O Codigo Maia PDF

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MARIO READING

O CÓDIGO MAIA

Tradução
Miguel Romeira
PRÓLOGO
1

Le Château de Monfaucon,
Montargis, França
25 de outubro de 1228

A ntes da caçada, o jovem rei ajoelhou-se e rezou por alguns ins-


tantes – afinal de contas, Deus estava do seu lado. Depois, o soberano
e a sua comitiva de mais de cinquenta homens deixaram ruidosamente
o Château de Monfaucon, em direção à floresta real.
Era um dia de outono com prenúncios de temporal; uma forte
ventania sacudia as folhas mais pequenas e a humidade era tanta que
molhava as faces. Nas respetivas montadas, os doze monges cistercien-
ses que sempre acompanhavam o rei estavam a ter cada vez mais difi-
culdade em sobrepor o seu cântico das horas ao assobiar do vento.
De vez em quanto, o rei voltava-se na cela e lançava-lhes um olhar
severo, irritado com aquela sua toada pomposa.
– Podem voltar todos para trás. Já não posso ouvir a vossa guincharia.
Não consigo perceber uma única palavra.
Os monges, habituados aos caprichos do seu senhor, abandonaram
a procissão de caça, secretamente entusiasmados com a perspetiva de
regressar mais cedo ao claustro, onde tinham à sua espera uma lareira
acesa e um abundante pequeno-almoço.
Luís voltou-se para o seu escudeiro, Amauri de Bale.
– Ainda sobre aquilo que me disseste ontem a respeito dos javalis,
quando estávamos a conversar; que também são um símbolo de Cristo.
Isso é mesmo verdade?
De Bale sentiu-se subitamente exultante. Afinal, a semente que tão
cuidadosamente plantara acabara mesmo por germinar.

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Mario Reading

– Sim, majestade. Na Alemanha Teutónica, o javali, ou sus scrofa, é


chamado der Eber. Segundo sei, a origem da palavra Eber remonta aos
Ibri, antepassados dos Hebreus. – «Graças a uma peculiar e convenien-
temente falsa etimologia», acrescentou em pensamento.
Luís bateu com o punho fechado na dianteira da sela.
– Que eram também conhecidos como os Ibrim. Claro!
De Bale esboçou um sorriso sinistro. Em silêncio, dedicou uma
oração de agradecimento ao conjunto de tutores que tudo haviam feito
para que Luís tivesse uma educação ainda melhor que a do seu avô
efeminado e sodomita, Filipe II, o Augusto.
– Como vossa majestade sabe, na Grécia Antiga o javali era associado
às deusas Deméter e Atalanta. E, no Império Romano, a Marte, o deus
da guerra. Aqui, em França, podemos dizer que o javali representa vossa
majestade, no sentido em que revela grande coragem e se recusa a fugir.
O olhar de Luís brilhou de entusiasmo. A sua voz ergueu-se bem
mais alto que o soprar do vento:
– Hoje vou matar um javali com o meu machado. Tal como Hércu-
les fez no monte Erimanto. Esta manhã Deus falou comigo e disse-me
que, se eu conseguisse fazer isso, os atributos do javali transferir-se-iam
para mim, e que ao meu reino seriam anexadas, pela Santa Madre
Igreja e de forma permanente, Jerusalém, Nazaré e Belém.
De Bale ergueu o sobrolho.
– Pelo Sacro Imperador Romano, quer dizer vossa majestade?
– Não, por mim.
Por momentos, de Bale não soube o que dizer. A situação parecia-
-lhe cada vez melhor. Fora o próprio rei a fazer a sugestão. Observou
de relance os cavaleiros que os rodeavam – sim, todos eles o tinham
escutado perfeitamente. De Bale quase conseguiu ouvir um contrair
de esfíncteres generalizado e sub-reptício, quando a comitiva do rei
compreendeu que naquele dia iria caçar javalis, e não veados.
Em seguida observou o rei. De Bale tinha dezasseis anos, sendo um
ano mais velho que Luís. Fisicamente era já um homem, enquanto
o rei, com quinze anos, ainda mal entrara na puberdade. Em termos
de estatura, no entanto, a de Luís ultrapassava a de de Bale por mais

