ARTIGO Do Efeito Ao Paradigma
ARTIGO Do Efeito Ao Paradigma
ARTIGO Do Efeito Ao Paradigma
keywords: The paper aims to characterize the relation between spectators and images and,
spectator; image; Narcissus;
therefore, uses the mythological figures of Narcissus, Pygmalion and Medusa,
Medusa; Pygmalion
routinely used to talk about pictures. Often, Narcissus is associated with self-
-representation; Medusa with photography and death and Pygmalion with the si-
mulacrum. However, in a brief footnote, W.J.T. Mitchell talks about the “effects”
that images provoke in viewers, establishing a relationship between spectators,
images and these three paradigmatic figures. This paper proposes to expand
*Professora no Departamento
Mitchell´s view and assume that the three myths contain the main elements to
de Teatro da Escola Superior
de Teatro e Cinema do follow the relationship between spectators and images.
Instituto Politécnico de Lisboa.
Poema visual de
Wlademir Dias-Pino,
publicado em 1971.
DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2178-0447.ars.2015.106083
150
Imagens vivas Marta Cordeiro
Do Efeito ao Paradigma:
Narciso, Medusa e Pigmalião
A resposta à questão formulada no título do texto de Mitchell,
What do Pictures Want?2, depende de aceitar a personificação das ima-
gens, de aceitar tratá-las como pessoas. A tarefa não parece difícil, uma
vez que as imagens exibem quase todas as características das pessoas:
“(…) um corpo físico e um corpo virtual; falam connosco, por vezes li-
teralmente, outras vezes figurativamente. Apresentam, não apenas uma
superfície mas uma face que encara o espectador”3. Mitchell observa
que, apesar dos indivíduos saberem que as imagens não são seres vivos
e que não querem, de facto, coisas, comportam-se muitas vezes como
se as imagens fossem seres animados e tivessem desejos, fenómeno que 1. O artigo resulta da tese
de Doutoramento de título
designa de “dupla consciência”4. Nessa análise, o autor socorre-se de
O Corpo como Imagem e
exemplos como a idolatria, o fetichismo, o totemismo ou, contempora- as Imagens do Corpo na
Contemporaneidade, 2013.
neamente, dos amores e ódios em torno de imagens como a da ovelha
Dolly (símbolo da controvérsia em torno da clonagem) ou da queda das 2. C.f.: MITCHELL, W. J. T.
What do Pictures Want? The
Twin Towers no 11 de Setembro (símbolo do capitalismo ocidental).
lives and Loves of Images.
Mitchell afirma que, mais do que expressar o desejo do autor ou Chicago: The University of
Chicago Press, 2005.
despertar desejos nos espectadores (ou nos espectadores-consumidores
porque integrados no mercado de massas), as imagens também têm dese- 3. “Pictures are things that
have been marked with all
jos, o desejo pertence-lhes. O enfoque na questão do desejo é consequên-
the stigmata of personhood:
cia da crítica que Mitchell faz à teoria da cultura visual que, por norma, they exhibit both physical and
virtual bodies; they speak
argumenta a favor da existência de um poder político associado às ima-
to us, sometimes literally,
gens, um poder suficientemente forte, para ser capaz de determinar as sometimes figuratively. They
present, not just a surface,
acções dos espectadores; nesse capítulo, recusa aceitar que, por exemplo,
but a face that faces the
os vídeo-jogos violentos sejam a causa da violência juvenil e, apesar de re- beholder”. Idem. What do
Pictures “Really” Want? In:
conhecer parte da justiça do argumento, afirma que o poder das imagens
October 77, 1996. Disponível
é bastante menor do que aquele que lhe é atribuído, e que as imagens em: http://digitalhistory.
concordia.ca/courses/
podem confrontar ou sustentar o poder político sem que, “(…) no fim do
hist403w08/wp-content/
dia, nada se altere”5. Assim, considera necessário reformular o ponto de uploads/2008/02/mitchell.pdf.
