também nos mostra como
objetos como esse só adquirem valor quando relacionados com outras descobertas
que lhes dão contexto e sentido fmal.

Leis. Por todas essas razões, a maioria dos países do Mediterrâneo e do Oriente
Médio estabeleceu leis estritas contra a compra e a venda de artefatos antigos e
especialmente contra sua exportação. Felizmente passaram os tempos em que se
considerava normal a prática de pilhagem colonial que aprovava o desmonte da
porta de Mileto na Turquia para reconstruí-la depois em Berlim, ou a remoção dos
mármores de Elgin da Acrópole de Atenas e da pedra da Roseta do Delta do Nilo para
exibi-los até hoje no Museu Britânico de Londres. A convenção da Unesco procurou
proibir e prevenir importações, exportações e vendas ilícitas de artefatos antigos
que fazem parte da herança cultural de diferentes povos. Essa lei foi ratificada pelos
Estados Unidos em 1982. Hoje em dia, através do mundo, arqueólogos profissionais
e membros de sociedades acadêmicas denunciam participações diretas ou indiretas
na compra ou venda de artefatos escavados ou importados ilegalmente. As Escolas
Americanas de Pesquisa Oriental e a sociedade acadêmica de arqueólogos sírio-pa-
lestinos e bíblicos dão as razões de sua política: “O comércio ilícito de antiguidades
incentiva a pilhagem de sítios arqueológicos, ocasionando sua destruição e a perda
das informações que contêm”.

Mas Israel, talvez por causa da popularidade de colecionadores estadistas como


Moshe Dayan ou o prefeito de Jerusalém, Teddy Kollek, procura manter o mercado
negro controlado mediante licenças dadas a limitado número de negociantes de
antiguidades. Desde 1978, oitenta e poucos concessionários autorizados podem
legalmente adquirir artefatos comprando-os apenas de antigas coleções ou impor­
tando-os de outros países. Estão proibidos de fazer negócios com artefatos escavados
clandestinamente e de forma ilegal. Contudo, segundo o diretor da unidade de pre­
venção contra roubo, Avni Ganor, “90 por cento do que se oferece no mercado vem
de túmulos recentemente dilapidados”. Quando o Departamento de Antiguidades
de Israel suspeita ou toma conhecimento de que determinado artefato foi roubado,
pode confiscá-lo, especialmente se tiver valor nacional ou histórico.

Ética. Os colecionadores de antiguidades são servidos por negociantes. Os com­


pradores atraem os vendedores, e a procura cria as mercadorias. Moedas, lâmpadas
ou potes comprados na antiga cidade de Jerusalém por turistas (pretensamente
descobertos antes de 1978 e legalmente obtidos), bem como estátuas, mosaicos
ou ossuários (igualmente descobertos antes dessa data, segundo seus vendedores)
acabam sendo adquiridos por preços exorbitantes nos antiquários de Los Angeles ou
Londres, gerando, em conseqüência, lucrativa indústria. Na verdade, naturalmente,
nem todos esses artefatos foram descobertos antes da promulgação quase universal
das leis contra a pilhagem. Como todos sabem, a atração por dinheiro fácil leva muita
gente a cavoucar debaixo de suas casas e nos fundos de seus jardins e, pior do que
isso, a seguir os passos dos arqueólogos para, de noite, ou depois das sessões de
escavação, procurar no sítio objetos de valor, com a ajuda de dectetores de metais
e picaretas. Por causa desse perigo, diversos arqueólogos empregam vigilantes ou
escondem seus achados.

A rqueólogos. Eis a seguir alguns exemplos do que se pode fazer para proteger
sítios e lidar com ladrões de túmulos, comerciantes e seus intermediários. Tratemos
em primeiro lugar, dos arqueólogos. Em 1987, achou-se num chão de mosaico em
Séforis, na Galiléia, um belíssimo retrato de mulher. Os escavadores, sabendo que
um medalhão fora recortado de outro mosaico de um parque nacional das redondezas
e roubado, cobriram a figura com folhas e areia para dificultar a ação dos ladrões.
Na temporada seguinte, estudantes voluntários passaram uma semana reescavando
0 local. Em 2000 um jarro foi encontrado entre camadas da Idade do Ferro em Ein
Zippori no norte de Israel. Um dos estudantes e um dos diretores da expedição
montaram guarda durante o dia e dormiram de noite perto do lugar. O diretor não
estava preocupado em proteger o vaso por causa de seu valor, mas em conservá-lo
in situ, mantendo-o na camada onde fora achado para examinar seu conteúdo e o
contexto original. No dia seguinte, a meticulosa escavação mostrou para que servira
0 jarro e a qual camada pertencia, determinando se fora usado para guardar grãos ou
água, ou para o sepultamento de uma criança. Esse jarro nos lembra da importância
do contexto para fornecer ao arqueólogo informações sobre o mundo antigo, coisa
que não seria possível apenas com o manuseio de peças isoladas.

Inspetores. Em maio de 1998 a unidade para a prevenção de roubos do Departa­


mento de Antiguidades de Israel abordou um navio no porto de Ashdod para impedir
que contrabandistas embarcassem uma pedra de quase 500 libras pertencente à
Igreja da Natividade em Belém. A pedra encaixotada e endereçada destinava-se a
importante galeria de antiguidades em Strasbourg, na França. Em dezembro de 1999,
um morador da área de Hebron foi surpreendido ao tentar vender grande coleção de
artefatos roubados para um negociante autorizado em Jafa. Os agentes confiscaram
mais de setecentos itens roubados de túmulos dos arredores de Jerusalém, incluin­
do pontas de lança, jóias de ouro, estátuas de mármore, bem como moedas raras de
prata cunhadas durante a primeira revolta judaica contra Roma quando o Templo de
Jerusalém fora destruído. Essas moedas chegaram a valer cerca de 250 mil dólares
nas casas de leilão. Enquanto o ladrão passou dois anos na prisão, o negociante nada
sofreu e os clientes potenciais mostraram-se frustrados.

Colecionar itens como o ossuário Tiago-José-Jesus não é tarefa agradável. Não


se trata de hobby como colecionar selos ou prensar folhas e flores dentro de livros.
Temos certeza disso. Agora que o ossuário foi segurado em dois milhões de dólares,
gangues de ladrões de túmulos, semiprofissionais, redobram esforços e começam
agora a escavar pelos arredores de Jerusalém e nos campos da Judéia; falsificadores
desenham em seus ateliês os nomes de Pedro, João, Estêvão, Judas ou qualquer
outro santo ou mártir cristãos que lhes venham à memória, para reproduzi-los em
caixas de pedra, antigas e novas.

Ciência. Nossas reservas sobre coleções de antiguidades não são apenas de ordem
legal ou moral, mas também intelectual. Colecionar sempre depende do desejo pes­
soal de possuir coisas de valor artístico ou histórico vindas da antiguidade. Da mesma
forma, nossas dúvidas a respeito da cobertura da mídia tem a ver com a ênfase que
ela dá aos aspectos esteticamente agradáveis dos achados ou a descobertas que lhes
parecem responder a questões complexas com simples sim ou não. Será que esta
escavação prova que a Bíblia é falsa? Ou, pelo contrário, o artefato mostra que ela
é verdadeira? Será que o ossuário Tiago-José-Jesus está de acordo com a narrativa
bíblica? Trata-se de pontos de vista conceitualmente imaturos e sensacionalmente
anunciados pertencentes à primeira metade do século vinte que não fazem mais
sentido nos diálogos arqueológicos sérios.

Depois que se tornou pública a descoberta do ossuário de Tiago, que podemos


pensar a respeito das informações dadas pelos arqueólogos sobre esse tipo de des­
coberta? Nossas indagações desdobram-se da seguinte maneira;

• são todos tipicamente judeus?

• estavam em túmulos sobre colunas?

• eram usados em Jerusalém e ao redor?

• surgiram por volta do ano 20 d.C.?

• sua origem coincide com obras de pedra no Monte do Templo de Herodes?

• substituíam a prática de depositar os ossos em covas?


• não eram usados apenas para sepultamentos de indivíduos mas continham
esqueletos de diversas pessoas?

• deixaram de ser usados quase totalmente depois dos anos 70 d.C.?

• seu uso, porém, continuou modestamente na Galiléia até o segundo sé­


culo?

Nenhuma dessas informações é mencionada nos textos literários antigos; só


sabemos a seu respeito graças ao trabalho meticuloso, cooperativo e cuidadoso
dos arqueólogos do século passado. Sabemos dessas coisas porque muitos sítios
foram escrupulosamente escavados. Quando câmaras funerárias são descobertas,
os arqueólogos profissionais fotografam os ossuários in situ, antes de removê-los,
registrá-los e armazená-los para depois oferecê-los a diversos outros especialistas
para análise. Os artefatos encontrados ao redor como potes, lamparinas e vasos de
óleo para unção são numerados e mapeados; em seguida outros fragmentos de ma­
terial presentes na câmara são removidos camada por camada e analisados, para
determinar se pertenciam a lanças, moedas, ossos entre outros objetos. São também
catalogados e numerados em livros apropriados para esse fim. Finalmente, antro­
pólogos forenses examinam os ossos para obter informações demográficas antes de
devolvê-los às urnas.

Depois da publicação desses dados, qualquer estudioso pode compilá-los e


analisá-los levando em consideração os diversos desenvolvimentos cronológicos
e geográficos, bem como suas variações. Segue-se o diálogo entre os estudiosos,
às vezes bastante controvertido, até que se alcance certo consenso, talvez aberto a
modificações em face da publicação de novas descobertas. Esse consenso poderá
ser discutido por especialistas que trabalham na Grécia, em Roma, na Turquia e no
Egito.

O problema intelectual com a caixa de Tiago e com sua “descoberta” é que o


processo arqueológico ficou sujeito a dúvidas, enquanto sua apresentação ao público
reduziu-se ao arbítrio da fé contra a descrença. A tragédia não é que a urna está agora
rachada, mas que a própria descoberta dela já estava rachada desde o começo.

O irmão de Jesus
Se tivéssemos apenas os escritos do historiador judeu do primeiro século Josefo,
saberíamos a respeito de João Batista, Jesus, o Cristo, e Tiago, seu irmão, mas nada,
por exemplo, sobre Pedro ou Paulo. Se calcularmos a quantidade de espaço dado a
cada um deles, o resultado será este: Tiago ocupa 27 linhas escritas em grego na obra
Antiguidades judaicas 20.199-203; João Batista, 24 em 18.116-119 e, finalmente, Jesus,
apenas 13 em 18.63-64. Em outras palavras, Tiago ocupa duas vezes o espaço de seu
irmão, Jesus (mesmo com acréscimos posteriores sobre este último). Se, portanto,
imaginássemos a descoberta de um túmulo com a tríade que estamos considerando,
Tiago ocuparia o primeiro lugar. Agora que se encontrou um ossuário que talvez
tenha contido os ossos de Tiago, o irmão, que sabemos a respeito dele? Além disso,
de que maneira avaliamos os vários e competitivos textos cristãos primitivos a seu
respeito? O arqueólogo distingue as camadas no chão e procura indicações na for­
ma dos artefatos. Semelhantemente, o exegeta deve distinguir as diversas camadas
presentes no texto e procurar pistas a respeito dos propósitos das tradições.

Identidade

Não importando o nome semita Ya‘akov, em grego Jacobus e em latim Jacomus


— traduzidos em nossa língua por Jacó ou Tiago — , precisamos distinguir cuidado­
samente dois nomes entre diversos outros no Novo Testamento. São estes:

Tiago, filho de Zebedeu, irmão de João

Tiago, filho de José, irmão de Jesus

Ao fmal do primeiro século d.C., o escritor do evangelho de Lucas registra no


segundo volume. Atos dos Apóstolos, que o governador romano da Palestina, He­
rodes Agripa L executara “Tiago, irmão de João” (At 12,2). Nesse evangelho, Tiago
e João são identificados como “filhos de Zebedeu” (Lc 5 ,1 0 ).-Agripa, ao mesmo
tempo em 41 d.C., havia também aprisionado Pedro, que, quando escapou, disse,
segundo Atos 12,17: “Anunciai isso a Tiago”, certamente não ao recém-executado
mas a outro com o mesmo nome. Lucas nunca identifica este segundo Tiago, mas
sua autoridade ressalta como recipiente dessa mensagem. Concluímos que seja o
mesmo Tiago que mais tarde agiria com autoridade em Atos 15,13 e 2 1 ,1 8 . Além
disso, 0 evangelho anterior, de Marcos, mencionava um certo Tiago, em primeiro
lugar entre os quatro irmãos de Jesus (Mc 6,3), e Mateus 13,55 o corrobora, embora
Lucas nada diga a respeito. Resumindo, sabemos por meio de Lucas que havia um
segundo Tiago muito importante, mas nunca faz alusão ao Tiago irmão de Jesus.

Por outro lado, nenhuma das cartas dePaulo no Novo Testamento datadas dos
anos 40 e 50 menciona Tiago, filho de Zebedeu, irmão de João. Mas em 1Coríntios
15,5-7, Paulo relata aparições do ressuscitado “a Cefas [nome semítico para Pedro],
e, depois, aos Doze [...]; posteriormente [...] a Tiago, e, depois, a todos os apósto­
los”. Observemos, de passagem, que os Doze representavam um grupo menor no
círculo mais amplo dos apóstolos — Paulo não delimita o número dos apóstolos.
Em Gálatas 1,19, Paulo descreve sua primeira visita a Cefas em Jerusalém e escreve:
“Não vi nenhum outro apóstolo, mas somente Tiago, o irmão do Senhor”. Daí para
a frente, em Gálatas 2,9, cita “Tiago, Cefas e João, tidos como colunas” da comu­
nidade de Jerusalém e, finalmente, em 2,12 menciona “alguns vindos da parte de
Tiago” para Antioquia. Concluímos que o Tiago de Atos dos Apóstolos, de Lucas,
é 0 mesmo das primeiras cartas de Paulo, a saber, o irmão de Jesus. Esses textos
estabelecem, de fato, a identidade e a autoridade. A seção seguinte confirma o que
estamos dizendo.

Autoridade

1 Coríntios 15. No começo desse capítulo Paulo lista as aparições tradicionais


do Senhor ressuscitado. Mas 1 Coríntios 15,5-7 menciona, como notamos acima,
que ele apareceu a “Cefas [...], aos doze [...], a Tiago e a todos os apóstolos”. Mas
antes da lista abrangente e consecutiva de Paulo, será que as duas sentenças não
representam tradições diferentes ou, antes, versões discordantes da mesma tradi­
ção? Em primeiro lugar, quem recebia a aparição do ressuscitado era considerado
primeiro em autoridade. Em outras palavras, para algumas comunidades Pedro era
o “primeiro”, mas para outras era Tiago.

Evangelho de Tomé. O original deste evangelho data da segunda metade do


primeiro século. E independente dos quatro evangelhos do Novo Testamento e foi
descoberto entre os Códices de Nag Hammadi, em 1945, no Egito. Como o título
indica, apresenta-se sob a autoridade do apóstolo conhecido desde João 20 como o
apóstolo da dúvida. Mas Tiago, chamado aqui de “o Justo”, parece demonstrar certa
autoridade anterior a Tomé, segundo o dito 12:

Os discípulos disseram a Jesus: Sabemos que vais partir; quem


será 0 maior entre nós? Jesus respondeu: Não importando aonde
vocês forem, vocês irão a Tiago, o Justo, por quem os céus e a terra
vieram a existir.

Sem nenhuma rejeição desse tão alto louvor, o dito seguinte, de número 13,
estabelece a autoridade de Tomé e a ressalta acima da de Pedro e de Mateus. É pro­
vável que a autoridade de Tiago não tenha sido rejeitada mas substituída pela de
Tomé (depois da morte de Tiago?).

Evangelho dos hebreus. Trata-se de um evangelho para os judeus de língua


grega residentes provavelmente em Alexandria, independente dos nossos quatro
evangelhos do Novo Testamento, conhecido apenas por citações da patrística e não
de fragmentos de manuscritos. A obra teria sido escrita entre o fmal do primeiro
século e começos do segundo. Na sétima citação, a importância da autoridade de
Tiago fundamenta-se na reivindicação de que ele fora o primeiro a quem o Senhor
ressurgido aparecera:

E quando o Senhor entregou o lençol de linho ao servo do sacerdo­


te, dirigiu-se a Tiago e apareceu a ele. Pois Tiago havia jurado que
não mais comeria o pão daquela hora em que bebera do cálice do
Senhor até que o visse ressuscitado dentre os mortos. Em seguida o
Senhor disse; “Tragam uma mesa e pão!”. Imediatamente ele tomou
0 pão, abençoou-o, partiu-o e o deu a Tiago, o Justo, dizendo-lhe:
“Meu irmão, come deste pão, pois o Filho do homem ressuscitou
dentre os mortos”.

Esses textos estão de acordo com o testemunho de Atos dos Apóstolos e com a
carta de Paulo aos Gálatas a respeito da autoridade de Tiago. De fato, sua importância
foi atestada nas primeiras camadas da tradição cristã, desde a primeira, de Paulo,
passando pelo livro canônico de Atos e pelos evangelhos não canônicos de Tomé e
dos hebreus, até os últimos escritos atribuídos a ele nos Códices de Nag Hammadi
como 0 Apocryphon de Tiago ou o Primeiro e Segundo Apocalipse de Tiago. Tais textos não
refletem a teologia do Tiago histórico mas, certamente, confirmam a autoridade que
ele possuía tanto geográfica como cronologicamente na teologia cristã primitiva.

Martírio

Jo sefo . Em 62 d.C. durante o interregno administrativo entre a morte de Festo,


governador romano da Judéia, e seu substituto. Albino, o rei Herodes Agripa II de­
mitiu o sumo sacerdote José, filho de Simão, e indicou em seu lugar Ananus, filho
de Ananus. A ohra. Antiguidades judaicas 20.200 descreve o que aconteceu:

Ananus pensava que a oportunidade lhe era favorável, porque Festo


havia morrido e Albino ainda estava no cargo. Reuniu, então, os
juizes do sinédrio, trazendo a eles certo homem chamado Tiago,
irmão de Jesus, chamado o Cristo, entre outros. Acusou-os de
transgressão da lei e determinou que fossem apedrejados. Esse ato
ofendeu os habitantes da cidade que eram considerados justos e
observadores da lei.

Essas pessoas “ofendidas” reclamaram tanto a Herodes Agripa II como a Albino


e obtiveram a deposição de Ananus depois de estar no cargo por apenas três meses.
Trata-se de uma história realmente extraordinária.
Em primeiro lugar, o jovem Ananus “seguia a escola dos saduceus”, segundo
Josefo, e a expressão “considerados justos e observadores da lei” referia-se prova­
velmente aos fariseus. Em segundo lugar, a família de Anás, ou Ananus, já havia
produzido oito sumos sacerdotes (ele mesmo, cinco filhos, um genro e um neto),
cumulativamente, ao longo de quarenta anos entre 6 e 66 d.C. Tratava-se, em outras
palavras, de uma família muito importante de sumos sacerdotes. Em terceiro lugar,
Tiago vivera em Jerusalém pelo menos por trinta anos sem ter sofrido nenhuma per­
seguição anticristã, e sua execução acabou derrubando um sumo sacerdote ananita.
Tiago não era respeitado apenas pelos judeo-cristãos, mas também pelos outros e
presumivelmente pelos judeus fariseus em Jerusalém.
Hegesipo. O historiador cristão do quarto século, Eusébio de Cesaréia, cita a
terrível narrativa da execução de Tiago, contada por Josefo:

Assim mataram-no, aproveitando a oportunidade ocasionada pela


ausência de governo, pois naqueles dias Festo havia morrido na
Judéia, deixando a província sem governador nem procurador.

Mas acrescenta a versão teologicamente carregada e ficcionalmente expandida do


escritor cristão do segundo século Hegesipo. Esse autor destaca quatro elementos a
respeito de Tiago. Em primeiro lugar, insiste em sua santidade ascética, que o levou
a uma vida de abstinência, chamando-o de Tiago, o Justo. Em segundo lugar, men­
ciona 0 grande êxito que tinha para ganhar convertidos ao judaísmo cristão, de tal
maneira que até mesmo “muitos pertencentes às classes governantes acreditaram”.
Em terceiro lugar, “os escribas e fariseus” começaram a temer que “todas as pessoas”
viessem a acreditar e pediram que Tiago falasse contra Jesus do parapeito do Templo
na época da Páscoa. Em quarto lugar, Tiago fez exatamente o contrário, “levando
muitos a se convencer e a se gloriar em seu testemunho, clamando: ‘Hosana ao filho
de Davi’”. Finalmente, portanto,

os escribas e fariseus [...] vieram e destituíram o justo [...] e co­


meçaram a apedrejá-lo, mas, apesar de ter sido derrubado, ainda
estava vivo [...] [até que] um deles, um pisoeiro, tomou o cassetete
com que batia nos tecidos, e com ele golpeou a cabeça do justo. Foi
assim 0 seu martírio.

Embora Hegesipo tenha usado elementos de ficção para descrever teologicamente


essa execução, pelo menos sabia que Tiago havia sido apedrejado pelas autoridades
judaicas. Da mesma forma falava corretamente a respeito da conhecida santidade de
Tiago, embora a descrevesse com exagerado entusiasmo. Esse fato explica por que a
execução de Tiago acabou derrubando um sumo sacerdote da casa de Ananias. Sua
reputação era tida em alta estima entre judeus piedosos não cristãos (fariseus?).
Observemos, de passagem, que a narrativa fictícia de Hegesipo culpa os “escribas
e fariseus” pela morte de Tiago. No entanto, o relato histórico de Josefo situa os
seguidores da lei (fariseus?) do lado de Tiago e um sumo sacerdote saduceu contra
ele. Essa história corresponde perfeitamente à tensão existente entre fariseus e sa­
duceus no judaísmo e nos relembra, novamente, da oposição mortal ao cristianismo
judaico presente na casa de Anás.

Oposição

o mais importante sobre Tiago não é, contudo, a autoridade que tinha no cristia­
nismo primitivo. Nem mesmo seu martírio, que, como o de seu irmão, resultou da
oposição aos sumos sacerdotes. É sua oposição a Paulo. Já se nota o fato na epístola
aos Gálatas. O livro de Atos nada fala a respeito, coisa que nos impede de harmoni­
zar e combinar Paulo com Lucas nem fundir essas duas camadas distintas numa só,
distinguindo o primeiro Paulo do segundo Lucas. Por outro lado, o romance cristão
conhecido como Reconhecimentos clementinos, do segundo século, aumenta a ficção
e a eleva fantasticamente, constituindo-se em outra camada exegética. Levanta-se,
assim, importante questão a respeito das escavações textuais a respeito de Jesus.
Que acontece quando consideramos Jesus a partir de seu irmão Tiago e não de Paulo,
ou, pelos menos, dos dois?

Paulo e Lucas. Lucas e Paulo concordavam que por volta do ano 50 d.C. de­
batia-se em Jerusalém a respeito da circuncisão. Tratava-se de assunto crucial e
importante. Estava em jogo se pagãos convertidos ao cristianismo deveriam ser
circuncidados como os judeus, que já haviam passado pelo ritual antes de aceitar
a fé cristã. Valiam-se das fontes: a exigência da circuncisão dos pagãos convertidos
vinha de “alguns da Judéia”, segundo Lucas em Atos 15,1, ou de “falsos irmãos”,
como escreve Paulo em Gálatas 2,4. A diferença indica, certamente, tonalidades
discordantes: para Lucas tudo é pacífico e faz parte do consenso; para Paulo, trata-
se de tensão polêmica. Concluem, mais tarde, pela posição negativa, isto é, que
os pagãos convertidos não precisam se circuncidar. Finalmente, também afirmam
que Tiago ocupava importante lugar no debte. Lucas registra que Pedro, Barnabé e
Paulo falaram em primeiro lugar e Tiago, depois. Mas foi Tiago que concluiu: “Eis
por que eu julgo que não se devem molestar os pagãos que se convertem a Deus”,
obrigando-os à circuncisão (At 15,19). Paulo afirma em Gálatas 2,9: “E conhecendo
a graça a mim concedida, Tiago, Cefas e João, tidos como colunas, estenderam-nos
a mão, a mim e a Barnabé, em sinal de comunhão: nós pregaríamos aos gentios e
eles para a circuncisão”. Mas, não obstante acordos gerais e valiosos, persistiam
discordâncias específicas e igualmente importantes.

Atos 15 versus G álatas 2. Em Atos 15, Lucas refere-se a um único debate, na


mesma época, em Jerusalém, que resultou na completa harmonia sobre o primeiro
tema (os pagãos convertidos não precisavam ser circuncidados), bem como sobre
0 outro (todos os convertidos deveriam observar a dieta kosher). No capítulo 2 da
epístola aos Gálatas, escrita antes do texto de Lucas, Paulo menciona dois debates em
duas épocas diferentes, emjerusalém (2,1-10) e Antioquia (2,11-16), com resultados
harmoniosos no primeiro caso mas sério desacordo no segundo.

Flavia, na verdade, como já vimos, concordância geral (com exceção de “alguns


da Judéia”, de Lucas, e dos “falsos irmãos”, de Paulo). Essa posição seria aceitável a
alguém como Tiago, porque certo segmento da tradição judaica afirmava que Deus
reuniria os gentios com os judeus em plena comunhão no momento ideal utópico ou
escatológico do futuro quando Deus, finalmente, transformaria a terra no lugar da
justiça divina. Os gentios não se converteriam ao judaísmo, com a prática da circunci­
são, por exemplo, mas ao Deus do mundo inteiro. Os judeus e os gentios celebrariam
juntos com Deus na terra pura, justa, pacífica e frutífera. Segundo essa visão, a terra
violenta seria justificada e pacificada não por meio da grande batalha fmal no Monte
Megido (Armagedom), quando os maus seriam destruídos, mas no grande banquete
fmal no Monte Sião com a conversão dos ímpios. Relembremos, agora, as imagens
rapsódicas de Miquéias 4,1-4 e de Isaías 2,2-4 sobre a paz cósmica:

E acontecerá, no fim dos dias, que a montanha da casa de lahweh


estará firme no cume das montanhas e se elevará acima das colinas.
Então, povos afluirão para ela, virão numerosas nações e dirão: “Vin­
de, subamos a montanha de lahweh, para a Casa do Deus de Jacó.
Ele nos ensinará os seus caminhos e caminharemos pelas suas vias.
Porque de Sião sairá a Lei, e de Jerusalém a palavra de lahweh”. Ele
julgará entre povos numerosos e será o árbitro de nações poderosas.
Eles forjarão de suas espadas arados, e de suas lanças, podadeiras.
Uma nação não levantará a espada contra outra nação e não se
prepararão mais para a guerra. Cada qual se sentará debaixo de sua
vinha e debaixo de sua figueira, e ninguém o inquietará, porque a
boca de lahweh dos Exércitos falou!

Essa paz cósmica será celebrada num banquete universal hospedado por Deus
em Jerusalém, segundo Isaías 25,6-8:

lahweh dos Exércitos prepara para todos os povos, sobre esta


montanha, um Banquete de manjares suculentos, um banquete de
vinhos finos, de manjares recheados de tutano, de vinhos depura­
dos. Destruiu neste monte o véu que envolvia todos os povos e a
cortina que se estendia sobre todas as nações; destruiu a morte para
sempre. 0 Senhor lahweh enxugou a lágrima de todos os rostos;
ele há de remover o opróbrio do seu povo de sobre toda a terra,
porque lahweh o disse.

No contexto e tradição pacifista do apocaliptismo escatológico, Tiago e todos


os outros (com exceção de alguns dissidentes indecisos?) concordavam que não se
devia exigir a circuncisão dos pagãos convertidos ao cristianismo judaico.

G álatas 2 ,1 1 -1 7 . Foi, porém, no segundo caso que Lucas e Paulo discordaram


profunda e diretamente. Paulo situa o segundo debate não em Jerusalém mas em
Antioquia. Estava em jogo no presente e para o futuro a unidade da nova comunidade. Haveria
duas alas separadas, desiguais e talvez até inimigas entre si, na nova comunidade
cristã; uma judaica, observando os regulamentos kosher, e outra de origem pagã,
livre dessa obrigação? A questão tornava-se aguda quando judeus e gentios comiam
juntos na mesma comunidade e precisavam decidir o caminho a tomar. Ou todos
observavam as regras kosher, com a anuência dos cristãos gentios, ou as evitavam,
com 0 assentimento dos judeo-cristãos. O problema surgia, naturalmente, apenas
nas assembléias mistas.
O segundo tema não era mais a circuncisão. O problema já havia sido superado
por Tiago emjerusalém e não havia voltado à consideração. Tampouco referia-se à
exigência da dieta kosher para os pagãos cristãos em, por exemplo, Efeso, Corinto
ou Roma. 0 problema concentrava-se apenas em relação a assembléias mistas, quando judeus
e pagãos convertidos participavam juntos em assembléias religiosas. Paulo relata os termos
do debate em Antioquia em Gálatas 2,11-16:

Mas quando Cefas veio a Antioquia, eu o enfrentei abertamente,


porque ele se tinha tornado digno de censura. Com efeito, antes de
chegarem alguns vindos da parte de Tiago, ele comia com os gen­
tios, mas quando chegaram, ele se subtraía e andava retraído, com
medo dos circuncisos. Os outros judeus começaram também a fingir
junto com ele, a tal ponto que até Barnabé se desencaminhou pela
sua hipocrisia. Mas quando vi que não andavam retamente segundo
a verdade do evangelho, eu disse a Cefas diante de todos: “Se tu,
sendo judeu, vives à maneira dos gentios e não dos judeus, por que
forças O S gentios a viverem como judeus?”. Nós somos judeus de
nascimento e não pecadores da gentilidade; sabendo, entretanto,
que o homem não se justifica pelas obras da Lei mas pela/é em Jesus
Cristo, n ós também cremos em Cristo Jesus para sermos justificados
pela/é em Cristo e não pelas obras da Lei, porque pelas obras da Lei
ninguém será justificado.

Embora inúmeros intérpretes, ao longo de séculos de estudo, suponham que


Paulo estava obviamente certo nesse debate, achamos, ao contrário, que estava
errado.

Em primeiro lugar, os convertidos do paganismo de maneira alguma se dispu­


nham a discutir a matéria. Tiago concordara com essa posição em Jerusalém. Sem
essa premissa o paganismo cristão teria nascido morto. Em segundo lugar, e apenas
secundariamente, seria matéria de discussão se a realização de refeições comuns
(eucaristia?) entre judeus e pagãos convertidos era necessária para manter a unidade
entre os observadores da dieta kosher e os outros? Em terceiro lugar, leiamos nova­
mente a acusação de Paulo contra Pedro. Interpretamos a sentença como afirmação
de que Pedro, cristão judeu, observava a solução não-kosher nas refeições comuns com
O S gentios. Aparentemente, era assim que agiam outros judeo-cristãos em Antioquia

(diversos, muitos, todos?). Mas agora concordavam com a exigência de Tiago para
a solução em favor da refeição kosher. Paulo condenou duas vezes, como hipocrisia,
a mudança de não-kosher para kosher para todos. Não foi registrada a resposta da
assembléia mas, certamente, teria sido esta: “Não, Paulo, não se trata de hipocrisia
mas apenas de cortesia”. Em quarto lugar, a questão era meramente pragmática,
tornando a argumentação irrelevante. Se Pedro e os outros acreditassem que kosher
fosse prática necessária para a salvação, não a teriam omitido tão facilmente.
A questão em Antioquia não difere fundamentalmente do que fazem Iioje
cristãos que observam todos os costumes judaicos quando comem com famílias
judaicas ou vão ao templo judaico para orar. Não se trata de Iiipocrisia mas de cor­
tesia ecumênica além de ser esforço em prol da unidade comunitária. Finalmente,
Paulo acrescenta três vezes à questão pragmática as “obras da lei” opondo-as à
“fé em Cristo”, também três vezes. A antítese paulina entre fé e obras poderia ser
justificada teologicamente em termos abstratos, mas perante a questão pragmática
em Antioquia tornava-se irrelevante no caso concreto. Alguém acreditaria que Tia­
go, Pedro e Barnabé, com todos os outros (com exceção de Paulo), teriam optado
pela justificação “pelas obras” em vez da “fé em Cristo”? A posição de Paulo (pelo
menos como consta em Gálatas) assemelhava-se a dar golpes no ar. Tiago, Pedro,
Barnabé e os outros que concordavam com eles estavam certos em Antioquia. Era
Paulo quem estava errado.
R om anos 15 e A tos 2 1 . 0 Novo Testamento nada indica a respeito da autoridade
de Tiago em Jerusalém . Nesse ponto, Paulo e Lucas diferem profundamente,
mas de maneira indireta. A unidade do grupo, antes da decisão sobre a circunci­
são, mas principalmente depois, tornara-se problema óbvio e fundamental. Paulo
bem o sabia. Foi por isso que se entusiasmou com a decisão de levantar fundos
entre os convertidos pagãos para os judeo-cristãos conhecidos como “os pobres”
em Jerusalém (comunidade como em Qumrã?). Depois que Tiago e as “colunas”
de Jerusalém aceitaram a dispensa da circuncisão para os pagãos convertidos, Paulo
confessa: “Nós, só nós devíamos lembrar dos pobres, o que, aliás, tenho procura­
do fazer com solicitude” (G1 2 ,1 0 ). Enquanto Paulo anunciou diversas vezes essa
coleta em suas cartas, Lucas nunca a mencionou em Atos. Há, porém, trechos nesse
livro que só fazem sentido se o autor (ou pelo menos suas fontes) soubesse disso
e subentendesse sua existência e operação.
Paulo discute os planos para a entrega da coleta aos fiéis de Jerusalém em Ro­
manos 15,25-27 e 30,31. Reconhece dois perigos que poderiam atrapalhar a função
desse dinheiro enquanto processo unificador de judeo-cristãos e gentios:

Mas agora eu vou a Jerusalém, a serviço dos santos. A Macedônia


e a Acaia houveram por bem fazer uma coleta em prol dos santos
de Jerusalém que estão na pobreza. Houveram por bem, é verdade,
mas eles lhes eram devedores: porque se os gentios participaram
dos seus bens espirituais, eles devem, por sua vez, servi-los nas
coisas temporais [...]. Contudo, eu vos peço, irmãos, por nosso
Senhor Jesus Cristo, e pelo amor do Espírito, que luteis comigo, nas
orações que fazeis a Deus por mim, a fim de que eu possa escapar
das mãos dos infiéis da Judéia, e para que o meu serviço em favor
de Jerusalém seja bem aceito pelos santos.

A oposição dos judeus não cristãos representava perigo externo; mas a dos ju-
deo-cristãos, igual perigo, porém interno. As duas coisas aconteceram. Sabendo que
aconteceriam, Paulo acompanhou a coleta em vez de mandá-la por representantes da
comunidade. Para ele, a unidade das duas alas da comunidade era suficientemente
importante para arriscar o próprio martírio. Mas em Atos 21,17-25, embora Lucas
não mencione a coleta, conta como os dois temores de Paulo acabaram se realizan­
do em Jerusalém. Tiago e a comunidade judaica cristã impuseram condições para
a aceitação da coleta e, quando Paulo as aceitou, foi atacado no Templo por judeus
não cristãos. Vejamos quais foram as condições;

Ao chegarmos a Jerusalém, receberam-nos os irmãos com alegria.


No dia seguinte Paulo foi conosco à casa de Tiago, onde todos os
anciãos se reuniram. Depois de havê-lo saudado, começou a expor
minuciosamente o que Deus havia feito entre os gentios por seu
ministério. E eles glorificavam a Deus pelo que ouviam. Disseram-
lhe, então; “Vês, irmão, como abraçaram a fé milhares de judeus e
são todos zelosos partidários da Lei. Ora, ouviram dizer de ti que
ensinas os judeus dispersos no meio dos gentios a apostatarem de
Moisés, dizendo-lhes que não circuncidem mais seus filhos e não
sigam os costumes. Que fazer então? Certamente, a multidão há
de se aglomerar ao saber que chegaste. Faze, pois, o que te vamos
dizer. Temos aqui quatro homens que fizeram um voto. Traze-os,
purifica-te com eles, e encarrega-te das despesas para que eles
possam rapar a cabeça. Assim todos saberão que são falsas as no­
tícias a teu respeito, mas que te comportas como observante da
Lei. Quanto aos gentios que abraçaram a fé, temos-lhes escrito as
nossas decisões; preservarem-se das carnes imoladas aos ídolos, do
sangue, das carnes sufocadas e das uniões ilegítimas”.

Esse texto é citado para indicar mais uma vez a autoridade de Tiago emjerusalém
e as constantes tensões entre Tiago e Paulo, cuidadosamente omitidas por Lucas em
Atos 21 como anteriormente em Atos 15. Paulo enfrentava terrível dilema. Uma das
alternativas consistia em não aceitar a condição de Tiago, aceitar a recusa da coleta
e reconhecer que o cristianismo estava dividido. A outra era aceitar a condição de
Tiago, entregar o dinheiro da coleta e dar ênfase na unidade, arriscando-se a ser
acusado da mesma hipocrisia que anteriormente atribuíra a Pedro.

Epístola de Tiago. O “Tiago” desta epístola do Novo Testamento não foi clara­
mente identificado, mas é quase certo que seja o mesmo do ossuário, Tiago, o Justo,
filho dejosé, irmão de Jesus. A “Epístola de” pode ser tanto de sua autoria, represen­
tando desenvolvimento de seu ensino como até mesmo atribuição fictícia. Cada uma
dessas posições é defensável, embora pouco provável. Por enquanto, ressaltamos o
seguinte; se imaginarmos a teologia de Tiago a partir de cuidadoso exame das camadas
componentes de Atos de Lucas, Gálatas de Paulo e das Antiguidades judaicas de Josefo,
chegaremos facilmente à conclusão de que o conteúdo da epístola lhe pertence.

Paulo insistia em Gálatas 2,11-17, como acabamos de ver, na justificação pela fé


em Cristo e não pelas obras da lei, argumento totalmente irrelevante ao problema
pragmático em Antioquia, que procurava manter a unidade mesmo sem obter a
justificação. Tiago não responde no capítulo 2, versículos 14 a 19, que a justificação
vem das obras e não da fé ou dela sozinha (teria algum judeu jamais contrariado
essas posições?), mas ensina que vem da fé e das obras ao mesmo tempo, posto que
a fé opera por meio das obras, manifesta-se nelas e não se separa delas.

Meus irmãos, se alguém disser que tem fé, mas não tem obras,
que lhe aproveitará isso? Acaso a fé poderá salvá-lo? Se um irmão
ou irmã não tiverem o que vestir e lhes faltar o necessário para a
subsistência de cada dia, e alguém dentre vós lhes disser; “Ide em
paz, aquecei-vos e saciai-vos”, e não lhes der o necessário para a
sua manutenção, que proveito haverá nisso? Assim também a fé,
se não tiver obras, será morta em seu isolamento. De fato, alguém
poderá objetar-lhe; “Tu tens fé e eu tenho obras”. Mostra-me a tua
fé sem as obras e eu te mostrarei a fé pelas minhas obras. Tu crês
que há um só Deus? Ótimo! Lembra-te, porém, que também os
demônios crêem, mas estremecem.

A fé e as obras são como dois lados da mesma moeda, distinguíveis mas insepa­
ráveis; dialética, não dicotomia. Pode-se imaginar que Tiago e Paulo queriam dizer
coisas diferentes com os mesmos termos, fé e obras, por causa do uso comum que
faziam do modelo abraâmico e pela citação que faziam de Gênesis 15,6 (“Abrão creu
em lahweh, e lhe foi tido em conta de justiça”), Tiago 2,23, Gálatas 3,6 e Romanos
4,3. Pode-se dizer, portanto, que Tiago 2,14-19 refere-se à posição anterior de Pau­
lo, mas nesse caso também Tiago e todos os citados em Gálatas 2,11-17 também
se situavam nesse passado. Precisamos, novamente, imaginar quão diferente teria
sido a situação em Antioquia se em lugar de Paulo (e de todos os demais) Tiago
estivesse lá.

Reconhecim entos clem entinos, Esta fonte do segundo século encontra-se no


primeiro livro de um romance cristão do quarto século. Trata-se de outra versão da
história de Hegesipo com duas principais adições. A primeira conta que membros
individuais dos Doze falavam sobre Jesus ao povo e a Caifás no Templo na época da
Páscoa e que Tiago “subia” os degraus para dar seu testemunho. Falou durante uma
semana e persuadiu “seus ouvintes, incluindo o sumo sacerdote, de que deveriam
se batizar o quanto antes” (1.69.8). Em segundo lugar, seguiu-se terrível morticínio
para impedir a conversão geral. “Certo homem hostil” entrou no Templo e “começou
a matar [...]. Correu muito sangue. Muitos tentaram escapar, quando esse homem
atacou Tiago, jogando-o do alto das escadas para o chão. Como o considerou morto,
não se preocupou em lhe bater ainda mais” (1.70.1,6,8). Esse “homem hostil” nunca
foi identificado pelo nome, mas tudo indica que teria sido Paulo, pois “ele havia
recebido autoridade da parte do sumo sacerdote Caifás para perseguir todos os que
acreditassem em Jesus e viajassem a Damasco com suas cartas, a fim de conseguir a
ajuda dos descrentes para arruinar os fiéis” (1.71.4). Esse episódio procura relembrar
a descrição de Paulo em Atos 9,1-2.

O texto elabora três acusações sérias contra Paulo. A primeira é que, não obstante
sua intervenção, o povo e os sacerdotes estavam prestes a se converter ao cristia­
nismo. A outra é que ele mesmo havia matado e incitado outros a matar cristãos
no Templo. A última refere-se a Tiago. Esse escrito extremamente tendencioso e
totalmente difamatório, além de fictício, tinha conhecimento do martírio de Tiago
e consegue dizer e ao mesmo tempo não dizer que Paulo o matara. Nada mais
acrescenta a respeito de Tiago, de maneira que podemos facilmente presumir que
as afirrnações de Paulo eram corretas e que Tiago havia morrido, assassinado por
Paulo. E isso que o texto quer nos levar a crer.
Aparecem e se desenvolvem três temas principais sobre Tiago, o Justo de Jerusa­
lém, filho dejosé, irmão de Jesus. Transitam entre as diferentes camadas existentes
no Novo Testamento e fora dele. Nos dois casos, movimentam-se entre fato e ficção,
e história e teologia em trilhas de aceitação ou rejeição ideológicas. O primeiro tema,
sobre a autoridade de Tiago, aparece em 1 Coríntios 15,7, no Evangelho de Tomé 12
e no Evangelho dos hebreus 7. O segundo tema, a respeito do martírio de Tiago, vem
de Josefo a Hegesipo. O terceiro tema, que é a oposição entre Tiago e Paulo, está
ausente no livro de Atos, de Lucas, onde todos concordam com Tiago, mas aparece
na epístola aos Gálatas de Paulo, onde também todos concordam com Tiago, menos
Paulo. A oposição continua a respeito de fé e obras, e Abraão e Gênesis, na Epístola
de Tiago, e chega ao clímax em forma de ficção difamatória em Reconhecimentos
clementinos.

Quando estabelecemos cuidadosas distinções nessas camadas textuais e acen­


tuamos seus propósitos literários com clareza, percebemos que representam disputas
no cristianismo judaico envolvendo debates que se vão tornando agressivos entre
os seguidores de Tiago e de Paulo, mas nunca entre o cristianismo e o judaísmo. E
nesse contexto que examinamos Jesus neste livro. Ele era uma das opções em disputa
e luta no judaísmo contemporâneo no cadinho desse decisivo primeiro século.

Pedra e texto, arqueologia e exegese


Permanecem estas cinco questões a respeito do ossuário de Tiago. Será autên­
tico? E original a inscrição? Identifica-se a família? Essa descoberta é importante?
Teria sido ético o processo? A questão final é, na verdade, a primeira, a última e a
permanente. Espera-se que a publicidade na mídia e o entusiasmo popular sobre
o artefato despertem a consciência geral a respeito dos problemas legais, éticos e
históricos relacionados com peças arqueológicas de proveniência ignorada.

Talvez se consiga, com o tempo, responder razoavelmente às duas primeiras


questões acima de qualquer dúvida. A terceira é mais difícil. Se o ossuário for julgado
autêntico e a inscrição original, será que a família Tiago-José-Jesus é a mesma do
Novo Testamento? Dificilmente se terá certeza absoluta a respeito. No melhor dos
casos, usando a diferença entre a exigência de certidões civis, fora do âmbito crimi­
nal, poderíamos concluir que a preponderância das evidências indica uma resposta
positiva. Mas não seria mais do que argumento estatístico, boa probabilidade, a não
ser, naturalmente, que o túmulo fosse reencontrado e surgissem novas evidências.

Por enquanto, concedamos que o ossuário é o que reivindica o seu proprietário.


Naturalmente, tal afirmação terá de ser revista no futuro se o governo de Israel se
apoderar dele e produzir relatórios a respeito de sua autenticidade. Concedendo-
lhe, então, por enquanto, autenticidade, originalidade e até mesmo identidade,
qual seria sua importância? Afirmamos que esta questão se manterá mesmo se no
julgamento decisivo das três primeiras perguntas a resposta vier a ser negativa.
Objetos falsos podem também ensinar importantes lições e levantar sérias questões.
Nos termos deste livro, portanto, qual seria sua importância para a arqueologia e
para a exegese?

Em primeiro lugar, em relação à interação entre essas duas disciplinas, o ossuá­


rio é um símbolo condensado do processo todo. Que sentido poderia ter essa caixa
única, isolada, sem tudo o que a arqueologia conhece sobre os costumes funerários
primários e secundários dos judeus do primeiro século e sem as inúmeras outras
tumbas e ossuários descobertos e catalogados até agora? De que se trataria? Talvez
uma caixa antiga com algum material dentro dela? Sem o que sabemos a respeito
de Tiago, filho de José e irmão de Jesus, por meio do Novo Testamento e fora dele,
de fatos e ficção, história e lenda, a inscrição nada significaria. Talvez identificaria
0 proprietário da urna. Mas, levando em consideração tudo o que já se sabe por
meio da arqueologia e da exegese sobre ossuários e muitos Tiagos, a descoberta
exemplifica de maneira notável a convergência disciplinar entre solo e evangelho,
pedra e texto.

Em segundo lugar, a respeito de arqueologia, notamos que o ossuário mostrava


graves rachaduras produzidas, talvez, no transporte entre Tel Aviv e Toronto. Mas,
de qualquer forma, tudo relacionado com sua descoberta já vinha rachado, como já
dissemos. Trata-se de um artefato isolado, de origem desconhecida, e qualquer coisa
que se diga sobre sua história pode ser mera invenção, na melhor das hipóteses, ou,
na pior, apenas autopromoção. Talvez o Departamento de Antiguidades de Israel
consiga traçar seu trajeto da fonte ao museu. Talvez, se for julgado autêntico e va­
lioso, venha a gerar missões de busca ou destruição nos antigos sítios mortuários
ao redor de Jerusalém. Tudo isso serve para ressaltar a diferença legal e moral entre,
de um lado, coleta de artefatos e roubo cultural e, do outro, busca controlada ou
arqueologia científica. O ossuário de Tiago é belo exemplo de como não se deve
descobrir seja o que for. Infelizmente, essa é sua maior importância arqueológica,
não importando qual venha a ser o julgamento fmal sobre sua validade.

Em terceiro lugar, sobre exegese, se a ênfase recai em Jesus, a descoberta não nos
diz nada que já não sabíamos nem pode mudar a interpretação do que já pensamos.
Se fosse absolutamente autêntica e identificável, poderia ser considerada prova ar­
queológica ao lado de evidências textuais pagãs, judaicas e cristãs primitivas de que
Jesus existira. Mas que outra coisa além disso? 0 Novo Testamento já havia afirmado
que Jesus era filho de José e irmão de Tiago. A inscrição repete essa informação.
Todos os que leram o texto que menciona José como pai de Jesus e Tiago, seu irmão,
lerão também a inscrição na pedra da mesma maneira. Por outro lado, os que lêem
que José era apenas pai adotivo de Jesus e que Tiago era primo de Jesus, sendo José
seu tio e ele seu sobrinho, lerão a pedra desse mesmo jeito. Nada mudará.

Que acontecerá se, em vez de focar exclusivamente em Jesus, mudássemos para


Jesus e Tiago? Ambos foram martirizados: Jesus por volta do ano 30 e Tiago em 62.
Mas pensemos nos contrastes. Jesus foi executado pelo sumo sacerdote Caifás e
pelo governador romano Pilatos. Não sofreram nenhuma conseqüência por causa
desse fato, embora tenham sido depostos por negligência no trabalho em 36-37 pela
autoridade romana. Tiago foi executado pelo sumo sacerdote Ananus II, que foi por
isso imediatamente deposto pelo rei judaico Agripa II e pelo procurador romano
Festo. Esses dois sumos sacerdotes, Caifás e Ananus, pertenciam à poderosa dinastia
ananita. Os dois diferentes martírios exigem muito cuidado para não nos apressarmos
em situar Jesus no judaísmo nem o judaísmo no Império Romano. Não se tratava do
cristianismo contra o judaísmo, mas de um debate intrajudaico no qual o judaísmo
cristão era apenas uma entre inúmeras outras opções do judaísmo do primeiro sé­
culo em busca de resposta da tradição antiga ao imperialismo contemporâneo. O
ossuário de Tiago, autêntico ou não, relembra-nos que a figura histórica de Tiago é
muito importante para entender o Jesus histórico. Como entendemos o Jesus histórico
quando se considera Tiago o guardador de seu irmão?

Finalmente, que aconteceria se acentuássemos apenas Tiago? Afinal, trata-se de


seu ossuário. As coisas mudariam pouco, mesmo se o ossuário viesse a ser julgado
falso no todo ou em partes. Que dizer a respeito do esquecido Tiago? E da oposi­
ção entre ele e Paulo? E se julgássemos que Tiago estava certo e Paulo errado em
Antioquia e daí para a frente? Até que ponto tudo isso mudaria a nossa maneira
de interpretar o cristianismo primitivo? A pergunta que persiste em nossos textos
e que é agora acentuada pela existência deste ossuário, principalmente neste livro,
é a seguinte; Como vemos o Jesus histórico quando se considera Tiago e não Paulo a sua
melhor continuação?
C a p ít u l o 2

CAMADAS SOBRE CAMADAS


SOBRE CAMADAS
A moderna Nazaré é uma próspera cidade de turismo e peregrinações. Conhe­
cida como 0 lar de Jesus, atrai gente de todo o mundo que quer ver o lugar onde
ele cresceu e aproveitar para comer o melhor falafel (bolinhos feitos com massa
de grão-de-bico frita) de Israel. Os visitantes pechincham com os vendedores,
mascateiam ninharias e objetos no mercado, enquanto os peregrinos dirigem-se
para a igreja querendo comemorar o lugar onde o arcanjo Gabriel revelou a Maria a
divina concepção de Jesus. Dentro do complexo moderno da igreja, sob a custódia
dos franciscanos, mosaicos contemporâneos de diversas partes do mundo repre­
sentam Maria e o menino Jesus com roupas nativas e com feições faciais do país
que os encomendou. Estão ao redor da austera e solene Basílica da Anunciação,
construída nos anos 1960 no topo de antiga gruta, supostamente onde Gabriel
falou com Maria. No interior da basílica, paredes de pedra e vitrais protegem o
canto harmonioso, a meditação silenciosa e o fragrante incenso, das cenas lá fora,
nem sempre serenas ou pacíficas.

Nazaré é uma cidade barulhenta, caótica e tumultuada, onde se misturam cristãos


palestinos e muçulmanos na grande cidade baixa, e judeus da Rússia, da Etiópia e
de outros lugares na cidade alta, chamada Nazeret Ilit. 0 que fora no passado mo­
delo de coexistência pacífica, desfigurou-se por causa da violência e de incêndios
criminosos com a quebra do processo de pacificação. Um ano antes da construção
da nova mesquita perto da Basílica da Anunciação surgiram tensões entre cristãos
e muçulmanos, exacerbadas por acusações contra o mau governo de Israel e por
protestos diários. O Ministério da Justiça de Israel acaba de construir um grande
edifício de vidro, metal e concreto para administrar julgamentos e alcançar vere­
dictos. A arquitetura moderna sobressai em cima de um morro de onde se vêem
os telhados da cidade baixa com suas antenas e receptores de imagens via satélite,
lavanderias a seco e tanques de água.

Britadeiras martelam e brocas provocam ruídos em canteiros de obras por todos


os lados, embora os novos mega-hotéis que esperavam ondas de visitantes depois da
peregrinação papal do ano 2000 estejam praticamente vazios agora. A visita de João
Paulo II estimulou a municipalidade a alocar fundos para a expansão e repavimentação
da avenida principal que vai até o centro de Nazaré, de tal maneira que onde o tráfe­
go de carros, e estacionamentos dos dois lados, utilizava duas faixas quase sempre
congestionadas passou agora para três, sem visíveis melhorias no trânsito.

A cidade moderna de Nazaré é um lugar especial que deve ser visto, cheirado e
experimentado. Seus sons e vistas são em parte do Oriente Médio, com convocações
à oração em árabe e cabeças masculinas cobertas por kefilas; em parte israelita, com
ônibus de turismo de forma ovóide, telefones celulares e solidéus; em parte européia
e japonesa, com táxis Mercedes e pickups Isuzu, franciscanos com hábitos marrons
e Fuji filmes; e em parte americana, com restaurantes Kentucky Fried Chicken e
rapazes com uniformes dos Lakers.

A Nazaré do século vinte e um contrasta vastamente com a do primeiro século.


Vinte séculos de história as separam e inúmeras camadas de resíduos do passado
acumularam-se no lugar. Vinte séculos de construção arquitetônica, de renovação e
de demolição acabaram obliterando o lugarejo judaico do primeiro século. Para se
ter uma visão da Nazaré de Jesus seria preciso atravessar diversas camadas que se
foram sobrepondo consecutivamente. Quanto mais perto chegamos, mais atenção
é preciso prestar à complexa formação de camadas. Quanto mais perto se chega do
primeiro século, mais dificilmente se consegue distinguir o antigo do moderno, mas
mais forte se faz a separação, e menos evidentes as mudanças que foram acontecen­
do entre os séculos que podem nos enganar e nos fazer pensar que pertenciam à
cidadezinha do primeiro século. A visão arqueológica da Nazaré do primeiro século
começa pelas últimas camadas não só porque é assim que a pá e a colher de pedreiro do
arqueólogo as expõem, mas também porque ajudam a delinear claramente o trabalho
que aí começa. Os depósitos tardios precisam ser detectados cuidadosamente, bem
como os fragmentos dos artefatos do primeiro século deteriorados pelo contexto. É
preciso avaliar ainda o impacto das estruturas superpostas sobre as camadas inferiores.
Para chegar à Nazaré do primeiro século é preciso discernir continuidades e desconti-
nuidades entre as camadas primitivas e as outras por meio de complexas escavações.
Começaremos, portanto, com o contexto mais abrangente da Galiléia percorrendo os
períodos históricos que moldaram suas características arqueológicas.
Período bizantino (da m etade do quarto século a o sétim o século d.C.). As camadas
estratigráficas deste período na Galiléia foram profundamente afetadas pela conversão
do Império Romano ao cristianismo pelo imperador Constantino, o Grande. Nos
séculos seguintes esse fato suscitou extraordinário fluxo de peregrinos, desenvol­
vimento financeiro e vinda de arquitetos que transformaram esse território judaico
na Terra Santa cristã com igrejas, santuários e mosteiros. A população judaica da
Galiléia respondeu com sinagogas artisticamente mais elaboradas em seus interio­
res. Mas 0 período foi caracterizado por visível declínio gradual na qualidade da
cultura material: as casas não foram tão bem construídas como antes e a cerâmica
local baixou de nível.

Período rom ano m édio e p osterior (do segundo século à m etade do quarto século
d.C.). As camadas destes períodos são caracterizadas pela incorporação da Galiléia
à província romana da Palestina. Depois de duas guerras judaicas contra Roma em
66-74 e 132-135, inúmeros refugiados da Judéia e de Jerusalém migraram para a
Galiléia enquanto Roma mantinha nos arredores suas legiões para prevenir revoltas.
Duas forças agiam nessas camadas: em primeiro lugar, o crescimento considerável
da população e o desenvolvimento das sinagogas em substituição do Templo em
segundo lugar, a política romana acelerou a urbanização para facilitar o controle e a
cobrança de impostos. Como resultado disso, surgiram edifícios públicos em áreas
muito grandes e se desenvolveu o comércio internacional.

Prim eiro período rom ano (da m etade do prim eiro século a.C. até o prim eiro século
d.C .). Este período foi dominado na terra judaica por Herodes, o Grande, respon­
sável pela construção do reino (37-4 a.C.), também chamado às vezes de “período
herodiano”. Seu filho, Herodes Antipas, urbanizou a Galiléia (4 a.C.-39 d.C.) e
introduziu a arquitetura greco-romana na construção de Séforis e Tiberíades. Mas
tanto aí como em outros lugares espalhava-se a cultura judaica da vida doméstica.
As cidades e as vilas tinham em comum a mesma arquitetura simples, mas se pro­
duzia cerâmica de boa qualidade em diversos fornos. Existem certas evidências de
itens de comércio e luxo nas cidades e algumas casas ricas em cidades pequenas.
No fmal do período, muitos sítios foram destruídos por ocasião da primeira revolta
judaica contra Roma.

Período helenístico tardio (do segundo século à m etade do prim eiro século a.C .). O
período helenístico tardio na Galiléia caracterizou-se por importante assentamento
judaico sob o poder dos governadores asmonianos (os chamados macabeus, com
0 restabelecimento de um reino judaico independente, governado de Jerusalém).
A maioria dos sítios romano-bizantinos da Galiléia se origina nessa época. Além
de pequenas vilas, diversos fortes militares asmonianos ajudaram a estabelecer e a
proteger o território judaico cercado de populações de gentios e de grandes cidades
pagãs e helenizadas. Nesse período, a população da Galiléia era muito espalhada e
de certa forma isolada. Havia muita terra para ser cultivada.

A reconstrução da Nazaré do primeiro século não é mera empresa arqueológica


limitada à busca de artefatos presentes nas outras camadas. Séculos de construção
arquitetônica, renovação e demolição foram acompanhados por outros de projetos
de construção intelectual — teológicos, dogmáticos e ideológicos — superpostos em
Jesus. Antes de poder imaginar a vida geral na Galiléia de Jesus e de tentar recons­
truir sua vida, é preciso desconstruir as modernas noções que foram projetadas no
passado. É preciso também levar em conta os preconceitos comuns das tendências
das classes altas presentes em fontes literárias, bem como asserções dogmáticas a
respeito de Jesus entre alguns teólogos cristãos. Mas podemos afirmar que a Naza­
ré do primeiro século era uma vila de camponeses que aderia ao judaísmo da época
orientado pelo Templo./«W5, portanto, era um camponês judeu.
De Nazaré pode sair algo de bom?
No evangelho de João, Natanael, antes de se tornar discípulo, pergunta com
ironia: “De Nazaré pode sair algo de bom?”, quando lhe anunciam que haviam en­
contrado “aquele de quem escreveram Moisés, na Lei, e os profetas: Jesus, o filho de
José, de Nazaré”. (1,45-46). Sua expressão, insultuosa, por certo, surpreende-nos,
tendo em vista que nos mostra que Nazaré era bem conhecida de todos. Mas fora
dos evangelhos e dos textos cristãos primitivos que dependem deles, não há citações
pré-constantinianas que se refiram à cidade. Nunca foi mencionada pelos rabinos
judaicos na Mixná nem no Talmude, mesmo citando sessenta e três outras cidades
da Galiléia. Josefo, historiador judeu e general na Galiléia durante a primeira revolta
judaica em 66-67 d.C., refere-se por nome a quarenta e cinco lugares, mas nunca
a Nazaré. O Antigo Testamento não a conheceu. E o catálogo bíblico das tribos de
Zebulon, que enumera quinze localidades na Baixa Galiléia, nas proximidades de
Nazaré, não a inclui 0 s 19,10-15). Era um lugar absolutamente insignificante.

4. Nazaré do século vinte e um


Nazaré, cidade de peregrinação cristã, estende-se hoje sobre as ruínas do \ilarejo do primeiro
século, onde Jesus nasceu. Visto do alto da cordüheira, o centro da cidade está pontilhado por
lugares sagrados e dominado pela grande Basílica da Anunciação (1). O edifício foi construído
pela Ordem Franciscana na década de 1960 sobre uma antiga igreja das cruzadas e de um
santuário bizantino no lugar onde se comemora a revelação de Gabriel á Virgem M aria. Ao
lado, a Igreja de São José (2) cobre uma câmara subterrânea considerada hoje a oficina de José.
Terraços (3) e túmulos recortados na Antiguidade nas colinas em volta delineiam os modestos
limites da cidade natal de Jesus.
Não nos surpreendemos, pois, que Nazaré não tenha sido mencionada. A litera­
tura antiga era atividade das classes altas; por isso, as referências à pequena cidade só
aumentaram significativamente depois da ascensão do cristianismo ao poder político
no quarto século d.C. Na Antiguidade, os governantes, os ricos ou seus escribas eram
os únicos que sabiam ler e escrever: assim, as histórias, biografias e narrativas que
sobreviveram até hoje foram escritas ou ditadas principalmente pelos poderosos.
Interessavam-se por pessoas públicas e por conflitos políticos. Pouco se importavam
com a vasta maioria do povo e com o que acontecia nas pequenas cidades ou vilas
rurais como, por exemplo, a pequena vila de Nazaré, a não ser quando causavam
problemas ou ameaçavam a estabilidade e a economia.

Vida p astoril. Os camponeses, por sua vez, quase não tinham tempo para
aprender a ler e a escrever e menos interesse ainda para ler os escritos das classes
altas. Preocupavam-se com o cultivo da terra para ganhar o suficiente para pagar
os impostos e sobreviver com o que sobrava. Buscavam auto-suficiência e seguiam
0 método da policultura. As famílias camponesas tinham vantagens com a diver­
sificação do plantio e a distribuição das terras. Um só tipo de cultura era perigoso
num mundo onde a fome relacionava-se sempre com enchentes ou colheitas pre­
cárias. A diversificação servia também para equilibrar a demanda de mão-de-obra
nas diferentes estações do ano. Os que conseguiam cultivar o próprio alimento não
precisavam depender dos outros, especialmente do patrocínio da elite urbana e dos
ricos proprietários, que costumavam invadir terras alheias. Também lhes livrava de
ter que barganhar com astutos vendedores nos mercados.

A dieta pastoril era simples: comiam-se pão, azeitonas e óleo de oliva, e bebia-se
vinho. Quando havia hóspedes, acrescentavam-se um cozido de feijão e lentilhas com
vegetais da época e pão de fibra, nozes, frutas, queijo e iogurte. Às vezes comia-se
peixe salgado; a carne vermelha era rara, reservada apenas para celebrações espe­
ciais. Inúmeros restos de esqueletos mostram deficiência de proteínas e de ferro, e
a maioria deles indica que muitas pessoas sofriam de artrite. Morria-se facilmente
por causa de resfriados, gripes e abscessos dentários. A média da expectativa de
vida dos que tinham sorte de sobreviver à infância andava por volta dos trinta anos
e eram raros os que viviam até cinqüenta ou sessenta.

Os pais preocupavam-se em manter famílias cuidadosamente equilibradas:


precisavam de número suficiente de filhos para trabalhar no campo, mas se fossem
muitos teriam que trabalhar em terras inadequadas e os filhos mais jovens nada
teriam para fazer. As filhas destinavam-se ao serviço doméstico, mas, se fossem
muitas, as exigências dos dotes poderiam acabar com os recursos da família, e, se
ficassem solteiras, também os esgotariam com o correr do tempo. Homens sem
terra, filhos jovens e bastardos procuravam sobreviver como artesãos, pescadores,
diaristas, soldados, quando não se voltavam para o banditismo; as mulheres sem a
proteção do pai, do marido ou dos irmãos tornavam-se esmoleiras ou prostitutas.
Não havia mobilidade ascendente. 0 movimento social, como regra, tendia para
baixo. A maioria dos camponeses vivia perigosamente perto da situação crítica.
A vida era predominantemente locai e as viagens, perigosas. Havia pouca mo­
vimentação de um lugar para outro: às vezes as pessoas compareciam a festivais
em centros urbanos ou visitavam feiras, mas andavam sempre acompanhadas de
familiares ou amigos e se protegiam de eventuais assaltos com cassetetes e cajados.
Alguns habitantes da Galiléia participavam de longas peregrinações a Jerusalém
viajando com grupos ou em caravanas escoltados por guardas contratados. As ativi­
dades comerciais enfrentavam riscos e se tornavam impraticáveis. Itens volumosos
exigiam vagarosas carroças de transporte puxadas por bois famintos, encarecendo e
dificultando as importações. Até mesmo objetos menores como lamparinas, perfume,
cristais e louças representavam sinais de riqueza.

Evidência literária. As elites letradas e os políticos poderosos do império não


conheceram Nazaré antes da conversão de Roma. Os poucos membros da classe alta
que sabiam de sua existência, como alguns administradores da capital de Herodes
Antipas, Séforis, situada a 4 milhas ao norte, não se preocupavam com ela. O pequeno
lugarejo judaico só era lembrado quando deixava de pagar impostos ou quando era
preciso acabar com rixas locais. O historiador eclesiástico do quarto século Eusébio
conta esta história a respeito de dois netos de Judas, irmão de Jesus, quando foram
levados perante o imperador romano Domiciano (81-96 d.C.). Esses membros da
família de Jesus haviam, aparentemente, vivido sempre em Nazaré.

Denunciados como descendentes de Davi, foram levados perante


César Domiciano, que temia a vinda do Cristo da mesma forma
que Herodes. Perguntou-lhes se eram mesmo descendentes de
Davi, coisa que confirmaram. Perguntou-lhes, então, quais eram
suas posses e quanto dinheiro controlavam. Responderam que
entre, os dois, possuíam nove mil denários, metade de cada um,
mas não em espécie, posto que era o valor dos vinte e cinco acres
de terra, sobre os quais pagavam imposto e nos quais viviam do
resultado de seu trabalho manual. Para testemunhar o que diziam,
mostraram as mãos calosas e a dureza de seus corpos [...]. Diante
disso, Domiciano não os condenou mas os desprezou como gente
sem valor, libertou-os e ordenou o fim da perseguição contra a Igreja
(História eclesiástica 3.20).

Cam poneses diante do im perador. Não tinham dinheiro, possuíam pequeno


pedaço de terra, pagavam os impostos e ganhavam a vida com os corpos cheios de
cicatrizes produzidas pelo trabalho rude, e eram desprezados. Esse era o mundo do
Jesus camponês.

Embora envolta em obscuridade nos tempos antigos, depois da conversão de


Constantino e durante o período bizantino, a pequena cidade de Nazaré atraía a
atenção de peregrinos cristãos por ter sido o berço de Jesus, de arquitetos imperiais
por ser lugar para construções e de autores por ser o contexto de tensões entre
cristãos e judeus. O teólogo cristão do quarto século Epifânio relata o seguinte a
respeito de José de Tiberíades, judeu convertido no tempo de Constantino, que
obteve permissão e fundos para construir igrejas na Galiléia:

José buscou apenas este favor do imperador, que tivesse licença


para construir para Cristo — por decreto real — igrejas nas cidades
e vilas dos judeus onde ainda não existissem, uma vez que nelas
os habitantes não eram gregos nem samaritanos nem cristãos. Era
0 caso especial de Tiberíades, em Diocesaréia, também chamada
Séforis, de Nazaré e de Cafarnaum onde não viviam pessoas de
outras raças.

Nazaré aparecerá um século depois num texto de 570 d.C., contendo as palavras
de um peregrino cristão de Piacenza que prenunciava o surgimento de intolerância
religiosa. Relata, depois de uma visita à cidade natal de Jesus, que a sinagoga “ain­
da pertencia aos judeus”. Meio século depois, em 629 d.C., o imperador Heráclio
expulsou todos os judeus dos lugares sagrados, incluindo os que viviam na Nazaré
judaica. A cidade era, na verdade, judaica, não obstante a existência de literatura que a
descreve cristã, em grego ou latim, da lavra de pessoas que não viviam na Galiléia.

Evidência epigráfica. A única evidência epigráfica a respeito de Nazaré vem de


uma inscrição numa sinagoga judaica, em hebraico. A mais antiga ocorrência do
nome “Nazaré” em fonte não cristã aparece num pequeno fragmento de mármore
gris escuro de uma sinagoga do terceiro ou quarto século, descoberta em Cesaréia
Marítima em 1962. Este fragmento e outros dois desenterrados com ele preservam
uma lista dos locais tradicionais onde os sacerdotes judeus se reinstalaram depois
que o imperador Adriano expulsou todos os judeus de Jerusalém em 135 d.C. Das
vinte e quatro famílias sacerdotais que anteriormente se revezavam semanalmente
nos ofícios do Templo de Jerusalém, dezoito, com o nome de Hapizzez, vieram para
Nazaré. A inscrição atesta o caráter judaico de Nazaré, considerada lugar adequado
para sacerdotes refugiados.

R eligião ju d aica. Por volta da metade do período romano, os sacerdotes refu­


giados em Nazaré não eram mais tão necessários para a religião judaica. Depois da
destruição do Templo, os rabinos nas sinagogas começaram a substituir os sacer­
dotes como elementos centrais da vida religiosa. O foco, agora, era a leitura das
Escrituras e especialmente a interpretação da lei mosaica e da sua aplicação na vida
diária. Nos dias de Jesus, porém, esses papéis ainda estavam invertidos: o Templo
de Jerusalém e o sacerdócio dominavam a religião judaica; os rabinos ocupavam
lugares secundários, e entre eles os fariseus eram os mais influentes. Grande parte
de seu prestígio advinha das interpretações que faziam da lei em relação ao Templo,
aos sacerdotes e à pureza. Alguns dos fariseus eram escribas especializados, sufi­
cientemente ricos e bem situados na vida urbana, com condições sociais e tempo
para ler e escrever. Gozavam de popularidade na vida pública e quase sempre se
destacavam nas reuniões da comunidade. A liturgia das sinagogas ainda não havia
se desenvolvido plenamente. No tempo de Jesus, eram lugares de reunião onde se
celebravam casamentos e assembléias cívicas, realizavam-se circuncisões, traduziam-
se as Escrituras em voz alta do hebraico para o aramaico vernacular, consultavam-se
O S anciãos e se discutiam as tradições.

Os galileus sentiam-se longe do Templo tanto espiritual como geograficamente.


E provável que as reuniões nas sinagogas da Galiléia, por causa disso, tivessem
adquirido maior importância do que na Judéia, e que as reuniões dos galileus aca­
bassem sempre vistas com desconfiança. Mas num lugar como no outro, à sombra
do Templo ou na Galiléia, longe dele, a tradição judaica continuava a ser preservada
na família, desde o nascimento até a morte, no Sábado, nas celebrações sazonais e
nas refeições diárias, bem como pelos pais, mães e avós. Esse era o mundo d o judeu
galileu, Jesus.

De Constantino, o Grande, até o presente, as evidências escritas retratam Nazaré


como lugar de conflitos políticos e disputas religiosas. Contudo, antes da conversão
do império, não há referências a respeito. Nazaré era absolutamente insignifican­
te. Também não se tem notícia de que tenha sido palco de disputas religiosas. O
lugarejo era totalmente judaico.

Camadas arqueológicas de Nazaré


Ninguém se surpreende quando descobre que as camadas arqueológicas mais
importantes em Nazaré sejam construções de grande porte para comemorar as vidas
de Jesus e de seus pais. Esse fato tem sido atestado por pedras cortadas e outros
blocos usados em edificações pertencentes a construções monumentais erguidas na
cidade nos dias em que os cristãos exerciam poder e influência e havia riqueza. Tudo
isso encobriu os traços deixados pela humilde cidadezinha judaica. Há três camadas
principais. A primeira é do século vinte, quando as peregrinações começaram a fazer
parte da indústria turística. A outra vem da época das Cruzadas, quando monges,
clérigos e um bispo viviam em Nazaré sob a proteção dos cavaleiros templários. A
última pertence ao período bizantino, quando foram construídos pela primeira vez
santuários, basflicas e mosteiros com o patrocínio imperial.

As construções mais recentes, sob custódia franciscana, permitem que os ar­


queólogos desenvolvam escavações no centro da cidade. A reconstrução e renovação
da Igreja de São José na década de 1930 expôs inúmeras feições subterrâneas, e na
década de 1960 Bellarmino Bagatti comandou escavações de larga escala no terreno
onde mais tarde se construiu a Basílica da Anunciação, bem como a seu redor. Sob
essas estruturas modernas foram encontrados o palácio do bispo e uma grande igreja
romanesca construídos pelos cruzados, que, por sua vez, cobriam uma igreja e um
mosteiro bizantinos ainda mais antigos. Cada uma dessas camadas — a moderna,
a do tempo das Cruzadas e as bizantinas — foram sendo atravessadas até as mais
antigas, às vezes recortadas em rochas, que serviam de fundamentos, outras vezes,
movendo-se sobre camadas anteriores em meio a cavernas ou covas subterrâneas
em busca de alicerces.

À medida que construções modernas foram edificadas, houve remoção de terra


e descobertas de artefatos dos séculos passados até então ignorados. Foram encon­
trados capitéis ornamentados esculpidos por artesãos franceses e ocultos desde
1187, quando o sultão Saladino expulsou os cristãos da Terra Santa. Exibem cenas
da vida dos apóstolos, embora as figuras pareçam européias e não semitas, os aces­
sórios medievais e não antigos, e as roupas e ornamentos reais e não camponeses.
A construção do que deveria ter sido a mais esplêndida igreja dos Cruzados, na
Terra Santa, não foi concluída na época. Só foi terminada oito séculos depois nos
fms do século vinte.

Debaixo dessa igreja inacabada, encontrou-se outra igreja e um mosteiro bizan­


tino de séculos anteriores. O ponto focal da igreja situava-se na chamada Gruta da
Anunciação, onde foram descobertas argamassa e pedras com desenhos de símbolos
cristãos, e reproduções de orações e invocações. Alguns desses elementos podem ser
anteriores à igreja bizantina. A construção no período bizantino era monumental e
imperial. Ao redor da gruta os arqueólogos acharam centenas de pedras de mosaico
deslocadas — em geral, brancas e pretas, chamadas de tesserae —, bem como peda­
ços de revestimentos coloridos ou de afrescos. A igreja tem sido constantemente
renovada graças a doações generosas de patrocinadores de outros países para refazer
paredes e repavimentar os pisos de mosaico. Alguns gravaram sua generosidade em
pedras. Num dos cantos de um chão de mosaico branco emoldurado por quadrados
e losangos pretos intercalados por cruzes proporcionalmente distribuídas, lê-se
esta inscrição: “Doação de Conon, diácono de Jerusalém”. Outro piso de mosaico,
ainda no seu lugar original e intacto, data do quinto século d.C. Foi decorado com
tesserae vermelha e preta, representando uma coroa com três círculos concêntricos
mais parecida com fitas penduradas a partir da base. No centro via-se uma cruz
com letras semelhantes à abreviação para Christos, chi-rho, que era o símbolo que
Constantino teria visto e que carregava em seus estandartes guerreiros na batalha
que travou com o imperador rival, Maxêncio, na Ponte Mílvia no dia 28 de outubro
de 312 de nossa era.

0 símbolo de mosaico do triunfo cristão encontrava-se no topo de dois metros


de destroços em cujo interior foram achados elementos arquitetônicos de uma estru­
tura mais antiga: dois capitéis sem adorno, diversos pedaços de colunas rudemente
construídas e cinco pedestais de pilares, bem como arcos sobre bases, cornijas,
portais e batentes. Poderiam ser restos de uma sinagoga judaica sobre a qual a igreja
fora imposta, segundo relatos de itinerários de alguns peregrinos cristãos. O estilo é
típico das sinagogas do terceiro século d.C. e um pouco depois na Galiléia, quando se
construía segundo o modo do período romano posterior; nenhum material cerâmico
encontrado nos aterros sugere datas anteriores ao terceiro ou quarto séculos. Mesmo
se tivesse sido uma sinagoga, não poderia ser do tempo de Jesus, mas de bem depois,
quando esses edifícios começaram a ser erguidos em toda a Galiléia.

Na verdade, não se encontrou até agora nenhuma sinagoga na Galiléia do pri­


meiro século nem antes dele. Tem-se notícia da existência de apenas uma sinagoga
em cidades ou vilas judaicas do tempo de Jesus em Gamla, no Golan. Dois outros
edifícios parecidos com sinagoga, do primeiro século, foram escavados na Judéia em
Herodiano e Masada, mas haviam sido construídos nos primeiros complexos hero­
dianos por judeus rebeldes que os ocuparam durante a revolta dos anos 66-74. Não
eram originalmente sinagogas, mas salas usadas para uso comum dos rebeldes.

Escavações e inscrições dão testemunho da existência de sinagogas no primeiro


século da diáspora judaica em locais urbanos ao longo da bacia do Mediterrâneo e
no Oriente Próximo. Esses edifícios são chamados usualmente, em grego, proseuche,
ou “casa de oração”, e serviam às necessidades comunitárias e religiosas dos judeus
expatriados. Conservavam viva a identidade judaica nos encontros do Sábado num
mundo de religião cívica pagã e de culto ao imperador, uma vez que o Templo esta­
va demasiadamente longe e os sacerdotes e sacrifícios não passavam de conceitos
remotos. Mas na pátria dos judeus no tempo de Jesus, o termo sinagoga referia-se
primeiramente a um lugar de reunião e não a um espaço para liturgias bem definidas.
As feições arquitetônicas e litúrgicas desenvolveram-se de forma mais padronizada
na Palestina romana depois da destruição do Templo no período romano médio e no
posterior, quando a religião judaica começou a se centralizar nos rolos das Escrituras
e nos rabinos. Havia, certamente, sinagogas (knesset da Mixná) nos vilarejos da Galiléia
no tempo de Jesus, congregando judeus para fins comunitários e religiosos, embora
ninguém saiba como era sua arquitetura. Nem todas seriam como a de Gamla. É
provável que muitas reuniões acontecessem nas praças das localidades, outras em
pátios ou salas de residências maiores. Os arqueólogos não têm como identificar
essa função nos lugares escavados. É também possível que nas cidades e vilas maio­
res da Galiléia houvesse sinagogas no primeiro século, construídas às expensas da
comunidade com bastante simplicidade, ou mais elaboradas quando patrocinadas
por doadores, mas escapam de certa forma aos registros arqueológicos. Com exceção
da encontrada em Gamla, as outras ainda estão por ser descobertas.

Em lugares como Nazaré haveria, sem dúvida, sinagogas significando lugares para
reuniões e assembléias. Mas a única evidência de um edifício construído para esse
fim em Nazaré vem de dois séculos depois de Jesus. Não existe nenhuma evidên­
cia arqueológica da existência da sinagoga que Jesus teria visitado. Trata-se de algo
impossível de ser discutido com credibilidade e provas. Por outro lado, a conclusão
dos arqueólogos levanta curiosos problemas a respeito das camadas exegéticas.

Na sinagoga em Nazaré?
A história da rejeição de Jesus em Nazaré em Lucas 4,16-30 desenrola-se em cinco
passos consecutivos: situação da sinagoga, cumprimento das Escrituras, aceitação
inicial, eventual rejeição e, finalmente, ataque mortal.
No primeiro momento, Lucas parece pressupor a existência de um edifício
chamado sinagoga e não apenas determinado lugar para reuniões. No momento do
cumprimento das Escrituras, o Jesus de Lucas entra na sinagoga, lê um trecho do
profeta Isaías (61,1-2) e anuncia que ele é o cumprimento da profecia, o prometido
ungido pelo Espírito de Deus para trazer boas-novas aos pobres, proclamar liberta­
ção aos cativos, dar visão aos cegos e libertar os oprimidos. Essas frases ecoam os
mandamentos da Torá e os imperativos da lei divina como em Deuteronômio 15,
Êxodo 21 e Levítico 25. No ano sabático que acontecia a cada sete anos, prescreviam-
se a remissão das dívidas e a libertação dos devedores cativos. No ano do jubileu,
em cada cinqüenta anos, ordenava-se o retorno dos camponeses às terras e às casas
rurais que haviam sido expropriadas.

No passo da aceitação inicial, depois que Jesus anuncia que essa visão magnífica
cumpria-se “hoje”, a reação imediata não se demorou: “Todos testemunhavam a seu
respeito, e espantavam-se das palavras cheias de graça que saíam de sua boca. E di­
ziam: ‘Não é 0 filho de José?’” (4,22). A primeira metade desse versículo é positiva
e, no contexto, a segunda parte parece retratar maravilhamento mais do que rejeição.
Mas a situação se modifica em 4,23-29, parecendo ser deliberadamente provocada
pelo próprio Jesus como se ele se voltasse dos judeus presentes aos gentios distan­
tes. Em primeiro lugar ele mesmo sugere: “Certamente ireis citar-me o provérbio:
Médico, cura-te a ti mesmo. Tudo o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum,
faze-o também aqui em tua pátria”. Sugere ainda um desafio que os ouvintes não
estavam fazendo. A provocação torna-se mais grave. Jesus cita dois exemplos anti­
gos segundo os quais Deus se volta dos israelitas para os pagãos, dos judeus para
os gentios. Na primeira metade do século nono. Deus manda o profeta Elias matar
a fome não de um israelita, mas de uma mulher pagã, segundo 1 Réis 17,8-16. Na
segunda metade do mesmo século. Deus ordena que o profeta Eliseu cure a lepra
não de um israelita, mas de um general pagão, segundo 2 Reis 5,1-14.

No caso de rejeição e de ataque mortal, vemos o resultado imediato dos exemplos


provocativos de Jesus. “Diante destas palavras, todos na sinagoga se enfureceram.
E, levantando-se, expulsaram-no para fora da cidade e o conduziram até um cimo
da colina sobre a qual a cidade estava construída, com intenção de precipitá-lo de lá.
Ele, porém, passando pelo meio deles, prosseguia seu caminho” (4,28-30). Nesse
caso, 0 fato de Jesus se voltar dos judeus para os gentios é causa e não efeito de
rejeição eventual e de ataque mortal.

Aí está uma questão crucial sobre camadas exegéticas. Será essa história criação
posterior inserida no evangelho de Lucas ou incidente anterior na vida de Jesus?
Em outras palavras, teria Lucas inventado esse incidente em Nazaré? Observemos,
de passagem, que a narrativa só se encontra em Lucas, embora seja sem dúvida sua
expansão particular e criativa da história do general em Marcos 6,2-4.

O principal argumento em favor da idéia de que se trata de criação lucana é


que Lucas fez dessa história a abertura programática da composição de seus dois
volumes, que nosso Novo Testamento atual renomeou e separou como o evangelho
de Lucas e Atos dos Apóstolos. A obra de Lucas em dois volumes conta no primeiro
livro como o Espírito Santo levou Jesus da Galiléia para Jerusalém e, no segundo,
como levou a Igreja de Jerusalém para Roma. Lucas precisou de dois volumes para
anunciar as boas-novas de que o Espírito Santo mudara a sede da igreja do Oriente
para o Ocidente e que substituíra Jerusalém por Roma.

No decurso dos dois volumes, e mais especialmente no contexto do segundo,


Lucas explica como o cristianismo começara como mensagem judaica para os judeus,
como muitos judeus o rejeitaram e como depois disso, e talvez por causa disso,
portanto, o cristianismo se voltou aos pagãos. Naturalmente, na melhor das hipóte­
ses, trata-se de simplificação e, na pior, de distorção, coisa que muitas vezes milita
contra as histórias que ele conta para exemplificar sua posição. De qualquer forma,
para sustentar a idéia da preferência pelos judeus (rejeição) e depois pelos gentios
(substituição), Lucas descreve Paulo sempre e em todos os lugares começando sua
pregação numa sinagoga, em Atos. Mas, na verdade, tal procedimento contradiz o
acordo firmado em Jerusalém segundo o qual Pedro se encarregaria da missão aos
judeus e Paulo aos gentios, como se lê em Gálatas 2,7-9. Também contradiz a própria
narrativa de Lucas quando se refere a confusões entre a rejeição dos judeus que pre­
cedia à inclusão de pagãos ou se seguia a ela. Será que o cristianismo se voltava para
os pagãos por causa da rejeição dos judeus ou, ao contrário, os judeus o rejeitavam
(“ciúmes”) por causa da aceitação dos pagãos? Essa ambigüidade acompanha o Paulo
lucano em Atos e começa com o Jesus de Lucas 4,16-30. A rejeição nessa história
foi criada precisamente para advertir a respeito da que viria depois ou, para repetir
0 que já afirmamos, como abertura programática dos dois livros de Lucas.
A história de Lucas, completa com a ambigüidade sobre a rejeição como causa ou
efeito da missão aos gentios, mostra-se como modelo inaugural do que aconteceria
depois nas andanças de Paulo pela diáspora judaica. Por exemplo, os cinco passos
repetem-se com Paulo em Antioquia da Pisídia (hoje no centro-oeste da Turquia) ou
em Tessalônica (agora ao nordeste da Grécia). Eis a seguir uma tabela que resume
a seqüência com seus paralelos;

Jesus em Paulo em Paulo em


Elementos literários Lucas 4,16-30 Atos 13,14-52 Atos 17,1-9

situação da sinagoga 4,16-17 13,14-16a 17,1-2


cumprimento das escrituras 4,18-21 13,16b-41 17,2b-3
aceitação inicial 4,22 13,42-43 17.4
rejeição eventual 4,23-28 13,44-49 17.5
ataque mortal 4,29-30 13,50-52 17,5b-9

Observemos que tanto em relação a Paulo como em relação a Jesus existe


algo obscuro no centro da história quando a aceitação inicial acaba em eventual
rejeição;
À saída, foram convidados a faiar ainda sobre o mesmo assunto no
sábado seguinte. Depois que a assembléia se dissolveu, muitos ju­
deus e prosélitos que adoravam a Deus seguiram a Paulo e Barnabé,
e estes, entretendo-se com eles, persuadiam-nos a permanecerem
fiéis à graça de Deus. No sábado seguinte, quase toda a cidade
se reuniu para ouvir a palavra de Deus. À vista dessa multidão,
os judeus se encheram de inveja, e replicavam com blasfêmias às
palavras de Paulo (At 13,42-45).

Novamente;

Alguns dentre eles se convenceram e Paulo e Silas os ganharam,


assim como uma multidão de adoradores de Deus e gregos e bom
número de damas de distinção. Mas os judeus, invejosos, reuniram
logo alguns péssimos vagabundos, provocaram aglomerações e
espalharam o tumulto na cidade (At 17,4-5a).

Tratava-se de ciúme, mas ciúme de quê? Por que judeus na diáspora teriam inveja
de pagãos que se convertiam a alguma forma ou a qualquer forma de judaísmo? Tudo
indica que “ciúme” não explica o que acontecia. Não havia, naturalmente, nenhum
problema com a presença de sinagogas judaicas nas cidades da diáspora, mas Lucas
rejeitava sua própria experiência posterior de tê-las de volta na Palestina, que fora
a terra de Jesus de Nazaré, seu lugar mais humilde.

Lucas também presume que o pequeno lugarejo de Nazaré possuía não só uma
sinagoga mas também rolos das Escrituras. A primeira suposição não parece se
manter, pois, como observamos acima, não existe evidência alguma da existência
de algum edifício como esse em Nazaré naquela época. A segunda é questionável.
Os rolos das Escrituras eram principalmente privilégios urbanos e é provável que os
lecionários só apareceram mais tarde. A terceira suposição de que havia uma colina
de onde se poderia jogar alguém para morrer é simplesmente falsa.

Mas, mais importante do que isso, Lucas supõe que Jesus não era apenas letrado,
mas erudito. Ele não apenas começa “a ensinar” (Mc 6,2) mas também “levantou-
se para ler” (Lc 4 ,16). Lucas, que era um erudito, pressupõe naturalmente, como
fazem alguns estudiosos modernos, que Jesus era alfabetizado e erudito. Mas é mais
provável que não fosse. As melhores pesquisas sobre índices de alfabetização na
bacia do Mediterrâneo na época conclui que apenas 5 por cento da população sabia
ler. A mesma pesquisa feita no território judaico chegou à conclusão de que somente
3 por cento do povo dessa região era alfabetizado. Nesse mundo antigo, como já
vimos, a leitura era prerrogativa das elites aristocráticas, dos advogados treinados
e dos escribas. Mas mesmo se Jesus tivesse sido mero camponês analfabeto, como
seria normal entre os residentes de Nazaré, isso não significa que não pensasse,
que não conhecesse sua tradição nem que não pudesse ensinar. Apenas quer dizer
que não sabia 1er. E, também, que provavelmente se concentrava no cerne de sua
tradição mais do que nas notas de rodapé.
De qualquer forma, as histórias posteriores de Lucas a respeito de Paulo nos
ajudam a entender sua história sobre Jesus. Esta não apenas faz parte de uma camada
tardia sobre a tradição de Jesus. Em outras palavras, trata-se de um incidente criado
pelo próprio evangelista Lucas. Apresenta-se não como história sobre o passado de
Jesus no território judaico da última parte da década de 20 mas sim como parábola
a respeito do futuro de Paulo na diáspora judaica dos anos 50.

Tudo isso indica a importância da análise de camadas não apenas arqueológicas


mas também textuais dos evangelhos. Lucas não está mentindo nem difamando
intencionalmente o povo de Nazaré. Ele apenas projeta a oposição contra Paulo,
séria e mortal na diáspora judaica, na experiência anterior de Jesus em sua terra
natal. Mas essa parábola era muito perigosa, pois poderia levar alguém a imaginar
acontecimentos como esse. Mesmo admitindo a existência de certa provocação da
parte de Jesus, Lucas resumia conteúdos escriturísticos. Que tipo de gente era essa
que habitava Nazaré, prontos para matar Jesus apenas pelo motivo exposto? Poder-
se-ia passar de “toda a Nazaré” para o “Israel inteiro”? Vê-se bem que o estudo das
camadas exegéticas é tão importante como o das arqueológicas.

Nazaré no tempo de Jesus


A arquitetura monumental de Nazaré, com suas obras de cantaria e arcos de
pedra talhados por pedreiros especializados, pisos de mosaico e paredes com afrescos,
colunas de pedra e frontões, é, claramente, posterior, tendo resultado da associação
de Jesus com ela sem nada a ver com a Nazaré de Jesus. Na antiga Nazaré, incluindo
as áreas escavadas pelos franciscanos, não existe evidência alguma de arquitetura
pública. Todas as buscas nas camadas dos períodos moderno, das Cruzadas ou bizan­
tino, confirmam o que está dito acima. A grande camada representando a construção
cristã da Terra Santa situa-se em cima de uma camada frágil e elusiva com indicações
da existência de um lugar simples habitado por camponeses. As escavações levadas
a efeito debaixo das estruturas cristãs posteriores não mostram nenhuma sinagoga,
nem fortificações ou palácios, nenhuma basílica nem balneários, nem mesmo ruas
pavimentadas. Absolutamente nada. Em vez disso, prensas para produzir azeite de
oliva e vinho, cisternas, silos e pedras de moer espalhadas ao redor de covas falam
de uma população rural que vivia em casebres muito simples.

A Nazaré do primeiro século era um povoado judaico com entre duzentos e qua­
trocentos habitantes. Como o resto da Galiléia, que permaneceu quase desabitada
até 0 período helenístico posterior, os judeus foram morar aí por causa das políticas
expansionistas asmonianas. Há certas evidências, principalmente em cerâmicas mas
não na arquitetura, de sua ocupação na Idade Média do Bronze e na Idade de Ferro,
mas sem continuidade no tempo de Jesus. O império assírio sob Tegiatefaiasar III
invadiu o Reino do Norte de Israel em 732 a.C. e não só o devastou como ainda fez
diminuir a população da Galiléia, incluindo Nazaré. A não ser em pequenos lugares
ao longo de estradas, a Galiléia permaneceu desabitada do oitavo ao segundo século
a.C. quando, então, os judeus começaram a chegar.

As campanhas de Alexandre, o Grande, ao longo do leste do Mediterrâneo aca­


baram com a hegemonia persa. Depois de sua morte, seus generais consolidaram
0 reino, transformando a Palestina numa espécie de pára-choque entre a dinastia
ptolemaica no Egito e a selêucida na Síria. Depois que essas dinastias foram enfra­
quecidas pela sucessão de guerras entre si, criou-se um vácuo de poder no segundo
século a.C. Esse período foi marcado por grande movimentação de povos, incluindo
a de judeus na Galiléia. Em outros lugares, os sírio-fenícios estenderam seu controle
pela costa da Palestina e avançaram até o Vale Huleh. O povo itureu, pastoril e nô­
made, saiu da parte anterior do Líbano para o norte de Golan. Não se encontraram
na Galiléia cerâmica nem estilos de casas desses grupos, mas no começo da segunda
metade do segundo século a.C. começaram a surgir diversos assentamentos pela Ga­
liléia, e se acharam moedas dos asmonianos estabelecidos em Jerusalém, dentro das
fundações, e sinais materiais de cultura parecidos com os da Judéia. Formas e tipos
de vasos assemelhavam-se: tanto a Judéia como a Galiléia usavam vasos de pedra;
os vilarejos benefidavam-se de banheiras revestidas e com degraus, ou banheiras
rituais; não se comia carne de porco; e praticavam-se segundos enterros quando os
ossos passavam a ser conservados em ossuários ou urnas.

Os habitantes de Nazaré no tempo de Jesus eram judeus, provavelmente des­


cendentes de colonizadores asmonianos ou judeus que teriam chegado aí no século
anterior. O lugar situava-se vantajosamente abrigado numa espécie de cavidade na
área de Nazaré, limitado ao norte pelo Vale Netofah e por Nahal Zippori e pelo mais
amplo Vale Jezreel ao sul. Este fazia parte das “terras do rei” com sua vasta planície
fértil, embora em certas épocas tivesse sido controlado pela cidade helenística de
Scythopolis, antiga Beth-Shean, a maior da área. Esta cidade, quando esteve sob o
poder romano (do último período), associava-se a diversas outras ao leste do Rio
Jordão na região semi-autônoma da Decápolis.

A interação de Nazaré com as imensas terras reais de Scythopolis, ao sul, era


prejudicada pela topografia, posto que se situava numa elevação cheia de escarpas ao
lado do Vale Jezreel. Era melhor viajar pelo eixo leste-oeste da região, provavelmente
em estradas de terra batida, uma vez que as principais vias da Galiléia vinham de
Tiberíades no Mar da Galiléia até Ptolomais no Mediterrâneo pelo Vale Beit Netofah,
ao norte de Séforis. Esta cidade distava cerca de 4 milhas de Nazaré. A distância
podia ser percorrida a pé numa hora e meia subindo uma colina, depois descendo
um pouco e, finalmente, chegando a outro declive.

As autoridades asmonianas trataram de fortificar Séforis com a finalidade de


melhor vigiar os vales e controlar as rotas comerciais, e os romanos, reconhecendo
a importância estratégica da cidade, criaram aí um conselho judaico que começou
a atuar na cena política em 63 a.C. Depois da morte de Herodes, o Grande, em 4
a.C, alguns judeus manifestaram-se em Séforis contra o governo estrangeiro e os
impostos, mas foram rapidamente calados pelo legado romano da Síria. Subseqüen­
temente, Herodes Antipas transformou-a na maior cidade da Galiléia, elevando-a à
categoria de capital das terras que herdara de seu pai. No tempo de Jesus, Nazaré
vivia à sombra de Séforis e sob o controle político de Herodes Antipas.

A localização de Nazaré nas colinas ao sul de Séforis era ideal para o cultivo de
produtos apreciados no Mediterrâneo — grãos, olivas e uvas — e que constituíam o
objetivo sempre buscado para auto-suficiência entre antigos agricultores. As encostas
de frente para o sul onde se espalhavam as casas do lugarejo eram apropriadas para
a vinicultura; as uvas de azul profundo brotavam em parreirais crescidas em treliças
ou até mesmo no chão. Os cachos, cortados e pisoteados em grandes recipientes
de pedra, espalhavam-se pelas colinas. Os desfiladeiros entre as elevações e o chão
pedregoso serviam para o plantio e cultivo de oliveiras. Os frutos, depois de colhidos
e esmagados em grandes recipientes de pedra, transformavam-se em azeite. Cresciam,
também, nos campos, diversos tipos de grãos — trigo, cevada e milho miúdo — ,
que depois da colheita passavam por processos de seleção. Os aproveitáveis eram
armazenados nos pátios das casas de família. Usava-se o sedimento aluviano ao sul,
suficientemente fértil, para o plantio de vegetais e legumes. Terraços construídos e
irrigados nos lugares mais altos aumentavam as colheitas de grãos e também eram
aproveitados para o plantio de figueiras e pés de romãs. Havia também no setor
oeste do vilarejo uma fonte de água corrente, o Poço de Maria, que, embora não
perene, levava água até os confins da pequena cidade, permitindo que os habitantes
a utilizassem nas plantações caseiras.

Tratava-se de um povoado bem pequeno no primeiro século. A área encontrada


pelos escavadores franciscanos, evidentemente do período romano, limitava-se por
duas igrejas e pelo Poço de Maria. A descoberta de inúmeros túmulos subterrâneos,
construídos segundo moldes tipicamente judeus de pedra calcárea, ajudou a deli­
near o perímetro urbano ao oeste, leste e sul, uma vez que os cemitérios sempre
se situavam fora da área urbana. Desfiladeiros íngremes e antigos terraços nos
elevados ao norte confinavam o assentamento ovóide. Mediria cerca de 2.000 pés
de comprimento entre o leste e o oeste e cerca de 650 de largura entre o norte e o
sul, embora a área habitada no primeiro século tivesse sido menor, com apenas dez
acres. 0 caráter agrário do lugar exigia espaços amplos entre as casas para a criação
de animais domésticos e seus abrigos, bem como para jardins e pomares e guarda
de utensílios agrícolas para uso comunitário. Por isso a tão baixa densidade popu­
lacional. O número de habitantes de Nazaré oscilava entre duzentos e quatrocentos
na Antiguidade. Supõe-se que eram, na maioria, famílias estendidas ou clãs.

Não sabemos muito a respeito das casas de Nazaré do primeiro século, ausência
essa que indica sua pobreza. Se tivessem sido cobertas com telhas sustentadas por
paredes de calcáreo revestido sobre pisos de mosaico ou de pedras polidas, com
afrescos nas paredes, os franciscanos que escavaram o sítio teriam encontrado seus
rastros. Em vez disso, pressupomos que, como em outras pequenas cidades da Ga­
liléia e de Golan, as construções simples de pedras brutas empilhadas umas sobre as
outras equilibravam-se com a ajuda de pedregulhos entre os interstícios, revestidas
de argila ou lama e até mesmo de esterco misturado com palha para isolamento
térmico. O assoalho de terra batida utilizava também resíduos prensados. A ausência
de arcos, vigas mestras e telhas nos leva a imaginar tetos cobertos de sapé sobre
travessões de madeira finalizados com juncos e diversos tipos de palha, destinados
a proteger a madeira da umidade, coberta de barro para isolamento térmico. As
casas tinham, em geral, cavidades subterrâneas. Havia cisternas bem construídas
para suprimento de água em épocas de seca ao lado de outras para armazenar grãos.
Ao redor dessas construções cavernas serviam para habitação. E o caso da Gruta da
Anunciação, usada originalmente para fins domésticos.

