2013 BrunoSanchesBaronetti VCorr

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

BRUNO SANCHES BARONETTI

VERSO CORRIGIDA
So Paulo
2013

UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

BRUNO SANCHES BARONETTI

Da Oficializao ao Sambdromo: Um estudo


sobre as escolas de samba de So Paulo (19681996).

Dissertao apresentada ao Programa de


Ps-Graduao em Histria Social, da
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas, da Universidade de So Paulo,
como requisito para a obteno do ttulo de
Mestre em Histria.
Orientador: Prof. Dr. Maurcio Cardoso.

VERSO CORRIGIDA

So Paulo
2013

Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que seja citada a fonte.

Catalogao da publicao

BARONETTI, BRUNO SANCHES.


Da Oficializao ao Sambdromo: Um estudo sobre as escolas de samba
de So Paulo (1968-1996)/ Bruno Sanches Baronetti; orientador
Maurcio Cardoso. So Paulo, 2013. 397 f;
Dissertao (Mestrado) Universidade de So Paulo, 2013.
1. Carnaval; 2. Escolas de Samba; 3. Samba; 4. Cidade de So Paulo; 5.
Histria Oral.

Para Marcos dos Santos, Gabi, Dona China, Mestre


Divino, Osvaldinho da Cuca e lvaro Casado,
que viveram esta Histria.

Samba-Enredo Camisa Verde e Branco (1982)

Achei uma bola de ferro


Preso a elos de corrente
Tinha um osso de canela
Deu tristeza em minha mente
Esse osso de canela
Veio de outro continente
De jeito nenhum
No preconceito
Negro ou branco tem direito
Nossa escola no faz distino de cor
Pra falar sobre esse tema
Foi que surgiu o problema
E o dilema se avizinhou
, a nossa escola enaltece a negra gente
Que nunca ficou chorando
Sempre viveu cantando
Fingindo Contente
Negro paga imposto, negro vai guerra
Negro ajudou a construir a nossa terra
Temos a pergunta no nos leve a mal
Por que s no trduo de Momo que o negro genial?
Ele capito, ele general
Poderia ser tanta coisa
Dentro da vida real.
Talism
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Resumo
Da Oficializao ao Sambdromo. Um Estudo sobre as Escolas de Samba de So
Paulo (1968-1996)
Esta dissertao apresenta as principais transformaes institucionais, estticas e
musicais das escolas de samba da cidade de So Paulo entre 1968 e 1996. O corte
cronolgico inicial se justifica a partir da oficializao do concurso de cordes
carnavalescos e das escolas de samba pela prefeitura da cidade, em 1968, que introduziu
novas regras que modificaram a estrutura dos desfiles, contribuindo para a extino dos
cordes nos bairros da cidade. J o corte final justificado pelas transformaes
ocorridas na dcada de 1990, quando os desfiles deixam o espao pblico da rua e
passam a acontecer em um espao construdo exclusivamente para esse fim, o
Sambdromo. A pesquisa histrica se d reconstruindo a atuao das duas principais
federaes carnavalescas da cidade de So Paulo: a Unio das Escolas de Samba
Paulistanas (UESP), fundada em 1973 com o objetivo de reunir as escolas de samba e
blocos carnavalescos e represent-las junto ao poder pblico, e a Liga Independente das
Escolas de Samba de So Paulo (Liga), fundada em 1986 a partir de membros
descontentes com a atuao da UESP e que representa as escolas de samba do Grupo
Especial e Grupo de Acesso.

Palavras-Chave: Carnaval; Escolas de Samba; Cidade de So Paulo; Histria Oral;


Imprensa da Cidade de So Paulo.

Abstract
From Formalization to the Sambadrome. A study about Samba Schools in So
Paulo City (1968-1996)
This masters degree dissertation presents the main institutional, aesthetic and musical
changes of samba schools of So Paulo between 1968 and 1996. The initial
chronological mark is justified starting from the official street carnival contests and
samba schools organized by the City Hall in 1968, which introduced new rules that
changed the structure of the parades and contributed to the extinction of the street
carnival in city districts. The final period is presented by the changes occurred from
1991 on when the parades moved from street public space to an area built strategically
for this purpose, the Sambadrome. The historical research is done assessing the
performance of two main carnival representative institutions of So Paulo city: the
UESP (Union of Paulistanas Samba Schools) founded in 1973 with the goal of bringing
together the samba schools and the street carnival blocks and representing them before
the government, and LIGA (Independent League of Samba Schools of So Paulo),
which was founded in 1986 by members that were unhappy about the performance of
the UESP, whose objective is to represent the samba schools of the Special Group and
the Access Group.

Keywords: Carnival; Samba Schools; So Paulo City; Oral History; Press in So Paulo
City.

AGRADECIMENTOS

Quando se encerra uma dissertao, o pesquisador se depara com duas


sensaes: a primeira, de dever cumprido; a segunda, a de que agora que est
comeando a entender o seu objeto de pesquisa, dever conclu-la. Apesar de aqui se
encerrar uma etapa, o samba continua.
O decoro aconselha que a primeira meno de agradecimento seja dada ao
Orientador. Tenho uma grande alegria de cumprir este preceito, no por dever, mas por
prazer. Assim, agradeo profundamente ao Prof. Dr. Maurcio Cardoso pela total
confiana e pacincia. O Professor Maurcio apoiou e orientou com ateno intelectual,
a direo deste trabalho. Foi um grande Mestre que aceitou o desafio de orientar este
trabalho, mesmo quando fugia de sua rea de especialidade, contribuindo sempre com
ideias e pensamentos, alm de ter acompanhado todas as reflexes de modo coerente e
profissional.
Cabe agradecer, sem dvida, ao CNPq, pelo financiamento na parte final da
pesquisa, permitindo assim uma maior dedicao na redao da dissertao.
Tambm gostaria de mencionar o Professor Francisco Alambert (FFLCH-USP),
historiador de notrio saber e grande amigo que sempre me incentivou nas artes de Clio.
Agradeo sua presena nesta banca de arguio.

Ele tambm responsvel pelo

sucesso deste trabalho, orientando e participando desde a gnese do projeto, durante a


graduao.
Professora Olga Rodrigues de Moraes von Simson, pela presena na banca de
qualificao e na arguio de defesa, alm de todo incentivo e ajuda dada durante toda a
pesquisa, me recebendo por algumas vezes no LAHO e acompanhando as reflexes e o
texto desta dissertao com uma ateno muito especial.
Professora Maria Leda de Oliveira, pela presena na banca de qualificao e
pela rigorosa leitura, que me ajudou na redao final da dissertao.
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O agradecimento mais que especial minha famlia, em primeiro lugar, com


muito orgulho, aos meus pais (Luvercy e Mariles), com quem posso contar em todas as
horas. Obrigado mais uma vez pelo apoio, carinho e incentivo de toda uma vida.
Agradeo tambm meu irmo Raul, meu grande amigo que tanto admiro, e a certeza de
que sem o apoio incondicional, a compreenso e o amor de vocs eu nunca teria
chegado at aqui.
minha amada Karine, que tanto me ajudou neste trabalho, me incentivando
desde o incio. Sempre disposta a revisar os textos, ler o que eu havia escrito, a me
acompanhar em entrevistas e pesquisa de campo, alm de contribuir com ideias. Mas,
acima de tudo, agradeo por ser uma grande companheira e amiga despertando tanta
alegria e amor em minha vida.
minha av e madrinha, Adelina, que nutre amor, afeto e carinho por mim e ao
meu av Miguel (in memoriam), de quem tanto tenho orgulho e afeto, e que
infelizmente no pde ver este trabalho concludo.
Unio das Escolas de Samba Paulistanas (UESP) e ao Centro de
Documentao e Memria do Samba (CDMS), pelo apoio incondicional a esta pesquisa,
por manter este precioso e importante acervo dedicado ao samba.
E em especial e que deveria vir em primeiro lugar, ao grande amigo e meu
Mestre dentro do mundo do samba, Marcos dos Santos, pelas longas e animadas
conversas sobre o samba e carnaval, me apresentando este maravilhoso universo com
toda sua experincia e militncia pelo samba de So Paulo. Sem seu apoio e parceria,
me abrindo tantas portas, este trabalho nunca teria sido concludo. Obrigado, Mestre!
Ao grande compositor e sambista Adriano Bejar, que vive intensamente a
paixo do Carnaval. Tambm agradeo ao Caio, Barroquinha, Nen, Cntia e a
presidente Lia e ao presidente Kaxitu que sempre me acolheram com todo o carinho e
afeto dentro da Matriz do Samba.
Embaixada do Samba e a todos os imortais que me receberam com tanto
carinho, dando preciosos depoimentos para este trabalho. Comeo agradecendo ao
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maior mestre-sala e maior porta-bandeira que j existiram no carnaval paulista, Mestre


Gabi e Dona China, Embaixatriz Mestra, que me mostraram a elegncia e a verdadeira
magia do carnaval.
Tambm ao grande Mestre Divino que, com seu apito e com sua batucada, faz
nossos coraes baterem mais forte. Ao Osvaldinho da Cuca e lvaro Casado que
abriram as portas de suas casas para mim, concederam importantes entrevistas e deram
permisso para revirar seus arquivos.
Quero agradecer agora a todos os amigos e parentes que tambm foram
importantes neste percurso.
minha prima Tati, grande educadora e amiga de todas as horas, que durante
toda a vida me apoiou e incentivou. minha tia Lourdes pelo carinho e apoio de todos
os dias, ao meu primo Paulo Henrique (in memoriam), que Deus levou to cedo e que
tambm no pde ver este trabalho concludo.
Ao Francisco, meu primo, mas na verdade um grande tio e irmo e a querida
Dorcas, por todo apoio e carinho. Agradeo por estarem presentes nos momentos mais
importantes da minha vida.
Ao grande amigo Guto e a grande amiga Cssia pela grande amizade e vivncia
fraterna de mais de dez anos. E agradecer aos meus queridos amigos e amigas, Juliano,
Danilo, Gabriel, Cleber, Maria Inez, Renata, Laura, Amelina e Caroline que sempre
depositaram tanta confiana em mim e que tambm acompanharam este trabalho.
Ao querido amigo Marcus Baccega, companheiro de mstica e perfeito cristo na
vivncia das virtudes teologais (f, esperana e caridade), grande incentivador do meu
trabalho, com quem aprendi muito nestes anos de dilogo, amizade e militncia em prol
da Teologia da Libertao, na luta por um mundo mais justo e fraterno.
minha amiga Lgia Conti, companheira de pesquisa e tambm apaixonada
pelo universo das escolas de samba, que tambm tanto contribuiu para este trabalho,

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pelos toques, dicas e parceria nas entrevistas. Espero que esta tabelinha renda mais
frutos, contribuindo para contar esta histria to importante para a vida social do pas.
Aos amigos Benito, Thomas e Roberta companheiros de militncia poltica e de
gosto pela cultura popular.
Dona Silvnia e ao Seu Boero que me alegram com sua convivncia e que me
recebem como se fosse um filho.
Aos amigos da Rdio Juventude, Euzbio Jorge, Larissa Miho, Edson
Figueiredo, Bruno Varoli e Joo pelo apoio e suporte na realizao do programa A
hora e a vez do Samba.
Ao amigo Paulo, grande conhecedor de cultura popular, msico, poeta, com
quem tenho sempre timas conversas e que tanto ajudou indicando livros para esta
pesquisa.
Aos amigos professores dos colgios por onde passei desde o incio da
dissertao: E.E. Nossa Senhora Aparecida, Santo Antnio de Lisboa, Joo e Raphael
Passalcqua e So Vicente de Paulo.
Durante o tempo em que estive desenvolvendo este trabalho, tive o apoio e a
colaborao de muitas pessoas, e infelizmente se torna impossvel mencionar aqui todos
os nomes. A todos estes minhas sinceras desculpas e meus agradecimentos.
E agradeo a Deus por mais esta graa e por ter permitido que eu chegasse at
aqui.

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SUMRIO

INTRODUO.............................................................................................................14
1.O Tema.........................................................................................................................24
2. Diviso dos Captulos .................................................................................................38
I. AS TRANSFORMAES INSTITUCIONAIS DAS ESCOLAS DE SAMBA DA
CIDADE DE SO PAULO ..........................................................................................42
1.1. Os Cordes ..............................................................................................................42
1.2. A Oficializao ........................................................................................................52
1.3. A UESP.....................................................................................................................62
1.4. A Liga.....................................................................................................................105

II. AS TRANSFORMAES ESTTICAS NO DESFILE DAS ESCOLAS DE


SAMBA DA CIDADE DE SO PAULO .................................................................117
2.1. As fantasias.............................................................................................................118
2.2. As Alegorias...........................................................................................................137
2.3. O Samba- Enredo (transformaes musicais)........................................................143
2.4 A batucada...................................................................................................................180

III. A CRIAO DO SAMBDORMO E AS TRANSMISSES


TELEVISIVAS.................................................................................................................188

PARTE II- TRANSCRIAES ...................................................................................223


Marcos dos Santos ............................................................................................................238
Mestre Gabi .......................................................................................................................252
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Dona China .......................................................................................................................272


Mestre Divino ...................................................................................................................295
Osvaldinho da Cuca .........................................................................................................314
lvaro Casado ...................................................................................................................356

CONSIDERAES FINAIS .........................................................................................372

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................379

ANEXOS ..........................................................................................................................393

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INTRODUO

A escolha de pesquisar as escolas de samba de So Paulo ocorreu por razes de


ordem pessoal e historiogrfica. Pessoal pelo fato de eu ser paulistano, ser simpatizante
e participar do universo mgico das escolas de samba de So Paulo. O meu contato com
a msica popular vem desde a infncia, quando ficava prestando ateno nas tristes
letras das modas de viola escutadas por meu pai. J com o universo das escolas de
samba comeou como espectador tambm na infncia, quando eu ficava acordado at
tarde da noite para assistir pela televiso aos desfiles das escolas de samba.
Normalmente assistia apenas algumas escolas e dormia durante a apresentao das
outras.
Este contato de espectador se modificou j na adolescncia, quando fui pela
primeira vez a uma quadra de escola de samba e vi o quanto a comunidade se esforava
para a realizao dos desfiles e o quanto era animado o ensaio da escola. No ano de
2005, j como estudante do curso de Histria, assisti a uma reportagem televisiva que
narrava algumas das atividades promovidas pela Unio das Escolas de Samba
Paulistanas (UESP) no Dia Nacional do Samba, dia dois de dezembro, e que contava
com a presena da Embaixada do Samba e de diversos membros das Velhas Guardas.
Por causa da reportagem fiquei sabendo que a UESP possua um acervo e que este era
aberto ao pblico. Como eu morava na mesma rua em que est localizada a UESP,
alguns dias depois, decidi conhecer a entidade.
J estava prximo do Natal e o efetivo da UESP estava empenhado em organizar
o carnaval, no pude ter acesso ao acervo. Aps o carnaval de 2006, retornei entidade
e fui muito bem recebido por todos seus funcionrios. Conheci ento o acervo e percebi
que havia muito a pesquisar sobre o tema. Comecei a pesquisar bibliografia a respeito
do carnaval, inclusive lendo livros que estavam disponveis na prpria entidade. Aps
escrever um pequeno projeto que abarcava a histria dos cordes carnavalescos e a
passagem deles para escolas de samba, procurei o Prof. Dr. Francisco Alambert, de
quem havia sido aluno do curso de Histria Social da Arte. Ele prontamente aceitou me
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orientar e muito contribuiu para o desenvolvimento de minha Iniciao Cientfica, que


abordou aspectos estticos dos desfiles carnavalescos na cidade de So Paulo.
Em 2007, fui convidado por Marcos dos Santos para realizar o curso de
formao de jurados carnavalescos promovido pela UESP. Desde o ano seguinte sou
membro do corpo de jurados da entidade, atuando como jurado dos desfiles oficiais da
Prefeitura de So Paulo em diversas cidades do interior e nos desfiles realizados pela
UESP, presenciando, desta maneira, um pouco, as tenses vivenciadas por esses
dirigentes e sambistas dentro do carnaval paulistano; portanto, a motivao se deu pela
necessidade de entender essas relaes entre o poder pblico e as escolas de samba e
como isso contribui para mudanas dentro do universo das agremiaes, sejam elas
comportamentais, organizacionais, ou mesmo esttico-musicais.
Ao iniciar a pesquisa, visitei diversas escolas de samba, conversei com muitos
membros das escolas e percebi que muitos deles estavam desiludidos com o carnaval
atual, principalmente os membros das Velhas Guardas das escolas. Ao conversar com
eles, percebi que eles eram fonte indispensvel para minha reflexo sobre a histria dos
folguedos carnavalescos na cidade, visto que a memria coletiva e a trajetria desses
velhos sambistas traziam novos elementos para a minha interpretao das relaes entre
o carnaval e o poder pblico, restando, ainda, muitas lacunas a serem percorridas para
traar a histria das agremiaes carnavalescas paulistanas.
O Brasil tradicionalmente conhecido como o pas do carnaval. Todo ano
milhes de reais saem dos cofres pblicos para o patrocnio de festas por todo o
territrio nacional. So trios eltricos, desfiles de blocos, festas, bailes e a parte mais
conhecida, tanto dentro como fora do pas, que o desfile das escolas de samba. A cada
ano, um novo espetculo apresentado sociedade brasileira. A modalidade dos
desfiles das escolas de samba surgiu no Rio de Janeiro e aos poucos se tornou
hegemnica em todo o Brasil (LEOPOLDI, 2009). A cada fevereiro, sempre surge a
mesma pergunta: qual ser a prxima inovao ou mistrio que ser revelado na
avenida? Milhes de reais so gastos em um espetculo que dura pouco mais de uma
hora (tempo mdio de desfile de uma escola de samba).
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Em um pas com tantas carncias em reas essenciais como educao, sade,


transporte, infraestrutura, segurana e moradia, dentre outras, por que investir milhes
de reais em uma festa? A pergunta ainda mais pertinente por se tratar de dinheiro
pblico.
No ano de 2012, a Prefeitura de So Paulo investiu mais de R$ 23 milhes de
reais nos desfiles das escolas de samba (O ESTADO DE SO PAULO, 25/02/2012).
Durante a apurao, um componente de uma escola de samba, inconformado com as
notas dadas pelos jurados do concurso sua escola, invadiu o local de apurao e rasgou
as notas, sendo preso pouco tempo depois. Outro integrante de uma escola de samba
ligada a uma torcida de futebol tambm foi preso, incitando um tumulto que resultou em
um incndio e depredao do Sambdromo. Para o pblico em geral, que no conhece
as rivalidades e tenses que cercam uma apurao de desfile, fica sempre a pergunta:
por que tanta violncia empregada na definio do campeo de uma festa cujo objetivo
inicial o divertimento, a satisfao pessoal, a inverso de papis?
O espetculo dos desfiles promovido e patrocinado pela Prefeitura uma
competio entre as escolas, um concurso com premiao para as escolas vencedoras e
punio para as escolas que no se enquadraram nos parmetros de julgamento
estabelecidos pelo regulamento, sendo, portanto, rebaixadas para um grupo com menor
visibilidade , recebendo um prmio muito menor em dinheiro. Logo, nenhuma escola
quer perder, pois isso no se resume a uma questo de prestigio e visibilidade, mas
principalmente financeira. Historicamente, durante vrias apuraes ocorreram
discusses, brigas e tentativas de se impedir a leitura de nota. Mas, pela primeira vez,
houve a retirada das notas das mos do locutor oficial e depredaes aos trofus e
incndio a carros alegricos de escolas coirms.
Diante desse cenrio em que so gastos anualmente milhes de reais de verbas
pblicas nos desfiles, transformando uma atividade de lazer em algo cercado de
polmicas, rivalidade, competio e at mesmo violncia, nos parece fundamental
entender como se deram as relaes entre o Estado e as escolas de samba. O corte
cronolgico inicial da pesquisa se justifica, pois os desfiles das escolas de samba se
tornam a forma hegemnica de se brincar carnaval na cidade de So Paulo, justamente a
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partir do momento em que se inicia uma relao permanente entre as escolas de samba e
a Prefeitura de So Paulo, atravs da oficializao dos desfiles promovida pelas
autoridades municipais j ocorrida em 1968, introduzindo novas regras que
modificaram a estrutura dos desfiles.
Ao longo dos captulos da dissertao, a pesquisa busca reconstruir as relaes e
as tenses entre o poder pblico e as escolas de samba. Essa relao no feita de
maneira direta, com o Estado negociando diretamente com as escolas de samba, mas
atravs das federaes carnavalescas, que so entidades civis que representam as escolas
de samba nessas negociaes. Mapeamos as grandes mudanas nos desfiles das escolas
de samba na cidade de So Paulo a partir de 1968, tanto na perspectiva institucional
(organizao), quanto nas dimenses estticas e musicais.
O corte cronolgico final se d em 1996, pois, a partir dessa data, julgamos que
no houve transformaes e mudanas significativas, sejam elas de ordem institucional,
no relacionamento entre Estado e escolas de samba, sejam de ordem esttica e musical.
Ao assistirmos o famoso desfile da torcida organizada e escola de samba Gavies da
Fiel, de 1995, ou o da Vai-Vai, de 1996, percebemos claramente como a organizao e a
disposio das alas permanecem as mesmas; as fantasias e alegorias, feitas com o
mesmo padro esttico e utilizando os mesmos materiais e os sambas-enredos seguindo
as mesmas estruturas de diviso e o mesmo padro rtmico, com as baterias mantendo as
mesmas configuraes de naipes de instrumentos.
Ao analisarmos essas mudanas percebemos que elas esto interligadas, fazendo
com que surjam outras questes. Na produo bibliogrfica de quem se dedicou ao
tema, como Urbano (1987 e 2006), Rodrigues (1984), Queiroz (1992), dentre outros e
tambm no discurso dos sambistas ligado s escolas de samba, principalmente os da
Velha

Guarda,

percebe-se

que

as

escolas

sofreram

um

processo

de

embranquecimento. O segmento negro, realizador histrico dos desfiles das escolas


de samba perdeu espao para novos dirigentes, ligados classe mdia, que
estabeleceram novas relaes das escolas com o Estado, com empresrios e
patrocinadores e com o pblico em geral, abrindo o espao das escolas de samba para
demandas de polticos e empresas interessados em associar suas marcas s escolas.
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Outro ponto de confluncia dos trabalhos acadmicos sobre as escolas de samba


a espetacularizao dos desfiles aps a implantao das transmisses televisivas, o
que levou as diretorias das escolas de samba a um comportamento empresarial, que
tem de lidar com vrias questes, como patrocnios, financiamentos e subvenes de
dinheiro pblico. Boa parte da bibliografia corrente e das narrativas registradas em
udio de sambistas histricos sugere que as mudanas foram todas impostas pelo Estado
e pela indstria cultural, sem negociao, de cima para baixo, para impor s escolas
um modelo lucrativo de turismo e entretenimento, determinando assim a produo e
realizao dos desfiles. Essa perspectiva ignora que concesses e negociaes foram
feitas com a participao ativa das escolas, atravs das federaes e dos diversos
mediadores envolvidos no processo.
Existem estudos que relativizam este processo ao procurarem entender, de forma
mais ampla, as relaes sociais dentro e fora das escolas de samba, contribuindo com
anlises que se voltam a questes como solidariedade e gnero (OLIVEIRA, 2002),
resistncia (SIMSON, 1989 e 2006 e SOARES, 1999), trabalho e lazer (BLASS, 2007)
e tambm as relaes com o poder pblico e empresas (AZEVEDO, 2010). A
importncia desses estudos fundamental para a presente pesquisa, pois eles permitem
entender que as relaes sociais envolvendo o Estado e as escolas de samba so mais
complexas. No entanto, ainda no esto claros vrios vetores dessas mudanas, sendo
muitas delas listadas como naturais, como se mudanas esttico-musicais, dentro dos
desfiles das escolas de samba nos ltimos quarenta anos, fossem uma evoluo do
carnaval. Algumas indagaes nesse sentido so importantes. Essas mudanas so
reflexos das mudanas institucionais dos desfiles? Ou, ao contrrio, as mudanas
estticas, como um maior nmero de integrantes, fantasias e carros alegricos mais
luxuosos, atraram uma maior ateno para os desfiles da capital paulista, sendo
necessrias mudanas de ordem institucional para acompanh-las, como o
Sambdromo, por exemplo. Foi o crescimento do carnaval de So Paulo que gerou uma
demanda para um espao construdo exclusivamente para esse fim, dentro da cidade,
com investimento e manuteno do poder pblico? Ou, mais uma vez, procurou-se
imitar um modelo externo, como o do Rio de Janeiro, ao construir um Sambdromo que
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permitisse a aplicao de um modelo, que j estava vigente l, nas escolas da capital


paulista? Qual o papel e a posio dos sambistas e dos dirigentes das escolas de samba
que vivenciaram esse projeto? E qual o discurso que eles produzem a respeito?
A hiptese dessa pesquisa o processo de oficializao do Carnaval que se
constituiu por uma trama complexa de negociaes entre o poder pblico e os agentes
sociais envolvidos. Em outras palavras, a oficializao no ocorreu nem de de cima
para baixo, como se o Estado fosse uma instituio monoltica, desprovida de
tenses, nem de baixo para cima, como se os sambistas pudessem impor a sua agenda
cultural ao Estado. Entendemos que apesar das tenses e diferentes interesses em jogo,
foi um conjunto de demandas e interesses comuns que conduziram normatizao do
desfile de Carnaval. Ao longo do trabalho, por meio da anlise documental e
bibliogrfica e tambm atravs das entrevistas dos sambistas, procuramos defender que
as transformaes pelas quais os desfiles das escolas de samba da cidade de So Paulo
passaram, entre 1968 e 1996, foi o resultado da reflexo conjunta e da negociao
envolvendo de incio os sambistas e o Estado e, posteriormente, a indstria cultural.
Um exemplo ntido da complexidade das relaes entre o Estado, a indstria
cultural e os sambistas o do sambista Geraldo Filme, um dos maiores expoentes do
carnaval paulistano, defensor das tradies do samba rural paulista e dos cordes
carnavalescos e liderana do movimento negro. Filme esteve presente em todos os
lados. Como sambista e lder do movimento negro, como dirigente de escola de samba
(Unidos do Peruche e Vai-Vai), presidente de escola de samba (Paulistano da Glria) e
tambm foi coordenador da Coligao das Escolas de Samba e presidente da UESP
entre 1977 e 1979, sendo um dos responsveis por fechar os contratos que mudou os
locais dos desfiles, os quais eram historicamente, eram realizados no centro da cidade e
foram para a Avenida Tiradentes, local que, at ento, nunca recebera os desfiles1.
Nas dcadas de 1980 e 1990, Geraldo Filme esteve do outro lado, como
funcionrio da Anhembi Turismo (atual SP Turis), empresa ligada Secretaria de
Turismo, responsvel por organizar o carnaval da cidade de So Paulo, em parceria com
1

Documentos de reunio administrativa da UESP em 1977. Disponvel no Centro de Documentao e


Memria do Samba da Unio das Escolas de Samba Paulistanas (CDMS-UESP).

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as empresas patrocinadoras e os sambistas da Liga e da UESP. Sua atuao na Anhembi


era na parte de coordenao de carnaval, ou seja, participar das negociaes com as
entidades carnavalescas, mais especificamente no setor de fiscalizao, encarregado de
monitorar e avaliar se as escolas cumpriam risca o regulamento que ele prprio tanto
criticava enquanto sambista.
Estas relaes ambivalentes ou at mesmo contraditrias de Geraldo Filme so a
tnica do comportamento dos dirigentes negros das escolas de samba, a partir da
oficializao dos desfiles em 1968. Com a tomada da principal expresso cultural dos
segmentos negros e pardos pobres da cidade, por pessoas ligadas s classes mdias e
altas, nos anos 1980 e 1990 as relaes se do, de uma maneira mais clara, de cima
para baixo, contudo no com a imposio do poder pblico, mas de demandas vindas
dos patrocinadores e da indstria cultural televisiva que passam a ver o carnaval
paulistano como uma possibilidade de investimento e lucros financeiros. Essa presso
financeira que culminou em uma diviso entre as escolas de samba em duas federaes
(Liga e UESP) e levou o poder pblico a necessidade de tirar o carnaval do espao
pblico e confin-lo em um espao fechado e monitorado, longe da agitao e da
vivncia democrtica das ruas, para gerar lucros e consumir o carnaval como
mercadoria e mera diverso e no como um espao legtimo que os negros e pobres
encontraram historicamente ocupando o espao pblico das ruas, sempre negado pelas
classes dominantes.
Para compreender satisfatoriamente os itens mencionados acima, a pesquisa se
deu a partir de documentos produzidos pelas prprias instituies pesquisadas e a partir
de depoimentos de dirigentes das duas federaes de carnaval que atuaram no perodo,
alm da anlise da produo bibliogrfica sobre o tema do carnaval e das escolas de
samba.
As fontes primrias de documentao utilizadas foram as Fichas Tcnicas do
Carnaval Paulistano, disponveis no Centro de Documentao e Memria do Samba2.
Estas fichas e os dados tcnicos estabelecem um panorama a respeito dos desfiles dos
2

Centro de Documentao ligado UESP, localizada Rua Rui Barbosa, n588, na cidade de So PauloSP.

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blocos e escolas de samba de So Paulo. Suas principais informaes so: a) nome das
agremiaes que desfilaram; b) nmero de componentes; c) horrio do desfile; d) notas
dos jurados e justificativa; e) enredo e letra do samba das principais escolas e blocos; e)
croquis das alegorias; f) documentos burocrticos como atas de reunies, fax entre a
UESP e as escolas; g) depoimentos de sambistas.
As fichas tcnicas esto disponveis com interrupes. H fichas dos seguintes
anos: de 1969 a 1975 e de 1977 at 1990.
Para compreender o perodo a partir de 1990, so utilizados os arquivos da
empresa que administra o carnaval paulistano, a Anhembi Turismo e Eventos da Cidade
de So Paulo, hoje SP Turis. Os documentos da Anhembi nos permitem compreender as
principais alteraes ocorridas no Sambdromo no perodo estudado, no que tange a
obras fsicas, regimentos administrativos e mudanas de gesto da empresa que a
responsvel por organizar o carnaval da cidade.
O ltimo recurso de fonte primria utilizado na pesquisa e o mais importante
para a reconstituio histrica proposta na pesquisa o depoimento oral, isto , a
realizao de entrevistas gravadas com pessoas que viveram ou testemunharam
acontecimentos referentes ao universo das escolas de samba. Apesar do grande volume
de documentao impressa sobre o carnaval de So Paulo, uma grande parte das
consequncias das relaes entre as agremiaes carnavalescas e o poder pblico
municipal nos quase trinta anos que a pesquisa abrange s possvel de serem
compreendidas a partir das entrevistas.
Constitui-se como grupo de pesquisa personagens do mundo do samba que
participaram desse momento de transio dos cordes para escola de samba e da
oficializao do carnaval e que aturaram como dirigentes das federaes e das escolas,
mas j falecidos; utilizamos os depoimentos colhidos na dcada de 1980 com o auxlio
da equipe do Museu da Imagem e do Som (MIS), pela Prof Dr Olga Rodrigues de
Moraes von Simson, cujas transcries esto localizadas no Laboratrio de Histria
Oral da Universidade Estadual de Campinas (LAHO-Unicamp).

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22

1. O Tema
At o final da dcada de 1960, os estudos sobre carnaval e outras festas estavam
reclusos s pesquisas dos folcloristas, sendo o tema pouco estudado, dentro do mbito
acadmico.
A partir da dcada de 1970, os estudos sobre as escolas de samba ganharam cada
vez mais fora dentro da academia, principalmente dentro das cincias humanas. Sejam
pesquisas no mbito da historiografia, buscando a reconstituio dos folguedos e atores
envolvidos; antropolgico, nas relaes entre seus participantes; sociolgico,
investigando as transformaes e a posterior mercantilizao e descaracterizao das
escolas de samba; esttico-visual, analisando as fantasias e alegorias, materiais
utilizados e o crescimento vertical do carnaval; lingustico, focado na temtica dos
sambas-enredos; dos estudos do corpo, visualizando as mudanas e permanncias do
samba, enquanto dana, dentro dos desfiles; da musicologia, dedicada s questes
esttico-musicais da bateria e sambas-enredos das escolas de samba. A relevncia
desses estudos dentro de diversos campos da pesquisa cientfica revela as mltiplas
faces das manifestaes ligadas festa carnavalesca dentro da cultura brasileira.
Um dos primeiros tericos a estudar a festa carnavalesca e fonte de inspirao
para muitos outros trabalhos o linguista russo Mikhail Bakhtin, cujo livro A Cultura
Popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de Rabelais (1941) analisa a
festa para entender o universo do escritor francs Franois Rabelais, do sculo XVI.
Para isso, teceu importantes reflexes sobre o carnaval. Para Bakhtin, os festejos do
carnaval, com todos os atos e ritos cmicos que a ele se ligam, ocupavam um lugar
muito importante na vida do homem medieval. Esses ritos ofereceriam uma viso do
mundo, do homem e das relaes humanas totalmente diferentes, deliberadamente no
oficial, exterior Igreja e ao Estado. Durante a festa, os homens da Idade Mdia
pareciam construir, ao lado do mundo oficial, catlico e estamental, cheio de regras, um
segundo mundo e uma segunda vida aos quais pertenciam em maior ou menor
proporo, e no qual eles viviam em ocasies determinadas. Isso criava uma espcie de
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23

dualidade de mundos, o mundo real e um mundo de aspiraes ideais que vigorava


apenas quatro dias, mas muito importante, pois, sem lev-lo em considerao, no se
poderia compreender nem a conscincia cultural da Idade Mdia nem a civilizao
renascentista. Como aponta Bakhtin, essas aspiraes:

Esto mais relacionadas s formas artsticas e animadas por imagens, ou seja,


s formas do espetculo teatral. E verdade que as formas do espetculo
teatral na Idade Mdia se aproximavam na essncia dos carnavais populares,
dos quais constituam at certo ponto uma parte. Ele se situa na fronteira
entre a arte e a vida (BAKHTIN, 2000, p. 3-4, grifo nosso).

As festas, para o escritor russo, so anseios de mundos ideais e de aspiraes da


sociedade humana, fugindo do rigor e das hierarquias da vida cotidiana. Elas seriam
tambm um instrumento lrico e pico para os grupos participantes e funcionaria como
um instrumento de ao, possivelmente de mudana para a sociedade em seu conjunto.
um momento parte que se realiza de forma mais completa nas festas populares e
pblicas, como o carnaval. No esprito carnavalesco original, as hierarquias sociais so
abolidas momentaneamente, e os participantes penetram num mundo parte, utpico,
regido pela liberdade, pelos excessos e pela abundncia, com uma inverso dos padres
sociais (BAKHTIN, 2000, p. 5 e 6).
Para o filsofo russo, o carnaval, em sua essncia, ignora toda distino entre
atores e espectadores, j que neste evento todos seriam iguais, pois participam e se
divertem da mesma forma. Tambm ignora o palco, mesmo na forma embrionria. Os
espectadores no assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval, pela sua
prpria natureza, existe para todo o povo. Durante o perodo em que a festa est vigente,
deve-se viver pela sua lei, que a liberdade. O carnaval est associado ao tempo, pois
ele representa a ideia de um retorno efetivo e completo (embora provisrio) ao den,
convertendo-se em uma segunda vida das camadas menos favorecidas do povo,
penetrando temporariamente a sua entrada em um reino utpico da universalidade,
liberdade, igualdade e abundncia, contrastando com a explorao, desigualdade e
carestia da realidade (BAKHTIN, 2000, p. 6 e 7).
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Apesar de o carnaval contemporneo ser completamente diferente da festa


realizada no final da Idade Mdia, objeto de estudo de Bakhtin, mas suas reflexes
continuam sendo chave importante para se entender os diversos domnios da vida e da
cultura. Hoje, no Brasil, existem duas modalidades de carnaval: o carnaval participativo,
realizados em pequenas cidades do pas e nas grandes cidades do Nordeste. O primeiro
tipo se aproximaria um pouco mais da ideia de carnaval descrita por Bakhtin, pois os
folies participam efetivamente da festa, ocupando as ruas e se divertindo sem qualquer
preocupao e organizao de moldes competitivos. No entanto, um fenmeno recente
que revela que a indstria cultural j se apropriou deste tipo de brincadeira de Momo o
dos chamados abads. a cobrana de ingressos para as pessoas ocuparem locais
pblicos perto dos trios eltricos que conduzem a festa. Aqueles que compram os
abads ficam em um espao separado, normalmente por cordas ou tapumes e vigiado
por seguranas que impedem aqueles que no pagaram de se aproximar. Neste carnaval
participao, vigente nos dias de hoje os que no possuem os abads so chamados de
folies pipoca e acompanham, de longe, os cantores que animam a festa, ou vo
pipocando em vrios pontos da cidade para se divertir. H ainda uma tmida reao
iniciada na dcada de 2010 por parte de folies na cidade de So Paulo que formam
blocos para desfilar sem nenhuma preocupao, regra ou interdio e ocupam as ruas da
cidade durante o carnaval. No ano de 2014, passaram a receber apoio por parte da
Prefeitura, que envia banheiros qumicos e acompanha com carros da CET (Companhia
de Engenharia de Trfego) o cortejo do bloco.
O carnaval das escolas de samba, realizado principalmente nas grandes
metrpoles, como So Paulo e Rio de Janeiro, uma modalidade de carnaval
espetculo. Esta modalidade no se configura como uma festa, mas como uma
competio, com ganhadores e perdedores. Os participantes se dividem em dois tipos:
atores e espectadores. Os atores so aqueles que se fantasiam e desfilam por suas
escolas, cujo objetivo sagrar-se campe. Os espectadores, maior parte dos envolvidos,
no participam de fato dos desfiles, apenas assistem e admiram o espetculo. Tal
modalidade de carnaval a maior contradio de uma festa que originalmente
representaria uma fuga utpica e provisria da vida cotidiana, como aponta Bakhtin.
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Um dos primeiros trabalhos do campo historiogrfico sobre o tema foi escrito


por Emmanuel Le Roy Ladurie, no livro O carnaval de Romans: da Candelria
Quarta-Feira de Cinzas 1579-1580. Publicado em 1979, a obra analisa o carnaval
francs de Romans no sculo XVI. Ladurie inicia o texto com o carnaval de 1580, que
se transformou em um massacre entre os habitantes do povoado, num contexto de lutas
entre os catlicos e os protestantes, a insatisfao contra a cobrana de impostos e a
nobreza.
Para Le Roy Ladurie, o carnaval estaria no tempo cristo e corresponderia
ltima festa do calendrio cristo, antes da Quaresma, perodo de penitncia e
abstinncia (alimentar, sexual), culminando na festa da Ressurreio na Pscoa, que tem
um significado de renascimento espiritual. O carnaval, assim, visto como uma anttese
da Quaresma, j que exalta o pecado, a gula, a lubricidade, a comezaina (preo invertido
dos alimentos); ele permite que certos rituais anteriores ao cristianismo sejam
resgatados, vividos e, posteriormente, negados. Para ele, a festa carnavalesca concebida
dentro do iderio cristo catlico busca enterrar sua vida de pago, entregar-se a um
ltimo desregramento paganizante, antes de penetrar nos tempos da ascese
quadragesimal do catecmeno, o qual conhecer enfim na Pscoa, seu renascimento
batismal e espiritual (LADURIE, 2000, p. 320). Na medida em que quer enterrar sua
vida de pago, a festa produz diretamente alguns ritos anteriores ao cristianismo que
foram amalgamadas ao catolicismo quando da cristianizao das reas rurais da Europa,
durante o primeiro milnio, em um processo de bricolagem cultural. Os ritos pagos
enterrados seriam especialmente as saturnais romanas, as mascaradas animais e
fustigaes das lupercais, a cavalgada do asno, etc. (LADURIE, 2000, p. 323-324).
O historiador francs enxerga o cristianismo como uma religio que tem como
mito fundador da condio histrica da humanidade o pecado humano (a descida do
den) e que se apropriou de certos ritos pagos, tendo-os assimilado e os modificado. O
carnaval de Roms, bem como durante as festividades desenvolvidas pelos negros do
Estado de So Paulo, no final do sculo XIX e incio do sculo XX, situam-se no tempo
cclico dos rituais da Igreja Catlica. Com o sincretismo, devoes, procisses e missas

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dedicadas aos santos da Igreja Catlica foram amalgamadas com ritos folclricos foram
ligados cultura popular.
Para alm da problemtica religiosa, o carnaval tambm visto por Ladurie
como ligado ao contexto agrcola, com razes anteriores ao cristianismo. O carnaval
seria a festa que representa o fim do inverno, fundamental para uma civilizao ainda
dependente da agricultura, trazendo esperanas de uma colheita melhor, capaz de
proporcionar uma melhor alimentao durante o ano (LADURIE, 2000).
O ponto em que os dois autores se aproximam de o princpio da festa
carnavalesca ser uma permanncia na histria da humanidade. No carnaval, segundo
Bakhtin, os valores da sociedade so invertidos, e, para Ladurie, tudo o que era
usualmente reprimido pela Igreja torna-se permitido. Depois deste perodo de liberdade,
segue-se a Quaresma, poca de conteno e penitncia. Com propriedade, o historiador
Jacques Le Goff, parafraseando Bakhtin, afirma que a civilizao do Ocidente
medieval , no nvel do smbolo, o fruto da tenso entre Quaresma e Carnaval (LE
GOFF, 2006, p. 60). De fato, a celebrao do corpo e da carne se materializa no
Carnaval, prtica que se mantm e a enriquece.
Na antiga provncia francesa do Delfinado, na Savoia, o animal smbolo da festa
era o urso. O animal anunciava o fim da estao mais fria, e tinha uma funo de
previso: se ele retornasse para a sua toca, era sinal de que a estao fria deveria
continuar por mais quarenta dias, para, ento, comear o degelo e instaurar-se a
primavera, smbolo da retomada da vida. Nos Pirineus, o urso Candelria-Carnaval era
um ladro de carneiros e, ao final da festa, simulado o seu fuzilamento, para proteger
simbolicamente os rebanhos (LADURIE, 2000, p. 325). Esta uma tradio cclica,
sendo repetida todos os anos. A fantasia de urso utilizada ainda hoje, e confeccionada
com l grossa ou peles de animais. Apesar de sua origem longnqua, a figura do urso
est viva no carnaval brasileiro, principalmente em Recife, pois foi trazida por ciganos
oriundos da Europa que danavam de porta em porta, em troca de algumas moedas. Os
ursos do carnaval de Recife so grupos de folies que saem as ruas geralmente com um
ou dois homens vestindo um velho macaco coberto de estopa, veludo, pelcia ou agave
com sua mscara de papel-mach pintada de cores variadas, preso por uma corda na
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cintura, segurado por outro que tem o papel simblico de domador. O homem vestido
de urso dana para alegria de todos ao som de msicas elaboradas pelos prprios grupos
ou marchas carnavalescas, cujo ritmo pode variar entre baio, forr, xote e at polca. A
parte instrumental do grupo, conhecida como Orquestra do Urso, geralmente
formada por sanfona, tringulo, bombo, reco-reco, ganz, pandeiro; h outras orquestras
mais elaboradas, nas quais aparecem instrumentos de corda ou sopro, como violes,
cavaquinhos, clarinetes e at trombones. O conjunto traz, por vezes, alm do domador,
do urso e da orquestra, o tesoureiro (com sua pasta de arrecadar dinheiro, uma espcie
de livro de ouro), uma mulher como porta-cartaz ou porta-estandarte, balizas munidas
de batutas de madeira e muitos folies que acompanham e esto l apenas para brincar o
carnaval.
Julio Caro Baroja tambm se debrua sobre diversas manifestaes
carnavalescas europeias, como os guirrios da regio das Astrias e o prprio carnaval
de Romans. Para o folclorista espanhol, o carnaval possui duas funes uma funo de
ritual agrcola e biolgico e uma utilidade social:

O objetivo do Carnaval assegurar o bom andamento da sociedade


local:
1) Pela expulso do mal (biolgico, social ou pecaminosoanticristo) fora das fronteiras, na vspera da quaresma
definitivamente purificadora;
2) Por reprodues do andamento normal da vida humana, obtida
graas s figuraes encadeadas do nascimento, da copulao,
da morte e do renascimento (vejam-se os fantasmas
canibalescos de Romans, que no so apenas uma ameaa em
relao aos ricos, mas tambm um fantasma de
transubstanciao);
3) Por imitaes de trabalhos agrcolas ou outros, essenciais
sobrevivncia do grupo (lavras aqui, e debulha alhures,
especialmente em Romans); e por paradas militares;
4) Pela representao dos animais de interesse econmico maior
(caa, carneiro, aves domsticas, cuja funo simblica, em
Romans e fora de Romans, ultrapassa, de resto, este rasteiro
utilitarismo);

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5) Por atos tais como as condutas de estrpito que so teis
expulso do mal, ao prosseguimento das atividades normais,
etc. (BAROJA, 2006, p. 277).

Apesar de o carnaval contemporneo das grandes cidades no possuir mais uma


funo ligada ao tempo da natureza e dos rituais agrcolas, ele possui uma utilidade
social, de paralizao momentnea dos acontecimentos cotidianos, para se viver um
momento de festa e diverso com maior liberalidade, com regras menos rgidas e maior
interao social.
No Brasil, a festa carnavalesca foi objeto de estudo de vrios folcloristas desde o
inicio do sculo XX at meados da dcada de 1970, quando passou a ser objeto de
estudos de pesquisas universitrias. Como exemplos de trabalhos de folcloristas sobre o
carnaval brasileiro, temos os do potiguar Luis da Cmara Cascudo, (1967); Rossini
Tavares de Lima (1954); Eneida de Moraes (1958); Edison Carneiro (1961); Jota Muniz
(1976), e Wilson de Moraes (1978).
A partir da dcada de 1970, os estudos sobre carnaval deixaram de ser objeto
apenas dos estudos de folcloristas e passaram a receber maior ateno por parte das
pesquisas universitrias, principalmente os temas relacionados ao carnaval do Rio de
Janeiro, j tido como modelo consagrado3. Alm de estudos sobre as escolas de samba
cariocas, destacam-se, neste contexto, Carnavais, malandros e heris (1983), do
antroplogo Roberto DaMatta, e Carnaval brasileiro o vivido e o mito (1992), da
sociloga Maria Isaura Pereira de Queiroz. So trabalhos pioneiros na pesquisa
universitria brasileira que dedicaram uma anlise terica sobre o carnaval brasileiro de
uma forma geral.
Os estudos de DaMatta tm como objetivo principal entender os dilemas
brasileiros e os processos culturais que tornam nossa sociedade diferente e nica
(DAMATTA, 1996, p. 14). O antroplogo no realiza uma interpretao cronolgica do
carnaval brasileiro nem dedica uma anlise sistemtica sobre as escolas de samba ou
3

A respeito dos trabalhos acadmicos pioneiros sobre as escolas de samba do Rio de Janeiro destacam-se
os trabalhos de Maria Jlia Goldwasser (1975); Jos Savio Leopoldi (1977); Roberto Da Matta (1983);
Ana Maria Rodrigues (1984).

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sobre outras manifestaes presentes no carnaval, mas elabora uma viso geral mais
complexa. O carnaval, para ele, estaria assim como para Bakhtin enquadrado
dentro daquelas instituies perptuas que nos permitem sentir nossa prpria
continuidade como grupo social. O autor acentua a grande capacidade de organizao e
improvisao dos participantes das entidades carnavalescas, enfatizando a fora desta
atividade que seria o grande momento ldico nacional. O carnaval reproduziria a
sociedade brasileira no de forma direta, mas de forma dialtica, com muitas
autorreflexes, circularidades, dimenses e planos, sendo capaz de estimular mudanas
que poderiam ocorrer nos padres sociais estabelecidos (DAMATTA, 1996).
J o livro de Maria Isaura Pereira Queiroz formado por quatro ensaios que
foram originalmente publicados separadamente na dcada de 1980 em revistas
especializadas. A autora antes de escrever os ensaios vivenciou vrios carnavais em
cidades diferentes, como Salvador, So Paulo, Rio de Janeiro e So Joo del Rei, em
Minas Gerais. O primeiro ensaio traa um paralelo entre os entrudos portugueses (uma
festa regional) e a introduo e expanso dessas festas no Brasil dos sculos XVIII e
XIX; o segundo ensaio analisa as escolas de samba do Rio de Janeiro; o terceiro ensaio
dedica-se temtica dos grandes bailes carnavalescos; j o quarto ensaio, de anlise
mais terica, estuda o surgimento e a construo do mito carnavalesco no Brasil. Ao
fazer esse percurso, a autora pensa as diferenas do carnaval brasileiro ao longo do
tempo, chegando inclusive a algumas generalizaes como a que cita que a
uniformidade dos folguedos carnavalescos sempre existiu no pas (QUEIROZ, 1992, p.
12), revelando que a festa carnavalesca est presente em todo o pas, cada regio com as
suas peculiaridades e regras prprias. A sociloga atribui o crescimento das escolas de
samba ao nacionalismo exacerbado, predominante na dcada de 1920 entre os
intelectuais, destacando a gerao modernista e a sua influncia entre os populares, alm
do fato de que o Rio de Janeiro era a principal cidade do pas e capital federal, fatores
que contriburam para tornar as escolas de samba a principal manifestao artstica do
carnaval brasileiro.4.

Esse tema ser retomado por VIANNA, Hermano. O mistrio do samba. 6. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2008.

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Queiroz procura se alinhar perspectiva de autores franceses dos anos 1970,


como Mesnil (1974) e Faure (1978), tecendo anlises a partir do vivido e no do
sentido, ou seja, a partir das experincias concretas observveis e no a partir da
memria coletiva de folies. Assim, no carnaval atual ou no do passado, este tipo de
anlise, segundo a autora, demonstra que no h e que nunca houve oposio e
incompatibilidade entre os folguedos carnavalescos e a sociedade nas quais esto
inseridos: Sociedade e Carnaval sempre caminharam emparelhados, guardando a
mesma configurao e composio sociais, de tal modo que as modificaes da festa
correspondem sempre s mudanas que se verificam na sociedade urbana (QUEIROZ,
1992, p. 218).
No desenvolvimento da presente pesquisa, a viso desses autores colabora para a
identificao das mudanas estticas e visuais pelas quais passaram o carnaval das
escolas de samba nos ltimos quarenta anos. Uma das condies essenciais para se
brincar o carnaval utilizar um disfarce carnavalesco, popularmente conhecido como
fantasia. O trabalho de Queiroz revela que as fantasias carnavalescas, item essencial
para se desfilar em uma escola de samba comearam a se popularizar no Brasil dentro
dos bailes da Corte brasileira no sculo XIX e tambm nas festas populares, conhecidas
como entrudos, trazidos pelos colonizadores portugueses nos sculos XVIII e XIX.
Outra importante contribuio dos autores se d na anlise das relaes entre escolas de
samba e o Estado. No caso das escolas de samba paulistanas e cariocas esta relao
indissocivel, devido ao modelo de concurso carnavalesco oficial promovido pelo poder
pblico nas duas cidades. Tanto DaMatta quanto Queiroz observam que a festa
carnavalesca funciona como uma inverso que objetiva a manuteno das hierarquias,
como uma vlvula de escape para as tenses do cotidiano, permitida, controlada e
estimulada pelo grupo dominante, no caso brasileiro, as elites e o Estado, seja ele
autoritrio ou mesmo o democrtico, constituindo em mais um recurso utilizado pelo
poder para manipular e reforar a ordem vigente, capitalizando em seu proveito os
prprios excessos nele manifestados (SOIHET, 1999, p. 14).

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Com relao ao tema especifico das escolas de samba paulistanas, a bibliografia


bem menor e com trabalhos espaados, pois a maioria das pesquisas dedica-se a
analisar o carnaval do Rio de Janeiro.
As pesquisas sobre as escolas de samba de So Paulo, objeto de pesquisa deste
trabalho, ainda so um territrio a ser descoberto com pouca produo bibliogrfica.
Destacam-se trs trabalhos pioneiros e panormicos que mapearam as grandes
mudanas pelas quais passaram o desfile das escolas de samba, desde a poca dos
cordes, no incio do sculo XX, at as transformaes, imediatamente aps a
oficializao dos desfiles em 1968.
Esses trabalhos, prximos aos realizados pelos folcloristas, fazem uma leitura
das escolas de samba de So Paulo como manifestaes folclricas autnticas que foram
corrompidas pela oficializao das escolas de samba na dcada de 1960, acabando com
o que os folguedos carnavalescos de So Paulo tinham de autntico, ao se estabelecerem
regras e padres inspirados no carnaval do Rio de Janeiro. So os trabalhos do
pesquisador santista J. Muniz Jr., Do batuque escola de samba (1976), de Wilson de
Moraes, Escolas de Samba de So Paulo (1978) e Maria Apparecida Urbano, Arte em
Desfile (1985) e Carnaval & Samba em evoluo na cidade de So Paulo (2006).
J. Muniz Jr. faz uma anlise cronolgica das escolas de samba, trazendo a sua
filiao a musicalidade produzida pelos escravos do interior do Estado, a que ele chama,
genericamente, de batuque. Aps a abolio, muitos desses escravos migraram para as
cidades em busca de melhores condies de vida, mas mantiveram a sua musicalidade.
Eles formaram os cordes carnavalescos e posteriormente as escolas de samba. O livro
tambm traz uma segunda parte com informaes sobre a organizao, os aspectos
legais sobre o funcionamento de uma escola de samba e o regulamento dos desfiles de
carnaval, sendo esta segunda parte uma espcie de manual a todos os interessados em
como criar e administrar uma escola de samba.
Wilson Rodrigues de Moraes, folclorista, o primeiro a reconstituir a histria
social dos cordes paulistas desde sua fundao at a extino dos concursos em 1973.
No perodo estudado, o autor enxerga os desfiles como uma manifestao espontnea
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dos segmentos mais pobres da sociedade paulistana, dotados de um esprito


carnavalesco com grandes liberdades para inovao e improviso, sem regras fixas, e que
sofreram uma mudana aps a oficializao em 1968, quando os desfiles passaram a ter
regras fixas e um controle por meio de um regulamento disciplinador, a partir de um
modelo vindo do Rio de Janeiro. Alm disso, Moraes aponta que os desfiles de carnaval
de So Paulo ainda remetiam a uma festa popular, e no a um evento do municpio,
baseado na ordem e nas regras do poder pblico.

A partir de 1960, o prestgio das Escolas de Samba cariocas j em ascenso


toma novo impulso e comea a motivar os grandes meios de comunicao.
Elas passam a dominar o noticirio carnavalesco, inclusive dentro da Capital
bandeirante. Os sambistas de So Paulo olhavam esse sucesso e
procuravam no exemplo carioca um meio de sair da situao que, para eles,
era considerada ostracismo. Para os dirigentes do samba paulista aquele
sucesso se devia principalmente ao apoio do poder pblico e o mesmo
caminho teria que ser procurado para So Paulo. A oportunidade surgiu
quando os sambistas notaram que o Brigadeiro Faria Lima era sensvel aos
problemas do carnaval. Ao conquistarem o almejado beneplcito das
autoridades municipais, as escolas paulistanas envolveram-se numa srie de
aes e compromissos antes inexistentes, o que iria causar profundas e
sbitas transformaes em suas estruturas at ento vigorantes (MORAES,
1978, p. 92).

A carnavalesca e pesquisadora Maria Apparecida Urbano, que segue a linha de


folclore desenvolvida por Rossini Tavares de Lima, corrobora com a anlise feita por
Muniz e por Moraes. Urbano divide em trs etapas as evolues e mudanas que as
escolas de samba vm sofrendo. Apesar de a pesquisadora analisar o carnaval popular
negro da cidade de So Paulo, ela tem como modelo de classificao as escolas de
samba do Rio de Janeiro. De acordo com a classificao de Urbano, a primeira etapa
seria a da pureza, que marcaria a era dos cordes e algumas escolas de samba. Essas
se destacariam pela espontaneidade, trabalho artesanal dependente da habilidade e da
mo de obra da comunidade, que participava de forma voluntria. Urbano a classifica
como verdadeira representao folclrica: um momento de arte pura, verdadeira
manifestao de arte popular, com estrutura flexvel e desordenada.
A segunda etapa iria de 1940 at a dcada de 1960, poca da contaminao.
Segundo esta viso, a espontaneidade desaparece por causa da ajuda dos rgos
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governamentais escola na forma de incentivos financeiros e da utilizao de algumas


regras das escolas de samba cariocas. uma fase de transio na qual o Estado ir
impor regras e normas para a existncia legal das escolas e para o enredo. Este, a partir
da, dever versar sobre fatos, personagens, heris, lendas e datas extrados do folclore e
da histria do Brasil.
A terceira etapa, apontada por Urbano, a da transformao, vista a partir dos
anos 1960, objeto de anlise da presente pesquisa. Neste perodo as escolas esto mais
dinamizadas e transformam o desfile em espetculo, ocorrendo uma tendncia para a
industrializao de toda mo de obra carnavalesca. Do folclore passa-se arte de massa.
Dentro dessa perspectiva, a viso de mundo do sambista vai perdendo espao para a do
espectador-patrocinador. H uma imposio de regras baseadas no luxo e na riqueza da
apresentao para o sucesso da escola na avenida, a exaltao de qualidades individuais
em detrimento da coletividade. Com as regras rgidas para a composio do enredo, as
crticas sociais vo desaparecendo e dando lugar aos enredos comprados, ou seja,
grandes empresas, artistas, governos de cidades pagam para ter seu nome como tema de
escola de samba. Outro grande problema narrado pelos sambistas decorre da venda de
fantasias por altos preos para qualquer pessoa que queira desfilar, mesmo sem nunca
ter ido quadra da escola, gerando um excesso de componentes.
As principais obras sobre o carnaval de So Paulo foram escritas por Olga
Rodrigues de Moraes von Simson, a sua dissertao de mestrado intitulada A burguesia
se diverte no Reinado de Momo: sessenta anos de evoluo do Carnaval na cidade de
So Paulo (1855-1915), de 1984, e a tese de doutoramento Brancos e Negros no
Carnaval Paulistano (1914-1988), de 1989, publicada em livro em 2006. Ambos os
trabalhos foram realizados na rea de Sociologia da Cultura, sob a orientao de Maria
Isaura Pereira de Queiroz. Os dois trabalhos se complementam ao traar um grande
panorama sobre os folguedos carnavalescos populares desde a segunda metade do
sculo XIX at as transformaes ocorridas no final da dcada de 1980.
Em sua dissertao de mestrado, Simson apresenta o carnaval popular do sculo
XIX, os caiaps e os entrudos. O carnaval popular que aparece no incio do sculo XX
em So Paulo a juno da tradio do entrudo, trazida para o Brasil pelos
33

34

colonizadores lusitanos com as danas e cantos dos escravos africanos que produz outro
tipo de festa, que se renova ano a ano, com suas msicas, danas, disfarces e adereos
leves, feitos de materiais que podem ser descartados. Assim, a cada ano, novos temas e
novas msicas surgem, fantasias podem ser recriadas com materiais leves e flexveis
que permitem a dana e as inovaes (SIMSON, 1984).
Os resultados de sua pesquisa foram possveis atravs de um grande projeto de
histria oral desenvolvido na dcada de 1980, que reconstituiu a memria do carnaval
paulistano5. As entrevistas transcritas esto disponveis no Laboratrio de Histria Oral
(LAHO) do Centro de Memria da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e
foram consultadas para reconstituir partes da presente dissertao, principalmente
relativas ao processo de oficializao do carnaval da cidade em 1968, e ao processo de
fundao da UESP, pois trazem depoimentos de sambistas, hoje falecidos que
participaram ativamente destes processos.
Esse trabalho se estrutura em torno do contraste entre as brincadeiras de Momo
dos brancos e negros na cidade de So Paulo. A primeira parte da tese discorre sobre os
folguedos dos bairros operrios da Lapa, Brs e gua Branca nas primeiras dcadas do
sculo XX e que desapareceram ao longo dele.
A segunda parte da tese sobre o carnaval dos negros, remontado s suas
origens rurais, dos caiaps, em Pirapora, passando pelos cordes carnavalescos at as
escolas de samba. Os caiaps eram uma encenao feita durante os festejos de Momo,
em que negros se vestiam de ndio e danavam o caiap. At o estudo de Simson, pouco
se sabia sobre ele. Quem revelou essa modalidade de brincadeira de carnaval para a
pesquisadora foi Dionsio Barbosa, tambm conhecido como Nhonh da Chcara,
fundador do primeiro cordo carnavalesco na cidade de So Paulo, em 1914. Ao
entrevist-lo, no final da vida, e ao mencionar que tinha interesse no carnaval dos anos
1800, Dionsio Barbosa disse que o carnaval danado pelos negros no sculo XIX era o
caiap, e que o pai dele era grande danarino de caiap. Por conta do estado de sade de
5

Projeto Memria do Carnaval Paulistano, desenvolvido em parceria entre o Museu da Imagem e do Som
de So Paulo (MIS-SP) e o CERU (Centro de Estudos Rurais e Urbanos) da Universidade de So Paulo.
Os udios das entrevistas esto disponveis para a consulta no MIS e no LAHO (Laboratrio de Histria
Oral do CMU/Unicamp).

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Seu Dionsio, essa histria dos caiaps no pde ser contada por ele, e a pesquisadora
recorreu s Atas da Cmara Municipal e a uma pesquisa em arquivos para conseguir
registros sobre os caiaps.
Simson tambm descreve minuciosamente o processo histrico dos cordes
carnavalescos, como eles vo crescendo, estruturando-se, estabelecendo laos
comunitrios slidos e o seu contato com a sociedade mais ampla (SIMSON, 1989).
O longo perodo estudado pela obra (1914-1988) possibilita abrir caminhos para novos
trabalhos em questes que ficaram em aberto ou no tiveram a devida ateno, por
conta da abordagem mais panormica dada ao perodo aps 1968, j que a autora se
debrua mais nas primeiras dcadas do carnaval heroico, deixando um pouco de lado
a anlise mais precisa do processo que levou extino dos cordes negros na cidade,
que ser discutido no presente trabalho.
Outra grande contribuio do trabalho de Simson o mapeamento dos territrios
e as transformaes urbanas da cidade, ao longo do sculo XX, nos bairros onde se
desenvolveram as brincadeiras de Momo, mostrando o carnaval estreitamente vinculado
s modificaes urbanas.
Ao analisar os cordes e posteriormente as escolas, Simson analisa a construo
de um carnaval que adquire progressivamente uma escala metropolitana. A pesquisa no
livro Carnaval em Branco e Negro (2006), desdobramento da tese de doutorado,
tambm se destaca um lbum de fotos registrando os desfiles carnavalescos dos brancos
e negros no carnaval de So Paulo. Este lbum tambm um importante documento
imagtico para analisar os desfiles carnavalescos da cidade de So Paulo.
Dentre as produes mais recentes se destacam algumas pesquisas que optaram
por realizar recortes especficos e histricos a partir de estudos de caso, como as
dissertaes de Reinaldo Soares da Silva, O Cotidiano de uma escola de samba
paulistana: o caso da Vai-Vai (1999), e de Kelly Adriano de Oliveira, Entre o ldico e a
luta: Leandro de Itaquera, uma escola de samba na cidade de So Paulo (2002). Estes
so estudos da rea de Antropologia realizados na Universidade de So Paulo e que

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36

procuram retratar a vivncia, a mstica e a organizao vigente dentro de uma escola de


samba contempornea.
O trabalho de Soares da Silva sobre o Vai-Vai analisa as atividades dirias
promovidas pelos componentes das escolas de samba, ou seja, os ensaios, festas,
batismos, seleo do samba-enredo, que so as atividades desenvolvidas na quadra da
escola e na rua, j que a quadra do Vai-Vai pequena e no comporta o grande nmero
de participantes. O antroplogo diferencia as atividades realizadas na quadra da escola
das desenvolvidas no barraco da escola de samba e nas oficinas de costura das alas,
onde no predomina o trabalho voluntrio e a diverso, mas o trabalho remunerado por
produtividade, revelando a outra face do carnaval paulista, totalmente profissionalizado
e mediado pelas relaes do trabalho. Estes profissionais, incluindo o carnavalesco da
escola, ficam isolados, distantes e separados fisicamente (j que o barraco fica a mais
de 10 km da quadra da escola), da rede de sociabilidade e convivncia estabelecida
dentro de uma escola de samba (SILVA, 1999).
O trabalho de Kelly Adriano Oliveira observa os preparativos da escola de
samba Leandro de Itaquera para o desfile do grupo Especial de 1999, tentando
desvendar as relaes entre as propostas polticas do movimento negro na cidade e as
associaes socioculturais como as escolas de samba, enquanto formas de sociabilidade
desenvolvidas no cotidiano urbano de moradores da periferia da cidade. A autora
questiona, de um lado, as oposies entre carnaval, ou festas em geral, e trabalho, assim
como faz Soares da Silva; de outro lado, as relaes predeterminadas entre a populao
negra da cidade e excluso, mostrando que, sob o aspecto econmico e poltico, a
identidade negra se afirma de modo negativo, porm, do ponto de vista cultural e social,
essa identidade avaliada positivamente.
Ainda nesta linha de contrapor carnaval e trabalho, h o livro Desfile na avenida,
trabalho na escola de samba: a dupla face do carnaval (2007), da sociloga Leila Maria
da Silva Blass, que procura desvendar os vrios processos de produo e elaborao
dentro de uma escola de samba, buscando compreender a pluralidade de prticas de
trabalho e do emprego que essa produo supe (BLASS, 2007, p. 36). Leila Blass ir
mapear toda a produo profissional dentro das grandes escolas de samba que se
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desenvolve dentro do barraco e contrapor este trabalho profissional, com vnculo


empregatcio, mediante salrio, e a explorao do capital ao trabalho ldico que os
sambistas desenvolvem dentro da quadra da escola.
Uma das poucas biografias feitas sobre os personagens das escolas de samba na
cidade de So Paulo a da jornalista Ana Braia, intitulada, Memrias de Seu Nen da
Vila Matilde (2000), sobre o Seu Nen da Vila Matilde, reconstituindo a trajetria de
vida desta importante personagem do carnaval de So Paulo. Atravs dessa trajetria, a
presente pesquisa pode compreender determinadas mudanas internas no universo
especfico de uma escola de samba, a viso de mundo de um importante sambista da
cidade, os desfiles mais marcantes da Nen, seus principais sambas-enredos e as
disputas de campeonatos.
Para compreender o carnaval do sculo XXI, h o livro de Christian Dennys
Monteiro de Oliveira, Geografia do Turismo na Cultura Carnavalesca (2007), que
investiga uma geografia do turismo das escolas de samba responsvel por criar o
Sambdromo, um lugar especfico para os desfiles. O livro contribui para a dissertao
ao descrever de maneira minuciosa o significado, a ocupao e os desafios do
Sambdromo, bem como a carncia de um projeto poltico e cultural que o vincule
aquele cultura do samba na cidade ao longo do ano.
Dos ltimos cinco anos destacam-se algumas dissertaes, como a de Vanir de
Lima Belo, O enredo do carnaval nos enredos da cidade: dinmica territorial das
escolas de samba em So Paulo (2008), oriunda da rea de Geografia Urbana e que trata
da relao das escolas de samba com o espao urbano da cidade de So Paulo, buscando
ver as escolas dentro da dinmica de ocupao dos espaos da cidade. A rea de
musicologia tambm vem dedicando alguns trabalhos ao tema das escolas de samba de
So Paulo, como o produzido por Chico Santana no departamento de Musicologia do
Instituto de Artes da Unicamp e intitulado A batucada da Nen de Vila Matilde:
formao e transformao de uma escola de samba paulistana (2009), que estudou a
bateria da escola de samba Nen de Vila Matilde, relacionando a trajetria musical da
escola com a incorporao de elementos organizacionais, estticos e musicais dos
cordes carnavalescos paulistanos. Seu trabalho importante por ser o pioneiro a
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realizar uma anlise musical dos padres rtmicos de uma bateria de escola de samba da
cidade de So Paulo. A dissertao de Santana foi utilizada no segundo captulo deste
trabalho para compreender as mudanas trazidas pela incorporao de elementos
musicais das baterias das escolas de samba do Rio de Janeiro.
Por fim, h a dissertao de mestrado de Clara de Assuno Azevedo intitulada
Fantasias Negociadas. Polticas do Carnaval Paulistano na Virada do Sculo XX
(2010), que trata das polticas do carnaval paulistano e de suas relaes institucionais no
final do sculo XX, mais especificamente a relao da Prefeitura de So Paulo e da
Secretaria de Turismo com a empresa So Paulo Turismo (SP Turis), que responsvel
por administrar o espao do Sambdromo dentro do Complexo do Anhembi e
estabelecer os contratos necessrios para a realizao dos desfiles a cada ano. O trabalho
de Azevedo contribui com a presente dissertao, pois, tambm explora a relao desta
com as federaes carnavalescas, Liga e UESP, e, por ltimo, e como as federaes se
posicionam frente s escolas de samba, destrinchando toda a estrutura hierrquica
institucional dos desfiles oficiais das escolas de samba na cidade de So Paulo.

2. Diviso dos captulos


No primeiro captulo, buscamos reconstituir brevemente a trajetria dos cordes
carnavalescos para entendermos as tenses e demandas dos sambistas ao reivindicar
verbas do poder pblico, o que resultou na oficializao dos desfiles das escolas de
samba e contribuiu com a extino dos cordes carnavalescos nos bairros da cidade.
Nos dedicamos a analisar as mudanas institucionais a partir das mudanas na forma e
na organizao dos desfiles de carnaval. Estas so referentes s mudanas na legislao
municipal e postura dos rgos pblicos frente aos desfiles carnavalescos. Durante o
perodo estudado por esta pesquisa, a cidade de So Paulo teve mais de onze prefeitos, e
a maior parte deles, no perodo entre 1969 e 1985, ou seja, durante a ditadura militar, foi
nomeada pelo governador do Estado, sem eleio. Este perodo sem eleies municipais
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compreende a maior parte da nossa pesquisa. Apenas Jos Vicente Faria Lima (19651969), Jnio Quadros (1986-1988), Luiza Erundina (1989-1992) e Paulo Maluf (19921996) foram eleitos pelo voto direto.
So ainda muito importantes as mudanas institucionais dentro das federaes
carnavalescas, em especial, os regulamentos e as relaes da UESP e da Liga com o
poder pblico. A Unio das Escolas de Samba Paulistanas (UESP) foi fundada em 1973
com o objetivo de reunir as escolas de samba e blocos e represent-los junto ao poder
pblico. J a Liga Independente das Escolas de Samba de So Paulo (Liga) foi fundada
em 1986, a partir de membros descontentes com a atuao da UESP, e hoje representa
as escolas do Grupo Especial e do Grupo de Acesso (antigos Grupos I e II). A partir do
dilogo sistemtico entre as entidades e a Prefeitura possvel estabelecer como essas
relaes foram sendo articuladas, podendo ser visualizadas nas modificaes e
transformaes que as escolas de samba sofreram. Essas federaes de representantes
das escolas de samba tm o papel de organizar, anualmente, em conjunto com a
Prefeitura de So Paulo e a Secretaria de Turismo, os desfiles carnavalescos, alm de
intermediar e representar as escolas de samba junto aos rgos pblicos, como a
Prefeitura e suas secretarias, e tambm se relacionar com as autarquias e a Justia. A
relao entre os rgos administrativos municipais e as entidades carnavalescas variou
de acordo com a administrao, assim como a quantidade de verbas repassadas para as
escolas e os locais destinados realizao dos desfiles.
No segundo captulo so analisadas as principais transformaes estticas e
musicais nos desfiles das escolas de samba, desde a oficializao at os primeiros
desfiles ocorridos dentro do Sambdromo. Como parte das transformaes estticas,
compreendem-se fantasias, alegorias, materiais utilizados para confeco, a evoluo e
profissionalizao dos barraces e as mudanas na evoluo e na dana dos desfiles. As
transformaes musicais compreendero as principais mudanas nas baterias das
escolas de samba e tambm as mudanas dentro dos sambas-enredos durante o perodo
estudado. Neste captulo optamos por uma abordagem panormica, na qual no sero
analisadas todas as escolas e sambas, mas procuraremos destacar as mudanas
profundas que influenciaram na transformao dos desfiles da cidade de So Paulo,
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levando-o a perder cada vez mais suas caractersticas originais para se buscar um padro
cada vez com uma maior aproximao das escolas de samba do Rio de Janeiro.
O terceiro captulo discorre sobre as transformaes ocorridas a partir de 1991,
quando os desfiles das principais escolas da cidade deixam o espao pblico da rua e
passam a se realizar no Sambdromo do Anhembi. A partir da documentao da
empresa Anhembi Turismo, ser analisado o projeto do Sambdromo e as principais
questes envolvendo sua construo, assim como a mudana nas relaes e nas
demandas dos sambistas com o poder pblico. Foi feito o esforo para analisar, do
ponto de vista simblico, o que significou a conquista de um local fixo para os desfiles,
garantindo, com isso, que a mesma prtica de desfile ser realizada por muitos anos, e,
por outro lado, quais as perdas que os sambistas tiveram ao deixar o espao pblico para
desfilar em um local privado. A partir dos anos 1990, as escolas de samba do Grupo
Especial so administradas sob uma lgica empresarial, com vrias fontes de
financiamento, contudo, atentamos que essa lgica empresarial no reflete a realidade da
esmagadora maioria das escolas de samba da cidade, j que as escolas menores dos outros
grupos ligados UESP (I, II, III, IV) permanecem apresentando caractersticas mais
prximas dos desfiles dos perodos anteriores. Estas escolas no tm a visibilidade e os
recursos das grandes entidades, e dependem, ainda, do trabalho voluntrio e artesanal,
utilizando, na maior parte das vezes, a casa dos prprios componentes para produzir e
armazenar os instrumentos, fantasias, adereos, alegorias e realizar a maior parte de suas
atividades ao longo do ano.
Por fim, conclumos o trabalho, lanando um olhar para o final desse processo
iniciado em 1968, com a oficializao dos desfiles carnavalescos da cidade de So
Paulo e concludo com a construo com verba pblica de um espao dedicado
exclusivamente a esse fim. Tambm lanamos ateno para as transmisses televisivas
dos desfiles das escolas de samba de So Paulo, quando so retomadas algumas
questes relacionadas com o segundo captulo, que, como j foi descrito, trata das
modificaes estticas, mas tentando compreender o porqu dessas mudanas, j que
elas atendem a demandas no apenas de acordos estabelecidos com o Estado, mas
tambm de acordos estabelecidos com a indstria cultural, contribuindo para que os
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desfiles das escolas de samba se tornem cada vez maiores, sendo referncia no s no
Brasil, mas tambm no exterior e tentando alcanar seu objetivo de rivalizar com as
escolas de samba do Rio de Janeiro. O outro lado dessa relao que, para atender a
essas demandas, as escolas devem seguir um padro, que as tornam cada vez mais
semelhantes, sem caractersticas prprias atravs das quais o pblico em geral possa
distinguir os desfiles de uma determinada escola, comparando-o com os de outra.
Na segunda parte do trabalho esto transcriadas na ntegra os depoimentos dos
sambistas que nos concederam entrevista, seguindo os procedimentos metodolgicos da
Histria Oral. Sem estes depoimentos, muitas lacunas ficariam abertas, dentro da
presente pesquisa. Foram escolhidas para colaborar com esta pesquisa pessoas que
viveram e testemunharam as transformaes pelas quais passou o carnaval da cidade de
So Paulo durante o perodo estudado (1968-1996).

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I AS TRANSFORMAES INSTITUCIONAIS DAS


ESCOLAS DE SAMBA DA CIDADE DE SO PAULO

1.1 Os cordes
Os chamados cordes carnavalescos formaram o que chamamos hoje de escolas
de samba, as organizaes carnavalescas e artsticas paulistanas. Foi atravs desses
cordes, que a populao negra e pobre paulistana participava das Folias de Momo, no
incio do sculo XX.
Nessa poca, ainda no havia desfiles populares organizados e as festividades
realizadas pelos cordes ainda no contavam com o ritmo do samba. A parte musical
dos cordes foi aos poucos recebendo influncias desse ritmo, como o batuque e o
samba-de-bumbo6. O batuque era uma denominao um pouco mais genrica dada a
princpio pelos portugueses para designar a dana dos negros da frica. Como mostra
Luis da Cmara Cascudo, no final do sculo XIX e incio do sculo XX, no Estado de
So Paulo, nas regies de Piracicaba e Sorocaba e mesmo na capital, o batuque era
danado com frequncia, improvisando-se uma coreografia que seguia os ritmos do
tambu, do quinjengue, da matraca e do guai. A partir dessa base instrumental, eram
improvisados versos. O batuque era tido como uma dana de terreiro e tambm
conhecido em cidades como Tiet, Porto Feliz, Laranjal Paulista, Capivari, Botucatu,
Itu, Tatu e em outros municpios que contavam com a presena de antigos escravos no
Estado de So Paulo (CASCUDO, 2011).
Os folguedos do carnaval paulistano possuem grande influncia rural e religiosa,
proveniente dessas festas e procisses do interior do Estado. A maior parte dos
componentes dos cordes convivia regularmente com o chamado Samba de Pirapora,
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Para o folclorista Luis da Cmara Cascudo, h duas variantes do samba tradicional em So Paulo,
consideradas como o ancestral do samba cosmopolita. Elas guardam traos que os aproximam do jongo e do
batuque, seus parentes prximos e por muitos considerados seus antecessores. A de Samba de Bumbo tem
como ponto de aglutinao a Festa do Bom Jesus, em Pirapora; j a de Leno, a devoo familiar do grupo a
So Benedito. Apresentam letras e melodias singelas e funcionais, algumas tradicionais, outras estruturadas
de acordo com as circunstncias cotidianas.

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cuja caracterstica principal era a presena do bumbo. Esse contato se dava


principalmente durante as festas de Bom Jesus, realizadas no incio de agosto, quando,
em romaria, os negros iam at a cidade de Pirapora do Bom Jesus. A festa consistia em
uma manifestao religiosa na cidade, e, paralelamente aos cultos e procisses,
acontecia uma reunio de negros que cantavam e danavam o ritmo do samba. Esses
negros se reuniam nos barraces, que eram locais de hospedagem improvisada para os
romeiros. E eram nesses espaos que se realizavam os encontros de sambistas, na cidade
de Pirapora do Bom Jesus.
Para Osvaldinho da Cuca, sambista e pesquisador do samba no Estado de So
Paulo, o samba-de-bumbo recebe esta denominao a partir da incluso do bumbo,
instrumento utilizado pelas bandas marciais nas cantorias das festas religiosas do
catolicismo popular em Pirapora. Estas festas tinham o acompanhamento de violas,
cavaquinhos, chocalhos e percusso corporal feita por mos e ps. Em outras regies do
Estado eram utilizados os primitivos tambus tambores escavados em troncos de
rvores , comuns nos batuques paulistas, porm, o seu grande tamanho e peso,
dificultavam o seu transporte. Por isso coube ao bumbo a funo de realar o carter
rtmico das canes, favorecendo a expresso dos vigorosos matizes musicais africanos
(CUCA; DOMINGUES, 2009, p. 25).
As manifestaes musicais de Pirapora do Bom Jesus receberam posteriormente
contribuies de elementos musicais originalmente dispersos, como o jongo, a catira, a
caninha verde e Folia do Divino, trazidas por romeiros de diversas regies do Estado de
So Paulo, do Sul de Minas, do Mato Grosso e do Norte do Paran. Tendo como ponto
de vista a composio, o repertrio tocado pelo samba-de-bumbo era principalmente a
improvisao de versos sobre uma base meldica/harmnica bastante simples em
longos desafios. Os desafios musicais so disseminados em todo o pas recebendo
diversos nomes, como duelo de viola, partido-alto, repente, embolada etc. e
destacam-se nestes desafios de improviso matizes ibricos e africanos. No caso dos
desafios do samba-de-bumbo, h predominncia do canto africano, pois, somado
influncia negra em sua sntese rtmica, costumavam ser realizados versos improvisados
com grande uso de mensagens de duplo sentido, caractersticos da comunicao velada
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desenvolvida pelos escravos para driblar a vigilncia dos senhores durante o perodo
escravista (CUCA; DOMINGUES, 2009, p. 27).
Dona China, primeira porta-bandeira da escola de samba Vai-Vai relembra que,
quando criana, ia com sua famlia para a festa:

Sempre no ms de agosto amos pra Pirapora do Bom Jesus. (...) Era to


lindo! Tinha congada, catira, tinha a dana de roda, as mulheres com aquelas
saionas, danando e batendo aquele tambor, eu dancei at com menino
pequenininho assim, menino bom pra danar sabe, danar umbigada, aquelas
coisas lindas, depois tambm tem a dana de So Gonalo, o pessoal vem
danando, e bate pra l, bate pra c, aquelas fitas, coisa maravilhosa.

Com a abolio da escravido e o desenvolvimento e a expanso da cidade de


Pirapora, muitos desses antigos escravos se mudaram para a cidade de So Paulo e
trouxeram consigo o ritmo do samba:

Como a cidade de Pirapora era muito pequena, no contando com hotis e


hospedarias, foram construdas nessa poca grandes barraces para abrigar os
romeiros. A parte profana da festa era realizada nesses barraces e ali se davam
os grandes combates de samba entre grupos rivais, representando cada um a sua
cidade. A romaria a Bom Jesus de Pirapora, apesar de ser uma devoo religiosa,
propiciava, entretanto, uma ocasio de grande divertimento para os fiis, com
desafios de samba, passeios de barco pelo Tiet, desfile de rua, alm de promover
um encontro entre todos os romeiros (SIMSON, 1989, p. 98).

Outra data importante sempre comemorada pelo contingente negro da cidade era
o dia trs de maio dia da Festa de Santa Cruz , atravs de rezas e procisses junto
Igreja das Almas dos Enforcados, no bairro da Liberdade. Da mesma forma era sempre
lembrado o dia de So Benedito.
Nesse primeiro momento, as manifestaes musicais tradicionais negras eram
discriminadas pela sociedade branca dominante, que frequentemente proibia os negros
de utilizarem o espao pblico para essas manifestaes. Assim, para impedir o direito
reunio e organizao dos negros, prtica exercida desde a escravido, incitava-se os
rgos do poder pblico a reprimi-las. A nica exceo era feita s festas inerentes ao
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calendrio oficial catlico, utilizadas pelos negros para cultuar suas razes, atravs do
sincretismo religioso.
Em 12 de maro de 1914 nascia o primeiro cordo da cidade, o Grupo
Carnavalesco Barra Funda (MORAES, 1978, p. 34). Fundado por Dionsio Barbosa e
seus familiares no bairro de mesmo nome, ganhou nas ruas o apelido de Camisa
Verde j em seu primeiro desfile, com doze pessoas vestidas com camisas verdes,
calas brancas e chapus de palha. Nessa poca, os desfiles ainda no contavam com o
ritmo do samba; os instrumentos musicais eram apenas pandeiros e chocalhos feitos
com madeira e tampinhas de cerveja, e s no ano seguinte que conseguiram um surdo.
Sobre esse cordo, o jornalista e sambista Jangada relembra:

Em 1914, a cidade possua trs ncleos onde se realizavam festejos


carnavalescos: Brs, Avenida Paulista e Centro. neste ano que, liderado pelo
negro Dionsio Barbosa, surge o grupo carnavalesco Barra Funda, o primeiro
cordo carnavalesco de So Paulo, composto por apenas dez folies, que animava
as ruas por onde passava, chegando mesmo a ser convidado para abrilhantar os
bailes da aristocracia na Av. Paulista. A coragem de Dionsio merece destaque,
principalmente a considerar-se que, naquele tempo, era preciso muita fibra para
sair s ruas, j que a polcia achava que diverso carnavalesca era privilgio de
rico, o povo negro e pobre tinha mesmo que trabalhar (LTIMA HORA,
04/03/1976).

Apesar de ser o primeiro agrupamento criado por negros para os festejos de


carnaval, j existiam diversos clubes, grmios e associaes formados por negros na
cidade de So Paulo. Destacam-se o Club 13 de Maio dos Homens Pretos, fundado em
1902; o Centro Literrio dos Homens de Cor, fundado em 1903; a Sociedade
Propugnadora 13 de Maio, fundada em 1906; o Centro Cultural Henrique Dias, fundado
em 1908 e, pouco tempo depois de terem fundado o Grupo Barra Funda, surgiram a
Sociedade Unio Cvica dos Homens de Cor, fundada em 1915, e a Associao
Protetora dos Brasileiros Pretos, fundada em 1917 (DOMINGUES, 2007).
A pesquisadora Regina Pahim Pinto contabilizou em sua pesquisa o nmero de
123 associaes formadas por negros na cidade de So Paulo entre 1907 e 1937,
incluindo os agrupamentos carnavalescos (PINTO, 1993, p. 84). A criao destas
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associaes no mesmo perodo do surgimento do Grupo Barra Funda deixa evidente que
esta no foi uma atitude isolada de Dionsio Barbosa, mas j utilizada pelos negros da
cidade como forma de identidade para organizaes assistenciais, polticas, literrias,
culturais e mesmo para a construo de atividades de lazer.
Pouco depois de ser fundado o grupo carnavalesco Camisa Verde, formou-se
outro cordo nas imediaes da Barra Funda: a agremiao Campos Elseos. Esta
nasceu da estrutura de um grupo menor, conhecido como Bloco dos Bomios,
fundado em 1913 a partir de um grupo de fanfarres que cantavam nos bares da regio
da Avenida So Joo, no centro, precisamente na Alameda Glete. Entre seus membros
importantes estavam Alcides Marcondes e Jos Euclides Santos, que entraram no grupo
em meados de 1915.
Os cordes se tornaram, durante a primeira metade do sculo XX, uma importante
expresso de lazer dos negros e pobres paulistanos. Os primeiros surgiram em bairros
distintos, mas com caractersticas sociais prximas: bairros operrios da capital, com
grande concentrao de afrodescendentes e imigrantes, como Barra Funda, onde foi
fundado o primeiro, Bixiga e Baixada do Glicrio. Esses bairros tinham em comum o fato
de se encontrarem prximos ao centro urbano e comercial da cidade. Alm disso, havia
bairros ricos nas suas proximidades, possibilitando empregos domsticos aos segmentos
negros. Suas caractersticas geogrficas, de baixada, ou seja, locais alagadios ou de
encostas ngremes propiciavam o oferecimento de moradias a baixo custo (SIMSON,
2007, p. 84).
Em So Paulo, dois elementos motivavam o desfile dos cordes no carnaval: em
primeiro lugar, a tradio; em segundo, o fato de as fbricas serem fechadas pelos
patres aos sbados, domingos e teras-feiras gordas, ou seja, teras-feiras de carnaval.
Como j mencionamos anteriormente, a partir do modelo desenvolvido pelo
cordo da Barra Funda, os instrumentos dos primeiros cordes basicamente eram feitos
com madeira e tampinhas de cerveja; em seguida entraram instrumentos tpicos de
bandas militares, o conjunto de sopros de metais e palhetas, como saxofone, trombone e

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clarineta e tambm conjunto de cordas7. Mais tarde, estes instrumentos de banda


perderam importncia e foram introduzidos instrumentos como cavaquinho, bandolim,
surdo, caixa e chocalho; com estes instrumentos, os cordes adquiriram, aos poucos, o
ritmo da marcha-sambada e, posteriormente, do samba (MORAES, 1995). Entre os
instrumentos de percusso dos cordes predomina o bumbo que influencia o ritmo
pesado do samba paulista, herdeiro tambm das marchas cantadas nos festejos dos
santos populares em Portugal (BLASS, 2007). Essa presena relativamente grande de
instrumentos meldicos e harmnicos explica, em parte, o pouco uso da percusso, pois
o volumoso som desta fatalmente encobriria os demais.
Quanto letra do samba hoje samba-enredo, na poca, as marchas-sambadas
, podemos observar que grupos como Camisa Verde utilizavam msicas prprias,
compostas todos os anos pelos seus integrantes. Outros utilizavam marchinhas que
tocavam no rdio, que se tornava o meio de comunicao mais popular da poca. O
cordo Camisa Verde continuou fazendo desfiles at 1939, mas, por falta de recursos,
ficou sem desfilar at 1953, quando ressurgiu pelas mos de Inocncio Tobias, o
Mulata, casado com uma sobrinha de Dionsio e morador do bairro da Barra Funda.
Junto com os amigos Colombina, Feij e Bagd, ps o cordo novamente na rua.
Atravs de um mapeamento que visa identificar a criao dos principais cordes
entre os bairros da cidade, observamos que, em pouco tempo, a novidade se espalhou e
foi adotada por inmeras comunidades e bairros pobres. Essas festas eram o principal
e, muitas vezes, o nico lazer de seus moradores, operrios e trabalhadores
domsticos em sua maioria.
Sobre a estrutura dos cordes carnavalescos, Osvaldinho da Cuca ressalta:
Os cordes eram pequenas turmas de familiares, vizinhos e amigos que saam
s ruas com figurinos simples, feitos em casa, e com formao musical muito
reduzida e improvisada. Deve-se sempre desconfiar daqueles que descrevem
um cordo como uma multido de encher as ruas, vestida em trajes
esplendorosos e danando ao som de uma msica ensurdecedora (CUCA;
DOMINGUES, 2009, p. 44).

Ficha tcnica 1992. Centro de Documentao e Memria do Samba, FT, 1992.

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At os anos 1930 seriam criados muitos outros cordes. Nessa dcada, os


cordes caram definitivamente no gosto das camadas populares paulistanas. Os
principais estavam no bairro da Barra Funda, Flor da Mocidade e Geraldino; nos
Campos Elseos, o de mesmo nome; na Pompia, Esmeraldino; na Casa Verde, As
Caprichosas; na Liberdade, Mocidade do Lavaps; no Cambuci, os Marujos
Paulistas; em Pinheiros, o Caveira de Ouro; no Bixiga, o tradicional Vai-Vai; alm
de outros, como Termiano, Metalrgica Mar Rugerone, Victoria Paulista,
Nacionalista, Irmos Patriotas e Diamante Negro. At que, em 1934, surge o
Baianas Paulistas tambm chamado de Baianas Teimosas , na regio da Rua
Lavaps, trazendo grandes inovaes, como as "baianas" que davam nome ao cordo.
Alcides Marcondes, um de seus fundadores, juntou-se a Chico Pinga e outros
habitantes do Glicrio e Liberdade, formando uma bateria. Entre as mulheres, ento
encarregadas pela dana, estavam Jovina, Madrinha Eunice (fundadora da primeira escola
de samba de expresso de So Paulo, a Lavaps), Nair, entre outras. O grupo estava
localizado na rua Tamandar, na Liberdade8.
Nesse tempo, o Vai Vai fundado em 1930 no bairro da Bela Vista, por
Benedito Sardinha, Frederico Penteado, Dona Casturina, Dona Iracema, Tino, Guariba,
Livinho e Henrico desfilava com cerca de cem pessoas, todas vestidas j nas cores
branco e preto, com o pavilho sob a responsabilidade de Dona Iracema, evidenciando o
papel de destaque que as mulheres tiveram no carnaval paulistano. O smbolo escolhido
foi uma coroa adornada por dois ramos de caf (SOARES, 1999, p. 26).
As mulheres foram muito importantes para o crescimento dos cordes. Desde a sua
formao, elas eram as responsveis pelas fantasias, pelos panos e at por alas inteiras, e
pela arrecadao de fundos com comerciantes e colaboradores. Tambm participavam dos
desfiles, normalmente como amadoras (pastoras), apresentando-se em filas paralelas,
fazendo vrias evolues.
Muitas delas levavam e incentivavam seus filhos a participarem dos desfiles. Seu
Zezinho do Morro da Casa Verde, falecido baluarte do carnaval paulistano, relatou, em
8

Depoimento de Deolinda Madre (Madrinha Eunice). Acervo MIS-SP (Museu da Imagem e do Som).
Fita n 112.23.24.

48

49

depoimento para o Museu da Imagem e do Som (MIS), como se tornou integrante dos
primeiros cordes negros, aos oito anos de idade:

Eu conheci o Barra Funda em 1918, a minha me me levou para uma festa


que tinha em So Bom Jesus de Pirapora. (...) Foi l que fiquei conhecendo o
Barra Funda... Em 18 eu desfilei l com eles, l em Pirapora. Quando em 20,
eu j comecei a desfilar aqui em So Paulo, ainda no tinha bem a noo da
coisa9.

Desde o final da dcada de 1940 e incio dos anos 1950, as escolas e cordes
comearam a ganhar os bairros mais afastados do centro devido, sobretudo, ao
encarecimento das moradias populares localizadas no centro da cidade. Com a ecloso
da Segunda Guerra Mundial, houve um grande aumento no preo dos materiais de
construo, dos aluguis e terrenos. Alm disso, houve grande especulao imobiliria
nesse perodo, obrigando os moradores pobres, negros, em sua maioria, a migrar para
bairros da periferia onde os aluguis eram mais baratos. Nabil Bonduki explica esse
fenmeno:

O problema dos despejos se constituiu, no perodo do ps-guerra e no


perodo populista, no mais importante e angustiante problema habitacional
surgido nos bairros tradicionais e consolidados de So Paulo. O significado
real desta questo mais amplo do que a primeira vista poderia parecer:
representa o processo concreto de expulso da populao de baixa renda das
moradias de aluguel produzidas principalmente com capital privado em reas
urbanas relativamente bem equipadas e situadas prximas aos locais de
emprego. bastante difcil estimar o total de famlias despejadas durante o
perodo mais agudo da crise de habitao, ou seja, entre 1945 e 1948. Em
1945 foram assinadas pelos juzes 2614 aes de despejo, nmero que subiu
a 5.121 em 1946 e que atingiu somente em janeiro de 1947, 491 casos
(BONDUKI, 1992, p. 7).

Os cordes paulistanos obedeciam a uma sequncia prpria e original durante suas


apresentaes. O desfile era aberto por um grupo de balizas ou contrabalizas que variava de
dois a sete elementos, em sua maioria, jovens geis, munidos de capas de cetim e batutas de
9

Depoimento de Seu Zezinho do Morro da Casa Verde. Acervo MIS-SP (Museu da Imagem e do Som).
Fita n 112.2. Data da Entrevista: 24/04/1981.

49

50

madeira. O termo designa a pequena batuta de madeira que os jovens utilizavam para
realizar evolues e malabarismos. As batutas eram cuidadosamente confeccionadas com o
dobro da medida do antebrao do baliza.
Esses balizas possuam funes de abre-alas e defensiva ao mesmo tempo, pois no
deixavam ningum se aproximar do smbolo mximo do folguedo: o seu estandarte. Quem
introduziu os balizas nos desfiles carnavalescos dos cordes foi Dionsio Barbosa, ao
assistir uma parada militar no Rio de Janeiro10. No incio dos cordes esta funo era
exercida somente por homens.
Tornaram-se comuns nos anos 1930 o acirramento das disputas fsicas entre os
cordes com a finalidade de pegar o estandarte do outro cordo rival. Para aquele que
perdia o estandarte, era uma derrota desmoralizante; ento, para evitar sua perda, surge,
atrs das balizas, um grupo de batedores (bastedores) composto por homens munidos
de lanas, que ficavam frente do porta-estandarte. Estes batedores no possuam
nenhuma funo plstica ou musical, sendo apenas responsveis por defender o
estandarte e afastar os curiosos que ficavam na rua e atrapalhavam a passagem do
cordo. A denominao bastedores aparece em uma antiga marcha do cordo Camisa
Verde da dcada de 1920 que cita as diversas partes constitutivas do cordo:

Amadoras, estrelas do Verde


Marchemos, vamos marchar
Que a vitria deste ano
Ns queremos conquistar.
E a nossa porta-bandeira
Com o nosso pavilho,
Convidemos as amigas
A florescer neste cordo,
E os nossos bastedores,
Cada um com seu basto,
Convidemos todos,
10

Depoimento de Dionsio Barbosa a Olga von Simson e a Jos Ramos Tinhoro. Laboratrio de Histria
Oral-Unicamp. Pasta D. Barbosa, p. 48.

50

51
Rei dos Folies (SIMSON, 2007, p. 151)

Na dcada de 1940, as disputas j no se davam na forma de confrontos e


agresses fsicas, e os concursos j eram organizados por emissoras de rdio, jornais e
firmas comerciais. A competio se torna algo muito organizado e as mulheres passam a
tambm ocupar os postos de baliza, devendo ter flexibilidade, agilidade e graa.
Alm destas balizas, dos contra balizas e dos batedores, havia um mestre de
cerimnias para proteger o pavilho. Este nunca devia afastar-se da porta-estandarte,
devendo se comportar como uma espcie de mestre-sala. Seu Zezinho do Morro da
Casa Verde descreve assim os mestres de cerimnias: Na frente do estandarte tinha um
diretor, que hoje eles diz mestre-sala. (...) Antigamente era mestre de cerimnias. Ele
sambava em volta da porta-bandeira, sempre com um pauzinho na mo. Se voc
chegava l, ele j cutucava. No podia chegar perto da porta-estandarte11.
Depois deles, na sequncia de organizao dos cordes vinha o grupo de
instrumentos com forte influncia do choro: violes, cavaquinhos, flautim, clarinete,
saxofone, pandeiros e tambm chocalhos, sempre executados por homens. Em seguida,
desfilavam as alas de fantasias e o reinado de Momo, com a corte carnavalesca, sempre
com as fantasias mais luxuosas: o rei, a rainha e a princesa sempre como as grandes
atraes dos cordes. A corte normalmente danava em cobrinha, fazendo ziguezagues um provvel legado do samba rural sem pressa ou espalhafato,
representando orgulhosamente a funo nobre que desempenham naqueles dias de festa
(CUCA; DOMINGUES, 2009, p. 47).
Nesse contexto, as mulheres do cordo perfiladas receberam o nome de
amadoras ou pastoras: elas iam cantando as marchas-sambadas compostas
especialmente para a ocasio e executando elaboradas evolues tpicas de bandas
militares. O canto das pastoras normalmente era ensaiado sob as ordens do mestre de

11

Depoimento de seu Zezinho do Morro da Casa Verde. Acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS).
Fita n 112.2. Data da Entrevista: 24/04/1981.

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cerimnia ou do cantor oficial da agremiao. Por fim, o desfile era encerrado pela
bateria, que no se destacava muito e servia para dar e manter o ritmo da apresentao.
A oficializao dos desfiles carnavalescos pelos rgos pblicos municipais, em
1968, acarretou grandes transformaes para as escolas de samba. A partir deste ano, as
escolas de samba e cordes carnavalescos passaram a receber uma subveno financeira
da Prefeitura de So Paulo para arcar com parte dos custos do desfile. At 1967, os
concursos de carnaval eram produzidos por diversas agremiaes em vrios locais,
desde a prefeitura, at, por exemplo, o clube dos lojistas de algum bairro, os jornais e as
emissoras de rdio bastava que oferecessem patrocnio. Os desfiles no tinham
normas nem regulamentos rgidos, eles variavam de acordo com as negociaes entre as
escolas participantes e a entidade patrocinadora; portanto, esses patrocnios poderiam
ser oferecidos ou no, dependendo das condies econmicas da poca. Alm da verba
para as escolas, a Prefeitura de So Paulo, a partir do carnaval de 1968, passou a
promover e organizar um concurso oficial, esvaziando assim os concursos promovidos
por jornais e rdios.

1.2 A oficializao

Em 1967, dirigentes de vrias agremiaes, como Inocncio Tobias (Camisa


Verde e Branco), P Rachado (Vai-Vai), Seu Nen (Nen de Vila Matilde), Seu Carlo
(Unidos do Peruche), Madrinha Eunice (Lavaps) e Xang (Vila Maria), procuraram os
radialistas Moraes Sarmento, Evaristo de Carvalho, Vicente Leporace e Ramon Gomes
Porto, que j tinham experincia com transmisso e patrocnio dos desfiles, para uma
reunio sobre como obter patrocnios para o carnaval do ano seguinte. Desse encontro
surgiu a ideia de formarem uma comisso para solicitar ao prefeito de So Paulo,
Brigadeiro Faria Lima, um patrocnio da prefeitura para a realizao dos desfiles.
Tinham por finalidade centralizar os desfiles em um nico local, pois, antes, os locais
variavam a cada ano, dificultando a logstica e o planejamento das escolas, como
52

53

transporte de alegorias, locais para a concentrao dos integrantes das escolas,


banheiros e outras questes de infraestrutura, como montagem de arquibancadas, que
variavam de acordo com o local do desfile e o valor gasto pelo patrocinador (URBANO;
NABHAN; SANTOS, 1987, p. 12).
O prefeito Jos Vicente de Faria Lima se reuniu com a comisso de sambistas e
radialistas, gostou do projeto apresentado a ele e aceitou patrocinar os desfiles
carnavalescos na cidade. Para realizar essa ao, enviou para a Cmara Municipal a Lei
n 7.100, de 29/12/1967, na qual a prefeitura ficava autorizada a promover as festas de
carnaval e financi-las atravs de verbas oramentrias prprias. No ano de 1968, a
prefeitura investiu NC$ 480.000,00 (quatrocentos e oitenta mil cruzados novos)
provenientes do excesso de arrecadao previsto para o presente ano:

LEI N 7.100, DE 29 DE DEZEMBRO DE 1967:


Dispe sobre as festas de cunho popular e festejos carnavalescos, e d outras providncias:
Art 1 Fica a Prefeitura autorizada a promover, anualmente, festas de cunho popular e festejos
carnavalescos no Municpio de So Paulo, visando incerementar o turismo, conservar e desenvolver
tradies folclricas brasileiras e contribuir para a recreao popular:
Pargrafo nico: A fim de atender ao disposto nesse artigo, o Executivo, na forma da legislao
vigente e das normas estabelecidas poder:
I promover diretamente ou mediante concesso, observado nesse caso o princpio da
concorrncia:
a)

a ornamentao das ruas, praas e outros locais de festejos populares, bem como a
construo de arquibancadas, coretos, tablados e outras instalaes necessrias;

b) bailes no Teatro Municipal, em outros prprios municipais e logradouros pblicos;


II conceder auxlios, instituir e outorgar prmios, conforme regulamento a ser baixado por
decreto.
Art. 2 - Podero ser constitudas comisses com a finalidade de coordenar e executar as
providncias necessrias realizao das festas e festejos que trata o artigo 1, observado o
disposto nesta lei.

53

54
Pargrafo nico: A composio de cada comisso, suas atribuies especficas e normas de
funcionamento sero estabelecidas por decreto.
Art. 3 - Para atender s despesas com a execuo dessa lei, em 1968, fica o Executivo
autorizado a abrir, na Secretaria das Finanas, com vigncia at 31 de dezembro do mesmo ano,
crdito especial no valor de NC$ 480.000,00 (quatrocentos e oitenta mil cruzados novos), que
ser coberto com recursos provenientes do excesso de arrecadao previsto para o corrente
exerccio, e nos anos subsequentes, pelas verbas oramentrias prprias.
Art. 4 - Essa lei entrar em vigor na data de sua publicao, revogadas as disposies em
contrrio12.

Como se pode observar, a lei genrica sobre festas de cunho popular e


festejos carnavalescos, no legislando especificamente sobre os desfiles de escolas de
samba e cordes de carnaval. A motivao de sua publicao foi a reunio com os
sambistas e radialistas. O objetivo do prefeito, como fica evidente no artigo 1,
incrementar o turismo e conservar e desenvolver as tradies folclricas, sendo o
primeiro com muito mais fora que o segundo. O item que contempla as escolas de
samba e cordes o item II do Art. 1, conceder auxlios, instituir e outorgar prmios,
conforme regulamento a ser baixado por decreto, ou seja, o prefeito poderia conceder
ou no prmios e auxlios para as escolas. J os recursos necessrios para promover os
desfiles, ou seja, a parte de infraestrutura e divulgao no estava determinada na lei e
retirada, por exemplo, da Secretaria de Turismo ou Cultura, mas deveriam vir de verbas
oramentrias prprias, de iniciativa exclusiva do prefeito, atravs de um projeto de lei.
Este projeto de lei submetido ao Poder Legislativo, que o discute, modifica, aprova e
submete novamente ao chefe do Executivo para sano, como toda lei.
No incio do ano seguinte, em 11 de janeiro de 1968, o decreto-lei de n 7.348/68
cria a Comisso Organizadora do Carnaval, vinculada Secretaria de Turismo e
Fomento e submetida diretamente ao prefeito que, ao lado do secretrio de Turismo,
Tibiri Botelho Filho, foram os coordenadores do carnaval daquele ano, realizado no
Vale do Anhangaba. Esse conjunto de leis foi completado no final de 1970, com o
12

Arquivo da Biblioteca da Cmara Municipal de So Paulo.