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de uma cabeça, e montava o seu cavalo com a confiança da juventude


que nada teme.
– Dente timetur – disse de Bale.
– Rex non potest peccare – ripostou o rei.
A comitiva irrompeu em aplausos espontâneos. Até o próprio de
Bale deu por si impressionado com o elegante jeu d’esprit do seu
monarca. Sentado na sela, cumprimentou-o com uma vénia. De Bale
tencionara apenas defender-se antecipadamente de qualquer acusa-
ção – dente timetur era uma conhecida expressão em latim que signifi-
cava «cuidado com os dentes». Mas o rei ripostara com rex non potest
peccare – «o rei não pode pecar». No entanto, com uma ligeiríssima
hesitação entre potest e peccare, Luís transformara essa frase numa
outra: «Não farás estremecer o rei, porco.»
Fora um trocadilho de tal forma esplêndido que de Bale se sentiu
por breves instantes tentado a ignorar as ordens que recebera e a poupar
a vida do rei – em que outro lugar, senão em França, poderia alguém
encontrar um rei de quinze anos com a argúcia de um Peter Abélard?
Mas qualquer homem inteligente pensaria duas vezes antes de anta-
gonizar um parente tão poderoso como Pierre Mauclerc, duque da
Bretanha. De Bale estava encurralado entre a espada dos Plantagenetas
e a parede Capetiana.
Aproximou o seu cavalo do do rei, olhando depois rapidamente
por cima do ombro para verificar como estavam os outros escudeiros a
reagir ao seu monopolizar das atenções do monarca.
– Sei onde poderá encontrar um javali, majestade. É um autêntico
monstro. Neste lado de Orléans, não há nenhum que tenha umas pre-
sas maiores. Deve ter quase duzentos quilos.
– O quê? O que foi que disseste?
«O palerma pôs-se outra vez a rezar», pensou de Bale. «Devia ter
sido padre em vez de rei. Se continua assim, vão ter de o santificar.
Ou isso, ou então há de transformar-se no tirano mais sanguinário,
vaidoso e imodesto depois de Nero.»
Involuntariamente, os pensamentos de de Bale foram atravessados
pela sua versão de uma oração solene, que ecoava os temores secretos

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do escudeiro: «Peço-te, meu Deus, que, depois do que eu estou prestes


a fazer, este filho de uma meretriz não se converta num mártir, e eu
num regicida esventrado, esquartejado e feito num oito.»
De Bale respondeu tardiamente à pergunta do rei, desculpando-se
com uma vénia e um pálido sorriso:
– Na verdade, estava a guardá-lo para mim mesmo, majestade.
Os meus servos…
– Como podes reservá-lo para ti?! Todos os javalis pertencem ao rei.
Quem julgas tu que és?
De Bale corou.
– Deus me proteja dos meus soberanos – murmurou entredentes.
Devia fidelidade a Mauclerc, e agora para aqui estava, a esgrimir com
o seu outro senhor, Luís IX, que Mauclerc queria ver morto. De Bale
quase conseguia sentir o cérebro às voltas. Pôs-se a pensar na melhor
abordagem: na forma mais eficaz de pôr o plano em marcha.
– O animal está bem para lá da floresta real, majestade. Por isso,
legalmente é meu. E ainda não o matei. Apenas dei ordens aos meus
servos para que erguessem uma barreira de vime em volta da sua toca,
e para fazerem barulho, de forma a que ele não saia dali. Eu sei que
o javali está lá. Simplesmente ainda não o vi. Ia dedicá-lo a Nossa
Senhora, e depois matá-lo. Dizem que as presas do animal têm trinta
centímetros.
– Presas com trinta centímetros? Impossível.
De Bale conhecia bem o feitio de Luís. Encolhendo os ombros,
pôs-se a olhar para longe.
– Se assim fosse, seria o próprio Diabo, e não um javali. Quase
duzentos quilos, dizes tu? E presas de trinta centímetros? Trata-se de
um impostor. É impossível que Nosso Senhor Jesus Cristo se mostre
refletido em semelhante monstro.
De Bale executou a última manobra:
– É plausível, majestade. Tendes razão, sem dúvida. – Benzeu-se
com gestos extravagantes, quase como se estivesse a aspergir água-benta
sobre uma assembleia invisível. – Nesse caso, haverá adversário mais
adequado para um rei cristão?