Acesso em 2011.09.13.
vista da análise que, em lugar de perguntar pelo que as imagens fazem,
deve questionar aquilo que elas querem, trocando a acção pelo desejo. 4. MITCHELL, W. J. T. What do
Pictures Want? The lives and
O título da obra remete para questões anteriormente levantadas
Loves of Images. Op. Cit., p. 7.
– What does the black man want?, por Franz Fanon, ou What do woman
5. “Pictures are a popular
want?, por Freud –, nas quais o sujeito da frase se identifica com as de-
political antagonist because
signadas minorias e que justificam o facto da análise de Mitchell partir one can take a tough stand of
them, and yet, at the end of the
da identificação entre a imagem e a mulher, a imagem como mulher. “O
day, everything remains pretty
que é que as imagens querem?” é, então, inseparável de “o que é que as much the same”. Idem, p. 33.
151
ARS mulheres querem?”, e, para o saber, Mitchell socorre-se da narrativa de
ano 13 Geoffrey Chaucer, que, no século XIV, escreveu Wife of Bath Tale: no
n. 26 conto, um cavaleiro é acusado de violentar uma donzela e, para escapar
à pena de morte, tem que conseguir esclarecer a rainha relativamente
ao que as mulheres querem acima de tudo. A resposta correcta é mais-
trye, um termo complexo que tanto evoca o poder legal e consentido,
como o adquirido através da astúcia. Como as mulheres, as imagens
desejariam, acima de tudo, ter poder sobre o espectador, trocar de po-
sição com ele, transformando-o numa imagem, acção que remete para
a figura de Medusa, o que, por isso, leva Mitchell a caracterizar esse
desejo como o “efeito Medusa”, a criatura que transforma em pedra
quem quer que encontre o seu olhar.
No mito narrado por Ovídio, Medusa é uma mulher bela que é
castigada pela deusa Atena por se ter envolvido com Poseidon, deus do
mar, no templo da deusa. Atena faz de Medusa um monstro com a ca-
beça coberta de víboras, e Perseu é o herói incumbido de a matar. Para
realizar o seu objectivo sem ser petrificado, Perseu utiliza um escudo de
bronze que reflecte a criatura, para, enquanto ela dorme, cortar-lhe a
cabeça. A decapitação permite que Pegasus e Chrysaor, filhos da união
entre Medusa e Poseidon, nasçam. Perseu apodera-se da cabeça da gór-
gona para obter o poder de transformar os seus inimigos em pedra e,
mais tarde, oferece-a a Atena, que a coloca no centro do seu escudo.
Mitchell afirma que as imagens se encontram intimamente liga-
das ao desejo, porque expressam desejos e, simultaneamente, ensinam
a desejar.
Substituir a pessoa pela imagem é aquilo que Medusa não cessa
de fazer, acção que é nuclear, ainda, aos outros mitos que Mitchell cita,
o de Narciso e o de Pigmalião. Ovídio conta que Narciso é um adoles-
cente belo, filho de uma ninfa, que, desde cedo, sabe que apenas viverá
se não se conhecer. Jovens e donzelas apaixonam-se por ele sem serem
correspondidos, uma delas a ninfa Eco, condenada a repetir apenas as
últimas palavras que ouve. Um dia, ao passear pela floresta, Narciso
pára para beber água numa fonte e apaixona-se pelo seu reflexo nas
águas. Narciso acredita estar em frente a um outro indivíduo e, quando
percebe que este é apenas um reflexo, deseja separar-se do seu próprio
corpo; Narciso não consegue abandonar a imagem e acaba por morrer.
Em Pigmalião, conta-se a história de um escultor exímio que decidiu
nunca se apaixonar por uma mulher. Pigmalião esculpe no marfim a fi-
152
gura de Galateia, de beleza superior à de qualquer mortal e, ao terminar, Marta Cordeiro
fascinado pela sua beleza quase carnal, Pigmalião apaixona-se pela sua Do Efeito ao Paradigma:
Narciso, Medusa e Pigmalião
criação, abraça-a e beija-a. Ao observar a cena, a deusa Vénus decide
transformar a escultura numa mulher e Pigmalião casa com Galateia.