54

55

decreto n 9.051 de 12/10/1970, assinado pelo prefeito Paulo Maluf, que institua um
Calendrio Oficial de Eventos, na cidade de So Paulo, sob a responsabilidade da
Secretaria de Turismo e Fomento:

(...) Art. 7 A incluso no Calendrio Oficial de Eventos dar-se- por despacho do Secretrio
de Turismo e Fomento ex-officio, mediante requerimento do interessado.
Art. 8 So includos obrigatoriamente no Calendrio Oficial de Eventos de cada ano:
a)

As festividades da Semana da Ptria;

b) As festividades comemorativas da fundao da cidade de So Paulo;


c)

Os festejos carnavalescos;

d) As festas de Natal, fim de ano e primavera;


Art. 9 - A incluso no Calendrio Oficial de Eventos constitui uma condio necessria para a
concesso de auxlio e a outorga de prmios, nos termos do artigo 1 do pargrafo nico, item II,
da Lei 7.100, de 29 de dezembro de 1967

13

O decreto n 9.051 reconhece, oficialmente, por parte da prefeitura, que o


carnaval um evento pblico de carter municipal e que deve ser organizado e
supervisionado pela Secretaria de Turismo e Fomento.
Apesar do incentivo recebido pelo poder pblico, os desfiles das escolas de
samba se tornam hegemnicos dentro das brincadeiras de carnaval da cidade, j que eles
foram contemplados com as verbas oficiais. Ao escolher o desfile das escolas de samba
como festejos oficiais do carnaval da cidade de So Paulo, a prefeitura exclui vrias
outras manifestaes de Momo que aconteciam na cidade, como os corsos que ocorriam
no bairro do Brs e, que nos anos 1950, foram transferidos pela prefeitura para a
Avenida So Joo e os bailes carnavalescos promovidos nos sales pela classe mdia
em diferentes bairros da cidade, que no recebiam apoio nenhum e foram aos poucos
acabando, com seus participantes se dispersando ou mesmo participando e fundando
novas escolas de samba.
13

Arquivo da Biblioteca da Cmara Municipal de So Paulo.

55

56

Este apoio financeiro atravs da Lei n 7.100, de 29/12/1967, e os decretos


complementares exigiram que as escolas e cordes fundassem uma federao ou
confederao, de personalidade jurdica, para que pudessem receber os incentivos da
Secretaria de Turismo e Fomento. Dessa forma, foi reativada a Federao das Escolas
de Samba e Cordes Carnavalescos de So Paulo, fundada em 1958 e que se encontrava
sem nenhuma atribuio. Os desfiles de carnaval, a partir de sua oficializao, passaram a
ser planejados pela administrao municipal, como parte das atividades de turismo e
entretenimento; os custos com a realizao dos desfiles foram, assim, incorporados como
parte dos investimentos necessrios para aquecer um setor da economia urbana do municpio.
As transformaes institucionais vinculavam-se diretamente atuao do poder pblico
municipal como impulsionador de mudanas, a partir do momento no qual ele se tornou
patrocinador e promotor dos desfiles carnavalescos.
Os integrantes das escolas viam, no apoio da prefeitura, uma etapa importante
cumprida, pois as verbas representavam a valorizao de sua atividade cultural como
algo importante para a vida social da cidade e como um elemento potencializador de sua
autonomia. Todos os anos at a oficializao, os cordes e escolas no tinham a certeza
de que desfilariam por falta de patrocnio, pois quase todos os seus membros no
dispunham de muitos recursos para investimentos. A quantidade de dinheiro empregada
pelas escolas e cordes, at a oficializao era, basicamente, para comprar a fantasia
segundo o tema daquele ano, que poderia ser de marinheiro, soldado, pirata e outros
possveis temas, e a da corte carnavalesca, que normalmente eram as mais caras, mas
sempre recicladas a cada ano. E, por fim, possuam gastos com os instrumentos, tanto
para manuteno daqueles que apresentassem algum problema, como compra de novos,
alm do encouramento dos instrumentos de percusso.
Para os sambistas que participaram dessas negociaes, o patrocnio da
prefeitura iria garantir esses gastos mnimos, possibilitando a agremiao desfilar,
mesmo que os dirigentes no conseguissem dinheiro suficiente dentro da prpria
comunidade. O arrecadado com o livro de ouro, ou contribuio de membros, poderia
ser gasto em fantasias mais luxuosas, para encantar o pblico e ganhar o desfile, ou at

56

57

mesmo em passeios e atividades voltados para a comunidade das escolas, como


excurses e piqueniques, alm de outras eventuais despesas durante o ano.
Os cordes de carnaval, e mesmo as que se intitulavam escolas de samba, at
esse momento, no possuam quadras para realizar seus ensaios, que eram feitos na
rua, em terrenos baldios ou praas pblicas. As festas principais, como o aniversrio das
agremiaes, levantamento de fundos para o carnaval, ou ensaios gerais, tambm
poderiam ocorrer em sales improvisados ou alugados. Os instrumentos mais caros,
como os de sopro assim como as fantasias mais caras, as da corte carnavalesca,
normalmente eram guardados na residncia da famlia responsvel pela agremiao.
Nesse perodo, da luta pela oficializao, os sambistas de So Paulo, que
exerciam os ofcios menos valorizados e remunerados, j viam o carnaval e o samba
como elementos potenciais para modificar as condies sociais de seus integrantes e da
comunidade que vivia em torno das escolas. Viam, na aliana com o poder pblico, a
esperana de uma vida melhor, de poder divulgar a sua agremiao, no apenas durante
o carnaval, mas em eventos e festas ao longo do ano. Era comum a formao de grupos
para apresentao de espetculos de samba em teatros, bares e outros locais da cidade,
ou mesmo em cidades do interior.
O primeiro desfile oficial realizado pela prefeitura de So Paulo ocorreu em
1968, em pleno ambiente de represso imposto pelo regime militar brasileiro.
Participaram desse primeiro desfile oficial as seguintes escolas e cordes: Nen de Vila
Matilde; Unidos do Peruche; Lavaps; o cordo carnavalesco Vai-Vai; o cordo
Carnavalesco Fio de Ouro da Bela Vista; Camisa Verde e Branco; Acadmicos do
Ipiranga; Mocidade Alegre; Prncipe Negro de Vila Prudente; Estrela Brilhante;
Imprio do Cambuci; Unidos de Vila Maria; Acadmicos do Tatuap; o Grupo
Folclrico Irms Ibejy; Acadmicos do Parque Peruche; Folha Azul dos Marujos,
Morro da Casa Verde e Primeira de Santo Estevo. A campe daquele ano, por sua
vez, foi a Nen de Vila Matilde, tendo como tema o poema de Castro Alves Navio
Negreiro, em um samba puxado por lvaro Rosa, o Paulistinha.

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O patrocnio oficial da Prefeitura de So Paulo previa a concesso de verbas para


os custos de organizao do concurso de carnaval, uma premiao para a escola campe
e verbas de participao para todas as escolas. Para a realizao do concurso era
necessrio que a Prefeitura e as agremiaes carnavalescas, atravs da Federao das
Escolas de Samba, formulassem um regulamento para os desfiles. Evaristo de Carvalho
foi at a cidade do Rio de Janeiro encontrar-se com Paulo Costa Lamaro, ento
presidente da Confederao Brasileira das Escolas de Samba (CBES), com o objetivo de
Lamaro o auxiliar a produzir um regulamento para as escolas de samba e cordes de
So Paulo. Ento, o primeiro regulamento oficial dos desfiles da cidade de So Paulo
realizado tendo como modelo o da CBES. A mudana inicial prevista neste regulamento
era a criao de um nico palco para todos os desfiles que, normalmente, eram
descentralizados, com as escolas e cordes participando de vrias competies em
vrios palcos, normalmente organizados por jornais e rdios. O local escolhido para
centralizar os desfiles foi a Avenida So Joo, que recebeu os desfiles entre 1968 e
1977. Um carnavalesco tambm foi trazido do Rio de Janeiro para auxiliar as escolas a
se adaptarem s mudanas.
O secretrio de Turismo, Tibiri Filho, viu nos desfiles do Rio de Janeiro um
modelo mais acabado e mais rentvel de desfiles e que foi encarado pelo poder pblico
paulista como um sucesso. Decide importar o regulamento proposto por Lamaro, sem
levar em conta as especificidades das agremiaes paulistas, oriundas dos cordes
carnavalescos (AZEVEDO, 2010). O secretrio via as escolas e cordes como
manifestaes folclricas que passavam a desempenhar um papel turstico na cidade. O
patrocnio dos desfiles eram oportunidades de ampliao de uma atividade de lazer (que
at ento era negligenciada pelo prprio Estado) capaz de tornar a cidade mais atrativa
para os visitantes. A oficializao veio ao encontro da posio do governo federal que
procurava alavancar o turismo como uma potencialidade do pas, para gerar divisas e
empregos. Dois anos antes, em 1966, o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco
havia criado a Empresa Brasileira do Turismo (Embratur). A empresa estatal foi criada
com o objetivo de desenvolver e normatizar o turismo no Brasil.

58

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Fazendo um paralelo com os desfiles da capital fluminense, a prefeitura do ento


Distrito Federal, j em 1936, comeou a dar prmios em dinheiro para os vencedores do
concurso de escolas de samba, como forma de promover e incentivar os desfiles, assim
como j fazia com alguns ranchos ou blocos (CABRAL, 2001, p. 114).
A deciso de contar uma histria na avenida j era adotada por ranchos
carnavalescos e foi admitida e utilizada pelas escolas de samba a partir de 1935. o
surgimento do enredo, dentro das escolas de samba. A partir desses prmios e
incentivos financeiros dados pelo poder pblico, comeam a se estabelecer regras mais
rgidas para as disputas. Com o golpe do Estado Novo, em 1937, o Brasil entra em um
perodo ditatorial e o governo de Getlio Vargas intensifica a censura e a propaganda
nacionalista, criando o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). A partir de
1938, com um novo regulamento proposto pela Unio das Escolas de Samba do Rio, os
enredos deveriam versar sobre histria e fatos, lderes e personagens do Brasil
(PARANHOS, 2005, p. 138-143). Essa exigncia continua vigente e est presente no
regulamento, no momento da oficializao do carnaval de So Paulo14.
A penetrao e a influncia de solues adotadas pelas escolas de samba do Rio
de Janeiro j vinham sendo adotadas por alguns cordes e escolas de samba da cidade
de So Paulo, muito antes da oficializao, como Nen de Vila Matilde, Imprio do
Cambuci e Unidos do Peruche, responsveis por trazer para o carnaval da cidade
diversas inovaes que j estavam presentes nos desfiles do Rio de Janeiro.
Entre 1968 e 1971, a Prefeitura de So Paulo promoveu desfiles em duas
categorias: escolas de samba e cordes carnavalescos. Sendo o prmio recebido pelos
cordes bem menor do que aquele oferecido s escolas de samba. Durante esses quatro
anos, o nmero de escolas participantes aumentou e o nmero de cordes ficou reduzido
para apenas trs: Fio de Ouro, Vai-Vai e Camisa Verde e Branco. Os trs decidiram se
tornar escolas de samba, dando fim tradio dos cordes, seguindo assim o padro dos

14

Essa exigncia foi em parte flexibilizada na dcada de 1970 pelo talento estratgico e criativo do
carnavalesco Joosinho Trinta, no Rio de Janeiro, que, ao incluir o sonho e o imaginrio em seus enredos,
livrou os criadores do desfile da limitao imposta pelo regulamento.

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regulamentos trazidos do Rio de Janeiro, o qual se consolidava como modelo


carnavalesco tambm em So Paulo.
O cordo Fio de Ouro, que tinha dificuldades de organizao por dividir o
pblico com o Vai-Vai, j que ambos so do mesmo bairro, Bela Vista, no conseguiu
se manter como escola de samba e, no final dos anos 1970, decidiu encerrar suas
atividades, quando se encerraram os desfiles dos cordes. importante lembrar que a
deciso de se tornarem escolas de samba partiu dos prprios cordes remanescentes que
tinham dcadas de existncia e no queriam perder prestgio e membros para as escolas
de samba. Outro fator muito importante para o fim dos cordes era que a quantidade de
verbas distribudas para os cordes era menor que aquela destinada s escolas de samba,
mesmo alguns cordes sendo, como os dois acima mencionados maiores que as escolas
de samba do perodo. A adaptao desses cordes histricos foi muito rpida, prova
disso o tetracampeonato conquistado pelo Camisa Verde e Branco entre 1974 e 1977 e
o primeiro ttulo do Vai-Vai como escola em 1978.
interessante observar que os radialistas Evaristo de Carvalho, Moraes
Sarmento, Vicente Leporace e Ramn Gomes Porto, alm de auxiliar as escolas de
samba, se tornaram os primeiros dirigentes da refundada Federao das Escolas de
Samba, recebendo os recursos do Estado e os repassando para as escolas porque os
prprios sambistas ainda eram vistos com certa desconfiana pelo poder pblico, pelo
fato de serem pessoas de pouca escolaridade e baixa renda. Uma prova disso a criao,
em 1970, de uma Comisso de Carnaval, chamada COCAP, pela Secretaria de Turismo,
encarregada de organizar e realizar o carnaval. Na comisso estavam presentes os
radialistas acima citados, como representantes dos sambistas, alm de pessoas ligadas
administrao pblica.
Para Seu Nen da Vila Matilde, aquele era o momento de aglutinar o maior
apoio possvel e mostrar que os sambistas no estavam isolados, mas contavam com
uma assessoria de profissionais universitrios e respeitados no mercado de trabalho, que
iria facilitar e mediar o acesso dos sambistas s autoridades municipais. Em seu livro de
memrias, ele nos conta a importncia dos jornalistas:
60

61

Sabamos que tnhamos que falar com o prefeito Faria Lima, mas no
sabamos como chegar a ele. No ano anterior tnhamos conversado com o
deputado Egdio de Serrano sobre como chegar at o prefeito e ele disse:
Vocs tm que arrumar um cartucho. Ns no sabamos que cartucho era
esse. A parece que Deus ajudou, o cartucho estava ali mesmo: era o Moraes
Sarmento, um radialista conhecido. Sabamos que falar com o Faria Lima era
difcil, porque j tnhamos tentado. J tnhamos feito cartas, escrevamos e
quando chegvamos com a carta ao gabinete do prefeito, sempre tinha um
secretrio, porteiro, que pegava a carta e engavetava (BRAIA, 2000, p. 68).

Em 1971, como nos informa o ex-dirigente da federao e ex-presidente da


UESP, lvaro Casado, a Federao das Escolas e Cordes sofreu uma interveno
judicial, por rejeio das contas, por parte da Prefeitura:

Na poca do Moraes Sarmento, da Federao, andaram emitindo uns cheques


sem fundo, porque chamava a escola e dava na mo do cara. Era o Mala que
ia, eu ia com ele e a gente dava o cheque pra escola diretamente, pro
presidente, tesoureiro. (...) Deixa eu te contar uma coisa que me veio agora.
Teve uma escola de samba, veio l da zona Leste. O presidente pegou o
dinheiro e comprou carro, comprou geladeira, fogo pra nga e p p p
[sons com a boca]. E a no saiu a escola [risos]. O que voc vai fazer com
um cara desse? O que vai fazer com esse cara? [risos]. Assinou o recibo com
o dinheiro e gastou e no ps a escola na rua [risos]. No lembro se foi da
Casa Verde ou da zona Leste, mas esse cara fez isso. Teve processo, mas o
cara tava ligando pra processo [risos]. Caiu no esquecimento. E com isso
15
quem ficava sem crdito era a Federao.

Somado a isso, houve um processo de fritura dos dirigentes da Federao por


parte dos sambistas. Aps apoiar a Unidos da Peruche em uma questo judicial para a
concesso do terreno em que a escola ensaiava para agremiao, a Nen de Vila
Matilde, que tambm no tinha quadra, acusou Evaristo de Carvalho de trabalhar em
favor da Peruche e de no ajud-la na mesma questo. E havia tambm a rivalidade
entre os remanescentes cordes Camisa Verde e Branco e Vai-Vai. Os cordes os
acusavam de serem partidrio de um ou do outro cordo.
Aps as denncias de alguns membros, ligados a uma escola acusando-o de
desonestidade, dizendo que ele havia se apoderado de verbas destinadas s escolas,
15

Entrevista com lvaro Casado. Data: 01/05/2012.

61

62

Evaristo de Carvalho abandonou a presidncia da federao, deixando-a novamente sem


atribuies. A prefeitura chegou a nomear a criao de uma Comisso Interventora, na
Federao, at se conseguir chegar a um acordo. Os sambistas chegaram a sugerir uma
nova composio da diretoria, mas, como esse acordo no foi possvel, optou-se pela
dissoluo da Federao. Nos dois anos seguintes, a prefeitura organizou o carnaval sem
a participao dos sambistas.
Em entrevista, Evaristo de Carvalho conta como se originou o boato, segundo o
qual ele teria desviado dinheiro da Federao:
Em 1971 quando assumi a presidncia do rgo, o Tribunal de Contas, que
passou a funcionar em 1970, pediu Federao a prestao de contas dos
anos 68 e 69. Acontece que, nesses dois anos, a Secretaria de Turismo
entregou a verba diretamente s escolas, razo pela qual a Federao no
poderia fazer a prestao exigida pelo Tribunal. Foi a que, os inimigos
gratuitos, se aproveitando da ingenuidade dos sambistas, espalharam que eu
estava em papos de aranha, perante o Tribunal de Contas (Notcias Populares,
17/03/1974).

Diante desse novo quadro de oficializao, mas sem participao efetiva na


organizao dos desfiles, outros radialistas, dirigentes de escolas, sambistas e jornalistas
renem-se novamente para fundar uma nova federao representativa das escolas de
samba. importante destacar o papel dos radialistas como intercessores e mediadores
desses primeiros contatos entre Estado e escolas de samba. Esses profissionais
conferiam legitimidade e certa segurana aos desfiles, pois eles j tinham experincia
anterior na organizao de concursos de carnaval e gozavam bom trnsito junto aos
sambistas.

1.3 A UESP

No ano de 1973 so criadas duas diferentes federaes: a Associao das


Escolas de Samba de So Paulo (AESSP), sediada na Avenida Rio Branco, e a Unio
das Escolas de Samba Paulistanas (UESP), fundada por sambistas e radialistas
(AZEVEDO, 2010, p. 91). Novamente, os sambistas buscam a mesma frmula de
62

63

negociao, congregando no apenas sambistas, mas atraindo intelectuais e


profissionais de comunicao, buscando assim maior legitimidade e ateno por parte
do poder pblico. Como escolas fundadoras da UESP estavam Vai-Vai, que nesse
momento deixava de ser cordo e passava a se tornar escola de samba: Mocidade
Alegre; Rosas de Ouro; Cabees da Vila Prudente; Prncipe Negro; Flor da Vila Dalila;
Paulistano da Glria; Prola Negra; Acadmicos do Chora Galo; Unidos do Peruche;
Folies da Vila Nova, Falco do Morro Itaquerense e Folha Azul dos Marujos16.
No Estatuto de fundao da UESP, redigido pelo sambista Jangada, estavam
elencados todos esses objetivos:

a) congregar as escolas de samba que tenham sede e foro no municpio de


So Paulo;
b) defender e divulgar a msica popular brasileira, principalmente o samba;
c) lutar pela igualdade social e racial;
d) assessorar, sempre que convocada, a Secretaria de Turismo e Fomento em
todas as questes referentes aos desfiles de carnaval;
e) promover solenidades comemorativas do Dia do Samba;
f) lutar pela fundao da Federao das Associaes de Samba do Estado de
So Paulo, congregando as entidades associativas dos outros municpios, e
pela fundao da Confederao das Federaes Estaduais das Associaes de
Escolas de Samba, congregando as Federaes de outros Estados (URBANO,
2006, p. 194).

Nesta ata de fundao que daria origem ao primeiro regulamento da UESP


possvel observar objetivos distintos. O primeiro deles ser uma associao para
congregar as escolas de samba da cidade de So Paulo e represent-las nas negociaes
com o poder pblico. Tambm h uma preocupao social e cultural, pois ela chama
para si o objetivo de defender e divulgar a msica brasileira, em especial o samba, num
contexto em que os sambistas de So Paulo estavam fora da indstria fonogrfica e do
entretenimento que no momento histrico era ento dominado pelo i, i, i, tambm
conhecido como Jovem Guarda, que gozava de sucesso absoluto na mdia. At mesmo
as canes e sambas-enredos das escolas de So Paulo no eram gravados, sendo
16

Fonte: Centro de Documentao e Memria do Samba. Documento: UESP 25 anos, p. 14.

63

64

divulgadas apenas no interior das prprias comunidades e no momento do desfile. O


terceiro ponto de extrema importncia, pois declara que a entidade tem como objetivo
lutar por igualdade racial e social. Isso muito expressivo pelo momento histrico
vivido, em um contexto de ditadura e cerceamento de liberdade.
Os sambistas que, historicamente, sempre sofreram preconceito pelo fato de
serem negros e pobres, viam na entidade um espao de luta e de conquista de direitos
sociais e consideravam as federaes uma valorizao de sua cultura, ou at mesmo
uma possibilidade de melhores condies de vida. O quinto item, sobre as solenidades
do Dia do Samba, visava criar uma agenda cultural com eventos relacionados ao samba
na cidade. Dentre as iniciativas criadas pela UESP, destacam-se a eleio do Rei Momo
e da Corte Carnavalesca da cidade de So Paulo e tambm o concurso do cidadosamba, folio maior do carnaval da cidade, escolhido entre os representantes das
prprias escolas de samba. A inspirao para o cidado-samba foi novamente o exemplo
das escolas de samba do Rio de Janeiro, que iniciaram um concurso semelhante no ano
de 1935. No ano de 1937, Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, foi o
vencedor (URBANO, 2006, p. 184).
O ltimo ponto o desejo de interlocuo com as Federaes de outros
municpios e a criao de uma Confederao de Escolas de Samba de todos os Estados,
para troca de experincias e unidade de discursos, adoo de critrios nicos de
julgamento, intercmbio de jurados e o desejo de construir uma cultura de desfiles de
escolas de samba no calendrio carnavalesco para todo o Brasil.
Para Maria Isaura Pereira de Queiroz, a oficializao dos desfiles, por parte da
prefeitura e a obrigatoriedade de uma federao ou associao dos sambistas,
responsvel pelo dilogo, tornaria as escolas submissas ao poder pblico:

Ao delegar Associao das Escolas de Samba a funo de distribuidora das


subvenes dadas pelo governo, ao permitir-lhe nomear o jri dos concursos,
o Estado transformou-a em verdadeiro vigia do bom comportamento das
escolas, s receberiam subvenes, s poderiam aspirar ao prmio as inscritas
na associao, isto , aquelas que haviam provado sua submisso (...). O
Estado, representante legtimo das camadas superiores, dominava assim as

64

65
sociedades recreativas inventadas pelos subrbios e atravs delas,
domesticava as massas (QUEIROZ, 1992, p. 109).

Mesmo que o Estado a visse como uma vigia do comportamento das escolas
para a realizao de um carnaval domesticado, devemos relativizar isto. Os sambistas
no foram domesticados simplesmente. Ao analisar as atribuies da UESP e como
aconteceram as negociaes e embates com o Estado ao longo dos anos, podemos
perceber, na ata de fundao da UESP, que os sambistas tinham um projeto poltico e
cultural em mente. Este projeto queria dar visibilidade para as escolas de samba e para
os artistas annimos das escolas, como compositores, bailarinos e artistas plsticos que
no tinham espao dentro da indstria fonogrfica ou em outros espaos artsticos.
Buscavam transformar o carnaval em um espetculo rentvel e sustentvel e as escolas
de samba como um grande espao de discusso poltica, cultural e de lazer, fazendo
muitas vezes o papel do poder pblico, sempre ausente dos bairros perifricos da
cidade. As lideranas negras das escolas de samba, como P Rachado, Seu Carlo, Seu
Nen, Inocncio Tobias e Jangada, responsveis pela fundao da UESP, levantaram
bandeiras que, historicamente, o movimento negro iria defender, de maneira mais
veemente, apenas no final da dcada de 1970. Esses sambistas tinham o objetivo de
lutar no apenas pela igualdade racial, mas tambm por uma sociedade socialmente
igualitria. Muitas das demandas dos sambistas obviamente no foram possveis de
serem cumpridas, mas as escolas de samba cumpriram um importante papel de
aglutinador popular dentro dos bairros perifricos da cidade e as negociaes com o
Estado no foram apenas impostas de cima para baixo, sobretudo num processo em
que tanto o poder pblico quanto os sambistas tiveram de ceder para ser possvel a
realizao dos festejos carnavalescos em um contexto histrico de represso e ditadura
militar.
A UESP buscou inicialmente filiar um maior nmero de escolas e ter um
reconhecimento do poder pblico. Depois do problema da interveno judicial na
Federao das Escolas de Samba, a Prefeitura de So Paulo passou a exigir que as
escolas se regularizassem, tornando-se uma organizao recreativa com personalidade
jurdica. Isso foi fundamental para a legitimao da UESP, que auxiliou na legalizao e
65

66

na elaborao dos estatutos de suas filiadas. Tambm ficou a cargo da UESP a criao
de uma comisso de fiscalizao das escolas, para garantir que estas tivessem um
vnculo com a comunidade em que estavam inseridas e evitar, com isso, o aparecimento
de escolas de fachada, que captavam os recursos necessrios e no se apresentavam
nos desfiles. Outra assistncia jurdica prestada pela UESP nesse perodo visava
resolver os problemas que as escolas tinham com a polcia, aps serem acionadas por
moradores dos bairros em que se localizavam insatisfeitos com o barulho dos ensaios.
Era uma difcil negociao para realizar os ensaios nas ruas, j que as escolas ainda no
possuam quadras, restando a elas ensaiarem em praas e ruas de menor movimento e
em horrios que no incomodassem seus vizinhos.
Para a direo da UESP foram eleitos, ainda no final de 1973, como presidente o
jornalista Renato Correa de Castro; vice-presidente, Dalmo Ferreira; vice-presidente de
Finanas, Joo de Angelo; vice-presidente de Comunicao, Wanderli Salztiel; vicepresidente de Divulgao, Covas Jnior; vice-presidente Social, Aristides Barbosa; e
vice-presidente de Patrimnio, Carlos Eugnio Panadis.
Uma das primeiras decises tomadas pela diretoria da UESP foi tentar
representar as escolas de samba nas negociaes com o poder pblico para a elaborao
do regulamento referente ao carnaval de 1974. Os sambistas passaram a interferir na
elaborao do regulamento dos desfiles a partir de 1972, devido aos problemas
relacionados ao carnaval de 1971. Segundo o regulamento desse ano, realizado pela
Secretaria de Turismo, s permaneceriam no Grupo I para o ano seguinte as escolas que
tivessem conseguido um nmero maior que 70% dos pontos disputados, e, caso tal
regulamento fosse cumprido, teria levado ao rebaixamento da maioria das escolas.
Como no era possvel rebaixar mais de 50% das escolas para o Grupo II, essa clusula
foi considerada sem efeito (FOLHA DE SO PAULO, 01/01/1974). Para o ano
seguinte, foi chamada uma comisso de sambistas que elaborou um novo regulamento,
em parceria com o secretrio de Turismo.
Havia a preocupao de cumprir o acordo com as emissoras de rdio que
transmitiam os desfiles e evitar o que havia acontecido em carnavais anteriores, quando
os desfiles atrasavam horas, por no haver uma definio clara para afirmar que um
66

67

determinado desfile estava encerrado e outro estava comeando. O regulamento previa


penalidades pesadas s escolas que no se apresentassem no horrio. Aps os desfiles,
sete escolas foram desclassificadas de seus respectivos grupos, pelo no cumprimento
do horrio.
Como o regulamento foi elaborado pelos prprios sambistas, houve uma disputa
entre eles, porque uma parte queria voltar ao regulamento antigo, que no previa
punies por atraso, nem estabelecia tempo definido, e a outra parte (que contava com o
apoio do ento secretrio, Edemir Machado) queria fazer valer o regulamento mais
rigoroso. Prevaleceu a viso do secretrio e diversas escolas perderam pontos na
apurao e algumas foram inclusive rebaixadas. Como em 1972 muitas escolas sofreram
punies, no carnaval de 1973 as escolas levaram a questo do tempo mais a srio,
resultando na punio de apenas trs escolas por atraso.
Por conta dos problemas enfrentados pela extinta Federao e pela diviso das
escolas em duas organizaes, a Secretaria de Turismo decidiu negociar a organizao
dos desfiles de 1974, diretamente com as escolas, o que provocou reaes tanto da
Associao, quanto da UESP. Na assinatura do contrato, sem a fora de uma negociao
em conjunto, a Secretaria tomou a iniciativa de modificar alguns itens do regulamento
sem consultar as escolas, nem a UESP. As alteraes nos dias de desfile e o tamanho
dos carros alegricos no foram aceitos pelas escolas de samba que, atravs da UESP,
protestaram e ameaaram no desfilar, caso o regulamento no fosse revisto. O jornal
Notcias Populares, de 30 de dezembro de 1973, que noticiou as disputas, lanou as
manchetes sensacionalistas: Carnaval paulista pode acabar em 74 e Carnaval paulista
est ameaado de desaparecer.
Em nota, a entidade considerou um absurdo as exigncias da Secretaria de
Turismo e precipitada a atitude do rgo pblico de no convocar os sambistas para a
discusso. O regulamento da Secretaria mudava de domingo para tera-feira os desfiles
do Grupo I e os sambistas alegavam que a mudana a menos de dois meses para o
carnaval, poderia causar prejuzos para as escolas que j haviam assumido diversos
compromissos como o aluguel de equipamentos para o domingo e haviam firmado
contrato com prefeituras do interior para desfilarem na tera-feira gorda. Diante do
67

68

acordo, o secretrio da entidade dos sambistas disse: Se alguma modificao deve ser
feita, a UESP deve ser consultada, alm do que se devem estudar as possibilidades
previamente, e dar um prazo para que as escolas se adaptem (NOTCIAS
POPULARES, 30/12/1973).
A respeito dos carros alegricos a discordncia era que a UESP sugeriu que se
aumentasse o tamanho, liberando medidas maiores, j que os desfiles haviam sido
transferidos do Vale do Anhangaba para a Avenida So Joo, que possua uma pista
mais larga.
Poucos dias depois, surgiram novos impasses entre as escolas de samba e a
Secretaria de Turismo. Durante a primeira reunio do ano, realizada no dia 2 de janeiro
para solucionar os problemas no regulamento (GAZETA ESPORTIVA, 29/12/1973), o
secretrio negou ter elaborado o regulamento sem ouvir as escolas. O jornal Notcias
Populares, que naquele momento dava ampla cobertura ao processo de negociao dos
desfiles das escolas de samba, entrevistou o secretrio, que reagiu presso dos
sambistas: A Secretaria remeteu a minuta do regulamento, anexa a um ofcio
convocando a UESP e a AESSP e todas as escolas filiadas ou no s entidades e se
convoquei todas as escolas de samba porque quero conversar diretamente com elas,
devido s divergncias existentes entre a Associao das Escolas de Samba de So
Paulo e a Unio das Escolas de Samba Paulistanas (NOTCIAS POPULARES,
04/01/1974).
Durante a reunio, o Secretrio aceitou a mudana do dia de desfiles, a fim de
que o desfile do Grupo I continuasse no domingo. O compositor B. Lobo, da Unidos do
Peruche, pediu a criao de uma comisso especial para fiscalizar os jurados. O
secretrio informou ao sambista que os juzes so autnomos e que, para o carnaval,
pretendia convocar pessoas conhecedoras do assunto e imparciais.
O presidente da UESP, Renato Correa de Castro, pressionou o secretrio a
revogar o item que proibia que as escolas desfilassem com as suas fantasias, antes do
desfile oficial. Segundo Castro, as escolas assumiam diversos compromissos nos bairros
de origem, j que a verba que a secretaria destinava s escolas no cobria todas as
68

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despesas. O secretrio, no dia seguinte, ento, respondeu: se querem que eu retire o


item, eu o retirarei, mas depois no venham culpar os jurados por perda de pontos .
(NOTCIAS POPULARES, 05/01/1974).
Segundo o secretrio, com os desfiles nos bairros e em bailes, duas ou trs vezes
antes do carnaval, as fantasias ficariam amarrotadas ou rasgadas para os desfiles
oficiais. O presidente da UESP tambm queria que a secretaria proibisse as escolas no
filiadas a qualquer das duas entidades de participar dos desfiles. O secretrio, dessa vez,
no cedeu e disse que a obrigao das escolas era ser registrada na Secretaria de
Turismo e, mesmo que uma agremiao no fosse filiada a qualquer uma das entidades,
no poderia impedi-las de desfilar, pois as mesmas poderiam entrar com um mandado
de segurana.
Ficou decidido, ainda na reunio, que os prmios teriam um aumento de 100%
em relao ao ano anterior. Ficou acertado que para o Grupo I os prmios seriam de 12
mil cruzeiros para o campeo e 10 mil para o vice-campeo. Para o Grupo II, Cr$ 8 mil
e Cr$ 6 mil. O Grupo III, Cr$ 4 mil e Cr$ 2 mil, respectivamente. Por fim, o secretrio
anunciou um aumento de 10% nas verbas do carnaval, que seriam liberadas nos
prximos dias. Juarez da Cruz, presidente da Mocidade Alegre, imediatamente se
posicionou contra o aumento, considerando-o irrisrio em relao ao aumento dos
custos.
Ainda em processo de discusso com o secretrio e percebendo que ele voltou
atrs em sua deciso tomada na reunio do dia anterior, os sambistas passaram ento a
pressionar a prefeitura por um aumento de 20% da verba do ano anterior. As duas
entidades de sambistas, a UESP e a AESSP, decidiram, por votao de seus
representantes, na mesma reunio, encaminhar ao prefeito Miguel Colassuono trs
pedidos: o aumento da subveno e o fortalecimento dos desfiles do Grupo II,
aumentando, assim, o nmero de participantes desse grupo, subindo trs escolas do
Grupo III, e a incorporao das escolas desclassificadas por falhas na organizao do
carnaval de 1973 (Notcias Populares, 05/01/1974).

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Pelo regulamento haviam subido a Rosas de Ouro, campe do Grupo III, e


Prncipe Negro da Cidade Tiradentes, vice-campe. Duas escolas desceram do Grupo I,
o Fio de Ouro, em seu primeiro desfile como escola de samba, e Unidos de Vila Maria;
as escolas Unidos do Bom Retiro e a Campos Elseos foram desclassificadas e no
poderiam desfilar; as federaes queriam inclu-las no Grupo III e II, respectivamente,
pois julgavam que elas foram desclassificadas por falhas na organizao do carnaval e
no por conta prpria.
O secretrio de Turismo, Jos Maria Mendes Pereira, ento se comprometeu a
encaminhar os pedidos para o prefeito, j que o aumento da subveno dependia de
decreto do prefeito, mas disse que as punies estavam previstas no regulamento
anterior (NOTCIAS POPULARES, 05/01/1974).
Uma nota emitida pelas entidades, publicada na imprensa contendo diversas
reivindicaes dos sambistas, revelava que a questo central era o aumento de verbas
para os desfiles:

Motivados pela alta do custo de vida que encareceu sobremaneira o preo de


todos os artigos utilizados na confeco de fantasias, carros alegricos,
alegorias e preparao para o desfile, desejam as escolas que o aumento dessa
contratao seja da ordem de 20% sobre a contratao do ano de 1973, e no
de apenas de 10%, como nos informou o Secretrio de Turismo. O ideal seria
que essas contrataes obedecessem ao Plano de Equivalncia Salarial,
conforme j estabelecido no Salo Paulista de Belas Artes, por exemplo, e
baseado ainda nos estudos da Fundao Getlio Vargas, no tocante alta do
custo de vida (NOTCIAS POPULARES, 05/01/1974).

A ltima demanda dos sambistas na carta era receber os recursos da prefeitura


com maior antecedncia. Eles alegavam que o recebimento dos recursos a poucas
semanas do carnaval e tambm o aumento de apenas 10% no refletiam o aumento do
custo das mercadorias, motivado pela alta inflao do perodo. Como mostra lvaro
Casado, os sambistas tambm pressionavam o poder pblico:

Teve um ano l, acho que foi em 75, que comeou a atrasar; ns pegamos e
fomos todo mundo l. Todas escolas, lotou. A o cara viu a presso. Passou

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71
uns dias e teve o dinheiro na mo. Porque teve ano que a verba saiu
praticamente em janeiro, p. Teve parcela que saiu em fevereiro. J teve
verba que saiu trs dias antes do carnaval, a ltima parcela. A voc pega um
sbado e domingo a 25 de Maro fechada, no dava tempo. Agora no, a
verba j sai em setembro.17

Uma soluo encontrada pelas agremiaes para montar o seu desfile era
encontrar algumas lojas e armazns que se dispusessem a vender os materiais a prazo,
com as escolas pagando apenas quando sasse a verba para o carnaval.

18

Para evitar

novamente esse tipo de negociao incerta, a UESP emitiu uma carta endereada ao
secretrio de Turismo em nome de todas as suas filiadas, solicitando as verbas com
maior antecedncia:

O Carnaval de 73 ensinou muitas lies aos responsveis pela Secretaria


Municipal de Turismo, e a maior delas, foi sem qualquer sombra de dvida, a
de que as escolas de samba paulistanas, ainda em processo de implantao,
teriam, obrigatoriamente, de merecer um firme apoio financeiro da Secretaria
Municipal de Turismo, consubstanciado no pagamento do auxlio ou
subveno, ou termo que se queira empregar bem antes do carnaval, de
preferncia ainda em dezembro, para que as agremiaes, a maioria delas
sem meios prprios de renda, pudessem partir para a feitura de seus carnavais
com um mnimo razovel de tempo19.

Isso comprova que as negociaes entre a UESP, as escolas e a Prefeitura


passaram por momentos tensos, com presses de ambos os lados. O poder pblico
ameaava no liberar os recursos e as escolas ameaavam no desfilar, caso suas
reivindicaes no fossem atendidas.
No caso das reivindicaes do carnaval de 1974, a Prefeitura cedeu nos pontos
mais importantes das exigncias dos sambistas ao aumentar a verba para os desfiles em
20% e incluir trs escolas do Grupo II no Grupo III, dividindo melhor o nmero de
agremiaes por grupo. Quanto ao dia de desfile, as escolas tambm foram atendidas e o
desfile do Grupo I continuou a ser no domingo.

17

Entrevista com lvaro Casado. Data: 01/05/2012.


Entrevista com Mestre Gabi. Data: 25/10/2010.
19
Carta datilografada. Acervo pessoal de lvaro Casado.
18

71

72

Com relao ao aumento das verbas, como mostra o ttulo Um milho para o
carnaval de rua de uma reportagem do jornal Notcias Populares de 18 de janeiro de
1974, ou seja, 13 dias aps a reunio com a Secretaria de Turismo, o prefeito cedeu
presso dos sambistas e aumentou em 20% o repasse das verbas em relao ao carnaval
anterior. Segundo o jornal, com o novo acordo, as escolas do Grupo I receberiam 52 mil
cruzeiros, as do Grupo II, 34 mil cruzeiros e as do Grupo III, 20 mil cruzeiros,
totalizando um milho e cem mil cruzeiros. A reportagem tambm discorre sobre outras
reivindicaes atendidas:

Ainda durante o despacho com o Secretrio Municipal de Turismo, o prefeito


determinou o escalonamento das escolas de samba. Assim, o primeiro e o
segundo grupos tero 10 escolas e o terceiro, 11. O terceiro grupo desfila no
sbado noite, abrindo os festejos carnavalescos; o primeiro grupo desfilar
no domingo e o segundo, na noite de segunda feira, encerrando a parte dos
desfiles oficiais (NOTCIAS POPULARES, 18/01/1974).

Essa negociao evidencia a fora e a presso que as escolas tambm colocaram


na prefeitura, e que as decises impostas de cima para baixo por esta, foram revistas
aps um posicionamento coletivo dos sambistas e a ameaa de no poder desfilar no
concurso oficial.
Em 1975, devido aos vrios impasses com os sambistas, a Secretaria de
Turismo, responsvel pela administrao do carnaval, decidiu terceirizar a produo do
carnaval, contratando a Jaragu Promoes, uma empresa responsvel em negociar com
as escolas a realizao do carnaval (AZEVEDO, 2010, p. 95).
Muitas escolas nesse perodo ainda contavam com uma administrao bem
amadora, sem possurem, ao menos, conta em banco. Ainda no era comum a
preocupao de exigir notas fiscais e prestao dos contas de seus gastos, o que
evidentemente gerava alguns problemas. Por isso, nos carnavais de 1974 e 1975,
quando ainda havia a diviso das federaes, a prefeitura decidiu pagar apenas uma
quantia de participao pela apresentao das escolas de samba nos desfiles uma
espcie de cach artstico. Com esse artifcio jurdico, a UESP e suas filiadas deixavam
72

73

de sofrer uma presso quanto a prestao de contas do dinheiro pblico, a qual j havia
gerado muitos conflitos e interdies judiciais na prpria Federao e em escolas que
acabavam descredenciadas.
Com a contratao para a execuo de um servio, as escolas tiveram garantida a
verba destinada ao financiamento da construo do desfile de carnaval. No caso de no
conseguirem apresentar um bom desfile, o prprio regulamento se encarregava de
punio, com o rebaixamento para o grupo imediatamente inferior. A UESP, no incio,
era a favor desse modelo jurdico de relao entre as escolas e a prefeitura, pois os
repasses eram dados diretamente s escolas, que repassavam um percentual para a
prpria UESP.
Os protestos mais comuns das escolas aps a realizao do carnaval no eram
destinados UESP, mas Prefeitura e, obviamente, ao corpo de jurados. Todos os anos,
muitas escolas se posicionavam contra as notas recebidas por elas e no aceitavam o
resultado oficial.
Em 1975, aps a apurao do carnaval e confirmado o bicampeonato da escola
de samba Camisa Verde e Branco, os componentes da escola Nen de Vila Matilde
realizaram um grande protesto, no qual, simbolicamente, enterraram o carnaval. Os
alvos daquele ano foram a empresa Jaragu, tida como ineficiente, a Comisso do
Carnaval Paulistano (COCAP), ambas responsveis por escolher o jri, e o secretrio de
Turismo, acusado de prejudicar a escola, que ficou em quarto lugar. O protesto consistiu
na escola realizar um cortejo fnebre com caixes pelas ruas centrais da cidade e
realizar uma cerimnia de sepultamento na frente da Cmara Municipal. A indignao
de Seu Nen era com as seguintes notas: sete, de Mestre-Sala e Porta Bandeira, seis, de
Comisso de Frente, e um nove de bateria, em um momento em que a bateria da escola
era considerada a melhor da cidade (FOLHA DA TARDE, 18/02/1975).
No ano seguinte, em 1976, foi a vez de Mocidade Alegre, Rosas de Ouro e VaiVai no aceitarem o tricampeonato do Camisa Verde e Branco e protestarem contra a
organizao do carnaval, o tratamento dado aos sambistas e o resultado oficial. Segundo

73

74

o colunista Jangada, do jornal ltima Hora, a Jaragu promoveu uma apoteose de


erros:

Extremamente til o desfile da Apoteose, porque ficou claro que a Secretaria


de Turismo no pode mais entregar empresa Jaragu a organizao de uma
festa deste quilate. A ela e seus funcionrios cabe a responsabilidade por
vrias escolas desfilarem em apenas duas faixas de trnsito existentes na Av.
So Joo, como a eles cabe a responsabilidade pela falta de informao ao
pblico, o incitamento aos policiais desta vez de uma delicadeza digna de
elogios ao uso da violncia, o que, em parte conseguiram. Mais
especificamente, um funcionrio de nome Gilberto Oliveira que logo se
tornou conhecido de todos pela falta de um mnimo de considerao com o
povo e todos os demais presentes que no fossem autoridades se imbuiu de
ares de autoridade e foi um dos destaques no incitamento aos desmandos,
tentando, quase nunca conseguindo, se investir de poderes de polcia
(LTIMA HORA, 04/03/1976).

Eduardo Baslio, presidente da escola Rosas de Ouro, exigia a anulao dos


votos de um jurado de bateria, Walter Silva, que possua uma coluna no jornal Folha de
So Paulo e na qual revelou seus votos antes da apurao. O secretrio indeferiu o
pedido e argumentou que o jurado emitiu opinio aps ter colocado seus votos na urna,
e que isso no alterava o resultado (FOLHA DA TARDE, 05/03/1976). A Mocidade
Alegre promoveu, na quadra de sua escola, a noite da choradeira, contra o resultado
dos desfiles. (FOLHA DA TARDE, 15/03/1976). A UESP, atravs do boletim Recado
do Samba, de abril de 1976, relata s suas filiadas o caos que foi o desfile daquele
ano20. Das 23 escolas inscritas no Grupo III e pleiteantes, apenas 13 se classificaram.
Dez escolas foram desclassificadas por no apresentarem 200 componentes, nmero
mnimo exigido, ou por terem se atrasado, norma vigente desde 1973. Essas normas
rgidas com o nmero de componentes era para desestimular a criao de dezenas de
escolas pequenas, sem uma estrutura mnima que se esperava dos participantes de um
carnaval oficializado. Uma das estratgias para tentar burlar o regulamento descrita
por Maria Apparecida Urbano, em entrevista a Vanir Belo: Por exemplo, quem estava
l no comeo mudava a camiseta e ia l pra trs ser contado de novo. Tinha uma srie
de coisas assim, engenhocas para que a escola sasse (BELO, 2008, p. 59).
20

Boletim Recado do Samba. Edio n 2. Abril de 1976. Acervo UESP.

74

75

A justificativa das escolas de samba para o atraso foi a seguinte: a empresa


Jaragu no ofereceu suporte para as escolas estacionarem as alegorias com
antecedncia e elas tiveram que traz-las de suas quadras e terrenos utilizados para a sua
construo. Como os desfiles eram no centro da cidade e a grande maioria das escolas
vinha de bairros perifricos, o transporte dos carros alegricos comprometeu a
apresentao das escolas de samba em seus respectivos horrios.
Alguns membros da diretoria do Vai-Vai, aps a apurao do carnaval,
chegaram a coletar assinaturas para entregar aos deputados do MDB um documento
pedindo para eles pressionarem o prefeito a demitir o Secretrio de Turismo. O
presidente do Vai-Vai, Chicl, ameaou novamente no participar do prximo carnaval,
mas, obviamente, no ano seguinte, estava desfilando novamente:

Essa a nossa vontade geral. Ns vamos sair na avenida, desfilando porque


a nossa obrigao com o povo, mas no vamos desfilar para competir. A
verba que eles do no nos faz falta. Neste ano nos deram Cr$ 60 mil. Ora,
vendemos cada apresentao da escola por Cr$ 30 mil. Assim, se nos
apresentarmos dois dias, j temos a mesma verba. Quando chegou o dinheiro
deles, a escola j estava toda pronta para sair, apenas com o dinheiro dos
integrantes (FOLHA DA TARDE, 05/03/1976).

Outra voz dissonante que criticava duramente a organizao do carnaval foi a do


escritor e dramaturgo Plnio Marcos, que trabalhou em 1976 como comentarista da
rdio Tupi. Em sua coluna no Jornal Folha de So Paulo, ele disse:

Para quem acredita que 300 mil pessoas apinhadas em arquibancadas que mal
comportam 20 mil pessoas assistindo ao desfile de 12 mil sambistas, algo
genial, o carnaval em So Paulo foi um sucesso (...) Para quem acredita no
paternalismo da Prefeitura, dando subvenes para as escolas de samba; para
quem acredita que no tem importncia que das 40 escolas de samba, apenas
quatro ou cinco possam sair rua com seus prprios recursos, o carnaval de
So Paulo foi um sucesso (...) Para quem gosta de bateria tocando no melhor
estilo fanfarra de peloto naval, o carnaval de So Paulo foi um sucesso.
Porm e sempre tem um porm, para quem tem olhos de ver e viu, o carnaval
de So Paulo, onde tudo se resumia na mal iluminada e mal decorada avenida
So Joo e no estardalhao do Trio Eltrico, lixo sonoro o carnaval foi um
fracasso. Para quem percebeu que no havia por parte das autoridades,
nenhuma preocupao em preservar aspectos culturais do carnaval e nem o

75

76
esforo dessas autoridades em promover outros eventos carnavalescos alm
dos desfiles das escolas de samba, que a Prefeitura obrigada a realizar por
lei, o carnaval de So Paulo foi um fracasso (FOLHA DE SO PAULO,
06/03/1976).

O prprio prefeito Miguel Colassuono no gostou da conduo da Jaragu


frente dos desfiles das escolas de samba e tentou implantar, no carnaval de 1976, um
carnaval metropolitano, que iria ser realizado em toda a extenso do Vale do
Anhangaba e parte da Avenida Prestes Maia. Seria metropolitano, pois o prefeito
tentou costurar um acordo com outras dez prefeituras da regio do ABCD, Osasco e
outras, para que elas participassem do carnaval da capital. Com a sada de Miguel
Colassuono da Prefeitura e de Jos Maria Mendes Pereira da Secretaria de Turismo, o
projeto foi abandonado.
O governador Paulo Egydio Martins nomeou em 1975, o banqueiro Olavo
Setbal para o cargo de prefeito. As escolas de samba viram que era uma oportunidade
de pressionar o recm-nomeado prefeito e pediram, em documento elaborado por
Alberto Alves da Silva, o Seu Nen da Vila Matilde, a nomeao de Paulo Henrique
Meinberg para a Secretaria de Turismo. Meinberg j havia sido secretrio de Turismo
na gesto do prefeito Faria Lima, auxiliando na consolidao da parceria escolas e
prefeitura e tinha a proposta de criao do palcio do carnaval, um local destinado a
abrigar as atividades das escolas de samba e servir para preparao do carnaval. A
proposta contou com o apoio e o entusiasmo dos sambistas, que tentaram emplacar
Meinberg na secretaria. O projeto, segundo o seu autor: a criao de uma sede em
que se possa tratar de tudo que se relacione ao carnaval. Onde tcnicos no assunto,
elaborem as promoes pr-carnavalescas e carnavalescas propriamente ditas. A
Secretaria de Turismo criaria uma infraestrutura organizada, integrando tudo referente
ao carnaval (FOLHA DA TARDE, 11/03/1975).
O prefeito no cedeu ao apelo das escolas e nomeou Armando Simes Neto para
a secretaria. Simes Neto j era um poltico experiente, ex-vereador e havia passado
pelo Departamento de Trnsito na gesto Colassuono. O novo secretrio endureceu as
posies da secretaria e no levou adiante a proposta do palcio do carnaval. Durante
76

77

as negociaes para a realizao do carnaval de 1976, a ameaa de no realizar o


carnaval partiu do prprio secretrio, que decidiu suspender as negociaes para a
distribuio de verbas e tambm sobre as alteraes no regulamento para o carnaval de
1976, aps mais um impasse entre a secretaria e as escolas, que no conseguiam chegar
a um acordo.
Simes Neto deu um prazo de 15 dias para que uma nica entidade representasse
as escolas de samba e vencesse os impasses. Por conta do curto prazo de tempo, a
AESSP, liderada por Pedro Guilharde, decidiu se incorporar UESP, pois a ltima
possua maior estrutura e o mandato de sua diretoria estava se encerrando, com a
possibilidade de uma nova direo se formar congregando sambistas das duas
federaes.21 Como os custos para realizao dos desfiles carnavalescos aumentaram
em 1976, Simes Neto tambm decidiu que a secretaria assumiria novamente a
administrao do carnaval, agora juntamente com a UESP, nica entidade a representar
as escolas e blocos nas negociaes com o poder pblico.
Durante a preparao para o carnaval de 1976, a UESP entrega ao secretrio um
documento com uma anlise dos principais problemas verificados no carnaval anterior e
tambm questes de infraestrutura que prejudicaram o desenvolvimento das escolas de
samba. Em sntese, o documento trazia seis questes principais: 1) representatividade da
prpria UESP; 2) quadra de ensaios; 3) ajuda financeira; 4) reformulao do programa
do carnaval paulistano; 5) aperfeioamento do concurso, adotando-se novos critrios de
julgamento; 6) participao das escolas de samba em outras atividades ao longo do ano
(GAZETA ESPORTIVA, 18/05/1975).
A UESP, como nica entidade representativa das escolas, reivindicava um papel
mais ativo na organizao do carnaval. Julgava ser seu papel auxiliar na fiscalizao dos
desfiles oficiais para impedir erros que prejudicassem suas filiadas. A direo tambm
desejava atuar em outras frentes, como a elaborao de uma revista do carnaval
paulistano contando a histria das escolas de samba, que no foi editada por falta de
recursos.

21

Fonte: Centro de Documentao e Memria do Samba. Documento: UESP 25 anos, p. 16.

77

78

A entidade tambm se colocava na defesa dos lamentveis acontecimentos que


ocorreram na quadra da Unidos do Peruche, como a invaso do terreno em que a escola
ensaiava pela polcia. Para ela, a invaso de ensaios das escolas era motivada pelo fato
de a maioria das escolas no possurem quadras com estrutura adequada. Algumas
escolas ensaiavam em praas pblicas, alugavam clubes e terrenos cedidos por amigos
ou pela prpria Prefeitura, mas a ttulo precrio, o que as impedia de planejar e realizar
as obras necessrias para um melhor conforto dos seus associados e visitantes. A
soluo proposta pela UESP, no documento, seria a secretaria elaborar um plano que
permitisse a posse de terrenos ociosos para as escolas e financiamentos para melhorias.
A entidade realizou uma nova eleio buscando novamente a reunificao das
entidades representativas das escolas de samba. Seu Juarez da Cruz, Seu Nen, P
Rachado e Seu Carlo do Peruche procuraram o publicitrio e artista plstico lvaro
Casado e o convidaram a assumir a presidncia da UESP. Casado j tinha experincia
em desfiles desde 1953, quando fundou a escola de samba Acadmicos do Tatuap e
desde ento atuava na organizao das escolas e nas negociaes do carnaval com as
rdios e com os rgos pblicos. Foi ele tambm quem confeccionou a primeira
bandeira da UESP e contribuiu para que a entidade se instalasse em um prdio na
Avenida Brigadeiro Luiz Antnio, esquina com a Rua Rui Barbosa, na Bela Vista,
bairro no qual se localiza, at os dias de hoje, a sede da UESP. Com o apoio dos
principais caciques do samba de So Paulo, que julgavam que ele poderia desenvolver
um bom trnsito com a prefeitura, lvaro Casado foi eleito. A diretoria ficou assim
constituda: lvaro Casado, presidente; Derly Marques da Silva, vice-presidente
administrativo; Arnaldo Mathias, vice-presidente de Finanas; Drcio Pauperio Serio,
vice-presidente de Comunicaes; Nelson Crecibeni Filho, vice-presidente de
Divulgao; e Paulo Soares de Almeida, vice-presidente de Patrimnio. Novamente,
dentro dos nomes da diretoria da UESP, nesse momento, no h a figura de nenhum
cardeal do samba. Como no havia ainda a unidade entre os sambistas, a soluo
encontrada foi colocar, na linha de frente, dois profissionais liberais e universitrios
com laos de amizade e ligao com as escolas de samba: lvaro Casado, publicitrio, e
Derly Marques, jornalista.
78

79

Em entrevista, lvaro Casado diz que a principal dificuldade enfrentada em seu


mandato foi a unificao das escolas de samba em torno da UESP, conseguida apenas
por Geraldo Filme, seu sucessor. A oposio, em parte, segundo Casado, era
determinada pelos mesmos motivos que fizeram os cardeais convid-lo a disputar a
eleio e assumir a presidncia: o de ele ser branco e profissional universitrio.

Voc sabe que no samba, a maioria de negros. E quando viam o branquinho


aqui, alguns j torciam o nariz. (...) Mas eu tinha o apoio das principais
figuras que confiavam no meu trabalho. A partir de setembro, toda sexta-feira
eu estava l comandando as assembleias e ajudando as filiadas no que fosse
possvel22.

Na dcada de 1970, muitas escolas de samba foram fundadas em diversos locais


da cidade. Como elas no possuam muita experincia, o prprio presidente da UESP,
lvaro Casado, era quem desenhava os figurinos, as alegorias, fazia a pesquisa dos
enredos e entregava para que suas filiadas tivessem uma espcie de roteiro a ser
seguido. Outros membros da diretoria, como Silvio Modesto e Jangada,
frequentemente faziam os sambas-enredos de escolas filiadas, para que eles cumprissem
as exigncias dos regulamentos e passassem, sem problemas, pela apreciao da censura
prvia, instituda aps a promulgao do Ato Institucional Nmero 5 (AI-5) pelo regime
militar. Todos os sambas-enredos escolhidos pelas escolas deveriam ser aprovados pelo
Departamento de Censura da Polcia Federal.

Muitas vezes as escolas vinham aqui e diziam: a gente vai vir de corte
portuguesa, eu perguntava: vocs tm o dinheiro, vocs sabem como so os
figurinos, as alegorias, quanto de tecido vai gastar? Eu fazia os clculos
junto com eles, e dava um valor que a escola no ia conseguir arrecadar.
Ento, eu ajudava a organizar o enredo com fantasias mais simples, com
alegorias pequenas, para que as escolas pudessem desfilar. (...)23

22
23

Entrevista com lvaro Casado. Data: 01/05/2012.


Idem.

79

80

Ainda sobre a censura, esta se tornou ainda mais implacvel com os desfiles
carnavalescos a partir da Portaria n 006/76, de 19 de janeiro de 1976. A portaria
abrangia no apenas os desfiles das escolas, realizados nas ruas e que j necessitavam
de aprovao da polcia para ocorrer, mas todos os bailes carnavalescos, inclusive os
realizados em espaos privados. A medida assinada pelo coronel Jos Guimares
Barreto, superintendente regional do Departamento da Polcia Federal, dizia, em seu
Art.1:

1 Nenhum BAILE CARNAVALESCO poder ser realizado em teatros,


cinemas, parques, clubes, associaes recreativas ou esportivas, sales, hotis
ou dependncias adequadas, sem a devida aprovao do respectivo programa
pelo Servio de Censura de Diverses Pblicas da Superintendncia Regional
do D.P.F em So Paulo ou pelos rgos competentes da Diviso de Santos e
das Delegacias de Bauru e Lorena.24

Essa era mais uma medida imposta pelo regime para controlar qualquer reunio
ou aglomerao de pessoas, mesmo que essas tivessem como finalidade a diverso.
Alm das canes, notoriamente censuradas, os enredos e os croquis da decorao dos
sales e das alegorias e fantasias a serem feitas tambm deveriam ser enviadas
previamente para aprovao do rgo da Polcia Federal. possvel observar, em todos
os sambas-enredos depositados pelas escolas nos arquivos da UESP, um carimbo
emitido pela Polcia Federal, atestando que a letra musical foi examinada e liberada para
gravao e divulgao pblica25.
Como a UESP assumiu de vez o desafio de organizar os desfiles das escolas de
samba da capital paulista, como nica entidade, ela tambm participou das discusses
que resultaram na transferncia do local dos desfiles, que ocorriam desde 1968 na
Avenida So Joo, para a Avenida Tiradentes, ocorrida em 1977.

24

Anexo 1. Portaria n 006/76. Departamento da Polcia Federal de So Paulo encaminhada ao Sr. lvaro
Casado, presidente da UESP. Acervo pessoal de lvaro Casado.
25
Anexo 2. Samba-enredo da Sociedade Carnavalesca Corujas da Vila Esperana de 1979. Acervo UESP.

80

81

Em entrevista, lvaro Casado nos conta a preocupao da Prefeitura com a


mudana do local de desfiles:

Saa l da Duque de Caxias e ia at o Correio. Foi o melhor carnaval que eu


vi o da So Joo. Era tradicional. Mas tinha o problema de trnsito, de trilho.
Ali era vazo de tudo, p. Quem ia pra Lapa, Pinheiros, Vila Madalena, no
tinha acesso. Parava os bondes, os nibus, entendeu? E virava uma baguna
ali no centro. Tanto que ns fizemos vrios... Desfiles e os palanques
ficavam ali no Largo do Paiandu. Em frente a igreja. E era corda, no tinha
arquibancada, o carnaval era na corda. E dava uma mo de obra danada. E a
optamos pela Tiradentes. Eu era presidente da UESP e falamos, vamos
mudar26.

Como ficou evidente, a grande preocupao da Prefeitura era resolver o


problema no trnsito da regio central da cidade, que era interrompido por cinco dias
para a realizao dos festejos carnavalescos. Alm disso, havia uma reclamao das
escolas de samba, que alegavam uma dificuldade em manter o ritmo, devido ladeira
existente na avenida (FOLHA DE SO PAULO, 09/05/1975). As escolas se
concentravam na Avenida Duque de Caxias, entravam na Avenida So Joo perfiladas
para o desfile e seguiam em direo ao Vale do Anhangaba , local de disperso.
Em matria do jornal Folha de So Paulo, o ltimo desfile da Avenida So Joo
foi descrito como um caos para os moradores da regio e inseguro para os populares que
estavam interessados apenas em prestigiar sua escola de samba:

O empurra-empurra durante os desfiles de ontem na Avenida So Joo


prximo praa Jlio Mesquita. foi violento. Eram mulheres e crianas no
meio da multido, que gritavam aos policiais, pedindo ajuda. A confuso
ocorria principalmente nas proximidades do edifcio Andraus, onde foram
colocados cordes de isolamento muito prximos s caladas, deixando
apenas um pequeno corredor no passeio para os passantes. Moradores do
edifcio So Jos, na avenida So Joo, 856, reclamaram das autoridades
afirmando que no conseguiriam sair para fazer compras, pois a porta do
prdio ficou totalmente congestionada. Do alto do edifcio os moradores
vaiavam, enquanto a multido, embaixo se comprimia assustada, todos com
medo de cair no cho e serem pisoteados. Tambm ao lado do Cine Osis,
onde existia um estacionamento, foi colocado um grande tapume sobre a
calada, deixando apenas um metro de passeio para os populares. Ali
chegaram mesmo a acontecer algumas brigas entre passantes que tentavam
26

Entrevista com lvaro Casado. Data: 01/05/2012.

81

82
utilizar-se daquele pequeno corredor (FOLHA DE SO PAULO,
03/03/1976).

A sugesto da Avenida Tiradentes surgiu por ela ser prxima Marginal Tiet,
portanto, de fcil acesso, prxima ao centro da cidade e da estao da Luz. Com essa
mudana de local, as escolas poderiam construir alegorias maiores e levar um maior
nmero de componentes para os desfiles. A escolha do local agradou aos sambistas,
pois o lugar era amplo e permitia s escolas levar suas alegorias e pelo fato de a avenida
ter grande comprimento e tambm pela possibilidade de todas as agremiaes montarem
as suas alas em sequncia antes da apresentao, permitindo, assim, corrigir erros de
posicionamento. Para testar a avenida foram realizados dois desfiles no ano de 1976. No
feriado de Primeiro de Maio, cerca de trinta escolas e blocos desfilaram em
comemorao ao Dia do Trabalho. E no dia quatro de setembro as escolas voltaram a
desfilar em comemorao Independncia do Brasil, contando inclusive com um
concurso que escolheu o melhor samba-enredo sobre o tema (BELO, 1971, p. 71).
Para acomodar o pblico que ia assistir aos desfiles, eram montadas
arquibancadas tubulares de metal, cujo acesso era dado pela venda de ingressos. A
prefeitura tambm instalou um moderno sistema de arquibancadas mveis e um sistema
de som que proporcionava a todos ouvirem os intrpretes das escolas 27. Mesmo aqueles
que no tinham condies financeiras de adquirir os ingressos poderiam assistir aos
desfiles pelas brechas entre os mdulos das arquibancadas e tambm era possvel
acompanhar a disperso das escolas ao final do desfile. 28
Ainda no ano de 1976, inspirados pela iniciativa do Rio de Janeiro, que gravava
os sambas-enredos desde o final da dcada de 1960 e alcanava vendagens expressivas,
as escolas de So Paulo tambm passaram a lanar o LP com os sambas-enredos do
Grupo I. A gravao do LP ficou a cargo de ritmistas selecionados por Osvaldinho da
Cuca, como Branca de Neve, no surdo; Xixa, no cavaquinho e violo, e contou tambm
com a presena dos prprios puxadores das escolas, acompanhados por um grande coro
27
28

Entrevista com Osvaldinho da Cuca. Data: 20/01/2012.


Entrevista com Mestre Gabi. Data: 25/10/2010.

82

83

de vozes masculinas e femininas. A produo do LP foi realizada pela UESP e pela


gravadora Crazy e promovido pela revista Amiga, alm da divulgao nas rdios
Nacional, Record, Gazeta, Capital e da Rede das Emissoras Coligadas, que contava com
16 emissoras no interior do Estado.29
Apesar de todas as inovaes, algumas indefinies geraram atritos entre a
Secretaria de Turismo, a Jaragu e as escolas de samba. Os sambistas consideravam
curto o tempo determinado para os desfiles. As Escolas de Samba dos Grupos I, II, III e
IV teriam, respectivamente, 60, 40, 30 e 30 minutos para os desfiles.30
Apesar de vrios outros entraves, a maior polmica novamente se deu pela
questo da liberao dos recursos. A prefeitura estava impedida de liberar a verba por
conta de um processo em andamento no Tribunal de Contas do Municpio contra a
antiga Federao das Escolas de Samba, que deveria prestar contas secretaria sobre os
recursos gastos no carnaval de 1971 (LTIMA HORA, 03/11/1976).
Por conta disso, at o dia 30 de dezembro de 1976 as negociaes sobre as
verbas do carnaval 1977 ainda estavam em curso, sem uma soluo. Nesse dia, lvaro
Casado emitiu uma nota encaminhada ao prefeito sugerindo a adoo de algumas
medidas que contornariam tais problemas, aumentando em 20% os recursos para as
escolas de samba e pedindo para a secretaria retomar a organizao do carnaval, pois o
contrato firmado com a empresa Jaragu alm de no resolver o problema das
agremiaes onerou ainda mais os cofres da municipalidade, com o pagamento de
comisses e verbas de administrao empresa contratante 31.
Mesmo com a mudana de pista e a necessidade das escolas apresentarem um
carnaval maior e a solicitao de um aumento de 20%, a Secretaria de Turismo do
municpio diminuiu as verbas em relao ao ano anterior (FOLHA DA TARDE,
31/12/1976). A verba oramentria foi a mesma, mas com a terceirizao do carnaval,
organizado pela empresa Jaragu, o montante destinado s escolas de samba foi

29

Boletim Recado do Samba. n 2, abril de 1976.


Regulamento para os desfiles do ano de 1977. Acervo UESP.
31
Ofcio encaminhado pela UESP para a Prefeitura de So Paulo. Data: 30/12/1976. Acervo pessoal de
lvaro Casado. Data: 01/05/2012.
30

83

84

reduzido em 40%. Tambm havia um prmio em dinheiro, mas apenas para as trs
escolas melhores classificadas de cada grupo. A campe do Grupo I ganharia Cr$
24.000,00, a do Grupo II, Cr$ 18.000,00, e a do Grupo III, Cr$ 9.600,00 (GAZETA
ESPORTIVA, 31/01/1977). 32.
Como mostra a matria do jornal Folha da Tarde, de 02 de janeiro de 1977,
alm de reduzir o valor recebido pelas escolas, a Jaragu s liberou as verbas destinadas
para o 2 e 3 grupos na semana entre o Natal e o Ano-Novo. Quanto ao primeiro grupo,
deveria ter sido paga naquele dia. O redator Paulo Valentim, da coluna Roda de Samba,
aponta:

Na realidade as entidades que estavam aguardando a verba para armar seus


carnavais podem considerar-se candidatas a uma pssima classificao.
Quem no se virou no ter mais tempo de seguir e nem encontrar bons
preos em tecidos, alegorias, adereos, tintas, sapatos, chapus e at mesmo
instrumentos musicais. No existe uma costureira ou alfaiate milagroso que
consiga em 15 dias fazer uma fantasia de destaque com aplicaes em
pedrarias diversas, nenhum cengrafo pode arriscar-se a montar um carro
alegrico em 10 dias e o veculo no desmantelar na passarela. isso a,
minha gente, vamos aproveitar tudo aquilo que j estiver pronto e desfilar
com fantasias de carnavais passados. Podem estar certos que ns que
estaremos cobrindo o carnaval-77, mostrando o sacrifcio de cada sambista,
que com o seu suor leva avenida a alegria para o povo paulista (FOLHA
DA TARDE, 02/01/1977).

Uma crtica tambm feita ao carnaval daquele ano, o primeiro realizado na


Avenida Tiradentes, foi a no implantao do projeto original que previa a extenso dos
desfiles por uma segunda pista, a da empolgao. Nessa segunda pista, que deveria ter
sido localizada ao longo da Avenida Prestes Maia, as escolas terminariam o desfile
permitindo ao pblico excedente das arquibancadas apreciar um desfile descontrado.
Mas o que aconteceu foi o contrrio, as escolas tiveram que virar direita na Rua Mau,
congestionando a rea prxima a cabine do jurado de Comisso de Frente, prejudicando
a sua avaliao.

32

Jornal Gazeta Esportiva. Data: 31/01/1977.

84

85

O desejo real dos sambistas, j em 1977, era a construo de um espao


construdo especialmente para os desfiles e que durante o ano funcionaria como um
polo de cultura popular. Como afirma o presidente da UESP, lvaro Casado, em
entrevista ao jornal Gazeta Esportiva:

Corrigidos os defeitos, a Tiradentes ser durante alguns anos o local ideal


para os desfiles, mas a UESP pretende oferecer estudos para a localizao
definitiva dos desfiles em local construdo especialmente, o que vir diminuir
os gastos com montagem e desmontagem de arquibancadas e as escolas tero
o local para guardar alegorias e at vestir as fantasias. O local dos desfiles
funcionar durante o ano como um verdadeiro centro de cultura popular com
apresentao de folclore, concursos de fanfarras e festas cvicas (GAZETA
ESPORTIVA, 05/03/1977).

Como afirma Osvaldinho da Cuca33, alguns sambistas ligados principalmente ao


movimento negro estavam descontentes com a atuao da UESP enquanto entidade
cultural do samba de So Paulo. Alm da questo dos recursos que chegavam sempre
atrasados, havia uma insatisfao com o departamento cultural da UESP. Reuniram-se e
fundaram a Coligao das Escolas de Samba. Dentre eles estavam Geraldo Filme e Ciro
Nascimento, preocupados em preservar a herana africana e rural do samba em um
momento de grande crescimento das escolas de samba, que contavam com maiores
recursos financeiros e se inspiravam nas inovaes ocorridas nas escolas do Rio de
Janeiro.
As reunies da Coligao eram normalmente na sede da escola de samba
Paulistano da Glria, agremiao presidida pelo prprio Geraldo Filme. A escola de
samba recebeu este nome por sua sede se localizar na Rua da Glria, no bairro da
Liberdade. Foi fundada por empregadas domsticas que trabalhavam para famlias
abastadas da regio da Avenida Paulista como um espao de lazer e de reunies
polticas. Era uma espcie de sindicato informal das domsticas da regio. Alm dos
desfiles realizados primeiro como cordo e posteriormente como escola de samba, o
Paulistano possua um dos mais conhecidos sales de baile, reunia os negros da cidade e

33

Entrevista com Osvaldinho da Cuca. Data: 20/01/2012.

85

86

era apelidado de oficina do samba. Uma das fundadoras do cordo foi a me de


Geraldo Filme, que, em depoimento ao programa Ensaio, da TV Cultura, disse sobre o
Paulistano:

O Paulistano da Glria pra mim representa muito porque me faz lembrar


minha me. A velha trabalhava com a famlia dos Penteado, no Jardim
Amrica, Cerqueira Csar, Alameda Santos, 25, por a, 25, 26. Ela fez uma
viagem para a Europa com uma dessas famlias e l viu um movimento de
operrios, um movimento sindical, e ela gostou da coisa: D at pra
organizar as cozinheiras l embaixo. Quando voltou pra c, ela pensou em
sindicalizar as domsticas, aquelas coisas todas, uma organizao em defesa
da domstica. A tinha um barraco velho l, que guardava carruagem, ela
pediu, emprestaram pra ela e a fundaram o Paulistano. No era Paulistano da
Glria. Havia surgido o Paulistano dos bacanas l embaixo e ela fundou aqui
em cima, na cabeceira, o Paulistano das cozinheiras. Mas at 41, o Paulistano
ainda era um clube. O Bitucha e o Juca procuraram manter com associados e
tudo. Depois, com o tempo, tornou-se uma empresa danante e eu com o
Bitucha, bom carnavalesco, e seu Juca, que conheceram os carnavais do
passado, fui funestamente com eles pra l e fizemos coisas bonitas com o
cordo Paulistano e com a escola de samba tambm (BOTEZELLI; PELO;
PEREIRA, 2000, vol 2: 82).

Participaram das reunies da Coligao nomes importantes do samba paulistano,


como Inocncio Tobias, do Camisa Verde e Branco, P Rachado, ex-presidente do VaiVai e fundador da Barroca Zona Sul, e Seu Nen da Vila Matilde. Como a preocupao
da Coligao era a preservao cultural, organizando reunies, bailes e eventos
musicais34, fez com que ocasionasse alguns atritos com a UESP, pois havia vrias
escolas e sambistas participando das duas federaes. Segundo o sambista Jangada,
diretor da UESP:

No bastaram a Unio das Escolas de Samba Paulistanas e a Associao das


Escolas de Samba do Estado de So Paulo. Para que a desunio das escolas
ficassem bem caracterizada surge a Coligao cujo nome chega a ser
irnico, pois ela apenas divide mais uma casa recheada: o nosso samba. E tal
como suas similares, a Coligao no sabe das coisas ou informa errado de
propsito. A primeira da Vila Itaim permanece filiada Unio. E agora?
(LTIMA HORA, 05/05/1976).

34

Entrevista com lvaro Casado. Data: 01/05/2012.

86

87

Como as experincias anteriores das vrias federaes no haviam dado certo e


sempre havia o medo de diviso, isso poderia ser mal interpretado pelo poder pblico,
que s aceitava negociar com uma nica entidade.
A UESP buscou apoio na Confederao Brasileira das Escolas de Samba,
sediada no Rio de Janeiro, que reconhecia a UESP como entidade representativa das
escolas na capital e convidou o presidente lvaro Casado para a funo de diretor do
Departamento da Regio de So Paulo e o estimulou a criar uma Federao Estadual
para So Paulo auxiliar os outros municpios a promoverem desfiles de escolas de
samba (NOTCIAS POPULARES, 15/06/1976). Casado, seguindo essa recomendao,
estimulou as escolas de samba de cidades vizinhas a criar associaes para exigir das
prefeituras a oficializao do carnaval. O caminho inverso tambm foi seguido, j que a
UESP prestou assessoria tambm para as prefeituras interessadas em organizar um
concurso. A coluna Roda de Samba, do jornal Folha da Tarde, deu destaque s reunies
de Derly Marques com Dcio Chiappa, diretor da Diviso de Turismo e Recreao de
Osasco, e do presidente lvaro Casado com Sergio Delfiol, assessor de Relaes
Pblicas de Suzano (FOLHA DA TARDE, 18/03/1977).
A sada encontrada pelos dirigentes para no dividir novamente o samba
paulistano foi incorporar as discusses da Coligao na prpria UESP. Para Geraldo
Filme e os dirigentes da Coligao, a funo de uma entidade das escolas de samba no
deveria ser apenas de negociao com os rgos pblicos, jurdica e economicamente,
mas desempenhar uma funo cultural, tambm, de valorizao e preservao do samba
e da cultura negra de uma forma geral. Este pensamento ia de encontro s decises
tomadas pelo movimento negro que comeava a se reorganizar no ano de 1978, com a
criao do Movimento Unificado contra a Discriminao Social (MUCDR), que lutava
por uma melhor insero do negro na sociedade.
No ms de maro ocorreu uma reunio com a participao de boa parte dos
dirigentes da UESP e da Coligao, escolas e blocos para efetivamente selar a
unificao dos sambistas em torno de uma nica entidade (FOLHA DA TARDE,
19/04/1977).
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O sambista Juarez da Cruz, fundador da Mocidade Alegre, declarou, quando


comearam as articulaes para essa reunio: Somamos atualmente a mdia de mais de
40 mil sambistas espalhados por toda So Paulo. Muitos sindicatos no possuem a soma
de scios que ns podemos possuir dentro de uma s sociedade representativa. Para
Juarez, a nica forma de os sambistas lutarem e conseguirem respeito, era a unio. O
grande objetivo do sambista era a independncia e a desvinculao das escolas do poder
pblico:

Queremos e podemos viver independentes dos setores pblicos, que muito


tm realizado a favor das escolas de samba. Entretanto a liberdade de suma
importncia para o nosso desenvolvimento. Dado a este motivo, havamos
programado uma reunio com almoo para o prximo dia 20, domingo e cada
entidade se faria representar por dois diretores. (...) No estou, portando
bandeira de nenhuma das atuais entidades, julgo isso errado, no importa
qual delas sobreviva, o que importante que somente uma delas seja nossa
legtima representante. Da forma que est que no pode continuar
(GAZETA ESPORTIVA, 18/03/1977).

Defendendo essa plataforma de unio, Geraldo Filme de Souza, que era lder da
Coligao e filiado UESP, bem como presidente da escola de samba Paulistano da
Glria, foi alado condio de candidato a presidente da UESP, sendo eleito no ms
de abril, e tomado posse no ms de maio de 1977. A proposta de Geraldo Filme,
descrita pouco acima, era de incorporar agenda pblica da UESP a luta pela
preservao da cultura e das tradies africanas na sociedade paulista e paulistana. A
gesto de Filme representar o inicio da virada que as escolas de samba de So Paulo
iro ter, a partir do incio dos anos 1980, com a abertura poltica da ditadura militar.
Com o fim da censura prvia e a rearticulao dos movimentos sociais, muitas escolas
de samba iriam promover seus desfiles como forma de luta e denncia da situao dos
negros no pas. O ano de 1982 marca essa virada com vrias escolas trazendo temas
ligados a este programa sociocultural.
A diretoria tinha como membros Evaristo de Carvalho, um dos lderes da antiga
Federao e um dos responsveis pela oficializao dos desfiles em 1968, como vicepresidente administrativo; alm de Arnaldo Mathias Seraphim, vice-presidente de
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Finanas; Joo Carlos de Carvalho Camargo, vice-presidente de Comunicaes; Derly


Marques da Silva, vice-presidente de Divulgao; Nelson Crecibeni Filho, vicepresidente Social; e Pedro Gilardi Filho, vice-presidente de Patrimnio. Para o conselho
fiscal foram eleitos: Luiz Carlos Ribeiro Silva, Norival Romo e Orlando Alves
Bittencourt. Como suplentes: Sebastio Eduardo Amaral, Joo da Silva e Osvaldo
Vilaa, o Mala.
Desde 1973, como mencionado, aps a interdio da antiga Federao, as
escolas recebiam as verbas diretamente da prefeitura, e ento repassavam o percentual
destinado manuteno da UESP. As principais despesas da UESP, nesse momento,
eram com encargos de contabilidade, advogado, telefone, almoxarifado e o aluguel da
sala em que se localizava a entidade, na Avenida Brigadeiro Luiz Antnio. No havia
funcionrios dando expediente. Eram contratados apenas temporariamente, a partir de
setembro at o carnaval. As reunies ocorriam semanalmente a partir dos meses de
setembro ou outubro. A diretoria da UESP no tinha remunerao, sendo o trabalho
voluntrio ou remunerado apenas pelos servios prestados durante o carnaval. Como
afirma lvaro Casado:

Era um tempo que eu dedicava, por amor, depois que eu saa do meu
trabalho. Sempre as noites de sexta-feira, e alguma outra noite da semana
eram para a UESP. Trabalhava em uma agncia de publicidade na praa da
Repblica e depois ia at a galeria na Brigadeiro35.

Dentre outras parcerias realizadas pela UESP, alm daquela feita com a
Confederao Brasileira das Escolas de Samba, estava um acordo com o Ministrio da
Educao e Cultura (MEC) e a Embratur para a montagem de duas salas ocupadas pela
empresa brasileira no Museu Internacional do Carnaval e da Mscara, na cidade de
Binche, na Blgica, famosa por ter um dos carnavais mais antigos da Europa (FOLHA
DA TARDE, 22/03/1977).

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Entrevista com lvaro Casado. Data: 01/05/2012.

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Para efetivamente cumprir a promessa de uma entidade preocupada com a parte


operacional, financeira e tambm cultural das escolas, a UESP promoveu, em abril de
1977, em uma parceria da antiga diretoria liderada por lvaro Casado e a nova diretoria
liderada por Geraldo Filme, o primeiro curso sobre escolas de samba, com o intuito de
divulgao cultural e de instruir os dirigentes mais novos a respeito da histria, da parte
cultural e tambm da montagem de um desfile. O curso teve duas fases. A primeira com
a durao de seis horas divididas em trs dias.
A primeira aula, mais panormica, abordou a histria da escola de samba desde
sua origem, desenvolvimento, organizao, seu relacionamento com as autoridades e os
aspectos jurdicos relacionados criao de um Grmio Recreativo e Escola de Samba.
A segunda aula abordou o lado cultural e a importncia de uma escola de samba para
sua comunidade. A terceira aula dedicou-se aos aspectos tcnicos da montagem de um
desfile, incluindo a formao da bateria, o samba-enredo, os componentes obrigatrios e
a evoluo.
A segunda parte do curso, de carter prtico, teve como objetivo a formao
tcnica dos alunos que frequentaram a primeira fase. A durao foi de 12 horas,
incluindo exerccios e observao nas quadras e atelis das escolas de samba. A
primeira de trs aulas objetivou mostrar como se constri um enredo, base de todo
desfile de escola de samba. Os alunos tiveram orientao sobre como utilizar elementos
da Histria, do folclore, das lendas e costumes do Brasil para a montagem do enredo e a
oportunidade de mont-lo na prtica para, posteriormente, os apresentarem s suas
respectivas escolas. Na segunda aula foi desenvolvido o processo de criao das
fantasias, utilizando materiais e tcnicas artesanais. A terceira e ltima aula do curso, de
durao de quatro horas, foi um misto de tcnicas de escultura, carpintaria e serralheria
necessrias para a produo de carros alegricos (GAZETA ESPORTIVA, 07/04/1977).
As inscries eram gratuitas e o corpo docente composto pelo folclorista Wilson
de Morais, tambm mestre-sala da Barroca Zona Sul; pelo msico e jornalista Jangada;
pelo publicitrio e artista plstico, lvaro Casado, dentre outros. O curso foi uma
espcie de manual sobre escola de samba. Tinha como objetivo mostrar que qualquer
um poderia montar uma escola de samba. Ao contrrio de muitas atividades, guardadas
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sempre como segredo pelos que detm seus cdigos, os sambistas gostavam de dividir
seus conhecimentos e experincias com outras pessoas de fora do meio, que tambm
gostavam de samba e tinham vontade de entrar, ajudar ou at mesmo criar uma escola
de samba em seu bairro, mas no sabiam como.
Outra atitude tomada pela nova diretoria, desde a sua posse, foi a criao de
festas e atividades ligadas s escolas de samba durante todo o ano, como forma de
divulgao, aumento da sociabilidade e da arrecadao de recursos para custear parte
dos desfiles. A primeira festa foi a Festa do Abacaxi, realizada na quadra de ensaios
do Bloco Gavies da Fiel, no Bom Retiro. Segundo o prprio Geraldo Filme: Com
esse pagode, a UESP inicia sua programao, que tem por objetivo incrementar o samba
da Pauliceia, com encontro direto dos sambistas com a populao (FOLHA DA
TARDE, 17/06/1977). As escolas tambm organizavam diversos eventos em parceria
com a UESP, como as 24 horas de samba, evento musical promovido pela Mocidade
Alegre em sua quadra e que contava com 24 horas de atraes musicais (FOLHA DA
TARDE, 27/09/1977), algo semelhante proposta da atual Virada Cultural.
A UESP tambm estava atenta ao que acontecia fora das escolas de samba,
como prestar apoio, ao lado da escola de samba Quilombo, do Rio de Janeiro, a um ato
pblico contra o racismo realizado no dia 7 de julho de 1978, com duas mil pessoas nas
escadarias do Teatro Municipal. O ato contra o racismo e em solidariedade a quatro
jovens discriminados durante uma competio no Clube de Regatas Tiet e ao jovem
Robson de Oliveira Cruz, negro, trabalhador e pai de famlia, torturado at a morte no
44 Distrito Policial de Guaianazes, aps ser confundido com um ladro. Durante o ato
foi distribuda, por parte dos organizadores, uma Carta Aberta, dirigida populao, que
incitava a populao afro-brasileira a criar Centros de Luta nos bairros, nas prises,
nos terreiros de candombl e umbanda, nos locais de trabalho e nas escolas de samba, a
fim de organizar um movimento de luta contra a opresso racial, a violncia policial, o
desemprego, o subemprego e a marginalizao da populao negra (DOMINGUES,
2007, p. 114).
A Secretaria de Turismo, interessada em manter um calendrio de atividades
ligada s escolas de samba, tentou promover, em 9 de abril 1977, um Campeonato
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Brasileiro de Escolas de Samba. O evento ocorreria no estdio do Morumbi s 20:00


horas e iria contar com diversas escolas da capital, de Santos e o encerramento ficaria a
cargo da escola carioca Beija-Flor de Nilpolis. Mas, devido forte chuva que havia
cado no campo, o evento foi adiado para o dia seguinte, s 16:00 horas. Os sambistas
do Rio de Janeiro at chegaram a vir para So Paulo para a apresentao. Mas com a
pssima alimentao, estrutura e alojamentos oferecidos pela Secretaria, os sambistas
das escolas Beija Flor, Mocidade Independente de Padre Miguel e do bloco Cacique de
Ramos decidiram voltar para o Rio de Janeiro na mesma noite de sbado. Devido s
baixas das principais atraes o evento foi cancelado, mesmo com milhares de pessoas
que compareceram ao estdio no domingo tarde. Algumas pessoas iniciaram um
quebra-quebra na tentativa de ter seu dinheiro de volta. O jornal Folha de So Paulo
colocou como capa de seu caderno cultural: Vexame! O tmulo do samba. Alguns
dirigentes queriam receber o cach acordado, como o presidente do Camisa Verde e
Branco, Inocncio Tobias: Se quiserem saber tudo direitinho, apaream amanh s 15
horas na Secretaria de Turismo. Eu estarei l e vou querer acertar umas coisas com o
Secretrio (FOLHA DA TARDE, 11/04/1977).
O diretor da empresa contratada pela secretaria para realizar o espetculo se
explicou na tentativa de isentar a secretaria da responsabilidade pelo ocorrido:

A promoo foi toda nossa e a Secretaria apenas estava colaborando. O que


ocorreu foi que a chuva atrapalhou o espetculo no sbado e, por volta das
23h30 levamos o pessoal (cerca de 1200 pessoas para o Pacaembu).
Compramos comida e cigarros. Conseguimos alojamento para uma parte no
estdio, mas a outra teria que dormir no nibus. Dessa forma, todos
decidiram regressar e tentamos avisar pelas emissoras de rdio que o
espetculo havia sido suspenso (FOLHA DA TARDE, 11/04/1977).

Aps o fracasso do concurso, a secretaria procurou a UESP a fim de negociar


um novo projeto de divulgao dos compositores e cantores ligados s escolas de
samba. Foi criado, ento, um projeto chamado Samba vai aos Parques. O projeto
consistiu na apresentao de espetculos de samba em parques pblicos nos finais de
semana. Por exemplo, no dia 03 de setembro, Jangada, Silvio Modesto, Geraldo Filme,
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Zeca da Casa Verde, Talism e Tuniquinho Batuqueiro se apresentaram no Jardim da


Luz, e, no dia 04, no Parque do Morumbi (GAZETA ESPORTIVA, 03/09/1977).
J os populares ensaios realizados pelas escolas passaram a contar com novas
regras. De acordo com uma portaria assinada pelo coronel Erasmo Dias, secretrio de
Segurana Pblica, os ensaios deveriam ser realizados em recintos fechados, no horrio
das 19 s 22 horas. Aos sbados poderiam prolongar-se at s 4 horas de domingo. Aos
domingos, deveriam iniciar-se s 15 horas e encerrar-se s 18 horas (FOLHA DA
TARDE, 10/01/1978). Essa medida prejudicou inmeras escolas que ainda no
possuam quadras e dependiam do espao da rua para ensaiar, assim como as que
tinham quadras, mas estas eram insuficientes para o nmero de pessoas que
compareciam aos ensaios.
Algumas escolas s conseguiam realizar o ensaio geral na vspera do carnaval,
na prpria Avenida Tiradentes, prejudicando a harmonia e a coreografia das alas. O
jornal ltima Hora relatou um incidente ocorrido a poucos dias do carnaval, com a
manchete: Polcia impede ensaio da escola. A matria relata que a escola de samba
Prola Negra foi impedida de ensaiar na rua. A quadra da escola estava ainda em fase de
construo e, por isso, no ofereceria condies para a realizao do ensaio geral.
Segundo os policiais, a escola estava infringindo uma portaria da Secretaria de
Segurana Pblica, que probe ensaios de escolas de samba em vias pblicas. A
diretoria da escola e a UESP, diante do ocorrido, enviaram uma carta ao secretrio,
solicitando providncias para evitar esse tipo de constrangimento. Para o presidente da
UESP, Geraldo Filme, era um absurdo tentarem confinar uma arte que nasceu nas ruas.
Com surpresa, fomos informados que o samba, que nasceu e cresceu nas ruas, passava
a ficar confinado. Tivemos que acompanhar as autoridades a duas delegacias de polcia
e recebemos uma intimao para comparecer Delegacia de Diverses Pblicas
(LTIMA HORA, 24/02/1978).
No ano de 1977, durante as negociaes para o carnaval de 1978, a Prefeitura
escutou a reclamao dos sambistas, no renovou o contrato com a Jaragu e criou uma
autarquia chamada Paulistur, espcie de Embratur da cidade de So Paulo (AZEVEDO,
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2010, p. 95). A empresa passou a ser a responsvel pela organizao dos principais
eventos tursticos da cidade, como o carnaval, as corridas de Frmula 1 e de outras
categorias, os desfiles de 7 de Setembro e as festas de Rveillon. A Paulistur criou um
departamento exclusivo para o carnaval, o Departamento de Coordenao Organizadora
de Carnaval (COC). A partir desse momento, at 1986, havia duas entidades que
organizavam o carnaval, o COC e a UESP. O COC era responsvel pela infraestrutura,
por negociar o fechamento do trnsito, pela contratao da empresa para montagem,
iluminao, sistema de som e etc, isto , cuidava das bases concretas para a realizao
dos festejos.
As reunies do COC com a direo da UESP eram mediadas e dirigidas pela
Comisso de Carnaval da Prefeitura. Nas negociaes para a realizao do carnaval de
1978 foi nomeado o general Moacyr Gaia como presidente da comisso. O militar tinha
a ideia de vender espaos nas arquibancadas para empresas privadas, como maneira de
arrecadar verbas e diminuir os gastos pblicos (LTIMA HORA, 24/02/1978).
Pelo acordo assinado entre as partes houve um reajuste com relao a verba do
carnaval do ano anterior, que havia reduzido em 40% o montante gasto. Os desfiles
ocorreriam em dois locais da capital: na Avenida Tiradentes, pelo segundo ano, entre a
Praa da Luz e a Avenida do Estado, alm dos desfiles de carros alegricos realizado na
Vila Esperana. Trinta e nove escolas foram inscritas para a participao nos desfiles.
Inicialmente, a Paulistur queria alterar o regulamento para realizao de um carnaval
maior. A empresa queria estabelecer, no mnimo, mil componentes fantasiados para as
escolas de samba do Grupo I, 700 do II e 400 do III. E o Grupo IV no desfilaria na
Avenida Tiradentes nem teria apoio da secretaria. Outra proposta apresentada pela
Paulistur era a incluso de mais um jurado por quesito, totalizando dois jurados para
evitar as confuses e reclamaes envolvendo as escolas que ganhavam notas muito
baixas em um quesito e perdiam o campeonato ou, s vezes, eram at mesmo rebaixadas
(FOLHA DA TARDE, 11/03/1977). Para o presidente da Paulistur, o ex-secretrio de
Turismo, Armando Simes Neto, era necessrio aumentar o nmero de componentes
das escolas, j que a nova pista era maior e era necessrio preench-la por inteiro. Isso
seria possvel depois das medidas que fariam o reajuste no valor da verba recebida pelas
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escolas e da deciso do prefeito Olavo Setbal de conceder a iseno do imposto de


35% que incidia sobre os servios oferecidos pelas escolas de samba e pelas prestadoras
de servios responsveis pela organizao do carnaval

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(FOLHA DA TARDE,

16/08/1977).
Aps seis meses de negociao, ficou estabelecido que as escolas de samba do
Grupo I deveriam se apresentar com um mnimo de 800 componentes fantasiados. As
escolas do Grupo II, com 500 e as do III com 200, respectivamente (FOLHA DA
TARDE, 30/09/1977).
Algumas escolas do Grupo III subiram para o II. Para o desfile ficou acertado
que os Grupos I e II contariam com doze escolas cada e o Grupo III com quinze. O
Grupo IV, como no receberia o apoio da Secretaria, deixou de existir formalmente. As
escolas pequenas, pretendentes a entrar no Grupo III, conseguiram organizar um desfile
informal patrocinado pelo Clube dos Lojistas do Ipiranga, no mesmo bairro. O corpo de
jurados foi formado por sambistas voluntrios que pertenciam s escolas do Grupo I. As
duas melhores colocadas do desfile do Ipiranga ganharam o direito de serem includas
no Grupo III no ano seguinte. E as piores colocadas do Grupo III passaram novamente a
condio de pretendentes, sem direito a nenhuma remunerao (FOLHA DA TARDE,
15/11/1977).
No contrato, as escolas passavam a ser tratadas com os mesmos direitos e
responsabilidades de qualquer instituio jurdica. O regulamento previa diversas
penalidades, que iam desde a suspenso at a extino das escolas que no cumprissem
as clusulas do contrato.
Ao eliminar o Grupo IV, a Secretaria de Turismo e a Paulistur tinham uma
estratgia que era a de diminuir o nmero de escolas vigentes na cidade para melhorar o
nvel das exibies. Ao no receberem mais verbas oficiais, essas escolas no teriam
como sobreviver e tinham dois caminhos: a extino ou a fuso com outra escola maior
do mesmo bairro ou de localidades prximas. A posio da empresa era clara:

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Ofcio enviado por Geraldo Filme de Souza para o gabinete do prefeito Olavo Setbal em 10/07/1977.

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(...) a Paulistur pretende dar mais apoio para as escolas que vem se
destacando nos desfiles, porque elas tero mais responsabilidade no prximo
carnaval. As pequenas escolas de samba sero absorvidas pelas maiores,
tendo em vista a localizao dos bairros e a simpatia dos componentes pelas
cores das agremiaes que exercem maiores influncias em cada regio da
capital. A primeira medida ser a extino do Grupo IV, que foi criado no
carnaval passado, mas no correspondeu s expectativas, pois as escolas de
samba se apresentaram mal nos desfiles. 37

No ofcio enviado pela UESP para as escolas de samba no dia 26/12/7738, o


diretor Derly Marques revela que esse apoio descrito no documento acima se
concretizou. At o Natal de 1976, as escolas j haviam recebido 80% da remunerao
para o carnaval do ano seguinte, anulando assim o problema que afetava as escolas nos
anos anteriores. O presidente Geraldo Filme relembra que os atrasos prejudicavam
muito as escolas, dificultando seu planejamento e a compra dos produtos utilizados.
Segundo Filme, com a antecipao dos recursos era possvel procurar produtos e preos
melhores, principalmente das fbricas de tecido das cidades do interior do Estado.
A UESP e os sambistas julgavam necessria a criao de um seminrio para os
jurados das escolas de samba. Os prprios sambistas, que julgariam o desfile do
Ipiranga, ainda tinham algumas dvidas. Alm do que, no Grupo I, a opinio dos
dirigentes era que apenas a nomeao de mais um jurado no era garantia suficiente de
uma apurao mais tcnica e justa.
Desde a oficializao at o carnaval de 1976, na Avenida So Joo, os jurados
eram normalmente personalidades, professores universitrios e maestros convidados da
prefeitura e no recebiam nenhum cach por isso. Mas, muitas vezes eram convidadas
pessoas que no tinham grandes conhecimentos sobre as escolas de samba. Na coluna
Assim cantam os tamborins, do jornal Gazeta Esportiva, relatado um caso de uma
jurada que perguntou a um sambista o que significavam as figuras vestidas todas iguais
que vinham frente das escolas e que paravam aguardando a entidade passar, depois
seguiam atrs. O sambista quase caiu de costas ao perceber que a jurada no conhecia

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Ofcio UESP informa. Data: 12/09/1977. Acervo UESP.


Idem. Data: 26/12/1977. Acervo UESP.

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sequer o que era a Comisso de Frente de uma escola de samba (GAZETA


ESPORTIVA, 14/02/1978).
Por esse motivo, a UESP cobrava da secretaria a realizao de um seminrio,
com um curso bsico de formao, j que os jurados a partir de 1977 passaram a receber
um cach para julgar dos desfiles. Mesmo com o apelo dos sambistas, a prefeitura no
aceitou financiar o seminrio e ele no foi realizado. A sada encontrada foi incluir os
quesitos de julgamentos nos cursos de formao de escolas de samba, promovidos pela
entidade. Alm dos dirigentes e membros das escolas de sambas, os jurados eram
convidados para algumas aulas, a fim de aprender e explicar para os sambistas os pontos
de balizamento para as notas, sempre motivo de briga entre as escolas perdedoras.
A grande novidade para esse carnaval foi a cobrana de ingressos para ter acesso
s arquibancadas, o que, at o ano anterior havia sido gratuito (FOLHA DA TARDE,
10/01/1978).
A partir da, o carnaval de So Paulo entra em uma nova fase. Deixa de ser
diverso gratuita, que atraa principalmente os menos favorecidos que desfilavam em
suas escolas e aqueles que apenas gostavam de assistir aos desfiles, e passa a atrair as
classes mdias e altas, que compravam um ingresso e exigiam maior comodidade e um
espetculo de qualidade.
Com o montante arrecadado por meio da cobrana de ingressos foi possvel a
Paulistur arcar com custos maiores, alm de aumentar a potncia da sonorizao e
iluminao da avenida. Para o carnaval de 1979, a Paulistur procurou explorar espaos
de merchandising na avenida com a insero de textos e exibio de marcas comerciais.
Para o secretrio: Pagando as taxas exigidas, as empresas podero divulgar tudo
(FOLHA DA TARDE, 10/01/1978).
A ideia j havia sido debatida desde o ano anterior. Segundo o mesmo secretrio,
as mudanas minimizariam os custos do carnaval de So Paulo, alm de possibilitar um
aumento do repasse para as escolas. Alm disso, foi estendida a extenso das
arquibancadas, permitindo a colocao de ingressos populares na rea de concentrao.
Ao todo foram oferecidos 17 mil lugares, instalados em 34 mdulos de estruturas
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tubulares com capacidade para 500 pessoas e com grande parte coberta, a exemplo do
Rio de Janeiro. As estruturas ofereciam a capacidade para alojamento de seis cmeras
de televiso, para que as emissoras tivessem a possibilidade de tomadas areas, obtendo
assim uma melhor perspectiva de transmisso. As cabines de rdio tinham a
possibilidade de instalao de equipamentos e transmissores. A imprensa escrita
tambm contou com uma cabine com telefones e mquinas de datilografia (GAZETA
ESPORTIVA, 11/01/1979). Para o carnaval do ano de 1980, foram construdas
arquibancadas tubulares para 30 mil pessoas, evidenciando o crescimento do carnaval
paulistano, em termos de pblico.
Ainda durante a dcada de 1970, ocorreu a formatao atualmente vigente dos
desfiles das escolas de samba e de blocos, com a diviso das escolas e dos blocos em
grupos, dado o grande nmero de agremiaes filiadas e as diferentes estruturas e
tamanhos apresentados por elas. Dessa separao por grupos, formou-se uma diviso
hierrquica: Grupo I (Posteriormente chamado de Especial), Grupo II (posteriormente
chamado de Acesso) e Grupo III. O Grupo IV foi criado nos anos 1980, assim como na
dcada de 1990 foi criado um grupo de vagas abertas para as novas escolas que eram
fundadas e que quisessem participar do grupo. Alm do grupo dos desfiles de blocos,
sagrava-se campe a escola que tivesse alcanado o maior nmero na soma das notas de
todos os quesitos. Apesar da diviso hierrquica do desfile, necessria para haver certo
equilbrio no concurso, cada escola possua o mesmo peso em assembleias e discusses
dentro da UESP. Na eleio para presidente, deliberaes de verbas e contratos, as
escolas do Grupo I e do Grupo IV possuam o mesmo direito a voz e voto.
Uma reportagem do extinto jornal ltima Hora, do ano de 1976, revelou como a
imprensa j vinha alertando a populao para o fato de o desfile carnavalesco da cidade
estar subordinado a uma empresa que no conseguia cumprir com o seu objetivo, que
era o de atrair turistas para o carnaval. A soluo correta, para o jornalista, seria se os
desfiles carnavalescos voltassem novamente a serem assumidos pela Secretaria de
Cultura: Seria interessante entregar-se o Carnaval a outra pasta: a Secretaria de
Cultura. Afinal, o Carnaval paulista, pobre imitao do Carnaval carioca, perdeu as suas

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razes. Portanto, nem atrai turistas, nem diverte o povo. Ao contrrio, afugenta um e
outro (LTIMA HORA, 04/03/1976).
Entre 1977 e 1986, a UESP conduziu as negociaes na organizao dos desfiles
de carnaval, ocupando um espao cada vez maior para os sambistas. No ano de 1977, a
UESP recuperou o direito de gerir as verbas do carnaval. Nesse perodo, a UESP
possuiu trs diferentes presidentes: Geraldo Filme (1977-1979), Osmar Csar de
Carvalho, com dois mandatos (1979-1983), e Alberto Alves da Silva Filho (Betinho)
(1983-1985), at a nova diviso das federaes com a fundao da Liga, em 1986.
Com a transferncia do local dos desfiles, negociados entre a Paulistur, a
prefeitura e os sambistas, estes passaram a ter uma maior visibilidade, pois os desfiles
eram realizados em uma avenida com uma pista ampla, contavam com arquibancadas e
apresentando envolvimento mais responsvel, por parte das escolas de samba, que
passaram a atrair membros de todas as classes sociais. Para Ana Maria Rodrigues
(RODRIGUES, 1984), essa entrada de membros brancos, oriundos das classes mdias e
altas, fez com que o carnaval negro se tornasse cada vez mais plido, pois atraiu a
presena cada vez maior de brancos das classes mdias e altas nos ensaios e,
principalmente, na direo das escolas e federaes. As escolas de samba, segundo
Rodrigues, passaram a dar os cargos mais importantes na direo a integrantes brancos,
pelo fato de eles serem mais escolarizados e, portanto, partir da ideia de que eles
administrariam melhor a escola. Com isso, as escolas de samba deixaram de ser smbolo
apenas de negros e pobres e passaram a entrar em um processo de carter nacional,
nomeado como domesticao da massa urbana pela sociloga Maria Isaura Pereira de
Queiroz, ao analisar esse fenmeno dentro do carnaval carioca (QUEIROZ, 1992).
preciso ressaltar que a iniciativa de oficializao, por parte do poder pblico,
partiu dos prprios sambistas, que viam no reconhecimento oficial do desfile a
valorizao de suas atividades. No podemos entender o poder pblico como destruidor
da manifestao popular, pura e espontnea, atuando de forma repressora e alienante. O
processo foi de negociao, com uma parte significativa das demandas dos sambistas
sendo atendidas pela prefeitura da cidade. Em So Paulo, a oficializao dos desfiles era
a oportunidade para se constituir um evento oficial do calendrio do turismo municipal,
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a semelhana daquele que j ganhara, no Rio de Janeiro, a adeso das classes mdias e
altas do pas. Com isso, o poder pblico municipal passou a ser o promotor e o
controlador do desfile das escolas de samba de So Paulo, a cidade economicamente
mais importante e com o maior nmero de habitantes e trabalhadores do pas. Mas, para
atender essa demanda, ela imps algumas condies aceitas pelos sambistas.
Para Olga von Simson (SIMSON, 2007), a oficializao foi, ao mesmo tempo,
uma possibilidade de ampliao e uma estratgia de sobrevivncia e triunfo da festividade
criada pela populao negra paulistana. inegvel que formas, modelos e valores
socioculturais foram modificados no interior das escolas de samba para que elas
atrassem a participao das classes mais elevadas. Antes disso, os bailes da elite
aconteciam nos grandes clubes como o Iate Clube, no Rio de Janeiro, o da Ilha Porchat,
em So Vicente, ou em teatros, como os Municipais do Rio e de So Paulo, com grande
repercusso nas maiores revistas de atualidades da poca como O Cruzeiro, Manchete e
Fatos e Fotos. Estas revistas, at meados dos anos 1970, dedicavam um pequeno espao
para o desfile das escolas de samba, e, quando o faziam, era com o contedo sobre as
cariocas. As escolas de samba paulistanas passaram a ter um espao, mesmo que
reduzido, nas grandes revistas de circulao nacional somente a partir de 1977, quando
os desfiles cresceram e passaram a serem realizados na Avenida Tiradentes.
Os bailes de carnaval do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, por exemplo, eram
verdadeiros espetculos das elites, aos quais somente tinham acesso os ricos e famosos.
Como evidencia a fotogrfica revista carioca Manchete, em 1970:

Para o povo, a chegada dos convidados a primeira atrao. Desde o anoitecer


de segunda-feira, milhares de pessoas concentram-se diante do municipal para
assistir entrada dos convidados e ao desfile das fantasias premiadas. O
interesse popular, sem falar nos 6000 que participam do baile, demonstra mais
uma vez que a tradicional festa da segunda-feira o maior show carnavalesco a
portas fechadas do mundo. A passarela armada em frente ao teatro permite que
vejam vontade o cortejo de celebridades, e de certa forma, participem um
pouquinho do grande espetculo39.

