Dissertação Orientada Por Alice Casimiro Lopes
Dissertação Orientada Por Alice Casimiro Lopes
Dissertação Orientada Por Alice Casimiro Lopes
Rio de Janeiro
2018
Hugo Heleno Camilo Costa
Rio de Janeiro
2018
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
es CDU 37.016
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
tese, desde que citada a fonte.
___________________________________ _______________
Assinatura Data
Hugo Heleno Camilo Costa
Banca Examinadora:
_________________________________________
Profª. Drª. Alice Ribeiro Casimiro Lopes
Faculdade de Educação – UERJ
_________________________________________
Profª. Drª. Elizabeth Fernandes de Macedo
Faculdade de Educação – UERJ
_________________________________________
Prof. Dr. Paulo César Duque-Estrada
PUC-Rio
_________________________________________
Profª. Drª. Tania Maria de Lima
Universidade Federal do Mato Grosso – UFMT
_________________________________________
Profª. Drª. Gustavo Gilson Sousa de Oliveira
Universidade Federal de Pernambuco– UFPE
Rio de Janeiro
2018
AGRADECIMENTOS
quando agradecer é pouco
Ao Deus da minha fé, companhia íntima e singular, que me leva a acreditar que tenho
coragem e criatividade, além de boa dose de imaginação para construir perspectivas de saída e
entrada sobre tudo.
Imensamente, agradeço à Profª. Drª. Alice Casimiro Lopes, minha orientadora
acadêmica, que me ensina mais do que imagina. Com ela, tenho aprendido muito a investir
em novas leituras.
Ao grupo de pesquisa, pela interlocução e paciência, pelos aprendizados nas
discussões.
À banca examinadora, Profª Drª Elizabeth Fernandes Macedo, Prof. Dr. Paulo César
Duque-Estrada, Profª Drª. Tânia Maria de Lima e Prof. Dr. Gustavo Gilson Sousa de Oliveira,
agradeço por, gentilmente, aceitarem conversar sobre este trabalho.
Às amizades de Ana de Oliveira, Erika Virgílio, Guilherme Pereira Stribel, Phelipe
Florez, Rosanne Dias, Talita Vidal, Teresa Araújo, Verônica Borges. Obrigado pelas
conversas que podemos ter sobre tudo.
Para a Silvana, por aceitar ser minha namorada e estar de mãos dadas comigo em tudo,
a todo tempo.
À minha forte e amiga mãe, ao meu amigo e pai, à Rafa, querida irmã. Para tia e mãe,
Fafá, possuidora de palavras certeiras.
Ao apoio da Faperj.
RESUMO
Esta tese se volta ao debate sobre o conhecimento no campo do currículo, com vistas
constituir a perspectiva de que o conflito em torno deste nome marca o dinamismo de um
pensamento político curricular que busca controlar aquilo que é lido como faltoso a si, a
alteridade. O primeiro capítulo focaliza a organização teórico-estratégica, na qual introduzo
operadores interpretativos à dinâmica da política, aos processos de subjetivação que a
constituem por meio de decisões em resposta à alteridade questionadora que escapa ao cálculo
curricular. Baseado nos pensamentos derridiano e laclauniano, pondero os processos de
subjetivação como movimentos caros às significações contextuais, traduções performadas em
resposta ao que se tem por questionamento em dado contexto. No capítulo seguinte, apoiado
nos estudos pós-estruturais de Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo, procuro organizar
uma posição teórica de currículo que defendo e a partir da qual penso as produções no campo,
as políticas de currículo. Nesse sentido, defendo a política de currículo como cultura,
alinhando-me especificamente à ideia de currículo como texto incessantemente traduzido. No
terceiro capítulo, a partir de abordagem a estudos do campo, chamo a atenção para uma
possível leitura que é dinamizada nas afirmações espectrais de um conhecimento como meio
de projetar um sujeito (devendo estar) sob controle de uma lógica. No quarto capítulo chamo
a atenção para trabalhos de grande projeção no debate sobre organização curricular,
particularmente aqueles que defendem a organização interdisciplinar. Destaco argumentos em
defesa das distintas leituras sobre organização curricular com vistas a enfatizar o quanto
tendem a circunscrever uma leitura de conhecimento implicada no controle sobre o sujeito,
sobre o contexto, o mundo. A esse respeito, chamo a atenção para o quanto tal conflito se
desdobra também na produção das políticas curriculares oficiais, focalizando especificamente
o que considero ser central e, possivelmente, tomado como pressuposto as discussões sobre
inovação e produção de conhecimento: a tensão entre a organização disciplinar e a integrada
do currículo. Nesse sentido, proponho a discussão do significante interdisciplinaridade como
corte empírico da abordagem ao referido conflito. No ultimo capítulo, discuto os sentidos que
pautam a reforma do nível médio, focalizando a tensão sobre a organização curricular via
interdisciplinaridade como meio de afirmação de um conhecimento capaz de responder ao que
é delineado como desafio ao currículo, constituir aquilo que é dado como faltoso a um
horizonte de plenitude. Concluo defendendo que a afirmação do conhecimento e sua repetição
tendem a funcionar como respostas de uma subjetivação político-curricular àquilo
desconhecido a que se busca deter, compreender, sanar. As respostas possíveis, pensadas ao
longo da tese como orbitando na relação com o nome conhecimento, possibilitam a
perspectiva de que a subjetivação projeta como faltoso, bloqueio, debilidade, fragilidade, a
falta de um conhecimento que não é de propriedade, ainda que seja ponderado como tal.
COSTA, Hugo Heleno Camilo. The Knowledge as a curricular response to otherness. 2018.
223 f.Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
This thesis turns to the debate about knowledge in the field of curriculum, aiming to
create the perspective that the conflict around this name marks the dynamism of a curricular
political thought that seeks to control what is read as lacking to itself, the otherness. The first
chapter focuses on the theoretical-strategic organization, in which I introduce interpretive
operators to the dynamics of politics, to the subjectivation processes that constitute it through
decisions in response to the questioning otherness that escapes the curricular calculation.
Based on the Derrida and Laclaunian thoughts, I consider the processes of subjectivation as
movements that are dear to the contextual significations, translations performed in response to
what is questioned in a given context. In the following chapter, supported by the post-
structural studies of Alice Casimiro Lopes and Elizabeth Macedo, I try to organize a
theoretical position of curriculum that I defend and from which I think the productions in the
field, curriculum policies. In this sense, I defend curriculum policy as a culture, specifically
aligning myself with the idea of curriculum as an incessantly translated text. In the third
chapter, from an approach to field studies, I call attention to a possible reading that is
dynamized in the spectral affirmations of a knowledge as a means of projecting a subject (and
must be) under the control of a logic. In the fourth chapter I call attention to works of great
projection in the debate about curricular organization, particularly those that defend the
interdisciplinary organization. I highlight arguments in defense of the different readings about
curricular organization with a view to emphasizing how much they tend to circumscribe a
reading of knowledge implied in the control over the subject, the context, the world. In this
regard, I would like to draw attention to the extent to which this conflict also unfolds in the
production of official curricular policies, focusing specifically on what I consider to be central
and possibly assumed as the presupposition of the discussions on innovation and knowledge
production: the tension between the organization disciplinary and integrated curriculum. In
this sense, I propose the discussion of the significant interdisciplinarity as an empirical section
of the approach to this conflict. In the last chapter, I discuss the meanings that guide the
reform of the middle level, focusing the tension on the curricular organization through
interdisciplinarity as a means of affirming a knowledge capable of responding to what is
outlined as a challenge to the curriculum, to constitute what is given as lacking to a horizon of
fullness. I conclude by arguing that the affirmation of knowledge and its repetition tend to
function as responses of a political-curricular subjectivation to the unknown that seeks to stop,
understand, heal. The possible answers, thought throughout the thesis as orbiting in the
relation with the name knowledge, allow the perspective that subjectivation projects as
lacking, blockade, weakness, fragility, lack of a knowledge that is not of property, although it
is pondered as such.
1
Disponível em: http://www.curriculo-uerj.pro.br/imagens/pdfTeses/o_povo_dis_241.pdf.
9
momento de finalização do que se considera Educação Básica; é nesse nível que as defesas de
um conhecimento para “formação” do sujeito ocorrem com maior intensidade.
Do ponto de vista da condução de leitura no campo do currículo, lanço mão das
contribuições de Pinar (2008) e Lopes e Macedo (2011). Com base nesses trabalhos e na
organização que propõem para pensar as produções acadêmicas, é possível chamar a atenção
para trabalhos que ajudam a apoiar o argumento de que, mesmo quando negado, o
conhecimento tende a ser pressuposto como identificação curricular ou algo a que o currículo
deve responder. Ao me valer dos trabalhos dos autores como norteadores no campo do
currículo, não abro mão de recorrer aos trabalhos que são considerados marcantes no
pensamento curricular, tanto no Brasil como no exterior.
Minha expectativa ao revolver momentos do pensamento curricular não está em
afirmar um fundamento ou caminho de leitura obrigatório. Busco pontualmente destacar
trabalhos que acenam a diferentes horizontes teóricos, mas que penso reincidir em uma
perspectiva de conhecimento como propriedade constitutiva de um sujeito capaz de atuar em
contextos concebidos como obrigatórios à vida ou à experiência. Além disso, não viso à
responsabilização deste ou daquele autor ou trabalho; ao pinçá-los, aspiro demonstrar como
dada leitura circula no campo do currículo, de modo a fazer uma construção discursiva que
seria constitutiva do que penso ser um pensamento político-curricular. Com essa
denominação, viso argumentar quanto à impossibilidade de separação do que vêm a ser as
produções acadêmicas e a produção de políticas de currículo, como defendem Lopes e
Macedo (2011).
Com isso, defendo haver um campo discursivo curricular dinamizado por distintas
leituras em constante tradução (LOPES; CUNHA; COSTA, 2013), o que remarcaria a
impossibilidade de uma origem na política. Minhas inspirações teóricas para este trabalho, de
cunho pós-estrutural e pós-fundacional, são os pensamentos de Jacques Derrida e Ernesto
Laclau. Com os aportes teóricos desses autores, viso operar um envolvimento
desconstrucionista com o campo do currículo, tendo em mente as ideias de tradução,
différance, subjetivação, equivalência, alteridade, significante flutuante e hegemonia.
Penso tais termos como orbitando a ideia de desconstrução, em que convergem
Derrida e Laclau. Minhas apropriações desses autores conjecturam uma interpretação do
campo do currículo com vista a defender esse nome como uma subjetivação precipitada em
resposta a uma alteridade desconhecida, imponderável ou insondável (DERRIDA, 2006a).
Como será visto mais adiante de modo detalhado, a perspectiva que Derrida insere com essa
leitura é de que, como uma significação, uma identificação no mundo, a subjetivação se
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Aproximar o pensamento de dois autores como Laclau e Derrida não implica diálogo
direto em espaços comuns, muito menos as possibilidades de leitura das políticas de currículo,
no campo da educação, estão dadas. Defino dois aspectos a serem desenvolvidos neste
capítulo: as possíveis relações entre Laclau e Derrida, com foco em oportunidades de leitura
para processos de subjetivação política, de interação e construção de verdades na política,
entendendo-a como parte de uma escrita mais ampla e incontrolável; e as possibilidades
interpretativas que o entrelaçamento de contribuições de Laclau e Derrida podem inserir para
a reflexão sobre a política de currículo.
Particularmente, minha busca pela apropriação de momentos do pensamento de
Derrida para analisar a política de currículo resulta do endosso introduzido por Laclau de que
o pensamento da diferença importa como via para propulsionar a impossibilidade de
estancamento ou fixação de verdades/identidades/sujeitos na política.
Minha intenção em um diálogo com os pensadores parte da afirmação de Laclau
(2011) de que as lógicas da equivalência e diferença estão apoiadas uma na outra, sendo assim
subvertidas e sucedidas em termos de compreensão da política. Ou seja, minha incorporação
do pensamento derridiano visa à reiteração da perspectiva de subjetivação política proposta
por Laclau em sua teoria do discurso. Com isso, procuro pensar os processos articulatórios
como não encontrando plenitude ou estancamento, mas busco interpretá-los como contínuos
e, contingencialmente, constituídos como momentos de sensação de fixação, provisórios.
Considero, nessa perspectiva, que no próprio movimento de afirmação na política já há
adulteração e suplementação, assegurando uma corrosão tenaz e permanente de toda verdade
contextualizada na política.
Laclau (2011), a esse respeito, define a condição de envolvimento na política como via
decisão, ao mesmo tempo que pondera sobre um continuum opaco da linguagem que é
impeditivo da saturação da verdade, ao acesso a qualquer coisa conjecturada como origem ou
propriedade, capaz de transcender a linguagem e se constituir, de fato, como imanência. Nessa
leitura, considero potente a contribuição do pensamento derridiano ao operar a perspectiva de
que a diferença (différance) não é aquilo de que se pode lançar mão ou controlar; é aquilo que
escapa as tentativas de referência ao próprio, é furtiva à simetria ou à transparência. Penso
esses argumentos derridianos como meios pelos quais se pode ler a teoria do discurso como
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Uma vez que não é acessível o significado à própria comunidade, ao “próprio”, só há ilusão
de equivalência entre diferenças em um nome que julgam oposição. Como uma eventual
propriedade do pleito, da demanda, aquilo que o fundamentaria seria de ordem inacessível
(LACLAU, 1990; 2015), uma lógica de deslocamento: um movimento de irreconciliação, de
relação impossível entre objetos, o inominável contido em uma pulsão na decisão, na
constituição de demandas ou reclamações sociais.
Pensar a produção das políticas de currículo, de um pensamento político-curricular por
meio da discursividade, implica a concepção do social, da subjetividade, da luta política, das
motivações políticas, das demandas fora de um registro estrutural e de uma visão de sujeito
capaz de, conscientemente, atuar de forma estratégica com vistas à realização de seus
projetos. Um enfoque teleológico deixaria de estar no cenário das políticas, passando a
apresentar-se como mais um nome, um discurso. Ler o social como constituído por processos
de significação é conceber que não há centros fixos capazes de determinar anterioridades e
posterioridades à decisão política, a uma subjetividade.
Ao contrário, importa destacar que, se a significação não é estancada, isto se dá pela
performance em falar, tratar, acusar, defender, reaver; são significações provisórias de nomes
tidos como importantes em determinado momento da política. Com essa leitura, penso ser
possível focalizar a política curricular, a disciplina e a integração, o sujeito e conhecimento
como nomes interessantes a serem abordados nos termos das disputas pela sua significação,
discursivamente dinamizados, como adiamentos de um vir a ser propriedade.
Em Laclau (2011), o discurso é uma totalidade tecida por relações de significantes que
detêm provisoriamente a significação de determinadas práticas e, uma vez articulados
hegemonicamente, delimitam uma formação discursiva. Discutindo o pensamento do autor,
Lopes (2011) pondera que a formação discursiva é um conjunto de discursos articulados por
meio de diferentes práticas hegemônicas. Compreender uma formação discursiva consiste em
entender um processo hegemônico: como se definem os termos de um debate político, quais
enfoques e prioridades estão sendo projetados na política.
Laclau (2011) afirma, nesse sentido, que nada há fora do discurso, não sendo viável
operar com a existência de práticas ou instituições não discursivas, diferenciando sua
interpretação da proposta foucaultiana. Para o autor, todo discurso é uma prática e vice-versa.
Lopes (2011) acrescenta que o discurso não é apenas linguagem; ele abarca as ações e
instituições, e o funcionamento do social é entendido como linguagem. Para a autora, a teoria
do discurso de Laclau busca articular linguagem (retórica), indivíduo (sua psique) e o político
(a sociedade e o social). A estruturação discursiva consiste na tentativa constante de
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diferenciais articulados. A hibridização é pensada por Laclau (2011) como o próprio terreno
em que, na contemporaneidade, as identidades políticas são produzidas.
Ao assinalar a relação conflituosa entre diferença e equivalência, Laclau (2011)
também está atentando para as leis e movimentos próprios da cadeia equivalencial. A
produção de uma equivalência não é uma dinâmica segura para todas as demandas articuladas
nela. Não há garantia de que em determinada ocasião não haja sacrifícios ou
comprometimentos de demandas, ao contrário. Essa noção, segundo o pensador, reitera o
caráter provisório, dinâmico e precário das formações discursivas. Igualmente destaca a
inexistência de uma convergência determinada a priori, ainda que uma história retroativa à
articulação seja construída como tentativa de firmar a solidariedade. Ainda que não haja
positividade integradora das diferenças articuladas em uma cadeia equivalencial, Laclau
(2011) argumenta que há a produção de uma “verdade” hábil em gerar um senso de
equivalência entre as diferenças articuladas. A “verdade” não existe, segundo Laclau (2011),
independente de um contexto.
Todo pleito só pode ser definido contextualmente, no âmbito de um momento na
política que é fragilmente constituído na equivalência e se perde. Entretanto, ao trabalhar com
a ideia de pluralismo de diferenças constitutivas, surge a impossibilidade de definição dos
limites sistemáticos de um contexto, além das diferenças em si. Impõe-se, então, a
inviabilidade de qualquer definição interna aos limites do contexto. Por esse entrave, o teórico
argumenta que o único modo de definir os limites de um contexto é focalizar o que está “para
além” de seus limites, levando à ênfase naquilo a que ele se opõe. Em uma condição “para
além” dos limites contextuais, só podem ser outras as diferenças; para Laclau (2011), é
impossível determinar se essas diferenças são internas ou externas ao contexto.
Tais noções introduzem a falta de nitidez do social, das articulações, das afirmações,
pois a própria possibilidade de limite é colocada em dúvida, a não ser que o “para além” não
seja mais uma diferença, mas uma ameaça, algo que negue todas as diferenças que se leem
contidas nesse contexto, algo estranho, uma alteridade radical (LACLAU, 2011). Os
movimentos envolvidos de uma cadeia de equivalência – a exclusão e o antagonismo – são
constitutivos de toda identidade, segundo Laclau. O vazio que une um conjunto de demandas
equivalenciais não possui fundamento, positividade ou conteúdo próprio, a não ser aquele
conferido pela própria articulação. Esse conteúdo fictício, apreendido como convergência à
identificação, compartilhado por todos os termos da cadeia equivalencial, decorre de
movimentos unificadores que uma ameaça externa projeta para um conjunto heterogêneo de
identidades diferenciais dispersas (LACLAU, 2011).
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Laclau (2011), que não são tão nítidas as fronteiras entre os significantes vazio e flutuante,
sendo viável em determinados momentos que um opere como o outro, uma vez que é pelo
excesso de flutuação que o esvaziamento ocorre.
A indefinição do jogo político sustenta a imprecisão sobre a possibilidade de dado
nome/significante ser apreendido como vazio ou flutuante. Como já mencionado, o
antagonismo e a exclusão marcam a constituição de um sistema discursivo, e essa concepção
implica a leitura de que o recorte interpretativo, sempre contextual, sempre afeito a
determinado momento político, oportuniza a interpretação de dado nome como vazio ou
flutuante (2011). O que favorece a definição de dada condição na política estaria no
antagonismo, naquilo que é tomado como limite ao que é afirmado como identificação (um
eu) na política. É na concepção desse limite que está definida a exclusão a que Laclau (2011)
se refere, pois a pretensa delimitação do antagônico se dá via expulsão de uma diferença (ou
conjunto de diferenças) de dada articulação, reiterando a articulação no nome (o significante
que gera sensação de solidariedade).
Laclau (1990) discute que o antagonismo é condição de identificação, de produção
discursiva. O antagonizado é a resposta discursiva à moção causada pelo antagônico não por
uma exclusão radical de sentidos, mas porque sentidos que perfazem um fluxo passam a
constituir antagonismos a outros. Por esse motivo, Laclau (1990) argumenta que a função do
antagonismo é gerar dicotomização discursiva, precipitar identificações políticas.
Segundo Mendonça (2012), o antagonismo não limita o sistema discursivo;
sintomatiza o que ele não é. Concordo com o autor nesse sentido, e o faço por pensar que um
sistema discursivo é atravessado e tramado por diferentes e dinâmicas articulações, que não
cessam de constituir novos questionamentos, respostas e antagonismos. O que se faz em
termos investigativos é, com toda a violência, desprezar um todo impossível de contabilização
em uma investigação com vistas ao privilégio de um momento conflituoso da política.
Fazemos isso tendo em conta o caráter parcial a que toda afirmação, via investigação, está
exposta.
Para Mendonça (2012), o antagonismo não pode ser tomado como o estrito polo
antagônico, no qual nenhum sentido articulado na identificação oposta possa estar envolvido,
pois nada impede que sentidos articulados em uma cadeia estejam/sejam envolvidos em
ambas as cadeias. É com essa leitura que Mendonça considera os significantes flutuantes,
disputados por cadeias antagônicas que hegemonizam, sempre de modo contingente,
determinados sentidos.
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Pensando o antagonismo como parte do sistema – e não mais como aquilo externo que
o possibilita –, Laclau (1990) ressalta que ele não pode ser o limite de produção de sentidos
em um sistema, pois sua menção, sua impressão já incide em formas de simbolização. Para
ele, a concepção do outro como antagônico já pressupõe uma inscrição discursiva, implica
uma identificação a priori de um eu. Com essa leitura, Laclau passa a reconceituar o
antagonismo como sendo parte do sistema discursivo – e não aquilo que o limita
externamente, o que está fora dele. O antagonismo é reeditado, portanto, como parte do
sistema e não mais como aquilo que o limita. A reedição da ideia de antagonismo na teoria do
discurso ocorre pelo destaque à perspectiva do deslocamento.
Para Laclau (1990), o deslocamento não afeta a concepção de discurso, de
significação; remete ao limite do sistema como limite da própria significação, sua estrutura. O
deslocamento estaria relacionado à leitura lacaniana do Real, aquilo que não pode ser
acessível, que limita o simbólico, que é imponderável, inenarrável. O deslocamento, em
Laclau (1990), como toda outra alteridade (DERRIDA, 2006a), é o momento específico de
limite e bloqueio de acesso – ou continuidade – ao processo de significação, pois não pode ser
dado a conhecer, não pode ser acessado ou significado.
Para Mendonça (2012), é com a introdução do deslocamento que a teoria do discurso
de Laclau aprofunda sua condição pós-estruturalista, projetando a subjetividade política como
resposta a todo um conjunto de sentidos criticados: uma visão de subjetivação política que se
constitui em uma série de exclusões.
O deslocamento seria um momento que foge à significação, que o sistema/estrutura
não consegue processar. Uma vez deslocada, a estrutura vive uma crise que a põe em questão,
que a inquieta como tal, que lhe impõe o desespero do desconhecido, que precisa sanar,
atender, responder, dar conta. Mas sendo isso externo/fora/estranho/todo outro radical da
ordem do não ponderável, instala-se uma condição de crise na (pós)estrutura. Não pode se
fechar, pois a falta que lhe é constitutiva a lança na busca incessante pelo preenchimento, por
uma plenitude que a organizaria e a estancaria enquanto subjetividade.
Segundo Mendonça (2012), o deslocamento (de ordem ontológica, caracterizado por
ou em uma relação não relacional), como aquilo a que o currículo visa responder/se constituir
em resposta, seria exterior e externo à significação; assim, também estaria para além do
antagonismo (de ordem ôntica, marcado por uma relação de simplificação ou redução do
social), para além do conflito do conhecimento circunscrito ao conflito da organização
curricular, no qual o nome interdisciplinaridade flutua sintomatizando a busca por um
conhecimento fundamental. Um trauma experimentado na estrutura, um desajuste estrutural e
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estrutura se furta à estrutura. É o não saber quanto ao deslocamento que motiva todo
antagonismo, toda flutuação e todo esvaziamento de sentidos, toda disputa por plenitudes
impossíveis. Ele atuaria como o dínamo para a motivação estrutural, para as lutas pela
significação de um vir-a-ser verdade, fundamento, centro/fechamento estrutural.
Se o deslocamento não permite sequer o acesso a isso que, “de verdade”, é o que falta,
o que preenche a falta, resta um movimento de suplementação nas lutas contra o antagônico,
tomado como aquilo que se julga poder atingir. Assim como um “eu”, um “outro” também
não permite a apreensão. Isso diz respeito a uma dinâmica do deslocamento que leva toda
afirmação à incerteza e à volatilidade; carreia toda certeza e suposta posição a reconstruções
contínuas, à apropriação/utilização daquilo que, frente ao desafio, projeta-se como
possibilidade.
Operar com essas noções implica a concepção de que construções identitárias são
dinamizadas por processos contínuos de tradução que disseminam incessantemente a
discursividade, oportunizando o surplus de sentido e, consequentemente, sustentando, por
desconstrução contínua, afirmações equivalenciais formadas no e do todo diferencial. Por
isso, penso ser importante chamar a atenção para a tradução como disseminação que
caracteriza e contamina toda a política, o pensamento político-curricular. Ao pensar a
tradução como condição para operar na política, focalizo o pensamento derridiano sobre a
tradução, tendo em vista sua implicação na reflexão sobre a escrita.
A atenção à desconstrução da perspectiva da escrita/textualização, em Derrida (1991a;
2005), consiste na busca por criticar a secundarização da escrita em relação à fala, ao
pensamento. Para o filósofo (DERRIDA, 2008), tal secundarização constitui o que denomina
logocentrismo. Para ele, o logocentrismo consiste no privilégio da razão ocidental, das ideias
filosóficas, do propósito animado, da intenção/consciência, da metafísica da presença. Com
base nessas afirmações, Derrida (2005; 2008) propõe pensarmos a escrita como traição,
promessa de substituição do falante, do pai falante, da origem do discurso. A escrita seria um
aditivo à falta da presença do discurso vivo; funcionaria como um puro jogo de rastros/traces
(DERRIDA, 1991a).
Para ele, o rastro/trace não é uma presença, mas o simulacro de uma presença que se
desloca, se transfere, se reenvia. Ele não tem propriamente lugar, o apagamento pertence à sua
estrutura. Derrida fala do apagamento que desde o início o constitui como rastro, que o instala
na mudança de lugar e o faz desaparecer na sua aparição, sair de si na sua posição. A escrita,
marcada pelo que se poderia pensar como pulsão do rastro, é da ordem do “puro significante
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potente focalizar a ideia de tradução proposta por Derrida como leitura interessante para as
formas de decidir e ser na escrita, tomada como homóloga à perspectiva de linguagem como
opaca e como dinamização do texto da política.
Por avaliar a tradução como disseminação incessante da discursividade e,
consequentemente, mantenedora das equivalências produzidas no todo diferencial, considero
pertinente problematizá-la como operação contaminante e, intensamente, propulsora da
política. Derrida (2006b) chama a atenção para a tradução como um fazer marcado não por
uma opção do sujeito frente ao texto em que se constitui o mundo e a política, mas como via
condicional de significar e existir. Para Derrida, a tradução institui obstáculos irrefutáveis,
que impossibilitam ao tradutor/agente/sujeito a manutenção ou reprodução de uma intenção
“original” do texto.
A tradução é um ato de envolvimento restrito ao mero transporte da informação ou
conteúdo pertencente a determinado objeto de verdade (DERRIDA, 1991a). É uma traição a
qualquer contrato de verdade. A esse respeito, Derrida (2006b) toma como emblemático o
caso bíblico de “Babel”, possuidora de um nome próprio e impróprio, uma torre que são
várias torres. Babel é uma construção em desconstrução, pois não detém o que é de fato a
torre: seu significado. Assim como Laclau (2011) reitera a importância do processo de
nomeação, Derrida questiona se, quando nomeamos a torre, sabemos a que estamos nos
referindo.
Com isso, insere novamente a crítica à suposta transparência da linguagem que
caracteriza o pensamento ocidental. Enfatiza sua oposição às ideias logocêntricas, de que na
tradução há locutores e receptores atuando de forma totalizada, consciente e intencional, na
sustentação teleológica da unidade do sentido, o que não permitiria que nenhum resto
(DERRIDA, 1991a) se furtasse à totalização. Derrida (1991a), em outra mão, pondera sobre
um resto que sintomatiza a disseminação (DERRIDA, 2001), aquilo que escapa às tentativas
de fixação do texto, da política, das regras e do horizonte do sentido. Para o filósofo
(DERRIDA, 1991a), a escrita/tradução, como busca de reconciliação com “a” intenção, não
passa de um conjunto de traces, rastros e restos que marcam uma assimetria com aquilo que
aspiramos ser a intenção, com a impossibilidade de uma compreensão total e com a
consciência de dado sujeito como centro organizador.
Tal assimetria, em Ottoni (1997), é pensada como o lugar do inesperado, o
espaçamento contingente e necessário para que o falante/tradutor se constitua como sujeito.
Para o autor, não há razão no que diz respeito à transcendentalidade do termo que possa
identificar um sujeito, a não ser por intermédio de sua performance em falar/traduzir. A
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ser mencionada, citada, colocada entre aspas. Fazer isso já é a ruptura com todo contexto
determinado, desenlaçando outros contextos que também não são saturáveis.
A possibilidade de uma marca ser citada e/ou duplicada não é um acidente; é aquilo de
que uma marca não pode prescindir para ter sua operação considerada “normal” (DERRIDA,
1991a). Ele pontua, então, que não há marca que não possa ser citada. A escrita como
iteração, que intervém na comunicação excedendo-a, que se desdobra em uma disseminação
que jamais se reduz à polissemia, de modo algum pode ser pensada como objeto da
decodificação hermenêutica ou desvelamento de uma verdade ou sentido original.
A traição encenada no envolvimento na escrita não negligencia a existência da
intenção ou da consciência. Ela pode ter seu lugar, mas a partir dele não é capaz de coordenar
toda a significação. De acordo com Derrida (1991a), a intenção jamais pode estar presente a si
mesma e ao seu conteúdo. Para o autor, essa falta essencial da intenção, de um logos bloqueia
a saturação ou apreensão integral do contexto. Crítico à perspectiva de Austin2, Derrida
(1991a) considera que, para que um contexto seja controlável, a intenção precisaria atuar
como sua diretriz dominante, o que o projetaria frente à necessidade de ser absolutamente
presente e transparente a si mesma e aos outros. Por essa razão, Derrida (2001; 2005; 2006b)
restringe toda tradução a suplementação, traição: promessa de representar o que falta ou
alteração de um sentido inacessível.
A impossibilidade de acabamento, como marca de nome, dá-se pela própria
impossibilidade de significá-lo em última instância, dada a idiomaticidade diferencial no
interior das línguas. Daí o filósofo argumentar que dado nome, como exemplifica com o caso
de Babel, bem pode ser traduzido por confusão, como mito da origem do mito, como tradução
da tradução. Para Derrida (2006b), o fazer babélico consiste simultaneamente na significação
e na intraduzibilidade; no pertencimento sem pertencimento a uma determinada língua; um
envolvimento constitutivo de dívidas insolventes ao tradutor.
Essa perspectiva projeta o reconhecimento de que traduzir/escrever/iterar é a
possibilidade de acesso à significação mesma da política, do mundo. A operação irremediável
do tradutor nunca chega à pausa, o que faz com que a disseminação do texto político, da
própria política opere de modo contínuo, voltando à impossibilidade da tradução de um texto
que é produzido em várias línguas, no sentido da assimetria na significação ao mesmo tempo.
Pautado em Desbois (1978), Derrida (2006b) pondera que tradutor, como identificação
envolvida com a traição na linguagem, não cessa sua obra pessoal, mesmo influenciado por
2
Para Derrida (1991a), Austin garante que a linguagem humana acontece assegurada pelo reconhecimento entre
seus interlocutores e, assim, realiza-se por meio da produção de significado.
37
obra anterior. O tradutor desdobra atos de criação nas opções, comparações, combinações e
adaptações que, como pode, levam o texto a já não ser o mesmo diante da influência de sua
personalidade, ainda que julgue trabalhar com vistas à transmissão cuidadosa daquilo que ele
sequer acessou.