Nos três mitos, encontra-se a passagem da pessoa à imagem e da
imagem à pessoa: ao petrificar os indivíduos, Medusa retira-os do espa-
ço da vida, da mudança contínua, e torna-os estáticos, atributo da ima-
gem parada; em Pigmalião ocorre o inverso, a passagem do estatismo da
imagem ao movimento da vida; e, em Narciso, o mesmo indivíduo é real
e imagem, e, em virtude da paixão, o indivíduo real torna-se estático a
ponto de morrer, e a imagem, que apesar de parada se move com as
águas, adquire atributos humanos através da voz que Eco lhe empresta.
Ao identificar estes “efeitos”, Mitchell descreve o caso de Narciso como
uma ilusão ou engodo que captura o espectador; Medusa como o char-
me endereçado pela imagem que transforma em pedra o espectador, e
Pigmalião como a fantasia que coincide com o desejo do espectador6.
Quando responde à pergunta What do Pictures Want?, Mitchell 6. “This ‘Pygmalion effect’
afirma que aquilo que as imagens desejam é diferente daquilo que comu- might be contrasted with
the ‘Medusa effect’ and the
nicam ou do efeito que produzem, e que, como as pessoas, as imagens
familiar symptomatology of the
não sabem o que querem e esperam encontrá-lo através do diálogo. Esta ‘Narcissus effect’ as a survey
of the basic possibilities in
afirmação não descarta o papel do espectador e conta com a reciprocida-
the beholder-image relation:
de entre ver e ser visto, facto sublinhado pela sensibilidade ao raciocínio the image as a deadly lure
that swallows or drowns the
tradicional, em que o poder das imagens tem implicações sociais. Ainda
beholder; as a mimetic charm
assim, ao descrever os “efeitos”, centra-se nos resultados que as imagens that turns the beholder into a
paralyzed image; as a fulfilled
produzem no espectador, quando é possível, em cada mito, encontrar
fantasy that mates with the
relações de dependência mútua entre espectadores e imagens. beholder”. Idem, p. 58.
de tocar na imagem [“Ao menos que eu possa ver o que eu não posso
9. OVÍDIO, Op. Cit,
tocar”9], acção que determinaria o desvanecimento do reflexo na água. p. 98 (Livro III, 475).
153
ARS A consciência do carácter ilusório da imagem é ainda mais evidente na
ano 13 versão do mito de Pausânias10, onde Narciso tem uma irmã gémea por
n. 26 quem se apaixona. Quando a irmã morre, Narciso fica inconsolável, e,
quando um dia se vê reflectido numa fonte, julga ver a irmã morta. Em-
bora consciente do desaparecimento da irmã e do facto de se estar a ver a
si mesmo reflectido, Narciso adquire o hábito de se mirar nas fontes para
se consolar da perda, utilizando a imagem como meio para aliviar a dor.
No mito de Medusa, o exercício do poder da górgona depende
directamente do olhar deliberado do espectador, é ele quem olha Me-
dusa (“por olharem”), e, por isso se transforma em pedra: “Por toda a
parte, pelos campos e pelos caminhos, ela vira estátuas de homens e de
animais, mudados de seres vivos em pedra por olharem para Medusa”11.
No mito, Perseu é a figura que centraliza a possibilidade dos humanos
rodearem, fugirem e domesticarem o olhar de Medusa, e o afastamento
de Perseu relativamente aos animais, referidos na narrativa [“Por toda a
parte, pelos campos e pelos caminhos, ele vira estátuas de homens e de
animais, mudados de seres vivos em pedra por olharem para Medusa.
