Lil Nas X
Lil Nas X
Lil Nas X
VICTÓRIA HOLZAPFEL
Guarulhos
2023
VICTÓRIA HOLZAPFEL
Guarulhos
2023
Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos
autorais nº 9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório
Institucional da UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer
ressarcimento dos direitos autorais para leitura, impressão e/ou download em meio
eletrônico para fins de divulgação intelectual, desde que citada a fonte.
VICTÓRIA HOLZAPFEL
This article aims to understand the mechanisms that elaborate the visual of the music
video MONTERO (Call Me By Your Name) by Lil Nas X and how the aesthetic
representation of this clip can contribute to change the way a dissident body is placed
and seen socially.
Starting from the observation of how the heteronormative matrix, which constructs the
notion of binary gender, presented by Judith Butler and the Catholic epistemology,
commented by Henderson-Merrygold, categorize the dissident body.
Then analyze how these concepts are represented and tensioned within MONTERO's
narrative in contrast to the camp aesthetic, theorized by Susan Sontag, the notions of
artistic performativity and gender, to create new mechanisms of identity development
and desire.
Figura 1 - Frame do clipe de Old Town Road (2018) de Lil Nas X ….…………………..14
Figura 3 - Cena Inicial do clipe MONTERO (Call Me by Your Name) de Lil Nas X……35
A entrada de Lil Nas X nos charts de country suscitou uma polêmica no mundo
da música country: mesmo com elementos sonoros característicos do gênero e artistas
do meio envolvidos na versão da música com Billy Ray Cyrus, Old Town Road não era
tratada como música country. Vale ressaltar que o estilo é um dos mais tradicionais e
segregados dos Estados Unidos, com origens em Nashville e Santa Fé, cidades do sul
do país, região conhecida pelo passado escravocrata, e com seus maiores expoentes
musicais sendo pessoas brancas. Mesmo se modernizando e criando subgêneros
como trap country ou o pop country, com artistas consagrados experimentando essa
mistura de gêneros e habitando o chart de US Hot Country Songs sem muito
1
Geração Z, é como são classificadas pessoas nascidas entre os anos de 1995 e 2010. Apesar de não
haver um consenso claro em quando começa e termina uma geração, a geração Z costuma ser marcada
pelo início da revolução digital, com o mundo se digitalizando pouco a pouco.
2
Charts é um termo criado pela indústria fonográfica anglófona e se refere a um ranking das músicas
mais consumidas em um determinado período ou de um determinado gênero.
3
Billboard é uma revista estadunidense criada em 1894, originalmente com foco no mercado publicitário
da indústria musical. Nos anos 1950, começou a focar apenas em música e fornecer rankings semanais
das músicas mais ouvidas em categorias específicas.
4
SoundCloud é uma plataforma online de publicação de áudio, fundada em 2007, onde músicos podem
colaborar, compartilhar, promover e distribuir suas composições.
13
estardalhaço, a música de Lil Nas X sofreu grande represália por artistas e público mais
conservador da música country, culminando na decisão da Billboard de retirar a música
de Nas do chart de country, usando como argumento o fato da canção não ter sido
divulgada inicialmente como country e nem
trabalhada comercialmente nesse nicho
em específico (LEVY, 2019). A revista
negou qualquer postura racista na postura
de retirar a música de Lil Nas X das
paradas, mas graças ao passado
conservador do gênero, artistas negros
tem pouca ou nenhuma visibilidade dentro
das paradas de country, principalmente
quando trabalham com outros gêneros5.
Apesar de não ser o foco deste artigo, a controvérsia gerada por Lil Nas X logo
no primeiro ato de sua carreira - com uma música limítrofe entre gêneros versus o
sucesso estrondoso e a aceitação que o artista teve pelo público -, já começava a
moldar o artista que questiona padrões, regras limitadoras e que consegue navegar
com muita facilidade nas várias caixas formatadas na cultura. Esses elementos são
uma constante até o momento atual de sua trajetória artistica e Nas vem trabalhando
para expandir os limites dos gêneros musicais, não só por ser negro, mas também por
se relacionar afetivamente com homens. Seu processo em se assumir homossexual6
veio através da produção e divulgação do seu segundo trabalho, o 7 (EP) de 2019, ele
se abre sobre o assunto na faixa C7osure (You Like).
