Lil Nas X

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

VICTÓRIA HOLZAPFEL

LIL NAS X LIBERTOU MONTERO: CAMP E PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO


COMO ALTERNATIVAS EM UMA MATRIZ OPRESSORA

Guarulhos
2023
VICTÓRIA HOLZAPFEL

LIL NAS X LIBERTOU MONTERO: CAMP E PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO


COMO ALTERNATIVAS EM UMA MATRIZ OPRESSORA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


à Universidade Federal de São Paulo como
requisito parcial para obtenção do grau de
Bacharel em História da Arte.
Orientadora: Prof. Dra. Marina Soler Jorge

Guarulhos
2023
Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos
autorais nº 9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório
Institucional da UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer
ressarcimento dos direitos autorais para leitura, impressão e/ou download em meio
eletrônico para fins de divulgação intelectual, desde que citada a fonte.
VICTÓRIA HOLZAPFEL

LIL NAS X LIBERTOU MONTERO: CAMP E PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO


COMO ALTERNATIVAS EM UMA MATRIZ OPRESSORA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


à Universidade Federal de São Paulo como
requisito parcial para obtenção do grau de
Bacharel em História da Arte.

Aprovado em: 20 de janeiro de 2023

Prof. Dra. Marina Soler Jorge


Universidade Federal de São Paulo
AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, quero agradecer e oferecer esse artigo a cada pessoa


LGBTQIAP+ que já pisou nessa terra e possibilitou que a minha existência e a deste
trabalho como uma forma de avanço na nossa luta e resistência.
Também quero prestar minha gratidão aos meus pais - Antônio e Fabiani; aos
meus irmãos - Matheus, Alice e Clara; e a minha tia Janette, por todo apoio e incentivo
aos estudos e ao consumo de cultura, não só nos anos de graduação, mas em toda a
minha formação. Não há palavras que descrevam o que vocês fazem por mim.
Agradeço também ao Yuri, meu cachorro, que me fez companhia nas longas
sessões de escrita desse texto.
Aos Cavaleiros - Wellington, Júlia e Stéfanie, agradeço não só o privilégio de
terem me incluído nas suas trajetórias acadêmicas, mas também pela a amizade que
fez da minha vida e de minhas horas de transporte até o Campus menos penosas.
A Thayane e Brendha - e seu incrível rebento Vicente, agradeço por comporem
o melhor Fã Clube das Mães de todos os tempos e pelos primeiros dez anos de
amizade, companheirismo, desabafos e risadas regadas a comidas gordurosas e
pop-punk dos anos 2000. Obrigado por estarem presentes nas minhas conquistas e
nas minhas falhas, independentemente da distância.
Uma imensa gratidão a Marina Soler Jorge, pelas aulas incríveis durante a
graduação, que me ajudaram a ver a arte de forma mais interdisciplinar e conectada
com a minha realidade material; e pela orientação conduzida de forma leve e com um
espaço de autonomia dos discentes no processo.
E não menos importante, agradeço do fundo do coração a Remi, cujo as
inúmeras conversas que partilhamos - e ainda partilharemos - plantaram as sementes
que fizeram esse trabalho florescer, e também me fizeram uma pessoa melhor!
RESUMO

Esse artigo propõe compreender os mecanismos que elaboram o visual do videoclipe


MONTERO (Call Me By Your Name) de Lil Nas X e como a representação estética
desse clipe pode contribuir para mudar a forma de um corpo dissidente se colocar e ser
visto socialmente.
Partimos da observação de como a matriz heteronormativa, que constroe a noção de
gênero binário, apresentada por Judith Butler e a epistemologia católica, comentada
por Henderson-Merrygold, categorizam o corpo dissidente.
Em seguida, analisaremos como estes conceitos são representados e tensionados
dentro da narrativa de MONTERO em contraste com a estética camp, teorizada por
Susan Sontag, e as noções de performatividade artística e de gênero, para criar novos
mecanismos de desenvolvimento de identidade e desejo.

Palavras-chave: Gênero. camp. performance. Lil Nas X. Butler. desejo.


ABSTRACT

This article aims to understand the mechanisms that elaborate the visual of the music
video MONTERO (Call Me By Your Name) by Lil Nas X and how the aesthetic
representation of this clip can contribute to change the way a dissident body is placed
and seen socially.
Starting from the observation of how the heteronormative matrix, which constructs the
notion of binary gender, presented by Judith Butler and the Catholic epistemology,
commented by Henderson-Merrygold, categorize the dissident body.
Then analyze how these concepts are represented and tensioned within MONTERO's
narrative in contrast to the camp aesthetic, theorized by Susan Sontag, the notions of
artistic performativity and gender, to create new mechanisms of identity development
and desire.

Keywords: Gender. camp. performance. Lil Nas X. Butler. desire.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Frame do clipe de Old Town Road (2018) de Lil Nas X ….…………………..14

Figura 2 - Lil Nas X em 2022.………………………………………………………………..15

Figura 3 - Cena Inicial do clipe MONTERO (Call Me by Your Name) de Lil Nas X……35

Figura 4 - Estátuas e estruturas que remetem a cultura grego romana….……………..36

Figura 4.1 - Colosso de Constantino. Autor desconhecido. 315–320 d.C. Escultura em


Acrólito. Museu Capitolino……………………………………………………………………36

Figura 5 - Elementos que remetem a história bíblica do Pecado Original…...…………37

Figura 5.1 - A Expulsão do Paraíso. Michelangelo. 1508-1512. Afresco. Capela Sistina,


Vaticano………………………………………………………………………………………...37

Figura 6 - Mostrando os elementos da roupa do bardo…..………………………………38

Figura 7 - Momento da “hipnose” pela serpente.………………………………………….38

Figura 8 - Frase em grego de um trecho do Simpósio de Platão, representando o mito


do amor...…..…………………………..…………………………..…………………………..39

Figura 9 - Personagem de Nas, vestido de rosa, sendo ladeado por “guardas” de


azul…..…………………………..……………………...…..…………………………..……...39

Figura 10 - Estátuas de pedra, mimesis de Lil Nas X.……….…………………………...40

Figura 11 - Lil Nas X sendo acertado na cabeça com um plug anal……..…………..…40

Figura 12 - Lil nas X ascendendo aos céus com anjo ao fundo…..……………………..41

Figura 13 - Início da descida no pole dance ao inferno…..………………………..……..41

Figura 14 - Entrada do castelo do Diabo.………………………………..…………………42


Figura 15 - Trono de Lúcifer com frase em latim no chão………………………………..42

Figura 16 - Lil Nas X rebolando no colo de Lúcifer…..……………...…………………...43

Figura 17 - Libertação de Montero por Lil Nas X. .………....……………………..………43


SUMÁRIO

LIL NAS X: BREVE HISTÓRICO …………………………..……………………………… 13


MONTERO: VIDA E OBRA ...…..……….…………………………………………………. 16

DISSECANDO MONTERO …....……….…………………………………………………. 19


epistemologia católica e categorização do corpo …..……….………..……...…. 21
homoerotismo e desejo …..……….……….………………………………………. 26
camp …..……….…………………………………………….………………………. 29
performatividade e gênero …..…………………………………………………….. 30

PERFORMANDO LIL NAS X ....…………………..………………………………………. 34


ato i ………………….…..……….………………………………………………..….. 35
ato ii ……………………..……….……………...……………………………...….…. 39
ato iii …………………. …..……….…………..……………………………………… 41
CONCLUSÕES PERFORMÁTICAS …………………..…..……….……………...……… 44

BIBLIOGRAFIA …………………. …..……….…………………………………..………… 45


LIL NAS X: BREVE HISTÓRICO

Homem negro, nascido em 1999, Lil Nas X é um cantor estadunidense de pop e


Rap muito conhecido pela geração Z1 graças à cultura de internet e Tik Tok. O artista
estourou na rede social em 2018 com a música Old Town Road, e o sucesso na
internet rendeu um remix da música com colaboração de Billy Ray Cyrus, um dos
maiores artistas de country dos Estados Unidos, e um clipe com mais de um bilhão de
visualizações na publicação original do YouTube (figura 1). Essa parceria alavancou
tanto a música de Nas que a canção ocupou o primeiro lugar nos charts2 da Billboard3
de todos os gêneros, o Billboard Hot 100 (BILLBOARD, 2022), por 19 semanas
seguidas, e nos charts específicos de Hip-Hop por 20 semanas, e em 19º lugar no chart
de country. A música, gravada com poucos dólares e lançada sem muita pretensão no
SoundCloud4 do cantor, o colocou nos holofotes da mídia, deu a Lil Nas X o status de
celebridade muito rapidamente, colocando muita expectativa no que o artista faria a
seguir, principalmente pela repercussão da sua música.