Ele, porém, apenas vira a imagem da arrepiante Medusa reflectida no
escudo de bronze”12], é enfatizado pela sua proximidade aos deuses. O
herói é filho de Zeus e da mortal Danae, e é a ordem do tirano Polidec-
tes e o conselho da deusa Atena que, conjugados, o levam a partir em
busca de Medusa; simultaneamente, são os deuses que concorrem para
o sucesso de Perseu, oferecendo-lhe atributos mágicos. Louis Marin13
relaciona os ardis utilizados por Perseu com o triunfo da razão humana
e sua consagração na representação visual através da perspectiva, e en-
fatiza esse triunfo quando nota que, se Medusa dormia quando Perseu
10. GRIMAL, Pierre. Dicionário
a decapita, o escudo seria desnecessário, e serve apenas como símbolo
de Mitologia Grega e Romana.
Lisboa: Difel, 1992, p. 322-23. da vitória da distância e da vigilância, como numa estrutura panóptica;
no papel de vigilante do panóptico, o poder de Perseu depende de ver
11. OVÍDIO, Op. Cit, p. 127
(Livro IV, 775-780). e não ser visto. Marin enumera os momentos desta vitória: o roubo do
ponto de vista, o domínio da distância e a utilização da representação.
12. OVÍDIO, Op. Cit,
p. 127 (Livro IV, 780). No caminho, Perseu encontra-se com as três górgonas que partilham
um único olho, passado de mão em mão; num dos momentos de alter-
13. MARIN, Louis.
Caravaggio´s “Head of nância, Perseu consegue roubar esse único olho e chantagear os mons-
Medusa”. A Theoretical
tros de forma a conseguir a morada das ninfas, figuras que o auxiliam.
Perspective. In: GARBER,
Marjorie; VICKERS, Nancy J. Segundo Marin, este é o momento em que Perseu se apodera do “ponto
(ed.). The Medusa Reader.
de vista” (quem vê derrota os cegos) e, consequentemente, adopta a
Nova York; Londres: Routledge,
2003, p. 142-43. posição do espectador ou do pintor no dispositivo perspético. A este
154
momento, segue-se a conquista da distância de observação e do poder Marta Cordeiro
exercido a partir de uma posição privilegiada, a do espectador/ pintor, Do Efeito ao Paradigma:
Narciso, Medusa e Pigmalião
que permite a Perseu tornar-se num fazedor de imagens através da uti-
lização dos raios visuais emanados pela cabeça da górgona, agora deca-
pitada. Finalmente, Perseu utiliza a representação – o reflexo – como
forma de retaliação da razão, colocando Medusa frente ao seu próprio
olhar imobilizador e voltando esse olhar contra si.
Sobre o mito de Pigmalião, a descrição de Mitchell fala de uma
“fantasia que coincide com os desejos do espectador”, pelo que, mais
que um “efeito” da imagem sobre o espectador, existe um “efeito” do
espectador e dos seus desejos sobre a imagem: são os desejos do espec-
tador que criam e dão vida à imagem. No entanto, como aponta Victor
Stoichita, é Galateia que “prega uma partida” ao escultor e, em vez de
cumprir a função de protecção da libido, resguardando Pigmalião da
paixão por qualquer mulher, provoca a acção do desejo e faz com que o
artista duvide de si próprio e da condição da sua criação: “A tal ponto
a arte não se vê na arte! Pigmalião extasia-se a olhá-la e sorve no peito
chamas pelo corpo de imitação. Muitas vezes toca com as mãos na sua
obra para testar se é corpo ou marfim, e nem admite que é ainda mar-
fim”14. Pigmalião é ultrapassado pela imagem, prefere-a a qualquer ser
vivo, e Stoichita considera que “Pigmalião não cria intencionalmente a
forma perfeita de uma mulher virtual, mas é, por assim dizer, a arte que
a cria para ele e apesar dele”15.