Não há como afirmar que Maria tivesse residido aí. As inúmeras edificações
ao redor da gruta e as invocações gravadas em tábuas de gesso demonstram que
o lugar começara a ser reverenciado pelos cristãos a partir do terceiro ou quarto
séculos, 0 resto não passa de especulação. Mas o local é importante, ainda que não
pelas razões que os peregrinos supõem. Essas moradias semitrogloditas acentuam o
status humilde do lugarejo do primeiro século. Inúmeras casas de Nazaré possuíam
cavernas que serviam para amenizar os efeitos da temperatura: secas e quentes nos
invernos chuvosos e frescas e agradáveis nos verões quentes.

Também os artefatos encontrados nesses sítios subterrâneos pertencentes ao


período bizantino, bem como os depositados em túmulos, eram muito pobres.
Somente algumas moedas — de bronze, nunca de prata — foram achadas nos tú­
mulos quase sem decorações — e bijuterias baratas diferentemente de outros
sítios fiinebres nos arredores ou na Judéia. Também não foram achados em Nazaré
muitos vasos anteriores ao período bizantino tais como copos ou cálices, garrafas
de ungüento ou perfume, nem de vidro ou bronze ou de qualquer outro metal, nem
tigelas. A cerâmica dos períodos romano e helênico posterior encontrada em Nazaré
era quase sempre produzida localmente e destinada a fins cotidianos — com raras
tigelas decoradas. Entre os utensílios de cozinha encontraram-se panelas rústicas,
caçarolas e jarros para água e para armazenar alimento. Mas nunca ânforas impor­
tadas com alças das ilhas gregas de Rodes ou Knidos, que foram descobertas nas
cidades maiores de Scythopolis e na costa da Cesaréia e nos palácios judaicos de
Herodes. Somente em períodos posteriores apareceram artigos de luxo importados
dos fornos de Chipre e da África do Norte como, por exemplo, pratos e tigelas de
cerâmica brilhante, quándo peregrinos cristãos que iam à Terra Santa começaram
a levar bens e riqueza até Nazaré. Era, então, comum, em vez de ânforas, o uso de
utensílios estampados com cruzes para servir vinho e comida.

Todas as evidências do período romano reforçam a conclusão de que Nazaré era


um simples lugarejo de camponeses. Indicam também uma Nazaré judaica. Seus
túmulos assemelham-se às câmaras mortuárias tipicamente judaicas que discutimos
no primeiro capítulo. A primeira fase do sepultamento chamava-se kokhim ou loculi
(“lóculos”, em português), quando galerias eram cortadas nas paredes da câmara
mortuária, com ângulos retos, do tamanho dos corpos, e depois seladas com uma
grande pedra. Diferiam do costume comum emjerusalém e arredores, onde a norma
eram os ossuários. Na Galiléia, em geral, quando o corpo se deteriorava, os ossos
eram depositados em covas especiais ou mesmo em galerias menores, nas paredes.
Os arqueólogos franciscanos também descobriram em Nazaré duas piscinas ou ba­
nheiras (miqwaoth) com dois lances de degraus utilizadas para purificações rituais
judaicas. Essas piscinas, também usadas para banhos rituais de imersão entre os
judeus, encontravam-se em quase todas as localidades da Galiléia, de Golan e da
Judéia. Embora uma delas seja datada do terceiro século d.C. e tenha sido encontra­
da perto de uma provável sinagoga, a outra destinava-se, provavelmente, à higiene

7. Reconstrução de Nazaré do primeiro século


A cidade natal de Jesus no primeiro século era um vilarejo judaico de camponeses com cerca
de duzentos habitantes. Como a maioria dos galileus, o povo da localidade ganhava a vida com
o produto da terra. As encostas ensolaradas do sul eram ideais para o cultivo de uvas, onde
prensas para fazer vinho (1) e recipientes para armazenar o líquido eram cavados na rocha (2);
guardavam aqui também as podadeiras (3) e jarros feitos na Galiléia (4) descobertos em Nazaré.
Plantavam no vale, irrigado por uma fonte (5) (conhecida hoje como Poço de Maria) vegetais,
legumes, grãos e oliveiras. Sobre o solo rochoso também havia criação de pombos numa espécie
de torre chamada columbária (6). O vilarejo permaneceu no anonimato até a conversão do
Império Rom ano ao cristianismo, quando se tornou alvo popular de peregrinações.
dos habitantes do lugar. Também descobriram em Nazaré inúmeros fragmentos de
vasos de pedra calcárea do período romano, típicos dos lares judeus na Judéia e na
Galiléia.

A pequenina vila de Nazaré, distante da estrada principal, sobre a colina, de


onde se podia ir a pé a Séforis, era o lar de Jesus. As famílias dos camponeses que
aí residiam esperavam poder ganhar a vida, pagar os impostos, guardar suficiente
alimento para sobreviver e evitar a atenção dos oficiais do império. Guardavam as
tradições judaicas, como se pode constatar nos achados arqueológicos. Supomos que
também circuncidavam seus filhos, celebravam a Páscoa, descansavam no Sábado e
valorizavam as tradições de Moisés e dos profetas.

Camadas exegéticas da história de Nazaré


Visitantes, profissionais ou não, que vão até a moderna Nazaré não têm idéia
do que era esse lugar nos dias de Jesus. Para chegar perto do antigo vilarejo é pre­
ciso discernir inúmeras camadas. De certa forma, debaixo de carros e ônibus, casas
e hotéis, lá está a pequenina vila de dois mil anos de idade. O que vislumbramos
debaixo de uma moderna igreja apenas confirma as dificuldades de reconstrução
que enfrenta nossa imaginação contemporânea. Considerando, naturalmente, as
diferenças existentes e óbvias entre camadas de terra e camadas de texto, será que as
histórias do evangelho sobre Nazaré não exigem também escavações paralelas para
mostrar as diferenças entre os diferentes níveis sobrepostos desde o primeiro? Ou
pensaremos que sempre existiu apenas uma camada? Já examinamos acima o caso
de Lucas 4 e vimos que se tratava não da primeira camada da vida do Jesus histórico
mas sim da pena histórica de Lucas. Antes de examinarmos o segundo exemplo, bem
mais complicado que o primeiro, precisamos tecer algumas considerações.

Relembremos as primeiras dez mais importantes descobertas discutidas na in­


trodução. Por causa delas e não obstante todos os tipos de debates que provocaram,
chegamos ao consenso de que as palavras e atos atribuídos ajesus nos evangelhos do
Novo Testamento pertencem a diferentes camadas construídas sucessivamente uma
sobre a outra (isto é, acima, embaixo, ao redor e através delas). Vamos pensar nelas,
paulatinamente: em primeiro lugar, a original, vinda das próprias palavras e atos de
Jesus nos anos 20; em seguida, a tradicional, da adoção e adaptação da tradição que
criou esse material nos anos 30, 40 ou depois; e, finalmente, a evangélica, que pos­
suímos agora a partir dos anos de 70 a 90. Observemos que, como mencionamos no
fmal da introdução, não se trata de procurar saber qual é posterior a textos anteriores,
mas a respeito da dependência entre elas. Obviamente, todos os textos dependentes
são posteriores, mas nem todos os textos posteriores são dependentes.
P rim eira cam ada. A primeira camada contém material dos anos 20 sobre o Jesus
histórico. Trata-se, naturalmente, de reconstrução erudita, decisão guiada por teoria
explícita, método disciplinado e debate público sobre o que na tradição de Jesus
remonta a ele mesmo. Vamos nos concentrar, neste livro, não apenas em unidades
isoladas provenientes da primeira camada, mas também nos principais “blocos” mais
antigos, para ver de que maneira se encaixam na situação dos territórios de Antipas
nos anos 20 e se, de fato, fazem parte dessa época e lugar. Ressaltamos que essas
camadas pressupõem conclusões já alcançadas anteriormente sobre a natureza e
relacionamento dos evangelhos como boas-novas para a vida da comunidade.

Segunda cam ada. A segunda camada contém materiais adotados da primeira


ou criados pela tradição viva. Envolve também reconstrução especializada e inclui
itens como o seguinte: quando Paulo, escrevendo nos anos 50, identifica de certa
forma explicitamente, às vezes, e implicitamente, noutras, a existência de uma
tradição pré-paulina, situa-a nos anos 40 ou mesmo 30. Por outro lado, a tradição
encontrada em duas fontes independentes como o Evangelho Q, também dos anos
50, e algum outro evangelho dentro do Novo Testamento, como Marcos, ou fora
dele, como o Evangelho de Tomé e a Didaqué, indica camadas anteriores. Tais vetores
duplos e independentes remontam a materiais orais ou escritos dos anos 30 ou 40
e, possivelmente, ao próprio Jesus histórico.

Terceira cam ada. A terceira camada é crucial, porque contém três níveis. (Num
sítio arqueológico seriam indicados como stratum Illa, Illb e IIIc.) O primeiro nível
da terceira camada contém o Evangelho Q e Marcos, indo do final dos anos 50 ao
começo dos 70. O segundo nível, provavelmente dependente desses dois evan­
gelhos, contém Mateus e Lucas, dos anos 80. O terceiro nível, quase certamente
dependente de Marcos, Mateus e Lucas, é o evangelho de João. Esse processo
canônico é, digamos, nossa mais segura evidência da existência de camadas como
fenômeno do evangelho. Por fim, naturalmente, qualquer outro texto, como o
Evangelho de Pedro, deve ser estudado do mesmo jeito. Quais camadas internas
são discernidas nele e em que ponto elas se encontram com as três principais que
acabamos de mencionar?

Sob essas três distintas camadas situa-se uma outra mais fundamental. Talvez
devêssemos dizer que se trata mais de matriz do que camada propriamente dita,
espécie de ambiente e de tradição interagindo com determinada situação. Pensemos
neste paralelo. Debaixo dos strata arqueológicos de algum sítio antigo chegamos à
rocha, ou fundamento, o chão. Não se trata de algo dado passivamente, mas muito
mais de presença sempre ativa. A topografia de Jerusalém, por exemplo, não se limita
a mero chão, mas é destino seja para defesa militar seja para edifícios sagrados. O
mesmo se dá com as três camadas exegéticas. Debaixo delas, como fundamento
sempre interagindo com elas como presença, situa-se a experiência judaica de uma
tradição antiga e veneranda lutando contra o orgulho do internacionalismo cultural
grego e a enorme arrogância do imperialismo militar romano. Preocupamo-nos neste
livro com a dialética entre o fundamento e a camada original da tradição textual, com
a compreensão do Jesus histórico considerando sua vida na falsa quietude imedia­
tamente depois do prelúdio de horror do ano 4 a.C. e décadas antes da consumação
do horror nos anos 66-74 d.C.

A tarefa de separar essas camadas é muitas vezes mais do que mero exercício
curioso. Pode estabelecer precisão mais do que importância. No caso de Lucas
4,16-30, que já examinamos, a conclusão não foi apenas de que não havia sinagoga
em Nazaré no primeiro século nem rolos da Lei e dos Profetas, nem camponeses
letrados e cultos, nem montanhas por perto, mas também, e mais importante, que
não havia habitantes assassinos. O povo do vilarejo nunca tentou matar Jesus. A
história em pauta não veio do nível original do stratum I, mas do nível lucano do
stratum Illb. Valeu a pena chegar a essa conclusão não apenas em nome da exatidão
histórica mas também em nome da afirmação da honra e da dignidade de um pe­
queno vilarejo judaico num pequeno país há muitos anos. Jesus não cresceu numa
vila de assassinos.

Depois dessa história em Lucas, temos dois outros casos envolvendo a Nazaré
de Jesus. O primeiro relaciona-se com sua família e especialmente com Tiago, em
Marcos. O outro, com seus pais, especialmente com Maria, em Mateus. No se­
gundo caso, mais envolvente, observaremos como as histórias, outras histórias, e
contra-histórias interagem para produzir narrativas ligadas a interações textuais. O
resultado será uma narrativa intertextualmente densa e diversa como em qualquer
estratigrafia arqueológica. "

Um irmão em descrença?

Numa observação de passagem, infelizmente concisa e influente, João 7,5 diz


a respeito de Jesus que “nem mesmo os seus irmãos creram nele”. A acusação in­
cluía Tiago, 0 Justo, de Jerusalém, irmão de Cristo Senhor e centro do debate sobre
o ossuário. Se Tiago não acreditava em Jesus, pode-se explicar daí sua conversão
quando da aparição do ressuscitado mencionada por Paulo em 1 Coríntios 15 e já
notada no capítulo precedente. Mas o não canônico Evangelho dos hebreus 1 nada diz
a respeito. Bem ao contrário, Tiago estava presente na Última Ceia e demonstrara
tanto ter crido na eventual ressurreição de Jesus que jurara não mais comer o pão
daquela hora até quando pudesse beber o cálice do Senhor ao vê-lo ressuscitar den­
tre os mortos. Novamente, surge a questão das camadas textuais e dos strata dos
evangelhos: será João 7,5 parte da camada I do tempo e da história de Jesus ou a
camada IIIc da teologia de João? E, posto que o comentário de João é tão curto, somos
remetidos a duas narrativas mais longas em Marcos das quais João bem poderia ter
dependido: representará Marcos 6,1-6 e 3,19-35 a camada I dos tempos de Jesus no
fmal dos anos 20 ou a camada Illa de Marcos no começo dos anos 70?

Trabalho contra sabedoria. A história em Marcos 6,1-6 conta que os que haviam
ouvido Jesus na “sua pátria”, isto é, Nazaré, não acreditavam nele e o dispensavam
com desdém:

Dizendo: “De onde lhe vem tudo isto? E que sabedoria é esta que
lhe foi dada? E como se fazem tais milagres por suas mãos? Não é
este 0 carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, Joset, Judas e
Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?”.

Esse texto, naturalmente, nomeia os irmãos de Jesus, mas não dá nome para as
irmãs. Tiago é mencionado em primeiro lugar entre os outros. O verbo “dizendo”
refere-se aos “numerosos ouvintes” na sinagoga. “Escandalizavam-se dele” porque
a ocupação tanto de Jesus como de sua família era insignificante. Nada nos diz
nesse texto que seus familiares não acreditavam nele, muito menos Tiago. Os cam­
poneses, habitantes do lugar, e não a família, é que são citados como descrentes.
Mas, naturalmente, o texto posterior de Marcos 6 deve ser lido juntamente com o
anterior. Marcos 3.

Sangue contra fé . O que temos em Marcos 3,19-35 é um caso clássico do que os


especialistas chamam de “intercalação marcana” ou, mais coloquialmente, de um
sanduíche de Marcos. Trata-se de artimanha literária para dar ênfase num aspecto
teológico e deve ser recebido assim. Temos aí o começo de um incidente (unidade
A l), interrompido por um segundo acontecimento (unidade B) e o encerramento do
primeiro (unidade A2). A função desse dualismo consistia em criar uma interação
dinâmica para que cada evento comente sobre o outro e o leitor pondere a manei­
ra como funciona exatamente a dialética interpretativa. Por exemplo, a confissão
confiável e corajosa de Jesus em Marcos 14,55-65 foi contrastada com a falsa e
covarde negação de Pedro em Marcos 14,54 e 14,66-72. Eis a seguir a intercalação
(ou sanduíche) em 3,19-35:

(A l) Marcos 3,19-21 a família de Jesus


(B) Marcos 3,22-30 os escribas de Jerusalém
(A2) Marcos 3,31-35 a família de Jesus

Que quer dizer isso? A seção interna de 3,22-27 é agressiva ao máximo. Nela,
“os escribas que haviam descido de Jerusalém” declaram que Jesus está possuído por
Belzebu e que pelos príncipes dos demônios expulsa os demônios. Jesus ridiculari­
za-os argumentando que Satanás deve estar dividido e que, portanto, não poderia
subsistir, mas também os acusa do pecado imperdoável contra o Espírito Santo
“porque eles diziam: ‘Um espírito imundo está nele’”. Agora, em dialética contra
esse ataque, leiamos os textos que se referem à sua família.
Os agressivos escribas agora enfrentam também uma família agressiva, e o pro­
pósito da intercalação de Marcos busca precisamente criar esse efeito. A abertura
dessa seção em 3,19-21 diz:

E voltou para casa. E de novo a multidão se apinhou, a ponto de não


poderem se alimentar. E quando os seus tomaram conhecimento
disso, saíram para detê-lo, porque diziam: “Enlouqueceu!”.

Observemos que, no mundo antigo, insanidade e possessão eram estados muito


semelhantes, a ponto de Marcos tornar quase sinônimos o que dizia a família de
Jesus e 0 que diziam os escribas opositores. A seção fmal sobre a família de Jesus
em 3,31-35 vem logo após a acusação dos escribas que diziam que Jesus tinha um
espírito imundo em 3,27. Mas, diferindo da unidade A, esta última seção é bem
menos agressiva:

Chegaram então a sua mãe e seus irmãos e, ficando do lado de


fora, mandaram chamá-lo. Havia uma multidão sentada em torno
dele. Disseram-lhe: “A tua mãe, os teus irmãos e tuas irmãs estão
lá fora e te procuram”. Ele perguntou; “Quem é minha mãe e meus
irmãos?”. E, percorrendo com o olhar os que estavam sentados ao
seu redor, disse: “Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão,
irmã e mãe”.

Em si, a história exalta a fé acima do sangue e o parentesco teológico sobre o


biológico. Mas quando 3,19-21 prefacia 3,31-35, parece sugerir que Jesus rejeita
sua família e é por ela rejeitado. Observemos, de passagem, que em 3,31-35 mãe
e irmãos (três vezes) passam a ser em Marcos mãe, irmãos e irmãs (duas vezes). É
impossível não combinar as expressões mãe, irmãos e irmãs de 3,31-35 com 6,1-6.
Quando lemos esses dois trechos em seqüência e os combinados entre si, temos a
clara impressão de que a família de Jesus (mãe, irmãos e irmãs) achava que ele era
louco e não divino.

Eis como, por contraste, outro evangelho conta a mesma história da chegada
da família de Jesus e da reação dele. Vem do Evangelho de Tomé 99, texto que não
faz parte do Novo Testamento e que foi encontrado em 1945 em Nag Hammadi,
no Alto Egito:

Os discípulos disseram-lhe: “Teus irmãos e tua mãe estão lá fora”.


Ele lhes disse: “Os que estão aqui e que fazem a vontade do meu
Pai são meus irmãos e mãe. São os que entrarão no reino do
meu Pai”.
O texto também exalta a fé acima do sangue e a teologia sobre a biologia, mas
não há sinal algum de insanidade nem são mencionadas as irmãs.

Concluímos que a acusação por parte da família de Jesus de descrença (ou pior,
de suspeita de loucura) não procede do nível I sobre Jesus do fmal dos anos 20,
mas do nível Illa de Marcos do começo dos anos 70. Na verdade, encaixa-se bem
na principal ênfase teológica da teologia de Marcos, a saber, que seus mais íntimos
não o reconheceram: os conterrâneos do vilarejo, a família, os discípulos, mesmo os
Doze e especialmente Pedro, que o negou no julgamento. O fato principal não é que,
na família de Jesus, Tiago, por exemplo, fosse descrente, ou se tivesse convertido
depois, mas que o evangelho de Marcos relata parte da oposição a Tiago que já vimos
se estendendo desde a epístola de Paulo aos Gálatas até os Reconhecimentos clementinos
no capítulo anterior. Longe de ser um descrente em Jesus, Tiago foi um crente de
tal maneira importante que gerou a oposição intracristã à sua fé, à sua autoridade,
e até mesmo, provavelmente, ao seu relacionamento fraternal com Jesus.

Mãe adúltera?

Pouco antes d o in o 180 d.C., o filósofo grego Celso escreveu uma crítica polê­
mica contra o cristianismo, Sobre a verdadeira doutrina, na qual defende a verdade do
paganismo. A obra original foi perdida, mas se tornou conhecida por causa da porme­
norizada réplica cristã, Contra Celso, de Orígenes de Alexandria na metade do século
seguinte. A seguir, o comentário mordaz de Celso sobre a concepção de Jesus:

Imaginemos o que algum judeu — principalmente se filósofo


— poderia perguntar a Jesus: “Não é verdade, meu bom senhor,
que você inventou a história de seu nascimento de uma virgem
para abafar os rumores acerca das verdadeiras e desagradáveis cir­
cunstâncias de sua origem? Não é fato que, longe de ter nascido em
Belém, cidade real de Davi, você nasceu num lugarejo pobre de uma
mulher que ganhava a vida no tear? Não é verdade que quando sua
mentira foi descoberta, sabendo-se que fora engravidada por um
soldado romano chamado Panthera, seu marido, um carpinteiro,
a abandonou sob a acusação de adultério? Não é verdade que, por
causa disso, em sua desgraça, perambulou para longe de seu lar e
deu à luz um menino em silêncio e humilhação? Que mais? Não
é também verdadeiro que você se empregou no Egito, aprendeu
feitiçaria e se tornou conhecido a ponto de agora se exibir entre os
seus conterrâneos?”.
Essa acusação está em uma camada posterior à terceira, ou evangélica, que vimos
na discussão de Lucas 4,16-30. A questão é, mais uma vez, a seguinte; ela vem dessa
camada bastante tardia ou já se encontrava na primeira? Em outras palavras, que
nos diz a respeito da concepção de Jesus?

A acusação de Celso é não apenas posterior mas também dependente da terceira


camada representada pelo evangelho de Mateus, chamada de evangélica. O ponto
crucial não é a menção do nascimento em Belém, encontrada em Lucas, nem mesmo
do Egito, presente em Mateus. É a identificação de “seu marido, um carpinteiro”.
Marcos 6,3 chamava o próprio Jesus de “carpinteiro”, mas, ao copiar Marcos, Mateus
mudou a frase para “filho do carpinteiro” (13,55). É provável que tenha achado a
ocupação inadequada para Jesus, como já o fizera Lucas, que nem fala no assunto.
Tudo isso nos informa que o conhecimento que Celso tinha da concepção de Jesus
vinha especificamente de Mateus. Mas não parece ter procedido diretamente daí.
Observemos que a expressão “imaginemos” vem de um judeu contrário ao cristianis­
mo; esse tipo de crítica era bem conhecido na tradição judaica posterior. Tudo indica,
portanto, que a crítica se originara nas polêmicas intrajudaicas entre judeo-cristãos
e judeus não cristãos. Em outras palavras, a afirmação do nascimento virginal não
se destinava a ocultar adultérios de judeo-cristãos. Era exatamente o contrário. Os
judeus não cristãos levantavam a acusação de concepções adúlteras para refutar a
concepção virginal.

Antes de prosseguir, examinemos um pouco mais essa polêmica. No mundo


antigo era comum que retóricos atacassem filósofos e estes se digladiassem en­
tre si, que pagãos se opusessem a judeus e estes se atacassem mutuamente. As
acusações chamavam-se vituperatio. Hoje em dia reconhecemos o fenômeno como
“danos morais”, campanhas negativas e propaganda polêmica. Nesses embates, a
exatidão e a verdade resvalavam facilmente para o libelo e a difamação. Os judeo-
cristãos chamavam os judeus não cristãos de minuciosos, legalistas, hipócritas e
“sepulcros caiados”. Os judeus não cristãos chamavam Jesus de endemoninhado,
samaritano, glutão e beberrão. Tratava-se apenas de bate-boca; não tinha a ver com
descrição de caráter. Não se deveria mais discutir historicamente a respeito dos fa­
riseus como hipócritas e de Jesus como endemoninhado. Mas existe outro processo
que poderíamos chamar de manipulação de histórias. É muito pior do que apenas
proferir insultos e menos verdadeiro tanto na Antiguidade como agora. É o que
encontramos no presente caso. A história e suas reivindicações geram anti-história
e anti-reivindicações.

De Moisés a Jesus

A acusação de Celso choca muitos cristãos por ser profundamente ofensiva. Mas
devemos lembrar que Josefo foi o primeiro a imaginar que a concepção de Jesus
havia sido fruto de aduhério e que Mateus foi o primeiro a mencionar essa suspeita
em seu próprio evangelho. A história da infância de Jesus em Mateus foi contada
principalmente do ponto de vista de José, assim como em Lucas, do ponto de vista
de Maria. Por exemplo, em Mateus, é José que recebe a anunciação e não Maria,
como em Lucas. Mas, embora o José de Mateus levante a questão do adultério,
nada existe a respeito dessa possibilidade na história do nascimento em Lucas
1,26-38. Lucas, como Mateus, sabia que Maria estava comprometida com José. Mas,
em Lucas e somente aí, o anjo anuncia-lhe que ela conceberá o Filho de Deus por
obra do Espírito Santo. Em Lucas, o leitor pode pressupor, e assim o deve fazer, que
ela foi a José e lhe contou o que tinha acontecido e que ele acreditou nela da mesma
maneira como ela acreditara no anjo. Mas a narrativa de Mateus é diferente. Eis, a
seguir, como ele conta o incidente em 1,18-25:

A origem de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, comprometida


em casamento com José, antes que coabitassem achou-se grávida
pelo Espírito Santo. José, seu esposo, sendo justo e não querendo
difamá-la, resolveu repudiá-la em segredo. Enquanto assim decidia,
eis que o Anjo do Senhor manifestou-se a ele em sonho, dizendo:
“José, filho de Davi, não temas receber Maria, tua mulher, pois o
que nela foi gerado vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho e
tu 0 chamarás com o nome de Jesus, pois ele salvará o seu povo dos
seus pecados”. Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que o
Senhor havia dito pelo profeta: Eis que a virgem conceberá e dará à luz
um filho e o chamarão com o nome de Emanuel, o que traduzido significa:
“Deus está conosco”. José, ao despertar do sono, agiu conforme o
Anjo do Senhor lhe ordenara e recebeu em casa sua mulher. Mas
não a conheceu até o dia em que ela deu à luz um filho. E ele o
chamou com o nome de Jesus.

Pelo que sabemos, o costume galileu era mais rígido do que o da Judéia no que se
refere às relações sexuais para o casal entre o compromisso inicial, que já estabelecia
direitos legais, e a cerimônia final, que estabelecia um lar comum. Mas mesmo na
Galiléia os camponeses teriam presumido que a gravidez de Maria não resultara de
adultério nem de fornicação, mas de consumação matrimonial um pouco antes do
tempo. Com exceção de Maria, somente José poderia saber a explicação para o fato.
Observemos, de passagem, que o adultério afetava apenas os direitos do marido e
que Maria não teria cometido adultério a não ser que os direitos matrimoniais de
José já tivessem sido selados.

A concepção de Jesu s em M ateus. Mas eis aqui uma questão simples. Por que,
afinal, teria Mateus contado a história desse jeito? Por que teria levantado o es­
pectro do adultério mesmo se de passagem? Uma vez que os noivos já haviam se
comprometido oficialmente, a gravidez, mesmo se não legal antes de Maria se ter
mudado da casa do pai para a do marido, não levantaria suspeitas de adultério a não
ser para José. As pessoas poderiam ficar desconfiadas e tagarelar a respeito, mas
não passaria disso. Ninguém consideraria a concepção de Jesus adúltera. Mesmo
se José tivesse se divorciado de Maria e nada dissesse, os vizinhos certamente não
teriam necessariamente pensado em adultério. E, até mesmo se José se queixasse
disso, não teria efeito legal. Por volta do ano 200 d.C., por exemplo, o código legal
judaico na Mixná relata o seguinte debate: “Se um homem disser: ‘Este meu filho
é bastardo’, poderá não se acreditar no que afirma. Mesmo se ambos disserem que
a criança ainda no ventre é bastarda, poderão não ser acreditados. R. Judah afirma:
Poderão ser cridos” (Qiddushin 4,8).

Então, por que fazer a pergunta? Conheceria Mateus pormenores ignorados por
Lucas? Teria informação sobre o que se passava na mente de José, mesmo por pouco
tempo? Ou os propósitos da narrativa de Mateus não eram os mesmos de Lucas?
Precisamos considerar cuidadosamente a narrativa da concepção de Jesus em Mateus.
Se não o fizermos, teremos que concluir que Mateus levantou desnecessariamente
uma possibilidade que acabou sobrevivendo desde a tradição antiga até a erudição
moderna. Mas será que a camada original admite que Maria fora adúltera e Jesus,
bastardo, do ponto de vista estritamente histórico? Se não, repetimos, que estava
querendo Mateus com sua história da infância e por que teria levantado, mesmo
se por engano ou de passagem, a possibilidade de divórcio por causa de suposto
adultério?

M oisés e Jesu s em M ateus. No começo e no fim da vida pública de Jesus, Ma­


teus 0 situa numa montanha na Galiléia. Suas últimas palavras aos_ discípulos são
proferidas no “m onte que Jesus lhes determinara” (28,16). As palavras inaugurais
foram as que chamamos de Sermão da Montanha, que Mateus provavelmente teria
chamado de Lei Renovada ou Monte Sinai Renovado. Jesus “subiu ao monte” (5,1)
e disse: “Não penseis que vim revogar a Lei e os Profetas. Não vim revogá-los, mas
dar-lhes pleno cumprimento” (5,17), e o fez intensificando a Lei ou os Profetas
num ideal de perfeição por meio de seis notáveis antíteses. Reiterando o refrão de
abertura, “Ouvistes que foi dito aos antigos [...]. Eu, porém, vos digo proibiu
a cólera, o desejo libidinoso, o divórcio, os juramentos, a violência e exigiu o amor
universal (5,21-48). O evangelho de Mateus retratou Jesus como o novo e eticamente
mais intransigente Moisés no topo de um monte muito mais exigente moralmente
do que o Sinai. Com esse evangelho, estabelece-se o conteúdo da história de seu
nascimento. Mateus desenhou a narrativa da infância, a história do nascimento de
Jesus, deliberadamente a partir do modelo de Moisés.

A concepção de M oisés na tradição. Há cerca de mil anos antes do tempo de Je­


sus, o Faraó decretara, segundo Êxodo 1-2, que todos os hebreus nascidos de sexo
masculino deveriam ser mortos com a finalidade de controlar o número de hebreus
na fronteira ao norte do Egito. Moisés já havia sido concebido e, depois de nascer,
foi salvo pela filha do Faraó, que o criou como se fosse egípcio. Nada disso parece
particularmente relevante como modelo do paralelismo entre a infância de Jesus
e a de Moisés na abertura do evangelho de Mateus. Mas a história do Êxodo é tão
pequena que qualquer contador de história que se preze gostaria de ter respostas
a duas questões óbvias. Não é um pouco demasiadamente coincidente que Moisés
tivesse que nascer precisamente naquele desafortunado momento de infanticídio
geral? Não é estranho que aqueles pais hebreus não tenham optado pelo divórcio,
pela separação ou pelo menos pelo celibato para prevenir o infanticídio masculino
e a escravidão feminina? Já no primeiro século de nossa era, a expansão popular da
história do nascimento de Moisés procurou responder a essas questões, e o processo
continuou ao longo do primeiro milênio na tradição judaica.

Naquela tradição o processo de reescrever histórias das Escrituras vinha dos


midrashim haggádicos, comentários que explicavam e aumentavam as narrativas das
Escrituras hebraicas, ou/e dos targumim, também comentários em aramaico que
traduziam, explicavam e aumentavam esse material. As pessoas comuns tomavam
conhecimento dessas histórias principalmente e até mesmo exclusivamente filtradas
por esses constantes desenvolvimentos. Para nossos propósitos, vamos nos concen­
trar em duas fontes que podem ser datadas com certa segurança do primeiro século,
mas, naturalmente, são mais transmissoras do que criadoras do que registram. As
Antiguidades judaicas, do historiador Josefo, e âs Antiguidades bíblicas, de autor anôni­
mo (chamado Pseudo-Fílon por ter sido preservada entre as obras do filósofo judeu
alexandrino do mesmo nome) registram os estágios iniciais do que se tornaria uma
pequena indústria caseira de narrativas dedicada ao aperfeiçoamento da história
do nascimento de Moisés. Concentremo-nos nesse processo como se fosse uma
sucessão de melhoramentos, por assim dizer, ao redor de dois temas, o decreto do
rei e a decisão posterior do pai.

0 decreto do rei. Em primeiro lugar, a ordem do Faraó. Não é, segundo as adi­


ções, que Moisés tivesse simplesmente nascido depois da promulgação do decreto
do genocídio. Um dos conselheiros do Faraó já lhe havia advertido do perigo para
0 Egito do nascimento de uma criança hebréia capaz de ameaçá-lo e de libertar os
israelitas, segundo a obra dejosefo citada acima:

Estando em situação difícil, novo incidente estimulou os egípcios


a exterminar a nossa raça. Um dos escribas sagrados — pessoas
capazes de predizer com habilidade o futuro — anunciou ao rei
que nasceria entre os israelitas naqueles dias uma criança que
destruiria a soberania dos egípcios e exaltaria os israelitas quando
se tornasse adulta, ultrapassando todos os homens em virtude e ga­
nhando reconhecimento eterno. Alarmado com isso, o rei, ouvindo
a advertência de seu sábio, ordenou que todas as crianças do gênero
masculino nascidas dos israelitas fossem mortas por afogamento
no rio (2.205-206).

Em outras palavras, o infanticídio geral tinha o específico propósito de matar o


futuro Moisés. Ele estava no centro da história; não era simples causalidade acidental
de um processo geral. O futuro Moisés era a causa e não mero acidente daquele
assassinato em massa. Algumas versões dessa tradição registradas em textos pos­
teriores contam que o Faraó tivera um sonho no qual um cordeiro oprimia todo o
Egito; na manhã seguinte teria convocado os conselheiros para que interpretassem
0 sonho.
Percebemos imediatamente quão superior era a versão popular à de Mateus, em
relação a seus propósitos. Herodes, o Grande, é o novo Faraó opressor. Ambos são
avisados a respeito dos perigos dos recém-nascidos. Herodes é advertido por “todos
os chefes dos sacerdotes e os escribas do povo”, em Mateus, assim como o Faraó,
“por um dos escribas sagrados”, em Josefo. Os dois determinaram o infanticídio
masculino gerai para destruir a criança predestinada, fosse Moisés ou Jesus.

A decisão do pai. Em segundo lugar, examinemos o que fez Amram. Novamente,


a narrativa de Êxodo é, no melhor dos casos, sumária. Depois do decreto do Faraó,
“certo homem da casa de Levi foi tomar por esposa uma descendente de Levi”, em
Êxodo 2,1, e Moisés é concebido. Somente depois, em 6,20, o nome deles aparece
como Amram ejocabed. Aqui, também, nada nos induz ao paralelo entre Moisés e
Jesus. Mas, novamente, os relatos populares são mais adequados ao propósito de
Mateus. Quando lemos a seqüência de Êxodo, que vai do decreto mortífero até a
cerimônia de casamento, podemos levantar estas perguntas óbvias: Por que correr
0 risco de infanticídio para os meninos e escravidão para as meninas? Por que casa­
mento e concepção? Não seria melhor separação ou divórcio? Tanto Josefo como o
Pseudo-Fílon tinham respostas para essas perguntas e a diferença entre elas indica
a existência de uma rica tradição sobre o tema.

Nas Antiguidades judaicas de Josefo, Amram e Jocabed já estavam casados e ela


grávida quando o decreto de Faraó fora promulgado:

Amram (es), um hebreu de estirpe nobre, temendo que sua raça


desaparecesse por falta de descendentes, e seriamente ansioso por­
que sua esposa esperava um filho, ficou profundamente perplexo.
Recorria, naturalmente, às orações [...] e Deus teve compaixão dele
e, movido por suas súplicas, apareceu-lhe em sonho, exortando-o a
não se desesperar do futuro, dizendo-lhe que [...] “a criança, cujo
nascimento enchia os egípcios de medo e que lhes levava a decretar a
destruição de todos os nascidos de israelitas, será, na verdade, a tua;
0 menino escapará de todos os que procurarem destruí-lo e, crescido
de maneira maravilhosa, libertará a raça dos hebreus do cativeiro
no Egito, e será lembrado enquanto o universo durar, não apenas
pelos hebreus mas por todas as outras nações” (2.210-211).

Começamos, então, a entender por que Mateus conta a história da infância do


ponto de vista de José e não de Maria. Está interessado no paralelismo com Moisés
que dá ênfase no pai Amram e não na mãe Jocabed.

Nas Antiguidades bíblicas do Pseudo-Fílon, o papel de Amram é muito ampliado.


Ele e Jocabed ainda não estavam casados quando o decreto foi promulgado. Questio­
na-se se qualquer casamento aconteceria em face da ameaça do infanticídio. Amram
recusa o celibato, a separação e o divórcio como soluções, mas agora é Miriam, a
futura irmã de Moisés, que tem o sonho revelatório:

Então os anciãos do povo reuniram todos em tristeza [e disseram]


[...]: “Estabeleçamos regras para nós a fim de que nenhum homem
se relacione com sua esposa [...] até saber o que Deus vai fazer”. E
Amram respondeu dizendo [...]: “Eu irei e tomarei minha esposa,
e não obedecerei a ordem do rei; e se isso for justo aos seus olhos,
façamos assim”. A estratégia de Amram foi agradável a Deus. E
Deus disse [...]: “Aquele que nascer dele me servirá para sempre”.
E Amram da tribo de Levi saiu e desposou uma mulher de sua pró­
pria tribo. Quando ele assim agiu, outros o seguiram e também se
casaram [...]. Este homem tinha um filho e uma filha; seus nomes
eram Aarão e Miriam. O espírito de Deus veio sobre Miriam, de
noite, e teve um sonho e o contou a seus pais quando amanheceu,
dizendo: Eu vi o seguinte nesta noite: um homem vestido de linho
levantou-se e me disse: “Vai e diz aos teus pais: ‘0 que nascerá de
vocês será jogado nas águas; mas também por ele as águas secarão.
Eu operarei sinais por meio dele e salvarei meu povo e ele será líder
para sempre’”. Quando Miriam contou o seu sonho aos pais, eles
não acreditaram nela (9.2-10).

0 tema da continuação ou não do casamento é novo nesse texto. Mas o sonho


revelatório só se deu por meio dela, embora se dirigisse também aos pais. Nos dois
casos, 0 conteúdo do sonho é o mesmo. Amram e Jocabed serão os pais de uma criança
predestinada e ameaçada. Diversas versões dessa tradição registradas em textos pos­
teriores contam que Amram e Jocabed se divorciam como, aliás, muitos outros. Mas
0 sonho de Miriam obriga-os a retomar o casamento para conceberem Moisés.
Duas histórias paralelas sobre a infância. Imaginemo-nos na mente de Mateus com­
pondo a história do nascimento de Jesus inspirado no modelo das histórias populares
a respeito de Moisés que circulavam antes do primeiro século em obras como a de
Josefo e a do Pseudo-Fílon. Não é difícil traçar paralelos entre o Faraó e Herodes. Mas
era preciso enfrentar o paralelo entre Amram e José. Inserem-se aí hesitação dos pais,
dúvidas, perplexidades, separação e divórcio. Nos dois casos há sonhos revelatórios
para resolver problemas. Finalmente, é preciso que se declare aos pais que o filho é
deles. Leiamos novamente o que fez José na primeira citação de Mateus 1,18-25. O
problema se torna evidente quando José chega a pensar em adultério (outros diriam
que se tratava de consumação antecipada do casamento). 0 sonho assegura-lhes (no
caso de José e Maria) que o filho “salvará o seu povo dos seus pecados”, e, no caso de
Moisés, que ele “libertaria o povo hebreu do cativeiro no Egito”.

Concluímos que o próprio Mateus criou a narrativa fictícia ou parabólica do


nascimento de Jesus e que tinha a intenção de mostrar Jesus como o cumprimento
divino de Moisés, mas que, no interior do processo desse paralelismo, levantou a
questão do adultério que haveria de rondar sua história desde o começo até hoje.
A composição de Mateus é a terceira camada, ou evangélica, que provocou imediata­
mente 0 surgimento de uma réplica óbvia, numa camada pós-mateana. Imaginemos
a troca normal de insultos entre as facções da mesma religião. Os judeus pró-Jesus:
“Ele nasceu de Deus por meio de uma virgem sem nenhum pai humano”. E os con­
trários a Jesus: “Se José não é o pai, então Maria é adúltera e Jesus, bastardo. Vocês
alegam que ele foi concebido virginalmente pelo poder divino. Nós afirmamos que
foi adultério e, pior, não por um conterrâneo judeu pecador, mas por um pagão, um
soldado romano”. Ponto e contraponto. História e contra-história.

Filho de Maria, filho de José, filho de Deus


0 ossuário de Tiago identifica o indivíduo como “filho de José, irmão de Jesus” e,
embora não diga, presume que Jesus era também filho de José. Mas nenhuma outra
informação foi gravada na pedra. Já sabíamos pelo Novo Testamento que Jesus tinha
irmãos e irmãs e que Tiago era o primeiro deles. Também sabíamos que Jesus era
“filho do carpinteiro”, em Mateus 13,55, ou “filho de José”, em Lucas 4,22 ejoão
6,42. Quando interpretamos o texto, sem dúvida, também interpretamos a pedra.
Mas, novamente, a própria presença do ossuário nos força a levantar velhas questões
e a repensar algumas das antigas soluções.

Poderíamos dizer, como se tem dito desde o quarto século para preservar o
conceito teológico particular sobre a virgindade de Maria, que Tiago é o irmão de
sangue mais novo ou, talvez, meio-irmão ou até mesmo primo de Jesus. Nesse caso,
diríamos que José era apenas padrasto ou guardião de Jesus. Essa idéia reconciliaria
a expressão em Lucas 4,22, “filho de José”, com o texto anterior de Lucas 1,35: “O
anjo respondeu [a Maria]: ‘O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo
vai te cobrir com a sua sombra; por isso, o Santo que nascer será chamado Filho de
Deus”. Mas surge esta questão mais fiandamental, tanto para os antigos como para
OS modernos: Poderia uma criança ser ao mesmo tempo fillia biológica de José e
teologicamente, de Deüs? Em outras palavras, será a expressão “Filho de Deus” mais
ou menos metafórica que “Palavra de Deus” ou “Cordeiro de Deus” quando apli­
cadas a Jesus? Cada uma dessas expressões significa uma relação particular e única
entre Jesus, Deus e os cristãos, mas embora sendo expressões reais, não precisam
ser interpretadas literalmente. E se o título não é literal mas metafórico, então a
narrativa da concepção de Jesus não é literal mas parabólica. Não existe, pois, con­
tradição alguma entre o fato de Jesus ter sido filho de José, biologicamente, e filho
de Deus, teologicamente. As duas afirmações são, na verdade, igualmente reais. Pelo
menos, explica-se, assim, por que somente Mateus e Lucas contam essa história da
concepção e Paulo, Marcos e João a desconhecem no Novo Testamento. Mas todos
eles consideram Jesus Filho de Deus. Porém, por que Mateus e Lucas não apenas
aceitam o título Filho de Deus mas o transformam numa parábola da concepção? E,
especialmente, por que essa parábola foi contada a respeito de uma virgem?

Na tradição bíblica, crianças predestinadas — marcadas por um destino divino


previsto — nasciam de pais idosos e estéreis e não de mães jovens e virginais. O
exemplo clássico é Isaac, nascido dos anciãos estéreis Abraão e Sara. Quando Deus
lhes prometeu um filho, os dois riram da idéia. Em Gênesis 17,17, “Abraão caiu com
0 rosto por terra e se pôs a rir, pois dizia a si mesmo: Acaso nascerá um filho a um
homem de cem anõs, e Sara que tem noventa anos dará ainda à luz?’”. E em Gênesis
18,11-12, “Ora, A braãoeSara eram velhos, de idade avançada, eSara deixara de ter
0 que têm as mulheres. Riu-se, pois. Sara no seu íntimo, dizendo: Agora que estou
usada, conhecerei o prazer!’”. Esse era o modelo bíblico e judaico tradicional para
concepções divinamente controladas.

Por outro lado, poderia parecer que a concepção virginal de uma jovem seria
milagre ainda maior, sinal mais extraordinário da intervenção divina, do que entre
idosos e estéreis. É assim, também, que Lucas 1-2 contrasta e exalta a concepção
e nascimento virginais de Jesus com o de João Batista, concebido por pais idosos e
estéreis. Em 1,7, os pais deste último não tinham tido filhos “porque Isabel era estéril
e os dois eram de idade avançada”, e em 1,18 “Zacarias perguntou ao anjo: ‘De que
modo saberei disto? pois eu sou velho e minha esposa é de idade avançada’”. Pareceria
que a concepção virginal era mais poderosa do que na velhice, mesmo considerando
que ambas implicam intervenção divina. Jesus é, de longe, muito maior do que João,
mesmo ou especialmente quando se comparam suas concepções.

Por outro lado, qualquer concepção de idosos e estéreis é publicamente visível,


legalmente provável e comumente verificável. Embora se tenha que explicar de
maneira extraordinária, ninguém debate o fato de uma concepção e nascimento
acontecidos na velhice. Mas uma concepção virginal depende, positivamente, da
palavra da mãe e, negativamente, da afirmação do pai. Levanta a suspeita óbvia de
acusação de adultério ou fornicação. Em face disso, por que se pensaria que se tra­
tava de intervenção divina maior e mais excelente? Por que se escolheu a novidade
bíblica da concepção divina direta em lugar da tradição bíblica indireta?
A concepção virginal foi criada para representar o cumprimento de Isaías 7,14. A
tradução grega desse versículo hebraico é esta: “Eis, a virgem terá (no seu) ventre e dará
à luz um filho e o chamará de Emanuel”. A frase significava, em hebraico e provavel­
mente em grego, que essa promessa seria cumprida dentro de um ano, isto é, no tempo
suficiente para que uma virgem jovem se casasse, tivesse um filho e lhe desse um nome.
Não queria dizer que ela permaneceria virgem nesse processo, mas que o iniciaria como
tal. Em outras palavras, os exegetas judeo-cristãos primitivos teriam usado Isaías 7,14
e tomado a palavra “virgem” literalmente, embora o texto não os obrigasse necessaria­
mente a isso. Algo levou os exegetas judeo-cristãos a pensar sobre a concepção divina
direta e sair a procura de textos bíblicos capazes de apoiar essa idéia.

Na tradição bíblica, como vimos, os nascimentos de crianças especialmente predestina­


das, eram normalmente indicados por gravidezes inesperadas de casais idosos e estéreis. Mas
na tradição greco-romana, de Alexandre a Augusto, eram indicados por indivíduos terrenos
tomados pelo poder celestial, isto é, por meio de interação humana e divina. Foi assim, por
exemplo, a concepção divina de Otaviano, que se tomaria depois César Augusto, Senhor e
Salvador do Império Romano, segundo a obra de Suetônio /i vicia à)s Césares: o deificacb Augusto
94.4: “Quando Atia chegava no meio da noite para o solene culto de Apoio, tinha sua liteira
no templo e dormiu ao mesmo tempo que as matronas. De repente uma serpente subiu
sobre ela e logo desapareceu. Quando se acordou, puriíicou-se, como se fosse depois de ter
abraçado o marido, e no mesmo instante apareceu em seu corpo marcas coloridas como de
serpente, e não conseguiu se livrar delas; por isso deixou de freqüentar os banhos públicos.
Dez meses depois nasceu Augusto e foi considerado filho de Apoio. Átia, também, antes de
dar-lhe àluz, sonhou que suas partes vitais tinham subido às estrelas e se espalhado sobre a
imensidão da terra e do mar, enquanto Otávio sonhava que o sol nascia do ventre de Átia”.
Suetônio atribui a história dessa concepção no inverno de 62 a.C. a uma fonte egípcia
por volta do ano 30 a.C. Teria surgido no Oriente logo depois da vitória de Otaviano
sobre Antônio e Cleópatra na costa do Áccio.

A história da concepção de Jesus em Mateus e Lucas indica certa tradição comum


antes deles, e a base narrativa movimenta-se no mundo da história e da contra-história.
Em Mateus e Lucas, e até mesmo antes deles, Jesus é Senhor, Salvador, Filho de Deus,
usurpando os títulos de Augusto. Mas Átia não era virgem; ela já era mãe de uma filha
doze anos antes do nascimento de Otaviano. Assim, enquanto Isaías 7,14 ajudou a fazer
com que tudo isso parecesse bíblico, profético e predeterminado, acabou parecendo que
a exaltação acima de Augusto fosse determinante para a sua criação.

Se tomarmos a história da concepção de Jesus literalmente, tomemos também


assim a de Augusto. Se, por outro lado, considerarmos a história da concepção de
Jesus metaforicamente, recebamos também a de Augusto dessa forma. Desde a
concepção Jesus foi posto em rota de colisão com Augusto numa narrativa que não
vem de um evento histórico no nível I, mas a partir de uma parábola teológica no
nível II, logo depois de Jesus ter proclamado publicamente o Reino de Deus em
oposição ao Reino de César.
C a p ít u l o 3

COMO SE CONSTROI
UM REINO
Antes de começarmos a construir um reino, precisamos saber que tipo de reino
queremos fazer. Poder-se-ia pressupor, por outro lado, que só existe um tipo, modelo
ou cenário possível? Serão os reinos sempre relacionados com poder, glória, força
e violência? São baseados nos poucos que controlam a maioria? Serão os reinos
agrários dependentes da proteção que dão aos camponeses em troca do que produ­
zem? Seria mera troca de favores? Na melhor das hipóteses seria como dar o tapa
com luva de pelica? Ou, na pior, nem mesmo com luva de pelica? Serão todos os
reinos assim, fundados na violência e no poder? Existirá em algum lugar um reino
de justiça e de não-violência?

Um choque entre tipos de reino


Nem Herodes, o Grande, e Herodes Antipas, de um lado, ou João Batista e Jesus,
do outro, imaginaram, proclamaram e construíram seus diferentes reinos do nada
sem a inspiração de tipos e modelos antigos. Aqui, como exemplo tomado ao acaso,
temos um choque paradigmático entre dois tipos de reinos, originado cerca de um
milênio e meio antes da era cristã.

Na primeira metade do oitavo século a.C., Jeroboão II governava o reino de Israel,


que, juntamente com o reino de Judá, constituíam as metades norte e sul do que
havia sido nos gloriosos dias do século décimo o reino de Davi e Salomão. Jeroboão
II reinou cerca de trinta anos, tempo muito longo considerando-se que era essa a
média de esperança de vida na época. Arqueólogos escavaram a capital, Samaria,
em 1908-1910, 1931-1935 e 1965-1968.

Na primeira fase, patrocinada pela Universidade de Harvard, foram encontrados


sessenta e três fragmentos de louça com inscrições hebraicas em tinta preta, descre­
vendo impostos sobre azeite e vinho enviados da zona rural aos armazéns reais. A
segunda, comandada em conjunto pela Universidade de Harvard e a Universidade
Hebraica, com a participação de três diferentes instituições britânicas, descobriu
diversas placas de marfim, bem como centenas de fragmentos desse material nos
palácios reais. Combinavam mitologia egípcia com arte fenícia e, às vezes, caligrafia
hebraica. Palácio e região rural, então, impostos e marfins.

As escavações e especialmente as peças de marfrm indicavam a existência de


um monarca poderoso, de uma corte esplêndida e de uma aristocracia luxuosa. Se
tivéssemos acesso apenas a restos de materiais e nenhum texto para nos falar a
respeito da Samaria de Jeroboão II, poderíamos dar asas à imaginação. As obras de
arte eram importadas do Egito, mas os israelitas queriam celebrar a libertação da
opressão egípcia com canções e histórias, festivais e memórias, bem como com o
culto e a aliança. Que poderíamos imaginar se Israel tivesse que enfrentar o Egito,
a Samaria e a Fenícia? Mas temos textos que registram um retrato bem diferente
a respeito dos anos de prosperidade da Samaria. Mostram-nos outra maneira bem
diferente de construir um reino.

As artísticas miniaturas de marfim desenterradas por volta dos anos 1930


foram mencionadas por Amós, pastor visionário de Técua, em Judá, que viveu
no século oitavo, mais humilde do que qualquer profeta camponês. Amós foi
ao norte e proferiu no meio da prosperidade do reino de Jeroboão II proféticas
acusações, terríveis advertências e anúncios de desgraças e morte: “Eu abaterei
a casa de inverno com a casa de verão, as casas de marfim serão destruídas e
muitas casas desaparecerão”, declara Deus (3 ,1 5 ). E: “Quereis afastar o dia da
desgraça, mas apressais o domínio da violência! Eles estão deitados em leitos
de marfim, estendidos em seus divãs” (6 ,3 -4 ). Segundo Amós, o que havia de
errado com a maneira escolhida por Jeroboão II para construir o Reino de Israel?
Observemos, a seguir, quatro temas cruciais.

Comércio e pobreza. O tema da opressão dos pobres repete-se insistentemente


nos oráculos orais de Amós, recolhidos agora no livro que leva seu nome. Mas em
8,4-6 relaciona-se com o tema da comercialização: “Ouvi isto, vós que esmagais o
indigente e quereis eliminar os pobres do país, vós que dizeis: ‘Quando passará a
lua nova, para que possamos vender o grão, e o Sábado, para que possamos abrir
0 trigo, para diminuir o efá, aumentar o sido e falsificar as balanças enganadoras,
para comprar o fraco com prata e o indigente por um par de sandálias, para vender
os restos do trigo?”. A importação de produtos caríssimos do exterior significava
intenso comércio no país.

Pobreza e ju stiça. Não era só o caso de que todos eram pobres e de que a pobreza
era ruim. 0 problema também era que o luxo crescia, num dos extremos da socie­
dade, à custa do aumento da pobreza, no outro. Os ricos se tornavam mais ricos à
medida que os pobres ficavam mais pobres: “Porque vendem o justo por prata e o
indigente por um par de sandálias. Eles esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos
fracos e tornam torto o caminho dos pobres” (2,6-7). “Oprimis o fraco e tomais
dele um imposto de trigo [...]. Eles hostilizam o justo, aceitam suborno e repelem
os indigentes à porta” (5,11-12). “Transformastes o direito em veneno e o fruto
da justiça em absinto” (6,12). A justiça é igual à retidão; praticar o que é justo é a
mesma coisa que fazer o certo. A justiça reta é não apenas individual mas também
estrutural, não só pessoal mas igualmente sistêmica, não apenas recompensadora
mas da mesma forma distributiva.

Ju stiça e culto. O tema da justiça e do culto atinge surpreendente clímax nos


versículos famosos, mais citados do que entendidos: “Eu odeio, eu desprezo as vos­
sas festas e não gosto de vossas reuniões. Porque, se me ofereceis holocaustos [...],
não me agradam as vossas oferendas e não olho para o sacrifício de vossos animais
cevados. Afasta de mim o ruído de teus cantos, eu não posso ouvir o som de tuas
harpas! Que o direito corra como a água, e a justiça como um rio caudaloso!”, diz
a voz de Deus (5,21-24). Não se trata de mero caso de um oráculo contra o culto,
de um profeta contra o sacerdote nem do santuário de Jerusalém, ao sul, contra o
de Betei, ao norte. Mas como estava Amós tão certo de que Deus preferia justiça e
retidão em lugar de ofertas sacrificais e cânticos festivos?

Culto e aliança. Imaginemos o confronto descrito em 7,10-17 entre Amós, profeta


de Técua, e Amasias, sacerdote de Betei, “santuário do rei, um templo do reino”.
Amasias advertiu o rei Jeroboão II de que Amós “conspira contra ti, no seio da casa
de Israel”. Ponderemos os diferentes pontos de vista dessas duas mentes. Amasias:
“Deus exige adoração e nós obedecemos”. Amós: “Deus exige justiça e vocês não
obedecem”. Amasias: “O que você chama de injustiça nós chamamos de prosperidade
comercial, perspicácia nos negócios”. Amós: “Vocês não podem adorar o Deus da
justiça num estado de injustiça”. Amasias: “Saia do templo, profeta, enquanto você
ainda está vivo”.

Apreciamos na base desse diálogo duas maneiras radicalmente divergentes de


conceber o reino. Resumindo, diríamos que o modelo de Jeroboão era comercial, e o
de Amós baseado numa aliança. Mas não se trata apenas de nomes ou títulos. 0 que
contava em última instância era o conteúdo muitíssimo específico. Que seu reino
pode fazer para um mundo pertencente a Deus? Como distribuirá as bases mate­
riais da vida num mundo que não é de sua propriedade? Quem é o dono e como o
dirige? Pensemos nesses dois tipos de reino como ideais extremos numa escala de
inúmeras variantes tendo, no entanto, o centro, o choque, a tensão ou a dialética
na história israelita e judaica. Nos reinos comerciais a terra que pertence a todos
precisa ser explorada até o limite. Num reino baseado na aliança, a terra pertence à
divindade e deve ser repartida tanto quanto possível. Não haveria então comércio
num reino da aliança? Claro que sim. Mas não é esse o problema. A questão é esta:
é possível a aliança no comércio?

Primeiro tipo: reino comercial


Observemos esta hierarquia de cima para baixo: do Império Romano de César
Augusto, passando pelo reino judaico de Herodes, o Grande, à tetrarquia galileu-
pereana de Herodes Antipas. Agora, ao contrário, de baixo para cima: de Antipas a
Herodes e a Augusto. Os herodianos não eram maiores do que os romanos em coisa
alguma, mas se contentavam em se reproduzir como miniaturas dos romanos em
todas as coisas. 0 processo de romanização significava urbanização, a qual pressupu­
nha comercialização. Observemos, a seguir, como Herodes, o Grande, construiu um
reino plenamente romano e que, depois dele, imitando-o, seu filho Antipas tentou
fazer a mesma coisa, em proporções menores, em solo judaico.

Herodes, o Grande, rei e mestre construtor

No ano 40 a.C., uma geração antes de Jesus, Herodes, o Grande, desmantelou


a resistência ao seu reino recém-estabelecido na Galiléia. Filho de um oficial da
convertida Iduméia do governo judaico-asmoniano, Herodes apoiava Roma durante
as lutas dinásticas entre os príncipes Antígono e Hircano. Reconhecendo o domínio
inevitável de Roma na cena geopolítica, estabeleceu estratégicas relações com oficiais
do império que lhe permitiram solicitar ao Senado Romano, em 40 a.C., o controle
sobre o território judaico. O Senado concedeu-lhe o título de Rei dos Judeus e lhe
deu autoridade para governar os territórios da Iduméia, Judéia, Samaria e Galiléia,
na condição de cliente de Roma. Mas seu irmão acabara de ser assassinado por
adversários, sua família, sitiada em Masada, e a maioria dos territórios prometidos
por Roma, incluindo a capital, Jerusalém, estava nas mãos de seu rival asmoniano
Antígono, apoiado pelo poderoso império dos Partos. Tratava-se, pois, de um reino
prometido mas não realizado.

Depois de voltar de Roma, Herodes libertou, em primeiro lügar, sua família


sitiada numa fortaleza no topo de Masada, e começou violenta luta na Galiléia para
obter 0 seu reino. Segundo Josefo, tomou a cidade asmoniana de Séforis na Baixa
Galiléia durante uma tempestade de neve, e a partir daí foi acabando com a oposição
a seu governo. Sitiou os últimos opositores nos rochedos de Arbel perto do Mar da
Galiléia — incendiou suas cavernas e jogou os soldados do alto para que morres­
sem nos penhascos. Com a pacificação da Galiléia, dirigiu-se ao sul para a Judéia e
Jerusalém. Levou três anos para estabelecer o reino.

Empenhou-se, em seguida, para construí-lo arquiteturalmente com a mesma


energia empregada para conquistá-lo militarmente. Foi um dos mais prolíficos
construtores da Antiguidade, com projetos pontilhando o Mediterrâneo oriental
e dominando o cenário do reino. As ruínas desse período marcam sua passagem
em registros arqueológicos de obras monumentais e colossais. Seus projetos com­
binavam elementos dos predecessores asmonianos, das cidades-Estado helénicas
do Mediterrâneo oriental, e da tecnologia e estilo romanos, tendo como resultado
estruturas originais. Algumas dessas construções foram erguidas simplesmente para
mostrar a grandeza da arquitetura, outras, para o povo, mas sempre e certamente
para suas próprias necessidades, desejo e governo.
Vejamos como os feitos arquitetônicos contam a história de seu reino e como seu
estilo revelam sua personalidade e caráter de rei. Seus primeiros projetos concentra­
ram-se em diversas residências reais, incluindo o complexo de um oásis em Jericó, o
palácio do terraço em Masada e o conjunto chamado Herodiano, todos fortificados;
os dois últimos eram quase inatacáveis. Paranóico e opulento, Herodes construía
as residências com segurança e luxo. Depois de inaugurar diversas residências-
fortalezas pelo reino e consolidar o poder, lançou-se em dois projetos gigantescos
— a cidade de Cesaréia na baía de Sebastos e o Monte do Templo em Jerusalém.
A cidade portuária é comumente chamada de Cesaréia Marítima para distingui-la
de Cesaréia de Filipos, construída mais tarde por seu filho nas cabeceiras do Rio
Jordão. De um lado, a construção de Cesaréia Marítima abriu o reino de Herodes ao
mundo mediterrâneo e o orientou geográfica, cultural, política e comercialmente para
Roma, estabelecendo laços em escala nunca antes possível. Por outro lado, o enorme
projeto do Templo em Jerusalém ofereceu aos súditos judaicos um dos maiores e
mais espetaculares lugares sagrados do mundo antigo. Observemos, sublinhando
esses dois projetos, a tensão ou até esquizofrenia de seu governo ao mesmo tempo
como cliente de Roma e Rei dos Judeus.

A cidade de Cesaréia com o porto Sebastos foi o mais ambicioso e ousado


projeto nunca antes imaginado no Mediterrâneo oriental. Obviamente, os próprios
nomes prestavam tributo à fonte suprema do poder de Herodes, César Augusto,
nascido Otaviano. Esse fato foi confirmado por antigos textos literários. O nome
da cidade veio de César e o do porto de seu título, Sebastos, palavra grega para a
latina. Augustus. Estátuas gigantescas do imperador e da deusa Roma erguiam-se
na parte mais visível da estrutura da cidade: um templo que dava as boas-vindas
aos navios e aos viajantes. Graças a escavações arqueológicas, sabemos que a
construção da cidade portuária fora mais do que tributo nominal a César e a
Roma — 0 tributo realizava-se também em forma de impostos canalizados para
Roma de todas as partes do reino de Herodes, embora muita riqueza perma­
necesse na cidade. Os produtos agrícolas vinham das zonas rurais e, além dos
grãos, também se recebiam vinho e azeite de oliva. Como Herodes havia mone-
tarizado a economia, o dinheiro também circulava com abundância. A riqueza
que alimentava o tesouro de Herodes e os cofres da elite governante financiava
a belíssima urbanização de Cesaréia. Os investimentos iniciais no porto foram
ressarcidos pelo realinhamento das rotas comerciais que vinham do Oriente por
meio de seu reino e pela abertura das lucrativas rotas do Mediterrâneo. Herodes
transformou o território judaico num reino comercial.

Há décadas, em todos os verões, grupos de arqueólogos americanos e israelitas


acompanhados de voluntários internacionais vão até a beira do mar em Cesaréia para
escavar e registrar as camadas do sítio, desde fossos e muros da cidade das Cruzadas
às igrejas e sinagogas do período bizantino, passando pelas colunas de mármore da
cidade romana até os fundamentos herodianos. As estruturas, os artefatos e a grande
quantidade de achados desde a camada inferior revelam a maneira suntuosa e cara
como Herodes construiu a capital de seu reino. Abriu o reino para o Ocidente, e
sua cidade disse a Roma o que ela queria ouvir. E no dialeto estético-arquitetônico
do dia, disse a seus súditos o que melhor podiam entender.

O arranjo, estilo e materiais de sua recém-construída cidade e baía anunciavam


três coisas. Em primeiro lugar, Cesaréia Marítima deixava clara a imposição de ordem
de Herodes em seu reino, que lhe dava poder e habilidade para controlar tanto a
natureza como a sociedade. Em segundo lugar, Herodes demonstrou clara predileção
por fachadas, para mostrar a riqueza da cidade e ao mesmo tempo delinear a ordem
social. Por fim, Herodes reforçou a hierarquia social de seu reino em Cesaréia. A impo­
sição da ordem e a construção de fachadas ao lado de estruturas públicas específicas
anunciavam e reforçavam no alto da pirâmide social Roma, seguida de Herodes e,
finalmente, de sua elite governante. Essas três áreas inter-relacionadas forneciam a
Herodes o manual de como construir um reino.

A im posição da ordem em C esaréia. Herodes, o Grande, pôs ordem no cenário


natural e regularizou a sociedade. O lugar selecionado por ele na costa não possuía
suprimento de água nem baía natural. Mas isso não importava. Impôs sua vontade
sobre a topografia construindo uma baía artificial e trouxe água de distantes fontes
por meio de aquedutos sobre pilares. Foram construídos 800 pés de quebra-mar para
a baía invadindo o mar aberto, e meia milha de diques para abrigar um ancoradouro
de 40 acres. Os cais mediam 130 a 200 pés de largura, construídos com cimento
hidráulico revestidos da mistura de pozolana e areia vulcânica, trazidas da baía
de Nápoles. Eram mergulhados, parte por parte, para alicerçar a subestrutura do
porto. É provável que tudo isso tivesse sido construído com a ajuda de arquitetos e
mestres-de-obras importados da Itália. 0 projeto exibia grande capacidade logística
apoiada por poder financeiro. Eram marcas herodianas.

Embora o porto tenha chamado a atenção para a engenharia ousada e inovadora


de Herodes, igualmente importante mas muitas vezes esquecida foi a imposição de
ordem na cidade, ao construir Cesaréia em posição ortogonal cuidadosamente pla­
nejada. Como a cidade romana ideal, Cesaréia era cortada ao meio por duas avenidas
principais, a norte-sul, chamada cardo, e perpendicular a ela, a chamada decumanus,
leste-oeste. O cardo avançava do portão principal da cidade até a praça adjacente ao
templo de Augusto e Roma. Por essas avenidas cuidadosamente planejadas o tráfego
era guiado para os espaços públicos onde havia marcos destinados à propaganda para
promover experiências sociais comunitárias e criar coesão social. Ao mesmo tempo,
funcionava bem elaborada estratégia para excluir os indesejáveis. A entrada na cidade
era controlada e também se proibia a circulação de pessoas em determinadas áreas
como, por exemplo, o palácio de Herodes.

Alguns edifícios também acentuavam o controle social como, por exemplo, o


teatro e o anfiteatro na zona sul da cidade. 0 teatro possuía entradas e saídas que
facilitavam a vigilância nos portais, que se chamavam vomitoria, localizados no nível
térreo. A nova forma arquitetônica ligava a área semicircular dos assentos, ou cavea,
ao palco, com corredores que facilitavam o controle. Esse sistema foi desenvolvido
em Roma sob Júlio César e Augusto no Forum lulium e no Circus Maximus em
resposta à violência popular e a lutas durante as guerras civis.

P redileção p o r fa ch a d a s em C esaréia. O historiador romano Suetônio cita esta


frase de Augusto sobre Roma; “Encontrei a cidade feita de tijolos e a deixo de
mármore”. O patrono de Herodes era bem conhecido por fazer bem a sua parte
construindo belas fachadas, promovendo inúmeras feições arquitetônicas gregas
em Roma. Semelhantemente, a arquitetura herodiana preocupava-se com fachadas
convenientes — embora as infra-estruturas dos projetos não fossem bem feitas, às
vezes meramente funcionais e algumas descuidadamente construídas, o revestimento
era sempre arranjado para acentuar a forma, a proporção e criar perspectivas. Os pisos
da cidade de Cesaréia eram de mosaico e as paredes ornamentadas com afrescos,
com muito mármore, telhados vermelhos e colunas, muitas colunas, de pedra local
revestidas e modeladas com reboco.

No Mediterrâneo oriental e no Oriente Próximo dos séculos anteriores, as gran­


des colunas faziam parte da arquitetura dos templos e as pequenas, para sustentar
coberturas de passeios ou para a stoa nas cidades mais helénicas. Mas na Cesaréia de
Herodes, a arquitetura de estilo romano espalhava colunas por toda a parte criando
diversas perspectivas pela cidade, e envolvendo-a numa aura cívico-religiosa. Sob
Augusto, 0 uso de mármore tornou-se norma arquitetônica nas províncias governa­
das por Roma. E o mármore de Cesaréia, cujo uso aumentou extraordinariamente
no fmal do primeiro século e começo do segundo depois que jazidas e o comércio
da preciosa pedra foram organizados e transformados em sistema imperial, ligava
simbolicamente Roma com as províncias, e Augusto com Herodes, o Grande.

Fortalecim ento da hierarquia em C esaréia. Roma e o imperador ocupavam o topo


da hierarquia arquitetônica em Cesaréia. Ponhamo-nos aí no meio. De qualquer lugar
da cidade e do porto se podia ver o templo dedicado a Roma e a Augusto. Com uma
altura de 80 a 110 pés e edificado no alto de uma plataforma artificial, dominava a
cidade. Imaginemo-nos caminhando em sua direção. Era o primeiro marco a ser re­
conhecido por quem chegava por terra ou pelo mar. Sua pedra branca polida brilhava
à luz do sol. Sentemo-nos no teatro ou numa das galerias do anfiteatro. 0 templo
também dominava o cenário. Dentro dele duas grandes estátuas: da deusa Roma
como Hera Argos e do imperador Augusto como Zeus Olímpio, descritas por Josefo
mas até hoje ainda não descobertas. Outras evidências concretas do culto imperial e
da adoração do imperador foram encontradas pelos arqueólogos, tais como torsos e
membros em bronze e mármore de períodos pouco posteriores, bem como o torso
de Trajano (98-117) de tamanho natural, vestindo a couraça, e a estátua de Adriano
(117-138 d.C.) sentado, mas sem cabeça.

E nesse contexto que se deve entender a inscrição de Pilatos descoberta em 1962


por arqueólogos italianos de Milão. A inscrição fragmentada, escrita em latim numa
pedra que havia sido removida e reutilizada como parte da renovação do teatro no
quarto século, dizia:

[...] este Tiberium, Pôncio Pilatos, prefeito da Judéia, fez (ou er­
gueu) [...]

Para inúmeros comentadores a importância da inscrição reside no fato de


prover veracidade aos evangelhos sobre a existência de Pilatos, afirmação de­
masiadamente óbvia que nunca foi posta em dúvida. Outros acham que tem
valor porque esclarece o título dele, que poderia ter sido governador, procurador
ou prefeito, coisa sem muito interesse a não ser para a minúcia legal romana.
Discussões em torno dessas linhas obscurecem a mensagem da inscrição e a
construção do Tiberium dedicada ao imperador Tibério que era esta: Roma governa!
Escrita em latim, linguagem pouco entendida e quase nunca lida, a inscrição e
a estrutura onde estava comunicavam, não obstante, até mesmo para os mais
ignorantes, que Roma e seus representantes situavam-se no topo da pirâmide
social e mantinham controle absoluto da terra.

Herodes, o Grande, ocupava o segundo lugar na escala social, testemunhada


pela localização e estilo de seu palácio às margens do mar. Na fundação de Cesaréia,
Herodes patrocinou jogos e competições atléticas no teatro e no anfiteatro que
haviam sido construídos na zona sudoeste da cidade. 0 palácio de Herodes sobre o
promontório, incrustado nessa área, servia no passado para eventos atléticos e de
entretenimento, e derrubava as fronteiras entre o privado e o público. 0 teatro foi in­
tencionalmente edificado longe do centro da cidade. Quando as pessoas sentavam-se
aí, ficavam de firente para o palácio de Herodes, como se fosse um cenário, dominando
0 palco ou a scaenaefrons. Todos se tornavam cientes de quem patrocinava os eventos
— tomando a forma de antiga propaganda comercial subliminal. A principal porta
de saída na extremidade sul do anfiteatro em forma curva abria-se para um jardim
semelhante a um vestíbulo bem perto do palácio. É bem provável que outra saída
servisse para conduzir dignitários estrangeiros e a elite local diretamente à residência
real, enquanto outras portas se conectavam com o centro da cidade, passando pelos
jardins. Herodes acentuava seu papel de benfeitor e patrono ligando o palácio com
lugares de espetáculo público para fins propagandísticos.

O teatro delineava, além disso, a rígida estratificação social. Os ricos entra­


vam por portas especiais e ocupavam os melhores lugares, separados dos demais.
Esses assentos eram próximos do palco, tinham encosto, e muitos deles, como
em Neápolis, ostentavam o nome da família. Essas pessoas entravam exclusiva
e separadamente pelos lados, atravessando o palco, e podiam ver as massas para
as quais já faziam, assim, parte do espetáculo. Abriam caminho com os cotovelos
através das vomitoria que eram vigiadas como medida de controle da multidão.
O teatro e o anfiteatro manifestavam as diferenças de classe e reforçavam a
hierarquia social

De que maneira Herodes, o Grande, financiava o reino? De onde vinha o dinhei­


ro, como pagava operários e materiais utilizados? O comércio e as tarifas vindas do
porto certamente ajudavam, mas a agricultura era a base da economia romana, e as
terras, a medida da riqueza. A arquitetura das cidades antigas era construída com a
riqueza agrícola proveniente do trabalho dos camponeses, e Herodes precisava de
muito dinheiro para sua cidade e reino. A policultura e a auto-suficiência das fazendas
familiares cederam à monocultura nas terras reais e à troca assimétrica de bens.

O sistema de propriedade de terras deu lugar ao de arrendamento, criando eco­


nomias de escala. Para facilitar a cobrança de impostos para os cofres de Herodes e
Roma, responsáveis pelo esplendor arquitetônico de Cesaréia, foram criadas moedas
que circulavam na economia local. 0 reino foi comercializado, não no mero sentido
mercantilista mas também no da eficiência na condução do intercâmbio de bens e
dinheiro entre o campo e a cidade. O aumento do luxo num dos extremos da socie­
dade resultou no aumento da mão-de-obra e da pobreza, no outro. A arquitetura
cara na cidade representava aumento da agricultura na zona rural. Campo e cidade,
logo, impostos e mármore.

Herodes Antipas como filho de seu pai

A Galiléia foi esquecida nos planos arquitetônicos do reino de Herodes, o Grande.


Ele construiu ao longo da costa e ao norte de Banias, em Jerusalém e pelo deserto da
9 . Inscrição em Cesaréia M arítima com o nome de Pôncio
Pilatos
(Coleção do Departamento de Antiguidades de Israel; © Museu de Israel, Jerusalém)
Judéia. Até mesmo patrocinou projetos nas mais distantes cidades do Mediterrâneo.
Mas ignorou a Galiléia.
Séforis e Tiberíades. O testamento contestado de Herodes dividiria o reino entre
seus três filhos depois de sua morte em, 4 a.C. A Galiléia ficou para Herodes Antipas,
juntamente com Peréia, no lado oriental do Jordão. Como no tempo de seu pai, o
governo de Antipas na Galiléia começou com violências. As legiões romanas, sob
as ordens do legado Varo, sediado na Síria, desmantelaram um levante na primeira
capital de Antipas, Séforis, um pouco antes de César Augusto ter confirmado o
testamento em Roma. Mas, nesse ato, Augusto recusou conceder o título de rei dos
judeus tanto a Antipas como a seu irmão Arquelau. Não obstante, Antipas, o tetrar-
ca (governador de um quarto do reino), sobreviveu, enquanto seu irmão, o etnarca
(governador do povo), foi exilado no ano 6 d.C. Enquanto Augusto viveu, Antipas
permaneceu prudentemente calado. Mas tudo indicava que ele ainda esperava o dia
de se tornar Rei dos Judeus, por indicação romana.

Em 14 d.C., finalmente, Augusto morria e Tibério assumia o cetro do império.


Somente depois disso Antipas começou a agir. Em primeiro lugar, construiu uma
nova capital com o nome do novo imperador, Tiberíades, e cunhou as primeiras
moedas. Os fundamentos da cidade foram lançados em 19 d.C. Antipas era filho
de Herodes, o Grande, e de sua mulher samaritana Maltace: era preciso, então,
buscar alguma conexão com os asmonianos. Por volta dos anos 20 ele rejeitou a
esposa nabatéia e se casou com Herodíade, mulher de seu meio-irmão Felipe. Era
neta da asmoniana executada Mariamne e filha do também executado asmoniano
Aristóbolo. Considerando as intenções políticas e populistas desse casamento,
pode-se entender por que não tolerava as críticas de João Batista sobre sua legiti­
midade. Também se entende a relação entre palácio e deserto: Antipas e João são
retratados como opositores em Lucas 7 ,2 4 -2 5 . Mas, de qualquer forma, Antipas
não estava destinado a ser Rei dos Judeus. Esse título só veio a ser usado depois
por Herodes Agripa I, enquanto Antipas, como Arquelau antes dele, viriam a
m orrer bem longe no exílio.

Mas antes desses acontecimentos, quando ainda tudo parecia possível, Antipas
construiu uma cidade totalmente nova na costa ocidental do Mar da Galiléia, num
lugar que nunca fora habitado, onde havia apenas um antigo cemitério, segundo
Josefo. Poder-se-ia pensar, em vista da produção de moedas de Antipas sem imagens,
que 0 procedimento fazia parte do respeito que tinha pelas tradições judaicas, ou
refletia oposição à nova fundação. De qualquer forma, para tomar seu pai como mo­
delo, Herodes Antipas construiu uma nova cidade em estilo romano com um porto,
e deu-lhe o nome do novo imperador, procurando urbanizar o reino, ligando-se ao
mundo lá fora, por causa do desejo de receber o título de rei. Fora assim, afinal, que
seu pai havia construído o próprio reino.

Desde a metade dos anos 1980 quatro diferentes grupos de escavadores têm
trabalhado em Séforis e, embora Tiberíades seja hoje próspero reduto turístico, peda­
ços da antiga cidade vão sendo encontrados aos poucos. Entre esses, foram achados
mà^

1 0 . Reconstrução de Cesaréia M arítima do primeiro século


Herodes, o Grande, Rei dos Judeus 37-4 a.C ., abriu seu reino ao mundo romano exterior com
a construção de Cesaréia M arítima e sua grande baía. Estendeu diques dentro do mar (1) e
construiu um farol (2) para guiar os barcos ao porto onde grandes armazéns guardavam utensílios
e produtos desembarcados (3). Como a cidade não possuía fontes naturais, construiu um grande
aqueduto para o abastecimento local (4) trazendo água de longe. Construída numa planície
ortogonal rígida, as principais avenidas, chamadas de cardo (5) e decumanus (6) terminavam num
grande templo dedicado à deusa Rom a e a César Augusto (7) em cuja homenagem a cidade
foi nomeada. Ao sul de Cesaréia, os escavadores encontraram um teatro (8) e um hipódromo
em forma de anfiteatro (9), bem como o rico palácio de Herodes, o Grande (10). Em bora Jesus
nunca tivesse visitado Cesaréia, Paulo partiu daí em sua viagem para Roma.

restos da cidade em estilo tipicamente romano cheia de iconografia pagã como, por
exemplo, uma vila com temas dionisíacos, pisos de mosaico com temas pagãos do
Nilo e até mesmo uma casa judaica de estudo com os signos do zodíaco. Mas o es­
tudo cuidadoso das diversas camadas mostra que esses temas pagãos e mitológicos
pertenciam ao período romano posterior e ao bizantino, bem depois da chegada das
tropas romanas à vizinha cidade de Maximianópolis no segundo século, quando
um pouco depois os judeus começaram a se adaptar à cultura helênica e às idéias e
motivos romanos, para seu próprio benefício. Nas camadas anteriores, contudo, em
particular dos tempos de Antipas, as evidências indicam a existência de população
judaica ainda anicônica e do cauteloso Antipas que respeitava as sensibilidades re­
ligiosas de seus súditos judeus. As primeiras moedas que Herodes Antipas cunhou
em Séforis e Tiberíades mostram o difícil caminho que tinha de tomar entre, de um
lado, construir um reino judaico e, do outro, permanecer fiel ao mundo romano: as
moedas não exibiam sua imagem e, em lugar disso, representavam juncos, ramos
de palmas e palmeiras, símbolos comuns no judaísmo, embora não necessariamente
estranhos ao mundo greco-romano.

Duas inscrições encontradas em Séforis, uma num fragmento de louça, ou ostra-


con, e a outra num peso de chumbo, exemplificam como a cidade judaica enfrentava
as influências estrangeiras e a elas se adaptava. 0 fragmento do jarro do primeiro
século a.C. mostrava a palavra ’pmlsh pintada com letras hebraicas maiúsculas,
que na tradução grega significa epimeletes, “gerente, supervisor ou tesoureiro”. O
jarro servia para armazenar trigo ou azeite de oliva ou, ainda, vinho, usados para
o pagamento de impostos em espécie, e entregues ao epimeletes, que escrevia em
hebraico, embora adotasse o título administrativo grego. 0 peso de chumbo, datado
do primeiro século d.C., indicava num dos lados, em grego, a quantidade de peso a
que se referia, que era a medida-padrão latina de meio litra (36 onças), cercada por
desenhos esquemáticos de uma rua com colunas significando o mercado ou ágora.
O outro lado registrava em letras gregas os nomes judaicos Justus e Simeão, dois
inspetores do mercado, ou agoranomoi, que vendiam licenças, conferiam a qualidade
ou controlavam o peso das mercadorias. O peso combinava um sistema de medidas
romano/latino com palavras gregas e dava evidências de que os judeus encarrega­
vam-se de importantes setores administrativos em Séforis.

A inscrição de Tiberíades, sobre um peso de chumbo decorado com uma coroa


e ramos de palmeiras, exemplificava como a família herodiana adotava até mesmo
nomes romanos. A peça de chumbo datada do trigésimo quarto ano do governo de
Herodes Antipas (2 9 /3 0 d.C.) havia sido aferida e inscrita em grego por um ago­
ranomos chamado “Gaius Julius” (Caio Júlio). O nome é certamente romano, mas
provavelmente se referisse a Herodes Agripa I, cunhado de Antipas e, mais tarde.
Rei dos Judeus. Educado em Roma, foi nomeado por Antipas inspetor do mercado
em Tiberíades, segundo Josefo, e como outros descendentes de Herodes adotara
nome romano. Desde quando Júlio César concedera a Antipater, pai de Herodes,
0 Grande, a cidadania romana, todos os membros da casa herodiana começaram a
se chamar lulii, e o prenome Gaius (Caio) era bastante comum. Trata-se de curioso
artefato: o peso de chumbo de um aspirante ao reinado judaico que escrevera em
grego e usara um nome latino da família imperial romana.

Posto que as cidades de Tiberíades e Séforis, ao contrário de Cesaréia, eram


habitadas principalmente por judeus quase exclusivamente da Galiléia judaica,
Herodes Antipas teve o cuidado de construí-las sem muitos dos ornamentos das
cidades pagãs clássicas, como estátuas ou templos aos deuses. Por outro lado, co­
briu Séforis e Tiberíades de aspectos arquitetônicos greco-romanos, tornando-as
não apenas as maiores cidades da Galiléia, mas também novidades em seu estilo,
nas quais se refletiam temas estético-arquitetônicos encontrados em Cesaréia. Seu
reino, em outras palavras, era adaptado segundo o modelo de seu pai.

A im posição da ordem em Séforis e Tiberíades. Como a Cesaréia de Herodes, o


Grande, o projeto inaugural de Antipas no reino a que aspirava deixou traços nos
registros arqueológicos. Antes dele, Séforis era um posto avançado asmoniano es­
tabelecido por judeus no período helênico posterior com uma população ao redor
de mil pessoas. Não há muita evidência de que sua destruição se deva ao legado
romano Varo, que, segundo Josefo, incendiara a cidade totalmente e vendera seus
habitantes como escravos em 4 a.C. (Guerra judaica 2.68-69; Antiguidades judaicas
17.288-289). Sua tendência para acentuar o poder romano e as repercussões da
rebelião parecem levá-lo a exagerar o destino de Séforis, mas a descrição que fez da
reconstrução da cidade, promovida por Antipas transformando-a em “ornamento da
Galiléia” (Antiguidades judaicas 18.27), está de acordo com os registros arqueológicos.
Diversos arqueólogos discerniram intensa atividade para a construção de edifícios
por volta da passagem da era anterior para a nossa, quando a população da cidade
aumentava de mil para mil e duzentos habitantes. Ao mesmo tempo, impunha-se
rigidamente uma área ortogonal na planície ao leste da acrópole, separada por
duas avenidas perpendiculares, a norte-sul ou cardo, e a leste-oeste, ou decumanus,
semelhante à existente em Cesaréia, mas em dimensões bem menores. Ao oeste da
acrópole foram escavados um grande muro protetor, uma alameda e rua, e diversas
unidades domésticas, dispostas em linhas paralelas. Em Séforis, a área obedecia aos
contornos da terra, mas se tornava oblíqua na subida para a acrópole. Em Tiberíades,
a principal via acompanhava os contornos da beira-mar.

A p red ileçã o p o r fa c h a d a s em S éforis e T iberíades. Séforis e Tiberíades osten­


tavam fachadas desconhecidas de outras cidades da Galiléia: paredes brancas,
afrescos, mosaicos e telhados vermelhos. As estruturas procuravam acentuar a
forma, a proporção e a perspectiva. Descobriu-se em Tiberíades, no extremo sul
da cidade, um portão monumental do tempo de Antipas. De frente para as fontes
de Hammath, tinha duas torres redondas com cerca de 23 pés de diâmetro, fei­
tas de basalto local recortado em quadrados. A entrada era flanqueada por dois
nichos e pedestais de colunas com rombóides em relevo. As decorações davam a
entender que a estrutura da entrada era ao mesmo tempo simbólica e ornamental,
bem como defensiva. Estranhamente, é a única obra até agora encontrada do
período bizantino. Nada se achou do primeiro século. Talvez os antigos muros
tivessem sido derrubados para dar lugar aos novos, não deixando traços para
os escavadores. Ou, ainda, por mais estranho que nos pareça agora, talvez esse
portal nem tenha tido propósitos defensivos e fosse apenas ornamental, monu­
mental e simbólico sem outros fins. Mas demarcava, de um lado, os cidadãos e,
do outro, os camponeses.

Mas sem muros ou com eles, a imponente fachada do portão de Tiberíades abria-
se para uma avenida (cardo) que atravessava a cidade. O pavimento cinza-escuro
de basalto, arranjado em forma diagonal, em ziguezague, tinha a largura de 40 pés,
flanqueado por colunatas de 16 pés de largura, apoiadas em colunas de granito, diri­
gidas para pequenas lojas que não passavam de cubículos. Trata-se da pavimentação
mais bem preservada dos tempos antigos. Semelhantemente, em Séforis, um cardo
com 44 pés de largura chamava a atenção por suas formas grandiosas. O pavimento
de pedras locais, também em estilo ziguezague, cobria um sistema de esgoto, tão
bem feito que chegou a resistir por quinhentos anos às rodas de carros sobre sua
superfície. A avenida era ladeada por colunas que sustentavam a cobertura das
calçadas, pavimentadas originalmente com mosaicos brancos e simples e, como em
Tiberíades, com muitas lojas. As colunas eram de pedra calcárea ou granito em vez
do mármore importado muito caro, e as pedras das fachadas das lojas não mostram
sinais de revestimentos de mármore. Eram rebocadas e pintadas de branco e moldadas
com estuque, situando-se no nível mais baixo da elegância urbana.

0 reforço d a hierarquia em Séforis e Tiberíades. Até hoje nada se encontrou em


Séforis e Tiberíades relacionado com os palácios de Antipas, embora Josefo descreva
0 violento ataque do povo a um deles em Tiberíades por ocasião da primeira revolta
judaica. Certamente, Antipas deve ter construído estruturas palacianas nas duas
cidades para situar sua residência acima das demais.

O que se descobriu em Séforis foi uma basílica do primeiro século. Embora esse
termo refira-se hoje a certo tipo de igreja, na Antiguidade era a forma arquitetônica
usada para propósitos administrativos e oficiais. A palavra basiléia em grego significa
“reino”, de modo que a basílica representava o reino de Roma em miniatura como
presença simbólica. Era concebida com uma nave central e duas alas separadas por
colunas cruzadas para sustentar o grande teto. Debaixo dele reuniam-se os súditos
em frente aopodium e à abside semicircular, cuja acústica tornava audível pronuncia­
mentos ou julgamentos imperiais. Em Séforis, a basílica ocupava uma área de 115
por 130 pés e os pórticos mais 80 por 130 com piso de mosaico, paredes revestidas
de afrescos e piscinas de mármore. 0 edifício tinha fms administrativos, como um
fórum, e talvez até mesmo um mercado especial, destinado à elite governante.

Em Tiberíades, descobriram-se restos de um teatro que até agora não fora esca­
vado. A mais debatida descoberta em Séforis foi também um teatro numa elevação
ao norte, voltado para o Vale Beit Netofah. Alguns estudiosos entendem que esse
teatro ilustrava as políticas romanizantes de Antipas e o caráter helênico da cidade
no tempo de Jesus; alguns até mesmo sugerem que Jesus poderia tê-lo visitado e
adotado a partir daí o termo hipócrita, que designava atores com máscaras nas re­
presentações das peças. A evidência cerâmica usada para datar o teatro, contudo,
não é conclusiva, porque o edifício poderia ser situado no fmal do primeiro século
d.C, décadas depois de Jesus e de Antipas.

Mesmo se o teatro foi construído depois do governo de Herodes Antipas e do


ministério de Jesus, ele ainda continua nos falando a respeito do caráter de Séforis.
Era um teatro modesto em comparação com outros no Mediterrâneo, medindo 200
pés de diâmetro com capacidade para menos de 400 pessoas sentadas, inferior a do
teatro em Cesaréia. Em vez de ter sido construído num lugar plano, como era comum
nos teatros de estilo romano, os arquitetos aproveitaram a topografia e puseram os
assentos nas partes mais baixas de uma cavidade natural na parte norte da colina da
acrópole. Pequenas pedras e barro preenchiam os interstícios da estrutura. Apenas
uma das fachadas mostrava pedra calcária bem aplicada. Os gastos diminuíram
com a construção do auditório no declive da colina e com o emprego de afrescos e
estuque em vez de mármore e colunas esguias. Naturalmente, o resultado da obra
ficou aquém dos ideais artísticos.

Comentário paralelo. Se o teatro — de Séforis, de Tiberíades ou de qualquer


outro lugar — pode ter exercido qualquer influência nas tradições a respeito de Je­
sus, não é por causa da palavra hipócrita nem como veículo da cultura grega clássica
na Galiléia. Os teatros provinciais proporcionavam em geral formas menos cultas
de entretenimento, como malabarismo e acrobacia, mímica e pantomima, farsas e
espetáculos vulgares. Longe de ser veículo de haute culture, a disposição hierárquica
dos assentos do teatro simbolizava as rígidas distinções de classe no Império Ro­
mano e representava a pirâmide social da Galiléia, divisões que o ensino igualitário
de Jesus condenava.

Séforis foi reconstruída e Tiberíades construída a partir do nada. Herodes


Antipas introduziu na Galiléia novos estilos arquitetônicos, estruturas maiores e
materiais caros, dando lugar a duas miniaturas de Cesaréia, que, por sua vez, já era
uma miniatura de Roma. As duas cidades da Galiléia diferiam marcadamente das
outras situadas ao redor. Embora Herodes Antipas fosse cauteloso para não pare­
cer demasiadamente inovador ou estrangeiro e evitasse confrontos diretos com as
sensibilidades judaicas, era preciso dar ênfase aos meios óbvios empregados para a
construção de seu reino. Como a Cesaréia da costa marítima, os edifícios das duas
cidades foram erguidos com a riqueza gerada pela agricultura derivada da mão-de-
obra dos camponeses. Mas, diferindo de Cesaréia, a Galiléia não fazia parte da rede
internacional de comércio e, por isso, investia muito em seus campos cheios de
vinhas e de oliveiras. Essas plantações exigiam métodos agrícolas mais atualizados
e intensificação da mão-de-obra, principalmente porque não se permitiam perío­
dos de descanso para as terras. Com o crescimento da monocultura desaparecia a
policultura, deixando os camponeses perigosamente ameaçados por fracassos de
colheita ou por enchentes. Quando as famílias rurais não tinham fundos para pagar
os impostos ou se endividavam com a compra dos produtos que antes cultivavam,
eram obrigadas a transferir as terras para outros. Surgiram, assim, grandes fazendas,
e muitas pessoas eram obrigadas a arrendar terras por causa da criação de economia
baseada em medidas e pesos usados para as transações das safras. 0 aumento da
moeda circulante na Galiléia facilitava a cobrança de impostos destinados aos proje­
tos de urbanização de Antipas. 0 reino passava a se comercializar. A grandiosidade
arquitetônica crescia, de um lado, provocando o aumento da pobreza, do outro.
Campo e cidade, depois impostos e afrescos.

Segundo tipo: reino da aliança


Como se poderia edificar um reino baseado na aliança com Deus? Qual seria seu
conteúdo, além de meras palavras e slogans, e como poderia diferir de qualquer outro

20m

12. Teatro do primeiro século em Séforis (segundo Meyers, Netzer e Meyers)


reino aqui na terra? Quando, na tradição judaica, Amós sonhava com um reino, de
que maneira era diferente do de Jeroboão II? Quando, nessa mesma tradição, João
Batista ou seu sucessor, Jesus, imaginavam um reino, em que se diferenciava do de
Herodes, o Grande, ou de seu filho Antipas?

Reino e terra

Dois curtos versículos das Escrituras, o primeiro na Lei e o outro nos Profetas,
que manifestam a voz de Deus, são básicos para a compreensão do reino da alian­
ça no qual Deus governa numa terra especial. Em Levítico 25,23 Deus ordena que
“a terra não será vendida perpetuamente, pois que a terra me pertence e vós sois
para mim estrangeiros e residentes temporários”. E em Isaías 5,8 anuncia-se esta
maldição: “Ai dos que juntam casa a casa, dos que acrescentam campo a campo até
que não haja mais espaço disponível, até serem eles os únicos moradores da terra”.
Por trás desses aforismos ressaltam quatro pressupostos, não importando se os
chamamos de mitológicos, teológicos ou filosóficos.

Em primeiro lugar. Deus é justo. Depois, a terra de Israel pertence a esse Deus
justo. Em terceiro lugar, a terra fora distribuída no começo de maneira justa e igual
entre as tribos, clãs e famílias de Israel. Em quarto lugar, os decretos da Lei e as
investidas dos Profetas manifestam-se contra a inevitável tendência humana para
que cada vez fosse menor o número de pessoas possuidoras de mais e mais terras,
e maior os que cada vez tivessem menos. Nem a Lei nem os Profetas proclamaram
manifestos brilhantes e belos a respeito da igualdade, mas se esforçaram para contro­
lar e diminuir o constante crescimento da desigualdade. A terra representava a base
material da própria vida e não podia ser tratada como mercadoria. Envolvia Deus de
modo muito especial em duas frentes distintas mas relacionadas entre si.

Com prar e vender terras. Fazendeiros arrendadores e residentes estrangeiros,


segundo o que lemos em Levítico, não podem vender terras que não lhes pertencem.
O paradigma clássico é a história da vinha de Nabot, e de Acab, que governou Israel
cerca de cem anos antes de Jeroboão II, segundo 1 Reis 21,1-4:

Nabot de Jezrael tinha uma vinha em Jezrael, ao lado do palácio


de Acab, rei da Samaria, e Acab assim falou a Nabot: “Cede-me
tua vinha, para que eu a transforme numa horta, já que ela está
situada junto ao meu palácio; em troca te darei uma vinha melhor,
ou, se preferires, pagarei em dinheiro o seu valor”. Mas Nabot res­
pondeu à Acab: “lahweh me livre de ceder-te a herança dos meus
pais!”. Acab voltou para casa aborrecido e irritado por causa dessa
resposta que lhe dera Nabot de Jezrael: “Não te cederei a herança
dos meus pais”.
1 3 . Reconstrução de Tiberíades do primeiro século
Com o seu pai, Herodes, o Grande, Herodes Antipas construiu uma nova cidade à beira do m ar e
a nomeou em honra do imperador romano. Não era no Mediterrâneo, mas no M ar da Galiléia;
não capital de um reino, mas de uma tetrarquia, ou quarta parte de um reino; não para César
Augusto, mas para seu fUho Tibério César. A cidade era a miniatura de Cesaréia M arítima sem
os elementos pagãos. Com o Tiberíades é hoje importante ponto turístico, só tem sido possível
escavar pequenas porções da antiga cidade judaica, como o canto de um teatro (1), ainda para
ser estratigraficamente datado, o começo de um cardo (2) e o portão da cidade no lado sul (3),
embora sem os muros originais do primeiro século que não foram encontrados, em construção
com guindastes (4). Tam bém foram escavados pedaços de uma basílica posterior (5) e a área
do mercado perto da baía. O palácio (6) é conhecido pelos escritos de Josefo, e Lucas 7,25 o
menciona, embora segundo os evangelhos Jesus nunca tenha visitado Tiberíades, talvez para
evitar qualquer confronto direto com Antipas.

A reação de Acab demonstra que era um monarca moderado, mas sua esposa
era Jezabel, filha do rei de Tiro. Pertencia a uma religião diferente que professava
uma teologia econômica também diferente. Porque acreditava no livre comércio,
mandou matar Nabot e deu a cobiçada vinha ao marido. Nabot não tinha intenção
de ofender o rei, mas queria permanecer fiel à antiga e conservadora teologia da
aliança, que considerava a terra propriedade de Deus e se recusava a tratá-la como
qualquer outra mercadoria, capaz de ser vendida ou comprada.

Terras hipotecadas ou perdidas. Se não se podia vender a terra, era ainda possível
perdê-la de um jeito ou de outro. Em caso de dívida, dava-se a terra como garantia,
e se não se saldasse a dívida, perdia-se a terra com a execução da hipoteca. Não se
podia comprar ou vender, nem roubar ou assaltar; apenas endividar-se e perder por
hipoteca. A Lei tinha muito a dizer sobre dívidas. Não as proibia, mas procurava
controlar ou diminuir suas piores conseqüências, de cinco modos principais.

Por proibição de lucro. O lucro era proibido entre os israelitas, tanto antes como
depois do empréstimo, tanto na forma de dinheiro como de bens:

Se o teu irmão que vive contigo achar-se em dificuldade e não tiver


com que te pagar, tu o sustentarás como a um estrangeiro ou hós­
pede, e ele viverá contigo. Não tomarás dele nem juros nem usura,
mas terás o temor do teu Deus, e que o teu irmão viva contigo.
Não lhe emprestarás dinheiro a juros, nem lhe darás alimento para
receber usura (Lv 25,35-37).