Essa é a única e inatingível possibilidade de existência do original, de produção
original. Toda tradução, portanto, é expressão original, pois, ao ser desencadeada, ainda que o
tradutor pretenda se reconciliar com um suposto sentido anterior, já o corrompeu, restando-lhe
a suplementação como sentença final; como única via de expressão. A partir dessa visão, o
filósofo afirma o texto como vivendo uma regeneração constante pela tradução, o que reitera
a leitura de que toda tradução não passa de uma tentativa de aliança e promessa; um fazer
impossível, que imputa culpa e absolvição instantâneas, haja vista que não se poder fazer
menos ou mais do que se faz. Ottoni (2003) argumenta que na tradução não há fidelidade, e
sim responsabilidade na tarefa de traduzir o intraduzível. Responsabilidade acionada no
reconhecimento de nunca podermos dar conta de tudo; responder a todas as interpelações,
racionalizar sobre tudo, apreender todo o sentido/significado do texto da política, do contexto.
No âmbito dessa discussão, a concepção de escrita em Derrida passa a ser vista como
incontrolável, pois sua capacidade de se fazer outra, de se fazer legível às mais diferentes e
imprevisíveis maneiras a leva a uma degeneração geradora de novas perspectivas.
Para Derrida (2006b), importa entender a leitura/tradução como produtora de sentido,
de discurso, como prática de subjetivação. A tradução/textualização/escrita é a aceitação do
compartilhamento, da negociação, do trânsito e da abertura de canais de comunicação na
direção do outro. Por essa lógica, os significantes não têm sua unidade garantida, não têm um
centro reconhecível, ainda que jamais cessem as tentativas de gerá-los. A alteridade sempre
irrompe de modo singular, interpelando a identidade a decidir, traduzir, suplementar,
continuar a escrita. Tal concepção implica ter em mente que, frente à textualização do mundo,
ao esvaziamento/ruptura dos contextos, dos significantes e à simultaneidade das demandas
mobilizadas pela busca em responder àquilo sobre o que não se tem conhecimento, por aquilo
que não é da ordem do cálculo, é que iteramos sobre a política.
O acontecimento da tradução do conhecimento é acenado na produção do novo sobre
o intraduzível. Não decorre de uma amostra ou trampolim para a interpretação; é a produção
de outra coisa. Para Derrida (2001b), ainda que suponhamos falar a mesma língua, como na
suposição de operarmos de maneira transparente na linguagem, no máximo conseguiríamos
idiomatizar diferencialmente, ou seja, fazer inscrições traduzidas indefinidamente na
opacidade da linguagem. Assim, é ponderada a perspectiva de que toda produção é sempre
38
uma relação artesanal com a língua, sempre desdobrada em diferentes idiomas, como em
diferentes inscrições na escrita. Assim, é assinalada uma contextualização radical. Segundo
Derrida, a diferença é o que não pode ser apropriado, é o que resiste ao controle.
O possível é a tradução, feita a todo o tempo, inscrição em cenas de escritura. Nela é
cancelado um acesso pleno ao significado, ao mesmo tempo que há concessão, pela iteração, à
produção de sentidos. Um jogo sempre marcado com lances cujas regras são desconhecidas
da história, da razão e do cálculo, de uma economia do jogo. A ideia de responsabilidade,
junto à singularidade e alteridade, é introduzida por Derrida (2006a) também como elemento
reflexivo sobre a constituição ou promessa de sujeito/subjetividade. Não um outro
identificado como ou no antagônico, mas um estranho todo outro, uma toda outra alteridade,
um todo outro que é todo outro (DERRIDA, 2006a).
Com essa perspectiva, é introduzida a percepção de um sujeito sem positividade, sem
orientação por uma dada história universal, sem consciência dos desdobramentos do decidir.
Longe de ser uma perspectiva de subjetividade com cerne ou núcleo duro, o filósofo insere a
ideia de que a subjetivação é algo contextual, tal como ponderado por Laclau (1990). É uma
subjetivação acontecida na/da resposta contemporânea à questão imprevista que irrompe e
impõe a urgência de uma resposta, de um preenchimento daquilo que passa a vagar na
estrutura – a esta altura e desde sempre alterada.
Com base em suas discussões sobre o pensamento de Patocka, Derrida questiona o
sujeito, situando sua formulação nos auspícios da Filosofia ocidental; nesse movimento,
articula os significantes Europa, responsabilidade e sujeito como marcas da racionalidade
ocidental, como forma de estancamento, tentativa de apagamento, delimitação ou contenção
da pulsão, do orgiástico, daquilo visto como loucura, como imponderável, impensável, que
nega uma tentativa de afirmação de uma racionalidade transparente; um “culto fusional”, a
ausência de fundamento, o não saber (dispersão, perda identitária, estado de fusão,
inconsciência, liberdade, desregulamentação, incerteza e instabilidade)3.
Trata-se de estado em que é impossível a distinção do que é “humano”, “animal” e
“divino”. Segundo Derrida (2006a), Patocka argumenta que o pensamento religioso cristão é
o mecanismo pavimentador da responsabilidade e da ética, consolidando a projeção de um
“eu” que é dado pela sua exposição a um deus que o sonda intimamente; uma singularidade
que o conhece, desde sempre e para sempre, e o invoca a responder sobre sua essência. A
3
Para aprofundamento nessa discussão, sugiro leitura do primeiro capítulo do livro “Dar la muerte”, de Jacques
Derrida (2006a).
39
Considero, por essas palavras, que uma apropriação possível da teoria do discurso se
organiza na perspectiva de interpretar a subjetividade como em relação a um “para além”, um
adiamento constante. Em Laclau (2011), o “para além” que limita uma plenitude subjetiva, da
verdade da articulação, do fim da política, ao mesmo tempo que auxilia na refutação de um
horizonte põe em questão que todo fazer implica articulações voltadas à hegemonização de
horizontes singulares. O “para além” é uma interdição, é aquilo que escapa, que se
desconhece, é uma alteridade radical/todo outro ao que diz (ou quer dizer) “eu”. Pelo
estranhamento que causa, pela impossibilidade de deter seus próximos passos/movimentos,
impõe a identificação/subjetivação, pela via da contingência, na decisão.
Exclusão e antagonismo, segundo Laclau (2011), sintomatizam a precipitação
subjetiva. São momentos/processos da política que não cessam e são continuamente traídos e
rasurados pelas diferenças articuladas em uma cadeia articulatória. Com esses marcadores,
penso ser possível aprofundar a discussão com a leitura derridiana sobre a alteridade,
principalmente em sua potência para a reflexão sobre o “para além”, discutido por Laclau.
Julgo poder tomar esse “para além” como o que Derrida pontua como uma toda outra
alteridade, que interpela a identidade, que é o desconhecido, ameaçador por ser assim. Uma
ameaça desconhecida impõe as respostas, a decisão/precipitação do sujeito.
Dessa maneira, o temor que incita a identidade ao cálculo, à expectativa de controle
aproxima-se, penso aqui, do que Laclau propõe ser a tentativa de fechamento da articulação,
do discurso, do significado, do sujeito. Essa tentativa jamais encontra sucesso, pois sempre
lida com uma estranheza dinâmica que altera as regras do jogo a cada jogada (LACLAU,
1990). Por sempre haver sentidos à escapada/na articulação, fundando novas articulações,
sempre há simbolização provisória do antagônico, ainda que nunca haja centro ou
estabilização.
Toda alteridade radical pensada por Derrida (2006a) como a causa de um tremor/temor
constitutivo da subjetivação, a apreensão contínua por não conseguir prever o devir, por não
poder se defender disso que é estranhamente traumatizante, que chama à resposta, pode ser
compreendida como o que Laclau chama de deslocamento, que é o que leva à constituição da
subjetividade política, da simbolização de um nome antagônico como o que é impeditivo à
plenitude do sujeito.
A decisão que marca a subjetivação é considerada por Laclau como o momento da
articulação política. Não há racionalização por parte de determinado ator político em se
envolver em dadas lutas. Voltado à profusão da política, Laclau (2011) pontua que, em uma
condição de não saber, decide-se ante a ameaça (o que não conheço e que interpreto como
45
Com base na interação das contribuições de Derrida e Laclau, considero ser possível
pensar que o que se projeta como educação (e ser educado), o que se quer como sustentação
de certa concepção de mundo ou em oposição ao que se defende como determinado
conhecimento (ou contexto, sujeito), pode ser lido como respostas constituídas, como
verdades, em contextos específicos. Tais respostas contextuais, dadas a um questionamento
suposto, dadas a uma alteridade, não se encontram como propriedades, mas como precárias
verdades; visam, em seu desespero por deixar de ser, ao domínio do outro que é visado.
Penso que a compreensão de tais possibilidades interpretativas constitui oportunidades
a aproximações a trabalhos de preocupação pós-estrutural e/ou pós-fundacional, como os de
Lopes (2012a; 2014a; 2014b; 2015a) e Macedo (2006; 2012; 2013; 2014). A aproximação
com esses trabalhos não se justifica somente por defenderem leituras críticas a perspectivas
estruturais, mas por, nesse envolvimento, dialogarem também com a teoria do discurso e o
pensamento da desconstrução. E, ao fazerem isso, incorporam uma crítica ampla às
teorizações críticas e tradicionais de currículo.
Os trabalhos de Alice Lopes e Elizabeth Macedo focalizam a instabilização de marcos
estruturais inseridos por distintas leituras de currículo que sedimentam o campo. Dessa
maneira, em relação a diferentes frentes teóricas, os trabalhos das autoras perfazem o que
entendo por uma abordagem pós-estrutural e pós-fundacional de currículo, justamente por
chamarem a atenção para a desconstrução como produção curricular, como investimento
constante em processos de significação do que vem a ser currículo.
46
pensar a precipitação pela alteridade como a falta de uma consciência ou previsão sobre os
rumos da política, sobre o devir das articulações.
Nada disso, no entanto, afirma a ausência de críticas à política, ao que interpretamos
na política. Ao contrário, o que se assume estrategicamente aqui é o compromisso comum de
investimento em pensar a política curricular tendo em vista seu inacabamento, como na Torre
de Babel para cuja condição de provisoriedade Derrida (2006b) chama a atenção. Penso, com
Laclau (2011), que todo envolvimento aspira à hegemonização de determinada leitura de
mundo, e isso retira de qualquer afirmação a nuança de culpa a que pode supor determinada
interpretação.
Concordo com Laclau (2011) e Lopes (2012a) quanto à projeção da negociação como
devir democrático de produção na política, no currículo, na perspectiva de que a suposição de
uma emancipação a partir de qualquer que seja o argumento ou pressuposto fundante sempre
carrega uma expectativa de canalização do que pode ser aceito em dado contexto. É possível
remeter, por exemplo, à ideia de liberdade, que não se sustenta em uma liberdade afirmada em
sua transparência ou transcendentalidade como verdade. É sempre uma liberdade
oportunizada nas decisões sobre o desconhecido que geram implicações e responsabilidades,
que desdobram incessantemente questionamentos aos quais não se pode esquivar.
Isso é dizer que toda articulação, como busca por controlar, é extrapolada pela própria
afirmação e procura por arrazoamento de si mesma. Tal cenário possibilita a decisão por
criticar, ao mesmo tempo que incita que outras decisões questionadoras se imponham como
bloqueio e subjetivação. Trata-se de uma leitura em que não haveria fim da política (2014b)
nem estancamento ao sujeito, assim como não há razão capaz de sustentar a decisão política.
Essa condição mesma é o detonador de possibilidades de críticas que, não sendo trancadas ao
contexto de sua decisão, de/generam contextos outros nos quais decidimos em relação ao que
dizemos precisar superar.
De todo envolvimento no que toca toda performance na linguagem, nada permanece,
nada é reavido. Somente uma característica, quase como vontade de essência, se mantém
propulsionando o jogo: a busca pelo controle do outro desconhecido. Na política de currículo
isso não se dá de outra forma. Naquilo que focalizo como objeto de pesquisa nesta tese, penso
ser possível ler o conhecimento como um nome, junto com emancipação, liberdade, sujeito,
disputado por indefinidas equivalências possíveis no âmbito da teorização/política curricular.
A indefinição de tais cadeias diz respeito à própria consideração de sua perecibilidade
como construções discursivas, tentativas de fundação de um logos curricular. Penso, nessa
linha, que um eventual dado que se possa afirmar como operando em determinada cadeia
48
também pode ser lido noutra condição, particularmente se for retomada a ideia de contexto já
discutida. Procuro argumentar que o que me leva a decidir por ler a política de currículo como
estou lendo é justamente um movimento que, na contemporaneidade desta tese, coloco como
uma marca do pensamento curricular: uma tensão diante da organização curricular que diz
respeito à expectativa de controle de um todo outro curricular, algo a ser controlado ou
defenestrado pelo conhecimento.
Há uma definição de conhecimento que precisa supor o social e o sujeito como dados
objetivos, como transparentes a si mesmos, como horizontes condicionais curriculares.
Horizontes sempre costurados na pretensão de uma emancipação controlável e tangível. Pela
suposição de controle, assim como pela simbolização do mal a ser sanado via controle, é
projetado um conhecimento que, como panaceia de uma desgraça do suposto inacabamento
subjetivo, poderia fazê-lo ser/estar mais bem posicionado na estruturação.
Como forma de detalhamento, ou mesmo de uma ilusão de proximidade do objeto,
focalizo a tensão diante da organização curricular como entre o currículo disciplinar e o
currículo integrado, no significante interdisciplinaridade, pensando-o, no nível médio, como
parte de conflitos mais amplos pela definição do conhecimento. Penso, em concordância com
Laclau e Derrida, que há muitas e incontáveis respostas constitutivas/expressivas de
antagonismos simbolizados no texto da política. Dentre tais antagonismos, chamo a atenção
para o que se desenha na relação entre duas cadeias equivalenciais que disputam a
significação do currículo integrado. Esse movimento, a meu ver, projeta uma polarização na
qual a organização curricular, pressuposta em um conjunto de estabilizações sobre o
conhecimento, assinala um conflito tramado por distintas identificações disciplinares e em
defesa do currículo integrado.
Nesse sentido, penso que a tensão quanto à organização curricular assinala a defesa da
necessidade de assegurar uma leitura de conhecimento que não pode ser perdida. Na medida
em que as disciplinas são tomadas como tendendo a estabilizar uma leitura organizada e
adensada, principalmente com base em correspondência com a estrutura disciplinar da ciência
(VEIGA-NETO, 2010), as defesas da integração são pautadas na crítica às disciplinas e em
favor de uma visão de conhecimento integrado, suposto como capaz de se contextualizar na
vida, na experiência, e resolver problemas concebidos a priori.
Uma vez projetado o conflito, que considero uma perspectiva hegemonizada na
política de currículo, o conhecimento tende a ser tomado como aquilo a ser sintetizado no
embate entre as referidas identificações defensoras de determinada organização curricular.
Essa tensão, como construção contextual na política, possibilita questionar o que, nesse
49
movimento de denegação de tudo o mais diferencial que pode ser pensado como
conhecimento, estaria fora ou não seria dito no que toca ao debate curricular sobre
conhecimento no nível médio. Minha hipótese é encaminhada no sentido de pensar o quanto
tais identificações hegemonizadas e conflitantes nessa política operam respostas incessantes,
em diferentes momentos de um texto geral da política, a isto que parece querer bordejá-las:
uma alteridade imponderável, um estranhamento em relação àquilo que é lido como
questionamento ao significado do currículo, do conhecimento, do sujeito.
Dito de outra forma: os sentidos articulados em defesa de determinadas visões
costuradas no conflito em torno da significação do que vem a ser o conhecimento para o
sujeito tendem a desenhar, como que em uma projeção negativada, aquilo que se quer
combater no trato curricular sobre o conhecimento e, consequentemente, sobre o sujeito.
Institui-se algo que quer controlar, conter, aplacar, todo o conflito constituído em torno do
conhecimento nos momentos de textualização da política de currículo para o nível médio.
Com base nessa perspectiva, focalizo os argumentos em defesa da organização
curricular do conhecimento, tendo em vista a flutuação do significante interdisciplinaridade,
no que toca ao embate entre os discursos à integração e ao que se tende a ler como defensiva
de uma visão disciplinar de currículo. Pensando tais argumentos como respostas àquilo que se
quer combater, pondero-os como marcas das lutas pela denegação do conhecimento no
currículo, um movimento de cálculo/controle sobre o sujeito que se supõe estar restrito a esse
conflito. Defendo, todavia, que o embate e sua definição tendem a constituir um cerceamento
da significação do conhecimento como acontecimento contextual e provisório, como
decisão/precipitação subjetiva.
Minha preocupação é chamar a atenção para isso que é insondável, mas passível de
simbolização: todo outro simbolizado no antagônico, mas que opera o inenarrável pensamento
curricular; aquilo que dinamiza a produção discursiva do que é o currículo, da política
curricular; o motivo de todo movimento de significação do que é ou deve ser o conhecimento,
o sujeito, o mundo. Foge, no entanto, a minhas expectativas uma prepotência de acesso ao
inominável do currículo. Penso ser possível, por esta discussão, operar a defesa de uma
subjetivação por vir a que não se pode controlar. Penso ainda ser possível a sustentação de um
debate que contabilize a diferença como aquilo sempre em acontecimento na experiência
curricular.
Isso significa pensar que está para além de toda forma de denegação ou controle,
quanto à organização curricular, uma produção de sentidos incessante. Essa é uma perspectiva
que favorece a reedição do que se afirma como urgência, crise e horizonte; que põe em
50
questão a crítica a uma visão de conhecimento que tende a ser tomada como estável e que,
portanto, só resta resolver o modo como será organizado para ser ensinado, implementado,
apropriado por um sujeito, pela escola.
Se, como tenho discutido, o currículo e o conhecimento são produções culturais,
tramadas por muitas leituras de mundo em tradução contínua, como supor uma propriedade
que trata de forma precisa dos fins curriculares? Da mesma forma, e ainda na mesma questão,
interponho também que se a subjetivação é desencadeada nas decisões tomadas na nebulosa
fronteira curricular, como assegurar um fundamento para o mundo de um sujeito por vir?
Minha expectativa, nesse sentido, é colaborar para a distensão do debate sobre o
conhecimento fora de um suposto, e desde já criticável, embate binário entre as disciplinas e a
integração curricular – ou outra forma de controlar. Não defendo o combate a essas leituras de
mundo; defendo que sejam compreendidas como outros modos de afirmar o conhecimento,
não só para além desse debate como por meio dele. Isto é, interessa ponderar o quanto mesmo
essas agendas, tidas como definidas, não deixam de ser significações provisórias constituídas
em resposta àquilo que expõe a falta de controle. Falta de controle sobre o outro do currículo
que escapa, que sempre escapou ao controle, mas que se apresenta ausente e prova sua
inacessibilidade no movimento constitutivo do próprio pensamento curricular, na dinamização
de um pensamento político-curricular presente a si.
Não suponho, com esta investigação, poder atender ou sanar a expectativa de controle
que poderia ser assumida como o que mobiliza a produtividade do campo do currículo, mas
penso contribuir para que a conversa na fronteira curricular, no que toca ao conhecimento
(como significação de porvir), compreenda a diferença como dinâmica irresistível. A meu ver,
esta não é uma atitude beneficente ao que quer que seja, a alguma identificação já dada, mas,
tal como destacado por Laclau (1990), trata-se de um convite à razoabilidade no debate, pois
ao mesmo tempo que se pode ler a produção curricular como aumento da prescrição na
definição de políticas de currículo, também é possível interpretar como desespero de uma
identificação que supõe estar bloqueando aquilo inenarrável e imponderável, todo outro e
“ardiloso”, via aumento do controle. Se o todo outro que incita a toda decisão não pode ser
cogitado, o aumento do controle, da precisão com sua ação excludente tende a aumentar o
próprio desespero denegatório.
Não há cura ou paz. Minha intenção é projetar, no debate sobre o conhecimento no
currículo, o caos e a denegação como aquilo mesmo que permite que o debate não cesse. Algo
que se furta ao controle, a despeito das incessantes tentativas de aprisionar o espectro, o
significado último, a plenitude prometida ao currículo por um conhecimento redentor.
51
Penso, nesse sentido, ser possível, por meio do nome interdisciplinaridade, destacar
que um trecho do conflito pela hegemonia do conhecimento na política de currículo se
desenvolve. Por isso a proposição de sua interpretação como significante flutuante,
tensionado, em princípio, pelos discursos do currículo disciplinar e da integração curricular,
que desenham um possível antagonismo interno ao sistema discursivo, ao mesmo tempo que
buscam conjecturar, afirmar de uma vez por todas um conhecimento a fundamentar o
currículo. Trata-se de um conhecimento como nome fantasmático, espectral, indefinidamente
traduzido, que é suposto como capaz de responder a tudo aquilo inquietante ao currículo,
inconcebível, imponderável (MACEDO, 2014), o que penso ser uma “toda outra alteridade
curricular”, que dinamiza o que Laclau (2011) posiciona como deslocamento do sistema
discursivo/textual.
Considero que esse significante sofre, no âmbito da política curricular para o nível
médio, pressão estrutural de ambas as cadeias (disciplinar e integrada); isso constitui a
imprecisão sobre sua significação no sistema político (LACLAU, 2011). Segundo Laclau, a
situação de competição equivalencial é que corrobora o caráter flutuante do significante. A
própria flutuação depende das lutas políticas entre demandas disciplinares e demandas pela
integração curricular.
Por pensar que a identidade de ambas as cadeias equivalenciais está em negociação no
embate pela significação de interdisciplinaridade, argumento quando a esse significante como
forma de compreender parte do modo como se opera a definição do debate sobre o
conhecimento via organização curricular, em uma atualidade curricular (cuja responsabilidade
incide no revolvimento daquilo fora de tempo que a constitui [sentidos de suas teorizações, de
sua história, de seus fins, tradições e traumas]), enfatizando conflitos/antagonismos que, como
pontuado por Laclau (1990), por serem passíveis de simbolização, constituem o sistema,
integram-no, ainda que jamais o saturem.
O antagonismo assinalado entre as referidas cadeias não implica, a meu ver, uma
exclusão radical da outra. Baseado em Laclau (2011), penso a polarização constituída entre o
disciplinar e o integrado, pelo significante interdisciplinaridade, como operando
simultaneamente uma dicotomização e uma simplificação do social, criando assim um espaço
único de representação. Com isso, teríamos a projeção de um conflito que favorece a
circunscrição simbólica do que vem a ser um sistema discursivo no qual se constitui a política
de currículo para o nível médio.
Penso esse movimento de circunscrição como busca por estruturação do que penso ser
o currículo, o controle da alteridade; como busca por significação de resposta que é lida como
52
afirmação de que os contextos são conhecidos em suas propriedades e podem ser controlados
pelo conhecimento.
Caras à perspectiva de contexto aqui aludida, as ideias de iteração e tradução auxiliam
no pensamento de uma articulação e uma traição irresistíveis e permanentes. Essa leitura
permite pontuar que os contextos são definidos fragilmente, como aquilo que se julga estancar
e significar em resposta pelo currículo, porque constituídos por uma “fé” (DERRIDA, 2010)
calcada na ilusão de tratamento da mesmidade, na relação com dado significante, como
conhecimento, interdisciplinaridade, currículo. Os contextos são fraturados em sua estrutura,
pois, a repetição aditiva da différance leva à falência os intentos de menção ao referencial, ao
que poderia ser um conhecimento potente, por exemplo, ao que se supõe ser a origem ou o
espaço comum do próprio contexto (curricular), a esta altura há muito dilacerado pela
heterogeneidade dos sotaques sem origem e de seus sentidos disseminantes, como Derrida
(2006b) assinala.
Na menção ao contexto da escola, do conhecimento, do sujeito, de uma tal prática ou
performance, já não estamos nele ou acessando-o, mas lidamos com seus fantasmas, com o
que o assombra, com aquilo que não se encontra. Adulteramos a ideia daquilo que reiteramos,
como adulteramos o currículo (ou não é possível deixá-lo ser de uma vez por todas, como as
diferentes teorias possibilitam pensar) suplementando, traindo, engendrando outros contextos
indefinidamente. A referência ao currículo é, por si, ruptura, diferimento, iteração no sentido
mesmo da alteridade como irrupção, é outro contexto, marcado pela reação. Segundo Derrida
(1991a), a iteração, marcada pela différance, adultera e leva ao acontecimento do novo,
contamina a intenção e faz com que todo ato performático/de fala/escrita/tradução expresse
algo distinto do pretendido. Todo enunciado está exposto à ruptura contextual. Mas isto, o
“novo” destacado pelo filósofo, bem pode ser o que se teme, como identificação curricular
que julga conhecer algo ou dominar o nome curricular, e visa conter, dado o estranhamento.
54
currículo como prescrição (MACEDO, 2006), o que reitera a recorrência de leituras binárias
no campo.
Para Macedo (2006), o cenário nacional é pautado por uma tendência em pensar o
currículo como pré-ativo, como proposição, como receita, bem como pela ideia de que o
currículo é produzido cotidianamente. São tendências que, para a autora, reiteram a tensão
entre as visões crítico-reprodutivistas, estadocêntricas, da prescrição; e a perspectiva de
emancipação e resistência, de valorização do trabalho de professores e alunos como formas
subversivas; do cotidiano, com sua habilidade para subverter por resistência e/ou negligência
o que vem de cima, em uma alusão à ideia de que as propostas são feitas em instância superior
à escola e em seguida são impostas de cima para baixo (MACEDO, 2006).
Não é suficiente, segundo Macedo (2006), enfatizar o currículo como prática para que
se possa compreendê-lo como um espaço-tempo de produção cultural, como processo alheio a
etapas ou contextos prefixados/concebidos, como dinâmico e produzido mediante relações
hegemônicas provisórias. Uma compreensão curricular, nesse sentido, incide em pensar o
currículo como uma leitura que erradique a distinção entre as dimensões formal e vivida, entre
um dentro/fora, entre um currículo proposto e outro implementado. Nessa discussão, Macedo
(2006) defende que o currículo seja lido como um espaço-tempo de fronteira.
O currículo, para a autora, é dinamizado por práticas discriminatórias, por meio das
quais a diferença é produzida, como a tensão contínua que marca a negociação de posições
ambivalentes que, na simultaneidade de seus movimentos, operam controle e resistência
(MACEDO, 2006). Para ela, o currículo deve ser visto como cultura, mas devemos cuidar
para que não se remeta a uma visão cultural de repertórios ou acumulação de conteúdos; é
como espaço-tempo de enunciação, de produção de sentidos (MACEDO, 2006). Uma
condição a que todos, como pleitos, estamos submetidos e na qual impureza e hibridismo
negociam com o diferir.
A ideia de espaço-tempo de fronteira cultural, defendida por Macedo (2006), consiste
em uma leitura curricular produtiva para operar a ideia de interação cultural, mas fora de um
registro de hierarquização entre as culturas. Tomada como produções híbridas, a cultura é
pensada como fluxo incessante na profusão de hibridismos. A autora localiza a ideia de
impureza como condição para a não estratificação entre os elementos. Desse modo, não
havendo uma cultura original que busque saturar o outro, só restam movimentos de disputa
por hegemonia, por uma ou outra perspectiva, por demanda, por ideia. Sem o estancamento de
um início ou fim, Macedo (2006) propõe desconfiar dos marcadores das distintas
possibilidades de tentativas de representação.
57
acena para a ideia de que só há interpretação, iteração e tradução, não sendo possível a
referência a um sistema em sua propriedade, em sua verdade.
A volatilidade, efemeridade e contingência a que se refere Lopes (2013) levam os
projetos de transformação social e formação de sujeitos, nos termos da reflexão curricular, a
serem questionados, na medida em que não são tomados como conscientes e/ou plenos de si,
mas cindidos e instáveis. Com esses argumentos, a autora contesta os projetos de futuro das
articulações políticas fixados a priori. Projetos que, em sua base, são expostos ao crivo pós-
crítico. Nesse sentido, baseada em Laclau, a autora destaca que os termos sujeito,
conhecimento e sociedade, por exemplo, são também disputados em sua significação. Isso
implica assumir a suspensão do pressuposto de falar sobre as mesmas coisas em um debate,
pois não há identidade plena ou identificação dada antes da luta política.
Com base nessa concepção de que a política é uma ocasião de conflito, de
identificação, de subjetivação, de construção negociada de projetos (ou de intervenção
contínua naquilo que se entende por projeto), a autora se afasta da adjetivação niilista dada
aos autores “pós”. Para Lopes (2013), diferentemente de uma perspectiva que invista na
dispersão e no delírio, soa mais promissor, no que toca a leituras pós-fundacionais e pós-
estruturais, focalizar a hiperpolitização.
Inspirada em Derrida e Mouffe, Lopes (2013) argumenta que a hiperpolitização
oportuniza a leitura de que os envolvimentos políticos, em uma luta sem bases racionais ou
lógicas predefinidas, admitem o conflito e o movimento da decisão. Nesse caso, a decisão não
pode ser pensada como atuação orientada, mas como exercício de poder que nos constitui
como sujeitos na política. Toda opção, toda decisão, portanto, é intervenção sem garantias
sobre seus desdobramentos. A decisão consiste em produzir, hoje, efeitos imprevistos sobre a
significação do currículo, sobre o próprio futuro, como na perspectiva de porvir abordada por
Derrida (2002), para que o defina como dependendo da desconstrução marcada na “re-
afirmação” da invenção para além de um saber ou programa.
A esse respeito, quando relaciona democracia e representação nas políticas de
currículo, Lopes (2012a) apropria, da teoria do discurso de Laclau, a leitura de representação,
a fim de focalizar como necessária a tensão entre representante e representado. Nesse sentido,
acena para a democracia como não podendo ser pensada sem a noção de representação, ao
mesmo tempo que defende a conjectura no âmbito de uma contingência radical.
Para a autora (LOPES, 2012a), que também recupera discussões de Stuart Hall sobre o
descentramento das identidades dos sujeitos, a possibilidade de ler uma fixação identitária
está na busca pela compreensão das provisórias articulações hegemônicas. A partir desses
61
Um significante vazio, segundo Lopes (2012a), não deve ser associado a distintos
significados; é o limite máximo de uma significação. Os significantes vazios na política estão
vinculados a significantes flutuantes, cujos deslizamentos de sentido são uma constante. O
esvaziamento de um significante não diz respeito, nesse caso, à distorção ou a um problema a
ser solucionado. Ao contrário, é sintomático da universalização, da hegemonia. É justamente
esse caráter impreciso e fluido que garante a possibilidade de articulação de distintas
demandas sociais. O que define uma articulação, a articulação em torno da democracia, é o
estabelecimento de um antagônico, uma diferença ou articulação lida como expulsa. Tal
condição caracteriza a possibilidade de sensação de solidariedade entre diferenças/demandas
sociais em torno de um nome, uma cadeia equivalencial. A contenção provisória do fluxo de
significações é garantida por aquilo que é lido como faltoso, como uma ameaça, um problema
para a cadeia em que se constitui, nesse caso, a democracia.
A representação, portanto, não pode ser plena e transparente, uma vez que não há
sujeito ou significação última a catalisar todos os sentidos na representação, mas somente
precariedade e suplementação, capaz de sustentar um continuum de substituições na própria
cadeia. Esse dinamismo interno à cadeia é que oportuniza processos de subjetivação,
processos precipitados na decisão, na tentativa de conter a dispersão, de controlar o discurso.
Dessa forma – com decisões de resultados imprevistos, com subjetivações e, portanto,
com hegemonias precárias –, a representação só pode ser pensada nesses termos. Tal leitura
leva à conclusão de que não há representação plena do social, pois em ocasião alguma, na
perspectiva de Laclau, há plenitude. Com essa visão, Lopes (2012a) retoma a discussão sobre
democracia assinalando que, em um viés moderno, ela é pensada via transparência nos
processos de representação.