5
A exemplo, as músicas de Florida Georgia Line, como participação de Bebe Rexha, Meant to Be,
lançada em 2018, ocupou o #1 no chart de country da Billboard; e a de Jason Aldean, Dirt Road Anthem,
lançada em 2010 ocupou o #7 no mesmo chart, ambos são artistas brancos.
6
Em 9 de janeiro de 2023, Lil Nas X se assumiu bissexual. Em respeito a biografia e trajetória do artista,
utilizarei a forma atual como ele se refere a própria sexualidade. Esse fato não altera em nada a
pesquisa e inclusive reforça seus argumentos teóricos de forma prática.
14
na maior parte dos casos para preservar alguma privacidade da sua vida pessoal7 ou
como uma forma de potencializar sua arte e sua mensagem. Nas passou pelas duas
formas, sua persona de Old Town Road e 7 (EP) ajudou a preservar um lado do artista
que não estava pronto para emergir. O EP ajudou a consolidá-lo como artista além do
hit explosivo de Old Town Road. Daí para frente, ele se sentiu seguro para construir
uma mensagem mais presente e fortaleceu cada vez mais sua persona queer8, falando
mais sobre sua homossexualidade visualmente, nas suas letras e na sua vida pública
(figura 2).
7
Como exemplo, podemos pensar nos integrantes da banda de Nu Metal Ghost, que usavam
maquiagens pesadas, máscaras e pseudônimos para ocultar suas verdadeiras identidades. Hoje em dia
a banda já tem seus rostos e nomes revelados ao público.
8
O uso da palavra queer neste texto será usado apenas para se referir diretamente a Lil Nas X e sua
obra, já que é uma palavra que o próprio artista usa para se “categorizar”. Já em questões teóricas ou no
impacto de políticas de opressão exteriores à obra, se optou pelo uso das palavras “dissidente” e
“não-normativo”, para facilitar a compreensão de pessoas que podem ser impactadas por este texto.
15
MONTERO: VIDA E OBRA
9
A referência a música e clipe MONTERO sempre será feita com todas as letras da palavra em
maiúsculo e referências ao artista, Montero, apenas com a inicial em caixa alta.
10
Como forma de promover o single MONTERO (Call Me By Your Name), Lil Nas X lançou junto da
marca MSCHF, 666 pares de tênis Nike Air Max 97, “decorado com um pingente de pentagrama e uma
referência a Lucas 10:18, um versículo da Bíblia sobre a queda de Satanás do céu” (MADANI, 2021),
além de uma gota de sangue humano na sola. A MSCHF já havia lançado o mesmo modelo de tênis
modificado com uma gota de água benta do Rio Jordão na sola, o “Jesus Shoes”.
16
confrontado com os dogmas da Igreja Católica Apostólica Romana e com a
manutenção do status quo das sociedades formadas com base neles. Estátuas gregas
e arquiteturas romanas em ruínas se integram a um cenário majoritariamente roxo e
rosa na primeira parte do clipe, com elementos fantásticos e uma estética camp com
elementos que aludem ora ao medievo, ora ao afro futurismo. Lil Nas X, com variações
de trejeitos e maquiagens, projeta todos os personagens do clipe, à sua imagem e
semelhança. Na apresentação visual da narrativa, os figurinos das personagens
trabalham com cores vibrantes, tecidos extravagantes e acessórios suntuosos num mix
de modelagens e cortes de roupa que “não condizem” com o gênero masculino
atribuído a Montero. Em algumas situações sociais, essa ideia de se travestir como
roupas de “gênero oposto” vem num tom irônico e jocoso, mas em MONTERO, Nas
trás o uso de roupas de “outro gênero” como um mecanismo de performar a dissidência
normativa do seu corpo e do seu desejo.
A letra da canção é totalmente focada na luxúria que Nas sente por outro
homem. A diferença é que o eu lírico de Nas já entendeu que esse desejo faz parte de
quem ele é e abraça isso, já seu potencial parceiro não, ele está “vivendo nas trevas”,
fingindo uma vida normativa, cheia de excessos, como álcool e drogas, quando o que
realmente o faria se libertar talvez fosse assumir seu desejo por outro homem.