Por controle do penhor. 0 uso de garantia ou penhor não deveria envolver ações
ou exigências opressoras:

Não tomarás como penhor as duas mós, nem mesmo a mó de cima,


pois assim estarias penhorando uma vida [...]. Quando fizeres algum
empréstimo ao teu próximo, não entrarás em sua casa para lhe
tirar o penhor. Ficarás do lado de fora, e o homem a quem fizeste
o empréstimo virá para fora trazer-te o penhor. Se for um pobre,
porém, não irás dormir conservando o seu penhor; ao pôr-do-sol
deverás devolver sem falta o penhor para que ele durma com seu
manto e te abençoe. E, quanto a ti, isso será um ato de justiça diante
de lahwfeh teu Deus (Dt 24,6.10-13).

Por remissão das dívidas. As dívidas podem aumentar devagar, mas certamente a
quantias impossíveis de serem pagas. Mas nunca para sempre. Na pior das hipóte­
ses, por sete anos:

A cada sete anos farás remissão. Eis o que significa esta remissão:
todo credor que tenha emprestado alguma coisa a seu próximo
remitirá o que havia emprestado; não explorará seu próximo, nem
seu irmão, porque terá sido proclamada a remissão em honra de
lahweh (Dt 15,1-2).

Por libertação dos escravos. Da mesma forma, indivíduos e famílias que haviam
sido vendidos como escravos para o pagamento de dívidas deveriam ser libertados
depois de sete anos:

Quando um dos teus irmãos, hebreu ou hebréia, for vendido a


ti, ele te servirá por seis anos. No último ano tu o deixarás ir em
liberdade. Mas, quando o deixares ir em liberdade, não o despeças
de mãos vazias: carrega-lhe o ombro com presentes do produto do
teu rebanho, da tua eira e do teu lagar. Dar-lhe-ás conforme a bênção
que lahweh teu Deus te houver concedido (Dt 15,12-14).

Por restauração de propriedades. Finalmente, temos o caso da expropriação quando


a terra tornava-se endividada ou hipotecada e seu dono perdia o direito legal a ela.
Mas assim como nos dois casos anteriores, em que as coisas mudavam depois de sete
anos, neste caso o período era maior: cinqüenta anos. Era o ano do jubileu: “Decla­
rareis santo 0 qüinquagésimo ano e proclamareis a libertação de todos os moradores
da terra. Será para vós um jubileu: cada um de vós retornará a seu patrimônio, e
cada um de vós voltará ao seu clã” (Lv 25,10). Essa restauração aplicava-se apenas
às propriedades rurais, não atingindo as urbanas. Deus protegia os camponeses
não porque preferisse os pobres mas porque optava preferencialmente pela justiça.
Poderia ser de outra maneira?
Talvez tudo isso tenha sido mais teórico do que prático, ideal mais que real,
mas são princípios profundamente enraizados na lei da aliança, na Torá, mediante
os quais o povo era chamado a expressar que a terra pertencia ao Deus de justiça e
retidão. Mostravam como deveria ser um reino baseado na aliança, bem diferente
do reino construído por Jeroboão II, especialmente em face das exigências de Amós
em nome de Deus. Teria que diferir também do esplendoroso reino construído por
Herodes Antipas, a partir do reino proclamado por Jesus, também em nome do
mesmo Deus.

Reino e eschaton

Os oráculos de Amós eram rápidos e terrivelmente precisos quando, sob Sar-


gon II em 721 a.C., o Império Assírio atacou como o lobo as ovelhas, destruindo a
Samaria e dispersando dez das doze tribos de uma vez por todas. Os que coletaram
e preservaram suas denúncias proféticas não poderiam terminá-las sem um final
positivo, isto é, sem um vislumbre de esperança:

Eis que virão dias — oráculo de lahweh — em que aquele que


semeia estará próximo daquele que colhe, aquele que pisa as uvas,
daquele que planta; as montanhas destilarão mosto, e todas as
colinas derreter-se-ão. Mudarei o destino de meu povo, Israel; eles
reconstruirão as cidades devastadas e as habitarão, plantarão vinhas
e beberão o seu vinho, cultivarão pomares e comerão os seus frutos.
Eu os plantarei em sua terra e não serão mais arrancados de sua
terra, que eu lhes dei, disse lahweh teu Deus (9,13-15).

Esse texto promete a restauração da terra devastada e do povo disperso, descre­


vendo por meio de fragmentos poéticos a fertilidade dos campos com suas vinhas
ao lado do compromisso de que as terras “nunca mais” seriam perdidas. Chegamos
ao ponto mais importante. Se a visão de Amós viesse a se realizar, será que as tribos
perdidas de Israel retornariam ao reino de abundância construído por Jeroboão II
ou para o reino de justiça exigido por Amós?

Esperanças e promessas desse tipo são chamadas de escatológicas, embora o ter­


mo neste contexto não deva ser entendido no sentido cristão posterior, quando o
mundo material seria substituído pelo espiritual, e o mundo terreno pelo céu. Nos
antigos textos israelitas ou judaicos a linguagem escatológica referia-se à Utopia
(do grego, “não-lugar”) ou, melhor, Eutopia (do grego, “bom lugar”) divinamente
estabelecidas, nas quais Deus acaba com este mundo terreno de injustiça e falsidade,
substituindo-o por outro de justiça e retidão, também aqui na terra. Não repele a
criação mediante destruição cósmica, mas destrói o mal por meio da transformação
cósmica. 0 reino escatológico é o reino da aliança levado à suprema perfeição e
consumação ideal, mas sempre aqui embaixo, nesta terra.

Os profetas Amós e Miquéias, oriundos de vilarejos judaicos povoados por


camponeses, condenaram a sociedade por causa da prática sistêmica de injustiça
distributiva, um ao norte, o outro ao sul, e tiveram seus pronunciamentos coletados
depois em livros, onde foram introduzidas esperanças escatológicas. Miquéias contém
um oráculo muito mais extático e entusiástico do que o apêndice fmal de Amós.
A seguir, a visão do futuro escatológico da Eutopia terrestre de Deus em Miquéias
(4,1-4) e em seu contemporâneo Isaías (2,2-4):

E acontecerá, no fim dos dias, que a montanha da casa de lahweh


estará firme no cume das montanhas e se elevará acima das colinas.
Então, povos afluirão para ela, virão numerosas nações e dirão:
“Vinde, subamos a montanha de lahweh, para a Casa do Deus de
Jacó. Ele nos ensinará os seus caminhos e caminharemos pelas
suas vias. Porque de Sião sairá a Lei, e de Jerusalém a palavra de
lahweh. Ele julgará entre povos numerosos e será o árbitro de nações
poderosas. Eles forjarão de suas espadas arados, e de suas lanças,
podadeiras. Uma nação não levantará a espada contra outra nação e
não se prepararão mais para a guerra. Cada qual se sentará debaixo
de sua vinha e debaixo de sua figueira, e ninguém o inquietará,
porque a boca de lahweh dos Exércitos falou!

O conteúdo dessa visão é proporcionalmente tão magnífico quanto é vaga a


indicação do tempo da consumação. 0 apêndice do livro de Amós sobre a visão
escatológica menciona “naquele dia” e que “virão dias”. A visão acrescentada ao
livro de Miquéias refere-se ao “fim dos dias” e “naquele dia”. A certeza de quê e de
quem não vem acompanhada de igual certeza a respeito de como e de quando. Mas
encontramos nesse texto algo ainda mais importante sobre o ideal eutópico.

Os ataques contra os sincretismos religiosos, as alianças políticas e os processos


econômicos que negavam lahweh. Deus de justiça e retidão, sempre foram perigo-
SO S,mas também, pelo menos, importantes para as relações com os reis israelitas
autóctones. Mas que dizer sobre os monarcas imperiais que haviam destruído Israel,
Reino do Norte, no ffnal do século oitavo e controlado Judá, Reino do Sul, depois do
final do século sétimo? Como entender os assírios, neobabilônios, persas, gregos,
greco-egípcios, greco-sírios, e finalmente, romanos? Que importância davam aos
costumes das pequenas cidades e à aliança divina?

Tratava-se não apenas de chauvinismo, xenofobia ou exclusivismo. Era preocupa­


ção não com as entidades abstratas pagãs conhecidas teoricamente, mas sim com
impérios, nações e gentios que os israelitas consideravam praticamente opressores.
Mas de que maneira lahweh. Deus de justiça e retidão, lidaria com as nações impe­
rialistas e com os gentios para estabelecer o reino escatológico destinado a realizar
finalmente a aliança como Eutopia divina aqui na terra, se o reino da aliança parecia
cada vez menos real e se o status colonial cada vez mais uma experiência concreta?

Acabamos de 1er uma resposta no oráculo acrescentado tanto a Miquéias 4,1-4


como a Isaías 2,2-4. Os impérios guerreiros e conquistadores seriam convertidos a
lahweh, Deus de justiça e paz. Não se tornariam israelitas, mas gentios e israelitas
viveriam juntos sob o governo divino. A mesma coisa é prenunciada para gentios
e judeus numa profecia posterior, da metade do segundo século a.C. Nos Oráculos
sibilinos, Deus “levantará entre os homens um reino que durará para sempre” e “eles
virão de todas as terras e oferecerão incenso e oferendas na casa do grande Deus”.
Então, os “profetas do grande Deus abandonarão as espadas” e “haverá riqueza justa
para todos, pois este é o julgamento e o domínio do grande Deus” (3.767-795).

Podemos esboçar a visão positiva da conversão cósmica à justiça e à paz em meio


a campos livres de trabalho fatigante e de animais incrivelmente pacíficos, através
da tradição judaica que tanto lutou com o problema dos gentios escatológicos. Mas,
ao lado dessa visão positiva da justiça escatológica, há também o lado negativo da
vingança também escatológica. “Naquele dia” as nações saqueadoras e os reinos
imperiais gentios serão totalmente sujeitos à Israel ou serão completamente ex­
terminados.

Essas duas respostas à opressão, conversão ou extermínio, justiça ou vingança,


não se reconciliam e permanecem lado a lado na tradição. Mas, ressaltamos, estão
presentes, por exemplo, nos dois textos citados acima. “Naquele dia”, diz Deus a
Miquéias, “aniquilarei as cidades de teu país e destruirei todas as tuas fortalezas
[...]; com ira e com furor tomarei vingança das nações que não ouviram!” (5,10.14).
Diz dos inimigos que serão pisoteados “como a lama das ruas” e lamberão “o pó
como a serpente, como os animais que rastejam na terra”, virão “tremendo de suas
fortalezas, em direção a lahweh, nosso Deus, que eles temam e tenham medo diante
de ti” (7,10.17). Semelhantemente, nos Oráculos sibilinos, aparece também o lado
negativo: “Todos os ímpios se banharão em sangue. A terra também beberá o sangue
dos que morrem; as bestas selvagens se saciarão com carne” (3.695-697).
Sem dúvida, as duas soluções poderiam ser combinadas, como em 2 Baruc,
escrito por volta do fmal do primeiro século d.C.: “Ele convocará todas as nações,
poupará algumas e destruirá outras [...]. As nações que não conheceram Israel e que
não esmagaram a semente de Jacó viverão [...]. Todos, agora, que governaram sobre
vós ou vos conheceram serão entregues à espada” (72,2-6). Na maioria dos casos,
contudo, as duas soluções aparecem lado a lado no mesmo texto, a da conversão e
a do extermínio. Segundo o texto pré-macabeano Livro dos vigilantes, em 1 Enoc, o
fim consistirá na “destruição da injustiça da face da terra [...] para limpar a terra de
toda a injustiça” (10,16). Mas resta ainda a questão dos meios, mesmo se divinos.
E aqui, especialmente, o fim não justifica os meios.

Reino e apocalipse

O reino escatológico ou eutópico representa a sublime perfeição da aliança, e


0 apocalíptico realiza-se no iminente advento do reino escatológico. Existe clara
transição entre o bem ideal (aliança) e a perfeição ideal (escatologia), bem como
entre a esperança distante (escatologia) e a presença próxima (apocalipse). Quanto
mais agora o presente Reino de Deus se desvia do bem normal, mais o mesmo
povo busca a perfeição ideal. Quanto mais o ideal se afasta do presente, mais se
busca 0 futuro. O apocalipse é a revelação de que logo vai chegar o fim do mal e da
injustiça. Que vai chegar logo, quase agora. O contexto do reino apocalíptico torna­
se questão aberta ou expectativa vazia, sem a passagem do reino da aliança para o
escatológico. Comparemos, por exemplo, os diferentes finais de reinos, anunciados
nos seguintes casos.

Em primeiro lugar, na metade dos anos 170 a.C., Aemilius Sura descreveu
a seguinte seqüência de cinco impérios: “Os assírios foram os primeiros entre
todas as raças a exercer poder mundial, depois os medas, seguidos pelos persas e,
finalmente, os macedônios. Então por causa da derrota dos reis Felipe e Antíoco,
de origem macedônia, logo depois da capitulação de Cartago, o poder mundial
passou para o povo romano”. A seqüência de quatro impérios do passado e mais
um quinto, superior, já era conhecida no mundo antigo, mas a afirmação de que
Roma era esse quinto reino veio de Roma, coisa historicamente defensável mas
não aceita universalmente.

Em seguida, na metade dos anos 160 a.C. o apocalipse no livro bíblico de Daniel
também menciona quatro reinos e um outro, mais forte. Os quatro são, neste caso,
os neobabilônios, os medas, os persas e os gregos. No livro de Daniel, os quatro
grandes impérios surgiram das revoltas das águas do caos primordial como bestas
selvagens e ferozes: um leão, um urso, um leopardo e “um quarto animal, terrível,
espantoso, e extremamente forte: com enormes dentes de ferro, comia, triturava e
calcava aos pés o que restava. Muito diferente dos animais que o haviam precedido,
tinha este dez chifres” (7,7). O quinto reino aparece quando “um como Filho de
Homem” põe-se diante de Deus, o Ancião ou Senhor do Tempo (7,13). (A frase
chauvinista semítica “filho de homem” corresponde à nossa “membro da humani­
dade”. Refere-se ao ser humano, à pessoa.)

Os que se parecem com bestas vêm da desordem do mar; o humano, da ordem


celeste. “O domínio lhe será arrebatado” e, em lugar disso, “a grandeza dos reinos
sob todos os céus será entregue ao povo dos santos do Altíssimo” como “um império
eterno” (7,14.26-27). A expressão “um como Filho de Homem” refere-se ao quinto
reino, não importando se indica uma personificação coletiva ou o representante
angélico do povo de Deus. Observemos, contudo, que embora seja o contrário dos
quatro reinos, não temos pormenores a seu respeito, porque supõe a existência de
uma tradição completa sobre o reino escatológico e da aliança. Se o reino apocalíptico
é sociedade ideal, mundo perfeito, a Eutopia divina já chegando na terra, nem todos
concordariam com todos os detalhes. Mas estariam de acordo com a restauração de
Israel ou com o retorno das Doze Tribos. Talvez todos concordassem com justiça,
paz, piedade, santidade, fertilidade e prosperidade. Não haveria problema enquanto
todas essas esperanças não fossem especificadas. Mas, mesmo no judaísmo, mulhe­
res e homens, escravos e livres, pobres e ricos, camponeses e aristocratas, optariam
por diferentes ênfases e prioridades. Qual era o conteúdo do Reino de Deus a ser
construído aqui na terra?

Consideremos um exemplo. O cenário apocalíptico nos Oráculos sibilinos 2 .1 9 6 ­


335 data da era de Augusto na virada do século. Era um pleno apocalipse judaico. Em
primeiro lugar, o mundo inteiro submergiria num “grande rio de fogo ardente”.
Em segundo lugar, haveria o julgamento universal no “tribunal do grande Deus
imortal”. Em terceiro lugar, os mortos seriam incluídos sendo “ressuscitados num
só dia” quando “Uriel, o grande anjo, romperá os gigantescos ferrolhos das portas do
Hades, feitos de aço inquebrável e impenetrável”. Em quarto lugar, “todos passarão
pelo rio de fogo e pelas chamas inextinguíveis”, de tal maneira que “os retos serão
salvos e os ímpios destruídos para sempre”. Em quinto lugar, a destruição final é
exemplificada com terríveis pormenores. Em sexto lugar, a salvação será dada aos
que forem elevados do “rio ardente” e será, naturalmente, salvação num mundo
perfeito e numa sociedade ideal. “A terra pertencerá igualmente a todos, sem divi­
sões de muros ou cercas. Em conseqüência disso, produzirá espontaneamente mais
frutos. Numa vida comunitária as riquezas serão de todos. Não haverá pobres nem
ricos, nem tiranos ou escravos. Além disso, ninguém será maior ou menor do que os
outros. Viveremos sem reis e sem líderes. Todos viverão juntos”. Em sétimo lugar,
chegamos ao elemento final: “0 Deus imperecível e governador do universo dará
a estes piedosos uma outra coisa. Sempre que rogarem ao Deus imperecível para
que salve os homens do fogo ardente e do eterno ranger de dentes, ele os atenderá.
Pois ele tirará esses homens do fogo inextinguível e os levará para outro lugar, por
causa de seu povo, à outra vida eterna com os imortais nas planícies elísias”. Nesse
cenário de paz, os maus serão condenados a um lugar semelhante ao inferno, muito
embora possam se libertar daí pela intercessão dos que se “preocupam com a justiça
e com as ações nobres”.

Concentremo-nos, por um instante, nos dois últimos elementos. Teriam todos


imaginado ou mesmo concordado com o sexto ponto? Talvez, todos achassem que
se tratava apenas de doce ilusão. Ou, quem sabe, levariam isso a sério? Aceitaria
a aristocracia esse igualitarismo radical mesmo como ideal abstrato? Ou, de novo,
concordariam todos com o sétimo ponto? Esse apocalipse judaico provocou este
comentário de um escriba cristão num manuscrito da tradição; “Totalmente falso. O
fogo que tortura os condenados nunca cessa. Eu mesmo gostaria de rezar por isso,
embora esteja marcado com grandes cicatrizes de faltas que precisam de muitíssima
misericórdia. Deixemos que o tagarela Orígenes se envergonhe de dizer que existem
limites para a punição”. O cenário de Eutopias separadas embora iguais aproxima-
se do ideal positivo da conversão dos gentios em vez do negativo do extermínio,
igualdade humana radical? Misericórdia divina também radical?

Ao longo da continuidade divina que vai do reino da aliança pelo escatológico


e apocalíptico, ao lado da passagem da esperada justiça e retidão aqui na terra, não
são os cenários formosamente vagos e gerais que causariam tensões, mas sim os
pormenores específicos, os resultados práticos e as implicações socioeconômicas. De
que maneira precisamente o reino de Jeroboão II diferia do de Amós, o de Augusto
e Tibério, ou de Herodes Antipas, do de João Batista e Jesus de Nazaré? Qual era a
diferença entre Séforis e Nazaré, Tiberíades e Cafarnaum?

O Reino de Deus em Cafarnaum?


Herodes, o Grande, e Herodes Antipas foram dois governantes de dois reinos
inaugurados pela violência e marcados por projetos de construção. Mas, embora o
primeiro tivesse conseguido imprimir sua marca permanente no país, o segundo
acabou exilado, deixando como herança apenas restos de arquitetura de segunda
qualidade. Os achados entre as ruínas de Cesaréia, construída no reinado de
Herodes, o Grande, deslumbram os escavadores sempre que voltam lá, enquanto
as camadas da Tiberíades de Antipas e Séforis são vagas e menos espetaculares. O
reino de Jesus, por outro lado, não deixou estruturas nem inscrições nem artefatos.
Não obstante, os arqueólogos ajudam-nos a entender seu programa examinando o
contexto no qual proclamou e viveu o Reino de Deus. E mesmo se nunca tivesse
estado em Cesaréia ou em nenhum outro grande centro urbano como, por exemplo,
Decápolis, e embora as duas cidades da Galiléia, Séforis e Tiberíades, nunca tenham
sido mencionadas nos evangelhos, o caráter de todas essas cidades é importante
para a pesquisa a respeito de Jesus por duas razões.

A primeira, é que permitem comparações com as cidades mencionadas nos evan­


gelhos. Para entender Nazaré, por exemplo, precisamos compará-la com Cafarnaum
e esta com Séforis ou Tiberíades; Séforis e Tiberíades, por sua vez, com Cesaréia
Marítima ou Jerusalém. A outra razão, talvez mais importante, é que podem explicar
por que João e Jesus viveram em suas localidades. Por que o movimento batismal
de João e 0 do reino, de Jesus, deram-se em territórios de Herodes Antipas nos
fms dos anos 20, não antes nem depois? Será que a romanização da Baixa Galiléia
começada por Antipas com a reconstrução de Séforis em 4 a.C., substituída depois,
como capital, por Tiberíades em 19 d.C. teria alguma relação com esses movimentos
religiosos políticos da década seguinte? Por que, por exemplo, Jesus e o Reino de
Deus se relacionaram não com Séforis e Tiberíades mas sim com Cafarnaum? Como
entender esse relacionamento? Voltemos a atenção, pois, para Cafarnaum, a cidade,
depois de Nazaré, mais associada com Jesus, tendo em vista os grandes projetos
de Herodes, o Grande, para Cesaréia Marítima, e os menores, de seu filho Antipas,
para Séforis e Tiberíades.

A pequena cidade judaica de Cafarnaum no primeiro século

População. Cafarnaum, no primeiro século, era uma modesta cidade judaica na


periferia do território de Antipas, dependente, principalmente, de agricultura e pesca.
O intenso calor nos longos meses de verão assolava os campos ao redor, pedregosos
e difíceis para o cultivo. Nos dias de Jesus, situava-se distante das principais rotas
comerciais. Não era lugar preferido para visitas, mas bom para sair em viagens por
causa do acesso fácil pelo Mar da Galiléia a muitas direções. Estava próxima do ter­
ritório de Herodes Felipe, que, segundo Josefo, era muito mais moderado do que
seu meio-irmão Antipas. Quanto à área e população, estava longe de Cesaréia e era
menor do que Séforis e Tiberíades. Estas se espalhavam por cerca de 100 a 150 acres
e as populações chegavam a oito ou doze mil habitantes, enquanto Cafarnaum não
media mais do que modestos 25 acres onde viviam cerca de mil habitantes. Ficava
a um passo de Nazaré, mas muitíssimos de Séforis e Tiberíades. A distância entre
Cafarnaum e Cesaréia era imensa.

E d ifícios. Não havia em Cafarnaum, como em outros vilarejos da Galiléia,


feições arquitetônicas greco-romanas, comuns nos cenários urbanos. Edifícios
cívicos encontrados, de períodos anteriores, revelam o caráter provinciano da
cidade. Apenas nas camadas do período bizantino posterior foram achadas uma
sinagoga e uma igreja. Não havia portão de entrada como em Tiberíades nem
fortificações ou muros. Tampouco se tem notícia de estruturas cívicas para en­
tretenimento, como teatro, anfiteatro ou hipódromo, tão apreciadas pelas elites
de Cesaréia e de outros centros. A cidade não possuía balneários nem sistema
de esgoto. Não se achou evidência alguma da existência de uma basílica para uso
jurídico, assembléias ou atividades comerciais. É provável que reuniões desse
tipo se realizassem em áreas abertas ou à beira do lago. As escavações arqueo­
lógicas não encontraram, até agora, nenhum indício de artefatos relacionados
com santuários ou templos, estátuas ou qualquer outro tipo de iconografia. Não
possuía uma ágora, ou mercado, nem armazéns. Havia uma espécie de feira ao
ar livre, com tendas ou barracas, em áreas não pavimentadas, perto do mar, e do
lado de fora das casas particulares os moradores mascateavam suas mercadorias
ou vendiam suas bugigangas.

Ruas. Tão importante como a falta de edifícios públicos para a avaliação de Cafar­
naum do tempo de Jesus é a ausência no local de planejamento centralizado. A área
urbana não era ortogonal e não tinha avenidas perpendiculares. Os arqueólogos não
encontraram traço algum do que se chamava então cardo maximus e decumanus, ruas
com cruzamentos que eram marcas do planejamento urbano no período romano. As
ruas não eram pavimentadas com pedras nem adornadas com colunas ou pórticos.
Não passavam da largura de 6 a 10 pés, e a maioria das vias era não ruas, mas sim
estreitas alamedas ou passagens. Não havia canais para água corrente. 0 esgoto era
jogado em passagens estreitas revestidas de terra e lixo, cheias de poeira nas estações
quentes e de lama nas chuvosas, sempre exalando mau cheiro. Os visitantes não
eram saudados por materiais de construção comuns nos projetos urbanos nem por
obras de luxo. As paredes externas não eram rebocadas, não ostentavam afrescos nem
granito vermelho de Assuã ou mármore branco da Turquia, nem nenhum outro tipo
de mármore, nem canteiros ou mesmo pedras de mosaico. Tampouco havia telhas
vermelhas de cerâmica comuns nos contextos do período romano.

A planta de Cafarnaum era orgânica e não ortogonal. Mesmo quando os


escavadores franciscanos referiam -se a diversas unidades domésticas como
insulae, certamente, em nada se pareciam com os apartamentos planejados em
área ortogonal como, por exemplo, na cidade portuária romana de Óstia. Eram
simplesmente quartos ao redor de um pátio pertencentes a famílias constituídas
por diversos membros. Quando se examinam com atenção as plantas dos escava­
dores, percebe-se que a sinagoga e o complexo ao redor da Casa de São Pedro, do
século quinto de nossa era, que vamos descrever mais adiante, determinavam a
existência de blocos ordenados em forma perpendicular. 0 resto das escavações
mostra paredes irregulares, resultantes da aglomeração de casas em volta de
pátios sem planejamento central. Pode-se facilmente visitar Cafarnaum andando
pela espaçosa margem do mar ou caminhando pelo vilarejo em espaços entre
grupos de casas rurais. Vielas e ruas quase sempre tortas e curvas nos levam até
perto das águas onde, em grandes espaços, pessoas reparam barcos, costuram
redes de pescar ou reúnem cabras e ovelhas. Diferentemente de Cesaréia, Séfo­
ris ou Tiberíades, o vilarejo de Cafarnaum não se desenvolvera a partir de um
eixo ordenador, não tinha muros nem belas fachadas, nem tampouco estruturas
arranjadas para proporcionar perspectivas.

Inscrições. Os arqueólogos não encontraram inscrições do primeiro século,


públicas ou privadas, em Cafarnaum, indicando a estatura modesta do lugar (e
analfabetismo?). As inscrições públicas representavam importante aspecto da vida
civil greco-romana com a inclusão dos nomes deste ou daquele benfeitor em todo
tipo de superfícies públicas; pavimentos, colunas e estátuas — eram os outdoors
da vida urbana antiga. As despesas individuais em projetos de edifícios públicos
transformavam-se em inscrições honoríficas onipresentes nas cidades escavadas ao
longo do litoral mediterrâneo, como a de Pilatos, que já vimos. As pessoas pagavam
para ver seus nomes gravados em pedras. Mas nada desse tipo se encontrou em
Cafarnaum e noutras cidades da Galiléia do primeiro século.

Casas. Tenhamos na memória esta descrição das casas de Cafarnaum para con­
trastá-las com os palácios e vilas urbanas herodianas no capítulo 4. Veremos que essas
descrições mostram o oposto do reino comercial herodiano. As casas de Cafarnaum
assemelham-se a outras encontradas em vilarejos judaicos ao leste da Galiléia e ao sul
do Golan, construídas com basalto escuro local e alguns pedaços de madeira torta,
palha ou junco, e barro. Eram construídas sem nenhuma assistência de técnicas e
instrumentos especializados, embora provavelmente anciãos experientes ajudassem
no desenho e emprestassem instrumentos rudimentares e se encarregassem das
tarefas mais difíceis. Familiares, amigos e vizinhos ajudavam na construção.

A qualidade era inferior, em contraste com o trabalho dos pedreiros herodianos


especializados que utilizavam a técnica bem planejada do opus quadratum, ou de
construção com pedras retangulares, que veremos com pormenores no próximo
capítulo. As paredes subiam sobre alicerces de basalto; as camadas inferiores que
sobreviveram mostram duas fileiras de pedras disformes e pedrinhas, barro e argila
inseridos nos interstícios; em vez de reboco ou afrescos, as paredes revestidas com
barro, estrume e palha privilegiavam mais o isolamento térmico do que a estética.
Quando suficientemente sólidas serviam de apoio para um segundo andar, mas a
fragilidade das partes superiores exigia reparos constantes. Poderiam ruir a qualquer
momento. Nenhum dos telhados sobreviveu à ação do tempo. A falta de pedras
adequadas para formar arcos, abóbadas e vigas, e a ausência de telhas indicam que
as casas eram cobertas com sapé, como são descritas na literatura rabínica judaica.
Vigas mestras de madeira serviam de base para camadas espessas de junco desti­
nadas a proteger a madeira dos efeitos da umidade. Esse material era finalmente
revestido de barro para aumentar o isolamento térmico. Quando Marcos 2,4 conta
a história do paralítico em Cafarnaum dizendo que “abriram o teto” para trazê-lo a
Jesus, podemos pressupor esse tipo de telhado. Na geração seguinte, num stratum
mais alto, e distante dali por milhas, Lucas edita Marcos e conta que fizeram-no
descer “através das telhas” (5,19), coisa impossível de ser aplicada a Cafarnaum,
mas certamente apropriada para o contexto mais urbano de Lucas e da audiência
de classe mais alta que vivia sob telhados desse tipo.
Diferindo das vilas aristocráticas, as casas de Cafarnaum não eram construídas
ao redor de um eixo capaz de deixar seus interiores visíveis da entrada, mostrando o
átrio, 0 triclinium, ou sala de jantar, mas, em vez disso, diversos cômodos contíguos
ao redor do pátio. Ao longo de uma parede fechada essas peças destinavam-se a
serviços, armazenamento e para dormitórios, abertas para o pátio interno, invisíveis
aos que passavam lá fora. Em geral só tinham uma entrada; uma delas, encontrada
quase intacta em Cafarnaum, possuía a entrada de pedra talhada protegida por fecha­
duras nas portas de madeira, mas estava longe da solidez e do tamanho dos limiares
monolíticos de Séforis e muito menos dos existentes nos palácios de Herodes. As
poucas janelas abertas nas paredes situavam-se no alto com a finalidade de prover
iluminação e ventilação sem preocupação alguma com a apreciação de vistas, dife­
rindo também aí das vilas aristocráticas e dos palácios de Herodes. Os moradores
preocupavam-se mais com segurança e privacidade; as janelas altas ocultavam suas
vidas. Dentro do complexo, as portas internas eram rudemente feitas de pedra e
madeira sem fechaduras ou trincos. É provável que fossem cobertas de palha ou
fechadas com cortinas.
As paredes e os cômodos criavam um ambiente fechado que protegia o pátio
da vista dos transeuntes. Tampouco exibiam sinais de riqueza ou luxo. Esses pátios
serviam para diversos fms; para o desenvolvimento ativo da vida familiar e para a
confecção de trabalhos manuais como indicam os inúmeros artefatos encontrados.
Funcionavam, de certa maneira, como nossas modernas salas de jantar e de estar,
cozinha, bem como oficina, garagem e dispensa. Conservam-se fragmentos de fornos
de cerâmica, cinzas e mós, testemunhando o labor das mulheres que, diariamente,
transformavam grãos em pão. Alguns pátios eram usados para guardar instrumen­
tos agrícolas como, por exemplo, moinhos movidos por mulas ou bois e prensas
de olivas que, talvez, fossem compartilhadas por outras famílias. Nas pequenas
cidades da Galiléia do período romano, foram achados pedaços de mesas jogados
no chão, transformados em piso. Os pátios maiores destinavam uma parte cercada
para guardar cabras. As galinhas andavam soltas pelo terreno todo. Também foram
achados anzóis e redes testemunhando a época em que os pescadores procuravam
manter seus equipamentos funcionando e os barcos em atividade no mar.

Cômodos. Os materiais remanescentes de quartos ou salas da camada do primeiro


período romano em Cafarnaum indicam a existência de pescadores ou camponeses.
Desprovidos de objetos de luxo, não dão sinais de riqueza. Nunca se achou alça
alguma de ânforas importadas para vinho nem as delicadas unguetaria para guardar
óleos e perfumes caros. Nem mesmo copos de vidro.

Os escavadores encontraram, por sua vez, inúmeros vasos de pedra como xícaras,
taças e bacias feitos a mão ou em pequenos tornos nada parecidos com os fabrica­
dos em grandes tornos mecânicos. As lamparinas do primeiro século eram quase
sempre simples, longe dos tipos decorados herodianos; era raro encontrar as do tipo
importado, finamente decoradas. As poucas mais sofisticadas e de melhor qualidade
não ostentavam motivos mitológicos, pagãos ou eróticos, comuns nas lamparinas
encontradas na costa e nas cidades grandes, contentando-se com simples desenhos
florais. Utensílios de cerâmicas vinham de produção local e, pelo que parece, de
Kefar Hahanya na Alta Galiléia; panelas, pratos e caçarolas, potes para água e jarras.
Tigelas, copos e vasos para servir alimentos eram raros, e quase não existia aparelhos
de jantar importados nos contextos romanos primitivos. Os únicos utensílios desse
tipo encontrados haviam sido produzidos localmente imitando cerâmicas importadas
de centros especializados e famosos.
Barcos. Os habitantes de Cafarnaum aproveitavam o lago para pescar. Em perío­
dos posteriores, construiu-se um cais mais adequado. Antes disso, a água respingava
sobre a terra irregular com alguma proteção formada por pequenas pedras polidas
depois jogadas no lago. Dificilmente se poderia chamar esse lugar de “baía” no
sentido do porto monumental de Cesaréia.

Não há dúvida de que a pesca ajudava no sustento de boa parte da população,


mas 0 estilo de suas casas deixa claro que não se tratava de “indústria” próspera.
Graças à descoberta em 1986 de um barco de pesca do primeiro século, conhecemos
agora um pouco a respeito da confecção de barcos e dos métodos de pesca no Mar
da Galiléia. Como resultado de uma queda dramática nas águas do Mar da Galiléia
durante uma severa enchente, dois irmãos do kibutz Ginnosar perceberam o esque­
leto de um barco encalhado na lama perto da antiga Magdala. Grupos encarregados
de operações de resgate começaram a recuperar e a restaurar o barco antes que o
nível das águas o cobrisse novamente. Há aproximadamente dois mil anos, o barco
dilapidado de 8 por 26 pés foi depenado de suas partes reutilizáveis e jogado de
volta nas águas. Coberto por sedimento e lama, e encerrado num estado anaeróbico,
acabou protegido de bactérias e deterioração.

A construção do casco e os materiais usados contam a história de um experiente


construtor de barcos que trabalhava com parcos recursos. Faltavam-lhe materiais
básicos, mas ele era suficientemente hábil e determinado para manter o barco
navegando por algum tempo. Fora construído originalmente com madeiras apro­
veitadas de outros barcos e da própria região, porém de qualidade inferior. A quilha
da frente, a única fabricada com madeira apropriada, de cedro do Líbano, parecia
aproveitada de outro barco e ainda mostrava marcas de conexões antigas. Nenhum
construtor de barcos do Mediterrâneo teria coragem de usar boa parte das tábuas,
de baixa qualidade, como pinho, jujuba e salgueiro. O material utilizado para o
casco mantinha-se unido por meio de encaixes, fixados com bem medidas cunhas
de carvalho, seladas de certa forma com resina de pinheiro; o casco, arrematado por
uma moldura fixada com pregos de ferro dava estabilidade ao barco, e todo ele era
untado com betume.

Com 0 passar do tempo, contudo, os materiais traíam seu construtor; os encaixes


começavam a se soltar, as madeiras rachavam e as cunhas apodreciam. Sem velas,
âncoras e partes reutilizáveis, incluindo até pregos, o casco acabou flutuando ao
sabor das águas e, finalmente, afundou. Panelas simples com e sem tampa e uma
lamparina sem decoração alguma situam o barco no primeiro século. Testes com
carbono 14 aplicados à madeira do barco confirmam a data. Na falta de materiais
adequados, os pescadores do mar da Galiléia trabalhavam muito para manter os
barcos sobre as águas, remendando-os com este ou aquele pedaço de madeira para
substituir 0 que se ia deteriorando e tentando ganhar a vida lançando as redes ao
mar. O reino comercial de Herodes Antipas não se interessou em desenvolver a
pesca nem frotas mercantis no lago.
1 4 . Barco do primeiro século da Galiléia
(Cortesia do Museu Yigal Allon, kibutz Ginnosar)
V___________________________________

Construções tardias do Reino em Cafarnaum

0 reino de Herodes, o Grande, e a tetrarquia de Herodes Antipas trouxeram


para a Galiléia judaica aparência romana e mudaram as estruturas econômicas que,
eventualmente, provocaram as duas guerras judaicas contra Roma. Desde então,
Roma abandonou o sistema de reis clientes e estabeleceu vias diretas para governar a
região com a presença de suas legiões. Construíram-se estradas e foram melhoradas
as já existentes em todo o território judaico integrando-o à rede viária do Oriente
romano e facilitando as campanhas imperiais contra o último grande inimigo de
Roma, a saber, os persas das mais distantes fronteiras do império no Oriente. Os
arqueólogos encontraram em Cafarnaum alguns traços do programa de construção
do reino imperial romano na Galiléia.

B alneário rom ano. O pequeno balneário escavado nos fms dos anos 1980 nas
ruínas de Cafarnaum, nos domínios do patriarcado greco-ortodoxo, sugere certas
conexões com uma história do evangelho. Construído no estilo típico legionário
romano, o balneário situava-se nos confins da cidade, ao leste. 0 edifício de 26 por
56 pés foi construído fora dos padrões encontrados em outros sítios: sistema de
tijolos e telhas com encanamentos subterrâneos cobertos por pisos de argamassa e
concreto; paredes de pedras uniformemente talhadas, bem niveladas, revestidas de
cimento. A casa dividia-se em quatro câmaras — o frigidarium, com água fria, o tepi­
darium, com água morna, o caldarium, com água quente, e o apodyterium, ou vestiário
— e assemelhava-se a qualquer outro balneário básico usado pelas legiões romanas
nas fronteiras ocidentais da Bretanha e da Gália no segundo século d.C.

A existência dessa casa não significa que a prática de banhos públicos de estilo
romano fosse praticada pelos habitantes do vilarejo de Cafarnaum. Indicava, isso
sim, a presença das forças de ocupação desejosas de se banhar aí em estilo romano.
Não há conexão alguma com a história do centurião de Cafarnaum no Evangelho
Q em Mateus 8,5-13 = Lucas 7,1-10 e João 4,46-54. Cacos de cerâmica retirados
da estrutura pelo escavador Vassilios Tzaferis, do Departamento de Antiguidades
de Israel, confirmam que pertenciam ao período romano médio. O balneário data,
então, do segundo século, quando os legionários romanos estavam aquartelados
permanentemente na Galiléia depois da revolta de 132-135 d.C. O oficial, chamado
de “centurião” em Lucas (do grego hekatontarchos, “governante sobre cem subor­
dinados”), não deve ser confundido com o centurião romano que presidia sobre o
contingente de uma legião. A história de João chama-o simplesmente de basilikos
(“oficial real”). As inscrições que já examinamos encontradas em Séforis e Tibe­
ríades mostram que Antipas adotara realmente a terminologia grega e romana para
designar seus oficiais. A maioria deles era judaica, embora Lucas e talvez até mesmo
João sugiram a existência de mercenários gentios de países estrangeiros em serviço
nessa cidade fronteiriça. Durante o governo de Antipas não havia oficiais romanos
permanentes na Galiléia.

M arco rom ano. Por volta desse período encontrou-se perto de Cafarnaum evi­
dência da presença de legionários na forma de um marco miliário. Os legionários
romanos que também serviam como engenheiros mantinham-se ocupados cons­
truindo na Galiléia e em outros lugares no Oriente o sistema rodoviário romano
por ordem do imperador Adriano. Ele queria facilitar o acesso ao Oriente para que
as forças legionárias lutassem contra os partos e também pudessem abafar levantes
da parte dos judeus. O marco miliário romano, em latim, leva o nome do imperador
Adriano:

IMP(erator)
C[A]E[S]AR DIVI
[TRAL\]NI PAR[thici]
F(ilius) [DIVI NERVAE][N]EP(os)TRAI
[ANUS][HA]DRIANUS AUG(ustus)

Tradução: “Imperador César, filho do divino Trajano, que conquistou


os partos, neto do divino Nerva, Trajano Adriano Augusto”.
1 5 . Reconstrução de Cafarnaum do primeiro século
O lugar freqüentemente associado com o ministério de Jesus nos evangelhos era uma cidade
judaica de tamanho médio. Podia-se pescar no lago e as terras ao redor eram férteis. Abrigava
uma população de cerca de mil habitantes. O barco, no primeiro plano (I), é uma reprodução
tábua por tábua do que foi acidentalmente descoberto, do primeiro século, agora conservado
no Museu Yigal Allon no kibutz Ginnosar, e o jarro (2) também é réplica do que foi encontrado
no barco original. Os pescadores costumavam lançar redes de seus intimeros barcos, ou apenas
uma tarrafa de um só barco (3); as redes eram constantemente remendadas, como se vê no
ancoradouro (4), construído com pedras de basalto amontoadas junto às águas, inferiores às
da baía de Cesaréia Marítima. Sem nenhuma arquitetura de importância pública, \'endedores,
pescadores e camponeses ofereciam seus produtos ao longo da costa para trocas e vendas (5).
V__________________________________ ^

Dois séculos depois da segunda guerra judaica contra Roma (132-135 d.C.), sua
supremacia voltava sobre a Galiléia e Cafarnaum, mas agora com a proclamação da
vitória cristã. Em Cafarnaum, contudo, como no resto da Galiléia, o processo de
cristianização dos espaços públicos enfrentou oposição. Embora tenha sido cenário
de boa parte da vida de Jesus, de seus ensinos e milagres, durante os três séculos
seguintes, poucos cristãos viveram na Galiléia, que se manteve predominantemente
judaica. Inúmeros peregrinos cristãos passavam pela cidade, porque era mencionada
nos itinerários para a Terra Santa. As escavações arqueológicas na Galiléia atestam
a existência de uma rede de estruturas patrocinadas pelos cristãos do período bizan­
tino, como, por exemplo, a Gruta da Anunciação na cidade natal de Jesus, Nazaré, o
santuário em Caná comemorando a transformação da água em vinho e o complexo
monástico de Kursi, onde a legião de demônios foi exorcizada. Mas, igualmente,
outros achados arqueológicos indicam a presença de florescente auto-expressão
judaica e até mesmo de desafiadora resistência ao imperialismo cristão, na forma
de sinagogas, mosaicos e arte.

Sinagoga ju d aica. As ruínas em Cafarnaum na costa norte do Mar da Galiléia


mostram que havia competição entre igreja e sinagoga. Escavações arqueológicas
levadas a efeito no século passado em terrenos guardados pelos franciscanos des­
cobriram uma igreja octogonal do século quinto para venerar a casa de são Pedro,
“príncipe dos apóstolos”, expondo ao mesmo tempo uma sinagoga quase ao lado
— como resposta dos judeus aldeãos à incursão da religião estrangeira.

No quinto século, quando a igreja anunciava o cristianismo e o império nos


espaços públicos do vilarejo, os habitantes da cidadezinha revidavam com sua pró­
pria forma arquitetônica, judaica e autóctone. Construíram, então, uma quadra ao
norte da igreja, e a magnífica sinagoga de pedra calcária, datada desse mesmo século,
segundo evidências deixadas por pedaços de cerâmica e por moedas encontradas
debaixo do piso. Tratava-se de um dos maiores e mais bem construídos edifícios do
período bizantino, surpreendente, de certa maneira, dada a natureza modesta do
lugar. As paredes, pavimentos e colunas utilizaram pedra calcária branca trazida do
extremo oeste da Galiléia, contrastando com os edifícios cinzentos feitos de basal­
to local das cercanias do Mar da Galiléia. A fachada e a entrada voltavam-se para
Jerusalém; o recinto principal com duas fileiras de assentos era dividido em duas
alas por colunas com'capitéis decorados. No resto do edifício, a decoração simples
e provinciana constituía-se de algumas rosetas e guirlandas, a menorá, estrelas, in­
cluindo a que parecia ser a Estrela de Davi, além da representação da Arca da Aliança
ou santuário portátil da Torá.

Ironicamente, os fundos levantados para a construção da sinagoga vieram das


ofertas dos peregrinos cristãos. As duas dedicatórias, numa coluna e na verga de
uma porta, atestavam que a prática de comemorar doações com gravações em pedra
já era comum na comunidade judaica. A primeira, em grego, coisa bastante rara, e a
outra em aramaico, como era costume nas sinagogas da época, continham nomes de
patrocinadores judaicos e dos construtores: Herodes (filho de?) Halphai, e Chalfo,
filho de Zebida, filho de João. Esses nomes judeus, naturalmente, soam vagamente
parecidos com os que aparecem nos evangelhos, cujas associações com Cafarnaum
quatro séculos antes eram relembradas na igreja da vizinhança.

Mas teria essa sinagoga alguma relação com as histórias do evangelho? É pos­
sível, mas pouco provável. Os escavadores franciscanos sugeriram que algumas
paredes do antigo período romano antes do quinto século d.C. da sinagoga de
pedra calcária já existiam na Cafarnaum do primeiro século e representariam os
fundamentos de uma sinagoga anterior. Mas esses restos de parede daquela época
não são suficientes para atestar a existência de uma sinagoga em Cafarnaum no
primeiro século, posto que são do mesmo tipo das usadas em outras edificações de
natureza doméstica. Tampouco podem as referências do evangelho à sinagoga onde
Jesus exorcizou os demônios (Marcos 1,21) e ensinou (João 6,59) servir de prova
de que aquela sinagoga era esta. Como mencionamos no primeiro capítulo, o termo
sinagoga referia-se principalmente à reunião, e apenas, em segundo lugar, à estrutura
no primeiro período romano. Somente a história de Lucas a respeito do “centurião”
de Cafarnaum presume uma estrutura de sinagoga no vilarejo, construída graças à
sua benevolência (Lucas 7,5).

Mas Lucas narra eventos a partir do ponto de vista da Palestina, onde as comuni­
dades da diáspora judaica usavam claramente o termo para designar a estrutura, num
período posterior, quando já se havia desenvolvido o conceito clássico de sinagoga.
Recordemos que Lucas também errou ao se referir aos telhados de Cafarnaum, à
sinagoga de Nazaré e aos rolos lidos por Jesus. Nada disso, porém, desautoriza a
validade da mensagem de Lucas —■para quem a existência de um edifício chamado
sinagoga mostrava apenas sua visão de eventos ocorrendo em ambientes seme­
lhantes aos de sua audiência. Acentua também a idéia de que qualquer gentio justo
poderia levar a sério as responsabilidades patronais e construir sinagogas, como
o caso do outro centurião, Cornélio, temente a Deus e doador de ofertas, descrito
em Atos 10. Mas os judeus das pequenas cidades da Galiléia no tempo de Jesus
encontravam-se às vezes em praças ou em pátios grandes de residências de pessoas
idosas, e chamavam essas reuniões de sinagogas. Nas cidades maiores, reuniam-se
em estruturas modestas jamais identificadas pelos escavadores por esse nome no
sentido clássico. O caso da construção de um edifício em Cafarnaum foi, certamen­
te, incidental em Lucas. Falar de uma “sinagoga de Jesus” em Cafarnaum não tem
credibilidade alguma.

Igreja cristã. A sinagoga do quinto século confrontava-se com a igreja octogonal


da mesma época, construída em cima de uma edificação do quarto século centrada
numa só peça, parte de uma casa particular do primeiro século a.C. Presume-se que
tenha pertencido à família de Pedro e que seria o lugar onde sua sogra fora curada
de severa febre, segundo Marcos 1,29-31. Trata-se, na verdade, de uma das poucas
localizações plausíveis da tradição do Novo Testamento.

Arqueologia da casa de Pedro. Arqueólogos franciscanos, trabalhando em volta


desse sítio entre 1968 e 1985, descobriram três camadas ou strata: a igreja octo­
gonal do quinto século (classificada por eles como stratum III), uma casa-igreja e
santuário do século quarto {stratum II) e uma casa que teria sido habitada desde
0 primeiro século a.C. {stratum I). Os oito lados concêntricos da igreja abrigavam
outro octógono interno cujo teto era apoiado também por oito colunas. Podia-
se entrar nesse espaço por diversos lados. Mosaicos decorados com desenhos
geométricos simples e flores de lótus nas margens decoravam o piso entre as
duas estruturas em forma de pórtico. A sala central já havia sido separada do
resto, no quarto século, quando a parede quadrilátera de 80 por 80 pés isolava
0 local para uso sagrado. O teto apoiado por um arco cobria o recinto que fora
foco de atenção possivelmente desde o segundo século d.C. O piso e as paredes
haviam sido reparados constantemente em contraste com o resto do edifício. As
paredes ostentavam centenas de inscrições semelhantes a grafites — em grego,
siríaco, hebraico e latim.
Algumas frases parecem ter saído das mãos de visitantes e de peregrinos cris­
tãos, embora quase sempre ilegíveis e até mesmo de origem profana. Os grafites
são importantes, mesmo se as transliterações exageradamente tendenciosas e
piedosas dos escavadores franciscanos, envolvendo teorias sobre a existência de
uma comunidade judeo-cristã e incluindo elaboradas especulações a respeito de
simbolismos e acrósticos, não sejam persuasivas. Os grafites nas paredes e as di­
versas camadas de reboco mostram que se tratava de lugar singular em Cafarnaum
e mesmo na Galiléia toda, e demonstra que fazia parte de uma residência particular
considerada muito especial por diversas pessoas apenas um século depois das
atividades de Jesus na Galiléia. Observemos como escreveram. Não como Pilatos
em Cesaréia ao dedicar um edifício imperial romano em latim oficial, nem como
Antipas em Tiberíades, indicando seu cunhado com um nome imperial romano em
grego; estes, ao contrário, rabiscaram nas paredes, de maneira indecifrável, com
lâminas e lascas de pedra.

Embora a casa que depois se tornara casa-igreja e a magnífica sinagoga indicassem


visões de conflitos de identidade e de governo na Galiléia do quinto século, pouco
disseram a respeito da Cafarnaum do tempo de Jesus. Não importa muito se as frases
e nomes inscritos na chamada “área sagrada” (insula sacra) atestassem que a casa
pertencia a Pedro. Mesmo se o centro do octógono marcasse o lugar exato onde Jesus
realizara curas ou participava de refeições, e até mesmo se os arqueólogos chegassem
a autenticar a presença de Pedro e Jesus aí, ainda assim não entenderíamos melhor
Jesus nem a proclamação do Reino de Deus e o tipo de reino que estava construindo
entre seus seguidores. Os peregrinos cristãos do passado e do presente acham que
a localização é muito importante, mas a questão fundamental é outra; que tipo de
cidade havia sido Cafarnaum?

A tarefa da arqueologia não consiste em apenas descascar camadas, para determi­


nar se a casa era mesmo de Pedro para, depois, oferecê-la como ilustração ou auxílio
visual. Em vez disso, deveria ser empregada para examinar cuidadosamente que
tipo de casa era essa, comparando-a com outras do primeiro século em Cafarnaum,
examinando o caráter do vilarejo como um todo para contrastá-lo com o de outros
lugares na Galiléia e arredores. Como estamos tentando mostrar até agora, a com­
binação de arqueologia com exegese — paralelamente — não se reduz a atravessar
as camadas textuais para encontrar os ditos autênticos de Jesus nem a buscar entre
as ruínas os lugares por onde Jesus teria andado, A tarefa consiste em examinar
os registros arqueológicos das camadas do primeiro século em todas as cidades e
vilas escavadas, incluindo as que nunca foram mencionadas nos evangelhos, como
Séforis e Cesaréia Marítima, para entender o amplo contexto social no qual Jesus
estava construindo o seu reino, O contexto desse reino no primeiro stratum textual
da tradição de Jesus precisa estar de acordo de maneira dinâmica e interativa com
0 contexto arqueológico.
O alvo da busca pode não ser um “sítio sagrado” ou uma “área santa”, mas
dificilmente se poderia negar o fascínio exercido por ligações diretas com textos do
0 5m

1 6 . Casa de são Pedro e igreja (segundo Corbo)


Strata do quinto século (branco), do quarto século (hachurado), do primeiro século (preto)

evangelho ou com o próprio Jesus. De qualquer forma, mesmo se a casa do primeiro


século encontrada em Cafarnaum venha a ser aceita como de Pedro, ainda assim
restariam duas ambigüidades fmais, uma menor do que a outra.

Ambigüidade da casa de Pedro. Esta é a ambigüidade menor: no ano 30 de nossa era


Herodes Felipe elevou Betsaida, vilarejo de pescadores à beira de um lago, ao status
de cidade e mudou seu nome para Julias em homenagem à esposa de Augusto e mãe
de Tibério, Lívia Júlia. É chamada de “cidade de André e de Pedro” por João (1,44).
Mas em Marcos 1,29, Jesus vai “à casa de Simão e de André”, cura a sogra de Simão
e, quando a febre a deixou, ela “se pôs a servi-los”. Obviamente, não há problema
algum em imaginar que Simão Pedro e André tivessem se mudado de Betsaida para
Cafarnaum ou que possuíssem uma casa em cada lugar. Mas quando a sogra serve
os hóspedes, só o faz porque está em sua casa, ou na casa de sua filha. É por isso,
e apenas por isso, que poderia ser considerada também a casa de seu genro Simão
Pedro. Pedro, ao que tudo indica, vivia com a família de sua esposa. Talvez, portanto,
seria mais correto falar não da casa de Pedro em Cafarnaum, mas de sua esposa.

A ambigüidade maior é a seguinte: Mateus procura correlacionar os lugares


de moradia de Jesus com promessas proféticas. Em primeiro lugar, em 2,23, Jesus
deixa Belém, supostamente sua cidade natal de acordo com Mateus, que difere de
Lucas quando informa que Nazaré era “sua cidade” e que segundo a profecia seria
chamado de Nazareno. Em segundo lugar, em Mateus 4,13-16, Jesus deixou Nazaré
e “foi morar em Cafarnaum, à beira-mar, nos confins de Zabulon e Neftali, para que
se cumprisse o que foi dito pelo profeta Isaías: “Terra de Zabulon, terra de Neftali,
caminho do mar, região além do Jordão, Galiléia das nações! O povo que jazia nas
trevas viu uma grande luz; aos que jaziam na região sombria da morte, surgiu uma
luz”. Teriajesus estabelecido sua “sede” na casa da esposa de Pedro em Cafarnaum?
Se fosse o caso, que significado teria essa palavra “sede”?

E provável que Mateus tenha tomado de Marcos a idéia de que a casa de Jesus em
Cafarnaum era sua sede, aumentando a ambigüidade mais do que a eliminando. De
um lado. Marcos 2,1 descreve Jesus "em casa” referindo-se, certamente, à residência
(da esposa) de Pedro em Cafarnaum. Mas estaria Jesus apenas fazendo uma visita
ou morava lá? A questão surge por causa da descrição de Marcos do começo do dia
em Cafarnaum (1,16-38). A fama de Jesus espalhava-se pela Galiléia por causa de
seu convincente ensino e das curas que realizava e atraía depois do Sábado multi­
dões à casa. Os leitores mediterrâneos esperariam que Jesus permanecesse naquela
casa e deixasse que Pedro, sua família e os aldeãos se encarregassem de levá-lo aos
povoados vizinhos. Mas, em vez disso, segundo 1,35-38, "de madrugada, estando
ainda escuro, ele se levantou e retirou-se para um lugar deserto. E ali orava. Simão
e os seus companheiros o procuraram ansiosos, e, quando o acharam, disseram-lhe:
Todos te procuram’. Disse-lhes: ‘Vamos a outros lugares, às aldeias da vizinhança,
a fim de pregar também ali, pois foi para isso que eu vim’”.

Duas observações. Em Marcos, Jesus ora em Cafarnaum no começo e no Get-


sêmani no final de sua vida pública. Ora quando é tentado a se desviar da vontade
divina, tanto na vida como na morte. E a possibilidade de estabelecer-se em Cafar­
naum e deixar que todos viessem a ele nesse lugar contrariava a geografia do Reino
de Deus. É por isso que ele "retirou-se” da casa (da mulher) de Pedro. Não poderia
de modo algum ser sua "sede”, como se o Reino de Deus pudesse ter um centro
dominante, controlador, situado numa sede e possuir um nome, como os reinos de
César Augusto em Roma, de Herodes, o Grande, em Cesaréia ou de Herodes Antipas
em Séforis e, depois, em Tiberíades.

Nem Mateus nem Lucas souberam o que fazer com a frase de Marcos sobre "a
retirada” de Jesus. Cada qual tentou resolver o problema a seu modo. Mateus copia
de Marcos todos os outros incidentes desse primeiro dia em Cafarnaum, mas omite
completamente a oração “ao entardecer” e a “saída” da casa de Pedro. Lucas aceita
a unidade textual de Marcos, mas substitui a frase “pois foi para isso que eu vim”,
por esta: “Pois é para isto que flii enviado” (4,43).

Essa casa do primeiro século em Cafarnaum bem poderia ter sido o lugar que
Jesus visitava e era recebido como hóspede. Mas não era o “quartel general” do Reino
de Deus. Não era aí nem na residência de sua família em Nazaré, porque, diferindo
dos reinos comerciais a que se opunha, seu reino da aliança não poderia se situar
num centro fixo para o qual todos viriam, mas sim em ponto móvel, dirigindo-se
a todos igualmente.

Ironia da casa de Pedro. A ironia é que a casa onde Jesus talvez tivesse estado para
participar de refeições privadas com a família de Pedro transformou-se em lugar
público de peregrinação sob a proteção e patrocínio do Império Romano. A ironia
continua. Nos primeiros dias, o Reino da Aliança de Deus pregado por Jesus colidia
com 0 Reino comercial romano de Herodes, mas, depois, o desenvolvimento de
Cafarnaum deixou-a mais parecida com este último do que com o primeiro.

As refeições do início do primeiro século em Cafarnaum e em vilarejos semelhan­


tes nada queriam ostentar para os outros, posto que eram reuniões familiares. Não
era assim nas vilas e palácios ricos, com elegantes salões de jantar. Nesses lugares, os
aldeãos faziam as refeições em saias grandes durante o inverno e debaixo das árvores
nos dias de verão. Não comiam em pratos, mas usavam o pão como base para óleo
de oliva, lentilhas, feijão, ou vegetais cozidos, azeitonas e às vezes queijo e frutas.
De vez em quando comiam peixe salgado ou frito. Não há dúvida de que tomavam
um pouco de vinho, produzido na região, para suprir calorias gastas depois de um
dia de trabalho. Nenhuma casa de Cafarnaum se dava ao luxo de ostentar afrescos
nas paredes e muito menos pisos de mosaico. Na verdade, nunca se encontrou uma
única tessela no contexto doméstico do primeiro século.

Mas se não existiam revestimentos de parede e afrescos nas casas de Cafarnaum


do primeiro século, foi precisamente a sua presença na “área sagrada” da insula
sacra dos strata tardios dos períodos romano e bizantino que assinalou a diferença
dela em relação aos outros cômodos, e ajudou os especialistas a identificá-la como
espaço não doméstico, igreja-casa ou santuário. Esse recinto, antigamente privado e
comum, foi revestido e recebeu grafites cristãos nas paredes até se transformar em
espaço público com características monumentais. A basílica octogonal com colunas
e mosaicos foi separada para ser espaço sagrado. O lugar que fora privado e reser­
vado tornou-se público e imperial, acessível por meio de três círculos concêntricos:
0 recinto exterior, o pórtico médio e a parede com colunas no centro.
As modificações arquitetônicas do sítio na subseqüente estratigrafia cor­
respondem a mudanças na cerâmica. Artigos de luxo, de conhecidos fornos co­
merciais da África e de Chipre, aumentaram, dramaticamente, o papel cerâmico
do stratum bizantino em Cafarnaum. Peregrinos que viajavam para Terra Santa
podem ter trazido objetos de luxo como oferendas ou, talvez, até mesmo ofertas
em dinheiro que permitiam aos habitantes locais importar amenidades. Inúmeros
fragmentos de argila preciosa pertenciam a pratos artisticamente fabricados, al­
guns dos quais decorados com cruzes. Na insula sacra foram encontrados poucos
utensílios de cozinha, indicando preparação de refeições por famílias simples para
reuniões comunitárias, mas foram achadas muitas lamparinas de material mais
caro e elegante. A concentração desse tipo de apetrechos na insula sacra, ao lado
de muitos copos, dá a entender que nesse lugar celebrava-se a Eucaristia ou Ceia
do Senhor. O que fora no início lugar de trabalho simples, atividades familiares
e refeições singelas acabou sendo absorvido sob o patrocínio imperial cristão,
pela vida cívica, dominada por elites sociais por meio de patrocínio financeiro e
da hierarquia sacerdotal.

Este capítulo levanta uma questão fundamental que reaparece no começo do


próximo e retorna mais tarde no final do livro. Se a vida no Reino de Deus, mani­
festa em Jesus e seus companheiros, opunha-se ao reino tetrárquico de Antipas, na
época, ao de Herodes, anteriormente, e ao reino imperial de Augusto ou Tibério,
bem antes, de que maneira, agora, se poderia relacioná-la com o reino cristão de
Constantino? No próximo capítulo, por exemplo, simples piqueniques familiares,
comunitários e rdigiosos transformavam-se em atos cívicos e simbólicos lide­
rados por sacerdotes, sob controle hierárquico e patrocínio real, primeiramente
por Herodes, com um templo, e depois por Felipe, com uma cidade. Se edifícios
herodianos cobriam sítios consagrados desde tempos antigos a Pã, em que diferiam
do edificio constantiniano que agora cobria outro sítio, desta vez consagrado a
Pedro desde a Antiguidade?
C a p ít u l o 4

JESUS EM SEU LUGAR


Propõe 0 antropólogo: diz-me como comes e eu te direi como vives; mostra-me a
tua mesa e eu saberei como é a tua sociedade. De que maneira comemos com o nosso
Deus? Serão o arranjo das cadeiras em volta da mesa e a distribuição do alimento livres ou
regulamentados, iguais para todos ou hierarquicamente estabelecidos? Se hierárquicos,
qual é a norma adotada? Como comemos com nosso rei? Os convites são universais ou
particulares, para todos ou para os poucos selecionados? Quais os critérios da escolha?
Como comemos com Augusto ou com Herodes ou Antipas no Reino de Roma? E, acima
de tudo, de que maneira comemos e bebemos com Jesus de Nazaré no Reino de Deus?

No santuário de um deus
Era comum na Antiguidade sacrifícios e oferendas de comidas aos deuses, comer
com eles, e até mesmo comê-los. Os arqueólogos descobriram traços de refeições
sagradas e de ceias rituais em inscrições, altares, restos de animais sacrificados,
panelas e vasos em santuários ao longo do Mediterrâneo.

Banias era um dos recantos mais agradáveis com deslumbrantes cenários para esses
rituais, situada num platô ao sul do sopé do Monte Hermon, ao redor de uma caverna
próxima às fontes do Rio Jordão, distante cerca de 30 milhas de Cafarnaum e do Mar
da Galiléia. A área luxuriante e verde ao redor dessa gruta e da fonte relacionava-se na
Antiguidade com o deus Pã, metade homem e metade bode, companheiro de ninfas da
floresta, divindades dos bosques, das montanhas e dos rios, brincalhonas mas líricas.
Ao lado de um pequeno terraço, dividido entre penhascos em cima e lagoas e um riacho
embaixo, situa-se um lugar que tem atraído visitantes locais e de fora. A sombra dos
penhascos íngremes e da vegetação, e refrescada pelos jorros de água das fontes, servia
como santuário do deus da natureza, Pã, nos períodos helênico e romano; a gruta cha­
mava-se Paneion em grego, e a área ao redor, Panias, rebatizada agora com o nome árabe
de Banias. Inicialmente, era um santuário natural nesse ambiente bucólico e rural até a
construção do templo Augusteion na frente da gruta, por Herodes, o Grande, dedicado a
César. Mais tarde, Felipe, filho de Herodes, elaborou o complexo do santuário e fundou
sua capital ao sul das fontes com o nome de Cesaréia de Filipos.
O santuário de Pã

As escavações levadas a efeito ao redor do templo e entre as ruínas da cidade de


Cesaréia de Filipos contam a história do nascimento e da queda do sítio. Exames mi­
nuciosos estratigráficos da arquitetura e análise de fragmentos de cerâmica indicam a
prática de refeições rituais nesse espaço. Nas mais antigas fases desse lugar de culto
não havia estruturas arquitetônicas, mas o competente estudo de Andréa Berlin das
cerâmicas encontradas no sítio mostra que durante o período helênico as pessoas que
0 visitavam deixavam traços de sua passagem em cacos de panelas, caçarolas, pratos,
tigelas e pires. Alguns dos vasos que traziam quebravam-se e seus cacos espalhavam-se
pelo terraço. O grande número de fragmentos helênicos aí achados, sem nenhum sinal
de arquitetura contemporânea, sugere visitantes que se congregavam ao redor da caverna
por volta de dois séculos antes de nossa era. Os vasos aí deixados mostram com clareza
0 que faziam. Entre os quase 250 fragmentos de cerâmica helênica estudados —•peças
suficientemente grandes para identificar com segurança e fixar a data pela forma e tipo
— não havia lamparinas nem recipientes para armazenar alimento, utensílios comuns
nos espaços públicos e domésticos escavados pelos arqueólogos. Em vez disso, os frag­
mentos dividem-se igualmente entre vasos para servir e outros para cozinhar, muitos
deles com marcas de fogo. A principal atividade ao redor da gruta de Pã consistia na
preparação e consumo de comida e bebida.

Esses indícios também nos informam de onde vinham os peregrinos. Quase 90


por cento dos utensílios haviam sido produzidos na região. Alguns deles eram fabri­
cados pelos itureus, de material rude, com cores rosa amarronzado e pesadamente
temperados. Mas a maioria exibia a técnica de pintura sírio-fenícia, resultado da
mistura de cal e cola. Os itureus, membros de um grupo pagão pastoril e seminômade
originário do Líbano, viviam também no período helênico ao norte do Golan, e os
sírio-fenícios eram pagãos de língua grega da costa norte perto de Tiro e Sídon, que
haviam invadido até o Vale Huleh. As poucas peças do exterior incluíam utensílios
de qualidade mediana provenientes da costa, duas ânforas para vinho, das ilhas
gregas, comumente achadas nos sítios sírio-fenícios.
Em resumo, no período helênico o santuário local atraía visitantes pagãos
dos arredores, que traziam ofertas e comidas em utensílios locais simples. Não
deixavam oferendas de valor nem sinais de riqueza. As evidências indicam a
existência de jantares rituais, mas, como sugere Berlin, os restos desses ape­
trechos “bem poderiam ser interpretados mais informalmente, como utensílios
usados em piqueniques”. E agora: refeições sagradas ou piqueniques? Talvez,
ambos, mas embora sempre estejamos pressionando os arqueólogos a distinguir
entre uma coisa e outra e a nos falar sobre a atitude dos visitantes, o certo é
que preparavam alimento, comiam-no e deixavam resquícios deles ao redor da
caverna em Banias. A próxima camada desse sítio é do primeiro período romano
e, com todos os componentes de um santuário, ligam mais claramente os restos
de cerâmica a refeições e oferendas cultuais.

Templo de Herodes
Herodes, o Grande, adquiriu as terras ao redor das fontes no meio de seu reino como
recompensa pela lealdade demonstrada a César Augusto. Como recompensa, segundo
Josefo, ergueu um templo ao redor da caverna, dedicando-o a Augusto e chamando-o
de Augusteion. Até pouco tempo, pedras e rochas caídas do penhasco cobriam o sítio,
mas os arqueólogos chegaram com suas escavações até o templo. Acharam três paredes,
duas delas perpendiculares em relação ao penhasco e a fachada construída no topo de
uma plataforma de 30 por 60 pés, ao lado da caverna. Foram construídas com pedras
talhadas segundo a técnica chamada opus quadratum, talvez pelo mesmo arquiteto ita­
liano que Herodes contratara para fazer seu palácio em Jericó. No interior das paredes,
encaixes sustentavam no passado placas de mármore. Inúmeros nichos semicirculares
e retangulares devem ter abrigado miniaturas de estátuas. O templo não tinha parede
nos fundos, abrindo-se para a gruta; essencialmente, a porção construída servia como
vestíbulo, enquanto a caverna era o sanctum interior. O Augusteion conservava certo
caráter natural apropriado a Pã, mas acrescentava-lhe a fachada e o estilo arquitetônico
adequados ao culto do imperador romano.

Cidade de Felipe
Depois que o filho de Herodes, Felipe, herdou esta área, tornou-a sua capital e
construiu aí uma cidade administrativa no estilo greco-romano, logo abaixo do Paneion
no ano 2 a.C. Como era costume entre os herodianos, batizou-a em honra do imperador
romano mas a chamou de Cesaréia de Filipos para distingui-la da Cesaréia de seu pai,
na costa. A área se transformou de isolado santuário em lugar urbano. O complexo
dedicado a Pã expandiu-se durante o reino de Felipe e depois, num outro santuário
ao ar livre construído no promontório ao redor de nova caverna, desta vez artificial,
denominada “Caverna de K e das Ninfas”, segundo uma inscrição tardia da metade do
segundo século de nossa era. Diversos elementos foram acrescentados ao complexo; o
Templo de Zeus e Pã, outro santuário ao ar livre chamado “Corte de Nêmesis”, o edifício
estreito com três vestíbulos, contíguo ao penhasco, e a estrutura parecida com um palco
chamada pelos escavadores de “Templo de Pã e dos Bodes”.

Nos três séculos depois do reinado de Felipe, inúmeras inscrições em grego foram
gravadas nas pedras do penhasco e nos edifícios. Vejamos alguns exemplos. Da base do
nicho até acima da caverna artificial; “O sacerdote Victor, filho de Lysimachos, dedicou
esta deusa ao deus Pã, amante de Eco”. Perto do espaço aberto; “Pela preservação de
nossos senhores e imperadores, Valerios [Titijanos, sacerdote do deus Pã, dedicado à Senhora
Nêmesis e a seu santuário, que foi construído mediante cortes na rocha embaixo [...]
com cerca de ferro, no mês de Apellaios”. Sobre a face do penhasco acima do santuário
de Nêmesis perto de um nicho sem decoração; ‘Agripa, sua esposa, e Agripino e Marcos
e Agripa, membros do conselho cívico, e Agripina e Domne, suas filhas”.

Mudanças arquitetônicas do sítio na estratigrafia subseqüente correspondem a


modificações no perfil das cerâmicas. O patrocínio herodiano não apenas estabeleceu
estruturas religiosas permanentes em Banias mas também mudou a evidência deixada
pelas cerâmicas. A partir do diagnóstico feito nos firagmentos romanos mais antigos
espalhados pela estrutura e divididos em bolsões no solo das fimbrias do terraço perce­
be-se que houve diferentes tipos de visitantes. Dos 457 firagmentos romanos primitivos
diagnosticados, 141, ou quase um terço, eram de lamparinas a óleo, em contraste com
apenas 7 do período helênico. O tremendo aumento do número de lamparinas mostra
que muitos visitantes demoravam-se pouco e deixavam ofertas baratas. A constante
presença de apetrechos de cozinha no período romano antigo, muitos deles carbonizados,
e de tigelas e copos mostra que o santuário de Pã continuava a ser usado para refeições
e oferendas, coisa comum na pagã Sírio-Fenícia. Mas agora muitos cidadãos de Cesaréia
de Filipos poderiam visitar o santuário, deixar lamparinas e orações, enquanto outros
faziam piquenique e permaneciam por mais tempo.
Os tipos de cerâmica do período romano antigo mostram um aumento de itens
importados. Mais da metade das lamparinas encontradas haviam sido fabricadas na
Itália, em Chipre ou na Síria. Significativa porcentagem de pedaços de cerâmica havia
sido queimada em fornos bem longe dali. Algumas teriam vindo da Alta Galiléia ou da
costa Sírio-Fenícia, e até mesmo de lugares mais distantes. Tais pedaços de cerâmica
e lamparinas importadas querem dizer não que o santuário era visitado por peregri­
nos da Ásia Menor, da Itália ou de Chipre, mas sim que determinados moradores do
local tinham dinheiro suficiente para importar utensílios mais elegantes. Em outras
palavras, o santuário começava a atrair pessoas de classes mais altas.
À raedida que o complexo alcançava sua complementação arquitetônica do final
do primeiro século até o segundo d.C., aumentava o volume de evidência cerâmica. A
queda de fragmentos diagnosticados de 251 helénicos e de 457 romanos primitivos
para apenas 52 no período médio romano corresponde a mudanças fundamentais na
forma das cerâmicas. Durante todo o período romano médio quase todos os fragmentos
vinham de lamparinas ou de utensílios de mesa; encontrou-se apenas um de uma panela
para cozinhar. A preparação de refeições no sítio para oferecê-las a Pã ou à sua consorte
havia praticamente cessado e não se encontrou mais evidência disso nem mesmo de
piqueniques na gruta. Arquitetonicamente, contudo, o santuário alcançava o máximo
esplendor, construído sob o patrocínio oficial herodiano e recebendo, depois, apoio
imperial e das elites urbanas, como atestam as evidências epigráficas. Os moradores da
localidade não mais vinham ao santuário para comer, passear ou fazer ofertas, posto que
agora se transformara oficialmente num centro de culto cívico. Por volta do segundo
século de nossa era, o santuário de Cesaréia de Filipos tinha se transformado numa
vitrine arquitetônica, onde os ricos exibiam sua munificência e generosidade. A rápida
diminuição de cerâmicas no período romano médio não significa que o santuário tenha
sido abandonado ou que não fosse mais procurado por visitantes. Indicava apenas que
famílias, amigos ou adoradores não mais ofereciam sacrifícios nem participavam de
refeições cultuais ou piqueniques. Essas práticas de pessoas comuns deixaram de existir
quando o lugar passou a ser controlado pelo poder imperial da hierarquia sacerdotal,
absorvido pela vida cívica dominada pelas elites sociais que patrocinavam o templo. A
suprema ironia é que, como vimos antes, o que aconteceu com o santuário de Pã em
Cesaréia de Filipos sob o patrocínio imperial pagão também ocorreu com a casa de Pedro
em Cafarnaum sob o patrocínio imperial cristão.

No palácio de um rei
Enquanto, de um lado, sírio-fenícios e itureus de pequenas cidades e vilarejos
ao redor das cabeceiras do Jordão procuravam a natureza para fazer suas refeições,
de outro, os cidadãos ricos e as famílias governantes do mundo romano traziam
elementos da natureza para suas salas de jantar. Estas chamavam-se triclinia (no
singular, triclinium). 0 termo refere-se a dois pormenores específicos. Em primeiro
lugar, havia três (daí tri) divãs principais: o do meio para o anfitrião, e os outros dois
para os hóspedes de honra. Em segundo lugar, o hospedeiro e seus mais importantes
hóspedes reclinavam-se (daí clinia) — não se sentavam em cadeiras como nós — e,
conseqüentemente, exigiam servos e auxiliares para as refeições. Reclinar-se, em
outras palavras, significava pertença à classe social mais alta.
Nas vilas campestres, as janelas e portas da sala de jantar abriam-se para vistas
espetaculares da natureza, tais como a costa do mar, florestas ou oásis. Nas residên­
cias urbanas dos mais abastados, a natureza reproduzia-se nos jardins e piscinas e
no interior dos triclinia com pinturas de cenas bucólicas, temas florais, da fauna e da
mitologia nas paredes e nos mosaicos. Enquanto Herodes, o Grande, e seus suces­
sores reduziam as oportunidades do povo comum em Banias de realizar refeições
junto à natureza, ironicamente empenhavam-se em recriar o ambiente campestre
em seus salões de banquete. Ao mesmo tempo que construíam templos em Banias e
em outros lugares, traziam para o interior dos palácios diversos aspectos do espaço
público como 0 uso harmonioso de colunas, mosaicos e mármore. Os cidadãos mais
ricos do Mediterrâneo privatizavam conscientemente as feições arquitetônicas da
vida pública da polis helênica, elevando suas residências ao nível desse domínio e
acentuando o triclinium como espaço de prestígio. Apropriando-se de características
reservadas até então à arquitetura pública, davam a suas casas estatura monumental
e com 0 uso inteligente do espaço e da decoração ressaltavam o status situado no
topo da pirâmide social, ao lado de ostentosa demonstração de riqueza.
As escavações arqueológicas mostraram que alguns desses hábitos comensais
haviam penetrado nos strata sociais mais altos do território judaico sob os herodia­
nos. O estilo dos jantares dessas classes no mundo romano caracterizava-se por três
elementos. Em primeiro lugar, criando a ilusão da natureza nos triclinia. Em seguida,
adotando elementos da arquitetura pública. Finalmente, acentuando a posição do
hospedeiro no topo da hierarquia social. Esses elementos eram claramente visíveis
nos palácios de Herodes, o Grande, como o palácio-oásis em Jericó, o do penhasco
em Masada, ao norte, com vista para o Mar Morto, o palácio-fortaleza herodiano no
deserto da Judéia, e o palácio à beira-mar em Cesaréia Marítima.

Masada na montanha
Nos anos 1960, o famoso arqueólogo e estadista israelense Yigael Yadin escavou o
palácio de Herodes, o Grande, na extremidade norte de Masada, contendo um triclinium
no terraço inferior, com espetacular vista para o Mar Morto e o deserto da Judéia. A
descoberta de pedaços de colunas com fendas para postigos, bem como de peitoris de
janelas, mostra que o triclinium abria-se para a face norte, de onde se podia apreciar a
deslumbrante vista panorâmica das escarpas. Os hóspedes, protegidos dos raios solares
do sul, usufruíam não apenas da sombra mas também do esplêndido cenário onde as
colinas da Judéia encontravam-se com o platô da Transjordânia no Vale Rift. Mesmo
nesse lugar remoto, o hospedeiro tratava os convidados com todas as regalias. Embora
0 palácio se situasse longe da costa e fosse quase inacessível, impossibilitando a im­
portação de pesadas colunas e revestimentos de mármore, os hóspedes cercavam-se de
fachadas que imitavam os mais nobres materiais: colunas de pedra local arrematadas
com estuque e terminadas por capitéis de estilo coríntio e paredes finamente rebocadas,
com pinturas imitando mármore. Os convivas reclinavam-se em divãs dispostos sobre
pisos de mosaico à prova de água, coisa que facilitava a limpeza depois dos jantares. Era
comum, na época, jogar restos de comida no chão.
0 desenho do espaço incluía dois quadrados concêntricos, com colunas, e um pórtico
para circulação, que relembrava a arquitetura cívica dos corredores cobertos da stoa ou,
mesmo, do recinto dos templos. No quadrado interior, pilastras, colunas embutidas
nas paredes, entre afrescos destinados a criar a ilusão de que se sobressaíam do fundo,
davam aos visitantes a sensação de jantar em ambiente monumental que recriava a
aura das refeições rituais ou das oferendas nos templos. Comia-se de maneira divina
em pratos de alta qualidade e refeições exóticas. A maioria da cerâmica desenterrada
nas escavações desse palácio consiste em pratos e tigelas entre os melhores existentes.
Caracteres pintados em utensílios para armazenar alimento e nas alças de ânforas indi­
cavam datas, locais de origem e conteúdo de carregamentos para Masada. Entre os mais
surpreendentes produtos importados destacavam-se compras de luxo da Itália, raras na
Palestina, como, por exemplo, compota de maçã de Cumae, tempero de peixe, garum, de
Pompéia, muito vinho, transportado em 19 a.C. de vinhas da região de Brindisi, no sul
da Itália, e uma garrafa com a inscrição “Vinho Massic excelente” da Campânia. Esses
achados dão evidências tangíveis do gosto de Herodes por comidas e bebidas da mais
alta qualidade e seus pendores para jantares de estilo.

Cesaréia na costa
Em cenário igualmente estonteante mas menos remoto, Herodes, o Grande, cons­
truiu um palácio no extremo sul da cidade de Cesaréia Marítima. No único ponto onde
0 litoral da cidade projeta-se no mar, o edifício de 200 por 300 pés no promontório
rochoso era visível tanto pelos marinheiros e visitantes que chegavam de barco como
pelos habitantes do local. No pátio cercado de colunas sobressaía uma piscina de 60
por 120 pés, recortada na rocha. Revestida de cimento hidráulico, recebia água fi^esca
de longe, puxada manualmente, em lugar da água salgada do Mediterrâneo. Mesmo
depois dos efeitos da corrosão provocada pelas ondas ao longo dos séculos, o fiindo da
piscina ainda se mantém preservado acima de 3 pés. Além da função estética, funcionava
provavelmente para folguedos atléticos. Herodes, o Grande, na tradição dos primeiros
reis judaicos asmonianos, gostava de construir piscinas e balneários em seus palácios.
Cavidades retangulares para plantar árvores, cercas vivas e flores formavam um jardim
ao redor da piscina. O corredor em volta, cheio de colunas, havia sido pavimentado com
mosaico ou mármore com motivos geométricos de diferentes tamanhos. O triclinium,
aposento principal do palácio, situava-se ao oeste do edifício entre a piscina e o mar.
Como em Masada, Herodes ligava seu salão de jantar com a natureza, com a bonita
vista do Mar Mediterrâneo lá fora matizada pelo pôr-do-sol no oeste e, internamente,
com o luxuriante jardim e a piscina ao leste.

O palácio monumental cobria quase um acre de terreno, erguido com proporções


que antigamente apenas se aplicavam às estruturas cívicas. Mas, sabiamente, Herodes
evitava qualquer megalomania, não permitindo que seu palácio fosse maior do que
o templo de Roma e Augusto, que, na baía, dominava o cenário arquitetônico. Por
outro lado, as outras residências pareciam pequenas enquanto o palácio de Herodes
se aproximava da escala das estruturas públicas e empregava seus mesmos materiais,
técnicas e estilo, dando-lhe aparência de edifício cívico e público em vez de resi­
dencial. Apesar da ambigüidade sofisticada e da mistura do público com o privado,
o palácio do promontório indicava a posição que Herodes ocupava na hierarquia
social. Situava-se no complexo de edifícios destinados a entretenimento ao sudoeste
da cidade, e não na zona residencial. Como vimos no capítulo anterior, o grande
anfiteatro ao longo da costa elevava-se perpendicularmente em relação ao palácio.
Mais ao sudeste, o teatro, construído ao lado do templo em sentido oblíquo a essa
região da cidade, em frente do palácio, parecia incluí-lo no cenário de seu palco.

A bem planejada cidade de Herodes copiava certos arranjos de Alexandria e


Roma, onde as residências governamentais erguiam-se no meio da vida cívica e re­
forçavam sutilmente a hierarquia social. Em Cesaréia, Herodes configurava o espaço
com maestria para seus próprios propósitos. Os cidadãos comuns, trabalhadores,
marinheiros ou camponeses visitantes que iam ao teatro ou ao anfiteatro, deixavam
o lugar junto com a massa de espectadores por uma das saídas monumentais, ou
vomitoria. Mas os cidadãos privilegiados e os visitantes ilustres saíam pela passagem
ao sul do anfiteatro, ao lado do palco, que se abria para o vestíbulo cheio de plantas,
levando-os diretamente ao palácio. Dentro do palácio as elites ocupavam seus lugares
sociais segundo os êxitos até então alcançados. Outros, cuidadosamente selecionados,
eram admitidos para visitar o pátio com a piscina. Mas somente poucos recebiam
convites para jantar no triclinium. A estrutura do palácio articulava claramente os
strata sociais desde os jardins do lado de fora, até a sala de audiências do andar de
cima, do átrio e da piscina, passando pelas salas em volta, até o triclinium. Somos
tentados a imaginar os diversos componentes que refletiam a transição do público
para o privado, embora os portais nunca se fechassem à vista de todos; qualquer
um podia ser visto de qualquer ângulo, de modo que o status dos indivíduos acabava
sempre anunciado, quer quando subiam, quer quando desciam.

Na vila de um aristocrata
Os luxuosos salões de banquete de Herodes, o Grande, seus audaciosos palá­
cios, e a clara delineãção da hierarquia social que promovia estão contemplados nos
registros arqueológicos. Embora possamos pressupor que o filho Antipas imitasse
seu modelo, os restos que deixou não são tão grandiosos. O primeiro encontro com
Antipas no evangelho de Marcos situa-o com seus amigos da elite num banquete,
e é precisamente depois da refeição que a cabeça de João Batista foi servida numa
bandeja (6,14-29). Mas as camadas arqueológicas do primeiro século em Séforis e
Tiberíades não mostram nenhuma evidência de que Antipas tivesse palácios nesses
lugares, e muito menos triclinia. É o que tentaremos examinar a seguir.

Subamos, pois, à acrópole de Séforis e contemplemos lá embaixo a vila de um


aristocrata construída depois de Antipas. Procuremos imaginar um triclinium de seu
tempo entre os que acabamos de ver nos palácios de Herodes, o Grande. Mesmo
utilizando uma camada posterior ao primeiro século, é possível ressaltar o propósi­
to social desses salões de jantar no império e no período romano. Tomemos como
exemplo a Vila de Dionísio em Séforis nos períodos romanos médio e posterior.

A vila fora construída em cima da acrópole de Séforis na última parte do segundo


século ou no começo do terceiro. Para possibilitar as obras, foi preciso construir
primeiramente uma plataforma plana de 75 por 130 pés, nivelando a base rochosa
no lado oeste até o sul. No processo, foram apagados traços de estruturas anteriores
(talvez de algum outro palácio?). Como nos demais edifícios públicos do período,
as paredes de grandes pedras eram suficientemente fortes para apoiar um segundo
andar. Semelhante a outras residências de cidadãos abastados e influentes no mundo
romano, o eixo da vila passava da entrada pelo peristilo até o triclinium, oferecendo
aos visitantes ampla visão.
0 jardim no peristilo tinha ao centro uma fonte ou piscina trazendo um toque
da natureza a esse espaço urbano. Algumas das paredes interiores ostentavam
afrescos com desenhos florais para refletir o jardim nos quartos. 0 mosaico do piso
do triclinium empregava artisticamente arranjos com pedras para criar um ambiente
romanticamente bucólico e rústico. Uma faixa em forma de U mostrava figuras de
camponeses trazendo em procissão frutos agrícolas de seu trabalho — sem sinal
algum de que esses bens tivessem sido expropriados! A faixa emoldurava o retân­
gulo central composto de painéis que celebravam as alegrias do vinho e a vida de
Dionísio, deus do vinho relacionado com o deus-bode Pã. Quase não há referências
a elementos cultuais, e o salão tampouco mostra relacionamento com rituais ou
mistérios dionisíacos. Em vez disso, o painel central acentua o tema do mosaico
retratando a competição entre o musculoso Héracles (Hércules) e o deus do vinho,
Dionísio, para ver quem bebia mais. Nos painéis laterais, Dionísio é considerado
vencedor ao se reclinar em seu carro voltando-se para o painel em sua frente, onde
0 derrotado Héracles, sentindo-se mal, é ajudado por um sátiro e uma bacante.
Em outras pinturas os aldeãos num festival popular regozijam-se com o fruto das
vinhas e pisoteiam uvas. Algumas retratam lendas acerca de Dionísio, como, por
exemplo, quando toma banho auxiliado por servas que o escondem, a revelação dos
mistérios do vinho que ele faz para os pastores, e seu casamento com Ariadne. Entre
medalhões, as procissões bucólicas mostram camponeses carregando alegremente os
frutos de suas colheitas, cestos cheios de uvas, galinhas e patos. Diante do divã do
hospedeiro, domina o retrato de uma bela mulher (Ariadne ou a matrona da casa?),
que os escavadores apelidaram de “Mona Lisa da Galiléia”. Os olhares masculinos
sempre procuravam faces de mulheres enquanto os dos aristocratas fixavam-se nos
produtos dos camponeses. Mas todos se mostravam serenamente felizes e social­
mente complacentes a partir de seus lugares privilegiados.

Esses jantares cercados por cenários bucólicos estimulavam a atmosfera festiva.


Os participantes vislumbravam a natureza através do peristilo e até mesmo a rua
lá fora, pela entrada do jardim, por onde passavam os excluídos. Certa aura cívica
emanava das colunas do átrio, dos pisos de mosaico, dos afrescos nas paredes e do
mármore — mesmo quando imitado. O pequeno lago, fonte ou aquário, embora
menor do que a piscina de Herodes no palácio do promontório em Cesaréia, lembrava
os banhos públicos ao redor do chafariz (nymphaeum) ou em recintos sagrados.

A Vila de Dionísio, no alto da acrópoie, podia ser vista por todos com seu telhado
vermelho e paredes finamente revestidas, exibindo a riqueza e o status do proprietá­
rio. Como no palácio de Herodes em Cesaréia, erguia-se o teatro ao lado da mansão
em Séforis. E provável que o dono da vila patrocinasse os espetáculos. Dionísio era,
afmal, não apenas o deus do vinho mas também o patrono do teatro e dos atores. A
planta da mansão deixava transparecer o interesse do proprietário em tornar pública
a sua opulência. Os transeuntes podiam facilmente ver o peristilo pela entrada do
jardim e até mesmo o triclinium. 0 desenho do peristilo reforçava a hierarquia social
ao cercar os convivas com colunas, pisos de mosaico e belos murais. Traçava-se assim
2 0 . Reconstrução da Vila de Dionísio em Séforis, do período romano posterior
Nomeada a partir de um mosaico que retrata o deus do vinho e celebra as alegrias dessa
bebida, a vila era a residência de um dos principais cidadãos de Séforis, que fora capital da
Galiléia, construída por Herodes Antipas. Em bora a \'ila date de um século depois de Jesus,
ilustra a elegância dos jantares no mundo romano, com hóspedes sentados no triclinium arranjado
hierarquicamente ao redor em três divãs, indicados pela letra grega “gama” ao lado (1). Trata-se
do mesmo arranjo mencionado por Jesus em Lucas 14. O desenho axial fazia distinção entre o
setor privado e o público: quem estava do lado de fora (2) podia ver o que se passava, por meio
do átrio em forma de peristilo (3), tomando consciência de que eram excluídos. Esse arranjo
também exibia a riqueza do proprietário, ilustrada aqui pelos utensílios de servir, importados
(4), e pelas peças de vidro, garrafas e jarras, muito caras (5). Os afrescos nas paredes (6) e o teto
trabalhado eram semelhantes aos de outras residências elegantes no mundo romano.

clara linha divisória entre os que freqüentavam a vila e os que passavam pela rua.
Poucos privilegiados reclinavam-se lá dentro nos divãs e eram servidos com comidas
e bebidas; a maioria, no entanto, passava e dava uma olhada para dentro, mas não
podia entrar nem participar, a não ser como empregados, artistas contratados para
divertir os hóspedes, ou secretários,

A hierarquia social era reforçada ainda de outras maneiras entre as elites con­
vidadas para o triclinium. O piso de mosaico medindo 18 por 23 pés, de excepcional
qualidade artística, compunha-se de mais de vinte diferentes tesselas coloridas,
dividindo o salão em duas partes, A seção em forma de U, pavimentada com tes­
selas brancas, era marcada pela letra grega gama para indicar a localização dos três
principais divãs. O hospedeiro sentava-se no divã do centro com os dois hóspedes
principais nos assentos da direita e da esquerda. A localização dos assentos era cla­
ramente demarcada e ocupava mais espaço do que os outros móveis. Posto que os
hóspedes permaneciam reclinados, precisavam ser servidos por diversos atendentes.
Os demais convidados reuniam-se em volta dessa área em ordem descendente. É
por isso, por exemplo, que em Lucas 14,7-11, quando o hóspede senta-se no fundo,
vai ser chamado para ir à frente e sentar-se junto ao dono da mansão em sinal de
honra especial.

Nas casas das elites


A Vila de Dionísio evidencia claramente o estilo aristocrático romano da arqui­
tetura em Séforis no terceiro século. Mas, embora já estejamos distante do tempo
de Jesus, muitas dessas feições já existiam quando a cidade foi reconstruída por
Herodes Antipas. Examinaremos a seguir dois exemplos de casas desse tipo no
primeiro século, certamente elegantes, embora sem chegar aos requintes da vila do
terceiro século que visitamos.

Uma casa com pátio interno

o primeiro exemplo, escavado no começo dos anos 1990 por Eric e Carol Meyers,
do Projeto Regional de Séforis em convênio com a Duke University, registrado como
Unidade II, é de uma casa com pátio interno construída nos quarteirões residenciais da
parte ocidental da cidade. As atividades diárias da família eram, de certa forma, protegi­
das pela distribuição das peças ao redor do pátio, o qual não tinha a forma de peristilo.
Mas, no interior, os proprietários assinalavam sua importância na escala social adotando
elementos decorativos como afrescos, mosaico, estuque e telhas vermelhas.

As paredes haviam sido bem construídas com pedras recortadas regularmen­


te, sobre alicerces firmes. A técnica usada para a colocação das pedras, dando às
paredes a largura de 2 pés, facilmente permitia a construção de outro andar em
cima. Alguns aposentos haviam sido pintados com afrescos al secco, técnica barata e
simples que permitia a aplicação da pintura logo após a secagem do revestimento.
Os desenhos florais ou geométricos entre retângulos verdes e vermelhos imitavam
mármore como os do palácio de Herodes em Masada. Os pisos das peças pintadas
com afrescos eram revestidos com estuque, bem como o pátio. Pedaços de tessela
descobertos depois faziam parte não desse contexto, mas sim de outro pertencente
à fase romana primitiva, destruído antes de ser descoberto. O chão da cozinha e de
diversos quartos era de terra batida.
Além dos murais e dos mosaicos, diversos outros artefatos refletiam a riqueza dos
habitantes do primeiro século. Entre os objetos achados nos strata do período romano
antigo encontram-se restos de uma taça de vidro de alta qualidade, uma lamparina
de pendurar e um turíbulo, bem como alfinetes de osso, esculpidos, e espátulas para
maquiagem. Os moradores não eram, naturalmente, tão ricos e ostensivos como
Herodes, o Grande, ou Antipas. Seus apetrechos cosméticos eram de osso e não de
marfim, seu vinho não era importado e as louças eram as mesmas produzidas nos
lugarejos da Galiléia, embora aparecessem alguns fragmentos de terra sigillata, muito
cara, de pratos de servir. Devemos considerar que essas pessoas viviam no topo não
apenas da acrópole de Séforis, mas também da pirâmide social.

Uma casa com peristilo

Ainda em Séforis, do outro lado da rua, ao norte, outra casa igualmente con­
temporânea e rica demonstrava que algumas famílias judaicas no primeiro século
adotavam não só elementos decorativos arquitetônicos, mas também a ostentação de
riqueza como faziam os romanos. Esta casa, construída com um peristilo que dava
visibilidade ao átrio, foi escavada primeiramente em 1931 por Leroy Watermann,
da Universidade de-Michigan. Achava que havia sido uma basílica por causa das
colunas, dos pisos de mosaico, das paredes revestidas e dos afrescos. Supunha ainda
que as cavidades encontradas na rocha pareciam-se com catacumbas do tempo em
que o ritos cristãos “eram praticados em segredo”. Recentemente, contudo, James E.
Strange, do Departamento de Escavações da Universidade do Sul da Flórida, retomou
os trabalhos no complexo e determinou que, de fato, tratava-se de uma vila e que as
cavidades encontradas eram miqwaoth, isto é, banheiras rituais judaicas.

O engano de Watermann nada teve a ver com buscas religiosas sensacionais de tipo
romântico e aventureiro. É que o desenho original da casa e o gosto do proprietário
favoreceram o uso de elementos usados em espaços públicos; pilares, arranjos axiais,
pedras bem polidas e bem talhadas, gesso branco, alguns afrescos e pisos de mosaico
com figuras geométricas em preto e branco e bordas. Por outro lado, o que levou à
identificação do edificio como residência foi a descoberta de Strange de uma cozinha
e dos miqwaoth, encontrados também em outras casas de Séforis. Além disso, os dois
escavadores acharam inúmeros artefatos domésticos; panelas de cozinha, pentes de
osso, aplicadores de maquiagem, pesos de teares e moedores de basalto.

A Pax Romana na Galiléia

As duas casas visitadas atestam quanto os seforenses abastados conheciam os


estilos arquitetônicos romanos dominantes ao longo do mundo mediterrâneo. E
demonstram até que ponto desejavam obter alguns dos símbolos da elite social do
império, como afrescos, mosaicos e objetos de luxo importados. Percebe-se também
que somente as classes mais altas da sociedade da Galiléia estavam prontas para
aceitar e arcar com o sistema romano de ostentar abertamente a camada social a
que pertenciam. Antes de Antipas, os judeus asmonianos não haviam conhecido a
Galiléia. Herodes, o Grande, foi o primeiro a construir palácios em lugares isolados
como Masada, Jericó e, mais tarde, em cidades como Cesaréia e Jerusalém, mas
nunca na Galiléia. Somente sob Antipas, que certamente construiu palácios em
Séforis e Tiberíades, é que as elites urbanas da Galiléia passaram a experimentar
visível estratificação social. Havia, certamente, poucas residências de luxo nas ci­
dades maiores da Galiléia, como a que foi encontrada em Jodefá, do outro lado do
Vale Beit Netofah, e a outra em Gamla, no Golan, mas são casos excepcionais e não
regra nas cidades da região.

A introdução e difusão de riqueza na Galiléia era não apenas questão pessoal mas
também processo social, uma vez que a ostentação de objetos de luxo marcava o lugar
das pessoas na hierarquia social. O valor desses bens era proporcional à impossibilidade
de sua aquisição pelos strata mais baixos da sociedade. Sua exibição criava o valor e não
tanto a posse. Também, naturalmente, o aumento do luxo e de seu consumo baseava-se
no aumento da produtividade e dos lucros procedentes das áreas rurais.

Que pensavam os camponeses sobre a Séforis de Antipas, reconstruída no ano


4 a.C. para ser, na frase de Josefo, “o ornamento da Galiléia”, e sobre Tiberíades,
construída em 19 d.C. para substituir Séforis como capital de seus domínios? Na
obra sobre sua vida, Josefo contou o que os camponeses (que ele chamava de '‘gali­
leus”) realmente queriam fazer quando procurava treiná-los em 66-67 d.C. para as
inevitáveis incursões dos legionários no começo da primeira revolta. No que segue,
observemos as repetidas menções a ódio, abominação e extermínio:

Marchei com as tropas que eu tinha contra Séforis e tomei a ci­


dade de assalto. Os galileus, aproveitando a oportunidade, boa
demais para ser perdida, e expressar seu ódio contra essa cidade
que abominavam, marcharam avante, com a intenção de exterminar
a população, incluindo forasteiros e todos os outros. Invadindo a
cidade, incendiaram as casas, embora os moradores aterrorizados
tivessem fugido refugiando-se na cidadela. Pilharam tudo o que
puderam, infligindo aos habitantes devastação inconcebível [...].
E, embora recusassem ouvir qualquer reclamação ou ordem, sendo
minhas exortações desprezadas por causa de seu ódio, instruí alguns
dos meus amigos a circular a notícia de que os romanos haviam se
dirigido a outro lado da cidade com suas principais forças [...], a
fim de [...] tentar aplacar a fúria dos galileus e salvar Séforis [...];
a cidade de Tiberíades escapou por pouco de ser saqueada pelos
galileus [...], que denunciavam em altos brados os tiberianos como
traidores e amigos do rei [Agripa II], querendo ir até lá para exter­
minar a cidade. Pois abominavam da mesma forma os habitantes de
Tiberíades como os de Séforis (374-384).