Na perspectiva da teoria do discurso, no entanto, se tivermos em conta a ideia de que
não há identidades plenas, a suposição de uma íntegra representação só pode ser ilusão. A
esse respeito, Lopes (2012a) se baseia em Torfing para argumentar que nem mesmo as
vontades individuais de determinado representante seriam as mesmas caso mudasse de
contexto. Essa asserção não visa destituir possibilidades democráticas, mas reconhecer que a
representação só pode ser precária e instável.
A democracia pode ser considerada possível, para Lopes (2012a), se o lugar do poder
é lido como vazio. Ela acrescenta, ainda segundo Laclau, que as condições necessárias à
democracia são mantidas se houver lacuna entre universal e particular, entre representante e
representado. No entanto, a autora ressalta que, apesar da interpretação possível de que todo
movimento político é democrático, isso não poder ser regra. A democracia não se restringe
63
somente à tradução da política, mas à compreensão do agonismo defendido por Mouffe, cuja
preocupação está em reiterar a importância de que a negociação política e o antagonismo não
sejam levados a uma perspectiva de combate e destruição do que tenho por antagônico, mas à
multiplicação de espaços que possibilitem a tradução. A ideia central de uma leitura
agonística estaria em pensar o antagonismo como inerente ao processo político, à própria
condição de definição das identificações.
Uma política democrática, portanto, é pensada pela pluralidade de projetos, pela
oportunidade de expressão de tais projetos e da tensão entre eles. Nesse sentido, Lopes
(2012a) defende que, assim como a democracia, bandeiras como emancipação social, justiça
social, liberdade e cidadania crítica não são destituídas, porém têm rejeitadas as possibilidades
de serem supostas como possuidoras de significações anteriores à política. Para a autora, a
condição para a democracia é justamente o paradoxo em que consiste a impossibilidade de
conciliação entre o universal e o particular.
Para Lopes (2012a), no que toca às políticas de currículo, uma perspectiva
democrática estaria em operar a ideia de que nossas lutas cotidianas dizem respeito à
negociação com outro sobre a significação do mundo, tendo em conta que, mesmo que o outro
pareça nos colonizar, ele faz parte do que julgamos ser. Como um horizonte a ser construído,
a democracia deixa de ser pensada como acordos preestabelecidos, passando a ser vista como
oportunidade de, hiperpoliticamente, inventarmos hoje qual será o passado para o futuro que
se deseja, para o porvir (DERRIDA, 2002).
Ideias como qualidade na educação também fazem parte do escopo de atenção de
Lopes (2012b), haja vista que tal discurso, em muito, tende a ser associado às finalidades
democráticas da educação, sem que, contudo, seja refletida sua condição de pressuposto e/ou
eufemismo de um consenso conflituoso no campo da educação. A motivação para essa
temática, segundo Lopes (2012b), está na leitura de que nas últimas décadas as políticas
curriculares no Brasil e em diferentes lugares do mundo têm se desenvolvido na relação com
o discurso da qualidade. Segundo a autora, dentre as associações mais diretas está a
vinculação da qualidade à equidade e, em decorrência de tal leitura, à necessidade de que os
currículos sejam cumpridos de modo eficiente.
Como ponto em comum entre diferentes textos de grande circulação, a autora destaca
a ideia de que a qualidade da educação depende da qualidade do currículo, o que incidiria na
relação entre os conteúdos ensinados e o aprendizado de tais conteúdos por parte dos alunos.
Para a autora, não só a defesa da qualidade não é algo recente como as argumentações críticas
à qualidade tendem a, recorrentemente, argumentar que o problema em defendê-la estaria na
64
negligência para com as tradições e raízes culturais dos alunos. Lopes (2012b) argumenta,
nesse sentido, que mesmo a oposição crítica à defesa da qualidade não problematiza a luta
política pela defesa do que se tem por qualidade, relegando sua afirmação ao status de
pressuposto.
Lopes (2012b) pontua a ideia de que o estabelecimento da qualidade como
pressuposto, como algo comum a todo o social e ao currículo, se apoia na visão de que a
priori os projetos, as identificações e as demandas são estabelecidos. A autora propõe, por
outra via, a concepção de que na luta política são constituídas as identificações.
Lopes (2012b) argumenta que, desde que foram criticadas as perspectivas
instrumentais de currículo, uma das leituras mais recorrentes é aquela que o define como
seleção de uma cultura mais ampla. Essa leitura não impede de serem apropriadas nuanças
instrumentais em diferentes momentos políticos, inclusive, ocasionalmente, hibridizadas com
matizes do pensamento crítico.
A influência do pensamento crítico, marcadamente de inspiração neomarxista, trouxe
para o campo do currículo a crítica à seleção de conteúdos e à problematização do poder na
definição curricular. Com base nesses marcadores no pensamento curricular, tal como
ressaltado por Macedo (2006), Lopes (2012b) pondera que duas concepções articuladas se
consolidaram: a concepção de um repertório de bens partilhados que decorre de dado processo
hegemônico e a visão de sociedade como um todo estruturado em classes definidas
economicamente. Sendo um dos pensadores mais proeminente nessa perspectiva, Apple é
mencionado por Lopes (2012b) como um dos defensores de tal visão de mundo.
Lopes (2012b) e Macedo (2006) atentam, nesse sentido, para a manutenção da
perspectiva de que as identidades são fixas. Nesse mote, uma vez fixadas as posições, os
sujeitos e uma estrutura social fechada, é definida a seleção como sendo feita pelo sujeito
coletivo dominante, os grupos sociais detentores do poder hegemônico. A hegemonia, nesse
caso, é inspirada nos trabalhos de Gramsci, cuja perspectiva a delineia como formação de
consciências e não como práticas diretamente autoritárias das classes dominantes.
Dessa maneira, a sociedade é estruturada pelo movimento crítico de currículo. As lutas
políticas, portanto, são pautadas nesse projeto de sociedade. E, para essa sociedade, um
currículo de qualidade deve estar comprometido com a possibilidade de ampliar a capacidade
do pensamento crítico, de compreensão e conscientização sobre as relações e conflitos sociais.
Com isso, Lopes (2012b) afirma que se desenha um tipo de conhecimento hábil/privilegiado
para um dado projeto de sociedade.
65
que são desdobradas não só nas escolas como nos mais distintos espaços de atuação política.
A autora ressalta que cada um pode significar a qualidade, mas sua definição depende de toda
uma ampla gama de articulações e negociações de sentidos.
O reconhecimento de que podemos nos envolver, porém não podemos estancar uma
verdade última não deve nos paralisar, mas levar-nos a entender o caráter contínuo e
necessário da negociação, da democracia (LOPES, 2012a). Assim, em relação à sua pergunta
inicial, responde dizendo que se a disputa pela qualidade for reconceptualizada como um
significante vazio e o currículo como uma produção cultural, podemos assumir que a disputa
pela significação da qualidade consiste na disputa pela definição do que vem a ser o currículo.
Tomar a discussão do currículo nos termos de uma produção cultural, como luta
contínua pela significação, é o que Lopes (2014a) retoma no texto Ainda é possível um
currículo político?. Nesse texto, a autora acena para as de contribuições de Lacan, Heidegger
e Derrida para enfatizar movimentos que criticam determinismos sobre o social e contribuem
para que a linguagem, as práticas, as instituições sejam lidas como formas capazes de
subverter ou refundar o político e o social de outras maneiras.
No que toca ao Brasil, Lopes (2013; 2014a) pondera a influência de autores pós-
críticos no campo do currículo. Essa influência também marca a tensão com defensores de
leituras críticas sobre o social. Tais manifestações levam a hegemonia do discurso crítico
(LOPES, 2012b), mobilizado pelas defesas de lentes como a ideologia, o poder, a classe
social e a dominação, a ser abalada pelos aportes pós-críticos que vêm ganhando espaço no
campo das políticas de currículo.
Frente a esses argumentos, a autora lança um questionamento: ainda é possível uma
formação voltada a um currículo político? Sem pretender respostas consensuais, Lopes matiza
duas grandes linhas que se opõem no campo do currículo: a primeira é marcada pelos autores
que de algum modo se vinculam ao movimento crítico, baseando-se na fundamentação
econômica do social e na estrutura de classes; a segunda consiste em tentativas de hibridizar
agendas críticas e pós-críticas. Sobre essas linhas, Lopes (2014a) chama a atenção para o
quanto ambas resguardam um projeto curricular apoiado na (pré)definição de um sujeito fixo
e de uma sociedade estruturada e legível.
Para maior detalhamento, a autora (2014a; 2016) chama a atenção para os trabalhos de
Stephen Ball, que tendem a enfatizar noções de discurso, com base em suas relações com a
filosofia de Foucault como forma de conexão entre regulação e possibilidade de escape, ao
mesmo tempo que não abre mão de bandeiras caras ao movimento crítico, como igualdade e
justiça social, além de supor certa transparência do social, ao acenar para dimensões materiais
67
afirmativa dilata a visão de que um currículo político só pode ser se concebido via incertezas
e ausência de fundamentos. O currículo político, nos termos pós-fundacionais a que Lopes
convida, e com o qual concordo e do qual busco me apropriar, só pode estar compromissado
com sua impossibilidade, assim como a democracia e a qualidade, o conhecimento e o sujeito,
como temos visto ao longo desta discussão. Com o funcionamento dado às interpretações, ou
melhor, às traduções, o currículo – assim como tudo o que é defendido por meio dele, a partir
dele, para ele, nele – não é nada mais do que uma possibilidade de tradução, de intervenção na
relação com aquilo que julgamos ser de seu trato.
Buscar reduto teórico nessa perspectiva de currículo não consiste em tarefa fácil, pois
implica adentrar (já estando) um todo que sempre é desconhecido; terreno de certezas
movediças, de convite à perda de uma paz teórica que somente um mundo organizado
estruturalmente pode oferecer como horizonte. Não há momento de convite, mas o
envolvimento consiste na aceitação de um caráter fronteiriço de conhecimento, de uma
ontologia por vir.
Nesse sentido, ao pensar a formação de sujeitos coletivos, Lopes (2014b) chama a
atenção para a ideia de projeto, de télos, como horizontes que visam gerar solidariedade entre
diferenças dispersas no social. Questiona enfoques que defendem a necessidade de construção
identitária fixa do coletivo como possibilidade de atuar em favor da mudança social com
vistas a um futuro desejado. Dentre as principais problemáticas de tal assunção, está a
expectativa de racionalização de regras ou meios de controle do que deve ser o centro de
decisões mais acertado para o coletivo.
Lopes (2014b) empreende uma discussão com diferentes nomes do campo da teoria e
da filosofia política que despontam na defesa de leituras subjetivas sobre o que vem a ser uma
comunidade política, um sujeito coletivo. Baseada nos argumentos pós-
fundacionais/estruturais mencionados nesse texto, a autora se volta à leitura de autores como
Zizek, para quem a classe social é o ator histórico central. Segundo Lopes, para Zizek não há
oposição entre a luta por demandas contingentes e a luta por temas de primeira importância
social. Para o autor, em última instância, o sujeito perduraria situado pela estrutura
econômica.
Em Negri, com sua noção de multidão, o sujeito coletivo é uma multiplicidade de
singularidades em uma unidade representativa, mas ainda assim referendada em algo comum,
o télos, que garantiria a unidade em prol de determinado horizonte. A diferença, nesse caso, é
concebida como a ser suplantada por um projeto imanente em que se constitui a formação da
própria multidão. Assim, a diferença caminha na direção de se fundir num todo coletivo.
69
Os termos que majoro em primeiro plano aqui (conhecimento, mas também sujeito e
contexto), assim como os argumentos que venho disseminando ao longo do texto, dizem
respeito à busca pela localização da problemática e ao modo como teórico-estrategicamente
pretendo me aproximar e falar sobre ele, defender uma tese. Os termos já vêm fazendo parte
de nossa conversa há algum tempo aqui e, por isso, na próxima seção, me concentro em
discuti-los em sua relação com o currículo.
72
Depois de discutir a perspectiva com a qual leio o currículo e, nele, como penso o
sujeito e o contexto, volto-me ao nome conhecimento, com foco na defesa de que a propalada
centralidade no campo do currículo, talvez com certo exagero, quase o alce à condição de
sinônimo curricular. Falar na/da centralidade do conhecimento no campo do currículo não é
novidade, muito menos pensá-lo em termos de relações de poder; é discussão recorrente no
campo, como já apresentado, desde os trabalhos críticos iniciais até os mais distintos
considerados “pós”.
Em recorrentes leituras do campo, como será tensionado mais detidamente na próxima
seção, o conhecimento é algo que precisa ser protegido de determinadas leituras que o
afligem, que o expõem ao risco de deixar de ser estrutura fundante ao currículo; que o
defendem em razão de uma potência emancipadora, empoderadora (FREIRE, 2005),
subversiva; tal como nas discussões de Apple, que se pauta em uma perspectiva de
conhecimento capaz de legar emancipação aos sujeitos em determinado mundo; de Young
(2009), em defesa de um “conhecimento poderoso”; ou da pedagogia histórico-crítica
(SAVIANI, 2008) e/ou crítico-social dos conteúdos (LIBÂNEO, 2012), com a leitura de
“conhecimento socialmente acumulado”, que precisa ser transmitido no processo de
escolarização, para garantir determinada forma de estruturação da escolarização.
Para outros, como é o caso de Lopes (2008; 2013; 2015), Lopes e Macedo (2011;
2012) e Macedo (2012), o conhecimento é um nome cuja significação é prometida, mas nunca
alcançada; é um nome em torno do qual buscamos hegemonizar perspectivas, leituras, mas
não possui propriedade, ainda que queiramos afirmá-la.
Mas dizer isso não é o bastante, pois é possível, nos termos de Laclau (2011), pensar
em articulações, em hegemonia do significante conhecimento no âmbito da política curricular,
da política em que se constitui o próprio campo da teorização do currículo. Penso que, sem
esforços maiores, é possível viabilizar uma conversa sobre currículo tendo em conta
preocupações com o conhecimento. Por outro lado, caso a preocupação seja a crítica à
proeminência do conhecimento em detrimento de outras afirmações, questão também
discutida por Lopes e Macedo (2011), ele também se constitui como antagonismo ou, ao
menos, como tema necessário à sustentação da crítica. Essa é uma suposta presença quase
originária ao currículo. Tão suposta que mesmo trabalhos críticos à dita centralidade, ainda
que não estejam tratando diretamente do tema conhecimento, ao discutir o campo do
73
saiba tomar atitudes, saiba produzir, possa subverter, produza seu próprio conhecimento,
sinta, perspective o mundo. Definições, leituras, recorrências, sentidos; assunções no e para o
currículo que marcam, mas constituem uma bruma quanto à definição última sobre o
conhecimento, o que é o conhecimento para o currículo. Uma impossibilidade última de
fixação, mas uma hegemonia da defesa de certo conhecimento para um sujeito em contexto.
Três termos que penso fazerem sentido nessa discussão: conhecimento, sujeito e
contexto. Por esse motivo, me inspiro na posição de Macedo (2012), que assinala como
constitutivas às discussões sobre conhecimento as experiências escolares e as identidades. No
entanto, proponho a ampliação da ideia de experiência escolar, levando a conversa para além
do escolar, com vistas a expandir as insondáveis formas de produção de sentidos que
poderíamos atribuir ao nome educação. Não pretendo focalizar a experiência escolar de forma
específica, mas penso na ideia de contexto como aquilo/aquele desconhecido e inalcançável
espaço-tempo com potência para a produção de leituras/conhecimentos imprevisíveis.
Em concordância com a autora, me interessa tensionar a segurança conferida à relação
pressuposta entre tais termos. Uma segurança que penso ser consolidada em uma leitura
essencialista. Segurança que argumento poder ser pensada noutros termos, em um registro
pós-estrutural, discursivo.
Para Lopes (2014) e Macedo (2012), tais argumentos se constituem em questões caras
ao pensamento e às políticas de currículo. Para elas, tomando por pressuposto que atentar para
a diferença é condição à discussão sobre educação, importa atingir os vínculos diretos entre
currículo e ensino, tendo em mente que não só tal relação tende a ser lida como obrigatória no
campo como sendo o motivo pelo qual o conhecimento é tomado como protagonista do
currículo.
Concordo com Macedo (2012) ao defender a distensão entre currículo e ensino como
forma de assumirmos uma perspectiva de emersão da diferença no currículo; para que
possamos pensar o currículo fora de uma lógica de controle do sujeito e do contexto. Macedo
(2012) não defende o fim do ensino como solução, mas que coloquemos o ensino sob
suspeita. Isso significaria reeditar o ensino como parte dos esforços curriculares, mas não seu
cerne.
Segundo Macedo (2012), como resultado de tais tensões no campo, as soluções
tendem a ser pensadas em uma polarização entre o foco no conhecimento e o aluno.
Entretanto, para a autora tais soluções interpretativas não deixam de favorecer meios de
conceber a produção do conhecimento como dada a um sujeito, circunscrita a uma forma de
ser sujeito, sujeito da aprendizagem.
75
O foco no conhecimento, como redução àquilo que deve ser ensinado na escola para
determinado sujeito, é para Macedo (2012) uma acepção que reúne diferentes pensadores
acadêmicos, diferentes produções teóricas e, portanto, políticas de currículo, políticas
públicas. Tais perspectivas atravessariam o campo do currículo, marcando o quanto uma
perspectiva de contexto privilegiado incidiria na projeção subjetiva e, então, na necessidade
de que uma forma de conhecer fosse definida para o currículo: o mundo atual, o século XXI, o
mundo produtivo, o trabalho, a vida cotidiana, a resolução dos problemas do dia a dia, o
sistema capitalista são supostos contextos como estáveis o suficiente a ponto de que um
sujeito também estabilizado para atuar nele possa conhecer para intervir nele.
Macedo (2012) argumenta que desde os estudos tradicionais a relação entre educação
e a vida social e econômica é uma tendência na defesa do conhecimento. Essa perspectiva,
para a autora, consiste em formas de controle: quando a educação e o ensino passam a ser
concebidos como plasmados, teríamos um cenário em que a educação funcionaria como
controle social, ao ser fixada como meio pelo qual são preparados sujeitos para atuação em
um mundo tal.
Concordo com a autora em pensar que tais afirmações não são originais no campo do
currículo. Macedo (2012) chama a atenção, ainda que tal crítica seja também uma tradição
curricular, para o quanto perspectivas de controle são possíveis leituras em diferentes
documentos oficiais curriculares. Estejam tais perspectivas repensadas em bases psicológicas
ou sociológicas, ressoam em diferentes momentos da política curricular. Macedo destaca que
argumentos do movimento crítico são também constituintes de leituras pautadas em formas de
controle. Ainda que essas leituras contribuam com a ampliação do conhecimento como algo
associado a um contexto social mais amplo, não deixam de, como meio de
operação/sistematização, propor um projeto de ensino para a escolarização, com vistas à
formação de um sujeito adequado a um mundo pensado como a ser transformado por
intermédio de ações orientadas pela conscientização, pelo conhecimento (crítico).
Cabe afirmar, a esse respeito, que essa leitura curricular possui, nas palavras de
Macedo (2012), muita circulação no campo das políticas curriculares. Como emblemático da
afirmação de tal visão de mundo, a autora focaliza trabalhos como os de Young (1998; 2009),
para quem haveria um “conhecimento poderoso” capaz de operar em favor de um projeto
emancipatório, hábil em encetar a esperança pela emancipação via ensino, reiterando uma
função social da escola, entendida como lugar para a aquisição de tais conhecimentos
transformadores. Autores como Apple (1989; 2006) também fariam esse movimento ao
76
assinalar a difusão do conhecimento como meio pelo qual a educação poderia ser dinamizada
em sua função emancipatória.
Para Macedo (2012), o conjunto de perspectivas reunidas em torno da ênfase ao
conhecimento nas discussões curriculares, assumindo-o como propriedade a ser transmitida
com vistas a determinada formação identitária/subjetiva, apoia a leitura de que a escola é um
espaço de transmissão de conhecimentos. Concordo com a autora ao ler que essas abordagens
de currículo, de escola e de sujeito orbitam em um projeto de domínio de um conhecimento
socialmente acumulado e produzido de forma alheia ao sujeito, mas com potencialidade para
fazê-lo sujeito trabalhador, crítico, consciente.
Apesar da potência dos estudos pós-estruturais no campo do currículo, a principal
referência nos estudos curriculares, tal como assinalado por Macedo (2012), são os estudos de
cunho crítico que, segundo a autora, mobilizam leituras que projetam o conhecimento como
centro das preocupações curriculares. No entanto, Macedo argumenta que, no Brasil, é
recorrente a elaboração de investigações em que são envolvidos aportes pós-estruturais e
críticos que, mesmo visando criticar formas de estruturação do currículo, defendem o
conhecimento como cerne das discussões no campo. Tal perspectiva marca uma problemática
ao supor o pleito à centralidade do conhecimento em uma abordagem teórica que se opõe a
estabilizações, fundamentações e centralidades.
Característicos dessa condição, os trabalhos de Moreira (2004; 2005; 2007; 2010) não
só assumem o conhecimento como categoria relevante e central para o currículo como
apontam a cultura (discussão cara aos argumentos pós-estruturais no campo) como motivo
pelo qual o conhecimento tende a perder força no trato curricular. Para Moreira (2004), um
problema que marcaria a produção curricular na atualidade seria o enfraquecimento da
perspectiva do currículo como conhecimento frente ao avanço dos debates sobre a cultura. O
autor defende, tal como Young (2009), a primazia da visão de currículo como seleção e
distribuição de conhecimentos. Igualmente, Moreira (2010) pondera a função auxiliar, ou de
exemplificação, da cultura, ao pensá-la como aquilo sobre o que as preocupações do
conhecimento se debruçam. Tal perspectiva ressalta a visão estrutural que tenho focalizado,
inclusive ao supor conhecimento e cultura como dimensões distintas, sendo o primeiro aquilo
de propriedade de dado contexto social a ser apropriado para provocar determinado resultado
social (justiça, igualdade) quando desenvolvido na escola (MOREIRA, 2010).
A sinonimização entre conteúdos disciplinares e conhecimentos também é projetada
como uma marca dos argumentos em defesa da centralidade do conhecimento no currículo
(CASTELLAR, 2005; EL-HANI; MORTIMER, 2007; OLIVEIRA, 2009; SOUZA;
77
CASTELLAR, 2016). Segundo Souza e Castellar (2016), para que o conhecimento escolar
seja produzido é imprescindível que isso se dê com base na epistemologia da ciência de
referência de uma disciplina escolar. Para os autores, em perspectiva aproximada à de Moreira
(2004; 2010), a experiência cultural que marca a vida dos estudantes é da ordem do vivido e
experienciado, mas somente quando crivado e pensado pela ciência é que o conhecimento
escolar, que interage com a dimensão cultural vivida, assume sua condição crítica, justamente
por ser capaz de constituir uma leitura correta ou mais ajustada da realidade.
Em abordagem semelhante à de Castellar (2005) e à de Souza e Castellar (2016),
Oliveira (2009) argumenta sobre a centralidade do conhecimento (científico) como baliza da
produção do conhecimento escolar, entendendo-o como devendo ser rigorosamente similar à
organização conceitual da ciência. Chassot (2003), ao tratar da alfabetização científica na
escola, define a importância de que os temas sociais e culturais sejam incorporados ao debate
escolar e à pesquisa sobre o conhecimento escolar. O autor, buscando afastamento da visão de
transposição do conhecimento científico para a escola, argumenta que tal visão não consegue
lidar com a experiência cotidiana dos estudantes. A alfabetização científica, segundo ele,
incidiria na construção de um conhecimento capaz de levar a leituras da natureza, a uma
perspectiva crítica sobre a natureza. Com essa visão, o autor focaliza maior aproximação das
experiências sociais e culturais dos alunos, de modo que possam se apropriar da ciência de
modo adequado, corrigindo distorções das visões cotidianas e, portanto, respeitando o
referencial da ciência na escola.
Macedo (2012), que atenta especificamente aos trabalhos de Moreira (2004; 2005;
2007; 2010), argumenta sobre a tendência de defender a lógica disciplinar como forma de
organização e seleção dos conhecimentos, lidos como conteúdos críticos a serem ensinados. A
centralidade do conhecimento seria assegurada por sua função formativa de subjetividades e
atitudes. O conhecimento, o sujeito e o contexto em que deve se inserir (a sociedade) estariam
predispostos nessa leitura curricular. Macedo (2012) afirma que independe de as leituras
curriculares se associarem a determinada perspectiva ou mesclá-las. Chama a atenção para o
quanto a tentativa de estabilização de um significado para o conhecimento, para a cultura, o
sujeito e a sociedade vive um movimento de eufemização de tudo que não pode ser
ponderado, daquilo que ainda não está dado. A cultura e o conhecimento, nesse caso,
precisam ser subsumidos ao já conhecido, já existente. O mundo, nessa perspectiva, não pode
sofrer com a contingência de novas significações, com a irrupção de alteridades, do
imprevisto, daquilo que escapa à razão constituída ou mesmo ao racional. Por essa razão é que
já há um conhecimento sobre o mundo para o sujeito.
78
Elas destacam que uma hegemonia – como é a cultura científica moderna no campo do
currículo – se apoia na busca pelo fechamento de outras formas de representação do mundo,
atribuindo a esse outro excluído o caráter de absurdo ou insuficiente. Para Lopes e Macedo
(2012), a cultura popular, o senso comum ou as artes expressariam esse outro a que se opõe a
defesa do conhecimento no currículo. Essa leitura projeta o que não passa ou é sustentado
como inclusão pelas vias da ciência como caricato, marginal, acessório.
Ao conceber o (im)próprio conhecimento como uma cultura, mais uma cultura, as
autoras oportunizam uma leitura interessante. Para elas, em termos pós-estruturais/coloniais a
cultura não pode ser lida como corpo de sentidos fechado, mas como uma produção contínua,
marcada pelo conflito e pela irreconciliação consigo mesma. Com esses argumentos, Lopes e
Macedo (2012) ponderam que, como cultura, o conhecimento não pode ser lido como algo a
ser transmitido, mas como nome em relação ao qual negociamos a significação: uma leitura
de conhecimento como produção cultural, como espaço tempo-fronteiriço de identificação, de
subjetivação, de envolvimento.
Com base nesses argumentos, a cultura científica, como tudo o mais cultural que insta
nas travessias curriculares, diz respeito a um movimento de desconstrução de verdades
pretensamente acabadas/pressupostas. Isso possibilita a concepção de que, como significação
por vir, marcada por tentativas e golpes com vistas ao fechamento das certezas caras à
estabilização, o conhecimento é mais uma ficção de verdade curricular; ficção de fundamento
a partir do qual supomos estar tratando da mesmidade e, assim, dialogando de modo
transparente com o outro.
Para as autoras, o que importa em relação à condição do conhecimento no currículo
não é resolver qual significado deve possuir ou se deve ceder ou não espaço para outra leitura
de mundo, mas conceber que, como mais um nome por meio do qual a seara curricular se
desdobra, o conhecimento é uma forma de negociação curricular, de produção de sentidos.
Caminhar nesse sentido é, ainda, compreender que não se trata de criticar os sentidos da
ciência que participam nos fluxos de significação do conhecimento, do currículo; é levar em
consideração o problema da circunscrição cientificista de leituras de mundo.
Em um enfoque desconstrucionista, tal como proposto por Lopes e Macedo (2012),
não se trata de pensar a segurança para esta ou aquela forma de restringir o que é de trato
curricular, mas conceber que está em jogo um potencial generativo das próprias discordâncias
e concordâncias quanto ao que quer que esteja/seja no/o currículo. Não fosse um movimento
próprio à différance (DERRIDA, 1991a), que performa uma traição quanto a toda tentativa de
80
precisão do texto curricular, não seria motivo de preocupação a defesa a determinada visão de
mundo que se julga prioritária.
Se uma verdade lida como se universal fosse, de fato, capaz de totalizar, nada restaria.
Sequer restariam formas outras de pensar, de significar. É porque nada está decidido pela
última vez que sempre há sentidos vazando ao movimento de contenção. Portanto, conceber
que isto que é outro e que escapa ao controle é tema pós-estruturante do currículo; já coincide,
a meu ver, com o convite de Lopes e Macedo (2012) a que pensemos o currículo como tendo
sua propulsão ocorrendo para além de fronteiras definidas, de posições e conteúdos, de
sujeitos e mundos predispostos.
Alinho-me a Lopes (2014) na ponderação sobre a impossibilidade de que um
universal, seja ele o que for, possa dar conta de responder a anseios particulares, locais,
contextuais. Principalmente se tomarmos o contexto como inacessível de um ponto de vista
objetivo, como pensar, de modo generalizado, soluções para problemáticas às quais sequer
podemos atentar, acessar, tratar.
É com essa perspectiva que penso a necessidade de que não nos detenhamos na
discussão sobre se o conhecimento fica ou chega para o lado na disputa pela centralidade
curricular. Julgo mais importante pensar que, nos termos de uma leitura pós-estrutural, por
não termos centro fixos, o conhecimento possa ser, ele mesmo, tomado como meio pelo qual
podemos disputar verdades contextuais sobre o mundo, em um investimento radical (LOPES,
2015b). Verdades negociadas nos espaços-tempos de fronteira cultural com os quais nos
identificamos e performamos o currículo como cultura. Isso é dizer que o problema está em
perceber o conhecimento como corpo de verdades fundamentais, quando a atenção para sua
incerteza como nome a ser significado potencializa o debate em termos plurais de uma
democracia radical/por vir.
Os argumentos que venho introduzindo como forma de acenar a leituras possíveis
sobre como o conhecimento (também) tem sido pensado no campo curricular buscam ampliar
oportunidades interpretativas no tema. Pontuo que a ideia de centralidade do conhecimento no
currículo constitui certa gravidade da temática no debate curricular, uma forma de atração que
pode ser tomada com base nas tradições do campo, mas inclusive as respostas às tradições, às
críticas e aos pós-críticos.
Ponho em suspensão, pelos argumentos desconstrucionistas que motivam tal
argumentação, a impossibilidade de tentar estabilizar isso que sequer possui um nome último,
que sequer é ou tem uma propriedade para se arrogar. O conhecimento, como aquilo que
81
4 CURRÍCULO/CONHECIMENTO
Falar “de forma geral” sobre a teoria curricular não ajuda a compreender quais seriam
as defesas e finalidades de cada momento, do modo como o conhecimento é projetado ao
cerne do pensamento curricular. Igualmente, não considero proveitoso conceber tais correntes
como meras possuidoras das definições generalistas, pois no âmbito de qualquer dos
momentos da teoria curricular sempre há fraturas, releituras e críticas internas, sendo
justamente a existência delas a garantia de continuidade dos estudos e, principalmente, a
oportunidade à emersão de novas visões.
De todo um conjunto de variações quanto às leituras curriculares, uma preocupação
considero recorrente na referência ao currículo: a ideia de que um corpo de aspectos deve ser
ajustado, previamente ou não, para a condução de ocasiões de construção de conhecimentos,
experiências, de formação de opiniões com vistas a que se realize o processo educacional em
dado contexto. Há a perspectiva de que uma razão deve sustentar esse processo, de modo a
garantir determinado horizonte subjetivo, um suposto futuro. Tais questões, como destacam
Lopes e Macedo (2011), marcam o campo em definições e lutas pela leitura mais “acertada”
do que é ou precisa ser o currículo. Esses conflitos se sustentam na crítica entre as diferentes
correntes, ancorando-se em alguma perspectiva de mundo ou mesmo em uma abordagem
distinta no âmbito de dada perspectiva.
