Revista Iniciação n.7

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L'Initiation

Cadernos de Documentação Esotérica e Tradicional


Revista do Marcinismo e das Diversas Correntes Iniciáticas

Nº 7 - Outubro / Dezembro de 2002

Técnica da Via Cardíaca

Revistafandada em 18 8 8 por Papus (Dr. Gérard Encausse)


Reativada em 1953 pelo Dr. Philippe Encausse
L'Initiation
N° 7 - Outubro ! Dezembro de 2002
Cad(.-rnos de Doeumcm::ação
Esotéric.i e Tradicional Editorial 2
Revisr;.\ do Marrinismo e d:ts
Mário Willmersdorf J r.
Diversas Correnres lniciáricas
Discurso de Iniciação 3
EDl(ÃO EM LiNCUA PORTUGUESA
Papus
N°7 Zaratustra 6
Ournbro I Dezembro de 2002
Uma mensagem grandiosa (2ª parte)
Diretor Internacional Robert Delafolie
Yvcs-Fred Boisset (França)
Técnica da Via Cardíaca 16
Editor Robert Ambelain

_ rio \Xli.llmersdorf J r.
A Pedra Bruta 29
Design e Diagramapfo Fr. Zelator
J .C. rvfello I fdéia Digira!
O Tarô (4ª parte) 33
}orn11lii111 responsdl!I.:'/ · 'f Suzy Vandeven
Marco Antonio Courinho (MT: 13518)
A Fé - Faculdade espiritual 38
'Revista fundada em 1888 por Papus
(Dr. Gérar<l Encau.-.s<:) e reativada
Constam Chevillon
em 195] por Philippe Encaussc. O Romantismo 40
Urna puhlicaçáo rrimescral Robert Delafolie
de G'nosis EditoritlÍ
O Graal evocado no Parsifal 45
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I .ui?. Carlos Fraga
Nicolas Ivanovich Novikov - 56
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P.A.L.0.P. - e 44,00 Carta-prefacio a O Quadro Natural 59
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Números avulsos: Brasil - R$ 15,00
Papus
.
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l'A.L.OY - e 12,40
América do Sul - US$ 7.00 As Preces de L.-C. de Saint-Martin 63
Introdução ao Martinismo 66
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Correspondência:
ca [email protected]

Traduções: Mário Wi.llmersdorfJr.

As maréritu assinadas não refletem,


nerru,n·iu111.-n1:r, n 11piu;;io r-e.litnri,·d rle VJ11ii:iatiun, ��,
st•JJdo de intrira
rcsp()l1.,-ahílidadt• de seus autort's.

OS i R 1 S

1
vamos nos aproximando mansamente do final de mais um ano civil. Para
E nossa mãe Terra um período bastante doloroso, com novas e incessantes
agressões ao meio ambiente; inundações e queimadas por todo o mundo;
seca, correntes marinhas e calor canicular alterando os ciclos da agricultura.

Enquanto isto o bicho homem, sob a temerária liderança de águias e falcões


- alguns deles ocultando-se sob a máscara de baluartes do bem e da
democracia - vai sendo conduzido a novos conflitos localizados, que
ameaçam alastrar-se como fogo morro acima. Irmãos semitas afastam-se
cada vez mais da solução para suas desavenças, enquanto os bombardeios,
atentados, massacres e destruição enlutam seus povos.

Paralelamente, na vertente mística/esotérica/ocultista percebe-se um tênue


movimento de vazante, caracterizado pela evasão de membros,
especialmente das grandes ordens instituídas. Os jovens, especialmente,
buscam novos caminhos, maior abertura e menor coerção. Há que se abrir
novas opções para eles, que se encontrar novos meios que respondam às suas
legítimas ansiedades.

Paralelamente, ordens e associações ligadas ao que poderíamos chamar de a


contra-iniciação afiam suas garras, deixam escorregar ligeiramente o véu que
encobria suas feições e buscam, num movimento coordenado, infiltrar-se
nos movimentos tradicionais.

São os acontecimentos apocalípticos assinalando o final de um grande ciclo,


que se aproxima em passos firmes e inevitáveis. Mas é chegado também o
tempo das festas. Logo estaremos unidos na comemoração de mais um
Natal, momento em que, tradicionalmente, todos os irmãos se voltam para
uma reflexão, maior ou menor, mas sempre uma avaliação de atos, de
atitudes.

L'Initiation, a Gnosis Editorial e seus colaboradores, desejam a todos muita


Paz e Saúde. E que possamos todos, sob a direção dos nossos "Mestres
Passados'', constituir-nos em mais um elo consciente de luz na grande cadeia
universal da Paz e do Amor.

Amém'

Mrfrio Wi!fmersdo1fjr.

� ---
DISCURSO DE INICIAÇÃO
Papus

HOMEM,
Quiseste conhecer nossa fé, quiseste ser dos nossos. Nossa porta não está
fechada, ela encontra-se aberta para todos aqueles que sabem penetrar no
templo. Não temos sacerdotes e tanto podes chegar à fé só, como com a
ajuda de um adepto.

Nosso dever se limita a mostrar-te o caminho. Depois disto deves seguí­


lo só.

Escuta.

Nada sabes e queres aprender. Por que?

És infeliz e queres ser feliz. Crês que a ciência irá dar-te esta felicidade que
cobiças; crês, pelo trabalho, vencer o tédio que te oprime.

Escuta.

Tudo isto é verdade. Poderás ser feliz; mas não deves acreditar que a ciência,
a verdadeira ciência te tornará feliz pelo dinheiro. Não deves vir a nós se

queres uma ciência que te conduza às honras.

Se contas com a ciência para chegar, vai para as faculdades. Se queres tra­
balhar, lá te ensinarão todo o necessário para seres muitas coisas. Por lá
chegarás às dignidades, mas nunca à felicidade.

Sofrerás tudo o que se pode sofrer em teu espírito pois professarás. Se fores
independente serás infeliz, pois sentirás que o que te fazem dizer é falso. Se
fores submisso serás infeliz, pois verás que, chegado às mais altas honrarias,
serás tão infeliz quanto antes.

Essa felicidade que buscavas quando jovem, irás ainda buscá-la na velhice e
perdido nos dédalos da ciência atual; sentirás sempre, contemplando a
natureza, que te falta alguma coisa.

Escuta.

O verdadeiro adepto deve ser independente.

3
DISCURSO DE INICIAÇÃO

A alquimia não irá dar-te a fortuna corpor;i.l; eb te dad uma fortuna mais
durável, uma fortuna que as infelicidades não podem abalar: a fortuna
espiri tua!.

Por mais que sofras serás sempre mais feliz que o sábio corroído pelo ciúme
ou pelo orgulho e que o rico corroído pelo tédio. O tédio, a ambição e o
orgulho passarão longe de ti e por aí serás superior a todos os homens.

Se não és afortunado, viverás trabalhando mas não desvelarás os segredos de


que te terás apoderado.

Cada dia irá trazer-te um novo quinhão de riqueza intelectual e teu traba­
lho irá parecer-te cada dia mais leve.

Não acredites que minhas palavras estejam desprovidas de fundamento. Em


apoio a elas citar-te-ei o exemplo de mais de dois mil dos nossos, que vive­
ram calmos e modestos em meio às guerras mais cruéis, em meio aos sécu­
los mais perturbados e a felicidade sempre sorria aos seus olhos.

Chegado então àquele apogeu da felicidade intelectual, quando verás Deus


manifestar-se a ti, quando ser::ís justo e sábio para algum emprego, por
modesto que seja, do qual te ocupes entre os homens, serás sempre superior
ao sábio oficial.

Os dois caminhos se encontram abertos para ri, podes escolher. Repito que
não podemos dar-te nenhum bem estar material, só podemos conceder-te a
felicidade espiritual.

Escuta.

Antes de entrar no livro de Deus é necessário que olhes os homens.

Olha esse amigo que vende seu amigo pelo ouro, olha esses homens que
se destroem entre si pelo ouro, olha os sacerdotes que são corroídos pela
ambição das honras, olha esse médico que mata os homens para ganhar
mais e não se confessar impotente, olha ao teu redor; só verás em toda
parte a caça ao ouro. Tu mesmo vieste a nós acreditando enriquecer
mais rápido. Crês então, insensato, que nós também nos tenhamos
lançado na corrente que conduz ao desespero? Crês então que os
alquimistas são tão infelizes quanto os outros homens' Digo-te que
somos felizes em meio a todos os infelizes febris de hoje. Não crê, pois,
que pensemos no ouro.

4
DISCURSO DE INICIAÇÃO

E os verdadeiros adeptos que encontraram este segredo, como o teste­


munham as peças de ouro ainda hoje expostas nos museus estrangeiros, esses
adeptos, digo, morreram sem legar seu segredo; porque eles conheciam sufi­
cientemente os homens. Se a transmutação existe, o adepto não sonha com
ela pela riqueza que lhe irá proporcionar. Sonha com ela por ser para ele
uma ocasião a mais de encontrar-se perto de Deus e de orar a ele.

Se estudas a natureza, não esqueças que as descobertas não devem ser con­
tadas a todos indiferentemente.

Vê que os adeptos desconfiam dos homens e que tão logo tenham dado
alguns conselhos àquele que lhes parece digno, deixam-no sozinho na
natureza.

O adepto deve ser solitário em seus trabalhos e somente alguns alunos


devem ter conhecimento dele.

Se queres legar teus trabalhos aos descendentes, segue os conselhos de nos­


sos mestres.

Hermes, o trismegisto, que sabia a história da lua e do céu, Jehan de


Londres, que sabia explicar os signos herméticos e nossos outros grandes
mestres recomendam todos falar apenas por parábolas.

O orgulhoso não deve conhecer nossa língua, ele deve rir dela e aí está a sua
punição.

Esta matéria foi publicada no N° 1 de 1996


da edição .francesa de I..:Initiation.

5
Z°ARATUSTRA
Uma Mensagem Grandiosa!
2ª PARTE 1

Robert Delefolie

cosmogonia e a met:-ifísic:-i estão pre se ntes cm toe-Li p a rt e no ensina­


A mento de Zaratustra, que morreu apunhalado pouco ;1ntes de comple­
tar vinte e quatro anos enquanto oficiava diante do altar do Fogo. Morto
,

de morte violenta. Assim havi:-im morrido Mani (Manes) e M azda k e não


poucos outros profetas arianos e iranianos - eles que preg ar a m a não-vio­
lência e o não lesivo em rel ação a todas as formas de vida.

As doutrinas Zoroastrianas aparecem, nesta civilização rnazdeana, exaltando


o combate grandioso da Luz (Ormuzd, Ahura Mazda) contra as Trevas de
Arimã, um esquema que voltaremos a encontrar, sob formas idênticas ou
não, nas grandes religiões do Orien r c e do Ocidente, apesar das aparências
inteiramente diferentes.

Que se questiona ao justo, Que


é de nossas crenças? "Espiri­ 1:·�.'
tualistas", "racionalistas", "1nate­ . .,,.
,
.\
rialistas"? Pois se trata exata­ .. ·. , _:.;

mente de crenças... criação,


.. ..., ,.

manifestação, evolução, invo­


$;;{
lução, panteísmo? Ateísmo?
Teísmo? É Deus pessoal ou

1 A primeira parte deste artigo foi publicada no número anterior da revista (N� 6 - Julho/Setembro de 2002.)

6
ZARATUSTRA

impessoal? É ele bom mas impotente? Ou desprovido de bondade e todo­


poderoso? É o mundo obra de Deus ou de um demiurgo? É ele o demiurgo
derivado, desviado, de Deus? E o próprio demiurgo? É ele pessoal ou impes­
soal? É ele, talvez, todos nós?

Grandes e sérias questões! As únicas verdadeiras questões!

De onde vêm então o mundo e o homem? E de onde vem o mal?

Não poucas pessoas, nas multidões dualistas de todas as épocas, e outros


não-dualistas, disseram e dizem: "O mundo e o mal são semelhantes". Alguns
acrescentam que o homem se vira muito bem nele, o que não chega a ser
uma honra.

É verdade que cada instante da existência assemelha-se a um monstruoso e


insensato festival de consumo e de competição, recoberto aqui e ali por fal­
sas aparências e por fachadas.

No que concerne ao humano - talvez ápice, e quiçá muito provisório, do


mundo terrestre - parece que suas morais têm todas o ar de uma "história
de trapaceiros". Sabemos que as mais famosas e os civilizados mais célebres
foram e são às vezes (muito freqüentemente) mais cruéis e mais criminosos
que os outros.

Afinal de contas, que significam a paz, a justiça, a justeza, a bondade, a


honestidade, a verdade, etc., sempre tão incompletas, tão parciais? E, no
entanto, elas fazem a existência suportável. .. de tempos em tempos, sob a
condição de contentar-se com um altruísmo razoavelmente egoísta...
pequeno e estreito como a mesquinharia ordinária de cima a baixo da
escala social...

Os melhores pensamentos evocam um homem que seria humano. Por


enquanto não se trata de uma evidência flagrante, já que o homem em
questão ainda ignora a gratuidade moral e material em relação aos seus
semelhantes; e, no que concerne aos seus dessemelhantes, ou seja, os mun­
dos animal e natural, ele se situa sempre nas práticas da criação em série, do
abatedouro e do laboratório, nas caçadas, corridas e combates de animais,
sem esquecer nem o abandono puro e simples dos mais impotentes e dos
mais inocentes, nem os massacres colossais da natureza, da terra e do mundo
que nos são confiados.

Compensações tão rasas e pálidas quanto a sua credulidade e suas supers­


tições fetichistas para as multidões de dignidades particulares que ele con-

7
ZARATUSTRA

cede e distribui em todas as direções, segundo multidões de critérios, de


condições, de considerações de toda espécie - dignidades irrisórias que não
passam, afinal de contas, de um atentado permanente à DIGNIDADE do Ser
e do Vivente.

A existência esmaga tran qüilamente a vida pelas vias brutais ou banais da


força, da astúcia, da ciência, da sorte ou do azar. Naturalmente cultura e tec­
nologia mudam muitas coisas. Infelizmente, cultura e tecnologia mudam...
tudo... salvo... a VIDA.

Então, diante do mundo que não pára de mover-se, mas que não .muda,
Zaratustra ergue o estandarte da revolta "de uma não-perturbação integral e
da paz total". Ele não se insurge contra o estado de coisas de um país ou de
uma época, de um modo de vida particular ou de um regime social, políti­
co ou econômico; nem também a favor ou contra tal ou qual categoria de
indivíduos, de seres viventes, porque segundo sua visão todas são pegas pela
engrenagem desse mundo deteriorado (o nosso) que crê ser o mundo.

A guerra empreendida por Zaratustra se prende, naturalmente, à ordem das


coisas: ordem moral, material e cultural, mas igualmente ordem natural e
mesmo espiritual. Sim, guerra contra a ignorância dirigida e dirigente,
crente e descrente, iletrada e letrada, encerrada em um processo aberrante,
perdida em seu próprio interior por valores irrisórios, julgados por ele fora
de questão.

No fundo, a exortação zoroastriana se dirige mais a urna minoria patrícia do


que a uma maioria plebéia. É a própria natureza de um discurso transcen­
dente. Na verdade, a predicação do "homem de luz" é profundamente mais
aristocrática e democr�ítica que qualquer palavra aristocdtica e democrática.
Pois a honra e a felicidade por ela aí evocadas s:fo consideradas em sua tota­
lidade essencial e concernem tamhém à totalidade essencial das individuali­
dades, ou seja, de uma aristocracia e de uma den1ocracia integrais e realizadas.

Aliás, do ponto de vista do profeta, não fica claro que boas e más ações rião
constituem, por si só, o Bem e o Mal, mas as expressões do Bem e do Mal.

Pensemos no rei Amfortas que se serviu da lança divina, com toda a sin­
ceri da de , como de uma arma para salvar o Graal, ao invés de servi-la, a ela,
à luz divina! Amfortas quis servir o Céu através de meios terrestres. Ora, será
que o fim justifica os meios? Mas o fim divino não está nos meios. Eis a ver­
dade! E o enigma é esclarecido pela fé casta de Parsifal, que leva a mão ao
seu flanco, porque ele sofre o sofrimento de Amfortas por uma compaixão

8
ZARATUSTRA

acima da razão. "Redenção ao Redentor". Resolução da questão: "Por que o


mundo e seu sofrimento?" Pergunta sem resposta, pois está evidente que 'a
pergunta é resposta"; de fato, boas e más ações são sempre relativas.
Inversamente ao Verdadeiro Bem a ao Verdadeiro Deus, o mal total nasce
antes mesmo de qualquer má ação, estando já no EU.

Pode parecer arriscado identificar traços zoroastrianos no mundo medieval


ocidental, romano/merovíngio; mas é exatamente disso que se trata. Nada
impede, aliás, de perceber os mesmos temas em obras tão variadas quanto A
Divina Comédia, Don Quixote, os Faustos de Marlowe, de Goethe e dos ou­
tros - ou ainda nas narrativas sobre a Hiperbórea e Tuléia - tão natural­
mente quanto na obra monumental de Richard Wagner e na de Novalis,
cujas correspondências com as correntes ocultas e secretas dos romantismos
europeus, sobretudo o alemão, são bastante conhecidas, constituindo-se elas
mesmas em causas profundas e poderosas das perturbações planetárias dos
séculos XIX e XX .

Além do que é seguramente muito


cedo para avaliar-se as partes construti­
vas e destrutivas dos enormes fracassos
do século XX Mais do que qualquer
.

outro, o século XX misturou nos mes­


mos terremotos gigantescos, titânicos,
a arte, o teatro, a literatura e toda a
cultura, com a religião, a política, a
filosofia e as massas colossais de acon­
tecimentos militares.
" ' ��
Talvez seja sempre muito cedo para
julgar, quando se sabe que a subversão
;;;:,:yi.,
� . .' ·- �· \-:>.'
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No século XX, mais do que em qualquer outro
- -·

: . . • ,_� ' :"�,
não passa, muito freqüentemente, da tempo, houve uma simultaneidade de grandes
subversão em relação a uma falsa sucessos e outros tantos desastres. Cultura,
ordem estabelecida - de fato uma religião. política e filosofia se interpenetraram,
"des-ordem". como nas manifestações de massa que ante­
cederam a queda do comunismo na Polônia.
Teria eu a mania da enumeração? Só
penso algo após haver concluído. De fato, como deixar de citar as extra­
ordinárias e coerentes perspectivas cósmicas e metafísicas de Jacob Boehme,
de Swedenborg, de Martinez de Pasqually, de Louis-Claude de Saint­
Martin, de Jean-Baptiste Willermoz, a propósito da queda e da reintegração
e do grito lancinante desta criação sofredora e: atenta de sua liberação e da

9
ZARATUSTRA

reintegração dos mundos, na e pela reconciliação de Deus, do Homem e do


Universo (ver Paulo, Epístola aos Romanos). É muito instrutivo constatar a
que ponto o esoterismo cristão e a Cabala - corno as mais profundas me­
ditações do norte ao sul e Jo oriente ao ocidente - vêem sempre a realiza­
ção divina na salvação, na unicidade e na libertação de todos os seres e de
todas as coisas.

A idéia de uma "Grande Tradição Primordial" intemporal e universal surgiu


no esplendor que uniu todas as religiões, as iniciações, as tradições verídicas,
sob as aparências enganadoras de igrejas, de cismas, de heresias, de gnoses
ou de filosofias e teosofias auto-proclamadas incompatíveis.