O processo de romanização significava urbanização que, por sua vez, impHcava


comercialização, e, especialmente com o estabelecimento de Tiberíades no começo
dos anos 20 de nossa era, a explosão econômica da nova Pax Romana atingia total­
mente a Baixa Galiléia com violência. Se pensarmos em aliança em lugar de comércio,
teria Amós dito algo diferente a Antipas em Tiberíades, no primeiro século, do que
dissera a Jeroboão II no oitavo século no distante passado? Seja como for, no fmal
dos anos 20 de nossa era, surgem dois movimentos populares, o do Batismo de João,
e 0 do Reino de Jesus, operando nos territórios de Herodes Antipas. Por que nessa
ocasião? Por que aí? Teria sido coincidência ou, antes, resistência?

No Reino de Deus
Parece-nos óbvio, que, de acordo com o primeiro capítulo, os antigos ataques
injuriosos eram tão grosseiros como seus equivalentes modernos. A capacidade que
as pessoas tinham para insultar e inventar histórias era tão maldosa como a nossa.
As vezes, contudo, lá como aqui, podem-se conservar certos aspectos das descrições
sem levar em conta os motivos das acusações. Podemos aceitar a descrição da ação
(por exemplo, “pregação”) e ignorar a motivação perversa alegada (por exemplo,
“lucro pessoal”) . Nas críticas levantadas contra João Batista ou Jesus é preciso separar
a descrição (que se fazia) da acusação (por que se agia assim). Além disso, quando
os opositores avaliavam o movimento de João Batista e do Reino de Jesus, achavam
que eles eram protagonistas muito esquisitos, malucos ou desviados, não apenas
diferentes deles mas também opostos a eles. E, por mais estranho que nos pareça,
os elementos que escolheram para acentuar as divergências que mostravam em face
da normalidade corrente foram a comida e a bebida, almoçar e jantar

Acusações contra João por causa de comida

Depois que os especialistas concordaram que o evangelho de Marcos era a fonte


primária de Mateus e Lucas, tornou-se óbvio que estes dois também se valeram
de uma outra fonte principal. As semelhanças entre eles eram tamanhas, tanto na
seqüência geral como no conteúdo ausente em Marcos, que não podiam ser explica­
das pela mera coincidência. Essa outra fonte recebeu o nome de Q (abreviação para
Quelle, palavra alemã para “fonte”), mas, uma vez que assim se descreve o uso e não
a identidade, reconhecemos sua integridade chamando-a de Evangelho Q. Vem daí as
acusações contrajoão e Jesus preservadas em Mateus 11,16-19 e Lucas 7,31-35.
O debate se dá no contexto da contra acusação de Jesus de que seus oponentes
são como crianças “sentadas nas praças” que se recusam a brincar tanto com jogos
tristes como com os alegres. Nesse discurso, as acusações inimigas são repetidas.
Em primeiro lugar, “com efeito, veio João que não come nem bebe, e dizem: ‘Um
demônio está nele’. Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: ‘Eis aí um
glutão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores’”. Nessas acusações precisamos
distinguir entre a primeira parte, a descrição, da segunda, a acusação, isto é, separar a
base da fundamentação do ataque para conceder credibilidade aos oponentes.

A descrição do jejum de João é fácil de entender e perfeitamente viável. Sabemos


a seu respeito por meio de duas fontes principais que concordam no seu apelido,
Batizador ou Batista, e a respeito de sua execução por Herodes Antipas. Mas não
concordam com outros pormenores.

Josefo não menciona o deserto nem o Jordão nem mesmo o perdão dos pecados
quando discorre a respeito de João em sua ohra. Antiguidades judaicas (18.116-119).
O batismo de João, diz ele, era mera purificação secundária do corpo depois da
purificação da alma. Significava “a consagração do corpo implicando que a alma já
havia sido purificada por meio de comportamento correto”. Esse comportamento
queria dizer “prática da justiça para com o próximo e piedade em relação a Deus”.
Mas apesar desse tão inocente programa e sem maiores explicações, Josefo explica a
decapitação de João por Antipas como medida preventiva, “antes que sua pregação
provoque um levante”. Mas por que Antipas suspeitaria de tal subversão a partir de
um encontro de santos? Parece que falta uma peça entre a descrição sumária de sua
vida e sua morte. Algo não foi contado. Teria sido deliberadamente? Que seria?

Se tivéssemos apenas os escritos de Josefo, saberíamos muito pouco sobre o


messianismo e o apocaliptismo do primeiro século. Ele apenas nos oferece a inter­
pretação completamente tendenciosa desses conceitos e expectativas. Além das três
escolas filosóficas judaicas mais antigas e normais, essênios, fariseus e saduceus,
menciona a escola mais recente chamada apenas de “quarta filosofia,” com profun­
das raízes messiânicas e apocalípticas. Seu slogan era “Nenhum Senhor a não ser
Deus”, recusava submissão a Roma e acabou levando o povo à desastrosa guerra
de 66-74 d.C. Mas Josefo nada diz a respeito dessas raízes porque, na sua opinião,
as profecias messiânicas e as expectativas apocalípticas se referiam não a figuras
judaicas mas sim ao advento da dinastia vespasiano-fiaviana, que desbancaria a linha
júlio-claudiana de Augusto: “O que lhes incitou mais à guerra foi [mesmo depois da
destruição do Templo em 70 de nossa era] um oráculo ambíguo [...] encontrado em
suas Escrituras sagradas, segundo o qual um escolhido de sua pátria haveria de se
tornar governador do mundo. Entenderam que seria alguém de sua raça, e muitos
de seus sábios se enganaram nessa interpretação. O oráculo, no entanto, referia-
se, na verdade, à soberania de Vespasiano, que foi proclamado imperador em solo
judaico” (Guerrajudaica 6.312-313).

Outros judeus anteriormente já haviam admitido que o esperado messias davídico


poderia se encarnar em governadores pagãos como, por exemplo, num monarca persa
do sexto século ou num faraó egípcio do segundo a.C., mas seria intolerável encontrá-
lo num imperador romano cujo filho Tito incendiara o Templo. De qualquer forma,
e contrariando essa teologia de Josefo, João Batista estava protegido contra qualquer
associação messiânica ou apocalíptica. Por outro lado, naturalmente, é exatamente
isso que proclama a outra fonte sobre ele, o próprio Novo Testamento.

Nos evangelhos, contrariando Josefo, João situa-se no deserto perto do Jor­


dão, e seu batismo era para o perdão dos pecados. Não era a mesma coisa que os
ritos ordinários de purificação dos judeus que discutiremos no próximo capítulo.
Esses não eram administrados por outras pessoas e muito menos por indivíduos
particulares. Além disso, a mensagem do Batista era apocalíptica — anunciava o
iminente advento do Deus vingador, e sua missão consistia em preparar as pessoas
para o evento. O Evangelho Q registra o anúncio de João em Mateus 3,7-10 e Lucas
3,7-9: “Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir? [...]. Já
0 machado está posto à raiz das árvores e toda árvore que não produzir bons frutos
será cortada e lançada no fogo”.

De que maneira poderia alguém se preparar para tamanha vingança divina e,


especialmente, evitá-la? Seria preciso, diria João, tornar-se o povo pré-purificado do
Deus purificador. Como? Retomando o Êxodo, atravessando o deserto e passando
pelo Jordão rumo à Terra Prometida. Mas, acima de tudo, abandonando os pecados
nas águas purificadoras do rio. Seria estabelecido, então, um povo santo para que,
quando o Deus vingador chegasse, perecessem os maus e se salvassem os justos.
Possivelmente, só depois disso viria o esperado apocalipse da vingança e ocorreria
a libertação.
Era essa a missão de João; retomar o Êxodo, resgatar os penitentes do deserto,
através do Jordão, à Terra Prometida, para possuí-la novamente em santidade. Tratava-
se ao mesmo tempo do preparo e da antecipação proléptica da esperada consumação
apocalíptica agora iminente. Em outras palavras, já se tornava realidade aquilo que se
simbolizava. João assemelhava-se ao profeta posterior, “o egípcio”, e ao mesmo tempo
era diferente dele, que conduziria uma multidão sem armas a partir do deserto, atraves­
sando o Jordão, até os muros de Jerusalém, e que, como os de Jericó, diante de Josué,
desabariam quando de sua chegada. Mas, assim como Josefo tornou João palatável para
seus leitores romanos, assim também fizeram os evangelhos para os cristãos. Ele foi
transformado, novamente, em líder religioso-espiritual em vez de religioso-político. O
deserto e o Jordão tornaram-se acidentais ou neutros. João foi visto como aquele que
preparava o povo não mais pai'a o advento de Deus mas sim para a chegada de Jesus.

Quando as duas fontes são combinadas e suas tendências divergentes são entendidas,
João aparece claramente como profeta da consumação apocalíptica iminente que agia e
falava na perigosa fronteira entre a expectativa passiva e a ativa. Marcos 1,6 menciona
sua maneira de vestir-se e comer; “João se vestia de couro de camelo e se alimentava
de gafanhotos e mel silvestre”. Parece-se com a descrição que Josefo faz de seu mentor,
Bannus, “que habitava no deserto, usando roupas feitas de folhas de árvores e se ali­
mentava das coisas que cresciam espontaneamente” (Vida 11). Não importa qual seja
a nossa interpretação, se ascetismo aceito ou/e rejeição da civilização, e até mesmo se
intensificação de pureza; o fato é que João “não comia pão nem bebia vinho”. Localização
e ação, vestuário e dieta formam um todo coerente. Essas coisas, porém, aumentam
0 problema da compreensão da correspondente descrição de Jesus. Não comer nem
beber eram coisas suficientemente extraordinárias para suscitar críticas e comentários.
Podemos observar, mesmo sem concordar, como os oponentes passavam de descrições
acuradas para acusações individuais. João era, obviamente, um profeta ascético que
anunciava o iminente apocalipse. Os insultos funcionam melhor quando se baseiam
em alguma coisa. Mas que dizer a respeito de Jesus?

Acusações contra Jesus por causa de comida

Relembremos o conteúdo das duas acusações registradas no Evangelho Q contra


João e Jesus citadas anteriormente. As duas referem-se a alimentos (demasiado,
num caso, escasso, no outro), mas Jesus é censurado não só por isso mas também
por causa de suas companhias. João, diziam os que o atacavam, tinha demônios.
Inúmeros exegetas não levam muito a sério o comentário; em geral não debatem
se João estava ou não endemoninhado. Acham que era insulto, vitupério, ataques
sem fundamento e difamação. Mas com Jesus não foi assim. Não há discussão sé­
ria sobre a primeira acusação: era ou não glutão e beberrão? Todos acham que se
tratava apenas de difamação. Mas a segunda, infelizmente, não foi considerada da
mesma maneira. Posto que o estilo de comer de Jesus envolve dieta e companhias,
examinaremos primeiramente a segunda acusação, de que “comia com publicanos
e pecadores”.

Que significava “pecadores” no contexto do primeiro século? Não se referia aos


que ignoravam as estritas regras de pureza dos outros. Não queria dizer “os chamados
pecadores”, que eram pobres e sofredores e que, portanto, deveriam estar pagando
pelos erros cometidos com destituição e doença (a falácia de Jó). Nem tampouco os
que se chamavam de “pecadores” arrependidos. Significava, antes, os que deliberada,
constante e obstinadamente praticavam o mal. A expressão “coletores de impostos”,
ou “publicanos”, indicava pessoas que colaboravam com os opressores imperiais
locais e/ou operavam com excessivo rigor, suborno e corrupção. As duas expressões
juntas, “publicanos e pecadores”, denotavam pessoas moral e ocupacionalmente
perversas, irremediavelmente más.

Consideremos as duas frases semelhantes. Mateus, quando queria designar


alguém da comunidade a ser evitado, dizia, “trata-o como gentio ou publicano”
(18,17). Essas pessoas deveriam ser evitadas a qualquer custo e não deveriam ser
visitadas nem contadas como amigas. Tampouco se deveria procurar convertê-las.
Mas outro versículo anuncia: “Pois João veio a vós, num caminho de justiça, e não
crestes nele. Os publicanos e as prostitutas creram nele. Vós, porém, vendo isto, nem
sequer reconsiderastes para crer nele, afmal” (21,32). Aparecem aqui dois tipos de
malfeitores, de ambos os gêneros, só que desta vez foram convertidos com êxito e
não mais perdidos para sempre. Essas designações, em outras palavras, serviam para
insultar. Chamar Jesus de amigo de “publicanos e pecadores” significava denegri-lo
completamente e desprezá-lo, mais ou menos como o pessoal da extrema direita nos
Estados Unidos dos anos 1950 gostavam de insultar os simpatizantes da esquerda
de “subversivos e comunas”.
A acusação de relacionamento com “publicanos e pecadores” não era apenas
relembrada no Evangelho Q, onde as origens não literais do insulto são claramente
evidentes. Outros textos tomam-na literalmente, mas Jesus é defendido de imo­
ralidade com a afirmação de que esse contato tinha a finalidade de convertê-los.
Nesses casos, Jesus era defendido especificamente contra os fariseus e outros que
criticavam suas ações. Temos outro exemplo quando Jesus come com Levi e “publi­
canos e pecadores” em Marcos 2,13-17. Mas essa atitude é explicada porque Jesus
não viera chamar justos, “mas pecadores” (2,17), e, para que não houvesse dúvidas,
Lucas 5,32 acrescenta, “ao arrependimento”. Outro exemplo, além deste com Levi
em Cafarnaum, é o de Zaqueu em Jericó, “que era rico e chefe dos publicanos” (Lu­
cas 19,1-10). Jesus é, aqui, o hóspede de um pecador. Mas, depois do acontecido,
Zaqueu distribui a metade de seus bens aos pobres e devolve o dinheiro roubado às
suas vítimas, multiplicado por quatro: “Hoje a salvação entrou nesta casa, porque
ele também é um filho de Abraão. Com efeito, o Filho do Homem veio procurar
e salvar o que estava perdido”. 0 problema é que, naturalmente, se a salvação e a
conversão resultavam desses contatos, a atitude de Jesus deveria ter sido aprovada e
não criticada. Que indivíduos, seita ou grupos judaicos criticavam Jesus por converter
pecadores, transformando-os em santos, mudando o vício em virtude, ou atraindo
os gentios para o judaísmo?

Aí está 0 problema. Assumindo que Jesus não comesse livremente com pessoas
irremediavelmente más e que não fosse glutão nem beberrão, e que João não fosse
um possesso, que outra alegação física poderiam ter suscitado as acusações contra
ele? Que envolvia seu estilo de comer e beber? Que sentido poderiam ter essas
acusações? Jesus comia e bebia. E daí? E se levássemos a sério essas acusações e as
tomássemos ao pé da letra, como explicar que tal jeito de comer e beber o levaria a
morrer numa cruz romana?

Paulo não aceita o mandamento de Jesus

Se tivéssemos apenas a com paração de João com Jesus nas acusações registradas no
Evangelho Q, poderíamos imaginar que ele estava sendo criticado porque era diferente de
João. Era acusado de não ser asceta, ao contrário do martirizado João Batista. Em Marcos
2,19-20, por exemplo, logo depois da defesa de Jesus por ter comido com “publicanos
e pecadores” para que se arrependessem, os discípulos são criticados por não jejuarem
como os discípulos de João e os fariseus. Mas seria só isso: que Jesus não era um jeju-
ador asceta? Que ele comia normalmente? Bem como seus companheiros? Se Marcos
e 0 Evangelho Q pertencem ao primeiro nível da terceira camada, haveria alguma outra
coisa nas camadas anteriores a respeito desse assunto? Será que essas outras camadas
nos ajudam a entender a descrição de Jesus como glutão e beberrão? Retornamos, então,
às complexidades das camadas exegéticas.

O material presente nas cartas de Paulo provém de camadas da tradição de Je­


sus precisamente datadas. No inverno de 53-54 d.C., por exemplo, Paulo escreveu
à comunidade de Corinto defendendo-se dos que o acusavam, perguntando: “Não
temos 0 direito de comer e beber?” (ICor 9,3). A acusação é não de que ele esteja
se aproveitando da hospitalidade mas sim de que, ao contrário, não a usava como
era esperado. Admite que os “que anunciam o evangelho [...] vivam do evangelho”,
mas confessa que “não me vali de nenhum desses direitos” (9,14-15). Não se
percebe imediatamente por que Paulo recusava seguir em Corinto o que sabia ser
mandamento do próprio Jesus, coisa que os outros obedeciam. Em princípio não
era contra o recebimento de assistência financeira das comunidades: “Vós mesmos
bem sabeis, filipenses, que no início da pregação do evangelho, quando parti da
Macedônia, nenhuma igreja teve contato comigo em relação de dar e receber, senão
vós somente; já em Tessalônica mais uma vez vós me enviastes com que suprir as
minhas necessidades” (R 4,15-16). Refere-se, de fato, à ocasião descrita em 2 Co-
ríntios 11,8-9: “Despojei outras igrejas, delas recebendo salário, a fim de vos servir.
E quando entre vós sofri necessidade, a ninguém fui pesado, pois os irmãos vindos
da Macedônia supriram minha penúria; em tudo evitei ser-vos pesado, e continuarei
a evitá-lo”. Mais tarde diz aos romanos que lhe encaminhem para a Espanha (Rm
15,24), sugerindo, provavelmente, que lhe paguem a viagem e não se limitem a se
despedir dele no porto de Ostia em Roma.

Será que essas ofertas só eram aceitas quando partiam de uma comunidade para
outra? Pode ser, mas tudo indica que existiam problemas especiais com a aceitação de
ajuda dos coríntios. Em vez do igualitarismo radical adotado por Paulo para judeus
e gentios, escravos e livres, homens e mulheres (G1 3,28), havia na comunidade
de Corinto pessoas abastadas, provavelmente escravos alforriados, que operavam
segundo os padrões hierárquicos patronais da tradição greco-romana comum. Essa
sedutora subversão da igualdade cristã causava problemas na celebração da Ceia do
Senhor (ICor 12) e forçava Paulo a recusar qualquer tipo de hospitalidade que não
fosse igualitária, por envolver mais controle do que assistência.

De qualquer forma, e seja pela razão que for, Paulo recusava a ajuda financeira e
a hospitalidade das famílias de Corinto, mas admitia que o criticavam corretamente
por não seguir o costume geral apostólico adotado por Jesus. Não apelava a nenhuma
revelação pessoal, embora admitisse que se tratava de tradição comum. Em outras
palavras, se a tradição de Paulo pertencer à segunda camada, o mandamento de Jesus
seria da primeira, do próprio Jesus histórico. Mas que realmente significa? Teria Jesus
promovido hospitalidade? Quem não faria isso? Teria ele aprovado o pagamento de
salários? Quem seria contra? Jesus comia e bebia. Mas todos comem e bebem, não
é? Mas realmente o que estaria em jogo nisso tudo e por que tanta confusão sobre
comida na tradição de Jesus?

Programa de reciprocidade de recursos

Pressupomos aqui a validade de dois julgamentos especializados, a existência


do Evangelho Q e a independência do Evangelho de Tomé. Aceitando-os como teoria
operacional, logo percebemos que as trinta e sete unidades distribuídas divergen­
temente nesses dois evangelhos indicam que havia um depósito de tradição oral
nos quais se basearam independentemente. Essas conclusões dos estudiosos têm
sido classificadas, como já vimos, entre as mais importantes “descobertas” textuais
nas escavações relacionadas com Jesus na introdução deste livro. Vamos ressaltar,
a seguir, uma unidade específica dessa tradição oral conhecida como Tradição dos
Ditos Comuns. Trata-se da exortação a respeito de missão e mensagem nas versões de
Tomé, Marcos e Evangelho Q.

No Evangelho de Tomé 14 Jesus ordena: “Quando vocês forem a qualquer região


e entrarem no pátio e forem recebidos pelas pessoas, comam o que lhes for servido
e curem os doentes que estiverem aí”. Observemos a situação rural e não urbana, a
possibilidade implícita de rejeição e a reciprocidade entre comida e cura.

No Evangelho Q a situação é mais complexa, posto que Mateus e Lucas estavam


usando versões parecidas, uma do Evangelho Q e a outra de Marcos 6,7-13. Os espe­
cialistas entendem que Mateus 10,7-15 integrava as duas fontes, enquanto Lucas
as mantinha separadas, vindo Lucas 9,1-6 de Marcos, e Lucas 10,4-12 do Evangelho
Q. Eis, a seguir, os dois textos, de Marcos e do Evangelho Q.

Marcos 6,7-13: Chamou os doze e começou a enviá-los dois a dois. E


deu-lhes autoridade sobre os espíritos imundos. Recomendou-lhes
que nada levassem para o caminho, a não ser um cajado apenas;
nem pão, nem alforje, nem dinheiro no cinto. Mas que andassem
calçados com sandálias e não levassem duas túnicas. E disse-lhes:
“Onde quer que estiverdes, entrando numa casa, nela permaneceis
até vos retirardes do lugar. E se algum lugar não vos receber nem
vos quiser ouvir, ao partirdes de lá, sacudi o pó de debaixo dos vos­
sos pés em testemunho contra eles”. Partindo, eles pregavam que
todos se convertessem. E expulsavam muitos demônios, e curavam
muitos enfermos, ungindo-os com óleo.

Evangelho Q em Lucas 10,4-12: Não leveis bolsa, nem alforje, nem


sandálias, e a ninguém saudeis pelo caminho. Em qualquer casa em
que entrardes, dizei primeiro: “Paz a esta casa!”. E se lá houver um
homem de paz, a vossa paz irá repousar sobre ele; se não, voltará
a vós. Permanecei nessa casa, comei e bebei do que tiverem, pois o
operário é digno do seu salário. Não passeis de casa em casa. Em
qualquer cidade em que entrardes e fordes recebidos, comei o que
vos servirem; curai os enfermos que nela houver e dizei ao povo:
“O Reino de Deus está próximo de vós”. Mas em qualquer cidade
em que entrardes e não fordes recebidos, saí para as praças e dizei:
“Até a poeira da vossa cidade que se grudou aos nossos pés, nós a
sacudimos para deixá-la para vós. Sabei, no entanto que o Reino
de Deus está próximo”. Digo-vos que, naquele Dia, Sodoma será
mais tolerada do que aquela cidade.

Além das referências a alimento nesses textos e das relações que têm entre si,
há ainda quatro razões que nos levaram a selecioná-los entre a Tradição dos Ditos
Comuns. Em primeiro lugar, visto que derivam de Jesus, e acentuam comida e bebida,
hospitalidade e reciprocidade, ligam-se diretamente com o mandamento do Senhor
que Paulo não seguiu em 1 Coríntios 9. Talvez isso nos leve, em outras palavras, a
entender o conteúdo e o propósito de tal mandamento.

Em segundo lugar, temos a unidade paralela em Marcos. A combinação dela


com Paulo e a Tradição dos Ditos Comuns chama em especial a nossa atenção pela
importância que tem como testemunho conjunto.
Em terceiro lugar, os estudiosos debatem se as palavras e feitos, ditos e atos de
Jesus deveriam receber tanta ênfase e valor. A unidade ressalta a dependência mútua
desses elementos e sua importância recíproca.

Em quarto lugar, esses textos distinguem entre o programa do Reino de Jesus e


0 de João Batista, coisa que foi determinante para seus destinos divergentes. João era
chamado de “Batista” tanto por Josefo como pelo Novo Testamento. As pessoas não se
batizavam a si mesmas e nem eram batizadas umas pelas outras — mas pelo próprio
João. Daí o apelido. Não importando o que tal batismo significasse, João tornou-se
tão importante que sua execução acabou desmantelando seu movimento pouco a
pouco. Era quase impossível que o movimento pudesse continuar sem ele.

Na unidade que consideramos agora, Jesus envia os companheiros a ir e fazer


exatamente o mesmo que ele fazia. Além disso, não lhes mandou realizar essas
coisas em seu nome. Em jargão moderno diríamos que João criou o monopólio
batista enquanto Jesus, a franquia (franchise) do Reino. 0 movimento poderia con­
tinuar ou não depois de sua execução, mas a execução não acabava inevitavelmente
0 movimento.
Cura e com ida. Cura e comida formam o primeiro e mais importante par que
estamos usando para discutir as orientações missionárias de Jesus. Como combinação
recíproca aparecem tanto na Versão da Tradição dos Ditos Comuns como em Marcos,
embora neste último apenas implicitamente. Pressupõe-se aí a comida indiretamente
(permanecer na casa) e não se exige obrigatoriamente a cura, embora seja descrita.
A reciprocidade, no caso, supõe relacionamento de duas classes, itinerantes e donos
de casa, destituídos e pobres. Mas cada parte tem algo a oferecer à outra: de um
lado, dons espirituais (cura), e do outro, materiais (comida). A justaposição envolve
íntimo relacionamento e livre redistribuição de necessidades espirituais e materiais
como base das sociedades campestres.

Vestuário e interdependência. A Tradição dos Ditos Comuns não menciona ves­


tuário nem interdependência. Estes itens só aparecem no Evangelho Q e em Marcos.
De um lado, esse par de conceitos liga-se intimamente aos outros elementos que
examinamos, mas, do outro, Marcos já suaviza as exigências do Evangelho Q. Por
exemplo, a orientação de não usar sandálias desse evangelho presente em Mateus
10,10 = Lucas 10,4 transforma-se em seu oposto em Marcos 6,9: “Que andassem
calçados com sandálias”. É difícil imaginar símbolo maior de indigência do que
andar descalço. Da mesma forma, os discípulos tinham que viajar sem alforje, que
é uma contradição em termos. Se fossem esmoleiros, como carregariam as esmolas?
E isso aí. Essa falta anuncia a interdependência entre itinerantes e proprietários. Os
itinerantes dependiam dos hospedeiros para alimentação e pousada, não apenas de
caridade e doações.

Será que os companheiros de Jesus eram enviados a residências como as de


Nazaré e Cafarnaum ou a praças públicas de cidades e lugarejos como as de Séforis
e Tiberíades? O Evangelho de Tomé 14 menciona as zonas rurais em vez de cidades/al­
deias e somente sugere a dialética de aceitação e rejeição (“quando as pessoas vos
receberem”) . Marcos menciona apenas “casa”, mas observa explicitamente aceitação
(6,10) e rejeição (6,11). O Evangelho Q inter-relaciona “casa” e “cidade/aldeia” com
aceitação e rejeição. Assim, temos em Lucas aceitação numa casa (10,5-6a.7) e re­
jeição também numa casa (10,6b), seguida de aceitação na cidade/aldeia (10,8-9)
e rejeição na cidade/aldeia (10,10-11). Mateus 10,14 reconhece o problema dessa
disjunção e o resolve com “numa cidade ou numa aldeia” (10,11) e “daquela casa
ou daquela cidade" (10,14). Em resumo, a camada original dessa unidade parecia
ressaltar as casas, enquanto as camadas posteriores davam mais ênfase às cidades/al­
deias. Relembremos, por exemplo, as maldições proferidas contra Corazim e Betsaida,

2 2 . Reconstrução de uma casa com pátio em Cafarnaum no primeiro século


A vida simples de uma família de camponeses da Galiléia girava ao redor do pátio, onde as
crianças brincavam, os animais domésticos eram guardados e os que \i\iam na casa trabalhavam e
comiam. O desenho acima baseia-se na chamada Casa de São Pedro escavada pelos franciscanos,
sobre a qual, posteriormente, no quinto século, construiu-se uma basílica octogonal. Em bora a
maioria dos cômodos de depósito (1) ou unidades em volta do pário não ti\-esse mais de um
andar, mostramos aqui um deles com dois andares, construído com pedras locais de basalto e
revestidos de barro e palha para efeitos de climatização (2). As paredes eram feitas de pedras
empilhadas, com cascalhos nos interstícios, e o telhado em cima (3), que acrescentava espaço
para secar peixes (4) ou para dormir (5), era feito de sapé e barro, conforme dá a entender
Marcos 2, quando os amigos do paralítico “fizeram um buraco” no telhado para fazer descê-lo
até Jesus. Mulheres de diferentes idades (6) moem grãos para fazer farinha e cozer o pão num
forno de argila.
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mas mais especialmente contra Cafarnaum no Evangelho Q em Mateus 11,20-24 =
Lucas 10,13-15. É provável que os primeiros companheiros de Jesus tivessem tido
mais êxito nas casas individuais de lugarejos pequenos do que nas arenas públicas
das aldeias maiores ou dos vilarejos (chamados “cidades”).

Desafios da itinerància e da comensalidade

A cara desse programa mostrava-se relativamente clara. A itinerància, por


exemplo, não se limitava a simples vida errante nem à construção de um reino de
esmoleiros. Era, antes, a recusa do estabelecimento de uma sede para onde todas as
coisas se dirigissem. 0 Reino de Deus não podia ter um centro geográfico específi­
co. A comensalidade extrapolava a caridade das coletas ou as doações recebidas de
porta em porta. Tinha a ver com a partilha justa de alimento como base material da
vida pertencente a Deus. A itinerància e a comensalidade eram forjadas ao mesmo
tempo no âmbito da sociedade rural. Os discípulos queriam restaurar, de baixo para
cima, essa sociedade, fraturada pela romanização, urbanização e comercialização de
Herodes. Esse esforço fazia parte do Reino de Deus, em confronto com o estreito
domínio de Antipas no âmbito maior do império de César. Mas esses dois aspectos
do programa do Reino exigem exame mais profundo.

Itinerància. A itinerància de Jesus não era apenas condição radical da missão


nem a exigência de que seus companheiros abandonassem as famílias para sempre
e vivessem nas estradas. Desde o começo, a justaposição de comer e curar, de iti-
nerância e residência, criou certa dialética no coração do Reino que requer de nós
consideração especial. Quando o Jesus histórico enviou os discípulos para fazer
exatamente o que fazia, estaria desmanchando famílias até então perfeitamente
felizes ou recolhendo o que sobrava das famílias desfeitas?

Em primeiro lugar, a maneira mais rápida para acabar com a família consiste
em advogar o divórcio, com a separação dos cônjuges e o abandono dos filhos. Mas
foi precisamente o que Jesus condenou nos ditos a respeito do divórcio, segundo
Paulo em 1 Coríntios 7,10-11, no Evangelho Q em Lucas 16,18 = Mateus 5,32 e em
Marcos 10,11-12 = Mateus 19,9. As citações de Paulo, do Evangelho Q e de Marcos
quase certamente indicam que se originaram no próprio Jesus histórico pertencente
à primeira camada da tradição.

Em segundo lugar, o aforismo da paz e da espada encontrado na Tradição dos


Ditos Comuns, isto é, o Evangelho de Tomé 16 e o Evangelho Q em Lucas 12,51-53 =
Mateus 10,34-36, também remonta ao Jesus histórico da primeira camada. 0 eixo
da separação, no entanto, passa, do marido e da mulher, para os pais e filhos, com
ênfase nos casados. Era aí que ocorria a separação nas famílias estendidas que se
viam forçadas a trabalhar fora das terras que tinham em comum para sobreviver sob
as condições cada vez mais exigentes da comercialização.
A urbanização romana e a comercialização herodiana trouxeram o desenvolvi­
mento econômico da Pax Romana à Baixa Galiléia, mas com isso foram abaladas a
antiga segurança das redes de camponeses, a coesão das aldeias e ajusta distribuição
de terras. Naturalmente, as áreas atingidas não ficaram mais pobres. Ao contrário,
a urbanização enriqueceu a região (mas quem aproveitou?), envolvendo mudanças
profundas. Pequenas fazendas tiveram que se amalgamar às grandes e os campo­
neses que trabalhavam por conta própria foram obrigados a arrendar terras ou se
transformaram em empregados diaristas. A parábola dos trabalhadores na vinha de
]\4ateus 20,1-15 retrata esse tipo de situação. O proprietário da fazenda poderia ir
ao mercado de manhã, no meio da manhã, ao meio-dia, no início da tarde, ao anoi­
tecer e sempre encontraria trabalhadores disponíveis. 0 alto índice de desemprego
mantinha-os desocupados durante o dia todo e, por isso, eram às vezes chamados
de “preguiçosos”. Ao entardecer o capataz poderia mostrar-se bondoso ao pagar-
lhes o trabalho contratado. ]\4as que dizer a respeito da justiça estrutural e sistêmica
dessa situação?

Foram precisamente esses camponeses sem posses, os novos destituídos, que


vieram a se tornar os itinerantes do programa do Reino. Era a eles que Jesus se
referia quando anunciava “Bem-aventurados vós, os pobres”, segundo a Tradição
dos Ditos Comuns no Evangelho de Tomé 54 e no Evangelho Q presente em ]\4ateus
5,3 = Lucas 6,20. A tradução mais correta seria “destituídos” em vez de “pobres”.
Os pobres eram os camponeses em geral, ligados ainda às terras de suas famílias. Os
destituídos, porém, eram os que haviam perdido os bens e agora sentiam-se obrigados
a trabalhar nas terras dos outros para sobreviver. Poderíamos dizer que se estava
transformando a itinerância, resultado da indigência, numa virtude, mas seria mais
acurado dizer que desde que a necessidade era injusta aos olhos de Deus, a virtude
(nesse caso) mostrava-se injusta para os que nada tinham.

Originalmente, então, a itinerância de Jesus nada tinha a ver com ascese ou com o
abandono voluntário das posses, da família normal e do lar. Não obstante, muito cedo
na tradição de Jesus o asceticismo voluntário começou a substituir o forçado. Essa
tendência aparece tanto no Evangelho de Tomé como no Evangelho Q. Inúmeros desses
ditos que todos conhecem sobre abandonar riquezas e odiar os pais acabaram sendo
interpretados como exigências de uma vida de negação ascética. Os que seguiam e
repetiam esses ditos e deixavam voluntariamente as famílias criavam sérias tensões
com os proprietários, como aqueles da comunidade da Didaqué que não queriam
julgá-los nem imitá-los (11,11). Estamos convencidos, porém, de que as primeiras
camadas sobre a itinerância de Jesus não procuravam difundir esse asceticismo novo
e individual, mas representavam o clamor por justiça comunitária.

Pureza. Antes de passar da itinerância para a comensalidade, precisamos examinar


o contexto em que se desenvolveram os códigos judaicos de pureza, uma vez que os
debates e acusações envolvendo essas regras no judaísmo acabaram sendo usados pelos
cristãos contra o judaísmo. As caricaturas polêmicas de judeus fariseus por judeo-cris-
tãos, de judeus essênios por judeus fariseus, ou de judeus saduceus por judeus essênios
revelam rixas dentro da família e não fora dela. O conceito judaico de pureza e seus
diversos sistemas no período do Segundo Templo exigem esclarecimentos históricos e
não repetição sem sentido, por causa dos antigos e constantes mal-entendidos cristãos,
quase sempre acoplados a acusações falsas de legalismo farisaico.

Em primeiro lugar, os conceitos judaicos de puro e impuro, limpo e imundo não


podem ser comparados com virtude e vício, bem e mal. Em vez disso, o conceito de
pureza relaciona-se com o Templo, com a presença divina em seus átrios, e, mais
amplamente, com a experiência da vida e da morte corpóreas. A maior parte da
transmissão de impureza por contato relaciona-se com a morte: cadáveres humanos
e de animais, até mesmo répteis ou insetos mortos, sêmen, uma vez que implica
a perda de uma força doadora de vida, ligam-se à extinção da força vital e com a
morte. A escritura nos obriga a enterrar os mortos; Gênesis ordena a procriação, e a
menstruação é inevitável e natural. Nada disso se classifica como pecado nem como
lapsos morais. Pensemos: depois de estar em contato com a dimensão humana da
morte, é preciso lavar-se e esperar um pouco antes de se aproximar da dimensão
divina da vida. Trata-se de um modo concreto e corporal de reconhecer que Deus é
autor da vida, santo e distinto de nós. Somente quando as pessoas reconheciam seus
lapsos morais é que precisavam oferecer sacrifícios e dádivas além da purificação e
da espera. A pureza fazia parte do sistema estabelecido para relembrar Israel deste
imperativo: “Escolhe, pois, a vida [...] e assim poderás habitar sobre este solo que
lahweh jurara dar a teus pais, Abraão, Isaac e Jacó” (Dt 30,19-20). As lavagens não
seriam feitas em água parada, mas em “água viva”, num riacho, rio ou lago; o miqweh,
ou banho ritual, aproveitava a água da chuva nas cidades e aldeias onde não havia
água corrente. A literatura judaica jamais considerou o banho ritual e a espera atos
mágicos — não se recitavam orações nem se realizavam feitiçarias, e o ato não era
terapêutico no sentido de pretender efetuar curas nos purificados. Era mais como
confissão, declaração de fé, ato de respeito divino e lembrança física regular de que
a vida do corpo pertence a Deus.
Em segundo lugar, aTorá, ou lei da aliança, tratava de santidade para determinar
de que maneira o povo poderia ser santo, de um Deus santo numa terra também
santa. A santidade envolvia justiça e pureza, não apenas justiça nem só pureza,
mas juntas e nessa ordem. Era não apenas sobre pureza, mas também sobre ela. Em
geral, era fácil distinguir uma da outra e, às vezes, até mesmo separá-las. Mas essa
separação nem sempre era possível.
Pensemos, por exemplo, no Sábado. Tratava-se de justiça ou de ritual, ou das
duas coisas? Leiamos o conteúdo completo destes dois mandamentos legais que
estabeleciam seu significado e propósito:

Êxodo 23,12: Durante seis dias farás os teus trabalhos e no sétimo


descansarás, para que descanse o teu boi e o teu jumento, e tome
alento o filho da tua serva e o estrangeiro.
Deuteronômio 5,12-15: Observarás o dia de Sábado para santificá-lo,
conforme te ordenou lahweh teu Deus. Trabalharás durante seis
dias e realizarás toda a tua obra; o sétimo dia, porém, é o sábado
de lahweh teu Deus. Não farás, portanto, nenhum trabalho, nem
tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava,
nem teu boi, nem teu jumento, nem qualquer um dos teus animais,
nem o estrangeiro que reside em tua cidade. Deste modo o teu es­
cravo e a tua escrava poderão repousar como tu. Recorda que foste
escravo na terra do Egito, e que lahweh teu Deus te fez sair de lá
com mão forte e braço estendido. É por isso que lahweh teu Deus
te ordenou guardar o dia de sábado.

É quase impossível distinguir e muito menos separar nesses textos justiça distri­
butiva de observância ritual. Trata-se não apenas de descanso para prestar culto mas
também de descanso como culto. Todos precisam de um dia de descanso, animais e
humanos, escravos e livres, pais e filhos. A instância simbólica de descanso igual é
ordenada para todos, não importando suas diferenças. Era possível, pois, praticar
os rituais da justiça divina.

Em terceiro lugar, havia elementos comuns entre as leis sobre justiça e códigos a
respeito de pureza: ambos concentravam-se no corpo. Justiça não se reduz a conceitos
mentais nem a intenções espirituais; tem a ver com a maneira como os corpos têm
acesso eqüitativo e justo à base material da vida, a esse inevitável fundamento sem
o qual a vida humana plena não é possível. Em outras palavras, o sentido da justiça
divina na Torá, da justiça distributiva de Deus, não se reduz à terra nem ao alimento,
mas abrange a vida toda. A ênfase na pureza do corpo nos lembra permanentemente
que a exigência de justiça envolve também a vida do corpo.

Em quarto lugar, os códigos de pureza ritual incluem, em sentido amplo, o estado


físico das pessoas, em sentido estrito, isto é, a dieta do corpo. Vamos examinar, a
seguir, esse aspecto da comensalidade, levando em consideração as regras de pureza
aplicadas à alimentação. No próximo capítulo trataremos de pureza em sentido amplo
que chamaremos de estado puro ou impuro, não apenas em termos de dieta.

Com ensalidade. No dito sobre missão e mensagem citado anteriormente, a versão


no Evangelho de Tomé 14 é esta: “Quando forem a alguma região e chegarem a uma
cidade, quando as pessoas receberem vocês, comam o que servirem e curem os doen­
tes que aí estiverem. Pois o que entra pela boca não corrompe ninguém, mas o que
sai da boca”. 0 dito parece contrastar deliberadamente comensalidade com o que se
deve ou não comer. Em outras palavras, uma das principais feições do programa do
Reino de Deus, se não a mais importante, na primeira camada da tradição de Jesus,
era o ataque às preocupações judaicas com pureza, pelo menos no que concerne à
alimentação. Mas existem três problemas com essa interpretação.

Em primeiro lugar, se a desobediência, pelo menos às regras de pureza alimentar,


fosse clara no ensino do Jesus histórico, por que Atos 10-11 precisava daquela solene
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2 3 . Página título (e última) do Emngelho de Tomé


(Reproduzida com permissão; © Instituto de Antiguidade e Cristianismo, Claremont, Califórnia,
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revelação a Pedro negando-lhe quaisquer distinções entre comida pura e impura? Em


10,12-15 Deus diz a Pedro três vezes que “todos os quadrúpedes e os répteis e todas as
aves do céu [...] não chames impuro ao que Deus declarou puro”. Depois, em 11,6-10
tudo isso é repetido uma vez mais quando Pedro relata a revelação aos outros apósto­
los. Assim, ouvimos novamente que a respeito de “todos os quadrúpedes e os répteis e
todas as aves do céu [...] não chames impuro ao que Deus declarou puro”. O anúncio
dado ü-ês vezes por Deus é repetido duas vezes por Lucas. Essa sentença retórica indica
a nova revelação de Deus em lugar da antiga revelação de Jesus.
Em segundo lugar, na metade do primeiro século debatia-se em Jerusalém se
os pagãos convertidos ao judaísmo cristão precisavam se circuncidar (não!) e em
Antioquia se as refeições com a presença de judeus e pagãos convertidos deveriam
seguir o costume kosher (sim!). Mas nem nos relatos polêmicos envolvendo Paulo
em Gálatas 2 nem na versão mais irênica de Lucas em Atos 15 menciona-se o Jesus
histórico sobre o assunto. Em Gálatas 2,11-14, por exemplo, a comunidade inclu­
siva de Antioquia mudou de não-kosher para kosher por insistência de Tiago. Paulo
discordava disso, mas nunca citou mandamento algum de Jesus em sua defesa.

Em terceiro lugar, na última parte do mesmo século, dois evangelhos discordavam


absolutamente sobre a adoção de alimentos puros ou impuros, limpos ou imundos.

Marcos 7,15 repete o mesmo dito a respeito de os de casa e os de fora como apên­
dice à unidade anterior sobre missão e mensagem no Evangelho de Tomé 14. Mas para
explicar o que dizia acrescentou três comentários contextuais. Tinha que explicá-lo
privativamente aos discípulos em 7,17-23. E temos a explícita explicação em Marcos;
“Ele declarava puros todos os alimentos”. O fato precede a ida de Jesus a territórios
pagãos, tipo de missão gentílica proléptica. Essas coisas são suficientemente claras,
mas estariam na primeira ou na terceira camada da tradição dos evangelhos ? Viriam
diretamente de Jesus ou de Marcos?

A frase de Marcos sobre a declaração de Jesus de que são “puros todos os alimen­
tos” é omitida nos versículos paralelos de Mateus 15,17-18. Essa frase só poderia ser
esperada depois do que Jesus dissera em Mateus 5,17-18; “Não penseis que vim revogar
a Lei e os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento, porque em
verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra, não será omitido nenhum só í, uma
só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado”. Marcos e Mateus, em outras palavras,
jogam 0 Jesus histórico para o lado contrário no que concerne à pureza ou impureza da
alimentação, coisa que ainda se podia fazer até mesmo nos anos 70 e 80.

A conclusão óbvia desses três itens é que a camada mais antiga não apóia nenhu­
ma atitude clara a/avor ou contra as regras sobre pureza alimentar a partir do Jesus
histórico. Em outras palavras, Jesus observava exatamente as mesmas regras sobre
pureza alimentar como qualquer outro camponês da Galiléia daquele tempo e lugar.
Mas, se sua ênfase sobre alimentos não recaía na pureza, com que se preocupava?

Comensalidade sem itinerância. Afirmamos anteriormente que, não importando o jul­


gamento final a respeito da autenticidade do ossuário de Tiago, sua apresentação pública
e a discussão de alto nível a respeito têm o mérito de salientar a importância de Tiago,
irmão de Jesus. Ela se reflete no passado na consideração da itinerância e da comensali­
dade de Jesus no contexto do programa fundamental do movimento do Reino de Deus.

Segundo o Evangelho de Tomé 12, citado no primeiro capítulo, Jesus deixara o irmão
no seu lugar; “Independentemente do lugar para onde vocês forem, terão que ir a Tiago,
o Justo, por quem os céus e a terra vieram a ser”. Tiago não era itinerante, pois vivia em
lugar conhecido, alcançável, embora sem nome. Tanto Lucas, em Atos 12,17 e 15,13 até
21,18, como Paulo em Gálatas 1,19 até 2,12 afirmam a autoridade de Tiago e deixam claro
que ele residia em Jerusalém. Provavelmente concordavam em outros aspectos a respeito
dele, embora cada qual nos tenha deixado apenas metade do retrato completo.

Segundo Lucas a comunidade de Jerusalém adotava comportamento radicalmente


igualitário. Lemos em Atos 2,44-45: “Todos os fiéis, unidos, tinham tudo em comum;
vendiam as suas propriedades e os seus bens e dividiam o preço entre todos, segundo
as necessidades de cada um”. E, outra vez, segundo Atos 4,32-35:

A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém


considerava seu o que possuía, mas tudo era comum entre eles.
Com muito vigor, os apóstolos davam testemunho da ressurreição
do Senhor Jesus. E todos eles tinham grande aceitação. Não havia
entre eles indigente algum, porquanto os que possuíam terras ou
casas vendiam-nas, traziam o dinheiro e o colocavam aos pés dos
apóstolos; e distribuía-se a cada um segundo a sua necessidade.

Lucas continua dando o exemplo positivo da doação de Barnabé e, ao contrário, o


negativo, no caso da fraude praticada por Ananias e Safira. É possível descartar essas
histórias taxando-as de mero romantismo de Lucas, mas são inúmeras as razões para
levá-las a sério. Em primeiro lugar, no âmbito da teologia de Lucas, nunca se vêem
estilos de vida semelhantes em outras comunidades, não sendo portanto fruto de
seus motivos costumeiros. Ele tendia a falar a respeito de desavenças (ou mentiras)
e, no caso, as admite. Observa que a comensalidade era voluntária e nunca exigida
de todos. Em segundo lugar, no contexto da história contemporânea, mostra que o
estilo de vida da comunidade de Jerusalém assemelhava-se à de Qumrã. Segundo
a Regra da Comunidade nos Rolos do Mar Morto, depois que os noviços participam
em sua vida pelo período de um ano, “seus bens e dinheiro passam para as mãos
do Inspetor encarregado de cuidá-los. Serão anotados num livro e não serão usados
para todos [...] até que se completem dois anos”. Somente depois desse segundo
ano probatório “esses bens estarão à disposição do uso comum”. Além disso, “se
alguém mentir a respeito de seus bens, será excluído dos alimentos puros de todos
por um ano, e será condenado a comer apenas um quarto do pão a que tem direito”
(IQS 6). Em terceiro lugar, no que concerne à escatologia apocalíptica, a comunidade
manifesta clara visão do igualitarismo radical numa descrição do início do primeiro
século do que seria a perfeita comunidade de Deus na terra aperfeiçoada. Nesse
tempo iminente, segundo os Oráculos sibilinos 2.319-324,

a terra pertencerá igualmente a todos, sem divisões de muros ou


cercas. Produzirá, então, frutos mais abundantes espontaneamente.
A vida será em comum e não haverá divisão de riqueza.

Pois não haverá mais pobres nem ricos nem tiranos nem escravos.
Além disso, ninguém será maior nem menor. Não haverá reis nem
líderes. Todos viverão juntos e iguais.
Depois de considerarmos tudo isso, achamos que a narrativa de Lucas mostra-se
basicamente acurada. A comunidade judaico-cristã de Jerusalém praticava voluntaria­
mente 0 estilo comunal de vida repartindo entre todos o que tinha. Resistia, assim, à
ganância normal das outras comunidades que como a dos saduceus colaborava com
0 imperialismo romano. Relembremos Hegesipo, do primeiro capítulo. Seu relato da
santidade e do martítio de Tiago continha detalhes acurados e inacreditáveis ou, melhor,
essa história basicamente correta vinha permeada por muitas camadas polêmicas, apo­
logéticas e teológicas. Mas, como vimos, mesmo a narrativa religiosamente motivada do
“assassinato” de Tiago por Paulo refletia o conhecimento que tinha do martírio de Tiago.
A mesma coisa, com a santidade do mártir. Embora os pormenores sejam claramente
exagerados, para dizer pouco, e os exemplos extremamente imaginosos, ainda assim se
percebe debaixo deles o reconhecimento da santidade de Tiago. Eusébio em sua História
da Igreja 23, sobre esse tema, cita a afirmação de Hegesipo de que Tiago “estava sempre
ajoelhado pedindo perdão para seu povo, de tal maneira que seus joelhos se tornaram
calosos como os dos camelos: estava sempre em atitude de adoração e suplicando o
perdão de Deus para seu povo”. Não importando os joelhos de Tiago, aceitamos que sua
santidade era coisa histórica. Finalmente, isso explica por que os judeus não cristãos, tão
zelosos quanto à Lei, opuseram-se à sua execução e levaram o sumo sacerdote Ananus
II à deposição por causa disso.

Em resumo, portanto, Tiago era urbano enquanto Jesus, rural. Não era itineran­
te ao contrário de Jesus. Mas a atitude comunitária de Tiago e sua comensalidade
representaram válida continuação da visão de seu irmão e do programa do Reino
de Deus. Divergentes como o grupo Qumrã com sua Regra da Comunidade e o outro,
essênio, retratado no Documento de Damasco. Mas, ao observarem a justiça divina,
resistiam à injustiça imperial romana.

Da terra ao mundo e à alimentação


Recordemos o que foi dito no capítulo anterior sobre o reino da aliança de Deus,
a justiça e a retidão divinas na Lei e nos Profetas, a justa distribuição da terra e,
portanto, sobre o esforço da Torá de controlar a disseminação das dívidas. A terra,
base material da vida, não poderia ser vendida e comprada como qualquer merca­
doria. Pertencia a Deus de tal maneira que sua distribuição eqüitativa era questão
não apenas de virtude humana mas também de necessidade divina: “A terra não será
vendida perpetuamente, pois que a terra me pertence e vós sois para mim estrangeiros
e residentes temporários” (Lv 25,23). Desse conceito sobre a terra na Torá se poderia
ir, quase necessária e inevitavelmente, para duas direções diferentes, expandindo-se
desse ponto focal para o mundo e contraindo-se daí para a alimentação.
Terra e mundo

Embora a soberania divina tenlia sido vindicada especificamente para a terra


de Israel, era válida para o mundo inteiro no que concerne à justiça e à retidão de
Deus. No Salmo 82, por exemplo, “Deus se levanta no conselho divino, em meio
aos deuses ele julga”. Julga todas as outras divindades encarregadas das nações que
controlam a terra. Eis a sua palavra: “Até quando julgareis injustamente sustentando
a causa dos ímpios? Protegei o fraco e o órfão, fazei justiça ao pobre e ao necessitado,
libertai o fraco e o indigente, livrai-o das mãos dos ímpios” (82,2-4). As divindades
acusadas parecem não compreender a situação nem a denúncia. E como se nunca
tivessem se dado conta de que a justiça fazia parte de sua função: “Eles não sabem,
não entendem, vagueiam em trevas”. Mas os resultados de sua falha são catastróficos:
“Todos os fundamentos da terra se abalam” (82,5). A incapacidade de administrar
0 mundo de maneira justa e eqüitativa não apenas desagrada ao Deus Supremo;
mina os próprios fundamentos da criação. A justiça não é mera idéia humana ou
mandamento divino. Somente nela o mundo pode se movimentar com segurança e
manifestar que pertence ao Deus justo.

A seguir, duas notas de rodapé sobre a expansão da terra para o mundo. Eis a primei­
ra. Quando nós, cristãos, lemos a respeito de “justiça e retidão” no Antigo Testamento,
parece-nos que fala sobre retribuição e castigo. Mas no salmo que acabamos de ler, por
exemplo, a ênfase recai não em justiça pessoal ou compensadora, mas sim na estrutural
e distributiva. As divindades fracassadas não são, afinal, punidas pelo Deus Supremo.
0 único resultado e “castigo” de sua falha em manter justiça no mundo é este. “Eu
declarei: Vós sois deuses, todos vós sois filhos do Altíssimo; contudo, morrereis como
um homem qualquer, caireis como qualquer um dos príncipes” (SI 82,6-7). As divinda­
des do poder costumam cair quando os poderes que as apóiam falham e desabam. As
falanges da Grécia se foram e também Zeus. As legiões de Roma pertencem ao passado
assim como Júpiter. Mas poderá o Deus da justiça morrer?

Quando o salmista exclama no último verso do Salmo 82, “Levanta-te, ó Deus, julga
a terra, pois as nações todas pertencem a tü”, não se trata de mero desejo de punir o
poeta, ou de destruir os opressores, o que seria mais aceitável. Ao contrário. Deus quer
sacudir o mundo onde a retidão tornou-se quase impossível para estabelecer a justiça.
Relembremos a admoestação de Jesus em Mateus 5,25-26: ‘Assume logo uma atitude
conciliadora com o teu adversário, enquanto estás com ele no caminho, para não aconte­
cer que 0 adversário te entregue ao juiz e o juiz ao oficial de justiça e, assim, sejas lançado
na prisão. Em verdade te digo: dali não sairás, enquanto não pagares o último centavo”.
Era assim que os camponeses do mundo antigo pensavam a respeito da justiça humana:
fique longe dos tribunais para não ficar enredado até perder o último centavo exposto a
intermináveis subornos. Se não encontramos justiça distributiva na terra, começamos
a desejar um Deus que venha administrá-la com justiça e eqüidade.

A segunda nota de rodapé é esta. Em geral, nós, cristãos, traduzimos a palavra


agape do Novo Testamento por “amor” e a interpretamos como caridade ou oferendas.
Seria mellior traduzi-la não pelo termo vago “amar” mas pelo mais preciso “com­
partilhar”. Mas no sentido de que estamos não compartilhando generosamente o
que temos mas sim distribuindo eqüitativamente o que pertence a Deus. Esse tipo
de atitude significa que justiça no Antigo Testamento cristão é exatamente a mesma
coisa que agape/am or no Novo Testamento também cristão.

Terra e alimento
Mas, na verdade, a base material da vida é não a terra mas sim o alimento que
ela produz. A distribuição justa da terra relaciona-se, pois, com a distribuição justa
do alimento. E por isso que as visões escatológicas e apocalípticas do Reino de Deus
buscam não mais terra, mas sim mais fertilidade. Essa incrível fertilidade futura é
retratada em textos separados por trezentos anos: de um texto produzido antes da
perseguição síria e da revolta dos macabeus a outro surgido depois da guerra romana
e da destruição do Templo. Em 0 livro dos vigilantes em 1 Enoc 10,19: “De cada uma
de todas as sementes lançadas em sua [nova terra justa], nascerão mil outras, e de
cada unidade de oliveiras sairão dez prensas de azeite”. E em 2 Baruc 29,5-6: “A terra
produzirá frutos dez mil vezes. Numa só parreira brotarão mil ramos, e um ramo
produzirá mil cachos, e um cacho dará mil uvas e uma só uva produzirá incontáveis
galões de vinho”. Esse mundo escatológico ou Eutopia divina na terra seria uma
espécie de Mediterrâneo perfeito agraciado com superplenitude de cereais, azeite
e vinho. De nada valeria a terra sem alimentos. Por outro lado, era possível pensar
em alimentos sem terra.

Por que muda no tempo de Jesus a ênfase da justiça distributiva a respeito da


terra para o mesmo tipo de justiça relacionada com alimentação? Seria reconfortante
se pudéssemos pensar que ele estivesse prevendo a mudança do cristianismo das
áreas rurais para as urbanas, representadas nas cidades do Mediterrâneo em vez das
propriedades rurais da Galiléia. A proclamação da renovada criação de Deus exigia
necessariamente a justa distribuição de alimento em comunidades prontas a com­
partilhá-lo. Era 0 que se esperava dos artesãos sem terra, dos escravos alforriados e
da primeira geração de filhos nascidos livres. Mas a ênfase de Jesus na alimentação
em vez da terra dependia não de previsão futura, mas sim de necessidade presente.
Indicava que a situação no final dos anos 20 na Baixa Galiléia não era favorável à
distribuição de terras de baixo para cima. Tratava-se do reino de Antipas. A simples
sugestão de justa distribuição de terra, mesmo sem falar em implementar a idéia,
envolveria quase inevitavelmente uma violenta revolução. Era, porém, possível tentar
redistribuir o alimento e a cura, bases material e espiritual da vida, de baixo para
cima. Esse era o Reino de Deus na terra.

A visão e 0 programa fundamentalmente judaicos de Jesus na primeira camada da


tradição era terra como alimento e justiça como agape. A teologia da criação era a base
fundamentalmente judaica que indagava a respeito não apenas de qu em fizera o mun­
do mas também de quem o possuía. Nós, humanos, afinal, nunca imaginamos que fo­
mos os criadores da terra, embora normalmente pressupomos que somos seus donos.
C a p ít u l o 5

RESISTENCIA JUDAICA
AO DOMÍNIO ROMANO

Este capítulo desenvolve-se tendo em vista duas importantes questões. A pri­


meira é que, em qualquer situação de discriminação ou opressão, as resistências
visíveis são apenas a ponta do iceberg debaixo do qual movem-se secretamente re­
sistências ocultas mas permanentes. A outra é que ao citar opções contrárias como,
por exemplo, resistência e não-resistência, violência e não-violência, lemos “opções
contrárias” mas ouvimos “gradação de opções”. As opções contrárias dão ênfase não
apenas a si mesmas mas também a todas as combinações e inter-relações entre elas.
Sem imaginar extremos, contudo, é difícil perceber essas gradações ou analisar os
níveis de possibilidades abertos a indivíduos e grupos .no ano 4 a.C, quando dois
mil rebeldes foram crucificados em Jerusalém, e depois, no ano 70 de nossa era,
quando esse número subiu para quinhentos em um dia.

Religião e política, colônia e império


Conhecemos milhares de moedas coletadas em escavações arqueológicas ou ad­
quiridas de sítios roubados no território judaico do primeiro século d.C. As moedas
não serviam originalmente apenas para favorecer o comércio; representavam também
0 único meio de comunicação de massa e de informação no mundo antigo.
O espírito de Júlio César é retratado numa delas subindo ao céu como um cometa
para assumir o seu lugar entre as divindades eternas. Em outra, Augusto César recebe
a qualificação de divifilius, filho divino, filho de Deus, filho do cometa. Tibério César
é saudado numa moeda com o título depontifex maximus, ponte suprema entre a terra
e 0 céu, sumo sacerdote de um povo imperial. Um dia de trabalho valia um denário
de prata. Se o empregado trabalhasse mais, digamos, três dias seguidos, consideraria
seu salário muito bom. Imaginemos esse trabalhador com três denários nas mãos.
De que maneira poderia distinguir entre política e religião no Império Romano?
Pensemos um pouco mais sobre Augusto César. Era quatro vezes divino. Poderia
empregar armas transcendentais de destruição em massa além do necessário. Sua
divindade originara-se primeiramente, havia um milênio, de uma tribo existente na
época da Guerra de Tróia. Descendia também das relações da deusa Vênus-Afrodite
com o humano Ancjuise, segundo a Eneida de Virgílio. Havia sido concebido divina­
mente por Apoio e Atia, como vimos no ffnal do primeiro capítulo. Era também divino
por causa da adoção de Júlio César, como mostram algumas de suas moedas. E se tudo
isso não tivesse sido suficiente, fora ainda deificado, pessoal e diretamente, por um
decreto do Senado na ocasião de sua morte no ano 14 de nossa era. De que maneira
poderia o povo distinguir entre política e religião nesse ambiente de bajulação? Até
que ponto se poderia fazer oposição política a Augusto sem misturá-la com religião,
ou vice-versa? Do ponto de vista de Augusto, que motivos haveria para alguém se
opor à Pax Romana, à nova ordem de reformas políticas e de rearmamento moral,
às sólidas estradas livres de bandidos e os mares sem ameaça de piratas, às cidades
unidas pela mesma cultura e pela explosão econômica, e às legiões protetoras das
periferias além das quais somente ressoavam os gritos dos bárbaros ocidentais e as
ameaças dos partos orientais?

Roma, somente Roma, havia construído o reino e apenas ela poderia aprovar a
existência de reinos menores e governos a ela subordinados. Como seria possível
separar a religião da política na construção de qualquer reino, a favor de Roma ou
contra ela? De quem era o reino, o poder e a glória na difícil situação do primeiro
século? .

Nessa época, o território judaico havia sido dominado pelo imperialismo cultural
grego por mais de trezentos anos, e agora, pelo imperialismo militar romano, por
menos de cem anos. Este capítulo trata das reações a esses dois imperialismos. Não
imaginamos que todos os judeus estivessem empenhados apenas em resistir e que os
resistentes pensassem da mesma forma. Sempre existiu entre eles grande variedade
de opinião sobre controle imperial, dominação pagã e opressão social como, aliás,
a respeito de qualquer outro assunto. Na verdade, somente essa grande variedade
faria justiça ao judaísmo do primeiro século, nada monolítico nem unívoco, embora
antigo e tradicional, em face da atitude condescendente da invasão cultural e do
tremendo poder militar. Mas vamos nos concentrar na reação ao imperialismo e na
resistência à opressão por um motivo principal.

0 território judaico esteve sob controle imperial desde cerca de quinhentos anos
antes da chegada dos romanos. Depois que os babilônios destruíram o Primeiro
Templo e deportaram a liderança judaica, sua terra foi sucessivamente controlada
pelos persas, pelos gregos, pelos ptolomeus greco-egípcios e pelos selêucidas greco-
sírios. Durante todo esse tempo houve apenas uma revolta, causada pela suprema
provocação de uma perseguição religiosa estrangeira que resultou no governo judaico
dos macabeus asmonianos por um século. Mas nos primeiros duzentos anos do
domínio romano houve quatro grandes revoltas: no ano 4 a.C., em 66-74 d.C., em
115-117 d.C. e em 132-135 d.C. Depois desses levantes, estabeleceu-se o governo
romano direto e se construiu o Segundo Templo, o judaísmo egípcio desapareceu e
Jerusalém tornou-se oficialmente uma cidade pagã proibida para os judeus. A reação
ao imperialismo é, pelo menos, importante ponto de referência para considerar o
primeiro século no território judaico e, nesse continuum de reação, as opções principais
e mais intransigentes situavam-se entre resistência e não-resistência.

Opções pela não-resistência


A não-resistência colonial pode ser passiva ou ativa, envolvendo colaboração
conscientemente mínima ou deliberadamente máxima. Imaginemos que esta últi­
ma venha a ser considerada traição, no pior dos casos, ou colaboração, no melhor.
Naturalmente, a diferença entre traidores e colaboradores pode ser vaga e incerta
na prática. Deixando de lado as opções abstratas, examinemos as figuras de Tibério
Júlio Alexander ou Flávio Josefo no primeiro século.

Traidores

Tibério Júlio Alexander, filho de um rico e famoso oficial financeiro da Alexandria


romana e sobrinho do filósofo Fílon, nasceu judeu, mas rejeitou o judaísmo em favor
do paganismo romano. Desde então, sucessivamente e com êxito, encarregou-se da
Palestina, do Egito, e da guarda pretoriana do imperador, em Roma. Tornou-se o
primeiro governador que proclamou fidelidade às pretensões imperiais de Vespasiano
em 69, e um dos principais conselheiros de Tito, filho de Vespasiano, durante o cerco
e destruição de Jerusalém e de seu Templo no ano 70 d.C. Exerceu com competência
suas funções no Império Romano. Mas, do ponto de vista dos judeus, seria traidor e
apóstata? Numa de suas primeiras obras, Guerrajudaica, jo s e fo elogia-o sem nenhuma
crítica, observando que, “abstendo-se de qualquer interferência nos costumes do
país”, enquanto governava o território judaico “manteve a nação em paz” (2.220).
Mas na obra posterior, Antiguidades judaicas, o relato é menos laudatório, observando
que 0 pai de Tibério Júlio Alexander “era superior ao filho na devoção religiosa, pois
este não se pautava pelas práticas de seu povo” (20.100).

Mas até esse comentário nos parece moderado: Alexander não seguia as tradições
de seu povo. Trata-se, porém, de importante advertência no início deste capítulo.
Talvez fosse possível manter as antigas tradições de Israel sem se opor ao domínio
romano ou, mesmo, manter as práticas religiosas judaicas e colaborar com o poder
romano, achando que assim se fazia a vontade de Deus. Mas, por outro lado, sem
as tradições da aliança, como poderiam os judeus se opor, de certa forma, à incul-
turação greco-romana? Sem essas práticas religiosas, a identidade judaica poderia
eventualmente desaparecer no caldeirão do império. Era possível ignorar as prin­
cipais exigências da justiça e retidão da Torá com os rituais de purificação, mas sem
eles valeria a pena lhes dar atenção? Os que observavam essas práticas poderiam
curvar-se à urbanização romana, mas sem elas animar-se-iam a afirmar a aliança
contra o comércio?

Procuraremos entender no resto deste capítulo que causa estava realmente em


jogo quando, por exemplo, indivíduos e grupos judaicos aferravam-se aos rituais
externos de purificação corporal, diferentes e distintos dos costumes dos pagãos,
com os quais interagiam e sobre os quais governavam. Em tal situação, os atos
de purificação revelavam a identidade judaica e a resistência dos judeus à invasão
greco-romana. Relacionavam-se, também, com o futuro. Teriam a tradição, o povo
e 0 Deus dos judeus algum futuro?

Colaboradores

Josefo foi um sacerdote aristocrata de Jerusalém que “preparara” a Galiléia para


a guerra contra Roma em 66-67. Depois de se render ao general romano Vespasiano
e de ter profetizado a respeito de seu futuro imperial, passou a ser conselheiro de
seu filho, Tito, durante o cerco de Jerusalém no ano 70 e se tornou apologista dos
romanos diante dos judeus em sua obra Guerra judaica. Mais tarde, defendeu os ju­
deus perante os romanos nos livros Antiguidades judaicas e Contra Apião. Colaborador?
Certamente. Traidor? Talvez, não. Apóstata? Jamais. Segundo o livro Guerra judaica,
ele acreditava em três coisas a respeito de Roma.

Em primeiro lugar, achava que Deus desejava que a terra de Israel fosse, interna­
mente, uma teocracia dirigida por sacerdotes e, externamente, colônia do império:
“Deus, que andou ao redor das nações, concedeu sucessivamente a cada uma o
cetro do império, mas agora entregou-o à Itália” (5.367). Em segundo lugar, Deus
havia escolhido Vespasiano para ser o esperado messias judaico: “Certo oráculo
ambíguo [...] encontrado em suas Escrituras sagradas anunciava que naquele tempo
0 governador do mundo sairia de sua pátria. Entenderam, então, que haveria de ser
alguém de sua raça. Muitos dentre seus sábios acabaram elaborando interpretações
erradas. O oráculo, no entanto, referia-se na realidade à soberania de Vespasiano,
que foi proclamado imperador em solo judaico” (6.312-313). Em terceiro lugar, re­
belar-se contra Roma eqüivalia a rebelar-se contra Deus e seu messias: “Vocês estão
guerreando não apenas contra Roma mas também contra Deus” (5.378). Tibério
Júlio Alexander e Flávio Josefo pertenciam à equipe de Tito na época da queda de
Jerusalém e do incêndio do Templo. Suas intenções declaradas, no mínimo, tinham
outro caráter.

Para que não descartemos a teologia imperial de Josefo, considerando-a mera


justificação por ter mudado de idéia, ou de seus interesses ocultos de colaborador,
lembremos que ela mesma foi a solução proposta pela delegação de judeus palestinos
e romanos depois da morte de Herodes, o Grande. Suplicaram a Augusto, segundo
Josefo em Guerra judaica, que “juntasse seu país à Síria e entregasse a administração
a governantes escolhidos dentre eles” (2.91). Mas foi essa última posição rabínica
depois da resistência que quase destruiu completamente o território judaico. Vemos
então, naturalmente, que se a não-resistência podia representar para alguns mera
submissão teológica à vontade de Deus, para outros, provavelmente, não passava
da aceitação oportunista do poder romano.

Opções de resistência
Seria simples optar por não-resistência ou colaboração. 0 oposto de resistência
era bem mais complexo. Podemos isolar três subopções distintas de resistência.
Relembremos, porém, que se trata de tipos ideais e que, na prática, poderia haver
mais mistura do que distinção ou separação entre eles.

Bandidos

o primeiro tipo incluía o que os romanos chamavam de bandidos ou baderneiros.


Alguns poderiam ser matadores ou criminosos comuns, mas as situações imperiais
dificultavam, muitas vezes, separar a violência sistêmica dos conquistadores dos revi­
des individuais dos conquistados. Seja como for, a ênfase de Josefo sobre o aumento
de banditismo no primeiro século indica que os desalojados camponeses preferiam
lutar nas montanhas do que pedir esmolas nas cidades ou morrer nas trincheiras.
Quando os exércitos marchavam contra as legiões, os romanos chamavam a guerra
de bellumjustum, não tanto “justa” mas, certamente, “guerra de verdade”. Mas quando
os “bandidos” e os “baderneiros” lançavam suas guerrilhas do alto das montanhas
ou dos pântanos, com desprezo chamavam essas ações de hellum servile, guerra de
escravos. Nos textos favoráveis a Roma, as palavras “bandidos” e “baderneiros”
precisavam vir entre aspas, uma vez que esses grupos poderiam, do ponto de vista
colonial, considerar-se “libertadores”.

Apocaliptistas

0 segundo tipo pode ser chamado de apocaliptistas, levando-se em consideração


0 que foi dito no capítulo 2 sobre a passagem do reino da aliança, pelo escatológico,
ao apocalíptico. Os membros desse grupo proclamavam o iminente ato de poder
transcendental em favor do mundo todo, mas especialmente de Israel, capaz de
transformá-lo em espaço de ilimitada fertilidade, de prosperidade espontânea, de
Eutopia de perfeita justiça, de paz idílica, e de santidade absoluta. Em seguida.
Imediatamente. De repente. Agora. Relembremos que apocalipse significava não
destruição mas sim transformação, não o fim do mundo material de espaço e tempo
mas sim o fim do mundo social do mal, da impureza, da injustiça e da violência.

Examinaremos agora três subopções das expectativas apocalípticas. Vamos estu­


dá-las separadamente, sabendo, no entanto, que sempre se manifestam misturadas,
escorregadias e entrelaçadas.

Violência m ilitante. A primeira é a violência militar. Tomemos por exemplo o


galileu Judas ou qualquer outro como ele. Seu lema ou manifesto resumia-se nestas
palavras: “Nenhum outro Senhor além de Deus”, e, em nome desse mandato divino,
instigou a revolta depois que os romanos exilaram Herodes Arquelau em 6 a.C. e
mandaram fazer um recenseamento sobre impostos para preparar a submissão dos
territórios judaicos ao governador romano. Nenhum César poderia ser chamado
Senhor além de Deus. Na verdade, boa parte do que Josefo chamava de “quarta filo­
sofia”, classificando-a como tardia e inválida, além das três anteriores, dos essênios,
dos fariseus e dos saduceus, compunha-se, provavelmente, do pensamento dos
apocaliptistas de opção militante. Se Josefo conseguia perceber a vontade de Deus
na não-resistência. Judas podia, da mesma forma, vê-la na resistência.

Sim bolism o dos arquétipos. Esta é a segunda subopção. Como exemplo, relem­
bremos João Batista, examinado no capítulo anterior. Ou então o chamado profeta
egípcio e outros como ele nos anos 50 e 60 de nossa era. 0 Batista reuniu multi­
dões de adeptos nas margens do Rio Jordão e as conduziu aos muros de Jerusalém,
esperando que ruiriam com a sua chegada, como os de Jericó, com a de Josué um
milênio antes. Esperava a repetição da cena apocalíptica. Assim como Deus agira
no passado, também faria agora. 0 começo e o fim se encontrariam. As multidões
não precisavam de armas, porque Deus se encarregaria da consumação desejada.
Como isso não aconteceu, foram esmagados.

Comunidade da aliança. Chamamos assim a terceira subopção. Damos como


exemplo o Documento de Damasco, regra comunitária conhecida hoje por meio de cópias
medievais da coleção de livros sagrados, magnificamente restaurados, da Sinagoga
Ezra do Cairo antigo, e de edições originais das diversas cavernas de Qumrã. Que
relações estabelecem entre expectativas apocalípticas e compromisso comunitário?
As regras parecem tentar deliberadamente resistir em face da normalidade da ambição
imperial ao criar comunidades participativas devotadas à santidade da aliança capazes
de iniciar ativamente ou instituir antecipadamente a consumação apocalíptica. Os
que entravam nessa “nova aliança” deveriam “abster-se das riquezas malignas de-
generadoras, por meio de promessa ou voto, das riquezas do Templo, de roubar dos
pobres, de explorar as viúvas e de matar os órfãos”. Exigiam que “cada um amasse
0 próximo como a si mesmo; estendesse a mão aos pobres, aos necessitados e aos
estrangeiros; que buscasse a paz com os irmãos e não cometesse pecado contra os
de seu sangue”. Cada membro da comunidade deveria doar “o salário de, pelo me­
nos, dois dias por mês, entregando-o ao Inspetor e aos juizes. Esse dinheiro seria
distribuído entre órfãos, necessitados e pobres, aos idosos que esperavam a morte.
aos desempregados, aos prisioneiros de outros países, às jovens desprotegidas, às
mulheres solteiras desamparadas e a todas as demais obras da comunidade”. Tratava-
se, também, ou melhor, acima de tudo, de resistência à injustiça imperial.

Tomemos mais este exemplo do capítulo anterior sobre o comunalismo de Tiago


em Jerusalém e a menção do primeiro capítulo da obra. Reconhecimentos clementinos 1,
a respeito da existência de fontes mais antigas a favor de Tiago e contra Paulo. Esse
texto culpava Paulo pela falha de sua missão aos judeus e pela morte de Tiago. Porque,
como nos devemos lembrar, Paulo foi, digamos, obliquamente, identificado como
quem atacara Tiago violentamente quando autoridades e povo estavam prestes a se
converter ao judaísmo cristão. Como narrativa literal, a história é fantasticamente
inverossímil, mas como condensação metafórica da divisão entre Tiago e Paulo é
altamente instrutiva. Existe, porém, outro aspecto de importância imediata a respeito
da comunidade de Tiago mencionado no relato.

A parábola em Reconhecimentos clementinos conta que Paulo teria jogado Tiago


pelos degraus do Templo abandonando-o lá embaixo como se estivesse morto: “Mas
nossos companheiros o levantaram. Pois eram mais numerosos e fortes do que os
outros. Mas, por causa de seu temor por Deus, deixaram-se morrer pela minoria
em vez de matá-los” (1.71.1). Estamos querendo dizer não que as coisas teriam
passado dessa maneira mas sim que a comunidade judaica fez questão de inserir
esse comentário na parábola. Além da vida comunitária que se contrapunha à nor­
malidade da vida ambiciosa imperial, a não-violência programática constituía-se em
outra forma de resistência.

Protestadores

Os bandidos agiam sempre com violência humana. Alguns apocaliptistas aguar­


davam a violência divina, outros, alguma violência humana, às vezes as duas coisas
ou nenhuma delas. (Repetimos que tais violências representavam sempre repúdio
às injustiças imperiais.) Os protestadores eram os que resistiam de maneira não vio­
lenta, como Judas, o galileu, mas nem sempre apenas dessa forma, como Josefo, o
historiador. Mas sempre partindo de resistência não violenta. Tratava-se, contudo,
de protesto absoluto, com implicações de martírio e jamais de submissão. Merece,
pois, a designação especial d e protesto martirial. Desafiava o poder imperial de revelar
a violência encoberta imposta a resistentes desarmados e não violentos. Temos dois
exemplos principais, o primeiro do final dos anos 20 contra Pilatos e o outro do
início dos anos 40, contra Petrônio.
Exem plos de resistência n ão violenta. O primeiro exemplo relaciona-se com os
estandartes militares de Pilatos. Data, provavelmente, de 26-27 d.C., na hipótese
de ter acontecido muito cedo quando ainda era prefeito. Suas tropas carregavam
estandartes com a imagem de César marchando para Jerusalém. O resultado, se­
gundo Guerra judaica (2.169-174) e Antiguidades judaicas (18.55-59), de Josefo, foi
que “a indignação dos habitantes da cidade espalhou-se por todos os subúrbios, e as
multidões cercaram as bases de Pilatos na costa de Cesaréia Marítima. Postaram-se
diante de sua residência por cinco dias e, finalmente, quando acuados pelas tropas,
“os judeus de comum acordo jogaram-se no chão, e erguendo as cabeças disseram
que preferiam morrer a transgredir a lei”. Pilatos aceitou a reivindicação e mandou
retirar os estandartes ofensivos.

O segundo exemplo extraordinário relaciona-se com a estátua de Caio Calígula.


O incidente ocorreu entre 40 e 41 d.C., quando o imperador pretendeu erguer sua
estátua no Templo de Jerusalém. 0 fato foi narrado por duas fontes do primeiro sé­
culo, ambas dejosefo, Guerrajudaica (2.185-203) e Antiguidades judaicas (18.261-309),
além da o b ra Embaixada a Caio (203-348), do filósofo judeu Fílon. Quando Petrônio,
governador Sírio, veio para o sul, segundo Josefo, com poderosas legiões de Antio­
quia, foi surpreendido por um protesto popular não violento no porto mediterrâneo
dePtolomais (“milhares de judeus”) e na Galiléia em Tiberíades (também “milhares
de judeus”). Os judeus, para acentuar seu espírito de não-violência, “reuniram-se
com as esposas e os filhos” e disseram ao governador que, “se ele insistisse em pôr
no Templo essas estátuas, teria que primeiramente destruir a nação judaica; e que
se apresentavam, com as famílias, para o sacrifício”. Petrônio reconheceu “que a
nação corria o perigo de perder a semeadura — pois estava na estação do plantio
e as pessoas já haviam perdido cinqüenta dias de trabalho esperando por ele”. Em
vista disso rendeu-se ao que o povo queria e retornou a Antioquia com suas legiões.
A resistência não violenta ameaçava não apenas com o martírio, mas também com
uma greve de agricultores.

Fílon conta o mesmo incidente com pequenas diferenças; por exemplo, a greve
dos plantadores, da narrativa dejosefo, corria o risco de provocar incêndios consi­
derados criminosos nos campos em plena época de colheita. Mas Fílon, por sua vez,
ressalta mais do que Josefo a resistência não violenta e a disposição para o martírio.
Eis, a seguir, as frases principais dessa parte do relato:

Quando os habitantes da cidade santa e das regiões ao redor sou­


beram do que os ameaçava, reuniram, como se tivessem sido chamados
por um sinal, impelidos pela miséria comum, e marcharam como se
fossem um só corpo, e, deixando suas cidades e vilarejos, e as casas
vazias, foram de comum acordo à Fenícia, onde estava Petrônio no
momento [...]. A multidão foi dividida em seis companhias, dos
velhos, dos jovens, dos rapazes, das matronas, das mulheres jovens e
das virgens [...]. “Estamos sem armas, como você vê [...] [e] oferece­
mos livremente nossos corpos a quem nos desejar matar. Trouxemos
nossas esposas, nossos filhos e todos os demais membros da famí­
lia, e estamos prontos a nos prostrar perante Caio [Calígula], não
tendo deixado ninguém em casa, para que você nos preserve todos
OU nos destrua de uma vez de maneira geral e completa [...]. Se não
conseguirmos convencê-lo nesta matéria, oferecemo-nos, então, à
destruição, a fim de que não continuemos a viver contemplando essa
calamidade mais terrível e ofensiva do que a morte [...]. Voluntária
e prontamente submetemo-nos à m orte.”

Essa longa citação exemplifica o presente argumento. Se apenas Josefo tivesse


escrito a respeito dessa resistência não violenta, aberta para o martírio, poderia ser
rejeitada como simples propaganda, expressando apenas seu desejo de interpretar o
passado, ou seu exemplo a respeito do que poderia acontecer no futuro. Mas, neste
caso pelo menos, mesmo admitindo certo exagero, os dois autores concordam nos
pontos principais. Consideraremos ainda duas importantes notas de rodapé.

Líderes. Ao citar esses casos de resistência não violenta contra Pilatos e Petrônio,
apoiados pela disposição de deixar que o protesto acabasse em martírio, insistimos
num elemento particular. Tais demonstrações públicas de grande escala envolviam
planos teóricos, controles práticos, líderes permanentes e administradores consis­
tentes. Não aconteciam espontaneamente. Observemos, por exemplo, a frase, “como
se tivessem sido chamados por um sinal”, que escrevemos em itálico. Quem teria
organizado esses protestos? Quem conseguia controlar a multidão dos resistentes?
Nossa melhor hipótese é a seguinte, sabendo que, se não puder ser aceita, a questão
continuará em aberto. Quem inventava, organizava e controlava as demonstrações
públicas de resistência não violenta e os protestos martiriais na primeira metade
do primeiro século?

Estudiosos propuseram recentemente três indicadores de resposta. Em pri­


meiro lugar, os fariseus exerciam grande influência popular na época, sugerida pela
maneira como Josefo direta ou indiretamente a lamentava. Em segundo lugar, sua
liderança envolvia não apenas debates exegético-legais mas também atividades po-
lítico-religiosas. Em outras palavras, a piedade e a política representavam dois lados
da mesma moeda. Por exemplo, mestres fariseus instigaram estudantes a retirar a
águia imperial de cima do portal principal do Templo, e por isso foram executados
por Herodes, o Grande. Em terceiro lugar, as duas principais escolas de tradição
farisaica, dos shamaítas e dos hilelitas, divergiam não só a respeito de regras legais
severas e brandas, mas também a respeito de reações violentas e não violentas à
opressão romana. Se esta argumentação for correta, os fariseus hilelitas teriam
instigado teoricamente e organizado na prática as reações não violentas escoradas
na possibilidade de martírio, no primeiro século.

Objeções. Qual teria sido, exatamente, a base religiosa ou teológica desses peri­
gosos atos martiriais de protesto? Não há respostas nos textos, mas arriscamos três
sugestões. Os protestadores não violentos esperavam que seu martírio motivaria
a retribuição violenta ou até apocalíptica de Deus. Talvez quisessem evitar atos de
violência para não manchar de sangue a terra de Deus, mesmo se o paganismo greco-
romano já o tivesse feito. Competia aos pagãos agir como tais, mas eles se absteriam
de derramar sangue. Ou, finalmente, gostariam de imitar a divindade não violenta,
e agir de acordo com seu Deus. Relembremos, no entanto, que os dois extremos, o
dejosefo (não-resistência não violenta) e o de Judas, o galileu (resistência violenta),
fundamentavam seus programas absolutamente opostos no mesmo Deus judaico.
O fundamento divino do protesto martirial não violento, seja qual for a explicação,
sempre esteve presente.

A segunda objeção é óbvia e talvez os leitores já se deram conta dela. O discurso


da resistência não violenta não seria mera projeção do passado, portanto, inválida,
dos ideais de Tolstoy, Gandhi e King? Mas se tal anacronismo representa sempre
algum perigo, o mesmo acontece com a arrogância, isto é, com a pressuposição de
que somente a modernidade poderia ter inventado a não-violência. Mas, na verdade,
quase todas as opções imagináveis de resistência aos colonizadores foram praticadas
e/ou inventadas na situação do primeiro século. Por exemplo, pensemos nos sicários
{sica significa um punhal curto e escondido) como exemplo para o outro lado da
resistência religioso-política.

Em primeiro lugar, os sicários, ou portadores de sica, não inventaram cons­


pirações e assassinatos. Essas coisas já existiam há tempo e em todos os lugares.
Mas inventaram o terrorismo urbano. Esse termo não é anacrônico; não representa
nenhuma projeção da modernidade na Antiguidade. Segundo Guerrajudaica (2.254­
257) e Antiguidades judaicas (20.208-210), dejosefo, os sicários matavam judeus que
ocupavam cargos importantes, especialmente da família do sumo sacerdote, que
colaboravam com as autoridades romanas. Mas cometiam esses crimes na surdina
no meio das multidões urbanas, de modo que, como reconhecia Josefo, “o pânico
criado era mais alarmante do que a própria calamidade; as pessoas, como nos campos
de batalha, esperavam a morte a qualquer hora”. Em segundo lugar, como não havia
cobertura da mídia (posto que não existia), “aproveitavam as estações dos festivais
especiais” não só para se proteger no meio do povo, mas também para que todos
ficassem sabendo de suas atividades. Em terceiro lugar, inventaram também os se-
qüestros em troca de prisioneiros; “Raptaram o secretário do capitão [do Templo]
Eleazar, filho do sumo sacerdote Ananias, e o mantiveram preso. Comunicaram a
Ananias que libertariam o secretário se conseguisse de Albino [prefeito romano]
a libertação de dez prisioneiros de seu grupo”. Em quarto lugar, o sucesso inicial
desses atos resultou inevitavelmente em “maiores problemas”, posto que os sicários
aumentaram o número de seqüestros de altas autoridades em troca da libertação
de presos. Teríamos imaginado essas táticas na Jerusalém do primeiro século sem
as precisas descrições dejosefo? Mas nenhuma dessas ações prova que a reação não
violenta dos hiletitas conjugava-se com o martírio. Apenas nos advertem de que não
inventamos essas coisas para o bem ou para o mal em nossa era moderna.
Masada e Qumrã ao sul
Essas opções, de resistência a não-resistência, de violência a não-violência, figu­
ram claramente nos textos que ainda temos daquele terrível primeiro século. Mas
que dizer dos restos materiais? Podem mostrar locais desertos, pedras enegrecidas,
madeiras carbonizadas, muros danificados, corpos quebrados, pontas de flechas,
hastes de lanças e armas abandonadas. Mas será que apenas as revoltas violentas
deixam traços permanentes no solo, cicatrizes na terra? Vamos examinar agora os
sicários de outro ângulo e buscar que elementos sobraram para as descobertas dos
arqueólogos e para sua interpretação.

Sicários em Masada

A revolta judaica contra Roma terminou em cima dos penhascos de Masada


cerca de quatro anos depois da queda de Jerusalém e da destruição do Templo em
70 d.C., oito anos depois de ter começado em 66 d.C. A resistência violenta contra a
dominação romana terminou no palácio-fortaleza de Herodes, o Grande, construído
no século anterior às margens do Mar Morto.

H istórias. Josefo conta que um bando de sicários cometeu suicídio com suas
famílias na noite anterior à tomada de Masada pelas legiões romanas. A história
contada pelo escritor é dramática. Os defensores da fortaleza sobreviviam à custa
de enormes suprimentos de trigo, água, vinho e armas, mas decidiram acabar com
a própria vida em vez de morrer nas mãos dos romanos. Cada chefe de família en­
carregou-se de matar pela espada a esposa e os filhos; em seguida, escolheram dez
homens para tirar a vida dos outros. Dentre os restantes dez sobreviventes, sorteou-
se um para matar o resto. 0 único que sobrou incendiou o edifício e, finalmente,
acabou com a própria vida. Josefo atribuiu ao líder Eleazar ben Yair a dramática
frase “escolheram morrer para não ser escravos”, levando a cabo seu intento a fim
de “não servir aos romanos nem a nenhum outro poder a não ser Deus”. Na manhã
seguinte, os gritos de batalha dos soldados de Flávio Silva perderam-se no silêncio.
A revolta judaica terminava.

Depois das escavações de Yigael Yadin, em Masada, entre 1963 e 1965, o local
tornou-se metáfora do Estado de Israel embalado pelo refrão nacional: “Nunca
mais Masada será tomada outra vez”. Assim como alguns arqueólogos cristãos, de
tendência teológica conservadora, empenham-se em confirmar certas histórias bí­
blicas por meio de materiais remanescentes, assim também arqueólogos israelenses,
comprometidos com atitudes políticas defensivas, procuram fíindamentar sua saga
nacionalista na história de Josefo que acabamos de apreciar.

Atualmente, no entanto, levantam-se muitas dúvidas a respeito das interpreta­


ções iniciais dos escavadores. O suicídio em massa, no centro da narrativa de Josefo,
tem sido questionado — trata-se de tema recorrente na literatura desse autor e de
artifício literário muito comum na literatura greco-romana. Também questiona-se a
veracidade de esqueletos precipitadamente identificados pelos escavadores como dos
defensores de Masada. Os ossos de um homem, de uma mulher e de uma criança com
cabelos trançados e sandália, ao lado de outros vinte esqueletos, encontrados numa
cisterna, receberam sepultamento estatal reverente, mas é provável que tivessem
pertencido a romanos que ocuparam o local até o ano 111 d.C. Afinal, pergunta o
antropólogo físico de Israel, Joseph Zias, por que os ocupantes romanos que viveram
aí nos quarenta anos seguintes tolerariam a permanência de cadáveres decompostos
no palácio do norte? Como explicar ainda a presença de ossos de porcos entre os
esqueletos humanos, uma vez que o sacrifício desses animais fazia parte das práticas
fúnebres romanas? Essas questões, ao lado da natureza fragmentária dos esqueletos
e da presença de marcas de dentadas, sugerem que em vez de denotar a presença de
famílias judaicas, os escavadores encontraram uma cova de hienas, que juntavam
ossos de um cemitério de tropas romanas.

As escavações de Yadin relacionaram as narrativas de Josefo com grupos de os-


traca, fragmentos de cerâmica com inscrições, desenterradas em Masada. A coleção,
portando nomes próprios em cada elemento, foi considerada da época do suicídio
fmal, e a que mostrava o nome de “Ben Yair” foi logo atribuída a Eleazar ben Yair,
líder dos sicários. O grupo era constituído de onze lotes e um fragmento, e não dez
como pretendia Josefo. Na verdade, encontraram-se setecentos ostraca no terraço
sobre a montanha, também com nomes de mulheres, letras isoladas, designação de
gêneros alimentícios e anotações sacerdotais. Os ostraca faziam parte do sistema de
suprimento dos defensores e não se pode atribuir a nenhum grupo o que sobrou da
última noite. A veracidade da narrativa de Josefo sobre o suicídio em massa depende
de base arqueológica muito frágil.

Escavações. A história básica, contudo, deixou traços confiáveis nos registros


arqueológicos: a poderosa força de legionários romanos e auxiliares sitiaram e der­
rotaram 0 pequeno bando de judeus no alto das rochas de Masada no estágio fmal
da revolta nacional. Esses fatos são incontestáveis. Até hoje se podem ver os sinais
dos muros ao redor de Masada, ao lado de oito acampamentos de sitiantes retan­
gulares e quadrados. O muro com mais de 6 pés de largura, contendo ao noroeste
doze torres com intervalos regulares, fora construído por engenheiros militares
romanos da Décima Legião (Fretensis) para que nenhum dos defensores escapasse.
Dois desses acampamentos, muito grandes, situavam-se nos lados oriental e oci­
dental da montanha em forma de losango. 0 tamanho e a forma eram os mesmos
de qualquer acampamento legionário. A minifortaleza murada possuía quatro entra­
das, uma de cada lado, e parecia-se com uma cidade romana em miniatura, cortada
por duas grandes vias e hierarquicamente arranjada com o praetorium, ou posto do
comandante, no centro e pequenas unidades para os soldados.

A ruína mais impressionante é da sólida rampa construída pelos romanos no lado


ocidental de Masada. A fortaleza parecia impenetrável entre rochedos e precipícios
e abrigos subterrâneos ao longo dos muros; um pequeno caminho serpenteava até
0 declive leste, onde poucas sentinelas poderiam facilmente rechaçar até mesmo
um exército inteiro. Herodes, o Grande, construíra o castelo dotando-o de eficiente
sistema de suprimento de água e de silos capazes de armazenar alimentos por ocasião
de possíveis cercos. Os romanos sabiam disso e, impacientes para matá-los à fome,
ou para desestimulá-los a novas revoltas no futuro, começaram o cerco sistemático
com a construção de gigantesca rampa no lado ocidental, com mais de 650 pés de
comprimento e 650 de largura na base da montanha. No ponto mais alto media 250
pés. Andaimes de madeira seguravam rochas, pedras e terra batida para dar sufi­
ciente estabilidade às máquinas de guerra, com uma plataforma em cima destinada
a catapultas, protegida embaixo por arietes.
No lado ocidental ao redor da rampa foram encontradas inúmeras pedras balísti­
cas, rudemente talhadas do tamanho de laranjas, usadas nas catapultas. Haviam sido
arremessadas contra a fortaleza pela artilharia romana. Além disso, no meio delas,
espalhavam-se pedaços de flechas de ferro, evidenciando a ação militar dos arqueiros
contra os defensores de Masada. Depois de tentativas frustradas para reforçar os
abrigos ao longo da muralha, talvez com vigas de madeira para absorver os ataques
dos arietes, o muro se rompeu tornando-se vulnerável ao ataque.

Defensores. Os registros arqueológicos são claros a respeito. Os romanos en­


traram na fortaleza vitoriosos e ocuparam o local até o século seguinte. Mas como

2 4 . Vista de Masada, com os acampamentos da Décim a Legião e a Ram pa Rom ana


(Reproduzida com permissão da Sociedade Israelense de Exploração)
podemos ter certeza, a não ser pelos escritos de Josefo, de que os derrotados eram
judeus? E serão suficientes os artefatos escavados para afirmarmos que pertenciam
aos sicários? Quatro conjuntos de objetos achados em Masada certificam que eram
judaicos: ostraca mostrando preocupações com pureza e dízimos sacerdotais; taças
e cálices de calcário moldável; piscinas revestidas para imersão chamadas miqwaoth,
ou banheiras rituais; e a construção de nova sinagoga.

Ostraca. Trata-se de fragmentos de cerâmicas usadas para registros ocasionais. A


grande maioria descoberta pelos escavadores vem de camadas associadas aos defen­
sores de Masada. Quase todas as mais de setecentas peças conservavam inscrições
em aramaico e hebraico da segunda metade do primeiro século d.C., algumas em
paleo-hebraico usado nos rolos bíblicos e em moedas cunhadas na época da revolta.
Inúmeros cacos de vasos com inscrições de tinta preta achavam-se em câmaras de
armazenagem ou ao redor delas, marcadas por uma só letra, talvez usada como
numeral, ou por um nome seguido de um dígito, talvez parte de um sistema de
controle de alimentação usado pelos defensores da fortaleza. Os nomes deixam en­
trever importantes ligações com o passado e são tipicamente judaicos como os dos
ossuários estudados no primeiro capítulo; por exemplo, encontramos Yehochanan
0oão), Yehudah (Judas), filha de Damali, esposa de Ya‘akov Gacó, Tiago), filho de
Yeshua (Jesus). Outro grupo achado no palácio ocidental trazia nomes de possíveis
sacerdotes como, Yoezer, Yoshayah e Hezekiah. Jarros para armazenar alimentos per­
tenciam a sacerdotes indicando se eram suficientemente puros ou inadequadamente
impuros: podiam-se ler nesses jarros indicações como estas: “dízimos de sacerdotes”
e “apropriados para a pureza de coisas santas”. Havia também jarros rejeitados com
estas marcas: “desqualificados” ou “estes jarros não são apropriados”.

Fasos de pedra. Entre o primeiro século a.C. e o primeiro de nossa era, faziam-se
copos, xícaras e tigelas de pedra considerados especialmente impróprios para rituais
de pureza segundo a literatura rabínica. Também havia em Masada vasos de pedra
fabricados de calcário especial até mesmo com alças e alguns com bicos, chamados
geralmente de “vasos de medida” rudemente burilados. Outros, torneados, já eram
bem polidos e decorados, embora com simplicidade.

Banheiras rituais. Também foram encontrados dois balneários rituais, miqwaoth, nas
extremidades do complexo. Tais instalações com degraus e revestidas não faziam parte
da construção original herodiana, mas provinham de salas previamente existentes
e fechadas com cimento gris escuro. Podem ser datadas claramente pelas moedas
judaicas presentes nas camadas associadas com a revolta, cujas legendas marcam os
anos desse evento, “Ano I ”, “Ano 2 ”, “Ano 3 ” e “Ano 4 ” incluindo a frase “pela liber­
tação de Sião” ou “pela redenção de Sião” em paleo-hebraico. Cada balneário tinha
três piscinas. Tudo indica que uma delas, separada das outras, era usada para lavar
os pés e retirar a poeira antes do ritual de purificação. Das outras duas, na primeira
os banhistas desciam os degraus para a imersão, e a outra era apenas reservatório
ligado às demais por canos ou canais. A terceira banheira recolhia água da chuva,
“água viva” segundo Levítico, e os canos e canais supriam as demais piscinas.
Sinagoga. A sinagoga num dos abrigos da murallia é o quarto e último artefato
que atesta o judaísmo dos defensores, construída em espaço já existente a partir da
derrubada de paredes, novo arranjo de pilares e acréscimo de bancos em diferentes
níveis. No canto ao noroeste um depósito (guenizá) abrigava rolos demasiadamente
antigos para uso mas bastante sagrados para não serem jogados no lixo. Sob o solo,
sobreviveram dois fragmentos de rolos escriturísticos, preservados pelo clima árido
até sua descoberta dois mil anos depois. Confirma-se, assim, que o edifício servia
para reuniões e, entre outras atividades, para ler e consultar as tradições de Israel.

Ideais. Podemos, realmente, afirmar que a partir dos achados arqueológicos,


os defensores eram mesmo defensores judeus, de fato, sicários, como dizia Josefo?
Não. Mas 0 que deixaram para trás diz muito a respeito da maneira como entendiam
0 significado do judaísmo e dos ideais pelos quais se rebelaram e lutaram, viveram
e morreram. Pensemos um pouco sobre o palácio nos terraços ao norte de Masada
construído por Herodes, o Grande. Recordemos não apenas o triclinium, os afrescos,
os banhos e os mosaicos mas também a marca arquitetônica de seu reino: linhas
ortogonais implicando controle e estilos estruturais para incentivar a hierarquia
social com Herodes no ápice da pirâmide. Os mesmos temas permeiam a Cesaréia
de Herodes e relacionam-se em Masada com a sólida fortaleza destinada a resistir
a qualquer cerco. 0 local foi eventualmente cercado como temia Herodes, mas não
serviu para proteger os seus aliados.