A crítica a que toda corrente teórica se propõe e está exposta, mesmo aquelas lidas
como tradicionais, sustenta não só o campo do currículo. É um movimento inerente à própria
constituição política de todo campo de conhecimento. O que me interessa, portanto, é chamar
86
a atenção para o quanto a atitude de crítica tende à defesa de rupturas com aquilo que é
considerado dissonante em determinado mundo, aquilo que é considerado criticável. Nesse
movimento, há uma tendência à proposição de substituições de leituras de mundo e de sujeito
por outras, certamente lidas como mais adequadas, democráticas e/ou emancipatórias,
produtivas ou eficientes. Ao mencionar o termo “crítica”, não me refiro diretamente a um
movimento/corrente teórico em especial, mas à atitude crítica cara à tradição kantiana, qual
seja o processo por meio do qual a razão empreende o conhecimento de si e que supõe que
determinado avanço/desenvolvimento de seu potencial reflexivo leva à destituição daquilo
que é visto como não mais fundamental. Refiro-me a uma visão de crítica que se baseia no
produzido pela humanidade, chamando a atenção para os limites e que pensa as condições de
validade e propõe avanços (ABBAGNANO, 2007), sem, contudo, deixar o registro da razão
ou pensar sua busca ou fundamento como passível de ser criticado, dentre tantas outras
leituras possíveis.
Não fossem a precariedade e a efemeridade das certezas, das articulações e das
leituras de mundo, jamais teria sido possível a elaboração de outras, pois teríamos vivido a
plenitude de uma leitura de mundo capaz de saturar toda a linguagem. Seria uma leitura hábil
em assegurar a atenção de todos os olhares, nada poderia ter escapado a ela. É porque nunca
ocorreu tal feito que não cessam as rupturas nos mais organizados movimentos, não cessam as
traições inconscientes que propulsionam o texto curricular (LOPES; MACEDO, 2011), o
mundo como texto (DERRIDA, 2001).
Um anteparo importante é a concepção de que diferentes matizes das distintas leituras
curriculares poderiam ser encontrados disseminados nas demais. Essa afirmação é possível
porque a oposição se constitui como crítica, o que já assegura uma suposta presença do
criticado na cena da resposta. Igualmente, como em diferentes momentos do pensamento
curricular, na construção de uma oposição, são revolvidos e reinterpretados argumentos de
diferentes leituras para a elaboração de uma resposta que, na contemporaneidade do que se
tem por questionamento, possa dar conta de aplacar a sensação de antagonismo, conter aquilo
que é lido como ameaça ou questionamento.
Qualquer interpretação da teoria curricular se sustenta em argumentos que sempre são
críticos, porque defendem posições a partir de outras consideradas limitantes. Da mesma
forma, seria possível afirmar que, se as tradições são maneiras de constituir verdades, de
produzir heranças (ABBAGNANO, 2007), afirmações a que se faz menção (para recordar,
reiterar ou criticar), todas as leituras curriculares poderiam ser lidas dessa forma; seriam todas
tradicionais no sentido de serem tentativas de constituir tradições. Essas heranças são
87
pensadas por Derrida (1994) como toda tentativa de reaver uma história reprimida. Mas elas
sempre são, também, um trabalho de repressão, de apropriação do que define por história, seu
veio interpretativo, fundamento e/ou encadeamento. O que seria amplamente a história, uma
história de fato e verdade, não existe ou não pode ser retomada, pois, como pontua o filósofo,
a presença de um original, portanto, só constaria como promessa.
Não haveria, pelas vias interpretativas que Derrida (1994; 2001) oferece, interesse em
supor um revolvimento daquilo dado como história do currículo por intermédio de leituras
metafísicas, carregadas de um eventual dado transcendental. Interessa aqui, como justificativa
de determinado revolvimento de momentos do que se pode chamar por pensamento ou
história do currículo, a ideia de espectro (DERRIDA, 1994), cujo delineamento visa romper
com aportes metafísicos, questionando determinada contemporaneidade a si do presente,
determinada possibilidade de encetar um momento em sua plena contemporaneidade. O
espectro, ou o efeito de espectralidade, daria conta de frustrar a oposição entre momentos,
entre a presença efetiva e sua alteridade, sua oposição. O espectro abalaria o que Derrida
(1994) chama por obsessão pela caracterização e controle da história. O efeito do espectro
seria operar como uma frequência de dada visibilidade, que não é visível, pois uma
visibilidade não o pode ser, está para além do ente. O espectro é conjecturado por Derrida
como aquilo que é imaginado na relação com algo, com o que se crê como projeção. Essa
contribuição assinala a possibilidade de que a história, a teoria curricular, o conhecimento, o
sujeito, que se quer contar (sobre) sempre é a história de algo, uma suposição firmada em
traços e rastros daquilo que se visa acessar, mas nunca a integralidade da história. Trata-se de
um movimento que sempre se passa como em uma afirmação contextual que não se pode
reaver.
A concepção de “contexto”, apropriada de Laclau e Derrida, possibilita assumir que
toda afirmação possui sua validade restrita a ele, é precária, pois fora dele já é outra. A
retomada desta perspectiva favorece pensar que o mesmo movimento de compreender as
diferentes leituras curriculares como válidas, na ocasião e frente aquilo com que se
constituíram, também limita sua validade ao contexto. A partir disso, por considerar o
contexto como aquele espaço-tempo a que nunca se retorna (DERRIDA, 1991a; 1991b), mas
sempre se busca retomar (já) criando outros, não resta a qualquer afirmação (habilidade,
valência ou blindagem) um poder de imunidade transcendental, pois, para além de um
contexto originário e inalcançável, todas as verdades/asserções estão expostas à alteridade
tradutora (DERRIDA, 2006a; 2006b) de novos contextos, em novos contextos.
88
conhecimento, como movimento organizado, como destaca Moreira (2003), ainda que
envolvido em uma discussão sobre a internacionalização.
Tal movimento se funda em torno da defesa de uma escola pensada como necessária,
mas igualmente suposta como inexistente, visando à resolução dos problemas sociais e à
inclusão social, no momento significada como preparar sujeitos para participar da produção
fabril. Assim, a organização curricular do conhecimento implicava tornar útil o que se
ensinava nas escolas; precisava arrazoar a experiência educacional para que pudesse suportar
uma formação considerada fundamental para os sujeitos, de forma que pudessem se inserir em
um mundo de mudanças econômicas vigorosas. Questionar qual seria o critério de atribuição
de utilidade à educação, qual a finalidade social do ensino e quais as experiências adequadas
já se organizava como leituras que, argumento, viria a influenciar a circunscrição teórica do
campo curricular. Mais do que isso, como questionamento do currículo, constituiria meios de
críticas ao próprio currículo: vai cimentar as tensões e o diálogo entre distintas perspectivas
curriculares em diferentes momentos.
Segundo Lopes e Macedo (2011), tais questionamentos vão sustentar o surgimento de
diferentes movimentos curriculares. Esses movimentos mantêm como traço a busca por uma
abordagem marcadamente racionalista, como também destacam Moreira e Silva (1994), cujo
foco está na definição de uma propriedade a ser transferida pelo currículo na formação de
sujeitos, por meio da precisão do tempo, metodologias, conteúdos, pela centralização do fazer
curricular nos cotidianos escolares. Com isso, a perspectiva que delineia essa aproximação
inicial estaria na definição do que deve ser apreendido em dado momento para a atuação em
dado contexto suposto como carente de tal sujeito.
Para Lopes e Macedo (2011), duas teorizações deram vulto ao surgimento dos estudos
tradicionais: a psicologia, marcadamente a comportamentalista, e as formulações tayloristas
sobre a administração científica. Nesse cenário, foi projetada a importância de estudos
capazes de nortear, de modo eficiente, a produtividade (MOREIRA; SILVA, 1994;
MOREIRA, 2003). A combinação de tais teorizações, ainda que nem sempre harmônicas
entre si, favoreceu a organização de uma perspectiva de controle dos recursos e das pessoas
na produção. Segundo Chiavenato (2011), a relação da psicologia comportamental, com foco
no sujeito via psique, com a administração científica de Taylor foi caracterizada pela
eliminação do desperdício de esforço humano em atos inúteis; pela racionalização na escolha
de operários, visando os mais rentáveis para a produção; pela minimização de ocasiões de
redução ou excesso de trabalho, mediante a padronização das atitudes especializadas, assim
como normatizou a realização das atividades e formas de premiação por desempenho.
90
prática educativa. Como avanço metodológico sobre Dewey, o autor propõe a incorporação da
psicologia comportamental, entendida como capaz de esquadrinhar cientificamente o modo
como, mediante as “boas práticas educacionais”, o sujeito responde à apropriação do
conhecimento em suas práticas sociais. Para o pensador, sua proposição definiria o currículo
como metodologia de produção de sujeitos capazes de conhecer e interagir com um mundo
em constante desenvolvimento, sendo eles, pelo conhecimento curricular, capazes de viver
um desenvolvimento contínuo, à altura do mundo dado em sua abordagem teórica. O
currículo é sinônimo de conhecimento em razão de sua definição como essencialmente ligado
ao desenvolvimento de sujeitos capazes de acompanhar o desenvolvimento social.
Outro movimento de proa também envolvido nos conflitos entre um pensamento
progressivista e eficientista, seria a “Tyler Rationale”. Considerado por Jackson (1992) como
um dos principais ícones do pensamento curricular, Ralph Tyler tem seus trabalhos
reverberando em distintas perspectivas teóricas e suas definições funcionam em diferentes
formas de organização curricular (PINAR, 2008).
Segundo Lopes e Macedo (2011) e Kliebard (2011), o pensamento de Tyler se
pretende uma abordagem eclética, envolvida com o eficientismo e o progressivismo, mas
mais aproximada do primeiro (KLIEBARD, 2011). Segundo Jackson (1992), no que diz
respeito ao modo como concebem o conhecimento, os diferentes teóricos eficientistas e
progressivistas tendem a se aproximar. Além de supor o conhecimento científico como uma
propriedade inexorável, para Tyler (1949) as formas de controle sobre o processo de produção
do conhecimento visam garantir o êxito curricular. Segundo o autor, deve ser levada em
consideração a importância das experiências externas à escola, a fundamentação científica
(por especialistas acadêmicos disciplinares), a incorporação da psicologia comportamental e a
avaliação como fim de curso, como aferição sobre o processo de apropriação do
conhecimento definido a priori. O currículo reduzido à condição de metodologia e controle
sistemático da formação de sujeitos funcionaria como mecanismo social de garantia da
transmissão de um conhecimento definido.
Para Jackson (1992), os autores associados ao pensamento progressivista e eficientista
operam a ideia de que os conteúdos a serem ministrados na escola precisam estar baseados
nos conhecimentos dos especialistas acadêmicos, em seus saberes e em referência filosófico-
científica, sendo eles responsáveis pelo aconselhamento e produção do conhecimento. Pinar
(2008) pondera que o que matiza essas perspectivas é o pressuposto comum sobre o
conhecimento científico. Tal leitura, embora projete finalidades sociais e conceba o processo
95
como orientador e produtor de conhecimento fosse reiterada. Para ele, somente na prática
escolar é que a produção teórica (do pensamento curricular) faz sentido (como reflexão e
organização curricular) e pode constituir transformações para o conhecimento. Tendo como
contexto produtor de significados a sala de aula (o laboratório em que seriam produzidas as
teorias “entendíveis” na educação), o autor afirma a produção de um conhecimento
transformador do currículo, que seria dinamizado na autonomia docente e na produção de
conhecimentos escolares ao mesmo tempo que sua formação é constituída via pesquisa
baseada na prática. Assim, para Stenhouse (2003), o professor estaria no centro do currículo,
não seria mero “aplicador” de uma proposta curricular.
A expectativa de um conhecimento rigoroso como ciência, a ser formulado
contextualmente por cada docente, transfere, como na proposta de Schwab, o contexto de
produção do currículo como sendo a escola, com a diferença de que defende o cerne do
processo produtivo para a atuação docente, sendo o desenvolvimento curricular indissociável
do desenvolvimento do trabalho docente. O conhecimento é reafirmado no centro do
currículo, especificamente na leitura de que só pode ser produzido se referendado no trabalho
investigativo do professor. Fora desse registro, para Stenhouse (2003), só restaria ao docente a
aplicação de conhecimentos negligentes à escola na escola, o que não levaria à inovação ou ao
desenvolvimento curricular, pois não seria produção de conhecimento.
Com base na crítica à perspectiva acadêmica, bem como aos marcadores eficientistas e
comportamentalistas, que orientam uma visão que fraciona o currículo e toma a escola em
posição de passividade, Schwab e Stenhouse, tanto para Pinar (2008) quanto em Lopes e
Macedo (2011), podem ser lidos como autores que marcaram a teoria curricular com uma
atitude de afastamento da tradição e, por conseguinte, da abertura de canais voltados ao
pensamento crítico. Ainda que não coloquem em questão os fins do conhecimento, o que se
define como a ser ensinado na escola, parte das distinções dos autores em relação ao
pensamento progressivista e eficientista do currículo estaria no caráter de afirmação do
diálogo entre um saber “legitimado” e formas locais, práticas de professores e estudantes de
lidar com o conhecimento para pensar a sociedade.
Antes de passar ao que se denominou movimento crítico, julgo interessante destacar
que, com base em uma perspectiva tradicional do currículo, mesmo em Bobbitt (2004), há o
pressuposto de que nas escolas também haveria um nível de atuação/decisão curricular. Esse
nível se organizaria de forma que, para além das diretividades sistemáticas, assim como das
demais de corpo eficientista, defendia-se também a interação de alunos, professores e
profissionais de diferentes segmentos do mundo produtivo como forma de inspiração dos
98
atravessados pelo pensamento de Althusser, fazendo uma leitura rígida sobre os processos de
reprodução/correspondência social da escola capitalista. Os autores focalizaram, de modo
direto, o funcionamento do sistema educativo na definição de meios de transmissão de
conhecimento para preparação de sujeitos ao seu lugar de classe no sistema produtivo.
Bowles e Gintis chamam a atenção para a correspondência entre a estrutura social e a
produtiva e defendem a existência de uma correspondência material e direta entre tais
estruturas no processo de formação e controle do trabalhador. O conhecimento estaria
vinculado diretamente à posição que o sujeito deveria assumir na estrutura de classes. Nessa
linha, também ganham destaque trabalhos como os de Baudelot e Establet, que buscam
mostrar como o sistema escolar favorece a manutenção da diferenciação entre classes pela
organização do conhecimento escolar como espelhamento do mundo produtivo, ao invés de
sua pretensa função de promoção de igualdade ou inclusão social. Na perspectiva de Lopes e
Macedo (2011), tanto Baudelot e Establet quanto Bowles e Gintis fazem uma abordagem
fortemente determinista, não focalizando especificamente a escola e o currículo. Tal como
acenado por Pinar (2008), operam por intermédio de análises macroestruturais, um dos
marcos dos primeiros trabalhos no movimento crítico.
Em abordagem menos determinista, Lopes e Macedo (2011) consideram que Bourdieu
e Passeron centram sua leitura em processos culturais que levam à manutenção da estrutura de
classes. As autoras destacam que, para os autores franceses, importa pensar a ação pedagógica
como violência simbólica que busca instituir a formação do habitus, inculcação ou
reprodução. Ao longo da teorização de Bourdieu e Passeron, a escola é pensada como
transmissora de códigos específicos para diferentes classes e como constituinte da
naturalização do conhecimento e da cultura pela omissão de seu caráter classista, por meio de
sua projeção como pressuposto de verdade. Dessa forma, assim como a reprodução
econômica, a cultural opera de forma semelhante. Dito de outro modo, o capital cultural das
classes médias é distribuído de forma desigual, são favorecidos os que o possuem, o que
enfatiza a desigualdade da distribuição (LOPES; MACEDO, 2011).
Formalmente pensados no campo do currículo e envolvidos com a teorização
reprodutivista estão também os trabalhos de Michael Apple (1989; 2006), que tiveram e ainda
têm forte influência no campo (LOPES; MACEDO, 2011). Para essas autoras, Apple defende
a correspondência entre dominação econômica e cultural; no entanto, se afasta de muitos
trabalhos dessa matriz por criticar o caráter determinista que assumem (PINAR, 2008). Apple
(2006), que se envolveu mais com as reflexões da NSE, incorporou dos trabalhos de Antonio
101
por Philip Jackson (PINAR, 2008) para chamar a atenção para as relações que transpassam o
currículo, para como diferentes formas de conhecer constituem a experiência curricular.
Segundo Apple (2006), subjaz ao currículo formal, aos diferentes conhecimentos
projetados como fundamentais todo um conjunto de relações políticas operantes nos
cotidianos das escolas, capazes de sustentar as decisões curriculares, a construção de suas
tradições e o desenho de suas finalidades sociais. Com esse constructo teórico, o pensador
projeta sua crítica ao pensamento progressivista e eficientista, chamando a atenção para o
quanto o foco em sistemáticas e metodologias científicas oculta uma dimensão ideológica
hegemônica de conhecimento do mundo que pauta a segregação classista. Ao mesmo tempo,
Apple (1989) também favorece a crítica ao próprio movimento crítico-reprodutivista ao
defender a incorporação da dimensão experiencial da escola, as formas curriculares “ocultas”
de decisão e produção de conhecimento.
Com essa posição, Apple (1989; 2006) mobiliza a tensão sobre o caráter excludente e
reprodutor do conhecimento sem, contudo, restringir a escola a espaço de recepção e
reprodução de diretividades, afastando-se de visões como a de Bowles e Gintis, por exemplo.
Diferencia-se de autores como Schwab e Stenhouse, embora também proponha uma
perspectiva dinâmica para a escola, ao colocar em questão o conhecimento pressuposto, lido
como acumulado socialmente. Para Apple (1989; 2006), o conhecimento deve ser concebido
como visando à construção de consciência crítica. O autor pondera que as redes de escolas são
atravessadas, via trabalho de professores, por conhecimentos não criticados que distribuem
valores e compromissos alheios a uma agenda crítica e/ou contra-hegemônica.
Apple (2006) assinala que o timbre científico do conhecimento dos professores leva a
que operem práticas burocratizadas e não as exponham à crítica necessária para a reflexão
sobre os fins do currículo, que estariam na formação de sujeitos. Não só o conhecimento
científico é tomado como pressuposto quanto mesmo os motes críticos do campo acadêmico
tendem a ser apropriados de maneira acrítica, principalmente pelo tom determinista que pauta
formas reducionistas da sociedade ao viés econômico. Apple pontua que, apesar de o
conhecimento hegemonizado possuir preponderância na proposição curricular, sua produção
resulta de muitos conflitos entre dominantes e dominados, sendo ainda atravessado por
diferentes questões de raça e gênero, por exemplo. Para ele, o conhecimento hegemonizado é
universalizado quanto mais difundido como senso comum, como experiência cotidiana.
Apple (1989; 2006) aproxima-se de Bourdieu para afirmar uma estruturação social
hegemônica, ao mesmo tempo que concebe as práticas escolares, as leituras de mundo
também relacionadas ao que é hegemonizado socialmente como aquilo que possibilita a
103
mercado), operar formas de emancipação do sujeito que não pode ser enquanto não sofre a
conscientização por uma nova forma de conhecer.
Outro movimento que partilhou sentidos com a lógica crítico-reprodutivista foi a Nova
Sociologia da Educação (NSE). Mobilizada na década de 1970, a NSE tem como ícone a
publicação da coletânea Knowledge and control, organizada por Michael Young. Lopes e
Macedo (2011) afirmam que a tônica crítica nesse movimento foi o questionamento sobre o
modo como a diferença social é produzida por meio do currículo. Particularmente, as questões
em torno da organização e da seleção do conhecimento assumiram centralidade nas
discussões, sem um mote de inauguração do olhar para o conhecimento no currículo, mas
buscando mostrar como ele fundamenta o pensamento e a produção curricular, a NSE, em
linhas gerais, se dedicou a focalizá-lo de forma detida por considerá-lo como meio pelo qual a
estratificação social se desenvolve a partir da escola, como define padrões de conhecimento e,
por conseguinte, de sujeito na estrutura social.
A crítica da NSE focalizou a instabilização da verdade do conhecimento, delineada
pelo pensamento eficientista e comportamentalista, chamando a atenção para o quanto devem
ser criticados os conhecimentos e as formas de sua seleção. Importa, nessa perspectiva,
problematizar os meios de legitimação do conhecimento, assim como os atores sociais que
detêm o poder de afirmação de tais conhecimentos como fundamentais (LOPES; MACEDO,
2011).
Também pela NSE, o currículo é reiterado como construção social; por essa via, são
pensados os processos de exclusão, diferenciação e reprodução via sistema escolar. De uma
perspectiva metodológica na corrente tradicional, o currículo passa a ser interpretado como
mecanismo de reprodução simbólica, tendo seu ponto nevrálgico deslocado para o
questionamento ao conhecimento. Daí a importância conferida à seleção do conhecimento e
ao modo como socialmente alguns são significados como irrefutáveis, básicos ou
fundamentais no currículo. Para Lopes e Macedo (2011), a NSE constituiu uma nova tradição
nos estudos curriculares, baseada na afirmação de que o currículo não produz somente o
aluno, mas o próprio conhecimento do sujeito. Tal construção se daria nos movimentos
interessados na definição do que é o objeto da escolarização. Dessa forma, a NSE reedita o
viés do pensamento crítico curricular, propondo um curso interpretativo que focalize como o
conhecimento pauta a projeção de subjetividades sociais.
Michael Young, um dos principais pesquisadores da relação entre currículo e
conhecimento, em trabalhos mais recentes passou a repensar posições defendidas à época da
publicação de Knowledge and control. Para ele, que assume uma atualização de perspectivas
105
produtor ou negociador entre as diferentes leituras de mundo para ser aprendiz de uma dada
propriedade definida a priori pela escola.
Em termos genéricos, as teorizações crítico-reprodutivistas, assim como os trabalhos
de Apple e Young, embora possuam distinções, não passaram impunes pela revisão de autores
que buscaram aprofundar os estudos críticos no currículo, com base em movimentos de
diferentes nuanças críticas e conflitantes, que badalavam no âmbito das ciências humanas e
sociais como um todo. Nessa perspectiva, diferentes trabalhos lançaram mão de aportes
marxistas, weberianos, fenomenológicos, hermenêuticos e de diferentes conjugações entre
essas lentes teóricas. Esse conjunto de trabalhos, envolvidos no que Lopes e Macedo (2011)
denominam como movimento de Emancipação e Resistência, se consolidou como bandeira
crítica não só às teorizações de cunho eficientista, instrumentalista e comportamentalista,
como se impôs às visões crítico-reprodutivistas, acusando estas últimas de reforçar a
perspectiva da reprodução ao não legar às dinâmicas escolares, mobilizadas nas práticas de
professores e alunos, potência para resistir ao que é determinado verticalmente à escola
(PINAR, 2008; LOPES; MACEDO, 2011).
Pinar (2008) pontua que, em um movimento de defesa à perspectiva de resistência no
currículo capitaneado por Henry Giroux e outros pesquisadores críticos na década de 1970,
foi legado ao pensamento crítico-reprodutivista o título de “discurso de desespero”. Segundo
os defensores da resistência, teorizações reprodutivistas favoreciam uma perspectiva política
de pouca esperança de mudança, conferindo ao pensamento curricular a visão de que não
haveria escape às determinações capitalistas dominantes. Ele se constituiria, portanto, em
teorias favoráveis ao desespero, ao desestímulo à luta pela emancipação, à desmobilização
política, à negligência para com formas emancipatórias de conhecer, de produção de
conhecimento que podem ser geradas pela atividade dos sujeitos escolares. Para Giroux
(1986), o foco na agência humana possibilita a compreensão dos processos de mediação,
acomodação e resistência às lógicas do capital, assim como às práticas de dominação e
controle social.
A esse respeito, o pensamento de resistência (GIROUX, 1986) afirmou ser um erro
crasso do pensamento reprodutivista a falta de atenção ou cuidado em produzir uma
concepção de agência que pudesse favorecer o empoderamento dos sujeitos por meio de suas
formas de conhecer, repousando toda a sua argumentação crítica na reiteração do poder
reprodutivista da escola na sociedade capitalista. Com esses argumentos, os autores da
resistência construíram a oposição ao pensamento reprodutivista e assumiram, segundo Pinar
(2008), a dianteira do pensamento crítico no campo curricular, por meio de uma inversão ou
109
currículo oficial e ao oculto. Em seus trabalhos, Willis (1991) destaca o modo como
diferentes grupos sociais locais se relacionam com o conhecimento. Nesse sentido, mantendo
perspectiva aproximada da de Giroux (1986), Willis destaca distintas maneiras de refutação
ou apropriação dos conhecimentos impostos à escola pelos estudantes. Para o autor, para além
das diretividades propostas à instituição escolar, não haveria um controle último em termos de
controle dos sujeitos, pois eles interagem com o conhecimento tendo em vista os significados
que produzem localmente, na experiência, frente às expectativas emergentes dos jovens.
Willis pensa o conhecimento produzido por tais sujeitos (estudantes) como
decorrência das agremiações e relações informais que constituem, colocando a escola (o
conhecimento escolar) em condição marginal em relação às formas de resistência constituídas
nas leituras de mundo constitutivas dos estudantes. Os sujeitos cujo empoderamento social o
autor destaca atuariam numa rede de resistência ao saberes dominantes por intermédio da
transmissão de distintas formas de conhecer que afastam o conhecimento escolar de suas
afirmações sobre o mundo. Para Willis, tais conhecimentos informais caracterizam o sujeito
adolescente e trabalhador, tornando possível o contato e a consciência de classe, distinguindo-
o dos integrantes das classes dominantes. Em um movimento de aproveitamento dos
conhecimentos e teorias que possibilitariam o desenvolvimento do trabalho, esses estudantes
desprezam todo um repertório de conhecimentos que estaria no rol curricular proposto pelo
sistema de ensino.
Nessa perspectiva, o autor assinala uma leitura de currículo como proposta e a
resistência como produção contracurricular ou contraescolar, destacando o conhecimento
“emancipador” como aquele que é derivado de um envolvimento informal dos jovens, o que
constituiria um senso de classe, um senso crítico. Dessa forma, o sujeito é, tal como em
Giroux ou mesmo em Apple, aquele constituído por um conhecimento lido como propriedade
a ser adquirida. O senso de classe, pensado como conscientização crítica, caracteriza a
ontologia emancipada ou consciente para a emancipação. O conhecimento estruturaria, nesse
caso, a própria vida e a perspectiva constituída sobre essa vida, assumindo novamente, ainda
que sob leitura diversa, a centralidade de uma lógica curricular de mudança social.
Diferentes teóricos da resistência, como Stanley Aronowitz, Giroux, Willis e
McLaren, defendem a falibilidade da reprodução em saturar a experiência escolar. Segundo
Pinar (2008), Giroux ponderou que se construiu no campo curricular um “mito de dominação
total”, pelas teorias de reprodução, que não se sustenta quando uma perspectiva de
resistência/radical chama a atenção para as disrupções, emergências, rebeldias e contradições.
Essas dinâmicas, que são vistas como problemas a serem corrigidos por leituras tradicionais,
111
sentidos para o conhecimento, com sentido para a vida dos sujeitos, capaz de empoderá-los
contra as formas de opressão produzida pelo sistema educacional.
William Pinar também é considerado um pensador de destaque nos estudos críticos
que se apropriam da Fenomenologia para pensar o currículo. Segundo Lopes e Macedo
(2011), os trabalhos do autor defendem o currículo como um processo que está para além de
objetos, definições ou normas. O currículo consistiria em uma “conversa complicada” de um
suposto indivíduo consigo mesmo e com o mundo. O fazer curricular, para Pinar, deve ter por
finalidade possibilitar aos indivíduos, tendo em vista sua condição biográfica, o entendimento
da natureza de suas experiências no mundo, derivando-se dessa relação a produção do
conhecimento. Ao defender que a experiência dos sujeitos na produção de conhecimentos
sobre o mundo deve ser a base de dados para os esforços investigativos no currículo, as
contribuições do estudioso cooperam para a delimitação teórica e empírica do movimento de
Emancipação e Resistência no currículo.
Em perspectiva diferenciada de Pinar, trabalhos como os de Stake e Erikson, que
também colaboraram no movimento de reconceptualização do currículo, defendem o uso das
metodologias qualitativas na investigação curricular, fortalecendo as discussões em favor da
pesquisa no cotidiano escolar, voltando-se à concepção de que os conhecimentos formais e os
conhecimentos práticos deveriam ser compreendidos como produtores de conhecimentos
escolares. Tais conhecimentos, uma vez entrelaçados, assinalam uma possibilidade de
construção de conhecimento refletido, porque comprometido com a prática e com os sentidos
cotidianos com que lidam os sujeitos, o que proporcionaria o desenvolvimento da experiência
crítica, das formas como se lê o mundo, de sua revisão via experiência. Lopes e Macedo
(2011) assinalam que os referidos estudos fazem parte de uma primeira abordagem sobre a
introdução da etnografia na reflexão curricular. O foco em situações concretas, para além de
perspectivas alargadas de mundo, interessa aos autores em função de defenderem que um
conhecimento prático refletido assinala o sujeito do currículo, o modo como decide, como é
no mundo. Em uma segunda linha estariam os trabalhos pautados no interacionismo inglês4,
que fazem oposição à leitura estruturalista e funcionalista da Sociologia; e, por partilharem da
NSE, avançam a partir da etnografia para o debate sobre conhecimento (LOPES; MACEDO,
2011).
4
Segundo Lopes e Macedo (2011), o interacionismo inglês no currículo é compreendido como uma face de toda
a tradição britânica constituída na defesa da Nova Sociologia da Educação (NSE). A outra face teria produções
mais voltadas ao pensamento marxista.
113
Donald Schön e Kenneth Zeichner, que pensam as questões de pesquisa reflexiva para a
defesa de estratégias de formação docente, e Ivor Goodson, que faz um movimento de
investigação próximo ao defendido por Woods, partindo da pesquisa sobre a História das
Disciplinas Escolares para a história de vida de professores, já em diálogo com perspectivas
autobiográficas nesse segundo momento de sua obra, partilhando referenciais próximos aos
utilizados por Pinar.
No Brasil, a influência dos trabalhos críticos afeitos à perspectiva da Resistência,
pesquisa na escola, no cotidiano da escola, assim como ocorrido internacionalmente, foi
propulsionada por diferentes bases teóricas. Especificamente, chamo a atenção para trabalhos
icônicos como os estudos nos/dos/com os cotidianos, que ganharam mais força na década de
1980, a partir dos trabalhos de Nilda Alves, particularmente aqueles em parceria com Regina
Garcia. Segundo Lopes e Macedo (2011), apesar de não se apropriarem de teorizações
inglesas ou norte-americanas, em muito tendem a se aproximar das preocupações de autores
como Stake e Stenhouse, mencionados anteriormente, assim como mantêm intenso diálogo
com o campo de formação de professores.
Os estudos nos/dos/com os cotidianos se apoiam marcadamente nos trabalhos do autor
francês Michel de Certeau, mantendo também diálogos com autores como Foucault, Deleuze
e Guattari, além de Boaventura de Sousa Santos (ALVES, 2003; FERRAÇO, 2007).
Especificamente, o pensamento do sociólogo português é introduzido na discussão curricular
por intermédio dos trabalhos produzidos por Inês Barbosa de Oliveira (OLIVEIRA, 2007;
2012; 2013).