Naturalmente, tudo sobe e converge, desde que se V<1 efetivamente ao fundo


elas coisas, rumo à pura essência que ui trapassa (incluindo-as) toda as
existências. Que dizer das miríades de universos além do pensamento e da
compreensão, Será o universo finito? Impensável! Ser:í. ele finito? O que
parece talvez indis­
pensável, mas ao
mesmo tempo in­
concebível, tanto
para o mtcrocosmo
quanto para o ma­
crocosmo, tanto no
tempo quanto no
espaço. Que há além
ela dualidade de
nossas ações e, prin­
cipalmente, de nos­
sos pensamentos?
Por que não evocar,
como Zaratustra,
uma moral ideal e
As miríades de universos e sua inimaginável extensão ainda hoje
total, indefinida, uma
desafiam a compreensão humana (Galáxia espiral M-51)
moral soberana que,
do alto dos píncaros inacessíveis, nos revele que os valores humanos autên­
ticos são constantemente diminuídos e rebaixados por nós mesmos, ao nível
das nossas imperfeições e limitações?

O hu111a110 verdadeiro só poderia, entretanto, orientar-se rumo a uma sen­


sibilidade sem limite, um amor, uma luz, uma felicidade e t1ma honrn que
não parariam jamais em lugar algum.

10 --·--
ZARATUSTRA

O pessimismo reputado impiedoso de Mazda e Mazak, antes e depois de


Zoroastro, de Mani e dos cátaros, dos gnósticos e dos dualistas, só se opõe
na aparência, na superfície, ao otimismo dinâmico da Zaratustra e à extra­
ordinária atenção dedicada por ele a todos os animais, a toda existência em
todos os reinos da criação, todos semelhantemente amados, ajudados, trata­
dos, respeitados e considerados. Aliás, entre os dualistas radicais e os
próprios dualistas mitigados (dualidade irrevogável e intemporal, ou tem­
poral), a oposição tem, também lá, algo de artificial e de incerto, porque
parece que o triunfo final do Bem divino e absoluto seja considerado prin­
cipalmente entre uns e outros, a um termo mais ou menos longo, sem outra
divergência.

E se o encararmos bem de perto, o antagonismo entre cátaros e católicos não


é, em si, uma evidência indiscutível.

Queda e Reintegração encontram-se, num e noutro, associadas na "tragédia


cósmica" de um mundo caído, desmoronado, aniquilado por ele mesmo e
decomposto, divido em todas as suas manifestações.

Em um universo de tal forma degradado, oposto a si mesmo em permanên­


cia, o menor indivíduo vivo - portanto cada um - encontra-se face a face
com as mesmas lamentáveis condições e contradições da existência e com as
confusões que as acompanham. Assim, no que concerne ao humano, ele fusti­
ga comumente o racismo grosseiro e flagrante nos grandes dias, praticando
diuturnamente um racismo inconsciente e sutil, que ultrapassa as condições
fisiológicas e étnicas. Acima das seleções nacionais, rac1a1s, soc1a1s,
desabrocham os comportamentos seletivos em relação às pessoas e às espécies,
ou segundo as considerações de clãs, de sexo, de idade, de espaço ou outras...

A linha ordinária de conduta humana mistura regularmente os v alo res e


contenta-se com um certo "não mal" ou com um "menos mal" disfarçado
de "Bem". Estamos todos nisto, o que nos permite qualificar de altruísmo o
egoísmo grupal, o egoísmo coletivo.

Na verdade, com termos diferentes e há dois mil e quinhentos anos de inter­


valo, Zaratustra assimilava muito bem o homem civilizado ao homem "dis­
farçado" e o homem social à acomodação contínua, necessariamente covarde
- ou pelo menos não muito corajosa. Donde, conseqüentemente, seu olhar
impiedoso sobre os valores, virtudes e verdades sociais que, destinados a
transformar a selva, são muito freqüentemente transformados pela selva.
Corn uma interroga c;:ão que sempre retorna: "Só pode o humano viver de
utopia?", ou ainda "Não quer ele viver a utopia?"

11
ZARATUSTRA

Reside justamente aí a enorme e seriíssima questão de um único "valor-ver­


dade-virtude cardinal" que encerra tudo e esd finalmente sempre presente
no coração de todas as grandes mens:1gens fundament:1is dirigid:1s :1
humanidade desde tempos imemoriais.

Trata-se aqui, de fato, DA quescão vital. É exatamente por isto que os ensi­
namentos primordiais, preocupações essenciais de Zaratustr1 e de todos os
seu.s suce.ssores (mais ou menos próximos), dão prioridade ab.soluta e
incondicional à natureza do ser (humano ou outro), à conduta mornl, ge­
nerosa, fraterna, atenciosa e misericordios:1 para com todos os que sofrem,
sem qualquer exceção, restrição ou seleção.

Cuidar dos animais, por exemplo, implica aqui toda a recusa de escolher
entre animais domésticos, companheiros incômodos ou selvagens. O
mesmo se aplic1 a toda a natureza. O humano é naturalmente considerado,
antes de tudo, por sua bondade, seu sofrimento, e não por ser ele útil ou
bom para a marcha da sociedade. Uma ética superior é, segundo Zaratustra,
a do respeito completo, da doçura, da caridade e da benevolência em relação
a toda a existência. Zaratustra vê e vive em toda parte a individualidade di­
vina, condição intrínseca da única e verdadeira Paz.

Diferença e preferência são para ele insuportáveis e uma emoção ilimitada e


patética o invade diante de tudo o que é perseguido, desprezado, abando­
nado ou esquecido e, singularmente, quando se trata de seres, de existências,
julgados insignificantes pela desdenhosa ignorância terrestre.

Edificante é a citação, por Zaratustra, do "lamento do boi ao criador": "...


onde está o homem que criastes pela solicitude para com todos os seres???"

Edificantes, os hinos exaltando a tomada de consciência superior do homem


na via elevada, voltado a todos os seres, em todos os reinos da criação.

Edificante, o profeta, o homem da luz, Zaratustra, exultando na alegria ao


constatar "o homem-bom-em-relação-a-tudo", porque "somente o Amor
por tudo é o Amor".

Edificantes e sem concessão, os textos sagrados de Zaratustra, do Avesta, dos


Gathas, dos Rivayats, cosmologia, liturgia, mitologia e escatologia, unindo
a ressurreição e a transfiguração do mundo e do homem metamorfoseado,
ideal moral e material.

O êxito terrestre preconizado por Zaratustra é exatamente o contrário ela


idéia do êxito do ano 2000. Ele é incondicionalmente ultra-altruísta.

12 -- ---
ZARATUSTRA

Testemunha uma suprema


harmonia que não esquece
nada nem ninguém. Mesmo a
morte é aí convertida pela
vida. Nem inumação, nem
incineração dos defuntos
depostos e dispostos nas
"Torres do Silêncio" e ofereci­
dos aos abutres.
<

Caridade e benevolência
:.Il���
indizíveis regram a vida coti­
Torres do Fogo - aqui os persas faziam arder
diana zoroastriana e se dirigem um fogo perpétuo para Ahura-Mazda.
aos animais, à natureza inteira,
como aos humanos, da mesma maneira, sem qualquer exceção, com o reco­
nhecimento da dignidade absoluta de todos os seres, humanos ou outros.

A compaixão, a simpatia, o amor comovente pelo gado, são significativos da


profundidade da comunhão estabelecida entre o divino, o humano e a rea­
lidade da totalidade da criação.

A partir daí, parece muito natural que o homem não esteja nesta terra para
a preocupação prosaica de seus objetivos, bens e necessidades práticas, nem
de seus objetivos egoístas ou de um altruísmo limitado. A questão não é,
portanto, a do "super-homem", já que simplesmente o homem, o homem
verdadeiro, humano, ainda não se encontra lá. Para Zaratustra, o humano,
o puramente humano, está ainda e sempre "por vir".

O ensinamento de Zaratustra vem sendo regularmente qualificado de eli­


tista. A elite! Eis aí uma palavra que ainda se presta à confusão. Zaratustra,
seus epóptas, adeptos, discípulos, sempre evocaram a elite. Mas a única elite
por eles reconhecida é a de bondade e de amor por tudo o que existe. Ela
está infinitamente acima de todas as considerações de nação, de raça, de
casta e de talentos, de natureza, de espécie, de pessoa, ou ainda das
condições de tempo e de espaço; fala-se aqui apenas da elite ideal e total de
uma extraordinária e exclusiva exigência moral e espiritual. Nada a ver, nada
a fazer, com as instituições ou constituições, nem com as qualidades ou fa­
culdades necessárias ao interesse (legítimo ou não) das nações, das
sociedades, das cidades, das categorias.

Essa elite celestial encontra-se ilustrada nas narrativas da Ordem da Távola


Redonda, onde somente o cavaleiro Galaad vê o coração do Santo Graal,

13
ZARATUSTRA

porque somente Galaad é ;:i individua­


lidade divin:i (antítese irrevog;Ível de
qualquer "cu" pessoal) a serviço não de
si ou dos seus, mas de Deus e de Tudo.
Ele não é nada por si mesmo. Ele é
tudo, porque está no mais profundo de
todos os seres, que ainda não o sabem.

Como já o dissemos, as maiores luzes


da humanidade (Zaratustra, o Buda,
Jesus) encontraram incompreensões
similares junto às instituições e popu­
lações em suas próprias pátrias. E que
dizer de Isaías, de Manes, de
Ramakrishna? Mesma história, mesma
Galaad. o único a ver o coração do Santo
legenda, mesma mensagem!
Graal. em ilustração de Dante Gabriel
Evidentemente, para cada um deles, as
Rossetti (1857)
conseqüências da Palavra vão bem
mais longe e bem mais alto que as mor:iis sociais de um país, de uma época,
etc. Não há, aliás, comparação possível. Assim, os ensinamentos de
Zaratustra concernem sempre a todas as categorias de seres, sem qualquer
triagem ou filtragem, exceção ou seleção. Também neste sentido a men­
sagem em questão é, entre outras coisas capitais, o inspirador divino da ca­
valaria essencial, celestial. Como se dizia na Europa medieval:" ... Faz o que
deve ser feito por viúva ou órfão, sem preocupar-te com quem ou que". Fica
bastante claro que aparece aqui, em Zaratustra, "a sombra luminosa" daqui­
lo que ultrapassa a inteligência (aquilo que chamamos de inteligência). O
discurso é límpido: "enquanto o ser humano não sentir uma emoção ime­
diata e infinita, ao simples pensamento da infelicidade de quem quer que
seja, enquanto o ser humano não se insurgir, em todo o seu ser, diante da
idéia mesmo da separatividade na vida e na morte, é porque a pura
humanidade real e eterna está ainda e sempre muito longe se de cumprir".

No seio dos acontecimentos que demarcam os séculos no coração mesmo da


iniqüidade e do caos, lá estão os sinais, imperceptíveis e, no entanto, presentes
em toda parte nas religiões e nas mitologias, assim como nas iniciações e nas
trndi<;=õcs, mas igualmente em todo mo1nento e em todas as circunstâncias, na
vida, na rua e em outras partes. É a expressão dos mais altos mistérios, do
único e verdadeiro grand<: ><eg1·edo, rnilagrc u1-,.iversnl, nind:> e sempre invisível.
ainda que mais verdadeiro que todas as verdades visíveis expressas na arte, no

14
ZARATUSTRA

teatro, na literatura, na poesia e na musica, da natureza, da história, na ver­


dade há algo lá que ultrapassa o entendimento e a imaginação ordinários da
humanidade, bem além das formas inumeráveis da incultura e da cultura.

É um mundo de amor puro, de um amor que não crê, que não escolhe, que
não conclui e não exclui, porque ele abraça - e inflama - todas as espe­
ranças e todas as aparências do homem e do mundo, ao mesmo tempo que
aniquila as pretensões de não importa que objetivos terrestres, os quais, dos
menores aos maiores, são sempre pequenos e irrisórios diante de uma ele­
vação espiritual tão integral, porque celestial, e da amplitude desconhecida
de uma fraternidade que não esquece jamais nenhum ser de qualquer espé­
cie e de qualquer reino. Que relativiza, e mesmo ridiculariza, toda vaidade e
toda satisfação pessoais, sejam elas merecidas, herdadas ou monopolizadas.

E eis a promessa de Zaratustra: "Do mais fundo o universo, de cada um


dentre nós todos, a vinda do homem superior a si mesmo, senhor de si
mesmo, servidor de Deus e do Céu, salvador da Terra e dos Mundos".

A vida eterna, a vida essencial, é forçosamente universal, porque o Reino de


Deus está lá, onde ninguém ainda vê na história, devido à cegueira egocên­
trica (eu e os meus). O humano é o co-operário de Deus se criando e se
cumprindo. Cada um salvador-salvo. A vida inteira é transfigurada em cele­
bração. A partir daí, toda vida é santa e sagrada.

A alma humana volta a ser a passagem do Amor Divino infinito rumo a


todos os mundos, reinos, seres, humanos e outros, preparando santas e ele­
vadas... reconciliação, redenção, reintegração, de tudo o que vive, sofre e
espera, ou seja: TUDO.

Não se trata de grandes frases, de belas palavras! Não, o verdadeiro não


sonha. Zaratustra também não. São mundo e homem que sonham pelo
pesadelo do Eu e dos Meus, o que é a mesma coisa. Não, não o sonho, mas
o despertar da verdadeira vida íntima e última, no fim dos tempos e no
instante, redescoberto em cada parcela da existência humana e outra, a
sublime luz divina que inclui tudo, eternamente.

Esta matéria foi publicada originalmente no N° 4 de 2000


da edição francesa de I...:lnitiation.

15
TÉCNICA DA VIA CARDÍACA

Robert Ambelain

"Os egípcios representam o céu, que por ser eterno não pode
envelhecer, por um coração pousado sobre um braseiro, cu;a
chama mantém seu ardor. .. "

(Plutarco: Ísis e Osíris)

O coração, órgão físico, é ig ua lm c m e a sede de u!ll centro psíquico e de uma


atividade espiritual. Repousam nele, portanto, associados como cm um
emocionante resumo do HOMEM, os três estados deste último: soma (o
c o rpo ) , psique (a a l ma ) , now (o espírito).

Desde a mais remota antigui­


dade vemos o Coração exprimir
o Homem essencial. O dólmen
de Croisic, com diversos outros
símbolos, apresenta-nos um
coração cm relevo, e isto nos
reporta aos tempos neolíticos. O
Egito, que representava o
coração do homem e o da divin­
dade pela imagem de um vaso e
pelo fruto do abacateiro, fazia
dele a sede da alma humana.
Platão afastou-se desta tradição e
fez dele a sede da inteligência.
São Jerônimo o retomou: "Os
naturalistas perguntam onde
reside particularmente a alma;
Platão pretende que é no cére­
Para Platão o coração era a sede da inteligência
(Herma preservada no Museu do Vaticano). bro, enquanto Jesus Cristo nos
ensina que é r.o coração... "

É por isto que os egípcios colocavam na entrada de suas casas um coração


encimado por uma cruz, sírnbolo bastante semelhante a0 que atualmente
conhecemos como um símbolo católico. Numa estela conser vada no Museu
de Turim, lemos que um egípcio de nome Beka rejubilava-se de ter sido,

16
TÉCNIGA DA VIA CARDÍACA

f .i
Osíris preside o tribunal onde os deuses infernais pesam numa balança as virtudes e pecados
do morto. que avança vestido de branco (Museu do Louvre).

durante sua vida, "um homem justo, verdadeiro, bom, tendo colocado o
Deus supremo em seu coração. ". .. É por isto que, quando de seu
Julgamento póstumo, quando, diante de Osíris, Maat, a deusa da Verdade,
for pesar seu coração de defunto, este não mais temerá os castigos do
Amenti, porque um homem em cujo coração reside a Divindade não poderia ser
condenado. Mais tarde São Paulo nos diria: "Não sou mais eu que vivo, é o
Cristo que vive em mim... . "

No livro Le Bestiaire du Christ (O Bestiário do Cristo), de L. Charbounneau­


Lassay, encontraremos um iconografia cardíaca bastante interessante, reve­
lando o domínio da mística, e indo do século III de nossa era aos nossos dias.

Ora, no Tantrismo, existem, entre os chacras, centros de força ainda muito


mal conhecidos, e que os diversos tipos de iogues tendem a esforçar-se a des­
pertar através de técnicas às vezes muito diferentes. Há, na altura do coração
físico, um chacra denominado Anâhata Chakra. Ele é o quarto a partir da
base da medula espinhal. Seu nome deriva do fato de que o iogue pode
ouvir, desse centro psíquico particular, "o som que nasce no silêncio". Esse
som é chamado, na verdade, de anâhata shabda, ou "som da V ida". Para a
doutrina tântrica, é nesse chacra que reside a alma vital: Jivâtmá.

Os videntes percebem esse chacra como tendo doze "pétalas".

Na parte inferior do anâhata chakra, exatamente à altura do coração físico,


com o q•tal, alid.s, ele u interpenetra. enc;; ontra-se o "lótus do coração",
denominado ânanda Kanda. É o chacra de oito pétalas, que irradia uma bela
cor vermelha. O Mahânirvâna Tantra, tratado de ioga tântrico, recomenda
ao iogue de lá imaginar sua deidade preferida, repousando à sombra de uma

17
TÉCNICA DA VIA CARDÍACA

árvore magnífica, cercada de um jardim paradisíaco, cheio de flores, de fru­


tos e de esplêndidos pássaros. Outros tratados recomendam visualizá-lo
como um coração irradiante, cercado de chamas. Esta imagem é curiosa, por
estar absolutamente conforme à visão dita do "Sagrado Coração", pela irmã
Marie Alacoque. Em The Serpent Power (A Força da Serpente), Arthur
Avalon, aliás, Sir John Woodroffe, nos determina que o anâhata chakra,
como de resto todos os outros chacras, traz uma experiência que lhe é pecu­
liar: "No quarto centro, o homem conhece instintivamente as alegrias e as
penas dos outros, reproduzindo às vezes cm si próprio seus males e seus
sofrimentos físicos... .
"

A cada um dos chacras corresponde um som, que a ioga tântrica denomina


um mantra. Esta palavra deriva da raiz sânscrita man, significando o verbo
pensar, e também o Homem. A tradição tântrica ensina que o som mental é
superior ao som físico e, portanto, mais grosseiro.

O mantra é exprimido por uma seqüência de letras, e portanto de sons, não


passando essas letras da representação de signos de lembranças. Quer se trate
de letras ou de sons, o conjunto é tecnicamente reunido a fim de produzir
um efeito determinado. Seria um erro grave buscar um sentido literal para
um mantra. Seja ele traduzível ou não, o mantra (e os sons que o compõem)
age por si mesmo. Tal como um enca nt a me nto (e o mantra não é outra
coisa), ele comporta muito freqüentemente uma terminação (bija) particu­
lar: om (pronunciar com "m" mudo). Não são todos os mantras que a
trazem, mas os que terminam desta forma são revestidos de um cad.ter mais
sagrado que os outros. Este som. (om) é chamado pelos t:lntricos "a mãe de
todos os mantras". Todos conhecem a célebre invocaç::ío hmaica:

"OM.MA.NJ.PA.DME.H'UM.I-IR'!."
que geralmente se traduz por "Oh, a jriirt no Lrítus... ", o que não quer dizer
rigorosamente nada de claro! Na verdade, esses sons são evocativos de idéias
- nada mais do que isto - e é nesta qualidade que aco mpanham toda
medi ração.