39

MANCHETE. Rio de Janeiro: 21 de fevereiro de 1970, ano 17, ed. n 931, p.19. Grifo nosso.

100

101

Durante a dcada de 1970, as escolas de samba possuam um espao permanente


na imprensa paulistana, contando com diversas colunas em jornais populares de grande
circulao. Dentre elas, destacam-se Assim Cantam os Tamborins, do jornal Gazeta
Esportiva, elaborada pelo jornalista Evaristo de Carvalho, ex-presidente da Federao
das escolas de samba; Quadra de Ensaio e NP no samba, do jornal Notcias
Populares, elaborada respectivamente por Edmundo Andrade e J. Muniz Jr; UH no
Samba, do jornal ltima Hora, elaborada pelo sambista Jangada, e Roda de Samba,
do jornal Folha da Tarde, elaborada por Edmundo Andrade e, posteriormente, por
Paulo Valentim. As colunas traziam informaes relacionadas ao carnaval e ao universo
das escolas de samba, como o calendrio de eventos realizados pelas escolas, disputas
de samba-enredo, informaes relativas preparao e aos bastidores das escolas,
eleies etc. Esse espao conquistado dentro da imprensa pelas escolas de samba,
poucos anos aps a oficializao evidencia a consolidao dos folguedos carnavalescos
dentro da agenda cultural da cidade. Os quatro jornais, que foram extintos, at os anos
2000, disputavam o pblico trabalhador das classes mais baixas, tambm pblico-alvo
das escolas de samba. As colunas saam em dias alternados para no trazerem as
mesmas informaes, portanto, era possvel, quase que diariamente, saber os
acontecimentos das escolas de samba, por meio dos dados dos jornais. At os dias de
hoje, as escolas de samba de So Paulo no tiveram tanto espao na grande imprensa
escrita como na dcada de 1970. Algumas colunas, como a da Folha da Tarde, avanou
nos anos 1980. Essas colunas se constituram como uma memria das prprias escolas
de samba e formaram um material muito importante para a presente pesquisa.
Com da criao da Paulistur e a designao de que a empresa seria responsvel
pela gesto do carnaval, a UESP tornou-se uma parceira estratgica, como por exemplo,
na escolha do corpo de jurados. Estes poderiam ser jornalistas, professores e at mesmo
sambistas de outras cidades, como do Rio de Janeiro e de Santos. A partir da dcada de
1980, a UESP conseguiu o direito de escolher os jurados e organizar um curso de
formao40.

40

Fonte: Centro de Documentao e Memria do Samba. Documento: UESP 25 anos, p. 20.

101

102

O curso de formao foi importante para melhorar a capacidade de julgamento,


pois muitos vinham de outras cidades, com regulamentos diferentes; outros julgavam
pela primeira vez e evitava-se assim a utilizao de critrios discrepantes, pois o
momento de apurao sempre foi de grandes conflitos, com as escolas discordando das
notas dadas e das justificativas apresentadas. Os membros da UESP criaram a Cartilha
do Samba, um livreto contendo todos os quesitos e pontos de balizamento (URBANO,
2006, p. 195). A cartilha era usada como material de apoio aos jurados e tambm era
entregue a todas as filiadas, para que as diretorias de escolas de samba estivessem a par
dos quesitos e critrios adotados para a concesso das notas. Um dos objetivos da
prpria UESP ao conduzir a escolha e formao dos jurados era evitar esse tipo de
desentendimento, que sempre deixava rusgas nas reunies e no ambiente interno da
prpria entidade. Esse direito de escolha e formao dos jurados representou uma maior
autonomia na organizao dos desfiles da capital paulista, possibilitando que os
prprios sambistas determinassem a escolha dos jurados e os critrios de julgamento.
Nesse momento, nem as escolas cariocas havia conseguido tal autonomia,
permanecendo a escolha dos julgadores, prerrogativa da prefeitura da cidade do Rio de
Janeiro (LEOPOLDI, 2009).
Tambm em parceria com a Paulistur, a UESP adquiriu o direito de
credenciamento dos dirigentes das escolas de samba para ter livre trnsito em todas as
reas de desfile, pois o impedimento dos diretores de harmonia e outros dirigentes de
circular em alguns locais da pista geravam alguns atritos entre a UESP e as escolas de
samba. A parceria entre a empresa municipal e a entidade das escolas de samba se
tornou mais slida, a partir do ano de 1983, na gesto do prefeito Mrio Covas. O
prefeito nomeou Joo Dria para presidncia da Paulistur. Dria nomeou um sambista
para a direo do COC, Eduardo Joaquim de Oliveira. Este, aps ocupar o cargo na
Paulistur, foi eleito presidente da UESP, entre 1986 e 1990.
Durante sua gesto no COC, houve um atrito entre os sambistas e a Paulistur
envolvendo a questo dos ingressos de cortesia para os desfiles. A empresa limitou
drasticamente a distribuio de ingressos de cortesia para o carnaval de 1984, seguindo
uma orientao do Tribunal de Contas do Municpio e do gabinete do prefeito, para
102

103

evitar que se repetisse uma prtica comum nos ltimos anos, quando at oito mil
ingressos eram oferecidos como cortesia. Pelas novas regras, nem o cerimonial da
prefeitura poderia emitir convites especiais para as autoridades; e os vereadores
deveriam solicitar por escrito empresa a incluso de seu nome na lista do camarote da
prefeitura (FOLHA DA TARDE, 16/02/1984).
Com o objetivo de montar mais de quatro mil ingressos nas arquibancadas, a
Paulistur eliminou a maioria dos camarotes, inclusive o da prpria UESP, que recebeu
800 ingressos para as quatro noites de desfile e 85 credenciais de trabalho com livre
acesso pista. Os sambistas acharam este nmero diminuto e pressionaram a direo da
empresa para conseguir mais ingressos. A justificativa dada foi que eles, aps
desfilarem, no tinham como guardar as fantasias e voltar para as arquibancadas. A
empresa no cedeu aos apelos e disse que aquela era uma posio do Tribunal de Contas
do Municpio.
Ainda na gesto de Joo Dria, um importante acordo foi assinado na Paulistur.
O governador Andr Franco Montoro aprovou o patrocnio do governo do Estado para
os desfiles da capital. O acordo previa que o montante que o governo destinava aos
desfiles seria encaminhado a UESP, que o distribuiria para as escolas filiadas. Com
mais esse recurso, as escolas puderam dar um salto em termos de apresentao visual e
na qualidade geral das apresentaes. A organizao dos desfiles, por outro lado,
tambm passava a ser mais cuidadosa. Vrios sambistas foram contratados para a
coordenao da empresa, j que o carnaval era o maior evento de samba realizado
durante o ano. Dentre os sambistas estavam, por exemplo, Geraldo Filme, que cuidava
da parte de fiscalizao. Vrios sambistas aproveitaram a sua experincia na
organizao dos desfiles para, posteriormente, auxiliar a prefeitura nas negociaes com
as escolas. Somado a isso estava o j mencionado direito de escolher os jurados.
Percebe-se portanto, que, a partir da dcada de 1980, os sambistas esto frente do
processo, tendo uma maior autonomia e um maior poder de deciso.
Em 1983, aps dois mandatos de Osmar Csar de Carvalho frente da UESP,
Seu Nen da Vila Matilde se organiza com antigos sambistas e com membros das
escolas recm-fundadas e lana seu filho, Alberto Alves da Silva Filho, o Betinho, para
103

104

a presidncia da federao. Betinho vence a eleio, mas enfrenta, durante todo o seu
mandato, uma oposio muito grande.
Uma parte dos antigos dirigentes decide sair da UESP e fundar a Federao das
Entidades Carnavalescas do Estado de So Paulo (FESEC), buscando congregar
agremiaes distintas de todo o Estado de So Paulo (SIMSON, 2007, p. 224). Em seu
programa poltico para a entidade, Betinho queria promover uma revoluo cultural.
Para ele, as escolas de samba apesar de ser a mais autntica manifestao da cultura do
nosso povo, no devidamente valorizada [sic]. Os museus, pinacotecas, sinfnicas e
grupos de bal recebem verbas e ateno muito superiores dos rgos de Estado e dos
meios de comunicao (FOLHA DE SO PAULO, 07/09/1983).
A UESP, na viso de seu presidente, possua 70 filiadas que congregavam mais
de cem mil sambistas e meio milho de frequentadores, ao longo do ano, e em muitos
bairros perifricos as escolas eram o nico espao social e opo de lazer, devendo,
portanto, serem mais valorizadas pelas autoridades. Para iniciar essa mudana, Betinho
pretendia visitar os rgos de cultura e de comunicao e seu grande desejo era:
Vamos lutar pela implantao de cursos de cultura popular como matria obrigatria
nas escolas pblicas e privadas

41

. Essa postura de cobrana por parte em relao aos

poderes pblicos mostrava que a UESP tinha uma plataforma slida e uma certa
autonomia de trabalho. Infelizmente, a ideia de criar uma matria relacionada cultura
popular no teve apoio na Secretaria Municipal de Educao, nem na Prefeitura de So
Paulo. Uma parceria importante foi estabelecida por Betinho, no incio de seu mandato,
com o Servio Social do Comrcio, o SESC, para uma srie de apresentaes com os
cardeais do samba, os membros fundadores das escolas de samba, em um espetculo
que contava a histria do samba de So Paulo.
Esta autonomia trouxe benefcios e tambm alguns conflitos. Com a estabilidade
financeira proporcionada pelos subsdios do Estado, a UESP estabeleceu parcerias com
empresas e lojas para que suas filiadas pudessem comprar o material necessrio para a
montagem de seus desfiles, podendo pagar a dvida atravs da UESP, que se

41

Idem.

104

105

comprometia com o estabelecimento comercial, a descontar o montante devido do


dinheiro, que a escola receberia das verbas para o carnaval 42. Por outro lado, no existe
escola de samba cuja prioridade no seja o desfile carnavalesco, ento, em muitos casos,
essas novas demandas culturais foram colocadas em segundo plano, pelos dirigentes,
com os sambistas gastando energia prioritariamente para colocar suas escolas na
avenida.
At o incio da dcada de 1980, o carnaval de So Paulo era transmitido
integralmente apenas pelo rdio. As emissoras de televiso mostravam trechos, ou at
alguns desfiles das entidades paulistanas, mas as escolas no recebiam direitos de
imagem. No ano de 1984, duas emissoras, a RTC e o SBT, televisionaram os desfiles
diretamente da Avenida Tiradentes, com uma transmisso completa, mostrando flashes
de outros Estados, processo inverso ao que vinha acontecendo em anos anteriores,
quando os desfiles do Rio de Janeiro eram transmitidos na ntegra e eram mostrados
apenas flashes de So Paulo e de outros Estados (FOLHA DA TARDE, 09/02/1984).
Do patrocnio oferecido para as transmisses televisivas, as escolas receberam 30%.
Aps o sucesso de audincia alcanado pelo SBT, outras emissoras tambm se
interessaram pela transmisso dos desfiles.

1.4 A Liga

No ano de 1985, a extinta TV Manchete (canal 9) props um contrato de


exclusividade para a transmisso dos desfiles do Grupo I da cidade de So Paulo
(AZEVEDO, 2010). Em troca da transmisso, a emissora pagaria os direitos de imagem
diretamente para a UESP, que os repassaria s escolas de samba. Este contrato era
apenas para a transmisso do Grupo I. Para no conflitar com as transmisses do Rio de
Janeiro, a emissora solicitou a troca do dia de desfile. As escolas dos grupos menores
aceitaram trocar o dia de desfile e viam, no montante arrecadado pela UESP com a

42

Fonte: Centro de Documentao e Memria do Samba. Documento: UESP 25 anos, p. 26.

105

106

televiso, uma oportunidade de receberem uma verba maior e produzirem um carnaval


melhor.
Para exibir o Carnaval de 1986 no Rio de Janeiro e nas principais cidades do
pas, a Rede Manchete investiu Cr$ 8 bilhes e mobilizou 870 profissionais. Em
contrapartida, com a venda de seis cotas de patrocnio nacional e duas locais, faturou
Cr$ 15 bilhes. A Rede Globo, que tambm transmitia os desfiles, arrecadou Cr$ 20
bilhes em publicidade, segundo a revista de marketing ADM (FOLHA DA TARDE,
12/02/1986). Era, portanto, um negcio muito rentvel e com alto potencial de
crescimento.
As escolas do Grupo I no aceitaram dividir a verba recebida pelo canal de
televiso com as escolas menores, cujos desfiles no atraam interesse de transmisso.
Marcos dos Santos, que era secretrio da UESP no perodo, relata:

Os presidentes dos grupos inferiores cresceram o olho, e disseram que


mudavam, mas exigiam uma compensao financeira das maiores que iriam
receber da televiso. E o presidente da UESP, na poca, no teve esse jogo de
cintura de conseguir uma soluo. Isso comeou a dificultar a negociao, e o
que eles fizeram? Fundaram a Liga com nove escolas do ento Grupo I, e
mudaram o nome para Grupo Especial. S teve uma escola que resistiu, que
foi a Nen de Vila Matilde, que disse que iria continuar na UESP43.

Como o estatuto da UESP previa que cada escola tinha direito a um voto na
assembleia da UESP, independentemente do seu tamanho, ganhou a proposta de diviso
dos recursos provenientes da emissora de TV para todos os grupos. O Grupo I receberia
50% e o restante seria distribudo para os demais grupos44. As escolas do primeiro
grupo se sentiram prejudicadas e decidiram abandonar a UESP e fundar uma nova
federao de carnaval que congregasse apenas as escolas do Grupo I, para que essa nova
entidade pudesse assinar o contrato de transmisso dos desfiles com a emissora
interessada. Para os dirigentes das escolas menores, valia o principio da democracia,

43
44

Entrevista com Marcos dos Santos. Data: 06/08/2010.


Entrevista com Mestre Divino. Data: 24/09/2011.

106

107

com votos iguais para todas as escolas filiadas, j que todas pagavam as mesmas taxas
de filiao.
A ideia de formar uma nova liga j havia surgido aps a apurao do carnaval de
1985. Nesse ano, alguns dirigentes ficaram insatisfeitos com a vitria da Nen de Vila
Matilde, j que Alberto Alves da Silva Filho, o Betinho, era presidente da escola e da
UESP. O grande trunfo da escola, segundo o prprio fundador da escola, Seu Nen, era
o samba-enredo intitulado Quando o cacique rodou a baiana, a, (BRAIA, 2000). A
disputa foi acirrada durante toda a apurao e a Nen levou o carnaval no ltimo
quesito: fantasia, justamente o ponto fraco da escola da zona Leste e o ponto forte das
escolas concorrentes. Soma-se a isso o fato da escola campe ter sido chamada para
desfilar no Sambdromo do Rio de Janeiro, representando o samba de So Paulo, a
convite da Riotur, rgo de turismo da cidade do Rio de Janeiro, mesmo sob os
protestos do vice-governador carioca, o antroplogo Darcy Ribeiro, que, ao saber do
desfile da escola paulistana, alimentou a velha rivalidade entre So Paulo e Rio de
Janeiro, principalmente dentro do mundo do samba; e a exemplo de Vinicius de Moraes,
(que chamara So Paulo de tmulo do samba), soltou este comentrio totalmente
infeliz: O que esto fazendo com o carnaval carioca importar samba de segunda
classe. Seria bem melhor importar o frevo de Recife (CABRAL, 2011, p. 250). At os
dias de hoje, a Nen a nica escola paulistana que pode se orgulhar de ter desfilado no
Sambdromo da Marqus de Sapuca.
A inspirao para a fundao da Liga, mais uma vez, veio do exemplo bemsucedido do Rio de Janeiro, que havia fundado a Liga das Escolas de Samba do Rio de
Janeiro (Liesa). Aps a fundao da Liesa, as escolas do Rio conseguiram diversos
patrocnios de empresas privadas e tambm recebiam anualmente os direitos de imagem
pagos pelo canal de televiso para a transmisso dos desfiles. A polmica do
campeonato da Nen de Vila Matilde, em 1985, tambm contribuiu para deixar diversos
dirigentes insatisfeitos. Isso tirou um pouco do prestigio da UESP como entidade
representativa e a legitimidade de Betinho como presidente.
Uma das justificativas para a nova diviso dos sambistas aps nove anos de
unificao foi a confuso envolvendo o carnaval de 1986, desde a sua organizao at a
107

108

apurao. No final do ano de 1985 houve uma proposta de patrocnio de um grupo de


empresrios portugueses que queria comprar os direitos de organizao e transmisso
do carnaval de So Paulo. Para efetivar o patrocnio, queriam mudar os desfiles de So
Paulo de domingo para sbado, a fim de no concorrer com os desfiles do Rio de
Janeiro, que j ocorriam no domingo (AZEVEDO, 2010, p. 100).
Quase s vsperas do carnaval, o secretrio de Cultura, Hlio Dejitiar, assinou
um contrato com uma incorporadora imobiliria, liderada por um grupo de empresrios
portugueses, chamada Respaldo, passando para a empresa toda a administrao, receitas
e custos do carnaval de 1986. A empresa cobriria todos os custos de montagem e
desmontagem das estruturas de arquibancadas, decorao, limpeza, etc., e fecharia os
contratos com a emissora de televiso e patrocinadores, alm de arrecadar com a venda
de ingressos e alimentao. O contrato foi assinado pelo recm-eleito prefeito Jnio
Quadros em regime de urgncia e dispensou licitao pblica. Seguindo a lei municipal
n 8248, de 197545, a qual dizia que, em assuntos urgentes e de relevncia para o
municpio, o prefeito poderia assinar acordos sem a necessidade de licitao pblica.
Em So Paulo, os desfiles dos blocos e, algum tempo depois, das escolas de
samba se iniciavam no domingo de carnaval na Avenida Tiradentes. Na segunda
aconteciam os desfiles dos grupos menores e, na tera, o desfile da apoteose (desfile das
campes) com as escolas mais bem avaliadas. A proposta do grupo portugus era
transmitir pela televiso as escolas do Grupo I, e essas receberiam uma verba maior para
estruturar seus desfiles. O interesse dos empresrios era de investir apenas no topo da
hierarquia das escolas, pois so elas as que possuem maior visibilidade e destaque. As
verbas para os grupos menores seriam dadas, apenas para a viabilizao do negcio e
para garantir a dinmica dos concursos na qual as piores colocadas so rebaixadas para
o grupo inferior e as mais bem colocadas passam do grupo inferior para o grupo
superior. Aps vrias rodadas de negociao das escolas de samba com a empresa e
atritos entre as escolas do Grupo I com as escolas menores, que no queriam trocar os
dias de desfile, o negcio no foi viabilizado e, poucos dias depois, a prefeitura
reassumiu a organizao do carnaval. Segundo o empresrio Miguel Carlos Castro, da
45

Arquivo da Biblioteca da Cmara Municipal de So Paulo.

108

109

Respaldo, em entrevista ao jornal Folha de So Paulo, em 1986, o carnaval terminou


se tornando um mau negcio. Aps no cumprir o prazo dado pela prefeitura para que
a empresa apresentasse um documento bancrio garantindo que possua os Cr$ 8
bilhes necessrios para viabilizar o negcio. Em nota distribuda imprensa, a empresa
explicou o episdio:
A empresa recuou e no apresentou o documento, pois as escolas de samba
no puderam adiar compromissos assumidos em cidades do interior e
recusaram a proposta de transferir os desfiles do primeiro grupo para sbado.
Sem a alterao do desfile, a Respaldo perdeu o grande trunfo que tinha para
negociar com as televises - que preferem, no domingo os desfiles do Rio.
Tudo isso prejudicava tambm a venda dos espaos publicitrios de
arquibancada a que a empresa tinha direito (FOLHA DE SO PAULO,
01/02/1976).

Com a sada da empresa, a organizao do carnaval, pela quarta vez, mudou de


direo naquele ano. Atravs da portaria n 78, decretada no dia 03 de fevereiro de
1986, o prefeito destituiu a Comisso Organizadora do Carnaval, nomeada para
substituir a Paulistur que estava sendo extinta. A empresa mista comandada pela
prefeitura que detinha 77% das aes passou a se chamar Anhembi Centro de Feiras e
Congressos S.A, a partir de fevereiro de 1986. As atribuies da nova empresa ficaram
restritas administrao do Complexo do Anhembi, na zona norte da cidade, e
organizao do carnaval. A proposta do prefeito foi aprovada pelos 15 acionistas
minoritrios. Com a nova empresa, o prefeito reduziu o staff da nova empresa de 330
para 200 funcionrios. (FOLHA DA TARDE, 31/01/1986).
Jnio Quadros ainda montou uma comisso composta por alguns secretrios
municipais, pelo presidente da Anhembi e por presidentes de escolas e blocos para
levantar os gastos feitos pelos cofres pblicos e viabilizar uma parceria com empresas
privadas. Em memorando enviado aos secretrios indicados para a comisso, o prefeito
afirmou que no estava disposto nem mesmo a ceder nibus para os sambistas (o que
ele tambm havia negado, mas depois voltou atrs). Ele considerava os contratos
assinados na gesto Mrio Covas uma invaso de mandato e desperdcio de dinheiro
pblico (FOLHA DE SO PAULO, 10/01/1986).

109

110

A confuso terminou somente no dia de carnaval, quando os desfiles


aconteceram. Os ingressos foram liberados apenas quatro dias antes do carnaval, aps
vrias tentativas frustradas dos folies de comprarem suas entradas:

Com relao aos ingressos, centenas de paulistanos compareceram durante a


madrugada e incio da manh de sbado no Anhembi e Galeria Prestes Maia
para garantir uma vaga. E frustrados, pela quinta vez, no conseguiram
comprar os bilhetes. Apenas um papel informava a transferncia da data e
dos locais de venda. Agora, parece que a coisa sria e tanto na Galeria
Prestes Maia, Anhembi, como nas Administraes Regionais, a venda ser
realizada e o paulistano poder garantir seu ingresso nos festejos de Momo na
Avenida Tiradentes (NOTCIAS POPULARES, 03/02/1986).

No ano seguinte e nos prximos de seu folclrico mandato, Jnio Quadros


patrocinou os desfiles carnavalescos, aumentou as verbas e liberou gratuitamente as
arquibancadas dos desfiles dos grupos menores. E, inclusive, iniciou algumas
discusses para a construo do que ele chamou de desfildromo (FOLHA DA
TARDE, 10/02/1986).
Para efeito de comparao de gastos sobre os valores investidos no carnaval, no
ano de 1986, a empresa Riotur arrecadou Cr$ 58 bilhes principalmente com
patrocinadores, direito de transmisso s emissoras nacionais e estrangeiras e com a
venda de ingressos para os desfiles. Segundo a empresa, os gastos foram de Cr$ 40
bilhes, portanto, o carnaval deu um lucro de Cr$ 18 bilhes (FOLHA DE SO
PAULO, 13/02/1986).
As escolas Beija-Flor, Padre Miguel, Portela e Salgueiro declararam terem gasto
Cr$ 4 bilhes cada para se apresentar no Sambdromo. Os nmeros de So Paulo so
bem menores. Para armar a passarela da Avenida Tiradentes e cobrir outros custos como
a subveno das escolas, a Prefeitura de So Paulo investiu Cr$ 8,5 bilhes e arrecadou
Cr$ 1,9 bilho com a venda dos ingressos (FOLHA DE SO PAULO, 14/02/1986).
Uma das principais escolas da capital, a Camisa Verde e Branco, teve um
oramento de Cr$ 600 milhes, sendo Cr$ 109 milhes dados pela prefeitura (GAZETA
ESPORTIVA, 13/09/1985). A quantia total gasta pela escola paulistana menor que a
110

111

subveno oficial de Cr$ 800 milhes que cada uma das quinze escolas do Grupo I-A
receberam da Prefeitura do Rio.
Betinho deixou a presidncia da entidade no final de 1985 e em seu lugar entrou
Eduardo de Oliveira, visto pelas escolas de samba como uma continuidade da gesto
anterior. Questes polticas tambm motivaram a fundao da Liga. Eduardo Baslio,
presidente da Rosas de Ouro e historicamente ligado ao malufismo, no aceitava a
nomeao de Percival Maricato, membro da associao de bares e restaurantes e
membro do PT como vice-presidente administrativo. O prprio Eduardo de Oliveira era
visto com desconfiana pelos malufistas, por causa de suas ligaes com o PMDB do
ento governador Orestes Qurcia e do antigo prefeito Mrio Covas.
Durante a gesto de Paulo Maluf como governador, Baslio foi diretor da
Embratur e da Comgs. Tambm foi administrador regional (atual Subprefeitura) de
cinco regies da cidade: Vila Mariana, Butant, Capela do Socorro, Pinheiros e Casa
Verde.
O que tambm enfraqueceu ainda mais a UESP foi a escolha dos jurados para os
desfiles do carnaval de 1986. O corpo era composto pelo estilista Ronaldo sper
(Fantasia); pelo ator e diretor Cac Rosset (Enredo); pelo artista plstico e presidente do
Conselho de Museus do Estado de So Paulo Zlio Alves Pinto (Alegoria); pela
jornalista e quadrinista Ceclia Vicente de Azevedo Alves, a Cia; pela jornalista da
Rede Globo, Rose Nogueira (Mestre-Sala e Porta-Bandeira); pelo artista plstico e vicepresidente da Associao de Artistas Plsticos de So Paulo, Ivald Granato (Evoluo);
pelo maestro e regente titular da Orquestra Sinfnica do Teatro Municipal, Jlio
Medaglia (Melodia); pela cantora Clia (Harmonia); pelo primeiro percussionista da
Orquestra Sinfnica Municipal de So Paulo e professor da ECA-USP, Cludio Stephan
(Bateria); e pelo crtico musical e diretor de arte do jornal Estado de So Paulo, Adones
de Oliveira (Letra do Samba).
A ideia da UESP era criar um conselho de notveis e que estivesse acima de
qualquer suspeita, convidando para tal, grandes nomes conhecidos do pblico e
respeitados em suas reas. A ideia foi apoiada inicialmente por algumas escolas e
111

112

rejeitada por outras, que alegaram que a maioria dos jurados no conhecia a realidade de
uma escola de samba. Esse coro ganhou todas as vozes, quando a apurao comeou.
Houve tumultos, brigas, violncia policial e indeciso da diretoria da UESP quanto
validade do resultado.
A apurao havia comeado s 11 horas no ginsio de esportes do Pacaembu,
mas foi interrompida 40 minutos depois com a entrada do presidente da escola Camisa
Verde e Branco, Carlos Alberto Tobias, na rea reservada mesa apuradora. A confuso
se formou aps uma nota 9,2 de Alegoria dada escola da Barra Funda. Como o
regulamento previa apenas notas inteiras, o presidente da escola queria arredondar para
10 e os demais queriam arredondar para 9. Aps o dirigente ter pulado a grade que
separava sambistas da mesa apuradora e rasgado o formulrio com a nota, instaurou-se a
confuso. Depois de 40 minutos de discusso, decidiu-se que todas as notas fracionadas
seriam arredondadas para mais. A prxima nota lida foi o quesito Melodia. O presidente
do Camisa ficou novamente descontrolado e inconformado com a nota cinco dada sua
escola pelo maestro Jlio Medaglia, jurado desse quesito. Para ele, o maestro no tinha
competncia para julgar o quesito Melodia. J o presidente da escola Rosas de Ouro,
Eduardo Baslio, acusou o maestro de prejudicar sua escola, por conta de questes
poltico-partidrias. Baslio acusava Medaglia, membro do PT, de chamar jurados
petistas. O maestro argumentou que, antes do carnaval, recebeu voto de confiana de
todos os dirigentes para a seleo do jri dos desfiles dos Grupos I e II. Em entrevista
ao jornal Folha de So Paulo, Medaglia disparou: no sou to desinformado como
pensam. Fui diretor cinco anos do programa A hora e a vez do Samba, na rdio
Roquete Pinto no Rio. Conheo melodia desde a Renascena. So seiscentos anos de
msica (FOLHA DE SO PAULO, 14/02/1986).
Ricardo Kotscho, que cobria o evento e fez a matria para o jornal Folha de So
Paulo opinou sobre a confuso envolvendo a apurao:

O espetculo deste primeiro Carnaval sob os auspcios do neo-janismo no


poderia ter sido mais autntico. Depois de interminveis reunies nos
banheiros do ginsio do Pacaembu, enquanto do lado de fora milhares de
desocupados passavam o dia tomando cachaa e cerveja, os dirigentes do

112

113
samba paulista apelaram para a velha sada: chamaram a polcia e levaram as
urnas para o quartel do 2 Batalho de Choque da PM, na rua Jorge Miranda,
bairro da Luz, zona central da cidade.
A confuso toda comeou quando a Prefeitura anunciou o fechamento da
Paulistur e depois ficou sem saber como organizar o Carnaval, em tantas idas
e vindas que at a vspera nem se sabia se iria sair o desfile das escolas de
samba na avenida Tiradentes. Mas a Unio das Escolas de Samba Paulistanas
(Uesp) tambm foi responsvel pelo vexame que se consumou ontem, ao
demonstrar que no consegue andar com as prprias pernas. Durante muito
tempo, os carnavalescos se queixaram da interferncia do poder pblico na
organizao desta festa popular. E no momento em que este poder se omite,
todos voltam correndo para o quartel. (FOLHA DE SO PAULO,
14/02/1986).

O jornalista critica a posio da UESP de no conseguir controlar suas filiadas e


de pedir socorro para a polcia, j que depois de mais de trs horas de brigas e indeciso,
o presidente da UESP determinou, por medidas de segurana, que as urnas ainda no
abertas fossem levadas para o Batalho de Choque da PM. O presidente do Camisa
props que as dez escolas do Grupo I fossem sagradas campes e disse que se uma
escola for declarada campe, fundar uma liga com as coirms dissidentes. As escolas
Vai-Vai e Mocidade, escolas bem colocadas na apurao, no concordaram. Aps a
apurao acontecer dentro do batalho da PM, o Vai-Vai sagrou-se campeo.
As disputas eram muito maiores do que as brigas recorrente em apuraes de
carnaval. Na verdade eram dois grupos que queriam demonstrar sua fora dentro da
UESP, como parte da luta pelo poder poltico na cidade. Um ligado ao malufismo e
outro ligado ao petismo. Alm desses grupos tambm existiam escolas ligadas ao
janismo e ao quercismo, que questionaram muito mais a opo ideolgica dos jurados,
do que o seu trabalho de anlise tcnica.
Kotscho conclui:

Para comear, as escolas no conseguiram se entender na escolha dos jurados


e acabaram dando carta branca ao maestro Jlio Medaglia para que o fizesse.
Depois comearam a acusar Medaglia de ser ligado ao vice-presidente
administrativo da Uesp, Persival Maricato, da Colorado do Brs. Como os
dois so petistas, foram colocados sob suspeita de procurar prejudicar a
Rosas de Ouro, tradicionalmente ligada ao malufismo e por a foi o samba
do crioulo doido que antecedeu a apoteose da apurao.

113

114
O estopim j estava aceso quando foi anunciada a nota 5 para a melodia da
Camisa Verde, que serviu de senha para que quase todos virassem a mesa.
Cada um quis puxar a brasa para sua sardinha e, no fim, no sobrou sardinha
nem brasa para ningum, constatava desolado, o crtico carnavalesco Paulo
Valentim, ao ver as urnas sendo levadas novamente para o quartel (FOLHA
DE SO PAULO, 14/02/1986).

As escolas fundadoras perceberam que, caso se unissem, poderiam negociar


diretamente com a televiso os direitos de transmisso, sem a necessidade de acordo
com as escolas menores e com a prefeitura. Portanto, a Liga Independente das Escolas
de Samba (Liga) nasce com funes semelhantes s da UESP, sendo a responsvel pela
negociao das escolas com patrocinadores e com o poder pblico. O Estatuto da Liga
foi assinado no dia 19 de junho de 1986, por Camisa Verde e Branco, Rosas de Ouro,
Mocidade Alegre, Vai-Vai, guia de Ouro, Imperador do Ipiranga, Acadmicos do
Tucuruvi e Unidos do Peruche. Quem assina a ata de fundao como representante das
escolas Eduardo Baslio, nomeado primeiro presidente da Liga. Segundo o
documento, a Liga define como seus objetivos sociais:

a)

Congregar escolas de samba, sediadas no Estado, defender seus interesses e


reivindicaes, represent-las perante as autoridades e entidades particulares
e prestar-lhes assistncia cultural;

b) Colaborar com as autoridades, visando o incremento e o brilhantismo das


manifestaes culturais e folclricas, sobretudo aquelas ligadas ao samba;
c)

Promover eventos, cursos, conferncias, debates, reunies/espetculos,


excurses, desfiles e festivais de natureza cultural, social, folclrica,
desportiva e de lazer;
1 A sociedade no se manifestar sobre assunto de natureza polticopartidria, nem se engajar em campanhas de tal teor;
2 A sociedade no admitir distines por motivo de raa, cor, sexo,
46
religio, profisso e nvel econmico .

Com a fundao da Liga, a diviso dos sambistas estava novamente instaurada.


No incio, apenas as escolas do Grupo I eram aceitas como filiadas da Liga. Os grupos
menores, que no tinham visibilidade, no despertaram o mnimo interesse.

46

Estatuto da Liga Independente das Escolas de Samba de So Paulo. Acervo UESP.

114

115

Posteriormente, a Liga aceitou tambm as escolas do Grupo II, hoje, respectivamente,


Grupo Especial e Grupo de Acesso. A primeira medida da Liga, para atender ao canal
interessado em pagar pela transmisso dos desfiles, foi a mudana do dia dos desfiles do
principal grupo de domingo para sbado, mudana negada pelas escolas no acordo com
a empresa Respaldo, para no coincidir com o desfile do Rio de Janeiro, tambm
transmitido pelas emissoras de TV.
A partir desta diviso entre a Liga e a UESP, em 1986, os desfiles paulistanos
organizados pela primeira passaram a ser transmitidos pelas emissoras de televiso,
inicialmente a Manchete e posteriormente a Rede Globo. O primeiro desfile organizado
pela Liga foi o do carnaval de 1987, sob a coordenao da Anhembi e de uma srie de
empresas interessadas em patrocinar apenas o carnaval das escolas maiores, comprando
uma cota de publicidade nos espaos da avenida. Era a oportunidade para divulgarem
suas marcas para as 25 mil pessoas que assistiam na Avenida Tiradentes e para outros
milhares que assistiam via Rede Manchete, emissora que transmitia os desfiles. Se
antes, com a UESP, qualquer acordo deveria ser referendado por mais de 70 escolas,
afastando os patrocinadores que no tinham interesse em patrocinar as escolas
pequenas, com a Liga bastava negociar com quem realmente interessava. A UESP
continuou organizando com a prefeitura o carnaval de bairro na cidade.
Com a entrada do aporte financeiro das emissoras de televiso e dos patrocnios
de empresas privadas, o concurso virou uma disputa profissional. Os prmios para os
vencedores passaram a ser cada vez maiores. Essa disputa levou a uma dinmica de
mutao dentro das direes das escolas de samba, com a sada de fundadores e
membros histricos das escolas das funes de direo e a entrada de novas lideranas,
ligadas a uma administrao mais empresarial das escolas, que passaram a lidar com um
oramento cada vez maior, produzindo tambm um desfile grandioso, sempre na
expectativa de superar o Rio de Janeiro (OLIVEIRA, 2007, p. 69).
Neste modelo institudo a partir da Liga e que ainda est vigente nos desfiles da
atualidade, a direo da nova entidade escolhida a partir de uma eleio, na qual os
dirigentes das agremiaes concorrem e passam muitas vezes a acumular o cargo de
dirigente de escola e de federao. Para conseguir realizar esse carnaval, que se tornou
115

116

to grandioso em to pouco espao de tempo, os trs principais canais de financiamento


das escolas se tornaram os seguintes: as verbas oficiais recebidas pela Liga, atravs de
convnio com a prefeitura, as verbas de direitos de transmisso do canal de televiso
que detm os direitos de televisionar o desfile e o repasse de uma parte do total
arrecadado com a venda de ingressos.
Em suma, a Liga trabalha dentro de um parmetro empresarial capaz de negociar
contratos com as emissoras de comunicao, com o poder pblico, buscando uma maior
fatia do bolo para as escolas (BELO, 2008, p. 202). J a UESP permaneceu como a
entidade de organizao das pequenas agremiaes, de comunidades mais afastadas,
longe dos holofotes, trabalhando dentro do parmetro tradicional de desfiles que as
escolas realizam, desde a oficializao dos mesmos. Vale lembrar que, desde a
oficializao, em 1968, o principal canal de financiamento das escolas de todos os
grupos j era a verba da Prefeitura, portanto, o dinheiro pblico que mantm as
escolas de samba, seja de qual grupo for.

47

Esse dinheiro, no entanto, insuficiente

para cobrir os gastos totais das escolas, pois os desfiles esto se tornando a cada ano,
mais luxuosos, e as escolas tm na sua comunidade e na criatividade de seus membros
as solues para que o desfile acontea, somados a patrocnios pontuais de empresas
que podem eventualmente ser negociados.
Para a UESP, a sada das escolas do Grupo I representou a perda da maior parte
de sua receita e de seu prestgio nas negociaes com o poder pblico, pois tanto a
prefeitura como os patrocinadores estavam interessados apenas nas escolas maiores ao
destinar a maior parte das verbas para elas, criando, a partir da, uma espcie abismo
praticamente intransponvel relativo estrutura dos desfiles carnavalescos das escolas
pequenas para as escolas grandes. As verbas que a UESP passou a receber, depois da
diviso, representavam apenas uma pequena parte do montante anterior dado pela
prefeitura para organizao de desfiles dos grupos menores. Os desfiles dessas escolas
que permaneceram sob a organizao da UESP apenas sobrevivem com o patrocnio
oficial e por meio do esforo da prpria comunidade, e no atraem a ateno de
patrocinadores e investidores de maior vulto financeiro.
47

Fonte: Documentos de prestao de contas das escolas filiadas UESP. Ano: 2007.

116

117

II AS TRANSFORMAES ESTTICAS NO DESFILE


DAS ESCOLAS DE SAMBA DA CIDADE DE SO PAULO

Este segundo captulo apresenta as principais transformaes visuais e musicais


pelas quais pasosu o carnaval de So Paulo durante o perodo estudado na presente
dissertao (1968-1996).
No captulo anterior pudemos observar as mudanas institucionais no carnaval
de So Paulo, os debates entre as federaes, entre os dirigentes e as relaes deles com
o poder pblico e com outros agentes da indstria cultural. As mudanas abordadas
neste captulo so mais visveis para aqueles que acompanham o universo das escolas de
samba, pois so as mudanas nos desfiles propriamente ditos. Mudanas que
aconteceram nas fantasias, nos carros alegricos, nos sambas-enredos e na bateria das
escolas de samba.
Ao observarmos tais mudanas, podemos perceber que elas no se explicam por
si s, mas que so fruto das negociaes e das transformaes institucionais pelas quais
passou carnaval de So Paulo. Mantendo-se fiel tese da presente dissertao de que as
transformaes no ocorreram de cima para baixo com a atuao do Estado ou da
indstria cultural impondo novas regras e padres que as escolas eram obrigadas a
aceitar e a eles se adequarem, tese tambm defendida por Ana Maria Rodrigues (1984) e
Maria Apparecida Urbano (1987) nem de baixo para cima, pois as mudanas
estticas das escolas de samba paulistanas so decorrentes apenas da capacidade de
inovao de seus membros. Elas foram negociadas, tanto com agentes externos quanto
internos. Transformaes de naturezas diferentes foram mapeadas. Houve aquelas
transformaes criadas pelas prprias escolas de samba para os desfiles, que
acarretaram uma mudana ou adequao por parte dos regulamentos e uma ao das
federaes de carnaval e de outras escolas de samba para legitimar ou deslegitimar tais
inovaes, e aquelas mudanas que foram decorrentes de transformaes institucionais
mais amplas, ou seja, foram as relaes polticas e financeiras com agentes externos,
como o Estado ou as demandas da indstria cultural que as originaram. No caso das
117

118

ltimas, foram exercidas com mais presso em dois momentos: na oficializao, na qual
o Estado, para patrocinar a festa e se resguardar como avalista, prefere adotar um
modelo pronto, oriundo das escolas de samba do Rio de Janeiro, e adaptado pelas
escolas de samba de So Paulo, nos anos 1980, com a ao da entrada da televiso nos
desfiles; e na mudana dos locais de apresentao, que deixam as ruas e passam a
acontecer no Sambdromo, iniciando-se uma nova dinmica de desfile, trazendo tanto
perdas como ganhos, do ponto de vista esttico.

2.1 As fantasias

Para participar de um desfile de escola de samba, necessrio vestir uma


fantasia. Essa palavra, na Lngua Portuguesa, possui um duplo sentido, pois ela se refere
tanto s iluses e idealizaes da realidade quanto s roupas e adereos utilizados
somente no carnaval (DAMATTA, 1996, p. 60). As mscaras e os costumes so
fundamentais para a festa carnavalesca. Os costumes so chamados de fantasia, pois, ao
utiliz-los, se d a troca de identidade, passa-se a vivenciar a inverso de papis
cotidianos, idealizando uma nova realidade, e vivendo-se o momento da fantasia.
O carnaval traz a ideia de retorno efetivo e completo (embora provisrio) ao
pas da Idade do Ouro. Ao se fantasiar e ocupar o espao das ruas h uma fuga
provisria dos moldes da vida ordinria (isto , oficial). o contrrio da festividade
oficial na qual as identidades esto preservadas e, com elas, a estabilidade, a
imutabilidade e a perenidade das regras que regem o mundo: hierarquias, valores,
normas e tabus religiosos, polticos e morais correntes. Neste tipo de festividade h uma
evidncia da condio dos participantes: sua condio social, sua fortuna, seu emprego,
idade e relao familiar (BAKHTIN, 2000, p. 9).
No Brasil, as brincadeiras de disfarces se popularizaram nos bailes de mscaras
da Corte no sculo XIX e tambm nos entrudos populares das ruas, folguedo do perodo
118

119

carnavalesco trazido pelos colonizadores portugueses para o Brasil e que consistia no


desfile de um boneco chamado Entrudo ou Joo, acompanhado de outro boneco
chamado Dona Quaresma que passeavam nas ruas manipulados por populares entoando
modinhas burlescas. Tambm eram comuns as batalhas de arremessos de laranjas de
cheiro feitas de cera e cheias de lquido perfumado ou ainda o arremesso de farinha,
cinzas e lama, principalmente em escravos que carregavam as bandejas e serviam de
vtimas, sem poderem esboar qualquer reao. Tambm havia grupos de mascarados,
danas e bailes que coroavam os festejos (QUEIROZ, 1992, p. 39).
Entre os escravos e negros brasileiros era comum a festa da Coroao do Rei do
Congo, presente at hoje em algumas localidades, principalmente da zona rural.
Consistia em uma festa com dana e msica que celebraria a coroao do rei do Congo,
rei africano que teria sido deposto, escravizado e mandado para o Brasil. O cortejo era
composto pela coroao do rei e da rainha do Congo, pelo agradecimento a estes
governantes, pelo culto aos antepassados, com cavalgadas, msica e celebrao de
santos catlicos reverenciados pelos negros como So Benedito e Nossa Senhora do
Rosrio. Os principais instrumentos musicais utilizados nessas festas eram cuca, caixa,
pandeiro, alm de vrios instrumentos improvisados feitos pelos negros (MAZOCO,
1993).
No carnaval paulistano, desde o primeiro cordo fundado por Dionsio Barbosa,
em 1914, os participantes sempre desfilaram uniformizados e fantasiados com cala
branca, camisa verde e chapu de palha na cabea, gerando, a partir da, o nome popular
do Grupo Carnavalesco Barra Funda, que ficou conhecido como Camisa Verde e
Branco. A importncia da fantasia era fundamental, pois uma vez que no havia um
tema ou enredo orientador, a ideia de conjunto e harmonia nas apresentaes era
transmitida pelas fantasias (SIMSON, 2007, p. 164).
Na era dos cordes normalmente os folies faziam suas prprias fantasias,
utilizando diversos materiais, ou seja, aqueles que cabiam no oramento, sempre
respeitando as cores da agremiao. Essas comearam a ser feitas com maior cuidado a
partir da entrada das mulheres nos cordes, no final da dcada de 1910 e incio da
dcada 1920. As mulheres, chamadas de amadoras, utilizavam fantasias coloridas,
119

120

femininas (de holandesas, camponesas, princesas, etc.). Tambm havia sempre nos
cordes uma preocupao com o calado a ser utilizado durante o desfile. Nunca
desfilaram descalos, pois isso fazia referncia poca da escravido, quando os
escravos eram obrigados a andar descalos, portanto, calar sapatos significava que o
negro era liberto. Normalmente utilizavam sapatos ou botinas feitas em couro,
especialmente confeccionadas por sapateiros contratados pela agremiao.
Por exemplo, o Vai-Vai48 saa desde seus primeiros desfiles ainda como cordo,
com suas fantasias em branco e preto. Outras cores tambm eram utilizadas, mas
sempre as cores da agremiao eram predominantes. Dona China do Vai-Vai recorda
este tempo e lembra o processo artesanal de confeccionar as fantasias. Elas eram
realizadas de acordo com as condies econmicas da poca, havia uma precariedade
material e, com isso, vrias improvisaes. Dona China recorda tambm que cada
integrante podia confeccionar a sua prpria fantasia:

Antigamente, com a minha comadre bordando, eu cheguei a pegar uma


lantejoula do cho, para no fazer falta no meu vestido, porque no podia
comprar, no. Hoje em dia, a pessoa chega e j tem tudo pronto, quer dizer
que ns antigamente lutvamos, a gente comprava o tecido ou a escola dava
um tecido vagabundo e voc tinha que fazer ele, coberto e forrado com
lantejoula; quando no tinha dinheiro pra comprar lantejoula, a gente
colocava plstico. O primeiro vestido meu que eu sa no Vai-Vai, o P
Rachado, que era presidente naquela poca, deu s cetim preto e falou: Olha,
China, te dou o cetim e voc v o que voc pode fazer. Ento ele me deu e
eu mandei uma colega minha que mora aqui fazer, ela fez e eu falei: e agora,
como eu vou comprar lantejoula, porque a situao financeira no era boa, a
eu comprei um plstico, ela recortou toda a bandeira do Vai-Vai num
plstico, ela colocou no vestido preto de cetim, e nossa, quando eu cheguei na
avenida, esplandeceu!49

48

Somente a ttulo de explicao: quando nos referimos s agremiaes Camisa Verde e Branco e
Vai-Vai, o correto utilizarmos o Camisa, o Vai-Vai, e quando nos referimos a escolas de samba como
Nen de Vila Matilde, Lavaps e Unidos do Peruche, devemos utilizar a Nen, a Lavaps, a
Peruche, porque o artigo masculino antes dos nomes das escolas de samba informa suas origens histricas
como cordes de carnaval.
49

Depoimento de Dona China do Vai-Vai. Data: 09/07/2011.

120

121

Legenda: Dona China, primeira porta-bandeira da escola de samba Vai-Vai, com o primeiro pavilho da
escola. Crdito: foto do autor.

lvaro Casado, em sua trajetria como presidente da UESP, descreve o processo


artesanal e coletivo de confeco das fantasias carnavalescas:

Usvamos cetim, lam. Usava muita renda. A costura era feita na casa do
cara. A casa dele virava um barraco. A verdade essa. A mulher fazendo o
arroz aqui, e a outra com a mquina de costura ali. E eu visitava cada
muquifo, em cada beco da cidade. As pessoas faziam pelo amor, pelo samba.
Tanto que a Rosalina, eu fiz at enredo pra ela, ela ficava de setembro at o
dia do carnaval, costurando direto, todo dia. Junto com aquela sobrinhada,
um costurava, outro alinhavava. Trs mquinas de costura, direto. Era amor
mesmo!50

Como uma memria coletiva do carnaval deste tempo, Mestre Gabi relembra a
diviso entre o trabalho masculino e feminino, com os homens realizando os trabalhos
mais pesados, como a confeco de alegorias, e as mulheres se dedicando ao processo
de confeco das fantasias, e o sentimento que isso trazia ao observar, por exemplo, as
fotos de desfiles antigos dos quais ele participou:

50

Entrevista com lvaro Casado. Data: 01/05/2013.

121

122

Veja bem, antes eram os homens que faziam as alegorias. E ns tnhamos as


costureiras, e quem eram as costureiras? Era a minha me, era a me de outro
sambista, no era a profissional costureira, eram pessoas comuns, que sabiam
costurar um pouco, ento vamos fazer fantasia. E ns confeccionvamos as
nossas fantasias. Talvez por isso a gente seja muito saudosista. Porque voc
olhava depois em uma fotografia a sua fantasia, e olhava com um sentimento.
Este aqui foi a ltima conta que eu coloquei, este aqui foi a ltima unha que
eu coloquei, ento, para ns, era uma coisa assim magnfica, e a gente curtia
muito isso. Quantas noites eu no fui para a escola para ficar no barraco,
ajudando, pregando. Eu no sou marceneiro, mas quantas vezes eu no ia l
pregar os carros alegricos, eu ia pintar, tambm no sou pintor, mas pintava,
decorava, ento era um trabalho de todos da comunidade, a gente no tinha
aquilo como profisso 51.

As fantasias que mais se destacavam nos cordes eram as da Corte


Carnavalesca, que encerravam o cortejo, composta sempre pelo rei e pela rainha (de
Momo), as princesas e os prncipes e, eventualmente, por duques, duquesas e pajens. A
rainha normalmente se apresentava com fantasias Lus XV, com longos vestidos de
cetim, peruca branca empoada e com a coroa e joias feitas com metal brilhante. Uma
parte dos recursos arrecadados durante as atividades realizadas pelos cordes, ao longo
do ano, era destinada confeco das fantasias da corte carnavalesca (SIMSON, 2007,
p. 167). As fantasias, tanto as masculinas quanto as femininas, sempre tiveram bastante
decncia e elegncia, cobrindo a maior parte do corpo, sem qualquer nudez. Para driblar
a falta extrema de recursos, as fantasias dos cordes, muitas vezes, possuam apenas a
frente de cetim ou outro tecido colorido, e a parte de trs era feita com papelo pintado.
Normalmente eram escolhidas, a partir de modelos de revistas e recriadas pelas prprias
costureiras dos cordes.
A fantasia dos integrantes da parte instrumental foi aos poucos sendo
padronizada, como um terno carnavalesco (SIMSON, 2007, p. 167), isto , uma roupa
masculina confeccionada com um tecido vistoso ou brilhante, evidenciando o papel de
destaque que os msicos tinham dentro dos cordes.

51

Entrevista com Mestre Gabi. Data: 25/10/2010.

122

123

Osvaldinho da Cuca nos conta que eram as fantasias do instrumental dos


cordes que normalmente mudavam a cada ano e destaca as fantasias da Corte descrita
acima:

O primeiro tema de fantasia da batucada do Vai-Vai foi de marinheiro. Teve


um ano em homenagem aos russos, as fantasias de sordadinho Fritz. Fritz
por qu? Existia uma propaganda no jornal que era bomba de Frit pra matar
inseto. Eles falavam Frit, n? Tinha a propaganda de um sordadinho que
tinha um chapu russo, aquele chapu comprido, de russo. S que em vez
dele ter uma carabina aqui na mo, ele tinha uma bomba de Fritz na mo, isso
nos anos trinta, quarenta. Eu me lembro disso a. At os anos cinquenta tinha
a propaganda do soldadinho com uma bomba de Fritz da mo. Normalmente
era a bateria que vinha com fantasia diferente todo ano. A corte vinha igual.
A mesma coroa, a capa de rei, rainha, os sditos atrs. As crianas segurando
a capa da rainha, do rei. Era bonito, mas sempre a mesma coisa 52.

A partir do momento em que as escolas de samba passaram a desfilar seguindo


um enredo, contando uma determinada histria, todas as fantasias passaram a se
modificar anualmente, pois estas deveriam fazer parte e ajudar a contar este enredo. As
escolas ento comearam a se organizar por grupos de fantasias iguais, chamadas alas,
passando a ter um certo nvel de responsabilidade, por parte dos participantes, da ala
que antes no se exigia.
Para Roberto DaMatta:
As alas podem aumentar, diminuir, criar suas regras e estilos, ter nomes
prprios (...). Por isso, as escolas de samba podem congregar ricos e pobres,
pretos e brancos, patres e empregados, sambistas e sambeiros (os de dentro,
que participam do dia-a-dia da escola de samba e os de fora, que compram a
fantasia apenas para desfilar). De fato, toda a organizao da escola de samba
era fundada nessas unidades semiautnomas e poderosamente articuladas
(DAMATTA, 1997, p. 103).

Com a instituio do modelo carioca de desfile na dcada de 1960, via


regulamento da oficializao, abordado no primeiro captulo, ruiu toda a organizao de
desfile tradicional dos cordes carnavalescos. As fantasias trazidas todos os anos, de

52

Entrevista com Osvaldinho da Cuca. Data: 21/01/2012.

123

124

duques, condes, prncipes, reis, fidalgos e princesas, deram lugar a um novo modelo em
que as fantasias eram modificadas a cada ano, de acordo com o tema trazido pela escola.
A partir da oficializao dos desfiles em So Paulo, houve a introduo da figura
dos carnavalescos para coordenar a montagem dos desfiles das principais escolas de
samba. Com o fim dos cordes de carnaval aps 1973, essa corte carnavalesca deixou
de existir, por conta da obrigatoriedade de personagens que explicitassem o enredo de
cada ano, utilizado nos desfiles das escolas de samba. Com isso, o modelo de
organizao e elaborao das fantasias e do prprio desfile foi alterado.
O processo descrito pelos entrevistados de um fazer artesanal, como Mestre
Gabi e Dona China, ou coletivo, no caso de Dona Rosalina, descrita por lvaro Casado,
foi substitudo nas escolas de samba pelas fantasias realizadas praticamente em escala
de manufatura, com diviso social do trabalho e espaos dedicados especialmente
para este fim, com costureiras com oficinas prprias e cuja elaborao das fantasias
feita em srie, com a presena de bordadeiras, complementando a realizao da tarefa.
H at a presena de chapeleiros com funo especializada para essa tarefa. Tanto as
costureiras, bordadeiras e at os chapeleiros permanecem, normalmente, nessa atividade
de confeco de fantasias de julho, quando so lanadas as fantasias-piloto at a
vspera do dia de desfile, quando so finalizadas e retocadas as ltimas fantasias.
Para o carnavalesco Joosinho Trinta, a prpria expanso do capitalismo urbano
criou a demanda por profissionais especializados. Em entrevista concedida a Betty
Milan em 1980, ele explica:

Quem morava no morro do Salgueiro vivia ali por perto e colaborava na


alegoria; ele mesmo fazia sua fantasia. (...) Mas a cidade cresceu, o cara que
mora no morro do Salgueiro hoje trabalha no Leblon, ento tem que acordar
cedo, quatro cinco horas da madrugada e se deslocar para outro lugar.
Quando volta tarde da noite, no tem mais tempo de fazer alegoria, faixa,
bonecos. A grande cidade acabou com a participao do componente e surgiu
ento o carnavalesco (MILAN, 1994 apud BLASS, 2007, p. 63).

Se por um lado, esta nova demanda abre a possibilidade de empregar mo de


obra para a confeco das fantasias, por outro h o lucro que limita o acesso ao desfile
124

125

das grandes escolas apenas para aqueles que possuem condies de comprar a sua
fantasia, que apenas consomem o desfile como um produto, sem manter vnculos com a
agremiao na qual desfila. A lgica citada por Trinta de que as pessoas no tm mais
tempo na cidade para se dedicar a um trabalho no remunerado, ao qual se converte em
lazer, no se aplica lgica de organizao das escolas dos grupos inferiores, que ainda
mantm o processo artesanal, realizando a reciclagem e distribuindo as fantasias
gratuitamente para os membros da escola, normalmente localizada em lugares pobres e
perifricos de pequeno poder aquisitivo e que mantm acesa a chama do carnaval
comunitrio. Nesses locais, a lgica da construo da mercadoria visando lucro ainda
no se aplica.
O jornal O Estado de So Paulo apresentou uma extensa matria sobre a
preparao de algumas escolas de samba para o carnaval de 1976, intitulada
Costureiras, operrios os annimos personagens. A reportagem exalta o trabalho
artesanal e gratuito dos membros das escolas, que utilizam suas horas de lazer e at
faltam ao trabalho, diminuindo sua renda mensal para conseguir realizar as tarefas
necessrias para a escola se apresentar no desfile, contrastando esse tipo de trabalho
com o remunerado, exercido por trabalhadores assalariados do carnaval, que, naquele
momento, j representava grande parte da mo de obra das grandes escolas. Para esses
trabalhadores h o reconhecimento de poderem se dedicar integralmente ao que mais
gostam de fazer, preparar o desfile das escolas de samba, e, por outro lado, ele
representa a oportunidade de viverem dignamente com este ganho. E h ainda uma
terceira classe, propriamente de artistas, como passistas, msicos e compositores, que
aproveitam o clima de carnaval para gravarem canes, marchinhas e as verem
executadas nas rdios, pelo pas afora, alm de se apresentarem em diversos shows,
casas noturnas e festas, e, com isso, ganharem algum dinheiro, atravs de sua arte.
Os sambistas passam por dificuldades, ao realizar seu grande sonho mas muitos
acabam desempregados e passando por diversas dificuldades por no se dedicarem aos
seus empregos formais, em prol da preparao e, claro, da vivncia do momento mgico
da festa:

125

126
H trs meses Janete Silva, primeira dama da escola de samba, Morro da
Casa Verde, sai do trabalho s quatro da tarde para sentar-se mquina de
costura at as primeiras horas do dia seguinte. Durante essas nove ou dez
horas dirias, ela costura as fantasias que a escola vai apresentar na avenida,
no carnaval.
muita canseira para trs dias. Mas como de gosto, a gente faz com
satisfao. Janete uma das muitas pessoas que fazem desses trs dias algo
que justifique a preparao que a festa exige. Ela mulher de Zezinho
Nazareth, o presidente da escola, e em sua tarefa rene na casa pequena,
construda nos fundo do quintal, as netas e filhas: Valderez corta o pano;
Solange, Yara, Sandra e Janete costuram.
Yara, filha do diretor de bateria, o Macuco overloquista. Mas s trabalha
at dezembro: Quando pego o servio, j aviso que de janeiro em diante s
costuro para a escola. Essa rgida posio, na maioria das vezes cria um
srio impasse para o sambista: sair no carnaval ou perder o emprego? Maria
Ins Braga, porta-bandeira da Nen de Vila Matilde, por exemplo, sabe que
ser suspensa por faltar uma semana ao servio, na Tecelagem Matarazzo.
Ela sabe que falta sem justificativa d suspenso, mas no se importa: Uma
semana de folga at melhor, para curtir a ressaca.
Nas escolas pequenas, como a Unidos do Bom Retiro, que desfila no terceiro
grupo, o desprendimento ainda maior. Dona Maria Rosa Henrique da Silva,
por exemplo, mudou-se do Bom Retiro para a Casa Verde porque a casa
anterior estava pequena demais para conter as fantasias e os instrumentos da
escola, que ela ajudou a fundar h oito anos. E h trs meses a escola recebe
todas as atenes da famlia, que enfrenta o desconforto de ver a casa
invadida, dia e noite, pelas pessoas que vm ensaiar, provar a fantasia ou
simplesmente sonhar com os trs dias da avenida.
Na verdade, o poder econmico, a mentalidade empresarial, no conseguiu
atingir a todos os sambistas e passistas, sobretudo os mais humildes, que nem
por isso deixam de perceber a presso a que esto sendo submetidos, como
revela o desabafo de um ritmista da Rosas de Ouro, referindo-se aos
dirigentes da escola: Eles administram, mas a gente que faz o samba. Se
para os sambistas e passistas das escolas o lucro maior ganhar na avenida,
o carnaval tem outros personagens para quem os quatro dias podem
representar o pagamento das prestaes da casa ou da televiso, a entrada
para um carro usado, o cumprimento de promessas feitas no Natal, ou
simplesmente a garantia, por algum tempo, para a feira ou o supermercado.
Esses personagens so 80% dos 30 mil msicos registrados em So Paulo,
que durante o carnaval vo conciliar as mais diversas ocupaes que exercem
normalmente, com a possibilidade de tocar, em mdia, 34 horas, em busca de
qualquer uma das coisas acima. (...) Companheiros de aventura dos msicos
de ocasio, os chamados autores de carnaval concentram suas esperanas na
eventual boa vontade dos programadores musicais, que pode determinar o
xito ou o malogro de uma composio. O xito, por si s, no assegura uma
gratificao maior do que a simples satisfao pessoal. Para obt-la, o
compositor tambm depende da eficincia com que a sociedade de direitos
autorais, qual est filiado, vai recolher as taxas pagas pelos executantes das
msicas.
Integrante da escola de samba, Unidos de Vila Maria, o compositor Xang
no v muitas oportunidades para os autores desconhecidos. Antes era
preciso pagar o programador das msicas nas estaes de rdio. Agora, por
menos de 30 mil cruzeiros ningum consegue trabalhar direito uma marcha

126

127
de carnaval no rdio e na televiso. E ainda precisa correr os clubes para
convencer os conjuntos a tocar: como mais fcil tocar velhos sucessos,
quem quiser colocar uma msica nova no ar precisa at ajudar os conjuntos a
decor-la (O ESTADO DE SO PAULO, 29/02/1976).

Assim como atesta Dona Janete e outros sambistas citados nas matrias, outra
das principais dificuldades dos sambistas conseguir materiais de boa qualidade para a
confeco das fantasias. Os materiais utilizados para delas variavam, dependendo da
quantidade de recursos empregada na construo de cada fantasia. Muitas escolas
driblavam a falta de recursos com criatividade, utilizando materiais reciclados e baratos
como palha, sisal, sementes, franjas em tecidos tingidos, bordados coloridos e
macrams enfeitados. Existiam tambm outros materiais mais caros, utilizados at hoje
por escolas mais luxuosas, como espelhos, paets, matelasss, cir, rolots, gales,
strass, veludos, cetins, marabu, lurex, etc. (CAVALCANTI, 1999, p. 193).
A partir da dcada de 1970, com a introduo da figura do carnavalesco, ele
passa a ser o responsvel por desenhar e montar os prottipos das fantasias. O que antes
era feito de maneira espontnea, seguindo uma ideia geral, nesta dcada passa a ser
centralizado nas mos do carnavalesco. Ele desenha os modelos de fantasia para
aprovao da diretoria da escola. Depois de aprovadas, as fantasias saem do papel e
ganham vida com a confeco dos prottipos, as primeiras fantasias prontas. Estas so
entregues para os chefes das alas em uma festa, que costuma se chamar Lanamento
dos Pilotos.
O carnavalesco Andr Machado um dos que utilizam este processo criativo de
desenhar as fantasias no papel para ento elas ganharem vida. Seguem abaixo dois
modelos de fantasias criadas por ele para os desfiles da escola de samba Barroca Zona
Sul, no ano de 2012. O enredo homenageava a cantora Alcione, cone do samba
brasileiro, e sua escola de samba, a Mangueira. A primeira um cisne, com notas
musicais destacando a famosa lenda antiga do canto do cisne. Segundo esta lenda, o
cisne branco seria um animal mudo e que s cantaria no momento anterior sua morte.
No enredo, o carnavalesco quis homenagear as composies feitas por Cartola,
fundador da escola de samba Mangueira, no fim de sua vida, aps passar por um
127

128

perodo de mais de vinte anos de ostracismo. A segunda a fantasia utilizada pela Ala
de Baianas da Barroca, com as baianas em verde-e-rosa, cores da Mangueira, com o
smbolo da agremiao carioca na saia e a presena de rosas no turbante.
Esses modelos feitos mo e os prottipos so de grande importncia para o
carnavalesco ter um maior controle sobre a execuo das fantasias por parte das alas. As
fantasias da ala de Baianas, Mestre-Sala e Porta-Bandeira, Bateria e Comisso de Frente
no so repassadas para os chefes de ala, mas so confeccionadas pela prpria escola de
samba e supervisionada diretamente pelo carnavalesco.

128

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Desenho de Andr Machado: Escola de Samba Barroca Zona Sul (2012)

129

130

Desenho: Andr Machado. Escola de Samba Barroca Zona Sul (2012). Ala de Baianas

Depois desse dia, cada ala segue seu caminho autnomo, e as fantasias podem
ser confeccionadas em oficinas contratadas para este fim ou mesmo na casa dos chefes
130

131

de ala, que o responsvel pela comercializao das fantasias e por reunir o nmero de
folies necessrios para o desfile, conforme descrito acima (SOARES, 1997, p. 63).
As alas descentralizam a escola de samba reunindo pessoas de diferentes bairros,
e, em alguns casos, de diferentes cidades. Cada ala tem um nome permanente, que foi
escolhido por seu chefe ou por parentes e amigos. Normalmente fala de um desejo, de
uma admirao, de uma caracterstica da prpria comunidade que concentra a maioria
dos participantes.
Uma ala muito importante dentro de uma escola de samba a ala de Baianas.
Foi introduzida como ala obrigatria pelo regulamento criado a partir da oficializao
carnaval da cidade de So Paulo em 1968. No Rio de Janeiro, a presena da ala de
Baianas foi iniciada no ano de 1933, atravs de um decreto-lei do ento prefeito do Rio
de Janeiro, Pedro Ernesto, como forma de homenagear as baianas quituteiras
vendedoras de doces e acaraj nas ruas e lderes religiosas das casas de santo do Rio
Antigo, as tias baianas.
Apesar de terem sido criadas de forma artificial por um decreto, ao longo do
tempo, a Ala de Baianas se tornou um elemento indispensvel para as escolas de samba.
Composta por elementos femininos, normalmente senhoras, uma ala de evoluo.
Estas senhoras, muitas delas mes de santo da umbanda e do candombl, fazem, todos
os anos, diversos trabalhos religiosos de proteo, pedidos de licena e reverncia aos
orixs.
Todos os sambistas entrevistados demonstraram profundo respeito e admirao
pela Ala de Baianas. Para eles, a Ala de Baianas um fundamento, ou seja, algo
inerente prpria concepo de uma escola de samba. A palavra tem, alm de uma
implicao de algo imprescindvel, uma conotao religiosa, pois conhecer os
fundamentos da religiosidade da umbanda e do candombl a base para manter uma
relao bem estabelecida com os orixs. Cada orix recebe oferendas de diferentes
alimentos e bebidas, importante saber, por exemplo, qual a cor das velas a serem
acesas, qual o perodo do culto em que o mdium de incorporao receber o ponto do
orix, dentro do terreiro. Para Marcos dos Santos: As baianas no so acessrio, so
131

132

parte fundamental de uma escola de samba.53 Mestre Gabi compartilha da mesma


opinio e vai alm:

obrigatrio, vocs sabem que obrigatria uma Ala de Baianas em uma


escola de samba, estavam querendo tirar, mas quem queria tirar? A
modernidade. Sabe essas senhoras a j esto muito cansadas, e alm do mais
atrasam o desfile. Qu isso? Baiana fundamento de escola de samba! E
neste fundamento esto os pavilhes, as baianas. Tem sempre aquela baiana
que chefe de terreiro, que faz os trabalhos de proteo da escola de samba,
tudo em cima do pavilho, porque ele representa toda aquela comunidade,
toda aquela nao. Ento por isso que a gente vai l e cumprimenta com
muito respeito54.

Como as demais alas da escola, a Ala de Baianas julgada pelo quesito Fantasia.
Alm das fantasias, muito apreciadas, possuem um lugar especial dentro das escolas, e,
no desfile, possuem uma dana peculiar, girando de tempos em tempos em torno do
prprio corpo, rodando as suas amplas saias no centro da avenida.
A partir do incio da dcada de 1990, vrias alas foram perdendo sua funo
original como, por exemplo, a Comisso de Frente55, passando a incorporar
caractersticas tpicas do teatro e do bal, tornando-se uma espcie de introduo ao
grande espetculo, sendo responsvel pela apresentao da escola. No entanto, qualquer
mudana na Ala de Baianas veementemente rejeitada por todos os sambistas, por
conta no apenas do significado histrico, mas principalmente religioso desta ala dentro
dos desfiles. Marcos dos Santos narra em sua entrevista que um carnavalesco queria
retirar o turbante da ala de baianas e coloca-las para desfilar de bon e culos escuros,
demonstrando assim um grande desconhecimento do imaginrio e das prticas de uma
escola de samba. O resultado foi que esse carnavalesco teve que modificar as fantasias,
colocando novamente turbantes nas baianas. Mas uma parte da escola no ficou
satisfeita, pois o turbante foi considerado uma verdadeira escultura na cabea das
baianas, prejudicando a evoluo da ala:
53

Entrevista com Marcos dos Santos. Data: 10/08/2010.


Entrevista de Mestre Gabi. Data: 25/10/2010.
55
A Comisso de Frente tem como principal funo a obrigatoriedade de apresentar a escola e de saudar o
pblico durante a apresentao do desfile. Deve manter uma postura gentil, comunicativa e graciosa.
54

132

133

A Ala das Baianas tem um negcio na cabea que no um turbante e


esconde o rosto. Tira toda a cosmogonia e o significado da ala de Baianas
para o carnaval. As baianas no so mero acessrio, so parte fundamental de
uma escola de samba. Mas o que isso? o padro visual, porque a televiso
precisa de coisa grande, ento os costeiros das alas cresceram, ficou
absurdamente pesada (sic) 56.

Para Mestre Gabi, a Unidos do Peruche foi a escola de samba que introduziu este
novo modelo de fantasias, mais pesadas e elaboradas, no final da dcada de 1980,
quando trouxe o carnavalesco Joosinho Trinta para assinar o seu desfile. A escola teve
um relativo sucesso com essas inovaes trazidas por Trinta. Alcanou o vicecampeonato e ter tirou 10 nos trs quesitos visuais: Enredo, Fantasia e Alegoria. Aps
isso, no carnaval seguinte, de 1991, outras escolas tambm passaram a adotar este
modelo, com o objetivo de melhorar suas notas nos quesitos visuais:

O carnaval de So Paulo comeou a mudar no foi nem quando ele saiu daqui
da Tiradentes para l, pr Sambdromo. Ele mudou quando Joosinho Trinta
veio pra Peruche. A Peruche saiu com costeiro, as alas saram com costeiro,
todo mundo falou: -Nossa, olha o Peruche, todas as alas vm com costeiro. E
todo mundo ficou maravilhado. Joosinho Trinta veio l do Rio. E o cara
uma cabea, eu tiro o chapu pra ele, sumidade. Sim, a Peruche comeou a
trazer do Rio, trouxe o Jamelo, trouxe o Joosinho. E depois todas as outras
escolas vieram atrs. 57

Este tipo de embate entre carnavalescos e membros das Velhas Guardas das
escolas, guardies de uma tradio, tornou-se mais frequente a partir dos desfiles no
Sambdromo, na dcada de 1990. As transformaes iniciadas na dcada de 1970, com
a inveno de novas tradies para as escolas de samba, passam por um processo de
descaracterizao na dcada de 1990, oriundo de presses externas, ou seja, do principal
patrocinador da festa, a emissora de televiso, que, segundo Marcos dos Santos,
precisa de coisa grande, de espetculo para mostrar na avenida. Os carnavalescos que
realizam os desfiles, visando o ttulo, preferem descaracterizar estas tradies, como no

56
57

Entrevista de Marcos dos Santos. Data: 10/08/2010.


Entrevista com Mestre Gabi. Data: 25/10/2010.

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caso analisado das fantasias da ala de Baianas, e comprar briga com os membros mais
velhos da escola. Os carnavalescos no desejam se adequar a este novo modelo e correr
o risco de sua escola ao final da apurao, no ter um desempenho bom no quesito
Fantasia, dando argumentos para a sua demisso por parte da diretoria da escola.
As pioneiras a modificar a forma de apresentao tradicional da Comisso de
Frente foram, novamente, as escolas de samba do Rio de Janeiro: a Imperatriz
Leopoldinense, em 1979, e, posteriormente, a Mocidade Independente de Padre Miguel,
em 1991, com um enredo intitulado Chu, chu: as guas vo rolar!, de Renato Lage e
Lilian Rabello.
Nesse ano, a Comisso de Frente foi composta por bailarinos vestidos como
escafandristas, com armaduras verdes e que se moviam em cmera lenta, como se
estivessem andando no fundo do mar. Apesar deste tipo de apresentao contrariar o
regulamento para julgar o quesito que proibia coreografias e dizia que a
obrigatoriedade da Comisso de Frente era apresentar a escola e saudar o pblico ao
longo do desfile , esta inovao recebeu nota dez de todos os jurados. O episdio
provocou a mudana das regras no ano seguinte, possibilitando s escolas de samba
utilizarem destes recursos para engrandecer o espetculo; as comisses coreografadas se
tornaram tendncia, passando a desfilar com fantasias inusitadas e apresentando
coreografias e passos dentro do enredo proposto.
A introduo da Ala de Baianas e da Comisso de Frente coreografada mostra
que a configurao dos desfiles sofreram diversas influncias e modificaes por
diferentes motivos. A Ala de Baianas foi introduzida no regulamento a partir de um
decreto e a Comisso de Frente coreografada teve o caminho inverso, primeiro surgiu
dentro dos desfiles e ento foi permitida e incorporada pelo regulamento, evidenciando
a via de mo dupla, por onde normalmente as inovaes so introduzidas nos desfiles
carnavalescos paulistanos. Ou por decretos e regulamentos, como em 1968, que
introduziu a Ala de Baianas, a exemplo do Rio de Janeiro, ou atravs da perspiccia de
seus prprios membros que trazem algo novo e rapidamente isso disseminado para
outras escolas, caso da Comisso de Frente. Em So Paulo, algumas escolas resistiram
134

135

em trazer a Comisso de Frente coreografada, mas, depois de vrias notas baixas,


acabaram se adequando ao novo padro de julgamento do quesito.
As fantasias, como j foi mencionado, se tornaram mais luxuosas nos anos 1990,
dentro das grandes escolas, perseguindo um ideal de beleza que criticado pelo
sambista Marcos dos Santos, principalmente por causa do peso. Algumas fantasias
chegam a pesar mais de 10 kg e, em grande parte, so descartadas aps o momento
efmero do desfile.

Hoje porta-costeiro, isso o padro visual, porque a televiso precisa de


coisa grande, ento os costeiros das alas cresceram. (...) Esse ano minha
escola teve uma Ala de Baianas muito pesadas, coisa de chorar, fiquei
enlouquecido, as senhoras no conseguiam suportar o peso. Se chovesse no
saa do lugar58.

Por outro lado, as escolas menores ligadas UESP utilizam normalmente


fantasias mais leves, com materiais mais simples e, consequentemente, mais baratos.
Algumas escolas grandes tambm se valeram da criatividade e adaptao dos materiais
utilizados em momentos de dificuldade econmica e que acabaram por se tornar a
prtica costumeira da escola. Uma sada utilizada por muitas escolas a reciclagem para
reaproveitarem os materiais para o carnaval seguinte e, para as escolas pequenas,
tambm o uso de sobras de materiais das grandes escolas em seus desfiles59. Outra sada
a substituio de penas naturais por materiais sintticos, muito mais baratos.
Em 1992, diante da grave crise econmica que passava o pas e,
consequentemente, as escolas de samba, a Rosas de Ouro encontrou na reciclagem e na
adaptao de novos materiais a soluo para um carnaval criativo e mais barato. Seu

58

Entrevista de Marcos dos Santos. Data: 10/08/2010.

59

Quem promove o enxerto de fantasias j utilizadas e o uso de sobras nas escolas menores so as
chamadas escolas madrinhas. Geralmente uma escola do Grupo Especial que tem escolas afilhadas
nos grupos menores. Por se valerem das mesmas cores no desfile, as menores podem reaproveitar
fantasias, materiais e alegorias cedidas gratuitamente ou por um baixo custo pela escola madrinha. A
contrapartida oferecida pelas escolas afilhadas ceder elementos para completar o nmero mnimo
exigido pelo regulamento quando a escola madrinha no alcana este nmero.

135

136

carnavalesco, Tito Arantes Filho, em entrevista ao jornal O Estado de So Paulo,


revelou as adaptaes que a escola faria para no encerrar o carnaval com dvidas.

A Rosas de Ouro encontrou flego para produzir as fantasias, alegorias e


adereos que sero utilizados no desfile com a reciclagem de materiais
utilizados no desfile do ano passado, quando a escola dividiu o ttulo com a
Camisa Verde. Novos materiais, mais baratos, tambm sero usados: vareta
de solda de PVC, hastes de guarda-chuvas velhos, panos de limpeza, papelcigarro e acetato. As plumas, que de acordo com Arantes Filho, custam Cr$ 3
mil a unidade, forram preteridas em favor de material sinttico de preo dez
vezes menor.
Os trunfos da escola, garante o carnavalesco, so a Comisso de Frente, e
principalmente, as alegorias. Cada um dos carros alegricos transportar
cerca de 20 destaques. Vamos misturar o luxo com a realidade (O
ESTADO DE SO PAULO, 02/02/1992).

lvaro Casado nos conta que essa prtica recorrente desde os anos 1970,
quando ele era presidente da UESP. As escolas utilizavam materiais reciclados e
tambm utilizavam os materiais das escolas madrinhas, permitindo que as escolas
menores usassem suas fantasias j utilizadas em outros desfiles ou em dias diferentes no
mesmo desfile. Ele denomina esta prtica de enxerto: Quantas escolas de samba no
enxertavam. O Acadmicos do Tatuap com a Nen j enxertou. A Tatuap desfilava
em um grupo a Nen em outro, como eram todos sambistas ali da rea, tudo azul e
branco, aproveitamos as fantasias. 60

60

Entrevista com lvaro Casado. Data: 01/05/2012.

136

137

2.2 As Alegorias
As alegorias so a expresso de uma ideia ou conceito atravs de uma imagem.
Dentro do carnaval essa imagem realizada atravs de um carro alegrico que conta
parte importante da histria desenvolvida na avenida, seguindo o enredo proposto por
uma escola de samba. As alegorias so formas espaciais estruturadas, organizadas,
ordenadas criadas para serem vistas e, no caso do carnaval, integralmente
consumidas neste ato.
Ferreira Gullar (GULLAR, 1998) menciona a escola de samba como uma
manifestao barroca, por conta da primazia visual do desfile. Baseado na obra Origem
do drama barroco alemo, de Walter Benjamin, Gullar v a alegoria como a forma, por
excelncia, da expresso do barroco enquanto viso de mundo. Nas escolas de samba
haveria alguns traos barrocos que soariam particularmente carnavalescos: a
substituio do absoluto pelo relativo; a valorizao do incompleto ou do desconexo em
formas que parecem poder continuar em todas as partes que transbordam de si
mesmas (GULLAR, 1998). O firme e o estvel entram em comoo. Para Hauser, a
inteno artstica do barroco em outras palavras, cinematogrfica; o estmulo ao
novo, ao difcil, ao complicado (HAUSER, 1997, p. 101 e 102). Gullar v estes
elementos citados por Hauser presentes dentro das escolas de samba e, em especial,
atravs das alegorias carnavalescas.
Para Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, parafraseando o filsofo
francs Merleau-Ponty, as alegorias carnavalescas so um dos elementos principais do
carnaval brasileiro contemporneo:

So feitas para serem vividas, apreciadas e consumidas no ato mesmo de sua


apresentao festiva; existem para a fruio daquilo que fazem acontecer de
modo eficaz. So enormes objetos que operam como verdadeiras entidades
em seus contextos rituais, deslocando o sentido e os limites do humano em
direes inesperadas. So, em especial, uma festa dos olhos; solicitam o
olhar, um olhar sinestsico e integrado corporalidade (CAVALCANTI,
2011:233).

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138

Os carros alegricos j eram elementos essenciais dos desfiles das sociedades


carnavalescas burguesas desde o sculo XIX e eram elementos presentes nos ranchos e
nas grandes sociedades carnavalescas que precederam a formao das escolas de samba
no Rio de Janeiro nos anos 1920. Eram carroas enfeitadas, puxada por animais, e
posteriormente substituda por automveis. Tambm estavam presentes no carnaval
paulista, principalmente dentro dos desfiles de carnaval na Avenida Paulista e no bairro
do Brs nas primeiras dcadas do sculo XX. Os desfiles com os carros eram chamados
de corso, tpicos dos carnavais burgueses, em que eram utilizados automveis
enfeitados que desfilavam pela avenida, com seus ocupantes fantasiados (SIMSON,
2007).
A participao da famlia neste tipo carnaval era uma forma de mostrar prestgio
social entre os imigrantes em rpido processo de ascenso social, pois possuir um
automvel era uma dessas formas (SIMSON, 2007, p. 76). No bairro do Brs, por
exemplo, de origem operria e de pequena classe mdia, os veculos eram muitas vezes
alugados.
A primeira escola a utilizar carros alegricos dentro do desfile carnavalesco em
So Paulo foi a Nen de Vila Matilde em 1956, como apontamos no primeiro captulo.
Nesse ano, a Nen trouxe outras inovaes: foi a primeira tambm a apresentar-se com
um samba-enredo intitulado Casa grande e senzala", baseado no ttulo da obra de
Gilberto Freyre. Na ocasio utilizaram-se pequenas alegorias de madeira ajudando a
ilustrar o enredo. Uma delas trazia um livro grande e decorado, com o nome Casa
Grande e Senzala que vinha escrito nele. Naquele ano, como prova de que as inovaes
surtiam efeito, a escola da zona Leste sagrou-se pela primeira vez campe do carnaval.
A responsvel por introduzir as alegorias animadas (com movimentos) foi a escola de
samba Unidos do Peruche, em 1962, em um enredo sobre Castro Alves. O criador
destas alegorias foi o compositor e carnavalesco Benedito Lobo, parceiro de Talism na
montagem de carnavais em muitas escolas.
A partir da oficializao em 1968, as escolas passaram a receber uma quantia
maior de recursos, oriunda da Prefeitura, e isso permitiu que as escolas e os cordes
fizessem alegorias mais luxuosas e bem acabadas. Em 1969, o Vai-Vai construiu um
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139

carro alegrico representando uma igreja barroca mineira, ilustrando o enredo que
homenageou o escultor mineiro Aleijadinho. Ela foi construda em madeira e papelo, e
era ladeada por imagens ampliadas dos profetas retratados em Congonhas do Campo.
As maiores alegorias dessa poca eram construdas todas em madeira e forradas com
panos, papelo e papis brilhantes. Eram empurradas inicialmente por membros do
prprio cordo e, mais tarde, por pessoas remuneradas, devido ao grande esforo fsico
e ao fato de os empurradores no poderem desfrutar e brincar os folguedos
carnavalescos (SIMSON, 2007, p. 164).
A partir da fase de expanso das escolas de samba do Rio de Janeiro, nos anos
1960 e 1970, cujo modelo foi seguido pelas escolas da capital paulista, as alegorias
passaram a ter um papel cada vez maior dentro dos desfiles carnavalescos, sendo
apresentadas em propores maiores e com grande riqueza de detalhes cnicos. Esses
aumentaram tambm em nmero, pois as escolas possuam vrias alegorias em um
desfile, dependendo do grupo em que a escola estava classificada. As alegorias
normalmente representam os maiores gastos dentro de uma escola de samba, j que as
fantasias normalmente so vendidas e o dinheiro reinvestido na prpria escola. Com a
ampliao das escolas de samba, principalmente a partir da insero da classe mdia e
com a crescente mercantilizao da festa, que passou a ser consumida na avenida e
tambm via transmisso televisiva, era necessrio apresentar um produto atraente e
belo.

A fora crescente das alegorias no desfile pode ser atribuda ao fato de elas
possibilitarem a expresso da experincia fragmentada de vida dos habitantes
da grande cidade que as apreciam e aplaudem. Elas correspondem a uma das
formas encontradas pelas escolas de samba para a expresso das
transformaes do seu tempo e da sua cidade (CAVALCANTI, 1999, p.
180).

As alegorias tm a funo de ilustrar o enredo, e, por sua prpria natureza visual,


em geral apresentam muito mais coisas do que o prprio samba-enredo. Para o
carnavalesco Renato Lage, o samba-enredo apenas a trilha sonora para o desfile,
pois o grande encantamento vem da parte visual. O encanto das fantasias e alegorias
139

140

vem do fato se serem obras de arte popular, nicas e mutveis e, portanto, impossvel
decifr-las totalmente. Esse seu poderoso encanto. Impossvel compreend-las
totalmente. As esculturas, por exemplo, feitas por Rosa Magalhes para a escola de
samba Salgueiro, em 1990, participaram, no ano seguinte, da XXI Bienal de Artes de
So Paulo. Elas foram consideradas obras artsticas pelo curador Joo Cndido Galvo,
que as incluiu na prestigiada mostra internacional de arte.
o carnavalesco quem concebe a ideia dos carros alegricos. Ele o faz a partir
de um conceito principal e desenha as partes que o integram. Depois de aprovado o
desenho e realizado o oramento, d-se inicio ao trabalho de barraco, com a
confeco das alegorias. O barraco, como popularmente conhecido nas escolas, o
local onde so realizadas as alegorias. Nunca na quadra da escola, normalmente em
locais afastados, mais prximos do local de desfile, para facilitar o transporte. At a
dcada de 1980, as estruturas dos carros alegricos eram realizadas apenas em madeira,
e o principal chefe do barraco era o carpinteiro (URBANO; NABHAN; SANTOS,
1987, p. 62).
Como analisa Leila Blass, existem dois tipos de tempo dentro de uma escola de
samba: o tempo da festa e o tempo do trabalho. Se no incio dos folguedos as relaes
eram voluntrias, fazendo parte das atividades de lazer dos envolvidos, a partir da
entrada do dinheiro do Estado e do financiamento obtido atravs dos meios de
comunicao eletrnica, dos turistas e das chamadas classes mdias no interior das
escolas de samba, essas relaes tornam-se profissionais, com trabalhadores contratados
especificamente para a produo do desfile, na qual se destacam tanto o pessoal do
barraco como o carnavalesco (BLASS, 2007, p. 24).
A partir da dcada de 1980, h a necessidade de se contratar outros profissionais
especializados, que no precisam ter relaes com a quadra da escola, como artesos,
serralheiros, soldadores, marceneiros, escultores, pintores, vidraceiros, mecnicos,
iluminadores, eletricistas, especialistas em efeitos visuais, etc. (BLASS, 2007, p. 53).
Com a entrada de um dinheiro maior vindo dos patrocinadores e da verba da televiso e,
mais tarde, com a realizao dos desfiles no Sambdromo, os carros passam a ser
maiores, mais luxuosos e mais duradouros. A estrutura dos carros das grandes escolas,
140

141

antes feitas em madeira, passa a ser realizada sobre os eixos de carros ou caminhes,
com a colocao de ferragem e com tantas rodas quantas forem necessrias para um
movimento equilibrado.
Uma vez pronta, essa base inicial forrada de madeira. Alm do forro, a madeira
um elemento cnico decorativo. Sobre essa base erguem-se ento as grandes
esculturas em isopor ou fibra de vidro. Um aspecto peculiar da escultura em isopor o
seu carter oculto e efmero dentro da preparao do carnaval. As formas esculturais em
isopor so raramente vistas: o escultor que trabalha com o isopor como um artista
escondido: exceto o caso de peas nicas, presentes na decorao dos carros, as peas
em isopor no fazem parte da composio do carro alegrico. Ou melhor, uma espcie
de molde do molde, porque uma vez esculpida, a pea de isopor integralmente
forrada com papel-mach de modo a se tornar bem lisa para a moldagem feita atravs de
mistura de gesso e sisal (CAVALCANTI, 1999, p. 163). Este um processo semelhante
ao utilizado pela escultura artstica tradicional, mas especificamente a escultura em
bronze, que tambm supe a moldagem como fase decisiva. O nome do modelador s
vezes pode ser mencionado, no entanto, a autoria da pea pertence claramente ao artista
que a concebeu. No carnaval, o escultor transpe para o isopor o desenho do artista, isto
, do carnavalesco.
Citando novamente Maria Laura Cavalcanti:

As esculturas so o elemento expressivo central dos carros, e apenas depois


de seu posicionamento, se inicia a decorao, com os mais diversos
materiais: tecidos, plsticos, acetatos, pinturas, espelhos. Quando o caso,
instalam-se, nessa ltima fase, os mecanismos j previstos para o movimento
e iluminao, e posiciona-se o volante para a direo das rodas. O ncleo
expressivo de um carro alegrico so as esculturas, normalmente feitas em
gesso, fibra de vidro e isopor (CAVALCANTI, 1999, p. 157).

Tambm importante destacar o trabalho dos carpinteiros dentro da confeco


de um carro alegrico, pois apesar de ele no ser mais o chefe do barraco e coordenar
todo o processo de feitura do carro, ele continua presente, mas agora coordenando a fase
intermediria entre a base do carro (serralheria) e a decorao dele. A madeira forma
141

142

necessariamente a base, mas pode participar tambm, com inusitados recortes, da


cenografia de um carro. Depois de encerrado o carnaval, as escolas dos grupos de
destaque normalmente passam parte do material utilizado (fantasias, alegorias, pedaos
de alegorias) para as escolas menores montarem seu carnaval do prximo ano e, assim,
o ritual cclico se mantm.
Em seguida, entra um mecnico para o posicionamento das rodas, dos pneus e
do volante do carro, pois este deve ficar em uma posio central, facilitando, assim, as
manobras que os carros tm de fazer para entrar na avenida. So proibidos motores para
empurrar os carros alegricos, devido a riscos de incndio, e permitido apenas o
gerador responsvel por iluminar o carro.
Alm destas transformaes na parte estrutural houve diversas transformaes
estticas nos carros alegricos, trazidas no final da dcada de 1980 e intensificadas com
os desfiles do Sambdromo. O marco da mudana dos carros alegricos em So Paulo
foi no inicio dos anos 1990, quando houve uma competio entre as escolas para ver
qual traria o maior carro alegrico para a avenida. Mestre Gabi se mostra crtico desta
disputa pelo maior carro alegrico:

O Juarez da Cruz, na Mocidade Alegre, viu no Rio as alegorias e se tocou.


Tambm comeou a colocar na avenida carros alegricos maiores, a foi
nessa crescente. As escolas competiam pra ver qual era o maior carro, at
chegar naquele tigre que a Imprio trouxe que era uma monstruosidade, mas
que adianta? O que adiantou um tigre daquele tamanho? Pra quebrar a
harmonia da escola, quebrar em que termos? Voc tem um tigre de 50, 60
metros de comprimento e ali no tem ningum. Ento a escola termina o
canto l e recomea aqui atrs, quebra a harmonia da escola, o canto e mesmo
que no quebre, com toda essa tecnologia de som que ns temos a, mas a
escola tem que estar muito bem ensaiada para no quebrar o canto, a
harmonia. E foi assim, comearam vir as pessoas do Rio de Janeiro e
padronizar tudo. 61

importante destacar no apenas a influncia do modelo de alegorias das


escolas de samba do Rio de Janeiro, mas a troca e a incorporao de elementos de
outras festividades como o boi-bumb do Festival Folclrico de Parintins, realizado na
61

Entrevista com Mestre Gabi. Data: 25/10/2010.

142

143

ponta da ilha Tupinambara, no estado do Amazonas, fronteira com o Par, no final do


ms de junho. Foram os bois Caprichoso e Garantido que iniciaram os carros
articulados com movimentos nos desfiles. O desfile de Parintins no em cortejo linear,
como no caso dos desfiles das escolas de samba, mas em uma arena circular, e elas no
tm o mesmo significado que os carros alegricos nas escolas de samba. As escolas de
samba contriburam no Festival de Parintins com a introduo nas alegorias na festa, e
Parintins contribuiu com o nosso desfile modificando e dando um novo significado para
as alegorias, adicionando movimentos que posteriormente foram incorporados pelos
carros alegricos das escolas de samba. Nesse processo, semelhante ao analisado pelo
antroplogo Franz Boas, os elementos tomados emprestados so inteiramente
transformados e ressignificados (BOAS, 1966).

2.3 O samba-enredo (transformaes musicais)


Em So Paulo, o desfile dos cordes antes da popularizao do samba-enredo
no era exatamente feito ao ritmo do samba. Eles desfilavam com um ritmo chamado
marcha-sambada, que uma fuso da marcha militar europeia62 com o samba de
bumbo, do interior do estado de So Paulo, descrito abaixo e marcado pela sua
sonoridade grave caracterstica. Para o sambista Geraldo Filme:

O Cordo do Vai-Vai! Eu gostava de ver o Cordo do Vai-Vai. Cordo uma


modalidade diferente. Por sinal, s teve em So Paulo e Rio Grande do Sul.
(...) batuque pesado, mas a diviso na boca marcha. A gente chamava de
marcha sambada. O carioca est fazendo hoje, mas a gente j fazia
antigamente. a marcha sambada (BOTEZELLI; PELO; PEREIRA, 2000.
Volume 2: 80).

Apesar de ser um consenso entre os pesquisadores que estudam o tema a


denominao marcha-sambada para definir musicalmente o tipo de samba feito pelos
62

Notada, por exemplo, no uso de instrumentos de sopro caractersticos das bandas militares e que iria se
popularizar com as marchinhas de carnaval.

143

144

cordes carnavalescos, Mestre Divino, presidente e diretor de bateria da escola de


samba Imperial, no concorda com essa denominao. Para ele, o correto seria samba
marcheado:

O som que a Vai Vai fazia ou que o Fio de Ouro fazia como cordo era
diferente da Nen. Era diferente. Muita gente chama esse ritmo dos cordes
de marcha sambada. Presta ateno, nunca houve marcha sambada. O que h
samba marcheado. Era um samba muito mais pesado. melodicamente o
compasso mais alongado. A gente tem que falar assim porque em primeiro
lugar vem o samba. Era marcheado para as pessoas poder desfilar andando,
indo em uma direo seguindo aquele ritmo. 63

Dionsio Barbosa, fundador do Cordo Carnavalesco Barra Funda, em entrevista


a Olga von Simson e a Jos Ramos Tinhoro64, disponvel no MIS e no Laboratrio de
Histria Oral da Unicamp, diz que a inspirao musical dos cordes no vem apenas do
batuque, mas tambm da boa impresso em relao s bandas militares, cujos desfiles
foram assistidos por ele no Rio de Janeiro.
Esse fato talvez possa explicar a importncia musical da marcha no pioneiro
cordo paulistano, o que influenciaria as agremiaes subsequentes. Tambm diz que na
bateria dos cordes fazia-se a marcao com os surdos, produzidos com barrica e a
partir de tambores de azeitona, que eram de madeira, e de carbureto de clcio, feitos em
lata. Normalmente era utilizado o couro de cabrito para fazer o encouramento do
tambor.
Mestre Divino, presidente e diretor de bateria da escola de samba Imperial, nos
mostra como eram feitos esses instrumentos improvisados:

Era tudo em couro, no existia bordo de ao. A sobra de couro a gente


molhava bem, esticava, torcia, torcia, pegava de lado, pegava do outro e
depois fazia aquele bordo com aquela corda de cima. Era do prprio couro,
tudo era de madeira, tudo era encourado. A gente montava... Fazia agog!
63

Entrevista com Mestre Divino. Data: 15/10/2011.

64

Entrevista de Dionsio Barbosa a Olga von Simson e a Jos Ramos Tinhoro. Laboratrio de Histria
Oral-Unicamp. Pasta D. Barbosa, p. 53.

144

145
Voc comprava nesses ferro velho e com uma serra circular, montava, ia na
morsa e tirava os dente, soldava e saa o agog. Tudo artesanal. ... O surdo
era de lato de carbureto65. Sabe o que carbureto, n? Tudo de lato de
carbureto. Fazia a borrachinha de fixao, o estirante. Era tudo ns mesmo
que fazamos, a rosca, achatava a parte de baixo. E tinha mais o chocalho
com vara. E outra coisa que a gente fazia era reco-reco de bambu. Tinha um
cabo fino. o reco-reco estriado, estriado porque tem uma chave de
alumnio, ela era estriada, n? Ento ela virava aqui e tinha uma ala pro
dedo segura aqui e culungundum, caxitundum, culugundum. Hoje tenho recoreco, mas de mola, n? 66

Divino ressalta ainda que at hoje produz seus prprios instrumentos e esse um
dos trunfos de sua bateria ser to reverenciada.

Agora que inventaram a pele de nylon, porque era tudo couro. Deixava no sol
depois fazia a barba dele, pra deixar lisinho. Tenho ainda couro bruto a. Isso
hoje. Eu mesmo fao meus instrumentos. Eu gosto. Fao cambito. Eu mesmo
fao meus cambitos. Agora os mestres de bateria compra tudinho. s ligar
pra loja e pedir pra entregar. (...) D uma olhada nos meus instrumentos.
tudo de couro! Isso ningum sabe, cara! C sentiu, ouviu a vibrao no
cho? Pega uma chave l qualquer, se voc aperta algum instrumento aqui
no faz mais barulho. Vai nas escolas por a tudo de nilon. 67

Osvaldinho da Cuca, que tambm desenvolve a atividade de luthier at os dias


de hoje, relembra este processo e aponta as transformaes pelas quais passou o
processo de realizao dos instrumentos. Assim como as fantasias, os instrumentos
eram feitos pelos prprios integrantes dos folguedos carnavalescos, com suas nuances e
experincia sonora. Hoje, a exemplo das fantasias, so feitos em fbricas de
instrumentos especializadas que os produzem em srie, todos padronizados com o
mesmo som.

65

O Carbureto de Clcio aplicado em geradores, reage com gua e produz o Acetileno.


O Acetileno produzido amplamente aplicado em processos de aquecimento, solda, corte de metais e
produo de resinas como PVC, PVA, etc.
66
Entrevista com Mestre Divino. Data: 15/10/2011
67
Entrevista com Mestre Divino. Data: 15/10/2011

145

146
Ento saa um regional com dois, trs cavacos e um banjo. Porque o banjo
grita mais alto. E violes, um pandeiro e poucos bumbos. Um ou dois, como
eu falei pra vocs. Pra no encobrir os violes e a voz. Ento era muito mais
sonoro, mais bonito. De longe j se ouvia aquele grupinho, que vinha
cantando, balanando, espontneo. Sem aquele compromisso de ganhar um
ttulo, dinheiro e tal... A veio a televiso e comeou a mudar muito. Foi com
a entrada da televiso e o crescimento muito acelerado das escolas que
comeou a industrializao dos instrumentos, porque antes era artesanal, n?
Agora so trezentos, quatrocentos ritmistas, no tem como fazer como
antigamente. Voc fazia primeiro com barrica, depois veio o processo de
evoluo e fazia com madeira compensada. Tinha aquele tamborzo de
madeira compensada e que parecia um surdo. Era s pregar um couro ali e
virava um surdo. O surdo de madeira compensada at hoje. Ento a gente
inventou aquilo. Depois veio tambor de carbureto. Era um tamborzo de lata
assim do tamanho do tronco de uma pessoa, bem grande. A gente mandava
para o ferreiro ferrar uma argola aqui e quatro tarraxas. A j esticava e
apertava o surdo, no era mais esquentado na fogueira. Que aqueles
compensados de barrica. C tinha que esquentar e esticava. Dali dez minutos
esfriava, a ficava pior. O sereno molhava e a ficava pior. Esquentava
durante uns dois minutos e depois comea a bater, tum, tum, tum, tum, tum,
tum, at ficar na afinao correta. Dali a pouco j comeava de novo. Os
caras falam, endeusam muito isso. Pega um tambor murcho, esquenta ele e
comea a tocar no sereno pra ver quanto tempo ele dura. Entendeu? A
inventamos a tarraxa. A no precisava mais esquentar, era s apertar que a
pele esticava. Isso j representou um grande avano. A depois comeou a
industrializar. Por tarraxa nos instrumentos. Voc sabe a capa do meu livro?
T o Germano Mathias com a primeira cuca que eu fiz pra ele. Ele j tinha
comprado uma e no deu certo. A ele foi at a minha casa para eu entregar a
cuca pra ele. Ele foi com o Padeirinho l. E a tiramos a foto, com o
Germano e a cuca. 68

Eram estes mesmos tambores improvisados que seus integrantes utilizavam na


festa de Bom Jesus de Pirapora. O prprio Dionsio possua formao musical europeia,
tendo tocado em banda regida por maestro italiano.
Quanto s letras das msicas apresentadas durante os desfiles, podemos observar
que grupos como o pioneiro Camisa Verde utilizavam msicas prprias, normalmente
com oito versos divididos em duas quadras, de autoria de seus integrantes. Em 1915, o
cordo desfilou com uma cano composta pelo prprio Dionsio Barbosa e por seu
irmo Luiz Barbosa, uma marcha-sambada de duas quadras, sem ttulo, que tinha como
tema chamar a todos para ir janela ver o grupo que desfilava. Este tipo de msica
desenvolvido por esses primeiros cordes era em sua grande maioria composto de
68

Entrevista com Osvaldinho da Cuca. Data: 21/01/2012.