Conferindo centralidade à potência das investigações na prática escolar, os estudos
nos/dos/com os cotidianos enfatizam o caráter prático dos envolvimentos na produção
curricular, na produção de conhecimentos outros, conhecimentos cotidianos. Nesse sentido,
discutem os diferentes âmbitos de produção política como contextos, delineando a todos
como espaços e tempos de prática (prática de elaboração de políticas governamentais, de
formação acadêmica, de ação pedagógica cotidiana, de pesquisa, as práticas nas cidades, além
das práticas de movimentos e usos das tecnologias) (LOPES; MACEDO, 2011).
Também caracteriza os estudos do cotidiano a preocupação com que todos os
contextos de práticas sejam pensados como enredados de forma dinâmica. A interação de
distintos contextos nas “redes” que os constituem oportuniza a reflexão sobre os processos de
produção de conhecimentos e, assim, de subjetividades (ALVES, 2000; 2003). Com especial
atenção a tais interações em rede são definidas concepções como as redes cotidianas de
conhecimentos e práticas (LOPES; MACEDO, 2011). A proposição de tais enfoques
116
emancipatória, porque constituída com base nas experiências e nos desafios enfrentados pelos
indivíduos, ainda que em negociação contínua com o conhecimento científico.
Os estudos que negociam sentidos com o que aqui entendo por movimento de
Emancipação e Resistência focalizam, em um cenário de regulação e tentativas de controle, as
atitudes, agências, táticas, práticas, releituras e reedições levadas a termo pelos sujeitos, a
partir de suas leituras de mundo, de suas crenças e conhecimentos produzidos na/pela
experiência, pelas vivências cotidianas. Tais trabalhos carregam o exercício de afirmação da
escola, da prática, do cotidiano na produção de um conhecimento que estaria para além
daquele projetado por uma expectativa controladora da escola, da experiência, tal como
podemos ver nos trabalhos envolvidos com a perspectiva tradicional do currículo. Para Lopes
e Macedo (2011), tais estudos marcam as confluências de leituras críticas com abordagens de
cunho pós-estrutural, caracterizadas pela visão de crise do pensamento moderno e com os
questionamentos dinamizados pelas teorias estruturalistas e pós-estruturalistas.
Os estudos cotidianistas, em razão de uma lógica mais artesanal a que se propõem em
sua organização teórica, alternam para uma via menos sistêmica de mundo sem, contudo,
negligenciar um contexto mais amplo produtor de diretividades opressivas à escola. Tais
estudos defendem não só a atividade política dos sujeitos escolares como assumem a
impossibilidade de leis gerais microssistêmicas para pensar tais contextos. Criticam também
as próprias teorizações de Emancipação e Resistência quanto ao caráter de univocidade sobre
as formas de ler a resistência e a emancipação, ao pressupor uma teoria que, ainda que
focalize a escola, o conhecimento e seus sujeitos, o faz de forma alheia a eles ou, ainda,
restringe a emancipação a determinadas formas de conhecer e conceber o mundo. Para tais
estudos, importa um envolvimento com a cultura emancipatória de uma escola em suas
características singulares.
A abertura desse flanco do movimento crítico ao diálogo com as teorias pós-modernas,
pós-estruturais e pós-fundacionais, como Lopes e Macedo (2011) chamam a atenção, ganhou
vulto em função da potência dessas teorizações na ruptura com visões unívocas e
globalizantes de mundo, ao mesmo tempo que possibilitam maior aprofundamento do caráter
singular das problemáticas curriculares. Para Lopes e Macedo (2011), a introdução de tais
referenciais marca um momento do pensamento curricular também caracterizado pela crítica à
razão tyleriana, mas, sobretudo, à visão de ciência moderna, tida como pressuposto à
discussão no campo curricular sobre conhecimento.
Entretanto, Ellsworth (1989) considera que, apesar das contribuições dos diferentes
movimentos de crítica, há uma dinâmica de reincidência na manutenção intacta da estrutura
119
defesas do currículo disciplinar e aquelas que pontuam a integração curricular como horizonte
plausível na formação subjetiva. Tais defesas tendem a se ancorar no pressuposto de que o
conhecimento é capaz de, ao estar articulado a determinado contexto virtual, constituir o
sujeito. Segue, nesse sentido, a operação de afirmação, via organização curricular, do nome
conhecimento como fundamento ao sujeito e, nessa dinâmica, como estruturação (afirmação)
curricular.
Assim como o debate sobre conhecimento, a referida tensão não é recente às
discussões curriculares; é uma problemática frequente no campo desde a década de 1930
(BEANE, 1995a), a partir do pensamento de John Dewey nos Estados Unidos, mas com
influências na educação brasileira, principalmente por intermédio do movimento
escolanovista. Não pretendo acompanhar uma leitura extensa sobre como tem sido pensada a
relação disciplinaridade/integração. Interessa-me, a partir de Lopes (2008), somente mostrar o
quanto não são uma novidade os movimentos frequentes em torno do tema da organização
curricular.
Com isso, aproveito para chamar a atenção para a leitura de que, independente da
defesa de um tipo de organização curricular disciplinar ou integrada, ambas, a meu ver,
cooperam para eufemizar nos estudos do campo a preponderância do conhecimento como
fundamento da discussão sobre currículo. Ambas as formas de organização curricular se
desenvolvem assim ao constituir em diferentes momentos da política, como discutirei neste
capítulo, um embate que tende a chamar mais a atenção para as finalidades e perspectivas de
cada uma do que a instabilizar suas identidades como agendas obrigatórias de determinada
leitura de conhecimento.
Justamente em razão do caráter de continuidade de tal debate no campo curricular e de
sua percolação em diferentes momentos do pensamento e da política curricular é que me volto
a essa discussão. Longe de assumir a defesa de uma ou outra leitura de organização curricular,
pondero-as como discursos que favorecem a estabilização do pressuposto do conhecimento
como forma de controle do sujeito, justificando-se com base em uma projeção contextual (o
mundo, a vida, a sociedade, o trabalho) para a qual se deve aprender a ser, funcionar, operar,
agir. Penso ser essa uma via possível quando da assunção de uma tarefa desconstrucionista,
que, segundo Derrida (1998), consistiria em atentar para que as convenções e consensos sejam
pensados como estabilizações de algo essencialmente instável e caótico. Assim, o filósofo
pontua que é porque há instabilidade que se impõe a necessidade de estabilização; porque há
caos é que buscamos incessantemente denegá-lo.
124
Concordo com Kliebard (1986), Lopes (2008b), Aires (2011) e Lopes e Macedo
(2011) quanto à concepção de que a organização por disciplinas é uma hegemonia que, a
despeito das mudanças nos campos disciplinares e nas formas de proposição de reformas
curriculares, tende a permanecer como nome cuja significação está sob disputa5. Em razão de
tal afirmação, o discurso do currículo integrado tende a ser reiterado como alternativa, sob o
argumento de que formas de superação ou distensão do currículo disciplinar oportunizariam
esta ou aquela leitura de mundo aos estudantes. A proposição de formas críticas à organização
disciplinar marca diferentes estudos no campo do currículo e está intimamente relacionada ao
debate sobre conhecimento.
Diferentes trabalhos projetam a organização curricular como o cerne da preparação ou
da viabilidade metodológica de construção do conhecimento. Estudos como os de Dewey e
Kilpatrick, entre outros (LOPES, 2008b), são emblemáticos dessa preocupação com a
reorganização do currículo, como crítica à tradição disciplinar, e tendem a apoiar distintas
propostas (currículo por projetos, por resolução de problemas, por temas geradores,
5
Em pesquisa anterior focalizei o caso da disciplina Geografia como se constituindo e sustentando como nome
mobilizado por diferenças sociais articuladas equivalencialmente, em oposição ao discurso de integração
curricular. Para maior aprofundamento, ver Costa (2013).
125
estudantes. A interação dos conhecimentos ao mesmo tempo que os critica tende a reiterá-los,
colocando em questão a importância de uma contextualização como mediação da relação
entre teoria e a prática social dos sujeitos. Com isso, penso que a defesa da democracia passa
a poder ser lida como decisão pelo aumento do controle do que viria a ser o sujeito, pois não
só o conhecimento seria pressuposto como as formas de utilizá-los seriam preestabelecidas
por uma moral e demais orientações, chamadas de vida, de sociedade e futuro, para as quais
os sujeitos deveriam estar preparados.
A recorrência exemplar dessa perspectiva de ‘funcionalização’ do currículo enfatiza a
leitura de que o conhecimento só é produzido a partir de uma organização curricular acertada,
que possibilite gestão ou controle dos processos que levariam à construção de determinada
subjetividade para determinado fim, como argumenta Moreira (2013). Barreto (2006), Lopes
(2008b) e Fávero e Kapczynski (2015) reiteram esse argumento ao chamar a atenção para
quantas reformas educacionais foram iniciadas ao longo da década de 1990 em diferentes
países ocidentais, caracterizadas pela mudança curricular e pela subsunção da seleção dos
conteúdos a esse debate. Moreira (2013), que discute atualização das Diretrizes Curriculares
Nacionais (BRASIL, 2011), assinala a reiteração da perspectiva de reforma na organização
curricular como alternativa à garantia de aprendizado com significado para os jovens. Para
Veiga-Neto (2010), assim como para Lopes (2008b), nesse movimento tende-se a naturalizar
as formas de conhecer pela definição da organização do currículo, a partir da constituição dos
pressupostos que dão sustentação a discursos favoráveis a determinada visão curricular e à
exclusão de distintas outras leituras.
Lopes (2008b) destaca que as defesas de formas integradas de currículo não são
específicas das reformas recentes nem têm na interdisciplinaridade sua associação obrigatória,
mas são recorrentes ao pensamento curricular, tendo diferentes finalidades e preocupações, à
proposição de políticas de currículo, o que penso, em concordância com a autora, não
sinalizar a mesmidade; são traduções (LOPES; CUNHA; COSTA, 2013) de distintas leituras
que visam responder ao que é considerado algo a ser resolvido/combatido/aplacado, em dado
momento da política.
As produções em torno da integração curricular ou do currículo integrado passam por
diferentes preocupações (vinculadas à proposição da interação de disciplinas de uma proposta
curricular, à integração de problemáticas particulares a uma formação específica, à integração
de propostas curriculares de diferentes níveis de ensino), tal como sinalizado por Apple e
Beane (1997), sendo sua associação à interdisciplinaridade emblemática das reformas
127
6
Segundo Jantsch e Bianchetti (1995), Veiga-Neto (2010) e Aires (2011), o pensamento de Gusdorf, embora
tenha sofrido muitas críticas, é considerado hegemônico nas discussões sobre interdisciplinaridade. No Brasil,
sua filosofia deu base aos trabalhos que referendam o tema, como é o caso de Japiassu (1976) e Fazenda
(1994).
128
como forma orientada de operação com o conhecimento, com vistas a assegurar uma
praticabilidade ou funcionalidade do conhecimento em beneficio da sociedade. A
interdisciplinaridade garantiria, segundo Japiassu, que fosse constituído conhecimento com
sentido para a sociedade, esta lida como tendo sentidos fixados em uma dimensão distinta
daquela em que se produz o conhecimento. Para Aires (2011), o rito analítico de Japiassu
consolida a leitura em que é atribuído ao positivismo a condição de obstáculo epistemológico
para o desenvolvimento do conhecimento interdisciplinar. A perspectiva de Japiassu (1976)
focaliza como conhecimento aquele desenvolvido por especialistas dos campos disciplinares e
a interdisciplinaridade como movimento de convergência temática a que seriam orientados os
conhecimentos disciplinares (VEIGA-NETO, 2010).
Entretanto, também baseado nos argumentos que Veiga-Neto (2010) insere, pondero
quanto à perspectiva de Japiassu ao desconsiderar que, embora criticáveis, os conhecimentos
acumulados socialmente são, pela proposta de Gusdorf, reduzidos em termos de
potencialidades de exploração. Tal feito se daria a começar pela projeção de Japiassu (1976)
de que os conhecimentos deveriam servir à resolução de problemas dados pelo social ou pela
experiência. Dessa maneira, ao mesmo tempo que a defesa de Japiassu se volta à ideia de
conhecimento unitário, como destaca Veiga-Neto, restringe as possibilidades de apropriação
dos conhecimentos disciplinares ao limitar a priori quais argumentos de um campo de
conhecimento podem contribuir para determinado problema, o que tende a minar as
possibilidades de operação (e unidade) e, principalmente, de integração via
interdisciplinarização dos conhecimentos. Ou seja, a defesa de uma interdisciplinaridade seria
frustrada na própria proposta de Japiassu, resultando na redução de possibilidades do
conhecimento – e não em seu aumento.
Igualmente relevantes para os estudos sobre interdisciplinaridade são os trabalhos de
Ivani Fazenda (1994), que possuem grande destaque no campo da educação; ela é considerada
por Veiga-Neto (2010) a principal referência no que toca ao início dos estudos sobre o tema
no país. Os trabalhos de Fazenda e Japiassu, embora voltados a preocupações distintas pela
interdisciplinaridade, possuem grande repercussão nas produções voltadas ao tema (AIRES,
2011; GOMES et al., 2013; LOPES, 2008b; VEIGA-NETO, 2010).
Para Fazenda (1994), a função da interdisciplinaridade estaria em não negligenciar as
disciplinas (símbolos da evolução do conhecimento acumulado pela humanidade), mas em
constituir interpenetrações dos conhecimentos mobilizados por elas e, assim, dar base a uma
teorização mais ampla para a educação. A autora assinala também que uma de suas
preocupações estaria no investimento na interdisciplinaridade como forma de rompimento
129
O conhecimento tratado pelas disciplinas, nesse caso, não favoreceria uma abordagem
complexa o suficiente sobre a vida. A integração curricular, em outra mão, questionaria as
possibilidades de contextualização de um conhecimento (contido ou mobilizado pelos campos
especializados em que consistem as disciplinas) pela dinamização do conhecimento via
interdisciplinaridade. Segundo Beane (1995a), a meta principal de uma visão integrada de
currículo seria a defesa de “um significado” para o “sujeito” e para “o mundo social” no qual
está imerso.
O currículo integrado seria capaz, ele mesmo, pela simulação de situações futuras, de
tematizações sobre o mundo do trabalho e sobre o cotidiano dos alunos, de assegurar um
conhecimento verdadeiramente significativo e coerente, como também propõe Kilpatrick
(1978), hábil em proporcionar aos alunos formas de ler o mundo como, “de fato”, deve ser
(BEANE, 1995a; 1995b).
Seguindo a perspectiva de Dewey, Beane (1995a) focaliza a importância de que os
conhecimentos cotidianos dos alunos sejam motivação para a proposição de temas do
currículo integrado, o que levaria a uma maior aderência de tais alunos à produção de um
conhecimento lido como fundamental para sua formação, para a atuação no mundo. Os
esquemas e temas do currículo acolheriam as demandas dos alunos e, a partir disso, o
conhecimento a ser ensinado seria apropriado de modo interdisciplinar via contextualização,
dada a proximidade que haveria entre o conhecimento integrado do currículo e o mundo (lido
como integrado) em que os alunos vivem e para o qual devem ser preparados. Essa
perspectiva, embora afeita à defesa dos conhecimentos escolares e aos estudantes da educação
básica, não deixa de partilhar do senso de Japiassu (1976) de que o conhecimento
especializado não serve por não ser funcional para determinada visão de contexto de práticas
do sujeito.
Essa visão de conhecimento, segundo Beane (1995a; 1995b), possuiria significado e
organicidade, pois não seria apresentado aos alunos de forma artificial, como no currículo
disciplinar. Para o autor, a superação dos limites disciplinares possibilitaria um conhecimento
pautado na realidade. Haveria, a esse respeito, um significado implícito no mundo que o
currículo integrado seria capaz de explicitar, de desvelar aos alunos, dando-lhes condições
para entender como as “coisas” do mundo funcionam “de verdade”.
Para o autor, as disciplinas contêm muitos (mas não todos os) conhecimentos, mas o
modo como cada uma individualmente os opera não fornece aos alunos condições para uma
leitura verdadeiramente atenta às dinâmicas da vida, do mundo. O currículo integrado, por
outro lado, faria apropriação dos conhecimentos disciplinares para constituir leituras
133
correlacionadas do mundo, em uma visão interdisciplinar. Beane (1995a; 1995b) pontua que o
conhecimento produzido pelas disciplinas científicas e escolares assume um olhar
especializado que subtrai os significados da vida social e do indivíduo, não viabilizando,
portanto, uma visão democrática de educação, entendida como a produção de formas de
conhecer capazes de oferecer a um dado sujeito ferramentais compreensivos e soluções para
os problemas da vida.
Ainda nesse sentido, apesar de assumir o respeito aos trabalhos de professores
escolares, chama a atenção para o caráter empobrecido, em termos de densidade conceitual,
em que as disciplinas escolares se consolidariam, o que as enfatizaria como alternativa
problemática em termos de democratização do ensino. As disciplinas escolares nem
possuiriam o conhecimento especializado, como no nível da ciência, nem favoreceriam uma
abordagem sobre a realidade da vida dos indivíduos. Elas seriam, portanto, um conjunto de
conhecimentos que não respeitariam a ciência, em termos de rigor teórico e metodológico,
nem lidariam com as demandas cotidianas dos alunos. Essa condição de intermediação
empobrecida marcaria as disciplinas, perfazendo o olhar antidemocrático e de baixa segurança
quanto ao rigor do conhecimento.
Segundo Beane (1995a), tal afastamento se daria por causa das relações entre os
conhecimentos científicos e escolares. O conhecimento das disciplinas escolares seria uma
versão da acadêmica pautada na crença da melhor seleção sobre o que deve ser conhecido
pelos alunos, o que não ocorreria em uma perspectiva integrada, que se basearia nos
conhecimentos da vida, do cotidiano, do mundo dos alunos, para articular
interdisciplinarmente conhecimentos com significado social na formação deles. Essa
perspectiva, argumento, não deixa de reinserir um enfoque de controle sobre o que deve ser
conhecido por parte dos alunos, o que deve ser a vida deles ao buscar definir o que vem a ser
o próprio mundo do aluno como fonte de integração.
Em sua crítica às formas de controle produzidas pela incorporação de visões
cientificistas do conhecimento a ser ensinado aos alunos, Beane (1995a; 1995b; 2003)
defende, como forma mais democrática e “significativa”, a seleção de experiências e
conteúdos disciplinares que dizem respeito ao que o aluno supostamente encontraria em um
futuro a ser vivido, em problemas cotidianos que os alunos deveriam enfrentar, bem como na
definição de significados dados, contidos no mundo. Caberia ao currículo integrado revelar
esses significados aos alunos. Os alunos seriam, nesse caso, libertados de uma visão afastada
do mundo, proporcionada pelas disciplinas, e teriam experiências projetadas pelo currículo
sobre como são suas vidas, sociedade e futuro.
134
Importa destacar também que, dentre os aspectos criticados por Beane, está a
impossibilidade de que as disciplinas escolares congreguem os conhecimentos dos campos
científicos, o que possibilita a leitura de que o problema do currículo estaria na incapacidade
de a escola ter como norte o conhecimento científico, suposto como aquilo que proporcionaria
a resolução de problemas lidos como comuns a todos os estudantes. Tais reduções poderiam
passar pela redução dos problemas das ciências aos problemas da vida/cotidiano e vice-versa,
como adverte Lopes (2008b), o que, genericamente, poderia levar à leitura de que as formas
de solução para ambos são as mesmas.
Argumento ainda que, se concordando com Beane (1995a; 1995b) sobre as disciplinas,
já seria criticável a leitura de que uma lógica integrada consistiria em selecionar, dos
conhecimentos disciplinares escolares (já selecionados a esta altura de um todo da ciência),
saberes capazes de produzir um conhecimento de significado verdadeiro sobre o mundo dos
alunos, sobre o que precisa ser o estudante e, além disso, sobre o que deve ser considerado
problema a ser resolvido e de determinada maneira. Precisamente pelos argumentos já
utilizados de que, ao menos em uma perspectiva marginal ou de afastamento de uma leitura
controladora do currículo, supor uma fixação do que vem a ser o sujeito e, portanto, um
conhecimento que lhe é (ou pode ser) constitutivo projeta a fixação ou estancamento do que é
o currículo, da subjetivação curricular.
Se em Beane (1995a) as situações da vida e os desafios rasurantes aos campos
disciplinares seriam mais bem tratados em uma leitura integrada, interponho como questão se
seria possível prever dada rasura antes de seu acontecimento, antes de sua precipitação. Dito
de outra forma: interessa questionar se, independente do integrado ou disciplinar, escaparia
algo da ordem do imprevisível, não cogitado, imponderável (MACEDO, 2013) em qualquer
que seja a expectativa de controle (no que chama por futuro, sujeito, vida, cotidiano).
Especificamente, ainda caberia indagar se, nas mesmas “independências”, não haveria
descontrole quanto ao modo como as subjetivações interpretam o mundo e leem a solução
possível para determinados problemas. Ou seja, haveria forma curricular de precisar sobre o
modo como outro lê ou não o mundo de forma integrada, mesmo esse outro suposto como o
estudante sob controle curricular? Se o conhecimento, como venho defendendo, não é uma
objetividade a ser emitida e recebida, não é um dado, é, isso sim, produzido por meio de
conflitos interpretativos, nunca transparentes a si, haveria conhecimento dissonante (ou
consonante) do/no mundo ou forma desintegrada/integrada de lê-lo?
Em trabalho posterior de Vars e Beane (2000), é defendida a integração curricular
como meio da formação de cidadãos para a democracia, lida como capaz de acessar a “vida
135
real”. No entanto, os autores discutem que, apesar do aumento dos movimentos em defesa à
integração, o currículo disciplinar tem sido intensificado pelo accountability, característico
das reformas baseadas na padronização curricular. Para eles, viveríamos, a partir da década de
1990, a afirmação dos currículos baseados em disciplinas, no controle da atuação docente e na
defesa de avaliações centralizadas em resultados baseados em padrões inalcançáveis pelas
escolas.
Para os autores (VARS; BEANE, 2000), interessa, pelas vias do currículo integrado,
que as escolas consigam congregar diferentes benefícios no cenário educacional sobre o qual
tecem suas considerações. Por intermédio da interdisciplinaridade, as escolas operariam um
currículo centralizado nos alunos e não nas disciplinas, com focalizava Kilpatrick (1978),
reafirmando o compromisso curricular com a elaboração de um conhecimento real/verdadeiro
sobre a vida e sobre os desafios a serem enfrentados cotidianamente, como o são os exames
padronizados impostos pela reforma. Segundo os autores, o currículo integrado oportunizaria
a construção de alunos competentes capazes de lograr êxito nos testes.
O currículo integrado, nessa leitura, conseguiria articular duas dimensões
contemporâneas: formar alunos competentes para o alcance de médias plausíveis no âmbito
dos sistemas de avaliação centralizados e, ao focalizar a dimensão subjetiva, em detrimento
das disciplinas, produziria experiências curriculares afeitas às demandas e questões da vida
dos alunos. Para Vars e Beane (2000), assumir esses caminhos é atender às demandas dos
alunos e administrar as expectativas da sociedade, representadas nos testes padronizados, e,
assim, mobilizar uma educação para a cidadania em um contexto democrático.
Cabe destacar que, para os autores, os motes reformistas são assumidos como
inexoráveis pleitos sociais; portanto, não assumem condição criticável. Ao mesmo tempo, as
experiências dos estudantes, aquilo que deve motivar a integração via interdisciplinaridade,
defendido em Beane (1995a), os problemas da vida/cotidiano, tendem a ser reduzidos a metas
no âmbito dos testes padronizados. Esse processo projeta a possibilidade de que o
conhecimento desejável seja lido diretamente como aquele demandado nos exames e, em
função deles, definido como constitutivo do mundo.
Essa leitura possível, se acrescida dos argumentos projetados por Beane (1995a;
1995b) e Vars e Beane (2000) sobre a associação da integração à democratização do
currículo, tal como defendida por Dewey, pode delinear a democratização da escolarização
também como aumento do controle dos saberes circulantes, das experiências de alunos e
professores, das formas de ser sujeito e estar no mundo. Isso porque, em um eventual ensaio
exemplar sobre o funcionamento de tal lógica, teríamos que a interdisciplinarização é, por si
136
só, crítica, pois é produzida a partir do social; o sujeito bem formado para o mundo é aquele
que consegue as melhores notas nos exames, constituídos como demandas sociais; o social é
personificado nos testes e, uma vez bem-sucedido o estudante, o currículo estaria também
aprovado em seu papel formativo: o jovem estaria lendo e correspondendo ao mundo
adequadamente.
Com a estruturação conjecturada por Beane (1995a; 1995b) e Beane e Vars (2000), é
possível interpor que a compreensão das demandas dos alunos (justificativa maior para a
reorganização curricular com vistas a um conhecimento democrático, desde Dewey) estaria
afastada de sua proposta, uma vez que só é possível lê-las como aceitáveis se restritas àquilo
que é assumido como o mundo em essência: a aprovação nos exames padronizados. Como o
próprio nome já sugere, baseado em testes padronizados, o conhecimento não tende às
preocupações locais, singulares, pessoais e específicas das vivências e questões experienciais
estudantis, mas ao que é suposto como devendo ser conhecido comumente por todos. Dessa
forma, um sujeito genérico é exposto na projeção teórica de Beane, resultado da afirmação
prévia do que é o mundo, de quais são seus problemas para, então, definir quais seriam os
conhecimentos passíveis para abordá-los corretamente.
Julgo importante atentar para que o mesmo caráter produtivista e controlador que se
atribui à perspectiva disciplinar pode ser interpretado em suas defesas. Não assumindo que a
integração e o disciplinar são a mesma coisa, argumento que, se as disciplinas podem ser
pensadas como formas de controle do trabalho nas escolas (LOPES; MACEDO, 2011), a
leitura de integração, defendida pelo autor, também pode assumir uma perspectiva
denegatória daquilo mesmo que define como fundamental: a experiência dos alunos.
Pondero que, se as disciplinas operam em função de um télos pautado em eventuais
usos futuros na vida do estudante, a integração funcionaria em torno da suposição de que os
problemas poderiam ser reconstituídos, importados para uma experiência escolar controlada
por um conjunto de conhecimentos articulados, capazes de resolvê-lo. Mas o que também se
torna possibilidade, nesse sentido, é a assunção de uma abordagem em que, ao invés de um
suposto investimento em uma aplicação futura, passaríamos a garantir, de forma mais
controlada, a formação de competências na atualidade. O problema, nesse caso, estaria
precisamente definido em sua transcendentalidade aplicável a qualquer contexto, este
reduzido a um padrão; formas de conhecer e agir em possíveis situações similares. O
contexto, nesse caso, é tomado como situação controlada e repetível na vida dos estudantes.
Se o disciplinar se apresentaria rarefeito em termos de precisão sobre os usos do
conhecimento na vida dos alunos, a leitura integrada de Beane tende a assumir um enfoque de
137
Com isso, perspectivas consideradas por eles como hegemônicas, como as de Japiassu
(1976) e Fazenda (1994), assinalariam uma visão messiânica para o sujeito ao concebê-lo sem
a concepção da historicidade do conhecimento e da própria subjetividade. Para Jantsch e
Bianchetti (1995), ao fazer isso a leitura subjetivista estaria marcando a fragmentação e a
integração como responsabilidade dos indivíduos. A leitura de Japiassu, nesse caso, fica
remetida à decisão do sujeito para realização da interdisciplinaridade, de sua consciência e
responsabilidade em integrar conhecimentos para construir um novo conhecimento e elaborar
leituras dos problemas sociais.
Jantsch e Bianchetti (1995; 2002) assinalam que o avanço do pensamento
interdisciplinar não seria resultado de uma consciência e vontade subjetiva pela integração,
mas sim resultado de pressões de um momento histórico que demandaria a busca por integrar
conhecimentos especializados. Sob a perspectiva dos autores, a proposta de Japiassu (1976) e
Fazenda passa a ser apreendida como não crítica e negligente quanto à historicidade das
consciências, da subjetividade e da produção do conhecimento.
Outro argumento introduzido pelos autores está na importância de resguardar o
conhecimento disciplinar, destacando sua qualificação sob argumento similar ao de Young
(2009), qual seja o de que as disciplinas são as formas mais racionais, seguras e simbólicas da
emancipação humana (JANTSCH; BIANCHETTI, 2002), e não uma unidade perdida. Nesse
sentido, afirmam que a especialização do conhecimento só pode ser dada como uma patologia
sem a consideração dos marcos históricos que o ocasionaram. Portanto, não soaria
interessante a concepção de que haveria uma unidade perdida a ser retomada e controlada
pelo sujeito em sua relação com o conhecimento.
Isso que seria uma posição nostálgica no pensamento de Japiassu marcaria uma
desconsideração da evolução histórica da sociedade e do conhecimento como resposta a essas
mudanças. A afirmações de Etges (1995) e Frigotto (1995) reiteram a visão de Jantsch e
Bianchetti (1995), ao pensar que a unidade reivindicada em leituras como a de Gusdorf, por
exemplo, não é mais que do que o reconhecimento da perda de uma visão de homem
primitivo, concebido naturalmente. Para Etges (1995), na defesa do sujeito que deveria
unificar o conhecimento novamente subjaz a concepção de uma defesa do homem unitário,
que teria sido superado por uma visão histórica.
Tanto Jantsch e Bianchetti (1995) quanto Etges (1995) provocam um deslocamento na
leitura da interdisciplinaridade como produção de conhecimento, chamando a atenção para o
quanto a ideia de que levaria a uma ciência unitária escamotearia uma perspectiva de retorno
ao sujeito iluminista, consciente e capaz de controlar todas as formas de conhecer no mundo.
139
Particularmente, pontua visões como as de Japiassu (1976) e Fazenda (1994) como atadas a
um compromisso não crítico e com grandes potencialidades de alinhamento com o sistema de
produção capitalista, que demandaria, desde meados da década de 1970, a construção de
sujeitos onicompetentes para a reprodução do sistema econômico.
Frigotto (1995), que especificamente vincula a relação das práticas pedagógicas
escolares à discussão sobre interdisciplinaridade, assinala que uma dinâmica interdisciplinar
na educação não seria de ordem de uma “arbitrariedade racional e abstrata” (p. 26), mas sim é
decorrente do próprio modo como o sujeito se constitui como sujeito e objeto do
conhecimento sobre a sociedade. Para o autor, as próprias relações multifacetadas e
integradoras de novas leituras de mundo encaminhariam para uma visão interdisciplinar
crítica. Em sua leitura, a interdisciplinaridade teria uma dimensão necessária, que instaria em
uma forma de conceber que todo conhecimento, ainda que especializado, não pode prescindir
da noção de que há todo um conjunto de determinações e intersubjetividades que dão
consistência a uma perspectiva interdisciplinar.
Para Frigotto (1995), uma abordagem crítica, em sala de aula, sobre as formas de
produção e reprodução do conhecimento incidiria num movimento interdisciplinar, numa
prática pedagógica dessa ordem. Segundo o autor, com esse convite já haveria um movimento
em favor da interdisciplinaridade na sala de aula, que estaria marcada pela criatividade de
sujeitos que articulariam os conhecimentos socialmente especializados na ou para a solução
de múltiplos problemas.
As posições de Jantsch e Bianchetti (1995), Etges (1995) e Frigotto (1995), pautadas
marcadamente em aportes histórico-críticos, compreendem as possibilidades de operação de
um conhecimento interdisciplinar por meio do destaque à importância de uma compreensão
historicista. A interdisciplinaridade deveria ser assumida como intrínseca ao modo de
produção atual, pois, segundo os autores, a fragmentação do trabalho diz respeito à
fragmentação do conhecimento. Para eles, a busca recente pela interdisciplinaridade seria
sintomática de uma busca por profissionais integrados, daí a importância da conexão da ideia
interdisciplinar com um contexto atual do capitalismo.