Herodes, o Grande, impôs seu reino sobre o cenário natural, mas anos depois os
judeus defensores deram sua resposta em Masada. Renovaram-na. Diferentemente
das famílias que viviam nos palácios elegantes do norte e do ocidente, transforma­
ram-nos em centros administrativos e em postos de defesa, derrubando colunas e
capitéis para fortalecer as posições. Ocuparam também outros edifícios mais simples.
instalando divisórias baratas para criar espaços habitáveis do mesmo tamanho, e
ao longo do platô instalaram o que lembrava um acampamento de colonizadores
feito de pedras rústicas e barro, cobertas de lona, vime ou palha. Transformaram os
armazéns sofisticados de Herodes num sistema de redistribuição de alimentos com
ostraca. Itens especiais se destinavam não mais aos reis mas sim aos sacerdotes. Em
lugar da estrutura romana da basílica, que centralizava oradores e juizes na abside,
construíram uma sinagoga com assentos circulares com diferentes níveis, para que
todos se pudessem ver. A água que era usada para banhos e prazer em estilo romano
foi dirigida aos miqwaoth para a pureza. Lembremos que a palavra pureza significava
relacionamento físico para lembrar a presença de Deus em todas as áreas da vida
corpórea numa terra, segundo a Torá, pertencente a Deus, sem a conotação pejorativa
de sistemas esotéricos de abluções.

Passamos agora a examinar esta nota fmal a respeito dos fragmentos de rolos
encontrados na sinagoga. Pertenciam a Deuteronômio e Ezequiel. Talvez seja mera
coincidência — fragmentos de outros livros bíblicos foram achados em outras
salas — , mas esses dois livros representam de certa forma o programa da revolta.
Deuteronômio, que contém a segunda dádiva da lei das mãos de Moisés, reitera as
estipulações da aliança sobre a maneira como vivê-la na terra. Incluía, entre outras
coisas, um sistema de verificação e medidas para assegurar ajusta distribuição da
terra e de seus produtos, posto que a terra pertencia a Deus, de modo que os habi­
tantes, como diria Levítico, são arrendatários e residentes temporários. Herodes, o
Grande, importava vinho da Itália para Masada, e o provava para se certificar de sua
qualidade para oferecê-lo à aristocracia luxuosa, mas os defensores judeus testavam
o vinho para saber se servia para os sacerdotes, e distribuíam trigo com inscrições
em tabletes de cerâmica.

Ezequiel, o primeiro livro profético depois do exílio, termina com pormenorizada


revelação do novo, vasto e ordenado complexo do Templo, no qual reis e monarcas
eram relegados a representar papéis de menor importância. Eram os sacerdotes que
governavam. Herodes, o Grande, colocara-se ao lado de Roma, no topo da hierarquia;
os defensores judeus, como ilustram suas moedas, aguardavam a libertação de Sião
e sua redenção por Deus. Em Masada, encontramos evidência do choque entre dois
tipos de reino, o comercial herodiano-romano e o judaico da aliança. Relembremos,
do capítulo 2, a transição do Reino de Deus da aliança para o apocalíptico, passando
pelo escatológico e a oposição entre eles no capítulo 3.

Essênios em Qumrã

Teria sido a violência o único meio de resistência ao governo romano, para


protestar contra influências estrangeiras ou combater a decadência interna? Pouco
ao norte de Masada, perto do Mar Morto, o sítio de Khirbet Qumrã e os chamados
Rolos do Mar Morto encontrados em cavernas mostram uma alternativa à resistência
violenta.

D ebates. Em Qumrã, Roland de Vaux, da Ecole Biblique et Archéologique Fran­


çaise de Jerusalém, entre 1951 e 1956 escavou as ruinas de um centro monástico,
logo depois da descoberta dos Rolos do Mar Morto nos arredores. 0 sítio abrigava
casas da seita judaica dos essênios, cujos membros provavelmente escreveram e
copiaram os Rolos. Josefo, o filósofo Fílon e o autor romano Plínio já conheciam a
seita. De Vaux morreu em 1971 sem publicar o relatório fmal — o que ainda não foi
feito até esta data [2001] — , deixando alguns detalhes das camadas sem conclusão.
Não se sabe ainda a data da fundação da comunidade de Qumrã nem sua função
original, nem quando o sítio transformou-se em complexo monástico. Tampouco se
conhecem os efeitos de um terremoto e a extensão do abandono do sítio na segunda
metade do século primeiro a.C. Não se sabe se a primeira fase da vida monástica
envolvia sacrifícios animais e refeições cultuais.

Escavações. Apesar disso, ao fmal do reino de Herodes, o Grande, e até sua


destruição pelas legiões romanas em 68 d.C., tratava-se, sem dúvida, de um centro
comunitário monástico. Talvez tenha sido construído primeiramente como fortaleza
rural no fmal do segundo ou início do primeiro século a.C., no fmal do governo
de Herodes, o Grande. Os escavadores designaram esse sítio com o nome de Fase
Ocupacional II. Qumrã havia sido transformada numa instituição monástica que
sobreviveu até a segunda parte do primeiro século de nossa era. Situada num terraço
de calcário argiloso, distante uma milha do Mar Morto, encaixada em penhascos
rochosos ao oeste e recortada por um wadi (vádi), correnteza na estação das chuvas,
ao sul, exibia arquitetura incomum sem paralelo algum com a de outros lugares. As
paredes ao redor do complexo protegiam diversas instalações para água, incluindo
reservatórios, canais, e piscinas com degraus e revestidas. Havia também edifícios
com salas grandes, oficina de cerâmica e forno, cozinha, refeitório e um scriptorium,
onde os rolos foram copiados.

Rolos. A última peça liga os habitantes do sítio aos rolos aí encontrados. Entre
escombros do segundo andar que ruiu quando o local foi destruído no final da Fase
II, foram encontrados diversos objetos que identificaram o espaço como scriptorium:
fragmentos de longas mesas estreitas, bronzes e recipientes de terracota para tinta
de escrever. As mesas provavelmente teriam sido usadas para abrir os longos rolos
de couro e para marcar as colunas e linhas com utensílios pontiagudos. Um dos
tinteiros ainda conservava sobras da mesma tinta feita da mistura de resina, fuligem
e óleo, usada nos rolos. Ali por perto, apareceram diversos fragmentos de perga­
minho e pedaços de cerâmica com inscrições de letras embaralhadas, semelhantes
aos rabiscos dos escribas quando se preparavam para o trabalho e testavam a pena
ou exercitavam a mão.

E provável que os essênios de Qumrã preparassem o próprio pergaminho. Há


evidência da existência de animais para trabalhar nos campos em outros setores
do complexo, 2 milhas ao sul, ao lado das fontes de Ein Feshka. Tanques e canais
rebocados podem ter sido usados como curtume onde se processavam os couros
crus de animais. Também foram encontradas tiras de couro curtido e pedaços de
pergaminho para encadernar e identificar os rolos.

Cerâm ica. E óbvio que os essênios fabricavam seus utensílios. Além do forno e
da oficina de cerâmica descobriram-se mais de mil peças de vasos numa despensa,
perto do refeitório. A uniformidade dos pratos, tigelas e taças feitas de material
simples, rude e cor laranja avermelhada chama a nossa atenção. Não foram achados
restos de utensílios importados. A maioria dos rolos foi descoberta dentro de um
jarro chamado de "jarro dos rolos”, diferente dos de outros lugares, mas freqüentes
em Qumrã. Ao contrário de outros vasos em forma de sacos utilizados em geral
para água, vinho ou óleo, estes eram cilíndricos e perfeitamente adequados para
conter os rolos.

Finanças. Dois achados nos dão alguma idéia dos recursos financeiros da co­
munidade. Em primeiro lugar. De Vaux desenterrou um tesouro de 561 moedas de
prata, escondidas em três potes na estrutura administrativa central. Havia dinheiro
disponível. As moedas de prata eram quase todas tetradracmas de Tiro, as mais usadas
em território judaico, e as únicas aceitas para o pagamento de taxas no Templo. Talvez
a comunidade recolhesse esse dinheiro para os pagamentos que tinham de fazer ou
— quem sabe? — os iniciados em Qumrã pagavam o equivalente à comunidade em
vez de dar ao Templo porque consideravam corrupta a administração do santuário.
De qualquer maneira, tratava-se de importante soma de dinheiro.

O segundo achado foi um ostracon descrevendo a transferência de uma proprie­


dade para determinado indivíduo ou grupo. Será que a comunidade possuía riquezas
e bens? Deveria ter, mas com caráter comunitário sem ostentações nem para elevar
um membro do grupo acima dos outros. Roma, Herodes, o Grande, e seus descen­
dentes gostavam de fachadas e de exibir sua riqueza para indicar seu status social,
mas os essênios de Qumrã, apesar de certa riqueza, não construíam fachadas nem
alardeavam posses que pudessem criar diferenças entre eles.

Vidas. O complexo possuía quartos para todos os fins, menos para dormir.
Nenhum dos edifícios tinha cubículos para esse fim, mas há evidência de que os
moradores passavam a noite em covas pelos penhascos. Deixaram muitos pregos
de metal ou tachas pelos caminhos, e restos de sandálias relembrando suas idas e
vindas de manhã e de tarde. Pentes, lamparinas e louças de uso doméstico semelhan­
tes às do complexo, uma escora de barraca e até mesmo o que se chamava mezuzot,
pequenas molduras com textos do Deuteronômio fixados nas portas, indicavam que
os membros da comunidade dormiam nesse espaço, mas não no complexo.

Mesmo sem os rolos, a arqueologia do lugar provê informações a respeito de


como viviam esses cem ou duzentos sectários naquela época. Dormiam em cavernas,
tendas ou choupanas fora do complexo e buscavam auto-suficiência cultivando grãos
no platô ao lado e tâmaras junto a um oásis, bem como criando cabras. Fabricavam
sua louça e peças de couro, incluindo pergaminho, onde escreviam assiduamente e
faziam cópias. A vida era simples, uniforme e modesta. Se, de um lado, Herodes, o
Grande, construíra belos palácios votados ao prazer, ao norte e ao sul, a comunidade
de Qumrã não mostrava nenhum sinal externo de riqueza. Os essênios construíam
seus edifícios principalmente com pedregulho com poucas pedras talhadas. Não
revestiam os pisos com mosaico nem cobriam as paredes com estuque e afrescos.
Tampouco deixaram restos de utensílios de luxo importados. Os poucos jarros
custosos de pedra torneados descobertos indicam o desejo que tinham de gastar
dinheiro com pureza e não com luxo.

A vida dos essênios de Qumrã era austera e comunitária, e, mesmo que tenham
tido acesso a certa riqueza, eles haviam renunciado à ostentação porque a conside­
ravam má. Os registros arqueológicos revelam que sua vida era simples e que todos
comiam juntos, diferindo dos ricos de Roma, dos herodianos no território judaico
e mesmo de alguns sacerdotes ricos de Jerusalém.

Rituais. Os essênios preocupavam-se principalmente com rituais de purificação,


apesar das dificuldades com transporte e conservação de água. Também costumavam
realizar refeições em comum. A ênfase nesses ritos, exemplificada nos esforços para
canalizar “água viva” para a comunidade, constituiu-se numa de suas mais notáveis
características. Na verdade, qualquer localidade nos remotos desertos da Judéia pre­
cisava de sistemas para suprimento de água, e o de Qumrã era dos mais complexos.
Uma represa precariamente construída coletava água dos wadis ali existentes ali­
mentados pelos temporais do inverno; essa água seguia depois para o complexo por
canais cavados nas rochas. Também foram escavadas, além desses reservatórios de
água, especialmente benéficos nos dias de calor, cerca de d oze miqwaoth, ou banheiras
rituais, incluindo a maior até agora encontrada. Duas delas em cada extremidade
do complexo, perto das entradas, facilitava o uso freqüente dos inúmeros adeptos
dos banhos de purificação. Doze degraus desciam a uma grande piscina no lado sul,
com uma divisória para separar os impuros que desciam e os puros que subiam. Os
banhistas provavelmente esperavam em fila a sua vez. Segundo os rolos, os sectários
purificavam-se antes da “refeição pura” servida diariamente.

Os membros da comunidade sentavam-se juntos em silêncio, segundo alguns


rolos da seita, em almofadas, segundo os arqueólogos. A grande comunidade era
servida por um moinho para fazer farinha, um forno para cozer e cinco fornalhas
(ou fogões). As refeições, vale a pena repetir, eram momentos vitais de participação
comunitária e símbolo de suas vidas e esperanças, não importando a maneira como
comiam nem o que comiam. As refeições eram puras não somente externamente,
porque os participantes se purificavam antes de comer, mas também internamente,
porque Deus se fazia presente nelas. Achavam que participavam do próprio alimento
de Deus.

Inimigos. Alguns versos de seus rolos mostram certa insatisfação com o Templo
ou, melhor, com os que o administravam, e registram estarem sê preparando para a
vitória fmal contra os atuais usurpadores. Muito antes da chegada dos romanos, a
comunidade de Qumrã já deixara de participar no Templo e de observar o calendário
da liderança sacerdotal em Jerusalém. Não achavam legítima a combinação asmo-
niana de rei e sacerdote numa só pessoa, e nada melhorou quando os herodianos e
os romanos contrataram ou dispensaram sumos sacerdotes como se fossem meros
serviçais de nível inferior. Mas, para a comunidade de Qumrã, os mais odiados e
antigos inimigos eram as autoridades sumo-sacerdotais de Jerusalém, e não tanto
os colonizadores romanos.

Na verdade, esses documentos não se referem muito aos romanos, muito em­
bora estivessem se preparando para lutar contra eles na batalha fmal apocalíptica,
segundo o Rolo da guerra. Essa luta dar-se-ia no fmal dos tempos, quando os Filhos
da Luz, que eram os membros do grupo, enfrentariam os Filhos das Trevas, os roma­
nos, chamados pelo codinome Kittim. A batalha contra Roma realmente aconteceu
quando o general romano Vespasiano, que logo se tornaria rei, marchou sobre a
área no caminho de Jerusalém no começo do verão de 68 d.C. Mas a guerra fmal
dos essênios de Qumrã não terminou como o Rolo da guerra imaginara. O que De
Vaux classificou de Fase II do sítio, chamada ainda assim pelos arqueólogos, acabou
em belicosa destruição, com flechas romanas espalhadas por todos os lugares. No
momento fmal de desespero, os membros da comunidade esconderam seus rolos
em jarros com tampas e os enterraram nas covas ao redor, e assim permaneceram
até a descoberta por um pastor beduíno em 1947.

Jodefá e Gamla ao norte


No sul, Qumrã e Masada representaram tipos diferentes de resposta à ocupação
romana e, de fato, guiados por motivos divergentes. Os dois lugares foram destruídos,
respectivamente, no início e no fim da revolta dos anos 66-74 d.C. Ao norte, Jodefá
(em grego, Jodapata) e Gamla representaram exatamente o mesmo tipo inutilmente
trágico de reação aos romanos no início da mesma rebelião.

No final desse período, a maioria dos judeus na Galiléia e no Golan juntou-se aos
descontentes e reagiu à dominação romana. Ou, pelo menos, depois do surgimento
das hostilidades e dos ataques violentos e indiscriminados dos romanos, os galileus
fugiram para lugares fortificados em busca de segurança temporária. Além disso,
foram os primeiros a sofrer os efeitos da fúria romana depois que Vespasiano e seu
filho Tito organizaram forças legionárias e auxiliares no porto de Ptolomais em 67
d.C. e marcharam avante. Duas das cidades destruídas pelos romanos em 67 d.C.,
Jodefá, em julho, e Gamla, em outubro, nunca foram reconstruídas. Recentes esca-
vações mostraram até que ponto a revolta foi suicida. A topografia fora sua melhor
defesa. A cidade de Jodefá da Baixa Galiléia situava-se numa colina recortada com
três lados por íngremes declives, mais facilmente alcançável pelo norte. Gamla, no
Golan, era como a corcova de um camelo, de onde tirou seu nome, com desfiladeiros
íngremes de cada lado que dificultavam o acesso a não ser pela extremidade leste
da cordilheira.

Josefo narra as batalhas aí travadas. Em Jodefá ele ofereceu, de fato, sua última
assistência à causa judaica antes de se render aos romanos e de ajudá-los como
guia e tradutor. Seus relatos contêm inúmeros discursos inflamados, atos heróicos
e finais trágicos (suicídios). As escavações arqueológicas retratam vivamente o sítio
e a destruição de Jodefá e dão testemunho dramático da fraqueza das defesas e da
inutilidade da revolta. Nas duas cidades, os habitantes com reàigiados dos arredores
tentaram em vão fortalecer os muros onde pareciam mais vulneráveis.

Em Jodefá, a torre e o muro do tempo dos asmonianos haviam sido ampliados


e reforçados. A torre original media 30 por 36 pés. Fora construída no alto da ro­
cha com diversas camadas de enormes pedras talhadas medindo cerca de 6 pés de
comprimento. Os primeiros muros que defendiam o lado noroeste da torre eram
mais fracos, em parte dilapidados, foram reconstruídos depois do ataque romano.
Os defensores construíram um muro de proteção, não sobre o alto da rocha mas sim
sobre pedaços de pedras da construção original. Empregaram terra e preenchimentos
de cascalho aproveitando pedras da antiga parede destruída, resultando numa obra
bastante precária. O muro externo da casamata tinha a grossura de 6 pés com sólidas
camadas de pedras bem firmadas. Um dos quartos interiores fora apressadamente
preenchido com pedras quadradas e dos campos nos últimos dias da defesa.

Em Gamla, a grande torre redonda no alto da cordilheira ligava-se ao muro de


defesa ao longo da colina e até embaixo. Esse muro nada mais era do que diversas
casas nos limites da cidade cujas peças exteriores haviam sido preenchidas com des­
troços e paredes erguidas nos espaços abertos entre elas. As paredes da frente haviam
sido mais bem construídas com pedras de basalto bem ajustadas com pedregulhos
nos interstícios, protegidas atrás com enormes pedaços de rocha.

Os muros de Jodefá e Gamla não representavam obstáculo algum às legiões bem


treinadas de Vespasiano e Tito, que primeiro as enfraqueceram com sua artilharia,
procurando os pontos vulneráveis. Em seguida trouxeram suas máquinas de guerra
sob a cobertura dos arqueiros. Finalmente, abriram brechas nos muros para a pas­
sagem da infantaria. Ainda se pode ver hoje em dia, em Gamla, a abertura que as
tropas fizeram no muro, bem ao lado da sinagoga cujas salas exteriores faziam parte
do complexo. As evidências da batalha espalham-se pelas ruínas de cada cidade. Os
escavadores encontraram em Gamla cerca de mil e seiscentas flechas, diferentes
pedaços de catapultas e mais de mil pedras esféricas de basalto que foram lançadas
pelos invasores romanos. Poucas foram achadas em Jodefá, porque, segundo Jose­
fo, os romanos concentraram-se na parte noroeste do muro e avançaram sobre as
defesas. Em Gamla inúmeras pedras balísticas foram achadas dentro dos muros da
cidade, escondidas pelos defensores para arremessá-las contra os invasores no dia
seguinte.

As legiões deixavam para trás inúmeras evidências depois de destruir cidades:


pedaços de armadura, pregos de botas, protetores do queixo de elmos, fragmentos
de bainhas douradas de espada e prendedores de túnicas (fihulae). Os espólios da
guerra passavam aos vencedores; as tropas romanas não deixavam coisa alguma de
valor aos vencidos. Mas Moti Aviam, do Departamento de Antiguidades de Israel,
escavador de Jodefá, encontrou um rico artefato deixado pelo defensor. Numa peque­
na lajota de pedra alguém desenhou imperfeitamente um caranguejo e um túmulo,
para representar o signo de Câncer do zodíaco correspondente ao mês de julho, e a
morte. Aviam oferece a sinistra interpretação: as figuras teriam sido feitas por um
dos defensores iletrados já sem esperança: “Em julho, eu morro”.

Seriam os rituais judaicos de purificação armas de resistência contra Roma? Os


muros eram frágeis, nada desafiadores para os engenheiros militares do império. Os
romanos possuíam poderosa artilharia e arqueiros precisos. Eram bem treinados,
bem organizados, bem pagos e bem alimentados. Os judeus resistentes em Gamla e
Jodefá não tinham nada disso, mas pareciam determinados e esperançosos. Tinham
vasos de pedra em suas casas e praticavam o miqwaoth comunitário, ou banhos rituais.
Mesmo depois de décadas sob governos herodianos e romano, essas lembranças de
que Deus estava presente em suas vidas e terras davam-lhes coragem para enfrentar
0 poder e a ocupação dos romanos. A terra pertencia a Deus e não, certamente, aos
romanos. E mesmo quando suas defesas desabavam, saber que Deus estava com
eles dava-lhes certa medida de esperança.

Manutenção da identidade
e resistência silenciosa
Ao norte, Jodefá na Galiléia e Gamla no Golan acabaram igualmente destruídas,
como no sul, os sicários em Masada e os essênios em Qumrã. Os eventos em Ma­
sada foram espetaculares e dramáticos. Juntemos agora arqueologia e Josefo para
imaginar a batalha final contra Roma em solo judaico: discursos heróicos de Eleazar,
os sicários, temidos terroristas urbanos, a impenetrável fortaleza de Masada e os
extraordinários feitos da engenharia romana. Lembremos ainda as preocupações
com pureza. Como em Qumrã, a vida era ascética e piedosa. Misturemos também
aí arqueologia e os Rolos do Mar Morto, e imaginemos sua recusa do mundo, a
vida comunitária, a rejeição de influências estrangeiras e a batalha entre os Filhos
da Luz e os Filhos das Trevas. Também havia preocupação com a pureza. As únicas
alternativas precisam ser os extremos de violência ou aceitação?
A vida, na Antiguidade como hoje, era complicada, mais para o lado do cinza do
que do branco e preto. No sul, Masada e Qumrã chamam nossa atenção por causa de
seu fmal catastrófico — a destruição violenta e o abandono deixou-as relativamente
intocáveis para os arqueólogos. Graças ao clima árido e à localização geográfica
remota, o que restou foi preservado até nossos dias. Essas sobras teriam se desinte­
grado se estivessem em ambiente úmido. Ao norte, contudo, Jodefá e Gamla nunca
haviam sido perturbadas desde que foram abandonadas no primeiro século. Chove
mais na Galiléia e o solo é úmido. Muitas localidades foram refeitas e os materiais
antigos reutilizados. Há, portanto, menos preservação, e o que sobrou não passa
de fragmentos. As camadas, em geral, misturam-se tornando a arqueologia muito
complexa. Eram também assim as vidas de seus habitantes sob Herodes, o Grande,
e Herodes Antipas, apoiados por Roma e, depois, diretamente sob o poder romano.
Entre as alternativas extremas de confronto violento e aceitação, no primeiro século,
a maioria dos galileus escolhia entre aquiescência inteligente e rebeldia silenciosa.
Duas ilustrações de escavações na Galiléia, uma específica e singular, a outra geral
e abrangente, revelam o meio termo entre os dois pólos: a cidade de Séforis nos
anos anteriores à revolta e o uso de vasos de pedra e de miqwaoth. No primeiro caso,
olhamos como de cima para baixo; no segundo, de baixo para cima.

Séforis, cidade da paz

Como já vimos, Herodes Antipas construiu seu reino refundando Séforis e


construindo Tiberíades. Dirigiu o reino com as elites locais e preservou seu caráter
essencialmente judaico. Não havia estátuas nem imagens nas cidades e suas moedas
não ostentavam sua figura em contraste com as de seu irmão Felipe, que governou
uma população quase toda pagã. Antipas impôs o estilo arquitetônico romano e
alguns dos mais ricos cidadãos adotaram, também, feições romanas em suas resi­
dências, tanto em cidades grandes como em pequenas. As adaptações, no entanto,
eram mais cautelosas do que na Cesaréia de Herodes. Antipas comportava-se bem na
Galiléia como rei-cliente. Havia sido educado em Roma, mas, como judeu, entendia
a religião tradicional do país e parecia instintivamente traçar a linha entre controle
ostensivo e respeito tolerante.

Algumas outras moedas cunhadas em Séforis mostram como os líderes continua­


ram 0 estilo de Antipas, fundindo a influência romana com a base cultural judaica.
Durante a revolta contra Roma, a cidade cunhou moedas de bronze representando
num lado duas cornucópias entrecruzadas, típico símbolo numismático judaico de
fertilidade e, no outro, o nome Caesar Nero Claudius, em letras grandes, usando o nome
sem a imagem. Pró-Roma, certamente, mas observando a proibição de imagens da
Torá. A legenda era mais submissa: “Sob Vespasiano em Eirenópolis-Nerônias-Séfo-
ris”. Gravada em 68 d.C., a moeda anunciava a recusa da cidade de se rebelar contra
Roma, adotando o nome de Nerônias, em honra do imperador Nero, e de Eirenópolis,
grego para “Cidade da Paz”. A mesma inscrição em grego encontrava-se cercada por
uma coroa na edição do ano seguinte. Na outra face omitia-se também a imagem do
imperador, mas apareciam as letras maiúsculas “S” e “C”, representando “S[enatus]
C[consuito],” isto é, “por decreto do Senado Romano”. Tais moedas anicônicas eram
tipicamente judaicas — embora com letras gregas e obedientes ao governo romano.
Herodes Antipas sabia ser politicamente correto nos relacionamentos com o povo,
e os futuros líderes de Séforis, bastante prudentes para proclamar suas intenções,
curvando-se a Vespasiano e Nero, sem, contudo, ferir as sensibilidades religiosas
judaicas com suas moedas.
Além das moedas, os chefes das escavações, Eric e Caroi Meyers, da Duke
University, acharam outras evidências da aceitação do governo romano em Séforis.
Escavaram entre 1993 e 1997 os restos de uma fortaleza perto do topo da acrópoie
que havia sido intencional e sistematicamente aplainada na época da revolta. Fora
construída por volta do ano 100 a.C., supostamente quando os governantes asmo-
nianos transformaram Séforis em importante posto avançado do recém-adquirido
território da Galiléia, como atestam centenas de moedas de Alexandre Janeu (103-76
a.C.). Aos poucos transformou-se em importante assentamento, mas os imponentes
muros da fortaleza permaneceram lá por quase dois séculos. Até agora, já foram
escavados sete muros, em cima da rocha, três ao norte-sui e quatro ao leste-oes-
te, separados entre si pelo menos por três quartos quadrados. Os muros foram
construídos com grandes pedras extraídas das rochas e eram, de fato, duplos, um
contra o outro, medindo no total cerca de 6 pés. É provável que um muro tenha
sido construído antes do outro para garantir rapidamente o contorno da fortaleza,
e 0 segundo, depois, para torná-ia mais resistente.

0 que se encontrou dentro dos muros era o que se esperava de uma guarnição
militar: cisterna para suprimento de água, fogão, pequenas moedas perdidas dos
salários dos soldados, pontas de flechas pelos cantos e duas pedras balísticas junto
ao muro. A estrutura nada tem de notável. O que mais chamou a atenção dos esca­
vadores, no princípio, foi a maneira como a fortaleza fora abandonada. Não havia
evidência alguma de incêndio, destruição ou desmoronamento. Em vez disso, espaços
dando a impressão de bem cuidados e paredes meticulosamente demolidas até certa
altura, além de cuidadosa terraplanagem na área toda. Sujeira, pedras demasiadamen­
te pequenas para construção e milhares de cacos de louça foram carregados numa
operação de remoção de terra, formando montes de até 6 pés de altura.

Quando e por que foi desmontada a fortaleza? A mais antiga moeda encontra­
da no terreno aplainado era de Herodes Agripa II do ano 53 d.C., indicando que o
terreno não deveria ter sido mexido antes disso. Os fragmentos de louça remontam
provavelmente aos anos 70 d.C. por causa da ausência de panelas e tigelas que só
começaram a aparecer no sítio (bem como em toda a Galiléia) depois da revolta dos
anos 70 d.C. Por que teriam os cidadãos de Séforis acabado com a fortaleza entre
os anos 53 e 70 d.C.? Provavelmente, porque no início dos sinais das hostilidades
queriam mostrar com certa antecedência que não queriam se rebelar contra Roma
OU, talvez, tenham sido instruídos por Herodes Agripa II ou por algum outro oficial
romano a agir dessa maneira. Não importando se o ato tenha sido oferecido como
gesto de boa vontade ou em sinal de obediência a determinado comando, a cidade
de Séforis não participou na revolta com os compatriotas galileus, coisa que Josefo
conta com certa consistência em seu livro sobre a guerra. Na sua autobiografia
afirma que a cidade “proibiu os cidadãos de se alistarem com os judeus” que se
preparavam para se opor a Roma e, “voluntariamente, admitiram uma guarnição
providenciada por Cesto Galo, comandante-em-chefe das legiões romanas na Síria”
(Vida 347). Embora outras narrativas a respeito de Séforis durante a guerra sejam
deturpadas e até mesmo, às vezes, contraditórias, acentua-se sempre a recusa da
cidade em participar das hostilidades contra Roma.

Os líderes judeus em Séforis mostravam-se atentos diante do poder romano e


os que permaneceram em paz acabaram em parte ganhando o dia. E provável que
conservassem na memória o ataque romano à cidade sob o legado sírio Varo depois
da morte de Herodes, o Grande, e tivessem aprendido a lição a respeito do poder
vindicativo de Roma. Ou, ainda, os habitantes mais ricos da cidade sabiam que tinham
mais a perder com a revolta do que os camponeses. De qualquer maneira, curvaram-
se diante de Roma e traíram seus compatriotas galileus, mesmo sem abandonar as
tradições judaicas. Trata-se do mesmo tipo de ambigüidade material presente nos
textos colaboracionistas de Josefo. Continuavam indubitavelmente judeus, fiéis às
tradições antigas, mas colaboravam ativamente com Roma e imitavam seu estilo.
Essa posição ambígua, como vimos no capítulo 3, levou muitos camponeses galileus
a tentar incendiar Séforis no começo da grande revolta.

Vasos de pedra e banheiras rituais

A outra estratégia dos galileus para enfrentar os governos herodiano e romano


mostra-se mais abrangente e muito mais complexa nos registros arqueológicos.
Nem todos os galileus condenavam a revolta e, afinal, a atitude da pró-Roma Séforis
(de anti-revolta) tornou-se clara com a guerra, ao contrário do destino de muitos
lugarejos da Galiléia que foram destruídos. Demos uma olhada, não de cima, da
perspectiva das classes altas na acrópole de Séforis, mas de baixo, do ponto de vista
dos camponeses que habitavam os vales da Galiléia. Para entender a situação valemo-
nos de fragmentos de artefatos encontrados em moradias e instalações rebocadas
nesses sítios. Vamos considerar vasos de pedra e banheiras rituais espalhados pela
região, já encontrados em Qumrã e Masada, que tipificam o judaísmo nos registros
arqueológicos. Estavam ao mesmo tempo nas primeiras camadas romanas tanto no
território judaico (em Jerusalém, em toda a Judéia e através da Galiléia toda) como
no Golan ao sul. Mas estão virtualmente ausentes nos territórios vizinhos.

Vasos de pedra. Um dos achados mais característicos dos sítios judaicos são os
vasos de pedra muito mole conhecida pelos geólogos como algo parecido com giz.
2 8 . Vaso de pedra do primeiro século, chamado de medidor
(Coleção do Departamento de Antiguidades de Israel; © Museu de Israel em Jerusalém)

Chamam-se vasos de pedra ou, às vezes, utensílios herodianos de pedra porque co­
meçaram a aparecer no território judaico a partir do governo de Herodes. O que, na
verdade, é um fato curioso. Perguntamos novamente se as preocupações judaicas com
a pureza não redundam sempre em velada declaração antierodiana e anti-romana?
Seja como for, esses utensílios eram usados sempre com água, como, por exemplo,
tigelas, taças, xícaras, bacias, tampas e grandes jarras. Em Jerusalém e nos arredores
no período posterior do Segundo Templo, surgiu uma verdadeira indústria para a
produção desses objetos, que também incluía ossuários (caixas para ossos huma­
nos), bem como bancos e tampos de mesas. Foram descobertas e escavadas diversas
oficinas especiahzadas nesse ramo, dando-nos idéia de como eram trabalhadas as
pedras, seus cortes, polimento em tornos ou moldadas a mão. Mais recentemente,
em junho de 1999, um trator, usado numa construção, acidentalmente abriu uma
brecha numa caverna ao leste de Jerusalém, descobrindo enorme complexo, com
restos de pedra, vasos ainda não acabados e sobras de utensílios, acrescentando à
lista mais uma pedreira do primeiro século e uma fábrica de vasos de pedra.

Sítios dedicados à produção não se limitavam ao sul, posto que um deles foi
encontrado na Galiléia em Reina, perto de Nazaré e Séforis, onde formações geo­
lógicas criaram pedras calcárias nos terrenos em declive. Foram achados, também,
inúmeros miolos extraídos por tornos do interior de xícaras e muitas sobras de vasos
que se quebravam durante a manufatura. Como havia muita pedra calcária na Gali­
léia, esses vasos eram produzidos em diversos sítios. A pedra mole esbranquiçada,
facilmente moldável depois de molhada, podia ser trabalhada com instrumentos
simples de metal ou martelo. As formas mais comuns na Galiléia incluíam xícaras
com alça e copos de vários tamanhos feitos a mão que têm sido, às vezes, erro­
neamente chamados “medidores”. A cavidade era obtida com o uso de pequenos
instrumentos cortantes, incluindo até mesmo pequenos tornos. 0 cinzel esculpia a
face externa com diversas facetas verticais que lhes davam aspecto rude e sensação
de aspereza. Tinham uma ou duas alças quadradas e, às vezes, um bico, o que lhes
fazia parecer com vasos feitos de madeira. Entre as demais formas comuns produ­
zidas na Galiléia, feitas a mão, foram encontradas bacias retangulares e banheiras,
algumas tigelas, taças e tampas de boa qualidade, torneadas, decoradas com linhas
simples nos lados e bordas.

Como esse tipo de vasos só se desintegra em solos úmidos e ácidos, têm sido
achados em grande número principalmente nas camadas do primeiro século escavadas
na Galiléia. Por exemplo, no vilarejo de Nabratein na Alta Galiléia foram encontrados
mais de cinqüenta fragmentos em camadas do primeiro período romano. Numa
só área de uma casa com pátio foram descobertos diversos fragmentos ao lado de
lascas e pedaços de pedra calcária, talvez deixados pelo oleiro local que as fabricava
para a família e para o vilarejo. Em Cafarnaum, acharam-se resíduos desse material
em todas as casas escavadas; centenas deles. Semelhante quantidade também foi
encontrada em contextos do primeiro século em Jodefá, na Baixa Galiléia e ao sul
de Gamla, no Golan. Também nas casas do primeiro século de Séforis.

São artefatos judaicos ligados ao sistema de purificação segundo a literatura


rabínica, pois os judeus não aceitavam impurezas rituais. Os vasos de pedra diferiam
dos de cerâmica, que precisavam ser destruídos depois de entrar em contato com
líquidos impuros, segundo a halakhah, ou lei sagrada, posto que transmitiam impu­
reza a conteúdos subseqüentes e a seus usuários. As pedras, contudo, estavam livres
desses estragos rituais: assim, os vasos de pedra mantinham-se sempre “limpos”.

Por quê? Talvez porque se pensasse que as pedras não eram fabricadas como o
vidro, 0 metal ou a cerâmica. Eram cortadas diretamente da natureza. Eram menos,
portanto, produto humano e mais dádiva divina. A literatura rabínica argumentava
que os vasos de pedra eram puros porque não passavam pelo fogo e, por isso, os de
barro e de esterco secados ao sol também eram considerados puros (verMixná, Kelim
10,1; 4,4). Mas há outra razão: a maioria dos vasos de pedra parecia-se com os de
vidro, metal e cerâmica, que eram importados e mais caros. Atribuía-se facilmente
impureza a esses vasos trazidos das “terras dos gentios,” ou, em outras palavras,
porque eram artigos de luxo. A pedra era considerada pura e, além disso, mais barata
e produzida no local. Vasos de pedra podiam ser fabricados com facilidade.

Banheiras rituais. Os segundos artefatos típicos do judaísmo nos registros arqueo­


lógicos são as piscinas com degraus revestidas de estuque, chamadas de miqwaoth.
Cerca de trezentas dessas piscinas foram encontradas até hoje no território judaico
datadas do período romano, na Judéia, na Galiléia e no Golan. São raras na costa
e virtualmente ausentes na Samaria e ao lado do Rio Jordão. Embora não fossem
completamente uniformes, possuíam traços básicos: eram recortadas no chão; o
revestimento espesso e até mesmo retocado servia para evitar infiltrações; muitas
2 9 - M iqw eh do primeiro século em Séforis
(Cortesia de Eric Meyers; © Projeto Regional de Séforis, Duke University)

delas possuíam canais para recolher água da chuva, de fontes ou de correntezas;


e tinham degraus que as distinguiam de reservatórios ou cisternas. Os degraus,
obviamente, ajudavam as pessoas a descer para os banhos de imersão. Não teriam
sentido se fossem apenas cisternas.

Como os vasos de pedra, os miqwaoth eram comuns desde o tempo de Herodes,


o Grande, no primeiro século d.C. Em centros urbanos, como Jerusalém, Séforis e
outras cidades grandes, eram também instaladas em casas de família. Em Séforis,
cerca de duzentas piscinas desse tipo foram escavadas na zona residencial ocidental,
mostrando que essas famílias estavam preocupadas com os ritos de purificação.
Mas na maioria dos sítios da Galiléia aparecem perto de instalações agrícolas ou
de sinagogas. O sítio de Gamla é típico. Nele os escavadores encontraram quatro
miqwaoth. O primeiro, perto de uma sinagoga e duas outras, de uma prensa de olivas.
A sinagoga foi a mais antiga a ser escavada ao norte, até hoje, e a única do primei-
ro século d.C. O saguão principal media cerca de 100 por 130, pés com a entrada
voltada para Jerusalém. Como as sinagogas de Masada, possuía fileiras de bancos
ao longo das paredes da sala principal, que precisava de colunas para apoiar o teto
por causa do tamanho da área. Embora o miqweh tenha sido cavado fora da sinagoga
propriamente dita e faça parte de um complexo ao oeste, liga-se fisicamente a ela
por um canal que recolhe água das chuvas que caem no telhado vizinho. A piscina,
sem dúvida, de uso comunitário, media 13 por 33 pés e tinha sete degraus, tamanho
suficiente para ser compartilhada pelos habitantes do local.

Descobriu-se outro miqweh na parte ocidental, ao lado de uma grande fábrica de


azeite, com duas prensas e dois tanques coletores e piscinas provavelmente usadas
pelos habitantes de Gamla. A sala com o miqweh fazia parte desse complexo e possuía
uma pequena banheira acima do chão e, ao lado, o miqweh propriamente dito, maior
e de forma oval, cavoucado no solo e revestido com diversas camadas de reboco. As
pessoas desciam por escadas espiraladas junto à parede. Presume-se que os usuários
que trabalhavam nas prensas se lavassem primeiramente na banheira, em cima, para

3 0 . Reconstrução da cidade destruída de Gamla


Sem grandes problemas para as legiões romanas, os muros da cidade judaica de Gamla estão
destruídos desde 67 d.C. Distante do M ar da Galiléia ( 1), Gam la ergue-se dos \ales ao redor do
Golan como a corco\'a de um camelo (2) de onde tirou seu nome. Refugiados judeus que fugiam
do avanço das tropas romanas fizeram inchar sua população e embora a cidade oferecesse forte
proteção, segundo Josefo, T ito destruiu os muros (3) e derrotou os habitantes com sucesso. Os
escavadores descobriram centenas de pedras balísticas romanas e pontas de flechas no lugar
onde o muro foi derrubado, cerca de uma das poucas sinagogas do primeiro séculos até agora
descobertas (4), com bancos para sentar e banheira ritual logo na entrada.
y
entrar, depois, já limpos, no miqweh. Assim a água pura não seria contaminada com
seu suor e resíduos indesejáveis.

Josefo conta como a cidade de Gush Halav na Alta Galiléia despachava azeite
kosher para judeus que viviam nas grandes cidades pagãs da costa, e, uma vez que os
líquidos podiam transmitir impureza, tomavam-se todos os cuidados com a sua pro­
dução. A literatura rabínica relaciona os miqwaoth com pureza, da mesma forma como
os vasos de pedra, e dedica um tratado inteiro da Mixná ao seu uso adequado.

Pureza. De que maneira os vasos de pedra e os miqwaoth podiam ser meios de


resistência contra Roma? Trata-se de uma pergunta óbvia. E claro que o uso de
jarros de pedra no jantar e os banhos nas piscinas com degraus não representavam
nenhum confronto aberto contra o governo romano ou herodiano nem em face
das influências estrangeiras. Roma não temia essas coisas, mas nem por isso eram
pacíficas. Representam o que sobrou da cultura material de um modelo maior de
comportamento por meio do qual os judeus se definiam em contraposição aos outros.
Tratava-se de desafio silencioso, relembrando no dia-a-dia a tradição da aliança com
Deus, e reconhecendo a santidade de Deus e a pureza exigida de Israel.

Não havia no judaísmo do primeiro século nenhum sistema unificado de crenças


e rituais a respeito da prática da purificação. Havia diversos graus de compreen­
são ou, talvez como a resistência, inúmeros matizes. Os sacerdotes associavam a
pureza com os papéis que desempenhavam no culto do Templo. Preocupavam-se,
principalmente, com alimentos e contatos antes do encontro com a presença divina,
e eram particularmente meticulosos no Dia da Expiação, quando o sumo sacerdote
entrava no Santo dos Santos no santuário.

Embora o Templo fosse o centro da religião judaica, os fariseus, considerados


intérpretes populares da Torá, não apenas procuravam decidir sobre questões re­
lacionadas com pureza acima dos sacerdotes — competindo, assim, com seu status
social — , mas também se apropriavam de noções de pureza tipicamente reservadas
aos sacerdotes e as aplicavam a suas atividades. Estas desenrolavam-se ao lado do
culto do Templo, e às vezes em tensão com ele, quando estendiam aspectos do culto
para a vida diária, em particular ao fazer as refeições com pureza. Talvez quisessem
imitar as refeições sacerdotais do Templo, mas certamente queriam reconhecer a
presença divina em suas mesas, que necessitavam das mesmas lavagens antes da
comida comunitária, e a presença de Deus nas demais esferas da vida. Debatiam
animadamente uns com os outros a interpretação das Escrituras, especialmente a
respeito de questões de pureza. Esses debates foram registrados no final do segundo
século no código legal Mixná. Como os fariseus, os essênios em Qumrã purificavam-
se antes das refeições comunitárias, porque acreditavam que Deus se fazia presente
quando comiam.
Identidade. Mas por que a observação da “pureza” era tão comum na Galiléia?
Seriam todas as casas de Séforis residências de sacerdotes, posto que em todas elas
foram achados vasos de pedra e miqwaoth? Será que em todas as moradias de Cafar-
naum realizavam-se refeições farisaicas, uma vez que também aí foram encontrados
vasos de pedra? Não é provável. Será que os camponeses de Jodefá eram essênios?
Não. Em vez disso, os judeus do período do Segundo Templo preocupavam-se com
pureza. Não estamos nos referindo a rituais legalistas, mas sim entendendo que se
dava ênfase à preparação do corpo para se apresentar diante de Deus, porque Deus
se fazia presente na terra todos os dias e era parte da vida diária.
Como as pessoas comuns entendiam a pureza? Haveria, certamente, discordân­
cia a respeito de pormenores. Os fariseus criticavam como os camponeses, “gente
da terra”, evitava seguir plenamente suas decisões. Mas também criticavam alguns
sacerdotes. E discutiam entre si como, por exemplo, a escola menos estrita, de Hilel,
contra a mais meticulosa, de Shammai. E provável que inúmeros galileus ignorassem
alguns de seus detalhes interpretativos. Por exemplo, poucas piscinas revestidas de
estuque, com degraus, seguiam rigorosamente as prescrições encontradas depois
no código da Mixná. Mas levavam a sério a questão; vasos de pedra e miqwaoth por
toda a parte.
Não nos parece que esses fatos implicassem legalismo muito difundido nem
meras demonstrações populares como muitas vezes o anti-semitismo cristão tem
insinuado. Ao contrário, significa que os judeus do primeiro século acreditavam
na presença de Deus e que ela requeria comportamento adequado, que incluía não
apenas pureza em resposta à santidade divina, mas também justiça e retidão por
meio do compromisso com a aliança. Os códigos judaicos de purificação acentuavam
que o decoro ritual do corpo perante Deus vinha junto com a vida ética do mesmo
corpo diante do mesmo Deus.
0 uso de vasos de pedra nas refeições e as piscinas destinadas à purificação não
simbolizavam qualquer resistência violenta a Roma, como foi o caso de Masada,
nem abandono do mundo, como em Qumrã. Esses extremos tinham em comum
com o meio termo o desejo de viver na terra diante de Deus e sob sua aliança. O uso
dessas tradições solidificava a identidade judaica, no caso dos miqwaoth, ao restaurar
0 lugar do indivíduo na comunidade de Israel sob a aliança, e, no caso dos jarros
de pedra, ao preservar o status de cada um perante Deus. Eram meios concretos de
auto-identificação, preservados no solo e recuperados pelos arqueólogos, capazes
de definir os judeus diante dos outros, além dos nomes, roupas, circuncisão, dieta,
práticas fiínebres, escrituras e tradições.

Não se trata de mera coincidência que os instrumentos de purificação des­


cobertos pelos arqueólogos desafiem duas das principais invasões culturais dos
mundos helênico e romano; a maneira de tomar banho e de jantar. Os banhos nos
miqwaoth contrastavam com o estilo das elites romanas e ofereciam uma alternativa
que reforçava o caráter distinto dos judeus e fortaleciam a resistência à dominação
estrangeira. Da mesma forma, os vasos de pedra representavam alternativa local e
barata aos copos, metais e cerâmicas importados. Poderíamos chamar essa fidelidade
cultural física e corporal de resistência? Nesse caso, a autodefinição judaica tornou-
se o mais profundo ato de resistência não violenta à colonização. Resumamos da
seguinte forma. Era certamente possível observar os rituais judaicos de purificação
e ainda assim colaborar plenamente com Roma. Mas, se os judeus deixassem esses
costumes de lado, teria sido possível resistir tanto de um jeito como de outro, vio­
lenta ou não-violentamente?

Resistência radical não-violenta


Onde, nesses diferentes graus de resistência, situamos Jesus? Não está entre os
não resistentes por duas principais razões. A primeira, relativamente certa, porque
durante sua vida anunciou e representou o Reino de Deus. Ele e seus companheiros
talvez por respeito ao nome sagrado, preferiram falar em Reino dos Céus. É mais ou
menos como o repórter que ao se referir ao presidente dos Estados Unidos diz “a
Casa Branca anunciou”. A residência significa o residente. Infelizmente, contudo,
a expressão “Reino dos Céus” tem sido entendida erradamente como um reino no
céu, e não dos céus e, conseqüentemente, conotando mundo vindouro ou vida de­
pois da morte. Mas, por exemplo, no pai-nosso, Mateus ensina, “venha o teu reino”
bem como “seja feita a tua vontade assim na terra como no céu”, exatamente como
ensinava Jesus. Mas chamemo-lo de Reino de Deus ou Reino dos Céus, estamos
nos referindo à vontade de Deus para a terra aqui embaixo, aqui e agora. Em outras
palavras, de que maneira Deus governaria o mundo se estivesse sentado no trono
de César? Como seria o mundo perfeito de prosperidade e fertilidade, de justiça e
paz, e de pureza e santidade? 0 sentido desse mundo teria que ser interpretado
segundo a transição tradicional do governo terreno da aliança com Deus, passando
pelo escatológico e culminando no apocalíptico.

A segunda razão, também relativamente certa, vem da morte de Jesus, ao ser con­
siderado pelo poder romano um subversivo da classe baixa, uma vez que a crucifixão
servia de advertência oficial e pública contra atividades criminosas desse tipo. Antes de
Jesus, Herodes, o Grande, fora oficialmente instalado por Roma como “rei dos judeus”.
Depois de Jesus, o mesmo se deu com Herodes Agripa I. Entre os dois reinados, Jesus
de Nazaré morreu sob a escarnecedora acusação romana, aliás muito séria, de que era
ilegalmente o “rei dos judeus”. Mas Roma, e apenas ela, decidia quem era ou não o
rei dos judeus. O título e o destino, no pleno sentido religioso e político, indicava que
Jesus fora executado por ter resistido à lei, à ordem e à autoridade romanas. Em que
grau, portanto, o classificamos na escala da resistência de que já falamos?

Estudiosos contemporâneos debatem se o Jesus histórico teria sido ou não, afinal,


uma figura apocalíptica. Em geral, não se chega a conclusão alguma porque há bons
argumentos em favor dos dois lados. Se fosse apocalíptico, quais as características
necessárias para descrevê-lo dessa maneira? Por exemplo, pregava a solução divina
para o problema dos malfeitores por meio de extermínio ou de conversão? Deveriam os
fiéis esperar passivamente ou ativamente no processo? Se não tivesse sido apocalíptico,
qual teria sido o conteúdo do Reino de Deus, além dessa negação? Pretendemos,
neste livro, transcender esse impasse ao insistir na transição do conteúdo básico do
Reino de Deus, da aliança por meio da escatologia ao apocalipse. Esperamos especi­
ficamente, na conclusão, poder situar o movimento de Jesus e o do Reino de Deus
mais precisamente entre os apocaliptistas e/ou protestadores do primeiro século.

Ao incluir Jesus entre estes não queremos dizer que advocasse violência militante.
Mesmo aceitando Jesus como profeta apocalíptico, teríamos que interpretar os ditos
atribuídos a ele contra tudo mais em sua vida e morte. A violência militante teria
que se basear nas expectativas apocalípticas, como foi o caso, provavelmente, com
a chamada quarta filosofia de Josefo, em geral, ou com Judas, o galileu, em parti­
cular. Mas se Pilatos tivesse considerado Jesus esse tipo de ameaça, muitos de seus
companheiros teriam estado com ele e morrido a seu lado. Jesus não representou
esse simbolismo arquetipico, como o profeta egípcio que marchou com seus seguidores
ao redor dos muros de Jerusalém. Se o tivesse feito, muitos teriam morrido com ele.
E se 0 tivesse feito individualmente, como João Batista no Jordão, esse ritual não
teria vindo até nós. Devemos, pois, colocá-lo na escolha entre comunidade da aliança
e protesto martirial.

No capítulo 3 examinamos a Tradição dos Ditos Comuns, a mais antiga seleção


de material oral de Jesus, discernidos assim pelo uso independente do Evangelho Q
e do Evangelho de Tomé. Neste capítulo vamos considerar o Grupo dos Ditos Comuns,
constituído por material escrito sobre Jesus, segundo o uso independente do Evan­
gelho Q e da Didaqué. Relembremos da introdução deste livro nossa aceitação das
conclusões de especialistas, a respeito das quais não argumentaremos aqui, de que
(1) 0 Evangelho Q existe, de que (2) o Evangelho de Tomé é independente dele e de
que (3) a. Didaqué é independente tanto do Evangelho Q como dos quatro evangelhos.
Essas conclusões fazem parte das dez mais importantes “descobertas” textuais
mencionadas na introdução. Concordando ou não com elas, precisamos decidir a
respeito e, daí para a frente, nossas conclusões cairão ou se manterão segundo a
coerência de nossa escolha.

Radicalização da Regra áurea

Usamos o termo Grupo dos Ditos Comuns para designar o conjunto de seis
ditos que apareceram primeiramente no Evangelho Q e na Didaqué, o primeiro um
evangelho de uma comunidade sobre Jesus e o segundo, uma regra de vida comu­
nitária posterior.

N o Evangelho Q, o grupo dos ditos aparece em Mateus 5,38-48; 7,12=Lucas 6,27­


36, como parte do discurso programático inaugural de Jesus. Na Didaqué aparece
em l,2c-5a, inserido numa instrução para convertidos, mais pagãos do que judeus,
uma vez que os padrões éticos dos primeiros poderiam ser postos em dúvida. A
inserção situa-se no começo de uma instrução anterior ou pré-Didaqué, tipicamente
judaica. Anuncia Dois Caminhos, um de vida e virtude em l ,l - 2 c e 2 ,1 -4 ,1 4 e outro
de morte e vício em 5,1-6,2. A instrução é, em geral, de certa forma radicalizada (já
era bastante radical!) pela inserção inicial desse Grupo em l,2c-5a. Mas já estava
enfraquecida pela inserção fmal em 6,2; “Se vós podeis carregar o jugo do Senhor,
sereis perfeitos, mas se não for possível, fazei o que puderdes”. Observemos, de
passagem, que a Regra áurea em 1,2c estava presente na nova inserção e na pré-in-
serção anterior. A presença das duas facilitava o processo nesse texto.

Examinaremos a seguir os três grupos na seqüência em que aparecem agora nos


três textos. Observemos, imediatamente, que os seis ditos dos grupos aparecem
em arranjos diferentes, pois Mateus e Lucas redesenham o discurso inaugural do
Evangelho Q. Em geral, os especialistas supõem que Lucas e não Mateus está mais
perto da seqüência original do Evangelho Q.

Mateus Lucas Didaqué


(do Evangelho Q) (do Evangelho Q)

A outra face Amai os vossos inimigos Regra áurea


Dar sem retribuição A outra face Amai os vossos inimigos
Amai os vossos inimigos Dar sem retribuição Superar os pecadores
Superar os pecadores Regra áurea A outra face
Como vosso Pai Superar os pecadores Dar sem retribuição
Regra áurea Como vosso Pai Como vosso Pai

Antes de prosseguirmos, convém ler o texto completo de cada grupo, concen­


trando-nos no conteúdo geral e não na seqüência precisa, uma vez que esta não é
muito segura.

1. Regra áurea: Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam,
fazei-o vós a eles.

2. Amai os vossos inimigos: Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos
odeiam, bendizei aos que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam.

3. Superar os pecadores: Se amais aos que vos amam, que recompensa tendes? Não
fazem também os publicanos a mesma coisa?

4. A outra face: Àquele que te fere na face direita oferece-lhe também a esquerda;
e aquele que quer pleitear contigo, para tomar-te a túnica, deixa-lhe também a veste;
e, se alguém te obriga a andar uma milha, caminha com ele duas.

5. Dar sem retribuição: Dá ao que te pede e não voltes as costas ao que te pede
emprestado.

6. Como vosso Pai: Deste modo vos tomareis filhos do vosso Pai que está nos
céus, porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva
sobre justos e injustos. Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é
perfeito.
Nota técnica de rodapé. No capítulo anterior, a razão para concluirmos que a
Tradição dos Ditos Comuns com trinta e sete itens derivava-se da tradição oral e não
da escrita era porque não havia ordem alguma na edição do Evangelho Q e do Evangelho
de Tomé (que, por ser apenas uma lista de ditos, não precisava ser reordenada). Por
outro lado, neste capítulo, o Grupo dos Ditos Comuns com seis itens procede de
um documento escrito e não da tradição oral. Essa afirmação torna-se evidente no
original grego. O grego faz distinção entre a segunda pessoa do singular e a segunda
do plural. 0 Evangelho Q e a. Didaqué misturam o uso de “tu” e “vós”. Por exemplo,
A outra face e Dar sem retribuição usam o singular, enquanto Amai os vossos inimigos e
Superar pecadores empregam o plural. Essas coincidências nos convencem de que se
tratava de um Grupo de ditos escritos e não memorizados. Parece-nos difícil imaginar
que a memória oral reteria essas diferenças e as repetiriam sem problemas.

Examinemos agora a Regra áurea. No Evangelho Q ela é positiva (“Fazei aos outros
0 que quereis que vos façam”) , mas é negativa na Didaqué (“0 que não quereis que
vos façam não façais aos outros”) . As duas formas querem dizer a mesma coisa e
são bem conhecidas na tradição geral. Mas surge esta questão crucial especialmen­
te quando se combina a Regra áurea com outros ditos do grupo. A regra deverá ser
tomada apenas ofensivamente ou também de maneira defensiva? Estará dizendo
(apenas ofensivamente): “Se você não quer ser atacado, então não ataque”? Ou
(defensivamente); “Se você não quiser ser atacado, não revide quando for atacado”?
Estará nos admoestando a nunca atacar ou a não atacar em revide? Estará proibindo
apenas a violência inicial ou qualquer tipo de violência? *

Pensemos, em seguida, nesse grupo de ditos como interpretação muito radical


da Regra áurea, profundamente motivada por ela. Imaginemos agora tudo isso no
contexto das três seções. A Regra áurea é o centro do grupo. A injunção, tomada
em si, pode ser lida tanto de uma forma como de outra. Mas o resto do grupo, com
os comentários interpretativos, que incluem o amor pelos inimigos, a outra face
(mencionando vestes e trabalho forçado) e a dádiva sem retribuição não exigem
apenas que “não se ataque” mas que “não nos defendamos”.

Finalmente, temos o caso da motivação, tanto no nível comparativo humano,


em Superar os pecadores, como no nível da iniciativa divina, em Como vosso Pai. A
motivação humana nos leva a ser melhores do que as nações, do que os pagãos e
do que os pecadores gentios. Mas a motivação divina é muito mais importante. No
Evangelho Q, somos chamados a “ser perfeitos” em Mateus ou “misericordiosos”
em Lucas, imitando “o Pai”. Essa “perfeição” é exigida em Mateus, para que “vos
torneis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o seu sol igual­
mente sobre maus e bons, e cair a chuva sobre justos e injustos”. Essa misericórdia
é comandada por Lucas para que a recompensa seja grande “e sejais filhos do Altís­
simo, pois ele é bom para com os ingratos e os maus”. Não existe nada semelhante
a isso na Didaqué, embora mencione a perfeição em 1,4. Entretanto, considera mais
amplamente a discussão do aforismo Dar sem retribuição. A motivação é que nossas
dádivas pertencem não a nós mas a Deus, “pois a vontade do Pai é que demos da­
quilo que temos recebido”. Não estaremos imitando Deus ao dar o que temos aos
outros porque somos participantes nas dádivas divinas. Em outras palavras, apenas
cooperamos como mordomos da generosidade de Deus. 0 que damos, afmal, não
nos pertence. “Deveríamos nos dar conta”, disse alguém, “de que as doações dos
ricos para os pobres são, realmente, dádivas de Deus. Quem dá esmola é apenas
gerente e distribuidor dos dons de Deus”. Nesse caso, naturalmente, devemos falar
a respeito não da generosidade humana quando fazemos doações, mas sim da justiça
distributiva de Deus.

0 Grupo dos Ditos Comuns ao falar de “pecadores gentios” se refere às diferenças


não entre o cristianismo e o judaísmo, mas sim entre o judaísmo cristão e o paganis­
mo. Estabelece uma comunidade radical de resistência baseada na imitação de Deus
e na participação em sua natureza. Se tivéssemos apenas a Regra áurea poderia ser
ofensiva (não atacar) ou defensiva (não revidar quando atacado). Se fosse apenas A
outra face, poderíamos ter existência não violenta em vez de resistência não violen­
ta. Mas 0 grupo, tomado como um todo, liga o Deus radical da justiça distributiva
e da retidão igualitária da lei mosaica, ao ideal radical da resistência não violenta
no Grupo dos Ditos Comuns. A resistência, neste caso, dá-se no estilo de vida da
comunidade participativa, que dá de suas posses porque elas procedem desse Deus
justo, e procura evitar violência defensiva porque essa é a natureza dele.

Nota final. Jesus começou como seguidor de João, por quem foi batizado no
Jordão. Daquele momento em diante, pelo menos, Jesus estava aceitando a visão
do Batista da iminente chegada do Deus vindicativo para erradicar o pecado e os
pecadores. Mas, como vimos no início do terceiro capítulo, mesmo seus inimigos
comuns concordavam que, embora sendo tipos estranhos, não eram semelhantes.
Assim, Jesus deixou de ser discípulo, seguidor e herdeiro da posição de João. Parece-
nos que houve uma razão principal para essa mudança de atitude. Deus não veio tão
depressa assim, nem se vingou, em tempo para salvar o próprio João. Jesus, então,
entendeu que não era assim que Deus agia, porque Deus não era violento e tinha ou­
tros caminhos para a terra, principalmente por meio da consumação apocalíptica.

Jesus, cristãos e César

Além de certas unidades nas epístolas de Paulo ou em outros lugares, a Tradição


dos Ditos Comuns com seus trinta e sete itens no Evangelho Q e no Evangelho de Tomé
considerada representativa no último capítulo, e o Grupo dos Ditos Comuns com­
posto por seis unidades no Evangelho Q e na Didaqué, vistos acima, são os “pedaços”
mais antigos de materiais escritos e orais sobre Jesus discerníveis até agora. Esses
dois complexos remontam ao primeiro nível da terceira camada, antes mesmo do
Evangelho Q, e são exemplos do material de suas fontes. Trabalhamos com a hipótese
de que os dois complexos são até anteriores à primeira camada, que é a do próprio
Jesus histórico. Onde quer que situemos Jesus na passagem da resistência da alian­
ça, pela escatológica até a apocalíptica, o Reino de Deus é a força da resistência
não violenta à normalidade da opressão social, visível no sistema de classes, e da
opressão colonial de Roma.

Há, contudo, duas óbvias objeções a essa interpretação. A primeira questiona se


os primeiros discípulos e os posteriores seguidores de Jesus realmente se conser­
varam fiéis à resposta não violenta mesmo quando atacados. A segunda alega que
0 próprio Jesus teria dividido o mundo entre César e Deus.
Cajado e espada. Há duas curiosas indicações de que nem todos os membros
do Reino de Deus seguiam o seu programa. Mas mesmo se mais tarde acabaram se
desviando dele, ainda davam testemunho de sua presença anterior.

Relembremos, do último capítulo, a maneira como Jesus enviou os discípulos


para viver e agir como ele, partilhando com todos o poder espiritual (de curar) e o
material (de comer) ao proclamar a presença do Reino de Deus. Esse mandamento
aparece no Evangelho Q e em Marcos 6,6b-l 3. Mas nota-se grande diferença entre eles.
O Evangelho Q explicitamente proíbe que os discípulos carreguem um cajado (Mateus
10,10 e Lucas 9,3). Mas esse ato é explicitamente permitido em Marcos 6,8. 0 cajado
servia basicamente como arma de defesa contra cães e ladrões; ninguém imaginava
viajar sem ele. Era, na verdade, tão normal e esperado que, mesmo se apenas Marcos
recomendasse o seu uso, poderíamos presumir que seria proibido em algum outro
texto. Tratava-se de equipamento mínimo de defesa até mesmo para quem tivesse
alimentação e hospedagem garantidas. Recordemos, por exemplo, o que Josefo dizia
a respeito da hospitalidade comunitária dos viajantes essênios: “Conseqüentemente,
nada levavam com eles nas jornadas, a não ser armas contra bandidos” (Guerrajudaica
2.125). Consideramos, portanto, que a mudança da proibição do cajado no Evangelho
Q para a permissão de seu uso em Marcos representa substituição da absoluta falta
de proteção para a proteção básica normal, pela absoluta não-violência para a vio­
lência defensiva, acentuando apenas o que existia antes dela.

As vestes simbólicas e o equipamento dos mensageiros do Reino em Lucas 9,3


(rejeição de cajado, de alforje, de pão, de dinheiro e de uma túnica a mais) e em Lucas
10,4 (nem bolsa, nem alforje nem sandálias) são explicitamente revogadas por Jesus
na noite de sua prisão em Lucas 22,35-37: “E disse-lhes: ‘Quando eu vos enviei sem
bolsa, nem alforje, nem sandálias, faltou-vos alguma coisa’ — ‘Nada,’ responderam.
Ele continuou: ‘Agora, porém, aquele que tem uma bolsa tome-a, como também
aquele que tem um alforje; e quem não tiver uma espada, venda a veste para comprar
uma’”. Lucas, provavelmente, mais do que Jesus, nega as primeiras proibições, com
a permissão de Lucas do uso de espada defensiva daí para a frente.

Com isso revoga-se explicitamente o princípio anterior da não-violência defensiva


(nem cajado, nem espada), não importando o tipo do cajado ou da espada. Vê-se,
então, que era de um jeito antes e que agora seria diferente. A resistência não-violen­
ta, ofensiva ou defensiva, foi silenciosamente mudando para certo grau de violência
defensiva. Mas a primeira camada, a do Jesus histórico, pregava a resistência não
violenta à injustiça em nome do Reino de Deus.

César e Deus. Que dizer daquela conhecida frase de Jesus: “Dai a César o que
é de César e a Deus o que é de Deus”? Não estará separando política (César) de
religião (Deus)? Não nos impede de resistir contra César?

Em primeiro lugar, recordemos do início deste capítulo, ser impossível separar


religião e política, bem como ética e economia, no mundo do primeiro século. Em
segundo lugar, se tudo o que tivéssemos em nossos textos fosse apenas a frase acima,
fora de contexto e de situação, seria impossível entendê-la pronunciada por qualquer
judeu do primeiro século. Josefo, que foi tão pró-Roma como nenhum outro, nunca
dividiu 0 mundo entre César e Deus, acreditando que Deus dera poder a César, poder
esse que César deveria usar segundo a vontade de Deus. Segundo Josefo, quando
alguém se rendia a César, rendia-se igualmente a Deus. Semelhantemente, como
Paulo dizia em Romanos 13,1: “Todo homem se submeta às autoridades constituídas,
pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas
por Deus". Como, então, teria Jesus podido dividir o mundo entre os afazeres de
César e os de Deus?

Procuremos, agora, situar o texto em seu contexto. Leiamos a história inteira.


Temos duas versões independentes, uma do Evangelho de Tomé e outra de Marcos:

Evangelho de Tomé 100: Eles mostraram a Jesus uma moeda de ouro


e lhe disseram: “0 imperador romano exige que lhe paguemos
impostos”. Ele lhes disse: “Dai a César o que pertence a César, a
Deus 0 que lhe pertence, e a mim o que é meu”.

Marcos 12,13-17: Enviaram-lhe, então, alguns dos fariseus e dos


herodianos para enredá-lo com alguma palavra. Vindo eles, disse­
ram-lhe: “Mestre, sabemos que és verdadeiro e não dás preferência
a ninguém, pois não consideras os homens pelas aparências, mas
ensinas, de fato, o caminho de Deus. E lícito pagar imposto a César
ou não? Pagamos ou não pagamos?” Ele, porém, reconhecendo a
sua hipocrisia, disse: “Por que me pondes à prova? Trazei-me um
denário para que eu o veja”. Eles trouxeram. E ele disse: “De quem
é esta imagem e a inscrição?”. Responderam-lhe: “De César”. Então
Jesus lhes disse: “O que é de César, devolvei a César; o que é de
Deus, a Deus”.

Em Marcos, trata-se claramente de uma pergunta astuta para surpreender Jesus


contra os impostos de César e levantar contra ele romanos dissidentes ou colabo­
radores. Mas Jesus nem mesmo carregava consigo moedas com a imagem de César
como eles. Quando lhe mostram uma, sua resposta é maravilhosamente ambígua
(para eles). Disse-lhes que jogassem as moedas de César rebeldemente na face de
César, ou que pagassem devidamente os impostos aos cofres de César? Mesmo na
versão mais curta, a situação fundamental foi conservada: eles tinham que mostrar
uma moeda a Jesus. O problema não era pagar ou não os impostos de César, mas
carregar no bolso essas moedas. Jesus já havia tomado sua decisão a respeito. É uma
pena que durante séculos não tenhamos entendido o significado das palavras de
Jesus e não consigamos ouvir sua risada ou de seus discípulos quando se safavam
da armadilha.
C a p ít u l o 6

BELEZA E AMBIGUIDADE
EM JERUSALÉM

Nos séculos anteriores à destruição do Primeiro Templo de Jerusalém pelo


império babilónico e da deportação de sua aristocracia de escribas e de ascendência
dos sumos sacerdotes, era clara a distinção entre a monarquia e o alto sacerdócio.
Ambos eram hereditários, a primeira descendia de Davi (pelo menos na parte sul do
reino dividido de Israel), e o outro de Sadoc, do tempo de Salomão. Nos séculos que
se seguiram ao exílio babilónico, o sumo sacerdócio foi restaurado, mas não a mo­
narquia. Internamente, e com êxito, Israel era uma teocracia dirigida por sacerdotes.
Externa e sucessivamente, foi colônia dos impérios persa, grego, egípcio e sírio. Mas
na segunda metade do segundo século a.C. os macabeus asmonianos revoltaram-se
contra os sírios e estabeleceram um reino judaico no qual rei e sumo sacerdote eram
a mesma pessoa. A combinação representou profunda ruptura na tradição antiga e
levantou sérias questões a respeito da legitimidade do sumo sacerdócio.
O povo comum não se preocupava ou nem mesmo sabia que a novidade do
sacerdócio real ou da monarquia sacerdotal era um problema. Mas os essênios de
Qumrã abandonaram o espaço sagrado do Templo de Jerusalém e o calendário lunar
provavelmente porque não mais considerassem válido o sacerdócio asmoniano. A pior
impureza era, sem dúvida, a ilegitimidade. Como poderia um sumo sacerdote impuro
entrar no Santo dos Santos do Templo para representar a terra e o povo de Israel
diante de Deus no Dia da Expiação? Quando os membros da comunidade de Qumrã
anunciaram o advento de um messias duplo, um sacerdotal e outro real, separados
e hierarquicamente nessa ordem, estavam rejeitando a novidade asmoniana.

A situação não melhorou sob os herodianos nem sob os romanos. Havia agora,
novamente, clara distinção entre a autoridade dos sumos sacerdotes e o governo
herodiano ou romano. Herodes, o Grande, era da Iduméia, grupo étnico convertido ao
judaísmo sob os asmonianos. Mas nunca quis ser sumo sacerdote. Tanto os herodia­
nos como, mais tarde, os governantes romanos tratavam os sumos sacerdotes como
servidores civis subordinados, estimulando desavenças entre as famílias sacerdotais,
arbitrariamente demitindo uns e contratando outros. Tratava-se, naturalmente, de
péssima política para os dois lados. Qualquer aristocracia imperial sempre precisa
da cooperação dos colonizados. No melhor dos casos, estes abrandavam as depre-
dações imperiais. No pior dos casos, a aristocracia aliava-se à exploração colonial.
Em qualquer das situações, a classe subjugada era, em geral, a primeira a morrer
nas revoltas populares.

Vimos no capítulo 2 que a principal fonte de conflito entre Roina e o território


judaico era a insistência da Torá de que a terra pertence a Deus por direito de pro­
priedade e justiça contra a pretensão do império de que lhe pertencia por direito de
conquista e poder. Mas havia ainda outro fator que contribuía significativamente para
a história da escalada da discórdia na terra judaica do primeiro século. Externamente,
a autoridade romana envolvia um governador-prefeito que contava com a proteção
de tropas não legionárias e que, portanto, submetia-se ao governador da Síria e às
três ou quatro legiões que guardavam as fronteiras do Eufrates contra as ameaças
do império dos partos. Internamente, de um lado, os herodianos substituíram os
asmonianos e, do outro, famílias sacerdotais substituíam o antigo sumo sacerdócio
hereditário. E provável que as disputas acerca de terras não fossem suficientes
para provocar rebeliões, mas, quando a autoridade estava em jogo, tornavam-se
inevitáveis.

Esses temas nos dão o contexto para entender o título deste capítulo. Havia no
primeiro século fundamental choque entre beleza e ambigüidade, e entre a beleza
da antiguidade e a ambigüidade da legitimidade, em relação com o sumo sacerdócio,
0 culto e o Templo. Era possível, por exemplo, do ponto de vista da mais restrita
pureza judaica, rejeitar o sumo sacerdócio contemporâneo e até mesmo as ativi­
dades em voga no Templo. Seriam legítimos os sumos sacerdotes? Seria o Templo
um santuário a ser protegido ou mera fortaleza a ser destruída? Não seria apenas a
acrópole de Jerusalém? Tanto Josefo como Tácito hesitaram em descrever sua des­
truição, embora mais por causa de piedade retórica do que por motivação política.
Na verdade, beleza e ambigüidade.

Precisamos alertar os leitores a respeito do conteúdo deste capítulo. Não ape­


nas por cortesia inter-religiosa ou melindres pós-holocausto, mas por fidelidade
à exatidão histórica. As críticas ao sumo sacerdócio judeu e/ou ao Templo quase
sempre emanam de antijudaísmo teológico ou de anti-semitismo racial. Além dis­
so, parece que algumas denominações cristãs que não têm sacerdócio gostam de
criticar o antigo sacerdócio judaico como desculpa para atacar sacerdócios cristãos
contemporâneos.

Como cristãos, temos profunda consciência desses ataques preconceituosos


e anti-históricos contra o judaísmo. Rejeitamos completamente tais tentativas de
transformar conflitos intrajudaicos em críticas antijudaicas. Da mesma maneira
como denunciamos as injustas estratégias para comparar ideais cristãos com certas
difíceis decisões judaicas nos tumultuados dias do primeiro século. Naquela época, o
judaísmo era uma grande religião, dona de tradição antiga, enfrentando o avassalador
orgulho do internacionalismo grego e o poder dominador do imperialismo romano.
Os impérios conquistam e dividem, enquanto as colônias disputam e perdem. O
judaísmo essênio, o farisaico e o que Josefo chamava de quarta filosofia debatiam-se
furiosamente entre si, mas, especialmente, contra o judaísmo saduceu, que mantinha
0 monopólio por meio de colaboração com as autoridades romanas. Esses conflitos
poderiam envolver especialmente a aristocracia sacerdotal questionada por causa
de seu excessivo luxo, da violência controladora, da afirmação da legitimidade do
sumo sacerdócio e, finalmente, da própria lealdade judaica. As contendas com os
saduceus acabavam afetando de maneira ambígua o culto e o Templo.

Relembremos o que Jesus realizava na Galiléia, segundo nosso capítulo 3. De


acordo com seu programa itinerante, recusava-se a residir com a família em Nazaré
e com Pedro em Cafarnaum, porque não lhe parecia compatível com o Reino de
Deus estabelecer um centro fixo a ser entendido como sinal de hierarquia geográ­
fica. A reciprocidade de seu programa envolvendo cura e refeições compartilhava o
poder material e espiritual pertencente apenas a Deus. A Torá exigia a distribuição
eqüitativa da terra pertencente ao Deus justo, mas no contexto romanizado, ur­
banizado e comercializado da Galiléia de Antipas Jesus só podia falar do alimento
que a terra produzia. Mas, com base na teologia da criação da Torá, a terra devia ser
compartilhada igualmente por todos, porque seus proprietários nada mais eram do
que mordomos de Deus. A visão e o programa de Jesus para estabelecer a presença
do Reino convidava os outros a fazer exatamente o que ele estava fazendo, sem
chamá-los para si, nem mandando que agissem em seu nome. Mais extraordinário
ainda é que Jesus não orava quando curava e não ordenava que seus discípulos o
fizessem, posto que todos os habitantes do Reino de Deus já viviam no âmbito
dessa presença poderosa. Todos os atos e pensamentos do movimento desse Reino
mostravam claramente a oposição de Jesus aos planos de longo alcance de Antipas
de se tornar, como seu pai, rei dos judeus. A maneira como Jesus viveu levou-o à
execução, da mesma forma como a João, antes dele.

Jerusalém era um lugar muito mais perigoso do que as cidades da Galiléia. Em


vez de um tetrarca herodiano, havia aí um sumo sacerdote saduceu e um prefeito
romano. Se, de um lado, Jesus fizesse e dissesse em Jerusalém o que fazia e dizia
na Galiléia, especialmente durante os festivais, que eram as épocas mais prováveis
de estar lá, especialmente na atmosfera inflamável da Páscoa, seria executado ime­
diatamente. Mas, por outro lado, como os confrontos de seu Reino de Deus com o
Reino de Roma poderiam não aumentar quando o culto, o sacerdócio e o Templo
pareciam-se cada vez menos serviço de Deus e mais colaboração com a normalidade
do império?
Precisamos evitar dois mal-entendidos, não importando o que Jesus de Nazaré
tenha dito ou feito em Jerusalém. 0 primeiro é afirmar que atacava o judaísmo. 0
outro é dizer que ele não atacava coisa alguma. Jesus era judeu e tinha o direito de
se engajar nas lutas internas de sua tradição; os cristãos não precisam negar esses
fatos nem transformá-los em atitudes antijudaicas. Por outro lado, mesmo que o
sumo sacerdote Caifás fosse santo, tinha obrigação de cooperar com o prefeito, Pi­
latos. No devido tempo, o legado sírio depôs os dois, coisa que bem pode significar
que até mesmo do ponto de vista romano tivessem ido longe demais e agido com
pouca sabedoria. Romanos e judeus, império e colônia, sumo sacerdócio e Templo.
Na verdade, beleza e ambigüidade.

Revolta colonial e luta de classe


Não é difícil ter acesso à evidência arqueológica da revolta colonial, das duas
grandes guerras contra Roma no território judaico em 66-74 e 132-135 d.C. Essas
rebeliões destruíram a glória do Templo e a grandeza da cidade das grandes pere­
grinações, Jerusalém.

Destruição de Jerusalém

Na primeira revolta, a resistência judaica ao domínio romano foi esmagada


depois de oito anos de luta. As forças legionárias começaram a vencer na Galiléia
terminando em Masada, mas o clímax foi o cerco de Jerusalém e a destruição do
Templo. Segundo Josefo, o Templo ruiu no nono dia do mês judaico de Av no ano
70 d.C., embora alguns judeus discordem da data. Os que sobreviveram à fome e
ao combate foram crucificados ou vendidos como escravos. As legiões romanas ce­
lebraram a vitória hasteando seus estandartes coroados pela figura de uma grande
águia com raios nas garras, ostentado a insígnia SPQR, Senatus Populusque Romams.
A águia simbolizava o protetor divino de Roma, Júpiter Optimus Maximus; a insígnia
acentuava o serviço prestado ao “Senado e Povo de Roma”. 0 Templo de Herodes,
0 Grande, foi incendiado e sistematicamente desmantelado, embora, segundo o
historiador romano Tácito, alguns oficiais guerreiros relutassem em levar a cabo
a ordem destruidora de Tito, sentindo “que não seria correto destruir tal edifício
sagrado conhecido como um dos maiores produtos da indústria humana”.

Não obstante, sua grandeza foi abaixo. Exploradores do século dezenove e esca­
vadores mais recentes descobriram grandes pedras e restos das paredes do Templo
herodiano derrubado pelos romanos. Devastaram à toa os maciços fiindamentos e
acabaram com as colunas, arcos e paredes. Os fragmentos ainda se espalham pelas
ruas pavimentadas e degraus debaixo do Monte do Templo. Os romanos pilharam
0 que sobrou da cidade e a aplainaram; estabeleceram também acampamentos da
Décima Legião na colina ao oeste do Vale Tyropoeon para vigiar de perto os habi­
tantes remanescentes.

Sinais simbolizando o triunfo romano e a colonização espalham-se sobre a


camada marcada pela destruição da guerra. Os conquistadores ergueram colunas
em Jerusalém com inscrições em latim para honrar a Décima Legião e Tito, filho
de Vespasiano, feito imperador em 69 d.C. A Décima Legião deixou artefatos pela
colina ocidental da cidade: telhas, canos de água e tijolos com a insígnia LXF, Legio
X Fretensis, e/ou a figura do emblema da legião; um javali selvagem.

Mais tarde, o imperador Adriano refundou o que restava da cidade e a transfor­


mou numa colônia romana, mudando o nome para Aelia Capitolina, que conjugava o
seu nome (Aelius H adriams) com o de seu deus-patrono (Jupiter Capitolinus). Proibiu
que os judeus entrassem na cidade. Romanizou-a impondo um sistema ordenado com
duas avenidas (cardos) cercadas de colunas e erradicou todos os sinais de judaísmo,
indo ao ponto de construir um templo pagão dedicado a Júpiter Capitolino sobre
as ruínas do Templo judaico que fora outrora dedicado a lahweh. Visitou a cidade
durante a excursão que fez às províncias orientais em 129-130 d.C. O itinerário
incluiu Filadélfia, Petra e Jerash, ao leste do Jordão, e Scythopolis e Cesaréia, ao
oeste. Em cada cidade, sua chegada era marcada pela solene entrada real chamada
adventus. Nessas ocasiões o imperador trajava vestes cerimoniais, empunhava o bá­
culo e montava um cavalo branco. Era recebido por dignitários locais e oficiais civis
que discursavam entre cânticos de hinos. Os cidadãos comuns alinhavam-se nas
ruas saudando-o com palmas por causa de suas vitórias. Em troca, Adriano oferecia
sacrifícios em favor da cidade e concedia privilégios aos cidadãos, com a intenção
de estimular devoção ao imperador e lealdade a Roma. Nessas jornadas imperiais,
estabelecia santuários e templos dedicados ao culto do imperador com estátuas em
sua honra e ao divino Zeus. Lembremo-nos para futura referência que era assim
que 0 governador entrava em sua cidade.

Jerusalém, sem recursos naturais e longe das principais rotas, havia prosperado
como cidade judaica de peregrinação e atraído visitantes pagãos, mas agora não mais
recebia judeus nem tinha habitantes. Mesmo sua elevação à categoria de colônia por
Adriano não fazia aumentar a população. Permaneceu assim, sem muita importância,
até a conversão do império ao cristianismo por Constantino, o Grande. Tornou-se,
novamente, lugar de peregrinação, desta vez, cristã em vez de judaica. A cidade re­
tomou as versões grega e latina de seu nome judaico, Jerusalém, mas se transformou
na Cidade Santa Cristã, centrada não mais no Templo, deixado intencionalmente
em ruínas para relembrar a vitória cristã sobre os judaísmo, mas na Igreja do Santo
Sepulcro, suposto lugar da ressurreição de Jesus. Mais tarde veio a ser cenário de
batalhas de exércitos bizantinos e persas. 0 islamismo transformou-a, depois, na
terceira mais santa cidade, construindo a Cúpula do Rochedo em cima do Monte
do Templo para comemorar a ascensão de Maomé para visitar o céu. Nos séculos
seguintes sucederam-se conquistas dos cruzados, governos otomanos e turcos,
colonização européia e mais recentemente a Guerra dos Seis Dias em 1967, todos
deixando suas marcas em Jerusalém.

Depois da Guerra dos Seis Dias os escavadores tiveram permissão para realizar
seu trabalho ao sul e ao oeste do Monte do Templo, ainda sob custódia muçulmana,
bem como na cidade alta no local chamado hoje quarteirão judaico ou herodiano. Os
principais especialistas de arqueologia em Israel trabalharam nessas áreas; Nahman
Avigad escavou os quarteirões residenciais da cidade alta; Benjamin Mazar e Meir
Ben-Dov encarregaram-se de sítios fora do Monte do Templo, onde hoje Ronny Reich
ainda está escavando. Além disso construiu-se um túnel de cerca de 900 pés ao lado
do Muro Ocidental sob a supervisão do arqueólogo Dan Bahat para o Ministério dos
Assuntos Religiosos de Israel.

A área ao redor do Monte do Templo já havia sido explorada antes. No século


dezenove, dois britânicos. Charles Wilson e Charles Warren, sob os auspícios do
Fundo de Exploração da Palestina, realizaram diversas escavações profundas ao longo
do Muro Ocidental encontrando lá embaixo uma rua herodiana com suas ramifica­
ções. Antes, ainda, o explorador e arquiteto suíço Titus Tobler detectou os restos
de um arco saindo desse muro. Chama-se hoje Arco de Wilson porque foi ele quem
anunciou o achado. Em 1838, o explorador americano Edward Robinson já havia
investigado os restos de uma escadaria no canto sudoeste do Monte do Templo.

Revolta dentro da revolta

Essas escavações em Jerusalém e no Templo mostram claramente a grandeza


anterior e a desolação que veio depois da primeira grande revolta contra o Império
Romano em 66-74 d.C. As gigantescas pedras fraturadas derrubadas pelos romanos
permanecem aí para sempre. Mas, no primeiro século, a resistência colonial não se
dirigia apenas ao controle imperial externo; vinha também das classes oprimidas
contra o poder aristocrático interno. Tratava-se, certamente, de oposição a Roma,
mas igualmente aos que detinham o poder na colônia. Nessa situação a ambigüidade
aumentava. O capítulo 4 concentrou-se nos diversos graus da reação colonial ao
controle imperial, desde atos de não-resistência traiçoeiros ou colaboracionistas até
atitudes de resistência violenta ou não violenta. Havia, portanto, inúmeras opções
nem claras nem distintas, obviamente ambíguas e interativas. Mas relembremos
também o capítulo 2. Amós, o profeta camponês de Técua na Judéia, falava em
nome de Deus contra Jeroboão, Rei de Israel, e contra Amazias, o sumo sacerdote
de Betei. Tratava-se não de protesto colonial em busca de liberdade humana mas
sim de protesto baseado na aliança exigindo justiça divina.

A resistência profética podia não ser violenta, como no caso do profeta Amós
do oitavo século, ou violenta, como no caso dos profetas anteriores, do século nono,
Elias e Eliseu. Estes conseguiram derrubar a dinastia de Omri e substituí-la pela de
Jehu. Mas não valeu a pena destruir Acab de Omri para ter em seu lugar Jeroboão de
Jehu. Seja como for, mesmo antes da resistência colonial violenta ou não à injustiça
imperial externa, sempre se manifestava a resistência profética, violenta ou não, à
injustiça real interna. A mais profunda tradição israelita levava em consideração
não apenas a resistência colonial ao domínio estrangeiro, mas também a que se
inspirava na aliança contra a opressão injusta estrangeira ou local. Como já vimos,
estava sempre fundamentada, de certa forma, na transição ideal do Reino de Deus
da aliança, para o escatológico e ao apocalíptico. Imaginemos, então, Jerusalém e,
especialmente, o Templo no primeiro século de nossa era. Beleza e ambigüidade ao
mesmo tempo.

A grande revolta de 66-74 d.C. caracterizou-se precisamente pela interação


da luta de classe no interior da rebelião colonial. A ênfase nesse aspecto de modo
algum nega a existência de outras tensões entre os judeus nessa guerra. Havia
profundas divisões entre sacerdotes aristocratas e entre aristocratas e doutores da
Lei. Os sicários, mencionados no capítulo 4, eram não sacerdotes aristocratas mas
sim mestres bem educados. Havia também enormes tensões entre grupos regionais
como idumeus, judeanos e galileus, e entre líderes individuais de qualquer classe ou
região. Mas, por enquanto, vamos nos concentrar especialmente na revolução interna
socioeconômica sob o guarda-chuva da rebelião político-imperial externa.

Defesa da Galiléia

No começo da guerra de 66-74 d.C., Josefo foi enviado de Jerusalém à Galiléia a


fim de prepará-la para a iminente chegada das temidas legiões de Vespasiano. Mais
tarde, escrevendo sob o patrocínio imperial flaviano, mostrava claro interesse em
exaltar as legiões de sua Galiléia considerando-as oponentes à altura de enfrentar
0 melhor general romano, que acabara de se tornar o novo imperador. Ele possuía,
diz-nos, "um exército, pronto para agir, de sessenta mil soldados de infantaria e
trezentos e cinqüenta de cavalaria”, treinados “nos modelos romanos” (Guerrajudaica
2.583,577). Quando Vespasiano reuniu as forças legionárias com as auxiliares em
Ptolomais na primavera de 67, seu exército também contava com “sessenta mil”
soldados (3.69). Tudo parecia estar preparado para um choque de titãs. E foi o que
aconteceu. “As tropas sob o comando de Josefo, acampadas ao lado da cidade de Garis,
não muito distante de Séforis, percebendo que a guerra estava por começar contra
eles e que podiam ser atacados a qualquer momento pelos romanos, dispersaram-se
e fugiram, mesmo antes de qualquer ação e antes de ter visto os inimigos” (2.129).
Naturalmente, foram muitíssimo prudentes.

O resultado da preparação da Galiléia por Josefo para enfrentar os romanos,


acabou sendo, na verdade, militarmente, um grande fracasso, mas, humanamente,
enorme sucesso. Seu exército não se compunha de camponeses recrutados nos
poucos meses do inverno e transformados em hábeis legionários. Era formado, ao
contrário, de bandidos que lhe eram pessoalmente leais, porque conseguira ofertas
dos ricos de quem eles roubariam, dinheiro suficiente para seus salários. Além
do que citamos de Guerrajudaica, prestemos atenção ao que o autor escreveu bem
depois em sua Vida: “Reuni os mais valentes combatentes e, percebendo ser impos­
sível desarmá-los, persuadi o povo a pagá-los como mercenários; relembrando-o
de que era melhor dar-lhes voluntariamente pequenas somas do que submeter-se a
ataques contra suas propriedades” (77-78). Na verdade, o processo de transformar
bandidos-ladrões em soldados assalariados foi mesmo admitido em Guerrajudaica,
embora o autor perca-se em fantasias a seu próprio respeito como se fosse um
modelo de general romano moderno. Dizia a respeito de seus subordinados que
“testava sua disciplina militar antes de entrarem em ação, verificando se estavam se
abstendo das costumeiras práticas indesejáveis, como roubo, assaltos e pilhagem,
não defraudando os conterrâneos e não considerando lucro pessoal injúrias contra
os próprios amigos” (2.581).

Josefo jamais teria derrotado os romanos nas frentes de batalha nem resistiria
por muito tempo entrincheirado. Mas realizara alguma coisa na Galiléia. Conseguira
impedir eclosões de luta de classe no contexto anárquico da rebelião colonial. Impediu
que cidades e vilas, camponeses e nobres, bandidos rurais e aristocratas urbanos se
confrontassem em lutas sangrentas antes da chegada das legiões que vieram para
matá-los. Já vimos como as forças locais se misturaram quando os romanos chega­
ram. Mas se esses “galileus” (era assim que Josefo se referia aos camponeses) não
estavam muito interessados em lutar contra as legiões romanas, o mesmo não se
dava em relação às cidades de Séforis e Tiberíades. Eles queriam mesmo era destruir
essas e outras capitais regionais, como vimos no capítulo 3. Era nelas que as cortes
de justiça se reuniam, onde se guardavam os arquivos dos impostos e onde viviam
os grandes proprietários de terras. Era assim que esses camponeses da Baixa Galiléia
viam 0 controle romano. 0 General Josefo não conseguiu ganhar a guerra colonial
externa, mas impediu com êxito a luta de classe interna. Mas em Jerusalém, mais
tarde, ninguém conseguiu vencer nem interna nem externamente.

Zelotes e aristocratas

Como termo específico e técnico, “zelote” refere-se à pouco organizada coalizão


de camponeses lutadores (bandidos, para alguns; libertadores, para outros) forçada a
permanecer dentro dos protetores muros de Jerusalém enquanto a tremenda devas­
tação liderada por Vespasiano arrastava-se para o sul no inverno e na primavera de
67-68. Desse inverno até 69, com o suicídio de Nero, o surgimento de três possíveis
candidatos a imperador, e a ascensão de Vespasiano, Jerusalém experimentou um
período de descanso inesperado em face do cerco iminente. Apesar desse interlúdio
ou por causa dele, irromperam em Jerusalém diversas lutas de classe à medida que
os zelotes instituíam um reino de terror contra as classes altas. Acusavam-nas de
conspirar em favor dos romanos. Josefo demonstrou claramente seu horror a respeito
do que narrava (Guerra judaica 4.147-148, 153-157).

A motivação ideológica dos zelotes era clara. 0 sumo sacerdócio descendia


de Zadok desde Salomão até a nova dinastia judaica asmoniana que se constituiu
combinando o rei e o sacerdote numa só pessoa, no segundo século a.C. Mais tarde,
tanto os herodianos como os romanos encarregavam-se de indicar e demitir sumos
sacerdotes como queriam, e usaram quatro diferentes famílias para suas manobras
destinadas a dividir e conquistar. Os zelotes escolheram um grupo sacerdotal, su­
postamente mais legítimo do que os outros na linha de Zadok, e lançavam sortes
para fazer suas escolhas. Considerando que esse procedimento era entendido como
providência divina em vez de sorte humana, os resultados eram tidos como escolha
divina. O sistema fazia parte de longa tradição começada com a eleição de Saul para
governador em 1 Samuel 10,21 (“Mandou que a tribo de Benjamim se aproximasse,
dividida por clãs, e o clã de Metri foi sorteado. Mandou então que se aproximasse o
clã de Metri, homem por homem; e Saul, filho de Cis, foi apontado no sorteio”) até
a de Matias, como apóstolo, em Atos 1,26 (“Lançaram sortes sobre eles, e a sorte
caiu em Matias, que foi colocado no número dos doze apóstolos”) . Esse era também
o procedimento seguido pelos essênios de Qumrã, segundo a Regra da Comunidade:
“Em todos os assuntos relacionados com lei, propriedade e julgamento, a decisão
será feita por sorteio”.

Dentro dessa tradição, então, os zelotes, diz Josefo, “chamaram um homem das
famílias sumo-sacerdotais chamado Eniaquim e lançaram sorte para escolher um
sumo sacerdote. Por acaso a sorte caiu sobre um indivíduo chamado Fanni, filho
de Samuel, do vilarejo de Aphthia, que se tornou sinal da depravação dos zelotes”.
Como a convocação desse clã reivindicasse que a escolha humana era legítima,
contra qualquer outra, os “sorteios” representavam para os camponeses a opção
divina contra a aristocracia. Josefo quase perde a fala ao descrever um camponês
substituindo um aristocrata na função do sumo sacerdócio. Esse incidente é apenas
a parte mais simbolicamente óbvia do programa dos zelotes.

Além disso, eles aprisionaram, julgaram e executaram “Antipas, da família real


[herodiana] [...], encarregado do tesouro público”, bem como Levias e Sifas, “ambos
de sangue real — além de outras pessoas de alta reputação por todo o país” (Guerra
judaica 4.139 -1 4 6 ). Em seguida, fortalecidos pelas forças camponesas iduméias,
mataram os sumos sacerdotes anteriores Ananus e Jesus, indo “tão longe em sua
impiedade a ponto de enterrarem os corpos sem nenhuma cerimônia fúnebre, saben­
do-se que os judeus sempre foram muito cuidadosos sobre esses ritos, concedendo-
os até a malfeitores que, quando condenados à crucifixão, eram retirados da cruz e
sepultados antes do pôr-do-sol”. Ao contrário, esses aristocratas “eram jogados no
chão, desnudos, para ser devorados pelos cães e por outras bestas ferozes” (4.317).
Prendiam os “jovens nobres” com a intenção de “convertê-los a seu partido”, mas
os torturavam e executavam se agissem ao contrário. Foi assim que pereceram cerca
de “mil e duzentos deles” (4.327,333). Outro passo na escalada vê-se no julgamento
de Zacarias, filho de Baris, “um dos mais eminentes cidadãos [...] [,que também]
era rico”. Setenta juizes “dentre os mais importantes do local” absolveram-no da
acusação de conspiração contra Roma, mas os zelotes o executaram assim mesmo
(4.335,336,343). Josefo resume essas lutas de classe: “Ninguém escapava, a não
ser os que não eram notados por causa de sua origem humilde ou por acidente”
(4.365). Finalmente, Matias, o sumo sacerdote aristocrata, enviado pelo lutador
messiânico Simão bar Giora “para libertar a cidade do domínio dos zelotes”, entrou
em Jerusalém e foi “aclamado pelo povo como salvador e protetor”. Acabavam-se a
luta de classe e a revolução social, mas a política continuava e a vingança imperial
ainda estava por vir sobre uma Jerusalém destinada à destruição.

Chegamos a certas importantes conclusões tiradas das relações entre revolta co­
lonial e luta de classes. Em primeiro lugar, podemos encontrar resistência à injustiça
da dominação romana e/ou da discriminação social em qualquer dos graus da escala
que vai do Reino de Deus da aliança, passando pelo escatológico e terminando no
apocalíptico. Em segundo lugar, poderia haver resistência colonial sem luta de clas­
ses. A guerra de 66-74, por exemplo, começou com a contenda no interior do sumo
sacerdócio aristocrata porque os sacrifícios diários oferecidos ao imperador romano
haviam cessado no Templo de Jerusalém. Em terceiro lugar, e mais importante, não
teria havido conflito entre classes sociais na situação colonial (talvez até mesmo
em qualquer outra) sem o conflito imperial. Oposição à aristocracia colonial judaica
confimdia-se com a recusa dos patrocinadores e padrinhos imperiais romanos.

Dessa história toda, o que mais importa é o seguinte. No primeiro século,


tanto 0 Templo de Jerusalém como a autoridade de seus sumos sacerdotes haviam
adquirido incômoda ambigüidade. Para o judaísmo essênio, as preocupações com a
fidelidade à aliança e à pureza ritual militavam contra o Templo e o sacerdócio. Se
os essênios tivessem conquistado Jerusalém, teriam se esforçado para transformar
0 Templo e a cidade em lugares purificados, segundo as exigências de seu Rolo do
Templo encontrado em Qumrã. O judaísmo dos zelotes dirigiu a luta de classes contra
0 Templo e seu sacerdócio. Que dizer a respeito do judaísmo dos fariseus? Eles ha­
viam levado a pureza sacerdotal para o interior de seus lares. Estariam aumentando
0 que lhes parecia ser a observância perfeita em contraposição ao que, segundo eles,
a ameaçava? 0 judaísmo cristão havia se oposto ao Templo e ao sacerdócio. Mas
não seria tremendo erro histórico afirmar que se tratava de mero ataque abstrato
contra os sacrifícios, a pureza, o santuário e o sacerdócio? Não estaríamos reduzin­
do a questão à luta do “cristianismo” contra o “judaísmo”? Para muitos judeus do
primeiro século as questões relacionadas com luxo excessivo, legitimidade dinástica,
ascendência aristocrática e colaboração com o império sepultavam a beleza do sumo
sacerdócio, a glória do Templo e até mesmo o esplendor de Jerusalém em camadas
de ambigüidade que não podem ser ignoradas.

A glória do Templo
Por toda a Antiguidade e muito tempo depois da destruição do Templo, os sá­
bios de Israel continuavam dizendo que “quem não tinha visto o edifício de Herodes
não sabia o que era uma estrutura bela”. Josefo, Fílon, Tácito e outros escritores
antigos louvam igualmente a beleza do Templo. Graças a escavações e descobertas
arqueológicas chegamos a vislumbrar o feito de Herodes, o desenho grandioso do
complexo, os pormenores da construção e as técnicas arquitetônicas empregadas.
Podemos agora imaginar o Templo como Jesus o teria visto.

Herodes, o Grande, não poderia ter alterado muito o santuário interno, recons­
truído depois do exílio babilónico, a partir das prescrições bíblicas de Salomão.
As fachadas foram renovadas e as colunas, revestidas com placas de ouro, mas a
estrutura continuava a mesma. Herodes, então, duplicou os contornos do Monte do
Templo. O projeto teve início em 19 a.C. e só foi completado muito tempo depois
de sua morte.