Ser LGBTQIAP+ não implica que seu trabalho necessariamente reflita essa
característica, mas Lil Nas X sempre fez questão de introduzir elementos da
comunidade em suas músicas e clipes. Dito isso, bem… MONTERO é, seguramente, o
clipe mais homoerótico que o artista produziu até o momento. Os elementos estéticos
que integram sua construção visual ajudam a compor essa afirmação, mas dentro de
uma perspectiva queer o que mais evoca o homoerotismo latente é o embricamento
das temáticas religiosa e homoerótica dentro da narrativa de MONTERO. O conflito
católico que coloca o desejo como pecado é uma das narrativas mais usadas dentro da
Bíblia Católica, além de ser uma das formas mais antigas e efetivas para oprimir e
categorizar o corpo a todo custo.
17
É interessante observar como essa estrutura ou matriz de categorização,
principalmente a que constrói a noção de gênero binário, masculino e feminino,
apresentada e questionada por Judith Butler em seu livro Problemas de gênero:
Feminismo e subversão da identidade e a epistemologia católica, comentada por
Henderson-Merrygold no artigo Queer(y)ing the Epistemic Violence of Christian Gender
Discourses11 são representadas e tensionadas dentro da narrativa de MONTERO para
limitar formas de expressão genuínas. Essa estrutura amplamente vivenciada por
pessoas ocidentais desde que nascem e por toda sua criação, é então dada como
“natural”. Lil Nas X se aproveita dessa “base” e se apoia em elementos do camp,
teorizado por Susan Sontag e a na performance - artística e de gênero - para
apresentar formas de divergir dessa matriz que limita a existência humana.
11
Em tradução livre: Divergindo da Violência Epistêmica Cristã nos Discursos de Gênero.
12
Drag Queen é uma pessoa que usa roupas e maquiagem para imitar e frequentemente exagerar os
significantes do gênero feminino e seus demais papéis de gêneros para fins de entretenimento e de
produção artística.
18
DISSECANDO MONTERO
A lógica iconográfica das artes eruditas também pode ser aplicada na cultura de
massa, dado que as produções artísticas dentro da indústria cultural possuem uma
permeabilidade grande nos tecidos sociais, impulsionando inclusive, as ideologias
contidas nas narrativas das artes canônicas. Essa mesma característica de
permeabilidade permite a ascensão das figuras não-normativas do cenário da cultura
19
de massa, e com a internet descentralizando a distribuição desses produtos de mídias,
grupos que raramente viam suas vidas minimamente representadas começaram a
ganhar espaço, visibilidade e viabilidade comercial. Mesmo assim, a arte desses
grupos minoritários tende a ser minimizada ou nichada pelas estruturas de validação da
Indústria13 por não servir totalmente a uma agenda de manutenção do status quo da
elite cultural no poder.
É importante salientar que Lil Nas X não é o primeiro e nem o último artista a
fazer um trabalho dissidente, nem a questionar o status quo social. Na verdade, esse é
praticamente o motor da arte, principalmente das artes marginalizadas de alguma
forma. Além disso, antes dele, temos artistas na música a exemplo de Sister Rosetta
Tharpe, Nina Simone, Madonna, Cher, Beyoncé e Lady Gaga que pavimentaram o
caminho na indústria cultural e musical estadunidense para que uma nova geração
pudesse se expressar e se mostrar às claras, sem vergonhas, não só em inferninhos
ao som de suas músicas.
13
Podemos ver o exemplo de Beyoncé, uma artista negra com carreira sólida e extremamente
consagrada que frequentemente tem suas músicas indicadas nas premiações em categorias exclusivas
de música negra, na tentativa de reduzir uma das artistas que mais transformou e impactou a Indústria
da Música nos anos 2000 e 2010 em um produto de nicho ou golpe de sorte.
20
É comum que essas trajetórias disruptivas sejam historicamente capitaneadas
por mulheres, graças ao longo histórico de sofrimento, opressão e apagamento
sedimentados pelo machismo que atingiu desde as mulheres mais abastadas às mais
marginalizadas e esquecidas. Suas lutas no passado permitem que agora outras
identidades sejam somadas nos esforços contemporâneos em busca das pluralidades.