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O rei e a sua comitiva precisaram de cinco horas para chegar à


floresta no feudo de de Bale. Tinham pedido mais alguns cavalos, e de
Bale ordenara que se preparasse uma refeição e que fosse armado um
pavilhão junto ao covil do monstro. Mandara um mensageiro dispensar
os seus locatários do serviço daquele dia, de forma a garantir a maior
assistência possível para o acontecimento que, previa ele, iria abalar
todo o reino e transformá-lo de forma irrevogável.
Quando o rei finalmente surgiu do marisma de São Benedito, qui-
nhentos súbditos ávidos por agradar ao seu monarca caíram de joelhos
para o receber.
– Quer descansar um pouco, majestade? – perguntou de Bale,
olhando de soslaio para o seu camareiro, que lhe respondeu com uma
vénia, indicando que estava tudo a postos para assegurar o conforto do
rei. – Ou damos já início à caçada?
O rei olhava para lá da barreira de vime. O seu rosto empalidecera.
«Está a perder a coragem», pensou de Bale. «O pobre idiota teve
cinco horas para pensar no assunto e agora está a acobardar-se.»
– Permita-me que eu seja o seu defensor, majestade, e que mate o
javali em seu nome.
Luís passou a perna por cima da sela. Um criado contornou o cavalo
pela traseira, fazendo das suas costas um apoio, para que o rei não
tivesse de sujar as botas.
– Deus também falou contigo esta manhã, Amauri?

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– Não, majestade. Claro que não. Deus só fala aos reis, aos papas
e ao Sacro Imperador Romano.
Com um resmungo, o rei fez sinal ao seu moço de cavalaria para se
aproximar.
– Traz-me um machado. Vou matar o javali, e a seguir vamos todos
comer.
Com uma ardorosa prece, de Bale agradeceu mentalmente por
nenhum dos mais velhos conselheiros do rei se ter dado ao incómodo
de tomar parte na caçada. Iguais a si mesmos, estavam todos a arquite-
tar tramóias e conspirações com a rainha-mãe. Tinha o terreno com-
pletamente livre.
Erguendo a mão, protegida por uma guante de ferro, fez sinal aos
caçadores para avançarem. Estes, por sua vez, deram sinal aos respe-
tivos bandeireiros, que transmitiram a ordem aos batedores, os quais
esperavam junto à entrada da toca.
– O javali pode sair a qualquer momento, majestade. Permita-me
aconselhá-lo a colocar-se em posição.
O rei avançou pela abertura propositadamente feita na barreira de
vime para que passasse. À sua frente via apenas um emaranhado de
espinheiros e salgueiros. Fora aberto um canal pelo meio da vegetação
compacta, pelo qual o javali seria – teoricamente – obrigado a avançar.
Erguendo o queixo, de Bale fez sinal a um dos seus homens de
armas, que lhe lançou um pique para as mãos. O escudeiro foi então
colocar-se à direita do rei, ligeiramente mais atrás.
– Só intervirei, majestade, se o vosso primeiro golpe não for eficaz.
– Não intervirás de modo nenhum. O meu primeiro golpe não será
ineficaz. Deus falou-me. Eu sou o seu emissário abençoado.
De Bale fez uma vénia, mostrando-se ostensivamente relutante em
ceder à vontade do rei. Embora o próprio monarca não pudesse ver
aquele gesto, todos os outros o testemunharam.
– Como queira, majestade. – Apoiando-se no seu pique, ficou à
espera.
Pouco depois escutou-se um brado vindo do outro lado da colina.
A battue começara. De Bale ordenara que a fileira de batedores em

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aproximação nunca avançasse mais do que um metro de cada vez –


