Lenda Gentil Marques

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Lenda de Gentil Marques

Lenda de Gentil Marques

1. Analisa esta lenda passo a passo, isto é, à medida que surgem atividades, interrompe a leitura e
realiza-as.

Lenda do milagre das rosas


Chegara o mês de janeiro. Em Coimbra, as casas das monjas de
Santa Clara, quase destruídas pelas cheias do Mondego, reconstruí- 1. rainha Dona Isabel: foi a mulher de
D. Dinis, sexto rei de Portugal, com
ram-se rapidamente. Isso fora possível porque a rainha Dona Isabel 1 quem casou em 1282.
velava2 por elas. 2. velava: protegia, zelava.
5 Quando algum desgraçado se via sem pão dentro dum lar mi-
nado pela doença, logo procurava a sua rainha. E se nem sempre
regressava com saúde para o corpo, pelo menos trazia pão para a
boca, e palavras tão lindas ressoando aos seus ouvidos, que por si só
já constituíam consolação3 para o seu espírito.
3. consolação: alívio.
10 De todos, essa esposa e filha de reis cuidava como se fossem pessoas
suas. Levava o seu zelo4 ao ponto de ir ela própria vigiar os trabalhos em 4. zelo: cuidado, interesse.

curso nas casas das monjas. E os operários, desvanecidos 5 com a real 5. desvanecidos: orgulhosos.
6. auxílios monetários: ajudas em dinheiro.
presença, e ainda com os auxílios monetários6 que Dona Isabel trazia
aos mais necessitados, trabalhavam com redobrado ardor7. 7. ardor: vivacidade; entusiasmo.

15 Porém, como acontece neste mundo, a rainha não tinha somente


amigos.

2. Nesta lenda, é possível identificar o tempo e o espaço em que decorre a ação. Indica-os.
3. Que características da rainha Dona Isabel são reveladas nestes parágrafos?
4. “Porém, […] a rainha não tinha somente amigos.” (linhas 15-16)
Quem imaginas que poderia desejar mal a Dona Isabel?

E certa vez um despeitado8 da corte procurou azedar o ânimo de el-rei 8. despeitado: ressentido; rancoroso.

D. Dinis. Aproveitando um dos momentos em que estava a sós com o


rei, encetou o diálogo que há muito andava bailando no seu cérebro:
20 – Perdoai-me, Senhor, se me atrevo a falar-vos num assunto que
me traz preocupado.
O rei olhou-o com certa altivez.
– Deixai-vos de rodeios. Dizei o que pretendeis.
O cortesão mordeu os lábios e disse:
25 – Senhor meu Rei... A Rainha, vossa digna esposa, dispõe com bas-
tante liberdade do vosso tesoiro.
LAB5©Porto Editora

D. Dinis franziu as sobrancelhas:


– Que dizeis? Explicai-vos e já!
O fidalgo tornou com humildade fingida:
30 – Meu Senhor, acreditai no que vos digo... A Rainha gasta de mais...
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– Mas como sabeis isso?


– Oh! É fácil de saber, meu Senhor... Só os vossos bons olhos não
querem ver a verdade. Se me permitis...
O rei encolerizou-se.
35 – Falai! Mas falai duma vez!
O fidalgo baixou a cabeça e declarou numa voz um tanto incerta:
– Oh, meu Rei e Senhor! Só vos quero ajudar... O dinheiro desapa-
rece, esgota-se, some-se... São as esmolas, as obras das igrejas, os em-
préstimos, as dádivas, as doações a conventos... enfim... uma lou-
40 cura, Senhor! É necessária a vossa intervenção...

5. Que crítica fez o fidalgo à rainha Dona Isabel? O que pretendia ele?
6. Qual te parece que terá sido a reação de D. Dinis às palavras do cortesão?