Há dois graus na meditação. O primeiro é o estado criaclor, no qual o tân­


trico cria mentalmente a deidade com a qual ele vai buscar se harmonizar.
Estn é un�a prátic" prcp<tratóri::i. H::í em seguida o estado pe1jéito no qual a
deidade (sua imagem mental) é absorvida no corpo do discípulo, e mais par­
ticulanncnte, pelo chacra que lhe corresponde. Deve resultar daí o que o
Oriente chama o Samadhi e o Ocidente o Êxtase.

18
TÉCNICA DA VIA CARDÍACA

Há três centros de absorção das deidades particularmente importantes no


corpo humano: o coração, a garganta e o cérebro. Coração e cérebro são os dois
centros essenciais para o Tantrismo. O Coração compreende quarenta e dLas
deidades, o cérebro cinqüenta e oito, ou seja, um total de cem. As deidades do
coração são as pacíficas e benfazejas e as do cérebro são ditas horríficas e temíveis.

O Coração é chamado "Centro do Sul", e o Cérebro "Centro do Norte".


Perceber-se-á que as deidades horríficas estão, pois, no Tantrismo, simboli­
c::unente ligadas ao Norte, da mesma forma que no Ocidente os demônios
estão simbolicamente ligados a esta região do Espaço (as fontes batismais
estão orientadas desta forma nas catedrais). Por outro lado, as deidades pací­
ficas do Coração são representadas em amarelo, branco e verde, enquanto
que as horríficas, do Cérebro, o são em vermelho e preto.

Notemos, enfim, visando ao que veremos a seguir, que o lamaísmo tibetano


utiliza, para as meditações, uma cadeira de um tipo particular, o Sgam khri
(pronúncia gamtl). Trata-se de uma caixa de madeira bastante baixa, que
tem um de seus lados suficientemente alto para que o lama, sentando-se
dentro, pernas cruzadas, na postura dita de "lótus'', possa apoiar sua cabeça
contra esse espaldar. Os três outros lados permitem conservar a postura
requerida, mesmo se o meditador cai em uma espécie de sonho acordado.
Uma almofada bem dura é colocada sobre o fundo desta cadeira sem pés.

Alguns gomtchen (eremitas tibetanos) dormem nesta caixa sem jamais esten­
der-se. O que chamamos de gremial no Ocidente, e que eles chamam de
sgom thag (pronúncia: gom thag), larga estola de pano encorpado, às vezes
uma simples corda de tecido, serve-lhes de sustentáculo e permite-lhes man­
ter o busto reto durante a meditação, o samadhi, ou o simples sono.

Durante suas meditações, os tântricos têm geralmente diante dos olhos uma
espécie de p antáculo, chamado yantra, traçado geométrico d e cores precisas,
cujas figuras são acompanhadas por letras sânscritas, tudo colocado sobre
um suporte apropriado, geralmente de casca de bétula. Quando de seu esta­
belecimento, o yantra foi, necessariamente, "animado" no decorrer de um
ritual comportando oferendas: flores, água lustral, e para que essa animação
seja efetivamente realizada, os elementos da realização do yantra devem ser
extraídos de substâncias vivas. É o caso da tinta colorida com a qual se
traçam, principalmente, os esquemas e as letras. Enfim, tanto quando do
estabelecimento do yantra, como quando de sua vitalização ou de seu
emprego ulterior, o tântrico fará uso abundante de mantras e de fumigações
odoríficas (incenso, óleos, etc ... ), de um rosário e de objetos diversos, sem­
pre peculiares ao lamaísmo.

19
TÉCNICA DA VIA CARDÍACA

* *

Chegamos agora ao estudo de uma técnica equivalente no Cristianismo. O


Oriente cristão conservou os processos de mística ativa, através dos quais
seus monges obtêm resultados espirituais extremamente curiosos. Isto
porque as duas doutrinas se separaram num ponto de doutrina misterioso,
relativo ao Espírito Santo, fonte da "divinização" do Homem reintegrado.
"A atitude heróica dos grandes santos da cristandade ocidental, observa V.
Lossky em presa à dor de uma separação trágica com Deus - a noite místi­
ca, como via e como necessidade espiritual - é desconhecida da espiritua­
lidade da Igreja do Oriente... Duas concepções dogmáticas diferentes cor­
respondem a duas experiências, a duas vias de santificação, que em momen­
to algum se assemelham. As vias que conduzem à santidade não são as mes­
mas para o Ocidente e para o Oriente após a separação ... "

O que é absolutamente cerro (e sem atribuir a esses estranhos fenômenos


uma importância exagerada), é que a mística do Ocidente repousa sobre a
imitação do Cristo Doloroso, e a mística do Oriente sobre a do Cristo
Glorioso. Além do mais, para o Oriente cristão, o amor é inseparável do
conhecimento, da gnose. É uma nota de consciência pessoal sem a qual a via
rumo à união seria cega, sem objetivo determinado, o que S;i.o Macário o
egípcio chama de "uma ascese ilusória ... ". E São Doroteu declara formal­
mente que "a via ascética fora da gnose não tem qualquer valor... ."

Ora, os santos das Igrejas do Oriente - o que é absolutamente estupefi­


cante - nunca receberam os famosos "estigmatas", não tendo sido nenhum
deles jamais marcado. Por outro lado, um certo número deles conheceu o
fenômeno da TiYlnsfiguração: o rosto tornando-se luminoso na escuridão, o
corpo irradiando luz na penumbra, ou aparecendo iluminado do interior,
etc ...

Paralelamente, nenhum santo da Igreja do Ocidente jamais conheceu o


fenômeno da Transfiguração, mas alguns dentre eles receberam a
"Estig111atização "...

Quando se sabe que esses fenômenos sobrevêm sempre de forma brutal, sem
qualquer progressão, sem que o "suporte" tenha sido prevenido, sem que os

20
TÉCNICA DA VIA CARDÍACA

espere, e ainda menos os busque, só podemos ser levados ao resultado de uma


técnica particular, das quais esses fenômenos são os resultados, os "frutos",
ao mesmo tempo em que assinalam a passagem a um "estado" superior de
receptividade e de identificação.

Na Igreja do Oriente, há pois um iogue, idêntico ao Bhakti Yoga (ioga na


qual medita-se sobre a lshtadevata com devoção, até que as lágrimas escor­
ram sobre o rosto pelo excesso de beatitude e que se atinja o estado extáti­
co). É o que se chama a "Prece do Coração".
A lshtadevata do Bhakti Yoga não é senão o Logos Criador do hinduísmo.
Para o Oriente cristão é, portanto, o Verbo Divino, o Cristo, que é o ponto
de encontro da Criatura e do Criador. Como o Pai é inacessível e que " ...
somente o Filho o fez conhecer aos homens", Brahma, "Príncipe Supremo",
o é da mesma forma. Mas lshwara, "Personalidade Divina", é sua determi­
nação enquanto princípio de sua manifestação universal; é, portanto,
Brahma "manifestado". E para chegar ao estado de acesso ao "não-manifesta­
do" é necessário identificar-se a ele. Pois, como o Verbo Divino "vive" sua
Eternidade debruçado sobre o Abismo Paterno, e extrai - segundo
Orígenes - essa Eternidade dessa adoração extasiada, da mesma forma o
Homem "vive" sua Eternidade debruçado sobre a Imagem Eterna que é o
Cristo, e extrai essa mesma vida eterna da mesma adoração extasiada. Assim
se realizam as célebres palavras: "Ninguém viu o Pai; somente o Filho o fez
conhecer aos homens... ", e "Ninguém irá ao Pai senão através de Mim... ".

Nesta ioga, a experiência mística inseparável da via rumo à união, é adquiri­


da através da oração, na prece; mas uma prece que é, de fato, um mantra...

Para o homem, sem dúvida, toda a colocação em presença de Deus é neces­


sariamente uma prece. Mas é ainda necessário que essa presença se torne
urna atitude constante, sempre consciente. A prece deve ser perpétua, ininter­
rupta como a respiração, ou como o ritmo cardíaco. Encontramos esta regra
imprescindível tanto na Índia quanto no Islã e suas "confrarias" tão carac­
terísticas. O Oriente cristão possui a mesma coisa, que é chamada de "prece
do coração", e é a verdadeira "via cardíaca" do Martinismo Tradicional, e
não uma simples e banal sensibilidade.

Isto exige uma maestria especial, uma técnica de oração, toda uma crencia
espiritual, à qual os monges se consagram inteiramente. O método da orarão
interior ou espiritual, conhecido sob o nome de "hisechasma" ou "hisechis-
1no", pertence à tradição ascética d<t Igreja do Oriente e ren1onta - segun­

do V. Lossky - a uma remotíssima antiguidade.

21
TÉCNICA DA VIA CARDÍACA

Transmitindo-se de mestre a discípulo pela via oral, por exemplo, e a direção


espiritual, exatamente como na Índia ou no Tibete, esta disciplina só foi fi­
xada por escrito no início do século XI, em um tratado atribuído a São
Simão, o Novo Teólogo. Mas ela foi o tema das exposições principais de São
Gregório, o Sinaíta, que restabeleceu essa técnica no início do século XIV,
entre os monges do monte Athos. Encontram-se referências a esta mesma
tradição em São João Climaco no século V II, em São Hesíquius do Sinai no
século V III, e em certos textos dos grandes místicos dos séculos III e IV,
onde alguns atributos do Cristo são ligados à teoria dos "nomes divinos" (ou
"nomes de poder") da Cabala.

São João Crisóstomo já nos dizia que: "Para que o Nome de Nosso Senhor
Jesus Cristo desça na profundeza de teu coração, para que lá ele vença o
Dragão que devasta seus pastos, e para que, por outro lado, ele salve a alma
e a vivifique, apega-te para isto incessantemente ao Nome do Senhor Jesus,
a fim de que teu coração beba o Senhor e o Senhor teu coração, e que assim, os
dois, formem um todo iínico .. " (São João Crisóstomo: Centiíria, 21).
.

Como observa, portanto, com muita justeza, o Dr. Wunderlé: "No


Hysechasma colaboram, pois, indissoluvelmente, a Graça essencial de Deus
e a técnica psicológica humana, para realizar a união divina luminosa..." (Cf.
Études Carmélitaines (Estudos Carmelitas), 1938, pp, G!-67).

Eis aqui as regras gerais desta técnica.

* *

O hisechasta reserva esse tipo de oração, em seu aspecto total e técnico, à


hora do pôr do Sol (hora canônica das vésperas, das 18 às 21 horas), em sua
cela silenciosa e escura. Alguns textos dizem que permanecem sentados
sobre seus leitos, outros falam de uma cadeira baixa, sem dúvida análoga ao
sgam khri tibetano. A tradição cristã oriental indica invariavelmente o
orador voltado para o Leste, onde deve ser traçada uma cruz sobre a parede.
A tradição tântrica, no entanto, indica o Sul como correspondência analó­
gica do Coração.

O yantra tântrico tem sua equivalência na liturgia oriental, com o ikone, que
se escreve ícone no Ocidente.

-- 22 --
TÉCNICA DA VIA CARDÍACA

Na tradição do Oriente cristão, os ícones refletem o princípio da encarnação


das "Santas Imagens" do alto em nosso mundo imperfeito. São, em suma, os
Arquétipos Divinos que se materializam seguindo um método tão extrema­
mente oculto quanto elevado.

Inicialmente, o ícone não deve ·'refletir senão imagens de paz e de luz: a


Virgem e o Menino, a Natividade, a Ascensão, os grandes Arcanjos (Miguel,
Gabriel, Rafael), ou os Santos. Ele não deve jamais materializar imagens de
sofrimentos, de dor ou de castigo.

Os monges a quem é confiado o cuidado de realizá-lo devem trabalhar nele


em jejum, em estado de graça, ajoe�hados, em determinadas horas canônicas.
Eles os penteiam sobre painéis de madeira (vegetal), dispondo sucessivamente
camadas (fundos) de pinturas especiais (as fórmulas remontam aos
primeiros séculos), comportando elementos minerais, vegetais e animais. O
monge (reino hominal) associa, pois, os três reinos (mineral, vegetal, ani­
mal): a esta "encarnação", salvadora, do Divino, ele associa a Natureza
inteira privada, pelo pecado do Homem-Primeiro, desta ascese purificado­
ra. Uma vez as camadas realizadas desta forma, ele pinta o próprio tema do
ícone, nele inserindo a maior quantidade possível de ouro. Acrescentemos
que o painel de madeira terá sido inicialmente escavado, de modo a preser­
var um enquadramento em torno de toda a imagem final. O ícone deve ser
igualmente um molde côncavo, a fim de que "a Terra receba a marca do
Céu", segu9do a tradição.

O ícone é em seguida abençoado segundo uma fórmula especial. Ele será


animado, da mesma forma que o yantra, por freqüentes e abundantes fumi­
gações de incenso, dispondo-se ao seu redor, ou diante dele, pequenas lâm­
padas: veladores a óleo (geralmente vermelhas), ou círios de cera. A "prece
do coração" deve de fato ser considerada como uma "adoração" e não como
um "pedido", de acordo com a regra secular.

Vem em seguida a entoação do mantra. Para o hisechasta, ela consiste no


fato de pronunciar interiormente a imutável fórmula abaixo: "KYRJE JSSOU

CHRISTE IE THEOU ELEJSON !MAS AMARTANON'', ou seja, "Senhor Jesus Cristo,


Filho de Deus, tende piedade de mim pecador'', ou simplesmente: "KYRJE

ISSOU CHRJSTE IE THEOU ELEISON'', ou seja, "Senhor Jesus Cristo, Filho de


Deus, tende piedade".

Observar-se-á quanto essa litania se aparenta ao mantra tibetano clássico:


"oM MANI PADME HUM... OM MANI PADME HUM ... etc.", que é o do Buda da
Misericórdia: Avotokitesvara.

23
TÉCNICA DA VIA CARDÍACA

Aliás, as liturgias orientais e mesmo latin�s empregam freqüentemente a fór­


mula: " KYRIE ELEISON... CHRISTE ELEISON... " .

E as bija ou vibrações sonoras estão muito próximas uma da outra, na fór­


mula tibetana ou na fórmula oriental cristã.

Antes de começar, o hisechasta deverá meditar sobre a morte, a auto-humi­


lhaçáo, a visão (esotérica evidentemente) do Juízo Final, pela qual deve terminar
a criação presente, à qual sucederá o éon ji-tturo. Ele meditará sobre a "recom­
pensa", que não é senão afixação pelo Fogo-Princípio (que de alguma maneira os
tempera) das Almas, fixação boa ou má, que decorre desse Julgamento para
todas as Criaturas, hominais ou angélicas. Ele deverá conscientizar-se de que é
mais corrompido do que todos os outros homens, pior que os próprios Maus
Espíritos, e que, em conseqüência disto, merece a rejeição final.

Desse clima interior deve resultar a compunção, a tristeza, e as lágrimas.


(Encontramos aqui um aspecto essencial do Bhakti Yoga.). Se esse estado de
"transmutação" do ser interior, análogo à "putrefação" alquímica, é atingi­
do, nele permanecer até que esse clima desapareça por si mesmo. Mas se a
alma permaneceu seca e insensível a esse quadro preparatório, a tradição do
hisechasma aconselha a rezar para obtê-lo, como uma graça. Deve-se
destacar que não se trata absolutamente de fazer do hisechasta um pes­
simista, um desesperado. Ao contrário, a regra declara que ele deve viver ale­
gre, de bom humor, e feliz por sentir-se na boa via. Mas esta "putrefação"
deve ser atingida desde o instante em que se começam os exercícios.

Falamos do rosário tibetano (cuja matéria constitutiva varia de acordo


com a deidade). Desta forma, para o Buda da Misericórdia (o Buda
Futu ro), Avalokitesvara ele é de cristal, e de 108 contas, como todos os
rosários lamaicos. Pode igualmente ser feito de conchas. Ele serve para
ritmar, e verificar quanto ao número, o desenrolar !irânico dos mantras.
Evidentemente o mesmo se dá na tradição cristã; rosários e terços têm
o mesmo objetivo.

Para a presente técnica, aconselhamos o rosano de cristal ou de cedro, ou


ainda de sândalo ou oliveira. É recomendável que tenha oito séries de oito
contas (em recordação das oito Beatitudes), separadas cada uma por uma
conta um pouco mais grossa, o que perfaz um total de 72 contas (em recor­
<laçnu du.'S 72 1101'll.t:!.5 Divinos da trndicriio vetero-testnn'"lent&rica).
"
Podc1-.se-á utilizar n f6rmula çurta "KVRIE ISSOU CHRISTE !E THEOU ELEISON

em cada uma das 64 contas ordinárias, e pronunciar a fórmula longa: " KYRIE

24
TÉCNICA DA VIA CARDÍACA

ISSOU CHRlSTE !E THEOU ELEISON !MAS AMARTANON" nas oito contas que
separam as séries.

A respiração deve ser regular, ritmada pela fórmula, que só é pronunciada


durante a aspiração, efetuada unicamente pelo nariz, diz-nos a regra do hise­
chasma. E esta pronunciação é puramente interior, jamais verbal.

Da mesma forma que o verdadeiro iogue foge dos siddis (os poderes
psíquicos), como dos meios utilizados pelas entidades inferiores para
entravá-lo em seu caminhar espiritual, também o hisechasta rejeita qualquer
desejo de prodígio. Eis o que nos diz São Nilo do Sinai a propósito disto:

"Querendo contemplar a Face do Pai Celeste, não te esforces mais para


discernir, durante tua oração, qualquer imagem ou figura ... Foge do
desejo de ver sob uma forma sensível os anjos, as potências, ou o Cristo.
De outra forma, te arriscas a sucumbir à demência, de tomar o lobo
pelo pastor e de adorar os demônios em lugar de Deus... O começo do
erro está no desejo do espírito, tentando aprisionar a Divindade numa
imagem ou numa figura... . "

São Nilo do Sinai: De Oratione


No entanto essa técnica é freqüentemente concomitante a tentações muito
grandes, às vezes até mesmo de infestação, de obsessão, inclusive de aparições
demoníacas. E isto tanto no lamaísmo tibetano quanto no hisechasma cristão.

Porque, nos diz São Simeão o Novo Teólogo (século XI): "É então que
começa a guerra. Com grandes rugidos, os demônios aparecem desencade­
ando, através das paixões, as revoltas e as tempestades no coração. . ". A esse
.

respeito, citaremos uma passagem bastante precisa de H. de B. (Cf. La Priere


du Coeur - A Prece do Coração):
"Se a peculiaridade do diabo é negar sua existência, e entreter em tan­
tos cristãos modernos uma sensibilidade espiritual bastante rudimen­
tar, para qualificar de alucinações mórbidas as formas hediondas sob
as quais asforças deífugas do Universo se manifestam ao asceta, em sua
derradeira tentativa de mantê-lo no mundo, a peculiaridade do santo
é precisamente forçar as tentativas demoníacas a se objetivarem, de
modo a não poder mais pegá-lo desprevenido... . "

Efrrivan1e11.te, aquele que, fto decorrer de evoca s;ões mágicas, tiver con­
seguido ver o mundo demoníaco, ou bem será por ele possuído, ou (manten­
do-se mestre de si mesmo), terá sua fé fortalecida para sem.pre.