A entrada de Lil Nas X nos charts de country suscitou uma polêmica no mundo
da música country: mesmo com elementos sonoros característicos do gênero e artistas
do meio envolvidos na versão da música com Billy Ray Cyrus, Old Town Road não era
tratada como música country. Vale ressaltar que o estilo é um dos mais tradicionais e
segregados dos Estados Unidos, com origens em Nashville e Santa Fé, cidades do sul
do país, região conhecida pelo passado escravocrata, e com seus maiores expoentes
musicais sendo pessoas brancas. Mesmo se modernizando e criando subgêneros
como trap country ou o pop country, com artistas consagrados experimentando essa
mistura de gêneros e habitando o chart de US Hot Country Songs sem muito

1
Geração Z, é como são classificadas pessoas nascidas entre os anos de 1995 e 2010. Apesar de não
haver um consenso claro em quando começa e termina uma geração, a geração Z costuma ser marcada
pelo início da revolução digital, com o mundo se digitalizando pouco a pouco.
2
Charts é um termo criado pela indústria fonográfica anglófona e se refere a um ranking das músicas
mais consumidas em um determinado período ou de um determinado gênero.
3
Billboard é uma revista estadunidense criada em 1894, originalmente com foco no mercado publicitário
da indústria musical. Nos anos 1950, começou a focar apenas em música e fornecer rankings semanais
das músicas mais ouvidas em categorias específicas.
4
SoundCloud é uma plataforma online de publicação de áudio, fundada em 2007, onde músicos podem
colaborar, compartilhar, promover e distribuir suas composições.

13
estardalhaço, a música de Lil Nas X sofreu grande represália por artistas e público mais
conservador da música country, culminando na decisão da Billboard de retirar a música
de Nas do chart de country, usando como argumento o fato da canção não ter sido
divulgada inicialmente como country e nem
trabalhada comercialmente nesse nicho
em específico (LEVY, 2019). A revista
negou qualquer postura racista na postura
de retirar a música de Lil Nas X das
paradas, mas graças ao passado
conservador do gênero, artistas negros
tem pouca ou nenhuma visibilidade dentro
das paradas de country, principalmente
quando trabalham com outros gêneros5.

Apesar de não ser o foco deste artigo, a controvérsia gerada por Lil Nas X logo
no primeiro ato de sua carreira - com uma música limítrofe entre gêneros versus o
sucesso estrondoso e a aceitação que o artista teve pelo público -, já começava a
moldar o artista que questiona padrões, regras limitadoras e que consegue navegar
com muita facilidade nas várias caixas formatadas na cultura. Esses elementos são
uma constante até o momento atual de sua trajetória artistica e Nas vem trabalhando
para expandir os limites dos gêneros musicais, não só por ser negro, mas também por
se relacionar afetivamente com homens. Seu processo em se assumir homossexual6
veio através da produção e divulgação do seu segundo trabalho, o 7 (EP) de 2019, ele
se abre sobre o assunto na faixa C7osure (You Like).

No meio artístico, principalmente na música, é comum que artistas desenvolvam


uma forma específica de ser e agir na vida pública e na exposição que um show ou
performance artística demandam. Essa personagem ou persona é pensado pelo artista

5
A exemplo, as músicas de Florida Georgia Line, como participação de Bebe Rexha, Meant to Be,
lançada em 2018, ocupou o #1 no chart de country da Billboard; e a de Jason Aldean, Dirt Road Anthem,
lançada em 2010 ocupou o #7 no mesmo chart, ambos são artistas brancos.
6
Em 9 de janeiro de 2023, Lil Nas X se assumiu bissexual. Em respeito a biografia e trajetória do artista,
utilizarei a forma atual como ele se refere a própria sexualidade. Esse fato não altera em nada a
pesquisa e inclusive reforça seus argumentos teóricos de forma prática.

14
na maior parte dos casos para preservar alguma privacidade da sua vida pessoal7 ou
como uma forma de potencializar sua arte e sua mensagem. Nas passou pelas duas
formas, sua persona de Old Town Road e 7 (EP) ajudou a preservar um lado do artista
que não estava pronto para emergir. O EP ajudou a consolidá-lo como artista além do
hit explosivo de Old Town Road. Daí para frente, ele se sentiu seguro para construir
uma mensagem mais presente e fortaleceu cada vez mais sua persona queer8, falando
mais sobre sua homossexualidade visualmente, nas suas letras e na sua vida pública
(figura 2).

As motivações e significados, tanto pessoais quanto artísticos, para a


emergência da persona queer de Nas, instigam
a pensar nas mil maneiras que nos colocamos
como indivíduos no mundo. Essas formas
plurais estarão em foco na análise contida
neste texto, mais precisamente, essa persona e
seus impactos serão vislumbrados a partir do
clipe de Montero (Call Me By Your Name),
lançado em 2021. O clipe e a música compõem
o primeiro lançamento do álbum de estreia
homônimo de Lil Nas X. A canção se tornou um
dos seus maiores sucessos, atrás apenas de
Industry Baby e Old Town Road.

7
Como exemplo, podemos pensar nos integrantes da banda de Nu Metal Ghost, que usavam
maquiagens pesadas, máscaras e pseudônimos para ocultar suas verdadeiras identidades. Hoje em dia
a banda já tem seus rostos e nomes revelados ao público.
8
O uso da palavra queer neste texto será usado apenas para se referir diretamente a Lil Nas X e sua
obra, já que é uma palavra que o próprio artista usa para se “categorizar”. Já em questões teóricas ou no
impacto de políticas de opressão exteriores à obra, se optou pelo uso das palavras “dissidente” e
“não-normativo”, para facilitar a compreensão de pessoas que podem ser impactadas por este texto.

15
MONTERO: VIDA E OBRA

Montero é versátil, consegue interagir e se expressar muito bem com o público


jovem que o ajudou a crescer. É criação da cultura de internet, das redes sociais,
nasceu em meio a larga expansão da era digital, facilmente se imbricou na cultura pop
com memes, análises e polêmicas. Mesmo sendo algo diferente na indústria da
música, carrega elementos ontológicos que permitem a conexão com membros da
comunidade LGBTQIAP+ mais velhos. Essas características podem se relacionar tanto
com o clipe MONTERO9 ou com o próprio Lil Nas X, já que Montero também é seu
nome de batismo. O disco, a música e o próprio artista são homônimos e compartilham
muito mais que um nome em comum. Nas é aberto em relação a sua sexualidade
desde que se assumiu, em 2019, se permite experimentar muito, ser provocativo,
transitar e expandir os rótulos - que não importam muito para ele - já que ele sabe
quem é e só quer ser ele mesmo. Mas antes dessa autoconfiança, houve um período
em que sair do armário era assustador, ele até cogitou “morrer com esse segredo”
(NAS X, 2021). MONTERO veio como uma carta aberta para o seu eu do passado e
para todos os corpos dissidentes, que assim como ele reprimiram algo ou alguém que
queriam ser em algum momento da existência. A força que Lil Nas X construiu nas
plataformas digitais com seu público, somado às polêmicas no lançamento do clipe de
MONTERO, como o Satan Shoes10, contribuíram para a mensagem de Nas ser
imparável e praticamente impossível de ser censurada por sistemas ou veículos que
costumam reprimir expressões de pessoas não-normativas.

O tensionamento entre diferentes sistemas de conhecimento, ou


epistemológicos, está muito presente no clipe e na letra de MONTERO. O vídeo é
permeado de referências de iconografia católica, grega e romana que se modificam
numa narrativa sobre o desejo e a hipocrisia que o cerca, principalmente quando é

9
A referência a música e clipe MONTERO sempre será feita com todas as letras da palavra em
maiúsculo e referências ao artista, Montero, apenas com a inicial em caixa alta.
10
Como forma de promover o single MONTERO (Call Me By Your Name), Lil Nas X lançou junto da
marca MSCHF, 666 pares de tênis Nike Air Max 97, “decorado com um pingente de pentagrama e uma
referência a Lucas 10:18, um versículo da Bíblia sobre a queda de Satanás do céu” (MADANI, 2021),
além de uma gota de sangue humano na sola. A MSCHF já havia lançado o mesmo modelo de tênis
modificado com uma gota de água benta do Rio Jordão na sola, o “Jesus Shoes”.

16
confrontado com os dogmas da Igreja Católica Apostólica Romana e com a
manutenção do status quo das sociedades formadas com base neles. Estátuas gregas
e arquiteturas romanas em ruínas se integram a um cenário majoritariamente roxo e
rosa na primeira parte do clipe, com elementos fantásticos e uma estética camp com
elementos que aludem ora ao medievo, ora ao afro futurismo. Lil Nas X, com variações
de trejeitos e maquiagens, projeta todos os personagens do clipe, à sua imagem e
semelhança. Na apresentação visual da narrativa, os figurinos das personagens
trabalham com cores vibrantes, tecidos extravagantes e acessórios suntuosos num mix
de modelagens e cortes de roupa que “não condizem” com o gênero masculino
atribuído a Montero. Em algumas situações sociais, essa ideia de se travestir como
roupas de “gênero oposto” vem num tom irônico e jocoso, mas em MONTERO, Nas
trás o uso de roupas de “outro gênero” como um mecanismo de performar a dissidência
normativa do seu corpo e do seu desejo.

A letra da canção é totalmente focada na luxúria que Nas sente por outro
homem. A diferença é que o eu lírico de Nas já entendeu que esse desejo faz parte de
quem ele é e abraça isso, já seu potencial parceiro não, ele está “vivendo nas trevas”,
fingindo uma vida normativa, cheia de excessos, como álcool e drogas, quando o que
realmente o faria se libertar talvez fosse assumir seu desejo por outro homem.