146

147

marchas curtas e que ficou conhecido posteriormente como samba-exaltao,


justamente pela temtica ser de divulgao, entusiasmo e glorificao dos feitos da
prpria agremiao:

Minha gente saia fora


Da Janela venha ver
O Grupo da Barra Funda
T querendo aparecer
2 Parte
Cantamos todos
Com voz aguda
Trazendo vivas
Ao Grupo da Barra Funda69

Como nenhuma dessas marchas-sambadas, ou sambas marcheados, como quer


Divino, foi registrada em disco, muito difcil fazer uma reconstituio fiel de como
elas eram executadas. A gravao feita em discos e em apresentaes ao vivo por
msicos como Osvaldinho da Cuca e pelo grupo Kilombolo Dia Piratininga so
baseadas em depoimentos de sambistas antigos, como Dionsio Barbosa, Seu Zezinho
do Morro da Casa Verde, Geraldo Filme e outros membros que ainda lembravam tais
msicas. E a partir do canto, da melodia, das entonaes e acentos colhidos nessas
entrevistas, que se d a tentativa de se reproduzir a marcha-sambada, o mais prximo
possvel de sua melodia original.
Em 1928, o grupo Barra Funda j apresentava canes mais elaboradas, com
letra e melodia mais prximas de um samba de quadra, mas com forte marcao no
surdo, instrumento tpico dos cordes. Esta cano tem como tema a exaltao da batida

69

CD. Histria do Samba Paulista I. Narrada e contada por Osvaldinho da Cuca. CPC UMES. Faixa 05,
1999.

147

148

e dos instrumentos utilizados pelo cordo, temida pelos outros grupos, dada sua
qualidade.

O meu cordo vem batendo sem rival


Deixa passar meu carnaval
Meu chocalho vem falando e vem chorando
E o tamborim vem batucando
O cavaquinho vem fazendo a harmonia
Com o violo e a bateria
Refro:

abre-alas/abre-alas, por favor


Nossa batida
temida, do amor
2. Parte:

Nosso pandeiro vem falando e vem chorando


E o tamborim vem batucando
O cavaquinho vem fazendo a folia
Com o violo e a bateria70
Infelizmente quase nada sobrou desses cordes, apenas algumas fotos
amareladas, no se conservando as canes cantadas por eles no carnaval. Para
preencher esta lacuna, um trabalho amplo ainda precisa ser feito com eventuais folies
dessas agremiaes que ainda esto vivos e que possam se lembrar das msicas
compostas por esses cordes, para que eles sejam finalmente registrados em udio.
Desde o primeiro desfile, o Vai-Vai, seguindo os demais cordes, tambm saiu
com msicas prprias; no ano de 1930, apresentou-se nas ruas com uma cano tpica
dos cordes, de exaltao prpria agremiao, feita pelo compositor Henrico , com
70

Cantado por membros da escola de samba Camisa Verde e Branco no documentrio Samba paulista.
Fragmentos de uma histria esquecida, Diretor: Gustavo Mello. Produo: TV Cultura, 2007.

148

149

duas quadrinhas com trs versos, e conclamando todos a sarem de suas janelas para
espiar o Vai-Vai passar e intitulando o cordo como Turma do amor.

Saiam janela, venham espiar


O Vai-Vai passar, gente de valor
Turma do amor, rei do carnaval
2 Parte:

O Vai-Vai na rua faz tremer a terra


Quem est ouvindo e no v
Chega a pensar que guerra
(BOTEZELLI; PELO; PEREIRA, 2000. Volume 5: 108)

Estes versos chamando as pessoas a irem s suas janelas eram muito recorrentes
nos temas dos cordes, porque eles desfilavam nas ruas do bairro de origem e uma das
formas de se obter patrocnio era passar o chamado Livro de Ouro para comerciantes
e moradores da localidade da escola. No livro as pessoas assinavam e davam uma
pequena contribuio financeira para compra de materiais para o desfile do cordo, que
devia assim dar um retorno aos patrocinadores locais, fazendo um desfile no prprio
bairro, antes ou aps o desfile oficial no centro da cidade. Seu Nen da Vila Matilde,
por exemplo, em entrevista a Olga von Simson, diz que nunca descia para o centro sem
antes desfilar no seu bairro, mesmo com chuva, como forma de agradecer a todos que
contriburam financeiramente e tambm como forma de manter o apoio da
comunidade71.
Em 1935, o Vai-Vai desfilou com um samba-exaltao de autoria de Tino e
Guariba que j no convidava as pessoas para sarem s ruas, mas lamentava aqueles
que no aprontaram a sua fantasia para desfilar no cordo. O samba revela que nesse

71

Depoimento de Seu Nen da Vila Matilde a Olga von Simson. Laboratrio de Histria Oral-Unicamp
(LAHO). Pasta Nen.

149

150

momento o grupo estava organizado e todos os seus integrantes j desfilavam


fantasiados:

Agora que eu quero ver


Voc chorar
Voc Vai entristecer
Quando o Vai-Vai passar...
Bem que eu lhe avisei
E voc sabia
Porque no aprontou
A sua fantasia
Se voc no sai
por culpa sua
Pra te consolar o Vai-Vai est na rua72

Uma marcha-sambada feita por Filme para o cordo na dcada de 1950,


composta por trs quadras, tambm tem a mesma temtica dos cordes apresentados
acima, exaltando a primavera e chamando as pessoas para sarem s janelas.

Saiam s janelas, venham ver


Que lindas flores
E o Paulistano vem cantar
Primavera Estao, estao das flores
2 Parte:

isso vem ver mocidade


Vem ver nosso jardim
72

CD. Histria do Samba Paulista I. Narrada e contada por Osvaldinho da Cuca. CPC UMES. Faixa 10,
1999.

150

151

Vem ver o cravo beijar a Rosa


A violeta brigar com o jasmim
3. Linda Jardineira
No fuja de mim
Eu vou regar as flores
Que plantei no jardim73.

O grupo carnavalesco que introduziu o chamado samba-tema no carnaval


paulistano foi a escola Nen de Vila Matilde. Fundada em 1949, na zona Leste da
capital paulista, a partir de um grupo de serenatas e de uma roda de tiririca (a capoeira
paulista). Este grupo era liderado por Nen do Pandeiro, que posteriormente se
imortalizaria no carnaval como Seu Nen da Vila Matilde. Depois de ver os desfiles das
escolas cariocas em 1955 junto com outro integrante da escola, eles notaram que apesar
de adotar o nome escola de samba, a Nen, na verdade, era um cordo, pois desfilava
com a corte, possua balizas, estandartes e no possua samba-enredo.
No carnaval de 1956, a escola da Vila Matilde inovou trazendo um tema de
orientao geral para o desfile, intitulado Casa Grande e Senzala, baseado no livro de
Gilberto Freyre e um samba que narrava essa histria74. Este samba trazia a temtica da
escravido e do sofrimento da populao negra, inaugurando no carnaval paulista uma
tradio de enredos de temas ligados s tradies afro-brasileiras, imortalizando o verso
banzo que negro tem. O samba-tema de autoria de lvaro Rosa, o Paulistinha, e
Pop, apelido de Mrio Protestato dos Santos, jornalista do jornal O Dia, era:

Aruanda ficou
O mar separou
Senhor!... Meu Senhor!...
73

Depoimento de Geraldo Filme a Olga von Simson. Laboratrio de Histria Oral-Unicamp (LAHO).
Pasta G.Filme, p.71.
74

Depoimento de Seu Nen da Vila Matilde a Olga von Simson. Laboratrio de Histria Oral-Unicamp
(LAHO). Pasta Nen, p.142.

151

152

Nego tudo deixou


banzo que negro tem
banzo que negro tem
Na casa grande tudo alegria
Na casa grande tudo festana
Na senzala negro chora
Que nem criana
banzo que negro tem
banzo que negro tem (BRAIA, 2000).

Seu Nen da Vila Matilde, em depoimento a Olga von Simson, relembra como
foi ganhar esse campeonato:

Chegamos um pouco de caminho, um pouco de bonde, outro pouco de


trem... Passamos pela rua Direita, Largo de So Francisco, viramos
esquerda, pela rua Dublas do Nascimento, subimos a Brigadeiro Luiz
Antnio... Vnhamos cantando e danando, com aquelas sombrinhas azuis e
brancas... E o povo j comeou a olhar... A Comisso de Julgamento ficava
num coreto, na Praa da Bandeira, e quando chegamos perto j olhou com
interesse... ramos mais ou menos uns cem e formvamos cinco alas, entre
baianas, damas antigas, lordes, escravos. Levvamos uma rvore sobre
rolim, feita de sarrafo, papelo bem pintado, uns galhos bem feitos. Eram
alegorias pequenas, feitas pelo carnavalesco da poca, o Coruja, que mais
tarde formou o "Corujas" da Vila Esperana. Foi um sucesso tremendo,
aquilo era uma novidade em So Paulo, alm do tema, que tambm
entusiasmou o pessoal. Esse foi um dos primeiros ataques que fizemos, com
enredo, com sistema, organizao75.

A principal diferena entre o samba-tema e o samba-enredo est na simplicidade


do primeiro. Ele composto a partir da ideia ou tema que a escola est apresentando na
avenida, como por exemplo, o livro de Gilberto Freyre, ou sobre a cidade de So Paulo,
mas sem um compromisso de ser um samba, de cuja letra saiam os elementos que

75

Depoimento de Seu Nen da Vila Matilde a Olga von Simson. Laboratrio de Histria Oral-Unicamp
(LAHO). Pasta Nen, p.118-119.

152

153

estruturam o desfile de uma escola de acordo com o respectivo enredo. As inovaes


fizeram sucesso e, nesse ano, a escola venceu seu primeiro campeonato.
Em 1961, a escola ganhou seu segundo campeonato com um samba-tema em
homenagem Marquesa de Santos e que j se aproximava mais do samba-enredo que
estava sendo produzido pelas escolas cariocas no momento. Vale lembrar que este o
perodo da parceria Silas de Oliveira e Mano Dcio da Viola na escola de samba
Imprio Serrano no Rio de Janeiro, formatando o modelo considerado clssico do
samba-enredo no carnaval carioca. O samba de Paulistinha retrata os motivos pessoais e
polticos que levaram D. Pedro I a no se casar com Domitila de Castro, a Marquesa de
Santos, como as guerras enfrentadas por D. Pedro I em seu perodo como Imperador do
Brasil, a Guerra da Cisplatina e a Confederao do Equador. E a renncia feita por
Domitila de no se casar com o Imperador para no separar a jovem nao:

Renunciou o Imperador
Pelo amor que consagrava
nossa ptria querida
Domitila de Castro, Marquesa de Santos
Para no ver a nossa terra dividida
No se casou com D. Pedro e o Norte no se separou
Diz a histria
Vamos reverenciar a sua memria!
Brasil... Brasil amado
Quanto civismo no passado
A campanha Cisplatina
A doao de Domitila
Renunciando, o seu amor teria falado:
Parta-se o meu corao
Por minha causa no haver separao
No, no, no
153

154

O Norte no vai separar-se da Unio76

Em 1968, com a oficializao do carnaval em So Paulo, analisada no captulo


anterior, houve a mudana no regulamento de desfiles com inmeras inovaes. Uma
das inovaes trazidas foi a obrigatoriedade de se desfilar com o ritmo do samba e de se
adotar um samba-enredo, o que j vinha sendo adotado por algumas escolas. Segundo o
regulamento o enredo, a histria que a escola apresenta na avenida deveria tratar apenas
de fatos histricos e folclore de cunho nacional. Consolida-se em So Paulo o modelo
que j estava presente nos desfiles do Rio de Janeiro, desde meados dos anos 1930.
Com este regulamento, as escolas de samba fizeram no carnaval de 1969 a passagem do
samba-tema para o modelo do samba-enredo, pois a msica apresentada deveria estar
obrigatoriamente ligada ao enredo apresentado pela escola de samba. A maioria das
escolas j apresentava neste momento msicas relacionadas ao seu tema de desfile. O
que houve foi uma adaptao para a realizao de um samba com uma letra mais
complexa e com um nmero maior de versos.
O carnaval de 1969 foi o primeiro carnaval realizado aps ser outorgado o Ato
Institucional Nmero 5 (AI-5) pela ditadura militar. O AI-5 institua que as msicas
registradas e gravadas em territrio nacional deveriam passar pela censura prvia. Isso
inclua as msicas de carnaval. Portanto, qualquer crtica ao regime, uma leitura mais
progressista da Histria ou mesmo social, mesmo que bem-humorada, era sinnimo de
samba censurado.
Mestre Gabi, antes de se tornar mestre-sala, foi compositor da escola de samba
Barroca Zona-Sul e nos conta sobre seus sambas censurados:

Um perodo que no podamos falar. Eu fiz samba-enredo que foi pra


censura. Tudo tinha que passar pela censura. Essa palavra aqui no, tem que
tirar. Era complicado. At 1970 e poucos, mas at mesmo at 1985 ainda

76

CD. Histria do Samba Paulista I. Narrada e contada por Osvaldinho da Cuca. CPC UMES. Faixa 14,
1999.

154

155
tinha censura velada. Certas coisas no podiam falar. Seno era preso. Eles
queriam que a gente fizesse esse sambinha gua com acar77.

A censura valia para todas as novas composies dentro dos meio musical e
fonogrfico brasileiro e no apenas para os sambas-enredos. Esta aberrao durou de
1969 at o ano de 1986, quando o ministro da Justia, Fernando Lira, promulgou uma
lei acabando com a censura no pas. As escolas de samba j estavam dispensadas de
censura prvia dos enredos, sambas-enredo, alegorias, adereos e figurinos desde
setembro de 1985, quando uma portaria da Polcia Federal as liberava78.
Nos documentos em anexo est uma cpia do samba-enredo O cancioneiro do
Estcio de S realizado pela escola de samba Corujas da Vila Esperana, em 1979. No
documento possvel visualizar o carimbo do Departamento da Polcia Federal
liberando a cano para gravao e divulgao pblica79.
Para que as escolas de samba recebessem a verba oficial, era necessrio que seu
samba-enredo estivesse aprovado pela censura. Como os sambas deveriam tratar de
fatos histricos de cunho nacional, as escolas de So Paulo tambm passaram a utilizar,
a partir de 1969 e em toda a dcada de 1970, um estilo de composio conhecido no Rio
de Janeiro como samba-lenol. Essa expresso pelo fato de o samba ter que cobrir
o enredo em sua totalidade e no poder contradiz-lo em nenhum aspecto.
Este estilo de composio tem seu incio no samba realizado por Silas de
Oliveira para a escola Imprio Serrano em 1961, intitulado: Sessenta e um anos de
Repblica. Esta cano deu ao gnero uma nova forma que utilizada at hoje no
samba-enredo, o samba-lenol, uma das modalidades de sambas-enredo mais
conhecidas80. Caracterizada por melodias solenes, por jogos rtmicos frequentes (s
vezes fazendo com que a slaba tnica no coincida com o acento musical, o que
77

Entrevista com Mestre Gabi. Data: 25/10/2010.


Anexo 3. Ofcio N 1509/85 GAB/DCDP Departamento de Polcia Federal de So Paulo
encaminhada a Eduardo de Oliveira, presidente da UESP. Acervo UESP.
79
Ver novamente Anexo 2. Samba-enredo da Sociedade Carnavalesca Corujas da Vila Esperana de
1979. Acervo UESP.
80
Este estilo teve seu apogeu na dcada de 1960, diminuiu sua importncia nos anos 1970 e 1980,
aparecendo novamente nos anos 1990 e revitalizado nos anos 2000. So obras de carter histrico que,
no entanto, esboavam verses idealizadas de passagens da Histria do Brasil.
78

155

156

aumenta o efeito da sincopa). Tambm caracterizado por letras extensas com muitos
versos e por um vocabulrio sofisticado, que se afasta definitivamente da linguagem
popular e dos sambas de terreiro e de quadra.
Passou a ser um tipo de samba feito exclusivamente para ilustrar o enredo que a
escola desenvolver durante o seu desfile. comum tambm, no samba-lenol,
expresses e palavras eruditas da lngua portuguesa, distantes do cotidiano dos
sambistas como, no caso do j citado samba Sessenta e um anos de Repblica, de
Silas de Oliveira, que utiliza: glria opulenta, eminente estadista e vitria
altaneira

81

. Se, em termos de letra, os sambas-enredo foram ficando cada vez mais

eruditos e at mesmo artificiais, em termos de melodia os compositores foram


desenvolvendo recursos cada vez mais sofisticados para se poder cantar facilmente
essas letras de uma formalidade discursiva muito grande (MUSSA; SIMAS, 2010, p.
57).
Alm desta exaltao a personagens histricos, que iam dos grandes lderes
militares da Histria do Brasil, passando pelos grandes homens das cincias e das artes,
os sambas-enredo tambm tratavam de cenas e paisagens naturais do Brasil, como no
samba-enredo mais conhecido de todos os tempos, Aquarela Brasileira, tambm
composto por Silas de Oliveira em parceria com Mano Dcio da Viola, e que se tornou
um grande sucesso do cancioneiro popular. Composto por versos mais simples e com
passagens poticas muito mais ricas e meldicas, este samba apresentado pela escola
Imprio Serrano no ano de 1964 ganhou nota 8, porque o enredo da escola falava dos
Estados brasileiros e citava Minas Gerais, mas o samba-enredo no cita o Estado. Em
So Paulo, tambm era comum enredos sobre as riquezas da terra, como Rei Caf,
realizado pela Unidos do Peruche em 1970.
Geraldo Filme, atento a essas mudanas, comps um samba-lenol para o VaiVai, em 1969, com um enredo intitulado Aleijadinho, mas que, na prtica, era uma
mistura com um enredo sobre Chico Rei. um samba que no possui grandes
qualidades estticas, evidncia desta transio rpida pela qual as agremiaes

81

Samba-enredo. Sessenta e um anos de Repblica. Autor: Silas de Oliveira.

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carnavalescas passaram, com uma letra artificial, descritiva e uma poesia pobre, pouco
elaborada e contando com a presena de vrias palavras eruditas que no fazem parte do
vocabulrio corrente dos sambistas apresentando uma melodia que mal consegue
encaixar os versos, muito longos. Percebe-se que a melodia e a letra foram inspiradas
diretamente nos sambas-enredo realizados por Silas de Oliveira nos desfiles do Rio de
Janeiro:

Na era de 1730,
Quando o preto era importado,
Atracou o navio negreiro,
Chico Rei desceu descalo
Com sua tribo acorrentado
Vindo diretamente a Vila Rica
Terra do ouro e do pinho,
Onde residia o estaturio
Antnio Francisco Lisboa
O famoso Aleijadinho
L l l l l (...)

Na gravao original ainda percebe-se a presena dos instrumentos de sopro


como o trombone, tpico dos cordes paulistanos.
Apesar das limitaes impostas pelo regulamento para os desfiles oficiais do
Grupo I, as escolas no abandonaram as tradies africanas nem a cosmogonia da
cultura negra, que permeia no s o samba, mas todo universo das escolas de samba. O
prprio samba descrito acima apresenta, de forma crtica, a questo escrava no Brasil.
Esta era uma das maneiras de driblar as restries impostas pelo regulamento e pela
censura, utilizar temas histricos nacionais para contar a importncia dos negros na
histria do Brasil, como os enredos relacionados a Zumbi dos Palmares, como fez a
Mocidade em seu ttulo do grupo 2, em 1970, e tambm pelo Acadmicos do Ipiranga,
157

158

em 1972, dentre outras escolas. Tambm deve-se destacar a importncia dos enredos
relacionados a temas afro-religiosos ou da cultura afro-brasileira. Nesses enredos
possvel ver com um pouco mais de clareza o discurso do negro reprimido, que, na
maioria das vezes, tenta ser anulado pelo repressor, apresentando-se no enredo das
escolas de samba sob as mais diversas formas e disfarces: fuga ao problema; alienao
aparente; uso de smbolos, metforas e metonmias, embora algumas vezes mostre-se
abertamente beligerante e de oposio. Sobre a histria do Brasil, as escolas de samba
tambm procuravam falar sobre a histria dos negros no Brasil. Por exemplo, a recmfundada Mocidade Alegre foi campe do Grupo II no ano de 1970 com um enredo sobre
Zumbi dos Palmares, inspirado no famoso enredo de mesmo nome realizado por
Fernando Pamplona na Acadmicos do Salgueiro, em 1960.
O pioneiro a escrever enredos e tambm compor sambas-enredo ligados s
temticas de matizes africanas em So Paulo Geraldo Filme. Destacam-se, na dcada
de 1970, diversos sambas realizados para a escola de samba Paulistano da Glria. Como
Tebas, Histrias de um Preto Velho e Que gente essa.
No samba-enredo Tebas, de 1974, em um enredo intitulado Praa da S, sua
lenda, seu passado e seu presente, sobre um dos principais redutos de sambistas da
primeira metade do sculo XX, Geraldo Filme faz um verdadeiro trabalho de microhistria, resgatando a histria de um escravo trabalhador da construo civil do sculo
XVIII, completamente ignorado pela Histria oficial. Segundo as pesquisas de Geraldo
Filme, ele encontrou a histria deste escravo devido ao fato de Tebas ser um termo
utilizado pelos negros paulistanos no sculo XIX com o significado de algum muito
bom em sua rea de atuao, algo como Pel, para os dias de hoje. A origem do termo
o nome de um escravo que conseguiu ser alforriado, por ser um grande conhecedor
das reas de alvenaria e hidrulica. Segundo Geraldo Filme, Tebas, apelido do escravo
Joaquim Pinto de Oliveira, era um dos responsveis pela construo das torres da antiga
igreja da S e da canalizao dos esgotos da regio central da cidade. Ele, que dominava
a tcnica de taipa de pilo, teria construdo as torres sob duas condies: ganhar sua
carta de alforria e que seu casamento fosse o primeiro celebrado na igreja aps a

158

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construo das torres. Aps a construo da igreja da S, tambm construiu a torre do


Recolhimento de Santa Teresa e o primeiro chafariz em pedra da cidade.
A histria se parece com a de Chico Rei, negro que conquistou sua liberdade
trabalhando nas minas de ouro de Vila Rica, durante o ciclo aurfero do Brasil e tambm
tema de diversos enredos em escolas de samba de todo o Brasil. Assim como a histria
de Chico Rei, a histria de Tebas carece de fontes para comprovar sua existncia, mas
foi difundida pela tradio oral.

Tebas, negro escravo


Profisso alvenaria
Construiu a Velha S
Em troca da carta de alforria
Trinta mil ducados que lhe deu padre Justino
Tornou seu sonho realidade
Da surgiu a velha S
Que hoje o marco zero da cidade
Exalto no cantar de minha gente
A sua lenda, seu passado, seu presente
Praa que nasceu do ideal
E praa feita por escravos praa do povo
Velho relgio
Encontro dos namorados
Me lembro ainda do bondinho de tosto
E engraxate batendo a lata de graxa
E camel fazendo prego
O tira-teima do sambista do passado
Bexiga, Barra Funda e Lavaps
O jogo da tiririca era formado
O ruim caia e o bom ficava em p
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160

No meu So Paulo, oi ler, era moda


Vamos na S que hoje tem samba de roda
No meu So Paulo, oi ler, era moda
Vamos na S que hoje tem samba de roda
(BOTEZELLI; PELO; PEREIRA, 2000. Volume 2: 76)
No samba-enredo Que gente essa, tambm feito por Filme para o Paulistano
da Glria, j possvel perceber uma crtica mais contundente escravido, com a
escola descrevendo na avenida a histria da escravido no Brasil, desde a travessia dos
navios negreiros at a situao do negro contemporneo, vivendo excludo nos morros
e favelas. No samba tambm h a citao de vrias entidades espirituais africanas, da
cultura e da religiosidade do candombl e, por fim, a presena de vrias expresses e
versos em lngua africana:

Que gente essa


De p no cho
Que tem no canto
Sua forma de expresso?
Cantou na travessia
O seu triste lamento
Para amenizar
Tanta dor e sofrimento
Que canto lindo na plantao
O rei escravo cantou na minerao
Rezou cantando
Ao Pai Oxal
Ag-geg e iorub
Eparrei!
Oi oi vem nos ajudar
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Ka Ka Ka iorub
Depois surgiu Palmares
Sua confederao
E um canto livre
Vem l do serto
Cantou na capoeira
No tronco cantou e gemeu
Ela cantando embalava
Um filho que no era seu
Hoje essa gente sofrida
Vem dos morros e favelas
Mas traz um canto divino
Que ilumina a passarela. Quem ?
o canto negro, sinh.
(BOTEZELLI; PELO; PEREIRA, 2000. Volume 2: 83)

O samba apresenta uma melodia lenta e bem marcada, para facilitar o canto e a
evoluo da escola na avenida.
De autoria tambm de Geraldo Filme, a escola do bairro da Liberdade
apresentou Orao em Tempos de Festa, de 1977, exaltando a luta dos negros para
manter a sua cosmogonia e as suas crenas durante o perodo opressor e violento da
escravido. Nesse samba so lembradas as funes dentro do candombl de vrios
Orixs como: Oxossi, Ogum, Omol, Oxumar, Yans e Iemanj:

Meu povo pede licena


Pra contar essa histria
Do negro e seus Orixs
Canta Paulistano da Glria

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Alm de compor para a sua escola de samba, como j citado, Geraldo Filme
tambm comps diversos sambas-enredo para a escola de samba Vai-Vai. Fiel sua
linha de escrever sobre temas ligados cultura negra, em 1976 escreveu a cano para o
enredo em homenagem ao poeta negro recifense Solano Trindade.
A partir da dcada de 1970 acontecem os primeiros esforos para a gravao dos
sambas-enredo de So Paulo em discos. Foi realizada, de forma sistemtica, a gravao
das msicas apresentadas pelas escolas do Grupo I (atual grupo Especial) somente a
partir de 1977, quando os desfiles foram transferidos para a Avenida Tiradentes.
Outras escolas tambm apostaram em enredos de inspirao africana e de
denncia social. Dentre elas destacam-se Unidos do Peruche, Nen de Vila Matilde e
Camisa Verde e Branco.
A dcada de 1970 o perodo de hegemonia do Camisa Verde e Branco, com a
agremiao alcanando a marca de seis ttulos de campe do carnaval paulistano. A
agremiao conquista o ttulo do ltimo desfile dos cordes carnavalescos em 1971 e,
no ano seguinte, desfila pela primeira vez como escola de samba, alcanando o terceiro
lugar. A partir da, a agremiao mostra que conseguiu uma rpida adequao para a
linguagem dos desfiles das escolas de samba. Em 1973 fica com o vice-campeonato e a
partir da a escola conquista um tetracampeonato consecutivo (de 1974 a 1977). No ano
seguinte e em 1980 a escola ficou novamente com o vice-campeonato, sagrando-se
campe novamente em 1979.
A escola no apostou em enredos ligados a personagens histricos, mas aqueles
relacionados natureza, como As quatro estaes do ano (1973), ao mundo da
msica, cinema e artes plsticas, como Tropiclia (1975), Atlntida e suas
chanchadas (1976), Semana de Arte Moderna e os contemporneos do futuro (1978),
alm de uma lenda indgena Narain, a alvorada dos pssaros e um enredo sobre o
gnero feminino, Acima de Tudo Mulher (1980).
Outra maneira encontrada pelas escolas de samba para fugir dos temas histricos
solicitados pelo regulamento so aqueles relacionados a temas onricos, circenses ou
ligados ao universo fantstico da imaginao. No Camisa-Verde e Branco destaca-se
162

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Sonho Colorido de um pintor (1971), de autoria de Talism. , na verdade, um enredo


sobre o trabalho artstico de um pintor e como ele transforma a tinta em beleza:

Sonhei que pintei


Minhas noites de amarelo
Lindas estrelas no meu cu eu coloquei
O feio que era feio ficou belo
At o vento do meu mundo eu perfumei
Numa apoteose de poesia
Um conjunto de harmonia
Uma lua roxa pra iluminar
As guas cor de rosa do meu mar
Meu sol eu pintei de verde
Que serve pra enxugar
Lgrimas, se um dia precisar
A dor e a tristeza fiz virar felicidade
Aproveitei a tinta e pintei sinceridade
Pintei de azul o presente, de branco eu pintei o futuro
O meu mundo s tem primavera
O amor eu pintei cinza escuro
Pra l eu levei a bondade, dourada sua cor
Aboli a falsidade, o meu povo incolor
Na entrada do meu mundo, tem um letreiro de luz
Meu mundo no uma esfera
Tem o formato de cruz
No mesmo ano, a Nen de Vila Matilde apresentou o enredo O Brasil em festa
no sonho de Aladino, de Edson Conceio, misturando fico literria e histria:

Viveu nos tempos bem distantes,


Quando o circo era alegria sem idade
Aladino, que com as mos e com seus versos
Transformava iluso em realidade,
Ele era rei dos saltimbancos
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Que nas sete cartas loucas


Afonso Schmidt imortalizou...

Esses tipos de enredo tornam-se muito mais recorrentes, a partir da segunda


metade da dcada de 1970, com as escolas de So Paulo, como no prprio Camisa
Verde e Branco em 1979, de autoria de Ideval Anselmo e intitulado Almndegas de
Ouro:

Venham ver, para crer


Os seus olhos nunca mais vero
Luzes, festa no palacete
Muita gente no banquete
Catas-Altas se engalana sim
Loucos, hoje festa para o povo
Tm almndegas de ouro
o convite de um sacristo
Mandou vir escravos ornados
Tesouros lesados, do seu sogro capito
Na dana a mente criana
Valsava alegre, pelo salo
Queria ser nobre um dia
A dor que trazia no corao
Louco, quebram taas de cristais
Foi chamado aquela hora
De rei do ouro, senhor das Minas Gerais
Era chegado o momento
Mas eis que um dia
Chegava a romaria, com ela o imperador
Como presente ofertou uma baixela de ouro
Mas em troca do tesouro
Foi nomeado baro
Como na vida tem sempre seus altos e baixos
Ele caiu no fracasso, logo virou um plebeu

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Louco, lindas festas nunca mais (nunca mais)


O destino emudeceu
O Rei do ouro, senhor das Minas Gerais.

O samba-enredo acima inspirado nos enredos desenvolvidos por Joosinho


Trinta nessa dcada para as escolas de samba Salgueiro e Beija-Flor. Joosinho o
carnavalesco pioneiro a desenvolver enredos totalmente voltados imaginao,
narrando de uma maneira ficcional fatos histricos. Seu enredo pioneiro neste tema O
Rei da Frana na Ilha da Assombrao (1974), campeo com a escola de samba
Salgueiro. O enredo que narra as Pretas Velhas Maranhenses conta para o pblico uma
histria literria. O enredo narra que durante a infncia de um dos reis da Frana, nosso
pas provocava um enorme alvoroo na corte francesa, por suas belezas naturais e
culturais. Tanto o Rei da Frana quanto a Ilha da Assombrao, que, no caso, a cidade
natal do carnavalesco, So Lus do Maranho, so produtos da imaginao do narrador
(CUNHA JNIOR, 2010, p. 19).
A partir de 1979, com a extino do AI-5 e o processo de abertura poltica
conquistado pela populao durante o governo Geisel, as escolas de samba ganham uma
liberdade maior para tratar de temas sociais e polticos. O ano de 1982 particularmente
rico nesse aspecto, consolidando a virada nos temas de enredos do carnaval de So
Paulo, que passou a focalizar vrios elementos de denncia social, em especial a
situao do negro e do pobre no pas.
Como foi discutido no primeiro capitulo, impulsionados pelo momento poltico
do pas, comeam a surgir, dentro das escolas de samba, reunies de pessoas
interessadas em participar do processo poltico do pas. Vrios grupos de discusses
foram formados, inserindo-se principalmente dentro das lutas do movimento negro que
comeou a se rearticular naquele momento e procurou apresentar o negro como bravo,
forte e guerreiro.
Destacam-se nesse carnaval os enredos escolhidos por Nen de Vila Matilde,
Mocidade Alegre e Camisa Verde e Branco. A escola de samba da zona Leste
apresentou Palmares, razes da Liberdade. Apesar de muitas escolas sempre
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encenarem o tema da Guerra de Palmares, a Nen traz em seu desfile apenas o aspecto
da luta contra a escravido, com uma mensagem de alerta para a situao dos negros na
contemporaneidade. O samba-enredo de Armando da Mangueira e Jangada contribui
para a transmisso da mensagem proposta pela escola ao apresentar o refro Se cuida
branco que o negro no tem senhor. O samba transcende a luta pela liberdade como
no sendo apenas dos negros, mas a luta de classes, de todos os pobres. A escola de
samba apresentada como um novo Quilombo, ou seja, um espao de lutas e diverso
de todos os marginalizados e escravizados pelo sistema capitalista.

Oi Princesa
Oi Zumbi
A nobreza de Palmares viemos recordar
claridade
Brilha a raiz da liberdade,
Zumbi lutou
At que a morte o libertou
E uma nova aurora conquistou
, se ouvia um feroz clamor
se cuida branco
Que o negro no tem senhor
No terrvel horror do cativeiro
Ao esplendor
Palmares o quilombo pioneiro
Superou a dor
O negro soube se unir ao ndio e ao branco pobre
Eram trs raas a sorrir
Era um Brasil mais nobre
Olha o tombo
samba de conga
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E tem dend
Chegou novo Quilombo
E seu nome Nen
A escola de samba Mocidade Alegre apresentou o enredo Malungos, guerreiros
negros, sobre o mesmo tema da escravido. A escola apresentou os sobreviventes dos
navios negreiros como verdadeiros guerreiros, metfora aplicada para a situao do
negro no pas. Malungo uma palavra africana, que significa companheiro (aquele que
divide o po). Era a forma de tratamento mtua que os negros de diferentes tribos
davam queles que vinham no mesmo navio negreiro.

Malungos irmos verdadeiros


De uma raa guerreira
Que a natureza criou...
Com fora e suor
O negro procurou
O seu valor

Na mesma linha da Nen de Vila Matilde, mas com uma mensagem de denncia
explcita e radical da situao do negro no pas, o Camisa Verde e Branco apresentou o
enredo Negro Maravilhoso Mtuo Mundo Kitoko. No desfile, a escola trouxe a saga
do povo negro, trazido fora do continente africano para ser escravo no Brasil e que
mesmo depois da abolio, continuou como o grupo mais marginalizado e com menos
oportunidades. O Camisa Verde e Branco chama a ateno de que os negros devem se
destacar na sociedade brasileira em geral e no apenas no carnaval, no qual j so
tradicionalmente reconhecidos.
O samba-enredo, de autoria de Talism, um dos nicos da histria do carnaval
paulistano que pode ser classificado como msica de protesto, com uma letra
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questionadora e provocativa e uma melodia que se aproxima dos sambas feitos pelo
Camisa Verde e Branco durante sua fase como cordo.

Achei uma bola de ferro


Preso a elos de corrente
Tinha um osso de canela
Deu tristeza em minha mente
Esse osso de canela
Veio de outro continente
De jeito nenhum
No preconceito
Negro ou branco tem direito
Nossa escola no faz distino de cor
Pra falar sobre esse tema
Foi que surgiu o problema
E o dilema se avizinhou
, a nossa escola enaltece a negra gente
Que nunca ficou chorando
Sempre viveu cantando
Fingindo Contente
Negro paga imposto, negro vai guerra
Negro ajudou a construir a nossa terra
Temos a pergunta, no nos leve a mal
Porque s no trduo de momo que o negro genial?
Ele capito ele general
Poderia ser tanta coisa
Dentro da vida real.

168

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A Nen de Vila Matilde trouxe, em 1985, O dia que o Cacique rodou a baiana,
de Paulinho da Matilde, tambm um samba-enredo de protesto; mas, ao contrrio do
Negro Maravilhoso, do Camisa Verde e Branco, no qual a mensagem forte, explcita
e contundente, a Nen optou por realizar a crtica social atravs de stira poltica e de
costumes. O samba trata da luta do cacique Juruna, primeiro indgena a ser eleito
deputado federal dentro do Congresso para aprovar os projetos de interesse de seu povo.
Tambm faz uma crtica aos meios de comunicao, alienantes, que destroem a arte e a
imaginao dos negros e ndios para veicular cultura de massas. Por fim, o samba da
Nen sugere aos negros, pblico original das escolas de samba e tambm explorado
historicamente pelo branco, para rodar a baiana e lutar por seus direitos dentro da
poltica tradicional elegendo seus representantes.

Vai, Nen
Embalando a alegria
E no canto
Da guia guerreira
Toda altaneira
Cai na folia
Quando o cacique rodou a baiana
O Juruna vestiu a camisa, gravata e palet
Mas o branco soberano
S explorando
At que o ndio disse

At que o ndio disse


Macobeba
No rdio e televiso
Destri a arte
E a imaginao
Negro tambm quer
Poder falar alto
Rodar a baiana
Chegar no planalto

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Hoje
Para orgulho de nossa nao
Negros e brancos
E ndios so irmos
Reivindicando seus direitos
Se unindo em mutiro!
Oh! meu senhor...
Devolva minhas terras
Por favor
Nosso canto e dana
Desponta nossa alegria
Driblando a inflao
o nosso dia-a-dia.

A partir da dcada de 1980 h uma acelerao rtmica na forma de compor os


sambas-enredo, que ficam com andamentos mais rpidos, descaracterizando-os,
aproximando-os da marcha. Este fenmeno se inicia no Rio de Janeiro em algumas
escolas e se intensifica nos sambas apresentados pelas escolas de sambas da cidade de
So Paulo nos anos 1990.
Uma das justificativas da acelerao dos sambas-enredo para eles se
adaptarem ao crescimento do nmero de pessoas que desfilam nas escolas de samba. Se
at a dcada de 1970 as agremiaes desfilavam com centenas de pessoas, a partir da
dcada de 1980 e 1990 passam a desfilar com milhares de pessoas, no mesmo perodo
de tempo ou at mesmo em um espao de tempo menor.
Portanto, para as escolas no perderem pontos, as pessoas precisam passar
rpido pela passarela e uma msica mais rpida facilitaria isso. Para Mestre Gabi, este
processo em que a msica deve ditar o ritmo dos passos das pessoas que se apresentam
atualmente na avenida no um samba-enredo, mas uma marcha-enredo82. Os
ritmistas, para conseguir sustentar estes sambas na avenida, so obrigados a tocar mais
de 150 toques por minuto, medidos no metrnomo.

82

Entrevista com Mestre Gabi. Data: 25/10/2010.

170

171

Osvaldinho da Cuca apresenta outra justificativa para o aceleramento dos


sambas-enredo a partir da dcada de 1980. Para ele, o fenmeno se d pela concorrncia
do desfile das escolas de samba com os blocos de carnaval de rua da cidade do Rio de
Janeiro:

Voc sabe qual a razo dos sambas-enredos acelerarem tanto? Enquanto as


escolas limitaram seus componentes, os blocos, como o Bafo da Ona e
Cacique de Ramos aumentaram. Ento voc v, teve uma poca que
quiseram fechar o Sovaco do Cristo, porque saam duzentas mil, cem mil
pessoas. Aonde vai caber essa quantidade de gente? No cabe. A que d o
vandalismo, porque vai pela cidade andando, quebra carro e atrapalha o
trnsito. Cem mil pessoas pela cidade atrapalha o trnsito. E os blocos
estavam indo nesse caminho. Por causa do Bafo da Ona e do Cacique de
Ramos. Ento o que aconteceu? As msicas dos blocos eram mais
empolgantes, contagiavam mesmo. Tinha aquela:
Essa onda que eu vou, olha a onda, iai.
E acelerar, acelerar. E as escolas vinham:
Vejam essa maravilha de cenrio
um episdio relicrio.
Tava tudo quietinho, n? Balanceado. E os blocos j metendo o pau. O maior
nmero era dos blocos. Porque antigamente era o contrrio. Migraram para
os blocos, o pessoal de escola de samba, pra encher os blocos. mais
empolgante o bloco com samba de embalo. E a o samba-enredo passou a ser
samba de embalo. Embalo de embalar mesmo. Essa a verdadeira histria.
No isso que contam por a, tem que acelerar porque tem que desfilar em
uma hora83.

Como mostram Luiz Simas e Alberto Mussa (SIMAS; MUSSA, 2010), os


sambas-enredo comeam a ficar estruturalmente semelhantes. adotada uma espcie de
frmula pelos compositores para dar conta deste novo modelo. A frmula criada no
Rio de Janeiro e transportada para So Paulo o samba-enredo Peguei um ita no
norte, que contagiou a avenida com o refro: Explode corao, na maior felicidade
lindo o meu Salgueiro, contagiando e sacudindo essa cidade, de autoria de Dem
Chagas, Arizo, Celso Trindade, Bala, Guaracy e Quinho.
A partir deste samba, muitas escolas de samba passaram a exigir de seus
compositores sambas-enredo que tivessem refres fortes, alegres e que exaltassem a
83

Entrevista com Osvaldinho da Cuca. Data: 21/01/2012.

171

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escola, como o citado acima. Como evidencia Leila Blass, o refro desempenha um
papel importante no samba enredo, expressando o que est internalizado por todos e
preparando a passagem para o contedo a ser tratado nas estrofes seguintes (BLASS,
2007, p. 68). J para Rachel Valena, o refro seria um recurso precioso para captar a
simpatia e a participao das arquibancadas (VALENA, 1996, p. 87).
Os sambas-enredo passam a ter uma diviso diferente com uma primeira parte,
seguida de um refro de oito versos (16 compassos) e de uma segunda parte, seguida de
um segundo refro tambm com oito versos. Este segundo refro, na verdade, o
refro principal, que tem como funo levantar e empolgar a avenida, mencionando
sempre, de forma entusistica, o nome da escola, s vezes at fugindo da temtica do
enredo. Esta parte deve ter uma melodia tambm mais empolgante, para todos cantarem.
Apesar de estas msicas serem grandes em extenso, os seus versos so cada vez mais
curtos, porque, como apontam Mussa e Simas, difcil para os folies, em geral,
conseguirem entoar mais de oito slabas, em quatro compassos (MUSSA; SIMAS,
2010, p. 118).
No geral, a primeira parte destes sambas-enredo tem em torno de dez versos e
predomnio do tom maior; j a segunda tem a mesma extenso, mas um predomnio do
tom menor em sua primeira parte para, no fim, dar entrada ao triunfal refro principal
(MUSSA e SIMAS, 2010, p.117).
Corao, amor, emoo, galera, luz, brilhar, resplandecer, irradiar... Esses so
substantivos e verbos que mais aparecem nos sambas-enredo das escolas do Grupo
Especial do Rio e de So Paulo, a partir da dcada de 1990, quando os desfiles passam a
ocorrer no Sambdromo. Como atesta Osvaldinho da Cuca84, sambas que fogem a essa
regra no tm chances dentro das eliminatrias promovidas pelas escolas. Prova dessa
nova condio que Osvaldinho concorreu com sambas na escola de samba Vai-Vai e
Gavies da Fiel e foi tachado de ultrapassado, porque seus sambas no seriam
adequados para o andamento do desfile:

84

Entrevista com Osvaldinho da Cuca. Data: 21/01/2012.

172

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Agora virou inferno samba-enredo. D saudades do Jamelo. Ele no
permitia gritaria no samba. Houve meu samba a, meu samba-enredo t a
nesse cd que eu te dei. Pode por a pra vocs ouvirem, ele empolga pela letra,
pela melodia, pela sequncia lgica. No tem gritaria. Qualquer samba meu
voc entende. Salvo aquele de 82, o Oluay, que era uma filosofia africana.
difcil voc entender uma filosofia brasileira, quanto mais uma africana, n?
Ento, tudo bem. Mas quando eu fao samba voc entende. Voc comea
pelo fio, ele vem em ordem cronolgica, contando a histria at o fim. Esse
ano eu fiz, t a. S que no deixaram ganhar, l na Gavies. O enredo era pra
contar a saga do povo nordestino, o sofrimento do serto, vindo pra So
Paulo e um representante maior que chegou a ser presidente da nao,
representando todo esse povo, com seu folclore, sua histria e seu sofrimento.
Vindo pra So Paulo e vencendo, que o Lula. Ele conseguiu um monte de
patrocinadores pra Gavies falar dele. Cinco milhes. Muito bem, t a. Voc
pega meu samba voc entende. A primeira parte fico. Voc vai ver o
maior escorpio da avenida, o abre-alas da escola. Porque ele do signo de
escorpio. Esse escorpio se transforma num gavio, porque a Gavies da
Fiel e ele corintiano. E vem pra So Paulo, a que comea a luta dele que
todo mundo conhece, no ABC at ser presidente da repblica. A vm os
processos de viajar pro Nordeste, fazendo as caravanas da cidadania, aqueles
negcios, muito bem. Esse o enredo, agora pega o samba-enredo que
ganhou. Agora voc pega o meu pra voc ver. S tem rimas pobres, um senso
comum. Eu tenho percepo. Que eu sempre fui de conjunto vocal, sempre
gostei de vocalizar. Ento eu peguei o pessoal da Vela, umas meninas que
cantam pra caramba. Peguei o Washington do Vai-Vai, o Odilon que um
irmo meu tambm, desfilava comigo nos cordes. E gravamos o samba. Eu
falei pra eles, a msica essa s que aqui vai fazer uma oitava e aqui vai
vocalizar. No palco fizemos igual a gravao. Ensaiamos a diviso. No
quero harmonia, quero voz. Quando chegou na quadra e eu entrei com aquela
turma. Violo, cavaco tudo ensaiado, coro. Tinham uns oito no coro. Quando
abriu o vocal, o Ren Sobral comeou:
Nasceu na terra seca do serto/pau-de-arara ps no cho/ o retirante
nordestino/ Viveu o sofrimento do lugar/E na cultura popular fortaleceu o
seu destino/ Cresceu sob a influncia de escorpio/ Acreditando no poder da
transformao/ Bateu asas e voou/E foi assim que tudo comeou/Me
coragem abenoa pra vencer/ Vem pra terra da garoa a perder/Operrio
consciente cidado/ o brao forte da nao/ Me coragem abenoa, pra
que?/ Pra vencer, vem pra terra da garoa. 85

Outro fenmeno criticado por Osvaldinho a poluio visual dentro dos sambasenredo, com mensagens para a escola, para a comunidade, para o presidente da escola,
diretoria etc. Nesta safra de sambas-enredos surgidas a partir da dcada de 1990 h a
presena de uma grande exaltao prpria escola, principalmente nos refres, e a no
descrio de todo o enredo ao longo da msica, o que ocasiona a perda de pontos. Para

85

Entrevista com Osvaldinho da Cuca. Data: 21/01/2012.

173

174

ele, isso alimenta o ego da comunidade, mas no se traduz em vitria na avenida, nem
em sambas elaborados:

A questo de voc exaltar a escola na primeira parte do samba. tudo balela!


No precisa. O Silas de Oliveira dificilmente falava da escola, nominalmente.
Eu ganhei o maior carnaval da Vai-Vai, Amado Jorge. Quando estava
fazendo o samba meu parceiro meu falou:
Mas no tem Saracura? No tem Vai-Vai e no tem Bexiga? Eu disse a ele:
No tem Bixiga, mas tem o mais importante, todo o enredo. Quando
anuncia l no fala assim. Agora a escola de samba Vai-Vai. Tem o meu
pavilho escrito Vai-Vai, voc quer o que mais? No tem o abre-alas escrito
Vai-Vai?
Mas e a comunidade ns no vamos ganhar. Mas o samba comea baixo?
Vamos ganhar sim. Vai l escutar os sambas do Silas de Oliveira. Ele
comea o samba dele com Vejam essa maravilha de cenrio um episdio
relicrio e vai subindo? Eu comecei assim:
Bahia o seu nome principia/Com o canto e a magia/Que o negro sopra pelo
ar/Cantando sua terra sua gente/Seu passado presente. Resultado. Ganhei o
carnaval e fui tricampeo com o Amado Jorge. Neste ano a Mocidade vem
com o mesmo tema, Jorge Amado e com a tenda dos milagres, daquele heri,
Pedro Arcanjo. (...)
Ento no precisa essa exaltao toda. Botar uma linha ou duas eu ponho. Na
maioria das vezes eu ponho, uma questo de satisfazer o ego da
comunidade, mas no tem necessidade. Certas coisas so vcios. No
regulamento e no tradio. Veja essa gritaria toda. O Jamelo no permitia
na Mangueira que viesse caco. Caco quando quebra telha pra l. O velho
dizia:
Aqui no tem caco, no, aqui tem samba!
E verdade mesmo tem que cantar. Voc pega a gravao voc no consegue
entender o samba com tanta gritaria em cima. , meu presidente. Que meu
presidente. , minha ala de baianas. Que ala de baianas. Deixa a ala de
baianas cantar que o papel dela esse. Todo ano meu presidente. Presidente
entra e sai todo ano. s vezes uma porcaria esse presidente, afundou a
escola e o cara t puxando o saco l na gravao. No tem que estar gritando
no. Voc tem que apresentar o samba-enredo, mostrando a letra e a msica.
A o cara sai gritando em cima. moda agora. Chega p! Samba msica
no gritaria! Outra coisa que me deixa nervoso. Soltam fogos pra caramba.
No meu tempo fogos era na festa junina. Voc t cantando e pum, pum, pum.
Aquela barulheira, ningum escuta o samba. 86

86

Entrevista com Osvaldinho da Cuca. Data: 21/01/2012.

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Para Maria Apparecida Urbano, esta mudana no carter dos sambas-enredos


decorrente da prpria expanso dos desfiles das escolas de samba e da sua insero na
grande mdia. Por conta disso necessrio que as escolas se adequem, produzindo
canes que representem o cotidiano ou os valores comuns sociedade para a qual est
sendo apresentado o samba-enredo (URBANO; NABHAN; SANTOS, 1987, p. 51).
Alm disso, podemos perceber que a preocupao dos compositores em incluir em suas
canes, palavras genricas como sabedoria, vida, poesia, amor, beleza, felicidade,
alegria, etc., como estratgia para a composio de diversos sambas-enredos para serem
disputados em diversas escolas em um curto espao de tempo. Seria uma tcnica
estabelecida para a realizao de vrias canes, cada uma com tema diferente, o que
demandaria tempo de elaborao e estudo para se entender a mensagem do enredo. Para
facilitar esta tarefa, vrios compositores com manha de avenida se juntam e realizam
a tarefa.
Este outro fenmeno recorrente nos sambas-enredo realizados em So Paulo a
partir da dcada de 1990 e visto, por exemplo, no Peguei um ita no norte, do
Salgueiro, a presena de vrios compositores na autoria do samba. Alguns chegam a
contar com dez nomes. Os sambas so feitos por dez pessoas? A resposta no. O que
acontece que as escolas abriram a disputa de samba-enredo para compositores que no
so da escola. Isso gerou a formao de grupos de compositores que inscrevem msicas
em quase todas as escolas, para aumentar a chance de vitria. Normalmente os
compositores realizam sozinhos ou em dupla um samba, somado a outros sambas de
outras pessoas do grupo que so inscritos com o nome de todos em uma espcie de
consrcio, nas eliminatrias promovidas pelas escolas. Como a qualidade dos sambas
apresentados no apresenta grande variao, j que os mesmos compositores concorrem
em vrias escolas, outras questes como a qualidade da gravao, a preferncia da
torcida presente na quadra da escola ou mesmo o desempenho ao vivo do intrprete
podem influenciar no resultado.
Por isso h os chamados parceiros investidores que no compem os sambas,
mas tambm assinam a parceria, porque investem financeiramente neles. Pagam parte
dos custos de registro e gravao em estdio, alm do cach de intrpretes que vo
175

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defender o samba nas eliminatrias, j que um bom intrprete aumenta as chances de


a cano cair nas graas dos jurados. H casos de investidores que patrocinam bebidas
e nibus para os integrantes irem s quadras das escolas torcerem por seus sambas.
Obviamente, em caso de vitria, parte do dinheiro ganho com a gravao do disco,
direitos autorais e de exibio no desfile pela emissora de televiso vai para o investidor
recuperar seu capital e ter algum lucro.
Esta uma crena j enraizada entre os prprios compositores que j fazem
sambas funcionais, ou seja, que atendem a esses parmetros do grupo de
compositores e dos sambistas investidores, e quem no se adapta tem poucas chances
de vitria:

H uns dois anos, na Vai-Vai, infelizmente, foi a mesma coisa. Perdi o


samba-enredo. O carnavalesco era o Chico Espinosa. Esse ano ele t l na
Vila Maria. Ele queria meu samba. Tanto que ele ficou um ms afastado do
Vai-Vai, brabo. Porque quando ele viu meu samba ele mudou at o enredo.
Ele inspirou-se no meu samba pra fazer a escola de asas. Quando ele me viu,
perguntou:
De onde voc tirou essa ideia do anjo?
Eu falei: Voc no pesquisou direito.
Eu fui no enredo l na Vila Prudente. Conheo a orquestra Baccarelli, o
smbolo da orquestra um anjo. No podia falar Baccarelli, porque seria
propaganda. Ento pus o seguinte verso:
Um anjo que desceu l na favela
E traz pra passarela um lindo sonho a realizar.
A proposta do enredo que msica e a arte acabavam com a misria. V se
algum falou? Eu falei. A o que o Chico Espinosa fez e botou o Vai-Vai toda
alada do comeo ao fim. Alegoria, ala, destaque, tudo com asa. Porque eu
coloquei no meu samba, do anjo que desceu l na favela. Nenhum samba,
nem mesmo o que ganhou no fala. Fazer o qu se os caras tm muito
dinheiro. Pra ganhar samba-enredo tem que investir pesado. O samba que
ganhou de mim fez uma coisa indita na histria da disputa de samba-enredo.
Nem no Rio nem em So Paulo. Puseram trs puxadores, o Wander Pires,
Tinga e outro, os melhores do Rio pra defender. Voc costuma ver,
normalmente um puxador e seis apoios. Agora pegaram os trs melhores do
Rio, pagaram onze nibus da Helipolis e do Jardim Elba. Uma torcida forte
pra caramba! E puseram o som e iluminao pra eles. Essas coisas eu no
posso nem falar!87

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Entrevista com Osvaldinho da Cuca. Data: 21/01/2012.

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Outro motivo para este tecnicismo, que gera no apenas uma padronizao
sonora, mas tambm uma padronizao visual, tornando os desfiles cada vez mais
semelhantes, que as escolas de samba optam por levar para a avenida sambas que tm
mais chances de tirar nota 10, pois os jurados do nota aos sambas-enredo sem um
maior envolvimento afetivo, sem uma avaliao mais apurada da qual uma obra artstica
necessita, ou do nota mxima para sambas horrveis do ponto de vista esttico-potico,
mas que cumprem estritamente sua funo dentro do quesito.
Grande parte destes sambas-enredo produzidos aps o incio dos desfiles
realizados no Sambdromo do Anhembi efmera. Seja do Grupo Especial, Grupo de
Acesso ou Grupo I. Alguns meses depois, ou mesmo ao final do desfile, eles so
esquecidos por todos, no se cristalizando na memria da msica popular brasileira.
Muitos so patrocinados por empresas, cidades ou Estados que desejam utilizar os
desfiles para divulgarem suas marcas ou caractersticas de suas localidades para todo o
Brasil. Tambm h uma grande concentrao de enredos abstratos, como mundo da
imaginao, ou reflexivos, tornando as letras cada vez mais previsveis e cheias de
lugares-comuns.
As decises das diretorias das escolas de samba de buscar enredos patrocinveis
para conseguir o montante de dinheiro necessrio para pr a escola na avenida (e que
no pouco, na casa dos milhes de reais!) faz com que sambistas tradicionais das
Velhas Guardas se desencantem com esta situao de mercantilizao do carnaval e se
ressintam, pois no conseguem enxergar-se como integrantes do atual mundo do
carnaval, uma vez que, inicialmente, a escola de samba se apresentava de forma simples
e espontnea, e hoje um verdadeiro produto da indstria cultural e televisiva. Prova
disso so as entrevistas realizadas durante a realizao desta dissertao. Essa avaliao
unnime por parte de todos os entrevistados. Alguns tm opinies crticas mais fortes,
como o caso de Marcos dos Santos e Mestre Gabi, outros procuram tentar quebrar
essa lgica, o que o caso de Mestre Divino, persistindo com sua escola de samba, a
Imperial, realizada de modo artesanal, com trabalho familiar e que traz uma batucada
com a presena de diversas crianas para tentar manter em atividade instrumentos em

177

178

desuso pelas escolas tradicionais, preocupadas apenas em tirar nota dez e serem
campes ao final do desfile.
Na conversa entre Paulinho da Viola e Elton Medeiros, em entrevista a Fernando
Faro, em 1990, ntido o tom saudosista com que falam das escolas de samba:

PAULINHO: Se voc fosse o presidente de uma escola de samba hoje, o que


voc faria?
ELTON: Eu no seria.
PAULINHO: Mas vamos supor que voc assumiu a presidncia.
ELTON: De jeito nenhum.
PAULINHO: Com o apoio de toda a comunidade.
ELTON: Paulo h uma incompatibilidade de meu temperamento como
fazedor de samba com o clima que existe hoje l. O perfil da escola de samba
no condiz com o meu perfil de sambista. Voc sabe que hoje os novos ricos
tomaram conta da escola de samba, j comea mal, porque eles ditam as
regras, eles so donos das escolas de samba, eles no so presidentes, tm um
ttulo de presidente de honra, mas isso na realidade quer dizer que eles so
donos da escola de samba, mandam e desmandam, pagam para um sambista
varrer a quadra. Ento, um bom tamborinista s vezes est varrendo a quadra,
est trabalhando como garom, enquanto um camarada que no sabe bater
tamborim est na bateria, outro que no sabe fazer um samba est entrando
na parceria de um samba. Eu sei que voc tambm no seria presidente de
uma escola dentro desse contexto (BOTEZELLI; PELO; PEREIRA, 2000.
Volume 3: 144).

Alguns sambas-enredo do final do perodo analisado conseguiram virar exceo.


Apesar de serem realizados sob a frmula da estrutura definida por Mussa e Simas
como funcional, eles possuem letras belssimas que realmente empolgam os folies e
caem na boca do povo, sendo cantados at os dias de hoje, no apenas nas quadras das
escolas, mas em vrios espaos destinados ao samba na cidade. Esses so os casos dos
sambas-enredo da escola Gavies da Fiel de 1995, O que bom para sempre, de
autoria de Grego. Ou do Vai-Vai do ano seguinte, A Rainha, a Noite tudo transforma,
de Wagner Santos e Borro, ambos campees.
Para que a festa carnavalesca continue crescendo do ponto de vista da qualidade
artstica, fundamental que os artistas consigam inovar e se desprender deste atual

178

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modelo que transforma as apresentaes das escolas em um espetculo visual, sonoro e


performtico, repetitivo e padronizado.

179

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2.4 A batucada

Com a adoo do samba executado pelas baterias, a marcha-sambada foi aos


poucos se extinguindo, sendo hoje at difcil de ser reconstituda, com preciso na
forma como era tocada. Sabe-se que tinha uma forte influncia do bumbo, com um som
grave, reminiscncia do samba de batuque ou do samba rural praticado nas fazendas de
caf do interior do Estado de So Paulo, em instrumentos feitos com troncos de rvore
cobertos por couro de animal.
Algumas gravaes de poca, como alguns sambas gravados pela escola de
samba Unidos do Peruche, no final dos anos 1960, com a presena de instrumentos de
sopro e metais, podem nos indicar um caminho. Essas mudanas promoveram a
extino definitiva dos cordes carnavalescos e tambm dos instrumentos de sopro no
instrumental das escolas, que passaram ento a desfilar apenas com percusso.
Osvaldinho da Cuca um dos que evidenciam este processo de mudanas e
perda de uma parte da identidade instrumental dos cordes paulistanos, que no foram
incorporados pelas escolas de samba:

Tinha trombone, clarins, tinha muitos clarins, todas essas coisas bonitas se
perderam e virou tudo escola de samba de padro carioca. Por exemplo,
assim como no Sul, aqui em So Paulo a batida do surdo era diferente. No
tinha nada igual ao Rio, absolutamente nada. (...) No falava bateria era
batuque. Bateria era Rio de Janeiro. Aqui era batuque. Na frente do batuque
tinha uma rumbera. Sacudindo aquele vestido encarnado, rodando no cho.
(...) A percusso do cordo era bem pesada. Alm desses instrumentos de
corda e de sopro que eu falei tinha surdo e bumbo, muito bumbo de banda.
No confundir com zabumba, porque muito historiador pe zabumba.
Zabumba nordestino fininho, um bumbo magro, e o bumbo aquele
gordo mesmo de banda, aquele que nem o dos fuzileiros navais. Bum, bum,
bate de um lado e do outro. Ento em So Paulo tinha muito bumbo e a
batucada era bem diferente. Como tinha muito harmnico, o bumbo um
grave pesado, e ele tem muito harmnico. O som assim: - Bum! O
harmnico fica retumbante. O importante dele era a funo de batida, no
repique. Quem repicava era um surdinho pequeno. Era um samba socado que
o carioca dava risada da gente. Falava que era um samba duro. Ento era
assim, o bumbo ele vinha sempre dois ou quatro atrs, depende do cordo. 88

88

Entrevista de Osvaldinho da Cuca: Data: 21/01/2012.

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181

Com isso, as caractersticas oriundas do samba-de-bumbo e da marcha-sambada


foram se extinguindo, pois, apenas com a percusso, a batida das escolas de So
Paulo foi se aproximando cada vez mais das baterias das escolas do Rio de Janeiro89.
O responsvel pela parte instrumental dos cordes carnavalescos o chamado de
apitador. Era ele quem ensaiava os ritmistas e msicos que preenchiam a parte
musical dos desfiles. Eram chamados de apitadores pelo fato de realizarem a regncia
com o auxlio de um apito. Os apitadores tinham que bolar os criativos breques, j que a
qualidade deles era fundamental para o renome do apitador e do cordo. Os apitos da
poca eram maiores e mais graves do que os que se usam hoje nas escolas de samba, por
isso permitiam que se atingisse um extenso leque de notas. Mas para que essas notas
sassem afinadas, os apitadores precisavam ter enorme habilidade com os dedos e com
os lbios (CUCA; DOMINGUES, 2009, p. 48 e 49). Osvaldinho da Cuca, ainda
adolescente, foi um dos apitadores do cordo Garotos do Tucuruvi. O cordo Vai-Vai
possuiu famosos apitadores, como Walter Gomes de Oliveira, o PatoNgua e Mestre
Feijoada, seu ltimo apitador.
PatoNgua, mtico malandro da primeira metade do sculo XX na cidade de
So Paulo, comandou diversas agremiaes da cidade, sendo campeo em todas elas.
Alm do Vai-Vai, passou por Acadmicos de Santa Isabel, que depois viria a ser
Acadmicos do Tatuap, Unidos do Peruche e tambm um grupo carnavalesco ligado ao
clube do Corinthians, do qual era funcionrio. Foi assassinado no municpio de Suzano
em 1969. Geraldo Filme, grande admirador do trabalho de Pato frente dos cordes e
que o homenageou com um samba intitulado Silncio no Bexiga, comenta:

Pato Ngua (...) conseguia dirigir uma bateria com perfeio, instrumento,
afinao, aquelas coisas todas. (...) Me parece que ele era roupeiro do
Corinthians, ele e o Caldeiro, irmo dele, qualquer coisa assim, mas tinha
ligao direta com o clube. Como bom sambista, ele tinha aquele monte de
89

Carlos Sandroni identifica a batida aplicada execuo do samba no violo como um modelo
rtmico de acompanhamento, suscetvel de certo grau de variao, utilizado quando a cano a ser
acompanhada pertence ao gnero samba. In: SANDRONI, Carlos. Feitio decente. Transformaes do
samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 45.

181

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comadre, ento tinha que fazer as visitas. Um belo dia, ele saiu para fazer a
visita na casa das comadrinhas e tomou um caf da manh, parece que era dia
de pagamento, alugou um txi e foi embora, passa ali, toma um caf, passa l,
bate um papo. Foi parar em Suzano. Chegou em Suzano, o motorista ficou
meio cabreiro. A ltima coisa que se sabe que o motorista falou: Tem um
cidado que est no carro desde manh. Passaram a mo no rapaz e levaram
pra dentro da delegacia. Depois disso a notcia que chegou para ns foi que o
rapaz estava morto. Encontraram morto numa lagoa em Suzano. Trouxeram o
corpo pra So Paulo, o Wadi Helu que comandou fez todo o enterro. Estava
como enfarto. De susto no morreu, porque ele era bravo, afogado tambm
no, porque chamavam de Pato Ngua porque nadava bem demais. O
motorista do carro funerrio falou pra gente, o Carlo do Peruche, eu e a
falecida Cininha: D uma olhada na japona dele, ela est com uns furos
meio estranhos. Quando o Carlo pegou a japona, o dedo dele j entrou num
buraco. Fomos tirar a roupa dele pra ver e no aparecia marca de furo. A
explicaram pra gente que, se for baioneta ou punhal, na gua fecha. A passou
e a nica coisa que restou foi a homenagem a ele atravs de um samba
(BOTEZELLI, PELO e PEREIRA, 2000. Volume 2:80).

Dona China, prima de Pato Ngua sobre a estranha morte relembrou:

Quando eu comecei no Vai-Vai, o mestre de bateria era o Feijoada, depois


entrou o Tadeu. Antes deles teve um primo meu, o PatoNgua. Quando ns
soubemos que ele tinha morrido, j tinha passado um ms ou dois, morreu l
em Suzano, a gente nem sabe como foi direito. Falaram que mataram ele,
mas at hoje a gente no sabe. Cada um conta uma histria diferente 90.

Os instrumentos musicais dos cordes carnavalescos j foram descritos no incio


do primeiro captulo. A bateria da escola de samba composta apenas por instrumentos
de percusso organizados em naipes de timbres variados: agudssimos, agudos, mdios
e graves dos grupos dos idiofones e dos membranofones.91 So instrumentos
obrigatrios em uma bateria de escola de samba e que so julgados durante os desfiles:
surdo (naipe grave), repinique (naipe agudo), caixa (naipe agudo), cuca (naipe agudo),
tamborim (naipe agudssimo), chocalho (naipe agudssimo). atravs destes
instrumentos que os jurados tm referncia para a anlise rtmica da bateria e o
intrprete pauta seu canto. O andamento de uma bateria analisado atravs da pulsao
do surdo e de seus complementos descritos acima. Como atesta o Manual do Avaliador
90

Entrevista de Dona China do Vai-Vai. Data: 09/07/2011.

91

Segundo a classificao de Hornbostel & Sachs.

182

183

das Escolas de Samba produzido pela UESP92, no que diz respeito ao ritmo, o
funcionamento de uma bateria assemelha-se a uma orquestra; devendo manter
inaltervel o sincronismo de sons e o ritmo emitido pelos diversos instrumentos, cuja
distribuio dentro do conjunto fica a critrio de cada agremiao.
Os idiofones so os instrumentos cujos materiais soam como os sinos, gongos,
chocalhos e etc. Nas baterias de uma escola de samba, alm dos instrumentos
obrigatrios, comum estar presentes outros instrumentos idiofnicos: agog, prato e
reco-reco. O prato um instrumento que hoje est em desuso, com pouca presena,
enquanto os outros (agog, reco-reco e chocalhos) continuam em destaque
(MENISTREL, 2009, p. 89).
Os tambores, cuja percusso dada por uma pele de animal ou sinttica so
chamados de membranofones. Na bateria de uma escola de samba esto presentes os
seguintes membranofones: cuca, tamborim, pandeiro, repinique, caixa, surdo e timbau;
eles so tocados com diferentes tipos de baquetas ou com as mos, a exceo da cuca,
vibrada pela ao de um pano umedecido esfregado por um arame (MENISTREL, 2009,
p.90).
Os surdos apresentam normalmente trs variaes: a primeira de marcao, a
segunda de resposta e a terceira de corte. O surdo de primeira , em geral, o mais
grave dos trs. Tem normalmente de 24 a 29 polegadas, e o alicerce rtmico da
batucada, pois executado no segundo tempo do compasso binrio (tempo forte do
samba). O surdo de segunda um pouco menor, tem em geral de 22 a 26 polegadas, e
responde a batida do surdo de primeira, tocando no primeiro tempo do compasso. O
surdo de terceira mede entre 16 e 20 polegadas e o mais agudo dos trs sendo
executado junto com o surdo de primeira, porm executando figuras sincopadas (a
marca rtmica do samba) (MENISTREL, 2009, p.101).
A escola de samba Nen de Vila Matilde ao lado do Vai-Vai destacou-se nos
anos 1960 e 1970 por sua bateria, sendo a escola que introduziu alguns dos instrumentos
92

Segundo o Manual do Jurado produzido pela Unio das Escolas de Samba Paulistanas (UESP) em
2007 com os critrios e pontos de balizamento vigentes.

183

184

agudos e agudssimos de percusso nas escolas de So Paulo. Estas tradicionalmente se


caracterizam por uma afinao mais grave e um andamento mais lento. Esta inovao se
deu a partir do dilogo e intercmbio feito com baterias de escolas do Rio de Janeiro,
como a escola de samba Mangueira e Mocidade Independente de Padre Miguel, e, com
essa nova formao instrumental, a escola fazia uma batucada cheia de breques

93

que empolgavam a avenida. As escolas que surgiram neste contexto tambm buscaram
adotar esse modelo rtmico, marcando a festa carnavalesca a partir da. Os instrumentos
leves de percusso so: tamborim, repique, ganz, agog, cuca que dialogam entre si
e com o surdo de marcao.
Nove anos antes da oficializao, em 1959, a bateria da Nen adicionava aos
seus desfiles o ritmo e as batidas cariocas, aprendidas pelo prprio Nen em visita ao
morro da Mangueira e posteriormente ensinados por mais de dois anos, aos ritmistas
paulistanos. Essa influncia carioca provocou diversas mudanas dentro do instrumental
da Nen. Inicialmente, os ritmistas tiveram dificuldade em entender a batida carioca,
mais leve e mais rpida, pois estavam acostumados a uma batida mais pesada e a uma
dana mais lenta dos cordes, originrias do jongo e das danas religiosas do interior do
Estado trazida pelos negros que imigraram para a capital, ao longo do sculo XX
(SIMSON, 2007, p. 218).
Aps a oficializao, o ento diretor de bateria da Vila Matilde, Mestre Divino,
aperfeioou essas mudanas e introduziu outras dentro da bateria da escola da zona
Leste:

Mudamos coisas simples como a altura e largura dos instrumentos, a afinao


caixa e tarol combinando com o corte, atrelado combinao ou com surdo e
bumbo, bumbo com bumbo, surdo com surdo ou surdo com bumbo invertido
cada um, resultando em uma afinao. Mas o padro, obtivemos das caixas e
taris e no corte, assim, para um grave e agudo, um corte. Montamos uma
linha de surdo para fazer a primeira e uma linha de bumbo para dar a
resposta. No caso da primeira tudo bumbo, surdo s corte e centralizador.
Ento temos: primeira e segunda que so de bumbos e surdos (terceira e
centralizador), onde temos que ter surdo s na terceira, o corte, e na quarta
93

Breque ou Bossa uma parada repentina ou inesperada, executada quando a percusso est no seu
ponto mais animado, permitindo floreios rtmicos e coreogrficos que empolguem a assistncia.

184

185
que ser o contra tempo - combinao. Atentamo-nos ao uso de agogs, pois
so quatro campanas: d-r-mi-f, usando-os com moderao, porque dentro
de uma batucada no apresenta tanta utilidade e efeito e, se no bem
utilizado, no momento exato atrapalhar no andamento do conjunto no ritmo.
Costumava tocar os instrumentos com os batuqueiros, individualmente,
fazendo-os cantar porque o batuqueiro que canta no atravessa94.

Como os instrumentos de corda e de sopro caram, a bateria ficou sendo a


referncia musical da escola e chamada por muitos como corao da escola. Para
Mestre Divino, o nome deveria ser a batucada de uma escola e no bateria, pois
bateria seria apenas uma juno de poucos instrumentos percussivos, montada como
instrumento individual, a bateria de conjunto, tocada por apenas um msico, enquanto
a batucada pode ter centenas de ritmistas. Para ele, a bateria tem padro e a batucada
tem estilo:
A bateria tem padro e a batucada tem estilo. O que eles chamam de bateria
de escola de samba tem apenas nove instrumentos a batucada dezenove.
Bateria tem surdo de primeira, segunda e terceira. Repinique e caixa, certo?
Tamborim, agog, chocalho e cuca. O que eu fao batucada e tem surdo de
primeira, segunda, terceira, quarta e quinta. O bumbo do tamanho certo que
faz a marcao junto com as primeiras. E d sempre dois ou quatro
compassos. Tem que ser par, no pode ser mpar. Essa a quinta e combina
em resposta com a quarta. Combinao, por isso tem a quarta e a quinta, na
batucada. A na batucada voc tem caixa de guerra, caixa, tarol e tarolzinho.
Nove. Repinique e malacacheta. Onze. Tamborim, agog, chocalho, recoreco e prato, certo? Ai voc tem, a cuca e pra fechar o ganz. Esses so os
instrumentos que compe uma batucada (...)Bateria pra mim de
eletricidade. Bateria de conjunto! O instrumento bateria assim, com caixa,
prato. Pega uma bateria. O que a negrada faz batucada. Vem do batuque
feito antes pelos negros que trouxeram a percusso pra c, n? 95

O surdo de quarta o mais agudo de todos e toca uma variao da batida do


surdo de terceira, completando-a. J o surdo de quinta o mais grave de todos e toca
uma variao do surdo de primeira, alternando a marcao em contratempos de quatro
ou oito compassos (MENISTREL, 2009, p. 205).
Outro instrumento tradicional dos cordes que praticamente desapareceu nos
anos 1980 e 1990 e que foi retomado como inovao nos anos 2000 a frigideira. Na
94

Depoimento de mestre Divino ao site do Camisa Verde e Branco. Disponvel em:


<www.camisaverdebranco.net>. Acesso em 26/09/2011.
95
Entrevista com Mestre Divino. Data: 15/10/2011.

185

186

verdade um utenslio domstico utilizado como instrumento percussivo nos cordes


devido ao seu timbre metlico agudssimo:

Tinha frigideira. Tocava-se muita frigideira. Sabe o instrumento que acabou


com a frigideira? O tamborim, porque tudo o que o tamborim faz, era a
frigideira que fazia. Frigideira era tocada virando. Igual ao tamborim hoje.
Alm de So Paulo no carnaval de Santos tinha muita frigideira. Santos era
campe. Brasil de Santos, X9, escolas muito boas. Os tamborins que tiraram
as frigideiras. Entrou o tamborim e caiu a frigideira. Os ltimos desfiles com
frigideira acho que foi em 1974, 1975 96.

No discurso de Mestre Divino podemos perceber tambm uma integrao e troca


cultural entre as escolas de samba da capital paulista com as escolas de samba da cidade
de Santos, algumas at mais antigas que as de So Paulo. Dona China tambm relembra
que desfilou vrias vezes ostentando o pavilho de escolas de samba da cidade
litornea: Tambm desfilei na escola Imprio do Samba de Santos, todo ano eles
vinham me buscar. Eu tenho as medalhas que eu vou mostrar, de 1970 a 1974. Ganhei
elas como melhor porta-bandeira de Santos

97

. As escolas de Santos possuam uma

maior influncia do Rio de Janeiro, pois o porto de Santos contava com muitos
estivadores que vinham da ento capital federal, e vice-versa, muitos saam de Santos ia
trabalhar no porto do Rio e depois retornava, com novas ideias que haviam aprendido
com as escolas de samba cariocas.
Mestre Divino ressalta que foram abolidos das baterias das escolas de samba
estes surdos de quarta e de quinta tradicionais do samba paulista e os quais ele fez
questo de manter frente da Nen de Vila Matilde. A sada desses surdos est
relacionada a uma das mais significativas perdas das escolas de samba da capital
paulista: a sua identidade sonora. Para ele, qualquer pessoa com um mnimo de
conhecimento musical conseguiria distinguir e identificar facilmente a bateria das
escolas, pois cada uma possua sua prpria identidade, timbre e sonoridade. Isso teria
ocorrido por tentar apenas copiar o modelo das baterias das escolas cariocas. Ele prprio
96
97

Entrevista com Mestre Divino. Data: 15/10/2011.


Entrevista com Dona China: Data: 09/07/2011.

186

187

utilizou diversos padres rtmicos que j eram utilizados em escolas de samba do Rio de
Janeiro, em especial da Mocidade Independente de Padre Miguel, da qual foi ritmista. O
mestre de bateria analisa que, ao utilizar esses recursos, as baterias regidas por ele no
perderam sua identidade e cadncia, pelo contrrio, preservam uma sonoridade que as
prprias escolas cariocas j no tm.

Eu dou umas paradas na avenida. No Rio vrias escolas fazem paradas. Fao
aquilo que a Padre Miguel fazia. Hoje no consegue fazer, cara! Parar e
voltar sem chamar. S no sincronismo. Quando eu via a Padre Miguel fazer
isso era bonito pra caramba! Tem que todo mundo parar junto e voltar junto
pra d certo. no compasso certo. O que a gente faz aqui na Imperial, os
caras no conseguem mais fazer. Eu fico puto, por isso... Poxa vida! Por isso
que eu falo que a banana comeu o macaco; a linguia colocou o cachorro pra
corre. Gozado, n? 98

Srgio Cabral confirma a fala de Divino: As baterias tiveram que se adaptar


correria da msica e sem condies de manterem as antigas caractersticas de cadncia,
timbre etc., ficaram todas muito parecidas, como se houvesse uma s bateria para todas
as escolas (CABRAL, 2011, p. 259).
Outro fator que tambm contribuiu para a perda da qualidade sonora das baterias
a diminuio do nmero de diferentes instrumentos dentro das mesmas. Houve um
aumento no nmero de ritmistas, dificultando o trabalho do mestre de bateria,
ocasionando uma diminuio na quantidade de instrumentos diferentes. Com medo de
perder pontos, as escolas optam por levar apenas os instrumentos obrigatrios para a
concesso de notas, utilizando poucos, ou quase nenhum instrumento musical diferente.
Diversos instrumentos foram praticamente esquecidos como: frigideira, tarol,
malacacheta, etc.
Apesar de estes instrumentos estarem em desuso na maior parte das escolas de
samba, eles permanecem na Imperial, fundada por Mestre Divino em 1983 e que
mantm os 19 instrumentos da batucada em sua formao musical.

98

Entrevista com Mestre Divino. Data: 15/10/2011.

187

188

III A CRIAO DO SAMBDORMO E AS


TRANSMISSES TELEVISIVAS

Este captulo analisa as intensas modificaes ocorridas a partir de 1991, ano em


que os desfiles das principais escolas da cidade de So Paulo deixaram o espao pblico
da rua e passaram a ser realizados no Sambdromo, nome como ficou popularmente
conhecida a passarela fixa construda para abrigar os desfiles. Trata-se de um captulo
de fechamento que pretendeu interpretar as decorrncias do processo de oficializao do
carnaval paulista.
O jornalista carioca Srgio Cabral, em seu livro Escolas de Samba do Rio de
Janeiro (2011) questiona se o uso do sufixo grego dromo aplicado ao local, j que o
mesmo designa local de corridas, como autdromo. Mas ele mesmo responde, com
ironia: Mas o desfile das escolas no se transformara numa corrida de samba, depois
que elas se agigantaram, e mesmo assim continuaram obrigadas a desfilar no tempo
estabelecido pelo regulamento? (CABRAL, 2011, p. 243).
Procuramos ao longo do captulo interpretar a histria do Sambdromo a partir
da documentao da empresa Anhembi Turismo, responsvel pela administrao e
gesto do local, onde encontramos um conjunto de documento sobre as negociaes
entre os agentes envolvidos na construo de uma passarela fixa de desfiles cujo
projeto foi doado por Oscar Niemeyer cidade de So Paulo.

Nessa direo foi

possvel identificar mudanas nas demandas dos sambistas em relao ao poder pblico
e nas relaes com a indstria cultural.
A questo central a ser debatida : o que significou a conquista de um local fixo
para os desfiles? Por um lado, o Sambdromo garantiu a realizao dos desfiles em
situao de competio por muitos anos, por outro expressou a perda por outro
representou a perda do espao pblico e aberto para os desfiles. Como os sambistas e
agentes sociais envolvidos nesse processo compreenderam essas mudanas e atuaram
sobre elas? A construo deste espao fechado converge, em muitos sentidos, com a
188

189

estrutura da maioria das escolas de samba do Grupo Especial a partir dos anos 1990,
administrada sob uma lgica empresarial, com vrias fontes de financiamento. Ao
mesmo tempo contrria a dinmica vivida pela esmagadora maioria das escolas de samba
da cidade, isto , as escolas menores dos outros grupos ligados UESP (I, II, III, IV) que
apresentam caractersticas mais prprias dos perodos anteriores. Essas escolas no tm nem
a visibilidade nem os recursos das grandes escolas dependendo ainda fundamentalmente do
trabalho voluntrio e artesanal, concentrado, na maior parte das vezes, na casa dos prprios
componentes onde produzem e armazenam os instrumentos, fantasias, adereos, alegorias e
realizam a maioria de suas atividades ao longo do ano.
A Prefeitura de So Paulo procurou modernizar a administrao e os rgos
responsveis pela organizao dos desfiles a partir de 1977. Nesse ano, a coordenao
da Secretaria de Turismo e Fomento criou um departamento exclusivo para o carnaval,
o Departamento de Coordenao Organizadora de Carnaval (COC), subordinado
Paulistur, rgo da Secretaria de Turismo. Com isso, a pista de desfiles tambm mudou.
Com as escolas trazendo um nmero cada vez maior de integrantes, alegorias cada vez
maiores e mais complexas, decidiu-se tirar os desfiles do espao descentralizado do
centro da cidade (Anhangaba, Rua Direita, Avenida So Joo) e centraliz-lo em uma
regio da cidade. O local escolhido foi a Avenida Tiradentes, na zona Norte da capital.
A escolha agradou aos sambistas, pois o lugar era amplo e de fcil acesso,
permitindo s escolas levar suas alegorias e tambm porque a avenida tem grande
comprimento. Com isso, era possvel para as escolas montarem todas as suas alas em
sequncia antes da apresentao. Para acomodar o pblico que ia assistir aos desfiles,
arquibancadas tubulares de metal eram montadas, cujo acesso era dado pela venda de
ingressos. Mesmo aqueles que no tinham condies financeiras de adquirir os
ingressos poderiam assistir aos desfiles pelas brechas e tambm era possvel
acompanhar a disperso das escolas ao final do desfile99
A partir de 1983, a organizao do carnaval ficou tambm a cargo dos sambistas
representados pela UESP (Unio das Escolas de Samba Paulistanas) e, posteriormente,
pela Liga (Liga Independente das Escolas de Samba de So Paulo). Este crescimento e
99

Entrevista com lvaro Casado. Data: 01/05/2012.

189

190

maior profissionalismo do carnaval de So Paulo, envolvendo um nmero cada vez


maior de participantes e espectadores, chamou a ateno das emissoras de televiso, que
ento passaram a comprar os direitos de transmitir o desfile (AZEVEDO, 2010, p.100).
Durante o governo do prefeito Jnio Quadros (1986-1989) comearam as
primeiras discusses dentro das escolas de samba e na Prefeitura de So Paulo para a
construo de uma Passarela do Samba nos mesmos moldes do Rio de Janeiro, com um
projeto do arquiteto Oscar Niemeyer. O prefeito havia chamado a ateno em diversas
entrevistas que pretendia construir um desfildromo na cidade. No entanto, por conta de
diversas restries oramentrias e da falta de clareza poltica, o projeto no foi em frente
(BELO, 2008, p.70).
A discusso durante a construo do Sambdromo e o seu posterior uso geram
diversas opinies entre os sambistas. Lideranas ligadas Liga e UESP se
entusiasmaram com um local fixo para a realizao dos desfiles como havia sido feito no
Rio de Janeiro. Para elas era o coroamento das boas relaes entre as escolas de samba e o
poder pblico. Por conta da fragmentao e disputa entre as entidades, os sambistas da
Liga tiveram um papel mais atuante na elaborao e discusso do projeto com a
Prefeitura. Como o espao seria construdo para abrigar os desfiles das grandes escolas,
nada mais lgico que a entidade que as representasse estivesse nas negociaes. Uma
parte da direo da Liga, politicamente mais conservadora e de direita, liderada por
Eduardo Baslio, da Rosas de Ouro, ligado ao janismo e ao malufismo, no ficou satisfeita
com os resultados da eleio para a Prefeitura de So Paulo, em 1988, na qual Luiza
Erundina, do PT, primeira mulher eleita prefeita da cidade, venceu o ex-governador Paulo
Maluf.
A prefeita anunciou a inteno da construo do Sambdromo, logo no discurso
de abertura do carnaval de 1989, quando ela estava h pouco mais de um ms no cargo. A
promessa poderia ter ficado apenas no palanque, pois no era usual o prefeito realizar um
discurso antes da abertura oficial do carnaval da cidade.
A prefeita Luiza Erundina anunciou que pretende construir em So
Paulo um sambdromo, local exclusivo para desfiles de escola de
samba, semelhante ao Rio de Janeiro. A declarao foi feita no sbado
noite, pouco depois de ter aberto o Carnaval paulistano com um

190

191
discurso prtica costumeira em festas populares de pequenas cidades
do interior do pas, mas indito em So Paulo.
Erundina chegou av. Tiradentes pouco antes das 20h. Logo aps o
discurso, caminhou pela avenida a passos apressados. No rpido
desfile pela avenida, acompanhada de seguranas pessoais, ouviu
aplausos misturados a vaias e gritos de Maluf. De acordo com a
prefeita, o sambdromo paulista ainda uma ideia em estudos, e o
local ainda no foi definido: Pode ser na Av. Tiradentes (centro) ou
no autdromo de Interlagos (zona sul).
(FOLHA DE SO PAULO, 06/02/1989).

Mesmo anunciando a inteno de construo do Sambdromo, j no inicio de seu


mandato a prefeita enfrenta uma oposio justamente das lideranas dos sambistas
politicamente mais conservadoras. Como resposta a esta oposio possvel perceber
uma postura populista de Erundina, que fez o anncio sem nenhum cuidado ou estudo,
sem discusses com as partes envolvidas, nem com consulta populao, (OLIVEIRA,
2007, p. 78) mas apenas para jogar para a plateia e garantir o apoio dos sambistas num
momento em que parte deles vinculados Liga fazia oposio sua gesto, e outra parte,
comandada por Percival Maricato, a apoiava. Os que a apoiavam, a partir de 1990, j no
estavam mais na direo da UESP. Com a nova gesto, Mestre Divino, ento presidente
procurava se afastar de disputas partidrias, mas apoiou o projeto liderado por Eduardo
Baslio, da Liga de cobrar da prefeita mais benefcios para as escolas de samba. Este
alinhamento se deu aps a realizao do seminrio So Paulo Samba e Carnaval100
promovido pela Anhembi em junho de 1989 no qual a UESP e a Liga redigiram um
documento conjunto com as demandas do samba, por no terem da prefeita um
posicionamento claro na campanha sobre a forma como ela conduziria o carnaval e a
construo do Sambdromo. Analisando o documento escrito pelos sambistas ao final do
seminrio101 pudemos observar que os sambistas tomaram posio e reivindicaram maior
ateno ao carnaval. Na viso dos presidentes das grandes escolas o carnaval de So
Paulo no conseguiria alcanar a importncia adquirida no Rio de Janeiro sem a
construo de uma passarela fixa para a realizao de seus desfiles e passaram a fazer um
forte lobby para convencer as autoridades a viabilizar a sua construo.
100
101

PASTA ANHEMBI TURISMO 1989. Centro de Documentao e Memria do Samba, AHB 1989.
Idem.

191

192

Apesar de anunciar a inteno de construo do Sambdromo, a prefeita no


estabeleceu um dilogo imediato com esses sambistas. Eles ento organizaram alguns atos
e passeatas, cobrando da prefeita um melhor tratamento e o atendimento s suas
demandas102. Mais uma vez, a questo central era a reivindicao de mais verbas para os
desfiles, num momento histrico em que a inflao estava na casa dos dois dgitos
mensais, o que fazia com que os sambistas perdessem poder de compra durante o
processo de tramitao e liberao do dinheiro, o que levava alguns meses. Alm de este
oramento ser incerto, apesar de ele ser concedido todos os anos, a quantidade de dinheiro
disponibilizada dependia sempre de negociaes exaustivas com o prefeito ou secretrio.
Tal oramento no possua lei especfica, j que a lei de 1967 e o decreto de 1970103 eram
genricos e no especificavam de onde sairia o dinheiro (CRECIBENI, 2000, p. 116 e
117).
Mestre Divino conta que participou dessas reivindicaes iniciais por melhores
condies do carnaval como presidente da UESP. A entidade apoiou a posio da Liga de
partir para um enfrentamento com a Prefeitura para esta se posicionar de forma mais clara
sobre sua poltica para as escolas de samba, e, em seguida, narra as frustraes
decorrentes do uso da obra e do cenrio do carnaval atual:

A gente fazia passeata, manifestao. Oh, ns juntamos mil e quatrocentas


pessoas, mil e quatrocentos batuqueiros na escadaria da Praa da S. Eu
tenho vrias fotos na escadaria da Praa da S. Esses tempinhos atrs a o
Leandro Lehart disse que colocou mil e quatrocentas pessoas num evento que
ele fez. Ns colocamos isso em uma manifestao. Pra reivindicar um
carnaval melhor pra cidade. O problema da Tiradentes era o monta e
desmonta. Ficava muito caro. Era muito trnsito, n? Ento a prefeitura
arrumou um lugar fixo pra gente mudar... Eu tenho a foto da pedra
fundamental do lanamento do Sambdromo. As pessoas meio que apagam o
passado, porque hoje no me convidam nem pra passar na porta. No que eu
t fazendo questo. O importante a minha escola estar l. Pra falar a
verdade, em vinte anos, depois que eu larguei a presidncia da UESP s no
ano passado que o Serginho que o presidente da Vila Maria e da Liga,
mandou o convite pra mim104.

102

Entrevista Mestre Divino. Data: 15/10/2011.


Lei N 7.100 de 29/12/1967 e Decreto N 9.051 de 12/10/1970.
104
Entrevista Mestre Divino. Data: 15/10/2011.
103

192

193

Diante deste cenrio hostil Prefeita, das duas entidades carnavalescas e de boa
parte das escolas de samba, ela procurou cooptar os sambistas e entidades carnavalescas
para sua base de apoio. Sabendo que as lideranas do samba eram muito influentes na
periferia da cidade, regio prioritria na estratgia poltica adotada por Erundina, ela
aceitou negociar as duas demandas dos sambistas: uma lei que protegesse e garantisse
as verbas para o carnaval e a construo do Sambdromo.
Ainda no havia sido definido o local e a prefeita adiantou que este poderia
ocorrer em uma rea prxima da prpria Avenida Tiradentes (Centro) ou em uma rea
especfica dentro do complexo do Autdromo de Interlagos (zona Sul), cujo custo seria
menor, pois parte das arquibancadas e a pista j existia. O presidente da Liga, Eduardo
Baslio, da Rosas de Ouro, defendia, no seminrio, a construo do Sambdromo do
Parque Anhembi. Em entrevista revista Veja, que realizou uma matria sobre a
possibilidade da construo do Sambdromo, Baslio declarou: Por que no aproveitar o
terreno do estacionamento do Anhembi? J imaginei at um projeto de passarela, que
deixaria espao para estacionar os carros alegricos nos outros dias do ano (OLIVEIRA,
2007, p. 80).
A ideia da construo do Sambdromo na zona Norte obviamente beneficiaria
Baslio, j que sua escola estava localizada prxima ao parque. A ideia foi bem aceita na
administrao municipal. Como mostra reportagem publicada no jornal Folha de So
Paulo, o presidente da Anhembi Turismo, Paulo Itacarambi, aps realizar alguns estudos
preliminares sobre os locais mais adequados na cidade para receber o Sambdromo,
tambm sugeriu a rea do Parque Anhembi, na zona Norte da cidade, como o melhor
lugar para se realizar a construo:
Paulo Itacarambi, presidente da Anhembi, empresa municipal que
organiza o Carnaval da Cidade, afirmou que o assunto deve comear a
ser discutido ao final de semana e depende de fontes para obteno de
recursos do interesse da populao. Ele citou outros locais onde o
sambdromo paulistano poderia ser instalado: na rea do Parque
Anhembi (zona norte) e nas avenidas do Estado e 23 de maio (centro).
A vice-presidente da Anhembi, Dulce Pereira, declarou que
conseguimos colocar essa ideia na cabea da prefeita, mas no sei se
vai dar tempo de fazer isso para o ano que vem. O projeto seria vivel
se pudssemos contar com a colaborao de uma iniciativa privada
(FOLHA DE SO PAULO, 06/02/1989).

193

194

No ano de 1989, portanto a liderana da Liga e o presidente da Anhembi j tinham o


Parque Anhembi como o melhor lugar para a construo do Sambdromo, mesmo sem
levar em considerao que este local no tinha nenhuma ligao histrica com o samba da
cidade. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Sambdromo foi construdo na Avenida Marqus
de Sapuca, no centro da cidade, local que j era utilizado para realizao dos desfiles.
Passado o ano inicial de governo, a prefeita Luiza Erundina comeava a atender s
demandas dos sambistas, ao promulgar, no dia quatro de janeiro de 1990, a lei n 10.831,
ditando que desfiles e eventos carnavalescos passariam a ser de competncia da Prefeitura e
parte do calendrio oficial da cidade. Esta lei veio substituir o decreto n 9051, de 12 de
outubro de 1970, que no condicionava de forma clara as verbas para o carnaval nem o seu
carter de importncia para a cidade. O decreto apenas delegava funes para a Secretaria de
Turismo e Fomento atravs da Paulistur, que foi extinta durante a gesto do prefeito Jnio
Quadros, dando lugar empresa Anhembi Turismo e Eventos, da cidade de So Paulo
(CRECIBENI, 2000, p. 44).
A preocupao da prefeita era atender s demandas dos sambistas, mas em conjunto
com a Anhembi Turismo procurava meios para que os sambistas no dependessem
exclusivamente do dinheiro pblico para a realizao do carnaval e buscar, ao lado das
escolas, uma arrecadao de forma mais eficiente, com um maior investimento do setor
televisivo e tambm dos patrocinadores no carnaval. A ideia inicial era realizar parcerias com
a iniciativa privada105. Esta j era uma diretriz seguida pela administrao municipal durante
o governo Jnio, que extinguiu a Paulistur e a transformou em Anhembi, a fim de transmitir
uma feio mais empresarial e explorar de forma mais eficiente os eventos culturais da
cidade, proporcionando maiores lucros para os investidores e menores investimentos por parte
da Prefeitura.
No texto da lei promulgada pela prefeita Luiza Erundina, logo no art. 1, possvel
perceber este direcionamento, pois os desfiles so vistos como um evento da cidade,

105

Circular intitulada Um projeto onde todos ganham, distribudo pela Anhembi Turismo. Pasta
Anhembi Turismo 1990. Centro de Documentao e Memria do Samba, AHB, 1990.

194

195

realizados sob a gesto da prefeitura106. Nesse contexto, j era pensado, segundo Christian
Oliveira, (OLIVEIRA, 2007, p.50) como uma forma de agradar aos turistas e como mostram
os documentos da Anhembi Turismo, em parceria com as empresas de televiso, que iria
patrocinar grande parte do espetculo.
A Anhembi Turismo formou uma Comisso de Estudos para viabilizar o projeto
de construo do Sambdromo e o melhor local de sua execuo. Aps alguns trabalhos
iniciais, constatou-se que o melhor local seria aquele estacionamento de veculos dentro
do Complexo do Anhembi. A discusso ento seguiu para a Cmara dos Vereadores,
onde foram apresentadas propostas de dois vereadores para mudanas dos locais do
desfile. No ms de maro, o vereador Pedro Dallari, do PT, apresentou a proposta do
Executivo de construo no Anhembi, enquanto o vereador Bruno Feder redigiu um
projeto paralelo, que indicava uma parte do Campo de Marte, rea da Aeronutica, como
o local mais adequado para a construo

107

, pois atendia melhor aos interesses

televisivos. Segundo o parecer do vereador:


Visa esta propositura, estabelecer a rea municipal denominada de
Campo de Marte como o local para a realizao dos desfiles das
escolas de samba do municpio de So Paulo (...)
A mudana para o local pretendido, implicar em sensvel reduo de
custos, solucionar definitivamente o caos provocado no trnsito,
facilitar o acesso aos sambistas com seus carros alegricos, como a
populao em geral, que ter melhores condies para participar dos
cortejos de Momo, com segurana e comodidade (...)
Por derradeiro, a nova localizao tambm possibilitar maior
cobertura das redes de televiso que para nossa felicidade, agora
acreditam na importncia e na tradio do carnaval paulista108.

106

Lei n 10.831 de 4 de janeiro de 1990. Oficializao do Carnaval na Cidade de So Paulo, e d


outras providncias.
Luiza Erundina de Souza, Prefeita do Municpio de So Paulo usando das atribuies que lhe so
conferidas por lei.
Faz saber que a Cmara Municipal, em sesso de 13 de dezembro de 1989, decretou e promulgou a
seguinte Lei:
Art 1 O Carnaval paulistano, bem assim as manifestaes artstico-populares que o compem,
constitui-se em vento oficial da Cidade, com o apoio e sob a gesto da Prefeitura.
Art 2 Para efeito desta Lei, so consideradas manifestaes artstico-populares, entre outros os
concursos, desfies, festas, bailes realizados no perodo do carnaval, com o apoio e administrao da
prefeitura (...).
107
PL 41 de 06/03/1990. Arquivo da Biblioteca da Cmara Municipal de So Paulo.
108
Idem.

195

196

Os dirigentes das federaes de carnaval tambm exerciam presso na Cmara dos


Vereadores para uma rpida aprovao do projeto, mas no viam o Campo de Marte
como um bom local para os desfiles, assim como a Prefeitura que no queria entrar em
disputa e compra da rea que pertencia a Aeronutica. Para justamente ganhar mais fora
poltica, uma das estratgias dos sambistas era pressionar os vereadores que haviam sido
eleitos com o apoio das escolas de samba, em seus respectivos bairros. Mas como o
momento econmico era muito ruim, em razo da inflao galopante, os vereadores
temiam uma reao negativa da populao ao destinar uma soma to grande de dinheiro
pblico na construo de algo que beneficiaria uma pequena parte da populao
(OLIVEIRA, 2007, p. 83).
Esta postura dos vereadores era compreensvel, principalmente aps as
consequncias para a populao do famigerado Plano Collor. Nesse ms de discusso do
projeto na Cmara (maro de 1990), o presidente Fernando Collor de Mello tomou posse
como presidente e anunciou seu plano econmico, chamado de Plano Collor, com o
objetivo de controlar a inflao e conter os gastos pblicos. Dentre as medidas tomadas
pelo presidente estava o congelamento dos salrios e o confisco do dinheiro das contascorrentes e cadernetas de poupana durante 18 meses.
Como forma de garantir um apoio popular ao projeto, o secretrio de governo,
Jos Eduardo Martins Cardozo, declarou populao que os investimentos pblicos no
Sambdromo paulista seriam menores do que os realizados na construo do seu
homnimo da cidade do Rio de Janeiro, e que a Prefeitura buscaria parcerias com
empresas privadas para viabilizar a obra e tudo seria feito mediante licitao pblica. Esta
informao era para tranquilizar parte do legislativo municipal e o Tribunal de Contas do
Municpio, que no havia concordado com os gastos e com a contratao de empresas
sem licitao que havia sido feita em outra obra da Prefeitura na cidade, a reforma do
Autdromo de Interlagos, a fim de trazer a Frmula 1 de volta cidade. Nas palavras do
prprio Cardozo: O Sambdromo paulista ser mais simples que o do Rio, e a
participao das empresas na construo (com direito a troca de publicidade e direito de
transmisso ser feito com licitao) (FOLHA DE SO PAULO, 31/03/1990).

196

197

A viabilizao do Sambdromo foi realizada de fato aps a doao do projeto para


a cidade feito pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Pelo desenho do projeto e suas dimenses,
o Campo de Marte e outras regies da cidade foram descartadas e optou-se por constru-lo
no estacionamento oeste do Parque Anhembi. O Instituto de Arquitetos de So Paulo se
posicionou contra a realizao da obra de forma to acelerada e sem uma discusso mais
profunda com a comunidade. As justificativas dadas pela Prefeitura de que o
Sambdromo de So Paulo custaria menos que o do Rio de Janeiro ou que o projeto
arquitetnico seria doado por Niemeyer no poderia ser colocado acima dos resultados
finais desejados. O Sambdromo no seria um espao utilizado para os sambistas e pelos
sambistas, mas um modelo paradoxal no qual deveria atender aos sambistas, mas que
pertence Prefeitura e utilizado segundo os critrios adotados por ela nos outros 361
dias do ano (OLIVEIRA, 2007, p. 85).
Mesmo com as crticas dos arquitetos e de parte do legislativo municipal, as obras
tiveram incio, precisamente, em 10 de novembro de 1990 e o Polo de Arte e Cultura da
Cidade de So Paulo foi inaugurado no Parque Anhembi, na zona Norte da cidade, de
forma provisria, j no carnaval de 1991. Havia apenas a pista, com pouca estrutura,
mesmo assim, os sambistas desfilaram pela primeira vez no Sambdromo, ainda que de
forma precria. O jornal Folha de So Paulo, uma semana antes do desfile, trouxe a
seguinte manchete: Erundina inaugura Sambdromo em obras e com alagamento. A
reportagem alertava que as obras estavam incompletas e, caso houvesse chuvas, com
certeza a pista alagaria, pois, no dia anterior, ela estava alagada e o sistema de ralos e
escoamento de gua estava entupido com entulho. Os problemas no tiraram o entusiasmo
dos sambistas. Seu Nen da Vila Matilde demonstrava que estava satisfeito com o
andamento das obras: O local ideal para o samba. Se chover, vamos enfrentar os
mesmos problemas que tnhamos na Avenida Tiradentes (FOLHA DE SO PAULO,
02/02/1991).
A justificativa para sua construo de maneira to rpida era defendida
principalmente pelos sambistas vinculados Liga, pois a ideia era acabar com os
transtornos para o trnsito da regio da Avenida Tiradentes, que ficava cerca de dez dias
interditadas, e os altos custos para montagem e desmontagem das arquibancadas (FOLHA
197

198

DE SO PAULO, 15/02/1990). Este argumento muito prximo ao utilizado pelos


sambistas cariocas para a construo da passarela fixa no Rio de Janeiro, inaugurada em
1984 durante o mandato de Leonel Brizola, sob o comando do vice-governador, o
antroplogo Darcy Ribeiro. Outro ponto era o prestgio que as escolas adquiriam dentro
da cidade com um local construdo especialmente para os desfiles. Mas ao contrrio da
construo carioca, que ao longo do ano funcionava como escola, chamada CIEPS, e
utilizava seus camarotes como salas de aula (com 210 salas ao todo), o Sambdromo
paulista, desde sua origem, utilizado apenas para a realizao dos desfiles e
esporadicamente para eventos de entretenimento.
Aps os desfiles do carnaval de 1991, teve incio a segunda fase da Construo do
Sambdromo, j batizado pela Anhembi Turismo como Polo de Arte e Cultura. Nesta
parte foram construdas as arquibancadas de concreto ao lado da pista da Marginal Tiet.
As arquibancadas de concreto possuem oito degraus, com trs metros de altura e 500
metros de extenso, com capacidade para cerca de 10 mil espectadores. Ao lado da
Avenida Olavo Fontoura foram montadas as tradicionais arquibancadas em estrutura
tubular (dez mdulos com capacidade para aproximadamente 11 mil pessoas)

109

. A

empresa entregou as arquibancadas uma semana antes do carnaval, ao custo de 500 mil
dlares. O total gasto do incio das obras at a concluso da segunda fase do
Sambdromo, segundo a Anhembi Turismo, era de 1,3 bilho de cruzeiros. Alm da
arquibancada de alvenaria, a Prefeitura investiu em um novo sistema de drenagem, devido
aos alagamentos ocorridos no carnaval anterior, em rede eltrica, telefonia,
cronometragem e urbanizao da rea em volta do Sambdromo 110.
A montagem das arquibancadas tubulares, mesmo aps a construo de uma parte
de alvenaria, se deu pela indefinio da Cmara dos Vereadores, que precisava aprovar
uma mudana na Lei de Zoneamento da regio da Avenida Olavo Fontoura, que impedia
a construo de arquibancadas definitivas. Como o governo Erundina no tinha uma
maioria slida, a oposio trancava a pauta da Cmara dos Vereadores, no permitindo a
109

Relatrio do Carnaval. 1992. Realizado pela Anhembi Turismo. Pasta Anhembi Turismo 1992. Centro
de Documentao e Memria do Samba, AHB, 1992.
110
Documento Anhembi Informa. Sinopse de Imprensa. Pasta Anhembi Turismo 1992. Centro de
Documentao e Memria do Samba, AHB, 1992.