É importante reconhecer o caminho que movimentos políticos como o feminismo, a luta
LGBTQIAP+ e pelos direitos civis nos Estados Unidos criaram para que hoje, artistas
como Lil Nas X, conseguisse relevância dentro da indústria da música e na sociedade,
a ponto de conseguir usar o sistema normativo a seu favor e com uma força que
dificulta que o próprio sistema o pare ou silencie14. E, o mais importante, é uma pessoa
em que outras pessoas comuns e dissidentes conseguem se identificar: é preto,
bissexual, veio de uma infância pobre e hoje consegue ser quem é, não só pelo
dinheiro ou posição que tem, mas por sua forma de expressar verbal e visualmente
como quer e ter os relacionamentos que quer.
Esse tipo de artista, que trabalha com ideias contraditórias coexistindo em certa
harmonia, traz uma mudança de paradigma que muda a vida de pessoas que nunca
sequer pensaram na possibilidade de viver da forma que querem e não da forma que
lhes é imposta. Apenas saber que essa possibilidade existe, é, no mínimo, libertador.
14
A indústria ainda tem problemas com artistas que tentam ser subversivos. Nas fez uma performance
de MONTERO (Call Me By Your Name) na edição de 2021 do BET Awards, premiação de um canal
focado em Afro Americanos, e nela, beijava um de seus dançarinos. Por causa disso, Nas foi criticado e
negligenciado na premiação de 2022, em resposta o cantor fez a música Late to the Party (2022).
15
É sempre bom salientar que a crítica é direcionada a Instituição da Igreja Católica Apostólica Romana
que domina a cultura e hierarquia social do Ocidente. A religiosidade e espiritualidade de ninguém é ou
21
vivência de pessoas que, muitas vezes, concordam com a moralidade cristã e
comungam dessa fé?
Na Igreja Católica, boa parte da conexão com Deus vem do Imago Dei, a ideia
que somos feitos à imagem de semelhança de Deus, como apontado em Gênesis -
capítulo 1, versículo 27 -, e isso nos faz ser, em certa medida, iguais a Ele. Apesar do
será alvo de críticas nesse texto. Inclusive, a dor e angústia que muitos membros da comunidade
LGBTQIAP+ sentem em relação a si, poderia ser amenizada com acolhimentos religiosos e espirituais.
16
Traduzido com DeepL.
22
próprio texto bíblico colocar a mulher como uma “derivação” do homem, feita da costela
do mesmo, o trecho de Gênesis - capítulo 2, versículo 21 a 25 -, ainda estabelece certa
igualdade entre homem e mulher perante Deus na união de ambos em “uma só carne”.
É uma forma da Igreja atestar nossa humanidade e superioridade do homem perante o
resto da Criação. Mas nem todas as pessoas são consideradas “humanas” segundo a
igreja, “por isso que rejeitar a humanidade de alguém é declarar que ela não é feita a
partir de Deus, e por isso não pode ser plenamente reconhecida ou aceita como tal por
Deus”17 (HENDERSON-MERRYGOLD, 2018, p. 3). Essa categorização poderia estar
restrita apenas a questões religiosas, mas a aculturação promovida pela Igreja na
Europa na medieval incorporou as ideias da instituição em caráter mais amplo, para
outros mecanismos sociais. Com a ascensão política da Igreja no século XVIII, a
moralidade cristã encontrou outras áreas para reforçar seus paradigmas como a
ciência, economia, política e tecnologia. Henderson-Merrygold conta como Foucault
exemplificou esse imbricamento do pensamento da Igreja na sociedade a partir da
história da sexualidade e da moral, já que esse mecanismo discursivo também abarcou
a questão do desejo e da sexualidade:
Com o passar dos séculos a ciência absorveu a moralidade cristão para seus
métodos e estudos. E como isso, houve um distanciamento e patologização de todo e
qualquer corpo que fugisse de uma certa normatividade estabelecida e validada por um
grupo muito específico de pessoas “detentoras do verdadeiro conhecimento”, a
principio, homens cisgênero19, heterossexuais, brancos e europeus. A ideia do “Outro”
é construída a partir daí, comportamentos ou condições involuntárias eram
consideradas um desvio ou “punição de divina” passaram a ser clínicas e patologicas.
A matriz heteronormativa também se valeu dessa forma epistemológica visto que
17
Traduzido com DeepL.
18
Idem.