Ser LGBTQIAP+ não implica que seu trabalho necessariamente reflita essa
característica, mas Lil Nas X sempre fez questão de introduzir elementos da
comunidade em suas músicas e clipes. Dito isso, bem… MONTERO é, seguramente, o
clipe mais homoerótico que o artista produziu até o momento. Os elementos estéticos
que integram sua construção visual ajudam a compor essa afirmação, mas dentro de
uma perspectiva queer o que mais evoca o homoerotismo latente é o embricamento
das temáticas religiosa e homoerótica dentro da narrativa de MONTERO. O conflito
católico que coloca o desejo como pecado é uma das narrativas mais usadas dentro da
Bíblia Católica, além de ser uma das formas mais antigas e efetivas para oprimir e
categorizar o corpo a todo custo.

17
É interessante observar como essa estrutura ou matriz de categorização,
principalmente a que constrói a noção de gênero binário, masculino e feminino,
apresentada e questionada por Judith Butler em seu livro Problemas de gênero:
Feminismo e subversão da identidade e a epistemologia católica, comentada por
Henderson-Merrygold no artigo Queer(y)ing the Epistemic Violence of Christian Gender
Discourses11 são representadas e tensionadas dentro da narrativa de MONTERO para
limitar formas de expressão genuínas. Essa estrutura amplamente vivenciada por
pessoas ocidentais desde que nascem e por toda sua criação, é então dada como
“natural”. Lil Nas X se aproveita dessa “base” e se apoia em elementos do camp,
teorizado por Susan Sontag e a na performance - artística e de gênero - para
apresentar formas de divergir dessa matriz que limita a existência humana.

Formas de resistência, identidade e autoconhecimento são essenciais para a


sobrevivência de populações marginalizadas, especialmente as negras, colonizadas e
LGBTQIAP+, principalmente em territórios como os Estado Unidos, onde a estrutura
familiar heteronormativa, branca e, na maioria das vezes, de religião protestante é
sempre mais valorizada por sintetetizar formas de pensamento da matriz
heteronormativa hegemônica. Dada as devidas adaptações, as ideias expressadas por
Nas em MONTERO também reverberam na comunidade LGBTQIAP+ da América
Latina e principalmente do Brasil, onde a cultura Drag Queen12 tem uma cena forte,
desde os bailes underground dos anos 1980 a cultura de massa atual com artistas
como Gloria Groove, Pabllo Vittar, Greg Queen, Aretuza Lovi, Urias, Liniker, Linn da
Quebrada, Lia Clark e outros incontáveis nomes de pessoas marginalizadas que usam
da performance de gênero, dos excessos do camp e da música para se reconciliar com
a sua própria identidade e mexer, pelo menos um pouco, no sistema que ideou esses
corpos de formas irrealizáveis para suas vivências.

11
Em tradução livre: Divergindo da Violência Epistêmica Cristã nos Discursos de Gênero.
12
Drag Queen é uma pessoa que usa roupas e maquiagem para imitar e frequentemente exagerar os
significantes do gênero feminino e seus demais papéis de gêneros para fins de entretenimento e de
produção artística.

18
DISSECANDO MONTERO

A Arte também contribui para estrutura de qualquer sistema epistemológico, ela


fornece material visual e subjetivo que reforça uma série de comportamentos que o
sistema articula para impor sua estrutura. Por ser um campo repleto de subjetividades,
a Arte pode parecer mais livre e com mais flexibilidade de aceitação. Mas, ao lidarmos
com algumas obras de arte ocidentais canônicas, podemos observar a matriz
heteronormativa operando nos simbolos iconográficos. Essa arte canônica e erudita é
recheada dessas iconografias, que muitas vezes são incorporadas em narrativas
religiosas, como: as incontáveis representações de Adão e Eva que figuram desde o
século III ou as pinturas da Sagrada Família pintadas por grandes nomes como Rafael,
Michelangelo, Rembrandt e muitos outros.

Não só o sistema epistemológico de matriz heteronormativa opera as formas de


representações iconográficas que estruturam como sociedade deve ser conduzida,
como também estigmatiza e estereotipa comportamentos e características que fogem
da sua norma. Obras como A Redenção de Cam (1895) de Modesto Brocos ou a
tentativa de August Sanders de tipificar o povo alemão através da fotografia em
meados do século XX, possuem seu valor estético e vanguardista na arte, mas também
tiveram contribuição para preparar terreno intelectual para implementação de políticas
segregadoras e reduzir alguns grupos a características estéticas e estereótipos. Artes
feitas por grupos negligenciados nesse sistema epistemológico acabam sendo, mais
frequentemente, rebaixadas técnica e esteticamente por não se encaixarem totalmente
nessa matriz epistemológica. De tempos em tempo, alguns conceitos, ideias ou estilos
até podem se tornar mais populares e ganhar o status de “arte erudita” através de
representantes individuais desses grupos.

A lógica iconográfica das artes eruditas também pode ser aplicada na cultura de
massa, dado que as produções artísticas dentro da indústria cultural possuem uma
permeabilidade grande nos tecidos sociais, impulsionando inclusive, as ideologias
contidas nas narrativas das artes canônicas. Essa mesma característica de
permeabilidade permite a ascensão das figuras não-normativas do cenário da cultura

19
de massa, e com a internet descentralizando a distribuição desses produtos de mídias,
grupos que raramente viam suas vidas minimamente representadas começaram a
ganhar espaço, visibilidade e viabilidade comercial. Mesmo assim, a arte desses
grupos minoritários tende a ser minimizada ou nichada pelas estruturas de validação da
Indústria13 por não servir totalmente a uma agenda de manutenção do status quo da
elite cultural no poder.

Dito isso, é importante compreender os mecanismos que constroem e elaboram


o choque e o deleite visual provocados pelo clipe de MONTERO (Call Me By Your
Name) e de como essa representação estética contribui para mudar a forma que um
corpo dissidente é obrigado a se colocar socialmente, trazendo ao mainstream outras
possibilidades de existência e performatividade para todos os corpos. Antes de
apresentar esses mecanismos a partir da descrição do clipe de Lil Nas X, passaremos
por cada ponto individualmente para conceitualizar melhor os tópicos dentro das
questões de gênero e vivências de pessoas dissidentes, principalmente corpos
LGBTQIAP+. Os quatro mecanismos centrais que contribuem para o desenvolvimento
dos tensionamentos descritos anteriormente, são: 1. A epistemologia católica e a
categorização do corpo; 2. O homoerotismo e o desejo; 3. A estética camp e; 4. A
performatividade artística e de gênero.

É importante salientar que Lil Nas X não é o primeiro e nem o último artista a
fazer um trabalho dissidente, nem a questionar o status quo social. Na verdade, esse é
praticamente o motor da arte, principalmente das artes marginalizadas de alguma
forma. Além disso, antes dele, temos artistas na música a exemplo de Sister Rosetta
Tharpe, Nina Simone, Madonna, Cher, Beyoncé e Lady Gaga que pavimentaram o
caminho na indústria cultural e musical estadunidense para que uma nova geração
pudesse se expressar e se mostrar às claras, sem vergonhas, não só em inferninhos
ao som de suas músicas.

13
Podemos ver o exemplo de Beyoncé, uma artista negra com carreira sólida e extremamente
consagrada que frequentemente tem suas músicas indicadas nas premiações em categorias exclusivas
de música negra, na tentativa de reduzir uma das artistas que mais transformou e impactou a Indústria
da Música nos anos 2000 e 2010 em um produto de nicho ou golpe de sorte.

20
É comum que essas trajetórias disruptivas sejam historicamente capitaneadas
por mulheres, graças ao longo histórico de sofrimento, opressão e apagamento
sedimentados pelo machismo que atingiu desde as mulheres mais abastadas às mais
marginalizadas e esquecidas. Suas lutas no passado permitem que agora outras
identidades sejam somadas nos esforços contemporâneos em busca das pluralidades.
É importante reconhecer o caminho que movimentos políticos como o feminismo, a luta
LGBTQIAP+ e pelos direitos civis nos Estados Unidos criaram para que hoje, artistas
como Lil Nas X, conseguisse relevância dentro da indústria da música e na sociedade,
a ponto de conseguir usar o sistema normativo a seu favor e com uma força que
dificulta que o próprio sistema o pare ou silencie14. E, o mais importante, é uma pessoa
em que outras pessoas comuns e dissidentes conseguem se identificar: é preto,
bissexual, veio de uma infância pobre e hoje consegue ser quem é, não só pelo
dinheiro ou posição que tem, mas por sua forma de expressar verbal e visualmente
como quer e ter os relacionamentos que quer.

Esse tipo de artista, que trabalha com ideias contraditórias coexistindo em certa
harmonia, traz uma mudança de paradigma que muda a vida de pessoas que nunca
sequer pensaram na possibilidade de viver da forma que querem e não da forma que
lhes é imposta. Apenas saber que essa possibilidade existe, é, no mínimo, libertador.

epistemologia católica e categorização do corpo

O clipe de MONTERO tem como base uma organização de recontos bíblicos


através dos símbolos e da sua própria imagética com os seguintes elementos: a
narrativa do pecado original do Jardim do Éden, a serpente e a árvore do conhecimento
colocadas no início do clipe; alusões a queda de Lúcifer no meio e no fim do vídeo.
Mas como ou por que essas imagens e essa forma de pensar da Igreja15 restringem a

14
A indústria ainda tem problemas com artistas que tentam ser subversivos. Nas fez uma performance
de MONTERO (Call Me By Your Name) na edição de 2021 do BET Awards, premiação de um canal
focado em Afro Americanos, e nela, beijava um de seus dançarinos. Por causa disso, Nas foi criticado e
negligenciado na premiação de 2022, em resposta o cantor fez a música Late to the Party (2022).
15
É sempre bom salientar que a crítica é direcionada a Instituição da Igreja Católica Apostólica Romana
que domina a cultura e hierarquia social do Ocidente. A religiosidade e espiritualidade de ninguém é ou

21
vivência de pessoas que, muitas vezes, concordam com a moralidade cristã e
comungam dessa fé?