a última coisa que ele queria era que o javali desse meia volta e esven-
trasse um dos seus homens em lugar do rei.
– Majestade, lembre-se de manter as pernas unidas quando desferir
o golpe.
– Estás a falar do quê?
– Os javalis costumam atacar com as presas de baixo para cima, para
esventrarem a sua vítima. Se mantiver as pernas unidas, majestade,
estará a proteger-se, e também ao futuro da França.
Luís irrompeu em gargalhadas.
«Ótimo», pensou de Bale. «Ora aqui está mais uma prova, para
todas as testemunhas à nossa volta, de que entre mim e o rei está tudo
bem. E, se este idiota se mantiver de pernas juntas, torna-se ainda mais
provável que falhe o golpe.»
Ouviram algo a irromper por entre a vegetação rasteira, seguido de
um coro entusiasmado da multidão. Um javali saiu a toda a velocidade
do túnel aberto na vegetação cerrada, avançando em direção ao rei.
– Não é este, majestade.
De Bale avançou a correr e trespassou o javali com o pique. Com
um guincho, o animal caiu de costas, escoiceando o ar com as quatro
patas. De Bale fez sinal aos seus caçadores, que avançaram a correr,
degolaram o javali e levaram-no dali, arrastando-o pelo chão. A carcaça
libertara um cheiro intenso, que permaneceu no ar depois de o animal
ser levado.
– Este nem chegava aos cem quilos, majestade. O seu javali tem
mais do dobro do tamanho deste.
Luís estava de olhos arregalados. Parecia ter ficado petrificado ante
a poça de sangue ainda quente deixada pelo animal morto.
«Coragem», pensou de Bale nas costas do rei. «Não te acobardes
agora, homem. Ninguém o esqueceria. As pessoas começariam a inven-
tar cantigas a teu respeito. Entrarias para a História como Luís, o Fraco.
E de certeza que o destino ditaria que vivesses até aos cem anos.»
Escutou-se um gemido coletivo. Um cervo branco emergira da
plantação. Dando um rápido impulso com as patas traseiras, o animal

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saltou por cima da fileira de caçadores, transpondo igualmente a bar-


reira de vime com um único salto, e desaparecendo depois a correr, no
bosque circundante.
De Bale praguejou entredentes.
– É um cervo branco, majestade. A sua presença significa que o obje-
tivo de vossa majestade é inalcançável. O melhor é irmo-nos embora.
– Foi a custo que disse estas palavras. Mas tratava-se de um símbolo tão
específico, o significado do cervo branco era tão popular que teria sido
uma loucura, na sua qualidade de anfitrião do rei, ignorá-lo.
– Tal como o cervo suspira pelos riachos, meu Deus, também a minha
alma suspira por Ti. – Luís ergueu o machado. Era óbvio que tencio-
nava provar que de Bale, e também o cervo, estavam errados.
Escutou-se um guincho por detrás da fileira de batedores em aproxi-
mação. E depois um coro de vozes em alvoroço. Era óbvio que alguém
fora morto pelo javali.
O rei pôs-se a olhar em todas as direções, de rosto lívido sob o súbito
e intenso brilhar do sol.
O javali surgiu da outra ponta do bosque, com uma massa ensan-
guentada pendurada das presas.
A princípio, o rei não o viu. Mas o animal enraivecido – o primeiro
daquele par a sentir o sabor do sangue – estava a vê-lo. Olhou para trás,
para a fileira de caçadores, não vendo nenhuma abertura por onde
pudesse fugir. E depois olhou novamente para o rei, em redor do qual
havia apenas ar.
O javali atacou, sacudindo o focinho para se desembaraçar do ema-
ranhado de intestinos que lhe toldava o campo de visão.
O rei viu o animal a aproximar-se e retesou os músculos. Erguendo
o machado, esperou.
– Corra para ele, majestade! Tem de correr para ele! – De Bale não
sabia na verdade por que motivo estava a tentar ajudar o rei. Afinal de
contas queria-o morto, não transformado numa lenda.
O rei avançou de forma hesitante em direção ao javali, de machado
empunhado, pronto a desferir o golpe.
O javali desviou-se, desferindo um golpe lateral com as presas.

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Com um grito, o rei caiu ao chão.


O javali voltou-se e investiu segunda vez.
Sem parar para pensar, de Bale correu para o rei, desferindo um
golpe com o pique de forma a cortar a trajetória do javali. A arma tres-
passou a espádua do animal. Um jato de sangue arterial caiu sobre o
corpo caído do rei, como uma fonte de águas carmesins.
Com o golpe, o pique partira-se em dois, deixando de Bale com
apenas uma fina haste de madeira nas mãos.
Arrastando-se, o enorme javali avançou para o rei, para terminar
aquilo que começara.
Os caçadores aproximaram-se, todos de punhal caído junto ao
corpo, as suas bocas entreabertas devido ao choque.
De Bale viu tudo isto como se em câmara lenta. Era óbvio que lhe
restava uma única alternativa.
Lançou-se sobre o javali, segurando com as próprias mãos as presas
afiadas como lâminas do animal. A sua última memória consciente foi
a dos golpes de punhal dos seus caçadores a chover junto à sua cabeça.