19
Relativo a ou que tem uma identidade de gênero idêntica ao sexo atribuído à nascença. (DICIONÁRIO
PRIBERAM, 2022a)
23
a homossexualidade e diversas expressões de gênero emergiram como
identidades medicalizáveis20, a ciência foi utilizada para corroborar a afirmação
cristã de que apenas a heteronormatividade era "natural" e "normal".
Consequentemente, as expressões não heteronormativas de gênero, sexo ou
sexualidade tornaram a pessoa antinatural, portanto, não totalmente humana.21
(HENDERSON-MERRYGOLD, 2018, p. 8)
‘[...] senti que a minha alma e a sua formavam uma só em dois corpos’,
escreveu ele, escreveu ele, ‘tinha horror à vida, porque não queria viver só com
metade. Talvez por isso é que receava morrer, não viesse a morrer totalmente
aquele a quem eu tanto amara.’ [...] Já se especulou que o forte maniqueísmo
de Agostinho, que divide espírito e corpo, talvez se assente na repugnância
que sentia de suas próprias tendências homossexuais. [...] O registro histórico,
no entanto, revela que, a despeito de toda a influência que ele exerceu, a
prática da amizade homoerótica intensa foi comum no clero ao longo dos
séculos seguintes. (SULLIVAN, [s.d.])
Mesmo sendo comum ter padres gays dentro do sacerdócio, a regra que vale é
20
o “homossexualismo” era considerado um transtorno mental até maio de 1990, retirado no CID-10. Já
a transexualidade só foi retirada da mesma categoria em 2018, na publicação do CID-11.
21
Traduzido com DeepL. Grifo meu.
22
Recomendo o documentário brasileiro de 2005, “Sexo e Claustro” de Claudia Priscilla. Também não é
dificil de encontrar documentação de outros casos de freiras homossexuais, como o livro “Atos Impuros-
a vida de uma freira lésbica na Itália da Renascença” (1987) escrito por Judith Brown, que documenta a
vida e amores da Abadessa Benedetta Carlini; ou o artigo de Ronaldo Manoel Silva, "Clara Fernandes,
uma lésbica perante o Tribunal da Inquisição (1555-1560)". O que acho curioso é como os casos
femininos são tratados isoladamente, e a homossexualidade masculina ser, inclusive, institucionalizada.
24
a mesma para os heterossexuais: celibato para se dedicar totalmente a Deus. Deslizes
acontecem independentemente da orientação sexual, e a orientação é a confissão “e,
se os padres o fazem com sinceridade e voltam a se comprometer com o celibato,
é-lhes permitido seguir adiante” (SULLIVAN, [s.d.]).
25
homoerotismo e desejo
26
a hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença
numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou
é por ele restrito. Quando o status construído do gênero é teorizado como
radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício
flutuante, com a consequência de que homem e masculino podem, com igual
facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e
feminino, tanto um corpo masculino como um feminino. (BUTLER, 2003, p. 21)
23
Grifo meu.
27
outros tipos de corpos existentes.
24
Grifo meu.
28
camp
O maior trunfo desse conceito é ser dúbio e contraditório. Requer uma seriedade
e comprometimento do artista em seu desenvolvimento, mas em sua execução ou
performance não deve ser levado tão a sério. Os excessos característicos do camp,
quando levados a sério, caminham para se tornar kitsch ou de mal gosto. Um exemplo
prático na realidade brasileira seria: uma drag queen como Gloria Groove é
caracterizada como camp; um homem cisgênero se “travestindo de mulher” para um
bloco carnaval, não. O primeiro caso trabalha os excessos como parte da sua narrativa
artística de explorar os estereótipos de gênero - que são excessos -, a um ponto que
não sabemos se o excesso parte da personagem ou da representação de estereótipos;
no segundo, o excesso faz parte apenas de uma manutenção do estereótipo.