Para Jantsch e Bianchetti (1995), a interdisciplinaridade, histórica e criticamente
pensada, diria respeito a uma dinâmica de integração de diferentes formas de conhecer que
envolveria os conhecimentos filosóficos, generalistas e os da educação com os saberes
especializados. É com essa perspectiva que os autores buscam afastar da interdisciplinaridade
uma abordagem voluntarista ou a ser acionada por um sujeito munido de vontade ou interesse
consciente. A ideia desses autores é que a interdisciplinaridade seria um processo de reflexão
140
histórica, o que não poderia ser feito em qualquer lugar ou qualquer sujeito. A universidade,
ou o que ela representaria (a ciência), seria o espaço prioritário para a formulação de uma
visão interdisciplinar da realidade social.
A formulação e Jantsch e Bianchetti (1995), bem como as contribuições de Etges
(1995), lidas para uma perspectiva da educação, como é sugerido por Frigotto (1995),
favorece a visão de que a interdisciplinaridade só faz sentido na escola se esta for suposta
como espaço de produção de conhecimento científico, como destaca Lopes (2008b) ao
focalizar essa dinâmica na produção de políticas de currículo, em que os saberes de referência
seriam as matrizes de uma iniciação científica (AIRES, 2011).
Ao tecerem críticas a leituras como a de Japiassu (1976) e Fazenda (1994), Jantsch e
Bianchetti (1995), Etges (1995) e Frigotto (1995) definem a interdisciplinaridade como um
movimento de identificação do sujeito histórico frente à necessidade de compreender as
determinações que constituem a sociedade. Com essa perspectiva, na dinâmica de afirmação
de um deslocamento da interdisciplinaridade de uma ideia de retorno a uma unidade de
conhecimento perdida ou de um sujeito indiviso, os autores marcam uma leitura de
consciência a ser constituída pelo conhecimento para a qualificação do sujeito critico.
Apesar da distinção que fazem ao pensamento de Gusdorf e, consequentemente, aos
seus desdobramentos nos estudos de Japiassu (1976) e Fazenda (1994), para a perspectiva que
interessa destacar nesta tese pondero que os autores também reposicionam uma leitura
estrutural que, marcada por uma leitura historicista, sustenta uma perspectiva de sujeito a ser
conscientizado por um conhecimento capaz de constituí-lo criticamente. A
interdisciplinaridade, portanto, assumiria a condição de conhecer cara a uma abordagem
conectora dos conhecimentos especializados, resguardados como fundamento, à experiência
sócio-histórica de um sujeito fragmentado como consciência.
A despeito das críticas formuladas por Jantsch e Bianchetti (1995) e Frigotto (1995),
penso também ser legível uma defesa da perspectiva unitária de sujeito. Não penso em uma
leitura de unidade como retroação a supostas formas originais, mas em uma construção em
que as contribuições disciplinares levariam à projeção de uma forma de conhecer com
potência reveladora de uma realidade complexa que deve ser descoberta no sujeito e, portanto,
proporcionar-lhe novamente uma forma de consciência. Obviamente, inclusive em razão do
aporte marxiano/gramsciano que introduz as suas análises, não é concebida uma subjetividade
encarnada em pessoa, mas na interação de distintas subjetividades que, constituintes de uma
classe social historicamente estruturada, assumiriam a encarnação de um sujeito genérico,
cuja consciência estaria implicada numa visão integrada via interdisciplinaridade.
141
mundo, mas de chamar a atenção para o quanto o debate sobre integração é fundamentado em
uma lógica que opera a afirmação procedimental e controladora do sujeito e do contexto por
intermédio do conhecimento, como nas leituras de Dewey (1959), Kilpatrick (1978) e
Fazenda (1994). Essa é uma lógica que mobiliza a definição de um horizonte obrigatório no
qual as formas de conhecer, e dada propriedade de conhecimento, devem ser acuradas para a
melhor resolução/uso/performance em relação a problemas que também se quer controlar
como compulsórios, como projetam Beane (1995a; 1995b), Jantsch e Bianchetti (1995) e
Santomé (1998).
Penso também como uma lógica de estruturação do debate sobre conhecimento busca
aplacar aquilo que é caótico e incontrolável, tal como defendo por meio da ideia de que o
conhecimento não é fundamento, mas é produzido por meio de conflitos pautados em
resultados provisórios e imprevisíveis. Longe da afirmação de Beane (2003) de que
conhecimento é poder (e se uma razão acerta a forma de transmissão do poder está resolvido o
problema do empoderamento do sujeito), retomo, pautado em Lopes e Macedo (2011), que o
conhecimento não pode ser dado ou transmitido ao/a um sujeito; a constituição do sujeito diz
respeito aos conflitos em torno da definição do que é conhecimento. Há, portanto,
subjetivação na disputa pela definição do conhecimento; não um conhecimento produtor de
sujeitos (BEANE, 1995a; 1995b; JANTSCH; BIANCHETTI, 1995; FRIGOTTO, 1995;
SANTOMÉ, 1998).
Assumir, tal como proposto por Beane (2003), a defesa de um direito à educação, ou
como uma garantia a inclusão no mundo, como propõe Santomé (1998), por meio de qualquer
que seja a leitura curricular, passa pelo movimento de controle sobre o que vem a ser a
propriedade de um direito que se quer assegurar como forma de reivindicar direito no lugar de
um suposto sujeito que deveria fazê-lo. Assim, parece que o movimento, via disciplinas ou
integração, não passaria pela garantia do direito, mas por sua usurpação; um
pensamento/logos que quer assumir e se apropriar do direito de aprender de um outro que
nunca pode vindicá-lo noutras vias. Só pode reclamar um direito restrito por uma lógica que
lhe retira o direito de conhecer fora do espaço comum colocado a um tipo de conhecimento
para um contexto pré-definido, como desde a abordagem de Japiassu (1976), mas ainda em
uma perspectiva marxista gramsciana, como pensam Frigotto (1995) e Jantsch e Bianchetti
(1995), ou globalizadora (SANTOMÉ, 1998).
Não se trata de reduzir as contribuições dos autores mencionados; focalizo o caráter
estruturante que, conjuntamente, eles perfazem ao pensar determinada forma de conhecer. Tal
conhecimento, deduzido um contexto suposto como mais amplo e especializado do
144
conhecimento, deveria servir para a resolução de problemas projetados para um sujeito a ser
construído. Ao mesmo tempo que o sujeito seria o fim de uma satisfação curricular, estaria
condicionado a um contexto genérico, mas local, pessoal e culturalmente afirmado como
questionador (experiências cotidianas, psicológicas, sociais), que é remetido ou circunscrito a
um cenário mais amplo (a sociedade, o sistema produtivo, o futuro, o trabalho etc.).
A decisão por tal projeção reitera, a meu ver, o movimento de centralização do
conhecimento no currículo. No caso particular do discurso de integração via
interdisciplinaridade, penso tratar-se de uma perspectiva que, envolvida em sentidos
emancipatórios ou inclusivos, tende a dinamizar a redução do debate sobre conhecimento ao
supô-lo como propriedade calculável e, ao contextualizá-lo, restringir o que é conhecimento a
situações ou contextos obrigatórios a um suposto sujeito. O conhecimento privilegiado por
essa leitura nem habitaria a defesa de um conhecimento disciplinar assumido como
especializado nem poderia, “de fato”, atender em uma função contextual, haja vista não ser
possível incluir um todo incalculável de manifestações contextuais em propostas, preparações,
projeções curriculares.
Daí deriva-se outra forma de estruturação do conhecimento – mas ainda o
conhecimento – marcada pela afirmação de contextos mais amplos ou genéricos lidos como
comuns aos sujeitos. Essa dinâmica tende a conduzir a própria crítica à organização
disciplinar (e, portanto, a justificativa à integração) a ser cabível para a proposta integrada. Ou
seja, se o disciplinar não é capaz de atender a anseios locais e particulares, a projeção
integrada também não o é, constituindo-se, ao contrário, em forma de restrição ao
conhecimento, ao remeter também a situações dissonantes da vida dos sujeitos.
Dentre as críticas às defesas à integração, Whitty, Rowe e Aggleton (1994a; 1994b)
chamam atenção para o quanto os conflitos estão marcados pelas diferentes visões de
conhecimento escolar, como aquele apropriado das disciplinas científicas de referência, e de
conhecimento cotidiano. Tal como destacado por Lopes (2008b), os autores assinalam que as
reformas educacionais vêm, desde a década de 1990, defendendo formas de integração
curricular baseadas em temas específicos, ao passo que defendem conteúdos obrigatórios nas
disciplinas escolares.
Para os autores, há a construção de uma confusão sobre a organização curricular que
passa pela defesa de conhecimentos considerados fundamentais ao sujeito e à busca pela
associação de tais conhecimentos às suas experiências cotidianas. No entanto, pontuam, a
partir de referenciais críticos marcadamente associados à NSE, que tal tensão simboliza o
conflito entre as tradições liberal e sociocrítica que confrontam uma visão elitista, associada
145
disciplinares, a que são expostos. No entanto, apesar dessa perspectiva, o estudioso inglês
opera a ideia de que tais diferenças são caracterizadas por condições de classe e, nesse
sentido, definem que as crianças da classe média tendem a um maior envolvimento com
questões abstratas, enquanto os populares teriam aproximação maior dos problemas
cotidianos.
Sobre essa compreensão, penso que os autores reiteram um binarismo entre o
disciplinar e o integrado, projetando o primeiro como representante de aspirações elitizadas e
o segundo como representação popular no currículo, o que tende a enfraquecer seus
argumentos quanto às diferentes leituras sociais realizadas pelos alunos. Ao restringir as
diferenças às condições de classe, tendem a enfatizar o controle sobre formas de ler o mundo,
além de projetar como impossibilidade a ideia de que, independente da organização
curricular, há diferentes leituras de mundo, favoráveis a esta ou àquela visão e além delas.
Sendo formas de resistência àquilo que é determinado por uma esfera política externa
ou superior à escola, as formas de resistência não poderiam estar circunscritas a condições
específicas, pois não seriam resistências, mas coalizões legíveis de classe. Se Whitty, Rowe e
Aggleton (1994a; 1994b) argumentam que as contextualizações são dadas às experiências de
cada aluno, e se a experiência diz respeito ao modo como leem o próprio cotidiano, não penso
ser proveitoso operar a ideia de um controle da experiência cotidiana como se dando
diretamente por fatores de classe, ainda que reconheça que, no registro teórico do autor, tal
condição perpetre lentes específicas à visão de mundo. No entanto, se a resistência não o for a
ponto de permitir leituras outras, não pode ser considerada como tal. Haveria, nesse caso, a
defesa de formas de subversão e resistência baseadas na condução à impossibilidade de
resistência a outra visão de mundo que não a elitista. Isso é dizer que, ainda que o sujeito se
emancipe de visões elitistas de mundo, não pode fazê-lo de uma visão de classe que lhe
orienta ou define; ou, ainda, só é capaz de resistir porque controlado por uma lógica de classe,
não sendo, portanto, emancipado.
Em perspectiva problematizadora desse binarismo projetado na relação do currículo
disciplinar com o integrado, Lopes (2008b) chama a atenção para que não há verdade ou
essência capaz de assegurar determinada leitura de mundo para qualquer que seja a
perspectiva de organização curricular. Para a autora, importa cotejar como tanto as disciplinas
quanto as defesas da integração são apropriadas em diferentes leituras. A partir dessa
proposta, afirma a importância de que sejam postos em tela os discursos que tendem a pautar
o debate em torno dos referidos temas.
147
escolar, controlando o trabalho de professores e alunos nas escolas – dessa vez, por meio da
afirmação de uma realidade que continua a ser projetada como aquilo que não pode ser lido
pelos estudantes e que não pode ser produzida na e pela escola. Tal leitura assumiria, também,
a posição de alvo das críticas feitas às disciplinas ao afastar da realidade e dos desafios
trazidos pelos alunos os problemas agora eleitos como devendo ser resolvidos.
Para Lopes (2008b), tanto o disciplinar quanto a integração se conformariam em um
mesmo registro interpretativo do conhecimento escolar, ao importar da ciência para a escola
tal visão de conhecimento. Segundo a autora, essa perspectiva continua a manter os elementos
socioculturais alijados das experiências escolares, pois a priorização de um enfoque
cientificista traz como implicação cara a esta discussão a concepção das finalidades sociais
desses diferentes âmbitos (científico e escolar), que, sendo considerados por ela como
distintos, não devem ser hierarquizados.
Nesse sentido, a autora se aproxima aos estudos de Goodson (1993; 1997) para
focalizar a distinção entre as disciplinas escolares e as acadêmico-científicas como também
sendo importantes ao debate curricular sobre integração/interdisciplinaridade. Para Lopes
(2008b), a ciência e a escola são instâncias próprias de conhecimento, não sendo produtivo
operar transposições diretas de seus pressupostos, argumentos e funções. Ela pondera ainda
que as condições de êxito no tratamento a determinado problema nas escolas precisam ser
pensadas nos termos desse contexto e dos atores que atuam nele. Igualmente pontua que a
introdução de argumentos científicos em defesa da ciência favorece, sem uma atenção às
epistemologias circulantes no contexto das escolas, a ideia de implementação do projeto de
escola que se quer desenvolver, levando à hierarquização dos contextos científico e escolar.
Lopes (2008b) assinala que a ideia de transposição de conhecimentos da ciência para a
escola possibilita a redução do currículo à transmissão daquilo que é tomado como prioritário
à formação dos sujeitos: o conhecimento. Entretanto, questiona a tensão sobre a organização
curricular, particularmente em relação à disciplinarização, remetendo o debate a um contexto
mais amplo de reflexão sobre as relações de poder e os processos de identificação. Para a
autora, a pretensão à consideração da organização disciplinar (não só na escola, mas como
construção social) como possuidora de uma fixação identitária, de formas de conhecer e lidar
com esse suposto conhecimento não seria mais do que a recorrência a um conjunto de
sentidos sempre expostos ao hibridismo cultural e releituras contínuas. As releituras dariam
conta de inviabilizar um suposto projeto unificado, ou mesmo fragmentador, ao fazermos
referência às disciplinas (para concordar ou criticá-las), e isso acenaria a uma perspectiva de
que a afirmação disciplinar passaria pela ilusão de certeza que só teria como fundamento a
149
incerteza sobre as formas como os outros interagem e/ou se apropriam do que dizemos ser um
dado disciplinar. Penso, com isso, que, para além da tensão sobre as propriedades de uma
organização curricular (disciplinar ou integrada), restaria a impossibilidade de controle sobre
garantias do que é conhecer na e sobre a vida, do que seria conhecimento disciplinar ou
integrado.
Diferentemente de autores como Beane (1995a; 1995b), Jantsch e Bianchetti (1995),
Frigotto (1995) e Santomé (1998), emblemáticos do debate em defesa da
interdisciplinaridade, e considerando o questionamento de Lopes (2008a), penso que as
propostas de organização curricular com vistas ao melhor ajuste do conhecimento para um
fim constitutivo ao sujeito são remetidas a uma expectativa de controle, não só pela leitura de
que tais propostas não poderiam dar conta daquilo mesmo que visem superar a visão
disciplinar, como também pela perspectiva de que seria possível, com dada organização,
assegurar a integração de um conhecimento tal. Seria como julgar garantir que o
conhecimento estará ou será integrado por ser proposto de forma integrada. É afirmar que o
sujeito só é capaz de integrar e ser a partir do momento em que é proposta tal via curricular.
Importa chamar a atenção, noutra via, para o fato de que o reposicionamento que
Lopes (2008) insere no debate retira da forma de organização do currículo a gravidade da
discussão, ao mesmo tempo que localiza no debate sobre conhecimento a importância do
enfoque. Isso é dizer que, para além da organização curricular, o tema do conhecimento é
mantido a postos. Do contrário, reincidimos em leituras como as de Beane (1995a; 1995b;
2003) e Vars e Beane (2000), nas quais o teor do conhecimento é reduzido ao pressuposto de
que as formas de conhecer e de produção da ciência são prioritárias e indiscutíveis.
Argumento que perspectivas como a de Beane se aproximam da diferenciação que
Lopes (2008b) faz no âmbito da teoria curricular. Para a autora, leituras como as da filosofia
do currículo, iconizadas nos trabalhos de Hirst e Peters, assumem as disciplinas escolares
como integrando uma mesma identidade com as científicas. Tal perspectiva reduz as
finalidades da educação ao ensino sob a ideia de perpetuação da cultura humana. O
conhecimento seria criado em uma instância hábil para isso, a ciência, e transposto para ser
ensinado nas escolas.
Lopes (2008b) considera que os movimentos em defesa de formas integradas de
organização curricular estão relacionados a diferentes maneiras como as disciplinas são
interpretadas. Assim, a partir do modo como é concebido o mundo por meio de uma leitura
disciplinar, são defendidos meios de integração. Para a autora, é em função de uma visão de
150
finalidade social que as disciplinas são compreendidas e associadas a qualquer que seja a
leitura de mundo.
Lopes (2008b), nesse trabalho, com base nos estudos de Goodson, favorece a
compreensão de que é fundamental à discussão sobre integração a ideia de que as disciplinas
não são corpos estáveis de conhecimentos acumulados, mas resultados de relações de poder.
Para a autora, movimentos defensores da integração que negligenciem tal visão política
tendem a se deter na proposição de procedimentos e metodologias de desenvolvimento da
integração, ao invés de problematizar o conhecimento, que, como uma propriedade, pauta as
diferentes formas de organização.
Como tecnologia de organização do conhecimento, as disciplinas seriam, segundo
Lopes (2008b) e Lopes e Macedo (2002), mecanismos de organização e controle da escola,
posicionando conteúdos, horários e temas específicos. No entanto, a autora argumenta que tal
organização não restringe possibilidades de integração dos conhecimentos. Ao longo da
história curricular, a articulação de diferentes disciplinas em uma ou a relação entre várias
assinalam o quanto o disciplinar não pode ser tomado como oposição ou resistência a formas
de integração.
Para Lopes (2008b), as propostas de reforma curricular defendidas em diferentes
países avalizam o argumento de uma não oposição entre o disciplinar e o integrado. As
defesas da integração não implicam a superação do disciplinar ou mesmo reduzem sua
potência em definir e organizar o conhecimento escolar. Segundo a autora, a centralidade
disciplinar permanece mesmo quando da valorização de formas de integração.
Importa, nesse sentido, destacar que, a partir dos argumentos de Lopes (2008a;
2008b), não pode ser lida como obrigatória a tensão entre o currículo disciplinar e o integrado,
menos ainda é necessária a assunção de que defendem formas de conhecer melhor ou pior em
relação a determinado critério. Igualmente, não cabe uma essencialização de tais nomes como
forma de estabilizar um alvo a ser combatido. Interessa, aqui, o quanto se tende a significar
tais formas de organização curricular como nomes por meio dos quais são defendidas formas
de controle.
Ao problematizar processos de significação, não estou reduzindo contribuições como
as de Goodson (1993; 1997) ou mesmo Lopes (2008b) destaco não ser sustentável supor
leituras estruturantes do que vem a ser o sujeito, a disciplina e a integração, ou o
conhecimento, assim como o contexto para o qual são definidos/restringidos seus significados
(sujeitos escolares, disciplinas escolares, integração para conhecer e desempenhar tal
habilidade para determinado fim). Isto é dizer que ainda que auxiliem na compreensão crítica
151
7
Para maior aprofundamento deste debate sobre a subjetividade política produzida na relação com as disciplinas,
ver Costa (2013) e Costa e Lopes (2016).
152
espaços comuns de operação na relação com um dado conhecimento, mundo, vida, sujeito.
Nesse movimento, na distinção, por exemplo, do que vem a ser uma finalidade social (que
estabeleceria socialmente o estofamento das disciplinas), os autores supõem a escola ou a
ciência como espaços-tempos essencializados por uma vontade/missão/expectativa
transparente e comum a todos aqueles lidos como participantes. O contexto da disciplina
escolar (argumento emblemático aos trabalhos de ambos) é apreendido como possuidor de
pragmáticas próprias, que contribui para a crítica da hierarquização do conhecimento
ciência/cotidiano. No entanto, precisa a caracterização dos processos de produção do
conhecimento ao sujeito, mantendo o olhar na fixação conhecimento/contexto transparente.
Tal concepção implica formas de exclusão de tudo aquilo que é produzido e produz sentidos,
para o que se diz ser o ou do contexto escolar (o ‘do’ escolar, como tendem a adjetivar as
disciplinas), mas que não necessariamente pode estar restrito ao que define como associado à
escola (a formação de professores, os livros didáticos, os conteúdos, as práticas formais da
gestão etc.).
Por pensar que está para além de assumir o disciplinar ou o integrado/interdisciplinar
ou ambos conjuntamente, como meio de afirmação do currículo, considero interessante
recorrer aos argumentos de Lopes (2008a) e Lopes e Macedo (2011), para os quais a
disciplinas e a integração curricular não dizem respeito a propriedades do mundo, do
currículo; são construções discursivas nas quais nos identificamos. Para as autoras, as
disciplinas não são consideradas hegemonias curriculares em função da capacidade de uma
episteme se fazer inabalável, mas, apoiadas nos indícios investigativos de autores como
Goodson e Popkewitz, pensam as disciplinas como construções sócio-históricas que, quando
concebidas em uma perspectiva pós-estrutural de currículo, não são condicionadas por saberes
e tradições fixadas antes da política, a priori das decisões. Para as autoras, os saberes
disciplinares são constituídos no processo em que nos tornamos disciplinares, em que nos
identificamos, pelas distintas lutas políticas nas quais nos envolvemos na relação com o nome
disciplinar.
Mas, para além do conflito entre as formas de organização curricular, importa pensá-lo
como mobilização de uma dinâmica que cerceia a possibilidade de instabilizar o que tende a
fundamentá-lo, o pressuposto de que um conhecimento tal pode ser prioritário e universal ao
que se diz ser o sujeito ou para que ele exista.
Para Lopes e Macedo (2011), a disciplina, já em perspectiva de afastamento de
Goodson (1993; 1997), não consiste na fixação de identidades disciplinares, mas de
comunidades constituídas provisoriamente, nos distintos espaços-tempos de envolvimento
153
com a causa que afirmamos ser disciplinar. Não se trata de abandonar o que tradicional e
criticamente se define como marca ou característica de um campo ou o que dizemos ser sua
história ou concepções, mas de pensar que a reiteração de tais elementos consiste em um
envolvimento constitutivo da disciplina e de identificações com o próprio campo. Segundo as
autoras, as disciplinas se constituiriam no hibridismo de tradições, discursos pedagógicos,
científicos, sociais e psicológicos, dentre outros, capazes de constituir, em determinado
contexto, aquilo que se diz ser uma posição ou identificação fundamental à verdade
disciplinar (LOPES; MACEDO, 2011).
Em movimento aproximado do das autoras, como defendi em pesquisa anterior
(COSTA; LOPES, 2016), minha argumentação se orienta para a afirmação da disciplina, das
políticas para campos disciplinares, como se desdobrando não por uma positividade ou
epistemologia, mas por a articulação de diferenças sociais em torno do nome disciplinar. Essa
perspectiva não está implicada na aceitação de uma restrição das identificações aptas a
participar na política de currículo, mas insta na ideia de que, para além de identificações a
priori, todo envolvimento (provisório) com a disciplina a mobiliza, produzindo sentidos, em
antagonismo a uma diferença (um nome da política interpretado como inimigo ou ameaça a
ser combatida).
Nesse sentido, diferentemente da perspectiva de corporação profissional, de que se
aproximaria a ideia de comunidade disciplinar (GOODSON, 1993; 1997), defendi a
constituição de uma comunidade propulsionada discursivamente por diferenças sociais que
prescindem de envolvimento anterior com a disciplina, que, nesse sentido, seria mobilizada
não por propulsão interna, mas por respostas sustentadas, contingencial e provisoriamente, em
oposição àquilo que se entende por questionador, ameaçador (COSTA, 2013).
Também com essas perspectivas penso as formas de defesa da integração, pelo nome
interdisciplinaridade, que se pautam também em um antagonismo às disciplinas como
limitadas. Se as disciplinas não são assumidas como corpos estáveis de saberes acumulados e
também não são pensadas como coordenadas por uma razão política que mobiliza seus
praticantes/profissionais, interessa a operação alternativa, como tenho argumentado, de pensar
uma propriedade ou habilidade da interdisciplinaridade em controlar formas de ler e ser em
dado mundo.
Recorro a Lopes e Macedo (2011) para apoiar o argumento de que, na
reconceptualização do currículo como produção discursiva, como produção cultural
fronteiriça, não cabe assumir previamente a vida da experiência imprevista, de um suposto
sujeito, a melhor forma de coordenação do que é necessário em termos de conhecimento,
154
atitude. O próprio mundo, nesse sentido, está por ser decidido frente aos envolvimentos com
que, em cada contexto, nos identificamos, a que precisamos responder. Segundo as
pesquisadoras, soa mais produtivo pensar as oportunidades em que as disciplinas se
constituem em termos formativos, tomá-las como possibilidade de inter-relações de saberes
de diferentes (supostos) campos disciplinares e, principalmente, no que toca às possibilidades
integradoras que se desdobram naquilo que dizemos ser os cotidianos das escolas, no modo
como diferencialmente são precipitadas identificações/subjetivações no mundo, a partir
daquilo que assume como desafio ou problemática a ser tratada. Penso ser interessante a
retirada do foco sobre a reforma da organização curricular como busca pelo conhecimento
como controle ou melhoramento do outro (do currículo com um fim fixo, de um sujeito que
precisa se tornar/ser tornado, de um mundo suposto como estável ou possuidor de dinâmicas
previsíveis), destacando também o quanto as defesas desta ou daquela forma de produção
curricular sempre estarão sujeitas àquilo estranho que não se consegue prever e deter, uma
comunicação com o outro que julgo estar apre(e)ndendo aquilo que afirmo imprescindível, os
modos de fazer na relação com os desafios, os modos de eventualmente integrar isso que digo
ser um conhecimento válido para a vida. Justamente porque não é possível importar toda uma
experiência para a razão curricular e, assim, projetar um conhecimento capaz de sanar e
respondê-la é que penso ser a suposição fixa de um tipo de conhecimento uma atuação
limitada e necessária.
Limitada, pois remetida a um fazer impossível de preparação e conhecimento do outro
para uma toda outra alteridade da vida, da experiência por vir. Necessária, haja vista não ser
possível a ponderação de todas as possibilidades desconhecidas de ser
currículo/mundo/sujeito/resposta ao outro. Apesar disso, dessa dinâmica aporética, em que
não se pode saber tudo e não é possível a paralisação ou hesitação frente ao reconhecimento
ao não saber, uma decisão sempre é tomada, precisa ser feita, como uma intervenção num
jogo com o estranho todo outro (DERRIDA, 2006), ardiloso (LACLAU, 1990), impetuoso
inquisidor, que altera as regras todo o tempo. Uma resposta sempre é dada. Mas, uma vez que
tal resposta não pode ser a melhor, mas uma possibilidade, importa, em um movimento de
responsabilização contínua (DERRIDA, 2006), assumir que ela precisa ser constantemente
refeita e retomada, de modo que sua revisitação possibilite a interpretação de que já não é ou
não está respondendo àquilo que se busca/buscou desde sempre aplacar.
Essa posição possibilita conceber que diferentes formas de controle da organização
curricular, visando à projeção de um conhecimento para quem quer que seja e em que mundo
se suponha inserir, não deixam de reiterar formas de controle que movimentam uma dinâmica
155
5.1 A quem possa responder: os pressupostos para reforma, o sujeito sem conhecimento
está fora do mundo
Com esses argumentos, uma dada realidade atual da educação média estaria exposta
ou questionada a responder aos desafios contemporâneos, que tendem a reiterá-la como
deficitária em relação ao que o mundo se tornou. Além disso, sendo essa etapa de ensino
pensada como propedêutica e de terminalidade, ou seja, devendo ser capaz de preparar para a
continuidade dos estudos ou para concluir a formação de um dado sujeito, não estaria
desempenhando sua função de forma plena, pois, em relação a um tal mundo que a
exterioriza, não é capaz de corresponder com a preparação para o mundo do conhecimento ou
mesmo para o que se entende por cidadania e trabalho.
Em abordagem aproximada do texto que institui as Diretrizes, o documento
constituído sob o nome Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio - PCNEM
(BRASIL, 2000), na parte intitulada “Bases legais”, que busca definir os fundamentos e
perspectivas que norteiam a proposta de reforma, projeta a inovação pela definição de “um
novo perfil para o currículo” (BRASIL, 2000, p. 4), cuja consistência é dada pelas mudanças
em diferentes níveis da vida social e, em função delas, pela busca da formação do jovem para
esse novo cenário, o que orbitaria nas novas formas de produzir conhecimento. Nesse sentido,
afirma-se que
Imbuída de tais missões, a REM (BRASIL, 2008) se deve ao fim de responder aos
anseios sociais, à diversidade e às múltiplas necessidades dos sujeitos que buscam
significados paras as demandas atuais, para além daquilo que também nas DCNEM se coloca
como visão tradicional do currículo do Ensino Médio: suas finalidades propedêuticas e de
terminalidade, mobilizadas e apoiadas por uma organização curricular disciplinar.
estaria bloqueando a comunicação do sujeito (buscado, a ser controlado pelo currículo), que
deveria formar/preparar/produzir com isso que é dado como mundo para o qual se deve
formar cidadãos, trabalhadores, estudantes, autônomos, criativos.
O bloqueio, a ameaça ao currículo, nesse caso, bem pode ser lida como a própria falta
de atualização, não reforma curricular, para um mundo que já é outro. Não sendo criticado tal
mundo, mas pressuposto à reforma, parte da significação da reforma demanda um currículo
que não “é”, que não se encontra e que tende a ser ameaçador ao que quer ser currículo; uma
subjetividade que se constitui ao negá-lo, ao identificá-lo como ameaça.
O currículo do “passado”, antiquado e criticável por uma atualidade seria aquele
marcado pela descontextualização e pela segmentação disciplinar, que consistiria em um
acúmulo de informações. A resposta a esse currículo, dada pelo currículo da reforma, adviria
da solução introduzida pela construção de um currículo interdisciplinar e contextualizado, lido
como hábil em produzir um conhecimento integrado, não compartimentado, que constitua
harmonização do currículo com a vida social, com o mundo que é caracterizado por
mudanças, como no trecho em que é considerado que “as propostas de reforma curricular para
o Ensino Médio se pautam nas constatações sobre as mudanças no conhecimento e seus
desdobramentos, no que se refere à produção e às relações sociais de modo geral” (BRASIL,
2000, p. 5).
De certa maneira, o conhecimento organizado pelo currículo atual (disciplinar) é
pensado como simbolizando um momento específico de um passado a ser superado
(antidemocrático, acrítico, negligente com as demandas sociais), em que o acúmulo de
informações caracterizava a produção de conhecimento. Tal condição já não interessaria a um
novo currículo, às demandas do mundo atual, no qual “o volume de informações produzido
em decorrência das novas tecnologias é constantemente superado, colocando novos
parâmetros para a formação dos cidadãos. Não se trata de acumular conhecimentos”
(BRASIL, 2000, p. 5), mas interessa um enfoque curricular atualizado/acurado para as novas
demandas por ser sujeito, pela formação de sujeitos, mediante determinado conhecimento
interdisciplinar, capaz de contextualizar-se na construção de soluções, de levar ao que se
constitui como formação para o mundo atual. Trata-se de uma “formação geral, em oposição à
formação específica; o desenvolvimento de capacidades de pesquisar, buscar informações,
analisá-las e selecioná-las; a capacidade de aprender, criar, formular, ao invés do simples
exercício de memorização” (BRASIL, 2000, p. 6).