25
TÉCNICA DA VIA CARDÍACA

Como já vimos, a fórmula litânica, o mantra, comporta oúo palavras em grego


(fórmula completa), e seis palavras apenas em sua forma abreviada. Ela é pro­
nunciada - voltamos a repeti-lo - interiormente, durante a aspiração, e nos
esforçamos para imaginar sua fórmula, veiculada pelo ar inspirado, descendo
no coração flsico, com a imagem do Cristo. Reportemo-nos, pois, ao que
dizíamos no início desse estudo sobre o "lótus do coração", a ânandtl handa,
e veremos quanto a ioga tântrica e o hiscchasma estão próximos um do outro.

Permanece o problema das fumigações, sobre as quais os raros documentos


consultados calam. Acreditamos que elas fazem parte das instruções orais,
dadas pelo "staretz" (ancião) ao noviço. Fica de fato bastante evidente que o
ar elementar, aquele que respiramos, é muito impuro. Aliás, sabemos pela
tradição cristã que a atmosfera é o habitat ontológico do mundo demonía­
co. Ver, a este respeito, Paulo: "Epístola aos Efésios", II, 2.

É por isto que acreditamos ser vantajoso purificá-lo por uma fumigação,
cuja fórmula de sacralização seja, ela mesma, um curto mas eficaz exorcis­
mo. Fornecemos esta fórmula no Rituel Opératijet Général (Ritual Operativo
e Geral), destinado aos membros das diversas Ordens Martinistas; não ire­
mos retornar a ele.

Sobre o despertar do que o tantrismo chama a kundalini, espécie de energia


física de natureza ígnea, e cujo manejo todos os tratados afirmam ser perigoso,
até mesmo letal, se não se é conduzido por um verdadeiro mestre, as escrituras
judaico-cristãs não são absolutamente mudas; que se julgue por aí:

"Porque o Senhor vosso Deus é um fogo devorador. .. " (Deuteronômio,


IV, 24).
"Não se assemelha ao Fogo minha palavra... ?" (Jeremias, XXIII, 29).

"Farei sair de tuas entranhas um Fogo que te irá devorar... "

"Mas vós que ateais um incêndio, que preparais projéteis inflamáveis,


ide ao Fogo de vosso incêndio, e dos projéteis que .fizestes arder. .. "
(Isaías, L, 11).

"O Fogo que sai do homem que contempla, o devora... "(Hekhaloth


Rebani. III, 4).

Há, de foro, um duplo aspecto desse fogo. Sabe-se que o Templo de Salomão,
réplica do Taberndculo, foi realizado por Salomão segundo os planos recebidos
pot' ""'u pai, Davi, das n1!los do profeta Natan, depositário t.!o csotcrisn10 de
Israel. Sabe-se que o Templo foi construído "à imagem de Deus, do Homem e do

26
TÉCNICA DA VIA CARDÍACA

Universo", e que "Estudar o


Templo é estudar um e o
outro ... " (Arquivos manus­
critos da Ordem dos Ellus­
Cohen). Ora, no seio do
Templo de Salomão havia
dois altares sobre os quais
ardiam dois fogos diferentes.
Um era o Altar dos Perfi1mes,
sobre o qual, ao alvorecer, ao
meio-dia e à noite, oferecia­
se a Deus o incenso de ado­
ração e de louvação. Havia
igualmente o Altar dos
Holocaustos, sobre o qual os
sacrificadores ofereciam as Na simbologia do ocultismo a kundalini, ou fogo serpen­
vítimas sagradas. O primeiro tino. é freqüentemente representada por um dragão.
é a imagem de nosso
Coração, de nossas boas ações. O segundo é a imagem de nosso Cérebro, e dos
sacrifícios que devemos fazer de nossas paixões (os animais). Cada um dos
cinco Objetos sagrados (Arca da Aliança, Candelabro de Sete Braços, Altar dos
Perfumes, Altar dos Holocaustos, Mar da Airain), corresponde necessariamente
a um de nossos centros psíquicos essenciais, nesse Templo Interior que trazemos
em nós. Donde as palavras do rosacruciano Robert Fludd: "Quando o templo
estiver consagrado, suas pedras mortas retornarão à vida, o metal impuro será
transmutado em ouro fino, e o Homem recuperará seu estado primitivo.. ". .

Convém que nunca nos enganemos de fogo nem de altar!

* *

Para completar o aspecto universal desta técnica, forneceremos um resumo


bem rápido dela no quadro do Islã.

O Islã se divide em duas categorias de fiéis, os crentes ordinários e os que


são, além disto, afiliados a uma "confraria", ou kadryha.

Essas confrarias trazetn o nome de seu fundador, um m:uabuto que sem pre

27
TÉCNICA DA VIA CARDÍACA

recebeu do profeta Maomé, no decorrer de um sonho, a ordem de consti­


tuí-la, a revelação da via (trik) que ele deverá seguir, a maneira de rezar, além
daquela a que estão submetidos rodos os muçulmanos. Os membros se
chamam de khouan (irmãos).

Entrar numa dessas ordens é dito "pegar a rosa" e, para se reconhecerem,


dois muçulmanos, ao se encontrarem, se perguntarão mutuamente: "Que
rosa trazes?" Ao que o outro responderá: "A rosa de um tal Sidi". Ou respon­
derá que não porta nenhuma rosa, que é simplesmente "servidor de Deus".

Em árabe, a palavra rosa se diz ouard, que se pronuncia aproximadamente


como a nossa ordre (ordem em francês), acentuando o último r. Por outro
lado, ouard e, melhor ainda, ouird, designam etimologicamente uma certa
quantidade de água destinada a dar de beber ao gado doméstico.
Lembremo-nos aqui da expressão bíblica do "cervo que suspira após as águas
vivas", e compreender-se-á porque os sufis dão esse nome à parte do Corão
que se atribuem por tarefa recitar periodicamente, além das preces comuns.
Compreender-se-á melhor, com estas explicações, o que revelamos dos
"rosa+cruzes do Oriente" cm nossa obra Templiers et Rose+ Croix (Templários
e Rosa + Cruzes) (pág. 119 da edição francesa).

Ora, nestas confrarias muçulman:is é h;1hito repetir incessantemente a


mesma invocação, ritmada pelo desfiar do ros;írio tradicional (cujo número
de contas é, aliás, bem variável), exatamente como na técnica do hisechas­
ma. E a maioria dessa invocações exprime o recurso à misericórdia divina,
com o orador pedindo a Deus para perdoar-lhe seus pecados, para ter mi­
sericórdia dele em seu derradeiro dia.

Não se poderia - por esse triplo apanhado de uma técnica multissecular,


encontrada e identificada em três correntes diferentes da espiritualidade uni­
versal - melhor destacar seu valor profundo, senão mostrando just:imente
quantas misticidades diferentes podem finalmente identificar-se e comungar
em seu objetivo final.

Esta matéria foi publicada originalmente na edição ji-ancesa de


I..:Initiation no número 3 de 1962.

28
A PEDRA BRUTA

Frater ,Zelator

imagem da pedra, principalmente quando de grandes dimensões, sem­


A pre provocou a admiração e o espanto do ser humano, como podemos
verificar pelas construções megalíticas dos antigos povos. Temos vários
exemplos: as construções célticas e druídicas da França e Grã-Bretanha,
como os dolmens, menires com o mais importante calendário de pedra do
mundo - Stonehenge; as pirâmides do Egito e dos povos das Américas; e
todas as maravilhas do mundo antigo que até hoje nos espantam por sua
beleza e estabilidade.

Mas não somente as pedras grandiosas foram objeto das homenagens do


homem. As pedras em geral foram reverenciadas nas manifestações religiosas
tanto pela sua soiidez como pela sua durabilidade - denotando a firmeza
inabalável que é o atributo da própria Divindade - fossem elas preciosas
ou não. Por esta razão, os homens procuraram sempre edificar com pedras
os templos dedicados aos seus deuses, sendo que em alguns casos mais
primitivos o povo era proibido de construir suas habitações com outro
material que não fosse a terra cozida ao sol.

Como elemento extraído diretamente da Mãe Terra, a pedra possuía as qua­


lidades necessárias para que as casas ou quaisquer edificações mantivessem
as qualidades e o clima do "útero" da terra, ou seja, as grutas e cavernas,
onde se realizavam alguns rituais e onde moraram os primeiros homens.
Isto se deve principalmente ao fato de as primeiras religiões serem de cunho
totalmente naturalista, com rituais sempre ao ar livre. Tais ligações com a
terra existem também nas Iniciações Tradicionais, no que diz respeito à
Câmara de Reflexões ou àquele lugar isolado em que o candidato fica ao
abrigo unicamente de sua própria consciência, antes de passar pelo Portal
que fica entre as Colunas e remetendo-o ao elemento terra.

Em toda parte na Antigüidade a Arquitetura foi uma arte sagrada e muito inti­
mamente ligada aos sacerdotes e à religião. Posteriormente foi na Idade Média,
com a arte dos Maçons Operativos e dos construtores das grandes catedrais da
época, ta1nbém conhecida como a A.rte Real dos Talhadores de Pedra, que a

pedra ganhou notoriedade no ocidente e mais particularmente na Europa. Tais


obreiros do Divino foram inovadores (ou seriam mais bem qualificados como

29
A PEDRA BRUTA

rcvolucionáriosn com o
estilo Gótico, tendo
adquirido junto à Or­
dem dos Templários os
fundamentos desse estilo
de construção que ainda
hoje vemos nas catedrais
mais famosas do mundo,
con10 as Notre-Dames
de Paris e de Chartres,
ambas na França. Lem­
bremos que no cerne dos
Templários encontra­
vam-se os Irmãos Rosa­
cruzes do Oriente, de­
tentores do saber que
deu origem à atual Tradição Rosa-cruz.

A esses Construtores Operativos do passado sucederam os Maçons


Especulativos de hoje em dia, conhecidos tradicionalmente por este termo
por trabalharem simbolicamente e não mais nos canteiros de obras. Estes
adota1n os usos, costumes, regulamentos e instrumentos daquelas antigas
corporações, que eram Fraternidades operárias de construwres. Nas antigas
Fraternidades o Aprendiz do ofício ocupava o grau mais inferior da escala
entre os operários. Aprendiz, por exemplo, é uma denominação de primeiro
grau, usada em todos os Ritos maçônicos.

Assim, constituindo a Arquitetura uma das bases do simbolismo tradicional, a


pedra encontra nele ampla representação, simbolizando, em geral, todas as
obras morais e todos os materiais da inteligência humana em prol da evolução
interna e da humanidade. Estes materiais são empregados para fins simbólicos
e de evolução do homem como um todo e como símbolo da própria sociedade,
recebendo várias denominações de acordo com seu simbolismo incrente.

A primeira denominação correme diz respeito à Pedra Bruta, que é o emble­


ma da pedra informe e irregular que desbastam os Irmãos Aprendizes ou
Neófitos desde sua iniciação. É o símbolo da idade primitiva e, por con­
seguinte, do homem sem instrução e em estado natural, bruto em essencia,
necessitado de mais Luz e conhecimentos para melhor servir. A Pedra bruta é
a imagem da alma do profano antes de ser instruído nos Mistérios e figura entre

30 - --
A PEDRA BRUTA

os objetos emblemáticos que devem ser representados sempre nos primeiros


graus. Os trabalhos dados aos Aprendizes têm por objetivo demonstrar ao novo
Iniciado a escravidão em que vive, despertando em seu coração o sentimento
de sua própria dignidade e incentivando-o ao estudo da Verdade.

Aqueles que se encontram na Senda devem


sempre lutar contra os inimigos naturais e
internos do próprio homem, que são: as
pa1xoes mundanas, a luta contra os
hipócritas, os perjuros, os fanáticos e os
ambiciosos, e os que especulam com a

ignorância e o obscurantismo, buscando


combatê-los com vigor. Esta é a antiga bara­
lha entre a Luz e as Trevas, travada desde sem­
pre dentro e fora da Alma humana e tornada
histórica pelos antigos Cavaleiros, represen­
tantes da busca do Graal, mas que lutam
neste mundo para tomá-lo a si renovado pela
Luz Crística. Com este trabalho, o Aprendiz
ou Neófito passa das trevas para a Luz
durante a jornada mística de sua vida.
As colunas Jakim e Boaz. pilares
No simbolismo antigo via-se comumente uma do Templo de Salomão. simbolizan­
Pedra Bruta, sem forma definida, colocada no do a dualidade do mundo.
caminho do Iniciado, na entrada· e junto de
uma das duas colunas do Templo, conhecidas na tradição por Jakim Q) e Boaz
(B) e símbolos da dualidade deste mundo manifestado. Juntamente com essa
Pedra encontrava-se um Malho (ou martelo) e um cinzel (ou ponteiro).

O recém chegado à Iniciação devia começar a trabalhar e a estudar para adquirir


o conhecimento do simbolismo do seu ofício, sua aplicação e interpretação
filosófica. A este trabalho dava-se o nome de "Desbaste da Pedra Bruta".

Por isso, tão logo o novo Irmão tivesse recebido a primeira fresta de Luz dos
Mistérios, o Mestre de Obras, representante dos Trabalhos iniciáticos da
corporação, completava a instrução acompanhando-o, então, até a citada
Pedra Bruta onde, entregando-lhe o Malho, ensinava-lhe a dar os golpes
misteriosos com os quais deveria chamar no futuro às portas dos Templos,
explicando-lhe ao mesmo tempo o seu significado Crístico: busca e encon­
rrarás; c hama e re abrirão; peça e te darão.

31
A PEDRA BRUTA

O Malho simboliza a vontade firme e decisiva daquele que o usa.


Simbolicamente, para este trabalho, o Aprendiz deve utilizar, além do Malho,
também o Cinzel. Este retira as asperezas da Pedra, o que equivale à faculdade
de apreciar com retidão; é o julgamento sem ação e sem força digno dos
Iniciados. O Cinzel é equilibrado pela firmeza e pela direção dada pelo Malho.
Um não pode passar sem o outro e o desenvolvimento destes símbolos cria um
equilíbrio no psiquismo do Iniciante. Se o Malho existisse só, seria uma força
cega que, batendo na pedra, quebrá-la-ia em mil pedaços ao invés de lapidá­
la. E temos que a vontade é uma força :1dmirável; porém, se ela não for con­
duzida por um julgamento esclarecido - o Cinzel - se torna má, tanto para
aquele que a possui como para aqueles que sofrem os seus efeitos.

Este perfazia, assim, o primeiro trabalho simbólico do Aprendiz na Senda mís­


tica e operativa, desde a Admissão aos Antigos Mistérios corporativos em
busca de mais Luz e de um maior aperfeiçoamento como ser humano, ou seja,
como o Homus Novus que está à imagem e semelhança de Deus. É a pedra
informe que os Iniciados devem desbastar para poder alcançar o grau seguinte.

Todo esse engajamento iniciático obriga o novato a repensar sua vida, suas
atitudes do passado e do presente, moldando uma nova personalidade para
o futuro. Algun s antigos Construtores ::i.firmavam, também, que a Pedra
Bruta er::i. análoga à Matéria-Prima dos Hermetistas, devendo ser talhada
com cuidado com o Malho para que chegasse a apresentar a forma de um
cubo, sendo esta uma forma mais perfeita e que estaria em melhores
condições de servir e de "encaixar-se na construção da Humanidade" e nas
Obras daquele que era conhecido por muitos como o Grande Arquiteto do
Universo. Isso caracteriza o desejo de se chegar à conquista da Pedra
Filosofal que nos remete à Alquimia do eu interior - a Pedra Cúbica dos
Maçons. A Alma, transmutando todos os seus defeitos em virtudes, trans­
formando assim o homem comum naquele revivido como verdadeiro
Estado Rosacruz, como nos ensina René Guenon em suas obras.

Talvez por isso nossos Mestres do passado tenham deixado gravados nas
pedras das Catedrais e das pirâmides tantos símbolos secretos, pois o
homem que renasce na Iniciação não morre jamais, como jamais morrerão
tais obras que servem como verdadeiros livros de pedra para ::i. posteridade.

Matéria especial para a ediçt7o


inédita em língua
portuguesa de Cinitiation.

32
OTARÔ
Estudo sumário dos 22 arcanos maiores

Suzy Vandeven

VIII - A JUSTIÇA - 0 CHETH

Ser UM com DEUS: tal será sempre o fator


determinante da realização da Grande
Obra.

"Quando o CRISTO se tiver erguido em


um de vós, este irá operar os maiores
mistérios" dizem as Sagradas
Escrituras.

Dia virá em que o CRISTO nos aparecerá


individualmente! Como� ... Nós o sabe­
mos! Seguindo o caminho da Cruz nosso
ideal se consolida de forma imperecível,
desenvolvendo-se incessantemente, até o
objetivo supremo.

V imos no Setenário um Ato, uma


Maestria absoluta, um eixo determi­
nante na construção do nosso Templo
interior. A lâmina 8 evocará, portanto,
para nós, um estado, uma resultante.
Podemos defini-la como a Substância
feminina fecundada, substância que per­
mitirá a eclosão e o desenvolvimento do Renascimento 111tenor, porque a
Natureza não é visível, apesar de agir visivelmente.

- 8 é o mundo da estabilidade, reconduzindo ao estado estático o que emana


do 7 em estado dinâmico.

Se o 7, o Iniciado, ordena o caos e constrói, o 8 organiza a sua vida e fun­


cionamento.

- 8 é a Justiça ou a Verdade em ação. to primeiro cubo de 2 (2X2X2); é o


Número do CRISTO, é o Infinito realizado na criação inteira, é a Perfeição.

33
O TARÔ

- 8 é o Número do Verbo, porque o Verbo reclama uma criação, o trabalho


redentor.

- 8 é a Vida Ererna que se mantém pelo equilíbrio do movimenro.

- 8 é o caminho do Meio que o Perfeito descobriu, que descerra os olhos e


o Espíriro; é o caminho que nos lcv:1d ao re pouso, é a libertação ufrmica
total

Por que "libertação cármica coral"?

Vejam os praros da balança equilibrados perfciramente: Bem, Mal, islo não


existe mais no mundo em perfeita comunlüo divina.

Por que esta Balança de Ouro na mão esquerda da Jusriça? Porque é por sua
Feminilidade, sua Virgindade, sua Pureza, que o Homem poderá realizar sua
reintegração total, utilizando igualmenre, para tanto, sua Virilidade (repre­
sentada pelo GLí.dio), sua Direita, seu Verbo, sua Lei. O homem, assim
como a mulher, deve dar à luz Por Ele. Nele, para Ele.

- A cobertura, Coroa de 8 triângulos, está marcada com o sinal Solar, Sol


irradiante, Luz e Calor por seus triângulos de Amor (8X3 24 = 6 ou =

T iphereth ou CRISTO).
O trabalho é todo interior. Sobre a Lâmina a Vitalidade (Verde) está apenas
aparente; a Justiça está inteiramente vestida de Rosa e de Azul. É o Amor, a
Inteligência, o Raciocínio a serviço da C:uidade, do Parto divino, da Luz...

- A manga direita fachada, o Bastão, é a Virilidade, o Rigor.

- A manga esquerda aberta, é a Taça, a Feminilidade recebendo e equili-


brando o ardor excessivamente inflamado.

Tudo é acalmado e calmante nesta Deusa octonária. O colar de Ouro em


forma de trança indica que tudo é coordenado, entrelaçado, reunido, fecun­
do sem qualquer rigor, flexivelmente , ternamente, harmoniosamente.

Em uma palavra, o 8, o Cheth hebraico, é a Lógica, a aplicação da Lei do


Verdadeiro, do Belo, do Bem.