29
sociedade, principalmente a comunidade LGBTQIAP+, acabou conferindo a ele um
caráter político, apesar de ter a olhos menos atentos, um caráter "apolítico", como
pontuou Sontag. O caráter político do camp atualmente acaba não sendo por essência,
mas por associação, já que qualquer tentativa de limitar ou categorizar camp além dos
seus excessos subjetivos, pode causar um anti-camp. Um claro elemento de como o
camp se associa politicamente com corpos dissidentes LGBTQIAP+: é o corpo ou a
figura andrógina, que acaba se valendo da recusa em se definir, pelo menos perante a
grupos que podem se mostrar opressores, e do uso de formas estéticas que
confundem e dificultam que o outro te categorize precisamente. Sontag exemplifica:
O camp ainda navega por mais uma questão dentro da arte e da estética: a
performance. Mas a performance, dentro da análise de MONTERO, abrange mais que
só camp, por isso vamos pensar um pouco mais sobre ela no próximo tópico.
performatividade e gênero
30
ato performático. Esse deslocamento cria um jogo interessante em como essa
“exibição de competências” vai ser produzida e validada como performance, o que
força o performer a se conscientizar do seu ato performático com mais afinco. A partir
dessa ideia que Schechner chama de “comportamento reconstruído”, Carlson
estabelece que podemos trabalhar com
25
Grifo meu.
26
Carlson deixa claro em seu artigo que não existe consenso sobre a definição de performance, mas um
processo de como esse conceito é usado e articulado. Ele pontua que os caminhos e debates em volta
deste conceito são vastos e não se restringem só ao campo das artes, mas das humanidades em geral.
27
Grifo meu.
31
Isso produz um caráter performático em apenas viver, e se viver é performático
a questão performatividade de gênero está inscrita nisso. A ideia de performance já é
abordada por Butler em seus debates de gênero, mas a autora é firme na diferenciação
entre performatividade de gênero e performance artística, como duas categorias
distintas que operam de formas diferentes (COLLING, 2021, p. 12–5), sendo que
nessa distinção, performance seria aquela realizada pelas artistas drag, que se
caracterizaria por um ato limitado, produto de uma vontade ou de uma eleição
de quem a realiza. Já a performatividade de gênero não seria caracterizada
pela eleição ou agência do sujeito, mas pelo efeito repetido da norma, ainda
que essas repetições nem sempre sejam realizadas da maneira como as
normas desejam.28 (COLLING, 2021, p. 3)
Algo que parece não ser muito levado em consideração são as possibilidades
paradoxais, subversivas e políticas de um mecanismo criado para opressão ser usado
como fornecedor de material para desenvolvimento de práticas disruptivas. Corpos
dissidentes aprendem a performar como forma de sobrevivência, há uma teatralização
na existência não-normativa, já que esses corpos aprendem a emular um construto
heteronormativo, e “a performance é realizada com o objetivo estratégico de manter o
gênero em sua estrutura binária” (BUTLER, 2003, p. 183).
32
heteronormativa. Em um certo nível, tanto o ato performático quanto o camp exigem
um tipo de representação. O ato de representar pode insinuar a supressão de algo
genuíno no seu momento representativo, mas, no caso do ato performático associado a
expressão de gênero e formação identitária, o espaço criado permite para o corpo
dissidente performar códigos e atos fora da matriz epistemologica heteronormativa,
proporcionando uma reconexão e redescoberta dos desejos e formas expressivas que
antes foram violentamente reprimidos.
A esse ponto, já temos elementos o suficiente para elaborar uma análise mais
precisa de como Lil Nas X trabalha esses quatro mecanismos - a epistemologia
católica; o homoerotismo e o desejo; a estética camp e; a performatividade artística e
de gênero - dentro do clipe de MONTERO (Call Me By Your Name).
33
PERFORMANDO LIL NAS X
29
“You live in the dark boy, I cannot pretend. I'm not fazed, only here to sin. If Eve ain't in your garden,
you know that you can”
34
gênero: corpos dissidentes se entendem não-normativos e são suprimidos, partindo
para uma mimese da estrutura epistemológica que os suprimiu, para, talvez em outro
momento da vida, encontrarem a sua identidade e desejo reais através de algum ato
performativo. O clipe em si pode ser lido como uma alegoria elaborada da aceitação
desse desejo interno, e pode ser dividido em três atos: tentação, julgamento e
aceitação.
ato i
E assim somos apresentados a seu mundo onírico: amplas pradarias com grama
na cor carmim; um rio que percorre planícies tomadas por ruínas arquitetônicas de
estruturas greco-romanas, como arcos e pilastras; uma escultura gigantesca de uma
cabeça e mãos, remetendo ao colosso de Constantino com as feições de Nas (figuras
4 e 4.1). Aparece em destaque antes de sermos apresentados a uma serpente preta
30
“In life, we hide parts of ourselves we don’t want the world to see. We lock them away, we tell them ‘no’,
we banish them. But here, we don’t. Welcome to Montero.”