198

199

aprovao imediata de projetos de interesse do Poder Executivo. A Lei de Zoneamento


referente ao planejamento urbano da cidade, regulamentando o uso e a ocupao dos
terrenos para todo tipo de construo. A primeira legislao desse tipo em So Paulo
surgiu em 1973, quando o ento prefeito Figueiredo Ferraz lanou o primeiro Plano
Diretor sob o discurso de que So Paulo deveria parar de crescer desordenadamente.
Com esse plano, em algumas regies da cidade s poderiam ocorrer obras e
modificaes com a aprovao do municpio.
Havia ainda neste projeto a construo de dois fossos laterais, separando as
arquibancadas da pista de desfile. Um arquiteto ligado escola de samba Vai-Vai
percebeu a gravidade e os perigos de acidente que poderiam ocorrer com a construo
deste fosso. Ele entrou em contato com a professora Olga von Simson, acadmica
estudiosa do carnaval paulistano, com bom trnsito entre as escolas de samba e lhe
apresentou o projeto. Ambos convocaram uma reunio com as lideranas da Liga, a fim
de orient-las a pedir uma mudana na proposta do arquiteto Oscar Niemeyer para o
Sambdromo paulista. Aps uma negociao das lideranas do carnaval com a Prefeitura,
com a Anhembi Turismo e desta com o escritrio do arquiteto, o projeto do fosso foi
substitudo pela construo de um setor de mesas e cadeiras no local de separao entre as
arquibancadas e a pista de desfile. A soluo agradava aos sambistas e tambm a
Anhembi, que ganhava a possibilidade de explorao de um novo setor para espectadores,
com preos obviamente menores que os camarotes, que so cobertos e contam com uma
infraestrutura melhor, mas superiores aos da arquibancada, pelo fato de ser o local mais
prximo da pista111.
Aps a definio do projeto e dos prazos para a construo do Sambdromo, os
dirigentes das escolas de samba continuaram a pressionar o poder pblico para a
realizao de uma nova diviso de receitas entre a Anhembi Turismo e a Liga em 1992.
No ano anterior, a diviso do total arrecadado com a bilheteria do Sambdromo havia
sido 50% para as escolas de samba e 50% para a Anhembi Turismo. Aps diversas
rodadas de negociao e com a promessa de realizar o melhor carnaval da histria de
So Paulo (O ESTADO DE SO PAULO, 02/02/1992), os sambistas conseguiram
111

Entrevista com Olga Rodrigues de Moraes von Simson. Data: 29/11/2011.

199

200

fechar um excelente contrato. Nele estava definido que as escolas de samba ficariam com
90% do total arrecadado da bilheteria e a Anhembi Turismo apenas com 10%. Depois de
ter conseguido o novo acordo com a Prefeitura, as escolas passaram ento a pressionar o
governador do Estado para liberao de mais recursos a serem aplicados no carnaval. Em
uma audincia com o governador Luiz Antnio Fleury Filho, o presidente da Liga, Jos
Jlio Teixeira Filho, pediu CR$ 1,6 bilho de incentivos para as escolas, demonstrando
claramente a presso das escolas no poder pblico e deu um recado claro para o
governador de que queria o dinheiro para anteontem (O ESTADO DE SO PAULO,
02/02/1992).
O governador Fleury, aps se reunir com diversos secretrios, negou inicialmente
liberar qualquer quantia em dinheiro para as escolas sob a justificativa de que estes gastos
no estavam previstos no oramento. Os sambistas no ficaram satisfeitos e passaram a se
posicionar publicamente contra o governador, acusando-o de boicotar o carnaval da
cidade. Em ano eleitoral, a sada encontrada pelo governador foi o Banespa, Banco do
Estado de So Paulo, entrar como patrocinador dos desfiles, contribuindo com Cr$ 360
milhes em troca de placas de publicidade no Sambdromo. O presidente da Liga, Jlio
Teixeira Filho, declarou, em entrevista ao jornal Dirio Popular, que, apesar de conseguir
apenas 20% do valor pretendido, ficou satisfeito com o empenho do governo do Estado
em patrocinar os desfiles. Segundo ele, o custo das 76 escolas de samba e dos 32 blocos
carnavalescos ficou em Cr$ 2,06 bilhes em 1992. E como a prefeita Luiza Erundina
contribuiu com Cr$ 404 milhes, ficou faltando, para cobrir o custo, Cr$ 1,6 bilho. O
ideal seria que o Estado e Prefeitura cobrissem o custo total, mas eles contriburam com o
que puderam e ns estamos satisfeitos (DIRIO POPULAR, 04/02/1992).
Com a declarao do presidente da Liga possvel perceber que os dirigentes
viam apenas o poder pblico como canal de financiamento dos desfiles. Aps as contas
no fecharem e as escolas terem que buscar financiamento prprio para conseguir se
apresentar de maneira competitiva na avenida, passaram a pressionar os canais de
televiso que transmitiam os desfiles. As emissoras de rdio e a imprensa escrita apenas
cobriam os desfiles, no realizando nenhum pagamento para as escolas. A ampliao dos
gastos das escolas e a necessidade criada pela mdia da realizao de um desfile cada vez
200

201

mais grandioso e luxuoso gerou uma defasagem que impediu que os desfiles se tornassem
economicamente viveis.
Os dirigentes paulistanos buscam integrar-se a essa dinmica da indstria cultural.
Esta coopta a manifestao cultural popular com o objetivo de incorpor-la cultura
dominante, j inserida no mercado de consumo. Mas o carnaval paulistano estava, nesse
momento, em uma espcie de transio. H tempos deixara de ser uma festa espontnea,
mas ainda no se tornara um evento turstico ou de entretenimento economicamente
vivel que se paga apenas com a venda de ingressos e verba de patrocinadores privados,
necessitando de dinheiro pblico para cobrir grande parte de seus gastos.
Porm, em 1993, o governo do Estado liberou uma quantia dez vezes maior: Cr$
3,97 bilhes, que foram repassados pela Secretaria de Esportes e Turismo do Estado s
entidades carnavalescas. Mais uma vez o poder pblico estava pressionado pelos
sambistas, que viam os custos do carnaval aumentar pela alta inflao do perodo. A verba
foi dividida em Cr$ 2,45 bilhes para a Liga, Cr$ 1,30 bilho para a UESP organizar o
carnaval das escolas dos grupos inferiores e dos blocos especiais e Cr$ 221 milhes para a
Associao das Bandas Carnavalescas de So Paulo para a promoo de eventos com as
bandas carnavalescas da cidade. Valor semelhante foi distribudo pelo governo para
promoo dos desfiles carnavalescos no interior do Estado. Foram distribudos Cr$ 4,2
bilhes para as 44 cidades classificadas como Estncia Turstica112.
Os dirigentes pensaram que as verbas oriundas do governo do Estado e do
Banespa se tornariam uma fonte fixa de entrada de recursos, assim como as verbas da
Prefeitura. Com o trmino do mandato de Luiz Antnio Fleury Filho, assumiu o governo
do Estado Mrio Covas, do PSDB, eleito no ano anterior. Covas, que j havia sido
prefeito de So Paulo e estabelecido uma boa relao com os sambistas, no incio de seu
mandato como governador, estabeleceu o fim dos gastos com o carnaval da cidade de So
Paulo, destinando apenas parcos recursos para a realizao do carnaval das cidades
classificadas como Estncia Turstica, a ttulo de fomento ao turismo.

112

Pasta Anhembi Turismo 1993. Centro de Documentao e Memria do Samba, AHB 1993.

201

202

Os dirigentes das escolas pequenas, que dependiam unicamente da verba oficial


para realizar seus desfiles, ficaram descontentes. Todas as escolas e blocos filiados
entidade vieram com faixas em protesto falta de recursos para a realizao dos desfiles
carnavalescos de 1995. Algumas delas eram pretas, smbolo de luto, e outras mais
irnicas, como uma que estava escrito Obrigado Maluf. Uma das escolas apresentou um
carro intitulado Carro dos Sonhos como resposta ao posicionamento do governador,
que estaria acabando com os sonhos dos sambistas pobres. Para Robson de Oliveira,
presidente da UESP, o carnaval da entidade foi:

Uma festa pobre de brilho e luxo por falta de verba suplementar da Prefeitura e
por parte do Governo do Estado, que no deu um centavo para o carnaval. No
entanto, se vem pobre as fantasias e alegorias vem rico no samba no p e
criatividade dos sambistas, j que todos no esto medindo esforos para
apresentar um grande espetculo e mostrar para os governantes que o samba
no vive de iluso ou joguinho de empurra-empurra (HORA DO POVO, 24 e
28/02/1995).

Se as escolas de samba recebiam verbas do poder pblico, dos patrocinadores e da


televiso, todas buscavam maneiras de tornar os desfiles mais atrativos para suas
demandas. O poder pblico estava interessado em tirar proveito poltico dos desfiles e os
patrocinadores e a televiso em divulgar suas marcas e lucrarem economicamente com o
espetculo. No carnaval de 1994, o ento presidente da Liga, Slon Tadeu Pereira, inovou
chamando diversas pessoas famosas, como atores e atrizes, cantores populares e
celebridades para serem jurados dos desfiles carnavalescos. Esta deciso mostra como os
sambistas no tinham uma ideia clara de como conciliar seus interesses aos da indstria
cultural. Concluram que ganhariam mais visibilidade trazendo jurados VIPs para
avaliar a disputa. Se, no incio, quando foi anunciada a proposta, j gerou polmicas e
divergncia entre os sambistas, aps a apurao se transformou em revolta contra o
presidente da Liga, que pediu demisso aps o episdio. Criou-se nesse ano duas
modalidades de jri. Um jri tcnico e outro artstico. Ao contrrio dos jurados
tcnicos, que normalmente possuem ligao com as escolas, ficavam em cabines de
madeira, tomando chuva e se preparavam para julgar os desfiles em cursos promovidos
202

203

pelas prprias entidades, os jurados VIPs tiveram, na ocasio, todos os privilgios


possveis: ficaram em camarotes especiais com bebida (alcolica) e comidas disponveis.
Este pequeno gesto evidencia que, com o crescimento dos desfiles e das escolas de samba
e estas passaram a ganhar cada vez mais destaque nos meios de comunicao at a
possibilidade das transmisses televisivas integrais dos desfiles no incio dos anos 1980
, criou-se uma falsa ideia de que qualquer um entende de carnaval. Todos assistiam
aos desfiles, estavam familiarizados com termos e com a estrutura dos desfiles e, portanto,
estavam aptos a dizer qual escola foi melhor. Processo semelhante ao que acontece com o
futebol, do qual o Brasil possui 200 milhes de treinadores.
O sentimento de revolta entre as escolas foi maior porque dois anos antes, em
1992, a entidade formatou e promoveu um curso para preparao de jurados. Na ocasio,
a entidade constituiu uma comisso de sambistas de vrias escolas, que se juntou em um
seminrio e elaborou um livro contando brevemente a histria do samba paulista, do
carnaval na cidade e, principalmente, esclarecendo os quesitos e os parmetros de
balizamento para os jurados. Os autores do livro e do curso sentiram-se prejudicados pelo
esforo feito para a formao de jurados, porque esses s foram utilizados em um
carnaval.
Com algumas excees, como a do compositor Paulo Moura, a maior parte dos
famosos no tinha conhecimento mnimo para julgar quesitos tcnicos. Muitos
simplesmente no deram notas para as escolas, ou, como aponta o jornal Hora do Povo,
no estavam sbrios quando algumas escolas desfilaram (HORA DO POVO,
23/02/1994). Como forma de protesto, no dia do desfile das campes a escola de samba
Leandro de Itaquera apresentou um carro alegrico, com cerca de 30 componentes,
representando os jurados VIPs completamente bbados e sonolentos. E os diretores da
Gavies da Fiel desfilaram com nariz de palhao contra as notas que no foram
atribudas.
O processo de substituio dos jurados nesse ano foi semelhante ao que aconteceu
ao longo da dcada de 1980 e 1990, com a substituio de sambistas annimos por
pessoas famosas nos lugares de destaque dos desfiles. A entrada dos jurados VIPs e a
203

204

ocupao total dos espaos simblicos do carnaval por pessoas estranhas representam a
realidade das escolas de samba. O sambista, que vinha num processo crescente de
excluso, no pode nem consumir e julgar a sua prpria arte que consumida e tambm
julgada por outros. Com isso, o carnaval, que se constitui essencialmente como festa da
inverso, no cumpre mais a sua essncia. Ao vestir as mscaras e fantasias durante o
carnaval, o sambista busca justamente o contrrio da vida cotidiana. o triunfo de uma
espcie de liberao temporria da verdade dominante e do regime vigente, de abolio
provisria das relaes hierrquicas, privilgios, regras e tabus (BAKHTIN, 2000, p. 89). Para Roberto Da Matta, a ruptura da festa no acaba com as hierarquias nem com a
desigualdade social, mas a irreverncia do carnaval permite uma relao mais livre e
menos fatalista com o status quo (DAMATTA, 1996, p. 30). As configuraes dos
desfiles carnavalescos na lgica empresarial no cumpre esta inverso caracterstica,
vista por Bakhtin, nem permite hierarquias e relaes mais livres, segundo Da Matta.
Os sambistas que sempre tiveram o sonho de se sentir rei por um dia, como diz
Mestre Gabi, j no o so, pois os meios de comunicao do destaque apenas para o
que acontece em seu prprio meio.
Esta leitura visvel na leitura das entrevistas realizadas no mbito desta
dissertao. Marcos dos Santos, fundador da escola de samba Tom Maior, diz:

Desfilar em escola de samba sinnimo de status. Ainda mais que aparece na


Rede Globo, fora invaso dos artistas que eu acho uma aberrao que a
prpria escola de samba faz consigo mesma, uma falta de autoestima. Porque
rainha de bateria e congneres eu acho que tem que sair da comunidade. Eu
tenho certeza que os grandes artistas, o grande elenco a comunidade, era a
nica vez que a pessoa comum se sentia artista, todo mundo virava artista no
carnaval, isso era muito bom. Hoje os verdadeiros artistas so os atores
mesmos, o sambista virou coadjuvante desses artistas que tem destaque na
passarela, o sambista virou coadjuvante desses artistas principais que so da
televiso. No existe mais aquela coisa romntica de o sujeito simples ser rei,
artista por um dia que era muito legal para autoestima da comunidade113.

Essas novas posturas geram um sentimento de deslocamento, principalmente nos


sambistas mais antigos que vivenciaram outras relaes humanas e profissionais dentro
113

Entrevista com Marcos dos Santos. Data: 10/08/2010.

204

205

do carnaval. Como mostra Marcos dos Santos em todo o seu depoimento, os membros
de sua gerao se sentem coadjuvantes dentro de suas escolas de samba.
Na mesma linha de anlise de Marcos, h o depoimento de Jamelo, intrprete
nonagenrio da escola de samba Mangueira. Ele destaca essa interveno no modelo
de apresentao das escolas: estas devem seguir o modelo imposto pelo canal de
televiso que transmite o desfile, como parte de um processo de negociao que trouxe
perdas e ganhos. A televiso levou o desfile para o horrio nobre, mas ditou as novas
regras. Algumas absurdas, como a de que uma escola de samba do Grupo Especial
desfile com 4000 componentes em uma hora, prejudicando completamente qualquer
manifestao artstica.

Hoje as escolas de samba tm um lugar certo de desfile, vai para o


Sambdromo, fica uma coisa mais certa mais correta com horrio,
mas o que acontece l no Rio que tem um horrio marcado e o
samba tem que acabar naquela hora certa enquanto eles poderiam
deixar a escola desfilar mais a vontade no naquela correria porque
uma correria para marcar hora certa porque a televiso quer. Hoje o
samba sofre as consequncias de ter se encostado com a televiso. A
escola tem que fazer tudo que a televiso quer para receber. A escola
de samba na televiso no nada daquilo que na avenida, eles
apresentam uma figura aqui outra ali um porta-bandeira, mas o que
acontece ao vivo pela televiso no sentido como na avenida, voc
v coisas a que em casa no sof voc no v. Infelizmente o samba
est entregue a televiso So eles que mandam, determinam, mas tudo
bem, como diz o outro o moderno114.

A construo do Sambdromo, com tanto dinheiro pblico empregado, levanta


algumas questes: por exemplo, como uma diverso anual inicialmente envolvendo
negros das baixas classes sociais conseguiu construir um lobby, organizar lideranas e
conseguir do poder pblico, a construo de um local fixo para os desfiles? O interesse
do poder pblico, no contexto da ditadura militar, em controlar manifestaes que
ocorriam nas ruas, a organizao dos sambistas em entidades como a UESP e a Liga, a

114

Entrevista de Jos Bispo Clementino dos Santos, popularmente conhecido como Jamelo. Data:
06/01/2006.

205

206

fora das escolas de samba nas comunidades e bairros e, por fim, a presena da indstria
cultural e do capital possibilitaram o desenvolvimento e o lobby das escolas de samba.
Com o Sambdromo est garantida a manuteno do carnaval das escolas de
samba por anos a fio. A construo desse espao fixo para os desfiles carnavalescos
representou o que podemos chamar de metropolizao de uma cultura tida como
provinciana (OLIVEIRA, 2007). O espao destinado aos seus eventos no mais a
avenida (espao pblico), mas um espao privado, de cunho mercantil, com fins
lucrativos e politicamente centralizado, pelo fato de ser uma passarela definitiva.
Nestor Garcia Canclini, ao analisar o processo de transformao das culturas
populares na Amrica Latina, faz o seguinte questionamento: preciso perguntar-se
agora em que sentido e com quais fins os setores populares aderem modernidade,
buscam-na e misturam-na a suas tradies? (CANCLINI, 2011, p. 205). Podemos
aplic-lo no caso das escolas de samba paulistanas. Com quais fins os sambistas
aderiram a esse processo de transformao nos desfiles carnavalescos para atender s
suas necessidades e demandas? Ao negociar com o poder pblico por mais de duas
dcadas, os dirigentes das escolas de samba conseguiram no apenas o reconhecimento
e o financiamento de suas atividades de lazer, objetivo inicial, como conseguiram que
seus desfiles se tornassem oficiais e hegemnicos dentro das festividades carnavalescas,
com a construo de um espao na cidade construdo especificamente para este fim.
Segundo Canclini, a preservao pura das tradies no sempre o melhor
recurso popular para se reproduzir e reelaborar sua situao (CANCLINI, 2011, p.
236). A maior visibilidade e as transformaes das escolas de samba no Brasil esto
inseridas em um fenmeno de alcance global de valorizao e modificao de atividades
folclricas por parte do Estado e da indstria cultural. Elas funcionariam como agentes
de inovao, que as modifica com o objetivo de transform-las em cultura de massa,
para serem consumidas por um maior nmero de pessoas e gerar retorno financeiro. As
escolas de samba que tinham ganhado difuso e legitimidade social atravs da ao
do Estado e dos meios de comunicao de massa, inicialmente o rdio e o cinema, e
posteriormente com a televiso e na atualidade a internet se reinventaram em virtude
de um novo pblico de classe mdia que passou a participar das escolas de samba. So
206

207

pessoas que no necessariamente frequentam a quadra da escola e seus eventos, no


participam da comunidade em que a escola est inserida, mas participam somente do
grande ato que so os desfiles. E pagam por isso.
Se por um lado essas transformaes deixam os membros das Velhas Guardas
desconfortveis e sem uma voz ativa para enfrentar esse processo de modernizao e de
feio empresarial dentro das escolas, por outro foram importantes para legitimar novas
lideranas que deram continuidade e conseguiram a ampliao dos folguedos e tambm
atraram novos recursos para eles, que so investidos na prpria escola e no pagamento
de todos que contriburam profissionalmente para a confeco e execuo dos desfiles.
A viso de desfile da Liga, mais integrada a uma viso empresarial, conseguiu
realizar esse novo tipo de desfile carnavalesco, consolidando um processo que ocorria
desde a oficializao, chamado por Olga von Simson de carnaval-show-mercadoria,
pois era produzido pelos sambistas, com a mediao da indstria cultural para ser
consumido no pas e no exterior. O carnaval rentvel no uma festa popular e
folclrica promovida por negros e pobres, mas uma apresentao grandiosa e
mercadolgica, transmitida pela TV em grandes pistas fixas, com milhares de pessoas
nas arquibancadas apenas assistindo ao grande espetculo, enterrando de vez o carnaval
participao oriundo da poca dos cordes em que o brincar e o divertir-se que tambm
estavam integrados apresentao da agremiao carnavalesca, havia deixado de
existir (SIMSON, 2007 p. 366).
Como os desfiles se tornaram cada vez maiores, mais luxuosos e disputados, as
escolas tambm procuraram novas estratgias de crescimento, desenvolvimento,
obteno de recursos, tendo a diretoria da escola adotado uma postura cada vez mais
empresarial. Atualmente, a estrutura organizacional de uma escola de samba
semelhante de uma empresa de mdio porte, contando com presidente, vicepresidente, diretor de carnaval, coordenador-geral, carnavalesco, assessores, secretrios,
coordenadores de projetos, relaes pblicas, tesoureiro, diretor-geral e de finanas,
departamento cultural, social, de marketing, de patrimnio, diretor de barraco, mestre
de bateria e diretores de bateria, chefes de ala, dentre outros, como operrios (ferreiros,
207

208

marceneiros, escultores, vidraceiros, etc.), que compem a rede de pessoas envolvidas


em uma escola de samba.
Antes mesmo do final de todas as obras previstas no projeto do Sambdromo
terminar, a Prefeitura j queria se livrar do Sambdromo privatizando-o. No ano de
1995, alm do Sambdromo, o prefeito Paulo Maluf queria, atravs de um projeto de lei,
ceder para particulares os principais palcos de eventos administrados pelo Estado. O
projeto elaborado por tcnicos do Executivo previa a concesso do estdio Paulo
Machado de Carvalho, popularmente conhecido como Pacaembu, por 40 anos e de todo o
Complexo do Anhembi, incluindo o Palcio das Convenes, o Palcio de Exposies,
estacionamento e o Sambdromo. Os custos de manuteno e de finalizao das obras
seriam pagos pela iniciativa privada que deveria ficar com 65% dos lucros obtidos pela
explorao dos espaos, ficando os 35% restantes com a Prefeitura.
O secretrio municipal do Planejamento, Roberto Paulo Ritcher, afirmava que, ao
transferir para a iniciativa privada os elefantes brancos, a Prefeitura iria economizar,
pois, segundo ele, esses espaos traziam prejuzos aos cofres pblicos. Com a
privatizao, a Prefeitura deixaria de investir aproximadamente R$ 10 milhes por ano
em obras, financiamento de projetos e carnaval e com o Fundo Municipal de Turismo. O
jornal O Estado de So Paulo defendia abertamente a privatizao, com o argumento de
que a Prefeitura no conseguia manter a estrutura adequadamente:

Um jovem de 25 anos com cara de 100. E mais ou menos assim que o


Parque Anhembi comemora, hoje, um quarto de sculo desde a sua
inaugurao com o Salo do Automvel, em 1970. Sem investimentos
em manuteno e expanso, o quinto maior centro de eventos do
mundo no consegue mais atender a demanda. Vrias feiras tm de ser
recusadas por falta de espao. H goteiras, dficit na rede eltrica,
sujeita a sobrecargas, piso irregular, estrutura de servio ruim.
So tantos problemas que a Prefeitura quer se livrar do Anhembi. O
projeto de privatizao est na Cmara. O sambdromo no seguir o
mesmo plano. Para deixar de ser um monstro ocioso fora do carnaval,
ele deve ser palco de shows para 10 mil pessoas com a entrega da
arquibancada monumental, em janeiro.
Segundo o secretrio do Planejamento, que acumula a pasta da Sade,
Roberto Paulo Ritcher, a concorrncia ser nacional e internacional.
Ele acredita que ser possvel lanar a licitao em fevereiro ou

208

209
maro. Temos vrios grupos estrangeiros querendo investir no
Anhembi (O ESTADO DE SO PAULO, 20/11/1995).

O prefeito tinha ainda a inteno de extinguir a empresa Anhembi e criar uma


nova com uma estrutura menor, semelhante extinta Paulistur. Segundo o secretrio, com
sua viso liberal e privatista, a nica funo a ser desempenhada pelo Estado era a de
fomento e divulgao dos principais eventos da cidade, como a Frmula 1 e o Carnaval
(O ESTADO DE SO PAULO, 05/06/1995).
A privatizao no conseguiu se realizar devido oposio das federaes de
carnaval, UESP e Liga, e dos vereadores da cidade. Para os vereadores, as festividades
populares, como o carnaval, poderiam ficar sem o apoio necessrio para sua realizao e o
estdio poderia ser descaracterizado. O lder da oposio, vereador Jos Eduardo Martins
Cardozo, ex-secretrio de Governo na gesto anterior de Luiza Erundina e um dos
interlocutores da construo do Sambdromo, disse que o projeto era absurdo e lutou com
o apoio de outros partidos, como o PMDB e o PSDB, para sua derrubada. Segundo
Cardozo: A partir do momento que a Prefeitura transfere essas administraes para a
iniciativa privada, a cidade perde dois equipamentos importantes para a realizao da
poltica de esporte, lazer e recreao. O Anhembi no usado apenas para feiras e
exposies, mas tem uma funo social como o emprstimo de aparelhos para festas
populares organizadas por associaes de bairro (O ESTADO DE SO PAULO,
05/06/1995). Outro argumento que prejudicava os defensores da privatizao foi o
apurado pelos vereadores. Ao contrrio do que dizia o jornal O Estado de So Paulo, no
havia prejuzo, mas o lucro estimado do Complexo do Anhembi para o presente ano era
de R$ 3,9 milhes. O calendrio de feiras estava lotado at 1997 e 15 dias de aluguel no
Palcio de Exposies, de 67 mil metros quadrados, no custavam menos que 690 mil
dlares.
A privatizao afetaria diretamente as escolas de samba. A preocupao dos
dirigentes das federaes era com a diminuio de seus recursos e uma limitao de sua
atuao. A Liga recebia 90% do total arrecadado com a venda de ingressos do carnaval.
Com a privatizao teria que ser feito um novo acordo com a concessionria e obviamente
209

210

seria menos vantajoso para os sambistas. Para Robson de Oliveira, ento presidente da
UESP, o governo agia com autoritarismo ao submeter um projeto dessa magnitude sem
escut-los. Assim que foi divulgado o projeto de lei da privatizao, Oliveira convocou
uma reunio com 110 entidades carnavalescas, entre escolas e blocos filiados UESP, e
se posicionaram contra o projeto, solicitando uma audincia com o prefeito. Aps a
oposio de sambistas e vereadores e a derrubada do projeto, o Executivo desistiu de
enviar projeto substitutivo e manteve o estdio do Pacaembu e o Complexo do Anhembi,
sob sua administrao (O ESTADO DE SO PAULO, 07/06/1995).
Como a Liga ficava com 90% do total arrecadado da bilheteria, ela estipulou os
preos do carnaval de 1995. E para cobrir os gastos com o carnaval, houve um aumento
de 841,74% em relao ao ano anterior. A justificativa para tamanho aumento foi a
converso da antiga moeda, cruzeiro real, para a atual, o real, e ao aumento dos custos.
Para ele, o material utilizado para a confeco de alegorias e carros subiu muito. No ano
passado, cada agremiao do Grupo Especial gastava, em mdia, 60 mil dlares. Hoje
gasta de R$ 700 mil a 1 milho (DIRIO POPULAR, 03/02/1995). Mesmo a preos
exorbitantes, os 22 mil ingressos foram vendidos. Muitos reclamaram do preo do
ingresso, pois o mais barato custava R$ 20,00, cerca de 30% do valor do salrio mnimo
de R$ 70,00 na poca. Obviamente, o presidente da Liga exagerava e muito, j que o
cmbio da poca estava congelado e um real equivalia a um dlar. Com essa medida, h
uma nova excluso dos sambistas pobres. Se para participar dos desfiles das escolas do
Grupo Especial custava muito caro, ser apenas espectador tambm passa a representar um
gasto que muitos no podem assumir. O objetivo era atrair turistas e pessoas mais
abastadas, no o sambista pobre que quer participar, assistir, mas o faz apenas pela
televiso. Para essas pessoas esto reservados os desfiles dos grupos inferiores, que ainda
so realizados em avenidas da cidade com cobranas simblicas ou distribuio gratuita
de ingressos.
Um fato mais grave ainda e que mostra a excluso dos sambistas dentro do
Sambdromo eram os penetras de carteirinha. No ano em que os ingressos aumentaram
mais de 800%, cerca de quatro mil pessoas assistiram aos desfiles sem pagar, apenas com
credenciais e carteiradas oficiais. Ao contrrio do espao pblico, no espao do
210

211

Sambdromo aqueles que entravam sem pagar eram servidores pblicos. Para o diretor de
infraestrutura do Anhembi, Jos Pedro Elmadjian Sobrinho: Houve um abuso de
credenciais e carteiras de polticos, policiais militares, oficiais de justia e outros (O
ESTADO DE SO PAULO, 30/01/1996). A sada encontrada pelos organizadores foi a
implementao de cartes magnticos e catracas eletrnicas, alm de controlar e estipular
a validade de credenciais oferecidas a prestadores de servio.
Christian Oliveira traz a analogia de que a construo do Sambdromo no
representa a casa do sambista, mas o tmulo do samba, pois no permitido ao pobre
o acesso ao local nos dias de desfile, pelo preo dos ingressos e fantasias e porque nos
demais dias do ano no h nenhuma outra atividade ligada ao samba, com exceo dos
ensaios tcnicos das escolas, mas tambm inseridos no contexto dos desfiles (OLIVEIRA,
2007, p. 144).
As obras do Sambdromo terminaram definitivamente em 1996, pelo ento
prefeito Paulo Maluf, que inaugurou o Polo Cultural e Esportivo Grande Otelo. Contou
com um investimento municipal muito maior que o previsto no contrato de licitao
pblica, inclusive com a contratao de diversos servios de emergncia, que dispensa
processo licitatrio115, modelo seguido por muitas obras da gesto de Maluf frente da
Prefeitura. Recentemente, o ex-prefeito foi condenado pela justia das Ilhas Jersey,
paraso fiscal prximo ao Canal da Mancha, a devolver para os cofres pblicos R$ 57,9
milhes referentes a desvios e superfaturamento em obras de sua gesto como prefeito da
cidade. O maior montante desviado foi da obra da Avenida gua Espraiada, atual
Jornalista Roberto Marinho (FOLHA DE SO PAULO, 19/01/2013).
Ainda houve uma ltima tentativa de se desfilar pelas ruas da cidade. Em 1996,
aps a apurao do carnaval, as escolas de samba mais bem classificadas do Grupo
Especial e do Grupo I desfilaram em diversos locais da cidade. Foi uma tentativa de
aproximar as escolas de samba do grande pblico. A escola Gavies da Fiel desfilou na
Avenida dos Metalrgicos, na Cidade Tiradentes. O pblico compareceu e nem esperou a
apresentao acabar para se misturar aos passistas durante o desfile. A Polcia Militar,
115

Pasta Anhembi Turismo 1992. Relatrio do Carnaval. 1992. Centro de Documentao e Memria do
Samba, AHB 1992.

211

212

percebendo que o cordo de isolamento feito por ela foi rompido, soltou ento bombas de
gs lacrimognio para dispersar a multido. Segundo o jornal Dirio Popular: Um gs,
de cheiro forte, asfixiante e efeito lacrimejante, tomou conta do ambiente. As pessoas
ficaram desorientadas e caram no cho. Integrantes da Gavies gritavam que se tratava
de bombas atiradas pelos PMs, na tentativa de conter o tumulto. O jornal tentou justificar
a ao da Polcia com a manchete sensacionalista Desfile vira arrasto (DIRIO
POPULAR, 22/02/1996). O carnaval-show-mercadoria s pensado para se
acompanhar de longe. Qualquer tentativa da populao pobre de se divertir confundida
com assalto e desordem. Para o jornal, a ao da Polcia Militar no foi apenas justificada,
mas parabenizada, pois rapidamente conseguiu controlar o tumulto e confuso causados
por pessoas que no queriam apenas olhar, mas participar da festa e desrespeitaram o
cordo de isolamento feito pela polcia.
Reaes semelhantes ocorreram nos bairros de Vila Maria, onde desfilou a VaiVai, campe de 1996, e Freguesia do , onde desfilou a Rosas de Ouro. Nesses locais, a
multido no s ficou observando o desfile, como entrou no meio das alas e atrs, na
tentativa de no ser apenas espectador, mas novamente participar dos desfiles.
Depois dessa tentativa de levar a apresentao das escolas de samba para os
diferentes bairros da cidade no ter sido aprovada pelas autoridades, elas passam a
acontecer apenas em seu monumento, a Passarela do Samba. Local visto pelo poder
pblico e pelas emissoras de TV como local mais adequado, afinal este possua uma
pista com 530 metros de comprimento por 14 metros de largura, dez setores com
arquibancadas de concreto e mais um mdulo especial para a imprensa e TV. E ao
contrrio dos pobres que estavam nos bairros perifricos da cidade, querendo participar
do desfile, no Sambdromo isso no ocorre, pois a pista totalmente ladeada por
camarotes, alugados por multinacionais, proporcionando grande conforto para seus
convidados especiais. A rea total de 33.975 m2 116.
A partir desse ano ficou acertado que os desfiles ocorreriam em dois dias (sexta
e sbado) para serem transmitidos integralmente pela Rede Globo de Televiso e no
116

Pasta Anhembi Turismo 1992. Relatrio do Carnaval. 1992. Centro de Documentao e Memria do
Samba, AHB 1992.

212

213

coincidir com os dias do desfile do Grupo Especial do Rio de Janeiro. A emissora


inicialmente era contra os desfiles do Grupo Especial em dois dias, chegando inclusive a
no transmitir o carnaval de So Paulo, mas aps ser batida com larga margem na
disputa pela audincia pela TV Manchete, que transmitiu os desfiles ao vivo, a emissora
carioca no deixou mais de transmiti-los.
Como possvel observar na planta baixa do Sambdromo, o televisionamento
j estava previsto em sua arquitetura. Todos os que assistem ao desfile de dentro dele
possuem uma viso lateral do desfile, inclusive os jurados. A transmisso da TV a
nica que tem uma viso frontal, pois sua cabine est em uma torre acima das
arquibancadas, alm dos diversos blimps e cmeras posicionadas ao longo da avenida.
Os blimps so bales flutuantes a base de gs hlio, ideal para visualizao a distncia.
Coloridos e iluminados, os blimps garantiam grande visibilidade aos produtos
anunciados no Sambdromo.

213

214
Planta baixa do Sambdromo. Pasta Anhembi Turismo 1996. Centro de Documentao e Memria do
Samba, AHB, 1996.

O documento So Paulo, Samba de Cara Nova, produzido pelo Departamento


de Marketing da Anhembi Turismo, em 1996, aps o encerramento das obras do
Sambdromo e direcionado a empresas interessadas em patrocinar o carnaval, revela
que o desfile das escolas de samba um evento com alto potencial lucrativo, portanto
atrativo para investimentos. Segundo a Anhembi, o desfile das escolas de samba no
Sambdromo de So Paulo seria um excelente investimento publicitrio, pois conta com
mais de dez horas de transmisso ao vivo pela televiso e manchete dos principais
jornais por mais de dez dias. E convida explicitamente os empresrios: Por ser um
evento muito divulgado e de grande concentrao de pblico, oferece vrias e variadas
oportunidades de retorno de mdia indireta e merchandising local, o que otimiza em
muito (sic), o custo de seus patrocinadores117. A opo poltica do Estado brasileiro
associado indstria cultural de eleger o samba como a musicalidade brasileira central
no impede e at estimula as potencialidades de convivncia instantnea com os mais
modernos veculos de comunicao e empresariais.
Para Marcos dos Santos, a visibilidade do Sambdromo s boa para quem est
nos camarotes assistindo aos desfiles. O Sambdromo ruim do ponto de vista do
espectador comum de arquibancada e de quem desfila. Para Marcos, quem est desfilando
no consegue sentir uma interao com o pblico, alm de ser localizado em uma rea de
difcil acesso, por no contar com metr e trem prximos. Apenas poucas linhas de nibus
atendem ao destino:

O Sambdromo do Anhembi foi construdo para a linguagem televisa. A


proposta arquitetnica do Anhembi de ser bem iluminada, uma
arquibancada distante das escolas, horrvel desfilar voc no sente o
pblico. A no ser que voc tenha grana para comprar camarote voc no v
direito. Ele muito mal localizado, no se oferece condio do pblico
chegar at l118.

117

Documento So Paulo, samba de cara nova. Pasta Anhembi Turismo 1996. Centro de Documentao
e Memria do Samba, AHB, 1996.
118
Entrevista com Marcos dos Santos. Data: 10/08/2010.

214

215

Dona China, primeira e eterna porta-bandeira do Vai-Vai, atualmente com 82


anos e mais de 70 carnavais disputados, analisa o Sambdromo do ponto de vista de
quem assiste ao desfile, denunciando a ausncia de conforto para os sambistas. Para ela,
a infraestrutura provisria e o monta e desmonta dos desfiles da Avenida Tiradentes era
melhor do que a do Sambdromo:

Ns gostvamos da Tiradentes, sabe por qu? Na Tiradentes tinha onde o


pessoal fazia a concentrao, tinha mais liberdade, tinha bar aonde voc
poderia ir em um banheiro, voc podia comer uma coxinha, uma empadinha,
voc tinha a liberdade de usar os barzinhos dali, e veja bem, l no Anhembi
voc no tem, tinha no comeo algumas barracas que ficavam ali no comeo,
mas de uns tempos para c, terminou, no tem mais nada.

A nova estrutura dos desfiles no Sambdromo fomentou inovaes no desfile,


pois as escolas passaram a contar com uma pista maior e mais ampla, possibilitando um
aumento significativo no tamanho dos carros alegricos, que passaram a ser construdos
em barraces prximos ao Sambdromo, facilitando o transporte e possibilitando
alegorias maiores. Por outro lado h uma significativa perda, pois traz um
distanciamento da comunidade do processo de produo material do carnaval, algo que
fazia parte do cotidiano da escola (BELO, 2008, p. 94).
Ao transmitir os desfiles, as emissoras de TV passaram a pagar direitos de
imagem para as escolas de samba. Novamente, o modelo do carnaval de So Paulo se
espelhou no carnaval do Rio de Janeiro que, naquele momento, j estava perfeitamente
adaptado, e que exige das escolas de samba: agilidade, riqueza, beleza, tempo definido e
rigorosamente controlado, alm de adequao grade de programao da emissora.
Uma das penalidades mais rigorosas impostas s escolas de samba durante os desfiles
so os atrasos. Um minuto a mais de desfile pode significar a perda do campeonato ou o
rebaixamento de uma escola. A punio varia de acordo com o regulamento. No ano de
1996, a pena para cada minuto atrasado era a perda de um ponto, podendo uma escola
perder o ttulo ou mesmo ser rebaixada pelo atraso de um minuto.
215

216

Muitos sambistas criticam este modelo engessado de competio. Para eles, ao


criar regras to rgidas, a competio tira quase toda a possibilidade diverso de se
viver o esprito do carnaval, nas palavras de Jamelo. Para o eterno intrprete da
Mangueira uma ignorncia o desfile ser tratado como se atendesse somente aos
requisitos exclusivos de um programa de televiso, fazendo parte de uma construo
cenogrfica com horrio demarcado para incio e fim.

O samba mudou mais porque apareceu esse negcio de televiso que


antigamente no tinha e a escola tem que estar com o horrio marcado. Eles
querem aquilo ali em tempo e hora no pode atrasar, porque tem que acabar
cedo, por conta do horrio da programao, da que eles mesmos embolam
tudo, j que tem a passarela, e muitas vezes acontece de um carro de alegoria
quebrar e da um bolo. At consertar. Isso a imprevisvel e como tem
horrio marcado, no tem conversa, atrasou perdeu pontos. (...) mais do
que um desfile militar, que num desfile militar voc v um ritmo e no samba
mais acelerado, porque a escola tem um contingente maior, quem dera que
a escola tivesse o mesmo nmero que um batalho, mas a escola leva uma
nuvem de seis mil, e agora tem escolas que levam turistas que vm de fora
que gostam de samba querem participar, chega muito turista, e eles acham
que no podem participar. Poder pode mas eles tm que entrar no andamento,
o diretor de harmonia tem que ser muito sagaz, de olho no relgio, porque
quando d o apito tem que ficar atento pra todo mundo ir embora. (...)
Antigamente era um pouco mais cadenciado, o samba acabava com o dia
claro, agora eles correm um pouco mais porque a televiso quer e fica em
cima, ento tem essa coisa, sabe que perde ponto ento pe a escola para
correr 119.

A questo do tempo, crucial nos concursos realizados pelas escolas de samba,


impede as pessoas de aproveitarem plenamente o carnaval. H a criao de um
paradoxo. O carnaval uma festa que exige um tipo de tempo especial, vazio, sem
trabalho. O tempo do carnaval cclico e csmico, marcado pelo relacionamento entre
Deus e os homens, adquirindo, com isso, um sentido universalista e transcendente.
Como aponta Roberto Da Matta, no possvel determinar quando se iniciou o
carnaval, porque ele est ligado a toda a humanidade, e pensar em seu tempo pensar
em termos de categorias abrangentes como o pecado, a morte, a salvao, o sexo e seu
abuso ou sua moderao (DAMATTA, 1996, p. 54).
119

Entrevista de Jos Bispo Clementino dos Santos, popularmente conhecido como Jamelo. Data:
06/01/2006.

216

217

Com a limitao do tempo e a punio para quem no seguir essa regra, os


desfiles carnavalescos saem do tempo csmico e entram no tempo do capital, com
estruturas rgidas impostas a todos que participam dos desfiles. Para o folio comum, o
tempo dos desfiles era o de lazer, ou seja, do no trabalho. Ao se padronizar e limitar o
tempo dos desfiles so reafirmadas as relaes da sociedade capitalista, em que o tempo
do lazer limitado para apenas refazer as energias dos trabalhadores e para o consumo,
necessrios para um novo ciclo de trabalho. No existe a possibilidade de insero de
uma nova sociedade baseada no lazer dentro do sistema capitalista de produo. O
filsofo hngaro Istvn Mszros analisa em sua obra, Para alm do capital, que, para
superar superao da lgica do capital e de seus meios de dominao, necessria a
destruio do sistema hierrquico de diviso do trabalho que subordina as atividades
vitais dentro do trabalho ao capital. Com esta mudana passaria a ser verdadeiro o
princpio em que o tempo fora do trabalho teria um carter emancipador. Caso
contrrio, o trabalho continuar reproduzindo o poder do capital sobre si prprio
(MSZROS, 2002, p. 892).
As relaes capitalistas de tempo impedem que o carnaval seja vivido em sua
plenitude. Mestre Gabi observa isso na relao da cidade com o carnaval. Para ele no
h nenhuma evidncia nos espaos pblicos da cidade de So Paulo indicando o tempo
de carnaval. Uma das poucas coisas que remete a esse tempo so os desfiles das escolas
de samba, vistos como apenas mais um evento da cidade e que, na atual configurao,
poderia acontecer em qualquer poca do ano, no necessariamente no carnaval.

duro o que eu vou dizer, eu, Gabi. No vejo mais o carnaval, pelo menos na
nossa cidade. No se vive o carnaval. Voc vive um desfile de escola de
samba l no sambdromo. Se voc sair daquele meio ali voc anda pela
cidade normal como se tivesse num dia comum. At com menos gente,
porque muita gente aproveita pra viajar. Entra em uma escola de samba e v
desfilar. V como componente da escola mesmo, de nibus, faa a via sacra.
Quando voc descer do nibus, entra no corredor polons, naquele espao, a
fica l parado esperando porque tem que concentrar duas escolas. A vai
entrar, mas se sua ala for uma das ltimas est frito, porque vai ficar l atrs.
Depois que entrou, em 20, 25 minutos voc passa a pista toda. Quando
menos, porque s vezes a escola t grande, gasta menos tempo. Quando
acaba o desfile j vem o segurana e coloca vocs pra entrar no nibus e voc
vai embora e acabou o seu carnaval. carnaval? No carnaval, voc no v

217

218
ningum fantasiado nas ruas como antigamente a gente via. (...) Agora o
sambista pobre desfila pela sua escola e vai embora. Acabou o carnaval. s
20 minutos de avenida. L voc no pode entrar nem com uma garrafa
dgua. Ento tudo voc tem que comprar. Voc quer gua? Voc tem que
descer l e comprar. Ento isso restringiu demais os sambistas. E a eu digo a
comunidade sambstica que a comunidade pobre, n? Ento elitizou demais.
Ficou tudo caro. 120

A dinmica de disposio dos camarotes ao longo da pista evidencia apenas as


grandes empresas com os ricos, chiques e famosos protagonizando a descaracterizao
do carnaval original, negro e popular, acirrando a ideia de carnaval espetculo
A lgica das escolas business faz parcerias com o futebol, como possvel
observar principalmente com o surgimento das escolas ligadas a torcidas organizadas,
como a Gavies da Fiel, ligada ao Corinthians; Mancha Verde ao Palmeiras, Drages da
Real ao So Paulo e Torcida Jovem ao Santos. Tambm financiada por polticos que
prometem benefcios e patrocnios em troca de votos das comunidades e por
representantes de atividades informais e ilegais como o jogo do bicho (RODRIGUES,
1984).
A definio de um local permanente e fora do espao pblico das ruas levou as
escolas do atual Grupo Especial e at mesmo do segundo grupo, chamado Grupo de
Acesso, uma nova forma de utilizao dos espaos vizinhos ao Sambdromo. Elas
transferiram seus barraces (local onde as alegorias so construdas) para reas mais
prximas do Anhembi, com a finalidade de facilitar o transporte de alegorias, em
especial as escolas de bairros mais afastados, que sempre tinham problemas com carros
alegricos que quebravam durante o transporte at o Sambdromo ou que ficavam
presos em viadutos. Por outro lado, como alerta Vanir Belo, o distanciamento da
produo de alegorias da sede da escola, distancia tambm a comunidade de parte da
produo material do carnaval, que fazia parte do cotidiano do bairro (BELO, 2008, p.
107).
Como atesta o texto produzido pela SP Turismo, o Polo Cultural Grande Otelo
no possui nenhuma ligao ou fomento s escolas de samba e adquiriu a finalidade de
120

Entrevista de Mestre Gabi. Data: 25/10/2010.

218

219

ser mais uma opo de entretenimento e local de eventos da cidade, sendo o carnaval
apenas uma das atividades que ele realiza ao longo do ano.

O Polo Cultural Grande Otelo, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer,


um dos maiores espaos para grandes eventos ao ar livre na cidade de So
Paulo. Tambm conhecido como Sambdromo, tem abrigado em mdia 30
grandes eventos por ano, alm da maior festa popular paulistana, o Carnaval.
Inaugurado em 1991, nos ltimos anos uma diversificao da utilizao dos
seus espaos fez do Polo um local para eventos de diferentes estilos, tanto
esportivos quanto apresentaes artsticas. O local possui 10 mdulos de
arquibancadas ao longo de uma pista de 530 metros de comprimento por 14
metros de largura, com acomodao para 26.246 pessoas sentadas.
Distribudas pelos diversos setores/arquibancadas esto instalados 138
camarotes, com tamanhos variados que acomodam entre 10 e 50 pessoas.
Todos os setores possuem infraestrutura completa para bares. A arquibancada
monumental do Polo, com capacidade para 7749 pessoas sentadas, fica
situada em frente a um palco de 900 m2. Alm das arquibancadas, a
monumental, possui 10 amplos camarotes em frente ao palco com tima
visibilidade. Nos bastidores do palco esto disponveis trs grandes camarins
e amplas reas de servios. Local ideal para shows de mdio porte, como foi
o caso do Sampa festival, que abrigou mais de 10 mil espectadores neste
espao. O Polo tambm possui duas grandes reas abertas, denominadas
concentrao e disperso (denominaes extradas do mundo do samba)
ideais para grandes shows musicais. No espao da concentrao foi
construda a ARENA ANHEMBI, o primeiro espao para megaeventos com
estrutura fixa do pas. A So Paulo turismo aplica uma poltica de
comercializao de seus espaos para aes de Marketing Profissional. O
Polo Cultural e Esportivo Grande Otelo que pode ser comercializado de
forma exclusiva nos seus, 93 mil m2, considerando-se os espaos da Arena,
Disperso e Pista. Ou ainda possvel a utilizao de espaos especficos,
adequando as necessidades de construo do seu evento. 121

Aps a entrega do trofu para a campe do carnaval, na Quarta-Feira de Cinzas,


nos prximos 360 dias do ano o Polo fica subutilizado para eventos de uma marca de
cerveja, patrocinadora e mantenedora do espao, que no tem nenhuma ligao com o
mundo do samba. So muito pouco significativas as atividades realizadas ao longo do
ano ligadas ao universo do samba ou das escolas de samba. Isso revela que a ligao
que as escolas de samba tm com o espao do Sambdromo se resume ao do perodo
carnavalesco.

121

Extrado de: <http://spcarnaval.com.br/sambodromo.php>. Apud: BELO, Vanir de Lima. O enredo do


carnaval nos enredos da cidade: dinmica territorial das escolas de samba em So Paulo. Dissertao de
Mestrado. So Paulo: FFLCH/USP, 2008, p. 105-106.

219

220

Como diz Ana Maria Rodrigues, as consequncias da Passarela do Samba para


o grupo negro, sempre identificado com o dia a dia das escolas, so funestas:

O indivduo que participava diretamente das manifestaes culturais de seu


grupo dando formas plsticas e estticas ao seu poder criador, independente
do grau de sofisticao dessa criao teve solapada tal oportunidade.
Atualmente encontra-se na situao de mero espectador, sem quaisquer
gratificaes advindas da capacidade de criar enredos, pensar nas fantasias,
construir seus carros alegricos utilizando papelo molhado, danar enfim,
solando o corpo no espao, deixando-se instintivamente conduzir pela fora
do batuque. Isso porque os desfiles atualmente so programados passo a
passo por pessoas estranhas sua realidade social, sua identidade racial,
ficando para os negros apenas a parte pesada da execuo dos projetos e a
efetiva massa desfilante que d corpo escola nos desfiles (RODRIGUES,
1984, p. 42).

Dona China, em depoimento ao autor, tambm v o mesmo processo de


excluso e afastamento das camadas mais pobres da sociedade dos desfiles das escolas
de samba do Grupo Especial, seja como protagonista, desfilando, pois o preo de uma
fantasia possivelmente passa de um salrio mnimo, seja como mero espectador, pois os
preos dos ingressos para assistir aos desfiles tambm so altos.

Antigamente voc vivia o carnaval porque no precisava pagar para assistir,


voc estava em uma avenida ela j lotava, j vinham s escolas de samba
aquela coisa linda. Hoje em dia, para assistir o carnaval tem que pagar e no
tem liberdade, j que voc est l na arquibancada. Se voc quiser levar uma
comida, um lanche, j no pode, tem que comprar tudo l. Ento o carnaval
mudou nesses aspectos, porque a pessoa que gosta de carnaval vai porque
quer assistir, mas o carnaval hoje mais para os ricos, porque eu no vou l
pagar R$ 400,00 em um camarote, e eles pagam, e os camarotes esto
superlotados.

Novamente comparando a situao dos desfiles das dcadas de 1970 e 1980 na


Avenida Tiradentes com os atuais no Sambdromo do Anhembi, Dona China enxerga
mudanas significativas nos desfiles:

Mudou, ali para ficar bom tinha que desfilar direto (Anhembi), porque voc
tem aquela curva que engole muita coisa, voc vem e a curva tem que fazer

220

221
isso, voc no v a escola inteira, depois da curva que vem vindo as alas e
isso eu acho que prejudica um pouco, porque o bonito voc ver a escola
quando ela vem voc v aquela emoo, aquela coisa, tem que sair uma para
entrar a outra, no cabe a escola inteira na pista. nisso que eu acho que
mudou, na Tiradentes cabia direitinho.

Em So Paulo, as escolas se profissionalizam quando o poder pblico


financiador dos desfiles carnavalescos exigiu das mesmas, em contrapartida, um
comportamento mais empresarial, de suas diretorias. A princpio, estas eram escolhidas
de acordo com a tradio e importncia dos membros dentro da comunidade, mas a
interferncia externa faz com que sejam criadas regras cada vez mais rgidas na
organizao do carnaval, afastando cada vez mais o simples sambista das decises
tomadas pelas escolas.
Esta lgica empresarial no reflete totalmente a realidade das escolas de samba, mas
apenas as escolas dos principais grupos (Especial e Acesso), j as escolas menores dos
outros grupos ligados UESP (I, II, III, IV) permanecem apresentando caractersticas mais
prximas dos desfiles dos perodos anteriores. Estas escolas no tm a visibilidade e os
recursos das grandes escolas e dependem ainda do trabalho voluntrio e artesanal,
utilizando, na maior parte das vezes, a casa dos prprios componentes para produzir e
armazenar os instrumentos, fantasias, adereos, alegorias e realizar a maioria de suas
atividades ao longo do ano. O processo histrico de se fazer samba sempre esteve
vinculado s classes subalternas. Mesmo sendo hegemnicos dentro dos festejos
carnavalescos, os smbolos originais do samba no deixaram de ser comunitrios e
provincianos, nem se perdeu a mstica do batuque e da comunicao com as entidades
espirituais. possvel ver isso nas rodas promovidas pelas escolas de samba para
batismos de sambistas, apresentao dos novos sambas ou em pedidos de proteo para
que tudo ocorra bem durante os desfiles. Para as camadas mais pobres da sociedade
esto reservados estes desfiles das escolas de samba menores, ligadas a vrios bairros
perifricos da cidade, que saem todos os anos disputando concursos promovidos pela
UESP em grupos inferiores, em datas diferentes dos dias reservados ao desfile principal.
Estes eventos atraem milhares de pessoas e no tm nenhuma cobertura por parte da

221

222

grande mdia e da indstria cultural, permanecendo ligados essncia do carnaval como


festa genuinamente popular.

222

223

PARTE II
TRANSCRIAES

223

224

Nas pginas seguintes sero apresentadas as transcriaes das entrevistas


realizadas pelos sambistas que colaboraram com este projeto. Para colaborar com esta
pesquisa, foram escolhidas pessoas que viveram e testemunharam as transformaes
pelas quais o carnaval da cidade de So Paulo passou durante o perodo estudado (19681996). Apesar do grande volume de documentao impressa sobre o carnaval de So
Paulo, inclusive com entrevistas j realizadas para outras pesquisas, julgamos
fundamental respondermos, de forma satisfatria, a pergunta inicial da presente
dissertao: Quais foram e como ocorreram as transformaes institucionais e estticas
que o carnaval da cidade de So Paulo vivenciou a partir de sua oficializao at o
advento do Sambdromo? Era necessrio entender como os sambistas sentiram,
vivenciaram e interpretaram essas mudanas. Grande parte das consequncias sentidas
pelos sambistas a partir das transformaes e hibridizaes das relaes entre as
agremiaes carnavalescas e o poder pblico municipal e, posteriormente, entre os
meios de comunicao eletrnica nos quase 30 anos que esta pesquisa abrange s
possvel ser compreendida a partir das vozes deles prprios, frente a essas mudanas.
E como escolher os sambistas que participariam? Escolhemos para entrevistar
alguns membros da Embaixada do Samba, entidade cultural ligada Unio das Escolas
de Samba Paulistanas (UESP), que rene os baluartes do samba da cidade de So Paulo.
Os embaixadores e embaixatrizes so muito respeitados dentro do mundo do samba e
desempenham uma funo pedaggica, com a finalidade de preservar as tradies do
samba paulistano, atravs de rituais, como os realizados anualmente no dia 2 de
dezembro, Dia Nacional do Samba, ou em palestras, no interior de suas agremiaes, ou
gentilmente cedendo entrevistas, como as realizadas para este trabalho. O conhecimento
desses baluartes transmitido oralmente para as novas geraes, principalmente s
ligadas ao cotidiano das escolas de samba. Para ser membro da Embaixada do Samba,
necessrio ter, no mnimo, 25 anos como membro atuante de alguma escola de samba.
Normalmente, os nomes mais proeminentes das Velhas Guardas das Escolas de Samba
so escolhidos Embaixadores.
Todos os membros da Embaixada possuem mais de 60 anos e vivenciaram as
transformaes ocorridas a partir da oficializao do carnaval paulistano, em 1968, e a
224

225

perda do espao pblico com a transferncia dos desfiles das ruas para o Sambdromo,
em 1991. Como a Embaixada possui, atualmente, mais de 50 membros, procuramos
entrevistar aqueles mais atuantes, que ocuparam cargos de direo em escolas de samba,
federaes e associaes carnavalescas.
Vivemos em um sistema no qual o passado cada vez menos importante e a
velhice uma categoria social rejeitada pela sociedade industrial, pois no participa da
produo de mercadorias. Para Eclea Bosi, nesse momento de sua vida que o idoso
deve desempenhar a alta funo da lembrana [...] cresce a nitidez e o nmero das
imagens de outrora, e esta faculdade de relembrar exige um esprito desperto, a
capacidade de no confundir a vida atual com a que passou, de reconhecer as
lembranas e op-las s imagens de agora (BOSI, 2009, p. 81).
Seguindo a linha proposta por Bosi (2009), alm de uma justificativa histrica,
ao darmos voz aos membros das Embaixadas, temos uma justificativa social para a
realizao deste trabalho. Pretendemos, assim, reconstruir, atravs do envolvimento
dessas personagens com o mundo do samba, as vozes que historicamente no so
ouvidas. Personagens que dedicaram boa parte da vida em prol dos folguedos e, apesar
da popularidade atingida hoje pelas escolas de samba, esto excludas dos meios de
comunicao de massa e da indstria fonogrfica.
O primeiro entrevistado e nosso ponto de partida Marcos dos Santos, fundador
da escola de samba Tom Maior e atual diretor do Centro de Documentao e Memria
do Samba (CDMS). Marcos participa h mais de 45 anos de cordes carnavalescos e
escolas de samba. Sempre foi um militante das escolas de samba de So Paulo, travando
diversas lutas dentro da entidade que dirige, o CDMS, a fim de preservar e divulgar a
arte produzida pelas agremiaes.
Meu primeiro contato com Marcos ocorreu em 2006, quando eu fui conhecer o
acervo do Centro de Documentao. Ele soube do meu interesse por carnaval e escolas
de samba e me convidou para participar do curso de formao de jurados da UESP, no
mdulo visual. Em 2007 eu realizei o curso e Marcos foi um dos professores. A relao
professor-aluno logo se desenvolveu em uma longa amizade, a qual perdura at hoje.

225

226

Antes de ingressar no Programa de Ps-Graduao, na poca em que estava


redigindo o projeto, trocamos muitas ideias e ele me esclareceu diversas dvidas.
Quando a pesquisa de fato iniciou e a Histria Oral tornou-se uma de minhas fontes
principais, Marcos foi um dos maiores entusiastas. Disps-se a ser o primeiro
entrevistado e me apresentou a inmeros sambistas-membros da Embaixada do Samba.
A entrevista realizou-se no dia 10/08/2010 e, depois disso, Marcos me indicou dois
nomes Mestre Gabi e lvaro Casado. A entrevista foi revista por Marcos no incio de
2011 e, aps ajustes de alguns nomes, que no estavam compreensveis, e a retirada de
algumas denncias mais contundentes feitas pelo entrevistado, a entrevista foi aprovada.
O tom da entrevista de Marcos marcado pela denncia e pela defesa de um carnaval
popular realizado para o sambista pobre. Para Marcos o pblico a quem o carnaval
deveria se dirigir o das classes menos privilegiadas. Ele optou por retirar algumas
crticas a pessoas, pois, apesar de serem fatos verdicos, no tinha documentos para
prov-las. A entrevista foi validada em maio de 2012, a fim de constar no exame de
qualificao.
Marcos e todos os outros sambistas entrevistados se orgulham de fazer parte da
Embaixada do Samba e de serem membros de uma Velha Guarda. Para eles, ser
membro da Velha Guarda ter a responsabilidade de ensinar as geraes mais novas os
valores de uma gerao anterior que realizava um carnaval artesanal, tornando-se uma
voz que no se molda s exigncias do carnaval do atual modelo televisivo.
O tom de crtica ao modelo atual de desfile e organizao das grandes escolas.
Em alguns trechos, isso aparece em todas as entrevistas como uma questo de gerao.
Todos os entrevistados, com exceo de Dona China, possuem idades aproximadas e
veem seu passado como algo nostlgico e bonito do qual se orgulham, e analisam as
modificaes trazidas pelo presente como algo que no os beneficiou e os excluiu,
apesar de todos fazerem parte da Embaixada do Samba, possurem prestgio e ocuparem
cargos em federaes, caso de Marcos e Mestre Gabi.
O segundo entrevistado foi Gabriel de Souza Martins, o Mestre Gabi. Eleito pelo
jornal Folha de So Paulo o melhor mestre-sala do sculo XX, Mestre Gabi defendeu
os pavilhes de Barroca Zona Sul e Camisa Verde e Branco. Foi fundador e presidente
226

227

da Associao de Mestres-Salas, Porta-Bandeiras e Estandartes do Estado de So Paulo


(AMESPBEESP), professor em diversos cursos para formao de mestre-sala e tambm
para formao de jurados. Atualmente dirigente da Federao das Escolas de Samba e
Entidades Carnavalescas (FESEC), responsvel por organizar e julgar diversos
concursos no interior do Estado. Mestre Gabi tambm foi eleito, no ano de 2011,
cidado-samba e membro da corte carnavalesca dos desfiles oficiais.
Eu no o conhecia pessoalmente, mas aps um breve contato telefnico, Mestre
Gabi se disps a ser entrevistado na mesma hora. Marcamos para uma semana depois,
em 25/10/2010, s 16:00, na sede da FESEC, prxima Avenida Tiradentes. Mestre
Gabi estava muito vontade, apesar de no me conhecer. A entrevista foi conduzida por
mim, filmada por meu irmo e contou com a participao de Lgia Nassif Conti,
tambm pesquisadora do samba na cidade de So Paulo. Foi uma entrevista franca e
emocionada, que nos possibilitou conhecer e, no mesmo instante, admirar uma pessoa
fantstica.
As crticas de Mestre Gabi ao atual modelo das escolas de samba so
corroboradas por Marcos dos Santos, que as inclui na organizao da escola de samba
Tom Maior, da qual fundador. Esses sambistas viveram em sua gerao um paradoxo:
defenderam um ideal de autenticidade, de construo de um espao de lazer e
sociabilidade para seus pares e a maior parte no v com alegria as consequncias do
sucesso do modelo criado por eles. Para eles, o atual modelo das escolas de samba e do
Sambdromo privilegia mais as pessoas de fora do mundo do samba que podem
investir muito dinheiro para participar do que os sambistas de dentro, os quais,
historicamente, so pobres e no tm condies de investir dinheiro, mas que investem
o principal: o seu tempo e o seu amor pela escola.
A viso dos dois dirigentes paulistanos se aproxima do discurso dos portelenses
Paulinho da Viola, Candeia e Joo Nogueira nos anos 1970. O processo pelo qual as
escolas de samba do Rio vivenciaram naquela dcada, as escolas de So Paulo
vivenciaram nas duas dcadas seguintes.
Em 1975, um grupo de compositores da Portela, encabeados por Candeia,
Andr Motta Lima, Carlos Monte, Cludio Pinheiro e Paulinho da Viola, enviou ao
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228

presidente da escola de samba um documento com crticas s decises tomadas pela


diretoria da agremiao. Esse grupo defendia um projeto tradicionalista para a
Portela, que, naquele momento, estava cedendo s intervenes e espoliaes de
pessoas ligadas s classes mais abastadas e que comeavam a ter poder dentro da escola
(RODRIGUES, 1984).
A diretoria defendia a integrao da Portela ao novo modelo de carnaval que
havia se configurado na dcada anterior, com a entrada de carnavalescos e patronos
ligados s classes mais altas. No documento, Candeia diz: escola de samba povo em
sua manifestao mais autntica. Quando se submete s influncias externas, a escola de
samba deixa de representar a cultura do nosso povo. E mais frente: O sambista, a
princpio, viu isso como uma vitria do samba, antes desprezado e at perseguido. O
sambista no notou que essas pessoas no estavam na escola para prestigiar o samba. E
a que as escolas comearam a mudar (BUSBCIO, 2008, p. 288).
O grupo no encontrou espao dentro da Portela e, no final de 1975, o grupo de
compositores deixou a agremiao e fundou a escola de samba Quilombo. Este o
mesmo dilema que vivem algumas pessoas da Velha Guarda, como podemos perceber
claramente nas entrevistas de Marcos dos Santos e Mestre Gabi. No caso, eles preferem
permanecer dentro de suas escolas, mas como uma voz dissonante e respeitada, apesar
de no terem foras polticas e econmicas para reverter esse processo. Aps a
entrevista, Gabi me apresentou a Nicia, funcionria da FESEC e filha de Dona China,
que me passou o nmero de sua me.
Emlia Feliciana Ferreira, a Dona China do Vai-Vai, foi nossa terceira
entrevistada. uma das mais antigas folis do carnaval paulistano, que desfila desde
1936. Participou de vrios cordes carnavalescos e foi a primeira porta-bandeira do VaiVai, quando o mesmo deixou de ser cordo, nos anos 1970. Tambm atuou como
presidente da escola de samba Unidos da Vila Carro e foi fundadora, ao lado de Mestre
Gabi, da AMESPBEESP. Atualmente possui uma barraca de quitutes, que vende um
delicioso cuscuz nos ensaios da escola de samba Vai-Vai. Liguei para Dona China aps
o carnaval de 2011, e ela pediu para marcarmos a entrevista posteriormente, j que
estava se recuperando de um AVC sofrido poucas semanas antes. Tentei novamente o
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contato no incio de julho e marcamos a entrevista para uma tarde de feriado, no dia
09/07/2011. Dentre vrios biscoitos e cafs e rodeados por centenas de fotos dos
carnavais antigos, permanecemos conversando por mais de trs horas. Na entrevista
pudemos observar o orgulho que Dona China tem de ser membro da escola de samba
Vai-Vai e o profundo respeito e reverncia que a escola tem por ela. Contou sua
trajetria e os percalos pelos quais passou, por ser mulher, negra, pobre e sambista em
uma sociedade machista e racista, que durante muito tempo criminalizou o samba e
qualquer atividade de lazer dos negros da cidade, pois, para muitos, a mentalidade
escravocrata ainda estava presente e o papel do negro na sociedade seria apenas
trabalhar sem reclamar. Na entrevista de Dona China, percebemos algo marcante que,
apesar de todas as adversidades, inclusive de perder a me e o marido em um intervalo
de dois meses, ela nunca desistiu de continuar no samba. Uma frase sua sintetiza a
entrevista: Vou desfilar at meu ltimo dia.
Em maio de 2012, retornei para conversar com Dona China e, mais uma vez,
me emocionei. Ela chamou o filho, alguns netos e vizinhos para sua casa e queria
mostrar a todos a transcriao, dizendo que ali estava registrada a sua histria. Aps
alguns ajustes, a entrevista foi validada no mesmo dia.
O nosso quarto entrevistado foi Valdevino Batista da Silva, o mestre Divino. Um
dos maiores mestres de bateria de todos os tempos, foi diretor de Nen de Vila Matilde
e Camisa Verde e Branco. Tambm foi presidente da UESP, fundador e atual presidente
da escola de samba Imperial, localizada na Vila R. Seu nome surgiu em uma conversa
informal com Adriano Bejar, membro da Comisso de Carnaval da UESP. Lamentamos
a morte de Mestre Lagrila, grande diretor de bateria do carnaval de So Paulo, com
passagens por Camisa Verde e Branco, Nen de Vila Matilde e Leandro de Itaquera.
Concordamos que, se eu estava estudando as transformaes estticas do carnaval de
So Paulo, seria fundamental conversar com Mestre Divino, pois ele possua um estilo
nico e sua bateria tem a maior quantidade de instrumentos diferentes de todas as
escolas de So Paulo.
Depois de um contato prvio por telefone, agendamos a entrevista para um
sbado, dia 15/10/2011. Chegamos quadra da escola no bairro da Vila R, zona Leste
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da cidade, perto das 14:00. Mestre Divino no estava e nos informaram de que ele
estava no barraco da escola. Fomos at l e aguardamos por quase duas horas no
barraco da escola, j que Mestre Divino, junto com alguns netos, faziam a confeco
de um carro alegrico de sua escola. A espera valeu a pena, converteu-se em mais de
trs horas de conversa, com Divino apresentando diversos instrumentos de sua
batucada, como ele mesmo se refere, como tarol, tarolzinho, malacacheta, caixa-deguerra, frigideira e muitos outros. O tom da entrevista foi muito agradvel, de grande
franqueza nas respostas, e Divino se comportava como algum que quer passar adiante
o seu legado; por isso, seus filhos e netos aprendem praticamente juntos a falar, sambar
e batucar.
Ao visitar uma escola de samba pequena e familiar como a Imperial, pudemos
ver como os processos de confeco de fantasias e alegorias ainda continuam coletivos
e artesanais. Mestre Divino tambm compartilha da viso de que o sambista perdeu
espao dentro da direo das grandes escolas. Para ele, o sambista continua dentro dos
cargos, mas obrigado a fazer diversas concesses para arrecadar o montante
necessrio para colocar a escola na avenida, ficando refm do atual modelo. Por no
concordar com este modelo, Mestre Divino preferiu se ausentar das grandes escolas e
fundar a sua prpria. Mas o sonho de que sua escola se torne grande, um dia, continua.
Durante a entrevista, queixou-se diversas vezes sobre a direo da UESP, de que est
endividada e no tem foras nem para manter os prprios regulamentos, j que eles so
constantemente alterados devido a presses tanto das escolas quanto do poder pblico.
A transcriao da entrevista de Divino foi a mais complexa. Como o mestre
utiliza uma linguagem tcnica e faz sons com a boca ou com os prprios instrumentos o
tempo todo, para exemplificar as transformaes musicais vivenciadas por ele no
carnaval, no processo de passagem da oralidade para a escrita, infelizmente, isso se
perdeu. Alguns sons tambm esto incompreensveis por conta da qualidade do
gravador, que no conseguiu captar diferenas sutis de batidas tocadas por Mestre
Divino. Aps a transcrio, Divino aprovou o processo de transcrio no final de 2012 e
de transcriao s vsperas do carnaval de 2013, inclusive nos convidando a pegar uma
fantasia e desfilar em sua escola de samba no evento, o que, infelizmente, no foi
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possvel, devido a compromissos assumidos com a UESP, onde atuei na transmisso


dos desfiles.
O nosso quinto entrevistado foi Osvaldinho da Cuca, primeiro cidado-samba
da cidade de So Paulo, fundador das escolas de samba Acadmicos do Tucuruvi e
Gavies da Fiel e membro da ala de compositores do Vai-Vai. tambm pesquisador
do samba e escreveu um livro sobre o tema. Eu sempre fui um f do trabalho de
Osvaldinho como intrprete e assisti a diversas apresentaes feitas por ele e sua banda,
no circuito SESC e outros espaos dedicados ao samba. Quem iniciou os contatos com
Osvaldinho foi Lgia Nassif Conti. Ele aceitou nos receber prontamente em uma sextafeira, 21/01/2012, um ms antes do carnaval. Apesar de ser uma figura muito atarefada
e, na ocasio, estar com vrios problemas de sade em decorrncia de uma infeco que
havia contrado durante uma viagem a Cuba, realizada semanas antes, nossa conversa se
estendeu por quase quatro horas e Osvaldinho nos mostrou seu acervo, com muitas
fotos e documentao sobre o samba na cidade de So Paulo e ainda, ao final,
presenteou Lgia e a mim com seus CDs e DVDs.
O tom da conversa foi professoral, com Osvaldinho explicando vrios momentos
do samba como estilo musical e a trajetria dos cordes e escolas de samba na cidade.
Em alguns momentos, ao contar suas memrias, no sabamos se Osvaldinho
presenciou determinados fatos ou se os conhecia por tambm ser um pesquisador do
tema. Uma das maiores frustraes de Osvaldinho no momento era no ter conseguido
bons resultados como compositor de sambas-enredos e isso influenciou a sua anlise,
crtica ao modelo atual de organizao das escolas de samba. Osvaldinho, assim como
Marcos dos Santos e Mestre Gabi, define suas opes dentro do samba como uma
misso, um compromisso quase religioso que pauta suas aes e escolhas de vida, e
que, por conta disso, at de oportunidades financeiras para permanecer fiis aos ideais
que acreditam e defendem.
Por causa de sua agenda de shows e constantes viagens, retomamos o contato
com Osvaldinho no incio de 2013, e, passada a fase inicial de transcrio, estamos
aguardando a validao.

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Para fechar o ciclo de entrevistas, decidi buscar o nome indicado por Marcos dos
Santos e entrevistar lvaro Ribeiro, o Casado. Fundador da escola de samba
Acadmicos do Tatuap, foi tambm presidente e diretor cultural da UESP. lvaro
Casado a anttese da anlise que alguns autores fazem sobre a entrada de membros da
classe mdia dentro das escolas de samba. Branco, dono de uma agncia de publicidade
ao lado do escritor, professor e dramaturgo Carlos Queiroz Telles, a Fator Publicidade,
Casado adquiriu o respeito e a admirao dos caciques do samba, como ele mesmo
define. Est envolvido com carnaval desde a dcada de 1950, quando, ao lado de seu
cunhado, lvaro Vilaa, o Mala, participou da fundao da escola de samba
Acadmicos do Tatuap. Casado compositor, venceu com diversos sambas-enredos
em escolas de samba e tambm atua como artista plstico e escritor de enredos para
diversas agremiaes. Em 1975 foi convidado pelas principais lideranas negras do
samba, como Inocncio Mulata, Seu Juarez, Seu Nen e Seu Carlo do Peruche para
assumir a presidncia da UESP, criada dois anos antes. A estratgia de colocar
profissionais universitrios como jornalistas, radialistas e publicitrios nos cargos de
direo da UESP pode ser entendida por alguns como uma entrega de postos-chave para
pessoas de fora do mundo do samba. Mas, na prpria entrevista, Casado diz que foi o
contrrio: os sambistas precisavam naquele momento dos jornalistas para alcanar o seu
fim, que era receber patrocnio da Prefeitura de So Paulo; ele prprio no se enquadra
nessa categoria, pois, no momento em que foi indicado para a presidncia da UESP,
tinha 20 anos de atuao dentro das escolas de samba. O que os dirigentes queriam, ao
nomear essas pessoas, era um melhor trnsito com as autoridades e, de certa forma,
legitimar a nova federao, pois ela contava no apenas com sambistas pobres e
negros, mas com diversos profissionais universitrios e respeitados em suas reas.
Aps um contato inicial por telefone em abril de 2012, marcamos a entrevista
para o feriado de 1 de maio em sua casa, no municpio de Po. Meu pai, que conhece
bem o municpio, me acompanhou e chegamos pela manh na casa de Seu lvaro. A
rea uma chcara, com uma grande rea verde e diversos cachorros que queriam
interagir com os visitantes. O entrevistado mudou-se para l com sua esposa aps se
aposentar. Durante a entrevista, fez questo de mencionar a sua amizade com Mano
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Dcio da Viola, um dos maiores sambistas do Imprio Serrano, e, inclusive, produziu o


primeiro disco de Mano Dcio. O tom da entrevista de um apaixonado pelo carnaval e
por sua escola de samba que, pelo fato de ser um profissional universitrio e com certo
tempo livre, foi procurado pelos caciques do samba para presidir e coordenar as
negociaes do carnaval com a prefeitura num momento de instabilidade e desavenas.
A sua condio mpar de branco e profissional liberal bem-sucedido foram os principais
argumentos dos que o defendiam, dizendo que, alm de dirigente de escola de samba,
lvaro tinha experincia e bons contatos com o poder pblico. Eram tambm os
principais argumentos daqueles que o criticavam, j que algumas lideranas achavam
que um negro deveria estar frente da UESP. Aps a gravao da entrevista, ele nos
contou que possua uma srie de documentos sobre o carnaval de So Paulo em sua
casa. Uma parte ele entregou para compor o acervo do CDMS e outra parte ainda estava
em seu poder, guardada em um arquivo na parte anexa de sua casa. Como havia uma
pessoa morando nesse anexo e ele no queria acord-la, ficou acertado de que veramos
na prxima visita. No feriado de 12 de outubro de 2012, retornamos com a entrevista
transcrita para Seu lvaro ler e levei o disco de Mano Dcio que ele havia produzido,
mas no o tinha. O seu acervo ainda no estava disponvel e ele me emprestou um jornal
e uma revista que continha uma reportagem e uma entrevista que ele havia concedido. A
autorizao para uso e a validao ocorreu em abril de 2013.
Com a finalizao da entrevista de lvaro Ribeiro, julgamos ter reunido um bom
nmero de entrevistas e uma pluralidade de opinies. Entrevistamos dois dirigentes de
federaes e fundadores de escola de samba (Marcos e lvaro), um mestre-sala e uma
porta-bandeira, que tambm tiveram experincias frente de federao e escola de
samba (Mestre Gabi e China), e dois msicos profissionais (Osvaldinho e Divino),
sendo o primeiro atuante exclusivamente como compositor e cantor e o outro que atua
tambm como dirigente, foi presidente de Federao e atualmente exerce a atividade de
presidente de escola. lvaro e Divino foram os dois ex-presidentes da UESP
entrevistados e, durante seus mandatos, houve mudanas dos locais de desfile na cidade.
lvaro participou das negociaes que envolveram a mudana do tradicional centro da

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cidade, para a Avenida Tiradentes em 1977, e Divino, da Avenida Tiradentes para a


mudana definitiva para o Sambdromo em 1991.
Todas as entrevistas foram realizadas na modalidade Histria Oral. O caminho
metodolgico adotado pela pesquisa segue a linha de pesquisa do Ncleo de Estudos de
Histria Oral da USP (NEHO/USP), em particular os modelos criados por Jos Carlos Sebe
Bom Meihy, que define:

Histria oral um conjunto de procedimentos que se inicia com a elaborao de um


projeto e que continua com o estabelecimento de um grupo de pessoas a serem
entrevistadas. O projeto prev: planejamento da conduo das gravaes com
definio de locais, tempo de durao e demais fatores ambientais; transcrio e
estabelecimento de textos; conferncia do produto escrito; autorizao para o uso;
arquivamento e, sempre que possvel, a publicao dos resultados que devem, em
primeiro lugar, voltar ao grupo que gerou as entrevistas (MEIHY; HOLANDA,
2007, p. 15).

A modalidade de Histria Oral escolhida a Temtica; contudo, para o uso


dessa opo, entendemos por Histria Oral Temtica a utilizao de entrevistas de um
determinado grupo sobre um assunto especfico. Essa entrevista do tipo documental no
abrange necessariamente a totalidade da vida do informante, apesar de as entrevistas
abordarem tambm partes importantes da vida do entrevistado no ligadas ao carnaval e
elas constarem no escopo final fundamental, pela oportunidade de recuperar
testemunhos relegados pela Histria.
A metodologia empregada busca reconstituir acontecimentos e cenas
presenciadas pelos entrevistados a respeito do universo das escolas de samba,
analisando os diferentes momentos e transformaes vivenciados por eles, sem atribuir
juzo de valor s decises tomadas pelos dirigentes, enquanto indivduos, mas apenas
buscando enxergar as transformaes obtidas a partir das decises e negociaes das
escolas de samba com outras instncias como a indstria cultural e o Estado. Tambm
utilizada como ao para complementar ou promover o dilogo e o confronto com as
demais fontes. Dessa maneira, os depoimentos podem ser mais numerosos, resultando
em maiores quantidades de informaes, o que permite uma comparao entre eles,
apontando divergncias, convergncias e evidncias de uma memria coletiva dos
entrevistados. Nesta recuperao, os registros de reminiscncias orais se destacam, pois
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permitem a documentao de pontos de vista diferentes sobre o mesmo fato, os quais,


omitidos ou desprezados pelo discurso do poder, estariam condenados ao esquecimento
(MEIHY, 1996 e 2007).
Na busca por caractersticas de uma coletividade, a realizao destes
depoimentos orais nos possibilitou captar, a partir das reminiscncias, o que as pessoas
vivenciaram e experimentaram em mais de 40 anos de participao em folguedos
carnavalescos.
A memria, para Walter Benjamin, constitui na mais importante contribuio
para que as lembranas continuem vivas e atuais, no se transformando em exaltao ou
crtica pura e simples do passado, mas em meio de vida, em procura permanente de
escombros, que possam contribuir para estimular e reativar o dilogo do passado com o
presente. Tanto a Histria como a memria, apesar de distintas, tm substncias
comuns: so as antteses do esquecimento. So fontes de perpetuao (BENJAMIN,
2000). Em consequncia disso, como afirma Jacques Le Goff, so tambm espaos de
poder (LE GOFF, 1990). A historiadora mineira Luclia Delgado v a memria como
base construtora de identidades e solidificadora de conscincias individuais e coletivas.
Ela funcionaria como um elemento constitutivo do autorreconhecimento como pessoa
e/ou como membro de uma comunidade pblica, como as comunidades das escolas de
samba, uma nao privada ou uma famlia (DELGADO, 1996, p. 31). J para Margarida
de Souza Neves, assim como para Benjamin, tambm tem como objeto de sua reflexo a
memria:

O conceito de memria crucial porque na memria se cruzam passado,


presente e futuro, temporalidades e espacialidades; monumentalizao e
documentao; dimenses materiais e simblicas; identidades e projetos. E
crucial porque na memria se entrecruzam a lembrana e o esquecimento; o
pessoal e o coletivo; o individuo e a sociedade, o pblico e o privado; o
sagrado e o profano. Crucial porque na memria se entrelaam registro e
inveno; fidelidade e mobilidade; dado e construo; histria e fico;
revelao e ocultao (NEVES, 1999, p. 218).

Para a historiadora oral Snia Maria de Freitas, metodologia de utilizar


depoimentos orais abre novas perspectivas para o entendimento do passado recente,
reconstruindo, atravs do envolvimento dessas personagens com o mundo do samba, a
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possibilidade e o conhecimento de diferentes verses sobre as transformaes dentro


das escolas de samba. Os depoimentos ainda podem apontar continuidade,
descontinuidade ou mesmo contradies no discurso do depoente (FREITAS, 2006).
Todas as entrevistas foram gravadas em udio e posteriormente transcritas, buscando,
em um primeiro momento, uma reproduo fiel, sem cortes, nem acrscimo; inclusive
tentando reproduzi-las de forma coloquial, com as mesmas expresses e vocabulrios
utilizados pelos entrevistados para torn-los mais prximos possveis de suas ideias originais.
Aps essa etapa inicial, os textos da entrevista foram devolvidos para os sambistas. Nomes
foram corrigidos e algumas passagens foram suprimidas a pedido de alguns entrevistados,
outros autorizaram a utilizao da ntegra da entrevista, que passou por um processo de
textualizao, fundamental para que o narrador se reconhea no texto. Nesta etapa foram
suprimidas as perguntas realizadas pelo entrevistador (ou entrevistadores), produzindo, assim,
um texto de fcil leitura e anlise, dando ao leitor uma ideia do ambiente da entrevista, seu
ritmo e a comunicao no verbal, tpica da oralidade, que se perdem na transcrio do texto.
Incluem-se atravs das palavras as emoes do entrevistado, a entonao, gestos faciais e
corporais, mantendo o clima coloquial e de cumplicidade que se estabelecem nas entrevistas
(MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 156, e MEIHY, 1991, p. 30-1).
A textualizao fundamental para que o narrador se reconhea no texto. Para
conseguir realizar essa tarefa, nos valemos do conceito de transcriao, desenvolvido
por Meihy (1990, 1991 e 2007) e Evangelista (2010). Para os autores, a transcriao
uma necessidade de reformular a transcrio literal para tornar a leitura compreensvel.
Como observa Meihy:

Na transcrio literal h inmeras frases repetidas, enquanto outras so


cortadas pelo entrevistado ou pela qualidade da gravao; h muitas palavras
e expresses utilizadas incorretamente, devido prpria dinmica da fala, da
conversa informal que o que tentamos fazer nas entrevistas (2007, p. 156).

Os depoimentos orais sero mais que arquivo de gravaes: implicam a


elaborao de um documento que pode ser, num primeiro momento, a transcrio do
testemunho e, em outra etapa, a sua anlise. Como observa novamente Meihy, o
primeiro estgio implica objetividade, e o segundo admite graduaes dependendo mais
de quem interpreta (MEIHY, 1996).
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O uso da transcriao justifica-se tambm do ponto de vista social, j que visa no


apenas a utilizao dela para a presente pesquisa, mas principalmente para voltar ao grupo de
sambistas que as gerou, por meio de um apndice ao final deste trabalho, contendo a
transcriao de todas as entrevistas concedidas ao autor, registrando uma parte
importante da histria de vida de todos aqueles que, gentilmente, deram depoimentos
para a pesquisa.
Aps a realizao da transcriao, os textos foram novamente entregues aos
sambistas para a validao das entrevistas. Feito esse percurso, reconstitumos os passos
de uma histria cultural e artstica fundamentais para entendermos aspectos da temtica
social, artstica, poltica e urbana da cidade de So Paulo, e, em alguns momentos, at
do Brasil, durante o sculo XX, procurando compreender a evoluo histrica dos
desfiles, que, em trs geraes, transformou uma variante do batuque africano,
perseguido pela polcia e pelas elites, em um espetculo conhecido mundialmente.

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Marcos dos Santos


Nome: Marcos dos Santos
Data de nascimento: 12/07/1948
Local: So Paulo
Profisso: Arquivista
Escola de samba: Tom Maior
Data da entrevista: 10/08/2010
Local da entrevista: Sede da UESP

Figura 1 Marcos dos Santos


Fonte: Foto tirada pelo autor.

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Nosso papel aqui na UESP preservar o carnaval de


comunidade
Meu nome Marcos dos Santos. Nasci em 1948, aqui em So Paulo. Tenho 41

anos de samba. Recebi, no ano passado, a minha faixa de Embaixador do Samba.


Atualmente, sou coordenador do Centro de Documentao e Memria do Samba, aqui
na UESP.
Eu considero que estou no samba desde 1969, ano do meu primeiro desfile pelo
Cordo Carnavalesco Mocidade Camisa Verde e Branco, na Barra Funda. Desfilei
quatro anos no Camisa, e depois participei da fundao da escola de samba Tom Maior.
As origens do Tom Maior so trs grupos que se juntaram. Existia um grupo de
festeiros que eu liderava na Vila Madalena. Era Maria Helena, eu, Antonio Carlos e a
sua mulher. Tinha um conjunto em que a gente tocava, era o Chic Samba Show. Alm
de ns, tinha um grupo de universitrios que frequentava o So Paulo Chic, casa de
show que a gente tocava. A nos juntamos, com o apoio da Famlia Miranda e de
algumas outras famlias, junto com a gente e esses universitrios da USP e da FEI.
Nessa poca, quem realizava as rodas de samba eram as famlias. amos nas
casas das famlias de amigos nos finais de semana. A eu comecei a namorar uma moa
da famlia Miranda, a Maria Elisa. Ns nos encontrvamos sempre na casa do Hlio, em
alguma festa, samba. E resolvemos fundar a escola de samba Tom Maior.
Uma coisa que no verdade: a gente no dissidncia do Camisa Verde e
Branco, tanto que a maioria continuou no Camisa; era uma experincia nova que ns
queramos ter, uma escola com algumas coisas diferentes. Queramos estar coordenando
um novo processo. O Anbal e eu contestvamos muita coisa do Seu Inocncio, que era
ento presidente do cordo. Mas no dia em que a Tom Maior desfilou pela primeira vez,
eu falei com o Anbal o seguinte: O Seu Inocncio tinha razo em um monte de coisas, a
gente tava sonhando. E a foi fundada em 14 de fevereiro de 1973.
O nome Tom Maior por causa de uma msica do Martinho da Vila. Vai ter
que amar a liberdade/s vai cantar em tom maior/na felicidade de ter um Brasil
melhor. Foi inspirada nessa msica, foi o Hlio Baguna que sugeriu o nome Tom

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Maior. As cores vermelho e amarelo quem sugeriu foi o grande Talism, que participou
do grupo fundador.
A primeira sede foi na minha casa na Rua Cristiano Viana. A segunda sede foi
na Rua Oscar Freire. A ns mudamos para o bairro do Campo Limpo, porque a gente
achou que aqui estava muito elitizado. Foi uma tentativa de se tornar mais popular, mas
foi uma experincia horrvel. Acabamos depois de dois anos l, e aqui a Tom Maior j
comeou brilhando. Em nosso primeiro carnaval existiam apenas trs grupos de escola
de samba.
No comeo a gente chegou at se reunir com o pessoal da Prola Negra, que
tambm do bairro, e com a Boca da Bruxa, que era um bloco que costumava sair
sempre da Praa Benedito Calixto e descer a Rua Teodoro Sampaio. E nos reunamos
com o pessoal de uma escolinha que tinha desfilado somente na Vila Madalena, a
Acadmicos de Vila Madalena.
Nos juntamos para ver se conseguamos unir em uma escola s. Mas tambm j
nasceu a rivalidade que temos com a Prola Negra. Nesse primeiro ano, samos com 180
pessoas, fizemos questo que a conta fosse 180. Queramos que sassem somente
pessoas que participavam do Tom Maior.
Nessa poca, 74, 75, ainda existiam os cortios ali na Oscar Freire, na Capote
Valente. Por incrvel que parea, naquela regio tambm tinha moradores negros e
pobres. A gente comeou a divulgar a escola no Largo de Pinheiros, onde tem o
terminal de nibus do Largo da Batata. Passamos a panfletar l, e isso surtiu efeito; no
carnaval, uma ala inteira j saiu l do bairro do Campo Limpo.
No nosso primeiro desfile, em 74, samos no terceiro grupo, e subimos para o
segundo, ficamos um ano e passamos para o primeiro, que equivale hoje ao Grupo
Especial, a camos em 1977.
muito difcil administrar o carnaval de uma escola de samba. Fui diretor-geral
do Tom Maior durante uns dez anos. Depois, em 1981, quem era presidente era o
Wilson, mas a escola sempre teve muita disputa interna, ento, durante os primeiros
doze anos tivemos onze presidentes. Nenhum conseguia completar o mandato de dois
anos, renunciava, saa.
240

241

A, em 1981, ningum queria pegar, e para evitar que a escola acabasse, ento
virei presidente e fiquei um ano. Tambm no consegui terminar o mandato como era
praxe [risos]. Quando eu sa entrou o Claudinho, que ficou s um carnaval. Mas ele foi
o nico que quis sair e tinha o apoio de todo mundo, todos estavam fechados com ele,
fizemos um carnaval legal, mas ele no quis continuar. Peguei de novo, fiquei mais um
ano e fui derrubado de novo e entrou a Amlia, que era costureira do Tom Maior desde
o primeiro ano.
Mas quem j estava tocando mesmo era o Marko Antonio, um rapaz jovem que
dava uma fora muito grande e eu mesmo fiz presso para ele ficar na presidncia, e ele
assumiu. Ele era moleque, mas era apaixonado. Porque a maior dificuldade dos
presidentes a grana. Mesmo com a grana pouca possvel fazer um bom trabalho. As
verbas vm da quadra, da televiso e outras atividades.
Pessoalmente, eu acho que as escolas so mal administradas, mal planejadas. Por
exemplo, eu nunca vou acusar o Marko de roubar, de tirar dinheiro do Tom Maior,
como eu fui acusado vrias vezes. Sei o quanto isso pesado para a gente. O Marko
mesmo chegou a me acusar, quando eu era presidente. Ele fez parte do movimento que
me derrubou. Depois que ele assumiu, passaram trs anos ele me chamou e falou:
, cara, desculpe; no mole, voc fez milagre.
Quando eu fui presidente no tinha verba de televiso. Era s a verba que vinha
da prefeitura para o carnaval. E a gente no tinha sede; veio a ter a primeira sede, nem
bem sede, uma pequena quadra improvisada debaixo do viaduto Paulo VI.
Eu sou pssimo para lembrar data, mas eu lembro que conseguimos essa
concesso enquanto eu era presidente. Mas eu no sei o que aconteceu. Uns anos
depois, eu me afastei por um perodo e acabaram perdendo esta concesso.
Continuamos l porque invadimos e ficamos at sermos despejados. Ento ficamos na
rua de novo, ensaivamos no Sumar, na Oscar Freire, mas sempre na rua, at que o
Marko Antnio alugou uma sede na Avenida Doutor Arnaldo, que ficamos trs anos,
mas no tinha grana para pagar aluguel.
Ele j est h bastante tempo como presidente. Com ele, a escola adquiriu
estabilidade que antes no tinha. A comeou a crescer. Tem um pessoal, que eu
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considero pequeno, mas que continua l desde a fundao at hoje. O pessoal da Velha
Guarda e algumas famlias, como por exemplo, a minha famlia que continua at hoje,
meu primo e eu, a famlia do Marko Antnio, a famlia do Seu Otto, a do Seu Caju.
Continuam algumas famlias, como a do Caloi. Mas cresceu muito, hoje estamos com
duas mil, trs mil pessoas, um absurdo. E no um pblico cativo, h uma rotatividade
enorme, o pessoal aparece um ano, desfila e no aparece mais.
Eu costumo dizer para minha tristeza que o Tom Maior , hoje, uma escola de
baladeiro, que no do povo; tudo classe mdia universitria, bacana, uma escola
branca, mesmo com pouqussimas excees. negra a nossa porta-bandeira, a maioria
das senhoras da ala de baianas, que ainda continua nas mos do sambista mesmo, mas o
resto j se perdeu. Estamos hoje no terreno do antigo Projeto Equilbrio, e apareceram
alguns patrocinadores. Um grupo fez a reforma, outro grupo arrendou por dez anos a
quadra, ento a gente est muito bem instalado numa das quadras mais simpticas de
So Paulo. Porque falta o tino comercial, de negociador para o sambista. Na verdade, a
gente tem plena conscincia de que at hoje s existem duas escolas de So Paulo que
so bem administradas, e por sambistas. Rosas de Ouro, com a famlia do falecido Seu
Baslio, e a outra a Mocidade Alegre, com a Solange, da famlia do falecido Seu Juarez.
So escolas bem administradas, no tem dvidas, no montam s enredo em cima de
patrocnio, conseguem fazer bons carnavais com o dinheiro que tem. sempre muito
bem planejado.
J tem escola que tem dinheiro, como, por exemplo, o Imprio da Casa Verde.
No que ela bem administrada, que tem muito dinheiro mesmo, ento faz a
diferena. A X9 tambm bem organizada, mas as outras, as tradicionais, como a Nen,
Vai-Vai, Camisa, tm problemas de administrao. Eu jamais penso que por
desonestidade. Eu nunca vi ningum roubando. Eu entendo que mal administrado por
ingenuidade, at. Eu mesmo sou um pssimo administrador, eu no sei administrar nem
minha vida.
Quando eu era presidente do Tom Maior, era uma loucura, era muito mal
administrado: tinha dvida, cheque sem fundo. Mas tem sambistas que so bons
administradores. Uma coisa que eu fui aprender muito depois, quando comecei a
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trabalhar com artesanato, a importncia de almoxarifado, que de primeira


necessidade, e tambm reciclagem, j que o pessoal tira o costeiro e joga l. Esse ano eu
voltei para a quadra depois do desfile e fiquei recolhendo as fantasias, porque o pessoal
comea a jogar a fantasia j na disperso, no nibus e na quadra. Isso mal
administrado. Tem que conscientizar que, depois do desfile, tem que devolver a
fantasia. O que foi jogado de pluma, se fosse guardado, a gente gastaria metade no ano
que vem, porque tudo se aproveita. E no s no Tom Maior, na maioria das escolas
no h um bom trabalho de reciclagem. Se a pessoa no quiser guardar a fantasia depois
do carnaval, deve devolv-la escola.
Em minha opinio, quando houve a oficializao do carnaval em So Paulo e a
fundao da UESP, havia a seguinte presuno: Em dez anos vamos passar o Rio de
Janeiro, e com essa preocupao somente com espetculo visual, a comunidade acabou
ficando cada vez mais em segundo plano e, quando veio a televiso, a prejudicou tudo.
O sambista acabou excludo do mundo do carnaval, como ele excludo como artista,
do teatro, do cinema. Ele no tem acesso a lazer e cultura, porque pra isso tem que ter
grana. Infelizmente, cultura, lazer uma coisa cara e escola de samba, para mim, o
maior exemplo.
O verdadeiro sambista j no tem mais espao, porque ele no tem dinheiro para
pagar fantasia e ele no tem dinheiro para comprar o ingresso para a famlia toda assistir
o desfile, aquele ingresso familiar do tempo da So Joo, Tiradentes j no existe mais.
Eu ia com minha famlia, levvamos lanche, assistamos aos desfiles, hoje j no d
mais, antigamente tinha encontros de carnaval. Eram famlias de sambistas que s se
encontravam no carnaval, eu vivi muito isso, de parentes meus que a gente s
encontrava no carnaval.
E como eu disse, ficou muito nessa de superar o Rio de Janeiro e acabou no
olhando para dentro e nisso inflacionou, porque para ser melhor que o Rio precisa muita
grana e muito planejamento. S que no Rio ou bem planejado ou tem muita grana.
Tem a verba da televiso, quadra, do governo, de bicheiros, dizem por a, que tem at
coisas mais pesadas, mas eu, particularmente, nunca vi.

