A Confraria de Nossa Senhora Do Rosario
A Confraria de Nossa Senhora Do Rosario
A Confraria de Nossa Senhora Do Rosario
Introdução
As irmandades de N . S . do Rosário dos Pretos, de São
Benedito, de Santa Efigênia, de S. Domingos de Gusmão, do
Parto e outras constituíam, no passado, o fulcro de uma das
mais importantes posições de resistência e defesa dos negros
contra a escravidão no Brasil.
Sabe-se das várias formas de reações contra-aculturati-
vas dos negros. Algumas violentas, ruidosas, como as rebe-
liões de negros muçulmanos na Bahia, os quilombos, os cri-
mes. E outras silenciosas, mais de fundo psicológico, como
o banzo, os suicídios, as fugas ou refúgios nas religiões. As
irmandades de N. S . do Rosário podem ser consideradas sob
o segundo aspecto, pois de outra forma não se pode entender
o interesse dos negros por uma religião, a católica, - total-
mente estranha as suas crenças primitivas.
Nina Rodrigues, em mais de um momento no seu livro
O Animismo Fetichista dos Negros Bahianos, chamou a aten-
ção para o fato surpreendente: " . . . conversão religião (dos
pretos) não fez mais do que justapor as exterioridades muito
mal compreendidas do culto católico as suas crenças e prá-
ticas fetichistas, que em nada se modificaram. Concebem os
seus santos ou rsrixás e os santos católicos como de categoria
igual, embora perfeitamente distintos. Abrigados na ignorân-
cia geral da língua que eles falam e na facilidade com que,
para condescender com os senhores, os africanos escravizados
se declaravam e aparentavam convertidos ao catolicismo, as
práticas fetichistas puderam manter-se entre eles até hoje
quase tão extremes de mescla como na Africa". Entenda-se
que o ingresso nas irmandades católicas era mais uma posição
do que uma conversão.
Também Arthur Ramos acentuou: "Essas associações
criginaram-se do regime da escravidão. Foi um esforço co-
letivo que fizeram os negros, de reação ao regime que os opri-
mia. Reacão na confraria religiosa, a busca de um consolo
ou derivação espiritual. Reação, no grupo de jogo, nas festas
cíclicas das congadas. Reação econômica, com a criação das
caixas de alforria" .
O estudo dessas irmandades, por outro lado, esclarece
e justifica a origem de várias instituições iiegras, como a so-
lenidade de coroaçáo de reis e rainhas, autos e festejos po-
pulares como os Congos, Taieiras, Cucumbis, Caboclinhos, Rei-
sados, Maracatus, pois todos esses elementos estavam direta-
merite vinculados as confrarias.
Houve quem visse nessas irmandades sobretudo as ten-
dências totêmicas dos negros, na reuni50 de grupos de pa-
rentesco ou clãs visando um mesmo objetivo. Cremos que
o aspecto de defesa e resistencia contra os opressores, no mo-
mento da escravidão, era bem mais amplo e poderoso, con-
gregando iiegros de todas as procedências, bantos e sudane-
ses, em torno de motivação comum.
Destaque-se ainda nessas irmandades, camufladas em
festas barulhentas e coloridas, o sincretismo altamente inte-
ligente dos negros. A sombra da devoção católica, como a
de N . S. do Rosário, das mais antigas, os negros confrater-
nizavam, adoravam seus ídolos nativos, promoviam festas pú-
blicas e se quotizavam para alforriar companheiros mais cre-
denciados, tudo sob as vistas cegas dos senhores feudais. O
caso de Chico Rei, o primeiro líder negro do Brasil, é signi-
ficativo, alforriando todos os elementos pertencentes a sua
tribo, em Vila Rica e depois em Ouro Preto.
No Nordeste brasileiro, como de resto em várias cida-
des da Federação, muitas dessas irmandades sobrevivem, em-
bora apresentando interesse apenas histórico e lúdico. Des-
garrados de seu antigo contexto, também sobrevivem autos e
festejos folclóricos de essência mais religiosa do que profana,
inclusive presentes hoje nos cordões carnavalescos, tudo liga-
do a coroação anual de reis e rainhas negros.
Neste ensaio, desejanios fixar dois elementos relaciona-
dos às irmandades religiosas dos pretos no Rio Grande do
Norte, de incontestável relevância histórica e antropológica:
os estatutos de fundação da Irmandade de N. S. do Rosário
do Caicó, documento de 1773, recolhido pelo Bispo D. José
Adelino Dantas; e o resumo da festa de coroaçáo de reis ne-
gros em Jardim do Seridó, tal qual a assistimos em dezembro
do ano de 1963.