35
com as escamas alaranjadas brilhantes. Ela se
move como fogo rastejante ao encontro da
única árvore branca na pradaria, sua copa
parece feita de estruturas gelatinosas, que
flutuam no espaço. Junto à árvore, a
personagem principal de Lil Nas X, que
chamaremos de bardo, repousa tocando um
suntuoso violão rosa. A serpente e a Árvore
evocam imediatamente a iconografia do
Jardim do Éden e da narrativa contida no livro
de Gênesis, a composição da personagem de
Nas ao pé da árvore e da serpente enrolada
em seu tronco, remete inclusive, a imagem dA
expulsão do Paraíso, pintada por Michelangelo
no teto da Capela Sistina, por volta de 1508-12
(figuras 5 e 5.1).
36
tudo para a epistemologia católica, mas ao
mesmo tempo tem “a paisagem marcada por
ruínas antigas, [...] colunas de quilate,
aquedutos desmoronados, e dois templos
tombados que se assemelham ao pátio do
Panteão” (GRULLON, 2022, p. 17).
Vislumbres de uma sociedade grego-romana
que tinha práticas homossexuais
estabelecidas e documentadas, e que foi
sendo marginalizada conforme a moralidade
cristã dominava o mundo ocidental. A
multitemporalidade inscrita na narrativa
imprime os corpos dissidentes presentes e
persistentes no decorrer de toda a História,
independentemente das estruturas
construídas para tornarem esses corpos em
cativos, Lil Nas X afirmou para um repórter da
revista TIME (CHOW, 2021) que o uso dessas
estruturas tinha esse objetivo ontológico: "Eu
queria usar estas coisas que existem há tanto
tempo para contar minha própria história e a
história de tantas outras pessoas na
comunidade - ou pessoas que foram banidas da história em geral".
37
perseguido e observado, pela serpente e,
consequentemente, pelo desejo reprimido.
31
“Eu não estou incomodado, estou aqui só pra pecar / Sе Eva não está no seu jardim, você sabe quе
pode”
32
Em grego: ἐπειδὴ οὖν ἡ φύσις δίχα ἐτμήθη, ποθοῦν ἕκαστον τὸ ἥμισυ
38
Até agora não só o desejo, mas também
a união, e o amor foram abordados. O
discurso cristão prega a comunhão de
cônjuges em um só corpo e um só espírito, o
mesmo significado pela frase-título da música
e o mito de Platão. Esse é o elemento que
faz a MONTERO de Lil Nas X ser tão atrativa
para uns e repulsivo para outros: o fato de
Nas, um homem negro, cisgênero e
bissexual, articular e firmar os seus desejos estando profundamente a par da estrutura
que, em sua base epistemológica, renega sua existência e seus sentimentos.
ato ii
39
que sente e como quer transar para saciá-lo,
como se esse fosse seu crime. As estrofes
seguintes trazem um rap que, junto com a
visualidade do clipe, dão a impressão que
Nas está se defendendo, justificando suas
vontades, tentando convencer os presentes
que não existe crime ali. Uma dos “juízes” diz
“não” gestualmente, nesse momento as
figuras de pedra iniciam um linchamento
público sobre a figura acorrentada, dentro da narrativa bíblica, essa era a punição por
adultério. Mesmo sendo punido, Nas é enfático em aceitar seus desejos no verso “i
wanna fuck the ones i envy”33, e nesse momento um plug anal é atirado da arquibanda
(figura 11) e acerta a testa de Nas, provavelvemte o matando.
40
forma diferente daquele corpo se expressar. Muitas vezes, o conteúdo que o corpo
não-normativo quer externar é o mesmo do normativo, quer ser reconhecido como
pessoa, quer ter a liberdade de se expressar, amar, desejar e ser amado e desejado,
mas a forma, não condiz com a das milhares figuras de pedra que apenas seguem a
matriz estrutural estabelecida, sem refletir se
essa forma compulsória de viver é mesmo
“universal”. Nesse ponto, o ser dissidente
geralmente rompe o contato direto com o
mecanismo epistemológico que provocou o
sofrimento carnal e psíquico, e começa a
buscar e experimentar outras formas de criar
uma identidade para si.
ato iii
41
alongadas. Ele caminha com muito mais
segurança que no início do clipe, ele
também acaba criando comparações com a
personagem do bardo, sua seminudez neste
ato contrasta com a falsa nudez do início da
narrativa. Sua genitália aqui é bem evidente,
uma representação visual da aceitação das
suas vontades lascivas. Nas contínua
utilizando elementos visuais extravagantes
que o fazem sair da conformidade imposta a qualquer gênero, mas de forma diferente,
eles são meros coadjuvantes. Seus gestos e sua postura evocam mais sensualidade e
poder que sua roupa e Nas se mostra confortável com essa escolha de comunicar suas
vontades.