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A mauri de Bale, conde de Hyères, passou os dezasseis anos


seguintes involuntariamente exilado da corte.
A rainha-mãe, Branca de Castela, nunca lhe perdoara o ter, na opi-
nião dela, encorajado o seu filho, o rei, a cometer um ato tão absurdo
quanto inútil. O facto de de Bale ter salvo a vida do jovem rei, com
considerável risco para a sua própria vida, pouco ou nada significava
para a rainha – embora isso tivesse indubitavelmente poupado de Bale
a uma agonizante morte por esquartejamento, como era o destino dos
regicidas.
O rei fora proibido pela sua mãe de tornar a contactar com de Bale,
e cumprira esta ordem apenas por um sentido de dever e pelo afeto que
tinha pela rainha, recusando-se no entanto a fazer uma jura formal.
Mas o rei era um homem extremamente piedoso, e o seu sentido
de justiça era afamado em toda a Europa. Ao longo dos muitos anos
da sua separação forçada, fora ficando cada vez mais convencido de
que Amauri de Bale fora o escolhido de Deus para o salvar dos ardis do
Diabo. E ainda mais convencido estava de que o grande javali de São
Benedito, embora assumisse a aparência de um dos símbolos de Cristo,
era afinal o próprio Lúcifer.
No final do verão de 1244, após uma doença que quase o matara, o
rei Luís, para horror de sua mãe, declarou unilateralmente a sua inten-
ção de fazer o juramento de cavaleiro. Depois de muito refletir, e com
a orientação do seu confessor, Geoffroy de Beaulieu, e do seu capelão,

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Guilherme de Chartres, foi decidido que seria impossível o rei levar


a cruz sem primeiro reconhecer a influência que Deus tivera na sua
decisão. E isso, por sua vez, não podia ser feito sem que se manifestasse
alguma espécie de reconhecimento pelo homem que claramente fora
escolhido pelo próprio Deus para proteger o monarca do Diabo.
O problema era agravado pelo facto de alguns dos escudeiros do
rei – muitos dos quais, dezasseis anos depois, eram detentores de
importantes cargos oficiais – terem claramente escutado o rei, naquela
manhã em 1228, a explicar ao conde Amauri de Bale que ele, Luís, Rex
Francorum e Rex Christianissimus, Lugar-tenente de Deus na Terra e
Protetor Máximo da França (a mais velha das filhas da Igreja), fora
pessoalmente informado por Deus de que, se quisesse assegurar a ane-
xação permanente de Jerusalém, Nazaré e Belém à Santa Madre Igreja,
teria primeiro de matar um javali com o seu machado.
Graças ao seu cada vez mais profundo conhecimento das escrituras
sagradas, o rei – e, por seu intermédio, os seus conselheiros – compre-
endia agora que, naquele dia, Deus tivera em mente um segundo e
menos óbvio motivo. Esse motivo envolvia a escolha do conde Amauri
de Bale para ser o defensor exclusivo do rei. Para agir em sua defesa e
em seu nome – ou, por outras palavras, para levar a cabo a vontade de
Deus.
Como consequência direta deste facto, e sob a vigorosa desapro-
vação da rainha, o rei emitiu uma convocatória formal para de Bale
se apresentar na Basílica de Saint-Denis, junto aos túmulos do pai do
monarca, Luís VIII, e do seu avô, Filipe II, o Augusto, exatamente no
dia e na hora do décimo sexto aniversário da sua intervenção inspirada
por Deus.

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I nicialmente, Amauri de Bale sentiu-se tentado a evitar o que suspei-