Segundo Jo Henderson-Merrygold, isso se dá principalmente pelo modo como o


discurso da Igreja torna os corpos dissidentes indignos de humanidade e assim, cria
um sistema de violência tão grande e poderoso que é usado para justificar guerras,
racismo, escravidão, xenofobia e outras formas de violência moral e física. Já que esse
sistema de violência é aplicado para várias populações, é importante identificar como
ele compõe um pensamento heteronormativo que transita para a violência sistêmica,
principalmente em corpos LGBTQIAP+.

Esse processo se dá inicialmente pelo o que Foucault chama de Sistemas de


Conhecimento ou Sistemas Epistemológicos. Chris Weedon explica que esse Sistema
é uma

rede de crenças, percepções e ideologias que moldam a compreensão e o


envolvimento das pessoas com o seu mundo e consigo próprias; quando se
tornam amplamente aceitas ou consideradas autoritárias dentro de uma
sociedade, assumem o estatuto de "discursos" - quadros dentro dos quais o
conhecimento, práticas sociais, subjetividades e relações de poder são
constituídos e mantidos.16 (FOUCAULT apud HENDERSON-MERRYGOLD,
2018, p. 1)

Indivíduos ou grupos que fogem desse discurso estabelecido são afastados ou


silenciados dentro do sistema epistemológico em que estão inseridos. E, já que é esse
discurso que pauta as vivências e relações sociais dos indivíduos, não é tão fácil,
simples ou lógico se desvincular dele, principalmente quando a criação do indivíduo se
dá dentro dessa determinada lógica perceptiva, e, eventualmente, ao único sinal
possível de dissonância é algum tipo de violência psicológica ou física, aparentemente
infundada, contra esse corpo que foge do discurso.

Na Igreja Católica, boa parte da conexão com Deus vem do Imago Dei, a ideia
que somos feitos à imagem de semelhança de Deus, como apontado em Gênesis -
capítulo 1, versículo 27 -, e isso nos faz ser, em certa medida, iguais a Ele. Apesar do

será alvo de críticas nesse texto. Inclusive, a dor e angústia que muitos membros da comunidade
LGBTQIAP+ sentem em relação a si, poderia ser amenizada com acolhimentos religiosos e espirituais.
16
Traduzido com DeepL.

22
próprio texto bíblico colocar a mulher como uma “derivação” do homem, feita da costela
do mesmo, o trecho de Gênesis - capítulo 2, versículo 21 a 25 -, ainda estabelece certa
igualdade entre homem e mulher perante Deus na união de ambos em “uma só carne”.
É uma forma da Igreja atestar nossa humanidade e superioridade do homem perante o
resto da Criação. Mas nem todas as pessoas são consideradas “humanas” segundo a
igreja, “por isso que rejeitar a humanidade de alguém é declarar que ela não é feita a
partir de Deus, e por isso não pode ser plenamente reconhecida ou aceita como tal por
Deus”17 (HENDERSON-MERRYGOLD, 2018, p. 3). Essa categorização poderia estar
restrita apenas a questões religiosas, mas a aculturação promovida pela Igreja na
Europa na medieval incorporou as ideias da instituição em caráter mais amplo, para
outros mecanismos sociais. Com a ascensão política da Igreja no século XVIII, a
moralidade cristã encontrou outras áreas para reforçar seus paradigmas como a
ciência, economia, política e tecnologia. Henderson-Merrygold conta como Foucault
exemplificou esse imbricamento do pensamento da Igreja na sociedade a partir da
história da sexualidade e da moral, já que esse mecanismo discursivo também abarcou
a questão do desejo e da sexualidade:

Foucault identifica certos comportamentos que passaram a ser considerados


crimes hediondos e "perversões" nos séculos XVIII e XIX, incluindo
"'perturbações nervosas' ... 'Excesso' ... 'onanismo' ... [e] 'fraudes contra a
procriação'.18 (HENDERSON-MERRYGOLD, 2018, p. 7)

Com o passar dos séculos a ciência absorveu a moralidade cristão para seus
métodos e estudos. E como isso, houve um distanciamento e patologização de todo e
qualquer corpo que fugisse de uma certa normatividade estabelecida e validada por um
grupo muito específico de pessoas “detentoras do verdadeiro conhecimento”, a
principio, homens cisgênero19, heterossexuais, brancos e europeus. A ideia do “Outro”
é construída a partir daí, comportamentos ou condições involuntárias eram
consideradas um desvio ou “punição de divina” passaram a ser clínicas e patologicas.
A matriz heteronormativa também se valeu dessa forma epistemológica visto que

17
Traduzido com DeepL.
18
Idem.
19
Relativo a ou que tem uma identidade de gênero idêntica ao sexo atribuído à nascença. (DICIONÁRIO
PRIBERAM, 2022a)

23
a homossexualidade e diversas expressões de gênero emergiram como
identidades medicalizáveis20, a ciência foi utilizada para corroborar a afirmação
cristã de que apenas a heteronormatividade era "natural" e "normal".
Consequentemente, as expressões não heteronormativas de gênero, sexo ou
sexualidade tornaram a pessoa antinatural, portanto, não totalmente humana.21
(HENDERSON-MERRYGOLD, 2018, p. 8)

O que tal mecanismo epistemológico heteronormativo católico faz, é suprimir


principalmente o desejo, ou qualquer coisa que ameace mudar as estruturas sociais: o
masculino, o feminino, a instituição da família heteronormativa, do patrimônio privado, a
hierarquia social, de gênero e todos os privilégios que uma parcela da sociedade detêm
com o poder que esse mecanismo concede.

Porém, algo contraditório dentro desse discurso, é que a hierarquia Católica e o


Vaticano são compostos, majoritariamente, de homossexuais. As investigações acerca
desse fato acabam focando mais em padres, talvez porque o poder da Instituição
Católica esteja concentrado nos seminários e não nos conventos. Mas casos de
homossexualidade feminina existem tanto quanto os masculinos22. Registros da
homossexualidade no clero são persistentes desde o inicio da Instituição, e até mesmo
Santo Agostinho, um importante filosofo e teórico não só da Igreja teve um caso de
amor intenso com um homem:

‘[...] senti que a minha alma e a sua formavam uma só em dois corpos’,
escreveu ele, escreveu ele, ‘tinha horror à vida, porque não queria viver só com
metade. Talvez por isso é que receava morrer, não viesse a morrer totalmente
aquele a quem eu tanto amara.’ [...] Já se especulou que o forte maniqueísmo
de Agostinho, que divide espírito e corpo, talvez se assente na repugnância
que sentia de suas próprias tendências homossexuais. [...] O registro histórico,
no entanto, revela que, a despeito de toda a influência que ele exerceu, a
prática da amizade homoerótica intensa foi comum no clero ao longo dos
séculos seguintes. (SULLIVAN, [s.d.])

Mesmo sendo comum ter padres gays dentro do sacerdócio, a regra que vale é
20
o “homossexualismo” era considerado um transtorno mental até maio de 1990, retirado no CID-10. Já
a transexualidade só foi retirada da mesma categoria em 2018, na publicação do CID-11.
21
Traduzido com DeepL. Grifo meu.
22
Recomendo o documentário brasileiro de 2005, “Sexo e Claustro” de Claudia Priscilla. Também não é
dificil de encontrar documentação de outros casos de freiras homossexuais, como o livro “Atos Impuros-
a vida de uma freira lésbica na Itália da Renascença” (1987) escrito por Judith Brown, que documenta a
vida e amores da Abadessa Benedetta Carlini; ou o artigo de Ronaldo Manoel Silva, "Clara Fernandes,
uma lésbica perante o Tribunal da Inquisição (1555-1560)". O que acho curioso é como os casos
femininos são tratados isoladamente, e a homossexualidade masculina ser, inclusive, institucionalizada.

24
a mesma para os heterossexuais: celibato para se dedicar totalmente a Deus. Deslizes
acontecem independentemente da orientação sexual, e a orientação é a confissão “e,
se os padres o fazem com sinceridade e voltam a se comprometer com o celibato,
é-lhes permitido seguir adiante” (SULLIVAN, [s.d.]).