34
Em latim: “Damnant quod non intelligunt”
35
Harness é um item comumente usado por membros da comunidade BDSM para fins de bondage
(amarração). O arnês normalmente consiste numa série de tiras de couro, geralmente entre 1 e 2 cm de
largura, presas juntas de forma a permitir que uma pessoa "use" o item.
A comunidade BDSM deriva de subgrupos da comunidade gay, e sempre foi espaço seguro para
pessoas LGBTQIAP+ expressarem e explorarem seus desejos, sexualidade e identidade.
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A personagem de Nas está naquele lugar para explorar suas vontades e
desejos, todo o ambiente, e inclusive a música tem um tom sensual, de sedução e
luxúria. Nas decide agir e fala no ouvido do Diabo “fuck it! let 's ride!”36 e começa uma
dança sensual no colo do rei do inferno (figura 16). Enquanto rebola, Lil Nas X e o
Diabo encaram a câmera tentando provocar mais o espectador do que um ao outro. O
momento de sedução, assim como o clipe,
acaba quando Nas torce o pescoço do
Diabo, sem motivo aparente, retirando a
coroa de chifres que Lúcifer usava e
coroando a si mesmo. Fazendo um paralelo
visual com o primeiro frame de MONTERO,
Lil Nas X se torna um anjo de asas negras
que não precisa se esconder, nem banir
mais nenhuma parte de si (figura 17).
O fim do Ato II do clipe já nos dá uma chave de leitura para esse Ato final.
Pessoas que seguem as ideias da epistemologia católica leram segmento visual de
MONTERO como um culto de adoração ao diabo (CHOW, 2021), a perda da inocência
e corrupção do corpo, mas na verdade, é a uma libertação de um padrão de vida que
limita e restringe vontades individuais e a
busca de uma identidade mais genuína. A
dinâmica de Nas e do Diabo pode ser
interpretada como uma experimentação de
coisas novas, novos prazeres. Ao matar a
figura de Lúcifer e tomar seu lugar, Nas se
coloca compreendendo plenamente seus
desejos e suas possibilidades identitárias.
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“Que se foda! Vamos cavalgar!”
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CONCLUSÕES PERFORMATIVAS
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BIBLIOGRAFIA
CHOW, A. R. Decoding the Symbolism of Lil Nas X’s “Montero” Video. Disponível
em: <https://time.com/5951024/lil-nas-x-montero-video-symbolism-explained/>. Acesso
em: 9 nov. 2022.
LEVY, J. Inside the ‘Old Town Road’ Charts Decision. Billboard, 19 set. 2019.
Disponível em:
45
<https://www.billboard.com/pro/inside-the-old-town-road-charts-decision/>. Acesso em:
22 nov. 2022
Lil Nas X - MONTERO (Call Me By Your Name) (Official Video). Canção produzida
por Take A Daytrip, Omer Fedi, Roy Lenz. Diretor: Tanu Muino & Lil Nas X. Escrito por:
Lil Nas X. Produtor: Saul Levitz, Frank Borin, Marco De Molina & Ivanna Borin. [S. l.]:
Youtube, 26 de mar. de 2021. Vídeo. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=6swmTBVI83k>. Acesso em: 12 ago. 2022.
LORDE, A. Usos do erótico: O erótico como poder. Em: Irmã outsider: Ensaios e
conferências. Belo Horizonte. Autêntica, 2019. p. 240.
MADANI, D. Nike denies involvement with Lil Nas X “Satan Shoes” containing
human blood. Disponível em:
<https://www.nbcnews.com/pop-culture/pop-culture-news/nike-denies-involvement-lil-na
s-x-satan-shoes-containing-human-n1262280>. Acesso em: 29 dez. 2022.
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