tava ser um convite disfarçado para se voluntariar a servir no exército de
Frederico II, Sacro Imperador Romano. Mas sabia que, se a rainha-mãe
queria de facto vingar-se dele, conseguiria localizá-lo na Alemanha tão
facilmente como o poderia ter localizado em qualquer altura durante
os últimos dezasseis anos, dada a ténue segurança do seu castelo e das
suas propriedades.
Indubitavelmente, devia a sua vida – e o facto de se manter fisica-
mente intacto – ao rei. De Bale estremeceu ao pensar no que a rainha-
-mãe teria ordenado que lhe fosse feito caso ele não tivesse mudado de
ideias no último instante, correndo a salvar a vida do monarca. Naquele
dia, contudo, a sua perversa decisão (bem vistas as coisas) não se devera
a um improvável acesso de caridade, mas sim ao instinto de reação de
qualquer guerreiro treinado, a par da súbita compreensão – motivada
pelo sublime jeu d’esprit do rei – de que Luís poderia vir a revelar-se
benéfico para a França, em lugar de ser apenas mais um fardo cape-
tiano na sua alma.
O resultado final fora, claro, a raiva que o duque da Bretanha pas-
sara a nutrir por de Bale, com tudo o que isso implicava – a perda de
influência, um casamento menos vantajoso e um dramático estreitar
das suas ambições políticas. Mas ele decidira que, no cômputo geral
das coisas, aquele era o menor de dois males – Mauclerc era mau, mas
a rainha-mãe teria sido horrível.

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Assim, no dia marcado, de Bale ajoelhou-se diante do sarcófago


do pai do rei, com a cabeça inclinada e os braços apoiados no joelho
erguido, e esperou que o rei falasse. Toda a sua vida consistira numa
série de jogadas amiúde impulsivas, e agora, naquele magnífico novo
espaço interior da Basílica de Saint-Denis, feito ao estilo gótico rayon-
nant, de Bale teve a fatalista noção da sua própria insignificância.
O rei, ladeado pelo seu confessor, Geoffroy de Beaulieu, e pelo seu
capelão, Guilherme de Chartres, observou de Bale a coberto de uma
das vinte estátuas-coluna que adornavam o pórtico da fachada oeste da
basílica.
– Vejam – disse o rei. – É Nossa Senhora.
Os dois conselheiros recuaram ligeiramente e olharam para o seu
soberano.
– Não vemos nada, majestade.
O rei voltou-se para eles.
– Não a estão a ver?
– Não, majestade. Não vemos nada. O que está vossa majestade a
ver?
O rei voltou-se na direção da cripta do seu pai.
– Vejo Nossa Senhora, a Mãe de Deus, a erguer o capote do meu
defensor e a colocar-lho delicadamente pelas costas, para que ele não
tenha frio.
Os dois homens cobriram o rosto com as mãos. Em seguida, caindo
de joelhos, prostraram-se nas lajes do chão da nave.
O rei, após uma ligeira hesitação, avançou para a figura ajoelhada
do conde.
De Bale escutou o rei a aproximar-se, mas decidiu não erguer o
olhar. Graças ao eco no interior da basílica, tinha ouvido as palavras de
Luís, e compreendia que, naquele exato momento, o seu futuro, bem
como o de toda a sua família, seria decidido para todo o sempre.
Sentiu a ponta da espada do rei tocar-lhe na parte de trás do ombro
direito.
– Viste o Diabo, de Bale?
– Vi, majestade.

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– E protegeste o rei?
– Com a minha própria vida, majestade.
– E protegerás sempre o rei?
– Sempre, majestade.
– E o reino da França?
– Eu e a minha família, majestade. Para todo o sempre.
– Então sereis vós o meu Corpus Maleficus.
Luís voltou-se. Ergueu a voz, fazendo-a ecoar por toda a basílica:
– Tenho o bispo de Reims para me coroar. O bispo de Laon para me
ungir. O de Langres para levar o meu cetro. O de Beauvais para levar
o meu manto. O de Châlons para levar o meu anel. E o de Noyons
para levar o meu cinto. Tenho o duque da Normandia para segurar o
primeiro estandarte, e o de Guiana para segurar o segundo. Tenho o de
Borgonha para levar a minha coroa e colocar-me o cinto. Tenho o conde
de Toulouse para levar as minhas esporas. O da Flandres para levar a
minha espada. E o de Champagne para levar a bandeira real. Mas quem
tenho eu para me proteger do Diabo? Quem será o meu defensor?
De Beaulieu e de Chartres tinham erguido os rostos do chão. Um
e outro eram capazes de reconhecer um fait accompli quando o viam.
– Tem o conde de Hyères, majestade.
Luís anuiu.
– O conde de Hyères é agora o décimo terceiro par de França. São
testemunhas deste facto as ossadas do meu pai e do meu avô. Tragam o
meu selo e a minha cruz de cavaleiro.

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