Não existe uma regra do porquê homens gays e bissexuais adentram o


sacerdócio e aderem ao celibato. Mas, aparentemente, há algo intrínseco nas questões
internas - talvez na percepção externa - da sexualidade que faz com que essas
pessoas olhem de forma mais sensível para o próximo, se voltarem para pensamentos
mais profundos e para o detalhe da ritualística católica. Alguns, segundo o jornalista
Andrew Sullivan, relatam uma forte conexão com Jesus como um modelo de homem a
seguir: “solteiro, sensível, fora da família, marginalizado e perseguido, mas por fim
reabilitado e vivo para sempre” (SULLIVAN, [s.d.]). Há claro, os homens que vêm na
igreja e no celibato uma forma de escapar do escrutínio público e da marginalidade que
a própria Igreja impõe sobre sua forma de ser. Hoje, essa escolha é menos comum,
mas em outros momentos da história, o sacerdócio era a escolha óbvia do jovem
homossexual religioso, como destaca Frédéric Martel, no seu livro “No armário do
Vaticano: Poder, hipocrisia e homossexualidade”:

juntando-se ao clero, tudo se torna simples para o homossexual que não se


assume: passa a viver entre rapazes e a usar túnicas; param de lhe perguntar
sobre as namoradas; os colegas de escola, que já faziam piadas de mau gosto,
ficam impressionados; estão de acordo com as honras, ele que era alvo de
escárnio; junta-se a uma raça eleita, ele que pertencia a uma raça maldita; e a
mamãe, repito, que compreendeu tudo sem dizer nada, incentiva essa vocação
miraculosa. E sobretudo isto: a castidade com as mulheres e as promessas de
celibato não assustam o futuro padre, muito pelo contrário; ele adere, com
alegria, a essa imposição! Na Itália das décadas de 1930, 1940, 1950 e 1960, o
fato de um jovem homossexual escolher a ordenação e essa espécie de “voto
de celibato entre homens” fazia com que se sentisse inserido, portanto, na
ordem, senão na força, das coisas. (MARTEL, 2019, p. 19)

25
homoerotismo e desejo

Para chegarmos na questão do homoerotismo e do desejo, sugiro primeiramente


entender o conceito de sexo e gênero, já que a definição mais básica de
homossexualidade é “alguém que sente atração sexual por pessoas do mesmo sexo”
(DICIONÁRIO PRIBERAM, 2022b). Quando nos referimos a palavra “sexo”, não nos
referimos ao ato sexual, mas sim a uma categoria de classificação que permite
construir e entender minimamente uma estrutura social, certa expressão individual e,
principalmente, a sexualidade dentro desse contexto individual e social. A
complexidade e abrangência da sexualidade humana abarca questões como desejo,
identidade, pertencimento e afeto, sendo o ato sexual é apenas um tema dentre tantos,
e que para algumas pessoas, é irrelevante na vivência individual da sua sexualidade.

Agora, tendo como base o sistema epistemológico e a mariz heteronormativa em


que estamos inseridos, temos sexo como dado de categoria de classificação biológica,
atrelando ontologicamente, e segundo Judith Butler arbitrariamente, as características
genitais de uma pessoa a apenas duas categorias - homem, caso nasça com pênis, ou
mulher, caso nasça com vagina. Já o gênero produz uma categoria de classificação
social, com a justificativa de imputar as implicações e papéis sociais a um gênero
específico dentro da malha social. A atribuição e restrição dessas responsabilidades
sociais é compulsória, homens e mulheres têm papéis específicos, e são as relações e
contextos sociais que vão lapidando claramente os limites das atribuições de gênero. A
matriz heteronormativa de conhecimento é a maior e mais poderosa forma de
consolidar os papeís arbitrários atribuídos aos gêneros, já que sua estrutura depende
que eles saibam muito bem seus lugares de atuação.

É importante notar que o binarismo restrito originalmente nesse sistema de


classificação atrelada de sexo/gênero - onde o homem é sempre o masculino e a
mulher é sempre o feminino -, não compreende desvio dessa norma. O que acaba por
denunciar uma certa fragilidade na construção teórica, tanto do sexo, quanto do
gênero. Inclusive, Butler aponta essa discordância lógica, que acaba por “flexibilizar”
um dos conceitos em detrimento da consolidação de outro. Já que

26
a hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença
numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou
é por ele restrito. Quando o status construído do gênero é teorizado como
radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício
flutuante, com a consequência de que homem e masculino podem, com igual
facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e
feminino, tanto um corpo masculino como um feminino. (BUTLER, 2003, p. 21)

E, ao desnudar os mecanismos de construção social do gênero, conseguimos


compreender melhor essa categoria como um espectro, com várias nuances e
variações, e inclusive com algumas “contradições” para a lógica binária da matriz
heteronormativa. Na prática, entender gênero de forma mais flexível, viabiliza uma
existência humana menos complexa, por mais contra-intuitivo que pareça, visto que a
criação e desenvolvimento da identidade e o reconhecimento de uma pessoa acaba
sendo atrelada apenas a si mesma e não às expectativas sociais depositadas nela a
partir de características biológicas.

Há mais caminhos a se seguir dentro dessa temática, como o proposto pro


Butler: de que a categoria sexo também é uma ideação social. A priori, tanto sexo,
quanto gênero tem variações das suas percepções de função e de organização como
categorias, mas Butler argumenta que, além disso, essas categorias vão sendo
construídas juridica e arbitrariamente de formar a regular as interações sociais,
reforçando a ideia de Foucault de produção do sujeito jurídico, assinalando que o
“poder jurídico ‘produz’ inevitavelmente, [aquele que alega] meramente representar;
consequentemente, a política tem de se preocupar com essa função dual do poder:
23
jurídica e produtiva” (2003, p. 16). Com isso, a questão do sexo acaba adquirindo
uma estrutura “pré-discursiva”, que dá a impressão da categoria ser quase inerente ao
corpo, incluindo o sexo como um “efeito do aparato de construção cultural que
designamos por gênero” (2003, p. 22). Quando na verdade, é uma categoria tão
arbitrária que precisou de uma segunda - o gênero - para ganhar um caráter ontológico.
Sua formulação teórica acaba sendo tão rigída quando aplicada a realidade, que não
permite uma reformulção a partir da materialidade de corpos diversos, prejudicando,
por exemplo, pessoas intersexo e criando inúmeras inconsistências e violências em

23
Grifo meu.

27
outros tipos de corpos existentes.

As coisas começam a ficar interessantes quando Butler sugere evocar o desejo


para a equação. Da mesma forma que a epistemologia católica o moralizou e excluiu
da sua forma de categorização, as estruturas jurídicas, que tem no ocidente o discurso
da Igreja incutido nelas, também o excluíram da sua estrutura de produção de sujeito,
mas questão do desejo não passa apenas pelo sexual, ele caracteriza também um tipo
de pulsão castrada e suprimida por essa matriz heteronormativa. Audre Lorde explica
isso muito bem em seu texto, Usos do erótico: O erótico como poder:

O erótico é uma dimensão entre as origens da nossa autoconsciência e o caos


dos nossos sentimentos mais intensos. É um sentimento íntimo de satisfação,
e, uma vez que o experimentamos, sabemos que é possível almejá-lo. Uma
vez que experimentamos a plenitude dessa profundidade de sentimento e
reconhecemos o seu poder, em nome de nossa honra e de nosso respeito
próprio, esse é o mínimo que podemos exigir de nós mesmas. [...] O horror
maior de qualquer sistema que define o que é bom com relação ao lucro, e não
a necessidades humanas, ou que define as necessidades humanas a partir da
exclusão dos componentes psíquicos e emocionais dessas necessidades - o
horror maior de um sistema como esse é que ele rouba do nosso trabalho o
seu valor erótico, o seu poder erótico e o encanto pela vida e pela realização.
Um sistema como esse reduz o trabalho a um arremedo de necessidades, um
dever pelo qual ganhamos o pão ou o esquecimento de quem somos.24 (2019,
p. 67–8)

Colocando o desejo na equação, pessoas dissidentes conseguem desenvolver


nessa matriz heteronormativa uma identidade própria mais consistente, já que nada
que lhes foi apresentado ou imposto durante a vida de forma “universal” fez sentido em
suas vivências e sentimentos. O caminho de pensar gênero e sexo através do desejo e
não a partir de formas mais sistematizadas de categorização, abre possibilidades
infinitas de existências, que não precisam ser categorizadas de nenhuma forma ou da
forma que quiserem. É uma forma coletiva de pensar individualidades que já é
realidade na comunidade LGBTQIAP+ e em grupos periféricos.

24
Grifo meu.

28
camp

Uma das formas de criar esse espaço alternativo de identificação e expressão é


através da estética e de formas performativas. É aqui que entra o conceito de camp, ou
excessos. Um movimento já existente, mas teorizado por Susan Sontag apenas em
1964. A estética camp é complexa de teorizar, sua substância lida exclusivamente com
a sensibilidade e a subjetividade humana, e navegada num espaço muito específico de
algumas coisas que são difíceis de categorizar ou definir mas que conseguimos
identificar quando nos deparamos com elas, onde a organicidade e a fluidez são tão ou
mais importantes que regras de categorização. Para Sontag (1964, p. 1) “a essência do
camp é sua predileção pelo inatural: pelo artifício e pelo exagero”. Camp é
essencialmente estético e exagerado, há uma predileção por certa pompa, mas nada
que chegue a ser elitista.

O maior trunfo desse conceito é ser dúbio e contraditório. Requer uma seriedade
e comprometimento do artista em seu desenvolvimento, mas em sua execução ou
performance não deve ser levado tão a sério. Os excessos característicos do camp,
quando levados a sério, caminham para se tornar kitsch ou de mal gosto. Um exemplo
prático na realidade brasileira seria: uma drag queen como Gloria Groove é
caracterizada como camp; um homem cisgênero se “travestindo de mulher” para um
bloco carnaval, não. O primeiro caso trabalha os excessos como parte da sua narrativa
artística de explorar os estereótipos de gênero - que são excessos -, a um ponto que
não sabemos se o excesso parte da personagem ou da representação de estereótipos;
no segundo, o excesso faz parte apenas de uma manutenção do estereótipo.