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No acho que exista dinheiro de trfico financiando escolas, eu no sei de escola


nenhuma que recorra a esse tipo de recurso. com certeza uma maneira de denegrir a
imagem do coletivo dos sambistas, j que a fama ruim sobra sempre para ns. A
imagem do carnaval melhorou muito, depois que incorporou a classe mdia. Mas voc
sabe que incorporou porque moda.
Hoje, desfilar em escola de samba sinnimo de status. Ainda mais que aparece
na Rede Globo, fora a invaso dos artistas, que eu acho uma aberrao que a prpria
escola de samba faz consigo mesma, uma falta de autoestima. Porque rainha de bateria e
congneres eu acho que tem que sair da comunidade. Eu tenho certeza que os grandes
artistas, o grande elenco a comunidade; era a nica vez que a pessoa comum se sentia
artista, todo mundo virava artista no carnaval, isso era muito bom.
Hoje os verdadeiros artistas so os atores mesmos, o sambista virou coadjuvante
desses artistas principais que so da televiso. No existe mais aquela coisa romntica
de o sujeito simples ser rei, artista por um dia, que era muito legal para autoestima da
comunidade.
Tem uma histria de uma menina do Mackenzie que veio aqui na UESP para
produzir um documentrio para o Mackenzie. Ela queria fotos ou reportagens de
revistas ou jornais que mostrassem a polcia batendo nos sambistas. Eu falei que no
tinha, e perguntei por que ela estava insistindo tanto nisso. Ela disse que iria sustentar
no documentrio que, com a chegada da classe mdia, o sambista parou de apanhar, que
hoje ns somos aceitos devido ao ingresso da classe mdia. Pra mim justamente o
contrrio, essa chegada significa a excluso do negro sambista das decises, dentro da
escola. Tivemos uma grande discusso em que eu falei que ela estava totalmente
equivocada.
Quanto televiso, tem um aspecto que a gente no pode negar: levou o
carnaval de So Paulo para mdia, divulgou o nome dos bairros e das escolas, mas,
financeiramente, eu no sei se esse modelo vivel e sustentvel.
Eu preferiria que fosse sem televiso, porque, se no tivesse televiso, no teria
tanto turismo, os baladeiros no iriam l, entendeu? A linguagem do carnaval hoje
ditada pela televiso, ento tem que ser coisas grandes, enormes. A porta-bandeira hoje
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porta-costeiro, o costeiro dela maior que a bandeira, uma coisa absurda. A ala das
baianas tem um negcio na cabea que no um turbante e esconde o rosto.
Tira toda a cosmogonia e o significado da ala de baianas para o carnaval. As
baianas no so mero acessrio, parte fundamental de uma escola de samba. Mas o
que isso? o padro visual, porque a televiso precisa de coisa grande, ento os
costeiros das alas cresceram, ficou absurdamente pesada. Esse ano minha escola teve
uma ala de baianas muito pesada, coisa de chorar; fiquei enlouquecido, as senhoras no
conseguiam suportar o peso. Se chovesse no saa do lugar. Estava muito linda, embora
incompleta. Mas isso que ganha o desfile do padro televisivo. A ala de baianas do
Tom Maior estava incompleta, faltando chapu, sem pano das costas e turbante; isso
no s fantasia, baiana fundamento. Mas turbante j era, hoje eles pem alegoria em
cima das cabeas das baianas. Eu monto as baianas do Tom Maior, e voc tem que
amarrar essas fantasias pesadas e machuca as senhoras, uma tragdia. No privilgio
da minha escola. Isso em todas as escolas.
Uma das coisas que eu tenho certeza que a televiso contribuiu foi essa
imposio do visual, porque tem que ter visual no para quem est l assistindo, mas
para quem est na televiso, em casa. Para a Rede Globo, tanto faz que se for mil ou
50.000 pessoas no desfile, para ela, se estiver vazio, a mesma coisa, porque o que
interessa o pblico assistir em casa com o saquinho de pipoca. Porque tudo gira em
torno dos patrocinadores. tudo gira em torno dos patrocinadores.
No Rio eu no sei, mas, com relao a So Paulo, um contrato cruel, irrisrio,
uma coisa horrvel. Cada escola do Grupo Especial recebe por volta de 150.000 reais,
isso o valor de uma chamada de propaganda no horrio nobre do desfile; com isso,
voc v o quanto que a Rede Globo ganha em cima do carnaval. E tem essa questo do
monoplio, que eu acho antidemocrtico. Ela no permite que outras emissoras
transmitam. A Rede Globo, no final das contas, mais atrapalha que ajuda. Porque,
mesmo no Rio, j teve carnavais que foi a Globo e a Manchete que transmitiram, e me
parece que, mesmo em So Paulo, aconteceu isso. Ento no tinha monoplio, hoje tem.
Sem monoplio poderamos discutir melhor o preo, mas ela comprou a
exclusividade e ns vendemos. O sambista vira refm, no pode fazer nada, ela paga
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quanto quiser, e eu acho muito pouco, tendo em vista as exigncias do padro visual que
ela mesma imps para o desfile que dizem mostrado para o mundo inteiro, mas o
carnaval de So Paulo s passa aqui. O mundo inteiro o Rio de Janeiro, eu no sei
como rola esse contrato l, mas uma boa grana, bem maior que a de So Paulo.
O Sambdromo do Anhembi foi construdo para a linguagem televisiva. A
proposta arquitetnica do Anhembi de ser bem iluminada, uma arquibancada distante
das escolas, horrvel desfilar, voc no sente o pblico. A no ser que voc tenha
grana para comprar camarote, voc no v direito. Ele muito mal localizado, no se
oferece condio do pblico chegar at l.
Voc teve a Virada Cultural: foi metr a noite inteira, no carnaval no se tem
isso. Eu estive com o Mercadoria, que era diretor de carnaval do Anhembi, e propus que
ele entrasse em contato com a administrao do metr e das empresas de nibus que
passavam por aqui, para fazer um esquema diferente no carnaval. O sambista
Mercadoria respondeu:
O Anhembi para quem tem carro e para quem tem dinheiro para pagar no
estacionamento e nos ingressos.
Tudo bem que se ganhe dinheiro, mas, e para o sambista pobre que no tem
carro? Por isso o Anhembi contribuiu muito para a descaracterizao do carnaval
popular, de sambista pobre mesmo.
A diviso entre as federaes, com a criao da Liga, tambm foi por culpa da
televiso. Essa diviso foi uma histria que eu acompanhei bem. Eu frequentava a
UESP, na poca, e prestava assessoria na coordenao do carnaval. Foi quando a Globo
quis comprar o carnaval de So Paulo. Para comprar, ela solicitou uma mudana no
calendrio, para no coincidir com os dias do Rio.
A partir dessa mudana de calendrio, nunca mais lotou a Avenida Tiradentes.
Eram mais de 50.000 pessoas. Depois dessa mudana, enquanto foi na Tiradentes,
nunca mais lotou. Porque na sexta-feira dia normal, todo mundo trabalha e chega
cansado. Desfile deveria ser no sbado e no domingo. Mas a Globo props mudar o
calendrio do Grupo Especial, esse teria que vir para a sexta e para o sbado, quando
desfilava o terceiro grupo da UESP. A tiveram que jog-los na segunda ou na tera.
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Os presidentes dos grupos inferiores cresceram o olho, e disseram que


mudavam mais, exigiam uma compensao financeira das escolas maiores que iriam
receber a verba da televiso. E o presidente da UESP na poca no teve esse jogo de
cintura de conseguir uma soluo. Isso comeou a dificultar a negociao, e o que eles
fizeram? Fundaram a Liga com nove escolas do ento Grupo I, e mudaram o nome para
Grupo Especial. S teve uma escola que resistiu: foi a Nen de Vila Matilde, que disse
que iria continuar na UESP.
O Betinho era presidente aqui na UESP e quem mandava na escola era o pai
dele. O Seu Nen no foi na reunio de fundao da Liga e perguntou quem iria impedir
a Nen de desfilar. E desfilou. Ele comprou mesmo sendo uma luta inglria, de
sambistas contra o dinheiro da televiso.
A ciso se deu a, em 1986. Eles gostaram da ideia de organizar independente da
UESP. A ideia inicial era administrar o grupo de elite e as outras escolas ficariam com a
UESP. Eles colocaram em prtica, de cada ano trazer um grupo. No ano seguinte
levaram o Grupo de Acesso. Tudo consequncia da televiso, quando as grandes escolas
foram embora a maior entidade que ficou aqui o bloco Gavies da Fiel, que era um
senhor bloco. O que fez a Liga? Convidou os gavies para se filiar Liga e abriu o
Grupo de Acesso para eles virarem escola. Seu Juarez era o presidente, esse pecado ele
tem e sabe disso. Transformaram o Bloco Gavies em escola e quebraram a UESP, que
era ento ainda a entidade mais forte.
S que tambm revela um erro de avaliao e prepotncia deles em pensarem
que levavam a Gavies, no outro ano o Grupo II, depois o III e fechavam a UESP. No
outro ano houve resistncia aqui na UESP, o Grupo II permaneceu e acabou a essa
histria. E a Gavies comeou a ganhar carnaval. Porque a Liga agiu com prepotncia
quando levaram eles, pensaram: Esses da no vo longe, no. E virou uma potncia.
A Gavies inflacionou o carnaval, assim como a Imprio est inflacionando.
Para correr atrs, tem que ter muito dinheiro, e para pegar torcida tambm, porque eles
possuem muito dinheiro. Todos querem ganhar carnaval, meu presidente quer ganhar
carnaval e, para ganhar, ele precisa gastar muito mais. Patrocinar o visual imposto pela
Globo. A Gavies tem 50.000 scios para financiar. Eu penso que irreversvel, no h
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volta. Esse discurso que eu fao hoje, o Paulinho da Viola fazia no Rio junto com Elton
Medeiros h 20 anos. Ano retrasado, o Paulinho passou um dia aqui com a gente,
almoou aqui. Ele falou que era irreversvel, no tem jeito, tomaram conta de tudo
mesmo. Eu brinco sempre com a Lia que, daqui alguns anos, vo deixar ela, o Caio e
eu para empurrar carro alegrico.
Eu no vou pagar 300 reais numa fantasia; mesmo que eu tiver, acho ofensivo!
No eu, Marcos, eu sambista. O absurdo que presidente chegar na concentrao e
bater no peito dizendo que tem quinhentas fantasias da comunidade. uma inverso de
valores. So quinhentas da comunidade e trs mil pagas. Deveriam ter 500 convidados
para colocar os artistas, os japoneses, e cobram 30.000 uma fantasia, para poder
financiar e subsidiar a comunidade. Parece utpico, mas seria o justo.
Eu fao questo de dizer que sou contra torcida de times. Sou contra carnaval de
segmentos, carnaval de sambista, no de segmento ou de torcida. Agora esto
inventando um carnaval universitrio, uma coisa horrvel. Eles podem pular carnaval
vontade, mas escola de samba deve ser de sambistas. Tive uma pssima experincia
aqui com um cara que falou tanta besteira, o presidente dos Acadmicos de So Paulo.
So uns rapazes de uma arrogncia e prepotncia absurda. Eles esquecem o que a Velha
Guarda representa para uma escola, o que ns, sambistas, j fizemos.
Por que se cria vrios desfiles e vrios carnavais? Temos dois carnavais, o da
elite e do pobre, das comunidades. Esse no divulgado. Mas o carnaval das
comunidades, bem ou mal, ainda resiste, nas escolas menores que esto em ascenso.
As pessoas desfilam porque gostam, no para aparecer na televiso. A fantasia no
cara, normalmente cedida gratuitamente. Quem vai l porque gosta, no porque d
prestgio, ao contrrio, desfilar em escola pequena no recomendvel. Em termos de
estigma, visto at hoje como coisa de maloqueiro. Mas resistimos, e um dos motivos
de eu estar aqui na UESP esse porque a minha escola j foi embora faz tempo.
Perdemos a origem.
Estou meio descrente. Tanto que, tirando o carnaval de comunidade, eu no
quero mais mexer com carnaval. Eu estou agora no Centro de Documentao e
Memria do Samba, vou desfilar na minha escola, amo a Velha Guarda, a ala das
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baianas que est h anos com a gente. Mas triste, tenho certeza que, quando eu for ao
ensaio do enredo desse ano, metade do elenco j so outras pessoas. Existe aquela turma
que so: Rosas, Nen, Vai-Vai tem muito, mas so poucos. Tem uma escola rival do
Tom Maior e tem muito mais comunidade: a Prola Negra.
A minha escola, hoje, no tem nada a ver com o que eu penso sobre escola de
samba. O padro imposto pela mdia no o que eu penso. Eles alegam que houve uma
profissionalizao, mas eu no acho que a escola se profissionalizou, eu acho que a
escola se comercializou. Virou algo meramente comercial, no profissional.
Profissional em que sentido? Comprar mestre-sala, porta-bandeira e o compositor? O
carnavalesco, por exemplo, antigamente ele tinha uma ligao com a escola de samba
de vrios anos, hoje o carnavalesco no passa dois anos dentro da mesma escola, com
puxador de samba acontece a mesma coisa, tudo sem bandeira.
Perdeu o amor, com rarssimas excees. Carnavalesco, das escolas grandes, eu
no conheo nenhum que esteja mais de trs anos. Nas pequenas esto l o carnavalesco
ou comisso de carnaval que o pessoal da comunidade. Eles dizem que
profissionalismo, eu acho que comrcio. Eu tive um exemplo muito duro na minha
escola, o nosso mestre-sala e porta-bandeira, considerado por muitos o melhor de So
Paulo. Eles eram da Prola Negra, era o terceiro casal l. Ele teve um princpio de
namoro com a moa, ela, com muita vontade de desfilar no Tom Maior; a eu conversei
com os dois, passou um tempo, a menina aqui do Tom Maior ficou grvida, a eu
trouxe. Vieram para o Tom Maior para ser primeiro casal. Foi muito bom, e eles eram
Tom Maior mesmo, a famlia toda, filhos, primos tia, me, todo mundo era Tom Maior.
Mas, h trs anos, o Marko Antnio me falou que eles foram para o Imprio de Casa
Verde, eles compraram o passe.
Deu-me uma tristeza to grande, porque esse ano o Imprio achou que o casal do
Vai-Vai era mais interessante e mandaram eles embora trs meses antes do carnaval.
Desfilaram na nossa escola como convidados, mas agora fica difcil de recuperar o
destaque de primeiro casal, porque o Vaguinho um bom mestre-sala e est l h
bastante tempo. Isso profissionalismo? No, um comrcio barato que a escola fez
com eles. Bem, eu no me venderia, mas no por isso que as pessoas no possam
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buscar algo melhor financeiramente. O casal recebeu 12 mil reais, um timo dinheiro,
ela domstica e ele balconista de loja. No Tom Maior no ganhavam nada, apenas a
fantasia. Seria profissional se eles recebessem no Tom Maior. Quando o meu presidente
ligou desesperado para contar essa histria, eu perguntei quanto eles ganhavam? Ele me
respondeu:
Nada. S ajuda de custo com a passagem.
O que mais voc quer?
Eles recebiam somente nota dez e difcil conseguir outro casal assim. Hoje est
todo mundo comprando todo mundo, a escola poderia dar uma ajuda de custo para eles.
O puxador de samba da Rosas de Ouro tambm do Tom Maior, temos muita gente
espalhada por a em outras escolas que pegam nossos talentos e pagam mais. Essa troca
principalmente entre as grandes. Porque a pessoa pode desfilar em uma escola grande
do Grupo Especial e continuar no Grupo II com a escola dele, o que acontece muito. E
tambm a Velha Guarda, que desfila por amor.
Mas hoje existe ala de Velha Guarda no pelo respeito com os antigos de escola
ou sonho do meu presidente, mas porque Velha Guarda virou quesito, tem prmio em
dinheiro para a escola. Ento, Velha Guarda, status. H alguns anos, o que aconteceu
no Rio foi um dos maiores crimes contra a cultura, no foi contra o carnaval somente.
A Velha Guarda da Portela no poder desfilar, e no qualquer Velha Guarda,
no, a da Portela. Desfilaram depois, sozinhos, no cho, para a Escola no perder
pontos, fecharam o porto em cima deles. Um dos maiores desrespeitos que eu j
presenciei contra a cultura. Tinha fundador da Portela l. errado o carnavalesco
colocar a Velha Guarda por ltimo, se atrasar, eles que tm que correr, irracional
voc colocar pessoas de 70, 80 anos correndo. No meu conceito, a Velha Guarda vem
atrs da Comisso de Frente. Se for para correr, no final do desfile coloca os mais
jovens.
Nosso papel aqui na UESP, principalmente depois da chegada da Lia aqui,
preservar o carnaval de comunidade. E formar escolas, para que, quando ela sair daqui e
v para Liga, ela v com uma boa formao cultural, essa nossa preocupao. E
preservar, porque preservando voc tem histria, se voc tem histria, tem futuro. Por
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isso foi criado esse centro aqui, e disponibilizando principalmente para escolas suas
origens. So trs eixos: formao, informao e preservao. Formao porque as
escolas da UESP formam sambistas.
As grandes escolas j no formam mais, apenas compram. Enquanto que as
escolas da UESP so obrigadas a formarem seus passistas, compositores. A criar os
artistas. Por exemplo, a Nen de Vila Matilde, que uma escola de 1949 e j teve
grandes puxadores, como Armandinho da Mangueira, Paulistinha, e criados l, ser que
a Nen no consegue formar um puxador bom l?
Esse ano o presidente da Nen falou comigo:
Olha, roubamos seu puxador, que o Royce do Cavaco.
Eu disse a ele:
Muito obrigado. O Royce no tem nada a ver com a Vila Matilde.
o caso do Tom Maior. Tem grandes puxadores, como o Jadir, Maradona,
Darlan, e agora temos o Ren Sobral, que comeou aqui na UESP. Mestre de bateria a
mesma coisa, uma escola tirando da outra. Minha escola no tem a melhor bateria de
So Paulo, e tem condies de conseguir cinco mestres de bateria. Do Nen saem
muitos e ela contratou outro mestre agora.
Ainda bem que o regulamento brecou, porque o pessoal vinha do Rio pra
coordenar desfile aqui. Ento a escola perdeu todo o seu projeto que formar e ensinar.
O nome no escola, ento tem cuidar da formao do sambista. Essa a grande luta da
UESP e a minha luta. Tenho mais de 40 anos de samba e essas so as minhas
impresses sobre o que est acontecendo no mundo do samba hoje.

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Mestre Gabi
Nome: Gabriel de Souza Martins
Data de nascimento: 08/11/1947
Local: So Paulo
Profisso: Desenhista Industrial
Escola de samba: Camisa Verde e Branco
Data da entrevista: 25/10/2010
Local da Entrevista: Sede da FESEC

Figura 2 Gabriel de Souza Martins, o Mestre Gabi:


Fonte: http://amespbeesp.blogspot.com.br/

O amor pela escola, a gente, que sambista da Velha Guarda, ns


sentimos demais!

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Meu nome Gabriel de Souza Martins, Nasci no dia oito de novembro de 1947,
no antigo Hospital Matarazzo, na Avenida Paulista. Mame e papai moravam no Jardim
Paulista nessa poca.
Com cinco anos fomos morar na Zona Leste, onde passei toda minha infncia. E
de l, at hoje, moro no mesmo lugar. Minha casa era muito alegre e sempre tinha
festas. Os primos do meu pai faziam serenata, faziam samba e a gente foi se
acostumando sempre com isso. E foi indo, indo, indo... Mas, por incrvel que parea, eu
fui para mundo do samba sozinho, e depois levei meu pai.
O samba surge na vida da gente assim, como uma coisa que voc j nasce com
ele. Tinha l no bairro tinha uma escola de samba que era a Estrela Brilhante. Mas eu
nem participava muito, porque eu, na poca, eu no me interessava muito por escola de
samba. Eu me interessava mais em curtir, s. A, depois que o tempo foi passando, a
sim, eu comecei a participar mais.
Minha primeira escola foi Barroca Zona Sul. Mas, antes de participar da
Barroca, participava das bandas que tinham aqui na cidade. Algumas ainda existem,
como a Banda Redonda, a Banda do Cantinho e a Banda Bandalha. Ento eu tava no
meio. Comecei a participar de carnaval nas bandas.
L tocavam msicas de meio de ano, das rdios e sambas tambm, alm de
marchas. Eram marchas que hoje a gente j no tem mais. A resistncia ainda foi at uns
anos atrs. O Slvio Santos era um dos que faziam essas marchinhas de carnaval. Depois
acabou. No se faz mais hoje...
Fora do perodo de carnaval, meus amigos e eu amos muito em barzinho. Foi
quando eles comearam a dar espao a grupos de samba: grupo aqui, grupinho ali,
quando chega o... Como o nome? ... Fundo de Quintal e deu um boom, assim, nesses
grupinhos que foram se formando. Ento a gente comeou ali no bar, no campo de
futebol e nas bandas.
Quando eu cheguei, o samba j tava popularizado. Mas teve a gerao que veio
antes de mim. Muita gente boa, e que foram muito importante pro samba chegar onde
chegou. Aprendi muito com eles. Na Praa da S era um dos locais onde mais se curtia
samba em So Paulo. Se voc v hoje na Praa da S algum jogando capoeira, at vai
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formar um pessoalzinho ali. Mas antigamente isso era comum, sabe? T jogando
capoeira, t jogando tiririca, e tal.
Os engraxates que faziam o movimento. No era uma coisa assim do outro
mundo que ficava todo mundo, ali olhando. O pessoal olhava, mas era uma coisa mais
normal na cidade, ali, na Praa da S, antes da reforma que tambm no era dessa
magnitude que hoje, era uma coisa menor. A Praa da S de antigamente era cheia de
ponto de nibus e bondes. Era muito diferente de hoje. Ao lado da Praa da S existia a
Praa Clvis que, eu no sei nem se vocs conheceram, acho que nem conheceram a
Clvis. Ento, tinha a Clvis que era logo de onde os sambistas tambm se reuniam.
A gente tinha muito espao em vrios pontos da cidade pra ficar se divertindo,
na Zona Leste tinha o largo do Peixe e na Barra Funda o Largo da Banana. Era uma
diverso que acabou! A gente perdeu o uso do espao pblico e pra conquistar aquele
espao foi uma luta. E depois a gente perde esse espao pblico porque a voc tem:
Ah, no pode fazer barulho aqui, no pode fazer barulho ali, no sei o qu... Agora
tem mais ainda, agora tem a lei do silncio. Ento ns temos escolas de samba que so
obrigadas a fazer os seus ensaios tarde, no mximo at s dez horas e a acabou. As
festas nos bares, as rodas de capoeira. Voc no pode mais. Ento a coisa vai se
fechando muito, e a gente, fio, perdendo os espaos.
Em escola de samba eu comecei a participar mesmo como integrante, como
componente, na dcada de 70. Depois virei chefe de ala. A desfilei em ala, depois
desfilei em ala-show, com o pandeiro, tal fazendo aqueles malabarismos, como diretor,
como um monte de coisa, como compositor, tudo na Barroca Zona Sul, e depois, a sim,
como mestre-sala. Ento eu digo que a Barroca foi minha escola de samba de corao e
de formao, de raiz.
Eu sou desenhista de profisso, trabalho em um escritrio de arquitetura. Nunca
vivi do carnaval, este negcio de muita gente viver do carnaval, de agora, pouco
tempo. Primeiro no Rio de Janeiro e depois aqui em So Paulo, l comeou bem antes.
Ns estamos mais ou menos 30 anos de defasagem com o Rio de Janeiro, de
verdade. Nosso carnaval est grandioso, est, mas nem um pouquinho assim para se
comparar com o carnaval do Rio, com o profissionalismo do Rio de Janeiro. Por isso,
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quando eu falo de carnaval, falo regional, falo do carnaval da nossa cidade, porque se
formos comparar, estamos engatinhando ainda em termos de profissionalismo. Tanto
que muitos vm de l para c, puxador de samba, diretor de bateria, compositores e at
casal de mestre-sala e porta-bandeira. Tambm de Parintins, eles esto vindo para So
Paulo.
a cidade do dinheiro, quer ganhar dinheiro, venha pra So Paulo. Eles mesmos
falam: Quer ganhar dinheiro, v pra So Paulo. Eles vm aqui e ganham dinheiro
mesmo. Agora tem puxador de samba, tem chefe de barraco, diretor de bateria, mestresala e porta-bandeira, vem todo mundo para c. Mas fazer o qu? E no que somos
piores do que eles, no isso!
Aqui ns temos sambistas de primeira linha, como l tambm, aqui ns temos
nosso jeito, da nossa regio. E estas profisses a que surgiram, como marceneiro,
serralheiro, decoradores, aderecistas de carnaval, que agora virou profisso. Aqui em
So Paulo tambm est acontecendo isso, o pessoal t trabalhando. Voc, integrante,
chega l no barraco, de repente, voc no pode nem entrar, tem segurana na l porta,
aquela coisa toda. Antes vinha todo mundo da escola, vamos ajudar e tal...
A gente colocava a escola na rua. Hoje no, hoje tem o segurana, fulano aqui
pode entrar? Esse pode, a entra, e s olha: .........e pronto. Eu no sei se esta
grandiosidade que tirou o romantismo ou o profissionalismo, ou o profissionalismo que
tirou o romantismo que no tem mais.
Veja bem, antes eram os homens que faziam as alegorias. E ns tnhamos as
costureiras, e quem eram as costureiras? Era a minha me, era a me de outro sambista,
no era a profissional costureira, eram pessoas comuns, que sabiam costurar um pouco,
ento vamos fazer fantasia. E ns confeccionvamos as nossas fantasias.
Talvez por isso a gente seja muito saudosista. Porque voc olhava depois em
uma fotografia a sua fantasia, e olhava com um sentimento. Este aqui foi a ltima conta
que eu coloquei, este aqui foi a ltima unha que eu coloquei, ento para ns era uma
coisa assim magnfica, e a gente curtia muito isso. E a famlia inteira pegava aquela
cala, um bordava em uma perna o outro bordava a outra, era uma coisa de comunidade,
sabe? Quando a gente diz escola de samba, comunidade era isso.
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Quantas noites eu no fui para a escola para ficar no barraco, ajudando,


pregando. Eu no sou marceneiro, mas quantas vezes eu no ia l pregar os carros
alegricos, eu ia pintar, tambm no sou pintor, mas pintava, decorava, ento era um
trabalho de todos da comunidade, a gente no tinha aquilo como profisso.
Hoje eu no vejo o carnaval como eu via antigamente. Eu vejo o carnaval hoje
muito... , como que eu posso dizer pra voc? duro o que eu vou dizer, eu, Gabi. No
vejo mais o carnaval, pelo menos na nossa cidade. No se vive o carnaval. Voc vive
um desfile de escola de samba, l no Sambdromo. Se voc sair daquele meio ali, voc
anda pela cidade normal, como se tivesse num dia comum. At com menos gente,
porque muita gente aproveita pra viajar.
Entra em uma escola de samba e v desfilar. V como componente da escola
mesmo, de nibus, faa a via sacra. Quando voc descer do nibus, entra no corredor
polons, naquele espao, a fica l parado esperando porque tem que concentrar duas
escolas. A vai entrar, mas se sua ala for uma das ltimas est frito, porque vai ficar l
atrs. Depois que entrou, em 20, 25 minutos voc passa a pista toda. Quando menos,
porque s vezes a escola t grande, gasta menos tempo. Quando acaba o desfile j vem o
segurana e coloca vocs pra entrar no nibus e voc vai embora e acabou o seu
carnaval. carnaval? No carnaval, voc no v ningum fantasiado nas ruas como
antigamente a gente via. Hoje, se eu falar pra voc:
Pe a tua fantasia l na sua casa e vem pro Sambdromo. Voc no vai vir.
Ah, c acha que eu vou andar fantasiado a na rua?
No vem, ningum vem. Vem com a fantasia no carro, chega l no
Sambdromo, a, sim, que pe a fantasia. Chega no final, joga tudo l e vai embora.
Ento, isso no mais carnaval.
At nos clubes, a gente no tem mais aquela alegria. Voc no tem mais matin
pras crianas, ento ficou muito restrito ao Sambdromo. At quando era aqui na
Tiradentes, era melhor, porque a a cidade vivia o carnaval. Quando era na So Joo, no
Anhangaba, a cidade vivia ainda mais o carnaval. Agora l, no, voc ficou confinado.
Chego ali, saio dali, acabou. Ento um pouco triste pra gente que de outra poca. De
outro sculo.
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Claro que as coisas mudam, mas tem que mudar sempre pra melhor. Essa
mudana cresceu o carnaval, mas nos exclui um pouco enquanto sambista mesmo... Por
exemplo, essa ida dos desfiles... No vou nem te dizer da So Joo. Da So Joo aqui
pra Tiradentes j foi um feito, n? Nossa, o carnaval cresceu! Mas da Tiradentes l pro
Sambdromo excluiu o povo, sabe? A voc me pergunta:
Por que excluiu?
Porque aqui se pagava bem menos pra entrar.
E, alm disso, voc tinha esse pedacinho onde ns estamos nessa altura da
avenida. o local onde comeava o desfile. A pista de desfile, que era 750 metros, ia
at l em cima. Ento daqui at o viaduto l embaixo, no rio, era perto, ento o povo
podia assistir as escolas subindo, pra entrar na pista. Ento era muita gente, mas muita
gente mesmo, que ficava aqui nesse espao que no se pagava. E depois a pista pra
baixo, quase chegando l na Praa do Correio, na disperso. Ento era muita gente
mesmo.
E o povo que ficava andando aqui nas imediaes. Ento, ns perdemos isso. L
no Sambdromo, ou voc entra ou voc no entra. No adianta ficar de fora, fazer o qu
l fora, voc no v nada? No tem ningum. S porto e muro. Ento a gente perdeu
com isso. A gente, eu digo, a comunidade, os sambistas que no podem pagar, l uma
nota pra se entrar e pra assistir, n. Uma diferena: aqui voc trazia seu lanche, voc
trazia seu caf, voc trazia sua garrafinha de ch e assistia as outras escolas nas
arquibancadas. Voc desfilava e depois ia assistir s outras.
Agora o sambista pobre desfila pela sua escola e vai embora. Acabou o carnaval.
s 20 minutos de avenida. L voc no pode entrar nem com uma garrafa dgua.
Ento tudo voc tem que comprar. Voc quer gua? Voc tem que descer l e comprar.
Ento isso restringiu demais os sambistas. E a eu digo: a comunidade sambstica, que
a comunidade pobre, n? Ento elitizou demais. Ficou tudo caro.
O samba ficou elitizado. Hoje, Nossa Senhora, hoje uma coisa assim... L
embaixo voc v que as alegorias nossas hoje so imensas, n? O dinheiro chegou e a
comunidade negra e pobre foi sendo excluda do carnaval.

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Outro fator: Quando voc coloca uma torcida junto com as pessoas comuns,
complicado. Ento muita gente no vai ao Sambdromo por esse fato. Medo por causa
das torcidas. Porque l ns temos a do So Paulo, do Palmeiras, do Corinthians, e agora
t chegando a do Santos tambm. Ento muita briga e muito descaso. Teve um ano a
que parecia um estdio, o pessoal da Gavies estendeu uma bandeira em um setor e
ningum mais sentou ali, s eles. O lugar comum a todo mundo. Botaram o bandeiro
l e tomaram conta. E a chegou todos eles, sentaram. As escolas que passavam, eles
ficavam de costas, no estavam nem a. S quando passou a Gavies que a eles se
manifestaram da melhor forma, tudo bem. Mas um desrespeito pra um pavilho voc
estar ali fazendo um desfile com o pblico de costas. Isso da foi muito repudiado.
Hoje eles j melhoraram. To melhorando. Parece que entenderam um pouco
que carnaval, desfile de escola de samba uma coisa, clube de futebol outra. Porque
ali um lugar onde no tem s duas torcidas ou trs. Ali tem torcidas de todas as
agremiaes. Cada um defende o seu bairro. Eu sento do teu lado, voc Camisa, voc
Nen, voc Vai-Vai; quando passa a minha escola, eu vou aplaudir. Voc no vai
ficar bravo porque eu t aplaudindo a minha escola e nem eu vou brigar porque voc t
l aplaudindo a sua. s vezes at aplaudo junto porque t fazendo um trabalho bonito.
O samba sempre foi assim. Era uma integrao e l no Sambdromo, com as
torcidas de futebol, a coisa ficou meio estranha. Ento tem muita coisa que, se a gente
for botar mesmo no papel, nossa... A grandiosidade acabou com a emoo.
O carnaval hoje, pra ns, no tem muita emoo mais, aquela coisa de corao,
de voc chorar pelo teu pavilho, como acontecia. A gente, nossa, eu j chorei quando
minha escola foi mal... A escola passa mal, passa bem, voc sente. Hoje, no. Eu falo
pra voc:
Voc quer sair na escola? A voc fala:
Ah, qual escola?
U, na minha. Ah, mas Palmeiras.
No, no Palmeiras, o Camisa Verde, no tem nada que ver com
Palmeiras.
Ah, mas eu sou corintiano.
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Ah, ento sai na Gavies.


Ah, mas Gavies, no sei... Vai sair num horrio ruim.
Ento sai l no Caminho da Vila. A voc fala:
Ento quem sabe eu vou l.
Voc chega l e sai, sem comprometimento nenhum. E ns estamos num
concurso, tem que ter o comprometimento. Poxa, se eu vou sair l porque eu quero
que a minha escola ganhe. Hoje se compra fantasia pela internet. O que mudou no
Carnaval? Essas coisas...
Eu me emociono at, falando, porque a gente j no sente mais, sabe, aquela
garra do povo contente, chegar aqui vai, ah, dessa vez ns vamos ganhar, e vamos pra
cima, e tal, sabe? Perdeu tudo isso. Ganhou? No ganhou? O ano que vem eu saio na
que ganhou e t tudo certo. O amor pela escola, a gente, que sambista da Velha
Guarda, ns sentimos demais! Demais da conta mesmo. Voc vai na quadra... Olha,
domingo passado eu fui no ensaio, tive l na quadra. Rapaz, eu fiquei olhando assim, de
brao cruzado. C j imaginou, eu, na minha escola, ficar olhando de brao cruzado?
Deus me livre, jamais! Eu estava l, mas voc no sente mais o calor, aquela... Sabe,
aquela coisa, aquele amor nos componentes. Eles estavam ensaiando como se fosse
qualquer coisa.
Sinto que hoje, nas escolas de samba, muito poucas so as pessoas que
pertencem escola de samba. Porque a gente perde identidade, vocs sabiam? Perdia
identidade. Eu, por exemplo, quando estive na Barroca, eu era o Gabi da Barroca. Ento
no sabiam meu nome completo, mas sabiam que eu era o Gabi da Barroca.
Quando eu vim pro Camisa, que ainda foi uma vinda assim, meio conturbada.
Eu no ia sair mais de mestre-sala, porque a minha porta-bandeira da Barroca passou
mal aqui na Tiradentes. A, em solidariedade, eu falei:
Beth, eu no vou sair mais tambm.
Porque ela passou mal do corao. Eu pensei: Caramba, j pensou essa menina
a me v danando com outra porta-bandeira. Ela capaz de morrer, coitada, n? A, eu
pensei: Eu tambm no vou sair mais.
No, Gabi, sai sim. Puxa, que isso? Falei:
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No, no, no, no vou sair. E no sa. No sa mais como mestre-sala na


Barroca. A, num outro ano, a minha esposa Vivi foi convidada pra ir pro Camisa
Verde, assim, em janeiro. E a, como o mestre-sala de l no quis desfilar com ela
porque ela no era porta-bandeira, ela era destaque. E a ele falou:
No, voc no porta-bandeira, eu no vou desfilar com voc.
E ele meu amigo, ns somos amigos. Eu disse:
No, pode desfilar com ela que ela sabe, ela ensaia comigo.
L em casa a gente ensaiava. A, ele:
No, no s saio com a minha antiga porta-bandeira.
A a presidente, que era a Magali, falou:
Ah, voc no vai sair? Ah, t, ento tudo bem. Gabi vem c. Me pegou
assim, levou l no palco:
A partir de hoje o Gabi e a Vivi so oficiais do Camisa Verde e Branco.
Eu falei:
Que isso, eu nem perteno a essa escola, eu sou do Barroca.
A, j foi. Pronto, foi assim a minha vinda pro Camisa. E a ficamos a at hoje.
Hoje eu no desfilo mais como mestre-sala, mas eu perteno escola, n? Vou, brigo,
falo, mas a minha escola de corao tambm. Fiquei mais de dez anos desfilando pelo
Camisa, ganhei todos os prmios que voc pode imaginar. A a idade veio chegando e
eu passei o basto. Eu tenho duas escolas, a de raiz e o Camisa.
O carnaval de So Paulo comeou a mudar no foi nem quando ele saiu daqui da
Tiradentes para l pro Sambdromo. Ele mudou quando Joosinho Trinta veio pra
Peruche. A Peruche saiu com costeiro, as alas saram com costeiro, todo mundo falou:
Nossa, olha o Peruche, todas as alas vm com costeiro. E todo mundo ficou
maravilhado. Joosinho Trinta veio l do Rio. E o cara uma cabea, eu tiro o chapu
pra ele, sumidade. Sim, a Peruche comeou a trazer do Rio, trouxe o Jamelo, trouxe o
Joosinho. E depois todas as outras escolas vieram atrs.
Mas, antes dele, quem trouxe primeiro foi a Mocidade Alegre, que trouxe o
Edson Machado, grande carnavalesco, fez dois carnavais maravilhosos na Mocidade
Alegre, fez carnaval na Barroca da Zona Sul, maravilhoso.
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O Juarez da Cruz, na Mocidade Alegre, viu no Rio as alegorias e se tocou.


Tambm comeou a colocar na avenida carros alegricos maiores, a foi nessa
crescente. As escolas competiam pra ver qual era o maior carro, at chegar naquele tigre
que a Imprio trouxe que era uma monstruosidade, mas que adianta? O que adiantou um
tigre daquele tamanho? Pra quebrar a harmonia da escola, quebrar em que termos? Voc
tem um tigre de 50, 60 metros de comprimento e ali no tem ningum. Ento a escola
termina o canto l e recomea aqui atrs, quebra a harmonia da escola, o canto e mesmo
que no quebre, com toda essa tecnologia de som que ns temos a, mas a escola tem
que estar muito bem ensaiada para no quebrar o canto, a harmonia. E foi assim,
comearam vir as pessoas do Rio de Janeiro e padronizar tudo.
Hoje no tem muita diferena entre uma escola de So Paulo e do Rio. Mas
deveria ser ntida, j que aqui um ritmo que veio do batuque, que veio de outra
vertente, n? No foi aquele samba do Rio de Janeiro, que diferente. Porque a nossa
batida vem de cordo.
Porque em So Paulo, antes das escolas, o que mais tinha eram cordes. O
cordo Barra Funda, que era o Camisa Verde, voc tinha o Vai-Vai, voc tinha o Fio de
Ouro, voc tinha um aqui da Liberdade... O Campos Elseos. Ento eram muitos
cordes... Era uma coisa mais simples. No era como a escola de samba. Ento a escola
realmente comea l no Rio de Janeiro.
E depois que vem pra So Paulo. E veio pra So Paulo, trazida por Evaristo de
Carvalho, que trouxe a Portela pra desfilar no estdio do Pacaembu. Primeira vez que
veio escola de samba aqui fazer um desfile. E a os moldes so os mesmos, tanto que os
quesitos so iguais. Agora l... Eles mudam l, a ns mudamos aqui tambm. Pra
copiar, n? Claro... L os desfiles so muito parecidos, voc v pra diferenciar uma
escola da outra pra ver qual que vai ser campe, difcil. A vai essa transformao.
E comeou a vir esse pessoal de Parintins, com os movimentos dos carros. isso
que ns temos ainda hoje. Mas s vezes a coisa muito grandiosa no surte o efeito
desejado, mas a diferena foi assim fenomenal, l ns temos 16 por 12 de pista, de
largura por altura, acho que 12 metros aquele portal, muito alto. Todo mundo ficou
refm da grandiosidade. A televiso s quer mostrar coisa grande.
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a grandiosidade, e por causa da programao da Globo, tudo cronometrado.


Se voc atrasar j perde ponto. Nossa, eu j sa dessa Avenida Tiradentes meio-dia. Era
ruim, era, mas ns ramos felizes e no sabamos. Mas estvamos curtindo o carnaval,
quando terminava, ia todo mundo fantasiado, era aquele orgulho da sua fantasia, entrava
para assistir as outras que estavam faltando, entrava fantasiado, mas hoje no mais.
Quando voc via uma fantasia jogada? Nunca, agora vai l, no fim da avenida,
se voc no v um monte de fantasias, tudo jogado. As pessoas no levam mais para
casa, guardar pra qu? Mas se voc quer saber, ainda tem gente mais velha do que eu
que ainda tem fantasia guardada, e vai te falar: Com essa aqui eu desfilei na Tiradentes,
com essa aqui eu desfilei na So Joo, tem gente que tem.
Eu no tenho porque as minhas fantasias eram de mestre-sala e as escolas do
interior compravam as nossas fantasias para usarem, porque seno eu queria as minhas
fantasias. Fantasias que eu ganhei como melhor mestre-sala e tal, eu guardei um tempo,
mas depois vendi, porque a escola pedia pra vender e trazer dinheiro.
Hoje est todo mundo refm, no tem muito pra onde correr, se voc quiser
disputar o ttulo como escola de samba. Na minha poca, a coisa era mais tranquila de
se levar. Porque o valor era bem menos. Se eu te dou mil reais pra voc administrar,
olha voc vai ter que fazer o seu carnaval com mil reais, a voc vinha aqui comprava
tecido, ia ali comprava as sandlias, sapatilhas. Nossa! Eram poucas as coisas que voc
tinha que comprar, as outras, voc ia reciclando, procurando com algum, no d pra
voc me dar?
V o caso da Lavaps, que uma escola de 1937, que a primeira escola de So
Paulo. A primeira escola de So Paulo foi fundada em 1935, que a Primeira de So
Paulo, e o seu presidente o Elpdio de Faria, mas ela logo acabou. A Lavaps a
escola que de 1937 at hoje est desfilando, e uma escola de famlia. A o que eu
digo pra vocs, quanto resistncia, ela continua sendo uma escola de famlia a neta
da Madrinha Eunice, que a presidente hoje. Mas o que que falta? Administrao.
Ns pecamos muitas vezes por isso. Eu no sou contra algum te ajudar na
administrao. Olha, voc formado em administrao, conhece bem, vocs vm pra
minha diretoria, mas eu comando, eu no preciso dar a minha escola pra voc. Voc me
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auxilia, mas eu participo. O valor muito alto, a quando eu digo o nosso povo, o
nosso povo sambista, nosso povo negro, que tem menos instruo, ele no consegue
sozinho, v a situao da Lavaps hoje.
Com excees, porque toda regra tem suas exceo, mas, se voc hoje dar 50
milhes, olha, voc vai ter que colocar a sua escola na rua, com 50 milhes. Olha,
primeiro ele vai ter que trazer algum pra fazer isso com ele, pra administrar isso com
ele, porque ele no tem noo de administrao de juros, de tabelas, de desconto. Voc
chega l, pechinchar uma coisa, um desconto que voc pode adquirir com uma boa
conversa, tratativas mesmo, diferente, tem que ter uma pessoa mais experiente.
A o sambista foi perdendo o seu espao, eu digo, enquanto presidente de escolas
de samba, negros. Antigamente todos eles eram negros, no era? Nas escolas de samba,
at porque no era bem visto pela sociedade, aquela coisa toda. A partir da oficializao
a coisa foi mudando, e essa administrao foi passando pra um pessoal profissional.
Fulano formado em administrao, ento melhor trazer ele pra compor a nossa
diretoria, porque ele conhece. Depois temos que prestar conta pra prefeitura, pros
patrocinadores. Essa pessoa era uma pessoa branca e sem coisa de discriminao,
porque somos todos iguais, mas voc vai entregando os cargos.
Porque os sambistas no perderam, no, entregaram! Que tomar difcil. Vai
tomar a escola, no se toma, a gente d. Perderam seus espaos, entregaram. Entregando
voc passa a de repente nem mais fazer parte da diretoria. Eu conheo fundador e expresidente que chega hoje na escola e perguntam:
Quem o senhor?
E o cara era presidente da escola, veja bem, fundador e presidente da escola,
chega l, tem os seguranas na porta, o cara fala cad os ingressos? No, mas eu era
presidente. O cara t l, no conhece ningum, no vai deixar entrar. A vem um, e diz:
Nossa, mas voc, libera ele a. humilhante, eu j presenciei, nossa! De ver algum
que j foi presidente daquela escola, daquela agremiao, chegar e pedirem para ele o
ingresso. E ele ficar ali, a o Gabi podia entrar porque o Gabi mais conhecido, todo
mundo me conhece, o pessoal fala: , Gabi, faz favor, mas e fulano, no vai entrar?
Ento, estas coisas que deixa a gente magoado, porque a gente presencia muito isso.
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O cara chega, muda tudo na escola e depois vira at presidente, porque estudou,
tem uma graninha a mais. Mas no pense que porque ele estudou ele vai administrar
bem. Por exemplo, os presidentes de escolas fizeram um contrato com a Globo, veja
bem, de 14 anos. V se pode uma coisa dessas. Um contrato de exclusividade com a
Globo de 14 anos. Isso no um exagero? P, brincadeira! O que voc acha que eles
colocaram nas clusulas? Que no pode outra emissora entrar, no pode. Olha, ns
vamos pagar esse dinheiro, mas vocs vo ter que desfilar na sexta-feira. Na sextafeira? , mas a grana boa. Ento, t, vamos mudar pra sexta-feira, at pra no
concorrer com o Rio, vamos mudar. No primeiro ano do Sambdromo, em 1991, 1992,
por a que mudou. A direo da Rede Globo falou:
Olha vocs vo desfilar na sexta-feira, mas s depois do Super Cine, ns no
vamos televisionar nada antes do Super Cine.
Ento as escolas desfilam na sexta-feira depois do Super Cine. Por que a grade
da Globo no pode ser mexida, e no sbado? No sbado, pode comear um pouquinho
antes, depois da novela. Ento a gente foi ficando amarrado a eles, simplesmente.
A Rede Globo que comanda tudo. Percebe como a gente foi envolvido, uh,
pronto e fomos sendo envolvidos. A ns estamos a at 2014, porque assinamos em
2000, at 2014. O contrato da Globo, v se pode, 14 anos de contrato. demais, no
?

Voc acha que se fosse um povo esclarecido ia fazer isso? No iria. Em s

conscincia, ia pesar os prs e os contras e no ia fazer uma coisa dessas. Jamais. Tanto
que, agora, duvido que eles vo botar at 2028. C acha? No, agora mais trs anos,
vamos entrar com outra emissora, vamos dividir, porque eles fazem o que eles querem.
Porque eu j briguei demais contra isso. A veja bem, eu j briguei demais com eles, por
qu?
A televiso deveria estar a para mostrar a beleza, o lado cultural da escola de
samba, falando dos seus enredos, mostrar o que e o que a escola t trazendo. Quando
um enredo futurista, da cabea do carnavalesco, a gente nem discute, mas quando um
enredo histrico, poxa, a gente coloca tanta coisa naquele desfie, que a maioria das
pessoas no sabe.

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Pra voc fazer um desfile, tem que pesquisar, e pesquisar muito. A televiso
ignora isso. Teve um ano que o Camisa Verde e Branco veio falando da fotografia,
ento, nossa, quanta coisa importante ns tivemos naquele enredo. Que Dom Pedro que
trouxe a mquina fotogrfica. Muita gente no sabia. E aquela de foto spia, preto,
colorido, como que se fazia. Ento, muitas coisas importantssimas que poderiam ser
ditas durante o desfile da escola, no foi dito. O que passava? As meninas nuas,
seminuas, n, porque nuas no pode vir, as coisas erradas. O mestre-sala e a portabandeira que ostentam o pavilho, que o ponto mais alto de uma escola de samba,
passavam assim, , trs segundos. Voc acha que eu no vou reclamar? Fui reclamar!
Vocs fazem coisa que no pra fazer. Passa um casal, vocs dizem que
outro, totalmente errado.
Eu era presidente da Associao de Mestre-Sala e Porta-Bandeira do Estado, a
AMESPBESP. Preparei um dossi, com todas as escolas, todos os pavilhes. Mandei
pra eles. Com o nome de todos os casais, sequncia dos desfiles pra eles no errarem.
Ah, mas isso no d pra gente fazer, como no d, tem que dar. A o diretor da Globo
falou pra mim:
Gabi, deixa eu falar uma coisa pra voc: voc no quer ficar no carro de
imagem, a, quando passar o casal, voc indica e a gente fala? Eu falei:
Eu no, no ganho nada com isso, vou perder meu carnaval pra ficar no carro
de imagem, vocs que tm que se orientar.
J reclamei demais com eles. Agora que eles esto colocando umas cmeras ali
onde os casais evoluem mais, porque eles deveriam evoluir na pista inteira, mas quando
vai chegando os jurados eles querem evoluir um pouco mais, fazendo as graas deles.
Agora de uns anos pra c que eles esto colocando uma cmera ali, pra mostrar
esse lado. Esto melhorando, at 2014 capaz de melhorar um pouquinho mais.
A Leci Brando criticada nos seus comentrios pela direo da Globo. Eu t
contando uma coisa que eu sei, ela me falou, porque a gente tem amizade. Porque ela
fala, no sei se vocs j ouviram, quando ela entra pra falar, ela s pode falar uma
coisinha assim. Ela fala:
Olha l a Fulana da ala das baianas.
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Ah, Leci, voc vai falar isso, olha a crtica.


Mas ela tem que falar isso. Para ns, que somos sambistas, que estamos com
nossas famlias assistindo, j pensou? Sua me passando, e a Leci Brando falando:
Olha l a Dona Carmem passando ali na ala das baianas. No uma coisa
fantstica que valoriza o samba? Mas ela no pode falar. Percebeu que ela no fala mais
no carnaval do Rio, no ela quem est fazendo as intervenes no carnaval do Rio,
porque l ela conhecia todo mundo, ento ela anunciava:
Vem a a Dona Coisa, o Seu Fulano, da Velha Guarda e tal. A direo da
emissora diz:
No precisa falar isso.
Ela veio embora aqui pra So Paulo e t disputando pra deputada aqui. Ela
muito boa a Leci. Teve um dia que eu estava na casa dela e a gente conversando, a Leci,
eu e a me dela, ela disse pra mim que em So Paulo ainda pode falar, mas j estava
sendo podada tambm. Ento voc v que a direo se intromete muito, tem coisa que
voc no pode falar.
Eu questiono mesmo, j questionei com o Chico Pinheiro, porque voc chega l,
vamos falar do qu, Chico? Teve uma que foi no carnaval desse ano, no teve o
Botequim do Samba? Esquina do Samba? Eu fui convidado pra Esquina do Samba e
tava l. A eu de costas pra avenida e a cmera a me filmando a, e eu de costas pra
avenida, a eu olho assim, vem vindo o pavilho, voc acha que eu vou ficar de costas
pra um pavilho que est passando, no vou. Eu levantei e fui aplaudir, tem coisas que
ns sambistas no podemos fazer, a gente tem que ensinar que no assim, eles tm que
aprender. A o Chico:
Gabi, t filmando. Eu disse:
T filmando, filma l o pavilho que t passando, eu no sou o problema, tem
que filmar l, olha a o pavilho, tem que aplaudir.
A a Leci tambm virou, virou todo mundo, a todo mundo ficou olhando. Veja
bem, no me chamaram mais pra comentar na Esquina do Samba. Mas eu dei meu
recado. As pessoas que esto chegando tm que se informar primeiro pra falar alguma

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coisa, ou exigir alguma coisa, n? Eu acho que a cultura do samba diferente, precisa se
orientar primeiro. Vou ficar de costas para um pavilho, nunca!
O pavilho o mais importante de uma escola. Atrs desse pedacinho de pano
aqui, desse pavilho que existe desde 1984, quando foi fundada a Federao, isso a
Federao, uma coisa que alm de uma escola de samba, um pavilho que foi
fundado por pessoas responsveis que, com muito carinho elaborou, fundou tudo isso.
em respeito a essas pessoas que a gente cumprimenta os pavilhes todos, em
respeito aos antepassados, aos nossos ancestrais.
E atrs de um pavilho desses, se voc soubesse o quanto de mstica tem,
principalmente de escola de samba, n? Esse eu no falo, porque Federao. Tem
muita coisa, muito misticismo que tem atrs de um pavilho. Voc v que todas as
escolas de samba tm uma ala de baianas, no tem?
obrigatrio, vocs sabem que obrigatria uma ala de baianas em uma escola
de samba, estavam querendo tirar, mas quem queria tirar? A modernidade. Sabe essas
senhoras a j esto muito cansadas, e alm do mais atrasam o desfile. Que isso? Baiana
fundamento de escola de samba! E neste fundamento esto os pavilhes, as baianas.
Tem sempre aquela baiana que chefe de terreiro, que faz os trabalhos de proteo da
escola de samba, tudo em cima do pavilho, porque ele representa toda aquela
comunidade, toda aquela nao. Ento por isso que a gente vai l e cumprimenta com
muito respeito. Sempre que vocs chegarem em uma escola de samba, voc vai ver que
o pavilho est l. Sempre est. Se no estiver est errado, ele sempre vai estar l em
algum lugar, pode chegar l tranquilamente, pega o pavilho, um cumprimento s.
como se voc estivesse chegando na minha casa e me cumprimentando: Oi, como vai,
tudo bem? Estes so os fundamentos da escola de samba, que eu acho que a gente peca
muito em no passar isso para toda a comunidade.
Eu dei uma palestra na semana retrasada pra um grupo de jurados. E a eles
chegaram, todo mundo chegou, 150 pessoas, todo mundo sentou. E a, a hora da minha
palestra que mdulo dana, a eu falei:
Estou impressionado. Vocs chegaram aqui e ningum foi l cumprimentar o
pavilho. Era o do Camisa Verde, porque foi feito l. A, na sada, foi todo mundo l.
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U, se eu no falo, no todo mundo que fica sabendo. Tem que saber por qu. Se eu
no falo algum um dia ia falar, mas e se no fala? Eu, como membro da Embaixada,
tenho que falar.
Esse o carnaval hegemnico. Mas estou pensando nas escolas grandes. Se
vamos falar das escolas da UESP, ainda tem, mas elas esto confinadas, coitadinhas.
Voc v onde eles pem o pessoal para desfilar, l no autdromo. Fala a verdade, onde
no tem ningum, pode? No pode, ento vai sendo excludo. Escola l da Vila Matilde
tem que desfilar l no autdromo. Que dor de cabea como que o pessoal vai levar
alegoria pra l, no pode. A escola do bairro pe l no bairro.
Sabe, antigamente a gente fazia isso. Quantas vezes eu desfilei na Vila Prudente,
na Lapa, ali em cima em Santo Amaro, onde tinha gente. Agora, na Politcnica, no tem
ningum, e olha a dificuldade que pra chegar. A UESP tinha mais de 120 escolas, s
est com 68, no era para ter muito mais? T acabando, o pessoal t desistindo. Vai
acabando, o que eu digo de romantismo, o tempo quando a gente fazia fogueirinha pra
esquentar o tamborim, sabe? Acabou tudo isso.
Quantas vezes eu no fui l em Santa Cruz, no Rio de Janeiro, buscar couro pra
encourar os surdos do Camisa Verde. A gente ia l no curtume, vocs morrem, um
cheiro horrvel! E a gente ia sabe? Encourava tudo, ia todo mundo com aquela garra,
hoje no. Voc liga: , Fulano, tem couro a, manda dez, manda 50. O cara entrega na
quadra e pronto. tudo muito simples, no tem mais a ansiedade de voc fazer, ver se
est legal, chegar no dia do desfile, a sim, t tudo pronto.
Ns chegamos na avenida j est tudo pronto, olha que legal, mas voc no viu
nada, no acompanhou nada, porque no pode ir no barraco. A comunidade no pode ir
no barraco. Ento voc no v nada. Tem gente que chega para desfilar e no v a sua
escola. Voc chega l e tudo muito rpido, j posiciona, sua ala aqui, e a soa a
campainha e j desfilou. A vem o segurana, pe todo mundo pra fora, entra no nibus,
foi embora. Voc no pode ficar ali pra ver sua escola chegar ou sair. No tem como,
voc no v a sua escola.
O samba um instrumento de denncia, temos que voltar a us-lo. Aqui em So
Paulo no temos muita tradio de escola que vem com stira, mas no Rio tinha mais.
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Hoje quase no tem mais. A Ilha do Governador, Estcio, eles eram bem crticos, com
questes polticas. Aqui em So Paulo lembro que o Camisa trouxe como o Negro
Maravilhoso e era verdade! V s:
Tinha uma bola de ferro, preso nela uma corrente/Esse osso de canela veio de
outro continente/De jeito nenhum no preconceito/Preto e branco tem direito nossa
escola no faz distino de cor/E pra falar sobre esse tema/Foi que surgiu o
problema/E o dilema se avizinhou/ , a nossa escola enobrece a negra gente/Que
nunca ficou chorando/Sempre viveu fingindo contente/ Negro paga imposto/Negro vai
guerra/Negro ajudou a construir a nossa terra/Temos a pergunta no nos leve a
mal/Porque s no trduo de momo que o negro genial?/Ele capito/Ele
general/Ele poderia ser tanta coisa dentro da vida real. [cantando]
uma crtica forte e foi feita no tempo da ditadura. Um perodo que no
podamos falar. Eu fiz samba-enredo que foi pra censura. Tudo tinha que passar pela
censura. Essa palavra aqui no, tem que tirar. Era complicado. At 1970 e poucos, mas
at mesmo at 1985 ainda tinha censura velada. Certas coisas no podiam falar. Seno
era preso. Eles queriam que a gente fizesse esse sambinha gua com acar.
Mas depois veio a democracia, e parece que quando voc pode falar, perde a
graa, quando voc no pode falar que voc fala. Eu tinha um professor de portugus, o
dia que a gente queria matar aula era s falar de poltica. Ele j tinha sido preso como
subversivo, quando a gente falava, ele saa no corredor, olhava, fechava a porta e
comeava a discutir poltica. S que a gente no podia falar alto, tinha que falar
baixinho e ele sempre com medo de algum dedurar.
Agora v os enredos desses ltimos carnavais, quase todos eles giram em torno
de patrocnio. Um fala de uma cidade, outro fala de outra. Ns vamos falar da Avenida
Paulista, o centro financeiro, os bares do caf, tal, rende alguma coisa? Vai render, mas
seria melhor falar algo mais cultural, do nosso povo, as crianas no sabem mais nada,
outro dia perguntei quem descobriu o Brasil, me falaram que foi Cristvo Colombo. A
crianada no sabe nada da nossa Histria. O samba-enredo poderia ensinar isso.
Com tudo isso, o futuro do carnaval paulistano muito incerto. Eu vejo com
muita preocupao... Em questes... De segurana. De segurana pelas escolas que a
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gente t vendo subir. To chegando a, essas escolas de torcida... Eu no sou contra as


escolas de torcida, mas eu tenho uma preocupao. Eu j dei aula l na Mancha Verde, e
a eu estava l dando aula de mestre-sala e porta-bandeira na Mancha Verde... Peguei o
CD e botei l, t tocando assim, quando tocou um samba da Gavies que estava no
CD...
Puxa vida, no, no, no, no, Gavies, no.
Uai, por que no? um samba.
No, Deus me livre, os caras passam a na rua, v ns tocando um samba do
Gavies. Eu falei:
Eu no quero saber, eu t dando aula aqui e eu vou tocar. um CD das
escolas de samba de So Paulo, eu tenho que tocar.
Olha, eu parabenizo a Gavies todo desfile e a Mancha tambm... Os carros que
eles trazem, sempre maravilhosos, o acabamento, muito bonito... As fantasias so
sempre nota dez! So mesmo caprichosos, eles fazem, eles tm condio e mostram que
tm. Mas a falta um pouco. Eles podiam ganhar o carnaval todo ano, poderiam mesmo.
Mas que a falta um pouco de maturidade de avenida em questes de desfile,
falta um pouco... Porque a, os componentes no so componentes da escola de samba,
torcida. Ento pra eles, eles to ali, mais preocupados em divulgar o time de futebol do
que com as regras. Outros querem mais curtir. E no assim, as escolas de samba tm
regras, e a eles infringem as regras e por isso que eles perdem. Na evoluo, por
besteira que eles fazem... Perdem ponto por trazer bandeirona, que no pode, n. Ento
eles vo perdendo, assim, perdem pra eles mesmos. Mas, se eles vierem como uma
escola de samba mesmo, ningum segura.
A Mancha teve um carnaval a que eles saram l da quadra montadinhos. Eles
atravessaram o viaduto desfilando, desfilando a escola inteira, eles tm um poder de...
de... aglutinao impressionante. Eu olhei e pensei: Caramba, ningum vai segurar
esses meninos. Entraram, fizeram um desfile lindssimo, com muita organizao,
perfeito, eles fizeram um desfile maravilhoso. Mas pecam em alguns aspectos, nesses
aspectos de torcida, n? A que empobrece. Mas se no fosse isso... Eles trouxeram
uma grandiosidade pro nosso carnaval.
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Eles so responsveis tambm por essa grandiosidade que a gente tem. Ento, a
gente critica, mas no pode s criticar, tem que falar as coisas boas que eles trouxeram
tambm. Porque eles trouxeram muitas coisas boas, por que as outras no vo querer
ficar pra trs, n? Ento tambm vai ter que melhorar.
Eu sou o Gabi, mestre-sala do Camisa Verde e Branco e da AMESPBSP.
Participei, lutei e continuo lutando por um carnaval popular feito pelos negros e pobres.
E isso... Se quiser falar de carnaval, venham aqui. Vocs vieram ao lugar certo!

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Dona China
Data de nascimento: 04/08/1929
Profisso: Operria e comerciante
Escola de Samba: Vai-Vai
Data da entrevista: 09/07/2011
Local: Residncia da Dona China

Figura 3 Dona China, ao centro, Karine Rio a esquerda e Bruno Baronetti a direita.
Fonte: Foto do Autor

Quero desfilar at o meu ltimo dia.

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Meu nome Emilia Feliciano Ferreira, me conhecem no samba por China.


Desde pequena sou conhecida por China. E estou no samba desde os 5, 6 anos, mais ou
menos, ou sete. Lembro que entrei no samba e logo comecei a estudar.
Eu estou no samba de 1936 at hoje. Quem me levava nos desfiles quando eu era
menina era meu av. Ele que me chamava de guaxinim, porque eu tinha muito cabelo,
como a calda do guaxinim, e eu fui indo at que eu virei Chininha.
Meu av era assim, ele tinha trs blocos, cala azul, camisa branca, cala verde,
camisa branca, camisa amarela e cala branca. Cada dia se apresentava em uma fazenda,
ento nessa fazenda ele pegava um ramo de caf e dava pra eu vir na frente. E a eu
vinha na frente, cada dia eu vinha na frente de um bloco. Quando terminava o carnaval,
o bloco que ganhava, ganhava o trofu, e sabe o que era o trofu? Era saco de laranja,
mexerica, caf, meu Deus, era um divertimento!
A que eu comecei a gostar, gostava muito de cantar, participar da igreja e foi
indo. A, viemos pra So Paulo, morar no Ipiranga, e l eu comecei a sair no cordo
Juventude como contrabaliza. Participava das festas da igreja, aquela festa que a
meninada sai pra pegar flor pra colocar na rua onde passa o padre, de tudo isso eu
participei. Tinha canto nas barracas, eu participava, era uma lder nos festejos.
E assim meu av veio me trazendo, ele era rezador, rezava, participava de
congada, de roda de samba, de festa de samba. E tudo isso eu fui aprendendo com ele e
tomando aquele gosto e, quando chegamos aqui em So Paulo ca, de vez no samba!
Meu pai tambm era msico, tocou na orquestra do Bem Conrado.
Tambm fui do circo, eu fiz algumas apresentaes, tava aprendendo. S no
continuei porque, depois do Ipiranga, o circo vinha aqui pra zona Leste e, nesse tempo,
era como se fosse fora da cidade e a minha famlia achava que era interior, que iam me
roubar, ento parei de me apresentar no circo, seno at hoje eu tava no Rapa-Rapa, tava
no circo, j era velha, mas estava no circo! Acho que dessa poca deve ter algum,
porque estou com 83 anos, e eles eram mais velhos que eu. possvel ter algum, ou
no tem, no sei.
Sempre no ms de agosto amos pra Pirapora do Bom Jesus. Esse ano que eu no
fui, mas eu vou. Era to lindo! Tinha congada, catira, tinha a dana de roda, as mulheres
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com aquelas saionas, danando e batendo aquele tambor, eu dancei at com menino
pequenininho assim, menino bom pra danar sabe, danar umbigada, aquelas coisas
lindas, depois tambm tem a dana de So Gonalo, o pessoal vem danando, e bate pra
l, bate pra c, aquelas fitas, coisa maravilhosa!
Faz pouco tempo que ns participamos de um show junto com o Netinho na
festa de Pirapora, ai, foi to bom, voc tinha que ver! Fora da festa, eu estive em
Pirapora pra inaugurar o busto do Geraldo Filme, que fizeram em um salo, colocaram o
busto dele em cima e ns que fomos inaugurar o busto dele.
Tambm participei das festas de Nossa Senhora Aparecida no Parque da gua
Branca. Os bombeiros trouxeram e ns fomos receber a Nossa Senhora Aparecida, ali
foi uma festa enorme. Fomos todos da UESP uniformizados, foi uma festa grande,
muito boa.
No ano passado que eu no fui e esse ano que j me convidaram e que eu no fui
por problemas de sade, mas eu participo da festa de So Benedito, eu vou pra Santos
com o Durval nas festas de So Benedito, participo de tudo. Agora a Embaixada, o
pessoal da Velha Guarda, ns, da Velha Guarda, sempre participamos quando tem festa,
participo de tudo isso.
Antes de entrar no Vai-Vai, eu participei de outras escolas, como Folha Azul e
Tatuap. Foi assim, do Ipiranga eu fui morar na Penha. Morei um pouco na Penha e
viemos aqui para o Carro. Nos mudamos pra c em 1947. A comeamos a sair no
Folha Azul dos Marujos, era uma escola boa, mas a morreu o presidente, os diretores, e
eles no souberam levar a escola para frente porque ela estava muito boa. Tambm
desfilei um ou dois desfiles do Tatuap, escola do Mala e do Casado.
Eu saa nessa escolinha do Folha Azul e o Ivo veio me convidar para fazer uma
noite no Vai-Vai, porque no tinha porta-bandeira para desfilar nesse evento que a
escola ia fazer no Sbado de Aleluia. E eu fui na noite de sexta na casa da Dona Paula,
que arrumou a roupa para mim direitinho. E quando foi no Sbado de Aleluia, eu estava
no Pacaembu. Fiz o desfile eles gostaram, e quando fui para casa dela, na Avenida
Anglica, dcimo terceiro, a os reprteres todos, em cima de mim, todos me adotaram,
me pegaram como uma criana, e eu fiquei at hoje.
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A Dona Paula ajudava na parte de carnavalesco. Era assim, por exemplo, na


poca do cordo, a escola se reunia e cada fazia um pouco e saa tudo, mas quando
passou a ser escola de samba, no Vai-Vai foi o Caio que passou a ser carnavalesco. Ele,
a mulher dele, a Beatriz, e o Minoro, que um japons. Eu lembro que meu figurino de
porta-bandeira era o Caio que fazia.
Era assim para ele fazer o figurino, tinha uma lista e era aquilo ali, no tinha
que tirar, era tudo na ntegra, o que ele fazia tinha que sair como ele fazia, e hoje em dia
o carnavalesco d o figurino, mas se ela no gostar, ai tira isso, tira aquilo;
antigamente, no, era a coisa feita ali mesmo, na ntegra.
Hoje voc v, se o enredo for africano e tiver que sair de africano, sem camisa s
de turbante, eles no querem, eles querem roupa que brilham plumas e paets, se no
tiver plumas e paets ningum quer, percebeu isso?
O carnaval bem diferente, porque antigamente o enredo vinha de acordo, se era
enredo afro, tinha que vir vestido de africano, tinha que vir vestido direitinho. As alas
eram contadas e hoje em dia, no.
Nossa, no meu tempo, no era assim. Junto com a minha comadre, eu cheguei a
pegar uma lantejoula do cho, para no fazer falta no meu vestido, porque no podia
comprar, no. Agora a pessoa chega e j tem tudo pronto, quer dizer, que ns,
antigamente, lutvamos, a gente comprava o tecido, ou a escola dava um tecido
vagabundo e voc tinha que fazer ele, coberto e forrado com lantejoula, quando no
tinha dinheiro pra comprar lantejoula, a gente colocava plstico.
O primeiro vestido meu que eu sa no Vai-Vai, o P Rachado que era presidente
naquela poca deu s cetim preto e falou: Olha, China, te dou o cetim e voc v o que
voc pode fazer, ento ele me deu e eu mandei uma colega minha que mora aqui fazer.
Ela fez e eu pensei: E agora, como eu vou comprar lantejoula? Porque a situao
financeira no era boa, a eu comprei um plstico, ela recortou toda a bandeira do VaiVai num plstico, ela colocou no vestido preto de cetim, e, nossa, quando eu cheguei na
avenida, esplandeceu!
Ai, meu Deus do cu! Quando eu subi a So Joo, meu corao parecia que ia
sair pela boca. A, l na avenida que eu recebi o pavilho, a bandeira, esta bandeira que
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t aqui comigo. Quando eu ia subindo com ela na mo assim, vi a roupa do Ivo igual, a
mesma roupa que era minha, era do Ivo Branco, o mestre-sala. Ele era enfermeiro do
hospital municipal, depois foi para as Clnicas e passou a ser escrivo de polcia em
Sorocaba, e de Sorocaba o Silvio me falou que ele tinha morrido. Mas o Ivo era uma
pessoa muito grande, ele era louro dos olhos azuis, alto, usava sapatos brancos, ento o
pessoal chamava ele de homem do sapato branco. Era um mestre-sala de primeira, voc
tinha que ver, ele era meu mestre-sala e trabalhava com dois leques, e era uma coisa
maravilhosa, quando ele caa na avenida, uma coisa que a gente no esquece. Quando
ele punha o leque assim e me chamava na avenida, e fechava o outro, a avenida vinha
abaixo! Ento sempre, graas a Deus, tive muita proteo dele, e ele, onde estiver, que
Deus o proteja.
Quando o Vai-Vai passou a ser escola de samba, eu fui a primeira portabandeira. Fui primeira porta-bandeira do Vai-Vai, de 1972 at 1983. Vim para desfilar
um dia e eu estou h 43 anos. Eu tambm j desfilei com estandarte. O ano que eu parei
de sair de porta-bandeira eu passei a sair com o estandarte. O Vai-Vai de 1930, mas
no era escola de samba, era cordo.
Era diferente, porque no cordo tinha rancho, tinha rei, rainha, princesa, tinha
todos esses adereos, tinha estandarte. A batida do cordo tambm diferente porque o
samba de cordo era uma batida, agora de escola de samba outra. Ento o samba de
cordo era cantado em seguida, agora no. E tinha cavaquinho, tinha aquele bem
grando que bate. Hoje em dia mudou bastante, tem cuca, tem reco-reco, agog,
frigideira. E o samba modificou muito.
Quando eu comecei no Vai-Vai, o mestre de bateria era o Feijoada, depois
entrou o Tadeu. Antes deles teve um primo meu, o PatoNgua. Quando ns soubemos
que ele tinha morrido, j tinha passado um ms ou dois, morreu l em Suzano, a gente
nem sabe como foi direito. Falaram que mataram ele, mas at hoje a gente no sabe.
Cada um conta uma histria diferente.
Eu desfilei com a fantasia a da fotografia, esse foi um dos meus primeiros anos
como porta-bandeira. Voc veja que era tudo diferente, at as plumas; antigamente, era

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o baile da gente que valia a pena, hoje em dia s pluma e paets, elas balanam e
acabou, os concursos todos que eu ganhei, foi na raa, ganhei ali.
Quando eu deixei de sair de porta-bandeira, ela foi ofertada para mim pelo
Chicle. Eu sou a nica porta-bandeira que teve o pavilho ofertado pela escola. Teve
uma festa para mim no Palcio Mau, e, nessa festa, eles me ofertaram o pavilho que
est aqui comigo. E durante esse tempo todo eu fiquei desfilando para o Vai-Vai, era
muito bom!
Tambm desfilei na escola Imprio do Samba de Santos, todo ano eles vinham
me buscar. Eu tenho as medalhas que eu vou mostrar, de 1970 a 74. Ganhei elas como
melhor porta-bandeira de Santos.

Tenho essas e outras medalhas. Uma das mais

importantes foi a da inaugurao da Praa Roosevelt, que o prefeito Faria Lima me deu.
Tenho muitas outras medalhas e prmios.
Ano passado, ganhei da Cmara Municipal. Eu tenho esses prmios, mas eu
acho que a poltica no devia entrar no carnaval. A poltica uma coisa social, de
governo, do Brasil. As escolas fazem homenagem aos polticos, mas eu acho que tinha
que ser mais pro samba, mais enredos antigos, tinha que vir mais sobre escravido, Baa
de Todos os Santos, o enredo l do Nordeste, um enredo que trouxesse a origem do
povo brasileiro.
O Vai-Vai pra mim uma segunda famlia, todos me respeitam, me querem
bem. A diretoria desse menino a, agora ele o presidente. Quando conheci, ele era
uma criana, hoje ele o meu presidente, o Neguito. Tem tambm o Clarcio...
O enredo do Vai-Vai desse ano so as mulheres maravilhosas, no li a sinopse
ainda, mas deve vir muita coisa, nesse enredo, em minha opinio, eu ainda no li no sei
o que o carnavalesco vai por, mas, nesse enredo, em minha opinio, vem muitas pessoas
importantes, mulheres maravilhosas, isso um enredo que traz as mulheres pra frente;
agora, se fosse nesse enredo homenagem a Getlio Vargas, j no seria bom, porque ele
um governador, ento acho que no tem que misturar as duas coisas. Agora pode
homenagear artista, como ns homenageamos ano passado o maestro, e a histria do
maestro triste e feliz!

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Muitos artistas frequentam o Vai-Vai, o Cafu, jogador de futebol. Quem no sai


de l o Douglas do Pixote. Todos vo l na minha barraca. Se voc soubesse o que de
policial que vai l. Tem uns que saem do servio correndo para comer o meu cuscuz, ali
eu trato bem, j tenho aquele jeito, tambm so 30 anos que eu tenho barraca ali.
Quando algum bbado chega pra atrapalhar, eu falo:
Olha, no coloca a mo em mim e nem chega perto de mim porque meus
colegas da polcia to tudo aqui.
Eles falam assim:
Ningum mexe com voc, Chininha. Pode ficar sossegada.
Ali eles comem, bebem, me tratam bem, se tem alguma coisa, eles me falam, se
eu preciso de alguma coisa, eu falo com eles, tem o P, ele fiscal de bateria. Ele ajuda
o Tadeu na bateria, ele investigador e tm muitos outros l assim: tem mdico,
mdica, advogado, todos apaixonados pelo samba.
Tambm tem o pessoal do Teatro Maria Della Costa e de grupo de pagode.
Recebia at aquele que faz show com as meninas, o Compadre Washington. Da voc
v, eu tive aqui na minha casa tambm, no caf da manh, o Tramontina, o Chico
Pinheiro, todos eles vieram aqui, quando eu cheguei aqui de um carnaval que eu
desfilei, a minha cozinha j estava pronta e eles todos sentados esperando eu chegar. Foi
muito bom, eles fizeram uma entrevista comigo que passou no jornal.

Tudo isso

acabou, no tem mais, esse negcio de caf, no tem. A ltima matria que eu fiz foi na
Bandeirantes, que eu estava de embaixatriz, contando minha histria. Eles me
perguntaram:
O que a senhora acha de artista no samba?
Eu falei:
bom. Ajuda o nome da escola, e, depois, eu no tenho nada para falar,
porque eu sou da Velha Guarda e no tenho o que reclamar, a nica que eu no gosto
que a gente luta, luta o ano inteiro pra fazer uma roupa e quando chega na hora do
desfile o artista j tem roupa pronta pra sair, do contrrio, quanto mais artista no samba,
melhor . E na reportagem eles puseram que a Velha Guarda no queria artista no

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samba. Que a gente da Velha Guarda no queria ela, a Tiazinha, quando ela veio
desfilar no Vai-Vai.
Eu gosto, eu adoro e acho bonito o modo deles falarem, deles estarem
participando. Tem a Leci Brando, ela falou muito bem do carnaval de So Paulo. Tem
uns artistas que tm talento tambm no samba. Esse ano teve um que participa da
novela que foi mestre-sala da Gavies da Fiel, o Wilson, no lembro o nome da novela.
Aquele que aparece na novela, que tem um bar e est sempre de camisa listrada.
Uma das queixas que eu tenho que a Globo no passa na ntegra o nosso
carnaval. Tem ala que o povo nem v, j no Rio de Janeiro, eles comeam desde a
concentrao at aqui na disperso, tudo. O pessoal est na concentrao, eles esto
mostrando e vem at aqui em cima na disperso. J ns aqui, da Velha Guarda, no
aparecemos, voc pode ver, outras alas tambm no apareceram. uma crtica que eu
pus na minha cabea e voc pode ver que isso a mesmo, n? uma coisa certa, eu
acho que eles deveriam dar mais valor ao nosso carnaval aqui de So Paulo. Voc pode
ver a Bandeirantes depois, quando passa l os pedacinhos direitinho.
Acho que o carnaval, antigamente, ele no era, assim, falado; era pblico, e eu,
muitas vezes, desfilei para o pblico, que no tinha cabine, ento eu era aplaudida pelo
pblico, quando falavam: A Vai-Vai vem vindo, a China vem vindo. Nossa, meu Deus
do cu, era aquele corre-corre, eles isolavam a pista com corda, aquela coisa era
maravilhosa. E hoje em dia tudo mais reservado. Ningum pode chegar perto, no
que eu no acho o carnaval de hoje muito bom, so organizados de modo diferente.
Quando eu comecei, era pela tradio.
Eu passei por Anhangaba, Avenida So Joo, Lbero Badar, tambm na Praa
Roosevelt, onde eu inaugurei a praa, na Rua Direita. Mais isso foi muito antes de eu
sair no Vai-Vai, ali, na Rua Direita era assim, um cordo tinha que passar por dentro do
outro para poder ganhar. Eu vinha danando e a outra porta-bandeira me ultrapassava,
eu tinha que passar ela para poder chegar at o final, ento a escola ganhava.
Na Rua Direita tinha a sua escola e tinha a minha, uma tinha que passar dentro
da outra pra chegar na Praa da S. Tambm participei da Praa da S, dos dois
tablados, da boneca de piche que o Grande Otelo encenava. Veja bem, a minha me
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trazia meus irmos e eu para gente assistir o tablado, ela trazia uma coberta, punha a
gente nas escadarias, e a gente ficava ali at terminar, porque quando terminava, ela
vinha pegar a gente para ir embora pra casa, veja bem que ano que foi isso, foram assim
por muitos anos. E acho que isso por uns dez anos, eu vinha para a Praa da S pra
assistir o desfile de 25 de janeiro ou desfilar no carnaval.
Peguei todos os anos da Tiradentes, peguei todos os anos do Anhembi e vou at
eu parar.
Ns gostvamos da Tiradentes, sabe por qu? Na Tiradentes tinha onde o
pessoal fazia a concentrao, tinha mais liberdade, tinha bar, poderia ir em um banheiro,
voc podia comer uma coxinha, uma empadinha, voc tinha a liberdade de usar os
barzinhos dali.
Veja bem, l no Anhembi voc no tem. No comeo tinha algumas barracas que
ficavam ali no comeo, mas, de uns tempos para c, terminou, no tem mais nada. No
sambdromo, ali, para ficar bom, tinha que desfilar direto, porque voc tem aquela
curva que engole muita coisa, voc vem e a curva tem que fazer isso, voc no v a
escola inteira, depois da curva que vem vindo as alas e isso eu acho que prejudica um
pouco, porque o bonito voc ver a escola quando ela vem, voc v aquela emoo,
aquela coisa, tem que sair uma para entrar a outra, no cabe a escola inteira na pista.
nisso que eu acho que mudou, na Tiradentes cabia direitinho. L no tem um
bar, s dentro, l fora no pode ter nada, mudou muita coisa.
Antigamente, a gente tinha amor no samba, amor bandeira. Quando eu deixei o
samba foi por doena. Passei uma fase muito difcil. Faleceu minha me e o meu marido
em dois meses. No dia que ia fazer a missa de dois meses de falecimento da minha me,
meu marido faleceu. Ento eu desacoroei, porque eu ia muito para o interior, passava
vrios dias fazendo shows no interior, a, quando foi nesse ltimo ano, eu falei assim:
Olha, Chicle, minha me est muito mal.
Eu saa de dois hospitais, saa daqui do 21 de Abril, que a minha me estava ali,
e ia l para o Municipal ver meu marido. Entrava l, tomava banho, as moas me davam
sopa, e, depois de tudo isso, eu descia a p pra Bela Vista e ensaiar no Vai-Vai. Quando

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minha me faleceu, eles vieram todos aqui, e, depois de dois meses, meu marido. Eu
falei: Eu posso fazer esse carnaval, mas depois eu no quero mais.
Meu marido morreu dia 17 de janeiro, enterrou dia 18. No dia 20 de fevereiro
tinha que estar na avenida, porque antigamente era de domingo, no era de sbado; olha,
a lgrima caa. Eu estava na avenida danando, eu pensei: Nossa, o ltimo ano que eu
vou sair, a, quando teve na quinta-feira a reunio, eu entreguei minha carta de
demisso. Mas eles no me deram. Falaram pra mim que eu continuaria para sempre
sendo a porta-bandeira da escola. Mas j no dava mais pra continuar como primeira
porta-bandeira, indo a todos os ensaios. Ento passei o pavilho. Danava com o
pavilho em algum evento, em shows. Eu prometi que eu no ia desfilar contra o meu
pavilho, no ia disputar contra ele, e ia ser sincera a minha bandeira, que a do VaiVai.
Em todos esses anos nunca sa por outra escola, participei sim, ajudei sim,
porque eu sou fundadora e porta-bandeira da Associao de Mestre-Sala e PortaBandeira do Estado. Ento, se eu estiver em uma quadra e um diretor ou presidente
pedir pra segurar o pavilho da escola, caso a porta-bandeira no estiver e precisar
receber algum, d para voc fazer isso, a eu posso, mas desfilar contra o meu
pavilho, no!
E ele est a, uma relquia, eu vou passar ele como falei pra vocs, eu quero
em um pedestal ou ento em algum museu, como o Museu do Disco. Teve uma
exposio l no Ibirapuera, museu afro e tinha umas fotografias minhas. Eu no fui l
ver, mas me falaram que tinham fotografias minhas.
Fui muito feliz na minha carreira, fui muito feliz mesmo. Algumas vezes tm
alguns tropeos, como no servio, voc est no servio e tem um que quer puxar o seu
tapete, escola de samba assim, mas quando um queria puxar o tapete meu daqui, eu
saa pra l, quando brigavam comigo aqui, eu rezava para aquela pessoa, para no fazer
nada com outras pessoas. Fulana falava:
China, ela sua inimiga.
Que Deus ajude ela, para no fazer para outro o que ela est fazendo comigo,
porque eu no estou ligando pra isso.
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Ento foi assim que eu fiquei todos esses anos nas escolas de samba. Se voc
chegar pra qualquer um e perguntar: E a China, porta-bandeira aqui, como que era?
Pergunta se eu tenho algum passado ruim. O meu passado lindo, maravilhoso, limpo
e eu posso chegar no aeroporto, dar meus documentos e vou para onde eu quiser, sou
feliz da vida, e assim .
Ento, antigamente voc vivia o carnaval porque no precisava pagar para
assistir. Vinham s escolas de samba, aquela coisa linda. Hoje em dia, para assistir o
carnaval, tem que pagar e no tem liberdade. Voc est l na arquibancada, longe. Se
voc quiser levar uma comida, um lanche, j no pode, tem que comprar tudo l.
Ento o carnaval mudou nesses aspectos. A pessoa que gosta de carnaval vai
porque quer assistir. Mas o carnaval hoje mais para os ricos, porque eu no vou l
pagar R$ 4.000,00 em um camarote. E eles pagam e os camarotes esto superlotados.
Eu fui fazer um show no Brahma ali na So Joo e tinha de tudo, serviram a gente muito
bem. Eles querem resgatar alguma coisa de carnaval, sempre tem atraes, com artistas
antigos, mas resgatar o carnaval como era na So Joo no Anhangaba, na Tiradentes,
no tem mais.
A gente desfilava ali no desfile oficial e dali mesmo saa e desfilava em outro
canto, ento voc era carnavalesca a noite toda e era uma coisa que pra mim fez
diferena. Agora, voc veja bem, eu, com 82 anos, o que eu passei, bons carnavais,
maus carnavais e agora? E assim a vida, e vamos ainda ter muitas mudanas, n,
porque do jeito que esto as coisas. Se por acaso os nossos dirigentes forem mais
maleveis, o carnaval pode melhorar.
Hoje o carnaval perdeu a essncia, ns perdemos toda essncia, porque,
antigamente, se eu pusesse uma roupa de chita e um turbante, ih! Voc era carnavalesca
j tava desfilando, se os homens pusessem uma cala e alguma coisa na cabea j era
fino e hoje em dia, no, se um homem colocar uma cala de cetim e colocar um leno na
cabea, o pessoal diz olha l, imagina uma escola de samba sair com aquilo, no
verdade?
A diferena muito grande, porque, antigamente, voc fazia uma saia de chito
bem feitinha, de um paninho bem-feito, voc saa e todo mundo admirava, uma queria
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comprar chito mais bonito do que a outra, uma queria comprar estampado, para ser
mais bonito que a outra, ento o chito fazia o carnaval, os homens faziam o carnaval,
eles se vestiam de mulher, as mulheres se vestiam de homem. Ento era um carnaval
que alegrava o povo. Voc vai nos bairros, como na Vila Esperana, e voc v o
carnaval, voc t ali, voc v o carnaval. Agora l, no Anhembi, no d, tudo fechado,
o pessoal das escolas de samba s tem aquele trecho para desfilar, terminou o desfile,
nibus e quadra.
O samba traz alegria, traz tristeza, traz falsidade, mas muito mais alegrias. Eu,
ento, depois disso, mesmo triste, eu nunca parei. Continuei no samba, principalmente
fazendo seminrios fora com o Gabi, ensinando. Eu ensinei muitas porta-bandeiras.
Todos os mestres-salas e porta-bandeiras no Vai-Vai, os que esto na escola passaram
tudo na minha mo, alis, todas as escolas de samba tm um pouco do meu dedinho. Eu
no posso nem julgar ningum. Dizem pra mim:
China, porque voc no faz o curso pra julgar?
Eu no preciso fazer curso, eu sou professora nesse quesito, s que eu no posso,
porque geralmente as que esto desfilando passaram pela minha mo. Agora, as portabandeiras de hoje, algumas no querem obedecer, seguir o currculo, porque, hoje em
dia, elas colocam uma sainha curta, gira, gira e aparece tudo, a porta-bandeira tm que
ter o peito coberto.
Hoje, elas colocam tomara-que-caia e fica o tempo todo ajeitando assim. Se eu
estou na avenida, eu no dou nota, porque a porta-bandeira tem que ser lisa, ela no tem
que estar toda hora ajeitando aqui. Eu expliquei pra Paulinha, filha do Penteado, que
nossa porta-bandeira. Eu a ensinei desde pequena, ela uma porta-bandeira que sabe
danar. Quando ela est em julgamento, ela no mexe em nada, ela s dana. E nesse
ano que passou, ela perdeu ponto. Eu no li a smula porque no gosto de me envolver
em coisas de diretoria. S quando eu era responsvel pelo casal.
Isso no um erro meu que ensinei. um erro dela, ela quis mexer na roupa e o
jurado fica em cima, se fosse eu que estivesse julgando, eu puniria tambm, ajeitou a
blusa ou o pavilho tem quer tirar nota. Foi no ano passado, que ela tirou nove e meio.
Eu ensino para as minhas porta-bandeiras, que isso no pode. Pra voc ver, o melhor
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trio de porta-bandeiras de So Paulo o do Vai-Vai, difcil o Vai-Vai ficar trocando.


Os casais da Imprio de Casa Verde eu que orientei, a Fabola e Renatinho, do
Camisa Verde, sabe, so mestres-salas que tambm passaram na minha mo, e hoje, se
eles fazem alguma coisa errada, porque eles querem aparecer. O mestre-sala e a portabandeira, eles so casais visados. Em uma escola de samba tem trs, quatro mil pessoas
e por causa de um erro da porta-bandeira, a escola pode perder um campeonato ou ser
rebaixada. Ela tem a maior responsabilidade.
Dentro de uma escola de samba, o que mais a gente reverencia, o que voc mais
procura a bandeira, o mais visado. No tem outro, o importante a bandeira. Ns
existimos para carreg-la. Hoje, quando eu vou a uma quadra e vejo caindo alguma
coisa, eu at chamo ateno, chamo de lado a menina e explico assim, assim, assim.
Porque tem algumas que a blusinha vem s at aqui. Usando tomara-que-caia, outras
com o brao tudo de fora, no assim, eu acho que a porta-bandeira respeito. Ela
uma deusa da beleza e deusa da dana, ela uma bailarina clssica. Ela uma bailarina
que no pode falhar, e muitos veem a porta-bandeira apenas pelo vesturio, e eu acho
muito bonito o vesturio, mas o mais importante na porta-bandeira so os passos.
Quando eu vejo uma porta-bandeira danando, se ela vem vindo l na esquina
pelo girado da bandeira, eu sei se ela vem certo ou se ela vem errado. Sei porque
quando eu dava aula as minhas porta-bandeiras, meninas, moas que estavam
aprendendo, eu ensinava elas, um pra fora dois pra dentro, assim, pra no tontear o
pensamento. Porque tem muitas que s vai girando, girando, girando, no pode ser
assim, a porta-bandeira tem que ter os passos dela, direitinho, olha uma classe. Eu
ganhei muitos concursos por causa da minha classe.
A primeira porta-bandeira que ganhou o concurso da Prefeitura fui eu. Ganhei
um trofu dessa altura, quase um metro. Um trofu pra mim e o outro o Serginho,
trofu azul, como a gente mudou de casa pra c, mudou pra l, ento foi quebrando as
partes do trofu que eu ganhei. Tambm teve um prmio de cento e cinquenta cruzeiros
para dividir em dois. Fomos receber, Serginho e eu no Banco Banespa que tinha na 25
de Maro quando voc sobe a ladeira.

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Quando eu ganhei, todos os outros casais estavam todos emplumados, cheios de


coisa, e eu estava com este vestido da foto. Preto com pedrinhas, que eu tinha usado no
desfile. Na tribuna dos jurados estava o Nelsinho que presidente da FESEC, estava o
Haroldo Lobo, compositor que faleceu, estava o Manezinho, Ciro, falecido, Geraldo
Filme, todos os cobras estavam na tribuna, para julgar, porque era um concurso da
prefeitura. Eram dezoito casais, tinha a Imprio do Cambuci, que era o Nivaldo e a
Glria, que morreu, morreu a Olga da Mocidade Alegre, todas elas morreram, sabe? Eu
que estou aqui, de enfeite.
Veja bem o que a dana! Eu era a porta-bandeira mais pobre no visual, e elas
estavam cheias de plumas e paets, aquelas coisas todas e foram chamando os casais,
aquela coisa toda. Eles danaram. A, quando foi a minha vez de danar, o Serginho
perguntou quantos minutos eu ia querer. Eu falei:
Olha, Serginho, pra mim, dois. O Serginho falou:
No, vamos danar em cinco, trs pauleira e dois pra apresentao oficial.
Chegou a nossa vez, chamaram, quando ns entramos, no tinha ningum pra
bater palmas pra ns. O pessoal do Vai-Vai, eles estavam em uma festa na CMTC, no
clube no Tiet do lado de baixo, ento no poderiam ir para assistir as apresentaes.
At tinha uns gatos pingados, mas ns entramos com raa.
E quando pisamos o p e o Serginho abriu o leque, fomos passando, girando,
fizemos dois minutos. A fizemos pauleira, ganhamos com classe e foi com a classe que
ns ganhamos o trofu. Porque a minha roupa essa, simples, mas foi a dana que
diferenciou os casais e eles vinham s virando, e eu falei no, e fomos entrando nos
nossos passos, e eu fui sentindo a msica do surdo, tamborim, porque voc tem que ir
no compasso da msica, direitinho, foi o que ns fizemos, ns ganhamos. Os meus dois
pares, eles foram os melhores mestres-salas do Estado de So Paulo, foi uma pena que o
Serginho morreu, e o Ivo morreu tambm, ficou s eu.
Eu sempre nas reportagens que fao, falo que a porta-bandeira que me orientou,
eu falo assim, porque ningum ensina ningum, voc orienta, quem me orientou foi a
Neide da Mangueira. Ela ia pra Santos nos desfiles e me dava as dicas. Cada vez que

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fao uma reportagem, eu falo o nome dela em primeiro lugar, infelizmente ela j
morreu. Ento, tem que ter isso, respeito a quem nos orientou.
S que, hoje em dia, voc faz o bem e eles no olham a quem, quantos casais
que fazem reportagem e no colocam meu nome, e eles sabem que saram daqui dessa
mo, eles no falam, por exemplo, esses meninos, Fabola e Renatinho, dois irmos, eu
quase perdi trinta anos de Vai-Vai por causa deles, porque eu ia pedir demisso.
Eu sabia que eles no eram ainda casal suficiente para ir para avenida, que no
estavam prontos. Mas eu acreditei neles. Discuti at com o Espinosa, que era nosso
carnavalesco, na reunio geral. Me chamaram aqui na minha casa, porque eles me
levavam e me traziam para eu ir nessas reunies. A diretoria queria tirar o casal, porque
era minha responsabilidade, eu falei no, falei para o Tadeu, que era o presidente. Para o
doutor Miguel: Vocs no vo tirar esse casal e eu no vou dar aval para vocs tirarem
eles, porque se eu estou cuidando dos casais porque eu sou responsvel. Agora em
cima do carnaval vocs querem tirar, faltando trs meses, eu disse no, se vocs tirarem
eles a minha demisso est aqui.
Nossa, foi um horror, um clima muito chato, muita gente de olho na vaga, mas
eu bati o p e o casal ficou. Eu fiquei ensaiando com esse casal, inclusive com esse
menino que est agora na Vila Maria, o Ligeiro, que era da harmonia. Ele falou:
China, voc precisa tirar esse casal.
Eu falei para ele cuidar da harmonia que eu cuido do meu casal, olha foi o ano
que eu lutei com eles, trs vezes na semana, falei pro Gabi:
Vou tirar um sbado para o Vai-Vai, um sbado para voc.
Porque o Tadeu queria que eu ficasse apenas l todos os sbados e tambm
durante a semana eu vinha pra ensaiar o casal, porque eles saram de terceiro para
primeiro casal, um pulo grande, e tinha mesmo que orientar, a, quando chegou o
carnaval, eles foram muito bem, deram entrevista e nem agradeceram meu nome. Olha
menino, a ingratido do samba muito dura, voc sabe que eu tenho 75 anos de samba,
mas o que eu j sofri no samba, com essa ingratido.
A nica coisa que eu acho que todos os mestres-salas e porta-bandeiras que
passaram por mim deveriam ao menos em alguma reportagem falar assim: Eu tive
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instruo com a China. Eu fui a primeira que montou escolinha no Vai-Vai. Era uma
escolinha e uma ala que eu tinha no Vai-Vai. Eu tenho at fotografia deu dando aula,
olha, era show.
Ano passado o presidente falou pra mim fazer onde eu queria a minha fantasia.
Eu fui comprar o tecido l na Avenida Tiradentes. Tava l parada assim, e algum me
cutucou. Quando eu viro as costas, vejo aquele sargento, tenente, bateu nas minhas
costas. Vi aquele homem todo fardado e falei:
Olha, tenente, o senhor me desculpa, s quero atravessar. Ele falou:
A senhora assustou?
Eu assustei, poxa, estou aqui parada e o senhor chega assim, me desculpa.
Ele disse:
Eu no desculpo no, China.
Como China, o senhor me conhece?
Claro que te conheo! No lembra mais de mim, no se lembra do Marcos?
O Marcos era meu aluno de mestre-sala l no Vai-Vai ele era tenente e ele me
conheceu, no adianta esse cabelo branco nada, a fisionomia a mesma. A os outros
soldados me cumprimentaram, foi aquela festa. Ali na Tiradentes. Sabiam que eu
frequentei muito o Tobias Aguiar, que a minha filha filha de tenente, meu marido foi
tenente. Eu ia l pra fazer papel, ia pra tirar compra quando tinha a cooperativa.
Conheo tudo ali, o capito e todos eles. uma festa, voc tem que ver. Se eu for contar
todas as histrias, voc no sai daqui hoje, nem amanh, nem depois.
A ala de passista do Vai-Vai sempre foi muito bonita, quem coordenava o
Crei, neto da Dona Olmpia. Pra sair l tem que ter samba no p. Antigamente tinha
tanta coisa boa, muita criana, passo marcado, tinha destaque de cho, que hoje
dificilmente tem.
Todas as alas era de sambista. Hoje tiraram, era o destaque que separava as alas,
pois cada ala tinha seu destaque, para harmonia dirigir era melhor, e voc j sabia, a ala
de fulano j est montada, mas hoje uma ala de sambista e quase todas de turista, pra
voc achar um destaque de ala, eu no sei como o Vai-Vai faz. Nesse ano que passou,

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colocou aquela escurinha, aquela professora de afro, eu esqueci o nome dela, ela vinha
vestida como mata com uma roupa verde. Que espetculo!
J sa muitos anos de destaque, sa de destaque principal, sa de destaque de ala e
depois eu falei: Agora eu vou pra Velha Guarda. L eu levo o estandarte. J tem bem
uns dez anos que eu saio com a Velha Guarda. E o lugar que eu sinto melhor, mas
agora eu no quero mais participar de diretoria, quero s chegar e sair. Porque at o ano
passado, eu cheguei a fazer Simpsio, fiz o Simpsio do Carnaval no Rio de Janeiro, no
Projac, eu tive participao no ano retrasado na vinheta da Globo, ali perto de Pinheiros,
na gravao no Credicard Hall, cantei no coro do disco desse ano, e uma poro de
participaes que, se eu vou falar, voc no consegue nem escrever.
No ano retrasado, eu sa no carro alegrico no abre-alas, numa cabana, eram trs
cabanas que vinham na frente, eu fiquei satisfeita com isso.
Ano passado, eu voltei para trs, porque meu lugar agora ali, eu s saio no
carro de novo se minha perna no tiver boa. Se eu puder continuar, porque no carro no
tem problema pra mim, mas no tem jeito, vamos ver esse ano, porque que eu no
queria parar com o samba, no queria. Quero desfilar at o meu ltimo dia.
Mas para sair no cho no d mais. Porque meu lugar o cho, adoro evoluir, eu
fico cega, eu vou pro Rio de Janeiro todo fim de ano, vamos para Imperatriz, esse ano
no fomos porque estavam em reforma, fomos pra Grande Rio. Meu Deus do cu, eu fui
uma das porta-bandeiras homenageadas. Fomos muito bem recebidos, precisava de ver,
o pessoal de Santa Catarina que trouxe escola de samba de l ia na nossa mesa, tirava
fotografias, que coisa linda.
Eu comecei a ir para o Rio com o pessoal do Vai-Vai. O Ivo Branco, que foi
meu mestre-sala e eu fomos segunda festa de inaugurao da Quadra da Mangueira.
Fomos convidados para inaugurar a Mangueira, tambm foi e o Seu Penteado, fomos
para a Mangueira, naquele tempo ainda tinha a Mocinha, o Wilson, agora morreram eles
todos, o Delegado ainda est vivendo, t fininho. Cheguei perto dele e falei:
Nossa, como voc t fininho, voc lembra de mim? Ele falou:
claro, Chininha, que eu me lembro de voc.

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Eu fui a primeira porta-bandeira de So Paulo que dancei com o Delegado. E ele


falou que a nica porta-bandeira de So Paulo para danar com ele era eu. Era ele que
orientava os casais da Mangueira na quadra, porque no Rio de Janeiro no como aqui,
que ensaia em qualquer lugar, na rua, l cada um tem um horrio para ensaiar na quadra,
vai uma, depois outra, terminou de ensaiar, vem outros componentes, a dele a ltima
que mestre-sala e porta-bandeira, os casais entram e ele ensina, igualzinho ao Gabi.
E agora que eu t meio assim, depois do carnaval pra c que eu parei um pouco
porque a perna minha no quer ajudar e, se eu esforar, chega no dia do carnaval no d
pra eu ir daqui at ali. Eu me trato no Hospital das Clnicas tambm, tomo remdio para
o corao, e eu tiro sangue quase todos os meses. A doutora falou que agora meu sangue
t fino, que eu estava com sangue grosso, ela falou que agora t fino, t bom, conforme
vai afinando o sangue que eu vou tomando o remdio. E eu falei para ela da minha
perna, depois que eu tive derrame que eu fiquei assim, eu fiquei trs meses internada no
Tatuap, e essa mo aqui eu podia mandar cortar a mo, no mexia.
Nossa, se voc soubesse o que eu passei, no podia comer, e eu no aguento
ouvir gemido, aquela gente gemendo, chorando, eu precisava tomar calmante para poder
dormir. Ento voc veja bem, daqui da cintura pra cima eu no posso, no vai, porque
o brao que eu colocava o pavilho, eu se tiver que pegar um pavilho tem que segurar
ele na mo, no posso porque daqui pra l, no vai.
Sofri muito, e tive muito apoio do Vai-Vai, todos eles vieram no hospital me
visitar, vinham aqui na minha casa, tinha o pessoal da diretoria. No podia ir trabalhar
na barraca. Vocs sabem que eu tenho uma barraca no Vai-Vai? Minha barraca
aquela pegada ao palco. Aquela barraca de cuscuz minha e a outra em frente a da
Baiana. A quem ficou tomando conta foi a minha filha e as duas netas minhas, eu fazia
as coisas e as netas tomavam conta pra mim e eles davam muita ateno para as
meninas, olhavam elas, ento eu no posso ter queixa que eu no tive ateno deles.
E eu estou aqui, mas voc pensa que eles no esto preocupados, que desde o
carnaval eu no apareo mais? Eles ligam pra c, a Nilde liga, a Zulmira liga pra saber
como eu estou.

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Eu que fiz a feijoada do Vai-Vai por trs anos, era uma das melhores da cidade,
saiu no jornal tudo. Eu sa da feijoada porque a Marlia ficou doente um ano. Faz dois
meses que ela est em coma, saiu do hospital, mas t em casa em coma, o hospital
mandou pra casa. Tambm ajudava a Dita que a costureira a Ben que mora ali na
Paim. Era ns quatro e o Ra, que era ajudante nosso. Ento ns carregamos aquela
cozinha nas costas trs anos. Depois a Marlia ficou doente e ficou tudo pra mim, e eu
falei agora eu vou parar.
A diretoria arrumou outra equipe; arrumou a Baiana, no sei se ela vai continuar,
se ela vai parar, no sei. Eu sei que tive a minha vez, sa com glria, nossa, aquilo ali
recebia artista que no acaba mais. Tem horas que eu falo, eu vou largar mo do samba,
mas eu fico pensando, quando eu olho na televiso eu falo,: Ai, meu Deus do cu, pra
eu ir porque, pra eu deixar o Vai-Vai, s se eu no estiver andando mais, mas enquanto
der pra botar um pezinho no cho, eu t l no samba!
E assim foi minha vida, j fiz de tudo dentro de uma escola de samba. J fui
presidente de uma escola de samba, a Unidos de Vila Carro. Fora as baianas, que eu
no gosto de sair de baiana, eu fiz tudo. Comisso de frente, harmonia, tudo, tudo,
contrabaliza, porta-bandeira, quer dizer, que nessas alturas, a nica coisa que eu no
desfilei foi de baiana. Ajudava tambm a costurar, eu ajudava a fazer, mas eu no
gostava de bordar, a minha comadre que era bordadeira, tinha a nossa costureira, da
Vai-Vai, que era a dona Ben, tambm conhecida por Dita. Ela costura at hoje. T
veinha, mas tem um ateli na Rua So Domingos. Costura ela, o Lucas, e a Sula. Tem a
Madalena que tambm faz roupas pra Gavies da Fiel, ento, quando eu preciso de
alguma coisa de carnaval, eu peo pra elas, agora tem uns dois anos que eles me do a
roupa, mas antes sempre eu que confeccionei tudo.
Antes havia um pouco de preconceito quando eu assumi a Vila Carro, mas
muitos aceitaram. Eu fui a presidente da escola de samba aqui da Vila Carro, ela
desfilava aqui. Eu sa, eu deixei a escola no por preconceito, porque quando voc luta
por uma agremiao, voc deve ser honesta, e eu sou muito honesta. Cheguei a tirar
dinheiro de casa para fazer roupa para o pessoal sair na escola de samba. O vice-

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presidente, que estava junto comigo, ele no era assim. Quando comeou a ter um
pouquinho de dinheiro, ele desviou e eu falei: No quero, no vou sair mais.
Porque antigamente saamos com o livro de ouro, e, nesse ano que eu sa, eu
falei: No vamos sair com o livro de ouro. No precisa, j temos o dinheirinho
necessrio. A prefeitura liberou o dinheiro antes. E ele tirou o livro de ouro e eu no
sabia. Eu falei: No quero mais saber da escola. Mas olha o que aconteceu: ele estava
tirando livro de ouro em meu nome; e eu j tinha desistido da escola, e o pessoal estava
esperando a escola.
Ele falava para as pessoas o livro de ouro da escola de samba Unidos de Vila
Carro, da China, e eu j estava fora, me desgostei, mas, nesse ano, eu precisei batalhar
para no ficar feio pra no perder minha moral, meu nome, j que ele tirou o livro no
meu nome, coloquei a escola na rua e no clube do Carro. Ento eu disse para o
presidente do clube:
Esse ano eu estou aqui, mas ano que vem eu no sou mais presidente. Ele
falou:
China, quer saber de uma coisa? J que voc no vai estar aqui eu no quero
mais saber de organizar carnaval, vou acabar com o carnaval aqui no Carro.
E acabou tudo, ningum desfilou mais.
Porque tem que ter organizao pra ser presidente de uma escola de samba. A
Lavaps da Dona Eunice no teve bons dirigentes, porque quando uma escola bem
dirigida, ela no cai toa, mas quando tem um tropeo por conta de briga de diretoria, a
quando que acontece isso, citando o exemplo do que eles fizeram comigo. Sa fora e
acabou; eu era a lder ali. Quando eu comecei a ver desonestidade, eu larguei mo e
parou. No outro ano a Unidos de Vila Carro j no desfilou.
Ento assim eu acho que na Dona Eunice. J sa com ela tambm. Teve um
ano que eu sa, primeiro tinha aquele pessoal duro. Ela era durona, tinha o Chico
Pinga. A veio vindo essa molecada, que no tem a firmeza dos mais velhos, a a escola
foi caindo. Agora parece que eles to querendo levantar, mas tem que levantar com
pessoas de capacidade, de gabarito. A Rose, que a presidente l, est sempre no VaiVai.
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O Folha Azul acabou por qu? Desleixo! A diretoria no age, porque se a


diretoria age bem, a escola vai pra frente. Veja l o Imprio da Casa Verde. Com pouco
tempo eles j esto bem. Essa menina que agora est na Mocidade Alegre, a Solange,
no est indo bem? A Angelina no pegou o Rosas de Ouro no lugar do pai dela, o meu
compadre Baslio, no est indo bem? A X9 no t indo bem?
Porque ali eles percebem que um diretor no est bem e vo trocando. O Vai-Vai
mesmo saiu o Tadeu, depois do Tadeu fizeram a reunio veio o Tobias. Agora veio o
Neguito, que est indo bem, mas eles tm uma assessoria, no esto sozinhos. Tem o
Claudinho, o Maluf, Clarcio, eles so uma equipe e um tem que ajudar o outro e eu
acho que a equipe sendo assim vai bem; agora, se deixar tudo para o presidente resolver
no d, os que to em volta tm que ajudar. Eu acho que, nessa gesto, ele est indo
bem, pelo menos eu no tenho queixa, o pessoal da escola tambm no.
Um grande parceiro meu no samba foi o Eduardo Nascimento. Ele relaespblicas do Estado de So Paulo, o Eduardo Nascimento, ele embaixador comigo l
na UESP, ele tambm participou desses festivais em Santos, porque antigamente era
Santos, Jundia, So Paulo e Rio de Janeiro, ento tinha a Cidade do Samba, e daqui
amos para l. Ele, o Gabi, Eu, o Penteado somos batizeiros, ns que batizamos as
escolas, e era o Bui tambm. O Penteado me liga:
China, tem escola de samba pra batizar.
Eu falo:
, Penteado, eu no posso ir.
Ele fala:
Voc pode, a gente vai buscar voc, sim.
Eu que batizei a escola de samba Paulistano da Glria, do Geraldo Filme. O que
voc disser de escola de samba daqui de So Paulo, geralmente eu batizei quase todas,
eu, Eduardo Nascimento que eu te falo, Penteado, Bui e Gabi. Se eu falar a escola de
samba l do Sapopemba, se eu no fui, mentira.
Na Mocidade Alegre, nos festivais, era a gente que ajudava, ia com trs, quatro
nibus. No era que nem agora, eu e Juarez ramos muito amigos, e ele era embaixador
na UESP junto comigo, o Juarez da Cruz. O Seu Baslio era meu compadre, dono da
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Rosas de Ouro. Essas meninas, a Angelina e a Solange, eu vi elas nascerem, conheci as


mes delas. Tem a me de um menino que faz costeiros, Valdir, conheci a me dele. O
Murilo, dancei muito com o Murilo, que no do seu tempo, vocs no vo conhecer,
ele era mestre-sala da Mocidade Alegre, eu ganhei tambm o anel de mestre-sala e
porta-bandeira do Nen, com o Jorginho da Rosas de Ouro, quando eles entregaram o
pavilho deram o anel para mim. Ele morreu. Isso da foi na quadra da Rosas de Ouro.
Eu frequentei muito tempo ali na Brasilndia, participei tambm do Morro da Casa
Verde, do seu Zezinho, onde tinha a Dunga.
Eu tambm fui uma vez em um festival em Campos no Estado do Rio. Nossa, l
era um mato, s voc precisava ver, participei tambm desse evento, fui desfilar para o
Morro da Casa Verde. O Peruche, tambm, eu fiz a campanha do cimento, para arrumar
a quadra do Peruche, junto com o Manezinho.
No Nen da Vila Matilde eu s era visita, porque o Nen foi meu namorado
quando a gente era jovem. Ento a mulher dele tinha cimes. Ento a gente ia a todos os
aniversrios. Ele mandava ofcio para o Vai-Vai e a gente vinha. A Nen aqui perto de
casa. Quando ele faleceu eu fui. A mulher dele, apesar do cime, era minha amiga. Os
filhos dele so meus colegas, uma famlia. No dia que ele morreu, os filhos dele
disseram assim:
Vamos cantar aquela msica que o meu pai gostava de cantar pra voc,
China.
E, na beira do caixo, cantaram aquela msica que o Nen, quando me via,
cantava pra mim.
Ns fomos todos de uniforme da Embaixada da UESP e fizemos a ltima
homenagem para ele, foi uma coisa muito linda. Quando morreu tambm o Xang da
Vila Maria, fui l na Vila Maria fazer homenagem.
Quando eu recebi a faixa de Embaixatriz-Mestra, eu recebi na Barroca da Zona
Sul, eu no esperava, eu recebi l e foi a maior festa. Eu sou a primeira EmbaixatrizMestra, porque nunca havia tido uma Embaixatriz-Mestra. S os Embaixadores. Ento,
na reunio de diretores e presidentes, eles resolveram colocar uma Embaixatriz Mestra e
eu fui a escolhida. Coisa maravilhosa! E at hoje eu sou feliz com isso. Tambm recebi
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outra homenagem no ano passado, mas no pude comparecer. O telefone tocou, o


Neguito ligou pra mim e falou:
China, a gente quer que a senhora venha para receber o prmio, pois a
senhora foi escolhida a mulher do ano do Vai-Vai. Mas como, eu estou aqui, no
posso mexer as pernas, acabei de ter um derrame. Ele falou:
No se preocupe, a gente manda um carro pra buscar a senhora, e manda
levar.
Mas eu no me sinto bem assim, eu estou mal mesmo, com a perna, v se
vocs recebem o prmio pra mim, coloca uma pra receber.
, meu Deus do cu, no vai dar pra senhora vir mesmo?
No deu, por causa da minha sade. Ento eu fui homenageada como Mulher do
Ano. A festa foi na Avenida Paulista, na FIESP, l onde foi os 80 anos do Vai-Vai. No
pude ir, mas ele se comunicou comigo, pedi desculpas, estou faltando nos encontros.
O pessoal da Camisa Verde me convida, todas as escolas convidam para
inaugurao, samba-enredo, tudo, mas eu no posso ir, estou com a perna desse jeito,
tem que ficar me apoiando, tem que ir com uma pessoa, tem que andar de carro, eu no
posso, ruim porque estou aqui parada.
Tem muita coisa no samba que precisa ser muito bem esclarecida para a pessoa
saber, porque s vezes a pessoa fala: A China, quem a China? Se eu for pegar do
fiozinho l de baixo at aqui, fica trs, quatro dias a gente conversando. Mas com
detalhes.
Ento assim. Fui fazendo seminrio com o Gabi. Recentemente fiz uma pea
ali no Centro Cultural So Paulo, ali na Rua Vergueiro, foi maravilhoso. Agora que eu
parei um pouco de estar participante, porque eu tive derrame, ento chato, porque eu
entrava de peito aberto andando e agora entrar de bengala. No que eu no quero usar,
eu sei que eu vou precisar; se no, como que eu vou andar, mas uma coisa minha, eu
acho que cedo pra eu usar bengala.