Relembremos, dos capítulos anteriores, o reino arquitetônico de Herodes, o


Grande, construído em Cesaréia Marítima, com seu palácio, bem como outros no
deserto da Judéia. Mantenhamos essas obras na memória enquanto começamos a
examinar o terceiro componente dos sinais de seu reino, o Monte do Templo em
Jerusalém. Cesaréia curvava-se a Roma e ao comércio, os palácios dajudéia ofereciam
segurança e luxo, e o conjunto dessas edificações mantinha e mostrava o esplendor de
seu governo de rei-cliente romano. Examinemos, agora, sua grande conquista como rei
dos judeus. Mas, como já dissemos, todas essas coisas fazem parte da mesma unidade.
O grande porto de Cesaréia destinava-se primeiramente ao comércio. Mas também
servia para trazer pagãos em visita ao Templo de Jerusalém. Por que outra razão teria
Herodes projetado a ampla Corte dos Gentios no Templo se não estivesse esperando
a visita de turistas curiosos e de peregrinos piedosos gentios?

Imponência geográfica do Templo

Não podendo alterar nem aumentar o santuário interior, Herodes, o Grande,


cercou-o de ambientes novos, esplêndidos e monumentais, dobrando o espaço da
plataforma onde se erguia o Monte do Templo. Não se tratava de tarefa simples, posto
que Jerusalém fora construída em terreno acidentado, cheio de colinas ao redor do
Templo. 0 Vale Tyropoeon corria do lado ocidental, um pequeno vale ao norte, e o
mais profundo Kidron, ao leste. Mas Herodes, o Grande, impôs sua vontade sobre
a topografia e transformou o terreno. Aumentou a plataforma com aterros ao norte
abrangendo também um pedaço do Vale Tyropoeon ao oeste. Construiu também
diversas galerias com arcos no declive ao sul para sustentar a praça lá em cima.

Herodes mandou construir fortes muros nos quatro lados do Monte do Templo.
Não mexeu no lado oriental da antiga plataforma, mas a estendeu ao norte e ao
sul. Criou a partir daí uma gigantesca plataforma debaixo do santuário. Com forma
levemente trapezoidal, media cerca de 1.000 pés de largura no eixo leste-oeste e
1.550 de comprimento no norte-sul. Para assegurar a estabilidade da praça, cerca de
100 pés acima do nível da rua, os muros fortificados, particularmente nos lados sul
e oeste, precisaram de alicerces absolutamente seguros, feitos de enormes pedras.
Os arquitetos de Herodes prepararam a área e cavaram mais 60 pés na rocha, que
foi cortada e nivelada embaixo com uma base de 16 pés. Economizaram horas de
trabalho preparando as pedras no alto da colina ao lado, trazendo-as para baixo
em carretas puxadas por bois ou em caixas providas de grandes rodas. Quando os
diversos elementos iam sendo colocados no lugar, o espaço interior entre as paredes
antigas e as novas ia sendo preenchido e compactado com restos de material, sobre
0 qual se construía a nova camada. 0 processo eliminava a necessidade de içar as
gigantescas pedras.

Algumas delas, nas camadas inferiores, eram colossais. 0 túnel cavado ao longo
do Muro Ocidental pelo Ministério dos Assuntos Religiosos de Israel deixou à mostra
a base principal onde uma única pedra media 40 pés de largura e 10 de altura com
a grossura de 14 pés, pesando mais do que 500 toneladas. As pedras de Stonehen­
ge da Bretanha reduzem-se a quase nada em comparação com esta. A outra pedra
principal media 40 pés de comprimento, a seguinte, 25 e a última, 6, de maneira
que as quatro ocupavam mais de 100 pés. A maioria das pedras nas camadas mais
baixas não era tão grande como aquelas, medindo em geral 4 pés de altura, mas
mesmo assim pesavam entre 3 e 5 toneladas. Eram bem esquadrilhadas e polidas,
de tal maneira que o muro não precisou de argamassa para ser erguido. Cada pedra
encaixava-se tão perfeitamente às outras que, até hoje, vinte séculos depois, nem
uma lâmina ou folha de papel pode ser introduzida entre elas.

A fachada magnífica do Templo

Os muros do Monte do Templo de Herodes ajudavam a criar a imponente fachada.


Subiam do nível da rua 100 pés, cada fileira recuando 5 polegadas para dar ao todo
a leve aparência de uma pirâmide. As pedras do lado de fora eram cortadas segundo
0 estilo herodiano com relevo e margem. Nessa técnica, a margem ou moldura de 3
a 6 polegadas era cavada para dentro da área interna ou relevo. Essas pedras eram
bem polidas, dando ao edifício estética singular: em lugar de uma fachada monolítica
branca, cada pedra salientava-se e, no decorrer do dia, os raios solares produziam
sombras que se movimentavam entre os relevos e as margens. A rica textura dos
muros enfeitava-se de uma aura rósea sobre as pedras amareladas tanto no nascente
como no poente. Nas demais horas do dia, brilhavam como se fossem de mármore,
e os desenhos atraíam a atenção dos visitantes à medida que mais se aproximavam
deles. Em algumas pedras foram deixadas projeções em forma de cubos, bem pe­
quenas, nas quais prendiam-se cordas para o transporte nos carros de bois ou para
0 içamento. Em geral, eram removidos por ocasião do assentamento das pedras,
mas alguns foram deixados por acaso, de maneira que podiam, agora, acrescentar
novas formas de sombras na fachada do Templo.

A rica e ao mesmo tempo suave textura dos muros de proteção na parte de


baixo contrastava com a de cima. Nenhuma das paredes no alto nem os edifícios da
plataforma subsistiram. Foram destruídos e derrubados pelos romanos. Mas podem
ser reimaginados por arqueólogos e arquitetos dos fragmentos espalhados embai­
xo. A parte de cima fora construída com pilares adornados de capitéis. Embutidos
no muro em intervalos proporcionais, eram retangulares, diferindo dos cilíndricas
usados no palácio de Masada. Para quem contemplasse de fora, a fachada do Templo
constituía-se de duas partes: embaixo, a muralha levemente inclinada; em cima, os
muros ornamentados com pilares, um parapeito arredondado emoldurado por uma
torre em cada canto. Era daí que sacerdotes e levitas vigiavam o lugar e daí, como
nos contam as inscrições, soavam trombetas.

A inscrição foi recuperada pelas últimas escavações de Benjamin Mazar no canto


sudoeste do Monte. Escrita sobre uma pedra de 8 pés de comprimento que no passado
fizera parte do revestimento do pináculo redondo do muro, a inscrição em hebraico
feita a mão com espaços levemente irregulares pode ser traduzida assim: “Para o
lugar de tocar a trombeta para”. As letras finais desapareceram talvez quando os
romanos derrubaram a estrutura ou, mais provavelmente, quando Charles Warren
utilizava seu martelo de explorador. São várias as sugestões para se reaver as palavras
que faltam: tocar a trombeta “para o sacerdote” ou “para o Templo” ou, ainda, “para
anunciar o Sábado”. A escrita a mão, de certa forma rude, entre alguns resíduos
de reboco, sugere que tenha sido feita na pedreira para marcar o destino da pedra.
Quando colocada no muro acabou sendo revestida pelos pedreiros. Seja como for,
a inscrição evidencia a existência de vigilância pelos sacerdotes e confirma a prática
de anunciar o Sábado ou outros festivais com o som da trombeta do Templo, como
Josefo e a literatura rabínica descrevem.

As energias despendidas na fachada do Templo mostram o desenvolvimento


de uma estética austera para outra sofisticada, provavelmente por duas razões. Em
primeiro lugar, porque a fachada de pedras economizava obras de revestimento,
em geral produzido pela queima de pedra calcária, tarefa muito dispendiosa para
qualquer cidade no deserto dajudéia com pouca madeira para fazer fogo. Também,
porque ao evitar reboco em favor da pedra sólida, raramente a obra precisaria de
reparos. 0 Templo de Herodes fora construído para durar.

O segundo motivo ligava-se às orientações de Herodes para que o projeto não


tivesse imagens. A não ser numa citação de Josefo, que veremos depois, os esca­
vadores nunca encontraram nenhum indício de representações de seres vivos no
Templo, nem de estátuas ou relevos de corpos humanos ou de animais. Em lugar
disso, havia decorações florais e geométricas, principalmente no interior. Quem
entrava no Templo pelas escadas do sul, pela chamada Porta Dupla dos Portões de
Hulda, passando pela Stoa Real até a praça, via inúmeras câmaras arredondadas,
com abóbadas, multicoloridas e fantasticamente ornamentadas. Quadrados com
diferentes e intrincados modelos geométricos combinavam-se com rosetas parecidas
com crisântemos, botões de ouro e outras fiores locais, bem como com parreiras e
cachos de uva reproduzidos com capricho. É provável que essa tenha sido a Porta
Formosa, onde Pedro, segundo Atos 3,1-10, curou um aleijado de nascença que
pedia esmola aos que entravam.
Hierarquia arquitetônica do Templo

o lugar por onde se entrava no Templo já estabelecia a diferença de status dos


freqüentadores. A maioria vinha do sul e entrava pelos dois portões de Hulda, aber­
tos para a praça em cima. À esquerda, perto de um edifício com diversos miqwaoth,
onde 0 público podia mergulhar e se purificar, uma grande escadaria levava ao Portal
Duplo, reservado aos leigos; à direita, uma escada estreita acabava na entrada me­
nor do Portal Tríplice reservado aos sacerdotes. No canto sudoeste, uma escadaria
monumental, chamada hoje de Arco de Robinson, dirigia-se diretamente do sul da
praça debaixo do Monte do Templo, à Stoa Real, em cima do muro do lado sul.

As entradas eram facilmente controladas com guardas levíticos sob as ordens


do sumo sacerdote em cada portal, onde tinham poder para barrar desordeiros e
controlar o fluxo da multidão. Lá dentro, a Corte dos Gentios, que ocupava dois
terços da praça, abria-se indistintamente para todos os visitantes, judeus e gentios,
homens e mulheres. Além da Corte, uma barreira de pedra ou de grades, chamada
soreg, com poucos pés de altura, impedia a entrada de não-judeus, embora lhes fosse
permitido espiar o que se passava do outro lado. Encontraram-se duas inscrições
do primeiro século de nossa era anunciando a pena de morte para qualquer pagão
transgressor, a primeira no século dezenove, a outra, na primeira metade do vinte.
Burilada na pedra com escrita grega profissional, a primeira completa, contém a
seguinte mensagem:

Não é permitida a entrada de nenhum estrangeiro além da balaus­


trada e da proteção em volta. Os transgressores terão de se lamentar
sozinhos pela morte que recairá sobre eles.

A grafia da inscrição encontrada em 1938 ainda mostrava resíduos de tinta ver­


melha para lhe dar destaque. (Da segunda inscrição restaram apenas fragmentos.)
De um lado, os pagãos não podiam ultrapassar esse limite sob pena de morte. Mas,
de outro, tinham acesso à maioria dos recintos do Templo do que somado todo o
resto. Certamente, não está correta a afirmação atribuída ao Jesus de Marcos de que o
Templo deveria ser mas não era uma casa de oração para todos os povos (11,17).

A arqueologia nos leva até aí. Para o resto do Templo precisamos da ajuda de
Josefo e da literatura rabínica, que concordam entre si nas questões básicas. Os
sacerdotes e os leigos judeus, homens e mulheres, podiam atravessar o soreg para o
perímetro à frente, que era dividido em três partes: no sentido leste-oeste a Corte
das Mulheres, a dos Israelitas e a dos Sacerdotes. As mulheres não tinham permis­
são de entrar na Corte dos Israelitas, onde os homens judeus traziam oferendas; e
estes, por sua vez, não podiam entrar na Corte dos Sacerdotes, onde os sacrifícios
eram oferecidos no altar.

Os especialistas debatem se os leigos traziam os próprios animais para o sacrifício


ou os compravam na Stoa Real, ou se as duas coisas eram possíveis e quando isso
era feito. Perguntam também quem segurava os animais durante o sacrifício. Mas
não h á dúvida de que os sacerdotes e seus assistentes levíticos eram açougueiros
bem treinados e eficientes, capazes de cortar a garganta dos quadrúpedes, quebrar o
pescoço das aves, retirar o sangue, cortá-las para, afinal, queimá-las no fogo do altar.
O Santo dos Santos situava-se dentro do santuário, atrás do altar, de írente para o
oriente e para o nascente no Dia da Expiação. Era aí que no passado guardava-se
a Arca da Aliança, mas em tempos mais recentes permanecia vazio, porque era a
casa anicônica de Deus. Somente o sumo sacerdote, apenas no Dia da Expiação, e
em completa pureza, podia entrar por entre as cortinas que velavam a presença de
Deus. Tratava-se, naturalmente, de hierarquia, só que desta vez ditada pelas normas
judaicas de pureza e não pelo poder romano ou pela dignidade real.

De cada lado do Templo concêntrico erguiam-se duas importantes estruturas, a


Stoa Real dentro da parede, ao sul, e a Fortaleza Antônia fora dos muros, ao norte.
Arquitetonicamente, a Stoa Real era uma gigantesca basílica feita de quatro fileiras
de quarenta colunas ao longo dos 900 pés do muro ao sul. A fileira mais ao sul cons­
tituía-se de pilares junto ao muro do Monte do Templo; as colunas de cada lado da
nave sustentavam outras colunas para apoiar o telhado, e a quarta fileira, ao norte,
era vazada, de maneira que se podia através dela chegar à praça. Os escavadores
encontraram algumas colunas tão largas como Josefo descrevera: três homens com
os braços esticados ao redor dificilmente conseguiriam apertar as mãos. 0 ponto
focal da Stoa Real situava-se na extremidade oriental.

Funcionalmente, era no mercado que se convertia cada unidade da moeda cor­


rente em meio-siclo para os impostos do Templo, onde se compravam animais para o
sacrifício e, talvez, onde também se reunia o sinédrio ou concilio na sua extremidade
leste. Em outras palavras, abrigava as operações comerciais das quais dependiam os
sistemas fiscal e sacrificial do Templo.

Herodes deu à fortaleza o nome de Antônia em homenagem a seu antigo patro­


no Marco Antônio antes de ter sido derrotado por Otaviano. Depois disso, porém,
Herodes passou a obedecer o novo poder romano, sem muito alarde. Na época dos
asmonianos, localizava-se aí a Fortaleza Baris, mas arqueologicamente pouco se sabe
a respeito desse edifício no período herodiano, uma vez que Adriano reconstruiu a
maior parte de sua Aelia Capitolina em cima dela. Contém um grande pavimento de
pedra, que tem sido mostrado aos turistas e peregrinos desde o tempo das cruzadas
até hoje como o lithostroton onde Pilatos se sentou para julgar Jesus, segundo João
19,13. Na verdade, o local data do segundo século, de Adriano, e não do primeiro,
de Pilatos. Mas a mera localização dessa fortaleza militar, seja no tempo do monarca
Herodes seja no tempo do prefeito romano, acentua a importância da constante su­
pervisão do que se passava lá embaixo no Templo, de intervenções rápidas quando
necessárias e de controle total. O Império Romano e o reino de Herodes estavam
sempre vigiando o Templo, os sacerdotes e o povo. As vestes do sumo sacerdote,
por exemplo, eram guardadas quase sempre pelos procuradores e prefeitos romanos
na Fortaleza Antônia e só eram entregues a eles para as festividades depois que as
autoridades tinham certeza de que a multidão estava sob controle.

A águia dourada do Templo

A arqueologia confirma o caráter anicônico e a estética sem imagens do Templo


de Herodes. Na verdade, por que teria o monarca se preocupado em construir essa
maravilha do mundo para alimentar a fé popular, se, no processo, acabasse pro­
vocando sua ira? Mas temos notícia de uma exceção a essa iconoclastia em dados
textuais. O incidente aconteceu pouco antes da morte de Herodes, o Grande, e se
tornou prelúdio imediato do morticínio da Páscoa executado por seu filho Arque­
lau dentro do próprio Templo. Comentaremos mais adiante a respeito, mas, por
enquanto, vejamos como as obras Guerra judaica (1.650-655) e Antiguidades judaicas
(17.151-167) registram a história da águia do Templo:

Era, de fato, ilegal colocar no Templo qualquer imagem, busto ou


representação de criaturas vivas; apesar disso, o rei mandou insta­
lar no grande portão uma águia de ouro. Foi assim que os mestres
[da Lei, Judas, filho de Sepphoraeus, e Matias, filho de Margalus,]
exortaram os discípulos a derrubá-la [...]. Ao meio-dia, de comum
acordo, quando muitas pessoas perambulavam pelo Templo, des­
ceram do telhado com o auxílio de cordas e começaram a derrubar
a águia com machadinhas. 0 capitão do rei [...], com considerável
força, prendeu cerca de quatrocentos jovens e os levou ao rei [...].
Os que haviam descido do telhado agarrados nas cordas juntamente
com os doutores foram queimados vivos; os outros foram encami­
nhados para execução.

Onde se situava o “grande portão” sobre o qual fora colocada a águia dourada?
Josefo não nos informa a respeito porque talvez nem ele mesmo o soubesse. O
que aconteceu depois só podemos imaginar a partir do que sabemos. A passagem
elevada ligava os quarteirões ricos da cidade alta, passando sobre o Vale Tyropoeon,
aos muros do Monte do Templo, atrás do santuário. As elites judaicas entravam no
Templo atravessando essa ponte. Era também por ela que Herodes conduzia, dos
palácios fortificados ao Templo, dignitários pagãos que lhe visitavam. É provável
que Herodes tenha colocado a águia de ouro em cima do portão dessa ponte, no
muro ocidental do Templo. Nesse lugar, não podia ser vista do lado de dentro nem
das outras entradas usadas pelo povo. Seria vista, então, apenas pelos poderosos
pagãos que passavam por aí.

Mas por que colocar a figura de uma águia nesse complexo? Por que, afinal?
Certamente, não para provocar alguém. Tudo indica que tivesse permanecido no
Templo durante muito tempo até que alguém se deu conta de que Deus exigia a
3 1 . Reconstrução do M onte do Templo voltado para o M onte das Oliveiras
A beleza do Templo dominava a cidade baixa de Jerusalém (1), erguido sobre um monte artificial
construído por Herodes, o Grande, visto aqui da cidade alta (2). No centro do maior recinto
sagrado da Antiguidade sobressaía o santuário dourado (3), na frente do qual os sacerdotes
ofereciam sacrifícios. O M onte do Templo era acessível aos sacerdotes aristocratas que viviam
na cidade alta por meio de uma via sobre o Vale Tyropoeon (4); a maioria dos peregrinos entrava
pela porta sul na praça que também abrigava banheiras rituais (5), ou pela Porta Dupla (6) que
se dirigia à esplanada em cima, ou por uma escadaria (7) que acabava na Stoa Real (8), pórtico
semelhante a uma basílica, onde provavelmente Jesus expulsou os cambistas. A esquerda, na
época de Jesus a Fortaleza Antônia (9) abrigava as tropas romanas, que vigiavam cuidadosamente
as multidões durante a Páscoa e outras festas.

sua remoção. Esqueçamos por enquanto a beleza das brilhantes cores brancas e as
decorações com intrincados desenhos geométricos. Pensemos, em vez disso, na
ambigüidade das imensas pedras e dos monumentais alicerces. Os romanos po­
deriam indagar se Herodes construíra um magnífico santuário ou uma fortaleza
impenetrável. Por isso era absolutamente necessário colocar no topo do edifício o
símbolo claro da submissão a Roma, entre o santuário e a cidade. A águia dourada
representava a dominação romana e a submissão judaica. Assim como a Cesaréia de
Herodes curvava-se diante de Roma por meio do Templo de Augusto, assim também
0 Templo judaico de Herodes reconhecia o governo romano. Esta, pelo menos, é uma
provável interpretação da localização da águia e da intenção de Herodes.
Quarteirões do sumo sacerdócio
Falamos sobre a beleza e a ambigüidade do Templo de Jerusalém situado entre
a colônia judaica e o Império Romano. Era ao mesmo tempo casa de Deus e sede
da colaboração. Conjugava o magnífico santuário com a impressionante fortaleza.
Era controlado pela aristocracia sacerdotal que cooperava, por causa das circunstân­
cias, com a ocupação imperial. A revolta colonial, por fim, destruiu o Templo e acabou
com 0 sacerdócio para sempre. Mas pensemos agora a respeito não só da revolta
mas também da luta de classes, e sobre o que aconteceu quando os camponeses
zelotes tomaram Jerusalém na época da revolta em 66-74 d.C. Não encontramos
muita coisa a respeito disso nos registros arqueológicos em contraste com o muito
que foi descoberto sobre os sicários de Masada. Podemos, no entanto, ouvir o que
os arqueólogos nos têm para dizer sobre os quarteirões onde moravam os sumos
sacerdotes de Jerusalém. Não estamos pressupondo que os moradores fossem mais
venais ou piores do que qualquer outra aristocracia colonial obrigada a colaborar com
0 poder imperial. Como só podemos conhecer os zelotes pela exegese dos textos de
Josefo, talvez nos seja possível utilizar outros meios para retratar aqueles contra os
quais se opunham de maneira tão virulenta e rejeitavam com violência.

No primeiro século, como acabamos de ver, ia-se da cidade alta de Jerusalém


ao Monte do Templo por uma grande ponte. O trajeto inverso começava no Arco de
Wilson no muro ocidental, atravessava o Vale Tyropoeon e ligava as cortes do Templo
à cidade alta onde viviam as classes privilegiadas e os sacerdotes ricos. Nahman Avi­
gad, da Universidade Hebraica de Jerusalém, começou a escavar sistematicamente a
colina ocidental da cidade antiga de Jerusalém em 1969, conhecida hoje como seção
herodiana ou judaica, de frente para o Monte. Encontrou facilmente sob a superfície,
abaixo de poucas camadas, casas do período herodiano e romano antigo, destruídas
no desastre de 70 d.C. Essas residências faziam parte da abastada cidade alta, onde
viviam as famílias dos sumos sacerdotes, segundo as fontes literárias disponíveis.
Chamam a atenção pela beleza e requinte, semelhantes às vilas luxuosas petrificadas
em Pompéia e Herculano. Examinemos um exemplo, quase um palácio, segundo
Avigad, descrito por ele como Mansão Palaciana.

Mansão Palaciana

A casa estava distribuída ao redor de um pátio quadrado mas, diferindo das


encontradas em Cafarnaum da Galiléia, pavimentado com lajotas polidas e bem
recortadas. Ao oeste, onde ainda resiste o primeiro andar e algumas paredes de 3
metros de altura, segue-se um vestíbulo que vai do pátio ao salão (talvez triclinium
ou espaço para recepções) e, do outro lado, apenas o porão com instalações de água e
despensas, recortado na rocha. A mansão ocupava uma área de 6.000 pés quadrados
— mais ou menos do tamanho da Vila de Dionísio em Séforis, ou de outras vilas
no mundo romano. Sobressaía das demais residências na cidade baixa e, por causa
das técnicas de construção, materiais empregados e estilo semelhante ao Templo,
criava certa ambigüidade sofisticada relacionada com espaços públicos e privados,
sagrados e profanos.

A fresco. A casa fora solidamente construída sobre a rocha com pedras regulares.
Quase todas as paredes da primeira fase, na primeira metade do primeiro século,
haviam sido cobertas com coloridos afrescos semelhantes aos do segundo estilo
de Pompéia; algumas exibiam motivos da flora, grinaldas, romãs e maçãs; outras
imitavam painéis de mármore ou ostentavam desenhos geométricos em vermelho
vivo, ocre e verde; também foram achados restos pintados de uma coluna jônica. Os
afrescos da Mansão Palaciana e, na verdade, de todas as residências da cidade alta
eram sempre anicônicos — a única exceção foi a figura de um pássaro na parede
perto do Monte Sião. Essas paredes eram pintadas quando o estuque ainda estava
úmido, bem diferente da técnica mais cara e tecnicamente mais exigente do al secco,
utilizada na ínsula II de Séforis, que, por sua vez, facilmente se deteriora.

Estuque. Na fase fmal da casa, os proprietários apagavam os afrescos de tempos


em tempos e aplicavam nova camada de gesso nas paredes com estuque ornamental.
A superfície era trabalhada delicadamente com incisões que imitavam as pedras
da fachada do Templo herodiano. Embora o teto tenha sido destruído, fragmentos
dele, encontrados no chão, dão pistas de seu antigo esplendor: formas triangulares,
hexagonais e octogonais cercadas por motivos ovais e em forma de dardos. Ao
substituir as antigas cores vibrantes das paredes por imitações sóbrias de muros, os
proprietários estavam na contra-mão das tendências em voga no Mediterrâneo, pois
acontecia exatamente o contrário. E provável que esses proprietários se tivessem
dado conta do caráter kitsch das decorações anteriores e buscassem estilos mais
artisticamente conservadores e minimalistas. Ou, possivelmente, ao privatizar as
feições arquitetônicas do Templo, quisessem evocar a aura da vida pública e religiosa
de Jerusalém em suas casas, situando-se, dessa forma, no topo da pirâmide social
ao ligar a residência com a casa de Deus.

M osaico. Diversos pisos estavam cobertos de mosaicos. Embora feitos de pedras


brancas, também foram achados alguns com desenhos geométricos em vermelho e
branco: uma roseta vermelha e branca com seis pétalas e um tabuleiro comum de
jogo de damas em preto e branco cercado por moldura vermelha. Nas casas vizi­
nhas pisos de pedras mais ornamentadas utilizavam desde complicados desenhos
emoldurados por cristas de ondas, linhas emaranhadas e triângulos até o estilo do
opus sectile encontrado nos palácios de Herodes em Jericó e Masada, onde se podiam
ver grandes pedras polidas triangulares e quadradas. Os pisos — como os afrescos
— mostravam o conservadorismo tradicional dos donos das casas, que evitavam
figuras humanas ou de animais e, assim mesmo, faziam parte da elite abastada.

Os pequenos achados na mansão e nas demais casas da cidade alta também


atestavam a riqueza dos proprietários. Costumavam adquirir os mais belos objetos
do exterior, dificilmente vistos localmente e valorizados precisamente por causa de
sua inacessibilidade às classes inferiores. Com esses, os objetos que analisaremos a
seguir articulavam o lugar de seus donos nos strata sociais de Jerusalém.

Cerâm ica. A Mansão Palaciana contribuiu com panelas de cozinha e jarros para
armazenar alimentos, alguns encontrados inteiros no fundo de cisternas. Mas o que
distingue as casas da cidade alta, digamos, das moradias dos vilarejos da Galiléia é
a grande quantidade de finos aparelhos de servir como louças importadas e tigelas
locais da mais alta qualidade. Entre os artigos importados sobressaíam-se garrafas
vermelhas para servir vinho e tigelas do oeste, uma muito rara de Mégara feita a
partir de um molde com decorações em relevo, bem como tigelas rasas feitas no
local, finas e delicadas, pintadas em vermelho com motivos florais em vermelho,
marrom e preto.

Utensílios de vidro. Entre estes foram achados inúmeras tigelas com alças, frascos
de perfume ou óleo e fragmentos de um tipo raro de jarra. Este último item, embora
deformado pelo incêndio que destruiu a casa em 70 d.C., foi quase completamente
restaurado. No seu braço lê-se a inscrição em grego “Feita por Ênio”, referente ao
conhecido fenício de Sídon, fabricante de vidro, cujos objetos ainda hoje enfeitam
lugares como o Museu Metropolitano de Arte de Nova York.
Lam parinas. As lamparinas, em geral, eram herodianas, feitas de uma roda, com
a saída para o pavio. Mas diversos exemplos mais raros e ricos foram também acha­
dos, como as "lamparinas de Éfeso,” retocadas com uma borda brilhante, preta ou
vermelha, com o pavio (às vezes duplo) cercado por espirais e um cabo de tamanho
quase sempre exagerado.

Junto à riqueza da Mansão Palaciana e de outras casas da cidade alta, e con­


siderando que seus proprietários gostavam de ostentá-la, havia sempre artefatos
intimamente relacionados às preocupações judaicas com os ritos de purificação:
jarros de pedra e miqwaoth. De fato, cada casa escavada na cidade alta por Avigad
possuía diversos miqwaoth e inúmeros vasos de pedra. Mesmo se tivéssemos acesso
a apenas isso, já seria suficiente para revelar a riqueza das famílias.

Vasos de pedra. Dos muitos encontrados, alguns haviam sido feitos a mão, pare­
cidos com canecas, ou “vasos para medir”, tão comuns na Galiléia. Outros procediam
de pequenos tornos, principalmente os esféricos caprichosamente polidos, com de­
corações gravadas. Notáveis, no entanto, eram os maiores, com um pé de diâmetro
e 3 de altura. Podiam conter muitos galões de água e deviam ser semelhantes aos
da história das bodas de Caná, quando Jesus transformou água em vinho, segundo
João 2. Feitos a partir de grandes pedaços de pedra e modelados com perfeição em
grandes tornos operados por pelo menos três homens, ostentavam bela forma circu­
lar. 0 polimento interno e externo era perfeito. Alguns ostentavam linhas na borda
e no pé, enquanto outros apresentavam desenhos com motivos ovais e de dardos
ou formas verticais caneladas. Esses grandes vasos torneados dificilmente seriam
achados na Galiléia. Nenhum deles, por exemplo, foi encontrado em Nabratein,
alguns em Gamla, Jodefá e Cafarnaum, embora poucos tivessem sido achados em
casas aristocráticas dos bairros residenciais de Séforis. Podem ter sido modelados a
partir de matrizes de bronze ou mesmo de cerâmica, comuns nas casas aristocráticas
do mundo greco-romano. Mostram, sem dúvida, a preocupação dos donos dessas
casas com purezas, mas também que a mantinham dentro do estilo cosmopolita.

Banheiras rituais. O mesmo se aplica aos miqwaoth, ou banheiras rituais. Re­


lembremos como na Galiléia se situavam em espaços comunitários, por exemplo,
em Gamla, junto às prensas de oliva ou ao lado da sinagoga. Pensemos também
nas grandes piscinas comunitárias em Qumrã abertas à comunidade e no edifício
dedicado a esses rituais no lado sul do Monte do Templo, entre os muitos existen­
tes nas casas da cidade baixa, onde quartos de aluguel para os peregrinos incluíam
miqwaoth. Somente nas casas mais ricas da acrópole de Séforis existiam piscinas
com degraus em residências particulares. Mas nas casas da cidade alta havia muitas
delas, e algumas muito elaboradas.

Num dos exemplos que temos, o vestíbulo pavimentado com mosaico branco
conduzia a três salas de banho distintas. Entrava-se aí, onde as pessoas trocavam de
roupa, e à esquerda abria-se uma sala com uma banheira — por acaso, exatamente
igual à usada em Masada — , provavelmente para cuidados de higiene. A frente,
descendo cinco degraus, chegava-se a um miqweh medindo 6 pés de largura e 9 de
comprimento, bem acima das exigências formais da Mixná, que estipulava pelo
menos 40 seahs, ou cerca de 200 galões. A terceira piscina, menor, ligada por um
canal a anterior, servia como depósito de água, mas imagina-se que, por causa dos
degraus, também fosse usada eventualmente para purificações.

O trabalho de cavar na rocha, rebocar a cavidade, cobri-la com arcos e pavi­


mentar o chão com mosaico era dispendioso e complexo; não menos, porém, do
que fixar encanamentos para recolher água da chuva para as diferentes piscinas.
Tais esforços, entretanto, serviam para livrar os ricos de se banhar em público com
seus conterrâneos plebeus. Imergiam com elegância e privacidade, bem diferente
de certos balneários comuns em alguns vilarejos ou do mergulho nas águas abertas
do Mar da Galiléia em Cafarnaum. Contrastavam, certamente, com os costumes
políticos e apocalípticos de João Batista de mergulhar com outras pessoas no Jordão.
As miqwaoth da cidade alta mostram, sem dúvida, o respeito de seus donos pelos
rituais de purificação, mas também que tinham recursos para se purificar no luxo
de suas residências.

É de certa maneira irônico que exatamente quando os fariseus estendiam suas


noções a respeito de pureza para além do Templo, levando-as para suas refeições
e vidas diárias, os sacerdotes ricos introduziam elementos de luxo nessas práticas.
Os judeus comuns começavam, também, a democratizar a presença do divino fora
dos muros do santuário e as massas começavam a utilizar seus miqwaoth e vasos
de pedra, enquanto os ricos modificavam alguns dos implementos dos rituais de
purificação para acentuar seu status social.

Impostos e dízimos, sacerdotes e sacrifícios

Os antropólogos estimam que a classe sacerdotal em sociedades tipicamente


agrárias possuem quase sempre cerca de 15 por cento da terra, que era, naturalmente,
0 capital básico desse tipo de economia. Sabendo-se que na tradição israelita a terra
era dividida entre todas as tribos, ficamos surpresos ao saber que a tribo sacerdotal
de Levi não recebia nenhuma terra. Entretanto, para ela a herança era não a terra,
mas sim Deus. Examinemos, por exemplo, Deuteronômio 18,1-5:

Os sacerdotes levitas, a tribo inteira de Levi, não terão parte nem


herança em Israel: eles viverão dos manjares oferecidos a lahweh
e do seu patrimônio. Esta tribo não terá uma herança no meio dos
seus irmãos: lahweh é a sua herança, conforme lhe falou. Eis os
direitos que os sacerdotes têm sobre o povo, sobre os que oferecem
um sacrifício: do gado ou do rebanho serão dados ao sacerdote a
espádua, as queixadas e o estômago. Dar-lhe-ás as primícias do teu
trigo, do teu vinho novo e do teu óleo, como também as primícias da
tosquia do teu rebanho. Pois foi ele que lahweh teu Deus escolheu
dentre todas as tuas tribos, ele e seus filhos, para estar diante de
lahweh teu Deus, realizando o serviço divino e dando a bênção em
nome de lahweh, todos os dias.

A clara intenção da Torá era de que os sacerdotes obtivessem seu sustento da


terra, apenas indiretamente, por meio de impostos, dízimos e sacrifícios. 0 ideal é
que tudo isso fosse dividido eqüitativamente entre os sacerdotes. A justa distribuição
da terra entre as tribos incluía a justa distribuição de alimento entre os sacerdo­
tes. Segundo o ideal das Escrituras, essa concessão de alimento era perfeitamente
aceitável sem a partilha da terra. Mas, na verdade, logo depois do exílio babilônico
alguns sacerdotes começaram a possuir terras, segundo Neemias 13, e ao final do
primeiro século muitos deles já haviam adquirido o equivalente a grandes fazendas.
0 próprio Josefo, que era sacerdote aristocrata, relata ter sido recompensado por
seu patrono imperial, Tito, pela terra que havia perdido nos arredores de Jerusalém
na época da revolta, com muito mais terra na costa fértil da planície (Vida 422). O
ideal das Escrituras exigia a justa distribuição de terra e de alimento, mas a inevitável
realidade pendia para o acúmulo injusto da riqueza. Alguns sacerdotes acabavam
mais ricos do que outros, sem se falar nos camponeses. Imaginemos, então, como
funcionava o processo.

Em primeiro lugar e mais importante do que o resto, os sacrifícios e os dízimos


oferecidos pelo povo eram prescritos pelas Escrituras, mas o governo romano não
forçava a obediência dessas leis. Ninguém era obrigado a oferecer sacrifícios e,
certamente, os camponeses da Galiléia não conseguiam fazer anualmente as três
esperadas peregrinações a Jerusalém. A maioria das oferendas era totalmente quei­
mada diante de Deus, sem nada sobrar para comer. Alguns dos animais sacrificados
eram entregues aos sacerdotes e eles, obviamente, podiam comer mais do que povo
comum. Havia sacrifícios extremamente flexíveis; Levítico 5 exige um cordeiro que
podia ser substituído por dois pássaros e até mesmo por uma porção de grãos na
falta de dinheiro. O povo sacrificava a Deus, os sacerdotes recebiam sua parte, e era
assim que, sem terra tribal, tinham que sobreviver.

Porque comiam muita proteína, os sacerdotes eram maiores do que os outros e


tinham melhor musculatura. Mas carne sem refrigeração causava problemas de saúde,
e os filhos de casais carnívoros na Antiguidade eram suscetíveis de envenenamento
alimentar. Na verdade, dentro do ossuário do sumo sacerdote Caifás, a ser discutido
no próximo capítulo, acompanhavam seus restos os esqueletos de uma criança e de
dois infantes. Nem a riqueza garantia a longevidade. ^

Em segundo lugar, os dízimos dos produtos agrícolas sustentavam os sacerdo­


tes, que não podiam trabalhar fora do Templo. O sistema era complexo, havendo
diferenças entre as normas de Levítico e as de Deuteronômio. Além disso, Josefo
o interpretava diferentemente dos rabinos. De qualquer forma, não se tem notícia
se 0 povo tomava conhecimento dessas diferenças, e os sacerdotes nem sempre
estipulavam as quantias com precisão para cada família. As pessoas, no entanto,
traziam ao Templo o que lhes parecia ser 10 por cento do produto agrícola obtido,
para ser repartido entre os sacerdotes. Os piedosos galileus, por sua vez, não po­
dendo arcar com as despesas das peregrinações, davam o dízimo diretamente aos
sacerdotes locais. Segundo Deuteronômio 14, parte dos produtos do dízimo era
vendido em Jerusalém, e o lucro servia para cobrir despesas de viagem e na cidade,
incluindo virtualmente qualquer coisa, até mesmo “vinho e bebidas fortes”. Jeru­
salém também lucrava economicamente, e os peregrinos podiam celebrar as festas
nessas ocasiões.
Em terceiro lugar, o imposto do Templo correspondia a meio sido, quantia
equivalente a dois dias de trabalho de um camponês. Aqui, também, as fontes são
confusas: Êxodo 30 exige meio sido de cada israelita do sexo masculino e maior
de vinte anos mas, ao que tudo indica, apenas uma vez durante a vida. Neemias 10
já pede a terça parte de um sido, mas anualmente. No primeiro século, a prática
comum atestada por Fílon, Josefo e pela literatura rabínica era de ofertar meio sido
anualmente, para a manutenção do Templo e, principalmente, para cobrir os custos
dos sacrifícios comunitários. Vespasiano, por sua vez, aumentou o imposto para
punir os judeus, homens, mulheres e crianças, depois da revolta de 66-74 d.C., e
transferiu o pagamento para o templo de Júpiter Capitolino em Roma.

Vê-se bem que os impostos e os dízimos não seriam suficientes para manter o
opulento nível de vida dos sacerdotes ricos de Jerusalém. Mesmo os mais rigorosos
e generosos observadores da lei não costumavam dar mais do que 15 por cento de
sua renda para o Templo, e muitos deles, provavelmente, só doavam suas ofertas
nominalmente e de vez em quando. Alguns galileus, vivendo longe de Jerusalém,
não tinham condições de viajar até lá nem de pagar regularmente os dízimos, coisa
que incomodava os rabinos. Mas preocupavam-se mais com os impostos cobrados
por Herodes Antipas, destinados a Roma, do que com os de Jerusalém. Os impostos
romanos eram cuidadosamente monitorados e cobrados sob ameaças de prisão,
extrema violência ou confisco de terras. Os índices desses impostos variavam entre
25 e 40 por cento de tudo o que se ganhava.

As fontes literárias da época registram, em geral, pouco ressentimento contra


os impostos do Templo ou contra os dízimos da parte dos judeus leigos, mas os
sacerdotes ricos eram às vezes acusados de usurpar demasiadamente o dinheiro de
seus colegas mais pobres. Josefo narra com pormenores duas ocasiões que ilustram
0 fato: a primeira sob o sumo sacerdote Ismael em 59 d.C. e a outra sob Ananias,
pouco antes da revolta:

Naquela época o Rei Agripa conferiu o sumo sacerdócio a Ismael


filho de Fiabi. Surgiu então mútua inimizade e luta de classe entre
os sumos sacerdotes, de um lado, e os sacerdotes e líderes do popu­
lacho de Jerusalém, do outro [...]. Era tamanha a falta de vergonha
e a afronta da parte dos sumos sacerdotes, que descaradamente
enviavam escravos à entrada de suas casas para receber os dízimos
devidos aos sacerdotes, resultando daí que, sem nada ter, os pobres
religiosos morriam de fome [...]. O [sumo sacerdote] Ananias ti­
nha servos tão velhacos que, de comum acordo com homens sem
caráter, tomavam à força os dízimos destinados aos sacerdotes; não
hesitavam em surrar os que se recusassem a entregar o dinheiro.
Os sumos sacerdotes eram culpados das mesmas práticas de seus
escravos, e ninguém conseguia impedi-los de agir desse modo. E
aconteceu que os sacerdotes que nos tempos antigos eram man­
tidos pelos dízimos agora morriam de fome (Antiguidades judaicas
2 0 .179-181,206).

Eram casos de abuso, mas, de fato, ninguém era contra o dízimo para manter
os que serviam a Deus. Os judeo-cristãos do primeiro século, segundo a regra co­
munitária, Didaqué, incentivavam a comunidade a dar o dízimo aos profetas, “tanto
das suculentas vinhas e do dinheiro, dos bois e ovelhas [...], pois eles são os vossos
sacerdotes principais” (13,3).

Havia, por outro lado, claro ressentimento contra o roubo das riquezas do Templo
pelos romanos. O general Crasso pilhou o tesouro do Templo em 54 a.C. surrupiando
cerca de dez mil talentos em moedas e objetos de valor (um talento eqüivalia a 88
libras). Pôncio Pilatos provocou a revolta do povo quando se apossou de fundos do
Templo para construir um aqueduto. 0 procurador romano Gessius Florus roubou
dezessete talentos do tesouro do santuário alegando que César precisava deles. Em
conseqüência disso, as massas revoltaram-se contra seu governo envolvido com
extorsão e ladroeiras.
Além disso, o exemplo dos zelotes mostrava até que ponto os camponeses mili­
tantes eram capazes de reagir na primeira oportunidade e dar um banho de sangue,
pelo menos em parte da aristocracia sacerdotal. Em tal massacre misturavam luta de
classe com revolta popular; os zelotes criaram, assim, um reinado de terror contra
as classes altas, provocados pela riqueza e pelo poder da aristocracia sacerdotal, por
sua colaboração passada com os romanos e potencial traição no futuro. Parte dos
camponeses demonstrava, assim, que a consciência que tinha dos problemas era
de ordem não apenas pessoal e individual mas também sistêmica e estrutural. As
famílias da aristocracia e especialmente dos sumos sacerdotes eram, na verdade, as
responsáveis por esse estado de coisas. Tratava-se não apenas da riqueza advinda
da participação no Templo, mas também do lucro obtido por meio da colaboração
com 0 império. Estavam em jogo a beleza do sacerdócio antigo e a ambigüidade da
aristocracia colonial.

A casa incendiada

Essas famílias aristocráticas, não importando a colaboração com Roma nem


a riqueza conseqüente, acabaram em nada. O Templo caía enquanto a cidade alta
duraria apenas mais um mês. O quarteirão residencial dos sacerdotes foi destruí­
do. O clima dessa devastação foi captado vivamente na chamada Casa Incendiada,
descoberta por Nahman Avigad em janeiro de 1970, quase dezenove séculos depois
do desastre. 0 andar de baixo e o porão encheram-se com os destroços de pedras
carbonizadas e madeiramentos queimados dos andares superiores. Dois achados
conseguem reavivar os momentos finais da casa. Um resto de lança de bronze apoia­
va-se ainda no canto de uma parede. 0 osso do braço de uma mulher de mais ou
menos vinte anos sobre a escadaria indicava dramaticamente sua tentativa de fugir
dos romanos ou de escapar do inferno.
A data do desabamento da casa e da morte dessa mulher não é clara: fragmen­
tos de cerâmica encontrados no solo situam o acontecimento por volta da segunda
metade do primeiro século, e as moedas achadas são do ano 70 d.C. Algumas delas
haviam sido cunhadas pelos procuradores romanos dajudéia, mas a maioria datava
da revolta dos judeus em Jerusalém. Traziam as seguintes legendas: “Ano Dois/Li­
berdade de Sião”, “Ano Três/Liberdade de Sião” e “Ano Quatro/Da Redenção de
Sião”, isto é, 6 9 /7 0 d.C.
Alguns artefatos da casa pareciam restos de uma cozinha, mas havia tantos for­
nos, pilões e mós de basalto, amoladores e grandes vasos de pedra espalhados por
diversas salas, que bem poderiam fazer parte de uma oficina. A presença, também,
de inúmeros frascos de perfume, pesos e vasos de pedra com formas inusitadas levou
Avigad a sugerir que a oficina produzia incenso para o Templo, coisa que precisava
ser feita com pureza ritual.
Entre diversos pesos cilíndricos baixos, lia-se no de 3 polegadas de diâmetro
a seguinte inscrição em letras aramaicas quadradas, “de Bar Kathros” ou “filho de
Kathros”. Dava-se o nome de Casa de Kathros a uma das quatro mais conhecidas
famílias sumo-sacerdotais que oficiavam no Templo sob o governo romano. O Tal-
mude babilônico registrou, mais tarde, a péssima reputação dessas famílias. A ode
Pesahim 57a refere-se a essas famílias, entre outras, com desprezo e vergonha, sem
nenhum respeito ou estima:

Ai de mim por causa da Casa de Beothus,


ai de mim por causa dos bastões.
Ai de mim por causa da Casa de Hanan,
ai de mim por causa de seus mexericos.
Ai de mim por causa da Casa de Kathros,
ai de mim por causa de suas canetas.
Ai de mim por causa da Casa de Ismael, filho de Fiabi,
ai de mim por causa de seus pulsos.
Pois são todos sumos sacerdotes,
e seus filhos, tesoureiros,
e os genros, administradores,
e seus servos agridem o povo com bastões.

O poema preserva a realidade do primeiro século documentada na metade do


sexto século. Essas antigas famílias sacerdotais foram criticadas duramente durante
mais da metade de um milênio. A Casa de Ismael, filho de Fiabi, foi criticada por
Josefo, e a de Ahanan, Anás ou Ananias, é bem conhecida no Novo Testamento por
causa de uma rebelião contra judeo-cristãos que durou cerca de trinta anos desde
os dias de Jesus de Nazaré até o tempo de seu irmão Tiago de Jerusalém. Essas fa­
mílias eram conhecidas pelo rigor com que controlavam as dívidas e pela prática de
nepotismo para a escolha de diversos oficiais. Deduzimos que a oficina encontrada
na Casa Incendiada, a Casa de Kathros, estava ligada a vantajoso monopólio conce­
dido a essa família sacerdotal aristocrática, para produzir incenso e outros aromas
para o Templo. Entre os artefatos, foram também achados tinteiros de cerâmica
quase iguais aos de Qumrã, relembrando-nos de que a escrita na Antiguidade não
se limitava apenas aos que se ocupavam com rolos sagrados. Servia, também, para
contratos legais que eram cuidadosamente conservados: “Ai de mim por causa de
3 4 . Reconstrução da elegante casa de um sacerdote na cidade alta de Jerusalém
Com vista para o M onte das Oliveiras (1) e o santuário do Templo (2), a cidade alta era habitada
pelos ricos de Jerusalém e pelos principais sacerdotes. Esta reconstrução é resultado de uma
colagem de várias casas escavadas incluindo a espetacular Mansão Palaciana. Os artefatos
encontrados nessas casas incluíam vasos de pedra (3), copos e xícaras de pedra (4) e mesas
também de pedra (5) adequadas aos rituais judaicos de purificação. Entre os objetos de luxo
havia colunas de bronze para lamparinas (6), lâmpadas penduradas (7) e mesas de três pés (8).
O mosaico ornamentado (9) é réplica da cidade alta, como os afrescos bem executados (10),
enquanto o teto (11) é a hipotética reconstrução a partir de fragmentos de estuque. Em contraste
com as casas do mundo romano de então, as da cidade alta eram totalmente anicônicas em
respeito à Lei Mosaica.

suas canetas”. Observemos, acima de tudo, os “bastões” mencionados duas vezes,


presentes no começo e no fim do poema.

Peregrinação ao Templo
Josefo, testemunha ocular que também estivera em Cesaréia e Roma, descreve
a fachada do Monte do Templo com deslumbramento. E o faz no momento trágico
em que também testemunha a sua destruição:

Não havia nada no exterior do edifício que não encantasse a mente e


o olhar. Pois, coberto de todos os lados com imensas placas de ouro.
assim que o sol subia, irradiava seu brilho com tamanho esplendor
que as pessoas se ofuscavam com os reflexos como se fossem os
próprios raios do astro. Aos estrangeiros que se aproximavam, o
Templo parecia, à distância, uma montanha coberta de neve, pois
tudo que não estivesse forrado de ouro era do branco mais puro
(Guerra judaica 5.222-223).

Imaginemo-nos como peregrinos visitando Jerusalém pela primeira vez e


contemplando o Templo, vindos não das cidades do Egeu ou de Roma, mas sim
da Galiléia ou do Golan, de Jodefá ou Gamla, ou mesmo de Cafarnaum ou Nazaré.
Chegando em Jerusalém, do Oriente, passando por Betânia, perto do Monte das
Oliveiras, entraríamos pelos portões da cidade baixa. Passando pela piscina de Siloé,
onde muitos peregrinos se lavavam depois da árdua jornada, seguiríamos pelo Vale
Kidron, passaríamos por mercados, casas com quartos de aluguel — alguns com
miqwaoth — e por hospedarias para visitantes judeus da diáspora. Uma inscrição
em grego, numa hospedaria construída por judeus para judeus da Ilha de Rodes,
permite-nos tomar consciência das muitas línguas e dialetos estrangeiros ouvidos
pelos peregrinos antigos.

Ao chegarmos à praça ao sul sob o Monte do Templo, veríamos em primeiro


lugar 0 grande arco e a passagem na frente deixando para trás a ponte sobre o Vale
Tyropoeon. Seríamos conduzidos diretamente pelas residências de luxo dos sacer­
dotes aristocratas, que, juntamente com a nobreza, passavam facilmente de suas
casas para o Templo.

Uma vez na praça abaixo do Templo, poderíamos, se fosse necessário, banhar-


nos no grande miqweh à direita da Porta Hulda. Depois disso, subiríamos os largos
degraus de 8 polegadas de altura, com larguras entre 12 e 35 polegadas, forçando-
nos a nos aproximar vagarosamente à Porta Dupla. Já fascinados pelo tamanho das
enormes pedras, ficaríamos mais extasiados pela cor vívida e pelas ilusões geomé­
tricas do domo redondo do vestíbulo logo após o portal. Ao entrar com a multidão
na esplanada do Monte do Templo, começaríamos a perceber sinais, cheiros e
sons dos sacrifícios, coisa que consideraríamos absolutamente normal, por ser a
maneira como todos os povos adoram o divino. Entre os sinais veríamos nuvens
de fumaça subindo dos altares para o céu. Os cheiros viriam dos doces aromas
das carnes e das gorduras queimadas, do vinho e do azeite, do incenso e de outras
ervas exóticas (misturados, naturalmente, com o cheiro das fezes de bois, bodes,
ovelhas e pássaros!). Os sons incluiriam também os mugidos dos bois e o balido
das ovelhas. Se fôssemos camponeses da Galiléia, estaríamos acostumados a viver
com os animais e, naturalmente, acreditaríamos que por meio deles e até mesmo
neles encontraríamos Deus.

Se fôssemos judeus, poderíamos passar pelo soreg e ir à entrada oriental dos


recintos do santuário — no qual, por causa do arranjo axial, veríamos a Corte das
Mulheres, passando pela escadaria circular até a Corte dos Israelitas e, já perto do
altar, subir mais alguns degraus até o santuário, em cujo recesso o Santo dos Santos
estaria protegido por espessa cortina.

Se fôssemos mulheres judias, teríamos que nos limitar à Corte das Mulheres.
Mas, sendo homens, teríamos permissão de levar os sacrifícios até os sacerdotes
e levitas. Esses devotados e competentes trabalhadores, suados e manchados de
sangue, estariam ocupados cortando gargantas, pendurando carcaças, cortando e
fatiando pedaços de carne para jogá-los no altar. Alguns encarregar-se-iam de manter
0 fogo aceso, enquanto outros abanariam as brasas ou ofereceriam incenso. Nossas
oferendas seriam consumidas no fogo enquanto a fumaça sobe até Deus.

A satisfação de estarmos no Templo misturar-se-ia profundamente e quase em


forma de êxtase com a alegria do festival. Na ocasião da Páscoa, as pessoas, por
exemplo, sacrificavam primeiramente um cordeiro no Templo, oferecendo sangue
a Deus, por intermédio dos sacerdotes, e recebiam de volta a carne para comer no
recôndito da família com os amigos, na mesma noite, ainda na presença de Deus. A
Páscoa relembrava o que Deus fizera para seu povo no passado, que se tornava pre­
sente agora e se projetava no futuro. Deus havia permanecido com um povo simples,
escravizado e condenado à morte, contra o poder e a força do império egípcio.

O ritual correlacionava o passado com o presente. Será que também equacionava


0 Império Egípcio com o romano? Talvez as pessoas nem fizessem essa pergunta.
Talvez nem mesmo pensassem a respeito de legitimidade sacerdotal, submissão
colonial ou colaboração imperial. É provável que em nossa visita imaginária também
nem notássemos a presença de soldados na Fortaleza Antônia, ocupados em nos
vigiar. Seriam auxiliares pagãos locais e não membros das forças legionárias, mas
estariam nos observando do norte. Era sempre do norte que vinham os ataques
romanos. E provável que muitos visitantes se envolvessem com familiares e amigos,
com sacrifícios e festas, Deus e Páscoa, de tal maneira que, perdidos na beleza do
Templo, não se dessem conta da perigosa ambigüidade da celebração da libertação
numa terra ocupada. Talvez.

Não obstante, essa perigosa ambigüidade estava sempre ali. Transpirava nos
festivais, que reuniam muita gente em lugares superlotados. Fazia-se presente es­
pecialmente na Páscoa, quando as pessoas celebravam a liberdade em face de um
império do passado na colônia do presente. Tomemos este exemplo de Josefo a
respeito de dois casos acontecidos ao longo de cinqüenta anos no primeiro século.

Em 4 a.C., segundo suas obras Guerrajudaica (2.10-13) e Antiguidades judaicas


(17.204-205), Arquelau, filho de Herodes, o Grande, lançou suas tropas contra mul­
tidões de protestadores durante “a festa dos pães ázimos, que os judeus chamavam
de Páscoa [...], ocasião em que se ofereciam múltiplos sacrifícios” e quando “mui­
ta gente vinha do interior para a cerimônia”. Além disso, “a Páscoa comemorava
sua saída do Egito”. Os gritos de protesto acabaram em apedrejamentos, até que
finalmente
Arquelau, contudo, sentiu que seria impossível conter a multidão
sem derramamento de sangue, e ordenou que seu exército entrasse
em ação. A infantaria entrou alinhada na cidade, enquanto a cavala­
ria avançava pela planície. Os soldados avançaram inesperadamente
sobre as pessoas, que se ocupavam com os sacrifícios, e mataram
cerca de trezentas delas, dispersando as outras pelas colinas em
volta. Os mensageiros de Arquelau ordenaram que todos voltassem
para suas casas; assim, todos abandonaram o festival e partiram.

Arquelau era apenas um príncipe herodiano ainda não confirmado no governo


por Augusto. Mas outro morticínio ainda pior do que esse aconteceu meio século
depois, quando o procurador romano Ventidius Cumanus governava todo o território
judaico. 0 número das vítimas varia nos dois relatos de Josefo, mas, de qualquer
forma, tratava-se igualmente de matança:

A multidão reunia-se, como de costume, emjerusalém, para a festa


dos pães ázimos, e as tropas romanas agrupavam-se no telhado do
pórtico do Templo; pois era natural que grupos de homens armados
montassem guarda nos dias de festa para prevenir desordens no
meio do povo. Lá em cima, um dos soldados, levantou a veste e se
colocou em atitude indecente, com o traseiro voltado para os judeus,
chamando a atenção de todos para a sua postura. Enraivecida com
o insulto, a multidão em alta voz pediu a Cumanus que punisse o
soldado; alguns jovens de cabeça quente com pessoas sediciosas
na multidão começaram a lutar e, tomando pedras, jogaram-nas
na tropa. Cumanus, temendo um ataque geral contra si mesmo,
enviou reforços. Quando as tropas invadiram os pórticos, os judeus
foram tomados de irresistível pânico e procuraram escapar para a
cidade. Mas, no meio de tamanha violência, enquanto buscavam as
saídas, foram pisoteados e mortos uns pelos outros; cerca de trinta
mil pessoas pereceram, e a festa transformou-se em lamentação
pela nação inteira e por todas as famílias (Guerrajudaica 2.224-227;
Antiguidades judaicas 20.106-112 afirma que o número de mortos
foi de 20.000).

A arqueologia não tem como relatar incidentes desse tipo. A única fonte exis­
tente são as obras de Josefo. Referindo-se a uma data entre esses dois incidentes de
Páscoa, Lucas 13,1 menciona: “Os galileus, cujo sangue Pilatos havia misturado com
0 de suas vítimas”. Lucas gostava muito de fazer alusões históricas e, às vezes, seu
entusiasmo sobrepujava a exatidão. Se a citação de Lucas não se refere a incidentes
envolvendo Arquelau e/ou Cumanus com Pilatos, relaciona-se talvez com algum
outro incidente da Páscoa ou de algum outro festival, quando o sangue dos protes­
tadores misturava-se com o dos animais sacrificados no Templo de Jerusalém. Beleza
e ambigüidade, mais uma vez, mas agora no nível do simples camponês judaico.
Duas ações perigosas
Jesus foi executado não pelo tetrarca Antipas na Galiléia mas sim pelo prefeito
romano Pilatos, na Judéia. Por que não por Antipas? Por quê? Jesus opunha-se à
romanização e urbanização de Antipas na Baixa Galiléia, desafiava a construção de
um reino comercial por palavras e ações, na visão e no programa. Fundamentava
sua atitude no Reino de Deus da aliança. Encarnava esse Reino no estilo de vida
participativa das comunidades. O movimento do Reino de Jesus era, pelo menos,
tão subversivo como o Batista de João. Mas Antipas governou por mais de quarenta
anos, devendo ter agido, se não corretamente, pelo menos com muito cuidado para
permanecer no poder por tanto tempo. Mas havia executado João. Não lhe parecia
prudente executar mais de um profeta numa década. É provável que Jesus tenha
sido salvo pelo martírio de João. Mas era o que se passava na Galiléia. A Galiléia
tinha apenas o herodiano Antipas. A Judéia, no entanto, tinha ao mesmo tempo o
saduceu Caifás e o romano Pilatos. Duplo perigo.

É provável que Jesus tivesse ido apenas uma vez a Jerusalém, como se vê no
cenário parabólico de Lucas. Poderia ter ido mais de uma vez, segundo o cenário
igualmente parabólico de João mas diferente do de Lucas. De qualquer maneira,
podemos ter certeza de que esteve em Jerusalém pelo menos uma vez. E nunca re­
tornou. O historiador romano Tácito conta que Jesus “sofreu pena de morte no
reinado de Tibério, sentenciado pelo procurador Pôncio Pilatos”. Josefo escreveu
que “Pilatos, depois de ouvir acusações de homens do mais alto gabarito entre nós,
0 condenou à crucifixão”. Os dois escritores situam a condenação na seqüência
de movimento-execução-continuação-expansão. A execução tinha a finalidade de
acabar com o movimento, mas este não só continuou apesar disso, como também
se expandiu. Nenhum dos autores menciona causas específicas e imediatas dessa
suprema penalidade.

Algumas advertências antes de continuarmos. Mesmo que nunca venhamos


a saber com certeza quais teriam sido as causas imediatas da execução de Jesus, a
promulgação do Reino de Deus que ele encarnava como programa de resistência
(fosse derivada da aliança, da escatologia ou do apocalipse) teria, de qualquer
forma, resultado num confronto fatal com as autoridades oficiais. Era só questão
de tempo e lugar. Também do surgimento de alguma atitude geral ou de algum
incidente específico capaz de levá-lo inevitavelmente ao martírio. Além disso, não
é preciso retratar Caifás ou Pilatos como monstros para entender o que aconteceu.
Quem anuncia o Reino de Deus facilmente pode ser confundido com o próprio rei,
e embora nem as autoridades judaicas nem as romanas vissem Jesus como perigo
militar, pois nunca prenderam seus seguidores, claramente percebiam que era amea­
ça social e por isso não o executaram a portas fechadas. Finalmente, nesta seção
mais do que em outras partes deste livro, os problemas dos strata exegéticos e das
camadas textuais são quase incontornáveis. Que porções, por exemplo, procedem
das primeiras camadas do Jesus histórico por volta do ano 30 e quais pertencem a
outras, posteriores, ou até mesmo de antes do primeiro nível da terceira camada
presente no Marcos histórico dos anos 70?

Entrada em Jerusalém

Como já mencionamos, qualquer ação subversiva era especialmente perigosa na


Páscoa, quando a antiga tradição de libertação da escravidão imperial combinava-
se com grandes multidões no mesmo espaço confinado do santuário e da cidade.
Tem-se notícia de duas ações principais na última semana de Jesus em Jerusalém
que poderiam ter provocado a ira do sumo sacerdote Caifás e do prefeito Pilatos.
Os incidentes são geralmente conhecidos por Entrada em Jerusalém e Purificação do
Templo. Os dois eventos estão de acordo com a atividade de Jesus na Galiléia, que já
analisamos. Ressaltam, respectivamente, em relação à injustiça violenta, elementos
de resistência não violenta do capítulo 4 e de resistência não violenta do capítulo 3. Há
notáveis semelhanças e significativas diferenças entre eles.

Os dois incidentes foram relatados nos quatro evangelhos, demonstrando que


Marcos narrou-os e os outros copiaram dele. A afirmação aplica-se quase certamente
a Mateus e a Lucas, e possivelmente a João. Mas será que se pode dizer a mesma
coisa a respeito dos dois eventos?

Os dois combinam palavras e obras, ação e interpretação, e citações incidentais e


escriturísticas. N a Entrada, contudo, o cumprimento das escrituras aparece apenas no
contexto escrito e só em Mateus e Lucas. Na Purificação, procede do próprio Jesus.

Os dois incidentes, portanto, estão certamente no primeiro nível da terceira


camada, isto é, de Marcos. Mas procederiam os dois de camadas anteriores? Re­
montarão, ambos, ao Jesus histórico? Há bons argumentos para afirmar que as duas
histórias vieram de Marcos como narrativas tradicionais, porque se pode ver nelas
as mudanças ocorridas a partir da base recebida.

Na Entrada, Marcos evita alusões a Zacarias 9,9-10: “Exulta muito, filha de Sião!
Grita de alegria, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti: ele é justo e vitorio­
so, humilde, montado sobre um jumento, sobre um jumentinho, filho da jumenta.
Ele eliminará os carros de Efraim e os cavalos de Jerusalém; o arco de guerra será
eliminado. Ele anunciará a paz às nações. 0 seu domínio irá de mar a mar e do Rio
às extremidades da terra”. Em vez disso, Marcos usa a história como mera negação
de Jesus como Filho de Davi. Em primeiro lugar, na passagem anterior à Entrada,
10,46-52, Marcos descreve um cego que saúda Jesus como “Filho de Davi” dizendo
que precisava ser curado antes de segui-lo “pelo caminho”. Em seguida, na passa­
gem posterior, 12,35-37, Marcos argumenta que o Senhor de Davi não pode ser, ao
mesmo tempo, filho de Davi. Finalmente, Marcos sempre relacionava com Jesus o
Reino de Deus e não o de Davi. A partir daí julgamos que a proclamação em Marcos
11,10, “Bendito o Reino que vem, o Reino do nosso pai Davi!”, tem a intenção, no
contexto, de ser totalmente errada. A multidão erroneamente prefere a vinda do
Reino de Davi (messianismo triunfante e/ou militante?) do que o presente Reino
de Deus. Nesse uso negativo, qualquer alusão explícita ou não a Zacarias 9,9-10
tinha que ser completamente omitida.
É possível, em outras palavras, localizar a Entrada numa camada anterior a Mar­
cos, bem antes da terceira camada do primeiro nível, também chamada “evangélica”.
Mas seria a primeira e original camada do Jesus histórico? Se, por um lado, fosse um
incidente histórico comandado por Jesus, teria sido suficiente para suscitar sérias
conseqüências. Aquela entrada em Jerusalém parecia-se mais com uma sátira an-
titriunfal e até mesmo caricatural. Os generais entravam nas cidades conquistadas
num carro de guerra ou montados em corcéis cerimoniais, ostentando símbolos
de poder violento. Mas Jesus entrava montado num jumento. As autoridades, no
contexto do severo sistema de segurança acionado durante as celebrações da Pás­
coa, não teriam achado graça nessa atitude. Esse ato público já seria suficiente para
provocar a crucifixão. De outro lado, se se tratasse não de incidente histórico mas
sim de história parabólica, embora não explicando o que teria acontecido, como as
narrativas, teria servido para nos mostrar a maneira como o reinado de Jesus era
entendido por seus primeiros discípulos ou seguidores posteriores. Era, para eles,
um anti-reinado não violento.

“Purificação” do Templo ^

No episódio da Purificação parece evidente o mesmo tipo de adaptação editorial


da unidade pré-marcana. Jesus, na verdade, não efetua um ritual de purificação,
mas representa a simbólica destruição do Templo. A citação de Jeremias 7,11 (“esta
casa [...] será porventura um covil de ladrões?”) encaixa-se perfeitamente no que
aconteceu, e a examinaremos mais adiante. Mas a citação anterior de Isaías 56,7
(“A minha Casa será chamada casa de oração para todos os povos”) interrompe essa
unidade e é, no contexto histórico do primeiro século, injustamente imprecisa. O
Templo de Jerusalém era, de fato, casa de oração para todos os povos. A enorme Corte
dos Gentios não era apenas ornamental, pois mostrava o grande número de pagãos
que vinham de longe em peregrinação para visitar a monumental reconstrução de
Herodes, chamada, adequadamente, de Terceiro Templo.

Eis, a seguir, breve comentário a respeito do título Purificação. Podia-se, natu­


ralmente, no judaísmo, criticar o Templo por causa da ilegitimidade dinástica ou
da colaboração que as famílias sumo-sacerdotais prestavam ao império. Da mesma
forma, seria possível, também no judaísmo, não participar nas atividades progra­
madas segundo seu calendário e culto, em forma de protesto. Se, por exemplo, os
essênios de Qumrã tivessem controlado Jerusalém e o Templo, certamente teriam se
empenhado em “purificá-lo” das impurezas rituais. Considerando tudo isso, sempre
houve certa sombra antijudaica ou mesmo anti-semita na descrição da “purificação”
do Templo por Jesus, principalmente quando dá ênfase no ato de virar “as mesas
dos cambistas”. Quando, portanto, lermos essas passagens, precisamos deixá-las
entre aspas para indicar sua inexatidão.

De qualquer forma. Marcos 11,15-17 não descreve nenhuma purificação simbó­


lica, mas sim a destruição simbólica do Templo. Tal conclusão mantém-se por causa
da relação com a figueira, quando é amaldiçoada, antes, em 11,12-14 e depois encon­
trada morta em 11,20. Para Marcos, a destruição da figueira significava a destruição
do Templo. Em seguida, a mesma coisa torna-se evidente, quando Jesus não apenas
ataca os que trocavam a moeda corrente pelos sidos aceitos no santuário destinados
a impostos e doações. Ele quis interromper todas as operações fiscais, sacrificiais
e logísticas do Templo. Os termos “destruir” e “interromper” são, naturalmente,
simbólicos e proféticos em vez de históricos e factuais. É claro, finalmente, a partir
dos ditos de Jesus sobre “covil de ladrões” em forma de apêndice.

Reflitamos um pouco sobre essa frase. O termo “covil” ( esconderijo ou espaço


seguro) refere-se não ao lu^ar onde os larápios roubam, mas sim onde se refugiam
depois de suas aventuras. E assim que se entende a expressão “covil de ladrões” na
linguagem comum, bem como na citação de Jeremias 7,11. Esse contexto faz parte
da tradição contínua das advertências proféticas contra os que separam o culto divino
do Templo da justiça divina na terra. Como seria possível “oprimir o estrangeiro,
0 órfão e a viúva” contra a lei de Deus e tentar escapar refugiando-se no Templo
de Deus? Como seria possível entrar-se nessa casa e dizer “Estamos salvos”, para
continuar cometendo estas abominações! Esta casa, onde o meu nome é invocado,
será porventura um “covil de ladrões a vossos olhos?” (Jr 7,6.10-11). Quem ousa
transformar o meu Templo em refúgio para a injustiça?

Nesse contexto profético e com a citação das escrituras, o ato de Jesus consuma
a advertência de Deus sobre a destruição do Templo em Jeremias 7,14. Se continuar­
des a separar o culto divino sacrificial do Templo da justiça divina distributiva, “vou
tratar a casa, onde meu Nome é invocado, e em que colocais a vossa confiança, o
lugar que dei a vós e a vossos pais, como tratei [o antigo santuário de] Silo”.
Desses dois incidentes perigosos, a Entrada e a Purificação, o último parece ser
mais histórico do que parabólico. Por quê? Em primeiro lugar, porque há mais pos­
sibilidade de que João 2,13-17 tenha se baseado numa versão independente e não
seja fruto de mero arranjo literário criativo, reinterpretação ou deslocamento. Em
segundo lugar, por causa da versão independente do Evangelho de Tomé 71: “Jesus
disse: ‘Vou destruir [esta] casa, e ninguém será capaz de a reconstruir’ [...]”. Se,
portanto, houve realmente um evento específico que justificasse a crucifixão de Jesus,
este seria o mais recuperável. Em resumo, se as duas narrativas fossem históricas,
teriam levado Jesus à execução pública para servir de advertência pascal. Se, pelo
contrário, não passassem de parábolas, não teríamos como determinar o evento
específico emjerusalém responsável pela execução de Jesus. Mas, então, como no­
tamos acima, sua visão e programa, a vida sempre representando o Reino de Deus,
colocavam-no em deliberado choque contra o Reino de Roma, fosse na Galiléia sob
Antipas ou em Jerusalém sob Caifás e Pilatos. Mas esta discussão, não importando
0 que decidirmos, introduz a questão muito maior a respeito da historicidade do
julgamento de Jesus.

A historicidade do julgamento de Jesus


Não estamos questionando o fato básico da crucifixão de Jesus sob Pôncio Pilatos
(descrita por Tácito), nem a colaboração entre as mais altas autoridades judaicas e
romanas para a consecução dessa morte (de acordo com Josefo), nem mesmo certa
conjunção entre a morte de Jesus e a festa da Páscoa (segundo os evangelhos). Não
há dúvida sobre a historicidade desses fatos. Por outro lado não estamos simples­
mente perguntando se todos os pormenores de que se tem notícia sejam realmente
verdadeiros. O que importa saber é se o julgamento aconteceu e se a execução se
deu no nível mais baixo dos padrões estabelecidos pelos procedimentos de controle
da multidão na Páscoa. Indagamos especificamente a respeito da historicidade dos
elementos aparentemente incidentais que, juntos, teriam ajudado a forjar o anti-
semitismo cristão através dos séculos.

O problema inclui: Praticava-se a anistia aberta por ocasião da Páscoa? Poderia


“a multidão” anualmente conseguir a libertação de quem quisesse? Houve mesmo
uma escolha entre Barrabás e Jesus? Queria Pilatos, realmente, libertar Jesus, con­
siderando-o inocente? Teria procurado libertá-lo e, afinal, com relutância, o enviado
às exigências contrárias das autoridades do sumo sacerdócio judaico e à multidão
alvoroçada? A questão não se limita a considerar o caso drama constrangedor ou
narrativa sensacional. Naturalmente, as duas coisas estão aí. Mas tampouco se trata
de querer alimentar as análises biográficas da total insegurança política de Pilatos ou
das tensões psicológicas por que passava. Naturalmente, também se pode proceder
assim. Mas essas coisas realmente aconteceram? Trata-se de história? Por causa
dos limites de espaço, vamos nos concentrar nos elementos centrais desse antigo
cenário, a saber, a multidão e Barrabás, Jesus e Pilatos.

Rumor da multidão e escolha de Barrabás

Seria a anistia pascal aberta historicamente plausível? Certamente sim. Mas


teria de fato acontecido? Não estamos nos referindo a libertações concedidas para
assinalar a festa, concedidas pela vontade de algum governador tanto a criminosos
de baixo nível, em geral, como a outros de classes mais privilegiadas. Queremos
saber é se a anistia pascal, aberta aos que a solicitassem, era costume corrente em
qualquer lugar e, especialmente, na Judéia de Pilatos.
Ao escrever seu ataque contra o governador do Egito, Flaccus, o filósofo judeu
Fílon de Alexandria descreveu o que os governadores normais poderiam fazer em
ocasiões festivas a favor de pessoas condenadas. Uma vez que “o caráter sagrado do
festival tinha que ser considerado”, o bom governante deveria adiar a crucifixão do
condenado sem, no entanto, redimi-lo. Por exemplo, “entre todos os governantes
que dirigem qualquer Estado segundo princípios constitucionais e que não querem
se arriscar com atos de audácia e que ao mesmo tempo querem honrar seus benfei­
tores, costuma-se não punir ninguém, mesmo dentre os legalmente condenados,
até que o festival ou a assembléia em honra do aniversário do ilustre imperador
tenha passado”. Esse é seu melhor exemplo do que os governantes fazem em geral
quando “o próprio tempo dava, se não perdão completo, ainda em todos os eventos,
a breve e temporária pausa para a punição” (Contra Flaccus 81-84). Fílon imagina a
aplicação temporária da anistia em vez da plena ou aberta.

Resta a questão sobre a multidão pedindo, aos gritos, a execução de Jesus. Por
enquanto, concedamos que havia anistia aberta na Páscoa e que o governador era
decente. Mas por que a multidão pedia, aos brados, a crucifixão? Que tinha ela contra
Jesus? Que teria feito Jesus contra ela? Observemos, a seguir, o desenrolar dessa
história de uma fonte para outra no período de sua transmissão.

A narrativa mais antiga, de Marcos 15,6-8, descreve a chegada da multidão da


seguinte maneira: “Por ocasião da Festa, ele lhes soltava um preso que pedissem.
Ora, havia um chamado Barrabás, preso com outros amotinadores que, num motim,
haviam cometido um homicídio. A multidão, tendo subido, começou a pedir que
lhes fizesse como sempre tinha feito”. O povo tinha vindo, em outras palavras, por
causa de Barrabás e não contra Jesus. Mas Pilatos procura libertar Jesus em vez disso,
e daí por diante, instigada pelos sumos sacerdotes, a multidão insiste que Jesus seja
crucificado (e Barrabás, solto). A reunião do povo em favor de Barrabás só é contada
em Marcos. Ele é mencionado em primeiro lugar e Jesus, apenas mais tarde.

Quando Mateus reescreve a fonte de Marcos, a “multidão” de 27,15 aumenta


para “as multidões” de 27 ,2 0 e se torna em “todo o povo” em 27,25. Não nos diz
que essa gente se havia reunido por causa de Barrabás, mas que, ao chegar, Pilatos
pede que o povo faça a escolha: “Como estivessem reunidos, Pilatos lhes disse:
‘Quem quereis que vos solte, Barrabás ou Jesus, que chamam de Messias?’”. Então,
insuflados pelos sacerdotes, fizeram a escolha. Neste trecho, Barrabás e Jesus são
mencionados juntos, nessa ordem.

Lucas, ao reescrever Marcos, adota mudança semelhante. Em 23,13-18 Pilatos


declara a inocência de Jesus aos “chefes dos sacerdotes, os chefes e o povo”, mas
todos gritam ao mesmo tempo: “Morra este homem! Solta-nos Barrabás!”. Nada
menciona a respeito de uma “multidão” que teria vindo a Pilatos para soltar Barrabás.
Jesus é rejeitado mesmo antes do pedido para libertar Barrabás. Neste trecho, Jesus
(“este homem”) e Barrabás são mencionados juntos, nessa ordem.
Finalmente, em João 18,38-40, a multidão transforma-se nos “judeus” que
não vêm até Pilatos para interceder por Barrabás, mas o governador pergunta: “É
costume entre vós que eu vos solte um preso, na Páscoa. Quereis que vos solte o
rei dos judeus?”. Eles gritam em resposta: “'Este não, mas Barrabás!’ Barrabás era
um bandido”. Jesus é oferecido por Pilatos e rejeitado pelos “judeus” em favor de
Barrabás, que apenas aparece nesse ponto. Neste caso, Jesus é mencionado em
primeiro lugar, Barrabás, depois.

Ao longo desses textos, por meio desses níveis da terceira camada desde Marcos
até João, vai havendo uma espécie de escalada. Vai, primeiramente, da “multidão”
para “as multidões”, “todo o povo” para terminar nos “judeus”. A cena move-se de
uma situação compreensível, quando a multidão vem para libertar Barrabás, contra­
riando qualquer propósito que Pilatos tivesse para soltar Jesus, e chega à situação
incompreensível, em que o povo se manifesta contra Jesus e em favor de Barrabás.

A compreensão desse processo duplo é vital para decidirmos qual história teria
vindo da primeira camada do primeiro nível do tempo do Jesus histórico ou se fora
criada pelo histórico Marcos para o primeiro nível da terceira camada. Relembre­
mos que os evangelistas escreveram evangelhos e não história nem biografia ou
jornalismo. Evangelho quer dizer boa-nova, e boa-nova, para continuar sendo boa
para novos ouvintes ou leitores, precisa ser atualizada e tornada sempre relevante
a novos lugares, tempos, experiências e comunidades. Essa é a lógica, por exemplo,
que determina como escritores posteriores modificam e adaptam deliberadamen­
te a fonte de Marcos, mudando e adaptando as próprias palavras e feitos de Jesus
registrados por ele. Assim, à medida que os judeo-cristãos iam sendo cada vez
mais marginalizados no meio de seu próprio povo na experiência dos autores do
evangelho, assim também crescia a animosidade contra Jesus, expressa, então, na
maneira como representavam sua execução no passado. Daí a escalada que acabamos
de mencionar. Resulta de atualização da narrativa, com o objetivo de encaixar a his­
tória do passado na presente realidade. Quem são, neste momento, nossos amigos
e inimigos? Aqueles, pois, eram os amigos e os inimigos de Jesus na época de sua
execução. Se o autor do evangelho de João e sua comunidade experimentavam “os
judeus” (os “outros” judeus com exceção de nós, os bons) como inimigos, nada mais
natural do que projetá-los no passado como inimigos de Jesus. Mas, finalmente, se
0 método da atualização é o princípio básico da narrativa evangélica, teria sido a de
Marcos adaptação ou criação? De novo a pergunta; Seria história da primeira camada
ou parábola da terceira camada do primeiro nível?

Marcos escreve logo depois do confronto da grande revolta de 66-74 e especial­


mente da destruição de Jerusalém e do Templo em 70 d.C. Relembremos dos capítulos
anteriores os inúmeros bandos de rebeldes (lutadores pela liberdade ou guerrilheiros
revoltados) encurralados dentro dos muros protetores da cidade em face do avanço
das tropas de Vespasiano. Criaram, então, a coalizão pouco organizada conhecida
tecnicamente como zelotes. O Barrabás de Marcos era exatamente como um deles,
um rebelde usando violência contra o controle imperial romano. Marcos confronta
a cidade arruinada com a escolha fatal que fizera do salvador errado, o “filho do
pai”. Vocês enganaram-se, diz Marcos, entregando-se ao violento Barrabás em vez
de ter escolhido o não violento Jesus. Esse foi o seu terrível erro, clama Marcos. A
escolha entre Barrabás e Jesus é parábola, não história, mas é, segundo a intenção
de Marcos, uma parábola do passado sobre a história recente de Jerusalém.

Relutância de Pilatos e inocência de Jesus

E se Pilatos, de fato, fosse puro, decente e justo, e se encontrasse enredado


entre a ética interior e a política externa, vacilando entre a consciência privada e a
pressão pública? Não estamos apenas nos referindo ao infame (e famoso) contraste
descrito apenas por Mateus: “Vendo Pilatos que nada conseguia, mas, ao contrário,
a desordem aumentava, pegou água e, lavando as mãos, na presença da multidão,
disse: ‘Estou inocente desse sangue. A responsabilidade é vossa’. A isso todo o povo
respondeu: ‘O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos”’ (27,24-25). Formal,
oficial e ritualmente, esse gesto transfere a responsabilidade pela execução das mãos
romanas para as judias. Trata-se, claramente, de adição mateana à fonte marcana,
mas apenas acentua o que a história da paixão sublinha: o relutante Pilatos, que
reconhece a inocência de Jesus, fora forçado, por várias razões, a se render diante
dos pedidos de execução.

Há governantes do começo do primeiro século dos quais sabemos apenas os


nomes e de outros somente comentários de passagem. Mas conhecemos Pilatos por
meio de duas fontes judaicas da época, Fílon e Josefo. E o que mais criticam nele é
sua atitude perante condenações injustas e sobre as multidões de protestadores.

Fílon 0 descreve como “um homem de disposição muito inflexível, sem miseri­
córdia e obstinado”, reprova “sua corrupção e seus atos insolentes, seus roubos, os
hábitos de insultar o povo, a crueldade e os constantes assassinatos do povo sem
julgamento e sem sentenças de condenação, bem como sua terrível desumanidade
incessante e gratuita”, para resumir dizendo que era “sempre um homem de paixões
ferozes” (Embaixada a Caio 301-303). Mesmo se tudo isso não passe de retórica, foi
Pilatos que ele escolheu como alvo, retratando-o como a personificação do mau
governo.

Como ainda nos lembramos do capítulo 4, Josefo contou que levando os estan­
dartes imperiais para dentro dos muros de Jerusalém, Pilatos retrocedeu em face da
multidão desarmada, que protestava esperando o martírio. Mas em ocasião posterior,
quando o povo tentou a mesma estratégia, Pilatos infiltrou soldados sem uniforme
em seu meio e começou a luta de tal maneira que “grande número de judeus pereceu,
alguns em conseqüência dos golpes recebidos e outros na batalha que se seguiu. Ame­
drontada pelo destino das vítimas, a multidão reduziu-se ao silêncio” (Guerrajudaica
2.177; Antiguidades judaicas 18.62). Pilatos, naturalmente, acabou sendo demitido
de seu ofício por seu superior imediato, o governador da Síria, Vitélio, e chamado
para explicar o “assassinato das vítimas” de outra multidão, desta vez samaritana
(Antiguidades judaicas 18.88). Pilatos não foi santo nem monstro. Tudo o que sabemos
a seu respeito torna a história dos evangelhos implausível como fato.

Casualmente, como parte da restauração de Vitélio, depois de Pilatos, os im­


postos de Jerusalém foram abolidos, as vestes dos sumos sacerdotes passaram a
ser controladas pelos sacerdotes e Caifás foi deposto de seu cargo. Pressupõe-se
que essas mudanças foram aprovadas por todos, posto que Vitélio foi “recebido
magnificamente” na festa da Páscoa em Jerusalém. Caifás e Pilatos, aparentemente,
subiram e caíram juntos.

Retomamos agora a pergunta anterior sobre as origens desse cenário. Trata-se


da primeira e original camada de Jesus ou da terceira camada do primeiro nível de
Marcos? E se tivesse sido criação de Marcos, qual seria o propósito? A resposta
comum é que Marcos e os outros evangelistas estavam jogando as cartas romanas.
Eles sabiam que Jesus fora crucificado por Pôncio Pilatos mesmo se com certa cola­
boração dos sumos sacerdotes. Mas, segundo essa explicação, teriam transferido a
responsabilidade dos ombros dos romanos para os dos judeus criando uma multidão
barulhenta mas sob controle sacerdotal, e um Pilatos que sabia da inocência de
Jesus mas desistira de agir para evitar o pior. Tudo isso para tornar seu movimento
mais palatável ao poder imperial, escondendo o fato de que seus participantes eram
seguidores de um criminoso condenado.

Mas há uma explicação melhor do que essa. A camada na qual a responsabili­


dade romana diminui e acaba passando para o lado dos judeus de Jerusalém teria
se originado depois da primeira e antes da terceira. Segundo nossa interpretação, a
história básica da paixão teria sido criada nos primeiros anos da década de 40 numa
situação muito especial. Em primeiro lugar, os romanos não mais controlavam
diretamente o território judaico por meio de um governador imperial. Em segundo
lugar, 0 monarca judaico Herodes Agripa I chamava-se “Rei dos Judeus”, título que
ninguém ostentara desde a morte de Herodes, o Grande. Em terceiro lugar, Agripa
havia instituído um sumo sacerdote da casa de Anás. Em quarto lugar, nada disso
foi bem recebido pelo grupo dissidente dos judeo-cristãos. Josefo conta que Agripa
“gostava de estar presente em Jerusalém e o fazia constantemente; e observava
escrupulosamente as tradições de seu povo. Não deixava de participar nos ritos de
purificação e não deixava nenhum dia passar sem a oferenda do sacrifício” (Anti­
guidades judaicas 19.331). O livro de Atos dos Apóstolos relata que Agripa “naquele
mesmo tempo começou [...] a maltratar alguns membros da Igreja. Mandou matar à
espada Tiago, irmão de João. Vendo que isto agradava aos judeus, mandou prender
também a Pedro” (12,1-3).
Pensemos primeiramente numa história da paixão criada nesse contexto. Os
romanos pareciam muito bons porque seria mais seguro para os judeo-cristãos tê-los
no poder em vez de Agripa. Seus inimigos implacáveis pertenciam às autoridades
sumo-sacerdotais (principalmente da casa de Anás), e os habitantes de Jerusalém
pareciam apoiar Agripa. 0 que determinava no início dos anos 40 os amigos e
inimigos de Jesus na história da paixão era essa atualização contemporânea. Não
é que se quisesse falsear o poder romano nem deliberadamente contar mentiras
sobre Pilatos. A história teria sido criada para refletir com precisão a situação dos
judeo-cristãos no novo e perigoso contexto da Jerusalém dos anos 40, dando-lhes
certo alívio. Tratava-se, pois, de parábola e não de história. Era evangelho e não
reportagem jornalística. Na introdução deste livro, a segunda das dez “descobertas”
exegéticas mais importantes nas escavações a respeito de Jesus mostra que a história
mais antiga da paixão encontrava-se em fragmentos do chamado Evangelho de Pedro.
Nessa antiga história da paixão Pilatos nada tem a ver com a crucifixão. Quem se
envolve com ela é um certo Herodes não identificado, e percebe-se séria divisão
entre as autoridades dos judeus e “o povo dos judeus” a respeito da crucifixão e da
ressurreição de Jesus. Trata, naturalmente, não de história factual mas sim de sonho
fictício, do início e não do fmal do primeiro século.

3 5 . Fragmento do Evangelho de Pedro


(© Sociedade Egípcia de Exploração; fotografia gentilmente cedida pelo Museu Ashmolean,
Oxford)
Todos esses elementos indicam quanto mais precisamos ainda fazer para entender
a intenção, esclarecer a situação e, a partir daí, avaliar a historicidade das narrativas
da paixão. Não importando a maneira como explicamos suas origens, sabemos que
carregam pesado fardo de responsabilidade para incentivar diretamente o antiju-
daísmo cristão e, indiretamente, o anti-semitismo racial. Pensemos, por exemplo,
no auto da Paixão de Oberammergau, que representa dramaticamente a execução
de Jesus na pequena cidade bávara desse nome, em ação de graças pela superação
da peste. Esse drama tem sido representado desde 1634 sempre no décimo verão
setentrional da década — com algumas omissões necessárias, como em 1940, e em
outras ocasiões especiais, como em 1934. No dia 5 de julho de 1942, Adolf Hitler,
que havia visto a Paixão de Oberammergau duas vezes, em agosto de 1930 e no
mesmo mês em 1934, concluiu:

É vital que o auto da Paixão continue a ser apresentado em Oberam­


mergau; pois nunca a ameaça judaica tem sido tão convincentemente
retratada como nesta encenação, mostrando o que aconteceu no
tempo dos romanos. Nela vemos o romano Pôncio Pilatos tão racial
e intelectualmente superior, que sua figura se impõe como rocha
firme e límpida no meio do lixo e do lodo dos judeus.

Mesmo não levando em consideração a linguagem preconceituosa de Hitler,


será verdadeiro o contraste jurídico? Teria existido mesmo esse Pilatos favorável à
inocência e à justiça contra a implacável oposição judaica? Na verdade, do ponto de
vista romano de Pilatos, poderia Jesus ser realmente considerado completamente
inocente e acusado injustamente?
Mesmo se tudo o que lemos nos evangelhos a respeito desse julgamento tivesse
acontecido exatamente assim, não seria válido estender a responsabilidade para todos
os judeus de todos os tempos por causa de Caifás, e a todos os italianos também
de todas as épocas por causa de Pilatos. Mas, repetindo o que dissemos no início
deste capítulo, deixando de lado a cortesia ecumênica ou até mesmo a sensibilidade
pós-holocausto, permanece ainda a questão da exatidão histórica. Qual poderá ser
nossa melhor reconstrução do que aconteceu nesse distante passado em Jerusalém
entre a beleza e a ambigüidade da festa judaica sob o poder romano?
C a p ít u l o 7

COMO ENTERRAR UM REI

Dois temas, neste capítulo, interagem entre si. 0 primeiro refere-se aos sepulcros
aristocráticos. Túmulos e tumbas, sepulcros e mausoléus, rituais e práticas fúnebres
traduzem o que se crê a respeito da morte e depois dela. Mas, como nos relembram
os antropólogos, os monumentos para os mortos são também criptogramas da vida
social presente. Os arqueólogos têm descoberto grande variedade de túmulos ju­
daicos do primeiro século que não só indicam atitudes sobre a vida depois da morte,
mas também acentuam como esses mortos se situavam na sociedade. Na morte,
talvez mais do que na vida, a arquitetura funerária e as demonstrações de luxo
marcam o status do morto na sociedade, estabelecendo distinções entre abastados
e pobres, governadores e súditos. Mas como se enterram o imperador, o rei e o
sumo sacerdote? Como se preparam as pessoas para seus funerais? Examinaremos
não só o que dizem a respeito de suas crenças no mundo vindouro, mas também
no que esses monumentos revelam a respeito de seus reinos e domínios. Como se
preparavam para a morte e de que maneira gostariam de ser lembrados? Se fôssemos
governadores e tivéssemos que preparar nossos próprios funerais, que gostaríamos
de anunciar sobre nosso reino?

0 outro tema trata do sepulcro de Jesus. Jerusalém, cidade de santidade e paz,


era também lugar de luta e divisão. Há divergências entre diversos grupos cristãos
a respeito do lugar do sepultamento de Jesus, inclusive no interior da própria Igreja
do Santo Sepulcro. 0 grande santuário, construído e reconstruído desde a primeira
quarta parte do quarto século, é o centro espiritual do cristianismo. Contudo, em
primeiro lugar, nem o catolicismo anglicano ou o cristianismo protestante têm lugar
especial no cenotáfio de Cristo. As lutas que dividem o território de mármore da
igreja vêm de períodos anteriores à triste história da divisão dos cristãos. Os seguintes
grupos repartiram o espaço da igreja entre si e continuam lutando, às vezes vergo­
nhosamente, outras, com mais seriedade, para defender seu pedaço: católicos latinos,
greco-ortodoxos, coptas, armênios e sírios jacobitas. Finalmente, o que mais chama
a atenção não é que tenham coberto o túmulo de Jesus com mármore e discutido
sobre seu controle. 0 mais intrigante é o nome do lugar: Igreja do Santo Sepulcro.
Se esse foi realmente o lugar do sepultamento de Jesus depois de ser retirado da cruz
pela ação humana, foi também onde ressuscitou dos mortos pelo poder divino. 0
primeiro momento presta-se a debate histórico, mas o segundo pertence ao domínio
da fé. Trata-se, na verdade, do centro da fé cristã. Apesar disso, a igreja continua a
ser chamada de Santo Sepulcro e não da Bendita Ressurreição. Não se encontra aí o
mais desconcertante elemento desse sagrado santuário do cristianismo? Parece que
sabemos como se enterram o rei, o imperador e o sacerdote e como o túmulo deve ser
adornado. Mas como sepultar um criminoso crucificado e celebrar sua ressurreição?
Que tipo de lugar, tumba ou santuário cumpriria esse propósito?

O magnífico mausoléu de Augusto


Logo depois da vitória militar sobre Marco Antônio e Cleópatra em 31 a.C.,
Otávio, que seria Augusto, mandou construir seu mausoléu romano. Tendo visitado
0 túmulo de Alexandre, o Grande, em Alexandria e antecipando a adoção em Roma
do estilo helênico do reinado divino, Augusto mandou erguer um mausoléu que
copiava no nome e na forma uma das sete maravilhas do mundo, a tumba de Mausolo
em Halicarnasso na Ásia Menor. Mas quarenta anos antes de sua morte não estava
preocupado com a vida do além-túmulo nem com a preparação de sua alma para a
eternidade. No começo de seu reinado, o mausoléu anunciava aos contemporâneos
0 significado de imperador e império, de César e reino. 0 monumento articulava
três temas relacionados com o aqui e agora.

Em primeiro lugar, como era de esperar, o mausoléu situava Augusto no piná­


culo da pirâmide social. Nenhuma família romana nem indivíduo algum possuía
túmulo tão magnífico. A construção começou no Campus Martius, localizado então
nos limites da cidade onde diversos romanos ilustres eram sepultados. Ao longo da
vida. Augusto desenvolveu obras do sul para o norte, ligando o mausoléu à cidade
de tal modo que ao fmal de sua vida salientava-se no cenário urbano e podia ser
facilmente visitado. Melhorou a via principal que passava pela tumba na direção da
saída norte de Roma com estruturas cívicas para diversões públicas, beneficiando
a região. Entre elas destacavam-se os magníficos balneários públicos de seu genro
Agripa, 0 deslumbrante santuário dos deuses e deusas (Panteão) e, especialmente,
0 Altar da Paz (Ara Pacis) para celebrar a Paz Romana (Pax Romana) que ele trouxera
ao império.

Augusto era suficientemente cauteloso para não violar diretamente a tradição


romana construindo o mausoléu dentro do perímetro urbano da cidade, mas meticu­
losamente e com firmeza expandiu-a até o local do monumento fúnebre. Elevou-se
ao nível da divindade, ao situar o mausoléu perto do Panteão, igualmente redondo e
revestido de mármore como templo aos deuses. 0 túmulo de Augusto não pretendia
ser apenas uma cripta para enterrar um cadáver, embora isso fosse importante, mas
memorial público semelhante a um templo para homenagear o governador divino e
coroá-lo — mesmo depois de morto — como o ápice da sociedade romana.
Em segundo lugar, e intimamente relacionado com o que dissemos acima. Au­
gusto mandou fazer uma fachada espetacular de proporções monumentais. Como
já observamos, parecia-se com o famoso Mausoléu de Halicarnasso na forma e no
tamanho. Como aquele antigo túmulo, era uma rotunda, elevando-se em círculos
concêntricos, integrando jardim e rocha em forma de monte, semelhante a elevações
tradicionais etruscas ao redor de Roma usadas para funerais. A parte externa do
cilindro media cerca de 300 pés de diâmetro e 25 de altura, construída internamente
de tijolos e concreto, mas coberta externamente de esplêndido mármore travertino
que 0 geógrafo Estrabão descreveu como “sublime edifício de mármore branco”. Do
lado de dentro e acima do cilindro externo, ciprestes e outras árvores cresciam no
solo protuberante de onde se elevava um cone também cilíndrico de 150 pés. Uma
grande estátua de Augusto, em bronze, completava, no topo, o monumento. No
interior, corredores cercados de colunas e diversas câmaras concêntricas levavam à
câmara mortuária onde uma urna conservava as cinzas de Augusto.

Em terceiro lugar, e talvez mais obviamente, o mausoléu de Augusto imortali­


zava em Roma seu legado e sua dinastia. O mausoléu era não apenas seu lugar de
repouso fmal, mas também de sua família e dos descendentes — pressupunha a
continuação de seu reinado por meio da sucessão dinástica depois de sua morte. As
tumbas de famílias eram o grande ideal do Mediterrâneo. Esperava-se descansar na
morte ao lado dos ancestrais e ser relembrado aí pelos descendentes. 0 sobrinho
de Augusto foi o primeiro a ser enterrado nesse lugar em 23 a.C., e as cinzas de
outros cinco também foram depositadas no monumento antes das de Augusto no
ano 14 d.C. Depois dele, e sem contar outros que vieram mais tarde, seguiram-se
três júlio-claudianos: Tibério, Calígula e Cláudio. O privilégio do sepultamento
nesse lugar foi negado deliberadamente a certos membros da família, excluídos
até na morte e banidos da cripta, como, por exemplo, a filha de Augusto, Júlia, e
0 imperador Nero.
Ao lado de sua família, Augusto deixou gravado o seu legado por meio das
chamadas Res Gestae Divi Augustii, as “Conquistas do Divino Augusto”, dentro do
túmulo. A entrada do mausoléu foi cercada por dois obeliscos de granito de estilo
egípcio, e em duas pilastras dentro do portão sua autobiografia {Res Gestae) escrita
aos sessenta e seis anos de idade foi gravada em tábuas de bronze. Embora esses
documentos romanos originais tenham se perdido, cópias foram encontradas no
Templo de Roma e Augusto em Ancira, ao norte da Galácia, agora Ancara na Turquia
central. Hoje, a Ara Pacis Augustae, mencionada antes, foi reconstruída e recolocada
ao lado do mausoléu, e as Res Gestae, inscritas ao redor da base externa do altar.

De que maneira queria Augusto que seu reino e governo fossem lembrados?
Devemos ler o que ele mesmo escreveu sobre o que fizera. Exaltava as vitórias mili­
tares, 0 estabelecimento da lei e da ordem, e sua benevolência. As muitas guerras e
batalhas, violentas e sangrentas, são justificadas pela pacificação dos mares, estabi­
lidade no império e estabelecimento da paz em todos os lugares: “Na qualidade de
vencedor, concedi perdão aos cidadãos que o pediram. As nações estrangeiras — as
que com segurança pude perdoar preferi preservar do que matar”. Seu senso de
lei incluía três recenseamentos: o primeiro contava 4.063.000 cidadãos romanos,
seguido por 4.233.000 e 4.937.000 no terceiro. Manteve a ordem e praticou a justiça
reprimindo a revolta dos escravos, dizendo que dos “fugitivos de seus senhores [...]
que haviam pegado em armas, eu capturei 30.000 devolvendo-os a seus proprietá­
rios para punição”. Mas não conta que os recenseamentos facilitavam a cobrança
de impostos e que os escravos foram crucificados como inimigos da ordem romana.
As tábuas de bronze também louvam sua benevolência e patrocínio: distribuía aos
pobres de Roma presentes em dinheiro. Em cerca ocasião chegou a “dar 240 sestér-
cios [quantia equivalente a dois meses de trabalho] para cada homem, chegando a
320.000 membros das plebes urbanas”. Além disso patrocinou jogos de gladiadores
e a construção de inumeráveis templos em Roma e outros lugares. Mas não dizia,
naturalmente, que os subsídios do governo significavam controle da multidão nem
que os presentes vinham das pilhagens em outras terras ou que suas estátuas eram
introduzidas em templos imperiais nos territórios subjugados.