Apesar de não ser uma estética estritamente homossexual, a comunidade


LGBTQIAP+ se utilizou do carácter estético, jocoso e ambíguo do camp por toda a sua
história como mecanismo para se adentrar na sociedade e criar seus espaços
(SONTAG, 1964, p. 12). No videoclipe de Lil Nas X, o camp é evocado esteticamente, o
que é muito comum em clipes musicais, os vídeos curtos são uma miscelânea de
estéticas e coisas da moda sem muito sentido aparente. O fato do camp ter sido
associado, consumido e cultivado por essa parcela de tipos dissidentes específicos da

29
sociedade, principalmente a comunidade LGBTQIAP+, acabou conferindo a ele um
caráter político, apesar de ter a olhos menos atentos, um caráter "apolítico", como
pontuou Sontag. O caráter político do camp atualmente acaba não sendo por essência,
mas por associação, já que qualquer tentativa de limitar ou categorizar camp além dos
seus excessos subjetivos, pode causar um anti-camp. Um claro elemento de como o
camp se associa politicamente com corpos dissidentes LGBTQIAP+: é o corpo ou a
figura andrógina, que acaba se valendo da recusa em se definir, pelo menos perante a
grupos que podem se mostrar opressores, e do uso de formas estéticas que
confundem e dificultam que o outro te categorize precisamente. Sontag exemplifica:

O andrógino é seguramente uma das grandes imagens da sensibilidade camp.


Exemplos: as figuras lânguidas, esguias, sinuosas da pintura e da poesia
pré-rafaelita; os corpos delgados, fluidos, assexuados das estampas e dos
cartazes Art Nouveau, [...] Nesse caso, o gosto camp inspira-se numa
autenticidade do gosto na maioria não reconhecida: a forma mais refinada de
atração sexual [...] consiste em ir contra a corrente do próprio sexo. O que há
de mais belo nos homens viris é algo feminino; o que há de mais belo nas
mulheres femininas é algo masculino… (1964, p. 4)

O camp ainda navega por mais uma questão dentro da arte e da estética: a
performance. Mas a performance, dentro da análise de MONTERO, abrange mais que
só camp, por isso vamos pensar um pouco mais sobre ela no próximo tópico.

performatividade e gênero

A performance é uma arte estritamente humana no sentido de ser corporificada,


ela pressupõe uma representação viva, é um tipo de arte quase exclusivamente
presencial, mesmo em tempo com câmeras e vídeos, esse intermediário tecnológico
retira uma camada de interação do público com o performer que é imprescindível para
essa forma artística. Marvin Carlson (2011, p. 25) conceitua o essencial da performance
como uma exibição de competências treinadas por um ser humano, como cantar uma
música, representar uma personagem ou até executar uma coreografia. Essas formas
performáticas são limitadas a escopos específicos, mas a performance não se restringe
a isso. Outro teórico da performance, Richard Schechner, aponta como maior
característica e qualidade dessa arte um movimento de afastamento entre o “eu” e o

30
ato performático. Esse deslocamento cria um jogo interessante em como essa
“exibição de competências” vai ser produzida e validada como performance, o que
força o performer a se conscientizar do seu ato performático com mais afinco. A partir
dessa ideia que Schechner chama de “comportamento reconstruído”, Carlson
estabelece que podemos trabalhar com

[...] dois conceitos de performance bem diferentes, um envolvendo a exibição


de competências, o outro envolvendo não tanto a exibição de competências
específicas, mas antes um padrão de comportamento culturalmente codificado.
[...] Um terceiro conjunto de sentidos. [...] [Por exemplo], quando perguntamos
se o desempenho de uma criança na escola tem sido bom, a ênfase recai não
tanto na exibição de competências (apesar de esta poder estar envolvida) ou
na execução de um determinado padrão de comportamento, mas, em vez
disso, na realização geral da actividade à luz de um padrão de sucesso que
pode não ser rigoroso. Talvez seja ainda mais significativa a tarefa de julgar o
sucesso da performance (ou mesmo de julgar se é ou não uma performance),
que nestes casos é da responsabilidade do observador e não do performer.25
(2011, p. 27–8)

Essa tentativa de definição26 puxa a performance do campo puramente artístico


e joga ela no cotidiano de uma forma que podemos provar, já que o termo virou um
jargão comum. Devemos “melhorar a performance” no trabalho, “otimizar a
performance” dos aparelhos eletrônicos, “avaliar a performance” de jogador X ou Y em
qualquer que seja a modalidade. Algo que parece ser consenso é a consciência de
ação que o termo provoca no objeto a qual ele é direcionado, às vezes sendo esse
objeto, o próprio corpo. O ato de performar no cotidiano já é algo que fazemos como
humanos para nos encaixarmos socialmente, a proposta é

reconhecer que as nossas vidas são estruturadas de acordo com


comportamentos continuados e socialmente aprovados, [o que] possibilita que
todas as actividades humanas possam ser potencialmente consideradas como
performance ou, pelo menos, todas as actividades praticadas com consciência
de si próprias. A diferença entre acto e performance, de acordo com esta linha
de pensamento, parece não estar relacionada com a oposição entre teatro e
vida real, mas antes com uma atitude – podemos ter atitudes impensadas, mas
quando pensamos nelas, estamos a introduzir uma consciência que lhes
confere a qualidade de performance.27 (CARLSON, 2011, p. 27)

25
Grifo meu.
26
Carlson deixa claro em seu artigo que não existe consenso sobre a definição de performance, mas um
processo de como esse conceito é usado e articulado. Ele pontua que os caminhos e debates em volta
deste conceito são vastos e não se restringem só ao campo das artes, mas das humanidades em geral.
27
Grifo meu.

31
Isso produz um caráter performático em apenas viver, e se viver é performático
a questão performatividade de gênero está inscrita nisso. A ideia de performance já é
abordada por Butler em seus debates de gênero, mas a autora é firme na diferenciação
entre performatividade de gênero e performance artística, como duas categorias
distintas que operam de formas diferentes (COLLING, 2021, p. 12–5), sendo que

nessa distinção, performance seria aquela realizada pelas artistas drag, que se
caracterizaria por um ato limitado, produto de uma vontade ou de uma eleição
de quem a realiza. Já a performatividade de gênero não seria caracterizada
pela eleição ou agência do sujeito, mas pelo efeito repetido da norma, ainda
que essas repetições nem sempre sejam realizadas da maneira como as
normas desejam.28 (COLLING, 2021, p. 3)

Algo que parece não ser muito levado em consideração são as possibilidades
paradoxais, subversivas e políticas de um mecanismo criado para opressão ser usado
como fornecedor de material para desenvolvimento de práticas disruptivas. Corpos
dissidentes aprendem a performar como forma de sobrevivência, há uma teatralização
na existência não-normativa, já que esses corpos aprendem a emular um construto
heteronormativo, e “a performance é realizada com o objetivo estratégico de manter o
gênero em sua estrutura binária” (BUTLER, 2003, p. 183).

O corpo não-normativo acaba sendo sempre performático, posto que ao primeiro


sinal de dissidência, há coibição desse corpo pela estrutura normativa, que se torna
consciente de sua existência, e assim se inicia um processo de mimese da
performance normativa. Sontag (1964, p. 12) coloca isso como uma característica que
aproxima os homossexuais do conceito de camp tendo em vista que a “metáfora
[contida no camp] da vida como teatro [sendo] particularmente adequada como
justificativa e projeção de um certo aspecto da situação dos homossexuais”.

O truque é que o conhecimento profundo da epistemologia da matriz normativa


capacita o corpo dissidente a operar e manipular esses elementos como quiser,
dando-lhe o poder de borrar as linhas tão rígidamente construídas por seus opressores.
Nesse ponto o camp e a performance artística entram como uma forma “menos séria”
de elaboram as outras possibilidades de identidade dissidente dentro da matriz cultural
28
Idem.

32
heteronormativa. Em um certo nível, tanto o ato performático quanto o camp exigem
um tipo de representação. O ato de representar pode insinuar a supressão de algo
genuíno no seu momento representativo, mas, no caso do ato performático associado a
expressão de gênero e formação identitária, o espaço criado permite para o corpo
dissidente performar códigos e atos fora da matriz epistemologica heteronormativa,
proporcionando uma reconexão e redescoberta dos desejos e formas expressivas que
antes foram violentamente reprimidos.

A questão da performatividade de gênero não é apagar o “feminino” ou o


“masculino” da sociedade, mas trabalhar a dissolução desse tipo de categorização
como algo tão determinante e fixo, já que a arbitrariedade dessa categorização não
acompanha a fluidez e mudanças da vida que nossa expressividade também deve ter
espaço para acompanhar. O problema sempre se dá quando o aparato social restringe
algum tipo de gesto ou expressividade por tal ato não ser associado a este, ou aquele
gênero.

A esse ponto, já temos elementos o suficiente para elaborar uma análise mais
precisa de como Lil Nas X trabalha esses quatro mecanismos - a epistemologia
católica; o homoerotismo e o desejo; a estética camp e; a performatividade artística e
de gênero - dentro do clipe de MONTERO (Call Me By Your Name).