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Mestre Divino

Nome: Valdevino Batista da Silva


Local de Nascimento: So Paulo-SP
Data de Nascimento: 1948
Profisso: Metalrgico
Escola de Samba: Imperial
Data da entrevista: 15/10/2011
Local: Quadra da Escola de Samba Imperial

Figura 5 Valdevino Batista da Silva, o Mestre Divino


Fonte: http://vimeo.com/11989982

No sou mestre, sou batuqueiro.


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Meu nome Valdevino Batista da Silva, mas todos me conhecem como Divino.
Nasci em 1948. Sou batuqueiro e estou presidente da Imperial. No sou, estou! J passei
por vrias escolas de samba. As principais: Nen, Camisa e a escola que eu fundei, que
a Imperial.
Eu comecei no samba, na realidade, por influncia dos meus irmos. Eu sempre
gostei de samba! Por influncia do meu pai, eu sempre gostei de msica caipira. Eu no
gosto de msica sertaneja. Eu gosto de msica caipira mesmo, n? Mas, com o tempo,
eu acabei pendendo para o lado dos meus irmos, que eram do samba. Desde moleque.
Eu fazia pandeiro de lata de marmelada. Eu lavava as tampinhas, amassava as latinhas e
fazia o pandeiro de lata de goiabada ou de lata de manteiga. Enchia, pendurava com
bexiga, esticava uma parte da bexiga em cima. E com isso eu me divertia...
A depois fui pra beira de campo. s vezes, eu falo assim pras pessoas:
C t batendo igual beira do campo.
No pejorativo, nem nada. que dentro do campo sem compromisso. A
torcida pulando, todo mundo gritando e vamo que vamo, n? No pejorativo. Eu
tambm tive na beira do campo. Tocando sem compromisso. E depois, em 1966 pra 67,
que eu fui pra Nen de Vila Matilde. A um amigo meu, que era de l, me levou, o
finado Zio. Veja bem, isso do tempo se tomava baquetada. Pra sa ali no meio tinha
que ser batuqueiro mesmo...
Tomei baquetada l na Nen. A maior vergonha que eu passei na vida foi nessa
escola de samba! Vergonha! Quando Jair Rodrigues e Martinho da Vila, quando eles
comearam a despontar, l na poca dos Festivais da Record. Ento, uma noite eles
vieram na quadra da Nen da Vila Matilde. E nesse dia, metade da batucada foi tocar no
clube Tiet pra defender um dinheirinho. E geralmente iam os melhores, n? Os piores
ficaram aqui e um dos piores, era eu, fio! E s tinha eu de malacacheta. Imagina. O
apitador deu o toque pra eu fazer turugudum e eu no fiz. A me esculachou, me tirou
o instrumento e jogou a malacacheta l de cima do palco. Olhei pras nega e as nega
cu, cu. Nesse dia, chorei de raiva, e pensei: Se esses caras aprenderam, tambm

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vou aprender. Se voc quer saber, eu triturei todos eles. Sem sacanagem, o que eles
sabiam, eu aprendi quatro vezes a mais. Tem pessoa que fala assim:
P, o Divino d baquetada. Nunca dei baquetada em ningum. Eu passei por
isso e sei o quanto eu chorei nesse dia. Aqui no admito que ningum tire sarro da cara
de quem erra... Aqui uma escola de samba. Escola pra se aprender, ningum chega
sabendo. Se soubesse, ningum iria, no verdade?
Sou do tempo que a gente desfilava no Ibirapuera. Na Rua Direita. O carnaval
em So Paulo era feito na corda, cara! C imagina alegoria pra entrar no Ibirapuera. Na
Rua Direita, as rdios que organizavam davam resultado na hora. O couro comia... Os
caras lutavam um com o outro de vez em quando. Mas num tinha covardia. Arma, essas
coisas. O negcio pra quem fosse bom de briga. De murro, rodo, chinela, cabeada, o
couro comia, entendeu?
... Eu fugia de casa pra assistir carnaval. Tomava cada cassete que cis num
tem noo. Naquele tempo de janela de veneziana. Todo mundo dormia, eu levantava,
abria, pulava e encostava. Voltava no dia seguinte na ponta do p e ia dormir. Meu pai
era daquele jeito assim, ele no falava nada. No outro dia, quando voc tomasse banho
j tivesse dormindo, ele, oh! Eu apanhei muito de cinta de couro cru. Muito. Nego usava
tamanco, eu sou do tempo de tamanco, cara. Todo mundo que era moleque usava
tamanco. E assim, eu fugia pra assistir, fazer samba na beira do campo, de ir pro
Ibirapuera, ir pra Praa da S.
Pra ter uns pixul, catei papel, papelo, alumnio, gastei sola de sapato e fiz
carreto na feira. ... No era fcil. Era aquele tempo que num tinha pozinho, nem
bengala. Era filo e broa. Hoje, t tudo a. A vida sempre ensina tudo de bom e muito
mais coisa ruim. Hoje aprende muita coisa ruim na televiso. A maioria desses
programas deveria ser pra maior de 16 anos. To tirando a pureza da criana, no tem
mais. Antes criana tinha pureza, andava de cala curta, o suspensrio. Outra coisa, num
se misturava moleque com adulto. Hoje uma misturao danada! Ento quando que
uma roda de adulto l, jogando capoeira, tiririca era eles que jogavam. Moleque no se
metia! A molecada ficava do lado de c imitando eles! Quem era bom de tiririca era o
finado seu Nen da Vila Matilde, n? Eu j li uns trs ou quatro livros da histria do
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carnaval de So Paulo e nenhum deles cita isso. No cita. Quando tem que falar o que .
Porque existe parente dessas pessoas, existem pessoas que cuidam dessas pessoas.
Existem pessoas que nem so parentes, mas que conhece isso e gostaria que fosse
divulgado.
Pra colocar o carnaval na rua, passava o livro de ouro. Cada um segurava a ponta
da bandeira, pros nego jogar as moedinhas pedindo dinheiro pra fazer o carnaval. Ento
o primeiro prefeito a apoiar o carnaval foi o carioca Faria Lima. Ele foi o primeiro a se
interessar em fazer o carnaval direito aqui na cidade de So Paulo. Se o carnaval em So
Paulo hoje o que , tem quem comeou tambm, n? Tem gente que num lembra, num
lembra nada! Tem pessoas que nem sabem. Vamos colocar como . Foi o Faria Lima, o
carioca que foi prefeito da cidade de So Paulo. Ele que passou a ajudar e financiar as
escolas. Tem um radialista que, infelizmente, morreu que divulgou tambm bastante o
carnaval de So Paulo. Quando tudo era rock, ele tinha l o programa de samba, o
Moraes Sarmento. Ele foi o presidente da primeira Associao de Escola de Samba de
So Paulo! Essas pessoas que encaminharam tudo...
Alm dos cordes, teve escola que se formou de blocos. O primeiro bloco, antes
de formar a Mocidade Alegre, era o bloco do Pegue e Pague, que era Juarez da Cruz e
os irmos dele l do bairro do Limo. A depois o bloco tornou-se a Mocidade Alegre.
Isso em 70, 71, 72. Os cordes e os blocos passaram a ser escola de samba. O Vai-Vai
fala que tem 90 anos, n? Pode ter 90 anos de agremiao, de escola de samba, no!
Tem 40 de escola de samba.
Porque o samba antes era socado. Ele no tinha diviso de primeira, segunda e
terceira, n? O primeiro instrumento a dar o contratempo de tudo aquilo que eu disse, se
chama duff. Paulinho da Viola usa muito nas gravaes dele. Mas j era usado antes do
Paulinho e era socado. O cordo tinha o samba mais socado. Pesado. Com surdo e caixa
tambm. A gente andava com o jornal no brao pra esquentar o tamborim, que tambm
era de couro. Hoje de plstico.
Na batucada no tinha repinique. Existia malacacheta. Era completamente
diferente. O som diferente. A tocada diferente, batia at com duas baquetas. No
existia surdo de primeira, bumbo de primeira. No existia. Era com duas baquetas.
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Depois que implantou. Porque esse tum-tum-tum era puxado do europeu. Foi igual o
que o lundu fez. Ele puxou a percusso pra ele.
Outro instrumento que se usava quando eu comecei o chocalho de vara. Prato,
muito prato e cuca. Cuicona! Tenho uma cuicona a de catorze polegadas, que at
busco ela l em casa depois. O som completamente diferente. A cuca o nico
instrumento que voc toca com o tato, precisa de inteligncia e a coordenao. Voc
passa um tempinho sem tocar e j pesa a mo. Tanto que tem o ditado: Cuca, carro e
mulher que no se empresta pra ningum. Mulher sai pra l, o carro bate, e a cuca no
precisa nem falar, que sem ela acaba o samba. o nico instrumento que ocupa a tiara
de fronteira no espao vazio. Ele como um sopro dentro da percusso...
Agora que inventaram a pele de nilon, porque era tudo couro. Deixava no sol,
depois fazia a barba dele, pra deixar lisinho. Tenho ainda couro bruto a. Isso hoje. Eu
mesmo fao meus instrumentos. Eu gosto. Fao cambito. Eu mesmo fao meus
cambitos. Agora os mestres de bateria compram tudinho. s ligar pra loja e pedir pra
entregar.
No existia bordo de ao. A sobra de couro a gente molhava bem, esticava,
torcia, torcia, pegava de lado, pegava do outro depois fazia aquele bordo com aquela
corda de cima. Tudo encourado. Tudo a gente que montava... Fazamos agog. Voc
comprava serra circular. Pegava uns retalhos no ferro-velho e montava. A gente pegava,
prendia a morsa e tirava os dentes, soldava e saa o agog. A maioria era tudo artesanal.
Tinha surdo de lato de carbureto. Tubo de lato de carbureto. Fazia a borrachinha de
fixao, o estirante... A gente mesmo fazia a rosca e achatava a parte de baixo.
Os caras das antigas sabem mexer com isso. Hoje j leva tudo prontinho. tudo
de nilon. Chocalho com vara... Reco-reco de bambu. Era um reco-reco de cabo fino.
Acho que voc pegou o finalzinho disso a. Reco-reco estriado. Estriado porque tem
uma chave de alumnio e ela era estriada. Ento ela virava e tinha uma ala pro dedo
segurar aqui e o som comia solto. Hoje tenho reco-reco, mas de mola.
Foram acrescentadas outras coisas tambm. Algumas se perderam e outras foram
acrescentadas. Acrescentou a marcao de primeira. E, por outro lado, a escola deixou
de tocar com duas baquetas. Comeou tocar com uma. Observa aquele quadro ali. Duas
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baquetas. da poca de ouro e tem tudo o que era usado na batucada original. Usava
bumbo de 36 polegadas! Fixado. Uma base de tronco de rvore em cima e uma menor
aqui embaixo. O instrumento 60 de altura por 36 polegadas de boca, vio! Era um
tamborzo! Com dois suportes lateral, cravado aqui. Quem tocava ele, na Nen, era um
nego careca que era cabo do exrcito.
Tinha agog. Tinha frigideira. Tocava-se muita frigideira. Sabe o instrumento
que acabou com a frigideira? O tamborim, porque tudo o que o tamborim faz, era a
frigideira que fazia. Frigideira era tocada virando. Igual ao tamborim hoje. Alm de So
Paulo, no carnaval de Santos tinha muita frigideira. Santos era campe. Brasil de
Santos, X9, escolas muito boas. Os tamborins que tiraram as frigideiras. Entrou o
tamborim e caiu a frigideira. Os ltimos desfiles com frigideira, acho que foi em 1974,
1975. Tinha pandeiro. Voc tem um pandeiro diferente pra cada tipo de samba. Cada
tipo de samba usa uma afinao diferente. difcil um bom pandeirista. s vezes voc
v um bom malabarista e pssimo ritmista. O malabarista aquele joga e d chaleira,
faz tudo e rebola. E o bom ritmista, j viu o cara que bom ritmista de pandeiro ficar
jogando o pandeiro, j? Eu me considero um bom ritmista de pandeiro, pssimo
malabarista!
O som que a Vai-Vai fazia ou que o Fio de Ouro fazia como cordo era diferente
da Nen. Era diferente. Muita gente chama esse ritmo dos cordes de marcha sambada.
Presta ateno, nunca houve marcha sambada. O que h samba marcheado. Era um
samba muito mais pesado. melodicamente o compasso mais alongado. A gente tem
que falar assim porque, em primeiro lugar, vem o samba. Era marcheado para as
pessoas poderem desfilar andando, indo em uma direo seguindo aquele ritmo. Pra
voc entender como funcionava. Vamos colocar a Mangueira, que tempo e
contratempo [sons com a boca]. Isso meio bumbo e at a Mangueira perdeu isso...
Voc v l, at o Cordo do Bola Preta perdeu o jeito original de tocar. At a Mocidade
Independente de Padre Miguel perdeu. Voc acredita? bateria nota dez! Bateria que
tinha uma marcao de 40 anos atrs, cara! 50 anos atrs. Esses que to l agora
aniquilaram o surdo de quarta. O surdo de quarta deixa a caixa vontade [sons com a
boca]. Tiraram da Padre Miguel. Lamentvel. T falando de l porque eu conheo.
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Conheo muito l. Eu sou do tempo do Waldomiro da Mangueira, do Marcelo da


Portela, do Andr da Mocidade Independente de Padre Miguel. Desfilei trs anos na
Padre Miguel. Eu sou do tempo dessas pessoas a. Sempre fui convidado l na Padre
Miguel. Eu tive na batucada do Pato Ngua. Caraca, o cara batia em todo mundo aqui.
Conheci Nicolau. V se algum fala do Nicolau? O ltimo desses a que comearam a
coisa foi o Nicolau! Oh, o nego apaga o passado. E guia o presente cum bando de
mentiroso. Nicolau foi um dos mai diretor de bateria da Nen! Um dos mai!
Baixinho, pequenininho, bom. Batuqueiro mesmo! Pra voc ter ideia, dava de 50 a zero
no Lagrila. O falecido Lagrila veio na aba dele.
D uma olhada nos meus instrumentos. tudo de couro! Isso ningum sabe,
cara! C sentiu, ouviu a vibrao no cho? Pega uma chave l qualquer, se voc aperta
algum instrumento aqui no faz mais barulho. Vai nas escolas por a, tudo de nilon.
Eu dou umas paradas na avenida. No Rio vrias escolas fazem paradas. Fao aquilo que
a Padre Miguel fazia. Hoje no consegue fazer, cara! Parar e voltar sem chamar. S no
sincronismo. Quando eu via a Padre Miguel fazer isso, era bonito pra caramba! Tem que
todo mundo parar junto e voltar junto pra d certo. no compasso certo. O que a gente
faz aqui na Imperial, os caras no conseguem mais fazer. Eu fico puto, por isso... Poxa
vida! Por isso que eu falo que a banana comeu o macaco; a linguia colocou o cachorro
pra correr. Gozado, n?
A bateria tem padro e a batucada tem estilo. O que eles chamam de bateria de
escola de samba tem apenas nove instrumentos, a batucada 19. Bateria tem surdo de
primeira, segunda e terceira. Repinique e caixa, certo? Tamborim, agog, chocalho e
cuca.
O que eu fao batucada e tem surdo de primeira, segunda, terceira, quarta e
quinta. O bumbo do tamanho certo que faz a marcao junto com as primeiras. E d
sempre dois ou quatro compassos. Tem que ser par, no pode ser mpar. Essa a quinta
e combina em resposta com a quarta. Combinao, por isso tem a quarta e a quinta, na
batucada. A, na batucada, voc tem caixa de guerra, caixa, tarol e tarolzinho. Nove.
Repinique e malacacheta. Onze. Tamborim, agog, chocalho, reco-reco e prato, certo?

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A voc tem a cuca e, pra fechar, o ganz. Esses so os instrumentos que compem
uma batucada!
A caixa e a caixa de guerra so dois instrumentos tocados por um talabarte na
cintura. O tarol e o tarolzinho so instrumentos tocados sem talabarte, no apoio do
brao, na altura do queixo. E o som dos quatro completamente diferente. A caixa bate
na altura da cintura... No todo mundo que sabe, no. Quando o tarol e o tarolzinho
fazem, a caixa de guerra no faz. Quando a caixa de guerra faz, os tambores num fazem.
Pra dar a combinao. Veja o som da malacacheta e do repinique [tocando],
completamente diferente. Olha como o som da malacacheta alto. Olha o tamanho!
Todo mundo j passou perto da umbanda, quimbanda, candombl, num passou? Voc
pode imagina atabaque tocando, tirando a percusso dos pontos l do samba, n? Ento,
esse aqui a mesma coisa. pra num perder o alinhamento do estilo.
Antigamente, pelo estilo, voc sabia que escola de samba que era. Pelo estilo da
arte, pelo som da batucada, voc sabia qual a escola que tava desfilando. Hoje, se voc
no tivesse o papel, no sabia quem era a terceira, oitava e nona. S tem floreado e
enfeite de tamborim, mas aquele som, que caracterstico da escola, ningum mais faz.
Tambm troca mestre de bateria todo ano. Os ritmistas no aguentam bater dez minutos,
j ficam cansados. V a musculao que eu fao com essa idade. Toco duas horas se for
preciso, sem nem cansar as mos.
Voc identificava pelo estilo da nossa batucada. Batucada, entendeu? Bateria,
pra mim, de eletricidade. Bateria de conjunto! O instrumento bateria assim, com caixa,
prato. Pega uma bateria. O que a negrada faz batucada. Vem do batuque feito antes
pelos negros que trouxeram a percusso pra c, n? A, depois assim, aquelas, aquelas
ladainhas de cantigas de senzalas, de tudo. Depois da abolio, comeou a sair do
interior e vem pra c pra So Paulo, nos cordes nas festas religiosas, quando esse
batuque foi pra rua. Por isso o samba no morre. A gente ocupava a rua. Era diferente, a
alta sociedade tinha os bailes de salo.
Tem 30 anos que fundei a Imperial. Estou presidente, no sou. E eu t
concentrado aqui. J tentei fazer outras coisas, mas no deu certo. Por que a Imperial
ainda no t no Especial? Por causa do Divino. Arrumei confuso j com muita gente.
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Eu fiquei seis meses na Vila Maria. Foram seis meses felizes para eles e feliz para mim.
Seis meses. Mas depois o caldo engrossou! A Vila Maria merece uma batucada, merece.
Porra, meu, Vila Maria! Eu no sou salvador da ptria. Eu no sou artista, num sou
empregado de samba, eu sou sambista. Eu no assino contrato com ningum, porque
quem assina contrato artista. Eu num vivo no samba, eu vivo do meu trabalho e vivo
para o samba. Mas, na Vila Maria, tudo me respeita... Todo mundo... Principalmente os
mais velhos... Pela minha atitude. Os caras pressionando: Assina contrato. Falei:
No! No vou assinar contrato, no sou artista.
Quanto voc quer ganhar?
No, quanto vocs acharem que mereo, eu aceito. O presidente
perguntou:
C t sem carro?
Eu t.
Ento toma o carro. Um Renault importado. Passa no seu nome. Pagamento
pelo seu trabalho.
No. Quando acabar o carnaval, se eu for merecedor, eu passo no meu nome.
E se eu for merecedor de mais coisas, eu vou aceitar.
S que falta de respeito eu no admito. Na final do samba-enredo, eu sempre
acompanhei legal, cara. Fao de tudo pra acertar. Alcana o xito quem est tentando
fazer a coisa direito, concorda? Eu sa de l porque briguei com o carnavalesco. Na
disputa do samba-enredo. O carnavalesco discutindo por causa do samba-enredo. Eu
cheguei e disse que ele tava enganado. Que o outro samba-enredo era melhor, a
batucada tambm tinha achado. E a comeamos a discutir e ele jogou uma lata de
cerveja no meu peito. P. Falta de respeito no admito. Peguei minhas coisas, uns
instrumentos que levei pra l, deixei a chave do quarto dos instrumentos e a chave do
carro que me deram e no voltei mais. Eu adoro o povo da Vila Maria, mas falta de
respeito eu no admito. O trabalho que eu fiz l, num foi 5%, faltava 95%. Camarada,
num sbado, numa hora dessas, juntava 160 pessoas pra ensaiar. Juntava o bloco das
crianas, o bloco feminino e os adultos. Quem comeava a tocar eram as crianas,
passava para o feminino e depois os adultos. Mas deixa pra l. Deixa ele carregar a cruz
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dele, n? Todo mundo que faz uma cruz, tem que carregar, no vai dar a cruz pra outro
carregar, n?
Eu no preciso disso. J passei por Ibirapuera, Rua Direita, Anhangaba, So
Joo, Tiradentes e Anhembi. Desfilei em todos esses lugares. Eu fui secretrio,
presidente e vice-presidente da UESP. J briguei muito pelo samba. Eu era o presidente
da UESP na poca da Erundina, quando mudou da Tiradentes para sambdromo. Deu
um passo pra frente no carnaval de So Paulo. Faz 20 anos isso. Porque, antes do
Sambdromo, no tinha ningum que tinha interesse em transmitir o nosso carnaval. s
vezes era a Gazeta, s vezes era a Cultura, de favor. Depois que inaugurou o
Sambdromo... Choveu proposta. Eu fiz parte disso a. Porque eu fui secretrio e vicepresidente e presidente da UESP, n? Isso foi na primeira vez que o PT ganhou a
prefeitura aqui em So Paulo, com a Luiza Erundina, que era assistente social, uma das
pessoas que eu acho honestssima. Votei nela umas duas vezes j. Ela governou a cidade
com remanejamento de 1%. No sei voc se recorda disso, 1% do oramento! Hoje so
15, 20, e acho que o Kassab tem 25. Um por cento e a cmara toda contra ela.
A gente fazia passeata, manifestao. Oh, ns juntamos 1400 pessoas, 1400
batuqueiros na escadaria da Praa da S. Eu tenho vrias fotos na escadaria da Praa da
S. Esses tempinhos atrs a, o Leandro Lehart disse que colocou 1400 pessoas num
evento que ele fez. Ns colocamos isso em uma manifestao. Pra reivindicar um
carnaval melhor pra cidade. O problema da Tiradentes era o monta e desmonta. Ficava
muito caro. Era muito trnsito, n? Ento a prefeitura arrumou um lugar fixo pra gente
mudar... Eu tenho a foto da pedra fundamental do lanamento do Sambdromo.
As pessoas meio que apagam o passado, porque hoje no me convidam nem pra
passar na porta. No que eu t fazendo questo. O importante a minha escola estar l.
Pra falar a verdade, em 20 anos, depois que eu larguei a presidncia da UESP, s no ano
passado que o Serginho, que o presidente da Vila Maria e da Liga, mandou o convite
pra mim. Mas eu no fui, porque eu tenho um carnaval na segunda-feira pra sair. E eu
no vou ficar sexta, sbado l no Sambdromo. Tenho que descansar. Mas tem que me
mandar at por uma questo de respeito.

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Eu no vou falar nada contra o Grande Otelo, meu patrcio, que batiza o
Sambdromo. Mas, sinceramente, o que ele fez de samba por So Paulo? Vamos falar a
verdade?! Uma cidade que voc tem Adoniran Barbosa, Geraldo Filme, Inocncio
Tobias, Dionsio Barbosa, Alberto Alves da Silva e Germano Mathias... Voc tem um
monte de pessoas que poderiam batizar melhor o Sambdromo. O que o Grande Otelo
fez? Voc t entendendo? Eu no tenho nada contra ele... Que descanse em paz. E
quando chegar a minha vez, eu tambm vou descansar.
Todas as escolas que esto na Liga passaram pela UESP. A Liga se vangloria,
mas quem fez o trabalho foi a UESP. Mas deixa eu falar o que aconteceu. Antes da
formao da Liga, esse interesse todo no carnaval daqui no existia. Comeou a crescer
mesmo depois do Sambdromo, que tem 20 anos. A Liga tem 25 anos. E s foi criada
por causa de interesse de empresrios no carnaval. A que foi quando houve o interesse
de criar outra associao. Pra no ter que dividir o dinheiro com todos. A realidade
essa! Eles seguiram o que tinha acontecido no Rio de Janeiro. Mas l fundaram a Liga
pra doze escolas de samba. Esse ano t com treze porque no desceu ningum por causa
dos incndios. Ano que vem vai descer duas e vai continuar com doze. No se fundou a
Liga pra 22 escolas como aqui. Ento, o que aconteceu aqui em So Paulo, esse
afastamento de unidade e fundaram a Liga. Porque, vamos falar, interesse comercial.
Todo mundo t de olho onde a mdia t, cara! Num tem como! E as escolas grandes no
queriam dividir a grana da televiso com a gente, que de escola pequena. Mas a
lgica. Eu no posso ser da srie C ou da srie B e querer ganhar o que ganha a srie A!
E com as verbas e a estrutura que eles conseguiram com isso aqui em So Paulo, os
maiores sempre vo ser os maiores, num tem como.
Amanh ou depois, ns, da Imperial, vamos estar l entre os maiores. Tem que
enxergar, tem que enxergar a gente como uma das que tm qualidade e comunidade pra
estar entre as maiores. A pessoa tem que ter conscincia disso. O que no pode o que
acontece com muitas pessoas, que elas esquecem que elas j foram pequenas e mdias.
Elas num imagina que, um ano depois, elas podem descer pra mdia pra tentar refazer o
caminho, n? V a Lavaps: era grande e hoje ficou pequena, v a Barroca: era grande e
hoje media.
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Quem t no especial tem muito mais verba e estrutura. Voc tem Globo,
bilheteria... Tem mais condies de captar patrocnio, recursos... Infelizmente a
realidade essa, vio, entendeu? No tem como competir. As empresas s se interessam
pelas escolas que to l no primeiro time, cara! Os outros no so vistos. Ns tamo
lutando pra ir para o Acesso. Com acesso outra coisa, cara! diferente. O prefeito
recebe voc junto com as escolas do Grupo Especial. A UESP virou o resto das escolas
de samba. Voc tira pela base de pblico que vai ao Sambdromo pra assistir o Grupo I.
A gente desfila na segunda-feira pra cinco mil pessoas, se muito. No Grupo Especial
colocam 30.000 na sexta e 30.000 no sbado.
E nem todas as escolas tm estrutura pra apresentar um desfile bem-feito. Vamos
falar a verdade, 63. Vamos fazer, vamos, mas num comporta, cara! Tm algumas que s
investem a verba oficial, e pronto. V o Grupo um. Ns somos doze escolas de samba
no grupo. Ento, vem s oito legal. Do jeito que tem ser, dentro do regulamento, vm
duas capengando e vm duas pior que capenga. O poder pblico vai analisar por onde?
A mdia vai divulgar qual? As que esto capengando, n? Ento... Vai analisando tudo
isso a... Outra coisa, aquilo que eu falei pra voc, regulamento pra ser respeitado. No
pode passar a mo na cabea. Trazer 60 mil pessoas pra esse desfile ruim? No traz. O
que fazer pra melhorar? Igual no Rio. Vamos diminuir o nmero de participantes. Dar
mais condio pras outras, com menos escolas sobra mais dinheiro. O Grupo Especial
tem 14 escolas. O ideal 12. Seis na sexta e seis no sbado.
Tem muita escola que, infelizmente, no tem condio. Pra voc receber
dinheiro pblico, qualquer entidade ou escola de samba, tem que ser legalmente
constituda. Todo ano eu vou l pegar um monte de certido. FGTS, INSS, declarao
de imposto de renda, tributos municipais, CADE, tributos federais. Tudo isso a. Tem
escola que no cumpre. Passa cheque sem fundo, no paga fornecedor, funcionrio,
imposto. Tenho falado muito com o Camilo isso. O Camilo, diretor jurdico da UESP,
um puta advogado... o advogado da gente, pra defender a gente de vrias questes a.
Como eu te falei, como que pode aquele negcio de mexer com dinheiro pblico sobre
um projeto e depois no prestar conta... Muitas escolas fazem isso a, ligam para o
Camilo consertar. Eu estou afastado da UESP. Enquanto o resto da panela daquela
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mulher estiver l, eu num v, cara. Eu lembro de todos os anos que.... Perdi carnaval na
secretaria... Assim, de bobo alegre e ter desfile j vendido, cara. C j viu isso? C tem
um regulamento, n? Voc entrega a documentao, tem data, tem coisa estatutria,
quantidade e tudo e... Perde antes de bobo alegre. Voc faz tudo certo, tem aqueles que
no fazem nada, no to nem a e, no final, d tudo certo. A UESP passa a mo na
cabea de todo mundo. As escolas desrespeitam o regulamento e ainda ganham
campeonato. A gente, que faz tudo certinho, acaba perdendo sempre.
A ltima da UESP foi ter subido terceiro e quarto colocado fora do regulamento.
Esse ano agora [falando alto indignado], vio, o Kaxitu subiu o terceiro. Para, vai. Tem
que seguir o regulamento. Tem escola que as cores so verde, rosa e branco, mas veio
de branco e preto, vio. Estava na cara que era enxerto. E no aconteceu nada com a
escola. O Kaxitu teve um carnaval que, na vspera, abandonou tudo. Ele sabia que tinha
coisa errada a, o cara jogou tudo pro alto e caiu fora. Depois, com muito custo,
convenceram o Kaxitu voltar. Ento so essas coisas que a gente fica triste. No tem
nada melhor que ser sambista e no tem nada que d mais dor de cabea que ser
presidente de escola de samba. Quando voc s sambista, todo mundo seu amigo,
todo mundo te respeita; agora, voc virou presidente, pode crer que, se voc brigar
mesmo pela sua escola, voc vai arrumar muita confuso.
Eu no tenho medo de falar, no. Eu conto um monte de coisas e as pessoas
torcem o nariz. A maioria das pessoas s ouve o que querem ouvir. Elas no querem
ouvir o que voc tem pra falar de verdade. A verdade no di, como dizem por a, mas
causa rancor. Rancor. O rancoroso pior que o cagueta. O cagueta entrega um cara e
pronto. O rancoroso fica dos dois lados... Fica esperando pra dar o bote. Enfrentei muito
rancoroso na minha vida. Como dirigente da UESP, de escola, sempre lutando pelo
samba, o que aconteceu? Me expus muito, briguei, bati a cara, discuti...Tem um monte
de vaquinha de prespio l... Eu j sou diferente, brigo mesmo. Teve um ano que em
enredo um jurado me deu dez, outro nove e meio, e o ltimo deu sete no enredo! Fala a
verdade, colega! No vou ficar quieto. Ou o cara burro e no pode ser jurado, ou tem
maldade nisso da.

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Mas vamos levando da vida, n, vio? Uma hora vai chegar o momento da
Imperial. Eu espero conseguir mais essa alegria, passar por mais essa emoo,
entendeu? A Imperial chegar l no Grupo Especial comigo! Tendo a oportunidade de
apresentar uma batucada de verdade. Me chamam de macaco por a. Porque quando eu
condo a bateria, eu venho pulando muito, fazendo macaquice! E eu tenho que vir igual a
um tan-tan? Um joo-bobo? Um boneco de Olinda? Como que pode? Olha, eu sou
sambista! Enquanto eu tiver condio de danar, cantar, pular, tocar, eu v fazer
mesmo! Primeiro de tudo, um negcio muito pejorativo. Segundo, isso racismo;
terceiro, isso preconceito; quarto, isso inveja!
Eu quero viver isso. Eu fugi do hospital pra desfilar. Eu fiquei 70 dias morrendo,
no morrendo, cara! Eu subi pra cobrir a alegoria, porque choveu pra dedu. Ento, ns
compramos uma bobina de lona de oito metros de largura por sete de comprimento.
Fomos l, cortamos e enrolamos. Eu j subi na parte mais alta pras pessoas num subir
l. Justamente pra ngo num cair, porque se cai no cho, piriri, poror. Puxamos do lado
direito do lado direito e, quando me vi, eu ca l de cima, de costas. Ca naquele cimento
preto l, ca l de costas... Tum! Nunca pedi tanto socorro na minha vida. Falaram pra
mim, no pode se mexer. E a chegou o carro da polcia, polcia militar e depois o carro
do SAMU, o resgate. Eu estava consciente at chegar no hospital. Mas com muita dor.
Eu fiquei trs dias em coma. Trs dias depois, eu voltei. A eu voltei na UTI, intubado,
cheio de tubo. E l nessa UTI tinha umas dez pessoas, eu era o dcimo primeiro. A eu
lembrei o que tinha acontecido. A vieram os netos e tal. E eu fui ficando mais calmo.
Isso mostrou outra coisa que eu j sabia, mas mostrou mais vivamente. O que
esse pas paga pra professores, educadores e pessoal do hospital, muito pouco. Perto
do trabalho que esses profissionais fazem. Agora voc sabe o que esquerda, o que
direita, o que dia, o que noite, o que claro, o que escuro, consegue ir ao banheiro
sozinho. Porque a hora que voc num souber e precisar de outra pessoa pra fazer com
voc, terrivelmente terrvel. Aquele barulho da maquininha de sugar da sonda no sai
da minha cabea at hoje. Tudo bem. Cheguei l na sexta, no domingo sa do coma e me
levaram da UTI pro quinto andar. A o que aconteceu: no quinto andar, estava cheio de
maca, e eu l, internado. Um dia tinha um senhorzinho l com cateter assim, pra l e pra
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c, e um rapaz novo e uma senhorinha que parecia at a esposa dele, n? O filho brigou
tanto com ele, mas tanto, falou at palavro e depois foi embora com a senhora que
ficava l com ele. Passou um tempo e o veinho levantou e foi para o lado da janela. A
janela num tinha grade, cara, e ele tentando se jogar pela janela. Eu levantei de l e
falei:
Senhor, pelo amor de Deus, no faa isso. Venha pra c.
Consegui colocar ele na maca, na cama dele. Fui l e apertei o boto de
emergncia, num veio ningum. Fui me arrastando at a porta: Oh, moa... Eu estava
h uns 30 metros da recepo. Quando eu voltei, o veinho de novo na janela. Ele
arrancou o cateter e foi sangue pra tudo lado. Voltei l de novo: Oh moa, oh moa...
Sabe o que eu fiz? Arranquei tudo o meu negcio e pensei: Esse senhor vai se jogar.
Eu tomei pancada na cabea, vo falar... Ser que no foi o senhor que jogou ele?
Arranquei tudo o negcio, tinha uma blusa minha l, botei a blusa, fui saindo, quando
v me vi, eu j estava na rua. A o hospital ligou. Minha esposa:
Chegou, chegou, t aqui.
Aquela noite eu num preguei os zio... De dor. Dor, dor, dor! Terrvel, terrvel...
Na cabea. Que dor, que dor. Segunda-feira me levaram no hospital, a ligou pro capito
e o capito me levou daqui na viatura e me devolveu no andar que eu estava. Eu fui pra
l como preso. Quando chego l... Um monte de exames, num acusou nada. Na quintafeira eu tive alta. Quinta-feira era o outro penltimo ensaio da escola, o que que fiz?
Tinha agitado, comecei a pr a luz, arrumar e comecei a ficar quente, fervi igual uma
chaleira. No vim nem na batucada, vim na frente da ala das crianas. Criana na escola
d mais trabalho, sabe? Vim, vim, quando virou pra c, fui me sentindo mal. Quando
entrei aqui dentro, dei umas volta. Vim aqui, sentei me sentindo mal e o pessoal
falando:
Joga gua na cabea dele, gua na cabea dele! E traz sal e traz acar! A me
levaram carregado pra casa. O mdico falou:
O senhor no vai, no pode desfilar. No pode, no tem condies.
Voc acha que depois de 50 carnavais, eu no ia desfilar, mas tudo bem. Fiquei
internado at na vspera do ltimo ensaio. Antes do ensaio, sa. Sa, desacelerei, fiquei
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na minha. Ainda estava me sentindo bem mal, fazendo fora pra me sentir bem, n?!
No era pra desfilar, mas fui desfilar. Desfilei, tirei m barato, mas quando chegou do
recuo da bateria pra frente, eu comecei a sentir dor no peito. Senti mal. Quando chegou
l no fim, que chegou o ltimo carro, fiquei meio desesperado. Pra mim tinha cado uma
pessoa l do carro assim: tum. Eu virei pra batucada e disse olhando o fluxo de sada:
Parece que uma pessoa caiu l de cima do carro. Eu fui l e olhei assim, era meu filho.
A eu comecei a me sentir mal e apaguei. Mais dois dias em coma no Mandaqui. Sa
quatro dias depois. E aquela dor de cabea que no passava. Voltei pro hospital. Mas
no tinha neuro. Tive que voltar no outro dia. Tiraram at lquido da espinha, o que
terrvel, cara! Quando vieram os resultados, acusou cogulo. A fez essa cirurgia aqui.
Abriu daqui do meio da cabea at o outro lado. D pra v aqui. Mais 22 dias internado.
Sai de l. Cheguei em casa, no outro dia, voltou aquela dor de cabea. Eu chorava de
urrar, cara! Tentava tudo e no passava. A foi quando foi l pra tirar de novo o lquido
da espinha. Meningite bacteriana. Peguei no ato da cirurgia... Mais 19 dias internado!
Tudo isso eu passei, agora. Antes, durante e depois do carnaval. Voc me v aqui
trabalhando no sol porque eu no sou um cara parado. Se fosse outro, tava deitado.
O meu outro problema agora o peso. Eu pesava 82, 84 quilos. Agora eu estou
com 97. Soro engorda? No, porque gua. Mas os medicamentos que vo misturados
com o soro que engordam. E eu, assim, acho que... Tem coisas que pra alguns. Eu s
de estar vivo aqui hoje, por Deus. J fui baleado, por causa de samba. J fiquei 27 dias
em coma, cara! Eu s todo costurado, cara! Eu tenho bala aqui. Tenho bala aqui. Eu s
todo costurado mesmo, por causa de samba! Com todo respeito, s pra voc dar uma
olhadinha. Eu sou todo costurado. Mas eu no me rendo, a minha cabea... Enquanto
isso daqui funcionar e comandar o resto, eu estou legal!
ltima coisa, vocs vo entrar no site da Imperial. Ns estamos colocando no
site seis estilos de batucada, justamente isso que eu t falando pra voc. Primeiro vamos
registrar o som de todos os instrumentos que compe, com a chancela em cima, do que
significa cada tamanho. A depois os estilos! Vamos gravar quatro estilos! Gravado por
toda essa molecada aqui! No tem ningum profissional! Toda tera e quinta tem

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ensaio. Pode aparecer a. No site ns j colocamos a msica do Gato da Vizinha, Antes


da Vitria, essas duas so minhas. E o samba-enredo da Imperial 2012. assim:
Vamos mandar matar o gato da vizinha/Que comeu minha sardinha/E fugiu
para o quintal/E esse gato no vai mais me aborrecer/Pois dele eu vou mandar fazer
/Tamborim pro Carnaval/Eu vou mandar/Eu vou mandar matar o gato da vizinha. E
tem um breque. Percebe? Vou mandar matar o gato da vizinha/Que comeu minha
sardinha/e fugiu para o quintal/E esse gato no vai mais me aborrecer/Pois dele eu vou
mandar fazer/Tamborim pro Carnaval. a segunda: E a vizinha que vai pagar o
pato/Porque tem amor/na amizade demais desse gato/E a vizinha que vai pagar o
pato/Porque tem amo/Na amizade demais desse gato/Eu vou mandar/Eu vou mandar
matar o gato da vizinha/Que comeu minha sardinha.
Presta ateno nessa, se chama Antes da Vitria:
Antes da vitria no se deve cantar glria/Voc criou fama, deitou-se na cama/E
eu que no estou dormindo/Vou subindo, vou subindo/Enquanto voc vai
decaindo/Antes da vitria no se deve cantar glria/Voc criou fama, deitou-se na
cama/E eu que no estou dormindo/Vou subindo, vou subindo/Enquanto voc vai
decaindo/Quero a minha independncia/E com calma e pacincia me preparo para o
futuro/Tudo isso resolvido/E voc tambm sentindo/Entre ns o preo duro/Aguentei
muita indireta/Mas andei na linha reta/ No maldiga a minha sorte/Vou agir em tal
cadncia/Sei que a minha independncia/h de ser a tua morte, Vitria/Antes da vitria
no se deve cantar glria/Voc criou fama, deitou-se na cama/E eu que no estou
dormindo/Vou subindo vou subindo/Enquanto voc vai decaindo, agora/Antes da
vitria no se deve cantar glria/Voc criou fama, deitou-se na cama/E eu que no
estou dormindo/Vou subindo, vou subindo/Enquanto voc vai decaindo.
A segunda: Sua voz s me no serve/Meu humilde te recebe/Sua entrada
ningum veta/Gozas de maior ventura/Mas quem vive em grande altura/Leva sempre
grande queda/ Sei que fiz papel bonito/No tenho medo de grito/O que fala sem
pensado/No aceites carapua/S aceita a carapua/Quem se sente melindrado,
Vitria.

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E o hino nacional da Imperial: Chegou minha escola guerreira/Tu s majestosa


no asfalto/Sou mais a sua bandeira/s voz que fala mais alto/Chegou/Chegou minha
escola guerreira/Tu s majestosa no asfalto/Sou mais a sua bandeira/s voz que fala
mais alto/Em ns, lindas cores de seu porte divinal/E faz pulsar forte o corao
imperial/No pra desfazer/Mas tenho que falar/A nossa batucada ningum pode
segurar/No pra desfazer/ Mas tenho que falar/A nossa batucada ningum pode
segurar/L lai, l lai/Nossa batucada ningum pode segurar/L lai, l lai/Sou
imperial e vou cantar/Mas chegou, chegou... Muito bonito.
Eu me preocupo muito com o ambiente aqui na Imperial. Aqui famlia.
Frequenta a criana, o adulto e o velho. Meus filhos e netos esto aqui. Tem criana,
adolescente, tudo mundo. Todo mundo sai! Os pais e mes deixam todas as crianas vir
aqui. Ento isso meu prazer. Tem uma molecada agora que prefere o funk. Pelo amor
de Deus, n, cara. Minha filha foi, chegou em casa, tomou banho, dormiu. No outro dia
foi trabalhar e, quando voltou, ainda estava cheirando fumo o cabelo dela. Voc imagina
se ela num ficou tri louca de tabela, n? Pelo amor de Deus. Falei para o marido dela:
Oh, marido, srio, num deixa mulher ir nessa parada, no. Principalmente
sozinha. Voc sabe que de louco e maluco, todo mundo tem um pouco, mas voc num
precisa endoidar, ficar debiloide, num verdade? Pode falar o que quiser, mais esse
negcio de funk no bom para os jovens, no.
Na Imperial prefiro pegar criana... Adolescente... E ensinar! Pra pessoa
aprender a tocar, primeiro tem que aprender a bater. Quando a gente comea a
engatinhar, depois no d o primeiro passo? devagar... Ento a mesma coisa, n?
Tem que aprender a bater dentro do andamento de audio, que ela consegue.
Devagarinho, no comeo e um pouquinho mais acelerado. Ela vai pegar o sentido da
audio. Eu sempre pergunto, quando chega o pessoal aqui:
O que c toca?
Oh, toco tudo! Caixa, repinique, chocalho.
No, porque voc bate em tudo e no toca nada.
O primeiro instrumento a ser feito pra pessoa aprender a tocar percusso, para
trabalhar o sentido da coordenao motora, o chocalho. Vai balanando o brao
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assim... E chacoalha. Vai pegando ritmo [sons de chic chic chic com a boca]. A vai
balanando at conseguir tocar junto com os outros instrumentos. o primeiro
instrumento. Se o cara no toca esse, na verdade no toca nada. No tem segredo.
Primeiro aprende a bater pra depois aprender a tocar. Qualquer instrumento. Todo
mundo no bate palma? Devagar... Acelerado... Mesmssima coisa. pra mentalizar.
Tem uma coisa. A pessoa s aprende, tem facilidade de aprender quando ela se sente
bem no lugar. Ela se sente respeitada, se sente tratada como um todo. Tem pessoa que
tem mais facilidade pra assimilar as coisas. Tem gente que tem mais dificuldade! S que
voc tem que tratar todos iguais... Respeitar quem tem dificuldade. Como se nada de
diferente tivesse acontecendo.
Aqui a gente no permite que ningum d risada de ningum. No existe isso
aqui, no existe! No tem nada...! No existe gozao, aqui escola e a palavra escola
para se aprender. E se voc quiser, voc aprende. Qualquer coisa. Tem escola do crime,
colega! Tem escola at de malfeitor, ento, n? Fala verdade? Tem gente que num
presta no Pentgono, tem gente que num presta em Roma, tem gente que num presta em
Braslia. Na escola de samba tambm. T sendo boa a conversa? Fala muito!
O que voc imagina de percusso dentro de uma bateria, eu toco! E ensino.
Entendeu? Mas eu j s tirado de velho. Esse cara j era. J passado. Voc num tem
noo. Mas na batucada eu me garanto. Toco e ensino. Crianas de quatro anos a velhos
de 80. Agora, no dia 12, Dia das Crianas. A Secretaria de Educao do Estado
chamou a batucada mirim da Imperial pra tocar l no Memorial da Amrica Latina. Ser
um prazer. Ali vai ter um monte de gente... Vai s um prazer ver as crianas tocando
ali... O negro, o branco, o cabeludo, o carrapinho, a menina e a mocinha... Todo mundo
vai estar ali junto! E eles tocam muito. Com prazer. Samba prazer, isso o meu
prazer. Isso contenta muito o meu ego. A nica coisa que eu pretendo, se Deus me
ajudar, viver mais uns 15 anos! Pra ver esse meu neto a, pequenininho, maior. Se
Deus quiser. Vou fazer de tudo pra viver mais uns 15 anos.

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Osvaldinho da Cuca
Nome: Osvaldo Barro
Data de nascimento: 12/02/1940
Profisso: Policial militar aposentado e msico profissional
Escola de Samba: Vai-Vai
Data da entrevista: 21/01/2012
Local: Casa de Osvaldinho da Cuca

Figura 6 Osvaldo Barro, o Osvaldinho da Cuca, e Bruno Baronetti.


Fonte: Foto do autor.

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A melhor coisa que a gente tem isso. Divulgar o nosso


samba!
Meu nome Osvaldo Barro, nasci no dia 12 de fevereiro de 1940, numa terafeira de carnaval. Nasci no bairro do Bom Retiro, na Rua Anhaia, antigo n 123. Meus
pais so Domingos Barro e Benedicta de Almeida Barro.
Minha me era de Mogi das Cruzes, e, quando meu pai estava no exrcito, ele
serviu no quartel da cidade e conheceu minha me. Se casaram no dia 8 de abril de
1939. Dez meses e quatro dias depois, eu nasci. Minha me adorava assistir aos desfiles
dos cordes carnavalescos no Parque da gua Branca, na So Joo e no bairro de
Campos Elseos, prximo ao Bom Retiro. Na tera feira de carnaval, ela estava
assistindo ao desfile de um cordo roxo e branco, provavelmente era o Campos Elseos,
quando percebeu que estava na hora de dar luz. J nasci ao som da batucada. Meu pai,
depois de dar baixa no Exrcito, se tornou fiscal da sade, viajando o interior levando
material para combater pragas, como mosquitos e ratos. Por causa da profisso, meu pai
viajava muito, por isso moramos em Tabatinga, Itanham, Campinas, Jundia,
Araraquara e Santos.
Meus pais se separaram pouco depois de minha irm Yara nascer. Minha me,
para nos sustentar, teve que trabalhar como empregada domstica. Naquele tempo,
empregada dormia no servio e no podia ter filhos, pois achavam que no se dedicaria
ao trabalho. No tinha lei trabalhista. Ento ficamos na casa de parentes, como da minha
tia Cristina e da minha av materna, Leobina, na cidade de Po. L foi muito bom, no
tinha luz eltrica, mas tinha uma fartura de comida, muitas frutas e como havia tambm
um rio, a gente pescava. Com sete anos, fui estudar no Grupo Escolar Padre Eustquio,
em Po, na frente do Abrigo Batura, de crianas carentes. Esse abrigo existe at hoje.
Com oito anos, vim morar aqui em So Paulo, na casa de minha tia Cristina, que
era casada com um portugus chamado Joo. Ela tinha uma casa na Avenida Cabuu, no
bairro do Jaan. Com doze anos, comecei a engraxar sapatos e me envolver com a
turminha que batucava. Minha tia brigava muito comigo por causa disso e fugi algumas
vezes de casa. Fui morar num barraco com essa turminha da pesada e arrumei um
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emprego colando cartazes nas ruas durante a noite. Mas a realidade da rua muito dura,
tinha que brigar at para conseguir um lugarzinho pra dormir. Percebi o quanto estava
perdendo e decidi voltar pra casa da minha tia, que s trabalhava.
J estava com treze anos e decidi arrumar um emprego. Consegui como
carregador de lates de ferro em caminho. Era muito difcil, minha mo ficava toda
cortada e depois decidi trabalhar na feira livre, carregando mercadoria e vendendo. Fui
um bom vendedor, todo mundo gostava de mim, porque eu sempre fui muito alegre e
folio. Com quinze anos, a nossa turminha se integrou ao Cordo Garotos do Tucuruvi,
que desfilava todo carnaval l na zona Norte, as cores eram preto e branco. Comecei
como baliza e depois tocando apito. A fui evoluindo dentro do cordo, fui passista e
fazia malabarismos. Depois passei a coordenar a batucada como apitador. Em 1959,
com meu amigo Nelson Gaya, compus meu primeiro samba, para o Garotos do
Tucuruvi. Esse samba se tornou muito conhecido no bairro por muitos anos. Era assim:
Minha gente/Quem vem l/Escuta-se a bateria daqui/ j vi/So os garotos do
Tucuruvi

(bis)/Eles

vo

abafar/j

esto

brilhando/Cadncia

de

bateria

marcando/Cabrochas assim eu nunca vi/, So os garotos do Tucuruvi (bis). Belo


samba! de 58, com o Nelson Gaya, crioulo do Tucuruvi. Gente finssima e
educadssima. Estudou, mas nunca trabalhou. Ento ele vivia numa pindaba danada.
Ento ns fizemos esse samba. Garotos do Tucuruvi, que uma exaltao. Naquele
tempo era exaltao, no tinha samba-enredo.
Quem segurava o samba aqui em So Paulo eram os engraxates e os abnegados
do rdio. Porque o rdio era, na poca, a comunicao de massa, a formadora de
opinio. Alm do rdio, tinha uma coisa muito importante, que quase se esqueceram de
escrever, que quase apagaram da histria nossa, as gafieiras. Eu, em gafieira, nunca fui
bom danarino. Aprendi a danar sozinho e fui campeo em todas as escolas de dana.
Dancei todo tipo de coisa. Com o Solano Trindade, com o Barbosa Lessa, gacho, e
fazia folclore, o Lessa ajudou muito a preservar a tradio das danas do sul. Era
maracatu, era qualquer coisa. Frevo e samba. Danando samba fui campeo em todas as
modalidades, mas nunca fui um campeo de danar a dois. Sempre fui ruim. Nunca fiz
escola pra isso. Mas o samba era tocado muito nas gafieiras que o manteve, com seus
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conjuntos, regionais e orquestra, foi a que sustentou mais... Esses sambas. Foi um dos
responsveis pela preservao e popularizao.
claro que os engraxates tiveram uma pequena parcela. H uma mistificao
muito grande disso. Porque o engraxate estava ali trabalhando, somente nas horas de
folga ou nos finais de semana, quando reunia os caras que cantavam que iam pras
gafieiras. Mas a maioria ia pra trabalhar. Eu mesmo fui engraxate em porta de gafieira.
Nos finais de semana que tinha mais pblico... Vinham os carregadores, as empregadas
domsticas com os vestidos das patroas. E eu ficava conhecendo os cantores, os
msicos que tocavam samba nas gafieiras. Ficava l de mansinho, com minha caixa e
perguntava:
A, meu, quer dar um traquejo a no buti?
A o cara falava pra mim:
P, mano, eu vou l na Victor Costa, que era da Rdio Nacional.
Muitos tinham chance na Victor Costa. At o Joozinho Boa Pinta, que era
batedor de carteira, apresentou samba l. Boa pinta mesmo. O cara, se disputasse com o
Ataulfo Alves, ele ia empatar com o Ataulfo Alves. Conheci ele no Tucuruvi. Ele
andava com colete, gravata, prola, aquelas prolas na gravata, sabe? Aquelas prolas,
anel de ouro e era um tremendo batedor de carteira, era um mulato de nariz fino. Por
isso que era boa pinta, olhinho assim amendoado e chapu coco ou chapeuzinho preto
de nome.
Se ele disputasse com o Ataulfo, que era considerado o mais elegante diversas
vezes, ele at poderia ganhar. Onde havia uma aglomerao, l estava o Joozinho Boa
Pinta para bater carteiras. Ele chegava fazendo festa, cantando. Eu me lembro de um
samba dele que ele cantava:
A emissora Victor Costa est chamando/os calouros contemplados no programa
que passou/Passei no teste e no sou mais calouro/minha voz vale um tesouro/Sou
sambista de valor/Na minha casa certo rdio est ligado/eles no acreditavam/Que um
dia eu fosse cantor. A cara deles h de rolar pelo terreiro/Cada vez que anunciar/Mais
um novo cartaz brasileiro.

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Tem uma gria da poca, aquele negcio de cair a cara, a cara deles h de rolar
pelo terreiro. Caiu a cara do cara, quer dizer, ficou decepcionado. Ento tinham esses
encontros, fazia-se batucada quando no tinha nada pra fazer, principalmente de noite,
os caras batucavam...
O circuito que os engraxates faziam era o do centro, onde havia as empresas,
escritrios. Na esquina da Rua Direita. O samba que se fazia na Rua Direita mesmo eu
no me lembro. Pode ser que antes tinha, mas no era do meu tempo. Porque tinha
emissora de rdio ali na esquina. Tinha a Rdio Record l em cima. Tinham vrias... Era
um ponto de encontro ali. Na Joo Mendes tinha muito. Que a turma fala Praa da S,
mas, depois que implodiram ali, modificou a Praa da S, a mudou bastante. A turma
fala Praa da S, mas era mais atrs.
Na Joo Mendes que era a batucada braba dos engraxates. Onde tinha mais, o
ponto mais famoso era o Anhangaba com a Avenida So Joo. Pra baixo do Banco do
Estado, naquela esquina, onde tinha uma salsicharia ali com dois porquinhos, ficavam
dois porquinhos assim, acendia e apagava. Essas luzes comum vermelha, dois
porquinho com a salsicha assim, um pra l e outro pra c. Com a salsicha na boca,
acendia e apagava. Aquilo era atrao, era novidade. Chamavam o lugar de prainha. Era
ponto de encontro. No tinha praia nenhuma. Acho que era alguma gozao com o Rio
de Janeiro, prainha. Em frente Praa do Correio. Ento ali tambm tinha bastante. Mas
o lugar prprio mesmo de samba eram as gafieiras. Como tinha que pagar pra entrar, a
gente ficava na porta engraxando os sapatos do pessoal que frequentava.
Apagaram a histria das gafieiras. Tinha a Caamba, depois veio o Som de
Cristal e o Garito. E a mais famosa e melhor gafieira de todos os tempos era o Vinte e
Oito. No sei o nome oficial, mas todo mundo conhecia como Vinte e Oito, porque era
no nmero 28 da Florncio de Abreu. E era uma portinha s com uma escadaria. Uma
portinha estreita e a gafieira acontecia l no andar de cima. A pegou fogo um dia e
morreu todo mundo. Porque no dava pra descer as escadas n? Era um corrimo
estreitinho assim, um metro de largura, e pegou fogo. O Vinte e Oito. A ficou um
tempo quieto e depois eles abriram na Rua dos Andradas. Mas a no foi a mesma coisa,
e logo fechou.
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A rapaziada que frequentava eram os crioulos da sacaria, da Santa Rosa ou l do


Largo da Banana. Onde trabalhavam aqueles negros da pesada, tudo suado, de camiseta.
A quando chegava de sexta-feira ou sbado, punham meia de mulher na cabea pra
alisar o cabelo, n? Na sexta-feira todo mundo trabalhava com a meia amarrada na
cabea. Era engraado. Porque quando chegava o final de semana tinha que ir pro Vinte
e Oito. Passava banha na cabea, passava uma lata de banha pro cabelo ficar esticado,
ficava lumioso e punha um terno branco tipo panam mesmo, 220. Chapu Panam.
As empregadas pegavam as roupas das patroas, as joias das patroas e iam tudo
pro Vinte e Oito danar. E era animado. Tinha sempre conjunto de baile com bateria e
pandeiro. O pandeiro segurava sozinho. Tinha que ser bom o pandeirista de conjunto. A
bateria dava o breque e era o pandeiro que mudava de ritmo. Quando dava o breque,
tum e a o pandeiro mudava de ritmo. Por exemplo, quando mudava pra bolero, era o
pandeiro que mudava. Era assim. E tinha metais, guitarras e ia embora.
Em 54, 55 teve uma msica que foi campe de carnaval e virou costume toc-la
quando ia acabar o Baile. A orquestra j sabia que era a msica de So Paulo que
encerrava. A orquestra j vinha: Vai tocar a ltima, t chegando a hora. Isso era pra
avisar os caras que estavam no bar fumando, tomando uma cachacinha, outro l
conversando com a namorada na porta. Todo mundo parava o que tava fazendo pegava
a mulher e corria pra pista. Cantavam assim antes de tocar a msica:
Vai tocar a ltima, pegue o seu casaco e meu chapu e vai me esperar l
fora/Anda depressa querida, que a nossa conduo j vai chegar/Quem pobre, mora
longe no espera o baile acabar/E eu voume embora./Vai tocar a ltima.
Era a ltima da gafieira. E a turma cantava e ia embora.
No Brs tambm tinha muito engraxate. Perto da estao de trem do Brs. Os
caras ficavam engraxando ali. Ningum fala disso. Tinha tambm. Apagaram a histria
do Brs. No era s nordestino que tinha ali, tinha muita coisa, muito carnaval. No Brs
era carnaval mesmo. Desfile com escolas, com carros. Tinha no Rio e em So Paulo
tambm. E tinha muita batalha de confete.
Eu me lembro dos eventos do meu tempo, estou falando pelo meu tempo, nos
anos 50, final dos anos 40. At 50 e poucos era aqui no Parque Shangai, onde hoje o
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Parque D. Pedro II. Era a maior diverso de So Paulo. Era uma espcie de parque de
diverses. Pro Parque Shangai vinham os maiores cantores do Brasil. Francisco Alves,
que era considerado o maior cantor da poca. o maior cantor do Brasil de todos os
tempos! Eles vinham cantar aqui. Orlando Silva, no Parque Shangai. Era um parque
muito grande. Mas sempre foi reduto de sambistas.
Dali saram grandes escolas de samba. Saiu a escola de samba em 38, 39, Brasil
Moreno, Rosas Negras. Onde o Germano Mathias comeou, de 39, a Rosas Negras.
Saiu do Lavaps e foi parar l na Rua Vergueiro, onde tem o Hospital Municipal na
Vergueiro, bem naquela esquina era a Rosas Negras. Na Castro Alves. Era ali a quadra.
Quadra no, no existia quadra em So Paulo, h diferena de cordo e escola de samba.
Cordo sempre nasceu e morreu na rua. A escola de samba primeiro tinha terreiro
depois tinha quadra. Cordo no tinha nem terreiro nem quadra. Tinha assim... Voc
guardava os instrumentos, os caras falavam, vamos guardar os couros. Ento guardava o
instrumento na casa do dono do batuque. Que nem tem l em Pirapora, a Dona Maria
Esther, que a dona do batuque, n? Aqui em So Paulo era assim, o dono do batuque.
O Grupo Barra Funda era na casa do Seu Dionsio, e assim por diante.
A nossa tradio aqui em So Paulo era cordo. As escolas de samba comearam
no Rio de Janeiro, no bairro do Estcio. Era um novo tipo de msica que estava
nascendo ali. Ficou conhecido como samba do Estcio, que o samba carioca como
vemos hoje, que veio da fuso do jongo e do lundu, principalmente o lundu, que o
pioneiro, chegando depois a fase do maxixe e o refinamento disso foi o primeiro passo
para o samba. A ganhou a sncopa e o telecoteco, e se tornou o samba.
Esse modelo de samba, conhecido como samba do Estcio, foi o samba do Rio
de Janeiro. Ento voc v que foi longa a minha trajetria diferenciando o samba
paulista do samba carioca. Esse samba, esse modelo, no existia. O que se tinha, nos
mais diversos Estados, eram modelos rsticos, tanto no Maranho, Belm e cidades
porturias, principalmente Santos. L o porto mais antigo da Amrica Latina. Por
onde chegavam os escravos da frica, mesmo depois da proibio dos ingleses no
trfico ocenico. E, depois, evidentemente, So Paulo, pela grande extenso de mo de
obra escrava. E o samba veio dessa cultura africana, com elementos da msica europeia,
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principalmente no uso de instrumentos de sopro e cordas. A fuso foi com a cultura


imposta de cima.
Veja bem, esse o meu modo de perceber as coisas, e claro que uma forma
de ver atravs da sensibilidade e no do banco acadmico, ento posso ter equvocos e
erros. a minha sensibilidade que est falando. o meu modo de ver a primeira fase.
Se no dividir em trs fases o samba, impraticvel fazer essa comparao que esses
acadmicos tentam fazer.
Ento havia diferena, como eu fui ver em Cuba, na frica e em todos os lugares
que deram essa essncia. Cuba t pobrezinha! Parou, regrediu. Bloqueou h mais de 50
anos essa receptividade que o Brasil continua tendo. Mas a mesma linha africana que
estava l, a mesma que estava aqui. A primeira a chegar foi do Congo, ento essa
primeira fase definia muito e criou um modelo no Rio de Janeiro por ela ter sido
privilegiada, por ter sido a primeira e virou um padro. Ento, a partir dos anos 30,
comeou a se difundir pelo pas, influenciando outras modalidades. Essa difuso se deu
pelo rdio, que comeou a evoluir nos anos 30. Ele nasceu nos anos 20, 22, mas o
processo de evoluo foi depois de 32, 33, o rdio comeou a mandar essa sonoridade,
na qual o Brasil foi absorvendo e mudando a sua caracterstica de batuque, de samba.
O samba da segunda fase j est nesse processo de urbanizao dos anos 1930
para c... Mas no podemos esquecer as influncias que o samba paulista tinha, no s
da zona rural, mas da religiosidade. Sempre a Igreja foi a pioneira a impor para os
escravos e para os ndios a sua cultura. Para desmistificar o santo africano,
principalmente. Havia um diferencial tambm na religio, porque a umbanda, que tem
cento e poucos anos, nova, e era mais praticada em So Paulo do que no Rio, no Rio
teve uma forte presena do candombl e uma pequena presena da umbanda.
A umbanda uma religio brasileira. a mais brasileira das religies do mundo.
Ela congrega as quatro raas, o ndio, n? Voc recebe o santo ndio, e o negro, o pai
Joo, o pai Joaquim, e europeia, pois incorpora o doutor Fritz, e sei l o que mais, e
recebe at o amarelo. Recebem as quatro raas que o Brasil. O candombl, no; o
candombl africano, embora ele seja mais rico, ele tem oito ritmos diferentes ou nove,
ele tem nas suas batidas diferenciadas, que foi influenciar o samba do Rio de Janeiro. A
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batida ligeira, o urucungo, influenciou os sambas-enredos. A lenta, por exemplo, foi


influenciar no samba tipo Martinho da Vila. Essas vertentes so complicadas, para
quem no entende, mas o candombl teve forte presena no Rio atravs das Tias
Baianas. A mais famosa delas a Tia Ciata.
Em So Paulo, eles comeam buscar a linha do caf e o diabo a quatro. Eu,
como sou percussionista desde moleque, h mais de 50 anos, eu comeo a perceber
onde est a batida e quem fez e quem no fez, n? Voc tem o Joo da Baiana, que era
macumbeiro, ento era Orr. Eu vejo como que funcionava isso em So Paulo. Olha,
eu falo como percussionista, porque eu no sou praticante de nada, eu sou um corintiano
metido besta. Ento a umbanda, que s tem uma batida, ela permaneceu at hoje no
samba rural, ela uma batida mais ou menos assim: tum,tumlucuntum,tum. Essa batida
gerou o que voc v que no samba de Pirapora assim, a batida do bumbo l, muito
pesada, porque era muito bumbo e muita coisa pesada, porque, alm dos atabaques, era
utilizado o bumbo.
Na segunda fase do samba, ns tnhamos a influncia da zona rural que acabou.
Tanto o sertanejo acabou, como o samba acabou. Tudo que era da zona rural,
praticamente acabou. O que vemos a hoje tudo falso... O sertanejo no existe, o
sertanejo de hoje um lixo, uma msica romntica, com um cara fantasiado de
americano, cantando uma msica de amorzinho, de corno e acabou. E isso acontece em
todas as vertentes do samba.
O grande samba bom, de Caymmi, o samba de roda da Bahia, praticamente
acabou. Foi passando por um processo de sonoridade, de mega sonoridade,
modernizao, com muitos metais, muita guitarra, desde Dod e Osmar, que foram
gnios criando aquele carnaval do trio eltrico para a grande massa. Igual escola de
samba hoje, pra grande massa, pra sociedade, no mais pro sambista a escola de
samba. Escola de samba acabou, hoje tem um grande espetculo, pra todo mundo
participar. Hoje eles acham bonitinho, voc comprou sua fantasia? O cara nem sabe o
endereo da escola de samba. Ah, vou dar de presente, vou comprar uma fantasia pra
minha filha a fantasia da Mangueira. Essas fantasias vendem bea, entendeu? Ento,

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acabou. A mesma coisa aconteceu na segunda fase do samba, comeou j o processo de


evoluo.
O Mario de Andrade j lamentava a transformao do samba de Pirapora,
porque eu sou um dos atuantes l em Pirapora, tem o decreto-lei nmero um. Eu sou
cidado piraporano, por decreto-lei, porque eu fazia intercmbio l. Tem s uma
pessoa viva, se vocs pudessem falar com ela. Ela de 1924, a dona do samba l... A
Dona Esther, ela t muito doente, tem muita idade, perdeu uma irm faz dois anos. Ela
me de santo e muito simples, e a nica sobrevivente; tem ela, tem o Joo do Pasto,
que mais novo que ela, mas j t vio tambm. Mais vio que eu, um pouquinho mais
que minha idade, mas o pessoal t todo mundo indo embora. Ela de 1924, tem a idade
do Paulo Vanzolini, vai pra 87 anos. Ento, se Mario de Andrade lamentava isso nos
anos 30, voc imagina quem somos ns pra falar agora. E quem persiste em ficar no
tradicional, vai pro lixo, simplesmente descartado. Porque hoje a exigncia, tem muita
faculdade de msica, de arte de tudo...
Hoje show tem que ser cpia de Hollywood, a cpia de tudo. Ento voc v o
pessoal falar muito. Um dia, eu tava vendo um DVD com um documentrio sobre o
samba e mostraram o jongo da Serrinha, e a escutando as pessoas, que falavam eu
fiquei to brabo, xinguei! No depoimento, ela falou:
Olha a diferena, olha o carioca l em Madureira, o jongo.
o maior lixo, foi o Mestre Darcy que criou isso a. Ele morreu faz uns cinco
anos, que Deus o tenha, um grande batuqueiro de jongo. Mas hoje virou vitrine pra
turista.

Eu assistindo e vendo o jongo tudo errado. Jongo com coreografia, os

instrumentos, no tinha nenhum instrumento de jongo. T com instrumento cubano,


como voc fala que jongo, t com tumbadora de tarraxa de ferro. Cad o tambu? O
quinjengue, o candongueiro? Cad? Cad o caxambu pra bater, que no cho, socado
no tambu? Voc vai por a, no Estado de So Paulo, tem jongo primitivo, com ngo
ainda de carcanhar rachado batendo no tambu, esquentado no fogo com pinga. No isso
que eles mostram na televiso pra turista ver.
O jongo no veio da classe do Ermnio de Moraes. Ento como que voc
admite que isso jongo, s porque preto que t cantando? Eu falei: isso no jongo!
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T cantando jongo, com msicas das antigas, mas a batida est diferente. Os
instrumentos no so os mesmos. Cad a religiosidade? E cada vez vo mudando mais.
No pode mudar essa imagem, n? Ento, o jongo de verdade tem uma religiosidade at
na pele do instrumento. Quando voc esquenta no fogo com a cachaa, pra dar a
oferenda do santo, aquilo sagrado, tem uma religiosidade, ento no pode voc mudar.
O samba perdeu tambm essa religiosidade africana. Porque a partir do
momento em que j t na... Sei l quantas geraes... J deve estar na quinta gerao,
sexta ou at mais. Muita coisa se perde, no vai passando a diante. Porque eu conheci
praticamente a segunda gerao e alguns da primeira gerao do samba. Eu conheci, eu
gravei com Ismael Silva, que foi quem ajudou a formatar esse samba do Estcio. Eu
gravei com Nelson Cavaquinho, esse povo. Adoniran, ento, nem se fale, n? J
segunda gerao, o Adoniran de 1910.
Antes dessa veio a primeira gerao. Essa , ainda, antes da virada do sculo
passado. A primeira gerao do samba a Clementina, fiz pea com ela. Esses, sim,
eram filhos de escravos e fizeram jongo de verdade. Depois, quem j t na quarta,
quinta gerao mentira! T fantasiado de sambista. Bota terno branco, chapu. a
primeira coisa que pe, porque agora virou moda novamente colocar chapu, entendeu?
Ih, sambista e canta samba. Bom, cantar, todo mundo canta, samba msica, no
privilgio de ningum. De cara que faz msica com o ritmo de samba, a academia t
cheia. Foi desmistificado agora, entendeu? O samba era mistificado, agora no, acabou!
No tem mais a essncia.
Hoje s fala de amor, igual msica sertaneja. No tem mais o que dizer, porque
o caipira de hoje no mora no mato, tudo criado aqui. O Chrystian e Ralf foram
criados comigo l no Tucuruvi. Eu vi os dois ainda moleques, cantavam em coro; no
comeo de carreira, eles gravavam comigo. Nunca viram mato! Assim como todos os
outros. Ento como ele vai falar de determinada raiz que serve de remdio, que
antigamente se falava? Como que ele vai falar de determinado pssaro ou bicho do
mato, que nem falava Raul Torres, o Furtado, n? O Capito Furtado... Como falavam
os maiores... Alvarenga e Ranchinho, n? Que eram caipiras de verdade, daqueles que

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se vestiam bem paiao, parecendo o jeca. O prprio Mazzaropi. Nas prprias msicas,
quando ele cantava no cinema, assim:
A sanfona t tocando/Comeou o arrasta-p/Dana e tem homem com homem/E
mulher com outra mulher/Esta dana que balana/mas no cansa.
Ento um caipira do mato, entende? Agora isso que t a ai, amorzinho, voc
me deixou e bate o p, e bate o p e tudo com a mozinha na cala jeans e rebolando a
bunda, isso a no sertanejo, isso a pura e simplesmente entretenimento. msica,
mas para entretenimento. Mas, se for comparar isso com sertanejo, sacrilgio.
Se for comparar o samba, com o pagode, sacrilgio. sacrilgio puro! A os
caras que vo pra faculdade, tem palavra bonita pra se defender, no porque
evoluo... Evoluo a puta que pariu [indignado]! Ns temos que respeitar
primeiramente as nossas origens, isso voc evoluir...
Porque eu sou uma pessoa atualizada, todo ano eu fao samba-enredo. No
deixam ganhar, porque vio no pode ganhar mesmo, hoje tudo manipulado. Mas eu
estou bem atualizado. Viajo sempre. T mais atualizado que eles. No paro, agora
mesmo vou fazer, em Curitiba, a histria do samba paulista, no teatro l, entendeu?
Ms que vem, vou fazer um trabalho em Braslia. Eu no paro. Ento, atualizado
isso. voc respirar todo dia msica e saber o diferencial de hoje, mas respeitar o
passado, respeitar quem fez, porque ns somos uma histria em processo eterno de
evoluo. O mundo est sempre em evoluo, isso tem que ser dito. Mas no pode
evoluir sem perder a raiz, se no, no evoluo, outra coisa.
E foi perdendo a raiz em So Paulo. No Maranho, por exemplo, muita coisa se
mantm, mas j tambm com muito verniz, embora tenha coisa muito bonita l, como o
tambor de crioula. Mas, quer queira quer no, voc no pode trocar um tambu, que um
instrumento tradicional, por um instrumento de nilon, porque existia toda uma cultura
religiosa por trs daquilo.
Com o samba a mesma coisa. Ele nasceu na Bahia, se desenvolveu no Estcio
e virou modelo nacional, pois, agora, brasileiro. Ele foi refinado no Rio de Janeiro,
mas nasceu na Bahia. Ele t em constante processo de evoluo. O que a gente tem que

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fazer aceitar o que bom, adicionar um tempero, como novos instrumentos, nova
indumentria e tal, mas no ironizar ou desprezar...
No cortar raiz, seno a planta morre. Voc no pode cortar a raiz. Uma rvore
voc tem que adubar, voc tem que cuidar dela, mas, se voc cortar a raiz, j era. O
dente a mesma coisa, se tirar a raiz do dente, ele fica amarelo, preto e apodrece. a
mesma coisa a nossa histria, s existe o novo porque o vio deu a referncia... Se o
cara inventou a penicilina, outro inventou o telefone, hoje tem computador, tanta coisa,
mas tem que respeitar quem inventou o telefone, porque ele deu o primeiro passo, ele
abriu pros outros sarem correndo atrs. O samba a mesma coisa.
So Paulo comeou a olhar com bons olhos o rdio, depois o cinema, depois do
cinema a TV, a partir dos anos 50. Ento, esse processo de comunicao, de
comunicao imediata, foi responsvel pela transformao da questo regionalista do
Brasil. Ento o samba ganhou fora, fez um elo muito forte no carnaval atravs da
escola de samba. No Sul tinha um instrumento chamado sopapo, tinha a pele de um lado
s, e era batido com a mo, por isso que era sopapo, tinha bons tocadores que batiam
muito bem, mas agora passou a tocar com baqueta que nem o carioca. Botava um surdo
de primeira, um de segunda, um de corte, um de terceira. Virou escola de samba
carioca, e antigamente no era, era um tambor com uma pele de um lado s batido com
a mo. Existia um diferencial, mas, agora, foi copiado o padro todinho, na ntegra.
Se a Bahia no tivesse ax, Filhos de Gandhi e outras coisas mais, estariam
fazendo escola de samba tambm. Porque at no Paraguai tem escola de samba, A gente
encontrava antigamente vrios quartetos, trio de negro em turn na Amrica Latina. A
voc ia falar com ele:
De onde voc ?
Yo soy da Mangueira.
O cara no era nem brasileiro. O cara era l do Paraguai, do Uruguai, cansei de
ver esse negcio. Ah, da Mangueira ? Eu j olhava o cara, ele era do Paraguai e
tocava igual brasileiro. Ento no h fronteira, esse processo de comunicao leva os
ritmos para todos os lugares. Primeiro o rdio, depois o cinema e a televiso.

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Aqui em So Paulo tambm se adotou o padro do Rio de Janeiro. Tnhamos


uma identidade prpria nos dos cordes que era um cortejo imperial, na batida de
marcha, de marcha sambada e de outras modalidades, como Z Pereira. Pom, pom, pom,
Z Pereira, pom, Z Pereira. Ia fazendo isso pelas ruas.
E perdeu tudo isso, uma riqueza imensa. Tinha trombone, clarins, tinha muitos
clarins, todas essas coisas bonitas se perderam e virou tudo escola de samba de padro
carioca. Por exemplo, assim como no Sul, aqui, em So Paulo, a batida do surdo era
diferente. No tinha nada igual ao Rio, absolutamente nada. No tinha porta-bandeira
nem mestre-sala, no tinha rainha de bateria. O desfile era diferente, era um cortejo
imperial, com rei, rainha, a corte, a princesa, com os cordes usando o mesmo tipo de
fantasia todo ano. No falava bateria, era batuque. Bateria era Rio de Janeiro. Aqui era
batuque. Na frente do batuque, tinha uma rumbera. Sacudindo aquele vestido
encarnado, rodando no cho. E tinha as baliza, eu fui baliza, fui um pouco de cada
coisa, ento jogava aqueles pauzinhos.
A percusso do cordo era bem pesada. Alm desses instrumentos de corda e de
sopro que eu falei, tinha surdo e bumbo, muito bumbo de banda. No confundir com
zabumba, porque muito historiador pe zabumba. Zabumba nordestino, fininho,
um bumbo magro, e o bumbo aquele gordo mesmo de banda, aquele que nem o dos
fuzileiros navais. Bum, bum, bate de um lado e do outro.
Ento, em So Paulo, tinha muito bumbo e a batucada era bem diferente. Como
tinha muito harmnico, o bumbo um grave pesado, e ele tem muito harmnico. O som
assim: Bum! O harmnico fica retumbante. O importante dele era a funo de batida,
no repique. Quem repicava era um surdinho pequeno. Era um samba socado que o
carioca dava risada da gente. Falava que era um samba duro. Ento era assim, o bumbo,
ele vinha sempre dois ou quatro atrs, depende do cordo.
Os maiores cordes eram Campos Elseos, Camisa Verde e Vai-Vai. Cada um
no seu tempo, ento tinha aqueles bumbos grandes. Ento vinham dois bumbos atrs, s
vezes no vinham. Se tivesse patrocnio, poderia colocar mais bumbo. Os cordes
tinham pouca miudeza. Pouco tamborim, pouca cuca, pouco agog, pouca frigideira e
ganz. Aqui em So Paulo era mais pesado. Esse era o diferencial.
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Os cordes possuam influncia rural e religiosa. O samba rural um samba


caipira, onde voc tm vrias modalidades, cururu, por exemplo, equivale ao partido
alto do Rio de Janeiro, o desafio de viola. Esse samba era presente nas cidades de
Tiet, Botucatu e Capivari, todos os lugares de cururu, moda de viola, muita moda de
viola. Cana verde. Cana verde marcha, aquela marchinha de viola. Nhi, nhi, nhi,
nhi, minha v ficou sem dente de tanto morder meu pai.
A influncia religiosa era da Folia do Divino e de outras festividades do interior.
E era muita marcha. Era muita religiosidade, n? Porque as Folias do Divino, as
congadas, so eventos religiosos e assim como os cordes, essas festividades possuam
um estandarte, herana da religiosidade jesuta. No tinha bandeira. Existia estandarte.
Se a cultura dos cordes tivesse evoludo e no copiado o padro carioca, deveria hoje
tambm estar maravilhosa, com alegorias grandes. Porque o cordo no tinha alegoria, o
cordo era mais animado e, apesar da batucada pesada, para danar era mais leve... E
com o fim dos cordes perdemos a riqueza regional. Perdeu!
A parte plstica dos cordes foi toda perdida. As escolas de samba tm a origem
nos ranchos, que tinham alegoria. E tambm enredo. uma espcie de pea teatral. Os
cordes no eram pea teatral. Se fosse comparar com o teatro, seria como a festa de
Cristo. Todo ano a mesma. A paixo, a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo sempre a
mesma, todo ano. Cordo a mesma coisa.
O principal do desfile era a corte imperial. E a motivao era a alegria. Era
cantar o carnaval. Cantava msicas de rdio ou outras que eles mesmos faziam. No era
uma nica msica como tem posteriormente o enredo. Por exemplo, a Mangueira, este
ano, tem como tema Monteiro Lobato. J os cordes eram assim: o primeiro tema de
fantasia da batucada do Vai-Vai foi de marinheiro. Teve um ano em homenagem aos
russos, as fantasias de sordadinho Fritz. Fritz por qu? Existia uma propaganda no
jornal que era bomba de Frit pra matar inseto. Eles falavam Frit, n? Tinha a
propaganda de um sordadinho que tinha um chapu russo, aquele chapu comprido, de
russo. S que em vez dele ter uma carabina aqui na mo, ele tinha uma bomba de Fritz
na mo, isso nos anos 30, 40.

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Eu me lembro disso a. At os anos 50 tinha a propaganda do soldadinho com


uma bomba de Fritz da mo. Normalmente, era a bateria que vinha com fantasia
diferente todo ano. A corte vinha igual. A mesma coroa, a capa de rei, rainha, os sditos
atrs. As crianas segurando a capa da rainha, do rei. Era bonito, mas sempre a mesma
coisa. O que variava era a msica. Ento voc cantava quatro linhas, repetia vrias
vezes, uns dez minutos, cinco minutos, enjoava, mudava para outro tema, a cantava
uma msica de sucesso de rdio. , jardineira, por que est to triste? O cara puxava
no trombone, tinha trombone, tinha pistom. Tinha muito mais instrumento de sopro do
que percusso. E, alm do sopro e percusso, tinha corda. Na verdade, comeou com
corda, depois foi introduzindo os instrumentos de banda. Estamos falando de 70 anos
atrs, portanto, no existia equipamento de som. Ento era o pessoal com conjunto de
choro acompanhando, e a percusso tinha que ser pouco, pra no cobrir os outros
instrumentos.
Ento saa um regional com dois, trs cavacos e um banjo. Porque o banjo grita
mais alto. E violes, um pandeiro e poucos bumbos. Um ou dois, como eu falei pra
vocs. Pra no encobrir os violes e a voz. Ento era muito mais sonoro, mais bonito.
De longe j se ouvia aquele grupinho, que vinha cantando, balanando, espontneo.
Sem aquele compromisso de ganhar um ttulo, dinheiro e tal...
A veio a televiso e comeou a mudar muito. Foi com a entrada da televiso e o
crescimento muito acelerado das escolas que comeou a industrializao dos
instrumentos, porque antes era artesanal, n? Agora so 300, 400 ritmistas, no tem
como fazer como antigamente. Voc fazia primeiro com barrica, depois veio o processo
de evoluo e fazia com madeira compensada. Tinha aquele tamborzo de madeira
compensada e que parecia um surdo. Era s pregar um couro ali e virava um surdo. O
surdo de madeira compensada at hoje. Ento a gente inventou aquilo.
Depois veio tambor de carbureto. Era um tamborzo de lata assim, do tamanho
do tronco de uma pessoa, bem grande. A gente mandava para o ferreiro ferrar uma
argola aqui e quatro tarraxas. A j esticava e apertava o surdo, no era mais esquentado
na fogueira. Que nem aqueles compensados de barrica. C tinha que esquentar e
esticava. Dali dez minutos esfriava, a ficava pior. O sereno molhava e a ficava pior.
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Esquentava durante uns dois minutos e depois comea a bater, tum, tum, tum, tum, tum,
tum, at ficar na afinao correta. Dali a pouco, j comeava de novo. Os caras falam,
endeusam muito isso. Pega um tambor murcho, esquenta ele e comea a tocar no sereno
pra ver quanto tempo ele dura. Entendeu? A inventamos a tarraxa. A no precisava
mais esquentar, era s apertar que a pele esticava. Isso j representou um grande
avano. A depois comeou a industrializar. Por tarraxa nos instrumentos.
Voc sabe a capa do meu livro? T o Germano Mathias com a primeira cuca
que eu fiz pra ele. Ele j tinha comprado uma e no deu certo. A ele foi at a minha
casa para eu entregar a cuca pra ele. Ele foi com o Padeirinho l. E a tiramos a foto,
com o Germano e a cuca. Muita gente ia at a minha casa. Germano, Padeirinho, Jorge
Costa iam sempre at a minha casa. E eu fiz aquela l. A foto a gente tirou na mesma
rua, mas eu fui tirar na casa da minha comadre. O Germano paquerava a filha da minha
comadre. Fui tirar em frente casa dela. Porque minha casa era muito feia. Era um
barraco. Era bonito por dentro que era obra de arte. Tudo artesanal. Eu fazia mscaras,
fazia aquele rosrio de Nossa Senhora. A porta na entrada do barraco era com
tampinha de cervejas. Eu fazia pintura. Mas era um barraco. Eu morava na ltima casa
do morro. A eu desci com o Padeirinho e com o Germano e tiramos a fotografia na
porta da casa da minha comadre, que era a terceira da viela. Eu morava na ltima. Eu
tirei de uma pea velha de bateria. A eu botei a pele, botei a vareta.
No fiz muita coisa na cuca, s fiz isso. A dei pra ele. Ele tocava. Tocava
apito, cuca e tocava aquela latinha, tocava tamborim. Tocava tudo. Esses instrumentos
que eu fazia eram muito pobres, muito artesanais. Ainda hoje eu fao as peles e depois
encouro tudo. Que eu ponho do meu jeito. O meu som diferenciado! Modstia parte,
eu sou quem faz o melhor som. Mas o pessoal t me alcanando. T evoluindo muito, o
pessoal j t descobrindo as manhas. Hoje voc compra uma cuca e pode sair da loja
tocando. Antes no, voc tinha que afinar. Voc comprava na loja e, dependendo da
fabricao, tinha que mandar fazer de novo.
Esses regionais dos cordes fora do carnaval tocavam em festas juninas e mais
nas festas religiosas catlicas. Festa de Nossa Senhora Aparecida, em outubro, e outras
festas de santo, como So Benedito. Todas as grandes festas religiosas. Em fevereiro, a
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festa de Iemanj. E tinha as grandes festas tradicionais das cidades. Por exemplo, o
banho da Dorotia, que ia pra Santos, que acabou. Os juzes mandaram acabar. Eu que
descobri, fui atrs pra saber.
Os caras falavam que acabou por briga poltica, isso, aquilo. nada. A orla
martima comeou a ser tomada pela elite e a a coisa comeou mudar. O pessoal no
gostava muito dos farofeiros. Chegavam os farofeiros l com um monte de nibus.
Desciam as caravanas de So Paulo, do interior de So Paulo e de tudo quanto era canto
pra Santos. Pra fazer oferendas e jogar aqueles barquinhos no mar. Era uma festa bonita
que se fazia. O banho da Dorotia realizado sempre antes do carnaval. No fim de
semana antes do carnaval. A comeou a reclamar todo mundo e comearam a acabar
com essas caravanas, com esse negcio. Diziam que todo mundo levava lanche, jogava
lixo e garrafa na praia. Para os ricos, a cidade de Santos virava um pandemnio. J foi a
maior festa do Brasil, que superava at essas famosas festas como o Crio de Nazar, em
Belm do Par, como festa de romaria, era em So Paulo, nas cidades prximas do rio
Tiet. Nas margens do Tiet tinham as festas do Divino, eram 58 dias diretos. Subia o
batelo. O batelo, voc sabe o que , n? Voc vai atravessar a balsa de l do Guaruj,
aonde vai os carros em cima.
O rio Tiet era cheio de batelo. O rio Tiet era navegvel, era muito barco.
Ento subiam os bateles e desciam os bateles. Cheios dos festeiros, dos folies do
Divino. Soltando fogos e tal... Eram 58 dias de festa. E a romaria no parava. Era uma
religiosidade violenta. Cada um ficava um pouco. As cidades escolhiam qual era o
fazendeiro que tinha condio de receber a Folia do Divino, pra dar pousada pra eles.
Porque at hoje famosa a Pousada do Divino.
Os fazendeiros que tinham mais posses normalmente recebiam os romeiros. Eles
escolhiam uns trs fazendeiros que podiam matar um boi, pra dar para o pessoal se
alimentar e fazer a festa. Compravam e soltavam fogos pra receber a bandeira do divino.
E hasteavam a bandeira l, sempre tinha a bandeira do Divino Esprito Santo. A
hasteava uma bandeira e, pra onde o vento apontasse a bandeira, era a fazenda para
onde eles iriam seguir. Ento a fazenda l do Nh Tonico ia receber os folies da Festa
do Divino. Ento ia aquela caravana, pousava l, se alimentava e a tinha aquelas
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msicas de agradecimento: Senhora, dona da casa, agradeo a pousada. E da eles iam


visitar, por exemplo, os hospitais, os doentes.
Naquele tempo se visitava as cadeias, porque o preso antigamente no era
violento que nem hoje, no era... No interior, se tinha assassino, era aquele matava que
por traio, aqueles crimes passionais... Aquelas coisas de vingana... Iam visitar as
cadeias, dar comida para os presos. E subiam o rio Tiet e encontravam as outras
caravanas, por exemplo, de Tiet, que recebia o pessoal do rio Anhembi, de cidades
diferentes que se encontravam e tocavam moda de viola. A fazia cururu, que eram os
desafios de versos e roda de samba.
Nessas festas, eles normalmente no tocavam as msicas dos cordes, pois
ningum conhecia. Era msica folclrica tradicional e muita msica de rdio, a msica
do momento, que estivesse em evidncia. E quando era regional, o regional tinha a
preferncia por tocar seus choros. Quando era banda, a banda tinha sua preferncia. E
quando era grupo improvisado, porque era mais comum isso, de vrias regies
diferentes que se encontravam, todos tinham que saber a msica. Por isso tocava pouca
msica de autoria. Porque ningum gostava de cantar a msica de autoria, pois ela no
conhecida. At hoje assim. Voc vai fazer um show, digamos no SESC T lotado.
Voc canta uma msica, por mais bonita que seja, se ela indita, o cara no interage,
no entende. Agora voc toca uma msica, por mais chata, s vezes, s porque ela
alcanou bastante sucesso, uma msica pobre de letra, razovel, mas tem uma melodia
mais ou menos, todo mundo canta.
Ento a mesma coisa acontecia nos cordes. Quando estava todo mundo bbado
de madrugada, cansado de tanto tocar, a esgotava o repertrio e tocava o Z Pereira.
Quando acabava o repertrio, eles no lembravam mais e ningum puxava mais e os
metais iam embora porque o bico estava cansado, tocavam o Z Pereira. Isso a tem
mais de 300 anos, herana do Z Pereira dos portugueses, que comeou em Portugal,
com o bumbo. A ia at chegar um mais animado, que puxava outro samba, at chegar
ao destino que tinha que chegar. Ento era assim, a preferncia era cantar a msica que
agradasse que o povo cantava junto. Porque no tinha essa obrigatoriedade da escola de

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samba de decorar o samba. No tinha nada disso. Cantava a msica que empolgasse.
Quem no empolgava, no cantava.
Se voc cantasse uma msica que voc fez agora, por melhor que fosse, voc
chegava l e cantava uma msica que voc fez agora, por exemplo: Estou cansado de
pisar na passarela, ou... Nesta viela... Vou embora e cantar nos braos dela... O cara
nem cantava, ficava olhando torto, pra voc. Ningum queria. Eles queriam que voc
cantasse uma msica de rdio. Serenou, serenou/meu chapu no molhou,
nhengatuncurungundum. A todo mundo, v, porque j conhecia a msica. Tinha esse
negcio. E como eu falei. Os cordes acabaram pelos meios de massificao. Porque
muito mais bonito voc copiar o gigantismo das escolas de samba que esto fazendo
sucesso do que ficar fazendo folclore. V se algum quer bater folclore hoje em dia no
carnaval? Ficar fazendo alguma msica folclrica. Ngo quer fazer a bateria da escola
de samba do Rio. O folclrico no faz sucesso, no atrai pblico nem a mdia. E tudo
hoje mdia!
Tudo isso que eu falei aconteceu at os anos 40. Dos anos 40 j veio o processo
de modernizao que comeou a apagar tudo. E comeou a ir diminuindo, diminuindo.
Voc v as Festas do Divino hoje, n? muito difcil. Eu tenho muita msica, eu fao
muito samba rural. Muita coisa eu no tive oportunidade de gravar. Agora que eu vou
gravar. Eu j liguei para um cara e vou gravar uns trs discos seguidos. Vou gravar
muito mais pelo registro histrico do que comrcio. Eu tenho uma msica que eu abro
meu show, at passou ontem na televiso, na TV SESC. Foi um show gravado uns dois
anos atrs. Eu at falo na entrevista, meu nome Osvaldinho da Cuca e tenho 70 anos.
Eu fiz para aquela abertura uma msica que eu falo da influncia do divino,
assim no samba. No incio foi muito forte. No nosso samba paulista, no; no samba
carioca. No samba carioca teve influncia do candombl puro. Ele pegou um pouco de
influncia depois, quando surgiram os blocos no Rio tocando calango e jongo. Eu fiz
um samba pra abrir meu show:
O velho batuqueiro est em festa/Pra comemorar com devoo/A paz de Deus
que reina no meu peito/E a luz divina no meu corao/ chora viola, , , viola
chora. chora viola, , , viola chora [refro] Voc chora, quando eu canto/Ai, ai e a
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tristeza vai-se embora/ , voc chora quando eu canto/Ai, ai e a tristeza vai-se


embora. Como bonito ver um bando do divino/Fazer pousada sobre a luz do
candeeiro/E a festana desse povo peregrino/Com seus batuques e violeiros/Ai, ai
chora viola, , , , viola chora.
Voc v que a batida tem um pouco do Divino aqui, tem um pouco da Folia de
Reis. Um pouquinho. Cada um tinha sua identidade e a minha msica inspirada nisso.
Em Suzano tem uma das maiores Festas do Divino com o apoio da Prefeitura. Eu fui l
cantar. Eu fiquei olhando, eles ornamentaram tudo com as bandeiras do Divino, eu
brinquei com o cara. Essa bandeira t meio fajuta, a bandeira real, mesma do Divino
vermelha, essa da tem uns enfeites, t mistificada, mas est bonita. As bandeiras
penduradas, grande, num palco bonito. A eu me inspirei! A msica no estava
completa. Nossa, parece que eu fiquei iluminado na hora! A chegou no palco, eu tava
com uma caixa de engraxate pra batucada. A eu falei:
Eu vou pedir permisso pra vocs: eu fiz uma msica aqui, agora, inspirada
nessas bandeiras. Posso cantar? S que eu no decorei ainda, porque eu escrevi agora.
Tirei o papel, e o povo:
Pode.
A, eu cantei. Falei pra rapaziada que tava comigo:
Presta ateno que no tem tom a, me persegue.
E a turma, ! E, com isso, veio a terceira fase que a padronizao, que eu
falei pra vocs. Hoje tudo muito igual.
E os grupos, antigamente, quando voc reporta ao passado, voc tem que
entender que, em So Paulo, a populao era pequena e os grupos eram pequenos, saam
30 pessoas, 20 pessoas, 40 pessoas. Hoje, 40 pessoas a diretoria de uma escola. Grupo
Especial desfila com quatro mil. Tem que entender isso pra poder compreender os
cordes.
A bateria dos cordes era quinze, vinte pessoas. Hoje so 350. Ento voc pode
botar dois bumbos. A Mocidade sempre sai com dois bumbinhos bons. Eles fizeram a
medida, bom. A Mangueira sempre tinha bumbo. Dois ou trs bumbos atrs,
marcando. Pra Mangueira bom que a caracterstica de sua bateria de uma batida s.
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A Mangueira e a Portela tm uma batida diferenciada. A Portela bate ao contrrio. Tim,


tim, tum. A Mangueira tum, tim, tim, tum. As nicas que so diferentes. Antigamente,
todas eram diferentes. No tinha toque igual. Em So Paulo tudo igual. Os caras falam
por vaidade, no. Mas tudo igual.
Samba-enredo t ficando a mesma coisa, tudo igual. Agora eles to caindo na
conscincia e falando um pouquinho melhor, porque eu j cansei de falar isso na
televiso e em todo lugar. O samba-enredo no est mais rpido pra acelerar e pra andar
mais depressa, isso mentira! Porque eu sou fazedor de samba-enredo e samba-enredo
de boa qualidade. J botei mais de 30 na avenida.
Eu sei fazer! E pra qualquer andamento. O segredo t na diviso. No na
melodia nem na letra. No tem nada a ver uma coisa com outra. Ento o processo de o
samba ter o andamento mais rpido tambm veio do Rio de Janeiro, que estava no
processo de evoluo das escolas de samba, mas as escolas foram superadas pelos
blocos em gigantismo. Tendo um horrio limitado, uma hora e vinte pra desfilar, uma
hora e dez, de acordo com o regulamento, voc tem que limitar o nmero de
componente. Se voc tem que desfilar com 70 minutos e levar quatro mil componentes,
voc estoura o tempo. No Rio, que mais folgado o tempo, com 3500, 3800, o ideal.
Ento, o processo pra voc desfilar nesse espao de tempo, voc tem que limitar o
nmero de componente. No acelerar! No essa a questo.
Voc sabe qual a razo dos sambas-enredos acelerarem tanto? Enquanto as
escolas limitaram seus componentes, os blocos, como o Bafo da Ona e Cacique de
Ramos, aumentaram. Ento voc v, teve uma poca que quiseram fechar o Sovaco do
Cristo, porque saa 200 mil, cem mil pessoas. Onde vai caber essa quantidade de gente?
No cabe. A que d o vandalismo, porque vai pela cidade andando, quebra carro e
atrapalha o trnsito. Cem mil pessoas pela cidade atrapalha o trnsito. E os blocos
estavam indo nesse caminho. Por causa do Bafo da Ona e do Cacique de Ramos.
Ento, o que aconteceu? As msicas dos blocos eram mais empolgantes, contagiavam
mesmo. Tinha aquela: Essa onda que eu vou, olha a onda, iai. E acelerar, acelerar. E
as escolas vinham: Vejam essa maravilha de cenrio/ um episdio relicrio.

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Tava tudo aqui quietinho, n? Balanceado. E os blocos j metendo o pau. O


maior nmero era dos blocos. Porque antigamente era o contrrio. Migraram para os
blocos, o pessoal de escola de samba, pra encher os blocos. mais empolgante o bloco
com samba de embalo. E a o samba-enredo passou a ser samba de embalo. Embalo de
embalar mesmo. Essa a verdadeira histria. No isso que contam por a, tem que
acelerar porque tem que desfilar em uma hora.
A prova que a Imprio Serrano desfilou, h cinco anos, com o samba Vejam
Essa Maravilha de Cenrio, que um samba antigo, l de 64, antigo pra caramba. Como
a diviso boa, veio com a bateria atual e foi o melhor desfile do Imprio, melhor
desfile de todos os tempos, Aquarela Brasileira.
Quem comeou o movimento de escolas de samba aqui em So Paulo foi a
Lavaps, fundada em 1937. Foi a primeira que vingou com o nome escola de samba.
Antes dela, teve a Primeira de So Paulo, do Seu Elpdio, mas que no foi pra frente.
Mas tem muita coisa que no contada de maneira correta.
A Lavaps era da Madrinha Eunice com seu marido, o Chico Pinga. O Chico
Pinga tinha o maior conjunto de So Paulo, era um dos maiores batuqueiros. A famlia
dele toda tocava. O irmo dele tocava cuca. O Chico Pinga tocava cavaco. Era o melhor
cavaquinhista da turma e tocava cuca tambm. Os irmos dele eram Prsio e o Vado.
Se tiverem vivo, porque eu nem sei se t mais. Um deles era motorista de praa
ultimamente. Eu soube nos ltimos dez anos que ele estava vivo l no sei aonde e que
era motorista de praa. A famlia era muito grande e todo mundo tocava.
Mulher no tocava. Elas organizavam as fantasias. A parte da batucada quem
fazia era o conjunto do Chico Pinga. Tem algumas coisas que no so bem esclarecidas.
Porque cada um fala o que quer. Gente de idade esquece muita coisa. Voc pega o
depoimento da Madrinha l no MIS. Eu vou fazer agora no Rio de Janeiro. At indiquei
o Jota Muniz, que a maior autoridade pra mim. o nosso pai. Jota Muniz, de Santos.
Pra mim a maior autoridade que tem sobre samba aqui em So Paulo. Bem, voc pega
o depoimento da Madrinha Eunice no MIS. Ela fala assim, quem entrevistou foi o
Tinhoro e uma professora. A Madrinha Eunice falou assim:

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Ah, eu ia muito pro Rio. Tinha parente no Rio, eu fui pro Rio em fevereiro de
1937. E eu vi o Salgueiro, meus parentes eram de l do Salgueiro. Eu fiquei
impressionada com o Salgueiro. E eu vim para So Paulo para fazer uma escola de
samba igual ao Salgueiro, vermelho e branco.
No bem assim! O Salgueiro s foi ser vermelho nos 50. Era azul e branco.
Tinha trs escolas do Salgueiro. A outra era verde e branco, no tinha vermelho no
morro do Salgueiro. Como que ela conta essa histria? A fica uma verdade s,
entendeu? Apagaram tambm o Chico Pinga da histria, porque ele era muito tmido,
muito calado. Eu tenho a foto dele a. Ele com ela. Chico Pinga era italiano, branco,
careca, gordo, com uma famlia enorme. s vezes, uma histria mal contada que passa
por verdade.
Veja bem, no havia quadra de samba, e nem escola de samba. A Lavaps tinha
o nome de escola, mas era cordo. Eu tenho as fotos aqui em casa e eu at mostrei num
livro meu. A foto da Lavaps eu consegui localizar na casa do Seu Z da Caixa, irmo
da Madrinha Eunice. Foi uma fase terrvel! Ele e eu estvamos pra morrer. E eu ganhei
a parada e ele foi. Coitado, eu fiquei! Eu tenho a foto dele doente, com a cuca na mo,
a cuca t at sem a vareta. Era s pra tirar fotografia.
Ele no aguentava mais tocar, tava muito doente. Eu tava com 40 quilos. Estava
at meio preto, efeito da radioterapia. Eu no podia comer, fiquei quatro meses sem
comer. E um ano bebendo s de canudinho. E eu com pandeiro assim e s v os dentes.
A gente tirou a foto e eu fui buscar a foto na casa dele. Estava estragada a foto. Sabe
quando dobra assim em quatro a foto?
A eu mandei recuperar essa e uma foto da Lavaps que ele tinha quando a me
dessa presidente tinha cinco anos de idade. A Cidinha, me da Rose. Eu calculo que ela
tinha de quatro a cinco anos. Ela t de baianinha, de vestidinho. Eu tenho outra foto que
tem criana de marinheiro. Que se vestia muito de marinheiro. Est na foto a me dela,
a tia dela e o filho do Seu Z da Caixa. Ento ele me deu essa foto, eu mandei recuperar
e j espalhei pra muita gente. T no meu livro tambm. Voc tem os meus livros, ento
deve ter essa foto da Lavaps. Essa foto deve ser de 48 ou 49. Porque ela, a Cidinha,
mais nova que eu. Ela parece que nasceu em 45. Ento ela deve ter quatro ou cinco anos
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de idade. Ento, ela t com o estandarte. No pode ser escola de samba. Mas est escrito
escola de samba. No estandarte. No Nen a mesma coisa. Tem foto do Nen l na
UESP, tem monte de fotos da Nen. E tudo com metais, n? Embora a Nen tenha sido
a primeira a colocar bandeira, mestre-sala e enredo.
Voc conheceu o Paulistinha? O nome dele lvaro Rosa. Primeiro mestre-sala
da Nen. Ele morreu h um tempo, l na quadra da Nen. Ele morava l, era uma
espcie de caseiro, porque terminou na misria. Foi cantor de rdio e foi o primeiro
mestre-sala da Nen,

primeiro compositor e diretor de bateria. Era um gnio, o

Paulistinha. Naquele disco, Histria do Samba Paulista, eu canto msica dele. Nem
lembro mais, s cantei pra gravar. Era mais ou menos assim: O apito trilou balanando
a nossa gente/na cadncia bonita do samba/De um samba indolente.
Essa dele. Ele era um grande compositor. Muito primitivo ainda, mas um bom
compositor. Eu tinha muita d dele, porque, no final, ele morava de favor l na quadra
da Nen. Ele ia sujo, embriagado. Perdeu o p, por conta da cirrose. Estava andando de
muleta. Sabe quando o cara t no ltimo degrau? Foi uma pena. Porque ele era um
artista [silncio].
A Nen trouxe muitas inovaes para o nosso desfile. Uma delas foi primeiro
enredo. Casa-Grande e Senzala em 56. Mas no pode confundir e dizer que foi o
primeiro samba-enredo. Pode ser o primeiro enredo, mas o samba era samba-tema.
Porque ele no destrincha o enredo. Se voc ouve o samba: banzo que negro tem/
banzo que negro tem. No conta nada. Ele tem oito linhas. No pode ser enredo. Mas j
um prottipo do enredo. Ento, realmente, o samba-enredo comeou por a, nos anos
60.