Amém'

34
O TARÔ

IX - o EREMITA - o THETH

O 740° pensamento revelado nas Obras


póstumas de Louis-Claude de Saint­
Martin nos diz:

"Desejei fazer o Bem, mas não desejei


fazer barulho, porque senti que o baru­
lho não fazia Bem, como o Bem não
fazia barulho".

Eis o Eremita definido, com toda a sim­


plicidade e com toda a profundidade'
Quem diz Eremita diz Solidão, não
solidão como costumamos compreendê­
la, mas Solitude em si, na busca da
Quintessência.

9 = Solidão: Força de Geração real, mas


oculta. Tentemos esquematizar nosso
Novenário para compreender:

Adão Kadmon 2 3 10 11 12 Adão


Inferior

Homem Superior 4 5 6 13 14 15 ou terrestre

Celeste - Abstrato 7 8 9 16 17 18 Co ncr e to

Acabamos de traçar os Triplos Ternários ou "Eneadas". Esses Triplos Ternários


podem superpor-se, se bem que 10, 11 e 12 assumam o valor de 1-2-3, e
assim por diante...

Aplicaremos a estes Triplos Ternários, como dizem os Grandes Iniciados, os


Mestres, noções gerais, ou seja:

35
OTARÔ

1o TERNÁRIO o O Desconhecido, o Insondável,


o Ensoph cabalístico.

PAI EsrfRITO Príncipe Pensador, centro de


emissão do Pensamento.

2 Pensamento, ação de pensar.

3 Idéia, Pensamento fecundado.

� 2° TERNÁRIO 4 Princípio volitivo, centro


de emissão da Vontade.

FILHO ALMA 5 Energia volitiva (ação de querer).


..

.:;,..,. VONTADE 6 Volição querida, voto, desejo.

"! 3° TERNÁRIO 7 Princípio ativo, executante

ESP. SANTO·•· Con.ro 8 Atividade operante

AÇÃO 9 Aro Completado e sua repercussão


·· r

Concluído este imenso trabalho cm um sentido definido, o homem inferi­


or pode superpor-se ao H omem Superior.

9 é a extrema multiplicidade retornando à Unidade. É a Redenção, a


Reintegração final.

Pelo esquema das Eneadas e suas noções de valor, podemos seguir o proces­
so dos Princípios e dizer, como L.-C. de Saint-Martin: "O 9 é uma realiza­
ção perfeita na matéria: é o Retorno à Unidade".

O 9 é a base do Ouro puro ou da Sabedoria pela experiência. Tudo, absolu­


tamente toda a criação sai desta raiz fecunda, o Hesod Cabalístico.

Oswald Wirth nos diz: "O manto escuro do Eremita, tirante sobre o mar­
rom, forro azul, é a vestimenta da natureza aérea, dotada de propriedades
i sol ante s, é o manco de Apolônio".

O Eremita, envolto nesse manto, se isola (sandálias) amadurece suas con­


cepções, intensifica sua vontade de Amor desinteressado, trabalha na solidão
e se entrega total1ncnte.

36
O TARÔ

Protegido e cingido pelos 7 Nós místicos, seu Bastão de Mago, de Mestre


Perfeito, tem o poder de dominar os elementos: ele pode transformá-los,
transcendê-los à sua vontade, servindo-se deles (serpente em torno do
bastão).

Ele oculta parcialmente sua Luminosidade; somente os Adeptos podem ver


seus reflexos sobre seu rosto sereno, porque o Eremita teme ofuscar os olhos
excessivamente fracos e cegá-los.

Esta claridade de que dispõe o Solitário não se limita a clarear as superfícies;


ela penetra, explora no interior das coisas (posição da Luz da lanterna que
clareia o interior e não o exterior).

O Eremita é o Filósofo Desconhecido hermético, o Sábio vestido de amare­


lo, capaz de dirigir o trabalho de outrem, porque concluiu o seu, e de dis­
cernir o que está no estado de potencialidade no porvir do Homem.

O Eremita ama o Homem para ajudar o Homem a amar outros homens.

E concluímos este estudo com o seguinte versículo de São João (Evangelho,


XIII-17):

"Se compreenderdes estas coisas, sereis felizes, sob condição de as


praticardes".

Amém!

Esta matéria foi publicada originalmente no N° 4 de 1993 da


edição .francesa de Llnitiation.

37
A FÉ - FACULDADE ESPIRITUAL'

Con.stant Chevillon

Fé não é apenas uma vir�ude teológica, uma certeza intelectual e moral


A de ordem especulativa. E também uma Luz viva que se incorpora, de
certa maneira, à vontade e torna-se um poder espiritual, um dinamismo efe­
tivo, cujas potencialidades se atualizam e repercutem em rodos os nossos
atos. Ela é uma realização contínua da experiência humana.

Essa fé dinâmica é a alavanca das Escrituras e o ponto de apoio de


Arquimedes. Aplicada ao eixo das leis naturais, ela pode desencadeá-las
bruscamente, reforçar sua ação, ou desviar seu curso para introduzir no ciclo
normal da criação visível as leis superiores do mundo invisível. Ela pode
curar as doenças, iluminar as inteligências, fortalecer as vontades, aniquilar
os obstáculos, realizar milagres. Mas esta é a faceta menor de seu poder rea­
lizador. Ela está na própria origem da nossa consciência; ela nos dá a certeza
absoluta de nossa realidade, é a raiz e o princípio do "Cogito" de Descartes.
Ela nos confirma, portanto, numa segurança moral, intelcctu::d e física, das
quais nossas cogitaçóes e nossos atos subseqüentcs são a prova e a conse­
qüência imediata. As bases do julgamento - pelo qual nossa personalidade
assume seu valor, suas responsabilidades, eleva-se ou desce a um certo nível
- são função de seu dinamismo próprio.

A fé pode tornar-se, em cada homem, um "Fiar" criador, suscetível de pro­


jetá-lo rumo ao plano divino e de torná-lo co-parricipante dos atributos de
Deus. Porque, não satisfeita com uma autocriação interna da consciência,
ela é o suporte e o aguilhão da liberdade, da qual a vontade é o órgão; ela
assegura seu desenvolvimento e uso no quadro do nosso ser, mas levando
sempre mais adiante o limite de suas possibilidades. Mônada essencialmente
expansiva, ela de faro irradia-se no nada p:ira nele suscitar uma criação
análoga à que realiza em nós; ela é o Mesmo cm gestação do Outro.

Assim, :i fé não é uma crença tímida, inccss:rntcmcnte abalada pelos acon­


tecimentos exteriores, sempre cm busca de uma consolidação problemática.
É uma consciência absoluta das possibilidades interiores de nosso ser e de
.suas 1·caç6cs vitoriosas. É umn possessão at1tccipnda do futuro, higorna:i

1 Excerto de Méditations lnitiatiques de Constant Chevillon

38 ---
sobre a qual forjamos duramente nosso porvir, porque o homem, malgrado
as contingências individuais ou coletivas, é o artesão de seu próprio destino;
ele o faz grande, mesquinho ou miserável, ao ritmo da fé que o anima.

Em sua unicidade substancial, a fé assume um aspecto triplo: fé em Deus,


fé em si mesmo, fé no destino. Se perdermos a primeira, perdemos também
as outras, porque Deus é o eixo do Universo e é ainda um fim. Se o aspec­
to divino desaparece de nossas faculdades, não há mais suporte nem fim
adequados à nossa essência íntima. Nenhum raciocínio, nenhum pensa­
mento, nenhum gesto poderão colocar-nos diante de um porvir que satis­
faça as nossas aspirações. Ficaremos num vai e vem entre uma margem e
outra do rio vital, prontos a afundar no abismo das contingências.

Ora, a fé não nasce na dispersão anímica e intelectual, ela repousa na unici­


dade espiritual. Um homem, um povo dividido contra si mesmo, refratário
à unidade, perecerá na desagregação de seus elementos. Tornado, ao con­
trário, coesivo pela unificação de suas partes constitutivas, viverá no tempo
e no espaço, pois ele está confirmado na segurança interna, contra a qual as
discórdias externas são impotentes.

Coloquem dois homens em confronto na luta pela vida. O triunfo per­


tencerá ao detentor da fé mais enérgica e mais atualizada. Ele é, de fato, o
melhor adaptado ao fim real da raça humana, porque essa adaptação resul­
ta da fé, parte integrante e centro de seu ser.

A fé verdadeira é pouco comum; os homens afastam-se dela, preferem a


facilidade das vontades vacilantes, a dúvida, à certeza, e a influência pas­
sional à pureza do coração.

Esta matéria foi publicada originalmente no N° 4 de 1983 da


edição.francesa de L'Initiation.

39
O ROMANTISMO
Robert Delafolie

Robert Delafolie, grande eJpecialista da ópera wagneriana,


dedica-se a pesquisar as raízes místicas e iniciáticas nos
grandes movimentos culturais e literários do nosso
patrimônio. Suas conferências são sempre acompanhadas
com interesse e proveito por numerosos buscadores. O artigo
que apresentamos hoje se destina a abrir uma reflexão sobre
um aspecto mal conhecido da espiritualidade.

N a França qualifica-se geralmente de romântico o período que se estende


ao longo da primeira metade do século XIX. Mas, da mesma forma que
o romantismo francês não passa de uma parte do romantismo, esse período
de meio século é muito arbitrário e bem inferior à realidade.

Na verdade, o romantismo francês - desde as suas primeiras manifestações


e sinais precursores, por volta de 1800/1810 até 1850 - representa a ponta
visível de um iceberg, cuja amplitude é infinitamente mais vasta, tanto no
espaço quanto no tempo, o que explica cm grande parte a apreciação muito
limitada e, a bem da verdade, falsa, que se pode ter desse acontecimento cul­
tural considerável que ultrapassa de longe a literatura, ou mesmo algumas
outras expressões artísticas e estéticas.

A bem da verdade as origens desta imensa aventura da alma, do espírito, do


coração, são tão profundas e múltiplas, tão variadas quanto foram e ainda são
suas repercussões, insuspeitas, ricas de conseqüências benéficas ou não, mas
com toda a certeza capitais para a evolução da humanidade e do mundo.

E quando falamos de conseqüências, trata-se tanto do curto ou médio,


quanto do longo ou longuíssimo prazo.

Talvez fosse bom destacar que esse grande acontecimento na arte, na lite­
ratura, no teatro e em todo o pensamento foi, entre outros, lembrar-nos que
temos todos imaginação, mas que a deixamos muito freqüentemente dormir
ou cochilar, ou então que a despertamos quase sempre unicamente para
deixá-la vagabundear rumo às fantasias leves, frívolas, às vezes insignifi­
cantes ou artificiais, mas de qualquer maneira superficiais.

Assim, especialmente na França, contentamo-nos, a maior parte do


ten1po, en1 olhar o romantisn10 nllo como ete é, 1nas cun>u o vc111os: o con­
trário do que ele é.

40
O ROMANTISMO

Esta é uma séria constatação que nos traz de volta a nós mesmos e recoloca
em questão o conjunto das nossas opiniões e das apreciações arbitrárias e
aleatórias - que nos fazem às vezes considerar como sendo ultrapassada ou
do passado - das coisas que nos superam infinitamente e que, afinal de con­
tas, não são nem do passado, nem do presente, nem mesmo do futuro, mas
de todos os tempos.

Bem sabemos tratar-se de uma fraqueza bastante difundida no homem jul­


gar inferior o que lhe é superior. Sobrevêm então despertares desagradáveis.

O que mais nos falta é, provavelmente, não ver o que c.;tá ao nosso alcance,
no interior de cada um de nós. Portanto, despertemos! E logo o poeta (no
sentido divino e infinito), o homem verdadeiro e real revelado a si mesmo,
não ira mais aqui ou acolá para buscar a imensidão, a unidade e a
eternidade, mas irá descobri-las lá, aonde elas se encontram, ou seja, em
toda parte.

Como uma espec1e de prólogo a grandes perturbações, uma obra de


Géricault foi levada ao conhecimento do público em 1819 (A Balsa da

A Balsa da Medusa (1819) - a tela de Géricault é tida como um dos principais marcos da ·

eclosão do movimento Romântico.

41
O ROMANTISMO

Medusa), ilustrando a tragédia ocorrida três anos antes num n:.iufdgio ao


largo das costas da África Ocidental, e a m plifi ca d a pela agonia de cento e
quarenta e sete sobreviventes provisórios sohrc urnc1 balsa de vinte metros
por sete, dos quais apenas uma dezena sohrevivcu - circunsd.ncias próprias
a sublinhar, da maneira mais sinistra, a fragilidade das aparênci:1s morais e
sociais, varridas à primeira catástroÍC.

Depois dois outros quadros apresentam-se c omo dois cartazes espetaculares


do movimento nascente, ambos de Delacroix, cm 1822 e 1823: Dante e
Vi1gílio nos Infe rnos e A Ôrfo no cemitério. Esta segunda obra, especi:i.lmcntc,
suscitou o entusiasmo dos primeiros romCmticos e de Baudelaire. Era quali­
ficada, entre outras, como o momento eterno do homem e de seu destino.

Estas e outras obras constituíram um conjunto de signos, de sinais de aler­


ta e de alarme diante de uma situação geral, diante da qual o mínimo que
se pode dizer é que não parecia entusiasmante. De fato os últimos anos do
século XVII aniquilaram um mundo de mais de mil anos. Seguramente em
certos aspectos a antiga monarquia foi multiforme; é o caso de qualquer
região do mundo em qualquer época. Mas a monarquia francesa era bem
organizada, em torno de valores brutalmente derrubados após 1789.

Realmente, quantos terremotos se desencadearam entre 1789 e 1799! E nos


anos que se seguiram... Até então nunca se havia visto tantos acontecimen­
tos em tão pouco tempo.

Em seguida, após as esperanças, vieram os rancores e o desencantamento das


elites intelectuais ou espirituais e, mais ainda, do futuro proletariado. Se a
degradação lenta e segura da aristocracia foi a causa primeira da queda da
monarquia, sua substituição pela burguesia à frente do Estado e do país não
parecia de bom augúrio para o futuro da República.

A sorte dos operários, artesãos, camponeses, não melhorou, mas, em muitos


casos, agravou-se. O clima nos locais não é alegre nem resplandecente: arri­
vismo e negociata desavergonhada; a insolência da riqueza caminha ao lado
de todo tipo de miséria. Sim, miséria e usura, doenças, epidemias, delin­
qüência, promiscuidades, mendicâncias, escandz.losas disparidades somadas
aos crimes, violações, roubos, prostituição, nunca haviam ido tão longe.
Conseqüências lógicas: agitações múltiplas, greves, rebeliões, insurreição,
barricad'1s. etc. A nrrogância e o egoísn,o de uma grande parte das clnsse1i
dirigentes, dominantes e possuidoras, são tamanhas, a ponto de não se con­
seguir distinguir facilmente o cinismo da inconsciência.

42
O ROMANTISMO

É então que - nas turbulências públicas e políticas, econômicas e sociais,


ou morais - se formam nos salões círculos, cenáculos, sociedades formais
e também informais, e todo tipo de associações, agremiações, grupos.

Recuando bastante, podemos descobrir origens extremamente diversas, por


vezes paradoxais, para as tribulações do século XIX; em Montaigne, por
exemplo, cujos Ensaios evocam sua idéia do verdadeiro grande homem
(célebre ou anônimo), ou ainda nas Máximas de La Rochefoucauld ou nos
contos e fábulas de La Fontaine, tanto um quanto outro no mínimo muito
céticos diante da ordem e das morais sociais.

Enfim, por que não citar espíritos abertos e tão mais elevados que seu
mundo e seu tempo, quanto Pascal meditando tão profundamente entre os
dois infinitos (estranhamente moderno ainda hoje)? E que dizer de Fénelon,
preceptor do Duque da Borgonha, cujo Telêmaco é a apologia contínua de
uma natureza pura e ideal, idílica?

Por outro lado, que reflexões nos sugere Bossuet com seus "sermões sobre a
morte"? O preceptor do Delfim, predicador na corte do Rei Sol, estava cer­
tamente mais próximo dos espíritos atormentados de 1800/1830 que de sua
época! Quanto a Corneille, ele parece constituir-se no vínculo mais seguro
e mais evidente entre as duas sublimes utopias,
cavalheiresca e romântica.

Sem retroceder a Diógenes e a Antistene (ape­


sar deles não se encontrarem deslocados)
pode-se agora, sem risco de erro, citar o mais
flagrante precursor das ondas românticas, o
autor dos Devaneios de um viandante solitário,
da Profissão de ft de um vigário da Savóia e do
Contrato Social.

É certo que o romantismo é anunciado (quase


que ao pé da letra) em La nouve!fe Héloise e

Émile, assim como nos Discursos sobre as Artes


e as Ciências e em As origens da desigualdade de
Jean-Jacques Rousseau. E quando ele nos fala
da bondade natural do homem, uma questão se
co l oco. o. propósito de segundas intenções: O filósofo Jean-Jacques
trata-se no homem na história ou do homem Rousseau, em cromo-litografia
diante da história, diante da queda? É aí que de 1888.

43
entra em cena Mme. de Stael. A filha de Jacques Necker, antigo ministro de
Luís XIV, havia contraído núpcias com o barão de Stael, embaixador da
Suécia. Após numerosas viagens à Rússia, Suécia, Itália, Inglaterra e Áustria,
ela escrevera várias obras, uma delas sobre a literatura e as instituições soci­
ais. Mas ela fizera, principalmente, sucessivas viagens à Alemanha, freqüen­
tando assiduamente os meios poéticos e filosóficos com Schlegel, Goethe e
S chiller.

Esta grande admiradora de Rousseau, amiga apaixonada, dilacerada e agita­


da por Benjamin Constant, publicou um livro em 1814, De f'Afemagne, no
qu:i.l exalta a ingenuidade e a simplicidade germânicas com um certo pre­
conceito. Falando, em outra parte, de Kam, Lessing e alguns outros grandes
pensadores alemães, ela associa o romantismo nascente além-Reno 21 poesia
cortês, ao heroísmo cruzado, à cav::ilaria, à religião crist:í e à l d ::i de Média.
Mad::ime de Stad, em seu entusiástico demonstrativo, aconselha a França ,
de faro, pur::i e simplesmente a inspirar-se na Alcnunh::i.

44
O GRAAL

Evocado por Wagner no Parsifal

HenryBac

"O muro que separa a fábula da verdade, o passado do


presente, caiu; é a ft, a imaginação e a poesia que nos irão
revelar a essência do mundo".
Novalis

Devo a Wagner meu encami­


nhamento ao Graal.

A lembrança do drama musical


de Parsifal, que escutei em
Bayreuth, nunca se apagará do
meu coração.

É verdade que muitas das obras


de Richard Wagner exercem
sobre o iniciado uma extra­
ordinária influência.

Mas Parsifal penetra no mais


profundo do espírito. Não assis­
timos apenas a mais um drama
religioso; nós o vivemos plena-
1ncnte.

O gênio de Wagner possibilitou


Richard Wagner em 1880, dois anos antes da
uma criação tanto no pensamen­
estréia de Parsifal.
to de seus ouvintes quanto
diante de seus olhos.

Executadas em Bayreuth, em condições que beiram a perfeição, suas obras


comportam uma revelação fulminante.