33
PERFORMANDO LIL NAS X

O foco principal da análise é o conteúdo audiovisual, mas não posso deixar de


lado alguns elementos textuais que reforçam toda a atmosfera homoerótica. O próprio
título da canção MONTERO (Call Me By Your Name) é uma referência direta ao título
do filme de Luca Guadagnino, lançado em 2017, baseado em um livro homônimo, cuja
trama é baseada na descoberta da bissexualidade de um jovem italiano nos anos 1980.
A frase-título “me chame pelo seu nome” carrega a força de alguém desejar tão
profundamente outra pessoa que anseia que ambas se fundam, e virem um só corpo
através do desejo. Que não foge muito da interpretação católica do matrimônio em
Gênesis - capítulo 2, versículo 24 -, que diz “o homem deixará pai e mãe e se unirá à
sua mulher, e eles se tornarão uma só carne”. Outra metáfora bíblica que Nas faz se
apresenta em Gênesis - capítulo 1, versículo 27, que diz: “criou Deus o homem à sua
imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”, e tal como Deus, Lil
Nas X faz de todas as pessoas do seus clipes a sua imagem e semelhança.

MONTERO estreita ainda mais sua narrativa de desejo homoerótico com os


dogmas católicos usando a metáfora de Adão e Eva como exemplo de casal normativo
a ser seguido, para estabelecer o background do parceiro voluptuoso do eu lírico na
letra. Logo na primeira estrofe fica claro seremos vamos conduzidos por uma noite de
lasciva do eu lírico, e rapidamente a música estabelece o conflito da narrativa: alguém,
provavelmente um homem, que vive performando seu gênero como a matriz
heteronormativa exige e realiza, quando pode, seus desejos reprimidos na companhia
do eu lírico, que aparenta estar muito mais confortavél em relação a suas vontades.
Toda essa dinâmica é estabelecida no pré-refrão da música, que diz: “Você vive se
escondendo, garoto, eu não consigo fingir. Não estou incomodado, só estou aqui para
pecar. Se Eva não está no seu jardim, você sabe que pode”29 (“Lil Nas X - MONTERO
(Call Me By Your Name) (Tradução em Português)”, [s.d.]).

Corroborando com o processo descrito no capítulo sobre performance de

29
“You live in the dark boy, I cannot pretend. I'm not fazed, only here to sin. If Eve ain't in your garden,
you know that you can”

34
gênero: corpos dissidentes se entendem não-normativos e são suprimidos, partindo
para uma mimese da estrutura epistemológica que os suprimiu, para, talvez em outro
momento da vida, encontrarem a sua identidade e desejo reais através de algum ato
performativo. O clipe em si pode ser lido como uma alegoria elaborada da aceitação
desse desejo interno, e pode ser dividido em três atos: tentação, julgamento e
aceitação.

ato i

O clipe abre com uma visão de


nuvens pesadas e coloridas, uma paleta em
tons de roxo, azul e lilás; nuvens ao fundo
emolduram a luz do sol no formato alusivo de
dois pares de chifres (figura 3). Enquanto a
câmera desce pelas nuvens em um
movimento de vôo de pássaro, ouvimos Nas
recitando, em inglês, a seguinte frase: “Na
vida, escondemos partes de nós mesmos
que não queremos que o mundo veja. As trancamos. Dizemos não para elas, as
banimos. Mas aqui não. Bem-vindo a Montero”30 (2021, sc. 0:01-0:17). De forma
sensível, Lil Nas X, já propõem a construção de um lugar onde todos possam se
expressar livremente.

E assim somos apresentados a seu mundo onírico: amplas pradarias com grama
na cor carmim; um rio que percorre planícies tomadas por ruínas arquitetônicas de
estruturas greco-romanas, como arcos e pilastras; uma escultura gigantesca de uma
cabeça e mãos, remetendo ao colosso de Constantino com as feições de Nas (figuras
4 e 4.1). Aparece em destaque antes de sermos apresentados a uma serpente preta

30
“In life, we hide parts of ourselves we don’t want the world to see. We lock them away, we tell them ‘no’,
we banish them. But here, we don’t. Welcome to Montero.”

35
com as escamas alaranjadas brilhantes. Ela se
move como fogo rastejante ao encontro da
única árvore branca na pradaria, sua copa
parece feita de estruturas gelatinosas, que
flutuam no espaço. Junto à árvore, a
personagem principal de Lil Nas X, que
chamaremos de bardo, repousa tocando um
suntuoso violão rosa. A serpente e a Árvore
evocam imediatamente a iconografia do
Jardim do Éden e da narrativa contida no livro
de Gênesis, a composição da personagem de
Nas ao pé da árvore e da serpente enrolada
em seu tronco, remete inclusive, a imagem dA
expulsão do Paraíso, pintada por Michelangelo
no teto da Capela Sistina, por volta de 1508-12
(figuras 5 e 5.1).

O fato da serpente aparece rastejando


indica que a narrativa que acompanhamos se
localiza num espaço-tempo posterior ao
pecado original de Adão e Eva, dado que o
meio de locomoção do animal foi a punição
estabelecida por Deus em Gênesis - capítulo 3, versículo 14: “Então o Senhor Deus
declarou à serpente: "Já que você fez isso, maldita é você entre todos os rebanhos
domésticos e entre todos os animais selvagens! Sobre o seu ventre você rastejará, e
pó comerá todos os dias da sua vida”. Com isso, podemos aplicar no clipe a mesma
ideia de metáfora de Adão e Eva da letra e estabelecer o paralelo entre a serpente e o
desejo, como pecado original. Todos esses elementos fazem do Éden apresentado em
MONTERO um local de privação, de enclausuramento de si para pessoas
não-normativas, apesar do deslumbramento visual do lugar.

O mundo fantasioso de MONTERO evoca o jardim do Éden, que é o ínicio de

36
tudo para a epistemologia católica, mas ao
mesmo tempo tem “a paisagem marcada por
ruínas antigas, [...] colunas de quilate,
aquedutos desmoronados, e dois templos
tombados que se assemelham ao pátio do
Panteão” (GRULLON, 2022, p. 17).
Vislumbres de uma sociedade grego-romana
que tinha práticas homossexuais
estabelecidas e documentadas, e que foi
sendo marginalizada conforme a moralidade
cristã dominava o mundo ocidental. A
multitemporalidade inscrita na narrativa
imprime os corpos dissidentes presentes e
persistentes no decorrer de toda a História,
independentemente das estruturas
construídas para tornarem esses corpos em
cativos, Lil Nas X afirmou para um repórter da
revista TIME (CHOW, 2021) que o uso dessas
estruturas tinha esse objetivo ontológico: "Eu
queria usar estas coisas que existem há tanto
tempo para contar minha própria história e a
história de tantas outras pessoas na
comunidade - ou pessoas que foram banidas da história em geral".

Voltando ao clipe, observamos a personagem do bardo tocando violão enquanto


a serpente se avoluma e circunda a árvore do conhecimento, espreitando-o. A serpente
que se revela humanóide, é uma versão de Lil Nas X, porém como lábios repuxados
em fendas, a cabeça ovalada escamosa - quase fálica - e com roupas
semi-transparentes, assusta o bardo, que foge. Nessa corrida, a feição característica
da serpente surge em estátuas, floresce da relva, se projeta das nuvens e compõe com
os cortes e posicionamentos de câmera a sensação que o bardo está sendo

37
perseguido e observado, pela serpente e,
consequentemente, pelo desejo reprimido.

Na fuga também conseguimos


observar melhor a personagem do bardo,
sua “roupa” cor da pele reflete a nudez da
personagem, a indumentária é
extremamente brilhante, toda de pedraria e
ajustada de um jeito que realça os
contornos do seu corpo (figura 6). Há apenas uma constrição na região pélvica que
impede uma definição precisa de qual genital aquele corpo possui, o que contribui com
o aspecto andrógino da personagem e se ajusta com a ideia católica de que a nudez
não era relevante para Adão e Eva (Gênesis, capítulo 2, versículo 22). Somando os
cabelos compridos, bigode e unhas extravagantes da personagem há uma
descaracterização de qualquer gênero binário para o bardo.

Quando finalmente se encontram face a face, a serpente acaba seduzindo o


bardo, que parece hipnotizado com a situação (figura 7). O convite para ceder ao
desejo é dado pela própria música quando o verso “I'm not fazed, only here to sin / If
Eve ain't in your garden, you know that you can”31, e então eles se beijam e, deitados
na relva, há um momento de desejo e a sugestão do ato sexual. A câmera desliza o
olhar para fora do momento íntimo e se volta para a Árvore do Conhecimento. Nela,
queima uma frase em grego (figura 8), contida
no Simpósio de Platão (secção 191a) sobre o
mito do amor, ao traduzi-la, temos o seguinte:
"Após a divisão das duas partes do homem,
cada uma desejava sua outra metade"32. Há a
transição de cenário para o segundo ato do
clipe.

31
“Eu não estou incomodado, estou aqui só pra pecar / Sе Eva não está no seu jardim, você sabe quе
pode”
32
Em grego: ἐπειδὴ οὖν ἡ φύσις δίχα ἐτμήθη, ποθοῦν ἕκαστον τὸ ἥμισυ

38
Até agora não só o desejo, mas também
a união, e o amor foram abordados. O
discurso cristão prega a comunhão de
cônjuges em um só corpo e um só espírito, o
mesmo significado pela frase-título da música
e o mito de Platão. Esse é o elemento que
faz a MONTERO de Lil Nas X ser tão atrativa
para uns e repulsivo para outros: o fato de
Nas, um homem negro, cisgênero e
bissexual, articular e firmar os seus desejos estando profundamente a par da estrutura
que, em sua base epistemológica, renega sua existência e seus sentimentos.

ato ii

Somos apresentados a um novo cenário, uma arena, parecida com um coliseu.