Um grito do rei de Portugal cortou-lhe a frase:


– Basta! Eu sei bem o que hei de fazer!
D. Dinis levantou-se, fazendo recuar o fidalgo. Em largas passadas
pelo aposento, procurava acalmar a impetuosidade9 do seu tempera- 9. impetuosidade: violência; fúria.
10. belicoso: conflituoso.
45 mento belicoso10. Seria verdade o que acabavam de dizer-lhe? Sim, devia 11. desmedido: enorme.
ser verdade. A mentira representaria nesse momento um desmedido11 12. arrojo: atrevimento; coragem.
arrojo12. E ao homem que ele tinha na sua frente sobrava-lhe em mes- 13. mesquinhez: falta de nobreza.
14. audácia: coragem.
quinhez13 o que lhe faltava em audácia14. E todavia... o vir à sua pre-
sença pôr em cheque a própria rainha não seria já um ato destemido?
50 O rei parou de andar dum extremo ao outro da saleta. Olhou fixa-
mente o fidalgo, que baixou os olhos, e ordenou:
– Deixai-me só! Preciso de pensar no caso sem a sensação de estar
a ser espiado.
Inclinando a cabeça, o fidalgo retirou-se em silêncio. Conhecia bem
55 o rei e sabia de antemão que as suas declarações o tinham impressio-
nado. Quanto ao monarca, logo que ficou longe das vistas do seu súb-
dito, deixou-se cair numa cadeira, murmurando consigo mesmo: “É
isso! Tenho de pôr cobro de uma vez para sempre aos hábitos excessi-
vamente misericordiosos15 da Rainha! E será o mais breve possível!” 15. misericordiosos: caridosos.

7. Comprova que o fidalgo conseguiu o seu objetivo.


8. Coloca hipóteses sobre o que irá fazer D. Dinis para impedir as ações da rainha.

60 Ora, se bem o pensou melhor o fez. Dias depois, quando Dona


Isabel saía dos paços de Coimbra acompanhada pelas damas e pelos
cavaleiros do seu séquito16 para se dirigir às obras de Santa Clara e 16. séquito: comitiva;
conjunto de pessoas
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espalhar as suas esmolas, surgiu-lhe de súbito, pela frente, a figura


que acompanham
desempenada do rei. Ele cumprimentou-a, cortesmente17: alguém.
65 – Bom dia, Senhora! Ia partir para uma caçada, mas lembrei-me 17. cortesmente: de
modo gentil.
de vos saudar.
– Agradeço-vos a boa ideia, Senhor.
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A rainha disse estas palavras sorrindo, mas instintivamente recuou


um pouco, como a disfarçar o que levava no regaço18. Porém, esse 18. regaço: colo.

70 gesto embora mal esboçado não escapou à perspicácia de D. Dinis.


Tentando esconder a suspeita que o assaltara, ele perguntou de novo,
com a cortesia própria dum rei:
– Podeis dizer-me, Senhora, onde ides tão cedo?
Dona Isabel empalideceu. O coração bateu-lhe mais apressado e,
75 após certa hesitação, respondeu com voz branda:
– Vou... armar19 os altares do mosteiro de Santa Clara. 19. armar: enfeitar.
Então el-rei olhou-a de sobrecenho carregado. A sua voz tornou-
-se menos agradável. O sorriso cortês desapareceu-lhe dos lábios, en-
quanto perguntava:
80 – E que levais no vosso regaço, Senhora? À-la-fé20 que pareceis receo- 20. À-la-fé: na verdade;
sem dúvida.
sa. Nem quero acreditar que pretendeis ir distribuir novas esmolas pelos
vossos protegidos... Isso seria contra todas as minhas ordens e contra
todos os meus conselhos. Dizei-me, pois, o que levais no regaço.
A rainha tornou-se ainda mais pálida e por momentos permane-
85 ceu silenciosa. Elevava a Deus o pensamento, pedindo-Lhe aflitiva-
mente o Seu divino auxílio. Alarmada, toda a comitiva olhava o rei,
receosa da sua cólera. D. Dinis fixou de frente a rainha, que dava a
ideia de estar presente apenas em corpo. Sentiu fugir-lhe toda a
calma de que se tinha revestido e gritou-lhe:
90 – Então, Senhora, terei de dar ouvidos aos rumores que circulam à
minha volta? Sempre é verdade que levais no vosso regaço dinheiro
para oferecer aos maltrapilhos que protegeis?