O Vai-Vai, como cordo, fez o seu primeiro enredo contando a chegada da

Famlia Real, acho que em 68. A, em 70, desandou. Em 71 foi um dos melhores
sambas do Vai-Vai, que eu comparo com aquele samba do Mano Dcio que a Elis
gravou: Independncia ou Morte. um samba incompleto, que tem dez linhas ou onze,
mas a histria t meio incompleta. Eu at fiz uma coreografia com o Trio Canela, fazia a
coreografia diferente, eu batia no instrumento, palmas e p. E o Vai-Vai fez em 71,
valeu o sacrifcio dos Andradas, foi mais bonito e mais completo. Fez sucesso no Brasil

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todo. Eu gravei tocando cuca nesse samba. Estourou! A gravao foi pela Tapecar.
Estourou e o Brasil inteiro no sabia que esse samba era enredo do Cordo Vai-Vai.
As mulheres eram imprescindveis na parte plstica do desfile. Antigamente, o
carnaval era artesanal; ns mesmos que fazamos. Os batuqueiros ficavam com os dedos
todos furados, ajudando a mulherada. As costureiras tinham dois ou trs ajudantes. A
gente no tinha experincia e furava tudo os dedos. Eu ia ali na Rua Joo Teodoro. At
hoje tem loja de chapu l. Pagava 200 ris a unidade, comprava aquele monte de
chapu de paia e levava pra casa pra ornamentar pro desfile. Compravam os tecido nas
lojas. Antigamente, a Pernambucana s vendia tecido.
Comprava aqueles tecidos baratinhos pra fazer as fantasias. Punha o chapu e
forrava. A bandeira, a gente pedia pra fulana fazer o estandarte. Bandeira no tinha.
Ento era aquela preocupao, tudo artesanal com purpurina. Hoje, se o cara usar
purpurina, vai ser lixo. Pegar papelo e colar purpurina pra ficar bonito e brilhante.
Ento hoje t a o computador pra fazer coisas maravilhosas. Hoje laser na avenida,
o homem voando. Tudo que violinha, que acstico vai acabando. Hoje o som tem
que ser amplificado pra milhares de pessoas. Em So Paulo 40 mil que vai assistir.
Ento foi isso! A Madrinha Eunice copiou do Rio o termo escola de samba.
Alis, bom deixar registrado que So Paulo copia tudo do Rio. Veja o que aconteceu
recentemente l. Acelerou o samba e repercutiu aqui. Fez Sambdromo l, faz
Sambdromo aqui. O cara d um gritinho de guerra l, e todo mundo copia aqui. Agora
virou inferno samba-enredo. D saudades do Jamelo. Ele no permitia gritaria no
samba. Houve meu samba a, meu samba-enredo t a nesse CD que eu te dei. Pode pr
a pra vocs ouvirem. Ele empolga pela letra, pela melodia, pela sequncia lgica. No
tem gritaria.
Qualquer samba meu voc entende. Salvo aquele de 82, o Oluay, que era uma
filosofia africana. difcil voc entender uma filosofia brasileira, quanto mais uma
africana, n? Ento, tudo bem. Mas, quando eu fao samba, voc entende. Voc comea
pelo fio, ele vem em ordem cronolgica, contando a histria at o fim.
Esse ano eu fiz, t a. S que no deixaram ganhar, l na Gavies. O enredo era
pra contar a saga do povo nordestino, o sofrimento do serto, vindo pra So Paulo e um
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representante maior, que chegou a ser presidente da nao, representando todo esse
povo, com seu folclore, sua histria e seu sofrimento. Vindo pra So Paulo e vencendo,
que o Lula. Ele conseguiu um monte de patrocinadores pra Gavies falar dele. Cinco
milhes. Muito bem, t a. Voc pega meu samba, voc entende. A primeira parte
fico. Voc vai ver, o maior escorpio da avenida o abre-alas da escola. Porque ele
do signo de escorpio. Esse escorpio se transforma num gavio, porque a Gavies da
Fiel e ele corintiano. E vem pra So Paulo, a que comea a luta dele que todo mundo
conhece, no ABC, at ser presidente da Repblica. A vm os processos de viajar pro
Nordeste, fazendo as caravanas da cidadania, aqueles negcios, muito bem.
Esse o enredo, agora pega o samba-enredo que ganhou. Agora voc pega o
meu pra voc ver. S tem rimas pobres, um senso-comum. Eu tenho percepo. Que eu
sempre fui de conjunto vocal, sempre gostei de vocalizar. Ento eu peguei o pessoal da
Vela, umas meninas que cantam pra caramba. Peguei o Washington do Vai-Vai, o
Odilon, que um irmo meu tambm, desfilava comigo nos cordes. E gravamos o
samba. Eu falei pra eles: A msica essa, s que aqui vai fazer uma oitava e aqui vai
vocalizar. No palco fizemos igual gravao. Ensaiamos a diviso. No quero
harmonia, quero voz. Quando chegou na quadra e eu entrei com aquela turma: violo,
cavaco tudo ensaiado, coro. Tinham uns oito no coro. Quando abriu o vocal, o Ren
Sobral comeou:
Nasceu na terra seca do serto/pau-de-arara ps no cho/o retirante
nordestino/ Viveu o sofrimento do lugar/E na cultura popular fortaleceu o seu
destino/Cresceu

sob

influncia

de

escorpio/Acreditando

no

poder

da

transformao/Bateu asas e voou/E foi assim que tudo comeou/Me coragem abenoa
pra vencer/Vem pra terra da garoa a perder/Operrio consciente cidado/ o brao
forte da nao/Me coragem abenoa, pra qu?/Pra vencer, vem pra terra da garoa.
Escuta isso! Cara, incendiamos a quadra. Quando os caras que ganharam
entraram na quadra com eco, com som mecnico, estilo Rock in Rio, sabe? Os caras
puseram o som s pra eles. E proibiram as baianas de cantar meu samba. Porque so as
baianas que escolhem o samba. Isso histria. Mesmo perdendo todo mundo, disse que

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esse samba tem histria, esse samba bonito. A comeou a cair na internet. O Mestre
Odilon, do Rio de Janeiro que nem tem amizade comigo. Ele falou:
Quero conhecer sua obra. Isso que voc fez um samba antolgico. T
faltando isso pra gente revolucionar o samba de novo.
So palavras dele. Esse samba pode mudar o curso da histria. Eu falei:
Se deixar ganhar.
E no deixaram. Ento, vio, o samba no mais do sambista; ele de uma
sociedade, de uma empresa. Mas no do sambista. O sambista no tem vez.
Esse samba eu perdi na Gavies. H uns dois anos na Vai-Vai, infelizmente, foi
a mesma coisa. Perdi o samba-enredo. O carnavalesco era o Chico Espinosa. Esse ano
ele t l na Vila Maria. Ele queria meu samba. Tanto que ele ficou um ms afastado do
Vai-Vai, brabo. Porque quando ele viu meu samba, ele mudou at o enredo. Ele
inspirou-se no meu samba pra fazer a escola de asas. Quando ele me viu, perguntou:
De onde voc tirou essa ideia do anjo?
Eu falei:
Voc no pesquisou direito.
Eu fui enredo l na Vila Prudente. Conheo a orquestra Baccarelli, o smbolo da
orquestra um anjo. No podia falar Baccarelli, porque seria propaganda. Ento pus o
seguinte verso: Um anjo que desceu l na favela/E traz pra passarela um lindo sonho a
realizar.
A proposta do enredo que msica e a arte acabavam com a misria. V se
algum falou? Eu falei. A o que o Chico Espinosa fez e botou o Vai-Vai toda alada do
comeo ao fim. Alegoria, ala, destaque, tudo com asa. Porque eu coloquei no meu
samba, do anjo que desceu l na favela. Nenhum samba, nem mesmo o que ganhou no
fala. Fazer o qu, se os caras tm muito dinheiro. Pra ganhar samba-enredo, tem que
investir pesado.
O samba que ganhou de mim fez uma coisa indita na histria da disputa de
samba-enredo. Nem no Rio nem em So Paulo. Puseram trs puxadores, o Wander
Pires, Tinga e outro, os melhores do Rio pra defender. Voc costuma ver, normalmente,
um puxador e seis apoios. Agora pegaram os trs melhores do Rio, pagaram onze
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nibus da Helipolis e do Jardim Elba. Uma torcida forte pra caramba! E puseram o
som e iluminao pra eles. Essas coisas eu no posso nem falar.
No ano seguinte, fiz uma obra-prima e que seria um sucesso no Brasil. Fiz a
sntese de um samba deste tamanho de enredo. Pra Acadmicos do Tucuruvi. Estava
tudo certo, arrumei patrocnio, s que, na ltima hora, no deu certo. T a o samba.
Vou gravar agora. assim: Venham ver a natureza exuberante/Juventude peito arfante,
a exaltar/Vem ver.
E vai embora. um samba que vem contando a histria da cidade que a
Tucuruvi ia falar. Dei at a parceria para o prefeito. Eu sempre fao sozinho, depois s
acerto os detalhes com os parceiros. Eu gosto de fazer de madrugada, porque no toca
telefone, ningum vem aqui. No tem barulho. Ento, de madrugada outra coisa. Fiz o
primeiro, fiz o segundo. Tive que fazer trs sambas ficarem do jeito que eu gosto. um
samba-enredo com energia que contamina. Porque o samba, quando voc joga, voc, na
hora, percebe se vai pegar ou no. A como no saiu o patrocnio, no falamos da cidade
na avenida e o meu samba ficou esquecido.
E no s comigo. com a minha gerao. No ano passado, Ideval Anselmo,
um dos maiores compositores de So Paulo. Ele comeou em 72, tem minha idade. S
que ele veio do interior, era violeiro e comeou no Camisa Verde. Fez os melhores
sambas e mais conhecidos do Camisa Verde. No ano retrasado, ele faz muitos sambas
fora do Camisa porque no deixam ele ganhar.
a comercializao do carnaval. Porque a preocupao s com verba e
patrocnio. A Liga e a UESP s esto interessadas em patrocnio e em conseguir
dinheiro. A que est em melhor situao, porque cuida das escolas pobres, a UESP.
Ela tem uma preocupao mais cultural. Tem um acervo. Porque passou a ser especial,
voc t ferrado. monoplio. No tem como fugir. patrocnio, a prpria diretoria tem
que ceder. Quando tem dinheiro, outra histria. Onde tiver dinheiro, tem mosca.
A Liga no tem um acervo. Tentamos comear. Eu levei muito material pra Liga
e acabou ficando, assim, na chuva. No prdio novo, l na Santos Dumont, eu vi isso.
Fiquei muito bravo. Eu falei l na Liga, pro Serginho. Ele um trabalhador, presidente
da Vila Maria, uma pessoa dedicada, o presidente da Liga e ele se esforou pra fazer.
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Mas deixaram os documentos apodrecendo no tempo. Antes levasse pra UESP, que fica
tudo guardado.
Outra coisa. V a qualidade dos CDs feitos pela Liga. Muito ruim! Eu tenho 50
anos de estudos. Voc pega o meu disco e escuta o meu som. a mesma tecnologia que
todo mundo grava. V o som do meu disco. V o som desse a, voc pode levar. A o
que acontece. Eles no ouviram a gente porque os mais jovens tm cimes. Eles querem
assinar e fazer. Porque esses velhos querem tomar o nosso lugar. Voc, com a
experincia, vem para somar. Voc vai fazer uma festa, voc vai chamar o melhor
festeiro pra sua festa ter sucesso. No, voc vai ficar com cimes e fazer sozinho, s que
voc no sabe. Eu no frequento mais nada. Eu t disposto a cuidar s da minha sade e
da minha vida. Tenho minhas coisas pra fazer. Preciso fazer uma operao e t
preocupado, porque minha agenda t lotadssima.
S participo de alguma coisa quando insistem muito! Teve a aula de jurado
agora e veio o pessoal da Liga do Rio; vieram fazer aula aqui e os caras me convidaram.
Teve um samba aqui no outro final de semana e veio gente do Rio e de todo lugar. No
cabia aqui, nem na rua lugar pra estacionar. Aqui pequeno. E esse pessoal vinha aqui
em casa. Eu liguei e perguntei: Que horas termina a aula? Seis horas, mais ou menos.
Eu falei: Eu vou buscar vocs a no Anhembi. A fui l pro Anhembi, mas, com medo
do trnsito e da chuva, fui mais cedo. Cheguei l cinco horas. Eles estavam tendo aula.
Cheguei l na porta do pavilho B e o pessoal l do Anhembi dizendo que eu no podia
entrar. Porque tem jurado l. No pode ter acesso aos jurados e eu sou componente do
Vai-Vai. A tudo bem, nessa situao voc tem que respeitar, porque no pode ter
acesso a jurados, n. Eu conheo o sistema melhor que eles, e a uma menina, assim, de
uns 20 e poucos anos, veio perguntar se eu sou convidado, ou se eu vim dar aula. A eu
liguei:
, Nelson, eu t aqui na sua porta, aqui, na sala de aula.
Daqui a pouco vem todo mundo. O pessoal da Liga do Rio. Todo mundo chorou,
at.
Rapaz, eu passei um filme teu agora aqui, falei de voc agora aqui na aula.
Mostrei um samba teu.
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No falei que eu vinha te buscar.


Vamos entrar, vamos entrar. Olha quem t aqui.
Todo mundo aplaudiu. Ele falou assim:
Depois dessa, no estou mais em condio de dar aula. D aula voc. Eu
argumentei:
Mas preparei nada, como eu vou fazer, eu no preparei nada, eu s vim te
buscar.
No, aqui t a histria viva. D aula aqui. Bateria, samba-enredo e harmonia.
Mas tenho que preparar, cara. Eu no sei o regulamento, muda todo ano e tal.
Fala o que voc quiser.
E foi sentar l com os alunos. A eu comecei, e a Liga filmando. Com todo o
respeito ao trabalho e ao sacrifcio que vocs tiveram, gastaram muito com o disco. Eu
mesmo fui trs vezes l pra gravar e nem precisava. Uma vez era o suficiente. A VaiVai me convidou e eu fui trs vezes. O disco envolveu 2500 pessoas pra fazer. Eu, com
1%, faria melhor. Com 25 pessoas. Eu faria melhor que isso a.
Eu comecei a aula com bateria e, quando chegou no quesito samba-enredo, eu
falei tudo que tinha direito e mais um pouco. O bicho pegou! Eu falei que os jurados
tambm tm que ser responsabilizados pela m qualidade dos sambas-enredos de hoje
em dia. Vocs tambm so responsveis, so culpados. A mdia e a comunidade, que
aceita ser capacho da pssima qualidade dos sambas escolhidos. Tem samba bom, tem
gente jovem competente, mas no tem espao. Ento, vocs so culpados, mas porque
vocs so culpados? Porque saem por a distribuindo dez. Dez a perfeio.
Eu no vejo um samba no Rio ou em So Paulo com mrito pra dez. Eu fui uma
vez s julgar pra valer. Foi em ltima circunstncia. O jurado faltou e me pegaram na
avenida, eu falei: No posso, eu sou Vai-Vai. Disseram pra mim: Ns temos
confiana. Ento eu fui l e julguei. Eu no dou dez. Dez a perfeio, no pode.
Primeira coisa que vocs vo fazer. Escutar bem esse disco. Os sambas-enredos
j podem vir julgados direto de casa. Oitenta por cento voc j vem com a letra, melodia
e a comparao com o histrico. Depois voc vai julgar a diviso e o momento. O que

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no est embutido dentro do regulamento chama-se empolgao ou emoo. Isso voc


vai ver na avenida. o mais fcil.
Ento vocs tm capacidade de, dois meses antes do desfile, escutarem o sambaenredo. Estudar! o nico item que no justifica errar, no tem justificativa pra erro.
Leia o histrico dez vezes, entendeu, entendeu. Agora vocs vo comparar com o
samba. T na ordem cronolgica? fiel? Tem no mnimo seis ou sete quesitos
importantes para o povo entender a passagem da escola? Tem, muito bem, agora vocs
vo ver a facilidade de cantar o samba. Viram se no tem plgio de anos anteriores?
Porque todo ano tem, uma porcaria.
Estoura l um samba no Salgueiro e, logo depois, tem escola do Brasil inteiro
copiando o samba. E o meu samba do Noel, esse ano e no ano passado veio bastante
escolinha copiando. Porque foram distribudos trs mil discos pra So Paulo. S pra
gente do samba. T cheio de gente que tem o meu disquinho l. T cheio de frase do
meu samba. Tudo bem, vlido. O que no vlido voc pegar a frase toda e pegar a
melodia toda, ou pegar a letra toda. T errado, tem que descontar. Eu j vi trs anos
seguidos a mesma escola com uma frase repetida. Esse ano tem de novo.
A veio um cara da Liga no meu ouvido, cochichando:
Voc no pode citar o samba desse ano. Voc falou Gavies e falou Vai-Vai.
Opa, vamos comear de novo. Ento vocs peguem as letras. Neste ano, tem
cinco sambas que esto falando de guerreira. Todo mundo guerreiro agora. Guerreiro
violncia, cara. guerra. Ns estamos falando de msica, de melodia, de coisas
bonitas. S tem guerreiro, guerreiro no tem outra palavra com criatividade pra buscar.
Foi quando me chamaram a ateno. A eu no repeti mais. O Camisa veio vrios anos
com o mesmo l l l de Atlntida, o cinema popular. O Vai-Vai vinha todo ano com a
mesma frase e todo mundo canta que se derrete. Ento hoje isso comum. Tem que
prestar ateno. O samba deve merecer dez porque tem criatividade, n? Ele tem uma
melodia diferente.
Outra polmica. A questo de voc exaltar a escola na primeira parte do samba.
tudo balela! No precisa. O Silas de Oliveira dificilmente falava da escola,

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nominalmente. Eu ganhei o maior carnaval da Vai-Vai, Amado Jorge. Quando estava


fazendo o samba, meu parceiro falou:
Mas no tem Saracura? No tem Vai-Vai e no tem Bixiga?
Eu disse a ele:
No tem Bixiga, mas tem o mais importante, todo o enredo. Quando anuncia
l no fala assim. Agora, a escola de samba Vai-Vai. Tem o meu pavilho escrito VaiVai, voc quer o que mais? No tem o abre-alas escrito Vai-Vai?
Mas e a comunidade? Ns no vamos ganhar. Mas o samba comea baixo.
Vamos ganhar, sim. Vai l escutar os sambas do Silas de Oliveira. Ele
comea o samba dele com Vejam essa maravilha de cenrio um episdio relicrio e
vai subindo.
Eu comecei assim: Bahia o seu nome principia/Com o canto e a magia/Que o
negro sopra pelo ar/Cantando sua terra sua gente/Seu passado presente
Resultado. Ganhei o carnaval e fui tricampeo com o Amado Jorge. Neste ano, a
Mocidade vem com o mesmo tema, Jorge Amado e com a tenda dos milagres, daquele
heri, Pedro Arcanjo.
O Leandro Lehart regravou esse meu samba numa coletnea dos dez melhores
sambas de todos os tempos. S que ele no conhece a histria e ele gravou retratando a
esperana. No retratando a esperana. Pedro Arcanjo a esperana. O Tobias cantou
isso e ele no entendeu isso. o heri principal do tema da Mocidade. Ento no
precisa essa exaltao toda. Botar uma linha ou duas eu ponho. Na maioria das vezes, eu
ponho, uma questo de satisfazer o ego da comunidade, mas no tem necessidade.
Certas coisas so vcios. No regulamento e no tradio. Veja essa gritaria toda. O
Jamelo no permitia na Mangueira que viesse caco. Caco quando quebra telha pra l.
O velho dizia:
Aqui no tem caco no, aqui tem samba! E verdade mesmo, tem que cantar.
Voc pega a gravao, voc no consegue entender o samba, com tanta gritaria em
cima.
, meu presidente. Que meu presidente.

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, minha ala de baianas. Que ala de baianas. Deixa a ala de baianas


cantar, que o papel dela esse. Todo ano meu presidente. Presidente entra e sai todo
ano. s vezes uma porcaria esse presidente, afundou a escola e o cara t puxando o
saco l na gravao. No tem que estar gritando, no. Voc tem que apresentar o sambaenredo, mostrando a letra e a msica. A o cara sai gritando em cima. moda agora.
Chega, p! Samba msica, no gritaria! Outra coisa que me deixa nervoso. Soltam
fogos pra caramba. No meu tempo, fogos eram na festa junina. Voc t cantando e pum,
pum, pum. Aquela barulheira, ningum escuta o samba.
Teve um ano que gravaram os sambas-enredos na RCA, com a maior mesa de
gravao do Brasil. Os americanos vieram buscar de volta porque era a melhor mesa
que tinha. Nenhuma era igual aquela. Gravaram l o comeo do samba e cismaram de
gritar! E olha meu presidente! E chora Saracura, e queima de fogos. Tnhamos a melhor
mesa de som e, se voc ouvir a gravao, ficou pssima. Voc ouve o barulho dos
fogos, parecem tiros. Porque o cara simplesmente no pe a msica a. Quer ser mais
realista que o rei. Ento tem umas coisas que me contrariam, sabe? uma barulheira
danada, mas samba, que bom, tem pouco!
No sou contra mudana, sou contra aquela que corta raiz! Em toda a vida da
gente ela vai sendo modificada. A cultura no imvel, ela vai se transformando. S
que, s vezes, de forma criminosa; e, s vezes, de forma inocente, e, s vezes, pela fora
da massificao.
Tem gente que conta mentira na histria. Como aquele filme que a Globo passou
sobre o Adoniran. No lembro bem o nome, acho que era Ela Sua Vida, ou Por Toda
Sua Vida. Convivi com ele nos anos 60, eu fui contratado da Record. Eu vi muita
mentira sendo contada. Fui do Demnios da Garoa durante muitos e muitos anos. Sa
em 99. Fui componente do conjunto original, dos velhos. Conheci a histria do
Adoniran de perto. Ningum me contou, eu vi. Conheci Osvaldo Moles, que inventou o
Adoniran. A maior parte das msicas compostas pelo Adoniran em parceria com
Osvaldo Moles. Ele foi o maior radialista, cronista, escritor e intelectual do rdio do
Brasil. Ele que criou a histria das malocas, ele que criou o personagem Adoniran. O

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Adoniran, antes dele, era um lugar-comum; cantava Noel, cantava marchinha. A partir
dele, ele incorporou os personagens do Osvaldo Moles.
Conheci Djalma Amaral, um negro que era o Seu Dija, que era parceiro do
Adoniran, que fazia aquelas radionovelas. Era um negro magro, amicssimo meu, que
ficava com o cigarro na boca, fumava que nem um desgraado. Seu Dija, crioulo magro,
que fazia o papel de crioulo na histria das malocas. Ele interpretava um neguinho
malandro que desviava, fazia aquelas malandragens toda. Ento conheci e ele era meu
amigo. Ele fazia a programao da Record e me dava, s vezes, e mandava programar
msica minha na Record.
Uma das mentiras contadas pela Globo sobre a msica Iracema. Tanto mentira
do Adoniran, como mentira da Globo. Na verdade, foi um amigo meu que contou essa
mentira pra Globo, um grande pesquisador da msica brasileira. No precisava disso,
porque o nome dele j t imortalizado na msica. Ele contou que o Adoniran via a
Iracema toda noite num cabar aqui em So Paulo e paquerava ela. O Adoniran
paquerava todo mundo. No tinha vergonha na cara. Era casado, mas no podia ver
menina nova, era assim mesmo, paquerador. A ele disse que tava paquerando, mas ela
no dava bola pra ele. A, quando ela passou em frente dele, ele disse com raiva: Vou
te matar, Iracema. E fez a msica Iracema, que a personagem morria atropelada na So
Joo. Quando eu vi isso na novela, me deu vontade de quebrar a televiso de raiva. Isso
incompatvel com a personalidade do Adoniran, incompatvel com a letra da msica.
Se voc pegar a letra de Iracema, como que ele pegou e falou assim pra tal de
Iracema, numa boate, vou te matar. Iracema nem era do Adoniran, era de um bbado,
que a mulher dele morreu na Consolao, nem foi na So Joo, atropelada. E o Toninho,
membro dos Demnios da Garoa, pagava cachaa pra ele l no ponto dos msicos. Era
um bar que a gente ficava depois que saamos dos shows e a gente esperava amanhecer
pra pegar conduo e ir embora ou pro servio. Ele batia pandeiro e atrapalhava o
transito. s vezes, saa da calada e cantava: Iracema nunca mais eu te vi. A turma dava
risada daquele bbado. Tem histrias que, se voc contar hoje, voc vai passar por
mentiroso. Porque um milho de mentiras da msica vai se sobrepor a uma histria real.
E quem podia confirmar, morreu. O Arnaldo dos Demnios da Garoa. O
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Toninho tambm morreu. O filho dele que cuida, que o dono do conjunto. Aquele
careca, o Serginho, entrou em 81 no conjunto, mas sabe a histria. Ele sabe, mas no vai
ter coragem de contar, porque o pai contou pra ele. a mesma coisa de eu chegar na
televiso e falar mal de Jesus Cristo, do Roberto Carlos ou do Pel. Ah, ngo cai de pau
em cima de mim. Ento tem esses detalhes, que so pequenos, mas a histria pode ser
modificada por vaidade. A minha histria, quantas vezes eu vejo modificada na minha
frente. O cara fala na minha frente que o Osvaldinho foi l e no sei o que, p, p, p,
quebrou tudo. Eu nunca tive l. Na minha frente, os caras falam. Meu Deus do cu, pra
que isso, cara!
Como eu te falei, eu fui dos Demnios da Garoa. Tambm participei de um
monte de outros grupos. Participei do Jogral em 71 e 72. Eu estava com Adauto Santos
e Trio Canela. Eu era parte do Trio Canela. Primeiro surgiu o Trio Mocot e, como ns
tocvamos na mesma casa e ns amos depois ento, o garom, o mitre, comeou a
fazer gozao com o Trio Mocot. E gente veio na cola do Trio Mocot, viramos Trio
Canela.
Teve uma noite que a gente estava tocando no Jogral, o Adauto Santos, P. Viola
e o Trio Canela na percusso. Era eu, o Jairzinho da Portela e o Osmar, que era sobrinho
do Adauto Santos, que t no Paran agora. A casa lotada parecia um teatrinho. O
pessoal com um copinho de usque, se algum falava alguma coisa, todo mundo, shiiiii.
E a apareceu um cara que tava atrapalhando a apresentao, entrou de camisa aberta,
meio assim, pra l, pra c. E o garom pedindo silncio. E ele atrapalhando, encostando
em um e no outro. E todo mundo, shiii. Uma hora ele foi no palco, catou o microfone, o
palco era bem baixinho. Os caras queriam empurrar ele pra fora toda hora. Ele pegou o
microfone:
, gente, eu no quero atrapalhar ningum, eu s quero dar o meu recado. Eu
sou o Nelson Cavaquinho. Sou compositor e queria mostrar meus sambas. Sou l da
Estao Primeira de Mangueira.
A a turma, shiii. Pra voc ver, at meados dos anos 70, no era conhecido o
Cartola. Muito menos o Nelson Cavaquinho. Era difcil conseguir gravar samba. Eu
mesmo tenho mais de 50 anos de carreira e v o nmero de discos que eu tenho lanado.
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Foi com o Martinho da Vila, com o Germano Mathias, que o samba se popularizou nos
anos 60. O Germano foi o expoente de uma safra importante pra msica brasileira. Nos
anos 60, o rockn roll e a Bossa Nova estavam invadindo. E a gente estava
descaracterizando a msica brasileira. Que embora todo mundo fale muito bem da
Bossa Nova, voc tirando algumas maravilhas da Bossa Nova, tinha muita coisa era
bem jazz mesmo. Muitos no aceitavam percusso, no aceitavam a caracterstica da
msica brasileira, que percussiva. Era violozinho. Era uma msica muito
individualista. O Joo cantava nessa intensidade: Bim, bom, bim, bom, bem baixinho.
Era um porre, vamos aceitar isso!
Ento o Germano Mathias veio numa fase muito boa para o samba paulista,
principalmente. Ele foi para o Brasil, uma exploso. Porque s segurava o samba
paulista o Demnios da Garoa e o Adoniran. claro que tinha o Noite Ilustrada. Mas o
Noite chegou depois, em 54 ou 55, em So Paulo. Era mineiro e grande parceiro meu
tambm. Tinha a Denise, esposa dele, de Atibaia. Ela foi miss, Miss Atibaia. Tinha
outros tambm. Grandes sambistas que apagaram da histria. Tinha o Mauricy Moura
de Santos, uma das maiores vozes. Ele tambm gravou Paulo Vanzolini. Ele tinha uma
voz assim: Chorei, l, l, l, l, todos riram, fingiram, pena de mim no precisava, com
uma voz bem grave.
Ele cantava assim, com uma boca deste tamanho, de caapa. Bebia muito e
morreu de tanta bebida. Ele tocava violo e cantava sozinho. Tinha que ficar internado
uma temporada e uma temporada na rua. Tocava no Jogral e em grandes casas. Toquei
com ele no Partido Alto, maravilhoso, n? E tocava msica de outro santista tambm,
Lcio Cardim. A turma pensa que a msica Matriz e Filial do Lupicnio. Porque o
Jamelo gravava tudo do Lupicnio. Mas do Lcio Cardim, grande compositor
santista. Ele veio pra So Paulo, mais ou menos na mesma poca, em 55. Ele era cabo
da aeronutica e tinha uma casa noturna ali na Amaral Gurgel, chamava acho que
Matriz ou Filial, no lembro o nome.
Outro grande nome do samba de So Paulo que eu tive o prazer de conhecer foi
Geraldo Filme. Esse tem essncia. Era um pensador, tinha poucos no Brasil e em So
Paulo como ele. Ele se inspirava muito no pioneiro, em Dionsio Barbosa, que
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representava uma filosofia de negro, mas no tinha a capacidade de escrever que o


Geraldo tinha. O Geraldo e Seu Dionsio pra mim so o nmero um. Dionsio Barbosa,
porque nasceu em 1891. o pioneiro. E o Geraldo, por ser a maior cabea pensante de
todos os tempos do samba. Da raa, da periferia. Geraldo Filme falou da Revoluo
Constitucionalista, da Confederao dos Tamoios nos enredos. Ele falava do ndio, do
branco, do negro. Do pobre, com muita propriedade. Geraldo Filme era meu parceiro e
amigo.
Ns entramos juntos no Solano Trindade em 1958, 1959, juntos. Foi uma
trajetria que eu... E outra, muito educado, nunca levantava a voz, nunca brigava. Uma
pessoa consciente. Quando ele via uma coisa que no agradava, ele levantava, saa e ia
embora. Ento, Geraldo Filme, pra mim, um heri. Ele teve pouco reconhecimento.
Quem abriu as portas pra ele foi o Plnio Marcos, em um show que era ele, o Zeca da
Casa Verde e o Toniquinho Batuqueiro.
Com o Toniquinho eu estou brigado! A a gente sempre viajava junto. Com a
Embaixada, em Pirapora. Eu arrumava show pra ele participar. E o Toniquinho sempre
mostrava pra mim um pedacinho de msica e dizia:
Vamos fazer uma parceria a. Ns no fizemos parceria ainda.
A, num dia, eu lembrei. Eu tinha um samba que falava de Angola, dos meus
avs. Sobre escravido e no mesmo tom do Ditado Antigo, que ele gravou em 71 com
o Plnio Marcos. Eu falei pra ele:
T editado aquele samba seu, o Ditado Antigo?
Eu mesmo que editei. A editora era minha mesmo, mas no existe mais. Eu
que editei. O Plnio falou pra editar e foi gravado s com ele.
aquele samba: Mandei preparar o terreiro que j vem chegando o
dia/Encourar o meu pandeiro pra entrar na folia.
Eu falei:
Tonico, esse seu samba tem uma levada de jongo muito boa. Eu tenho um
jongo que parecido com aquele. Voc quer ver como fica se emendar?
A botei o refro em cima e no meio: Ei, jongueiro/bate no couro que tem festa
no terreiro/ei, jongueiro/bate no couro que tem festa no terreiro.
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Eu adequei na mesma melodia do dele. Outro verso que eu botei: Meu av preto
de Angola me ensinava cantoria [cantando]. Esqueci a letra agora. Foi o Jair Rodrigues
que gravou. A fiz outro refro embaixo. Eu botei sete linhas e o samba dele tinha oito,
o original que o Plnio Marcos gravou. Eu fiz meio jongo, meio capoeira. O Jair viu e
ficou louco:
esse que eu quero e ele gravou no meu disco.
T bom! Era pro Aldo Bueno gravar, a o Jair gravou esse da. O Toniquinho
ficou todo feliz quando ouviu. E me perguntou:
Mas vai dar algum dinheiro?
Dinheiro no d mais. Antigamente, eles davam um advance pra ns. Agora
disco independente no d dinheiro.
A ns assinamos. Estou aqui com o contrato. Acho que t l no meu arquivo
com os outros contratos. A assinamos. Botei o nome dele na frente por respeito, ele
mais velho. Porque a parceria foi igual, ele tem oito linhas e eu tenho sete. Prioridade a
ele pela idade e um verso a mais. E eu entrei na melodia dele, eu mudei a melodia. Botei
um l l i diferente. E aquele: Ei, jongueiro/bate no couro que tem festa no terreiro.
Foi o forte do samba e a segunda parte, n? No verso do Tuniquinho era assim:
No dizer de minha v sambador no tem valia. Meu verso diferente: Meu av
preto de Angola me ensinava cantoria/Foi herana de um passado/Fez a
travessia/Capoeira quilombola derrubava e no caa.
A eu botei e ficamos parceiros. A tem uns a que chegaram ano 2000 no samba,
porque antes vivia para o rock e comeou. Comearam a produzir um disco pro
Toniquinho. E regravou depois de quatro anos sem o meu nome. Essa nossa parceria foi
gravada em 2004. Em 2008, ele regravou a msica e no colocou meu nome, a desfiz a
amizade. Ele regravou sem a minha parte e sem o meu nome. Eu, com o contrato
registrado em cartrio e assinado.
O menino do Kolombolo estava sentado a, o Renato Dias. Eu falei pra ele:
Eu no vou tomar tudo seu e mandar recolher o seu disco e exigir uma
indenizao. Porque voc casado com a Lgia, que eu tenho muita considerao.

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Estava aqui na gaveta o contrato e assinado com o advogado, e advogado bom.


Esses que no entram pra perder. A diante da boa vontade do Renato em divulgar o
trabalho do Toniquinho. Ele, que uma pessoa maravilhosa, eu desisti da ideia. Eu no
falei mais com esse parceiro.
Ele morreu recentemente, ligaram pra mim e eu falei: No vou. Eu ia a todos
os funerais. Alis, sou eu que batia o surdo fazendo o soca pilo. um ritual. Tem que
saber quantos passos voc d e tal. Eu deixei de fazer isso tambm. Comearam umas
vaidades na frente, a eu parei. No porque morreu que eu vou l. T brigado, no foi
fiel, acho que por falta de carter, no achei legal o que ele fez comigo. Eu quando fao
meu trabalho, falo pros piratas: Pode usar vontade, eu no ligo pra isso. Mas tem que
ter o meu nome. Disco voc no ganha dinheiro, mas divulga seu nome.
Eu t com muito problema de sade. Eu tinha sade boa, mas depois eu tive
cncer na garganta e acabou comigo. Foi quimio, rdio, acabou comigo. Depois veio o
enfarte. Eu sou vegetariano, presso doze por oito. Fazia exerccio. No tive sequela.
Porque destruiu a rede vascular, o osso.
A fui ao mdico na semana passada. Um grande especialista, com o avental do
Srio Libans no brao, se v que ele trabalha no Srio Libans, deve ser chefe, alguma
coisa. Mas me atendeu to mal, foi to grosso. Como eu t tendo alguns processos aqui,
t tendo um derrame de blis aqui, umas dores muito fortes no cu da boca, e como eu j
operei e pus prtese no cu da boca, o cachorro mordido por cobra tem medo de
linguia. Ento eu fui. Na Avenida Anglica. Eu nunca vi um consultrio to chique.
Com dois, trs bares, vrios ambientes. Com caf, sala ambiente. Uma finesse.
Anglica, nmero dois mil e quinhentos. A, chegou minha vez. Eu sentei.
Doutor, o meu uma revisozinha na boca. Eu j t livre do cncer desde
2003. J me deram alta. Eu t curado, mas eu andei sentindo umas dores ultimamente;
apenas uma reviso. O resto outra especialidade. Eu s quero ver como t a minha
situao aqui na boca, porque que eu estou com essas dores.
Mas no assim, no. Voc t pensando que as coisas se faz assim, isso a
precisa de exame. Cad o seu diagnstico? Cad os exames? Precisa de uma srie de
coisas, no assim, t pensando o qu?
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A eu fui encolhendo na cadeira e olhando, olhando. Que eu sou pavio curto, eu


fiquei olhando, mas hoje eu tenho mais bom senso. Eu pensei: Quem sabe ele um
bom mdico, apesar de ser grosso. Vamos ver at onde chega. Ele falou, falou, falou. E
eu com tudo na mo. Porque eu trabalhei em hospital. Eu cheguei a ser chefe de
enfermagem, ento, eu no sou bobo. Eu conheo. Eu, com tudo, no envelope na mo.
Pensei de novo: No sei se fico bravo, ou se continuo na minha. Olhei, olhei, olhei, e
falei:
Pra, um pouquinho doutor. O senhor ficou brabo porque eu falei
revisozinha, isso? Ser que o senhor ficou brabo?
No! pela responsabilidade que a gente tem. Voc t pensando que assim.
Precisa dos exames, do laboratrio, precisa no sei o qu. Voc fez exame do qu?
Quem pediu? Como que ?
Eu falei:
T a. Eu tive alta no hospital j faz tempo, eu t sarado.
A eu ia perdendo a linha com ele, mas eu pensei: Deixa eu manter a linha e dar
uma lio nele.
Espera a, doutor. O diagnstico se faz com quatro itens, exame de
laboratrio, sinais, sintomas e a histria do doente. Agora eu vou contar a minha
histria. Eu estive em Cuba, agora, recente, e peguei uma virose l. Acabou comigo. Eu
cheguei essa semana de Braslia. Eu trabalho com direitos humanos l. Sou voluntrio.
O ar muito seco me ferrou, ento eu no sei se pode ter agravado alguma coisa. Como
eu tive cncer aqui, no cu da boca, e foi tudo cortado. Eu no sei se eu t com algum
processo que me atacou vescula. Eu quero saber daqui. Eu queria fazer um exame, eu
quero saber a sua opinio. Est aqui o diagnstico, do que sarcoma, do que isso aqui,
t tudo a.
A eu no falei mais nada, cruzei os braos, j mostrei que eu no sou ignorante.
Fiquei l olhando pro homem. A, ele p, p, p, me deu um monte de exames.
Voc vai consultar com o doutor zio. Perguntei:

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O zio no do Srio Libans? Eu j fui paciente dele por indicao do


Druzio Varela, que meu amigo. No ? Se for o mesmo, eu fui paciente dele, porque
o nome no comum, zio. A ele continuou:
Voc vai passar pela doutora Fulana de Tal, vai passar no sei o qu, vai
fazer uns exames, assim e assim, faringe e, por ltimo, a endoscopia. Peguei os papis,
falei: D licena e at hoje. Fui procurar outro mdico. No assim que trata as
pessoas. Graas a Deus, faz dez anos que eu t curado do cncer. Ultimamente,
enfrentei um derrame, mas, como eu me alimento bem, consegui me recuperar rpido.
Venham aqui na cozinha ver aqui, eu mesmo que preparo minha comida. Sou
vegetariano, cozinho legumes, protena. A dieta vegetariana muito rica. Voc ganha
muita sade.
Pra terminar, eu quero deixar registrado que o ser humano, hoje, est perdendo a
sensibilidade. Ele t agindo mais com interesse. Tudo apenas interesse. Porque antes
voc fazia sem ganhar dinheiro. Eu canso de fazer isso. At me atrapalha. Isso aqui t
me atrapalhando e muito. Eu deixei de fazer umas trs coisas hoje. Se ponha no meu
lugar, abre a tua porta todo dia para uma pessoa que voc no conhece. que nem o
esprita, eu tenho uma misso, mas, pera a, e quem paga o meu aluguel? Porque,
infelizmente, isso. s vezes, eu passo uma temporada no atendo ningum. O Paulo
Vanzolini, no ele que atende o telefone. a Ana, esposa dele. O Jota Muniz no
atende o telefone. a esposa dele tambm que filtra tudo. Depende de quem liga, elas
dizem: Ele no t, est viajando. Retorna ms que vem. Eu tenho meus empresrios e
eles j me proibiram, mas eu no tomo jeito! Eles me avisaram:
, Osvaldinho, tem um show no Guaruj. Eu falei:
, rapaz, nessa sexta eu no posso.
Mas como que voc faz isso? Eles brigam comigo porque eu tenho esse
costume.

Ento o processo de evoluo nos induz a ganhar dinheiro. A gente tem

que viver. Como que eu vou pagar minhas contas? A cobrana est a. E eu acho que
uma misso. A melhor coisa que a gente tem isso. Divulgar o nosso samba! E que
bom que temos pessoas interessadas nisso! A porta estar sempre aberta!

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lvaro Casado
Nome: lvaro Ribeiro
Data de nascimento: 28/11/1940
Local de nascimento: Avar
Profisso: Publicitrio
Data da entrevista: 01/05/2012
Local: Residncia do entrevistado, no municpio de Po-SP

Figura 7 lvaro Casado


Fonte: Foto tirada pelo autor.

Antigamente o samba era s negrada mesmo. Negro e aqueles


brancos cheios de sangue preto como eu!
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Meu nome lvaro Ribeiro, sambista. Nasci em Avar no dia 28 de novembro


de 1940. Ainda jovem, me mudei com minha famlia pra So Paulo. Foi ento que eu
comecei a brincar carnaval. Primeiro no cordo Estrela Brilhante e, em 1952, eu entrei
na escola de samba Garotos do Itaim, no Itaim Bibi. E, no mesmo ano, fundamos o
Tatuap. Eu sou fundador do Tatuap. O Mala e eu. Ns fundamos o Tatuap em 53 e
desfilamos no carnaval de 54. O Mala era baliza l no Garotos do Itaim, e l no Garotos
era azul e branco a cor. A o Mala arrumou uma nga na Vila Santa Isabel e caiu pra l.
E ele levou os instrumentos.
Ns tambm tnhamos um pequeno grupo, que a gente batucava atrs do gol do
campo do Olaria. Ele reuniu o pessoal e disse: Vamos fundar uma escola de samba.
Ele fundou a Primeira de Santa Isabel, mas saiu um ano s. Depois mudou pra
Acadmicos do Tatuap, porque o bairro era Tatuap. Nesse tempo todo, ajudei, muitas
vezes, a colocar o Tatuap na rua, desde o primeiro ano at hoje. Naquela poca, ns
no tnhamos apoio, existia o livro de ouro e bailinhos, mas nosso ordenado era curto e,
aos poucos, foi melhorando. A gente via no Rio de Janeiro aquelas escolas grandes e
sonhvamos em fazer isso aqui em So Paulo. E no tinha nem uma federao, tinha
uma liga daqui, outra liga dali, estava meio dividido. Por causa dos prprios sambistas,
nem tanto por poltica, mas por ciumeira. Por exemplo, se o Chicl pegasse uma nga
do Mala, virava uma rixa, por causa de mulher, de namorada, at isso tinha. Entendeu?
Pra participar da administrao da escola ou do cordo no era mole. Os maiores
cordes eram o Camisa Verde e Branco e Vai-Vai, nossa! E o Camisa era muito mais
forte que o Vai-Vai. O Inocncio era uma cabea. O velho Mulata queimava dinheiro
mesmo. O Vai-Vai, que agora est empatado, mas porque o Camisa caiu.
Mesmo com todos esses arranca-rabos, disputa por mulher, queramos melhorar
o nosso carnaval. Esse era o nosso pensamento. E, no ano de 1968, depois de batermos
muito a cabea, fomos falar com o prefeito Faria Lima. Foi uma presso que fizemos
sobre ele, que carioca. Ns optamos por fazer uma presso direto nele, porque o
carnaval carioca estava l no maior apogeu e o samba de So Paulo meio cado. A j
explicamos tudo para ele... Como todo mundo queria a mesma coisa e ele ps todo o
processo pra frente. J oficializou e fez todo o regulamento. Alm do Faria Lima, outra
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pessoa muito importante nesse processo foi o Jangada. Ele era do Rio de Janeiro, mas
estava trabalhando aqui, na prefeitura. No lembro qual o rgo que ele estava, e ele era
compositor do Rio, e ele veio pra c. Era da So Clemente, eu acho. Ele atuou no
processo de redao do primeiro regulamento oficial, porque ele era redator, trabalhou
em jornal tambm. Ele que armou o esquema, fez a ata, tudo. Fizemos uma reunio, e o
Faria Lima tocou tudo pra frente e unificou. Mas foi bom o prefeito fazer a coisa, por
que tinha l uns caboclos meio fora de esquadro, n? E era por a ele que elaborava
tudo. Ele veio do Rio de Janeiro, veio da So Clemente e escolheu a Lavaps. Ele
chegou em So Paulo e optou pela escola mais velha. Ele era historiador, tudo, e
comeou a fazer samba por l. O Lavaps tem muito samba dele. Ele que pegou o
regulamento do Rio de Janeiro e mudou uma coisica s, era pouco. Se num ano no deu
certo uma coisa, no outro ano, vamos mudar aqui.
Ento criamos uma Federao. O Moraes Sarmento foi o primeiro presidente,
depois o Evaristo, a sede era l no Martinelli, no prdio Martinelli. Antes tinha a
Ligao, Federao, Unio, era uma baguna, tinha tudo e no tinha nada, porque cada
um fazia apenas o que dava na cabea. A, quando o Faria Lima oficializou, ele disse:
Vamos ajeitar a casa. Para os recursos sarem, necessrio que vocs se
organizem.
A o Moraes Sarmento entrou como presidente. Participou o Evaristo, Seu
Inocncio, o Mala, que eu te falei, que era meu cunhado, l do Tatuap, P Rachado, eu,
entrou a tropa toda. Eu sou desenhista e publicitrio. Agora que eu estou aposentado. A
bandeira da Federao fui eu que desenhei, confeccionei. Nessa poca tinha cordo e
escola. Tinha o Fio de Ouro, o Camisa-Verde, o Vai-Vai, tinha outro que eu no lembro
o nome, tinha uns quatro ou cinco, o resto era escola.
Na poca do Moraes Sarmento, da Federao, andaram emitindo uns cheques
sem fundo, porque chamava a escola e dava direto na mo do cara. O Mala ia e eu ia
com ele e dava o cheque pra escola diretamente, pro presidente ou pro tesoureiro. Tinha
cara que recebia o cheque e no desfilava. Teve uma escola de samba, veio l da zona
Leste. O presidente pegou o dinheiro e comprou carro, comprou geladeira, fogo pra
nga. E a no saiu a escola! O que voc vai fazer com um cara desse? O que vai fazer
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com esse cara? Assinou o recibo com o dinheiro e gastou e no ps a escola na rua.
Teve processo, mas o cara tava ligando pra processo. Caiu no esquecimento. E, com
isso, quem ficava em descrdito era a Federao.
Por conta disso, o Evaristo depois no quis mais e tiveram vrios
desentendimentos, problemas com a burocracia da Prefeitura e muito cime. Saiu o
Evaristo e o Juarez entrou, mas comearam uma poltica contra o Juarez, que ganhou
dois carnavais seguidos, 70 e 71. A falaram: Esse cara vai subir demais. A
comearam a prejudicar o Juarez, pura ciumeira. E a, tentando unificar novamente,
formamos, em 73, a UESP. Como presidente, primeiro entrou o Renato, esse que t a
[aponta para uma foto]. O Renato, da Globo. Mais a o Renato tava com problema de
corao, ele tinha uns problemas de sade, ele tava com medo de ter um enfarto [sic],
porque o negcio no fcil, no. Ele saiu e ficou sem presidente o negcio.
A me chamaram! Eu morava ali na Rui Barbosa. At assustei quando vi na
minha casa o Inocncio, P Rachado, Chicl. Falaram pra mim: Ns vamos pr voc
a. Vamos pr o branquinho a! A eu entrei por unanimidade. Porque no foi assim,
eles falaram ele que vai. Os caciques do samba que foram l em casa e outros, como o
Juarez, me apoiaram, e a eu entrei na presidncia da UESP. Teve as chapas, para
oficializar. Para no ficar uma coisa assim, pusemos o cara e pronto. E ns ganhamos,
quer dizer, j estava ganho. Eu conheo todos eles desde 53. Sinval, falecido, Seu Nen,
falecido, eram caras que falavam o Casado. Eu conheo ele desde pequeno, que eu
morei na Barra Funda. O Inocncio Mulata que sugeriu primeiro meu nome. Ele falou:
Esse cara, eu conheo ele. Ele sambista, ps dinheiro do bolso no Tatuap.
A minha diretoria era eu, o vice era o Derly Marques, o fotgrafo. O Jangada. O
Nelsinho. Era bom, um time bom. Tinha o Mala. Tinha muito apoio, o P Rachado
mesmo. A maioria era branca, tinha s um preto, o tesoureiro. Apesar de todo o apoio,
alguns pensavam assim: Ns, os brancos, sentados na mesa, e os nego l. A tinha
que entrar um mediador pra tentar resolver, e sempre era o Jangada, o Derly, s vezes
eu. No podia errar. E nunca falhei um ano de 53 pra c.
S que a UESP no era onde est hoje... Era ali na galeria na Brigadeiro Lus
Antnio. Eram duas salas ali. Tanto que quem pagava o aluguel ramos ns mesmos...
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Os diretores das escolas. Quando ns pegamos a UESP, no tinha esse negcio de


enredo, sabe como que ? Os caras nem faziam carro alegrico. Ns que unificamos.
Jangada, o pessoal todo disse: Vamos fazer o seguinte, vamos ensinar o pessoal como
que se faz. Esse ano vamos fazer enredo pras escolas de samba. A, como eu era
desenhista, naquela poca, desenhava os figurinos, os carros alegricos, aquela coisa
toda. O primeiro desfile da Barroca fui eu que desenhei. Eles comearam e queriam pr
ele no quarto grupo. Porque antes no tinha o acesso. No tinha tantas escolas. E
tambm com o nome dele, P Rachado, vai pr o cara no quarto grupo? A gente sabia
que vinha bem. O acesso estava sendo preparado. Porque j comeou a entrar escola na
UESP e logo formou o grupo de 20. P, num tem tempo pra 20 escolas. A comeou a
diviso. Porque tinha escola que vinha mal, mal, mal mesmo. J caa ou ficava onde
tava. J o caso do P Rachado diferente. A gente ia l na escola e, em setembro, j
tava fazendo tudo, j t quase pronto. Bateria ensaiada, baiana, o cara organizado e ele
velho de Vai-Vai. Voc no vai acreditar no cara? Ele j sobe direto. A voc pega
uma Estrela Brilhante, o cara vem l do fim do mundo e trs uma porcaria, apesar da
orientao. Ento a gente tinha que ajudar. At escreviam o samba pro cara.
Principalmente o Jangada e o Slvio Modesto, montavam o samba-enredo e davam pro
cara, sem cobrar nada. Eu tive no meu acervo muitas letras do Jangada. Ele digitava e
eu pedia um. Eu gostava dos sambas do Jangada, dele e do Silvio Modesto. Eu pegava e
punha no arquivo, a teve um dia e encontrei com ele e falei: Pra a que eu vou te dar
um negcio. Peguei e dei as letras, ele falou: P, nem eu tenho isso a. Falei: Ento
leva. Porque eu sou meio rato com esse negcio de samba. Eu v guardando. Eu tenho
tranqueira pra tudo quanto lado!

As escolas grandes, como Vai-Vai, Peruche, no

precisavam de nada, mas as escolinhas pequenininhas a gente ia e explicava: a escola de


samba assim, no do jeito que vocs saem. A o cara montava, recebia o kit, pronto.
Desenhava tudo o carnaval inteiro. Usvamos cetim, lam. Usava muita renda. A
costura era feita na casa do cara. A casa dele virava um barraco. A verdade essa. A
mulher fazendo o arroz aqui, e a outra com a mquina de costura ali. E eu visitava cada
muquifo, em cada beco da cidade. As pessoas faziam pelo amor, pelo samba. Tanto
que a Rosalina, eu fiz at enredo pra ela, ela ficava de setembro at o dia do carnaval,
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costurando direto, todo dia. Junto com aquela sobrinhada, um costurava, outro
alinhavava. Trs mquinas de costura, direto. Era amor mesmo. Porque ns sentimos,
vamos que vinham umas escolas malfeitas, sem tema, sem fantasias bonitas. Entendeu?
E no era por falta de vontade, mas sim de experincia.
A fazamos uma reunio no plenrio e perguntava que tema voc escolheu...
Como ?... Embaixador, Imperador, no sei o qu... Voc tem dinheiro pra escolher
isso? Tem dinheiro? Se voc sair como D. Pedro, vai gastar com tecido, coisa de poca,
voc no vai bancar, no vai sair legal. Voc no quer esse enredo aqui, que mais
simples. Aqui d pra voc ir. E no ano que vem, se voc tiver mais dinheiro, voc faz
seu enredo de D. Pedro. Naquele tempo tinha Marujos, Falco do Morro, Itaquerense,
Estrela Brilhante; tinha um monto de escolas de samba, mas bem fraquinha. A ns
comeamos a encaminhar os caras. Agora tem barraco, tem profissional, tem 60 caras
trabalhando. Hoje o carnaval uma indstria.
Eu j desfilei em muitos lugares: no Parque Xangai, no bairro do Glicrio. amos
ao Ibirapuera, desfilamos at no Pacaembu, no estdio mesmo. Participei da Rdio
Record, que fez uns concursos, isso foi l em 1954. Na Rua Direita, tambm, mas isso
faz muito tempo. Entrava na Praa Clvis e ia at o viaduto. Mas tambm era escola de
cem pessoas, 180. Quem ganhava sempre era o Lavaps, da Madrinha Eunice. Era uma
escola forte. Depois Vale do Anhangaba e, ento, foi pra So Joo. Saa l da Duque
de Caxias e ia at o Correio. Chegando ali, tinha uma corda. A escola entrava e ningum
podia entrar atrs, porque tinha que disputar, mas saa dali todo mundo participava. At
guarda civil entrava no meio, polcia, era uma baguna, mas foi o melhor carnaval que
eu vi o da So Joo. Era tradicional. De quarto grupo pra cima. O acesso das escolinhas
bem pequenininhas a gente fazia uma pr-eleio. Era tudo na So Joo. Os quatro
grupos desfilavam l, era uma muvuca braba. Bons tempos, na So Joo; pegou o
finzinho da poca dos cordes. Eles eram bem maiores que as escolas. As escolas
grandes tinham 200, os cordes tinham mil. A comearam a unificar, as escolas
comearam a crescer. O Seu Nen, briguento, queria escola, o Mala, meu cunhado,
queria escola. A, o Sinval, com a Imprio do Cambuci, a todo mundo comeou a
pensar, vamos fazer igual. A comeou esse pensamento, que era melhor os cordes
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virarem escola. E tambm pela cultura, em todo lugar era escola e cordo. Eles vinham
com aquela coisa de reisado, com aquele vestido e com a corte. Eles gastavam muito
mais dinheiro que escola de samba. Porque as escolas de samba vinham com uma
fantasia mais levinha. E eles optaram por virar escola. Num ano, o Vai-Vai desfilou
como cordo e, no outro, j foi escola. Tanto que eles eram Cordo Camisa Verde,
agora Grmio Recreativo, Cultural e Escola de Samba Camisa Verde, mudou tudo. O
nico que no conseguiu foi o Rmulo, do Fio de Ouro, que no conseguiu virar escola.
Foi caindo, caindo. Porque era muito perto do Vai-Vai, tava ali do lado, na Rui Barbosa.
O Fio de Ouro ensaiava na Rui Barbosa e o Vai-Vai na rua de baixo. Tanto que o
pessoal era o mesmo. O mais forte era o Camisa, que embalava quatro anos. Como
cordo e como escola. Virou escola e embalou quatro anos seguidos.
O negcio era brabo. Comeava no sbado e terminava na segunda, tera-feira.
Tinha escola que repetia. Porque o negcio era desfilar, era uma coisa legal. Todo
sambista que voc perguntar, que for mais velho, vai dizer que o melhor carnaval foi o
da So Joo. Porque era participao popular. Todo mundo podia participar. O caboclo
tava de baianinho e entrava no meio da escola e desfilava. Punha uma camisa branca e
cala branca e entrava no meio da escola, empurrava carro, ajudava. Hoje, pra comear,
voc tem a parede e a grade. O povo aqui e a escola de samba l dentro. Sem ingresso
no entra. Na So Joo voc andava no meio da escola. A escola vinha na So Joo
desde l de baixo... Era a festa. Era bem rua mesmo. Vinham bloquinhos, assim, com
dez moas vestidas, rapaz e um tipo de fantasia que eles bolavam e entravam no meio
da escola. S quando chegava perto do correio que tinha a corda, a diretoria da escola j
sabia quem era e quem no era. J era uma norma, o povo j sabia, at l eu posso, pra
l, no. Por que tinha que julgar, n? A roupa, o cara tava de azul, de vermelho e a
escola azul e branco, no pode, porque o cara tem que estar de azul e branco.
A nica coisa ruim da So Joo que tinha o problema de trnsito, de trilho. Ali
era vazo de tudo, p. Quem ia pra Lapa, Pinheiros, Vila Madalena, no tinha acesso.
Parava os bondes, os nibus, entendeu? E virava uma baguna ali no centro. Tanto que
ns fizemos vrios desfiles e os palanques ficavam ali no Largo do Paiandu, em frente
igreja. E era corda, no tinha arquibancada, o carnaval era na corda. E dava uma mo
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de obra danada. E a optamos pela Tiradentes. Eu era presidente da UESP e falamos:


Vamos mudar. Porque era interesse deles tambm, porque parava tudo ali. O bonde,
carros. A eles mudaram pra Tiradentes, porque tinha acesso pelo outro lado, ento o
trnsito ficou dividido. E foi de boa, a Prefeitura estava estudando os locais, falaram na
Tiradentes. Aceitamos e, no outro ano, j montamos l. A que comearam as
arquibancadas. Porque antes tinha arquibancada, mas era daqui ali, pequenininha. Tinha
o que, 50, 60 pessoas, cada fileira. E mais o camarote... Dos jurados e das autoridades.
No tinha extenso. E tambm no dava, porque a So Joo no era to larga e voc no
vai fazer uma arquibancada na porta de algum. E o comrcio? Ento eles faziam ali no
Vale do Anhangaba, s naquele pedao. Cabiam ali 500 pessoas, era tudo mais
complicado. E a foi tendo um pblico cada vez maior. As escolas tambm j estavam
cada vez maiores. Na poca, acho que 60% da escola a prefeitura bancava. Porque tinha
interesse, porque tinha a concorrncia com o Rio de Janeiro, Bahia, j estava essa
muvuca de carnaval, sem bairrismo. Mas acontecia. A gente falava no Rio de Janeiro:
A Portela sa com 3000 e aqui a gente sai com 500. Vamos aumentar isso a. E
tivemos sucesso. O pblico cresceu demais. A Avenida Tiradentes ficava lotada at aqui
em cima no correio. A as escolas comearam a se aprimorar.
Na Tiradentes que o povo mesmo comeou a participar. Os estudantes, porque
antigamente o samba era s negrada mesmo. Negro e aqueles brancos cheios de sangue
preto como eu! No tinha essa frequncia, porque agora tem ala l de quinhentos e
tudo branco. Vm at japons. Era malvisto, moa de famlia, o pai no gostava que ela
frequentasse escola. A que comeou uma preocupao maior com a parte visual. O
carnaval subiu, o carnaval na So Joo era baixinho. Alegoria de mo era o que tinha
mais, carro alegrico era do tamanho dessa mesa aqui. Mas tinha um problema: se o
desfile era na So Joo, o cara tinha que vir l de Itaquera. A alegoria tinha que ser
pequena pra caber em cima de caminho. A comeamos a arrumar por a. Porque as
escolas do quarto grupo ou do acesso um carrinho s. As escolas que ficavam pertinho
tinha vantagem. S pra ter uma ideia, a Nen, pra ir pra l, tinha que ir pela marginal,
com aqueles carros alegricos grandes, era um transtorno. Agora no, eles to fazendo
tudo l embaixo. Teve que articular, porque, pensa, hoje em dia, parar a marginal pra
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levar um carro alegrico. A Peruche mesmo teve um ano que parou a marginal, samos
da quadra, deu uma mo de obra, no passava embaixo de viaduto. E tinha que fazer de
madrugada. Meia-noite ou uma da manh a gente saa. E era uma baguna; agora, no,
tudo articulado. Os caros so gigantescos. Que eu no gosto muito, mas fazer o qu?
Durante a minha gesto como presidente da UESP comeou a poltica de quadra.
As escolas negociavam com a prefeitura a cesso dos terrenos. O Nen conseguiu
quadra. O Tatuap saa num bequinho, ali onde a Chic agora. No dava essa rea aqui
do meu quintal. Ensaiava ali. Os carros alegricos faziam na rua ou quando algum
cedia algum terreno. E punha lona em cima, aquela coisa toda. Era muito longe do
centro. No dia de desfile demorvamos o dia inteiro pra chegar. Se fosse pequeno os
carros iam em cima de caminho. J os carros maiores do primeiro grupo iam
empurrados, porque carro alegrico no pode ter motor, lei. No primeiro grupo eram
trs carros. Agora, o que acontece, a Chic comprou a rea e ns tivemos que cair para
um terreno alugado na Melo Peixoto. Dali ns fomos para um varejo que tinha no
Tatuap, no outro lado. Um varejo, uma feira, vai. E l tinha um barraco e um
banheiro. A ns camos pra dentro. Depois fomos pra Guaiana. A deu uma enchente
no carnaval e levou instrumento, as roupas, levou tudo.
O Acadmicos era complicado. Teve um problema: quando o metr veio
derrubando, era ali que tava a nossa base. Dispersou todo mundo. Cada um foi pra um
lado, Cohab Dois, Cohab Cinco, sumiram. Os caras vinham, mas j no com tanta
frequncia. Porque a nossa base era da Favela do Maranho, l embaixo, perto do
Corinthians, no Largo do Maranho, na Antnio de Barros. E acabaram com a favela. O
cara vem morar aqui em Po e pensa: Ah, eu no vou, no. longe, difcil. Apesar
de que agora no, agora vem gente de tudo que lado. Depois que ns fomos pra
debaixo do viaduto, na gesto do Jnio. Ali embaixo do viaduto. O Jnio Quadros que
cedeu pra ns. No sei se voc lembra, na gesto dele, o Tatuap era o bairro mais
poludo de So Paulo e quase no tinha opo de lazer aqui na zona Leste. Foi uma
jogada pra valorizar a regio. Foi na poca, eu cheguei nele e falei:

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P, a Associao dos Comerciantes usa embaixo do viaduto pra fazer painel,


faixa, essas coisas. Ns vamos usar para uma coisa cultural. Eu pedi para ele esse lugar.
A ele cedeu e est l at hoje.
Nessa poca que estvamos no beco que eu comecei a articular e desenhar para
as escolas. Porque eu acho que a base do carnaval foi essa ideia de falar: Vamos fazer
enredo, tipo encomendado, vamos conseguir mais dinheiro para todo ano sairmos
tranquilo. Valorizou a coisa. As escolas tinham que fazer enredo sobre temas do Brasil.
Isso veio do Rio de Janeiro. Ns que optamos por trazer pra c. Porque o cara ia vir com
o enredo sobre os Estados Unidos? No tem porqu. Eu negociava direto com a
Secretaria. O prefeito s assinava. Tanto que tinha um caboclo aqui [aponta para uma
foto com vrias pessoas em um palanque assistindo a um desfile], o Simes Neto, que
andou dando cheque sem fundo por a, inclusive pra Tatuap, mas isso fofoca. Eu me
dediquei bastante na UESP. Toda sexta-feira. Sempre noite. Eu tirava as noites de
sexta-feira pra UESP. Acompanhava a liberao das verbas. Era como um clube. Sinval
era meu amigo, Seu Inocncio, meu amigo. A gente tomava uns conhaco juntos no bar
da galeria e depois subia pra reunio. A reunio era na sexta, mas na quinta a gente j
estava l. s vezes na tera, pra ficar no botequim conversando. Quando sambista se
rene, a falao s de samba, nem futebol entra. Ento a gente ia pra l, era mais fcil.
Mas como eu conhecia todo mudo. Comeava em setembro e ia at depois do carnaval.
Fizemos muitas coisas bonitas, s no conseguimos fazer mais por causa da
diviso de ns mesmos. Eu tentei, mas na verdade foi o Geraldo Filme que conseguiu
unificar. Porque, voc olha pra minha cara: eu no sou preto. Ento eu tava l no
plenrio, eu falando, o cara no ligava. Porque eu escutava, saa uns bochichos: P, um
branquinho tomando conta do samba, saa esses papos a. A, quando eu passei pro
Geraldo Filme, ele conseguiu. Porque era o Geraldo Filme, n, negro, muito
respeitado. Comandava na poca o Paulistano da Glria, um dos melhores sales de
baile. Eu ia muito nos bailes l, com o Geraldo. Eu tenho respeito por um lado e ele tem
por outro. Estava sempre no meio do tiroteio. Porque voc vai falar com o representante
de todas as escolas de sambas. Pensa que vai vir um nego e chega o lvaro, um
branquinho. Entendeu, tinha cara que no entendia muito bem isso a. Mas como a
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mfia foi rodando, quando entrou o Geraldo, a que unificou tudo. A parte de baixo da
Barra Funda, depois do rio, o Carlo, o Juarez, Seu Zezinho do Morro da Casa Verde
eram de uma faco. P Rachado e Chicl eram de outra. Ele conseguiu pr todo mundo
na mesa e ficar juntos. Porque quem brigava mesmo pelo samba era Geraldo, eu,
Jangada, P Rachado, o Mala, falecido cunhado meu. Era quem brigava mesmo pela
cultura. Tanto que a Prefeitura passou a mandar a verba para a UESP e a entidade
repassar para as escolas.
O dinheiro era dado pela Secretaria direto para as escolas, pra mo do
presidente. Depois que passou a ser centralizado na UESP. A gente cobrava do
secretrio, da prefeitura o dinheiro, em setembro. Porque tinha que sair em setembro pra
dar tempo. Os caras davam em novembro. As escolas cobravam a gente em setembro.
Era uma muvuca, os caras iam na UESP, e eu falava: Eu levo vocs l. Era assim! A
Secretaria, quando entrou o Anhembi, que deu uma legalizada. Tanto que eu te falei, o
Secretrio deu um cheque sem fundo. No fui eu que dei. Eu sou UESP, quem deu o
cheque foi a Secretaria. A o que ns tivemos que fazer: fomos no Notcias Populares e
colocamos o cheque, fotografamos e saiu nos jornais. No outro dia, o Secretrio tava
distribuindo dinheiro l no gabinete. Devolvemos o cheque e o dinheiro tava l pras
escolas pegarem. Teve um ano l que atrasou muito, era dezembro e no tinha sado a
verba. A fomos todo mundo l. Todas as escolas lotaram a Secretaria. A o cara viu a
presso. Passou uns dias e teve o dinheiro na mo. Porque teve ano que a verba saiu
praticamente em janeiro, p. Teve parcela que saiu em fevereiro. J teve verba que saiu
trs dias antes do carnaval, a ltima parcela. A voc pega um sbado e domingo a 25 de
Maro fechada, no dava tempo. Agora no, sai em setembro, a verba j sai. Dos que
passaram por a, eu lembro que o Paulo Egydio foi um cara decente. Ele, junto com a
Prefeitura, aumentou a verba um ano l. Acho que a mulher dele deu uns tapas nele, ela
gostava de carnaval. Oh, melhora o negcio a. Eu lembro que em vez dele dar 70 ele
deu 100. Mas no outro ano voltou pra 70 de novo.
Quando eu sa da presidncia, fiquei no departamento cultural. Aquele acervo
que est l, o arquivo, fui eu que montei. Tanto que tem tanta coisa minha l, um
monte de coisas. Doei livro, foto, tem foto aqui que eu copiei e est l. Mas todo mundo
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vem aqui. Eu j vinha com essa ideia faz tempo. Mas, como presidente, no tinha
tempo. J vinha guardando coisa, junto com o Derly, que tambm rato nessas coisas
de samba. Eu tenho parceria com o Derly nesse acervo que eu tenho aqui, e com o Jota
Muniz, ns trs. O Jota Muniz foi jurado muitas vezes. Na poca ainda no tinha esse
curso de jurados que tem hoje. Gente que nem do samba e faz um curso e julga.
Sempre dois sempre dois jurados por cabine, para no ter muita discusso. Mas sempre
dava briga. Ns tambm colocvamos jurados diferentes em cada grupo. Ns s
chamvamos personalidades, pessoas de gabarito para julgar. Porque tinha um jurado
que ia julgar o grupo tal, mas ele tinha amigos na outra escola, ento tinha aquela
democracia. Professor de msica, maestro, teve um famoso, o... Jlio Medaglia. E
tambm teve outros. Sambistas tambm, que vinham de Santos. O Druzio, que t a na
foto, o Jota Muniz vinha tambm.
Depois que o Geraldo assumiu, a gente ficou mais tranquilo e eu voltei a ficar
mais perto do Tatuap. No Acadmicos do Tatuap eu queria fazer s enredo
paulistano, Imprio Tropical, Cama do Gonalo, Amador Bueno. Eu tenho todas letras,
tm alguns que eu tenho at figurino da poca. Eu optei por So Paulo, a a gente punha
na cabea dos caras, vamos falar das coisas daqui. Tem tanta coisa, Brs Cubas, vamos
falar de Mogi das Cruzes. Essa parte cultural, Pirapora. Essa raiz fomos ns que
implantamos. Foi a UESP que implantou. Na nossa gesto de 1973-75. A marca da
nossa gesto foi isso. Tanto que j tinha o projeto do arquivo. O meu arquivo pessoal
maior que o da UESP, da histria do carnaval paulista. Eu dei as xerox e fiquei com o
original. Tenho muita coisa no arquivo de ao grande.
Era difcil arrumar patrocnio. O Acadmicos no tinha. O que tinha era
malandragem. Teve uma vez que eu cheguei no Renato da Tapearia Chic e dizia: Eu
vou fazer um enredo Meu Chic Tatuap. Eu cheguei l no Renato com os slides,
projetei: , Renato, Meu Chic Tatuap, t falando da sua loja e do Acadmicos do
Tatuap e do Tatuap, do bairro Tatuap. Eu fiz isso vrias vezes. Fiz com o Marengo
tambm. A uva Marengo. Eu peguei todos, a casa da borracha. Todos comerciantes
ajudaram o enredo Meu Chic Tatuap. Eu fui no Marengo, vou sair com um cacho de
uva enorme. Tanto que saiu mesmo. O Marengo assinou o cheque. No tinha tanto
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dinheiro mais, o bairro mesmo prestigiava. S a verba da prefeitura e a renda da escola


no eram suficientes. Vou falar pra voc, eu, particularmente, pus dinheiro no
Acadmicos do Tatuap adoidado. Eu fui diretor de arte e, depois, dono de agncia de
propaganda, ento eu investia. Eu era scio do Carlos Queiroz Telles. Eu desenhava o
figurino e saa muito na poca. As baianas, por exemplo, ns dvamos o tecido e ela
confeccionava a sua fantasia. Voc encontrava baianas l na 25 de Maro, comprando
os vestidos dela mesmo. Era por amor mesmo. Tanto que a minha sogra, me do
Mala, era costureira e saiu no Anhangaba, So Joo e Tiradentes. Tinha que ter amor.
Alm do Tatuap, tambm sa no Imprio Serrano, porque a gente fez um
intercmbio. J desfilei tambm pela Unio da Ilha e pela Mocidade Independente.
Porque a gente desfilava aqui no sbado, pegava o buso e ia pra l. E eu frequentei
muito quando eu morei l em 71 e 72. Mas, todo ano, no carnaval, eu vinha pra c. Se
desfilasse no sbado, o Imprio e o Acadmicos, eu vinha pro Acadmicos. Tanto que,
quando a gente vinha, a gente trazia o Mano Dcio pra desfilar no Acadmicos. Pra
fazer o samba, ele fez vrios sambas... A era certeza que tirava dez de samba-enredo.
Eu tenho parceria com ele em dois sambas. Porque o enredo era meu, eu passei a letra
pra ele e disse: Mano, isso a que tem que entrar. A ele, pum, na viola, e j fazia a
melodia... Tambm produzi o primeiro lbum do Mano Dcio, pela Tapecar. Meu nome
t l escrito na capa. S que t lvaro Ribeiro, no t Casado. a histria como que
foi. Tinha a grfica Mata Velha e ele queria dar uns brindes e todo ano eu fazia os
brindes de fim de ano. Porque a grfica tinha aquele negcio: chegava no fim de ano,
vou dar pros clientes a folhinha, aquele negcio. A chegou no fim de ano, eu falei pra
ele assim: Vamos dar uma fita com os sambas do Mano Dcio. Ele conhecia o Mano
Dcio, gostava do Mano Dcio. A fizemos a fita, mas tem que gravar, e foi gravado l
no Rio de Janeiro pela Tapecar. A ns fizemos esse LP a, mas foi a Mata Velha que
financiou. Ns fomos pro Rio de Janeiro, gravamos. O Mano Dcio at se mijou, rapaz!
Porque ele nunca tinha gravado um disco, rapaz. A at se mijou, coitado. Tanto que o
disco no t muito bem gravado porque ele tava muito nervoso. A ns fizemos a fita e
dava de presente para os clientes. Com um encarte explicando a histria do Mano Dcio
e tal. E foi um show. Tanto que ele at ganhou como melhor brinde entre as grficas.
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Tem histria esse LP. Eu no tenho mais porque emprestei pra um caboclo aqui em Po
e depois vim saber que o cara se mudou e levou. E raro aquele disco. Nem o Mata
Velha tem. Porque ele foi dando, dando e ficou sem. Depois que ele gravou os outros.
Depois que ele saiu da Imprio Serrano, quando ele desfez a parceria com o Silas. At
hoje no sei o porqu. Ele nunca me explicou. Eles so parentes. Acho que o Silas, na
poca, era mais famoso que o Mano Dcio. E depois comeou tambm o Mano Dcio a
fazer muito show. Tanto que, quando eu morava no Rio, eu ficava sexta, sbado e
domingo, no ficava nenhum dia em casa. Pegava o carro, colocava ele e a viola e um
pandeirista e corria pra fazer show. Vamos pro Cacique de Ramos, vamos, So Joo do
Meriti, era uma loucura. Ele no tinha carro e eu tinha. Era uma farra, na verdade.
Tempo bom, rapaz! Ele ficou ali embaixo do p de rvore, antigamente aqui tinha um
galpo com uma churrasqueira. Ele ficou deitado ali na rede, com a viola fazendo
samba. Ele vinha do Rio de Janeiro do meu lado, como meu copiloto, do lado, tocando
viola, na Dutra. Eu vivi muito com o Mano Dcio. Eu tenho tanta foto dele a. Foi um
dos meus melhores amigos!
Quem mudou os dias de desfile de sbado e domingo para sexta e sbado foi a
Globo mesmo. Tanto que a Globo est h tantos anos transmitindo. A Bandeirantes
briga, mas no entra. A Globo fez a cabea dos sambistas. O poder econmico fala mais
alto. Vocs fecham com a gente, mas a gente quer s as melhores. Tanto que ela no
transmite o carnaval da UESP. Nem do acesso. A Globo o problema. Mudou o dia,
passou pra sexta-feira. Tudo jogada da emissora. E o dinheiro no pouco no e cai
na mo da Liga. A tem uns rato l dentro e j viu. Apesar de que agora as escolas
esto com uns presidentes mais maneiro. Opa, pra a, vamos ver direito. Porque
naquela poca no tinha, o cara pegava o dinheiro e nem contava. Punha o dinheiro na
mala e zarpava, ia cuidar da vida dele. Agora no, os caras sabem tudo. A Liga at
empresta dinheiro pras escolas. Ela se tornou um banco. Meu compadre Valtinho,
falecido, foi presidente da Peruche uma par de tempo. Ele e o Barcan. Com eles era o
seguinte: os caras punham do prprio bolso sempre uns 300 contos e corria com a
escola. Chegava a verba, pegavam de volta o dinheiro. O nico srio at hoje que eu vi.
O Valtinho fazia. Ele bancava a escola antes do carnaval e depois ele tirava de volta.
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Mas ele reunia a diretoria. Eu fui diretor l. Olha aqui, gente, a verba t no banco, t
aqui o boleto. Os meus 300 eu vou tirar amanh. Mas era srio, entendeu? Tem ngo a,
tem escola que empresta dinheiro, agora de onde vem a grana eu no sei, mas que
empresta, empresta.
As escolas de samba foram fundadas nas famlias. Sempre tinha uma famlia
responsvel. No Tatuap, o Mala, a famlia do Mala. Na Nen, o Nen. Mocidade o
Juarez. No Peruche, o Carlo. Agora no, eles pem um monte de gente e advogado que
no tem nada a ver com o samba. As famlias perderam o processo. Porque sempre foi
comunidade. No Tatuap, o Mala saa, entrava eu, eu saa, entrava o Mala. Quando no
entrava a Anal, a depois entrou o filho do Mala. Tanto que, nos documentos voc l,
presidente lvaro Casado, Osvaldo Vilaa. Mas era famlia, o Mala morou aqui no
Jardim Alvorada, em Po. Voc v o Imprio de Casa Verde, que chegou com muito
dinheiro e levou todo mundo de todas as escolas. Tenho alguns amigos que eram do
Peruche e esto l na Imprio agora. Tem dinheiro. O Peruche t mal porque ainda
uma das nicas escolas administradas por famlia. E alm do mais, o pessoal foi
envelhecendo. Tanto que o Camisa t no risco que t agora, porque o Inocncio
morreu, depois o Tobias morreu, entrou a Magali, depois o Seu Maninho. Mas no o
Mulata, no o cacique. O Tatuap caiu na mo do Roberto, Zoinho, que foi tocando,
montou um esquema com a faculdade, articulou l um pessoal. Tanto que no tem
ningum da Velha Guarda na diretoria do Acadmicos. outro pessoal. Ele fala:
Casado, estou chateado. Eu falo pra ele: Larga disso, rapaz! Samba samba. Porque
voc chega na quadra, eu sou fundador do Acadmicos, no conheo ningum. A o
Roberto precisa anunciar no microfone, t aqui o lvaro Casado, fundador. Mas ele tem
que indicar aquele l. A o pessoal bate palmas. [risos] um negcio complicado, mas
um pouco relaxo meu, se eu tivesse l direto, direto. No Tatuap, um dia, chegaram
at me barrar na porta. O segurana no me conhece, eu chego l na porta paisana. Se
eu chego l de faixa, de sapato branco, o cara olha e fala: Esse cara embaixador, deve
ser alguma coisa. Mas se eu chego l assim, o cara fala: O que o senhor quer? Eu
quero entrar. Quem o senhor ? Eu sou lvaro Casado, fundador dessa tranqueira
aqui. Ah ? Mas o cara no tem obrigao de me conhecer.
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Eu saio no Acadmicos do Tatuap no tanto por gosto. Eu no gosto muito do


movimento. A escola cresceu, t saindo com 4000, eu sou contra isso, sou contra 4000.
Mas tenho uma histria na escola, fao parte da Embaixada e da Velha Guarda do
Tatuap. Ultimamente, s frequento na poca do carnaval, vou a dois, trs ensaios e
desfilo. O pessoal me joga l no fundo e eu vou embora. Eu no sei se o carnaval
evoluiu. Eu me lembro que era sempre a Velha Guarda que abria o carnaval. Agora o
contrrio, a Velha Guarda foi l pra trs. A comisso de frente era aquele negcio assim,
era a diretoria e a Velha Guarda. Olha, estou trazendo meus filhos a atrs. Agora no,
puseram a Velha Guarda l no final e colocaram na frente s coreografias e quem vem
primeiro o coregrafo. E na Velha Guarda so pessoas idosas, e, quando o desfile
atrasa, quem tem que acelerar so eles. Esse ano no, eu no fui. Tive uns treco a e
no fui. A o ano retrasado, eu tava l e a bateria do Tatuap meio veloz, meio
rapidinha. A o que acontece, toca a sirene na avenida, opa, entra todo mundo. Vocs
vo l pro fundo da escola. Pe no meio, atrs de um carro alegrico, porque o carro vai
parando e voc vai de boa, n? Colocaram os veinho l em ltimo. Chegou l, a escola
atrasou, teve que andar. Isso cansativo pra caramba. Pra mim no, que eu ainda
aguento, mas tem uns veinho l meio balangand. Minha parte eu j fiz, hoje eu vou pra
alguns ensaios, desfilo e, depois, tchau. Vou cumprimentar todo mundo, conheo todo
mundo das outras escolas e depois eu vou embora.

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CONSIDERAES FINAIS

O carnaval das escolas de samba da cidade de So Paulo passou por inmeras


transformaes ao longo do sculo XX. Foram modificaes de natureza esttica,
musical e tambm polticas e institucionais. O que comeou como uma forma de
diverso dos pobres nos bairros perifricos da cidade ao longo do sculo converteu-se
em um dos principais eventos tursticos de So Paulo.
As adequaes se intensificaram a partir da oficializao do carnaval das escolas
de samba pela prefeitura da cidade em 1968, durante a ditadura militar. A oficializao,
feita pelo Estado em um perodo autoritrio, teve semelhanas com o processo ocorrido
no Rio de Janeiro, na dcada de 1930, durante a ditadura do Estado Novo. Com a
oficializao vieram o patrocnio e o incentivo do poder pblico, o que ajudou as
escolas de samba a crescer cada vez mais e se popularizarem por todo o pas, ao mesmo
tempo em que regras e normatizaes foram impostas (URBANO, 1987, p.63).
Na cidade de So Paulo, o carnaval popular negro se desenvolveu na primeira
metade do sculo XX, principalmente devido aos cordes, que, aos poucos, foram se
inspirando no modelo carioca. Logo, esses cordes foram se transformando em escolas
de samba. Os sambistas paulistanos viam nos desfiles do Rio de Janeiro um modelo a
ser seguido, por causa da qualidade do espetculo e tambm pelo incentivo em dinheiro
recebido. Inicialmente, o poder pblico no aceitou negociar diretamente com os
sambistas, e vrios radialistas e profissionais do setor de comunicao serviram de
mediadores entre a Prefeitura e os sambistas. Em comum acordo, foi refundada a
Federao das Escolas de Samba, que se encontrava sem atribuies. Um novo
regulamento para as escolas de samba foi estabelecido, de acordo com o modelo do Rio
de Janeiro. Esta imposio de um modelo carioca de desfile chocava-se com as
tradies dos desfiles de So Paulo, o que acarretou na extino dos cordes
carnavalescos. Outras regras foram fixadas e modificaram a organizao dos desfiles da
cidade, como o fim dos estandartes, da corte carnavalesca e dos instrumentos de sopro,
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373

e novos elementos foram incorporados, como mestre-sala e porta-bandeira e a ala de


baianas (SIMSON, 2007, p. 159).
Se por um lado, a partir da oficializao, eles abrem mo dos desfiles dos
cordes carnavalescos, que j estavam em decadncia para organizar uma nova
modalidade de agremiao, com novos regulamentos, conseguem receber uma ajuda
financeira do Estado que garantiria o funcionamento das agremiaes por anos a fio. E
como sofrem presses e censuras em um momento histrico de ditadura militar e
represso poltica, os dirigentes das escolas se organizaram em uma entidade que
tambm ir cobrar do poder pblico mais investimentos no carnaval.
A relao entre Estado e escolas de samba no foi construda por meio de
imposies; H uma relao em que todos so sujeitos e agentes em disputa, pois os
sambistas tambm realizaram presses sobre secretrios e prefeitos para ocuparem mais
espao nas ruas da cidade e cobraram maior ateno do poder pblico para os bairros
onde as agremiaes esto inseridas.
A possibilidade de recebimento de uma quantia em dinheiro para a preparao
dos desfiles fez com que o nmero de escolas de samba aumentasse a cada ano, em
diversos bairros da cidade; por outro lado, isso trouxe mudanas que transformaram o
cotidiano das escolas. As escolas tradicionais surgidas a partir dos cordes,
representavam um espao de lazer e sociabilidade das comunidades em diversos pontos
da cidade. Apesar de o poder pblico funcionar como financiador das escolas de samba,
muitas delas se transformaram mais do que esses espaos. Muitas escolas se tornaram
verdadeiras porta-vozes dos bairros em que esto inseridos, cobrando, do poder pblico,
melhorias como: mais escolas, creches, parques, asfaltamento e calamento de ruas,
melhorias no sistema de coleta de lixo e saneamento bsico, por exemplo. Em todas as
eleies comum vereadores ou candidatos pedirem o apoio das escolas de samba, e,
caso sejam eleitos, estabelecem livre trnsito em seu gabinete para a diretoria e
membros das escolas.

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Ao analisar as escolas de samba existentes no Censo Samba Paulistano 2012,122


documento publicado pela SP Turismo com informaes de todas as escolas de samba,
possvel perceber que, no presente ano (2013), 78 agremiaes carnavalescas (escolas
ou blocos) desfilaram nos concursos promovidos pela Prefeitura de So Paulo. Das
escolas atualmente em atividade na cidade de So Paulo, apenas onze escolas foram
fundadas antes da oficializao. No perodo analisado pela presente pesquisa (19681996) foram fundadas 46 escolas que continuam em atividade. Mais de 50% das escolas
foram fundadas nas dcadas de 1970 e 1980, perodo de consolidao do carnaval
paulistano.
Entre os anos de 1968 e 2012, nada menos que 215 agremiaes desfilaram
oficialmente no carnaval paulistano. Algumas desfilaram por dcadas, enquanto outras
se apresentaram apenas por alguns anos. Dezesseis apresentaram-se apenas um carnaval
e encerraram suas atividades. Esse grande nmero revela que o reconhecimento oficial e
o aporte financeiro da Prefeitura potencializaram a fundao de escolas de samba,
caracterizadas com um misto de negcio e diverso. Assim como a prpria dinmica da
cidade, que foi expulsando cada vez mais os pobres para a periferia da metrpole, o
crescimento das escolas de samba tambm ocorreu em bairros perifricos, como,
exemplo: Unidos de Santa Brbara, no Itaim Paulista, extremo leste da cidade, e
Valena de Perus, no bairro de mesmo nome, no extremo oeste da cidade, regies de
ocupao e construes mais recentes, devido a projetos habitacionais oficiais, invases
de reas municipais e loteamentos populares, repetindo o que acontecera na Zona Norte
da cidade com o Morro da Casa Verde e Parque Peruche.
Outra importante mudana ocorrida no perodo analisado foi a substituio do
carnaval conhecido como participao realizado pelos cordes, blocos e escolas at a
dcada de 1960, em So Paulo, para uma modalidade de carnaval de atores e
espectadores. Esta modalidade de carnaval no se configura como uma festa, mas como
um espetculo, com ganhadores e perdedores. Os atores so aqueles que se fantasiam e
desfilam por suas escolas, cujo principal objetivo se sagrar campe. Os espectadores,

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Censo Samba Paulistano. Coord. Geral Luiz Sales. 2. ed. So Paulo: So Paulo Turismo, 2012.

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maior parte dos envolvidos, no participam de fato dos desfiles, apenas assistem
passiva, ou presencialmente ou ainda pela televiso, e admiram o espetculo.
Desde o incio de suas atividades, o concurso de carnaval passou por diversos
palcos: os bairros de origem dos cordes e escolas de samba; desfiles concentrados no
bairro da Lapa; no Parque do Ibirapuera; no centro da cidade; Rua Direita; Avenida
Lbero Badar; Avenida Brigadeiro Luiz Antnio; Vale do Anhangaba; Avenida So
Joo e Avenida Tiradentes. Todos tm em comum o fato de serem ruas e locais de
grande circulao e fazerem parte do espao pblico da cidade. Novamente inspirado no
modelo carioca, houve, no incio da dcada de 1990, em So Paulo, a construo de um
Sambdromo. Com a sua inaugurao, o carnaval deixa de ser realizado na rua, ou
seja, no espao pblico, e passa a acontecer em um local privado onde as escolas ficam
confinadas. Esses espaos fechados seriam uma mistura de estdio e teatro, no qual
ocorre a cobrana de ingressos para o espetculo, alijando assim a populao mais pobre
do carnaval espetculo.
O confinamento do carnaval produz uma infinidade de excludos, isto , aqueles
que no dispem de meios para participar dos desfiles ou nem mesmo para comprar
ingressos para assisti-los. Para essas pessoas, s resta acompanhar os desfiles pela
televiso e por outros meios de comunicao, reafirmando, assim, a realidade do mundo
capitalista, qual exclui aqueles que no possuem recursos. O interesse da opinio
pblica, dos meios de comunicao e da indstria cultural apenas pelo desfile do
Grupo Especial, que rene as maiores e mais luxuosas escolas de samba. Tomando
como exemplo o futebol, cujos meios de comunicao do reduzido espao para os
campeonatos das divises inferiores, o concurso das escolas dos grupos inferiores no
recebe grande aporte financeiro, visibilidade e ateno, gerando um abismo
intransponvel entre as grandes escolas e as pequenas agremiaes.
Ao longo da dissertao pudemos ver que esse quadro se intensificou a partir das
negociaes diretas entre as escolas de samba e a indstria cultural, provocando a
diviso dos prprios sambistas em duas entidades distintas. Os desfiles dos grupos
superiores, organizados pela Liga, passaram a ser transmitidos pela emissora de
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televiso lder de audincia, movimentando cada vez mais recursos e produzindo um


desfile cada vez mais grandioso.
Esta nova dinmica de desfile provocou mudanas tambm na composio das
direes das escolas de sambas. Isso ocasionou a sada de fundadores e membros
histricos das escolas das funes de direo e a entrada de novas lideranas. As escolas
de samba passaram a ser vistas, ao mesmo tempo, como entidades culturais e
empresariais restando aos sambistas histricos restou o papel de agentes da preservao
cultural, aparecendo apenas na ala da Velha Guarda. (BLASS, 2007, p. 36)
Trs marcos so de extrema importncia para a consolidao deste atual modelo
carnavalesco consolidado na dcada de 1990, na cidade de So Paulo: a fundao da Liga
Independente das Escolas de Samba, a construo do Sambdromo e as transmisses
televisivas dos desfiles do Grupo Especial em cadeia nacional. O primeiro acontecimento
foi responsvel pelas negociaes envolvendo o carnaval; o segundo e o terceiro
impulsionaram o desfile paulistano padronizao total, semelhana do espetculo
promovido pelo Rio de Janeiro. Nesse contexto, as grandes verbas das campanhas
publicitrias, como as das indstrias de bebidas, so muito importantes para o
financiamento das escolas, j que tais empresas movimentam os anncios de imagem das
transmisses televisivas, que so a grande fonte de receita das escolas de samba.
Em suma, a Liga trabalha dentro de um parmetro empresarial capaz de negociar
contratos com as emissoras de comunicao e com o poder pblico buscando uma maior
fatia do bolo para as escolas (BELO, 2008, p. 180). J a UESP permanece como a
entidade de organizao das pequenas agremiaes, de comunidades mais afastadas,
longe dos holofotes, trabalhando dentro do parmetro tradicional de desfiles que as
escolas realizam desde a oficializao do carnaval de So Paulo. O principal canal de
financiamento so as verbas da Prefeitura de So Paulo, insuficientes para cobrir os
gastos das escolas que tm na sua comunidade e na criatividade de seus membros as
solues para a escola realizar o desfile, que podem vir desde patrocnios pontuais de
empresas a solues de reciclagem e uso de sobras de materiais das grandes escolas.
Depois da diviso entre as duas entidades, a UESP ficou encarregada de continuar
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fazendo o carnaval de rua em pontos mais afastados da cidade com uma ao


profissional de cunho social, sem fins lucrativos e politicamente descentralizado.
O papel exercido pelo sambista pobre e negro sofreu muitas transformaes ao
longo do percurso pelo qual as escolas de samba atravessaram. Mas, de maneira alguma
os sambistas podem ser vistos como agentes passivos que entregaram o carnaval para o
Estado ou para as classes mdias e, posteriormente, para as emissoras de televiso. Estas
personagens procuraram parcerias e negociaes porque viam nestas agremiaes,
fundadas ou dirigidas por elas, uma oportunidade de sair do anonimato e da carestia e
alcanar algum prestgio social, como tambm oportunidades materiais.
Ao longo das entrevistas realizadas com os membros das Velhas Guardas,
presente na segunda parte da dissertao, possvel perceber que a viso dos
entrevistados seria a de que o carnaval vivenciado por sua gerao seria no comercial,
e o que os movia era apenas a paixo pelo samba e pelo desfile, mesmo que este j
fosse oficializado e estabelecesse relaes com o Estado. Apesar de ainda estarem
ativos e participando diretamente das escolas de samba, eles veem o carnaval atual
como algo produzido pelo mercado cultural, para agradar a um pblico mais amplo, o
qual no tem ligaes com as comunidades das escolas e que apenas quer se divertir na
festividade. Para os entrevistados, essas pessoas s participam do carnaval porque, hoje,
desfilar em uma grande escola de samba sinnimo de status, j que elas aparecem na
televiso e o evento tem ampla cobertura miditica.
Conclumos, por fim, que inegvel que o processo de negociao dos
sambistas com os rgos pblicos e com a indstria cultural trouxe perdas e ganhos por
parte das escolas de samba. claro que estas negociaes se deram em instncias
diferentes de poderes, com diferentes formas de presso e imposio, como, por
exemplo, a do Estado, que, para patrocinar as escolas, imps um regulamento, mudou
os desfiles de lugar diversas vezes e, de certa forma, constituiu o modelo de carnaval
popular das duas cidades mais importantes do pas. Esta parceria com o poder pblico
transformou o carnaval popular em uma arte de massa, mediada pela indstria cultural.
Podemos perceber que padres competitivos da sociedade mais ampla foram
implantados dentro das escolas de samba, formando-se um mercado do samba, com
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concorrncia acirrada entre as entidades carnavalescas (SIMSON, 2007, p. 222).


Algumas escolas mais antigas, ligadas a uma administrao familiar, criaram esquemas
para se adaptar aos novos tempos, mas, muitas delas, como a Lavaps citada por
todos os entrevistados como uma das escolas mais organizadas do passado e exemplo a
ser seguido na dcada de 1960 , no se adaptaram e definharam, mantendo-se viva,
porm disputando os grupos inferiores e desfilando com pouco mais que uma centena
de componentes.
Nesse processo de profissionalizao das escolas de samba, os sambistas mais
velhos esto afastados das decises polticas das agremiaes e enxergam a prpria
inverso, caracterstica do carnaval comprometida, com a indstria cultural presente nos
desfiles das grandes escolas, pois o sambista pobre no possui nenhum destaque nestes
desfiles, so eles personagens que dedicaram boa parte da vida em prol dos folguedos
e, apesar da popularidade conquistada hoje pelas escolas de samba, esto excludas dos
meios de comunicao e da indstria cultural e no conseguem sobreviver atravs de
sua arte. Desenvolvem normalmente ofcios simples, pela pouca escolaridade que
tiveram, levam uma vida com privaes materiais e dedicam boa parte de seu tempo
para o samba e para o carnaval, desenvolvendo este ofcio voluntrio e enquadrado
como lazer. No entanto, no podemos esquecer que o processo histrico de se fazer
samba sempre esteve vinculado s classes subalternas. Mesmo sendo hegemnicos,
dentro dos festejos carnavalescos, os smbolos originais do samba no deixaram de ser
comunitrios e provincianos, pois tampouco se perdeu a mstica do batuque e da
comunicao com os smbolos espirituais da cultura afro-brasileira. No podemos
esquecer tambm dos sambistas idosos que mantm um papel e uma funo importante
e fundamental no mundo do carnaval e do samba.

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JORNAL DIRIO POPULAR

JORNAL FOLHA DA TARDE

JORNAL FOLHA DE SO PAULO

JORNAL GAZETA ESPORTIVA

JORNAL NOTCIAS POPULARES

JORNAL O ESTADO DE SO PAULO


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JORNAL TRIBUNA DA LAPA

JORNAL LTIMA HORA

REVISTA VEJA

REVISTA FATOS E FOTOS

REVISTA MANCHETE

3. VDEOS

Documentrio: SAMBA A PAULISTA. Fragmentos de uma histria esquecida,


Diretor: Gustavo Mello, Produo TV Cultura, 2007.
Documentrio: Seu Nen da Vila Matilde, direo de Carlos Cortez, So Paulo,
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FICHA TCNICA 1975. Centro de Documentao e Memria do Samba, FT 1975.


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FICHA TCNICA 1977. Centro de Documentao e Memria do Samba, FT 1977.

FICHA TCNICA 1978. Centro de Documentao e Memria do Samba, FT 1978.

FICHA TCNICA 1979. Centro de Documentao e Memria do Samba, FT 1979.

FICHA TCNICA 1980. Centro de Documentao e Memria do Samba, FT 1980.

FICHA TCNICA 1981. Centro de Documentao e Memria do Samba, FT 1981.

FICHA TCNICA 1982. Centro de Documentao e Memria do Samba, FT 1982.

FICHA TCNICA 1983. Centro de Documentao e Memria do Samba, FT 1983.

FICHA TCNICA 1984. Centro de Documentao e Memria do Samba, FT 1984.

FICHA TCNICA 1985. Centro de Documentao e Memria do Samba, FT 1985.

FICHA TCNICA 1986. Centro de Documentao e Memria do Samba, FT 1986.

389

390

FICHA TCNICA 1987. Centro de Documentao e Memria do Samba, FT 1987.

FICHA TCNICA 1988. Centro de Documentao e Memria do Samba, FT 1988.

FICHA TCNICA 1990. Centro de Documentao e Memria do Samba, FT 1990.

FICHA TCNICA 1992. Centro de Documentao e Memria do Samba, FT 1992

PASTA ANHEMBI TURISMO 1989. Centro de Documentao e Memria do Samba, AHB


1989.

PASTA ANHEMBI TURISMO 1990. Centro de Documentao e Memria do Samba, AHB


1990

PASTA ANHEMBI TURISMO 1991. Centro de Documentao e Memria do Samba, AHB


1991.

PASTA ANHEMBI TURISMO 1992. Centro de Documentao e Memria do Samba, AHB


1992.

PASTA ANHEMBI TURISMO 1993. Centro de Documentao e Memria do Samba, AHB


1993.
390

391

PASTA ANHEMBI TURISMO 1994. Centro de Documentao e Memria do Samba, AHB


1994.

PASTA ANHEMBI TURISMO 1995. Centro de Documentao e Memria do Samba, AHB


1995.

PASTA ANHEMBI TURISMO 1996. Centro de Documentao e Memria do Samba, AHB


1996.
5. ENTREVISTAS

MARCOS DOS SANTOS. Marcos dos Santos. Fundador da escola de samba Tom
Maior e diretor do Centro de Documentao e Memria do Samba (CDMS). Entrevista
realizada em 10 de agosto de 2010. So Paulo/SP.

MESTRE GABI. Gabriel de Souza Martins. Dirigente da FESEC e fundador e


presidente da presidente da Associao de Mestres Sala, Porta-Bandeiras e Estandartes
do Estado de So Paulo, a AMESPBEESP. Entrevista realizada em 25 de outubro de
2010. So Paulo/SP.
DONA CHINA. Emlia Feliciano Ferreira. Primeira porta-bandeira do Vai-Vai,
fundadora da escola de samba Unidos de Vila Carro e da Associao de Mestres Sala,
Porta-Bandeiras e Estandartes do Estado de So Paulo, a AMESPBEESP. Entrevista
realizada em 09 de julho de 2011. So Paulo/SP.

391

392

MESTRE DIVINO. Valdevino Batista da Silva. Diretor de bateria das escolas de samba
Camisa Verde e Branco, Nen de Vila Matilde e Imperial. Fundador e presidente da
escola de samba Imperial e ex-presidente da Unio das Escolas de Samba Paulistana
(UESP). Entrevista realizada em 15 de outubro de 2011. So Paulo/SP.

OSVALDINHO DA CUCA. Osvaldo Barro. Fundador da escola de samba Gavies da


Fiel, compositor e membro da Velha Guarda do Vai-Vai e primeiro cidado-samba da
cidade de So Paulo. Entrevista realizada em 21 de janeiro de 2012. So Paulo/SP.

LVARO CASADO. lvaro Ribeiro. Fundador da escola de samba Acadmicos do


Tatuap e ex-presidente da Unio das Escolas de Samba Paulistana (UESP). Entrevista
realizada em 01 de maio de 2012. Po/SP.

392

393

ANEXOS

393

394

ANEXO 1

394

395

395

396

ANEXO 2

396

397

ANEXO 3

397

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