Parsifal e a demanda do Graal se impõem mesmo àqueles que não com­


preendem inteiramente Wagner. Cada um poderá in t e r p reta r segundo seu
grau de evolução; verá nele mais uma faceta do que outra; depois per­
manecerá seduzido por essa profunda psicologia do Mestre. O emprego do

45
O GRAAL

"leitmotiv" para descrever as impressões de suas personagens, os efeitos fisi­


ológicos produzidos sobre o ouvinre, poderiam colocar-nos no encalço de
leis ocult:i.s relacionadas às vibrações e ao poder do som, tornando-se um
agente de transmutação física.

Parsifal permanece a expressão mais emocionante do mistério divino em sua


significação esotérica.

Enquanto seus outros poemas líricos foram concebidos e concluídos em um


tempo relativamente curto, o Mestre manteve seu Parsifal em elaboração
durante cerca de trinta anos. Sabemos o partido assumido por Wagner no
movimento revolucionário de 1848. Ele conservou sempre su:i.s convicções
humanistas. Da mesma forma que escolheu a lenda dos Nibelungos para
exprimir sua cólera diante de uma plutocracia cruel, ele apoderou-se do
tema de Parsifal para vilipendiar aqueles que não souberam assumir a guar­
da do Graal.

As primeiras cenas do Parsifal nos revelam os perigos que ameaçam o Graal


e a confusão reinante entre seus cavaleiros pela falra de seu chefe, o rei
Amforcas. O soberano sucumbira às seduções da er.feitiçante Kundry.

Ao lado dela, abandonou por um instante a sua lança sagrada que o torna­
va invencível. O mago Klingsor apoderou-se da arma e abriu-lhe no flanco
uma horrível ferida.

Ao deixar cair em mãos criminosas uma das relíquias sob sua guarda,
Amfonas profana o Graal por seu pecado, quando das cerimônias.

Sua ferida só poderá fechar-se quando a lança for reconquistada por um ser
livre de qualquer mácula, que irá tornar-se então o rei do Graal.

Kundry, a sedutora, parece ter duas almas, e mesmo duas existências, alter­
nando uma com a outra. Numa fase voluptuosa, nada :i.tingc o amargor de
seus desejos; numa fase de arrependimento, sente uma necessidade ardente
de humilhar-se e de servir aos bons: ela traz um bjJsamo misterioso para o
rei sofredor. Klingsor volta, cm seguida, a apode rar- se dela, para utilizá-la a
serviço de sua ação tenebrosa.

No cadter de Kundry encontramos a idéia da sucessão das cxistl:ncias. O


velho escudeiro Gurnemanz, condenando nos jovens cavaleiros a dureza
com que falam de Kundry, lhes declara: '"];dvez ela viva hoje uma nova
existência, a fim de expiar o erro de uma vida anterior".

4() --- -·
O GRAAL

Encontramos a mesma concepção de uma maneira ainda mais atraente na


confissão de Kundry a Parsifal: "Da mesma forma que abandonamos nossas
vestes usadas para envergar novas, assim a alma deixa os corpos usados para
assumir novos corpos" - diz o Bhag avad-Gita.

No decorrer do primeiro ato vibra repentinamente no ar o zumbido de uma


flecha disparada: um cisne tomba abatido, expirando a alguns passos de um
grupo de jovens guerreiros reunidos em torno do velho escudeiro Gurnemanz.

Os cavaleiros se precipitam e trazem diante dele o culpado: é Parsifal. Ele


olha espantado. Diante da doce reprovação de Gurnemanz, a alma do
inocente Parsifal desperta; ele compreende o mal que fez. Presa do remorso,
lança fora seu arco. O procedimento musical wagneriano, o leitmotiv, vem
aqui reforçar o significado esotérico do drama.

Enquanto a alma de Parsifal desperta para o sentimento de compaixão pelo


cisne, ouvimos os motivos posteriormente associados às cenas mais reli­
giosas, especialmente a da cerimônia no templo do Graal.

A audição musical e a visão da cena fazem penetrar no espírito do ouvinte a


idéia de que a comunhão da alma com o divino e a redenção dela decor­
rente, só se podem cumprir no respeito à lei do amor universal.

Parsifal nada sabia; mas Kundry irá revelar-lhe seu nascimento e informar­
lhe da morte de sua mãe que ele abandonara.

Enlouquecido pela dor, ele quer estrangular Kundry, mas Gurnemanz se


interpõem. E Kundry retorna trazendo água para acalmá-lo e para, depois,
lavar seu rosto.

Fazer o bem a quem nos faz mal - tal parece ser o preceito do Graal.
Kundry evoca a fatalidade pensando nela. A inspiração divina a toca ainda
timidamente. Assim sendo ela logo voltará a cair sob o poder do tenebroso
Klingsor.

Ouvimos então o motivo da magia sublinhando, ao longo de todo o drama,


o aniquilamento do livre arbítrio.

Retine o som dos sinos. Parecendo entrever em Parsifal "o Simples, o Puro" cuja
chegada foi predita ao Rei, Gurnemanz o conduz na direção do Templo, rumo à
escalada do Graal. Penetrainos na parte mais profundainente esotérica do drama
musical, aquela em que se exprime, em harmonias sobre-humanas, o mistério da
evolução do mundo; o material, evolução do homem; o espiritual, evoluç.'io da alma .

47
O GRAAL

Parsifal só ira cumprir dignamente sua missão mantendo-se puro e


cumprindo sua obra sem saber de antemão a nobre tarefa que lhe foi desti­
nada. Assim, quando ao interrogar Gurnemanz ele exclama: "Que é o
Graal?'', o escudeiro lhe responde: "Isco não se diz; mas se tiveres sido esco­
lhido por ele, sua compreensão não te será vedada".

A escuridão invade a cena. Em meio às harmonias poderosas que sobem e


se inflam como ondas do mar, Gurnemanz exclam;:i.: "Vê, meu filho, o
tempo aqui se rorna o espaço".

Caminhamos assim além dos limites do tempo, nos libertando dos remos
inferiores da natureza para elevar-nos às alturas espirituais.

Eis a dolorosa marcha dos mundos, a tentativa perdida da ascensão ao céu,


o ;:i.niquilamento diante do Esplendor e do Inefável, a passagem através de
provas das quais se sai purificado.

Os temas musicais grandiosos da m;trcha do Graal se sucedem. Vêm em


seguida os da dor e da piedade.

O sofrimento penetra na alma de Parsifal quando nele desperta a piedade


para o cisne. Agora ela se acentua como um pressentimenro da revelação
mais fulminante que o espera no interior do Templo. O motivo do Graal
afirma-se cada vez mais com a idéia da vitória.

Tudo se apazigua. Os sinos do Graal chamam os cavaleiros que entram, dois


a dois, no Templo. A visão do Mestre se realiza. Penetramos no Santo dos
Santos. Uma poderosa unidade reina no prédio.

A voz celeste ordena que o Graal seja descoberto. Os cavaleiros obedecem.


Repentinamente o Graal se ilumina, enquanto retinem harmonias celestes.

Tendo o raio misterioso desaparecido, a luz do dia terrestre invade nova­


mente o Templo.

Os cavaleiros, seguindo um ritual ainda em uso cm vários grupamentos ini­


ciáticos, comemoram a Ceia:

"Tomai este pão, a fim de que em nós


Ele se torne força e valentia.
Devoterno-nos, até a morte,
à obra de libertação.

48
O GRAAL

"Tomai este vinho; que ele verse em nós


o sangue ardente da vida
Para que, alegres, caminhemos todos
Aos santos combates, plenos de energià'.

Eles se levantam com gravidade e trocam o beijo fraternal ao retirar-se.

Imóvel, Parsifal - que contemplou toda a cerimônia e viu o rei Amfortas


abatido sobre a liteira - leva a mão ao coração, sentindo uma intensa dor.

Os temas musicais que se sucedem exprimem a piedade, em seguida o Amor


que torna a alma vidente.

O homem atrai para si próprio o castigo se não obedece mais à lei: reen­
contramos aqui a concepção bíblica.

O Simples, o Puro, diante do sofrimento, o sente com tamanha intensidade,


que ele toma o lugar do pecador e, pela lei do seu sofrimento aceito, torna­
se seu salvador.

Não se trata de um ser exterior, aparecendo uma só vez na terra. Wagner,


ilustrando da maneira mais profunda a idéia do Divino no homem, nos faz
compreender que ele está vivo desde o começo do mundo.

Toda Espiritualidade vem dele. Como não sonhar, uma vez mais, com os
primeiros versículos do Evangelho de São João: " ... Nele estava a vida. E a
vida era a luz dos homens" ...

Todo homem pode tornar-se um salvador se cumprir plenamente a lei do Amor.


Todo o primeiro ato de Parsifal traz à luz esta verdade. Desde a cena do cisne até
a cerimônia no templo, o Simples, o Puro, foi preparado para receber a revelação
suprema. Quando ele leva a mão ao coração, a verdade torna-se a vida para ele.

A partir daí, sejam quais forem as provas que tiver que enfrentar, a estrela
do Graal o guiará.

O segundo ato se desenrola no domínio de Klingsor. O mago vê em seu


espelho encantado o intimorato Parsifal, que sobe em direção ao castelo,
atraído por um sortilégio. Klingsor ordena que Kundry seduza Parsifal.

Bem que ela gostaria de não desempenhar esse triste papel, mas Klingsor a
tem. em seu poder.

Como poderia ela escapar a essa escravidão infernal, senão por um


esforço incessante da alma que busca apoderar-se do espírito representa-

49
O GRAAL

do para ela pelo


Graal.

P:i rsi fa 1 chega ao


castelo, luta vito­
riosa1nentc contra
seus guardiães e logo
se encontra sozinho
cm n1cio �s encanta­
doras Donzelas das
Flores. Inicialmente
apavoradas, elas logo
se tranqüilizam e o
Entrada do castelo de Klingsor - projeto de cenflrio para pro­ cobrem de mil gen­
dução do Metropolitan Opera de Nova Iorque no início do século tilezas. Aqui tudo é
XX (in EI Libra Victrola de la Ópera) e n c a n t a m e n t o;
Wagner descartava a vulgaridade, assim como as atitudes lascivas.

As Donzelas das Flores logo cedem lugar a Kundry, a maga sedutora.

Eia exclama: "Parsifal, o puro simples. Assim te chamou teu pai quando,
expirando nas distantes terras da Arábia, dirigiu a saudação suprema ao seu
filho, ainda encerrado no seio de tua mãe".

Ela recorda-lhe lembranças distantes, enlaça com seus braços o adolescente


que se lembra de sua mãe abandonada. Ela imprime um voluptuoso beijo em
sua boca. Repentinamente Parsifal se apruma: ''Amfortas1 A ferida! Ela tam­
bém arde em mim". A dor o constringe. Compreende que ela não provém de
uma ferida física, mas do perigoso desejo que sentiu no fundo do coração.

Ele acaba de atingir o primeiro estágio da Iluminação. Vê o mundo inteiro


mergulhado nas Trevas da ilusão, quando ele adquiriu enfim o "saber".

O beijo que devia perder Parsifal o salva.

É a desforra do Céu sobre o Inferno.

Ele repele os braços nus da encantadora.

Seu olhar ultrapassa as miragens do coração.

Recorda-se do Graal e sente a agonia de Amfortas. Sente o horror da queda.

Un•a sübit:l rcvir:lvolta se opera na aln1a de sua sedutora. Kundry torna-se

50
O GRAAL

novamente uma verdadeira mulher. Ela persegue um sonho mais elevado,


compreendendo o novo poder de Parsifal.

Como no Evangelho de São João, onde é dito: ''A luz brilha nas Trevas e as
Trevas não a receberam". Kundry percebe enfim esta luz que ela buscava sem
descanso através das trevas da sua consciência. Ela se torna vidente pelo
excesso da dor e do Amor.

Em sua alma magoada, Parsifal se confunde com o Salvador que outrora,


numa longínqua existência, ela ignorou e repeliu.

Porém falta ainda a Parsifal a plenitude do saber. Mas Kundry irá revelar-lhe
que ele deve apoderar-se da lança sagrada que feriu Amfortas e da qual se
serviu Klingsor.

E quando este último pensa em lançar a arma contra aquele que desafia o
seu poder, Parsifal apodera-se dela. Imediatamente jardins encantados e
castelo desaparecem. Klingsor despenca no abismo. Do alto da construção
em ruínas, Parsifal diz a Kundry: "Sabes onde me encontrarás1"

O 3° ato se desenrola em pleno misticismo.

Um comovente prelúdio retrata a tristeza que pesa sobre o Graal, encerrado


em seu relicário.

Os anos se passaram; Gurnemanz, tornado eremita, descobre Kundry esten­


dida no solo, sem forças. Ele a ergue e cobre com seus cuidados paternos.
Ele a interroga; ela diz apenas uma palavra: "Servir". Ela está transformada.

Liberta do domínio diabólico do


mago, vai, humilde e submissa,
pegar água.

Repentinamente chega Parsifal,


envergando sua armadura, com
uma lança à mão. Ele parece não
reconhecer o local.

"Não sabes então - diz-lhe


Gurnemanz - que acabas de
-�­
atingir o domínio sagrado do
Gurnemanz conduz Par sifal a Montsalvat - proje­
Graal e que estamos em plena to de cenário para produção do Metropolitan
Sexta-feira Santa?" Opera de Nova Iorque no início do século XX (in EI
Libra Victrola de la Ópera).

51
O GRAAL

O velho pede-lhe docemente que deponha suas armas, explicando-lhe que


uma vestimenta guerreira não seria conveniente nessas horas festivas.

Reconhecendo Parsifal, Gurnemanz compreende que ele é o Simples, o


Puro, pois vê entre suas mãos a Lança sagrada. Pergunta-lhe quem ele procu­
ra, e recebe a seguinte resposta: "aquele cujo pranto profundo ouvi um dia
sem compreendê-lo e para a saudação para a qual creio-me hoje eleito".

Toda a idéia filosófica do drama reside nesta frase. O jovem Cavaleiro sente
sempre aquela ferida que representa para ele uma dor reveladora.

Após haver seguido os caminhos do erro e caminhado à aventura, ele


cumpre, mesmo antes de compreendê-la, a lei do amor. Desde a sua chega­
da ao Templo, a angústia da comunidade do Graal aumenta; Amfortas,
sofrendo, não desempenha mais sua função; o diice permanece oculto.

A orquestra traduz em um maravilhoso canto de amor o encant:1mento da


Sexta-feira Santa, e encontramos, ao lado dos motivos da Ceia, os do Graal,
d:i. pied:i.de, do sofrimento.

Kundry, na profundeza de sua ::ilma, descobre o grande mistério da Vida e


do Amor.

Inteiramente comovida, ela des:i.ta ::is s,111dálias de P::irsifal e lava-lhe os pés.


Agora o Puro cavaleiro não a afasta mais. Ele aceita como uma c::i.st::i carícia
a homenagem de seus longos cabelos.

Ele surge envergando a branca veste dos cavaleiros do Graal.

Começa então o "Encantamento da Sexta-feir::i. Santa".

Kundry recebe o batismo das mãos do Redentor.

Os mais doces motivos passam em brisas de amor, até a explosão do canto


triunfal sobre o terna majestoso do Graal.

Parsifal toca com um beijo a testa da servidora e diz: "Tuas flores fecundam
a terra que elas regam; de tuas lágrimas, as flores desabrocham".

Ao longe, sinos dobram. "Meio-dia, é chegada a hora" - declara


Gurnemanz. Evocação das Oficinas azuis, que começam seu trabalho ao
meio-dia.

Parsifal empunha a lança sagrada; depois, precedido pelo escudeiro, sobe em


direção ao Graal, seguido por Kundry. O momento é solene.

52
O GRAAL

O velho pede-lhe docemente que deponha suas armas, explicando-lhe que


uma vestimenta guerreira não seria conveniente nessas horas festivas.

Reconhecendo Parsifal, Gurnemanz compreende que ele é o Simples, o


Puro, pois vê entre suas mãos a Lança sagrada. Pergunta-lhe quem ele procu­
ra, e recebe a seguinte resposta: "aquele cujo pranto profundo ouvi um dia
sem compreendê-lo e para a saudação para a qual creio-me hoje eleito".

Toda a idéia filosófica do drama reside nesta frase. O jovem Cavaleiro sente
sempre aquela ferida que representa para ele uma dor reveladora.

Após haver seguido os caminhos do erro e caminhado à aventura, ele


cumpre, mesmo antes de compreendê-la, a lei do amor. Desde a sua chega­
da ao Templo, a angústia da comunidade do Graal aumenta; Amfortas,
sofrendo, não desempenha mais sua função; o diice permanece oculto.

A orquestra traduz em um maravilhoso canro de amor o enc1nramento da


Sexta-feira Santa, e encontramos, ao lado dos motivos da Cei:i, os do Graal,
da piedade, do sofrimento.

Kundry, na profundeza de sua alma, d esco b re o grande m1srér10 da Vida e


do Amor.

Inteiramente comovida, ela desata as sandálias de Parsifal e lava-lhe os pés.


Agora o Puro cavaleiro não a afasta mais. Ele aceita como urna casta carícia
a homenagem de seus longos cabelos.

Ele surge envergando a branca veste dos cavaleiros do Graal.

Começa então o "Encantamento da Sexta-feira Santa".

Kundry recebe o batismo das mãos do Redentor.

Os mais doces motivos passam em brisas de amor, até a explosão do canto


triunfal sobre o tema majestoso do Graal.

Parsifal toca com um beijo a testa da servidora e diz: "Tuas flores fecundam
a terra que elas regam; de tuas lágrimas, as flores desabrocham".

Ao longe, sinos dobram. "Meio-dia, é chegada a hora" - declara


Gurnemanz. Evocação das Oficinas azuis, que começam seu trabalho ao
meio-dia.

Parsifal empunha a lança sagrada; depois, precedido pelo escudeiro, sobe em


direção ao Graal, seguido por Kundry. O momento é solene.

52
O GRAAL

depois da alma ao espírito. Ele


nada sabia, mas ele amou.
Cumpridas as duas primeiras
etapas iniciáticas, o Amor, torna­
do consciente, iluminado pela
sabedoria, vai transformar-se em
poder. Parsifal, chegado ao ter­
ceiro plano, tem a compreensão
espiritual do mistério da existên­
cia: salvador de Amfortas, reden­
tor de Kundry, possui o conhe­
cimento e torna-se rei do Graal.

Esta lenda do Santo Graal, que


111sp1rou Richard Wagner,
fHOvém de três fontes:
'

1�.
"Surgiu então um resplendor divino e brilhou com
• a céltica, que se reporta à con­
fogo na Sagrada Taça".
quista da "bacia mágica", do vaso
que contém sabedoria e poder. Encontra-se aí a idéia antiga da iniciação
pelo esforço conservada pelos druidas e pelos bardos;

• a fonte francesa, onde mergulharam os trovadores anglo-normandos e,


principalmente, Chrétien de Troyes: eles evocam a salvação pela graça e pelo
Amor divino;

• a provençal, reportando-se à história do cálice sagrado guardado nas


alturas do Montsalvat, por cavaleiros puros: os que o contemplavam e podi­
am beber algumas goras do elixir nele contido, atmg1am a felicidade, a
sabedoria e o poder.

O drama wagneriano de Parsifal se desenrola em um meio m1st1co. Faria


nele seu autor um ato de fé na doutrina católica ou luterana? Permanecemos
com a idéia de que ele não aderiu a um símbolo católico ou protestante, mas
que conseguiu compreender melhor e apreciar o espírito do Evangelho.