A dependência entre os desejos do espectador e os desejos da
imagem é central no mito de Pigmalião, de tal forma que Galateia res-
ponde e corresponde ao desejo de Pigmalião – o desejo que, partindo
de Lacan, Bernard Baas designa de “plano de gozo”. Baas considera que
a imagem protege o sujeito do irrepresentável – o gozo em si –, e que,
14. OVÍDIO, Op. Cit, p. 252
frente a uma imagem, o olhar do espectador é capturado por “algo” que
(Livro X, 250-255).
o incita a procurar esse irrepresentável que está para lá da imagem. A
15. STOICHITA, Victor I. The
mediar está o ecrã, que é o que separa e ao mesmo tempo aproxima o
Pygmalion Effect. From
“(…) o plano do sujeito ou o plano visual e o plano do Outro ou o plano Ovid to Hitchcock. Chicago;
Londres: The Univesity of
do gozo”16. Assim, para além do marfim, Pigmalião teria sido capturado
Chicago Press, 2008, p.13-14.
por esse gozo que não se pode ver mas permite que algo de essencial do
16. BAAS, Bernard.
sujeito se mostre, análise que retoma a ideia freudiana de uma “verdade
Pygmalion´s Gaze. 2008,
particular” velada pela imagem. p. 6. Disponível em: ‹www.
lineofbeauty.org/index.php/s/
Galateia pode ser a figura que responde à questão What do Pictu-
article/view/9/43›. Acesso
res Want? e proferir uma das respostas avançadas por Mitchell, “querem em 2011.07.29.
155
ARS ser amadas e ser “reais”17. A passagem da escultura à vida inicia-se com
ano 13 a aceitação de uma ilusão por parte de Pigmalião. Stoichita fala de uma
n. 26 “alucinação” mas, se se considerar a alucinação uma falsa percepção, ou
seja, a percepção de um objecto inexistente18, pode tomar-se o caso de
Pigmalião não como alucinação mas, antes, como a aceitação consciente
de uma ilusão. É certo que a excelência da escultura ilude a vida (a tal
ponto que “prega uma partida” ao escultor) mas, simultaneamente, Pig-
malião sabe tratar-se de marfim – o material dos sonhos19 – e quando se
dirige à deusa Vénus rogando pela vida da estátua, inibe-se de falar de
Galateia como de uma mulher real e prefere pedir uma mulher seme-
lhante a Galateia: “Deuses, se tendes o poder de outorgar tudo, desejo
que me concedeis (não ousando Pigmalião dizer ‘a rapariga de marfim’)…
esposa semelhante à de marfim”20. Este desejo é atendido e o marfim
torna-se carne, processo paralelo à substituição de um amor que se inicia
com o prazer visual por um amor carnal, suportado pelo toque. Várias
são as referências ao toque, que se inicia com beijos, carícias e ofertas à
estátua e que, num momento posterior ao pedido endereçado a Vénus,
suscita reacções físicas na estátua: o beijo que torna tépida a sua face, o
toque nos seios que torna mole o marfim, as mãos que agora sentem um
corpo humano com veias a latejar, os beijos que fazem Galateia corar;
Stoichita enfatiza o paralelo entre o par ver/ tocar e a passagem do branco
do marfim ao vermelho da carne, do frio da estátua ao calor da vida.
É a relação directa entre ver e desejar que se encontra, também,
no mito de Narciso onde o jovem confunde aquilo que é uma superfície
– o reflexo na água – com uma profundidade, tornando evidente, numa
primeira ocasião, a possibilidade de, em determinadas circunstâncias,
os humanos serem iludidos pelas características das imagens e serem
17. MITCHELL, W. J. T.
What do Pictures Want? The por elas cativados. No momento que procede a tomada de consciência,
lives and Loves of Images.
quando Narciso reconhece estar perante o seu reflexo, inicia-se a esco-
Op., cit., p. 309.