Esses princípios gerais, sob os quais é definida a proposta, são considerados os
elementos reformadores do currículo, levando-o a uma nova configuração ou habilitação,
166
capaz de possibilitar a construção de uma formação para as mudanças por que passa o mundo
e, portanto, para a maneira como o trabalho e as relações sociais passaram a se organizar. O
novo currículo, o currículo buscado pela reforma é projetado como uma resposta à altura, a
contento das demandas de uma sociedade que lhe é externa – como o excerto a seguir.
Pensar um novo currículo para o Ensino Médio coloca em presença estes dois
fatores: as mudanças estruturais que decorrem da chamada “revolução do
conhecimento”, alterando o modo de organização do trabalho e as relações sociais; e
a expansão crescente da rede pública, que deverá atender a padrões de qualidade que
se coadunem com as exigências desta sociedade (BRASIL, 2000, p. 6).
As mudanças são lidas como tendo sido capazes de mudar a maneira disciplinar como
o conhecimento humano se organiza, derivando daí a alternativa à organização curricular
integrada (BRASIL, 2002, p. 9). Agrupadas em áreas, as disciplinas teriam seus corpos
articulados na concepção de um conhecimento capaz de produzir sujeitos interessantes ao
mundo que é lido como dado.
Com essa leitura sobre a relação da organização disciplinar com a integrada, é
assinalada não a diluição das disciplinas, mas o aumento de sua comunicação na compreensão
de problemas da vida, da experiência, que seriam dados pelo mundo além das disciplinas.
Separadas em sua versão antiquada ao mundo atual, as disciplinas não ajudariam, em função
de que, tendo sua orientação para um horizonte mais acadêmico e científico (cuja
consolidação interpretativa ao mundo se daria em etapas de formação superiores), para a
construção de sentidos para e sobre o mundo que precisam ser constituídos no próprio nível
médio (BRASIL, 2002). Frente a essa afirmação, é ponderado que “não havendo
necessariamente essa outra etapa, a articulação e o sentido devem ser garantidos já no Ensino
Médio” (BRASIL, 2002, p. 9). A garantia de uma formação que produza sujeitos
conhecedores neste e para este mundo atual,
funcionamento da proposta e não produziram uma nova organização curricular hábil em fazer
sentido aos sujeitos do Ensino Médio.
Tais desafios, lidos como sócio-históricos (como também são definidos os sujeitos) ao
longo do documento, diriam respeito à própria experiência da construção do conhecimento
(científico, tecnológico e cultural). O conhecimento, por ser interpretado como resultado das
construções sociais e históricas, teria dadas, nessa perspectiva, as possibilidades de sua
integração, pois, se o conhecimento científico é lido como construção sócio-histórica, assim
como são os sujeitos e seus desafios, as possibilidades de integração das disciplinas estariam
dadas (BRASIL, 2004), assim como os sentidos de mundo em razão dos quais se visa
constituir sujeitos pelo conhecimento.
Os PCNEM, portanto, não teriam alcançado o objetivo maior da produção de
“aprendizagens socialmente significativas” (BRASIL, 2004, p. 10), por não conseguirem
aproximar, via integração, necessidades, interesses, saberes e curiosidades aos conhecimentos
sistematizados. Segundo as OCNEM, a incapacidade do que se lê por políticas anteriores
(DCNEM e PCNEM) não permitiu a construção de conhecimentos capazes de levar à
“formação plena dos sujeitos” e à “produção contínua de conhecimentos” (BRASIL, 2004, p.
10).
Assumindo o caráter diverso e desafiador das experiências no mundo, o Proemi
retoma a defesa de uma base unitária que viabilize que os sujeitos possam compreender as
determinações da vida pelo entrelaçamento de ciência, cultura e trabalho, o que é entendido
como meio para que o Ensino Médio esteja
Com base em tal leitura, sendo o currículo disciplinar assinalado como a ser superado
em nome de uma inovação capaz de responder aos anseios do jovem de hoje e de respeitá-lo
em suas diferenças, é proposta a alteração da LDB com vistas a assegurar, por meio de
legislação específica, a organização interdisciplinar do currículo, ao propor que
O que é lido como currículo atual, definido como não integrado em seus
conhecimentos e partes, passa a ser apreendido como antidemocrático e antiético, sem
qualidade e, portanto, limitante à aquisição daquilo que se afirma como horizonte plausível à
função curricular. Antidemocrático, antiético, antiqualidade porque incapaz de constituir
170
sujeitos autônomos, responsáveis e solidários, pelo modo como se organiza, por sua projeção
como ameaça à boa razão, à boa consciência, aos “conhecimentos e competências intelectuais
que deem acesso a significados verdadeiros sobre o mundo físico e social” (BRASIL, 1998, p.
27). Justamente por ser organizado de modo estanque e não comunicativo entre seus
conhecimentos, o currículo leva a que não proporcione formação democrática e constitutiva
de uma razão ou significado verdadeiro sobre um mundo que seria integrado, sobre uma vida
integrada, que estariam dados como propriedades no mundo, mas ainda não percebidos por
uma visão curricular ultrapassada.
Ponderados esses argumentos, é feito apelo a uma intervenção no atual e já
ultrapassado currículo. Tal intervenção levaria à
a revolução tecnológica, por sua vez, cria novas formas de socialização, processos
de produção e, até mesmo, novas definições de identidade individual e coletiva.
Diante desse mundo globalizado, que apresenta múltiplos desafios para o homem, a
educação surge como uma utopia necessária indispensável à humanidade na sua
construção da paz, da liberdade e da justiça social. Deve ser encarada, conforme o
Relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, da Unesco,
“entre outros caminhos e para além deles, como uma via que conduz a um
171
A busca por tal conhecimento, como visto no trecho acima, é lida como constituída
por uma demanda do que é tomado por mundo contemporâneo, que, por sua vez, seria
mobilizado pela globalização. Isso que seria um plano de fundo para a sustentação da reforma
é defendido como uma externalização ao currículo, aquilo a que o currículo precisa responder.
Em resposta a esse tal mundo é que a proposta se define, se afirma constituir e é justificada, a
partir do revolvimento daquilo que projeta a si, como tradições, história, traumas, limitações,
possibilidades.
Nessa perspectiva, especificamente no que venho destacando ser uma busca pela
conciliação do currículo a si, de sua completude como resposta ao que o sonda, que o impele a
reputar a si (como a si mesmo, como encontro consigo, como significação última de sua
subjetivação como sujeito, como propriedade), é atribuída centralidade ou estruturalidade ao
conhecimento (como conhecimento do mundo, no mundo e para o mundo), no qual a tensão
por sua significação última (ou parte dela) é assinalada nos termos de sua organização. Esta,
lida como marcada particularmente por um cenário em que o antagônico seria um currículo
atual, cujo nome hegemonizado como limite/ameaça/bloqueio seria currículo disciplinar, e
aquilo em que provisoriamente estaria projetada sua satisfação, um currículo integrado via
interdisciplinaridade. O último nome, que tende a catalisar os sentidos da reforma
(democracia, inovação, consonância com o mundo atual, formação de sujeitos, cidadãos,
trabalhadores, autônomos e conscientes para lidar com os desafios contextuais da vida),
articulados nessa subjetivação/decisão em que se constitui a reforma, podem ser lidos como
possíveis respostas ao que é projetado como exteriorizando o currículo: o mundo, a vida, os
contextos a que dado sujeito estaria exposto, a sociedade. Exterior, exteriores, fugidios e
imponentes que, traduzidos em uma estruturação do conhecimento, do currículo/mundo como
conhecimento, viabiliza a afirmação da (de uma) centralidade do currículo para a organização
172
enredariam em uma perspectiva que visa assegurar ou definir uma “base nacional comum”
(BRASIL, 2000, p. 16), na qual distintas agendas/pleitos/articulações diferenciais do
pensamento político curricular estariam sendo, também elas, respondidas (ao menos
parcialmente) no que afirmo ser uma tensão pela organização do conhecimento.
Dada a hegemonia e com a pretensão estruturante, ou melhor, de fechamento estrutural
a que toda hegemonia parece correr risco, o nome conhecimento não é posto em questão, mas
tem, na condição de pressuposto, a afirmação de suas problemáticas restritas à organização.
Nesse caso, uma leitura interessante seria conceber que, uma vez que o conhecimento está
dado como currículo ou seu fundamento estruturante (história, horizontes, preocupações,
meios e fins), resta encetar a melhor organização para que sua propriedade seja
reconstituída/apropriada/ensinada/contextualizada/“realizada” na vida ou no mundo, na
realização do sujeito do currículo, que não existe, pois precisa ser constituído por ele para
dissolver o que é também constituído como problema; para lidar com aquilo mesmo para que
se volta (e desconhece) o currículo, o que é significado como estranho
mundo/alteridade/desafio/plenitude. Pois é para esse mundo, lido como inapreensível,
desconhecido do currículo, mas para cujas perguntas/inquisições o currículo quer formular
respostas/ter soluções, que há todo um movimento de reorganização, de promessas, de
investimentos, e reenvios a si, na busca por soluções para aquilo que sequer é (não pode ser)
de domínio.
Emblemáticos também desses argumentos são os fragmentos em que se assinala que a
reforma do Ensino Médio se “preocupa em apontar para um planejamento e desenvolvimento
do currículo de forma orgânica, superando a organização por disciplinas estanques e
revigorando a integração e articulação dos conhecimentos, num processo permanente de
interdisciplinaridade” (BRASIL, 2000, p. 17). Ao mesmo tempo, como em movimento de
resguardo ao que se tem por propriedade ou fundamento para a construção do conhecimento
curricular, é ressalvado que as considerações sobre a reforma acenam para a
que destaquei anteriormente quanto à construção de uma legível polarização binária entre as
formas de organização (disciplinar/integrado), o que argumento ser potente para a afirmação
do conhecimento como propriedade ou pressuposto para a identificação curricular (o que é o
currículo, suas finalidades, motivações, propriedade) e/ou para a redução do debate sobre ele
ou sua propriedade. Assim, uma vez circunscrito o debate à organização do currículo, o
conhecimento pode ser lido como dado curricular, mas não realizado, em função de uma
organização limitante. Essa perspectiva pode viabilizar a leitura de que o conhecimento
necessário presente nas disciplinas só não é funcional às aspirações (de respostas) curriculares
por não estarem adequadamente organizados nas e pelas práticas escolares.
Ainda que o documento ponha em perspectiva as disciplinas como constituindo uma
forma de conhecer de um passado curricular incompatível com o mundo atual no
desenvolvimento de suas proposições à operacionalização da integração do currículo, o
documento enfatiza as contribuições das disciplinas ao pontuar que
Essa possível aliança com o discurso disciplinar, com as disciplinas, oportuniza que
elas sejam vistas especificamente como aquilo que alimenta a constituição de um
conhecimento integrado, o conhecimento do currículo, sendo por vezes até lidas como não
sendo mais os problemas/impeditivos à reforma, mas a atuação dos professores ou gestores
escolares. Estes possuiriam práticas tradicionais e, portanto, não estariam possibilitando a
reforma, a integração, a interdisciplinaridade e, assim, não formariam sujeitos, expondo a
instituição escolar ao fracasso, limitando o currículo (BRASIL, 2002).
Para quem possa temer que se estejam violando os limites disciplinares, quando
estes se compõem de conhecimentos e competências, vale lembrar que as próprias
formas de organização do conhecimento – as disciplinas – têm passado por
contínuos rearranjos. Muitas disciplinas acadêmicas e muitos campos da cultura são
177
Com essa argumentação, é possível ler que as motivações para as falhas nas propostas
anteriores decorreram da incapacidade de intervir nas práticas dos sujeitos no contexto da
escola. Somando-se ao argumento de que é nas escolas que as dinâmicas sociais de
conservação e mudança se desenvolvem, é possível inferir a perspectiva de que o insucesso
das propostas de reforma se deu pela falta de adesão, oposição ou negligência dos sujeitos
escolares. A escola, nesse caso, pode ser responsabilizada pela (in)efetividade da reforma, ao
também ser encarregada pela avaliação dos elementos (sujeitos que quer formar, realidade em
que se insere, compreensão de sua própria cultura, motivações) que a constituem para que,
definida como contexto local (de localidade, lócus de realidade), possa planejar-se como
projeto integrado a um “projeto social comprometido com a melhoria da qualidade de vida de
toda a população” (BRASIL, 2004, p. 10).
Entretanto, apesar de o foco ser afirmado no que é apreendido como contexto escolar
(cultura, realidade, sujeitos), a proposta define como fim o alcance da integração via
interdisciplinaridade, como desafio a ser superado comumente pelas escolas e seus sujeitos.
Com essa posição, é possível ler que a escola é convidada à preocupação com seus
fins, podendo (em uma suposta atualidade problemática) estar afastados do que é defendido
como melhoramento para a vida dos sujeitos, para o bem-estar da sociedade (o que é
defendido pelas OCNEM), mas pode falhar como instituição social, pode estar atuando de
modo descompromissado com o que se afirma ser finalidade do currículo interdisciplinar.
É ainda interessante destacar o quanto o currículo disciplinar, que considerei bloqueio
projetado à reforma no documento das DCNEM e PCNEM, é repetido nos PCN+, nas
OCNEM, mas com sua permanência atribuída às práticas escolares que, possivelmente,
tendem a ser lidas como conservadoras àquilo que limita os efeitos da reforma, ao sustentar
organização disciplinar significada como problema (dissonância ao mundo atual, não
preparação/formação do sujeito, impeditivo à produção de um conhecimento que dissolveria
os problemas atuais).
Como reiteração a esses argumentos, uma vez que a organização disciplinar inibe a
efetividade da reforma, a escola é projetada como contexto de neutralização ou resistência da
inovação, o que é negativamente pontuado ao afirmar o engessamento desse formato,
179
afastando a escola do que se questionou acima como sendo suas finalidades ou funções
sociais. Esses argumentos possibilitam ler a escola como afastada de preocupações com temas
e problemas comunitários, locais, sociais, com a vida (aos quais deveria responder e se
mobilizar), e que, portanto, poderia levar à intensificação do cenário problemático que
teríamos no Ensino Médio atual, no qual os sujeitos não se veriam mobilizados socialmente
pela escola.
Essa forma de conhecer, defendida e a ser ensinada pelo novo currículo do nível
médio, é assumida como via para a superação do que daria consistência ao atual e limitado
currículo: o currículo enciclopédico, marcado pela organização e lógica disciplinar, que não
permitiria ao estudante “estabelecer relações concretas entre a ciência que aprende e a
realidade que vive” (BRASIL, 2008, p. 12). Com base nessa afirmação, o conhecimento a ser
produzido pelo currículo deve possibilitar a reflexão dos desafios contextuais com os quais se
defronta o sujeito. Tal conhecimento, não possuído, mas a ser buscado, é suposto como
constituído a partir da ciência, dos conceitos e categorias estruturantes disciplinares, com
vistas à construção de respostas refletidas quanto à prática contextual em que se insere o
sujeito, cuja autonomia e emancipação é conferida pela sua constituição/condicionamento
como sujeito curricular. O sujeito que, como já mencionado, não se encontra ao desespero,
180
que pode ser denominado na subjetivação curricular do Ensino Médio como reforma, pode
ser, a partir de sua construção por um currículo que também é prometido como solução,
plenitude.
A reafirmação de uma promessa de plenitude ao currículo é pontuada também no texto
do Proemi (2009), em que se parte do princípio do direito à educação, que um currículo atual
não estaria respeitando, da efetivação de uma reforma que ainda não aconteceu e, em função
desses argumentos, da reversão dos dados deficitários do Ensino Médio.
erigir uma escola ativa e criadora construída a partir de princípios educativos que
unifiquem, na pedagogia, éthos, logos e técnos, tanto no plano metodológico quanto
no epistemológico. Entendendo que o projeto político-pedagógico de cada unidade
escolar deve materializar, no processo de formação humana coletiva, o
entrelaçamento entre trabalho, ciência e cultura (BRASIL, 2009, p. 19).
No referido projeto de lei (BRASIL, 2013a), a formação por área leva também à
interpretação de que não seria suficiente afirmar que os professores das disciplinas devem, a
partir de suas formações, construir leituras integradas, mas passa a interessar que também sua
formação se dê na modalidade “por áreas”, de modo a tentar garantir a leitura (a produção do
sentido, a inclusão, a formação do sujeito) mediante um conhecimento interdisciplinar
projetado à condição de dínamo da reforma.
não se trata nem de profissionalizar nem de deitar água para fazer mais rala a teoria.
Trata-se, isso sim, de ensinar melhor a teoria – qualquer que seja – de forma bem
ancorada na prática. As pontes entre a teoria e a prática têm que ser construídas
cuidadosamente e de forma explícita. Para Castro, essas pontes implicam fazer a
relação, por exemplo, entre o que se aprendeu na aula de Matemática na segunda-
feira com a lição sobre atrito na aula de Física da terça e com a sua observação de
um automóvel cantando pneus na tarde da quarta. E conclui afirmando que (…) para
a maioria dos alunos, infelizmente, ou a escola o ajuda a fazer essas pontes ou elas
permanecerão sem ser feitas, perdendo-se assim a essência do que é uma boa
educação (BRASIL, 1998, p. 36).
pelo qual as disciplinas têm seus conceitos apropriados na resolução de problemas ou para a
intervenção na realidade. As disciplinas, segundo o documento, não são diluídas; são
valorizadas em sua individualidade, ainda que, em sua condição individual, só possam ser
utilizadas no que serve à visão interdisciplinar baseada em desafios contextuais e na resolução
de problemas, em uma perspectiva similar ao que discute Beane (1997; 2003).
Ao mesmo tempo que as disciplinas são marcadores de uma visão antiquada e
desinteressante de currículo, são fontes para a constituição de soluções interdisciplinares para
supostos problemas da vida. Funcionam como propriedades de um conhecimento científico
que, embora imprescindível à formação do sujeito aspirado, não o capacita para operar em
todos os contextos da vida, pois tais conhecimentos, no formato disciplinar (estanque, parcial,
segmentado) como são apresentados atualmente, são reproduzidos como no modo de sua
constituição originária, o que não interessaria à educação média e suas finalidades (BRASIL,
1998). O conhecimento disciplinar escolar, dessa forma, é tomado como versão transposta das
disciplinas científicas (referências), fundamentais quanto ao acesso aos conhecimentos
acumulados, mas impraticáveis no que toca à vida experienciada pelos sujeitos no mundo ou
às experiências a que o mundo expõe os sujeitos.
A contextualização, nesse caso, serve à interdisciplinaridade com situações, projeções
de experiências por vir para as quais o currículo deve produzir respostas resultantes da
integração/interdisciplinarização dos conhecimentos disciplinares. O conhecimento novo, que
caracteriza e fundamenta o currículo a ser reformado, não pode, pelo que é defendido, ser
aquele ligado diretamente às disciplinas é resultado do imbricamento dos fundamentos
conceituais disciplinares com os contextos desafiantes da vida/mundo/trabalho (BRASIL,
1998). Se as criticadas disciplinas não podem mais continuar a organizar o currículo, delas
também é suposto que não se pode abrir mão, haja vista representarem os timbres
cientificistas que sustentam o que é considerado como básico para a formação para o mundo
(BRASIL, 1998).
A ideia de intervenção na realidade, no contexto, naquilo que certamente se faz em
contextos conjecturados é o que apoia a reforma curricular no sentido de concentrar no
conhecimento interdisciplinar a via de produção de um dado sujeito. O conhecimento das
disciplinas é assegurado como bloqueio ou problema do currículo, pois em sua organização
não possibilitaria formas amplas de interpretar o mundo e de nele intervir. Uma perspectiva
que, nos sentidos de reforma defendidos, hegemonizados neste momento da política (o texto
das Diretrizes), pode ser interpretado como aumento do controle, ainda que defenda formas de
emancipação e conscientização. Tendo em vista que o que é dado como ameaça leva à
186
impossibilidade de assegurar preparação ou formação dos sujeitos para contextos de vida que
já seriam dados a priori pela reforma, ao sujeito só caberia performar, contextualmente, as
soluções ensinadas ao longo do Ensino Médio. A própria afirmação de que o mundo é
dinâmico, mutante já poderia refratar uma visão de currículo pretendida como solução de tudo
o que é dinâmico e desconhecido a si.
Dessa forma, a integração curricular pode ser traduzida como tarefa docente que, em
suas práticas, precisa sintonizar, pela relação do ensino com a pesquisa, o tratamento do que é
lido como preenchendo uma disciplina com as demais, de modo a perfazer um currículo
“prático” interdisciplinar e, assim, levar os alunos a determinada condição (autonomia
intelectual). Dessa maneira, se mencionei que o sujeito dado pelo conhecimento nas
proposições das DCN e dos PCNEM pode ser pensado como tendo seus conhecimentos
controlados na restrição à sua utilidade prática/contextual, uma ideia de controle pode ser lida
como ainda mais precisa por meio da defesa à construção de um conhecimento neste
momento da política em que consistem os PCN+. Não só o conhecimento é aquele deduzido
do conflito entre o que importa das disciplinas na definição do problema contextual ou
contexto e como este funciona (trabalho, vida, sociedade, mundo) para a construção do sujeito
(cidadão, autônomo, crítico, estudante) como é introduzida, no que se lê por prática docente,
uma falta de “prática” (integradora) ao docente, que não se encontra como articulador do
currículo.
188
Esse alerta é importante para que não enveredemos por propostas supostamente
interdisciplinares que, na realidade, costumam apenas integrar diferentes disciplinas
no âmbito de algum projeto curricular. Um trabalho interdisciplinar, antes de
garantir associação temática entre diferentes disciplinas – ação possível, mas não
imprescindível –, deve buscar unidade em termos de prática docente, ou seja,
independentemente dos temas/assuntos tratados em cada disciplina isoladamente. Os
educadores de determinada unidade escolar devem comungar de uma prática
docente comum voltada para a construção de conhecimentos e de autonomia
intelectual por parte dos educandos (BRASIL, 2002, p. 22).
Essa perspectiva pode ser apoiada também na afirmação de que “disciplina alguma
desenvolve tudo isso isoladamente, mas a escola as desenvolve nas disciplinas que ensina e
nas práticas de cada classe e de cada professor” (BRASIL, 2002, p. 17). Cabe à gestão da
escola e aos docentes operacionalizar a proposta e, assim, constituir experiências
interpretativas e formativas do mundo que são dadas como desenvolvidas pelo que se lê por
currículo atual e como currículo a ser reformado (propostas curriculares, práticas curriculares
de professores em contextos escolares).
Para além dos textos disciplinares específicos a cada área, nas OCNEM (2004), em
função de sua expectativa de maior intervenção no contexto escolar, no que se lê por
“contexto da prática dos sujeitos”, é defendida a importância de que a proposta da reforma
seja assumida tanto no currículo da escola como em seu projeto político-pedagógico, de modo
que se possa construir maior e melhor aproximação ao currículo real, lido como praticado
pelos sujeitos no contexto das escolas.
As portarias que definem a REM (2008), assim como é defendido pelos PCNEM,
PCN+ e OCNEM (BRASIL, 2000; 2002; 2004), assinalam que o Programa Ensino Médio
Inovador, documento que o procede, deve ser caracterizado por uma organização integrada
dos conhecimentos, pela ruptura com o enciclopedismo dado pela organização disciplinar,
embora deva estar baseado em conhecimentos mínimos, mas interdisciplinares e contextuais
(para que façam sentido para a vida). Ainda é defendido, nesse sentido, que às escolas cabe a
elaboração democrática de seu currículo, levando em consideração seus locais e decisões
comunitárias.
Tal como mencionado anteriormente, assim como nos textos dos PCN+ e das
OCNEM, embora o documento da REM não tenha preocupações metodológicas, há a leitura
de que a reforma só será possível, realizável se forem controlados “teórica” e “praticamente”,
os elementos que constituem o currículo. Sem retomar esta ou aquela leitura curricular, mas
para além delas e no que aqui interessa como momentos de subjetivação curricular (repetidos
e traídos na própria repetição), como em um movimento de revolver aquilo que, em um aqui e
agora, é assumido como tradição, tem-se a tradução de uma busca pela conciliação do
189
currículo, como construção de um conhecimento que o caracteriza e falta, mas que precisa
fazer sentido no e para o mundo: conhecimento e contexto, para responder e constituir o
sujeito para a vida. Promessas de conhecimento para sanar aquilo de contexto desconhecido,
por meio de um sujeito que não se encontra, não está (pois há de ser produzido pelo currículo
para agir de forma tal no contexto).
O apelo a uma intencionalidade, defendida no documento do Proemi (BRASIL, 2009)
como algo de uma proposta a ser assumido pelos praticantes escolares, visa “organizar os
tempos e os espaços com ações efetivas de interdisciplinaridade e contextualização dos
conhecimentos” (BRASIL, 2009, p. 20). Ainda que seja defendida a liberdade e a autonomia
da escola na produção do que é denominado como currículo local/prático/real do contexto
escolar, pela valorização de suas características locais, culturais e da heterogeneidade, o
documento preconiza elementos fundantes e norteadores das práticas, como na definição de
que o que é realizado na atualidade não é produtivo a determinado anseio social e que,
portanto, precisa ser alterado. Tais sentidos circulam na defesa da interdisciplinaridade, no
argumento de que o problema da relação da escola com a comunidade não funciona dentro de
determinado padrão em razão do modo como os professores operam na condução ou
realização curricular, na afirmação de que somente pela reorganização curricular é que
teremos boas escolas. As atuais escolas, contextos de efetivação da reforma, estariam em
condição débil e precisariam se tornar capazes de realizar o que o atual currículo é incapaz:
incluir, emancipar, refletir, desenvolver, conhecer, responder à sociedade, comunidade,
juventude, mundo.
Emblemática para essa leitura é também a afirmação de que o Exame Nacional do
Ensino Médio constituir-se-á como meio de avaliação geral das escolas, ao mesmo tempo que
pondera que
Dessa maneira, o anseio social do jovem, do mundo a que se busca responder não é o
mesmo com que a escola lida. Se, por um lado, a extensão da argumentação em prol da
reforma também se sustenta na busca por constituir uma correspondência entre a escola e o
que é lido como sociedade, em suas formas de conhecer, e pontua que isso só é possível
190
quando a escola passa a reconhecer suas especificidades, por outro restringe a escola a um
fazer unitário definido por uma condição/identificação que lê a si como estando fora da
escola, fora do que pode ser a escola, alheia à escola (o suposto contexto de realização do
conhecimento/reforma).
O conhecimento deve ser contextualizado e interdisciplinar para dissolver o problema
da falta de sentido entre o que se supõe como ensinado e o que se entende por experiência
de/na realidade dos contextos da vida; ao mesmo tempo que têm a circunscrição da sua
contextualização e interdisciplinarização, as propostas de reforma constituem uma base
unitária, uma base nacional comum a todas as escolas/contextos, a ser auferida em sua
realização mediante o Enem.
A vida, a que se afirma precisar ser enfrentada pelo virtual sujeito do currículo, não
pode ser aquilo afirmado pelos próprios documentos como os desafios de um mundo marcado
pela incerteza, precisamente porque o conhecimento pode ser lido como restrito a formas de
interdisciplinarização e contextualização que também escapam aos contextos insondáveis com
os quais se pode defrontar em dada ocasião. Isso é dizer que, apesar de as respostas (que
possibilitam a interpretação desta subjetivação curricular do Ensino Médio) se voltarem à
afirmação de que a “realidade” em que se insere o contexto escolar deve ser parte contribuinte
da reforma, isso tende a ser projetado como circunscrito à função operacional, haja vista que a
contextualização deve se dar por intermédio de uma prática contextual que, se não pode ser
aquela desconhecida (justamente porque é contextual da vida, em um mundo incerto), só pode
ser a da proposta de reforma.
Assim, as possibilidades de “construir sentidos” para dado mundo, para o sujeito, com
base em determinado conhecimento transcendental aos contextos, têm, pelas afirmações da
reforma, o aumento do controle sobre o que é o conhecimento, o contexto e o sujeito do
contexto/do conhecimento. Pela afirmação do conhecimento é que são definidos o contexto e
o sujeito, bem como o modo como devem se relacionar. A experiência escolar, pensada como
espaço de efetivação (um contexto racionalizado no controle da reforma), só pode ser
reiterada como projetando, para além de si, uma experiência que tende a também não fazer
sentido, pois aquele desconhecido contexto de práticas curriculares não pode ser o de uma
identificação ou subjetivação, mas o de sua negação, pela afirmação apriorística de contextos
e sujeitos virtuais, prometidos por um conhecimento que não se encontra, mas que segue
sendo prometido como redentor do currículo, como o que lhe falta, com tudo que lhe falta.
Falta ao currículo da reforma o currículo que não acontece nas escolas, em todas as
desconhecidas escolas, contextos insondáveis de significação do mundo, de onde não escapam
191
sujeitos “transcontextuais” (pois só podem ser sujeitos naquele contexto ao qual não se
retorna). Falta ao currículo deixar de ser disciplinar, deixar de não formar os sujeitos, deixar
de não responder à alteridade que reclama. Falta uma tal organização capaz de encetar o
conhecimento do currículo em vias interessantes à alteridade que sequer é conhecida.
Uma organização do conhecimento central para a reforma é enfatizada também pelo
parecer que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL,
2012), no qual assinala que seu cumprimento deve constar de uma nova organização
curricular, marcada na distinção por áreas (Linguagens, Ciências Humanas e da Natureza e
Matemática) de conhecimento com “tratamento metodológico que evidencie a
contextualização e a interdisciplinaridade ou outras formas de interação e articulação entre
diferentes campos de saberes específicos” (BRASIL, 2012, p. 2). Ressalva que a organização
por áreas não
O que é lido como devendo ser evitado ou combatido é aquilo que se considera
caracterização da organização disciplinar (acúmulo de informações, falta de integração, falta
de contextualização, fragmentação e congestionamento). Mais do que somente assinalar a
oposição ao nome disciplinar, importa ainda a afirmação de que a interdisciplinaridade, como
meio de condicionamento à construção do conhecimento no que lhe faz surtir efeitos (sua
possibilidade de contextualização, de fazer sentido no mundo, de dizer respeito aos sujeitos da
escola, da vida, na vida), é o que dinamiza e assegura a reforma para que seus fins sejam
atingidos, ao afirmar que a “interdisciplinaridade e a contextualização devem assegurar a
transversalidade do conhecimento de diferentes componentes curriculares, propiciando a
interlocução entre os saberes e os diferentes campos do conhecimento” (BRASIL, 2012, p. 6).
As diretrizes são afirmadas como meio de superação do currículo baseado na
aprendizagem limitada à memorização, o que se daria pela reorganização curricular integrada
(BRASIL, 2012). Essa leitura é articulada no Projeto de Lei nº 6.840/13, que se volta para a
proposição de reformulação do Ensino Médio, tendo na reorganização curricular seu foco.
A proposta de Redesenho Curricular do Ensino Médio é reafirmada na segunda versão
ou edição do Programa Ensino Médio Inovador (2013c), que, pautando-se nas DCNEM
(BRASIL, 2012) e no PNFEM (2013b), define também o Enem como avaliação sistemática
desse nível de ensino. Assim, mantém a defesa da integração curricular via
interdisciplinaridade, tal como assinalado pelas DCNEM (2012), e estabelece o “foco em
ações elaboradas a partir das áreas de conhecimento, conforme proposto nas Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio e que são orientadoras das avaliações do
Enem”, assim como pontua o redesenho como estando caracterizado por “ações que poderão
estar estruturadas em práticas pedagógicas multi ou interdisciplinares, articulando conteúdos
curriculares de uma ou mais áreas do conhecimento” (BRASIL, 2013c, p. 11). Como
especificação para a integração interdisciplinar, pontua que tais ações devem estar vinculadas
“à vida dos estudantes, seus contextos e realidades, a fim de atender suas necessidades e
expectativas” (BRASIL, 2013c, p. 11).