Lil Nas X aparece com uma roupa espartana rosa claro e felpuda, seu cabelo é do
mesmo tom da roupa e acessórios dourados ornamentam seu corpo exposto, entre
eles, grilhões cobram seus pulsos e o vemos acorrentado e conduzido por duas
réplicas do cantor vestidas de forma extravagante em roupas upcycling feitas de jeans
azul e perucas de cabelo encaracoladas altíssimas (figura 9).

A figura acorrentada é posicionada no meio da arena, em uma estrutura que se


liga em seus grilhões. A cena parece um julgamento, esse clima é reforçado pela
postura altiva de outras cinco figuras iguais a
que trouxeram Nas acorrentado e pelo furor
das figuras de pedra que enchem as
arquibancadas do coliseu (figura 10).
Nenhuma pista visual indica pelo o que Nas
estaria sendo julgado, mas a letra, assim
como no Ato I, indica o tom do ambiente. Em
várias linhas o eu lírico descreve o desejo

39
que sente e como quer transar para saciá-lo,
como se esse fosse seu crime. As estrofes
seguintes trazem um rap que, junto com a
visualidade do clipe, dão a impressão que
Nas está se defendendo, justificando suas
vontades, tentando convencer os presentes
que não existe crime ali. Uma dos “juízes” diz
“não” gestualmente, nesse momento as
figuras de pedra iniciam um linchamento
público sobre a figura acorrentada, dentro da narrativa bíblica, essa era a punição por
adultério. Mesmo sendo punido, Nas é enfático em aceitar seus desejos no verso “i
wanna fuck the ones i envy”33, e nesse momento um plug anal é atirado da arquibanda
(figura 11) e acerta a testa de Nas, provavelvemte o matando.

Agora nosso personagem ascende aos céus, envolto em um brilho líquido e


furta-cor, no meio do caminho a silhueta de um anjo o intercepta. A composição da
cena pode ser interpretada como o mito grego de Ganimedes, um rapaz tão lindo que
Zeus desce dos céus para raptá-lo (figura 12). Aqui existe uma escolha, a personagem
vai continuar tentando se encaixar num
mundo que, mesmo pregando coisas boas,
não aceita sua essência? A presença do
símbolo pagão nesse momento, segundo
explicou historiador Roland Betancourt para a
TIME (CHOW, 2021), é a legitimação do
desejo de Nas: "vejo essa cena de salvação
não como se ele fosse para o céu, mas sim
como tendo uma consumação do mesmo
sexo que é legitimada pelos deuses pagãos”.

A metáfora aqui é do doloroso processo da aceitação de si. O corpo dissidente


passa por julgamentos de pessoas que não aceitam ou não conseguem compreender a
33
“quero foder com aqueles que eu invejo”. Traduzido com DeepL.

40
forma diferente daquele corpo se expressar. Muitas vezes, o conteúdo que o corpo
não-normativo quer externar é o mesmo do normativo, quer ser reconhecido como
pessoa, quer ter a liberdade de se expressar, amar, desejar e ser amado e desejado,
mas a forma, não condiz com a das milhares figuras de pedra que apenas seguem a
matriz estrutural estabelecida, sem refletir se
essa forma compulsória de viver é mesmo
“universal”. Nesse ponto, o ser dissidente
geralmente rompe o contato direto com o
mecanismo epistemológico que provocou o
sofrimento carnal e psíquico, e começa a
buscar e experimentar outras formas de criar
uma identidade para si.

ato iii

A personagem de Nas escolhe trilhar um caminho rumo a aceitação de si e parte


na jornada de explorar seus desejos, e simbolizando isso temos uma das cenas mais
icônicas de MONTERO: um mastro de pole dance surge, e o personagem de Nas - que
transforma seu visual novamente, agora com
tranças vermelhas, acessórios prateados,
uma cueca box preta e botas compridas de
salto alto -, desce rodopiando (figura 13) e
fazendo movimento sensuais, sempre
olhando para a câmera, como seduzindo o
espectador. A estrutura a sua volta parece
novamente o interior de um comprido
Coliseu romano, que vai escurecendo e se
avermelhando quanto mais Nas desce.

Lil Nas X aterrissa de forma poderosa e sensual, encarando a câmera, em uma


local que é claramente o Inferno. Há fogo e lava por toda parte, e várias estruturas

41
alongadas. Ele caminha com muito mais
segurança que no início do clipe, ele
também acaba criando comparações com a
personagem do bardo, sua seminudez neste
ato contrasta com a falsa nudez do início da
narrativa. Sua genitália aqui é bem evidente,
uma representação visual da aceitação das
suas vontades lascivas. Nas contínua
utilizando elementos visuais extravagantes
que o fazem sair da conformidade imposta a qualquer gênero, mas de forma diferente,
eles são meros coadjuvantes. Seus gestos e sua postura evocam mais sensualidade e
poder que sua roupa e Nas se mostra confortável com essa escolha de comunicar suas
vontades.

O cenário do mundo inferior é imponente e permeado de elementos alongados,


simbolicamente fálicos ou sexuais. Nas caminha na direção de um castelo
ornamentado com uma cabeça que contém um par de chifre, e a porta gigantesca do
local se abre em um formato que lembra uma vulva (figura 14), todo o desejo reprimido
no Éden tem vazão aqui. Ao adentrar em um salão imponente vermos no chão a
inscrição em latim: "eles condenam o que não
entendem"34 (figura 15). Vemos a figura de
lúcifer sentado em seu trono, sob uma
plataforma vestindo um harness35 elaborado,
encarando a câmera. Nas caminha
diretamente para o encontro com o Diabo, que
como todos nesse clipe, possui as feições
familiares a do cantor.

34
Em latim: “Damnant quod non intelligunt”
35
Harness é um item comumente usado por membros da comunidade BDSM para fins de bondage
(amarração). O arnês normalmente consiste numa série de tiras de couro, geralmente entre 1 e 2 cm de
largura, presas juntas de forma a permitir que uma pessoa "use" o item.
A comunidade BDSM deriva de subgrupos da comunidade gay, e sempre foi espaço seguro para
pessoas LGBTQIAP+ expressarem e explorarem seus desejos, sexualidade e identidade.

42
A personagem de Nas está naquele lugar para explorar suas vontades e
desejos, todo o ambiente, e inclusive a música tem um tom sensual, de sedução e
luxúria. Nas decide agir e fala no ouvido do Diabo “fuck it! let 's ride!”36 e começa uma
dança sensual no colo do rei do inferno (figura 16). Enquanto rebola, Lil Nas X e o
Diabo encaram a câmera tentando provocar mais o espectador do que um ao outro. O
momento de sedução, assim como o clipe,
acaba quando Nas torce o pescoço do
Diabo, sem motivo aparente, retirando a
coroa de chifres que Lúcifer usava e
coroando a si mesmo. Fazendo um paralelo
visual com o primeiro frame de MONTERO,
Lil Nas X se torna um anjo de asas negras
que não precisa se esconder, nem banir
mais nenhuma parte de si (figura 17).

O fim do Ato II do clipe já nos dá uma chave de leitura para esse Ato final.
Pessoas que seguem as ideias da epistemologia católica leram segmento visual de
MONTERO como um culto de adoração ao diabo (CHOW, 2021), a perda da inocência
e corrupção do corpo, mas na verdade, é a uma libertação de um padrão de vida que
limita e restringe vontades individuais e a
busca de uma identidade mais genuína. A
dinâmica de Nas e do Diabo pode ser
interpretada como uma experimentação de
coisas novas, novos prazeres. Ao matar a
figura de Lúcifer e tomar seu lugar, Nas se
coloca compreendendo plenamente seus
desejos e suas possibilidades identitárias.

36
“Que se foda! Vamos cavalgar!”

43
CONCLUSÕES PERFORMATIVAS

A arte consegue, com seu poder de síntese, comunicar o chamado para a


mudança de forma eficaz e acessível, e acaba impactando as pessoas de formas mais
subjetivas. E Lil Nas X conseguiu de forma extravagante, entregar uma obra complexa
e cheia de camadas, não como só produto comercial, mas como exemplo da
multiplicidade expressivas de um grupo, se mostrando extremamente relevante e
significativa para a validar uma geração de pessoas não-normativas que começam a
aprender a se expressar sem necessidade de pesar as consequências do simples ato
de existir.

É difícil descrever em poucas páginas, a teia de comportamentos e ações que


inviabilizam a existência plena de tantas pessoas. Mas, toda a tentativa que é feita
nesse sentido abre mais espaço para a construção de novas formas de expressão que
não precisem diminuir ou preterir outras. Estamos longes de superar todos os
preconceitos e formas de opressão, e este texto é, acima de tudo, uma tentativa de
contribuir com o entendimento dessa teia e dos seus efeitos em como vivemos até
nossos momentos mais íntimos. Diferenciar esses processos de construção identitária,
não só pessoal mas coletiva, é uma forma de emancipação humana, que pode nos
guiar na construção de um mundo melhor.

44
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