Na Idade Média a religião explicava pela Arte os símbolos da Fé, a fim de


permitir ao povo a compreensão mais intensa dos mitos sagrados. Co1n
Parsifal é a arte que se torna religião.

Nenhum drama toca mais diretamente o eterno problema humano e nos


traz, apesar de nossos erros, uma ilusão m:iis consohdora.

54
O GRAAL

Todos os símbolos do nosso esoterismo se encontram em Parsifal: a flores­


ta, o castelo, o lago, o cisne, a lança, a ferida, o sangue, as provas, as viagens,
o círculo dos cavaleiros e, principalmente, o Graal.

Neste drama, que constitui o testamento filosófico do Mestre, o Graal não


representa apenas a taça sagrada que sustenta os verdadeiros cavaleiros, mas
também a expressão do Amor mais profundo que pode reinar em um
coração puro.

Ao seguir a única via que conduz à imortalidade individual, Parsifal alcança


a Caridade, a Esperança e a Fé, pela doação sem reservas de si mesmo aos
seus Irmãos e à Humanidade.

Bayreuth, julho de 1972

Henry Bac

Esta matéria foi publicada originalmente no N° 3 de 1972 da


edição francesa de I..:lnitiation.

55
NICOLAS IVANOVICH NOVIKOV
Um dos fundadores do Martinismo

Robert Ambelain

icolas Ivanovich Novikov nasceu em 7 de maio de 1744 em Avdotino,


N perto de Moscou, e morreu nesse mesmo local em 12 de agosto de
1818, aos 74 anos.
(O
Escritor russo que entrou na história, fundador de vários jornais satíricos
Bordão, 1769-1770; O Pintor, 1772-1773; A Bolsa, 1777), foi um dos mais
corajosos representantes da crítica social no reinado de Catarina II e chamou
a atenção sobre a miséria do camponês russo.

Diretor do diário As Notícias de Moscou a partir de 1779, foi também um


dos introdutores da Franco-maçonaria na Rússia, sendo por isto mesmo
condenado à morte em 1792. Esta condenação foi comutada em quinze
anos de detenção na fortaleza de Schlüsselburg. Novikov foi libertado em
1796, quando da elevação do Tzar Paulo I, um imperador muito liberal e
dos mais progressistas, a quem retornaremos um dia, pois ele foi, muito
provavelmente, un1 de nossos irmãos martinistas. Franco-maçom (ele foi
levado à Maçonaria por seu amigo, o príncipe Kurakin), foi a esse título que
avocou a si a libertação de seu irmão Novikov.

T ão logo foi libertado, este último renunciou a qualquer atividade literária.


Ele havia então publicado importantes coletâneas de documentos sobre a
história da cultura nacional, em particular uma Biblioteca Russa ( 1 773-
1784). Fora, por outro lado, o autor de brochuras e de livros destinados a
erguer o nível moral da nação, pelo menos em intenção dos russos que sabi­
am ler, porque nesta época seu número não passava de alguns restritos mi­
lhares: comerciantes, burgueses, nobreza.

Como homem prático, havia instituído toda uma série de escolas popu­
lares, abrindo em seguida gráficas onde fazia imprimir manuais para essas
escolas, assim como outras obras instrutivas e morais que cuscavam apenas
alguns copeques, e às vezes absolutamente nada. Depois organizou hospi­
tais, mas como uma parte ínfima da população podia aproveitá-los. estab­
eleceu farmácias que forneciam gratuitamente aos indigentes os remédios
exigidos por seu estado. Fez ainda sllrgir diferentes bairros de Moscou
em

sociedades de benemerência e criou esta importante sociedade que tinha

56
por objetivo fornecer pão e víveres de primeira necessidade aos pobres dos
vastos territórios da Rússia, no caso, bastante freqüente, de más colheitas.
Eis aí uma tarefa que, antes dele, nenhum homem, agindo a título priva­
do, havia conduzido com sucesso. Deve-se admitir que a imensa fortuna de
alguns de seus irmãos, os martinistas e os franco-maçons russos, permiti­
ram-no fazer. Foi assim que o discurso que pronunciou na abertura desta
última instituição foi bastante inspirado e convincente a ponto de levar um
rico negociante de Moscou a remeter-lhe vários milhões de rublos.

No antigo Museu Rumjansov, em Moscou, encontram-se as jóias e para­


mentos dos maçons e dos martinistas russos da época. Em sua obra Louis­
Claude de Saint-Martin, Papus confirma havê-los examinado quando de sua
primeira viagem a esta cidade. Encontravam-se lá, igualmente, alguns des­
ses relatórios chamados "penitências", que os membros da Rosa-cruz russa,
oriunda da Rosa-cruz Áurea fundada na Alemanha em 1570, deviam fazer
chegar periodicamente aos Superiores da Ordem. Segundo Pypin, em um
desses documentos, Novikov exprime-se assim:

"Com um coração verdadeiro e puro, reconheço que não


compreendi o sentido das preciosas colunas sobre as quais
repousa a Ordem Sagrada, ou seja, o amor a Deus e ao
próximo, ou melhor, que o compreendi mal, pensando
que o homem era em si capaz de amar a Deus e ao seu
próximo. Estava mesmo tão cego que acreditava cumprir
os mandamentos de Deus; mas agora, agradeço com
lágrimas ao meu Salvador, por haver-me permitido ver e
reconhecer minha cegueira. Ele me fez compreender e
sentir que o amor é um dom de Deus, que ele outorga aos
seus santos. Há momentos em que eles experimentam do
amor ao próximo e têm a firme persuasão de amar igual­
mente a Deus. Mas esses minutos são passageiros... "

Em seus escritos, Nicolas Novikov ergueu-se com determinação contra os


jesuítas. Ora, na época eles contavam com o favor e a proteção de
Catarina II. Além do que o conjunto iniciático constituído por Novikov
e seus amigos Schwartz, Galitzin, etc., compreendia três etapas:

o Martinismo, onde estudava-se de maneira simplesmente didática o


conjunto das ciências ditas ocultas (astrologia, magia, alquimia) e
os ensinamentos de L.C. de Saint-Martin, levados à Rússia pelos
amigos russos do Filósofo Desconhecido;

57
NICOLAS IVANOVICH NOVIKOV

a Estrita Observância Templária, vinda da Alemanha e no seio da qual


existiam grupos secretos nos quais praticava-se o ensinamento
teórico precedente;

a Rosa-cruz, oriunda da Rosa-cruz A11rcr1 alem5, fundada em 1 570, e no


seio da qual estudavam-se as doutrinas inici:.í.ticas tradicionais:
gnose Alexandrina, cabala hebraica, paganismo eslavo.

Sem se darem conta, o clero ortodoxo e os jesuítas desencadearam uma


ofensiva contra esse conjunto e seus dirigentes. S::ibemos bem o c1uc aconte­
ceu depois. Uma associação de homens afortunados, ::ipaixonados pelos
ensinamentos de um homem como L.C. de Saint-Martin, ::irdente defensor
da Revolução Francesa em sua célebre carta, não podia deixar de atrair
acusações. Elas não faltaram. Seus membros foram colocados sob a suspeita
de exigir de seus aderentes - e por escrito - uma declaração contrária a
todos os princípios dos estados monárquicos; que se esforçavam para con­
quistar a boa vontade do povo distribuindo víveres e medicamentos; que
escondiam em seus lares todo um arsen::il destinado a armar uma tropa fac­
ciosa. Foi assim que as prevenções tom::iram corpo. O chefe de polícia rece­
beu ordem de cercar as casas e efetuar perquirições. Não eram encontrados
nem canhões nem grandes quantidades de pólvora. Mas como eram todos
eles grandes caçadores, naturalmente possuíam fuzis e carabinas, além de
pistolas para as saídas noturnas. E tudo isto bem à vista. Pois foi o suficiente
para sustentar as acusações, e nossos irmãos martinistas e maçons foram
lançados às celas geladas da fortaleza de Schlüsselburg, pés e mãos acor­
rentados, na primavera de 1792. Só viriam a sair de lá em 6 de novembro
de 1796, por um decreto de seu irmão, o Tzar Paulo I. Haviam lá per-
1nanecido cerca de cinco anos... No ent::into, e para sermos justos, acrescen­
temos que (condenados à morte pelos tribunais, viram suas penas comu­
tadas em quinze anos de detenção por Catarina II), isto provavelmente
salvou-lhes a vida, pois não se vivia quinze anos nas celas de Schlüsselburg.

Esta matéria foi publicada originalmente no N° 3 de 1978


da edição francesa de Llnitiation.

58
CARTA -PREFÁCIO À REEDIÇÃO DO QUADRO
NATURAL DE CLAUDE DE SAINT-MART IN

Papus
Aproveitando a oportunidade do recente lançamento da
ediçáo em língua portuguesa, pelas Éditions Rosicruciennes,
de O Quadro Natural de Saint-Martin, publicamos a
"carta prefacio" ou introduçáo à segunda ediçáo da obra do
"Filósofo desconhecido" assinada por Papus.

e ada um dos membros da grande cavalaria do ideal que constitui a


Ordem Martinista, cada um dos soldados do Cristo que integram nos­
sos grupos e nossas lojas, trabalha dando o melhor de si para a evolução
espiritual tanto de seus irmãos quanto dos profanos. O desejo de aper­
feiçoar-se pela prova e pelo sacrifício, e o zelo levado aos seus estudos fre­
qüentemente áridos, o estudo consrante de si mesmo para evitar julgar os
outros severamente, quando se é tão tolerante para com seus erros pes­
soais, fazem nascer no homem, paulatinamente, as faculdades misteriosas
que vão fazer dele um novo homem.

É geralmente pela ação individual, pela assistência moral a um irmão


desesperado que se exerce o Martinismo nessa época de luta selvagem e
impiedosa pelas alegrias materiais.

E não temos nesta via guia melhor do que o Filósofo Desconhecido e sua
encarnação efetiva em nosso mestre Claude de Saint-Martin 1•

Mas as obras do mestre são raras e, portanto, nem sempre ao alcance dos
meios materiais dos membros de uma ordem cuja pobreza física é a honra.
Assim sendo devemos agradecer aos nossos mestres que o escolheram
como o instrumento da difusão de suas idéias, inspirando-lhe a idéia de
colocar o Quadro Natural ao alcance de rodos os nossos irmãos2•

Bem sabemos a honra com que é distinguida esta função de dispensador


de verdades, escolhido pelo invisível, para conceder-lhe elogios que sua
modéstia e seu desejo de permanecer desconhecido não saberiam tolerar.

1 Note-se que na época era comum a omissão do primeiro nome de Saint-Martin, cujo nome com­
pleto é Louis-Claude de Saint-Martin.

2 Papus se dirige ao irmão martinista que assumiu o encargo da reedição desta obra de Saint-Martin.

59
CAR TA-PREFACIO A REEDIÇÃO DO QUADRO NATURAL

Mas permita-me ao menos agradecer a esses guias que mantêm a Ordem


contra todos os ataques e que sabem dar-lhe a extensão necessária no
momento requerido. Soldados do ideário cristão numa época de ceticismo
e de materialismo, saídos quase todos sem qualquer crença dos centros de
instrução contemporâneos, ascendemos do positivismo destruidor ao
Iluminismo, deixando à razão e ao "Libre Examen" o lugar de destaque a
que têm legitimamente direito.

E se deixamos de lado as superstições e os erros espalhados pelos diversos


cleros, nosso intuito é o de contestar tanto o clericalismo de Loyola quan­
to o de Voltaire, e não queremos fugir dos !imites de urna fé cega para cair
na escravidão de urna negação e de um ateísmo identicamente cegos.

Simples soldados de urna grande causa, pobres peões do Grande


Fazendeiro, aspiramos a estabelecer o domínio de Nosso Senhor onde
reina o Príncipe desse Mundo, o Deus do Dinheiro e do Egoísmo, que
guia a maioria dos seres terrestres' E sabemos que nesta aç:lo nada
podemos por nós mesmos, esmagados por nossos erros e nossa ignor:lncia,
sem a assistência do Alto.

É, de faro, quando o homem se d;í conta de que as chaves da ciência atual


são :ts sim ples c/n-ives do clinheiro de que fala Claude de Saint-l\1artin e que
as chaves do ouro estão em nós e não nos livros; é quando o homem tem
plena consciência de sua inferioridade que se ergue o véu de Ísis e que o
Iluminismo vem recompensar a coragem nas provas e a inabalável confi­
ança na assistência do Redentor.

Então a ciência terrestre se desvanece bruscamente na vitalidade intensa da


Ciência integral, imediatamente percebida. Quando se atinge o plano
onde o perdão e a piedade provam a p az do coração, esse mundo de
injúrias, de lutas e de calúnias fica então bem distante. E é lá que se deve
buscar a explicação dessa tranqüilidade de alma com a qual Saint-Martin,
duas vezes prisioneiro no momento mais agudo da Revolução, dedicava­
se a discutir com grande simplicidade a importância da ação da V irgem
celeste na geração do Verbo vivo em nós. O "Filósofo Desconhecido" pre­
ocupava-se tanto com a sua vida física quanto com a de uma galinha;
porque ele vivia inteiramente na outra vida. Era um "participante dos dois
planos", um duas vezes nascido, um Dwidja.

Compreende-se o espanto dos críticos com tais discussões num momento


este; con10 tais qualidades os confundem e desconcertatn. E foi em
co1no

60
CARTA-PREFACIO A REEDIÇÃO DO QUADRO NATURAL

intenção deles que nosso velho mestre escreveu o Crocodilo, pois soube
ocultar seu pensamento sob o triplo véu iniciático sempre que quis fazê-lo.

Em nenhuma de suas obras esta habilidade se manifesta com maior fineza


do que neste Tableau naturel des rapports que existent entre Dieu, L'Homme
e l'Univers (Quadro natural das relações existentes entre Deus, o Homem e o
Universo), composta sobre as chaves secretas dos vinte e dois arcanos do
alfabeto primordial e do Tarô.

Saint-Yves d'Alveydre, um dos maiores mestres intelectuais contemporâ­


neos, reconstituiu, com a constante assistência de um anjo do invisível,
todas as chaves desse Arqueômetro que foi o Theba ou, lendo da direita
para a esquerda, o A Be Th (o Aleph-Beth-Thau) de toda a Ciência viva
da antiguidade.

Sem dúvida esse trabalho não tardará a aparecer, a título de comentário de


uma vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, sendo então dissipadas várias
obscuridades e dirimidos muitos erros.

Que cada um dos irmãos da Ordem Martinista medite sobre esses comen­
tários dos vinte e dois arcanos escritos por Saint-Martin, aguardando a
breve edição das outras obras do célebre realizador de nossa Ordem, que
outros irmãos devotados se preparam para trazer novamente à luz do dia.

Saudações a todos os membros da ordem espalhados no Universo; que eles


trabalhem todos pela Glória do Filósofo Desconhecido, nosso Venerável
Mestre.

Esta matéria foi publicada originalmente no número de


novembro de 1889 da edição francesa de L'Initiation.

61
GERME
Ponto de Encontro de Martinistas

Iniciativa pioneira do diretor interna­


cional de L'fnitiation, Yves-Fred
Boisset, o GERME (Grupo de Estudos
e Pesquisas Marrinistas e Espirituais) é
um fórum de discussão de temas mar­
tinistas e ocultistas em geral, aberto ao
grande público. Dele participam,
habitualmente, membros das diversas
ordens marrinistas estabelecidas no
Br:isil, e um crescente nlimero de estu­
diosos da tradição ocultista.

Os trabalhos do Núcleo Rio de


Janeiro, fundado por Yves-Fred Boisset
.
quando de sua estada entre nós em
novembro do ano passado, pros­
seguem cm franco progresso. Na
\J reunião de outubro tivemos a apresen­
tação de uma palestra sobre a Cabala a cargo do Irmão Adílio Jorge
Marques, seguida por ampla discussão entre o público presente, e que terá
seqüência na próxima reunião, marcada para o dia 30 de novembro.

Abaixo, a agenda dos próximos encontros, para os meses de novembro e


dezembro de 2002:

• 30 de novembro - sábado
Cabala - palestra apresentada pelo lrm:ío Adílio Jorge M�uqucs
Local: Hotel Mengo Pabce - Ru:i Corrca Outra, 31 r:Iamcngo
-

Horário: l 7:00h

• 21 de dezembro - sábado
O Simbolismo do Natal- palestra apresentada pelo estudioso Marco
Antonio Coutinho
Local: Hotel Mengo Palace - Rua Corrca Outra, 31 - Flamengo
Horário: l 7:00h

Entradrt gnrtuitll

62
As Preces de Louis-Claude de Saint-Martin1

PRECE V

Subtrai-me minha vontade, Senhor, subtrai-me minha vontade; porque se


posso um único instante suspender minha vontade diante de ti, as torrentes
de tua vida e de tua luz entrarão em mim com impetuosidade, como não
havendo mais obstáculo que as detenha. Vem ajudar-me, tu mesmo, a
romper estas funestas barreiras que me separam de ti; arma-te contra mim
mesmo, a fim de que nada em mim resista ao teu poder, e que tu triunfes
em mim sobre todos os teus inimigos e todos os meus, triunfando sobre a
minha vontade. Ó príncipe eterno de toda alegria e de toda verdade, quan­
do estarei renovado a ponto de só perceber-me a mim mesmo na perma­
nente afeição de tua vontade exclusiva e vivificante? Quando as privações de
todos os tipos irão parecer-me um lucro e uma vantagem, no que elas me
preservam de todas as escravidões, e me deixam mais meios de ligar-me à
liberdade de teu espírito e de tua sabedoria? Quando irão os males parecer­
me um favor da tua parte, como tantas ocasiões de conquistar vitórias e de
receber de tua mão as coroas de glória que tu distribuis a todos os que com­
batem em teu nome? Quando é que todas as vantagens e as alegrias desta
vida parecer-me-ão tanto armadilhas quanto o inimigo não cessa de dirigir­
nos para estabelecer em nossos corações um Deus de mentira e de sedução,
em lugar do Deus de paz e de verdade que deveria sempre neles reinar?
Enfim, quando o santo zelo de teu amor e o ardor de minha união contigo
dominar-me-ão até dar com delícias minha vida, meu bem-estar e todas as
afecções estranhas a esse objetivo exclusivo da existência do homem que é
tua criatura, e que tu amaste com ternura a ponto de querer ajudá-lo por teu
exemplo, dando-te ti mesmo inteiro para ele. Não, Senhor, aquele que não
é levado por esta santa devoção não é digno de ti, e ainda não deu o primeiro
passo na carreira. O conhecimento da tua vontade e o cuidado do servidor
fiel de jamais dele separar-se um único instante, eis o único e verdadeiro
local de repouso para a alma do homem; ele não pode abandoná-la sem estar
no campo pleno de delícias, como se todo o seu ser estivesse renovado e
revivificado em todas as suas faculdades, pelas fontes de tua própria vida; ele

1 As preces anteriores de Saint-Martin foram publicadas nos números 5 e 6 da edição em língua


portuguesa de L'lnitiation.