9. Conta resumidamente o que fez el-rei “dias depois”.

10. Dona Isabel dá uma resposta surpreendente ao rei. Qual poderá ter sido?

Dona Isabel olhou o rei como quem torna dum sonho. O rubor21 21. rubor: cor vermelha.
voltava-lhe às faces, o sorriso brincava-lhe de novo nos lábios. E na
95 sua voz melodiosa e pausada, respondeu:
– Enganais-vos, Real Senhor... O que levo no meu regaço... são
rosas para enfeitar os altares do mosteiro!
D. Dinis sorriu com ironia.
– Rosas? Como vos atreveis a mentir, Senhora? Rosas em ja-
100 neiro?... Pois ficai sabendo: se aqui estou neste momento... se aqui
vim, é porque alguém me garantiu que leváveis dinheiro... Com-
preendeis agora?
O rosto da rainha não se contraiu sequer, humildemente. E, ante
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o pasmo e a aflição de quantos a rodeavam, insistiu com firmeza:


105 – Enganais-vos, Senhor! E enganou-se também quem vos infor-
mou. São rosas o que levo no regaço!
D. Dinis cerrou os dentes. Os seus olhos brilhavam de cólera e a
sua voz tornou-se ainda mais dura:
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– Insistis na vossa mentira, Senhora? Então...mostrai-me essas rosas!


110 Serenamente, ante o olhar atónito22 do rei e de todos os que ali se 22. atónito: espantado;
confuso.
encontravam, a rainha Dona Isabel abriu o regaço e deixou ver um
ramo de rosas maravilhosas, enquanto murmurava:
– Vede, Senhor... Vede com os vossos olhos!
Houve um ligeiro murmúrio de pasmo entre a comitiva. El-rei
115 D. Dinis, diante de tão grande prodígio, olhava atónito para as flores
e para as mãos da rainha, sem conseguir pronunciar uma palavra. Es-
tava certo de que acontecera algo de sobrenatural. Algo de estranho
que o impressionava e confundia. E só momentos depois conseguiu
sorrir e murmurar:
120 – Perdoai-me, Senhora, se vos ofendi... Mas nunca pensei ver
rosas tão lindas neste tempo!
Ela sorriu-lhe meigamente. Havia felicidade no brilho dos seus
olhos, na suave expressão do seu rosto, no bondoso sorriso dos seus
lábios. Cumprimentando-a com galhardia23, o rei afastou-se, dei- 23. galhardia: elegância.
125 xando que a rainha seguisse o seu caminho.
Então, de novo, Dona Isabel elevou os olhos ao Céu. O seu ar
harmonioso e a paz que resplandecia do seu rosto entraram na pró-
pria alma de quantos compunham a sua comitiva. Ninguém se atre-
via a falar, a fazer um gesto sequer. Sentiam a solenidade24 do mo- 24. solenidade:
grandiosidade;
130 mento com uma alegria interior de difícil exteriorização.
importância.
Foi a própria rainha quem deu o sinal de continuar a marcha a
caminho do mosteiro de Santa Clara. Lá a esperavam os desgraçados
que viviam das esmolas da sua mão benfeitora, do seu olhar cari-
nhoso, da sua palavra tão cheia de consolação. E lá estavam também
135 os altares, esperando a sua graciosa ajuda.

11. Conta, por palavras tuas, o desfecho deste episódio.

Daí a pouco já toda a cidade de Coimbra se encontrava ao cor-


rente do estranho prodígio25 que representava o pão e o dinheiro 25. prodígio: coisa
surpreendente;
transformados em rosas. O povo proclamava, de lágrimas nos olhos:
milagre.
“Foi um milagre! Foi um milagre! É santa a nossa rainha! Bendito
140 seja Deus que a deu ao nosso reino!”
E o povo, gente grande com alma de menino, dentro das suas
inesperadas reações, é aquele cuja voz deve ecoar no Céu.
Assim, saltitando de boca em boca, o milagre das rosas chegou
até nós e continuará para além dos séculos.
LAB5©Porto Editora

Gentil Marques, Lendas de Portugal, Vol. 4, Ed. Círculo de Leitores, 1997 (págs. 291-294)

12. Transcreve do último parágrafo do texto a expressão que comprova que esta é
uma história da tradição oral.

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