Suas conquistas, em suas próprias palavras, eram inscritas permanentemente


em bronze e afixadas na entrada de seu monumental e esplêndido mausoléu. O
imperador queria que as gerações futuras entendessem seu legado corretamente,
isto é, como ele escrevia, buscando controlar o futuro mesmo depois de morto. Era
assim que se enterrava um rei.

A tumba de Herodes no deserto


Imitando o patrono Augusto, depois dele, Herodes, o Grande, também construiu
seu mausoléu bem antes de sua morte. Não queria simplesmente copiar Augusto,
mas trazia as marcas do empreendimento da construção de seu reino. Tratava-se
de miniatura romana, com toques judaicos, resultando na síntese fmal herodiana
bastante original. Em todos os sentidos, o sepulcro referia-se à vida além-túmulo
e ao mesmo tempo impunha-se como fortaleza para proteger a vida neste mundo,
lugar de prazer para celebrações e sinal para Jerusalém de quem comandava a so­
ciedade do alto do pináculo.

Como vimos antes, Herodes, o Grande, dava nomes aos projetos de construção,
desde Cesaréia à baía de Sebastos, da cidade de Sebaste à fortaleza Antônia de Jerusa­
lém, para honrar o poder de Roma e sua força protetora. Também designava lugares
com nomes de membros de sua família — cidade de Antipatris, relembrando o pai,
fortaleza Cypros, homenageando a mãe, e a torre Fasaelis, emjerusalém, dedicada ao
irmão. Mas dedicou a si mesmo o Herodiano. Josefo conta que construiu-o como sua
sepultura no mesmo local onde no deserto dajudéia, 8 milhas ao sul de Jerusalém,
lutara contra os partos e os soldados asmonianos, seus rivais, quando fugiam para
a Arábia em 40 a.C. Ao escapar com sua família de Masada, buscando ajuda dos
nabateus, foi atacado por seu adversário Antígono e, ainda segundo Josefo, “esma­
gou-o como se não estivesse encontrando dificuldades e estivesse excelentemente
preparado para a guerra com vantagem. Mais tarde, quando se tornou rei, construiu
nesse local um palácio maravilhoso” (Antiguidades judaicas 14.359-360).

O Herodiano era um complexo com duas partes, o palácio-fortaleza no alto da


colina e o palácio-jardim-piscina na planície. Combinando os temas de seus outros
projetos, este presta tributo à sua personalidade e às construções de seu reino. Do­
minava e conquistava a topografia, de um lado, construindo elevações artificiais no
terreno para sua fortaleza rotunda, modelada como “se fosse um seio”, nas palavras
de Josefo. De outro lado, aplainou a área ao norte criando um platô para o palácio-
jardim-piscina. E, naturalmente, mandou fazer um aqueduto para transformar o
deserto em oásis. A fortaleza no alto da colina fez do Herodiano um ponto de refe­
rência ressaltando a importância de Herodes. Ao construir o monte artificial não só
oferecia aos visitantes a bela vista panorâmica mas também tornava o monumento
visível para quem estava em Jerusalém. Josefo afirma que ele queria que “todos
vissem” seu memorial. Mandou até mesmo desmanchar uma colina do lado leste
para facilitar a identificação do palácio ao longe, dando a impressão de que era mais
alto do que na realidade.

A visibilidade era também acentuada pela forma e pela fachada da fortaleza. Era
redonda, com duas paredes circulares, a interna medindo 175 pés de diâmetro e a
de fora, com 2 00 pés. Possuía quatro torres, distribuídas nos pontos cardeais. A do
leste, cilíndrica, salientava-se das demais. A forma redonda do Herodiano elevava-
se sobre as colinas da Judéia e chamava a atenção principalmente pela fachada, que
deveria ter sido polida como a do Monte do Templo ou, talvez, rebocada e lavada
de branco. Embora Josefo descreva as escadarias “de mármore branco” subindo até
a fortaleza, nenhum resquício delas foi encontrado pelo persistente e experiente
arqueólogo Ehud Netzer, de Israel. Mesmo se Herodes não tivesse trazido mármore
para o deserto e se Josefo não tivesse usado o termo técnico correto, o rei concluiu
seu monumento com luminosa fachada.
0 mausoléu de Herodes copiava o de Augusto de diversas maneiras. Era redondo
e muito visível com muitas plantas ao redor Mas não copiou Augusto exuberante­
mente. Em vez disso, construiu o Herodiano em estilo próprio, adequado ao seu
reino singular. Tipificava a carreira de Herodes. Não comemorava nenhuma grande
vitória militar, mas a luta sangrenta por sobrevivência pessoal e política quando
pedia ajuda romana em face da guerra civil. Embora o mausoléu fosse uma rotun­
da, precisava ser também uma fortaleza para protegê-lo de levantes populares e,
talvez, por isso, tenha escolhido construí-lo, por motivos de segurança, longe das
multidões de Jerusalém. Na verdade, o túmulo propriamente dito nunca foi achado;
talvez nunca tivesse ocupado a parte superior da fortaleza, mas o complexo inferior,
num edifício parecido com um mausoléu no final de longo corredor semelhante às
câmaras mortuárias judaicas no Vale Kidron emjerusalém, com telhados piramidais e
cônicos. Mas ao redor, Herodes construiu piscinas e jardins com a vida deste mundo
em sua mente. Finalmente, diferindo de Augusto, não foi enterrado com a família.
Na verdade, muitos de seus parentes foram mortos por ele por ciúmes ou paranóia.
Seus filhos não se uniram a ele na morte; Arquelau foi deposto de sua etnarquia e
exilado na Gália, Antipas perdeu a tetrarquia e se exilou na Espanha enquanto Felipe
acabou sepultado em seu próprio território ao norte.

Josefo registra que em seu leito de morte Herodes ordenou que, quando mor­
resse, sua irmã mandasse matar muitos judeus eminentes que estavam presos, para
que, pelo menos, fosse lamentado na morte deles. E disse; “Toda a Judéia e todas as
famílias chorarão por mim, pois não poderão fazer outra coisa”. A irmã não cumpriu
a ordem, e seu filho Arquelau deu-lhe um funeral magnífico. O corpo de Herodes,
0 Grande, Rei dos Judeus, foi transportado num ataúde dourado ornamentado
com pedras preciosas e coberto com um manto de púrpura real, acompanhado
por parentes e mercenários da Trácia, Gália e Germânia até o Herodiano para as
cerimônias fúnebres. Quinhentos servos encarregaram-se de levar perfumes. Estes,
naturalmente, para abafar o cheiro da decomposição do cadáver Era assim que se
enterrava um rei.

O esplêndido ossuário de Caifás


Prim eiro e segundo fu n erais. Contrariando a tradição romana da cremação, que
era um dos costumes comuns ao lado do enterro do morto em sarcófago do tamanho
dele, a tradição judaica proibia terminantemente a queima dos cadáveres. Em vez
disso, as práticas fimerárias judaicas incluíam a antiga tradição semita do segundo
enterro, quando os ossos depois de um ano no túmulo eram exumados e preparados
para novo sepultamento. O costume milenar consistia em depositar esses ossos
com outros de familiares ou do grupo numa sepultura, parecida com um caixão, na
câmara mortuária; daí o desejo bíblico expresso na frase “reunido com meus pais”.
Nos arredores de Jerusalém do primeiro século, os ossuários eram caixas, como já
r-h ^ ^

3 8 . Reconstrução do Herodiano (segundo Netzer)


Herodes, o Grande, Rei dos Judeus, construiu o complexo de seu monumental túmulo cerca de
8 milhas ao sul de Jerusalém no deserto d ajud éia. Voltado para o M ar M orto (1) e a Jordânia
moderna (2), o Herodiano era um memorial contendo ao mesmo tempo elementos de fortaleza e
de palácio de recreio. A fortaleza elevada (3) sobre um monte artificial parecia-se com o mausoléu
de César Augusto por causa da forma arredondada. Contudo, o túmulo de Herodes localizava-
se num complexo mais abaixo na extremidade de um corredor (4) em estilo tradicional semita
(5). O Herodiano oferecia ao rei segurança e diversão bem antes de sua morte, nos jardins
(6), piscinas e gazebo (7), incluindo o palácio mais abaixo (8) e acomodações para os servos e
hóspedes, transformando o deserto num elegante oásis de prazer.

comentamos no primeiro capítulo, feitas de pedra calcária ou argila como os vasos


descritos no capítulo 5.

Nos dias de Jesus, os corpos na primeira fase do enterro passavam por um destes
dois processos. Em geral, eram depositados em nichos fundos, chamados kokhim,
medindo cerca de 6 pés cavados nas paredes com 1 Vi de largura sob um arco em
cima. O segundo método consistia em colocar os corpos em grandes prateleiras
talhadas nas paredes da câmara, chamadas arcosolia, medindo também 6 pés de
comprimento por 2 de largura. Na segunda fase do sepultamento, ainda no primeiro
século, os ossos passavam, em geral, para ossuários, que eram caixas com tampas
quase sempre decoradas, de tamanho suficiente para conter o fêmur e outros ossos
longos. Dos mil ossuários encontrados dessa época cerca de um quarto deles exibiam
os nomes dos ocupantes. Muitos deles foram descobertos nos fundos dos kokhim ou
em cima de camadas de arcosolia.
Por que a prática de ossuários desenvolveu-se nessa época e lugar, isto é, no
primeiro século e ao redor de Jerusalém? É possível que o costume reflita a crença
geral teológica na ressurreição do corpo entre alguns judeus, principalmente entre
os fariseus. É também provável que o depósito de esqueletos em caixas discretas
refletisse o alto sentido psicológico de individualismo da era helénica. Além disso,
as pressões sociais e políticas sentidas pelos judeus vivendo sob o jugo romano
poderiam ter afetado suas práticas funerárias. Assim como os vasos de pedra e os
miqwaoth descritos no capítulo 5 podiam ser considerados marcas de identidade, e
os ritos de purificação, formas de resistência, assim, também, conservar os ossos
em ossuários poderia reforçar os limites sociais dos judeus depois da morte. Os
ossuários não apenas distinguem claramente os sepultamentos judeus dos romanos,
como também assinalam de maneira concreta a diferença e protegem os indivíduos
mesmo depois de mortos das desordens do mundo lá fora. Mas é difícil forçar as
evidências arqueológicas nessas direções. Por isso, ofereceremos, mais adiante,
objeções a essas interpretações.

Talvez seja mais fácil perceber os modelos dominantes a respeito de ossuários


nos arredores de Jerusalém durante e depois do reinado de Herodes, o Grande.
Observemos os fatores socioeconômicos por detrás da adoção de ossuários. A ati­
vidade econômica emanada do reino comercial do reino de Herodes fez aumentar
consideravelmente a população de Jerusalém, diminuindo o espaço destinado a
sepultamentos. Não era fácil acrescentar novas câmaras mortuárias nas abarrotadas
necrópoles existentes. Os ossuários economizavam espaço e podiam ser devolvidos
aos antigos sepulcros.

Mais importante ainda é o fato de que o projeto do Templo de Herodes não


apenas atraiu fundos para a cidade, mas também treinou um quadro de pedreiros
profissionais. Em diversas tumbas, o abandono de esquifes e a adição de ossuários
datam de uma ou duas décadas antes da era cristã, quando começou a construção
do Templo. As decorações dos ossuários mais elegantes sempre com motivos geo­
métricos e florais imitavam os da arquitetura do Templo, com predominância de
rosetas. Além disso, inspiravam-se nos ornamentos do Templo como, por exemplo,
colunas, colunatas e paredes com margens e saliências, bem como a da Mansão
Palaciana, cujos elementos já examinamos no capítulo anterior. Havia duas inscri­
ções ligadas ao Templo. Numa câmara mortuária muito elaborada e rica no Monte
Scopus, foi achado um ossuário com a inscrição em grego “Nicanor de Alexandria,
que fez os portões”, provavelmente o mesmo doador dos fundos para a construção
dos Portões de Nicanor no Templo, mencionado em fontes literárias. Outro espaço
fúnebre mais modesto, encontrado em Givat Hamivtar, continha o ossuário de
“Shimon, construtor do Templo”, possivelmente um dos contramestres ou pedreiros
empregados na obra.

Concluímos que o fenômeno dos ossuários só pode ser explicado por meio da
crença ou da teologia. Podem refletir a crença comum na ressurreição, alto senso de
individualismo, ou o desejo subconsciente de manutenção da identidade e de pro­
teção na morte, mas seu uso tornou-se possível pela economia de Jerusalém, que
imitava o Templo em construção, e pela existência de bem treinados pedreiros e
escultores. Na verdade, eram mais usados pelas classes altas. Mas os mais simples
não seriam caros — sabe-se por meio de inscrições da época que custariam, cada
um, cerca de uma dracma e quatro óbolos, equivalente a um dia de trabalho de um
operário especializado. O ossuário de Tiago não sugere gastos extraordinários em
sua confecção. O que custava mais era o pedaço de terra para a câmara mortuária.
Nem todos tinham recursos para construir uma câmara mortuária com cavidades
para o primeiro sepultamento e ossuários para o segundo.

A seguir, breve comentário cauteloso sobre ossuários e o estilo helênico indi­


vidualista: poucos ossuários encontrados continham os restos de um só indivíduo
— a grande maioria abrigava diversos esqueletos. As inscrições atestam que o se­
pultamento dos membros da família era norma vigente judaica. Termos familiares
afetuosos como o aramaico Abba (“papai”) ou Emma (“mamãe”) eram comumente
rabiscados nos ossuários. De fato, a maioria dos nomes mostrava relações consan-
güíneas, não só pelo uso freqüente e óbvio do aramaico bar x ou “filho de x” indicando
paternidade, mas de muitas outras relações como “esposa de,” “pai de” ou “mãe
de”. Embora a fórmula do ossuário de Tiago — akhui di, “irmão de” — ocorra em
apenas esse, mais freqüentemente os irmãos eram enterrados juntos e identificados
com a inscrição mais genérica, “filhos de x ”; há o caso de Mathai e Simão, irmãos e
filhos de Yair, que foram enterrados juntos, embora a esposa de Mathai, Mariame,
tenha sido sepultada noutro lugar As covas anônimas com muitos sepultamentos
acabaram sendo abandonadas, mas os ossuários não implicavam absoluta indivi­
dualidade, uma vez que as pessoas mesmo mortas ainda se relacionavam com suas
famílias e se reuniam nessas caixas de ossos.

0 ossuário de C aifás. 0 lugar de descanso final de Caifás, sumo sacerdote que


participou na crucifixão de Jesus, foi encontrado espetacularmente em novembro
de 1990, por acidente, numa caverna de Jerusalém. Examinaremos seu ossuário e
tumba com pormenores não porque esteja ligado à figura central dos evangelhos
mas porque representa tipicamente os funerais das classes altas na Jerusalém do
primeiro século.

A tumba foi descoberta durante as obras de construção de um parque e estrada


na Floresta da Paz ao sul da cidade antiga de Jerusalém, em frente ao Monte Sião.
0 escavador principal, Zvi Greenhut, e o antropólogo Joseph Zias não puderam
completar o exame do conteúdo da caixa porque judeus ultra-ortodoxos protestaram
e fizeram pressão para que o ossuário fosse novamente selado e entregue ao Minis­
tério dos Assuntos Exteriores para re-sepultamento no Monte das Oliveiras. Mas,
de qualquer forma, os escavadores de então não haviam sido os primeiros a abrir
0 ossuário. Em algum momento da Antiguidade, ladrões de túmulos roubaram do
ossuário 0 que lhes pareceu de valor, e os operários da construção moderna também
mexeram em alguns deles, deixando apenas dois dos doze ossuários intocados e em
seu lugar original. Os demais foram quebrados e espalhados pelo terreno.
3 9 - Câm era mortuária da família de Caifás (segundo Greenhut)

A câmara mortuária fora recortada na pedra calcária da colina no primeiro perío­


do romano, e quatro kokhim relembrando formas de dedos estendiam-se a partir da
câmara. Ela havia sido recortada rudemente na rocha em desintegração com exceção
de dois lados, trabalhados com cuidado. A abertura estreita retangular forçava os
visitantes a se abaixar quando entravam, mas, lá dentro, fora recortado também um
espaço para estar, sob o teto acima de 5 1/5 pés. No canto leste situava-se uma cova
para depósito, semelhante às que recebiam cadáveres. Os quatro kokhim avançavam
na rocha cerca de 6 pés; apenas num compartimento havia dois ossuários intocados,
sendo um deles o do sumo sacerdote Caifás.

Em geral, os ossuários, muito decorados, continham inscrições com nomes


tipicamente judaicos e ornamentos profissionais e bem executados. O ossuário
com o nome de Yehosef bar Caiapha era de beleza excepcional, o mais belo dentre
os outros, e até mesmo um dos mais formosos até agora encontrados. Excedia, em
todas as maneiras, o ossuário simples e levemente trapezóide de Tiago com sua
roseta rudemente desenhada e quase apagada. A parte da frente vinha emoldurada
4 0 . Ossuário de Tiago (cortesia da Sociedade Arqueológica Bíblica de Washington, DC)

por figuras de palmas, dos lados e em cima, com dois círculos no painel principal,
formando seis rosetas cada um. Muito delicadas, combinavam pétalas e rodas gira­
tórias, pintadas, às vezes, de laranja. A tampa abobadada e decorada na frente com
molduras desenhadas em ziguezague havia também sido pintada com cor alaranjada
clara.

Apesar do esmero das decorações dos ossuários, as inscrições não revelavam


nenhuma preocupação estética, gravadas talvez pelos membros da família, pro­
vavelmente com dois pregos de ferro encontrados, um no ossuário e outro nos
compartimentos dos kokhim. As escritas nada tinham do trabalho profissional de
calígrafos ou escribas, mas eram feitas depois que os ossuários estavam em seus
lugares definitivos. Em alguns casos os nomes pareciam ter sido inscritos de baixo
para cima ou da direita para a esquerda por mãos que se espremiam entre o ossuá­
rio e a parede. Os nomes serviam para que os sobreviventes relembrassem quem
haviam enterrado e onde. Eram escritos em letras cursivas judaicas semelhantes a
outras em ossuários do primeiro século. Predominavam nomes femininos comuns
da época, Miriam (grego, Maria) e Shalom (grego, Salomé), com os masculinos,
Shimon (grego, Simeão) e Yehosef (grego, José). Mas o nome aramaico raro, Caiapha
(grego, Caifás), não aparecido antes em nenhuma inscrição, fora escrito três vezes
no túmulo, duas delas especificando que era Yehosef bar Caiapha (grego, José, filho
de Caifás), o sumo sacerdote assim nomeado por Josefo. Continha ossos de seis
diferentes esqueletos, dois infantes, uma criança entre dois e cinco anos, um ado­
lescente masculino, uma mulher adulta e um homem com cerca de sessenta anos de
idade. Não há dúvida que a câmara era o lugar de descanso final da família do sumo
sacerdote Caifás lembrado nos evangelhos por causa de seu papel na crucifixão. É
quase certo que os ossos do homem mais velho sejam dele. Este achado contrasta
vivamente com o questionado ossuário Tiago-José-Jesus, não só pela raridade do
nome de Caifás mas também pela integridade arqueológica do achado.

Três pensamentos finais sobre o sepultamento de Caifás. Em primeiro lugar,


não obstante a beleza da urna, a tumba parecia relativamente modesta. O fato nos
mostra que Herodes e os procuradores romanos promoviam certos sacerdotes ao
sumo sacerdócio oriundos de famílias mais populares e eminentes. Sabemos que
Caifás deixara sua família em Beth Meqoshesh, onde, presume-se, a maior parte dela
permaneceu e onde se localizava sua câmara funerária. Ele casara-se com a filha de
Anás, que fora sumo sacerdote de 6 a 15 d.C. e fundador da dinastia ananita, que
dominou por algum tempo antes dos anos 70 d.C. em Jerusalém. Assim, José Caifás
subiu não pela hereditariedade mas pelo casamento, e, embora bem conectado, não
viera de família rica. Mas conseguiu adquirir suficiente riqueza pessoal para poder
comprar um dos mais belos ossuários até agora descobertos, mesmo se o monumento
visível ao público não fosse proeminente.

Em segundo lugar, apesar das difíceis condições de trabalho e das pilhagens


antigas, que deixaram restos de ossos espalhados pela área, Joseph Zias conseguiu
identificar sessenta e três esqueletos na câmara. A distribuição demográfica dos
mortos é triste lembrança de que mesmo os ricos não estavam livres de doenças
fatais e de mortalidade infantil. Examinemos, a seguir, a distribuição dos mortos
na câmara funerária por idade.

Idad e Restos de esqueletos


0-1 ano 10
2-5 anos 16
6-12 anos 14
13-18 anos 3
19-25 anos 1
26-39 anos 1
40 e mais anos 6
adultos com idade desconhecida 13

Mais ou menos 40 por cento deles nunca passaram do quinto aniversário e 63


não chegaram à puberdade. O índice de mortes é chocante pelos nossos padrões
atuais, mas comuns em Jerusalém e em todo o Império Romano.

Em terceiro lugar, surge dessa tumba uma questão intrigante. Pensemos em


quão difícil é reconstruir as crenças de Caifás e de sua família a partir dos traços
que as práticas funerárias deixaram no local. Consideremos estas duas ironias. Os
sumos sacerdotes no tempo de Jesus eram saduceus que, diferindo dos fariseus, não
acreditavam na ressurreição dos mortos. Achou-se também um outro ossuário de
conhecida família de saduceus com a inscrição “Yehochana, filha de Yehochanan, filho
de Thophlos, sumo sacerdote”. Será que esses ossuários pretendiam de fato conservar
os ossos para a ressurreição? Nada indica que Caifás tenha adquirido o ossuário com
esse fim, mas não temos dúvida de que adotava a prática do sepultamento comum
entre os ricos de Jerusalém e o fazia em grande estilo. Além disso, uma moeda de
bronze do Rei Agripa I (42-43 d.C.) foi encontrada na caveira de uma mulher na
tumba da família de Caifás, que caíra da boca para trás durante a decomposição
do corpo. Tratava-se de antigo costume no mundo grego e constatado também em
sepultamentos judaicos. Punha-se a moeda na boca ou na mão do morto para ele
pagar ao barqueiro Caronte, que levava as almas dos mortos através do Rio Estige.
Teria a família do sumo sacerdote adotado essa crença pagã? Dificilmente. É mais
provável que algum membro da família usasse esse costume do mundo helênico.

De qualquer forma, esse esplêndido ossuário no interior de uma câmera mor­


tuária recortada na rocha estava muito aquém do que Augusto e Herodes imagina­
vam para perpetuar a memória e erguer mausoléus. Por outro lado, seus ossos não
sobreviveram, enquanto provavelmente os de Caifás ainda estão lá. Essa era, pelo
menos, uma das maneiras de enterrar um sumo sacerdote.

O Santo Sepulcro de Jesus


Nem todas as famílias na Jerusalém do primeiro século possuíam um pedaço
de terra com uma câmara funerária nem mesmo podiam se dar ao luxo de ter um
ossuário. Para cada um das centenas de ossuários e kokhim examinados pelos arqueó­
logos, podemos calcular que milhares de corpos eram enterrados em covas rasas sem
nenhuma proteção contra a decomposição e desintegração no solo.

Enterros de pessoas comuns

Apesar das dificuldades de sobrevivência, foram encontrados ao redor de Je­


rusalém muitos túmulos simples. No subúrbio de Beit Safafa, a poucas milhas da
cidade do primeiro século, distantes da tumba de Caifás, foram achados cinqüenta
túmulos verticais simples. Foram encontrados acidentalmente durante construções
de estradas; se não fosse por isso, poderiam não ter sido notados, porque nenhum
deles estava marcado por pedras tumulares nem por outro tipo de sinal. Não
havia inscrições e nada de valor. Retangulares, estavam entre 5 e 7 pés abaixo da
superfície com um nicho fúnebre onde o corpo podia ficar deitado, semelhante aos
encontrados no cemitério de Qumrã. 0 nicho era coberto por uma laje e se empre­
gavam pedaços de rocha e outros resíduos para os acabamentos. Quase todas essas
covas abrigavam apenas um corpo cada uma, embora houvesse poucos nichos de
dois andares. Das cinqüenta tumbas, som ente uma continha um ossuário simples.
Dos ossos identificados de quarenta e sete indivíduos, quarenta e dois pertenciam
a adultos e somente cinco a crianças e jovens entre cinco e dezoito anos de idade.
Suspeita-se que os infantes mortos prematuramente eram enterrados em sepulturas
menos permanentes.

Mesmo tumbas de pessoas ainda mais pobres foram encontradas ao redor de Jeru­
salém, entre campos com covas rasas em diversos sítios na parte ocidental da cidade
antiga, algumas cavadas na rocha e cobertas de terra, outras apenas aproveitando
depressões naturais nas rochas. Em Mamilla, havia quinze cavidades recortadas na
rocha cobertas com tampas de pedra contendo ao lado dos corpos pequenas moedas
asmonianas e frascos de vidro do primeiro século d.C. No Vale Hinnon também foram
achados buracos no solo, ao lado das rochas, cobertos com lajes. Nestes, também,
não havia nenhum sinal de identificação dos mortos nem objetos de valor.

Deixemos Jerusalém e vejamos o que se passava na Galiléia. Foram achados aí


diversos túmulos do primeiro século, não tantos como em Jerusalém, mas suficientes
para perceber seu estilo. Ao redor dos vilarejos de Nazaré e Caná, diversas câmaras
mortuárias chamadas kokhim eram protegidas por pedras redondas ou quadradas
típicas dos cemitérios judaicos em Jerusalém. Muitas delas haviam sido recortadas
rudemente nos flancos das colinas sem acabamentos. Convém observar, ainda, que
não havia quase inscrições no contexto da Galiléia do primeiro século. É que os
corpos simplesmente depositados nessas cavidades sugeriam pobreza e ausência
de indústria local de pedras para esse fim.

Funerais de criminosos crucificados

Que acontecia com os crucificados? Como eram enterrados? Devemos ter em


mente que aristocratas e cidadãos não eram punidos dessa forma, mas apenas es­
cravos, servos, camponeses e bandidos. Os primeiros possuíam câmaras mortuárias
e deixaram ossuários por toda a Jerusalém; os outros quando morriam de causas
naturais eram sepultados em covas rasas sem identificação. Mas as milhares de ví­
timas da crucifixão não deixaram traço algum de sua morte a não ser um. Em geral,
eram abandonadas na cruz até se decompor ou serviam de alimento aos animais
carniceiros. Tentaremos examinar as violações da lei e da ordem romana pela classe
baixa.

Josefo menciona a crucifixão de milhares pelos romanos na Jerusalém do pri­


meiro século, de dois mil depois da morte de Herodes, o Grande, no ano 4 a.C., a
cinco mil por dia depois da destruição do Templo no ano 70 d.C. São, naturalmente,
referências textuais. Temos, no entanto, evidência arqueológica de apenas uma ví­
tima encontrada num ossuário no subúrbio Givat Hamivtar, ao norte de Jerusalém.
Vassilios Tzaferis, do Departamento de Antiguidades de Israel, escavou diversas
covas fúnebres em junho de 1968. Na tumba do primeiro século, cavada na rocha,
num dos cinco ossuários encontrados, havia restos do esqueleto de dois homens e
uma criança. No osso direito do calcanhar de um dos homens, medindo 5 pés e 5
polegadas de comprimento, dando a impressão de ter entre vinte e trinta anos, ainda
se podia ver um prego de 4 1/5 polegadas atravessando o osso com um fi-agmento
de madeira de oliveira preso nele. Suas pernas tinham sido pregadas no madeiro e
0 calcanhar havia sido apoiado numa base para que o corpo não se desprendesse.
O prego que permaneceu no osso estava um pouco torto ao ser martelado na ma­
deira dura e não foi retirado depois de sua morte. Imagina-se, então, que a peça de
madeira fora cortada e o tornozelo, o prego e a madeira ficaram juntos quando o
corpo foi descido da cruz. Quando os ossos foram, afinal, depositados no ossuário,
permaneceram dessa forma.

Como não havia evidência de trauma violento nos antebraços nem nos metacar­
pos das mãos, presume-se que a vítima fora amarrada nos braços da cruz, ao contrário
do que em geral se imagina. As pernas também não foram quebradas para acelerar a
morte. Sem esse procedimento, a vítima morre mais lentamente por asfixia dolorosa,
42. Tornozelo de um crucificado
(Coleção do Departamento de Antiguidades de Israel; i ) Museu de Israel em Jerusalém)

porque os músculos do diafragma vão parando de funcionar até que a vítima deixe
de respirar. No lado do ossuário alguém rabiscou o nome do morto, Yehochanan,
agora conhecido como o Homem Crucificado de Givat Hamivtar.

Assim, os arqueólogos descobriram por coincidência uma vítima da crucifixão


que apesar disso recebeu sepultamento pela família. Tiveram também a sorte de
recuperar o prego enferrujado no pedaço de madeira ainda em seu calcanhar. Mas,
apesar dessa morte terrível, Yehochanan viera de uma família rica (como o ossuário
indica) e supostamente bem relacionada que conseguiu retirar o corpo da cruz e
enterrá-lo. Conservemos na memória quão excepcional foi seu destino e a descoberta.
Segundo a regra, os crucificados não eram enterrados. Sem minimizar a longa dor
cruciante que era temporal, a vergonha de não ter sepultamento era eterna e igual­
mente temida. Para a mentalidade antiga, o supremo horror da crucifixão era não
permitir o lamento público, o sepultamento digno, e deixar o morto para sempre
separado dos ancestrais, longe da visita dos espíritos, impossibilitando a reunião dos
descendentes que costumavam comer com os mortos. Foi assim que Jesus morreu.
Segundo os evangelhos, Pilatos afixou no alto da cruz uma placa com a inscrição
Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus. Que tipo de sepultamento teve Jesus? Como, afinal, era
seu sepulcro? Será que seu túmulo e sepultamento foram diferente dos de Augusto,
Herodes e, mesmo, Caifás? Teria sido apropriado ao Reino de Deus como o destes
outros representavam o Reino de Roma que haviam criado, copiado e obedecido?

Teve Jesus mausoléu adequado?

Enterro. 0 sepultamento de Jesus no evangelho de João não foi apropriado para


um rei, e muito menos para um rei divino. Mas essa narrativa, longe de vir da primeira
camada do Jesus histórico, procede da imaginação criativa do evangelho de João, do
terceiro nível da terceira camada. O que a primeira camada teria dito talvez fosse
demasiadamente horrível para os discípulos tanto na época como agora. Segundo
João 19,41, “havia um jardim, no lugar onde ele fora crucificado e, no jardim, um
sepulcro novo no qual ninguém fora ainda colocado”. Qualquer túmulo novo num
jardim destinava-se a monarcas, como os reis de Judá, no “jardim de Oza”, segundo
2 Reis 21,18.26, ou Augusto debaixo do jardim artificial de ciprestes em cima do
mausoléu júlio-claudiano, ou Herodes, o Grande, junto à piscina e ao jardim do
Herodiano. Mas Jesus foi sepultado, segundo João 19,39, por Nicodemos com “cem
libras [romanas] de uma mistura de mirra e aloés”. Calculando como medida de
volume, 4 galões de ungüentos deixaria o corpo mergulhado em líquidos perfumados.
Se calcularmos em medida de peso, 75 libras envolveriam todo o corpo em perfumes
secos. Em qualquer dos cálculos, a quantia é deliberadamente excessiva. (Estranha,
contudo, essa ênfase em perfumes, uma vez que eram usados para abafar o cheiro da
decomposição.) João quer acentuar que Jesus recebera não apenas um sepultamento
real mas também divino. O evangelho pergunta, então, como se enterra um rei assim
divino? E qual seria o mausoléu mais adequado para isso?

Herodes, o Grande, morrera no ano 4 a.C., César Augusto no 14 d.C. e Jesus


fora crucificado por volta do ano 30. Cerca de três séculos mais tarde e doze anos
depois de Constantino, o Grande, ter assumido o controle do Império Romano, a
primeira expedição arqueológica começou a buscar o lugar da ressurreição de Jesus.
Oficiais imperiais foram guiados por autoridades cristãs locais a um templo pagão e
ordenaram que “o edifício dedicado ao demônio impuro chamado Afrodite, santuá­
rio escuro de ofertas sem vida”, fosse derrubado para ser logo escavado debaixo da
plataforma onde fora construído. Eusébio, bispo de Cesaréia e mais tarde biógrafo
de Constantino, descreve a obra levada a efeito por decreto imperial constantiniano:
“Quando as diversas camadas começaram a aparecer, o venerável e santíssimo me­
morial da ressurreição do Salvador, superando todas as nossas esperanças, apareceu”
(Vida de Constantino 3.38).

Sítio. Teriam encontrado mesmo o lugar do sepultamento de Jesus? Pensamos


que ao lado da casa de Pedro em Cafarnaum, o Santo Sepulcro de Jerusalém é um
dos poucos lugares sagrados cristãos dignos de credibilidade. A igreja constanti-
niana pode muito provavelmente ter sido erguida em cima do lugar onde Jesus foi
crucificado e o corpo sepultado. Estava dentro do terceiro muro da parte norte de
Jerusalém, construído por Agripa I (41-44 d.C.), mas do lado de fora do segundo
muro que demarcava a cidade no tempo de Jesus. Estava fora, portanto, da cidade
do primeiro século, como prescreviam os judeus para crucifixões e sepultamentos.
Os arqueólogos de Constantino acharam, depois, túmulos de um cemitério quando
cavavam debaixo do templo de Afrodite. As camadas escavadas por Constantino
foram corroboradas por recentes missões estratigráficas. Encontraram paredes de
uma estrutura monumental do tempo de Adriano que deveriam ter pertencido ao
templo da deusa. Debaixo desse complexo havia muitos túmulos do primeiro século
e até mesmo anteriores a ele. Antes dessas descobertas o lugar estava desabitado
e era uma pedreira.
A Igreja do Santo Sepulcro de Constantino foi construída em cima de um ce­
mitério e tudo indica que estava perto do lugar onde Jesus fora crucificado. Pode
até mesmo marcar esse local, embora perguntemos se aí se preserva a memória
adequadamente. Estamos interessados em saber não tanto se esse era o lugar do
sepultamento de Jesus, mas mais o que se fez com as marcas do sepultamento.
Pensemos no sentido de sua vida, morte e ressurreição e, depois disso, leiamos o
trecho desta carta enviada por Constantino a Macário, bispo de Jerusalém:

É meu desejo, então, que deves estar especialmente convencido


disto, que me parece claro para todos, que entre todas as coisas a
minha principal preocupação seja como adornar esplendidamente com
edifícios esse lugar sagrado, que, sob divina direção, eu libertei [...].
Esta basílica não deverá ser apenas a mais bela do mundo, mas todos
os seus pormenores serão de tal maneira excelentes que até mesmo
as m ú s formosas estruturas em todas as cidades sejam ultrapassadas
por eles [...]. Quanto às colunas e aos mármores, procura nos informar,
por escrito, depois de examinar o plano, quais julgas mais preciosos
e úteis, de modo que os materiais, de qualquer tipo e quantidade,
sejam adquiridos não importa de onde (Eusébio, Vida de Constantino
3.29-32, os itálicos foram acrescentados)

0 templo de Afrodite foi derrubado e a pedreira que fora lugar de execução e


cemitério foi transformada num magnífico recinto sagrado. A Igreja do Santo Sepulcro
foi construída com quatro elementos estruturais ligados entre si: o átrio na frente;
a basílica chamada martyrium; a corte conhecida como Jardim Santo, com a rocha
do Gólgota elevando-se do solo; e finalmente a rotunda cercada de colunas chamada
anástase, abrigando o túmulo de Jesus.
Que sabemos a respeito desse complexo? As pesquisas arquitetônicas do começo
do século vinte, buscas arqueológicas do século dezenove, desenhos de mosaicos do
século sexto conhecidos como Mapa de Madaba, no Jordão, e descrições de Eusébio e
de peregrinos da época nos dão algumas idéias a respeito. Para entender o complexo
precisamos começar com os quatro elementos encomendados por Constantino com
a inclusão de uma basílica e a construção da rotunda em cima da cripta.
A basílica. Tecnicamente, basílica nada mais era do que uma forma arquitetônica
especificamente romana destinada a grandes reuniões cívicas. Na sua forma básica,
tinha um saguão longo aberto para um espaço semicircular dividido por fileiras de
colunas que apoiavam o teto alto coberto de telhas ou madeira. Construir dessa
maneira era mais barato do que fazer arcos e colunas de pedra, sobrando, assim,
fundos para decorações internas. De certa forma, o formato da basílica assemelhava-se
aos pórticos (stoà), abertos mas com telhados, das cidades gregas, lugares também
reservados para reuniões cívicas. A cidade romana trouxe-os para ambientes fechados
usando-os para reuniões públicas, mercado (como em Séforis) e especialmente para
sessões jurídicas. As basílicas também serviam como antecâmara, próximas a teatros,
balneários e templos, e eram também usadas pela elite como salões de recepção.

Por volta do quarto século de nossa era, a basílica relacionava-se mais intima­
mente com 0 significado de seu nome, isto é, edifício real. Deixemos o território
judaico e atravessemos os Alpes romanos a Trier na região do Mosela na Alemanha,
sé de Constantino na qualidade de César do Império Romano dividido antes de sua
vitória em 312 e da proclamação do Edito de Milão em 313, quando o cristianismo
tornou-se religião aceita pelo Estado. Entre 305 e 312 Constantino havia construído
nessa região uma enorme basílica ao lado de seu palácio, que ainda permanece até
hoje com seus 100 pés de altura. A largura do saguão media 100 pés, cortado por
duas fileiras de colunas. O comprimento era de 200 pés terminando numa abside. As
janelas, em cima, iluminavam o ambiente ressaltando as aplicações de mármore nas
paredes e os mosaicos com ornamentos de vidro sobre o piso de mármore branco e
preto. Aí Constantino sentava-se na sedes iustitiae, “cadeira da justiça”, onde, como di­
vina majestade, recebia homenagem e, como encarnação da lei, dispensava justiça.
Dos tempos de Augusto aos de Constantino, a basílica desenvolveu-se de simples
estrutura para reuniões públicas a poderoso instrumento de propaganda político-ar-
quitetônica de Roma. Abrigava o esplendor de Roma e a divindade do César. Dentro
de suas paredes decoradas fazia-se justiça, desenvolviam-se atividades comerciais e
proclamavam-se editos públicos, sob o olhar vigilante do imperador na abside, em
pessoa, por meio de representantes ou mesmo de sua efígie. No pináculo da socie­
dade, os imperadores precisavam de edifícios oficiais de acordo com a grandeza e
esplendor de sua posição.

Nesse lugar não se separava César e Deus, Estado e religião, e como santuário
de Deus na terra a basílica efetivamente obliterava as diferenças entre o sagrado e o
profano, o cívico e o pessoal, e o jurídico e o comercial. Depois de séculos de culto ao
imperador e agora, no tempo de Constantino, a presença dele em pessoa, por meio
de um representante ou por uma imagem, tornara-se o aspecto mais característico
da basílica. Constantino escolheu esse modelo para a igreja quando tornou o cris­
tianismo uma religião aceitável e a patrocinou. Pelo ano 320 ele havia completado a
Basílica Laterana em Roma, hoje com o nome de San Giovanni, onde sob Constantino
tornou-se a sala do trono de Cristo basileus, Cristo Rei. Nos anos 325 e 326 começou
a construção de nova basílica como parte do Santo Sepulcro de Jerusalém.

Essa basílica, que Eusébio chamou de martyrium, media 200 pés de comprimento
por 130 de largura, com colunas de cada lado da nave. Galerias em cima aumentavam
0 espaço de onde as multidões podiam contemplar a abside, além de melhorar a
acústica amplificando as orações e os hinos. A abside era cercada por doze colunas
de mármore nas quais havia vasos de prata doados pelo imperador. As janelas altas
coavam a luz tanto para os arcos dourados do teto, quanto para os mosaicos coloridos
das paredes, para os revestimentos de mármore, para os tecidos de seda bordados
a ouro, dando a impressão de uma antecipação do céu para alguns peregrinos, mas
talvez demasiadamente brilhante, vulgar e kitsch para as sensibilidades de hoje.

A rotunda. O ponto focal do complexo de Constantino era a rotunda que abrigava


0 Santo Sepulcro. Para construí-la foi preciso preparar o terreno rochoso disforme e
até mesmo desbastar a elevação onde os kokhim ou arcosolia originais se encontravam,
deixando apenas o local onde supostamente o corpo de Jesus teria sido depositado;
os demais elementos foram colocados em nível mais baixo. Ao redor da tumba (de
Jesus) construiu-se uma imponente rotunda cercada de colunas chamada de anástase,
grego para “ressurreição”.
O ponto central da rotunda era o lugar da ressurreição de Jesus. Fora desse
recinto sobravam elementos de um templo pagão acima desse túmulo judaico, bem
como rochas e pedras ao lado e embaixo. Arranjadas em forma circular, doze colunas
em grupos de três dispunham-se entre três grandes pilares que sustentavam o teto
abobadado. O círculo concêntrico em volta do sepulcro media cerca de 70 pés e, ao
redor, o pórtico acrescentava mais ou menos 16 pés para todos os lados. Dois dos
grandes pilares sobreviveram até hoje com o diâmetro de 4 pés. Grande parte das
paredes externas do pórtico também resistiram até agora; uma das três paredes da
4 4 . Reconstrução da Igreja do Santo Sepulcro
A Igreja do Santo Sepulcro, lugar tradicional da crucifixão, sepultamento e ressurreição de Jesus,
era a estrutura dominante no cenário da Jerusalém do quarto século de nossa era. O conjunto
de quatro partes consistia em uma rotunda construída sobre o túmulo de Jesus (1) chamada
anástase, palavra grega para “ressurreição”, de um átrio ao redor da rocha do Calvário, ou
Gólgota (2), de uma enorme basílica chamada de martyrium (3), e de uma corte atrás da basílica
aberta para o cardo (4). Construída por Constantino, o Grande, com financiamento imperial e
pessoal, destinava-se a ser a mais bela estrutura pública do novo império cristão. Aos fundos, os
restos do M onte do Templo judaico (5), sobre o qual foi construído depois, no segundo século,
um templo pagão e logo derrubado, permanecem intencionalmente abandonados e dilapidados
como sinal da vitória cristã tanto sobre o judaísmo como sobre o paganismo.

abside com a altura de 35 pés mostra sinais deixados por placas de mármore. Leiamos
Eusébio sobre a rotunda; “A generosidade real tornou-a radiante com todo o tipo de
adorno, como se fosse a parte principal do todo. Ele embelezou a santa cova com
colunas de bom gosto e profusa decoração” {Yxda de Constantino 3.34-39).

A rotunda parecia-se com o mausoléu de Augusto e mais ainda com o que Cons­
tantino construiu mais tarde para si mesmo em Constantinopla. Mas observemos
estas importantes diferenças entre os sepulcros de Augusto e de Jesus: o teto da
rotunda da anástase era coberto de madeira e telhas, como as basílicas da época,
que podia ser sustentado por paredes finas. Não eram necessárias paredes grossas
nem grandes arcos. Não se trata apenas de minúcia arquitetônica, pois paredes
finas davam mais espaço e permitiam que o pórtico fosse maior ao redor da cripta.
Assim, acomodava-se número maior de peregrinos ao redor do sanctum, dando-lhes
mobilidade para entrar e sair quando quisessem.

0 problem a. Séculos depois, portanto, também depois que o Império Romano


tornou-se cristão, a igreja de mármore de Constantino realizou a história do evan­
gelho de João. De certo modo é até mesmo injusto sugerir críticas a esse empreen­
dimento. Era assim que se enterravam os reis ou, pelo menos, embora tardiamente,
era assim que se comemorava e celebrava o lugar do sepultamento, onde ficava o
túmulo, muito embora a rotunda de Constantino celebrasse não apenas o enterro
mas também a ressurreição de Jesus. Por outro lado, e desconsiderando como a
presente igreja está dividida entre grupos cristãos opostos entre si, permanece ainda
um problema. Por que o santuário central do cristianismo chama-se Santo Sepulcro
e não Bendita Ressurreição? Posto que a questão não se limita ao nome ou ao títu­
lo, propomos a seguinte reformulação. Qual seria o sepulcro mais adequado para
os cristãos que acreditam que seu ocupante ressuscitou dos mortos pelo poder de
Deus? Se sabemos muito bem como celebrar os funerais de um rei, de que maneira
deveríamos celebrar a ressurreição de um rei divino? Ou, em outras palavras, que
significa ressurreição?

“ A ressurreição judaica de Jesus


Os que lêem as histórias do evangelho a respeito do Domingo da Páscoa são
surpreendidos pela diversidade das fontes. Em primeiro lugar, não há aparição do
ressuscitado em Marcos, mas diversas em Mateus, Lucas, Atos e João. Em segundo
lugar, os escribas que copiaram e transmitiram Marcos sentiram que essa ausência
era tão perturbadora que resolveram acrescentar três apêndices diferentes no final
do texto, com aparições do ressuscitado. Em terceiro lugar, as visões da ressurreição
diferem uma das outras em quase todas as maneiras imagináveis. Em número: quan­
tas vezes ele teria aparecido? Em lugar: dentro ou fora da casa, na Judéia ou/e na
Galiléia? No tempo: todas num só dia, depois de quarenta dias, ou algo entre as duas
possibilidades? No conteúdo: quem disse o que para quem? Em quarto lugar, mesmo
o encontro final quando Jesus anuncia o programa missionário da comunidade e a
estrutura da liderança, é extremamente diverso. Talvez tudo isso seja substancial­
mente a mesma experiência pascal, embora refratada pelos lapsos da memória e pela
intensidade da emoção? Se for assim, será possível explicar o que aconteceu?

O problema do significado
Paulo escreveu de Efeso aos Coríntios no início dos anos 50 d.C. Mas disse em 1
Coríntios 15,3a que “transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi”.
A fonte e a época mais prováveis dessa recepção da tradição teria sido Jerusalém
nos anos 30, quando, segundo Gálatas 1,18, ele fora “a Jerusalém para avistar-me
com Cefas [Pedro] e fiquei com ele quinze dias”. Essa tradição recebida, portanto,
é exemplo da segunda camada sobre a ressurreição de Jesus. E o que se lê em 1
Coríntios 15,3b-7: “Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi
sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Apareceu a Cefas, e
depois aos Doze. Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez,
a maioria dos quais ainda vive, enquanto alguns já adormeceram. Posteriormente,
apareceu a Tiago e, depois, a todos os apóstolos”.

Em primeiro lugar, para a presente discussão, vamos deixar entre parênteses


os debates históricos e estipular que Jesus foi sepultado e ressuscitou no lugar onde
se construiu a Igreja do Santo Sepulcro. Consideremos, por enquanto, que de fato
geográfica e historicamente essa foi a localização correta. Então, retornando ao início
do parágrafo inicial deste capítulo, por que o principal santuário do cristianismo
não se chama Igreja da Bendita Ressurreição e não do Santo Sepulcro? Façamos
a pergunta de outra maneira. Os antigos sabiam muito bem, como nós, como se
enterra um rei. Como nós, também sabiam como preparar um sepulcro magnífico
e celebrar os funerais de gente importante. Mas como celebramos a ressurreição?
Que santuário ou templo seria apropriado para tal evento? Não teriam os cristãos o
direito de chamar essa igreja pelo nome mais obviamente importante?

Em segundo lugar, as perguntas históricas sobre a ressurreição de Jesus referem-


se quase sempre ao sepultamento (no caso se ou como?), ao túmulo vazio (se ou
quando?) e às diversas aparições posteriores (aqui ou ali?). Teriam todas essas coisas
acontecido? Serão, todos, fatos históricos ou apenas alguns? Ou, quem sabe, parábo­
las? Mas há, todavia, questões históricas muito mais fundamentais e, para tratá-las,
vamos deixar entre parênteses as que levantamos agora. Vamos estabelecer para a
presente discussão que todas as coisas aconteceram como os evangelhos descreve­
ram a manhã do Domingo da Páscoa (seja como for a maneira como reconciliemos
os diferentes relatos). Concedamos tudo isso, por enquanto. Estamos procedendo
desta maneira para deixar claro que o debate concentra-se no âmago da questão,
que é 0 seguinte (considerando que as coisas se deram como foram contadas); por
que as primeiras testemunhas chamaram o evento “ressurreição”?

Então, temos agora duas questões históricas fundamentais que nos levam à pri­
meira ou original camada da tradição de Jesus. Em primeiro lugar, que queriam dizer
os judeus do primeiro século quando usavam o termo “ressurreição”? Por exemplo,
antes da existência de Jesus e do cristianismo, que queriam dizer os fariseus e os
saduceus quando discutiam a favor ou contra a “ressurreição”? Em segundo lugar,
naquele contexto, que queriam dizer os judeo-cristãos do primeiro século quando
proclamavam que Deus ressuscitara Jesus dentre os mortos? Em outras palavras,
deixamos o debate sobre a historicidade das narrativas bíblicas e da localização dos
eventos para examinar os significados do primeiro século. E, antes de crer ou des­
crer na ressurreição de Jesus, afirmando-a ou negando-a, precisamos saber o que a
afirmação significava e significa ainda. É por isso que o adjetivo “judaico” aparece
no título desta seção. Estamos querendo saber o que queriam dizer os judeus com
0 termo “ressurreição”.

Mártires macabeus

Mais ou menos durante o primeiro milênio de sua história, Israel não acreditava
na vida depois da morte, na imortalidade da alma nem na ressurreição do corpo. Os
mortos iam diretamente para o Sheol, lugar considerado simplesmente submundo,
como se todos os túmulos estivessem ligados de alguma forma a uma imensa terra do
nunca. A grandeza da Lei, o desafio dos Profetas e a beleza dos Salmos derivavam da
fé baseada na vida entre o povo de Deus e a esperança de que a família e sua memória
sobreviveriam nos que ficavam. Essa fé não ignorava as possibilidades da vida além,
uma vez que o Egito estava ali ao lado. Mas é provável que considerassem a vida
humana depois da morte simples usurpação das exclusivas prerrogativas divinas.
Uma vida além, em outras palavras, não merecia uma discussão séria.

0 bem e o mal, portanto, tinham que ser julgados necessariamente neste mun­
do, posto que eram praticados aqui e não depois. Quando Deuteronômio 28,2, por
exemplo, promete que as bênçãos “virão sobre ti e te atingirão, se obedeceres à voz
de lahweh teu Deus” e 28,15 acrescenta que “se não obedeceres à voz de lahweh
teu Deus, cuidando de pôr em prática todos os seus mandamentos e estatutos que
hoje te ordeno, todas estas maldições virão sobre ti e te atingirão”. A longa lista de
benefícios e maldições inclui fertilidade interna ou infertilidade e vitória externa ou
derrota. Mas tudo aqui embaixo, aqui na terra, aqui e agora.

Então veio a crise. No ano 160 a. C. o monarca Sírio Antíoco IV Epífanes, oprimido
pela antiga pressão vinda do norte, do Egito, e da nova ameaça de Roma, procurou
consolidar Israel em seu enfraquecido império política, social e economicamente.
Embora tenha recebido apoio de alguns judeus para transformar Jerusalém numa
cidade comercial de estilo grego, outros resistiram por causa das tradições religiosas
antigas. Inventou, então, algo radicalmente novo — perseguição religiosa. Se você
renegar sua religião, será salvo; afirme-a e morrerá. De que outra maneira a teologia
do Deuteronômio poderia explicar o destino dos mártires? Onde estava a justiça de
Deus quando obediência a ele significava morte e desobediência, vida?

Esse problema religioso ou teológico não desapareceu com a revolta dos maca­
beus, pela sua vitória sobre os sírios, e por cem anos de independência judaica sob
a dinastia autóctone asmoniana. De que maneira a regra da justiça de Deus poderia
reconciliar-se com as torturas sofridas pelos que morriam pelo mesmo Deus? Como
falar a respeito dessa justiça em face dos corpos dos mártires brutalizados e golpea­
dos? Havia diversas opções; quatro delas são citadas em 2 Macabeus, do fim do
segundo século a.C., e em 4 Macabeus, da metade do primeiro século a.C.
Poderíamos, por exemplo, explicar o heroísmo do ancião Eleazar na tradição
greco-romana da morte nobre: “Preferindo a morte gloriosa”, segundo 2 Macabeus,
para deixar aos jovens “o nobre exemplo, entusiasta e generosamente, pelas venerá­
veis e santas leis” (6,19.28). O modelo clássico de aceitação da execução em vez da
derrota foi, naturalmente, a morte de Sócrates. Vindicava-se a integridade da vida
por meio da morte; justificava-se tudo o que se havia dito e feito recusando qualquer
retratação sob a ameaça da execução.

Poderíamos ainda explicar a morte de maneira completamente diferente, como


expiação vicária e voluntária segundo a tradição judaica do Servo Sofredor de Isaías.
“Sejas misericordioso para com teu povo, e que nossa punição seja suficiente em seu
lugar”, como dizia o mesmo Eleazar em 4 Macabeus, “que o meu sangue sirva para
sua purificação, e minha vida seja trocada pela deles” (9,29). A teologia cristã não
tem sido tão cuidadosa quanto forçosa a respeito da expiação vicária. Converteu a
dádiva oferecida de baixo para cima e aceita graciosamente por Deus numa exigência
de cima para baixo, implacavelmente exigida por ele. Quando se diz que a expiação
vicária é exigida por Deus, trata-se de obscenidade teológica.

O mesmo livro explica o martírio da mãe e seus sete filhos como triunfo da razão
divina em face da emoção humana, pois, “como alguém poderá deixar de confessar
a soberania da razão correta acima da emoção dos que não retrocederam em face
das terríveis agonias?” (4 Macabeus 13,5). E poderia haver também uma alusão à
imortalidade de suas almas em 4 Macabeus 9,8: “Pois nós, por meio deste severo
sofrimento e perseverança, receberemos o prêmio da virtude e estaremos com Deus,
por quem sofiremos”.

Mas para outros judeus a morte honrosa, a expiação vicária ou a imortalidade


da alma não explicavam adequadamente a justiça de Deus. Não foram as almas
dos mártires que morreram, mas seus corpos. Não foram torturados e batidos no
espírito, mas na carne. De que maneira a justiça de Deus vindicava os corpos dos
mártires? O segundo livro de Macabeus oferece uma resposta diferente, dispensando
argumentos, porque já eram conhecidos de todos. Deus, algum dia, em algum lugar
no futuro haveria de restaurar, de maneira pública e visível, os corpos dos mártires.
Ouçamos as declarações da mãe e seus sete filhos em 2 Macabeus.

Em primeiro lugar, “tu, celerado, nos tiras desta vida presente. Mas o rei do
mundo nos fará ressurgir para uma vida eterna, a nós que morremos por suas leis!”
(7,9). Depois: “Intimado a pôr fora a língua, ele a apresentou sem demora e estendeu
suas mãos com intrepidez, dizendo nobremente: 'Do céu recebi estes membros, e
é por causa de suas leis que os desprezo, pois espero dele recebê-los novamente'”
(7,10-11). Em seguida: “E desejável passar para a outra vida às mãos dos homens,
tendo da parte de Deus as esperanças de ser um dia ressuscitado por ele. Mas para
ti, ao contrário, não haverá ressurreição para a vida!” (7,14). Em quarto lugar: “É o
criador do mundo que formou o homem em seu nascimento e deu origem a todas as
coisas, quem vos retribuirá, na sua misericórdia, o espírito e a vida, uma vez que agora
fazeis pouco caso de vós mesmos, por amor às suas leis” (7,23). Em quinto lugar:
“Não temas este carrasco. Ao contrário, tornando-te digno dos teus irmãos, aceita
a morte, a fim de que eu torne a receber-te com eles na Misericórdia” (7,29).

Percebe-se certa funesta combinação da morte nobre (suicida) com a ressurrei­


ção física na morte de Razias em 2 Macabeus: “Razias, cercado de todos os lados,
atirou-se sobre a própria espada. Quis assim nobremente morrer antes que deixar-se
cair nas mãos dos celerados para sofrer ultrajes indignos da sua nobreza [...]; ainda
respirando e ardendo de indignação [...] arrancou as entranhas e, tomando-as com as
duas mãos, arremessou-as contra a multidão. Invocando, ao mesmo tempo. Aquele
que é 0 Senhor da vida e do espírito, para que lhas restituísse um dia” (14,41-46). A
exacerbada retórica deixa claro o que entendiam por ressurreição do corpo. Não seria
adequado falar de punição para os perseguidores. Mas teria de haver um tempo e
lugar para fazer justiça aos perseguidos. Precisavam receber de Deus o que haviam
perdido por causa dele. A ressurreição de todos os corpos aconteceria no futuro, de
certa maneira, em algum lugar quando os mártires receberiam a justiça de Deus. E
dos mártires, como em círculos em expansão, a esperança alcançaria todos os justos
que haviam vivido pela justiça ou sofrido com as injustiças.

Neste ponto a ressurreição geral relaciona-se com o que dissemos no capítulo


2 a respeito do gradiente de esperança nascida na aliança do Reino, passando pela
escatologia e terminando no apocalipse. A ressurreição é conceito totalmente esca-
tológico-apocalíptico. É, de fato, o grande e último momento dessa esperança. Não
se trata de nossa sobrevivência, mas da justiça de Deus. Não perguntamos se somos
eternos, mas se Deus é justo. Nosso cântico é este: Deus haverá de vencer.

Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos


Quando, então, nos anos 30 do primeiro século de nossa era, alguém procla­
masse, no contexto judaico, que Deus havia ressuscitado Jesus dentre os mortos,
que quereria dizer com isso? Deixando de lado agora se concordamos ou não com
0 anúncio, o que nos interessa é seu conteúdo. Vamos examinar, primeiramente,
três conclusões negativas e, depois, a positiva.

Conteúdo da afirmação da ressurreição

Ressuscitação. Ressurreição não é a mesma coisa que ressuscitação. Não significa


que um Jesus quase morto tenha sido reavivado depois de descer da cruz. Houve
indivíduos que sobreviveram depois de uma crucifixão interrompida, como atesta
Josefo em sua obra Vida. Ele mesmo intercedera junto aTito em favor de três pessoas
que já estavam na cruz depois da destruição de Jerusalém no ano 70 d.C. e, embora
“dois deles tivessem morrido nas mãos do médico, o terceiro sobrevivera” (421).
O mesmo também aconteceu quando criminosos no patíbulo Tyburn na Londres do
século dezoito foram retirados da forca e ressuscitados. Mas a insistência da tradição
cristã na expressão “depois de três dias” ou “ao terceiro dia” acentua o fato da morte
real de Jesus. Somente a visita ao túmulo depois desse período inicial certificava
se a pessoa havia de fato morrido. É por isso que João 11,17 observou que “Jesus
encontrou Lázaro já sepultado havia quatro dias”. Queria dizer, em outras palavras
que, sem dúvida alguma, ele estava morto.

A parição. Ressurreição não é a mesma coisa que aparição. Não se trata de dis­
cutir se aparições e visões ocorrem ou como poderiam ser explicadas. O mundo
antigo pressupunha sua possibilidade; por exemplo, Heitor assassinado aparece a
Anquises no final da Guerra de Tróia e no começo da Eneida de Virgílio. O mundo
moderno age do mesmo modo; por exemplo, The Diagnostic and Statistical Manual o f
Mental Disorders— IV [Manual estatístico e diagnóstico de desordens mentais — IV]
não as considera desordens mentais, mas características comuns de sofrimento sem
maiores complicações. É o que pode acontecer, no passado como agora, depois do
desaparecimento ou da morte repentina, trágica ou terrível de pessoas queridas.
Portanto, mesmo se os textos cristãos nunca tivessem mencionado aparições ou
visões de Jesus depois da crucifixão, poderíamos ter certeza de que teriam ocorrido.
Mas 0 que importa é que aparições não são a mesma coisa que ressurreição nem
nenhuma experiência que ateste sua presença.

E xaltação. Ressurreição não é a mesma coisa que exaltação. Na tradição judaica,


algumas pessoas santas subiam para Deus em vez de repousar no túmulo, como,
por exemplo, Enoc entre os patriarcas e Eliseu, que era profeta. 0 termo equivalente
greco-romano era apoteose; por exemplo, as moedas da época de Augusto mostram
0 espírito de Júlio César subindo como um cometa para tomar o seu lugar entre as
divindades celestiais. São casos individuais que não interferem no destino dos ou­
tros. Se quisessem dizer coisas assim a respeito de Jesus, os termos próprios seriam
exaltação, ascensão ou apoteose, jamais ressurreição. Em outras palavras, poderíamos
não ter ressurreição sem exaltação, mas nunca exaltação sem ressurreição. Jesus
poderia estar à direita de Deus sem ter ressuscitado.

Ressurreição. A resposta positiva será, naturalmente, óbvia. Afirmar que Deus


ressuscitou Jesus dentre os mortos queria dizer que a ressurreição geral já começara. Somente
nesse contexto “ressurreição” ou “ressurgido dentre os mortos” representam ter­
minologia correta. E o que se apreende da leitura de 1 Coríntios 15, comentário de
Paulo a respeito da segunda camada textual ou da tradicional anterior.

Tomemos este exemplo. Paulo podia argumentar consistentemente em qualquer


direção: se Jesus não ressuscitou, não há ressurreição geral; se não há ressurreição
geral, Jesus não ressuscitou. Observemos, por exemplo, como a questão aparece em
1 Coríntios 15,12-13, “se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem
alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição
dos mortos, também Cristo não ressuscitou”. O último argumento é repetido em
15,16: “Pois, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou”. Não
se pode afirmar uma coisa e negar a outra. Paulo jamais imaginou a ressurreição de
Jesus como evento meramente pessoal. Se fosse assim, teria sido exaltação, ascensão
ou apoteose, mas nunca ressurreição no sentido em que o termo era empregado no
judaísmo do primeiro século.

Outro exemplo. Os dois eventos andam juntos porque representam o começo


e 0 fim do mesmo processo. A metáfora usada por Paulo em 15,20 é ciara: “Cristo
ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram” (termo técnico usado
para designar os que esperavam no Sheol a libertação). Primícias eram os primeiros
firutos da colheita separados para o Templo. Não significam promessas de colheitas
futuras, mas o início da atual safra. A colheita começa com elas. A ressurreição de
Jesus é 0 início da ressurreição geral, isto é, com a ressurreição de Jesus começa a ressurreição
geral. Trata-se de uma proclamação extraordinariamente criativa e profundamente
original apresentada por meio de quatro maneiras, cada qual exigindo uma escolha
crucial entre alternativas.

Em primeiro lugar, é profundamente original ao distinguir entre iminência geral


e final específico da consumação apocalíptica. Não há nada de especial no anúncio
do apocalipse iminente por indivíduos, grupos, seitas ou religiões. É coisa que está
sempre acontecendo. Tampouco é estranho dizer que o apocalipse já começou.
Sempre se imaginou que maravilhas e horrores, perseguições e catástrofes, guer­
ras e rumores-de guerra inauguravam o processo final. Sempre tivemos terrores à
disposição para tornar plausíveis nossas afirmações de que o apocalipse se apro­
xima. Mas a ressurreição geral é o grande final do apocalipse, momento em que o
Deus da justiça justifica o mundo de maneira pública e visível, transformando-o
de lugar de maldade e violência em espaço de bondade e paz. Os que anunciavam
a ressurreição de Jesus afirmavam que esse evento já havia começado. Proclamavam
que a tão esperada vindicação de Deus para todos os que haviam vivido, sofrido e
morrido pela justiça, e para os que também viveram, sofreram e morreram por causa
da injustiça, já chegara.

Em segundo lugar, é profundamente original ao distinguir en tre judaísmo interno


e contra o judaísmo na consumação apocalíptica. A ressurreição de Jesus como início
da ressurreição geral não era exclusividade do cristianismo contra o judaísmo, nem
0 que dividia as duas religiões. Tratava-se de uma atitude absolutamente original no
âmbito das possibilidades e opções do judaísmo. Por exemplo, era possível imaginar
no judaísmo apenas o apocalipse divino sem nenhum líder messiânico, fosse angélico
ou humano, profético, real ou sacerdotal. Os judeus essênios proclamavam a vinda
de um messias duplo, ao mesmo tempo, separados e hierárquicos, um sacerdotal
e outro real (possivelmente para criticar a combinação asmoniana desses dois
papéis numa só pessoa). Os judeo-cristãos anunciavam a vinda de um só messias
em dois tempos. Não era nada mais nem menos original, nem mais dentro ou mais
fora do judaísmo, do que se via na criatividade de Qumrã. A mesma coisa se dava
com a ressurreição de Jesus — poderia ser vista como opção possível e até mesmo
inesperadamente original no judaísmo da época. Mas se tratava de reivindicação
extraordinária: começava não o princípio mas sim o fim da justificação do mundo.

Em terceiro lugar, é profiindamente original na distinção entre ressurreição


geral como momento instantâneo e processo duradouro da consumação apocalíptica.
Havia implicações invisíveis nessa mudança. Uma coisa era imaginar a ressurreição
geral como ato final de Deus, conclusão apocalíptica, instante divino e momento
que terminava com todos os instantes humanos. Mas o apocalipse tornava-se agora
duradouro em vez de instantâneo, processo ao longo do tempo e não relâmpago
no fim dos tempos. Talvez a idéia fosse mais fácil para Paulo, uma vez que o fim do
começo, ou o término do clímax apocalíptico estava chegando para ele. Ponderou
durante semanas e meses, pelo menos, ou anos e décadas, na pior das hipóteses.
Mas, daí para a frente, nós cristãos deveríamos pensar sobre décadas, séculos e, fi­
nalmente, milênios. Não foi fácil mudar o conceito de ressurreição geral instantânea
para o de processo ao longo do tempo. Mas, por exemplo, provocou imediatamente
0 surgimento da próxima questão.
Em quarto lugar, é profundamente original na distinção entre não-participação pas­
siva e participação ativa na consumação apocalíptica. A ressurreição geral considerada
ato final divino de justificação cósmica transformando nosso mundo da normalidade
injusta para a Eutopia justa não dava muito lugar para participação humana. No
melhor dos casos, os cristãos poderiam orar por ela, esperá-la, talvez até mesmo viver
em grande saritidade ou aceitar a morte provocada por perseguições para apressar o
seu advento. E o que significava passividade ou não-participaçãã Talvez os termos
não sejam adequados para essas vidas e mortes, mas se mostram claramente dife­
rentes do que chamamos de participação ativa no exemplo seguinte.

Relembremos o que foi dito no capítulo 2 sobre conversão em vez de extermínio


de pagãos em certos momentos da tradição judaica apocalíptica. Os cristãos que
anunciavam o clímax apocalíptico facilmente concluíram que agora era o tempo da
conversão pagã ao Deus da justiça do judaísmo. Mas era bem diferente concluir
daí que Deus exigia o estabelecimento da missão judaica para converter os pagãos,
mesmo nessa interpretação do apocalipse. Não caberia somente a Deus tal ação?
Não deveriam permanecer em Jerusalém orando e esperando que a enorme Corte
dos Gentios no Templo se enchesse desses gentios escatológicos, pagãos, do apo­
calipse de Deus?

Era possível, por exemplo, concordar com Paulo que os gentios deveriam ser
incluídos na comunidade apocalíptica judaica sem precisar seguir os rituais da antiga
tradição (por exemplo, a circuncisão masculina). Mas também se poderia discordar de
seu programa missionário geral e especialmente de sua vocação pessoal de anunciar
0 Evangelho não apenas aos judeo-cristãos mas também aos pagãos. Tratava-se de ir
mais adiante, e muitos dos que se opunham a Paulo, pertencentes ao cristianismo
judaico, achavam que a missão aos pagãos não fazia parte do plano apocalíptico de
Deus. De qualquer forma, a participação humana na solução divina criava situação
absoluta e radicalmente nova com nova interpretação da ressurreição geral, consi­
derada não mais instantânea mas sim processo ao longo do tempo.

Evidência da afirmação da ressurreição

Mas como na terra (literalmente!) alguém poderia fazer tal afirmação? Onde
estavam as evidências? Tratava-se de um desafio presente, não de profecia a respeito
do futuro. Onde, então, as evidências, as provas, as indicações dessa Eutopia divina
numa terra normalmente cheia de maldade, violenta e sempre injusta? Como, por
exemplo, Paulo de Tarso poderia afirmar a ressurreição a um pagão do primeiro
século, e Tiago de Jerusalém, a um fariseu da mesma época? Mas não eram provas
ou evidências irrefutáveis que estavam em jogo. O que importava era o que Paulo e
Tiago indicavam aos ouvintes de mente aberta em defesa da afirmação de que Deus
já começara a vindicação dos mártires e a justificação do mundo.

Paulo a um p ag ão. Imaginemos Paulo desembarcando em qualquer cidade pela


primeira vez. Levava consigo os instrumentos de seu ofício e poderia achar emprego
em qualquer oficina de artigos de couro que precisasse de mão-de-obra especiali­
zada. Logo perguntaria onde se situava a rua desse tipo de comércio. Ali adiante,
dir-lhe-ia alguém, há uma oficina de um escravo libertado, ainda financiado por seu
antigo patrão, orgulhoso de sua recém-conquistada liberdade, e mais ainda porque
seus filhos agora vão nascer livres e serão cidadãos romanos.

As oficinas interessaram-se por Paulo, que havia estado em diversos lugares no


Oriente, de Jerusalém a Antioquia e em Corinto. Podia falar dessas cidades, mas
precisava dizer por que viajava tanto. Seria, por acaso, um escravo fugitivo? Que
aconteceria se Paulo anunciasse de repente, sem preâmbulo, que Deus havia res­
suscitado Jesus de Nazaré dentre os mortos na Judéia? (Naturalmente, não agiria
assim, mas deixemos por enquanto como está.)

“Então, Paulo, a ressurreição de Jesus foi assim como aconteceu com Júlio César
depois que morreu? Olha esta moeda. Ela retrata o espírito de César subindo como
um cometa para tomar seu lugar entre as divindades celestes. Se você não acredita
nessa história, Paulo, como poderá explicar o fantástico sucesso da dinastia impe­
rial júlio-claudiana? Nós vemos o que César fez para nossos negócios, mas que fez
Jesus para nós?”

Para responder, Paulo precisaria explicar o conteúdo específico da ressurreição


segundo a tradição judaica para concluir que Deus j á começara a transformar o
mundo da injustiça para a justiça. “Onde, Paulo? De que maneira?” Qual poderia
ter sido a resposta? Talvez, assim:

“Temos um pequeno grupo que se encontra para orar numa loja perto daqui
antes do início do trabalho. Reunimo-nos, também, semanalmente, para compartilhar
a metade do que ganhamos no trabalho da semana anterior. Comemos juntos, e a
refeição se chama Ceia do Senhor, porque acreditamos que a criação inteira pertence
a ele e que, por isso, compartilhamos o alimento que ele nos dá. Consideramo-nos
iguais perante o Senhor, judeus e gregos, escravos e livres, homens e mulheres, pobres
e ricos. 0 alimento é a base material da vida que pertence a Deus. Participamos no
que não é nosso, nessa Ceia típica do Senhor, no seu estilo. Quero convidá-lo, então.
Venha e veja se Deus já não está instaurando esse novo mundo justo bem aqui a
seu lado e contra os planos de Roma. Se não enxergar nada disso, vá embora, mas
se perceber essas coisas, permaneça conosco. E, por falar nisso, temos pequenos
grupos como este em todas as cidades do Império Romano. Não importa quantos
somos, mas como somos. E sempre que algum de vocês deixa César em favor do
Jesus crucificado, do Deus que o ressuscitou, começa já a participar na justificação do
mundo. Trata-se de escolher entre o divino César e o divino Jesus. Entre a divindade
encarnada em poder violento e a que se mostra por meio de justiça distributiva (que
chamamos de agape). Venha, pois, ao mercadinho que vende sardinhas, depois de
amanhã, para ver e decidir por você mesmo”.

Paulo, naturalmente, acrescentaria: “Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou,


assim também os que morreram em Jesus, Deus há de levá-los em sua companhia.
Pois isto vos declaramos, segundo a palavra do Senhor: que os vivos, que ainda
estivermos lá para a Vinda do Senhor, não passaremos à frente dos que morreram.
Quando o Senhor, ao sinal dado, à voz do arcanjo e ao som da trombeta divina, descer
do céu, então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; em seguida nós, os vivos
que estivermos lá, seremos arrebatados com eles nas nuvens para o encontro com
o Senhor, nos ares. E assim, estaremos para sempre com o Senhor” (ITs 4,14-17).
Essas palavras, entretanto, assemelhavam-se às que ouviam das religiões contem­
porâneas de mistério como, por exemplo, dos devotos da deusa egípcia ísis. O fato
não era sem importância, mas alguns queriam saber: por que o deus agindo aqui e
agora seria mais persuasivo do que o deus que age na vida vindoura? Mas, talvez,
valesse a pena investigar o deus que estabelecia a justiça no mundo. Para alguns, é
claro. Mas era assim que se começava.

Tiago a um fariseu . Se Tiago de Jerusalém explicasse a ressurreição de Jesus a um


fariseu, não precisaria explicar-lhe a tradição judaica, porque este a conhecia muito
bem. A questão, no entanto, seria a mesma: “Mostra-me de que maneira Deus já
está começando a justificar o mundo injusto. Como vai vindicar os sofrimentos dos
justos e a morte dos mártires?”. Como Paulo, Tiago convidaria o fariseu a visitar
sua comunidade para ver como vivia. Mas teria que falar de algo que Paulo não
mencionava. Não era suficiente, de modo algum, falar da ressurreição individual
de Jesus como início da ressurreição geral a ser imediatamente consumada. Jesus
não fora o único mártir judeu, nem seria o último. Que aconteceria para os que já
haviam partido antes dele? A ressurreição de Jesus deveria ser coletiva. Não poderia
ter ressuscitado sozinho, mas talvez um pouco antes da ressurreição geral de todos
os que haviam sofrido e morrido injustamente e que agora aguardavam no Sheol a
esperada vindicação.
Esse tipo de ressurreição coletiva não aparece na teologia de Paulo. Mostra-se
naturalmente no Credo Apostólico — “desceu ao Hades” para dizer que Jesus des­
cera ao Sheol para libertar todos os que, como ele, haviam vivido, sofrido e morrido
injustamente. Essa frase não consta no Credo Niceno. A própria idéia de ressurreição
coletiva foi quase perdida em nosso Novo Testamento. Com isso perdeu-se também
o pleno significado da ressurreição de Jesus como inauguração da justificação do
mundo por Deus — e de nossa necessária cooperação no processo.

Podemos achar resíduos truncados e esquecidos dessa interpretação da ressur­


reição em Mateus 27,51b-53, quando, na crucifixão, “a terra tremeu e as rochas se
fenderam. Abriram-se os túmulos e muitos corpos dos santos falecidos ressuscita­
ram. E, saindo dos túmulos após a ressurreição de Jesus, entraram na Cidade Santa
e foram vistos por muitos”. Essa idéia aparece também fora do Novo Testamento,
no Evangelho de Pedro 10,39-42, quando Deus pergunta ao Jesus ressuscitado: “Tu
pregaste aos que dormiam?” — isto é, proclamando a libertação aos justos que
esperavam no Sheol. E a resposta foi, naturalmente, “sim!”.

Mas podemos apreciar mais claramente o ensino no belo hino do final do primeiro
século de nossa era, na fala de Jesus em Odes de Salomão 42,10-20:

Não fui rejeitado, embora assim o considerassem;


e não pereci, embora achassem que sim.

O Sheol me viu e ficou abalado


e a morte me expulsou com muitos outros [...].

Os que haviam morrido correram ao meu encontro;


e clamaram dizendo: “Filho de Deus, tem piedade de nós [...].

Abre-nos a porta para te encontrarmos,


pois percebemos que nossa morte não te atingiu.

Que possamos nos salvar contigo,


porque és nosso Salvador”.

Então ouvi sua voz,


e guardei sua fé em meu coração.

E escrevi meu nome em suas frontes,


porque estão livres e são meus.

Seria possível argumentar que a ressurreição coletiva de Jesus fora conseqüência


tardia da individual, surgida na terceira camada da tradição. Por outro lado, parece
que a idéia fora eliminada mais cedo e sobrevivera em alguns hinos e orações. Mas
levantou uma questão profunda. Se, sem considerar o futuro, a ressurreição de Jesus
concernia apenas a ele, onde se situava a justiça de Deus e o início da justificação
do mundo nesse ato? Se fosse apenas a ressurreição dele, não se poderia atribuir ao
evento a acusação de nepotismo (filio-tism o), dispensação especial para uma pessoa
especial, privilégio particular do Filho de Deus? Como relacionar com ela todos os
que já haviam morrido antes dele?

Paulo poderia omitir qualquer menção à ressurreição coletiva de Jesus quando


se dirigia aos pagãos que, por certo, não se preocupavam com os mártires judeus.
Mas Tiago não poderia deixar de mencioná-la ao pregar aos fariseus. Quanto mais
judeu se mostrava o cristianismo judaico, mais falava da ressurreição coletiva e não
apenas da individual. Quando o cristianismo deixou de se referir à coletiva, perdeu-
se um elemento profundamente importante. A ressurreição deixou de se relacionar
com a justiça de Deus, concentrando-se na nossa sobrevivência.

Monumento de mármore ou justiça?


Voltemos à Igreja do Santo Sepulcro. Foi lá que o Reino de Deus repousou. O
Reino da aliança de Jesus deixou de ser um centro dinâmico que se dirigia igual­
mente a todos para se concentrar num lugar para onde se devia, agora, ir. E tinha
uma fachada de mármore. Deixou de ser comunidade alternativa onde as pessoas
partilhavam seus bens e o poder espiritual de curar, bem como o físico de comer.
Foi tomado pelo comércio de mármore do império e os cristãos começaram a comer
em tigelas de prata.

A rotunda circular do Santo Sepulcro relembrava na forma o já discutido mau­


soléu de Augusto em Roma e a fortaleza-palácio-túmulo de Herodes, o Grande, no
deserto da Judéia. Compartilhavam da mesma feição familiar: formas circulares
impostas sobre o cenário com fachadas imponentes de mármore ou de pedra polida.
Afinal, os cristãos davam a seu rei um funeral apropriado, como o de Herodes, o
Grande, ou de César Augusto e, embora não o soubessem, muito melhor que o de
Caifás.

Mas 0 Santo Sepulcro cristão tornou-se possível tanto pela destruição de Jeru­
salém por Adriano como pelas finanças imperiais de Constantino. Essa é a grande
ironia e tragédia ao mesmo tempo. Jesus que tanto se rebelara contra o reino comer­
cial romano na Galiléia, o camponês judeu, transformava-se agora no rei imperial,
0 Cristo. Constantino construiu na rocha os lugares {kokhim ou arcosolia) para o
sepultamento régio do Jesus judeu além de qualquer expectativa. Com o passar do
tempo, 0 cristianismo também se esqueceu de suas raízes judaicas e do Reino da
aliança. Leiamos mais uma vez a descrição de Eusébio do edifício do Novo Reino:

Assim, no monumento da salvação construía-se a Nova Jerusalém,


em oposição à antiga, tão famosa então, que depois da mancha
causada pelo assassinato do Senhor, experimentou os extremos da
desolação e pagou o castigo pelos de seus ímpios habitantes. Em
oposição a isso, o imperador ergueu, à custa de grandes e pródigas
despesas, o troféu da vitória do Salvador sobre a morte (Vida de
Constantino 3.33).

Não importa se Constantino construiu o Santo Sepulcro no lugar certo. Sim,


provavelmente. Importa saber, no entanto, se a construção fora adequada ao Reino
de Deus de Jesus, testemunhando o ideal judaico do Reino da aliança na terra como
no céu. Não, provavelmente. Acima de tudo, questionamos ou perguntamos não
como Constantino celebrou o sepulcro de Jesus, mas sim como o cristianismo ce­
lebra a sua ressurreição.

Afirma-se, às vezes, no pensamento cristão contemporâneo, que somente os


milagres estupendos do túmulo vazio e das aparições do ressuscitado poderiam
explicar historicamente, em primeiro lugar, a retomada da fé pelos discípulos, depois
de a terem perdido na crucifixão e, depois, a aceitação da fé em Jesus, por outros,
apesar da crucifixão. Essa compreensão supersimplificada cria dois problemas, um
maior, outro menor.

Em primeiro lugar, foram os homens, não as mulheres, que fugiram, pois sen­
tiram-se ameaçados de ser presos com Jesus. Mas perder a coragem não significa
perder a fé. Até a narrativa de Marcos da negação tríplice de Pedro mostra que o
apóstolo perdera não a fé mas sim a memória. Talvez tivesse sido mais forte se ti­
vesse permanecido firme em sua confissão, mas foi levado à negação pela covardia,
não pela falta de fé.

Em segundo lugar, projetamos nosso racionalismo pós-iluminista no mundo


pré-iluminista. Imaginemos este debate contemporâneo nessas linhas. Descrente:
“Essas histórias sobre nascimentos virginais e divinos, eventos miraculosos, feitos
maravilhosos, aparições de ressuscitados e ascensões ao céu nunca aconteceram
nem poderiam acontecer. Na melhor das hipóteses, são mitos e, na pior, mentiras”.
Crente: “E verdade que eventos desse tipo não acontecem todos os dias, mas acon­
teceram com nosso Jesus de uma vez por todas, no passado”. Nessa contradição
pós-iluminista, a impossibilidade enfrenta a singularidade.

As duas posições, contudo, são igualmente irrelevantes no mundo pré-iluminista


e estranhas a seu meio cultural. Num mundo onde histórias de nascimentos divinos
e ascensões ao céu faziam parte do panorama transcendental, a impossibilidade não
era argumento válido para os inimigos polêmicos, e a singularidade não servia para
os apologetas na defensiva. No mercado livre das idéias religiosas que era o mundo
greco-romano, era preciso transitar na área do livre mercado espiritual para defender
seu Deus ou seu Filho de Deus sem o auxílio de argumentos pós-iluministas.

Por exemplo, na metade do segundo século, Justino argumentava em favor de


Jesus em sua Primeira apologia, dirigida aos pagãos. Nunca sugeriu o conceito de
singularidade: “Quando dizemos que o Verbo que é o primogênito de Deus, foi
concebido sem união sexual, e que ele, Jesus Cristo, nosso mestre, foi crucificado e
morreu, e ressuscitou, e subiu ao céu, propomos a mesma coisa que vocês acredi­
tam a respeito dos que são considerados filhos de Júpiter”. Enumera, em seguida,
muitos exemplos e termina referindo-se aos imperadores e especialmente a Júlio
César: “Que dizer dos imperadores que morreram em seu meio, tidos por vocês
como dignos de deificação, e por quem vocês produzem pessoas que afirmam ter
visto César subindo das chamas da pira fúnebre para o céu?”. Finalmente, contudo,
Justino não se sente em condições para dizer que tais histórias eram equivalentes.
Observemos, no entanto, que seu critério de discriminação era não a singularidade
do evento mas sim a superioridade da ação: “Como prometi na primeira parte deste
discurso, vou provar que Jesus era superior — ou, melhor, já o provei — , pois o supe­
rior revela-se por seus atos” (21-22). O argumento é, inegavelmente, pré-iluminista.
Havia, certamente, muitos filhos de Deus ao redor, mas Jesus era o melhor de todos
por causa de certos argumentos específicos.

Semelhantemente, depois de um quarto de século, quando o polêmico pagão


Celso atacava o cristianismo, usava exatamente o mesmo tipo de argumento pré-
iluminista. Nunca usou o argumento da impossibilidade, mas atacou Jesus porque
este último nunca teria feito nada para os outros. O argumento da superioridade
confronta-se com o da inferioridade: “Afinal, os antigos mitos gregos que atribuem
nascimento divino a Perseu, Anfion, Éaco e Minos evidenciam as obras maravilhosas
que fizeram em favor da humanidade — e, certamente, não são menos plausíveis do
que as histórias dos seguidores de Jesus. Que fizeste Qesus] por palavras e obras que
se igualasse às maravilhas daqueles heróis do passado?” (Sobre a verdadeira doutrina).
Tanto os apologetas cristãos como os polemistas anticristãos empregavam o mesmo
argumento, mas de maneira oposta. Não se imaginava que a impossibilidade e a
singularidade pudessem ser argumentos absolutos (talvez, hiperbólicos). O debate,
porém, concentrava-se na superioridade dos atos. Justino: “Jesus fizera muito mais
do que todos os outros”. Celso: “Jesus fizera menos do que todos os outros”.

Paulo e seus ouvintes viviam no mundo pré-iluminista do primeiro século. Os


argumentos baseados em impossibilidade e singularidade, usados hoje, não tinham
lugar. A afirmação do túmulo vazio ou/e de aparições do ressuscitado não era sufi­
ciente para explicar coisa alguma no mundo antigo. Mas o conteúdo pleno da res­
surreição de Jesus como apresentamos acima poderia ser debatido. O que importava,
na época, era o conteúdo e as implicações do milagre. Não era suficiente achar que
tudo era muito bom; havia muita coisa boa naquele tempo. Os antigos poderiam
não acreditar na ressurreição de Jesus, mas jamais achariam que fosse impossível.
Os ouvintes de Paulo não seriam descorteses dizendo abruptamente: “Não cremos
em você”. Mas, educadamente: “Que bom para Jesus, mas por que deveríamos nos
preocupar com isso?”. Ou, mais francamente: “De que maneira nos afeta?”. Era
exatamente nesse momento que Paulo começaria a lhes explicar com pormenores,
por exemplo, a diferença socioeconômica e religiosa política entre a ascensão de Júlio
César e a ressurreição de Jesus, e que estava na hora de escolher entre elas.

Retomemos o debate sobre a “ressurreição” entre judeus e judeo-cristãos. Os


que pregavam que Jesus havia começado o momento fmal do clímax apocalíptico
queriam demonstrar evidências públicas da transformação do mundo injusto e
mau para o novo mundo de justiça e paz. Para isso não bastava insistir em túmulos
vazios ou aparições do ressuscitado. Não que fossem sem importância, mas o que
importava eram as evidências da transformação do mundo. Paulo e seus seguidores
tinham apenas uma, a vida de suas comunidades. É assim que vivemos com Deus e
é nessa base que procuramos persuadir os outros a acreditar. Essa é a nova criação,
0 mundo transformado. Nós em Deus e Deus em nós, juntos aqui na terra.
Paulo afirmava em 1 Coríntios que “se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa
pregação, vazia é também a vossa fé” (15,14). Como já vimos, o comentário é ver­
dadeiro para os cristãos, mas também seu reverso. Se a fé cristã tem sido em vão,
isto é, não se transforma nem transforma o mundo segundo a justiça divina, e se a
proclamação cristã também tem sido vã, isto é, não insiste nessa vocação da Igreja,
então Cristo não ressuscitou. Não obstante, os cristãos ainda poderiam afirmar que
Jesus fora exaltado e que estava agora à direita de Deus. Mas a ressurreição, repe­
tindo 0 argumento deste capítulo, supõe o começo da transformação cósmica, não
apenas a promessa de que virá, sua esperança, nosso discurso, nem tampouco nossa
teologia a seu respeito. A Igreja do Santo Sepulcro pode ser vista no seu passado de
mármore e nas disputas atuais na Jerusalém de nossos dias. Mas a Igreja da Bendita
Ressurreição só poderá ser vista num mundo transformado pela cooperação cristã
em parceria com a justiça divina e pela participação cristã nessa justiça.
E pílo g o

SOLO E EVANGELHO
Uma vez que o presente só conhece o futuro do passado longínquo, é difícil
não considerar a inevitabilidade do futuro, dizendo que, afmal, teria de acontecer
como aconteceu, sem possibilidade alguma de ter sido diferente. Para admitir que
pudesse ter sido diferente, precisaríamos de explicações terapêuticas, pensamen­
tos medicinais a respeito de momentos cruciais, escolhas alternativas e resultados
divergentes. Seria também preciso que reconhecêssemos nossa total ignorância
sobre o futuro para apreciar devidamente como essa cegueira nos liga a tudo isso no
contexto de nossa humanidade comum. Temos, então, duas questões. A primeira;
a que conclusão chegamos sobre a época, lugar, visão e programa do Jesus histórico
no âmbito da dialética deste livro entre arqueologia e exegese? A segunda; teria sido
possível prever, por exemplo, a existência de duas religiões mundiais separadas e
até mesmo antagônicas?

Roma e judaísmo
Pedras e textos, sobras materiais e restos de textos, solo e evangelho, arqueo­
logia e exegese. Mas, posto que os segundos termos dessa dialética quase sempre
dominaram o processo de integração, precisamos reagir por meio de imaginação
contestatória. Que aconteceria se não tivéssemos tido textos a respeito do primeiro
século de nossa era no território judaico? Apesar do caráter imaginário da questão,
ela esconde o fato de que a arqueologia busca não apenas inscrições mas também
documentos. Mas deixemo-nos levar, por enquanto, pela fantasia.

Imaginemos, por exemplo, que nunca tivemos acesso aos seguintes documentos.
Em primeiro lugar, às narrações do historiador romano Tácito sobre as inúmeras
incursões das legiões romanas no sul, a partir de suas bases na Síria, para castigar os
levantes coloniais no território judaico, com fogo e espada. Não saberíamos que sob
0 imperador Tibério havia ainda tranqüilidade, e as tropas permaneciam acampadas.
Sem o historiador judeu Josefo não teríamos seus comentários sobre João Batista,
Jesus e Tiago de Jerusalém. Nem a interpretação de que sob o Pilatos de Tibério a
situação não era tranqüila, embora as legiões não estivessem ainda lutando. Nem
teríamos os escritores dos evangelhos judeo-cristãos contando as mesmas coisas,
mas de ângulo diferente. Que veríamos, deveríamos perceber, se tivéssemos apenas
0 solo?
Reconheceríamos, imediatamente, a presença de artefatos na Galiléia e na
Judéia deixados por povos diferentes dos que viviam a seu redor. Acharíamos em
suas cidades e vilarejos muitas piscinas revestidas, não necessariamente funcionais
como banheiras e cisternas. Examinaríamos vasos de pedra desde muito pequenos
até excepcionalmente grandes. Também encontraríamos câmaras mortuárias cavadas
na rocha para a primeira fase dos sepultamentos, e covas no chão ou ossuários para
0 repouso fmal dos ossos. Não acharíamos resíduos de ossos de porco nos restos
de comida ou nas ruínas de cozinhas. Perceberíamos, guiados por paralelos do Me­
diterrâneo, que 0 poder imperial romano andou por aí no passado para dominar o
povo. No lapso de uma geração, saberíamos que estiveram ao sul do país tanto na
terra como na costa marítima. Na costa, por exemplo, reconheceríamos não apenas
uma cidade de estilo romano, mas um magnífico porto, com sua baía em atividade
durante todas as estações do ano, construído com muita dificuldade. Saberíamos,
também, de comparações com outros lugares, que o Império Romano não fazia co­
mércio nesses territórios enviando mercadores montados em cavalos ou em carros.
Como 0 império anterior de Alexandre, o Grande, criou cidades onde os aristocratas
construíam residências de luxo e reorganizavam a zona rural para extrair dela o má­
ximo de produtividade. Na geração seguinte, encontraríamos o mesmo processo em
ação ao norte onde, distantes uma da outra por 20 milhas, surgia uma nova cidade e,
vinte anos depois, outra era reconstruída e aumentada, com as marcas da urbanização
e comercialização romanas. Finalmente, mais ou menos na geração seguinte, uma
terrível camada de destruição cobriu essa terra com entulhos e flechas, fragmentos
carbonizados e cinza — sinais da revolta local contra o controle romano que deixou
cidades em ruínas, muros destruídos e, provavelmente, o povo assassinado.

O que fizemos foi ato muito artificial de imaginação, mas útil em certas cir­
cunstâncias. Que saberíamos se tivéssemos apenas o solo, restos materiais e dados
arqueológicos? Que veríamos? Mas, na verdade, temos não apenas o solo mas tam­
bém inúmeros restos de textos e para as finalidades deste livro utilizamos as duas
coisas, arqueologia e exegese. Que resultados alcançamos depois disso?

Em primeiro lugar, os artefatos caracteristicamente étnicos vieram dos códigos


de pureza da lei da aliança e não de resíduos de hábitos populares. Os judeus,
certamente, conseguiam observar as regras religiosas e ao mesmo tempo discordar
a respeito de resistência e não-resistência, resistência violenta e não violenta, ao
domínio romano. Mas, se tais ritos fossem abandonados completamente, Roma
não teria prevalecido de maneira absoluta? Relembremos que, segundo Josefo, o
abandono do judaísmo em favor do paganismo por Tibério Júlio Alexander decorreu
de “não agüentar as práticas de seu povo”. O abandono das regras de pureza signi­
ficava abandonar todo o resto. Mas nenhum judeu do primeiro século diria que a
aliança referia-se apenas aos artefatos n em principalmente às observâncias rituais. Mas
também as incluía. Conservá-las era uma forma de resistência à maldade e injustiça
da opressão imperial. Além disso, os artefatos ligavam-se a um povo que procurava
viver a aliança com o Deus de justiça e retidão, isto é, com o poder divino sob o qual
agir corretamente correspondia a fazer justiça.

Assim, a justiça era não apenas pessoal ou individual mas também estrutural e
sistêmica, não exclusivamente compensadora mas também distributiva. A Torá, ou
lei divina, excelente texto dessa aliança, exigia a distribuição justa e eqüitativa da
terra como base material da vida, porque, como disse Deus em Levítico 25,23, “a terra
não será vendida perpetuamente, pois que a terra me pertence e vós sois para mim
estrangeiros e residentes temporários”. Visto que a terra era vida, não podia ser
comprada nem vendida, hipotecada ou reclamada em juízo, como qualquer outra
propriedade. Por isso, a lei da aliança concentrava-se quase sempre em terra e dívida
na constante tentativa de impedir o crescimento da desigualdade quando poucos
adquiriam mais terra e a maioria saía sempre perdendo. Como a terra não podia ser
comprada nem vendida, tampouco podia ser hipotecada ou confiscada. Vêm daí as
leis sobre proibição de lucro e de penhora e da libertação de escravos a cada sete
anos (no ano sabático) e da reversão do uso da terra a cada cinqüenta anos, ano do
jubileu. Mas tais leis da aliança pareceriam piadas de mau gosto para os conquista­
dores romanos, para quem a terra lhes pertencia ou, se alguém preferisse linguagem
teológica, agora a Júpiter e não mais a lahweh. Seria administrada nos termos não
da justiça distributiva de lahweh mas sim do poder imperial de Júpiter, não como
equidade teórica máxima mas sim da maior produtividade prática possível. Tratava-se
do antagonismo entre “a terra me pertence” e “a terra nos pertence,” que explica a
terrível falha da política romana no território judaico. Temos notícia de três rebeliões
ocorridas aí, em 4 a.C., 66-74 d.C. e 132-135 d.C. (sem falar no levante que destruiu
0 judaísmo egípcio em 115-117 d.C.), para acentuar a falha de que falamos (mesmo
admitida pelos romanos). Havia, sem dúvida, outros fatores como a jurisdição ro­
mana dividida entre Jerusalém e Antioquia ou a jurisdição judaica disputada entre
a realeza herodiana e a aristocracia sacerdotal. Embora fossem problemas solúveis,
não se chegava a acordo nenhum quando se tratava de terra (isto é, vida) governada
pela justiça ou pelo poder. Não se podia ter as duas coisas.

Em segundo lugar, a continuidade da Torá judaica para o Jesus judeu pode ser
vista claramente em duas conexões. A primeira é que no primeiro século “o Reino”
significava simplesmente o Império Romano. A ele pertencia o reino, o poder e a
glória. Quando, então, Jesus começou a falar do Reino de Deus, escolhera o termo
que mais chamava a atenção de Roma para o que estava fazendo. Não dizia “povo”
nem “comunidade” de Deus, mas Reino de Deus. Essa frase estabelecia imediato
confronto com o Reino de Roma, que chegara com Herodes, o Grande, na Judéia, em
Jerusalém e Cesaréia Marítima na geração anterior a Jesus, e com Herodes Antipas,
na Baixa Galiléia em Séforis por volta do ano 4 de nossa era, e em Tiberíades nos
anos 19-20 d.C., nos tempos de Jesus. E por isso, respondendo a questão proposta
no prólogo deste livro, que os dois movimentos de resistência, do Batismo, de João,
e do Reino, de Jesus, começaram nos territórios de Herodes Antipas nos anos 20
de nossa era. O poder do Reino de Roma, miniaturizado na tetrarquia de Antipas
na Galiléia, confrontava-se com o Reino que exigia apenas isto: como governar este
mundo se nosso Deus senta-se no trono de César ou vive no palácio de Antipas?
Não se tratava de confronto militar, pois, se fosse assim, muitos dos protagonistas
teriam morrido com João sob Antipas ou com Jesus sob Pilatos. Em vez disso, o
movimento de resistência era programaticamente não violento, muito embora de­
nunciasse as realidades econômicas, sociais e políticas da época. Pilatos entendia
bem a situação, do ponto de vista de suas responsabilidades imperiais: Jesus e seu
Reino representavam ameaça à lei e à ordem romanas. Seu Deus judaico desafiava
0 Deus romano.
A outra conexão é a linha que vai da terra e dívida na Torá à do alimento e dívida
como rezamos na oração de Jesus. Quando dizemos “venha o teu reino”, logo JVIateus
acrescenta, “seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu”. Perfeitamente
correto. O Reino de Deus é sobre a sua vontade para a terra. O céu está em grande
e boa forma; é a terra que é problemática. A oração continua com a petição para
que tenhamos alimento hoje e fiquemos livres das dívidas amanhã. Terra e dívida
transformam-se em comida e dívida, embora a base seja a mesma. De que maneira
se poderia entender a vida com justiça entre todos os povos da terra, quando se crê
que tudo pertence ao Deus justo? A teologia da criação fundamenta tudo isso e não
só pergunta quem fez a terra (quase nunca pensamos que fomos nós), mas espe­
cialmente quem é o proprietário (quase sempre achamos que a terra nos pertence).
A nova criação significa a aceitação de que Deus é o dono da terra com todas as
implicações radicais que vêm juntas.

Poder-se-ia argumentar que a terra sempre significou alimento e que nada


mudou nessa transição. Mas, talvez, algo tenha mudado na Galiléia de Antipas.
Será que as exigências baseadas na aliança para a distribuição eqüitativa de terra
ordenada por Deus não era mais viável ou aceitável na época, restando o alimento
para ser considerado entre os camponeses pobres? Ou, ao contrário, tais exigências
a respeito da terra não levariam o povo ao confronto violento com o poder herodiano
apoiado por Roma?