A partir desses elementos norteadores do Redesenho Curricular, é definida sua função:
193
a escola deverá indicar os princípios e ações que estará adotando com vistas a
produzir maior diálogo e interação entre as áreas do conhecimento e componentes
curriculares/disciplinas, os tempos e os espaços com vistas a dar maior organicidade
ao conjunto de atividades didático-pedagógicas do Ensino Médio (BRASIL, 2013c,
p. 15).
O trabalho atribuído ao contexto escolar deve, de acordo com o Proemi (2013c), ser
articulado em áreas e voltado à produção de novos sentidos para a escola e tornar as
experiências mais dinâmicas, de modo a ressignificar saberes e experiências. Com a aceitação
dessa visão curricular, a escola passa a ser lida como garantidora do direito à aprendizagem,
por meio da integração curricular, que leva a abordagem ao conhecimento e, assim, ao
195
para um mundo que não se poderia encontrar, haja vista ser ponderado como dinâmico e
acelerado em mudanças. É possível ler, então, que mesmo o conhecimento delineado como
consoante à vida atual é limitado a uma projeção que sempre será alheia ao mundo, pois este
não se deixa apreender para ter seus desafios ensaiados.
Logo, a pretensão de constituir um conhecimento mais acertado, na busca por um
afinamento com o mundo exterior, pode também ser lida como movimento que, além de
controlador do que é ser sujeito pelo que se deve saber fazer em dado contexto, restringe as
formas de articulação dos próprios conhecimentos que são ditos excessivos ou enciclopédicos
do currículo atual. Pois, ao restringir dada forma de conhecer determinada leitura de mundo,
pautada em situações contextuais para as quais o sujeito deve estar preparado, incorre-se no
risco de não produzir resposta condizente com seus pleitos, oportunizando a frustração da
expectativa da reforma.
Daí a possibilidade de lermos que o mundo que exterioriza o currículo não pode ser
tão estruturante a ele ou a si, uma vez que é conhecido e desconhecido ao mesmo tempo.
Conhecido como pressuposto, ou urgência, à reforma; desconhecido em suas dinâmicas
plenas, pois o currículo não o promete em seus fins, mas uma preparação para aquilo que é
desconhecido como propriedade, como dinâmica transparente, como significado pleno. Dessa
forma, em não havendo conhecimento sobre o que é “devir mundo” do trabalho, da vida, da
família, da experiência pessoal, da produção de conhecimento, do sujeito, não há um dado
conhecido, ao mesmo tempo que é defendida a reforma como preparação para isso que se
desconhece e diz estruturar, fundamentar o movimento de reforma curricular.
Penso estar se tratando de um desespero disso (eu/moi), dessa subjetivação curricular
que busca deter ou aplacar aquilo que é estranhamente uma toda outra alteridade (DERRIDA,
2006), que a sonda e impõe questionamentos ao currículo, questionamentos que podem ser
supostos pelas respostas antecipadas (ou dadas [à morte]) pela subjetivação curricular que
decide responder frente ao que tem por bloqueio, ameaça, desafio, limite: uma lida
impossibilidade de constituir um conhecimento poderoso o suficiente para solução de tudo
aquilo que julga como ameaçador ou limitante a si, como a construção de sujeitos capazes de
dissolver desafios, questionamentos, problemas de uma vida que também não se encontra.
No conflito entre um currículo atual alienado do mundo, mas carregado de
conhecimentos dos quais também não se pode abrir mão, e aquele inovador, que precisa
produzir sentidos verdadeiros sobre o mundo, baseado nele, para projetar um sujeito naquele e
para aquele contexto, a proposta de reforma reitera a importância de que a preocupação
contextual não incida na banalização dos conhecimentos ou no abandono daqueles que são
197
transpostos à escola (os conhecimentos científicos), pois não poderia haver plena ancoragem
curricular em experiências contextuais, em razão de não levarem à construção sistemática ou
consciente das formas corretas de conhecer. Ou seja, o currículo proposto não pode prescindir
dos conhecimentos mobilizados pelas disciplinas na abordagem das experiências contextuais
às quais deve servir, resolver, sob risco de recair em um aprisionamento ao “espontaneísmo e
na cotidianeidade” (BRASIL, 1998, p. 46).
O conhecimento espontâneo, produzido na vida, nas relações cotidianas de conhecer e
ser no mundo, pontuado como o contrário do conhecimento sistematizado (da ciência),
também não pode preponderar em relação ao conhecimento integrado pela
interdisciplinaridade. Embora as críticas à organização disciplinar consistam também na
acusação de que esta forma de ler o mundo é restritiva frente à experiência e ao dinamismo da
vida e dos desafios, é o conhecimento científico, lido como o que alimenta o currículo
disciplinar (BRASIL, 1998; 2000; 2004) e, portanto, é por ele sinalizado, que fundamenta a
abordagem do contexto, do cotidiano, da experiência, para, então, chegar ao conhecimento
integrado.
Com essa perspectiva curricular, em que sentidos de conhecimento científico e de
conhecimentos cotidianos podem ser lidos como associados às distintas visões curriculares já
discutidas e que são pensados como subjazendo aos dualismos curriculares (entre a teoria e a
prática; entre uma formação propedêutica e outra de terminalidade; entre uma formação
pautada nos conhecimentos sistematizados e acumulados pela humanidade como ciência e
aqueles produzidos pela cultura, pela experiência da vida, do cotidiano), é possível chamar a
atenção para a busca por uma conciliação do pensamento curricular por meio do que se
defende como organização integrada via interdisciplinaridade, na qual o conhecimento é
capaz de transcender aos estancamentos da organização disciplinar e constituir sentidos
adequados ao que se pensa saber no cotidiano espontâneo. O conhecimento interdisciplinar
não pode abrir mão de alguma fundamentação do que tende a ser lido como conhecimento
científico, mas também nega sua suposta priorização no currículo, a partir dos sentidos de que
não é ressonante à realidade vivida pelos sujeitos ou não produz os sujeitos que mobilizam a
preocupação curricular da reforma.
Como meio de assinalar a importância e os limites do que é ponderado como
conhecimento cotidiano, ao longo do texto são postos em circulação sentidos como o de que,
apesar de o conhecimento da experiência, da vida, do trabalho, no e do mundo sejam
importantes para a construção de “significados verdadeiros” sobre o mundo, este é importante
para a consecução do conhecimento integrado que baseia a reforma. O conhecimento
198
reflexões a que é submetido, precisamente porque é constituído por uma proposta mais
restritiva de conhecer. Mais do que isso: se os contextos do mundo dinâmico são fixos, o
sujeito (cidadão, trabalhador, estudante) é o que sabe somente o que pode ser utilizado na
solução de problemas previstos, possivelmente alheios também àquele mundo que introduz
incertezas, que é exterior ao currículo, cuja dinâmica está para além do controle curricular.
Como já mencionado, se o mesmo mundo que questiona o currículo e a reforma, que o
constitui como resposta em reforma, é dado como dinâmico, incerto e desconhecido em suas
propriedades, os contextos que o perfazem e aos quais o sujeito estará exposto não podem ser
preenchidos (sequer conhecidos) pelos desafios dados a priori por uma razão curricular. Dito
de outro modo: o que a subjetivação curricular propõe como motivação para a reforma, per si,
não poderia responder aos anseios desconhecidos de um mundo intangível, mas que se busca
deter. O sujeito, ao defender a proposta, teria sua experiência restrita a contextos aos quais
possivelmente não será exposto, pois são imprevistos, assim como o mundo a que se afirma
referir. Se o conhecimento deve ser produzido, se os conteúdos ou lidos conhecimentos
disciplinares (do currículo atual) são refutados em função do que interessa ao tratamento de
experiências virtuais, menos se teria de acesso a um suposto conhecimento atual (mais amplo,
desnecessário e dissonante do mundo).
Sem constituir defesa para esta ou aquela organização curricular, no registro da
polarização possível pela qual se pode ler este conflito interno à política curricular, soa
interessante supor que justamente pelo fato de o mundo estar mudando e ser desconhecido e
incerto é que não se deveria investir na formação de um sujeito cuja exposição ao que é
assumido como conhecimento (uma propriedade) se dá por linhas restritas a problemas
fixados a priori da experiência no mundo. A justaposição das afirmações pode levar à
interpretação de que o controle sobre o que é ou deve ser o sujeito, a partir do que deve ser
conhecido, é mais restritivo em relação ao mundo do que a visão curricular que se diz atual e
deficitária, precisamente por esta ultima não assumir a presunção de preparar especificamente
para a resolução de problemas específicos de determinado contexto, mas é definida como
enciclopédica.
Se o nome a que se opõe a reforma/redesenho, o currículo/nome disciplinar, é dado
como possuidor de sentidos de fragmentação de conhecimentos, apartado do mundo, da
experiência, do sujeito, da solução dos problemas, da falta de preparação do sujeito para a
vida, que não faz sentido no contexto, a interdisciplinaridade é significada como a via
produtora da integração, do sentido mais adequado ao mundo, do acesso ao contexto de
experiência do sujeito, de sua preparação de sua formação para o mundo, por meio de um
200
passa a ser pensado como potente para a consecução ou produção de tal conhecimento ainda
não possuído pelo currículo, mas a ser adquirido ou constituído na formação de sujeito para
atuar em um mundo.
No entanto, a mesma crítica dada à organização disciplinar pode ser reativada na
defesa da integração. À medida que o disciplinar, visto como atual e ultrapassado, precisa ser
superado para que o currículo possa responder aos anseios de uma sociedade inserida em um
mundo de incertezas e em constante mudança, o interdisciplinar é assumido como capaz de
construir significados e sentidos para o sujeito pelos conhecimentos coerentes com o que é
dado como mundo (integrado).
Se esse mesmo mundo que é tomado como desconhecido é lido como inquietante pela
subjetivação que defendo se constituir nas decisões pela reforma, não se apresentando em
presença, mas sendo visto em seus questionamentos como inquirindo o currículo em suas
capacidades de respondê-lo por distintos nomes (preparação para o trabalho,
integração/fragmentação de conhecimentos, formação de sujeitos competentes, construção de
significados, inclusão social/à sociedade/comunidade/mundo/contextos), é caracterizado
como tendo um tal conhecimento correspondente/preenchedor fixado em uma propriedade
chamada de conhecimento. Com essa possibilidade interpretativa, é inserida a oportunidade
de afirmar que a reforma não deixa de assumir a necessidade de que o currículo disciplinar (o
atual e descontextualizado/fora do mundo) precisa mudar/deixar de ser, mas deve se manter
respaldando, pelos conhecimentos que se afirma estofarem as disciplinas, de modo a
assegurar formas de conhecimento que, ainda assim, precisam ser
interdisciplinarizadas/integradas com vistas à solução dos problemas, superação dos
limites/ameaças.
A repetição dos nomes, a reiteração de suas potencialidades em momentos de
respostas distintos fazem um cenário possível em que o sujeito curricular pode ser pensado
como negando a si mesmo, na negação/afirmação hesitante, como uma rejeição que passa a
dar consistência ao que supõe ser a melhor forma de resposta a uma alteridade que não se
encontra, mas da qual não se pode fugir.
202
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inclusive pelas motivações teóricas que me trazem a este texto, penso não haver
problema ou proibição em negociar sentidos de currículo como conhecimento, desde que o
nome conhecimento não seja remetido à experiência do acesso a qualquer propriedade no
mundo, não fomente a exclusão, embora dela não se possa escapar. Se, como nome, o
conhecimento está exposto à traição, sendo traduzido diferencialmente, e pode, portanto, “vir
a ser” aquilo outro do currículo produzido na relação com a toda outra alteridade,
imponderável e irrepreensível, penso em sua projeção no campo discursivo como algo potente
para uma leitura de democracia radical que seria mobilizada por uma contingência radical
(LOPES, 2013; 2014) que, como o adjetivo que a segue, impõe a perspectiva de que a
subjetivação, a afirmação, a decisão só pode ser dada em uma contextualização radical, esta
sim capaz de significar como conhecimento aquilo mobilizado como resposta/decisão no
contexto.
Não se trata de bloquear aquilo que é afirmado como produção da ciência nem aquilo
que é lido como capaz de auxiliar a compreensão do que provisoriamente se lê por mundo.
Importa que tais termos não sirvam à defesa da circunscrição dos termos do debate sobre
conhecimento no currículo. Mas a atenção laclauniana à lógica da equivalência também pode
estar acenando para essa vontade de circunscrever os termos de um debate em um campo
discursivo, como é o currículo. O que o referido teórico também pontua é que, apesar da
vontade, da aspiração à circunscrição, a pulsão é traída em sua própria afirmação.
Sempre se (e a si) responde a toda outra alteridade; sempre tentamos nomeá-la ou aos
seus serviçais os nomes e adjetivos que dizemos sintomatizar seu questionamento inexorável.
Mas, especificamente pelos argumentos que definem esta tese como associada a uma
perspectiva pós-estrutural, não se supõe o encontro com as coisas mesmas, com os
fundamentos, com “o que de verdade está acontecendo”. Todo empenho é, portanto, refratado
em uma expectativa de aproximação ao que se diz ser dado objeto, problemas, dinâmicas.
Como argumentado, a partir dos trabalhos de Lopes e Macedo (2011), se o currículo
não é uma propriedade, mas uma construção discursiva, disputada em sua significação, isso já
incita à não contabilização de núcleos duros ou pressupostos transcendentais. Por tantas
palavras, termos, expressões, conceitos, horizontes, sujeitos, futuros, sociedades, jovens,
disciplinas etc., esta tese poderia ter consistido em uma análise de um dos termos, do modo
como são justapostos, como são lidos contraditoriamente em diferentes textos ou momentos
da política, como são funcionais ou não para determinada verdade curricular. Mas o
investimento aqui foi de chamar a atenção para o quanto, por meio de distintos nomes postos
em circulação em um texto mais amplo da teoria política curricular, é repetida, reiterada,
205
reafirmada uma estruturação curricular pelo nome conhecimento, como meio pelo qual se é
ou pode ser currículo, na provisoriedade dos momentos voláteis que foram destacados.
Tanto no que se tende a ler como construções teóricas quanto no se apreende como
documentos políticos, é marcada uma performance de repetição do conhecimento como
fundante da menção curricular, uma afirmação do que é o currículo, frente a algo
imponderável, toda outra e alteridade, que se tenta encontrar ou projetar por meio de nomes
como sociedade, sujeito, desafio da vida, contexto. Na busca por compreender e racionalizar
isso que é lido como exterior e questionador do pensamento/política curricular, o
conhecimento é hegemonizado, ao mesmo tempo, como o que falta e o que estrutura o
controle da subjetividade curricular.
Tal como ponderado por Derrida (2011), a estrutura que se afirma não pode ser
encontrada ou reconciliada; só se tem sua suposição plausível por uma aspiração de razão,
transparência ou logos estando além dela, o que projeta um centro, uma tentativa de centro
para além de uma estrutura controladora do outro a quem se volta. Assim, a possibilidade de
deter, de uma vez por todas, a estruturação curricular precisaria assegurar seus limites, e para
fazê-lo precisaria ter poder de estar fora dela ou conhecê-la para além dela, de modo a garantir
sua circunscrição. Mas o que falta à complexificação da estruturação curricular é dado por
aquilo que a subjetivação a que me refiro propõe como conhecimento, responde como
conhecimento.
Conhecimento que falta ao currículo, à sua consolidação, ao seu significado no
mundo. Um conhecimento que não se encontra, que é perscrutado e revolvido nos
argumentos, nos momentos textuais, na construção de uma história, para afirmar ou negar
seus rumos e potencialidades: pleno no mundo; antiquado; capaz de responder a tudo que é
dado como nomeação de questionamento, de exterior, de ameaça a isso que se diz currículo; à
formação de sujeitos para um mundo que não se encontra, à construção de sujeitos que não se
consegue fazer; à produção de soluções para o trabalho, para as relações humanas, para a
valorização de uma base nacional, para a construção de um conhecimento unitário, mas que
seja, ao mesmo tempo, potente na significação das culturas regionais, locais, comunitárias;
que atenda ao outro, que responda a todos os questionamentos.
A busca pelo tão reclamado significado (e por tudo que possa dizer respeito ao
currículo), sua fixação, a fixação do significado daquilo mesmo que é furtivo ao currículo,
constitui a decisão pelo controle, pelo controle do outro ameaçador, pela sua presença
ausente, fantasmática, pelo que é lido como uma propriedade a que o currículo pode recorrer.
Um dado seguro, mas que também não encontra e é revolvido na projeção de um debate que
206
se pode ler como também caro à subjetivação curricular: a tensão sobre a organização
curricular, entre uma articulação discursiva disciplinar e o currículo integrado, mas via
interdisciplinaridade.
A interdisciplinaridade que, como exemplificando a busca do currículo por uma
conciliação interna, possibilita reiterar como o conhecimento é alçado à condição de
pressuposto ou sinônimo curricular. Um nome a que se atribui o fazer conhecimento
curricular para um mundo lido como reclamando por aquilo que o currículo não possui, um
conhecimento que não possui (mas que parece ter sido, estar, vir a ser curricular), mas a que
precisa responder. Uma sintomática que quer sanar o currículo, seus binarismos, distensões,
limites, impropriedades, descontextualização, falta de comunicação entre o macro e o micro,
entre a cultura, o contexto de vida, os fazeres do sujeito, onde quer que esteja, seja e faça.
As propostas adiam uma e outra à solução, à satisfação de uma condição a que o
currículo, como subjetivação provisória, visa chegar. Tudo o que é problema interpretado
como de trato curricular é assumido como podendo ser resolvido por aquilo que é suposto
como a propriedade fundante do currículo, o conhecimento. Daí ao revolvimento de sentidos,
histórias e tradições que possam vir a estofar, ainda que momentaneamente, a reposta dada ao
outro, limite, bloqueio, imponderável do currículo.
Destacar o quanto perspectivas de trabalhos de diferentes autores mencionados, por
exemplo, podem ressoar em distintos e incomensuráveis momentos do pensamento político-
curricular não interessa para levar à direta leitura de que o autor possa ter influenciado na
confecção desse instante. Mas importa aproximar de um panorama de repetição do
pensamento curricular, que não tem gênese, sendo repetido e relembrado pelos trabalhos
desses autores. Trata-se, a meu ver, de leituras de currículo que reincidem em e de uma
concepção de currículo como tradução de alguma forma de intervenção que precisa conter
algo impeditivo da plenitude disso que penso ser uma subjetivação curricular. Que não se
apresenta em presença, mas quer ser um efeito permanente, sempre provisório, em
provisoriedades aspiradas à permanência. Com essa perspectiva, torna-se interessante afirmar
que a luta política, a textualidade em que se constitui o pensamento político-curricular
consistem também na promessa daquilo mesmo que não se pode alcançar, da propriedade que
não se encontra, do contexto ao qual nunca se chega, do sentido que sempre é traído em sua
afirmação ou recuperação.
Com isso, importa o destaque com que a agenda curricular possa ser pensada também
como nunca sendo a mesma, mas tentando encontrar conciliação consigo, talvez por medo de
deixar de ser (por deixar de ser conhecimento, deixar de afirmar possuí-lo ou poder alcançá-
207
lo), pelas promessas feitas àquilo que a subjetivação curricular interpreta como
questionamento exterior a si. Sem tentar reinserir uma proposta terapêutica no desespero
curricular, pois é justamente isso a que se volta a crítica deste trabalho, argumento sobre a
oportunidade de, frente à impossibilidade de não decidir/indecidir, questionar se não seria em
função das projeções daquilo que não se encontra ao currículo, mas que deve ser alcançado,
que a experiência escolar, o sujeito, o futuro, não seriam termos causadores de frustração ou
se não se constituiriam em agressões constantes ao que se lê por currículo, pesquisa, práticas.
Não se trata de encarnar a diferença/toda outra alteridade no que acontece nesta ou naquela
escola, contexto, ou em algo feito por aquele aluno, professor ou outra identificação ou leitura
de mundo, mas de conceber que as produções lidas como alheias à proposição estruturantes
do currículo podem indiciar possibilidades de abertura da negociação com a alteridade, de
pensar outras formas de leitura da produção curricular, de conceber todo envolvimento como
produção político-curricular. A promessa de que a solução/resposta última a toda alteridade
curricular será dada por meio de dado conhecimento que não se encontra, mas que há de ser
produzido aqui ou ali por este ou aquele outro sujeito em dado contexto organizado de tal
forma, constitui endividamento insolúvel à subjetivação curricular.
A busca por uma “consolidação” do edifício curricular em construção, que aqui torno
afeita à metáfora derridiana da Torre de Babel (DERRIDA, 2006b), passa por uma aspiração à
conclusão daquilo para o que não há conhecimento fundamental, idioma único ou preparação
técnica: o acontecimento (talvez) da interpretação do currículo como produção discursiva,
como ressalto que o currículo não pode encontrar a si enquanto propriedade; como verdade
constituída provisoriamente e marcada pela adulteração, pela doação à morte, pela traição
inconsciente de um todo fazer suposto como atado a um compromisso racional, a uma
teleologia, a uma verdade última, que é aplacada pela falência daquilo mesmo de que julga
dar conta, atender, resolver, enfrentar.
Por conceber que os pressupostos ao currículo (como podem ser o conhecimento, a
sociedade, o sujeito, a organização curricular, o contexto) são instáveis, toda projeção
curricular é pensada como tendo seu lançamento conjecturado em bases que já não podem ser
encontradas, como que buscando cumprir contratos cujos termos são móveis e opacos e que,
portanto, impõem a todo envolvimento de identificação com o currículo um movimento de
desespero por controlar o que “aqui” e “ali” se quer afirmar ser o cerne curricular, seus
fundamentos, seus objetivos, seus sujeitos, seus conhecimentos, suas avaliações, seus agentes
e seus fins. Tudo em suspensão pela via dos investimentos pós-estruturais que tenho feito com
esta tese torna impossível a seara de uma racionalidade curricular transparente. Mas penso ser
208
viável, pelo que tem sido discutido por aqui, justamente a reiteração de uma suposta
transparência na relação com outro o que impõe o dinamismo pelo controle. Possivelmente
porque no campo da transparência, das propriedades de si mesmas e do controle de um outro
que se quer definir como aquele exposto à minha razão (de um “eu”) não se encontra aquilo
que sempre irrompe e que faz com que a região curricular (suposta como) transparente seja
sempre a tímida projeção de um cosmo irregular com que se tem de lidar, do qual não se pode
furtar ou fugir. Este/Isto estranho é imperativo, inquisidor, uma toda outra alteridade que é
(sempre) toda outra (DERRDIA, 2006a), que fala todas as línguas, mas sempre opera um
idioma estranho, que traduz toda intenção como cabe, ou deixa caber, na imersão de uma
linguagem que, em sendo opaca, não deixa passar a luz da razão (de uma tal), a claridade de
um todo e melhor saber para o outro, fazendo das racionalidades dos pleitos a si sempre
flagelados.
Não penso que seria possível a cura, a plenitude de tal condição à subjetivação
curricular. Distante de uma busca por tal objeto ou significado de cura, entra em questão a
perspectiva de assumir que a projeção curricular consiste nessa afirmação denegatória daquilo
que é devir, que impele a responder o que não se sabe, mas não se pode não fazer. A procura
por uma razão, melhor feito, melhor abordagem curricular seria, por estas linhas, um trabalho
de limitação, de negação daquilo que não se conhece e, portanto, não pode tratar de fato e em
verdade. A vida, como um significante que pode ser pensado de maneira interessante aqui,
perfaz uma parte mais ampla e inacessível a toda tentativa de construção de aparatos
curriculares de controle. Considero ser a afirmação do conhecimento no currículo como uma
hegemonia de longo curso que, ao ser revisitada por uma perspectiva de inspiração
desconstrucionista, por ter sua afirmação condicionada na foraclusão, na expulsão daquilo que
não cessa de reiterar, de afirmar como resposta ou propriedade, como caracterização de si.
Não podendo caracterizar-se como a (im)própria vida, o currículo pode ser lido como
aberto a ela. Isso pode se tornar um convite à reflexão curricular (pensamento político-
curricular) quanto às expectativas de que as coisas podem encontrar a si mesmas, podem ser
delineadas e assegura um horizonte de falência do qual não se escapa. Mas a não afirmação de
algo para ou sobre o mundo, a vida, o futuro, parece também não ser possível. Sempre se
decide. Meu investimento, portanto, está voltado à perspectiva de que, uma vez que o
currículo não pode conter a vida, gerenciá-la, podemos reorientar possibilidades
interpretativas e propositivas no sentido de conceber que o que se faz, nos fazeres
curriculares, só pode ser aquilo mesmo da vida, nos mais distintos contextos em que
209
possamos estar, em que julgamos estar, também decidindo, afirmando currículo, para além de
consciências e certezas.
Tal oportunidade está apoiada também na visão de que, não podendo extirpar os
sentidos metafísicos que possibilitam a produção de teses, a experiência curricular traz a
leitura de que sempre se está alheio às verdades da subjetivação, em uma contextualização
radical. Isso é dizer que a perspectiva de controle do outro via sujeito é tão reiterada, repetida
quanto a dinâmica furtiva disso a que se afirma voltar. Pensar o currículo como construção
discursiva, como edificação babélica pode não dissolver o íntimo abismo na relação com a
alteridade, mas pode reeditar a expectativa de envolvimento, levando ao foco no investimento
radical na relação com o outro. Um investimento em que, munidos de expectativas e
objetivos, operamos a ideia de que o currículo é parte da vida, não sua proposição e crivo. A
experiência curricular é dada à alteridade, de maneira que nossos resultados sejam
compreendidos como provisórias afirmações, resultantes contingentes das negociações.
Especificamente porque há tempos, nas muitas temporalidades pretendidas para a
subjetivação de uma presença de si, projetamos e buscamos culpados pela ineficiência, pela
inexatidão, pela não efetivação alhures, parece haver uma esperança rígida de combate àquilo
que é afirmado como exterior/oposição/ameaça. Nomes como o disciplinar, a crise, o sujeito
ineficiente, a falta de conhecimento e tudo o mais lançado à condição de doença a ser sanada
pelo conhecimento não deixam de ser formas de projetar, tal como pontuado por Macedo
(2014), os próprios termos da crise e sua solução, o que oportuniza a retroalimentação de uma
crise, de uma falta de objeto a ser encontrado pela solução da crise, que é faltoso a isso
mesmo que afirma a crise e detona o desespero da subjetividade.
No caso desta tese, busquei tornar emblemático tal movimento por meio da
circunscrição do problema do currículo ao nome conhecimento, como sua estruturação, suas
vias de realização e, nesse sentido, uma vez assumida sua falta como possível epicentro da
crise ao mesmo tempo que é dado como pressuposto, é lançada à organização curricular a via
de solução, como modo de viabilizar o acesso e/ou o acionamento do conhecimento,
circunscrevendo o debate curricular a esses termos. Dessa maneira, uma vez decidida a
melhor forma de organização do conhecimento, todos os problemas curriculares estariam
resolvidos. Mas segue a repetição de um conhecimento fundante, capaz de solucionar um todo
problemático aflitivo da subjetivação curricular. Um conhecimento que é afirmado de
diferentes maneiras, nome disputado por distintas cadeias articulatórias, mas conhecimento.
O nome conhecimento é, ele mesmo, afirmado como propriedade e estranho ao
currículo. O conhecimento pode funcionar como busca curricular sob a promessa de encontrar
210
sua plenitude e ser de vez por todas e finalmente. Mas também aquilo a que se opõe, pois em
sendo desconhecido em sua propriedade, lutar por sua significação poderia levar a aplacar
significados outros, controlar aquilo desconhecido que pode levar a subjetivação ao seu fim.
Uma ameaça poderia estar em seu próprio (des)encontro com o conhecimento, tão repetido
como propriedade, como meio para que seja. Se fosse possível encontrá-lo, realizá-lo, com
tudo que é prometido na relação com esse nome, poderia ser o apocalipse da subjetivação
político-curricular. A cura de sua falta, de seu desespero é, ao mesmo instante, remédio e
veneno (DERRIDA, 2005), sua aniquilação, pois, como ressalta Laclau (2011), se aquilo
outro a que se julga opor fosse encontrado e destruído, “eu” deixaria de existir, de ser.
Com essa perspectiva, retomo os convites de Macedo (2012) e Lopes (2014) à
desconstrução do nome conhecimento no campo do currículo, de modo que seja atravessado
com abertura às possibilidades interpretativas, às leituras contextuais, a enfoques que não
estejam pautados em certezas concebidas a priori, mas que se possa investir em linhas plurais,
em uma democracia por vir, marcada pela possibilidade de ler o conhecimento como
produzido na própria negociação sobre o que vem a ser o mundo.
Não suponho, com esta investigação, poder atender ou sanar a expectativa de controle
que poderia assumir como o que mobiliza a produtividade do campo do currículo, mas penso
contribuir para que a conversa na fronteira curricular, no que toca ao conhecimento (como
significação por vir), compreenda a diferença como dinâmica irresistível. A meu ver, esta não
é uma atitude beneficente a(o) quem(que) quer que seja, a alguma identificação já dada. Mas,
tal como destacado por Borges e Lopes (2015), trata-se de um convite à razoabilidade no
debate, pois ao mesmo tempo que se pode ler a produção curricular como aumento da
prescrição na definição de políticas de currículo, é possível interpretar desespero de uma
identificação que supõe estar bloqueando aquilo inenarrável e imponderável, todo outro, via
aumento do controle. Mas se o todo outro que incita toda decisão não pode ser cogitado, o
aumento do controle, da precisão com sua ação excludente tende a aumentar o próprio
desespero denegatório.
Para que, então, essa pretensa intervenção ou inscrição no pensamento político
curricular, o que denomino por tese? Pode servir também à expectativa de alinhamento e
ampliação de diferentes investimentos teóricos, investigativos, que circulam no campo do
currículo, que, atados ao compromisso pós-estrutural, pós-fundacional e pós-crítico, acenam à
negociação de sentidos, à compreensão da alteridade e de uma contextualização radical da
experiência curricular como potência interpretativa e propositiva de currículo.
211
Esta tese quer chamar a atenção para o quanto é possível ler uma dinâmica de
estruturação via conhecimento em diferentes momentos de um pensamento político-
curricular. Isso não é um problema do ou com o nome conhecimento; trata-se, em razão da
aproximação com as leituras pós-estruturalistas aqui discutidas, de destacar que as
possibilidades estruturantes estão dadas a qualquer nome, a qualquer significante. O problema
estaria no pressuposto fundacional à reflexão curricular, do que penso não ser possível fugir,
mas ao que argumento poder reagir com um convite ao afastamento ou rejeição à presunção
de centro na relação com a vida, com a alteridade. E isso não consiste em um favor, mas na
assunção de que a repetição do centro nos afasta de possibilidades outras envolvidas na
expectativa de compreender e dialogar no currículo.
Trata-se de pensar uma perspectiva centrífuga aos movimentos de estruturação
curriculares ou ainda um investimento marginal que, para além do pressuposto de fuga de um
centro do currículo, que não se encontra a si, aposta em uma contínua atenção ao que se pode
ler como margem curricular, que a razão ou lógica calculista, pretensamente plena a si, não
acessa.
Para além de toda busca pela racionalização, a consideração da tradução, da alteridade,
daquilo inatingível, imponderável, pode ser uma forma de ler o pensamento político-curricular
por uma via que, embora não possa não acionar formas racionais de ler o mundo, se concentre
na razoabilidade. Nisso penso haver possibilidades razoáveis de afirmação do currículo como
aquilo que está para ser produzido, sempre em resposta contextuais, com base em decisões em
um aqui e agora na relação das muitas agendas que intersectam na vida e, portanto, na escola
e para além dela.
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