lha da imagem em detrimento de qualquer amante vivo, a escolha da
18. COSTA, J. Almeida; MELO,
imagem sobre a Natureza. Narciso, que antes negara o toque de Eco
A. Sampaio. Dicionário da
Língua Portuguesa. Porto: [“Tira as tuas mãos de cima de mim! Antes morrer do que entregar-me
Porto Editora, 1999, p. 79.
a ti!”21], continua a preferir o prazer obtido através do olhar e prescinde,
19. STOICHITA, Victor I. agora, de tocar no seu reflexo sob pena de o perder. A imagem preenche
Op. cit., p.7.
os desejos e expectativas de Narciso, a tal ponto que lhe resta a identifi-
20. OVÍDIO, Op. cit., p. cação total com a própria imagem: ser simultaneamente aquele que de-
253(Livro X, 270-275).
seja e o objecto desejado, condição que decorre da sentença que o con-
21. Idem, p. 95 (Livro III, 390). dena a nunca ter aquilo que ama pois, o que ama, é um reflexo, como é
156
um reflexo aquela que o ama, Eco, uma voz que perdeu o corpo e que Marta Cordeiro
apenas copia o discurso dos outros. Narciso ama-se sem a existência Do Efeito ao Paradigma:
Narciso, Medusa e Pigmalião
de um outro que possa mediar esse amor e, ao anular a mediação, faz
coincidir a sua imagem com o desejo ele mesmo e apaga a distância que
separa sujeito e objecto. Por outro lado, aquilo com que Narciso vê – o
olho – é feito do mesmo líquido onde a imagem se projecta, existindo
uma espécie de fusão entre a matéria daquele que observa e a do ob-
jecto e, como adianta Gaston Bachelard, é a água a matéria capaz de
manter o sonho e conservar o desejo, pois o seu movimento contínuo
permite ao sujeito idealizar sobre a beleza do reflexo: “a água é também
um tipo de destino, não mais apenas o vão destino de um sonho que não
se acaba, mas um destino essencial que metamorfoseia incessantemen-
te a substância do ser”22.
O destino de Narciso foi aceitar ser uma imagem e juntar-se ao
estatismo da imagem parada, ficando “imóvel, incapaz de se mexer, o
olhar fixo, qual estátua esculpida em mármore”23. Antes da morte, des-
crita como uma “dissolução”, expressão que aproxima Narciso de uma
substância quase imaterial, Narciso ganha vida – real, carnal – e “(…)
fustiga o peito com as mãos da cor do mármore. O peito fustigado cobre-
-se de uma vermelhidão rósea”24, episódio que atesta a decisão de Nar-
ciso em morrer sendo que, como aconteceu a Galateia, o jovem poderia
ter aproveitado o calor da corrente sanguínea (por oposição à frieza da
pedra ou do marfim) para afastar o estatismo do mármore e da morte. 22. BACHELARD, Gaston. A
A identificação entre o que vê e quem é visto existe, também, Água e os Sonhos. Ensaio
sobre a Linguagem e Matéria.
no mito de Medusa. Craig Owens25 descreve o mito como “proto-fo-
São Paulo: Martins Fontes,
tográfico” e distingue o momento em que Medusa vê o seu reflexo no 1989, p. 13.
mos ver é uma relação de logro. O sujeito se apresenta como o que ele
26. LACAN, Jacques. O
não é e o que se dá para ver não é o que ele quer ver. É por isso que o Seminário. Livro 11. Os Quatro
Conceitos Fundamentais da
olho pode funcionar como objecto a, quer dizer, ao nível da falta”26. Ao
Psicanálise. Rio de Janeiro:
ver-se, Medusa seria obrigada a encarar a falta. Jorge Zahar Editor, 1993, p. 102.