AS CONFRARIAS DE N . S . DO ROSARIO
A devoção de N . S . do Rosário parece ter sido a de
maior aceitação popular entre os negros no Brasil. E isto se
justifica, até certo ponto, pelo fato da devoção ter sido iri-
troduzida já na Africa, pelos colonizadores portugueses.
No nosso País, sobretudo do séc. XVIII em diante, pro-
liferaram essas confrarias ao lado de outras semelhantes. Há
depoimentos inumeráveis nesse sentido, como o de Henry Kos-
ter, o viajante inglês que veio ao Nordeste em 1809 à procura
de melhores ares e nos deu precioso quadro da realidade bra-
sileira de então. Ele chegou a ver uma imagem de N . S . do
Rosário "pintada de preto".
Outros estudiosos, como Vieira Fazenda, no Rio de
Janeiro, e Pereira da Costa, em Pernambuco, aludiram à mes-
ma irmandade, acrescentando este último que a bandeira de
N . S . do Rosário, como a que houve em Olinda em 1815,
saía à rua "com toques de instrumentos, zabumbas, clarine-
tes e fogos do ar". Mais modernamente, autores como Mello
Morais Filho e Sílvio Romero em Sergipe; Rodrigues de Car-
valho e Gilberto Freyre, no Recife; Alceu Maynard Araúio e
Ruth Guimarães em São Paulo; Arthur Ramos e Édison Car-
neiro na Bahia; Luís da Câmara Cascudo, Juvenal Lamartine
e D . José Adelino Dantas no Rio Grande do Norte, também
docun~entaramaspectos desses centros de religiosidade negra.
Na verdade, além de sua aparente significação católi-
ca, N . S . do Rosário seria para os negros transposição do
dolo de sua religião primitiva. Talvez Iemanjá, para os su-
daneses, principalmente. Ou a boneca, para os bantos, ídolo
que sobrevive nos maracatus. Não podendo adorar seus deu-
ses publicamente, - porque os senhores de engenho não per-
mitiam o culto fetichista, - os escravos se filiavam às ir-
mandades católicas, onde vodiam. tranauilamente, pelo pro-
cesso que mais tarde se chamaria de sincreti.wzo, - adorar
110s santos da igreja católica romana os seus ídolos africanos.
As cerimônias de coroação anual de reis e rainhas ne-
gros estavam diretamente relacionadas a essas confrarias. Era
diante da igreja, no pátio principal, que se realizavam as so-
ienidades, seguidas de danças ao som de zabumbas e pífaros
e prolongando-se em cortejo real, pelas ruas, com seus em-
baixadores, príncipes e funcionfirios. Vários autos populares
como os Congos, Taieiras, Reisados, Cucumbis, Maracatus
nada mais são do que sobrevivências dessas festas ao mesmo
temwo religiosas e profanas. Com a abolicão da escravatura,
muitos negros permaneceram ligados à devoção do Rosário,
enquanto as solenidades de coroacão de reis negros foram
rareando no País, esfacelando-se em festejos relacionados ao
ciclo natalino ou ao carnaval, num processo também de adapta-
ção às festas de procedência lusitana ou indígena.
A Coroação
Procissão de encerramento
No dia seaiinte. 1.O de janeiro de 1964. hoiive confissão
e missa Dara os intenrarites dos vários milnos de rievros. As
16 horas. sai11 da im-eia matriz a seminda nrocissão com
acomnanhaqcptn dos vriinos. oiitras irmanrl*rls e vr-nde n3-
mero d e fi6is Além do anrlor de N S dn Rosário. (irnavem
nova. talvez de gesso, tamanho maior), via-se um andor de
São Sebastião.
Ao lado da banda de música locaI, estavam os mesmos pí-
faros e caixas dos negros. Vez por outra, alternavam os ben-
ditos católicos com as músicas dos pretos. Todos marchavam
com grande respeito, sem danças e sem chapéus. No mesmo
dia, à tarde, um dos irmãos do Rosário saiu às ruas pedindo
esmolas para a festa, devidamente paramentado. Os vários
grupos foram recebidos nas melhores casas da sociedade lo-
cal, quando todos beberam e comeram à larga, aqui e ali to-
cando seus pífaros e dançando.
Em sintese, esta é a festa religiosa e profana dos pre-
tos da Irmandade de N . S . do Rosário, em Jardim do Seridó.
Todos no município, inclusive autoridades, prestigiam e au-
xiliam os preparativos da festa dos negros do terço (como às
vezes chamam), independentemente de pertencere111 uu não à
confraria. Aceitam as festividades como uma tradição da terra,
que remonta à escravidão. Naquele ano de 1964, segundo nos
informou o tesoureiro Severino Elias Barca, a festa do Rosário
de Jardim completou o seu primeiro centenário de funciona-
mento.
Conclusões
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