Em terceiro lugar, quando se fala de terra e dívida ou de alimento e dívida, é


sempre questão de vida ativa e de programa específico, não só lei abstrata ou oração
geral. O Reino de Deus, em outras palavras, era não somente visão mas programa,
não mera idéia mas estilo de vida, não apenas interesse na vida além, no céu, mas
também na terra, aqui e agora, envolvendo muitas pessoas. Relembremos ainda que
Jesus enviou os discípulos a ir e fazer exatamente o que ele estava fazendo, isto é,
compartilhar o poder espiritual de curar e o poder físico de comer, proclamando que
nessa reciprocidade entrava-se no Reino de Deus para que o mundo inteiro fosse
compartilhado com justiça e eqüidade entre todos. Tratava-se do momento decisivo
quando o futuro ainda não era inevitável, mas possível. Jesus não se estabeleceu em
Nazaré com a família nem em Cafarnaum com Pedro, mandando que os discípulos
trouxessem o povo até ele. Nem lhes ordenou que fossem e fizessem todas as coi­
sas em seu nome. Apenas disse: façam como eu. E naquele momento, o futuro do
movimento do Reino de Deus não poderia ser ofuscado pela execução de Jesus, sob
Pilatos, nem o do Batismo, pela execução de João por Antipas.

Finalmente, prestemos atenção no seguinte. Era absolutamente impossível no


primeiro século separar religião, política e economia. As moedas, único meio de co­
municação social na Antiguidade, anunciavam que César eradivifilius, Filho de Deus,
e supremus pontifex, ponte suprema entre o céu e a terra, sumo sacerdote da religião
estatal romana. Nessa situação só era possível religião misturada com política, ou
política unida à religião, e os confrontos eram sempre contra as duas instituições
ao mesmo tempo. Apenas a justiça do Reino de Deus poderia enfrentar o poder do
Reino de Roma, que nada mais era do que a normalidade da civilização naquele
tempo e lugar. 0 Reino de Deus não se opunha ao Reino de Roma porque este fosse
particularmente cruel ou excepcionalmente mau. O que custou a vida de Jesus foi
não a maldade romana mas sim a sua normalidade.

Judaísmo e cristianismo

Aceitemos, por enquanto, que a interpretação do Jesus histórico, adotada por


este livro, seja fundamentalmente correta (na verdade é isso mesmo). Poderíamos
a partir do momento da reconstrução de sua vida, incluindo a proclamação de sua
ressurreição, prever o que aconteceria? Teríamos imaginado que o judaísmo e o cris­
tianismo haveriam de se separar a ponto de se tornarem inimigos? Que haveria de ter
acontecido para que esse futuro viesse a se tornar real? Que teria de ter acontecido
para que um outro futuro fosse possível?

Para concluir, vamos nos concentrar em três decisões fundamentais sem as


quais a separação não teria acontecido. Representam momentos decisivos abertos
para caminhos cruciais alternativos numa encruzilhada. Examinaremos esses três
momentos quando um caminho escolhido significa a recusa do outro sem supor
que a escolha tivesse sido inevitável. Mas desses três eventos veio, no seu tempo,
a separação dos caminhos entre o judaísmo e o cristianismo. Sem nenhum deles, e
mesmo sem todos eles, seria impossível imaginar o que poderia ter acontecido, e é
bom acentuar tal impossibilidade. Ao considerarmos os três momentos, retornare­
mos a Tiago de Jerusalém, também chamado de justo, e à grande importância que
teve no cristianismo judaico, importância não criada mas acentuada por seu tão
controvertido ossuário.

Cidades. Poucos anos depois da execução de Jesus a maioria de seus seguidores


cujos nomes conhecemos deixou a vida rural e as pequenas cidades da Galiléia para
viver em Jerusalém. A fervorosa expectativa do iminente retorno apocalíptico de Jesus
a se realizar imediatamente na cidade santa atraía para lá esses cristãos. Não havia
nada de inevitável nessa movimentação. Pensemos, por exemplo, nas duas fontes
usadas independentemente por Mateus e Lucas. O Evangelho Q era apocalíptico,
mas os que o apoiavam permaneceram na Galiléia, apesar das maldições proferidas
contra Cafarnaum, Betsaida e Corazim. Marcos também era apocalíptico, mas insistia
programaticamente que Jesus retornaria imediatamente na Galiléia, uma vez que
Jerusalém lhe parecia lugar de oposição e perseguição, e que os discípulos de Jesus
que haviam se mudado para lá acabaram desapontando Jesus.

Esses seguidores de Jesus, como Tiago, seu irmão, ou Pedro, líder dos Doze,
já viviam em Jerusalém quando Paulo esteve lá seis ou sete anos depois da crucifi­
xão. Três anos depois de sua conversão, como escreveu em Gálatas 1,18-19, “subi
a Jerusalém para avistar-me com Cefas [Pedro] e fiquei com ele quinze dias. Não
vi nenhum outro apóstolo, mas somente Tiago, o irmão do Senhor”. Além disso,
Jerusalém era cidade de peregrinação facilitando o contato com outros locais. Assim,
depois de três ou quatro anos, já havia discípulos de Jesus em Antioquia e Damasco.
Nesta última cidade, por exemplo, lembravam-se que Paulo os perseguira. Se todos
tivessem permanecido no norte, o movimento do Reino não teria durado mais do
que duas gerações entre as colinas e lugarejos da Galiléia. Quem teria insistido
para que eles fossem a Jerusalém? Pedro, talvez? Mas este deixou a cidade no ano
41 d.C. Poderia ter sido Tiago, que nunca saiu de lá e acabou martirizado em 62 de
nossa era?

Pagãos. Os judeus falavam sobre as nações, ou gentios, que nós traduzimos por
pagãos. Mas não é bem assim. Os judeus não perdiam muito tempo pensando nos pagãos
como classificação abstrata dos diferentes deles como os israelenses poderiam pensar
em si mesmos como diferentes, por exemplo, dos irlandeses ou dos chineses. As
nações, ou os gentios, significavam grandes impérios que sucessivamente haviam
lhes conquistado, oprimido e perseguido por mais de quinhentos anos.

Quando, então, os judeus esperavam pelo grande ato fiituro em que Deus final­
mente acabaria com a confusão injusta em que se afiandava a terra, e estabeleceria
aqui embaixo o perfeito mundo de justiça, paz e santidade, a questão era esta: Que
faria Deus com esses impérios maus? Como vimos no primeiro capítulo, havia duas
respostas contraditórias à pergunta. Havia duas alternativas: extermínio ou conversão,
a Grande Batalha ou o Grande Banquete, o Monte Megido (Armagedom) ou o Monte
Sião. E, ainda mais importante, pensava-se em conversão não ao judaísmo mas a
Deus; não, por exemplo, à circuncisão e ao kosher mas sim à justiça e à paz.

Em Jerusalém, Tiago, Pedro e os outros claramente escolheram a segunda op­


ção, posto que aceitavam homens pagãos que se convertiam na comunidade sem a
circuncisão. Ao se mudarem para Jerusalém, a dispensa da circuncisão masculina
para os convertidos representava aspectos de seu apocaliptismo, a crença na ação
escatológica de Deus. Atos 15 e Gálatas 1-2 concordavam com isso. Também estavam
de acordo a respeito da importância de Tiago no processo. Tiago só aceitou essa
posição na perspectiva apocalíptica. Essa decisão provocou o surgimento de novo
problema. Como manter a unidade numa comunidade composta de judeo-cristãos
e pagãos cristãos? Como, especialmente, poderiam comer juntos quando esse ato
comunitário proclamava e estabelecia progressivamente essa unidade?

Uma coisa era imaginar em êxtase profético, ou anunciar em fragmentos apo­


calípticos que Deus acabaria com o reino do mal promovendo um grande banquete
em Jerusalém para todos os povos já tornados justos e pacíficos numa nova terra
fértil e próspera. Ninguém, por exemplo, teria coragem para interromper a magnífica
visão perguntando se a comida servida nesse banquete apocalíptico seria kosher ou
não. Nem quanto tempo duraria. Mas esse fora exatamente o problema surgido em
Antioquia segundo Gálatas 2. Quando judeo-cristãos e pagãos cristãos se encontram
para comer juntos, dizia Tiago, devem observar, juntos, as tradições kosher. Não, re­
trucava Paulo, nada disso. Deveriam seguir a solução anterior em Antioquia quando
ninguém era obrigado a seguir essas regras. Essas eram as opções alternativas óbvias
para alcançar a unidade, mas Pedro, Barnabé e os outros concordavam com Tiago,
e Paulo viajou na direção do Ocidente apartando-se deles. Seria demasiadamente
cansativo considerar quem estava certo nessa disputa: Tiago ou Paulo?

Guerras. Houve um tempo em que era fácil explicar por que o “cristianismo”
se afastou do judaísmo ou foi rejeitado por ele. Os cristãos acreditavam que Jesus
era o Messias, Senhor, Filho de Deus, ao contrário dos judeus. Essa era a razão da
ruptura. Mas havia mais elementos: os cristãos recusavam o Sábado, a circuncisão
e 0 kosher. Os judeus mantinham essas observâncias. Essas também eram razões
para a separação. E soavam como explicações plausíveis, posto que as duas religiões
se separaram acentuando essas diferenças. Mas tudo isso parece agora anacrônico.
Havia diversas tendências no judaísmo do primeiro século disputando a liderança
no cadinho do internacionalismo cultural grego e do imperialismo militar romano.
Os judeo-cristãos competiam com os fariseus, saduceus, essênios, seguidores da
quarta-filosofia, sicários, zelotes entre outros tipos, modos de ver e programas.
Nada mais eram do que um grupo disputando espaço com outros grupos, na mesma
comunidade político-religiosa, isto é, no interior do judaísmo e não contra ele. Esse
fato aguça esta questão: por que todos os outros grupos rejeitaram a opção cristã daí
para a frente? Parece-nos que a razão principal vinha não de teorias teológicas nem
de práticas rituais, nem mesmo de observâncias legais, mas sim de guerras.

A primeira guerra romana começou sob Nero em 66 e só terminou com Vespa-


siano em 74. No fim do verão de 70, Jerusalém foi destruída, o Templo incendiado
e 0 imposto anual foi transferido para o Templo de Júpiter no capitólio romano. A
segunda guerra romana, sob Trajano, durou de 115 a 117 e concentrou-se no Egito,
Cirene e Chipre, com reverberações na Mesopotâmia e possivelmente na Palestina.
Resultou na destruição do judaísmo egípcio e especialmente alexandrino. A terceira
guerra romana foi deflagrada por Adriano em 132 e durou até 135, no território judeu,
tendo como líder Simão bar Kochba, aclamado pelo rabi Aquiba como Messias. No
fmal dessa guerra Jerusalém tornara-se completamente pagã, com a supressão de
todas as práticas judaicas (Sábado, circuncisão e estudo da Torá).
Separação. Se enunciamos a frase corretamente, a resposta torna-se logo eviden­
te. Não perguntamos: Por que o cristianismo se separou do judaísmo como a filha
rebelde abandona a mãe? Tampouco: Por que havia duas filhas nascidas da mesma
mãe, 0 judaísmo rabínico e o cristianismo primitivo, representada no judaísmo do
segundo Templo? A pergunta que fazemos é a seguinte: Por que todos os demais
grupos judaicos pouco a pouco rejeitaram a opção judaica cristã? Nossa resposta
nada tem a ver com teologia, rituais ou tradições, mas sim com guerra, devastação
e horror. O grupo cristão judaico acreditava que pagãos e judeus não podiam viver
juntos sob Deus em Cristo. Afirmavam essa crença apesar das três terríveis guer­
ras em que os pagãos sempre se pareceram com eles e se comportaram da mesma
maneira que eles. A separação surgiu porque, para a maioria dos outros judeus, a
afirmação dos cristãos não era aceitável. A inclusão de pagãos e a devastação que
promoveram eram irreconciliáveis.

Foi pena que Tiago e Paulo tanto desejaram a unidade a ponto de concordarem
com a coleta de dinheiro das comunidades pagãs cristãs para a comunidade-mãe
em Jerusalém, comunitária e participativa. Mais triste ainda é saber que Paulo
“ocasionou” o martírio de Tiago. Poderia ter sido o contrário. Mas foi Tiago, como
vimos no primeiro capítulo, que pediu a Paulo a vindicação da observação da lei,
pagando por certos ritos no Templo. Foi, então, acusado de levar pagãos ao Templo
atravessando a barreira até a Corte dos Judeus. Foi, por isso, atacado, capturado e
enviado para Roma, onde morreu. Em outras palavras, as cenas de Atos 21 e Reco­
nhecimentos clementinos 1 são quase inversões uma da outra. Mas mais triste ainda é
que nem Tiago nem Paulo tinham a chave do futuro. A unidaüe de judeo-cristãos
e pagãos cristãos numa só comunidade não duraria nem com a comensalidade não
kosher de Paulo nem com a pró-kosher de Tiago. As duas esperanças estavam fadadas
ao fracasso, não pela teologia, mas pela história. Acho que vale a pena repensar esse
fato. Melhor ainda, será lamentá-lo. 0 Jesus histórico que viveu, morreu e ressuscitou
como judeu certamente procederia assim.
AGRADECIMENTOS
Somos profundamente agradecidos às equipes e voluntários encarregados das
muitas escavações no passado e no presente sem cujo trabalho este livro não poderia
ter sido escrito. Somos especialmente gratos aos arqueólogos que nos explicaram
seus sítios em junho de 1999: Vassilios Tzaferis e John Wilson em Banias, Rami
Arav e Elizabeth McNamer em Betsaida, e Moti Aviam em Jodefá. Expressamos,
também, nossa gratidão aos outros com quem mantivemos contato na preparação
deste livro naquele mesmo mês, especialmente Eric e Carol Meyers do Projeto Re­
gional Séforis, e o arqueólogo forense Joe Zias. Somos igualmente gratos a Doug
Brooks pelos desenhos arquitetônicos e a Kevin Holland pelo material escaneado. Em
particular, estendemos estes agradecimentos a Balage Balogh pelas ilustrações que
reconstruíram a vida na Antiguidade. Ele juntou publicações arqueológicas, plantas e
artefatos às nossas descrições e imaginações, contribuindo com cuidadosa pesquisa
e olhar atento para criar valiosos retratos do mundo judaico do primeiro século.
FONTES
ARQUEOLÓGICAS

P r ó lo g o

Para o contexto geral arqueológico e referências abrangentes, ver Jonathan L. Reed, A r­


chaeology and the Galilean Jesus: A Re-examination o f the Evidence [Arqueologia e o Jesus galileu:
re-exame da evidência] (Harrisburg, PA: Trinity Press International, 2000). Para discussão
mais completa e debates contemporâneos sobre o Jesus histórico, ver John Dominic Crossan,
The Historical Jesus: The Life o f a Mediterranean Jewish Peasant [O Jesus histórico: a vida de um
camponês judaico do Mediterrâneo, Rio de Janeiro, Imago, 1994] (San Francisco: Harper-
SanFrancisco, I9 9 I) e Tfie Birth o f Christianity [O nascimento do cristianismo, São Paulo,
Paulinas, 2004] (San Francisco: HarperSanPrandsco, 1998). Neste apêndice bibliográfico
concentramo-nos mais nas fontes arqueológicas do que nas exegéticas.

Introdução

Na New Encyclopedia o f Archaeological Excavations in the Holy Land [Nova enciclopédia de


escavações arqueológicas na Terra Santa], ed. Ephraim Stern Qerusalem: Israel Exploration
Society, 1993), e na The Oxford Encyclopedia o f Archaeology in the Near East [Enciclopédia Ox­
ford de arqueologia no Oriente Próximo], ed. Eric M. Meyers (New York: Oxford University
Press, 1997), encontra-se informação a respeito dos sítios arqueológicos e descobertas
tratados neste e em outros capítulos deste livro, bem como artigos úteis sobre método e
teoria arqueológicos.

C a p ít u l o 1

A reportagem sobre o ossuário de Tiago, com exclusividade mundial, foi de André Le-
maire, “Burial Box of James the Brother of Jesus: Earliest Archaeological Evidence of Jesus
Found in Jerusalém” [Ossuário de Tiago, irmão de Jesus: a mais antiga evidência arqueológica
de Jesus encontrada em Jerusalém], Biblical Archaeological Review [Revista bíblica arqueológi­
ca], vol. 28, n. 6 (novembro/dezembro 2002), pp. 24-33, 70. A mais abrangente coleção de
ossuários, com excelente introdução, encontra-se em Levi Y. Rahmani, A Catalogue o f Jewish
Ossuaries in the Collections o f the State o f Israel [Catálogo de ossuários judaicos nas coleções
do Estado de Israel] (Jerusalem; Israel Exploration Society, 1994); sobre sepultamentos
judaicos em geral, ver Byron McCane, Roll Back the Stone: Death and Burial in the World o f Jesus
[Remova a pedra: morte e sepultamento no mundo de Jesus] (Harrisburg, PA; Trinity Press
International, 2003). Sobre Eusébio, ver G. A. Williamson (éd.), Eusebius: The History o f the
Church [Eusébio; História da igreja] (New York; Penguin Books, 1965). Nossas citações são
das pp. 99-102. Sobre a fonte em Reconhecimentos clementinos 1, ver Robert E. Van Voorst, The
Ascents o f James: History and Theology o f a Jewish-Christian Community [As ascensões de Tiago;
história e teologia de uma comunidade judeo-cristã], SBLDS 112 (Atlanta, GA; Scholar
Press, 1989) ; e F. Stanley Jones, A n Ancient Jewish Christian Source on the History o f Christianity:
Pseudo-Clementine Recognitions [Uma antiga fonte judeo-cristã sobre a história do cristianismo;
pseudo-Reconhecimentos clementinos], 1.27-71, SBL Texts and Translations, 37; Christian
Apocrypha Series 2 (Atlanta, GA; School Press, 1995). Nossas citações são da versão latina
traduzidas para o inglês por Van Voorst, pp. 73-75. 0 Evangelho de Tomé e o Evangelho dos
hebreus são de Wilhelm Schneemelcher (ed.) e R. McL. Wilson (trad, e éd.), New Testament
Apocrypha [Apócrifos do Novo Testamento], 2 vs., rev. ed. da coleção iniciada por Edgar
Hennecke (Louisville, KY; Westminster/John Knox Press, 1991-1992). Nossas citações são
do vol. 1, pp. 119 (Tomé) e 178 (hebreus).

C a p ít u l o 2

Os dois livros de John Dominic Crossan, mencionados acima, descrevem a cultura


camponesa da Galiléia e do Mediterrâneo em geral. As evidências arqueológicas do caráter
da Galiléia do primeiro século podem ser encontradas na obra de Jonathan L. Reed citada
anteriormente. Importantes artigos sobre a história, cultura e religião da Galiléia aparecem
em Sean Freyne, Galilee and Gospels: Collected Essays [Galiléia e evangelhos; coleção de en­
saios], Wissenschaftliche Untersuchungen zum Neuen Testament 125 (Tübingen; Mohr
Siebeck, 2000). As escavações em Nazaré são relatadas em Bellarmino Bagatti, Excavations
in Nazareth, Volume 1: From the Beginning till the XII Century [Escavações em Nazaré, volume
1; do começo até o século doze] Qerusalem; Franciscan Printing, 1969). Sobre as origens
e ausência geral de estruturas da sinagoga no primeiro século, ver Lee Levine, The Ancient
Synagogue: The First Thousand Years [A antiga sinagoga; os primeiros mil anos] (New Haven;
Yale University Press, 2000).

C a p ít u l o 3

No livro de Peter Richardson, Herod: King o f the Jews and Friend o f the Romans [Herodes; Rei
dos Judeus e amigo dos romanos] (Minneapolis: Fortress Press, 1996), encontra-se fascinante
e acessível caracterização de Herodes, o Grande, e de seu governo. Nossas desaições da cidade
antiga de Roma e de sua arquitetura urbana baseiam-se nas obras de John Stambaugh, The
Ancient Roman City [A antiga cidade romana] (Baltimore; Johns Hopkins University Press,
1988) e de Paul Zanker, The Power o f Images inthe Age o f Augustus [Opoder das imagens naera
de Augusto] (Ann Arbor; University of Michigan Press, 1990). Um sumário bem ilustrado
(embora já ultrapassado) das escavações em Cesaréia encontra-se em Kenneth Holum, King
Herod’s Dream: Caesarea by the Sea [ 0 sonho do Rei Herodes; Cesaréia à beira-mar] (New York;
Norton, 1988), mas análises mais atualizadas e acadêmicas podem ser achadas em Caesarea
Maritima: A Retrospective After Two Millennia [Cesaréia Marítima: retrospectiva depois de dois
milênios] eds. Avner Raban e Kenneth Holum (Leiden: E. J. Brill, 1996). Importantes evidên­
cias das inúmeras escavações em Séforis estão resumidas e reunidas em Sepphoris in Galilee:
Crosscurrents o f Culture [Séforis na Galiléia: cruzamentos de cultura], eds. Rebecca Nagy et al.
(Raleigh; North Carolina Museum of Art, 1996). Os achados arqueológicos em Cafarnaum
e sua relação com a pesquisa do Jesus histórico encontram-se em Reed, Archaeology and the
Galilean Jesus [Arqueologia e o Jesus galileu], e no relatório pormenorizado sobre “o barco da
Galiléia”, sua escavação e conteúdo, de autoria de Shelly Wachsmann em The Excavations of
an Ancient Boat in the Sea o f Galilee, Atiqot [Escavações de um antigo barco no Mar da Galiléia,
Atiqot] (English Series) 19 Oerusalem; Israel Antiquities Authority, 1990).

C a p ít u l o 4

A cerâmica encontrada ao redor da gruta em Banias foi analisada por Andréa Berlin em
“The Archaeology of Ritual: The Sanctuary of Pan at Banias/Caesarea Philippi” [A arqueo­
logia do ritual; o santuário de Fã em Banias/Cesaréia de Filipos], Bulletin o f The American
Schools o f Oriental Research 315 (1999); 27-45. A obra de Ehud Netzer é de especial interesse
a respeito dos palácios de Herodes, o Grande, como o Falácio do Promontório, Caesarea Ma­
ritima: A Retrospective [Cesaréia Marítima; uma retrospectiva]. O palácio de Herodes no topo
de Masada está bem documentado e reconstruído com bastante autenticidade por Gideon
Poerster em Masada V; The Yigael Yadin Excavations 1 9 6 5 Final Reports [Masada V: relatório
final das escavações de Yigael Yadin em 1965] 0erusalem: Israel Exploration Society 1995).
As escavações da Vila de Dionísio por Eric e Carol Meyers e Ehud Netzer em Séforis foram
relatadas em Nagy et al., Sepphoris in Galilee [Séforis na Galiléia]. As escavações de Leroy
Waterman foram publicadas como Preliminary Report o f the University o f Michigan Excavations at
Sepphoris, Palestine, in 1931 [Relatório preliminar das escavações da Universidade de Michigan
em Séforis, Palestina, em 1931] (Ann Arbor: University of Michigan Press, 1937), e como
re-escavações de James E Strange do mesmo lugar como “Six Campaigns at Sepphoris: The
University of South Florida Excavations, 1983-1989” [Seis campanhas em Séforis: escavações
da Universidade do Sul da Flórida, 1983-1989] em The Galilee in Late Antiquity [Galiléia na
Antiguidade tardia], ed. Lee Levine (New York; Jewish Theological Seminary, 1992), 339-355.
A descrição da arquitetura doméstica e das salas de jantar no mundo romano baseiam-se
bastante na obra de Andrew Wallace-Hadrill, Houses and Society in Pompeii and Herculaneum
[Casas e sociedade em Fompéia e Herculano], (Princeton: Princeton University Press, 1994);
sobre casas no território judaico na Antiguidade ver Yizhar Hirschfeld, The Palestinian Dwelling
in the Roman-Byzantine Period [Habitação palestina no período romano-bizantino], Oerusalem:
Franciscan Printing, 1995).

C a p ít u l o 5

Yigael Yadin publicou um livro popular sobre escavações intitulado Masada: Herod’s
Fortress and the Zealots’ Last Stand [Masada; fortaleza de Herodes e último lugar dos zelotes],
New York; Random House, 1966). Publicações mais completas apareceram recentemente
numa obra em diversos volumes editada por Joseph Aviram, Gideon Foerster e Ehud Netzer,
Masada 1-lV, The Yigael Yadin Excavations 1 9 6 3 -1 9 6 5 Final Reports [Masada I-IV, Relatório final
das escavações de Yigael Yadin 1963-1965], [Jerusalem: Israel Exploration Society, 1989­
1995). Muito se escreveu sobre os Rolos do Mar Morto e as escavações em Khirbet Qumrã
à espera de publicações finais, mas o sumário mais confiável da evidência arqueológica é de
Jodi Magness, “Qumrã Archaeology; Past Perspectives and Future Projects" [Arqueologia de
Qumrã; perspectivas do passado e projetos futuros] em The Dead Sea Saolls After Fifty Years: A
Comprehensive Assessment [Os rolos do mar Morto depois de cinqüenta anos; avaliação abran­
gente], vol. 1, ed. Peter W. Flint e James C. VanderKam (Leiden; E. J. Brill, 1998), 47-77. As
escavações em Jodefá e a medida segundo a qual a evidência arqueológica combina com a
descrição de Josefo do cerco da cidade aparecem minuciosamente em David Adan-Bayewitz
e Mordechai Aviam, “lotapata, Josephus and the Siege of 67; Preliminary Report on the
1992-94 Seasons" [lotapata, Josefo e o cerco de 67; relatório preliminar das temporadas de
1 9 9 2 -1 9 9 4 ], e m Journal o f Roman Archaeology 10 (1997); 131-165. Muito se tem discutido se
de fato as piscinas com degraus e revestimento eram miqwaoth, mas um texto conciso sobre
a evidência arqueológica do seu uso ritual no contexto da helenização e da romanização
do território judaico é Ronny Reich, “The Hot Bath-House (balneum), the Mikweh, and the
Jewish Community in the Second Temple Period" [Balneário (balneum) com água quente, o
Mikweh e a comunidade judaica no período do Segundo Templo], Journal o f Jewish Studies 39
(1988); 102-107. Jane C. Cahill compilou um catálogo completo da evidência arqueológica
dos vasos de pedra em “The Chalk Assemblages of the Persian/Hellenistic and Early Roman
Periods" [Montagens de estuque dos períodos persa-helênico e romano antigo], em Exca­
vations at the City o f David 1 9 7 8 -1 9 8 5 Directed by Yigal Shiloh III: Stratigraphical, Environmental
and Other Reports [Escavações na cidade de Davi 1978-1985 dirigidas por Yigal Shiloh III;
Relatórios estratigráficos, ambientais e outros], ed. Alon de Groot e DonaldT. Ariel, Qedem
33 Oerusalem; Hebrew University Press, 1992), 190-274.

C a p ít u l o 6

A melhor descrição da arqueologia do Templo é de Leen e Kathleen Ritmeyer, Secrets o f


Jerusalem’s Temple Mount [Segredos do Monte do Templo em Jerusalém], (Washington; Bibli­
cal Archaeology Society, 1998); o relato das escavações e resumo dos achados encontra-se
em Meir Ben-Dov, In the Shadow o f the Temple: The Discovery o f Ancient Jerusalem [À sombra
do Templo; a descoberta da Jerusalém antiga], (New York; Harper & Row, 1985). Nahman
Aviam relata sobre as escavações no quarteirão herodiano e na Mansão Palaciana no livro
ricamente ilustrado, Discovering Jerusalem [Descoberta de Jerusalédm] (Nashville; Thomas
Nelson, 1983). E. R Sanders nos oferece um sumário das fontes literárias que descrevem as
atividades sacerdotais no Templo em Judaism: Practice and Belief 63 B.C.E. — 66 C.E. [Judaísmo;
prática e crença 63 a. C. — 66 d.C.] (Philadelphia; Trinity Press International, 1992).

C a p ít u l o 7

A mais recente descrição do Santo Sepulcro é de Shimon Gibson e Joan Taylor, Beneath
the Church o f the Holy Sepulchre, Jerusalem [Debaixo da Igreja do Santo Sepulcro, Jerusalém],
Palestine Exploration Fund Monograph Series Maior 1 (London: Palestine Exploration
Fund, 1994). Relatos do sepultamento de Caifás foram publicados por Zvi Greenhut, “The
'Caiaphas’ Tomb in the North of Jerusalem” [ 0 túmulo de “Caifás" ao norte de Jerusalém],
Ronny Reich, “Ossuary Inscriptions from the ‘Caiaphas’ Tomb” [Inscrições no ossuário do
túmulo de “Caifás”], e Joseph Zias, “Human Skeletal Remains from the ‘Caiaphas Tomb'”
[Restos de esqueleto humano da “tumba de Caifás”], e m Atiqot [English Series] 21 (1992):
63-80; resumos e relatórios de outros sepultamentos nos arredores de Jerusalém também
se encontram em Ancient Jerusalem Revealed [A antiga Jerusalém revelada], ed. Hillel Geva
Oerusalem: Israel Exploration Society, 1994). A tumba e o ossuário do homem crucificado
foram relatados pela primeira vez por Vassilios Tzaferis, “Jewish Tombs At and Near Giv’at
ha-Mivtar, Jerusalem” [Túmulos judeus em Giv’at ha-Mivtar, e ao redor, em Jerusalém], Israel
Exploration Journal 20 (1970): 18-32, e os restos por Nico Haas, “Anthropological Observa­
tions on the Skeletal Remains from Giv’at ha-Mivtar” [Observações antropológicas sobre
restos de esqueletos em Giv’at ha-Mivtar], Israel Exploration Journal 20 (1970): 38-59, todos
reavaliados por Joseph Zias e Eliezer Sekeles em “The Crucified Man from Giv’at ha-Mivtar:
A Reappraisal” [O homem crucificado de Giv’at ha-Mivtar: reavaliação], Israel Exploration
Journal 35 (1985): 22-27.
ín d ic e d a s il u s t r a ç õ e s

1. Mapa da Palestina................................................................................................................ 7

2. Ossuário de Tiago rachado no transporte................................................................... 14

3. Exemplos de inscrições em ossuários..........................................................................40

4. Nazaré do século vinte e um .......................................................................................... 64

5. Igreja da Anunciação (segundo B agatti)..................................................................... 69

6. Sinagoga do primeiro século em Gamla (segundo Maoz)...................................... 71

7. Reconstrução de Nazaré do primeiro século..............................................................79

8. Cesaréia Marítima de Herodes, o Grande (segundo N etzer).............................. 101

9. Inscrição em Cesaréia Marítima com o nome de Pôncio Pilatos...................... 104

10. Reconstrução de Cesaréia Marítima do primeiro século...................................... 106

11. Portão do primeiro século em Tiberíades (segundo Foerster)........................... 109

12. Teatro do primeiro século em Séforis (segundo Meyers,


Netzer e Meyers).............................................................................................................. 111

13. Reconstrução de Tiberíades do primeiro século.................................................... 113

14. Barco do primeiro século da Galiléia.........................................................................126

15. Reconstrução de Cafarnaum do primeiro século................................................... 128

16. Casa de são Pedro e igreja (segundo Corbo)............................................................132

17. Santuário de Pã em Cesaréia de Filipos (segundo M aoz)................................... 138

18. Triclinium no Palácio ao Norte em Masada (segundo Foerster)..........................142

19. Palácio do Promontório de Herodes em Cesaréia (segundo Netzer)............... 143

20. Reconstrução da Vila de Dionísio em Séforis, do período


romano posterior.............................................................................................................147

21. Códices de Nag Hammadi............................................................................................. 158

22. Reconstrução de uma casa com pátio em Cafarnaum no primeiro século... 160

23. Página título (e última) do Evangelho de Tomé...........................................................165

24. Vista de Masada, com os acampamentos da Décima Legião e a


Rampa Romana.................................................................................................................183
25. Sinagoga em Masada, antes e depois (segundo Yadin)........................................185
26. Complexo essênio em Khirbet Qumrã (segundo Doncell).................................187
27. Rolo de Isaías de Qumrã............................................................................................... 191
28. Vaso de pedra do primeiro século, chamado de medidor.................................... 197
29. Miqweh do primeiro século em Séforis................................................................... 199
30. Reconstrução da cidade destruída de Gamla.......................................................... 200
31. Reconstrução do Monte do Templo voltado para o Monte das Oliveiras.....227
32. Mansão Palaciana do primeiro século na cidade alta de Jerusalém
(segundo Avigad)............................................................................................................229
33. Grande vaso de pedra torneado................................................................................. 232
34. Reconstrução da elegante casa de um sacerdote na cidade alta
de Jerusalém..................................................................................................................... 238
35. Fragmento do Evangelho de Pedro................................................................................ 251
36. Mausoléu de Augusto em Rom a................................................................................ 256
37. Torre-Fortaleza do Herodiano (segundo N etzer)..................................................258
38. Reconstrução do Herodiano (segundo N etzer).................................................... 260
39. Câmera mortuária da família de Caifás (segundo Greenhut)........................... 263

40. Ossuário de Tiago .........................................................................................................264


41. Ossuário de Caifás.........................................................................................................265
42. Tornozelo de um crucificado......................................................................................269
43. Igreja do Santo Sepulcro (segundo G ibson).......................................................... 272

44. Reconstrução da Igreja do Santo Sepulcro............................................................. 274


INDICE DE NOMES E TEMAS

19, 151; 18 .2 6 1 -3 0 9 , 178; 1 9 .3 3 1 , 250;

Abraão e Sara, 93 2 0 .1 0 0 , 173; 2 0 .1 0 6 -1 2 , 2 4 1 ; 2 0 .1 7 9 -8 1 ,


235
Acab, 1 14,216
Antipater, 108
Adan-Bayewitz, David, 304
Apocalipse e apocaliptismo, 118-119, 120,
Adriano, 67, 127, 215
152; Aemilius Sura, cinco impérios e,
Aemilius Sura, 118 118; cenário em Oráculos sibilinos, 119­
Agape, 169 120; como resistência a Roma, 175-177;
comunidade da aliança, 176; Daniel,
Akmin, Egito, 27
cinco reinos, 116-119; igualdade radical
Alexander, Tibério Júlio, 173,191 humana e misericórdia divina, 176; Jesus
Alexandre, o Grande, 76 apocaliptista, debate sobre, 204-208;
João Batista e, 152-154; ressurreição e,
Alfabetização, na Antiguidade, 65; Jesus 279, 280-283; simbolismo arquetípico,
e, 74
176; violência militante, 176
Amazias, 98
Archaeology and the Galilean Jesus (Reed),
Amós, 97, 115, 116, 216; 2 ,6 -7 , 97; 3 ,1 5 , 301-302
97; 5 ,1 1 -1 2 , 97; 5,2 1 -2 4 , 98; 8,4-6, 97;
Archaeology of Ritual (Berlin), 303
9 ,1 3 -1 5 , 116
Ariel, Donald T , 304
Amram, 90-92
Ascetismo, 162; João Batista e, 153
Ananias, Casa de, 237
Assírio, Império, Sargon II, destruição da
Anthropological Observations on the Skeletal Re­
Samaria, 115-116, Teglatefalasar III,
mains from Giv’at ha-Mivtar (Haas), 305
despovoamento da Galiléia e, 76
Antiga cidade romana (Stambaugli), 302
Atos dos Apóstolos, 73-74; 1 ,2 6 , 219; 10,
Antiga Jerusalém revelada, A (Geva), 305 130; 1 0 -1 1 , 164; 1 0 ,1 2 - 1 5 , 164; JJ,6-JO ,
Antiga sinagoga (Levine), 302 164; 1 2 ,1 -3 ,2 5 0 ; 13,14-52, 73; 13,42-43,
73; 15, 164; 17,1-9, 73; 17,4-5a, 74
Antigo Testamento; agape no, 169; justiça e
retidão no, 169. Ver também Reino, no Aviam, Mordechai, 304
Antigo Testamento; livros específicos Avigad, Nahman, 215, 228, 236
Antiguidades bíblicas (Pseudo-Fílon), 89 Aviram, Joseph, 304
Antiguidades judaicas Qosefo), 174; 2.205-6,
90; 9.2-10, 91; 1 7 .1 5 1 -6 7 ,2 2 6 ; 17.204-5,
240; 1 7 .2 8 8 -8 9 , 108; 18 .2 7 , 108; 1 8 .5 5 ­
B
59, 177; 1 8 .6 2 , 249; 1 8 .8 8 , 250; 18.116- Bagatti, Bellarmino, 68, 302
Bahat, Dan, 216 Cahill, Jane C., 304
Banias, 136-138, 303 Caiaphas Tomb in the North o f Jerusalem (Green­
hut), 305
Barco da Galiléia, primeiro século, 21, 125­
126, 303 Caifás: câmara mortuária familiar e ossuário,
2 0 , 1 6 1 -1 6 1 , 305; papel na execução de
Barnabé, 74
Jesus, 242; Pilatos e, 250
Barrabás, 247-249
Caligula: sepultamento, 255; estátua na
2 Baruc, 118; 2 9 ,5 -6 , 170; 72,2-6, 118 revolta do Templo, 178-179
Basílica da Anunciação, 61, 64, 68-69; cama­ Camadas exegéticas: acusação contra Jesus
da bizantina, 69; Gruta da Anunciação, sobre alimentação, 154-156; crítica
6 9 ,7 8 ,1 2 9 ,1 2 7 ; Igreja dos cruzados, 69; da redação, 29-31; crítica da tradição,
mosaicos na, 69; sinagoga embaixo, 69 30; crítica das fontes, 30; entrada de
Jesus em Jerusalém e purificação do
Basílica, 110,272-273; de Constantino, 272.
Templo, 243-245; experiência judaica
Ver também Igreja do Santo Sepulcro
como base para, 81; história de Nazaré,
Batismo, movimento do, 16-17, 121, 150, 71-75; julgamentos de Jesus, historici­
158, 293; crítica, acusação contra João dade dos, 246-252. Yer também Didaqué;
por causa de comida, 151-153 Evangelho Q; Grupo dos Ditos Comuns;
Ben Yair, Eleazar, 181, 182, 278 Tomé, Evangelho de; Tradição dos Ditos
Comuns; narrativas do nascimento,
Ben-Dov, Meir, 215 81-82, 85-86; primeira camada, 81; re­
Beneath the Church o f the Holy Sepulchre, Jeru­ cusa de Paulo de seguir o mandamento
salem (Gibson e Taylor), 304 de Jesus e, 155-158; ressurreição, 275,
279-286; segunda camada, 81, 94-95;
Berlin, Andrea, 137, 303
terceira camada, 81, 154-155, 207-208;
Betsaida/Julias, cidade de André e Pedro, Tradição dos Ditos Comuns, 207
133
Camadas paralelas, 2 7 -3 1 ; camadas do
Bodas de Caná, 23 evangelho, 28-31, 80-82,208; muros de
Jericó, 28; tesouro de Príamo, 27
Caná, santuário em, 129
Casas: Cafarnaum, 123-124, 134; Galiléia
Caesarea Maritima (Raban & Holum), 303
e Golan do primeiro século, 78-79;
Cafarnaum, 21, 121-135; balneários roma­ Mansão Palaciana, Jerusalém, 228-233;
nos, 127; barcos, 125-126, 1 2 6 , 303; palácios de Herodes, 9 9 ,1 0 3 ,1 3 8 ,142­
casa de Pedro, 129,130-134,140; casas, 145, 185; pátio com peristilo, 145,146,
123-124; edifícios posteriores do Reino 148-149; pátio interno, 147-148; salas
em, 126; edifícios, 122; estruturas cris­ de jantar formais, triclinia, 140-142,144;
tãs e sítios de peregrinação, 129, 131; salas, 124, 134-135; Vila de Dionísio,
força romana de ocupação, 127; igreja 145-148; vilas, 124, 144-148
cristã, 130-131; inscrições, 123; Jesus
Celso, 85-87; 288-289
come com Levi e publicanos, 154; marco
romano, 127; população, 121; ruas, 122; César Oúlio), 171
salas, 124, 134-135; sinagoga judaica, César Augusto (Otaviano): conquistas (em
129-130; stratum bizantino, 135; uten­ suas palavras), 255; divindade em quatro
sílios, 125, 135 modos, 172; filha Júlia, 255, concepção
divina de, 94-95,172; Herodes, o Gran­ 2 Coríntios; 11,8-9, 156
de, e, 100, 102; liierarquia e, 98, uso de
Crasso, 236
mármore e, 102; mausoléu de, 254-257;
moeda, 171; Pax Romana e, 172 Cristianismo, crença e, 287-289; conversão
de Constantino ao, 62, 70; conversão
César, Tibério: sepultamento, 255; moeda,
de gentios ao, 73, 282; debate sobre cir­
171
cuncisão dos gentios, 164; debate sobre
Cesaréia de Filipos, 137-138,139; Templo de leis a respeito de dietas, 164; lugares de
P ãed o s Bodes, 139-141 peregrinação, 129; tomada de Nazaré
pelo, 67-68
Cesaréia Marítima, 100-101,303; agricultura
e, 105; aqueduto, 101-102,106; estátuas Crossan, John Dominic, 302
escavadas em, 103; estratificação social, Crucificado, homem, 21, 268-269, 305
105; fachadas, 102-103; imposição de
ordem em, 100-102; inscrição de Pilatos, Crucified Man from Giv’at ha-Mivtar, The
(Zias & Selseles), 305
20, 103-105; legado arquitetônico de
Herodes, o Grande, 21; mármore, uso Crucifixão, 203; crucifixão de Jesus, 269;
de, 102, dinheiro em, 105; palácio de número de, por romanos, 269; sepulta­
Herodes, 100,103,143-145, 302; plano, mento de criminosos crucificados, 268­
101-102,144-145; porto, Sebastos, 100, 270; sobrevivência de, 279. Ver também
101-102; teatro e anfiteatro, 102-103, Julgamentos de Jesus
144; templo de Augusto e Roma em, 22, Cumanus, Ventidius, 241
100, 103, 144; vomitoria 102, 105, 144
Cláudio, 2 5 ^
D
Códices (ver rolos), 27; abreviações em, 27
Daniel: 7,7, 119; 7,13, 119; 7 ,1 4 .2 6 -2 7 , 119
Comida e bebida: em Banias, santuário de Pã,
De Groot, Alon, 304
136-139, 303; Cafarnaum, 134; Qumrã,
189. Ver também Pureza; salas de jantar De Vaux, Roland, 187, 190-192
formais, triclinia, 141, 144, 145; templo Dead Sea Scrolls A fter Fifty Years (Flint e
de Herodes, Augusteion, 138; Templo de VanderKam), 304
Pãe dos Bodes em Filipos, 139-140; Vila
Deus: apocalipse e, 118-120; justiça e retidão,
de Dionísio, 145-148
97, 113, 117, 162-164, 169, 292-293;
Constantino, o grande, 62; achado do túmulo promessas escatológicas e, 115-119;
de Jesus, 270-271; basíhca de, 272-273; pureza e presença de, 201; Reino da
San Giovanni, 273; visão na Ponte aliança e, 96-98,112-120; sobre o Reino
Mílvia, 70 sob Jeroboão, 97, 115; terra e base do
Contra Apião Qosefo), 174 conflito judaico com Roma, 112-115,
168-170, 211-212, 292-293
Contra Celso (Orígenes de Alexandria), 89
Deuteronômio; 186; 5 ,1 2 -1 5 , 163; 14, 234;
Contra Flaccus (Fílon), 247
15,1-2, 115; 1 5 ,1 2 - 1 4 , 115; 15, 72; 1 8 ,1 ­
Corbo, Virgílio, 21 5 , 233; 1 4 ,6 .1 0 - 1 3 , 115; 2 8 , 2 , 277; 2 8 ,1 5 ,

1 Coríntios: 7 ,1 0 -1 1 , 161; 9 ,3 , 155; 9 ,1 4 ­ 277-, 3 0 ,1 9 -2 0 , 163

15, 155; 12, 156; 15, 280; 15,3a, 275; Didaqué (“ensino”), 26; dízimo, 235; exege­
15,3b-7, 276; 15,1 2 -1 3 , 280; 15 ,1 4 , 289; se da segunda camada e, 81; Grupo de
1 5 ,1 6 , 280 Ditos Comuns, 204-210; Regra áurea.
205-206; l,l- 2 c , 2 0 5 ; l,2c-5a, 204-205; 236; Cesaréia de Filipos, santuário de
2 ,1 -4 ,1 4 , 204-205; 5 ,1 -6 ,2 , 205; 11,11, Pã, 137-138; Cesaréia Marítima, 100­
162; 1 3 ,3 , 236 105, 120-121, 303; Gamla, 191-194,
200; Igreja de São José, 68; inscrição de
Dieta, evidência arqueológica de, 65,75,134;
Pilatos, Cesaréia Marítima, 20,103-104;
palácio de Masada, 142-143, 148
Jerusalém e o Templo, 214, 215-216,
Dinheiro (moedas, cunhagem), 100; em 222-225, 228-229, 304; Jodefá, 191­
Qumrã, 188-189; em Séforis, 194-195; 193, 304; Mansão Palaciana, Jerusalém,
informação disseminada sobre, 171, 228-233; Masada, 181-187, 303-304;
294-295; Jesus e “dai a César...”, 209­ Nabratein, 198; Nazaré, 61-80, 302;
210; moedas cunhadas por Herodes palácio de Herodes em Masada, 141-143,
Antipas, 105, 107; salários de um dia 148, 185-186; propósito de, 131-132;
de trabalho, 171 Qumrã, 186-181; Samaria, 96; Séforis,
Discovering Jerusalem (Aviam), 304 107-114, 121, 194-196, 303; sinagogas
escavadas, 67, 70, 71, 302; Tiberíades,
Dívida, 167-168; Ano do Jubileu, reversão
107-114, 121; túmulo de Herodes (He­
da posse, 115; controle de garantia,
rodiano), 257-259; os dez mais, 19-24.
114-115; libertação de escravos, 115;
Ver também Cesaréia Marítima; Caifás;
movimento do Reino e, 295; proibição de
homem crucificado; Barco da Galiléia;
lucro, 114; remissão de dívida, 115
Gamla, Jerusalém ; Jodefá; Masada;
Documento de Damasco, 176 Pedro, apóstolo; Pôncio Pilatos; pisci­
nas; Qumrã; Séforis; vasos de pedra;
Tiberíades; túmulos, primeiro século,
povo comum, 267-268; vasos de pedra,
Éfeso, lamparinas de, 231 196-199, 202; vilã com pário interno,
147-148; Vila de Dionísio, 145-148
Egito: destruição do judaísmo, 115-17 d.C.,
293; dinastia ptolemaica, 76; marfim Essênios, 24 ,152,247-248; em Qumrã, 186­
do, na Samaria, 96-97; narrativa do 192, 211, 220-221; sacerdócio, rejeição
nascimento de Moisés, 89-92 do, 219-221

Elias, 216 Eusébio, 66, 270-271, 273-274, 286-287


Excavations at the City o f David 1 9 7 8 -1 9 8 5
Ehseu, 216
(Groot & Ariel), 304
Embaixada a Caio (Fílon), 178-179, 249
Excavations in Nazareth (Bagatti), 302
1 Enoc: 1 0 ,1 6 , 118; 1 0 ,1 9 , 170
Excavations o f an Ancient Boat in the Sea of
Epifânio, 66 Galilee (Wachsmann), 303

Escatologia, linguagem e literatura, 115­ Exegéticas, descobertas, as dez principais,


120; alimentação na, 169, 294; Eutopia 23-27. Ver também Códices de Nag Ham-
prometida pela, 116; ressurreição e, madi; códigos em papiros e abreviaturas
277-279 sagradas; Didaqué (E nsino); Evangelho Q;
João, evangelho de; Lucas, evangelho de;
Escavações arqueológicas, 301; Basílica da
Marcos, evangelho de; Mateus, evange­
Anunciação, 61, 64, 68-69; Cafarnaum,
lho de; Pedro, Evangelho de; Rolos do Mar
casa com pátio do primeiro século, 160;
Morto; Tomé, evangelho de
Cafarnaum, vilarejo do primeiro século,
121-135,303; casa com pátio e peristilo, Êxodo: 1 -2 , 88; 2 1 , 72; 2 3 ,1 2 , 163
148-149; casa incendiada, Jerusalém, Ezequiel, 186
antigo ou período herodiano (da metade
do primeiro século a.C. ao primeiro sé­
culo d.C.), 63; pobreza dos camponeses
Fariseus, 152,179, 201, 2 12 ,2 2 0 ; crença na pela romanização, 161-162; refugiados
ressurreição do corpo, 261; Shamaítas e judeus dajudéia e de Jerusalém em, 63;
hilelitas, 179-180, 201-203 reis clientes, uso de, 127,221; revolta de
1 Filipenses4,J5-]6, 156 132-35 d.C. (segunda guerra judaica),
127-129; revolta de 66-74 d.C., 191-194,
Fílon, 178-180, 187, 247, 249
214-221; romanização, urbanização e
Flint, Peter W., 304 comercialização da, 17-22, 63,105-114,
Florus, Cessius, 236 121, 148-151, 161, 294-295; salário de
um dia, 171; Séforis, 17, 22, 107-114;
Foerster, Gideon, 303-304 sepultamento secundário em ossuários,
Freyne, Sean, 302 76-80,259-262; sinagogas versus templo
em, 67; Tiberíades, 17, 22, 107-114;
transformação em Terra Santa cristã, 62;
túmulos, primeiro século, povo comum,
Gálatas: 1 ,1 8 , 276; 2,7-9, 73; 2,1 1 -1 4 , 164; 267-268; Varo, legado em, 105,108; vida
3 ,2 8 , 156 camponesa em, 65-66, 124, 161, 301

Galilee and Gospels: Collected Essays (Freyne), Gamla, 2 0 0 , casa em, 149; resistência e
302 destruição, 191-194; sinagoga escavada
em, 69-71
Galilee in Late Antiquity (Levine), 303
Garstang, John, 28
Galiléia: agricultura, 75-78,11-114; Alexan­
dre, 0 Grande, e, 76; ausência de carne Gênesis: 1 7 ,1 7 , 93; 18,1 1 -1 2 , 93
de porco na dieta do povo, 76; colabo­ Gentios: conversão cristã e, 281-283; como
radores dos romanos, 154, 194-196, opressores dos judeus, 117; comunidade
237; costumes sexuais, 87; crescimento de gentios e descrição de eventos em
da população judaica, do oitavo ao se­ Lucas, 130; concordância de Paulo de
gundo séculos a.C., 75; descoberta de liderar a missão aos gentios, 73; deba­
moedas asmonianas, 76; diminuição da tes sobre circuncisão de, 164; Didaqué
população, pelos assírios, 76; do perío­ (“ensino") e, 26; narrativa de Lucas da
do médio ao período romano posterior rejeição de Jesus pelos judeus e substi­
(do segundo século à metade do quarto tuição de Jerusalém por Roma, 71-75;
d.C.), 63; fortalezas e postos avançados promessas escatológicas e, 117
asmonianos (macabeus), 63,75; governo
Geva, Hillel, 305
romano direto e presença das legiões,
63, 127, 240-242; Herodes Antipas e, Gibson, Shimon, 304
17,63, 77,105-114; Herodes, o Grande, Givat Hamivtar, 21, 269
e, 17, 63, 77; incorporação à Palestina,
Gnosticismo, 25
62-63; manutenção da identidade como
resistên cia, 1 9 3 -2 0 3 ; mapa, 7; Pax Golan, 76; sinagoga em Gamla, 70
Romana e, 148-150, 161, 172; período Greenhut, Zvi, 262, 305
bizantino (da metade do quarto século
Griesbach, JohannJakob, 8
ao sétimo d.C.), 63-64; período helenista
tardio (do segundo século à metade do Grupo dos Ditos Comuns, 204-210; fonte
primeiro a.C.), 62-63; período romano escrita, 206; seis desses ditos como
aparecem em Mateus, Lucas e Didaqué, Herodes Felipe, 121; Betsaida/Julias, cidade
205 de André e Pedro, 131-134, Cesaréia de
Guerra judaica 0osefo), 173; três crenças de
Filipos, 137-139; Templo de Pã e dos
Josefo sobre Roma em, 173-175; 1 .6 5 0 ­ Bodes, 139-140
6 5 5 , 226; 2 .1 2 9 , 217; 2 .1 6 9 -1 7 4 , 177; Herodes, o Grande, 302; Augusteion, templo
2 .1 7 7 , 2 4 9 ; 2 .1 8 5 -2 0 3 , 178; 2 .2 2 0 , 173; a César, 136, 138; Cesaréia Marítima,
2 .2 2 4 -2 2 7 , 2 4 1 ; 2 .5 8 1 , 218; 2 .5 8 3 ,5 7 7 , 21, 99-101; construído por, 17, 98-101,
217; 2 .6 8 -6 9 , 108; 2 .9 1 , 175; 3 .6 9 , 217; 121; execução de mestres fariseus, 179;
4 .1 3 9 -1 4 6 ,2 1 9 ; 4 .1 4 7 - 1 4 8 ,1 5 3 - 1 5 7 , 218; herança iduméia de, 211; Jerusalém, 22;
4 .3 1 7 , 2 1 9 ; 4 .3 3 5 ,3 3 6 ,3 4 3 , 2 1 9 ; 4 .3 6 5 , Monte do Templo, Jerusalém, 100, 220­
219; 5 .2 2 2 -2 2 3 , 239; 5 .3 6 7 , 174; 5 .3 7 8 , 227; morte de, 77; palácio em Cesaréia
174; 6 .3 1 2 -3 1 3 , 152, 174 Marítima, 100,103,142-145, 303; palá­
Gush Halav, 201 cio em Jericó, 100, 138, 142-144, 246;
palácio em Masada, 141-143, 148, 230,
303; paralelo do evangelho com Faraó,
H 90; piscinas e banheiras, 142-144; Rei
Haas, Nico, 305 dos Judeus, 99, 203, 213; reino patroci­
nado por Roma (37-34 a.C.), 62; salas
Haggádico, Midrashim, 89 de jantar formais (triclinia) e, 141-142;
Halakhak, 198 segundo sepultamento em ossuários e
economia do templo, 260-262; templo
Herod: King o f the Jews and Friend o f the Romans
de Augusto e Roma, 22, 100, 103, 144;
(Richardson), 302
terras de, 99; túmulo de (Herodiano),
Herodes Agripa I, 107, 203, 250, 271 257-259
Herodes Agripa II, 196 Hipócrita, termo, 110
Herodes Antipas, 17, 121; a cabeça de João Hirschfeld, Yizhar, 303
Batista e, 145, 151, 242; concessão
História eclesiástica (Eusébio), 3.20, 66
de tetrarquia (governo de um quarto
do reino), 105; exílio de, 107; Jesus e, Historical Jesus, The (Crossan), 301
213, 241-243, 293-295; moedas cunha­
Holtzmann, Julius, 25
das, 106-107; movimento do Batismo
e, 150; movimento do Reino e, 150, Holum, Kenneth, 302
169-170, 293-295; novo casamento de, Hot House Bath, The, the Miqweh, and the Jew­
106; oficiais judeus com terminologia ish Community in the Second Temple Period
grega e romana, 127-128; refeições de, (Reich), 304
145; resíduos e relatos arqueológicos
Houses and Society in Pompeii and Herculaneum
não muito claros, 120-121, 144; restos
(Wallace-Hadrill), 303
arquitetônicos de segunda classe, 120;
romanização, urbanização e comercia­ Human Skeletal Remains from the ‘Caiaphas
lização da Galiléia, 17, 19-20, 21-22, Tomb’ (Zias), 305
63, 105-114, 115, 120-121, 148-151,
293-295; salário de um dia sob, 171;
Séforis, 17, 22, 63, 76, 105, 108-109,
I
121; Tiberíades, 17, 22, 63, 106-107, Idumeus, 211, 217, 219
109, 121
lotapata, Josephus and the Siege o f 6 7 (Adan-
Herodes Arquelau, 176, 242, 258 Bayewitz & Aviam), 304
Isaías: 2 , 2 - 4 , 116-117; 5,8 , 112; 7,14, 94-95; de Jesus de entrar em, 213; entrada de
56 ,7 , 244; 6 1 ,1 -2 , 72 Jesus, 242-244; escavações em, 215-216;
expulsão de judeus, 135 d.C., 67, 215;
Ismael, Casa de, 237
Guerra dos Seis Dias e, 215; Igreja do
Israel, Reino de, 96; protesto da aliança em, Santo Sepulcro, 215, 253-254, 271-275,
216-217 286-287, 289, 304; Islã e, 215; Jesus,
Itureus, 76, 137 purificação do templo, 244-246; luta de
classes, zelotes, 218-221,228-229,236;
Mansão Palaciana, 228-233, 2 2 9 , 2 3 8 ;
J quarteirão judaico ou herodiano, 215,
Janeu, Alexandre, 195 228; refundação de Adriano como Aelia
Capitolina, 215; romanização da cidade,
Jerem ias: 7 ,6 .1 0 - 1 1 , 245; 7 ,1 1 , 244-245; 215; transformação em Cidade Santa
7,14, 245
Cristã, 215; túmulos, primeiro século,
Jericó: escavação de, 28; palácio de Herodes povo comum, 267-268
em, 99, 138, 142-144, 220 Jesus: acusado por comer, 153-155; alimento
Jeroboão II, 96-97, 115-116,216 em, 162-164, 170; analfabetismo de,
74-75; arqueologia e compreensão do
Jerusalém, Templo, 304; águia de ouro e,
contexto social de, 131-133; ascensão
226-227; beleza de, 220-222; colabo­
do status social de, 30; ataques contra o
ração dos sacerdotes com os romanos,
sacerdócio, não contra o judaísmo, 213;
212-214,218, 228-229,237; construção
Cafarnaum e, 120-135; Caifás, papel na
de templo pagão sobre ruínas por Adria­
execução, 242; caráter judaico de, 30;
no, 215; crítica do sacerdócio, fonte da,
casa de Pedro e, 130-135, 1 40; César e
211-213; destruição no ano 70 d.C., 152,
Deus (Dai a César...), 209; comensali­
173, 213-214, 236, 238-239; destruição
dade, 160-161,164-168; como apocalíp­
pelos babilônios, 211; domínio geográ­
tico, debate a respeito, 204-208; como
fico, 221-223; elementos decorativos e
camponês judeu, 63, 66, 67-68, 78-80;
inscrições, 222-224; Fortaleza Antônia,
crítica por ser amigo de publicanos e
225-226; Herodes, o Grande, e o Monte
pecadores, 154-155; crítica por ser be-
do Templo, 17, 22, 220-227; hierarquia
berrão e glutão (por não ser asceta), 151,
arquitetônica, 2 2 4 -2 2 6 ; im postos e
154-155; crucifixão, 203, 242, 269-270;
dízimos, sacerdotes e sacrifícios, 233­
curar e comer, 159, 170, 247-248; dimi­
237; Jesus e a purificação do, 242-244;
nuição da identidade judaica, 30; dito
judaísmo saduceu e colaboração com os
“contra o divórcio”, 161; ditos radicais,
romanos, 213, 237; matanças durante a
na Didaqué e no Evangelho Q, 26; Grupo
Páscoa, 226, 240-241; miqwaoth, 2 3 9 ;
dos Ditos Comuns e, 204, 205-208;
Páscoa em, 240-241; peregrinação ao,
Herodes Antipas como adversário, 213,
238-242; quarteirões dos sacerdotes,
242, 293-295; itinerância de, 160-162,
228-233, 229, 238; roubo de riquezas 213; Jerusalém, entrada em, 243-244;
pelos romanos, 236 Jerusalém, perigos de, 213, 242-243;
Jerusalém; invasão babilônica, 211; casa João Batista e, 207, 242-243; José e, 72,
incendiada, 236-238; cerco de, 66-74 85-86; lugar do sepultamento, 270-272;
d.C., 214, 217, 228; cidade alta, 215, Missão e Mensagem em três fontes, 156­
231, 236. Ver também Jerusalém, Tem­ 165; Moisés e narrativas paralelas de
plo; como cidade de peregrinação, 215; nascimento, 88-92; Moisés e o Sermão
Cúpula do Rochedo, 215; determinação da Montanha, 88; movimento do Reino
e, 16-17, 72, 85-86,115, 120, 134, 150, José de Nazaré, 72, 85-87
158-164, 207-210, 212-214, 242-243,
José de Tiberíades, 67
2 93-295; narrativa de Lucas sobre a
rejeição em Nazaré, 71-75; narrativas Josefo, Fiávio, 64, 208; apologista de Roma,
do nascimento, 81, 85-87; Nazaré de, 173-175; batalhas em Jodefá e Gamia,
62, 75-80; oração e, 213; Pilatos, papei 191-193; como colaborador, 174-175;
na execução, 242; primeira camada de história do nascimento de Moisés, 88­
exegese e, 81; programa de partiilia 89; não menciona Nazaré, 64-65; revolta
recíproca, 156-158, 212-213; pureza de 66-74 d.C. e, 174-175, 217 -2 2 0 ;
(observâncias religiosas) e, 162-164 sobre a crucifixão, 279-280; sobre a fa­
purificação do Templo, 244-246; recusa mília herodiana, 99,102-103, 108, 121;
de Paulo de seguir a ordem de, 155-156 sobre João Batista, 151; sohre miqwaoth,
regra áurea, 204-208; Rei dos Judeus 200-201; sobre o Templo, 220,223-225,
203; resistência radical não-vioienta 238-239; sobre o túmulo de Herodes,
203-210, 243-246; ressurreição, 275 258-259; sobre os essênios, 186; sobre
279-286; roupa e interdependência, 159 Pilatos, 249; sobre Séforis, 150, 195;
208; sepulcro de, 253, ver também Igreja sobre Tibério Júlio Alexander, 173-174
do Santo Sepulcro; teatro em Tiberíades
e, 110-112; julgamentos, liistoricidade Josué, 19,10-15, 64
dos, 246-252; nascimento virginal, 91­ Judá, reino de, 96; revolta de 66-74 d.C., 217;
95; mundo de, 66,67-68; sepultamento, Samaria, 7, 96, 116
253,269-271; sobre iguaiitarismo, ensi­
Judaism: Practice and Belief 63 B.C .E-66 C.E.
no de, 111, 159; terra e, 112-115, 168­
(Sanders), 304
170; visita à sinagoga de Nazaré, 71
Jewish Tombs A t and Near Giv’at ha-Mivtar,
Judas, galileu, 176, 204 -
Jerusalem (Tzaferis), 305 Judas, irmão de Jesus, 66
Jezabel, 114 Julgamentos de Jesus, historicidade dos, 246­
João Batista, 18, 93, 120, 151-154; acusa­ 252; multidão e escolha de Barrabás,
do por causa de alimentação, 151-154; 246-249; Pilatos e, 246-252; questões
batismo por, 151-153; como líder da levantadas, 246
resistência, 176; execução por Antipas,
Justino, 287
151,241-243; fonte Q.e, 151,152; Jesus
como seguidor, 207-208; mensagem
apocalíptica de, 152-153; movimento K
centrado em João, 158; oposição a He­
rodes Antipas, 106, 145; representação Kathros, casa de, 237
de Êxodo, 152-153 Kefar Hananya, 125
João, evangelho de; oficial em Cafarnaum, Kenyon, Kathleen, 28
127; fontes de, 25, 8 1 ,1 2 7 ,2 4 8 ; Nazaré
Kibutz Ginnosar, 21, 125
em, 64; sinagoga, referências a, 129;
1,44, 133; 1,45-46, 64; 2 ,6 , 23; 2,1 3 -1 7 , King Herod’s Dream (Holum), 302
2 4 5 ; 4 ,46-54, 127; 6 , 5 9 , 130; 11,17,280;
Kursi, complexo monástico em, 129
1 8 ,2 0 ; 1 8 ,3 8 - 4 0 , 248; 1 9 ,1 3 ,2 2 5 ; 19,39,
2 7 0 ; 1 9 ,4 1 , 2 7 0
Jocabed, 90-92
Jodefá, 149, 192-193, 304 Lachmann, Karl, 25
Lago Kinneret (Mar da Galiléia): resgate de Manipulação de histórias, 86-87
um barco do primeiro século, 21-22,
Mansão Palaciana, Jerusalém , 2 2 8 -2 3 3 ;
125-127, 303
afrescos, 229; banheiras rituais, 231­
Levine, Lee, 302 233; cerâmica, 230; estuque, 229-230;
Levítico: 2 5 ,1 0 , 115; 2 5 ,2 3 , 112, 168, 293; lâmpadas, 231; mosaico, 230; vasos de
25, 72-, 2 5 ,3 5 -3 7 , 114 pedra, 231; vidros, 230

Livros dos vigilantes ( 0 ) , 118, 170


Marcos, evangelho de, 17, 30, data do, 248­
249; base domiciliar de Jesus e, 133-134;
LofFreda, Stanislao, 21 como fonte de Mateus e Lucas, 25, 72;
Lucas, evangelho de: anunciação no, 87; curar e comer no, 159, 170; entrada de
comunidade de gentios e retratos de Jesus em Jerusalém e purificação do
eventos, 130; elementos literários, 4 ,1 6 ­ Templo, 243-246; Missão e Mensagem
30, 73; fonte a 2 5 , 127, 1 5 1 -1 5 2 , 156, no, 156-159; sinagoga, referências ao,
159,161,207-208; fontes marcanas, 25, 130; terceira camada de exegese, 81;
74, 81, 156, 243, 247; Grupo dos Ditos vestimenta e interdependência no, 159­
Comuns no, 204-205; incidente em Naza­ 208; 1 ,6 , 153; 1 ,1 6 -3 8 , 133; 1 ,3 5 -3 8 ,
ré, investigação arqueológica do, 71-75, 133; 1 ,2 1 , 130; 1 ,2 9 -3 1 , 130; 2, 164;
87, 81-82; João Batista, nascimento de, 2 ,1 , 133; 2 ,4 , 123; 2 ,1 3 -1 7 , 154; 6,2 , 74;
93; nascimento virginal, 92-94; oficial de 6,2-4, 72; 6,3, 86; 6,6b-13, 208; 6,7-13,
Cafarnaum, 126-127; parábola do futuro 157; 6 ,8 , 208; 6,9, 159; 6 ,1 0 , 159; 6,11,
de Paulo na diáspora judaica, 75; Roma 159; 6 ,1 4 -2 9 , 1 45; 7 ,1 5 , 165; 7,17-23,
substitui Jerusalém, 73; sinagoga no, 165; 1 0 ,1 1 - 1 2 , 161; 1 0 .4 6 -5 2 , 243; 11,10,
130; suposição de que Jesus não sabia 2 4 3 ; 1 1 ,1 2 -1 4 ,2 4 5 ; 1 1 ,1 5 -1 7 ,2 4 5 ; 11,17,
lar, 74; 1 -2 , 93; 1,7, 93; 1,18, 93; 1,26-38, 224; 1 1 ,2 0 ,2 4 5 ; 1 2 ,1 3 -1 7 , 209; 12,35-37,
87; 3,7-9, 152; 4 ,1 6 -3 0 , 71-75; 4 ,2 2 , 72, 243; 1 5 ,6 - 8 ,2 4 7
4 ,2 3 -2 9 , 72; 4 ,2 8 -3 0 , 72; 4 , 4 3 , 134; 5 ,19 Maria de Nazaré: acusação de Celso 85-87;
124; 5 ,3 2 , 154; 6 ,2 0 , 162; 6 ,27-36, 204 descrição de Mateus, 92-95; narrativa da
7 ,1 - 1 0 , 127; 7,5,130; 7 ,2 4 - 2 5 , 107; 7,31 anunciação em Lucas, 86-87; nascimento
3 5 , 151; 9,1-6, 1 57; 9 ,3 , 208; 10,4, 159 virginal, 85-87
1 0 ,4 - 1 2 ,1 5 7 ; 1 0 ,5 - 6 a .7 ,1 59; 10,6b, 159
Masada (Yadin), 303
1 0 ,8 - 9 , 159; 1 2 ,5 1 - 5 3 , 161; 1 3 ,1 , 241; 14
150; 14,7-11, 146; 1 6 ,1 8 , 166; 19,1-10 Masada I-V (Foerster et al.), 304
154; 2 2 ,3 5 -3 7 , 208; 2 3 ,1 3 -1 8 , 247 Masada, 22,181-187; artefatos judaicos em,
188; Ben Yair Eleazar, 181-182; Décima
Legião, acampamento e rampa romana,
M
182-183; defensores, 183-184; encon­
Macabeus (governantes asmonianos), 63,75, trados fragmentos de rolos, 186-187;
98-99,149; Antígono versus Hircano, 99; escavações em, 182-187; fortificações
crença judaica na vida depois da morte, e fortaleza de Herodes, 182-183, 185;
276-280; sacerdócio-monarquia, 211 Herodes, o Grande, liberta família em,
2 Macabeus, 277; 6 ,1 9 .2 8 , 278; 7 ,9 , 278; 99; histórias sobre suicídios em massa
7 ,1 0 - 1 1 , 278; 7 ,1 4 , 278; 7 ,2 9 , 2 7 9 ; Qosefo), 181; ideais, 185-186; miqwaoth
14,4 1 -4 6 , 2 7 9 em, 184-186; nomes inscritos em, 184;
ostraca, 182,184; palácio de Herodes em,
4 Macabeus, 277; 9 ,8 , 278; 9 ,2 9 , 278
141-144, 148, 184, 230, 303; pureza,
Magness, Jodi, 304 186; sinagoga escavada em, 70,184-186;
sistema de racionamento, 183, 186; 90; Sermão da Montanha de Jesus em
tirar a sorte para suicídio, 192; vasos de paralelo a, 88-89
pedra, 184
Mateus, evangelho de: Grupo dos Ditos Co­ N
muns em, 204-205; camadas marcanas,
17, 25, 81, 157, 161, 165, 243, 247; Nabot, 114
concepção de Jesus, 87-88; correlação Nabratein, 198
dos lugares de habitação de Jesus com Nag Hammadi, Códices de, 16, 24-25; gnos-
promessas proféticas, 131-135; fonte Q, tidsmo e, 25; Tomé, Evangelho de, 2 6
2 5 ,1 5 1 -1 5 2 ,1 5 6 ,1 6 1 -1 6 2 ,2 0 8 ; Moisés
Nagy, Rebecca, 303
e Jesus no, 88, 90-92; nascimento virgi­
nal no, 92-95; pai-nosso, 203, 294; res­ Narrativas do nascimento, 81-82, 85-95
surreição no, 285; Sermão da Montanha concepção de Jesus em Mateus, 87-89
de Jesus paralelo a Moisés, 88; suspeita concepção de Moisés na tradição, 88-92
de adultério de Maria por José, 85,90-91 concepção virginal pelo poder divino, 92
I,1 8 -2 5 , 87, 92; 2,23, 133; 3,7-10, 152 95; histórias paralelas de infância, 91-93
4 ,1 3 - 1 6 , 133; 5,1, 88; 5,3, 162; 5,1 7 , 88 Maria de Nazaré, 82, 85-95; Moisés e
5,17-18, 166; 5,21-48, 88; 5,25-26, 169 Jesus, 86-82
5,3 2 , 161; 5,38-48, 204; 7,12, 204; 8,5 Nascimento do cristianismo, 0 (Crossan), 301
13, 127; 10,7-15, 157; 1 0 ,1 0 , 159, 208
Nazaré, 302; agricultura, 75-78; Basílica da
1 0 ,1 1 , 159; 1 0 ,1 4 , 159; 10,34-36, 161
Anunciação, 61, 68-70; camadas arqueo­
I I ,1 6 - 1 9 , 151; 11,20-24, 159; 13,55, 86
lógicas de, 67-80; casas, primeiro-século,
1 5 ,1 7 -1 8 , 166; 1 8 ,1 7 , 154; 1 9 ,9 , 166
77-79; cerâmica, primeiro século, 78-79;
2 0 ,1 -1 5 , 161; 2 1 ,3 2 , 154; 26, 20; 2 7 ,1 5
cerâmica, strata das cruzadas, 78-79;
247; 2 7 ,2 0 , 247; 2 7 ,2 4 -2 5 , 248; 27,25
cidade alta (Naze Ilit), 61; distância de
247; 27,510-53,285; 28, J 6, 88
Séforis, 22, 76; edifícios cristãos em,
Mazar, Benjamin, 215, 223 67-68; evidência epigráfica, 67; evidên­
cia literária, 66-67; expulsão judaica de,
Messianismo, 151-153
67; fonte de água, Poço de Maria, 77;
Meyers, Eric e Carol, 148, 195, 301, 303 geografia de, 76-78; Gruta da Anun­
Miquéias, 115-117; 4,1-4, 116-117; 5 ,1 0 .1 4 , ciação, 69-70, 78, 129; Igreja de São
118; 7 ,1 0 .1 7 , 118 José, 68; igreja dos cruzados, 69; igreja
e mosteiro bizantinos, 68; indústria
Míriam, 89-92
turística em, 68; inscrição na sinagoga,
Missão e Mensagem de Jesus: desafios de 67; moderna, 61-62, 74-75; objetos fúne­
itinerância e comensalidade, 161-162, bres, primeiro século, 78-79; peregrinos
164-165; curar e comer, 159, 170; pro­ cristãos e crescimento de, 66-67; período
grama de partilha recíproca, 156-159; bizantino, 62, 68-69, 74-75; piscinas,
pureza, 162-164; recusa de Paulo, 155­ ritual (miqwaoth), 79-202; população
159; vestimenta e interdependência, judaica de, 75, 78-79; primeiro século
159, 208 de Jesus, 61-62, 74-80; reconstrução
desse vilarejo do primeiro século, 63­
Mixná: sobre adultério, 87-88; sobre vasos
64, 74-80; reinstalação de uma famíha
limpos, 198
sacerdotal judaica (Hapizzez), 67; rejei­
M oisés: concepção na tradição, 88-92; ção de Jesus em, 71-75; rehgião judaica,
decisão do pai, 90; decreto do rei, 89- 67-68; sem importância na Antiguidade,
63-68; sepultamento, 77-80; sinagoga, camada, 81; modelo para a rejeição por
66-67, 71-74; strata das Cruzadas, 68, judeus em Antioquia e Tessalônica,
74-75, 78; viagem e, 66-67, 76-77; vida 73; recusa do mandamento de Jesus,
camponesa em, 65-66, 74-76, 78-80, 155-157
134, 202-203 Pedro, apóstolo: aparição de Jesus a, 276; casa
Neemias, 10, 234; 13, 233 de, em Cafarnaum, 21, 129, 130-142,
160; preso por Agripa I, 213-214
Nero, 218, 255
Pedro, Evangelho de, 27, 250-251; camadas
Netzer, Ehud, 258, 303
exegéticas e, 81; 10,3 9 -4 2 , 285
New Encyclopedia o f Archaeological Excavations
Pesahim 57a, 2 3 7
in the Holy Land (Stern), 301
Pilatos, Pôncio, descrições de, 249; fundos do
templo, 236; inscrição, Cesaréia Maríti­
O ma, 20, 103-105; papel na execução de
Oberammergau, auto da paixão de, 252 Jesus, 242, 246-252, 294; protesto dos
estandartes mihtares, 178
Odes de Salomão, 285
Piscinas, ritual (miqwaoth ou miqweh), 2 3 ,
Oráculos sibilinos: 2 .1 9 6 - 3 3 5 , 119-120; 3 .6 9 5 ­ Gamla, 199-201; banhos romanos versus,
9 7 , 118; 3.767-55, 117 202; como manutenção da identidade,
Origenes de Alexandria, 85 202; Galiléia, 76,231; Mansão Palaciana,
Jerusalém, 231-233; Masada, 184-185;
Ossuary Inscription from the ‘Caiaphas Tomb’
Nazaré, 79; prensas para fazer azeite
(Reich): 305
e, 199-201; Qumrã, 190; Séforis, 149,
Ostraca: Masada, 182, 184; Qumrã, 189 198, 231-233
Oxford Encyclopedia o f Archaeology in the Near Plínio, 187
East, The (Meyers), 301
Povo judaico: adultério e, 87; Cafarnaum,
vilarejo judaico do primeiro século,
121-135; camponeses, 62-63, 74; classe
sacerdotal e riqueza, 228-237; cola­
Pã, santuário de: Augusteion, 138; Banias, boração com os romanos, 154; crença
136-137,303; Templo de Pã e dos Bodes, na ressurreição do corpo, 261; crença
139-141 na vida depois da morte, 2 7 6 -2 8 0 ;
Pai-nosso, 203, 294 diáspora, 73; dieta, 65, 76; duração
da vida, 264-266; estratificação social,
Palestina, generais de Alexandre e, 76 149-150; expulsão dos lugares sagrados,
Palestinian Dwelling in the Roman-Byzantine incluindo Nazaré, 67; família em sentido
Period, The (Hirschfeld), 303 amplo como portadora da tradição, 68;
Galiléia do primeiro século, 15; gover­
Partos, império dos, 99
nantes, autoridade disputada de, sob
Paulo: acordo para missão aos gentios, 73; Roma, 211-212; impostos e dízimos,
afirmações da ressurreição e, 280-284; sacerdotes e sacrifícios, 233-237; índice
cartas de, 17, 26; cartas, datas corretas de alfabetização, 74; monarquia, 211;
das, 155; defesa de comida e bebida, observâncias de pureza, 22,79,162-164,
cartas aos coríntios, 53-54 d.C., 155­ 186, 193, 231-233; período bizantino,
156; descrição de Lucas em Atos, 73-74; 62; práticas de sepultamento, primeiro e
escritos sobre, como exegese da segunda segundo, 7 6 ,7 9 ,2 53,259-262,267-268,
288-89; rabinos substituem sacerdotes essênios em, 24, 186-192, 201, 211;
como centro da vida religiosa, 67-68; finanças, 188-189; inimigos, 189-192;
sacerdócio monárquico asmoniano, 211, jarro para guardar rolo, 188; lançar
218; sacerdotes como servos civis sob sortes, uso de, 219; resistência judaica
Roma, 211-212; sepultamento, crimi­ e, 22, 186-192, 211; rituais, 189-190;
nosos crucificados, 268-270, 291; terra Rolo da guerra, 190; Rolo do Templo, 2 2 0 ;
como elemento central no conflito com Rolos do Mar Morto, 16, 24, 172-173,
Roma, 212; uso de sorteio, 219; vasos 304; vida em, 189
de pedra, típicos do, 196-199,202, 304;
vida camponesa ou em cidade pequena,
19-20, 65-66; voltado para o Templo,
R
63-64, classes sociais altas, jantar e, Raban, Avner, 303
141-142 Rabinos, 67-68; fariseus, 67
Power o f Images in the Age o f Augustus, The
Reed, Jonathan L , 301-302
(Zanker), 302
Refeições e jantar: em Banias, santuário
Primeira apologia (Justino), 287 de Pã, 136-138, 303; Cafarnaum, 134;
Pseudo-Filon, 89 Qumrã, 189. Ver também, pureza; salas de
jantar formais, triclinia, 141,144; templo
Pureza, códigos de (ritual judaico e obser­
de Herodes, Augusteion, 138; Templo de
vância religiosa), 22, 78-80, 162-164;
Pã e dos Bodes em Filipos, 139-141; Vila
em Masada, 184-186; Jesus e, 162-164;
de Dionísio, 145-148
manutenção da identidade e, 201-203;
presença de Deus e, 201; resistência e, Regra Áurea, 204-206
173-174,193; vasos de pedra e, 196-199, Reich, Ronny, 216, 304
213. Ver também Piscinas, ritual {miqwa­
Reino comercial, 96-114, 294-295; agricul­
oth ou miqweth)
tura no, 103-106,111-114; dinheiro em,
100, 106-107, 171-172; fachadas em
Cesaréia, 102; fachadas em Séforis e em
Tiberíades, 109-110; Herodes Antipas,
d Evangelho, 25; acusações contra João e
construtor do, 105-108, 110; Herodes,
Jesus do, 151,152; Didaqué e, 26; Grupo
0 Grande, como Rei dos Judeus mestre
dos Ditos Comuns, 204-210; itinerância,
construtor, 99-101; imposição de ordem
161; João, evangelho de e, 127; Lucas,
em Cesaréia, 101-102; imposição de
evangelho de, e, 127, 151-152, 157,
ordem em Séforis e Tiberíades, 108-109;
159, 161-162, 205, 206, 208; Mateus,
impostos, 100, 105, 107, 112, 133-137;
evangelho de, e, 127,151-152,157,159,
Masada, evidência de confronto com a
161-162, 204-205, 208; Missão e men­
aliança, 186; perda de posse dos cam­
sagem no, 156-158, 161, 208; segunda
poneses, 161-162; pobreza versus riqueza
camada exegética, 81; terceira camada
no, 105, 111-112, 161; reforço da hie­
exegética, 81-82; Tradição dos Ditos
rarquia em Cesaréia, 103-105; reforço
Comuns, 26, 156-157, 162; vestimenta
da hierarquia em Séforis e Tiberíades,
e interdependência no, 159, 208
110-114
Qiddushin 4 ,8 , 88
Reino da aliança, 96-99, 112-120, 291-292;
Qumrã (Khirbet Qumrã), 186-192, 304; ce­ achados arqueológicos e compreen­
râmica, 188; debates sobre pormenores são, 120-135; apocalipse e, 118-120,
das camadas, 186; escavações, 187-188; 203-205; Documento de Damasco, 176;
eschaton e, 115-119; Masada e choque egípcio e movimento fracassado contra
entre reinos, 184-187; terra e, 112-115, Jerusalém , 176; protestadores, 177;
169-170,211-212, 292-293 protestadores, esperança de saída, 179­
Reino do céu, 203, 294-295 181; protesto, estandartes militares de
Pilatos, 26-27 d.C., 177-178; protesto,
Reino, movimento do, 18, 120-121, 134, estátua de Caligula, 178-179; quarta
150-151, 157-158, 254-255; acusação filosofia e, 152, 176, 212; questão da
de Jésus sobre alimentação, 153-155; autoridade, 211-212; questão da ter­
cajado e espada, 208-209; César e Deus,
ra, 112-115, 173, 164-170, 211-212,
209; comensahdade, 160-161; como
292-293; religião e política, união de,
resistência a Roma, 176-177, 203-210;
172-173,209-210,295; resistência não-
como resistência radical não violenta e
violenta, 177-181; resistência profética,
resistência de Jésus a Roma, 203-210,
216-217; resistência radical não-violenta
243-246; curar e comer, 159, 169-170;
Gesus e 0 movimento do Reino), 203­
distinção em face do movimento do 210, 243-246; revolta de 115-117 d.C.,
Batista, 157-158; execução de Jesus e, 172; revolta de 132-135 d.C. (segunda
242-243; Igreja do Santo Sepulcro e, 286; guerra judaica), 127-128,293; revolta de
itinerância, 160-162; missão e mensa­ 4 a.C., 171-172; revolta de 66-74 d.C.,
gem de Jesus e, 157-165; Pai-nosso, 203, 152-173, 191-193, 213-215, 217-221,
294; programa de partilha recíproca, 293; revolta, anterior a Roma, 172; revol­
156-159; Regra Áurea e, 204-208; res­
ta. Judas, o galileu, 6 d.C., 175-176, 204;
tauração do reino da aliança, 160-161, revolução socioeconômica interna, 216­
293-294; vestimenta e interdependência,
217; Séforis, 76, 150; sicários, 180-187,
159, 208
217; terrorismo urbano, 180; tradições
Reino, no Antigo Testamento, 96-99; comér­ da aliança e observações de pureza, 174,
cio e pobreza, 97-107; culto e aliança, 193-194; traidores, 173-174, 292-293
98; escavações da Samaria, 97; Jeroboão Ressurreição, 275-286; aparecimentos depois
II, 96-97; justiça e culto, 98; pobreza e da morte (aparições), 275, 280; coletiva,
justiça, 97 285-286; conceito apocalíptico e esca-
1 Reis; 17,8-16, 72; 2 1,1-4, 114 tológico, 278-283; Credo Apostólico e
Credo Niceno, 285; crença na, 286-289;
2 Reis; 5,1-14, 72; 2 1 ,1 8 .2 6 , 270
exaltação versus, 280; Jesus e, 279-286;
Resistência judaica, 19, 22, 70, 77, 126­ problema do significado, 275-282; ques­
127, 171-210; aculturação e, 173-174; tões históricas, 2 7 5 -2 7 6 ; ressuscitação
apocaliptistas, 175-177, 215-16; bandi­ versus, 279-280; significado judaico do
dos, 175, 177, 217-218; colaboradores, termo, 275-277, 280
174-175; crucifixão de rebeldes, 171,
Richardson, Peter, 302
203; destruição do Templo e cerco de
Jerusalém pelos romanos em 70 d.C., Ritmeyer, Leen e Kathleen, 304
152, 173-174, 213-215; Documento de Robinson, Edward, 216
Damasco e comunidade da aliança, 176;
essênios em Qumrã, 186-192, 211; Rolos do Mar Morto, ver Qumrã
Gamla, 190-192; imperialismo cultural Roma, 302; fachadas de mármore identifi­
grego e, 171-172; Jodefá, 191-193, 304; cadas com, 102; indicação do rei dos
líderes, 179; manutenção da identidade, Judeus, 203; mausoléu de Augusto,
193-203; Masada, 180-187, 191; opções 254-257; tradição de concepção divina-
de não-resistência, 173-175; profeta humana, 94
Romano, Império, banlios, 127, 202-203, 110; Herodes Antipas e, 22, 63, 77,107,
304; bellum justum versus bellum servile, 121; hierarquia social, 146-147; inscri­
175; cerâmica (versus vasos de pedra), ções encontradas em, 107-108; Jesus e,
202; conversão de Constantino ao cris­ 121; miqwaoth (banheiras rituais), 149,
tianismo, 62; destruição do Templo de 198-199,231-233; moedas de, 194-196;
Jerusalém em 70 d.C., 152, 214-215; do planta da cidade, 108-110; queda de,
período médio ao posterior (do segundo 108-110; recusa de se aliar à revolta de
século à metade do quarto d.C.), 62; 66-74 d.C., 196; reforço da hierarquia
estradas, 127; governo direto e presença em, 110-114; resistência judaica e, 77,
de legionários na Galiléia, 63, 127-129; 150; romanização de, 148-151; tamanho
Israel e Judá, romanização de, 98-114, de, 121; teatro, 146; Vila de Dionísio,
121; m atança de judeus durante a 145-148
Páscoa, 2 4 0 -2 4 1 ; Pax Romana, 149-151, Sekeles, Eliezer, 305
161, 172; períodos antigos (metade do
Sellin, Ernst, 28
primeiro século a.C. ao primeiro século
Sepphoris in Galilee (Nagy et al), 303
d.C.), 63; política de urbanização, 62-63,
98-99; política misturada com religião, Sepulcros, 253. Ver também Jesus
171-172,209-210,295; reis clientes, uso Sepultamento; Augusto César, 254-257;
de, 127, 221 Caifás, túmulo familiar e ossuário, 20,
Romanos: 13,1, 209; 1 5 ,2 4 , 156 262-267, 305; criminosos crucificados,
268-270; em Nazaré, primeiro século,
77; Jesus, 270-271; objetos tumulares,
Nazaré, 79; povo comum, 267-268; pri­
Saduceus, 152; colaboração com Roma, meiro e segundo, em ossuários, 76, 79,
211-212; como aristocracia corrupta, 259-262; túmulo de Herodes, 257-259
212-213; ossuário, 266-267 Shadow o f the Temple (Ben-Dov), 304
Saladino, sultão, 69 Sicários, 22, 180-181, 217; Masada, 180­
Salmos: 82,2-4, 168; 8 2 ,5 , 169; 82,6-7, 169 187
Samaria, 96, 116 Sinagogas, 302; afirmações de Lucas e rejei­
1 Samuel 1 0 ,2 1 , 2 1 9 ção de Jesus em Nazaré, 71-74; Cafar­
naum, 129-130; em Gamla no Golan,
San Giovanni, 273
70-71, 200; em Nazaré, 67; escavação
Sanders, F. P., 304 em Masada, 70, 184-187; escavação
Schleiermacher, Friedrich, 25 herodiana, 70; feições arquitetônicas
Schliemann, Heinrich, 27 e litúrgicas desenvolvidas, depois da
destruição do Templo, 70-71; inscrições
Scythopolis, 76
descobertas em Cesaréia Marítima, 67;
Sebaste, 17 nenhuma encontrada no primeiro século
Secrets o f Jerusalem’s Temple Mount (Ritmeyer na Galiléia, 7 0 ,328n; no tempo de Jesus,
& Ritmeyer), 304 67-68; palavra grega, proseuche, para, 70;
Séforis, 17, 66, 76, 303; basilica, 110; captura período bizantino, 61; períodos roma­
por Herodes, o Grande, 99; cardo, 110; nos, do médio ao posterior, substituição
casa com pátio e peristilo, 148; casa com do Templo por, 62-63, 67-68; referências
pátio fechado, 148; colaboração com no evangelho a, 130; termo (knesset da
Roma e imitação de Roma, 194-196; Mixná), 70, 130
conselho romano em, 76; fachadas, 109- Síria, dinastia selêucida, 76
Six Campaigns at Sepphoris (Strange), 303 Tróia, 27; tesouro de Príamo, 27
Sobre a verdadeira doutrina (Celso), 85-86, Tzaferis, Vassilios, 21, 127, 268, 305
288
Strange, James F., 149, 303
V
Suetônio, 94
VanderKam, James C., 304
Vasos de pedra, 23, 304; Cafarnaum, 124;
como manutenção da identidade do povo
Targumim (comentários aramaicos), 89 judeu e da pureza, 196-199, 201-215;
Taylor, Joan, 304 Galiléia e Judéia, 76; Mansão Palaciana,
Jerusalém, 230-231; Masada, 184
Terra: compra e venda, 114; aliança e base
do conflito judeu com Roma, 112-115, Vespasiano, 173-174,191,217-218; dinastia
168,169-170,211-212,292-293; divisão flaviana, 152; imposto, 234-235
entre tribos, 233-234,292-294; herança Vida Oosefo), 11, 153; 77-78, 2 1 7 ; 3 4 7 , 196;
de, 233-234, 292-294; hipoteca e perda, 374-84, 150; 4 2 1 , 279; 4 2 2 , 234
114-115; reversão da expropriação, 115; Vida de Constantino (Eusébio), 27 0 -2 7 4 ,
sacerdotes e, 215-234 286-287
1 Tessalonicenses 4 ,1 4 -1 7 , 284 Vidas dos Césares (Suetônio), 9 4 .4 , 94
Tiago, irmão de Jesus, 237; ressurreição,
explicada a um fariseu, 284-286 W
Tiago, irmão de João, 250 Wachsmann, Shelly, 303
Tiberíades, 1 7 ,2 2 ,6 3 ,7 5 ,1 0 5 ,1 0 7 ; fachadas, Wallace-Hadrill, Andrew, 303
109-110; Jesus e, 121; Pax Romana e, 150;
Warren, Charles, 216, 223
planta da cidade, 108-110; portão da
cidade, 109-110; reforço da hierarquia Watermann, Leroy, 148-149, 303
em, 110-114; resíduos, arquitetura de Watzinger, Carl, 28
segunda classe, 121; tamanho de, 121; Weiss, Johannes, 25
teatro em, 110-120
Wilson, Charles, 216
Tito, 173-175, 191, 214, 279
Tobler, Titus, 216
Tomé, Evangelho de, 2 6 - 2 7 , 165; Missão e
Yadin, Yigael, 141, 181-182, 303
Mensagem no 156-159; purificação do
Yigal Allon Museum, 128
Templo no, 245-246; segunda camada
exegética e, 81; Tradição dos Ditos
Comuns e, 26, 156-159; 14, 157, 159,
164-165; 1 6 , 161; 5 4 , 162; 7 1 , 245;
Zacarias, 9,9 -1 0 , 243-244
100, 209
Zanker, Paul, 302
Tradição dos Ditos Comuns, 26, 156-159;
Zaqueu, 154-155
aforismo “paz ou espada”, 161; bem-
aventurados os pobres, 162; curar e Zelotes, luta de classes pelos, 218-220,
comer em, 159; fonte oral de, 206; pro­ 228, 236
grama de partilha comum, 156-159 Zias, Joseph, 182, 262, 266, 305
INDICE GERAL

P refácio ........................................................................................................... ...................................................... 11

P rólogo
Pedras e te x to s ................................................................................................................................................... 15

Introdução
As DEZ PRINCIPAIS DESCOBERTAS DAS ESCAVAÇÕES SOBRE J e SUS................................................................. 19
D esco bertas arq u e o ló g icas................................................................................................................. 19
D esco bertas ex e g éticas......................................................................................................................... 23
Cam adas p arale las.................................................................................................................................. 27

Capítulo 1
J esus GRAVADO EM PEDRA................................................................................................................................... 33
A utenticidade e in te g rid a d e .............................................................................................................. 34
A u te n ticid ad e .................................................................................................................................. 34
Ponto e c o n tra p o n to ..................................................................................................................... 37
In te g rid a d e ....................................................................................................................................... 43
O irm âo de J e s u s ..................................................................................................................................... 47
Id entid ade.......................................................................................................................................... 48
A utoridad e......................................................................................................................................... 49
M a rtírio .............................................................................................................................................. 50
O p o sição ............................................................................................................................................ 51
Pedra e texto, arqueologia e e x e g e s e ............................................................................................. 58

Capíiulo 2
C amadas SOBRE CAMADAS SOBRE CAMADAS.................................................................................................... 61
D e N azaré pode sair algo de b o m ? ................................................................................................. 64
Cam adas arqueológicas de N a z a ré ................................................................................................. 68
N a sinagoga em N a z a ré ? ..................................................................................................................... 71
N azaré n o tem po de J e s u s .................................................................................................................. 75
Cam adas exegéticas da h istó ria de N azaré................................................................................. 80
U m irm ão em d escre n ça ?.......................................................................................................... 82
M ãe a d ú lte ra ?.................................................................................................................................. 85
D e M oisés a Je s u s .......................................................................................................................... 86
Filho de M aria, filho de Jo sé , filho de D e u s .............................................................................. 92

Capítulo 3
C omo se constrói um reino ........................................................................................................................... 95
U m choque entre tipos de re in o ...................................................................................................... 95
P rim eiro tipo: reino com ercial.......................................................................................................... 97
H erodes, o Grande, rei e m estre c o n stru to r..................................................................... 98
H erodes A ntipas com o filho de seu p a i.............................................................................. 103
Segundo tipo; reino da a lia n ç a ......................................................................................................... 111
R eino e te r r a .................................................................................................................................... 112
R ein o e eschaton.................................................................................................................... 115
Reino e apocalipse............................................................................................................... 118
O Reino de Deus em Cafarnaum ?........................................................................................... 120
A pequena cidade judaica de Cafarnaum no primeiro século................................ 121
Construções tardias do Reino em Cafarnaum............................................................ 126

C apítulo 4
J esus em seu lugar.................................................................................................................................. 137
No santuário de um d eu s........................................................................................................... 137
O santuário de P ã ................................................................................................................. 138
Templo de Herodes.............................................................................................................. 139
Cidade de Felipe................................................................................................................... 139
No palácio de um r e i................................................................................................................... 141
Masada na m ontanha......................................................................................................... 142
Cesaréia na co sta .................................................................................................................. 144
Na vila de um aristocrata........................................................................................................... 145
Nas casas das e lite s ..................................................................................................................... 148
Uma casa com pátio interno............................................................................................. 148
Uma casa com p eristilo...................................................................................................... 149
A Pax Romana na G aliléia................................................................................................. 149
No Reino de D e u s........................................................................................................................ 151
Acusações contra João por causa de comida................................................................ 151
Acusações contra Jesus por causa de com ida............................................................. 154
Paulo não aceita o mandamento de Jesu s..................................................................... 155
Programa de reciprocidade de recursos........................................................................ 157
Desafios da itinerância e da com ensalidade................................................................ 161
Da terra ao mundo e à alimentação........................................................................................ 168
Terra e m u nd o....................................................................................................................... 169
Terra e alim ento.................................................................................................................... 170

Capítulo 5
R esistência judaica ao domínio romano........................................................................................... 171
Religião e política, colônia e im p ério.................................................................................... 171
Opções pela não-resistência...................................................................................................... 173
Traidores.................................................................................................................................. 173
Colaboradores....................................................................................................................... 174
Opções de resistência.................................................................................................................. 175
Bandidos.................................................................................................................................. 175
Apocaliptistas........................................................................................................................ 175
Protestadores......................................................................................................................... 177
Masada e Qumrã ao su l.............................................................................................................. 181
Sicários em M asada............................................................................................................. 181
Essênios em Q iam rã............................................................................................................ 186
Jodefá e Gamla ao n o r te ............................................................................................................. 191
Manutenção da identidade e resistência silenciosa........................................................... 193
Séforis, cidade da p a z ........................................................................................................... 194
Vasos de pedra e banheiras ritu a is................................................................................. 196
Resistência radical não violen ta.............................................................................................. 203
Radicalização da Regra á u rea........................................................................................... 204
Jesus, cristãos e C é sa r........................................................................................................ 207
Capítulo 6
B eleza e ambigüidade em J erusalém................................................................................................... 211
Revolta colonial e luta de classe.............................................................................................. 214
Destruição de Jerusalém .................................................................................................... 214
Revolta demro da revolta.................................................................................................. 216
Defesa da Galiléia................................................................................................................. 217
Zelotes e aristocratas........................................................................................................... 218
A glória do Tem plo....................................................................................................................... 220
Imponência geográfica do Tem plo.................................................................................. 221
A fachada magnífica do Templo....................................................................................... 222
Hierarquia arquitetônica do Templo............................................................................... 224
A águia dourada do Templo.............................................................................................. 226
Quarteirões do sumo sacerdócio............................................................................................. 228
Mansão Palaciana................................................................................................................. 228
Impostos e dízimos, sacerdotes e sacrifícios............................................................... 233
A casa incendiada................................................................................................................. 236
Peregrinação ao Templo.............................................................................................................. 238
Duas ações perigosas................................................................................................................... 242
Entrada em Jeru sa lém ........................................................................................................ 243
“Purificação” do Templo..................................................................................................... 244
A historicidade do julgam ento de Je s u s ................................................................................ 246
Rumor da multidão e escolha de Barrabás.................................................................. 246
Relutância de Pilatos e inocência de J e s u s .................................................................. 249

Capítulo 7 ■
C omo enterrar um r e i ........................................................................................................................... 253
O magnífico mausoléu de A ugusto........................................................................................ 254
A tumba de Herodes no deserto.............................................................................................. 257
O esplêndido ossuário de C aifás............................................................................................. 259
O Santo Sepulcro de Je su s......................................................................................................... 267
Enterros de pessoas com u ns............................................................................................ 267
Funerais de criminosos crucificados.............................................................................. 268
Teve Jesus mausoléu adequado?...................................................................................... 270
A ressurreição judaica de Je s u s ................................................................................................ 275
O problema do significado................................................................................................ 275
Mártires m acabeu s.............................................................................................................. 277
Deus ressuscitou Jesus dentre os m ortos............................................................................. 279
Conteúdo da afirmação da ressurreição....................................................................... 279
Evidência da afirmação da ressurreição........................................................................ 283
Monumento de mármore ou ju s tiça ? ..................................................................................... 286

Epílogo
Solo e evangelho.................................................................................................................................... 291
Roma e judaísm o........................................................................................................................... 291
Judaísmo e cristian ism o..................................................................................................... 295

Agradecimentos..................................................................................................................................... 299
Fontes arqueológicas............................................................................................................................ 301
índice das ilu strações........................................................................................................................... 307
índice de nomes e tem a s.................................................................................................................... 309

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