157
ARS Perseu encerra Medusa num sistema fechado, forçando-a a
ano 13 identificar-se com aquilo que agora vê e, desse modo, transformando-a
n. 26 numa imagem. É esta dinâmica que Owens encontra no acto fotográ-
fico quando, ao posar, o modelo se identifica com o olhar e com o gozo
do espectador, apresentando-se já como se estivesse imobilizado ou
transformado em imagem. Nas narrativas de Ovídio e de Apolodoro não
existe referência à transformação de Medusa em pedra e a afirmação de
Ovídio é de que Perseu decapita a górgona com o auxílio do escudo en-
quanto ela dorme; Apolodoro confirma o sono e refere que Atena guiou
o braço de Perseu enquanto este evitava o olhar de Medusa através do
escudo. Jean-Pierre Vernant procura perceber como acontece a deca-
pitação e avança três hipóteses: é Atena que guia o braço de Perseu e o
herói nada vê; Perseu desvia o seu olhar e não olha Medusa enquanto
a mata; Perseu olha para o reflexo de Medusa no escudo. Nesta última,
o escudo permite-lhe ver Medusa como imagem, evitando o frente-a-
-frente e Vernant observa que o reflexo funciona como “se a imagem
fosse ela, mas também como se ela estivesse ausente na presença do
seu reflexo”27. A imagem de Medusa é diversa de Medusa mas é mais
que uma apresentação, mantém determinadas qualidades e poderes da
górgona e, por esse motivo, terá sido incorporada no escudo de Atena
(e, por tradição, no de outros guerreiros gregos) como forma de intimi-
dar e derrotar os inimigos. Vernant denomina esta capacidade de “sim-
pática”, no sentido da imagem incorporar parte dos poderes de Medusa
e poder “medusar”. Seguindo Tomás Maia, “(…) o reflexo impresso da
Medusa já não era a Medusa; a sua imagem por si só, já não podia ma-
tar mas apenas medusar. A imagem da Górgona tinha encarnado algo
do seu olhar sem poder incorporar o seu ser”28.
Nesta acepção – e apesar de não ser Medusa –, a identificação
entre a górgona e a imagem é de tal ordem que existe uma continuidade
entre as duas, conservando-se alguns dos efeitos que ambas produzem
nos espectadores. Ainda assim, mantém-se a evidência de Medusa ape-
27. VERNANT, Jean-Pierre. nas poder ser vista por intermédio do reflexo e de, pelo menos para os
In the Mirror of Medusa. In:
espectadores, a górgona apenas poder existir como imagem, visto ser
Mortals and Immortals.
Princeton: Princeton essa a única forma de a ela acederem, questão que é valorizada por
University Press, 1992, p. 147.
Owens que assume a petrificação – ou a transformação em imagem –
28. MAIA, Tomás. Assombra. de Medusa e adere à interpretação que faz do mito um exemplo de um
Ensaio sobre a Origem da
fazedor de imagens transformado em imagem, de um criador que é si-
Imagem. Lisboa: Assírio
&Alvim, 2009, p. 69-70. multaneamente espectador e de um outro espectador, Perseu, transfor-
158
mado em fazedor de imagens. Acresce notar que é apenas no momento Marta Cordeiro
da decapitação de Medusa, agora uma cabeça separada do corpo, que Do Efeito ao Paradigma:
Narciso, Medusa e Pigmalião
se realiza o nascimento dos dois filhos, Pégaso e Chrysaor, episódio
que releva o facto do cumprimento das potencialidades de Medusa de-
penderem da sua transformação em imagem e de, nessa condição, ter
poderes próprios, independentes do corpo que ela é em vida.
O facto de, nos três mitos, verificar-se a existência de responsa-
bilidade ou de liberdade de escolha dos espectadores, mas, também, a
capacidade de projectarem desejos e aspirações na imagem, ou, noutros
casos, de existir identificação entre ambos, espectador e imagem (sendo
Medusa um caso particular em que Medusa e Perseu assumem, embora
em diferentes momentos, a posição de espectadores), faz com que seja
possível encontrar uma relação entre imagem e espectador que excede
a designação de “efeito” e ambicione determinar um modo de relacio-
namento entre indivíduo e imagem.
Do efeito ao paradigma