63
AS PRECES DE L.C. DE SAINT-MARTIN

não pode dela afastar-se sem ver-se no campo entregue a todos os horrores
da incerteza, dos perigos e da morte. Apressa-te, Deus de consolação, Deus
de poder; apressa-te em fazer descer em meu coração um desses puros movi­
mentos divinos para estabelecer em mim o reino de tua eternidade, e para
resistir constantemente e universalmente a todas as vontades estranhas que
vierem reunir-se para combatê-lo em minha alma, em meu espírito e em
meu corpo. É então que me abandonarei ao meu Deus na doce efusão de
minha fé, e que publicarei suas maravilhas. Os homens não são dignos de
tuas maravilhas, nem de contemplar a doçura de tua sabedoria e a profun­
didade de teus conselhos! Mas serei eu mesmo digno de pronunciar palavras
tão belas, vil inseto que sou, e que só merece as vinganças da justiça e da
cólera? Senhor, Senhor, faz repousar um instante sobre mim a estrela de
Jacó, e tua santa luz irá estabelecer-se em meu pensamento, como tua von­
tade pura em meu coração.

PRECE VI

Escuta, minh'aln1a, escuta e consola-te em tua m1sena: há um Deus


poderoso que quer se encarregar de curar todas as feridas. Ele é o único, sim
ele é o único que tem este supremo poder, e ele só o exerce para com aque­
les que o reconhecem como possuidor dele e como seu zeloso administrador.
Nunca vá a ele com um disfarce, como a mulher de Jeroboam, que o profe­
ta Akia cobriu de censuras; vai sim com a humildade e a confiança que deve
te dar o sentimento de teus apavorantes males, e do poder universal daque­
le que não quer a morte do pecador, pois f-(ii ele quem criou as almas. Deixa
ao tempo cumprir sua lei sobre ti, em tudo o que diz respeito ao tempo; não
aceleres mais sua obra por tuas desordens; não a retardes mais por teus fal­
sos desejos e tuas vãs especulações que são a partilha do insensato. Ocupa­
te unicamente com tua cura interior e tua libertação espiritual, ret'.111e cuida­
dosamente o pouco de forças que cada grau do tempo desenvolve cm ti;
serve-te daqueles movimentos secretos da vida, para aproximar-te cada dia
mais daquele que já gostaria de possuir-te em seu seio, e de fazer-te dividir
com ele a doce liberdade de um ser que desfruta plenamente do uso de todas
as suas faculdades, sem jamais conhecer qualquer obstáculo. Nos momentos
em que esses felizes impulsos se apoderarem de ti, ergue-te de teu leira de
dores, diz a este Deus de misericórdia e todo-poderoso: Até quando, Senhor,
deixa1·cis enhng uescer na escr::i.vidão e no opróbrio esta antiga i m'1 gem de
vós mesmo, que os séculos puderam enxovalhar sob seus escombros, mas
AS PRECES DE L.C. DE SAINT-MARTIN

que jamais conseguiram apagar? Ela ousou desconhecer-vos naqueles tem­


pos em que habitava no esplendor de vossa glória; e vós, vós não tivestes
outra coisa a fazer senão fechar sobre ela o olho de vossa eternidade; e desde
então ela encontrou-se mergulhada nas trevas, como num abismo. Desde
aquela lamentável queda ela tornou-se diuturnamente o alvo de chacota de
todos os seus inimigos; eles não se contentam em cobri-la com seus sarcas­
mos; eles a infestam com seus venenos; eles a carregam de correntes, para
que ela não se possa defender, e para que tenham mais facilidade para diri­
gir sobre ela suas flechas envenenadas. Senhor, Senhor, esta longa e humi­
lhante prova não é suficiente para que o homem reconheça tua justiça e
preste homenagem ao teu poder? Esse monte infecto dos desdéns e dos
desprezos de seu inimigo, por tempo excessivamente longo nesta imagem de
ti mesmo, para descerrar-lhe os olhos, e convencê-la de suas ilusões? Não
temes que no fim estas substâncias corrosivas apaguem inteiramente sua
marca e a tornem absolutamente irreconhecível? Os inimigos de tua luz e de
tua sabedoria não deixariam de confundir esta longa cadeia dos meus
opróbrios com a tua própria eternidade; eles acreditariam que seu reino de
horror e desordem é a única e real morada da verdade; acreditariam ter le­
vado vantagem sobre ti e ter-se apoderado do teu reino. Não permite, pois,
ó Deus de zelo e de ciúme, que tua imagem seja profanada por mais tempo.
Tua própria glória toca-me ainda mais que minha própria felicidade, que
não estaria fundada sobre tua própria glória. Ergue-te de teu trono imortal,
desse trono onde repousa a sabedoria, e que é todo resplendor das maravi­
lhas de teu poder; entra um instante na vinha santa que plantaste por toda
a eternidade; toma um único grão desta uva vivificante que ela não cessa de
produzir; espreme-a com a tua mão divina e faz correr sobre meus lábios o
suco sagrado e regenerador, o único capaz de reparar minhas forças; ele irá
umedecer minha língua ressacada; descerá até meu coração; e trará até ele a
alegria com a vida; ele penetrará todos os meus membros; irá torná-los sãos
e robustos, e parecerei vivo, ágil e vigoroso, como era no primeiro dia que
saí de tuas mãos. É então que teus inimigos, decepcionados em suas espe­
ranças, rugirão de vergonha, e tremerão de pavor e de raiva, de ver que seus
esforços contra ti terão sido vãos, e que meu sublime destino terá atingido
sua realização, apesar dos seus audaciosos e obstinados desígnios. Escuta
pois, ó rn i n ha a l ma, escuta e consol a-te em teu d eses pero: há um Deus
poderoso que quer encarregar-se da tarefa de curar todas as feridas.

65
INTRODUÇÃO AO MARTINISMO

J. de Luquere, S.I.

Quisemos, neste artigo liminrll; lançar as bases de estudos


mais amplos sobre a história e a doutrina martinistas. Por
um lado não temos o método científico do historiador nem,
por outro, a autoriclru.lc suficiente para estabelecer uma tese
mística. Desta forma, 11osso objetivo resumiu-se em destacar
a origem e seguir a concretização de um movimento filosófi­
co cuja importância é por todos reconhecida. Partindo destas
bases, alguém mais autorizado - porque marcado original­
mente pelo selo do conhecimento oculto - irá expor nesta
revista a história e a doutrina atual do Martinismo.

* .•

Quando ocorre uma revolução na história, uma corrente popular derruba


ídolos. Cria-se então uma necessidade de erigir novos. Foi esse fenômeno
que assinalou a segunda parte do século XVIII: a filosofia havia minado os
fundamentos da religião clerical e os que se acreditavam espíritos fortes refu­
giaram-se em crenças mágicas, alimentadas, aliás, por certos taumaturgos
como Saint Germain e Cagliostro. Não vimos então naquela época grandes
senhores evocarem o diabo, esperando seu aparecimento?! Mas neste mundo
inquieto, desprovido de eixo e ávido por novos conhecimentos, havia espíri­
tos curiosos e honrados, que não se afastavam de um fundo de cartesianis­
mo e que buscavam interpretar os fenômenos que podiam ser revelados
pelas pesquisas de numerosos sábios. Não esqueçamos que Mesmer estava
para aparecer e iria, através de suas experiências eminentemente científicas,
virar as cabeças mais sólidas. Não podemos, portanto, nos espantar quando
um vento de misticismo acariciou a sociedade e criou esses inspirados, cuja
existência é ilustrada pela famosa profecia de Cazotte.

Mas não devemos nos deter nas escórias que bóiam em toda fervura e que o
vulgo tem a tendência a considerar como o resulrado do fenômeno. Houve
pen.�ndorcs modc.:st:os e s.Íncct"o.'!i: 9uo, por umn vc:.t'dndeirn n1oiduticc.t - teria
dito Sócrates - se debruçaram sobre os grandes problemas merafísicos.
Ape;;a1· de u dencia fazer recuar incessantemente os limites do dornfnio de

66
exploração, tantas obscuridades permanecem inexplicáveis pelo método
racional, que é permitido a buscadores guiados pela intuição fornecer expli­
cações válidas para elas. Ora, essas pesquisas levam à luz por uma senda
ornada por belas flores inebriantes, mas venenosas, porque elas não têm
senão o odor de uma falsa ciência: é necessário abandoná-las se não se qui­
ser enlouquecer e afastar-se da verdadeira via da sabedoria.

Nossa intenção não é explicar os fenômenos acumulando as hipóteses, mas


constatar os faros com objetividade. Caberá ao leitor extrair daí as con­
clusões que lhe serão inspiradas por suas próprias inclinações filosóficas. Da
mesma forma nos abstemos de repetir certos faros de histórias que encon­
tramos em livros muito bem feitos, mas nos esforça1nos em tentar explicar
o encadeamento dos fatos que levaram à concepção de uma nova doutrina.

Le Forestier pretende - precipitadamente em nosso entender - que no


século XVIII "as lojas maçônicas são asilos discretos e seguros, oásis som­
brios em meio do Saara onde erram os peregrinos do sobrenatural". Trata­
se de uma generalização exagerada. É incontestável que certos taumaturgos
se tenham introduzido nas lojas, ou mesmo criado ritos com aspecto
maçônico. Mas em geral as lojas maçônicas dignas deste nome permanece­
ram alheias a esses movimentos.

O Martinismo é principalmente um método de pensamento. Se em certos


momentos ele se apoiou em grupamentos maçônicos, isto não passou de
uma tática necessária a uma disciplina de conduta. Mas gostaríamos de
insistir sobre esse postulado: a Maçonaria e o Martinismo são compatíveis
nas especulações de um iniciado; mas eles são independentes um do outro.
Foi dado como certo que os martinistas eram freqüentemente recrutados
entre os maçons mais esclarecidos, mas NÃO E NECESSÁRIO SER
MAÇOM PARA SER MARTINISTA.

* *

De todos os grandes m1st1cos do século XVIII, o mais eminente foi sem


dúvida Emmanuel de Swedenborg. Foi um físico, químico e matemático de
grande valor - insistimos voluntariamente sobre esse detalhe de sua for­
mação intelectual. Foi, como Pascal, bruscamente inspirado e escreveu um

67
INTRODUÇÃO AO MARTINISMO

certo número de obras, as mais célebres das quais foram os Arcanos Celestes
e a Nova Jerusalém e sua doutrina celeste, onde desenvolve uma interpretação
mística dos livros sagrados e do apocalipse. Durante sua longa existência
Swedenborg teve muitos discípulos, dos quais o mais célebre na França foi
incontestavelmente Don Martinez de Pascallis.

Na verdade a doutrina swedenborguiana


não se propagou na França em sua
forma original. E foi em vão que o
cirurgião Chastagnicr tentou, em 1767,
propagar o sistema da nova Jerusalém.
Mas o ensinamento de Swcdenborg
encontra-se todo no de Martinez.

Pc1pus afirma que MarLinez Íoi iniciado


por Swedenborg cm Londres. Se ele não
ciLa suas fontes, somos levados a acredi­
tar que é Le Forcstier que nega esta afi­
liaç:lo. Papus deve ter Lído boas razões
para sustentar esL1 tese, corroboradas
por todas as similitudes de doutrina dos
dois iniciados.

Não somos aduladores e admitiremos


que Martinez - se foi incontestavel­
mente um inspirado - era de cultura
intelectual medíocre. Suas cartas são na
verdade penosas de serem lidas.

Acreditamos, como Van Rijnberk, que


o nome Martinez de Pascallis não passa de um hierônimo e que ele se
chamava De Latour de la Cases, muito provavelmente de origem espa­
nhola e talvez de ascendência judaica. De qualquer maneira, era um exce­
lente católico.

Marrinez pretendia que seus conhecimentos eram de origem oriental.


Apesar de muitos autores aparentarem sua doutrina à cabala árabe, indícios
muito sérios apontam para uma viagem à China, que o taumaturgo alega ter
feito em sua juventude. De todos esses dados metafísicos surgia em 1764 a
Ordem dos "Elus-Cohens", praticando um panteísmo místico que seduziu
rn ui tos Escoceses.

GB · · ---
INTRODUÇÃO AO MARTINISMO

Para expandir sua ordem, Martinez deslocou-se através de toda a França,


mas seus dois refúgios principais foram Bordeaux (em 1770 ele morava na
casa de um judeu convertido perto da porta de "La Monnaie") e Paris (em
1771 morava no "Hotel des Trois-Rois", à rua Montorgueil). A ordem dos
Elus-Cohens prosperou entre 1760 e 1775. Na realidade seu ritual só apre­
senta analogias com a maçonaria. Desta forma a Grande Loja da França
recusou, em 1765, reconhecer esse sistema. Somente mais tarde o Grande
Oriente, praticando sua política de absorção, o reconheceu como rito
maçônico.

Deve-se ressaltar que Claude de Saint-Martin, que inicialmente freqüentou


os Elus-Cohens, renegou mais tarde este sistema maçônico e que
Wuillermoz igualmente o abandonou para consagrar-se ao Rito Escocês
Retificado.

Por volta de 1771 os arquivos dos "Elus-Cohens" foram depositados nos


arquivos dos philalethes (Iluminados), onde foram encontrados após a
Revolução.

O último grau dos Elus-Cohens era Réau-Croix. Os historiadores con­


fundiram com freqüência esse grau com o de Rosa-cruz. Este é o resultado
de uma longa tradição esotérica transmitida através dos séculos, enquanto
que o Réau-Croix (Réau: poderoso padre) é a mais alta dignidade de um sis­
tema ocultista. Como escreveu Wuillermoz ao Príncipe de Hesse em 20 de
outubro de 1780:

"Admito os conhecimentos dos Rosa-cruzes, mas sua base é toda de


natureza temporal. Eles só operam sobre a matéria mista, quer
dizer, mescla de material e de espiritual e têm, conseqüentemente,
resultados mais aparentes que os dos Rosa-cruzes que operam sobre
o espiritual temporal e cujos resultados se apresentam sob forma de
hieróglifos".

Nos Elus-Cohens, Martinez praticava operações mágicas. Wuillermoz e ou­


tros discípulos não puderam imitá-lo, o que provocou amargas recrimi­
nações e mesmo dúvidas sobre a vocação do mestre. Saint-Martin deve ter
tido a mesma desventura, já que admite ter "pouco astral". Martinez prati­
cava, pois, o que devia chamar-se de magnetismo animal, que viria a ser logo
desenvolvido por Mesmer.

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INTRODUÇÃO AO MARTINISMO

A influência das idéias de Martinez foi enorme. Pode-se lhe atribuir a


vocação de Don Perneti, o fundador dos Iluminados, dos quais derivam os
P hilaletas, que podem ser considerados como os arauws da Revolução
Francesa. Wuillermoz também praticava o Rito Escocês Retificado de
Estrita Observância Templária de dois graus inspirados no martinezismo, os
Professos e os Grandes Professos (dos quais o mais ilustre representante foi
Joseph de Maistre). Graus criados em 1778 foram suprimidos em 1782 no
convento de Wilhemsad, presidido pelo Duque de Brunswick (sobrinho de
Frederico II).

O primeiro secretário de Martinez foi o abade Fournié, cuja inteligência e


dedicação ao trabalho nunca estiveram ot altura do seu fervor místico. De
uma qualidade bem superior foi o segundo secretário, o Conde Claude de
Saint-Martin. Foi um excelente oficial que deixou o exército para con­
sagrar-se ao serviço de Martinez e mais tarde à publicação de obras filosó­
ficas sob o pseudônimo de "Filósofo Desconhecido". Pode-se dizer que
Saint-Martin orientou a doutrina de Martinez, e inclusive perguntar se
não é ele o verdadeiro pai do Martinismo. De qualquer maneira, foi com
ele que Martinez redigiu o Tratado da Reintegração que deveria ser o fun­
damento da doutrina.

Podemos nos espantar com a ocasional falta de psicologia de Martinez na


escolha de seus adeptos, a ponto de confiar as funções de substituto geral do
rito a Bacon da Cavalaria, que logo se transformaria em seu obstinado con­
tendor. Wuillermoz e Saint-Martin, ao contrário, apesar de suas diferenças
com o mestre, permaneceram fiéis a ele até a morte.

Bacon da Cavalaria era, no entanto, um intrigante que se afiliou a todos os


sistemas maçon1cos, freqüentemente com intenções impuras. Suas
transações tortuosas fazem supor que ele tentava tirar proveito de.: sua
posição. Seus poderes eram amplos,j:í que foi ele quem, cm 13 de 111ar��o de
1768, atribuiu a Wuillermoz o grau de "Réau-Croix".
É necessário reconhecer que Martinez se indispús com a maioria de seus dis­
cípulos; ele devia ser um tcmper::uncnto difícil. Por outro lado, em vinudc
do adágio "o padre vive do altar", ele buscava extrair de seu ensinamento os
subsídios necessários à sua existência material. Esta imposição parece não ter
sido facilmente aceita por seus adeptos.

Não temos que tomar partido em todas as querelas suscitadas pela cronolo­
gia da descendência espiritual de Martinez, mas se negligenciamos a dos dis-

70
INTRODUÇÃO AO MARTINISMO

cípulos cuja ação foi nula e sem posteridade, conservamos apenas o nome
de dois grandes iniciados que recolheram a tocha do mestre:

1° - Wuillermoz que jamais se satisfez com a evolução místico-política do


Filósofo Desconhecido e manteve diante do Martinismo uma postura pseu­
do-maçônica;

2° - Saint-Martin, que praticava não a iniciação, como Wuillermoz, mas


uma comunicação direta individual:

"Posso assegurar-vos - dizia - que recebi pela via interna ver­


dades e alegrias mil vezes maiores do que as recebidas externa­
mente".

É o que explica certas discussões doutrinárias ainda em voga.


Este é o esboço que pode servir de base para certos estudos que serão pu­
blicados em L'Initiation.

Esta matéria foi publicada originalmente em I..:Initiation, no


número 1 de 1953 da edição francesa, o primeiro da restau­
ração da publicação, já sob a direção de Philippe Encausse,
filho de Papus, o seu fundador, após trinta e sete anos
de paralisação.

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,.� -

1 O PENSAMENTO DE LOUIS-CLAUDE DE SAINT-lVIARTIN. · .e'

'------------------------------ 11/t:

"Como nao reconhecer em nós o pressentimento da existência de


um bem infinito, nesse desejo infinito que temos de possuí-lo".

"As leis civis são favoráveis aos trapaceiros, necessárias aos maldosos e humilhantes
para os sábios".

"Eu disse há muito tempo que era necessário :icautelar-se no dia seguinte de um
dia feliz. Posso dizer com a mesma veracidade que podemos contar com consolos
no dia seguinte de um dia ruim. Esse princípio se baseia na lei das alternativas".

"O homem fogoso e insensato é forte tão somente pela ferocidade; ó homem sábio
o é pela razão e pela virtude; um náo é forre senão irritando o ardor dos sentidos;
o outro o é acalmando-o".

"A ciência é para o temporal. O amor é par;;. o divino. Pode-se passar sem a ciên­
cia, mas náo sem o amor, e é pelo amor que rudo acabará, porque é pelo amor que
tudo começou e que tudo existe".

"Nao canso de repeti-lo: deve-se temer Deus com medida, mas deve-se amá-lo sem
medida".

"Da mesma forma que o sol faz germinar as plantas na superfície terrestre e d:í
vida ao que não a tinha, o homem pode animar tudo o que o cerca e fazer fruti­
ficar todos os germes invisíveis que enchem sua tenebrosa morada".

"Se o homem crê em Deus, ele náo pode jamais cair em desespero; e se o ama, náo
"
pode estar uni instante sem ge1ncr .

"Homens de Deus, tomai o malhete e o cinzel, descei cm meu coração. Quebrai


nele tudo o que há de anguloso, poli-o como um belo mármore do oriente. Gravai
nele em letras imortais: - Pavor e tremor di:inte da Justiça do Senhor".

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